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Volume XXV – N. 3
2019
Goiânia – Goiás
http://pepsic.bvs-psi.org.br
Ficha Catalográfica
137p.: il.: 30 cm
ISSN: 1809-6867
CDD 616.891 43
Citação:
REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 25, n.3, 2019. 137p
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Volume XXV – N. 3 – 2019
Expediente
Editor
Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)
Editores Associados
Camila Muhl (Universidade Federal do Paraná)
Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)
Danilo Suassuna Martins Costa (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia)
Paulo Coelho Castelo Branco (Universidade Federal da Bahia)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
Conselho Editorial
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José Olinda Braga (Universidade Federal do Ceará)
Lester Embree (Florida Atlantic University) (in memoriam)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
María Lucrecia Rovaletti (Universidade de Buenos Aires)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo (Universidade Federal de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Michael Barber (Saint Louis University)
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Rosemary Rizo-Patrón de Lerner (Pontificia Universidad Católica del Perú)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
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Editores de Texto – Suporte Técnico
Josiane Almeida
Silvana Ayub Polchlopek
Bibliotecário
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Financiamento
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)
Apoio
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Encaminhamento de Manuscritos
A remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência
de seguimento que se fizer necessária, deve ser submetida eletronicamente
endereçada ao site: <http://submission-pepsic.scielo.br/
Editor
Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies.
E-mail: aholanda@yahoo.com
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- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)
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ficas são de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.
A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.
SUMÁRIO
Editorial
• Editorial (Português) – Editorial (Espanhol) – Editorial (Inglês)..............................VIII
Relatos de Pesquisa
• Ser Pessoa na Hospitalização: Relatos de Gestantes sobre as Relações Estabelecidas
pela Equipe Multiprofissional.................................................................................... 225
Leihge Roselle Rondon Pereira (Universidade Federal de Mato Grosso) & Ana Rafaela Pecora Calhao (Universidade
Federal de Mato Grosso)
Tradução
• Fenomenologia Aplicada: Porque é seguro ignorar a epoché...................................................332
Dan Zahavi (University of Copenhagen, Copenhagen, Denmark)
Textos Clássicos
• Meio Século de Filosofia......................................................................................................344
Sumário
VII Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - VII-XIII, 2019
EDITORIAL
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - VII-X, 2019 VIII
EDITORIAL
The third issue of Phenomenological Studies tionship between phenomenology and the disalie-
– Revista da Abordagem Gestáltica comes in a con- nistic movement in Brazil. and in France – with the
text of transition and reassessment. We have com- important participation of respected names of con-
pleted thirteen years of uninterrupted publication, temporary French psychiatry, such as Tudy Gozé
in a growth movement that demands new perspec- (Université de Toulouse, France) and Jean Naudin
tives and new revaluations for the following years. (Université Aix-Marseille, France) –; going through
In this issue, besides the flow of the journal, sports and the relationship between women and
we present as a novelty the Portuguese translation football; a study on the conception of motivation
of the manuscript “Applied Phenomenology: Why in Edith Stein and another on social perception in
is it safe to ignore the epoché”, by Dan Zahavi (Uni- light of the praxiological conception of intentiona-
versity of Copenhagen, Copenhagen, Denmark), lity; to conclude with two clinical studies involving
one of the most leading contemporary researchers the use of self-box in the Gestalt therapy experiment
and commentators on phenomenology. In this arti- and another on the relationship between Frankl and
cle, the author evokes the distinction – not always Heidegger.
clear – between a Transcendental Phenomenology Closing this issue, we bring the translation of a
and an Applied Phenomenology (fundamental for text by José Ortega y Gasset, entitled “Half Century
understanding the transition from a phenomeno- of Philosophy”, written in 1951, but which remai-
logical philosophy to the empirical sciences) and, ned unpublished until 1980, when it was published
particularly relevant to the field of empirical re- by Revista do Occidente, commemorating the 25th
search, notably that of so-called qualitative, which anniversary of his death. from its author. We thank
usually appropriates concepts of phenomenological the heirs of Ortega y Gasset for their kindness in
philosophy. allowing their translation and publication in Por-
Following, we present a set of empirical resear- tuguese.
ch that touches on diverse themes, such as health
– with reports of pregnant women in the process of Good reading to all.
hospitalization –; retirement preparation, and the
narrative of crack users’ experience. Adriano Holanda (Editor)
Theoretical studies round off this number
with an equally significant and diverse set of dis-
cussions: from the clarification of a postmodern
“thinking” of the human to a discussion of the rela- (This issue was finished at August 9, 2019)
Editorial
Ser Persona en la Hospitalización: Informe de las Mujeres Embarazadas sobre las Relaciones
Establecidas con un Equipo Multiprofesional
Resumo: Nesse estudo procuramos conhecer e analisar, na perspectiva das pacientes gestantes internadas em um
hospital de ensino na cidade de Cuiabá-MT, como essas significam as relações estabelecidas com a equipe multipro-
fissional. Foram realizadas 11 entrevistas focalizadas, com adoção de atitudes facilitadoras de consideração positiva
incondicional, congruência e compreensão empática, com pacientes que estiveram hospitalizadas durante o segundo
semestre de 2015. Esse procedimento forneceu o instrumental teórico-metodológico baseado na criação de um clima
facilitador, a partir dos fundamentos da Abordagem Centrada na Pessoa, o que permitiu explorar as significações pes-
soais das experiências com um acento afetivo ou emocional. O processamento ocorreu pelo software ALCESTE, análise
pelo estudo das Classes apresentadas pelo software e discussões teóricas sobre as relações interpessoais de ajuda. O
estudo destacou a atenção para: a comunicação dos procedimentos; a disposição para cuidados afetivos em que consi-
deram a pessoa como centro em detrimento às técnicas; a importância para as significações pessoais, e as implicações
das significações pessoais no processo de hospitalização. Exercer essa atenção pode contribuir para o desenvolvimento
de relacionamentos que facilitem o processo de hospitalização.
Palavras-chave: Psicologia Humanista; Abordagem Centrada na Pessoa; Clima Facilitador; Percepção; Equipe de As-
sistência ao Paciente.
Abstract: In this study we try to understand and analyze, from the perspective of pregnant patients admitted to a
teaching hospital in the city of Cuiabá-MT, how these women realize the relations established with a multi profes-
sional health care team. Eleven focused interviews were conducted, with the adoption of facilitative conditions from
unconditional positive regard, congruence, and empathic understanding, with patients who were hospitalized during
the second half of 2015. This provided the theoretical and methodological tools based on creating a facilitative climate,
with the fundamentals of the Person Centered Approach, which allowed us to explore the self understanding experi-
ences with an affective or emotional importance. Data processing was performed by ALCESTE software, analysis used
the classes presented by the software as well as theoretical discussions on interpersonal helping relations. The study
highlighted the attention to: communication procedures; the willingness to emotional care where they consider the
person as the center rather than the technics; the importance for personal insights and implications of these in the
hospitalization process. Accomplish such care can contribute to the development of relationships that facilitate the
process of hospitalization.
Keywords: Humanistic Psychology; Person Centered Approach; Facilitative Climate; Perception; Patient Care Team.
Resumen: En este estudio tratamos de entender y analizar, desde la perspectiva de los pacientes embarazadas ingre-
sados en un hospital universitario en la ciudad de Cuiabá-MT, ya que éstas significan las relaciones establecidas con
un equipo multiprofesional. Llevamos a cabo 11 entrevistas focalizadas con la adopción de actitudes facilitadoras de
consideración positiva incondicional, congruencia y la comprensión empática, con los pacientes que fueron hospita-
lizados durante la segunda mitad del año 2015. Este procedimiento proporciona el instrumental teórico-metodológico
Relatos de Pesquisa
basadas en la creación de un clima facilitador, a partir de los fundamentos del Enfoque Centrado en la Persona, que
nos permitió explorar las significaciones de las experiencias personales con un esfuerzo afectivo o emocional. Procesa-
miento ocurrió por el software ALCESTE, análisis en el estudio de las Clases presentada por el software y discusiones
teóricas sobre las relaciones interpersonales de ayuda. El estudio puso de relieve la atención: comunicación de los
procedimientos; la disposición a el cuidado afectivo cuando consideren a la persona como el centro en detrimento a las
técnicas; la importancia para los significados personales e la implicaciones del significados personales en el proceso
de hospitalización. El ejercicio dicha atención puede contribuir al desarrollo de las relaciones que facilitan el proceso
de la hospitalización.
Palabras-clave: Psicología Humanista; Enfoque Centrado en la Persona; Clima Facilitador; Percepción; Grupo de Atencíon al Pa-
ciente.
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Leihge Roselle Rondon Pereira & Ana Rafaela Pecora Calhao
e são, assim, experimentados no momento em que uma relação de afeição e segurança para que a pes-
ocorre o relato (Rogers, 2009). soa também se perceba e se aceite. A Compreensão
Carl Rogers, internacionalmente conhecido Empática se refere a capacidade de compreender,
por desenvolver trabalhos divergentes às propo- por meio fisionômico e verbal, as experiências e os
sições mais diretivas em Psicologia, teve como sentimentos do outro e a significação que apresen-
principal interesse a formulação de uma Teoria de tam para ele, como também, conseguir comunicar
Psicoterapia centrada na pessoa, cujo processo é es- essa compreensão (Rogers, 2009; 1983).
1 Nessa pesquisa entendemos por equipe multiprofissional, um grupo Nos hospitais,espaços de interação humana,
composto pelos diferentes profissionais da saúde que interagem com os nem sempre encontramos profissionais implicados
pacientes durante a internação, como exemplo: médicos, enfermeiras, no estabelecimento de relações facilitadoras com
nutricionistas e psicólogos.
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Ser Pessoa na Hospitalização: Relatos de Gestantes sobre as Relações Estabelecidas pela Equipe Multiprofissional
o usuário do serviço, apesar de, no Brasil, existir entre vinte e quarenta anos. Dessas entrevistadas,
uma Política Nacional de Humanização, Humani- cinco eram gestantes e seis puerperais. Seis delas
za SUS, (Brasil, 2008), que propõe a superação do com idades entre vinte e vinte e nove anos, quatro na
modelo técnico-científico de cuidado. Essa política faixa etária compreendida entre trinta e trinta e nove
através do princípio da transversalidade, se utiliza anos, e uma com quarenta anos de idade. Sobre o
de ferramentas e dispositivos para consolidar redes tempo de internação, mais da metade das participan-
e vínculos, tendo como norte o contato e a comuni- tes (sete entrevistadas) tinham entre sete e nove dias
cação. A ação de se relacionar, por meio da Políti- de internação quando realizadas as entrevistas, três
ca, potencializa o ideal de cuidados holísticos, no participantes estavam internadas entre quatro e seis
qual é apreciado a pessoa como um todo, de forma dias, e apenas uma estava internada a mais de dez
integral, não havendo um foco estreito na doença dias. As voluntárias foram esclarecidas quanto aos
ou nos sintomas que o paciente apresenta, pois são objetivos do estudo, asseguradas do sigilo e convida-
considerados seus aspectos biopsicossociais, como das a manifestar sua anuência com a assinatura do
suas preferências, seu bem-estar, e o contextos so- termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).
cial e cultural (The Health Foundation, 2014). A coleta das informações ocorreu no segundo
Tendo em vista as práticas de cuidado em saúde semestre de 2015, a partir das gravações em áudio
de fundamentação holística, como é o caso da ACP de onze entrevistas focalizadas (Gil, 1999), utiliza-
e do Humaniza SUS, é nosso interesse compreender das como um procedimento com a menor estrutu-
e analisar, através da Abordagem Centrada na Pes- ração possível permitindo retomar ao objetivo da
soa, da literatura e dos resultado de pesquisas sobre pesquisa quando necessário, com o uso das ques-
o tema, o que as pacientes gestantes ou puerperais tões abertas: Como você está sentindo esse contato
– mulheres que se encontram no pós-parto –, de alto com a equipe? O que você pode dizer sobre o tipo de
risco, internadas em uma enfermaria de ginecologia cuidado que está recebendo? Você acredita que essa
e obstetrícia, têm a dizer sobre as relações que a equi- relação contribui, dificulta... para a sua melhora?
pe multiprofissional de cuidado estabeleceram com Durante as entrevistas a pesquisadora buscou,
elas durante o processo de hospitalização; identificar a partir dos pressupostos que fundamentam a ACP,
as percepções das pacientes internadas sobre o tipo criar um clima de segurança e apoio, que auxilias-
de relação de cuidado recebido; e verificar, a partir se no processo das entrevistas com as participantes.
das próprias participantes, a implicação das relações Buscamos durante o processo das entrevistas e por
de cuidado no seu processo de hospitalização. Tra- meio do uso das atitudes facilitadoras dar ênfase aos
ta-se, assim, do desvelamento das significações pes- aspectos afetivos e em acentuar a situação imediata
soais atribuídas pelas pacientes acerca dos relaciona- vivenciada pelas pacientes, a fim de que não somen-
mentos vivenciados durante a internação hospitalar te os conteúdos informativos ou cognitivos se expli-
e que durante a entrevista provocaram uma afetação citassem, mas também aqueles ligados ao afeto.
emocional imediata. O processamento dos dados se deu pela utili-
zação do software de Análise Lexical Contextual de
1. O desenho de uma pesquisa sobre as um Conjunto de Segmentos de Texto (ALCESTE),
relações humanas desenvolvido por Max Reinert no Centro Nacional
Francês de Pesquisa Científica (CNRS). Esse é um
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética programa que fornece a classificação estatística dos
em Pesquisa e obteve aprovação, com o Certificado enunciados em khi2, de análise lexical, que quan-
de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº tifica um texto para extrair dele as estruturas mais
45605115.8.0000.5541. Conduzimos a mesma con- significativas em Classes de palavras, apresentadas
forme as diretrizes e as normas regulamentadoras graficamente através de uma árvore de classificação
de pesquisas envolvendo seres humanos, aprova- hierárquica descendente (CHD), no formato de um
das pela Resolução nº 466, de dezembro de 2012, dendograma, que serão analisadas qualitativamente
do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012). (Camargo, 2005).
Os dados foram coletados na Clínica de Gine- O aproveitamento do material discursivo foi
cologia e Obstetrícia de um Hospital de ensino na de 74%, com uma unidade de contexto inicial con-
cidade de Cuiabá, Mato Grosso. Para a seleção das tendo onze entrevistas, e resultou na produção de
participantes utilizamos como referência os seus sete subcategorias de Classes de palavras, que serão
prontuários. Foram selecionadas aquelas que aten- analisadas concomitantemente com as discussões
deram aos critérios de inclusão, a saber: comprome- que Rogers apresenta sobre as relações de ajuda, o
timento cardiovascular, em que se atende a ênfase levantamento da literatura e pesquisas consultadas
Relatos de Pesquisa
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Leihge Roselle Rondon Pereira & Ana Rafaela Pecora Calhao
material discursivo. O Eixo 01 e o Eixo 02 foram ções interpessoais com a equipe multiprofissional,
denominados de Processos de hospitalização e Rela- respondendo de forma particular aos objetivos da
ções de apoio, com respectivamente 10% e 14% do pesquisa.
discurso. Ao analisar o conteúdo e a posição desses
Eixos no dendograma, que se apresenta como peri- 2.1. A hospitalização e a importância do apoio
férico ao Eixo 3, uma observação inicial se impõe: social
tais Eixos foram explicitados mediante a incorpo-
ração de um mote indutor – Como está sendo a sua O Eixo 01 foi composto por uma única Clas-
internação?–, como recurso metodológico, após a se, cujo conteúdo e dados estatístico são detalhados
realização do estudo piloto, a fim de que as parti- pela Tabela 1 seguinte.
cipantes pudessem se sentir mais à vontade para a
realização da pesquisa. Tabela 1. Palavras Mais Relevantes da Classe Pro-
Essa questão introdutória, que também zela cessos de Hospitalização
pela atmosfera facilitadora, traz um fator que,
segundo Kinget (1977), é notado principalmente
no começo das relações, em que o cliente – no
caso específico do estudo, as participantes – está
preso a angústias que podem torná-las hipersen-
síveis. Segundo a autora, em qualquer situação
interpessoal a atmosfera só será permissiva se for
composta por qualidades de segurança, externa e
interna, e calor.
Dessa forma, o Eixo 01 e o Eixo 02 não abarca-
ram os objetivos da pesquisa, mas ajudarão a com-
preender o campo experiencial– fomentados por
tudo aquilo que se passa no organismo, acessado
pela memória, no qual as experiências passadas po-
dem afetar a experiência imediata (Kinget, 1977)–,
Nota. ¹vomitando, vomitar, vomitava, vomitei, vomito; ²certinha, certinho;
das participantes e sobre as coisas que as mesmas ³controlado, controlar, controle; 4começa, começando, comecei, começo, co-
Relatos de Pesquisa
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Ser Pessoa na Hospitalização: Relatos de Gestantes sobre as Relações Estabelecidas pela Equipe Multiprofissional
“Na sua casa é diferente daqui, [aqui] você tem O contexto dessa Classe marca, de modo geral,
que comer de acordo com o seu tratamento. E um discurso sobre as relações de apoio, aqui expli-
na casa da gente não, porque você está ruim e citado como apoio social, que corresponde as fun-
ali você está passando mal, mas está comendo. ções de apoio emocional, material e afetivo. Essas
E aqui não, aqui tudo é controlado e é com os interações buscam fomentar sentimentos de ajuda
horários certinho” (Participante 06, 12 dias de aos sofrimentos decorrentes do contexto hospitalar
internação, 40 anos, comunicação pessoal, 22 e do adoecimento. São relações estabelecidas com
de setembro, 2015). os familiares, amigos, colegas de quartos, funcio-
nários do hospital, conforme o depoimento de uma
A declaração coincide com as discussões reali- participante.
zadas por Silva e Graziano (1996) que pontuam que
a pessoa quando hospitalizada passa a participar de “[As colegas de quarto] tentam te acalmar ao
um grupo social específico, o de pessoas adoecidas máximo e tentam ver se essa dor passa. Uma
e internadas, onde são impostos papéis caracteriza- dor de falta da casa. Sinto bastante apoiada,
dos por dependência. Nesse contexto o seu espaço porque elas apoiam bastante. Elas ajudam bas-
físico é limitado, suas roupas e objetos pessoais são tante e alivia, alivia a falta do filho e alivia a
retirados, o horário de suas atividades lhe é impos- falta de casa” (Participante 08, 07 dias de in-
to, entre outros aspectos. Trata-se de um atravessa- ternação, 21 anos, comunicação pessoal, 07 de
mento à vida comum da pessoa, que agora também outubro, 2015).
ocupa o papel de paciente.
O ser humano não é apenas um corpo que As relações de apoio mencionadas auxiliam
adoece, é formado por aspectos subjetivos e obje- no processo satisfatório da internação hospitalar, as
tivos que o fazem interagir com o mundo (Bace- falas apontaram que o apoio social durante a gesta-
llar, 2009). Para lidar com as tensões que o corpo ção pode funcionar como um fator protetivo.
adoecido proporciona e com as imposições de uma As relações empáticas estabelecidas entre as
nova rotina comum aos ambientes hospitalares, colegas de enfermaria contribuem para que as ges-
como horários das refeições pré-estabelecidos, ho- tantes se sintam amparadas e acolhidas no ambien-
rários para exames, visita clínica dos profissionais te hospitalar. Rogers (2009), aliás, aponta a impor-
da saúde, professores e estudantes, diminuição da tância da existência de uma compreensão empática
privacidade e permanência em um ambientes des- para o processo de ajuda bem-sucedido. Entretanto,
conhecido, as pacientes necessitam procurar fontes chamamos a atenção para o fato de que nem sempre
de adaptação que se configurem em processos de as relações são significadas positivamente entre to-
bem-estar e qualidade de vida emocional. das as pacientes de uma enfermaria coletiva.
O desenvolvimento da capacidade de flexibili- As funções de apoio não buscam extinguir a
dade diante das adversidades, perpassa pelo desen- dor física do paciente, que estão relacionadas, na
volvimento das potencialidades do indivíduo que, por sua grande maioria, às mudanças orgânicas e fun-
sua vez, é possibilitado pela tendência à atualização cionais. Essas manifestações orgânicas se mesclam
do organismo. Rogers pontua que as pessoas são por- e se confundem com componentes psicológicos,
tadoras de uma tendência ao crescimento e desenvol- onde a presença das pessoas, se satisfatória, ajuda
vimento de seus potenciais, uma capacidade para a a melhor lidar com o sofrimento psíquico causado
reestruturação e reorganização do self, e, consequen- pelo processo de hospitalização, tal como manifes-
temente do comportamento (Rogers, 2009; 1972). tado pelas participantes do estudo. Ao terem abor-
A Tabela 02 explicita as palavras mais signifi- dado sobre as diferenças sentidas na rotina com o
cativas do Eixo 02, Relações de apoio. processo de hospitalização e a importância do apoio
social na dor subjetiva, ainda que pela influência de
Tabela 2. Palavras mais significativas da Classe um mote indutor, conforme discutido anteriormen-
Relações de apoio te, as entrevistadas nos ajudaram a compreender o
campo experiencial das relações estabelecidas com
a equipe multiprofissional.
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A tabela 03, seguinte, explicita os resultados o interlocutor se sente aliviado e aberto a processos
da Classe 03. de mudança.
A ausência dos espaços de diálogo, aqui obser-
Tabela 3. Palavras mais significativas da Classe vados como lacuna entre os procedimentos e a re-
Relações percebidas como distantes lação com a equipe, tendem a silenciar o paciente,
principalmente enquanto ser autônomo que perce-
be, sente e pensa sobre o seu processo de hospita-
lização.
Ismael (2005) ao discutir a comunicação no
meio médico considera que “[...] o paciente espera
receber a atenção compatível com o seu estado de
ansiedade e desamparo: essa é, para ele, a caracte-
rística suprema do saber médico, mais que os diplo-
mas que ele eventualmente ostente nas paredes” (p.
88). Apesar disso, na percepção das entrevistadas,
algumas situações vivenciadas no Hospital de ensi-
no denunciam uma relação que suscita desamparo,
tal como explicitado por uma das participantes do
estudo:
Nota.1exame, exames; 2esperado, esperando, esperar, esperava,
espero; 3faz, fazemos, fazer; 4medica, medicas, medico, médicos, “Essa médica mesmo, essa interna que falou
medo; 5sabe, sabem, saber, sabia, sabiam.
para mim que nunca mais, que não iria me
Nessa Classe notamos palavras que se referem dar mais remédio, ela sumiu. A interna nem
a procedimentos hospitalares (exame, ultrassom, sequer veio aqui para saber se estava bem e se
resultado). Recorrendo-se ao contexto do discurso minha filha estava bem, simplesmente sumiu,
das participantes, foi possível observar que para eu nunca mais vi ela aqui e era mais que uma
além dos procedimentos, as pacientes se referem obrigação dela me dar remédio, se estava sen-
ao manejo e comunicação de tais procedimentos, tindo dor ou não, era obrigação dela. [...] Eu
implicando em relação com a equipe de saúde. Ao sabia que estava perdendo líquido e o médico
abordarem a questão, queixam-se do distanciamen- chegou a falar para a minha mãe que eu es-
to notado entre a equipe, sobretudo do profissional tava fazendo moagem. Não era moagem, uma
da medicina, que, segundo elas, se colocam menos mãe sabe quando está na hora e quando não
comunicativos na explicação e realização dos pro- está. Esperava uma maior atenção deles e que
cedimentos. As participantes percebem um ruído eles compreendessem mais.” (Participante 01,
existente na comunicação, as participantes também 06 dias de internação, 31 anos, comunicação
significam as atitudes dos profissionais como de pessoal, 09 de setembro, 2015).
pouca implicação no seu processo de tratamento,
como mostra o depoimento: As considerações tecidas, ao que tudo pare-
ce indicar, se apoiam no que é discutido por Costa
“Teve menina daqui que semana passada fu- e Azevedo (2010) sobre as condições de empatia,
giu. Duas mães fugiram daqui, quando pega- onde nomeiam um paradoxo técnico-empático e
ram elas já estava saindo com mala, já iam apresentam o temor, pontuado por alguns médi-
sair. Porque? Queriam respostas e ninguém cos, de que “ao serem empáticos, se distanciam da
dava resposta, a equipe da GO[medicina] só técnica existente na identidade médica, um distan-
falava para ela olhar o neném, para esperar ciamento do profissionalismo” (p. 266). De modo
o exame e que vamos fazer o exame, mas tam- contrastante, Rogers (2009), ao discutir a impor-
bém não sabem que dia e nem que horas que tância de uma compreensão empática nas relações
iriam fazer esse exame. E assim você fica, e o humanas interpessoais, mostra que quanto mais
pessoal tem a vida lá fora, tem gente esperando compreendemos empaticamente, tão maior será a
lá fora, tem coisas e não dá para esperar”(Par- proximidade das relações interpessoais e, conse-
ticipante 07, 06 dias de internação, 28 anos, quentemente, do processo de ajuda.
comunicação pessoal, 29de setembro, 2015). Outro contraste ao posicionamento médico de
que é falta de profissionalismo ser empático com
seu paciente é encontrado em estudos que expli-
Relatos de Pesquisa
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Ser Pessoa na Hospitalização: Relatos de Gestantes sobre as Relações Estabelecidas pela Equipe Multiprofissional
próximas–, e as palavras que mais a caracterizam bem, dessa forma, como ativas na relação e valorizadas.
podem ser apreciadas na Tabela 04. Ainda na Classe 04 as participantes conside-
ram uma boa comunicação como uma interação que
Tabela 4. Palavras mais significativas da Classe Rela- provoca proximidade, e também relacionam os pro-
ções percebidas como próximas cessos de explicação dos procedimentos e rotinas
do hospital como algo que contribui para construir
sentimentos de segurança, como podemos observar:
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Leihge Roselle Rondon Pereira & Ana Rafaela Pecora Calhao
No conjunto das palavras apresentadas na “Sinto que estou sendo bem atendida e que você
Classe 05, somente uma, o elemento raiva, traz de tem um valor, que você não está, que elas não
forma implícita uma afetação com conotação nega- estão ali só fazendo o serviço dela de qualquer
tiva. O contexto em que essa palavra está inserida jeito. Elas estão gostando do que estão fazendo e
se refere as condições para superação de sentimen- está fazendo com carinho. Você tem que apreciar
tos de forma geral, e de raiva, particularmente, con- tudo que a pessoa faz por você, é porque às vezes
forme exemplificado no depoimento: ela está. Eu entendo que a equipe de enfermagem
da madrugada perdem a noite, é o serviço delas,
“Ela sempre passou cantando e dando risada e mas é complicado e elas mesmo assim atendem
alegre. A gente tem que ser assim eu acho. Está você com todo bom coração, vem e pergunta
certo, [porque] apesar das coisas que passamos como é que você está, várias vezes a noite, eu
em casa, apesar da raiva, e que passamos ner- acho isso bem interessante e é isso” (Participante
voso. Mas a gente tem que [ser assim]. Isso ajuda 09, 08 dias de internação, 20 anos, comunicação
na melhora, as vezes as pessoas chegam de casa pessoal, 20 de outubro, 2015).
no serviço e só de me olhar com alegria e dar
um bom dia ajuda, não é com cara fechada.” Nas análises da Classe 05 observamos aquilo
(Participante 03, 06 dias de internação, 21 anos, que as participantes perceberam sobre as relações
comunicação pessoal, 10 de setembro, 2015). estabelecidas com a equipe multiprofissional, com
ênfase na equipe de enfermagem. Nas Classes se-
Dias et. al. (2008) aponta ser necessário para guintes veremos como as relações estabelecidas im-
que a Enfermagem desenvolva práticas em saúde plicam e afetam o processo de hospitalização.
mais produtivas, mesclar duas esferas de cuidado:
uma esfera mais objetiva, que se refere às técnicas 2.4. Ser pessoa na hospitalização
e aos procedimentos; e outra mais subjetiva, que se
baseiam em sensibilidades, criatividades e intui- Com a Classe 06, Relações de cuidado que difi-
ções para cuidar do outro. A esfera subjetiva está cultam a hospitalização, apresentadas na Tabela 06,
relacionada aos comportamentos espontâneos, que podemos notar como as participantes percebem e
demonstram apoio, conforto e buscam proximidade sentem as relações de cuidado que dificultam o seu
com o paciente. processo de hospitalização.
Segundo esses autores, os profissionais que
mais interagem com os pacientes são aqueles da Tabela 6. Palavras mais significativas da Classe Relações
equipe de enfermagem, por esse motivo esses profis- de cuidado que dificultam a hospitalização
sionais devem estabelecer uma forma de contato que
irá transcender os procedimentos técnicos. A fim de
atender a isso, devem ser estabelecidas relações em-
páticas entre o enfermeiro para com o paciente, tra-
ta-se do “toque afetivo” da enfermagem explicitado
na Classe 05 a partir dos vocábulos: cuidado, ajuda,
carinho e conversa, como observado na declaração:
ções afetaram as participantes e levaram a desen- das participantes, configuram conotações negativas
cadear sentimentos de valorização pessoal e movi- diante de situações impeditivas, como o caso de uma
mento de autocuidado em relação ao seu próprio hospitalização que está associado a impedimentos
processo. As participantes do estudo também expli- funcionais, como mostrado no depoimento:
citam que os funcionários mais amistosos seriam
aqueles que gostam do seu papel e do trabalho que “É complicado porque você se sente meio que
desempenham. A percepção de que o profissional incapaz. Às vezes você precisa de alguém para
gosta do trabalho se alinham com o entendimen- te ajudar a ir ao banheiro e essa situação que
to de comprometimento e qualidade do trabalho, assim parece simples, mas que se torna muito
como foi pontuado por uma participante: chato ficar dependente dos outros. [...] Eu nun-
ca gostei de depender de ninguém, mas aqui
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 225-236, 2019 232
Ser Pessoa na Hospitalização: Relatos de Gestantes sobre as Relações Estabelecidas pela Equipe Multiprofissional
no hospital você acaba dependendo para ir ao sentado, provoca dificuldades no processo relacio-
banheiro, para pegar uma água, para te dar nal. Mesmo que sejam sugeridos procedimentos
um remédio e é muito chato” (Participante 09, necessários para a melhora clínica, as participantes
08 dias de internação, 20 anos, comunicação trazem como fundamental a compreensão e a con-
pessoal, 20 de outubro, 2015). sideração de sua vida integral.
Notamos o quanto os profissionais da equipe
A fala indica que a dependência, evidenciada multiprofissional necessitam estar atentos aos múl-
pelo impedimento de executar suas próprias tarefas, tiplos fatores biopsicossociais que influenciam a
devido à perda e alteração nas condições funcionais, experiência afetiva e a significação cognitiva, e con-
é um dos estados que pode dificultar a hospitaliza- sequentemente as relações interpessoais e o proces-
ção. Esse estado influencia o relacionamento com a so hospitalar das pacientes.
equipe multiprofissional, já que as participantes se Na Classe 07, Relações de cuidado que con-
sentem incomodadas e receiam incomodar aqueles tribuem para a hospitalização, última Classe a ser
que se dispõe ao cuidado em saúde, pelo temor em analisada¸ observamos como as participantes per-
estabelecer uma relação de cuidado que é sentida cebem as relações de cuidado que facilitam o seu
como dependência. processo de hospitalização.
Em outras situações o estado de dependência
também foi percebido pelas participantes como fru- Tabela 7. Palavras mais significativas da Classe Relações
to das relações com a equipe multiprofissional. Elas de cuidado que contribuem para a hospitalização.
dizem sobre as dificuldades em depender dos posi-
cionamentos da equipe, tanto em relação à estadia
e permanência na internação, quanto em relação a
depender do outro para a solução dos sofrimentos
de ordem biopsicossociais.
233 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 225-236, 2019
Leihge Roselle Rondon Pereira & Ana Rafaela Pecora Calhao
Pelo depoimento é manifesto que o tratamento abertas que possuíam a finalidade de auxiliar as en-
eficaz para as participantes do estudo é aquele que trevistas através do acesso e da focalização, não so-
consegue ser centrado nas pacientes, enquanto pes- mente dos conteúdos afetivos presentes, mas tam-
soas, e não centrado em procedimentos de rotina. bém dos conteúdos que pudessem esclarecer sobre
Disto se verifica a importância de uma ambiência os objetivos do estudo. Destacamos que a condução
composta por relações de ajuda integral, em consi- das entrevistas focalizadas trata-se de um procedi-
deração as dimensões biopsicossociais, que reforça mento rigoroso e que demanda do pesquisador um
o paradigma holístico nos cuidados de saúde, no preparo teórico e técnico, como também necessita
qual as ciências humanas e sociais contribuem para da constante observância do processo de pesquisa,
os processos de humanização dos cuidados, e de que é atravessado pelo fenômeno estudado, pelo
modo concomitante para a melhora na saúde.Dessa contexto onde a pesquisa é realizada e pelo campo
forma irão considerar as atitudes necessárias para experiencial do entrevistador e das participantes.
lidar com a situação vivenciada e as suas implica- Recorrendo a prática reflexiva, após os proces-
ções pessoais, conforme comunica uma das parti- sos de coleta e análise dos dados, ficou evidente que
cipantes: a utilização das questões abertas durante a entrevis-
ta, mais se prestou ao aprofundamento dos objeti-
“Apesar de eu saber que quero ir embora, que vos do estudo, do que ao próprio processo experien-
eu já não aguento mais ficar aqui, não por cial das participantes, permitindo a consideração
falta do carinho e da atenção que eu tenho de que a utilização das questões abertas durante a
dos profissionais daqui, mas sei e eu entendo entrevista pode ser dispensável, diferentemente de
o porquê eu estou aqui. Sei que eu tenho que quando abordado como questão introdutória para o
estar aqui para evitar uma complicação lá processo que se tornará experiencial.
fora e ter que voltar de novo. Eles querem que Essa experiência permitiu refletir sobre o pa-
eu saia daqui cem por cento, tanto eu quanto pel da entrevista e do entrevistador em pesquisas
o meu neném.” (Participante 05, 08 dias de orientadas pela ACP, no qual a criação de um clima
internação, 37 anos, comunicação pessoal, 18 facilitador empreendido para a coleta de entrevistas
de setembro, 2015). para fins de pesquisa, ainda que compreenda um
objeto de investigação, deve levar em conta as mes-
Com o cuidado centrado na pessoa, é notória a mas atitudes facilitadoras– consideração positiva
abertura das participantes para as atualizações das incondicional, congruência e compreensão empáti-
suas necessidades, como também o desenvolvimen- ca –, consideradas por Rogers nas relações de ajuda
to de uma liberdade, cada vez maior, para lidar com psicológica, sem a necessidade de recorrer a outros
as suas experiências, contribuindo nas relações de procedimentos metodológicos, como as questões
ajuda para a adesão ao tratamento e fomento de abertas no decorrer das entrevistas. Ao criarmos
confiança. um clima facilitador proporcionamos um espaço de
Quanto às relações de confiança, Rogers (2009) apoio e segurança, no qual as participantes se senti-
cita um estudo realizado por Whitehorn e Betz em ram mais confortáveis para falar sobre suas percep-
1954, em que os autores separaram jovens médicos ções durante as entrevistas e sobre as relações que
em dois grupos (A e B) e analisaram o sucesso al- estabeleceram com a equipe multiprofissional.
cançado pelo Grupo A no trabalho com pacientes Considerando o desenvolvimento da ACP e a
esquizofrênicos em uma enfermaria psiquiátrica. A Teoria das relações humanas apresentada por Ro-
partir das conclusões desse estudo, Rogers chama a gers, percebemos que os fundamentos presentes
atenção para o fato de que o sucesso dos médicos do nessa pesquisa e as formas de comunicação entre a
Grupo A, na ajuda prestada aos pacientes esquizo- pesquisadora e as participantes estão relacionados
frênicos, tenha se dado em razão dos médicos desse com a Fase Reflexiva, nesta ocorre um fluxo bilate-
grupo estabelecerem relações de confiança,recor- ral na comunicação, com uma maior expressão de
rendo a uma participação pessoal ativa, de pessoa uma escuta ativa, no qual o foco está na promoção e
para pessoa – nas análises das interações entre es- no desenvolvimento do cliente – participante – em
ses médicos com seus pacientes, foi concluído que uma atmosfera desprovida de ameaça, isto é, em
ocorreu maior valorização das significações pessoas um clima facilitador e sendo efetivadas, pelo me-
apresentadas pelos pacientes. nos em um grau mínimo, as condições facilitadoras
De forma similar, as participantes de nosso (Moreira, 2010).
estudo argumentam que quanto mais se sentem Verificamos através da análise do corpus que
compreendidas, maior é a chance de confiarem na as percepções das relações interpessoais com a
Relatos de Pesquisa
equipe e se tornarem abertas a ajuda oferecida pela equipe multiprofissional são influenciadas pelo
equipe multiprofissional. campo experiencial das participantes.Uma mesma
pessoa pode ter percepções diferentes em situação
diferentes, e, ainda, pessoas distintas podem perce-
Considerações Finais ber de forma diferente a mesma situação. O campo
experiencial, constituído também por experiências
Com o objetivo de compreender o fenômeno passadas, mas presentes no aqui e agora das situa-
da percepção, a partir das significações pessoais, ções, fomenta as percepções das participantes em
optamos como recurso metodológico a utilização relação ao significado pessoal que atribuem as suas
de entrevistas focalizadas, orientadas por questões experiências na hospitalização.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 225-236, 2019 234
Ser Pessoa na Hospitalização: Relatos de Gestantes sobre as Relações Estabelecidas pela Equipe Multiprofissional
Enfatizamos que ao estudar as percepções das soais no processo de hospitalização. Exercer essas
participantes, estamos diante de dois fenômenos: diferenças na atenção ao paciente pode contribuir
o perceptivo, conforme descrito anteriormente, e para o desenvolvimento dos relacionamentos na
o de distorção da percepção (Rogers, 1977). Assim, ambiência hospitalar, que facilitem a hospitaliza-
as percepções encontradas nesse estudo não apre- ção.
sentam o fato real, mas sim a significação das ex- Também observamos, ao discutir os processos
periências atribuída pelas participantes, enquanto perceptivos, o quanto os estados psicológicos de-
expressão dos seus mundos internos. vem ser considerados pelos profissionais de uma
Nesse estudo, assim, as participantes percebe- equipe multiprofissional de saúde hospitalar, uma
ram relações de proximidade e de distanciamento vez que o mesmo atua como filtro nas comunica-
com a equipe de saúde. Quando falam sobre as re- ções e relações estabelecidas.
lações próximas estão considerando como fator pri- Assim, a percepção de ajuda eficaz por parte
mordial uma comunicação satisfatória. Nestas des- das pacientes, se mostra interdependente de quatro
tacam as explicações da equipe multiprofissional fatores indissociáveis: de uma comunicação cuida-
sobre os procedimentos hospitalares, principalmen- dosa de procedimentos, de uma escuta sensível das
te com relação às explicações dadas pela equipe da demandas e solicitações do paciente, do estabeleci-
medicina, e quando isso ocorre se sentem incluídas mento de uma relação respeitosa, por parte dos pro-
no seu processo de hospitalização. Relatam, ainda, fissionais de saúde; e de certa congruência interna
haver uma maior comunicação quanto às formas de que permita uma percepção com a menor distorção
parto, que pode ser resultado das políticas de saúde, possível, por parte dos pacientes.
que incentivam o protagonismo das mulheres du- Muitas situações e fatores biopsicossociais
rante esse processo. vivenciados durante a internação podem oferecer
Sobre as relações de distanciamento as partici- uma ameaça a imagem de si, dessa forma a simbo-
pantes apontam ruídos na comunicação dos proce- lização dessas experiências fica impedida devido
dimentos rotineiros, como ultrassom e exames, que ao seu conteúdo ameaçador, contribuindo com as
interfere no grau de aproximação e distanciamento deformações da experiência imediata. Dar atenção
das relações com a equipe. Diante da rotina hos- para um cuidado que seja centrado na pessoa que
pitalar o cuidado na explicação sobre esses proce- está internada, facilitando um clima que seja de se-
dimentos, básicos na internação, parece não estar gurança, contribui para que os elementos da expe-
sendo considerado, podendo acarretar dificuldades riência dessa pessoa possam ser mais corretamen-
na hospitalização, sobretudo na adesão ou não aos te simbolizados, possibilitando um processo para
procedimentos solicitados. consciência de si, do outro e das relações humanas,
Mais significativa se torna a atenção a ser dada de cuidado em saúde, presentes no ambiente hospi-
aos procedimentos rotineiros, quando recorremos talar, que se manifesta como mais um dos campos
aos resultados que apontam as relações de distan- de aplicação da Teoria das Relações Humanas de
ciamento com mais de o dobro das explicitações Rogers (Rogers, 1977), ao lado das relações familia-
comparadas às relações percebidas como próximas. res, educação e da aprendizagem, direção de gru-
Os procedimentos rotineiros, assim, necessitam re- pos, resolução de tensões e de conflitos de grupos.
ceber a devida atenção e comunicação pelos profis-
sionais de saúde.
Observamos, ainda, que quando as participan- Referências
tes enfatizam os relacionamentos distantes, desta-
cam os profissionais da Medicina, e quando falam Araújo, K. M. de & Leta, J. (2014). Os hospitais univer-
sobre as relações percebidas como mais afetivas, a sitários federais e suas missões institucionais no
ênfase recai sobre os profissionais da Enfermagem. passado e no presente. História, Ciências, Saúde.
Esses resultados indicam haver diferenças que po- Manguinhos, Rio de Janeiro, 21(4), 1261-1281.
dem se associar a formação profissional.
Entretanto, vale ressaltar que independentemen- Bacellar, A. (2009). Humanização no contexto hospi-
te da ênfase concedida às diferentes categorias profis- talar: A Abordagem Centrada na Pessoa como re-
sionais, a pesquisa revela que os discursos das partici- curso para humanização hospitalar. Em A. Bace-
pantes apresentam uma maior evidência nas relações llar (Cord.), A Psicologia Humanista na Prática:
percebidas como distantes, em detrimentos as próxi- reflexões sobre a prática da Abordagem Centra-
mas. Isso reverbera na necessidade de se considerar da na Pessoa. Palhoça, SC: Ed. Unisul.
a disposição dos profissionais na interação com os
Relatos de Pesquisa
235 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 225-236, 2019
Leihge Roselle Rondon Pereira & Ana Rafaela Pecora Calhao
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Relatos de Pesquisa
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 225-236, 2019 236
10.18065/RAG.2019v25n3.2
Preparación para lajubilación: relato de una intervención clinica en el enfoque de la Psicología Positiva
Abstract: The retirement process represents a turning-point of development procedure. The main goals of this
report were to analyze and describe a psychology attention experience. Developed by a public university, the
Retirement Preparation Program uses positive psychology throughout the retirement period of basic education
employees. A 45 years old teacherprovided basics information for this report by participating in 13 individual
meetings. During those sessions, topics such as, limits recognition, planning and organization necessities, and the
reflection of rewarding work activities were discussed. The psychology attention on a preparation of retirement
has been concluded as an activity directly related to the work conditions. Often, those work conditions are reasons
for illness so, that fact should be a step for a change in concepts of health and wellness.
Key words: Retirement; Teaching; Health occupation; Psychotherapeutic attention; Positive psychology.
237 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019
Daniela Pereira Di Bonifácio & Fabio Scorsolini-Comin
Melo-Silva, 2009; Fontoura, Doll, & Oliveira, 2015; em decorrência do trabalho, além de forte pressão
Wang, Henkens, & Van Solinge, 2011). O processo social acerca da efetividade dessa atuação (Silva,
de aposentadoria representa um momento crítico 2015). Observa-se que 50% desses trabalhadores re-
dentro do desenvolvimento, podendo ser experien- latam não terem se preparado para a aposentadoria
ciado de modo mais ou menos adaptativo a depen- (Gvozd, Sakai, & Haddad, 2014).
der de diversas dimensões como a atual inserção Diversos fatores podem e devem ser analisados
laboral, suas condições de trabalho, bem como as na compreensão da aposentadoria especificamente
expectativas construídas acerca do futuro (França & dos docentes, como a qualidade de vida no traba-
Carneiro, 2009; Nalin & França, 2015). lho, jornada de trabalho, interação com os colegas
A fim de propiciar uma transição mais segura e sentido construído acerca do papel do professor
e adaptativa para a fase de aposentadoria, diversas (Gümüş, Hamarat, Çolak, & Duran, 2012). Assim, é
intervenções têm sido desenvolvidas nos contextos mister que esses profissionais possam contar com
organizacionais e clínicos (Leandro-França, Mur- apoio profissional ao longo do processo de prepara-
ta & Villa, 2014). Os chamados Programas de Pre- ção para a aposentadoria, momento no qual podem
paração para a Aposentadoria (PPA) atuam nesse ser trabalhados aspectos como o enfrentamento de
sentido, propondo reflexões sobre esse processo de expectativas e anseios profissionais e pessoais dian-
preparação, que envolve tanto aspectos negativos te desse momento de vida.
como positivos, operando-se a necessidade de de- No que se refere ao gênero associado predomi-
senvolvimento de estratégias adaptativas que com- nantemente ao profissional da educação, sobretudo
põem, por exemplo, a reconstrução de projetos de no nível básico, é importante ainda observar nesse
vida, a busca pelo bem-estar e a valorização dessa contexto a representação do papel feminino na so-
etapa do ciclo vital como importante na aquisição ciedade trabalhista e consequentemente na aposen-
de aprendizados (França & Soares, 2009). tadoria, em que as conquistas femininas (entrada
Segundo Leandro-França, Murta e Villa (2014), no mercado de trabalho, aumento da escolaridade,
o planejamento para a aposentadoria é um conjunto responsabilidade por despesas da casa) permitiram
de comportamentos complexos, englobando diver- novas possibilidades, com maiores conquistas no
sas dimensões da vida que compõem a identidade. espaço social, fazendo com que essas mulheres se
Assim, o processo de preparação para a aposentado- sintam mais independentes e produtivas (Moreira,
ria pode ser definido como essa etapa que envolve o 2011; Santos & Marques, 2013; Silva, 2015).
levantamento de expectativas, o reconhecimento de A partir dessa consideração têm emergido
necessidades e a adoção de estratégias relacionadas diferentes propostas interventivas, entre elas as
não apenas à interrupção de um período de ativida- que visam a criação de um espaço que possibilite
des laborais, mas também a aspectos como saúde e orientação e acompanhamento psicológico nessa
relacionamentos interpessoais, em uma compreen- fase como forma de proporcionar maior reflexão e
são mais ampla sobre carreira e educação ao longo enfrentamento dessa etapa que acaba sendo ambí-
da vida. De acordo com Murta et al. (2014), os PPAs gua, por gerar sentimentos de crise tanto quanto de
devem incluir discussões sobre ocupação, finanças, liberdade. Os programas de preparação para a apo-
moradia, saúde e relações sociais e afetivas, além sentadoria visam auxiliar o trabalhador a usufruir
de aspectos legais da aposentadoria, corroborando melhor o tempo nessa nova fase, proporcionando
com uma perspectiva mais integral de atenção e maior bem-estar por instigar maior reflexão sobre
cuidado nssa fase da vida. os pontos positivos, amparando a discussão de me-
Diante das repercussões emocionais da fase de lhores alternativas para lidar com as adversidades
aposentadoria, diversas intervenções têm sido bali- desse momento, a adoção de novas práticas por um
zadas no sentido de acompanhar o indivíduo tanto estilo de vida mais saudável (França, 1999, 2002;
na etapa de preparação quanto após a aposentado- Lytle, Clancy, Foley & Cotter, 2015; Murta et al.,
ria, sendo que diferentes abordagens psicológicas 2014; Pazzim & Marin, 2016; Soares, Costa, Rosa &
têm sido empregadas para o delineamento dessas Oliveira, 2007; Zanelli, Silva & Soares, 2010).
propostas. No presente estudo, o foco recai sobre o Esses programas também auxiliam um enve-
processo de preparação para a aposentadoria, dis- lhecer com dignidade. Apesar do expressivo au-
cutindo como podem ser delineadas intervenções mento da expectativa de vida nos últimos anos, a
para uma melhor travessia desse período, tendo sociedade ainda valoriza os meios de produção,
como norte uma proposta clínica desenvolvida a colocando o trabalho como centralidade de vida e
partir da Psicologia Positiva (Scorsolini-Comin & fazendo com que os indivíduos não estejam prepa-
Poletto, 2016). rados para esse processo, sendo necessária uma re-
Relatos de Pesquisa
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019 238
Preparação para a Aposentadoria: Relato de uma Intervenção Clínica na Abordagem da Psicologia Positiva
aulas, discussões, visitas, oficinas e rodas de con- da assinatura do Termo de Consentimento Livre e
versa, por exemplo, abre-se cada vez mais espaço Esclarecido, respeitando-se todos os aspectos éti-
para se pensar como essas pessoas podem também cos. A intervenção foi autorizada pela Pró-Reitoria
ser auxiliadas a partir de intervenções psicológi- de Extensão Universitária da instituição (Registro
cas com foco na aposentadoria. A partir disso, têm PROEXT 059.15).
emergido propostas de aconselhamento psicológico
voltadas a esse público (Scorsolini-Comin, 2015), Experiência analisada
com o apoio de distintas abordagens teóricas, den-
tre as quais destacamos, neste estudo, a Psicologia Foram analisadas as experiências obtidas a
Positiva. Esta abordagem se propõe a recuperar e partir de um projeto de extensão universitária reali-
desenvolver as experiências positivas e as forças zado conjuntamente com um estágio profissionali-
dos indivíduos como formas de enfrentamentos das zante em Psicologia, com ênfase na área de proces-
situações desfavoráveis e de conflito (Scorsolini- sos clínicos. As intervenções ocorreram por meio
-Comin, Fontaine, Koller & Santos, 2013), com ênfa- de encontros realizados entre a cliente - uma profis-
se na promoção de saúde e de bem-estar (Paludo & sional da educação básica - e uma extensionista do
Koller, 2007; Park & Peterson, 2007). quinto ano do curso de Psicologia, supervisionada
Embora não seja expressiva a produção cien- por dois profissionais da área.
tífica sobre a psicoterapia desenvolvida a partir da Essas intervenções psicológicas foram condu-
Psicologia Positiva, nem sejam traçadas diretrizes zidas em uma instituição de ensino de uma cidade
claras e rígidas para tais intervenções (Scorsolini- de médio porte da região do Triângulo Mineiro, Es-
-Comin & Poletto, 2016), observa-se que as expe- tado de Minas Gerais. Os atendimentos psicológi-
riências existentes têm se mostrado bastante eclé- cos realizados pela extensionista foram escolhidos
ticas, dialogando diretamente com autores como como forma de estudo por proporcionarem uma vi-
Rogers e Maslow, considerados precursores desse são ampliada sobre o Programa de Preparação para
referencial, na década de 1950, cujo foco recai so- a Aposentadoria (PPA), onde se pode perceber a
bre a potencialização das capacidades humanas, a evolução da cliente com relação a diferentes aspec-
busca por florescimento, crescimento e pelo pleno tos, como será abordado na discussão do caso.
desenvolvimento. O objetivo do projeto de extensão à comuni-
Antunes e Moré (2016) afirmam que no con- dade era de facilitar a transição entre o mercado
texto nacional há a carência de estudos que ex- de trabalho e a aposentadoria, otimizando recursos
plorem as relações entre aposentadoria e saúde do pessoais em termos de autoconhecimento, promo-
trabalhador, bem como entre saúde do idoso e saú- vendo bem-estar psicológico e autonomia para a re-
de do trabalhador, com o direcionamento de ações solução adequada de conflitos. O aconselhamento
para os ambientes organizacionais. Aliado a isso, a psicológico empregado nas intervenções teve como
preparação para a aposentadoria é um aspecto que base a abordagem da Psicologia Positiva, que visa
vem sendo cada vez mais valorizado nas diversas a recuperar as potencialidades do indivíduo, por
intervenções no contexto do trabalho (Murta et al., meio da capacitação do mesmo, no intuito de pos-
2014; Zanelli, Silva, & Soares, 2010), compreenden- sibilitar o enfrentamento de situações desfavoráveis
do que se trata de uma transição laboral importante e de conflito, buscando por experiências positivas
e com diferentes ressonâncias também em termos e desenvolvimento de recursos pessoais (Nalin &
psicológicos (Costa & Soares, 2009). França, 2015; Park & Peterson, 2007; Paludo & Koller,
A escuta clínica desse processo, portanto, tem 2007; Scorsolini-Comin, 2015; Scorsolini-Comin et
acenado para um locus de estudo e intervenção. al., 2013; Scorsolini-Comin & Poletto, 2016).
Considerando o breve panorama traçado e a neces-
sidade de veiculação de iniciativas desenvolvidas Procedimento
nesses programas interventivos, aliado às necessi-
dades específicas da categoria docente, o objetivo O contato inicial com a participante se deu
deste estudo foi o de descrever e analisar uma expe- pela divulgação do programa na instituição em que
riência de atenção psicológica desenvolvida em um a mesma exercia sua profissão. A partir disso, a
Programa de Preparação de Aposentadoria (PPA) de mesma demonstrou interesse e foi contatada poste-
uma universidade pública federal voltada especifi- riormente para a realização do primeiro atendimen-
camente para profissionais da educação básica, a to e estabelecimento do rapport. Foram realizados
partir da abordagem da Psicologia Positiva. 13 encontros com duração de aproximadamente
uma hora cada, no serviço-escola da instituição de
Relatos de Pesquisa
239 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019
Daniela Pereira Di Bonifácio & Fabio Scorsolini-Comin
atendimento. Também havia espaço para que o es- laboral, de saúde e bem-estar, bem como experiên-
tagiário destacasse suas dúvidas acerca do caso e do cias pessoais e de relacionamentos interpessoais
atendimento, o que era levado para as supervisões e (França & Soares, 2009; Leandro-França, Murta &
discutido nas reuniões clínicas. Villa, 2014).
