Você está na página 1de 412

v.11.

03

sociologia & antropologia

setembro –dezembro 2021
issn 2238-3875
Sociologia & Antropologia destina-se à UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
apresentação, circulação e discussão Reitora
Denise Pires de Carvalho
de pesquisas originais que contribuam
Vice-Reitor
para o conhecimento dos processos
Carlos Frederico Leão Rocha
socioculturais nos contextos
brasileiro e mundial. A revista está INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
aberta à colaboração de especialistas Diretor
Fernando Santoro
de universidades e instituições de
pesquisa, e publicará trabalhos PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
inéditos em português, inglês e espanhol.
Coordenação
Sociologia & Antropologia ambiciona
Felícia Picanço
constituir-se em um instrumento de Letícia Mesquita
interpelação consistente do debate
contemporâneo das ciências sociais
e, assim, contribuir para o seu
desenvolvimento.

S678 Sociologia & Antropologia.


Sociologia & Antropologia. Revista do Programa de Revista do PPGSA
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Programa de Pós-Graduação em
Universidade Federal do Rio de Janeiro. –  v. 11, n.3 Sociologia e Antropologia
(set.– dez. 2021) – Rio de Janeiro: PPGSA, 2011– Largo de São Francisco de Paula 1 sala 420
Quadrimestral 20051-070 Rio de Janeiro RJ
t.+55 (21) 2224 8965 ramal 215
ISSN 2238-3875
revistappgsa@gmail.com
1. Ciências sociais – Periódicos. 2. Sociologia – sociologiaeantropologia.com.br
Periódicos. 3. Antropologia – Periódicos. I. revistappgsa.ifcs.ufrj.br
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Publicação quadrimestral
Triannual publication
CDD 300 Solicita-se permuta
Exchange desired

Indexadores
EBSCOHOST
PROQuEST
SCiELO
SCOPUS
SEER/IBICT
Diretórios
DOAJ
CLASE
SUMÁRIOS.ORG
Catálogos
LATINDEX
Portal de Periódicos CAPES
Researching Brazil
volume 11 número 03
setembro –dezembro 2021
quadrimestral
issn 2238-3875

sociologia & antropologia

ppgsa programa de pós-graduação em sociologia e antropologia


ufrj universidade federal do rio de janeiro, brasil
CORPO EDITORIAL Irlys Barreira
Editores (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) Jeffrey C. Alexander
Antonio Brasil Jr. (Editor Responsável) (Yale University, New Haven, CT, United States)
Marco Antonio Gonçalves João de Pina Cabral (University of Kent, United Kingdom)
José Sergio Leite Lopes
Comissão Editorial
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
José Maurício Domingues
André Botelho
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro/IESP, Brasil)
Elina Pessanha
José Vicente Tavares dos Santos
Glaucia Villas Bôas
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)
Maria Laura Cavalcanti
Josefa Salete Barbosa Cavalcanti
José Reginaldo Santos Gonçalves
(Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil)
José Ricardo Ramalho
Leonilde Servolo de Medeiros
Editor Associado (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Brasil)
Maurício Hoelz (UFRRJ) Lilia Moritz Schwarcz
Assistentes Editoriais (Universidade de São Paulo, Brasil e Princeton University, New
Julia O'Donnell Jersey, United States)
Rodrigo Santos Manuela Carneiro da Cunha
Aparecida Moraes (University of Chicago, Illinois, United States)
Mariza Peirano
Staff
(Universidade de Brasília, Distrito Federal, Brasil)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Maurizio Bach
Júlia Kovac
(Universität Passau, Bavaria, Germany)
Tayná Mendes
Michèle Lamont
Francisco Kerche
(Harvard University, Cambridge, Massachusetts, United States)
Patrícia Birman
Conselho Editorial
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
Alain Quemin
Peter Fry
(Université Paris 8, Saint-Denis, France)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Anete Ivo
Philippe Descola
(Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil)
(Collège de France, Paris, France)
Brasilio Sallum Junior
Renan Springer de Freitas
(Universidade de São Paulo, Brasil)
(Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil)
Carlo Severi
Ruben George Oliven
(École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, France)
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)
Charles Pessanha
Sergio Adorno (Universidade de São Paulo, Brasil)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Cristiana Bastos
(Universidade de Lisboa, Portugal)
PRODUÇÃO EDITORIAL
Edna Maria Ramos de Castro
Projeto gráfico, capa e diagramação
(Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil)
a+a design e produção Glória Afflalo
Elide Rugai Bastos
Preparação e revisão de textos
(Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil)
Maria Helena Torres
Ernesto Renan Freitas Pinto
(Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Brasil)
Gabriel Cohn © Programa de Pós-Graduação em
(Universidade de São Paulo, Brasil) Sociologia e Antropologia / UFRJ
Guenther Roth Direitos autorais reservados: a reprodução integral de artigos
(Columbia University, New York, United States) é permitida apenas com autorização específica; citação
Helena Sumiko Hirata parcial será permitida com referência completa à fonte.
(Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, France)
Heloísa Maria Murgel Starling
Apoio
(Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil)
Huw Beynon
(Cardiff University, Wales, United Kingdom)
Jeffrey C. Alexander
(Yale University, Connecticut, United States)
Os editores (PPGSA/UFRJ)

APRESENTAÇÃO

Com este terceiro número, fechamos o volume 11 de Sociologia & Antropologia.


Este ano, tão ou mais desafiador do que o passado, em função da persistência
(e mesmo agravamento) do quadro pandêmico, exigiu muito de nossa equipe
editorial, que tentou responder às inúmeras demandas de um universo editorial
em transformação em meio a dificuldades institucionais e pessoais as mais
diversas, sem deixar de oferecer um espaço de reflexão coletiva a nossa
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 723 – 724 , set. – dez., 2021

comunidade das ciências sociais sobre a crise contemporânea – nosso número


especial dedicado à pandemia de covid-19 é prova disso.
É com satisfação que oferecemos aos leitores um número dedicado à
obra da antropóloga indiana Veena Das, referência incontornável nos estudos
sobre violência coletiva, eventos críticos, transformações urbanas, vida ordinária
na etnografia, entre outros temas. Além de entrevista inédita com a autora,
realizada por Adriana Vianna, Letícia Ferreira, Camila Pierobon e Cynthia Sarti,
publicamos também os seguintes artigos: “Disquiet: words, times and relations
along an ethnographic trajectory”, de Adriana Vianna; “Figurations of pain: me-
mory through life”, de Cynthia Sarti; “‘Almost nothing has changed’: ordinary
ethics and forms of life in pandemic times”, de Ceres Víctora, Patrice Schuch e
Monalisa Dias de Siqueira, e “Family betrayals: the textures of kinship”, de
Camila Pierobon. Completam o conjunto de textos sobre a obra de Veena Das
o registro de pesquisa de Bhrigupati Singh, “‘In your writing I am existed’: re-
ading the history of anthropology via Textures of the ordinary”, e a resenha es-
crita por Carolina Parreiras de Textures of the ordinary: doing anthropology after
Wittgenstein, publicado por Das em 2020.
apresentação | os editores

724

Vale ainda registrar o relato em primeira pessoa da própria Veena Das,


“Duas tranças e um passo no mundo: uma infância rememorada”, que publica-
mos na seção de memória (disponível apenas em nosso site).
Na sequência do número, incluímos os artigos “Indivíduo e individua-
lismo em Norbert Elias”, de Tatiana Savoia Landini e Andréa Borges Leão; “Cul-
tura de ofício marítima pesqueira”, de Cristiano Wellington Noberto Ramalho,
“‘Por que homossexuais só existem na cidade?’ a recente ‘institucionalização’
da ‘homossexualidade’ no sul de Moçambique”, de Francisco Miguel, “Electro-
movilidad y retórica política: recursos naturales, nacionalismo tecnológico y
moral verde en Bolivia”, de Francisco Adolfo García Jerez; “Inveja e corpo fecha-
do no maracatu de baque solto pernambucano”, de Filippo Bonini Baraldi; “Te-
oria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pen-
samento político (1955-1958)”, de Christian Edward Cyril Lynch e Pedro Paiva
Marreca; e “Pos-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gêne-
ro e sexualidade – vozes da África – notas a partir de um conhecimento em
curso”, de Mary Garcia Castro.
Por fim, ainda reunimos neste último número do volume 11 o registro
de pesquisa de Bila Sorj “Estudos sobre o cuidado na sociologia: a contribuição
de Nadya Araujo Guimarães e Helena Hirata” e mais duas resenhas: a de John
C. Dawsey do livro Drama, ritual e performance: a antropologia de Victor Turner
(2020), de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, e a de Mariana Barreto do
livro Peut-on dissocier l’œuvre de l’auteur? (2020), de Gisèle Sapiro.

Desejamos a todes uma boa leitura, boas festas e – com muita esperança
– um feliz 2022.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 723 – 724 , set. – dez., 2021
The editors (PPGSA/UFRJ)

PRESENTATION

With this third issue we conclude Volume 11 of Sociologia & Antropologia. This
year – just as challenging as the previous year, perhaps more so given the
persistence and worsening even of the pandemic – asked much of our editorial
team, who worked hard to respond to the numerous demands of a shifting and
transforming editorial universe amid all kinds of institutional and personal
difficulties. As a result, they continued to provide a space of collective reflection
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 725 – 726 , set. – dez., 2021

for our social science community on the contemporary crisis – as our special
issue on the covid-19 pandemic is proof.
It is our pleasure to present readers with an issue dedicated to the work
of Indian anthropologist Veena Das, an essential reference in studies on
collective violence, critical events, urban transformations, and ordinary life in
ethnography, among other themes. As well as a previously unpublished inter-
view with the author, conducted by Adriana Vianna, Letícia Ferreira, Camila
Pierobon and Cynthia Sarti, we also publish the following articles: “Disquiet:
words, times and relations along an ethnographic trajectory,” by Adriana Vi-
anna; “Figurations of pain: memory through life,” by Cynthia Sarti; “‘Almost
nothing has changed’: ordinary ethics and forms of life in pandemic times,” by
Ceres Víctora, Patrice Schuch and Monalisa Dias de Siqueira; and “Family be-
trayals: the textures of kinship,” by Camila Pierobon. The set of texts on Veena
Das’s work is completed by the research record of Bhrigupati Singh, “‘In your
writing I am existed’: reading the history of anthropology via Textures of the
ordinary,” and Carolina Parreiras’s book review of Textures of the ordinary: doing
anthropology after Wittgenstein, published by Das in 2020.
presentation | the editors

726

We can also highlight the first-person account by Veena Das herself, “Two
plaits and a step in the world: a childhood remembered,” which we publish in
the memoirs section (available only on our website).
Next in the issue we include the articles “Individual and individualism
in Norbert Elias,” by Tatiana Savoia Landini and Andréa Borges Leão; “Maritime
fishing culture,” by Cristiano Wellington Noberto Ramalho, “‘Why do homosexuals
only exist in the city?’ the recent ‘institutionalization’ of ‘homosexuality’ in
southern Mozambique,” by Francisco Miguel, “Electromobility and political
rhetoric: natural resources, technological nationalism and green morality in
Bolivia,” by Francisco Adolfo García Jerez; “Envy and the corpo fechado in the
Pernambucan maracatu de baque solto,” by Filippo Bonini Baraldi; “Postcolonial
theory and Brazilian thought in the work of Guerreiro Ramos: political thought
(1955-1958),” by Christian Edward Cyril Lynch and Pedro Paiva Marreca; and
“Postcolonialism and decolonialities: ethnicity, reproduction, gender and
sexuality – voices from Africa – notes based on knowledge in progress,” by Mary
Garcia Castro.
Finally, this final issue of Volume 11 includes the research record of
Bila Sorj “Studies of care in sociology: the contribution of Nadya Araujo Gui-
marães and Helena Hirata” and two more book reviews: John C. Dawsey’s review
of Drama, ritual e performance: a antropologia de Victor Turner (2020), by Maria
Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, and Mariana Barreto’s review of Peut-on
dissocier l’œuvre de l’auteur? (2020), by Gisèle Sapiro.
We wish everyone good reading, a joy-filled holiday season and – with
much hope – a happy 2022.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 725 – 726 , set. – dez., 2021
sociologia & antropologia

volume 11 número 03
setembro –dezembro 2021
quadrimestral
issn 2238-3875

MEMÓRIA 733 DUAS TRANÇAS E UM PASSO NO MUNDO: UMA INFÂNCIA


REMEMORADA
Veena Das

ENTREVISTA 749 ANTHROPOLOGY, DESIRE, AND TEXTURES OF LIFE:


AN INTERVIEW WITH VEENA DAS
Letícia Ferreira, Adriana Vianna, Camila Pierobon & Cynthia Sarti

ARTIGOS 793 DISQUIET: WORDS, TIMES AND RELATIONS ALONG AN


ETHNOGRAPHIC TRAJECTORY
Adriana Vianna

817 FIGURATIONS OF PAIN: MEMORY THROUGH LIFE


Cynthia Sarti

843 “ALMOST NOTHING HAS CHANGED”: ORDINARY ETHICS AND


FORMS OF LIFE IN PANDEMIC TIMES
Ceres Víctora, Patrice Schuch & Monalisa Dias de Siqueira

869 FAMILY BETRAYALS: THE TEXTURES OF KINSHIP


Camila Pierobon

891 INDIVÍDUO E INDIVIDUALISMO EM NORBERT ELIAS


Tatiana Savoia Landini & Andréa Borges Leão

913 CULTURA DE OFÍCIO MARÍTIMA PESQUEIRA


Cristiano Wellington Noberto Ramalho

945 “POR QUE HOMOSSEXUAIS SÓ EXISTEM NA CIDADE?” A RECENTE


“INSTITUCIONALIZAÇÃO” DA “HOMOSSEXUALIDADE” NO SUL DE
MOÇAMBIQUE
Francisco Miguel
971 ELECTROMOVILIDAD Y RETÓRICA POLÍTICA: RECURSOS
NATURALES, NACIONALISMO TECNOLÓGICO Y MORAL
VERDE EN BOLIVIA
Francisco Adolfo García Jerez

995 INVEJA E CORPO FECHADO NO MARACATU DE BAQUE SOLTO


PERNAMBUCANO
Filippo Bonini Baraldi

1025 TEORIA PÓS-COLONIAL E PENSAMENTO BRASILEIRO NA


OBRA DE GUERREIRO RAMOS: O PENSAMENTO POLÍTICO
(1955-1958)
Christian Edward Cyril Lynch & Pedro Paiva Marreca

1051 POS-COLONIALISMO E DECOLONIALIDADES: ETNICIDADE,


REPRODUÇÃO, GÊNERO E SEXUALIDADE – VOZES DA ÁFRICA
– NOTAS A PARTIR DE UM CONHECIMENTO EM CURSO
Mary Garcia Castro

REGISTROS DE PESQUISA 1079 “IN YOUR WRITING I AM EXISTED”: READING THE HISTORY OF
ANTHROPOLOGY VIA TEXTURES OF THE ORDINARY
Bhrigupati Singh

1089 ESTUDOS SOBRE O CUIDADO NA SOCIOLOGIA: A


CONTRIBUIÇÃO DE NADYA ARAUJO GUIMARÃES
E HELENA HIRATA
Bila Sorj

RESENHAS 1101 TESSITURAS, TEXTURAS, TRELIÇAS E TRAMAS: O COTIDIANO,


O ORDINÁRIO E A TAREFA DA ANTROPOLOGIA
Carolina Parreiras

1107 VICTOR WITTER TURNER, KAVULA!


John C. Dawsey

1113 AUTOR E OBRA PODEM SER SEPARADOS? “SIM E NÃO”


RESPONDE GISÈLE SAPIRO
Mariana Barreto

ERRATUM 1120 TIME AND THE PRODUCTION OF SPACE IN SOCIOLOGY


Fraya Frehse
sociologia & antropologia

volume 11 number 03
september-december 2021
triannual
issn 2238-3875

MEMORY 733 TWO PLAITS AND A STEP IN THE WORLD: A CHILDHOOD


REMEMBERED
Veena Das

INTERVIEW 749 ANTHROPOLOGY, DESIRE, AND TEXTURES OF LIFE: AN


INTERVIEW WITH VEENA DAS
Letícia Ferreira, Adriana Vianna, Camila Pierobon & Cynthia Sarti

ARTICLES 793 DISQUIET: WORDS, TIMES AND RELATIONS ALONG AN


ETHNOGRAPHIC TRAJECTORY
Adriana Vianna

817 FIGURATIONS OF PAIN: MEMORY THROUGH LIFE


Cynthia Sarti

843 “ALMOST NOTHING HAS CHANGED”: ORDINARY ETHICS AND


FORMS OF LIFE IN PANDEMIC TIMES
Ceres Víctora, Patrice Schuch & Monalisa Dias de Siqueira

869 FAMILY BETRAYALS: THE TEXTURES OF KINSHIP


Camila Pierobon

891 INDIVIDUAL AND INDIVIDUALISM IN NORBERT ELIAS


Tatiana Savoia Landini & Andréa Borges Leão

913 CULTURE OF MARITIME FISHING TRADE


Cristiano Wellington Noberto Ramalho

945 “WHY DO HOMOSEXUALS ONLY EXIST IN CITIES?” THE RECENT


“INSTITUTIONALIZATION” OF “HOMOSEXUALITY” IN SOUTHERN
MOZAMBIQUE
Francisco Miguel
971 ELECTROMOBILITY AND POLITICAL RHETORIC: NATURAL
RESOURCES, TECHNOLOGICAL NATIONALISM AND GREEN
MORALITY IN BOLIVIA
Francisco Adolfo García Jerez

995 ENVY AND THE CLOSED BODY IN MARACATU DE BAQUE SOLTO


(PERNAMBUCO, BRAZIL)
Filippo Bonini Baraldi

1025 POST-COLONIAL THEORY AND BRAZILIAN THOUGHT IN THE


WORK OF GUERREIRO RAMOS: POLITICAL THOUGHT (1955-1958)
Christian Edward Cyril Lynch & Pedro Paiva Marreca

1051 POSCOLONIALISM AND DECOLONIALITY: ETHNICITY, SOCIAL


REPRODUCTION, GENDER AND SEXUALITY – AFRICAN VOICES –
NOTES FROM AN ACADEMIC COURSE
Mary Garcia Castro

Research RECORDS 1079 “IN YOUR WRITING I AM EXISTED”: READING THE HISTORY OF
ANTHROPOLOGY VIA TEXTURES OF THE ORDINARY
Bhrigupati Singh

1089 STUDIES ON CARE IN SOCIOLOGY: THE CONTRIBUTION OF


NADYA ARAUJO GUIMARÃES AND HELENA HIRATA
Bila Sorj

REVIEWS 1101 TEXTURES, STRETCHES AND WEAVES: EVERYDAY LIFE,


THE ORDINARY AND THE TASK OF ANTHROPOLOGY
Carolina Parreiras

1107 VICTOR WITTER TURNER, KAVULA!


John C. Dawsey

1113 CAN AUTHOR AND WORK BE SEPARATED? GISÈLE SAPIRO


ANSWERS "YES AND NO"
Mariana Barreto

Erratum 1120 TIME AND THE PRODUCTION OF SPACE IN SOCIOLOGY


Fraya Frehse
MEMÓRIA
732
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752021v1131

1 Johns Hopkins University, Krieger School of Arts and Sciences,


Baltimore, MD, Estados Unidos
veenadas@jhu.edu
https://orcid.org/0000-0001-7397-0815

Veena Das l

Duas tranças e um passo no mundo:


uma infância rememorada

Às vezes tenho um sonho em que me vejo vagando por uma fortaleza histórica.
Uma pessoa, talvez um viajante, me acompanha. Tudo parece benigno, mas, à
medida que entramos na fortaleza, novas vielas se abrem; vejo pessoas
agachadas ao redor de uma fogueira, aquecendo as mãos, cozinhando – a fumaça
sobe das fogueiras a carvão, e há crianças brincando. No sonho, sei que deveria
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 733 – 745 , set. – dez., 2021

reconhecer essas pessoas, mas não consigo lembrar quem são. Sei que estou
lentamente sendo atraída para algo que me assusta e que, se eu me demorar
demais, nunca mais retornarei para a minha vida.

O sonho reapareceu quando tentei escrever um texto em homenagem a André


Béteille, meu querido professor e posteriormente colega. Como se eu tivesse
voltado a uma daquelas discussões de orientação, algo antes obscuro se
esclareceu: esse sonho era uma alegoria da minha infância. Sei que alguns dos
eventos que descrevo aconteceram, mas há muitas figuras que simplesmente
surgem em minhas memórias para, sem mais desaparecer – figuras espectrais,
cuja realidade não posso tocar. Vejam as fotos – elas são desbotadas e misteriosas.
Algumas são de papai (esses não são termos de minha preferência, mas foi com
eles que cresci) em seu uniforme de oficial subalterno. O cenário muitas vezes
não sugere riqueza, mas há uma fotografia em que um grupo está diante do
que parece ser um restaurante chique – o do Astoria Hotel. Corresponde às
minhas memórias de algo ouvido por acaso. Quando papai morreu, as pessoas
duas tranças e um passo no mundo: uma infância rememorada

734

diziam à minha mãe: a despeito das dificuldades vividas, ele deu a você a vida
de uma rainha – bade raj karai.

Na casa de meu irmão em Nova York está pendurada uma litografia emoldurada
na qual a tríade Ram-Sita-Lakshman, com Hanuman curvando-se em devoção,
olha para fora da moldura com um gesto de bênção. Em um canto de um cômodo
que havia sido dividido em dois em nossa minúscula moradia na localidade de
Model Basti, em Delhi, havia uma pequena alcova. Essa foto foi colocada ali
com uma diya – um lampião de barro aceso todas as noites enquanto papai se
curvava diante de suas divindades de devoção. Minha mãe, por outro lado, era
uma fiel seguidora de Arya Samaj e não se curvava diante de nenhum ídolo. Ela
fazia meus irmãos e eu nos sentarmos à noite para um havan, para o qual
fazíamos oferendas ao fogo e entoávamos mantras sânscritos que recitávamos
a partir de um texto-guia. Meu irmão mais velho era ateu, e o outro se sentia
atraído por todas as formas de ocultismo que pudesse encontrar. Eu conseguia
ser todas essas coisas em diferentes momentos do dia.
A imagem na casa de meu irmão é importante para mim porque em 1956,
quando papai dava seu último suspiro, ele pediu que a imagem fosse trazida
para si; então, ele cruzou as mãos sobre ela e pediu que fosse posto no chão,
para que pudesse morrer sem estar preso a nada. Antes, ele havia pedido que
trouxessem uma xícara de chá para o vaid ji 1 que estava cuidando dele – e então
ele simplesmente se foi. Por outro lado, minha mãe, que morreu muito depois
e nunca havia orado diante de um ídolo, ficava chamando Maharini, a deusa, e
dizendo “jo teri marzi” – qualquer que seja o seu desejo.
Foram tantas mortes na minha infância... Meus amigos se dividiam
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 733 – 745 , set. – dez., 2021

segundo o modo como a morte os tocou. Na rua em Model Basti, falávamos


sobre morrer em tons um tanto casuais. Aqueles ainda eram tempos em que
as pessoas relutavam em ir para o hospital, sinal certo de que alguém iria morrer.
Na minha escola, a Lady Irwin School, que eu frequentava porque ganhei uma
bolsa de estudos, meus amigos moravam em casas onde parecia que a morte
não era convidada a entrar. Exceto por uma amiga que misteriosamente
chamava sua mãe de “tia Ji” e me explicou que tanto sua irmã mais velha quanto
ela sabiam que tia Ji era sua madrasta. Os irmãos mais novos não sabiam disso,
mas de alguma forma adotaram a expressão. Tia Ji era extremamente carinhosa,
e minha amiga, Indu, tinha vestidos muito lindos, com bordados delicados,
todos feitos em casa. Nunca pensei em perguntar se ela se lembrava de sua
mãe. Acho que as crianças sabem muitas coisas sobre a morte e o morrer.

Antes dos dias de Model Basti, porém, parece que não éramos tão pobres. Papai
havia sido promovido do posto de oficial subalterno no Exército para o posto
memória | veena das 

735

de capitão. Lembro-me vagamente de histórias de suas lutas no Egito e no Sudão.


Mas sua carreira militar ficou marcada em mim pelo que eu tinha de fazer –
manter postura ereta e a cabeça erguida e olhar para minhas mãos todas as
manhãs e dizer: eu sou forte. Naqueles tempos, vivemos por alguns anos, pelo
menos, em King Edward’s Mess, e antes disso em Jatog, Mahu e Ambala. As
únicas lembranças que tenho desses lugares são uma imagem fugaz – em Jatog,
provavelmente com dois anos de idade, lembro-me de ver papai saindo de um
pequeno trem – o único passageiro a descer do trem, e consigo vê-lo puxando
por um barbante um patinho de madeira da cor branca. Em Mahu, agora com
quatro anos, lembro-me de dizer a um professor “Não tenho mamãe em casa,
tenho uma lilavati”. 2 E então em Ambala uma clara lembrança do anúncio da
morte de Sardar Patel e de um feriado inesperado.

Papai e mamãe em Lahore

Mais tarde, em King Edward’s Mess, em Delhi, adorei o relvado aberto da


Porta da Índia e, aos domingos, era levada a All India Radio para participar do
programa infantil como parte da audiência ao vivo. Posso até ter recitado um
poema alguma vez. Embora não me lembre daqueles dias tanto quanto me
lembro de Model Basti, lembro-me de ter estudado no Convento Jesus e Maria
por alguns meses e depois ter sido misteriosamente tirada de lá, embora não
tivesse feito nada de ruim.
duas tranças e um passo no mundo: uma infância rememorada

736

Já em circunstâncias bem mais humildes

Houve um episódio estranho. Papai adoeceu e estávamos indo para Lucnau. O


trem parou em Modi Nagar, onde meu mama ji (tio) veio nos ver. Lembro-me de
que meus pais continuaram para Lucnau, mas eu fiquei para trás com mama ji.
Sempre pensei que havia sido por minha insistência que tinham me deixado ali,
mas minha mente adulta me diz que isso poderia ter sido planejado dessa forma,
porque talvez fosse difícil cuidar de mim em Lucnau. De qualquer forma, morei
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 733 – 745 , set. – dez., 2021

com minha tia, meu tio e meus primos no vilarejo de Mohi-ud-din Pur por talvez
três meses, talvez seis. Eu tomava o trem para Modi Nagar com meus primos
todas as manhãs e frequentava algum tipo de escola lá. Só lembro que não
usávamos cadernos naquela escola. Todo mundo escrevia em um patti branco.
Por alguma razão, eu era capaz de falar inglês (aprendi no Jesus e Maria ou já
sabia falar inglês?) E isso fez com que os professores expressassem certo temor
– tornei-me uma espécie de espetáculo para quem visitasse a escola. Mas naqueles
três ou seis meses a figura que ganhou vulto em minha mente foi a de um certo
sr. Chatterji, que lecionava na escola da aldeia e estava muito interessado nas
crianças de lá. Ele nos ensinou, por exemplo, que o gás subia e a água descia,
fazendo-nos encher balões coloridos com água e gás e depois mostrando que o
gás poderia fazer com que os balões subissem. Para um professor de aldeia, ele
parecia ter muitos livros e amava a poesia inglesa. Lembro-me disso porque eu
era a única criança que sabia ler em inglês, e ele me emprestou livros sobre os
quais me debrucei à luz do lampião, já que a aldeia não tinha eletricidade. Ele
também me ensinou como recitar poemas com dicção e expressão adequadas.
memória | veena das 

737

E então eu retornei não para King Edward’s Mess, mas para uma casa em Model
Basti. Dois eventos se destacam. Um foi que papai me deu um exemplar do
Ramcharitmanas. Pela dedicatória, sei que tinha nove anos. Fiquei encantada
com a cadência dos chands e dos chaupais. 3 Memorizei grandes trechos do texto
e podia recitar versos como “vo van nikat dashanan aayo”. Eu estava fascinada
não apenas pelo texto, mas por sua capacidade de fazer profecias, porque todos
os dias eu abria o texto em uma página aleatória e a partir da quadra em que
meu dedo caísse eu previa o que iria acontecer. Antes, papai havia descoberto
algo sobre uma bolsa de estudos para admissão em escolas públicas. Havia uma
expectativa de que eu conseguisse uma vaga na Escola Moderna. Passei no
exame escrito. Um vestido novo, bem elegante, foi costurado para que eu o
usasse na entrevista. Infelizmente, confundi na prova a terra girando em torno
do Sol com a terra girando em torno de seu próprio eixo. Fim da bolsa – fim de
uma vida na escola pública. Mas, felizmente, passei no teste para bolsa de
estudos na Lady Irwin School e lá descobri o teatro, a dança Manipuri e a
literatura hindi.

Várias famílias alugavam um ou dois quartos em casas de Model Basti. Na casa


em que morávamos, cinco famílias dividiam o banheiro que ficava perto da
porta de saída para a gali. 4 O banheiro era improvisado, com telhado de zinco.
Meu irmão mais velho não morava lá porque estava fazendo faculdade de
medicina em Bombaim. Papai estava doente, com doença cardíaca crônica e
problemas renais. Meu segundo irmão abandonou a escola ou faculdade que
cursava – ele nunca foi capaz de me informar o quanto frequentou os estudos,
e suspeito que fosse disléxico. A vida estava fadada a ser difícil, sem nenhuma
renda. Porém, o irmão que não havia concluído os estudos revelou grande
talento social e, assim, tornou-se fotógrafo da sociedade. Ele se recusava a usar
o banheiro de casa, mas parecia estar constantemente em restaurantes e hotéis
fotografando eventos sociais importantes e tomando um banho rápido nesses
lugares. Pelo menos essa é minha reconstrução do que estava acontecendo. Na
minha família ninguém dizia nada a ninguém. Você pescava as coisas durante
as brigas, ou quando os adultos pensavam que você estava dormindo.
De qualquer modo, éramos realmente pobres, e às vezes tudo o que
tínhamos para comer eram chapatis e uma mistura de cebolas, pimentões verdes
e tomates. Mas, de alguma forma, não me lembro daqueles dias com tanta
dureza. Em vez disso, lembro-me dos prabhat pheris, grupos de homens andando
pela gali entoando as canções favoritas de Gandhi: “utha jag musafir bhor bahie,
ab rainkahan jo sovat hai” e “vashnav jan to tene kahiye” – “Levante-se, ó viajante,
já nasce o dia, é finda a noite em que se dorme”; e “Eles são os vaixnavs5 que
conhecem a dor dos outros”. No entanto, eles não eram gandhianos; penso que
eram membros da Organização Nacional Voluntária (RSS).6 Também me lembro
duas tranças e um passo no mundo: uma infância rememorada

738

de como a rua era animada. À tarde, as mulheres levavam para fora os charpais,
onde descascavam vegetais, tricotavam, bordavam, fofocavam. Ocasionalmente,
quando alguém tinha dinheiro, paravam um vendedor ambulante e compravam
rabanetes para todos ou gol gappas ou kulfi. Grupos de meninas pulavam corda
ou brincavam de amarelinha e outros jogos desenhados no chão ou jogavam
gittas – cinco pedras a serem recolhidas de uma vez enquanto uma pedra era
lançada no ar. Durante o festival teej, celebrando a monção e o retorno das filhas
casadas à casa dos pais, pendurávamos balanços – duas tábuas de madeira
amarradas em níveis diferentes, nas quais duas meninas ou moças se sentavam
e balançavam enquanto todo mundo cantava canções teej. Havia desenhos
elaborados de mehandi (henna) para usar, e as roupas eram tingidas de amarelo.
À noite, os charpais eram colocados em uma fileira, e enquanto as
meninas eram postas para dormir “dentro”, cercadas por esteiras de pais ou
irmãos, elas ainda podiam sentar-se todas juntas até ser chamadas, para não
incomodar os outros. A música flutuava nas vozes das mulheres cantando na
casa de alguém ou em um terraço. Tappas, swang e canções de filmes antigos.
Noites escuras iluminadas pelas estrelas.
Parece que às vezes não havia dinheiro em casa e outras vezes aparecia
de algum lugar. Quando havia dinheiro, podia-se beber leite de uma loja de um
halwai que também havia migrado de Lahore e sabia engrossar o leite, e o
misturava com tâmaras e ameixas secas.

Na escola, a vida era completamente diferente. De alguma forma, eu sabia que


nunca poderia convidar amigos para ir a minha casa e, portanto, sempre me
desculpava sobre a razão de não poder aceitar convites para aniversários em
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 733 – 745 , set. – dez., 2021

suas casas. Provavelmente outros também escondiam a situação em que viviam.


Mas, enquanto estávamos na escola, a igualdade era absoluta. Na escola
primária em Delhi, quando eu provavelmente estava na terceira série, fomos
selecionados para apresentar uma espécie de teatro de rua em Rashtrapti
Bhawan na presença de Rajendra Prasad, o então presidente da Índia. Todos
representaríamos fantoches, e tínhamos de fazer movimentos semelhantes aos
dos bonecos. O episódio selecionado foi o “Swayamvara”, de Ram e Sita. Fui
escolhida para fazer o papel de Sita, e esse era um papel muito cobiçado, porque
era preciso se vestir bem e ficar bonita. Para mim, houve um grande problema:
me pediram para trazer um sári com bordado de ouro. Mamãe disse que não
tinha, mas a situação foi contornada por uma vizinha que era viúva e tinha um
baú cheio de sáris com todos os tipos de gota e tilla – bordas de ouro, borlas e
flores. Ela carinhosamente me emprestou um. A história não teve um final
muito feliz. Mais tarde (cerca de seis meses depois), ela deu a entender que
sabia que meu irmão estava estudando medicina em Bombaim e pensou que
um casamento entre ele e sua filha seria um bom enlace, mas se descobriu que
memória | veena das 

739

meu irmão “fotógrafo de sociedade” já estava tendo um caso com sua filha, e
a mãe o desaprovava totalmente. Depois de muita confusão, todas as relações
entre a família dela e a nossa foram rompidas. Por fim, eu tinha um lindo sári
roxo – mas então todo o meu papel se limitava a enfeitar a garota que fazia o
papel de Ram. O papel de que eu mais gostava era o de Lakshman, em que ele
(ela) tinha de brandir o punho na assembleia e fazer um discurso inflamado.
Anos depois, eu estava tentando fazer uma transação em um banco e de repente
vi uma mulher que me pareceu extremamente familiar, e eu deixei escapar:
“Você era Lakshman na Lady Irwin School!”, e de fato era ela. No entanto, ela
disse que tinha inveja de mim porque o presidente havia me oferecido um doce.
De repente, me lembrei de que ela havia dito então que eu só tinha conseguido
o papel porque eu tinha a pele clara, e ela era morena. Apesar dessa crítica
contundente às minhas habilidades como atriz, minha carreira no teatro ainda
não havia acabado.

Havia dois tipos de eventos públicos no ensino médio pelos quais todas nós
aguardávamos. Um deles era a competição de recitação organizada pela Missão
Ramakrishna na Panchkuian Road todos os anos. Tínhamos que decorar os
discursos de Swami Vivekananda e recitá-los no gramado da missão. Os
discursos estavam em hindi, bengali e inglês e eu tentava competir nos três.
(Embora eu tendesse ao hindi, eu tinha aprendido bengali o suficiente na escola
para ser capaz de memorizar discursos) A passagem de que me lembro
particularmente bem era: “Necessitamos hoje sobretudo de músculos de ferro
e nervos de aço” – o que era para ser dito heroicamente, cabeça erguida, com
voz de aço. Devo dizer que com as orientações ministradas pelo meu professor,
ganhei muitos prêmios todos os anos. Mais tarde, quando entrei na faculdade
aos 16 anos, minha percepção de mim mesma como debatedora me foi muito
útil. Ela me ajudou a me aproximar de N.K. Singh e J. Krishnamurthy, que eram
debatedores conhecidos na Universidade de Delhi e me aceitaram porque eu
era bastante útil na elaboração de todo o tipo de piada e brincadeira contra o
Indraprastha College. Mas a essa altura eu já havia cruzado o limiar da infância.
O segundo evento público era um festival anual de variedades organizado
para os pais. Por alguma razão, nosso currículo de história era fortemente
voltado para eventos da história britânica. Então, certo ano, a peça que
apresentamos tinha a ver com a rainha Maria de Escócia, e eu fui escolhida
para esse papel. Agora a questão era que precisávamos decorar uma tonelada
de datas, nomes de lugares e referências absolutamente descontextualizadas
à Guerra das Rosas e às Rosas Brancas e Vermelhas e a como a rainha Elizabeth,
a Virgem, se casou com toda a Inglaterra. Eu deveria interpretar Maria, mas não
sabia o que diabos as referências à conspiração católica significavam, e embora
a tragédia de minha execução me fizesse derramar lágrimas reais, tudo isso
duas tranças e um passo no mundo: uma infância rememorada

740

era representado em um cenário esotérico. Minhas tentativas de obter algum


tipo de explicação de papai resultavam em “tudo ficará claro mais tarde, quando
você crescer”. Mas eu me lembro dele então e de como ele ficou orgulhoso do
meu desempenho.
Enquanto isso, a vida de Model Basti continuava. Tive duas grandes brigas
com mamãe. Um era sobre uma capa de chuva que eu queria. Custava doze
rúpias e era uma capa de chuva verde da marca Duckback. Hoje eu sei que papai
já estava terrivelmente doente e que um médico o havia examinado. Sei que
ele disse a mamãe que não havia esperança. A barriga de papai inchava, enchia-
se de água e a cada dez dias o vaid ji costumava vir com uma seringa enorme
para com ela drenar aquele líquido. Não consigo entender por que fui tão
teimosa com a capa de chuva. Chorei dias e dias e no fim me compraram a capa
de chuva, mas paguei um preço altíssimo no olhar de desprezo que recebi de
mamãe.
O segundo bem mais valioso que ganhei depois de muita luta foi uma
bicicleta. Depois da morte de papai, mamãe tentou conquistar alguma
estabilidade financeira começando um trabalho de meio período como
merendeira na escola, no qual tinha a ajuda de meu irmão do meio, cuja carreira
como fotógrafo da sociedade havia chegado a um triste fim. Eu tinha então 11
anos, acho, e a perspectiva de poder ir para a escola de bicicleta, em vez do
ônibus escolar, era maravilhosa. Também pensei que economizaria algum
dinheiro. Mamãe se opôs, como de costume, mas com a ajuda de meu irmão
mais velho consegui minha bicicleta. Foi também nessa época que descobri a
Biblioteca Pública de Delhi. Recrutei um de meus primos mais velhos – por
razões complicadas de política familiar, mamãe não foi capaz de dizer um não
direto a ele quando ele perguntou se podíamos ir de bicicleta até a estação para
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 733 – 745 , set. – dez., 2021

visitar a biblioteca que ficava em frente. Então, eu poderia visitar a biblioteca


e ler livros lá, mas para conseguir pegar os livros emprestados, eu precisava de
um depósito em dinheiro ou de uma assinatura do comissário municipal da
minha área. Eu consegui a assinatura dele. Que aventura!
Terei de recuar um pouco e voltar ao tempo em que papai ainda não
estava confinado à cama e tínhamos acabado de nos mudar para Model Basti.
Não sei por quais conexões, mas papai tinha alguma amizade com Rai Sahib
Jyoti Prasad Jain, que morava em uma casa grande em Model Basti. (Seus filhos
mais tarde se tornariam os magnatas do aço, e acho que Surendra Jain, que
mais tarde foi implicado no enorme escândalo de suborno durante o mandato
de Narasimha Rao, era seu filho.) Na verdade, parecia que uma das razões pelas
quais papai havia se mudado para essa casa modesta em Model Basti era algum
tipo de promessa do influente Rai Sahib de que ele seria capaz de conseguir
uma casa em um programa de troca de evacuados no lugar da casa que eles
tinham deixado para trás em Lahore. Quando estava morrendo, papai se sentia
extremamente traído, mas essa era uma história posterior. Na época em que
memória | veena das 

741

nos mudamos para Model Basti, Rai Bahadur Sahib estava se candidatando às
eleições, e mamãe, que tinha uma presença muito digna, formou um grupo de
mulheres para fazer propaganda de casa em casa. Então, eu acompanhava as
mulheres quando não havia escola e fui cativada pela ideia da política. Os
eventos mais incríveis eram as reuniões públicas noturnas em que cantores e
poetas locais recitavam o tipo de poesia política que as pessoas em bairros
desse tipo podem compor a qualquer momento. Eu também organizei um grupo
de crianças em que nos maquiávamos com pó e batom e fazíamos o que
pensávamos ser sátiras políticas intercaladas com o tipo de canções que
havíamos aprendido nos sangeets das mulheres, 7 cantadas durante a temporada
de casamentos. Em uma ocasião, fui colocada diante do microfone e fiz um
discurso sobre a situação dos pobres. De qualquer forma, quando Rai Bahadur
ganhou a eleição, senti um brilho de orgulho.
Então, quando consegui minha bicicleta e permissão para ir à biblioteca
com meu primo, fiquei desesperada para conseguir o dinheiro para um depósito
ou a assinatura do Rai Bahadur para poder pegar livros emprestados. Não era
provável que eu recebesse dinheiro e achei que, se pedisse à mamãe que me
ajudasse a conseguir a assinatura necessária, receberia um não firme e até
mesmo uma advertência para não incomodar o grande homem. Portanto, não
perguntei, mas fiquei na fila na sala de espera, onde vários clientes esperavam
para apresentar seus pleitos. Quando chegou minha vez, ele ficou surpreso ao
me ver e perguntou por que eu tinha que vir com os outros peticionários, por
que não havia ido direto a sua casa? Disse com alguma dignidade que havia
trabalhado em sua campanha eleitoral e achava que tinha o direito de obter
sua assinatura. Ele assinou o cartão de garantia e eu conquistei o direito a pegar
livros emprestados!

Nossa vida em Model Basti não se sustentaria por muito mais tempo e nos
mudamos para a casa de meu mama ji em Kamla Nagar. Eles haviam se mudado
de Mohi ui-din Pur para Delhi. Tinham quatro filhos – havia apenas dois quartos,
mas fiquei maravilhada com a generosidade deles. Claro que mamãe sentia
alguma restrição – então ela sempre tentava me convencer a fazer chapatis, ou
ajudar a acender a chulah, ou ajudar na limpeza. Às vezes eu sentia a injustiça
da vida depois de um dia cansativo na escola e a exigência de que eu tinha que
fazer outro tipo de trabalho em casa. Mas, no geral, essa foi a época, dos 12 aos
14 anos, em que a Biblioteca Pública de Delhi e minha bicicleta se tornaram os
verdadeiros centros de minha vida. Eu li livros improváveis, como Coração
impaciente, de Stefan Zweig. Encontrei livros de poesia em urdu na escrita
devnagri e me apaixonei por Firaq e Faiz e um pouco por Sahir. A biblioteca
tinha um clube literário que se reunia à noite e tinha concursos de recitação e
concursos de poesia e concursos de escrita de contos. Eu ouvi Firaq uma vez e
duas tranças e um passo no mundo: uma infância rememorada

742

alguém cujas histórias eu achei absolutamente deslumbrantes. Pode ter sido


Krishna Baldev Vaid, mas não tenho certeza se não estou misturando minhas
memórias. Eu posso ter colocado minhas experiências posteriores com a escrita
de Vaid Sahib em alguma figura que eu encontrei ocasionalmente no clube
literário e agora confundo com Vaid Sahib. Eu descobri que os romancistas
Rajendra Yadav e Mannu Bhandari viviam em Shakti Nagar. Eu ficava do lado
de fora de suas casas com a esperança de vê-los nem que por um instante. Até
escrevi um conto em hindi que ganhou um prêmio. Tomei coragem de enviá-lo
a uma revista literária. O conto foi rejeitado com o seguinte comentário “bahut
bachpana hai kahani mein” – a história é muito infantil. Foi no clube literário que
também conheci o sr. Seth.

O sr. Seth era membro do Partido Comunista. Ele dava aulas de acompanhamento
em uma instituição em Kamla Nagar, provavelmente o Navjyot Tutorial College.
Ele preparava os alunos para o exame admissional da Universidade de Punjab
e também oferecia aulas para os alunos mais fracos. Antes de conhecer o sr.
Seth, meu patriotismo era expresso em marchas no Desfile do Dia da República
todos os anos e cantando canções patrióticas. Posteriormente, eu ganhei até
um prêmio nacional para crianças em reconhecimento ao trabalho que fiz como
escoteira em uma aldeia. Mas o sr. Seth me deu muitos panfletos escritos por
ele que abalaram minha fé em nossa nação. Fui realmente arrebatada pela força
retórica. A maioria desses panfletos, pelo que me lembro, questionava a
afirmação de que Gandhi nos deu a liberdade. Lembro-me de uma frase:

vo kehte hain Gandhi ke satyagraha se Hindustan ko azadi mili aur é ladai mein ek katra
bhi khun nahin bahaya gaya – hum puchte hain ke jo khun baha batware mein ou angrozon
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 733 – 745 , set. – dez., 2021

ki bandukon se aur khhane shahidon se jo khhane phan shahidon khidhan bahaya gaya
se wo kya khun nahin tha

Dizem que a Índia obteve sua independência através da satyagraha de


Gandhi e que nem uma gota de sangue foi derramada nessa luta – perguntamos,
o sangue que foi derramado durante a Partição e pelas armas dos britânicos e
o sangue que foi derramado quando os mártires foram enforcados não foi
sangue?
Fiquei tão entusiasmada com o sr. Seth que queria desistir de meus
estudos na Lady Irwin e, de alguma forma, concluir a décima série no Navyug
Tutorial College e me unir à “revolução vermelha” do sr. Seth. A essa altura,
mamãe, que estava ficando cada vez mais assustada com meu temperamento
e sentindo que estava perdendo o controle sobre mim, disse que entraria em
um jejum sem data para acabar se eu visse o sr. Seth mais uma vez. Meus dias
de biblioteca teriam terminado junto com minha ambição de entrar para a
revolução vermelha, se não fosse por meu irmão.
memória | veena das 

743

Até agora, falei sobre meu irmão mais velho, que tinha 17 anos mais do que eu
e estava ausente na maior parte do tempo, como uma presença à sombra, mas
era ele a âncora sólida de minha vida. Não sei como esse amor se desenvolveu
entre nós, mas ele sempre me deu a sensação de que tudo no mundo ia ser bom
para mim. Depois de concluir a faculdade de medicina, ele trabalhou como
cirurgião da casa (uma designação para o que seria agora médico residente) na
ala pediátrica do Hospital Safdarjung. Ele vivia no alojamento ali, e eu às vezes
o visitava lá de bicicleta nos fins de semana, quando íamos ao terraço e
observávamos os aviões decolando do aeroporto de Safdarjung nas proximidades.
Eu podia falar qualquer coisa com ele, mas ele também poderia ficar
repentinamente com raiva. Certa vez, eu estava repetindo uma fofoca que tinha
ouvido e disse, com bastante arrogância, que nunca faria algo daquele tipo. Ouvi
uma resposta contundente: “Não julgue as pessoas – nessas circunstâncias,
você não sabe o que pode ser capaz de fazer”. Em outra ocasião, quando eu
comecei a usar óculos e fiquei chateada por me achar horrível com eles, ele
disse: “Você tem que decidir, você quer ser o tipo de pessoa que é olhada pelos
outros ou que olha para o mundo?” Tinha a sensação de que ele nunca se sentia
à vontade com ninguém em casa, mas com seus pacientes era uma pessoa
diferente. Na época em que nos mudamos para Kamla Nagar, ele partiu para
Bhilai, onde conseguiu um emprego no hospital local. Mamãe foi se mudando
aos poucos para lá, e eu ia passar o verão na casa dele. Certa vez, dirigimos
quilômetros e quilômetros até um vilarejo porque um de seus pacientes estava
morrendo, e ele não queria dar a notícia para a esposa quando ela estava sozinha
no hospital – ele queria que ela estivesse cercada pela família.

Eu não sei como esse amor


cresceu entre nós
duas tranças e um passo no mundo: uma infância rememorada

744

Em minhas lutas eternas com mamãe (eu tinha que ser como a Suma
ou a Sudha ou a Sumita da casa ao lado, que eram garotas lindas e obedientes
– eu devia ter em mente estudar disciplinas domésticas se fosse o caso de ir
para a faculdade – eu amargaria por toda a minha vida por meu caráter rebelde),
foi a lenta autoridade que Dev Bhaiya (meu irmão mais velho) conquistou que
foi decisiva para que eu pudesse estudar em Delhi. Quando ele tirou a própria
vida, eu tinha 21 anos e por muitos anos me senti como uma casa em que todas
as luzes haviam sido apagadas, uma por uma.
No entanto, também sei da injustiça de minhas memórias em relação à
minha mãe. Por exemplo, é difícil para mim descobrir por que causei tanta
preocupação aos meus pais (exceto meu irmão), pois estava indo bem nos meus
estudos e, vendo fotos antigas, me vejo com um grupo de crianças escolhidas
por sua excelência como guias ou escoteiras para ser apresentadas ao primeiro-
ministro e ao presidente. No entanto, uma carta de um primo para minha
mamãe que encontrei recentemente diz: “Você deve perceber que o que está
em jogo é toda a vida de Veena. Ela é teimosa e se recusa a ouvir quem quer
que seja. Por mais brilhante que ela possa ser em seus estudos, no exame de
vida ela será um imenso fracasso, pois tudo o que ela faz é ler.” Pela carta,
deduzo também que essas reclamações foram enviadas ao meu irmão mais
velho, mas ele nem se deu ao trabalho de as reconhecer.

Com uma história dessas, o que mais eu poderia ter me tornado senão a mãe
de três grandes filhos, casada com um homem que, ao meu lado, lentamente
me trouxe de volta à vida; e o que mais, senão uma antropóloga?
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 733 – 745 , set. – dez., 2021

Veena Das é, desde 2000, Krieger-Eisenhower Professor of


Anthropology na Universidade Johns Hopkins. Antes
lecionou na Delhi School of Economics por mais de 30
anos, tendo atuado também na New School for Social
Research entre 1997 e 2000. É membro da American
Academy of Arts and Sciences e da Academy of Scientists
from Developing Countries. Entre suas muitas
publicações estão Textures of the ordinary; Life and words:
violence and the descent into the ordinary, publicado no
Brasil como Vida e palavras: a violência e sua descida ao
ordinário; e Affliction: health, disease, poverty.
memória | veena das 

745

NOTAS
1 Vaid ji era o termo que aplicávamos a ele porque ele tinha
alg um tipo de treinamento em ayur veda, mas, como
muitos desses práticos, ele também preparava
medicamentos alopáticos e injeções.
2 Lilavati significa graciosa em hindi. [N. T.]
3 Chand, palavra que remonta ao sânscrito, significa “metro/
métr ica”. Chaupais: estrofes de quatro versos de quatro
sílabas cada, produzidas especialmente na poesia medieval
hindi. Tulsidas, autor do Ramcharitmanas, é lembrado por
esse tipo de composição. [N. T.]
4 Rua. [N. T.]
5 Referência a uma tradição hinduísta, o vixnuísmo, que
confere ao deus Vixnu o lugar supremo. [N. T.]
6 Grupo paramilitar de extrema-direita ligado ao nacio-
nalismo hindu, fundado em 1925. Foram banidos pelo
Império britânico e três vezes pelo governo indiano pós-
independência. A violência praticada pelo nacionalismo
hindu deixou, entre outras vítimas, Mahatma Gandhi. [N.
T.]
7 Festividade de cunho não relig ioso que pertence ao
conjunto de atividades pré-nupciais. Originalmente, era
restrita a mulheres de ambas as partes do casal. Nela, o
canto e a dança têm papel fundamental. [N. T.]

Tradução: Bruno Gambarotto


Revisão: Letícia Ferreira
Ag radecimentos a Camila Pierobon pelo cuidado para
disponibilização das fotog raf ias do acer vo pessoal de
Veena Das.
Originalmente publicado em:
Das, Veena. (2009). Two plaits and a step in the world: a
childhood remembered. In: Karlekar, Malavika; Mookerjee,
Rugrashu (eds.) Remembered childhood: essays in honour of
André Béteille. Delhi: Oxford University Press, p. 196-209.
746
ENTREVISTA
748
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752021v1132

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Pós-Graduação


em Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
leticiacarvalho@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8466-5904

11 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Pós-Graduação


Letícia Ferreira l
em Antropologia Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
adrianavianna@gmail.com
Adriana Vianna ll
https://orcid.org/0000-0002-5158-729X Camila Pierobon lll
Cynthia Sarti lV
111Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), International
Postdoctoral Program, São Paulo, SP, Brasil
camilapierobon@cebrap.org.br
https://orcid.org/0000-0001-7590-0773

1v Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais, São Paulo, SP, Brasil
sarti@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0002-6962-3527

ANTHROPOLOGY, DESIRE, AND TEXTURES OF LIFE: AN


INTERVIEW WITH VEENA DAS

“The thing about being an anthropologist is that you get to see what it means
to have a taste for life”. This was one of the many beautiful thoughts on an-
thropology, desire, life, and devotion that Veena Das shared in a first meeting
with us, held virtually on January 21, 2021. Das is Krieger-Eisenhower Professor
of Anthropology at Johns Hopkins University since 2000 and also affiliated to
the Institute for Socio-Economic Research in Development and Democracy (IS-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

ERDD), based in Delhi. 1 She is the author of a vast body of work that covers
topics such as violence, social suffering, urban poverty, health, everyday life,
ordinary ethics, and the State. Soon before our meeting, she had just released
her book Textures of the ordinary: doing anthropology after Wittgenstein (Das, 2020a). 
Veena Das’ work has had a significant impact on Brazilian anthropology
since the 1990s, when it began to be read especially in graduate courses and to
inspire creative dialogues on themes of strong ethnographic tradition in Brazil,
such as violence, urban poverty, and State practices. Her conference at the 1998
Annual Meeting of the National Association of Graduate Studies and Research
in Social Sciences (Anpocs), introduced by Brazilian anthropologist Mariza Pei-
rano and published in Portuguese (Das, 1999), contributed to making her wide-
ly known among Brazilian scholars. Furthermore, since the previous decade,
her dialogue with Peirano resulted in fruitful reciprocal reflections on Brazilian
and Indian anthropologies (Peirano, 1998). 
Although other articles of hers have been translated and published in
Brazil (Das 2007, 2011, 2017), it was only in 2020 that one of her books was in-
tegrally published in Portuguese. Vida e palavras: a violência e sua descida ao or-
anthropology, desire and textures of life:

750

dinário (Life and Words: violence and the descent into the ordinary)(Das, 2020b) pub-
lished by Editora Unifesp, directed by Cynthia Sarti, achieved rapid dissemina-
tion in the country. The book was immediately incorporated into various grad-
uate courses syllabuses, and its publication was also the subject of a biblio-
graphical essay by Adriana Vianna (2020).
With the book’s publication in Brazil, along with the recent release of
Textures of the ordinary, we felt encouraged to ask Veena Das for an interview,
almost ten years after her last (and up to now only) interview made by Brazil-
ian researchers (Das, 2012). Another incentive was the fact that Das had coor-
dinated, throughout the year 2020, a major research project developed simul-
taneously in five countries, including Brazil, entitled “Implementation of COV-
ID-19 related policies: implications for household inequalities across five coun-
tries.” Veena Das had coordinated the project along with anthropologist Clara
Han, her colleague at Johns Hopkins University and her partner in different
endeavors. The project included Camila Pierobon in the coordination of the
Brazilian team, together with our colleagues Paula Lacerda (UERJ) and Taniele
Rui (Unicamp).
The momentous launching of Textures of the ordinary, whose reception
among anthropologists, philosophers and sociologists from different countries
we were able to follow online, also stimulated us to propose an interview with
her. 2 We were really and joyfully surprised when she not only accepted our
proposal but also invited us for a preparatory meeting and made herself avail-
able to read pieces of our works before we met. Those were the early signs of
Veena Das’ enormous generosity throughout this process. Our preparatory con-
versation, held by video call, lasted about an hour and a half. It went through
several subjects, such as what Das calls “devotion to the world” (cf. Life and
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

Words); the theme of torture, about which she was writing at the time; the place
of children in her writing; and, among many other themes, the relationship
between anthropology and what she called “a taste for life”.
The interview we conducted after this first conversation took place on
January 30, 2021, again by video call, and lasted two and a half hours. The ques-
tions were sent out in advance, and the answers were later transcribed. A child
irrupted into the interview, as the son of one of the interviewers briefly appeared
on the screen; we noticed the interviewee’s earrings, which allowed her to tell
us about the meaning of the shirish flower in Sanskrit literature; she kindly
offered to write something for us about the idea of “texture”. Veena Das gener-
ously showed us her disposition for dialogue, welcoming and reflecting deeply
on all the questions we proposed. After the interview was transcribed and went
through a first edit, the interviewee worked carefully and thoroughly on the
answers. What the reader has at hand, therefore, is the product not only of our
meeting but also of the intense work invested by Veena Das in the interview.
We opted to publish the original text in English in the present volume of Socio-
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

751

logia & Antropologia aiming at the widest possible circulation. We will soon make
its version available in Portuguese as well.
In this volume of Sociologia & Antropologia, the reader will also find a
Portuguese translation of Veena Das’ precious essay “Two plaits and a step in
the world: a childhood remembered.” The essay was first published in an In-
dian collection of essays in homage to André Beteille (Das, 2009) and the Por-
tuguese translation was done by Bruno Gambarotto.3 In addition to the interview
and to Das’ essay, the present issue of the journal also includes four unpublished
articles by Brazilian anthropologists Ceres Víctora, with Patrice Shuch and
Monalisa Siqueira; Cynthia Sarti; Camila Pierobon; and Adriana Vianna. The
papers reflect on several themes, such as long-lasting relationships in ethno-
graphic research; ethnographic data produced in and about the coronavirus
pandemic; and research trajectories within the anthropological discipline, all
of them in frank dialogue with the work of Veena Das. Ceres Víctora, Patrice
Schuch and Monalisa Siqueira reflect on ordinary ethics and forms of life dur-
ing the pandemic. Víctora was a visiting researcher at Johns Hopkins Anthro-
pology Department between 2010 and 2011, strongly influenced by Veena Das’
work on social suffering. Cynthia Sarti, for her part, discusses the themes of
pain and violence and the great impact of Das’ work on her journey as a Brazil-
ian scholar. Camila Pierobon presents us with dense reflections on family, be-
trayal, and skepticism. Adriana Vianna, in turn, discusses the intricate relation-
ship between words and temporalities in ethnographic knowledge. Besides, the
issue also contains a beautiful bibliographical essay by Bhrigupati Singh, Veena
Das’ partner, co-author and editor in articles, books, collections and research
projects, as well as a book review of Textures of the ordinary written by Carolina
Parreiras, who has taught courses on Veena Das’ anthropology in Brazil. 4

Letícia Ferreira Professor Veena, thank you very much again for your time and
your attention. In our last meeting, as well as in the webinar for the launch of
your new book, the relations between ethnography, biography and autobiogra-
phy received a lot of attention. Could you tell us a bit more about how these
forms of writing connect with each other and how this relates to the image of
crab-like movements, which you used to describe your mode of thinking?

Veena Das These are very difficult questions that you have posed, and this one
is particularly hard, I think I’m coming to this question from different perspec-
tives. The first is that [for] a long time, anthropologists have postulated differ-
ent moments in anthropological thinking. One moment is said to be that of
being in the field, immersed in experiences; a second moment, when we come
back and reflect on these experiences taking, the common set of concepts we
anthropology, desire and textures of life:

752

share as part of an anthropological community, and then applying these con-


cepts to our material. The assumption is that we make our experiences avail-
able through these common concepts, writing within a disciplinary framework,
right? Honestly, this whole process is not something about which I have sat
down and thought out well. For me there are always many questions that arise
at all these moments of fieldwork and writing, and as these questions get
formed I need to learn many new things − or relearn what I thought I know.
And what I read or learn can be from anywhere − from texts in many different
languages, written in many different genres. Insights can come from philosophy,
from anthropological texts, from economics, from political theory, from litera-
ture, right? I’m driven by circumstance, by how the questions come to pose
themselves and not by disciplinary boundaries. To give you an example, some-
times it can happen that working in a team we get, let’s say, very strong statis-
tical results. Very good correlations between variables, but our team of col-
leagues can’t figure out why we are finding these correlations or in other cas-
es, not finding them. Then someone in the team might say, “well, this is a
model, it is an if-then statement, may be our starting premises are wrong.”
There are others who will turn around and say to me “You’re the anthropologist,
you know people in the field. Tell us, when it doesn’t cost anything to the doc-
tor to give a prescription and a voucher that will get an x-ray to a patient with
persistent cough why are they not prescribing it? We’re subsidizing the tests.
It costs them nothing. Then why are they not prescribing it?” And these col-
leagues sometimes think that if you go and talk to some doctors, it will become
transparent to us why they are not doing this or that. But every anthropologist
knows that this process is not so simple. We might talk to ten different doctors,
and we will get ten different explanations. Then the general assumption is that
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

within these variations we will find the patterns that matter. However, some-
times we do find patterns and sometimes we don’t. And so, I guess what I mean
by the fact that there is a way in which autobiography, ethnography and biog-
raphy are joined together is that anthropological writing is also done within a
form of life, thinking is not something happening outside a form of life. You’re
writing in response to a problem that gets thrown at you from the world you
inhabit. So I don’t ever think now I’m writing for my anthropological colleagues
and now I’m writing for people in these places, and now I am writing for poli-
cy makers. It’s true that some of the things I write, I would have to do more
work on them to explain the ideas to my interlocutors in the field. I can imag-
ine someone reading something from my text and saying: “I don’t understand
this. What are you trying to say over here?” But that can happen in any context.
It can happen with my grandchildren. It can happen with a colleague. It can
happen with a neighbour, or a friend in my fieldwork who wants to know why
I am asking a particular question. So clearly texts will speak to very many dif-
ferent people in very many different ways. And for me, that’s the excitement
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

753

of it. It’s not a limitation that someone else can see an idea that I could not
articulate well and take it in a different direction.
So, [going back to] autobiography, I think the person during this book
launch you referred to, who emphasized this aspect of my work clearly was
Michael Puett. And he kept saying that it’s obvious [to him] that Textures of the
ordinary has an autobiographical strain, is an autobiography. This is not because
I’m using the first person, using the term ‘I’, not because there are some in-
stances from my life which seep into the book. I’m equally willing to be trust-
ing of the fact that it is from Rosaldo’s (1989) experience of grief and sudden
emergence of poetry in him that I can find something of my own experience, a
resonance with something that I am trying to say. So I think it’s in that sense
that the book is written in these three modes; it is not that here are three gen-
res – autobiography, ethnography, biography, which I take up and weave in a
single text. It’s that the text naturally comes to be so because that is how one
lives one’s life. And one lives one’s life with others, and these others are people
with whom you inhabit the world or you cohabit the world. It means that there
are things, events, people, about whom I find it very difficult to speak from
within my own life. Over time I have found the courage to speak because I found
a right time to speak about them. And so, there is also the question [of the]
reader − you have to write in a way that your reader is not hurt by what you’re
writing. By that observation. I don’t mean that you cover up the truth with lies
or something. But you have to learn something like what is tact, what is ordinary
ethics, what is care, what is attention in relationship to those questions. There
is a dominant model that when you come back from your field and you begin
writing for the anthropological community and I’ve never felt that way. I’ve
always felt that I’m writing for some reader who will find that the text speaks
to him or her, wherever they are. And those to whom the text does not speak
at all, I think I’m content for it to be aware that these other modes of thought
[exist]. Not everybody has to like what I write or to find it interesting. There
are a whole lot of other things in the world and that is just fine, yeah? So, I’m
not out to convert people to think this is the proper way of thinking. If you have
an interest, if you find something interesting in what I write, we can talk more.
And the text wants to talk more to you, right? So that’s the sense I have of where
I’m going, and the feeling that my thinking is coming out of my life, which
includes the life of so many others. I don’t have any formulaic answers to this
difficult question you asked. That’s what I mean by crablike movements. Some
thought or idea goes in one direction for years and then it can happen that I
don’t know how to move forward. And then, sometimes years later, that idea
that was blocked comes back, and this can include thoughts from my childhood,
for example, or something that is triggered in a classroom, or something that
is triggered while walking in the street, or reading a book.
anthropology, desire and textures of life:

754

Adriana Vianna Thank you very much, Professor Veena. We all have fallen in
love with your article about your childhood, “Two plaits and a step in the world:
a childhood remembered” (Das, 2009) [translation to Portuguese in this special
issue]. So we want to ask you about the desire for study and the pleasure of
performance. They are two elements among many others that call our attention.
Could you tell us more about how the pleasure of studying and performance
marked your childhood and your education, impacting on your way of doing
anthropology?

V.D. That’s again something that’s not that easy for me to speak about. On the
one hand, I think that the child is somebody quite central to the way that I
think but not in the sense of a conscious figuration of the child − this is the
child [that] just seeps into my thinking or the sense that I share the experience
that the world does not always appear decipherable to the child. You find this
image from Wittgenstein and from Augustine, the child stealing bits of language
to make sense of the world with which Wittgenstein opens Philosophical inves-
tigations (Wittgenstein, 1968). I think that children often know a lot that they
don’t always have language for. One of the things I say in Textures, a sentence
you pick up very astutely, is that children know a lot about death. And that
comes from the memory of a friend I had, and from the first time I visited her
house. I realized that all the kids called their mother ‘aunty.’ Now, this is not
very unusual in India. You can, if you’re living in a joint family and you have
older cousins who call your mother ‘aunty,’ pick up their language. In this case,
she was a very loving mother, but she was their step-mother. Their mother had
died, but the little ones didn’t know that. There were two older siblings who
did know it, and they tried to protect the younger siblings from that knowledge.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

This was not a down and out family, it was a family that had a relatively secure
middle-class life but the kinship terms, gestured to making death present in
an oblique way. And there was also the fact that people around me were dying
all the time when I was young. Just look at my genealogy, which I’ve never
fully problematized, but it’s a very shallow genealogy. And the reason is that
so many people during my childhood died. And not just because of the trau-
matic events of the Partition. A lot of people, a lot of young children died, be-
cause at that time the rates of child mortality were very high, and many wom-
en died in childbirth. For example, it was my mother and her sister who brought
up their younger siblings because their mother died in childbirth. Then their
youngest brother, who they more or less brought up as their “baby”, died because
there was no medicine for typhoid, which was not a curable disease at that
time. Some people died of diabetes because it remained undiagnosed. Somebody
died in the riots, for example, while trying to escape. So suddenly you look at
your genealogy and you realize how empty it looks. I have only one picture of
my grandfather. And I have no picture of my paternal grandfather. I have no
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

755

pictures of my grandmothers. On the other hand, I dream sometimes, quite a


lot, where suddenly [I know] who somebody [is]. For example: I learned pretty
late that I did have an elder sister who died when she was maybe less than a
year old. I accidentally discovered what her name was, Indumati, and she be-
came a character in a story that I was trying to write. As a child I would dream
of being somewhere in Egypt, standing near the river, seeing that there’s a lit-
tle girl who is me. And she is watching from afar her sister, who’s been having
an affair – [laughing] this was when I was seven or eight, right? – this sister in
the dream was having an affair with a stranger, and this stranger is now leav-
ing. And so, this is in the moment when she’s standing over there and she’s
watching them and she lets out a moan. There’s nothing in my life, conscious-
ly, that would have produced that dream. And these kinds of dreams were
maybe some sign in a way of how knowledge of loss is registered in the child,
and I wonder how that kind of experience affected the work I do.
Part of my ideas of intimacy come from this kind of experience. In this
kind of genealogy and its gaps, there were contingencies through which one
particular relative might become close to you. So, in my case it was someone
who had lost everything in the Partition, it was actually my father. [He] had
become an ice cream seller in the streets, but he was a good Sanskrit scholar.
So, my adoptive parents made a place for him in my life quite consciously. I
didn’t know he was my father, I just knew him as an ‘uncle.’ They made a place
for him to come every day and teach me some Sanskrit. It was their way, of
creating a space so that he could see his daughter. I must say I never had this
great emotional link [with him], except through Sanskrit. I sometimes think
that maybe the reason I loved Sanskrit texts might be because of that connec-
tion. I have no idea, apart from the intrinsic beauty of the texts as to what is
the compulsion that makes me return to them. That’s perhaps one kind of way
I reclaim my past. The other kind of work I do in the slums is, perhaps, because
of the fact that I’m much more comfortable in these places; I don’t have to
make any effort to be really comfortable in the slums in which I work. [Of course]
there are all these bad smells and I find myself instinctively putting a hand-
kerchief on my nose. Then I remove it, not wanting to convey any discomfort,
because I know this, after all, is their home. But I don’t know if this an intel-
lectual inference. My body just knows how to be there, right? Now, as I get
older my immunity is not so good so I can’t go and eat everything they offer
for fear of falling sick but for a long time when I was younger, I would eat any-
thing that was offered regardless of whether it was clean, cooked in oil I could
digest, carried by a street hawker, or bought from an open stall with flies hov-
ering over the sweets. And that, I think, created a closeness so that they never
felt looked down upon. Or they never felt that there was any strangeness that
was difficult to overcome among us. I mean, you just were part of that street
or that bazaar, you became a part of that life. It doesn’t mean that they told
anthropology, desire and textures of life:

756

you everything they knew, or that there weren’t events that remained hidden,
or that there weren’t hints of obscure things there. But there is a difference
between that kind of obscurity because everyone has their secrets and there
are things that are not open to view within a form of life; as an anthropologist
I never felt that I am here in this street or house to just collect data and I’m
going to go back to my own society after this phase is over. Being there and
returning again and again gives one a feel for everyday tragedies, small disap-
pointments. For example, there is a scholarship scheme that ISERDD, the re-
search and advocacy I work with in Delhi, facilitates with some family money
we have contributed. It makes it possible for some kids who need to get tuition
to be able to pass their exams. I know that such small acts don’t solve any big
structural problems. There are people who would say, “well, you’re actually just
putting a Band-Aid over their problems. The real problem is that their schools
don’t function properly.” And I understand that criticism, but that extra tuition
is very important for a particular child who can improve his or her prospects
a tiny bit if they manage to pass their exam. Sometimes they are able to use
the opportunity to go forward, sometimes not. Some child, very brilliant, one
you have helped − you feel they should have committed to completing a college
degree, but they are not able to do so because sometimes there are demands
upon them; sometimes there are temptations of immediate rewards: “I can get
this much money now, why should I wait another three years within a very
uncertain market?” I think I savour the experience of improvisation, of doing
something rather than nothing, trying to meet whatever the demands put on
me are; but knowing that you don’t necessarily succeed, but still thinking “OK,
maybe last time I didn’t succeed, maybe this time I will.”
But also, for all my failures, I feel a fierce pride in the achievements of
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

many kids and also in everything my family enabled me to do. I often get in
trouble with authorities but I can’t stand somebody giving me advice about
finding a patron. So many times, very well-meaning friends have said, “why
don’t you, on this matter, go and talk to your dean or your president or your
vice-chancellor,” and I’m like, “there’s no way I’m going to do that.” Not because
of any great moralism or moral stance, and I’m not judgmental about those
who think that they can get something important done through those channels.
But for me, it’s one of the hardest things to think of getting any kind of favour
from anyone. And I don’t know from where this sensibility comes, because I’m
sure I’ve depended on a lot of favours [laughing]. Like as a kid there was this
pressing question of, say, not having a winter coat, for example, and getting a
hand-me-down from relatives and yet never being offended by that. As an adult
working with poor people, these experiences of privation educated me. I can
figure out how to offer a gift. It is such an ordinary issue, but a truly delicate
one. You cannot say to a parent “Don’t you see I’m willing to pay for your child’s
tuition, so why are you not supporting him in going to school?” And sometimes
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

757

you even have to teach a child to say “now don’t use this opportunity to just
put your parents down. True that you’re getting a school education, and they’re
not literate. But that’s absolutely no reason for you to think you are superior
to them.” This is the mutual pedagogy which goes on between the children and
me. Cavell, in his autobiography, [talks about] his wound in relation to his father,
because there’s a moment when he says “I realize that it was not that my father
wanted me dead, it was that he wanted me never to have been born.” I’ve
never had that experience. So even in the worst of circumstances, I have not
felt that there is somebody who finds my existence unbearable. And I think
that [this] is what really allows me to think about autobiography as a source, a
spring in a certain sense from which certain ways of thinking emerge, but I
can’t say that they emerge through any conscious strategies. Why do I feel
compelled to respond to certain things? I think it’s very strongly tied with what
I kept losing and finding again and I cannot turn my back to that past.

Camila Pierobon I think you answered one of our questions about children. I
would just ask if you would like to say something about the importance of
children in your work. When I read Textures of the ordinary, for me it’s really
interesting to see that they appear in all the chapters. Would you like to add
something about that?

V.D. [The 8th] chapter, on this little girl who was raped, had to be done with a
great deal of delicacy and caution, because I’m not the one who is having to face
the question of what threats might those I am talking to, be facing. I can give
only limited support and in that particular case, I tried to remain very much un-
der the radar. [The] chapter had to be written in a certain way by which I privi-
lege what happens in the court because that’s public knowledge. I could not
draw from everything I know about her or with her. There will be a time when
maybe she will write about her own experiences because she is now starting to
write short stories about herself. And these may not circulate widely, may be not
even outside her house or her street. But on the other hand, I’ve noticed very in-
teresting small shifts in the way others relate to her. She’s a very courageous girl.
There was just no question about her courage: the way that she stood in court
and was not intimidated by the sight of this man sitting there who had brutal-
ized her in that cruel way. Nobody had to teach her anything. Nobody had to say
to her “be brave.” She knew what had happened to her and she was just telling in
court what had happened to her. Compare that to this little boy in Affliction (Das,
2015), who is now 29 years old. When I go to Delhi we meet up in a café for a cof-
fee or something like that. Usually I meet people just there in the area, but in
this case, he likes the idea that he as [an] adult, is having this date with me out-
side, in a café and so on. But there’s something very important, very interesting
that has shifted. Earlier, our conversation would go something like this: I would
anthropology, desire and textures of life:

758

ask “so now what’s happening?” and he would say “well I started on this and
that, but I couldn’t continue”, or “I had this very good job and I’m going to do
great”; then next time he would say “oh you know, it couldn’t be continued be-
cause I got a bit tired of it,” or he would fall in love with the wrong person and
get beaten up, or something of that kind would happen, right? And last time,
now that he has a kind of the sense of himself, at the age of twenty-nine, he has
a wife, he has a little daughter, he feels like the community looks up to him be-
cause he got a reasonably good job. He said: “I want to tell you something.” We
were just leaving the café and he wanted to show me his [new] motorcycle and
to take a photo with me. And then he suddenly said: “aunty I have to tell you
something.” I said “yeah…?” And he said “you know when someone is falling −
it’s about that.” He was stumbling as he said “It’s true that I couldn’t complete
the kind of things you wanted me to do because… (pause) you know in school
you provided me with books.” He was talking about the time when I used to
spend the summer months in Delhi, I would go find him, drag him to my place
and “do tuition”, i.e. make him mug up lessons from his texts, and learn tables,
and do sums, so that he would pass his exam. Perhaps remembering all this, he
said “I know you did all that for me.” “But”, he continued, “what you did not real-
ize was that I was going to school hungry every day.” I recalled that his father
had been very opposed to his schooling. And so, his father would just set up
tasks for him to do before school started, and in a rush to complete those tasks,
the child didn’t get time to eat. It was such a revealing moment for me and then
he said “but, you know, what any person needs when things are bad times is one
person, just one person who will…” − he used this gesture of extending his hand
− “who will stretch out their hand to you.” He said in flowery Hindi: “just one per-
son’s support and then you can make something of your life.” I’m not saying he
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

found spectacular success or he is like others who found some paths forward to
better education, better jobs. But I have many examples of that kind. There was
another boy who we supported, whose sister had to discontinue school because
their mother was chronically ill and the daughter was the only one providing
care to her mother. Their mother died but by then his sister was already twenty-
five years old and, believe it or not, he went to her school, he talked to the princi-
pal, he talked to his sister, and said “you have to go back to school.” And his sis-
ter was bewildered “I’m twenty-one! Everyone is like kids of, what, eleven or
twelve.” He said “It doesn’t matter. I’ll talk to the teacher. It doesn’t matter. You
have to go and finish school.” These are small successes perhaps. There are peo-
ple who devote their lives to working in the slums or among the poor, helping
them, and they are angels of a kind. There are lots of things that I really admire
about them. But for me the force of my actions just comes from the imperative
to say this person and I, we are in this relationship with each other and a lot
flows from that − they are not my informants. And I think Textures tries to bring
that attention to the particular as the basis of ethnography.
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

759

Cynthia Sarti Everything is very linked and we would like you to talk about
gender. In your previous interview with Brazilian researchers (Das, 2012), you
said something about how gender is implicated in the production of knowledge,
but not as an a priori. This is very clear in your work because women are main-
ly your interlocutors. But also, it’s clear when you recover the ideas of [Stanley]
Cavell, which state that gender is not something philosophers look for, but it
comes to them. Can you tell us more about this problem of gender as something
implicated in the production of knowledge? And how do women and men ap-
pear in your work? What is it to talk about men and what is it to talk about
women?

V.D. I would add children to that. Children have been very important, not be-
cause I sought out children, but because I can’t go into the area without a whole
lot of them just following me around and saying “what is happening?”, “why
didn’t you come earlier?”, “did you go to my school?”. For a while, they [used
to say], “you have to come to school”. It was a very strange experience because
the principal of the local school had mistaken me for a local politician. Appar-
ently, I resembled her, and I did not do very much to correct him. The principal
and teachers were all charging huge amounts of money to the children who
had dropped out of school for some reasons and wanted readmission. And I
kind of offered something that was an incentive, shall we say, or a face-saving
for the principal because the government policy was to offer free education
and he was violating it by charging them. I said to him, “well, I know how de-
prived your school is.” And he jumped at that opening, “just look at it, the
children don’t have anything to sit on, I don’t even have a [place to] keep my
papers in, right?” In response, I immediately went and bought mats for the
children and a small cupboard because I couldn’t see myself giving him a bribe.
I could donate things for the school but I wasn’t going to bribe him for taking
the children in. But the children sensed that it was a hidden bribe… [laughing]
Suddenly [I realized] the demography of the children in school coming from
this area changed because the recruitment of children went up, and everyone
was supposedly born on the 15th of August (Independence Day!). You know
[laughing] it was very unlikely that everybody was born on the 15th of August,
which is the Independence Day of India, right? But the Principal was not attuned
to this irony. The children sensed what was happening and [the principal] would
become aggressive with them, [and the children] would then say “would you
mind coming in and paying a visit to the principal?”
So, the children are very important, but women... I was intellectually
very moved when I read in Cavell (1981) on how he constructed the two differ-
ent genres of films to demonstrate his picture of scepticism. One is the com-
edy of remarriage in his book Pursuits of happiness, where his question is, can
a couple commit themselves to a future together despite the inevitable disap-
anthropology, desire and textures of life:

760

pointments that every relationship will bring? And the other genre is [the one]
he creates around, [the] set of women who cannot make themselves intelligible
in the world of men and must die or retreat to a world of women. There’s an
unforgettable moment from Letter from an unknown woman where Cavell says
that the woman has come back to this man for whom she had tried to invent
herself. And he’s very happy to see her and he says “Let me go and make you
a drink.” As she waits he asks, “are you lonely out there?” in a flirtatious way.
And she replies “yes, very lonely” looking at the camera, and hence at us and
then when he comes into the room, she has left, for what was for him a mere
dalliance, was, for her, a last chance to offer her life to him. We learn that the
letter is signed by a dead woman, ghost written.
For Cavell, skepticism is gendered. A way out of doubt for a man who
wonders how do I know this child is mine, is to simply trust the woman, accept
the child in the concrete give and take of life. For the woman, the problem of
skepticism is “can I make myself intelligible to this other?.” And Cavell links
this difference to the male and the female regions of the self. So even in his
autobiography you see that his struggle with intelligibility is that he cannot
make himself intelligible to his mother, or his mother is not able to make her-
self intelligible to him.
With his father Cavell experiences a wound caused by the inability of
the father to accept the son’s separate existence. But the son also knows the
envy that runs in the immigrant father who’s going to be stuck in that position
of being a pawn breaker, who has a philosopher son whose life he can only very
vaguely decipher. So, the question comes back to Cavell on the gendered nature
of skepticism, which he said was a traumatic discovery for him. It was a trau-
matic discovery because the issue had always been before him: he had written
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

on Dora, he had written on Freud, he had undergone psychoanalysis himself.


And yet something failed to impress itself on him earlier and he says that
gender came as a traumatic discovery for him. There is a very interesting ques-
tion here whether one can think about gender in relation to this way of asking
“can I trust this knowledge?,” “can I trust that this child is mine?” Cavell says
this is a male doubt, versus the question “can I make myself intelligible?” And
for that he says all that you need is someone to say to you, not a big dramatic
“I believe you” − but just “whatever you’re saying, I can repeat it in a tone of
affirming it. And just make you comfortable in your own words.”
I had a very good friend and interlocutor, Audrey Cantlie, who was at
SOAS in London, and had done fieldwork in Assam. She came from this very
upper class family. She was a superb, intimate friend of mine. I remember that
she had written a book on psychoanalysis, which, for various reasons no pub-
lisher was willing to accept. In this book she showed how her words were
constantly overwritten by the greater authority of her husband who was a psy-
choanalyst, a very powerful man, but this overwriting of her words was not just
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

761

in the public context. It was also just an aspect of the ordinary for her. For
instance, if she was trying to say something, her husband would immediately
correct her and say “no, this is not how it was.” And that form of power is what
for Foucault becomes the power of correction and [control]. It is invested in the
psychiatrist but it is also invested in the way that Cavell thinks about the no-
tion of voice − when one’s words might be constantly overwritten and so one
fails to recognize the voice as one’s own voice.
As I said earlier, I love Sanskrit texts. But every Sanskrit text − [for exam-
ple], drama − will have components of Sanskrit and components of what is
known as Prakrit, which is a container language, so to say, which is put in coun-
terpoint to Sanskrit and is often the language spoken by women. It has four or
five languages within it, more sometimes. And within that set there are divi-
sions as to which kind of Prakrit will be spoken by women and which kind of
Prakrit by children or Jain monks, that kind of a division. I realized recently that
all through my study of Sanskrit drama, I had read Prakrit through its transla-
tion in Sanskrit. Because it was obligatory in every Sanskrit text to have what is
called a chaya text, which was the Sanskrit rendering of the Prakrit, seen as its
shadow (chaya). This text was meant for the reader, but not for the performer. I
then realized, that, theatre being something which is performed, the audience
would experience the performance in their own vernacular Prakrit and in spo-
ken Sanskrit. And so you get a vision here of how one inhabits multiple lan-
guages, but also how one inhabits the question of gender. And then I begin to
think “yes, of course there are Prakrits spoken by women and other Prakrits
spoken by lower castes, or by Jains, or Turkish sounding words in Sanskrit drama
spoken by characters depicted as foreigners.” Steeped in a multiplicity of sounds
every audience must have experienced the differences.. As it happens, when I
was a college student, I acted in a number of college level English plays, but
also in Sanskrit plays. And I loved the rendering in Prakrit, which appears in the
drama texts, or in examples in grammar, as also in everyday forms of commu-
nication where a certain distortion of Sanskrit was allowed. Here is where gen-
der finds you, right? It wasn’t that I set out to say “Well, let me see the place of
women in Sanskrit drama.” Gender finds you there. It shows, in a way, the pow-
er of how you can pose that question of gender with regard to knowledge.

C.S. We would like to ask something about coming of age. It’s different when
you tell and retell a story when you were young. When you retell a story many
years later. What changes there?

V.D. My picture of retelling is not that something was told at Time A and now
it’s being told at Time B. I think people are actually remoulding and polishing
and changing and revisiting their memories and their narratives all the time.
This happens over continuous time, not at discrete time intervals. That’s why
anthropology, desire and textures of life:

762

I don’t like the concept of afterlife because then it will look as if the violence
is over now, and then we have its afterlife.” Some of that showing in narration
of events happens because sometimes when I am relating something [that was]
said to me, [by] women like Manjit or Asha, I realized that I was in my twenties
[when I talked to them]. And so [they] must have been seeing somebody differ-
ent than what I am now. A lot of women did have this sense [of] not telling too
much or not knowing how to say things to you, because young unmarried girls
are not always told everything. This is where this question of ethnography gets
completely reversed, because they are the ones protecting you when you are
young from certain events or knowing about a hurtful past. But it’s also true
that these relationships develop. You then realize that there is a certain sense
of time as not just two discrete points over a line. And so the retelling is not
something like a narrative coming to an end, and then again being retold − it’s
a continuous moulding that tends to happen, and that’s what I think I was try-
ing to say in Textures. That it’s an inhabitation over parts of life that have some-
times become ruins or as happens in relationships, some affect has worn off.
When Cavell talks about the inevitable disappointments in a relationship: the
possibility of having a future together is in the light of this kind of disappoint-
ment. So, our commitment to each other may simply be that of agreeing to have
a future together. I’m not saying that this is always ennobling or that this re-
newal depends on something big as forgiveness. I was trying to say that very
often, say, in the work on abandonment in anthropology, there is the sense that
there is this moment of abandonment which is the sum total of what is the
truth of a relationship. What I’ve often seen is that abandonment is not very
easy for people. They won’t just say “Well, this is not working out, fine, I can
just walk out of it, right?” It can happen that they can’t go on with the burden
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

of caring or sustaining a relation. There’s an exhaustion of endurance or some-


thing of that kind. I have this very moving story, something in it just hit me by
its sheer unpretentious generosity. There’s this woman whose story I rework
in Textures, whose son, after much family opposition, had got married to a girl
of his liking. The girl was having an affair with one of her own brothers-in-law,
so after the wedding she stole the jewellery of [her own] mother and of his
mother-in-law and she ran away with her lover. Both her families (natal and
conjugal) were furious. They tried to register a complaint at the police station;
the policeman, of course, used that as an opportunity to extract a bribe out of
them, but because they had gone through somebody influential in the neigh-
bourhood, the bribe he asked for was not excessive. The policeman said some-
thing like this: “You’re lucky that she hasn’t filed a case against you when she
could have accused you of something, like making unreasonable demands for
dowry.” It’s not that women are always victims, right? Some harbour impossible,
clandestine desires for wealth, for Bollywood type romance. [The couple] had
now a lot of money, and [because of] this fantasy of the poor that [they] can
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

763

live as well as any rich person, they blew up all the money in a year. Then he
abandoned her, she had become pregnant, he went back to his own wife, her
parents took her in with the proviso that they would shelter her “until the child
is born.” They told her “We can’t let you stay beyond that time because once
the child is born everyone will know you ran away with someone and it would
just ruin our reputation.” The mother-in-law who had cut all connections with
this girl described to me how she was sitting in her house one day and she
could hear someone sobbing outside… The houses in this street have three to
four steps to climb and then you open the door and you get in. She could hear
this crying from someone sitting on the steps. She opened the door slightly and
peeked out to find that it was her daughter-in-law who was sitting there with
a baby in her arms. And, of course, she had known all along that her daughter-
in-law had given birth to a baby girl born of her lover: “I shut the door.” And
then she reopened it after a while because she said [that she] couldn’t bear the
fact that this baby might be somebody who then might fall into the streets and
the daughter-in-law might be forced to become a prostitute. All these possible
scenarios ran into her mind as she was listening to the sobbing; so she just
took in her daughter-in-law and the baby.
This is a story for me of amazing generosity, which she’s not even think-
ing of as generosity. She’s saying [that she] just couldn’t bear the baby crying,
[she] just had to take her in. Of course, she created all these other [justifications]
as she related these events to me: “If it had been a boy, I would not have done
it, it is because it’s a girl that I felt that she really needed my protection.” And
then after nearly a year when we met again, she said: “No, I’m not very happy
with the situation.” “Why are you not happy with it?” “Because I think my
daughter-in-law feels so obliged to me. She is constantly running around doing
things for me. I just want her to be naturally there, right? To do things or not
do things, depending on how she feels about it.”
You’ve asked me what I mean by texture: this is what I mean by texture.
To say that these are really the way that the surface gets defined through these
very sensory qualities, where this woman is not taking this decision to take in
the baby because she feels it is morally right to do it, but because there is this
sensorium. Precisely because of that, it’s not a ground for saying you could
count on everybody’s behaviour being similar. There are an equal number of
people in these neighborhoods who might say: “The girl deserved to be killed
or abandoned because she had really sullied the reputation of the family”, if
she was a somewhat upper caste woman. But in the slums, I feel that there is
a lot of violence, [but] there are also a lot of ways in which people do those
kinds of things beyond all expectations, and time becomes very important over
here. I relate this story in response to this kind of excitement about abandon-
ment in theory, when the moment of abandonment stands for, “This is how
patriarchal the family in India is” and so on. And these scholars don’t realize
anthropology, desire and textures of life:

764

how difficult it is for people to reach the point of abandoning the person, be-
cause they can’t put up with this situation, or with a woman who cannot con-
trol her anger, or a child, or older person who demands constant care, they can’t
bear to do the work it takes, they can’t endure it any more. As an anthropologist,
I feel that the texture of such events woven into everyday life has to be shown.
Because otherwise we jump too quickly into assuming that there is a natural
way this would end up, almost a teleology leading to inevitable abandonment
of undesirable family members.

C.S. You talk a lot about the dialogue you have with philosophy, literature and
even Sanskrit, which is your area of education. Is there anything else you want
to say about this dialogue, especially in philosophy, and how this broadens our
way of seeing the world and understanding it in an anthropological way?