Assim, o corpus analítico foi composto pelas Tendo em consideração esses aspectos trazidos
transcrições dos atendimentos e das reflexões con- pela cliente, o intuito do aconselhamento psicoló-
tidas em diários de campo. O corpus foi lido mi- gico, de acordo com os pressupostos da Psicologia
nuciosamente, a fim de recuperar tanto o registro Positiva, foi acolher a cliente, buscando o resgate do
da atividade (o que foi realizado a cada encontro, seu bem-estar, em uma perspectiva mais ampla de
as decisões da cliente e o modo como o caso foi carreira. Esse primeiro momento visou permitir a
manejado pela psicoterapeuta em formação) como criação de um clima de acolhimento e de confiança
refletir sobre o modo que a intervenção foi desen- no vínculo que estava começando a se estabelecer,
volvida, tendo como norte a literatura científica visando com que a cliente reconhecesse suas vivên-
acerca do aconselhamento psicológico aplicado à cias e potencialidades de forma a conseguir lidar
gestão de carreiras e também a partir da abordagem com as adversidades.
clínica da Psicologia Positiva (Roepke & Seligman, A partir do rapport, os principais objetivos de-
2015; Scorsolini-Comin, 2015; Scorsolini-Comin & limitados foram: (1) trabalhar o reconhecimento de
Poletto, 2016). limites, sem que se cobrasse demais e conseguin-
do delimitar fronteiras entre o que estava ao seu
Resultados e Discussão alcance e o que não poderia ser feito pela mesma;
(2) organização, como uma forma de melhor fun-
Regina (nome fictício) tinha 45 anos de idade cionamento do espaço, em que a mesma pudesse se
à época da intervenção (2015) e trabalhava como sentir mais calma por apresentar maior controle so-
educadora em duas escolas, uma no berçário (Edu- bre suas atividades, mas acima de tudo como uma
cação Infantil) no período da manhã e a outra à noi- forma de reservar períodos que fossem destinados a
te na educação de jovens e adultos (EJA). Regina ela mesma; (3) reconhecer suas vivências e ativida-
procurou o programa de preparação para a aposen- des de forma a se destinar a uma nova maneira de
tadoria após divulgação do serviço na escola em atuação que possibilite a criação de um novo con-
que trabalhava no período da manhã. Inicialmente tato com sua realidade, desenvolvendo novos pra-
relatou que ainda lhe restavam cinco anos para se zeres em sua atuação profissional e um novo signi-
aposentar e que o ambiente de trabalho estava sen- ficado sobre a mesma. Na Figura 1 é possível obter
do muito estressante e desgastante para a mesma, maiores informações sobre a realização das sessões
desenvolvendo depressão e até algumas crises vin- e os principais pontos trabalhados em cada um dos
culadas à exaustão pelo trabalho. encontros, de forma a conseguir uma melhor visua-
Suas principais queixas estavam associadas lização da forma como se destinaram as sessões,
a uma falta de interesse no ambiente de trabalho, bem como a evolução da cliente.
pelo mesmo ter se tornado um fator estressante; di- O aconselhamento psicológico surge como
ficuldade de organização com relação às suas ativi- uma prática que visa a facilitar uma adaptação mais
dades; e o fato de apresentar uma cobrança interna satisfatória de um sujeito a uma determinada situa-
muito alta, fazendo com que a mesma se dedicasse ção na qual se encontra, buscando assim aperfei-
exaustivamente às suas responsabilidades e para çoar seus recursos em termos de autoconhecimento
com os outros. A literatura científica não é unísso- e autonomia, no intuito de promover maior quali-
na quanto aquando deve se iniciar o processo de dade de vida e bem-estar para o sujeito (Scorsoli-
preparação para a aposentadoria. Alguns autores ni-Comin, 2015). No caso apresentado, o principal
também reconhecem que esse processo não se fin- enfoque abordado é a questão da aposentadoria, na
da com a aposentadoria, podendo ser estendido até busca de uma preparação para determinado evento.
mesmo cinco anos após a mesma (França & Soares, No entanto, de acordo com a cliente, ainda havia
2009). Considerando que o PPA da instituição na cinco anos para a aposentadoria, de modo que sua
qual foram coletados os dados era aberto a todos principal dificuldade estava vinculada ao enfren-
os servidores, sendo divulgado prioritariamente às tamento de seu ambiente de trabalho, haja vista
pessoas que estavam a cinco de se aposentarem for- que a mesma já não apresentava motivação frente
malmente (Scorsolini-Comin, 2015) e que entre as a uma atividade que se mostrava tão estressante e
demandas da cliente estavam queixas relativas ao desprazerosa. Assim, as intervenções pautaram-se
mundo do trabalho na interface com a aposentado- não apenas na questão da aposentadoria, mas tam-
Relatos de Pesquisa
ria, pode-se destacar que a cliente deste caso estava bém, de modo mais geral, em uma reflexão sobre
em processo de preparação para a aposentadoria. o mundo do trabalho e como isso estava gerando
Sua queixa principal era referente à sua saúde, dire- sofrimento na cliente.
tamente envolvida com o seu trabalho e as cobran- Em uma perspectiva mais ampla de atenção
ças impostas pelo meio, corroborando a necessida- à saúde do trabalhador, pode-se considerar que a
de de se investigar mais a fundo as relações entre a fase de preparação para a aposentadoria não deve
aposentadoria e a saúde do trabalhador (Antunes & incluir apenas elementos que possam habilitar o
Moré, 2016) e possibilitando a compreensão de que sujeito para quando cessarem suas atividades la-
a preparação para a aposentadoria é um processo borais, mas também reflexões sobre problemáticas
amplo, complexo e que articula questões de ordem enfrentadas em seu dia-a-dia, direta ou indireta-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019 240
Preparação para a Aposentadoria: Relato de uma Intervenção Clínica na Abordagem da Psicologia Positiva
Relatos de Pesquisa
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Daniela Pereira Di Bonifácio & Fabio Scorsolini-Comin
mente relacionadas ao trabalho, haja vista que a que ouvir suas queixas acerca do trabalho também
aposentadoria se insere no ciclo de vida de modo é um modo de entender que tais reflexões fazem
integrado, não exclusivamente no universo laboral. parte de um continuum em direção à aposentado-
Essa recomendação está alinhada aos pressupos- ria, ou mesmo em uma abordagem de educação ao
tos discutidos por Murta et al. (2014), no sentido longo da vida.
de explorar, no processo de preparação para a apo- Nos atendimentos, Regina se mostra ansiosa
sentadoria, aspectos que ultrapassem o mundo do para poder se aposentar, alegando que só assim con-
trabalho, incluindo, por exemplo, saúde e relações seguirá aproveitar seu tempo e descansar de toda a
sociais e afetivas. Além disso, o trabalho pode e tensão de seus dois empregos. O período de espera
deve ser concebido como um elemento essencial na de cinco anos para a aposentadoria mostra-se um
vida dos sujeitos, balizando também aspectos como empecilho nesse sentido, fazendo com que a mes-
bem-estar e satisfação com a vida, como salientado ma desenvolvesse crises e um estado depressivo
na perspectiva da Psicologia Positiva e pela literatu- por não aguentar as pressões do ambiente de traba-
ra na área de aposentadoria (França & Soares, 2009; lho. Foi necessário compreender o significado des-
Scorsolini-Comin, 2015), em uma abordagem mais sas vivências para a cliente e auxiliá-la a encontrar
integrativa. novos meios para que o caminho de espera para a
A revisão do seu atual momento de vida, bali- aposentadoria conseguisse ser gratificante.
zada a partir das queixas em relação ao seu traba- Como exemplo, a cliente salientava ter prazer
lho, possibilitou uma ampla reflexão sobre ativida- em sua profissão, porém sentia que o ambiente esta-
des prazerosas e investimento em si mesma, o que va cobrando demais dela mesma, não conseguindo
posteriormente pode ser empregado como estraté- delimitar fronteiras entre o que estava ao seu alcan-
gia ao longo de sua aposentadoria. O aposentar-se, ce e o que não poderia ser feito por ela. A partir
desse modo, não precisa ser experienciado como a disso, o ponto inicial foi gerar uma reflexão de for-
interrupção absoluta do movimento produtivo, mas ma com que ela pudesse reconhecer seus limites,
disparar a maior apropriação acerca de atividades fazendo suas atividades obrigatórias de acordo com
que envolvam prazer, satisfação e sentido de vida, aquilo que era possível, apresentando maior cons-
redefinindo de modo positivo essa fase do ciclo vi- ciência das situações e não se culpando por algo
tal (Nalin & França, 2015). que estaria além de seus limites e condição física-
Há que se considerar que a aposentadoria, po- -mental.Foi trabalhada também a questão da orga-
dendo ocorrer por diversos motivos e em diferentes nização como uma forma de melhor funcionamento
etapas do ciclo vital, pode disparar várias possibi- do espaço, em que a mesma pudesse se sentir mais
lidades de percursos, como a retomada do trabalho calma por apresentar maior controle sobre suas ati-
após a aposentadoria, o desenvolvimento de outras vidades, mas acima de tudo como maneira de obter
atividades (remuneradas ou não), até mesmo a au- períodos que fossem destinados a ela mesma, como
sência de planejamento pós-carreira (Zanelli et al., um descanso, uma leitura, entre outros, sendo um
2010). Vemos, no caso de Regina, que a preocupa- recurso para conseguir enfrentar as situações es-
ção com a aposentadoria acaba sendo menor que o tressantes do dia a dia.
sofrimento relatado em seu cotidiano de trabalho, o As sessões foram programadas com o intuito
que pode ser compreendido dentro de sua história de focalizar em um problema específico trazido
de vida e de suas características, como a idade e sua pela paciente – no caso, vinculado à preparação
dupla jornada de trabalho. Como se trata de uma para a aposentadoria - possibilitando um espaço de
pessoa ativa e que desempenha diversas atividades escuta e acolhimento em que a mesma pudesse se
(não apenas em seus dois empregos), a aposenta- sentir segura para compartilhar suas dificuldades,
doria parece não se resumir à finalização de um proporcionando um momento de compreensão e de
processo ou vínculo trabalhista, como relatado pela reflexão frente às situações e sentimentos vivencia-
mesma nos atendimentos, mas justamente mais um dos. A partir disso, as conversas se direcionaram
evento com o qual ela precisa lidar, assim como identificando os aspectos que atrapalhavam o bem-
os compromissos que assume em seu cotidiano e -estar da cliente, como o estresse, extrema tristeza
que promovem angústia e desamparo. Esses diver- e exaustão, variáveis estas que também emergiam
sos aspectos puderam ser considerados e acolhidos em seu período de preparação para a aposentado-
na escuta clínica da cliente a partir da experiência ria e que estão diretamente associadas não apenas
narrada no presente estudo. Embora muitos PPAs às suas condições de trabalho (jornada, remunera-
priorizem atividades que possam ser mais direta- ção, tipo de atividade executada, por exemplo), mas
mente associadas à aposentadoria, como o planeja- também a aspectos psicológicos e características
Relatos de Pesquisa
mento de vida e as dúvidas legais sobre o processo, pessoais (como a ansiedade, necessidade de desem-
abrir espaço para queixas emergentes nesse período penhar múltiplas tarefas, pouca abertura à reflexão
é também uma forma de contribuir na preparação e ao autocuidado, por exemplo).
para a aposentadoria. Considera-se, portanto, que O principal aspecto abordado foi a questão de
a intervenção clínica foi importante para ampliar reconhecer suas vivências e atividades de forma
esse cenário, abarcando mais aspectos que podem a se destinar a uma nova maneira de atuação que
compor uma queixa no processo de preparação e possibilite a criação de um novo contato com sua
dando destaque para um elemento premente, que é realidade, criando novos prazeres em sua atuação
a capacidade laboral daquele que irá se aposentar. profissional, destinando-se a cursos e atividades
Essa pessoa ainda pode ser bastante ativa, de modo gratificantes para a mesma (como contar estórias
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019 242
Preparação para a Aposentadoria: Relato de uma Intervenção Clínica na Abordagem da Psicologia Positiva
para crianças e teatro), como forma de possibilitar potentes diante de cenários por vezes extenuantes.
um lugar mais seguro e que não se tornasse tão es- Obviamente que tais intervenções podem e devem
tressante, fazendo com que seu trabalho voltasse a ser associadas a estratégias de saúde do trabalhador
ser um lugar de satisfação pessoal, onde a mesma perseguidas pelas organizações de trabalho.
pudesse se sentir à vontade, mais autêntica e inte-
grada. Considerações finais
Dessa forma, o aconselhamento psicológico se
mostrou um suporte para que a mesma conseguisse A partir dos pressupostos da Psicologia Posi-
lidar com as pressões sofridas em seu ambiente de tivista, o acompanhamento psicológico na prepa-
trabalho, como em relação às suas chefias e algumas ração para a aposentadoria visou enfatizar a bus-
dificuldades interpessoais nesse relacionamento. ca pelo bem-estar, almejando uma reflexão sobre
Foram realizadas diversas reflexões sobre o trabalho as vivências positivas e negativas como forma de
em si, reconstruindo novos interesses e atividades possibilitar uma maior compreensão de si próprio,
mais prazerosas que pudessem ser desenvolvidas criando consequentemente melhores relações no
nesse contexto. Assim, observou-se, ao longo dos ambiente social e no enfrentamento de situações.
encontros, que Regina ampliou o repertório de vi- Foi possível entrar em contato com o real sujeito
sões associadas ao trabalho, desenvolveu habilida- e suas vivências, de forma a fazer com que Regina
des que resgataram sua autonomia e autocontrole, conseguisse compreender suas experiências, no in-
apresentando maior confiança em si e descobrindo tuito de perceber o que não era saudável e construir
novos significados em suas vivências, o que promo- recursos como forma de superação, de maneira com
veu maior disponibilidade para lidar com as adver- que a mesma pudesse se reconhecer e, a partir de
sidades inerentes ao mundo do trabalho e também maior conhecimento de si, concretizar possíveis
ao cotidiano familiar. O programa de preparação mudanças.
para a aposentadoria, aqui narrado a partir de uma Com maior autonomia e capacidade reflexiva,
intervenção clínica, mostrou-se necessário enquan- Regina adaptou-se melhor diante de suas condições
to ferramenta para a reflexão acerca desse período, de trabalho, estando melhor preparada para a futura
do mundo do trabalho e suas condições concretas, aposentadoria. Como encaminhamento do caso, foi
bem como aspectos intimamente associados a essa sugerido que Regina continuasse em atendimento,
fase, como a promoção de saúde e bem-estar. agora em um processo psicoterápico mais profun-
Compreende-se que a experiência de adoeci- do, o que foi aceito pela cliente como possibilidade
mento mental decorrente do trabalho (estresse, bur- de acompanhamento de sua evolução. Seu caso foi
nout, ansiedade e depressão), que também emergiu assumido por outra estagiária e os atendimentos clí-
nos atendimentos à Regina, pode ser acolhida na nicos continuaram por mais um ano e meio, sob a
proposta clínica aqui descrita justamente por se mesma equipe de supervisão.
compreender a preparação para a aposentadoria A intervenção com professores tem se mostra-
enquanto um período amplo, diverso e complexo, do potente no sentido de ofertar uma reflexão acer-
acenando para vários enfoques e possibilidades de ca do ambiente de trabalho, as atividades realizadas
condução do trabalho clínico. Abrir-se às diferen- cotidianamente, bem como o maior foco nas práti-
tes queixas que permeiam esse período de prepara- cas gratificantes e que contribuem para a amplia-
ção pode ser útil no sentido de potencializar uma ção de sentidos positivos acerca do trabalho (Nalin
compreensão mais ampla acerca da aposentadoria & França, 2015; Roepke & Seligman, 2015). Desse
e, consequentemente, da saúde do trabalhador, modo, a preparação para a aposentadoria ocorreu
como recuperado na literatura científica (Antunes de modo indissociável de uma reflexão mais atenta
& Moré, 2016; Nalin & França, 2015). O preparar- acerca do próprio trabalho (Murta et al., 2014). O
-se para a aposentadoria, portanto, pode envolver aconselhamento deve abrir espaço tanto para refle-
a recuperação, a promoção e a potencialização de xões sobre a futura aposentadoria como para a aná-
recursos pessoais em uma perspectiva ampliada lise dos recursos e das possibilidades já existentes
e contextualizada de atuação (França & Carneiro, no trabalho realizado, o que permite maior vincu-
2009; Scorsolini-Comin, 2015), inserindo realmen- lação a atividades prazerosas e promotoras de bem-
te a aposentadoria em um cenário de educação para -estar. Tais estratégias são apoiadas pela Psicologia
a vida (França & Soares, 2009). Positiva, constituindo um norte para intervenções
Para tanto, o acompanhamento psicológico na com essa demanda e com esse mesmo público em
preparação para a aposentadoria não pode se dar de preparação para a aposentadoria.
modo dissociado da compreensão crítica acerca das A esse caso único tem sido incorporada uma
Relatos de Pesquisa
atuais condições de trabalho, motivo pelo qual o gama expressiva de relatos de outros atendimentos
adoecimento pelo trabalho pode e deve ser um dis- a docentes dentro da mesma experiência investiga-
parador para que se pense em estratégias de amplia- da. Os resultados da análise desses atendimentos
ção do conceito de saúde do trabalhador (Antunes podem contribuir para novas investigações no cam-
& Moré, 2016; Gvozd, Sakai & Haddad, 2014; Morei- po da aposentadoria e disparar propostas interven-
ra, 2011; Santos & Marques, 2013; Silva, 2015). Aju- tivas junto a docentes, notadamente da educação
dar o cliente na busca pelo sentido em seu trabalho, básica, a partir dos direcionadores aqui comparti-
bem como maior flexibilização e organização da ati- lhados e discutidos a partir da Psicologia Positiva.
vidade produtiva, podem ser importantes no sen- Os programas de preparação para aposentadoria,
tido de aliviar sintomas e desenvolver estratégias portanto, podem intervir com foco na promoção do
243 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019
Daniela Pereira Di Bonifácio & Fabio Scorsolini-Comin
para a aposentadoria como parte da educação ao de Coletiva, 18(3), 837-846. doi: 10.1590/S1413-
longo da vida. Psicologia: Ciência e Profissão, 29(4), 81232013000300029
738-751. doi: 10.1590/S1414-98932009000400007 Scorsolini-Comin, F. (2015). Aconselhamento psicológico:
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17(4), 300-313. doi: 10.1108/13620431211255806 well-being: the flourishing of Positive Psychology.
Gvozd, R, Sakai, A. M., & Haddad, M. C. L. (2014). Sen- Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(4), 663-670.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019 244
Preparação para a Aposentadoria: Relato de uma Intervenção Clínica na Abordagem da Psicologia Positiva
Relatos de Pesquisa
245 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 237-245, 2019
10.18065/RAG.2019v25n3.3
Resumo: Constituindo-se o uso problemático de crack como grave questão de Saúde Pública, este artigo é
parte de dissertação que teve como objetivo compreender a relação entre histórias de vida e projetos de ser
dos sujeitos usuários de crack com o consumo da substância e problemas a ele relacionados. Solicitou-se
a cinco participantes que fizessem vídeos sobre suas histórias de vida, e que falassem sobre o processo de
reflexão sobre suas trajetórias e aspectos de suas vidas presentes ou não nos vídeos. Os dados produzidos
foram analisados conforme a Análise de Conteúdo proposta por Ruiz-Olabuénaga. Percebeu-se o ato de
consumir crack como mais um dos atos humanos a constituir o sujeito e sua biografia, embora se torne pro-
blemático quando promove “suspensão” das outras possibilidades de vida. Verificou-se que eles tenderam
a adotar discursos padronizados sobre drogas e usuários, ainda que contradigam suas próprias histórias de
vida, embora reconheçam que há algo de particular na sua trajetória de uso e nos processos de tratamento/
recuperação. Esta pesquisa indica a necessidade de estratégias que fomentem a reflexão dos usuários sobre
o sujeito por trás da droga, destacando aspectos universais e singulares de suas biografias, tendo na cons-
trução de narrativas autobiográficas audiovisuais um instrumento clinicamente potente.
Palavras-chave: Crack; História de vida; Comportamento do consumidor; Narrativas pessoais; Mídia au-
diovisual.
Abstract: Considering crack abuse as a problem of Public Health, this research aimed to understand the
relationship between the life stories and the “being projects” of crack users with the consumption of the
substance and related problems. 5 participants were asked to do videos about their life stories and to talk
about the process of reflection on their trajectories, thinking about aspects addressed or not of their lives
in the films produced by them. The data produced were analyzed according to the Content Analysis propo-
sed by Ruiz-Olabuénaga. It was noticed the act of consuming crack as another human act who creates the
subject and his biography, though it is problematic when promotes a “suspension” of the other possibilities
of life. It was found that the users themselves tend to adopt standardized discourses on drugs and users,
even when they contradict his own life experience, while recognizing that there is something particular
in his phenomenon of the use and recovery and treatment ´s processes. This research indicates that it is
necessary to promote users’ reflection about the “person” behind the drug, highlighting the universal and
individual aspects of their biographies, with the construction of autobiographical audiovisual narratives
as a clinically powerful tool.
Keywords: Crack; Life Stories; Consumer Behavior; Personal Narratives; Video-Audio Media.
Resumen: Constituyéndose el abuso de crack como grave problema de salud pública, este artículo es parte
de disertación que tuvo como objetivo comprender la relación entre las historias de vida y proyectos de ser
de los consumidores de crack con el consumo de la sustancia y problemas relacionados. Se pidió a 5 parti-
cipantes que hiciesen vídeos sobre sus historias de vida y hablasen sobre el proceso de reflexión sobre sus
trayectorias y los aspectos de su vida presentes o no en los videos. Los datos obtenidos fueron analizados
de acuerdo al análisis de contenido de Ruiz-Olabuénaga. Se observó que consumir crack es como los otros
actos humanos que constituyen el sujeto, aunque se vuelve problemático cuando promueve una “sus-
Relatos de Pesquisa
pensión” de otras posibilidades de vida. Se verificó que tienden a adoptar el discurso normalizado sobre
drogas y usuarios, incluso en contradicción con sus historias de vida, aunque que reconocían que hay algo
singular en el uso y en sus procesos de tratamiento/recuperación. Esta investigación indica la necesidad
de estrategias que promuevan la reflexión de los usuarios sobre el “tipo detrás de la droga”, destacando
los aspectos universales y singulares de sus biografías, con la construcción de narrativas autobiográficas
audiovisuales como herramienta clínicamente poderosa.
Palabras clave: Crack; Historias de vida; Comportamiento del consumidor; Narrativas Personales; Medios
Audiovisuales.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 246-253, 2019 246
Usuários de Crack: Histórias de Vida e Subjetividade em Narrativas Audiovisuais
247 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 246-253, 2019
Virgínia Lima dos Santos Levy & Daniela Ribeiro Schneider
que seriam compostos, além de sua ordem de apre- se, três passos foram necessários: a eleição da Estra-
sentação e da inclusão de outros elementos audiovi- tégia de Análise, posto que se deve decidir o nível
suais, como imagens estáticas, fotografias, dizeres e de profundidade de sentido que se quer alcançar; a
trilha sonora, dentre outros) do filme. Esse processo construção do Texto de Campo, com a reunião de
de produção do vídeo foi realizado na presença da palavras, frases, comentários, temas presentes no
pesquisadora, que utilizou este momento como uma material colhido; e a construção do Texto de Inves-
entrevista aberta, com gravação digital previamen- tigação, que consiste principalmente na “categori-
te autorizada pelos sujeitos de pesquisa, estando os zação das unidades de Registro que compunham o
participantes orientados quanto à possibilidade de Texto de Campo”, quando se alcança o processo de
selecionar partes que permitiriam ou não que fossem “simplificar reduzindo o número de unidades de
exibidas, como parte do produto final desta disserta- registro a um número menor de classes ou catego-
ção. Assim, foram colhidos dados através de: 1) Ví- rias”, que se pode ver a seguir.
deos elaborados pelos participantes sobre a própria
história de vida; 2) Entrevistas abertas durante o pro-
cesso de montagem/edição destes vídeos; 3) Diário Resultados
de Campo da pesquisadora, que registrou o cotidiano
da pesquisa, desde a proposta até a conclusão. Além dos vídeos produzidos pelos usuários, esta
Estes dados foram analisados a partir da Aná- pesquisa teve como produto o levantamento de dados,
lise de Conteúdo, conforme concebida por Ruiz-O- examinados conforme o procedimento descrito ante-
labuénaga (2012), para quem leitura e compreensão riormente. No processo de categorização, os elemen-
de texto abrangem tanto o texto escrito quanto os tos similares citados pelos participantes e/ou observa-
textos audiovisuais, “tão importantes e básicos para dos pela pesquisadora foram reunidos em Categorias
a compreensão da nossa vida social” (Ruiz-Olabué- Temáticas, que foram agrupadas posteriormente em
naga, 2012, p. 193-195). Para a construção da análi- Núcleos Temáticos, conforme o quadro abaixo:
Quadro 1
Núcleos Temáticos e Categorias Temáticas
Relatos de Pesquisa
Fonte: Os autores.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 246-253, 2019 248
Usuários de Crack: Histórias de Vida e Subjetividade em Narrativas Audiovisuais
Articulando-se estas categorias e núcleos te- Nacional”: mulheres e homens, que tiveram contato
máticos com a produção científica da área (o que com o processo de escolarização. Apenas um parti-
faremos no próximo tópico), é possível perceber cipante só teve tal contato tardiamente em relação
muitas semelhanças entre o discurso dos partici- à legislação educacional brasileira; outro cursa o
pantes e o discurso acadêmico-científico, princi- Ensino Superior, e é na entrada na faculdade que
palmente se observamos os núcleos de 2 a 4, que inicia o seu uso de drogas. Este dado aponta para
trazem temas muito comuns na literatura sobre o a necessidade de se investir em novos modelos de
tema. Entretanto, é possível perceber também mui- programas de prevenção ao uso indevido de álcool/
tas disparidades – principalmente se observamos outras drogas nos ambientes acadêmicos.
a diferença entre o discurso que se quis expor nos Tal necessidade faz coro ao dado sobre a esco-
vídeos e o relato sobre a própria história de vida. laridade dos usuários de crack em cenas de uso da
Em alguns momentos, foi notável a discrepância Fiocruz (2013b; 2013c), que havia surpreendido a
entre as vivências pessoais e o tom dos vídeos, que todos ao revelar que a maioria dos usuários (55%) é
acentuava aspectos negativos universais, por vezes de pessoas que estudaram de 5 a 8 anos (da 4ª. à 8ª.
exacerbando-os. série do Ensino Fundamental), e não de pessoas que
jamais passaram por etapas do processo de escola-
rização. É possível afirmar, portanto, que embora o
Discussão dos dados espaço escolar possa funcionar como um fator pro-
tetivo ao uso abusivo de substâncias psicoativas,
Formado por cinco pessoas, com idades entre isto não significa que o acesso à educação formal
27 e 54 anos, o grupo de participantes desta pesquisa em si, sem melhores estratégias de prevenção/pro-
incluiu 2 mulheres cisgêneros e 3 homens cis, di- moção de saúde, sobreponha-se a outros fatores,
ferentes níveis de escolarização, situações conjugais como questões psicossociais e mesmo a convivên-
e profissionais. Três, dos cinco participantes, esti- cia com outros usuários dentro e fora da escola.
veram em situação de rua há menos de três anos. Embora o participante 3 fale que não iniciaria
Todos passaram por internações em instituições es- um uso de drogas hoje, por saber agora a que o le-
pecíficas para tratamento de transtornos relativos ao vou tal uso (não sabia antes onde o “levaria”), não
uso abusivo de álcool e outras drogas (clínicas e/ou é a uma falta de informação sobre drogas, e sim a
comunidades terapêuticas), e um deles falou mais uma falta de habilidade em lidar com questões da
longamente de uma passagem por um manicômio vida e em conseguir um diálogo com a família que
judiciário, embora outros também tenham associado o participante atribuiu o seu uso de drogas. Este se-
consumo de drogas a relações problemáticas com a ria, segundo ele, um meio de se sentir alguém que
Polícia/Justiça. Atualmente todos têm um endereço “não tem medo de nada”, uma contraposição a uma
de referência. Um participante cursa faculdade, e identificação de si como alguém que tem sido “muito
outro está trabalhando, enquanto outros dois fazem covarde” e que, por não saber compreender que “o
“bicos”. Dois possuem relacionamentos afetivos. medo faz parte da nossa vida”, lida com ele fazendo
Partindo destas informações, pode-se dizer uso de substâncias psicoativas para esquecê-lo. Tal
que o grupo de participantes selecionados abrange processo, similar ao processo que possibilitou à par-
características observadas no perfil nacional dos ticipante 5 “esquecer” os valores tradicionais e o sen-
usuários de crack levantado pela pesquisa da Fun- timento de rejeição familiares e lançar-se no mundo
dação Oswaldo Cruz (2013b; 2013c). Embora não como mulher solteira, sem filhos, fã de rock pesado
se tratasse de pesquisa objetiva e, portanto, não se e homossexual, e que possibilitou ao participante
tenha procurado uma representatividade numérica, 4 esquivar-se do sentimento de rejeição, injustiça e
o perfil dos participantes desta pesquisa esteve bas- menos-valia que veio ao se ver excluído do esporte
tante alinhado ao perfil encontrado na Pesquisa da que praticava, aproxima-se dos conceitos trazidos
Fiocruz, a não ser com relação à idade média, que por Messas (2015) para explicar a questão da toxico-
foi de 42 anos nesta pesquisa – um pouco mais ve- mania. Para este autor, o uso do crack propicia uma
lhos que o perfil levantado pela Fiocruz (30 anos) e, intensa “paralisação horizontal” (Messas, 2015, p.
portanto, ainda mais afastados do imaginário social 130), que começa na busca de atenuação de ambigui-
de “jovens que se envolvem com droga e logo mor- dades quanto aos amigos e ao futuro que a embria-
rem”, sem um repertório variado de “feitos” em seu guez oferece, método que se torna ruim pelo estado
histórico de vida. Como no perfil levantado pela de isolamento e falsa autossuficiência que pode se
Fiocruz, no entanto, os participantes desta pesquisa produzir no consumo de substâncias como o crack,
eram, em sua maioria, solteiros, do sexo masculino, principalmente quando o contexto social restringe
Relatos de Pesquisa
com baixa, porém, não nula escolaridade, sem estar possibilidades. Se o uso é mecanismo que possibilita
em situação de rua, com maior envolvimento com “sair um pouco” de si e de suas questões, o uso con-
trabalho informal (60%) que com atividades ilícitas tínuo pode exacerbar demais esta “saída” (ou, como
(6,4 a 9%) (Fiocruz, 2013b; 2013c). na música [Heluy, 1981] que a participante 2 sempre
Como pudemos ver, ao contar suas histórias de cantava em seu show, faz viver só de “aparências”.2).
vida, os participantes englobaram muitos elemen- Restringem-se de tal forma as possibilidades que os
tos para os quais apontam pesquisas anteriores, aspectos que compunham a biografia do sujeito vão
como esta da Fiocruz. Seja nas escolhas durante o sendo abandonados, e assim, cada vez mais difíceis
processo de filmagem, seja nos discursos produzi- 2 A participante fez, durante uma década, um espetáculo se-
dos, os participantes traçaram uma espécie de “per- manal em que cantava algumas músicas vestida como homem, e
aos poucos se despia para revelar que era mulher. Procurando na
fil” do usuário de crack que não contradiz o “Perfil
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Virgínia Lima dos Santos Levy & Daniela Ribeiro Schneider
de retomar (e de servir como ponto de partida para Outro dado a se observar neste trabalho é que, em-
novas possibilidades de futuro – tema que foi tão di- bora a droga seja declarada a grande impedidora dos pro-
fícil para os participantes). jetos de ser dos sujeitos que a utilizam, o que se viu é que
Para além do relato sobre o consumo (e dese- muitos outros fatores (como a perda injusta do lugar no
jo x abstinência) de substâncias psicoativas, viu-se, barco em que competiria, para o participante 4) também
neste trabalho, uma série de atividades humanas, se apresentam como “impedidores”. Neste momento, a
desejos, acontecimentos, como são assimilados pe- droga surge, como traz o participante 3, como meio de di-
los participantes. Utilizando a linguagem comum minuir o medo, a angústia, e como instrumento para lidar
dos modelos de tratamento que conhecem, os parti- com os impedimentos, as adversidades – algo que pode-
cipantes relataram suas experiências de vida a par- mos ver na fala do participante 1:
tir da questão da droga (“a restrição da identidade
a apenas uma atualização de papel”, diria Messas Foi o único modo que eu, desde criança,
[2015, p. 135]), que foi central mesmo quando havia aprendi a viver, e escolhi viver. Porque, nesse
diversos outros fatores envolvidos no curso de suas mundo, eu não tive estudo, não tive “porra”
histórias de vida. A participante 5, como vimos no nenhuma, não tive nenhuma oportunidade. A
Diário de Campo, vê na insatisfação com seu traba- primeira oportunidade que eu tive foi de ga-
lho exigente e pouco gratificante e com um relacio- nhar uma pistola e poder “formar3” na boca de
namento amoroso “sufocante”, além de uma vida fumo. Olha que “viagem”! É o sonho de qual-
sem atividades de lazer, um sinal de instabilidade quer garotinho da minha época. Por quê? Nun-
própria, de alguém que é “fraca e faz coisas erra- ca estudou, nunca trabalhou...
das.” (Participante 5).
Deslegitima, assim, o próprio descontentamen- Retomando a fala de Sartre sobre Valéry - “[...]
to, ao declarar que devia estar satisfeita por ter se é um intelectual pequeno-burguês; [...] Mas nem
tornado alguém que possui emprego, família, acesso todo intelectual pequeno-burguês é Valéry” (Sartre,
a bens de consumo, ou seja, que se “reinseriu” so- 1987b, p. 136) - não podemos dizer que todo sujeito
cialmente e não faz uso de drogas, como se fosse esta que se encontrasse nas mesmas situações de vida
uma “receita” para se satisfazer com a pessoa que “é” por que passaram os participantes teriam produzi-
(seguir o padrão socialmente estabelecido, em vez de do os mesmos desfechos, ou que teriam se construí-
seguir aquilo que faça sentido para si mesma). do como sujeitos iguais. O próprio discurso dos par-
Desconhecendo a complexidade de seu pró- ticipantes traz diferenças em alguns aspectos, como
prio fenômeno (o consumo de drogas), surpreende- a relação com os outros usuários de substâncias psi-
-se que apenas a retirada deste elemento não seja o coativas, que podem ser encaradas como benéficas
suficiente para que se sinta alegre e motivada para ou como maléficas (cabe lembrar que, como foram
a vida, mesmo reconhecendo outros aspectos sin- selecionados em uma mesma Unidade de Saúde, os
gulares que lhe constituem, como sua relação com participantes convivem entre si, assim como convi-
um sentimento de rejeição que foi (se) construindo vem com os mesmos outros usuários do serviço, na
a partir das situações de sua vida. maior parte da semana!).
Se considerarmos, como Sartre (1987a), que os Desponta neste trabalho, portanto, uma im-
modos de se engajar no mundo e a subjetividade se portância da valorização das formas de intervenção
misturam, se constroem mutuamente, inseparáveis, que valorizem os aspectos singulares dos usuários,
torna-se urgente buscar estratégias de intervenção ainda que muitas variáveis comuns entre eles exis-
em que os usuários dos serviços de Saúde Mental tam, como o alinhamento à racionalidade advinda
com transtornos relacionados ao uso problemático do Modelo Moral e/ou do Modelo Biomédico, assu-
de crack (assim como de outras substâncias psicoa- midas em seu processo de tratamento, como, por
tivas) possam repensar suas histórias de vida de for- exemplo, nos grupos de Alcoólicos Anônimos e
ma integral, multifatorial. Como vimos, a questão do Narcóticos Anônimos (Schneider, 2010). O partici-
consumo de drogas não é, para os participantes, um pante 4, por exemplo, inicia seu vídeo com o uso da
fenômeno isolado dos outros que lhe ocorreram ao frase-padrão de início de depoimento dos grupos de
longo de suas vidas. Ainda que atribuam a ele um mútua-ajuda: “Boa tarde! Meu nome é X., sou mais
“papel central”, não deixam de perceber os outros as- um adicto em recuperação. E estou aqui pra falar
pectos constituintes de suas histórias de vida (e, con- um pouco da minha vida”.
sequentemente, de si). Isto se reflete na dificuldade Este tipo de grupo parte de uma premissa ge-
que relataram de falar de suas histórias sem falar de neralizante: “se você quer o que nós temos, pode
crack, e no fato de que, para falar de crack, precisa- fazer o que nós fizemos” (Burns e Labonia Filho,
Relatos de Pesquisa
ram falar de outros fatos de suas histórias: 2011), ou seja, para chegar à “recuperação”, o
caminho é fazer exatamente o mesmo que fize-
Então fiquei quase dois anos limpa. Carnaval eu recaí. ram outros “recuperados”. Paradoxalmente, mes-
Assim... A recaída não é legal, não é legal. Não era pra mo afiliados a esta filosofia, os que a conhecem,
falar, mas vou ter que falar porque eu não consigo... (ri- como os participantes da pesquisa, percebem que
sos). Ai, eu não consigo ser diferente! (Participante 5) há algo de individual no que chamam de “recu-
peração”:
Internet, encontrei a música que era sempre a segunda a ser can-
tada: "Aparências" (Heluy, 1981). Nesta música, aparece o trecho: 3 O verbo "formar", neste contexto, refere-se ao ato de assumir
"Aparências, nada mais, nada mais, sustentaram nossas vidas que, compromisso perante outrem que também se compromete lealmen-
apesar de mal vividas tem ainda uma esperança de poder viver". te, de modo recíproco; no caso, frente aos colegas de "quadrilha".
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 246-253, 2019 250
Usuários de Crack: Histórias de Vida e Subjetividade em Narrativas Audiovisuais
modo de nele tomar parte, ignorando-se outros as- os prováveis expectadores de seus vídeos, de como
pectos da realidade que lhes era apresentada e que, não seguir o “nefasto caminho que tomaram”, ainda
muitas vezes, lhes foi hostil: algo que, por vezes, é que estes discursos contradigam as suas próprias
adequado e necessário, embora em outros momen- experiência de vida e as possibilidades que vem
tos possa se tornar ruim por restringir o repertório construindo mediados por processos de tratamento/
de possibilidades de ser/estar no mundo, como recuperação ou por retomada de relações familia-
aponta Messas (2015). res, afetivas, de estudo ou de trabalho, embora reco-
Neste sentido, vimos Núcleos (e Categorias) nheçam que há algo de particular no seu fenômeno
Temáticos que aludiram a diversas áreas da vida do uso e nos processos de tratamento/recuperação.
que se relacionam a um engajamento no mundo, Daí a importância do método da narrativa,
251 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 246-253, 2019
Virgínia Lima dos Santos Levy & Daniela Ribeiro Schneider
através do uso do audiovisual, como recurso de co- cesso de reinserção social e retomada de atividades
leta de dados, que incentivou um olhar de ruptura (trabalho, estudo...) e dos laços sociofamiliares.
com o hegemônico, ao provocá-los a pensarem mais Dentro desta perspectiva, pode-se dizer
sobre as próprias histórias e sobre o modo de con- que esta pesquisa aponta para a necessidade de
tá-las. Com isso, o participante da pesquisa pôde estratégias de intervenção em que os usuários dos
realizar reflexões mais aprofundadas sobre si mes- serviços de Saúde Mental com transtornos relacio-
mo do que faria se tivesse sido orientado apenas a nados ao uso problemático de crack (assim como
falar diretamente sobre suas histórias ou a respon- de outras substâncias psicoativas) possam repensar
der perguntas previamente elaboradas. Isto foi mais suas histórias de vida de forma integral, multifato-
visível no caso do participante 4, que trouxe, como rial e “personalizada”, onde o modo como o usuário
efeito do produzir e pensar sobre as gravações para compreende e constrói a si mesmo e às suas rela-
o vídeo, uma mudança de perspectiva e atitude com ções com o mundo (isto é, sua história de vida) seja
relação à questão de voltar ao trabalho e ao esporte. respeitado e levado em consideração, e não apenas
Em um primeiro momento, queixava-se das oportu- seus sintomas comuns. Neste sentido, uma das pos-
nidades perdidas, sem citar outras oportunidades; sibilidades de intervenção é o próprio uso de ofici-
em novo encontro, conta-me que haviam lhe ofere- nas terapêuticas em que se possa trabalhar com as
cido a oportunidade de voltar a integrar uma equipe narrativas audiovisuais, como as que eram desen-
de Remo para competições de veteranos no mesmo volvidas na Unidade, com objetivo de fomentar a
clube em que treinava quando adolescente, junto reflexão sobre as relações possíveis entre si mesmos
com a possibilidade de emprego no mesmo clube e o mundo, como forma de ampliar os horizontes de
(é instrutor de duas modalidades de artes marciais). futuro, e apoiar os planejamentos calcados nestes
Diz que não havia ficado animado, mas que agora novos horizontes, processo preconizado pela Políti-
pensava em aceitar. Pergunta-me se acho que deve. ca Nacional de Saúde Mental, apoiada no PTS - Pro-
Conversamos sobre o quanto se ressentia, em seu jeto Terapêutico Singular. Embora o PTS traga em si
vídeo, de não poder retornar ao esporte, e ele deci- a proposta de construção conjunta profissional-u-
de, após me ouvir, que é válido aceitar. Faz, assim, suário de um cuidado personalizado, apoiado nas
o caminho inverso do afunilamento existencial que particularidades de cada caso, tais particularidades
o uso problemático de crack, junto com suas outras acabam invisibilizadas diante das tentativas de pa-
circunstâncias de vida, tinha ajudado a produzir, e dronização dos tratamentos. Deste modo, o usuário
volta a enxergar como possíveis as oportunidades acaba por não perguntar por si, pelo seu sentido de
que se encontravam no mundo (muitas lhes eram ser, e sim pela substância, como pudemos notar na
negadas por ser usuário de crack, mas outras já se surpresa do participante 3 com a proposta desta
apresentavam e ele é que não “acreditava” nelas e/ pesquisa.
ou em si...). Propõe-se, portanto, a reflexão sobre a potên-
Este “afunilamento”, que deixa o usuário cia clínica deste dispositivo, de desfocar das ques-
“paradão na esquina4”, como disse o participante 1, tões simplesmente relativas ao abuso de crack, mas
pelo que pudemos ver, não se restringe apenas ao desvelar o conjunto de ações humanas que se es-
crack, mas pode acontecer das mais diversas for- condem por detrás desta “cortina de fumaça”. Des-
mas, e acabar por ser ou não algo funcional para o ta forma, a realização de oficinas em que se possa
sujeito. Por conta disto, convém ter um olhar crí- tanto assistir narrativas audiovisuais, quanto criar
tico às propostas de tratamento que se centram na as próprias mídias, pode servir como método para
meta única da abstinência e focam na promoção de outros temas de pesquisa e de clínica, e mesmo
papéis identitários apoiados em um elemento úni- para a formação profissional - principalmente para
co - afastar a droga, de forma rígida, como o que a formação dos profissionais que precisam deixar
acontece em algumas clínicas especializadas e nos os modelos generalizantes e aprender a trabalhar
grupos de mútua-ajuda, desconsiderando as ricas sob a lógica do “caso-a-caso”, do vínculo, da pro-
histórias de vida por trás deste uso problemático. dução de dispositivos que possibilitem a irrupção
Com uma filosofia que julga que todos os usuários do sujeito dentro da clínica e como mediação para
sejam iguais, estes locais podem dificultar a abertu- retomar seu projeto de ser em questão na situação
ra do indivíduo às possibilidades de ser perdidas e de suposta dependência, ainda mais quando se tra-
não focar na construção de novas possibilidades de ta de população vítima de estigmas sociais.
forma mais personalizada, coerente com suas ha-
bilidades, desejos e seu histórico, constituindo um
novo tipo de afunilamento existencial (ao trocar de Referências
Relatos de Pesquisa
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 246-253, 2019 252
Usuários de Crack: Histórias de Vida e Subjetividade em Narrativas Audiovisuais
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Primeira Decisão Editorial em 21.08.2018
Aceito em 28.08.2018
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253 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 246-253, 2019
10.18065/RAG.2019v25n3.4
Abstract: Considering crack abuse as a problem of Public Health, this research aimed to understand the
relationship between the life stories and the “being projects” of crack users with the consumption of the
substance and related problems. 5 participants were asked to do videos about their life stories and to talk
about the process of reflection on their trajectories, thinking about aspects addressed or not of their lives
in the films produced by them. The data produced were analyzed according to the Content Analysis propo-
sed by Ruiz-Olabuénaga. It was noticed the act of consuming crack as another human act who creates the
subject and his biography, though it is problematic when promotes a “suspension” of the other possibilities
of life. It was found that the users themselves tend to adopt standardized discourses on drugs and users,
even when they contradict his own life experience, while recognizing that there is something particular
in his phenomenon of the use and recovery and treatment ´s processes. This research indicates that it is
necessary to promote users’ reflection about the “person” behind the drug, highlighting the universal and
individual aspects of their biographies, with the construction of autobiographical audiovisual narratives
as a clinically powerful tool.
Keywords: Crack; Life Stories; Consumer Behavior; Personal Narratives; Video-Audio Media.
Resumen: Constituyéndose el abuso de crack como grave problema de salud pública, este artículo es parte
de disertación que tuvo como objetivo comprender la relación entre las historias de vida y proyectos de ser
de los consumidores de crack con el consumo de la sustancia y problemas relacionados. Se pidió a 5 parti-
cipantes que hiciesen vídeos sobre sus historias de vida y hablasen sobre el proceso de reflexión sobre sus
trayectorias y los aspectos de su vida presentes o no en los videos. Los datos obtenidos fueron analizados
de acuerdo al análisis de contenido de Ruiz-Olabuénaga. Se observó que consumir crack es como los otros
actos humanos que constituyen el sujeto, aunque se vuelve problemático cuando promueve una “sus-
pensión” de otras posibilidades de vida. Se verificó que tienden a adoptar el discurso normalizado sobre
drogas y usuarios, incluso en contradicción con sus historias de vida, aunque que reconocían que hay algo
singular en el uso y en sus procesos de tratamiento/recuperación. Esta investigación indica la necesidad
de estrategias que promuevan la reflexión de los usuarios sobre el “tipo detrás de la droga”, destacando
los aspectos universales y singulares de sus biografías, con la construcción de narrativas autobiográficas
audiovisuales como herramienta clínicamente poderosa.
Palabras clave: Crack; Historias de vida; Comportamiento del consumidor; Narrativas Personales; Medios
Audiovisuales.
Resumo: Constituindo-se o uso problemático de crack como grave questão de Saúde Pública, este artigo é
parte de dissertação que teve como objetivo compreender a relação entre histórias de vida e projetos de ser
dos sujeitos usuários de crack com o consumo da substância e problemas a ele relacionados. Solicitou-se
a cinco participantes que fizessem vídeos sobre suas histórias de vida, e que falassem sobre o processo de
reflexão sobre suas trajetórias e aspectos de suas vidas presentes ou não nos vídeos. Os dados produzidos
foram analisados conforme a Análise de Conteúdo proposta por Ruiz-Olabuénaga. Percebeu-se o ato de
consumir crack como mais um dos atos humanos a constituir o sujeito e sua biografia, embora se torne pro-
Relatos de Pesquisa
blemático quando promove “suspensão” das outras possibilidades de vida. Verificou-se eles que tenderam
a adotar discursos padronizados sobre drogas e usuários, ainda que contradigam suas próprias histórias de
vida, embora reconheçam que há algo de particular na sua trajetória de uso e nos processos de tratamento/
recuperação. Esta pesquisa indica a necessidade de estratégias que fomentem a reflexão dos usuários sobre
o sujeito por trás da droga, destacando aspectos universais e singulares de suas biografias, tendo na cons-
trução de narrativas autobiográficas audiovisuais um instrumento clinicamente potente.
Palavras-chave: Crack; História de vida; Comportamento do consumidor; Narrativas pessoais; Mídia au-
diovisual.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019 254
Crack Users: Life Stories and Subjectivity in Audiovisual Narratives
Introduction Method
Inside and outside of the field of Mental Heal- For this work, we proposed a qualitative re-
th, an important discussion today arises related to search through the narrative methodology (Ricoeur,
the issue of the consequences of the consumption 2012), with a phenomenological basis, in which
of crack and the contexts of use. In a survey of the self-reporting was taken as a “(...) privileged locus”
subject, between 2000 and 2010, there were found (Carvalho, 2003). In that “locus”, the meanings of
many works on general and universal aspects, fo- the relation of the subject to the world and to its
cusing on harmful changes in the health of users own history emerge, allowing the comprehensibi-
(42.8% of the studies in the area), but few were pro- lity of its project and desire to be and its concrete
duced in order to understand the subjective aspects choices, including its relation with drugs, through
of crack users and the implications related to these the production of videos and interviews. Conside-
aspects (only 13.4%), according to Daniele Farina’s ring that the crack user is, like the other subjects,
dissertation (2012). someone who constitutes his acts, making sense of
This is close to what we found in a literatu- his actions and choices (after already) done, accor-
re review, using the “crack users” index, without ding to the Sartrian concept of “subject”, we unders-
determination of year of publication, in the data- tand that the crack users can, in producing reports
bases Scielo, Pubmed and BVS. We found 83 ar- about themselves, understand and make others un-
ticles, which shows the interest of researchers in derstand various aspects of their life history (both
the subject. However, with “crack and life history” the most particular, singular and the most general,
indexes, only nine articles were found, of which “universal” aspects).
five actually dealt with aspects of crack users’ lives The participants selected for this research
(of some specific subject or of the process of trans- were users of crack cocaine, inserted in treatment in
formation of such an area into “Crackolândia” for a Psychosocial Care Center specialized in problems
example). Considering the importance of drawing related to the use of alcohol and other drugs (“Cen-
a crack-user profile, as in 22.2% of the articles fou- tro de Atenção Psicossocial Álcool/Drogas” - CAPS
nd in Farina’s survey (2012), it is strategic to seek AD) located in Rio de Janeiro (RJ), for at least one
a “comprehensive and dynamic understanding of year, in psychological conditions to narrate their
the problem” so that interventions can be planned own histories, according to the reference techni-
(Brazil, 2005, 2013a), avoiding closed approaches cians who support them in the Health Unit. It was
in only one of several aspects of the question, or also required that they had previously gone through
closed only in the “offer of ‘treatments’ inspired by the “Cinema Workshop” of the CAPS, a space for the
models of exclusion / separation of social interac- production of audiovisual material based on reports
tion users “(Brazil, 2005). (on the most diverse subjects) of those involved in
In this way, the concept of a clinic that does not each meeting. In this space, conducted by the re-
go exclusively to the “disease” appears, avoiding to searcher from July 2010 to March 2014, the aim was
reduce people to the pathological dimension (Cam- to foster expression, confrontation and dealing with
pos, 2005). An Expanded Clinic, that can go beyond experiences from the creation of videos, thinking
disease, beyond the morbid, although without dis- about the history and ways of life of users in terms
regarding it (clinic that is still clinical); a clinic that of image, sound and other audiovisual effects. This
is “centered on the subjects, on the real people, on is why we selected these users: they already had ex-
their concrete existence, also considering the di- perience with the use of audiovisual language as a
sease as part of these existences” (Campos, 2005). form of expression, and good relationship with the
Therefore, the clinic that proposes to “Psychosocial interviewer (although two participants only knew
Attention” should encompass psychic and psycho- the face or rumors coming from other professionals
pathological but also social aspects. This is the cli- and users of the service). Five users participated in
nic associated with the Psychosocial Care Centers all phases of the research, four of whom still attend
(CAPS) in Brazil, although it is not restricted (nor the unit assiduously, and one who was away but
can it be restricted) to them. felt the need to return.
It is from this perspective that this article was We asked for each participants to construct
proposed, the result of a master’s thesis. The ge- a short film, in which their describe their own re-
neral objective of this work was to understand the lation with the current context and their life his-
relationship between life histories and projects of tory was the theme, elaborating their own script
being with the use of crack and related problems, and editing (choosing the scenes and excerpts that
Relatos de Pesquisa
aiming to contribute with subsidies for the exten- would be composed, as well as its order of presen-
ded clinic. For that, a survey of the life histories of tation and the inclusion of other audiovisual ele-
some users of crack was carried out; describing the ments, such as still images, photographs, sayings
relationship of the person with their current socio- and soundtrack, among others) of the movie. This
logical (microsocial) and anthropological (macros- process of video production was carried out in the
social) context and their implications in the use of presence of the researcher, who used this moment
crack, when discussing the function of the use of as an open interview, with digital recording pre-
crack in the life of these subjects through audiovi- viously authorized by the research subjects. The
sual narratives. The aim was to “give voice” to crack participants were oriented on the possibility of
users, through audiovisual narratives. selecting parts that would or would not be dis-
255 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019
Virgínia Lima dos Santos Levy & Daniela Ribeiro Schneider
played, as part of the final product of this disserta- ted; and the construction of the Investigation Text,
tion. Thus, data were collected through: 1) Videos which consists mainly of the “categorization of the
elaborated by participants on their own life his- Registration units that composed the Field Text”,
tory; 2) Open interviews during the process of edi- when the process of “simplifying by reducing the
ting these videos; 3) Field diary of the researcher, number of registration units to a smaller number
who recorded the daily research, from proposal to of classes or categories”. This process can be seen
conclusion. below.
These data were analyzed from the Content
Analysis, as conceived by Ruiz-Olabuénaga (2012),
for whom reading and comprehension of text co- Results
ver both the written text and audiovisual texts, “so
important and basic for understanding our social In addition to the videos produced by the
life “(Ruiz-Olabuénaga, 2012, pp. 193). For the users, this research had as product the survey of
construction of the analysis, three steps were ne- data, examined according to the procedure descri-
cessary: the election of the Analysis Strategy, since bed previously. In the categorization process, the si-
it is necessary to decide the level of depth of mea- milar elements cited by the participants and / or ob-
ning that one wants to achieve; the construction of served by the researcher were grouped in Thematic
the Field Text, with the gathering of words, phrases, Categories, which were later grouped in Thematic
comments, themes present in the material collec- Nuclei, according to the table below:
Table 1
Thematic Nuclei and Thematic Categories
Relatos de Pesquisa
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019 256
Crack Users: Life Stories and Subjectivity in Audiovisual Narratives
Articulating these categories and thematic nu- in relation to the Brazilian educational legislation;
clei with the scientific production of the area (whi- another attends Higher Education, and it is in colle-
ch we will do in the next topic), it is possible to ge that he initiates his use of drugs. This data points
perceive many similarities between the discourse to the need to invest in new models of programs to
of the participants and the academic-scientific dis- prevent the misuse of alcohol / other drugs in aca-
course, especially if we observe the nuclei of 2 to demic settings.
4, which bring themes very common in the litera- This need also corroborates the data on the
ture on the subject. However, it is also possible to schooling of crack users in “scenes of use” of Fio-
perceive many disparities - especially if we observe cruz (2013b; 2013c), which had surprised everyone
the difference between the discourse that one wan- by revealing that the majority of users (55%) are of
ted to expose in the videos and the speech about people who studied from 5 to 8 years (from grades
one’s own life story. At times, it was remarkable the 4 to 8), and not from people who have never passed
discrepancy between personal experiences and the through the schooling process. It is possible to af-
tone of the videos, which accentuated universal ne- firm, therefore, that although the school space may
gative aspects, sometimes exacerbating them. function as a protective factor against the abusive
use of psychoactive substances; this does not mean
that access to formal education itself, without better
Discussion of the Data prevention / health promotion strategies, overcomes
other factors, such as psychosocial issues and even
The study group consisted of 5 participants, coexistence with other users in and out of school.
with ages between 27 - 54 years, 2 cisgenders wo- Although participant 3 says that he would not
men and 3 cisgenders men, with different levels start a drug use today, because he now knows what
of schooling, marital and professional situations. the use of drugs could bring for him (he did not
Three of the five participants had been living in the know before using it), it is not to a lack of drug in-
streets for less than three years. All of them went formation, but to a lack of ability to deal with issues
through special institutions to treat alcohol and of life and to achieve a dialogue with the family that
other drug abuse disorders (clinics and / or the- the participant attributed to their use of drugs. This
rapeutic communities), and one of them spoke at would be, according to him, a way of feeling like
length about a passage through a mental asylum, someone who “is not afraid of anything”, a contrast
although others also had associated consumption of to an identification of himself as someone who has
drugs to problematic relationships with the Police / been “very coward” and who, because he cannot
Justice. Currently everyone has a referral address. understand that “fear is part of our life”, deals with
One participant attends college, and another parti- him making use of psychoactive substances to for-
cipant is working, while two others are moonligh- get him. Such a process, similar to the process that
ting, and two of them have affective relationships. allowed the participant 5 to “forget” the traditional
Based on this information, the group of se- values and the rejection of family members and to
lected participants covers characteristics observed launch herself into the world as a single woman,
in the national profile of crack users raised by the childless, heavy rocker and homosexual, and whi-
Oswaldo Cruz Foundation (2013b; 2013c) research. ch allowed the participant 4 to dodge the sense of
Although it was not an objective research, and the- rejection, injustice and loss that came from being
refore did not seek a numerical representation, the excluded from the sport that he practiced, is close
profile of the participants of this research was very to the concepts brought by Messas (2015) to explain
much in line with the profile found in the Fiocruz the issue of drug addiction.
Research, except for the average age, which was 42 For this author, the use of crack provides an
years in this research - a little older than the profile intense “horizontal paralysis” (Messas, 2015, p.
raised by Fiocruz (30 years), and therefore even fur- 130), which begins with the search for attenuation
ther removed from the social imaginary of “young of ambiguities regarding friends and the future that
people who engage in drugs and soon die” without drunkenness offers, a method that becomes bad for
a varied repertoire of “feats” in their life histories the state of isolation and false self-sufficiency that
. As in the profile surveyed by Fiocruz, however, can occur in the consumption of substances such
the participants in this research were mostly sin- as crack, especially when the social context restric-
gle, male, with low, but not null, schooling, without ts possibilities. If use is a mechanism that allows
being in a street situation, with greater involvement “getting out” of itself and its “existential questions”,
with informal work (60 %) than with illicit activi- continuous use can exacerbate this “exit” (or, as in
Relatos de Pesquisa
ties (6.4 to 9%) (Fiocruz, 2013b; 2013c). the song [Heluy, 1981]) participant 2 always sang in
As we could see, in telling their life stories, her show, makes them live only by “appearances”1).
the participants included many elements for whi- 1 For a decade, the participant made a weekly music show in
ch they point out previous research, such as that of which she sang some songs dressed "as a man", and gradually un-
Fiocruz. Be it in the choices during the filming pro- dressing to reveal that she was a woman. Searching the Internet,
cess, or in the speeches produced, the participants I found the music that was always the second to be sung in this
show: "Appearances" ("Aparências", from Heluy, 1981). In this song,
drew a kind of “profile” of the crack user that does this excerpt appears: "Appearances, nothing more, nothing more,
not contradict the “National Profile”: women and sustained our lives that, although ill lived still has a hope of being
men who had contact with the schooling process. able to live." ("Aparências, nada mais, nada mais, sustentaram nos-
Only one participant only had such contact later sas vidas que, apesar de mal vividas tem ainda uma esperança de
poder viver").
257 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019
Virgínia Lima dos Santos Levy & Daniela Ribeiro Schneider
They restrict in such a way the possibilities that the Another fact to be observed in this study is
aspects of the subject’s biography are being abando- that, although the drug is declared to be the ma-
ned, and thus increasingly difficult to resume (and jor impediment of the being projects of the subjects
serve as a starting point for new possibilities for the that use it, what has been seen is that many other
future - a subject that had been so difficult for the factors (such as the unfair loss of the place on the
participants). boat in which it participant 4 would compete) also
Beyond the report on the consumption (and present themselves as “impediments”. At this point,
desire x abstinence) of psychoactive substances, drug emerges, as participant 3 brings, as a way to
we saw, in this work, a series of human activities, reduce fear, distress, and as an instrument to deal
desires, events, as assimilated by the participan- with impediments, adversities - something we can
ts. Using the common language of the treatment see in participant’s speech 1:
models they know, participants reported their life
experiences from the perspective of the drug issue It was the only way I, since I was a child, lear-
(“the restriction of identity to just a paper update”, ned to live, and chose to live. Because, in this
Messas would say [2015, 135]), which was central world, I did not have a study, I did not have
even when there were several other factors invol- a “fuck”, I did not have any opportunity. The
ved in the course of their life stories. Participant 5, first opportunity I had was to gain a pistol and
as we saw in the Field Diary, sees in her dissatis- be able to “form2” in the “smoke mouth3”. Look
faction with her demanding and unpleasant work at that “trip”! It’s the dream of any little boy
and a “suffocating” relationship, as well as a life wi- of my days. Because? Never studied, never
thout leisure activities, a sign of her own instability, worked...
of someone who is “weak and does wrong things”
(Participant 5). Recapturing Sartre’s speech about Valéry -
She thus delegitimizes her own discontent, “[...] he is a petit-bourgeois intellectual ... But not
declaring that she must be satisfied that she has be- every petit-bourgeois intellectual is Valéry” (Sartre,
come a person who has a job, family, access to con- 1987b, 136) - we cannot say that every subject that
sumer goods. That is, that she has socially “reinser- was in the same life situations that the participants
ted” herself and that she does not use drugs, as if it went through would have produced the same out-
is a “recipe” for to be satisfied with the person who comes, or that they would have been built as equal
she “is” (to follow the socially established standard, subjects. Participants’ own speech brings differen-
rather than to follow what makes sense to herself). ces in some aspects, such as the relationship with
Unaware of the complexity of its own pheno- other users of psychoactive substances, which can
menon (the consumption of drugs), it is surprising be considered as beneficial or as evil (we should re-
for her that only withdrawing this element is not member that, since they were selected in the same
enough to make her feel joyful and motivated for li- Health Unit, participants live with each other, as
ving. This occurred even she recognizing other uni- they live with the same others users of the service,
que (singular) aspects that constitute her, such as most of the week!).
her relationship with a sense of rejection that was According to this work, therefore, it is impor-
constructing (or been constructed) from the situa- tant to value the forms of intervention that value
tions of her life. the singular aspects of the users, although many
If we consider, as Sartre (1987a), that the ways common variables exist among them, such as the
of engaging in the world and subjectivity are mixed, alignment to the rationality derived from the Moral
mutually construct, inseparable, it becomes urgent Model and / or Biomedical Model, assumed in its
to seek intervention strategies in which users of treatment, such as in the Alcoholics Anonymous
Mental Health services with disorders related to and Narcotics Anonymous groups (Schneider,
problematic use of crack (as well as other psychoac- 2010). Participant 4, for example, starts his video
tive substances) can rethink their life histories in an by using the standard start-phrase for mutual aid
integral, multifactorial way. As we have seen, the is- groups: “Good afternoon! My name is X. I’m one
sue of drug consumption is not, for the participants, more recovering addict. And I’m here to talk a little
a phenomenon isolated from the others that have a bit about my life”.
occurred to them throughout their lives. Although This type of group is based on a generali-
they attribute to him a “central role,” they do not zing premise: “if you want what we have, you
fail to perceive the other constituent aspects of his can do what we have done” (Burns and Labonia
life histories (and, consequently, of himself). This Filho, 2011), that is, to reach “recovery”, the way
Relatos de Pesquisa
is reflected in the difficulty they reported of talking is to do exactly the same as other “recovered”
about their stories without talking about crack, and ones have done. Paradoxically, even affiliated
in the fact that, to talk about crack, they had to talk with this philosophy, those who know it, like
about other facts in their stories: the research participants, realize that there is
something individual about what they call “re-
So I stayed clean for almost two years. Carni- covery”:
val I relapsed. So ... The relapse is not legal,
it’s not legal. I was not supposed to talk, but 2 The verb "to form", in this context, refers to the act of assuming
I have to talk because I can’t ... (laughs). Oh, I commitment before another that also commits itself loyally, recip-
can’t be different! (Participant 5) rocally; in this case, commitment with the colleagues of "gang".
3 Place of sale of drugs in underprivileged communities.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019 258
Crack Users: Life Stories and Subjectivity in Audiovisual Narratives
Now, the recovery is individual, because each lings and others in which losses were reported that:
one has, makes its recovery in the way that 1) “led” to drug use, and 2) “elapsed” from drug use;
you think is better. Because what’s good for but there was a constant differentiation between
me suddenly cannot be good for him. In ad- being someone who has the drug and being someo-
diction, what’s good for him suddenly cannot ne who has and deserves the rest of the things and
be good for me, understand? That’s why I say: possibilities in the world.
recovery is individual. [...]. It belongs to each
one. (Participant 4)
Final Considerations
If the subject is constantly creating himself
through his existing in the world, in constant dia- More than the desire to do something out of
logue with him, it is not surprising that, in partici- the norm, to adopt an antisocial behavior, or more
pating in mutual aid groups, the philosophy of this than something unexpected and powerful that con-
group also becomes part of the constitution of these trols of the being of the user, the crack consump-
subjects (denying or affirming it), as a constituent tion, as well as other human activities, is inserted in
that helps the subject to “be” or as an “unwanted the life histories of the consumers from a network
taper”, as well as what happens with the use of the of situations and relations of which it is possible to
drug itself. This was observed in their speeches: for apprehend, a posteriori, a sense. In the execution of
participant 1, for example, the only way to include the autobiographical narrative, the consumption of
himself in a project of future for himself and for “any crack does not appear as a disconnected element,
little boy of his days” of childhood / adolescence but as another element among many others that re-
(since “without study and work”, he explains) was veal “senses of being”, although it has a prominent
to join the opportunity to engage in drug trafficking, role. This role can be attributed not only to the re-
and the use of crack relates to sexual opportunities levance of this use in the life paths of these parti-
that he does not describe as possible without drug cipants, but also to the participants’ current focus
mediation. This opportunity responds both to eco- on the use / non-use issue, the fact that they were
nomic yearnings and to feelings of belonging / affi- chosen in a CAPS AD, or to have been selected for
liation, something also described by other partici- a survey on crack users, as they were informed in
pants, such as 4, who reinsert himself in the world the initial interview and in the presentation of the
first through the hippie identity, and then by the Informed Consent Form (TCLE), and even by the in-
resumption of contact with the family, passing by fluence of the media and the current cultural con-
the feeling of acceptance in the treatment groups, text that throws light on this substance, demonizing
and participant 2, whose relationship with sister it. Likewise, it also reveals the condition of users of
and friends became, very early, mediated by of drug a health service, a CAPS AD, who is subjected to a
use. These reports also add to what was obtained technical rationality that defines them horizons of
by Fiocruz’s research (2013a; 2013b), in which, in self-perception of themselves and its sufferings and
addition to the desire / curiosity to feel the effect of problems related to the use of substances.
the drug (without there being room to understand Through the audiovisual narratives, it was
the motivation of the interviewees to desire such possible to understand the use of crack as an expe-
an effect), a big part of the interviewees put as fac- rience that had a great weight for the participants
tors that triggered the use of crack and similar, peer and that relates to the way in which the participan-
pressure and family problems or emotional losses. ts’ life histories were gaining meaning when they
Thus, in line with the model of the Social were narrated. It has been found that users themsel-
Determinants of Health (Buss and Pelegrini Filho, ves reproduce the hegemonic, demonizing logic of
2015), the consumption and abuse of crack was not crack use, when substance use issues predominate
restricted, in the life history of these participants, to in their speech and use just a little the opportunity
organic issues, but occurred in a tangle of issues at to speak about themselves in terms of their unique
various levels, from the most particular to the most trajectory. In view of this, they tend to adopt stan-
common, microsocial and macrosocial issues. The dardized discourses on drugs and users, seeking to
relation with the drug was described as a mediator pass moral lessons to the likely viewers of their vi-
in front of the world, a way of taking part in it, by deos, about how not to follow the “nefarious path
ignoring other aspects of the reality that was pre- they have taken”. Even though these discourses
sented to them and that, many times, it was hos- contradict their own life experiences and the pos-
tile to him: something that is sometimes adequate sibilities the participants have been building me-
Relatos de Pesquisa
and necessary, although sometimes it may become diated by treatment / recovery processes or by the
bad for restricting the repertoire of possibilities of resumption of family, affective, study or work rela-
being / being in the world, as pointed out by Messas tionships, although they recognize that there is so-
(2015). mething particular about their phenomenon of use
In this sense, we have seen Thematic Nuclei and treatment / recovery processes.
(and Categories) that alluded to several areas of Hence the importance of the method of narra-
life that are related to an engagement in the world, tive, through the use of audiovisual as a resource for
brought in the “being-without-drugs” / “being-with- data collection, which encouraged a look of ruptu-
-drugs” dichotomy. There were moments when dru- re with the hegemonic, by provoking them to think
gs were spoken of as enabling more “palatable” fee- more about their own stories and how to count
259 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019
Virgínia Lima dos Santos Levy & Daniela Ribeiro Schneider
them. With this, the research participant was able well as other psychoactive substances) can rethink
to make more in-depth reflections about himself their life histories in a comprehensive, multifacto-
than he would do if he had been told only to speak rial and “personalized” way, where the way in whi-
directly about his stories or to answer previously ch the user understands and constructs himself and
elaborated questions. This was more visible in the his relationships with the world (i.e., his life his-
case of participant 4, which brought, as a result of tory) is respected and taken into account, not just
producing and thinking about the recordings for the his symptoms common. In this sense, one of the
video, a change of perspective and attitude towards possibilities for intervention is the very use of the-
the issue of returning to work and to sport. At first, rapeutic workshops in which we can work with au-
he complained about lost opportunities, without to diovisual narratives, such as those developed in the
mention other opportunities; in a new meeting, he Service, in order to foster reflection on the possible
told me that they had offered him the opportunity relations between themselves and the world, as a
to rejoin a Rowing team for veteran competitions at way to broaden the horizons of the future, and su-
the same club where he trained when he was a tee- pport the plannings based on these new horizons,
nager, along with the possibility of employment at a process advocated by the National Mental Health
the same club (he is an instructor of two modalities Policy, supported by the PTS - Unique Therapeu-
of martial arts). He says he was not excited before, tic Project. Although the PTS brings together the
but now he was thinking of accepting it. He ask me proposal of joint professional-user construction of
if I think you should. We talked about how much he personalized care, supported by the particularities
resented, in his video, of not being able to return to of each case, such particularities become invisible
the sport, and he decides, after hearing me, that it in the face of attempts to standardize treatments. In
is valid to accept. This way, he does the reverse of this way, the users ends up not asking for themsel-
the existential bottleneck that the problematic use ves, for their sense of being, but for the substance,
of crack, together with its other circumstances of as we could notice in the surprise of the participant
life, had helped to produce, and then he can see 3 with the proposal of this research.
again as possible the opportunities that were found It is therefore proposed to reflect on the clinical
in the world (many opportunities were denied them potency of this device, to unfocus on issues simply
because he was a crack user, but others opportuni- related to crack abuse, but to uncover the range of
ties already showed up and he did not “believe” in human actions that lie behind this “smoke screen”.
them and / or in himself...). In this way, the creation of workshops in which one
This “bottleneck”, which leaves the user “stan- can both watch audiovisual narratives and create
ding on the corner4”, as said participant 1, as we one’s own media can serve as a method for other
could see, is not restricted to crack, but can happen research and clinical topics, and even for professio-
in many different ways, and ending up being so- nal training - mainly for the training of professio-
mething functional or not for the subject. Becau- nals who need to leave the generalizing models and
se of this, it is important to take a critical look at learn to work under the logic of “case-by-case”, of
treatment proposals that focus on the single goal of the link, the bond, of the production of devices that
abstinence and focus on the promotion of identity allow the irruption of the subject within the clinic
roles that are based on a single element - pushing and as a mediation to resume his being project in
drugs away, in a rigid way, such as happens in some question in the situation of supposed dependency,
specialized clinics and mutual aid groups, disregar- especially when it comes to population victim of
ding the rich life stories behind this problematic social stigmas.
use. With a philosophy that considers all users to be
equal, these places can make it difficult to open the
individual to the lost possibilities of being and not References
to focus on the construction of new possibilities in
a more personalized way, consistent with their abi- Brasil. Ministério da Saúde. (2005) Reforma Psiquiátrica
lities, desires and their history, constituting a new e Política de Saúde Mental no Brasil. Conferência
type of existential bottleneck (by switching from a Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental:
supposed “live-for-crack” to “living-for-the-mutual- 15 anos depois de Caracas. Disponível em: <http://
-help group”), which hampers the process of social bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_
reintegration and resumption of activities (work, anos_Caracas.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2013.
study ...) and socio-family ties.
From this perspective, it can be said that this Brasil. Ministério da Saúde (2013a) Secretaria de Atenção
Relatos de Pesquisa
research points to the need for intervention strate- à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde
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disorders related to the problematic use of crack (as DF. 176 p. Disponível em: <http://189.28.128.100/
dab/docs/portaldab/publicacoes/caderno_34.pdf>.
4 The participant gives a new meaning to an expression that Acesso em: 15 set. 2015.
appeared in the refrain of a song that used to sing in the Uni-
ty: "Standing in the Corner" ("Parado na Esquina"). While in
this song we have a character who says to stand in the corner
to observe the girls who pass towards the funk prom, raising
the possibility of to relate to them in the near future, in the par-
ticipant's speech are "standing in the corner" those who, buried
in the nearby cemetery, will no longer have any possibility of
performing new acts, because their lives are closed.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019 260
Crack Users: Life Stories and Subjectivity in Audiovisual Narratives
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First Editorial Decision 21.08.2018
Campos, G. W. (2005). Saúde Paidéia. São Paulo: HUCI-
Accepted 28.08.2018
TEC. 2ª Edição.
261 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 254-261, 2019
262
263
Estudos Teóricos ou Históricos .........
10.18065/RAG.2019v25n3.5
Resumo: Este artigo consiste numa explicitação da forma de pensar (Denkform) e da concepção de
emancipação emergentes desde, aproximadamente, meados do século XX; em rigor, da estrutura de
pensamento mediante a qual os indivíduos organizam sua experiência de mundo ou intentam emancipar-
se no presente. Busca-se mostrar em que medida o humano pós-moderno pensa e age em um mundo que
não se configura mais como um cosmos natural (no caso, o antigo e medieval) ou enquanto um mundo
representado (o moderno e contemporâneo, em vias de dissipação), ou mesmo enquanto linguagem (este
ainda subordinado à representação), mas enquanto imagem. Verificam-se, enfim, os desafios e os modos de
superação daqueles, bem como suas consequências, para a pessoa humana, de um pensar que deixou para
trás a segurança da comunidade natural dos antigos e a liberdade formal da autoconsciência plenamente
cônscia do espírito certo de si dos modernos. Um pensar que, todavia, também não se deixa levar por
nenhuma confiança cega na linguagem do presente; mas que, ao contrário, a modula segundo as imagens
nas quais pensa e se move em sua igualmente oscilante emancipação.
Palavras-chave: Pensar em imagens; antipodianos; pensamento forte; pensamento fraco
Abstract: This article aims an explanation of the form of thinking (Denkform) and the conception
of emancipation that emerged from around the middle of the twentieth century; strictly speaking, the
structure of thought through which individuals organize their world experience or attempt to emancipate
themselves in the present. It seeks to show to what extent the postmodern human thinks and acts in a
world that no longer shapes itself as a natural cosmos (in this case, the ancient and medieval) or as a
represented world (the modern and contemporary, in the process of Dissipation), or even as language (this
still subordinated to representation), but as image. Finally, the article examines the challenges and ways
of overcoming them, as well as their consequences, for the human person, of a think that has left behind
the security of the natural community of the ancients and the formal freedom of self-consciousness fully
aware of the spirit sure of itself in the modernity. A thought which, however, does not allow itself to be led
by any blind trust in the language of the present; but, on the contrary, modulates it according to the images
in which it thinks and moves in its equally oscillating emancipation.
Keywords: Thinking in images; antipodeans; strong thought; weak thought.
Resumen: Este artículo consiste en una explicación de la forma de pensar (Denkform) y de la concepción
de emancipación emergentes desde, aproximadamente, mediados del siglo XX; en rigor, de la estructura de
pensamiento mediante la cual los individuos organizan su experiencia de mundo o intentan emanciparse
en el presente. Se busca mostrar en qué medida el humano posmoderno piensa y actúa en un mundo que
no se configura más como un cosmos natural (en el caso, el antiguo y medieval) o en cuanto un mundo
representado (lo moderno y contemporáneo, en vías de comunicación disipación), o incluso como lenguaje
(éste todavía subordinado a la representación), pero como imagen. Se verifican, en fin, los desafíos y los
modos de superación de aquellos, así como sus consecuencias, para la persona humana, de un pensar que ha
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
dejado atrás la seguridad de la comunidad natural de los antiguos y la libertad formal de la autoconciencia
plenamente cónsia del espíritu correcto de sí de los modernos. Un pensar que, sin embargo, tampoco se
deja llevar por ninguna confianza ciega en el lenguaje del presente; pero que, por el contrario, la modula
según las imágenes en las que piensa y se mueve en su igualmente oscilante emancipación.
Palabras Clave: Pensar en imágenes; antipodianos; pensamiento fuerte; pensamiento débil.
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Forma de Pensar e Emancipação Pós-Modernas do Humano
do real2, mais que na oscilação, na pluralidade, e por sua impermanência, imediatamente de sê-lo. Vi-
fim no desgaste do próprio “princípio de realidade”, venciamos, cada um, modos de ser ou de existir ple-
tal como constatados e expostos por Vattimo3. nos de incerteza e ignorância; as quais, ainda, não
Partindo da distinção entre a concepção pós- soubemos valorar de maneira adequada, isso ocorre
-moderna de emancipação e aqueles ideais, o tra- por nos mantermos presos a uma forma de pensar
balho descreve os elementos estruturantes destes, hoje decadente ou a outra, que só pode afirmar-se
a estrutura de pensamento que, em cada um, se na decadência daquela ou em seu enfraquecimento.
mostra operante, assim como os limites da mesma. Essas formas de pensar consistem, respectivamen-
Desse modo, esclarece em que medida o indivíduo te, no pensar por conceitos abstratos ou represen-
pós-moderno pensa e age; mais precisamente, deli- tações próprias dos modernos, iniciado por volta
neia a estrutura de pensamento na qual e median- dos séculos XIII e XIV, e no pensar por imagens, já
te a qual ele, a um tempo, conforma o seu mun- praticado por Nietzsche e Heidegger, mas originá-
do. Um mundo que não se configura mais como rio do cristianismo em suas origens5. Prática e ori-
o cosmos natural antigo e medieval, nem como o gem estas que conformam uma nova proposição do
mundo representado moderno ou mesmo o mundo pensar por imagens no último quarto do século XX;
estruturado como linguagem contemporâneo, ain- quando o pensar por imagens é designado pensa-
da subordinado à representação e, em vista disso, mento débil, justamente em razão de contrapor-se
igualmente em vias de dissipação; por conseguinte, ao pensar por conceitos, então chamado pensamen-
à diferença destes, um mundo configurado enquan- to forte, no sentido de debilitá-lo ou enfraquecê-lo6.
to imagem. O indivíduo pós-moderno conforma, Não obstante, para aquém e além dessas duas
pois, um mundo em que pensar e agir, assim como formas de pensar, nosso presente mostra-se estru-
cognição e emoção, permanecem aquém e além da turado em imagens digitais, contrasta-se, pois, com
cisão moderna entre o mundo natural e a subjeti- o mundo estruturado como linguagem da moderni-
vidade transcendental; mas também de sua crítica dade tardia, ainda persistente, e o da representação,
pós-moderna inicial, que se limitou a naturalizar o dos primeiros modernos; o qual sobrevivera até os
transcendental. inícios do século XX, quando caducara sem volta.
O trabalho verifica, enfim, os modos de supe- O contraste ora manifesto, porém, não é senão a ex-
ração daqueles ideais, bem como as consequências pressão de consequências primais, resultantes da
de um pensar que deixa para trás a segurança da ascensão do pensar por conceitos abstratos e de sua
comunidade natural e a liberdade formal da auto- queda – mais bem, enfraquecimento – no quadro
consciência plenamente cônscia do “espírito certo teórico do pensamento débil ou indigente, pura e
de si mesmo”4. Um pensar que, entretanto, também simplesmente por imagens, entendidas como con-
não se deixa levar por nenhuma confiança cega na ceitos abstratos ou formais, ou ainda representa-
linguagem estruturante do contemporâneo; mas ções, destituídos de objeto, precisamente, de ser
que, ao contrário, a modula segundo as imagens nas objetivo ou representado, isto é, de objetividade, de
quais pensa e se move em sua igualmente oscilante conceito objetivo ou de realidade objetiva. ‘Concei-
emancipação. Essa mostra-se assim não porque se to objetivo’ ou ‘realidade objetiva’, no sentido pre-
funda em um princípio de realidade ou no desgaste ciso do significado de uma representação em geral
deste e sim, ao contrário, no desgaste do real ele ou, de modo mais estrito, a título de exemplo: do
mesmo; bem como na imagem móvel de um instan- conteúdo da espécie inteligível ou do conceito for-
te para nós eterno, o pensar no presente. mal do ente, como entre os medievais tardios; da
ideia ou da representação mental, como em Des-
cartes; enfim, do conteúdo especulativo das for-
Pensar no presente, instante eterno cuja imagem mas de pensar puras, como em Hegel. Desse modo,
móvel se nos doa cessam toda explicação e toda interpretação, mais
exatamente, toda compreensão; emerge, enfim, o
Tempos revoltos esses, cujo mero acontecer singular em sua plena idiotia7, esse cujo entendi-
mento-de-ser, enquanto ser-aí, torna-se o problema
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Manuel Moreira da Silva
nova γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας (luta de gigantes em permanecendo única e exclusivamente no poiético.
torno da substância ou do ser)10; dessa vez, contu- Quando, enfim, sem o sentido próprio do ético ou
do, entre o pensamento forte e o pensamento fra- sem sabedoria prática, sua busca pelo sentido de ser
co. Dessa γιγαντομαχία, entretanto, ao contrário das e pela liberdade não pode senão soçobrar.
intenções expressas de Heidegger e, depois deste, Ao mesmo tempo em que aparecem os anti-
das de Vattimo em desvelar o sentido de ser e em podianos, porém, emerge ainda uma forma de pen-
tornar explícito um novo ideal de emancipação ou sar que não é por categorias ou conceitos abstratos
de pertença entre ser e ser-aí, o que se constata ao constituídos de realidade objetiva e nem por ima-
longo de todo o século XX não é senão a emergência gens resultantes da retirada de tal realidade daque-
de gerações cada vez mais crescentes de antipodia- las categorias ou daqueles conceitos, uma forma de
nos. ‘Antipodianos’ constitui-se aqui em um termo pensar que se configura como um pensar em ima-
emprestado de Rorty, com o qual este autor se refere gens. Este pensar, por sua vez, mostra-se como sinal
a um hipotético planeta, denominado Antipodéia, de um importante acontecimento, cuja presença,
cujos habitantes seriam, em tudo, opostos aos ter- apesar do crescente fenômeno dos antipodianos, e
ráqueos; em especial, não saberiam que possuiriam mesmo no interior de sua geração – algo cada vez
mentes e, assim, nada que pudesse ser denomina- mais passível de constatação – é interessante ob-
do psique, consciência, espírito, alma separada do servar; um acontecimento, portanto, que se dá a
corpo ou afins11. Em vista disso, pode-se dizer que, conhecer para aquém e além da cisão do universal
em rigor, antipodianos não explicam, nem interpre- e do singular; aqui, respetivamente, o ser humano
tam, logo não entendem, nem compreendem, ape- como consciência ou autoconsciência e como ser-
nas constatam ou, no melhor dos casos, denotam; -aí. O acontecimento disso que pode ser designa-
conforme constatara Umberto Eco, no que tange do o abrangente14, liberto das malhas do universal
ao experimento de Rorty, os antipodianos não são abstrato que o aprisionara desde seu primeiro surgi-
capazes de entender nem mesmo o significado de mento e pela ditadura do particular, ou do singular,
uma frase12. Em todo caso, nossos antipodianos não que, de quando em quando – como no caso dos an-
são os antipodianos do outro lado da Galáxia; são, tipodianos e do pensamento débil, enquanto pensar
contudo, bem mais reais do que se poderia pensar por imagens – se contrapõe ao universal, buscando,
inicialmente e apresentam, portanto, um desafio entretanto, pura e simplesmente enfraquecê-lo. Tal
real e genuíno a educadores, psicólogos, psicanalis- acontecimento, porém, só se dá a conhecer no qua-
tas e. por que não, a filósofos. dro teórico-prático de um pensar nele mesmo, quer
Isso agrava em muito o problema acima alu- dizer, no referido acontecimento; por conseguinte,
dido, sobretudo porque este se refere na verdade no quadro de um pensar no abrangente, cuja forma
ao problema da relação mente-corpo, bem como própria não é senão o pensar do próprio abrangente.
do lugar da consciência e das representações men- Pensar no abrangente significa pensar de
tais nos dias atuais. Sejam os antipodianos reais ou modo não conceitual, portanto, sem representações
imaginários, eles não são capazes de entender nem abstratas ou abstrações formais e, em vista disso,
mesmo o significado de uma frase, a explicação a sem fazer do pensar, enquanto este se contrai den-
mais plausível parece ser a de que eles não pen- tro de si mesmo, um centro de consciência sepa-
sam por conceitos ou representações, dos quais, rado e distinto, como, por exemplo, a alma o é em
para assim pensar, necessitariam estar conscientes, relação ao corpo em Descartes. Da mesma forma,
em especial de si mesmos enquanto seres pensan- o pensar no abrangente também não é um pensar
tes; sendo o próprio saber de que possuem mentes imagético, de certo modo fundado na imaginação
um resultado daquele pensar, ao qual também se ou no imaginário; por conseguinte, não faz das ima-
designa pensamento abstrato. Mesmo destituídos gens, quaisquer que sejam elas, substitutos dos con-
de mentes, ou de um lado interior, consistindo em ceitos ou das representações – ou, o que é o mesmo,
puro e simples Dasein, os antipodianos pensam; daí não faz dos sentidos substitutos dos significados ou
Rorty aceitar que eles, embora não pensem abstra- necessita inverter sua relação entre si – como o faz
tamente, mediante representações mentais de uma o pensar por imagens15. Ao contrário, situando-se
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consciência, pensam in concreto, isto é, sem infe- aquém e além do sentido e do significado, enquan-
rências conscientes e, de algum modo, conforme to modos secundários – posteriores ao primário, o
certos existenciais em sentido próximo ao pensar dado sensível, ou o signo, que é a Coisa mesma – de
por imagens heideggeriano13, desenvolvido por Va- apresentação desta em suas respectivas dimensões
ttimo no quadro de sua ontologia hermenêutica. O (o juízo, o conceito ou a representação e o dado),
fato importante é que, em assim procedendo, embo- o pensar no abrangente reconhece no significante
ra apreendam a união de πόλεμος e λόγος, bem como (enquanto imagem psíquica, como tal distinta de
se aproximem ao ser e à liberdade frente às sensa- qualquer representação e mesmo de toda significa-
ções, os antipodianos perdem completamente de ção), mais propriamente em sua independência em
vista a apreensão da união do elemento cognosci- relação ao signo (aqui, o dado primário), ao sentido
tivo e do emocional; logo, do teorético e do prático, e ao significado, o modo adequado, livre, pelo qual
10 Ver, Heidegger, SuZ, § 1, 2. Heidegger refere-se aí diretamente à ex- ele mesmo se dá16. Na medida, pois, em que não é
pressão utilizada por Platão em O sofista, 247, referindo-se por sua vez à
14 Para uma primeira aproximação ao tema, no sentido aqui tematizado,
questão do que se pretende significar quando se utiliza o termo ‘ente’ (on).
ver Silva (2016), p. 221-254.
Veja-se, Platon, Le sophiste, 244a e seguintes.
15 Ver, a respeito, Heidegger (1978). Ver também, J. A. Mac Dowell
11 Ver, Rorty (1994), p. 81ss.
(1993), p. 77ss; em especial, p. 80, nota 231.
12 Ver, Eco (1992), p. 335ss.
16 Devido ao escopo do presente trabalho, não se tematizará aqui o sig-
13 Rorty (1994), p. 84.
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um pensar por conceitos abstratos e nem um pensar neles se expande e deles se contrai. Desse modo, ao
por imagens, o pensar no abrangente se configura permitir a verificação dessa expansão e dessa con-
como um pensar em imagens; este que se reconhece tração, a um tempo nos singulares e no abrangente,
duplamente em Aristóteles. o pensar em imagens e o pensar no abrangente se
Como um pensar em imagens, o pensar no apresentam como um só e mesmo pensar.
abrangente assume a sensação como seu ponto de Urge explicitar passo a passo esse novo pen-
partida concreto. Contudo, aqui, a sensação não sar, em suma: o novo início do pensar que já se nos
é senão um είδος, uma forma ou uma atividade mostra, assim como a concepção de emancipação
(ενέργεια), tal como o próprio intelecto ou a inteli- que nele e por ele se nos mostra. Um novo início
gência mesma: esta, segundo Aristóteles, é a forma que, precisamente, só o é para nós e na medida em
das formas; aquela, a forma dos sensíveis17. Nes- que nos despojamos das formas exteriores do pen-
te sentido, na medida em que – como forma das sar, as quais fazem do pensar ora um instrumento
formas – o intelecto se mostra enquanto forma da que degrada seu próprio elemento em o tornando
sensação, ainda que de modo indireto, ele se apre- cada vez mais e mais abstrato, ora um meio passivo
senta igualmente como forma dos sensíveis. Isso que o mantém inerte e, portanto, sem condições de
não significa senão que Aristóteles assume – como tocar ou perceber a si mesmo22. Instrumento e meio
fundamento de seu pensar – a homologia da inteli- passivo que, nos dias de hoje, se dão a conhecer sob
gência e da sensação, sobre a qual se assenta a sua as respectivas nomenclaturas do pensar por concei-
concepção de que, embora pensamentos não sejam tos abstratos e do pensar por imagens, precisamen-
imagens, não se pode pensar senão em imagens18. te, do pensamento forte e do pensamento fraco.
Esse também o fundamento de sua concepção do
καθόλου – termo aqui traduzido por ‘abrangente’,
para distingui-lo do universal abstrato da tradição Pensar em imagens e emancipação pós-moderna
lógica e metafísica posterior – como um elemento
concreto, comum a tudo que é o caso, isto é, o sin- Como já se aludiu mais acima, o que se de-
gular19. Em vista disso, para o estagirita, se tem que nomina aqui ‘pensar em imagens’ tem sua origem
“proceder do abrangente ao singular; porque o todo na tematização aristotélica do pensar, a qual se dá
é mais cognoscível segundo a sensação, e o abran- ainda em um quadro teórico-filosófico em que não
gente é de certo modo um todo, pois o abrangente existiam conceitos, universais abstratos ou repre-
compreende muitas coisas como partes”20. O abran- sentações mentais23. Apesar desse aspecto comum,
gente, então, se dá a conhecer como princípio do o pensar em imagens ora emergente não se dá em
singular, do que é o caso: porque abrangente, po- imagens enquanto estas seriam “como que sensa-
rém, ele não é um princípio causal – transcenden- ções percebidas, embora desprovidas de matéria”24
te, emanente ou imanente –, nem transcendental e assim fixadas pela memória sensível ou corpo-
ou regulativo, nem mesmo hermenêutico ou inter- ral, a memória das lembranças do passado25. An-
pretativo; porque abrangente, ele não sai de si, não tes disso, o pensar em imagens hodierno pensa em
está fora, nem dentro de nenhum principiado – não imagens digitais, fixadas, por seu turno, através de
assume, pois, nenhuma função de princípio; não uma memória igualmente digital, que se constitui
principia ou procede, nem consuma ou converte, como uma estrutura mediante a qual a imagem se
tão só permanece dentro de si em eterna expansão conforma enquanto imagem e se conserva em um
e contração. Não obstante, como elemento concreto recipiente todo virtual e autônomo em relação ao
comum a tudo que é o caso, o abrangente se eviden- intelecto. Caso em que este, justamente por isso, a
cia como o princípio estruturante de todos os sin- um tempo, é livre para acessá-lo e permanece livre
gulares; de modo que pensar no abrangente não é para todo e qualquer uso possível de tais imagens,
senão pensar nessa estrutura dinâmica, na medida
em que ela está presente naqueles e, assim, confor- saber do imanifesto, para nós, se inicia pelo saber do manifesto, este não é
ma-se como a dimensão originária, manente21, que senão a imagem, o aparecimento ou o fenômeno (do grego phainómenon,
particípio presente de phainestai, vir à luz) resultante de certa manifestação
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nificante, o sentido ou o significado como os modos ou sob os aspectos ora que, ainda para nós, e, justamente por isso, consiste no iluminar de estruturas
aludidos. Não obstante, de modo apenas aproximativo, o que aqui se impõe, que, pelo entrelaçamento dos elementos estruturantes aqui designados como
em certo sentido, se identifica com a concepção lacaniana do significante e, ser, conceber e haver, ao se forjarem pela expansão e contração do princípio,
em rigor, com a imagem no pensamento mítico, ou mesmo no pensamento em rigor, da archké ou do início, indicam o imanifesto, tornando-o passível
selvagem, tal como retratado por Lévi-Strauss. de reconhecimento, embora indireta e parcialmente, pelas imagens confor-
17 Aristóteles (2006), III, 8, 432a, 1-3. madas pela iluminação de tais estruturas.
18 Aristóteles (2006), III, 7, 431b2ss; III, 8, 432a, 3-14. 22 Essa a situação do pensamento pelo menos desde a época de Hegel,
19 Ver, a respeito, Merlan (1975), p. 173ss. que a descreveu de modo preciso na Introdução à sua Fenomenologia do
20 Aristote (1956), 1, 184a22-26. espírito (Hegel, 1988), p. 57-58. (Fenomenologia do espírito, op. cit., § 73,
21 Como se pode depreender do contexto imediatamente acima, no corpo p. 71-72).
do texto, o termo ‘manente’ refere-se aqui à manência (ou à moné, em gre- 23 Sobre este ponto, veja-se, Hartmann (1964). Em outro registro, para o
go), termo que por sua vez exprime a permanência do princípio nele mesmo, início da representação como tal na história do ocidente, mais precisamente
dentro de si, e, em rigor, o fato de que, nesse caso, o princípio não exerce em Duns Scotus, e da representação mental, no caso em Descartes, ver, Mu-
mais a função de princípio; quer dizer, a função de princípio causal ou de ralt (2008), p. 153-196.
elemento constitutivo das coisas ou dos entes. À concepção que afirma essa 24 Aristóteles (2006), III, 8, 432a9-10.
dimensão originária, antes, a mais originária, podemos designar filosofia da 25 A expressão ‘lembranças do passado’ caracteriza aqui a memória
manência, que reivindica para si a herança da mistagogia do Uno e da filo- sensível em Aristóteles, a partir de uma distinção de G. Sondag, em sua
sofia especulativa pura, desenvolvidas de modo respectivo por Proclus e por Introduction [a L’Image] (in D. Scot, 1993, p. 7-107, p. 10-11), do Inte-
Hegel. A filosofia da manência se limita ao imanifesto, ao manente, aquém lecto em Duns Scotus enquanto “o lugar das espécies” e, assim, como
e além da manifestação e do manifesto, e assim ao que os abrange e envol- “uma memória que, pelo fato que ela é o reservatório vivente de tais
ve em todos os seus aspectos; em suma, ao abrangente. Contudo, porque o espécies, pode ser nomeada uma ‘memória intelectual’, por oposição à
memória das lembranças do passado”.
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assim como de tal recipiente, que passa a ser um especialmente ao plano de imanência cujo referen-
verdadeiro conceptáculo. cial, para o passado e para o futuro, não é senão o
Desse modo, o processo de conformação di- presente em que transcorre a ação, isto é, o momen-
gital da imagem é completamente livre em relação to em que se faz uso das lembranças nela em jogo;
aos sentidos e mesmo ao intelecto enquanto facul- um uso que, todavia, de maneira alguma se serve
dades determinadas. Isso porque, em sentido pró- de conceitos ou de universais abstratos. A memória
prio, ele não fixa imagens (como figuras ou formas intelectual, por seu turno, transcende o elemento
estáticas), em rigor, figurativa ou espacialmente temporal e, com isso, o plano de imanência que o
determinadas, em suma, enquanto lócus de certa tem como referencial; mostra-se, por conseguinte, a
informação visual; mas apenas fornece pontos de partir de um elemento atemporal, como que em um
referência, isto é, informação descritiva, a partir dos presente absoluto ou eterno (em rigor, abstrato), e,
quais as imagens mesmas, multifacetárias por na- em consequência, em um plano de transcendência:
tureza, conformam-se em sua natureza própria. In- situação em que os conceitos e os universais abs-
formação visual e informação descritiva constituem tratos encontram aí o seu lugar adequado e se mos-
os dois tipos de informação em jogo no processa- tram então, em rigor, transcendentais. Ao contrário
mento digital de imagens: a primeira, superficial, destes, a memória digital não se move em um plano
se exprime na imagem vista na tela do computador, de imanência e muito menos em um plano de trans-
tal imagem consiste no resultado ou na síntese de cendência, mas antes em um plano de manência28;
determinadas operações que, na informação visual, esse no qual imanência e transcendência se anulam
permitem a visualização de um modelo matemáti- e, com isso, a memória tout court se libera tanto das
co; este constitui a informação descritiva, profun- lembranças do passado, quanto das espécies inteli-
da, e se apresenta como base da primeira enquanto gíveis produzidas e fixadas pelo intelecto como de-
modela ou representa o que é visualizado na ima- terminações formais ou abstrações e, então, ao fim e
gem vista na tela do computador26. Neste sentido, ao termo, como que se desterritorializa. A memória
porquanto pensa em imagens digitais, o pensar em digital, portanto, no ente humano corporeamente
imagens pode ser comparado ao processamento di- determinado, não é o repositório das imagens (de-
gital de imagens na medida em que realiza deter- terminadas) que ela conforma, como é o caso do
minadas operações sobre imagens, operações que cérebro na memória sensível e na intelectual; as-
resultam por seu turno, elas mesmas, em imagens; sim como nestas, na memória digital não há espe-
não como as máquinas, enquanto estas levam a cificamente imagens (visuais, auditivas etc), sejam
termo análise de objetos definidos pela imagem e lembranças do passado, espécies inteligíveis ou re-
a geração de modelos matemáticos desses objetos, presentações que antecedem o ato de conhecer, há
mas enquanto se apropria da estrutura noética em tão somente uma certa estrutura de conformação de
que isso ocorre, em especial o chamado paradig- tais imagens (não-linear e por isso de processamen-
ma dos quatro universos. Segundo tal paradigma é to mais rápido), que é a estrutura de pensamento
preciso sair do mundo real, que consiste em sinais hoje operante em boa parte das novas gerações. Por
contínuos, e instalar-se no mundo digital, discreto: isso, no ente humano, a memória digital se serve
a passagem de um a outro se inicia pelo universo indistintamente da memória das lembranças do
físico, no qual se concentram os objetos do mundo passado, portanto da memória sensível ou corporal,
real; uma vez que desses objetos se formulam des- e da memória intelectual – ambas libertas, respec-
crições abstratas, os mesmos trasladam-se para o tivamente, da imaginação e do entendimento como
universo matemático, e deste, na medida em que as faculdades separadas e, com isso opostas entre si –
descrições abstratas são capazes de representação como um único e mesmo suporte para as imagens
e assim permitem a discretização dos sinais contí- então processadas.
nuos, elas instalam-se no universo da representa- No ente humano, porém, as memórias são pe-
ção e, portanto, no mundo digital. Contudo, falta recíveis, tanto as de curto quanto as de longo prazo;
ainda a codificação do sinal discretizado27 na me- por esse motivo, sobretudo essas últimas, necessi-
mória do computador, processo realizado mediante tam de um repositório em que se estendam, no qual
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uma estrutura de dados; algo passível no âmbito do sejam armazenadas, podendo então ser acessadas,
universo de implementação, conformando assim o bem como processadas. Neste sentido, tal como a
que se designa memória digital. memória sensível e a memória intelectual se ins-
Em vista disso, a memória digital distingue-se tituíram e se consolidaram a partir de repositórios
da memória intelectual, surgida com o processo de nos quais se estendiam, como a oralidade e a escri-
produção, ou antes, de fixação das espécies inteligí- ta, também a memória digital se instaura median-
veis no e pelo intelecto, assumindo este o lugar de te os diversos bancos de dados (por isso chamados
repositório delas; distingue-se também da memória bancos de memória digital), extensiva ou eletroni-
sensível, tematizada por Aristóteles e então conce- 28 Plano de manência refere-se aqui à permanência do princípio dentro
bida como memória das lembranças do passado. de si em eterna expansão e contração, sem principiar o que quer que seja,
Esta circunscreve-se assim ao elemento temporal, de modo que não permanece em relação a este como algo transcendente,
emanente ou imanente; nem ainda como transcendental ou hermenêutico.
26 Para uma visão geral do processamento de imagens no O plano de manência, portanto, conforma-se como a dimensão originária,
âmbito da computação gráfica, veja-se Scuri (2002). manente, mais acima aludida (ver nota 22), que se expande nos singulares,
27 Termo utilizado aqui a partir do verbo ‘discretizar’, usado em estatísti- ao modo do que se poderia designar ser, conceber e haver, e deles se contrai.
ca e matemática para exprimir a individualização, a divisão ou a partição de Caso em que os singulares se apresentam no haver, portanto no ser-outro
uma unidade contínua em unidades individuais (discretas), com o intuito de de ser e conceber, e o abrangente ele mesmo no ser-um destes. Para uma
diminuir a complexidade dos mesmos e, assim, facilitar cálculos. discussão inicial desses elementos, entendidos como modos do abrangente,
ver Silva (2014), p. 1099ss.
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Forma de Pensar e Emancipação Pós-Modernas do Humano
camente configurados, espalhados mundo afora, os inteligíveis estão nas formas perceptíveis de
e cujo conceptáculo é a rede noético-digital assim modo tal que nada se aprende nem se compreen-
formada. Essa, em outro registro, descrita por Pierre de sem que se perceba e, portanto, se contemple o
Lévy como a rede que se forja na época do fim do aprendido e o compreendido em alguma imagem,
sujeito ou da assim chamada substância pensante, a qual é como que uma sensação percebida, mas
material ou espiritual, “na qual neurônios, módulos desprovida de matéria e, por isso, passível de ser
cognitivos, humanos, instituições de ensino, lín- preenchida por pensamentos; os quais, por sua vez,
guas, sistema de escrita e computadores se interco- não são imagens, mas também não existem sem
nectam, transformam e traduzem representações”29, imagens. Enquanto se pretende, porém, um pen-
mas representações, por sua vez, como lembrara Va- sar não conceitual e, assim, não representacional,
ttimo, destituídas de realidade objetiva ou de objeti- o pensar em imagens hodierno mantém em comum
vidade, no sentido daquilo que constituiria, para os com o pensar por imagens a recusa da realidade
modernos, a realidade em si das coisas30. Enfim, na como o dado objetivo – ou em si, em oposição ao
medida em que os bancos de dados acolhem as ima- subjetivo ou para nós – que está abaixo e para além
gens digitais então conformadas, a psique em geral das imagens34, assim como, por conseguinte, do
e a memória em particular (sensível ou intelectual) princípio que informa uma tal realidade; ambos,
se liberam para o exercício o mais pleno de uma porém, distinguem-se radicalmente quanto à natu-
vida propriamente livre e criativa. reza das imagens em cada caso em questão, bem
Tal como em Aristóteles, também aqui, em sua como em relação ao trato com a realidade e ao assim
conformação hodierna, o pensar se mostra livre das chamado “princípio de realidade”. Disso resultam
determinações formais em que a modernidade o en- perspectivas teóricas e práticas diversas, em espe-
cerra; da mesma forma, ele é livre das percepções cial no concernente ao pensar por conceitos e às
sensíveis e da imaginação, nas quais ele permane- concepções de emancipação ora emergentes; obser-
cia confinado, por exemplo, entre os pré-socráticos ve-se, a respeito, as seguintes assertivas de Vattimo:
e os sofistas31. Isso significa, nos dias atuais, que
o pensar, enquanto pensa em imagens, é então li- [...]. Se temos uma ideia da realidade, esta, na
vre do formalismo de um pensamento puramente nossa condição de existência tardo-moderna,
transcendental, formal e, por conseguinte, oposto à não pode ser entendida como o dado objeti-
experiência real, concreta; mostra ainda que ele é li- vo que está abaixo, e para além, das imagens
vre do arbítrio de um pensamento meramente empí- que nos são dadas pelos media. Como e onde
rico, incapaz de se liberar das impressões sensíveis poderíamos alcançar uma tal realidade “em
que o preenchem e com isso encobrem o elemento si”? Realidade, para nós, é mais o resultado do
inteligível das sensações percebidas pelos sentidos. cruzamento, da “contaminação” (no sentido
Desse modo, pensar em imagens significa, essen- latino) das múltiplas imagens, interpretações,
cialmente, rememorar o passado e projetar o futu- reconstruções que, em concorrência entre si,
ro, no âmbito de uma dimensão na qual o pensar, seja como for, sem qualquer coordenação cen-
bem como a imaginação, prescinde das asserções e tral, os media distribuem. [...] na sociedade
negações próprias do pensar conceitual, pensando, dos media, ao invés de um ideal de emancipa-
pois, necessariamente em imagens, contudo, à dife- ção modelado pela autoconsciência completa-
rença da percepção sensível e da imaginação, sem mente definida, conforme o perfeito conheci-
confundir pensamento e imagem. Neste sentido, re- mento de quem sabe como estão as coisas [...],
memorar o passado não quer dizer aqui apenas con- abre caminho um ideal de emancipação que
servar e lembrar experiências vividas, trazendo-as à tem antes na sua base a oscilação, a pluralida-
memória em vista de um ou de outro fim, como em de, e por fim o desgaste do próprio “princípio
Aristóteles; mas, para aquém e além disso, consiste de realidade”.35
em pensar no conservado e no lembrado, sem um
uso determinado (ou um fim para outra coisa) das Tais passagens exprimem o horizonte de senti-
imagens então mobilizadas no ato de pensar. Em as- do de A sociedade transparente, texto publicado ori-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
sim procedendo, o pensar se permite passar, enfim, ginalmente em 1989; nelas é possível observar três
do pensar em imagens a um pensar puro, não con- aspectos ou elementos constitutivos, que perfazem
ceitual e, portanto, não-transcendental; quando, a o chamado pensamento débil, em rigor, o pensar
um tempo, se distingue de um pensar meramente por imagens. Em vista de seu caráter teórico, con-
por imagens e, em consequência, não puro, em ri- sidere-se os dois primeiros aspectos em conjunto;
gor, impuro32. em seguida, como consequência prática daqueles, o
Desse modo, o pensar em imagens hodierno se terceiro e último.
distingue tanto do pensar em imagens de Aristóte- O primeiro aspecto a se observar é a natureza
les, quanto do pensar por imagens de Vattimo. Para midiática das imagens, as quais nos seriam dadas
o estagirita33, na medida em que não há qualquer pelos media, que as distribuiriam sem qualquer
coisa separada e à parte de grandezas perceptíveis, coordenação central; o segundo consiste no fato
de que tais imagens constituiriam, “para nós”, a
29 Lévy (2010), p. 137.
30 Ver, a respeito, Vattimo (1992), p. 13; Vattimo (1993), p. 5-6; p. 19ss; 34 Ver, Vattimo (1992), p. 13; Vattimo (1993), p. 19ss. Embora tal recusa
p. 110ss. apareça de modo explícito em Vattimo, ela já aparece na tematização heide-
31 Veja-se, Aristóteles (2006), III, 3, 427a17ss. ggeriana do ser como realidade (Realität). Ver, a respeito, Heidegger, SuZ, §
32 Vattimo (2010), p. 13. 43, 201ss; 209ss.
33 Veja-se, Aristóteles (2006), III, 8, 432a, 3-14. 35 Vattimo (1992), p. 13.
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Manuel Moreira da Silva
realidade. Essa, não obstante, assim constituída nos dígitos de quem tem sob si o controle de algum
e, a um tempo, ainda entendida como uma ideia aparato de recolha e transmissão de informações.
– aqui no sentido de uma representação mental – Quem quer que seja que tenha sob si esse contro-
de cujo dado objetivo ou “em si”, entretanto, se le, ou qualquer de sua parcela, e exerça adequada-
abriu mão de alcançar, não é, contudo, a rejeição mente as funções de recolha e transmissão de in-
ou o abandono da ideia mesma, mas tão só o en- formações, constitui-se como um centro gerador de
fraquecimento desta; nos termos de Vattimo, o seu eventos, por conseguinte, também de história e de
retorcimento (Verwindung). Algo levado a termo poder; essa a razão pela qual, em tal sociedade, não
mediante a extração – ideal –, isto é, a abstração do mais haver um centro único da história, em rigor,
ser objetivo ou representado, o conceito objetivo uma história universal condicionada e sustentada
ou a objetividade daquela; quer dizer, o conteúdo por um curso unitário dos eventos39. Neste sentido,
pelo qual o objeto que ela representa nela compa- o pensamento abre-se às múltiplas imagens – in-
rece ou se manifesta de algum modo; isso implica clusive, mas não apenas, aquelas produzidas pelos
que a ideia ou a representação perca de vista sua media tradicionais –, nas quais pensa e se movi-
clareza e distinção, logo seu objeto. Quando, de menta; são justamente essas múltiplas imagens – do
uma ideia, a realidade decai, em rigor, declina a passado, do presente e do futuro – que, ao emergir
uma imagem; essa, em geral, resultante da abstra- de diversos centros geradores de eventos, história
ção do dado objetivo daquela e, em particular, do e poder, condiciona e sustenta os próprios eventos
cruzamento ou da “contaminação” das múltiplas assim gerados.
imagens, interpretações ou reconstruções que os Isso quer dizer que a própria realidade então
media distribuem. Disso resulta pelo menos uma se implode, independente da ideia que dela se pos-
consequência prática importante. sa formar, dado que em seu nascedouro ela se cons-
Eis o terceiro e último aspecto, o elemento práti- titui em si e para nós como ideia ou, antes, como
co constitutivo do pensar por imagens. Emerso como representação, em suma, como qualidade do real40.
consequência prática da perspectiva teórica acima Este, por conseguinte, considerado nele mesmo, em
apresentada, tal elemento consiste na recusa do ideal seu acontecimento singular e, por fim, em sua idio-
de emancipação moderno, pressuposto enquanto fun- tia41, impede toda e qualquer tentativa de qualifica-
dado em algo como o “princípio de realidade”, acima ção ou de ideação propriamente dita que não seja o
aludido, e então “modelado pela autoconsciência seu encobrimento: neste caso, por conceitos, ideias
completamente definida, conforme o perfeito conhe- ou, ainda, imagens; essas, tomadas enquanto instru-
cimento de quem sabe como estão as coisas” 36, e na mento do pensar ou como um meio para o pensar e,
substituição daquele ideal por outro, “que tem an- portanto, o agir e o fazer. Desse modo, as múltiplas
tes na sua base a oscilação, a pluralidade, e por fim imagens assim emersas de diversos centros gerado-
o desgaste do próprio ‘princípio de realidade’”37. Isso res não implicam meramente a oscilação, a plura-
se mostra coerente com a recusa da própria ideia de lidade e o desgaste de algo como o “princípio de
realidade enquanto dado objetivo ou em si e, por- realidade”, mas antes a oscilação, o acontecimento
tanto, do “princípio de realidade” enquanto aquele plural e, em vista disso, o desgaste do próprio real.
dado objetivo tomado em sua imobilidade, unidade Se o que foi dito até aqui está correto, em rigor, não
e indestrutibilidade; contudo, se tal princípio é imó- há mais qualquer ideal de emancipação, nem mo-
vel, uno e indestrutível, ele só pode ser enfraqueci- derno, nem pós-moderno, e muito menos emanci-
do ou desgastado. Tal enfraquecimento ou desgaste pação real; ao contrário, em sentido pleno, ou há ou
se realiza, enfim, mediante a extração do ser objetivo não há emancipação, a qual não pode ser senão o
ou representado da ideia ou da representação mental desgaste mesmo do real. O que significa a liberação
no ato mesmo do representar, quando estas se fazem do pensamento, e com isso do humano; a saber, a li-
imagens e, neste sentido, o conhecimento perde sua bertação deste em relação ao real e ao ideal, logo, do
objetividade, bem como, por conseguinte, a certeza e singular ou do idiotès – do simples fato de existir,
a verdade outrora identificadas com a razão ou a auto- do “que”, do “Das” ou do “that” – e do universal, do
consciência universal ela mesma38. Dito isso, caberia abstrato ou do que é em geral, do “o que”, do “Was”
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Forma de Pensar e Emancipação Pós-Modernas do Humano
sopro vital, ao qual este precisa ser devolvido após ras do fenômeno humano, há que se pensar em deter-
o desaparecimento de seu possuidor, o homem tor- minações abrangentes e concretas. Estas, à diferença
na-se então um ser vivo, espiritual; enfim, uma vez daquelas, não subordinam o pensamento a conceitos
que feito pelo Cuidado, este deverá assisti-lo em abstraídos de casos empíricos determinados e assim
toda a sua existência. Embora tomado por muitos formalmente aplicáveis a casos diversos; ao contrário,
sob as mais diversas facetas, o mito esconde o fato ao reconhecer que o pensar, para ser concreto, tem
da subordinação do humano a três instâncias sobre que pensar em imagens, e não apenas por imagens,
as quais ele não tem nenhum controle, ao passo que deixa-o livre para conformar-se nelas, e não por elas,
elas, de um modo ou de outro, detêm o controle su- segundo modos de ser e de conceber próprios do indi-
premo de seu destino; é precisamente dessas três víduo em sua relação consigo mesmo e com os outros.
potências que o humano dos tempos pós-modernos Em vista disso, tais modos resultam do pensar apenas
intenta libertar-se. Intenta libertar-se da Terra, por- enquanto este pensa em imagens e, portanto, pratica-
que esta é apenas um aspecto de sua constituição mente; pois somente enquanto prático pode o pensar
dita material, não detendo, pois, o controle total do emancipar-se e compreender o acontecimento plural,
humo, que se forma de maneira independente dela bem como os conflitos daí resultantes; nos quais inter-
e, em rigor, apenas em sua superfície, em seu limite, vém, necessariamente, de um modo ou de outro.
a ela, portanto, não pertencendo de modo próprio.
Intenta libertar-se igualmente de Júpiter, aqui re-
presentando todos os deuses e o próprio Deus, na Considerações finais
medida em que o mesmo ou é apenas uma expres-
são da natureza ou da Physis ou uma pura e simples O pensar em imagens é um pensamento con-
representação. Enfim, do próprio Cuidado, enquan- creto, que não permanece em si, mas se projeta na
to este se lhe apresenta como exterior ou extrínseco. ação; na qual se expande e se contrai. É precisamente
Em vista disso, a liberação do humano na épo- esse processo que o permite manter-se dentro de si e,
ca pós-moderna implica que o mesmo tenha que a um tempo, ativo. Em vista disso, ele é igualmente
assumir seu elemento húmico e dar-se conta de que pensamento puro; porque opera sem nenhum instru-
seu sopro vital se manifesta já pura e simplesmente mento ou meio, interior ou exterior, assim como sem
nesse elemento mesmo, na medida em que ele não instrumentalizar as imagens nas quais se plasma, sem
pertence à Terra, mas a certa conjunção que foge transformá-las em espécies inteligíveis ou represen-
tanto ao controle desta quanto ao de qualquer deus tações para, a partir destas, voltar-se à forma que se
ou elemento sobrenatural; em consequência, tem move naquelas. Enquanto ato de ser da coisa, a forma
ele que necessariamente assumir seu próprio cui- se mostra como o próprio pensar, que, na coisa, como
dado de si. No mito, interpretado à luz do que até elemento estruturante desta, ao informá-la, ou nela
aqui se discutiu, a Terra exprime o real e Júpiter o expandir-se, informa-se a si mesmo de modo a con-
ideal, sendo o Cuidado, enquanto criador do ser hu- trair-se dentro de si e, então, contemplar a si próprio.
mano, as ideias, conceitos ou imagens por intermé- Mediante tal configuração, o pensar em imagens
dio dos quais ele é ou se faz como tal; se a liberação não opera nem conforme a intuição abstrativa dos
das duas primeiras instâncias ou potências parece antigos, nem segundo a representação dos modernos.
compreensível e, portanto, plausível, ela só poderá Em vista disso, deixa para trás a liberdade formal da
ser completa mediante a terceira. Esta, por sua vez, autoconsciência plenamente cônscia do espírito certo
somente se impõe na medida em que o humano sin- de si destes e a segurança da comunidade ou do cos-
gular assume em si e para si as imagens que nele mos natural daqueles. O que para ele e nele implica
denotam seu existir, bem como conotam o existir ser livre, bem como levar a termo o reconhecimento
de outros singulares, e, assim, nelas os reconhece desse modo de ser, assumindo-o enquanto o-que-é-co-
como casos em que um e mesmo abrangente – no mum a todos os indivíduos que assim se reconhecem
sentido de o-que-é-com – se mostra como o que é a mutuamente, permanece a um tempo aquém e além
um tempo concreto e comum a todos eles. de toda intuição e de toda representação; portanto de
Eis aí, enfim, o principal desafio que se impõe
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Manuel Moreira da Silva
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 264-273, 2019 272
Forma de Pensar e Emancipação Pós-Modernas do Humano
Recebido em 26.03.2017
Primeira Decisão Editorial em 17.06.2017
Aceito em 02.05.2018
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10.18065/RAG.2019v25n3.6
La fenomenología como base epistemológica y ética del movimiento desalienista en Francia y en Brasil
TUDI GOZE
JULIANA PAIVA
LUCAS BLOC
JEAN NAUDIN
VIRGINIA MOREIRA
Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a fenomenologia como base epistemológica e ética do
movimento desalienista da psicoterapia institucional na França e da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Des-
crevemos estes dois movimentos e os principais nomes que fizeram parte de suas histórias em interlocu-
ção com a fenomenologia, refletindo sobre como esta pode ser considerada uma base para a prática de
profissionais da saúde mental inseridos neste contexto que está em plena transformação. (Re)discutir tais
bases nos parece de fundamental importância para reafirmar o sentido epistemológico e ético necessário
que fundamenta ambos os processos. Concluímos que a fenomenologia se apresentou e ainda se apresenta
como uma via de questionamento das práticas em saúde mental e oferece o fundamento para se pensar
uma prática que busca o encontro com os sujeitos, e não somente com a doença mental, e para o processo
de desinstitucionalização dos doentes mentais.
Palavras-chave: fenomenologia; movimento desalienista; reforma psiquiátrica.
Abstract: This article aims to present the phenomenology as the epistemological and ethical basis of the
desalienist movement of institutional psychotherapy in France and the Psychiatric Reform in Brazil. We
describe these two movements and the main names that were part of their stories in interlocution with
phenomenology, reflecting on how this can be considered a basis for the practice of mental health profes-
sionals inserted in this context that is in full transformation. To discuss such bases seems to us to have a
fundamental importance in order to reaffirm the necessary epistemological and ethical sense that under-
lies both processes. We conclude that phenomenology has been presented and still presents itself as a way
of questioning mental health practices and offers the basis to think of a practice that seeks the encounter
with the subjects and not only with the mental illness, as well as the process of deinstitutionalization of
the mentally ill.