V.D. Well, there are two ambitions here. Though I was always an avid reader of
philosophical texts and engaged Wittgenstein in my work there was absolute-
ly no reason to expect that any philosophers would have noticed anything that
I write. It was quite accidental that certain philosophers became very inter-
ested in anthropology and in what I was writing. And in that development
Stanley Cavell became very important for me − he was one of the persons I
dedicated Textures of the ordinary to − and there I say ungrammatically that “In
your writing I am existed”. I felt that that in Cavell’s recognition I found myself
become alive. He didn’t know me at all when through some fortunate accident
he was asked to comment on a paper of mine as a referee, and, again, there
was no reason why he would have ever agreed to do so, since he knew nothing
about me. He had a certain fascination for Indian cinema, but he also had a lot
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

of diffidence about what Indian philosophy or literature was about. He recog-


nized that I was not looking to philosophy for any kind of theory for anthropol-
ogy. I just wasn’t doing that, I didn’t think we needed a foundation or a theory
to stand on. I was looking for a kind of partnership, a companionship, with
philosophy [and] more to find a way to address questions like “how do I know
this?” Or when I say “this is the object”, do I really know how I come to think
of the object as this and not that in this setting? I think it helped me to read
philosophy just for my own pleasure. But there were also a lot of false claims
about Indian philosophy being made within European philosophy. Cavell (1988)
had the conviction that philosophy harbours a desire of violence against the
ordinary, making it into a form of knowledge that became somewhat incom-
prehensible to many. My interest was in particular philosophers and not in
philosophy in general. That I think is important for me. [Many] times people
think that Wittgenstein is so exotic, so difficult and so strange, so why do I feel
this attraction? But coming from some immersion in Indian philosophical tra-
dition, Wittgenstein’s questions were not strange at all. [The] questions about
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

765

doubt are very central [in Indian philosophy], and I think Cavell sometimes
mistook their sense of doubt in Indian philosophy as maybe just sophistry.
But when we started talking about these matters and about Emerson, he
sensed that this form of doubt (not the same as skepticism in his formulation)
was embedded in the forms of life in India. So, it was not just an epistemol-
ogy in the sense of enumerating the formal conditions of knowing. I mean
there are times where some renowned Indian philosophers get frightened of
where their reason is leading them. To give you an example: the Buddhists
are unafraid of working with idea that anything that can be divided into parts
is basically just a [conceptual] entity. It doesn’t have ontological reality. But
then there is, of course, the fact that a chariot cannot exist within this logic,
its parts can, right? But we also know that a chariot can carry you as a mode
of transport? Some of the Indian philosophers would say: “don’t go there.”
Because we know, this issue is not going to be resolved. The Buddhist bravely
tried to resolve it by making this distinction between conventional truth and
ultimate truth, and sometime exchanges with Buddhism were crucial for those
within a kind of Hindu imagination to develop their own notions of existence.
But it’s not at all strange for them to entertain the idea that inexistence is a
very important part of existence itself and that reality cannot simply be equat-
ed to actuality. Or that you cannot make propositions about non-existent
things.
There are very good, very fascinating philosophers who tried to foster
conversations among those who wrote and read in Sanskrit and contemporary
philosophers writing in English. It’s an important experimentation but part
of the problem, for example with Indology, is that those who are great schol-
ars of Sanskrit read no vernacular Indian languages. Many of them think that
such actions as translation were inaugurated in Europe. Right now, I’m writing
[a] paper with two of my colleagues where we started by asking: why did so
many reputed European scholars think that they’re the ones who first trans-
lated Sanskrit texts? [We have] very early translations of Sanskrit texts in
Persian, translations in Tibetan, the entire corpus of the philosopher Nagar-
juna, who wrote in Sanskrit – was recuperated by processes of translation by
Chinese and Tibetan monks. There are texts in Sanskrit which have been re-
covered because of methods of oral transmission evolved over centuries. For
instance, segments of texts were memorized by segments of particular lineages
whose responsibility it was to memorize these segments and transmit them
without any alteration. And there were other cases such as the famous plays
by the poet Bhasa, which were based on a single episode in the Mahābhārata,
and were performed in Sanskrit in villages in Kerala. These texts were lost
but were recreated by contemporary theatre artists or scholars by getting
people to re-enact the dialogs. Clearly the audiences were erudite enough to
sustain these performances.
anthropology, desire and textures of life:

766

One would have thought anthropology would be the proper home for
this kind of dialogue among different philosophical, aesthetic and performance
traditions. It would help us interrogate our own concepts, right? As an example,
in Textures of the ordinary one of the things I tried to do with regard to reading
of the classics [was to question] in Evans-Pritchard’s (1956) [writings] on religion,
why it was so obvious to him that the Nuer god was a god and the Azande god
was not a god? I argued that he smuggles in the discussion, aspects of Christian
normativity under the guise of an anthropological concept. I’m not saying this
in a spirit of resentment. I realize how difficult the apparatus of Sanskrit texts
is and I realize that Indian scholars should have done much more to make this
kind of thinking much more available. But knowledge making is also constrained
by different kinds of exercise of power: the work on concepts from Sanskrit
was not easily publishable; even today, when you try to publish something like
that there will be somebody sitting over you and saying “Do you know what?
This is not really anthropology.” It is very difficult to [break through] this bar-
rier, and I really struggle with the fact that a lot of my truly creative students
don’t initially get jobs in [well-known universities] because their work is not
easily recognizable within the grid. Ultimately, they do get to be where they
want to be in academic jobs because they come to love academia, or ideas, but
it’s kind of hard because they ultimately do end up saying: “You trained us in
a way that people don’t recognize what we do as anthropology.” And that’s kind
of difficult to absorb because I am not paying the price for the innovations they
engage in. There’s somebody younger paying a price for having to carry certain
ideas forward, right? In addition, there is just so much gaming of what counts
as knowledge in the sense that my own university is obsessed with rankings
how many citations? How many books did you publish this year? How many
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

are in the press? You know, you can make all the right gestures to say “Of course
we are not just saying counting is important,” but we know that there is a lot
of gaming which happens because people are not willing to accept the fact that,
yes, there will be failures. You can’t get everything right the first-time round:
if people are really doing risky research, expect some failures. And don’t pun-
ish them because they tried to do this in ways that they were not sure of the
success of their experiments. So, I think those are the kind of things that we
really need to think more about. You have another question [asking] how we
think about different traditions in contemporary anthropology? That’s a really
important issue.
In India, this is an obsession: what is Indian anthropology? How do we
do anthropology or sociology here in India? How [do we really approach Indian
anthropology] et cetera, et cetera, which I think is a very healthy way of think-
ing, except that it settles too easily for what is “Indian.” And one has to say
“Okay, we need to really rethink that.” It would be a grave mistake to think that
Sanskrit texts are the exclusive repository of what is Indian. There are fantas-
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

767

tic questions that have emerged through the study social movements which
don’t find a place necessarily in texts, there is Dalit literature as also texts in
Persian, Prakrit, Pali, and vernacular languages which is in dialogue with San-
skrit texts.
The affinity I have with Brazilian authors like Mariza Peirano (1991, 1998),
is because she was able to pose these questions in new ways. For a long time,
I used to think “Its okay, even if there are ten people in my society who will be
interested in such questions, that’s good enough.” And I still think so. I’m not
in need of finding affirmation by attracting huge numbers of followers. I think
one has sought to say something because of the pressure on thought, and some-
one, somewhere will need to carry some ideas forward. I was very lucky in my
teacher, Professor M. N. Srinivas who was a student of Evans-Pritchard and
Radcliffe-Brown at Oxford, but also studied with Ghurye at Bombay University.
He was not so tolerant with every student of his, but with me he was somehow
very open to the fact that there was something very idiosyncratic in what I was
doing. He encouraged my experiments. On the one hand, he would worry about
me: “Anthropology is about actual fieldwork, and you’re not doing fieldwork,
how will you tell people this is anthropology?” But then he would also say that
Radcliffe-Brown had forbidden him to read such scholars as Bachofen or McLen-
nan because of the problems with “conjectural history”, and he said: “You should
go and read all of that” [laughing]. Kind of quite interesting to see that.
In a recent book published by Polity Press called Slum acts (Das, 2022). I
have tried to see how documents acquire a legal status in terror trials, and the
person whose book has been most influential for me is somebody called Wahid
[Abdul Wahid Shaikh] who was the only accused to be acquitted in these huge
Bombay terror trials, but who wrote, very courageously, a book on torture (Shai-
kh, 2017). I wrote a blog post to make that kind of thinking in vernacular avail-
able in anthropological theory, to say why this is a book of utmost, profound
importance (Das, 2019). Not because it tells you a horror story but because it’s
a pedagogic text. So, I think there’s a lot of work to be done in making anthro-
pology talk to these kinds of texts.
I have also worked with one of the slum dwellers who was educated
only to Grade 8th, the one who in Textures appears as Sanjeev Gupta, to write
an article which he wrote in Hindi and it was published in a national daily in
India. There was a nation-wide anti-corruption movement taking place in India
and he asked me to summarize for him what newspapers were writing on this,
and his reaction to my summary was “This is a way of side-lining the poor.” He
was not at all taken in by the rhetoric of purifying the polity. That is why he
would ask me: “Tell me, what are people writing about this movement in Eng-
lish media? About democracy, and about slums, and about us?” Because of this
rise of the new political party in Delhi, a lot of people from various top univer-
sities were writing in newspapers. And I would summarize op-eds for him and
anthropology, desire and textures of life:

768

he’d say: “They’ve got it all wrong.” So then I asked: “Why don’t you write
something to tell us how you think about it?” He responded: “But nobody will
publish it.” I said, probably, but let’s try. So he wrote a short piece in Hindi on
how he saw the issue of corruption and democracy; I translated it and then I
managed to find a connection to an editor in a national daily and they agreed
to publish it. It’s not just academia in universities that blocks knowledge from
these kinds of sources. It is very difficult to find venues for publication for this
kind of writing. So after [the article] came out, Sanjeev Gupta was very pleased
for about two days. His photograph was there in a national daily, his ideas were
there for the English-speaking big professors and so on! I congratulated him
and inquired “People in your party must be very pleased,” because he was a
party worker. And he said “Well, yes.” I probed further: “So what did they say?
Did they congratulate you?” He retorted “They said, oh so, you’re trying to act
as a big hero, huh?” Meaning “Why have you bypassed the authority of the top
people in the Party?” You have to realize what it means for them to be able to
speak, to be able to write, to negotiate these things every day. So for me, it’s
not just a question of ploughing through Sanskrit texts, that are a very impor-
tant resource for me, or Prakrit texts, or vernacular texts − but also find the
way that the apparatus of thought from many of these texts seeps into the lives
of people. I am full of curiosity about what kinds of texts are being produced
through writing, lectures, political slogans or anything like that, as people are
reflecting on their own conditions in very compelling ways.

A.V. We could go to so many different questions now, but I’ll go to the details
again, and allegories. We would like to know a bit more about the ethical and
aesthetic implications of how you deal with fragments, allegories, details, the
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

way you choose to not conclude things so fast, or not put things in a straight
framework.

V.D. That’s where the question of texture becomes very important, because for
me the way I think about texture is through the actions of weaving and knitting,
you know, these are the things that trigger the picture of texture in my writing.
And they come from the idea that the frame is not the rigid frame which keeps
the pictorial space inside and the world outside. This notion of the frame is in
any case, an innovation of the renaissance. Other experiences of painting are
different, or [even] the experience of the image when you would move around
it, you would touch it, you would offer something to it, you would pray before
it, and so on and so forth. In a museum, a painting is bound in a frame and I
stand before it and watch it; my eyes move around it but I stand still, may be
changing my position slightly, right? And there are modern painters in many
places [thinking in terms of], say, installations and trash art who experiment
with the earlier ways of moving around. In India contemporary artists take
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

769

inspiration from many traditions borrowing from wherever they feel like.
Whether this is folk tradition, whether this is classical Western painting, wheth-
er it is Indian innovations with miniature painting, for example. The experi-
ments with frame come from thinking of the frame as something like a weav-
er’s loom. The frame is… woven into the depiction. And thus, the writing or art
and the world are not separated. They are just part of each other, so to say.

L.F. Yes, the writing and the world are not separated. I think that the question
about silence comes just at the right moment. This is an aspect of your work
that called our attention in Brazil, and that is commented on by many scholars.
Would you talk a bit more on how we can think of silences in anthropological
texts and how we can think about the experience of those moments where it’s
impossible to go ahead, when you have to stop?

V.D. The stance I have is: I am happy to leave things in the middle. I think there
is a paragraph somewhere in the preface [of Textures] saying [consulting book]:
“There are some relations I made with people, places, and texts that are marked
by much greater intensity than others – but there was also those with whom I
did not have the mental fortitude to stay with or who faded from my life and
work because of accidents of fate” (Das, 2020a: xi). So there are many things
that you actually do to leave something in the middle. Throughout the preface,
I talk about the fact that “The love of anthropology may yet turn out to be an
affair in which when I reach bedrock I do not break through the resistance of
the other. But in this gesture of waiting, I allow the knowledge of the other to
mark me” (Das, 2020a: xii). And then chapter 4 ends this way: “At one point in
Endgame, Clove says, ‘The end is terrific,’ to which Hamm responds: ‘I prefer
the middle.’ And Cavell has much of importance to say on being an eschatolo-
gist versus being just in the middle in this scene when finding a cure for being
on earth is not the issue, perhaps enduring this condition is. I stop at this point”
(Das, 2020a: 147). [And] chapter 9, in which I read Wittgenstein’s (2020) Remarks
on Frazer’s “Golden Bough,” ends with something like the idea of stopping in the
middle: “For now, I leave this chapter with the idea…”
I think there’s often this imperative to show that you have mastered
something and so it stops us from saying that this is how far I can go and I’m
not able to go forward. And what’s really exciting is that you’re not necessar-
ily the person who will pick up the unfinished thought again. It may be some-
body else who will allow your thought to be supplemented by making that
problem their own. I supervised a student in Lausanne, Joséphine Stebler, who
worked with children and introduced totally new pedagogic methods in elemen-
tary school with children, a majority of who did not have French as their first
language. Or they had the idiolect of Rwandan French and were learning the
Swiss French. And she writes on this child in Life and words, the one who is
anthropology, desire and textures of life:

770

mute, as I describe a scene when he begins to enact how his father was hung
from a tree during the anti-Sikh violence in 1984. And as the child was enacting
this scene, how his face became a canvas on which the memory of every emo-
tion that passed on his father’s face as he was being dragged to his death was
mirrored, while the child’s hands became enacted the frenzied movement of
the hands of the killers showing how they dragged him to the tree put a noose
around him and lifted him up to hang there. Many years later there, were some
people who kept asking me: “why don’t you go back and find him and talk to
him.” And somebody else did write a scene in a theatre on this episode. But I
don’t have it in me to be able to do that. And I have to figure out why that
memory still paralyzes me. But I can’t figure it out, right now, you see?
Just one year ago I had a conversation with my youngest son who at the
time of the riots against the Sikhs [1984] was probably four. I had written about
these two young girls who I brought to my house after their mother committed
suicide. One of them would not talk to anybody except him. He vaguely remem-
bers her, but when this occupation [of the Capitol by Donald Trump supporters
on January 6th 2021] in Washington happened, he said to me and − he’s a forty-
year-old now, he’s a professor, he works on artificial intelligence and so on − and
he said: “I was terrified by the idea of the mob.” And then he was trying to re-
member the time of the riots in 1984 in India. He only remembered fragments
of those events, but he remembered his sense of foreboding because I was re-
ceiving death threats and I was very scared that I had put my childrens’ lives
at risk. These events affected my three children in different ways, but he said
that all he remembered was my sense of panic − [what] if the children went up
on the roof, for example? Absolutely forbidden for them to go to the roof because
then they would be visible from afar. Absolutely forbidden to take an auto
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

rickshaw, even if they had to wait for hours for a bus, they would wait for the
bus and not take an auto rickshaw. Because sometimes the killer might be the
one who is driving the auto rickshaw. And it had an impact on how he thinks
about mobs, and how he thinks of fairness, and how he thinks about justice −
not in the way I think, because it’s a different way of thinking. But these con-
cerns took root in his life. I similarly have students who pick something like
that and make it into a project of their own. If you see any work done by my
students, you will never find a single way of doing research or thinking. And
this is because I feel I show them where my ignorance lies. And so they are
encouraged to pick up something and say “This is what I might do with it.” It’s
not like I don’t have the courage to tell them “This idea seems right and that
wrong,” but I’m truly blocked sometimes in not knowing what that would entail.
I don’t know how to go forward. I can give my students whatever I can, then
they need to take their own thinking forward in their own way.
In all these senses, I think it’s again a question of knowledge and I’ve
always told my students, I’m really not interested in the “aha” moment. In the
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

771

American academy, it’s the sort of thing that just presses on you. [They] say
“Oh yes this is very good, but what about the “aha” moment?” And for me it’s a
question of what are you willing to commit your life to? So, when Joséphine
[Stébler] wrote about these children, she actually raised this amazingly inter-
esting question: what would connect the life of this kid in this slum, and the
dramatic enactment that he does, with what she’s doing? [And] in her writing
she evoked this four-year-old Rwandan kid who for the first time reads a whole
picture book, and when she reaches the end, she’s like “ooh-la-la!” [laughing]
And just what would connect them? And she said: what connects them is that
children are used to taking different roles, they are enacting different possi-
bilities of life. And so, although this was an absolutely terrifying moment [for
one of the two children], and [for the other], the four-year-old, it was not, Jose-
phine said what’s connecting [them] is the fact that their form of life is a human
form of life in which one plays with different possibilities. Now, you recognize
that I think I missed that. I know that I was trying to get to saying this is the
human form of life, but I missed the intermediate steps that she was able to
take.
I would say the same for a lot of those who found their own ways of
taking thought forward. One of my students, Andrew Brandel, for example,
whose work you might know or Bhrigu who came to Cavell through a rounda-
bout route are examples of such movements. Andrew and Marco Motta pub-
lished a book on concepts (Brandel & Motta, 2021). I think they bring a vision
to that which I had some idea of and Sandra [Laugier] [also] had some ideas
about. They worked on these ideas, but [they] also found new directions in
which to develop which with Wittgenstein, we may call, aspect dawning. And
for me that’s really, truly, important. Half the time in the US academy [the issue
is:] what is your legacy? What’s the school you have founded? What is this
concept that you have offered? But all I think I’ve done is to make some ideas
available which I had limited abilities to take forward. I mean, you have to
remember I was very poorly educated in terms of earlier schooling. I went to a
reasonably good school, but I remember when my eldest son was doing neuro-
sciences, [and] as an undergraduate he took a class in philosophy, and I asked
him, what are you reading? He said casually that they were reading Kierkegaard.
And suddenly there was this moment of utter jealousy I experienced. I said to
him “My God, do you know how much I had to struggle to discover somebody
like that, and it just comes your way like that?” What is important is not a
legacy or what goes on in your name. My biggest desire like a good Hindu is to
be extinguished from life when I die. Because there are others who will be there
to deal with the new problems that will arise. It’s their lives that are important.
And that gives me a taste for life, so to say. So that I think is the question of
knowledge, which is where the sensibilities can be, really different. But I see a
connection there with scholars in Brazil.
anthropology, desire and textures of life:

772

C.S. Very nice to hear that.

V.D. I think that there isn’t that ambition when you’re working in those envi-
ronments where it doesn’t matter that you’re not the most cited author or
whatever. What matters is: in this world, this idea made a difference, in a small
way. So, I am truly grateful that you give me a chance to talk about these things
[laughing]. And this is not an act of modesty. It’s honestly just something which
is true.

A.V. And it’s such a relief to hear this. I think there is a connection between
this and what you said about devotion in our last meeting. We would like you
to talk a bit more about that, as you presented us with such a beautiful asso-
ciation, a connection between devotion and desire.

V.D. This connection comes from this idea in many Sanskrit texts whether on
ritual or poetry where the issue [is]: can you be put in touch with your own
desire? Do you have a way of not distorting your life by the falsity of what you
define as your needs? I found it very interesting that Mauss, when he wrote on
sacrifice (Mauss & Hubert, 2017), completely missed this dimension of sacrifice.
He was using Sanskrit texts, for a theory of sacrifice, right? And yet he ends up
thinking that there is a transaction between gods and humans, a bargain made
for reaching a desired object. But it’s not gods who grant you your desires. It’s
you. So, yes, there are desires for objects for which you could perform a sacrifice.
But not because gods really grant you that desire. Although you will invoke
gods in the ritual it’s the totality of what is going on in that sacrificial arena,
the mantras, the invocations, the offerings, the gestures, that will make that
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

desire materialize.
To perform sacrifice, the exact injunction is svarga kamah yajet, let the
one who desires heaven perform the sacrifice, and the verb for sacrifice, yajet
is in the optative mood. Not perform it, but you may perform it, by the one who
is desirous of heaven. And then they go on to say but heaven is not something
that exists − it is brought into existence by this act of sacrifice. Because of the
fact that the creation of something (bhavana) entails creating something new,
the heaven you desire is not yet in existence. So then the opponents of this
notion of sacrifice put forward an objection: “if something doesn’t already ex-
ist, how can you desire it?.” The answer roughly is “You are bringing heaven
into being by your act of desiring it.” And so it’s again very interesting how I
think this kind of thinking joins an important move in ritual theory made by,
for instance, Michael Puett and his colleagues who characterize ritual action
as undertaken in the subjunctive mood. It’s an “as if” reality that is created
through ritual. I love that formulation, [but] I also think it’s still timid. And the
reason why I think of it as timid is that it falls back into the idea that an as-if
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

773

enactment is pedagogic in the consequences it has for the participants. It’s a


fantastic move to argue that ritual is teaching you to play with possibility. It
brings possibility and modality centrally into ritual theory, but may be peda-
gogy is not the best description of what is going on. But I need to think more
on this issue
But all this pertains not just to the bounded areas of ritual: it’s really
how we live with our desires. Do we take desire as something through which
we actually brought something, maybe beautiful, maybe dangerous, into being?
It is why I think the question is never that of a guarantee that you become a
moral person because you’re performing the right rituals. But if there are no
guarantees that ritual will produce the good then the opponents of ritual the-
ory say “You’re giving everybody the techniques for doing things which they
can use to cause harm.” And the response of the ritual theorists is “We’re not
the ones responsible for your desires. We’re only telling you what you could do
if you wanted it.” You’re the one who wanted it. It’s a very different vision of
what is moral responsibility, what is spirituality, not, as many think, that I pay
no attention to religion or spirituality. The who fault me for not paying atten-
tion to religion have a very fixed idea of religion. And it kind of goes back to
that modern demand for spirituality and transcendence that wants to settle
the question what is the good. The satisfaction of this demand for goodness
comes too easily whether in popular culture or in anthropological writing, at
least from my point of view.
To give you an example of these difficulties in sustaining their ideas in
how life is to be lived, the proponents of ritual hermeneutics − i.e., the mi-
mamsa school − had to live with the difficulty that their reasoning leads them
to say that gods are just the creation of words uttered in the ritual, but they
cannot say anything about their existence outside this ritual space. It’s such a
difficult idea to live with. But there’s also modesty at one level that I find very
endearing. For example, one of the mimamsa theoreticians who is totally com-
mitted to the hierarchy according to which Sanskrit is a sacred language and
above other languages, is asked “But there are all kinds of words in the world
which, are not in Sanskrit, which, low castes use and which ‘despised’ foreign-
ers use?” And he replies “Well, yes, there are these words.” “Are you saying these
words are incorrect or inferior?” The mimamsa scholar replies “they’re not incor-
rect for what these words are needed for.” The opponents ask: “Would you bring
a Brahminical apparatus to correct these words, make them a part of Sanskrit?”
He replies again “No, because, the injunctions in Sanskrit are right for me to
be able to perform sacrifices. The same Sanskrit words would not be good
enough if my profession was to trap birds and domesticate them. This is what
these tribal groups who use different languages are using them for.” There’s
something quite interesting here on error, fallibility, and correction, which is
very different from measuring against a standard that would apply everywhere.
anthropology, desire and textures of life:

774

I’m not saying this way of thinking is right or wrong. I’m saying it’s a very dif-
ferent vision from the idea of fallibility as a fall from morality, or the big mor-
alism apparatus that might come with it. What was it to be devoted to the idea
that an action has to be undertaken because it seems right but one does not
know what the consequences of that action will be. Gandhi was a very good
example of advocacy for that form of moral actions. He takes from the [Bhaga-
vad] Gita this notion that you have only rights over your actions and never over
the fruits of the actions. One has to learn to live in this detached way in relation
to one’s own actions. There is a puzzle here. How are you supposed to have this
detached relationship to desire, which is also a certain way of being devoted
to the world?

L.F. Thank you, Veena. A very strong emotion among us, caused by our conver-
sation last week, was joy. We would like to ask you about that. Uncertainty,
unpredictability, improvisation: they are all qualities of the everyday that have
great prominence in your work, and they are also qualities of ethnography itself.
How can we think from this perspective about the place of joy in ethnography,
particularly when we think about ethnographies around themes such as vio-
lence, social suffering, poverty – themes that are mostly approached through
the key of “survival”?

V.D. I think last time Cynthia said this very beautifully, that there are no bound-
aries here between this is joy and this is sorrow. I mean, we know that, let’s say,
something like the emotion of being in love, or just loving somebody, it doesn’t
have to be the dramatic being in love, it can be just loving somebody. This love
– it’s joy, it’s grief, it’s waiting, it’s anger, it’s jealousy, it’s moments of ecstasy,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

and no one emotion can be expunged from the feel of love. Some time ago I
gave the Allen Dundes Lecture at Berkeley [“Time, subjectivity and the Poetic
Voice”, 2012], where [for] the first time I talked about how I recognize this
volatility of emotions in aesthetic theory. This question comes up, in the
Mahābhārata: some of the most erotic moments in the text and ones full of
pathos are the moments of women lamenting the deaths of their husbands.
The war is over. They are in the battlefield with bodies of the dead strewn
around. And as they look at the dead they lament in words like “this the hand
that fondled my breasts…”. There are critics who accuse the proponents of the
theories of poetic emotion (rasa) to ask: “How can you let this moment of death
be so seeped with this erotic desire? Even if it is in the form of lamentation.”
And I think that’s what the swirl of emotions in the poetic voice means for them
– this is why working through these emotions is a lifetime of work. It’s the way
passion is built over time, even if its revelation is condensed in one moment.
Being able to say “I love you” is a great moment – but what is the before and
the after of this moment? This is what Wittgenstein talked about as the hurly
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

775

burly of the organism – these different contradictory emotions are totally tied
into each other. And this again has been my difference with some anthropolo-
gists who want to draw boundaries around joy and sorrow.
I think it’s interesting that it is more often the male anthropologists who
get most anxious about my work. I find this quite fascinating. You know, there’s
always somebody or other in an audience who will say: “If you do away with
objective standards, how will we know how to judge?” I say: “You will know
when you actually need to make a judgement.” I remember saying to Joel Rob-
bins (2013), who is one of my kindest critics on this issue and asks: “Why haven’t
you talked about joy? Isn’t there also joy? Or isn’t there also goodness?” The
assumption is, one has to find where is joy, one has to find where is goodness.
And my response is something like: “But Joel, I’m not an accountant. I don’t
have ledgers or columns where I say this is sorrow, this is joy, now I’ve balanced
the two.” It’s precisely the fact that how and where joy will be found is not
predictable. In Life and words, I give an instance when victims of the riots are
trying to re-enact that very carnival-like scenes of killing. And they are laugh-
ing. And it’s clearly not joy, even if it’s laughter. And yet it’s not cynical laugh-
ter, it’s just drawn out of them, unbidden, in a way. These events raise such
questions for me of how these swirls of emotions move from joy to sorrow. And
how to find expression for these experiences, without having to fix these in
one position or another: “Now I am committed to finding joy, now I am com-
mitted to depicting suffering.”
And survival is a very interesting question here. Richard Rechtman (2020)
has an amazing book, La vie ordinaire des génocidaires, which is about his work
as a psychiatrist with the survivors (victims and perpetrators) of genocide. One
of the points he makes is that when we think about genocide through the lives
of petty executioners, not the big leaders, they don’t have the time or the in-
clination to sort people into who was a friend, who, an enemy? Every day they
have to fill targets. They have to select enough people who can be killed effi-
ciently. They have to actually do the killing. They have to get used to the smells.
They have to remove the bodies. They have to deal with the sheer exhaustion
of killing, removing bodies, cleaning. And it’s an absolutely remarkable book.
Consider its relation with my colleague Clara Han’s book (2021), Seeing like a
child, which is written in a very slow pace with slow movements, with very rich
ethnographic moments. Rechtman (2020) does not have great ethnographic
moments. It took me a while to realize that the greatness of the book is to say
this feeling of what it was to be so steeped in death can’t be conveyed. Where-
as in Han’s book the description of the slow unfolding of events of a brutal war
in the interstices of family life, allows the poisons to be drained out.
Sometimes there is so much good work that gets smothered by the de-
mands of standardization. For many scientific papers this control over genre
might work, but for anthropology, I feel it takes away the individuality of the
anthropology, desire and textures of life:

776

writing. In many anthropology journals, a paper will begin with an ethnograph-


ic moment to spark the interest of the reader, then go on to the theoretical
problem and the context, and so on. This control over the form of writing as-
sumes that one’s style of writing has nothing to do with one’s thoughts but the
delight of reading Wittgenstein or Cavell for me lies in the idiosyncrasy of their
style, including the punctuation, the feeling of an ascending emotion in Cavell
with his long sentences, or with the sense that Wittgenstein’s writing is prone
to take you astray before it brings you back. One editor of a prominent journal
made one of my students make one hundred and twenty-five small changes in
the words he used, or dictated where he put commas. Sometimes I think there’s
some machine somewhere which will take a paper, place it into the standard
mould, churn it out, and only then it will be publishable. It’s a matter of tre-
mendous sorrow for me that individual style, such as the geometry of the writ-
ing, or the way ornaments are used, is ironed out in this process of standardi-
zation. I’m very grateful to Fordham [University Press] and to Bhrigu [Bhrigu-
pati Singh] and Clara [Han] who allowed my book [Textures of the ordinary] to be
what it is, without too much worry about audiences who may not understand
one part or another. The first reviews of the book that were published are in
journals as far apart as Wittgenstein-Studien and Sociological Bulletin. Clearly, I
can’t have known in advance who will be moved by my writing. And then you
people in Brazil have read my work so closely: how could I have ever known
that this could happen?

C.S. And on the other side of the world!


C.P. One thing for me that is really interesting, a pleasure as I started to work
more closely to you is to see your generosity with other researchers: not only
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

the anthropologists. When I look at your work, all the time you are working
with a big team, and you have this capacity. In Brazil people don’t know so
much about how you work collectively, so I would like to hear more about it
and what anthropology can do with other groups, other researchers and other
areas also.

V.D. Basically, I would say these collaborations get formed because there is a
problem that requires collaboration with scholars who have expertise of dif-
ferent kinds. And that’s why the range of people with whom I work is so varied.
First, there are the small number of field researchers from ISERDD, a
research and advocacy organization in Delhi of which I am a co-founder. The
people working for ISERDD have evolved together to become major collabora-
tors in the projects we have developed relating to health and disease, quality
of care, education, citizenship, in the slums. But almost all of them come from
low-income areas and are first generation of college educated people in their
families. Only one of them speaks English though others have acquired rudi-
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

777

mentary skills in reading and writing in English. But what is remarkable about
them is that they are very independent thinkers and love working with ISERDD
because there is no boss managing the implementation of day to day work.
That’s been one kind of collaboration which has now been going on since 1999.
And I still remember, how it was when I first tried to teach them how to do an
ethnographic interview. One of the young men was more or less barking orders,
asking “How many times in the week do you go out to work – yes?” And I said
“Purshottam, please can you record your interaction? Go home and then play
the recording to your mother and ask her what does she think about this.” This
was all in Hindi. His mother [said something] like “You sound like some petty
official who’s asking for a bribe!” Today they all say how much they [had to
learn about] even these small things like what’s the texture of your voice, what’s
the way you would think about that problem in your interview technique. That’s
one collaboration which has lasted forever and which I’m grateful, moved, and
delighted by.
The second kind of collaboration is obviously with one’s students, where
I haven’t ever – or very seldom – written anything jointly with them unless they
have finished their PhDs. And the reason is that people will often presume that
I must be the main author. And whatever order [of the authors] you put on the
paper, that is the assumption that is brought to bear on it. I usually will not
publish anything jointly as long as they are students but at the level of ongoing
collaboration of thinking with them and getting them to comment on my work
and my helping to take their ideas forward in a way that they can take respon-
sibility for their own voice, is very important to me
The third kind [of collaboration] came about because of some fortuitous
circumstances. I collaborated a lot with Arthur Kleinman on this trilogy (Klein-
man, Das & Lock, 1998; Das et al., 2000; Das et al., 2001), and I learnt a lot from
Arthur and Margaret [Lock] on evolving a broader perspective on medical an-
thropology. But while we all loved this opportunity to collaborate, we knew we
had differences, which were very productive to think with. Arthur had this anx-
iety about me that I am very hesitant to intervene quickly, and he would ask:
“What are we doing for people to alleviate their suffering?” And my stance was
that we have to refrain from intervening if we are looking for affirmation that
this intervention makes us feel better about ourselves. We need to think what
impact will this intervention have in the slightly longer term and how will it be
sustained when we are gone. For example, one of the enduring points of differ-
ence in this discussion was this entire question of how to reach mental health
to the poor. Arthur is very committed to questions of mental health, as am I, but
for me that’s not the only issue people are dealing with in their complicated
lives. Arthur felt that nurses or staff at the PHCs which – are the Primary Health
Centres – “could be trained to identify common mental disorders and to treat
people.” But I disagreed because my own work we were finding a rampant mis-
anthropology, desire and textures of life:

778

use of antibiotics both in public and private sectors. I felt that PHCs could be-
come conduits for movement of pharmaceuticals of all kinds. So, I was hesitant
to recommend putting psychotropic drugs in the hands of PHC staff. I’m not
saying that there is an easy resolution to these issues. I’m saying that we worked
[together] up to the point we could, and then these differences became difficult
to address. Of course, I have the utmost respect for Arthur and I think his writ-
ing on care (Kleinman, 2020) was very important for me because I also knew his
wife extremely well and felt very empty after her death. So, you know, there are
emotions and not simply ideas that become crucial to sustain collaboration.
I maintain close collaborations with my colleagues. I work a lot with
Clara [Han], and Naveeda Khan in different ways. I can’t work with all my col-
leagues equally well, nor am I expected to do that. There are not only problems
of time management but also because there are genuinely different desires we
have about what we want to do with the kind of expertise we have.
One of the longest collaborations I have been engaged in is on health
systems at the level of low-income urban neighborhoods. This collaboration
grew out of some family circumstances. My middle son [for example] was very
committed to the questions of health and equity and that led to this long-term
collaboration with economists, public health practitioners biomedical scientists,
as well as some policymakers. My sense is that policy makers are important
consumers of our research, but I don’t trust that just telling them what we think
is the right step forward will result in the right actions. So, my sense is we
should make our knowledge available to a variety of actors and stake holders
and we should see who picks up an idea and how it gets implemented. But
there are very practical questions that we have to face. For example, our team
has just published a paper on our use of simulated standardized patients, try-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

ing to show that they are mistakenly called fake patients (Das et al., 2021). We
ask: what does simulation mean here? What does standardization mean here?
We argue that a real patient is as much a construct as a simulated patient. This
whole work with simulated patients has required, first, [that we] solve the
practical problems: how do you actually train a very large number of SPs [sim-
ulated patients], who are drawn from low income areas in different cities? For
me it was exhilarating to be training them and I say something about that in
my book Affliction (Das, 2015). So I’ll tell you where my failures lie. The men and
women we trained learnt how to present themselves as standardized patients.
One has to train them to not only give correct answers in a clinical encounter
but to also recognize which investigations or exams to avoid. For example, a
thermometer in a doctor’s clinic is a very innocuous instrument for measuring
your fever. But we had to drill into them: “You are not to put a thermometer in
your mouth because we know thermometers are not disinfected.” And they
would say “But when I go to a doctor for any consultation from home, I let him
put the thermometer in my mouth, it is routine, what’s the big difference?” And
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

779

I would say “No, you’re not to put it in the mouth because we cannot expose
you to a risk.” And they’ve learnt how to answer questions but also how to avoid
certain investigations offered in the clinic. “You have to refuse injections, if
offered.” So they have to learn how to make an excuse for refusing to allow the
doctor to proceed with certain procedures. But then, overuse of injections is so
routine in these low-income areas that the doctor begins to wonder why is this
patient refusing to take an injection. In order to allay suspicions that the patient
is not a real patient and thus risk of discovery, we have to create these idiosyn-
cratic stories, appropriate to each milieu.
All these aspects of the training of simulated patients (SPs) went very
well. My one aspiration was to try to get our SPs to see that there could be
variations in the degree of confidence with which you express an opinion (as
opposed to reporting a fact). This was very hard to communicate. For instance,
they were asked to provide an assessment of how well they thought the doctor
understood the disease, or, did they think they were prescribed the correct
treatment? They could express an opinion but could not say what was the
level of confidence they had in their own judgement. I devised many games
and exercises to convey different levels of confidence in the way one estimates
future actions, or makes a guess but could not get this idea across. What does
this tell us about patient preferences?
As we have amassed huge amount of data on quality of care and on
delay in diagnosis through using simulated patients, it has become very clear
in our present work that at some stage in the doctor/patient relationship, care
falls into the hands of the patient. For instance, if we ask that since the doctor
knows that this patient should be getting a TB chest X-ray, why does he not
prescribe it? Because, one, he may think “If the first day I tell them ‘You need
to get a chest X-ray’ they are going to think ‘Is this doctor giving me a prescrip-
tion for an expensive test because he gets a cut from the lab?’” And so the
doctor will wait to gauge what the patient is willing to pay. Even with doctors
who diagnose the need for a chest X-ray there are ten other tests they prescribe
which have nothing to do with TB. Why? Partly because they are following a
business model. They are making money out of this whole transaction. [And]
partly because they are testing how much will the market bear, and so wheth-
er this patient is willing to pay more or less. They are watching how the patient
communicates that information. And again, this is very hard to capture within
a simulated patient kind of model, but it’s equally hard to capture for a real
patient. Methodologically, one might conduct exit interviews, which is what a
lot of researchers do. But it is not easy to determine how to assess the informa-
tion, because you don’t know in the case of real patients what disease the
patient suffers from and if the tests were required or not.
I hope you can see that some questions arise from the trajectory of the
disease as a biological entity and training of SPs consisted of their mastering
anthropology, desire and textures of life:

780

the right answers to questions about symptoms or about the kind of treatment
received. But another aspect of training was about creating a socially nuanced
story about who the patient was that would not arouse any suspicion in the
mind of the doctor as to the simulated character of the patient. Training for
this aspect meant sitting down with the people we were recruiting as simu-
lated patients, and brainstorming on how to create a socially acceptable story
around the persona we were creating. So we would start with “What is the name
of this person we are creating?” And they would suggest a name. But if the name
was taken from say a TV show that suggested an upper class family, we would
say “That name sounds very upper class – will it work for the kind of social
background we are imagining for this patient?.” They would play around with
other possibilities. It did not mean SPs had to have recognizably “traditional”
names. In creating these characters, the SPS learned the importance of detail
– that even something as minor as what is an appropriate name, [or] how should
this woman be dressed, had to be carefully calibrated. To fill out the character
of this persona that was created we would create imaginary scenarios. “Okay,
so this person who owns a small shop has finished the day’s work and is sitting
at home but the neighbour’s TV is blaring out songs, while he is trying to get a
nap, what will he do? And one SP might speculate that, he will go and knock
at his neighbour’s door and ask him to put the volume down. But another SP
will say “No, no, remember we made him into a shopkeeper? A shopkeeper will
never get into a confrontation with a neighbour!” All these exercises were very
important not because they had an effect on how the natural progression of
the disease was to be represented but because the SPs were also social personas.
So that’s one kind [of collaboration].
The last collaboration I will describe is with two colleagues on a project
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

of translation. I’ve always thought that it would be very interesting if we did


not start with Europe as the point of comparison, but let’s say tried to capture
events within Asia, if we took two different points in Asia and thought of them
as having theoretical implications for global ways of thinking. So the problem-
atic of translation takes us to the wider question of what is their picture of
language? In turn such a wide question takes us to various kinds of texts: we
have to read commentaries in different languages in which we have competence,
explain technical terms to each other, ask what the intersection of our concepts
are. For example, our colleague Michael Puett might translate a Chinese term
as cosmogony: we may ask, does the Chinese term capture the various mean-
ings that come with cosmogony? He might then say “it’s ‘pattern’.” And then
look at it again and say “No, it’s ‘image’.” It is not one or the other term that is
correct but shades of meaning within a word. Or I might say “Okay, so there are
three types of words in Prakrit – tatsam, tadbhav, and deshiya. The second type,
tadbhav, is taken to mean ‘derived from Sanskrit’ whereas the first, tatsam,
refers to words that move from Sanskrit into Prakrit and remain there in un-
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

781

modified form. But to fully understand the second type (tadbhav), it’s very im-
portant to see what grammatical procedure for modification is used. Is this
word from Sanskrit? In which case there should be a separation and the ablative
case should have been used. Or is it that Sanskrit is seen as the normal location
for this word? Then the term ending will be the locational case ending.” And
Michael might say “why are you so obsessed with grammar?” Or Andrew [Bran-
del] might say “Well grammar seems to be doing something different over here.
It’s not just for speaking correctly.” Then comparisons with Europe might come
up. Andrew is curious about why certain texts from Sanskrit were chosen for
translation. Why translate the Bhagvad Gita in Latin? What other texts were
considered and overruled? What did kind of obstacles did they overcome? Does
the comparison of Sanskrit and Prakrit with Chinese tell us more than the
typology of inflectional and morphological languages? So, in many ways, each
of these collaborations I have described is determined by the force of the par-
ticular questions we pose.
[And] that’s my other problem. We are all familiar with these policy
statements from university administrators exhorting us to developing inter-
disciplinary research. Fine, but this collaboration can’t be done by fiat. And it
can’t resolve all the problems that arise when different disciplines bring very
different visions to a problem. [There] are various partial resolution possible.
For instance, when can one translate one’s results for policymakers? The more
conscientious bureaucrats will rightly ask “Do you really think we have enough
evidence to support this policy intervention?” And what we can say is that “Well,
we’re making what evidence we have available to you along with areas of un-
certainty, but we cannot say to you that this is definitive evidence.” We really
need to rethink the possibility [of collaboration] very seriously and be ready for
corrections as problems arise. [pause] I’m sorry, my answer is longwinded, but,
I just derive so much life out of this ability to collaborate in these ways that I
appreciate this opportunity to speak about it.

C.S. Well, talking about collaboration. We are close to the end of the interview,
but let’s ask if you have something else to say, thinking about this encounter
of Brazilian anthropologists with you, who is Indian. We can say there is a stance
that, let’s say, we have in common between Brazil and India. We make a dialogue
with the traditional established anthropology and we are not subordinated to
it. You talked about this with Mariza Peirano when you first met her many years
ago, and we want to continue this dialogue with you. You said today and you
have in your texts a critical perspective on the identity idea, on what’s to be
Indian. Is there anything else you want to tell us about this?

V.D. Well, for me there is nothing obvious about how to be an Indian. I’m In-
dian by birth but can I assume that I will remain Indian forever, regardless of
anthropology, desire and textures of life:

782

what happens to India as a moral project? I have to constantly learn to be that


person who is Indian. It seems to me that there is no straightforward way of
claiming one’s identity, as a woman, or as an Indian. And yet I know in my guts
that, for me, just having been educated at the Delhi School of Economics was
the most important thing in my life, or in Indraprastha College, or in Lady Irwin
School. These places were absolutely central to my life. I have to say that a lot
of Indian academics get to exercise power in all kinds of ways because of the
alliance between universities and government. Sometimes they are pressed to
do the government’s bidding and sometimes they want to please their superi-
ors. But equally there are many academics who have never been intimidated
by such exercise of power though recently the pressures on universities to
confirm to the state projects have gone up enormously.
My feeling is that this is picture is true for Brazil too. Somehow, you’re
not intimidated by the fact that speaking out against injustice and acting against
it, will have adverse consequences for the advancement of your careers. When
I think about American universities, there is this whole discourse about protect-
ing juniors who do not yet have tenure: “This is a junior faculty, you can’t ask
the junior faculty to take a risk, because they will come up for tenure and
somebody might hold this against them.” And I’m astounded that you who say
this, don’t think that it’s saying something very deleterious about you and about
the toxic environment of universities? It is that you or your colleagues as su-
periors, who are going to sit down and determine the ability of this person to
do teaching and do research, will take an adverse view of the fact that they
expressed their opinions freely? Is it going to count against them that they said
something that did not agree with your view? And if as junior faculty for seven
or eight years of life, they have avoided taking any particular position on issues,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

how are they ever going to get into a place where they will be able take a posi-
tion and trust that people can live with different ways of thinking or have dif-
ferences of opinion? Sometimes the atmosphere of fear that is created through
this discourse on vulnerability is also startling to me. I had always taken for
granted that if I would not get a job in a college, I would teach in a school, but
I would teach in a school in a way that was meaningful for me, and I would
continue to write or read or do whatever I could. But here in the USA the default
position seems to be that younger people must be always cautious on what
they express because otherwise their career will suffer. This atmosphere in-
timidates younger people. Their fears are not totally unwarranted but my issue
here is so what kind of relationship to yourself are you then able to forge?
I also think that institutions are just not thinking enough on these mat-
ters. Using the Indian University system [as an example] what was good at one
time was that you joined as an assistant professor, you slowly went up the rung,
nobody went faster or slower, and one earned a good liveable wage. What one
wanted from the system was schools in which your children could be educated,
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

783

you could get help from colleagues and friends, and you could do what work
you wanted to do. The pressure of having to claim that everyone is a leader, is
outstanding, was not there at least when I was a young professor. Yes, you need
to assess the person for a particular job, determine where this person’s strengths
lie, but why not just have a more collaborative relationship among different
universities and among institutions of learning more generally, rather than this
very competitive relation determined by rank orders and winner take all men-
tality? Those I think are really very compelling questions for me. I am fortunate
that I have friends to whom it just doesn’t matter where they stand in a rank
order. As long as we have a living wage, a place where we can talk to students,
we can write what we want, and claim our lives… yes, there will be obstacles,
you can’t wish away the power of disciplines, or adversities that cannot be
predicted. But I don’t believe that you are just a victim of the system, with no
recourse to finding ways to shape your life. So that’s what I really admire in
my friends, the ability to do what is important to you.
I’m learning new issues around censorship because of a project with
Clara Han on the governance of COVID-19 across five countries. My own expe-
rience of how to deal with coercive power was honed during the National Emer-
gency in India (1975-1977), when I was a young lecturer or maybe a Reader at
that time. There was a prohibition on gatherings of more than five people so
you could not gather, for instance, to hold any seminars. We dealt with this
prohibition by holding our department seminars at home. One of my colleagues
was arrested. He was not a very likeable person because unlike many other
Marxist scholars he would simply put down everything which in his view was
not Marxist enough. But we, faculty members at the Delhi School of Economics,
made it a point to see that every time he appeared in court for a hearing, we
would all be there. And I remember the Vice-Chancellor of the university send-
ing us a message that was to the effect: “This behaviour is not good for you. It’s
not good for the university.” During the Emergency even the right to life had
been taken away through a court judgement. But we were adamant that he had
to see that his colleagues were there for him. I have a feeling sometimes that
in a lot of universities academics write in the abstract on power and freedom
but their experience of power at national levels is a very limited experience.
The discussion becomes very ideological – words become empty. It’s like “As
long as I’ve signalled the right words, I’m on the right side of history.” And
sometimes the stance one takes is also determined by the microphysics of
power, which are important. But then you need to take a step toward analysing
it and not stopping at expressing indignation. I think of Foucault and his for-
mulations on psychiatric power as a mode of disciplinary power in which tokens
of power were marshalled to cover up ignorance and the nomadic nature of
disciplinary power. But, for every sort of reiteration of knowledge that feels
dead, as I say in Textures, there are these gems of writing in anthropology, phi-
anthropology, desire and textures of life:

784

losophy, Sanskrit studies, which renew our taste for life. As I don’t know all the
circumstances, I can’t always decipher what is before me, and I don’t want to
sit in judgment on all issues that confront me because I don’t know enough
about them, but I don’t want to run away from them. So I am willing to be pa-
tient and to learn. That is where the question of desire becomes very important.
What have you invested your desire in?

Received on 10-dec-2021 | Approved on 22-dec-2021

Letícia Ferreira is Associate Professor at the Department of Cultur-


al Anthropology (DAC) and the Graduate Program in Sociology and
Anthropology (PPGSA) at Universidade Federal do Rio de Janeiro.
She researches bureaucracy, public problems, and social suffering.
She is also interested in the methodological specificities of ethno-
graphic research with documents. 

Adriana de R. B. Vianna is Associate Professor at the Graduate Pro-


gram in Social Anthropology/National Museum (Universidade Fed-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

eral do Rio de Janeiro). She conducts and supervises research on


gender relations, violence, state processes, and collective actions.

Camila Pierobon is postdoctoral research on the International


Postdoctoral Program (IPP) of the Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP). Award holder, FAPESP process 2018/15928-2
and aresearch. PhD from the Postgraduate Program in Social
Sciences (PPCIS) at the Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Her areas of interest encompass everyday life, poverty,
gender and popular housing.

Cynthia Sarti is Full Professor of Anthropology at the Federal


Federal University of São Paulo (Unifesp) and researcher at CNPq.
She is currently director of Editora Unifesp and vice coordinator of
the Edward Saïd Chair of Contemporary Studies. Her areas of inter-
est are: memory, exile, suffering, pain, and violence; disease and
health; moralities; family and gender.
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

785

notes
1 As Veena Das herself descr ibes, ISERDD is “a small re-
search organization that some of my colleagues from the
University of Delhi founded to document and analyze the
transformations taking place in the lives of the urban
poor in that city.” (Das, 2015, p. 4). Das has been working
with ISERDD since 1999.
2 Two of the book launching webinars that we could attend
were the following: the one taking place on Januar y 22,
2021, hosted by the series “Thinking from Elsewhere,” edi-
ted by Clara Han and Bhrig upati Singh at Fordham Uni-
versity Press; and the one held on September 28, 2021,
hosted by Sapienza Università di Roma. The first launch
had Clara Han and Bhrigupati Singh as moderators and,
as debaters, Piergiorgio Donattelli (Sapienza Università
di Roma), Edward Guett (CUNY), Dev Pathak (South Asian
University), and Michael Puett (Harvard University), and
was held via the Zoom Platform. The second, also via
Zoom, featured a presentation by Pierg iorg io Donatelli
(Sapienza Università di Roma) and Sandra Laugier (Uni-
versité Paris 1 Pantheon Sorbonne) and participation by
Prathama Banerjee (Centre for the Study of Developing
Societies, Delhi), Roberto Brigati (Universitá di Bologna),
Fabio Dei (Universitá de Pisa), Anne M. Lovell (Centre de
recherche médecine, sciences, santé, santé mentale, so-
cieté, Par is), Lotte Segal (University of Edinburgh) and
Bhrigupati Singh (Ashoka University/Brown University).
3 The translation of the essay and the transcription of the
inter view was funded by FAPERJ (Program “Jovem Cien-
tista do Nosso Estado”; Letícia Ferreira’s research project
“Family dramas in bureaucratic counters: the institutional
management of missing children cases in Rio de Janeiro,”
process number E-26/203.244/2017).
4 Cf. Parreiras, Carolina. “Veena Das − apresentação biográ-
f ica e pr incipais conceitos”. Available at: https://w w w.
youtube.com/watch?v= 8-u3wz9xPXE&t=1128s. Accessed
on Oct. 30th 2021.
anthropology, desire and textures of life:

786

REFERENCES

Brandel, Andrew & Motta, Marco (eds.). (2021). Living with


concepts: anthropology in the grip of reality. New York: Fordham
University Press.
Cavell, Stanley. (2020). Contesting tears: the Hollywood melodra-
ma of the unknown woman. Columbia University Press.
Cavell, Stanley. (2010). Little did I know: excerpts from memory.
Palo Alto: Stanford University Press.
Cavell, Stanley. (1988). In quest of the ordinary: lines of skepti-
cism and romanticism. Chicago: University of Chicago Press.
Cavell, Stanley. (1981). Pursuits of happiness: the Hollywood co-
medy of remarriage. Cambridge: Harvard University Press.
Cavell, Stanley. (1969). Ending the waiting game: a reading
of Beckett’s Endgame. In: Must we mean what we say? A book
of essays. Oxford: Oxford University Press, p. 115-162.
Das, Veena. (2022). Slum act. Cambridge: Polity Press (no prelo).
Das, Veena. (2020a). Vida e palavras: a violência e sua descida
ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.
Das, Veena. (2020b). Textures of the ordinary. Doing anthropology
after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.
Das, Veena. (2019). Where is democracy in India? Asking an-
thropological theor y to open its doors. Anthropology Theory
Commons. Disponível em: https://w w w.at-commons.
com/2019 /11/24 /where-is-democracy-in-india-asking-anth-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021

ropological-theory-to-open-its-doors/. Acesso em 18 jan. 2022.


Das, Veena. (2017). Corrupção e possibilidade da vida. Repocs,
14/27, p. 131-148.
Das, Veena. (2015). Affliction: health, disease, poverty. New York:
Fordham University Press.
Das, Veena. (2012). Entre palavras e vidas: um pensamento de
encontro com margens, violências e sofrimentos. Entrevista
com Veena Das”. Michel Misse, Alexandre Werneck, Patricia
Birman, Pedro Paulo Pereira, Gabriel Feltran & Paulo Malvasi. 
Dilemas: Revista de Estudos de Conf lito e Controle Social, 5/2, p.
335-356.
Das, Veena. (2011). O ato de testemunhar: violência, gênero
e subjetividade. Cadernos Pagu, 37, p. 9-41.
Das, Veena. (2009). Two plaits and a step in the world: a
childhood remembered. In: Karlekar, Malavika & Mookerjee,
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

787

Rugrashu (eds.). Remembered childhood: essays in honor of


André Béteille. Delhi: Oxford University Press, p. 196-209.
Das, Veena. (2007). Violência e tradução. Revista Brasileira
de Sociologia da Emoção, 6/18, p. 623-636.
Das, Veena. (1999). Fronteiras, violência e o trabalho do
tempo: alguns temas wittgensteinianos. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, 14/40, p. 31-42.
Das, Veena et al. (2021). Simulated patients and their rea-
lity: an inquiry into theory and method. Social Science and
Medicine. Disponível em: https://doi.org /10.1016/j.socs-
cimed.2021.114571. Acesso em 18 jan. 2022.
Das, Veena et al. (eds). (2001). Remaking a world: violence,
social suffering and recovery. Berkeley/Los Angeles/London:
University of California Press.
Das, Veena et al. (eds). (2000). Violence and subjectivity. Ber-
keley/Los Angeles/London: University of California Press.
Evans-Pritchard, Edward. (1956). Nuer religion. Oxford: Cla-
rendon Press.
Han, Clara. (2021). Seeing like a child: inheriting the Korean
War. New York: Fordham University Press.
Kleinman, Arthur. (2020). The soul of care: the moral educa-
tion of a husband and a doctor. London: Penguin Press.
Kleinman, Arthur; Das, Veena & Lock, Margareth (eds.).
(1998). Social suffering. Berkeley: University of California
Press.
Mauss, Marcel & Hubert, Henri. (2017) [1898]. Sobre o sa-
crifício. São Paulo: Ubu Editora.
Peirano, Mariza. (1998). When anthropolog y is at home:
the different contexts of a single discipline. Annual Re-
view of Anthropology, 27, p. 105-129.
Peirano, Mar iza. (1991). For a sociolog y of India: some
comments from Brazil. Contributions to Indian Sociology,
25/2, p. 321-327.
Rechtman, Richard. (2020). La vie ordinaire des génocidaires.
Paris: CNRS Editions.
Robbins, Joel. (2013). Beyond the suffer ing subject: to-
wards an anthropology of the good. The Journal of the Royal
Anthropological Institute, 19, p. 447-462.
anthropology, desire and textures of life:

788

Rosaldo, Renato. (1989). Introduction: grief and a headhunt-


er’s rage. In: Culture and truth. Boston: Beacon Press, p. 1-21.
Shaikh, Abdul Wahid. (2017). Begunah Qaidi: Atankvad ke
Jhuthe Mukkadamon mein Phasaye Gaye Muslim Naujavanon
ki Dastan [The innocent prisoner: story of Muslim youth
trapped in false cases of terrorism]. New Delhi: Pharos
Media.
Vianna, Adriana. (2020). Vidas, palavras e alguns traça-
dos: lendo Veena Das. Mana, 26/3.
Wittgenstein, Ludwig. (2020) [1967]. The mythology in our
language: remarks on Frazer’s Golden Bough. Chicago: Hau
Books.
Wittgenstein, Ludwig. (1968) [1953]. Philosophical investiga-
tions. London: Macmillan Publishing Company.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 749 – 789 , sep. – dec., 2021
interview with veena das | letícia ferreira , adriana vianna, camila pierobon  and cynthia sarti 

789

Antropologia, desejo e texturas da vida: uma


entrevista com Veena Das
Palavras-chave Resumo
Etnografia; Apresentação da entrevista com Veena Das e do conjunto
filosofia; de textos relacionados à sua obra que compõem o presen-
infância; te volume de Sociologia & Antropologia. Na entrevista, Das
sânscrito; trata da imbricação entre escrita e formas de vida; de sua
conhecimento. infância e da presença de crianças em suas pesquisas; das
implicações de assimetrias e de relacionamentos longos
em pesquisas etnográficas; da relação entre filosofia e an-
tropologia em sua trajetória; do sânscrito e de diálogos de
alguns filósofos com o sânscrito. Tece considerações tam-
bém acerca da articulação entre gênero e produção de co-
nhecimento; da relação entre desejo, ritual e religião; da
noção de “texturas”, que dá título a seu livro recém-lança-
do; de alguns aspectos da recepção do livro; da orientação
de pesquisadores; das formas colaborativas de pesquisa
que realiza; das dinâmicas do sistema universitário norte-
-americano; e, ainda, do lugar da alegria e do desejo na
produção de conhecimento antropológico.

Anthropology, desire and textures of life: an


interview with Veena Das
Keywords Abstract
Ethnography; Presentation of the interview with Veena Das and the set of
philosophy; texts related to her work published in the current volume
childhood; of Sociologia & Antropologia. In the interview, Das talks about
Sanskrit; the imbrication between writing and forms of life; her
knowledge. childhood and the presence of children in her research; the
implications of asymmetries and long-term relationships
in ethnographic research; the relationship between phi-
losophy and anthropology in her trajectory; Sanskrit and
the dialogues of some philosophers with Sanskrit. She also
comments on the articulation between gender and knowl-
edge production; the relationship between desire, ritual
and religion; the notion of “textures”, which gives the title
to her recently-released book; some aspects of the recep-
tion of the book; the activity of mentoring young research-
ers; collaborative forms of research; the dynamics of the
North American university system; and the place of joy and
desire in the production of anthropological knowledge.
790
ARTIGOS
792
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752021v1133

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Museu Nacional,


Rio de Janeiro, RJ, Brasil
adrianavianna@mn.ufrj.br
https://orcid.org/0000-0002-5158-729X

Adriana Vianna l

DISQUIET: WORDS, TIMES AND RELATIONS ALONG


AN ETHNOGRAPHIC TRAJECTORY *

Groping for words


For many of us, the impact of Veena Das’s work extends beyond what we could
define as a strictly intellectual inspiration. The way in which certain words,
images and concepts perturb us long after our contact with them tells us that
the relationships we establish with her texts are not only based on the comfort
derived from the feeling of having understood something. Rather, it seems that
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

something lingers that continues to resonate, uneasy and restless. Scenes al-
ready described are rethought, known words appear lifeless, automatic, blood-
less. While the contact with her work offers us analytic paths, languages and
methodological alternatives, it also immerses us in a kind of permanent dis-
quiet over the precariousness of our words to cope with, in whatever way pos-
sible, that which is never completely expressed by them.
In a review of an article by Das written many years ago, Cavell offered
the author herself the possibility of seeing “the world and [her] place in it” in
another way (Das, 2020: 307). As she tells us, Cavell focuses in detail on a pas-
sage where she speaks about just how often the language of pain had eluded
her. The problem was not the enormity of pain but the absence of a language
that could enable the social sciences to “become textual bodies on which this
pain is written” (Das, 2020: 308). Cavell (quoted in Das, 2020: 308) suggests, then,
that to break this silence and render it intelligible to her peers, she needed to
“to beg, borrow, steal, and invent words”.
Tolerating obscurity openly, exposing something of this way of groping
one’s way around words or interrupting the narrative with the observation that,
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

794

presently, it is impossible to continue any further, speak to us of a way of un-


derstanding ethnography. Rather than a quest to investigate something com-
pletely alien to us, ethnography is constructed in the work of “being-with” (Das,
2020: 308). Hence, it demands the attempt to confect territories of intimacy that
nonetheless never cease to present surprises and moments of profound incom-
prehension. Time is undoubtedly a crucial factor in this process insofar as it
simultaneously demands and enables the exercise of what she calls critical
patience (Das, 2010, 2012). Nothing, though, is pre-given in this idea of time,
since its meanings, rhythms, weavings and presences manifest themselves in
people’s lives in subtle and varied ways.
The proposal explored here combines, perhaps in an overly elusive way
at some points, three vectors of interrogation and inspiration presented to me
by her work. Many others would be possible, but I have chosen to take words,
time and relations as guides to explore the kind of permanent unease that ac-
companies ethnographic work. My choice responds, in part, to the seemingly
obvious fact that all ethnographies must reflect on these three major themes
or vectors of questions. However, the way in which Das’s work inspires and
provokes us to look at each of them has nothing obvious about it.
In the paragraph that closes Life and words, Das tells us just how much
keeping together the words of Cavell and Manjit, her interlocutor of many years,
feeling the connection between their lives, configured her anthropological mode
of devotion to the world (Das, 2007: 221). In Textures of the ordinary, meanwhile,
she presents us with different dimensions of what might be called the task of
retelling a story (Das, 2020: XI). The search for words thus speaks to us of eth-
ical and spiritual choices that orient, convoke and implicate our position in the
world. The comprehension that life takes place in language (Das, 2020: XIII)
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

makes evident, of course, that our endeavour goes far beyond words. But for
those of us who rely on them to be able to tell something about the world – and
to make worlds in this process of telling – words are the terrain where we draw
support, venture out and, frequently, stumble in myriad ways.
To beg for words, then, to use Cavell’s formula, seems to highlight both
the insufficiency of the words that we have at hand to deal with pain and their
treacherous and deceptive potential. It is not a question of finding the precise
term for some situation but of clearing pathways to access that which gives
life to words (Das, 2007: 6, 2020: 4). If we beg for them, it is precisely because
they are not ours a priori: rather we appropriate them through and amid the
relations that we establish. It is in the sharing of histories, times, gestures,
shocks, deceptions and moments of exhaustion that we can purchase a loose
hold on the life that circulates in them.
In this sense, the precariousness that marks our relationship to what is
told, shown or subtly indicated to us by our interlocutors is not a failure to be
overcome. Our task is not one of scrutiny but of openness to a field of possible
article | adriana vianna

795

meanings. How do we become sensitive to the details that may matter (Das,
2020: 2)? In what way may an unexpected phrase capture our attention and
carry on disturbing us for years, as though any attempt to decodify it merely
produces ever more frozen narratives (Das, 2007, 2020)? How do we keep track
of language’s capacity to poison relations and forms of life? Or, inversely, how
do we experience the capacity possessed by relations to absorb this poison in
their concrete and everyday unfoldings (Das, 2021)?
These and other questions presented by Das’s work have the effect of
instilling certain distrust in relation to any overly totalizing assertiveness. Hes-
itancy may indeed be a valuable resource when dealing with contexts profound-
ly marked by situations experienced as involving considerable violence and
suffering. 1 To hesitate is, in a certain form, a tribute we pay to the inevitable
incomprehension both of the experiences shared with us and of the way in
which these become transformed, absorbed and expressed in lived life over time.
In the disquieting dialogue with her formulations, I constructed this text
in the form of a temporal slippage between a situation that occurred many
years ago and a current conversation, based on a relatively long relation of
interlocution. It explores the question of the forms of telling and retelling sto-
ries, along with some of the implications of what we think that we comprehend,
or not, in different moments of an ethnographic trajectory. The two situations
outlined in the following sections pertain to the same universe of research and
conviviality in which I have participated over the past decade, formed by the
activities of movements of relatives of the victims of police killings in Rio de
Janeiro. In each situation, I strive to remain attentive to the various temporal
dimensions intrinsic to ethnographic activity, but also to the role played by
fleeting moments and details that rerouted the directions taken by my atten-
tion (Das, 2018, 2020). In the final section of the article, I venture some further
connections between these two situations, albeit without the intention of en-
closing them within any single basic argument or within the same logical thread.

Shrapnel: the word that bursts


It was already late at night when, summoned to return to the courtroom where
the jury had been deliberating on the killing of Marcel, 2 we heard the guilty
verdict. We were a group of 15 to 20 people following the case along with Clau-
dia, Marcel’s mother. The trial had lasted many hours. The young man had been
killed by two police officers ten years previously in the favela where he lived.
A first trial had taken place some years earlier, resulting in sentencing of the
officers and the expulsion of both from the Military Police. Following appeals,
a new trial, centred on just one of the officers, had taken place that day.
From what was ascertained from the testimony of one witness, Marcel
had been killed for refusing to pay arrego (a bribe) to the police, who had a short
time before successfully extorted money from a youth who belonged to the
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

796

local group responsible for drug trafficking. Unlike the latter, Marcel did not
belong to the group and was not involved in trafficking, leading to his execution
with a rifle shot to the heart. After a period of deep depression, Claudia had
assumed the task of collecting every possible piece of evidence on the crime.
Her combative posture, vehemence and the poignancy of her speech and de-
termination over the years composed a perfect portrait of the guerreira, the
female warrior and woman-mother who fights tenaciously for justice. This por-
trait also possessed the singularity of culminating in an extremely rare victory,
namely the condemnation of the accused, attributed in an especially emphat-
ic way to Claudia and her determined compilation of the evidence needed for
the denunciation to be substantiated.
On hearing the long-awaited guilty verdict, we immediately gathered
around her to celebrate. Claudia, though, exploded with rage: “Eight years?
That’s what he gets for taking my son’s life? Eight years? I’m the one imprisoned,
I’m going to spend the rest of my life without my son, I’m the one imprisoned!”
This scene took place almost a decade ago. It was recorded in my field
notebook and formed part of a talk I gave at a seminar the following year. How-
ever, I did not actually include it in any published text or argument. I could say
that it remained dormant in its own maladjustment. Here, therefore, I wish to
set out from various different dimensions of this maladjustment in order to
reflect on it – and on my inability to accommodate it – in dialogue with some
of Veena Das’s propositions.
The first plane of discomfort that it elicits is related, of course, to our
expectations concerning such a rare legal victory in a trial of police officers for
murder. As a rule, these trials are marked by an immense asymmetry in the
truth value attributed to the evidence of police and non-police, especially res-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

idents of favelas. This asymmetry has a legal weight since the testimony of
police officers enjoys the status of a ‘presumed truth.’ Additionally, juries tend
to agree with many, if not all, of the justifications given for the killings, sharing
the premise that envisages favela areas as territories of violence, lawlessness
and criminality. This view ends up providing a spectrum of possibilities for
justifying armed police actions and their often lethal outcomes.
At one end of the spectrum, the victim might be a member of an armed
group, having exchanged fire with the police, confirming the version that ap-
pears at the start of most of the trials with the record of an auto de resistência,
an ‘act of resisting arrest.’ 3 At a mid-point on the spectrum, the victim’s mem-
bership of ‘trafficking’ is not openly asserted but is nonetheless strategically
deployed as a cloud of suspicion, anchored in a racist vector on the similitude
of bodies and ways of life. Finally, when sustaining this zone of suspicion proves
impossible, explanation for the impossibility of distinguishing between guilty
and innocent falls on the favela territory itself. Mobilizing another racist vector,
here it is not the bodies and lives that present themselves as indistinct a pri-
article | adriana vianna

797

ori, but the territory that makes them so. As a consequence, the semantic field
of the confrontation acquires momentum, the war in adverse and – why not?
– lush and wild terrain (Leite, 2012; Fernandes, 2021).
In addition, the trials last many years, amid which dense rhythms and
forms of waiting develop. Here waiting takes the form either of the treacherous
manoeuvring of the more powerful, exposing the affinities between the judicial
and police machinery, or something akin to a test or ordeal, a challenge to te-
nacity and the physical and moral abrasions imposed by the struggle (Vianna,
2015). For all these reasons, reaching the end of a trial and, moreover, a trial
that concludes with a guilty verdict is something perceived as an exceptional
political and moral triumph. A triumph materialized in the mother, the figure
towards which we all converged at that emblematic moment.
Her reaction made us stop in our tracks. An ethical and aesthetic short
circuit had exploded: instead of the expected triumph over weariness and in-
justice, we witnessed the emergence of a kind of deep moral exhaustion. Anger,
such an important tone in diverse public discourses of mothers, did not operate
as fuel for an action of confrontation or as part of an aesthetic of denunciation
and accusation. Rage and exhaustion seemed to intersect precisely in the rev-
elation of this unexpected poison, the fact that she felt no release: “I’m the one
imprisoned!”
The density of this statement led me to approach it like shrapnel, an
artifact of interpellation that, rather than soliciting an argumentatively solid
or morally strengthening response, has the primordial quality of injuring those
participating in a scene and the etiquette of the scene itself. The inversion of
the condition of imprisonment, which switches from the condemned police
officer to the mother, is accompanied by the rupture of the script of celebration.
The shrapnel interrupts the collective movement, instils a degree of perplexity,
and temporarily suspends the rules of language. After a few minutes of gen-
eral bewilderment, this condition began to be reversed through comforting
remarks and the attempt to offer counter-arguments, emphasizing the victory
obtained and its importance as a ‘landmark’ in the painful confrontation of the
violence perpetrated by police officers. However, the discomfort induced by her
irruption of words continued to hover in the air in some form. This, at least, is
the memory that I retain many years later.
Slightly differently to the fragments that we resort to in our writings,
which relate to the incompleteness of what we see and what we can transmit,
these kinds of shrapnel primarily impel us to acknowledge our temporary inca-
pacity to respond or comprehend. What constitutes them – a phrase, a gesture
– is marked by the astonishment that, keenly felt at the moment of interaction,
is not entirely dissipated over time, like a splinter that demands attention.4 A
first way of understanding this shrapnel relates to the demands that open up in
a language game, in the Wittgensteinian terms so inspiringly reworked by Das.
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

798

Less than an affirmation, the shrapnel-utterance that I invoke here is an invita-


tion to engagement or, more precisely still, an ethical and aesthetic challenge.
Beyond the inversion of who is imprisoned and who is free, the shrapnel forced
us to move into this unknown terrain – namely, the impossibility of finding
some kind of effective satisfaction in the court verdict, one for which she had
fought so hard. In this sense, its corrosive potential expanded well beyond that
specific situation, haunting the collective figure of the mother who obstinately
seeks justice as form of honouring the dead son and of protecting other black
youths and favela dwellers targeted by the same policies of massacre.
So what did this corrosion contain? While Claudia’s words composed a
poetics of the impossibility of justice, this did not occur in just any context or
before just any interlocutors. The surprise caused by the rupture of certain
expectations could, in some form, be reaccommodated through the conditions
present in the specific situation as a whole and in the relations sustaining it.
Returning to Austin’s formulations concerning the felicity or infelicity of speech
acts, Das reminds us of the extent to which such conditions involve conven-
tional procedures to spoken words, as well as to who pronounces and receives
them (Das, 2020: 61; Austin, 1962). Nothing, though, is certain a priori since the
anti-conventional quality of the speech act questions the trust one may place
in relations. The weave that connects words, the moment in which they are
spoken, who says them and who receives them, form the same ethical fabric.
The possibility that the latter is not ruptured resides in the trust that the words
spoken will indeed be received by those to whom they were offered, based on
the “sensibilities that have been forged by participation in forms of life” (Das,
2020: 65).
Those of us in the courtroom were present, then, in the condition not of
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

a generic public audience but as people who could received what was spoken
in a deeply personal way. As Das (2020: 136) writes:

The world counts – it has a say. However, how the world counts is somewhat
different when we think of the first person as taking a third-person stance and
a second-person stance. In the first case, the facts that are to be taken account
of are ‘impersonal’ facts: I am a person among other persons or I am dependent
on the public nature of the words that are the only ones I have at hand. In the
second case, I seek someone who can receive the words that give testimony to
myself.

The peculiar intimacy that is projected in the second-person stance is


thus directly related to the nature that the words assume as testimony and,
consequently, to the self that is reconfigured in the scene. It is this grammati-
cal person, as Das (2020: 21) tells us, that allows something of the opacity of
the self to be revealed.
Taking inspiration from this insight, I propose that what is revealed there
can be better comprehended as a refraction of the figure of the warrior (guer-
article | adriana vianna

799

reira), a form that encompasses and delimits a repertoire of collective action,


but also configures part of a deeply personal script of mourning. For this reason,
instead of the more predictable response to the public figure of the warrior,
commemorating the verdict of the trial, we saw its intimate reverse come to
the surface, imbued with a suffering capable of casting doubt on the meaning
of the legal sentence itself.
Before advancing further in these considerations, it is important to note
that the warrior not only appears as a figure of identification external to the
movement, it also plays a significant internal role. It provides a moral reference
point that identifies the collective of mothers as a group sharing the same sub-
strate, despite their differences in presentation style, family histories, and the
conditions of their sons’s ‘cases.’ The double confrontation – of the fight for
justice on the public plane and of the pain of personal grief – acquires life in
grammars that combine suffering, tenacity, courage and solidarity.
Within the movement, that is, in terms of the way in which this grammar
is lived in those scenes not open to a wider public, there is greater space for
dialogues and complaints that speak of tiredness, of bodies that weaken, of
adversities of all kinds that appear too heavy to bear. In a certain way, it is as
though absorbing the despondency of one woman or another is also a vital part
of the collective process of struggle. The polysemy of the struggle, in the sense
explored by Comerford (1999), is also important since it allows meanings more
directly linked to political action to become interwoven with those more per-
vasive in “life as a whole” (Das, 2018), a life frequently depicted as a continual
battle.
The intensity and, above all, the context in which Claudia expressed the
inadequacy of the sentence to account not only for the expected punishment
for the perpetrated crime, but also for her own mourning, now transfigured
into an endless prison, went far beyond the limits of the kind of despondency
regularly expressed and absorbed in the conversations internal to the move-
ment. Returning to the image of refraction that I used above, what emerged
were the precariously domesticated shadows of the warrior. If the latter seems
always to be in movement, whether crossing the city or looking towards future
justice, what emerges from Claudia’s utterance is, by contrast, pure immobil-
ity. The short prison sentence given to the police officer contrasted with the
eternity of her own, marking her as a prisoner in space and time.
In turn, the prospect of living without her son for the rest of her life
announced what we could perhaps consider an especially bleak fear: the idea
that the end of the trial signalled not the opening of a new opportunity for
inhabiting the world but the confirmation, in that imprecise liminal zone, of
the impossibility of doing so.
Bringing up the suspicion that, at the end of years spent pursuing justice,
what is found is only another form of imprisonment, carries the force of the
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

800

bitterness carefully hidden under various layers of intimacy (Das, 2018, 2020:
138). It is worth recalling once more that this possibility could be exposed and
shared only because the words were circulating among people who shared a
deeper understanding of their poisonous potential and also the conditions for
absorbing the latter without “mutilat[ing] your words by treating them as if
they were just like other objects in the world.” 5 I now wish to turn to another
layer and experience of intimacy, confected in very different ethnographic con-
ditions, in order to return to some of the questions raised so far from another
perspective.

Conversation. Words that thread together time


“We’ve known each other such a long time and I never asked you that…” This
phrase or variations of it accompanied a lengthy conversation of more than
three hours between Luísa and I on WhatsApp. Our cameras switched on, a dog
demanding attention at one end, a cat at the other. Her grandchildren also ap-
peared from time to time, as well as her husband. The mediation of the video
was the condition for this conversation to take place during one of the most
intense moments of the covid-19 pandemic in Brazil, which had also affected
various members of her family network, fortunately without fatalities. Many
neighbours had not had the same luck, she told me. “When they began to die,
it was one after the other.”
Luísa lives in a favela in the north zone of Rio de Janeiro with her hus-
band and the constant presence of her grandchildren. I had known her since I
began to follow the social movement of victim’s relatives, Luísa being one of
its most respected figures. For more than a decade, I had kept in touch with
her, sometimes more regularly, at other times less so. We had been on innumer-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

able protests together, I had accompanied two of the three trials involving the
killing of her son, André, and we had taken joint part in roundtables at aca-
demic congresses and other events. We had also shared meals, prayers, tense
moments within the movement, laughter. And there was the phrase… “I never
asked you about that.” When we arranged our talk, indeed, I explained that this
was my primary intention: to ask about things that, although always present
in some way, I felt that I had no clear idea of how they had happened. Above
all, I thought about her place as a grandmother, so heavily marked by the death
of her son, by now many years in the past. I reminded her that when I first met
Taís, her granddaughter, now a young woman about to apply for university, she
had been a child accompanying Luísa on the protests. Looking at an old photo
of one of these protests, I was struck by an obvious yet nonetheless intriguing
fact: the time of research is never only or precisely the time of research. It is
also the time of a child growing up, people aging, my own growing older.
If every ethnography is also an autobiography (Das, 2007: 17), then our
conversation recognized this entanglement through both the explicitation of
article | adriana vianna

801

my ‘desire to know’ and the constant presence of shared time that permeated
the accounts of what had not been shared. “You know what photo I’m talking
about, right?”; “I don’t think I ever showed you that letter… I’ll fetch it one day
to show you…” and similar phrases traced the sinuous connections between
what was lived together and what was not. Or between intimacy and not know-
ing, between the being-with and the indeterminacy that so profoundly shape
the experience of fieldwork (Das, 2015: 373).
The questions asked by me, or simply the way in which the accounts
were sequenced in her speech, mobilized distinct temporal layers. Some con-
cerned our conviviality but many others related to biographical threads that
she had woven together by making connections with things that had occurred
after the critical event of the killing of her son. Differently, then, to the structure
prevailing in public actions, in this conversation the epicentre of the narrative
was not the killing. This was prompted, of course, by the fact that in the mes-
sages sent prior to our conversation, I had mentioned wanting to know what
it had been like for her to be one of the people responsible for raising her
granddaughter. Focus, time and narrative marks altered, therefore, as an effect
of this basic displacement in personhood: the grandmother instead of the
mother; the granddaughter instead of the son. If reminiscing should be under-
stood as a moral practice (Antze & Lambek, 1996), then we must begin with the
observation that, in this case, the ‘elapsed time’ already contained a fairly clear
sign of transformation and vitality, provided by Luísa’s granddaughter, now a
young woman by her side.
The temporality offered two moral landscapes that I now wish to explore
in a bit more detail. The first is similar to a somewhat rugged topography, not
flat, riven by deep marks where doubts about what really matters had welled
up at some point (Kleinman, 2006). The second was shaped more by the discrete
and tenacious work of surmounting obstacles and sustaining an inhabitable
everyday life. In the first case, the challenges primarily took the form of a pro-
found physical, emotional and ethical collapse, the illnesses stemming from
the brutal loss of her son and their repercussions signalling the impossibility
of carrying on. In the narrative, the emergence from this state also occurred in
a somewhat exceptional form through spiritual mediations. It is perceptible,
however, that the line between these two moral landscapes is not a clearly
defined boundary. In assuredly less dramatic fashion, but no less important,
persisting with what was required everyday in order for life to be remade, as
well as the immense challenges that this presented, also performed a curing
role in these conditions of bodily and ethical crisis.
“You know that I became really sick, right?” she asked me. I said yes, I
knew that her health had become very poor after her son was killed, a story I
had already heard more than once in public accounts and in conversations
among the movement of family members. “No, afterwards. After the first trial.
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

802

When they absolved him [the accused].” I say that I didn’t know. I was not fol-
lowing the movement yet at this time and, in contrast, in the later trials I had
attended, her firmness and calmness took me by surprise. This is the theme of
one of the histories with which I have had contact for a long time but about
which we never talked in detail: the story of the messages she received from
her son via a spiritist medium. She tells me that a lawyer who worked in the
favela came to her and said that the mother of a boy who had died during a
failed robbery, in a case with major repercussions, wanted to take her to a
spiritist centre. This mother, a middle-class woman, defined herself as a spirit-
ist, while Luísa says that she had always been a Catholic. At this centre, the
psychographed messages came from a very respected and well-known medium,
Chico Xavier, who had died a few years earlier. She decided to go. On the first
attempt, she did not receive any message. On the second, accompanied by
another three mothers and Taís, her granddaughter, she received a message and,
from memory, can recite some of the phrases, although she tells me that she
will track down the letter at some point because “you will have to see the
psychography to understand.”
The letter was a message to her, thanking her for her love and presence
there alongside Taís and emphasizing how important it was for her not be sad:
“my body was riddled with bullets, I’m before you without a single mark.” The
presence of slang expressions in the message, the advice to his father not to
“test his luck,” referring to his drinking habit, and the information that now,
“from the other side,” he understood what his father had been through in child-
hood, at the same time as they gave legitimacy to the psychographed message,
placed her son in the role of carer for all of them. Moreover, she tells me how
she felt his presence, something that she would also feel in the subsequent
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

trials, which allowed her to deal serenely with those excruciating situations.
As well as the messages received, Luísa recalls an especially striking dream in
which she saw someone from behind, dressed in a white coat. She knew it was
him and asks if he isn’t going to work. But he says no, he studied nursing and
now works with children.
I pause at this point to explore some potential intersections with what
I called the second moral landscape, deeply connected to the painstaking work
of remaking relations amid and through the everyday. The selections and align-
ments that I make here do not follow the sequence of topics as they appeared
in the conversation, which, for their part, did not follow one another in any
clearly delineated way either. Ordinary and extraordinary intertwined in the
stories, just as they fill the everyday (Das, 2007). The white coat that indicates
the childcare performed by her son in her dream is equally a sign of the profes-
sion, nursing, that, at the very beginning of our conversation, Luísa told me her
granddaughter was thinking about pursuing. Asking her about this, she tells
me that she too had been startled by the coincidence. The presence of the sig-
article | adriana vianna

803

nificant detail invites us to look attentively at the connections and transmis-


sions that may be expressed and enabled there, following Das’s valuable insights
into the importance of details in ethnographic processes as a way of rendering
the texture of the ordinary (Das, 2020: 2, 124-125). Generations, care, work and
children cross boundaries between dream and reality, between the living and
the dead, between a past that had no chance of being completed and a future
that, who knows, may thus come to pass.
The oneiric dimension of the care performed by André, whether in mes-
sages or in his work as a children’s nurse, echoes his role as a carer in physical
life too. The fact that he had a regular job when he was killed is frequently
recalled by Luísa in our conversation in a variety of ways. Sometimes she slips
into the past, speaking of his serious nature from an early age and how “he
didn’t enjoy his adolescence.” Sometimes this quality is projected into the fu-
ture, materialized above all in the possibility of alimony for his daughter: “his
concern was for his daughter and at least he left her supported,” she tells me.
She and her husband, for their part, also had regular jobs, which together com-
poses a fairly uncommon scenario of stable resources among the nuclear fam-
ily as a whole, as well as highlighting the generational transmission of moral
values strongly anchored in work.
This same image of greater stability permeates her account of her grand-
daughter’s constant presence in her home before and after André’s death. In
the story of the relationship between the young couple, the support given by
Luísa and her husband makes itself present from the start, both through a
period of co-residence, and the routine care provided to the couple’s child. Very
subtly, it becomes clear that the maternal nucleus is identified as less stable,
whether in terms of work or in terms of relations themselves. This would have
diverse consequences in the years that followed André’s death, the strongest
tensions perhaps deriving from the fact that Taís’s mother formed a new con-
jugal family. At this point, though, I wish to focus on some brief passages that
evoke this tension between the family nuclei and what I shall call here the
ethical work of making kinship undertaken by Luísa.
Over the course of our conversation, three of Taís’s birthday parties were
mentioned. I had already seen some photos of the first of them, the only one
where her son was still alive, since they had been used on banners or posters
in protest events by the social movement. She told me that since Taís’s parents
were separated at the time, two parties were held, one at the home of the ma-
ternal family and the other at her own. “At her birthday at the age of two, when
he had already died, everyone was there because she held [the party] at the
local association.” Finally, when her 15th birthday arrived, traditionally cele-
brated with a big party in the case of girls, only five of the 100 invitations made
were sent to Luísa’s family. She decided not to go, therefore, even though she
had given the birthday girl’s dresses as a present, since she would be unable
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

804

to invite most of her family due to the meagre number of invitations. “I’m
sorry but I’m not going.”
Each birthday reveals how the endeavour of weaving kinship, confecting
relationality through Taís, is sinuous and never completely assured. Firstly, the
couple’s separation engendered two different parties. The crucial connection
of paternity, though, meant that the division of the two family nuclei did not
threaten the fundamental relationship with Taís, appearing more like a dupli-
cation of birthday parties, meaning that kinship could be experienced without
harm or shadows. It is especially poignant to think that the next festival would
already take place after André’s death, held at the site of a local community
organization to which neither of the families was connected. Likewise, the
photos from the previous year no longer formed part of family memory alone
but were among the artifacts of collective mobilization.
Kinship memories and the way in which they intermingle with other
policies of memory, such as those that involve diverse events and temporalities
(Carsten, 2007: 5), also tell us about the ways in which presences and absences
are managed. In this case, André’s absence demands the inscription of his death
in a biography that is simultaneously political and affective. While more atten-
tion has usually been given to how family tales and artefacts migrate to the
public sphere (Leite, 2004; Vianna & Farias, 2011), in this case I have sought to
pay more attention to the dense family life of the images involved. Similarly
to what Han (2015: 502) indicates in relation to her interlocutor, the work of
documenting the death of the son and inscribing it in the fight for justice is made
in close connection with an imagined future for the granddaughter. Not only
the circulation of the photos but also the endeavour to obtain the documents
that can, after many bureaucratic wanderings, guarantee the granddaughter’s
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

alimony, speak of kinship as an ethical work undertaken on many fronts. The


care that Luísa attributes to André, when she claims that he wanted to leave
his daughter supported, is made with her own mediation, proving his status
as a worker and, therefore, the unjustified and criminal manner of his death.
An intersecting web of care exists that unites the actions of Luísa and
André and that involves the spiritual messages, the financial arrangements, the
court trials and the political processes surrounding his death, and a myriad of
everyday actions associated with Taís growing up. During our conversation, deli-
cate elements of continuity between the generations are evoked, such as the taste
for the same food and cakes. André’s presence is continually inserted in the flow
of everyday life, tended by Luísa in the material forms with which these simi-
larities are identified, producing a reiteration of kinship. It is the same profession
that emerges in the dream; it is the same kinds of food that distinguish their tastes.
At the third birthday party mentioned in our chat the effort needed to
deal with the constitutive ambiguities of intimacy and kinship becomes clear-
er (Das, 2007, 2018, 2020). Here, the insufficiency of the exchange is demon-
article | adriana vianna

805

strated in the small number of invitations, which practically erases the entire
paternal family network. In counterpart, Luísa’s support once again is readily
verifiable in the endeavour made to give the two dresses that form an essential
part of the 15th birthday ritual.
Discussing this date, Luísa also told me that it was a moment when Taís
acutely felt the absence of her father, with whom she would traditionally dance
a waltz. She did not speak, though, of her own feeling of missing her son’s pres-
ence on this ritual occasion, but we can infer something of the depth of this
absence for her too in the way that she responded to the disregard shown in
relation to the invitations: eu sinto, mas eu não vou, “I’m sorry but I’m not going.”
The double sense of sinto, meaning both “I’m sorry” and “I feel,” indicating
both regret and feeling, encapsulates the play of presence and absence of Luísa
and André at the party. The waltz without the father poignantly marks how
much the killing stole from the daughter’s life, as well as the life of Luísa and
the rest of the family. The five invitations thus threaten Luísa’s continual daily
effort to maintain Taís’s paternal kinship and, for this reason, cast a shadow on
André’s memory. In withdrawing from the party, though, Luísa does not with-
draw from the work of kinship, a process embodied in the dresses themselves,
material proof and sign of her care for her granddaughter and her son.
The way in which this story was told to me was interspersed not only
with the other two birthdays cited but with many other narratives indicating
how during these years it was necessary to manage the unstable and weakened
kinship connecting the two families. Indeed, the form in which Luísa was able
to deny her physical presence while maintaining her support for the party
speaks, I think, of a confidence that the relations could now survive this tense
moment. The meticulous work of managing dangerous words is also maintained
by Luísa when she seeks to counterbalance the harmful potential of this situa-
tion with the idea that it was just a question of jealousy, on the part of Taís’s
mother and maternal grandmother, of their close relationship. Ordinary ethics
(Das, 2012, 2018) are revealed here in the skill involved in containing the situa-
tion’s poisonous potential, taking it as a demonstration even of the strength of
the relationship with the granddaughter so assiduously cultivated over the
years.
To conclude, I wish to mention another moment from the end of our
conversation. Speaking about imprisonments that had recently occurred in her
neighbourhood, a mosaic of violence and torture emerged in small fragments.
“They took away some boys as drug traffickers when they weren’t. They had
only used marijuana but the police wanted them to say where they had bought
it. They beat them and waited for the grandmother to leave – the grandmother
who raises them too – and placed the backpack filled with drugs in the house.”
“They entered my neighbour’s house and took her son. He was in prison for two
years.” “There is also the case of another neighbour who became blind because
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

806

of his diabetes in prison. They refused to allow the medicine in.” These frag-
ments participate, in a particular way, in a type of conversation far from rare
among members of the social movement, who end up having to deal not only
with the killings but also with the practices of mass incarceration. The accounts
reveal something that, though inscribed in the everyday life of the favelas, none-
theless reverberates with an disquieting spectre of cruelty that cannot be en-
tirely absorbed (Das, 2020: 216).
What was surprising was how these scenes brought up others more
distant in time and space. Near to the city where Luísa was raised had been a
large mental asylum. She tells me, then, a story from her childhood.

One day the neighbour returned from there and spoke to nobody ever again. I
was ten years old and she came back and I’ll never forget. She spoke to nobody
from her family and hanged herself. She spoke about the things that happened
in that sanatorium. The tortures were horrible. People were sent there. From
where I lived, it was less than an hour to get there. My mother would go there to
buy fabrics. She spoke about terrible, terrible things. It was a long time ago now
and I’ve never forgotten.

Differently to what was narrated in the recent cases in the neighbour-


hood, the torture in this case marks the impossibility of the return. Although
she comes back from the sanatorium, the neighbour hangs herself. The words
that can refashion life did not return with her, only those that tell of the tortures
suffered. Neither did a family exist to which she could return, since her family
had been responsible for sending her there, once again demonstrating how
kinship and betrayal are interwoven (Das, 2007; Pierobon, 2021). The town was
just a short bus ride away and her mother would go there to buy fabrics. Her
mother knew about the horror of the place but was able to return to ordinary
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

life, perhaps due to the magic of transforming fabrics into clothes. The town is
far away in time but, even so, is always close since it is impossible to forget.

Tracing a path amid words


In each of the previous sections, shrapnel and conversation, I sought to explore
meanings that can be glimpsed amid the words. I say ‘amid’ because I do not
take words here as a vehicle for meaning in themselves but as a woven space
that sometimes invites us to seek out their possibilities, sometimes casts a
shadow over what would be apparently more logical or immediate deductions.
To be clear, it is not a question of revealing meanings, as though these materi-
alize outside the multiplicity of cognitive, affective and political conditions
produced by relations. Rather it is a question of seeking in the marks of inter-
locution something that offers itself up to comprehension. For this reason,
shrapnel and conversations, more than narrative genres, are dialogical constructs.
Their poetic properties, like the tone of voice that pervades them, the images
that move them, or the rhythm that characterizes them, serve the reactions
article | adriana vianna

807

that they produce in their interlocutors, at the same time that these reactions
feed and shape them in turn. In different ways, I perceive both as an invitation
to become engaged in the position of an active audience, meaning that the
properties I recognize in each depend fundamentally on the work of producing
a place for myself in this relation.
What I have sought to identify or pursue, therefore, concerns the trace
of the relations in which, by listening and by my presence, I became integrated.
In the case of the shrapnel, as I indicated, the inversion of both the expectation
of a collective celebration and the attribution of the status of prisoner to the
mother instead of the convicted officer, offered the crucial dialogical component.
The suspension of the foreseen script convoked another engagement, seeming
to demand from her network of interlocution the capacity to react to the pro-
found bewilderment caused by her utterance. It was not the comforting re-
sponses emitted there that absorbed the harmful potential of those words but
the fact that we were in a position to receive them in trust. As Das (2007: 6)
points out, the issue is not knowing but acknowledging the other, something
that is never resolved once and for all. 6
In what I called conversation, the opening to acknowledgment resides in
the reiteration of the questions and commonplace remarks concerning what
had already been shared face-to-face or through accounts and photos. The
movement here involves less the brusqueness of what was not foreseen and
irrupts, as in the shrapnel, and more an alternating play of distance and proxim-
ity, knowing and not knowing. The questions thus had something of a mirror-
like quality: after all, I was also asked whether I already knew such-and-such
stories, scenes or objects. In its sinuous flow, the conversation conveyed topics
from one point to another, produced associations and allowed itself to be inter-
rupted, whether by ideas or by people and animals, or by the oscillating inter-
net connection. If the first register was produced through the concentrated
impact of a phrase and the specific mode of non-comprehension that it gener-
ated in me, this second register is distinguished by a time that wanders, con-
fecting a prose slips between past, present and future.
Both situations allow us to reflect on a theme that tends to be expressed
relatively consistently, albeit in different ways, by women who join these move-
ments following the killing of their sons. This involves the very possibility of
living and naming the form of life that unfolds after the death of their children.
The tales about the periods of deep depression after the killings, the chronic
worsening of certain illnesses or even the cases in which it proved impossible
to overcome the sadness and mortification, make themselves present in both
public and more intimate dialogues. When mobilized publicly, however, they
are generally connected to the period immediately following the deaths. Getting
out of bed, summoning one’s strength and engaging in the struggle form a spe-
cific narrative sequence that allows the events to be told in a particular manner
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

808

that transmutes the devastation, giving it a moral direction.


But illnesses, as a language of profound doubt concerning the possibil-
ity of living amid the brutal dissolution of the everyday experience of life, can
emerge at other moments, such as after a trial. “I had the illusion that they
were going to admit what they did,” Luísa said to me about this moment. The
trust placed in the moral response to be received through the judiciary – not
by chance more commonly known as the ‘justice’ – proves to be neither mer-
ited nor sufficient. Without ignoring the social and political importance of the
court trials in these cases, we can, I think, reflect on its precarious capacity to
provide an adequate response to something that greatly exceeds it. “I’m the
one in prison,” the shrapnel-utterance, speaks to us of this. It also speaks of
the force of a time undomesticated by linearity. “The day of Shelly’s death” is
always in the present, as Das highlights in speaking of the anthropoetics of
Rosaldo. 7 This present that never goes away casts its shadow cruelly over the
promise of a recomposition of everyday life, filling the work of its re-inhabita-
tion with uncertainty (Das 2020: 310).
The relationship between the sombre and definitive present time an-
nounced in shrapnel and the temporal undulation of conversations, which speak
of generations, memories of the past and imaginations of the future, should
not be thought of as a kind of opposition. These possibilities intersect at every
instant and one is unable to expel the other definitively. Borrowing Han’s words,
we can see in both how much “this labor of making a world one’s own is not
simply finding again one’s place in the world but rather involves nurturing the
possibility of a life together in one’s absence” (Han, 2015: 507). The presence of
this other-in-absence occurs in many ways: in the form of premonitions, which
speak of the impact of this deformed return of the everyday (Das, 2020: 309);
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

in gestures and imaginary conversations that fill up the days (Han, 2015); in
acts of care with other children, granddaughters, neighbours. It is in this weav-
ing that banality and wonder mix; horror and the possibilities for cure through
the skill taken to avoid something of its poison being transferred to following
generations (Das, 2020: 202) and to ensure that words have a chance to find a
home.
Claudia’s phrase, which ruptures the contours of the warrior mother,
gradually became incorporated, in another way, into her public speeches, re-
combined with the narrative on the importance of the legal victory. The work
of kinship realized by Luísa extends to other children, half-siblings of Taís, who,
though not her biological grandchildren, treat her as a grandmother. “I don’t
stop acquiring grandchildren,” she tells me smiling. Groping for words, in the
way I have sought to do here, can perhaps be understood therefore as this
endeavour to seek out situations in which they momentarily appear to become
quiet. But it can also be guided precisely by the indices of its maladjustment,
the instants and scenes that reveal the limits of this quietening. At one point
article | adriana vianna

809

in our conversation, following the tales about the mental asylum near to home-
town, Luísa told me about another case that occurred in the neighbourhood:

The lad who lives nearby who became a bit crazy from drugs, his sister had him
hospitalized and he returned and doesn’t speak to his sister. He says he won’t
go back there. I make him coffee and bread. He tells me about the tortures he
suffered.

Madness, kinship and torture once again become interwoven in the ac-
count, as well as the decision to stop speaking to those who have betrayed the
trust that the person deposited in them. Recounting the tortures experienced
is only possible with someone who confects a space of trust, inseparable from
the coffee and bread offered. Quiet and disquiet run in parallel, indicating that
words only rest amid the encounter, listening and the gesture that re-estab-
lishes, even for a moment, the everyday as a territory of care.
If I conclude the text with this scene, it is because it seems to me an-
other way of speaking about the ‘being with’ that marks fieldwork. The shared
coffee, the chat, the memory that suddenly surfaces and the incommensurabil-
ity of horror become mixed in this scene and in so many others in which, one
way or another, we take part. It is not a question of giving them a meaning but
of understanding, as Das (2020: 319) emphasizes, that our concepts are not
produced in the “frictionless space of pure thought” and that it is this fact that
helps us “reinhabit a broken world”. Writing is not, then, an attempt to logi-
cally, politically or existentially transcend this broken world, but a way of situ-
ating oneself amid it, with all the fragility, insecurity and hope that pervade it.