Keywords: phenomenology; desalienist movement; psychiatric reform.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar la fenomenología como base epistemológica y ética
del movimiento desalienista de la psicoterapia institucional en Francia y de la Reforma Psiquiátrica en Bra-
sil. Describimos estos dos movimientos y los principales nombres que formaron parte de sus historias en
interlocución con la fenomenología, reflexionando sobre cómo ésta puede ser considerada una base para la
práctica de profesionales de la salud mental insertados en este contexto que está en plena transformación.
(Re)discutir tales bases nos parece de fundamental importancia para reafirmar el sentido epistemológico y
ético necesario que fundamenta ambos procesos. Concluimos que la fenomenología se presentó y aún se
presenta como una vía de cuestionamiento de las prácticas en salud mental y ofrece el fundamento para
pensar una práctica que busca el encuentro con los sujetos y no sólo con la enfermedad mental y para el
proceso de desinstitucionalización de los enfermos mentales.
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 274-281, 2019 274
A Fenomenologia como Base Epistemológica e Ética do Movimento Desalienista na França e no Brasil
te dos profissionais de saúde mental, em especial nal na França e da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
ao Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental
(MTSM), que denunciavam a falta de recursos e a
negligência dentro dos hospitais psiquiátricos. A A Base Fenomenológica da Psicoterapia
partir de então, a questão da humanização na as- Institucional na França
sistência e a necessidade de diferentes tratamen-
tos foi levantada e discutida no contexto brasilei- Os psiquiatras que marcaram o movimento
ro (Maciel, 2012). da psicoterapia institucional, em primeiro lugar
Foi na década de 1980 que a desinstitucio- François Tosquelles (1967) e Jean Oury (2007),
nalização começou a ser objeto de reflexão na conhecem perfeitamente a psiquiatria de língua
área da saúde mental no Brasil. O Projeto de Lei alemã e seus empréstimos à filosofia de Husserl.
do deputado federal Paulo Delgado, proposto em A redução fenomenológica é utilizada por estes
1989, foi um marco neste processo de luta pelo psiquiatras como um método filosófico, permitin-
direitos das pessoas com transtornos mentais ao do-lhes melhor fundamentar a experiência psi-
propor a extinção progressiva dos hospitais psi- quiátrica sobre bases científicas rigorosas (Dorr,
quiátricos e sua substituição por dispositivos que 2005). Não se trata de uma doutrina ou uma teo-
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Tudi Goze, Juliana Paiva, Lucas Bloc, Jean Naudin & Virginia Moreira
ria dentre outras, mas de uma atitude pela qual o dos que a praticam. Esta força de recusa se en-
psiquiatra pode se distanciar dos clichês e teorias contra em todos os lugares onde foi praticada a
comumente admitidas para deixar aparecer no Psicoterapia Institucional, se opõe ao desumano
encontro o estilo de ser-no-mundo do paciente, do que é estabelecido e sedimentado para abrir
respeitando a estrutura formal e abrindo-a pro- espaços de acolhida e de troca que a instituciona-
gressivamente a um mundo por vezes comparti- lização constrói como quadro terapêutico.
lhável e responsável de seu poder-ser autônomo A elaboração do quadro de cuidados é cor-
(Dorr, 2005). O que o senso comum tem por uma relativa desta função de acolhida. É um quadro
evidência natural, o método fenomenológico sus- ao qual nos inclinamos para receber a alteridade
pende momentaneamente. É assim que o método aos confins da loucura, a afirmação de um direi-
fenomenológico será, segundo Oury (2007), uma to de abrigo. Este quadro intersubjetivo deve ser
ferramenta preciosa para a desconstrução do esta- diferenciado radicalmente dos muros se, como o
belecimento psiquiátrico, da sua hierarquia, suas sublinha Roger Gentis (1975), os muros dos asilos
normas e seus preconceitos. não constituem unicamente limites de separação
Permanecer nesta atitude é difícil, de fato com o exterior, mas se prolongam invisivelmente
impossível, deve-se sempre fazer o esforço de re- ao interior, na intimidade protegida das pessoas
nová-la, colocar entre parênteses o que se acre- que aí trabalham. Logo, a épochè é uma atitu-
dita saber e olhar o que permanece, passar e re- de radicalmente desalienista. Tosquelles (2009),
passar pelos ciclos do vivido, construir (abbau) e justamente a este respeito distingue instituição
desconstruir (aufbau), numa “análise permanente e estabelecimento. O estabelecimento correspon-
da instituição” (Oury, 2007). Suspender o curso de às regras editadas, prescritas e encarnadas na
do que é estabelecido está associado ao movimen- hierarquia. Aquilo que é instituído significa pôr
to de institucionalização que porta o ser e o reúne em trabalho, minimamente, um espaço intersub-
na linguagem, na lei, no ritual, na cultura, ao seio jetivo. Uma instituição simbólica da linguagem
do “grupo” e em nome do “coletivo”, das “ trocas” que, longe de ser Lei, é, sobretudo, um debate
e da “rede”. Na caixa de ferramentas da Psicote- permanente em co-construção no mundo comum
rapia Institucional, as noções de instituição e de da vida (Lebenswelt) (Moreira e Tatossian, 2016).
estabelecimento se opõem pelas suas respectivas Esta discussão acerca do quadro de cuida-
definições, como se opõe o instituinte ao instituí- dos se mostrou de forma ambígua para a psica-
do, o constituinte ao constituído pelo sujeito que nálise, centrada sobre o modelo da transferência
efetua a épochè. Pode-se reconhecer o aporte su- neurótica. Se, seguindo Freud, os psicanalistas
cessivo de Viktor Von Weizäcker (1958) e de Lu- consideraram que os esquizofrênicos são inca-
dwig Binswanger no percurso que leva da redu- pazes de transferência, Jean Oury terá a audácia
ção eidética na qual parou Karl Jaspers à redução de dialetizá-lo. Ele identifica uma transferência
transcendental pela qual Binswanger, seguindo a disassociada, despedaçada, multi-referenciada
Husserl, se dessolidariza de qualquer psicologia (Oury, 2012), em relação ao magma de investi-
do Eu, após ao Dasein heideggeriano que rompe mentos postos em obra por certos pacientes so-
definitivamente com a noção cartesiana do su- bre o conjunto de profissionais do cuidado. Mas,
jeito pensado como um e indivisível (Heidegger, antes de poder pensar a transferência, trata-se
1967). Ainda que a maioria dos profissionais que de preparar o terreno, o tabuleiro do encontro, o
se dedicam hoje à Psicoterapia Institucional não quadro que permite o assentamento do colóquio
se preocupe com a filosofia, ela permite esclare- singular, mas também condição de possibilidade
cer a relação de afinidade histórica da Psicolo- do evento intersubjetivo. Um ambiente habitável,
gia Institucional com os pensamentos de Marx, praticável, no qual o quadro é garantia de fami-
Freud, Lacan e com as fenomenologias filosófica liaridade e de evidência. Os “entornos” indispen-
e clínica. Estes pensamentos fazem a divisão do sáveis à experiência de uma realidade interior.
sujeito individual, o “eterno vetor da verdade Assim, mais ainda que a transferência, é o quadro
do ser”. Se a corrente tradicional da psiquiatria como evidência mínima compartilhada que vai
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
fenomenológica é frequentemente distinta pela se refundar a cada vez. Como o sublinha Marti-
sua resistência tanto à psicanálise como ao ma- ne Girard, a psicose nos indica a “não-evidência
terialismo dialético e se autores incontornáveis à priori do quadro” (Girard, 2006). A perda da
como Jaspers, Minkowski ou Schneider elabora- evidência natural (Blankenburg, 1991) torna ne-
ram concepções do mundo nas quais o estatuto cessário pôr em obra um pré-consciente auxiliar,
epistemológico do inconsciente freudiano foi uma fundação transcendental. Este quadro não é
sistematicamente refutado (Jaspers, 1997), deve- de regras, é de cuidados cotidianos, é um quadro
-se reconhecer à Psicoterapia Institucional uma que abre, que não preenche. Logo, pode sobrevir
pré-concepção filosófica da ação psicoterapêutica o encontro, o momento “ pático ” (Weiszäcker,
fundada sobre uma crítica radical da noção de su- 1958), momento que é, propriamente dizendo,
jeito inspirada pela fenomenologia. um “ evento ” (Maldiney, 1976/1991).
A presença dos “fantasmas” filosóficos de A ideia de uma possível resistência do hu-
Marx, Husserl e Heidegger na prática cotidiana da mano contra o desumano entra em profunda res-
Psicoterapia Institucional francesa faz com que sonância com as ideias de Von Weizsacker sobre
algo da revolução seja sempre esperado e nutre a o vivente e a norma, a qual, na relação osmótica
força de resistência contra a ordem estabelecida que o homem entretem com seu meio (Umwelt)
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 274-281, 2019 276
A Fenomenologia como Base Epistemológica e Ética do Movimento Desalienista na França e no Brasil
lhe permite superar singularmente as restrições ché, uma forma de afastamento da realidade da
contrárias à vida. Canguilhem (1943/2006, 1947), vida cotidiana que pode se manifestar nos seus
começa a trabalhar no hospital de Saint-Alban em retraimentos como na presunção delirante. O
Lozère durante a guerra, em 1943, que, na oca- diagnóstico é atmosférico, é a presença do outro
sião, era um refúgio para a resistência à ocupação que se manifesta no encontro.
nazista e ao regime fascita de Pétain. Lá, Cangui- É porque a psicose tem para a Psicoterapia
lhem encontra François Tosquelles e Lucien Bon- Institucional, como para a fenomenologia, a es-
nafé e desenvolve estas ideias em seu ensaio sobre trutura epistemológica do “evento” (Maldiney,
O normal e o patológico. Os muros de Saint-Alban 2007), quer dizer: o enfoque não está na consti-
acolhem todo tipo de homens livres, propícios a tuição de uma estrutura de personalidade “psicó-
considerar que o humano, isto que é, propriamen- tica”, mas no encontro intersubjetivo, visto que a
te dizendo, vivente em si, é capaz de modificar psicoterapia institucional considera que o ponto
individualmente suas próprias normas para se nodal da existência da psicose é esta relação in-
adaptar ao seu meio, modificá-lo à medida que tersubjetiva, ressaltando, assim, o acolhimento ao
é preciso para continuar a viver. Paralelamente, paciente. A psicose somente encontra sua rea-
ele anima a Sociedade do Gévaudan que pretende lidade concreta no evento do encontro. Deve-se,
definir o trabalho de crítica radical e de invenção portanto, posicionar as condições de possibilida-
de instituições para alienados, feito pela equipe de de sua aparição, de seu acolhimento. Avaliar
do Hospital de Saint-Alban. No início da déca- e cuidar supondo preservar seu estilo, sua opaci-
da de 40, ele acolhe neste hospital Paul Éluard e dade, sem danificar mais ainda o narcisismo ori-
multiplica os encontros pelo desenvolvimento da ginário no qual a presença pode ainda esperar se
resistência intelectual. Estas ideias, longe de se- fundar, se fundir ou se retirar. Aprender, ao traba-
rem uma negação da doença e um repúdio à ciên- lhar a humanidade da acolhida ao deixar ser e se
cia, fazem valer que o viver e a doença tomam seu implantar a presença sem ignorar, no entanto, o
sentido conjunto na singularidade de cada um e poder próprio da psicose em desfazer as ligações
os valores que cada homem retoma, a sua pró- e desconstruir o sentido comum. Cuidar sem se
pria conta, ao constituir seu mundo. Em sua liga- demorar nos sintomas. Não tê-los como alvo. Mas,
ção fundadora com o meio, as instituições, como não fingir que eles não existem. Aprender a modi-
“ criação dos homens ”, são a forma cultural com ficar o ambiente em direção a mais humanidade.
o meio que emprestam a normatividade biológica Aprender a trabalhar tomando como quadro a co-
e que faz o retorno a ela ao subdeterminá-la. tidianidade da vida, seu ritmo, as mudanças que
A doença obriga o doente a modificar seu a estruturam e formam a carne, por assim dizer
mundo e a criar novas normas para sobreviver. “o tecido conjuntivo” (Merleau-Ponty, 1964) que
Para Oury (2007), assim como para Tosquelles institui o caráter radical de nossa coexistência.
(2009), mesmo se a expressão de seus sintomas é O trabalho clínico consiste em organizar o
culturalmente determinada e modificável ao ar- que Oury (2012) chama de “pontos de encontro”,
ticular técnicas de cuidados, atividades terapêu- que não podem se reduzir à existência de um
ticas, participação ativa nas trocas, engajamento espaço dedicado ao quadro administrativo, por
pessoal na tomada de fala e de responsabilidades exemplo, de um hospital-dia. A fenomenologia,
ao seio do coletivo, a psicose é uma doença. A no sentido de um método, só tem sentido se pra-
psicose é o motivo clínico incontornável, o “fato” ticada no mundo-da-vida (Lebenswelt) como um
sobre o qual o terapêutico engajado retorna sem questionamento permanente, filosófico e políti-
cessar no movimento da psicoterapia institucio- co, das instituições e das práticas que fazem parte
nal (Oury, 1993). Ela é, para o psiquiatra, isto que do quadro. Porque eles são feitos por homens e
o fenomenológo chama de “a coisa mesma”. Não com homens, os diversos dispositivos terapêuti-
se trata somente de afirmar a existência da psi- cos não devem ser fixados, mas concebidos como
cose, trata-se de “reconhecer” no encontro pro- seres vivos. A evolução dos dispositivos no tem-
priamente dito o fato psicótico e fazer da psicose, po responde às diversas situações atravessadas
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
assim, a cada vez “algo de nosso próprio pathos”: pelos homens, nos períodos da história, nos mo-
“Não existe Psicoterapia Institucional sem o reco- mentos de inércia ou estabilidade, à economia,
nhecimento do fato psicótico” (Roulot, 1973). O às situações de crise. A psicose permanece como
que a psicose é na intersubjetividade do encon- um invariante que não cessa de refletir a agitação
tro, a fenomenologia dá aos práticos as palavras como o tédio dos homens, sua capacidade de re-
mais justas para dizê-lo. O “sentimento do Prae- volta como de recuo. A alienação social e a alie-
cox”, isto que é, proprimente dito, sua “vivência” nação psicopatológica (Oury, 1993) se refletem
(tradução que propunha Tosquelles para a palavra uma na outra como em um espelho e ressonam
Erlebnis), se encontra no que Minkowski (1927) amplamente nos momentos de crise.
descrevia como “perda do contato vital com a rea- É sobre este último ponto da dupla significa-
lidade”, Binswanger como “falha transcendental” ção da alienação que são claramente diferencia-
(Binswanger, 2006), e que Blankenburg (1991) das, e frequentemente opostas frontalmente, os
chamará mais tarde, retomando as palavras de apoiadores da Psicoterapia Institucional e estes
sua paciente Anne, a “perda da evidência natu- da antipsiquiatria ou do movimento Psichiatria
ral”. Os esquizofrênicos parecem restritos pela democratica na Itália. Se nos mantivermos na
sua doença a viver uma forma específica de épo- contribuição específica do método fenomenoló-
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Tudi Goze, Juliana Paiva, Lucas Bloc, Jean Naudin & Virginia Moreira
gico em seu nascimento, todos deveriam tê-los permite uma efetiva reflexão da realidade e como
aproximado. Pela importância dada à redução uma metodologia de acesso a esta realidade (Ho-
e ao mundo da vida (Lebenswelt) que eles fazem landa, 2009) que vem sendo utilizada como uma
aparecer ao desconstruí-lo, a antipsiquiatria e a das bases do movimento contemporâneo de saú-
psicoterapia institucional são primas próximas, de mental (Oliveira, 2009). A participação da fe-
para não dizer irmãs de leite. As noções de expe- nomenologia faz parte de um processo histórico
riência vivida, de intersubjetividade constituin- que envolveu a lógica da saúde mental a partir
te, de projeto e de situação formam na fenome- do início do século XX e que permitiu que ela
nologia existencial como que germes de revolta se apresentasse, segundo Schneider (2009), como
para quem quer extrair daí a significação política. “a principal perspectiva filosófica que sustenta a
Identifica-se nos textos de autores muito diferen- ruptura com a lógica determinista predominante”
tes como Frantz Fanon (1961/2002), Franco Basa- (p. 70). Assim, para além das modificações físicas
glia (Basaglia, 1981), Michel Foucault (1964) ou dos equipamentos, a Reforma Psiquiátrica bra-
Félix Guattari (2012) como que um “ar de famí- sileira é “resultado de complexas discussões da
lia”. Todos passaram pela fenomenologia e veem compreensão sobre o conceito (de Saúde Mental)
na alienação clínica uma ilusão construída pelo e os múltiplos sentidos com respeito à ‘loucura’”
poder dominante. Sartre vai inspirar a revolta (Puchivailo, Silva & Holanda, 2013, p. 233); refle-
crítica de Franz Fanon e, alguns anos mais tarde, xões em parte oriundas direta e indiretamente da
a visão existencial de Ronald Laing (1976). Ba- fenomenologia.
saglia, tradutor de Husserl, encontra na redução Ao buscarmos as bases e as influências da Re-
fenomenológica o poder de suspender qualquer forma Psiquiátrica brasileira, podemos destacar,
abordagem diagnóstica para retornar à única hu- inicialmente, o modelo de desinstitucionalização
manidade da pessoa doente e abater os muros do italiano com principal referência dos trabalhos
asilo. de Franco Basaglia e as contribuições de Ronald
Foucault, antes de escrever sua História da Laing e David Coopper. Estes autores, importan-
loucura à idade clássica traduz Binswanger e Von tes no processo brasileiro ao fornecerem novos
Weizsäcker. Sua concepção genealógica da His- paradigmas teóricos e modelos práticos, foram
tória e da doença, critivável tanto sobre o plano influenciados pela compreensão fenomenológica
crítico quanto sobre o plano histórico, é, antes de e pelos psiquiatras fenomenólogos, tais como Jas-
tudo, husserliana. O ponto sensível do conflito pers e Minkowski, que propõem outra via clíni-
entre Psicoterapia Institucional e Antipsiquiatria ca do cuidado em saúde mental. Na proposta de
será o estatuto clínico da psicose. “Reduzamos, Laing, por exemplo, é retomada a perspectiva que
mas não trapaceemos”, dizia Tosquelles. Face ao Jaspers defendia em 1913 no livro Psicopatologia
desastre que constitui a psicose sobre o ser-no- Geral de uma base fenomenológico-existencial
-mundo, a ética clínica da Psicoterapia Institucio- para a compreensão dos fenômenos psíquicos e
nal lhe terá permitido esperar tratá-la sem jamais para a proposição do cuidado em saúde. O pa-
negá-la. Mas as instituições e os grupos que elas ciente passaria, então, a ser visto “como pessoa,
ordenam nascem e se projetam como homens no a doença passa a ser vista como estado, e o tera-
espaço e no tempo. Elas se transmitem, vivem e peuta personagem distante e superior, assumindo
morrem no ritmo das gerações. Como o aponta- uma postura de igualdade para com o paciente,
va Tatossian (1984/2014), as instituições têm, no no que concerne a direitos e status de cidadão”
fundo, numerosos pontos em comum com a fa- (Oliveira, 2009, p. 58).
mília. Instituidoras de normas compartilhadas, As reflexões de Basaglia, Laing e Cooper, de
elas não são sempre felizes e sabem recriar à sua cunho fenomenológico e existencial, chegaram ao
própria maneira, na dupla ligação, o fechamento Brasil e afetaram o movimento da reforma na saú-
contra o qual elas pretendem lutar. de mental (Puchivailo, Silva & Holanda, 2013).
Trata-se de uma “abertura” que indica uma mu-
dança de paradigma que passa a enfatizar aspec-
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A Fenomenologia como Base Epistemológica e Ética do Movimento Desalienista na França e no Brasil
zação envolvendo a sociedade proposta por Basa- co que melhor proporcione um encontro não só
glia. Amarante (2010) aponta que a originalidade com a doença mental, mas com o próprio sujeito.
de Basaglia está em sua forma de pensar as ques- Assim pode-se dizer que no Brasil, foram criados
tões da loucura e a forma de tratá-la que está em- diversos novos serviços a fim de suprir a deman-
basada nas ideias de diversos autores, entre eles da de pacientes saídos dos hospitais psiquiátri-
destacam-se vários da tradição fenomenológica: cos. Entretanto, o que se tem observado é que o
Husserl, como dito acima; mas também Sartre, objetivo proposto de reabilitação dos pacientes
Heidegger, Merleau-Ponty e Binswanger. A par- psiquiátricos e sua reinserção na sociedade não
tir da leitura de Sartre, Basaglia começa a pen- vem sendo cumprido de forma satisfatória, como
sar a instituição psiquiátrica como uma escolha afirma Amarante (2010): “(...) em uma palavra,
deliberada, que não é pessoal, mas global; como aumentam o número de pessoas assistidas e as
um modo de ser-no-mundo, quer dizer, a insti- possibilidades de intervenção técnica, sem que os
tuição funciona de forma a excluir o que é dife- resultados terapêuticos sejam correspondentes.”
rente a fim de afirmar sua força e esta forma de (p. 17).
funcionamento é considerada uma escolha. Desta
forma, pode-se pensar outros modos de funcio-
namento da instituição psiquiátrica, pensando Considerações Finais
a prática como realidade renovável (Amarante,
2010). Através da fenomenologia, produz-se um Face à cronicidade mais forte que os movi-
questionamento e volta-se para o sujeito como mentos que a combatem, face à inércia tão pronta-
centro da questão tanto em psicopatologia quanto mente instalada nas estruturas hospitalares como
na atenção à saúde mental. Assim, sob a influên- nas cabeças dos homens, face à força mortífera da
cia de Basaglia, passa-se a conceber as formas de repetição, diversas formas novas, diversos movi-
tratamento como “consequências do olhar que se mentos têm, nas últimas décadas, visado a desa-
tem à doença mental” (Puchivailo, Silva e Holan- lienação: desinstitucionalização, antipsiquiatria,
da, 2013, p. 237). Há, no contexto brasileiro, um psiquiatria comunitária, recovery approach e a
processo de ruptura no campo setorial da saúde Reforma Psiquiátrica no Brasil.
que advém da própria práxis e de um processo de O contexto psiquiátrico foi regularmente
reflexão que é perpassado pela tradição fenome- abalado por profissionais nos quais a fenomeno-
nológica. logia se fazia aliada a um engajamento político
Se, por um lado, a Reforma Psiquiátrica bra- em torno dos doentes mentais como da sociedade
sileira se apresentou sob influência da fenome- civil afim de não mais considerar como estabele-
nologia existencial e da Psiquiatria Democrática cido uma vez por todas a dominação qualquer de
italiana a partir, principalmente, da figura de um grupo sobre um outro. É desta relação eletiva
Franco Basaglia, por outro, uma série de dilemas entre a filosofia fenomenológica e a ação psicote-
bioéticos (Oliveira, 2009) foram aparecendo e rapêutica que nós ensaiamos abordar neste artigo.
que dizem respeito, sobretudo, à dificuldade do Sobre este assunto, nós faríamos de bom grado
processo de (des)institucionalização que está na nossa a fala de Henri Maldiney : “Se a atitude fe-
base do processo reformatório. Este é um ponto nomenológica em psiquiatria tivesse prevalecido,
crucial na medida em que se pode afirmar que a antipsiquiatria não teria nascido” (Maldiney,
a “a ética da RP funda-se na abordagem fenome- 1976/1991). Para além de um conceito filosófico,
nológica-existencial e apoia-se no conceito de trata-se de uma atitude que afeta o contato com
desinstitucionalização” (Oliveira, 2009, p. 60). A o paciente, os modos de cuidado e potencializa
proposta significa o advento de uma práxis que a expressão de um sujeito em sofrimento que,
coloca as instituições como parte de uma rede de muitas vezes, se depara com uma assistência que
cuidados que se volta para a cidadania plena dos restringe suas possibilidades ao significar muito
usuários dos serviços. Trata-se de um processo mais uma barreira com a sociedade do que uma
de desinstitucionalização que visa gerar novos
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Tudi Goze, Juliana Paiva, Lucas Bloc, Jean Naudin & Virginia Moreira
de suas relações e romper as amarras das insti- Guattari, F. (2012). De Leros à la Borde. Paris: Nouvelles
tuições. No caso da psicoterapia institucional na Éditions Ligne.
França, consideramos que a base epistemológica
e ética oriunda da fenomenologia é mais clara e, Holanda, A. (2009). Fenomenologia e Psicologia: diálogos
poderíamos assim dizer, mais explorada na medi- e interlocuções. Revista da Abordagem Gestáltica,
da em que houve uma maior aproximação teórica 15(2), 87-92.
dos principais agentes. No caso do Brasil, ainda
Heidegger M. (1967). Sein und Zeit. Verlag : Tübingen.
que apontemos tais influências, ela se deu de for-
ma mais indireta e foi sobreposta por discussões Jaspers, K. (1997). General Psychopathology vol. I. Balti-
político-econômicas e estruturais que minimizam more : The Johns Hopkins University Press.
tais fontes. (Re)discutir tais bases nos parece de
fundamental importância para reafirmar o sen- Lafont, M. (2000). L’Extermination douce. La Cause des
tido epistemológico e ético necessário que fun- fous 40000 malades mentaux morts de faim dans les
damenta ambos os processos. A fenomenologia hôpitaux sous Vichy. Matresne : Le Bord de l’eau é-
se apresentou e ainda se apresenta, certamente, dition.
como uma via de questionamento das práticas em
saúde mental e, como bem ela se afirma desde seu Laing, R. (1976). La politique de l’expérience. Essai sur
nascimento, um retorno é sempre necessário. l’aliénation et l’oiseau de paradis. Paris : Paperback.
Girard, M (2006). L’accueil en pratique institutionnelle. Roulot, D. (1973). Phénoménologie et psychothérapie institu-
Edition du Champ Social, Paris. tionnelle. Thèse pour le doctorat en médecine, Paris.
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A Fenomenologia como Base Epistemológica e Ética do Movimento Desalienista na França e no Brasil
Recebido em 20.07.2017
Primeira Decisão Editorial em 21.12.2017
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Aceito em 05.05.2018
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10.18065/RAG.2019v25n3.7
Resumo: O futebol é uma paixão nacional. Mais do que um mero jogo, essa prática esportiva de origem
britânica foi “abrasileirada” ao ponto de ser considerada uma expressão de nossa cultura e característica de
nossa identidade nacional. Na realidade brasileira, o mundo da bola, apesar de representar toda uma na-
ção, ainda demonstra abarcar um público específico – os homens –, deixando à margem a participação das
mulheres, que buscam um lugar de visibilidade e respeito. Elas, assim como eles, participam do futebol de
diversas maneiras, entretanto ainda possuem entraves nessa relação. O presente artigo, de caráter teórico,
apresenta uma construção histórica acerca do futebol e da participação feminina no mesmo. Discute, ain-
da, os papéis e espaços das mulheres que torcem, jogam, arbitram, comandam e dirigem clubes de futebol.
Por fim, é possível refletir, a partir da perspectiva fenomenológico-existencial heideggeriana, a participação
das mulheres no contexto do futebol como Dasein, que possuem abertura de mundo e sentido de poder-ser.
Palavras-chave: Futebol; Gênero; Mulher; Fenomenologia.
Abstract: Football is a national passion. More than just a game, this sport of British origin, was “abrasileira-
da” to the point of being considered an expression of our culture and characteristic of our national identity.
In the Brazilian reality, the world of the ball, although it represents an entire nation, it still shows a specif-
ic audience – men - leaving aside the participation of women, who seek a place of visibility and respect.
Women, as well as men, participate in football in a variety of ways, However, there are still obstacles in
this relationship. This article, of a theoretical nature, presents a historical construction about football and
concerning female participation in the game. It also discusses the roles and spaces of women who cheer,
play, referee, command and direct football clubs. Finally, it is possible to reflect, from the perspective of
heideggerian existencial phenomenological, the participation of women in the context of football like Da-
sein, who has openness to the world and a sense of being-power.
Keywords: Football; Gender; Woman; Phenomenology.
Resumen: El fútbol es una pasión nacional. Más que un juego, esta práctica deportiva de origen bri-
tánico fue “abrasileirada” hasta el punto de ser considerada una expresión de nuestra cultura y la ca-
racterística de nuestra identidad nacional. En Brasil, el mundo de la pelota de fútbol, apesar de re-
presentar a una nación entera, también muestra abarcar un público específico - hombres - dejando de
lado la participación de las mujeres, que buscan un lugar de visibilidad y respecto. Las mujeres como
a los hombres, participan en el fútbol de muchas maneras, sin embargo, todavía tienen obstáculos en
la relación. En este artículo, de carácter teórico, se presenta una breve historia sobre el fútbol y la par-
ticipación de las mujeres. Se analiza también las funciones y espacios de las mujeres, que son hin-
chas, jugadoras, árbitros, entrenadoras y dirigentes de los clubes de fútbol. En último, se puede refle-
xionar, desde la perspectiva existencial-fenomenológica de Heidegger la participación de las mujeres
en el contexto de fútbol como Dasein, que tiene el mundo de la apertura y la sensación de poder-ser.
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Impedimento? Possibilidades de Relação entre a Mulher e o Futebol
futebol praticado por mulheres, é preciso acrescen- mais organizado, com a profissionalização de atle-
tar o termo feminino como adjetivo. É possível per- tas (Elmôr, 2002).
ceber que o mesmo não ocorre em outros esportes, Segundo Oliveira (2012), foi em 1894 que o fu-
como o vôlei ou o basquete. A alcunha que o Brasil tebol chegou ao Brasil, através do paulista Charles
carrega é generalizada, ao menos na teoria, mas per- Miller – considerado o pai desse esporte em nosso
cebemos que, na prática, ela termina abrangendo país. O jovem chegara de temporada de estudos na
somente o universo dos homens. Por quê? Ainda te- Inglaterra, trazendo consigo bolas, uniformes, um
mos um obstáculo de gênero a superar. Pretende-se, apito e o manual de regras do jogo. Assim como
neste artigo, explanar e discutir, à luz da fenome- ocorreu na Europa, o futebol era considerado um
nologia, sobre o papel que as mulheres ocupam e esporte de elite, atraindo os jovens abastados que se
sobre a relação que elas estabelecem na vivência de filiavam a clubes esportivos e escolas que propicia-
ser torcedoras, atletas, árbitras, técnicas e dirigen- vam espaços de lazer e socialização.
tes de clubes de futebol. Em seu retorno, Charles Miller encontrou um
O Dasein, também compreendido como ser-aí país republicano, não mais escravocrata, e que uti-
e ser-no-mundo, é o termo utilizado por Heidegger lizava mão de obra estrangeira e assalariada. Este
(Heidegger, 1927/2015) para designar o modo de ser novo contexto político e socioeconômico propiciou
humano, como sendo abertura e estando sempre um aumento populacional nos centros urbanos, es-
em relação com o próprio ser e com o mundo – não pecialmente de negros, mulatos e brancos pobres o
sendo possível dissociar ambos (Roehe & Dutra, que, por sua vez, determinou uma reforma urbana
2014). De acordo com Sá (2005), Heidegger aponta com a ampliação de espaços ao ar livre para a socia-
para uma ausência de essência determinada a priori lização e prática esportiva (Oliveira, 2012).
no Dasein, diferentemente do que acontece com os Apesar da influência de Miller na implemen-
entes que não possuem o modo de ser do homem tação do futebol em São Paulo, e de Oscar Cox no
– sendo o homem o que é, através do existir. Dessa Rio de Janeiro, outros movimentos ocorreram em
forma, o filósofo considera a diferença ontológica todo o Brasil em meados do fim do século XIX e
– aquela que propõe a distinção entre ser e ente – início do século XX. Um dos primeiros times de fu-
como a mais significativa, sobrepondo-se a outras tebol criados no país foi o Sport Club Rio Grande,
categorias de diferenças (Rodrigues, 2010), como o do Rio Grande do Sul, tendo como um de seus fun-
gênero. A partir dessa ideia, podemos refletir que, dadores o alemão Johannes Christian Moritz Min-
não havendo determinação prévia do ser humano nemann, em 1900 (Correia & Rigo 2013). Na Bahia,
e sendo ele constituído através do seu existir – em o futebol passou a ganhar espaço nos clubes de crí-
relação consigo e com o mundo – a categorização quete, tendo o Club de Cricket Victória, fundado em
do humano em grupos de gêneros, que ditam os 1899, mudando seu nome para Sport Club Victória
seus modos-de-ser no mundo, nada mais é do que em 1901 e adotado o futebol como prática no ano
uma característica cultural, que apresenta como de- seguinte (Rocha Junior & Santo, 2011). Dessa forma,
finitivo alguns modos-de-ser homem e de ser mu- a disseminação do futebol não demorou a ocorrer
lher, sendo outras possibilidades existenciais vistas no Brasil.
como marginais (Maux, 2014). Assim sendo, o que
trazemos deste artigo a título de reflexão é justa-
mente considerarmos as possibilidades de se exis- Preleção
tir como mulher habitando o chamado universo do
futebol, que culturalmente é visto como um espaço Os papéis de gênero foram, ao longo da his-
masculino por excelência. tória, sendo estabelecidos e modificados nas socie-
De origem inglesa, o que hoje chamados de fu- dades, em todo o mundo. Comumente patriarcal,
tebol teve início no fim do século XII, com o chutar a maioria das sociedades, especialmente as oci-
de uma bola simbolizando, na época, a cabeça de dentais, instituíam papéis diferentes para homens
comandantes dinamarqueses expulsos da Inglater- e mulheres: as atribuições domésticas e maternas
ra, e progressivamente foi ganhando popularidade
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Larissa Medeiros de Souza, Ana Andréa Barbosa Maux & Melina Séfora Souza Rebouças
cipação das mulheres nas práticas esportivas, como característica chamou a atenção da sociedade e da
veremos, também precisou ser conquistada. impressa, trazendo à tona um importante persona-
De acordo com Oliveira (2006), as primeiras gem do futebol: a torcedora.
competições esportivas que se tem conhecimento Com o processo de popularização do futebol,
são os Jogos Pan-Helênicos, ocorridos na Grécia An- aos poucos as classes menos abastadas foram adqui-
tiga. Nessa época, a participação das mulheres nos rindo espaço nas arquibancadas, sendo responsabi-
jogos era proibida, nem mesmo como espectadoras. lizadas pela onda de violência que veio a se fazer
Na primeira edição dos Jogos Olímpicos Modernos, presente nos estádios. Foi nesse momento, por volta
realizado na cidade de Atenas em 1896, participa- de 1920, que as mulheres e as famílias passaram a
ram 245 atletas masculinos de 14 países e haven- ser menos presentes nesses espaços (Santos, 2010).
do a exclusão das atletas femininas por opção do A partir disso, e do advento das torcidas organiza-
seu idealizador, o francês Barão Pierre de Cobertin das, com suas expressões de violência, pós 1970, os
(Miragaya, 2008). O desejo de Cobertin, entretan- estádios passaram a ser consolidados como arenas
to, não durou muito tempo, pois na edição seguinte da masculinidade, havendo presença de mulheres
das Olimpíadas, em 1900, na França, as mulheres se quando acompanhadas por um parente homem e
fizeram presentes e representavam inexpressivos, em locais específicos nos estádios (Stahlberg, 2013).
porém significativos, 2% do total de atletas, sen- No tocante à inserção da mulher como prati-
do Charlotte Cooper, tenista britânica, a primeira cante do futebol, Moura (2003) relembra que havia
mulher a ser medalhista olímpica, conquistando o um discurso higienista e eugenista na época, afir-
ouro (Senkevics, 2012). mando os riscos e prejuízos que a prática esporti-
Ao fim do século XIX e no decorrer do século va trazia para o corpo da mulher. Dessa forma, os
XX, “as mulheres começaram a conquistar novas esportes permitidos para as mulheres – as da alta
posições em seus países, tornando-se mais ativas, sociedade, que tinham acesso aos clubes – eram a
e (...) pouco a pouco (...) começaram a invadir uma natação e o tênis. Apesar dessa visão, o futebol es-
área que nunca lhes havia pertencido e que lhes tava sendo disseminado pelo país, inclusive entre
era bastante atraente” (Miragaya, 2008, p. 230). Os as moças. O primeiro registro de futebol praticado
avanços nos direitos das mulheres contribuíram, por mulheres, o que não significa que não existiu
também, para o crescente número de participantes alguma prática anterior a esse marco, é datado em
femininas nas Olimpíadas, bem como para impul- 28 de junho de 1921, entre as Senhoritas Tremem-
são de sua visibilidade. À medida em que foram benses x Senhoritas Cantareirenses, em São Paulo
sendo realizados os Jogos Olímpicos, o número (Moura, 2003).
de atletas femininas, assim como o leque de mo- A persistência nas supostas preocupações
dalidades destinado a elas, foi sendo ampliado me- com o bem-estar físico das mulheres, que na rea-
diante muito esforço (Oliveira, 2006). A edição de lidade, buscava abafar a subversão de papéis que
2012, sediada em Londres, ficou conhecida como A estava ocorrendo: as mulheres deixando suas fun-
Olimpíada das Mulheres pois, primeira vez, todos ções domésticas naturais para adentrar em espaços
os 204 países e territórios participantes possuíam tipicamente masculinos (Franzini, 2005), causou
mulheres integrando suas delegações. Além disso, o repercussões legais. Em abril de 1941 foi instituído
número de atletas femininas alcançou 44% do total o decreto-lei 3.199, que criou o Conselho Nacional
de atletas inscritos – ou 4.620, em um universo de de Desportos (CND) e indicou, em seu artigo 54, a
10.500 (Duque & Hedler, 2012). não permissão de práticas desportivas incompatíveis
Assim como a maioria dos esportes, o futebol, com a natureza feminina, cabendo ao CND às ins-
desde que aportou no Brasil, foi associado, e é ali- truções necessárias para tal prática (Decreto Lei nº
mentado até os dias de hoje, como prática esportiva 3.199/1941). Em 1965, o CDN regulamentou algumas
masculina. Em nosso país, até meados do século XIX, instruções, entre elas a que proibia a prática de algu-
as mulheres pouco eram vistas na esfera pública. A mas modalidades, inclusive o futebol, pelas mulhe-
partir da segunda metade do referido século, impul- res (Castellani Filho, 1988). Buscando compreender
sionadas pela modernidade vinda da Europa e pelo os sentidos dessa proibição, é importante considerar
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
processo de urbanização dos centros brasileiros, as que o horizonte histórico em que as mulheres estão
mulheres passaram a ocupar mais espaços públicos inseridas, as limitam ao papel da procriação e da ma-
e ter participação mais ativa na vida social. Foi nessa ternidade, aprisionando-as em um dever ser e res-
época que passaram a ser expectadoras dos esportes tringindo-se o poder-ser (Rebouças & Dutra, 2017).
praticados pela elite brasileira, tais como o remo, o As proibições terminaram por contribuir, se-
turfe e, posteriormente, o futebol (Melo, 2007). gundo Moura (2003), com a ausência do futebol
A participação das mulheres nos clubes estava nas atividades físicas escolares para as meninas. O
restrita às esposas e filhas solteiras dos associados autor explica que não necessariamente esta prática
que, como dependentes, possuíam livre acesso aos estava presente no currículo das turmas de garotas,
jogos de futebol, espaço propício para a socializa- mas devido ao momento do futebol no país, uma
ção e flerte com bons partidos (Santos, 2010). O boa oportunidade de aproximação entre ambos foi
autor ainda aponta, acerca do comportamento das tolhida. O CDN revogou a proibição da prática do
moças nesses eventos, que todas compareciam mui- futebol por mulheres somente em 1979, havendo,
to elegantes e, costumeiramente, assistiam às parti- no início dos anos 80, uma reconfiguração da si-
das gesticulando, gritando o nome de seus atletas tuação daquelas que se interessavam pelo futebol
preferidos e torcendo o que traziam em mãos. Tal (Deliberação nº 10/1979).
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Impedimento? Possibilidades de Relação entre a Mulher e o Futebol
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Larissa Medeiros de Souza, Ana Andréa Barbosa Maux & Melina Séfora Souza Rebouças
nal voltado para esse público. Em 1991 foi sediada, autor nos traz que o habitar é a meta do construir,
também na China, a primeira Copa do Mundo de como na construção de uma ponte, por exemplo,
Futebol Feminino (Franco Júnior, 2007) evidencian- entretanto, ao considerarmos as relações essenciais,
do o quão recente é a imersão organizada e permiti- vemos que o esquema meio-fim não pode represen-
da das mulheres enquanto atletas de futebol. ta-las adequadamente, uma vez que “construímos
Klessler (2015) aponta para a dificuldade da e chegamos a construir à medida que habitamos,
uma construção linear da história no futebol de mu- ou seja, à medida que somos como aqueles que ha-
lheres no Brasil, constatando a pouca sistematiza- bitam” (Heidegger, 2012, p. 129). Dessa forma, en-
ção de registros acerca dessa prática. Apesar disso, tendemos que a relação entre construir e habitar
é perceptível que ela está entrelaçada com o Esporte é íntima, o que nos leva a refletir, na situação em
Clube Radar, do Rio de Janeiro. Fundado em 1932 questão, que estabelecer uma prática futebolística
como um time de futebol de praia, foi em 1981 que voltada para as mulheres exige um habitar esse es-
o Radar, por incentivo de seu presidente, Eurico paço para a construção do mesmo.
Lira, criou o seu time feminino – incialmente, tam-
bém de praia, ganhando os campos posteriormente
(Echevrerria, 1984). Segundo Duarte, Garcia e Luz 3. As árbitras
(1996) o Radar construiu, ao longo da década de 80,
a fama de time imbatível, contabilizando apenas 4 O primeiro registro de arbitragem feminina em
derrotas em 300 partidas e a conquista de dois pen- todo o mundo ocorreu no Brasil. Asaléa Campos
tacampeonatos carioca e brasileiro, sendo extinto Michelli passou a atuar nos gramados após reali-
em 1988. A equipe do Radar constituiu importante zar um curso oferecido pelo Departamento Amador
base para o futebol de mulheres, pois suas atletas da Federação Mineira de Futebol, em 1967. Devido
representavam o Brasil em competições internacio- às imposições da Confederação Brasileira de Des-
nais no fim da década de 80 (Souza, 2013). A dé- portos (CBD) acerca da prática esportiva de mulhe-
cada de 90 seguiu a tendência da anterior, criando res, Asaléa não obteve seu diploma após concluir o
grande mobilização em torno do futebol feminino. curso. Em 1971 veio o convite da FIFA para apitar
Em 1996, o futebol feminino debutou nos Jogos um torneio amador de futebol feminino no México,
Olímpicos, na edição de Atlanta – 88 anos após a porém a árbitra teria que ter o aval da confederação
inclusão do futebol de homens na mesma competi- nacional. Ela foi buscar a autorização direto com
ção (Klessler, 2015). Médici, comandante do país na época, que escreveu
A trajetória das mulheres que se interessam de próprio punho uma carta ao então presidente da
por futebol ou desejam ser jogadoras, é permeada CBD, João Havelange, para que houvesse a libera-
pela proibição desde a idade escolar. Moura (2003) ção de seu diploma e, enfim, pudesse apitar, mesmo
chama atenção para a dificuldades das meninas, nas que no futebol amador (Mello, 2015). Assim como
aulas de educação física, em adentrar no universo Asaléa, outro nome que merece destaque e cuja
do futebol, mesmo este sendo considerado uma ex- atuação abriu portas para a inserção das árbitras em
pressão da nossa cultura. Em pesquisa realizada por jogos masculinos de grande importância, foi Silvia
Wenetz (2005) sobre gênero e sexualidade nas brin- Regina de Oliveira. Em 2003, Silvia foi a primeira
cadeiras do recreio, a autora constatou a existência mulher a apitar um jogo da Série A do Campeonato
da polarização das brincadeiras por gênero, através Brasileiro, juntamente com outras duas assisten-
da fala das crianças, bem como o desejo de algumas tes, Aline Lambert e Ana Paula Oliveira, formando
delas de pertencer, também, ao universo do gênero um trio de arbitragem totalmente feminino (Leite,
oposto, como mostra a fala a seguir: 2017).
Entre o diploma de Asaléa e a primeira partida
(...) perguntei a duas meninas: “há brincadei- de destaque realizada por Silvia até os dias de hoje,
ras de meninos”? E Letícia me respondeu: “a muitos obstáculos foram enfrentados e conquistas
brincadeira de meninos que eu mais gosto é realizadas. Stahlberg (2013) aponta que a arbitra-
o futebol”. Perguntei: “você gosta de futebol?”
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 282-293, 2019 286
Impedimento? Possibilidades de Relação entre a Mulher e o Futebol
termo: deve ser caracterizada como mulher, mas Brasileiro do mesmo ano, permanecendo no cargo
nem tanto, uma vez que os marmanjos não lhe da- em 2016 (FoxSports, 2015). A saída de Emily das
riam a devida credibilidade. Em suma, as mulheres seleções se deu por motivos financeiros: a CBF não
árbitras e assistentes buscam atuar de acordo com pagava salário fixo à técnica, somente em época de
o que é esperado de seu comportamento e, mesmo competições (Mendonça, 2016).
assim, parecem despertar somente duas visões na Recentemente, em novembro de 2016, Emily
plateia: a beleza e o não saber/incompetência, pois Lima foi anunciada como a primeira treinadora de
quando não são gostosas ou uma delícia, elas devem Seleção Brasileira Feminina Principal (Confedera-
ir lavar a louça ou ouvir um tinha que ser mulher.... ção Brasileira de Futebol, 2016), sendo a primeira
Stahlberg (2013) afirma que, ao fazermos um a ocupar o mais alto escalão técnico feminino do
comparativo entre árbitras principais e assistentes, país. O que, entretanto, parecia um prenúncio de
as últimas parecem ter um espaço mais consoli- boas mudanças para o futebol de mulheres veio por
dado que as primeiras. Essa colocação parece ser água abaixo 10 meses depois: Emily foi demitida
corroborada pelos dados colhidos no site da Confe- sem, sequer, disputar uma competição oficial pela
deração Brasileira de Futebol (CBF), onde dos 227 Seleção. Foram 13 jogos, 56,4% de aproveitamento,
árbitros cadastrados, apenas 16, ou 7,04%, são mu- e uma demissão após 3 derrotas em jogos amistosos
lheres. Em relação ao número de assistentes, as 53 contra a Austrália, uma das seleções que mais in-
mulheres representam 17,20% do total de 308 ins- veste no futebol feminino, fora de casa (Dibradoras,
critos. Esse quadro se configura a partir da dificul- 2017). Se Emily fosse João, será que teria tido mais
dade, por partes das Federações, jogadores e treina- tempo?
dores, em admitir que as mulheres podem imprimir Apesar de, aparentemente, não ter agradado os
autoridade e disciplina em uma partida de futebol mandatários da nossa Confederação de Futebol, a
masculino (Stahlberg, 2013). Assim fica a clara a demissão de Emily repercutiu de tal maneira, que
diferença de poder entre o árbitro principal, dono algumas jogadoras e ex-jogadoras da Seleção Brasi-
do jogo e do apito, e seus auxiliares, coadjuvantes leira se articularam e divulgaram uma carta de ape-
e subordinados. Sobre isso, Stahlberg (2013, p. 83) lo dirigida à CBF buscando a colocação de mulhe-
esclarece que sua “hipótese é de que as mulheres res em cargos de decisão da entidade (Mendonça,
sejam melhor aceitas numa posição que seja mais 2017). Além da carta, algumas jogadoras declara-
discreta e de menor enfrentamento direto com os ram publicamente que não servirão mais à Seleção
personagens de uma partida”. Brasileira após a demissão de Emily e pelas más
condições de trabalho (Observador, 2017), gerando
grande repercussão nacional e internacional
4. As técnicas A dificuldade de se encontrar material teórico,
ou mesmo esportivo, sobre o tema, reflete a real fal-
Assim como em outros espaços, o comando ta de espaço para as mulheres que se propõem a co-
técnico de um time de futebol, seja este praticado mandar times de futebol, até mesmo nas categorias
por homens ou mulheres, é predominantemen- femininas. Mas qual a razão, efetivamente, para que
te ocupado por pessoas do gênero masculino. Um a mulheres tenham dificuldades em adentrar esse
exemplo disso pôde ser observado na Copa do Mun- espaço? Será que a vivência de 10 meses de Emily
do feminina, disputada no Canadá em 2015. Das 24 à frente da nossa Seleção Feminina foi o suficiente
seleções participantes, apenas um terço delas pos- para que essa porta se feche novamente? Ou ainda
suíam técnicas também mulheres (Rocha, 2015). pode se constituir como abertura?
O percurso histórico das mulheres como técni-
cas de times de futebol ainda não parece estar mini-
mamente consolidado, como já acontece em outros 5. As dirigentes
espaços. No Brasil, as experiências são esporádicas
e até pouco expressivas, principalmente se lembrar- A construção de espaços para as mulheres no
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
mos que vivemos na pátria do futebol. O primeiro futebol vem sendo feito, através dos anos, em vá-
clube profissional brasileiro a ser liderado por uma rios eixos. Um dos papéis mais complexos que a
mulher foi o Andirá Esporte Clube, do Acre. Em mulher pode exercer nesse universo é o de dirigen-
2000, Cláudia Malheiro assumiu o comando técni- te, a liderança máxima de um clube de futebol. A
co do clube e repetiu o feito em 2007, quando con- mais famosa gestão feminina no futebol foi a de Pa-
seguiu o inédito vice-campeonato estadual com o trícia Amorim, eleita no fim de 2009 para coman-
morcego. Anteriormente, Cláudia havia trabalhado dar o Flamengo durante o triênio 2010-2012. An-
como auxiliar técnica no Vasco da Gama, também tes disso, outras mulheres se mostraram pioneiras
no estado acreano. No primeiro trimestre de 2013, na administração esportiva. Sobre a primeira de-
pela primeira vez, uma mulher assumiu cargo de las a ocupar esse cargo do Brasil, Noronha (2012)
comando em uma Seleção Brasileira. Emily Lima aponta que essa experiência se deu em 1973 na ci-
passou comandar a Seleção Brasileira Feminina dade de Encantado, interior do Rio Grande do Sul,
Sub-17 – posteriormente, também a categoria Sub- quando Jurema Bagatini Ramos assumiu o Esporte
15 (Confederação Brasileira de Futebol, 2013). A Clube Encantado, preste a falir, e o conduziu à pri-
treinadora seguiu nas seleções até o início de 2015, meira divisão do Campeonato Gaúcho. Já Marle-
quando aceitou a proposta para comandar o time ne Callo Matheus foi a pioneira na direção de um
feminino do São José, de São Paulo, no Campeonato grande clube do País. Entre 1991 e 1993 ela admi-
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Larissa Medeiros de Souza, Ana Andréa Barbosa Maux & Melina Séfora Souza Rebouças
res de um clube brasileiro, administrando o Leão por ser bela, recatada e do lar, bem como a consta-
do Oeste pelo período de um ano (GloboEsporte. tação que Michel é um homem de sorte (por isso),
com, 2013). Diante das dificuldades enfrentadas renderam uma onda de comentários acerca das pos-
pelas mulheres em sua inserção no futebol, sobre- sibilidades de existir dadas à mulher. Encarado de
tudo no campo da gestão, é de grande importân- modo negativo, o título da entrevista suscitou cam-
cia vislumbrar que, aos poucos, elas podem rom- panhas na internet, onde as mulheres divulgavam
per com o preconceito, provar sua competência fotos ou situações em que estariam contrariando a
e abrir caminhos para outras mulheres que dese- ordem de submissão feminina sugerida na reporta-
jam contribuir com a prática futebolística e com gem. Em outras palavras, elas afirmavam poder-ser
o esporte. A iniciativa da FIFA, maior entidade de formas diferentes e estarem bem com suas esco-
relacionada ao futebol do mundo, em valorizar a lhas. Também é preciso levar em consideração que
mulher e confiar em sua capacidade, também é Marcela, assim como qualquer outro ser que está in-
outro fator que colabora com uma mudança de serido no mundo, com seus aspectos históricos, so-
visão da relação mulher-futebol, buscando meios ciais e culturais, escolhe existir bela, recatada e do
de romper com o paradigma machista ainda pre- lar, sem que isso se configure como algo negativo.
dominante. Ao trazermos a discussão da abertura do Da-
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Impedimento? Possibilidades de Relação entre a Mulher e o Futebol
sein e do projeto de seu mundo para o futebol, es- (...) a construção cultural brasileira concebe o
pecificamente para a relação deste com o feminino, esporte, e especialmente o futebol, como um
podemos apontar que ser mulher e gostar de futebol espaço de práticas sociais masculinas através
se torna algo possível a partir dessa compreensão de da sua história. E o futebol como uma prática
que o Dasein é o seu próprio projeto de ser, mas que esportiva identitária da construção deste mas-
só se torna uma possibilidade quando uma pessoa, culino terminou por concentrar uma resistên-
motivada pela angústia, considerada como ontoló- cia, ainda maior do que os outros esportes, à
gica (Heidegger, 1927/2015), compreende que ela é prática feminina (p. 79).
livre e responsável pelos rumos que dá ao seu exis-
tir e, desta feita, realizar escolhas com propriedade. A dificuldade do público feminino em esta-
A nossa sociedade, enraizada por valores pa- belecer relações plenas e autênticas com o futebol,
triarcais em seu horizonte histórico, vincula ao gê- termina por contribuir com o ciclo vicioso do dis-
nero masculino as questões de poder, apontando curso de ausências, apontado por Kessler (2015). De
as diferenças biológicas existentes para justificar acordo com a autora, esse discurso é definido como
essa posição (Maux, 2014). Dessa forma, apesar das “uma construção discursiva na qual é (re)afirmada a
conquistas alcançadas pelo movimento feminista, centralidade e a importância do futebol dos homens
como já apontado, e (em especial o espetacular)” (p. 58). Mesmo dian-
te das conquistas femininas no futebol, o discurso
(...) embora possamos vislumbrar mudanças das ausências continua a subvalorizar esses ganhos,
significativas no que tange aos papeis que ho- evidenciando as carências existentes, sempre em
mens e mulheres exercem na sociedade, esta comparação com a prática masculina. Romper com
ainda carrega um forte ranço nas questões esse discurso se mostra difícil devidos aos valores
de gênero e poder, que orientam e engessam financeiros e simbólicos envolvidos (Kessler, 2015).
homens e mulheres em determinados modos- A estrutura circular, ainda de acordo com Kessler
-de-ser e que apresentam o gênero masculino (2015), compõe o discurso das ausências e apresen-
como superior, sinônimo de poder, força e po- ta os seguintes elementos: falta de incentivos, au-
tência (Maux, 2014, p. 18). sência de projetos duradouros, insignificante base
de atletas, fraca performance, pouco espectadores,
Já apontamos no decorrer do texto sobre o ca- pequena visibilidade na mídia e escassos patrocí-
ráter indeterminado do ser, sendo possível ao Da- nios. Percebe-se que esse círculo é vicioso, e cada
sein exercer o seu pode-ser diante das possibilida- um dos seus pontos, desencadeia o anterior. Ora,
des quando rompe com as determinações impostas quando não há incentivo, seja por parte da CBF ou
pelo horizonte que o aprisiona em modos-de-ser já Federações estaduais, dificilmente haverá a execu-
previamente definidos e nos quais se espera que ele ção de projetos duradouros, o que significa falta de
se reconheça enquanto existente. Para que esse po- apoio na formação de atletas, que diante de uma
de-ser seja exercido de forma mais própria, é preciso (não necessária, mas real) baixa performance, não
que “o Dasein permita a si mesmo a possibilidade chama a atenção do público, da mídia e dos patro-
de antecipação que assuma o seu próprio ser a partir cínios, retornando à falta de investimento inicial.
de si e para si mesmo. (...) precisa (...) recuperar sua O movimento de legitimação de poder-ser em
escolha mais própria, já que esta se encontra perdi- relação ao futebol, por parte das mulheres, parece,
da no impessoal” (Sá, 2005, p. 3). Com isto posto, ao aos poucos, estar sendo melhor visto. Em artigo vin-
pensarmos a relação entre as mulheres e o futebol, culado à revista Exame, Portugal (2014) noticiou a
evidenciamos a dificuldade de estabelecimento da parceria entre a Heineken, marca de cerveja e patro-
mesma, especialmente pela sua associação à práti- cinadora oficial da UEFA Champions League, com
ca masculina desde os primórdios da história desse a loja de sapatos ShoeStock. O objetivo? Entreter as
esporte. Mas, afinal, existem limites para a entrada mulheres nas lojas e site com promoções, no mo-
e permanência das mulheres no mundo futebolísti- mento do jogo, para que elas pudessem liberar os
co? Quem os impõe? Que situações terminam por maridos e namorados para assistir à final do cam-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
prejudicar e impulsionar essa relação? Compreen- peonato sossegados. A repercussão não foi positi-
demos como multifatoriais os elementos que in- va. Podemos observar que esse tipo de colocação
fluenciam e constituem essa relação e, assim sendo, polariza o poder-ser do Dasein em suposições de
buscamos expor e discutir alguns deles. gêneros. As mulheres têm que gostar de sapatos, e
De acordo com Vieira (2010), é a construção não de futebol? Aliás, não podem gostar de sapatos
histórica e social de uma mentalidade antiqua- e de futebol? Em 2016, entretanto, a Heineken se
da que reproduz, e nos faz ouvir, desde crianças, retratou ao pensar em uma propaganda que con-
que futebol é coisa de homem. A reprodução cita- sidera as possibilidades além dos estereótipos de
da pelo autor, logo nos remete à impessoalidade gênero. Como exposto em reportagem do G1.com
apontada por Heidegger (19272015), onde o im- (2016), a empresa selecionou casais e ofereceu aos
pessoal é remetido aos outros e “todo mundo é o homens dois presentes: um fim de semana em um
outro e ninguém é si mesmo” (p. 185). Dessa for- spa, para suas acompanhantes e, para eles, a pos-
ma, desde a mais tenra idade, é transmitida a ideia sibilidade de assistir à final da Champions em um
de que o futebol é campo e propriedade somente evento exclusivo da Heineken. Os três homens en-
dos meninos. Sobre isso, Mourão e Morel (2005) volvidos aceitaram a proposta. No dia do jogo, já
apontam que no evento, eles entraram em contato com as suas
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Larissa Medeiros de Souza, Ana Andréa Barbosa Maux & Melina Séfora Souza Rebouças
mulheres, que supostamente estavam cuidando da suas decisões, é preciso que o Dasein compreenda o
beleza, mas foram surpreendidos ao vê-las em Mi- apelo da consciência, que se configura como possi-
lão, assistindo in loco a final da mais importante bilidade de escuta própria, e abandone a escuta da
competição europeia. O vídeo, que foi amplamente “falação” impessoal determinada a priori (Roehe &
elogiado, além de comentado e compartilhado nas Dutra, 2014). Assim sendo, a relação entre a mulher
redes sociais, é encerrado com a frase: “já pensou e o futebol, considerando a inclusão feminina em
que ela pode gostar de futebol tanto quanto você?”. diversos espaços e papéis desse contexto, oscilam
Apesar de aparentemente simples, o questionamen- entre o esforço de autenticidade das mulheres em
to provoca reflexões que contrariam a ordem que poder-ser e sua condição de ser-no-mundo que cris-
está dada pela questão de gênero, naturalizando as taliza modos-de-ser e possibilidades de existir.
escolhas por afinidade, de acordo com a individua- Heidegger (2012) nos traz que “a essência de
lidade de cada ser. construir é deixar-habitar” (p. 139). Dessa forma,
a possibilidade de construção se articula a partir
da capacidade de se habitar. Quando as mulheres,
Considerações finais: Acréscimos mesmo contrariando o horizonte histórico que se
apresenta para elas, buscam habitar seu modo-de-
Diante das reflexões realizadas, não ousa- -ser mais próprio em sua relação com o futebol,
mos falar que as mulheres não possuem lugar no ocupando seus espaços e habitando seus papéis,
futebol – seria injusto diante do que foi alcançado promovem a construção desses mesmos espaços e
nas diversas áreas que envolvem essa modalidade papéis. A medida em que habitam e constroem, as
esportiva. Insistimos, entretanto, que elas ainda mulheres envolvidas com o futebol vão habitando
não adquiriram, efetivamente, sua capacidade de um lugar que passa as constituir, bem como, não
poder-ser. As mulheres parecem ser subestimadas raro, terminam por inspirar aquelas que desejam se
e subutilizadas em seu potencial, principalmen- lançar ao seu próprio habitar e construir sua relação
te em razão das concepções ligadas ao gênero que com o futebol.
são previamente dadas em nossa sociedade e pelo Considerando a importância do futebol como
horizonte histórico que nos constitui como seres. cultura nacional, assim como a construção do mes-
Estes estabelecidos modos-de-ser cotidianos, como mo como um espaço não naturalizado como femi-
apontam Roehe e Dutra (2014), terminam por ditar nino, se faz importante a discussão e desconstrução
ao Dasein a forma como deve viver – sendo atra- das questões de gênero no futebol, visando desmi-
vés desta forma generalizada de conduzir a vida, tificar e valorizar uma prática já existente, porém
seguindo o que todos fazem, que o ser perde a sua ainda não consolidada, em nosso país.
individualidade e entra no que Heidegger chama
de impessoalidade. Quando fazemos uma escolha
motivada pela impessoalidade, retiramos do Dasein Referências
a responsabilidade por suas decisões, deixando-as
mais fáceis, uma vez que as escolhas e julgamentos Castellani Filho, L. (1988). Educação física no Bra-
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em que acatamos as visões e decisões dos outros so- pirus Editora.
bre nosso modo-de-ser próprio, somos aprisionados
Azevedo, A.K.S. (2013). Não há você sem mim: his-
em modelos que podem não nos caber, aniquilando
tórias de mulheres sobreviventes de uma tenta-
nosso potencial de poder-ser mais próprios. Nesse
tiva de homicídio. Tese de Doutorado, Univer-
sentido, percebemos que muitas pessoas em nossa
sidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
sociedade, homens e mulheres, reforçam e vivem
RN, Brasil.
de acordo com a vinculação do futebol com o gêne-
ro masculino, não considerando outros modos-de- Confederação Brasileira de Futebol (2013, março
-ser para si e para o outro. As mulheres que buscam 27). Emily Lima é a primeira técnica da Sele-
adentrar nesse universo previamente estabelecido
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Impedimento? Possibilidades de Relação entre a Mulher e o Futebol
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10.18065/RAG.2019v25n3.8
Resumo: O tema da motivação e da causalidade psíquica foi amplamente analisado, a partir do método
fenomenológico, por Edith Stein. Uma exposição detalhada deste tópico pode ser encontrada em sua obra
Contribuições para uma fundação filosófica da psicologia e das ciências do espírito, publicada no ano de
1922. Nesta obra, Stein mostra como o conceito de motivação é necessário para se compreender a vincu-
lação da pessoa humana com a realidade sociocultural. Uma das teses centrais da obra é que a vida da
consciência não pode ser abordada de maneira suficiente pelo método científico-natural, pois este se vale
apenas do conceito de causalidade natural e não do conceito de motivação. Neste artigo, pretendo apre-
sentar alguns tópicos centrais das discussões de Stein sobre o conceito de “motivação”, situando-os à luz
do pensamento husserliano. Por fim, buscarei mostrar a sua importância para a fundamentação epistemo-
lógica da psicologia.
Palavras-chave: Fenomenologia; Psicologia fenomenológica; Motivação; Causalidade
Abstract: The theme of motivation and psychic causality was extensively analyzed, from the phenomeno-
logical method, by Edith Stein. A detailed discussion of this topic can be found in his Contributions to a
Philosophical Foundation of Psychology and the Sciences of the Spirit, published in the year 1922. In this
work, Stein shows how the concept of motivation is necessary to understand the linkage of the human
person with sociocultural reality. One of the central theses of the work is that the life of consciousness
cannot be adequately addressed by the natural-scientific method, since it uses only the concept of natu-
ral causation and not the concept of motivation. In this article, I intend to present some central topics of
Stein’s discussions about the concept of “motivation”, placing them in the light of Husserlian thinking.
Finally, I will try to show its importance for the epistemological foundation of psychology.
Keywords: Phenomenology; Phenomenological psychology; Motivation; Causality
Resumen: El tema de la motivación y de la causalidad psíquica fue ampliamente analizado, a partir del
método fenomenológico, por Edith Stein. Una exposición detallada de este tema se puede encontrar en su
obra Contribuciones a una fundación filosófica de la psicología y las ciencias del espíritu, publicada en el
año 1922. En esta obra, Stein muestra cómo el concepto de motivación es necesario para comprender la
vinculación de la persona humana Con la realidad sociocultural. Una de las tesis centrales de la obra es
que la vida de la conciencia no puede ser abordada de manera suficiente por el método científico-natural,
pues éste se vale sólo del concepto de causalidad natural y no del concepto de motivación. En este artículo,
pretendo presentar algunos tópicos centrales de las discusiones de Stein sobre el concepto de “motiva-
ción”, situándolos a la luz del pensamiento husserliano. Por último, procuraré mostrar su importancia para
la fundamentación epistemológica de la psicología.
Palabras clave: Fenomenología; Psicología fenomenológica; Motivación; Causalidad
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A Concepção de Motivação no Pensamento de Edith Stein
agentes envolvidos (Dilthey, 1894/2008). A investi- cias naturais e ciências humanas? Um dos tópicos
gação histórica exige que o pesquisador se coloque concernentes ao debate sobre se a psicologia é uma
no lugar das figuras históricas a fim de compreen- ciência humana ou natural diz respeito ao proble-
der, à luz de suas respectivas visões de mundo, as ma da causalidade psíquica. Esse problema pode se
motivações que os conduziram a uma determinada expresso pela seguinte pergunta: Pode o surgimento
ação. Por exemplo, é inapropriado recorrer a causas de uma vivência ser explicado tão somente por leis
naturais para se compreender porque Júlio Cesar causais-naturais? É possível que haja uma lei esta-
atravessou, com suas legiões, o rio Rubicão, para belecendo uma relação de regularidade entre uma
marchar em direção a Roma. A melhor forma de determinada configuração material e uma vivência
abordar esse fato histórico é colocando-se no lugar de determinado tipo e determinado conteúdo de
de Júlio Cesar e buscar compreender suas ações a sentido?
partir de sua visão de mundo e de suas motivações. Em Ideias II (Ideen zu einer reinen phänome-
Para Dilthey, a abordagem aos fenômenos históri- nologie und phänomenologische Philosophie: Phä-
cos, os quais são marcados pela singularidade, bem nomenologische Untersuchungen zur Konstitution),
como pela singularidade de sua conjuntura, se en- Husserl, inspirado pela problemática colocada por
contra em pleno contraste com a busca por uma Dilthey, busca fundamentar, a partir do método fe-
causalidade natural, pois esta pressupõe uma re- nomenológico, a distinção entre ciências da nature-
gularidade entre os fenômenos repetíveis, os quais za e ciências do espírito. A lei causal, do ponto de
devem ser subsumidos a poucas variáveis: vista clássico, pode ser definida como uma relação
de regularidade entre determinadas condições reais
Entender-se-á por ciência explicativa toda a e determinados efeitos reais. Assim, uma lei natural
subordinação de um campo de fenómenos a diz que, dadas determinadas condições reais, se-
um nexo causal por meio de um número limi- guem necessariamente determinados efeitos reais.
tado de elementos (isto é, partes integrantes Se o princípio da causalidade é universal, devería-
do nexo) univocamente determinados. Este mos considerar que todo evento possui uma causa,
conceito indica o ideal de semelhante ciência, conhecida ou desconhecida. Por exemplo, se algo
tal como ele se formou sobretudo graças ao de- pegou fogo é porque determinadas condições ocor-
senvolvimento da física atómica (1894/2008, reram. Se um relâmpago ocorreu, é porque certas
p.10). condições materiais ocorreram. Mas o que dizer de
uma vivência? Partindo do princípio naturalista,
As ciências humanas em geral operam com poderíamos defender o seguinte raciocínio:
eventos singulares, os quais são incluídos em um
contexto estrutural altamente complexo, dotado de 1) O princípio de causalidade é válido para
uma enorme quantidade de fatores concretos de or- toda natureza.
dem social, econômica, moral, cultural, pessoal. Por
essa razão, o método de abordagem das ciências hu- 2) O ser humano é parte da natureza e, portan-
manas deve ser analítico e descritivo, pois trata-se to, um ser natural.
de descrever e articular o fenômeno histórico à luz
do todo. 3) A vivência é parte do ser humano.
Dado o anterior, a psicologia naturalista, de
cunho hipotético-causal, estaria, devido a seus 4) Logo, uma vivência é um evento que ocorre
pressupostos metodológicos, fadada ao fracasso, na natureza e, enquanto tal, possui uma causa
posto que seria incapaz de abordar a vida humana natural.
em sua dimensão concreta e singular (1894/2008).
Assim, Dilthey propôs que a psicologia deveria ser A concepção de que a consciência é parte in-
concebida não só como uma ciência humana ao tegrante da natureza e, portanto, está submetida a
lado de outras, mas sim como a disciplina que fun- leis naturais, era amplamente difundida na segunda
damentaria as ciências humanas. (1894/2008, p.20, metade do século XIX. Tal concepção está na base
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
24). A razão deste status privilegiado da psicologia do surgimento da psicologia tomada como ciência
frente às demais ciências humanas residiria no fato natural. Em geral, os psicólogos naturalistas julga-
de que todas elas pressupõem uma concepção do vam ter rompido com as amarras do cartesianismo,
que seja o ser humano, tema esse que circunscreve de acordo com o qual o espírito (res cogitans) pos-
o campo da psicologia. Deste modo, por vezes Dil- sui leis distintas da matéria (res extensa). Conside-
they designava a sua psicologia de “psicologia real” ravam que essa distinção nada mais era do que um
ou mesmo “antropologia” (Makkreel, 1975). resquício de preconceitos metafísico-religiosos. O
O pensamento de Dilthey exerceu forte im- problema, como iremos observar, é que o concei-
pacto na fenomenologia husserliana, a partir de to de natureza pressuposto pelos naturalistas era,
1905 (Peres, 2014). Nas lições sobre Psicologia fe- do ponto de vista filosófico e ontológico, ingênuo e
nomenológica, de 1925, Husserl (1962) alega que a ainda tinha a sua raiz no cartesianismo.
obra de Dilthey consistiu em um divisor de águas A segunda metade do século XIX vê o nasci-
da psicologia da época, suscitando um debate que mento de diversas propostas, inspiradas na Fisio-
assumiu várias formas, e que dividiu filósofos e logia, de se estudar a consciência a partir do mé-
psicólogos. É a psicologia uma ciência natural ou todo natural. E muitos psicólogos entendiam que a
uma ciência humana? Qual a diferença entre ciên- aplicação dos métodos naturais iria resolver vários
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Savio Passafaro Peres
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O problema de fundo que exige a introdução nal entre vivências intencionais são:
do conceito de motivação é aquele concernente à 1) Os tipos das vivências intencionais envol-
gênese das vivências. Tal problema pode ser expres- vidas (percepção, consciência de imagem, etc.)
so pela seguinte pergunta: “qual a ‘causa’ de uma e, correlativamente, o tipo de doação do objeto à
vivência?”. O que Stein procura mostrar é a causa consciência (Art der Gegebenheit eines Objekts) (por
aqui em questão não se restringe àquela operada exemplo, intuitiva ou signitiva). Como afirma Stein
pelas ciências naturais. Dentro de uma visão pu- (1922/2010, p.36): “A natureza particular da doação
ramente naturalística, poderíamos dizer que o que do objeto pode ser também entendida como um mo-
causa as vivências são os processos cerebrais. Tal tivo para a tomada de posição do eu no confronto a
abordagem, entretanto, é inadequada para se com- tal objeto; por exemplo, a doação perceptiva como
preender a gênese de certas classes de vivências, motivo para a crença em sua existência”.7 Essa mes-
em particular, as vivências intencionais, as quais ma posição se encontra em Husserl, que, em Ideias
pertencem ao estrato espiritual (1922/2010, p. 35). II, entende que “Todos os modos de comportamento
A causalidade natural se limita ao estrato psíquico espiritual são conectados ‘causalmente’ através de
(embora não o esgote). O estrato psíquico é consti- relações motivacionais; por exemplo: eu suponho
tuído pelas vivências da sensibilidade, por aquilo que A seja, porque sei que B, C... são.” 8 (Husserl,
que Husserl (1950), em Ideias I, havia designado de 1952, p.230)
hylé. Particularmente, pertencem à psique as pul- 2) O sentido (Sinn) com o qual o objeto é inten-
sões sensíveis (sinnliche Trieb) e os dados sensíveis cionado em cada uma das vivências integrantes do
(sinnlicher Daten) (como sensações cromáticas, au- nexo motivacional (Stein, 1991, p.236; 1922/2010,
ditivas) (1922/2010, p.99). Apenas essa esfera en- p.37)9. Por exemplo, o sentido que a cruz tem para
contra-se sujeita às leis causais naturais6. quem nasceu em uma sociedade cristã não se limi-
A diferença entre os dois tipos de causalidade ta aos aspectos físicos do objeto. Se um cristão se
torna-se explícita ao se observar que a causa natu- ajoelha diante a cruz, não é devido apenas às suas
ral pressupõe uma relação regular entre realidades propriedades físicas e geométricas, mas antes ao
(Husserl, 1952, p.125, 126; Stein, 1922/2010, p.258- sentido que ela tem para ele.
259). Se A exerce efeito causal em B, então A e B Para Stein, a estrutura da relação de motiva-
devem existir e ser reais. Essa exigência não ocor- ção entre a(s) vivência(s) motivante(s) e a vivência
re na relação de motivação. Não necessariamente B motivada é estabelecida a partir do eu puro (Stein,
precisa ser um objeto real-natural para produzir uma 1922/2010, p.36) 10. O eu realiza um determinado
relação motivacional em A (Husserl, 1952, p. 220, ato porque ele realizou outro. Por exemplo, eu tenho
230). Assim o nexo motivacional entre vivências in- a vivência de crer na mesa porque tenho a vivência
tencionais não depende da realidade ou irrealidade intuitiva de perceber a mesa. Do mesmo modo, o
do objeto. A última tese se fundamenta em dois prin- pensar lógico consiste em relações motivacionais:
cípios gerais da fenomenologia: (1) a relação inten- eu concluo algo sobre a base das premissas. Nes-
cional da consciência com o objeto não é uma rela- te último caso, a vivência judicativa de concluir é
ção real, isto é, a intencionalidade da consciência a motivada pelas vivências de julgar as premissas. O
um determinado objeto não é determinada pela ação sentido contido nas premissas, somado à evidência
causal deste objeto na consciência (Husserl, 1984a, da veracidade de uma regra lógica, motiva a minha
p.439); (2) a relação intencional depende do conteú- vivência judicativa de conclusão.
do de sentido com o qual o objeto é apreendido (Hus- As relações motivacionais podem ocorrer de
serl, 1901/1984a, p.427; Stein, 1922/2010, p.37). Eu maneira explícita ou implícita (Stein, 1922/2010,
posso estar consciente não só daquilo que se encon- p.36). A motivação explícita ocorre quando há um
tra em meu mundo circundante imediato, ou seja, nexo explícito de evidência entre as vivências mo-
aquilo que é dado na percepção sensível. Posso tam- tivantes e motivadas. Isso ocorreria, por exemplo,
bém estar consciente de objetos inexistentes, como quando um sujeito, em uma demonstração mate-
um quadrado redondo, objetos futuros, como o pró- mática, parte das premissas e vai seguindo, explici-
ximo natal, objetos passados, como o natal passado, tando cada um dos passos, até alcançar a demons-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
objetos ideais, como uma equações matemáticas, e tração desejada. No caso da motivação implícita, o
mesmo objetos fantasiados, como um elefante alado. nexo entre vivências motivantes e vivências moti-
Os nexos motivacionais podem ser facilmente
ilustrados no caso da relação do homem com a reli- 7 „Man kann auch die besondere Art der Gegebenheit eines Ob-
jekts als Motiv auffassen für die Stellungnahme des Ich zu diesem
gião. Para compreendermos o comportamento reli- Objekt, die wahrnehmungsmäßige Gegebenheit z. B. als Motiv für
gioso não adianta recorrermos apenas às qualidades den Glauben an seine Existenz.“
físicas do corpo ou do mundo, mas sim ao sentido 8 „Alle geistigen Verhaltungsweisen sind durch Beziehungen der
que os diferentes entes religiosos têm para o sujeito Motivation ‚kausal‘ verknüpft, z.B. ich vermute, es sei A, weil ich
weiß, daß B,C ... ist. (Husserl, 1952, p.230)
da experiência. O que faz uma pessoa estremecer 9 „Der Zusammenhang der Erlebnisse, wonach eines vermöge
diante de uma pintura na qual o demônio é repre- seines Sinnesgehaltes ein anderes hervorruft (z. B. die Furcht vor ei-
sentado não são suas qualidades físicas, mas sim o ner Gefahr eine Abwehrhandlung), heißt Motivation.“ (Stein, 1991,
sentido e o modo pelo qual a imagem é apreendida. p.236)
Ou seja, o que interessa, para a relação motivacio- 10 „Die Struktur der Erlebnisse, die allein in das Verhältnis der
Motivation eintreten
6 „Wir unterscheiden eine sinnliche Lebenskraft, die sich umsetzt können, ist für das Wesen dieses Verhältnisses durchaus maßgebend:
in die Aufnahme sinnlicher Daten bzw. verschiedene Fähigkeiten daß Akte ihren Ursprung haben im reinen Ich, von ihm phänome-
zur Aufnahme sinnlicher Daten, sowie in sinnliche Triebe und ihre nal ausgehen und hinzielen auf ein Gegenständliches..“ (Stein,
Betätigung.“ 1922/2010, p.36)
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A Concepção de Motivação no Pensamento de Edith Stein
vadas se dá por meio de sedimentações de nexos vida intencional, mundo que é correlato de nossa
motivacionais explícitos já efetuados. Por exemplo, atitude personalística e prática (Stein, p.1922/2010,
uma vez provado o teorema, a pessoa pode se valer p.186). Segundo Stein, a relação do sujeito com o
do mesmo sem precisar demonstrá-lo novamente. mundo dos valores e dos bens culturais não pode
O teorema entra no nexo motivacional e vale como ser devidamente abordada por uma psicologia cau-
evidente, devido à sedimentação dos passos da de- sal naturalística. A elucidação da dinâmica entre o
monstração antes realizados de maneira explícita. sujeito corporificado e o mundo circundante exige
Essa situação pode ser generalizada: toda motiva- que o investigador leve em consideração as cone-
ção explícita pode se sedimentar e se tornar implí- xões motivacionais que se estabelecem em função
cita e vice-versa. do sentido (Sinn) com que os objetos se apresentam
Uma vez que a motivação diz respeito ao nexo ao sujeito. Ou seja, para compreendermos os moti-
entre vivências, pode parecer que se trata de uma vos, devemos levar em consideração o sentido com
lei que diz respeito a uma subjetividade desencar- o qual um determinado objeto ou evento se apre-
nada, abstraída do mundo. Nada mais distante. senta à consciência. E para investigar os sentidos é
Como os nexos motivacionais dependem do senti- preciso observar as relações intersubjetivas e a ati-
do de apreensão dos objetos, a motivação nos auxi- tude personalística (ou seja, nossa atitude prática e
lia a compreender a dinâmica entre o homem e seu cotidiana com o mundo, em contraste com a atitude
mundo circundante. Ademais, a motivação permite teórico-naturalística, ou seja, a do cientista natural).
mostrar que a fenomenologia opera com uma noção Para Stein, a racionalidade humana, tanto teó-
de subjetividade encorporada. Isto fica claro quan- rica quanto prática, encontra seu esclarecimento
do Edith Stein explora a relação entre motivação e através de uma análise da motivação13. O tipo de
percepção. relação motivacional racional é designado por Stein
Para Stein, o âmbito da percepção é atraves- de fundação racional (vernünftiger Begründung),
sado por motivações implícitas. Ao ver uma coisa sendo esta caracterizada por nexos de evidência,
espacial, o objeto é dado intuitivamente através de seja a evidência apodítica, adequada ou inadequa-
perfis, de modo que temos do objeto uma evidên- da, entre o motivo e a vivência motivada. Por exem-
cia inadequada. Assim, podemos dizer que, a cada plo, um valor moral pode servir de motivo para
momento, apenas um determinado perfil é intuiti- minha decisão de ajudar essa determinada pessoa
vamente dado, ao passo que os perfis ausentes (por (1922/2010, p.42). De maneira análoga, como já
exemplo, o lado de trás do objeto) são co-intencio- observamos, o pensar lógico se dá por meio de re-
nados de maneira vazia. A consciência do horizon- lações motivacionais, embora, neste caso, os nexos
te de perfis ausentes pode motivar um movimento que ligam as vivências sejam apodíticos.
do corpo (Stein, 1922/2010, p.37)11. A exploração Contudo, nem toda forma de motivação é, em
intuitiva do objeto pressupõe um nexo motivacio- si, racional. Há casos em que o nexo motivacional
nal que coordena os perfis ausentes, co-intenciona- não é, estrito senso, nem racional nem irracional,
dos, e as vivências cinestésicas, responsáveis pela mas sim um nexo compreensível (Verständicher Zu-
autoconsciência da espacialidade dos membros do sammenhang) (1922/2010, p.39). Uma pessoa pode
corpo e de seus movimentos. relutar em acreditar em uma má notícia, motivada
Stein apresenta uma afiada terminologia para pelo fato de esta ser desagradável (Stein, 1922/2010,
descrever as relações motivacionais. É preciso dis- p.43).
tinguir entre motivo, vivência motivante e vivência O conceito de motivação possui, além dos fa-
motivada. “O raio e não a percepção do raio é o mo- tores mencionado, importantes implicações para
tivo de minha espera do trovão; o motivo de minha uma interpretação fenomenológica do inconscien-
alegria é a chegada de uma carta desejada e não o te. Nem sempre temos conhecimento explícito
conhecimento da chegada da carta.”12 (1922/2010, das relações motivacionais que ocorrem em nos-
p.38). Neste último caso, a chegada da carta é o mo- sa consciência. Podemos viver uma vivência sem
tivo da alegria; o conhecimento da chegada da carta que saibamos a(s) vivência(s) motivante(s) (Stein,
é a vivência motivante da vivência da alegria (vi- 1922/2010, p.41). A partir de uma perspectiva feno-
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Savio Passafaro Peres
impulsiva, um ato que foi de encontro aos meus te abordadas pelos métodos naturalísticos, uma vez
valores. Mas nem sempre sou capaz de identificar que estes se constituem em pressupostos epistemo-
os motivos que me levaram a esta ou aquela vivên- lógicos e ontológicos incapazes de operar com de-
cia. Como Husserl aponta: “Os ‘motivos’ são muitas terminados problemas decorrentes da intenciona-
vezes escondidos na profundidade, mas podem vir lidade da consciência, como o que diz respeito ao
colocados à luz por meio da “psicanálise”. (Husserl, sentido de apreensão dos entes.
1952, p.223). Esta “profundidade” não significa, A vida humana é altamente complexa e uma
para Husserl, que a motivação não seja, em sentido abordagem psicológica que busque fazer jus à essa
amplo, um nexo integrante da consciência, em par- complexidade não deve se eximir de levar em con-
ticular, da consciência pré-reflexiva. O que ocorre, sideração a subjetividade, a intencionalidade e a
isso sim, é que “embora a motivação esteja realmen- intersubjetividade. Vale ressaltar que a introdução
te presente na consciência, ela não chega a assumir do conceito de motivação como um fator explicati-
um relevo, não vem notada, é inadvertida (‘incons- vo necessário para uma abordagem da vida humana
ciente’)”. (Husserl, 1952, p.223)14 em sua concretude histórico-social não implica na
Edith Stein não apenas se coloca de acordo exclusão da aplicação, em outros aspectos, de expli-
com Husserl (Stein, 1922/2010, p.43) em vários tó- cações de tipo causais-naturais.
picos presentes em Ideias II, mas busca aprofundar Em sentido amplo, pode-se dizer que a eluci-
e examinar a relação entre psique e espírito, pro- dação e articulação dos conceitos de causalidade e
curando detalhar a relação entre causalidade psí- motivação visam oferecer um modo de fundamen-
quica e causalidade motivacional em várias classes tar fenomenologicamente a afirmação corriqueira
de vivências. Um exemplo disso são as análises que de que o ser humano é um ser bio-psíquico-social
ela realiza, a partir do desenvolvimento do pensa- e se traçar, a partir daí, estratégias metodológicas.
mento de Alexander Pfänder (1900; 1911/1963), da Como pudemos observar, a motivação assume cen-
vivência do tender (Streben). Repulsão e desejo são tralidade para se pensar abordagens que tenham
as duas formas básicas do tender. Na repulsão, a di- como escopo a vida humana em sua dimensão so-
reção se dá no sentido de um afastamento de um cial, cultural e racional.
determinado objeto repulsivo. No desejo, a direção
se dá no sentido de uma atração a um determinado
objeto atraente (Stein, 1922/2010, p.60). Para Stein, Referências
o desejo é constituído a partir de componentes psí-
quicos e espirituais. Por um lado, ele tem origem
em uma pulsão (Trieb) psíquica. Por outro lado, na Bello, A. A. (2013). Causality and Motivation in Edith
medida em que o desejo se direciona a um objeto Stein (pp.135-151). In Poli, R. Causality and moti-
(evento ou situação desejada), ele é uma vivência vation (pp. 135-151). Frankfurt: Ontos Verlag.
intencional pertencente puramente ao espírito. Em
contraste, a vontade (Willen) possui origem espiri- Bello, A. A. (2015). Pessoa e comunidade: comentários à
tual. Ela é experienciada como provindo e estando Psicologia e Ciências do Espirito de Edith Stein (Mi-
sob o poder do eu (1922/2010, p.61), ao passo que guel Mahfoud e Jacinta Turolo Garcia, Trad.). Belo
o desejo é algo despertado no eu. Não está em meu Horizonte: Artesã.
controle ter ou não ter o desejo, mas está sobre o Dilthey, W. (2008). Ideias acerca de uma Psicologia De-
meu poder lutar, com minha vontade, contra o de- scritiva e Analítica (A. Morão, Trans.). Covilha: Lu-
sejo, resistindo-lhe. Um exemplo disso seria o de sosofia press. (Obra originalmente publicada em
um fumante que resolve parar de fumar. Ele não 1894).
tem como, nos primeiros dias, não sentir desejo de
fumar. Contudo, nada impede de ele buscar resistir Husserl, E. (1950). Ideen zu einer reinen Phänomenologie
ao desejo com a força de sua vontade, a qual está und phänomenologischen Philosophie: Buch 1, All-
vinculada com sua decisão, realizada a partir de gemeine Einführung in die reine Phänomenologie.
certas motivações: cuidar de sua saúde, etc.
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A Concepção de Motivação no Pensamento de Edith Stein
Husserl, E (1975). Logische Untersuchungen. Bd. 1 Prole- e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
gomena zur reinen Logik (Hua 18). (E. Holenstein Paulo (FFCLRP/USP); Mestrado e Doutorado pela
Ed.). Den Haag: Martinus Nijhoff. (Trabalho original FFCLRP/USP, com estágio internacional na Università
publicado em 1900). Lateranense (Roma). Fez pós-doutorado (2011-2014)
em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
Husserl, E (1984a). Logische Untersuchungen. zweiter de São Paulo (PUC-SP), com estágio internacional
Band. zweiter Teil. Untersuchungen zur Phänome- no Center for Subjectivity Research (Copenhagen).
nologie und Theorie der Erkenntnis. (Hua 19/2) The Foi professor visitante de Filosofia da Universidade
Hague: Nijhoff. Original de 1901. Camilo Castelo Branco, no curso de pós-graduação
lato sensu. Membro do GT de Fenomenologia da
Husserl, E (1984b). Logische Untersuchungen. zweiter
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
Band. zweiter Teil. Untersuchungen zur Phänome-
(ANPOF). Membro do GT “Fenomenologia, Saúde e
nologie und Theorie der Erkenntnis. (Hua 19/2) The
Processos Psicológicos” da Associação Nacional de
Hague: Nijhoff.
Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).
Kusch, M. (1995). Psychologism : a case study in the socio- Membro fundador da Sociedade Brasileira de História
logy of philosophical knowledge. London; New York: da Psicologia. Foi pós-doutorando na Unesp-Assis e
Routledge. professor convidado da pós-graduação e da graduação
na Unesp-Assis. Atualmente professor substituto no
MacIntyre, A. C. (2005). Edith Stein: a philosophical pro- Departamento de Psicologia da Universidade Federal
logue - 1913-1922. Lanham: Rowman & Littlefield do Paraná, na área de psicologia fenomenológica.
Publishers. Tem experiência nas áreas de História e Filosofia
da Psicologia, Psicologia clínica, Psicologia da
Makkreel, R. A. (1975). Dilthey, philosopher of the human educação, psicologia fenomenológico-existencial,
studies. Princeton, N.J.: Princeton University Press. atuando nos seguintes temas: fenomenologia,
história da psicologia, psicopatologia, psicologia e
Pfänder, A. Phänomenologie des Wollens. Leipzig: J.A.
literatura, inconsciente, intersubjetividade. Email:
Barth, 1900.
savioperes@yahoo.com.br
Pfänder, A. Motive und Motivation. München: J.A. Barth,
1963. Original de 1911.
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10.18065/RAG.2019v25n3.9
Resumo: Desenvolvemos uma discussão teórica da percepção social respaldada na compreensão das implicações das
capacidades práxicas do sujeito perceptivo no estudo da intersubjetividade. Nossas análises são fundamentadas na ma-
triz praxiológica de teorias enativistas e fenomenológicas, que servem de contraponto ao intelectualismo e ao internalis-
mo que marcam as teorias correntes da percepção social. O conceito de atenção conjunta, concebido na década de 1970
no âmbito da psicologia do desenvolvimento infantil, e que se tornou um eixo articulador de programas de pesquisa
voltados à percepção social, é utilizado como base para nossa investigação. Evidenciamos a possibilidade de fundar a
percepção social no corpo e nas práticas do sujeito corpóreo de relação com o mundo mediadas pela interação e pela
incorporação da atividade e da perspectiva do outro.
Palavras-chave: percepção; corpo; atenção conjunta, intersubjetividade, cognição social.
Abstract: We present a theoretical discussion of social perception based on understanding the implications of the praxic
capacities of perceptive subjects in the study of inter-subjectivity. Our analyses are based on the praxiological matrix
of enactive and phenomenological theories, which serve as a counterpoint to the intellectualism and internalism that
mark current theories of social perception. The joint attention conception, conceived in the 1970s in the scope of child
development psychology, and which links research programs focused on social perception, is used as the basis of our
investigation. We show the possibility of grounding social perception in the body and the practices of the corporeal sub-
ject in relation to the world mediated by the interaction and the incorporation of activities and perspectives of another.
Keywords: perception, body, joint attention, intersubjectivity, social cognition.
Resumen: Desarrollamos una discusión teórica de la percepción social respaldada en la comprensión de las impli-
caciones de las capacidades praxicas del sujeto perceptivo en el estudio de la intersubjetividad. Nuestros análisis son
fundamentados en la matriz praxiológica de teorías enativistas y fenomenológicas, que sirven de contrapunto al inte-
lectualismo y al internalismo que definen las teorías actuales de la percepción social. El concepto de atención conjunta,
concebido en la década de 1970 en el ámbito de la psicología del desarrollo infantil, que se transformó en un eje articu-
lador de programas de investigación dirigidos a la percepción social, es utilizado como base para nuestra investigación.
Evidenciamos la posibilidad de fundamentar la percepción social en el cuerpo y en las prácticas del sujeto corpóreo de
relacionarse con el mundo, mediadas por la interacción y por la incorporación de la actividad y de la perspectiva del
otro.
Palabras clave: percepción, cuerpo, atención conjunta, intersubjetividad, cognición social.
individuais sobre objetos contextualizados apenas de. Nossas análises são fundamentadas na matriz
fisicamente. Ela se dá, principalmente, como ativi- praxiológica de teorias enativistas e fenomenológi-
dade de sujeitos sociais, em um mundo socialmente cas, que servem de contraponto ao intelectualismo
contextualizado. Nosso propósito, neste trabalho, é e ao internalismo que marcam as teorias correntes
evidenciar, teoricamente, como o exame da dimen- da percepção social. O conceito de atenção conjun-
são social da percepção reforça a tendência praxio- ta (joint attention), concebido na década de 1970 no
lógica de estudo da intencionalidade perceptiva, âmbito da psicologia do desenvolvimento infantil, e
ou, na via reversa, como concepções praxiológicas que se tornou um eixo articulador de programas de
da percepção enriquecem nossa compreensão da pesquisa voltados à percepção social, será utilizado
dimensão social da percepção. A referência que fa- como base para nossas investigações.
zemos a teorias praxiológicas da intencionalidade O artigo começa com uma breve apresentação
denota um espaço conceitual embasado numa con- de problemas fundamentais envolvidos na dimen-
cepção corpórea da subjetividade, e que se pauta são social da percepção e da fecundidade da sua
em um tipo de intencionalidade motora compatí- apreensão a partir da ideia de atenção, acompanha-
vel com a posição de um sentido prático e vital da da da exposição de diretrizes descritivas e inter-
percepção. Esperamos desenvolver uma discussão pretativas acerca das pesquisas voltadas à atenção
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A Percepção Social à Luz de uma Concepção Praxiológica da Intencionalidade
conjunta. Teremos ocasião de indicar, neste ponto, A dimensão social da percepção pode ser evi-
os pressupostos intelectualistas e mentalistas que denciada quando a examinamos à luz dos proble-
sustentam a principal linha de trabalho em torno da mas referentes à atenção. Constata-se, conforme
atenção conjunta. Invocamos, na sequência, o que as teorias fenomenológicas, que a aparição de um
chamamos de princípios praxiológicos da intencio- objeto exige o recuo do horizonte perceptivo. Na
nalidade perceptiva, direcionando-nos para abor- atividade perceptiva, operam-se, continuamente,
dagens enativistas e fenomenológicas da percepção seleções, de modo que algo possa aparecer. Não é
social. De acordo com as contribuições destas abor- possível ouvir ou ver tudo ao mesmo tempo. Iden-
dagens, retornamos, em seguida, à ideia de atenção tifica-se, portanto, na percepção, o que Weizsä-
conjunta, buscando elaborar uma compreensão da cker (1939/1962) chama de restrição constitutiva,
atividade perceptiva social fundada nos processos que coincide, em grande medida, com o tornar-se
de interação corpórea e de incorporação mútua. atento a alguma coisa. Esse acontecimento não é,
todavia, um fenômeno solitário. Somos, frequen-
temente, cativados pelo outro, que se torna nosso
A dimensão social da percepção objeto de atenção, ou por aquilo a que ele dedica
atenção. A atenção dedicada a algo de modo par-
Nossa experiência é essencialmente intersub- tilhado pode se dar no plano de uma “co-atenção
jetiva. Merleau-Ponty (1945) reporta-se à nossa re- presencial” (Citton, 2014, p.127), caso em que duas
lação com aspectos básicos da espacialidade, como ou mais pessoas, conscientes da presença de ou-
a profundidade, a iluminação e a forma das coisas. trem, interagem com o mundo juntas, e no plano
Essa dimensão das nossas vivências constitui o que mais amplo de uma comunidade, ou mesmo no de
se poderia chamar, segundo o filósofo, de mundo uma sociedade de massas, em que as pessoas não
físico, ou mundo natural. Mas o mundo físico, mes- compartilham, ao mesmo tempo, o mesmo lugar. O
mo no sentido fenomenológico da expressão, que conceito de atenção conjunta, que analisaremos a
escapa às acepções das ciências naturais, não passa seguir, diz respeito ao nível da co-atenção presen-
de um recorte abstrato da nossa experiência. É pre- cial, e nos endereça à intersecção das questões rela-
ciso compreender, como faz Merleau-Ponty (1945), tivas à cognição social, ou, em termos mais gerais,
que “quase toda a nossa vida” (p.31) se passa no à nossa percepção do outro enquanto ser sensível, e
mundo cultural. Estamos cercados por pontes, es- à percepção conjunta das coisas, quer dizer, à reali-
tradas, casas e utensílios, como óculos, cadeiras e zação participativa de sentido. Por meio do exame
colheres. “Cada um desses objetos carrega implici- dos problemas envolvidos na atenção conjunta, é
tamente a marca da ação humana à qual ele serve”, possível desenvolver temas relativos a um impor-
comenta Merleau-Ponty (1945, p.399). E estamos tante aspecto da percepção: a sua dimensão corpó-
rodeados, principalmente, pela presença corpórea rea, que demanda que as ideias de cognição e de
de outras pessoas. “O primeiro dos objetos culturais sentido sejam discutidas com base em elementos da
e aquele pelo qual eles todos existem, é o corpo de esfera sensório-motora, principalmente a ação e o
outrem enquanto portador de um comportamen- movimento.¹
to”, complementa o filósofo (Merleau-Ponty, 1945,
p.401). Orientando-nos pelo tema da percepção, é
possível identificar, portanto, dois problemas bá- A atenção conjunta
sicos referentes à intersubjetividade: a questão da
percepção do outro e a questão do vetor social que A atenção conjunta (joint attention) pode ser
marca a nossa relação com as coisas. considerada uma plataforma conceitual que reú-
Essa distinção aparece na literatura filosó- ne pesquisas interdisciplinares voltadas ao estudo
fica e científica contemporânea na forma dos pro- das origens da cognição humana, especialmente a
blemas da cognição social, relativos a “como com- linguagem e a compreensão social (Meltzoff, Kuhl,
preendemos os outros” (Gallagher, 2010, p.112), e Movella & Sejnowski, 2009). Nesse âmbito de pes-
da realização participativa de sentido (participatory quisa, concorda-se em definir a atenção conjunta
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
sense-making), que diz respeito a “como compreen- como “um fenômeno profundamente social” (See-
demos o mundo circundante com e mediante os ou- mann, 2011, p.195), com importante função na co-
tros” (Gallagher, 2010, p.112, grifos do autor). De municação e na aquisição de conceitos.
acordo com Gallagher, trata-se de duas questões Na psicologia do desenvolvimento, a atenção
intimamente relacionadas, mas que, todavia, mere- conjunta unifica, conceitualmente, uma série de
cem ser diferenciadas. Pode-se afirmar que a dife- habilidades sociais, por parte das crianças, no âm-
rença fundamental concerne ao objeto intencional bito da percepção e da ação. Constata-se que a aten-
em cada tipo de circunstância. Na realização par- ção conjunta começa a ocorrer em torno do nono e
ticipativa de sentido, o objeto central é o mundo e do décimo segundo mês de vida. Observa-se, nessa
as coisas mundanas. O interesse recai, nesse caso, fase, que os bebês transpõem um regime diádico de
sobre a constituição de sentido no campo da intera-
ção intersubjetiva, ou, de modo mais geral, sobre a
“co-constituição de um mundo significativo [mea- ¹ É oportuno assinalar a distinção que se faz entre movimento e
ningful world]” (Gallagher, 2010, p.113). No âmbito ação. De acordo com Rizzolatti e Sinigaglia (2008), a ação pode ser
compreendida como o movimento envolvido por objetos signifi-
da cognição social, o objeto são os outros agentes, as cantes para nós, de modo que as atividades motoras em direção a
pessoas, e o seu comportamento. eles possuem a conotação de movimentos voltados a uma meta.
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Danilo Saretta Verissimo
interação, ora com coisas, eventos ou situações, ora tamentos triádicos ao problema da cognição social
com outra pessoa. No esquema diádico, a criança, na infância. A hipótese específica é de que a aten-
engajada atentamente na manipulação de algum ção conjunta implica o início da compreensão, por
objeto, não interage com o sujeito que por acaso es- parte da criança, do outro como agente intencional
teja à sua volta. Ou, no caso de regozijar-se com a como ela mesma. Tomasello (1999) explica o senti-
presença de alguém, não concede atenção aos obje- do que dá à intencionalidade: “Agentes intencionais
tos do ambiente. A partir dos nove meses de idade, são seres animados que têm objetivos e que fazem
passam a ser cada vez mais frequentes atividades escolhas ativas entre as formas comportamentais
em que a criança partilha com outrem um objeto de disponíveis para atingir aqueles objetivos, incluin-
interesse, configurando, então, esquemas triádicos do escolhas ativas sobre em que prestar atenção na
de interação, ou seja, ações que abarcam, além da busca desses objetivos” (p.68). A atenção seria, por-
criança, um parceiro e um objeto de percepção con- tanto, um tipo de percepção intencional, na medida
junta. Nessa nova estrutura de coordenação da per- em que, para Tomasello (1999), os indivíduos “(...)
cepção e da ação, a criança e o adulto conjugam sua escolhem intencionalmente atentar [intentionally
atenção em relação a objetos e eventos (Tomasello, choose to attend] a certas coisas e não a outras”
1999; Moll & Meltzoff, 2011). É justamente essa for- (p.68) em seu processo de busca por suas metas no
ma de interação, e os comportamentos a ela asso- ambiente. O autor dá o exemplo de um pintor e de
ciados, que foi designada como atenção conjunta, um alpinista que, preparando-se para a realização
desde os trabalhos pioneiros de Bruner (1983).² de suas respectivas atividades, voltam seus olhares
As pesquisas realizadas em torno do assunto para uma determinada montanha. Embora vejam a
(Bruner, 1983; Tomasello, 1999; Moll & Meltzo- mesma coisa, os dois atentam a aspectos distintos
ff, 2011; Bimbenet, 2011; Sheinkopf et al., 2016; dela³. Os comportamentos triádicos, especialmente
Hurwitz & Watson, 2016) revelam que os episódios aqueles em que a criança dá indícios de identifi-
primordiais de atenção conjunta e as habilidades car com alguma precisão a “que” o adulto se dirige
correspondentes a ela emergem segundo um de- ou o “que” está fazendo, denotam, segundo Toma-
terminado padrão de desenvolvimento, que indica sello (1999), “uma clara compreensão da atenção
diferentes níveis de especificidade do triângulo re- do adulto” (p.69), embora ainda haja, por parte da
ferencial entre a criança, seu parceiro de ativida- criança, muito a conhecer acerca da relação entre a
des e os objetos circundantes. São mais comuns, direção de um olhar e o foco de atenção.
inicialmente, situações em que, embora a interação Bruner (1983) também se reporta à possibili-
por parte da criança com o adulto seja mediada dade da referência conjunta, embora dirigida a um
por um objeto, a referência partilhada é incipiente, mesmo tópico atencional, envolver grande variação
por exemplo, quando, atraída por uma coisa qual- de exatidão. O exemplo aludido por ele é o de uma
quer, a criança olha para o rosto do outro, buscando mãe, detentora de conhecimentos especializados
verificar se este se encontra envolvido na mesma em física, que alerta seu filho de quatro anos sobre
cena e se se mostra ciente daquele mesmo objeto. o perigo de sofrer um choque elétrico ao explorar
Constata-se, nesses casos, a alternância do olhar da uma tomada. Este objeto não é visado da mesma
criança entre seu objeto de interesse e o seu parcei- maneira pelos dois, sobretudo em virtude da ideia
ro social. Pouco a pouco, passam a se manifestar, de eletricidade que a mãe e a criança são capazes
de modo mais estável, atos em que o bebê acom- de atualizar nesta situação. Importa, todavia, que
panha o olhar ou as indicações gestuais do adul- as partes envolvidas em uma “troca referencial”
to, focalizando, então, sua ação perceptiva naquilo (Bruner, 1983, p.68) saibam que partilham alguma
que prende a atenção do outro. Verifica-se, nessas justaposição “em sua atenção focal” (Bruner, 1983,
circunstâncias, maior precisão em relação ao que p.68).
olham e ao que se referem a criança e o seu par. Faz O que convém enfatizar, portanto, é que, em
parte dessa categoria de realizações o aprendizado situações de atenção conjunta, a criança não ape-
por imitação (imitative learning), caracterizado por nas compreende o outro como fonte de auto-movi-
situações em que a criança age com os objetos da mento e de poder causal, mas como ser capaz de
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
forma como os adultos atuam sobre eles. A própria realizar escolhas comportamentais e perceptivas.
criança passa, mais tarde, a apontar e mostrar obje- Aliás, segundo Tomasello (1999), esta “distinção
tos e acontecimentos aos seus pares, dirigindo, en- crítica” (p.74) estaria ausente, por exemplo, nas
tão, a atenção e o comportamento destes. teorias de Piaget, que se limitaria a identificar, na
Para Tomasello (1999), a emergência da
atenção conjunta por volta dos nove a doze me- ³ Cabe, aqui, um breve apontamento sobre o sentido do termo inten-
ses de idade configura um fenômeno coerente, ou cionalidade. Tomasello (1999) atrela a intencionalidade atencional
seja, bem delineado, no desenvolvimento infantil. a uma operação de escolha e, com isso, reforça, unilateralmente, a
dimensão voluntária do ato perceptivo. Na fenomenologia, âmbito
Mas seria preciso um passo a mais nos estudos, teórico que será mobilizado mais adiante, designa-se pelo conceito
no sentido de se elaborar uma explanação, igual- de intencionalidade a referência básica de qualquer atitude huma-
mente lógica, em torno do papel desenvolvimental na a alguma coisa distinta do sujeito intencional, seja ela uma ideia,
da atenção conjunta. A hipótese teórica geral que um julgamento, ou um objeto percebido ou imaginado. Nesse caso,
a intencionalidade independe de uma vontade expressa de voltar-
congrega essa linha de pesquisas integra os compor- -se para alguma coisa. Tomasello trabalha, portanto, com uma co-
notação mais prática e corrente da ideia de intenção, ou seja, como
² Neste trabalho, Bruner (1983) analisa suas pesquisas iniciais sobre ato dirigido a um fim, a uma meta. Este sentido de intencionalidade
a atenção conjunta à luz dos pressupostos teóricos que as funda- tem relação com os embasamentos filosóficos do autor, mais próxi-
mentam. mos da filosofia da mente, e das suas implicações intelectualistas.
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A Percepção Social à Luz de uma Concepção Praxiológica da Intencionalidade
criança, a capacidade de atribuir poderes causais estudos que evidenciam a intensa sociabilidade
ao outro. Para autores como Bruner (1983) e Toma- das crianças desde fases bastante precoces da on-
sello (1999), está em questão, na atenção conjunta, togênese. Das protoconversações em que os bebês
a emergência da compreensão, por parte da crian- se engajam junto com os seus cuidadores à capaci-
ça, de outrem como percipiente, como ser dirigido dade do recém-nascido de imitar comportamentos
a objetivos da mesma forma que ela mesma. Esta dos adultos, como protusões da língua e abertura
seria a base para que a criança se compreenda como da boca, constata-se a tendência das crianças de
participante em interação com o outro, com atenção se identificar com seus coespecíficos (Tomasello,
focal justaposta, e para que a comunicação gestual 1999), ainda que com base em expedientes exclu-
evolua rumo à aquisição da linguagem. sivamente sensório-motores, destituídos de uma
faculdade categorizadora. Meltzoff (1999), contudo,
chega a assumir que os bebês, bem cedo, mediante
Princípios teóricos de interpretação da atenção os jogos de imitação recíproca na interação com ou-
conjunta tros agentes, adquirem informação sobre “(...) como
o outro é ‘igual a mim’ [like me]” (Meltzoff, 1999,
Os princípios norteadores da posição adotada p.256). Concorda-se em afirmar, de todo modo, a ca-
por precursores, como Bruner (1983) e Tomasello pacidade do bebê de se identificar em profundidade
(1999), acerca dos problemas da ontogênese en- com seus coespecíficos, fato que constitui uma im-
volvidos na atenção conjunta advêm da filosofia portante diferença na comparação comportamental
da mente e dos seus desdobramentos nas ciências entre os seres humanos e outros primatas.
cognitivas, principalmente no que se convencio- Um segundo pressuposto das teorias inferen-
nou chamar de teoria da mente. Admite-se, nesse cial e da simulação decorre das premissas básicas
contexto teórico, que o sujeito da cognição, em suas da teoria da mente: considera-se que, nas intera-
relações com outrem, ocupa-se predominantemen- ções sociais, o sujeito perceptivo tem acesso direto
te com a explicação do comportamento alheio, so- ao comportamento do outro, mas não é capaz de
bretudo com a previsão do curso ulterior das ações experimentar diretamente suas crenças, desejos
desse agente físico e das suas consequências no am- e intenções. Estes elementos são encarados como
biente. Concorda-se, além disso, em atribuir a esse estados mentais que repousam, ocultos, sob o
sistema comportamental, externo ao sujeito cognos- comportamento alheio. Seria necessário, portanto,
cente, estados internos prováveis. De acordo com construir, o tempo todo, teorias sobre as intenções
Petit (2004), a relação intersubjetiva, nesse enqua- dos outros. Este gênero de exercício inferencial te-
dre filosófico, é sintetizada em um sujeito que, na ria origem bem cedo em nosso desenvolvimento.
interação com um outro, torna-se “‘um atribuidor Meltzoff (1999) afirma: “é nossa teoria de que crian-
de propriedades mentais’ a um ‘objeto-alvo’ do am- ças têm teorias” (p.253, grifos do autor), sobretudo
biente e do qual ele quer ‘predizer o comportamen- no que concerne à compreensão do comportamen-
to’ afim de antecipá-lo” (p.128)4. No que diz res- to intencional de outrem. Na teoria da simulação,
peito aos processos internos do sujeito perceptivo defendida por Tomasello, o processo representacio-
que estariam envolvidos na interação com outrem, nal de leitura das intenções estrangeiras baseia-se
trata-se, para os pesquisadores, de investigar os me- na ação mental de “colocar-se no lugar do outro”.
canismos representacionais que possibilitariam a O pressuposto, nesse caso, é que o funcionamen-
compreensão, constituída perceptivamente, da vida to psicológico das outras pessoas é compreendido
mental do outro. As hipóteses explicativas acerca com base no psiquismo do próprio percipiente, co-
desse processo passam, sem pretensão a uma lista- nhecido mais direta e intimamente por ele mesmo.
gem exaustiva, pela suposição de módulos mentais Tomasello (1999) considera que, nesse sentido, as
especializados na detecção da direção ocular de crianças, na medida em que adquirem a capacida-
alguém, em mecanismos de compartilhamento da de de se compreender como entes intencionais, no
atenção, que seriam responsáveis pela formação de sentido de seres com propósitos referidos ao meio
circundante, passam a aplicar esta compreensão ao
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Danilo Saretta Verissimo
de comunicação, constatado ainda mais claramen- rias praxiológicas da intencionalidade” (p.70). Bim-
te quando a criança passa “a ‘declarar’ a coisa para benet (2015) escreve:
o outro” (Bimbenet, 2011, p.309), apontando-a e
mostrando-a para ele, quando se volta àquilo que O meio ambiente (Umwelt) em Uexküll; o
interessa o outro, quando interroga sua atitude em mundo da vida (Lebenswelt) em Husserl, em
relação ao objeto, expressivamente e, mais tarde, suas modalidades corporais ou sócio-histó-
verbalmente. ricas; a disponibilidade (Zuhandenheit) e a
Os estudos inaugurais da atenção conjunta preocupação (Besorgen) em Heidegger; a in-
denotam, por outro lado, um compromisso teórico tencionalidade operante ou motora, em Mer-
com ideários mentalistas e intelectualistas. Seus leau-Ponty, Gürwitsch ou mais tarde Dreyfus;
pressupostos solipsistas comprometem a com- o saber típico ou rotineiro do mundo social em
preensão das bases psicológicas da relação com o Schütz; o knowing how que difere do knowing
outro e a conotação social de interação com o mun- that em Ryle; as affordances de Gibson; o senso
do (Petit, 2004). A abordagem da atenção conjunta prático em Bourdieu; o saber-fazer encarnado
realizada por autores como Tomasello e Meltzoff, (embodied coping) das teorias da enação etc.:
denominada de perspectiva representacionalista além da sua evidente divergência, estas abor-
(Fuchs & De Jaegher, 2009), ou sócio-cognitiva (Bim- dagens terão ao menos desenhado uma figura
benet, 2010), acaba, com efeito, por enfatizar uma coerente da nossa relação com o mundo. Nisso
proto-compreensão, por parte da criança, de seus pode-se falar de uma criação conceitual (p.65).
estados mentais e a ocorrência de processos refle-
xivos e de projeção desse conhecimento no outro. O elemento de confluência dessas abor-
Desde que se considere a mente como um domínio dagens repousa na atribuição de um caráter não
interior apenas acessível ao próprio sujeito mental, apenas originário, mas, sobretudo, original à inten-
a vida mental do outro não pode ser acessada se- cionalidade prática, ou ativa (Bimbenet, 2015). A
não indiretamente, segundo os indícios revelados descrição da nossa relação com o mundo pela ação
pelo seu comportamento (Bimbenet, 2011). O pres- e pelo movimento representa uma aproximação ao
suposto da teoria da mente é, além disso, de que o “fundamento arqueológico da nossa consciência”
outro apenas pode ser reconhecido, desde o início, (Bimbenet, 2015, p.66). Antes de sermos sujeitos
“como um outro eu mesmo” (Bimbenet, 2010, p.98). de pensamento e de estabelecermos uma relação
Do mentalismo decorre o intelectualismo. “Se o ou- teórica com o mundo e com outrem, somos seres
tro é constitutivamente um problema, é ao conheci- vivos e ativos. O comportamento intelectualizado
mento, então, que ele se oferece em primeiro lugar”, é, portanto, tardio e derivado em relação à nossa
afirma Bimbenet (2011, p.349). Como o outro não se interação prática no mundo. Mas não se trata ape-
apresenta diretamente na relação social, seu enten- nas de descrevê-la nos termos de uma anteriorida-
dimento exige processos de interrogação e de elabo- de cronológica. A intencionalidade prática deveria
ração de um saber explicativo ou preditivo. ser pensada “a partir dela mesma” (Bimbenet, 2015,
Em suma, tomado como parâmetro acerca p.66), e não com base em uma concepção instru-
das discussões contemporâneas sobre a percepção mental da ação; eis a principal reivindicação das
social, o conceito de atenção conjunta expressa a teorias praxiológicas da intencionalidade. A rela-
preocupação científica com a dimensão comum da ção entre a ação e a percepção é, tradicionalmente,
nossa relação com o mundo. As interpretações pre- representada numa vinculação exterior, baseada na
ponderantes da atenção conjunta denotam, contu- conjunção de uma representação de um objetivo a
do, a primazia de um ideário mentalista capaz de atingir, de uma trajetória a realizar, e na execução
comprometer a apreensão da conotação propria- motora orientada por aquela representação percep-
mente social da percepção. tiva. A ação e o movimento deveriam, ao contrá-
rio, configurar uma atividade perceptiva, um tipo
específico e irredutível de ser-no-mundo. Bimbenet
(2015), ao circunscrever os fundamentos das teorias
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
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A Percepção Social à Luz de uma Concepção Praxiológica da Intencionalidade
co, ou em nós. É algo que fazemos” (p.01). A percep- plo, é algo dinâmico e que não pode ser criado in-
ção não antecede, portanto, a ação, ela é antes uma dividualmente.
ação perceptiva que estabelece e aprimora um saber A interação corpórea implica a coordenação e
sensório-motor. Em outro trabalho, Noë (2012) defi- o compartilhamento de sentido. Em meio à coor-
ne a consciência perceptual (perceptual conscious- denação interpessoal de movimentos emergem sig-
ness) como “um estilo especial de acesso ao mundo” nificados mutuamente compreensíveis, além de
(p.20, grifo do autor). A base desse acesso não deixa saliências perceptivas, quer dizer, objetos de aten-
de referir-se a um polo de conhecimento e de en- ção mútua (Fuchs & De Jaegher, 2009; Gallagher,
tendimento. “Sem entendimento não há acesso e, 2010). As “intenções-na-ação” (Fuchs & De Jaegher,
portanto, não há percepção”, assevera o autor (Noë, 2009, p.471) são visíveis. Atos como os de segurar,
2012, p.20). Mas o entendimento no qual se funda- apontar, mover-se na direção de algo ou afastar-se
menta o acesso perceptivo às coisas e a outrem deve de algo, acenar, olhar para alguma coisa, possuem
ser nomeado como “entendimento sensório-motor um “sentido inerente” (Gallagher, 2010, p.115), são
[sensorimotor understanding]” (Noë, 2012, p.20). percebidos no “contexto de uma situação comum,
Trata-se de uma forma de “conhecimento prático” sem a necessidade de se representar explicitamente
(Noë, 2012, p.24) que, segundo o autor, independe o estado mental de outrem” (Fuchs & De Jaegher,
do uso da linguagem. É esta forma de relação prática 2009, p.471). Na cena interativa, ações como aque-
com as coisas, dependente das capacidades motri- las solicitam, por parte do parceiro, ou dos parcei-
zes, que garante a presença perceptiva dos objetos. ros, determinadas reações significativas. Se alguém
A constância perceptiva de aspectos das coisas, tais aponta para um objeto, pode-se seguir o olhar ou a
como o tamanho e a forma, bem como o volume dos indicação deste sujeito. Todos os sujeitos, ou alguns
objetos, seria assegurada pelo fato desses aspectos dos envolvidos na cena, podem demonstrar aceita-
se configurarem, no âmbito da nossa relação prática ção da indicação e caminhar na direção do que foi
com eles, como dimensões disponíveis à percepção mostrado, ou, ao contrário, podem se negar a dar
mediante o movimento. De modo geral, observa-se atenção ao objeto, ou, senão, podem se afastar dele,
nessas concepções um deslocamento, no plano teó- por exemplo. Seja como for, constata-se a constitui-
rico, de uma posição passiva, do organismo como ção de um “espaço comum” (Fuchs & De Jaegher,
receptor de informação e gerador de representações 2009, p.472) em que a variação de movimentos, de
internas do mundo externo, para uma posição ativa atitudes e de expressões adquire sentido, que, por
de participação na geração de sentido. sua vez, é experimentado implícita ou explicita-
No que se refere à intersubjetividade, coloca- mente pelas pessoas envolvidas na cena. Aspectos
-se ênfase no processo de interação dos agentes per- inferenciais, como os privilegiados pela teoria da
ceptivos, e não em processos individuais de percep- mente, não estão excluídos das situações sociais.