Received on 24-Oct-2021 | Approved on 16-Nov-2021


disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

810
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

Adriana de R. B. Vianna is Associate Professor at


the Graduate Program in Social Anthropology/
National Museum (Universidade Federal do Rio de
Janeiro). She conducts and supervises research on
gender relations, violence, state processes, and
collective actions.
article | adriana vianna

811

NOTES
* I am extremely grateful to Letícia Ferreira for her partner-
ship work throughout the preparation of this special issue
and, particularly, this text. Working with Letícia, Camila
Pierobon, and Cynthia Sarti turned this whole process
into a unique mix of diligence and joy. I would also like
to thank Juliana Farias, Roberto Efrem Filho, and Angela
Facundo for their wise and kind reading feedback. Finally,
I would like to express my great appreciation and admira-
tion for the families of state violence victims and thank
warmly the interlocutor, here named Luísa, for her endless
generosity with me.
1 As Lotte Butte Segal (2015: 55) points out: “This compelling
juxtaposition of hesitancy and argument is one of Das’s
gifts to anthropology, particularly concerning ethnograph-
ic engagements with contexts suffused with violence in
its different forms”.
2 This and all other personal names in the text have been
changed.
3 See, among others, Misse et al., 2013; Vianna & Farias, 2011;
Farias, 2020.
4 Some initial elaborations of the relationship between frag-
ments and shrapnel were made in dialogue with the work
of Fabio Mallart, contained in the afterword to his book
(Vianna, 2021).
5 To provide a slightly longer citation: “I do not know and
cannot know how to go further, but I do know the differ-
ence in the aesthetics of kinship in this kind of world
between trusting your words to the care of the concrete
others with whom you have shared this kind of past, this
kind of laughter, these kinds of tears, and releasing it to
a public that might mutilate your words by treating them
as if they were just like other objects in the world” (Das,
2020: 138).
6 In Das’s words: “I read this as saying that the question is
not about knowing (at least in the picture of knowing that
much of modern philosophy has propagated with its un-
derlying assumption about being able to solve the problem
of what it is to know), but of acknowledgment. My acknowl-
edgment of the other is not something that I can do once
and then be done with it” (Das, 2007: 6).
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

812

7 “When I first read these poems, I was struck by a curious


feeling: the title that kept coming into my head, unbidden,
was, “The day Shelly died,” but, of course, “The day of
Shelly’s death” is what captures the event. It is not “the
day Shelly died,” which might gesture to a pastness, to a
memor y. “The day of Shelly’s death” hits you with the
force of a presence, for the day is everywhere, beyond and
above the divisions of past, present, and future” (Das, 2020:
310; Rosaldo, 2014).

References

Antze, Paul & Lambek, Michael. (1996). Tense past: cultural


essays in trauma and memory. London: Routledge.
Austin, John L. (1962). How to do things with words. Cam-
bridge, Mass.: Harvard University Press.
Carsten, Janet. (2007). Introduction: Ghosts of memor y.
In: Ghosts of memory: essays on remembrance and relatedness.
Oxford: Blackwell.
Comerford, John. (1999). Fazendo a luta: sociabilidade, falas
e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de
Janeiro: Relume Dumará.
Das, Veena. (2021). Thinking and thanking: responding
to the critical comments on textures of the ordinary. Cri-
tical Inquire. Available at: https://critinq.wordpress.com/2
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021

021/05 /2 4 /t h ink ing-and-t hank ing-respond ing-to-t he-


-critical-comments-on-textures-of-the-ordinary/. Acces-
sed May, 24, 2021
Das, Veena. (2020). Textures of the ordinary: doing anthropo-
logy after Wittgenstein. New York: Fordham University
Press.
Das, Veena. (2018). Ethics, self-knowledge, and life taken
as a whole. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 8/3, p. 537-
549.
Das, Veena. (2015). Adjacent thinking: a postscr ipt. In:
Chatterji, Roma (ed.). Wording the world. Veena Das and sce-
nes of inheritance. New York: Fordham University Press, p.
372-399.
Das, Veena. (2012). Entre palavras e vidas: um pensamen-
to de encontro com margens, violências e sofr imentos.
article | adriana vianna

813

Entrevista com Veena Das. Michel Misse, Alexandre Wer-


neck, Patricia Birman, Pedro Paulo Pereira, Gabriel Feltran,
Paulo Malvasi. Dilemas: Revista de Estudos de Conf lito e Con-
trole Social, 5/2, p. 335-356.
Das, Veena. (2010). On life and words: an interview with
Veena Das by Asli Zengin. Feminist Approaches in Culture
and Politics, 10, p. 1-15.
Das, Veena. (2007). Life and words: violence and the descent
into the ordinary. Los Angeles: University of California
Press.
Farias, Juliana. (2020). Governo de mortes: uma etnografia
da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Papéis Selvagens.
Fernandes, Camila. (2021). Figuras da causação. As novinhas,
as mães nervosas e as mães que abandonam os filhos. Rio de
Janeiro: Editora Telha.
Han, Clara. (2015). Echoes of a death: violence, enduran-
ce, and the exper iences of loss. In: Das, Veena & Han,
Clara. Living and dying in the contemporary world: a compen-
dium. Oakland: University of California Press, p. 493-509.
Kleinman, Arthur. (2006). What really matters. Living a mo-
ral life amidst uncertainty and danger. Oxford /New York:
Oxford University Press.
Leite, Márcia. (2012). Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto
de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública
no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública,
6/2, p. 374-389.
Leite, Márcia. (2004). As mães em movimento. In: Birman,
Patrícia & Leite, Márcia Pereira (eds.). Um mural para a dor:
movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, p. 141-190.
Misse, Michel et al. (2013). Quando a polícia mata: homicídios
por ‘autos de resistência’ no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de
Janeiro: Necvu/Booklink.
Pierobon, Camila. (2021). Traições em família. In this volu-
me.
Rosaldo, Renato. (2014). The day of Shelly’s death: the poetry
and ethnography of grief. Durham, N.C.: Duke University
Press
disquiet: words, times and relations along an ethnographic trajectory 

814

Segal, Lotte Butte. (2015). Disembodied conjugality. In:


Chatterji, Roma (ed.). Wording the world. Veena Das and sce-
nes of inheritance. New York: Fordham University Press.
Vianna, Adriana. (2021). Posfácio. Escrever (contra) o hor-
ror. In: Mallart, Fabio. Findas linhas: circulações e confina-
mentos pelos subterrâneos de São Paulo. Lisbon: Etnográfica
Press, p. 375-385.
Vianna, Adriana. (2015). Tempos, dores e corpos: consi-
derações sobre a “espera” entre familiares de vítimas de
violência policial no Rio de Janeiro. In: Patricia Birman et
al. (eds.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens
e resistências. Rio de Janeiro: EdFGV, p. 374-387.
Vianna, Adr iana & Far ias, Juliana. (2011). A g uerra das
mães. Dor e política em situações de violência institucio-
nal. Cadernos Pagu, 37.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 793 – 815 , sep. – dec., 2021
article | adriana vianna

815

Desassossego: palavras, tempos e relações em


um percurso etnográfico
Palavras-chave Resumo
Veena Das; Em diálogo com reflexões de Veena Das, este artigo explo-
palavras; ra algumas dimensões presentes em um percurso etnográ-
tempos; fico centrado na relação com familiares de vítimas de vio-
violência. lência do Estado. Palavras, tempos e relações configuram
o eixo em torno do qual duas diferentes situações de pes-
quisa são elaboradas. A primeira delas é pensada a partir
da imagem do estilhaço, fragmento que surpreende e produz
a sensação de falta de compreensão sobre o que se desen-
rola. A segunda situação se constrói sob o regime da con-
versa, permitindo refletir sobre diferentes dimensões de
intimidade e desconhecimento que atravessam uma rela-
ção de pesquisa e confiança.

Disquiet: words, times and relations along an


ethnographic trajectory
Keywords Abstract
Veena Das; In dialogue with reflections by Veena Das, this article ex-
words; plores some dimensions present in an ethnographic jour-
times; ney centered on the relationship with family members of
violence state violence victims. Words, times, and relations set up
the axis around which two different research situations
are elaborated. The first of them is thought of from the
image of the shrapnel, a fragment that surprises and gener-
ates feelings of bewilderment towards what is unfolding.
The second situation is built under the regime of conversa-
tion, allowing for reflection on different dimensions of in-
timacy and not-knowing that permeate a relationship of
research and trust.
816
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v1134

1 1 Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento de Ciencias Sociais,


Guarulhos, SP, Brasil
csarti@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0002-6962-3527

Cynthia Sarti I

Figurations of pain: memory through life

In this text I describe my encounters with the ideas of Veena Das while con-
ducting research on suffering and violence. In the process, I revisit the trajec-
tory that led to my investigation of these themes through memories of Brazil’s
military dictatorship (1964-1985), highlighting the points where her work made
itself present. The catalyst for this reflection was the invitation to participate
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

in this dossier on the author who pioneered new ways for contemporary an-
thropology to think about violence, becoming an essential reference on the
theme, particularly when the focus is on pain.
Here my reflection on Veena Das’s work will not take the form of an
exegesis or an analysis of its fundamental aspects and lines of continuity. 1
Instead, I describe the points of encounter in order to show how reading her
work opens up possibilities for research on the Brazilian dictatorship, specifi-
cally in the terms in which I have formulated this on-going inquiry. To this end,
I revisit the questions that led me to investigate the suffering associated with
violence, such as I had in mind when I began the research, and describe how
the reflection on testimonies of these experiences developed over time, set in
words (books, testimonies, texts, reports, interviews), emphasizing the moments
when the reading of Veena Das (2007: 1, especially Life and words, was particu-
larly inspiring due to the singular way in which she proposes to think about
the kind of work that anthropology does “in shaping the object we have come
to call violence.” The impact of her work discussed here, therefore, concerns
figurations of pain: memory through life

818

not a conceptual framework but the inspiration provided by the perspective


adopted by the author to reflect on the pain of violence.
In a way, my intention follows the same path, mutatis mutandis, that Das
has pursued in her own interlocution with philosophy. In the interview con-
tained in this dossier, she states that it is not a theory for anthropology she
seeks from philosophy but rather a kind of partnership, a companionship in
her words, her interest being not in philosophy in general but in some phi-
losophers in particular. The question at stake is how we come to think about
an object of study in one way rather than another, considering the place of the
other – our interlocutors – within this configuration.
I perceive that, from a certain moment in my own trajectory, Veena Das’s
work was there, echoing and accompanying me. This text is an exercise in
understanding this entry, which was not a chance event. Beyond the broader
impact of her work on Brazilian anthropology, my aim is to localize how and
when her ideas helped me think, allowing me to take forward certain research
problems. I highlight these words in italics since this is how the author herself
expresses how she wishes her work to be continued: “But all I think I’ve done
is to make some ideas available which I had limited ways of being able to take
forward.” 2

Writing and argumentation3


One of the features to highlight in the way Veena Das goes about doing anthro-
pology is the destabilization of any a priori conceptual framework, whether to
think about the pain associated with violence, or to access this experience as
the experience of the other, beginning with her refusal to seek out a definition
of violence. 4 In her texts, knowledge of the pain of violence has the character-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

istic of an open work, inconclusive, always to be questioned, not only because


of the unclear, non-transparent and imprecise contours of violence, but also
because of the instability of the very language of pain, recognizing that any
enunciation of pain involves the unpredictable nature of one’s relation with
the other, in the sense that pain necessarily elicits an appeal to the other’s
presence.
The author’s formulations involve singular expressions indissociable
from the way she thinks about violence: the subject who inhabits the world, the
violence that destroys the world as it was previously inhabited and the life that
reconstructs the world through subjective negotiations between the subject and the
possibilities of the surrounding world. Inhabit, world, subject, experience are terms
that accompany her work, interwoven in order to speak simultaneously of pain
and violence, words and life, in such a way that, even when used as concepts,
these words are not reduced to cognitive instruments but become mingled by
conserving something of the sensoriality constitutive of them. 5 Words are the
world, making up the ordinary experience of life. Life and words interconnect.
article | cynthia sarti

819

The ethnography of this object we call violence moves among the instabilities,
uncertainties and unpredictabilites that surround the phenomenon and knowl-
edge of it, just as the words that express it, not only conserve but are also
“guided” by these forms. 6 I emphasize, in this sense, her relation to concepts
not as something that one pre-selects from a series of possibilities but as some-
thing that winds its way into the work of research by diverse routes, none of
which are necessarily foreseen. Here the “imponderables” are not limited to a
“real life” problem to be confronted in fieldwork, as Malinowski (1976) forewarned.
They are not an “empirical problem,” a nuisance that disrupts field research,
rather they constitute the epistemological problem par excellence that pervades
the entire process of knowledge – in the relations in which we become involved,
in the variety of interlocutions that make up fieldwork research, in our reflec-
tions, in writing. Veena Das opened up an epistemological field in which we
can move around in the meanders of the instability and indeterminacy making
up the object on which knowledge is being produced – an approach that proves
particularly fecund when violence is the topic under study. Hence the coordi-
nates are established in terms of localized fields of conversation (Das, 2015a).
Life and words can be read as a varied set of such fields within which the author
converses.
Literature as well comprises a mode of reflection in which the argument
is inseparable from the writing. In this case, in contrast to philosophy, which
was not part of her formal education, her training did include studies of Sanskrit,
a literature to which the author frequently refers. This helps us understand
how her way of doing anthropology is manifested in her writing, not only
through the words that distinguish her text, but through its form. Throughout
Life and words, the writing connects the various levels on which the author
mobilizes the distinct voices of the people with whom she converses, her “in-
terlocutors” as we conventionally call them in contemporary anthropology, and
through which she reflects and writes – whether the voice of Asha, Shanti,
Manjit, Cavell or Wittgenstein. Here, the anthropological text subtly morphs
into interlocution, involving all the voices as though they were conversing
among themselves.
In this way, without fuss, the problem of an “ethnographic authority” or
a “symmetrical anthropology” that so noisily tormented the anthropology of
Western scholars, especially at the end of the previous century, quietly dissi-
pates. The connections between the voices of her interlocutors gradually de-
velop and become perceptible to the reader over the course of the text, nurtured
by the author’s careful work of reflection, until the final explicit recognition of
what both Manjit and Cavell allowed her to understand. If she learned from
both, undoing conventional asymmetries of knowledge, this relates to the per-
spective she adopts in order to embody the other in her way of making anthro-
pology, defined by herself expressly as a form of “devotion to the world.” This
figurations of pain: memory through life

820

perspective, in turn, appears to be related to an aspect that permeates her


entire approach to the other: her apprehension of the other’s pain. This, it seems
to me, is the register that opens her dialogue outwards, whether to other fields
of knowledge, especially philosophy and literature, or to the people with whom
she lives and connects in her research undertaken outside the socially insti-
tuted fields of knowledge. At all these levels, irrespective of the social position
occupied by her interlocutors, what is in play are forms of life. For her, if we
conduct research with people in anthropology, then the anthropological text
will reflect the forms taken by the relations that implicate us with these people.
As the author says, “if you are writing within a form of life, your writing is not
something outside a form of life.” 7
Her approach to human experience via the pain of violence is among
the entry points through which Veena Das’s work has had an impact on Brazil-
ian anthropology. Exploring this path, I discuss below what led me to encoun-
ter the author in my own research on suffering, looking to situate on a line of
continuity the emergence of questions for which the reading of her writings
proved decisively inspiring. I start at the beginning of my studies on violence
in order to talk about the question that led me to the suffering associated with
it, before arriving at the experiences of pain associated with Brazil’s military
dictatorship.

The circumscribed victim


My entry into the field of studies on violence took place through my insertion
in the field of health, 8 meaning that body, pain and language would be articu-
lated in the experience of violence from this initial immersion onward. We were
researching healthcare responses to violent acts in an emergency hospital in
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

which a specialized service had been created for “cases of violence.” The project
sought to analyse, based on an ethnography undertaken along classical lines
including observation and interviews, how health professionals understood
the specificities of the care provided for a body injured by violence. 9
The violence that arrived at the emergency services, as a phenomenon
that affects the body, was translated and treated in the same terms as a disease.
As a health problem, violence was construed in a way that rendered it intelli-
gible within the logic of biomedicine and the care associated with the latter. As
far as the medics of the emergency unit were concerned, their responsibility
was to cure the injury and recuperate the person’s vital functions, their phys-
iological condition, irrespective of the reason for the patient arriving at the
hospital: a violent act, an accident or a disease. However, the explanation jus-
tifying a specific care response to violence, like the care provided at this hos-
pital, centred on their conception of the “victim,” defined by attributes associ-
ated with the person prior to the violent act. In this conception, violence was
delimited through the identification of a fragility in the victim, which made
article | cynthia sarti

821

the person “susceptible to the violent act by corresponding to a place defined


in advance as a place of vulnerability” (Sarti, 2005: 114). Women, children and
elderly people were those in whom this susceptibility was identified, therefore,
occupying the place of victims of violence to be provided with care.
Hence, it was not the act in itself that configured the violence, nor the
injuries on the body that made the aggression evident, but the prior definition
of who the victim was. Young and adult men were thus excluded from this
category, based on an ontological rather than situational notion of vulnerabil-
ity, determined by gender and age. It was at this care service that we witnessed
the case of a man who sought help after being sexually assaulted. He had de-
cided to come to this hospital because its care service for sexual violence was
a benchmark in the city of São Paulo. However, he was sent away under the
allegation that the service was designed exclusively for women and so only had
gynaecologists and obstetricians on duty! 10
I remember the striking figure of the hospital’s social worker, outraged
when she learnt that the assaulted young man had been sent away and her
firm resolve to locate him, undertaking an “active search” through his hospital
admission record, seeking to ensure he would be provided with the care meant
to be universally available in Brazil, as she remarked, through its public health
system (Sistema Único de Saúde/SUS). The dissonant reaction of the social
worker coexisted with the perplexity of the other professionals over the care
that was eventually provided to this out-of-place young man. This research led
to the beginning of a reflection on the production of the victim through the
form in which the problem of violence entered the field of healthcare. This
entry took place through an articulation between the epidemiological logic that
operates in the health field, privileging the incidence of the phenomenon, and
the active role played by identity-based social movements since the end of the
dictatorship in 1985, which named and made visible previously invisible forms
of violence, as in the case of the feminist and gay rights movements and the
movement for children’s rights, which helped shape health policies based on
the demand for rights of specific groups (Sarti, 2009).
I recall the case of the sexually assaulted young man here because I
consider it a turning point in my research trajectory, opening a new field of
investigation through the analysis of the production of the victim as a figure.
This change led me to adopt a more phenomenological approach to the study
of pain and suffering by focusing attention on experience, in its singularity, as
a fundamental strategy in the analysis of violence. 11
Echoing in this shift was the dissonant voice of the social worker, alien
to the biomedical discourse that impregnated the sounds of the corridors
strolled over the course of the research, but also distanced to some extent from
the initiative – of which she was one of the main agents and advocates – of
creating a specific care response to sexual violence exclusively for women in
figurations of pain: memory through life

822

the hospital. In the practical implementation of her work, she had been con-
fronted with the ambiguities of a provision of care in response to violence that
was circumscribed by a predefined notion of the victim. While this care named
violence against women, it also made other forms of violence invisible due to
its essentialization. At the same time, I imagined the suffering of the assaulted
young man, with whom I had never had any contact save through the discourse
of the healthcare professionals, in the successive forms of humiliation to which
he had been subjected, in the assault, in the initial refusal of care, and in the
subsequent treatment that had caused such bewilderment among the hospital
staff. Beyond the treatment of his health, I thought about how the event must
have impacted his life, about the absence of a place of expression and recogni-
tion for what had happened to him. Lives and forms of language had been re-
vealed there as a problem. It was along this path, in face of the questions that
were opened by this research, in particular through the analysis of the produc-
tion of the victim, that the problem of the suffering associated with violence
crept into my work, becoming the central question that I have investigated, in
distinct forms, ever since. 12
Simultaneously, the analysis of this “case” allowed me to make explicit
the problematization of the place of the other when gender is thought of as an
identity issue (Sarti, 2009). In this sense, I recognize myself in the perspective
in which Das brings gender to her analysis. For her, gender is profoundly im-
plicated in the production of knowledge – all her work is evidence of this. How-
ever, it is not something one seeks out deliberately, rather it is found, because
it is there. 13 Focusing attention on the singularity of experiences thus precedes
any predefined approach to gender, which, however, always transects the anal-
ysis, “because it finds us,” not because we pursue it.14 In my view, it is a question
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

of being attentive to seeing and discerning gender in the forms in which life is
decisively traversed by one’s inscription in the social place of woman or man. 15
The deliberate search predisposes the gaze, while this subtle but significant
change in perspective enables the emergence, beyond the places of subordina-
tion socially attributed to women, of the possible modes of female agency un-
foreseen in our referential frameworks of meaning.
Although there was a line of continuity in my work, the inquiry into
violence from the viewpoint of suffering required other forms of ethnographic
exploration. Moreover, the locus of investigation shifted. My fieldwork sites
were no longer hospitals. By this time I had already joined the Department of
Social Sciences following the opening of UNIFESP to the human sciences in
2007, 16 an institutional affiliation that had an impact on the research, which
ceased to be linked to the health field alone. This was the moment when I turned
my attention to violence during Brazil’s military dictatorship in the quest to
analyse experiences of imprisonment, torture, disappearance and death of fam-
ily members, based on the testimony of those who lived through such events.
article | cynthia sarti

823

Looking back, I believe that was the moment when my attention was
caught by Veena Das’s work. She had recently published Life and words. The book
Critical events, but above all the trilogy on the notion of social suffering and the
research agenda proposed there, a collective project in which the author was
involved (Kleinman et al., 1997; Das et al., 2000; Das et al., 2001), were already
key references for anyone studying suffering and violence, notably in the field
of the anthropology of health, as developed in Brazil (Víctora, 2011). Beyond the
social dimension of suffering, fundamental to an analysis of individual experi-
ence in light of what exceeds it but at the same time constitutes it, such as the
political, economic, cultural and environmental processes that directly affect
people’s lives, the work of Veena Das, in particular, revealed a new approach in
the field of the social sciences, made explicit in Life and words, through which
the author attempts, in her own words, “to remain attentive to the idea of suf-
fering as a concern with life and not with either the given and ready-made
ideas of culture or a matter of law or norms alone” (Das, 2007: 212).
Her commentators have highlighted the lines of continuity in the au-
thor’s work, in particular those running between Critical events and Life and
words (Vianna, 2020; Singh, 2015). The perspective marking her studies on vio-
lence, which consists of analysing the phenomenon in the forms in which the
event, by establishing some kind of cut, affects life and language, was already
outline, I believe, in the very definition of a “critical event.” It was not the ex-
traordinary character of the event which stood out; rather, what defined it as
“critical” was the establishment of new modalities of action not previously in-
scribed in the cultural and social repertoire. Referring to the Partition of India
in 1947, the thematic event of the book, Das (1995: 6) argued that, through it,
“new modes of action came into being that redefined traditional categories.”
Already present was the analysis of the disruptive event from a perspective in
which the death of the world as it had been inhabited before corresponds to
the creation of new forms of life – an idea so clearly consolidated in Life and
words. Associated with the event, the happening or the violent situation is, then,
not just destruction but the possibility of reconstruction, which, for the author,
operates in ordinary life, raising the question of how this happens. 17
This perspective contributed to shaping questions that became central
in my research trajectory on suffering and the memory of the violence of the
dictatorship, as I hope to show below.

Between victim and combatant


While in the hospital the intelligibility of the idea of a victim presumed the
person’s identification with a figure predefined by the condition of vulnerabil-
ity, which predisposed them to suffer the aggression, traversed by gender and
age, other moral frameworks shaped this figure, as the research would reveal
as it unfolded.
figurations of pain: memory through life

824

According to Wieviorka (2005), the figure of the victim was for a long
time absent from the discourse on violence. It appeared in the humanitarian
discourse as a “victim of circumstances,” such as poverty or sickness, which
referred to naturalized social conditions rather than the political sphere. In the
discourse on violence, it emerges when this focused on the subject who suf-
fered the aggression, based on an affirmative notion of this subject as a subject
of rights, who, as such, demands reparation. Circumscribed in the figure of the
victim, the suffering associated with violence becomes socially intelligible, mak-
ing the construction of the subject as a victim, whether individually or as a
group, a mode of legitimizing demands and social actions for justice, reparation
and care (Sarti, 2011). Hence, the construction of the figure of the victim and
his or her social recognition in terms of rights gave form to the notion of vio-
lence itself, while the victim was transfigured into the contemporary mode par
excellence of situating oneself subjectively in response to violence (Koltai, 2002;
Fassin, 2004; Sarti, 2011; Gatti, 2017). 18
If the construction of the victim as a subject of rights is connected to
what became instituted as the modern rights of citizenship, the focus on the
subject who suffers violence interpellates the State in terms of its function of
ensuring the basic existential conditions of the citizen. 19 In the paradigm of
international human rights law, instituted through war crime trials in the twen-
tieth century, the State responsible for violent crimes is equally held respon-
sible for policies of memory and reparation. This character of being a victim of
a State policy is what is in play in the construction of the category of “victim
of the dictatorship” claimed in relation to the Latin American dictatorships of
the twentieth century.
Either in the fight or the reflection on the crimes of the Brazilian dicta-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

torship, it is commonly asserted that human rights violations (torture, disap-


pearance and death) are not limited to the context of the dictatorship; rather
the violence of the State historically pervades Brazilian society, permeated by
disrespect for rights, not just political, but the most basic civil and social rights
of the socially disadvantaged or dissident population. This is what Pinheiro
(1991: 55) called a “socially implanted authoritarianism,” embedded in the coun-
try’s historical formation, whose roots go deeper than the practices determined
by regimes of exception. The persistence of State violence in post-dictatorship
Brazil is, then, precisely the justification, in the register of human rights, for
the social and political demands surrounding the memory of the dictatorship.
In this sense, memory is reconfigured in response to the issues of the
present. It was human rights that sedimented the place for reconstructing,
during a moment of disenchantment, new horizons and future expectations
through which the past could be re-examined (Koselleck, 2006), marking pre-
sent-day struggles. For Moyn (2012), human rights became, at a global level, the
benchmark for political action not after 1948 and the Universal Declaration of
Human Rights, but after the eclipsing of the socialist and communist utopias
article | cynthia sarti

825

that fed the struggles against dictatorships in the second half of the twentieth
century. The memory of these events referred, therefore, not necessarily to the
utopia that inspired the struggle against the dictatorship but to the questions
that made these struggles contemporary, enabling them to be continued in
another time and another register.
In this way, the field of human rights gave the militants, protagonists in
the fight against the dictatorship, the framework they needed to reconcile the
figure of the victim with their self-image as combatants and resisters, who chose
the armed struggle, conscious of their choice. In the face of the refusal to see
oneself as a victim, a figure that exempts the subject of responsibility, State
violence confers moral legitimacy to this place, as a victim of the dictatorship, in
the political struggle for the right to memory, truth and justice. 20

The pain of violence and the dictatorship


The Brazilian dictatorship had not yet developed as a field of studies in Brazilian
anthropology when I took the event as a reference point for thinking about the
pain of violence.21 In addition to the historical studies that have focused on the
theme of the dictatorship since its occurrence, there emerged, at the end of the
2000s, key collective works that covered diverse fields of knowledge in order to
think about “what remained of the dictatorship,” given the failure to hold any-
one accountable for the crimes committed during the period in Brazil following
the limitations imposed by the Amnesty Law of 1979 (Law 6,683/1979). The latter
also granted amnesty to torturers, making it impossible for the country to pur-
sue a political process of justice, reparation and construction of memory in line
with the model of transitional justice established by international human rights
law (Teles & Safatle, 2010; Santos, Teles & Teles, 2009). This was the period when
the creation of the National Truth Commission was being discussed in the coun-
try, which was launched in November 2011 and completed its work in December
2014 (Brazil, 2014), rekindling the problem of the memory of the dictatorship and
fuelling its study in diverse fields of the social sciences in the country.22
At that moment, then, thinking about the dictatorship was clearly ac-
companied by a political agenda, endorsed by human rights activism, as Eliza-
beth Jelin (2003) has highlighted with respect to the emergence of a new field
of concerns in Latin American social sciences, which paralleled the memory
processes in diverse countries of the region from the 1980s when these countries
confronted the transition from military dictatorships to democratic govern-
ments. 23 This involved discovering evidence of the violence perpetrated and
the demand for recognition of the victims as a condition for advancing the
unfinished political process of memory, truth and justice, under the terms of
international law. 24 This was the moment when I began my own research.
By focusing on the pain of violence through the event of the dictatorship,
my aim was to explore and interrogate these memory processes. The problem
figurations of pain: memory through life

826

was not the evidence of violence per se, as expressed in the political and norma-
tive discourse in defence of recognition of the crimes of the dictatorship. Rath-
er the question was how this evidence, informed by the precepts of transi-
tional justice, is constructed and performed in the work of memory. I sought
to study the impact of these processes, and continue to do so, on the forms in
which the experience of pain became inscribed in the lives of those who suf-
fered the crimes of the dictatorship through the analysis of their testimonies.
How to speak about the pain of the experiences of torture, exile, disap-
pearance and death of family members, as a subjective experience of the oth-
er, beyond the social framings that make it socially intelligible, by giving it a
place, but without exhausting the meaning of the lived? How to apprehend
what was presented as inapprehensible?
From this perspective, literature constituted a fundamental source ma-
terial for the reflection since in this register we can perceive the “individual’s
hesitations” spoken of by Simmel (2006), which allow us to glimpse the singu-
larities irreducible to the social and political frameworks. It opens the possibil-
ity of putting what has no place into words insofar as it operates outside the
socially agreed limits for the subjective expression of pain.
Along these uncertain paths, reading Veena Das (2007) cleared the way
ahead by enabling me to realize that it was a field of uncertainties that I had
to traverse in order to study the suffering associated with violence from the
proposed perspective, allowing myself to be guided precisely by this instability.
But how? Reflecting on the pain of violence entailed turning my attention to
the singularity of lived experiences, in the interstitial spaces and gaps opened
by the testimonies, seeking to locate not only what was lost, but also the in-
scription of these experiences in life. It is not the event itself that is at stake,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

but the experience of the event as lived by the person who suffered from vio-
lence, transfigured into memory. Not the facts themselves, but what can be
accessed of them from the testimony, apprehensible, as Das (2007: 216) suggests,
“in terms of the conditions under which it becomes possible to speak of experi-
ence.” By definition, therefore, experience is articulated with language and
language with the world.

Forms of saying
Amid all the uncertainties, some points seem consolidated in the studies on
violence, specifically in relation to the possibilities of speaking about violence.
In response to the global impact of the Nazi genocide, a twentieth-century
emblem of violence – not just because of the scandal of its scale and charac-
teristics, but also because of the social and symbolic resources of its victims
who successfully made themselves globally recognized as such – propositions
emerged in the West that affirmed the unthinkable, unsayable and unrepresent-
able character of the extermination, intensified in the 1980s, according to Cren-
article | cynthia sarti

827

zel (2010), in the postmodern context with its crisis of representation and of
the grand narratives. However, the author continues, these propositions have
been heavily contested. 25 If it is possible to think, say and represent violence,
whose implications, global in dimension, extend beyond national and local
borders, then how to do so? The processes of memory instituted by interna-
tional law after the Second World War would not only give legal form but also
morally legitimize the reckoning with the past of violence, transforming it
into a “duty to remember.”
We have reached here another point, not so uncontested among those
who situate themselves in the field of human rights, which relates to the limits
of the legal processes in terms of enunciating violence, although its fundamen-
tal political relevance for the restoration of the democratic order is recognized.
Agamben (2008) referred to the issue when discussing the distinction between
ethical and juridical categories. Citing the 1945-1946 Nuremberg Trials and the
trial of Eichmann in Jerusalem in 1961, the author argues that, however neces-
sary these processes may have been, they did not exhaust the question, contrib-
uting to the idea that the problem had been resolved, given the recognized
proofs of guilt. According to the author, the problem of the grey zones alluded
to by Primo Levi (2004) remains, blurring the neat separation between the per-
petrators of violence and the victims under which legal processes operate.
Das (2007), equally critical of the reading of violence through models
based on clear binary oppositions, poses the question in other terms, speaking
of these limits in relation to the practices that institute forms of saying the
“truth,” such as the Truth Commissions (TCs), which became globally established
as the public spaces par excellence for expressing the truth. Although the pol-
icies of memory establish places for listening, making possible the expression
and recognition of the discourse of those who have suffered State violence, they
also institute the forms through which violence should be said and heard. A
predefined script exists, varying in flexibility, established by legal forms or a
specific political agenda, on the basis of which victims should speak, although
the latter may not necessarily recognize themselves in this framework pre-
sented for them to speak within (Sarti, 2014, 2015). 26
An “exemplary Enlightenment project,” which resumes an absolute no-
tion of truth, as Das (2007: 220) defines it, the truth commissions model, in its
illusion of establishing clear boundaries between victims and aggressors, ig-
nores at a practical level those forms of testimony and memory that emerge
from very diverse situations and contexts as an outcome of equally diverse and
localized meanings. Hence, it is a question of seeking, in the interstices of these
practices, singular and personal forms of speaking and making visible, through
words, silences or mutings, what they say about violence or its concealment.
We are talking precisely about “one way to understand the relation between
violence and subjectivity,” as Das (2007: 78) defines the act of witnessing.
figurations of pain: memory through life

828

Truth, like the testimony that supposedly enunciates it, therefore, is


neither a self-evident or a transparent category, but is linked to the conditions
of its enunciation, traversed by the social and political circumstances and the
actors involved. Along these lines, Jelin (2003) argues that policies of memory
imply not a confrontation properly speaking between memory and oblivion,
but distinct actors whose interpretations about what happened collide, present-
ing us with the political confrontation between distinct memories, something
that the author calls struggles of memory against memory. The borders separat-
ing victims and perpetrators of violence become hazy in the face of distinct
“truths.” 27
The forms of speaking about the pain of violence are, therefore, by def-
inition, permeated by conflict. However, the testimony, beyond its constitution
in an incessant struggle for the word, caught in the lacuna between the suffer-
ing of lived experience and the absence of a place of recognition where it can
be expressed, is also an indefinite place of restless search because, as the lit-
erature on violence has demonstrated, experiences of violence are never ex-
tinguished and the disquiet surrounding their memory haunts those who lived
through them, becoming part of life itself. It is not a question, though, of the
moral imperative to remember, in the struggle between remembrance and
oblivion, but of unexpected and unpredictable recesses of memory. Again, in
question here are not events but the forms that make possible access to lived
experiences, the forms of speaking, as expressed by those who lived them or
who were affected by them.
In this sense, Das’s proposal to read violence not just in its destructive
effect but also in its possibilities for reconstructing life cleared a fertile path.
It is a question of immersing oneself in life, precisely where what remained
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

needs to be pieced together, reassembling the shards and carrying on, because
it has to be done to continue living.

The work of time


In Brazil, where there was no accountability for the crimes committed during
the dictatorship, not even following official recognition of the proofs by the
NTC, and where the same criminal practices against human rights persist, ask-
ing about the memory of the dictatorship in the testimony of those who lived
through it inevitably leads to the question: what did the elapsed time do? This
calls on us to resituate the past in the elapsing of time, unfreezing it and pay-
ing attention to the forms in which life followed its course.
If ongoing political action, transmuted into a struggle for “memory, jus-
tice and truth” concerning the events that occurred during the dictatorship,
formed the background on which the experiences of pain and violence were
inscribed in the existence of those who fought against the dictatorship and
their families, becoming part of their form of inhabiting the world, for those
article | cynthia sarti

829

affected by the violence of the dictatorship, the framing of militant action did
not exhaust the forms of saying and making life carry on. 28
To think about this singularity of experience both inside and outside
narratives framed in collective references that were, in some form, instituted
as counterdiscourses, my reflection became anchored in the notion of the work
of time, operating in the process of reconstructing life, as formulated by Das
(2007: 87): “Time is not purely something represented but is an agent that ‘works’
on relationships – allowing them to be reinterpreted, rewritten, sometimes
overwritten – as different social actors struggle to author stories in which col-
lectivities are created or re-created.”
The notion of time as an agent that works in the reconstruction of life,
inhabited by memories and where forgetting and concealments are produced,
proved inspirational in terms of comprehending not only the singularity of
experiences, but memory as a form of labour that accompanies existence ac-
tively, unblocking the past, through the unexpected questions of the present,
on an open horizon, a becoming. From this perspective, reparation is not focused
solely on an ideal of justice but becomes woven into the concrete fabric of life,
in the possible forms of inhabiting the world, amid relations that, through their
action, give new meaning to lived experience. The work of time has no certain
direction, nor predefined obstacles. It thus becomes a guide to the terrain to
be explored in thinking about the indeterminacy of the memory of violence,
focusing attention on the uncertain paths of memories and the indeterminate
movements of forgetting.
Consequently, this perspective is constructed in the opposite direction
to the direct and necessary association between violence and trauma, recurrent
in studies of violence, through, as Das emphasizes, 29 an imprecise and over-
hasty appropriation of the psychoanalytic concept.
The relation between violence and trauma entails mediations that in-
tervene decisively for the lack of language in the face of violence. These concern
the relations that make saying and listening possible or impossible, which must
be dealt with carefully, rather than presupposing the blockage of language. Once
again, the problem is where one looks. Taking the opposite tack to the focus on
trauma, the perspective of Das (2007) leads her to ask, particularly in the final
chapter to Life and words, whether it is possible to think about a group of victims
and survivors of violence in which time is not frozen but is permitted to “per-
form its work.” For the author, it is not that the ghosts have been expelled from
the scenes of violence that she describes, “but rather that everyday life is not
expelled” (Das, 2007: 215). An everyday life that, for her, is the place of recon-
struction, as already emphasized. In this chapter the author re-examines the
work of time in order to question the idea that thinking through suffering results
in the creation of a “community of resentment.” In this sense, it seems to me
that looking at the reconstruction of life, in those places where it can happen
figurations of pain: memory through life

830

through the work of time, 30 and not just at the destruction of violence that
freezes the gaze, is what enables a reflection through suffering, but outside the
register of resentment.
It is not a question of reducing those who lived through the violence to
a community of victims/survivors but of perceiving them as subjects. On this
point, Das’s ideas coincide, in a profound sense, with the critique of the victim
as a contemporary figure mentioned earlier. For her, running counter to the
discourse on identity, there is no collective unitary subject (the African, the
Indian) but forms of inhabiting the world in which people try to find their own
place and their own voice. 31 The recuperation of the memory of violence thus
involves the construction of the self as a subject, not a victim. What the wom-
en with whom she worked “were able to ‘show’ was not a standardized narra-
tive of loss and suffering but a project that can be understood only in the
singular through the image of reinhabiting the space of devastation again” (Das,
2007: 217). It is a question of seeing how life can be redeemed in the face of the
violence that attacks life itself, not a particular type of identity.
For the author, the difficulties implicit in naming violence are not related,
therefore, solely to the lack of language in response to violence, as a certain
theory of trauma might suppose, invoked “too soon” in these cases: “Naming the
violence does not reflect semantic struggles alone – it reflects the point at which
the body of language becomes indistinguishable from that of the world; the act
of naming constitutes a performative utterance” (Das, 2007: 206).

The appeal to the other of pain


In Civilization and its discontents, Freud (2010) highlights three sources through
which suffering threatens us. The first comes from the body itself, which can-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

not dispense with pain and fear as signals warning of the fatality of its own
decay and dissolution; the second comes from the outside world, which assails
us with powerful, inexorable and destructive forces beyond our control; and
finally the third, which derives from our relations with other humans: “The
suffering that arises from this last source perhaps causes us more pain than
any other” (Freud, 2010: 31). If, today, the boundaries between “body”, “external
world” and “humans” are blurred, blended with the relations that constitute
human sociality, Freud’s formulation shows the inescapable presence of the
other in the suffering that constitutes us. Suffering is social by definition. But
what is the place of the other in the language of pain?
“Narrating and making oneself heard leads us to the importance of the
other in the reconstruction of memory – a fundamental operation for overcom-
ing trauma.” With these words, Janaína Teles (2009: 159) – historian, the daugh-
ter of parents imprisoned and tortured during the dictatorship, also imprisoned
while a child along with her brother – refers to the struggle of the relatives of
those political activists killed and disappeared by the military dictatorship. For
article | cynthia sarti

831

her, this is the “political dimension of the work of memory,” impossible to be


undertaken in private because it needs to be witnessed by a third party, heard
by someone from ‘outside’.” 32
Confronted by the absence of any stable language to speak about pain and
the impossibility of claiming to know the pain of the other, Das queries the rela-
tion that we can have to pain, beyond what political discourse may express. Here
she turns to literature and to Wittgenstein, making a singular use of his formula-
tion of the “pain felt in another’s body.” For Das (2007: 40) in the philosopher’s
interpretation, pain “is not that inexpressible something that destroys commu-
nication or marks an exit from one’s existence in language. Instead, it makes a
claim on the other – asking for acknowledgment that may be given or denied.”
While recognition of violence in the register of the political is funda-
mental to “overcoming trauma,” as demanded by those who have suffered vio-
lence, there remain the recesses of a memory of suffering irreducible to this
register, with the muted memories, the concealments and the active silences
that the lived violence brings with it and that appeal equally to the other, in
the forms in which the unpredictable languages of pain are expressed. For Das,
it is a question of resorting to the register of the imaginary where “the pain of
the other not only asks for a home in language, but also seeks a home in the
body” (Das, 2007: 57); the denial of the other’s pain, the author stresses, does
not entail a failure of intellect but a failure of spirit.
If the leitmotiv of this text was to locate the points where my research
trajectory encountered the ideas of Veena Das, it also resulted, and not acci-
dentally, in a rereading of the work undertaken thus far, recomposed by the
memory evoked in the search to understand the paths where the author ac-
companied me, to paraphrase her. Hence, remembering does not mean that
memories return in the same form. They are not simply evoked, but transfigured
by the ever open and unavoidable questions of the time and the world in which
we live. In all cases, it is a question of the constitutive presence of the other
that inhabits us.

Received on 27-Jun-2021 | Approved on 01-Aug-2021


figurations of pain: memory through life

832
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

Cynthia Sarti is Full Professor of Anthropology at the


Federal University of São Paulo (Unifesp) and researcher at
CNPq. She is currently director of Editora Unifesp and vice
coordinator of the Edward Saïd Chair of Contemporary
Studies. Her areas of interest are: memory, exile, suffering,
pain, and violence; and violence; disease and health;
moralities; family and gender. Her publications revolve
around these themes, most notably A família como espelho:
um estudo sobre a moral dos pobres.
article | cynthia sarti

833

Notes
1 On her work, see the book organised by Chatterji (2015)
and the text by Vianna (2020 ), which comments on its
repercussion in Brazilian anthropology.
2 Interview in this dossier.
3 An allusion to Das’s remarks (2015b: 246) on the fascina-
tion that Ludwig Wittgenstein’s Philosophical investigations
exerted on her: “the tonality of the writing in it had as
much to say to me as its form of argumentation.”
4 As Vianna (2020: 10) stresses: “Countering the anxiety to
def ine what violence is, Das arg ues that we should be
guided by our engagement in the very instability of what
is named as violence.”
5 This seems to be the sense explored in the use of the word
“textures” in her most recent book, as the author remarks
in the interview to this dossier. It seems to me that the
sensoriality in the use of words already pervaded Life and
words, which I highlight here for its importance for an
approach to pain.
6 Vianna (2020: 5) calls attention to the significance of the
notion of “limit” in Das’s work. I refer to her commentary
on the notions of experience and limit as indissociable
from the very conception of the subject.
7 Interview in this dossier.
8 At the time, I was a professor at UNIFESP’s Department
of Preventive Medicine (DMP).
9 This research was developed in collaboration with Rosa-
na Machin Barbosa, also a professor at the DMP of UNI-
FESP, along with undergraduate medical and nursing stu-
dents under our supervision.
10 We descr ibe and analyse this episode in a co-authored
article (Sarti, Barbosa & Suarez 2006).
11 I consider pain and suffering to be equivalent notions in
the moral sense in which I approach the question, irres-
pective of the presence or absence of physical pain. As Le
Breton (2013) arg ues, pain implies suffer ing since it al-
ways involves a “moral blow,” a questioning of the
individual’s relation to the world.
figurations of pain: memory through life

834

12 Though pain had been a constant theme in the teaching


and supervisory activities in the health area, ever since
I was urged to explore the topic by professional nursing
colleagues when I worked in the nursing field in public
health (Sarti, 2001).
13 See Das (2012) and the interview in this dossier.
14 An approach consistent with her relationship to concepts
mentioned above.
15 There is no space here to analyse the presence of children
in Das’s ref lection, which, permeated by care, is articu-
lated with gender, as the author emphasizes in the inter-
view in this dossier.
16 Until 2005, when the expansion of federal universities in
Brazil began under the Luiz Inácio Lula da Silva govern-
ment, UNIFESP, identif ied with its Medical School, had
been focused exclusively on the health area.
17 It seems to me that an analogy exists, whose implications
lie beyond the scope of this text, but which I hope to be
able to explore on another occasion, between Veena Das
and Georges Canguilhem, in the form that both think of
life in terms of its possibilities for recreation, whether in
response to violence, in the case of the former, or in the
fact of illness, in the case of the latter (Canguilhem, 2006).
18 And, more broadly, in relation to any form of suffering,
as Koltai (2002) argued.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

19 Although violence appears precisely as evidence of the


failure of this model of the State, an important discussion
that is beyond the scope of this text.
20 As remarked earlier, the ambig uities in relation to the
place of the victim in the testimonies of former comba-
tants during the dictatorship is a theme present in the
literature (Sarti, 2014 , 2015; Sarti, Baumgarten & Rovai,
2020). In relation to the legal implications of the definition
of victims, see the analysis by Tello (2012) on memory of
the Argentinean dictatorship, where she highlights the
tensions arising from the “theory of the two demons” that
marked legal processes in the countr y. In this judicial
context, the witness-victim has to demonstrate having been
the victim of an attack that was unprovoked and thus
undeserved (innocent-victim), ref lecting the implicit view
article | cynthia sarti

835

of the militant as a “terrorist” in this interpretative fra-


mework. On the political resignification of the category
“victims of the military dictatorship” in Brazil, see Aydos
and Figueiredo (2013).
21 Some pioneering anthropological works on dictatorships,
produced in Brazil, did already exist at this time, albeit
in isolation: these included Catela (2001) on the struggle
of the families affected by the Argentinean military dic-
tatorship (1976-1983), based on her thesis completed in
1999; Vecchioli (2000, 2006) on the struggle for rights in
Argentina; and the master’s dissertation by Aydos (2002)
on the experience of torture during the Brazilian dicta-
torship.
22 It is worth noting that in 2010, Dilma Rousseff, a former
political prisoner tortured during the dictatorship, was
elected President of the Republic standing for the Workers’
Party (Partido dos Trabalhadores/PT), assuming the post
in 2011.
23 In Brazil, the theme of the memor y of the dictatorships
developed in anthropolog y in the wake of these events,
with the production of dissertations and theses, espe-
cially from 2010, focusing on both the Brazilian and the
Argentinean militar y dictatorships. For information on
the ethnographic works produced in the context of Bra-
zilian postgraduate programs in anthropology and social
sciences, see Ribeiro (2020).
24 The political relevance of naming and recognizing the
person as a victim for the realization of the process of
memory in post-dictatorship Brazil, within the framework
of transitional justice, and the obstacles to this process
in the Brazilian case, in comparison with the Chilean and
Argentinean cases, are analysed by Mezarobba (2007).
25 Among those contesting these ideas are Agamben (2008),
Didi-Huberman (2012) and Pollak (2002), as well as the
testimony of those who lived the concentration camp ex-
perience, like Primo Levi (1988, 2004).
26 As shown by the analyses of women’s testimony under-
taken by Ross (2003) on the Truth and Reconciliation Com-
figurations of pain: memory through life

836

mission in South Afr ica and by Pollak & Heinich (1986)


about memory of the Holocaust.
27 The National Truth Commission (NTC) in Brazil, whose
report made public and official the documents that pro-
ved the human r ights violations, consubstantiated the
disputes around the memor y of the dictatorship, reigni-
ting the polarizations that reproduce the original conf lict,
a process that culminated in the reconfiguration of power
in the countr y in the years that followed the release of
the report: President Dilma Rousseff suffered impeach-
ment in 2016 and ultra conservative President Bolsonaro
was elected in 2018 (Sarti, Baumgarten & Rovai, 2020). See
the recent collective book that, ten years on, continues
the work of the previous ones in the same reg ister of a
“fight for memory,” incorporating the impact of the NTC
(Teles & Quinalha, 2020).
28 Along these lines, I analysed the book K, by Bernardo
Kucinski, on his father’s tireless search for the disappea-
red daughter (Sarti, 2016).
29 I analyse the enunciations of torture through literar y
texts that bear witness, highlighting the meaning of a
combat literature of the text on torture written during the
dictatorship, in contrast to the idea of a trauma literature
with which the wr itten testimony on torture is hastily
associated (Sarti, 2019). The same sense of combat, and
not of an unassimilated experience, appears in texts writ-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

ten after the dictatorship (Sarti, 2020).


30 In the “descent to the ordinary” found, for the author, in
the register of the everyday, in the concrete engagement
with the tasks of remaking life. The everyday is not, the-
refore, the trivial place of repetition, but the place for the
creation of new forms of life after devastation.
31 Here I refer to the author’s critical comments on Achille
Mbembe’s “Afr ican modes of self-wr iting” in this f inal
chapter of the book (Das, 2007).
32 The implication of the other intrinsic to testimony forms
the central axis of my recent text on the f ig ure of the
witness (Sarti, 2020).
article | cynthia sarti

837

References

Agamben, Giorgio. (2008) [1998]. O que resta de Auschwitz.


Trad. Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo.
Aydos, Valéria. (2002). Vidas marcadas: experiências de tor-
tura nas trajetórias de presos políticos no período da ditadura
militar. Dissertação de Mestrado. PPGAS/Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Aydos, Valéria & Figueiredo, César. (2013). A construção
social das vítimas da ditadura militar e sua ressignifica-
ção política. Interseções, 15/2, p. 392-414.
Brasil. (2014). Relatório/Comissão Nacional da Verdade. Bra-
sília: Comissão Nacional da Verdade. Disponível em:
http://www.cnv.gov.br/. Access on June 19, 2020.
Canguilhem, Georges. (2006) [1966]. O normal e o patológi-
co. 6 ed. revista. Trad. Maria Thereza Redig de Carvalho
Barrocas. Rev. técn. Manoel Barros da Motta. Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária.
Catela, Ludmila da Silva. (2001). Situação-limite e memória:
a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da
Argentina. São Paulo: Hucitec/Anpocs.
Chatterji, Roma (ed). (2015). Wording the world: Veena Das
and scenes of inheritance. New York: Fordham University
Press.
Crenzel, Emilio. (2010). Introducción. Memorias y repre-
sentaciones de los desaparecidos en la Argentina. 1983-
2008. In: Crenzel, Emilio (ed.). Los desaparecidos en la Ar-
gentina: memorias, representaciones e ideas (1983-2008). Bue-
nos Aires: Biblos, p. 11-23.
Das, Veena. (2015a). Adjacent thinking: a postscript. In:
Chatterji, Roma (ed.). Wording the world: Veena Das and
scenes of inheritance. New York: Fordham University Press,
p. 372-399.
Das, Veena. (2015b). A life in books. Journal of the Royal
Anthropological Institute, 21, p. 246-250.
Das, Veena. (2012). Entre palavras e vidas. Entrevista com
Veena Das. Michel Misse, Alexandre Werneck, Patr ícia
Birman, Pedro Paulo Pereira, Gabriel Feltran, Paulo Mal-
vasi. Dilemas: Revista de Estudos de Conf lito e Controle Social,
5/2, p. 335-356.
figurations of pain: memory through life

838

Das, Veena. (2007). Life and words: violence and the descent
into the ordinary. Berkeley/Los Angeles/London: University
of California Press. Brazilian translation: Vida e palavras:
a violência e sua descida ao ordinário. Trad. Bruno Gamba-
rotto. Rev. técn. Adriana Vianna. São Paulo: Editora Uni-
fesp, 2020.
Das, Veena. (1995). Critical events: an anthropological pers-
pective on contemporary India. Delhi: Oxford University
Press.
Das, Veena et al. (eds.). (2001). Remaking a world: violence,
social suffering and recovery. Berkeley/Los Angeles/London:
University of California Press.
Das, Veena et al. (eds.). (2000 ). Violence and subjectivity.
Berkeley/Los Angeles /London: University of California
Press.
Didi-Huberman, Georges. (2012). Imagens apesar de tudo.
Trad. Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. Lisboa: KKYM.
(Coleção Imago).
Fassin, Didier. (2004). La cause des victimes. Les temps
modernes, 59 /627, p. 73-91.
Freud, Sigmund. (2010) [1930]. O mal-estar na civilização.
In: Sigmund Freud. Obras completas. V. 18. Trad. Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, p. 13-122.
Gatti, Gabriel (ed.). (2017). Un mundo de víctimas. Barcelo-
na: Anthropos Editorial.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

Jelin, Elizabeth. (2003). Los derechos humanos y la me-


moria de la violencia política y la represión: la construc-
ción de un campo nuevo en las ciencias sociales. Cuader-
nos del IDES, 2, p. 1-27.
Kleinman, Arthur; Das, Veena; Lock, Margaret (eds.).
(1997). Social suffering. Berkeley/Los Angeles/London: Uni-
versity of California Press.
Koltai, Caterina. (2002). Uma questão tão delicada. Psico-
logia Clínica, 14/2, p. 35-42.
Koselleck, Reinhart. (2006) [1979]. Futuro passado: contri-
buição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrí-
cia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rev. trad. César Benja-
min. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio.
Le Breton, David. (2013) [1995]. Antropologia da dor. Trad.
Iraci D. Poleti. São Paulo: Editora Fap-Unifesp.
article | cynthia sarti

839

Levi, Primo. (2004) [1986]. Os afogados e os sobreviventes.


Trad. Luiz Sergio Henriques. São Paulo: Paz e Terra.
Levi, Pr imo. (1988 ) [1958]. É isso um homem? Trad. Luig i
Del Re. Rio de Janeiro: Rocco.
Malinovski, Bronislaw. (1976) [1921]. Introdução. In: Argo-
nautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural (Os
Pensadores, XLIII).
Mezarobba, Glenda. (2007). O preço do esquecimento: as re-
parações pagas às vítimas do regime militar (uma comparação
entre Brasil, Argentina e Chile). Tese de Doutorado. PPGCP/
Universidade de São Paulo.
Moyn, Samuel. (2012). The last utopia: human rights in his-
tory. Cambridge: Harvard University Press.
Pinheiro, Paulo Sérgio. (1991). Autoritarismo e transição.
Revista USP, 9, p. 45-56.
Pollak, Michael. (2002). L’expérience concentrationnaire. Pa-
ris: Metailié.
Pollak, Michael & Heinich, Nathalie. (1986). Le témoigna-
ge.  Actes de la recherche en sciences sociales, 62-63, p. 3-29.
Ribeiro, Michelli de Souza. (2020). Descaminhos das escri-
turas antropológicas da dor. Dissertação de Mestrado.
PPGCS/Universidade Federal de São Paulo.
Ross, Fiona. (2003). Bearing witness: women and the Truth
and Reconciliation Commission in South Africa. London: Pluto
Press.
Santos, Cecília MacDowell; Teles, Edson; Teles, Janaína
(orgs.). (2009). Desarquivando a ditadura: memória e justiça
no Brasil. 2 v. São Paulo: Hucitec/Aderaldo & Rothschild.
Sarti, Cynthia. (2020). Rastros da violência: a testemunha.
Sociologia & Antropologia, 10 /3, p. 1023-1042.
Sarti, Cynthia. (2019). Enunciações da tortura: memórias
da ditadura brasileira. Revista de Antropologia, 62/3, p. 505-
529.
Sarti, Cynthia. (2016). Narrar a dor: o livro K e outras
narrativas. Interseções, 18/2, 307-323.
Sarti, Cynthia. (2015). La victime et le témoin durant la
dictature militaire au Brésil: une antropologie de la mé-
moire. Brésil(s), 8, p. 125-146.
figurations of pain: memory through life

840

Sarti, Cynthia. (2014). A construção de figuras da violên-


cia: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos,
20 /42, p. 77-105.
Sarti, Cynthia. (2011). A vítima como figura contemporâ-
nea. Cadernos CRH, 24/61, p. 51-61.
Sar ti, Cynthia. (20 09 ). Cor po, v iolência e saúde: a pro-
dução da v ítima. Sexualidad, Salud y Sociedad − Revista
Latinoamericana, 1/1, p. 89-103.

Sarti, Cynthia. (2005). O atendimento de emergência a


corpos feridos por atos violentos. Physis: Revista de Saúde
Coletiva, 15/1, p. 107-126.
Sarti, Cynthia. (2001). A dor, o indivíduo, a sociedade. Saú-
de e Sociedade, 10 /1, p. 3-13.
Sarti, Cynthia A.; Barbosa, Rosana Machin ; Suarez, Mar-
celo M. (2006). Violência e gênero: vítimas demarcadas.
Physis: Revista de Saúde Coletiva, 16/2, p. 167-183.
Sarti, Cynthia; Baumgarten, Jens; Rovai, Mauro Luiz.
(2020 ). Fios sem Ar iadne: teias tecidas por palavras e
imagens. Revista Limiar, 7/14, p. 251-277.
Simmel, Georg. (2006) [1917]. Questões fundamentais da so-
ciologia: indivíduo e sociedade. Trad. Pedro Caldas. Rio de
Janeiro: Zahar.
Singh, Bhrigupati. (2015). Conceptual vita. In: Chatterji,
Roma (ed.). Wording the world: Veena Das and scenes of inhe-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

ritance. New York: Fordham University Press, p. 84-104.


Teles, Edson & Quinalha, Renan (eds.). (2020). Espectros
da ditadura: da Comissão da Verdade ao bolsonarismo. São
Paulo: Autonomia Literária.
Teles. Edson & Safatle, Wladimir. (2010 ). O que resta da
ditadura. São Paulo: Boitempo.
Teles, Janaína de Almeida. (2009). Entre o luto e a melan-
colia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos
políticos no Brasil. In: Santos, Cecília MacDowell; Teles,
Edson; Teles, Janaína (orgs.). Desarquivando a ditadura: me-
mória e justiça no Brasil. V. 1. São Paulo: Hucitec/Aderaldo
& Rothschild, p. 151-176.
Tello, Mariana. (2012). La vida en fuego: un análisis antropo-
lógico sobre las memorias de la “lucha armada” en los ’70 en
Argentina. Tesis de Doctorado. Departamento de Antropo-
article | cynthia sarti

841

logía y Pensamiento Filosófico Español. /Universidad Au-


tónoma de Madrid.
Vecchioli, Virginia. (2006). A luta pelo direito: engajamento
militante e profissionalização dos advogados na causa pelos
direitos humanos na Argentina. Tese de Doutorado. PPGAS/
Universidade Federal do Rio de Janeiro-Museu Nacional.
Vecchioli, Virginia. (2000). Os trabalhos pela memória: um
esboço do campo dos direitos humanos na Argentina através da
construção social da categoria de vítima do terrorismo de Es-
tado. Dissertação de Mestrado. PPGAS/Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro-Museu Nacional.
Vianna, Adriana. (2020). Vida, palavras e alguns outros
traçados: lendo Veena Das. Mana, 26/3, p. 1-20.
Víctora, Ceres. (2011). Sofrimento social e a corporificação
do mundo: contribuições a partir da antropologia. RECIIS,
5/4, p. 3-13.
Wieviorka, Michel. (2005). L’emergence des victimes. In:
La violence. Paris: Hachette Littératures, p. 81-108.
figurations of pain: memory through life

842

Figurações da dor: a memória através da vida


Resumo Palavras-chave
Esse texto trata de encontros com as ideias de Veena Das Sofrimento;
que aconteceram em meu trabalho de pesquisa sobre o violência;
sofrimento e a violência. Para isso, percorre a trajetória memória;
que levou à investigação sobre o tema com base na memó- vida;
ria da ditadura militar brasileira (1964-1985) nos pontos ditadura brasileira.
em que o trabalho da autora ecoou e se fez presente. Em
reflexão que interroga não os acontecimentos da ditadura,
mas a singularidade das experiências de sofrimento, apre-
endidas nas formas de dizer, expressas pelo testemunho
de quem as viveu ou foi por elas afetado, a leitura da vio-
lência não apenas em termos de sua destruição, mas pelas
possibilidades de reconstrução da vida depois da devasta-
ção, proposta por Das, abriu um caminho fecundo.

Figurations of pain: memory through life


Abstract Keywords
In this text I discuss my encounters with Veena Das’s ide- Suffering;
as over the course of my own research on suffering and violence;
violence. I trace the paths that led to my investigation of memory;
the theme through the memories of Brazil’s military dic- life;
tatorship (1964-1985), highlighting the points where the Brazilian dictatorship.
author’s work resonated and made itself present. The read-
ing of violence proposed by Das, which sees it not as mere-
ly destructive but also as a source of possibilities for re-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 817 – 842 , sep. – dec., 2021

constructing life after devastation, provided a way forward


for my own inquiry that focuses not on the events of the
dictatorship per se, but on the singularity of the experi-
ences of suffering, apprehended in the forms of speaking
expressed in the testimony of those who lived through
these experiences or were affected by them.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v1135

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Departamento


de Antropologia, Porto Alegre, RS, Brasil
ceresvictora@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9363-3883
11 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Departamento
de Antropologia, Porto Alegre, RS, Brasil
Ceres Víctora I
patrice.schuch@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0073-3496
Patrice Schuch II
111 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Programa Monalisa Dias de Siqueira III
de Pós-graduação em Antropologia Social, Porto Alegre, RS, Brasil
monalisadias@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5063-8411

“Almost nothing has changed”: ordinary ethics


and forms of life in pandemic times

There is a long history of thinking that ordinary life does


not require work in order to be maintained, that it has the
force of habit and that it will therefore go on sustaining
itself. I think part of the challenge with regard to this
manner of thinking about the ordinary is a methodologi-
cal one, so it is argued that methodologically one can best
detect agency at moments of resistance or at moments of
transgression, because of the presumption that ordinary
life just goes on into the kind of f lux in which it is not
obvious that the act of actual agency could be located.
And my argument throughout has been to state that we
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

need to think about agency in much more complex ways.


I see everyday life as a kind of achievement, not just as
part of habit. I also believe that there is a certain kind of
heroic model of resistance, a romance of resistance. And
the kind of work that needs to be done to maintain the
ever yday, and the ways in which the ordinar y and the
extraordinary are braided together in our ordinary lives
are theoretically much more difficult to understand. Th-
roughout very extraordinary moments, all kinds of ordi-
nary things have to continue to be done. And it seems to
me that, very often, it is at this junction that we lose in-
terest in what is at stake. By underlining that resistance
can be romanticized, I do not mean that the notion of
resistance is never to be appreciated, or that it never plays
any role. But I want to think of moments of resistance as
also integrated and carried forward into ordinary life.

Veena Das (DiFruscia, 2010)


“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

844

“Almost nothing has changed,” “very little has changed,” “…the only thing I
stopped doing is travelling, the rest carries on as normal.” These were some of
the responses, somewhat surprising perhaps, given by many of the people in-
terviewed in our anthropological research, undertaken since July 2020, concern-
ing the impacts of the covid-19 pandemic on those legally classified as senior
citizens – that is, people over the age of 60. 1 The research focuses on relational
bonds and care infrastructures, seeking to increase the visibility of their expe-
riences, exploring an understanding of the pandemic that prioritizes the small,
everyday practices and actions that the health emergency elicits (Biehl & Pet-
ryna, 2013; Das, 2020a; Fleischer & Lima, 2020).
The interviewees’ idea that “almost nothing has changed” was initially
puzzling: after all, the pandemic seemed to interrupt and reorganise lives in
dramatic form. How should we understand their insistence on the persistence
of ways of life amid so many transformations? Analysing other parts of the
narratives of the people in the study, we saw that these initial phrases con-
trasted sharply with other narrative moments in which the subjects reported
the countless situations in which their everyday lives had been affected. Con-
versations included mention of the restrictions on mobility and strategic social
distancing, the introduction of new modes of personal protection, and diverse
emotional responses that ranged from indignation to resignation in reaction
to the coercive measures imposed to regulate behaviour. These measures were
targeted at the elderly in particular, given that this population was classified
as a preferential ‘risk group’ during the pandemic. 2
Rather than exploring the potential contradictions in the discourse of
the people collaborating in our research, or any supposedly distorted perception
or denial of immediate reality, we argue that the responses only appear to
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

minimize the impact of the pandemic or to distort reality. In fact, we venture


the hypothesis that they reveal more about everyday actions and the routine
efforts made – very often invisible or rendered so – to maintain ordinary life in
response to an extraordinary event like the covid-19 pandemic. Echoing the
opening citation of Veena Das (DiFruscia, 2010), we believe that understanding
the entanglements between the ordinary and extraordinary is essential, since
paying attention to these aspects can reveal the strategies and mechanisms
through which ordinary life continues to be produced during extraordinary
times, and how, conversely, extraordinary moments populate ordinary life. In
pandemic times, this attention can also reveal the importance of the everyday
care infrastructures and the peculiar and singular ways that people reinhabit
life through the efforts made to build their daily lives, produce new routines,
imagine a liveable life. After all, how can an event like the covid-19 pandemic
descend to the ordinary and inhabit life?
Setting out from these queries, we turn to focus on some aspects of the
quotidian life of a white middle-class family living in southern Brazil during
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

845

the covid-19 pandemic. The idea is to explore this ethnographic narrative not
because it represents processes generalizable to other research subjects but
because it is capable of evoking, through the singularity of the narratives in
question, a descent to the ordinary in which the infrastructures of domestic
care – practices sensitive to the details of everyday life – come to the surface,
revealing the emergence of an ordinary ethics (Das, 2015b). For this author, ordi-
nary ethics is not based on universal principles or moral values, but emerges
from the everyday experiences and real problems encountered by people in
their daily life, which is the space in which they engage with the life of others.
In this sense, ordinary ethics, rather than focusing on transcendental acts of
heroism or resistance, begins with the mundane and the everyday, making them
not just a source of ethics but also a space in which life can be reinhabited.
Taking this lead, we describe not just the efforts made to constitute an
everyday life in pandemic times but also three generations living in the same
home – one of the momentary strategies employed by the family during the
health emergency – gave visibility to broader aspects surrounding differences
in gender, age, race and class that permeate the everyday situated dynamics
of care in this family. 3 Accompanying the unfolding of the practical solutions
found by the people involved to respond to the dilemmas and challenges of
sharing lives in the context of a health emergency, we saw that these dynamics
developed in the domestic environment can be considered active infrastructures
in which forms of life are performed.
The concept of forms of life that we make use of here, accompanying Das
in her reading of Ludwig Wittgenstein and Stanley Cavell, is founded on the
idea that language and the world are internal to one another. Thus, one cannot
think of a form of life separate from language, more specifically from a language
game that emerges in practical situations of the everyday. Without venturing
more deeply into the theory of language in which the concepts of forms of life
and language games were coined and developed, we believe it is important to
reflect on how the language of the pandemic produces and signifies determined
forms of life, especially by delineating important contours for those configured
as ‘elderly,’ preferentially allocated as ‘risk groups.’ In the Wittgensteinian tra-
dition, learning a language – for example, the language of the pandemic – entails
far more than possessing knowledge of the names and sounds that designate
objects and situations. It also involves learning how to relate with these forms
of life. The following passage from Cavell (1999: 177-178) expounds on this point:

In ‘learning language’ you learn not merely what the names of things are, but
what a name is; not merely what the form of expression is for expressing a wish,
but what expressing a wish is; not merely what the word for ‘father’ is, but what
a father is; not merely what the word for ‘love’ is, but what love is. In learning
language, you do not merely learn the pronunciation of sounds, and their gram-
matical orders, but the ‘forms of life’ which make those sounds the words they
are, do what they do – e.g., name, call, point, express a wish or affection, indi-
cate a choice or an aversion, etc…
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

846

Pursuing this idea, we argue that a fundamental connection exists be-


tween ordinary ethics and forms of life, and stress how domestic space not only
provides a fundamental infrastructure of care in a scenario of social and po-
litical vulnerability, but also functions as an active element in which forms of
life acquire form and life.

Anthropological Research, the Pandemic and the Descent


to the Ordinary
Our research began in July 2020 and includes the use of interviews based on a
semi-structured script of questions, which aim to comprehend: a) the networks
and modes of protection; b) the everyday and conceptions of risk; c) perceptions
of the pandemic. To the script we added a regular quarterly follow-up interview
over the course of a year to discover how life unfolded during this atypical
period. This strategy of regular encounters over a set period of time was inspired
both by “longitudinal” epidemiological studies and by anthropological research
that focuses on decisions relating to health, sickness and other long-term events.
Among these studies, we can highlight the research conducted by Das and her
team, described in the book Affliction, where they emphasize the importance
of weekly follow-ups and recording the course of diseases, therapeutic regimes
and their transformations, frequently based on decisions that combine eco-
nomic factors, domestic organisation and family dynamics (Das, 2015a). 4
As the author emphasizes, one limitation of the follow-up strategy – in
the case of Das (2015a: 31), undertaken weekly – is that this practice “cut up
the telling of illness-related events into weekly episodes”, a limitation that
appears to have restricted our own mode of data collection. At the same time,
though, it has provided evidence of changes not only in the lives of the people
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

investigated during this period, but also in the pandemic itself, in terms of
forms of public communication, scientific evidence and the targeting of public
policies, transforming them into specific themes of inquiry in the semi-struc-
tured scripts produced to foment the research dialogues.
The same dynamic of methodological limitations, which are also op-
portunities for study, applies when we consider the fact that, due to the poten-
tial risk of viral transmission through co-presence in the same physical space,
the contacts between researchers and collaborators have been exclusively made
through video and/or audio on WhatsApp. Unable to accompany the everyday
practices of the houses and families in the way we would in classic ethno-
graphic research, we paid special attention during the interviews to the subjects’
particular forms of narrating the modes of perception, dilemmas and meanings
relating to the prescriptive moral discourses on health and prevention behav-
iours targeted at them, as well as the public controversies surrounding the
issue. In this case, these prescriptive moral discourses and the wider set of
public controversies are elements that provoked the interviewed people to
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

847

elaborate reflections on their diverse ways of understanding and perceiving


situations. When associated with a set of information on their modes of life,
these elaborations provide an opportunity to discover the ways in which the
pandemic inhabits the everyday of people’s lives.
It should also be stressed that the type of follow-up we propose here
looks to cultivate longer-term contacts as well, since these enable the densifi-
cation of the relations between researchers and researched, facilitating the
emergence of categories that make sense to the people studied and the kind
of fundamental intersubjective exchange that characterizes anthropological
research in general. It was with this aim of seeking to develop closer relations
with the researched subjects that we made use of networks of relations in which
the researchers already had some prior investment, seeking to associate the
research conducted via WhatsApp with relations previously established with
specific people and their own networks of relations. One of the latter networks
was mobilized in the city of Santa Maria through contacts with people identi-
fied as elderly participants of groups of sociability and active aging linked to
the Federal University of Santa Maria. These subjects were included in the re-
search through pre-existing relations between these groups and the research-
ers Monalisa Dias de Siqueira and Taciane Jeske. It was through Taciane’s me-
diation that we came to know the family of Marilene and Pedro, the focus of
our discussions in this article.
Marilene and Pedro are white middle-class people, married for three
decades, aged 60 and 68, respectively. In the interviews, they describe how
before the pandemic they had a life filled with activities, whether in their home,
exercising in the gym, going for walks or dining with friends. Unlike Pedro,
already retired, Marilene still works as a primary school teacher and assists her
83-year-old mother who lives in her own apartment in the same city. The cou-
ple have a 28-year-old son, Daniel, who had been living in another city, study-
ing for a postgraduate degree, but returned to the family home due to the
isolation policies and the lack of new work opportunities after concluding his
doctorate in biology, recently completed at the start of the pandemic.
As a member of one of the studied networks, we interviewed Pedro first.
Always optimistic, he related that the pandemic had not altered his life much,
beyond reducing the time spent with friends and having to use alcohol gel and
masks, which, as he said: “is a bit uncomfortable, but I’ve already become ac-
customed…” On the other hand, the pandemic “added” dynamics that he con-
siders positive to his life, especially with his son’s return home and the novel-
ties the latter brought with him. Although we had not initially planned to in-
terview both members of the couple, we took the opportunity when it arose to
interview Marilene. Her account showed us another – feminine – version of the
pandemic. Although Marilene’s activities have intensified greatly, in her as-
sessment “the situation is hard work, but it’s okay, it’s fine.” In the interview,
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

848

rich in details on everyday family life, she told us about the new dynamics of
her work as a teacher of children aged from 8 to 9, which switched to remote
form. She also described the new routines for cleaning domestic space, as well
as the inclusion of her elderly mother and her son in the domestic unit. The
changes in the home routine due to their son’s return, which became apparent
in the interviews with Pedro and Marilene, introduced other elements to the
debate. This was why we decided it would be important to conduct an interview
with Daniel too.
Daniel told us about the return to his parents’ home at the end of his
doctorate, which coincided with the start of the pandemic, and the interruption
of his postdoctoral plan – and the scholarship he had won. As his grandmother
was also now living in his parents’ home, a move intended to provide her with
better protection against coronavirus and was staying in his own room, Daniel
occupied the guest room: “I didn’t want to return to my original bedroom and
disrupt grandma,” he told us in the interview. He said that he would have pre-
ferred not to live with his parents again, retaining his independence, especially
after the experience of living in another city and time spent in another country.
Nevertheless, Daniel believes that living with his parents in the same house has
been good and explains how the new routine unfolded and his decision that he
would consider it a “sabbatical year,” given that he would have to stay at home.
The references to his “grandma” (vó) and the conversations with her
surface at various moments of the interviews with the couple and their son.
Consequently, we thought it important for her to be heard too. We believed she
would have a lot to tell us and could contribute significantly to the research,
considering how she is a source of concern for the family, referred to sometimes
as a “stubborn” person who “doesn’t understand” and “sometimes plays up.”
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

However, our repeated requests to be presented to her were in vain. The fam-
ily said that she would be unable to reply to the questions due to what they
perceived to be her limited capacity for comprehension, given her “senility.”
Another person whose presence also appeared in the interviews was the
domestic worker, referred to as the empregada (housemaid), cuidadora (carer)
and secretária (secretary) of the grandmother, which is why we made various
attempts to talk to her. As well as being an important person in the family’s
relationship with the pandemic, she was the only member of this group of
conviviality – along with all the members of her own family – who became sick
with coronavirus. We thus asked Marilene to place us in contact with the do-
mestic worker but she refused the request. The restrictions imposed on direct
contact with the domestic worker and the grandmother tell us something about
the organisation of the family’s day-to-day relationships in this setting, as well
as the constitution of forms of life amid the pandemic’s language games. In the
arguments developed in this article, therefore, we focus on the narratives of
Pedro, Marilene and Daniel, produced at different moments, maintaining a de-
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

849

gree of tension between narrative fragments taken from each of them but, si-
multaneously, highlighting the important role played by the domestic space in
interweaving their narratives.

Everyday life in pandemic times: infrastructure of domestic care

…So I brought my mother here, on the 16th, 17th, mother came here, because she’s
83 years old and lives alone, a widow. Mother came here. She stayed until August
the 3rd, she practically stayed four and a half months with us, but afterwards
she couldn’t stand it anymore, because she came with the expectation of staying
for 15 days, a month at most. [But] the situation dragged on and she began to fall
into a depression and I saw that the situation was bad, she ended up moving
back to her own home.

This is how Marilene referred to one of the first – and most important
– changes to occur in her everyday life at the start of the pandemic. A few days
after the arrival of her mother, her son Daniel left the apartment he had been
renting in the state capital 5 and also moved back to his parents’ home. With a
few days, the house was sheltering four adults from three different generations.
The domestic space – the house – thus became a basic care infrastructure, un-
derstood as a practice “that includes everything that we do to maintain, con-
tinue and repair our world so that we can live in it in the best possible way”
(Tronto, 2015: 3).
In the case in question, it was concern over her mother’s “advanced age”
that persuaded Marilene to bring her to live in her own house, since “she’s
already at a senile age, she forgets many things…” Daniel also says that he
worries about “grandma” and believes that the “warning” he gave his parents
about the greater susceptibility of elderly people in the pandemic contributed
to the family’s decision to remove his grandmother from her apartment:

‘The risk group is elderly people’… I was immediately alarmed, ‘if they catch it,
they die.’ I said about grandma: ‘look, what’s grandma like there alone, someti-
mes she goes out, she goes to the supermarket alone, do you think she’ll take
precautions? Sometimes she can’t even see things properly, she forgets she has
to clean.’

According to Daniel’s narrative, as time passed “grandma” became in-


creasingly impatient to return home. Marilene, as can be read in the excerpt
that opens this section, related that her mother “began to fall into depression.”
Pedro also commented on his mother-in-law’s decision, claiming: “she had her
apartment, so she fought and fought until she got to return home…” In telling
us details of the case, Daniel repeated one of his grandmother’s phrases ver-
batim: “oh, I want to go back to my home, my space.” According to her family,
the elderly woman’s insistence led to her family ceding to her wish to return
home, but they still remained worried because, in their view, she failed to un-
derstand the gravity of the pandemic situation.
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

850

However, the return to her apartment was not a simple process. From
the interviews it became clear that her move was the motive for a series of
family discussions and decisions that included others beyond the immediate
family, including Marilene’s sister, maids/carers, and even the neighbours of
the idosa (elderly woman). Soon after her return, the latter sent a “document”
to Marilene’s family, reporting a burning smell from the apartment. In the doc-
ument, they claimed that the idosa could not live alone and that the condo-
minium could issue a fine were this recommendation to be ignored.
The entrance of the neighbours into the family drama points to a fun-
damental dimension of care, namely the interpenetration of the public and
private spheres and their intrinsically political dimension. What appeared to
be the solution to a private, family problem, which responded to the express
wish of a person to return to her “home,” her “space,” is deconstituted as such
on being confronted by other social agents and a new context of power relations.
The neighbours’ interference precipitated the hiring of a domestic worker, but
the first woman hired stayed only for a short time in the job, having been sacked
by the idosa. The second person hired for the work remained for longer but, as
mentioned earlier, became sick with coronavirus.
According to Marilene, around two months after starting work in her
mother’s home, the domestic worker arrived one day wearing a mask because
she was coughing a lot. She recounted that her father and mother, with whom
she lived, both had a fever and she was worried that she had caught the virus
and might “transmit something to grandma.” Fortunately, “grandma” had not
been infected but the episode showed the complexity of the new condition in
which Marilene’s mother found herself. Her long-desired return to the apart-
ment and stay there was only possible with the hiring of a maid, an activity
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

itself sustained by class relations that enabled employment of a worker who,


even in the pandemic context, remained available for work outside her own
home. In the pandemic setting and in the view of the family, this movement,
which aimed to prevent the worsening of her “depression,” accentuated the
public control over the “elderly” person at the same time as it required expand-
ing her relations of conviviality. This obligation, in turn, entailed an increased
risk of becoming infected, falling sick and even dying.
However, we cannot lose sight of the extent to which this episode reveals
the class inequalities made visible by the pandemic and their intersections in
terms of the gendering of care relations, manifestly female: as we noted, the
domestic worker was the only person from this family network who, while fol-
lowing the social isolation guidelines, was available to work outside her home
(Hirata & Guimarães, 2012; Hirata, 2014), thus making her more exposed to the
danger of infection by the virus. At the same time, it manifests an important
characteristic of care relations, namely their complexity, the interpenetration
of the public and private spheres, and the political dimension, insofar as work,
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

851

gender, race, age and class relations all operated in this ordinary domestic space
of Pedro and Marilene’s house and the home of Marilene’s mother, engendering
a series of new practices that produce houses as care infrastructures.
On the other hand, the dynamics between the ordinary and the extraor-
dinary also become evident. In the extraordinary time of the pandemic, the or-
dinary care relations continued to occur within the fabric of the already natural-
ized asymmetries of class, race and gender. Saying that care relations continued
to unfold in the extraordinary time does not mean, though, that there were no
modifications in the type or intensity of the tasks of maintaining life and well-
being. Marilene, for example, who describes herself as a highly organised person
with a “mania for cleaning,” refers to the intensified precautions taken with
everything entering from outside: the cleaning with water, soap, alcohol and in
some cases Qboa (bleach) of everything coming into the home, including the
soles of people’s footwear and the tyres of the car parked in a garage partially
integrated into the house, became a rule applied from the outset of the pan-
demic. Marilene emphasizes that everything put in the refrigerator – from the
plastic bread wrapper to each of the eggs removed from their packaging – is
carefully hygienized. She also tells us in detail about cleaning the house, done
by herself and Pedro, who she considers her partner in these activities.
The care taken with the production of the house is just one aspect of
the infrastructure of domestic care made evident by the pandemic. While her
mother was staying in their home, Marilene says that “the precautions were
redoubled.” This meant reducing the mobility of Daniel who could not go to the
gym to exercise, an activity that, he declared, was essential to his mental health.
Moving back to his parents’ house, the son brought, along with “a fully-equipped
apartment,” a number of pets: four rats and four tarantulas. Thus, Marilene’s
precautions in relation to her son and the pet animals also transformed the
culinary routine of the house. Marilene has to “make different meals” for Dan-
iel who does not eat red meat. As she herself describes: “I put a chicken [in the
oven];” “I make him… meat balls, or a stew, or gnocchi [using soy protein];” “I
go to the supermarket and make sure to buy a chicken sausage.” As can be per-
ceived through the verbs used, highlighted by us in italics, this care added a
series of activities to her already busy life. As well as preparing meals for her
son, Marilene also prepares the food for the rats, which she leaves in separate
pots for her son or husband to feed them.
The house itself also needed to pass through a series of dis-organisations
and re-organisations of its domestic spaces and times, as can be noted in the
following account:

So, I had to organise the guest bedroom for him and more of his stuff arrived. It
caused quite a stir, then, because I had to put things that had been carefully sto-
red there, I had to put them in my suitcase (…). So, it messed things up a bit, you
know? From time to time I become lost, as Pedro says: ‘how can you not know the
whereabouts of stuff in your own house?’ but no, with the move, these two people
arriving in the house, things changed a bit, you know?
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

852

In this dialogue, it is worth highlighting how much the husband’s ques-


tion (marked in bold) reveals the prominence of gender differences surrounding
an issue that would appear to affect everyone in the house. As already shown
in the previous comments on the meal routine, however, the actions (also high-
lighted in bold) are executed by Marilene who, despite reorganising things “that
had been carefully stored,” still became “lost” in the house. Responsibility for
the latter is explicitly attributed to her by her husband. It did not go unnoticed
by the researchers that Pedro’s remarks were not made as a recognition of the
work of reorganisation made by her, but as a complaint, like one made by a
client to a manager who has failed to carry out her responsibilities adequately.
In making this observation, we have no wish to imply that Pedro does
not assume any domestic responsibilities. All the interviews contain numerous
references to his participation in the tasks of cleaning, hygienizing and main-
taining the house. For example, he is the one who cleans the tyres of the car
kept in the garage partially integrated with the house (mentioned in Marilene’s
interview); climbs up onto the roof, while Daniel holds the ladder, to make
repairs (mentioned by Daniel); and cleans the rat cage (in the interview with
Marilene and Pedro); as well as helping to clean the home. As Marilene says:
“he’s a real partner when it comes to helping me.” But the very idea of “help”
also signifies female protagonism in the care infrastructure created in this
household, which may be related to broader feminist reflections that call at-
tention to the gendering of unremunerated care work performed in the private
sphere, overlooked in the capitalist system of production (Diniz, 2012; Hirata
& Guimarães, 2012; Hirata, 2014; Thelen, 2015).
The idea of infrastructure that we adopt here takes as a reference point
the work of Susan Star (1999), who emphasizes the relational nature of infra-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

structures, which come into existence via the different modes through which
we relate to them. The author undertook research in contexts very different
from the domestic. Nevertheless, anthropological studies, including the work
of Danholt & Langstrup (2012), Langstrup (2013) and Fietz (2020), have sug-
gested the pertinence of the referential framework of infrastructure for the
study of care. Danholt and Langstrup (2012) conceive care infrastructures as:
“the more or less embedded ‘tracks’ on which care may ‘run,’ shaping and being
shaped by actors and settings along the way” (Danholt & Langstrup, 2012: 515).
This definition accentuates both the relationality of infrastructures and their
processual character, which, as highlighted by Gupta’s examples (2018) too,
manifest the extent to which infrastructures are not static objects but pro-
cesses that require constant work, as in making and remaking the homes of
Marilene and Pedro, Daniel and Marilene’s mother.
Among the properties of the infrastructures identifiable in the domestic
context is their embeddedness: in other words, the infrastructure is interpen-
etrated by other structures, social arrangements and technologies, such that
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

853

its coordinated parts are not perceptible separately. In the case of this family,
for example, the care that Marilene dispenses to her mother and to preparing
the feed for her son’s rats are not perceived as coordinated components of the
domestic infrastructure. They exist immersed in the social assemblage in which
she performs the specific gender role of mother.
Another property of infrastructures, according to Star (1999), is their
transparency: in other words, their presence is invisible in the support pro-
vided to specific tasks. In our study, this becomes clearly evident in the way in
which Marilene’s mother and son were accommodated in the household. It was
unnecessary to reinvent or assemble the house and the relations sustaining it
due to the particularity of the event since the couple and their home comprised
an invisible infrastructure that also integrated the extraordinary event into the
ordinariness of the quotidian tasks and dynamics. Furthermore, infrastructures
are naturalized by those participating in them; they are spatially and tempo-
rally encompassing; they are linked to conventions; they are constructed on an
already installed base, thereby inheriting both its strong points and its limita-
tions; and they only become visible when they fail.
It is the fact that infrastructures bear these properties – of being embed-
ded, transparent, naturalized, encompassing, reproducing conventional rela-
tions, and only becoming visible when they fail – that the task of analysing
them poses a major challenge. It is an essential task, though, the only one
compatible with Das’s proposal, taken up by us here, of revealing the detailed
work involved in making the everyday. It is through analysis of the latter that
we can understand the perception of the collaborators in this research that
“almost nothing changed.” The “extraordinariness” of the pandemic is a time/
space that co-exists in the ordinariness of the infrastructure, the interrelations
that sustain it, and the forms of life that populate it. These are interrelations
that, as we discuss below, are not grounded in an ethics contained in manuals
or in abstract moral principles, in part because, as Sandra Laugier (2016: 222)
suggests, “These contexts of extraordinary and ordinary life are governed by
relations that cannot be made even perceptible or visible through the orthodox
concepts of ethics (justice, impartiality, catalogue of duties, rational choice
etc.).” They are everyday care experiences guides by an ordinary ethics in the
space where lives become mutually entangled.

Life lived with other people: care relations and ordinary ethics
Through the narratives of Marilene, Pedro and Daniel, we were able to visualise
and comprehend a series of relations that have sustained the care infrastructure
during this “extraordinary” time. In this section, we wish to focus on two spe-
cific relations: Marilene’s relation with the school where she works, including
the students and their families, where the connection between ordinary ethics
and care becomes evident; and the relation between Daniel and his grand-
mother, where the tension between care and control comes to the fore.
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

854

Marilene, the school and children: teaching at a distance, affect and voice
Marilene has been a primary school teacher for 37 years. She explained to us
that she is retired but continues to work 20 hours a week because the school-
work brings her such satisfaction. She likes how children run to hug her when
they catch sight of her on the other side of the street. She describes the school
environment as pleasant and fun, emphasizing the day-to-day interactions
with work colleagues, the birthday celebrations and the various festivities held
throughout the year. These are the activities that she has most missed, she
says, since classes began to be taught remotely due to the pandemic. We turn
to her own narrative about how the work has unfolded since then:

Before I worked 20 [hours a week[. But with the pandemic, I’m working 40, be-
cause the work has doubled, you know?! So, assisting the children all happens
online, it’s very, like… you have to be there the whole time helping them, although
we send activities. Usually, I send an activity for them in the morning, because
some parents work in the afternoon, so, I like to do activities with the children,
help them in the morning. Others prefer the afternoon. So around eight, eight-
-thirty, I’m already sending an activity, I’m already on the computer. Then some
already reply to me around nine, nine and a bit, while others leave it until the
afternoon. So, I mean, I’m busy all day, you know!? Because I used to work in the
afternoon only, from one to five. Now, though, I work in the morning from eight
– not counting the numerous live streams, lots of conferences, which we have to
watch, which is demanded of us, right?! Partly because we too have to learn, you
have to keep uptodate. So that’s how it is, I spend all my time on the computer
and later, there’s no set time, right, because, given they are small children, they
frequently call you or want to contact you, more to hear your voice. It’s clear that
they are very needy of attention. Also, there are parents who work too and sin-
ce we want, you know, we don’t want to lose students, we sometimes reply to
parents at ten o’clock at night. You’re answering a parent, who has some doubt,
they’ve arrived from work, they had been unable to check the activity with the
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

child during the day, whether the child had some doubts, they didn’t want to
ask, nor the parent. So sometimes it’s ten o’clock at night and I’m still on the
computer, answer ing and marking work, it’s hard work, the situation is hard
work. But okay… and the children, me too, weekly I hold a virtual meeting with
them, you know?! Some of them have parents who work… sometimes, they only
have one mobile phone and the parents need to take the mobile with them, so
the child has no [internet] access, you feel sorr y for them… So, what do I do?
Sometimes, I hold a virtual meeting with two children and I hold one with a
g roup in the after noon and somet imes I hold [a meet ing] w ith t wo children
around eight in the evening, to work on what I’d been teaching earlier, you know,
because I’m not going to leave them out. So, when the parent arrives with the
mobile, allowing them to enter into contact. So, then, the situation is hard work,
but it’s okay, it’s fine.

Through the account of her workday, it becomes clear why Marilene


considers “the situation is hard work” (a coisa tá puxada), since she is busy from
morning to evening, not just with the formal demands of teaching, issuing the
children tasks to complete, and keeping herself uptodate – all requirements set
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

855

by the school. She is also concerned with accommodating the different dynam-
ics, conditions and needs of her students and their families. Our attention is
drawn to the passages where she talks about the students wanting to “contact”
her. The narrative reveals an ethics that is not limited to an evaluation of the
good separate from ordinary practices but rather an ordinary ethics impossible
to be captured in a manual since it is more like a “spirit that infuses everyday
life” (Das, 2020b: 98).
The expressions of Marilene highlighted above are especially revealing
of an ethics that runs hand-in-hand with the work of care. As Laugier (2015)
suggests, this requires a reorientation towards vulnerability, a change from the
“just” to the “important.” Vulnerability here is conceived as a common feature
of the human form of life, which needs to be involved in care relations to survive.
Thus, there is nothing more ordinary than vulnerability – or as Laugier suggests,
it is vulnerability that defines the ordinary. In this sense, care can be conceived
as the protection of a form of life, especially in contexts where the everyday is
being destroyed.
Children, a form of life performed as “vulnerable” and “dependent,” are a
valorised life that “should not be left out,” being actively preserved through and
in relations of care. In actions guided by an ordinary ethics, the teacher Marilene
feels “sorry” for them and makes every effort to “not leave anyone out.” We
found particularly significant the passage in which she remarks that her stu-
dents frequently phone her to “hear the voice” of their teacher. It also seems
plausible that it may be precisely the opposite too: namely, the children call to
have their own voices heard.

Daniel and his grandmother: the tension between voice and silencing
From the beginning of the pandemic, Daniel displayed a great concern for his
grandmother. He was the one who warned his parents about the precautions
that needed to be taken and believes that this is what prompted his grand-
mother’s transfer to his parents’ house. At different moments of the interview,
he demonstrated his annoyance over his grandmother’s perceived “stubborn-
ness,” reflected not only in her behaviour prior to the pandemic but also in the
resistance that she displays to medications and to “caring for herself.” Marilene,
at a certain point in her interview, repeated Daniel’s interpretation of the rea-
son for his “grandma’s” resistance:

we explained, explained to mother, but I don’t know, perhaps because she’s at a


senile age, it seems that mother doesn’t understand. My son teases: ‘if it was a
stampede of elephants coming, grandma would see, she would see it was dan-
gerous; now, because it’s the virus, something she cannot see, grandma doesn’t
understand.’ So we always put this to her.