ção do outro. Segundo Fuchs e De Jaegher (2009), a Podemos transpor nosso olhar imaginariamente,
cognição social – ou, como preferimos, por nos afas- perguntarmo-nos expressamente sobre o que olha
tar do linguajar intelectualista, a percepção social e como olha nosso parceiro, pensar sobre as in-
–, que se refere à percepção do outro e com o outro, tenções possíveis do outro, todavia, à luz da con-
emerge do processo dinâmico de interação com ou- dição corpórea de interação, essas estratégias não
trem, mais precisamente, da interação social corpó- parecem refletir um nível primário de interação. A
rea. Os autores destacam o interesse, na abordagem realização participativa de sentido (participatory
enativista, pela “dinâmica circular com uma díade sense-making) dependeria, primordialmente, da
de agentes corpóreos [embodied agents]” (Fuchs & “coordenação da atividade intencional na intera-
De Jaegher, 2009, p.470). A emergência da intera- ção”, afirmam De Jaegher e Di Paolo (2007, p.497),
ção pressupõe três fatores principais: que os agen- atividade “essencialmente corpórea [embodied] na
tes participem da situação de maneira a sustentá-la ação” (De Jaegher & Di Paolo, 2007, p.497).
de algum modo, que o encontro influencie-os, e que A perspectiva enativista baseia-se, em alguma
os indivíduos “co-emerjam como interagentes com medida, na fenomenologia da percepção, da corpo-
a interação” (De Jaegher & Di Paolo, 2007, p.492). reidade e da intersubjetividade. Um dos elementos
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Da mesma forma, são componentes fundamentais centrais das teorias fenomenológicas é a ênfase no
do processo de interação fatores como a ressonân- estudo da intencionalidade corpórea como caracte-
cia corpórea, a sintonia afetiva, a coordenação ges- rística maior da estrutura da experiência percepti-
tual, além da expressão vocal e facial. A interação va. Os fenomenólogos, de modo geral, descrevem
possui uma dinâmica circular, calcada em proces- o corpo como presença indelével e que, todavia,
sos de ressonância e de feedback, em que se dá a recua em relação ao centro do campo perceptivo
coordenação inconsciente de movimentos entre os em prol do aparecimento das coisas. Trata-se, em
agentes, como em situações de conversação, de jogo outros termos, de evidenciar o “auto-apagamento”
esportivo, de criação musical em grupo etc. Não se (self-effacement) (Leder, 1990, p.25) do corpo como
pressupõe, é claro, que a coordenação seja perfeita. objeto de percepção, a despeito dele participar da
Ela possui, antes, uma natureza dialética, elemen- manifestação de tudo que a nossa experiência com-
to essencial para que, mais do que sincronização, preende. Merleau-Ponty (1945), por exemplo, define
atinja-se a autonomia do processo de interação. Isso o corpo como “o terceiro termo, sempre subentendi-
quer dizer, conforme a síntese de Gallagher (2010), do, da estrutura figura e fundo” (p.117). Todo objeto
que a interação ultrapassa os participantes conside- percebido, toda figura, destaca-se em relação a um
rados individualmente. A dança a dois, por exem- fundo perceptivo, horizonte de espaço exterior que
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Danilo Saretta Verissimo
envolve o objeto e que participa, de um modo ou cionais também são valiosas para a compreensão
de outro, da sua configuração como objeto de per- dessas questões. Embora a autora não integre a tra-
cepção. Não há foco de percepção que não faça par- dição fenomenológica, suas descrições são bastante
te de uma configuração do tipo figura e fundo, ou próximas das ideias de autores como Merleau-Pon-
tipo tema, contexto temático e margem, para usar ty. Weil (1988) afirma: “O hábito tem por efeito, em
os conceitos de outro fenomenólogo, Aron Gurwi- uma situação qualquer, de deixar passagem livre à
tsch (1957). O algo que aparece sempre aparece em ação; uma passagem pronta e livre entre percepção
meio a outros elementos com os quais mantém la- e ação” (p.383). Para a autora, é o hábito que nos
ços mais ou menos estreitos de sentido. Mas há uma dá “o poder de ter atenção” (Weil, 1988, p.386), na
estrutura de fundo fundamental, e que não faz parte medida em que, no sujeito hábil, muitas vezes en-
do horizonte espacial: é justamente o corpo. Assim carnado por ela na figura do trabalhador, a atenção
como o fundo perceptivo, que se mantém inarticu- é “atenção ao objeto” (Weil, 1988, p.386). O traba-
lado em favor da clareza e distinção do objeto que lhador, aquele que incorporara seu instrumento
se destaca como figura ou tema de percepção, nosso de trabalho, encontra-se “(...) em comunicação di-
corpo recua à neutralidade como tema perceptivo, reta com o mundo exterior” (p.386). Já o aprendiz
a despeito do seu caráter originário na relação in- precisa, cuidadosamente, ter consciência dos seus
tencional envolvida no aparecimento das coisas. O movimentos. O hábito, anota a autora, nos torna
corpo é um fundo, um sistema de referência absolu- “cidadãos do mundo” e “concidadãos dos homens”
to, no sentido de que tudo que aparece, aparece em (Weil, 1988, p.387), na medida em que reitera nos-
relação a ele. E mesmo quando ele se torna objeto sas capacidades intencionais, no sentido fenome-
de percepção por parte do sujeito perceptivo, ele nológico de abertura às coisas e ao outro, de abertu-
não se mostra completamente. O corpo como figura ra ao mundo social.
continua pressupondo uma larga margem de ativi- No que diz respeito à relação com o outro e
dade corpórea que permanece de fundo. com o mundo mediante o outro, Leder (1990) carac-
Um dos aspectos centrais dessa descrição fe- teriza a sociabilidade justamente pela ideia de in-
nomenológica do corpo como sujeito da percepção corporação. O autor fala, no contexto social, de “in-
refere-se à dinamicidade do repertório sensório- corporação mútua” (mutual incorporation) (p.94);
-motor de relação com o mundo. Este se transfor- segundo ele, de modo mais radical do que a incor-
ma incessantemente mediante a aquisição de novas poração de um instrumento, “nós suplementamos
habilidades e novos hábitos que, no mais das vezes, nossa corporalidade através do outro” (Leder, 1990,
envolvem a utilização de instrumentos, ou mesmo p.94). Podem constituir-se, desse modo, cenas in-
de órgãos artificiais. Diz-se que as habilidades e ins- tersubjetivas, nas quais vemos as coisas não apenas
trumentos são incorporados. E, se o auto-apagamen- da nossa perspectiva, mas a partir, igualmente, da
to é uma dimensão estrutural do corpo vivido, as perspectiva de outrem. Seus gestos corpóreos, in-
extensões dos seus poderes sensório-motores, pela clusive os linguísticos, abrem-nos para coisas que
incorporação, devem abranger um grau significati- não havíamos percebido antes, sem que o foco da
vo de ausência, ou de apagamento em proveito da nossa atenção perceptiva seja o corpo de outrem
atenção às coisas. Segundo Merleau-Ponty (1945), ou o nosso próprio corpo, mas sim as coisas refe-
a pluma de um chapéu, o volume de um carro, a ridas gestualmente. Imagine, conforme o exemplo
bengala de um cego, são acessórios corporais que, descrito por Leder, que você anda numa floresta
uma vez anexados, deixam de ser percebidos por junto com o seu parceiro, ou parceira. Um indica
eles mesmos. As extremidades da pluma, do carro ao outro elementos variados da paisagem: a cor das
e da bengala tornam-se zonas sensíveis, passam a plantas e das flores, um pássaro levantando voo, os
“participar do caráter volumoso do corpo próprio” sinais da mudança de estação. O ritmo dos passos
(Merleau-Ponty, 1945, p.168), assim como o apren- de um ajusta-se ao do outro. Ambos desfrutam o
dizado de um novo movimento de dança modifica passeio com o nítido sentimento de que o caminho
o alcance da nossa visada espacial e dos nossos ges- seria percorrido diferentemente caso estivessem so-
tos. Estes instrumentos são integrados à nossa rela- zinhos. Vocês se distraem e conversam sobre outros
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
ção com o mundo, seu valor é intencional, referido assuntos, como política, cinema e, subitamente,
ao mundo, e não auto-referido. O novo hábito, frisa adotam uma postura silenciosa, para apreciar o lu-
ainda Merleau-Ponty, não é um novo conhecimento, gar. Nessa situação de encontro e de reciprocidade,
nem um novo automatismo. Se é fato que, durante o auto-apagamento do corpo em prol da percep-
o período de aprendizado de um novo movimento ção das coisas, processo também referido por Le-
ou da utilização de um novo instrumento, uma dose der (1990) como “transcendência corpórea” (p.94),
considerável de esforço intelectual e de repetição é perpetuado. O movimento de transcendência se
deve ser necessária, a aquisição do hábito depen- dá, no entanto, de forma mútua. “Transcendemos
de de uma “consagração motora” (Merleau-Ponty, juntos a um mundo comum, partilhando a floresta
1945, p.167). O que é, portanto, o hábito? “Trata-se na qual caminhamos”, afirma Leder (1990, p.94).
de um saber que está nas mãos, que apenas se en- O autor escreve, ainda: “Somos co-subjetividades,
trega ao esforço corporal e não se pode traduzir por suplementando mais do que limitando as possibi-
uma designação objetiva”, afirma Merleau-Ponty lidades de cada um” (Leder, 1990, p.94). Dá-se, de
(1945, p.168). modo geral, uma expansão da perspectiva particu-
As exposições de Simone Weil (1988) acerca lar sobre o mundo a partir da perspectiva do outro.
do hábito e da sua relação com os processos aten- No intuito de clarificar a co-subjetividade, atrelan-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 302-312, 2019 308
A Percepção Social à Luz de uma Concepção Praxiológica da Intencionalidade
do-a à ideia de incorporação, Leder cita um trecho de olhares e que aparece como pré-condição para
da Fenomenologia da percepção, de Merleau-Ponty a consciência de si. O olhar face a face pressupõe
(1945), que convém reproduzir: uma não coincidência espacial, a qual, ainda que
não seja reconhecida expressamente, como no caso
(...) é justamente meu corpo que percebe o cor- do bebê, condiciona a experiência da mutualidade.
po de outrem, e encontra nele como que um A emergência da consciência de si, neste contexto,
prolongamento miraculoso de suas próprias pode ser interpretada como um reconhecimento da
intenções, uma maneira familiar de tratar o distância.
mundo; doravante, como as partes do meu Destacamos, portanto, em meio às contribui-
corpo formam juntas um sistema, o corpo de ções do enativismo e da fenomenologia, as ideias
outrem e o meu são um único todo, o verso e o de interação corpórea e de incorporação mútua. Ad-
reverso de um único fenômeno, e a existência mitindo-se a dinâmica entre os agentes corpóreos
anônima da qual meu corpo é a cada momento e o entrecruzamento de perspectivas intencionais,
o traço habita doravante estes dois corpos de podemos vislumbrar a elaboração de novas linhas
uma só vez (p.406). de interrogação da atenção conjunta.
309 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 302-312, 2019
Danilo Saretta Verissimo
Nessa transição, a incorporação mútua, à qual se Convém assinalar que as formulações de Tomasello
refere Leder (1990), adquire um telos propriamente (1999) destacam essa dimensão práxica da aten-
intencional e conjunto. De formas variadas, e com ção conjunta. A despeito da partilha com outrem
graus diversos de intimidade, a criança e seus par- se dar, na sua interpretação, mediante simulação
ceiros passam a atuar reciprocamente no mundo, analógica, o que é partilhado é justamente, segundo
alcançando, muitas vezes, grande harmonia coope- as palavras de Bimbenet (2011), “uma intenção de
rativa na relação com as coisas. Parece necessário fazer” (p. 312). Fato é que as coisas podem, desse
verificar, com Bimbenet (2010), que aquilo que se modo, adquirir seu caráter transcendente, ou seja,
conjuga, nesse caso, não são duas consciências que seu aspecto de objetos que nos fazem face, não se
antes estariam separadas, como se pressupõe nas reduzindo à nossa perspectiva sobre elas.
explanações teóricas advindas da perspectiva só- Este processo de triangulação referencial, en-
cio-cognitiva, mas a atenção, corporalmente situa- volvendo o eu, outrem e as coisas, se desenvolve
da, a um mesmo acontecimento ou objeto. Convém com base em um jogo de reflexos especulares que
notar, primeiramente, que esta última formulação dificilmente poderia ser tematizado apenas em ter-
é, prioritariamente, descritiva, enquanto a ideia da mos intelectualistas. O distanciamento perspecti-
conjugação de atividades mentais possui uma cono- vista, que possibilita graus crescentes de intelec-
tação explicativa, além de recuperar teses mentalis- tualização, ou seja, de reconhecimento objetivo de
tas. Se considerarmos, ademais, que são as relações outrem e do mundo, depende da identificação cor-
iniciais da criança com o adulto que se passam sob pórea com o outro. Esta, por sua vez, é enriquecida
o signo da comunhão, o que ocorre, na medida do pela constatação da distância em relação ao outro.
desenvolvimento das interações triádicas, pode ser Em sua análise acerca do gesto de indicação, Trân
entendido como uma separação incipiente de pers- Duc Thao (1973) aborda a relação entre distância
pectivas. Começa a ser elaborada, aqui, por parte e reciprocidade, dinâmica que pode, inclusive, ser
de Bimbenet (2010), uma tese a partir de elementos replicada de forma solitária pelo sujeito. Para Thao,
descritivos. Bimbenet (2010) afirma: “Na realidade, pode-se falar de relação intencional do sujeito ao
a atenção conjunta separa mais do que conjuga” objeto, de uma “consciência originária do objeto”
(p.105). O autor faz a seguinte observação: (p.18), a partir da “forma objetiva da indicação”
(p.18). O movimento de indicação, observado na
(...) a atenção conjunta, a partir dos nove me- criança em situação de atenção conjunta, é, em sua
ses, não poderia consistir na conjunção de forma originária, um guiamento à distância. Quan-
duas consciências originalmente separadas. do a estrutura do gesto de indicação é estabelecida,
Os termos junção, conjunção, união ou reu- o sujeito é capaz de aplicá-la a si, indicando objetos
nião, todo este léxico leva a uma interpretação para si próprio. É o que ocorre quando a criança se
espontânea do fenômeno que não é necessa- depara com uma cena interessante e, mesmo que
riamente a melhor. (...) Seria preciso entender não haja ninguém junto dela, aponta o dedo indi-
como um jogo de palavras pleno de sentido cador para o objeto ou acontecimento em questão.
a expressão “atenção partilhada”, a partilha “O movimento de indicação a si mesmo”, pondera
significando cisão tanto quanto reunião. Os Thao (1973), “deriva naturalmente daquele de in-
episódios de interação conjunta reúnem de dicação a outrem” (p.19). Nesse caso, é necessário
fato dois indivíduos em torno de um fazer co- que o sujeito tome distância em relação a si mesmo,
mum, mas justamente dois “indivíduos”, con- como quando realizamos um “diálogo interior” e di-
vocados a parear dois pontos de vista ao me- rigimo-nos a nós mesmos na segunda pessoa: “ma-
nos espacialmente incompatíveis e, portanto, nifestamente, coloco-me na posição de um outro,
concorrentes, sobre a mesma coisa (Bimbenet, que é precisamente eu mesmo”, afirma Thao (1973,
2010, p.105). p.19). Isso é possível em função da relação de reci-
procidade que mantemos com outrem. “No movi-
As palavras de Bimbenet (2010) evidenciam mento do trabalho coletivo”, completa Thao (1973),
a importância, no processo ontogenético, do des- “os trabalhadores se indicam uns aos outros o ob-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
centramento infantil e da correlativa mudança em jeto de seus esforços comuns” (p.19). Cada um dá
seus vínculos primitivos com o outro. Pode-se com- e recebe indicações, cada um é guia e guiado. Cada
preender melhor o que Leder (1990) diz acerca da um se percebe, reciprocamente, nessa dupla fun-
integração entre suplementação intercorpórea de ção. Isso não seria possível sem o reconhecimento
pontos de vista e o reconhecimento da distância do outro como alguém semelhante a si mesmo. Essa
que marca o perspectivismo. Nos primeiros eventos reciprocidade permite que, sozinho, o sujeito tome
de atenção conjunta, é a multiplicidade perspecti- para si o ponto de vista dos outros, e indique a si
va que se anuncia, de um modo ainda rudimentar. próprio as coisas.
Tem início o processo de assunção progressiva da Fica claro, ao mesmo tempo, que a reciproci-
alteridade do outro, expressa na disposição deste dade e a identificação, que ocorrem na interação
como agente e observador. Assume-se, ou incorpo- social corpórea, não cessam de existir na assunção
ra-se, portanto, os elementos de um distanciamento da distância, ao contrário, são pressupostas neste
progressivo entre si e o outro. Outrem será reconhe- último processo. De um lado, o reconhecimento da
cido, cada vez mais, como ente “capaz de”, ou seja, alteridade do outro e do caráter transcendente das
como centro de atividade em direção a um mundo coisas que nos fazem face podem dar ensejo a vi-
que não se esgota na minha visada ativa sobre ele. sadas cada vez mais carregadas de intelectualiza-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 302-312, 2019 310
A Percepção Social à Luz de uma Concepção Praxiológica da Intencionalidade
ção, como quando tentamos entender o que o outro subjetividade e, mais especificamente, da atenção
sente, ou quando imaginamos a fisionomia da parte conjunta, refere-se à restrição da intelectualização
oculta de um objeto a partir da perspectiva ocupada da intersubjetividade a comportamentos em rela-
por outrem, ou, ainda, ao concebermos um objeto ção a outrem mais tardios no plano da ontogênese.
geometricamente, como visto por todos os lados ao Reforça-se, com isso, a possibilidade de fundar a
mesmo tempo. Por outro lado, este reconhecimen- comunicação simbólica no corpo e nas práticas do
to é permeado pela dimensão práxica envolvida sujeito corpóreo de vinculação com o mundo me-
na ressonância corpórea, na assunção dos gestos diadas pela interação e pela incorporação da ativi-
corporais dos outros, como a indicação e a fala, e dade e da perspectiva do outro. No que diz respeito
na ocupação conjunta em torno dos objetos. Thao especificamente ao conceito de atenção conjunta,
(1973) comenta: “O gesto de indicação, como guia- reconhece-se, à luz dos dispositivos teóricos da in-
mento à distância, é um chamado ao trabalho sobre teração e da incorporação mútua, uma transição re-
o objeto indicado” (p.21-22, grifos do autor). Não ferida não à conjugação de consciências separadas,
passamos, portanto, da ação ao conhecimento, de mas ao surgimento de uma distância entre pers-
uma atividade pragmática de ordem sensório-mo- pectivas, com suas consequências intencionais. A
tora à representação das coisas. A atividade corpó- atenção a um objeto comum a partir de perspectivas
rea, envolta desde o início numa atmosfera social, distintas advém da dialética própria aos processos
abre-se cada vez mais a um senso do real, ou seja, a de interação corpórea e de incorporação mútua, em
um ambiente de coisas que não pertencem apenas à que não existe apenas imitação, mas a realização de
minha visada e à minha esfera de ação, mas a uma novos sentidos mediante o acoplamento de ações.
visão comunitária e a uma ação partilhada. O erro a
se evitar, na compreensão deste processo, é o de se
conceber uma ruptura entre a atividade perceptiva Referências
do início da vida e a atmosfera partilhada que se
alcança mais tarde. A atividade corpórea do início
é essencialmente social, e, por sua vez, a sociabili- Bimbenet, E. (2004). Nature et humanité: le problème an-
dade que somos capazes de desenvolver, cada vez thropologique dans l’ouvre de Merleau-Ponty. Paris:
mais suscetível a acolher a ideia de um real inde- Vrin.
pendente de mim, é original e initerruptamente cor-
pórea e ativa6. Bimbenet, E. (2010). Pour une approche phénoménolo-
gique de l’attention conjointe. Alter: Révue de Phé-
noménologie, 18, 93-110.
Considerações finais Bimbenet, É. (2011). L’animal que je ne suis plus. Paris:
Gallimard.
Desenvolvemos, neste trabalho, análises e re-
flexões em torno da dimensão social da percepção Bimbenet, E. (2015). L’invention du réalisme. Paris: Les
com base em duas matrizes praxiológicas de estudo Éditions du Cerf.
da intencionalidade perceptiva: teorias enativistas
e fenomenológicas. O disparador das nossas discus- Bruner, J. (1983). Child’s talk: learning to use language.
sões foram posições de pesquisa consolidadas em New York, London: Norton & Company.
torno do fenômeno de atenção conjunta. As teorias
da atenção conjunta nos aproximam dos problemas Carpenter, M., Nagell, K. & Tomasello, M. (1998). Social
referentes à percepção do outro e à percepção com cognition, joint attention and communicative com-
ou a partir do outro, ou seja, à compreensão con- petence from 9 to 15 months of age. Monographs
junta do mundo circundante. As interpretações de of the Society for Research in Child Development,
cunho mentalista e intelectualista da atenção con- 63(4), 1-142.
junta serviram de motivo para que explorássemos Citton, Y. (2014). Pour une écologie de l’attention. Paris:
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
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10.18065/RAG.2019v25n3.10
Resumo: A constituição da adolescência é um período repleto de transformações, de autoconhecimento e de conflitos, que possibi-
litam a busca de psicoterapia para os adolescentes. O artigo tem como intuito compreender o uso do self-box (a caixa do eu) como
experimento na clínica gestáltica com adolescentes. A abordagem metodológica do estudo é a pesquisa qualitativa com um enfoque
na pesquisa bibliográfica, recorrendo aos materiais já elaborados sobre o tema. Na clínica com adolescentes na Gestalt-terapia, é
essencial que possamos usar experimentos que promovam o estabelecimento da relação terapêutica, o interesse pelo tratamento e a
disponibilidade para abordar o seu sofrimento, amenizando as resistências. O uso self-box sugere que o adolescente selecione objetos
que o identificam em uma caixa, retratando as suas experiências e vivências marcantes. Neste sentido, o uso do self-box como expe-
rimento na clínica gestáltica promove aos adolescentes resgatar fatos sobre a sua infância, compreender a sua família, perceber suas
atitudes, entrar em contato com seus sentimentos e suas emoções, propiciar novas percepções e reflexões sobre a sua existência, entre
outros. É importante realizarmos estudos e investigações que possam trazer novas contribuições para a prática clínica na Gestalt-te-
rapia com adolescentes, sendo uma oportunidade de compartilhar experiências profissionais e reflexões teóricas.
Palavras-chave: Adolescência; Gestalt-terapia; Experimentos; Prática Clínica; Self-Box.
Abstract: The adolescence is a period of intense transformations, self-knowledge and conflicts. This enables a search for psychother-
apy embracing adolescents. The aim of this paper is to understand the experimental use of self-box in Gestalt-Therapy with adoles-
cents. The methodological approach of the study is qualitative, with a focus on a bibliographic research that survey previous publica-
tions on the subject. For a successful clinical practice in Gestalt Therapy, the paper points out as crucial the use of experiments that
promote the establishment of the therapeutic relationship, interest in the treatment, willingness to address painful experiences, and the
loosening of resistances. The self-box invites the adolescent to select objects that portray their most meaningful experiences and to
organize such objects in a box. In this sense, the use of self-box as an experiment in Gestalt clinic allows adolescents to recover facts
about their childhood, to understand their family, to perceive their attitudes, to get in touch with their feelings and their emotions,
to provide new insights and reflections on their existence, among others. It is important to carry out studies and investigations that
bring new contributions to the clinical practice in Gestalt-Therapy with adolescents, providing an opportunity to share professional
experiences and theoretical reflections.
Keywords: Adolescent; Gestalt-Therapy; Experiments; Clinical practice; Self-Box.
Resumen: La constitución de las adolescencias es un período repleto de transformaciones, de autoconocimiento y de conflictos, que
posibilitan la búsqueda de psicoterapia para los adolescentes. El artículo tiene como objetivo comprender el uso del “self-box” (la
caja del yo) como experimento en la clínica gestáltica con adolescentes. El enfoque metodológico del estudio es la investigación cua-
litativa con un enfoque en la investigación bibliográfica, recurriendo a los materiales ya elaborados sobre el tema. En la clínica con
adolescentes en la Gestalt-terapia, es esencial que podamos utilizar experimentos que promuevan el establecimiento de la relación
terapéutica, el interés por el tratamiento y la disponibilidad para abordar su sufrimiento, amenizando las resistencias. En la psicote-
rapia, el uso “self-box” posibilita que el adolescente seleccione objetos que lo identifican en una caja, retratando sus experiencias y
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
vivencias importantes. En este sentido, el uso del “self-box” como experimento en la clínica gestáltica posibilita a los adolescentes
rescatar hechos sobre su infancia, comprender a su familia, percibir sus actitudes, entrar en contacto con sus sentimientos y sus emo-
ciones, propiciar nuevas percepciones y reflexiones sobre la vida Su existencia, entre otros. Es importante realizar estudios e investi-
gaciones que puedan traer nuevas contribuciones a la práctica clínica en la Gestalt-terapia con adolescentes, siendo una oportunidad
de compartir experiencias profesionales y reflexiones teóricas.
Palabras clave: Adolescentes; Gestalt-terapia; Experimentos; Práctica Clínica; Self-Box.
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Deyseane Maria Araújo Lima
colher e responsável pelas conseqüências de suas perimentos para promover o diálogo entre psicotera-
escolhas. Sendo necessário conhecer a forma de peuta e cliente, para facilitar a awareness, propiciar a
funcionamento do sujeito com o mundo e consigo compreensão de si mesmo e integrar as polaridades.
mesmo, ou seja, a maneira que o sujeito se organiza É fundamental que o psicoterapeuta possa conhecer
em suas relações sociais, afetivas, comunitárias e e se apropriar dos experimentos para conduzir um
organizacionais (Ribeiro, 2011). trabalho ético com adolescentes, como por exemplo,
A pessoa pertence a um campo constituído a cadeira vazia, o movimento corporal, a amplifica-
pelas relações sociais com outros sujeitos e com o ção, a fantasia dirigida, o self-box.
mundo, em que é transformada por esta interação, Desta forma, o presente artigo aborda o uso do
em suma, é um ser de relação. Desta forma, o sujeito self-box como um experimento para trabalhar com
transforma-se à medida que é modificado pela reali- adolescentes na clínica gestáltica. Na construção
dade. Então, é um ser de relação permanente com o deste artigo, fizemos uma discussão sobre a consti-
mundo e com os outros sujeitos, que visa satisfazer tuição das adolescências para a Gestalt-Terapia, fa-
as suas necessidades e autorregular-se nesta rela- lamos da clínica gestáltica com adolescentes, abor-
ção, buscando assim a equilibração (homeostase). damos o uso de experimentos na Gestalt-Terapiac e,
De acordo com Perls (2011), a Gestalt-terapia é finalmente, buscamos aprofundar o enfoque em um
uma abordagem terapêutica experiencial, pois con- experimento para trabalhar com os adolescentes na
vidamos os nossos clientes a re-experienciar suas clínica: o self-box, com articulação entre a teoria e
situações inacabadas no aqui e agora. Isso implica a prática ilustrada com exemplos de casos clínicos.
que o cliente pode perceber a sua respiração, os Neste artigo, a metodologia empregada foi de
seus gestos, a sua entonação de voz, as suas emo- abordagem qualitativa com enfoque na pesquisa bi-
ções, a suas expressões faciais, os seus pensamen- bliográfica, que se caracteriza de acordo com Lima
tos, entre outros. e Mioto (2007) no estudo dos materiais, dos artigos
Para Ribeiro (2006, p. 109), “a Gestalt-terapia, e dos livros já produzidos sobre o tema a ser investi-
como permissão para criar, encontra na possibilida- gado, buscando assim um aprofundamento e novas
de de experimentar uma de suas particulares rique- reflexões teóricas sobre o assunto.
zas metodológicas”.
Esta abordagem convida o psicoterapeuta e o
cliente a construírem uma relação baseada na cria- 1. Adolescer: Reflexões sobre o desenvolvimento
tividade, na experimentação, na escuta autêntica e e a prática clínica na Gestalt-terapia
no acolhimento, com um enfoque na transformação
de si mesmo, do outro e do mundo. Neste tópico, fizemos uma reflexão sobre a
constituição da adolescência na Gestalt-Terapia,
A Gestalt-terapia é uma versão integrada da fe- com um enfoque na historicidade do termo, da con-
nomenologia e do behaviorismo. Temos uma tribuição da psicanálise, das características desta
orientação semelhante à da fenomenologia etapa e as especificidades deste período na aborda-
porque respeitamos a experiência interior do gem gestáltica, realizando uma interface com a Psi-
indivíduo: o trabalho terapêutico baseia-se na cologia do Desenvolvimento. Também abordamos
perspectiva do próprio cliente. Ao mesmo tem- o funcionamento da clínica gestáltica com adoles-
po, modificamos comportamentos concretos centes: os primeiros atendimentos, a orientação à
de maneira graduada e cuidadosamente articu- família e a relação terapêutica.
lada. Com isso, uma das qualidades singulares
da Gestalt-terapia é a ênfase na modificação
do comportamento de uma pessoa, dentro da
1.1 A Constituição da Adolescência na Gestalt-
própria situação terapêutica. Essa modificação
comportamental sistemática, quando brota da terapia
experiência pessoal do cliente é chamada de
experimento (Zinker, 2007, p. 141). No começo do século XX, Stanley Hall introdu-
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O Self-Box como Experimento na Atuação do Gestalt-terapeuta com Adolescentes
família e para determinada pessoa que vai significar criando e se reconhecendo a partir das interações
todos estes aspectos de formas sempre únicas”. com o mundo e das diversas transformações deste
Na relação entre família e adolescente, para período de desenvolvimento.
Oaklander (1980), por um lado, há uma dificulda- Nesta perspectiva, o trabalho do psicoterapeuta
de dos pais em considerar o crescimento dos filhos; com adolescentesobjetiva a reflexão sobre situações
epor outro, há uma necessidade por independência inacabadas da infância, as manifestações sexuais, o
e liberdade por parte do adolescente. Neste sentido, interesse pelos grupos, a relação com a família, a per-
torna-se necessário dialogar com os filhos e nego- cepção do seu crescimento, entre outros.
ciar os limites.
Zanella e Zanini (2016) afirmam que os ado-
lescentes podem questionar os valores e as concep- 1.2. A Clínica Gestáltica com Adolescentes: O
ções de sua família que foram introjetados durante Funcionamento do Processo Psicoterápico
a infância. Apresentam uma postura egocêntrica,
voltando-se para os seus interesses e os seus gos- No atendimento psicoterápico com adolescen-
tos a partir da identificação com os grupos sociais. tes, para Mirabella (2013), o gestalt-terapeuta busca
Há uma fusão entre os adolescentes e estes grupos facilitar ao adolescente a identificação consigo mes-
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Deyseane Maria Araújo Lima
mo, a distinção em relação às outras pessoas e ao assistência para expressar seus sentimentos de
mundo, a percepção como sujeito responsável por ansiedade, solidão, frustração, auto deprecia-
suas escolhas, avaliando assim as consequências e ção, confusão sexual e medo. Ele precisa ver
constituindo os seus valores a respeito do mundo. como pode assumir responsabilidade pela sua
No atendimento psicoterápico, o gestalt-te- própria vida o máximo possível, e também
rapeuta busca a compreensão de como ocorre a como interrompe o seu próprio fluxo organís-
situação (processo descritivo) e não da explicação mico. (Oaklander, 1980, p. 321)
(Pinheiro, 2013). O foco é na presentificação das vi-
vências do adolescente e de sua família em uma re- Nas primeiras sessões, podemos conhecer o
lação de interesse e de acolhimento, sem a presença campo existencial do adolescente, ou seja, sermos
de julgamentos. apresentados à escola, aos amigos, à família, à reli-
Os adolescentes começam o atendimento psi- gião, à sexualidade, aos esportes e ao lazer (Zanella
coterápico por recomendaçãoda família ao perce- & Antony, 2016). É essencial perguntar ao adoles-
ber alguma alteração no comportamento do sujei- cente como se percebe neste período e como está
to ou por indicação da escola ou por profissionais vivenciando à esta fase.
de saúde. Em alguns casos, os adolescentes podem
procurar o atendimento por vontade própria. É im- Em certas ocasiões o próprio adolescente pede
portante destacar para a realização do processo psi- para entrar primeiro; em outras, os pais marcam
coterápico que o adolescente tenha disponibilidade a primeira entrevista; em outras ainda, a família
para compartilhar a sua história de vida e os seus toda entra junto. É interessante observar que a
conflitos com o psicoterapeuta. Ou ainda, que pos- forma como eles chegam, mostra a configura-
sa ter demanda e perceber um sentido para o pro- ção familiar. O importante na primeira sessão
cesso terapêutico na sua vida. é que tenhamos entrevistas iniciais com os pais
Caso seja a família que procure o atendimen- para conhecer a dinâmica familiar do ponto de
to, o psicoterapeuta pode perceber se o adolescente vista deles, abrindo também a possibilidade
tem desejo de realizar as sessões ou não. Caso ele de acolhê-los e orientá-los em suas incertezas.
não tenha, há a sugestão para a família para que Inicia-se assim o trabalho do Gestalt-terapeuta.
o adolescente não permaneça em atendimento. Ele (Zanella & Antony, 2016, p. 99)
não pode realizar a psicoterapia por imposição ou
sem perceber sentido para isto. Se isto ocorrer, po- Nas sessões com os adolescentes, segundo
demos sugerir para os responsáveis para realizar Mirabella (2013), é a oportunidade de entrar em
o atendimento de orientação ao contexto familiar, contato com a sua história, ajudar no processo de
conversando com os pais sobre as dificuldades que identificação e diferenciação dos outros, acolher
apresentam com o adolescente e percebendo as for- seus momentos de frustração e de dúvidas, dialogar
mas de atuar com o seu filho. sobre temas que geram incômodos e sofrimentos,
Se o motivo for a não identificação com o psi- partilhar segredos, compreender as suas escolhas,
coterapeuta ou o não estabelecimento da relação te- acompanhar o seu processo de desenvolvimento,
rapêutica, recomenda-se que o adolescente procure confirmar os seus recursos, entre outros.
um outro profissional. É fundamental que ocorra o De acordo com Pinheiro (2013, p. 48) é essen-
estabelecimento do vínculo entre o adolescente e o cial “identificar qual é a dor psíquica, que tipo de
psicoterapeuta, para que possa falar com confiança defesa o adolescente desenvolveu para lidar como
sobre os temas que o angustia. a frustração de não conseguir realizar seu desejo.”
É importante destacar que “a postura do psi- Nos encontros de orientação à família, é ne-
coterapeuta varia com a maneira como o adoles- cessário que o gestalt-terapeuta promova a com-
cente chega à terapia, mas a construção do vínculo preensão dos pais sobre o processo de desenvol-
afetivo e de confiança é fundamental ao processo” vimento dos filhos, dialogue sobre momentos de
(Zanella & Antony, 2016, p. 97). Os temas que são disciplina e de liberdade, facilite estratégias de en-
trabalhos no processo psicoterápico com adoles- frentamento das dificuldades com os seus filhos,
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centes são provenientes da sua fase de desenvol- converse sobre suas ações e seus posicionamentos
vimento ou de problemáticas vividas no seu con- em relação aos filhos, reflita sobre o papel da famí-
texto social, escolar e familiar, como, por exemplo, lia, da escola e dos amigos para os adolescentes e
a sexualidade, as dificuldades de relacionamento acolha o sofrimento psíquico dos familiares a res-
com os pais e a família, escolhas profissionais, peito dos seus filhos.
uso de substâncias psicoativas, automutilação, Para Mirabella (2013) o gestalt-terapeuta deve
transtornos alimentares, problemas relacionados perceber os conflitos existentes do autoritarismo
a escola (aprendizagem, bullying, cyberbullying, dos pais em relação aos filhos e das situações de
violência entre professor e aluno), as ideações sui- negligência ou abandono ou indiferença. Em alguns
cidas, entre outros. casos, os pais esquecem que já foram adolescentes,
que entraram em contato com este período, em um
[Os adolescentes têm] muitos sentimentos, contexto histórico, psicológico, econômico, social e
lembranças e fantasias do passado, que in- cultural, que pode ser distinto de seu filho. O psico-
terrompem o seu fluxo natural. Ele tem pro- terapeuta pode propiciar uma reflexão sobre a ado-
fundidade de sentimento que acha difícil de lescência vivenciadas pelos pais e a compreensão
compartilhar com a sua família. Ele precisa de da adolescência dos filhos na atualidade.
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O Self-Box como Experimento na Atuação do Gestalt-terapeuta com Adolescentes
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O Self-Box como Experimento na Atuação do Gestalt-terapeuta com Adolescentes
2.2– O Uso do Self-Box na Clínica Gestáltica as suas descobertas e os conflitos de sua vivência
com Adolescentes: A Compreensão de Self na na sua psicoterapia. O psicoterapeuta é tocado em
Gestalt-terapia. suas experiências e pode emergir situações inaca-
badas deste período que precisam ser trabalhadas
O ciclo do contato mostra onde o cliente se en- na sua psicoterapia e serem dialogadas na sua su-
contra, revela quais são os fatores saudáveis e de pervisão. No trabalho com adolescentes, podem ser
adoecimento na sua relação com o mundo. O self é usados experimentos como: o desenho de como se
o processo de contatar, ou seja, constitui-se no con- sentem em relação aos seus corpos, pintar como se
tato com meio. sentem em referência a sua sexualidade, trabalhar
O ciclo do contato é um ciclo de experiências, com poemas que contenham assuntos do interesse
é um clico de satisfações de necessidades. Neste ci- do adolescente, expressar-se por meio de fantasias,
clo, o self apresenta a forma que o contato funciona entre outros (Oaklander, 1980). Reforçando este po-
no encontro humano. O self regula o pensar, o agir, sicionamento, destacamos que:
o sentir, o fazer e o falar humanos. Conhecendo a
pessoa, pode-se conhecer o seu self. O self é como o terapeuta deve ser criativo e atento às ne-
um negativo de uma fotografia, ele existe, mas ne- cessidades do cliente durante as sessões. De
cessita ser revelado. Esta revelação ocorre pelo con- acordo com o tema de cada encontro, proporá
tato (Ribeiro, 2007). experimentos que facilitem a expressão das di-
ficuldades, possibilidades e emoções do clien-
A Gestalt-terapia argumenta que é precisamen- te, bem como o contato com elas. Podemos
te na fronteira de contato, o local de encontros utilizar fotografias, desenhos, tintas, argila,
entre Self e outro e de afastamento para am- telas, filmes, desenho do contorno do corpo,
bos, que a psicologia pode explicar melhor, e colagem, textos, frases a completar, signos do
os psicoterapeutas presenciar melhor e repor- zodíaco, cartas de tarô, enfim, tudo que pos-
tar aos pacientes a responsabilidade que as sa facilitar o contato do adolescente com seus
pessoas têm de moldar sua própria experiên- conflitos, dificuldades, potencialidades e ca-
cia. (Alvim e Ribeiro, 2009, p. 44) racterísticas da personalidade. Os jogos de ta-
buleiro também constituem excelente recurso
Na Gestalt-terapia, o selfé um princípio orga- para trabalhar frustrações, cooperação e com-
nizador do processo de contato. É um sistema com- petitividade. (Zanella & Antony, 2016, p. 102)
plexo de contatos necessários ao ajustamento criati-
vo com o campo. É gerenciamento da existência, é a No trabalho com adolescentes, o self-box (a cai-
possibilidade de interação na fronteira de contato (é xa do eu) facilita o processo contínuo de conscien-
encontro e separação). É um processo pessoal e ca- tização do cliente, ou seja, que se torne consciente
racterístico de sua maneira de reagir num dado mo- da sua forma de entrar em contato consigo mesmo e
mento. É agente de crescimento e desenvolvimento. com o mundo no momento presente. Diante da con-
É integrador e atualizador do potencial humano. cepção de self na Gestalt-terapia, o self-box possibi-
Para Ribeiro (2006, p. 170), “o self é uma estru- lita ao adolescente revelar a si mesmo e sua forma
tura cujo processo pretende revelar o íntimo funcio- de funcionar consigo mesmo, com os outros e com
namento da personalidade ou da pessoa. É também o mundo.
um processo na e da pessoa, que indica um jeito
peculiar e restrito de funcionar da personalidade”. Self-box – a caixa do eu – é um recurso ludoar-
Assim, o self facilita a cada pessoa a percepção de tístico em que a pessoa coloca dentro de uma
si mesmo. De acordo com Ginger e Ginger (1995), caixa objetos e fotos que são importantes para
o self não é uma instância fixa e determinada, pois ela, compartilhando esse conteúdo com o tera-
é o ser com o mundo, que implica em um processo peuta. Trata-se de uma ferramenta interessan-
pessoal que pode ser transformado conforme o cam- te, uma vez que o adolescente, muitas vezes
pede opinião de colegas, pais e professores so-
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Deyseane Maria Araújo Lima
sua mãe. No momento inicial, ela relata que estava coterapêutico. Integrar novas figuras em seu
insegura em relação ao que levar e pede sugestão mundo e amadurecer para aceitar frustrações
de um familiar. Embora perceba a necessidade da próprias do percurso da vida faz parte do de-
adolescente em distinguir-se do ambiente familiar e senvolvimento. Facilitar ao adolescente essa
buscar suas escolhas com responsabilidade. compreensão é uma tarefa de ampliação da
awareness. O trabalho com a self-box pode aju-
A caixa do self é um recurso que os adolescen- dá-lo a resgatar e revisitar sua história de vida.
tes recebem muito bem. Pode ser feita em casa (Zanella & Antony, 2016, p. 105)
e levada no consultório ou ser feita no próprio Este material propicia aos adolescentes fala-
consultório. Pede-se ao jovem que coloque na rem de si mesmos, descreverem experiências, abor-
caixa objetos que possam representá-lo, ou darem a sua infância, retratarem particularidades
mesmo que crie um tema com a caixa: a cai- de sua família, falarem sobre seus sonhos e seus
xa dos sentimentos, a caixa da vida escolar, do projetos, perceberem a sua forma de funcionamen-
amor, etc. (Zanella & Zanini, 2013, p. 75) to, compreenderem as suas limitações de relaciona-
mento com o outro, entre outros.
Desta forma, o gestalt-terapeuta pode pedir Na minha experiência clínica, por exemplo,
para o adolescente elaborar a sua caixa na sessão, com uma adolescente que apresenta bulimia,
ou ser uma atividade psicoterapêutica de casa. quando solicitei que me trouxesse a caixa do eu
Quando o psicoterapeuta sugere que realize na ses- com materiais que a representassem, mostra-me a
são, pode usar os objetos presentes na bolsa e/ou cartela com seu primeiro laxante. Inicialmente, ela
na sala, como também pode pedir para desenhar os fala que não sabe o motivo de guardá-lo. Ela afir-
objetos e colocar na caixa. Quando solicita que faça ma que começou a usar por prisão de ventre, mas
em casa, possibilita o adolescente ter momentos quando começou a perceber que perdia peso ao to-
reflexivos no ambiente familiar, entrar em contato má-lo, começou a fazer uso do medicamento com
com objetos e elementos que são significativos para grande frequência até que sua família percebesse
a sua história de vida que fazem parte do momento e o proibisse.
atual, que podem ser levados para o próximo aten- Na condução do processo psicoterápico, o ges-
dimento. talt-terapeuta pode coletar informações, compreen-
O gestalt-terapeuta pode recomendar que o der os interesses e os gostos (religião, cor preferida,
cliente selecione um tema para construir a sua estilo musical, signos, filmes, séries, livros), conhe-
caixa, ou o profissional pode sugerir um assunto, cer sobre a sua família, resgatar elementos da infân-
ou pode deixar que o cliente escolha livremente cia que estão presentes, entre outros. É a oportuni-
da maneira que desejar. Isto depende da forma de dade de compartilhar sua vida e suas experiências
condução do psicoterapeuta e da disponibilidade com o psicoterapeuta.
do cliente. Na minha experiência profissional, é uma ses-
De acordo com a concepção de self na Ges- são em que o adolescente coloca-se bastante trazen-
talt-terapia, podemos refletir que o self-box per- do especificidades de sua vida que até o momento
mite que o adolescente perceba a maneira como não eram conhecidas. Em um caso atendido, uma
se apresenta no mundo no momento atual, consi- adolescente mostra um urso e fala que quando está
derando o tempo e o espaço. A partir da sensibi- triste gosta de apertá-lo, ou chora com o urso. É im-
lidade do psicoterapeuta e da figura que emerge portante perceber a representatividade deste obje-
na relação, o adolescente é convidado a se conhe- to para a cliente. Relata que quando apresenta di-
cer mais e se apresentar de uma forma diferente ficuldades, morde os lábios ou chora no banheiro.
para o gestalt-terapeuta. O self-box é um material Embora, tenha vontade de bater. Neste momento,
para trabalhar as identificações do cliente consi- ela descreve pela primeira vez as suas tentativas de
go mesmo, com os outros e com o mundo, pois o suicídio.
adolescente pode levar ao setting terapêutico ob- O gestalt-terapeuta pode solicitar que o cliente
jetos, fotos, livros, peças de roupas, acessórios, ao trazer os objetos da caixa, fale no presente e em
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cartas, bilhetes, brinquedos, CDS e DVDS, que primeira pessoa, pode falar como se fosse um obje-
trazem representações dos seus gostos e de suas to da caixa, ou pode estabelecer um diálogo entre
características pessoais. elementos da caixa, ou descrever uma experiência
Na minha prática profissional, podemos e outras possibilidades de atuação. Assim, “ao se
exemplificar isto com uma adolescente que sofria basear na experimentação, fazendo uma passagem
bullying na escola e trouxe um papel de bombom da explicação para a experiência, a Gestalt-terapia
que um colega deu para ela. Houve uma brincadeira permite que o ato psicoterápico seja um campo de
na escola e ela ganhou um pacote de bala. Era para experiência” (Alvim & Ribeiro, 2009, p. 39)
levar chocolate para um colega, mas esta pessoa Desta forma, quando o psicoterapeuta su-
percebeu que ela comia no intervalo a bala e pre- gere a atividade, o cliente pode não levar o material
feriu levar. Ela gostou muito da atitude do colega e para a sessão, caso não se sinta à vontade ou não
levou para que possamos falar sobre a importância deseje realizá-lo. Pode ter interesse em conversar
da amizade na sua vida. sobre o fato de não ter levado o material, ou ter a
necessidade de falar sobre outro assunto.
Cuidar para que o jovem melhore sua autoes- Na minha experiência clínica, sugeri para uma
tima e se fortaleça é crucial no trabalho psi- adolescente preparar a caixa em casa e levar no pró-
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O Self-Box como Experimento na Atuação do Gestalt-terapeuta com Adolescentes
ximo encontro. A adolescente fez isto, mas esque- Cardella, B H. P. (2014). Ajustamento criativo e hierar-
ceu o material. Antes do começar a sessão, ela pede quia de valores ou necessidades. In: Frazão, L. M &
para a sua mãe tirar fotos da caixa e mandar para o Fukumistu, K. O. (Orgs). Gestalt-terapia: conceitos
seu WhatsApp. Na sessão, ela me relata o fato. Per- fundamentais (pp. 104-130). São Paulo: Summus.
cebo a sua preocupação e o seu interesse em me
mostrar os objetos da caixa por meio de fotos. Foi Cardella, B. H. P. (2002) A construção do psicoterapeuta:
uma sessão bem marcante, pois a adolescente sen- uma abordagem gestáltica. São Paulo: Summus.
tou no chão (em um ato espontâneo) ao lado na mi-
Erikson, E. (1987). Identidade, Juventude e Crise. Rio de
nha cadeira, mostrando as fotos tiradas pela mãe e
Janeiro: Editora Guanabara.
relatando sobre a sua vida e sua história. O diálogo
ocorreu a partir das imagens no celular. Fernandes, M. B. (2013). A consulta clínica com pais
Ressalto então a importância do uso do self-box de adolescentes em Gestalt-terapia. In: Zanella, R.
no trabalho com adolescentes na Gestalt-terapia, (Org.). A Clínica Gestáltica com Adolescentes: cami-
promovendo o interesse pelo processo terapêutico, nhos clínicos e institucionais. (pp. 31-58) São Paulo:
a aproximação com o terapeuta, a possibilidade de Summus.
ressignificar as situações inacabadas do cliente na
presença e no acolhimento do gestalt-terapeuta. Ginger, S. & Ginger, A. (1995) A. Gestalt: uma terapia do
contato. São Paulo: Summus.
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Deyseane Maria Araújo Lima
Recebido em 06.06.17
Primeira decisão editorial em 24.08.17
Segunda decisão editorial 14.04.2018
Aceito em 17.08.18
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 313-322, 2019 322
10.18065/RAG.2019v25n3.11
Resumo: A obra do filósofo Martin Heidegger é determinante para o desenvolvimento da psicologia feno-
menológico-existencial. Apesar disso, é reconhecida a dificuldade para sua compreensão e adaptação aos
objetivos da psicologia. Este estudo propõe uma exemplificação de como noções heideggerianas podem ser
trabalhadas na psicologia, aproximando-as do pensamento do psiquiatra Viktor Frankl. Ainda que tenha
estudado sua filosofia, Frankl não fundamentou seu trabalho na obra de Heidegger, no entanto, os concei-
tos principais de sua Logoterapia permitem que se pense em possibilidades de desdobramento psicológico
da Analítica do Dasein. Da parte de Frankl, as ideias de autotranscendência, sentido de vida, valores, noo-
dinâmica e frustração existencial são discutidas como implicações psicológicas do Dasein heideggeriano,
com atenção a noções como ser-no-mundo, poder-ser, possibilidade e disposição afetiva.
Palavras-chave: Frankl; Logoterapia; Heidegger; Psicologia Fenomenológico-Existencial
Resumen: El trabajo filosófico de Martin Heidegger es decisivo para el desarrollo de la psicología fenome-
nológico-existencial. Sin embargo, se ha considerado difícil de entender y de aplicar a la psicología. Este
estudio ejemplifica cómo las ideas heideggerianas pueden ser de utilidad en psicología acercándolas a la
Logoterapia de Viktor Frankl. Aunque Frankl haya estudiado el trabajo del filósofo, su teoría no se basa
principalmente en la Analítica del Dasein. En este artículo, los conceptos clave de la Logoterapía se dis-
cuten como una posibilidad de la comprensión psicológica de la Analítica de Heidegger. Los conceptos
de Frankl como la autotrascendencia, el sentido de la vida, los valores, la noodinámica y la frustración
existencial se presentan como implicaciones psicológicas de las estructuras existenciales presentadas por
Heidegger, como ser-en-el-mundo, poder-ser, posibilidad y disposición afectiva.
Palabras-clave: Logoterapía; Heidegger; Psicología Fenomenológico-Existencial.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
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Marcelo Vial Roehe
fia fenomenológico-existencial de Martin Heideg- rar algo como isto ou aquilo e, assim, dar sentido ao
ger (1889-1976). Entende-se que Heidegger ofere- que se mostra (Sheehan, 2014).
ceu, embora involuntariamente, a mais influente Como ponto de partida para o questionamento
concepção de homem no campo da psicologia F-E. do ser, Heidegger elege o ente que, em seu ser, apre-
Frankl, por sua vez, ainda que tivesse contato pes- senta a possibilidade de questionar: o ente que nós
soal com o filósofo e utilizasse o “nome alternativo” mesmos somos. Já tendo em vista a investigação
Análise Existencial para seu pensamento (Frankl, desse ente em seu ser, a fim de estabelecer uma dis-
2000), não caracterizou sua teoria como diretamen- cussão com a tradição metafísica a respeito do ser
te vinculada ao pensamento de Heidegger; ao con- em geral, Heidegger chama o ente que nós somos de
trário, por exemplo, de Medard Boss (que contou Dasein. Denominações como “homem”, “sujeito”,
com a colaboração do filósofo) e do pioneiro Lu- “animal racional” são produto do pensamento me-
dwig Binswanger. tafísico, o qual o filósofo coloca em questão. Com os
Binswanger (1881-1966), por pioneiro que próprios termos empregados, Heidegger pretende
foi na apropriação da filosofia de Heidegger para a rever a tradição metafísica, cuja linguagem carrega
compreensão psiquiátrica, inaugurou a dificuldade consigo as consolidações que o filósofo visa evitar.
de transpor a filosofia para a psicologia/psiquiatria. A Analítica Existencial ou Analítica do Dasein é a
Vide o conhecido episódio, assumido pelo próprio descrição fenomenológica do modo de ser do ente
Binswanger, do “produtivo mal-entendimento” do que nós mesmos somos.
pensamento de Heidegger (Frie, 1999). É em vista Na diferenciação entre ser e ente tem-se dois
desse episódio e de outras menções à dificuldade níveis: o ontológico (ser), no qual se dá atenção às
que o texto de Heidegger impõe aos interessados em condições de possibilidade para que um ente se ma-
seu pensamento (Cerbone, 2009; Horrigan-Kelly, nifeste ou para como um ente vem a nossa presença
Millar & Dowling, 2016), que o artigo se desenvolve. e o ôntico (ente), no qual a atenção se dirige para
Pretende-se mostrar como alguns dos conhe- as características de um ente qualquer ou para o
cidos termos heideggerianos podem ser compreen- modo de ser daquilo que já está presente. Lembre-
didos, em sua aproximação à psicologia. Para isso, -se que a reprovação de Heidegger ao pensamento
toma-se uma teoria já estabelecida, a Logoterapia de de Binswanger deu-se em torno desse ponto (Hei-
Frankl, e estabelece-se uma aproximação entre os degger, 1987/2001). No nível ôntico, estuda-se o
conceitos psicológicos deste e as noções fenomeno- modo de ser dos entes; no ontológico, as condições
lógico-existenciais do filósofo. Parte-se do princípio para que os entes possam ser. Heidegger desenvolve
de que o nível de questionamento filosófico funda- a Analítica do Dasein no nível ontológico, ou seja,
menta o nível psicológico, ou seja, a título de exem- não visa o “homem”, porém as condições ontológi-
plo, o ser-no-mundo de Heidegger como condição cas que possibilitam ao ente que nós mesmos so-
para a elaboração de uma psicologia não-mentalis- mos compreender-se como homem.
ta, que valorize o ser humano como relacionado ao A descrição do modo de ser do Dasein seria a
que é diferente de si mesmo. primeira etapa do questionamento do ser em geral;
A aproximação entre Frankl e Heidegger é uma projeto este que, do ponto de vista de Ser e Tempo,
proposta do autor. Não se está atribuindo ao tra- ficou inconcluso, uma vez que a aventada segunda
balho de Frankl qualquer vínculo ou dependência parte da obra nunca foi publicada (Mulhall, 2013).
conceitual para com a filosofia de Heidegger. Essa descrição – ontológica –, entretanto, atraiu a
atenção de profissionais do campo psicológico/
psiquiátrico na forma de uma nova concepção de
A Analítica fenomenológico-existencial de homem, dissociada das analogias naturalistas, do
Heidegger dualismo sujeito-objeto e das relações mecâni-
co-funcionais com o ambiente.