Daniel, reproducing conversations with his family, explained that he had


tried to use reason to explain the situation to his grandmother:
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

856

and she said ‘no, but for me bla-bla-bla’ and mother said ‘it’s no use discussing
it.’ You know when you want the best for someone but they have their own set
ideas? But there was no real conf lict, becoming annoyed, in the end we even see
the funny side…

Though no “real conflict” occurred, he mentions that, despite recogniz-


ing that his grandmother really wanted to return to her own apartment after
almost five months in her daughter’s house, he was opposed to the idea when
his parents finally granted her wish. In his view, his grandmother “plays a
psychological game” because she had been “very pampered by my grandfather,
somewhat dondoca, not in terms of possessions, but in terms of being spoilt by
my grandfather and by everyone else in the family. And now she’s alone, with-
out grandpa, she misses him and does things to call attention…” In the con-
versations with Marilene, for whom, according to him, being concerned and
providing care “is part of her nature,” she advises that: “sometimes you have
to give a reality check to grandmother, you have to take out the dummy and
let the baby cry a little to calm down.”
Analysing the interviews as a whole, we can note the extent to which
the voices of some members of the family compose the dialogues of the others.
Indeed, the grandmother makes her voice present through dialogues repeated
in all the interviews. But her voice normally appears accompanied by expres-
sions that attest to her senility, accentuating her vulnerability. Even though
both Daniel and his grandmother had gone to live with Marilene and Pedro in
the pandemic, as they unfold the narratives on the family dynamics suggest
an unequal distribution of vulnerabilities (Butler, 2019) with the grandmother
more susceptible to care strategies. The grandmother is thus generally depict-
ed as someone with a limited capacity for comprehension and as a child who
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

uses emotional strategies to get what she wants. It is impossible to tell wheth-
er this negative perception of her already existed previously, but it can be de-
duced that the pandemic context impacted the perception of old age in gen-
eral, casting a specific kind of light on older people. As we discuss in the next
section, the public language games constituted during the pandemic have shaped
“the elderly person” as a form of life with childish characteristics and a reduced
intellectual capacity, someone who needs to be guided along the right path
and/or controlled (Schuch, Víctora & Siqueira, 2021).
Given this fact, one line of interpretation would be to compare the forms
of life of the “child” and the “elderly person,” which – despite being attributed
with similar traits, such as a limited capacity for comprehension, “neediness”
and “stubbornness” – are treated differently. The children in Marilene’s story
suffer from being “very needy,” worthy of “pity,” which authorizes them to call
her at any hour to hear their teacher’s voice or for their voice to be heard by
her. The “elderly woman,” in Daniel’s case, is depicted as someone who en-
gages in a “psychological game” and, despite having her voice reproduced in
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

857

the family narratives, a permanent attempt is made to silence her, whether in


the configuration of her senility – explicit in the tensions generated by the
return to her own apartment – or in the refusal to allow her to be interviewed
for this study. In one case, ordinary ethics appears to be present, in the other, it
appears to be absent.
But taking such an approach would mean reifying dichotomies long since
deconstructed and reducing the complexity of the notions of ordinary ethics and
care alike. To encapsulate ordinary ethics and care in the presence/absence di-
chotomy would be to reduce ordinary ethics to an “ethics of actions that can be
isolated and judged,” the opposite of Das’s proposal. It would be a failure to
perceive care as an open, unstabilized process, composed of continuous and
complex interactions and interventions (Mol, 2008; Kittay, 1999), marked by
power dynamics that are themselves malleable (Biehl & Locke, 2017). In line
with Biehl, we highlight the shifting terrain on which care is developed, where
practices aimed at achieving “the good” are intimately linked to the possibility
of “negligence” and the “bad” (Biehl, 2012: 248). Furthermore, it would be to
attempt to define an end to a history that is still unfolding, just so that it might
be concluded within the parameters of an article.
We have opted, therefore, to pursue another direction and comprehend
Daniel’s actions through Das’s proposal to avoid encapsulating histories and
to think about relations through an ethics of living life with other people, an
ethics of being together (Das, 2015b). In a particularly inspiring passage, the author
elaborates on an insight made by Michael D. Jackson concerning the life lived
with other people:

A life with the other, as Michael Jackson (1998 ) notes, consists of a myriad of
minor moments of shared happiness and sympathetic sorrow, of affection and
disaffection, of coming together and moving apart, so that what emerges is far
from a synthesis to which one can assign a name or pin down as something one
can know (Das, 2018: 541).

What we wish to convey through this idea is that Daniel’s small acts of
warning his parents about the risks “for the elderly” who “if they catch it, die,”
as well as staying in the guest bedroom so as not to dislodge his grandmother
and avoiding trips to the gym while living in the same house as her, while si-
multaneously trying numerous times to explain the situation to his grand-
mother, who “seems like she doesn’t understand,” is less a deliberate attempt
to disqualify the “elderly” and more a simple expression of “living life with the
other” – as “a myriad of minor moments” to which one cannot assign a name
or define something one can know.
Trying to comprehend these dynamics of “living life with the other” is
also to pay attention to an unstabilized history, a history of transformations
not susceptible to major totalizations or polarizations (Biehl & Locke, 2017) –
such as, for instance, the contrast between care and control – maintaining our
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

858

focus on the tensions inevitably involved in the small ordinary ethical decisions
that become juxtaposed in the open temporalities of situated cartographies,
inhabited by people in their relations of interdependence lived in equally trans-
formable worlds.

Elderly and Old: language games in the pandemic


Avoiding the foreclosure of complex histories in fixed binarisms also means
working through the tensions inhabiting the relations between ordinary and
extraordinary. In our research, one of these tensions was concentrated pre-
cisely in the configuration of the “elderly” as a preferential “risk group” for
contagion and the complex and simultaneous dynamics of care and control
resulting from this configuration. This perception of risk initially reached us
in an ethnographic form through Daniel’s narrative, when he stressed the
greater susceptibility of elderly people to dying from covid-19 and justified the
importance of the family taking preventative measures in relation to his grand-
mother, who had been living alone prior to the pandemic.
On the other hand, the emphasis on elderly people was strongly present
through various public language games, explicit in interviews with specialists
in biomedical areas who debated the number of people affected by the disease
and explained the greater vulnerability of the elderly population, but also found
in a proliferation of memes that pervaded the social networks. These memes
associated the “elderly” (idosos) with childish and infantilizing images, empha-
sizing their “stubbornness” and their incapacity to take decisions relating to
their life and health (Beltrão, 2020; Debert & Félix, 2020; Dourado, 2020; Schuch,
Víctora & Siqueira, 2021).
In our view, the popular images of the cata veio, “old people catcher” – and
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

others that draw a parallel with the carrocinhas de cachorro, dog impounder trucks,
to be used to abduct idosos who might wander into the street – work to construct
a dependent form of life (the veio, “old codger”) that requires the same type of
control as animals or children, supposedly without consciousness or control
of their actions. This lack of control is seen to justify the violence expressed by
the image of the containment pens and the slipper used to punish supposed
disobediences. These humorous memes, jokes and videos are not, as some might
suggest, ways of coping with the difficulties imposed by the pandemic through
humour – “laughing so as not to cry.” On the contrary, they compose a politics
of moral constraint that works in conjunction with policies regulating and re-
stricting behaviour aimed specifically at the elderly population (Schuch, Víctora
& Siqueira, 2021).
We should stress that we are not claiming that a widespread consensus
exists surrounding this concept, or object, of the idoso in the performance of the
veio. Our purpose here is to show how the very disputes and tensions that emerge
around the term contribute to shaping a form of life entangled in what we could
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

859

call pandemic language games. Here is seems appropriate to recover two aspects
of Cavell’s thought highlighted by Das (2020b), which we shall discuss briefly
given their relevance to the ethnographic case explored in this article. The first
is that there are two dimensions to forms of life, one horizontal (or ethnological)
and the other vertical (or biological). The second is that forms of life contain
within themselves forms of death.
Referring to these two dimensions, Cavell suggests that in the horizontal
direction – with an emphasis on form – one can grasp the notion of human di-
versity, in other words, the ways in which forms of life vary among different so-
cieties (as an example, he refers to institutions like marriage and inheritance as
socially variable forms of life). In the vertical direction – with an emphasis on life
– we encounter linguistic distinctions between “superior” and “inferior” forms of
life (his examples are picking at food with a fork or grabbing and pecking it with
claws or beaks). In other words, it is in the vertical dimension of forms of life
that “marks the limit of what is considered human in a society and provides the
conditions of the use of criteria as applied to others” (Das, 2020b: 41).
Albeit while running the risk of eroding the meaning attributed to the
two dimensions by Cavell, it seemed to us productive to reflect on the construc-
tion of idosos (the elderly) as a form of life in the context of the pandemic in these
two senses. In the horizontal dimension, with its emphasis on form, its meaning
and importance have proven variable and disputed in different times and spac-
es. Among other forms, idosos may be respected as wise elders or as guardians
of a people’s memory, or they may be incorporated as essentially vulnerable and
fragile, deserving of care. In the vertical dimension, which hierarchizes the lives
of forms of life, we can perceive two languages disputing with one another: one
relating to the autonomy and independence constructed, for instance, in the
policy of active aging in which “superior” lives are situated. 6 This language pro-
vides the criteria that will be applied to other “inferior” forms of life, such as, for
example, the form to which the veios (oldies) pertain in the pandemic language
games. The veios are dependent forms of life, with childish and “stubborn” char-
acteristics, devoid of rationally and, therefore, similar to animals to be kept in
“cages” or taken away by the “dog truck.”
Given this, the second aspect raised by Cavell and Das (2020b) is extreme-
ly pertinent, namely that forms of life contain within themselves forms of death
that are produced in everyday life itself. More precisely, because forms of life and
forms of death are engulfed in one another, we need to pay attention to the dis-
putes and tensions between the consensuses on forms of life, which are much
more unstable and complicated than they may first appear.

Final Considerations
In this article we argue that the pandemic caused by the new coronavirus is
constituted as an extraordinary time in which ordinary life is nourished through
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

860

work and relations shaped as care practices that sustain life. These care prac-
tices, as part of the ordinariness of the domestic, are, like the latter, invisible
and most of the time pass unnoticed. As Laugier (2016: 208) emphasizes, to
comprehend the importance of care, it is essential, above all, to recognise the
vulnerability of forms of life. It is through their analysis that we can understand
the perception of the collaborators of this research that “almost nothing
changed.” Here the “extraordinary” of the pandemic emerges as a time/space
that coexists in the ordinariness of the infrastructure and interrelations that
sustain it and the forms of life that populate it.
This in mind, we can probe our research question in more depth and ask
not only about the alterations provoked by the pandemic but also how much
and in what ways the pandemic and – as Das (2015b: 114) puts it – “living with
the fragility, vulnerability, joys, and sorrows that everyday life entails might
reveal the contours of our ethical lives”.
Through the analysis of the narratives of a white middle-class family
living in southern Brazil, based around the everyday life of their family relations
during the covid-19 pandemic, we have seen how the pandemic allowed three
different generations to live together, producing the reorganisation of a quotid-
ian based on a “life lived with others” between Marilene, Pedro, Daniel, his
grandmother and the domestic workers, also involving neighbourhood relations,
as well as temporary and contingent arrangements and rearrangements of the
homes as care infrastructures. In the overlapping of such relations, we can
perceive processes of family interdependences and neighbourhood relations
that are forms of support in which the subjects develop and negotiate their
capacities to continue, repair and live the world in the best form possible.
Marilene’s perception that “the situation is hard work, but it’s okay, it’s
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

fine” reveals the house as a care infrastructure and shows how these care rela-
tions are gendered, while simultaneously revealing the entanglement between
the extraordinary of the pandemic and the ordinary of everyday life, which
remakes itself continuously, incorporating the event into the reproduction of
the quotidian. As Marilene said: “The situation is hard work” in terms of the
care needed with the production of the house, since the latter was made and
remade following the arrival of her elderly mother, the son with his “fully-
equipped apartment” – including rats and tarantulas – as well as the increase
in her work as a teacher of primary school children, conducted online via com-
puter and mobile phone. To the extent that these care infrastructures are trans-
parent, naturalized and encompassing, they reproduce conventional relations
such as the gendering of care work – constant work that is perceived as “okay,”
“fine,” naturalizing a perception that, despite being “hard work” during the pan-
demic, this new context “changed almost nothing” in terms of day-to-day life.
Approaching care as a practical activity sensitive to the details of eve-
ryday life, we underline the pertinence of the notion of an ordinary ethics devel-
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

861

oped by Veena Das, based not on universal principles or moral values but setting
out from the real experiences and problems of people in their everyday life. By
including these dimensions in our comprehension of the dynamics present in
the family narratives, we can perceive the invisible and invisibilized work of
maintaining ordinary life and how the focus on three generations living to-
gether in the same home, one of the temporary strategies used by the family
in the setting of the health emergency provoked by the pandemic, was able to
reveal the entanglements between the ordinary and the extraordinary. At the
same time, these relations made visible broader aspects surrounding differen-
tiations of gender, age, race and class that traversed care relations, while also
allowing us to comprehend how such relations developed in the domestic en-
vironment are active devices in which forms of life are constituted. Inspired by
Veena Das’s ideas, we argue for the connection between ordinary ethics and forms
of life, emphasizing how domestic space is not just a fundamental care structure
in the Brazilian scenario of social and political vulnerability, but also an active
element in which forms of life acquire form and life.

Received on 10-Feb-2021 | Revised on 08-Apr-2021 | Approved on 04-May-2021


“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

862

Ceres Víctora is Full Professor in the Department of Anthropology and


the the Graduate Program in Social Anthropology at the Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) and coordinator of the Núcleo de Pesquisas em
Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs). She holds an undergraduate
degree in Social Sciences, a master’s degree in Social Anthropology at UFRGS,
a doctorate in Anthropology from Brunel University and post-doctoral
studies at Johns Hopkins University and Georgetown University. She is part
of the Rede Covid-19 Humanidades MCTI. She has experience in the area of
health anthropology, working mainly on the following themes: body, gender,
health, emotions, social suffering and research ethics. Her most recent
publications are: "Os sentimentos na agenda da Antropologia" and, in
collaboration, “A Covid 19 e suas múltiplas pandemias” and “Cuidado e
controle na gestão da velhice em tempos de Covid-19”.

Patrice Schuch is Associate Professor in the Department of


Anthropology and the Graduate Program in Social Anthropology at the
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). She holds an
undergraduate degree in Social Sciences, a master's degree and a doctorate
in Social Anthropology at UFRGS. She is a member of the Rede Covid-19
Humanidades MCTI. Her areas of interest include the study of the
relationship between human rights, technologies of government, moralities
and subjectivities, having done research in the field of childhood and youth,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

street population, disability, and aging. She has published “Práticas de


justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude pós ECA”
and, in collaboration, “A Covid 19 e suas múltiplas pandemias” and “Cuidado
e controle na gestão da velhice em tempos de Covid-19”.

Monalisa Dias de Siqueira is a post-doctoral researcher in the


Graduate Program in Social Anthropology at the Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) and Professor in the Department of Collective Health
and in the Graduate Program in Social Sciences at the Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). Santa Maria (UFSM). She is a member of the Rede
Covid-19 Humanidades MCTI. She has research experience on the following
themes: aging, body, health, gender and emotions.: aging, body, health,
gender and emotions. She published in collaboration “O corpo no espaço
público: emoções e processos reivindicatórios no contexto da ‘Tragédia de
Santa Maria’”, “Cuidado e controle na gestão da velhice em tempos de
Covid-19” and “Na sequência da tragédia:
sofrimento e a vida após o incêndio da Boate Kiss”.
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

863

notes
1 This work results from the project “Covid-19 in Brazil:
analysis and response to the social impacts of the pan-
demic among health professionals and the isolated popu-
lation” (Ag reement Ref.: 0464 /20 Finep /UFRGS). The re-
search is developed by the Covid-19 MCTI Humanities
Network and forms part of the set of actions of the MCTI
Virus Network financed by the Ministry of Science, Tech-
nology and Innovations (MCTI) to confront the pandemic.
The research with senior citizens is being conducted by
a broader team of researchers who we thank for their col-
laboration: Caroline Sarmento, Cauê Machado, Fernanda
Rifiotis, Lauren Rodrigues, Mariana Picolotto, Pamela Ri-
beiro, Roberta Ballejo and Taciane Jeske.
2 On this topic, see Beltrão (2020), Dourado (2020), Debert
& Félix (2020) and Schuch, Víctora & Siqueira (2021).
3 As the literature on care highlights and our article helps
elucidate, care relations are politically situated and, in
this sense, marked by class, gender, race and ableism. In
Brazil, the importance of the house as a care infrastruc-
ture and its class, gender and race/colour differentiations
have been foregrounded by a recent anthropological lite-
rature, with which we dialog ue here, emphasizing the
situationality of the forms in which care appears here in
the context of this white middle-class family from sou-
thern Brazil. In terms of the dynamics of care among po-
pular (low-income) groups, the field of studies on disabi-
lities has been proven a fertile source of insights. See,
among other examples, the work of the researchers Aydos
& Fietz, 2017; Fietz, 2017, 2020; Fonseca & Fietz, 2018; and
Engel, 2013, 2017.
4 Another methodological reference here is the research of
Fleischer, Lima and collaborators, who accompanied fa-
milies with children with microcephaly caused by the
Zika virus through half-yearly contacts over a four-year
period (Fleischer & Lima, 2020).
5 Porto Aleg re, the capital of Rio Grande do Sul, Brazil’s
southernmost state.
6 “Active aging” argues for the responsibility of older peo-
ple to remain active and healthy for as long as possible,
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

864

as well as participating in community life, assuming the


commitment to guarantee their rights and taking on the
role of protagonists in the exercise of citizenship. The
active ag ing proposal expands the concept of “health
aging” already developed by the United Nations, based on
the recognition of the human rights of old people and on
the principles of independence, participation, dignity, as-
sistance and self-realization (WHO, 2005).

References

Aydos, Valéria & Fietz, Helena. (2017). When citizenship


demands care: the inclusion of people with autism in the
Brazilian labour market. Disability Studies Quarterly, 37/4,
p.1.
Beltrão, Jane Felipe. (2020). Autonomia não se confunde
com teimosia! Discr iminação por idade em tempos de
covid-19. Boletim Cientistas Sociais e o Cornonavírus, 26.
Biehl, João & Locke, Peter. (2017). Introduction. Ethnogra-
phic sensorium. In: Biehl, João & Locke, Peter. Unfinished.
The anthropology of becoming. Durham: Duke University
Press, p. 1-38.
Biehl, João. (2012) Care and disregard. In: Fassin, Didier
(ed). A companion to moral anthropology. Chichester: Willey
Blackwell, p. 242-263.
Biehl, João & Petryna, Adriana (eds.). (2013). When people
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

come first: critical studies in global health. Princeton: Prin-


ceton University Press.
Butler, Judith. (2019). Vida precária: os poderes do luto e da
violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica.
Cavell, Stanley. (1999) [1979]. The claim of the reason. Witt-
genstein, skepticim, morality, and tragedy. Oxford: Oxford
University Press.
Danholt, Peter & Langstrup, Henriette. (2012). Medication
as infrastructure: decentering self-care. Culture Unbound,
4, p. 513-532.
Das, Veena. (2020a). Facing Covid-10: my land of neither
hope nor despair. American Ethnological Society, 1 [S.I.].
Das, Veena. (2020b). Textures of the ordinary (Thinking from
elsewhere). New York: Fordham University Press. Fordham
University Press. Kindle Edition.
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

865

Das, Veena. (2018). Ethics, self-knowledge, and life taken


as a whole. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 8/3, p. 537-
549.
Das, Veena.(2015a). Aff liction – health, disease, poverty. New
York: Fordham University Press.
Das, Veena. (2015b). What does ordinary ethics look like?
In: Lambek, Michael et al. Four lectures on ethics (Master-
class). HAU. Kindle Edition.
Debert, Guita Grin & Félix, Jorge. (2020). Dilema ético, os
idosos e a metáfora da guerra. Folha de S. Paulo, Tendên-
cias e Debates.
DiFruscia, Kim Turcot. (2010). Listening to voices. An in-
terview with Veena Das. Altérités, 7/1, p.136-145.
Diniz, Débora. (2012). O que é deficiência? São Paulo: Bra-
siliense.
Dourado, Simone Pereira da Costa. (2020). Como pensar
a velhice em tempos de coronavírus. Boletim Cientistas
Sociais e o Coronavírus, 49.
Engel, Cíntia. (2017) Doença de Alzheimer: o cuidado co-
mo potencial partilha de sofrimento. Estudos Interdiscipli-
nares sobre Envelhecimento, 22/3, p. 9-27.
Engel, Cíntia. (2013). Doença de Alzheimer e cuidado familiar.
Dissertação (Mestrado). Departamento de Sociologia/Uni-
versidade de Brasília.
Fietz, Helena de Moura. (2020 ). Construindo
futuros,provocando o presente. Cuidado familiar, mora-
dias assistidas e temporalidades na gestão cotidiana da
deficiência intelectual no Brasil. Tese (Doutorado). PPGAS/
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Fietz, Helena Moura. (2017). Deficiência, cuidado e depen-
dência: ref lexões sobre redes de cuidado em uma família
em contexto de pobreza urbana. Teoria e Cultura, 11/3, p.
101-113.
Fleischer, Soraya & Lima, Flávia (eds.). (2020). Micro. Con-
tribuições da Antropologia. Brasília: Editora Athalaia.
Fonseca, Claudia & Fietz, Helena. (2018 ). Collectives of
care in the relations surrounding people with “head trou-
bles”: family, community and gender in a working-class
neighbourhood of southern Brazil. Sociologia e Antropologia,
8/1, p. 223-243.
“almost nothing has changed”: ordinary ethics and forms of life in pandemic times

866

Gupta, Akhil. (2018). The future of ruins: thoughts on the


temporality of infrastructure. In: Anand, Nikhil; Gupta,
Akhil & Appel, Hannah (eds.). The promise of infrastructure.
Durham/London: Duke University Press, p. 62-79.
Hirata, Helena. (2014). Gênero, classe e raça: interseccio-
nalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tem-
po Social, 26/1, p. 61-73.
Hirata, Helena & Guimarães, Nadya Araújo (eds.). (2012).
Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São
Paulo: Atlas.
Kittay, Eva Feder. (1999). Love’s labor: essays on women,
equality and dependency. New York: Routledge.
Langstrup, Henriette. (2013). Chronic care infrastructure
and the home. Sociology of Health & Illness, 35/7, p. 1008-
1022.
Laugier, Sandra. (2016). Politics of vulnerability and res-
ponsibility for ordinar y others. Critical Horizons, 17/2, p.
207-223.
Laugier, Sandra. (2015). The ethics of care as a politics of
the ordinary. New Literary History, 46, p. 217-240.
Mol, Annemar ie. (2008 ). The logic of care: health and the
problem of patient choice. New York: Routledge.
Star, Susan. (1999). The ethnog raphy of infrastructure.
American Behavioral Scientist, 43/3, p. 377-391.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 843 – 867 , sep. – dec., 2021

Schuch, Patrice; Víctora, Ceres & Siqueira, Monalisa Dias


de. (2021). Cuidado e controle na gestão da velhice em
tempos de Covid 19. In: Matta, G.C. et al. (eds.). Os impac-
tos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas
e respostas à pandemia [online]. Rio de Janeiro: Observató-
rio Covid 19 /Ficruz, p. 149-157.
Thelen, Tatjana. (2015). Care as social organization. Crea-
ting, maintaining and dissolving signif icant relations.
Anthropological Theory, 15/4, p. 491-515.
Tronto, Joan C. (2015). Who cares? How to reshape a demo-
cratic politics. Ithaca/London: Cornell University Press.
WHO. World Health Organization (2005). Envelhecimento
ativo: uma política de saúde. Brasília: World Health Organi-
zation (Organização Pan-Americana da Saúde).
article | ceres víctora, patrice schuch  e monalisa dias de siqueira 

867

“Não mudou quase nada”: ética ordinária e


formas de vida em tempos pandêmicos
Palavras-chave Resumo
Cuidado; Neste artigo refletimos sobre o cotidiano de uma família
ética ordinária; branca de classe média moradora no sul do Brasil durante
formas de vida; a pandemia de Covid-19. Considerando o cuidado uma ati-
pandemia de covid-19; vidade prática sensível aos detalhes do cotidiano, desta-
idosos. camos a relevância da noção de ética ordinária desenvol-
vida por Veena Das. Pelas narrativas dos membros dessa
família percebemos o trabalho invisível e invisibilizado de
manutenção da vida ordinária e os entrelaçamentos entre
o ordinário e o extraordinário nas relações de três gerações
na mesma casa. Por fim, argumentamos a conexão entre a
ética ordinária e as formas de vida, ressaltando que o es-
paço doméstico, além de estrutura fundamental de cuida-
do no cenário brasileiro de vulnerabilidade social e políti-
ca, é também um ativo elemento em que formas de vida
ganham forma e ganham vida.

“Almost nothing has changed”: ordinary


ethics and forms of life in pandemic times
Keywords Abstract
Care; In this article, we reflect on the daily life of a white middle-
ordinary ethics; class family living in southern Brazil during the Covid-19
forms of life; pandemic. Approaching care as a practical activity sensitive
covid-19 pandemic; to the details of everyday life, we emphasize the relevance
the elderly. of the notion of ordinary ethics developed by Veena Das.
Through the narratives of members of this family, it is pos-
sible to see the invisible and invisiblized work necessary to
maintain ordinary life and the weaving together of the ordi-
nary and the extraordinary revealed in the relationship of
three generations in the same house. Finally, we argue for
the fundamental connection between ordinary ethics and
forms of life, highlighting how the domestic space is not
only a crucial structure of care in the Brazilian scenario of
social and political vulnerability, but is also an active ele-
ment in which forms of life take form and come to life.
868
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v1136

1 Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap),


São Paulo, SP, Brasil
camilapierobon@cebrap.org.br
https://orcid.org/0000-0001-7590-0773

Camila Pierobon I

Family betrayals: the textures of kinship

The hospitalization
Relationships require a repeated attention to
the most ordinary of objects and events (Das, 2007: 6-7)

I begin my reflections with a phone call I received from Leonor in mid-2017.


During our conversation, Leonor narrated to me the “critical moment” 1 (Han,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

2012) she had gone through: dona Carmen, her mother, had been admitted two
days previously into the emergency ward of a public hospital in Rio de Janeiro
city. The diagnosis was pneumonia. At the moment when we talked, she had
spent more than 30 hours standing next to her mother, alternating with a few
hours sat in the hospital’s visitor hall. Aged 84, blind, with no teeth, partially
deaf, with advanced Alzheimer’s, a tumour in the kidneys and difficulties mov-
ing about, dona Carmen required constant daily care and her daughter pro-
vided it with maximum dedication (Pierobon, forthcoming). In 2017 it had been
four years since Leonor brought her mother to live with her in the popular
housing occupation where she lived, making herself the sole provider of the
“caring acts” (Kleinman, 2015) that assured dona Carmen’s life. In her view, her
brothers had abandoned their mother and found it convenient that she performed
this function alone. When dona Carmen developed coughing and a fever, Leonor
sent messages her brothers on her mobile phone, advising them about the state
of their mother’s health. Leonor complained to me that none of them had re-
plied. The lack of any reply from her brothers and dona Carmen’s worsening
family betrayals: the textures of kinship

870

health led Leonor to decide to take her mother to the hospital without telling
them about the admission.
The decision not to inform her brothers had consequences for Leonor.
With one nurse for every 30 patients, it was obvious to the daughter that dona
Carmen would not receive the care necessary for her recovery and that she
would need a full-time companion. But the emergency ward had no space for
companions. This explained why there were no chairs, beds or any other fa-
cilities that could provide some comfort. Sixty years old and suffering various
health problems herself, Leonor was exhausted and told me that she felt she
would never recover from the nights she spent on her feet in the chilly hospi-
tal. Faced with this situation, Leonor lived a moral dilemma that was embedded
in her “ethics of care” (Laugier, 2015). She wanted the presence of her younger
brother, Cleber, to share the care of their mother and to be able to rest; and she
rejected his presence because in everyday life the spectre of the brother left
her feeling uneasy. Cleber, though, was told about the admission and went to
the hospital. Silvio, Leonor’s son and neighbour, had called his uncle and passed
on the information. The reader may ask where Silvio was when his mother and
grandmother needed help. But Leonor and Silvio had fought and not spoken
for days. Leonor threatened to report her son to the police since he had pun-
ished his small daughter, Leonor’s granddaughter, leaving bruises on her leg.
Silvio did not offer to help his mother and she was determined not to ask her
son for help.
But Leonor could not bear any more. When she met up with Cleber, she
convinced him to take her place that night, staying at hospital and caring for
dona Carmen. Leonor left the hospital close to ten o’clock at night. There was
torrential rain. The streetlights had blacked out and no buses were running.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

Without money for a taxi, Leonor walked for 20 minutes to the building where
she lived and walked up the three flights of stairs that led to her home. She
began to feel sharp pains in her bowel. She moved from the toilet to the show-
er and let the hot water fall over her body. Leonor had another two brothers
living in distant cities. While she tried to take a hot shower, they called her
nonstop for news of their mother. In the interval between one phone call and
the next, Leonor received messages on her mobile accusing her of deliberately
not wanting to answer. Leonor narrated to me that when answering the call
from her older brother, she said the following to him:

Have you no humanity? I spent the whole night on my feet and I’m 60 years old.
I spent day and night with back pain and breaking my neck. Do you know what
it is like to sleep breaking your neck? I just want to have a shower in peace, can’t
I even do that? I deserve to stand under a shower.

After venting her frustration, Leonor and her brother talked and she
went to lie down, but the cramp in her legs kept her awake. Just as she was
falling asleep finally, her youngest son, Vitor, arrived from work selling drugs,
article | camila pierobon

871

switched on the light of the one-room home and made something to eat. An-
noyed with the ‘big light’ blinding her, Leonor asked her son if he felt no pity for his
mother, given she had spent two days on her feet in hospital. But he remained
silent, finished making his meal and then switched off the light. To conclude
her story of what had happened, Leonor told me she knew her son did not pity
her, he had no humanity either. She added that this lack of humanity was like a
bomb placed inside her body that would detonate and explode inside her. Leonor
concluded by saying that it was impossible for her siblings and child to have
humanity because her genealogical tree was terrible and horrible. Although she
strove to change this family lineage, she could not keep harbouring the illusion that
apples can grow from banana trees.

Introduction 2
At an initial level, the critical moment (Han, 2012) lived by Leonor appears to
encompass the caring relations that the daughter dedicates to her old and sick
mother (Woodward, 2012); the rendering invisible and silencing of the endeav-
ours made by women to ensure life continues (Blanc, Laugier & Molinier, 2020,
Laugier, 2015); the accusations of abandonment by other family members (Fer-
nandes, 2017, Biehl, 2005); or the difficulties of providing care amid precarious
living conditions (Fonseca & Fietz, 2018, Han, 2015a, 2015b). Exploring these
questions entails confronting the social, economic and political problems re-
peatedly found in the everyday lives of thousands of women in Brazil and else-
where. The fact is that the words enunciated by Leonor meant her “life [was]
taken as a whole” (Das, 2018). Although these words are elusive in nature, we
shall see how her life history is embedded in this moment. I am aware that the
issue of care is present in the situation being described. However, I shall bypass
this question to concentrate on the “kinship genealogies” elaborated by Leonor
and on the “betrayals” that meant “inhumanity” was inscribed in members of
her family.
In her book Life and words: violence and the descent into the ordinary, Veena
Das (2007: 10) writes that the “relationships betrayed made up the aesthetic of
kinship.” I set out from this observation to examine the histories of family
betrayals entangled in Leonor’s daily life and that form the textures of her
relationship to the world. Put otherwise, I describe how the pain of a son’s death,
sibling conflicts and forms of remaking the self so as to reinhabit and renarrate
events are embedded in existing relationships and go beyond family relations. 3
Following the path trailed by Das, I propose to think about family betrayals,
sibling conflicts and the death of a son not as spectacular events but as threads
in the weave of life. These betrayals enter the everyday as never-forgotten ex-
periences and become expressed in the most ordinary situations. I argue that
the death of Leonor’s son inhabits the family relationships and is infused in
her everyday ethical choices (Das, 2007, 2012, 2018, 2020).
family betrayals: the textures of kinship

872

By evoking her genealogical tree, Leonor transformed a difficult situation


into a critical moment (Han, 2012). How does something convert into a crisis?
How are certain events carried forwards and backwards in time? In dialogue
with Veena Das’s analyses of events during the Partition of India (1947) and
how they invaded the present of her interlocutors, I suggest that the betrayals
entangled in the moment described above are not limited to one specific hap-
pening. On the contrary, it is the accumulation of large and small disappoint-
ments experienced over the years that slowly constitute an “atmosphere that
cannot be expelled to an ‘outside’” (Das, 2007: 62). It comprises a feeling, a
“poisoned knowledge,” which means that certain events are never over and may
re-emerge suddenly. Through the movement of bringing her genealogical tree
into the present, Leonor shows us the multiple durations folded into the now
(Das, 2020: 5) and inscribes this situation in a temporality that exceeds the time
of a human life (Han, 2015a).
In her works, Veena Das (2020: 10) invites us to descend into the ordinary
“with what words we have in hand.” She teaches us the value of words but also
the value of the silences woven into events. By accepting the challenge of in-
terweaving words and silences, I propose to pursue the connections made by
Leonor in which living and dead members from different generations of her
family, spirits and religious entities are all embedded in the critical moment
that opens the text. As we shall see, Leonor elaborates distinct kinship gene-
alogies and shows us how these genealogies give meaning to her life process-
es. As Janet Carsten (2014) has demonstrated, we need to view kinship beyond
merely its synchronic dimension. Michael Lambek (2011), meanwhile, reinforced
the importance of us comprehending the relation between siblings in our ex-
plorations of kinship. For both authors, the temporalities of family relations
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

matter to our analyses of relations between kin. Accompanying kinship gene-


alogies not as something static but as actively elaborated by Leonor helps us
reveal the fragility of family agreements and the slippages that make certain
moments difficult to bear (Das & Leonard, 2007).
Time here is not analysed as an abstraction but as concretely lived by
Leonor. The text also approaches time as a quality in doing anthropology. Veena
Das teaches us to trust in the “work of time” as an ethnographic methodology.
For the author, anthropology is a form of sharing worlds, a path to inhabit with
people in an exercise of “critical patience” that involves listening attentively
to what and how people choose to narrate their lives to us (Das, 2015a). The
exercise of “inhabiting a life together’” (Das, 2015a: 94) allows us to become
embedded in the continuous and sensitive process of reconstructing oneself
and one’s relations. It is precisely the act of listening to words and silences that
leads us to descend to the ordinary in order to comprehend how devastating
events occupy the everyday. With Veena Das I learnt that ethnography is pre-
cisely about capturing the moments when changes in humour reveal the tex-
article | camila pierobon

873

tures of daily life and the trust that small events can transform into great
horrors (Das & Pathak, 2018).
In this text I establish a dialogue with the thought of Veena Das, espe-
cially with her discussions of betrayals, sibling conflict and family deaths. I
have also chosen to invoke authors with whom Das dialogues or the reverse,
authors who dialogue with her on the themes proposed here. In the process of
reading Veena Das’s work to write this article, I gradually incorporated her way
of seeing the world, such that Das’s vocabulary became constitutive of my own
thoughts and writing. This does not signify a passive appropriation of Das’s
concepts. As she herself teaches us, anthropology is not a community for shar-
ing concepts that, very often, may blind us to what is before our eyes. Rather,
anthropology is a profound engagement in everyday life, in forms of being to-
gether with others and in the work of making the ordinary appear (Das, 2020).
During fieldwork, my day-to-day life slowly became infused by Leonor’s
life and by Das’s words. Before proceeding further, I shall let the reader savour
the beauty of the words chosen by Mariana Ferreira (2015: 163) to present her
understanding of the word embed (or embeber in free translation into Portu-
guese) in Veena Das’s work.

embeber (to embed/infuse) involves a gradual aspect of absorption through the


pores and is interesting since it encompasses both a passive dimension of ‘being
embedded,’ which respects the question of attention, as a form of submission,
as a ref lexive character of ‘becoming embedded/infused,’ and an active dimen-
sion of embedding /infusing, that is, make a liquid penetrate and become absor-
bed by another mater ial. It is delicate, but also precise and incisive, because
another of the meanings is ‘to introduce (oneself ) by opening; embed (oneself ),
bury (oneself ).’ So, it appears to involve two aspects: the decision to introduce
oneself, penetrate, and subsequently the decision to remain there, to allow one-
self to be affected by that atmosphere. Here, then, we can connect the idea to
Jeanne-Marie Gagnebin’s definition of testimony as ‘that which doesn’t go away.’
Embedded/infused, you can no longer leave because you have been constituted
by this experience and cannot detach yourself from it.

Genealogy of distrust
It was in 2013 when Leonor and I took our first steps towards the friendship
that we still maintain today. The path passed through terrains that I had never
imagined walking. We had already exchanged some words in previous years.
But Leonor saw me as someone to distrust and I had no idea of the potency of
this gesture.
I began to frequent the popular housing occupation where Leonor lives
in 2010. At the time, I worked as Patrícia Birman’s research assistant and was
following the paths trailed by Adriana Fernandes. Recently arrived in the city
of Rio de Janeiro, I learnt from them how to walk through the streets of Central
do Brasil and take in the wealth of life that exists in the historically working-
family betrayals: the textures of kinship

874

class district. Through them, I met some of the people who lived in the region’s
housing occupations and little-by-little I entered the network of relations as a
supporter of the popular housing movements. It took me some time to realize
that my connection to people classified as “activists” generated distrust and
delimited my position. My middle-class university background amplified the
suspicions that the residents of the occupation felt in relation to me, stemming
from previous experiences with other “activists” like “me” (see Fernandes, 2020).
But a local critical event (Das, 1995) changed the courses of this history.
In 2013, the occupation where Leonor lived had just recently obtained
official regularization of the property after nine years of hard campaigning. But
in May of the same year, the building was invaded by members of the drug
faction dominant in the region. The possibility of reliving experiences of sub-
missions and humiliations, and the anticipation of living under the daily threat
of death, brought together those whose relations had been eroded by the tough
battle involved in maintaining everyday life in a popular occupation (see Bir-
man & Pierobon, 2021; Pierobon, 2021, 2018; Fernandes, 2020; Birman, Fernandes
& Pierobon, 2014).
Leonor’s home was one of the places where residents and activists would
meet to devise strategies to remove the drug traffickers from the locality. As
she narrated to me, it was the first time that she had opened her home to so
many unknown people. After the first meeting was over, I accepted her invita-
tion for a coffee and remained there. In a far from warm conversation, Leonor
told me the following:

I don’t trust anyone; I was born suspicious. But also shit happened in my home.
My father went after my older sister and said that I would be the next. At that
time, I slept with a knife under my pillow. Later, my older sister had an affair
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

with my husband while I was pregnant with my first child. I didn’t like him but
doing that to me was nasty. I was 17 years old and still had girlish dreams. My
brother beat my mother. He also ordered my oldest son to be killed after he re-
ceived notice of the police report I had filed against him. My son was 24 years
old when he fell from the rocks at Arpoador [on the Rio coastline]. He left behind
two children. I found his body twenty days later there in Niterói, his head was
full of shrimps. I learnt to distrust inside my home, which is why I don’t trust
anyone. The place that was supposed to protect me was where I was most harmed.
You can try, Camila, but I’ll always expect you to deceive me.

Leonor’s words froze me and left me unable to respond. If her own fam-
ily was the place where she had been most harmed, how could I, a young woman
of 30 at the time, be able to assure her a relation based on trust? How could
someone from a family that protected its children from conflicts between kin
absorb those words? At that moment, I turned to the teachings of Veena Das
(2007: 39) when she says: “I cannot claim to know the pain of the other.” Even
though Leonor had shown me why she harboured such distrust, this does not
mean that I could comprehend her. Sat in a chair in Leonor’s home, I experi-
article | camila pierobon

875

enced the feeling of being lost in the anthropological experience (Das, 2020: 30).
I fell silent and thought about how to leave her home. And that is what I did.
But Leonor’s words bothered me and something drove me to confront this uni-
verse. Indeed, I did not know what awaited me. “If I come to doubt such things
as my relations to my parents, the fidelity of our love, or the loyalty of my
children, these are doubts that put my world in jeopardy” (Das, 2007: 4).
A world in jeopardy! Leonor’s remarks bind kinship to the series of fam-
ily betrayals that occurred at different moments of her life. As Veena Das teach-
es us, certain experiences of pain are never over and can suddenly invade the
present. We are not dealing here with a specific event, but with the accumula-
tion, repetition and overlapping of events that occurred in different phases of
her life. Childhood, adolescence and adult life, the multiple durations of the
past are entangled with the present situation. Her father’s threats, her sister’s
disloyalty, her brother’s violence and her mother’s complicity do not convey
the feeling of being past – on the contrary, they form the very textures of her
relation to the world. Hurt, pain and disappointment accumulated, overlapped
and remained in everyday life bound to her sense of kinship. But Leonor’s words
do not refer to the past only; they also project the future of a friendship that
was beginning. The family betrayals functioned as an armour for her to relate
to the unknown in which she expects deception and disappointment.
As the years passed, I understood that Leonor’s words were the public
face of the fractures in her family relations, something that she enunciated,
even to someone she distrusted. A “grief was objectified in the form of a portrait”
(Das, 2007: 49), a wound exposed to show too her strength. Words that, even
when frozen, still retain the poison of the relations betrayed and the potency
of the painful reconstruction of the self. The logic of family betrayals penetrates
Leonor’s thought and forges her ethical relation to the world. Leonor’s kinship
genealogy is in the textures of the forms with which she presents herself to
others and weaves herself among the possibilities of inhabiting life. As Veena
Das demonstrates, families are not merely an institution of surveillance and
regulation, nor do they operate only in the key of ambivalence. Family is the
place where the world can be corroded (Das, 2018).
In the same year, 2013, another important change occurred in Leonor’s
life: she fetched her mother to live with her. I had been frequenting Leonor’s
house for six months and I accompanied this process first-hand. Dona Carmen
arrived anaemic with nits and lice and a lot of back pain. Leonor accused her
brother of mistreating her mother, including physical assaults. With dona Car-
men’s arrival in her home, Leonor began to dedicate her own life to prolonging
her mother’s, but this is another conversation (see Pierobon, forthcoming). At
that moment, the first steps to inhabiting life with Leonor had been taken and
I began to enter the painful terrain of family betrayals and the multiple emo-
tions implicated in these events. With Leonor and Das I comprehended that
family betrayals: the textures of kinship

876

devastation is not something that comes from outside but occurs with the
people close to us with whom we inhabit the world. We can note that these
betrayals did not lead to a rupture with the family members concerned. There
is a continuity and sustaining of relations, even with those who hurt Leonor.
Thus, the memories of family betrayals can be read as a testimony to the in-
stability of kinship (Das & Leonard, 2007) and also its assiduity.

What is the relation between the elaborate managing and staging of narratives
that speak of violence, betrayal, and distrust within the networks of kinship and
the thick curtain of silence pointing to an absconding presence? (Das, 2007: 80)

With Veena Das’s question, I turn to one of the most difficult experi-
ences lived through by Leonor, the premature death of her oldest son, but show-
ing how different narratives of this death were transmitted with the gradual
development of intimacy. I learnt from Veena Das (2012: 134, original italics)
that anthropology is a form of “cultivation of sensibilities within the everyday.”
With each story that I heard, the frozen narrative dissipated and I was able to
perceive how family betrayals form the textures of Leonor’s everyday life. Little-
by-little, I understood that creating relations of trust in a life marked by distrust
and deception made it impossible for me to leave. For Veena Das, the ethical
commitment to the people with who we inhabit life is indispensable, not only
for us to be able to descend to the ordinary but, especially, for us to offer a
home for the other’s pain.

Siblings, homes and deaths


That was how all the trouble began. Cleber, his wife Rosana and their two children
were living with dona Carmen and her husband in a house in Rio de Janeiro’s
West Zone. In 1999, the father of Leonor and Cleber died. To take part in the
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

mourning rituals, Leonor travelled from São Paulo to Rio de Janeiro. At the wake,
she had to deal with a difficult situation: the sight of her sister Laura crying
next to the coffin alongside dona Moema, the woman with whom Leonor’s
father had made a second family. Leonor told me she did not understand how
these three women could cry together over a man who had done them so much
harm. At the wake, she marked her position by refusing to greet her father’s
second wife and the children of the couple whom she classified as theirs. When
the wake was over, dona Carmen and her children went to the family’s home.
The ‘home’ was formed by a central house and two smaller houses at the back.
Leonor decided not to return to São Paulo and stayed in one of these small
houses. After the first few months, Leonor’s children came to live with her.
Cleber, though, had other plans for the houses at the rear of the plot. As
far as he was concerned, they belonged to him! Cleber began to charge Leonor
rent but she refused to accept her brother’s demand. In Leonor’s view, the
houses were the inheritance left by their father. Since he had four children with
dona Carmen, the houses obviously belonged to all the couple’s children. Thus,
article | camila pierobon

877

if Cleber lived in one of the houses, she reasoned that she too could live there.
If Cleber’s children lived there without paying rent, Leonor’s children could
also live there without paying rent. During this conflict over the house, Glau-
ber, Leonor’s oldest son, began to confront the orders and threats issued by his
uncle, defending his mother and challenging the family hierarchy. To these
confrontations were added the gossip that spread through the neighbourhood,
the insults, the slapping and shoving, and the threats between siblings, cousins
and uncles that, as time passed, acquired more violent dimensions. Cleber knew
some dangerous people in the district and the neighbours warned Leonor to
watch out for her sons. After being threatened by a police officer known to like
killing minors, Vitor, Leonor’s youngest son, thought it wiser to return to live
with his father in São Paulo. But there was one last fight. In it, Cleber beat Leonor
until she was almost dead. Leonor reported her brother to the police and left the
house. She and her children received help from a female friend from the Baptist
Church and began to live as a favour in this friend’s home.
There was another complication. When Leonor first went to Rio de Ja-
neiro with the children, they had needed to earn some money. With no knowl-
edge of the city, Glauber followed in his uncle’s footsteps and began to sell food
on Ipanema beach, savoury snacks and sandwiches that Leonor made in her
home in the West Zone. As time passed, the dispute over the sales patch deep-
ened the family conflicts. One day, Glauber left early for work but the person
who arrived at night in Leonor’s home was her sister-in-law Rosana. As soon
as she saw her, Leonor felt that something bad had happened to her son. Leonor
told me that she immediately began crying and shouting at Rosana, saying:
what have you done to my son? Leonor’s bad feeling attributed responsibility to
her sister-in-law and brother for Glauber’s fall from the rocks of Arpoador into
the sea. When narrating her son’s death to me, just when we were beginning
to develop a relation of trust, Leonor used the word “fall”, but she always left
in the air the possibility that her sister-in-law or brother had pushed him.
Glauber disappeared into the sea. His decomposing body was found on a
beach of the neighbouring city, Niterói, 20 days later and was identified by his
mother. How could Leonor live in the same place after Glauber’s death? How
could Leonor live with relatives who she suspected of killing her oldest son?
Here we are faced with a conflictual relationship between siblings recognized
as co-heirs (Das, 2007: 67). 4 As Lambek (2011) remarks, the relation between
siblings is central to our understanding of kinship. Here, the conflicts between
siblings become inscribed in the shadow of two deaths and the inheritance of a
house. The fights over the inheritance of the house were embedded in the con-
tinuum of family betrayals and led Leonor to suspect that her brother and sister-
in-law killed her son. As we know, the “house” is a central element in social life
and in the configurations of kinship (Carsten, 2018; Motta, 2020).5 The battle for
the house and the sibling rivalry instigated a deadly tension between those who
considered themselves the legitimate heirs of the dead father.
family betrayals: the textures of kinship

878

The poisons of premature death

What it takes to allow life to be renewed, to achieve the everyday, un-


der conditions of grinding poverty or catastrophic violence that erode the
very possibility of the ordinary?
(Das, 2012: 134)

Day after day, I made myself present in the small routines and rhythms of
Leonor’s daily life. For years I visited her home regularly and spoke to her almost
daily by telephone. I was with her on birthdays, at restaurants, and during
visits to the homes of her friends, children and “the house” where Cleber and
his family lived. I accompanied Leonor on the occasions when she or her moth-
er were admitted to hospital or went to consult health professionals. I attend-
ed assemblies in the occupation where she lived and took part with her in
meetings at different public bodies to press for solutions to housing problems.
Open to the exercise of critical patience proposed by Veena Das (2015a),
I turned my attention to the moments when the death of her oldest son surfaced
in daily life. Waiting for and listening to the fragments of this experience in
the moments when Leonor evoked it and the form in which she chose to nar-
rate it to me – rather than me asking the direct question “what happened” and
being content with a single reply – meant that this death inhabited our rela-
tionship, weaving bonds of trust. Slowly over time, I ceased being the activist,
university-trained, middle-class and indeed secular outsider and became Le-
onor’s friend and confidant. As a friend, various religious and spiritual experi-
ences emerged and her son’s death acquired other dimensions. In this move-
ment, I argue that histories of resentment, pain and suffering have their own
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

singular aesthetic when shared. Following the decision to stay, the option to
not leave Leonor’s life, I took in her histories and absorbed the depth of her
pain. She narrated her son’s death to me various times. On one of my visits to
her home, about two years after the previous narrative, Leonor narrated the
death of Glauber to me in a way quite different from the accounts I presented
above. It is this renarration of her son’s death that I present now.
After ensuring that Glauber was buried, Leonor told me that she entered
a state of deep depression, I spent a year depressed, I could not act or do anything.
When she eventually managed to get out of bed, the first thing Leonor did was
to move from the neighbourhood where she lived to the popular occupation
where I met her. “When a child dies, life’s projects had to be reformulated” (Das,
2007: 73). Although the death of the child breaks apart the present, death could
not collapse the future. It was necessary to “absorb the residues, the poisons
of untimely deaths, in a way that they might protect future generations” (Das,
2007: 235). The hope of a possible future is central to making life habitable.
Weaving a habitable everyday life for oneself and others forged an ethics, not
article | camila pierobon

879

as a sterile or abstract vocabulary but as a concrete practice infused with this


death.
The premature death of her son made Leonor recreate her relations with
the living, but also with the dead, spirits and religious entities. As a believer
(crente), a frequenter of the Baptist Church, Leonor saw here living children take
the wrong paths and run risks. To protect Silvio, Vitor and her only daughter,
Layla, Leonor ceased frequenting the Baptist Church and began to visit Um-
banda and Candomblé temples (terreiros). The entities Maria Mulamba and
Cigana, who had protected Leonor at other moments of her life, came back to
visit her home and work to protect her children (see Pierobon, 2018). Seeking
protection, Leonor believed that Glauber died because of her blindness to the
trabalhos espirituais (literally “spiritual works” that were being targeted against
her, assuming responsibility for this death too. Here I invite the reader to con-
sider a question evoked by Veena Das: “how is bad death to be represented?”
(Das, 2007: 51).
At one of the Umbanda temples that Leonor visited to undo the spiritual
works targeted at her, the entity Exu Caveira told her that someone had offered
a banquet for him to take her son. Refusing to accept what she had just heard,
Leonor wanted to know who specifically had performed the works to kill Glau-
ber. In response to Leonor’s questioning, Exu Caveira said that the betrayal had
been by her brother. Leonor told me that she was initially sceptical of Exu
Caveira’s narrative, though this did not stop this story from inhabiting her
thoughts. On another trip to the terreiro, Leonor talked with another entity, Zé
Pelintra, who categorically affirmed that Cleber had offered a banquet for Exu
Caveira to take Glauber. But Leonor was unconvinced and insisting on confirm-
ing the veracity of these words. So, she consulted the shells with a mãe de
santo and they confirmed what Exu and Zé Pelintra had told her.
At one point, Leonor wanted to return to the house where Cleber and
dona Carmen lived, partly to fetch the belongings left behind after their sudden
move, but also to survey what had happened since. Layla accompanied her. To
avoid any conflict with Cleber, Leonor and Layla decided to reach the small
houses at the rear of the plot via a side alley. To Leonor’s surprise, her brother
was washing clothes in the yard and singing: ‘Iêra, Iêra, salve o Exu Caveira, salve
a mosca varejeira,’ [‘Iêra, Iêra, save Exu Caveira, save the botfly.’] Leonor told me
that when she heard her brother singing to Exu, she doubted her own senses,
thinking that they may have been just things in her head. But when Layla replied
to her mother’s questions saying that she too had heard her uncle singing,
Leonor realized that the person responsible for her son’s death really was her
brother: it was confirmed!
During the years that I frequented Leonor’s house, Cleber was an ever-
present figure, whether on the occasions when he visited his mother, dona
Carmen, or when he took some money for her upkeep, or as the spectre of
family betrayals: the textures of kinship

880

someone who should have been helping take care of his mother but vanished
whenever the situation became difficult. In one of the conversations, I asked
Leonor whether she had asked her brother about the spiritual works that had
taken Glauber. Her answer was no! She had never spoken to Cleber or any oth-
er relative about the matter. For Leonor, this conversation was unnecessary, not
just because the santos (religious entities) were not tricking her, but because
such betrayals were a hallmark of her family and were within the realms of the
possible. Her father had maintained sexual relations with her older sister, which
produced a child; this same sister had relations with Leonor’s husband pre-
cisely when she was pregnant with Glauber; Cleber used to beat dona Carmen
and the son had pointed a gun at his mother. It is within this continuum of
betrayals by family members and so many others that the death of her son is
embedded. We are presented here by a context that absorbs and exceeds the
conflicts over inheritance of the house and leads Leonor to accuse her brother
of having ordered the killing of her son. Although the accusation of her son’s
killing cannot be enunciated and shared directly with the family, it inhabits
Leonor’s relationships to her mother, siblings, nephews, nieces and children,
as well as the friendship that she established with me.

But I do know the difference in the aesthetics of kinship in this kind of world
between trusting your words to the care of the concrete others with whom you
have shared this kind of past, this kind of laughter, these kinds of tears, and re-
leasing it to a public that might mutilate your words by treating them as if they
were just like other objects in the world (Das, 2018: 544, original italics).

In evoking this passage from Veena Das, I wish to reflect on the impor-
tance of comprehending Leonor’s aesthetic choices when narrating her son’s
death to me during different moments of our friendship. After reading the
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

narrations on Glauber’s premature death, I propose that we avoid analysing


them as different versions of the same story that, combined, could reach a
cohesive and true final version. Drawing support from Das’s works, I argue that
the work of memory is a continuous process embedded in the intimacy of rela-
tions. Confiding to the other words laden with pain depends on a gradual pro-
cess of trusting this other with whom laughter and tears accumulated. In turn-
ing to her childhood memories to understand how the Korean War infiltrates
the everyday life and intimacy of family relations, Clara Han (2021) tells us that
there is no coherent history to fix and organize the meaning of the experience
of the war within her family. Like the author, I believe that memories are always
“revived, recast in their retelling, their tone and intensity shifting in the flux of
our lives” (Han, 2021: 61). Here I understand the importance of the work of time
as making ethnography too.
article | camila pierobon

881

Good death, bad death: a home for the dead son


Michael Lambek (2018: 87-88) tells us that the death of someone close to us is
not a condition but an event. It is not simply the end of a life but an occurrence
that marks the life of others. When death occurs, it permeates the course of
life, leaving a before and an after, opening a crack in the established social
relations that will be more or less well repaired. What happens to the living
after the experience of death? How does death repercuss in family relations?
These are questions that guided Lambek’s work among a community of Kibushy
(Malgaxe) speakers on the island of Mayotte in the west of the Indian Ocean.
In his text, the author discusses kinship through a comparison of the informal
narratives of the family of the dead person and the narratives performed in a
funeral ceremony that took place soon after the death. Lambek’s reflections
allowed me to think about the work of memory and the renarration of the death
of the father and Leonor’s son. If death is an event that marks the life of others,
here it is important to compare how the death and mourning of the father and
the son are inscribed in Leonor’s own life and in the relations that she estab-
lishes with members of her family.
Veena Das (2007: 51) tells us that one of the functions of public mourn-
ing rituals is to absolve the living of responsibility for the death that occurred.
While searching in my notes for the narratives of the deaths of Leonor’s father
and the son, I realized that she had never shared the mourning rituals for
Glauber with me. In the almost ten years of our relationship, I never learned
who was at the wake or what the burial of her son was like. I had never want-
ed to ask. The aesthetic chosen by Leonor to share Glauber’s death with me was
the pain of searching for him for 20 days and finding his body in a state of
decomposition with his head full of shrimps. Very different from the way in which
she lives the death of her father: the narration of the latter’s wake continues
to set things in place, including Leonor’s dignity in refusing to greet the wom-
an with whom her father raised a second family. I do not know the circum-
stances surrounding the death of Leonor’s father. It is unnecessary. What Le-
onor’s words tell me is that her father’s death was over with the mourning
rituals while her son’s death remains unfinished. The death of the elderly father
is experienced as part of the course of life while the death of the young son is
lived as a rupture, the singularity of a life abruptly extinguished.
In Life and words, Veena Das reflects on the social differences of the ex-
perience of living a good death or a bad death through the control of the mourn-
ing laments of men and women. In dialogue with Das’s reflections, I turn to
focus now on the meanings of the premature death of Leonor’s firstborn. I think
that the meanings of the good and bad death are present in Leonor’s narrations
of the loss of her son Glauber. The first time I entered her home, Glauber’s death
was hurled like a piece of shrapnel that immobilized me, an attack and a de-
fence directed at someone she did not know. When she narrated to me how
family betrayals: the textures of kinship

882

Glauber “fell” into the sea, she showed me this death as a “good death”: public,
shouted, lamented, wept over and shared, even with those who she silently
accuses of being responsible for it. At the same time, she lives this death as a
‘bad death,’ embedded in the certainty of family betrayal, deeply infused in her
own subjectivity, not publicly shared but present in the silences and intimacy
of relations. Here it is the ritual and public dimension that distinguishes the
good death from the bad death. And what maintains death as bad is the absence
of support from kin (Das, 2007: 51). Public and private deaths are distinct forms
of acting out the same event. But Leonor’s condition is even more sensitive; she
inhabits the zone that exists between these two deaths and the transition
between them does not occur in simple form.

When death is seen as caused by the wilful actions of others, then a great tension
prevails as to what definition of the situation will come to prevail through the
control of mourning laments (Das, 2007: 51-52).

The ethnographic exercise on which I embarked entails understanding


how Glauber’s death inhabits the everyday life of Leonor, how it is inscribed in
the continuum of the family betrayals, and how it raises these betrayals to a
lethal degree. If the death of the son has an unfinished quality, what makes
this death persist in the textures of life? It seems to me that the slippages
between the good death and the bad death, between accidental and inten-
tional death, between the possibility of being and not being, between doubt
and certainty, are what embeds this death in everyday life. Inhabiting the zone
between two deaths ensured the singularity of Glauber’s life while it also al-
lowed Leonor to reconstruct ties of kinship. Leonor’s silence and the manage-
ment of her words is what simultaneously maintains and corrodes family rela-
tions. Doubt and control of the mourning laments mean that the death of Glau-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

ber is not over and continues to act in the present. Thus, inhabiting the zone
between two deaths assured the reconstruction of life, ensured the passage of
her son from this life to another plane, and maintained the event alive in the
day-to-day. Living in the incessant slippage between a good and bad death made
it possible for Leonor to reinhabit the world, even if the weaving is made from
corroded threads.
The death of her firstborn shattered Leonor’s life as she had conceived
it until that moment, making the present unbearable and impossible to carry
on living within. Leonor was unable to go back to inhabiting the same space.
She left her home, the neighbourhood where she lived, for the occupation where
I first met here. She was also unable to go back to inhabiting herself. A process
of religious conversion was needed that reconstructed the relations between
the living and the dead. More than the mother-son dyad, the death of Leonor’s
son has implications that refer to past and present generations of her family,
but also to spirits and religious entities. The others who constitute this experi-
article | camila pierobon

883

ence are multiple. And these many others inhabit Leonor’s present. A fragile
and tricky movement of self-recreation is involved, attaining a fine balance
between agency and patience in the work of reconstruction. The death of Le-
onor’s son defines the affective quality of the present tense. It is the incessant
work of domestication, silencing and renarration which entails that death in-
habits Leonor’s day-to-day life. I understand the narration and renarration not
as the repetition of the same (hi)story but as a form of recounting her life to
be able to reconstruct it again. Leonor’s experience shows us how the death of
the other can be absolutely our own (Das, 2015b).

Life taken as a whole: final considerations


I ask the reader to return with me to the critical moment that opens the text.
Leonor returned to the hospital early the next morning to replace Cleber and
stay with dona Carmen. On encountering his sister, Cleber told her that he
thought it unnecessary for someone to stay with their mother during the night.
Leonor asked him whether dona Carmen had become uncovered while she slept.
He said yes. She argued that if their mother had pneumonia, if the hospital
ward was chilly, if she became uncovered at night and if there were not enough
nurses for everyone, then it was obvious that dona Carmen would need some-
one to care for her. Despite his sister’s response, Cleber announced that he
would not go back to the hospital. From the hospital I received another phone
call from Leonor and promptly offered to substitute her in the afternoon, taking
care of dona Carmen, so she could rest. Other female friends of hers also of-
fered the same help. In this way Leonor organised another two days care in the
ward until her mother was transferred to a room with a chair. In this room,
Leonor could take a mattress, which she did. Although the conditions were far
from ideal, at least she could lie down (see Pierobon, 2018).
The histories of suffering, pain and resentment that make the textures
of Leonor’s relations are many, but superficially they are marked by civility, the
adherence to the rhythms and routines of everyday life (Das, 2015a). Although
Leonor had asked for her siblings or children, she did not tell any to them that
they lacked humanity. On the contrary, she embodied humanity by summoning
all her strength to cope with the situation, care for her mother, and not revive
the conflict between kin that hurts her and wears her out. Instigating an open
conflict between the family members would revive the memories of those rela-
tions that I presented above and many others. It is in this sense that Leonor’s
words contain “life taken as a whole” (Das, 2018). Multiple temporalities com-
pose the present moment. And in the latter are embedded all kinds of family
betrayals, among which the death of her son Glauber is inserted as the most
painful of all for her. Not by chance, the aesthetic used by Leonor to express
her pain is the image of a bomb that detonates and explodes, not to make a spec-
tacular show to the outside, but rather an impact on the inside, in a silent and
family betrayals: the textures of kinship

884

very often solitary form. There is an ethics in the choice of words, gestures and
what remains silent that shows us the force of the remaking of Leonor’s life,
but also the harshness of the place that women occupy in family relations.
What volatilities, doubts and uncertainties are located just below the
surface of habit? “If everyday life cannot show itself directly, how do we come
to grips with it?” (Das, 2018: 538). Throughout her work, Veena Das has re-
flected on what the everyday is and what it means to capture it. In Das’s view,
the quotidian is not a mere repetition of automatized habits. Everyday life is
elusive, vague, imprecise and difficult to conceptualize. Ethnography, then, con-
sists of capturing the moments that allow us to see the force that daily life
carries. Not in abstract terms! As Veena Das (2020) tells us, the notion of the
ordinary is difficult because many narratives focus on what disturbs life and
on the major conflicts that revolve around it. The question here is that these
big events are present in the most ordinary objects and events. Looking at the
apparently simple moments of daily life, but which just under the surface con-
vey devastating events, shows us the force of small happenings and how tiny
gestures can contain life as a whole.

But if everyday life has the texture of this uncertainty, that inf lects not only our
relation to the world but to self-knowledge, how does anthropolog y create its
concepts and how do our modes of living with others affect the way we render
our experiences in our fieldwork knowable? (Das, 2018: 547)

I invoke this question posed by Veena Das not so that I can solve it, since
that is beyond me, but instead for us to reflect on the ethical and aesthetic
choices people make to render their lives known. And also, for the ethics and
aesthetics that we choose by presenting such pain to a broader public. I have
sought to choose words that make it impossible for this public, which means
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

you, the reader of this text, to mutilate Leonor’s words and treat them as any
other object in the world. What I have attempted to do is establish a commu-
nication between Leonor and Veena Das, between me and you, the reader, in
order to share experiences that I heard and read – not just to relate and describe
them, but so that we can effectively apprehend and feel with people and with
their pain. What I have wanted to do in this text is locate the meanings of an
event in terms of its inscription in the everyday world and the conditions of
friendship through which it was possible to speak and listen.
I conclude my reflections with a conversation I had by telephone with
Leonor while I was completing this text in April 2021. Leonor was moving to a
new apartment and unable to get rid of some sacks full of cloth offcuts. In the
conversation, I suggested she take advantage of the move to throw away any-
thing she had not used for more than a year. Leonor replied that she was un-
able to do so. She told me that after Glauber died, she turned into a hoarder, not
of objects like fridges or pans, but of sacks and sacks of scraps that would
article | camila pierobon

885

never have any use. She also narrated to me that she tries but is unable to let
go of the thousands of bits of cloth cuttings and that these insignificant scraps
connect her to her son Glauber. It was the first time that I heard this narrative
in the almost ten years of our relationship.
I hope, with the words chosen for this text, to have arrived at a certain
picture of “what it is to think of textures of life and the disorders of kinship
and intimacy” (Das, 2018: 547). What makes life difficult to bear is not the event
lived exactly in the moment in which it occurs, but the past relations that the
event evokes. The present becomes much more complicated when we compre-
hend how past forces are at work within it. I conclude the text with Veena Das
(2018: 548, original italics) when she says “finding a cure for being on earth is
not the issue, perhaps enduring this condition is”.

Received on 19-Apr-2021 | Approved on 25-May-2021

Camila Pierobon Post-doctoral researcher on the


International Postdoctoral Program (IPP) of the Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Award
holder, FAPESP process 2018/15928-2, who the author
thanks for the funding that enabled the research. PhD
from the Postgraduate Program in Social Sciences (PPCIS)
at the Universidade doEstado do Rio de Janeiro (UERJ).
Her areas of interest encompass everyday life, poverty,
gender and popular housing.
family betrayals: the textures of kinship

886

NOTES
1 Inspired by Veena Das’s discussion of the ever yday and
by apparently small moments that nonetheless disrupt
the life of families, in her book Clara Han (2012) develops
diverse critical moments that her interlocutors need to
confront in day-to-day life. Dialog uing with the idea of
critical events developed by Das (1995), Han analyses dif-
ficult situations involving family members, neighbours
and friends, altering the scale of the events important to
study. Her choice of ‘critical moments’ shows us the for-
ce of the miniscule, of what is almost imperceptible, but
which may be devastating. For the present text, I have
chosen some critical moments lived by Leonor and show
how they can contain “life taken as a whole” (Das, 2018).
2 I have no words to thank the invitation made by Adriana
Vianna and Letícia Ferreira to contribute to this dossier.
The joy of being able to celebrate the work of Veena Das,
today my main theoretical-methodolog ical reference
point, added to the possibility of living through the pan-
demic in direct dialogue with them and also with Cynthia
Sarti. The conversations on Das’s work, the readings and
criticisms that they made of the text helped me to make
these pandemic years less difficult. I thank the careful
reading and precise comments of Paula Lacerda and Mar-
cella Araujo, fundamental to concluding the work. Finally,
I thank FAPESP for the award offered, without which this
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

text would not have been possible. Process 2018/15928-2


and 2019 /25691-2.
3 Although for analytic purposes I isolate family questions
from other social problems, the construction of Leonor’s
distrust is much more complex than presented in this
text (see Pierobon, 2018).
4 For space reasons, I am unable to pursue a comparison
between Leonor and Asha, so I shall simply highlight the
parallel that can be drawn with Veena Das’s description
of the family relations and inheritance in which Asha is
inserted. In moving to the house of her parents who had
migrated in the Partition, the current house of her brother
and his family, Asha was worried about becoming a bur-
den for her brother’s family: “But a destitute married sis-
ter who has been compelled to leave her affinal home and
article | camila pierobon

887

make a place for herself in her brother’s house comes to


be an object of mistrust, especially by the brother’s wife,
who suspects that she may use her position as a beloved
daughter to usurp a share of the brother’s property” (Das
2007: 67). If we compare Asha and Leonor, we can see
conceptions of mater ial and family inher itance of the
house and the place of the sister-in-law in this web in a
simultaneously proximate and distinct form, which I in-
tend to develop another time.
5 In the mar vellous text by Eugenia Motta (2020 ), “Uma
casa boa, uma casa ruim e a morte no cotidiano” (A good
house, a bad house and the death of the ever yday), the
author ref lects on how the death of the son of Maria, her
interlocutor of many years, transformed the mother’s
perceptions of the home, configuring the meanings of a
good house and a bad house. In her work of descr ibing
and accompanying Maria’s pain, Motta also shows us her
sensitive implication in Maria’s day-to-day life to assure
a “good death” to someone who, with the passing of the
years, became her friend. Motta’s description shows us
how Mar ia relates the incurable disease present in her
body to her son’s death.

rEFERENCES

Biehl, João. (2005). Vita: life in a zone of social abandonment.


Berkeley: University of California Press.
Birman, Patr ícia & Pierobon, Camila. (2021). Viver sem
guerra? Poderes locais e relações de gênero no cotidiano
popular. Revista de Antropologia, 64/2, e186647.
Birman, Patrícia; Fernandes, Adriana & Pierobon, Camila.
(2014). Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, Es-
tado e precariedade em moradias populares. Mana, 20 /3,
p. 431-460.
Blanc, Nathalie; Laug ier, Sandra & Molinier, Pascale.
(2020). O preço do invisível: As mulheres na pandemia.
Dilemas: Revista de Estudos de Conf lito e Controle Social, p.
1-13.
Carsten, Janet. (2018 ). House-lives as ethnog raphy/ bio-
graphy. Social Anthropology, 26, p. 103-116.
family betrayals: the textures of kinship

888

Carsten, Janet. (2014). A matéria do parentesco. R@U: Re-


vista de Antropologia da UFSCar, 6/2, p. 103-118.
Das, Veena. (2020). Textures of the ordinary: doing anthropo-
logy after Wittgenstein. New York: Fordham University
Press.
Das, Veena. (2018). Ethics, self-knowledge, and life taken
as a whole. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 8/3, p. 537-549.
Das, Veena. (2015a). What does ordinary ethics look like?
In: Lambek, Michael et al. Four lectures on ethics: anthropo-
logical perspectives. Chicago: HAU Books, p. 53-125.
Das, Veena. (2015b). Aff liction: health, disease, poverty. New
York: Fordham University Press.
Das, Veena. (2012). Ordinary ethics. In: Fassin, Didier (ed.).
A companion to moral anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell,
p. 133-149.
Das, Veena. (2007). Life and words: violence and the descent
into the ordinary. Los Angeles: University of California
Press.
Das, Veena. (1995). Critical events: an anthropological pers-
pective on contemporary India. Oxford: Oxford University
Press.
Das, Veena & Leonard, Lori. (2007). Kinship, memory, and
time in the lives of HIV/AIDS patients in a North American
city. In: Carsten, Janet (ed.). Ghosts of memories: essays on
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

remembrance and relatedness. Malden: Blackwell Publishing.


Das, Veena & Pathak, Dev. (2018). Conversation with Vee-
na Das: ordinar y and beyond. Source: https://www.you-
tube.com/watch?v= Spgzg JdSHeE. Accessed 10 Jan. 2021.
Fernandes, Adriana. (2020). Escuta ocupação: uma etnogra-
fia. São Paulo: Alameda Editorial.
Fernandes, Camila. (2017). Figuras da causação: sexualidade
feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas
políticas de Estado. Tese de Doutorado. PPGAS/Universida-
de Federal do Rio de Janeiro-Museu Nacional.
Ferreira, Mariana. (2015). Ensaios da compaixão: sofrimento,
engajamento e cuidado nas margens da cidade. Tese de Douto-
rado. Instituto de Psicologia/Universidade de São Paulo.
Fonseca, Claudia & Fietz, Helena. (2018 ). Collectives of
care in the relations surrounding people with “head trou-
article | camila pierobon

889

bles”: family community and gender in a working-class


neighbourhood of southern Brazil. Sociologia & Antropolo-
gia, 8/1, p. 223-243.
Han, Clara. (2021). Seeing like a child: inheriting the Korean
War. New York: Fordham University Press.
Han, Clara. (2015a). On feelings and finiteness in everyday
life. In: Chatterji, Roma (ed.). Wording the world: Veena Das
and scenes of inheritance. New York: Fordham University
Press, p. 191-210.
Han, Clara. (2015b). Echoes of a death: violence, enduran-
ce, and the exper iences of loss. In: Das, Veena & Han,
Clara. Living and dying in the contemporary world: a compen-
dium. Oakland: University of California Press, p. 493-509.
Han, Clara. (2012). Life in debt: times of care and violence in
neoliberal Chile. Berkeley: University of California Press.
Kleinman, Arthur. (2015). Care: in search of a health agen-
da. The Lancet, 386, p. 240-241.
Lambek, Michel. (2018). After death: event, narrative, fee-
ling. In: Robben, Antonius (ed.). A companion to anthropo-
logy of death. Oxford: Wiley-Blackwell, p. 87-104.
Lambek, Michel. (2011). Kinship as gift and theft: acts of
succession in Mayotte and Ancient Israel. American Eth-
nologist, 38/1, p. 2-16.
Laugier, Sandra. (2015). The ethics of care as a politics of
the ordinary. New Literary History, 46, p. 217-240.
Motta, Eugênia. (2020). Uma casa boa, uma casa ruim e a
morte no cotidiano. Etnográfica, 24/3, p. 775-795.
Pierobon, Camila. (forthcoming). The double making of
bodies: aging, illness and care in the daily life of a family.
Cadernos Pagu.
Pierobon, Camila. (2021). Fazer a água circular: tempo e
rotina na batalha pela habitação. Mana, 27/2, e272203.
Pierobon, Camila. (2018). Tempos que duram, lutas que não
acabam: o cotidiano de Leonor e sua ética de combate. Tese de
Doutorado. PPCIS/Universidade do Estado do Rio de Ja-
neiro.
Woodward, Kethleen. (2012). A public secret: assisted li-
ving, caregivers, globalization. International Journal of Age-
ing and Later Life, 7/2, p. 17-51.
family betrayals: the textures of kinship

890

TRAIÇÕES EM FAMÍLIA: AS TEXTURAS DO


PARENTESCO
Resumo Palavras-chave
Em diálogo com os trabalhos de Veena Das sobre parentes- Veena Das;
co, traições e morte em família, descrevo nesse texto as parentesco;
histórias de traições por familiares de Leonor, a inscrição traições;
dessas traições no cotidiano e nas texturas de sua relação vida cotidiana.
com os parentes e comigo. Apresento como a dor da mor-
te de um filho, os conflitos entre irmãos, bem como as
formas de refazer a si mesma ao reabitar e renarrar os
acontecimentos estão embebidos nos relacionamentos
presentes. O texto apresenta as traições em família, o con-
flito entre irmãos e a morte de um filho não como eventos
espetaculares, mas como fios que tecem as tramas da vida.
Mostro como o trabalho do tempo é importante para a re-
construção da vida, e também para o compartilhamento
de experiências de dor.

Family betrayals: the textures of kinship


Abstract Keywords
In dialogue with Veena Das’s works on kinship, family be- Veena Das;
trayals and death, in this text I describe the histories of kinship;
family betrayals of Leonor, highlighting the inscription of betrayals;
these betrayals in everyday life and in the textures of her everyday life.
relationships to kin and to me. I show how the pain of the
death of a son, the conflicts between siblings, as well as
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 869 – 890 , sep. – dec., 2021

the forms of remaking herself by reinhabiting and renar-


rating the events, are embedded in the relationships of the
present. The text presents the family betrayals, the conflict
between siblings and the death of a son not as spectacular
events but as threads in the weave of life. I show how the
work of time is important to the reconstruction of life and
also to the sharing of experiences of pain.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v1137

1 Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento de Ciências Sociais,


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Guarulhos, SP, Brasil
tatiana.landini@unifesp.br
https://orcid.org/ 0000-0001-8692-8026
11Universidade Federal do Ceará (UFC), Departamento de Ciências Sociais/Programa
de Pós-Graduação em Sociologia, Fortaleza, Ce, Brasil
Tatiana Savoia Landini I
aborgesleao@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8767-1875
Andréa Borges Leão II

Indivíduo e individualismo em Norbert Elias

O par conceitual indivíduo e sociedade é um tópico clássico da teoria sociológi-


ca, abordado desde os precursores da sociologia, passando pelos clássicos e
chegando aos autores contemporâneos. A obra de Norbert Elias reorienta os
termos que fazem desse par uma oposição conceitual, antitética, apresentando
a questão como falso problema. Sua sociologia coloca-se justamente em oposi-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

ção ao homo clausus, à concepção do indivíduo como autônomo e independente;


a definição do indivíduo determinado pelo social tampouco encontra lugar na
sociologia eliasiana. O autor trabalha entre os dois polos, pensando os indivídu-
os e os processos de individualização em redes de interdependência. Nesse sen-
tido, ainda que falar em indivíduo e individualismo em Elias possa soar estranho,
até contraditório, entendemos ser importante discutir essa questão, colocando
à frente o entendimento do individualismo como habitus individual e social.
A sociedade dos indivíduos – publicado como primeiro capítulo em livro
de igual título (Elias, 1994) – foi escrito na época em que Elias trabalhou em O
processo civilizador. Originalmente foi pensado, aliás, como parte da teoria mais
abrangente dos processos civilizadores, sendo posteriormente desmembrado
para evitar desarticular a estrutura de um livro já bastante extenso (Elias, 1994:
8). Os capítulos seguintes que compõem o livro são desenvolvimentos poste-
riores, constituindo material ímpar para nossa análise.
Após identificar dois campos opostos na abordagem da relação entre
indivíduo e sociedade – aqueles que entendem as formações sócio-históricas
indivíduo e individualismo em norbert elias

892

como concebidas, planejadas e criadas por indivíduos ou organismos, e aqueles


que afirmam que o indivíduo não desempenha papel algum nessas formações
–, Elias (1994: 16) afirma a necessidade de

modelos conceituais e uma v isão global mediante os quais possamos tor nar
compreensível, no pensamento, aquilo que vivenciamos diariamente na realida-
de, mediante os quais possamos compreender de que modo um grande número
de indivíduos compõe entre si algo maior e diferente de uma coleção de indivíduos
isolados: como é que eles formam uma ‘sociedade’ e como sucede a essa socie-
dade poder modificar-se de maneiras específicas, ter uma história que segue um
curso não pretendido ou planejado por qualquer dos indivíduos que a compõem.

Já em seus primeiros escritos, Elias reconhece, portanto, como da máxi-


ma importância essa questão que subjaz à teoria sociológica, merecedora de
um desenvolvimento apropriado. O conceito de figuração ainda não se encon-
tra nomeado nesse texto, mas já há nele a intenção de encontrar uma forma
de pensar a coletividade de indivíduos que formam a sociedade em novas bases
teóricas, indicando também a necessidade de que esse conceito elucide a his-
toricidade das relações e formações humanas.
Neste ensaio, três objetivos são perseguidos. Num primeiro momento,
seguiremos, nos trabalhos iniciais de Elias – A sociedade de corte, O processo civi-
lizador e A sociedade dos indivíduos –, o caminho do conceito de figuração. Figu-
ração é a solução conceitual eliasiana para o par antitético indivíduo e socie-
dade, conceito que encontrou definição mais precisa em Introdução à sociologia
(Elias, 2008) e cujo uso rigoroso implica entendê-la de forma associada ao con-
ceito de processo. Num segundo momento, nos debruçaremos sobre Mozart,
sociologia de um gênio. Ainda que gênio seja uma característica propícia ao en-
tendimento de que seu talento o colocaria em uma situação extraordinária,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

assim como o faz com Luís IV, o Rei-Sol, Elias vê o gênio em suas figurações.
Trazemos Mozart, portanto, como um estudo de caso, situação empírica que nos
permite estabelecer o rigor e o alcance da proposta teórica eliasiana. Por fim,
em um terceiro momento, enfrentamos o desafio de pensar o individualismo,
conceito que atribui centralidade ao indivíduo, ao florescimento da individua-
lidade, e também à autorrepresentação do eu desprovido de um nós. Em outras
palavras, situação em que a balança nós-eu pende firmemente para o lado do
eu. Pensando com e a partir de Elias, entendemos o individualismo como habi-
tus individual e social. Essa formulação, do individualismo como habitus, indi-
ca, por sua vez, a radicalidade do conceito de figuração, afirmando a sociedade
como formação de indivíduos interdependentes a despeito da percepção indi-
vidual ou social de uma possível autonomia. Ao fim e ao cabo, a interdepen-
dência em Elias está para além do entender-se autônomo, único e livre, para
além da identidade-eu dos indivíduos. É ao mesmo tempo uma questão empí-
rica e ontológica. E a não percepção – ou mesmo as tentativas de negação da
interdependência – constitui, portanto, um habitus situado historicamente.
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

893

Indivíduo, figuração e processo


Iniciamos nossas reflexões pelos livros A sociedade de corte, primeiro trabalho
sociológico de Elias, 1 e O processo civilizador (ou O processo da civilização, em
tradução mais fidedigna). Ainda que a publicação tardia – e retrabalhada – de
A sociedade de corte não permita uma leitura em que o uso de algumas palavras
e formulações seja colocado em questão, essa obra é fundamental para mostrar
a riqueza da sociologia de Elias e de seu entendimento a respeito do par con-
ceitual indivíduo e sociedade, explicitado na dinâmica da corte.
A sociedade de corte trata de um período que antecede e engendra a so-
ciedade industrial-burguesa, constituindo base para a posterior construção de
O processo civilizador. Tomando as variadas dinâmicas que constituem o proces-
so civilizador, esse livro, escrito já no exílio na Inglaterra, trata de um período
mais extenso, da época feudal até o século XX, sem discutir as figurações de
corte em detalhes. A proposta que fazemos é de uma leitura conjunta, enten-
dendo A sociedade de corte como estudo de uma síntese figuracional (Elias, 2009:
130), jamais ponto de partida, mas mergulho em um período importante em O
processo civilizador. O objetivo é seguir a pista metodológica oferecida pela abor-
dagem de Elias: possibilitar uma discussão sobre conceitos – no caso, o concei-
to de figuração – a partir do material empírico. Cabe observar a importância
conferida pelo autor à Idade Média, com seus mecanismos de centralização e
descentralização, assim como às instituições do Renascimento, enquanto di-
nâmicas que tornaram possíveis as mutações observadas na corte absolutista
francesa. 2
Para Elias, o processo civilizador europeu tomou algumas direções que
podem ser claramente definidas. As principais: mudança na balança de equi-
líbrio entre coerções externas e autocontrole em favor do último; desenvolvi-
mento de um padrão social de comportamento e sentimento, o qual gera a
emergência de um autocontrole ainda mais estável, completo e diferenciado;
aumento do escopo de identificação mútua entre as pessoas (Fletcher, 1997: 82).
Além dessas, o processo civilizador também tomou os seguintes direcionamen-
tos: aumento da pressão pelo desenvolvimento da previsão e do autocontrole;
processos de psicologização e racionalização; avanço nos limiares de vergonha,
pudor e repugnância; redução dos contrastes na conduta entre grupos superio-
res e inferiores e aumento nas variações ou nuanças da conduta civilizada;
mudanças no conhecimento humano de uma perspectiva mais envolvida para
uma mais distanciada (Elias, 1990, 1993).
O processo civilizador é sobre mudanças de longo prazo em dois níveis
interdependentes: o individual e o social. Como essas mudanças aconteceram
e quais foram as forças ou impulsos que as levaram para uma determinada
direção não planejada são as questões que Elias busca responder ao longo do
livro. Ainda que O processo civilizador elabore uma discussão ancorada no em-
pírico, Elias dá um passo à frente estabelecendo (ou tentando estabelecer) uma
indivíduo e individualismo em norbert elias

894

teoria central que envolve a busca por conexões entre o habitus social, o desen-
volvimento de padrões sociais e as cadeias de interdependência, nível de for-
mação do Estado, democratização funcional e níveis de pacificação (Dunning
& Mennell, 2003: xxix). Nas palavras do próprio autor, em entrevista concedida
em 1969 a Johan Goudsblom (2013: 170),

No livro sobre os processos civ ilizadores e de formação do Estado apresento


pela primeira vez um modelo para diagnosticar os nexos de eventos em proces-
sos de longo prazo, mostrando como o desenvolvimento de padrões e tipos de
coações estão conectados de forma tanto passiva quanto ativa a certos aspectos
do mesmo processo de formação do Estado.

Van Krieken (1998: 85) identifica em A sociedade de corte três aspectos de


especial significância e que, ao nosso ver, indicam claramente a relação entre
a figuração de corte e a figuração posterior, a sociedade industrial-burguesa: o
argumento que identifica as cortes reais e aristocráticas como unidades sociais-
chave que cumpriram um importante papel na emergência das sociedades ca-
pitalistas; a análise da ‘racionalidade de corte’, entendendo-a como uma forma
de racionalidade que precede a instrumental-legal e, ao mesmo tempo, lhe deu
continuidade na forma de uma subcorrente; a identificação de mecanismos
particulares de poder e diferenciação social que continuaram a operar na vida
social contemporânea.
Assim, na problemática eliasiana, as figurações presentes na sociedade
feudal, sociedade de corte e sociedade industrial-burguesa permitem conhecer
dinâmicas que se sucedem no longo e contínuo prazo de um processo de civi-
lização. Em A sociedade de corte, Elias se refere à figuração da corte, o que nos
possibilita pensar a época feudal e a época moderna também como figurações.
Não há estágios estanques, momentos de início ou término para cada uma
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

delas. Figurações não são sistemas autorreferidos. São três momentos que se
sucedem não como quebras ou rupturas, mas como continuidades. Três redes
de interdependência que funcionam a partir de dinâmicas internas significa-
tivamente diferentes e que, ao mesmo tempo, possibilitam compreender a
transmutação de uma em outra, por meio de mudanças paulatinas e contínuas.
O olhar de Elias não focaliza exclusivamente as figurações, cada uma delas
separadamente, mas se desloca para processos que levam de uma à outra, iden-
tificando também permanências. 3
Até a época em que Elias escreve seu texto, a corte aristocrática era um
campo pouco estudado pela sociologia, voltada para outros recortes empíricos,
tais como a cidade, a fábrica, o monastério, o Estado, organizações burocráticas
e patrimoniais, estruturas econômicas feudais ou capitalistas, família, protes-
tantismo, burguesia, a classe trabalhadora etc. Nesse livro, Elias apresenta com
muita clareza um “duplo foco” que caracteriza sua sociologia: ao mesmo tem-
po em que estuda o processo de desenvolvimento social (a corte como estágio
que antecede a sociedade burguesa-industrial) também mergulha em momen-
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

895

tos específicos daquela figuração, trazendo à tona os personagens e as relações


de interdependência que os caracterizavam. Alargando um pouco o foco, o es-
tudo da sociedade de corte pode ser visto como um recurso metodológico que
permite adentrar em profundidade uma trama específica no movimento con-
tínuo do processo de civilização. A sociologia de Elias combina, portanto, estu-
dos sincrônicos e diacrônicos. É o mergulho em figurações sociais e emocionais
específicas que ancoram sua discussão de processos de longo prazo, permitin-
do-lhe estabelecer a relação entre estruturas da personalidade e a estrutura
social.
A corte real do Antigo Regime acumulava duas funções: instância máxi-
ma de estruturação da grande família real e função de governo. Em 1984, em
debate com colegas no que ficou conhecido como Conferência de Bielefeld, Elias
relembrou que um dos objetivos centrais do estudo sobre a sociedade de corte
era investigar a estrutura de poder de uma monarquia absoluta, resultando daí
o insight de que o poder do rei era tudo, menos absoluto. Ele era “dependente
do contracontrole da aristocracia, da burguesia e das pessoas de forma geral”
(Elias, 2021c). Luís XIV nunca foi livre, assim como nunca foi absolutamente
predeterminado (Elias, 2001: 55).
Identificamos, portanto, o olhar sociológico impresso por Elias na cons-
trução de seus objetos de estudo: trata-se de olhar não o indivíduo, mas a fi-
guração. O poder que Luís XIV, o Rei-Sol – exemplo do soberano absoluto, irres-
trito, onipotente – consegue imprimir sobre seus súditos é explicado a partir
das redes de interdependências das quais fazia parte. Seu espaço de atuação
era mantido a partir de estratégias bem articuladas na figuração da sociedade
de corte e na da sociedade francesa como um todo (Elias, 2001: 29). A intriga e
a etiqueta se tornavam peças-chave nas estratégias de poder.
Relembremos a icônica descrição do lever do rei, no capítulo V de A so-
ciedade de corte:

De manhã, geralmente às 8 horas, e em todo caso no horário por ele determina-


do, o rei é acordado pelo primeiro criado de quarto, que dormia aos pés de sua
cama. As portas são abertas para os pajens. Nesse momento, um deles acaba de
dar a notícia ao “grand chambellan” e ao primeiro fidalgo de quarto, um segun-
do dirigiu-se à cozinha da corte para providenciar o café da manhã e um tercei-
ro ocupa seu posto diante da porta, deixando entrar apenas os senhores que têm
o privilégio do acesso.

Esse privilégio seguia uma hierarquia muito precisa. Havia seis grupos diferen-
tes de pessoas com permissão para entrar, um após outro. Falava-se então das
diversas “entrées”. (...)

Como vemos, tudo seguia regras bem precisas. Os dois primeiros grupos eram
admitidos quando o rei ainda estava na cama. Ele usava então uma pequena
peruca; nunca aparecia sem peruca, mesmo deitado em sua cama. Quando esta-
va de pé e o grand chambellan com o pr imeiro cr iado de quar to acabavam de
vestir o seu robe, chamavam o grupo seguinte, a première entrée (Elias, 2001: 101).
indivíduo e individualismo em norbert elias

896

A precisão das regras, como chama a atenção o autor, não tinha o sen-
tido de uma organização racional moderna, mas explicitava a importância sim-
bólica da etiqueta na estrutura social e de governo da corte. A necessária ati-
vidade de vestir-se adquiriu, na corte de Luís XIV, o sentido de atribuição de
privilégio e distinção.
Mas não podemos concluir daí que o ritual prescindia de seus persona-
gens. Luís XIV “foi um rei forte o suficiente para intervir quando necessário”,
preservando as funções primárias do ritual. Com o passar do tempo, a hierarquia
dos privilégios passou a ser mantida pela simples competição dos indivíduos
envolvidos na dinâmica, cada qual preocupado com seus pequenos privilégios
e poderes conferidos, perdendo a dinâmica sua função primária, autonomizan-
do-se. Chegada a época de Luís XVI e Maria Antonieta, a descrição do lever da
rainha revela um ritual vazio, no qual a rainha aguarda, nua, que sua blusa
passe de mão em mão, numa disputa de privilégios e honras.
A diferença do significado do ritual encontra-se na estrutura tanto psi-
cológica quanto social, o que significa dizer que é devedora dos indivíduos que
compõem a figuração, em específico da personalidade do rei, bem como da
estrutura social – e, portanto, das redes de interdependência – em que está
inserido: Luís XIV certamente não teria tolerado que a etiqueta sobrepujasse
assim o objetivo principal do ato de se vestir, afirma Elias (2001: 104), ainda que
a estrutura psicológica e social que acabou produzindo esse mecanismo vazio
já estivesse visível em sua época. As filhas de Luís XV participavam do coucher
do rei muito a contragosto, mas participavam. E o faziam porque não podiam
romper com a etiqueta, sua existência social estava ligada à participação obri-
gatória nesses rituais. A recusa em participar significaria uma humilhação e
uma abdicação de privilégio.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

Se Elias olha para as relações entre os envolvidos no ritual, não deixa


de lado a compreensão de que esse ritual que envolvia a nobreza significava
também a exclusão de todos os que não eram nobres e tinham que pagar im-
postos. E a exclusão de um grupo enorme de pessoas é também característica
dessa figuração como forma de relação de interdependência. Em síntese, a en-
grenagem social da corte funcionava na base da pressão e contrapressão e
estava explicitada na etiqueta.

Indivíduo, individualidade e individualização


No estudo sobre o destino do músico Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791),
Elias buscou compreender a experiência social do artista burguês na corte aris-
tocrática, acabando por lançar as bases de uma sociologia da singularidade,
transpondo para a escala da biografia o problema maior das restrições às quais
se submetem os indivíduos no processo de civilização. Pode-se afirmar que o
livro discorre sobre as ambivalências na construção de uma vivência do eu
reivindicada como alteridade absoluta, ou melhor, a vontade de viver profis-
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

897

sionalmente da música. O estatuto do gênio criador, em Mozart, nos leva à


compreensão do conflito entre o processo de criação na esfera musical, orien-
tado pela afirmação de uma assinatura própria, e a dependência a uma estru-
tura social da qual o artista não poderia escapar. A vida entre dois mundos, o
burguês e o aristocrático, que selou o destino trágico do músico, nada mais
significa que a tensão entre autoria (eu) e civilidade (nós) no esforço de reco-
nhecimento público. Não se pode perder de vista que Wolfgang Amadeus de-
sejava ser reconhecido nos círculos dos que o desprezavam porque os padrões
de gosto nos quais foi formado e que tinham se tornado uma segunda nature-
za para ele eram os cortesãos dos quais queria se libertar. Esse conflito confi-
gurou um processo de individualização como autopercepção de um eu despro-
vido de um nós. Em função da estrutura de sua personalidade, Mozart antecipou
a posição social alcançada, uma década após, por Luwig von Beethoven, em
função de mudanças estruturais que inauguraram o mercado da música na
sociedade burguesa industrial.
Para a socióloga Nathalie Heinich (1993), a tradição do pensamento so-
ciológico, muito mais interessada no estudo das coletividades, não confere
importância ao conceito de singularidade. Para ela, as posturas analíticas de
cientistas sociais frente ao problema das figuras da singularidade no mundo
social se empenham em demonstrar a compreensão da verdade individual pe-
la lógica do agrupamento, o princípio de desvendamento que permite o acesso
ao individualismo considerado sinônimo de ilusão. Há ainda outra postura, que
é a dos sociólogos militantes da autenticidade da pessoa, aqueles que cultivam
estilo mais propícios aos elogios à grandeza e ao inusitado do gênio. Uns fazem,
do social, ideologia a defender, e outros fazem o mesmo das qualidades da
pessoa. Uns são chamados de redutores, os outros de ingênuos. O conceito de
figuração, já falamos, escapa a essa tipologia intelectual baseada nas polariza-
ções dicotômicas. Em Mozart, sociologia de um gênio, não há qualquer empenho
do autor em desindividualizar o artista ou em se posicionar a favor de deter-
minações ou de uma última instância de explicação do social. Elias mostra a
existência de figurações, redes de interdependência, nas quais as característi-
cas do gênio criador são levadas em consideração.
Norbert Elias articula, na figuração da corte na qual viveu o músico, uma
forma de individualização da criação estética, vinculando a genialidade às redes
de pressões sociais. Elias parte da indagação dos motivos da profunda melanco-
lia, sentimento de fracasso e do marcado ressentimento de Mozart. Encontra-os
em uma série de regramentos sociais, que, de um modo ou de outro, possibili-
taram o fenômeno Mozart. Sentindo-se derrotado ao mesmo tempo em que re-
agia com modos descorteses, a doença que o vitimou não foi mais fatal que o
vazio sentido nos últimos anos. O gênio Wolfgang Amadeus Mozart obteve fama
no mundo, mas não conseguiu sair da posição de inferioridade na sua corte
natal, um pequeno Estado absolutista governado pelo conde de Colloredo, o
indivíduo e individualismo em norbert elias

898

arcebispo de Salzburgo. Não cabia na autoimagem do homem a dependência dos


músicos de sua época com relação aos padrões de comportamento e bom-gosto
da aristocracia cortesã. Essa camada social cumpria ao mesmo tempo a função
de patrona e audiência para a música de concerto. Os príncipes procuravam os
artistas para figurar em suas orquestras, teatros e igrejas. Levado por essa con-
dição, Mozart, na posição de um criado de libré, “tão indispensável quanto os
pasteleiros, os cozinheiros e as damas de companhia” (Elias, 1995: 18), trabalhou
como serviçal do príncipe-bispo da acanhada corte de Salzburgo. A dinâmica do
conflito entre a realidade do artista cortesão e o sonho de tornar-se um artista
autônomo esteve presente por toda a existência social do músico. Uma estrutu-
ra de emoções se interpunha entre a consciência do posto ocupado e o desejo
de ganhar a vida de modo regular. Essa realidade gerou muitos sofrimentos e
insatisfações a Mozart, acabando, paradoxalmente, por contribuir para o seu
fracasso social e por influenciar a escrita de suas belas óperas.
Nessa obra da maturidade do sociólogo (publicada postumamente, em
1991), encontramos, mais uma vez, a construção de um objeto de investigação
centrado na figuração de que fazia parte Mozart, mas colocando foco no próprio
artista e nas relações funcionais e de interdependência que ia contraindo com
os que passavam pela sua vida, Leopold Mozart, seu pai e empresário; Cons-
tanze, a esposa que o rejeitou; o nobre e irascível bispo de Salzburgo, a quem
o artista prestava serviço. Todos dependiam uns dos outros determinando-se
mutuamente, modelavam entre si suas personalidades. Além de situar Mozart
em suas relações de interdependência mais próximas, Elias o situa na figuração
mais ampla da sociedade de corte e na figuração que já se insinua, a sociedade
industrial-burguesa, com sua maior abertura ao indivíduo e ao individualismo.
Por mais diversas que pudessem ser as condutas e os sentimentos de cada um,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

eles formavam uma teia de relações na vida de Mozart. Foi nessa teia que o
músico respondeu ao conflito com as normas sociais, a expressá-lo por meio
de uma dupla revolta, social e familiar, contra o pai-empresário e contra o
príncipe-patrão. Tanto seu comportamento quanto sua música foram influen-
ciados pelas pressões organizadas no interior da figuração (Leão, 2007).
O jovem Wolfgang jamais assimilou as regras da etiqueta, tampouco
apreciava as bajulações e muito menos as artes da representação. O compor-
tamento era meio bufão e sua aparência deselegante, por vezes, tornava-o um
pouco infantil. A rudeza do estilo pessoal contrastava com a sofisticação de
suas composições, com o grande domínio que tinha sobre as formas musicais.
A propósito da modificação da posição social do artista-artesão, em A sociedade
dos indivíduos (Elias, 1987: 60), Norbert Elias nos lembra o quanto “as diferentes
estruturas das sociedades ocidentais produzem necessariamente outra estru-
tura de controle dos instintos e outra estrutura da consciência”, por conseguin-
te, outras formas de individualidade e, em particular, de formação da persona-
lidade humana, diversas daquelas dos séculos XX, XVIII ou XII. Essa é a razão
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

899

pela qual a economia psíquica da distinção aristocrática de corte não poderia


permanecer integralmente nos grupos de literatos e artistas burgueses. A ex-
traordinária música de Mozart sintetiza um momento de trânsito entre cadeias
de interdependência que configuram a diferenciação social no processo de ci-
vilização. Não por acaso, sua existência social e seu talento traduzem o perma-
nente desequilíbrio entre as instâncias controladoras da aristocracia de corte
e a autorregulação das pulsões e emoções.
Assim, o artista burguês na sociedade de corte do século XVIII não teria
sido capaz de se deslocar da perspectiva do eu para a perspectiva do nós. Foi
necessário chegar o século XIX, em que a diferenciação e extensão das interde-
pendências funcionais em escala planetária tornavam de outro modo traumáti-
ca a experiência social do indivíduo. Um dos principais dilemas a que se veem
confrontados os seres humanos na sociedade industrial-burguesa, adverte Elias
(2009), é a sincronia entre a experiência dos processos sociais planetários de
dimensões dificilmente controláveis em seus cursos indeterminados e o aumen-
to da individualização. Ao mesmo tempo em que os indivíduos participam de
processos de interdependências em escalas transnacionais − conflitos, epide-
mias, guerras e ameaças de destruição −, reforça-se a tendência de cada um se
imaginar como entidade autônoma e independente. Diante de tal paradoxo e,
em consequência, da grande dificuldade de compreensão da dinâmica interna
de processos que envolvem todos os indivíduos, a literatura emerge como uma
forma possível de simbolização. É o caso da literatura de ficção-científica e de
utopia. Há escritores geniais, nesses gêneros, que conseguem reunir conheci-
mentos das ciências naturais e tecnológicas a fim de produzir símbolos capazes
de traduzir angústias, incertezas e medos humanos.
Na conferência intitulada “À quoi servent les utopies scientifiques et
littéraires pour l’avenir?”, proferida em 1981, em Wassenaar, na Holanda, Elias
analisa a obra de ciência-ficção do britânico H.G Wells, como ponto de mutação
entre as utopias sonhos, decorrentes da crença no progresso científico e tec-
nológico, e as utopias pesadelos, emocionalmente menos satisfatórias porque
ligadas às perdas das ilusões científicas de felicidade universal. Para Elias
(2009:106), as antecipações literárias, tanto as utópicas como as distópicas, re-
presentam soluções de problemas a partir de futuros possíveis já inscritos na
ordem do desenvolvimento das dinâmicas sociais. Wells, ao imaginar ficcional-
mente situações de antecipação de um futuro possível como utopia pesadelo
– esperanças perdidas, guerras e destruições decorrentes da tecnologia −, não
apenas levava as ambivalências e os dilemas dos seres humanos a sério como
conseguia distanciar-se do ponto de vista da imaginação do gênio literário,
abordando-as a partir da figuração de indivíduos interdependentes. Ao contrá-
rio de Mozart, H. G. Wells via a si mesmo e a sua obra artística da perspectiva
da identidade-nós, oferencendo um modelo de compreensão da realidade social
digno de um sociólogo avant la lettre.
indivíduo e individualismo em norbert elias

900

Interdependência e poder
No texto A sociedade dos indivíduos, Elias (1994: 16) afirma a necessidade de
modelos conceituais que tornassem compreensível, no pensamento, o que é
vivenciado na sociedade. A necessidade de que, de certa forma, a pesquisa
sociológica “traduza” a realidade, de que o conhecimento seja congruente e
orientado para a realidade tornando-a compreensível, permeia toda sua obra.
Em palestra intitulada “The formation of states and changes in restraint” (“A
formação dos Estados e mudanças nas coações”), proferida em 1984, premido
pelo que temia ser a real possibilidade de uma terceira guerra mundial, Elias
(2021b) afirmava:

Estamos no momento em uma situação – nós, ameaçados pela guerra – em que


a forma mais realista de conhecimento da realidade é a melhor para nos guiar.
Certamente, isso está relacionado com o que eu gostaria que acontecesse, quer
dizer, que não deveria ocorrer uma guerra. Penso que uma das coisas indispen-
sáveis necessárias para que sigamos nessa direção não é apenas o desarmamen-
to militar, mas o desarmamento ideológ ico. E essa é uma razão adicional que
explica por que penso que a pesquisa não ideológica possui, de fato, maior pos-
sibilidade de ter valor prático em um mundo ameaçado por uma terrível e de-
sastrosa guerra

Os conceitos de figuração e processo são fundantes da sociologia elia-


siana (Landini, 2013) e ocupam lugar central em sua proposta de uma sociolo-
gia orientada para a realidade. A noção de figuração já estava presente, de
certo modo, em sua tese de doutoramento, submetida à Faculdade de Filosofia
da Universidade de Breslau em 1922 4 (Heilbron, 2013: 159). Em A Sociedade dos
Indivíduos, texto escrito em 1939, encontramos a seguinte formulação:

Nenhum dos dois [indiv íduo e sociedade] existe sem o outro. Antes de mais
nada, na verdade, eles simplesmente existem – o indivíduo na companhia de
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

outros, a sociedade como uma sociedade de indivíduos – de modo tão desprovi-


do de objetivo quanto as estrelas que, juntas, formam um sistema solar, ou os
sistemas solares que foram a Via-Láctea. E essa existência não f inalista dos
indivíduos em sociedade é o material, o tecido básico em que as pessoas entre-
meiam as imagens variáveis de seus objetivos (Elias, 1994: 18).

Em Mozart, sociologia de um gênio, discutido acima, Elias estuda um caso


elucidativo das mudanças nos padrões de interdependência instauradas no
processo de individualização na modernidade ocidental. No ensaio “Mudanças
na balança nós-eu”, desenvolvimento do texto A sociedade dos indivíduos, Elias
(1994) apresenta os conceitos de identidade-eu e identidade-nós enquanto fer-
ramentas heurísticas da autopercepção da singularidade e da pertença ao gru-
po, mostrando que ao longo dos séculos essa balança se inclina para o lado do
eu. É no Renascimento que o equilíbrio se modifica, pendendo para o eu, tor-
nando-se cada vez mais frequente o entendimento de um eu desprovido de um
nós (Elias, 1994: 161). Descartes, ao escrever seu Cogito, ergo sum, teria sido o
pioneiro de uma crescente mudança na ênfase na autoimagem humana. O co-
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

901

gito é um sinal da mudança na posição social da pessoa singular. A percepção


de si mesmo como um eu desprovido de um nós difundiu-se ampla e profun-
damente. A existência de um músico na figuração da corte – estrutura de de-
pendência incompatível com a autoconsciência da genialidade singular – reve-
la processo semelhante de ambivalência e sofrimento nas formas de individu-
alização. Mozart não poderia ser capaz de adequar o habitus social pequeno-
burguês, incorporado nas ligações familiares, com o padrão de civilização da
corte aristocrática para a qual servia como músico de altíssimo talento. Assim,
o problema psicológico vivido pelo artista entrecruzava-se a um problema so-
ciológico, ambos apontando para um processo de sublimação, orientação con-
trolada dos fluxos de fantasia, como nos chama a atenção Elias (1995: 136-137):

Já apontei, de passagem, que uma das peculiaridades do artista não cortesão,


“autônomo”, é uma combinação do livre f luxo de fantasia com a capacidade de
controle através da autorrestrição individual, através de uma consciência alta-
mente desenvolvida. Mais precisamente: f luxos-fantasia e impulsos de cons-
ciência não são meramente reconciliados no interior da estrutura de uma ativi-
dade artística, eles são efetivamente fundidos. Isto está no âmago do que cha-
mamos de “gênio artístico”.

No livro Introdução à sociologia, Elias (2008) apresenta uma representação


visual de seu conceito de figuração. Opondo-se ao que denomina visão egocên-
trica da sociedade, em que o Eu ocupa o centro de círculos concêntricos que
representam família, escola, indústria, Estado – imagem que lembra o painel
para um jogo de dardos ou tiro ao alvo –, Elias apresenta o diagrama da teia de
indivíduos interdependentes, cada qual ligado a outros por meio de um equi-
líbrio de poder mais ou menos instável.
O poder está no centro da proposta sociológica eliasiana e constitui par-
te integrante do conceito de figuração. Assim como sua proposta teórica não
tem como ponto de partida o indivíduo, mas as relações de interdependência,
o poder também é entendido em sua forma relacional – Elias fala em relações
de poder, equilíbrio ou balança de poder. O poder “constitui um elemento inte-
gral de todas as relações humanas” (Elias, 2008: 80).
Ao afirmar que constitui elemento das relações humanas, Elias está in-
dicando que o poder não é monopolizado por uma ou outra pessoa que parti-
cipa da relação, mas compartilhado, algumas vezes de forma extremamente
desigual, em outras de forma mais equilibrada. A relação entre pais e filhos,
principalmente bebês, e entre senhores e escravos, exemplificam relações em
que as oportunidades de poder são distribuídas de forma muito assimétrica –
ainda assim, o bebê tem algum poder sobre os pais uma vez que os pais lhe
atribuem valor, e o escravo tem algum poder sobre os senhores na proporção
da função que desempenha (Elias, 2008: 81). Sendo extremamente assimétricas,
essas relações de interdependência são capazes de indicar, com alto grau de
segurança, qual será o desenlace de uma situação.
indivíduo e individualismo em norbert elias

902

“Modelos de jogo”, capítulo 3 de Introdução à sociologia (Elias, 2008), refle-


te essas relações, considerando cenários de menor e maior complexidade. O
jogo de xadrez, com um dos jogadores muito mais forte do que o outro, cons-
titui uma representação das relações tais quais as comentadas acima, em que
há grande assimetria de poder e cujo desenlace é bastante previsível. Com o
aumento da complexidade da figuração – número maior de jogadores, menor
assimetria de poder, aumento da complexidade das regras dos jogos – cresce
também a imprevisibilidade do desenlace. O processo torna-se independente
da vontade de qualquer um dos jogadores – encontra-se aqui uma abstração
do conceito de processo cego, abordada por Elias em O processo civilizador. Nes-
ses cenários mais complexos de figurações, o jogador (indivíduo), ainda que
diferenciado, não possui mais a capacidade de controle dos processos, encon-
trando-se numa espécie de sujeição a esses processos.
Para evitar o entendimento equivocado de que, ao afirmar que os indi-
víduos ficam sujeitos ao processo, o conceito de figuração seria independente
ou prescindiria dos indivíduos que a compõem, lembremos outra imagem uti-
lizada por Elias, a da dança. Os dançarinos em um palco formam uma figuração
móvel, é possível reconhecer padrões, como a valsa ou o tango – o que pode ser
entendido como uma analogia a relações de gênero ou de classe, por exemplo.
Mas a dança não constitui uma estrutura ou algo que está para além dos indi-
víduos, tampouco subjacente: “As danças são, como qualquer figuração, de
certa forma independente de qualquer indivíduo específico, mas não de indiví-
duos como tais, constituindo padrões relacionais emergentes de interdependên-
cia entre dançarinos individuais” (Hugues, 2016: s.p.).
Como a sociologia de Elias não é voltada apenas para um momento de-
terminado, fala-se do maior ou menor equilíbrio de poder ao longo de um pro-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

cesso – é assim que vemos, ao longo da análise da sociedade de corte, o poder


“absoluto” do rei perder força, até dar lugar à revolução e à instauração da so-
ciedade burguesa-industrial.
Em “Mudanças na balança nós-eu” (Elias, 1994), de 1987, encontramos
uma reflexão apurada sobre os processos de desenvolvimento social e, portan-
to, de mudanças nas figurações. Sua proposta é a de buscar a sociogênese des-
ses dois termos, assim como o fez com os conceitos de cortesia, civilidade e
civilização em O processo civilizador. Segundo ele, o uso antitético dos conceitos
de indivíduo e sociedade – o termo indivíduo expressando a ideia de que todo
ser humano é ou deve ser uma entidade autônoma e que cada ser humano é
diferente de todos os outros – é recente na sociedade ocidental.
Entendendo, portanto, que o desenvolvimento dos conceitos é um as-
pecto do desenvolvimento social, cumprindo também uma função explicativa,
Elias nos lembra que a família de conceitos relacionados ao substantivo indi-
víduo é recente, data da época do Renascimento, quando as pessoas puderam
ascender de suas comunidades tradicionais a posições sociais mais elevadas
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

903

– humanistas, comerciantes, artistas são exemplos do aumento das oportuni-


dades sociais de progresso individual. É apenas no século XVII que aparece a
distinção entre o que era feito individualmente e o que era feito coletivamente.
Posteriormente, no século XIX, aparece a formação de vocábulos como indivi-
dualismo de um lado, e socialismo e coletivismo de outro, contribuindo para o
entendimento corrente de que indivíduo e sociedade formam um par antitéti-
co (Elias, 1994: 134).
A identidade-eu e a identidade-nós são autorrepresentações presentes
em todos os espaços e tradições nacionais, em qualquer momento ou estágio
de sua história, variando a intensidade de um e outro na balança das identida-
des. Nas sociedades mais desenvolvidas, afirma Elias, o nível de integração do
Estado absorve cada vez mais essa função de refúgio da necessidade extrema.
Ao mesmo tempo em que o Estado elimina as diferenças entre as pessoas ao
transformá-las em um número, um contribuinte (o que poderíamos entender
como massificação), o Estado relaciona-se com as pessoas como indivíduos e
não como membros de uma família ou de um clã. Os Estados, assim, dão sua
contribuição para o avanço da individualização em massa (Elias, 1994: 149). Já
a extensão e o padrão dessa individualização, alerta o autor, diferem ampla-
mente conforme a estrutura da nação e, em especial, da distribuição de poder
entre governo e governados, aparelho de Estado e cidadãos.
Questão de absoluta importância e até aqui apenas indicada é a da mu-
dança dos comportamentos e da própria estrutura da personalidade. É na figu-
ração e por meio das relações de interdependência que o indivíduo sofre a
coação que o instiga a desenvolver sua autocoação – processo das incorporações
em que a passagem da coação exterior à autocoação se realiza, às vezes com
boas doses de renúncia, denegações e traumas. É assim que as características
básicas da personalidade, o ‘espírito’ dos cortesãos, emerge “da estrutura social,
da figuração, da rede de interdependência que eles formam entre si” (Elias, 2001:
128). A elegância da atitude e o bom gosto eram obrigatórios para a aceitação
e ascensão social daqueles que faziam parte das camadas dominantes do An-
tigo Regime e que viviam da renda em uma sociedade regida pela convenção
social e pela competição por prestígio. Esses comportamentos foram relegados
a uma esfera que não estava mais no centro da influência social na sociedade
industrial-burguesa do século XIX, quando a profissão passou a determinar o
comportamento dos indivíduos e sua relação mútua, passando a ser ela o cen-
tro das coações exercidas pelas interdependências sociais sobre os indivíduos
singulares (Elias, 2001: 129).
Na mesma linha, é assim que seguimos com Elias, no segundo capítulo
de O processo civilizador, o caminho percorrido para demonstrar transformações
nos costumes, abarcando mudanças nas maneiras associadas à mesa, à forma
de comer, atitudes em relação às funções corporais, comportamento no quarto
de dormir etc. Transformações nos costumes (ou maneiras) implicam também
indivíduo e individualismo em norbert elias

904

transformação nos sentimentos e emoções. É a partir do aumento da pressão


que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras, em sociedades
já pacificadas, que Elias identifica a passagem, efetivamente, do período me-
dieval para o Renascimento, a consolidação de um novo mecanismo de contro-
le das emoções.
O objetivo de Elias não está em precisar ou diagnosticar novos compor-
tamentos, mas seus olhos estão voltados para o processo de formação ou de-
senvolvimento de novos padrões, os quais, formados inicialmente em um “pe-
queno círculo”, foram lentamente estendidos a toda a sociedade, instilados de
cima para baixo. Podemos dizer que esse processo de longo prazo é repetido
no processo de socialização das crianças. Mas isso acontece de forma a que o
comportamento, ao ser forçado no mesmo molde e na mesma direção, é per-
cebido pelas crianças como algo que praticamente vem de dentro, implantado
nelas pela natureza (Korte, 2001: 26).

Conclusão – o individualismo como habitus


A formação da sociedade industrial-burguesa pressupõe, para Elias, a pacifica-
ção e racionalização da vida social, retendo de Durkheim a ideia de coação
social, porém retirando a identificação da coação social com normas e leis:

a quintessência do argumento eliasiano é sua reivindicação de ter identificado


um nível mais profundo de ação recíproca entre fenômenos sociais e individuais.
O desenvolvimento dos controles internalizados em resposta às pressões e ne-
cessidade da interdependência social não pressupõe um quadro normativo; an-
tes, uma certa extensão do ‘espaço social pacificado’ e um nível correspondente
de ‘silenciamento dos controles’ constituem um pré-requisito necessário à im-
posição de normas em uma figuração social (Arnason, 2021).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

Segundo Elias, boa parte da teoria filosófica do conhecimento – Descar-


tes, Berkeley, Kant, Husserl – traz essa ideia de que o indivíduo que tenta che-
gar ao conhecimento é um ser isolado que duvida da existência de alguém ou
alguma coisa fora dele mesmo. Na literatura, a partir da segunda metade do
século XX, há cada vez mais personagens que se percebem sós e duvidam da
existência de qualquer coisa ou pessoa fora delas mesmas – A náusea, de Sartre,
e O estrangeiro, de Albert Camus, são exemplos (Elias, 1994: 163).
Para o autor, a percepção do eu desprovido de um nós não constitui, no
século XX, uma questão isolada e individual, mas um “habitus, um traço básico
da estrutura da personalidade social das pessoas da era moderna” (Elias, 1994:
165). O homo clausus deixa o espaço de conceito sociológico e passa a ser toma-
do como um habitus. Essa provocante e elucidativa formulação, concebida a
partir de Elias, nos indica a radicalidade do conceito de figuração, a qual afirma
a sociedade como formação de indivíduos interdependentes, a despeito da per-
cepção individual ou social de uma possível autonomia. A interdependência, ao fim
e ao cabo, está para além do entender-se autônomo, único e livre, para além da
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

905

identidade-eu dos indivíduos. A interdependência é ao mesmo tempo uma


questão empírica e ontológica. E a não percepção, ou mesmo negação, da in-
terdependência, constitui um habitus situado historicamente. Elias operou um
deslocamento no modo de orientação do conhecimento. O conceito de interde-
pendência usado por Elias vai além e ultrapassa a oposição dos conceitos de
indivíduo e sociedade, transformando realidades estáticas e autorreferenciadas
em processos.
Em Da divisão do trabalho social, Durkheim busca demonstrar a passagem
de uma sociedade em que prevalecia a solidariedade mecânica, a solidariedade
por igualdade, para a solidariedade orgânica, baseada na diferença e na com-
plementariedade das funções exercidas na divisão do trabalho. A tentativa de
Durkheim de demonstrar que o aumento da individualização e da solidarieda-
de orgânica, decorrente da divisão do trabalho, possibilitava um mundo mais
coeso, leva-o a menosprezar, naquele livro, o papel do individualismo no mun-
do moderno. Há um paralelo, ainda que superficial, com Elias. Assim como
Durkheim, Elias também fala na complexificação do mundo social, no aumen-
to e maior diversidade das cadeias de interdependência. É justamente nesse
aumento das cadeias de interdependência que se localiza a possibilidade da
individualização, a própria formação do Estado moderno propiciando, de certa
forma, a possibilidade de que o indivíduo se entenda como autônomo. Verifica-
-se maior impermanência das relações-nós – após certa idade, o indivíduo pode
afastar-se da família sem perder suas probabilidades de sobrevivência física e
social; as relações entre as pessoas que decidem formar casais e mesmo entre
pais e filhos assumem cada vez mais o caráter de união voluntária e revogável,
idem para as relações profissionais, até para a nacionalidade:

Ao lado da permanência reduzida, surgiu uma permutabilidade maior dos rela-


cionamentos, uma forma peculiar de habitus social. Essa estrutura de relações
requer do indivíduo maior circunspecção, formas de autocontrole mais cons-
cientes e menor espontaneidade dos atos e do discurso no estabelecimento e na
administração das relações (Elias, 1994: 167).

Retomemos a questão do dualismo entre indivíduo e sociedade – do


entendimento do ‘indivíduo’ como meio e o ‘todo social’ como valor e objetivo
supremos, e de seu oposto, a ‘sociedade’ como meio e os ‘indivíduos’ como o
valor e o objetivo supremos (Elias, 1994: 73) – ao qual o autor intercede o con-
ceito de figuração. Há uma questão valorativa que é necessário adicionar aqui.
Termos como indivíduo, sociedade, personalidade e coletividade, mais do que
expressões da autopercepção e da percepção social, são também “armas ideo-
lógicas das lutas de poder de vários partidos e Estados” (Elias, 1994: 74).
Apesar de Elias não incorporar em sua discussão as ideologias políticas
mais propriamente ditas, se mais liberais ou mais comunitárias, nas quais pre-
dominam o Estado mínimo ou estado de bem-estar social, Mennell (2021) propõe
localizar essas ideologias políticas ocidentais ao longo do contínuo nós-eu. Para
indivíduo e individualismo em norbert elias

906

ele, o neoliberalismo extremo, que emana principalmente dos Estados Unidos e


que representa o espírito do tempo no mundo ocidental, é uma crença fervoro-
sa na ‘liberdade do indivíduo’. Assim como Elias critica o mito filosófico do in-
divíduo atomizado e independente, o neoliberalismo mais radical pode ser visto
na mesma chave, como um mito que impede o indivíduo de perceber que está
relacionado aos outros em cadeias mais ou menos extensas de interdependên-
cias, as quais limitam a possibilidade de ação do indivíduo.
A questão que se coloca a partir daqui – para além de Elias, para pensar
com Elias – é a de um momento em que a autopercepção do indivíduo como eu
desprovido de um nós parece ter atingido níveis ainda maiores. Alguns pará-
grafos acima propusemos o entendimento do homo clausus como habitus, por-
tanto como incorporação social da percepção da independência, em oposição
à percepção da interdependência, fato empírico e ontológico na visão de Elias.
Estamos falando, portanto, não mais do conceito sociológico de indivíduo, mas
de individualismo.
Ao levantar razões para a intrincada recepção e efetivo uso da sociologia
eliasiana, Kilminster afirma que a dificuldade do perceber-se interdependente,
por parte dos próprios sociólogos, aparece como importante barreira. Indo mais
além, o autor entende a sociologia eliasiana como um grande baque no narci-
sismo humano:

Em seu ensaio seminal, “As resistências à psicanálise” (...), Freud referiu-se ao


golpe cosmológico no amor próprio humano dado por Copérnico; ao golpe bioló-
gico desferido por Darwin; e ao golpe psicológico apontado pela psicanálise. Nor-
bert Elias talvez tenha desferido o quarto golpe contra o narcisismo humano,
para além de Copérnico, Darwin e Freud – isto é, o golpe sociológico. Pode ser
que as resistências a seu trabalho que vieram à tona ao longo dos anos tenham
surgido, pelo menos em parte, das características do atual estágio de desenvol-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

vimento social e psíquico. A maior parte dos sociólogos (e de outros) pode sim-
plesmente não possuir a força psíquica mais ampla e o distanciamento, reforça-
do por redes de pesquisadores com ideias semelhantes, necessários para lidar
com a imagem realista de uma sociedade humana interdependente e de si mesmos
que Elias insiste que devemos enfrentar. Elias aponta (...) que a capacidade das
pessoas de ‘enfrentarem a si mesmas’, de se verem como são, ‘sem a armadura
brilhante das fantasias que as protegem do sofrimento, passado, presente e fu-
turo’, depende do grau de segurança de que gozam na sociedade. Ele acrescenta
significativamente: ‘Mas isso provavelmente tem seus limites’ (...) (Kilminster,
2007: 155).

As ideologias políticas, as quais são constituintes do habitus individual


e social, não são construídas apenas a partir de fantasias emotivas, mas também
a partir de dados empíricos. Daqui depreendemos a responsabilidade do soci-
ólogo “caçador de mitos”, da busca por um conhecimento que seja mais orien-
tado para a realidade. Se Elias nos deixa alguma lição para o estudo da contem-
poraneidade, uma das mais valiosas talvez seja a da necessidade de um conhe-
cimento congruente e orientado para a realidade e, portanto, pautado pela
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

907

interdependência ontológica, constituinte das figurações que os seres humanos


formam uns com os outros. É nesse sentido que entendemos o individualismo
predominante na sociedade ocidental contemporânea, como habitus social e
individual.
Recebido em 28/04/2021 | Aprovado em 08/12/2021

Tatiana Savoia Landini é formada em ciências sociais pela USP, com


mestrado e doutorado em sociologia pela mesma instituição. Professora
associada do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, EFLCH-Unifesp. Editora da coleção Palgrave
Studies on Norbert Elias (Palgrave-Macmillan). Publicou, em parceria Norbert
Elias and social theory, Norbert Elias and empirical research e Norbert Elias and
violence. Trabalha também com o tema da violência sexual contra crianças e
adolescentes.

Andréa Borges Leão é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo


e pesquisadora do CNPq, professora do Departamento de Ciências Sociais e
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Ceará, membro da Comissão Editorial da Revista Brasileira de Ciências Sociais,
pesquisadora líder do grupo interinstitucional de pesquisa Estudos em
Cultura, Comunicação e Arte, certificado pelo CNPq. Realizou estágio pós-
doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales/Paris e no Centre
d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines/UVSQY. Suas publicações
são nas áreas de sociologia da literatura, dos impressos e da edição
infantojuvenil; sociologia da cultura/conhecimento.
indivíduo e individualismo em norbert elias

908

NOTAS
1 A sociedade de corte, publicada tardiamente, com adições, em
1969, constituiu a tese pós-doutoral de Elias. O título origi-
nal do trabalho, entregue para avaliação em 1933, era Der
höfische Mensch ou The courtly human, em inglês. Uma leitura
mais aprofundada a respeito do histórico dessa obra, bem
como das condições e circunstâncias de sua escrita, pode
ser encontrada no sétimo capítulo de Korte (2017).
2 A respeito, consultar: Elias (2021a). Conforme esclarecem
Mennell, Bourguignon e Deluermoz (2010: 211-212), esse
livro sobre a Idade Média contém as 122 páginas suprimi-
das do que foi publicado na França e em outros países
com o segundo volume de O processo civilizador.
3 Em certo momento de sua vida, Elias voltou-se contra o
rótulo de sociologia figuracional, justamente por entender
que seu conceito estava sendo confundido com o de sis-
tema, sendo ignorada a importante definição de que as
figurações estão sempre em processo (Engler, 2013).
4 Idea and individual: a critical investigation of the concept of
history (Elias, 2006).

Referências

Arnason, Johann P. (2021). Civilisation, culture and power:


ref lections on Norbert Elias’s genealogy of the West. In:
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

Bogner, Artur & Mennell, Stephen (orgs.). Civilisations, ci-


vilising processes and modernity − A debate between Norbert
Elias, Immanuel Wallerstein, William H. McNeill, Hans-Dieter
Evers, Keith Hopkins, Johann P. Arnason, Johan Goudsblom and
others. Documents from the conference at Bielefeld, 1984. New
York: Palgrave Macmillan.
Dunning, Eric & Mennell, Stephen. (2003). Norbert Elias.
London/New Delhi: Thousand Oaks/Sage Publications, 4 v.
Elias, Nobert. (2021a). Moyen Âge et procès de civilisation.
Paris: Éditions EHESS.
Elias, Norbert. (2021b). The formation of states and chan-
ges in restraint. In: Bogner, Artur & Mennell, Stephen
(orgs.). Civilisations, civilising processes and modernity − a
debate between Norbert Elias, Immanuel Wallerstein, William
H. McNeill, Hans-Dieter Evers, Keith Hopkins, Johann P. Arna-
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

909

son, Johan Goudsblom and others. Documents from the confe-


rence at Bielefeld, 1984. New York: Palgrave Macmillan.
Elias, Norbert. (2021c). Discussion of Elias’s paper. In:
Bogner, Artur & Mennell, Stephen (orgs.). Civilisations, ci-
vilising processes and modernity − a debate between Norbert
Elias, Immanuel Wallerstein, William H. McNeill, Hans-Dieter
Evers, Keith Hopkins, Johann P. Arnason, Johan Goudsblom and
others. Documents from the conference at Bielefeld, 1984. New
York: Palgrave Macmillan.
Elias, Nordert. (2009). À quoi servent les utopies scienti-
fiques et littéraire pour l’avenir? In: L’utopie. Paris: Édi-
tions La Découvert.
Elias, Norbert. (2008). Introdução à sociologia. Lisboa: Edi-
ções 70.
Elias, Norbert. (2006). The Colected Works of Norbert Elias,
v. 1. Early writings. Dublin: UCD Press.
Elias, Norbert. (2001). A sociedade de corte: investigação sobre
a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar.
ELIAS, Norbert. (1995). Mozart, sociologia de um gênio. Org.
Michael Schröter. Trad. Serg io Goes de Paula. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar.
Elias, Norbert. (1994) [1939]. A sociedade dos indivíduos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar.
Elias, Norbert. (1993). O processo civilizador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, v. 2.
Elias, Norbert. (1990). O processo civilizador. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, v. 1.
Elias, Norbert. (1987). La société des individus. Paris: Édition
Fayard.
Engler, Wolfgang. (2013) [1989]. Perhaps I have had some-
thing to say that will have a future. In: Jephcott, Edmund
at al. Norbert Elias: interviews and autobiographical reflections.
(Publicado como volume 17 do The Collected Works of Nor-
bert Elias, Dublin: UCD Press.)
Fletcher, Jonathan. (1997). Violence and civilization: an intro-
duction to the work of Norbert Elias. Cambridge, UK: Polity
Press.
Goudsblom, Johan. (2013) [1969]. An interview in Amster-
dam. In: Jephcott, Edmund et al. Norbert Elias: Interviews
indivíduo e individualismo em norbert elias

910

and autobiographical ref lections. (Publicado como volume 17


do The Collected Works of Norbert Elias, Dublin: UCD Press.)
Heilbron, Johan. (2013). Sociology… done in the right way.
In: Jephcott, Edmund et al. Norbert Elias: interviews and
autobiographical ref lections. Publicado como volume 17 do
The Collected Works of Norbert Elias, Dublin: UCD Press.)
Heinich, Nathalie. (1993). Le génie. Histoire d’une notion de
l’Antiquité à la Renaissance. Paris: Les Éditions de Minuit.
Hugues, Jason. (2016). Fields, worlds and figurations: con-
ceptual imagery and political investments in the work of
Bourdieu, Becker and Elias. Trabalho apresentado no XVI
Simpósio Internacional Processos Civilizadores. Vitória,
Universidade Federal do Espírito Santo, mimeo.
Kilminster, Richard. (2007). Norbert Elias: post-philosophical
sociology. London/New York: Routledge.
Korte, Hermann. (2017). On Norbert Elias – Becoming a Hu-
man Scientist. Wiesbaden: Springer VS.
Korte, Hermann. (2001). Perspectives on a long life: Nor-
bert Elias and the process of civilization. In: Salumets,
Thomas (org.). Norbert Elias and human interdependencies.
Quebec City: McGill-Queen’s University Press.
Landini, Tatiana Savoia. (2013). Main principles of Elias’s
sociology. In: Depelteau, François & Landini, Tatiana Sa-
voia (orgs.). Norbert Elias and social theory. New York: Pal-
grave Macmillan.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 891 – 911 , set. – dez., 2021

Leão, Andréa Borges. (2007). Norbert Elias e a educação. Be-


lo Horizonte: Autêntica.
Mennell, Stephen. (2021). Some political implications of
sociolog y from an Eliasian point of view. In: Delmotte,
Florence & Gornicka, Barbara (orgs.). Norbert Elias in trou-
bled times − figurational approaches to the problems of
the twenty-first century. New York: Palgrave Macmillan.
Mennell, Stephen, Bourg uignon & Deluermoz, Quentin.
(2010). Quelques observations en guise de conclusion. In:
Deluermoz, Quentin (org.), Nobert Elias et le 20 ème siècle.
Le processus de civilisation à l’épreuve. Vintième Siécle. Re-
vue d’histoire, 106 Paris: SciencesPo/Les Presses, p. 209-214.
Van Kr ieken, Robert. (1998 ). Norbert Elias. London: Rou-
tledge.
artigo | tatiana savoia landini  e andréa borges leão 

911

Indivíduo e Individualismo em Norbert Elias


Palavras-chave Resumo
Norbert Elias; O ensaio, de cunho teórico, discute os conceitos de indiví-
sociologia figuracional; duo e individualismo em Norbert Elias. Para tanto, três
indivíduo; objetivos são perseguidos: - partindo das obras A sociedade
figuração; de corte, O processo civilizador e A sociedade dos indivíduos,
individualismo. discutimos o conceito de figuração, solução conceitual elia-
siana para o par antitético indivíduo e sociedade; - Mozart,
sociologia de um gênio é utilizado como estudo de caso em
que o gênio é visto em suas figurações, relações de inter-
dependência e constrangimentos sociais; - por fim, pen-
sando com e a partir de Elias, colocamos à frente o enten-
dimento do individualismo como habitus individual e social,
formulação que indica a radicalidade do conceito de figu-
ração, a qual afirma a sociedade como formação de indi-
víduos interdependentes, a despeito da percepção indivi-
dual ou social de uma possível autonomia, constituindo a
interdependência questão empírica e ontológica.

INDIVIDUAL AND INDIVIDUALISM IN NORBERT ELIAS


Keywords Abstract
Norbert Elias; The essay, theoretical in nature, discusses the concepts of
figurational sociology; individual and individualism in Norbert Elias. To this end,
individual; three objectives are pursued: - starting from the works The
figuration; court society, The civilizing process, and The society of indi-
individualism. viduals, we discuss the concept of figuration, Eliasian con-
ceptual solution to the antithetical pair individual and
. society; - Mozart, sociology of a genius is used as a case study
in which the genius is seen in his figuration, interdepend-
ent relations and social constraints; - finally, thinking with
and from Elias, we put forward the understanding of indi-
vidualism as individual and social habitus, a formulation
that indicates the radicality of the concept of figuration,
which affirms society as the formation of interdependent
individuals, despite the individual or social perception of
possible autonomy, interdependence consisting of an em-
pirical and ontological question.
912
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v1138

1 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Departamento


de Sociologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
Recife, PE, Brasil
cristiano.ramalho@ufpe.br
http://orcid.org/0000-0002-1648-456X

Cristiano Wellington Noberto Ramalho I

CULTURA DE OFÍCIO MARÍTIMA PESQUEIRA *

Minha jangada
Eu batizei Regalia
E por gozar ventania
O pano é bem amarrado.
No mar salgado
Range, embica, pende e salta
Toda vez que a maré alta
Namora o vento exaltado
(Siba, “Brisa”)

Este escrito analisa um grupo social que vive tradicionalmente do trabalho da


pesca artesanal no Brasil, o dos jangadeiros, cujo modo de vida tornou-se si-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

nônimo de uma extensa faixa litorânea do Nordeste brasileiro, do Ceará ao sul


da Bahia. 1 Ao longo de dois séculos (XVI e XVII), a jangada, de referencial téc-
nico-tecnológico indígena caetés, foi o equipamento hegemônico da pesca nas
águas marinhas de Pernambuco. Após a segunda metade do século XVIII, ela
foi modificada para poder se distanciar da costa, o que a tornou uma jangada
de alto-mar. Assim, passaram a coexistir duas formas dessa embarcação (as de
alto-mar e as de mar de dentro 2). E foi assim, na condição de personagem he-
gemônica ou única – muitas vezes – das pescarias realizadas no oceano, que as
de alto-mar chegaram até a década de 1970, quando se deu o aparecimento dos
barcos motorizados. A cultura jangadeira, contudo, nunca deixou de ser impor-
tante para muitas comunidades litorâneas.
Nesse cenário Pernambuco se destaca, ora em decorrência da existência
de várias imagens e relatos históricos de viajantes, desde a chegada dos por-
tugueses, sobre a presença intensa e extensiva dos jangadeiros nos mares locais,
ora por continuar sendo um dos lugares mais expressivos em relação à presen-
ça desse tipo de pescador – o estado, aliás, possui o maior número de jangadas
cultura de ofício marítima pesqueira

914

(769) e detém a maior produção pesqueira capturada por jangadeiros (4.270,6


toneladas de pescados), tendo no município de São José da Coroa Grande (lito-
ral sul e distante 125km do Recife) o que concentra a quantidade mais signifi-
cativa deles no país, segundo a última e mais detalhada estatística pesqueira
realizada em âmbito federal (Cepene-Ibama, 2006; 2008). 3
A nossa hipótese é de que, por incorporar tradições marítimas e artesãs
e étnicas distintas, o jangadeiro fez-se ponto de chegada e de partida de uma
cultura de ofício pesqueira marítima no Brasil, tendo na jangada de alto-mar
o centro de sua existência sociocultural e econômica, com capacidade de pro-
duzir e reproduzir-se enquanto sujeito hegemônico da pesca artesanal marinha
por cerca de quatro séculos.
Combinamos dois procedimentos metodológicos, o primeiro de mais
peso: a abordagem sócio-histórica com base em artigos, livros e imagens, bem
como em escritos de viajantes do século XVI até o XIX. A ideia foi identificar e
analisar a maneira como as jangadas e os jangadeiros foram descritos em suas
formas de trabalho, modos de vida, técnicas e tecnologias produtivas. Já o uso
das imagens almejou ilustrar mudanças e/ou permanências relativas aos as-
pectos anteriormente destacados, a partir de pinturas e fotografias 4 das janga-
das e dos jangadeiros ao longo dos séculos em Pernambuco.
A pesquisa de campo deu-se de janeiro a maio de 2015 e, depois, de abril
de 2017 a março de 2018 em São José da Coroa Grande, onde foram entrevista-
dos 12 jangadeiros de mar-alto, 5 focalizando suas histórias de vida, especial-
mente os que tinham, no mínimo, 65 anos de idade, ou seja, os que haviam
ingressado no trabalho pesqueiro antes da proliferação e hegemonia dos barcos
motorizados (botes 6) na pesca artesanal de alto-mar, fato que aconteceu a par-
tir da década de 1970 e que levou as jangadas a deixar sua condição de princi-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

pal embarcação do mar de fora. Encontra-se aí a razão de nosso recorte histó-


rico, século XVII ao decênio de 1970. Às entrevistas centradas na história de
vida, que foi a estratégia mais privilegiada do campo, combinou-se a observa-
ção direta no mar (realizamos oito saídas para o oceano com os jangadeiros
que ainda estavam em atividade, de janeiro a maio de 2015), pois algumas
questões mencionadas pelos jangadeiros, até os anos 1970, ainda podiam ser
observadas no trabalho pesqueiro. Tudo isso se voltou para nosso entendimen-
to do modo como se constituíram o processo de socialização, a formação dessa
cultura específica do mundo do trabalho (artesã e marítima), as representações
sobre o ofício e o mar, partilhas, continuidades e/ou rupturas na pesca da jan-
gada em suas técnicas e tecnologias.
Em certos trechos da redação, entrecruzamos análise histórica oriunda
dos livros, artigos e imagens com os depoimentos dos jangadeiros, no intuito
de, além de ofertar maior riqueza e dinamismo à análise, estabelecer algumas
comparações para encontrar singularidades e/ou semelhanças.
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

915

Mar de encontros: as culturas marítima e de ofício


Algumas frases oriundas de nossos diálogos com jangadeiros ao longo da pes-
quisa foram essenciais para as categorias de análise deste artigo: por um lado,
as ideias expressas por eles de que “dentro da jangada, lá no mar, é outro
mundo”, “a vida no mar faz um homem diferente do da terra” ou “o mar e a
jangada fizeram de nós cabras únicos”; por outro, “não dá pra explicar a vida
na jangada se a pessoa deixar pra fora que o jangadeiro é um tipo de artesão”,
“um ofício que tem mestre pra ensinar a gente as manhas da pesca, de domínio
da jangada e viver no mar”. Sem dúvida, “isso se ajunta” para esses pescadores.
Com base nesses relatos, resolvemos explorar cientificamente tais ca-
tegorias locais. Para tanto, os conceitos de cultura marítima e cultura de ofício
serão a base de nossa argumentação por representar a articulação de elemen-
tos materiais e imateriais presentes no universo do trabalho e da sociabilidade
dos jangadeiros, que se desdobrarão no que categorizamos como cultura de
ofício marítima pesqueira.
A cultura marítima incorpora códigos, normas, valores, sociabilidades,
linguagens, simbologias, saberes e organização produtiva capazes de possibi-
litar a (re)produção sociocultural dos homens no mar ao longo dos 7.500km da
região costeira brasileira. Significa igualmente modos de vida particulares que
encontraram nas águas suas razões de ser; e é justamente aí que podemos
“falar de uma ‘subcultura caiçara’ e de uma ‘subcultura jangadeira’, no interior
de uma cultura marítima em geral existente no Brasil” (Silva, 1993: 12), a dos
pescadores artesanais, tendo a primeira se abrigado no Sul e Sudeste, e a outra
no Nordeste secularmente.
A cultura marítima dos pescadores serviu de esteio para outras culturas
marítimas. Na Europa, em finais do século XV, “algumas comunidades criaram
culturas marítimas locais e regionais e, em alguns casos, desenvolveram im-
portante atividade pesqueira, funcionando assim como escolas, nas quais os
exploradores da década de 1490 iam buscar navios e tripulações” (Fernández-
Armesto, 2009: 196-197).
Embora existam várias expressões da cultura marítima (além dos diver-
sos tipos de pescadores, surgiram marinheiros, navegantes, piratas, velejadores),
elas se apoiaram em uma centralidade: a água como marco e marca existencial.
E isso se torna também evidente em estudos internacionais (Acheson, 1981;
Collet, 1993; Philbrick, 2000; Rediker; Linebaugh; 2008; Rediker, 2011; Ritchie,
1989), cuja sociedade flutuante (vida embarcada) criou processos sociais reple-
tos de dinâmicas peculiares com suas formas de solidariedade, incertezas e
imaginários, pois não se deve desconsiderar o fato de que “definitivamente, a
gente do mar tem boa parte de sua existência em um ambiente distinto do
‘continental’” (Mollat, 1983: 220).
Imaginários esses que decorrem das singularidades e contextos “viven-
ciados no isolamento dos mares” (Miceli, 2008: 205). Ademais, os riscos de aci-
cultura de ofício marítima pesqueira

916

dente e morte nos oceanos exigiam solidariedades entre os tripulantes de um


mesmo destino (o barco) para que pudessem sobreviver, viver.
Isso mostra a importância da vida embarcada como categoria represen-
tativa na definição desse conceito, o que também é decisivo para a pesca arte-
sanal, porque “significa a produção de um modo de vida particular, com sua
ideologia, racionalidade, sociabilidade e organização típica de um trabalho, o
que propiciou o florescimento de uma cultura marítima com seus laços de
pertencimento e seus princípios éticos fundantes e fundados por reciprocida-
des” (Ramalho, Santos, 2018: 259). Outrossim, “é a conjugação de seu trabalho
com os instrumentos que possibilita a atividade, que não pode se dar sem al-
guma forma de mediação tecnológica entre o homem e os peixes a serem cap-
turados” (Pessanha, 2003: 76), que encontra na sua sociedade flutuante uma
centralidade existencial.
Para os povos pesqueiros, laços de sociabilidade e territoriais fundem-se
como chaves explicativas da sua cultura marítima, e o barco é mais do que um
simples instrumento produtivo, ao significar relações afetivas, território iden-
titário, uma totalidade formada pela soma de tripulantes, segurança possível
em um ambiente móvel e perigoso, uma oficina artesã em pleno movimento
(Ramalho, 2011; 2017a; 2017b).
É na vida embarcada que a cultura marítima resplandece. “Desta forma,
a noção de cultura marítima aponta para a existência de noções e princípios
que estão além do momento de produção e que também a antecedem, perpas-
sando a ordem social, a lógica e os valores das sociedades de pescadores ma-
rítimos” (Maldonado, 1993: 34). Por isso, “a maritimidade não é um conceito
ligado diretamente ao mundo oceânico enquanto entidade física, é uma pro-
dução social e simbólica (Diegues, 2004: 15-16).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

Embora a centralidade do mundo das águas seja essencial, os estudos


anteriormente referidos dividem-se em alguns eixos específicos: uma aborda-
gem mais simbólica, a exemplo de autores como Maldonado (1993) e Mollat
(1983); outra acerca do trabalho, suas formas de organização, vivência e repre-
sentações (Diegues, 1983; Pessanha, 2003); e, por fim, uma terceira sobre os
marcos das desigualdades, seus questionamentos e sociabilidades, linguagens
e ritos próprios, que se apresentavam – neste último caso - na rotina embarca-
da das grandes navegações (Rediker, Linebaugh, 2008; Rediker, 2011; Rodrigues,
2005; 2016).
Buscamos estabelecer, neste escrito, um exercício de síntese dos três
eixos acima apontados, com base no conceito de cultura do trabalho voltado
para a realidade da pesca artesanal, até para melhor entender a própria cate-
goria cultura marítima, dando continuidade a escritos anteriores (Ramalho,
2017a). Esse conceito, de cultura do trabalho, é desenvolvido por Rodrigues
(2005; 2016) para desvelar exclusivamente a vida embarcada nas navegações
que cruzavam séculos atrás o Atlântico para chegar ao Brasil, entre as quais os
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

917

navios negreiros. Lembramos que a cultura do trabalho resulta dos costumes,


experiências e valores pertencentes a determinada fração de classe social,
dando-lhe sentido e identidade ao lhe permitir opor-se e/ou diferenciar-se de
outros grupos sociais em termos práticos e simbólicos, especialmente a partir
das experiências de vida e, também, do lugar que ocupa na esfera da produção
(Thompson, 2002). Ademais, “homens e mulheres, ao se confrontar com as ne-
cessidades de sua existência, formulam também seus próprios valores e criam
sua cultura própria, intrínsecos a seu modo de vida” (Thompson, 2001: 261). Ou
seja, as pessoas “experimentam sua experiência como sentimento e lidam com
esse sentimento na cultura, como normas, como obrigações familiares e de
parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elabo-
radas) na arte ou nas convicções religiosas” (Thompson, 1981: 193). Trazida
para o âmbito dos jangadeiros, de sua cultura marítima, essa cultura de traba-
lho, que podemos classificar como pesqueira, pode ser interpretada enquanto
um modo de vida e de trabalho singulares, experienciados nas águas, na socia-
bilidade embarcada. De modo geral, “trata-se de ir ao encontro dos valores em
torno dos quais legitimavam as condições de seu pertencimento social, as re-
presentações que os levavam a criar uma identidade particular, as formas com
que designavam os ‘outros’” (Silva, 2003: 26). Desse modo, cultura do trabalho
pesqueira será aqui tratada por cultura marítima, em decorrência das próprias
singularidades do que é viver nas (e das) águas marinhas.
A cultura marítima dos jangadeiros também se constituiu, no passado,
em interação com as dinâmicas da casa-grande, dos sobrados, da escravidão
ou da busca pelo trabalho livre, e, no presente, por ser o jangadeiro um habi-
tante das periferias das grandes cidades e/ou dos pequenos municípios. Se não
for o primeiro pescador artesanal marítimo de nosso país, o jangadeiro o é de
Pernambuco, sendo a um só tempo pai e filho da cultura marítima pesqueira
artesanal. Segundo pesquisadores, “os jangadeiros constituem, talvez, os pes-
cadores artesanais por excelência” (Tassara, 2005, p. 36), sendo “essencialmen-
te pescadores marítimos” (Diegues, Arruda, 2001: 46).
Essa cultura marítima do jangadeiro associou-se ao que classificamos
como cultura de ofício, oriunda das corporações (confrarias e irmandades) que
existiram no Brasil até o século XIX oficialmente, já que sua extinção legal foi
promulgada pela Constituição do Império, de 1824. Vários aspectos dessa orga-
nização social, porém, não se deslocaram dos costumes e práticas dos setores
populares, mantendo-se ainda hoje entre pescadores.
Essa cultura de “ofício compreendia todos aqueles que tinham adquiri-
do técnicas peculiares de ocupação mais ou menos difícil, através de um pro-
cesso específico de educação” (Hobsbawm, 1987: 355) inerente ao trabalho, no
qual “ao mestre não cabia unicamente a função instrutora, mas o caráter edu-
cativo do processo de aprendizagem profissional, individual e social do
aprendiz”(Martins, 2008: 83). Entre eles imperava “um senso de dignidade e de
cultura de ofício marítima pesqueira

918

autoestima, derivado do trabalho manual difícil, bom e útil à sociedade” (Ho-


bsbawm, 1987: 372), que legitimava sua condição de artista (Cunha, 2000) e se
avivava, aliás, na força societária do verbo fazer, já que “o fazer do artista res-
salta o aspecto artesanal de seu trabalho, no sentido de ver sua obra acabada
após ter percorrido ele próprio as etapas necessárias à sua realização” (Lopes,
1976: 36, grifo do autor), ou seja, “o ‘artista mesmo’ é reconhecido por sua prá-
tica cotidiana” (Lopes, 1976: 39).
Por isso, encarna uma “crença justificada de que sua técnica era indis-
pensável à produção; na verdade na crença de que ela era o único fator indis-
pensável à produção” (Hobsbawm, 1987: 358, grifo do autor), o que encontramos
na tradição de trabalho dos jangadeiros. Tradição essa que entendemos como
“reprodução em ação” (Williams, 2008: 184).
Em várias comunidades os pescadores portam um “sentimento de cor-
poração de ofício”, propiciando que a pescaria artesanal seja “entendida como
o domínio de um conjunto de conhecimentos e técnicas que permitem ao pro-
dutor subsistir e se reproduzir enquanto pescador” (Diegues, 1983: 197). Portam
um pertencimento ao trabalho vivido como uma “cultura de ofício pesqueira”
(Ramalho, 2020: 335). Ser pescador é ter “o controle de como pescar e do que
pescar, em suma, o controle da arte da pesca” (Diegues, 1983: 198), que se efe-
tiva nas águas em pleno exercício da atividade pesqueira; e “esse controle da
‘arte da pesca’ se aprende com ‘os mais velhos’ e com a experiência” (Diegues,
1995: 35), gerando distinções em relação a outros profissionais e moradores
locais. Então, “o pescador aqui aparece como um mestre em seu ofício; possui-
dor, portanto, de um saber profissional capaz de distingui-lo dos demais mo-
radores. Detém consigo competências adquiridas a partir de uma biografia
dedicada exclusivamente à pesca artesanal” (Dias Neto, 2015: 95).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

No Brasil, o surgimento da cultura marítima irmanou-se, na pesca, com


a cultura de ofício, e o jangadeiro foi seu artífice primevo, sendo a afirmação
da condição de pescador artesanal e, assim, a expressão da cultura de ofício
marítima pesqueira (sociabilidade embarcada e um tipo de trabalho fundado
num complexo saber-fazer de base artesanal), que reverberou de forma hege-
mônica entre pescadores do mar de fora de Pernambuco até 1970, conectando,
dialeticamente, organização produtiva artesã e tradições marítimas na sua so-
ciedade flutuante chamada jangada de alto-mar.

Os jangadeiros e a pesca artesanal


Antes da chegada dos portugueses em 1500, a pesca era praticada junto à cos-
ta por diversos grupos indígenas em canoas feitas “com casca de árvore ou
cavadas a fogo em um só tronco” (Ribeiro, 1995: 129) e/ou em jangadas (deno-
minadas peri-peri pelos nativos) fabricadas “com cinco ou seis paus, toros ou
rolos de uma madeira bastante leve de fácil flutuar, conhecida como piúba,
pau-de-balsa, jangadeira, embira-branca ou pente-de-macaco” (Tassara, 2005:
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

919

40). Não se tinha uma tradição, nem domínio técnico e tecnológico para se al-
cançar o mar alto, as águas profundas, como foi também o caso dos caetés, que
dominaram todo litoral de Pernambuco (Silva, 1998). A grande biodiversidade
permitiu aos caetés pescar nos rios, estuários e na beira-mar, já que os pesca-
dos (peixes, moluscos e crustáceos) habitavam ou chegavam em fartura até ali
e, portanto, não havia necessidade de deslocamento mar adentro (Monteiro,
1992). Por isso, “foi exatamente na pesca fluvial e lacustre que as influências
indígenas chegaram a exercer-se e a perdurar entre nós, quase sem temer com-
petição” (Holanda, 2011: 330), deixando-nos como herança técnicas e tecnologias
de capturas, a exemplo dos anzóis de espinhos, jereré, puçás 7 e, fundamental-
mente, a jangada (ver figura 1).

1
Frans Post, jangada à beira-mar
cabo de Santo Agostinho, Pernambuco
pintura, 1645
330 x 510mm
(Maior, Silva, 1993)
cultura de ofício marítima pesqueira

920

Dedicaram-se os caetés, assim como vários outros grupos indígenas, a


outras atividades combinadas à pescaria, porque “estes viviam, principalmen-
te, de caça, pesca e coleta, muitas vezes de forma itinerante, ainda que ocasio-
nalmente tivessem roças de mandioca” (Lago, 2014: 30). Antes da chegada dos
portugueses não havia relações mercantis (trocas monetárias) desenvolvidas
pelos indígenas, mas de escambos, trocas de produtos.
Com o aumento do extermínio, fuga e/ou não adaptação indígena ao
trabalho de cunho mercantil e compulsório imposto pela colonização portu-
guesa, outro sujeito (o africano escravizado) entrou em cena na pesca brasilei-
ra, do século XVII em diante (Freyre, 2004; Silva, 2001), marcando profundamen-
te a cultura pesqueira nordestina ao fazer dela uma cultura marítima via o
aparecimento do pescador artesanal.
Ser pescador artesanal é mais do que um ato de pesca, ou seja, ser jan-
gadeiro é mais do que pescar de jangada, é um modo de vida, no qual a pesca-
ria assume centralidade na existência do indivíduo e da sua comunidade. Então,
o índio caeté que pescava não deve ser caracterizado, propriamente, como pes-
cador artesanal.
Mas qual o motivo para isso?
O trabalho da pesca artesanal no Brasil, principalmente na região nor-
destina, surgiu e se desenvolveu (do período colonial ao Império) fundamenta-
do no trabalho negro escravo (ver figura 2 na página seguinte), assim como
aconteceu com as demais atividades artesanais (Silva, 2001). Diferentemente
do índio, esse africano escravizado era resultado do tráfico negreiro presente
na dinâmica da divisão internacional do trabalho da época, sendo uma merca-
doria de importante sustentação da ordem econômica colonial capitalista aqui
instalada (monocultivo da cana-de-açúcar e grande propriedade de terra) com
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

seu tipo de acumulação original (Fernandes, 2010; Kowarick, 1994).


Tais questões conferiram novos determinantes à pesca, por conectá-la
à economia colonial (e mercantil), seja em termos diretos ao trabalhar em prol
da casa-grande, da alimentação das senzalas ou dos senhores dos sobrados,
seja indiretamente ao disponibilizar alimento e renda para segmentos popula-
cionais que existiam sob a sombra e os espaços deixados pela economia açu-
careira, seja pelo fato de os pescadores combinarem consumo familiar e co-
mercialização de seus pescados nas ruas de centros urbanos (Olinda e Recife)
e/ou entrega de parte do que capturavam aos seus senhores, o que refletia a
condição daqueles sujeitos que ingressaram na pescaria.
Muitos negros escravizados eram originários das regiões costeiras afri-
canas e, portanto, alguns já tinham sido socializados na pesca (Rodrigues, 2016),
como era o caso dos Cabinda que chegaram em Pernambuco (Silva, 1998, 2001),
o que foi a âncora, do século XVII em diante, para que vários deles fossem
comprados por conta dessa experiência e incorporados a uma tripulação pes-
queira, com o objetivo de gerar renda para seus senhores de maneira mais
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

921

2
Frans Post, pescador negro em jangada de rolo,
sem vela, de estilo indígena, com fateixa
ao fundo, Recife,
pintura, 1640
Fonte: Maior, Silva, 1993

rápida ao evitar que os mesmos “perdessem tempo” no preparo profissional de


seus novos escravos. Sem dúvida, “constitui um fato que algumas das diversas
nações ou etnias africanas envolvidas no tráfico atlântico entre os séculos XVII
e XIX detinham um arcabouço técnico simples, de pequena escala (armadilhas,
redes e embarcações), empregado na pesca marítima e litorânea e na navegação
por rios e mar” (Silva, 2001: 61).
Esse fenômeno deu-se com a obrigação de vínculo desses trabalhadores
de cor às corporações ou irmandades negras, devido às normas que regulamen-
tavam o exercício dos ofícios − de modo geral − na época. Cada irmandade tinha
como “patrono um santo do calendário” (Vitorino, 2004: 170), recebendo a tu-
tela das Câmaras Municipais (Recife era uma delas), 8 também mediante paga-
mentos de impostos (Costa, 1954). Assim, distintamente do que se efetivou na
Europa, boa parte dos profissionais das corporações era de origem sobretudo
negra escrava (Cunha, 2000).
cultura de ofício marítima pesqueira

922

Na segunda década do século XVII, constatam-se menções feitas por via-


jantes da existência, em Pernambuco, de negros escravos na pesca artesanal:
“Mas a principal pescaria de que se aproveitam os demais moradores deste Estado
é a que mandam fazer por negros em jangadas, os quais nelas saem fora ao mar
alto, aonde ao anzol pescam peixes grandes e formosos, com os quais se tornam
a recolher ao pôr do sol, e desta sorte se toma muito pescado” (Brandão, 1997: 184).
Outros europeus, que estiveram no estado, narraram algo sobre as jan-
gadas e/ou os jangadeiros. Em 1816 Tollenare (1978: 17) registrou que, quando
aqui chegou, “o mar estava coberto de jangadas ou pequenas balsas do país,
nas quais os negros pescadores se aventuram com uma audácia assombrosa”.
No mesmo século XIX, Gardner (1942: 64) abordou a jangada em sua chegada
ao Porto do Recife ao identificar que “perto de nós passou grande número de
barcos de pesca, de construção originalíssima: chamam-se jangadas e são for-
madas de quatro ou mais peças de madeiras, atadas umas às outras, com um
mastro e uma grande vela, um banco fixo em forma de mocho”.
Nesse contexto, a expansão da pesca artesanal deu-se por meio, de um
lado, da proliferação dos escravos de ganho (também chamados de aluguel ou
rendeiro), já que havia limites em fiscalizar esse trabalho nos rios, estuários e,
fundamentalmente, no mar; e, do outro, pela constituição das corporações de
ofício, confrarias ou irmandades.
A inserção do negro escravo no universo produtivo artesanal fez com
que muitos mestres artesãos portugueses – chegados aqui – repassassem os
ensinamentos de suas artes aos seus escravos aprendizes, no intuito de torná-
los mestres o mais rápido possível, ao mesmo tempo em que pretendiam obter
renda, extraindo-a do trabalho exercido por seus negros artífices, de acordo
com um pagamento estipulado aos próprios escravos de ganho ou de aluguel.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

Inúmeros negros eram escravos de aluguel (ou ganho), como relatou o


viajante inglês Koster (2002: 633), quando de sua estada em Pernambuco, no
início do século XIX. Então, pescadores, marceneiros, sapateiros e outros “pa-
gavam semanalmente aos seus donos um estipêndio proveniente do que ga-
nham n’algumas ocupações feitas sem que estejam sob o olhar do senhor”. Eles
tinham a chance de obter dinheiro para comprar suas alforrias, em alguns
casos. Era comum, enquanto proprietários de escravos, “dois tipos de senhores.
Entre os primeiros encontramos os pequenos proprietários urbanos, que dis-
punham de poucos artífices. Os outros eram os empreiteiros de médio e gran-
de porte que possuíam quantidades de escravos mais consideráveis” (Mac Cord,
2012: 53).Por meio de dados oficiais da época, Silva (2001) identificou, nas pri-
meiras décadas do século XIX, uma quantidade maior de mulatos livres e negros
alforriados exercendo a pesca em Pernambuco, e um dos prováveis motivos era
a oportunidade de terem conseguido pagar suas cartas de alforria, dos filhos e
esposas, sendo escravos de ganho. Isso não era uma trilha fácil, mas possível.
Vale lembrar o que aludiu Koster (2002: 380): “um pescador obtivera a manu-
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

923

missão de sua mulher porque, mesmo ele continuando cativo, desejava que os
futuros filhos nascessem libertos, e se mantinha no propósito de adquirir pos-
teriormente sua liberdade e a dos outros filhinhos”.
Em 1844 um viajante norte-americano embarcou em uma jangada con-
duzida por negros alforriados, descrevendo a perícia deles: “Os nossos negros
jangadeiros mostravam-se muito polidos e quietos durante a viagem. Eram
ambos negros forros e moradores de Itamaracá. Mostravam-se conhecedores
de seus misteres e diligentes em executá-los (Kidder, 1943: 113).
A situação desses escravos de aluguel ensejava “um emaranhado de pos-
sibilidades de ascensão social negadas ao assenzalado” (Barbosa, 2008: 73). De
fato, “a subgrupos de mecânicos vindos do Reino ou da Europa foram-se jun-
tando muitos mestiços, hábeis em ofícios, peritos em caligrafia e em outras
artes burocráticas aprendidas com os brancos e que, desde os primeiros dias
de colonização, começaram a surgir na sombra das casas-grandes e dos sobra-
dos patriarcais e, principalmente – naqueles primeiros dias – dos colégios de
padres” (Freyre, 2003: 493). 9
Dependentes do mundo pesqueiro, profissões e atividades econômicas
floresceram numa espécie de “microeconomia dos pobres” (Castellucci Júnior,
2009: 134). Quanto mais a pesca artesanal ocupava espaço e tempo na vida das
pessoas, apareceram sujeitos sociais especializados e dedicados, exclusivamen-
te, ao fabrico e à confecção de embarcações e armadilhas para pescar, tornan-
do-se artesãos respeitados pela qualidade dos seus trabalhos.
E isso também ocorreu com o comércio dos pescados em cidades como
Recife, Olinda e Salvador, que era fartamente ocupado pelas mulheres negras
(libertas ou escravas de ganho) chamadas de ganhadeiras no século XIX. Cas-
tellucci Junior (2009: 139, grifo do autor) mencionou que “pelo respeito desfru-
tado no seio da gente miúda, e pelas repercussões de suas ações nas vilas e
cidades do Brasil, as ganhadeiras foram eternizadas pelo olhar sensível de cro-
nistas e viajantes de época, os quais viram, em suas atividades, um tipo de
comércio, no mínimo, inusitado [...] elas cumpriam um importante papel na
distribuição de subsistência, sobretudo, o pescado”.
Percebe-se que o pescador artesanal emerge em sociedades cuja produ-
ção, além de ser um valor de uso, torna-se cada vez mais uma mercadoria (e até
renda para alguns senhores), não se destinando somente à subsistência. Assim,
sua faina voltava-se “para dois horizontes. De um lado, para o consumo domés-
tico e, de outro, para a comercialização. Esse horizonte tende a se alargar à
medida que se criam e/ou se ampliam os mercados já existentes para o produto
da pesca” (Furtado, 1993: 335), devido ao fato de muitos residirem “na própria
cidade ou em suas proximidades” (Diegues, 1983: 221) ou em face das mudanças
vividas pelas áreas rurais. No geral, o que se apresentou ao horizonte desses
jangadeiros e que conferiu sentido ao seu trabalho foi alcançar a alforria (sua,
da esposa e filhos), anunciando que essa cultura marítima “não é somente uma
herança; é também um projeto” (Houtondji apud Sahlins, 1997: 131).
cultura de ofício marítima pesqueira

924

A sociedade flutuante
O que representou o aparecimento dos jangadeiros em termos socioculturais
e econômicos? Sobre isso é importante voltarmos ao século XVII, pois foi nes-
se período que a jangada se sofisticou, especialmente devido ao fato de o pes-
cado ter ampliado sua participação na dieta alimentar de um crescente mer-
cado consumidor urbano (Olinda e Recife), bem como das áreas rurais (habi-
tantes dos engenhos de açúcar). Uma das provas disso foi a criação, em 1648,
de um mercado público exclusivo para a venda de pescados no Recife na fase
de ocupação holandesa (1630-1654). 10
O aumento populacional e a urbanização produziram a necessidade de
navegar mais distante e passar mais tempo no mar, o que se deu entre o final
do século XVII e o início do XIX (Cascudo, 2002; Ramalho, 2017a). No tempo da
“exclusividade” do modelo da pescaria e da jangada indígena, a organização do
trabalho não sofreu grandes alterações, visto que o menor porte do equipamen-
to de navegação, que poderia ser conduzido por, no máximo, dois homens ex-
plicitava as demandas concentradas na alimentação das populações nativas;
nesse caso, a venda ocupava valor secundário.
O crescimento da demanda alimentar e comercial levou pescadores a
inserir nas jangadas elementos da pesca lusitana, quando introduziram a vela
latina, o banco do mestre, o leme, a fateixa, 11 o anzol de ferro, para substituir
o de espinha, ocorrendo, ademais, um aumento no tamanho da embarcação
(capacidade maior para levar pessoas, de captura e armazenamento), fazendo
nascer a jangada de alto com sua vida social flutuante.
Concomitantemente, para que tais componentes pudessem ser utilizados,
ocorreu a difusão da arte de pescaria graças ao aparecimento dos misteres
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

pesqueiros, os quais permitiram o surgimento de profissionais vinculados ex-


clusivamente ao setor (homens livres ou escravos, na maioria, de ganho).
Deu-se, com isso, o nascimento de uma cultura marítima pertencente a
uma cultura de ofício, que se apoiou no aparecimento e na permanência do
mestre de pesca, e em maior divisão social do trabalho no barco. Isto é, o jan-
gadeiro foi o primeiro e o principal expoente − durante séculos − da cultura de
ofício marítima, que fez da jangada um instrumento “útil para vários misteres”
(Cascudo, 2002: 116).
A incorporação de tecnologias lusitanas e de técnicas africanas projetou-
se também articulada à permanência dos saberes indígenas, fazendo da jan-
gada de alto e dos instrumentos de capturas entes miscigenados, “fruto de
várias adaptações introduzidas pelos europeus e africanos” (Diegues, Arruda,
2001: 47), tendo por premissa o que já havia sido realizado pelos índios caetés.
Então, a cultura é troca material e simbólica (Sahlins, 1997). A instalação, nas
jangadas, do banco de mestre (banco de governo em algumas localidades) con-
feriu precisão ao trabalho marítimo e ajudou a dar direção mais proveitosa a
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

925

tal instrumento produtivo, pelo uso do leme (ou remo de governo) situado na
popa. Isso simbolizou a instauração de uma hierarquia social firmada no saber-
fazer, um domínio mais rigoroso e um exercício sofisticado constitutivo e cons-
tituído de uma cultura de ofício pesqueira marítima, cuja tradução manifestou
suas marcas, ora na presença, a partir daí em diante, do jangadeiro mestre no
comando do barco, ora na cultura material que renovou essa embarcação de
vida secular com a chegada do banco do mestre, da vela triangular, do leme,
dos papéis sociais no barco, de um saber-fazer peculiar etc., estabelecendo uma
simbiose entre jangadeiros e jangada de alto (figura 3).

a imagem não veio

3
Jangada de alto com vela latina, banco de mestre,
leme e âncora, sendo navegada por negros
(proeiro e mestre)
início do século XIX, Pernambuco
Fonte: Koster, 2002
cultura de ofício marítima pesqueira

926

Entendemos que essa cultura marítima já estava completamente con-


solidada no século XVIII; e foi ela que chegou quase inalterada até as décadas
de 1960 e 1970.
Aguiar (1965: 83) constatou, em 1960, que “a mesma jangada feita com
toros de madeira, utilizada no século XVI pelos caboclos que habitavam o lito-
ral do Nordeste na época do descobrimento, continua a ser, em pleno século
XX (quando o homem prepara-se para ir à lua), a principal navegação dos pes-
cadores da vila” praieira de Pontas de Pedra, Goiana, litoral norte de Pernam-
buco. Nessa época, na costa sul pernambucana, a jangada começava a dar lugar
aos barcos motorizados (Ramalho, 2006; 2017a), acontecendo fenômeno similar
em outras praias do Nordeste, como Alagoas (Forman, 1970) e Rio Grande do
Norte (Galvão, 1967: 20), porque “o bote-de-vela tomou-lhe o lugar [das jangadas]
e o bote motorizado, com motor a óleo diesel, vai gradativamente substituindo
o de vela”.
Sobre essa mudança coletamos inúmeros relatos dos jangadeiros de São
José da Coroa Grande, indicando que “foi por volta dos anos 1970 que as janga-
das tiveram que dividir o mar com os botes” e que depois “passaram a perder
a concorrência pros barcos a motor, mas sem sumir”.
Essa longa permanência da jangada parece ser aspecto universal nas
embarcações, o que mostra certa estabilidade nas dinâmicas de trabalho e do
modo de vida marítimo em muitas regiões. Braudel (1988: 41-42) argumentou
que “é espantoso ver ainda hoje, numa rua de Messina ou nos arredores de uma
pequena cidade grega, nas ilhas de Chio, Lesbos, em Samoa, na Turquia, ou
ainda em Djerba, barcos em construção que são surpreendentemente seme-
lhantes aos barcos gregos e romanos tal como nos são reconstituídos pela ico-
nografia antiga e pela arqueologia submarina”.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

No caso da rede e linha, pela facilidade de acesso à matéria-prima e


pelas técnicas aprendidas com os índios caetés e outros grupos para suas fei-
turas e seus usos, de maneira similar ao processo da jangada, houve um en-
contro entre a tradição portuguesa e o estilo nativo de fabrico, que foi mane-
jado e desenvolvido pelos negros com maestria. No passado, linhas e redes
eram feitas do fio da macaíba, ticum, principalmente, e do algodão (Costa, 1951,
1958). O ticum foi material usado por populações indígenas e, depois, por inú-
meros pescadores brasileiros (Mussolini, 1980). Em Pernambuco, seu uso per-
durou até os anos 1970, de acordo com, praticamente, todos os jangadeiros
entrevistados: “a gente usou ticum muito”, “acho que findou seu uso pra per-
tinho de 1980, mas alguns tinham parado antes”, “já na copa de 1978 eu não
usava mais”.
Assim como os instrumentos, as funções sociais do trabalho pesqueiro
sofreram poucas mudanças, principalmente quando comparamos os relatos
colhidos dos jangadeiros (suas histórias de vida) e a observação direta (quando
embarcamos) com os escritos dos viajantes do século XIX (Koster, 2004; Kidder,
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

927

1943; Tollenare, 1978), estudos acadêmicos sobre essa aludida época (Araújo,
2007; Cascudo, 1957; Silva, 2001) e imagens históricas (figuras 3, 4 e 5).
Além do mestre, os proeiros 12 (o da ponta e o do centro) e, em alguns
casos, o aprendiz (jovem que começa sua lide) surgiram em finais do século XVII,
como já foi apontado. Essa equipe de pescaria e sua organização passaram a ser
definidas como companha ou parceria pelas comunidades locais; e na divisão
das suas atribuições, o jangadeiro que ocupava a função de proeiro da ponta
caracterizava-se pela sofisticada capacidade de externar seu saber e fazer em
nível mais qualificado que o do centro. Por isso, localizava-se na ponta do barco,
lançando e retirando as redes e as pegando com o bicheiro (uma vara de mais
de dois metros com um gancho na ponta) e demais armadilhas na hora em que
a jangada – muitas vezes – estava em pleno movimento, sendo auxiliado pelo
proeiro do centro (ambos responsáveis pelos cuidados com a vela durante a
navegação: molhá-la, por exemplo). Já o aprendiz efetivava ações mais simples
de apoio ao trabalho dos demais, recebendo suas orientações e a do mestre. Tais
aspectos sobreviveram na pesca, de acordo com que observamos e também
colhemos nas entrevistas em São José da Coroa Grande (figuras 4, 5 e 6).

4
Pescadores em jangada, 1905, Recife, Pernambuco
estrutura igual à da que apareceu no século XVII
Arquivo Josebias Bandeira
Fonte: Acervo Fundação Joaquim Nabuco
cultura de ofício marítima pesqueira

928

a imagem não veio

5
Chegada de jangada do mar,
Pernambuco, 1940
Arquivo Josebias Bandeira
Fonte: Acervo Fundação
Joaquim Nabuco
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

6
Jangadeiros de alto-mar (mestre no governo,
provável jovem aprendiz e proeiro de ponta),
Olinda, Pernambuco, 1955
Foto colorizada: Volkmar K. Wentzel
Acervo National Geographic
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

929

Na hierarquia fundada pelo conhecimento, o proeiro da ponta é a segun-


da autoridade no barco após o mestre, fato que existe na pescaria de alto-mar
desde a segunda metade do século XVII (Cascudo, 1957). Em 1940 no Ceará, por
exemplo, Abreu (2012: 41, grifos da autora) encontrou uma estrutura parecida
de companha, em que “os jangadeiros normalmente saíam para pescar em
grupo de quatro, denominados, a partir de suas funções na jangada, de mestre,
proeiro, rebique e bico de proa”.
Em São José da Coroa Grande, segundo os jangadeiros, esses personagens,
com suas funções e hierarquias, “foram comuns” e “ainda são comuns até hoje
não só nas jangadas, mas nos botes também. Os botes trouxeram isso das jan-
gadas, depois dos anos de 1970”. De acordo com seu Inácio, jangadeiro aposen-
tado, “com praticamente todo jangadeiro foi o seguinte: menino entra como
aprendiz levado pelo seu pai, um tio mestre, e, se mostrasse capacidade, virava,
depois de uns tempos, proeiro, inclusive de ponta. Alguns chegavam a mestrar,
devido à sabedoria desenvolvida na vida do mar, de manejar a jangada e saber
pescar direitinho. Aí eu peguei isso e dei prosseguimento, assim como foi com
meu pai e avô”. Cada etapa e a socialização no mundo aquático são, para seu
Inácio, “a reunião de dois itens: entender do mar e dominar bem o seu serviço,
o seu ofício, pois, se o camarada não souber essas coisas, não vive em cima da
jangada em alto-mar. Por isso, precisamos do mestre”.
Esse elo familiar, seu processo de socialização e a presença do mestre
jangadeiro anunciam mecanismos de certa estabilidade social, com sua trans-
missão de valores e normas típicas dessa cultura de ofício marítima que ultra-
passou séculos.
A entrada e a hegemonia do mestre jangadeiro representaram, ao mesmo
tempo, a incorporação da arte de ser pescador em jangada, a conquista de espa-
ços mais amplos no mar e o predomínio de uma técnica mais rica de manejo e
desvelamento dos territórios marinhos. De fato, “com essas e outras modifica-
ções, o tempo de permanência no mar se prolongou para muito além da jornada
primitiva – que se iniciava ao amanhecer e findava ao pôr do sol –, possibilitan-
do um aumento no volume do pescado” (Araújo, 2007: 46). Dessa maneira, o
pescador negro (escravo ou forro) “saía a pescar em alto-mar, aonde os índios
ainda não havia ido” (Silva, 1988: 31), o que fez emergir, assim, um modo de vida
pesqueiro de mar alto, uma cultura marítima que agregava em si uma cultura
de trabalho de ofício com sua sociabilidade embarcada que passou a ficar, de
agora em diante, vários dias em águas profundas (até cinco dias).
Para o mestre de jangada seu José, “eu passava uns quatro dias no mar,
na jangada de alto. Sabe o que é isso? você vive n’outro mundo, rapaz, porque
a jangada é outro mundo. Não tem como: o mar faz você”. Desnuda-se, aqui,
uma dialética insuprimível entre o jangadeiro e o mar, sendo a construção
social da cultura de ofício marítima pesqueira influenciada pela natureza e
pela vida embarcada, enquanto marcas e centros da sua existência.
cultura de ofício marítima pesqueira

930

O distanciamento do continente significou a criação de um mundo de


relações socioculturais e econômicas peculiares ao universo marinho; e uma
dessas especificidades tem a ver com o tempo do jangadeiro, ou seja, o tempo
do pescador artesanal forjou-se enquanto um tempo ecossocial por encontrar-
se em fina relação com o tempo da natureza. Sem dúvida, os jangadeiros e as
outras expressões da condição de ser pescador artesanal sempre seguiram as
dinâmicas oceânicas, em que “os ritmos temporais presentes na pesca artesa-
nal implicam entender a forma como os homens se inter-relacionam, entre si,
e, especificamente, com a natureza marinha, como um ecossistema próprio”
(Cunha, 2000: 107). Isso permitiu não só a produção e reprodução de saberes e
fazeres singulares no mar, mas a criação de bairros ou comunidades – em gran-
des cidades ou em pequenos e médios municípios 13 – com dinâmicas próprias
de horários ao ser habitados por comunidades pesqueiras. De acordo com o
jangadeiro Amaro, “por conta da nossa vida depender do mar, tudo é diferente
pra nós, da hora de dormir e de acordar; do trabalhar à comida e ao lazer. O
mar faz a gente diferente das outras pessoas por essas bandas, em um tudo”.
A combinação dos aspectos aqui discutidos é importante para desvelar
o fato de que a pesca artesanal havia se tornado um tipo de trabalho em que a
pessoa passou “a viver exclusiva ou quase exclusivamente da sua profissão”
(Diegues, 1983: 155), incorporando um cabedal de conhecimentos típicos do
mar, com capacidade de mapear os locais mais piscosos e seguros para navegar
(Barbosa, Devos, 2017; Cascudo, 2002; Maldonado, 1993; Ramalho, 2006). Não
surge ao acaso a fala de seu Manoel, 14 jangadeiro aposentado de São José da
Coroa Grande: “não há um ofício mais desafiado que o nosso, porque atuamos
no mar, e o mar não é coisa qualquer. Ele muda todo tempo e é quase infinito.
Temos que decifrar toda hora ele, o que é coisa de muita sabedoria e se traz de
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

família”.
Isso fez com que o ato de pescar – além de ser transmitido no ouvir, ver,
sentir, saber, fazer e refazer geracionalmente – passasse a ser definitivamente
um modo de vida e trabalho peculiar, em que o jangadeiro é a base da cultura
de ofício marítima, do século XVII até o tempo presente.
O surgimento da profissão de pescador, com seu cabedal de conheci-
mento singular, ressoou na partilha dos frutos do trabalho por meio do quinhão,
que é algo característico do regime de companha existente na pesca artesanal
secularmente. O quinhão caracteriza-se por ser uma forma de organização e
divisão do resultado do trabalho com base na cooperação simples, mesclando
trabalho familiar e elos de compadrio e vizinhança, entre os tripulantes de uma
mesma embarcação. Foi trazido da pesca artesanal portuguesa e se difundiu
no Brasil (Diegues, 1983). É ainda muito presente na pesca portuguesa (Amorim,
2003), sendo, em Pernambuco, o modelo hegemônico até hoje.
Duas entrevistas feitas com jangadeiros 15 são emblemáticas por recupe-
rar componentes históricos sobre o quinhão. Por meio de histórias contadas a
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

931

eles, quando crianças, por seus ancestrais (um avô e outro tio-avô) e pescado-
res mais velhos da região, relataram acontecimentos sobre a pesca durante e
pós-escravatura, focalizando o quinhão: (a) “os cativos”, como chamavam os
escravos, separavam o que seria pago aos seus senhores, e o restante era divi-
dido igualmente entre os tripulantes (podiam ser negros do mesmo proprietá-
rio ou não), incluindo a parte do barco, isto é, se pescassem na jangada um
mestre e dois proeiros e se fossem capturados 250 quilos de peixes, “dividia-se
em cinco partes o vendido, do pagamento do senhor, da manutenção da em-
barcação e das armadilhas e o restante era divido pelos três que pescaram”; (b)
por existir jangadeiros com senhores diferentes, não deixava de haver uma
solidariedade entre os homens de uma mesma jangada, para efetivar o paga-
mento coletivamente por meio do quinhão, o que fazia com que a parte desses
senhores de escravo fosse garantida coletivamente; e (c) quando não se era
escravo, o pescado era dividido de maneira igualitária, contando com a parte
destinada ao instrumento de trabalho. Este último sistema, “é adotado até ho-
je por todos nós jangadeiros”, “tudo veio dos jangadeiros”, o que é facilitado,
segundo eles, pela condição “familiar que existia na equipe de pescaria e que
continua existindo hoje também nos de bote” (figuras 7 e 8).

7
Botes de pesca na praia de São José da
Coroa Grande, Pernambuco, jan. 2018
Fonte: Acervo do autor
cultura de ofício marítima pesqueira

932

8
Jangada indo para o mar,
São José da Coroa Grande, Pernambuco, nov. 2008
Fonte: acervo do autor

O quinhão e a companha, portanto, assentam-se, desde tempos imemo-


riais, no parentesco, em laços de compadrio, “sem vínculos empregatícios entre
as tripulações e os mestres” (Maldonado, 1986: 15), em que estes últimos sem-
pre cumpriram papel de destaque no desenvolvimento da equipe que pesca, na
permanência do quinhão e na transmissão do saber-fazer pesqueiro sendo “o
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

fundamento da organização […] e a distribuição do conhecimento e da infor-


mação” (Maldonado, 1993: 135).
Não se está aqui mencionando a família nuclear trabalhando no barco
(esposa e filhas), mas laços familiares que envolvem apenas os homens (irmãos,
pai, tios, primos, avôs) e aqueles que não são apenas parentes de sangue (compa-
dres, padrinhos, amigos). Essa questão feminina na pesca de alto-mar, aliás, situa-
se também no universo simbólico, sendo componente da cultura de ofício marí-
tima pesqueira. Historicamente, ir para o mar de fora tornou-se um ato apenas
masculino em diversas localidades e países. De modo geral, os marítimos com-
partilham o sentimento de que as mulheres, se embarcadas, não trariam sorte.
Não é à toa que duas importantes estudiosas das socioantropologia da
pesca no Brasil ressaltaram essa questão. Maldonado (1986: 21) afirmou: “não
conheço casos em que as mulheres participem junto com os homens da pesca
de alto”; e Miller (2012: 72), com base em depoimentos de pescadores e pesca-
doras, desvelou “que o sangue menstrual é perigoso e que pode trazer azar na
pescaria”, caso as mulheres embarquem.
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

933

De acordo com os jangadeiros pernambucanos, as mulheres não trariam


sorte no mar porque “podem afastar os peixes e a água pode ficar embravecida”;
levariam, segundo alguns, “Iemanjá a ficar triste e até revoltada devido ao ci-
úme”; seriam delicadas para as lidas marinhas, ao “não aguentarem o rojão”;
poderiam despertar intrigas entre os embarcados; ou precisam ficar em terra
cuidando dos filhos e da casa, pois é “melhor assim com cada um no seu lugar”.
Essa simbologia passa, além do machismo, pela presença de seres so-
brenaturais, como o Velho do Mangue, a Mãe-d’água e o João-Galafoice. São
seres que devem ser respeitados e nunca ofendidos. O mesmo se dá com o
nome de pessoas mortas. Impropérios no mar também são tabus para alguns,
porque “vários não gostam que se diga palavrões ou que se cuspa no mar”. “Sua
criação [a do mar], embora seja um ato de Deus”, pode ser influenciada pelas
“vontades do diabo, assim como acontece com as pessoas”, de acordo com os
jangadeiros. Então, “tem que se ter respeito mesmo”.
Uma das justificativas históricas para isso seria o sentimento de perigo
inerente ao mar, o medo do desconhecido, de criaturas sobrenaturais e da mor-
te (Corbin, 1989; Delumeau, 1989) tão presentes nas culturas marítimas pelo
mundo.
A história das comunidades pesqueiras no Brasil associa-se à existência
de divindades protetoras, ex-votos, devoção a santos e santas, procissões ma-
rítimas (São Pedro, São Gonçalo do Amarante, Nossa Senhora da Boa Viagem),
crenças e interdições, na condição de aspectos a respeitar em prol do sucesso
da pescaria e/ou da sobrevivência dos pescadores nos mares (Diegues, 2004).
Esse apego ao sagrado, aliás, acontece também em outros lugares, a exemplo
dos pescadores calabreses e sicilianos, na Itália, visto que “isolado no mar, dis-
tante da terra que nutre e na qual o corpo encontra sepultura, o pescador não
tem outro meio a não ser a ordem divina, os santos protetores e a Virgem Ma-
ria” (Collet, 1993: 145).
Além dessas questões pertencentes ao universo do imaginário das águas,
há outros aspectos que devem ser considerados no âmbito imaterial. Freyre
(2004: 67) observou que “o jangadeiro negro remava cantando dentro de um
ritmo”, conferindo, dessa maneira, uma dimensão lúdica ao seu trabalho e
estabelecendo uma inseparável conexão entre trabalho, arte e lazer. Nas praias
pernambucanas, a ciranda tornou-se uma manifestação típica dessas comuni-
dades; e no Rio Grande do Norte, para o jangadeiro, “o verdadeiro divertimento
é o coco de roda” (Cascudo, 1957: 33).
O conjunto dessas simbologias demarcou um modo de vida que se adap-
tou ao mundo aquático, construindo-o social, econômica e culturalmente. Tudo
isso foi produzindo e sendo produzido por uma cultura de ofício marítima
pesqueira, tendo na vida embarcada o seu centro simbólico e produtivo, uma
forma de ser, estar, sentir e ver o mundo (sua vida, a de seu grupo e a sua re-
lação com a natureza aquática). Assim, esse centro referencial, a sociedade
cultura de ofício marítima pesqueira

934

flutuante da jangada, aviva-se quando a vida nas águas se reproduz no decor-


rer do tempo, (re)criando práticas, costumes, simbologias e maneiras de traba-
lho únicas de um modo de vida bastante singular, uma tradição marítima e de
ofício que alcança vários séculos.

Conclusão
As transformações vividas pela jangada, de mar de dentro para mar de fora, e
sua permanência como principal embarcação pesqueira artesanal marítima
durante séculos representou a formação, expansão e continuidade de um mo-
do de vida e de um tipo de trabalho que incorporam tradições (culturas marí-
tima e de ofício) para construir dinâmicas societárias próprias, únicas.
Da cultura marítima, o jangadeiro herdou e (re)elaborou uma centralida-
de existencial apoiada no mar, cujo fundamento foi a sociedade flutuante da
jangada. Assim, formas de ser e determinações de existência, o afastamento da
terra durante dias e as representações sociais compuseram cotidianos singula-
res, uma cultura do trabalho pesqueira de alto-mar. Já da cultura de ofício, a
presença dos mestres, a influência do sentimento de corporação, o trabalho
baseado num profundo conhecimento e conexão entre saber e fazer também se
apresentaram no mundo dos jangadeiros, marcado por maritimidade específica.
Tudo isso se assentou e floresceu por meio de conexões entre tradições
étnicas e culturais diferentes. Se os elementos indígenas caetés foram a sua
base, os portugueses e, fundamentalmente, os africanos representaram o re-
pertório de consolidação e desenvolvimento da cultura de ofício marítima pes-
queira do jangadeiro, que foi e é tão singular em relação a outras pescarias
artesanais que proliferaram em nosso país.
Essa cultura de ofício marítima pesqueira ganha sentido nas histórias
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

de vida dos jangadeiros, que expressam a força do mar, a profunda habilidade


presente no trabalho pesqueiro, o imaginário, a organização produtiva, a mes-
trança, o quinhão e, principalmente, a arte de manejar a jangada no oceano
durantes dias. Apesar dos dados encontrados e das considerações feitas no
decorrer deste artigo, é, contudo, necessário compreender, em pesquisas futu-
ras, 16 como foi o impacto da chegada dos barcos motorizados na pesca artesa-
nal, na vida dos jangadeiros, em seu trabalho e para as jangadas, seja para os
que abandonaram essa embarcação secular para ingressar nos botes, seja para
desvelar as circunstâncias de continuidade dos jangadeiros e das jangadas após
a década de 1970 até o tempo presente.

Recebido em 07/05/2019 | Revisto em 06/07/2020 | Aprovado em 21/07/2020


artigo | cristiano wellington noberto ramalho

935

Cristiano Wellington Noberto Ramalho é doutor em ciências


sociais pela Universidade Estadual de Campinas e professor
associado do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
Pesquisador de produtividade do CNPq e do Núcleo de Estudos
Humanidades, Mares e Rios publicou Embarcadiços do encantamento:
trabalho sinônimo de arte, estética e liberdade na pesca marítima e
“Ah, esse povo do mar!”: um estudo sobre trabalho e pertencimento na
pesca artesanal pernambucana, “Mestria da pesca: cultura de um
ofício”, entre outros títulos. Coordenou (e coordena) projetos
financiados pela Facepe e o CNPq, bem como o projeto de extensão
Vozes da Pesca Artesanal, realizado em parceria com o Conselho
Pastoral dos Pescadores (CPP). Seus interesses de pesquisa
voltam-se, com mais ênfase, para entender o mundo do trabalho
pesqueiro artesanal.
cultura de ofício marítima pesqueira

936

NOTAS
* Agradecemos as valiosas sugestões feitas pelos(as) pare-
ceristas deste artigo e o apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científ ico e Tecnológ ico (CNPq), por
meio da Bolsa de Produtividade, e da Fundação de Ampa-
ro à Ciência e Tecnolog ia do Estado de Pernambuco (Fa-
cepe) para a realização de pesquisas que deram origem a
este escrito.
1 Sergipe, embora esteja entre Alagoas e a Bahia, não tem
jangadeiros.
2 Para os jangadeiros, pescar em alto-mar tem o mesmo
signif icado que pescar no mar de fora, mar adentro ou
mar alto, o que representa pescar após os arrecifes. Dis-
tingue-se da pesca do mar de dentro, que é realizada em
rios, estuários, mangues e na beira-mar.
3 O Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do
Litoral Nordeste (Cepene) era ligado ao Instituto Brasilei-
ro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) até a criação do Instituto Chico Mendes de Con-
servação da Biodiversidade (ICMBio) em 2007.
4 Não utilizamos fotografias históricas dos jangadeiros de
alto-mar de São José da Coroa Grande por dois motivos:
dif iculdades de conseg uir acesso a elas em acer vos pú-
blicos; e falta de autorização para torná-las públicas por
parte das famílias de dois fotógrafos amadores. Para com-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

pensar essa falta, mostramos fotos antigas de jangadeiros


e jangadas de outras praias pernambucanas para os jan-
gadeiros de São José da Coroa Grande (todas fazem parte
deste artigo), sendo unânime a afirmativa, por parte de
nossos entrevistados, de que elas eram similares ao que
existia na localidade (“sem tirar e nem pôr”).
5 Encerramos em 12 jangadeiros pelo fato de perceber que
as respostas começaram a repetir-se. Na primeira fase da
pesquisa foram sete entrevistados e, na segunda etapa,
cinco deles voltaram a ser ouvidos (dois tinham falecido)
e mais cinco foram adicionados.
6 Barco artesanal motorizado que conta com cabine e pos-
sui entre oito e 12 metros de comprimento.
7 Além da canoa e da jangada já referidas.
8 Essas prof issões eram consideradas artesanatos, artes
manuais, ofícios.
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

937

9 Ao lado das pescas desenvolvidas por negros, houve a de


brancos pobres, que procuraram praias afastadas dos
meios urbanos (Cabo, Ipojuca, Itamaracá, São José da Co-
roa Grande, Tamandaré), a fim de efetivar sua arte, bem
como para fug ir do estigma de exercer o mesmo ofício
que os trabalhadores de cor.
10 Em que pese sua inf luência na urbanização do Recife e
Olinda, do ponto de vista da organização do trabalho pes-
queiro, a época holandesa não trouxe novidades.
11 Armação de madeira em forma de X, de cima a baixo, com
uma pedra grande e redonda (entre três e cinco quilos em
média) no meio, que é pressionada pelas madeiras, fun-
cionando como âncora.
12 Jangadeiro que fica na proa da embarcação.
13 Dentro dessas características, em Pernambuco há as se-
guintes localidades: Pina, Brasília Teimosa e Ilha de Deus,
em Recife; Amaro Branco, em Olinda; Canto e Espinheiro,
em Itapissuma; Levada, Porto e Pedra, em Rio Formoso;
Abreu do Una e Várzea do Una em São José da Coroa Grande.
14 Nome fictício a pedido do entrevistado.
15 Um tinha 84 anos de idade, em fevereiro de 2015, e o outro
82 anos em janeiro de 2015 (ambos faleceram entre o final
desse ano e início de 2016). Eles ingressaram na pesca na
década de 1940.
16 Acerca disso, estamos desenvolvendo a pesquisa “A cul-
tura de ofício mar ítima pesqueira dos jangadeiros nor-
destinos” com apoio do CNPq, por meio de Bolsa de Pro-
dutividade (2020-2023).