Se a linguagem filosófica já é difícil para quem Desse modo, uma etapa do trabalho (ontológi-
não é filósofo, mais ainda uma filosofia (a de Hei- co) de Heidegger, veio a se tornar a base (ôntica) de
uma abordagem psicológica. Por que ôntica? Porque
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Psicologia e Filosofia na Abordagem Fenomenológico-Existencial: Um Estudo sobre Frankl e Heidegger
itálicos no original), ou seja, o nível em que atuam a obra que sustenta a totalidade das referên-
as ciências, despreocupadas de suas condições on- cias na qual o instrumento vem ao encontro.
tológicas. Embora a Analítica seja do Dasein, en- (...) Com a obra, portanto, não se dá ao encon-
tendido como o “ente que cada um de nós mesmos tro apenas um ente manual, mas também entes
sempre somos” (Heidegger, 1927/2006, p. 42), Hei- que possuem o modo de ser do homem, para
degger não evita completamente o termo “homem”. os quais o produto se acha à mão na ocupação
Ele o emprega, por exemplo, deixando claro que ao (Heidegger, 1927/2006, p. 118-119).
“homem” atribui o modo de ser do Dasein: “como
atitude do homem, as ciências possuem o modo de O encontro com os entes pressupõe um modo
ser desse ente (homem). Apreendemos terminolo- de ser que permita “encontrar”; sendo abertura para
gicamente esse ente como presença”1 (Heidegger, o ser, o Dasein habita o mundo como algo que lhe
1927/2006, p. 47, itálicos no original). é familiar: “Essa familiaridade é enquanto tal fami-
O emprego da Analítica no nível de suas “raí- liaridade em um mundo” (Heidegger, 2012, p. 437,
zes ônticas” e no campo da psicologia se justifica itálicos no original). As relações, por sua vez, não
na própria história do filósofo. Heidegger colaborou ocorrem a partir da racionalidade interiorizada,
com o psiquiatra suíço Medard Boss (1903-1990) mas na preocupação com outros seres humanos e
no desenvolvimento da Daseinsanalyse, uma abor- na ocupação com entes não humanos.
dagem psicoterapêutica (ôntica, portanto) baseada Sendo-no-mundo, o Dasein é afetado pelo
em sua filosofia. A participação de Heidegger na encontro com os demais entes e, uma vez afetado,
Daseinsanalyse está registrada em Seminários de existe sempre em tonalidades afetivas que caracte-
Zollikon (Heidegger, 1987/2001), onde se lê, por rizam as diversas relações que estabelece. Está-se
exemplo: “(...) a relação de daseinsanalistas e anali- falando do que Heidegger chama de disposição afe-
sando pode ser vivida como uma relação de Dasein tiva. O filósofo observa que a disposição é “o mais
para Dasein” (p. 150), afirmação na qual Heideg- conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor (...)”
ger situa o Dasein no nível ôntico. Assim também (Heidegger, 1927/2006, p. 193). O humor diz respei-
quando se refere a “um determinado Dasein exis- to a como alguém está, “como vai”. A afetividade, o
tente” (p. 151) e ao “Dasein social-histórico e indi- poder-ser-afetado, direciona o Dasein; os entes que
vidual” (p. 151). se mostram para o ser humano, já aparecem vincu-
A Analítica de Heidegger é uma obra exten- lados a tonalidades afetivas. Afetivamente disposto,
sa, cuja síntese não cabe nos limites deste estudo. o ser humano sempre percebe os entes de algum
Além disso, seus pontos de interesse, neste artigo, modo ou nem mesmo chega a perceber determina-
são aqueles que permitem o diálogo com aspectos dos entes, pois a desatenção ou o desinteresse são,
da obra de Viktor Frankl. Sendo assim, na sequên- também, disposições afetivas.
cia do artigo apresentam-se pontos da Analítica que O Dasein existe sempre em função de um po-
serão colocados em relação com ideias de Frankl. der-ser que, embora ainda não realizado, já o caracte-
Para Heidegger (1927/2006), a descrição fun- riza de fato. O futuro (porvir) está sempre implicado,
damental do ser humano é como ser-no-mundo, ou constitui as ações presentes, uma vez que o ser hu-
seja, não há dualismo, polaridade ou oposição en- mano antecede-a-si-mesmo (Heidegger, 1927/2006).
tre homem e mundo: ser-homem é indissociável do
mundo: “A expressão composta ‘ser-no-mundo’, já Em seu ser, a presença já sempre se conjugou com
na sua cunhagem, mostra que pretende referir-se a uma possibilidade de si mesma (...) já sempre an-
um fenômeno de unidade” (Heidegger, 1927/2006, tecedeu a si mesma. A presença já está sempre
p. 98, itálicos no original). Mundo é o que se mostra ‘além de si mesma’, não como atitude frente aos
nas relações que o Dasein estabelece com os entes outros entes que ela mesma não é, mas como ser
que vêm ao encontro. Não se trata, portanto, de um para o poder-ser que ela mesma é (Heidegger,
espaço no qual o ser humano se localiza, como se 1927/2006, p. 258-259, itálicos no original).
um objeto estivesse contido dentro de outro.
No “Aí”, os demais entes aparecem para o Ser- O Dasein não se define pelo que é “aqui e ago-
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-aí. O “Aí” é abertura relacional. Esse aparecer dos ra”, como um objeto restrito à sua manifestação
demais entes não é contemplativo, é prático. Agi- material-presente, pois o poder-ser faz parte da sua
mos ou nos comportamos em relação aos demais facticidade. O que o ser humano é abrange a dimen-
entes. O comportamento ocorre conforme atribuí- são do possível, do ainda não que poderá vir a ser.
mos significados aos demais entes. Por exemplo: Aquilo que o Dasein ainda não é como fato, como
usa-se microfones visando-se comunicação com realidade, ele é como possibilidade, ele é existen-
outras pessoas num espaço específico. Ao micro- cialmente, uma vez que o ser humano é suas pos-
fone agregam-se um amplificador, um sistema de sibilidades. “Enquanto projeto, compreender é o
energia, talvez um fio. Este conjunto de entes é ne- modo de ser da presença em que a presença é as
cessário para que cada ente revele sua relação com suas possibilidades enquanto possibilidades” (Hei-
os demais e, finalmente, a relação do todo com uma degger, 1927/2006, p.206).
finalidade do ser humano. Antecedendo-a-si-mesmo, projetando-se em
possibilidades de seu próprio ser, o Dasein tem uma
A lida cotidiana não se detém diretamente nos relação com o seu próprio ser: “Em seu ser, isto é,
utensílios em si mesmos. Aquilo com que pri- sendo, este ente se relaciona com o seu ser” (Hei-
meiro se ocupa (...) é a obra a ser produzida. É degger, 1927/2006, p.85). O ser do Dasein está em
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Marcelo Vial Roehe
questão para ele mesmo. Não se trata, todavia, de lização concreta no mundo. O sentido não é defini-
uma questão racionalizada que gera uma resposta tivo (pode mudar a todo momento), nem universal
elaborada, conclusiva; é uma questão/relação que (é relativo a cada pessoa). Frankl (1986) afirma que
se “conclui” de modo provisório, a cada momento, o caminho para o sentido é a realização de valores.
no fazer cotidiano, ou seja: “a presença se entrega à Estes são de três tipos:
responsabilidade de assumir seu próprio ser” (Hei-
degger, 1927/2006, p.85). Criativos – dar algo ao mundo, uma tarefa,
Heidegger retoma a relação que o Dasein tem uma obra, um trabalho;
com seu próprio ser quando chama a totalidade
estrutural do Dasein como cura. A totalidade é Vivencias – receber algo do mundo, a expe-
composta por anteceder-a-si-mesmo, facticidade e riência do amor, por exemplo;
ser-junto aos demais entes. Antecedendo-a-si-mes-
mo, o ser humano se projeta em possibilidades, a Atitudinais – posicionar-se diante do sofri-
partir da situação em que ele já está e vem sendo, mento inevitável.
enquanto se preocupa com outros seres humanos e
se ocupa com entes não humanos. Nos momentos À realização da vontade de sentido, Frankl
constitutivos da cura, aparece a temporalidade do associa a característica humana da autotranscen-
modo de ser humano: antecede-se (futuro), desde dência, que significa que ser homem é estar em
onde já se está (passado), a fim de lidar com o que relação com ou orientado para qualquer coisa
vem ao encontro no mundo (presente). diferente de si próprio (Frankl, 1989). Em outras
De acordo com Borges-Duarte (2010) a cura palavras, do próprio Frankl: “Quero salientar que
é “inquieta atenção e tensão vital, que gere esfor- o verdadeiro sentido da vida deve ser descoberto
çada e, tantas vezes, molesta o viver, que o tempo no mundo, e não dentro da pessoa humana ou de
marca e determina” (p. 120). Polt (1999) considera sua psique, como se fosse um sistema fechado”
que existir como cura significa que seu próprio ser (Frankl, 1993, p. 99).
e o ser dos demais entes fazem diferença para o ho- Se o homem é voltado para coisas diferentes
mem; Polt entende que se trata de uma reprovação dele próprio e o sentido é descoberto no mundo,
implícita de Heidegger às filosofias que isolam o então o ser humano deve ser aberto para o mundo e,
homem do tempo e do espaço: “não há como evitar nessa abertura, ultrapassar a si mesmo encontrando
o enraizamento num passado e o enfrentamento de aquilo que lhe é diverso. Heidegger, em sua Analíti-
um futuro” (Polt, 1999, p. 79). ca do Dasein, apresenta uma compreensão do modo
de ser humano em que o homem não apenas trans-
cende a si mesmo: ele é transcendência e encontro:
Frankl e Heidegger “(...) o Da em Ser e Tempo não significa a definição
de um lugar para um ente, mas deve indicar a aber-
Na sequência do artigo, apresentam-se ideias tura onde os entes podem estar presentes para o ser
de Frankl e retomam-se noções heideggerianas, a humano e o próprio ser humano presente para si
fim de explicitar uma possível relação entre a con- mesmo” (Heidegger, 1987/2001b, p. 120, itálicos no
cepção filosófica de ser humano, como Dasein, e a original).
proposta logoterapêutica. Ressalte-se que com essa O Da de Dasein (o Aí do Ser-aí) faz parte do
aproximação não se pretende impor ao pensamento modo de ser humano. Não se trata portanto da pos-
de Frankl uma fundamentação heideggeriana, mas sibilidade de abrir-se, pois se assim fosse haveria a
sim propor uma aproximação, a fim de mostrar possibilidade de fechar-se, ou seja, a possibilidade
como a filosofia de Heidegger pode ter desdobra- do não aparecimento de ente algum ou a possibi-
mentos na psicologia. lidade do não estabelecimento de relação alguma
A Logoterapia de Frankl teve suas origens em (nem consigo mesmo). Se assim fosse, não se cons-
Viena no final dos anos 1920 (Etcheverry, 1990), tituiria o Da-Sein.
Sendo abertura, o ser humano vai ao encontro
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Psicologia e Filosofia na Abordagem Fenomenológico-Existencial: Um Estudo sobre Frankl e Heidegger
aos demais entes que encontra, já que transcende, tionar um direcionamento. A respeito da indetermi-
ultrapassa a si mesmo. Transcendendo a si mesmo, nação do ser humano, Heidegger (1927/2006) escre-
abre o espaço existencial que é o mundo, na forma ve: “Ser é o que neste ente está sempre em jogo” (p.
de relações de ocupação, com entes não humanos 85, itálicos no original). Ou, de acordo com Blattner
e de preocupação, com entes humanos (Heidegger, (2006): “nosso ser está em questão para nós” (p. 37).
1927/2006). O Dasein, assim, é-no-mundo, visto O ser humano, enquanto é possível, está por ser fei-
que não há um Eu autossuficiente, cujo modo de to, por ser realizado.
ser prescinda dos demais entes ou cuja autocom- Safranski (2005) observa, sobre essa caracte-
preensão se desenvolva sem a identificação com as rística do modo de ser humano: “no meio das coisas
ocupações e as preocupações relativas a estes entes. ele tem ‘jogo’, como a roda tem de ter ‘jogo’ no eixo
A concepção de ser humano de Heidegger para poder mover-se” (p. 359). O estar em jogo do
(1927/2006) permite que se pense na autotranscen- ser humano diz respeito ao que está em aberto, às
dência proposta por Frankl, assim como na conse- possibilidades nas quais sempre se projeta: “desig-
quente relação com aquilo que é diferente de si mes- namos a estrutura ontológica essencial do ‘estar em
mo. A autotranscedência é possível, uma vez que o jogo’ como o anteceder-a-si-mesmo da presença”
ser humano é-no-mundo; o mundo é o “para onde” (Heidegger, 1927/2006, p. 259, itálicos no original).
da autotranscendência. É-no-mundo na forma de Antecede a si mesmo, porque existe projetado, ou
relações com o que lhe é diferente, ou seja, não se seja, em função de possibilidades que, como tais,
trata de presença física em um espaço. As relações poderão ou não vir a ser concretizadas. É nesta in-
fazem parte do modo de ser humano; com o quê determinação, neste estar em aberto do modo de ser
ou com quem se relaciona e como se relaciona são humano, que Heidegger situa o “estar em jogo”.
possibilidades que, veremos na sequência, podem Dada a indeterminação do ser humano, a von-
(“poder-ser”) oferecer sentido. Vattimo (1971/1987) tade de sentido é um modo de autodeterminação,
sintetiza o pensamento elaborado até aqui: “o ser é um direcionamento que o homem elege, pois é
do homem consiste em estar referido a possibilida- livre para determinar-se. Para que haja um sentido
des; mas concretamente este referir-se efetua-se não no mundo, é necessário que o próprio modo de ser
num colóquio abstrato consigo mesmo, mas como enseje ser de um jeito ou de outro, permita escolher,
existir concretamente num mundo de coisas e de decidir. Se assim é, o mundo já deve estar presente
outras pessoas” (p. 26) nesse modo de ser, como um horizonte de possibili-
Para Frankl, somente quando transcende a si dades que se mostram nos modos em que o homem
mesmo é que o ser humano pode realizar sua von- se relaciona com as coisas (DeLancey, 2006).
tade de sentido. O sentido é descoberto por meio
da realização de valores. Os valores frankleanos im- Dasein é confrontado com possibilidades e é
plicam relação com o mundo: dar algo ao mundo, da sua própria natureza estar consciente des-
receber algo do mundo e posicionar-se diante do sas possibilidades em algum sentido, realizar
sofrimento inevitável. Neste último caso - valores algumas delas e rejeitar outras. Entretanto,
de atitude - mantém-se a relação de mundo, uma isto não é, apenas, um modo de escolher entre
vez que “este ente se relaciona com o seu ser” (Hei- opções, mas sim a constituição mesma do Da-
degger, 1927/2006, p.85). Essa relação é mundana, sein (DeLancey, 2006, p. 362).
quer dizer, o ser humano encontra a si mesmo no
mundo, ou seja, encontra-se sendo nas ocupações Decorrem, portanto, do próprio modo de
e nas preocupações. Portanto, encontra seu próprio ser do homem, descrito por Heidegger, as con-
ser na autotranscendência. dições para que se entenda a autotranscen-
Conforme Heidegger (2012), o Dasein “tem em dência em direção ao que é diferente de si
certa medida seu próprio ser na mão, à proporção mesmo e, nessas relações, o aparecimento de
em que se comporta de um modo ou de outro em possibilidades de ser de um jeito ou de outro.
relação ao seu poder-ser (...)” (p. 401). Somente há Projetar-se em possibilidades e, nessa projeção ou
possibilidades, portanto, para o ente que se relacio- antecipação de si mesmo, fazer escolhas, é possív-
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na com seu ser, para o ente cujo modo de ser é po- el porque o ser humano já-é-no-mundo; o mundo
der-ser. Do contrário, as ações ou o comportamento como um contexto de possibilidades que se revelam
não seriam em função de possibilidades, seriam au- na relação que o homem estabelece com os demais
tomatizados, predeterminados, naturalizados. entes.
Frankl (1993) afirma que: “O sentido da vida A respeito do homem, Frankl (1986) escreve:
difere de pessoa para pessoa, de um dia para outro, “a sua realidade é uma possibilidade, e o seu ser é
de uma hora para outra. O que importa, por conse- um poder-ser” (p. 121). E acrescenta: “em nenhum
guinte, não é o sentido da vida de um modo geral, instante da sua vida, pode o homem esquivar-se à
mas antes o sentido específico da vida de uma pes- forçosa necessidade de escolher entre as possibili-
soa em dado momento” (p. 98). Com esta observa- dades” (p. 121-122). Escolher entre possibilidades é
ção, Frankl permite que se pense na indeterminação uma característica do modo de ser do homem, en-
da vida humana, em seu aspecto situacional e em tendido como Dasein: “As características constituti-
sua característica mutante. A vontade de sentido vas da presença são sempre modos possíveis de ser
decorre da indeterminação, do contrário a questão e somente isso” (Heidegger, 1927/2006, p. 85).
do sentido não surgiria. É preciso que o modo de ser Längle (1992) reforça a ideia da autotranscen-
apresente indeterminação, para que se possa ques- dência indeterminada do homem quando afirma
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Marcelo Vial Roehe
que a questão do sentido adquire relevância, tendo dade do ser humano. Se o homem é instado a rea-
em vista três experiências básicas do ser humano: o lizá-la, ele a valorizou, elegeu-a como sentido em
livre-arbítrio, que permite escolher entre possibili- meio a outras que ficaram em segundo plano. Sen-
dades; o sentimento de que aquilo que é escolhido do abertura-no-mundo, o homem tem a dimensão
faz diferença, pois se tratam de valores e a incons- do possível, do poder-ser, como um constituinte de
tância das situações, sempre em transformação. seu próprio ser. O que se é e o que se pode vir-a-ser
A posição de Längle oportuniza propor uma estão juntos no ser humano.
transição, psicológica, das possibilidades para os
valores. No nível da consideração ontológica, o ser Em seu ser, a presença já sempre se conju-
humano é suas possibilidades, sem que isso impli- gou com uma possibilidade de si mesma (...)
que qualquer entendimento a respeito de quais pos- já sempre antecedeu a si mesma. A presença
sibilidades se persegue, quais se abandona e quais já está sempre ‘além de si mesma’, não como
motivos levam alguém a decidir por esta ou aquela atitude frente aos outros entes que ela mesma
possibilidade. No nível ôntico, porém, dá-se aten- não é, mas como ser para o poder-ser que ela
ção aos desdobramentos cotidianos da condição mesma é (Heidegger, 1927/2006, p. 258-259,
ontológica. itálicos no original).
Para que alguém se identifique com algumas
possibilidades e rejeite outras ou “valorize” uma Pode-se entender que o ente que é-no-mundo
possibilidade e não outra, é preciso “encontrar-se já está vinculado ao que ele será, pois a antecipação
numa situação na qual coisas e opções já fazem em possibilidades lhe caracteriza existencialmente.
diferença” (Dreyfus, 1991, p. 168). Esta descrição Assim sendo, tem-se a condição para o que Frankl
se refere ao que Heidegger (1927/2006) chama de (1986) chama de noodinâmica.
disposição afetiva. O ser humano não existe numa
postura neutra diante do mundo. O homem está Entendo que um dos atributos essenciais do
envolvido no mundo, interessado (ou desinteres- ser humano consiste em achar-se num campo
sado) pelos demais entes que encontra, ou seja, o de tensão, entre os dois polos do ser e do de-
ser humano é “determinado previamente em sua ver-ser, em visar o sentido e os valores (...) a di-
existência, de modo a poder ser tocado (...) pelo que nâmica que se estabelece no campo de tensão
vem ao encontro dentro do mundo. Esse ser tocado (...) denomina-se noodinâmica (Frankl, 1986,
funda-se na disposição (...)” (Heidegger, 1927/2006, p.98).
p. 196, itálicos no original).
Se o ser humano não se vinculasse afetiva- Para que haja uma tensão entre ser e dever-ser,
mente ao mundo, quer dizer, se não fosse dispos- é preciso que o ser humano possa-ser algo que ele
to-no-mundo, “tocável” ou “afetável”, não poderia, – ainda - não é. É preciso, portanto, que o homem
por exemplo, eleger prioridades para sua vida, pois tenha possibilidades de ser e, assim sendo, anteci-
tudo que há no mundo se mostraria como sendo pe-se a si mesmo projetando-se nessas possibilida-
igual, não importando nem mais nem menos. A des. Em Heidegger, o poder-ser é um constituinte
diferenciação entre o que interessa, atrai, importa do ser humano e, como seu constituinte, o afeta
ou não é possível em função da disposição afeti- (disposição afetiva), de modo que uma “tensão” seja
va. Essa afetividade, mantendo a coerência entre possível.
o pensamento heideggeriano e o frankleano, não é Conforme observado acima, o ser humano -
interiorizada, intrapsíquica; aquilo que afeta o ho- como Dasein - não se limita ao “aqui e agora”; há
mem é diferente dele: “Na disposição subsiste exis- como que um continuum entre ser e poder-ser, de
tencialmente um liame de abertura com o mundo, a modo que o ainda-não que pode vir-a-ser (futuro)
partir do qual algo que toca pode vir ao encontro” está sempre “presente”. Em Frankl, o sentido é esse
(Heidegger, 1927/2006, p. 197, itálicos no original). ainda-não, que orienta (“guia”) o ser (verbo) huma-
O que vem ao encontro, então, já se mostra numa no, tensionando-o.
tonalidade afetiva e, assim, “torna possível um di- A realização da vontade de sentido não está
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recionar-se para...” (Heidegger, 1927/2006, p. 196, livre de dificuldades. De acordo com Frankl (1986),
itálicos no original). pode haver dúvida quanto a qual é o sentido ou de-
A disposição afetiva permite diferenciar as sesperança de encontrá-lo ou, ainda que se o iden-
possibilidades, no que tange à sua relevância para tifique, pode haver empecilhos para sua realização.
cada um de nós; o modo de diferenciação é a va- A essas condições, Frankl (1986) chama de frustra-
lorização. Valoriza-se aquilo que, dentre as várias ção existencial. A frustração existencial é, então, a
possibilidades “genéricas”, nos “toca” de modo a se não realização de uma possibilidade (sentido) que
mostrar como algo a ser escolhido. se mostra como valorizada (disposição afetiva).
Kretschmer (1992) relaciona sentido e valores Para que alguém se frustre, é necessário querer
destacando o aspecto prático do afeto: “Sentido nós que algo aconteça, estar na expectativa da realização
encontramos ao indagarmos para que algo serve, do acontecimento, o que envolve uma determinada
para o que algo é bom. Sentido da vida se nos depa- disposição afetiva. Expectativa diz respeito a um
ra no entendimento de que um valor, reconhecido entendimento de como uma situação pode se de-
como tal, nos afeta e insta ao desempenho de uma senrolar, ou seja possibilidades estão em jogo; logo,
tarefa” (p. 71). exige a consideração do momento atual (presente) e
O desempenho de uma tarefa é uma possibili- a de sua transformação (antecipação; futuro), com
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Psicologia e Filosofia na Abordagem Fenomenológico-Existencial: Um Estudo sobre Frankl e Heidegger
a realização daquilo que se espera (a possibilidade, são a condição de possibilidade da busca por sen-
aqui entendida como sentido). É necessário, portan- tido. Além disso, essa aproximação entre a Analíti-
to, que o homem possa projetar-se em possibilida- ca e a Logoterapia enseja a discussão a respeito da
des, antecedendo a si mesmo. apropriação de temas filosóficos pela psicologia.
Então, para que se entenda o fenômeno da fru- De acordo com a reflexão elaborada neste es-
stração existencial é preciso considerar que o ser tudo, a filosofia de Heidegger pode ser apropriada
humano não vive como um corpo (objeto) dentro de pela psicologia, tendo como referência a Logotera-
um espaço material (natureza). O ser do homem é pia frankleana, da seguinte maneira: Heidegger afir-
um poder-ser que se projeta em possibilidades que ma que o Dasein está em relação com seu próprio
encontra no mundo, porque mundo é um contexto ser; a partir dessa característica existencial, pode-se
de possibilidades que faz parte do modo de ser hu- pensar que apenas o ente que tem relação consigo
mano (ser-no-mundo). mesmo pode buscar sentido para sua vida, uma vez
Heidegger (1927/1993) observa que o Dasein que a autorrelação gera o questionamento da sua
não se limita a uma constatação fatual/posicional, própria vida e a responsabilidade por seu encami-
pois a dimensão futura, o ainda-não (que pode ou nhamento. A relação que o Dasein tem com seu pró-
não se realizar) faz parte de seu modo de ser. prio ser não é interiorizada, ela ocorre no mundo
na forma de ocupação com entes não humanos e
Com base no modo de ser que se constitui preocupação com entes humanos; é a partir dessas
através do existencial do projeto, a presença relações que o Dasein se projeta em possibilidades,
é sempre “mais” do que é fatualmente (...). No as relações mostram possibilidades. Sendo assim,
entanto, ela nunca é mais do que é faticamen- estão dadas as condições para que o ser humano
te, porque o poder-ser pertence essencialmen- transcenda a si mesmo, valorizando algumas possi-
te à sua facticidade. Também a presença, en- bilidades, cuja processo de realização constitui o(s)
quanto possibilidade de ser, nunca é menos, sentido(s) de seu viver.
o que significa dizer que aquilo que, em seu O ser humano é um ente que se define e se
poder-ser, ela ainda não é, ela é existencial- redefine em função das possibilidades nas quais
mente (Heidegger, 1927/2006, p. 206, itálicos se projeta, a partir das ocupações e preocupações
no original). que encontra no mundo. Desse modo, em seu ser
há indeterminação e liberdade (nunca absolutas, é
O homem não tem possibilidades, ele é suas bom lembrar). Aqui encontra-se uma condição para
possibilidades e por isso é que pode se frustrar, a afirmação de Frankl de que o sentido muda de
porque o possível não está num futuro distante; o pessoa para pessoa e a cada momento, numa tensão
possível está sempre presente. A afirmação de Hei- entre ser e vir-a-ser.
degger é de que – no plano filosófico-existencial da Se o Dasein heideggeriano está sempre numa
reflexão – o ser humano não é mais nem menos, determinada disposição afetiva, de modo que os
pois ele é tudo o que pode-ser. No plano psicológi- entes podem “tocá-lo” de alguma maneira, pode,
co, entretanto, é possível sentir-se “menos”, ou seja, então, o ser humano, eleger possibilidades, valori-
frustrar-se ou não realizar a possibilidade escolhida zando-as.
(valorizada). O possível é um constituinte do ser A noção de cura como integração entre ante-
humano e como tal o afeta (“toca-o”), faz diferença, ceder-se, facticidade e ser-junto é entendida por
tensiona-o. O possível é agora. Fazendo diferença Borges-Duarte (2010) como “tensão vital”; já em
“agora”, a dimensão do possível, do poder-ser, pode Frankl, a tensão é relativa ao sentido, que pode ser
orientar a vida cotidiana, na forma de sentido de pensado, em paralelo com a cura, como antecipação
vida, desde que se entenda que o sentido é uma em algum sentido (futuro), a partir de um contexto
possibilidade valorizada. valorativo (passado), e relação com os demais entes
A frustração é uma repercussão psicológica de (presente), conforme o sentido projetado.
algo que alguém – possivelmente – é. Se tenho o
desejo e a expectativa de que algo se realize e ajo,
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
329 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 323-330, 2019
Marcelo Vial Roehe
¹ Em citações, aparece traduzido como “presença" e “ser-aí”; no artigo, é entendido como sinônimo para o modo de ser humano.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 323-330, 2019 330
Tradução ...........................................
10.18065/RAG.2019v25n3.12
DAN ZAHAVI **
Resumo: A questão de saber se uma investigação e análise propriamente fenomenológicas requerem a performance
da epoché e a redução não tem sido apenas discutida dentro da filosofia fenomenológica. É também uma questão que
tem sido intensamente debatida dentro da pesquisa qualitativa. Amedeo Giorgi, em particular, insistiu que nenhuma
pesquisa científica pode reivindicar um status fenomenológico a menos que seja apoiada por algum uso da epoché e
redução. Giorgi fundamenta parcialmente tal afirmação em idéias encontradas nos escritos de Husserl sobre psicologia
fenomenológica. No presente artigo examino as ideias de Husserl e argumento que enquanto a epoché e a redução são
cruciais para a fenomenologia transcendental, é algo muito mais questionável se elas também são relevantes para uma
aplicação não-filosófica da fenomenologia.
Palavras-chave: Fenomenologia; Pesquisa Qualitativa; Psicologia Fenomenológica; Fenomenologia Aplicada; Epo-
ché; Redução; Husserl; Giorgi
Abstract: The question of whether a proper phenomenological investigation and analysis requires one to perform the
epoché and the reduction has not only been discussed within phenomenological philosophy. It is also very much a ques-
tion that has been hotly debated within qualitative research. Amedeo Giorgi, in particular, has insisted that no scientific
research can claim phenomenological status unless it is supported by some use of the epoché and reduction. Giorgi
partially bases this claim on ideas found in Husserl’s writings on phenomenological psychology. In the present paper, I
discuss Husserl’s ideas and argue that while the epoché and the reduction are crucial for transcendental phenomenology,
it is much more questionable whether they are also relevant for a non-philosophical application of phenomenology.
Keywords: Phenomenology, Qualitative research, Phenomenological psychology, Applied phenomenology, Epoché,
Reduction, Husserl, Giorgi.
Resumen: La cuestión de si una investigación y análisis fenomenológico adecuado requiere que uno realice la época y
la reducción no solo se ha discutido dentro de la filosofía fenomenológica. También es una pregunta que se ha debatido
acaloradamente dentro de la investigación cualitativa. Amedeo Giorgi, en particular, ha insistido en que ninguna inves-
tigación científica puede reclamar un estado fenomenológico a menos que esté respaldada por algún uso de la época y
la reducción. Giorgi basa parcialmente esta afirmación en ideas encontradas en los escritos de Husserl sobre psicología
fenomenológica. En el presente artículo, discuto las ideas de Husserl y sostengo que si bien la época y la reducción son
cruciales para la fenomenología trascendental, es mucho más cuestionable si también son relevantes para una aplicación
no filosófica de la fenomenología.
Palabras-Clave: Fenomenología, Investigación Cualitativa, Psicología Fenomenológica, Fenomenología Aplicada,
Epoché, Reducción, Husserl, Giorgi.
* Publicado originalmente na revista Continental Philosophy Review (ISSN 1573-1103), em 09 de Abril de 2019. DOI: https://doi.
org/10.1007/s11007-019-09463-y . Licensed under the CC BY 4.0 license: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/. Agradecemos à edi-
toria, a permissão para tradução.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019 332
Fenomenologia Aplicada: Porque é seguro ignorar a epoché
Esse fato levanta questões importantes acerca atitude da redução fenomenológica, o que
da relação entre fenomenologia filosófica e fenome- significa que ele precisa resistir em postular
nologia aplicada; questões que revivem desacordos como existente qualquer objeto ou estado de
clássicos a respeito da própria natureza da pesquisa coisas que estão presentes a ele. O pesquisador
fenomenológica. ainda considera o que é dado a ele, mas ele o
De acordo com uma visão difundida, a feno- trata como algo que está presente à sua cons-
menologia deveria, em última instância, não ser ciência, e ele evita dizer que isso é na verdade
definida em termos de sua temática, mas sim em o modo pelo qual isso se apresenta a ele (Gior-
termos de seu método característico. Entretanto, gi, 2012, p. 4).
sempre foi um tema de controvérsia como esse mé-
todo deveria ser em seguida caracterizado. Husserl Ao defender a posição de que a pesquisa cien-
é bastante conhecido por ter argumentado que a tífica não pode afirmar um status fenomenológico a
epoché e a redução transcendental são essenciais à não ser que seja apoiada por algum uso da redução
fenomenologia, e insistido que aqueles que consi- (Giorgi, 2010), Giorgi reconhece a diferença entre
deram ambas como irrelevantes poderiam utilizar o filosofia e ciência. O tipo de redução fenomenológi-
termo “fenomenologia”, porém não terão uma com- ca que deveria ser utilizada por psicólogos é o que
preensão adequada do que ela realmente é. Como Giorgi chama de redução psicológica fenomenológi-
é também bastante sabido, entretanto essa não é ca (Giorgi 2012), e não a redução fenomenológico-
uma visão predominante entre fenomenólogos. É -transcendental, a qual foca na consciência como
incontestável que nem Heidegger ou Merleau-Pon- tal ao invés da consciência humana.
ty fizeram muitas referências à epoché e a redução, Meu foco a seguir será nessas afirmações, e na
embora seja contestado se isso deve-se à sua rejei- afirmação de que aqueles que procuram praticar
ção da metodologia de Husserl ou por simplesmen- fenomenologia aplicada, i.e., aqueles que buscam
te tomarem isso como garantido (Zahavi, 2017). usar ideias fenomenológicas em um contexto não-
Entretanto, é possível muito antes encontrar feno- -filosófico, tem de utilizar a epoché e a redução se
menólogos que se mostravam inequívocos em sua seu trabalho é para ser qualificado como fenome-
rejeição à virada transcendental de Husserl. Os pri- nológico1.
meiros seguidores realistas de Husserl viram o re-
torno fenomenológico às “coisas mesmas” como um
afastamento da (o foco Kantiano na) subjetividade. 1. A Redução Fenomenológico-Transcendental
Para eles, o método da fenomenologia envolvia um
interesse com as estruturas essenciais, uma tenta- A sugestão de que há algo como uma redução
tiva de obter uma “intuição pura e desobscurecida psicológico fenomenológica (ou psicológico-feno-
das essências” (Reinach, 1968), e mesmo que eles menológica) pode a princípio soar estranho2. Não
tenham consequentemente afirmado que o método teria Husserl introduzido a epoché e a redução
fenomenológico envolvia uma forma de variação e precisamente tentando destacar a natureza filosó-
redução eidética, em que se desconsidera o hic et fica distinta da fenomenologia, e para tornar claro
nunc dos objetos de modo a focar em suas estrutu- o porquê da fenomenologia não ser uma forma de
ras essenciais (Scheler, 1973), eles tiveram pouca psicologia descritiva, apesar de sua decisão logo
paciência com a insistência de Husserl na epoché e arrependida de utilizar essa etiqueta para seu pro-
na redução transcendental. jeto nas Investigações Lógicas? Para recapitular ra-
A questão de saber se uma investigação e aná- pidamente a linha argumentativa de Husserl, em
lise fenomenológicas apropriadas requerem a per- sua visão, uma série de questões epistemológicas e
formance da epoché e da redução não é, entretanto, metafísicas fundamentais não podem ser investiga-
apenas exclusiva da filosofia. É possível encontrar das de um modo suficientemente radical enquan-
uma discussão semelhante dentro da fenomenolo- to nós apenas vivemos sem problemas na atitude
gia aplicada, particularmente dentro da pesquisa natural. Na atitude natural, nós simplesmente to-
qualitativa. Enquanto a Análise Interpretativa Feno- mamos como certo que o mundo que encontramos
menológica de Jonathan Smith não recorre à epoché na experiência existe independentemente de nós.
e redução, Max van Manen tem insistido que o “mé-
1 Ao avaliar essas afirmações, terei de entrar em algum nível de detalhe
todo básico da análise fenomenológica consiste na com o trabalho de Husserl. Claramente isso não quer sugerir que Husserl é
epoché e na redução” (2017, 2018), a qual ele então, o único filósofo que pesquisadores qualitativos deveriam acessar e dedicar
de forma um tanto enigmática, continua a descrever seu tempo, embora a posição de Giorgi possa ser interpretada como acar-
como um abrir-se (epoché) e um fechar-se (redução) retando exatamente isso. Colocando de outra forma, pesquisadores que fo-
ram primariamente atraídos e inspirados pelo trabalho de Heidegger, Sartre,
(Van Manen, 2017). A referência mais persistente à Merleau-Ponty ou Levinas irão sem dúvida ter seus próprios problemas com
epoché e à redução pode, entretanto, ser encontrada as afirmações de Giorgi.
em Amedeo Giorgi, que por muitos anos tem insis- 2 Uma nota sobre terminologia é necessária. Husserl não é sempre con-
tido que uma adaptação do método fenomenológico sistente em sua escolha de termos. Embora ele ocasionalmente fale de uma
às ciências humanas requer essencialmente que o redução fenomenológico-psicológica (Husserl 1997, p.128, p.235), ele mais
frequentemente chama isso de redução psicológico-fenomenológica (Hus-
pesquisador “coloque entre parênteses ou separe-se serl 1997, p.112, p.126); porém, por vezes, simplesmente fala da redução
Tradução
de todas as teorias ou conhecimentos prévios acerca psicológica (Husserl 1977, p.179, p.128). Husserl também utiliza o termo
do fenômeno” e “retenha consentimento existencial redução fenomenológica e redução transcendental de forma intercambiável
do fenômeno” (Giorgi, 1994). Como Giorgi explica, (Husserl 2019, p.284), e frequentemente fala da redução fenomenológica-
-transcendental (Husserl 1969, p.258; 2019, p.331). Seria um grande erro
é essencial que o pesquisador assuma a sugerir – baseado no uso desses diferentes termos – que Husserl estava ope-
rando com seis diferentes reduções.
333 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019
Dan Zahavi
Para Husserl, esse realismo básico e natural não ciais para uma aplicação não-filosófica da fenome-
pode simplesmente ser pressuposto se queremos nologia?
tomar seriamente a filosofia. Mais propriamente, Giorgi, ao argumentar do modo que o faz, en-
ele deve ser criticamente examinado. Mas, para tretanto, está explicitamente recorrendo ao próprio
realizar isso, nós precisamos primeiramente nos trabalho de Husserl. Seu ponto de referência é, de
afastar de nossa imersão ingênua e não-examina- forma não surpreendente, principalmente os escri-
da no mundo e suspender nossa crença automática tos de Husserl sobre psicologia fenomenológica
na existência independente-de- mente do mundo3.
Mais especificamente, Husserl fala de como a epo-
ché foca e suspende a tese geral (Generalthesis) que 2. A Psicologia Fenomenológica de Husserl
pertence essencialmente à atitude natural (Husserl,
1982, p.61). Ao performar a epoché, ao primeira- Em conferências e textos como a Psicologia
mente colocar entre parênteses ou suspender nos- Fenomenológica de 1925, o artigo da Encyclopae-
sa crença tácita na existência absoluta do mundo, dia Britannica de 1927, as Conferências de Amster-
ao não mais tomar simplesmente a realidade como dam de 1928, e A Crise das Ciências Européias e
ponto de partida inquestionado, nós começamos a a Fenomenologia Transcendental de 1936, Husserl
prestar atenção em como e de que forma quaisquer insistiu que suas análises fenomenológicas pode-
objetos mundanos são dados para nós. Mas ao fa- riam prover um sólido fundamento eidético para a
zê-lo, ao analisar como e de que forma quaisquer Psicologia. Esse é particularmente o caso quando a
objetos se apresentam a nós, nós também acabamos psicologia enfrenta o fato de que é uma ciência da
por descobrir os atos intencionais e as estruturas consciência, e não simplesmente – tal behavioristas
experienciais em relação aos quais qualquer objeto como Watson, afirmariam – “uma ramificação ex-
que apareça precisa necessariamente ser entendido. perimental puramente objetiva da ciência natural”,
Nós acabamos por nos dar conta de que a realida- cujo “objetivo teórico é a predição e controle do
de é sempre revelada e examinada a partir de uma comportamento” (Watson, 1913, p.158). De modo a
ou outra perspectiva, e a partir disso acabamos por desenvolver-se de forma rigorosamente científica, a
apreciar nossas próprias realizações, contribuições psicologia necessita de uma compreensão adequa-
e a intencionalidade que está em jogo para que ob- da da vida experiencial. Mas isso é exatamente o
jetos apareçam do modo como o fazem e com a vali- que a fenomenologia pode oferecer. A fenomeno-
dade e o sentido que possuem. Quando Husserl fala logia nos faz retornar aos fenômenos experienciais
da redução transcendental, o que tem em mente é eles mesmos, ao invés de contentar-se com meras
precisamente a análise sistemática dessa correlação especulações e teorias acerca de sua natureza. Ain-
entre subjetividade e mundo. Essa é uma análise da, a fenomenologia pode fornecer à psicologia
que direciona da esfera natural de volta (re-ducere) esclarecimentos fundamentais de seus conceitos
ao seu fundamento transcendental (Husserl, 1960, básicos (atenção, intenção, percepção, conteúdo,
p.21). Ambas a epoché e a redução podem conse- etc.). Mais especificamente, Husserl argumenta que
quentemente serem vistas como elementos em uma o primeiro passo de uma psicologia cientificamente
reflexão filosófica, na qual o propósito é de nos rigorosa é o de obter descrições detalhadas de sua
liberar de nosso dogmatismo natural e nos tornar própria temática principal. Mas se cabe à psicologia
conscientes de nossas próprias realizações consti- descrever as estruturas intencionais da consciên-
tutivas, nos fazer perceber até que ponto consciên- cia, ela tem, como Husserl argumenta na Crise, que
cia, verdade e ser estão essencialmente interligados utilizar um método específico; ela precisa aplicar
(Husserl, 1982). Desse modo, de acordo com Hus- uma epoché universal de validade (Geltungsepo-
serl, iremos eventualmente ser capazes de alcançar ché) e efetuar o que ele chama de redução psico-
a nossa principal, se não a única, questão enquanto lógico-fenomenológica (Husserl, 1970, p.239). Em
fenomenólogos, a saber a de transformar “a obvie- suma, para que a psicologia tematize a consciência
dade universal do ser no mundo – para ele [o feno- intencional em sua pureza essencial, ela precisa
menólogo] o maior de todos os enigmas – em algo empregar a epoché psicológica e a redução (Hus-
inteligível” (Husserl, 1970, p.180). serl, 1970, p.244). Afirmações como essa também
Mas se essa é uma interpretação correta da são repetidas por Husserl em conferências anterio-
epoché e da redução, se ambas estão intimamente res. No artigo da Encyclopaedia Britannica, Husserl
conectadas ao empreendimento transcendental de fala de como uma psicologia pura, uma psicologia
Husserl, e se ambas são introduzidas de modo a efe- que busca capturar o essencial do mental, precisa
tuar uma suspensão geral de nossa atitude natural, necessariamente aplicar alguma versão da redução
que permitirá um questionamento filosófico radical e da epoché (Husserl, 1997, p.91). Por vezes, Hus-
e uma apreciação da extensão pela qual a objetivi- serl fala até mesmo da epoché e redução em questão
dade é uma realização constitutiva, não é então um envolvendo uma colocação de parênteses em pos-
grande erro sugerir que elas são igualmente essen- tulações transcendentais, e argumenta que como
3 (Nota do Tradutor). O termo mind-independent é de difí- resultado da aplicação desses parênteses, se estaria
cil tradução para o português. Bastante utilizado na literatura em posição de descobrir a intencionalidade intrín-
fenomenológica contemporânea em língua inglesa, refere-se
Tradução
àquela consideração – realista – de que há um mundo que seca do ato mental, uma intencionalidade que está
existe mesmo sem ter uma consciência que o pense. Tal pro- precisamente preservada mesmo que o objeto não
posta é, para a fenomenologia, errônea, uma vez que existe exista (Husserl, 1997, p.91, p.246). Husserl também
uma necessária constituição do mundo a partir da intenciona-
lidade da consciência.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019 334
Fenomenologia Aplicada: Porque é seguro ignorar a epoché
fala em como o psicólogo fenomenológico4 deveria qualquer coisa de sua consideração. Na verdade,
suspender seus preconceitos teóricos originados de ao suspender ou neutralizar uma certa atitude dog-
outras disciplinas científicas de modo a focar no mática em direção à realidade, nós deveríamos pre-
que é dado, e também que seu objetivo é o de obter cisamente entender melhor essa mesma atitude e
insights sobre a correlação essencial entre ato e ob- vir a apreciar os processos que em primeiro lugar
jeto (Husserl, 1997, p.218-219, p.223, p.230). a possibilitaram. Não é coincidência que Husserl
Passagens como essas parecem corroborar a ocasionalmente compara a performance da epoché
posição de Giorgi. Deixe-nos porém examinar mais com a transição de uma vida bidimensional a uma
de perto os argumentos de Husserl. Como veremos, tridimensional (Husserl, 1970, p.118). Como ele es-
Husserl persegue em seus textos duas linhas de ra- creve na Crise:
ciocínio bastante diferentes. De um lado, quando
Husserl fala de como a psicologia precisa empre- O que deve ser mostrado em particular e acima
gar a epoché e a redução para atingir a sua temática de tudo é que através da epoché é aberto ao fi-
principal, ele também surpreendentemente com- lósofo um novo modo de experienciar, pensar
para isso com o modo pelo qual um físico também e teorizar; aqui, situado acima de seu ser na-
necessita empregar a epoché para alcançar a sua tural e acima do mundo natural, ele não perde
temática principal. Toda ciência precisa colocar en- nada de seu ser e de suas verdades objetivas
tre parênteses temas alheios se busca focar em seu (Husserl, 1970, p.152).
tópico específico; toda ciência precisa colocar fora
de circuito aqueles fenômenos que são irrelevantes Por conseguinte, não deveria ser surpresa que
para o tópico em questão. Assim como os físicos Husserl argumente que a redução psicológico-feno-
precisam empregar uma epoché universal para es- menológica e a epoché são inautênticas e não-ge-
tudar o corpóreo abstraído de todo o resto, também nuínas (Husserl 1997, 128). Agora, há razões adicio-
o psicólogo precisa, comparavelmente, adotar uma nais óbvias bastante razoáveis para Husserl chegar
“atitude abstrativa” para poder focar na dimensão a esse veredito. A psicologia pura, ou psicologia
psíquica (Husserl, 1970, p.230-231, p.239). puramente descritiva, ou psicologia fenomenológi-
É possível encontrar um tipo de considera- ca (diferentes noções convergentes) são todas ciên-
ção similar no artigo da Encyclopaedia Britannica, cias positivas mundanas diretamente habitando
onde Husserl observa que o tema da psicologia é dentro da atitude natural. Mesmo que o psicólogo
o ser psíquico da realidade animal. As realidades fenomenológico efetue algum tipo de epoché vis-à-
animais são compostas de dois níveis, o primeiro -vis com o mundo e que se abstenha de postulações
nível sendo aquele da realidade física espaço-tem- existenciais, tanto a vida intencional que ele está
poral, o segundo aquele da realidade mental. Con- investigando quanto os fenômenos psíquicos que
sequentemente, as realidades animais admitem di- ele está descrevendo permanecem fatos mundanos
ferentes tipos de investigação. Elas admitem uma no que pertencem a animais e seres humanos que
atitude “sistematicamente abstrativa” (abstraktive habitam um mundo pré-existente, tido como certo
Erfahrungseinstellung) que apenas foca aquilo que (Husserl, 1997, p.128). Nessa medida, o psicólogo
nelas é puramente res extensa. Husserl fala desse fenomenológico precisamente não é um filósofo,
foco como “redução ao puramente físico”. Entretan- mas um cientista positivo que deixa algumas ques-
to, em adição, elas também permitem uma “atitude tões fundamentais não-questionadas. Claramente,
abstrativa diferentemente focada” que nos permi- essa é precisamente a razão porque a epoché e a
te focar no “psíquico em sua essencialidade pura redução psicológico-fenomenológicas precisam ser
e apropriada” (Husserl, 1997, p.87). Colocando de nitidamente distintas de suas contrapartes fenome-
outra forma, apenas uma somatologia física irá ex- nológico-transcendentais.
plorar animais e seres humanos com um foco me- Mas é aí onde emerge a segunda entrelaçante
todicamente sistemático em apenas um aspecto de linha de raciocínio de Husserl. Em algumas oca-
seu ser, o aspecto organísmico animado, e então a siões, ele fala de como a redução psicológica é o
psicologia pura irá explorá-los com um foco igual- primeiro passo preliminar, e como a redução trans-
mente sistemático em seu outro aspecto, o aspecto cendental pode então ser considerada um segundo
puramente psíquico (Husserl, 1997, p.127). Para o passo purificador (Husserl, 1997, p.172), cuja efe-
psicólogo, “a redução sistemática psicológico-feno- tuação radical do projeto de psicologia descritiva
menológica, com sua epoché concernente ao mun- irá por necessidade motivar. Como ele coloca, é
do existente, é meramente um meio para reduzir a possível começar sem nenhum interesse em filoso-
psique humana e animal à sua essência pura e apro- fia transcendental e estar meramente preocupado
priada” (Husserl, 1997, p.128). em estabelecer uma psicologia estritamente cientí-
Se esses comentários são tomados de forma li- fica. Se tal tarefa é buscada de forma radical, e se
teral, a epoché e a redução psicológicas possuem as estruturas da consciência são investigadas com
quase nada em comum com o modo como a epo- suficiente precisão e cuidado, será eventualmente
ché e a redução fenomenológicas são normalmen- necessário, de modo a dar o passo completo, efe-
te compreendidas na teorização fenomenológica. tuar a virada transcendental, e dessa forma atingir a
Tradução
335 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019
Dan Zahavi
fenomenológica (Husserl, 1997, p.174, p.251). Eu diferente de ambas a psicologia naturalista e a feno-
logo retornarei a essa motivação; mas, por enquan- menologia transcendental, deve efetuar passos que,
to, é apenas importante entender que realmente se executados corretamente, irão levá-la a ser absor-
podem haver razões para considerar a epoché e a vida pela fenomenologia transcendental.
redução psicológico-fenomenológicas como sendo
mais alinhadas à epoché e à redução fenomenológi-
ca genuínas do que, digamos, a epoché e a redução 3 A purificação transcendental
supostamente performadas pelo físico ou o mate-
mático. Há, porém, um alto custo por esta próxima Entretanto, Husserl mesmo em algumas pou-
afinidade. Aqui está o que Husserl escreve na Crise: cas ocasiões sugere uma saída desse impasse. Ao
final da Crise, por exemplo, Husserl escreve que o
Assim nós entendemos que na verdade uma psicólogo fenomenológico poderia retornar à atitu-
aliança interna indissolúvel é obtida entre a de natural após ter performado a virada transcen-
psicologia e a filosofia transcendental. Mas dental, e que ele posteriormente poderia praticar
dessa perspectiva nós também podemos an- uma psicologia transcendentalmente informada ou
tever que deve haver um caminho através do uma psicologia positiva enriquecida (Husserl 1970,
qual uma psicologia concretamente executada 258). Uma ideia similar pode ser encontrada nas
poderia levar a uma filosofia transcendental Conferências de Amsterdam, onde Husserl argu-
(Husserl, 1970, p.206). menta que, após ter sido primeiramente estabele-
*** cida uma firme fundação transcendental, é possível
Portanto, vemos com surpresa, penso, que no deslocar-se de volta à atitude natural e então rein-
desenvolvimento puro da ideia de psicologia des- terpretar tudo que havia sido estabelecido trans-
critiva, que busca trazer à expressão o que é essen- cendentalmente enquanto estruturas psicológicas
cialmente próprio às almas, ocorre necessariamente (Husserl 1997, 248).
uma transformação da epoché e redução fenome- Em um perspicaz artigo de 1991, David e
nológico-psicológica em transcendental (Husserl Cosgrove sublinharam essas sugestões de Husserl
1970, 256). e buscaram desenvolvê-las ainda mais. Como eles
Em última análise, a epoché e redução psico- observam, se seguirmos Husserl, deveríamos reco-
lógico-fenomenológicas não constituem um meio nhecer que a psicologia fenomenológica deve em
termo estável entre a ciência naturalística e a fe- última análise ser situada dentro do framework da
nomenologia transcendental. Esse é o motivo pelo filosofia transcendental. Ela tem de ser estabelecida
qual Husserl eventualmente argumenta que não há sobre a base de um esclarecimento transcendental
algo como uma psicologia pura não-transcenden- fundamental, enquanto disciplina radicalmente
tal, e que não há sentido em tratar fenomenologia reformada e fundamentalmente remodelada que
e psicologia transcendental de forma separada. Nas deixou de lado sua ingenuidade transcendental
Meditações Cartesianas, ele escreve que a psicolo- (Davidson e Cosgrove 1991, 88). A principal dife-
gia enquanto estudo da consciência contém uma rença entre ela mesma e a própria fenomenologia
dimensão transcendental e portanto é no fim parte transcendental é simplesmente que a primeira não
da filosofia transcendental (Husserl 1960, 147). Na permanece no solo transcendental, mas retorna à
Crise, Husserl escreve que “a psicologia pura em si esfera mundana constituída (Davidson e Cosgrove
é idêntica à filosofia transcendental enquanto ciên- 1991, 88). Mas como uma psicologia que vem após
cia da subjetividade transcendental” (1970, 258), e a redução transcendental difere de uma executada
que “psicologia pura é e pode ser nada além do que antes dela? A que tipo de psicologia isso equiva-
foi buscado anteriormente pela ponto de vista filo- le? Ao esmiuçar mais detalhadamente como essa
sófico enquanto uma filosofia absolutamente fun- psicologia transcendentalmente purificada aborda
damentada, que pode realizar a si mesma apenas seu tema principal, Davidson & Cosgrove argumen-
enquanto filosofia fenomenológica transcendental” tam que ela está interessada na relação intencional/
(1970, 259). motivacional entre pessoa e mundo, e que ela co-
Até agora, ambas as estratégias argumentativas meça com uma consideração em primeira-pessoa e
buscadas por Husserl deixam um tanto questioná- subjetiva das experiências relevantes. Em contraste
vel se a epoché e a redução são realmente essen- com outras abordagens que podem compartilhar tal
ciais à psicologia fenomenológica. Em uma primei- interesse, porém apenas de forma a obter uma me-
ra leitura, a epoché e redução psicológicas possuem lhor compreensão acerca do explanandum que será
pouco em comum com a redução e epoché feno- causalmente explicado pelo apelo a diferentes me-
menológicas exceto parte do nome. Em uma segun- canismos subjacentes, a psicologia fenomenológica
da leitura, elas possuem muito em comum, porém procede de forma diferente. Ela rejeita o framework
esse fato em última análise debilita a própria inde- naturalístico de acordo com o qual experiências são
pendência da psicologia fenomenológica, a qual se objetos naturais ocasionados por causas físicas, e
buscada e desenvolvida de forma consistente será em vez disso mantém um foco exclusivo no sujeito
necessariamente transformada em fenomenologia psicológico e em suas experiências no mundo-da-
Tradução
transcendental. Colocando em outras palavras, há -vida (Davidson e Cosgrove 1991, 92). Como eles
algo intrinsecamente auto-debilitador na propos- escrevem: “Ao invés de tentar explicar sua expe-
ta de que a psicologia fenomenológica, entendida riência com base em causas subjacentes, nós ten-
como um distinto método de pesquisa qualitativa tamos analisar seu sentido e estrutura a partir da
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019 336
Fenomenologia Aplicada: Porque é seguro ignorar a epoché
perspectiva do sujeito enquanto foi vivido por ele” retornar ao paradigma naturalista mainstream, com
(Davidson e Cosgrove 1991, 93). Para Davidson e seu foco em explicações causais e medições quanti-
Cosgrove, psicologia fenomenológica transcenden- tativas (Morley 2010, 223-224).
talmente purificada é consequentemente uma psi- Se essa avaliação fosse correta, iria obviamen-
cologia que considera os significados e estruturas te corroborar com a posição e abordagem funda-
das experiências do sujeito enquanto surgindo de mentais de Giorgi. Entretanto, é mesmo verdadeiro
sua própria contínua atividade constitutiva, ao in- que você não pode conduzir pesquisa qualitativa a
vés de serem meros efeitos de causas naturais. Eles não ser que você tenha primeiramente passado por
também argumentam que, como resultado de ter uma purificação transcendental e a não ser que sua
primeiro passado pela redução transcendental, o pesquisa seja continuamente apoiada por um fra-
psicólogo fenomenológico está apto a deixar para mework filosófico-transcendental? Suspeito que a
trás a “atitude natural” das experiências cotidia- maioria dos pesquisadores qualitativos iriam dis-
nas no mundo-da-vida em favor de uma “atitude cordar e simplesmente continuar com suas próprias
pessoal” da ciência humana (Davidson e Cosgrove pesquisas sem sentirem compulsão alguma em co-
1991, 93). meçar a ler Husserl. E o que dizer sobre aqueles
Esta última observação deveria, entretanto, que desejam conduzir uma pesquisa fenomenoló-
nos fazer refletir. Nós realmente precisamos per- gica? É razoável insistir que qualquer um que de-
formar a redução transcendental de modo a sermos seje conduzir pesquisa em fenomenologia aplicada,
capazes de ganhar acesso à essa atitude pessoal? qualquer um que deseje utilizar a fenomenologia
E a última realmente envolve um afastamento da em pesquisa educacional, psicologia experimen-
atitude natural? Ambas as afirmações revelam uma tal, pesquisa em enfermagem, ciências do esporte,
confusão fundamental. A atitude pessoal (ou perso- antropologia, sociologia, estudos literários, etc. te-
nalista) não é oposta à atitude natural, mas à atitude nham que primeiramente aprender a suspender a
naturalista. Para Husserl, a segunda atitude é uma tese geral e várias outras pressuposições metafísi-
transformação teorética da atitude personalista, cas arraigadas sobre um status de um mundo in-
que é a atitude em que nós normalmente vivemos, dependente da mente e “resistir de supor enquanto
a atitude de nossa vida cotidiana (Husserl 1989, existente qualquer objeto ou estado de coisas que
240, 252). Em resumo, a atitude pessoal não ape- se façam presentes” (Giorgi 2012, 4)? Se profissio-
nas está situada dentro da atitude natural, mas ela nais de saúde desejam utilizar ideias fenomenológi-
também é a atitude que é nosso ponto de partida, cas em sua prática clínica, estariam eles proibidos
ao invés de algo que precisamos alcançar através de empregar tais noções como mundo-da-vida, in-
de um procedimento filosófico complicado. Mas se tencionalidade, empatia, experiência pré-reflexiva
a psicologia fenomenológica não precisa ser trans- e corpo vivido de modo a entender como diferen-
cendentalmente purificada para permanecer na ati- tes dimensões da existência humana são afetadas
tude natural, requer ela então de todo a epoché e na patologia, doença ou circunstâncias difíceis da
a redução fenomenológicas? Como havíamos visto, vida, a não ser que primeiro dominem os meandros
Davidson & Cosgrove argumentam que o psicólogo teóricos da epoché e da redução? Não apenas penso
fenomenológico precisa manter um foco exclusivo que tais afirmações não possuem justificativa teóri-
nas experiências dos sujeitos, bem como buscar ca, como também tem se mostrado contra-produti-
analisar seu sentido a partir dessa perspectiva pes- vas. Ao invés de deixar pesquisadores qualitativos
soal, mas novamente, não é isso o que pesquisa- engajarem com os fenômenos eles-mesmos, têm os
dores qualitativos tipicamente buscam fazer? Não desorientado por fazê-los preocuparem-se acerca de
estão eles de forma geral considerando a experiên- meta-reflexões metodológicas e gerado uma grande
cia humana um tópico digno de vasta exploração? quantidade de publicações, nas quais protagonistas
Não buscam eles tipicamente tomar de forma séria e antagonistas igualmente debatem-se com esses
afirmações e preocupações experienciais de seus conceitos complexos, e tipicamente, no fim, aca-
sujeitos participantes? E não conseguem fazer isso bam interpretando ambos de forma errônea.