Referências

Abreu, Berenice. (2012). Jangadeiros. Rio de Janeiro: Civili-


zação Brasileira.
Acheson, James. (1981). Anthropolog y of fishing. Annual
Review of Anthropology, 10.
Aguiar, Severino. (1965). Mudanças em um grupo de janga-
deiros de Pernambuco. Recife: Imprensa Universitária.
Amorim, Inês. (2003). Técnicas de pesca na costa portu-
guesa: melhorar ou inventar? um percurso de investiga-
ção. Zainak, 25, p. 349-368.
cultura de ofício marítima pesqueira

938

Araújo, Rita de Cássia Barboza. (2007). As praias e os dias.


Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife.
Barbosa, Alexandre de Freitas. (2008). A formação do mer-
cado de trabalho no Brasil. São Paulo: Alameda.
Barbosa, Gabriel Coutinho & Devos, Rafael. (2017). Para-
laxe e “marcação por terra”: técnicas de navegação entre
jangadeiros na Paraíba e Rio Grande do Norte (Brasil).
Mana, 23/3, p. 343-372.
Brandão, Ambrósio Fernandes. (1997). Diálogos da grande-
za do Brasil. 3 ed. Recife: Editora Massangana/Fundaj.
Braudel, Fernand. (1998 ). Memorias del Mediterráneo. Ma-
drid: Cátedra.
Cascudo, Luís da Câmara. (2002). Jangada. São Paulo: Glo-
bal Editora.
Cascudo, Luís da Câmara. (1957). Jangadeiros. Rio de Janei-
ro: SAI.
Castellucci Junior, Wellington. (2009). Caçadores de baleia:
armações, arpoadores, atravessadores e outros sujeitos envol-
vidos nos negócios do cetáceo no Brasil. São Paulo: Annablu-
me.
Cepene/Ibama. (2008). Boletim estatístico da pesca marítima
e estuarina do Nordeste do Brasil-2007. Tamandaré: Cepene/
Ibama.
Cepene/Ibama. (2006). Boletim estatístico da pesca marítima
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

e estuarina do Nordeste do Brasil-2006. Tamandaré: Cepene/


Ibama.
Collet, Serge. (1993). Uomini e pesce. Milano: Giuseppe Mai-
mone Ed.
Corbin, Alain. (1989). O território do vazio. São Paulo: Com-
panhia das Letras.
Costa, Francisco Augusto Pereira da. (1958). Anais pernam-
bucanos: 1795-1817. V. VII. Recife: Arquivo Público Estadual.
Costa, Francisco Augusto Pereira da. (1954). Anais pernam-
bucanos: 1740-1794. V. VI. Recife: Arquivo Público Estadual.
Costa, Francisco Augusto Pereira da. (1951). Anais pernam-
bucanos: 1493-1590. V. I. Recife: Arquivo Público Estadual.
Cunha, Lúcia Helena de O. (2000). Tempo natural e tempo
mercantil na pesca artesanal. In: Diegues, Antônio Carlos
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

939

(org.). Imagem das águas. São Paulo: Hucitec, p. 101-110.


Delumeau, Jean. (1989). História do medo no Ocidente (1300-
1800). São Paulo: Companhia das Letras.
Dias Neto, José Colaço. (2015). Quanto custa ser pescador
artesanal? Rio de Janeiro: Garamond.
Diegues, Antonio Carlos. (2004). A pesca construindo socie-
dades. São Paulo: Nupaub-USP.
Diegues, Antonio Carlos. (1995). Povos e mares. São Paulo:
Nupaub-USP.
Diegues, Antonio Carlos. (1983). Pescadores, camponeses e
trabalhadores do mar. São Paulo: Ática.
Diegues, Antonio Carlos & Arruda, Rinaldo. (2001). Sabe-
res tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília/São
Paulo: MMA /Nupaub-USP.
Fernandes, Florestan. (2010). Circuito fechado. São Paulo:
Editora Globo.
Fernandez-Armesto, Felipe. (2009). Os desbravadores: uma
história mundial da exploração da terra. São Paulo: Compa-
nhia das Letras.
Forman, Shepard. (1970). The raft fishermen. Indiana: Uni-
versity Press.
Freyre, Gilberto. (2004). Nordeste. 7 ed. São Paulo: Editora
Global.
Freyre, Gilberto. (2003). Sobrados & mucambos. 14 ed. São
Paulo: Editora Global.
Furtado, Lourdes Gonçalves. (1993). Pescadores do rio Ama-
zonas. Belém: MPEG.
Galvão, Hélio. (1967). Cartas da praia. Rio de Janeiro: Edi-
ções de Val.
Gardner, George. (1942). Viagens no Brasil. São Paulo: Com-
panhia Editora Nacional.
Hobsbawm, Eric. (1987). Mundos do trabalho. Rio de Janeiro:
Paz e Terra.
Holanda, Sérg io Buarque de. (2011). A pesca em nossa
economia colonial. In: Costa, Marcos (org.). Sérgio Buarque
de Holanda: escritos coligidos – livro I, 1920-1949. São Paulo:
Editora da Unesp/Fundação Perseu Abramo, p. 327-332.
Kidder, Daniel. (1943). Reminiscência de viagens e permanên-
cultura de ofício marítima pesqueira

940

cia no Brasil (províncias do Norte). São Paulo: Livraria Mar-


tins.
Koster, Henry. (2002). Viagens ao Nordeste do Brasil. V. I. 11
ed. Recife: Editora Massangana.
Koster, Henry. (2002). Viagens ao Nordeste do Brasil. Vol. II.
11 ed. Recife: Editora Massangana.
Kowarick, Lúcio. (1994). Trabalho e vadiagem. 2 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra.
Lago, Luiz Aranha Corrêa do. (2014). Da escravidão ao tra-
balho livre: Brasil, 1550-1900. São Paulo: Companhia das
Letras.
Lopes, José Sérg io Leite. (1976). O vapor do diabo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra.
Mac Cord, Marcelo. (2012). Artífices da cidadania. Campinas:
Editora da Unicamp.
Maior, Már io Souto & Silva, Leonardo Dantas (orgs.).
(1993). A paisagem pernambucana. Recife: Editora Massan-
gana.
Maldonado, Simone. (1993). Mestre & mares. São Paulo:
Annablume.
Maldonado, Simone. (1986). Pescadores do mar. São Paulo:
Ática.
Martins, Mônica de S. N. (2008). Entre a cruz e o capital: as
corporações de ofícios no Rio de Janeiro após a chegada da fa-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

mília real (1808-1824). Rio de Janeiro: Garamond.


Miceli, Paulo. (2008 ). O ponto onde estamos: viagens e via-
jantes na história da expansão e da conquista (Portugal, sécu-
lo XV e XVI). 4 ed. Campinas: Editora da Unicamp.
Miller, Francisca de Souza. (2012). Pescadores e coletoras de
Patané/Camocim. Natal: Editora da UFRN.
Mollat, Michel. (1983). La vie quotidienne des gens de mer en
Atlantique (IX-XVI). Paris: Hachette.
Monteiro, John Manuel. (1992). As populações indígenas
do litoral brasileiro no século X VI: transformação e re-
sistência. In: Dias, Jill R. (org.). Brasil nas vésperas do mun-
do moderno. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemo-
rações dos Descobrimentos Portugueses, p. 121-136.
Mussolini, Gioconda. (1980). Ensaios de antropologia indíge-
na e caiçara. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

941

Pessanha, Elina Gonçalves da Fonte. (2003). Os companhei-


ros. Niterói: Eduff.
Philbrick, Nathaniel. (2000). No coração do mar. São Paulo:
Companhia das Letras.
Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2020). Mestria
da pesca: cultura de um ofício. Etnográfica, 24/2, p. 315-337.
Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2017a). Embar-
cadiços do encantamento: trabalho sinônimo de arte, estética e
liberdade na pesca marítima. São Cristóvão/Campinas: Edi-
tora UFS/Ceres-Unicamp.
Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2017b). O mar
na terra e a terra no mar: o encontro das of icinas pes-
queiras. Vivência, 1/49, p. 167-186.
Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2011). O sentir
dos sentidos dos pescadores artesanais. Revista de Antro-
pologia-USP, São Paulo, 54/1, p. 315-352.
Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2006). “Ah, esse
povo do mar! ”: um estudo sobre trabalho e pertencimento na
pesca artesanal pernambucana. São Paulo/Campinas: Edito-
ra Polis/Ceres-Unicamp.
Ramalho, Cristiano Wellington Noberto & Santos, Andreia
Patrícia dos. (2018). Particularidades do pertencimento
na pesca artesanal embarcada. Revista Ciências Sociais
Unisinos, São Leopoldo, 54/2, p. 256-268.
Rediker, Marcus. (2011). O navio negreiro. São Paulo: Com-
panhia das Letras.
Rediker, Marcus & Linebaugh, Peter. (2008). A hidra de mui-
tas cabeças. São Paulo: Companhia das Letras.
Ribeiro, Darcy. (1995). O povo brasileiro. 2 ed. São Paulo:
Companhia de Letras.
Ritchie, Robert C. (1989). Capitão Kidd e a guerra contra os
piratas. Rio de Janeiro: Campus.
Rodrigues, Jaime. (2016). No mar e na terra: história e cultu-
ra de trabalhadores escravos e livres. São Paulo: Alameda.
Rodrig ues, Jaime. (2005). De costa a costa: escravos, mari-
nheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio
de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras.
cultura de ofício marítima pesqueira

942

Sahlins, Marshall. (1997). O “pessimismo sentimental” e


a experiência etnográfica: porque a cultura não é um “ob-
jeto” em via de extinção (parte II). Mana, Rio de Janeiro,
3/1, p. 103-150.
Silva, Fernando Teixeira da. (2003). Operários sem patrões:
os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campi-
nas: Editora da Unicamp.
Silva, Luiz Geraldo. (2001). A faina, a festa e o rito. Campi-
nas: Papirus.
Silva, Luiz Geraldo. (1998 ). História e meio ambiente: a
pequena pesca marítima no Brasil. Revista de Sociologia e
Política, Curitiba, 10 /11, p. 219-231.
Silva, Luiz Geraldo. (1993). Caiçaras e jangadeiros. São Pau-
lo: Nupaub-USP.
Silva, Luiz Geraldo. (1988). Os pescadores na história do Bra-
sil. V. 1. Petrópolis: Vozes.
Tassara, Helena. (2005). Os vários pescadores artesanais.
In: Linsker, Roberto & Tassara, Helena. O mar é uma outra
terra. São Paulo: Terra Virgem, p. 29-63.
Thompson, Edward P. (2002). Costumes em comum: estudos
sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
da Letras.
Thompson, Edward P. (2001). As peculiaridades dos ingleses
e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 913 – 943 , set. – dez., 2021

Thompson, Edward P. (1981). A miséria da teoria: ou um pla-


netário de erros. Rio de Janeiro: Zahar.
Tollenare, Louis-François. (1978). Notas dominicais. Recife:
Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco.
Vitorino, Artur José Renda. (2004). Os sonhos dos tipógra-
fos na corte imperial brasileira. In: Batalha, Claudio et al.
Culturas de classe. Campinas: Editora da Unicamp, p. 167-
203.
Williams, Raymond. (2008). Cultura. 3 ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra.
artigo | cristiano wellington noberto ramalho

943

CULTURA DE OFÍCIO MARÍTIMA PESQUEIRA


Palavras-chave Resumo
Sociologia da pesca; O artigo aborda um tradicional grupo de pescadores arte-
jangadeiros; sanais do Brasil, os jangadeiros, objetivando compreender
pescador artesanal; como eles constituíram uma cultura de ofício pesqueira
socioantropologia marítima; marítima, do século XVI até 1970. Combinaram-se, para
sociologia do trabalho. tanto, a abordagem sócio-histórica (escritos e imagens) e
a pesquisa de campo, quando foram entrevistados 12 jan-
gadeiros de alto-mar da praia de São José da Coroa Grande,
em Pernambuco. Conclui-se que os jangadeiros represen-
tam o encontro de duas tradições (a marítima e a de ofício),
que tiveram na sociedade flutuante (a jangada) seu marco
existencial e lócus de reprodução sociocultural.

CULTURE OF MARITIME FISHING TRADE


Keywords Abstract
Fishing sociology; The article approaches a traditional group of artisanal fish-
rafters; ermen from Brazil, the rafters, aiming to understand how
artisanal fisherman; they constituted a culture of maritime fishing trade, from
marine socioanthropology; the sixteenth century until 1970. For that, a socio-histori-
sociology of work. cal approach was combined (writings and images) with
field research where 12 deep sea rafters from São José da
Coroa Grande beach, Pernambuco, were interviewed. It con-
cludes that the rafters represented the encounter of two
traditions (the maritime and the profession) that had in a
floating society (the raft) its existential landmark and lo-
cus of socio-cultural reproduction.
944
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v1139

1 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), SP, Brasil


fpvmiguel@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1173-9727   

Francisco Miguel I

“Por que homossexuais só existem na


cidade?” A recente “institucionalização” da
“homossexualidade” no sul de Moçambique *

Nós estamos concentrados nas cidades porque é nelas onde nós


encontramos aquilo que é a maior parte dos nossos constituintes.
A maior parte dos nossos membros vive nas cidades e foi nelas
onde decidimos iniciar a discussão sobre direitos e cidadania.
Acreditamos que, partindo das cidades e mobilizando as pessoas,
poderemos chegar ao campo
(Danilo Silva, então diretor da Lambda, em entrevista
para o jornal A Verdade, 4 out. 2012)
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

Aproximadamente oito anos depois da resposta do ativista LGBT, Danilo Silva,


contida nessa epígrafe, a questão da homossexualidade (e sua suposta inexis-
tência) no meio rural continua viva em Moçambique. No programa televisivo A
Tarde é Sua, do canal local STV, exibido ao vivo em rede nacional no dia 26 de
fevereiro de 2020, um telespectador envia por Whatsapp a seguinte pergunta
aos ativistas LGBT presentes: “Por que os homossexuais só existem na cidade?”.
Esse telespectador trabalha visitando vários “distritos” (zonas rurais) do país e
diz nunca ter visto pessoas do mesmo sexo se relacionando nesses lugares. Tal
pergunta pode parecer deslocada em várias das atuais sociedades nacionais
pelo mundo, onde sujeitos homossexuais despontam também em contextos
rurais (Annes & Redlin, 2012; Fernandes et al., 2016). Em Moçambique, no en-
tanto, tal pergunta revela um dado central para a compressão da homossexu-
alidade não como uma subjetivação universal e atemporal, mas como um cons-
tructo social que, como tal, precisa ganhar “institucionalidade” (Douglas, 2007).
Como já tratei em outros textos (Miguel, 2019, 2020a, 2020b), a ideia de
homossexualidade, tal como fora construída na Europa, é uma categoria do
“por que homossexuais só existem na cidade?”

946

pensamento que não está dada na natureza e, portanto, não é nem universal,
nem estática, tampouco atemporal (Foucault, 1988; Bleys, 1995; Rubin, 2018). Em
outras palavras, uma subjetivação homossexual − ou seja, como contraposta à
heterossexual; alguém que costumeiramente narre seu desejo ou identidade
como inato e imutável; que frequentemente conduza suas práticas homoeróti-
cas ao longo da vida; que direcione seu afeto primordial ou exclusivamente a
pessoas de seu próprio sexo; e/ou que carregue consigo a tendência de aderir,
mais ou menos, em sua corporeidade aos signos do gênero oposto − não é uni-
versal, ainda que as práticas sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo
possam virtualmente ser (Padgug, 1990; Murray & Roscoe, 1998; Neill, 2009).
Assim, para que a homossexualidade ou o sujeito homossexual (moder-
no) ganhe existência social é preciso um esforço político-epistemológico ou um
processo de institucionalização (Douglas, 2007) − fenômeno que historicamente
ocorreu em determinados momentos e locais da experiência humana, sem que
necessariamente coincidissem em seus significados.1 Por instituição, Mary Dou-
glas (2007: 61) refere-se às convenções sociais fortes; que partem da analogia
com o corpo e com a divisão (sexual) do trabalho; que se baseiam na natureza e
na razão; que são os resultados contínuos de uma disputa de classificações
desenvolvidas por grupos sociais; que precisam “se esquecer” do que não lhe
convém; e que, para ser estáveis, precisam camuflar seu caráter socialmente
construído. Em minha tese de doutorado (Miguel, 2019), demonstro não apenas
vários processos de institucionalização da homossexualidade na história de
Moçambique desde o século XX até o presente (no governo, na mídia, no movi-
mento LGBT, na religião, nas famílias), como investigo de que modo tal institu-
cionalização se dava via o senso comum de meus interlocutores em campo.
Assim, a pesquisa etnográfica consistiu em um período de seis meses
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

contínuos, de março a setembro de 2018, na província de Maputo. No total,


foram realizadas 36 entrevistas formais, entre pessoas LGBT e pessoas não
LGBT; brancos, negros e mestiços; moçambicanos e estrangeiros; jovens e velhos;
ativistas sociais, acadêmicos, artistas, trabalhadores urbanos e quem mais es-
tivesse disposto a sobre isso comigo conversar. Por fim, pude acompanhar, de
forma mais sistemática, não apenas o dia a dia administrativo da Lambda, a
principal organização LGBT do país, mas também o cotidiano de alguns de seus
agentes comunitários e beneficiários LGBT em seus trabalhos na periferia da
cidade, bem como frequentar algumas de suas festas, seus cultos religiosos e
conhecer alguns de seus lares e famílias.
Respondendo à pergunta posta no título, mas também aos debates in-
ternacionais sobre a questão da exogenia da homossexualidade em África (Mi-
guel, 2019), 2 analiso aqui algumas das entrevistas com diferentes sujeitos mo-
çambicanos, que revelaram como a ideia de homossexualidade é historicamen-
te recente em Moçambique. E, mais do que isso, ela está geograficamente mais
institucionalizada em centros urbanos do que no interior rural do país. Tal
artigo | francisco miguel 

947

aferição se deu em um contexto de pesquisa, no qual investiguei o processo de


descoberta da própria sexualidade de meus interlocutores. Assim, nas entre-
vistas, pude perceber como a maioria dos meus interlocutores narrou, em re-
ferência às fases da infância, adolescência e até mesmo à fase adulta, certo
vazio simbólico para lidar com um desejo erótico que descobriam em si e para
o qual suas famílias, sua língua e sua cultura não reservavam até então detida
dedicação (Miguel, 2019).3 A partir de trechos biográficos narrados pelos próprios
sujeitos, demonstro um dos processos de institucionalização da homossexua-
lidade que, longe de constituir uma subjetivação natural e universal, vem ocor-
rendo apenas nas últimas décadas no sul de Moçambique.

Uma senhora do interior 4


Luiz era um dos funcionários mais sêniores da Lambda e responsável por toda
a parte de projetos sobre a questão de HIV/Aids nessa organização não gover-
namental voltada para a defesa dos LGBT. 5 Ele tem 40 anos, é de uma província
do norte do país e, apesar de não ser ele mesmo “LGBT”, 6 já possui mais de uma
década de experiência na questão da Aids em interseção com as questões LGBT.
Era noite, e, depois de mais um dia cansativo de trabalho, ele finalmen-
te me concedeu uma entrevista. Começo por lhe perguntar sobre sua trajetória
profissional. Diz ele que, ainda em sua terra natal, começou a trabalhar para
uma organização moçambicana que atuava no campo da prevenção do HIV. Em
determinado momento – por volta de 2006 – depois de debates sobre uma falta
de eficácia dos próprios programas de prevenção, chegou-se à conclusão de que
as questões de gênero deveriam ser incluídas nesses programas.
Nesse sentido, ele e alguns colegas da organização foram na mesma
época fazer um treinamento em Arusha, Tanzânia, patrocinado por duas insti-
tuições suecas voltadas para essas questões. Foi lá que Luiz, que não é homos-
sexual, teve o primeiro contato com a problemática da orientação sexual.

Então foi ali quando eu aprendi – estou a falar de mais ou menos há 12 ou 13 anos
– que aprendi sobre orientação sexual. Foi a primeira vez que comecei a ouvir.
Bom, somente era um tópico novo, não tinha muito conhecimento na altura. E
aí nós fomos para ser treinados como formadores. Então a responsabilidade era
voltar ao país e começar, e treinar o primeiro g rupo de formadores. Teriam a
missão de ao nível das províncias fazer a formação na área do HIV, mas fazendo
esta ligação com assuntos ligados ao gênero. [...] E quando eu voltei de Arusha,
voltei uma pessoa completamente diferente [de] como fui (entrevista com Luiz,
Maputo, 27 jun. 2018).

Aqui já podemos perceber como essas organizações internacionais – eu-


ropeias em sua quase totalidade – foram (e ainda são) fundamentais para oferecer
uma série de novas perspectivas sobre diversos assuntos àqueles ativistas dos
países em desenvolvimento. 7 Quando lhe pergunto o porquê de ele ter retornado
“completamente diferente” dessa experiência na Tanzânia, Luiz me responde:
“por que homossexuais só existem na cidade?”

948

Primeiro porque eu era uma pessoa, por exemplo, muito contra o aborto. E eu
até me lembro que antes da formação, tinha feito alguns comentários – acho que
foi num post do Facebook, realmente não me lembro quem era – a julgar! Por[que]
alguém estava a defender o aborto. Aborto seguro. E eu, na altura, fiz comentá-
r ios [de] que hoje eu me ar rependo profundamente. Porque eu praticamente
atropelei os direitos que aquela pessoa tinha de decidir se mantinha a gravidez
ou não... Mas não tinha, não tinha o conhecimento que adquiri depois daquela
formação (entrevista com Luiz, Maputo, 27 jun. 2018).

As novas perspectivas, todavia, vão muito além da questão do aborto −


desde como se deve melhor combater a epidemia de HIV/Aids até oferecer um
novo léxico para lidar com sujeitos até então, por muitos moçambicanos, ino-
mináveis, como os homossexuais. Esse primeiro contato com a questão da
orientação sexual, de acordo com o entrevistado, também foi bastante trans-
formador. Quando voltou da formação no país vizinho, Luiz precisou replicar
os conhecimentos adquiridos e nesse sentido fez uma série de “formações” por
todo o país. Mas uma em especial, no norte de Moçambique, afetou-o para
sempre e é importante para o argumento deste artigo:

E uma coisa que me marcou – acho que foi em 2009, [...] nós fomos a um distrito
no interior de Nampula falar sobre orientação sexual, falar sobre homossexua-
lidade e apareceu uma velha. [...] E quando eu falei do tópico ela disse “Epa, meu
filho, agora estou a entender. Eu tive um irmão que nunca se casou. Nós tentamos
forçar, forçamos, mas ele nunca aceitou. Disse que quando ficava próximo das
mulheres se sentia mal, havia um espírito que vinha, lhe tomava, e fazia-lhe
mal. Mas eu sempre vi ele com homens, até a morte dele. Nunca se juntou com
mulheres, nunca teve este afeto. Mas eu não sabia. Só agora que meu filho tá a
falar isso, começo a entender.” Por que me marcou? Me marcou porque nós não
estávamos numa grande cidade. Estávamos lá no interior. E a pessoa que estava
a falar era uma idosa, creio que não sabia ler nem escrever, mas ela lembrou-se
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

desse episódio, quer dizer [...] Depois eu acabei usando esse depoimento em
outras formações, inclusive em grandes cidades, porque havia uma corrente que
dizia assim “Ah, é assunto das cidades. Isso é com os brancos, cá entre nós não
existe” (entrevista com Luiz, Maputo, 27 jun. 2018).

Assim, a senhora do interior norte-moçambicano, segundo Luiz provavel-


mente analfabeta, relatava ter tido um irmão que, para ela, se encaixava no perfil
do sujeito homossexual que pela primeira vez na vida alguém lhe apresentava.
Para esse sujeito, por mais desajustado socialmente que o fosse, não havia nome
na língua nativa, não havia uma identidade específica: ele simplesmente era, ao
mesmo tempo, um celibatário, alguém que tem aversão afetiva/sexual às mulhe-
res e alguém que anda com homens.8 Ele próprio, segundo a irmã, atribuía a causa
aos espíritos.9 Mas a composição em uma subjetividade específica centrada na
sexualidade não parecia existir. O novo sujeito que surgia no aparato cognitivo e
linguístico de Luiz, por intermédio das organizações suecas, iria – por uma cadeia
facilmente demonstrável – surgir na realidade daquela velha senhora do interior
do país, para dar conta de seu irmão, um sujeito até então apenas fora do comum.
artigo | francisco miguel 

949

Situações como essa aparecem recorrentemente na etnografia moçam-


bicana sobre o assunto (Chipenembe, 2018), e, em conversas com professores
universitários da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, como veremos
adiante, eles revelaram pela primeira vez pensar na possibilidade do apadri-
nhamento e do “morar junto” entre homens, tão comuns desde o período colo-
nial, como experiências também homossexuais e homoafetivas. Segundo um
deles, “o moçambicano não está treinado para enxergar isso”. Mas se um dos
professores diz que sua incapacidade de enxergar a homossexualidade se deve
ao fato de ele ser alguém que veio da “província”, ou seja, do interior rural,
onde essas questões não existem e para as quais ele não teria sido “treinado”
a perceber, Luiz provavelmente responderia que ainda que não haja o nome, o
sujeito está lá, assim como as suas práticas homoeróticas, e que apenas basta
ter o “conhecimento” sobre a questão para então poder identificá-lo. Assim
como teria acontecido com aquela senhora do interior e com ele próprio.

Um veterano homossexual de Maputo


Nas classes populares negras do sul de Moçambique, relativamente apartadas
dos brancos no período colonial (Miguel, 2019), e em que historicamente pre-
dominou a oralidade, pouco registro escrito nos foi legado sobre o tema da
homossexualidade. As entrevistas servem aqui, portanto, para recuperar uma
história oral de sujeitos que experenciaram a descoberta da própria sexualida-
de em um momento histórico em que a categoria “homossexual” não era aces-
sível em vários sentidos para eles. Assim, tive oportunidade de conversar sobre
esses assuntos com algumas pessoas mais velhas, dentre as quais resgato es-
pecialmente a conversa que tive com Paulino, um sexagenário ronga homosse-
xual que vivia na periferia da cidade de Maputo.
Chegamos a sua casa, Isaías 10 e eu, pelas ruas tortuosas e de terra, ca-
racterísticas dos bairros periféricos, que se chamam “quaisquer nomes-caniço”
(como Polana-Caniço, por pertencer à parte da cidade onde as construções, há
algumas décadas não eram de alvenaria, mas de caniços de madeira). Sua casa
é diferente de tantas outras em que estive nas periferias de Maputo e da Ma-
tola: maior, dividida por cômodos bem definidos, com muitos móveis de ma-
deira, quadros e enfeites. Sobre a casa e sobre a personalidade que ela expres-
sava, Isaías explicou-me no caminho de volta que Paulino é um “assimilado”. 11
Não creio que a classificação de Isaías tivesse um tom crítico ou pejorativo, pois
ele próprio assim se classificava, mas antes o sentido de que, segundo ele, “da-
va para perceber que ele [Paulino] tem uma vida ‘organizada’, veio de uma fa-
mília ‘civilizada’”, não só pela postura, mas pelo patrimônio que conseguiu
acumular. Tal informação queria também provar uma proximidade de tal su-
jeito com o mundo dos brancos.
Em nossa conversa – que Paulino me permitiu apenas anotar, eviden-
ciando o valor da discrição – ele me revelou logo no início que tanto ele quan-
“por que homossexuais só existem na cidade?”

950

to sua família são “naturalíssimos” de Maputo. Todos falantes de ronga, mas


também de português. Sua mãe era costureira, e seu pai trabalhava na buro-
cracia estatal. Ele trabalhou toda a vida no ramo dos livros. No dia em que o
conheci, Paulino vestia um conjunto de moletom cinza e usava óculos, aparen-
tando ser o já senhor que é, mas ao mesmo tempo com uma aparência conser-
vada, não muito comum aos homens e mulheres maputenses de idade seme-
lhante pertencentes às classes sociais menos abastadas.
Participaram da conversa além de Isaías, que me acompanhava, o atual
companheiro de Paulino, Guamba, bem mais novo que ele, por volta dos 30 anos,
mas que se manteve calado durante toda a conversa. Guamba é de Quelimane,
e veio de lá para viver na capital sob o teto de Paulino, que até então morava
só. Ambos se portavam de acordo com os signos locais de masculinidade. Ao
fim da conversa, quando já nos encaminhávamos para o portão da rua e já sem
a presença de Guamba, Paulino me falou mais sobre o seu concubino, a quem
se referiu no início da conversa como “amigo” e “sobrinho”, revivendo certas
terminologias portuguesas para esse tipo de relação homossexual hierárquica. 12
Disse-me que Guamba tem o quarto dele e que ele o trata como “filho”. Mas
Paulino alega que, quando ele quer ter relações sexuais, o rapaz não pode negar,
pois não pode lhe faltar com o respeito.
Para além do interessante dado de presenciar um casal que vive um
modelo de relações homossexuais hierárquicas, outrora chamada de “pederás-
tica” em África e em vários outros lugares do mundo, em que o sênior “adota”
um mais jovem para companhia e serviços sexuais (Miguel, 2016: 47), a própria
história de Paulino entre as décadas de 1950 e 1980 revelaria muito sobre a
história de seu próprio país e de como era ser “homossexual” negro “assimila-
do” nos anos coloniais e pós-independentes. Seleciono uma de suas histórias
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

pessoais, quando já em meados dos anos 1970, na transição do regime político,


ele conheceu um português, com quem passou a viver, mas de quem foi sepa-
rado pelo advindo da independência.
Paulino e um reformado soldado português, mais velho do que ele, se
conheceram quando o primeiro tinha 20 anos de idade. Paulino nunca teve
muitos amigos homossexuais, mas, segundo ele, era possível encontrar outros
homossexuais, discretamente, em bares pela cidade 13. O português e ele pas-
saram 11 anos morando juntos na região central da então Lourenço Marques.
No prédio em que moraram, Paulino disse nunca ter sofrido qualquer recrimi-
nação por parte dos vizinhos, que os tratavam bem e sem intromissões de
qualquer ordem. Em parte, ele atribui isso ao fato de ele sempre ter-se “dado
ao respeito”. Ainda que não tenha elaborado sobre o que isso significava, po-
demos inferir que tenha a ver com o fato de ele sempre ter sido discreto em
relação ao seu relacionamento e por manter em público uma postura mascu-
lina. Pelo Estado, também disse nunca ter sido importunado no que se refere
ao seu relacionamento homoafetivo e de coabitação.
artigo | francisco miguel 

951

Na sequência, Paulino ainda me contou como foi que seu “amigo” por-
tuguês, antes, foi pedir a autorização da família dele para que eles morassem
juntos na casa do português, e para mim essa é a chave para compreender a
história de institucionalização da homossexualidade não só em Lourenço Mar-
ques, como na atual Maputo.
O português era diretor na mesma fábrica de cigarros em que alguns tios
do jovem Paulino trabalhavam como operários. Ao abordar um desses tios de
Paulino, perguntando se o conhecia, o português teria assustado o tio com a
possibilidade de o sobrinho ter feito algo de errado. O português então escla-
receu o motivo de procurá-lo, dizendo ao tio: “Estou a pedir esse rapaz para me
fazer companhia, porque eu não tenho ninguém lá em casa. A minha família
já se foi para Portugal”. O tio prometeu falar com o pai de Paulino, seu primo,
que, por sua vez, disse nada poder decidir, visto que esse filho estava sob a
responsabilidade dos avós maternos. 14 O português então foi falar com a mãe
de Paulino, que encaminhou a questão para sua própria mãe, ou seja, a avó de
Paulino. 15 A avó materna de Paulino ficou preocupada, pois já tinha passado
por um episódio de prisão de um filho, pelo fato de ele ter “estragado coisas
dos brancos”. A mãe de Paulino então explicou a avó do rapaz que esse branco
trabalhava com o irmão dela, era alguém conhecido e confiável. A avó custou
a aceitar, mas acabou concedendo. Segundo Paulino, sua avó confiava no neto,
porque ele sempre havia sido um “miúdo muito sério”.
A família então aceitou, mas, segundo Paulino, sem saber de que exata-
mente se tratava tal pedido. Eu imediatamente insisti sobre esta questão: se de
fato a família não entendia esse pedido como um pedido de “casamento”. E
Paulino me garantiu que não entenderam como tal e que ele tinha certeza disso.
Em nossa conversa foi possível ter acesso a uma vida conjugal homoa-
fetiva que transcorreu, aparentemente, sem grandes transtornos, nas barbas
dos regimes pré e pós-independente, em plena zonal central da capital do pa-
ís e com a “aceitação” da família. Em princípio, eu tentava interpretar esse e
outros casos sempre a partir da chave de uma maior tolerância em relação à
homossexualidade em Moçambique, tese defendida em vários cantos, por dis-
tintas pessoas, o que incluiria até atuais militantes dos direitos LGBT no país.
Sem descartar que, de fato, existe algo de não tão persecutório sobre o assun-
to na sociedade ou no Estado moçambicanos – especialmente se comparado
com o que o ocorreu em países vizinhos (Miguel, 2019) – outra chave de inter-
pretação possível, parece-me, é aquela que aponta para um silêncio estratégi-
co produzido por aqueles que sabiam do que aquilo se tratava, mas que não
queriam correr o risco de um eventual estigma, quando não um desconheci-
mento geral das classes populares de origem banto em relação a esse tipo de
possibilidade erótica e conjugal.
Outras duas pessoas mais velhas, aqui já mencionadas, me alertaram
sobre isso: uma professora da Universidade Eduardo Mondlane e um famoso
“por que homossexuais só existem na cidade?”

952

escritor, ambos moçambicanos de origem banto e heterossexuais. Transcrevo


um trecho do meu diário de campo de uma conversa a três, em que chegamos
à conclusão sobre o “olhar não treinado” dos moçambicanos em enxergar, em
alguns tipos de relação, qualquer conotação homoerótica:

Contei da história do Paulino para eles e demonstrei meu espanto sobre ninguém
dos vizinhos, da família etc. terem se manifestado em relação aos dois morarem
juntos na cidade. [...] Chegamos à conclusão de que essas relações de apadrinha-
mento [...] não eram entendidas quase nunca como uma relação homoafetiva (não
usou esse termo), mas que isso era normal: alguém com posses apadrinhar um
jovem para trabalhar como garoto de recados, pequenos trabalhos domésticos,
etc. (independentemente de essa relação ser inter ou intrarracial.). E que as pes-
soas liam isso como “ah, está a dar uma ajuda”. Com esse exemplo e com outros,
chegamos à conclusão de que os moçambicanos, especialmente os negros, não
estavam/estão treinados para ver a dimensão (homo)sexual de algumas relações,
que elas são lidas em outras chaves. Foi interessantíssimo perceber como a pro-
fessora Maria interrompeu na hora para dizer: “Agora eu estou a lembrar vários
casos na infância e estou pensando se não era isso mesmo. Por exemplo, tinha
duas senhoras que moravam juntas... (E ficou em silêncio, com o olhar distante,
como quem está impressionada de só agora se dar conta de que aquela poderia
ser uma relação homoafetiva). Nunca passou pela minha cabeça que fosse isso”.
[...] Um outro dado que ilustra essa questão de um “olhar não treinado” para ver
isso foi quando contei do Paulino que uma vez foi advertido pela polícia por estar
com um branco em um local sabidamente de encontros homoeróticos na praia.
Provoquei que enquanto em Portugal já havia nessa altura até um aparato policial
para investigar atos homossexuais em banheiros públicos, nas colônias – e aqui
não parece ter sido diferente – a homossexualidade era menos vigiada. Foi nesse
momento que Chico disse que eu precisava entender que ninguém aqui estava
treinado para ver isso, no sentido de que não havia um vocabulário, uma semân-
tica (termos meus) ou experiência pra enquadrar encontros entre homens na
chave da sexualidade (diário de campo, Maputo, 16 ago. 2018).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

Especificamente sobre a menor vigilância em relação à homossexuali-


dade nas colônias (Braga, 2006; Miguel, 2016, 2019), que supus nesse trecho do
diário, é preciso ressalvar que durante a guerra colonial, Eduardo Pitta nos
conta que ele mesmo foi alvo de um inquérito das Forças Armadas portuguesas,
que buscava fazer uma caça aos homossexuais nas instituições militares, tan-
to na metrópole quanto nas colônias (Costa Santos, 2017; Simões de Araújo,
2021). De qualquer maneira, essa conversa revela que mais do que a existência
de uma certa tolerância social em relação à homossexualidade, o que parece
existir também no sul de Moçambique é um amplo desconhecimento das clas-
ses populares – especialmente entre os mais velhos – em relação a essa possi-
bilidade de existência, seja como prática, seja como identidade. E isso se deve,
entre outras coisas, ao regime vigente de uma ars erótica, antes e concomitan-
te ao aparecimento de uma scientia sexualis (Miguel, no prelo). 16
Nascido na Lourenço Marques dos anos 1950, Paulino também não teve
acesso a nenhum conteúdo sobre o assunto (fosse na TV, em livros, em revistas
ou na rádio) em sua adolescência. Razão pela qual, diferente do antropólogo que
artigo | francisco miguel 

953

o entrevistava, seu primeiro contato com esse mundo se dera diretamente por
intermédio de um “iniciador”, sem outros tipos de intermediação entre o discur-
so e a própria prática sexual. Nossa conversa se deu mais ou menos assim:

− Quando também tinha essas idades, eu tinha uns primos que gostavam muito
de mim. Epa, eu às vezes, sem perceber, porque eles eram mais velhos... Mas
como a minha tendência sempre foi essa, cedia...

[...]

− Mas desde novo então você sabia o que que era assim... Você sabia que que era
homossexualidade.

− Mas como vou saber? Eu só sentia... Muitas das vezes, há aquela coisa de apren-
der. Aquela coisa de natureza (entrevista com Paulino, Maputo, 3 jul. 2018).

Interessado por essa dimensão do conhecimento sexual que se adquire


na prática, por intermédio de um iniciador, eu lhe perguntei sobre a questão.
Paulino então respondeu-me sobre como era na sua época:

Você pode crescer e atingir mesmo até idade de 15, 16, 17, 20, mas se não houver
o iniciador ali... Mas você sempre tem aquela... Você vê uma pessoa e começa a,
epa, imag inar... “Epa, [se] aquela pessoa se aproximasse...” [...] Sentir o calor
desde aquela pessoa[...] Aí, o que que falta? Falta o iniciador. Vais aparecer o
iniciador. Pronto, você já... Ele te abriu teus caminhos (entrevista com Paulino,
Maputo, 3 jul. 2018).

Então eu o provoquei, perguntando o que um iniciador ensinaria pro-


priamente. Sabendo que eu também era homossexual e que eu já havia dito
que ele poderia perguntar qualquer coisa que quisesse a mim, ele rebateu a
minha pergunta, questionando o que o meu iniciador havia me ensinado. Eu
então lhe respondi:

− Eu vou responder... Porque antes, no meu caso, antes d’eu ter com alguém, eu
já tinha visto na televisão, eu já tinha visto em revista...

− Você ainda tem sorte porque foi na altura de televisão... Nós nem tínhamos
televisão. [...] No final da década de 60, já estavam a aparecer revistas... [...]Eu
tinha muitas revistas. Destruí há pouco tempo...

− Mas não tinha esse assunto na revista? Não fala disso nas revistas?

− Ah, não falavam, não falavam...

− Então, estou dizendo isso porque eu, quando fui ter minha primeira vez, eu já
sabia mais ou menos o que que ia acontecer, o que que tinha que fazer...

− Sim. Sorte de ver uma coisa. Mas quando assim mesmo, sem ter visto, quando
a pessoa já te pega, eita, você já vai ver, afinal, é isto... Você até percebe com
facilidade, porque você já tem no sang ue. Muitas das vezes, ao dor mir, pode
aventurar com alg uém, assim, pensar que a outra pessoa pode me fazer isto,
fazer isto... Agora... Há aquelas pessoas que dizem “Ah, eu fui o...” Eu muitas das
vezes digo “Não, não diz é o fulano te ensinou. O fulano te iniciou...” (entrevista
com Paulino, Maputo, 3 jul. 2018).
“por que homossexuais só existem na cidade?”

954

E a partir daí as diferenças de nossas culturas e inserções históricas me


fizeram refletir de maneira profunda sobre nossas distintas práticas e identi-
dades sexuais, ainda que “gostássemos da mesma semente”. 17 A diferença não
só geracional, mas também de condições materiais de existência e de inserção
cultural entre o etnógrafo e seu interlocutor revela, apesar do desejo homoe-
rótico semelhante, duas formas distintas de adentrar não só a vida sexual em
si, mas o universo simbólico que nossas culturas construíram (ou não) sobre
esses nossos desejos quando estávamos prontos a vivê-los.
Enquanto eu nasci no final da década de 1980, em uma família de classe
média brasileira, em que a homossexualidade, apesar de violentamente repu-
diada, era absolutamente gramatical, Paulino nasceu em meados da década de
1950, em uma família de moçambicanos “assimilados” urbanos, em que um
campo semântico da homossexualidade como tal parecia ainda não existir. Se
o que estou chamando de uma semântica homossexual (ou seja, a existência de
um conjunto conectado de figuras públicas, textos e ideias sobre o assunto dis-
poníveis em vários canais, um vocabulário acusatório, os termos “ativo” e “pas-
sivo” que “ensinam” como é o sexo entre homens etc.) antecedeu a minha prá-
tica propriamente sexual, para Paulino e outros, o caminho teria sido o inverso.
De certa forma, esse e outros relatos de interlocutores moçambicanos
por mim entrevistados (Miguel, no prelo) 18 corroboram a divisão de Foucault
(1988) entre um “dispositivo da aliança”, caracterizado por uma iniciação de
passagem do segredo, e um “dispositivo de sexualidade”, expresso fundamen-
talmente no discurso, pois apenas pelo próprio iniciador um sujeito moçambi-
cano como ele, naquela época, poderia acessar o que estou chamando de se-
mântica homossexual.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

O jovem Caetano
Engana-se, porém, o leitor ou a leitora que pensar que o desconhecimento
sobre a ideia de homossexualidade é um dado óbvio, fruto apenas da diferença
geracional entre Paulino e este antropólogo, e daquele mundo da década de
1960 em que mais ou menos em todo lugar a homossexualidade cultural come-
çava a emergir e se globalizar. 19 Entrevistei outros moçambicanos de origem
banto, alguns da minha idade ou até mais jovens do que eu, que relataram o
mesmo vazio simbólico no momento dos primeiros sinais de um desejo erótico
que, pela falta de um léxico, não significaram imediatamente como “homoeró-
tico” ou “homossexual”. E não se trata de um vazio simbólico em razão da
pouca idade que tinham e do desenvolvimento individual da linguagem, como
na primeira infância, mas um vazio simbólico já na vida adulta, quando se
pressupõe que o sujeito já domina os códigos e a língua de seu grupo. Esse é o
caso de Caetano, um agente comunitário da Lambda nascido no mesmo ano
que eu (1988), em um contexto rural da província de Inhambane, ainda na região
sul de Moçambique. Caetano, que além do português fala outras “línguas na-
artigo | francisco miguel 

955

cionais”, como ronga, chopi, bitonga, xitswa, ndau, me conta em entrevista


cheia de detalhes sobre como se deu a “descoberta” de sua sexualidade:

− Eu geralmente levava a vida heterossexual sem saber que eu era bissexual ou


tinha desejo por pessoas do mesmo sexo. Mas eu acredito que eu tinha um afe-
to por pessoas do mesmo sexo. [...] E fui percebendo que quando aquela pessoa
[homem] tocasse, eu não me chateava. Quando me tocasse, quando me abraças-
se, eu queria mais. Tás a perceber? Mas não que eu sabia que eu era... que eu
tinha relações... eu poderia ter relações com essa pessoa. Porque, pra mim, já
tinha na minha consciência que eu era homem. [...] tenho que me relacionar
simplesmente com mulher. A história veio se reverter quando, no fim do meu
nível básico, tive estág io aqui em Maputo. Então, eu vim com meu pr imo pra
estagiar. No primeiro dia, ele simplesmente me perguntou se eu conhecia a La
Biba e a La Santa. 20 [...] Então eu disse que não conhecia. Então foi quando ele
contou que a La Biba [e a La Santa] são homens, mas que têm relações com pes-
soas do mesmo sexo. E [...] naquele dia [isso] foi [para mim] um absurdo. Foi um
absurdo, comecei a rir, quase que estragava a boca até. [...] Mas no mesmo dia
saímos pra fazer os banhos, sei lá o quê, ele foi tomar banho. Quando ele volta,
estamos assim em beliches diferentes. [...]Então quando eu reparei pra ele, tive
um susto muito grande. Porque quando ele vinha assim de [cueca] boxer, aquele
cor po todo dele, tomei um susto. [...] Porque eu já v ia ele muitas vezes. Mas
acredito que o susto foi quando... foi por ele ter me falado que é possível homem...
pessoas do mesmo sexo ter relações. [...] Nunca tinha ouvido falar!

− E você nunca tinha visto nenhum gay?

− Não ! Se eu v i, mas não sabia que ele era homossexual. Cresci sabendo que
existe “maria-rapaz”. Geralmente lá na província chama assim: “maria-rapaz”.
É tipo assim um homem que tem, assim, compor tamentos meio afeminados.
“Maria-rapaz” não que aquela pessoa tenha relações com pessoas do mesmo sexo.
Então, por isso que eu digo nunca tinha visto um gay. [...]. O nome “maria-rapaz”
eu já ouvia. Então quando tomei esse susto, fiquei assim com medo. “Será que
eu estou... Será que eu sou aquilo que ele disse? ” (entrevista com Caetano, Ma-
puto, 21 jun. 2018).

Do susto de se perceber desejando o primo e sem revelar tal desejo, Ca-


etano ainda passaria por uma segunda situação que julga importante me contar.

− no fim de 2009, quando saí de lá [de Inhambane], minha irmã morava cá [em
Maputo], disse que eu tinha que vir para aqui, porque ela tinha arranjado um
emprego pra mim. Então vim. Então quando cheguei aqui, na altura tinha um...
não sei como se chama tal televisão agora, na altura chamava-se “KTV”. Então
tinha muito chat, assim por baixo a projetar filmes, né? Mas por baixo saía um
leque de mensagens: “Ah, eu sou gay, gostaria de conhecer não sei quem...” [...]
Então, peguei o número. Tive medo de ligar, eu decidi mandar mensagem. Então
foi dali que um senhor ligou para mim. “Oi, [Caetano], tudo bem? ” “Estou bem.”
“Podemos nos encontrar?” “Ah, sim, podemos.” [...] fui conhecer. Mesmo ele disse
“Ah, vamos para minha casa.” Sei lá o quê... “Ah, tá bem, não tem problema ne-
nhum.” Fui, troquei de roupa, tomei um banho e fui. Quando chegamos lá, tive
o meu primeiro beijo com ele. Ele queria ter relações sexuais mesmo, mas eu... Na
altura, eu não sabia o que era. Não sabia. E ele queria, porque queria. “Ou porque tu
“por que homossexuais só existem na cidade?”

956

me penetras, ou porque eu te penetro, escolha uma das duas, a gente vai fazer”.
Então eu disse “Epa, eu não estou preparado”. Mas também era já um senhor de
idade. Em relação a mim, era um pouco mais velho, então... [...]Então, eu não me
senti à vontade, não quis, não aceitei. E ele respeitou isso. Não me fez mal nenhum
(entrevista com Caetano, Maputo, 21 jun. 2018, grifos meus).

Demoraria ainda algum tempo até Caetano ter sua primeira relação se-
xual com outro homem. Todavia, desses longos trechos da entrevista de Cae-
tano, destaco dois pontos. O primeiro e mais importante é que aquele jovem
provinciano, que em casa ajudava o pai na carpintaria e a madrasta na macham-
ba, 21 aos 22 anos, afirma não ter tido qualquer informação sobre a possibilida-
de de existência de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O ano era
2008, e ele nunca tinha sequer ouvido falar sobre isso e tampouco já tinha
visto um gay. Em decorrência disso, ele disse, como Paulino, que, na época, não
fazia ideia do tipo de ato sexual que poderia acontecer entre dois homens. Isso
demonstra de maneira cabal que o vazio simbólico-homossexual descrito pelo
sexagenário Paulino não era apenas um dado da década de 1960, possivelmen-
te verdadeiro em vários contextos sociais na mesma época, incluindo ocidentais.
Trata-se também de um contexto cultural e histórico específico, haja vista que
já em 2008, com o avanço de várias tecnologias de transporte e comunicação,
ainda que elas pouco consigam se capilarizar pelo interior moçambicano, é
possível encontrar sujeitos moçambicanos que, já adultos, jamais tiveram qual-
quer contato com um campo semântico de relações sexuais entre pessoas do
mesmo sexo.
O segundo ponto que Caetano revela é que o termo “maria-rapaz” não
significava para ele o que hoje ele entende (e se entende) como “homossexual”22.
“Maria-rapaz”, em seu léxico e na sua experiência de sujeito nascido na provín-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

cia, nomeava qualquer homem que tivesse trejeitos femininos ou que fosse
dado às tarefas domésticas, femininas por excelência no sul de Moçambique,
sem que isso indicasse a possibilidade de esse mesmo homem também ter
relações sexuais com outros homens. 23 Assim, o thauma de Caetano primeiro
chega com a revelação do primo de que tal tipo de sexualidade era possível,
mas é apenas pela televisão – em um programa que no GC 24 apareciam mensa-
gens enviadas via SMS por telespectadores querendo comentar qualquer coisa
ou querendo, como no caso do “iniciador” de Caetano, conhecer outras pessoas
– que ele finalmente terá uma primeira experiência homossexual, ainda que
não tenha havido penetração.
Em uma segunda entrevista, realizada dez dias depois da primeira, Ca-
etano me conta sobre o breve episódio de sua passagem pelo seminário de
padres, que ocorrera há aproximadamente dez anos, no mesmo período em que
ele começava a “descobrir” seus desejos homoeróticos. Ao lhe perguntar se
havia algum tipo de contato sexual entre os internos, especialmente à noite
nos albergues, onde muitos rapazes dormiam na mesma cama que outros, Ca-
artigo | francisco miguel 

957

etano, mais uma vez, demonstra como a “homossexualidade” não estava em


seu campo de possibilidades nem tampouco parecia estar no daqueles de mes-
ma geração e origem geográfica:

− Eu estou aqui na cidade, se eu for pro Exército, eu terei que sair da cidade para
o campo. Então vou levar essa prática. Normalmente, porque os homossexuais
são pessoas que vivem mais nas cidades. É onde se sentem mais à vontade. Então,
eu acredito que eu vou sair daqui e vou levar [o conhecimento sobre a prática]
pro sítio onde eu vou. Pro Exército, por exemplo, pode ser [...] um sítio muito bem
isolado. Porque eu sei mais... E acredito que não vi lá porque as pessoas eram
todas do campo.[...] E eu também era do campo. Mas eu já sabia, mas não sabia
o que era. O que que fazia. O que fazer. Então, [...] eu acredito que eles também
não sabiam muito disso. Porque algumas vezes que eu acabei comentando que
eu ouvi em Maputo que homens namoravam entre eles, fui... todos ficaram ad-
mirados. “Não é possível!” “Como é que um homem pode namorar com um outro
homem? ” “Não é possível!” “Mas eu ouvi no Maputo, quando eu fui no Maputo,
eu estava a ouvir que é possível dois homens namorarem, duas mulheres namo-
rarem.” Eles não sabiam também (entrevista Caetano, Maputo, 21 jun. 2018).

Interessado – como o telespectador mencionado na abertura deste arti-


go – pela hipótese do surgimento de um sujeito propriamente “homossexual”
no sul de Moçambique apenas com o advindo da cidade, insisto na questão com
Caetano:

− Você acha que é na cidade que as pessoas viram homossexuais?

− Não é exatamente virar homossexuais. (risos) Não estou a dizer virar homos-
sexuais. Mas estou a dizer que, na cidade, as pessoas que são homossexuais, elas
têm mais oportunidades de saber sobre a sua orientação sexual em relação ao campo. [...].
Na cidade, os homens e as mulheres são ensinados a viver conforme têm que
viver...

− No campo...

− Apesar de que também na cidade isso acontece. Mas é muito mais no campo, que
tem os pais, os tios, os avós como espelhos. Dificilmente ele vê outra pessoa como
espelho. Se eu sair daqui da cidade, vai pro campo, chega lá começa a fazer tuas
coisas, vão te olhar! [...] vão respeitar, mas não, não vão seguir a ti como exemplo.
Pra eu estar lá, meu pai, meu avô e meu tio são meus modelos. Eles nasceram,
cresceram, que tem que casar com mulher; é mulher, tem que fazer isto, tem que
fazer isso e aquilo. E são assim. Mas na cidade há mais oportunidade de saber
mais sobre as coisas (entrevista com Caetano, Maputo, 21 jun. 2018, grifos meus).

É que no campo – explica Caetano – até hoje seriam muito poucos os


lares que possuiriam aparelhos de televisão ou acesso à internet. Muitas vezes,
nem mesmo corrente elétrica. Isso dificultaria o acesso aos modos de viver da
cidade, o que incluiria a homossexualidade. E mesmo nos poucos lares onde
há luz elétrica, Caetano questiona retoricamente: “quantas vezes esses assun-
tos foram assuntos de abordagem mesmo das próprias televisões?” Ele mesmo
responde a sua pergunta:
“por que homossexuais só existem na cidade?”

958

− Quando nós vemos na novela, “Epa, essas são manias de quê? Ah, são coisas de
brancos, esses brancos que fazem. Não é coisa de negro”. Porque... Ouve-se mui-
to mesmo que a homossexualidade foi uma coisa importada, uma coisa que vem
dos brancos pros neg ros. Os neg ros vão fazendo por necessidade, por querer
dinheiro, sei lá o quê. É exatamente isto que estou a tentar te dizer. Não que as
pessoas na cidade se tornam homossexuais. Porque eu acredito que homosse-
xualidade não é uma coisa que se adquira. Em termos de [por exemplo] eu nasci
hétero, vou adquirir a homossexualidade, não faz sentido... (entrevista com Cae-
tano, Maputo, 21 jun. 2018).

Fica evidente que Caetano e eu estamos operando nesse momento da


conversa com diferentes concepções de homossexualidade. Enquanto eu estou
pensando aqui em termos foucaultianos de um tipo de sujeito específico, que
surge a partir de um enfoque identitário em sua prática sexual e seu afeto por
pessoas do mesmo sexo, rivalizando com outras inúmeras identidades possíveis
– geográfica e historicamente localizadas na humanidade – Caetano tem em
mente pessoas com desejos homoeróticos (e que não necessariamente os tra-
duziram em subjetivação homossexual, em meus termos) e as práticas homos-
sexuais em si. É em razão disso que ele me diz que “homossexualidade” (o
desejante homoerótico e as práticas homossexuais) são universais, ou seja,
pode existir tanto na cidade como no campo, independente do “conhecimento”,
porque é inato. Essa ideia de Caetano, para mim, é um axioma, o ponto de
partida. Todavia, estou mais interessado, aqui, na segunda parte de sua fala,
quando ele revela que a dimensão da “informação” e do “conhecimento” é fun-
damental para o surgimento da subjetivação homossexual à qual, hoje, ele e
eu, de certa forma, também nos filiamos.
Ou seja, onde não há televisão, e nem sequer luz elétrica, como em mui-
tos locais no interior de seu país, não há (ou há menos) informação sobre a
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

possibilidade de subjetivação homossexual. Lá, no campo, os modelos são res-


tritos ao ambiente doméstico e à coletividade próxima, que são “espelhos” pa-
ra a formação da sua identidade de gênero (seja homem ou mulher). Como
nesse ambiente doméstico é ainda raro encontrar homossexuais, ninguém po-
de nisso se ver espelhado; logo será muito difícil se tornar algo que não existe.
Isso também é verdadeiro para o ambiente urbano que encontro na província
de Maputo, apesar do aumento da visibilidade LGBT e da clara mudança no
acesso a esse tema 25. Seja na cidade ou no campo, como trata Boellstorff (2005,
p.67,102) alhures, a subjetividade gay não é, em vários contextos culturais, trans-
mitida por intermédio da família ou de outras instituições tradicionais. No sul
de Moçambique, mesmo quando há um escape das lógicas de parentesco do-
mésticas e a televisão revela outras formas de subjetivação e de existência da
vida sexual alhures, elas são muitas das vezes taxadas, como diz Caetano, de
“coisas de branco”, reforçando a ideia de exogenia da homossexualidade. Toda-
via, como abordei em minha tese de doutorado, a “homossexualidade” enquan-
to subjetivação se tornará cada vez mais visível em muitos lares do sul do
artigo | francisco miguel 

959

país, a partir dos processos de sua institucionalização levados a cabo pelos


vários atores sociais locais e estrangeiros; e as famílias de algum jeito terão,
cada vez mais, que com ela lidar.

Considerações finais
A pergunta do telespectador que dá título a este artigo coloca uma questão: por
que a homossexualidade seria mais visível nas cidades do que no campo em
Moçambique? Diversos autores ensaiaram respostas sociológicas para demons-
trar, em outras sociedades, ou até mesmo em Moçambique (Simões de Araújo,
2021), como as cidades, diferente dos contextos rurais, propiciam ambientes
de menor controle social sobre os indivíduos, o que acabaria por propiciar me-
lhores condições de vivência de uma identidade homossexual, assim como de
suas práticas eróticas (Fortier, 2001; Green, Trindade, 2005; Rubin, 2018). Este
artigo, no entanto, demonstra que, desde a década de 1960, no sul de Moçam-
bique, a cidade (e os brancos que a habitavam), mais do que oferecer um am-
biente mais propício a práticas sexuais e identidades não hegemônicas, é o
lócus original de uma nova subjetivação que não estava dada, nos mesmos
termos, em alguns contextos rurais tradicionais em África (Bleys, 1995).
Isso tem efeitos teóricos importantes em face de outros cenários et-
nográficos. Ao contrário do que viveu Eribon (2008) na França e do que consta-
ta Fortier (2001) alhures, os percursos rural-urbanos de meus interlocutores
moçambicanos não produziram narrativas de uma “migração como emancipa-
ção” (Fortier, 2001: 408), tampouco construíram a imagem de suas famílias he-
terossexuais como “lócus original de trauma” (Fortier, 2001:409). Diferente do
que Weston (1991) percebeu nos Estados Unidos, os sujeitos moçambicanos com
quem conversei não foram rejeitados por suas famílias consanguíneas e, por
conseguinte, buscaram migrar para a cidade para viver de forma mais livre
suas experiências homossexuais e homoafetivas. Mas foi na cidade que muitos
deles descobriram que a homossexualidade era, antes de mais nada, uma sub-
jetividade possível.
A partir do que meus interlocutores moçambicanos das classes popula-
res e de origem banto me informam, concluo que mais do que viver um desejo
erótico inato, as cidades propiciaram um novo léxico e uma nova semântica,
nos quais foi possível significar seus desejos, corporificá-los e vivê-los. Assim,
torna-se compreensível a observação do telespectador de que não haveria ho-
mossexuais nos distritos, porque talvez de fato, em muitos deles, os homosse-
xuais ainda não existam – como demonstrado nos vários casos etnográficos
abordados. Portanto, ainda que o desejo erótico preceda e até mesmo prescin-
da da linguagem, ele, mesmo inato, só se poderá constituir como identidade e
criar sujeitos políticos quando uma certa episteme estiver disposta em deter-
minado momento e local da experiência humana.

Recebido em 29/02/2020 | Revisto em 03/09/2020 | Aprovado em 16/09/2020


“por que homossexuais só existem na cidade?”

960
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

Francisco Miguel é doutor em antropologia social pela


Universidade de Brasília e foi professor substituto do
Departamento de Saúde Coletiva da mesma universidade.
É autor do livro Levam má bô: homossexualidades
masculinas em um arquipélago africano e um dos dois
portadores do Colin Murray Award for Postdoctoral
Research in Southern Africa 2020. Atualmente é bolsista
Fapesp de pós-doutorado no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas. Seus interesses de pesquisa atuais são
sexualidade, gênero, história e movimentos políticos em
países lusófonos africanos.
artigo | francisco miguel 

961

NOTAS
* Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tíf ico e Tecnológ ico (CNPq) por ter apoiado f inanceira-
mente essa pesquisa.
1 Boellstorff (2005: 173) afirma que “o ponto crucial é que
a homossexualidade (como qualquer outra lógica cultural)
se globaliza (ou se move) não como um discurso monolí-
tico mas como uma multiplicidade de crenças e práticas,
elementos que podem se mover independentemente entre
si ou não se mover de forma nenhuma”. Por exemplo, na
Indonésia, toda a ideia confessional embutida na “episte-
mologia do armário” (Sedgwick, 1990) não teria tido res-
sonância entre os nativos “gays” e “lesbi”.
2 Basicamente trata-se de perspectivas afro-centradas e
cristãs-conservadoras, que, em oposição aos regimes oci-
dentais, afirmam a inexistência autóctone da homosse-
xualidade no continente africano. A questão importa aqui
porque foi no campo que diversas lideranças afr icanas
investiram suas esperanças de reencontro com a “tradi-
ção” para fins de descolonização política e epistêmica. Os
discursos sobre a exogenia da homossexualidade em Áfri-
ca e os debates teóricos que eles têm suscitado podem ser
acessados em Mott, (2005) e Kaoma (2009). Para uma sín-
tese exaustiva da questão, ver Miguel (2019).
3 Em outro trabalho (Miguel, no prelo) analiso historicamen-
te os léxicos changana e português moçambicano que fa-
zem parte do campo semântico da homossexualidade. Mi-
nhas conclusões apontam que no acervo lexical changana,
o neologismo maríyarapáxji é apropriado como forma de
acusar afeminação quando dirigida a um homem, mas que
nas últimas décadas passou a significar também homosse-
xual. Além disso, demonstro como o acervo lexical em lín-
gua portuguesa parece atualmente preferível não apenas
no processo de institucionalização da homossexualidade
promovido pela Lambda, mas como meus próprios interlo-
cutores machangana preferem acionar as categorias es-
trangeiras para se referir à sua sexualidade e à dos outros.
Por último, demonstro como os falantes de changana, no
discurso cotidiano, tendem a usar termos mais descritivos,
associando os agentes não a termos identitários-sexuais,
mas ao gênero que pertencem ou deveriam pertencer.
“por que homossexuais só existem na cidade?”

962

4 Os dados dessa seção são derivados de minha tese dou-


toral (Miguel, 2019) e foram trazidos com mais detalhes
em outros dois artigos. Nesses artigos, utilizei este mes-
mo caso para desenvolver, respectivamente, uma ref lexão
sobre a atuação das organizações locais e internacionais
na institucionalização da homossexualidade em Moçam-
bique (Miguel, 2020b) e outra sobre os usos das línguas
changana e portuguesa nesse processo (Miguel, no prelo).
5 O combate ao HIV/Aids é hoje o objetivo principal da maior
parte dos projetos financiados por instituições estrangei-
ras, cuja execução é responsabilidade da Lambda. Em
outro trabalho (Miguel, 2020b), trato de diversos aspectos
que atravessam o tema.
6 A noção de “pessoa LGBT” é um jargão comum no voca-
bulário de meus interlocutores. Neste artigo, irei utilizar
“LGBT” nesse sentido de pessoa, para qualificar um tipo
de parentesco classificatório, para adjetivar o movimento/
organização e os direitos conquistados por essa população.
Utilizarei “gay” quando assim falado nas entrevistas e
para me referir tanto às subjetividades indonésias apon-
tadas por um certo autor quanto tratar da chamada cura
gay. Por fim, a palavra “homossexualidade” e suas deri-
vações aparecerão neste artigo como um modo de criar e
classificar sujeitos, dotada de uma história e de uma geo-
grafia próprias. A categoria aparecerá também com dois
outros sentidos: enquanto subjetivação do eu, identidade
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

já autoatribuída, domesticada e reivindicada pelos pró-


prios sujeitos moçambicanos que nela se veem contem-
plados ou que, sobre ela, querem disputar significados e
que, além disso, têm sua própr ia histór ia biog ráf ica e
subjetiva de adesão/repulsão; enquanto práticas sexuais
(ou “homoeróticas”), vistas pelo observador externo, que
visam contemplar um desejo erótico – mas nem sempre
erótico por todas as partes envolvidas (pois também po-
dem existir, na prática, motivações materiais ou ser de
natureza compulsória e violenta para um ou alguns dos
parceiros). Assim, “homossexualidade” ganhará seu sen-
tido específ ico no contexto em que ela será aqui e ali
trazida ao longo do texto. Por fim, uso-a para conseguir
uma estabilização mínima – necessária ao registro escri-
to – de conceitos e ideias polifônicos e em permanente
f luxo histórico e biográfico.
artigo | francisco miguel 

963

7 Obviamente que o contrário também pode ser verdadeiro.


8 Em Moçambique, muitos LGBT são lidos pela chave dos
inférteis e/ou celibatários (Chipenembe, 2018). Em chan-
gana, ngwendzá (Miguel, no prelo).
9 Sobre a atual dimensão espiritual da homossexualidade,
as abordagens religiosas e a “cura gay” em Moçambique,
ver Miguel (2019).
10 Isaías é o nome fictício que atribuí a meu principal assis-
tente de campo e amigo. Pessoa fundamental para o que
aprendi sobre a vida homossexual masculina contempo-
rânea em Maputo e sobre o movimento LGBT moçambi-
cano.
11 Segundo Aboim (2008: 285), “O termo assimilado aplicava-
se aos africanos negros e mestiços que, segundo critérios
das autoridades coloniais, eram considerados como tendo
absorvido com sucesso (assimilado) a língua e a cultura
portuguesas. Em princípio, aos indivíduos com este estatu-
to legal eram concedidos privilégios e obrigações dos cida-
dãos portugueses, o que lhes permitia escapar aos fardos
impostos à maioria dos africanos (os indígenas). O estatuto
de assimilado foi formalmente abolido em 1961”.
12 Se o uso do termo “sobrinho” ref lete um modo particular
do mundo lusófono de tratar concubinos masculinos, mas
que encontra semelhanças com outros parentescos LGBT
(Weston, 1991), a centralidade da ideia de “amigo” parece
ter ressonância não apenas nas homossociabilidades eu-
ropeias e norte-americanas (Foucault, 1981; Weston, 1991)
quanto na tradição banto sul-moçambicana (Webster,
2009).
13 Para mais detalhes sobre uma história queer de Lourenço
Marques, ver a interessante pesquisa de Simões de Araú-
jo (2021) e a entrevista realizada por Costa Santos (2017).
14 Paulino morava com a mãe e com alguns tios maternos.
Mas, aqui, não se deve à matrilocalidade o pressuposto
de a mãe e os tios maternos decidirem a questão. Como
se trata de uma sociedade patrilinear, que possui a ins-
tituição do lobolo (bridewealth), provavelmente o pai de
Paulino, na ocasião, não teria pagado o lobolo e, portanto,
não teria os direitos sobre esse filho, que ainda pertencia
à linhagem materna.
“por que homossexuais só existem na cidade?”

964

15 Em sociedades gerontocráticas como as do bantos, deci-


sões familiares como essa frequentemente só são tomadas
depois de se ouvir a opinião dos anciãos da família. Razão
pela qual faz sentido que a pessoa mais sênior da família
seja quem decida certos assuntos.
16 Em linhas gerais, em História da sexualidade, Foucault (1988)
faz uma divisão heurística entre um “dispositivo da alian-
ça” e uma “ars erotica”, ou seja, da sexualidade iniciatória
e como transmissão do segredo, característica das socie-
dades pré-burguesas por um lado; e, por outro, um “dis-
positivo da sexualidade” e uma “scientia sexualis”, ou seja,
prevalência da sexualidade no discurso, na confissão e
na ciência, que surgem no século XVII com o advindo do
capitalismo.
17 “Vurhándzá hí rimbéwu” (aqueles que gostam da mesma
semente/gênero) é uma expressão do changana, presente
apenas a partir da última edição do Dicionário português-
changana, de Sitoe (2017), que, apesar de eu não ter encon-
trado ressonância entre os falantes (eles tampouco reco-
nheciam sua tradução como “homossexual”), escolho aqui
com f ins estéticos porque supostamente descreve uma
forma genérica e poética para aqueles que dirigem seu
desejo sexual e afetivo a pessoas do mesmo sexo.
18 “Eu próprio não sei como me detalhar porque... não apren-
di... ainda não tive aquilo de aprender, saber que isto é
isto, aquilo é aquilo. Eu só tenho desejo, às vezes eu en-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

contro alguém, ficamos. Só. Ainda não tenho aquela ex-


periência de “assim, que eu sinto assim, é porque eu sou
assim”. Ainda não tenho. Porque quem me ajudou... [...]
Que foi esse tal senhor que eu me... pela pr imeira vez.
Então eu só parei ali. Sim. Eu parei ali” (entrevista com
Amarildo, Matola, 23 ago. 2018).
19 Tanto em São Paulo (Green, Trindade, 2005) quanto no Rio
de Janeiro, com o Grupo Ok, já há no final da década de
1950, uma sociabilidade gay e um protomovimento LGBT
bastante parecidos com o que existia restrito aos brancos
de Lourenço Marques na mesma época (Melo, 1981).
20 Trata-se de duas famosas drag queens moçambicanas.
21 Termo que em Moçambique significa roça, pequena uni-
dade de produção agrícola.
artigo | francisco miguel 

965

22 Assim como em relação aos fops ingleses da primeira me-


tade do século XVII, um termo pejorativo para homens
ar istocratas que eram vistos por seus contemporâneos
como afeminados, mas sobre quem se presumia serem
sexualmente interessados por mulheres (Staves apud
Trumbach, 1990).
23 Junod (apud Thomaz, Gajanigo, 2009) em sua clássica et-
nog raf ia, realizada na virada do século XIX para o XX,
conta um episódio de discussão e zombaria entre garotos
de Mafumo contra os da Matola, no qual a acusação de
afeminação como algo pejorativo parece já presente, mas
nela não haveria necessariamente a conotação homosse-
xual. Tal questão é mais bem analisada em Miguel (2019).
24 GC é a sigla de “gerador de caracteres”. Trata-se daquela
faixa inferior da tela, comum a muitos programas de te-
levisão, em que mensagens rolam, geralmente para resu-
mir as notícias que repórteres e apresentadores estejam
anunciando oralmente.
25 Para um exemplo dessa visibilização da agenda LBGT em
Moçambique, ver Miguel (2020a).

Referências
Annes, Alexis & Redlin, Meredith. (2012). The Careful Ba-
lance of Gender and Sexuality: Rural Gay Men, the Hetero-
sexual Matrix, and “Effeminophobia”. Journal of Homosexua-
lity, 59/2, p. 256-288, DOI: 10.1080/00918369.2012 .648881
A Verdade. (2012). O Estado discrimina. Disponível em:
http://www.verdade.co.mz/destaques/democracia/30981-
o-estado-discrimina. Acesso em 21 mar. 2018.
Aboim, Sof ia. (2008 ). Masculinidades na encruzilhada:
hegemonia, dominação e hibridismo em Maputo. Análise
Social, 43/187, p. 273-295.
Bleys, Rudi C. (1995). The geography of perversion: male-to-
male sexual behavior outside the West and ethnographic ima-
gination, 1750-1918. New York: New York University Press.
Boellstorff, Tom. (2005). The gay archipelago: sexuality and
nation in Indonesia. Princeton: Princeton University Press.
Braga, Paulo Drumond. (2006). Mulheres criminosas, mu-
lheres perdoadas (Cabo Verde e São Tomé. Século XVI).
Islenha, 38.
“por que homossexuais só existem na cidade?”

966

Chipenembe, Maria Judite Mario. (2018). Sexual rights ac-


tivism in Mozambique. A qualitative case study of civil society
organisations and experiences of “lesbian, bisexual and trans-
gender persons. Thesis. Faculty of Arts and Philosophy/
Universiteit Gent.
Costa Santos, Gustavo G. (2017). “Nos bares da Rua Araú-
jo era fácil engatar militares, sobretudo mar inheiros”:
vivências e sociabilidades homoeróticas em Moçambique
colonial. Estudos de Sociologia, 2/23, p. 479-492.
Douglas, Mary. (2007) [1986]. Como as instituições pensam.
São Paulo: Edusp.
Er ibon, Didier. (2008 ). Ref lexões sobre a questão gay. São
Paulo: Companhia de Freud.
Fernandes, Estêvão et al. (2016). Diversidade sexual e de
gênero em áreas rurais, contextos interioranos e /ou si-
tuações etnicamente diferenciadas. Novos descentramen-
tos em outras axialidades – Apresentação. Aceno, 3 /5, p.
10-13.
Fortier, Anne-Mar ie. (2001). “Coming home”. Queer mi-
grations and multiple evocations of home. European Jour-
nal of Cultural Studies, 4/4, p. 405-424.
Foucault, Michel. (1988). História da sexualidade 1. A vonta-
de de saber. 19 ed. Rio de Janeiro: Graal.
Foucault, Michel. (1981). De l’amitié comme mode de vie.
Gai Pied, 25, p. 38-39. Trad. Wanderson Flor do Nascimen-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021

to. (Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet


e J. le Bitoux).
Green, James. N. & Trindade, Ronaldo (eds.). (2005). Ho-
mossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo:
Editora Unesp.
Melo, Guilherme de. (1981) A sombra dos dias. Lisboa:
Livraria Bertrand.
Miguel, Francisco. (no prelo). Maríyarapáxjis: Língua, gê-
nero e homossexualidade em Moçambique. Revista Mana.
Miguel, Francisco. (2020a). Por uma política com “respei-
to”: a institucionalização da homossexualidade no pro-
grama radiofônico moçambicano Café Púrpura. Caderno
de Estudos Africanos, 40, p. 141-166.
artigo | francisco miguel 

967

Miguel, Francisco. (2020b). International cooperation, ho-


mosexuality, and Aids in Mozambique. Contexto Interna-
cional: Journal of Global Connections, 42/3, p. 647-664. Dis-
ponível em: https://doi.org /http://doi.org /10.1590 /S0102-
8529.2019420300006.
Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia
e tolerância nos processos de institucionalização das homosse-
xualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Dou-
torado. PPGAS/Universidade de Brasília.
Miguel, Francisco. (2016). Levam má bô: (homo)sexualidades
masculinas em um arquipélago africano. Cur itiba: Editora
Prismas.
Murray, Stephen O. & Roscoe, Will. (1998). Boy-wives and
female husbands: studies of African homosexualities. New
York: Palgrave.
Neill, James. (2009). The origins and role of same-sex relations
in human societies. Jefferson: McFarland & Company.
Padgug, Robert. (1990). Sexual matters: rethinking sexua-
lity in history. In Duberman, Martin; Vicinus, Martha &
Chauncey, George (eds.). Hidden from history: reclaiming the
gay and lesbian past. New York: Penguin Books, p. 54-64.
Rubin, Gayle. (2018). Estudando subculturas sexuais: es-
cavando as etnografias das comunidades gays em contex-
tos urbanos da América do Norte. Teoria e Cultura, 13/1, p.
247-288.
Sedgwick, Eve Kosofsky. (1990). Epistemolog y of the clo-
set. Berkeley: University of California Press.
Simões de Araújo, Caio. (2021). “Queering the City”. The
Politics of Intimacy, Sex and Liberation in Lourenço Mar-
ques (Mozambique) 1961-1982. Revue d’Histoire Contempo-
raine de l’Afrique, 2, p. 130-150.
Sitoe, Bento. (2017). Dicionário português-changana. Maputo:
Texto Editores.
Thomaz, Omar & Gajanigo, Paulo. (2009). Usos e costumes
dos Bantu. (Coleção Clássicos em Antropologia).
Trumbach, Randolph. (1990). The birth of The Queen: so-
domy and the emergence of gender equality in modern
culture, 1600-1750. In: Duberman, Martin B.; Vicinus, Mar-
tha & Chauncey Jr, George (eds.). Hidden from history: re-
“por que homossexuais só existem na cidade?”

968

claiming the gay and lesbian past. New York: Penguin Books,
p. 129-140.
Webster, David J. (2009). A Sociedade Chope: indivíduo e
aliança no sul de Moçambique (1969-1976). Lisboa: Imprensa
de Ciências Sociais.
Weston, Kath. (1991). Families we choose. New York: Colum-
bia University Press.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 945 – 969 , set. – dez., 2021
artigo | francisco miguel 

969

“Por que homossexuais só existem na


cidade?” A recente “institucionalização” da
“homossexualidade” no sul de Moçambique
Palavras-chave Resumo
África; A partir de pesquisa etnográfica realizada nos últimos anos
LGBT; no sul de Moçambique, o presente artigo responde antro-
história; pologicamente à pergunta colocada por um telespectador
antropologia; moçambicano sobre o porquê da inexistência de sujeitos
sexualidade. homossexuais em contextos rurais locais. O argumento
central aqui apresentado é de que ainda que o desejo (ho-
mo)erótico preceda e prescinda da linguagem, a constitui-
ção de um sujeito propriamente homossexual não. Logo,
as cidades oferecerão não apenas um ambiente propício
para a vivência de experiências eróticas e identitárias des-
se sujeito, mas também a episteme necessária para que
ele se constitua como tal.

“Why do homosexuals only exist in cities?” The


recent “institutionalization” of “homosexuality”
in southern Mozambique
Keywords Abstract
Africa; Based on an ethnographic research carried out in recent
LGBT; years in southern Mozambique, this article answers an-
history; thropologically the question posed by a Mozambican view-
anthropology; er about why there are no homosexual subjects in local
sexuality. rural contexts. The central argument presented here is that
although the (homo)erotic desire precedes and dispenses
with language, the constitution of a subject that is prop-
erly homosexual does not. Therefore, cities will provide
not only an environment conducive to the experience of
erotic and identity experiences of this subject but will of-
fer the necessary episteme for such subject to be consti-
tuted as such.
970
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11310

1 Grupo de Investgiación ACASO, Universidad del Valle, Cali, Colombia;


y Grupo de Investigación Social y Acción Participativa (GISAP)
Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España
adolfo.garcia@correounivalle.edu.co
https://orcid.org/0000-0003-1131-5705

Francisco Adolfo García Jerez I

Electromovilidad y retórica política:


recursos naturales, nacionalismo
tecnológico y moral verde en Bolivia

En el 2015, el ministro de Hidrocarburos y Energías de Bolivia del gobierno del


Movimiento al Socialismo (MAS) contemplaba la posibilidad de que el trans-
porte público utilizara motores eléctricos, además de gas natural, para aprove-
char las grandes reservas de litio que atesoraba el territorio nacional. Con ello
se deseaba impulsar un cambio en la matriz energética que implicaba reducir
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

la subvención a la importación de aditivos de la gasolina y diésel e invertir


tanto en lo eléctrico como en etanol. De hecho, el ministro afirmaba que el
gobierno iba a destinar 106 millones de dólares en tal menester (La Razón, 2019b).
Sin embargo, y a pesar de esta promesa gubernamental, uno de los primeros
emprendimientos bolivianos en este sentido se fraguó en el sector privado. Me
refiero a la empresa Quantum Motors, dedicada a la fabricación y comerciali-
zación de vehículos eléctricos. En su web se describía como una empresa com-
prometida con el medio ambiente y la región, que pretendía consolidarse en el
país “brindando soluciones eficientes, económicas y ecológicas mediante la
provisión de transporte eléctrico en toda su gama”. En efecto, en septiembre
de 2019 anunciaba la puesta en venta de sus primeros 50 vehículos eléctricos.
Estas aspiraciones y expectativas sobre la electromovilidad no eran ex-
clusivas de Bolivia. La mayoría de los países de la región también habían mos-
trado una tendencia similar, tal y como se recogía en un informe del Banco
Interamericano de Desarrollo (Isla et al., 2019). En el último lustro esta institu-
ción había publicado otros tres informes donde se evaluaban la capacidad le-
electromovilidad y retórica política

972

gislativa y logística en la fabricación y distribución de los vehículos eléctricos


en América Latina (Gómez-Gélvez et al., 2016; Pérez & Gutiérrez, 2018; Pérez,
Gutiérrez & Mix Vidal, 2019). Al igual que en Gónzalez et al. (2019) y en Qui-
rós-Tortós et al. (2019), en todos ellos se concebía al sector de la electromovi-
lidad como una oportunidad económica viable y compatible con lo ambiental
que debía ser aprovechada por los países de la región.
Sin embargo, y en relación con las políticas públicas de la electromovi-
lidad, su conexión con la reconfiguración de la industria automotor y el surgi-
miento de un discurso verde, existen zonas grises frente a una imagen basada
en lo que Sun (2019) denomina “alegaciones éticas externas”, es decir, aquellas
estrategias comerciales basadas, entre otros aspectos, en campañas de marke-
ting para el relanzamiento de supuestos productos éticos dentro de un “mer-
cado moral” (Fourcade & Healy, 2007; Stehr, 2008). 1 Son varios autores (Anlauf,
2017; Bobeth & Matthies, 2018; Kotter, 2013; Lane et al., 2013) los que se han
interrogado acerca de esas ambigüedades al plantear si realmente esas políti-
cas públicas en pro de la electromovilidad están más enfocadas en atenuar los
riegos ambientales que en promocionar un nuevo nicho económico moralmen-
te plausible.
Así pues, y teniendo en consideración estos trabajos y la conformación
actual del mercado de los vehículos eléctricos en la región (Fligstein & Dauter,
2007), 2 el objetivo de este artículo estriba en analizar cuáles son los discursos
sobre la electromovilidad que han puesto en circulación los diferentes actores
sociales en Bolivia. Me interesa focalizar en este país no solo porque forma
parte de las grandes reservas de litio, sino también porque nos permite indagar
sobre dos cuestiones. Por un lado, cómo afectan las coyunturas internas a la
configuración de este mercado a escala nacional y cómo la electromovilidad
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

puede ser utilizada políticamente como un recurso discursivo en pleno proce-


so de transición política y de enfrentamiento social; y, por otro, cómo se solapa
el mercado global con los intereses domésticos. Mi hipótesis apunta a la exis-
tencia de tres narrativas que dan cuenta de la conformación de ese mercado
que podrían sintetizarse en la presencia recursiva de una idea de naturaleza
sui generis, en el surgimiento de un nacionalismo tecnológico en los últimos
lustros y en la exhortación estratégica de una “moral verde” como auto-ads-
cripción política.
De este modo, en el primer apartado del artículo expongo la circunstan-
cia de que, siendo Bolivia una de las principales reservas de litio a nivel global,
muchas de las expectativas estatales, de la industria automotriz y de ciertos
sectores socio-empresariales gravitan en torno a la extracción de dicho mine-
ral, su procesamiento y conversión en baterías destinadas fundamentalmente
al sector de la movilidad eléctrica (Fornillo & Gamba, 2019; Hollender & Schultz,
2010; Ströbele-Gregor, 2013). En efecto, las expectativas depositadas en este
sector hicieron que Bolivia fuera calificada a comienzos del siglo XXI como la
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

973

“Arabia Saudí del Litio” (Postero, 2017: 105). En el segundo apartado, y teniendo
en consideración esos “recursos privilegiados”, me he centrado en la topografía
andina (Mendoza, 2016; Stefanoni, 2010) y el mercado global del automotor
(Attias & Mira-Bonnardel, 2017; Donada & Attias, 2015). Analizo cómo los dis-
cursos, un tanto apocados, de las condiciones orográficas bolivianas se insertan
en y se articulan con las nuevas formas globales de organización empresarial
de este sector. El tercer apartado lo he destinado a la aparición de una retórica
institucional de corte nacionalista que, con base en la tecnología de la electro-
movilidad, alienta y legitima un tipo de desarrollo económico. Para ello tomo
prestada la noción de “nacionalismo tecnológico” (Amir, 2007; Kennedy, 2013).
Y, por último, en el cuarto apartado examino la apelación a una “moral verde”
(Currie & Choma, 2018; Feimberg & Willer, 2012) por parte de un sector de la
sociedad centrado en la demanda de políticas de electromovilidad, pero al mis-
mo tiempo el empleo de esa moral como un recurso narrativo dentro de las
pugnas políticas acaecidas en Bolivia en los últimos años.
En cuanto a lo metodológico, he de señalar que llevé a cabo un trabajo
de campo un tanto atípico en territorio boliviano desde enero hasta marzo del
2020 y desde finales de ese mes a junio del mismo año de modo virtual. Duran-
te esos meses entrevisté a dos miembros de una misma organización interna-
cional en el ámbito del transporte y que opera en Bolivia, a un técnico de la
Secretaría de Movilidad de la Alcaldía de La Paz, a dos gerentes y a varios
vendedores de Quantum Motors y a un propietario de vehículo eléctrico. Tam-
bién mantuve múltiples entrevistas, conversaciones informales e intercambios
de WhatsApp con transportistas de las organizaciones del transporte urbano
de La Paz acerca del reemplazo de sus vehículos por otros más sostenibles.
Junto con ello, realicé varias visitas al concesionario de Quantum Motors en la
capital paceña, buceé en sus redes sociales (Facebook y web) y asistí a la Feria
Internacional del Automóvil celebrada en el mes de marzo en la ciudad de La
Paz. Por último, consulté dos periódicos bolivianos de tirada nacional.

El litio como clave


Bolivia posee una de las mayores reservas de litio del mundo: alrededor de 21
millones de toneladas métricas situadas en el salar de Uyuni. Con el objetivo
de industrializarlas y comercializarlas, los gobiernos de Evo Morales invirtieron
600 millones de dólares en las dos primeras fases de un proceso que incluían
la instalación de plantas pilotos y factorías industriales de carbonato de litio.
Asimismo, para tales fines se suscribieron acuerdos con la empresa alemana
ACI System, la cual produciría hidróxido de litio, materiales catódicos y baterías
de ion litio para el mercado europeo, y con la china Xinjiang Tbea Group-Bao-
cheng, que procesaría la materia prima para Asia (citado en Gestión, 2019).
Asimismo, se esperaba una inversión conjunta de 3600 millones de dólares
para la tercera fase, que debería culminar en 2023, cuyo objetivo era la produc-
electromovilidad y retórica política

974

ción de dicho mineral a escala industrial. Sin embargo, ese contrato quedó en
suspenso como consecuencia de las protestas y huelgas organizadas por el
Comité Cívico de Potosí, encabezado por el líder Marco Pumari, quien a la pos-
tre, y tras la caída del gobierno del MAS en noviembre de 2019, presentaría su
candidatura a vicepresidente por la alianza Creemos. El Comité Cívico de Po-
tosí no solo solicitaba más del 3% de regalía por la explotación de los yacimien-
tos de litio en Uyuni. Lo que perseguía desde hacía tiempo, como sugiere Strö-
bele-Gregor (2013: 80), era una participación en la política de la gestión del litio,
ya que ese porcentaje del 3% estaba fijado en la Ley Nacional sobre Minería y
Metalurgía. La polémica surgió cuando desde la empresa pública Yacimientos
de Litio Bolivianos (YLB) se afirmó que la producción de hidróxido de litio es-
taba exenta de pagar las regalías por cuanto ese proceso estaría a cargo de una
empresa mixta compuesta por una de carácter estatal y otra extranjera. Por
tanto, solo se pagarían regalías por la venta de la salmuera.
Frente a esto, en una entrevista publicada en Página Siete el cuatro de
noviembre de 2019, y en un momento de fuerte deslegitimación del gobierno
masista, un experto economista criticaba el precio de venta de esa salmuera
residual, por cuanto era un material muy valioso y no debería ser considerado
“basura”. También alertaba de los pocos conocimientos técnicos existentes en
Bolivia para la extracción e industrialización del litio e, incluso, cuestionaba
las reservas de este mineral que habían sido anunciadas por el gobierno. Un
llamado de atención que se formulaba frente a las altas expectativas de de-
mandas globales de litio que anunciaba la empresa experta en energías Bloom-
berg New Energy Finance (2018). Según su estudio, en 2025 la demanda se du-
plicaría a unas 800 mil toneladas como consecuencia, entre otros factores, del
aumento de las baterías de los autos eléctricos.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

No obstante, este presumible aumento de la demanda no había sido ig-


norado por los gobiernos de Evo Morales. Éstos ya habían trazado las líneas de
lo que debería ser una Estrategia Nacional de Industrialización basada en la
explotación de carbonato de litio, en su industrialización y comercialización
(Ströbele-Gregor, 2013). Todo ello “bajo la dirección y con financiamiento nacio-
nal hasta la producción de baterías” (Ströbele-Gregor, 2013: 78). Esta estrategia
formaría parte de esa narrativa nacional popular y soberanista que caracterizó
a los gobiernos masistas, la cual no llegó a culminarse completamente por va-
rios factores: por la volatilidad del clima económico, la débil implementación de
las reformas prometidas, la consolidación de una fuerte oposición política y por
la baja tolerancia política existente (Kennemore & Weeks, 2011: 267).
En cualquier caso, lo interesante es que detrás de ese proceso extracti-
vista y de comercialización industrializado se encontraba, según Ströbele-Gre-
gor, el interés presidencial por fabricar vehículos eléctricos. Hollender y Schultz
(2010) también se refieren a ese interés cuando señalan que en una entrevista
concedida por Evo Morales a un periodista del New Yorker aseguraba que “Bo-
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

975

livia estaría produciendo baterías de litio al terminar el año 2010 y automóviles


eléctricos en los próximos ‘cinco a seis años’” (Hollender & Schultz, 2010: 29).
Una promesa que no fue del todo cumplida, ya que tuvo que esperarse hasta
2012, y tras tantear diversas opciones, para que el gobierno del MAS tratara de
firmar un acuerdo con un consorcio surcoreano con el fin de construir una
planta piloto de fabricación de cátodos de litio (Fornillo & Gamba, 2019: 18). Con
ella se calculaba producir 30.000 toneladas anuales de carbonato de litio a par-
tir de finales del 2014, cantidad que serviría, entre otras cuestiones, para “poner
en pie una industria de baterías y automóviles eléctrico en el 2015” (Ströbe-
le-Gregor, 2013: 79).
Lo cierto es que esta estrategia nacional fue objeto de debates por algu-
nos actores públicos de Bolivia. Por ejemplo, un editorial del periódico La Razón,
publicada el 27 de enero de 2018, que si bien se reconocía la importancia del
enfoque “soberanista del gobierno” apuntaba a la necesidad de establecer “alian-
zas pragmáticas” con empresas multinacionales a escala global si se deseaba
obtener mejores beneficios. Con ello se sugería quebrar en parte esa idea de lo
“100% estatal” en la gestión de los recursos naturales de la que tanto presumía
el gobierno de Evo Morales (Hollender & Schultz, 2010: 36). Según ese editorial,
con el establecimiento o no de estas alianzas estaba en juego la apertura de
nuevos mercados, la incorporación de nuevas tecnologías y la ampliación de
mejores oportunidades laborales y educativas para el país. El editorial finali-
zaba exhortando a los actores nacionales a reflexionar serenamente acerca de
esta posibilidad, puesto que “solo de esa manera se podrá demostrar que la
‘maldición’ de los recursos naturales ocurre únicamente en sociedades que de-
jan de tener confianza en sí mismas y que se solazan en sus conflictos y divi-
siones” (La Razón, 27 ene. 2018). Esta exhortación reviste de gran significación
histórica, ya que es recurrente en Bolivia la alusión a la “maldición” de poseer
recursos naturales. Por ejemplo, Boccara (2014), en la línea de Zavaleta (2018),
defiende que con la explotación colonial de las minas de Cerro Rico en Potosí
se consolidó una noción alóctona de acumulación y pérdida de riqueza que
generó − y sigue generando − traumas colectivos y tensiones sociales cuasi
irresolubles. Sentimientos que habría que enmarcarlos en lo que Stefanoni
(2010: 69) denomina “la emoción de la plata y del estaño” que arribó a Bolivia
con la conquista española.
Lo cierto es que en países cercanos también estaban replanteándose la
mejor estrategia a seguir considerando las expectativas generadas por el auge
global de la electromovilidad. En estos debates se evidenciaba una suerte de
tensión entre la explotación internacional del litio, por un lado, y la defensa
de la soberanía nacional de los recursos naturales, por el otro. Según Anlauf
(2017), el entusiasmo global por la electromovilidad y su narrativa “verde” es-
taba generando la implementación de modelos extractivistas que implicaban
fuertes jerarquías asimétricas y negativos impactos socio-ecológicos en la re-
electromovilidad y retórica política

976

gión. Es por ello que desde el 2011 Argentina comenzó a llevar a cabo una po-
lítica nacional para el fomento de la extracción y aplicación del litio en las
distintas fases de la acumulación electroquímica. Para eso se fundó la compa-
ñía YPF-Conicet, con capital estatal, cuyo objetivo era la financiación de pro-
yectos de investigación y la creación de un centro científico y tecnológico. Mien-
tras tanto en Chile, en 2015, se creó la Comisión Técnica y se aprobó un informe
que ratificaba “el carácter estratégico y no concesible de las reservas nacionales”
(Nacif, 2018: 61). Gracias a estas medidas se estaba consolidado una red nacio-
nal de expertos en litio (Nacif, 2018: 61). Con ello, además, se pretendía rebajar
la fortaleza oligopólica extranjera que se había fraguado desde la mitad del
siglo XX en torno a la extracción, procesamiento y comercialización de este
mineral.
En efecto, este interés por controlar las reservas de litio, con su conse-
cuente amenaza oligopólica, de injerencia internacional y efectos sócio-políti-
cos, no era solo fruto de un recelo excesivo sino que pudo corroborarse en la
respuesta del magnate Elon Musk, fundador de Tesla (uno de los principales
fabricantes mundiales de coches eléctricos), a un twitter que insinuaba su apo-
yo al golpe de Estado de noviembre de 2019 contra el gobierno del MAS. A esto
el magnate sudafricano respondió: “¡Derrocaremos a quien queramos! ¡Aguán-
tense!” (La Razón, 2020). Este mensaje fue retuiteado poco después por Evo Mo-
rales, dando lugar a una agria discusión en las redes sociales acerca de la per-
vivencia del fenómeno neocolonial en Bolivia.