tranquilamente sem ter de preocuparem-se com a Para alguns exemplos, considere inicialmente
epoché e a redução fenomenológicas? as interpretações de Langdridge e Paley. Enquanto
Isso é precisamente o que Morley nega em um Langdridge afirma que Husserl, através do processo
artigo de 2010. Morley basicamente concorda com de colocar entre parênteses, buscou “transcender
a análise de Davidson & Cosgrove e argumenta que [...] a correlação noética-noemática e tomar uma
o psicólogo fenomenológico deve primeiramente “visão de Deus” sobre a experiência” (Langdridge
efetuar a redução transcendental e alcançar uma 2008, 1129), Paley escreve que Husserl, através da
atitude transcendental hiper-reflexiva antes que ele redução fenomenológica tentou “escapar da ex-
ou ela possa retornar à dimensão psicológica e apli- periência (em direção à dimensão da consciência
car a redução psicológica (Morley 2010, 228-229). pura)” (Paley 2013, 148). Qualquer um familiariza-
Porém, Morley também defende que, a não ser que do com o trabalho de Husserl saberá que ambas in-
o pesquisador qualitativo perceba que objetividade terpretações são interpretações errôneas. Para uma
é algo que é mantido por nós, e a não ser que ele li- leitura mais solidária, considere van Deursen, que
Tradução
berte a si mesmo da convicção firme e arraigada de em um artigo de 2015 argumenta que Husserl em-
que o mundo existe independentemente de nossa pregou três reduções separadas (van Deursen 2015,
consciência dele, ele não poderá manter seu com- 60): a redução fenomenológica, a redução eidética,
prometimento com a pesquisa qualitativa, mas irá e a redução transcendental. Enquanto a primeira,
337 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019
Dan Zahavi
segundo van Deursen, foca nas noeses e nos proces- plo, é apenas ao performar a epoché que nossa pró-
sos de consciência e a segunda foca nos noemata e pria vida consciente pode tornar-se um tema ade-
objetos de consciência, o foco da redução transcen- quado de investigação. Nossa preocupação natural
dental é no sujeito da consciência e na natureza do e habitual é com o mundo não-psíquico. Quando
ego (van Deursen 2015, 60-65). A preocupação de vivemos na atitude natural, somos inevitavelmente
van Deursen refere-se bastante ao uso da fenome- absorvidos por e preocupados com objetos e even-
nologia na prática terapêutica, e é possível que esse tos mundanos, com o o quê da experiência. Ao per-
modo de discutir o procedimento fenomenológico formar a epoché, ao colocar entre parênteses nossa
pode ser valioso em um contexto terapêutico. O crença implícita na existência de um mundo inde-
que é bastante seguro, entretanto, é que a descrição pendente-da-mente, podemos finalmente reorientar
de van Deurzen não possui fundamento algum nos nossa atenção em direção ao como da experiência,
escritos de Husserl. Não apenas Husserl não dis- deste modo revelando aspectos e dimensões das
tingue a redução fenomenológica e transcendental nossas vidas subjetivas que nós normalmente negli-
(vide nota 1 abaixo), porém, ainda mais importante, genciamos e ignoramos (Petitmengin et al. 2018, 2).
sugerir que a redução fenomenológica foca apenas De acordo com uma interpretação diferente, o
nas noeses e não no noemata; afirmar que a redução objetivo da epoché é suspender nossas várias pres-
transcendental foca apenas no sujeito e no ego, e suposições teóricas. O que temos que colocar entre
não nas noeses e noemata; e insistir que a redução parênteses são nossas ideias preconcebidas, nossos
eidética busca apenas descobrir as características hábitos de pensamentos, nossos preconceitos e su-
essenciais e invariantes dos objetos da consciência posições teóricas. Ao fazer isso, ao abandonar nossa
e não os atos de consciência, são todas afirmações bagagem teórica, podemos realizar uma virada sem
que fundamentalmente falham em respeitar e re- preconceitos em direção ao objeto e chegar à cena
conhecer o correlacionismo de Husserl, o fato de com uma mente aberta, de modo a deixar os obje-
que o objetivo de sua análise fenomenológica não tos revelarem a si mesmos assim como são (Finlay
é investigar ou o objeto ou o sujeito, ou o mundo 2008, 1-2). Finlay também fala em como a atitude
ou a mente, mas investigar sua própria intersecção, fenomenológica (envolvendo a epoché e a redução)
inter-relação ou correlação (Zahavi, 2017). contribuem para uma abertura empática ao mundo
A referência à redução eidética apenas com- que nos permite entrar em contato com os fenôme-
plica mais as questões. Finlay, por exemplo, não nos eles-mesmos (Finlay 2008, 29).
apenas têm argumentado que precisamos colocar Ambas as interpretações são bastante difundi-
entre parênteses o mundo natural se desejamos das, e ambas podem ser tomadas para corroborar a
compreender as estruturas essenciais do fenômeno ideia de que qualquer um interessado em fenome-
(Finlay 2008, 2, 4), mas também tem apresentado nologia aplicada deve utilizar a epoché e a redu-
a redução eidética como o passo final do método ção. Porém, ambas as interpretações estão erradas.
fenomenológico, um passo que pressupõe a perfor- A afirmação de que precisamos da epoché de modo
mance prévia da redução transcendental (Finlay a observar nossa experiência interna é incorreta
2008, 5, 7). É, entretanto, difícil ver porque isso não apenas por sugerir que a atitude fenomenoló-
seria verdadeiro. A tentativa de distinguir carac- gica deveria envolver tal reorientação em direção
terísticas essenciais daquelas que são particula- à experiência interna, mas também por propor que
res, acidentais ou incidentais, é fundamental para algo como a epoché deveria ser necessária para tal
muitos dos empreendimentos científicos. O físico, reorientação. A afirmação de que nós precisamos
o químico, o biólogo e o economista estão todos, da epoché para colocar entre parênteses quaisquer
de diferentes modos, tentando obter insights fun- crenças, opiniões ou noções preconcebidas sobre o
damentais, insights que capturem o essencial ao fenômeno que está sendo pesquisado é igualmente
invés daquelas características acidentais do tópico incorreta, no que ela combina a contribuição espe-
sob investigação. Assumir que eles podem fazê-lo cífica da epoché (suspender a tese geral da atitude
apenas após terem performado a epoché e a redução natural) com uma rejeição mais geral da especula-
transcendental faz pouco sentido. ção e da explicação, em favor da descrição. Porém,
é errôneo ver essa preocupação com a descrição
(mesmo as descrições cuidadosas de estados psico-
4 O foco descritivo lógicos) como algo que especificamente demanda a
introdução e o uso da redução e epoché fenomeno-
A este ponto, pode ser tentador simplesmente lógicas. Não apenas Brentano já em sua Psicologia
mudar de estratégia argumentativa. Talvez o melhor de um Ponto de Vista Empírico defendeu a neces-
argumento de porquê deveriam psicólogos fenome- sidade de uma psicologia descritiva e de um estu-
nológicos, ou qualquer outra pessoa interessada em do cuidadoso da experiência interna, mas quando
uma aplicação não-filosófica da fenomenologia em- Husserl nas Investigações Lógicas escreveu “Nós ab-
pregar a epoché e a redução, não deve ser encon- solutamente não podemos nos contentar com ‘me-
trado no trabalho específico de Husserl em psico- ras palavras’ [...]. Significados inspirados apenas
logia fenomenológica e em suas afirmações tardias por intuições remotas, confusas e inautênticas -ou
Tradução
concernentes à convergência final da psicologia e por qualquer intuição que seja- não são suficientes:
filosofia transcendental, mas sim em alguns de seus nós precisamos retornar às ‘coisas elas-mesmas’”
escritos iniciais. (Husserl 2001, I/168), ele não havia introduzido as
De acordo com uma interpretação, por exem- noções de epoché e redução. Ainda, como já apon-
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019 338
Fenomenologia Aplicada: Porque é seguro ignorar a epoché
tado, muitos dos seguidores iniciais de Husserl que buscar inspiração na filosofia fenomenológica. A
inspiraram-se em sua insistência na importância fenomenologia tem ao longo dos anos provido con-
de direcionar-se às coisas enquanto encontradas na tribuições cruciais para uma vasta gama de dis-
experiência, não viram motivos para seguir Husserl ciplinas empíricas e auxiliado a desafiar teorias
em sua subsequente insistência no uso da epoché e dominantes como o psicologismo, behaviorismo,
da redução. Em 1914, Reinach, um dos seguidores positivismo e outras formas de reducionismo. O
iniciais mais talentosos de Husserl proferiu uma in- motivo pelo qual ela tem conseguido fazê-lo com
fluente fala introdutória “O que é fenomenologia?” sucesso é parcialmente porque a fenomenologia
Ao longo de sua conferência, Reinach explicou a está longe de ser mera atividade descritiva. A feno-
natureza da atitude fenomenológica, enfatizou a menologia também oferece considerações teóricas
importância de aproximar-se da coisa ela-mesma, próprias que podem desafiar modelos existentes e
explicou como alguém poderia vir a aprender acer- suposições subjacentes. O fato de que a fenomeno-
ca de experiências que nem havia percebido que logia também possui essa relevância não-filosófi-
possuía, entretanto, sem mencionar nem ao menos ca, o fato de que ela serviu como poderosa fonte
uma vez a epoché e a redução em sua conferência. de inspiração para tantas disciplinas é parte de seu
É bastante conhecido que Husserl frequente- valor duradouro. Minha preocupação por enquanto
mente se queixava que aqueles seguidores iniciais tem sido apenas com a questão de saber se aqueles
que haviam falhado em segui-lo em sua virada que buscam aplicar ideias fenomenológicas em um
transcendental tinham, em última análise, falha- contexto não-filosófico precisam utilizar a epoché
do em realmente entender seu projeto filosófico, e a redução. Estaria Giorgi correto em insistir que
haviam falhado em completamente compreender a pesquisa científica não pode clamar um status fe-
o que é a fenomenologia. Estou inclinado a pensar nomenológico a não ser que seja apoiada por algum
que Husserl estava certo (Zahavi 2017). Eu penso tipo de redução (Giorgi 2010, 18)? Estaria Morley
que a epoché e a redução são essenciais para filoso- correto quando ele em uma discussão sobre meto-
fia fenomenológica, e que Reinach nessa medida es- dologia de pesquisa fenomenológica qualitativa es-
tava carecendo de algo crucial. Eu apenas não pen- creve, “É sempre sobre a epoché”? (Morley 2010).
so que isso seja igualmente verdadeiro para cada Eu obviamente discordo. Existem outras caracte-
aplicação não-filosófica da fenomenologia. rísticas da filosofia fenomenológica que são muito
A esse ponto, o psicólogo fenomenólogico mais relevantes para um pesquisador qualitativo
pode estar tentado a simplesmente apelar à autori- (cf. Gallagher e Zahavi 2012; Zahavi 2018; Zahavi e
dade de Husserl. Husserl argumentou que a psico- Martiny 2019).
logia fenomenológica requer a execução da epoché Permita-me como conclusão fazer um apon-
e da redução. Por que simplesmente não aderir às tamento histórico. Se se considera como a feno-
suas instruções? Em adição às razões já fornecidas menologia tem com sucesso sido aplicada em dis-
de porque isso seria uma má ideia, também deve ser ciplinas como psicologia, psiquiatria, sociologia,
indagado porque Husserl começou a mostrar esse antropologia etc., ao longo dos últimos 100 anos,
interesse em psicologia fenomenológica. A partir é notório como raramente é encontrada referência
do contexto, deveria ser óbvio que ele nunca con- e utilização da epoché e da redução, muito menos
siderou isso um fim em si mesmo, mas na verdade algum compromisso com o projeto transcendental
sempre um meio para alguma outra coisa, isto é, a de Husserl.
filosofia fenomenológica. Ao longo dos anos, Hus- Algumas das primeiras influentes aplicações
serl perseguiu diferentes estratégias quando referia- da fenomenologia foram nos campos da psicopa-
-se à atitude “não natural” do filosofar fenomeno- tologia e da psicologia experimental. Já em 1912,
lógico (cf. Kern 1962). Uma dessas estratégias foi o Jaspers publicou um curto artigo delineando como
caminho sobre a psicologia fenomenológica. Quan- a psiquiatria poderia beneficiar-se da fenomenolo-
do avaliado o trabalho de Husserl acerca do tópi- gia Husserliana (Jaspers 1912). Alguns anos depois,
co, é consequentemente importante ter em mente Minkowski refletiu sobre como a filosofia fenome-
que Husserl estava primordialmente interessado na nológica poderia ser relevante para a prática clínica
questão de como facilitar a entrada no pensamento e argumentou que o uso de um framework e uma
filosófico apropriado, e não em prover instruções abordagem fenomenológicos poderiam auxiliar o
concretas de como coletar e analisar dados ou como psiquiatra a compreender melhor o mundo do
conduzir entrevistas ou experimentos. Consequen- paciente. Ao mesmo tempo, entretanto, ele também
temente, parece ser um engano fundamentar pri- enfatizou como a filosofia fenomenológica poderia
mordialmente um framework metodológico nos aprender a partir de seu envolvimento com a psi-
apontamentos superficiais de Husserl sobre como quiatria e psicopatologia. Investigações psicopa-
desenvolver uma fenomenologia não-filosófica. tológicas, por exemplo, poderiam direcionar a um
refinamento das análises fenomenológicas, na me-
dida em que eles possam apontar para aspectos e di-
5 Conclusão mensões específicos da experiência que os filósofos
haviam negligenciado (Minkowski 1970, xxxix, 6,
Tradução
Qual é então o resultado dessas reflexões? 171). No campo da psicologia experimental, figuras
Como se espera que seja evidente, não estou pro- como Katz não apenas argumentaram que a fenome-
pondo que a fenomenologia não deve ser aplicada nologia de Husserl era indispensável à psicologia
ou que pesquisadores qualitativos não deveriam (Katz 1950, 18, 1999, 5), como também mostraram
339 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019
Dan Zahavi
como insights e idéias da fenomenologia poderiam Gallagher, Shaun, and Dan Zahavi. 2012. The pheno-
direcionar a melhores experimentos e teorizações, menological mind, 2nd ed. London: Routledge.
assim como técnicas experimentais poderiam ser
usadas para refinar as observações e explorações fe- Giorgi, Amedeo. 1994. A phenomenological perspec-
nomenológicas, e assim tornar as descobertas mais tive on certain qualitative research methods.
confiáveis e acessíveis intersubjetivamente5. Journal of Phenomenological Psychology 25(2):
O que primariamente exerceu uma influência 190–220.
nestas e outras figuras contemporâneas como Schil-
der, Straus e Buytendijk frequentemente foram, Giorgi, Amedeo. 2010. Phenomenology and the prac-
entretanto, ideias já articuladas nas Investigações tice of science. Existential Analysis 21(1): 3–22.
Lógicas. Essas ideias incluíam a insistência na im- Giorgi, Amadeo. 2012. The descriptive phenomeno-
portância em tratar o fenômeno em sua completa logical psychological method. Journal of Pheno-
concretude, a importância de descrições sem pre- menological Psychology 43: 3–12.
conceitos, e a ambição de evitar o que Spiegelberg
chama de “o constrangimento do fenômeno pelas Husserl, Edmund. 1960. Cartesian meditations: An
teorias preconcebidas” (Spiegelberg 1972, 308)6. introduction to phenomenology, trans. D. Cair-
Em contraste, a insistência de Husserl na epoché ns. The Hague: Martinus Nijhoff.
e na redução, sua explícita defesa do idealismo
transcendental, sem mencionar suas conferências Husserl, Edmund. 1969. Formal and transcendental
sobre psicologia fenomenológica não parecem ter logic, trans. D. Cairns. The Hague: Martinus Ni-
tido tanto impacto -Buytendijk é conhecido por ter jhoff.
dito que as Conferências de Amsterdam de Husserl
fracassaram em impressioná-lo (Spiegelberg 1972, Husserl, Edmund. 1970. The crisis of European scien-
282). Spiegelberg finaliza sua impressionante pes- ces and transcendental phenomenology: An in-
quisa Phenomenology in Psychology and Psychiatry troduction to phenomenological philosophy,
argumentando que é urgente libertar-se de algumas trans. D. Carr. Evanston, IL: Northwestern Uni-
das tecnicalidades da filosofia de Husserl se é para versity Press.
ser possível um verdadeiro intercâmbio em ambas Husserl, Edmund. 1977. Phenomenological psycho-
as direções entre a psicologia e fenomenologia, e ele logy: Lectures, Summer Semester, 1925, trans. J.
explicitamente alerta contra um “retorno ortodoxo Scanlon. The Hague: Martinus Nijhoff.
à Husserl” (Spiegelberg 1972, 366). Nós deveríamos
nos perguntar qual abordagem produziu os resulta- Husserl, Edmund. 1982. Ideas pertaining to a pure
dos mais impressionantes, inovativos e influentes: phenomenology and to a phenomenological
a abordagem heterodoxa dos psiquiatras e psicólo- philosophy. First Book. General introduction to
gos fenomenológicos clássicos ou a recente e mais a pure phenomenology, transl. F. Kersten. The
ortodoxa abordagem de Giorgi e colegas. Hague: Martinus Nijhoff.
Husserl, Edmund. 1989. Ideas pertaining to a pure
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nal of Consciousness Studies 4(3): 195–214. ts (1920–1925), trans. S. Luft and T. M. Na-
berhaus. Dordrecht: Springer.
5 O que já encontramos naquela época é consequentemente um vívi-
do exemplo do que posteriormente tornou-se conhecido como uma relação
de mútua iluminação (Varela et al. 1991, 15) ou de esclarecimento mútuo Jaspers, Karl. 1912. Die phänomenologische Fors-
(Gallagher 1997). Não era uma questão de simplesmente importar e aplicar chungsrichtung in der Psychopathologie. Zeits-
idéias prontas de um lado para o outro; não era uma rua de via única da chrift für die gesamte Neurologie und Psychia-
filosofia para psicologia, mas um intercâmbio de mão dupla, onde ambos os trie 9: 391–408.
lados poderiam se beneficiar da interação.
Tradução
6 Nota do Tradutor: A citação que Zahavi faz de Spiegel- Katz, David. 1950. Gestalt psychology, trans. R. Ty-
berg é de difícil tradução literal, uma vez que refere-se à apli-
cação de “camisa de força” pelas teorias sobre os fenômenos. son. New York: Ronald Press.
No original: “premature strait-jacketing of the phenomena by
preconceived theories”.
Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019 340
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Dan Zahavi é professor de filosofia na Universidade
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de filosofia na Universidade de Oxford. Suas
Paley, John. 2013. 5 questions. In Philosophy of nur- pesquisas centram-se principalmente nos tópicos
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Drummond, 143–155. Copenhagen: Automatic cognitivas. Zahavi também tem trabalhado
Press. acerca de temas como Self, autoconsciência,
intersubjetividade, cognição social, empatia e
Petitmengin, Claire, Anne Remillieux, and Camila intencionalidade. Tem escrito diversas obras como
Valenzuela-Moguillansky. 2018. Discovering Husserl’s Phenomenology (2003) -este traduzido para
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a micro-phenomenological analysis method. com Shaun Gallagher, Husserl’s Legacy (2017) e mais
Phenomenology and the Cognitive Sciences. recentemente o livro Phenomenology: The Basics
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Tradução
341 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 332-341, 2019
Texto Clássico ...................................
10.18065/RAG.2019v25n3.13
TEXTOS CLÁSSICOS
Almeja O Correio da Manhã que eu narre aos perbólica, incontrolável e aniquila a ínfima fração
seus leitores o que tem acontecido com o pensa- de razão que ela contém. Para que se pudesse di-
mento filosófico durante estes cinquenta anos, no zer verdadeiramente que viver é filosofar, seria ne-
decorrer deste século. O pensamento filosófico é cessário tornar o conceito de filosofia tão vago que
uma coisa humana, mas as coisas humanas não são equivaleria a esvaziá-lo por completo. Equivaleria a
propriamente “coisas”, mas sim “coisas que acon- dizer que pensar é o oposto de fazer com que todos
tecem ao homem”, são acontecimentos que acon- os gatos sejam pardos, e a partir disso concluir que
tecem a alguém, e não se assemelha a estas brinca- não vale a pena falar sobre gatos. Sem dúvida, o
deiras chamadas de “fenômenos físicos”, pois estes homem tem sempre uma certa atitude ante ao que
não acontecem a ninguém. Ora, não se pode falar podemos chamar de “ultimidades”, mesmo quando
adequadamente das coisas que consistem em “algo esta atitude é negada, quando está incognoscível
que acontece com alguém”, pois estas coisas são ou é simplesmente esquecida, negligenciada. Mas
passíveis apenas de serem contadas ou narradas. A a filosofia não é um tipo qualquer de atitude “ul-
razão narrativa, a razão histórica, é a única forma timista”, senão uma representação precisa e exclu-
de razão que nos permite entender às coisas huma- siva desta atitude: é, em suma, um enfrentamento
nas. Contemos, pois, o percurso do pensamento fi- dos problemas últimos por meio dos instrumentos
losófico de 1900 a 1950. O empreendimento é neste conceituais. Existem outras formas de enfrentar es-
caso desesperador porque não posso inundar com tes problemas e, a exemplo, durante milênios o ho-
o fluxo da minha prosa toda a solene edição do O mem tem preferido optar pela embriaguez, por um
Correio da Manhã. Tendo recebido um breve espaço dar-se ao frenesi sensual, buscando alcançar estas
na área destas páginas vejo-me obrigado a conden- “ultimidades”. Uma das criações mais primitivas do
sar meu pensamento. Mas, ocorre que a razão his- homem foi o que os etnógrafos chamam de “casas
tórica, o contar, é, dentre as figuras da razão, a que de suar”, local que se introduziam pedras ardentes
menos admite a possibilidade de condensação. A que provocavam um suor tão extremo que o homem
razão histórica é essencialmente prolixa, é um fala- se alienava, delirava. Acreditavam assim que, neste
tório interminável, é a “história sem fim”. Não por delírio, alcançavam o transcendente.
acaso, Dilthey, o primeiro homem que vislumbrou No meu entendimento, em vez de hiperbolizar
a razão histórica e que pôde se dedicar, sem distra- e enfraquecer os conceitos das ocupações humanas
ções, toda uma boa parte de sua vida aos temas liga- devemos restringi-los e torná-los concretos. É deve-
dos a ela, caracteriza-se como aquele a dar apenas ras danoso nomear da mesma forma atividades dis-
os primeiros passos, os primeiros fragmentos, a es- tintas que apenas superficialmente se assemelham.
boçar os primeiros projetos, os primeiros volumes, Chama-se indiscriminadamente de religião, poesia,
primeiros capítulos, os primeiros suspiros, gerando filosofia, várias atividades que não possuem entre
certo balbuciar dentro deste grande falatório que é si nada de comum, gerando um engodo relativo à
a razão histórica. Vamos então suspirar – os leitores autêntica realidade destas. Chamar de “poesia”,
e eu, conjuntamente – sobre o que poderia ser uma conjuntamente o que fazia Homero e o que fazia
história do pensamento filosófico dos últimos cin- Verlaine, serve unicamente para que não possamos
quenta anos. Esta jornada cronológica coincide com compreender o que Homero fazia e o que fazia Ver-
minha própria vida e, com efeito, ninguém poderia laine. Pois não se trata de uma questão de demarcar
contar-me esta história, porque ela é minha própria a diferença entre os estilos poéticos, mas sim eluci-
existência. Daí que minha narrativa adquire, por dar que em ambos a atividade na qual se ocupam
vezes, um olhar autobiográfico. A autobiografia é o possui um propósito e um papel funcional dentro
superlativo da razão histórica. de suas vidas e que são completamente distintos.
Te x t o s C l á s s i c o s
A vida é um repertório ou sistema de ocupa- Por isso perguntar sobre o que se passava filo-
ções porque nos foi dada vazia e não há outro re- soficamente em 1900 nos impede de começar a alu-
médio senão tentar preenchê-la, ocupá-la. Uma des- dir a tais e quais doutrinas particulares que naquela
tas ocupações que os homens cultivam, de modo a época dominavam ou nela emergiram. É preciso
preencher a vida, é a filosofia. Heidegger concebe averiguar o que os homens acreditavam fazer na-
a ideia de que o homem é filosofia; isto equivale a queles dias quando diziam que filosofavam. Certa-
dizer que todos os homens em todos os tempos te- mente era coisa muito distinta do que, por exemplo,
nham se ocupado com esse peculiar modo de vida intentou fazer Parmênides; ele que cronologicamen-
que é filosofar. Mas, esta ideia de Heidegger é hi- te foi o primeiro “filósofo” na Grécia, bem como em
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Meio Século de Filosofia
todo o universo humano. É obvio que Parmênides Na época moderna a situação da filosofia é,
não chamou a si mesmo de filósofo, justamente por- mesmo focando exclusivamente no aspecto de sua
que andava ocupado em inventar um novo modo de relação com as ciências, completamente distinta
operação humana, ao qual se deu este nome. Parmê- da que acabo de ilustrar. Durante os séculos XVI e
nides chamava este fazer de Alethéia, que podemos XVII as ciências matemáticas, nas quais incluem-se
traduzir como “Verificação”. Não se tem assinalado, a astronomia e a mecânica, alcançam um prodigio-
contudo, que Aristóteles, quando almejava afirmar so desenvolvimento. A ampliação de seus temas
com precisão o modo filosófico stricto sensu em acompanha uma depuração crescente de seu mé-
contraponto aos pensamentos que imperavam an- todo, seguidos por grandes descobrimentos mate-
tes ou conjuntamente à sua filosofia – religião, mi- riais e de aplicações técnicas de fabulosa utilidade.
tologia, as “teologias” órficas -, e assim, nomeia seu Afastam-se com grande independência da filosofia,
fazer de “método da verificação”; e com este nome mais ainda, entram em conflito com ela. Destarte,
refere-se à precisa ocupação intelectual que Parmê- a filosofia deixa de ser o Conhecimento, o Saber e
nides inventara e iniciara. torna-se apenas mais um tipo de saber perante os
A situação da filosofia na época moderna é outros. Devido a sua busca pela universalidade e
muito diferente da que permeava seu propósito ori- por uma questão hierárquica a filosofia pode ma-
ginário na Antiguidade. Não se trata de examinar nifestar certa primazia, mas seu “modo de pensar”
agora a diferença integral que há, e que é enorme, não evoluiu, enquanto as ciências matemáticas mo-
entre a vida antiga e a vida moderna. Nestas profun- dificaram consubstancialmente o que aprenderam
didades abissais não podemos por hora adentrar. originalmente com a filosofia, e criaram, em parte,
Trata-se apenas de focar um fator no qual conota “novos modos de pensar”. Já não há, pois, apenas a
às grandes divergências entre estas circunstâncias. filosofia perante o Ser. Há outra instância, distinta
Na Grécia é a filosofia quem revela o conhe- dela, que se ocupa ao seu modo de conhecer as coi-
cimento como o rigoroso “modo de pensar”, que sas, e esse modo é de um rigor exemplar, superior
se impõe ao homem fazendo-lhe ver que as coisas em certos aspectos ao modo filosófico tradicional.
precisam ser como são e não de outra maneira. Ela Diante disto, a filosofia sente-se como uma ciência,
alude a um pensamento necessário, ou imprescin- dotada de um tema decisivo, mas com um método
dível, e ela mesma não consiste senão neste “desco- torpe. Neste contexto, não tem outro remédio a não
brimento” encetado por Parmênides. Dizemos que ser emular as ciências. Quer ser uma ciência e, por-
algo está “verificado” quando conseguimos expô-lo tanto, não pode encarar o Real sem antes encarar
na forma de estritas relações entre puros conceitos. as ciências exatas. Deixa, pois, de reger-se exclusi-
Ao fazer este desvelamento dá-se conta da diferença vamente pela Realidade, que é seu tema, e toma,
radical entre seu “modo de pensar” e os outros, aci- em certo grau, orientação das ciências. Por isso a
ma aludidos, que em torno dela preexistiam. O pen- filosofia moderna tem um olhar duplo. Por isso a
sar de todas estas “disciplinas” mais ou menos tra- filosofia moderna é estrábica. Todo este período
dicionais consistia em pensar nas coisas plausíveis, pode ser registrado lembrando-se simplesmente da
que se mostram, que parecem ser de determinada conhecida fórmula de Kant em sua Investigação So-
forma, e não no pensar necessário, no qual as coisas bre a Claridade dos Princípios em Teologia Natural
não dependem de nosso arbítrio ou gosto para que e Moral, de 1764:
sejam reconhecidas, pois uma vez compreendidas “O verdadeiro método da metafísica é basica-
se impõem, sem remédio, à nossa mente. É indes- mente idêntico àquele que Newton introduziu com
critível este desdém com que esta filosofia primigê- a ciência natural e que tem gerado diversos frutos”.
nia olhou todos estes outros comportamentos inte- Este texto pode representar ao que, desde Descartes,
lectuais perante o mundo, exceto – e é importante era aludido como essências “inumeráveis”.
ressaltar isto – a “medicina”, representada pelas so- Este texto propicia ainda a revelação de como
ciedades secretas como a dos Asklepíades na ilha de esta adaptação da filosofia ao modo de pensar das
Kos, da qual pertencia Hipócrates. ciências exatas é, por sua vez, um processo cujas
A filosofia como o pensar necessário era o Co- variações são apenas frutos funcionais originados
nhecimento, era o Saber. Não havia propriamente da evolução destas ciências. De fato, Descartes e
outra forma de abertura de conhecimento perante Leibniz se orientavam pela matemática pura, pois,
a Realidade. Dentro deste escopo, como particulari- não existia ainda uma física, já que eles estavam
zação do seu “modo de pensar”, iniciou-se o proces- contribuindo para a criação desta. A geração de
so de condensação das ciências. Estas, se preocupa- Kant encontra-se, por sua vez, diante do triunfo
vam com partes da realidade – com temas regionais, consolidado pela “física de Newton” e o que ela
com figuras, com números, com astros, com corpos simbolizava. Esta é a razão de Kant desdenhar à
orgânicos, etc. – mas, o “modo de pensar” sobre es- matemática pura, buscando constituir a física como
Te x t o s C l á s s i c o s
tes temas era o filosófico. É preciso que os homens regina scientiarum2. O texto supracitado fora es-
de ciência atuais engulam velis nolis1, e de uma vez crito no momento em que Kant havia deixado de
por todas, o fato de que o “rigor” da ciência de Eu- ser leibniziano e encontrava-se desprovido de uma
clides não era nada além do rigor cultivado na esco- filosofia. Logo, dispõe-se a encontrar uma, e neste
la socrática, especialmente na Academia de Platão. propósito o surpreendemos obcecado pela física de
Ora, todas estas escolas se ocupavam principalmen- Newton, tomando-a como um ideal de conhecimen-
te da Ética. to. Naquela época, Kant não tinha uma clara noção
1 (Nota do Tradutor). Expressão latina que significa “queira ou
2 (Nota do Tradutor). “Rainha das ciências”.
não queira”.
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José Ortega y Gasset
se a fórmula que expressara seria possível ou não. terra incógnita. Talvez algum dia envie ao grupo de
Por isso mesmo, esta fórmula, citada anteriormente, comtistas que ainda estão no Brasil – último refúgio
carrega em si o esnobismo “científico” da filosofia da religião da Humanidade – minhas ideias sobre
daquele período. Apenas seis anos depois é que seu genial mestre, que contrastam com o que foi
Kant publicaria sua famosa dissertação, De mun- dito sobre ele e que afirmam que ele fora o primeiro
di sensibilis atque intelligibilis forma et principiis3, descobridor da historicidade essencial do homem.
onde alcança essa adaptação da filosofia à ciência Em 1870, o positivismo domina os espaços
física. históricos da Europa. Tudo aquilo que não for posi-
Estes dois perfis de atividade intelectual – a tivismo é invalidado. Ora, o positivismo é a renún-
antiga e a moderna, denominadas com um nome cia do filosofar. Poucas coisas destoam tanto da fi-
idêntico, filosofia – são, de fato, deveras divergen- losofia quanto os livros de Stuart Mill (1843-1865).
tes. Desde Descartes a filosofia ambiciona – pro- Destarte, não apenas deixam de fazer filosofia, mas
gressivamente – ser uma ciência. Talleyrand diria, perdem o fio da meada. Toda atividade humana su-
como dissera a Napoleão quando este decidiu tor- põe a continuidade de uma série de gerações que se
nar-se imperador, que a filosofia almejou rebaixar- ocupam dela. Quando esta continuidade é quebra-
-se. Pois, estas atividades intelectuais, apesar de da, interrompida, se “perde o fio” de seu exercício.
todas as suas vantagens, têm, como conhecimento, E quanto a isto não há exceções. Perder o fio signifi-
uma séria deficiência. Os problemas que buscam ca deixar de entender sobre aquela atividade, seja a
conhecer são, de fato, apenas problemas relativos. matemática ou seja o amor. Atualmente, perdemos
Não são problemas radicais, indômitos, ou seja, os o fio do amor que se engendrou no Ocidente ao fi-
problemas absolutos que, quer queira ou não, re- nal do século XI. Kant dedicou um excelente ensaio
caem sobre o homem. As ciências aceitam apenas a este estranho fenômeno humano que é “perder o
os problemas do que se sabe de antemão, que pelo fio”. Em 1870, repito, não só não se fazia filosofia,
menos em princípio são solúveis. São, em suma, como também não se conseguia compreender os fi-
problemas previamente castrados; seus chifres não lósofos do passado. Eram inscrições hieroglíficas.
têm uma ponta pavorosa; ou são rudes ou foram ar- Mas, nesta mesma época, uma nova geração volta
tificialmente adaptados. A filosofia que quer “dar a sentir uma necessidade de filosofia e percebe que
ar de ciências” renuncia, em doses diversas, a apro- nada sabe sobre ela. Para saciar este apetite filosó-
ximação com os problemas absolutos, ou seja, com fico decidem ir à escola. Em 1869, Otto Liebmann
a Realidade desnuda, integral, tal e como se apre- termina todos os capítulos de seu livro Kant e Epí-
senta. Agora, por sua vez, o grego, ao pensar filo- gonos com um clamor que ressoa: “Portanto, deve-
soficamente, partia em direção deste conhecimento mos retornar a Kant!”. Liebmann tinha vinte e cinco
radical da Realidade indômita, indomada e talvez anos. O Zurück zu Kant, o retorno a Kant, foi um
indomável. Se a esta aventura do Conhecimento clamor escolar. É o aprendiz, o aluno que procura
os gregos chamaram de “filosofia”, isto quer dizer os Mestres, que quer ir à escola. Voltam-se a Kant, a
que sua ocupação era muito distinta daquela que os Fichte, a Hegel, a Aristóteles (Brentano). Mas, que
modernos tentaram fazer. Com os gregos, a filosofia fique claro, estudar uma filosofia do passado não
stricto sensu morre e outra coisa surge, que, frau- tem nada a ver com filosofar.
dulentamente, passa a utilizar o mesmo nome, mas Em 1900 não havia, propriamente, filosofia. O
que é uma forma de conhecimento degradado, sem neokantismo passa a dominar a opinião pública in-
fé em si mesma, astênica, repleta de cautela e cui- telectual, que fora moldado meticulosamente trinta
dados excessivos devido a sua convalescência; mas, anos antes. A Teoria kantiana da experiência, pri-
acima de tudo, ela abstém-se de perguntar sobre o meira grande obra de Hermann Cohen, é de 1871.
imenso Enigma no qual nos movemos, vivemos e Na mesma época, começa a escrever Windelband,
somos. cuja “volta a Kant” se complicava diante de um vago
De 1794 a 1830 os alemães, com sua genial in- retrocesso a Fichte. Todo este trabalho culmina na
sensatez, buscam romper com a prisão científica na Lógica do Conhecimento Puro, de Cohen, - 1901 -,
qual a filosofia se asfixia e fazem um esforço para na Lógica como Ciência do Conceito Puro, no qual
se evadirem pela estreita via de seu “idealismo” - a Croce embaralha Kant com Hegel – 1902 -, em Os
“transcendental luz do luar”, como a chamou Car- Limites da Concepção Naturalista, de Rickert, discí-
lyle. Mas, pelo resto do século apenas fazem avan- pulo de Windelband – 1902.
çar o processo que vai convertendo a filosofia na A primeira obra de Cohen, na qual expunha e
estátua de sal de uma ciência. Esta obsessão acaba- interpretava o pensamento de Kant – tinha ele vin-
ria reduzindo a filosofia a uma contemplação das te e oito anos – produziu um efeito fulminante na
ciências; a pura “teoria do conhecimento”, como atmosfera intelectual da Alemanha. Produziu admi-
se esta nomenclatura fosse viável na falta de uma ração e terror. O terror se originava na concepção
Te x t o s C l á s s i c o s
ideia absoluta do Ser. Este foi o positivismo que se disseminada para a população de que, fosse o que
instalou em todo o Ocidente – único espaço terres- fosse, essa coisa chamada filosofia, era inquestio-
tre no qual havia surgido algo assim como a filoso- navelmente uma coisa difícil, compreendida ape-
fia. Obviamente, o positivismo não é Comte. Comte nas por mentes afiadas. Ou seja, algo muito rígido
foi talvez o único filósofo que existira entre 1830 a e muito complicado, enfim, coisa substancialmente
1860. O outro grande nome, Schopenhauer, era, por distinta do aguapé ideológico que vinha sendo o
sua vez, um sobrevivente. Mas Comte, ainda hoje, é positivismo que o farmacêutico Sr. Homais era ca-
paz de compreender. Não se tem sido devidamente
3 (Nota do Tradutor). “Da forma e dos princípios do mundo sensível e do
mundo inteligível”.
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Meio Século de Filosofia
justo com Cohen, pois sua obra elevou de um só resto era apenas “opiniões pessoais”, sem vigência;
golpe o nível da atividade filosófica. Direta ou in- umas, sobreviventes anacrônicas, outras, pelo con-
diretamente, fez com que os pensadores espremes- trário, eram ideias emergentes que, por sua vez, se
sem bem a cabeça quando se pusessem a pensar. converteriam em poder público. Como todo costu-
Quando estive em Marburgo em 1906, jogado ali me leva tempo para tomar forma, para “estabelecer-
pela primavera de ousadia que fora meus vintes -se”, o neokantismo emergente em 1870 não ganhou
anos, a “escola de Marburgo” continuava exercendo força até meados de 1885. Qualquer opinião leva
este terrorismo na Alemanha. Inclusive, mesmo os quinze anos para impor-se, exerce o poder durante
melhores estudantes alemães não se atreviam a ir outros quinze e, então, declina até ser legada a um
até lá “porque era muito difícil”. As outras escolas caráter padrão de sobrevivência. Ocorreu exatamen-
neo-kantianas – de Baden, obra de Riehl – apesar te deste modo em nosso caso. Em 1900, o neokantis-
de não corresponderem totalmente com o pensa- mo imperava exclusivamente, e fora precisamente
mento Cohen, sentiam a influência de sua obra. O naquele ano que os poderes do futuro surgiram. Em
nebuloso criticismo de Renouvier, que permitia aos 1900-1901, publicam-se as Investigações Lógicas de
franceses dizerem “que faziam” filosofia, se desva- Husserl, que se estabelecerá, dentro de quinze anos,
neceu e, em geral, o colapso filosófico da Europa, a no novo regime filosófico. As Ideias para uma Feno-
baixa maré intelectual do Ocidente, fora superado menologia e a Filosofia Fenomenológica, de Husserl,
e iniciou-se um estágio ascendente que não cessou são de 1913; O Formalismo na Ética e a Ética mate-
seu progresso em direção ao zênite até o início da rial dos valores, de Scheler, aparecem em 1913-164.
última guerra. Há, pois, entre 1900 e 1915 uma espécie de interlú-
Como o homem é congenitamente servo da dio no qual o neokantismo vai decompondo-se sem
gleba espaço-temporal, toda coisa humana, e en- que outra grande representatividade filosófica, ger-
tre elas a realidade “filosófica”, está adstrita a um minada de 1885 a 1900, fosse capaz de constituir-se
determinado tempo e neste tempo possui uma de- e assim tornar-se vigente. Aproveitam-se deste vá-
terminada representação espacial, com seu cen- cuo de poder alguns perfis erráticos, magníficos ou,
tro e sua periferia. Desde o final do século XVIII simplesmente, de curiosos solistas. Esta é a hora de
o espaço filosófico tem, queira ou não, seu centro Bergson. A Evolução Criadora é publicada em 1907.
visceral na Alemanha e, no máximo, caberia reco- O Pragmatismo de James, em 1907. A Interpretação
nhecer um epicentro que seria a França. Inglater- dos Sonhos, de Freud, em 1900. Em 1911, realizo a
ra nunca tivera filosofia, assim como nunca tivera publicação de um artigo sobre Freud no jornal La
música. Porém, teve certo período em que as Ilhas Prensa, de Buenos Aires.
Britânicas exerceram um influxo decisivo na evo- Percebemos, pois, com toda claridade e pu-
lução do pensamento filosófico. Mas, não porque jança, a estrutura ou anatomia da realidade “filoso-
haviam criado uma filosofia, mas, pelo contrário, fia” entre 1900 e 1915. Assinalamos três categorias
porque souberam construir um sistema de objeções desta realidade: 1ª. A vigência, anormalmente pro-
a toda filosofia, e isto é o que se tem chamado de longada, do neokantismo; 2ª. Uma série de novos
“filosofia inglesa” de Locke, Berkeley e Hume. Não pensamentos emergentes que vão sendo criados e
estranhem, pois, que eu parta do que tenha ocorri- que significam apenas “opiniões particulares de um
do filosoficamente na Alemanha e trace as linhas homem ou de um grupo”; 3ª. Grandes feitos indi-
da evolução pelo fio da produção germânica. Este viduais de pensamentos cujo papel histórico real e
tem sido, creio eu, o quadro ou a imagem dentro preciso diferem em cada caso, como veremos adian-
do qual o movimento de ideias fluiu. Houve coi- te. Estas categorias estavam em evidência. Mas, não
sas que foram iniciadas ou levadas à perfeição fora podemos esquecer uma 4ª, que fluía oculta, no sub-
da Alemanha – o primeiro exemplo, o pragmatismo terrâneo, devido a certa deficiência em seu modo
americano; o segundo, a Lógica matemática – mas, de se manifestar e que, não obstante, virá a ser, de
não conseguiram produzir um efeito filosófico deci- 1915 a 1930, uma das forças doutrinais decisivas.
sivo, ativo, não se consubstanciaram em realidades Refiro-me à obra lenta e fragmentária de Dilthey,
plenas, isto é, não foram “vis histórica”, visto que cuja transcendência estritamente filosófica, nin-
foram integradas na representação do pensamento guém havia visto, nem mesmo na Alemanha, até
alemão. Isto será esclarecido em seguida quando 1920. Trata-se de um caso curiosíssimo, atingindo
analisarmos, sutilmente, a figura de um solista real- o extremo de latência na produção intelectual de
mente genial, Bergson. uma época5.
O que era, afinal, a filosofia em 1900? Em cada O paralelismo estrutural destas quatro catego-
época de cada sociedade existe um repertório de rias pode ser considerado como um paradigma apli-
ideias, normas, valores que são vigentes, que domi- cável a toda realidade histórica de caráter coletivo.
nam a opinião pública com um caráter de poder es- Ora, falamos estritamente da filosofia de 1900
Te x t o s C l á s s i c o s
tabelecido. O Estado, com a forma efetiva e precisa a 1915 que havia no Ocidente, isto é, que reinava
de suas instituições – e não “no papel” – é só uma – no sentido em que reina sempre a opinião públi-
vigência entre os demais costumes. Chamam-no ca e, portanto, se diz, e com grande propriedade, a
também – e melhor – de Poder Público. Mas qual- “opinião reinante” –, era o neokantismo, o que nos
quer costume, por mais ínfimo que seja, tem mesmo
4 (Nota do Tradutor). Der Formalismus in der Ethik und die materiale
que de forma reduzida, todos os caracteres de “po- Wertethik.
der público”; é poder público. Pois bem, o poder pú- 5 (Nota do Autor). Como não tenho espaço aqui para mostrar de que
blico filosófico em 1900 era o neokantismo. Todo o consistia e como essa latência se originou, transmito ao leitor o meu estudo
“Guillermo Dilthey e a Idéia da Vida”. (Reimpresso no volume da coleção
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José Ortega y Gasset
força a reconhecer que no Ocidente não havia, na dos comentaristas árabes, Avicena e Averroes. Este
verdade, filosofia. Este ensaio não visa acumular salto da Grécia para estes circuncisos não fora um
nomes de autores ou de título de livros que podem mero salto na recepção de um pensamento, mas sim,
ser encontrados em qualquer manual. Não tenho, de um escolasticismo. Sabe-se, mas é conveniente
entretanto, nada contra os manuais, a não ser mi- que isto repercuta também nas províncias, que os
nha decisão de nunca os escrever ou lê-los. Aqui primeiros escolásticos foram os árabes e não os cris-
nos importa só o importante. Que é denotar que o tãos. Ocorre, pois, que o escolasticismo implica em
neokantismo – escola por onde entrei na filosofia distâncias enormes, no espaço e no tempo, a partir
– não era propriamente uma filosofia. O kantismo do círculo cultural no qual nascera a filosofia gre-
sim o foi, mas o neo-kantismo era o contrário de ga e onde ela era uma realidade autêntica, plena e
uma filosofia, a saber, um escolasticismo, uma vez concreta: há a distância espacial entre a Grécia e os
que consistiu na atitude de ir à escola dos antigos novos povos cristão do Ocidente, a distância tem-
mestres intentando aprender aquela filosofia. poral entre o século IV antes de Cristo, a distância
O famoso Escolasticismo, isto é, a filosofia entre o helenismo e o arabismo e, cabe ressaltar, a
que as universidades medievais cultivavam, não foi distância entre os árabes e os frades cristãos. Cogitar
bem compreendido, porque não foi visto no pano que aqueles frades de cabeça tonsurada foram capa-
de fundo de muitos outros escolasticismos. O Es- zes de entender os conceitos gregos, a ideia de Ser,
colasticismo clássico é apenas um caso particular, por exemplo, resulta em ignorar a dimensão trágica
europeu e medieval, dentro de toda uma grande que acompanha o acontecimento histórico, do mes-
categoria histórica de “escolasticismo” com caráter mo modo que um fio vermelho está incluso em todos
genérico que ocorreu e segue ocorrendo em muitos os cabos da marinha Real inglesa. Na recepção de
lugares e tempos. Chamo de “escolasticismo” toda uma filosofia estrangeira, o esforço mental é inver-
filosofia recebida – em contraste a criada – e chamo tido, pois não se almeja compreender os problemas
de recebida a toda filosofia que pertence a um cír- que foram levantados, mas sim a busca de entender
culo cultural distinto e distante do espaço social e o que o outro pensava sobre eles, e como estes pensa-
do tempo histórico daqueles da qual é apreendida mentos eram expressos em certos tipos de conceitos.
e adotada6. O “conceito” não é uma palavra da língua, se-
Aqueles que ignoram de quais ingredientes as não um signo artificial. Por isso, não é compreendi-
“ideias” são feitas, acreditam que seja fácil transfe- do por si. Ele é criado com o objetivo de se chegar
ri-las de um povo para outro e de uma a outra épo- a uma definição, que por sua vez é composta de
ca. Ignora-se que o que há de mais vital nas “ideias” outros conceitos. Por isso que todo escolasticismo
não seja o que se pensa gradativamente e o que é a degradação de um saber em mera terminologia.
aflora a consciência, mas sim o que subjaz a elas, o Embebem-se, nos seminários, os frades e sacerdo-
que jaz para além delas ao usá-las. Estes ingredien- tes cristãos atuais com uma bazofia terminológica
tes invisíveis, íntimos, são, às vezes, vivências de e logo almejasse que sirvam para alguma coisa, es-
um povo concebidas no decorrer de milênios. Este perando que saíam trotando pelo mundo. O exem-
pano de fundo latente que sustenta as “ideias”, que plo máximo deste esforço para conseguir chegar à
as preenche e nutre, não pode ser transferido, assim algum sentido conceitual personifica-se nos apuros
como não se pode transferir nada que seja autenti- que passaram os grandes escolásticos de Paris, Ox-
camente vida humana. A vida é sempre intransferí- ford, Pádua, Salamanca e Coimbra, para lidar com
vel. Este é o destino histórico. o vocábulo Ser.
Resulta, pois, ilusória a transferência integral A ontologia, ou busca do ser, é uma coisa que
das “ideias”. Transfere-se apenas o caule e a flor e, ocorreu aos gregos e não pode, com a mesma auten-
talvez pendurados nos galhos, o fruto daquele ano - ticidade, voltar a ocorrer com ninguém. Por isto tem
o que foi imediatamente útil naquelas ideias para as sido uma frivolidade, um capricho acadêmico de
gerações seguintes. Mas a vivacidade das “ideias”, Heidegger, querer ressuscitá-la, conseguindo ape-
que é a raiz, permanece na terra de origem. A planta nas gerar mais confusão, incapacitando-se, mesmo
humana é menos deslocável do que a vegetal. Esta sendo um pensador de primeira ordem, alcançado
é uma limitação terrível, mas inexorável e trágica. no fim o que Platão pretendia alcançar, e que cha-
A noção de “escolasticismo” é como uma ca- mava “sair ao Ser”. Para a filosofia se tornar possível
tegoria histórica e, portanto, como conceito, de nos dias de hoje se faz necessário superar a noção
grande valor real, evidenciando o fato de que, em de Ser, e evadir-se dela. Neste intuito, Sartre, enfant
semelhança aos conceitos físicos, representa uma terrible dos novos intuitos filosóficos, não ousou
magnitude hierárquica que em cada caso é maior ou fazê-lo, recaindo na empoeirada terminologia he-
menor. Os “escolasticismos” possuem factualmente geliana, nos deixando atônitos tentando interpretar
graus diversificados. Assomando um grau extremo palavras como “ser-em-si”, “ser-para-si”, “ser-para-
Te x t o s C l á s s i c o s
no escolasticismo medieval. Consistiu, sobretudo, -outro”. Os conceitos greco-latinos Ser e Ente não
na recepção do pensamento de Aristóteles, lido em são válidos atualmente para entender a Realidade
latim – São Tomás nunca pôde lê-lo em grego, ainda – principalmente a vida humana. O homem, por
que tenha intentado fazê-lo –, bem como por meio exemplo, consiste em ser o que ainda não é. Mas, a
trava-língua resultante desta afirmação demonstra
El Arquero, Kant, Hegel, Dilthey, quarta edição, Madri, 1972).
6 (Nota do Autor) Em Sensu Stricto, Escolasticismo significa o uso da que não há sentido em manter tal fórmula, a não ser
filosofia para lidar com conceitos teológicos, mas este significado tem sido que visa uma primeira aproximação ou continuida-
relegado por aquele que designa a peculiar filosofia usada pelos clérigos do de com o passado filosófico. Logo, esta ideia deve
Ocidente para essa necessidade.
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ser abandonada urgentemente, pois é como um na- ra isto com os egípcios. As denúncias que o Antigo
vio que náufraga. Testamento acumula contra eles não anulam o fato
Nesta representação extrema do escolasticis- de que os admiravam, ao ponto de querer imitá-los,
mo, que fora o escolasticismo medieval, projetamos e, como os egípcios se circuncidavam, os judeus de-
o neokantismo de 1900, descobrimos neste todos os cidiram fazer o mesmo para não se rebaixarem. A
traços daquele, só que de tamanho muito reduzi- circuncisão hebraica é a primeira grande manifes-
do. De fato, o neokantismo de Marburgo – que foi tação do notório esnobismo judaico.
verdadeiramente magistral – foi um escolasticis- Como doutrina, o neokantismo permaneceu
mo de graduação mínima e, por essa razão, afirmei como puro positivismo, e isso basta para classificá-
mais acima que não era uma filosofia. Os mestres -lo como um fenômeno intelectual pertencente ao
de Marburgo pertenciam ao mesmo círculo cultural último terço do século XIX.
que o kantismo original e cronologicamente esta- Não há mais conhecimento do que o alcança-
vam apenas a uns setenta anos de distância dele. do pela experiência, mas esses positivistas alemães
A distância é, pois, nula no espaço social e aprenderam em Kant que a experiência possui ape-
mínima no temporal. Essas duas coordenadas le- nas uma ínfima parcela ligada aos sentidos. Não há
variam a pensar que não se trata de um fenômeno experiência se não há uma teoria construída pela
de recepção de ideias, mas de normal continuida- mente e, portanto, “pura”, ideal, não experimen-
de e evolução das mesmas. Mas há um fato que tal, na qual os fatos sensíveis observados adquirem
se opõe a tal interpretação; Entre 1840 e 1870 há significação Que a chamada “experiência” exista e
duas gerações que lidam com política, fazem suas nela se configurem as verdades, não é, por sua vez,
revoluções, constroem ferrovias, criam as primeiras algo experimental. A “possibilidade da experiência”
grandes “plantas” industriais, colonizam, napoleo- – o mögliche Erfahrung de Kant – transcende a toda
nizam, bizmarckizam, desarmonizam. Estão, por- experiência. É puro Lógos. Os conceitos básicos que
tanto, muito entretidos com as coisas no mundo e tornam possível a ciência empírica ou experimen-
isso as obstrui o entendimento. A visão do bosque tal são construções lógicas, estritas e livres, que
é bloqueada pelas árvores. Para se ver o mundo – o consistem na negação de tudo que é que fruto dos
Enigma – é necessário imaginá-lo e de algum modo sentidos. Daí a negatividade óbvia na forma das pa-
sair dele. É por isso que essas gerações ignoram a lavras que os designam: a-tomo, in-dividuo, in-fini-
filosofia e essa se perde. Ocorre, consequentemen- tesimal, etc. Daí também para os neo-kantianos que
te, uma censura, um rompimento da continuidade a ciência das realidades e, portanto, do empírico e
histórica no questionamento filosófico. do sensível, deve constituir-se por um esqueleto da
Eis a razão do fio ter se perdido. E posso as- matemática pura. Em Margurg se...8
segurar aos jovens de hoje que testemunhei, em
Marburgo, a dolorosa tarefa de homens determi-
nados a encontrar algum sentido nos conceitos de Nota Biográfica
Kant, os quais se apresentavam para eles de forma
incompreensível, reluzindo em suas carapaças de José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo
palavras técnicas, semelhantes a uma quitina dura espanhol preocupado com os problemas que assolavam
e cheia de reflexos na qual se revestem os besouros. a Espanha do século XIX. Herdeiro da chamada Geração
Em Marburgo não se percebia as coisas – nem pre- de 98 espanhola, Ortega buscou na Alemanha a ciência
sentes, nem pretéritas – senão, através dos miste- que acreditava faltar em sua terra. Em território alemão
riosos vocábulos que Kant usava: “transcendental”, estuda com Wundt, Cohen e Natorp, aprofundando-
“consciência geral”, “esquematismo”, etc. se na filosofia neokantiana. Posteriormente, encontra
Este diagnóstico sobre o que fora o neokan- na fenomenologia de Husserl uma “boa sorte” para
tismo, em sua realidade, não diminui a admiração escapar da escola do neo-kantismo. Atuou como
que é devida ao grande Hermann Cohen. Sua obra político, jornalista e foi o fundador da Revista de
espremeu as cavilhas do pensar e está repleta de Occidente (1923). Ministrou cursos e escreveu diversos
grandes vislumbres geniais, embora seu direciona- ensaios e livros. É um dos mais influentes pensadores
mento final não pudesse levar a nada substancial, espanhóis, sendo considerado o maior divulgador da
estável e capaz de consequências concretas. Tinha fenomenologia na Espanha e na América Latina. Seus
uma belíssima cabeça de semita, com os cabelos de alunos ficaram conhecidos como a Escola de Madri,
uma brancura alva, o nariz com uma suave e perfei- tendo dentre eles grandes pensadores espanhóis, tais
ta curvatura, os lábios de coloração parda e repleto como: Xavier Zubiri, José Gaos e Julián Marías. Suas
de pequenas fendas, ou seja, a boca típica das raças obras foram compiladas e reeditadas (2004-2010) pela
nômades que o vento dos desertos mancha e seca. Editora Taurus e pela Fundación José Ortega y Gasset,
Em suas aulas, era como se fulminasse raios por um formalizando dez volumes.
Te x t o s C l á s s i c o s
349 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXV (3) - 344-349, 2019