Topografías andinas y mercado global


Como puede observarse, y a pesar de atesorar grandes reservas de litio, las
políticas nacionales de promoción de la electromovilidad en Bolivia pueden
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

considerarse exiguas en comparación a las de otros países de la región (Isla et


al., 2019). Ello a pesar también de que en los planes para reducir las emisiones
de gases de efecto invernadero se prometía implementar acciones con las que
mitigar los gases contaminantes procedentes del transporte (Pérez, Gutiérrez
& Mix Vidal, 2019). De hecho, la principal iniciativa en este sentido había pro-
cedido del sector privado.
El 13 de septiembre de 2019 Quantum Motors anunció la puesta en ven-
ta de sus primeros 50 vehículos eléctricos, de los cuales 40 fueron rápidamen-
te reservados. El futuro comprador podía optar por los modelos E2 y por el E3,
para los que se había tenido en consideración las características orográficas de
Bolivia; de ahí que contaran con una “garantía de altura”. Los modelos habían
sido testados en “todo tipo de terreno”, entre los que se encontraban las ciu-
dades de Potosí, Cochabamba y La Paz. Por tanto, sendos modelos estaban adap-
tados a la “topografía andina” gracias a su corona montañera (entrevista, ge-
rente regional de Quantum Motors de La Paz, 20 febr. 2020). Esto, más la cir-
cunstancia de ser autos “hechos en Bolivia y para los bolivianos”, los situaba
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

977

como un “orgullo para el país” (entrevista, gerente y fundador de Quantum Motors,


17 abr. 2020).
El énfasis topográfico, que también era compartido por la gerencia del nue-
vo sistema de buses de La Paz que aseveraba que su flota había sido fabricada
teniendo muy en consideración la “conflictiva topografía de La Paz” (Página Siete,
2020), y el deseo de Quantum Motors de convertir a sendos vehículos en un dispo-
sitivo integrador y de orgullo nacional, entroncan con los recurrentes debates en
torno a la condición territorial de Bolivia y sus supuestos efectos disgregadores.
Unos debates que tuvieron su epítome a principios del siglo XX, en la respuesta
del pensador boliviano Jaime Mendoza a la tesis del “conglomerado” del periodis-
ta y diplomático español Badía Malagrida. Para Mendoza (2016: 100), este último
concebía a Bolivia más que como una unidad geográfica como un territorio incon-
gruente. Por su parte, Mendoza la pensaba como una nación constituida por piezas
complementarias, un “país mixto” en el que la discordancia entre sus áreas se
debía más a la falta de infraestructura comunicativa que a sus propios accidentes
geográficos. Este énfasis en lo territorial, y que nos remite a binomios histórica-
mente instituidos como los de “geografía absurda” versus “potencia telúrica andi-
na”, o al de “pueblo enfermo” versus “raza de bronce” (Stefanoni, 2010), no es ba-
ladí puesto que sobre la unidad territorial debía asentarse la unidad moral de la
nación. Una controversia que todavía está presente, por ejemplo, con las demandas
separatistas formuladas por cierta élite de los departamentos orientales de la lla-
mada “Media Luna”, que reverberan cíclicamente y que son impulsadas por la idea
de los “viejos agravios” regionales (Roca, 2009: 72), o por la más novedosa de ser
los “nuevos ciudadanos marginados” de la nación (Fabricant & Postero, 2013: 188).
Asimismo, su condición de insularidad interior, franqueada por fronteras
naturales abruptas y sin fachada litoral por su “mediterraneidad” (Manrique, 2004),3
había ocasionado que la estrategia productiva de Quantum Motors se basara en su
inicio en una cierta contención. Sus alianzas comerciales se limitaban a sus pro-
veedores chinos y a los del territorio nacional, y a algunos contactos establecidos
con una empresa argentina de vehículos eléctricos con la que se buscaba acordar
fórmulas de distribución mutua. Esta estrategia, todavía en proceso de despliegue, 4
se diferenciaba de la desarrollada por las grandes marcas del sector, ya que con el
surgimiento y expansión del coche eléctrico se estaba consolidando en el mercado
global un nuevo ecosistema organizacional basado en la colaboración selectiva,
pero necesaria, entre las grandes empresas competidoras (Donada & Attias, 2015:
113). Lo que Attias y Mira-Bonnardel (2017: 69) denominan “coopetition”.
Por el contrario, la estrategia de contención de Quantum Motors se debía
en parte a esa visión de insularidad y hermetismo territorial que reinaba en el país
y a la incapacidad de atraer fábricas de ensamblaje automotor al territorio boli-
viano. Esto había ocasionado dos efectos. Por un lado, la imposibilidad de generar
una cadena de producción transnacional que facilitara la transferencia de cono-
cimiento en Bolivia a todos sus integrantes, así como el desabastecimiento de
electromovilidad y retórica política

978

piezas, tecnología y maquinaria para el montaje conjunto de vehículos eléctri-


cos más diversos. Por otro lado, y paradójicamente, esta ausencia le garantiza-
ba a Quantum Motors un mercado nacional expedito para su producto. Esto
último pudo comprobarse in situ en la Feria Internacional del Automóvil cele-
brado en La Paz en el mes de marzo de 2020, en la que de las 28 marcas extran-
jeras solo una exhibía un modelo eléctrico a un precio poco competitivo. Ello
a pesar de que fabricantes como BMW, Grupo VW, General Motors, Renault-Nis-
san y Toyota contaban con ofertas en otros mercados nacionales de la región
(Isla et al., 2019: 21).

Nacionalismo tecnológico y convergencia pragmática


¿Pero cómo se materializó institucionalmente este nuevo mercado en territorio
boliviano? ¿Cuáles fueron las retóricas políticas que se pusieron en circulación
en su conformación práctica?
En la fotografía de una noticia publicada en el diario Página Siete del 26
de septiembre de 2019, aparece en primer plano un hombre que mira sonrien-
te a la cámara. Está posando junto a un vehículo blanco, pequeño, adornado
con una cadena de flores. En su capó puede leerse “1er auto eléctrico hecho en
Cocha[bamba]”. Él es el primer propietario de uno de los modelos de vehículo
eléctrico de Quantum Motors. Sin embargo, si leemos el titular de la noticia
toda la ilusión que transmite la fotografía queda en suspenso por cuanto reza
lo siguiente: “El primer auto eléctrico hecho en Bolivia no puede circular por
no ser importado” (Página Siete, 26 sept. 2019). Es decir, si el propietario no
presentaba el documento de Internación, no se podía solicitar a su vez el Re-
gistro Único para la Administración Tributaria (RUAT), ni obtener las placas de
control ni adquirir el Seguro Obligatorio de Accidentes de Tránsitos (SOAT).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

Para poder circular en el territorio boliviano era necesario mostrar la póliza de


importación al gobierno municipal, a la Dirección de Prevención e Investigación
de Robo de Vehículos (DIPROVE) y a la Dirección Departamental de Tránsito. Sin
embargo, y dado que éste era un auto de fabricación nacional no podía obtener
dicha póliza y, por ende, no podía obtener el RUAT ni el SOAT ni, obviamente,
circular legalmente. Lo cierto es que no se había contemplado la posibilidad de
que en Bolivia se pudiera fabricar y ensamblar un automóvil, a pesar incluso
de que Quantum Motors había notificado en 2018 su interés en ello (entrevista,
gerente y fundador de Quantum Motors, 17 abr. 2020). Como me decía el geren-
te de Quantum Motors, “el sistema no estaba configurado” para atender a su
demanda.
Frente a esta situación un tanto intrincada, el primer propietario de un
vehículo eléctrico de fabricación nacional junto con un ejecutivo de la empre-
sa Quantum Motors se dirigieron a las oficinas de Tránsito y de la RUAT de su
localidad para solicitar alguna solución al entuerto. Según su impresión, habían
encontrado buena predisposición. De hecho, las autoridades reconocían que
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

979

este primer caso iba a servir de precedente a nivel nacional. Tanto es así que
un día más tarde el RUAT, DIPROVE y las alcaldías se comprometieron a solu-
cionar el problema entregando un Formulario de Registro Vehicular. Con este
documento los propietarios de los vehículos eléctricos de fabricación nacional
podrían solicitar la matrícula y el SOAT sin necesidad de mostrar el documen-
to de importación. Asimismo, y con el ánimo de resolver esta paradoja buro-
crática, el Ministerio de Gobierno, todavía bajo la presidencia de Evo Morales,
se comprometió a visitar inmediatamente las instalaciones de Quantum Motors,
mientras que el Ministerio de Desarrollo Productivo manifestó su entera dis-
posición a colaborar para enmendar el problema. A su vez, la Alcaldía de Co-
chabamba anunciaba que se iba a promulgar una norma edil para reglamentar
los impuestos de matriculación de los coches eléctricos nacionales, aseguran-
do que los trámites serían más económicos que los de los importados (entre-
vista, gerente y fundador de Quantum Motors, 17 abr. 2020).
Parecía que las diferentes administraciones estaban trabajando conjun-
tamente en aras de solucionar el problema. De este modo, los engranajes de
esa maquinaria estatal descentralizada comenzaron a activarse. Una arquitec-
tura administrativa que se inició con la aprobación en 1992 del proyecto de ley
de descentralización de los gobiernos municipales, con la implementación de
la Ley de Participación Popular de 1994, con la Ley de Descentralización Admi-
nistrativa de 1995 (Blanes, 2003, 177-178) y con la concesión de mayor autono-
mía a las regiones tras la aprobación de la nueva constitución en 2009 (Tockman
et al., 2015). Por medio de este proceso de descentralización se habían transfe-
rido infraestructuras, recursos y competencias tanto a los gobiernos locales
como a los departamentales. 5
En efecto, la descentralización administrativa y las cuotas de poder dis-
tribuidas − y en disputas − ocasionó que durante esos días fuera el propio pre-
sidente de Bolivia, Evo Morales, quien visitara la fábrica de Quantum Motors
para acelerar la solución. Tras probar in situ uno de los modelos y manifestar que
estaba muy sorprendido por la tecnología y los equipos de los vehículos, anun-
ció su total apoyo para la fabricación nacional de los coches eléctricos, ya que
ésta era una muestra de “orgullo cochabambino y boliviano, que inaugura con
creatividad y esfuerzo el nuevo ciclo de industrialización de autos eléctricos en
nuestra querida Bolivia” (Página Siete, 2019a). También realizó unas declaracio-
nes en torno a ese problema burocrático: “Después de informarme con el her-
mano vicepresidente (de la empresa), ya tiene tarea el equipo jurídico de la
Casa Grande del Pueblo para acelerar y pedir que incorpore su asesor jurídico
para cumplir las normas y que el carro eléctrico circule en Bolivia y Cochabam-
ba” (La Razón, 2019a). Es más, Evo Morales se refirió a esa normativa que no
contemplaba la posibilidad de fabricación nacional de automóviles como pro-
ducto de la “mentalidad colonial” (La Razón, 2019a) la cual, como en este caso,
impedía la generación de una industria nacional y sus operaciones productivas.
electromovilidad y retórica política

980

Ya bajo el mandato de la presidencia interina de Jeanine Áñez, de clara


vocación neoliberal en lo económico y narrativamente antimasista, todas estas
promesas de solución burocrática se vieron parcialmente cumplidas. En efecto,
a principio de diciembre del 2019 la empresa Quantum Motors pudo obtener la
certificación de producción automotriz que autorizaba la circulación de sus
modelos por territorio boliviano a partir de la entrega de la certificación “hecho
en Bolivia”. Esto a su vez permitía registrarlos y obtener los otros documentos.
Para la nueva presidenta, quien testó directamente un modelo en Cochabamba,
dicha empresa también era un orgullo por cuanto había podido producir el “el
primer vehículo eléctrico latinoamericano” (Página Siete, 2019b) que era, además,
más eficiente con respecto al consumo de energía y más barato que los de la
competencia. Según Áñez, el gobierno de transición se iba a comprometer a
fomentar este tipo de emprendimiento donde se ligaba el desarrollo económi-
co con la creatividad. Asimismo, el nuevo ministro de desarrollo Productivo y
Economía Plural garantizaba la operatividad de la empresa; en particular con
respecto al plan de exportación a otros países. Al igual que proponen los ex-
pertos Sauer et al. (2015), el nuevo ministro atisbaba la posibilidad de generar
en Bolivia una incipiente industria automotriz de vanguardia, que fuera pione-
ra y capaz de suministrar unidades a la región. Al país, por tanto, le esperaba
un “futuro verde” (Postero, 2017: 105).
Lo interesante de esta paradoja burocrática es la circunstancia de que,
a pesar de la descentralización estatal y la disputa del poder, entre los diferen-
tes agentes estatales se había generado una cooperación espontánea raciona-
lizando los procesos burocráticos en aras de solucionar ciertos enredos admi-
nistrativos y facilitar, tal y como nos ilustró Evans (1995) para el caso de la
emergente industria de la computación en Brasil, India y Corea del Sur, el óp-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

timo funcionamiento del nuevo mercado. Con esto se daba la impresión de que
a veces las pugnas políticas podían orillarse y lo hacían bajo la idea de proteger
y potenciar lo “hecho en Bolivia”. Este giro nacionalista de la producción era
compartido tanto por los gobiernos de Evo Morales, por el gabinete de transición
de Jeanine Áñez, como por la gerencia de Quantum Motors cuando apelaba (con
su “un auto hecho en Bolivia y para los bolivianos”) a la condición nacional de
su producción para subrayar uno de sus principales valores añadidos. Un “na-
cionalismo tecnológico” que, siguiendo a Kennedy (2013) y Amir (2007), se fun-
damenta en aquel discurso que enfatiza en la imprescindibilidad de la produc-
ción y control de una tecnología específica para el desarrollo y crecimiento de
una nación, por cuanto ésta le garantizaría al país cierto posicionamiento, um-
bral de seguridad e independencia en el contexto global.
De este modo, ambos gobiernos bolivianos confluían en lo relevante de
incentivar discursivamente esta industria tecnológica y de conocimiento na-
cional. La diferencia estriba en que si los gobiernos del MAS lo hacían apostan-
do por la soberanía estatal, el de Áñez lo hacía en defensa del emprendimien-
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

981

to privado. Por ejemplo, con respeto a las políticas económicas de los gabinetes
masistas, éstas se basaban en las ideas de descolonización e indigeneidad, y
aunque retóricamente invocaban al “buen vivir” y a la protección de la Pacha-
mama como ejes de su modelo de desarrollo nacional, económicamente apos-
taban por un extractivismo de corte estatal de dudosa compatibilidad con el
medioambiente. A esta propuesta Postero (2017) la denomina “nacionalismo
indígena”. Políticas estatistas y nacionalizadoras que, en cualquier caso, no
eran del todo tributarias y exclusivas del MAS. Muy al contrario, éstas formaban
parte de una herencia política en Bolivia cuyos precedentes más notables se
hallaban en la visión nacionalista del gobierno de Germán Bush y su “socialis-
mo de Estado” en la década de los 1930, y en la Revolución del 1952 y su célebre
expresión “tierras al indio, minas al Estado” (Stefanoni, 2010: 60). A diferencia
de los gobiernos del MAS, el de Áñez bebía más de una visión liberal y virtuosa
del mercado (Fourcade & Healy, 2007), en el que el despliegue de esta tecnología
era una evidencia nítida del carácter creativo e innovador del empresariado
boliviano actual y de su inserción en una verdadera lógica capitalista.

Moral verde y pugnas políticas


No obstante, y como bien afirman Harvey (2005) y Wilson (2004), la infraestruc-
tura vial o de transporte, como veremos a continuación, pueden convertirse
también en un campo de luchas sociales emergentes y en un dispositivo legi-
timador. Estas dinámicas se ven acentuadas aún más en Bolivia por cuanto el
carácter descentralizado de su Estado ha provocado que en contadas ocasiones
los gobiernos locales, departamentales y nacional, en general de diferentes
signos políticos, pugnen por legitimarse, deslegitimar al oponente y captar apo-
yo social (Welp & Lissidini, 2016). Es en estos niveles administrativos y territo-
riales donde se han expresado más notoriamente las pugnas y oposiciones
políticas en Bolivia en los últimos años. Máxime cuando en los dos últimos
gobiernos de Evo Morales el congreso nacional estuvo controlado por una ma-
yoría oficialista. Un buen ejemplo de estas contiendas lo tenemos en la dispu-
ta entre el gobierno nacional del MAS y el gobierno de la Alcaldía de La Paz en
manos del Movimiento Sin Miedo, por el modelo de transporte a implementar
en la capital paceña, así como su posterior inserción en los aciagos aconteci-
mientos de noviembre del 2019. 6
En 2014, la Alcaldía de La Paz auspició un nuevo sistema de movilidad
basado en los buses rápido (BRT) y de gestión municipal (los Pumakataris),
cuyo objetivo era transformar el modelo de movilidad existente en La Paz a
partir de una flota moderna y bajo una planificación pública. Este nuevo siste-
ma debía competir con las organizaciones de transportistas, cuyos líderes eran
fieles aliados del gobierno de Evo Morales, y con el también nuevo sistema de
teleférico inaugurado en el 2014, el cual había sido una iniciativa del gobierno
del MAS (Derpic, 2018; Koch, 2012). El 10 de noviembre del 2019, durante el
electromovilidad y retórica política

982

conflicto político suscitado por un presunto fraude electoral del gobierno de


Evo Morales que ocasionó su caída (Long et al., 2019; OEA, 2019), la configuración
de un polémico gabinete de transición, y una inusitada violencia de corte es-
tatal, 7 64 buses Pumakataris fueron deliberadamente incendiados. Los autores
formaban parte de los “grupos de choque” masistas, dos de los cuales eran
además líderes de una de las organizaciones de transporte de la ciudad (Farthing,
2020: 9). El motivo que subyacía a este ataque era doble. Por un lado, se arre-
metía contra un sistema de movilidad competidor, que ya en 2011 lo habían
desaprobado mediante paros y bloqueos (Koch, 2012:183). Y, por otro, se impug-
naba unos de los principales símbolos políticos de la gestión de la alcaldía de
La Paz, cuyo líder formaba parte del partido Movimiento Sin Miedo. Esta for-
mación había protagonizado una fuerte oposición a la propuesta de Evo Mora-
les de presentarse como candidato presidencial a las elecciones de 2019.
¿Cómo reaccionaron otros sectores sociales frente a este acto luctuoso?
Dos meses más tarde del incidente y mediante la plataforma Change.org, un
grupo de vecinos paceños solicitó a la Alcaldía que electrificara la flota de bu-
ses aprovechando el recambio obligado. Los motivos de esta solicitud quedaron
sintetizados en una columna del periódico Página Siete, del 25 de enero del 2020,
titulada “Los Pumitas eléctricos y nuestra salud”. En ella la autora exhortaba a
la administración pública a que fuera coherente con los protocolos internacio-
nales firmados (con los 17 Objetivos de Desarrollo Sostenible de Naciones Uni-
das y con el Acuerdo de París sobre el Cambio Climático), y que adquiriese
buses eléctricos de la marca china King Long y no de combustión. En abril de
2020, esta solicitud había sido firmada por 5.898 personas. La respuesta de un
asesor de la Alcaldía a dicha petición fue la de que si se deseaba incorporar
nuevos buses eléctricos era necesario establecer algunos corredores para de-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

terminadas rutas en las que se deberían habilitar puntos de carga que permi-
tieran realizar el recorrido sin problema. En su opinión, y más allá de la reali-
zación de estudios preliminares, era imprescindible en términos generales
incorporar incentivos para el cambio de la matriz energética en el país, formar
a estudiantes en electromovilidad y que las empresas privadas del ramo reali-
zaran una mayor inversión (Página Siete, 2020).
Lo más interesante de esa solicitud era, por un lado, el perfil de sus pro-
motores y, por otro, el tipo de conciencia ambiental y de tendencia ideológica
que subyacían a sus demandas. Una politóloga y un ingeniero eran los iniciado-
res de la campaña, aunque anunciaban que contaban con el apoyo explícito de
organizaciones ambientalistas como Action for Bolivia y Fridays For Future Bo-
livia. Narrativamente se presentaban como urbanitas y universitarios, con una
conciencia ambiental de corte cosmopolita alejada de los enfoques soberanistas.
Reclamaban activamente la incorporación de buses eléctricos en el sistema
público para cuidar el medio ambiente y la salud, pero no reclamaban que éstos
fueran de producción nacional o ensamblados en territorio boliviano. Asimismo,
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

983

en la solicitud de Change.org podía leerse la siguiente afirmación: “Los Pumitas


[hace referencia a los Pumakataris], como los llamamos con cariño, simbolizan
una La Paz moderna y pujante, que no se deja doblegar”. Con ese “no se deja
doblegar” parecía que los promotores de la iniciativa deseaban identificarse
sentimentalmente con aquel sector autodenominado la “generación pitita” que
protagonizó las movilizaciones contra el gobierno de Evo Morales en noviembre
de 2019, y que contó con el apoyo, entre otros, del partido Movimiento Sin Miedo
del alcalde de La Paz. Una generación que, según el retrato un tanto idealizado
de Hurtado (2019: 16-17), poseía un perfil fundamentalmente joven, urbanita,
universitario y con valores posmaterialistas.
De este modo, podría afirmarse que la significación social del transpor-
te y de la (electro)movilidad transcendía su funcionalidad primaria para tor-
narse en un componente discursivo más del campo político y en objeto de las
pugnas ideológicas que emergieron con fuerza en 2019. Por un lado, los afines
al gobierno de Evo Morales concibieron a los Pumakataris como un remedo de
la oposición asible que debía ser menoscabado, además de un competidor in-
truso en el mercado de la movilidad. Por otro, los jóvenes antimasistas los in-
terpretaron como una alegoría de sus valores posmaterialistas que debía ser
defendida y potenciada con su electrificación.
Esa invocación a una moral verde − es decir a un sistema de valores
estructurados y estructurantes cuyo fin es definir y distinguir aquellos com-
portamientos ambientales benévolos de los perniciosos − contribuía a fortale-
cer esa idea de resistencia plebeya frente a los ataques de los simpatizantes
oficialistas. Unos simpatizantes que, en la visión de este grupo de jóvenes,
además se habían alineado con un gobierno cuyo modelo de desarrollo se fun-
damentaba más en el extractivismo que en la protección ambiental. Como pue-
de apreciarse, y tal y como nos mostraron Currie y Choma (2018) y Feimberg y
Willer (2012) para otros contextos, también en Bolivia estas convicciones mo-
rales de tipo ambiental se habían transferido rápidamente a unas preferencias
electorales específicas.

Conclusiones
La electromovilidad se está conformando en un sector de gran relevancia eco-
nómica, política y social a escala global en el que Bolivia juega un papel muy
destacado por contar con una de las principales reservas de litio (Ströbele-Gre-
gor, 2013). Asimismo, en el último lustro se ha ido conformando un mercado
de la electromovilidad en la región, el cual ha suscitado grandes expectativas.
Si bien Bolivia ha sido uno de los países más rezagados en su implementación,
este territorio nos ofrece un escenario sugerente en el que analizar cómo ese
mercado se está desplegando y cuáles son los discursos que han sido elabora-
dos por los diferentes actores en su consolidación. En mi opinión, son tres re-
tóricas las que podrían sintetizarse.
electromovilidad y retórica política

984

Una primera se refiere a una visión un tanto ofuscada de los recursos


naturales que atesora Bolivia; en particular con respecto a la problemática
gestión de estos, los que a la postre pueden terminar resignificados como una
verdadera “maldición” nacional (Boccara, 2014; Zavaleta, 2018). Asimismo, la
topografía andina es sometida a un escrutinio reflexivo por cuanto sus abrup-
tas condiciones orográficas hacen cuestionar cíclicamente la existencia de una
efectiva unidad territorial y moral de la nación. Unas condiciones que, carac-
terizadas por sus pronunciadas pendientes, su “mediterraneidad” (Manrique,
2004) y hermetismo territorial, también han desafiado al mercado de la elec-
tromovilidad al reclamar la necesidad de fabricar vehículos acordes con esas
condiciones y de buscar nuevas estrategias para su articulación con el merca-
do global.
Una segunda retórica se sitúa en la noción de “nacionalismo tecnológi-
co” (Amir, 2007; Kennedy, 2013). La aparición de un fabricante boliviano de
vehículos eléctricos ocasionó, por un lado, la cooperación espontánea entre
gobiernos de diferente signo político bajo la idea de lo “hecho en Bolivia” y, por
otro, un discurso con el que justificar modelos económicos antagónicos: los de
Evo Morales apuntando a las políticas soberanistas y descolonizadoras (Poste-
ro; 2017), el de Áñez celebrando las lógicas emprendedoras del mercado capi-
talista.
Finalmente, una tercera retórica que ha emergido con fuerza con los acia-
gos eventos de noviembre del 2019 y que muestra cómo el reclamo por la elec-
trificación del sistema de buses públicos de La Paz, por parte de un sector de la
población, puede ser no sólo una prueba de la consolidación de una conciencia
ambiental y de una moral verde a fin a la perspectiva posmaterialista (Currie &
Choma, 2018; Feimberg & Willer, 2012), sino también un dispositivo coyuntural
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

de adscripción partidista y de auto-legitimación en el campo político.

Recibido en 01/06/2020 | Revisado en 08/10/2020 | Aprobado en 22/10/2020

Francsico Adolfo García Jerez é doutor em antropologia


social. De 2013 a 2019 foi professor na Universidad del
Valle (Colombia). Atualmente é membro dos grupos de
pesquisa ACASO e GISAP. Suas últimas publicações são
“El extractivismo urbano y su giro ecoterritorial. Una
mirada desde América Latina”, Urban space: experiences
and reflections from the Global South (coeditor) e “Between
two pasts: dictatorships and the politics of memory
in Bolivia” (coautor).
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

985

NOTAS
1 Cabe señalar que Stehr (2008) enfatiza no sólo en la con-
dición moral de los mercados sino en particular en el pro-
ceso de moralización de estos, a partir de la adquisición
de conocimientos por parte de los actores participantes.
Esto implica que los mercados también forman parte de
redes sociales que regulan las conductas, lo que permite
introducir y extender en ellos preocupaciones morales.
Por su parte, Fourcade y Healy (2007), y al igual que Stehr,
también conciben los mercados como entidades morali-
zadas y moralizantes. Sin embargo, para las autoras la
relación entre el orden moral y la actividad económica se
muestra más ambigua, ya que las categorías morales que
permean dichas actividades son constantemente forma-
das, contestadas y transformadas.
2 Sig uiendo a estos autores, se entenderá por mercado la
conf ig uración de un tipo de intercambio social y su es-
tructuración bajo las condiciones del capitalismo. Esto
incluye el estudio de las empresas, de los productos, de
las relaciones laborales, de sus proveedores, del Estado,
de los consumidores y de la relación con la cultura local.
Asimismo, también han de incluirse los significados acer-
ca de lo que es un producto y el papel de la moralidad en
la generación de determinados tipos de mercado.
3 Como bien expone dicho autor, con el término “medite-
rraneidad” se refiere a la condición de Estado sin litoral
de Bolivia como consecuencia de la Guerra del Pacífico a
f inales del siglo XIX, cuando el puerto de Antofagasta
quedó en manos de Chile. Una pérdida que aún en la ac-
tualidad se rememora, anhela y se litiga tanto por lo que
este territorio significa desde el punto de vista emocional
(no en vano, cada 23 de marzo se celebra el Día del Mar),
como por ser actualmente un nudo de comercio interna-
cional.
4 No obstante, cabe señalar que, con el fin de alcanzar una
mayor producción, diversificación (con su nuevo modelo
de triciclo y la fabricación de motocicletas) y comerciali-
zación, en el año 2021 Quantum Motors optó por una po-
lítica de exportación de sus productos a Paraguay y Perú
y ubicación de nuevas fábricas de ensamblaje en países
como México y El Salvador.
electromovilidad y retórica política

986

5 Con este proceso de descentralización política se prose-


guían varios objetivos no necesariamente coherentes entre
sí. Con la Ley de Participación Popular de 1994 se concedió
poder político a las unidades locales con el fin de “expandir
al área rural la institucionalidad democrática liberal” (Ste-
fanoni, 2010: 120). Mientras que con la dotación de mayor
autonomía a los departamentos, además de satisfacer las
demandas de los sectores más autonomistas y antimasis-
tas de las regiones más prósperas (Kent, 2007), se reconocía
por primera vez, aún con sus contradicciones, la condición
de sujeto político-territorial a los pueblos originarios e in-
dígenas de Bolivia (Tockman et al., 2015).
6 El 20 de octubre de ese año se llevaron a cabo elecciones
generales en Bolivia donde, y tras la interrupción momen-
tánea del escrutinio, la oposición política acusó de fraude
al gobierno del MAS. Esto se sumaba al malestar existen-
te causado por la decisión del Tribunal Supremo Consti-
tucional de habilitar a Evo Morales como candidato pre-
sidencial, a pesar del voto negativo emitido en el referén-
dum del 21 de febrero de 2016. Durante 21 días, desde ese
20 de octubre hasta el 10 de noviembre de 2019, amplios
sectores de la sociedad se movilizaron en las calles de-
mandando la renuncia del presidente, en lo que se auto-
denominó “la revolución de los pititas”. En esas jornadas
se evidenció la polarización social que reinaba en el país
entre aquellos que defendían al gobierno y sus detractores.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

Dicha tensión social se ag udizó tras la renuncia de los


principales dirigentes del MAS. El vacío de poder resul-
tante y la polémica configuración de un gabinete de tran-
sición presidido por Jeanine Áñez ocasionaron violentos
enfrentamientos (Farthing, 2020: 10) que dejaron un sal-
do de 33 muertos y 803 heridos (Barrientos, 2020: 126).
7 Según el informe auspiciado por la Facultad de Derecho
de la Universidad de Harvard podría hablarse de un “no-
viembre negro” boliviano en el que tuvieron lugar prácti-
cas de violencia estatal sistemática tales como las masa-
cres de Sacaba y Senkata, la persecución a políticos y
funcionarios afines al MAS y la connivencia gubernamen-
tal con g rupos paraestatales de extrema derecha (para
más información ver: http://hrp.law.harvard.edu/wp-con-
tent /uploads/2020 /07/Black-November-English-Final_ Ac-
cessible.pdf ).
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

987

Referencias
Amir, Sulfikar. (2007). Nationalist rhetoric and technolo-
g ical development: the Indonesian aircraft in the new
order regime. Technology in Society, 29 /3, p. 283-293.
Anlauf, Axel. (2017). Greening the imperial mode of living?
Socio-ecological (in)justice, electromobility, and lithium
mining in Argentina. In: Fairness and Justice in Natural Re-
source Politics. London/New York: Routledge, p. 164-180.
Attias Danielle & Mira-Bonnardel, Sylvie. (2017). Exten-
ding the scope of partnerships in the automotive industry
between competition and cooperation. In: The automobile
revolution. Cham: Springer, p. 69-85.
Barrientos, María Reneé. (2020). Bolivia, ocaso del “pro-
ceso de cambio”. Política exterior, 34/193, p. 126-136.
Blanes, José. (2003). Descentralización en Bolivia: avances
y retos actuales. In: Procesos de descentralización en la Co-
munidad Andina. Quito: FLACSO, p. 177-220.
Bloomberg New Energy Finance. (2018). New Energy Outlook
(NEO). Disponible en: https://bnef.turtl.co/story/neo2018/.
Acceso el 22 febr. 2020.
Bobeth, Sebastian & Matthies, Ellen. (2018). New oppor-
tunities for electric car adoption: the case of range myths,
new forms of subsidies, and social norms. Energy Efficiency,
11, p. 1763-1782.
Boccara, Bruno. (2014). Bolivia: revirtiendo traumas. La Paz:
Plural Editores.
Currie, Shannon & Choma, Becky. (2018). Sociopolitical
ideolog y and the morality of g reen behaviour. Environ-
mental Politics, 27/2, p. 247-266.
Derpic, Jorge. (2018). Orden, seguridad y limpieza. El te-
leférico de La Paz y El Alto: diferenciación urbana, infor-
malidad y Estado en Bolivia. In: ¿Todo cambia?: ref lexiones
sobre el “proceso de cambio” en Bolivia. México: UNAM, p.
23-50.
Donada, Carole & Attias, Danielle. (2015). Food for
thought: which organisation and ecosystem governance
to boost radical innovation in the electromobility 2.0 in-
dustry? International. Journal of Automotive Technology and
Management, 15/2, p. 105-125.
electromovilidad y retórica política

988

Evans, Peter. (1995). Embedded autonomy: States and indus-


trial transformation. Pr inceton, NJ: Pr inceton University
Press.
Fabricant, Nicole & Postero, Nancy. (2013). Contested bo-
dies, contested states: performance, emotions, and new
forms of regional governance in Santa Cruz, Bolivia. The
Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, 18/2,
p. 187-211.
Fligstein, Neil & Dauter, Luke. (2007). The sociolog y of
markets. The Annual Review of Sociology, 33, p. 6.1-6.24.
Farthing, Linda. (2020). In Bolivia, the right returns with
a vengeance. NACLA Report on the Americas, 52/1, p. 5-12.
Feimberg, Matthew & Willer, Robb. (2012). The moral roots
of environmental attitudes. Psychological Science, 24 /1, p.
1-7.
Fornillo, Bruno & Gamba, Martina. (2019). Industria, cien-
cia y política en el ‘Triángulo del litio’. Ciencia, Docencia y
Tecnología, 30 /58, p. 1-38.
Fourcade, Marion & Healy, Kieran. (2007). Moral views of
market society. Annuaal Review of Sociology, 33, p. 285-311.
Gestión. (2019). Huelga en Bolivia para romper contratos
de litio con firmas de Alemania y China. Disponible en:
https://gestion.pe/mundo/internacional/huelga-en-boli-
via-para-romper-contratos-de-litio-con-firmas-de-alema-
nia-y-china-noticia/. Acceso el 2 abr. 2020.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

Gómez-Gélvez, Julián et al. (2016). La incorporación de los


vehículos eléctricos en América Latina. Disponible en: https://
publications.iadb.org /publications /spanish /document /
L a - i n c o r p o r a c i % C3 % B3 n - d e - l o s -v e h % C3 % A D c u l o s -
-el%C3%A9ctricos-en-Am%C3%A9rica-Latina.pdf. Acceso
en el 2 abr. 2020.
González, Luis et al. (2019). Impact of EV fast charg ing
stations on the power distr ibution network of a Latin
Amer ican intermediate city. Renewable and Sustainable
Energy Reviews, 107, p. 209-318.
Har vey, Penelope. (2005). The materiality State-effects:
an ethnography of a road in the Peruvian Andes. In: Sta-
te formation. Anthropological perspectives. London: Pluto
Press, p. 123-141.
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

989

Hollender, Rebecca & Schultz, Jim. (2010). Bolivia y su litio.


¿Puede el ‘oro del siglo XXI’ ayudar a una nación a salir de la
pobreza? Cochabamba: Centro para la Democracia.
Hurtado, Álvaro. (2019). Nadie se cansa, nadie se rinde.
La ‘Generación Pititas’ y la comunicación paralela. Apor-
tes, 27, p. 9-20.
Isla, Lorena et al. (2019). Industria, y mercado para vehículos
eléctricos en América Latina y el Caribe. Banco Interameri-
cano de Desarrollo. Disponible en: https://publications.
iadb.org/publications/spanish/document/An%C3%A1lisis_
d e _ t e c n o l o g % C3 % A D a _ i n d u s t r i a _ y_ m e r c a d o _ p a r a _
veh%C3%ADculos_el%C3%A9ctricos_en_Am%C3%A9rica_
Latina_y_el_Caribe_es_es.pdf. Acceso el 2 abr. 2020.
Kennedy, Andrew (2013). China’s search for renewable
energ y: pragmatism techno-nacionalism. Asian Survey,
53/5, p. 909-930.
Kennemore, Amy & Weeks, Gregory. (2011). Twenty-first
century socialism? The elusive search for a post-neolibe-
ral development model in Bolivia and Ecuador. Bulletin of
Latin American Research, 30 /3, p. 267-281.
Kent, Eaton. (2007). Backlash in Bolivia: reg ional auto-
nomy as a reaction against indigenous mobilization. Po-
litics and Society, 35/1, p. 71-102.
Koch, Freddy. (2012). La Paz-El Alto: el viejo sueño de te-
ner un teleférico. In: Movilidad urbana & pobreza. Aprendi-
zajes de Medellín y Soacha. Londres/Medellín: UCL/Univer-
sidad Nacional de Colombia, p.177-185.
Kotter, Richard. (2013). The developing landscape of elec-
tric vehicles and smart grids: a smart future? International
Journal of Environmental Studies, 70, p. 719-732.
Lane, Bradley W. et al. (2013). Government promotion of
the electric car: risk management or industrial policy?
European Journal of Risk Regulation, 4/2, p. 227-245.
La Razón. (2020). La reacción de Musk sobre Bolivia: ‘¡Der-
rocaremos a quien queramos! ¡Aguántense!’. Disponible
en: https://www.la-razon.com/nacional/2020 /07/25/la-re-
accion-de-musk-sobre-bol iv ia-der rocaremos-a-quien
queramos-aguantense. Acceso el 27 de jul. 2020.
La Razón. (2019a). Morales promete apoyo para que el
auto eléctrico pueda circular en el país. Disponible en:
electromovilidad y retórica política

990

https://www.la-razon.com/economia/quantum-evo-mo-
rales-vehiculo-eletrico-cochabamba-apoyo_0_3229477041.
html. Acceso el 2 febr. 2020.
La Razón. (2019b). Quantum pone al país en el mapa au-
tomotriz. Disponible en: https://www.la-razon.com /su-
plementos /el_financiero /Quantum-pone-pais-mapa-au-
tomotriz-financiero_0_3227077281.html. Acceso el 2 febr.
2020.
La Razón. (2018). El desafío del litio. Disponible en: htt-
ps://www.la-razon.com/voces/2018/01/27/el-desafio-del-
-litio/. Acceso el 28 de ene. 2020.
Lazar, Sian. (2006). El Alto, Ciudad Rebelde: Organisatio-
nal Bases for Revolt. Bulletin of Latin American Research,
25/2, p. 183-199.
Long, Guillaume et al. (2019). ¿Qué sucedió en el recuento de
votos de las elecciones de Bolivia de 2019? El papel de la Misión
de Observación Electoral de la OEA. Washington DC: Center
for Economic and Policy Research.
Manrique, Nelson. (2004). La mediterraneidad boliviana
y la integración regional. Nueva Sociedad, 190, p. 22-28.
Mendoza, Jaime. (2016). El macizo boliviano y el factor geo-
gráfico en la nacionalidad boliviana. La Paz: Biblioteca del
Bicentenario de Bolivia.
Nacif, Feder ico. (2018 ). El abc del litio sudamer icano.
Apuntes para un análisis socio-técnico. Revista de Ciencias
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021

Sociales, segunda época 49 /34, p. 49-67.


OEA. Organización de Estados Americanos. (2019). Análi-
sis de integridad electoral elecciones generales en el Estado
Plurinacional de Bolivia. Disponible en: https://w w w.oas.
org /es/sap/deco/informe-bolivia-2019/0.1%20Informe%20
Final% 20 -% 20A nal isis% 20 de% 20Integ r idad% 20Electo-
ral%20Bolivia%202019%20 (OSG).pdf. Acceso el 8 abr. 2020.
Página Siete. (2020). ¿Pumas eléctricos? La Alcaldía rea-
liza estudio preliminar. Disponible en: https://www.pa-
ginasiete.bo/sociedad/2020 /1/22/pumas-electricos-la-al-
caldia-realiza-estudio-preliminar-244234.html. Acceso el
5 febr. 2020.
Página Siete. (2019a). Evo afirma que aprobarán normas
para autor eléctricos, 29 de septiembre de 2019. Disponi-
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

991

ble en: https://www.paginasiete.bo/economia/2019 /9 /29 /


evo-af irma-que-aprobaran-normas-para-autos-electr i-
cos-232532.html. Acceso el 5 febr. 2020.
Página Siete. (2019b). Quantum Motors obtiene certifica-
ción de producción automotriz’, 2 de diciembre de 2019.
Disponible en: https://www.paginasiete.bo/economia/20
19 /12/2/quantum-motors-obtiene-cer tif icacion-de-pro-
duccion-automotriz-239196.html. Acceso el 5 febr. 2020.
Pág ina Siete. (2019c). El primer auto eléctrico hecho en
Bolivia no puede circular por no ser importado, 26 de sep-
tiembre de 2019. Disponible en: https://www.paginasiete.
bo /economia/2019 /9 /26/el-primer-auto-electrico-hecho-
- e n - b o l i v i a - n o - p u e d e - c i r c u l a r- p o r- n o - s e r- i m p o r t a -
do-232165.html
Pérez, Daniel & Gutiérrez, María Clara. (2018) Electromo-
vilidad: más que un automóvil, una oportunidad de transporte
sostenible para la región. Disponible en: https://blogs.iadb.
org /transporte/es/electromovilidad-mas-que-un-automo-
vil-una-oportunidad-de-transporte-sostenible-para-la-
-region/. Acceso el 1 abr. 2020.
Pérez, Daniel; Gutiérrez, María Clara & Mix Vidal, Richard.
(2019). Electromovilidad: panorama actual en América Latina
y el Caribe: Versión infográfica. Banco Interamer icano de
Desarrollo. Disponible en: https://publications.iadb.org /
publications/spanish/document/Electromovilidad_pano-
rama _actual _en_ Am%C3%A9r ica _ Latina _y_el _Car ibe._
Versi%C3%B3n_infog r%C3%A1f ica_es_es.pdf. Acceso 1
mar. 2020.
Postero, Nancy. (2017). The indigenous State. Race, politics,
and performance in Plurinational Bolivia. Oakland: University
of California Press.
Quirós-Tortós, Jairo et al. (2019). Electric Vehicles in Latin
America: slowly but surely toward a clean transport. IEEE
Electrification Magazine, 7/2, p. 22-32.
Roca, José. (2009). Regionalismo revisitado. In: Tensiones
irresueltas: Bolivia, pasado y presente. La Paz: Plural Editores,
p. 71-92.
Sauer, Ildo et al. (2015). Bolivia and Paraguay: a beacon
for sustainable electric mobility? Renewable and Sustaina-
ble Energy Reviews, 51, p. 910-925.
electromovilidad y retórica política

992

Stefanoni, Pablo. (2010). Qué hacer con los indios…’. Y otros


traumas irresueltos de la colonialidad. La Paz: Plural Editores.
Stehr, Nico. (2008 ). Moral markets: how knowledge and af-
f luence change consumers and products. Boulder, CO: Para-
digm Publishers.
Ströbele-Gregor, Juliane. (2013). El proyecto estatal del
litio en Bolivia. Expectativas, desafíos y dilemas. Nueva
Sociedad, 244, www.nuso.org.
Sun, William. (2019). Toward a theory of ethical consumer
intention formation: re-extending the theory of planned
behavior. AMS Review, disponible en: https://doi.org/10.10
07/s13162-019-00156-6.
Tockman, Jason et al. (2015). New institutions of indige-
nous self-governance in Bolivia: between autonomy and
self-discipline. Latin American and Caribbean Ethnic Studies,
10, p. 37-59.
Welp, Yanina & Lissidini, Alicia. (2016). Democracia di-
recta, poder y contrapoder. Análisis del referendo del 21
de febrero de 2016 en Bolivia. Bolivian Studies Journal /Re-
vista de Estudios Bolivianos, 22, p. 162-190.
Wilson, Fiona. (2004). Towards a political economy of
roads: exper iences from Peru. Development and Change,
35/3, p. 525-546.
Zavaleta, René. (2018 ). Notas para una historia natural de
Bolivia. La Paz: Plural Editores.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 971 – 993 , sep. – dic., 2021
artículo | francisco adolfo garcía jerez 

993

Electromobilidade e retórica política:


recursos naturais, nacionalismo tecnológico e
moralidade verde na Bolívia
Palavras-chave Resumo
Eletromobilidade; A electromobilidade toma forma em um mercado de gran-
Bolívia; de relevância em escala global, no qual a Bolívia desem-
recursos naturais; penha papel muito importante por ter uma das principais
nacionalismo tecnológico; reservas de lítio. Considerando ambos os aspectos, o obje-
moralidade verde. tivo deste artigo é saber como o mercado de carros eléctri-
cos está se moldando de forma discursiva em território
boliviano. Minha hipótese aponta para a existência de três
narrativas assim sintetizadas: na presença recorrente de
uma ideia de natureza sui generis, na emergência nos últi-
mos lustros de um nacionalismo tecnológico e na exortação
estratégica de uma moralidade verde como uma autoatri-
buição política. Em termos de metodologia, realizei trabal-
ho de campo na Bolívia de janeiro a março de 2020, com-
binando entrevistas, observação direta e consulta em jor-
nais nacionais.

Electromobility and political rhetoric: Natural


resources, technological nationalism and green
morality in Bolivia.
Keywords Abstract
Electromobility; Electromobility is taking shape in a market of great rele-
Bolivia; vance on a global scale in which Bolivia plays an important
natural resources; role as it has one of the main reserves of lithium. Bearing
technological nationalism; both aspects in mind, the aim of this article is to find out
green morality. how the electric car market is being shaped discursively
in Bolivian territory. My hypothesis points to the existence
of three narratives that could be synthesised as follows: in
the recursive presence of an idea of a sui generis nature, in
the emergence in the last lustrums of a technological na-
tionalism, and in the strategic exhortation of a green mo-
rality as a political self-asscription. In terms of methodo-
logy, I carried out field work in Bolivia from January to
March 2020, combining interviews, direct observation, and
consultation of national newspapers.
994
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11311

1 Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Etnomusicologia


– Centro de Estudos em Música e Dança, Lisboa, Portugal
e Université Paris Nanterre (UPN), Centre de Recherche en
Ethnomusicologie, Nanterre, Île-de-France, France
filibb@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-8551-6780
Filippo Bonini BaraldiI

Inveja e corpo fechado no Maracatu de


baque solto pernambucano *

Música e “choque emocional”


Quais as emoções que são geralmente mobilizadas numa performance musical?
Algumas experiências afetivas seriam mais frequentes do que outras? Podemos
comparar as “emoções musicais” entre diferentes culturas e eventualmente en-
contrar semelhanças? Tentando responder a essas perguntas, Judith Becker
(2001: 145) sugeriu que a alegria (happiness), além das variações culturais dessa
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

noção, “é a emoção mais frequentemente associada à escuta musical e poderia


constituir um dos ‘universais’ dos estudos transculturais sobre a emoção musi-
cal”. 1 A hipótese da etnomusicóloga americana é bastante intuitiva: o ser huma-
no teria tendência a se sentir melhor quando é “musicalmente estimulado e ex-
citado” (Becker, 2001: 145).2
Nas comunidades ciganas (rom) da Transilvânia (Romênia), onde realizei
pesquisas de campo ao longo de uma década (Bonini Baraldi, 2021), essa hipóte-
se se encontra plenamente confirmada: seja em contextos rituais ou não, a mú-
sica excita, estimula ou simplesmente acompanha emoções que podemos efeti-
vamente associar à alegria (bucurie) e à felicidade (fericire). Ao longo de minha
estada no bairro rom de Ceuaș, pequena aldeia da Transilvânia central, focalizei
minha atenção, entretanto, em situações caracterizadas por um registro emocio-
nal diferente, que se exprime pelos choros e que não se limita à tristeza ou à
nostalgia. Em artigo publicado nesta mesma revista (Bonini Baraldi, 2016), des-
crevi em detalhe os contextos nos quais choro e música estão associados. Sugeri
que esses “prantos musicais” revelam algo fundamental da vida dos Roms, como,
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

996

por exemplo, a noção de fraternidade (phralimos) ou a importância dos defuntos


(mule) na constituição da identidade familiar.
Outras pesquisas na área da etnomusicologia sugerem que chorar no
meio de uma performance musical é comportamento comum a diferentes cultu-
ras (Feld, 1982; Rouget, 1990; Seeger, 2004; Williams, 1998). Propus o conceito de
“choque emocional” para referir-me a situações nas quais uma pessoa tem uma
reação emocional imprevista, curta e de grande intensidade ouvindo ou tocando
música. Como podemos explicar essas reações emocionais intensas? Como é
que a música contribui para as produzir? O que “acontece” na pessoa que viven-
cia na música um choque emocional seja ouvindo ou tocando? Que tipo de práti-
cas sociais são construídas em torno dessas experiências? O tema das “respos-
tas emocionais intensas” é alvo de importantes pesquisas no âmbito da psicolo-
gia da música (Gabrielsson, 2011). Em contraste, poucas tentativas nessa direção
foram feitas em âmbito antropológico (Becker, 2001; Bonini Baraldi, 2021; Feld,
1982; Rouget, 1990). Em minha opinião, o estudo dos choques emocionais em di-
ferentes sociedades do mundo nos permitiria aprofundar as teorias da emoção
musical, geralmente fundamentadas só na música clássica ocidental (Sloboda &
Juslin, 2010).

Dos Roms Romenos ao Nordeste Brasileiro 


Graças a uma bolsa Capes de professor convidado na Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), parti para o Nordeste brasileiro em setembro de 2014, levando na
mala as questões que destaquei no tópico anterior. Interessando-me as manifes-
tações musicais dessa região, encontrei um novo caso de choque emocional,
muito semelhante aos observados na Romênia. No documentário Maracatu, ritmos
sagrados, de Eugênia de Freitas Maakaroun (2005), vê-se uma mulher, num desfi-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

le de maracatu de baque virado, dançando como dama do paço;3 subitamente ela


interrompe sua dança, muda de ritmo e põe a mão no rosto para cobrir os olhos.
E chora, aberta e intensamente (figura 1). Trata-se de um choque emocional que
dura cerca de 30 segundos, após os quais a jovem mulher retoma progressivamen-
te a própria dança, e o sorriso volta a seu rosto ainda molhado de lágrimas.
Essas imagens suscitaram interesse igual ao que me tomou quando ob-
servei os músicos rom chorarem durante suas festas (figura 2). Nos dois casos
o choque emocional acontece em meio a um evento caracterizado sobretudo
pela euforia e a excitação, o carnaval no primeiro e uma festa de batismo entre
amigos no segundo. A dinâmica emocional parece semelhante: numa situação
de grupo acontece um clique, um estalo numa pessoa específica, como uma
corda que de repente se estica antes de voltar à normalidade e ao repouso. Ao
redor, tudo se mantém inalterado. Ninguém parece dar atenção ao fato de que
uma pessoa chora intensamente. Nas duas situações, a música parece fomen-
tar esse choque emocional, mesmo estando a pessoa que chora dançando, co-
mo no primeiro caso, ou tocando um instrumento, como no segundo.
artigo | filippo bonini baraldi

997

1
Dama do paço chorando num desfile de maracatu de baque virado
extrato do vídeo: https://vimeo.com/92865169

2
Músico Rom da Transilvânia chorando numa festa de batismo Ceuaș, 2005
Foto © Filippo Bonini Baraldi,
extrato do vídeo: http://ethnomusicologie.fr/tsiganes-bonini-baraldi/data/
video_05.html)
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

998

Encontrar uma situação de choque emocional semelhante as que tinha


observado na Romênia motivou-me a começar uma nova pesquisa de campo
na Zona da Mata norte de Pernambuco. Escolhi como base para minha pesqui-
sa a cidade de Condado, onde várias pessoas, na maioria trabalhadores rurais,
estão envolvidas em duas brincadeiras (ou folguedos): o cavalo marinho (ou
cavalo marim) e o maracatu de baque solto, também conhecido como maraca-
tu rural ou maracatu de orquestra. 4
Apesar das profundas diferenças estéticas, os maracatus de baque solto
e de baque virado têm muitas semelhanças do ponto de vista sociológico: em
ambos os casos os brincantes (ou folgazões) são pessoas com rendimentos
modestos, que moram nos bairros periféricos da cidade e se reúnem num lugar
de trabalho denominado sede, no qual, ao longo do ano, confeccionam as fan-
tasias para o carnaval. Ambos têm um componente místico-religioso bastante
acentuado. Geralmente, membros dos grupos de maracatu de baque virado
veneram os orixás do xangô, enquanto os de maracatu rural são ligados ao
culto da jurema ou umbanda-jurema. 5 A dama do paço, porém, é figura presen-
te num e no outro.
Com base nas semelhanças entre os dois tipos de maracatu, nas primei-
ras semanas de minha estada em Condado, pensei mostrar as imagens do cho-
que emocional da dama do paço a alguns brincantes que tinha conhecido. Meu
objetivo era estimular discussões sobre a relação entre a música e as emoções,
valendo-me de um exemplo concreto. À minha pergunta banal “Por que você
acha que essa mulher chora?”, Aguinaldo, um dos principais caboclos de lança
do Maracatu Leão de Ouro de Condado, respondeu:

Então, o carnaval, ele traz uma energia muito forte para quem dança, brinca […]
O Carnaval faz a pessoa sorrir e chorar, tanto de alegria como de tristeza. Ou
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

seja, pode chorar porque está feliz, chora porque o brinquedo ganhou, é campeão,
seja lá em que estág io [categor ia] for ele, pode até [ ser] um br inquedo fraco,
fraquinho, e entrar como aspirante, e ser campeão ou vice-campeão, então o
cara vai chorar pelo brinquedo dele, pelo trabalho dele, pela fantasia dele, chorar...
de alegria; ficou emocionado, e essas coisas, seja qualquer chave [categoria] que
for, do aspirante ao especial. E faz chorar... porque [alguém] está doente e não
pode brincar, ou uma pessoa da família, ela não pode brincar... [...] chora pela
pessoa que faleceu, e chora pelo carnaval que não vai poder brincar, chora por
isso aí. E chora de tristeza [...] porque o brinquedo não ganhou... Então o carna-
val tem de tudo que você imaginar, de tudo que você pensar... e muito mais!

Aguinaldo explica o choque emocional da dama do paço enfatizando


duas dimensões fundamentais do carnaval: o esforço e a memória, em parti-
cular a memória autobiográfica.
De um lado, para muitos brincantes participar do carnaval constitui um
grande esforço, que pode chegar até o sacrifício. Tudo parece ser feito para
perder dinheiro, tempo, e até mesmo a saúde, especialmente a visão, devido ao
minucioso trabalho de costura das golas − os mantos dos caboclos de lança −,
artigo | filippo bonini baraldi

999

compostas por um grande número de pequenas lantejoulas coloridas (figura 3).


Esforço no Maracatu é sinônimo de resistência, e essa qualidade é necessária
para suportar, durante o carnaval, o peso das fantasias, o calor, o cansaço, a
fome e a sede. O comentário de Aguinaldo “Chora pelo trabalho dele” sugere
que há uma relação profunda entre o esforço e a intensidade emocional da
brincadeira: o choque emocional da dama do paço é percebido como resultado
de um processo de acumulação de sacrifícios, tanto simbólicos como materiais.

3
Aguinaldo costurando a própria gola, elemento essencial da
fantasia do caboclo de lança do maracatu rural
Condado, fev. 2017
Foto © Filippo Bonini Baraldi
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1000

Por outro lado, meu interlocutor aponta que essa mulher chora porque,
provavelmente, se lembra de uma pessoa da família, doente ou falecida, que já
não pode brincar. Na Romênia, quando perguntava aos Roms por que os músicos
choravam em meio a uma festa, ouvi esse mesmo comentário muitas vezes. A
música pode trazer à memória pessoas específicas e, em muitos casos, a emo-
ção sentida é atribuída a essas lembranças (Baumgartner, 1992). De forma mais
geral, uma performance ou um ritual ativa a memória de eventos do mesmo tipo,
e esse processo de repetição intensifica a experiência emocional vivida no pre-
sente (Lüddeckens, 2006).
Além das dimensões do esforço e da memória, a última frase de Agui-
naldo – “O carnaval tem de tudo que você imaginar, de tudo que você pensar...
e muito mais!” – sugere que é possível encontrar outras causas do choque emo-
cional, provavelmente menos explícitas. Certamente, o carnaval é muito mais
que uma simples diversão (Cavalcanti, 2015), mas o que seria “mais do que
tudo”? Visualizando o mesmo vídeo, outro morador de Condado, o rabequeiro
Luís Paixão, sugeriu-me uma possível resposta:

L.P. Isso aí, isso aí tem... [...] uma relação, sabe de quê? Com candomblé velha,
entendeu? Tem relação com isso, é! As marchas que ele fala [canta] aqui, tem
muito em conta com os caboclos, as coisas, caboclo da mata, essas coisas... Aí
[...] tem é [...] muita relação com... com... com candomblé, é... Entendeu? [risada]

F.B.B. E aquela emoção chega de...

L.P. É... tem uma hora que chega nas pessoas aquela emoção de... de chorar... tem
muitos que embola, cai, essas coisas...

F.B.B. Embola? Cai?

L.P. É... fica embolando no chão, fazendo... Que as vezes nem se lembra que pas-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

sa aquilo. Tem muita gente que tem corpo de médium... [...] Dessas coisas, no
candomblé [...]

F.B.B. Médium quer dizer o quê?

L.P. Médium é a pessoa que trabalha na espiritual, que tem aquelas danças, que
brinca com... com… quando está cantando aqueles hinos aí, ele canta, dança [...]
[tem] muitos, que... que é ligado, muitos. É como se esse povo aí... brinca, mas
tem essa ligação com essas coisas. E muita gente gosta disso aí!

Luís faz uma relação direta entre a emoção intensa da dama do paço,
durante um desfile de carnaval, e o culto do candomblé.6 “Tem muita gente que
tem corpo de médium”, afirma, indicando de maneira explícita que algumas
pessoas podem receber espíritos ou entidades sobrenaturais. Será essa dimen-
são místico-religiosa que Aguinaldo indica quando alega que “o Carnaval tem
de tudo... e muito mais”? Em que medida essa dimensão entra em jogo nas
brincadeiras do carnaval pernambucano, em particular no maracatu de baque
solto? Como se relaciona com a estética visual, musical e coreográfica das per-
formances do maracatu? São perguntas bastante complexas, uma vez que o cul-
artigo | filippo bonini baraldi

1001

to da umbanda-jurema é pouco estudado, e ainda menos estudada é a relação des-


sa religião com as brincadeiras da Zona da Mata norte pernambucana. A essa com-
plexidade acrescenta-se o fato de que “o maracatu tem muitos segredos”, como
dizem seus membros, estreitamente relacionados a sua dimensão místico-religiosa.
Na sequência deste artigo, meu objetivo não será tratar de aspectos teóricos de
antropologia religiosa, nem revelar “os segredos do maracatu” (que, de qualquer
forma, me são desconhecidos), mas sim aprofundar uma intuição que as conversas
sobre o choque emocional da dama do paço me têm despertado: a vivência emocio-
nal dos brincantes de maracatu é profundamente ligada à uma maneira particular
de conceber o corpo durante a época do carnaval. Um corpo diferente do ordinário,
suscetível, permeável a presenças e ataques de entidades invisíveis.

O corpo atingido
A antropologia das religiões afro-brasileiras, desde as pesquisas de Roger Bastide
(2001), aponta que o corpo é lugar privilegiado em que as entidades sobrenaturais
se manifestam. Tanto os pesquisadores quanto os adeptos dessas religiões utilizam
a palavra “incorporação” para dar conta dessas manifestações, que podem resultar
em estados de transe, geralmente em lugares predestinados, como as casas de
culto, onde vários rituais são promovidos para as estimular e também controlar. 7
No contexto do maracatu rural, é raro ouvir falar em incorporações duran-
te as apresentações e desfiles de carnaval. Deparei-me frequentemente, no entan-
to, com a ideia de que o corpo pode ser atingido involuntariamente, atacado subi-
tamente por entidades negativas. Os ataques podem causar todo tipo de problemas
durante os desfiles, como impedir o mestre (poeta) de tocar seu apito, interromper
de repente o som dos instrumentos ou ainda furar os pneus dos ônibus que trans-
portam o grupo, mas o efeito mais recorrente nos relatos é a provocação de doen-
ças imprevistas nos brincantes. Isso parece bastante lógico, pois o corpo é o lugar
principal em que as entidades invisíveis se manifestam, e, portanto, quando elas
são consideradas negativas, podem prejudicar seu funcionamento. Por que, porém,
é dada tanta relevância à preocupação de o corpo ser atingido, atacado, fragilizado
por entidades negativas durante o carnaval? Por que ter tão grande preocupação
durante a festa?
O maracatu de baque solto está associado, no imaginário coletivo dos mo-
radores da Zona da Mata norte de Pernambuco, a uma ética de conflito, luta, guer-
ra e morte. Todos os brincantes têm um discurso muito explícito sobre esse aspec-
to, sendo comum ouvir frases do gênero: “Antigamente, o maracatu era pra furar
o inimigo” ou “Maracatu era só porrada”. Confrontações físicas podiam acontecer
entre dois indivíduos ou entre dois grupos rivais. As pessoas mais velhas contam
que quando os caboclos saíam para o carnaval, a pé, nos canaviais, era possível
que se deparassem com “inimigos”, ou seja, algum caboclo com quem tivessem
desavença ou conflito, fosse por dinheiro, família, relação amorosa, entre outras
causas. Armados de uma lança afiada na mão, denominada guiada, elemento in-
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1002

dispensável na fantasia do caboclo, e provavelmente de uma faca escondida na


cintura, os homens confrontavam em verdadeiros duelos com o objetivo de
“furar” e até mesmo matar o adversário. Ouvi dizer que um caboclo podia rece-
ber dinheiro de uma pessoa, geralmente um fazendeiro da região, para atacar
outro caboclo durante o carnaval.
Há histórias também de lutas entre grupos inteiros de maracatu. Quando
dois grupos oriundos de cidades diferentes se encontravam em meio aos cana-
viais, um chegando de um lado e outro chegando de outro, era “obrigatório cru-
zar as bandeiras”, ou seja, enfrentar frontalmente o grupo rival sem mudar o
próprio percurso e sem retroceder. Brincar de caboclo era sinônimo de mostrar
sua coragem, força, masculinidade. Ainda não havia mulheres no maracatu, e os
homens “saíam para os três dias de carnaval sem saber se iam voltar para casa”.
É difícil saber até que ponto esses relatos são fundados em acontecimen-
tos ou se se trata de mitos transmitidos de pai para filho exaltando e reforçando
a imagem valiosa dos maracatuzeiros. Um dia, levantando essa dúvida numa
conversa com Aguinaldo, recebi uma resposta assertiva: “Tudo isso é verdade, e
existe também um cemitério dos caboclos, perto de Nazaré da Mata. Se você qui-
ser, podemos ir lá!” Poucos dias depois para lá fomos de carro em companhia de
seu amigo Majó. Quando chegamos ao cemitério, meio abandonado e cheio de
ervas daninhas, nada havia que me permitisse determinar se os caboclos “víti-
mas” dos combates estariam de fato ali enterrados. Isso, entretanto, interessava
muito menos do que as histórias que Aguinaldo e Majó me contavam: “Veja esse
cruzamento. Aqui passavam os maracatus de Nazaré, de Tracunhaém, de Alian-
ça... Quando se encontravam, tinham a obrigação de cruzar a bandeira, de se
enfrentar. Muitos caboclos morreram (per)furados, e eram enterrados aqui mes-
mo, com a gola, o chapéu, e a fantasia todinha...” (figura 4, na página seguinte).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

Hoje em dia, as saídas e atuações dos grupos de maracatu se inscrevem


num contexto muito mais controlado – o da competição do carnaval de Recife,
com seus desfiles, juris e prêmios. O combate se deslocou para dimensão mais
estética do que física. Com relação aos brincantes, todavia, especialmente para
os caboclos de lança, os perigos não acabaram com o fim dos enfrentamentos
diretos e o carnaval continua a ser percebido como um momento inseguro, pre-
judicial à saúde. De fato, no maracatu rural as categorias “festa” e “guerra” se
sobrepõem como “gêmeos desiguais e indissociáveis” (Perrone-Moisés, 2015: 68).
Assim, no caminho de volta para Condado, em meio a outras histórias
de brigas entre caboclos e grupos de maracatu, ouvi Aguinaldo perguntar a
Majó: “Onde você vai buscar a sua defesa para brincar no carnaval esse ano?”
Com a palavra “defesa”, Aguinaldo se referia ao calço, um ritual feito nas casas
de umbanda-jurema e que tem como objetivo proteger o caboclo nos três dias
de carnaval. Sem hesitar, perguntei a Majó se poderia acompanhá-lo para as-
sistir a esse ritual, ao que ele respondeu afirmativamente.
Quando faltavam poucos dias para o primeiro dia de carnaval, as res-
artigo | filippo bonini baraldi

1003

4
Aguinaldo indicando o “cemitério dos caboclos”,
perto de Nazaré da Mata, 2016
Foto © Filippo Bonini Baraldi

postas de Majó sobre um eventual compromisso comigo eram sempre muito


evasivas. Perecebi que ele não se sentia muito confortável com a ideia de ser
acompanhado nesse ritual e, obviamente, não insisti. Aguinaldo propôs-me
então acompanhar seu amigo Bel, que nesse ano estava ocupando a posição de
mestre caboclo (líder dos caboclos de lança) pela primeira vez. Após ter con-
versado com Bel, para ter a certeza de que minha eventual presença não o iria
incomodar, na manhã do domingo de Carnaval consegui assistir a seu calço
feito no terreiro de umbanda-jurema do seu Biu.
Por volta do meio-dia, sob sol escaldante, Bel estava pronto diante da
sede do maracatu para liderar a chegada dos caboclos, momento no qual os
membros do grupo se reúnem progressivamente, um a um, dançando. Já era
início da tarde quando o maracatu começou a desfilar no bairro do Condado
Novo, antes de partir para se apresentar nas cidades vizinhas. Logo depois das
primeiras manobras (evoluções, danças coletivas), porém, Bel caiu subitamen-
te no chão, atingido por forte dor nas pernas. Quando cheguei perto dele, esta-
va sentado na sombra, chorando. Sua esposa o levou para casa, e Bel teve que
abandonar o maracatu que iria liderar naquele ano. Um pouco mais tarde, sa-
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1004

íram de Condado os ônibus levando os brincantes para se apresentar na região,


e a cidade ficou meio deserta.
Eu também não consegui acompanhar o maracatu. Já havia alguns dias
que uma forte infeção nos ouvidos me prendia na cama. Comecei a pensar que
era bastante curioso o fato de estarmos ambos com problemas no lugar do
corpo de que mais precisávamos naquele momento: os ouvidos de um etno-
musicólogo e as pernas de um dançarino. Isso me fazia sorrir, mas também me
preocupava um pouco: estaria Bel pensando que sua dor tinha a ver com a
presença de uma pessoa estrangeira, ainda por cima doente, no ritual do calço?
No final da tarde, fui até a casa dele para ver como estava, mas também para
tirar minhas dúvidas e meus receios, atento às explicações que Bel poderia ter
a respeito desses acontecimentos.
Felizmente, Bel acolheu-me calorosamente, até muito mais do que antes,
como se um mesmo destino desafortunado tivesse, naquele momento, nos
aproximado. Perguntei-lhe o que tinha acontecido. Respondeu que alguém lhe
tinha “colocado alguma coisa” nas pernas para o impedir de brincar. Contou-me
que logo depois do acidente tinha voltado à casa do pai de santo Biu, que lhe
fizera o ritual do calço naquela manhã e que então “olhou” no seu corpo, “sem
encontrar nada”. Bel foi então consultar uma mulher conhecida por seus “tra-
balhos”, que finalmente conseguiu “tirar aquela coisa” das pernas, eliminando
imediatamente a dor.
No dia seguinte, Bel conseguiu voltar a liderar o maracatu, e o Leão de
Ouro tornou-se campeão do Carnaval de 2016. Quanto a mim, tive que sair de
Condado para tratar a infecção no hospital de Recife e não me foi possível
voltar lá antes de viajar para a Europa. Aquele ano, meu trabalho de campo
acabou com uma grande curiosidade de saber como os outros maracatuzeiros
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

iriam interpretar esses acontecimentos.

Inveja e olho grande


Voltei a Condado no mês de fevereiro do ano seguinte, quando minha curiosi-
dade já se havia transformado num verdadeiro problema de pesquisa. Meu
objetivo era tentar compreender como as pessoas explicam essas doenças re-
pentinas que, durante o carnaval, podem atingir o corpo dos brincantes. Come-
cei a perguntar a várias pessoas de Condado o que pensavam desse episódio
de dupla doença (minha e de Bel) ocorrido no ano anterior. Eliane, uma jovem
muito envolvida com o Leão de Ouro, assim me respondeu:

F.B.B. Muitas pessoas me falaram que na época do carnaval é sempre maior a


possibilidade de ficar com algum problema...

E. É... acontece alguma coisa …

F.B.B. Isso é só nos três dias de carnaval mesmo, ou também antes?

E. Antes também, e quanto mais perto, que vai chegando o dia, mais... misterio-
artigo | filippo bonini baraldi

1005

so vão ficando as coisas. De repente acontece assim uma coisa, de nada, de re-
pente, você nem imagina! […]

F.B.B. Mas tudo isso só acontece no carnaval ou em outros períodos do ano tam-
bém tem esse tipo de...

E. É como se fosse assim... inveja. Assim, inveja sabe? Tem durante todo o ano,
mas nessa época é mais forte. Entende?

F.B.B. Inveja... quer dizer o que exatamente?

E. Inveja é quando você.... tipo assim, você tem estes óculos... A í eu acho os
óculos lindos. Mas eu acho tão lindo, tão lindo, a ponto que eu vou lá e compro
um só porque você tem um deste. Aí eu vou lá e compro porque eu quero ter um
igual a você. Está entendendo? Ou quando é ainda mais sério ainda, quando...
assim, você tem uns óculos daqueles... “Mas como é que ele tem? Por que é que
ele tem? ” E aí já vai dar para o lado da... do olho grande... assim... entendeu? Ele
tem... [então] eu quero ter. E se eu não consigo ter, eu faço de tudo para que ele
não tenha. Está entendendo?

F.B.B. Então essa expressão olho grande, o que quer dizer?

E. Olho grande é assim... é... é... ficar de olho em tudo que você tem, eu quero ter.
Entendeu? [...] Quando o olho g rande, a inveja, é for te mesmo, a pessoa f ica
doente, fica doente mesmo, assim, de cama mesmo! A gente fica [dizendo] “Por-
que é que fulano ficou doente assim de repente? ” Sabe? Dá uma dor de barriga,
uma dor de cabeça, do nada, assim, você está ótimo, e de repente vem aquela
dor de cabeça infernal que não se sabe de onde.

Entre os brincantes do maracatu comentários desse tipo são muito fre-


quentes. Na época do carnaval, a inveja parece ocupar um lugar de primeiro
plano nas relações interpessoais, seja entre maracatuzeiros de grupos diferen-
tes ou membros do mesmo grupo. Mas o que é a inveja? Por que seria mais
forte na época do carnaval? Como é que esse sentimento entra em jogo no
contexto das brincadeiras dessa região, em particular no maracatu de baque
solto? Qual é o significado das expressões olho grande ou olho gordo?
A inveja pode ser definida como um sentimento de angústia, de raiva,
de tristeza ou pesar perante o que uma pessoa tem – seja um objeto material
ou uma qualidade moral que a pessoa invejosa não possui. Sem aprofundar as
explicações históricas, psicológicas e filosóficas desse sentimento considerado
pelo catolicismo um dos sete pecados capitais, é interessante observar que o
termo inveja vem do verbo latino invidere: olhar em negativo, olhar mal ou olhar
com malícia. Os termos “mau-olhado” em português, “malocchio” em italiano ou
“mauvais-œil” em francês têm exatamente a mesma etimologia da palavra inve-
ja, ou seja, “olhar mal”, olhar alguém “em negativo”. De fato, em muitas socie-
dades invejar alguém é associado a lançar o mau-olhado contra alguém (Evans-
-Pritchard, 1937; Schoeck, 1969), e Dante Alighieri (1981), na Divina comédia, situa
os invejosos no purgatório com os olhos costurados.
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1006

Como os comentários de Eliane indicam, em Condado a situação é se-


melhante, e ter inveja é sinônimo de ter olho grande, olho gordo, um atributo
perigoso, que pode ter o efeito de atingir o corpo das pessoas, adoecê-las e até
matá-las. Seguindo esse caminho interpretativo, fiquei interessado em saber
se o meu problema de saúde era de algum modo comparável ao do mestre
caboclo Bel. Felizmente, ninguém associou minha infecção ao olho grande dos
invejosos, mas todos explicaram a doença de Bel nesses termos, como, aliás,
ele também me explicara. Por que essa diferença? “Invejamos as pessoas que
são próximas de nós em termos de espaço, tempo, idade, reputação (e nasci-
mento). As pessoas, portanto, que têm mais ou menos os mesmos desejos e as
mesmas possibilidades. O menino inveja o irmão que recebeu um presente que
ele não recebeu. A menina inveja a amiga que foi a um baile ao qual ela não foi
convidada. Ambos desejam aquilo que podiam razoavelmente imaginar poder
obter”, nos explica o sociólogo Francesco Alberoni (2000) a partir das intuições
de Aristóteles. 8 Sendo eu estrangeiro às relações de proximidade locais, não
podia despertar a inveja das pessoas e não estava exposto aos perigos causados
pelo olho grande.
Bel encontrava-se em posição oposta à minha. Naquele ano, ele brinca-
va como mestre caboclo do Maracatu Leão de Ouro: ele era o chefe, o dançarino
com a responsabilidade de conduzir, liderar e guiar as manobras do grupo in-
teiro. Bel era, portanto, o brincante que estava mais à vista, mais exposto ao
olhar – e, portanto, ao olho grande também – dos outros, dos rivais, dos inimi-
gos, dos invejosos. O responsável pelos “ataques” ao corpo de Bel foi apontado
de maneira unânime: tratava-se do antigo mestre caboclo, que tinha liderado
o grupo até o ano precedente, antes de se mudar para o maracatu da cidade
vizinha. O culpado pela doença imprevista de Bel foi portanto detectado na
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

pessoa que, do ponto de vista da atividade performativa, era o mais próximo,


o mais igual a Bel: um dançarino que executava o mesmo papel, que brincava
na mesma posição.

Proteção da inveja
Nas conversas intermináveis que acompanham o carnaval, Bel foi considerado
vítima da inveja, do olho grande de um rival, embora também fosse acusado
de não se ter defendido de maneira apropriada. Na opinião dos maracatuzeiros,
quanto mais uma pessoa está exposta à inveja, mais deve recorrer a práticas
de defesa e proteção. Como, afinal, proteger-se da inveja?
Em meio à grande quantidade de talismãs, amuletos e objetos de prote-
ção contra o mau-olhado, em vários países europeus encontramos precisamen-
te... o símbolo do olho. É o caso dos barcos de pesca no Mediterrâneo, pintados
com dois olhos na frente, ou das árvores votivas da Capadócia (Turquia), deco-
radas com centenas de nazar boncuk, amuletos em vidro branco e azul, que
representam o olho e são considerados eficazes na proteção do mau-olhado.
artigo | filippo bonini baraldi

1007

Esse emblema existe também no Brasil, onde é chamado de olho grego. Pode
parecer curioso utilizar o símbolo do olho para defender-se do olho grande dos
invejosos, mas esse tipo de defesa – que poderíamos chamar de analógica, por-
que se serve da mesma “arma” que causa o prejuízo – é prática muito antiga.
Pensamos na máxima “olho por olho, dente por dente”, que exprime a ideia
segundo a qual a punição deve ser igual ao crime, um princípio que deu origem
à lei registrada de forma escrita mais antiga da história da humanidade: a lei
de talião. 9
Voltando ao maracatu rural e observando de perto (e de bom olho...) a
fantasia da sua personagem mais emblemática, o caboclo de lança, seria mes-
mo possível ver uma correspondência entre o símbolo do olho grego e as lan-
tejoulas que compõem o manto decorado que cobre o corpo dos brincantes
(figura 5 abaixo e a figura 6 na página seguinte).

5
“Olho grego”, amuleto de proteção contra mau-olhado
Foto: Reprodução/Pixabay
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1008

6
Detalhe da gola do caboclo de lança
Condado, fev. 2017
Foto © Filippo Bonini Baraldi

Se essa semelhança pode ser mera coincidência, outras propriedades


estéticas da fantasia do caboclo de lança podem ser interpretadas como medi-
das protetoras contra a inveja e o olho grande.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

Em primeiro lugar, os desenhos decorativos da gola podem ser compre-


endidos como barreiras simbólicas a entidades invisíveis que podem atingir o
corpo dos caboclos de lança. Sem entrar em análise detalhada, é suficiente
observar como a maioria desses desenhos é não figurativa, com predominância
de padrões geométricos simétricos semelhantes a formas labirínticas. Ora, o
antropólogo britânico Alfred Gell (1998) introduziu duas ideias interessantes
relacionadas à questão do ornamento decorativo: a da armadilha mental (mind
trap) e a de apego (attachment). De acordo com Gell, os motivos decorados não
figurativos, “envolvidos numa dança labiríntica”, fazem o sujeito perder-se no
objeto, o pegam, o retêm. Mais precisamente, os padrões decorativos agem
como armadilhas perceptivas quando carregam dentro deles uma certa inde-
cifrabilidade cognitiva (cognitive indecipherability), quando aparecem como ne-
gócio inacabado (unfinished business). É o caso dos padrões labirínticos encon-
tráveis em artefatos de inúmeros lugares do mundo, incluídas as golas dos
caboclos do maracatu rural. Além disso, Gell sugeriu que esse tipo de padrões
decorativos tem geralmente uma função apotropaica, ou seja, de proteção das
artigo | filippo bonini baraldi

1009

entidades negativas, exatamente a título dessa propriedade de indecifrabilida-


de, que age como tela defensiva (defensive screen):

Um momento de ref lexão é suficiente para realizar que, em primeiro lugar, as


relações de conf lito e disputa são tão ‘sociais’ quanto as relações de solidarie-
dade, e em segundo lugar, que onde encontramos conf litos encontramos também um
grande desenvolvimento de todo tipo de arte decorativa. Muita dessa arte é de um tipo
que podemos chamar de “apotropaico”. A arte apotropaica, que protege um agen-
te [...] do recipiente (geralmente o inimigo na sua forma demoníaca mais do que
humana) é um dos principais exemplos de agentividade artística, e portanto, um
assunto de grande importância pela antropologia da arte.

A utilização apotropaica dos padrões é [feita] enquanto dispositivos de proteção,


de telas defensivas, ou obstáculos que impedem a passagem. Esse uso “apotro-
paico” dos padrões pode parecer paradoxal, porque a colocação de padrões para
manter os demônios à distância parece contraria à utilização dos padrões, em
outros contextos, como maneira de provocar apego entre as pessoas e os artefa-
tos. Se os padrões [decorativos] cativam, não deveriam atrair os demónios em vez de os
repelir? Mas esse paradoxo é aparente mais do que real, porque a função apotro-
paica dos padrões depende da própria adesividade/aderência, assim como dessa
mesma propriedade depende a capacidade deles a atrair as pessoas aos objetos.
De fato, os padrões apotropaicos são como armadilhas, mata-moscas para os
demónios, nos quais os demónios ficam presos irremediavelmente, tornando-se
assim inofensivos (Gell. 1998: 83-84, minha ênfase).10

As intuições de Gell aplicam-se perfeitamente ao caso do maracatu rural,


uma performance baseada num éthos de rivalidade e conflito e na qual, com
razão, a “arte decorativa” ocupa um papel de primeiro plano. É essa arte deco-
rativa que permite ao caboclo de lança agir como um “corpo-armadilha”, im-
pedindo que entidades negativas atinjam seu corpo e, por conseguinte, sua
saúde. Ainda mais pertinente, nesse contexto, é o paradoxo aparente entre a
necessidade de atrair, cativar, captar e, ao mesmo tempo, afastar, rejeitar, re-
pelir as entidades negativas que, inevitavelmente, circulam de forma mais in-
tensa na época do carnaval. Essa função paradoxal pode ser atribuída não só
aos padrões decorativos da gola, demon-traps que defendem o caboclo de lança
dos perigos invisíveis provenientes do olho grande dos invejosos, mas também
à propriedade estética mais saliente da fantasia do caboclo: o brilho.

O brilho
O caboclo de lança, símbolo do carnaval de Recife, cuja imagem colorida é uti-
lizada para publicidade dessa manifestação, é por definição uma figura brilhan-
te (figura 7). Esse adjetivo é válido num plano simbólico, como sinônimo de
pessoa valiosa, com qualidades positivas como a coragem, a resistência, a be-
leza, a habilidade na dança. Brilhante significa também “caráter ou condição
daquilo que esbanja luxo, opulência, esplendor, magnificência” (Houaiss & Villar,
2001); de fato, não é difícil observar essa abundância e essa magnificência na
fantasia do caboclo. Os materiais utilizados não são, em si, preciosos, mas são
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1010

utilizados em grandíssima quantidade. Assim, o custo para realizar a fantasia


pode ser muito alto: a dimensão do chapéu, o número de fitas colocadas na
lança, a gola mostram publicamente quanto tempo e quanto dinheiro foram
investidos para brincar no carnaval.

7
O brilho dos caboclos de lança
Condado, fev. 2017
Foto © Filippo Bonini Baraldi
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

O brilho do caboclo de lança aplica-se também num plano literal: “algo


que emite luz forte, viva; fulguroso, luminoso” (Houaiss & Villar, 2001). Os pas-
sos de dança do caboclo e os movimentos da cabeça (agitar para baixo e para
cima, para os lados) espalham o brilho do chapéu e da gola em todas as direções,
com efeito caleidoscópico. Seja de dia com o sol intenso ou de noite quando as
luzes artificiais da cidade se acendem, ninguém pode ficar indiferente ao brilho
do caboclo de lança passando na rua.
Ora, a característica principal do brilho é a atração que ele provoca. Um
material brilhante atrai o olhar dos outros, e uma pessoa brilhante, também. A
partir da fase de preparação do carnaval, quando os maracatuzeiros passam o
dia inteiro elaborando os chapéus e bordando (costurando) as golas, até o mo-
artigo | filippo bonini baraldi

1011

mento de clímax, quando diante da sede mostram sua fantasia à cidade toda,
o olho dos outros é hipersolicitado, hiperestimulado. Junto aos comentários de
admiração pela beleza de um caboclo e pela sua maestria nos passos de dança,
a exposição pública da própria fantasia, da própria magnificência, da própria
habilidade, pode gerar críticas e dúvidas do tipo: “De onde ele tirou todo aque-
le dinheiro para poder comprar um material tão caro?” Quando essa atividade
do olhar se torna intensa demais, provocando pensamentos ou comentários
desse tipo, já não pressupõe um olho normal, mas um olho “grande”, “gordo”,
invejoso. Isso explica por que o risco de esse olho ficar “grande” é maior nesse
período do ano: o carnaval é o momento em que as pessoas mostram publica-
mente, dentro e fora da comunidade, a própria beleza, riqueza, habilidade, po-
der – numa palavra, o próprio brilho.
O brilho atrai, mas também reflete, recusa, rejeita. As lantejoulas da
gola, as fitas do chapéu, os óculos de sol do caboclo, são materiais altamente
refletores que, por definição, em vez de absorver a luz, não a deixam entrar. Da
mesma forma, esses materiais recusam o olhar dos outros: não é possível olhar
algo brilhante por muito tempo sem fechar os olhos, porque eles são “atacados”
pela luz refletida. Eis o paradoxo: a fantasia tem a dupla propriedade de cativar,
atrair o olhar dos outros, e simultaneamente providenciar defesa desse olho
que pode tornar-se demasiado “grande”, perigoso. “Olha o meu brilho, mas
cuidado para não olhar demasiado senão vai ficar cego” parece ser uma tradu-
ção do efeito visual da fantasia do caboclo de lança.
O mesmo tipo de efeito paradoxal – atrair e afastar – é obtido acustica-
mente: “Ouve-me, mas cuidado para não me ouvir em demasia senão vai ficar
surdo”, poderia ser uma metáfora do caboclo que dança na rua batendo o sur-
rão. Nessa estrutura em madeira que o caboclo carrega nos ombros, sob a gola,
são colocados grandes chocalhos em metal, que emitem um som seco, forte e
regular a cada passo. O som dos chocalhos, além de ser forte, é também “bri-
lhante”. Esse adjetivo, no domínio sonoro, indica som com muitos harmônicos
superiores realçados e frequentemente associado ao timbre dos metais (Shi-
moda, 2013). Um som brilhante, do ponto de vista perceptivo, é um som “claro”,
ou seja, capaz de ativar instantaneamente o ouvido, de “abrir as orelhas”. Ao
mesmo tempo, especialmente quando à caraterística do brilho do som vem
juntar-se uma intensidade elevada e um ataque abrupto, como é caso nas per-
cussões metálicas, o efeito incomoda, perturba o ouvido. Os maracatuzeiros
têm um gosto particular em ouvir os chocalhos dos caboclos e afirmam reco-
nhecer a pessoa a partir do som do seu surrão. Para quem não brinca ou não
gosta do carnaval, esse som pode ser bastante desconfortável, convidando a
tapar as orelhas.
É útil lembrar que o som dos chocalhos e dos sinos em geral, em muitas
sociedades diferentes, tem uma função apotropaica (Schaeffner, 1978; Ricci,
2012). Nas regiões rurais da sul da Europa ainda é possível encontrar, durante
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1012

a época do carnaval ou das festividades invernais, personagens mascarados e


fantasiados semelhantes aos caboclos de lança do maracatu rural, andando
nas ruas das aldeias com chocalhos pendurados à cintura.11 Entre as variedades
de interpretações locais desse costume, a mais frequente é a função mágica e
propiciatória atribuída ao som dos chocalhos, um som capaz de afastar as en-
tidades invisíveis consideradas perigosas para o indivíduo e para a coletivida-
de inteira e que, nesse período do ano, estão supostamente mais ativas, mais
próximas dos homens.
Outra prova desta dupla função do som dos chocalhos – atrair e recusar
–, sempre no contexto rural europeu, vem dos significados atribuídos frequen-
temente ao som dos grandes sinos das igrejas. A forte intensidade e ampla
propagação do som no espaço, audível desde longe, sempre teve a função de
indicar as horas, de atrair os fiéis à missa ou informar algum evento específico.
Antigamente, porém, o som dos sinos das igrejas também era usado para afas-
tar as tempestades e o granizo, e por consequência proteger as colheitas. “O
espírito das tempestades se afaste” (Recedat spiritus procellarum), dizem as ins-
crições latinas gravadas nos antigos sinos. O impacto procurado não era certa-
mente baseado em princípios meteorológicos, mas antes metafísicos, dado que
as tempestades eram percebidas como um espírito, e não como um fenômeno
natural.
Com base nessas considerações, não me parece exagerado interpretar o
som dos chocalhos do caboclo segundo o mesmo paradoxo existente no domí-
nio visual: o caboclo de lança, com seus movimentos e suas danças, chama a
atenção das pessoas, ativa-lhes os sentidos acima do normal, mas, ao mesmo
tempo, rejeita, reflete, recusa os efeitos negativos que podem surgir dessa hi-
perativação sensorial, sobretudo o sentimento de inveja que daí pode decorrer.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

Fechar o corpo
A melhor estratégia para prevenir os perigos é evitar que o olho dos inimigos
se “abra” demasiado, fora de um alcance razoável, até ficar grande ou gordo. A
fantasia do caboclo de lança pode ser interpretada como um escudo que, por
meio dos padrões labirínticos e do brilho refletido, “captura” as entidades ne-
gativas e fecha o olho dos invejosos. “Fechar”, porém, não é apenas uma práti-
ca de ataque (ou contra-ataque); é simultaneamente estratégia defensiva fun-
damental, que interessa também ao próprio corpo do caboclo.
Nos comentários dos maracatuzeiros da Zona da Mata norte, emerge
uma oposição explícita entre corpo aberto, sinônimo de corpo susceptível, vul-
nerável, e corpo fechado, sinônimo de corpo protegido (ver também Garrabé,
2010; Teixeira, 2016). Assim, quando perguntei a um velho brincante do Mara-
catu Leão de Ouro o que ele pensava a respeito da dor repentina que atingiu a
perna do mestre caboclo Bel, ele olhou para mim, fez o gesto de abrir a boca, e
comentou: “Não se pode sair no carnaval de boca aberta!” Outro dia, olhando
artigo | filippo bonini baraldi

1013

com Aguinaldo os vídeos que eu tinha gravado durante um ensaio de maraca-


tu, reparei um caboclo que dançava sorrindo. Comentei, de maneira bastante
ingênua, que me parecia bonita essa maneira de brincar, e Aguinaldo reagiu
firmemente: “Caboclo não deve sorrir!”. O sorriso é pouco compatível com a
ética guerreira associada ao caboclo de lança, mas também com a ética do
corpo fechado.
Em Condado, todos concordam em dizer que para brincar o carnaval em
segurança, sem riscos de sofrer os ataques lançados pelos inimigos – e princi-
palmente pelos invejosos – é preciso fechar o corpo. O que significa essa ex-
pressão? A resposta é bastante intuitiva: como se fecha a porta com cadeado
ao sair de casa, para impedir a entrada de desconhecidos, fecha-se o corpo ao
sair no carnaval para impedir a entrada de entidades invisíveis consideradas
perigosas para a saúde e a integridade física do brincante. Os procedimentos
utilizados para esse fim variam de pessoa para pessoa e podem atuar em pelo
menos três dimensões: física/fisiológica, estética e espiritual.
A fechadura fisiológica se exprime na interdição de relações sexuais
antes do carnaval (resguardo), ao longo de um período variável de quinze dias
a uma semana, e durante os três dias das festividades. Ao contrário do que
acontece em outras regiões, incluindo as cidades vizinhas de Olinda e Recife,
em que o carnaval é associado a uma grande promiscuidade, no maracatu rural
máxima atenção é dada à separação entre homens e mulheres, que evitam
contatos prolongados. Quando o maracatu se desloca de cidade em cidade pa-
ra se apresentar, homens e mulheres viajam em ônibus diferentes. Um corpo
que deixa sair fluidos é um corpo aberto, desprotegido, e mulheres que estive-
rem no período menstrual também não podem brincar.
A fechadura estética é explícita na maneira de vestir do caboclo de lan-
ça. Camisas de mangas longas, sapatos fechados, calças compridas e meias até
o joelho garantem que nenhuma parte do corpo fique descoberta. Os olhos são
fechados com óculos de sol, a boca com um cravo branco preso aos dentes
(impedindo que o caboclo sorria). Até os poros são fechados com tinta vermelha.
A estética da gola também ilustra esse esforço em fechar o máximo possível:
os padrões geométricos e as sequências coloridas ocupam todo o espaço do
manto, sem deixar nenhuma superfície vazia, branca, sem deixar buracos, in-
terrupções, permeabilidades.
A fechadura espiritual é assegurada por meio de vários tipos de rituais,
dentre os quais se destaca o calço do caboclo. Feito imediatamente antes do
início do carnaval em terreiros de umbanda-jurema, catimbó ou xangô, o calço
é ritual dito de mesa que tem o objetivo de assegurar ao caboclo de lança uma
proteção, uma defesa espiritual. No fim do carnaval, o calço é “tirado” (remo-
vido) no mesmo terreiro. Não há apenas um modo de calçar o caboclo de lança.
Ao contrário, essas práticas são processos singulares utilizados de forma dife-
rente em cada casa de culto, que podem atingir uma multiplicidade de conhe-
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1014

cimentos e modos de ação. 12 No ritual que pude observar, o médium utilizou a


palavra “fechar” de forma explícita e recorrente, em frases do gênero: “Pelo
sinal da Santa cruz valemi [valei-me] Deus de todos os teus inimigos fechar o
teu corpo por dentro e por fora assim como a barca de Noé foi fechada”. O pai
de santo Biu explicou-me que, para conferir eficácia a essas fórmulas verbais,
ele “incorpora” várias entidades, entre as quais antigos mestres de maracatu.
Do outro lado, o caboclo de lança que vai “buscar a defesa” na casa de culto, no
caso específico que pude observar, não incorpora nenhuma entidade. Em outras
palavras, as entidades convocadas durante o ritual do calço – especialmente
os caboclos da umbanda-jurema – não “entram” no corpo do caboclo de lança,
não tomam conta de seu corpo, como acontece em outros rituais da umbanda-
-jurema ou do candomblé, mas apenas nele se “encostam”, o “revestem” para o
proteger ao longo dos três dias de carnaval. O corpo carnavalesco é portanto
um corpo revestido, e não simplesmente travestido. Esse revestimento, que a
palavra calço exprime de maneira bem explícita, é o que fecha o corpo, prote-
gendo-o das “balas perdidas”, das “facadas” e dos “malefícios” (termos utiliza-
dos pelo pai de santo) que poderiam chegar em consequência do olho grande
dos invejosos.

Conclusão
Resumindo, os membros dos grupos de maracatu rural da Zona da Mata norte
pernambucana sentem-se particularmente expostos, na época do carnaval, a
vários tipos de doenças. Repentina dor nas pernas dos caboclos dançarinos ou
dor de barriga nas damas do passo podem até os impedir de brincar.
Em Condado, pequena cidade do “Nordeste místico” (Bastide, 1978), as
pessoas atribuem uma explicação unânime a esses acontecimentos. As doenças
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

que afetam o corpo têm origem no sentimento de inveja das pessoas que “que-
rem ter e não têm”. Esse sentimento intersubjetivo é exacerbado na época do
carnaval, um contexto competitivo no qual a confrontação e a rivalidade, di-
mensões fundamentais do éthos guerreiro do maracatu rural, assumem propor-
ções consideráveis. A necessidade e o desejo de expor publicamente habilidade
e magnificência correspondem ao perigo de tornar o olho dos invejosos dema-
siado grande. Daí a necessidade de práticas defensivas, tanto no plano ritual
quanto no plano estético.
É possível interpretar algumas características do maracatu rural e de
sua personagem principal, o caboclo de lança, a partir de um aparente parado-
xo: atrair atenções, olhares e ouvidos e ao mesmo tempo recusar, refletir, re-
bater as entidades negativas que o olho grande pode despertar. Os padrões
decorativos labirínticos da gola, aos quais pode ser atribuída uma função apo-
tropaica (Gell, 1998), os materiais brilhantes e refletores utilizados na fantasia
e a atenção minuciosa em revestir todo o corpo, incluindo os olhos, convidam
a pensar o caboclo de lança como um “corpo-armadilha”. Essa estética exprime
artigo | filippo bonini baraldi

1015

um tipo de defesa que pode ser chamada de analógica: o brilho é uma proprie-
dade óptica capaz de atingir o mesmo órgão do qual vem o perigo. Quanto mais
cresce o olho dos invejosos mais o brilho da luz pode atacá-lo de volta. Fechan-
do-o, o torna inofensivo.
Para brincar o carnaval sem arriscar a própria saúde é necessário fechar
os olhos dos invejosos, mas também é preciso fechar o próprio corpo, fisioló-
gica, simbólica e esteticamente. A expressão corpo fechado, nesse contexto, é
sinônimo de corpo protegido, poderoso, saudável, invencível, enquanto corpo
aberto o é de corpo vulnerável, susceptível aos ataques das entidades negativas
despertadas pelo olho grande de rivais e inimigos.
Na primeira parte deste artigo, declarei meu interesse principal de per-
ceber quais experiências emocionais são mobilizadas pela música e pela dan-
ça, e revelar o significado dessas experiências num contexto cultural particular.
Nessa direção explorei a dimensão social do sentimento de inveja, o que cer-
tamente não é suficiente para determinar com precisão as vivências emocionais
dos maracatuzeiros e a relação delas com a música e a dança. No entanto, é
útil lembrar que, de acordo com Spinoza (1954, apud Solomon, 2003: 33), as
emoções são “afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada
ou diminuída, estimulada ou refreada, bem como, ao mesmo tempo, as ideias
dessas afecções”. Damasio (1995), em seus importantes trabalhos sobre as emo-
ções, inspira-se nessa mesma definição, abrindo o caminho para um novo pa-
radigma, no qual o corpo é o centro da atenção. Hoje em dia, os cientistas
cognitivos dão muito mais importância à pesquisa sobre “incorporação” (embo-
diment) dos estados afetivos (De Gelder, 2016). Os antropólogos também se in-
teressam pelo corpo enquanto lugar privilegiado de expressão, percepção das
emoções (Héritier & Xanthhakou, 2004) e o paradigma do embodiment também
é relevante para a pesquisa em música (Leman, 2007; Desroches, Stévance &
Lacasse, 2014).
Dessa forma, um primeiro passo para perceber a vivência emocional dos
maracatuzeiros foi olhar de perto como, na época do carnaval, o corpo dos
brincantes é concebido. Trata-se nesse caso de uma verdadeira transformação
espiritual e estética, que por sua vez é ligada a um universo místico bem par-
ticular. O maracatu, porém, é uma atividade coletiva na qual vários corpos
individuais devem cooperar. É evidente que as vivências emocionais dos pro-
tagonistas − e especialmente a alegria procurada no carnaval − dependem des-
ses sistemas de interações e movimentos coletivos (manobras). O próximo
passo será, portanto, perceber como esse corpo individual transformado se
relaciona com outros corpos ao longo de uma performance de maracatu. Mas
essa é outra história, à qual vou dedicar outro artigo.

Recebido em 16/07/2020 | Revisto em 28/10/2020 | Aprovado em 23/05/2021


inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1016
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

Filippo Bonini Baraldi é doutor em


etnomusicologia pela Universidade de Paris
Nanterre (França). Atualmente é pesquisador do
Instituto de Etnomusicologia da Universidade
Nova de Lisboa e do Centre de Recherche en
Ethnomusicologie da Universidade Paris Nanterre.
Lecionou na Universidade Paris 8 St. Denis e na
Universidade Federal da Paraíba. Suas pesquisas
exploram a ligação entre música, emoção e
empatia, segundo uma abordagem interdisciplinar.
Em 2021 publicou o livro Roma Music and Emotions
pela Oxford University Press.
artigo | filippo bonini baraldi

1017

Notas
* Este artigo se enquadra no projeto “The Healing and Emo-
tional Power of Music and Dance”, (HELP-MD), financiado
pela Fundação da Ciência e Tecnologia de Portugal (PTDC/
ART-PER /29641/2017). A pesquisa de campo em Pernam-
buco foi possível graças a uma bolsa Capes de professor
convidado (PVE 0337-14-5) e ao prog rama “Investigador
FCT” da Fundação da Ciência e Tecnolog ia de Portugal
(IF/01233 /2014 /CP1221/CT0002). Ag radeço a Carlos San-
droni, Aguinaldo e todos os membros do Maracatu Leão
de Ouro, de Condado, a hospitalidade e amizade que me
ofereceram ao longo de minha pesquisa de campo. Meus
agradecimentos também a Leon Bucaretchi, Fatima Bara-
hona, Jean-Pierre Estival, Alan Monteiro Jr., aos revisores
anônimos e à equipe editorial de Sociologia & Antropologia
pelos conselhos e correções deste texto, escrito original-
mente em português.
1 Nessa e nas demais citações em idiomas estrangeiros a
tradução é nossa. No or ig inal: “Happiness is the emotion
most frequently associated to musical listening and may cons-
titute one of the ‘universals’ of cross-cultural studies of music
and emotion.”
2 No original: “musically aroused and excited”.
3 O documentário explora a dimensão religiosa e sagrada
dos grupos de maracatu de baque virado e de baque solto.
A dama do paço, figura fundamental de todos os maraca-
tus, dança tendo na mão uma pequena boneca preta, a
calunga, que supostamente guia e protege o grupo, ligan-
do o maracatu com os orixás (divindades de origem afri-
cana).
4 O cavalo mar inho é um teatro de rua, praticado pr inci-
palmente durante a época do Natal, no qual vár ios per-
sonagens mascarados narram comicamente a vida dos
trabalhadores rurais (Murphy, 2008; Acselrad, 2013). Para
uma descrição do maracatu rural, ver Real (1967), Chaves
(2008 ), Garrabé (2010 ), Teixeira (2016), Morais e Silva
(2018).
5 Trata-se, grosso modo, de religião de origem afro-indígena
misturada com elementos da corrente esotérica europeia
conhecida como kardecismo (Assunção, 2006; Guimarães
de Salles, 2010). Nela são venerados os orixás, como no
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1018

xangô (assim é chamado o candomblé em Recife), mas


também outro conjunto de entidades ligadas a um ima-
ginário nativo, especialmente os caboclos da mata, espí-
ritos de guerreiros índios.
6 Em Condado, essa palavra é utilizada de forma bastante
genérica para indicar vários tipos de culto. Luís refere-se
aqui ao da umbanda-jurema, ao qual parte dos habitantes
de Condado adere.
7 Como é sabido, as pesquisas atuais sobre as religiões afro-
brasileiras são muito numerosas e não é meu proposito
citá-las todas neste artigo. Para o contexto pernambuca-
no, ver Motta (1999, 2009).
8 No original : “Invidiamo cioè le persone che ci sono vicine per
tempo, per spazio, per età, per reputazione (e per nascita).
(Aristotele, Retorica). Le persone, cioé, che hanno più o meno gli
stessi desideri e le stesse possibilità. Il ragazzo invidia il fratel-
lo che ha ricevuto un regalo che a lui non é stato dato. La ra-
gazza invidia l’amica che è andata ad una festa da ballo a cui
non è stata invitata Entrambi desiderano quelle cose che non
potevano ragionevolmente presumere di poter ottenere.” (Albe-
roni, 2000, p. 51).
9 Do latim lex talionis (lex: lei; e talio, de talis: tal, idêntico),
também dita pena de talião ou retaliação, baseada no
princípio do “castigo-espelho”.
10 No original: “A moment’s reflection is sufficient to realize, first
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

of all, that relations of conf lict and struggle are just as ‘social’
as relations of solidarity, and secondly, that wherever one
finds conf lict there one finds abundant deployment of all
kinds of decorative art. Much of this art is of the variety
known as ‘apotropaic.’ Apotropaic art, which protects an agent
[...] against the recipient (usually the enemy in demonic rather
than human form), is a prime instance of artistic agency, and
hence a topic of central concern in the anthropology of art.
The apotropaic use of patterns is as protective devices, defen-
sive screens or obstacle impeding passage. This ‘apotropaic’ use
of patterns seems paradoxical in that the placing of patterns to
keep demons at bay seems contrary to the use of patterns in
other contexts as a means of bringing about attachment between
people and artefacts. If pattern attract, wouldn’t they also
attract, rather than repel demons? But the paradox is ap-
artigo | filippo bonini baraldi

1019

parent rather than real in that the apotropaic uses of patterns


depends on adhesiveness just as the use of patterns to attract
people to things. Apotropaic patterns are demon-traps, in effect,
demonic f ly-paper, in which demons become hopelessly stuck,
and thus rendered harmless (Gell, 1998: 83-84, my emphasis)”
11 Trata-se geralmente dos mesmos chocalhos utilizados
pelos animais, dado que nessas sociedades a economia
pastor il era (e em alg uns casos ainda é) predominante.
Sobre os caretos de Portugal, ver Raposo (2010); sobre os
carnavais da Grécia, ver Panopoulos (2003).
12 Ao longo de minha estada em Condado, pude assistir três
vezes a esse ritual, na mesma casa de culto e com cabo-
clos de lança diferentes. Vou dedicar outro artigo à ana-
lise detalhada do ritual do calço.

ReferÊncias

Acselrad, Maria. (2013). Viva Pareia! Corpo, dança e brinca-


deira no cavalo-marinho de Pernambuco. Recife: Editora Uni-
versitária UFPE.
Alberoni, Francesco. (2000 [1991]). Gli invidiosi. Milano:
Garzanti.
Alighieri, Dante. (1981) [1472]. A divina comédia. São Paulo:
Abril.
Assunção, Luiz. (2006). O reino dos mestres: a tradição da
jurema na umbanda nordestina. Rio de Janeiro: Pallas.
Bastide, Roger. (2001) [1958]. O candomblé da Bahia: rito na-
gô. Trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Com-
panhia da Letras.
Bastide, Roger. (1978) [1945]. Imagens do nordeste místico em
branco e preto. Rio de Janeiro: O Cruzeiro.
Baumgartner, Hans. (1992). Remembrance of things past:
music, autobiographical memory, and emotion. In: Sherry,
John F. Jr. & Sternthal, Brian (eds.). Advances in consumer
research, 19, Provo, UT: Association for Consumer Re-
search, p. 613-620.
Becker, Judith O. (2001). Anthropological perspectives on
music and emotion. In: Juslin, Patrick N. & Sloboda, John
A. (eds.). Music and emotion: Theory and research. New York:
Oxford University Press, p.135-160.
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1020

Bonini Baraldi, Filippo. (2016). Como estudar a emoção


musical? Propostas metódologicas a partir de pesquisa
junto aos ciganos da Transylvânia (Romênia). Sociologia
& Antropologia, 6/3, p. 699-734.
Bonini Baraldi, Filippo. (2021). Roma music and emotion (Re-
vised translation of the book Tsiganes, musique et empathie,
foreword by Steven Feld, translation by Margaret Rigaud).
New York: Oxford University Press.
Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. (2015). Carna-
val, ritual e arte. Rio de Janeiro: 7Letras.
Chaves, Suiá Omim Arruda C. (2008). Carnaval em terras
de caboclo: uma etnografia sobre maracatus de baque solto.
Dissertação de Mestrado. PPGAS/Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Damasio, Antonio. (1995). L’erreur de Descartes. La raison
des émotions. Paris: Odile Jacob.
De Gelder, Beatr ice. (2016). Emotions and the Body. New
York: Oxford University Press.
Desroches, Monique; Stévance, Sophie & Lacasse, Serge
(dir). (2014). Quand la musique prend corps. Montréal: Les
Presses de l’Université de Montréal.
Evans-Pritchard, Edward E. (1937). Witchcraft, oracles and
magic among the Azande. New York: Oxford University
Press.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021

Feld, Steven. (1982). Sound and sentiment. Birds, weeping,


poetics, and song in kaluli expression. Philadelphia: Univer-
sity of Pennsylvania Press.
Gabrielsson, Alf. (2011). Strong experiences with music. New
York: Oxford University Press.
Garrabé, Laure. (2010). Les rythmes d’une culture populaire:
les politiques du sensible dans le maracatu de baque solto, Per-
nambuco, Brésil. Thèse de Doctorat. Université de Paris-8.
Gell, Alfred. (1998). Art and agency. An anthropological theory.
Oxford: Clarendon Press.
Guimarães de Salles, Sandro. (2010). À sombra da jurema
encantada: mestres juremeiros na umbanda de Alhandra. Re-
cife: Editora Universitária UFPE.
Héritier, Françoise & Xanthakou, Margarita (éd.). (2004).
Corps et affects. Paris: Odile Jacob.
artigo | filippo bonini baraldi

1021

Houaiss, Antonio & Villar, Mauro Salles. (2001). Dicionário


Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.
Leman, Marc. (2007). Embodied music cognition and mediation
technology. Cambridge: The MIT Press.
Lüddeckens, Dorothea. (2006). Emotion. In: Kreinath, Jens;
Snoek, Jan & Stausberg, Michael ed. Theorizing rituals. Clas-
sical topics. Theoretical approaches. Analytical concepts. Anno-
tated bibliography. Leyden: Brill, p. 545-570.
Maakaroun, Eugênia de Freitas (dir.). (2005). Maracatu –
ritmos sagrados. 25 min.
Morais e Silva, Noshua Amoras de (2018 ). Composição e
metamorfose no maracatu da Zona da Mata de Pernambuco.
Dissertação de Mestrado. PPGAS/Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Motta, Roberto. (2009). O corpo e a religião no xangô e na
umbanda. Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNI-
CAP, 8, p. 101-115.
Motta, Roberto. (1999). Religiões afro-recifenses: ensaio
de classif icação. In: Caroso, Carlos & Bacelar, Jeferson
(orgs.). Faces da tradição afro-brasileira. Rio de Janeiro/Sal-
vador: Pallas/CEAQ/CNPq, p. 17-35.
Murphy, John Patrick. (2008). Cavalo-marinho pernambuca-
no. Trad. André Curiati. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Panopoulos, Panayotis. (2003). Animal bells as symbols:
sound and hearing in a Greek island village. Journal of the
Royal Anthropological Institute, 9 /4, p. 639-656.
Perrone-Moisés, Beatriz. (2015). Festa e guerra. São Paulo:
Universidade de São Paulo.
Raposo, Paulo. (2010). Diálogos antropológicos: da teatra-
lidade à performance. In: Ferreira, Francirosy C. B. & Mül-
ler, Reg ina P. Performance, arte e antropologia. São Paulo:
Hucitec, p. 19-49.
Real, Katarina. (1967). O folclore no carnaval do Recife. Rio
de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro.
Ricci, Antonello. (2012). Il paese dei suoni. Antropologia
dell’ascolto a Mesoraca (1991-2011). Roma: Squilibri.
Rouget, Gilbert. (1990) [1980 ]. La musique et la transe. Es-
quisse d’une théorie générale des relations de la musique et de
la possession. Paris: Gallimard.
Schaeffner, André. (1978 ) [1936]. Origine degli strumenti
inveja e corpo fechado no maracatu de baque solto pernambucano 

1022

músicali. Palermo: Sellerio.


Schoeck, Helmut. (1969) [1966]. Envy: a theory of social be-
havior. Trad. Michael Glenny and Betty Ross. New York:
Harcourt, Brace & World.
Seeger, Anthony. (2004) [1987]. Why Suyà Sing. A musical
anthropology of an Amazonian people. Cambridge: Cambrid-
ge University Press.
Shimoda, Lucas Takeo. (2013). O vocabulário descritivo do
timbre sob o prisma da semiótica tensiva. In: Encontro in-
ternacional de teoria e análise músical, 3. São Paulo: ECA-USP.
Sloboda, John A. & Juslin, Patrick N. (2010). Handbook of
music and emotion: theory, research, applications. New York:
Oxford University Press.
Solomon, Robert C. (2003). What is an emotion? New York/
Oxford: Oxford University Press.
Spinoza, Baruch. (1954) [1677]. L’éthique. Paris: Gallimard.
Teixeira, Raquel Dias. (2016). Cuidado e proteção em brin-
quedos de cavalo-marinho e maracatu da Zona da Mata
Pernambucana. Anuário Antropológico, 41/2, p. 77-94.
Williams, Patrick. (1998). Django. Marseille: Parenthèses.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 995 – 1023 , set. – dez., 2021
artigo | filippo bonini baraldi

1023

Inveja e corpo fechado no Maracatu de baque


solto pernambucano
Palavras-chave Resumo
Etnomusicologia; Os membros dos grupos de maracatu de baque solto da
música; Zona da Mata norte pernambucana sentem-se particular-
antropologia das emoções; mente expostos na época do carnaval a vários tipos de
ritual; doenças causadas pelo “olho grande” dos invejosos. Daí a
carnaval. necessidade de práticas defensivas nos planos simbólico
e estético. Para brincar o carnaval sem se arriscar é neces-
sário fechar o próprio corpo, o que, nesse contexto signi-
fica torná-lo protegido, poderoso, saudável, invencível, não
vulnerável ou susceptível aos ataques das entidades nega-
tivas despertadas pelo olho grande de rivais e inimigos.
Nesse artigo argumento que a vivência emocional dos brin-
cantes de maracatu é profundamente ligada a essa manei-
ra de conceber o corpo durante o carnaval. Um corpo dife-
rente do ordinário, suscetível, permeável a presenças e
ataques de entidades invisíveis.

Envy and the closed body in Maracatu de baque


solto (Pernambuco, Brazil)
Keywords Abstract
Ethnomusicology; During Carnival, the members of maracatu de baque solto
music; groups, a performance occurring in Pernambuco (Northeast
anthropology of emotions; Brazil) feel exposed to various type of illnesses, caused by
ritual; the “envious eye” (olho grande) of their rivals. This motivates
carnival. them to accomplish a number of defensive practices, both
on a symbolical and on an aesthetical dimension. In order
to perform safely, they need to “close the body” (fechar o
corpo), physiologically, symbolically, and aesthetically. In
this context, the expression “closed body,” is synonymous
of a protected, powerful, healthy, invincible body, while the
expression “open body” refers to a vulnerable one, suscep-
tible to the attacks of negative entities, aroused by the
enemies’ envious eye. In this article, I suggest that that the
emotional experience of the Maracatu performers is driv-
en by this particular way of perceiving the body during the
carnival period.
1024
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11312

1 Universidade do Estado do Rio de Janiro (Uerj), Instituto de Estudos Sociais


e Políticos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB),
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
clynch@iesp.uerj.br
https://orcid.org/0000-0001-5709-9388
11 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Instituto de Estudos Sociais
Christian Edward Cyril Lynch I
e Políticos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
pedropaivamarreca@gmail.com.
Pedro Paiva Marreca II
https://orcid.org/0000-0002-2583-5675

Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro


na obra de Guerreiro Ramos:
o pensamento político (1955-1958)

A nova perspectiva teórica e epistemológica que emergiu ao longo das últimas


duas décadas no âmbito acadêmico do chamado Sul Global (América Latina,
África, Ásia e Oceania), relativa à necessidade de uma ciência social depurada
do eurocentrismo, repercutiu no modo de considerar a obra de Guerreiro Ramos
nos últimos anos. Compreende-se aqui como pós-colonial o campo de estudos
dedicado a uma compreensão crítica do processo de construção e difusão do
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

conhecimento a partir do centro global, no sentido de depurá-lo do eurocentris-


mo que o caracterizou em seu processo de expansão colonial ou imperialista
para a periferia mundial. Sintonizado com os esforços de intelectuais periféricos
de língua francesa, como Anta Diop, Mohamad Labadi e Aimé Césare, voltados
para a elaboração de uma sociologia periférica, Guerreiro Ramos produziu nas
décadas de 1950 e 1960 uma teoria capaz de adaptar criticamente a sociologia
dita cosmopolita às circunstâncias específicas das nações periféricas – no caso,
o Brasil (Maia, 2011, 2012, 2015; Lynch, 2015). É verdade que o campo de estudos
ganharia mais força na década de 1970, com escritos de Edward Said, em torno
dos quais se estruturou um cânone reconhecido de autores como Gayatri
Chakravorty Spivak, Dipesh Chakrabarty e Partha Catterjee. Fato é que, se antes
desse período ainda não havia o nome ou a palavra que hoje designa aquele
campo, nem por isso deixava de existir o estudo do fato ou fenômeno social nos
escritos de intelectuais a respeito do processo de descolonização africana, como
Frantz Fanon e Aimeé Césaire, e de alguns escritores latino-americanos, como
Edmundo O’Gorman e Leopoldo Zea. Artigos recentes abordaram a obra de Guer-
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1026

reiro sob perspectiva análoga, debruçando-se mais especificamente sobre o


debate perpetrado pelo autor no plano da teoria sociológica no Brasil (cf. Lynch,
2015; Maia, 2015; Bringel & Domingues, 2015). O propósito de Guerreiro Ramos
(1996: 79) de elaborar uma “teoria da sociedade brasileira”, sistematizada em um
“Tratado brasileiro de sociologia”, está manifesto ao longo do período. Ele salien-
tava que seus trabalhos deveriam ser lidos como “momentos de uma teoria da
sociedade brasileira, cuja apresentação em obra especial, na base de notas, ob-
servações e pesquisas que há alguns anos venho fazendo, as circunstâncias
ainda não me permitiram” (Ramos, 1961: 17-18).1
Tratava-se de um projeto de pesquisa voltado para três conjuntos de
questões. O primeiro dizia respeito à substituição da sociologia baseada no
positivismo e na Escola de Chicago por outra, calçada na sociologia do conhe-
cimento de Weber e Mannheim. O reconhecimento do caráter culturalista, re-
lativista e historicista da ciência social impunha pensá-la à luz das necessida-
des e particularidades do contexto latino-americano, onde grassava o semico-
lonialismo e a dependência cultural. Os textos mais ilustrativos dessa discussão
são Cartilha do aprendiz de sociólogo, de 1953; Notas para o estudo crítico da socio-
logia no Brasil, de 1954; Sobre a crise brasileira e a sociologia no Brasil, de 1956;
Caracteres da intelligentsia, de 1957; Situação atual da sociologia, de 1958; e A re-
dução sociológica, de 1958. Definidos os contornos da teoria sociológica que o
orientava e o modo de adaptá-la à periferia, Guerreiro passava ao segundo
conjunto de problemas, que tinham por finalidade “utilizar a ciência social
como instrumento de organização da sociedade brasileira” (Ramos, 1960: 14).
Urgia aqui separar a parte considerada útil do nosso pensamento sociológico,
comprometida com a autonomia nacional, daquela que, supostamente aliena-
da, naturalizava a condição semicolonial do país. Os principais produtos dessa
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

primeira fase, destinada a organizar o seu pensamento sociológico, foram ela-


borados quando Guerreiro esteve vinculado ao Instituto Brasileiro de Economia,
Sociologia e Política (Ibesp): O processo da sociologia brasileira, de 1953, O proble-
ma do negro na sociologia brasileira, de 1954, e O tema da transplantação na socie-
dade brasileira, de 1954. A consolidação da crítica da sociologia brasileira efetu-
ada afinal nas suas Notas para um estudo crítico da sociologia no Brasil [1954]
serviria de base para sua primeira interpretação geral denominada A problemá-
tica da realidade brasileira, de 1955.
Guerreiro, porém, entenderia que semelhante interpretação informava
mais sobre o que o Brasil havia sido − uma sociedade semicolonial, com cons-
ciência ingênua acerca de si − do que sobre o que ele estava em vias de se
tornar: uma sociedade autônoma, com consciência crítica de si, graças à indus-
trialização em curso e à formação de um mercado interno nacional. Ele então
passou a um terceiro conjunto de tarefas, com o objetivo de municiar sua teo-
ria com um pensamento político que servisse “de suporte à estruturação efe-
tiva das tendências de autodeterminação vigentes hoje em nosso país” (Ramos,
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1027

1995: 60). Uma vez que a transformação das condições materiais do país impu-
nha uma tomada de consciência crítica pelos intelectuais, compreendendo a
questão do desenvolvimento como um problema político e epistemológico,
Guerreiro buscava no pensamento político brasileiro subsídios para uma ideo-
logia orgânica, que naquele momento servisse de “suporte à estruturação efe-
tiva das tendências de autodeterminação vigentes no país” (Ramos, 1995: 60).
Seus textos do período do Iseb refletem esse deslocamento de seus estudos, do
pensamento sociológico para o político: A problemática da realidade brasileira, de
1955, A dinâmica da sociedade política no Brasil, de 1955, Esforços de teorização da
realidade nacional politicamente orientados de 1870 aos nossos dias, de 1955, A ide-
ologia da jeunesse dorée, de 1955, O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise
política no Brasil, na década de 1930, de 1956, Nacionalismo e xenofobia, de 1956,
Ideologias e segurança nacional, de 1957, Caracteres da intelligentsia, de 1957, e
Condições sociais do poder nacional, de 1957. Tendo em vista a preexistência de
artigo dedicado ao estudo do período ibespiano (Lynch, 2015), durante o qual
Guerreiro se debruçou sobre o pensamento sociológico brasileiro para elaborar
sua teoria da sociedade brasileira (1953-1955), o presente artigo contemplará
esse segundo momento ou fase de sua pesquisa, ao longo do qual, no seu pe-
ríodo isebiano, Guerreiro se debruçou sobre a história do pensamento político
brasileiro, no intuito de lastrear sua ideologia nacional-desenvolvimentista
(1955-1958).
O presente artigo também busca elucidar as motivações de Guerreiro
em semelhante projeto de pesquisa no período. A crise política que resultou
no suicídio de Vargas afetou profundamente os membros do Ibesp, que passa-
ram a reivindicar a sustentação ideológica do processo de desenvolvimento em
oposição às ideologias liberais por eles julgadas conservadoras. Atuando junto
ao Ministério da Educação e Cultura, Hélio Jaguaribe conseguiu estatizar o Ibesp,
sob o nome de Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Convidado a
assumir o Departamento de Sociologia do recém-fundado instituto, Guerreiro
passou a argumentar que a industrialização, a urbanização e o crescimento do
mercado interno viabilizavam a superação da condição semicolonial denuncia-
da em seus escritos anteriores. O presente artigo pretende, assim, recortar o
período histórico de produção dos textos isebiano (1955-1958) e examiná-los
cronologicamente, a fim de descobrir a lógica de sua produção e o itinerário
íntimo do autor na tentativa de elaborar sua teoria da sociedade brasileira. Uma
análise organizada dos textos do período, acredita-se, permite identificar os
elementos de continuidade entre os trabalhos do período anterior, dedicado ao
estudo do pensamento sociológico brasileiro, no intuito de elaborar os funda-
mentos de uma teoria sociológica brasileira, e os escritos do período seguinte,
dedicados ao estudo do pensamento político brasileiro, com vistas à elaboração
de uma teoria ou ideologia política brasileira, voltada para o esforço desenvol-
vimentista. Ao fim, será possível desenvolver a hipótese de que, já armado, na
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1028

prática, de sua teoria da sociedade brasileira e da ideologia do nacional-desen-


volvimentismo, Guerreiro pôde se lançar de modo mais desembaraçado à ati-
vidade política como intelectual do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) depois
de sua saída do Iseb em 1958.

Por uma teoria global da sociedade local: fundamentos


históricos e orientação política das ciências sociais na periferia
Nesta primeira seção analisaremos A problemática da realidade brasileira (1955)
e A dinâmica da sociedade política no Brasil (1955). Neles se encontra a culminân-
cia da discussão elaborada por Guerreiro no contexto do Ibesp, sobre as espe-
cificidades do fazer sociológico na periferia mundial e a formulação de uma
teoria sociológica de corte pós-colonial. No primeiro texto, elaborado como
conferência inaugural do curso extraordinário oferecido pelo Iseb, Guerreiro
criticava as insuficiências e incorreções das formulações sociológicas então
utilizadas para a compreensão do tema das sociedades nacionais. A sociologia
positivista era criticada como inadequada para compreender a realidade na-
cional posto que admitia “uma noção empírica da realidade social, consideran-
do-a como algo ‘coisificado’, objetivado, exterior ao homem” (Ramos, 1960: 80).
Por outro lado, a tentativa “americana” de compreender a sociedade nacional
limitava-se a colecionar fatos, estudando comunidades ou fazendo surveys lo-
cais. Também essa perspectiva empirista tornava impossível a formulação de
categorias compreensivas da totalidade; afinal, para o autor, “a teoria global de
uma sociedade é requisito prévio para a compreensão de suas partes” (Ramos,
1960: 83). No lugar do proclamado dogmatismo e do empirismo da escola so-
ciológica positivista, Guerreiro propunha uma teoria global da sociedade local,
historicamente orientada e politicamente motivada (práxis), capaz de apreen-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

der o caráter dinâmico da realidade, que compreenderia a liberdade humana e


os ingredientes peculiares de cada nação como elementos condicionantes do
pensar sociológico: “Não deveríamos partir para estudos de pormenor antes de
termos consciência crítica da realidade social do país. Aqui também é a visão
do todo que condiciona a compreensão das partes” (Ramos, 1960: 85). Guerrei-
ro também criticava as interpretações sociológicas que, aspirando à condição
de teoria global da sociedade nacional, interpretavam-na a partir de fatores
como a raça, o clima, a economia, a cultura, a alma ou o caráter nacional. O
sujeito da realidade era o homem e este, por mediação, a efetivava conforme
as possibilidades do seu contexto. O pensamento deveria partir dos fatos não
considerados em si mesmos, mas como elementos de um processo histórico e
social. A sociologia teria surgido da aspiração de homens empenhados em so-
lucionar os problemas de sua época e de sua sociedade, e era esse engajamen-
to que dava sentido e imaginação à atividade intelectual: “A sociologia sem
práxis é um non-sens. Apenas professores de sociologia e literatos a admitem”
(Ramos, 1960: 85).
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1029

Guerreiro concluía com um primeiro esboço interpretativo do processo


sociopolítico brasileiro, no qual identificava as características da sociedade
brasileira destinadas a desaparecer com o processo de desenvolvimento. A pri-
meira dessas categorias, de caráter estutural, era a dualidade. Tratava-se de
uma característica global do país. Éramos atravessados pela “contemporanei-
dade do não coetâneo”: contando sempre um repertório de posturas e institui-
ções transplantadas para satisfazer as exigências decorrentes de nossa orga-
nização como país independente. Ao contrário do que acreditava Oliveira Vian-
na, o dualismo não constituía patologia causada por uma deficiência psicoló-
gica das elites. Ela resultava da conexão histórico-universal de que o Brasil
participava e tendia a ser superada desde que houvesse condições objetivas
geradas pela industrialização, pela urbanização e por um mercado interno in-
tegrador do território nacional. A segunda característica da sociedade brasilei-
ra, de caráter cultural, era a heteronomia. Nos países sem tradição cultural, o
processo colonizador suscitava a adesão aos moldes culturais a tecnológicos
das metrópoles. O mimetismo resultante amortecia “a capacidade de avaliação
crítica dos produtos culturais e tecnológicos importados” (Ramos, 1960: 91). No
Brasil, os critérios civilizacionais vigentes não seriam induzidos da realidade
nacional, mas da realidade de outros países. A terceira característica socioló-
gica da sociedade brasileira era a alienação, sinônima de dependência cultural.
Dada a ausência de condições materiais, a sociedade alienada se percebia por
uma perspectiva emprestada e se modelava à imagem dos países cêntricos. Não
se percebia como sujeito, mas como objeto. A quarta característica global da
sociedade brasileira residia no amorfismo, entendido como dispersão dos es-
forços intelectuais. Na América Latina, as energias psíquicas do homem se
dispersavam sem acúmulo ou acabavam por se introverter, pela ausência de
formas que as organizassem. Esse fato resultava da inorganicidade das insti-
tuições, que se alteravam conforme as influências do exterior. A colonialidade
impedia “os processos de forma a forma que assegurariam e canalizariam a
produção de um contínuo vital, dando origem a uma verdadeira evolução, con-
forme um jogo bipolar de potência e resistência”. A última característica da
sociedade brasileira, que sintetizava as demais, era a inautenticidade, que se
referia a toda espécie de “existência falsificada ou perdida, em mera aparência”.
O país era guiado por normas que não permitiam “a atualização de suas pos-
sibilidades e que vigoram à custa de continuo deficit do seu ser”. Os valores
vigentes não correspondiam a “uma apropriação racional e simpática dos aci-
dentes de nossa imediata moldura natural e histórica”. A consciência crescen-
te dessa inautenticidade, porém, testemunhava a difusão de uma consciência
crítica até então restrita a umas poucas personalidades, como Uruguai, Mauá,
Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Pandiá Calógeras.
Em síntese, para Guerreiro, a dimensão fundamental da problemática
brasileira consistia na duradoura e aguda tensão existente, ao longo da história
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1030

nacional, entre forças centrípetas (unitárias ou integradoras) e centrífugas. Até


1930, por falta de “suportes objetivos”, teriam prevalecido estas últimas, não
tendo passado os antecedentes centrípetos de “episódios singulares”. Depois
de 1930, a tendência centrípeta teria se tornado preponderante, condicionada
pela expansão da produção para o mercado interno. Em meados da década de
1950, aquela oposição primordial se materializava no embate entre uma socie-
dade velha, comprometida com o passado e as forças centrífugas, e uma socie-
dade recente, implicando um novo estilo de vida ainda por criar ou apenas
ensaiado. As condições objetivas ou materiais postas pela industrialização e
pela urbanização encaminhavam o impasse para uma solução política. A gran-
de crise em que se debatia a sociedade brasileira naquela época deveria ser
aproveitada intelectualmente: “[é] vivendo profundamente a crise brasileira
que podemos ganhar em lucidez e compreendê-la” (Ramos, 1960: 88).
Para conhecer suas tendências futuras, Guerreiro deslocou o foco de seus
estudos para a compreensão da dinâmica política. Não por acaso, seu texto
seguinte, apresentado em dezembro de 1955 no Instituto de Altos Estudos da
América Latina da Universidade de Paris, chamava-se A dinâmica da sociedade
política no Brasil (1955). Ele interpretava agora o desenvolvimento político-social
brasileiro, tentando vincular seus grupos sociais e ideologias políticas às mu-
danças estruturais ao longo de sua história. Mas era preciso aqui proceder com
objetividade, distinguindo teorização ideológica e teorização científica. A pri-
meira teria cunho político-partidário, visando à justificação dos interesses par-
ticulares de um grupo ou classe social. Tal caráter não a impedia de eventual-
mente atingir alto grau de sofisticação, assumindo a aparência de ciência. Já a
teorização sociológica ou científica se aplicava à compreensão global da socie-
dade e transcendia o caráter ideológico. Embora a teorização científica também
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

fosse condicionada social e historicamente, a consciência desse condiciona-


mento lhe permitia transcender a dimensão puramente ideológica. Era esse
“radicalismo empírico-dialético” que impedia o cientista social de se confundir
com o ideólogo de partido, permitindo-lhe indagar as “situações existenciais
de que decorrem, que classe ou grupo as representa e em que momento elas
aparecem. O que ilumina as correntes políticas é a posição na estrutura eco-
nômico-social dos que as representam e a época em que eles vivem” (Ramos,
1995: 62).
Munido dessa precaução metodológica, Guerreiro avançava a tese de que,
na atual etapa capitalista do Ocidente, as posições dos grupos podiam ser re-
duzidas a três: ascendente (progressista), dominante (conservadora) e decaden-
te (reacionária). Cada uma produzia formas específicas de pensamento. Uma
vez que as classes ou grupos ascendentes focalizavam sua ação no futuro, su-
as ideologias exprimiam “um impulso renovador de libertação” e uma atitude
crítica baseada em valores como razão, progresso e liberdade. Orientadas por
uma visão teleológica da história, elas perdiam de vista em sua cadeia de nor-
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1031

matividade “a dialética infinita da realidade social” (Ramos, 1995: 63). Por suas
vezes, as classes e os grupos dominantes consideravam definitivo o estádio
atual da estrutura social, admitindo a mudança apenas na chave de atualização
do existente. Enfatizando o valor da ordem e da hierarquia, as classes domi-
nantes acreditavam na naturalidade ou eternidade das leis de funcionamento
da realidade. Já as classes e os grupos declinantes, “aposentados da eficácia
histórica” (Ramos, 1995: 64), desejavam retornar ao período em que dominavam,
clamando pela restauração do passado. As posições de ascensão, dominação e
declínio, com suas respectivas ideologias, seriam também posições de coexis-
tência e sucessão: elas existiriam simultaneamente, brandidas classe a classe,
conforme as posições por elas ocupadas em cada período histórico. O modelo
elaborado por Guerreiro concluía que, somente quando se acentuassem as con-
tradições decorrentes das transformações materiais, as classes dominadas
romperiam a alienação e assumiriam posição de autonomia no processo polí-
tico.
Segundo sua interpretação, ascendente até 1822, a “classe latifundiária”
teria dominado a cena brasileira até 1930, cedendo então paulatinamente sua
hegemonia à “burguesia industrial” (Ramos, 1995: 72), que dominaria depois de
1945, em uma aliança conflituosa com a classe latifundiária decadente, mate-
rializada partidariamente no Partido Social Democrático (PSD). A expansão da
produção para o mercado interno e o incremento da produção de bens de capi-
tal teriam determinado “o declínio da burguesia latifúndio-mercantil como clas-
se dominante” em benefício da “burguesia industrial”. Entre 1930 e 1945, uma
situação de equilíbrio de poder teria se conformado, diante da necessidade de
expansão da capacidade regulatória do Estado. Por isso, Guerreiro explicava o
intervalo bonapartista do Estado Novo como uma “ditadura da híbrida burguesia
nacional” (Ramos, 1995: 74). A posterior exacerbação dessa polaridade decorria
do aprofundamento da industrialização, considerada fator determinante da
dinâmica social e política, ainda que não exclusivo. No intervalo crucial de 1870
a 1930 destacara-se a classe média, que sempre atuara como uma “espécie de
vanguarda” progressista, responsável por todas as mudanças sociais (Ramos,
1995: 72). Após 1930, com a emergência do proletariado e da burguesia industrial,
essa “pequena burguesia” viria adotando tendências direitistas, abraçando su-
cessivamente o integralismo e a UDN (União Democrática Nacional). Depois de
1945, a classe média tinha se tornado “uma força reacionária domesticada por
uma ideologia reformista e moralista” (Ramos, 1995: 75). Por sua vez, nascida de
elementos oriundos da massa de ex-escravos e da plebe rural em torno das fa-
zendas, a “classe proletária”, ascenderia desde a década de 1880 de sua primiti-
va irrelevância, ganhando acelerado protagonismo desde 1930. Ela encontrava
sua tradução partidária no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Se até 1930 era
na classe média que se manifestavam “as tendências dominantes do processo
de desenvolvimento da sociedade brasileira”, era nas suas ideologias que Guer-
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1032

reiro buscava antecedentes para formular sua ideologia orgânica de uma socie-
dade brasileira em processo de mutação. A campanha civilista (1909-1910), a
reação republicana (1922), o movimento tenentista (1922-1930), movimentos
puramente liberais, eram marcos “da revolução da classe média contra as oli-
garquias latifúndio-mercantis” (Ramos, 1995: 72).

O desenvolvimento sociopolítico no pensamento político: em


busca de uma ideologia orgânica da sociedade brasileiral
A partir dessa interpretação da dinâmica brasileira, que extraía das diferentes
classes sociais suas respectivas ideologias em cada contexto do desenvolvi-
mento histórico, Guerreiro procederia de modo análogo ao que procedera, no
Ibesp, para formular sua teoria da sociedade brasileira. Tendo já partido do
estudo crítico do pensamento sociológico brasileiro, entendido como ferramen-
ta para a elaboração de uma ciência social pós-colonial, Guerreiro enveredava
agora para um estudo crítico do pensamento político brasileiro, no intuito de
formular uma ideologia orgânica da sociedade nacional. Foi o que fez em seus
textos posteriores. Em vez de estudadas como simples transposições dos países
cêntricos, Guerreiro (1995: 76) sustentava que a trajetória das ideias políticas
no Brasil deveria ser explicada à luz da sua funcionalidade no desenrolar con-
creto do seu desenvolvimento político: “As doutrinas, na luta partidária do Bra-
sil, têm servido para camuflar as intenções e os propósitos, e a compreensão
do seu sentido existencial e não meramente lógico requer que o analista as
transcenda, apreciando as conexões objetivas dos que dela se utilizam”. As
ideologias deveriam ser avaliadas não em si mesmas, mas em sua interação
com os interesses dos grupos que as brandiam. Entendida como um conjunto
de ideologias, a cultura política deveria ser considerada no quadro do processo
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

de progressiva tomada de consciência da condição colonial e da viabilidade de


sua superação. Foi o que ele fez em três textos produzidos em 1955 e 1956:
Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados de 1870 aos
nossos dias (1955), A ideologia da jeunesse dorée (1955) e O inconsciente sociológico:
estudo sobre a crise política no Brasil, na década de 1930 (1956). Nesses textos, ele
transpôs para o político sua antiga categorização do pensamento sociológico
brasileiro entre autêntico ou orgânico, de um lado, e inautêntico e alienado, de
outro. Do ponto de vista ideológico o primeiro passava a ser considerado pro-
gressista; e o segundo, conservador.
Em Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados de
1870 aos nossos dias (1955), Guerreiro vasculhava a literatura política produzida
desde 1870 pela classe média, no intuito de averiguar como os grupos progres-
sistas haviam teorizado as mudanças políticas. Ele queria saber se tais grupos
haviam agido com base em uma teoria da sociedade brasileira. Continuava,
então, a se afastar de certas premissas de Oliveira Vianna, para quem a ação
dominante de nossas elites teria sido sempre caracterizada pela crença na
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1033

“eficácia imanente de teorias europeias e norte-americanas” (Ramos, 1995: 79).


Apesar do elogio a Viana, que, “na parte que diz respeito às nossas elites, é,
certamente, o máximo de objetividade que, até agora, os estudos sociológicos
atingiram, entre nós” (Ramos, 1995: 79), Guerreiro reelaborava a crítica que já
lhe havia dirigido ao cuidar do pensamento sociológico brasileiro, devido ao
modo como encarava a funcionalidade dos mecanismos de transplantação ins-
titucional. Tendo em vista a inevitabilidade da transplantação em um contexto
colonizado e dependente, o idealismo utópico deveria ser compreendido como
“um expediente pragmático a que tiveram imperativamente de recorrer a fim
de racionalizar ou justificar interesses e reivindicações de grupos e facções
atrelados a tendências nem sempre legítimas da sociedade nacional” (Ramos,
1995: 80). Mannheim e Lukács o levaram a crer que, “no Brasil, as práticas ide-
alístico-utópicas estiveram quase sempre aliadas às tendências positivas da
evolução da sociedade”, representando “várias tentativas de teorização da re-
alidade nacional, orientadas no sentido de possibilitar sua melhor conformação
ou de dominar o processo de crescimento da sociedade nacional” (Ramos, 1995:
80). Guerreiro reabilitava assim o “idealismo utópico” da classe média, ou seja,
o liberalismo, da condenação em que havia sido relegado por Oliveira Viana,
tendo como objetivo “focalizar os esforços e, registrando o momento em que
surgiram, ganhar maior compreensão ou de dominar o processo de crescimen-
to da sociedade nacional” (Ramos, 1995: 80).
O argumento de Guerreiro era o de que, desde 1870, haveria uma con-
tradição entre as instituições monárquicas vigentes, apoiadoras do latifúndio
escravista, e as novas forças produtivas, que aspiravam à superação daquela
infraestrutura. Haveria um embrião de industrialização, cujas consequências
se faziam sentir no plano institucional. Sua posição a respeito do pensamento
político brasileiro pretérito era assim antes compreensiva do que puramente
crítica ou apologética. O manifesto republicano de 1870 era por ele considerado
expressivo das profissões liberais, que almejavam por mudanças políticas, e
refletia a consciência possível dos quadros da classe média emergente (Ramos,
1995: 83). O manifesto dos positivistas, por seu turno, teria sido o primeiro
documento a apontar a necessidade de uma “teoria da sociedade brasileira
como fundamento da ação política e social” (Ramos, 1995: 83). Embora seu mais
destacado representante, Teixeira Mendes, tivesse falhado em adaptar Comte
ao meio brasileiro, seu programa conseguira exprimir “genuínas tendências da
sociedade nacional e contribuiu para a superação das contradições nelas vi-
gentes” (Ramos, 1995: 85). Durante a Primeira República, Guerreiro destacava a
sociologia política de Sílvio Romero como a mais bem sucedida na tentativa de
orientar a política conforme uma teoria da sociedade brasileira. Ele já se dera
conta da dualidade da cultura nacional, premida entre, de um lado, a necessi-
dade de atender às exigências exógenas impostas à adaptação do Brasil ao
mundo e, de outro, restringir aquele atendimento aos limites impostos pelo
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1034

atrofiado desenvolvimento nacional. Romero também já interpretava as ideo-


logias a partir dos partidos políticos, tarefa que Guerreiro renovava em seu
próprio tempo. Outra valiosa contribuição sua residiria em sua crítica das oli-
garquias nacionais, que o levava à caracterização do Brasil como uma vasta
feitoria, verdadeira colônia. Infelizmente Romero não sistematizara sua teoria,
deixando questões contraditórias (Ramos, 1995: 86).
O terceiro momento dos esforços de teorização política brasileira estava
identificado com os ideólogos da ordem e progresso, que nas décadas de 1910
e 1920 teriam exprimido “em larga margem, mais por intuição do que por pura
intelectualização, tendências reais da sociedade brasileira, naquele momento”
(Ramos, 1995: 92). Radicalizado pelas revoltas tenentistas, o movimento reve-
lara autores como Oliveira Viana, que refletiam “de modo mais ou menos ingê-
nuo as tendências centrípetas de autodeterminação atuantes na sociedade
brasileira naquela época”, em “uma concepção psicologística do processo his-
tórico-social, a qual admite a possibilidade de transformação da sociedade
pelo esclarecimento mental, intelectual e moral e muitas vezes uma certa cren-
ça na salvação pelas elites” (Ramos, 1995: 94-95). Tais limitações não os teriam
impedido de diagnosticar acertadamente muitos males brasileiros. Guerreiro
voltava à tese lukacsiana da “consciência possível” para afirmar que, pela au-
sência de condições objetivas para uma revolução de classe média, ainda não
era possível naquele tempo uma “concepção configurada da sociedade brasi-
leira”. As forças políticas e intelectuais ainda não dispunham de elementos
para compreender a relação entre mudança política e contexto socioeconômi-
co. Ao abrir lugar nos quadros dirigentes à classe média, institucionalizar as
forças econômicas pela sindicalização, liquidar a hegemonia dos grandes Es-
tados e firmar a intervenção estatal na economia, a Revolução de 1930 criaria
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

as condições para a estruturação ideológica do país. Desde então, elevara-se o


grau de diferenciação entre as classes sociais, com a ascensão da burguesia
industrial, a decadência do latifúndio e o surgimento do operariado.
Para Guerreiro, a conformação do problema político contemporâneo do
país – o da liquidação da política de clientela, por meio da estruturação ideológi-
ca dos interesses das classes sociais – se delinearia na literatura do período en-
tre 1930 e 1937. O esforço ali desenvolvido de “teorização política da realidade
nacional” apontava três diferentes direções. A primeira era a normativo-acadê-
mica, pautada “por uma concepção psicológica do processo social, na linha que
acreditava possível a salvação da sociedade através da tutela das massas exerci-
da pelos mais esclarecidos, ou através da transformação do caráter do povo, pela
educação” (Ramos, 1995: 96). A segunda era a indutiva, cujos intelectuais, a des-
peito da falta de metodologias rigorosamente científicas, “conseguiram, apesar
disto, captar alguns aspectos essenciais dos acontecimentos” − entre eles Mar-
tins de Almeida, Oliveira Viana, Azevedo Amaral e Virgínio Santa Rosa. Por fim,
havia a direção pragmático-partidária, impressa por Plínio Salgado à frente do
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1035

Ação Integralista Brasileira (1932) e por Luís Carlos Prestes à frente do Partido
Comunista do Brasil (1935). Esta última já não o interessava, porque suas linhas
teriam mimetizado aquela o fascismo e esta o bolchevismo. A conclusão indica-
va que a “diferenciação social das classes pela expansão industrial e a reorienta-
ção da economia brasileira no sentido de um amplo mercado interno e, portanto,
anticolonial” (Ramos, 1995: 97) vinham se acelerando sob o impulso da crise do
imperialismo (colonialismo). Nenhuma, no entanto, teria produzido “a formula-
ção de uma ideologia orgânica da realidade nacional que refletisse a direção do-
minante do processo de desenvolvimento da sociedade brasileira” (Ramos, 1995:
97). Daí a crise da organização político-partidária, cujas premissas ideológicas
estavam em descompasso com as mudanças sofridas desde 1930. A superação
dessa crise dependia de uma teoria que sustentasse um pensamento político
(isto é, uma ideologia) que encaminhasse “as forças políticas no sentido da ten-
dência dominante do processo de desenvolvimento do país” (Ramos, 1995: 97).
Em busca de contribuições para a sua projetada teoria, Guerreiro voltou-
se se de modo mais detalhado para o pensamento político da década de 1930,
apontando as tendências conservadoras e progressistas da sociedade brasilei-
ra em três textos na sequência. O primeiro, dedicado à linhagem de autores
classificados antes como responsáveis pela “direção normativo-acadêmica”,
chamava-se A ideologia da jeunesse dorée (1955). Tratava-se de uma orientação
de tendência conservadora, própria “de um grupo de escritores, oriundos de
famílias tradicionais e abastadas, afastados das lutas partidárias e preocupados
quase exclusivamente com a vida intelectual” (Ramos, 1961: 152). Diante da
investida da classe média e do proletariado, seus representantes – como Alceu
Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Afonso Arinos de Mello Franco e Otávio de
Faria – interpretavam os acontecimentos recentes na chave da decadência, sau-
dosista da boa e velha ordem do Império, época em que sua classe social pre-
valecia na política brasileira. As mudanças eram explicadas como decorrentes
da “indisciplina mental, desordem intelectual e consequentemente só poderão
ser erradicadas por operações psicológicas: recristianização, primado das elites
letradas, melhoria do caráter nacional” (Ramos, 1961: 153-154). Cultivando uma
noção livresca de cultura, os conservadores eram “induzidos a um certo este-
ticismo diante de si mesmos e da vida, tentando a perfeição anterior pela au-
toanálise, pelo esclarecimento, pelo exercício do domínio da vontade e, além
disso, pela concepção do homem e da sociedade em termos preponderante-
mente psicológicos” (Ramos, 1961: 153). Por isso, eles tenderiam “a conceber o
mundo como uma ordem ideal, por excelência, de que seria reflexo o mundo
material. Guerreiro interpretava que, por suas condições de classe, esses auto-
res permaneciam distantes das “questões práticas da vida” (Ramos, 1961: 160).
A tese da salvação do país pelos intelectuais e pelas elites explicitava o eleva-
do conceito que esses escritores tinham de si, o seu temor das novas classes
emergentes e seu inconformismo com a perda da hegemonia: “A estrutura eco-
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1036

nômica e social, na qual a classe dirigente era constituída de grandes proprie-


tários de terras, devia conservar-se imutável, sendo imorais e satânicas as
tendências que laboravam por sua transformação qualitativa” (Ramos, 1961:
167). Amparados parasitariamente pelo Estado, esses escritores estavam des-
comprometidos com “o esclarecimento mesmo da essência da estrutura social
vigente e sempre de modo a evitar a total ociosidade de cidadãos que, de outra
forma, poderiam converter-se em fermentos de influências subversivas” (Ramos,
1995: 138). A produção da jeunesse dorée ilustrava o tipo de literatura classista
e alienada fabricada pelas elites dominantes até 1930.
Guerreiro pretendia assim empregar o instrumental das ciências sociais
para desqualificar como inautênticos, decadentes e alienados autores que con-
tinuavam gozando de prestígio na década de 1950. E os atacava pelo fato de
eles apostarem em chaves explicativas anticientíficas. A redução do problema
político a um problema moral seria consequência de uma concepção intelec-
tualista do processo histórico e social. A recristianização pregada por Amoroso
Lima revelava uma completa incompreensão dos fatos sociais na sua concre-
tude. Ele nunca argumentava no plano prático, tratando a política sempre no
plano normativo da generalidade e da abstração (Ramos, 1961: 155). A defesa
feita por Afonso Arinos de um governo de intelectuais, entendidos como publi-
cadores de livros que possuíam o grau de doutor, era de uma ingenuidade com-
pleta. A interpretação dos problemas nacionais em termos de psicologia nacio-
nal, bem como a atribuição de aspectos das vidas dos povos a tais entidades
místicas, tomava “um estádio transitório da psicologia coletiva como definitivo;
ou confundia uma condição faseológica de um povo com sua própria natureza”
(Ramos, 1961: 162). A admissão tão somente, por parte dos dorés, da mudança
operada pelo reformismo era descartada por Guerreiro como quimérica, pois
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

seria “da essência do processo histórico-social a ocorrência intermitente de


alterações qualitativas, no domínio do costume e da tradição (Ramos, 1961: 156).
Uma vez que o teste de validade de qualquer pensamento não se operava pelo
confronto de teses doutrinárias, mas por sua funcionalidade em relação ao
real, a literatura daqueles autores era inútil para conhecer a realidade. Ela só
merecia ser estudada “como material subsidiário, por dizer clínico”, “para es-
tudar a psicologia específica de um estrato específico da sociedade, num dado
período” (Ramos, 1961: 164). A autoridade intelectual daqueles autores só se
explicava pela “incultura geral do nosso público e pelo despoliciamento crítico
dominante em nossos meios literários e científicos” (Ramos, 1961: 160).
O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil, na década de
1930 (1956) foi o segundo estudo de história do pensamento político brasileiro
desenvolvido por Guerreiro Ramos no intuito de haurir subsídios para a formu-
lação de sua ideologia orgânica da sociedade brasileira. Se A ideologia da jeunes-
se dorée buscava compreender criticamente os antecedentes do conservadoris-
mo de seu próprio tempo para descartá-lo, o novo estudo descrevia os antece-
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1037

dentes da tendência progressista de seu tempo, permitindo a superação da


perspectiva alienada da “juventude dourada”. Ele se dedicava aos autores da
década de 1930 responsáveis pela segunda direção apontada em Esforços de teo-
rização, por ele ali classificada “indutiva”, e que compreendia um conjunto de
reflexões, reconhecendo positivamente os processos de complexificação das
classes, decadência do latifúndio, industrialização e o surgimento do proletaria-
do. A emergência da sociologia deslocava aqui de sua antiga centralidade o pa-
rasitário intelectual beletrista, substituindo-o por uma moderno intelectual
saído da classe média e voltado para “investigações realmente relacionadas com
as necessidades de desenvolvimento do país” (Ramos, 1995: 138). Aqui, Guerrei-
ro atacava a perspectiva positivista da sociologia de Florestan Fernandes que, a
título de “inventar a roda”, teria desqualificado todas as contribuições pretéritas
de José Maria dos Santos, Azevedo Amaral, Virgínio Santa Rosa, Martins de Al-
meida, Caio Prado Jr. e até o mais importante sociólogo brasileiro, Oliveira Viana.
Mas Guerreiro também atacava a suposta esterilidade da sociologia de Gilberto
Freyre, que se limitava a produzir uma literatura de tipo “sorriso da sociedade”
para edulcorar o passado. Esses “sociólogos” e “antropólogos” que timbravam
em desprezar seus antecessores não passariam, ao seu juízo, de “literatos ou
beletristas, disfarçados em homens de ciência” (Ramos, 1961: 178).
Em contraste, Guerreiro elogiava os expoentes da “sociologia inconscien-
te” da década de 1930: “Quanta objetividade, em larga margem, nos estudos de
um Azevedo Amaral, de um Virgínio Santa Rosa, de um Martins de Almeida”,
que teriam conseguido, a despeito de seus erros, apontar “as tendências obje-
tivas do momento em que viviam” (Ramos, 1961: 169). Martins de Almeida já
teria destacado em 1932 a necessidade que tinha o Brasil de integrar seu terri-
tório pela formação de um mercado interno, superando o conflito entre o velho
domínio oligárquico e a emergência de novas classes, que pressionavam por
reformas (Ramos, 1961: 172). Virgínio Santa Rosa, por sua vez, seria autor de
“um dos livros mais lúcidos sobre a Revolução e documento importante de nos-
sa sociologia política”. Enquanto os escritores da jeunesse dorée “embaralhavam-
se no subjetivismo e se deixavam obnubilar pela nostalgia dos ‘velhos tempos’”,
ele vira o futuro melhor que o passado e o presente, diagnosticando correta-
mente a diferenciação de classes e demandas que se operavam com a ascensão
da pequena burguesia (Ramos, 1961: 172). Entre todos, porém, era Azevedo Ama-
ral “o mais complexo e completo” escritor da época, por sua fidelidade ao tema
da realidade nacional, igualando-se a Alberto Torres e superando Oliveira Vian-
na. Ele explicara com clareza sociológica o Estado Novo como uma imposição
da trajetória econômica da nação em direção à ampliação da intervenção da
atuação estatal, de formação de um mercado interno e de uma dinâmica eco-
nômica endógena, na forma de uma “ditadura da burguesia nacional” num
movimento, ainda incompleto, de transição do poder entre setores da burgue-
sia (Ramos, 1961: 180). Era aquela tradição emancipatória dos autores do “in-
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1038

consciente sociológico”, que produzira “o mais bem-sucedido esforço de teori-


zação dos fatos ocorridos naquela faixa de tempo”, que deveria ser aproveitada
para a elaboração de uma “teoria da sociedade brasileira” (Ramos, 1961: 182).

Teoria e prática: a ideologia nacional-desenvolvimentista


e o papel do intelectual militante
Os estudos sobre o pensamento político brasileiro foram fundamentais para
esclarecer Guerreiro Ramos sobre a forma por que as ideologias se articulavam
com a dinâmica da mudança social e política e o papel de suporte exercido por
aquelas de cunho progressista. Mas deixaram tambem clara a sua própria po-
sição naquela quadra histórica. Eles lhe permitiram se perceber como um in-
telectual de novo tipo, extraído das classes emergentes, identificado com as
ciências sociais e dedicado ao trabalho de explicar e apoiar uma política nacio-
nalista progressista voltada para o desenvolvimento. O material recolhido ao
longo de suas pesquisas sobre o pensamento político brasileiro, bem como as
lições por ele hauridas nesse processo, serviu a Guerreiro de insumos indis-
pensáveis para o passo seguinte no seu projeto: elaborar uma ideologia orgâ-
nica da sociedade brasileira. Preliminarmente, ele precisava definir seu concei-
to de nacionalismo e o de ideologia, o que ele fez em Nacionalismo e xenofobia,
de 1956, e Ideologia e segurança nacional, de 1957. Voltou-se depois para o con-
ceito de inteligentsia, a fim de definir a relação entre o intelectual e o militante
político, apresentando finalmente, em Condições sociais do poder nacional (1957),
sua ideologia nacional-desenvolvimentista, que partia de uma interpretação
teórica da realidade brasileira para justificar os esforços modernizadores do
nacionalismo. Em Nacionalismo e xenofobia (1956) Guerreiro diferenciava o na-
cionalismo brasileiro, destacando sua positividade em contraste com o violen-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

to e retrógrado nacionalismo europeu. Naquela fase da vida brasileira, nacio-


nalismo significava, antes de tudo, uma “expressão da emergência do ser na-
cional” (Ramos, 1995: 55). Até pouco antes, a nação não passava de uma ficção
jurídico-constitucional. Uma vez porém, alcançadas as condições materiais
para o desenvolvimento do mercado interno e a integração do território nacio-
nal, surgiam as condições para transformar a superestrutura no país. As con-
dições materiais e a realidade sociológica demandavam uma ideologia nacio-
nalista capaz de promover o desenvolvimento do país baseado na autodeter-
minação. A “nova teoria sociológica” brasileira, formulada pelos “profissionais
de vanguarda” do Iseb, era a grande expressão teórica das mudanças em curso:
“Pela primeira vez, na história das ideias em nosso país, aparece uma teoria
sociológica autêntica em cujas categorias se reconhecem aqueles que estão
vivendo o que é novo no Brasil” (Ramos, 1995: 57).
Em Ideologia e segurança nacional (1957), Guerreiro reconhecia que qual-
quer política era ideologicamente condicionada, refletindo sempre a posição
dos atores na estrutura social (Ramos, 1960: 46). O capitalismo sempre se ca-
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1039

racterizara pela organização do conflito ideológico entre esquerda e direita:


“Onde quer que se forme um grupo social surgirão, necessariamente, uma es-
querda e uma direita” (Ramos, 1960: 66). E definia os dois polos nos seguintes
termos: “A direita é principalmente uma posição de compromisso com a tradi-
ção ou o status quo e, por isso, é restauradora ou imobilista. A esquerda é emi-
nentemente uma posição de compromisso com uma possibilidade ainda não
efetivada no domínio social” (Ramos, 1960: 66). Em vez de descartar a primeira,
todavia, coerente com sua sociologia compreensiva, Guerreiro avançava que
uma política de segurança nacional deveria ser elaborada conforme as contri-
buições de ambas as posições em seus contextos históricos específicos. A con-
tribuição dos cientistas sociais passava por recomendar a formulação de polí-
ticas públicas mais adequadas a cada circunstância histórica, a fim de lhe as-
segurar o máximo de funcionalidade. Naquele momento, uma política de segu-
rança nacional passava necessariamente por apoiar os esforços de industriali-
zação e de autonomia no plano internacional. Para Guerreiro, as tentativas de
neoliberais como Eugênio Gudin de condenar o planejamento econômico como
tendente ao totalitarismo não passavam de “parnasianismo econômico. Seu
cienticificismo não passava de retórica para tentar o impossível, que era esva-
ziar a economia de seu conteúdo político. 2 E assim defendia a regulação do
comércio e a aproximação “principalmente com os países latino-americanos,
embora sem exclusão de outros que sofrem as mesmas dificuldades que as
nossas” (Ramos, 1960: 72).
A elaboração de uma ideologia nacionalista adequada ao momento seria
tarefa de um estrato intelectual específico, a intelligentsia, que reunia o “tipo
de intelectual interessado na produção e difusão de ideias essencialmente en-
quanto contribuem para a reforma social ou para o processo revolucionário”
(Ramos, 1961: 185). Aderindo à definição de Mannheim, segundo a qual o inte-
lectual tentava escapar às condicionantes de sua classe social, Guerreiro afirma
que suas marcas modernas eram a militância política e o pensar independen-
te. Era preciso modificar a anacrônica concepção aristocrática do intelectual
como pessoa culta e desinteressada: “Num país como o Brasil, o intelectual que
viva profundamente a ética da inteligência terá de ser deliberadamente, inten-
cionalmente político”, sendo sua tarefa primeira “configurar politicamente o
povo brasileiro” (Ramos, 1961: 190) que emergia na cena política daquele mo-
mento. Recorrendo ao exemplo do círculo weberiano, ele afirmava que por mais
universais que fossem as reflexões de homens como Rickert, Treitschke, Momm-
sen, Dilthey, Jellinek, Troeltsch ou Jaspers, todos estavam afetados “pela cons-
ciência da especificidade do destino alemão”, e que o próprio Weber era “um
pensador militante” (Ramos, 1961: 187). A preocupação de Weber relativa à fal-
ta de uma classe capaz de substituir os decadentes proprietários de terra ale-
mães à frente da política era idêntica à sua, pois que em ambos os casos as
classes média e proletária ainda não haviam preenchido o vazio intelectual
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1040

“que decorre da perda de exemplaridade das ideias, por meio das quais justifi-
cava sua dominação uma classe há quase duas décadas em processo de apo-
sentadoria histórica” (Ramos, 1961: 190).
Clarificados os referentes conceituais centrais relativos à ideologia, do
nacionalismo e da intelligentsia, Guerreiro já estava em condições de apresentar
sua proposta de uma ideologia nacional-desenvolvimentista. Ela viria na aula
inaugural do curso regular do Iseb para 1957, “Condições sociais do poder na-
cional”. O poder nacional era “o conjunto de todos os grupos e indivíduos diri-
gentes que desempenham papel ativo na organização de um país, de todos os
elementos políticos por excelência que concentram em suas mãos a direção
econômico-social, o poder militar e as funções administrativas” (Ramos, 1960:
18). O Brasil teria sido até 1930 um enorme território de economia agrária e
população ganglionar, governada por oligarquias agrárias e sujeita ao imperia-
lismo inglês. Esse arranjo lhe rendera uma posição periférica e complementar
perante as nações desenvolvidas, impedindo a emergência de um povo e de um
poder nacional. A complementariedade típica dos países periféricos era um
“fato social total” que “permeava todos os níveis de nossa existência” (Ramos,
1960: 22). Daí o caráter hegemonicamente alienado de sua cultura, impedindo
a emergência da consciência crítica necessária à autodeterminação. Guerreiro,
porém, não era fatalista ou pessimista como Alberto Torres. Para o Brasil, “não
havia outra maneira de integrar-se na história universal, senão começando por
ser uma região periférica do Ocidente” (Ramos, 1960: 20). Como Oliveira Viana,
ele também reconhecia que a antiga classe dominante teria desempenhado
com rara competência o seu papel político dirigente: “Desde a chegada de D.
João VI ao Brasil em 1808, até a década de 1920, essa classe cumpriu a sua mis-
são, não raro com admirável senso de oportunidade” (Ramos, 1960: 20). Havia
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

sido graças à “sua capacidade empreendedora e à sua imaginação que um es-


paço historicamente vazio como o nosso adquiriu um simulacro de personali-
dade nacional, o que o habilitou a comparecer ao mundo na mais egrégia forma
a seu alcance” (Ramos, 1960: 20-21). Seguindo a linha de seus predecessores do
“inconsciente sociológico”, Guerreiro argumentava que, nos países periféricos,
era inevitável que o Estado precedesse a sociedade, exercendo, enquanto esta
não se formasse, o papel de protagonista do processo histórico: “Em nosso
país, o Estado foi uma espécie de artefacto sociológico, montado sobre o nosso
poder pela antiga classe dominante a lhe permitir o desempenho de funções
tutelares” (Ramos, 1960: 28).
A situação estrutural em que o Brasil se encontrava começara a se modi-
ficar desde 1930, graças à formação de um mercado interno que imprimia sen-
tido centrípeto à vida nacional. Os fazendeiros cederam a hegemonia a uma
burguesia empreendedora, mas dependente de uma população trabalhadora: “A
nação, de forma jurídica fictícia que era, passa a ser uma realidade concreta,
lastreada numa experiência popular coletiva. O Estado já não opera num vazio
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1041

histórico. Agora é condicionado pela sociedade (Ramos, 1960: 29). A emergência


do povo como ator histórico, trazendo consigo uma política ideológica própria
da sociedade de massas, explicava a crise do poder ao longo da década de 1950,
decorrente do seu desajuste às velhas instituições e práticas herdadas da Pri-
meira República. Era o que explicava fenômenos como o fortalecimento do Con-
gresso diante do Executivo; a inédita derrota eleitoral do governo federal nas
eleições presidenciais de 1950; a falta de representatividade dos partidos políti-
cos; a estrutura sindical parasitária do país e o papel de poder moderador exer-
cido pelo Exército, obrigado a intervir periodicamente no processo político. A
crise do sistema representativo só poderia ser conjurada “quando o Congresso
coincidir ideologicamente com o mandato que o instaurou e os partidos, o apa-
relho sindical e demais instrumentos de expressão da vontade do povo se pene-
trar do novo sentido da evolução brasileira” (Ramos, 1960: 25). Em termos de
classes, a superação da crise política exigia a assunção definitiva da liderança
política pela burguesia industrial em aliança com os trabalhadores urbanos, tal
como desejado pelos nacionalistas do polo progressista (PTB). Já a continuidade
do esquema subalterno, colonial e oligárquico era defendida pelos liberais do
polo conservador (UDN), herdeiros da juventude dourada dos anos 1930, que
consideravam “infame e diabólica qualquer tentativa de modificar a composição
das forças atuantes em nosso país”. Defendiam por isso o alinhamento automá-
tico com os EUA; a identidade cultural com a civilização cristã-europeia; e o
predomínio do liberalismo econômico. A ideologia “neoliberal”, baseada no libe-
ralismo econômico, só era científica e universalista na retórica, porque ignorava
“o condicionamento histórico-cultural das interpretações econômicas, do a prio-
ri existencial que inevitavelmente preside a toda a produção de ideias” (Ramos,
1960: 31). Guerreiro destacava mais uma vez a dimensão política do desenvolvi-
mento econômico: em um país periférico como o Brasil, o desenvolvimento se
constituía em “uma opção radical” relativo a “um projeto de país, e que encontra
a sua expressão em um gesto eminentemente político”, dotado, naquele mo-
mento, de um relevante senso de urgência e imperiosidade “ao qual a ciência
econômica é, por natureza, insensível” (Ramos, 1960: 31).
A democratização da vida política brasileira pelo advento do povo exigia
a superação da posição periférica e subalterna do país no quadro da divisão
internacional do trabalho, pela “conquista de um desempenho histórico inde-
pendente” (Ramos, 1960: 31). O meio de alcançá-lo era o nacionalismo, enten-
dido principalmente como um “projeto de elevar uma comunidade à apropria-
ção total de si mesma, isto é, de torná-la o que a filosofia da existência chama
um ‘ser para si’” (Ramos, 1960: 32). Esse projeto, que já estava em andamento,
não poderia ser cumprido pela emergência de um líder providencial, mas pela
conversão da maior parte da classe política ao programa nacionalista, essencial
à segurança nacional dentro da nova configuração social e econômica imposta
pela industrialização e pela urbanização. Era aqui que Guerreiro mobilizava
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1042

pela primeira vez o conceito de revolução nacional, que se tornaria central na


produção do período posterior à sua saída do Iseb. Desassociando-o dos “even-
tos dramáticos que constituem o cortejo habitual das insurreições e quartela-
das”, ela era explicada como “a mudança qualitativa que se opera numa cole-
tividade humana, quando passa de uma fase histórica para outra superior
(Ramos, 1960: 37). Para Guerreiro, já estavam presentes todos os elementos
objetivos para a concretização daquela “revolução”, da qual deveria resultar “a
conquista de um desempenho histórico independente”. Faltava o elemento
subjetivo: a vontade política. A possibilidade de uma terceira via entre os cam-
pos hegemônicos americano e soviético abria uma janela de oportunidade pa-
ra aquela afirmação brasileira também no plano internacional:

Carecemos, neste particular, de um esforço de sistematização da norma já inse-


rida na comunidade nacional, da sua transposição da vivência punctiforme do
interesse imediato, para a esfera de ref lexão sistemática. Tal operação permiti-
ria livrar o nosso processo emancipatório de obstáculos que o levam a descrever
uma linha tortuosa e não em linha reta (Ramos, 1960: 36).

Conclusão
Este artigo procurou comprovar duas hipóteses gerais. A primeira delas é a de
que, partindo de uma perspectiva que hoje se denominaria pós-colonial, Guer-
reiro Ramos pretendia elaborar uma teoria social brasileira, crítica da sociolo-
gia positivista. A hipótese era desafiadora, haja vista que seus livros publicados
entre 1953 e 1961, com a exceção de A redução sociológica, não apresentam ca-
ráter sistemático. Em vez de ler cada um dos livros pressupondo a sua unidade
cronológica ou lógica, a investigação adotou um método “histórico-sistemático”,
que os decompôs em seus diversos textos, a fim de os ler na ordem em que
foram orginalmente publicados em revistas e jornais da época. Assim proce-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

dendo, seria possível verificar se Guerreiro seguia ou não um plano deliberado


de pesquisa, voltado para a produção da sua tantas vezes enunciada teoria
social. Outra hipótese era a de que os estudos publicados no período pelo so-
ciólogo baiano não poderiam ser compreendidos de modo desvinculado de seu
contexto geral de produção, voltado para a elaboração daquela “teoria da so-
ciedade brasileira” de natureza pós-colonial. Para perseguir de modo conse-
quente o próprio itinerário seguido na Alemanha por Weber para a construção
de sua sociologia, ou por Durkheim no caso francês, Guerreiro acreditava ser
preciso, como naqueles dois países, incorporar criticamente a produção local
anterior à ciência institucionalizada. Daí a importância, para a formulação de
uma sociologia brasileira, de resgatar e sistematizar um conjunto de reflexões
sociais e políticas a que pouquíssimos brasileiros davam importância, especial-
mente na academia.
A pesquisa exposta neste artigo acredita ter comprovado ambas as hi-
póteses. A natureza pós-colonial da produção de Guerreiro é reconhecida pelos
especialistas e aparece de modo mais ou menos autoevidente, tendo em vista
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1043

suas críticas constantes a posições intelectuais cujo pretenso cosmopolitismo,


no seu entender, encobrira uma visão colonizada da ciência brasileira. Da mes-
ma forma, foram aqui transcritas diversas passagens de sua obra no período,
explicadas expressamente como partes integrantes de um projeto mais amplo,
que deveria, ao final, resultar na elaboração de um “Tratado brasileiro de so-
ciologia”. A adoção do método “histórico-sistemático”, por que se preferiu exa-
minar seus textos na ordem de publicação, a fim de apreender o processo de
elaboração do pensamento de Guerreiro, revelou, igualmente, que ele perseguiu
com coerência e exemplaridade seu propósito de “utilizar a ciência social como
instrumento de organização da sociedade brasileira” (Ramos, 1960: 14). Seus
textos do período, iniciados invariavelmente com a apologia de uma teoria
sociológica de tipo compreensivo, foram responsáveis pela elaboração dos pri-
meiros estudos modernos do pensamento social brasileiro, orientados por cri-
térios evidentes de cientificidade. Guerreiro procedeu ao seu projeto de elabo-
ração de uma teoria social brasileira, desdobrando-o em duas fases. Na primei-
ra, desenvolvida no âmbito do Ibesp durante o segundo governo Vargas, ele se
debruçou sobre a porção mais sociológica daquele pensamento, para apropriar-
se criticamente das interpretações do Brasil, atualizando as perspectivas de
Oliveira Vianna. Sua perspectiva crítica de análise separava sua parte suposta-
mente útil, comprometida com a autonomia nacional, daquela que, alienada,
naturalizava a condição semicolonial do país. Seus principais produtos foram
publicados quando Guerreiro esteve vinculado ao Instituto Brasileiro de Eco-
nomia, Sociologia e Política. Foram eles O processo da sociologia brasileira [1953],
O problema do negro na sociologia brasileira [1954] e O tema da transplantação na
sociedade brasileira [1954]. A consolidação da crítica da sociologia brasileira efe-
tuada nas suas Notas para um estudo crítico da sociologia no Brasil [1954] serviria
de base para sua primeira interpretação da sociedade brasileira à luz do fenô-
meno semicolonial: A problemática da realidade brasileira [1955].
Ocorre que o próprio resultado de suas pesquisas, somado à observação
do acirramento da crise política brasileira, levou Guerreiro a concluir que não
poderia se contentar em ser uma espécie de Oliveira Viana que lera Weber e
Mannheim. A industrialização, a urbanização e o surgimento de um mercado
interno haviam criado condições objetivas de superação da condição semico-
lonial e à emergência generalizada de uma consciência crítica. Uma teoria con-
sequente da sociedade nacional não poderia se contentar em descrever o que
ela havia sido, mas estava deixando de ser; ela precisava ir além, interpretando
a transformação que atravessava e contribuir, pelo conhecimento crítico – des-
sa vez do pensamento político brasileiro –, para a elaboração de uma ideologia
capaz de sustentar o projeto desenvolvimentista. Um dos fracassos do segundo
governo Vargas em granjear apoio para sua política nacionalista e industrialis-
ta derivara, precisamente, do empirismo de seus métodos políticos, que care-
ciam de uma ideologia científica, capaz de apoiar aqueles esforços. Daí por que
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1044

se impunha agora, em uma segunda fase, elaborar uma “teoria da sociedade


brasileira que sirva de suporte à estruturação efetiva das tendências de auto-
determinação vigentes hoje em nosso país” (Ramos, 1995: 60). A criação do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (1955) proveu o espaço ideal para o
desdobramento daquela pesquisa, ao longo do governo Juscelino Kubitschek.
Na primeira etapa, no Ibesp, ele esboçara sua teoria da sociedade brasileira
pela aplicação da sociologia compreensiva de matriz alemã ao estudo crítico
do pensamento sociológico brasileiro, distinguindo o que nele havia de autên-
tico e de artificial. Ela se limitava, porém, a descrever o que a sociedade brasi-
leira tinha sido até 1930. A fim de dotar aquela teoria social de uma perspecti-
va dinâmica, que explicasse suas mudanças contemporâneas, pela aplicação
daquela mesma sociologia compreensiva, Guerreiro se voltava, no Iseb, para ao
estudo crítico do pensamento político brasileiro, a fim de nele distinguir as
ideologias progressistas das conservadoras. Seus textos produzidos entre 1955
e 1958 refletem esse redirecionamento de seus estudos, que se deslocaram do
pensamento sociológico para o pensamento político, como se pode constatar
em: A problemática da realidade brasileira [1955], A dinâmica da sociedade política
no Brasil [1955], Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados
de 1870 aos nossos dias [1955], A ideologia da jeunesse dorée [1955], O inconsciente
sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil, na década de 1930 [1956], Naciona-
lismo e xenofobia [1956], Ideologias e segurança nacional [1957] Caracteres da intelli-
gentsia [1957] e Condições sociais do poder nacional [1957].
A perspectiva histórico-sistemática aqui adotada permitiu acompanhar
e entender o itinerário da investigação empreendida por Guerreiro Ramos na
década de 1950. Partindo de uma reflexão epistemológica sobre o pensamento
social brasileiro, ela passou pela legitimação sociológica do estudo do pensa-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

mento e ideologias políticas no Brasil (o pensamento social brasileiro), e cul-


minou com a defesa da intervenção dos cientistas sociais no debate público, a
fim de sustentar uma ideologia nacionalista do desenvolvimento. Ao longo
dessa pesquisa, Guerreiro deu-se conta de sua própria posição histórica como
intelectual na dinâmica sociopolítica brasileira. Ele se representava como um
intelectual moderno, científico, orgânico e, portanto, progressista, pertencente
a um segmento social emergente, que estava em vias de substituir o intelectu-
al antigo das classes dominantes em declínio, identificado com um Afonso
Arinos, que ele considerava um literato, alienado e conservador. Ao fim de sua
pesquisa, já na posse de uma interpretação completa do Brasil, capaz de orien-
tá-lo no debate público, Guerreiro Ramos se deixou crescentemente envolver
pela política em vez de escrever o seu pretendido Tratado. Depois da saída do
Iseb, em 1958, empenhado em disputar com San Tiago Dantas a posição de
intelectual orgânico do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ele se envolveria
no debate terceiro-mundista e se aproximaria de uma perspectiva socialista,
não marxista, numa trajetória que culminou com sua assunção da cadeira de
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1045

deputado federal em 1963 (Bariani, 2011: 182-185). Nessa terceira fase, Guerrei-
ro Ramos produziria textos programáticos como Princípios do Povo Brasileiro, de
1959, Cinco princípios do povo brasileiro, de 1959, Panorama do Brasil contemporâneo,
de 1961, e Mito e verdade da revolução brasileira, de 1963. Tomado pelos aconte-
cimentos, Guerreiro foi adiando seu projeto de sistematização de sua teoria,
para além da parte epistemológica já exposta em A redução sociológica. O golpe
militar do ano seguinte, cassando seus direitos políticos, o obrigaria a dar uma
guinada radical em seus planos, abandonando aquele projeto. Ele deslocou seu
espaço de atuação acadêmica para o campo da administração pública e emigrou
para os Estados Unidos, onde se tornou professor em tempo integral na Uni-
versidade da Califórnia do Sul. Mas o essencial de sua teoria social e política
já estava desenvolvido, e suas obras influenciariam de modo decisivo alguns
dos principais representantes da primeira geração de cientistas políticos bra-
sileiros na virada da década de 1960 para a de 1970, como Bolívar Lamounier,
José Murilo de Carvalho e Wanderley Guilherme dos Santos (Lynch, 2013; Lynch
& Cassimiro, 2018).

Recebido em 24/11/2019 | Revisto em 03/11/2020 | Aprovado em 01/08/2021

Christian Edward Cyril Lynch é doutor em ciência política pelo


antigo Iuperj (atual Iesp-Uerj). Professor do Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Iesp-Uerj), da Universidade Veiga de Almeida (UVA) e da Fundação
Getulio Vargas (FGV). Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Dentre sua produção, destacam-se Da monarquia à oligarquia:
história institucional e pensamento político brasileiro, Monarquia sem
despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês
de Caravelas e “Por que pensamento e não teoria: a imaginação
político-social brasileira e o fantasma da condição periférica”.

Pedro Paiva Marreca é doutor em ciência política pelo Instituto de


Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj), mestre em história social da
cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Dentre seus trabalhos publicados destacam-se: História e
política: o nacionalismo periférico de Alberto Guerreiro Ramos e Nelson
Werneck Sodré e Desenvolvimento e mudança social: Hélio Jaguaribe
leitor de Joseph Schumpeter.
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1046

NOTAS
1 Com o golpe de Estado de 1964 , a oportunidade para a
redação daquela obra se perdeu. Até então, Guerreiro so-
mente sistematizara a parte epistemológ ica de seu pro-
jeto em A redução sociológica (1958). O material que guar-
dava acabou aproveitado para o Tratado nos capítulos 4, 5
e 6 de Administração pública e estratégia do desenvolvimento
(1966), obra produzida a pedido da Escola Brasileira de
Administração Pública e de Empresas da Fundação Getu-
lio Vargas (Ebape-FGV ) e alg uns artigos publicados na
sequência. Daí que, em entrevista no fim da vida, ele la-
mentasse o aspecto fragmentário de sua produção: “Nada
foi acabado” (Oliveira, 1995: 160). Isso não significa, en-
tretanto, que sua teor ia da sociedade brasileira já não
estivesse suficientemente esboçada nos diversos textos
publicados no período. Esse havia sido o tema da própria
A redução sociológica, abordado diversas vezes antes de
sistematizá-lo no livro de 1958. Em outras palavras, a não
publicação do Tratado de Guerreiro Ramos não impede o
estudioso de recuperar e reconstituir, pelo exame de seus
textos, a teoria que ele deixou de sistematizar.
2 “Aparentemente rigorosa, a atitude do economista parna-
siano é comodista e primária. De um lado, porque deso-
briga o economista a pensar em termos nacionais, o que
seria penoso; do outro, porque essa atitude supõe que o
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021

pensamento econômico possa ser ideologicamente neutro.


Ora, a economia é economia política, sempre se elaborou,
nos países líderes da cultura, tendo em vista defender e
incrementar o poder nacional. ‘O grande objetivo da po-
lítica econômica de qualquer país − dizia Adam Smith − é
aumentar suas riquezas e a potência nacional” (Ramos,
1960: 76).

ReferênciaS

Abranches, Aparecida Maria. (2006). Nacionalismo e demo-


cracia no pensamento de Guerreiro Ramos. Tese de Doutorado.
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
Bariani, Edison. (2011). Guerreiro Ramos e a redenção socio-
lógica: capitalismo e sociologia no Brasil. São Paulo: Edusp.
Bringel, Breno & Domingues, José Maurício. (2015). Teoria
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1047

social, extroversão e autonomia: impasses e horizontes


da sociolog ia (semi)per ifér ica contemporânea. Caderno
CRH [online], 28/73, p. 59-76. Disponível em: https://doi.
org /10.1590 /S0103-49792015000100005. ISSN 1983-8239.
https://doi.org /10.1590 /S0103-49792015000100005. Acesso
em 27 nov. 2021.
Lynch, Christian Edward Cyril. (2015). Teoria pós-colonial
e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o
pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH [online],
28/73, p. 27-45.
Lynch, Christian Edward Cyril. (2013). The institutionali-
zation of Brazilian political thought in the social sciences:
Wanderley Guilherme dos Santos’ research revisited (1963-
1978). Brazilian Political Science Review [online], 7/3, p. 36-60. 
Lynch, Christian Edward Cyril; Cassimiro, Paulo Henrique
Paschoeto. (2018). Freedom through form: Bolívar Lamou-
nier and the liberal interpretation of Brazilian political
thought. Brazilian Political Science Review, 12/2.
Maia, João Marcelo Ehlert. (2015). A sociologia periférica
de Guerreiro Ramos. Caderno CRH, 28/73, p. 47-58.
Maia, João Marcelo Ehlert. (2012). Reputações à brasileira:
o caso de Guerreiro Ramos. Sociologia & Antropologia, 2/4,
p. 265-291.
Maia, João Marcelo Ehlert. (2011). Ao sul da teoria: a atua-
lidade teórica do pensamento social brasileiro. Sociedade
e Estado, 26/2.
Oliveira, Lúcia Lippi. (1995). A sociologia do Guerreiro. Rio
de Janeiro: Editora da UFRJ.
Ramos, Alberto Guerreiro. (1996) [1958]. A redução socioló-
gica. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
Ramos, Alberto Guerreiro. (1995) [1955]. Introdução crítica
à sociologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
Ramos, Alberto Guerreiro. (1966). Administração e estratégia
do desenvolvimento: elementos de uma sociologia especial da
administração. Rio de Janeiro: Editora da FGV.
Ramos, Alberto Guerreiro. (1963). Mito e verdade da revolu-
ção brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Ramos, Alberto Guerreiro. (1961). A crise do poder no Brasil
(problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro:
Zahar Editores.
teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de guerreiro ramos

1048

Ramos, Alberto Guerreiro. (1960). O problema nacional do


Brasil. Rio de Janeiro: Editora Saga.
Ramos, Alberto Guerreiro. (1953). O processo da sociologia
brasileira. Rio de Janeiro: [s.n.].
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1025 – 1049 , set. – dez., 2021
artigo | christian edward cyril lynch e pedro paiva marreca

1049

Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na


obra de Guerreiro Ramos: o pensamento político
(1955-1958)
Palavras-chave Resumo
Guerreiro Ramos; O artigo analisa os textos produzidos por Guerreiro Ramos
pensamento político brasileiro; entre 1955 e 1958; período no qual ele se volta para o estu-
ideologia. do do pensamento político brasileiro. Tratou-se de uma se-
gunda etapa do projeto de pesquisa do autor, voltado para
a elaboração de uma ciência social de caráter pós-colonial
aplicada ao Brasil. Esse projeto começara no Ibesp, quando
ele formulara estudos críticos sobre o pensamento social
brasileiro. Uma vez vinculado ao Iseb, ele redirecionou sua
pesquisa para a história do pensamento político brasileiro,
no intuito de completar sua teoria da sociedade brasileira
com uma ideologia do desenvolvimento nacional. A adoção
de um método histórico-sistemático para analisar os textos
permitiu apreender os elementos de continuidade entre as
duas fases da pesquisa. Essa perspectiva diacrônica de aná-
lise contempla a dimensão sistemática da obra do autor
não perceptível em análises focalizadas unicamente na re-
constituição lógica de sua teoria.

Post-colonial theory and Brazilian thought in


the work of Guerreiro Ramos: political thought
(1955-1958)
Keywords Abstract
Guerreiro Ramos; The article analyzes the texts produced by Guerreiro Ramos
Brazilian political thought; between 1955 and 1958; period in which he turns his efforts
Ideology. to the study of the Brazilian political thought. It was a
second stage of the author’s research project, focused on
the elaboration of a post-colonial social science applied to
Brazil. This project had started at IBESP, where he had
elaborated critical studies on Brazilian social thought. Once
he joined the ISEB, he redirected his research to the his-
tory of Brazilian political thought, in order to complete his
theory of Brazilian society with an ideology of national
development. The adoption of a historical-systematic
method to analyze the texts allowed us to apprehend the
elements of continuity between the two phases of the re-
search. This diachronic perspective of analysis contem-
plates the systematic dimension of the author’s work, what
is not perceptible in analyzes focused solely on the logical
reconstruction of his theory.
1050
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11313

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Núcleo de Estudos de


Desigualdades e Relações de Gênero (Nuderg)/Fundação de Amparo à
Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
castromg@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0002-4774-3130

Mary Garcia Castro I

PÓS-COLONIALISMO E DECOLONIALIDADES:
ETNICIDADE, REPRODUÇÃO, GÊNERO E
SEXUALIDADE – VOZES DA ÁFRICA – NOTAS
A PARTIR DE UM CONHECIMENTO EM CURSO

Esta peça tem o estatuto de notas sobre a construção de um conhecimento que


se pretende decolonial, a partir da experiência de um curso de pós-graduação
(o Curso), realizado no segundo semestre de 2019. 1
O objetivo do Curso foi delinear os temas pós-colonialismo e decolonia-
lidade, focalizando debates sobre esses por entrelaces com outros como etnici-
dade, reprodução, gênero e sexualidade, por referências a autores das ciências
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

sociais e considerando suas representações em romances de autoras africanas,


traduzidas ao português, o que orientou a seleção de autores a ser focalizados
pelas alunas nos seminários. Selecionaram-se sobretudo, entretanto, romances
que focalizassem maternidade, família e gênero, assim como cosmopercepções
étnicas sobre tais temas e conflitos com ideário colonial e religioso ocidental,
mas que também se referissem a tempos e espaços diversos na África pré-colo-
nial, colonial e pós-colonial.
No Curso, após tal recorrido, debates temáticos e os romances, chegamos
à apresentação de autoras brasileiras que discutem “legados africanos”, consi-
derando herança afrocultural e espiritual, importância do sagrado − tópicos
comumente silenciados ou desvalorizados no nível docente − e a contribuição
de enfoques sobre etnicidade para o resgate de tal herança, como desafia San-
tana (2017b). Aportamos em autoras que destacam a importância de nexos
cognitivos entre a produção africana e latino-americana para melhor entender
a singular importância e diversidade do povo negro, os/as escravizados/as, em
resistências às colonialidades do saber, do ser e do poder (conceitos desenvol-
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1052

vidos entre outros por Quijano, 2000, no âmbito do debate sobre decolonialida-
de). Referimo-nos a Gonzalez (2019a) e Nascimento, (2018).
Note-se que um dos autores pioneiros do pensamento decolonial foi o
sociólogo Aníbal Quijano em finais dos anos 90 (ver sobre a trajetória inicial de
tal pensamento em Ballestrin, 2013). De Quijano o conceito de “colonialidade
do poder”, enfatizando raça como construto da modernidade, em que relações
assimétricas entre colonizadores e colonizados seriam justificadas em nome
da não humanidade dos colonizados, os de pele escura, e teriam colaborado
para a acumulação de riquezas e avanços, até no plano do conhecimento em
centros da ‘intrusão colonial, e a reprodução desse processo. Ballestrin (2013)
indica que o conceito de colonialidade do poder foi ampliado por Mignolo em
2010, a partir da elaboração original de Quijano em 1992, “considerando distin-
tos controles da natureza e dos recursos naturais”. Assim ter-se-ia:
— controle da economia;
— controle da autoridade;
— controle do poder − controle da natureza e dos recursos naturais;
— controle do gênero e da sexualidade; e
— controle da subjetividade e do conhecimento.
É no plano da lida com o controle da subjetividade e do conhecimento
que as resistências ou decolonialidades mais viriam entusiasmando acadêmi-
cos e ativistas ou conseguindo mais realizar alguma virada epistemológica.
A denúncia da dependência cognitiva a eurocentrismos enriquece os
debates sobre colonização apresentados por autores da decolonialidade, ainda
que haja mais do que discutir o que seria eurocêntrico e o que teria o aval de
acervo civilizatório positivo, assim como a importância de redes de conheci-
mento, em especial para o feminismo, o que pede mais traduções ou adaptações
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

críticas do que censuras. Ora, segundo autoras da perspectiva decolonial, como


Oyèwùmí (2005), Lugones (2008) e Segato (2010), também o conceito de gênero
traria marcas eurocêntricas, como o apelo à universalidade, ocultar diversida-
des impostas por intersecções de raça e classe e não considerar como a colo-
nização implicou racializações e desumanizações do/a outro/a, afetando pa-
drões de sexualidade e realizações do patriarcado, e impondo agendas. Tais
temas têm nos romances selecionados para o Curso ricas referências que bem
ilustram histórias que subvertem aquelas marcas, até apelando para doxas em
que o racional e o mágico se combinam, indicando que poderes no feminino
implicariam resistências além do factual. É quando a mãe, em Emecheta (2017),
ao passar para o plano de ancestral, uma encantada, impõe singular forma de
vingança, não atendendo aos pedidos de fertilidade que lhe são feitos. É quan-
do O alegre canto da perdiz, de Chiziane (2018) apresenta pontos de vista de
mulheres negras, em período de dominação portuguesa em Moçambique, e seus
enfrentamentos ao “invasor” − a Igreja, o soldado e o capital −, por estratégias
e feitiços que fogem do “politicamente correto’” no ideário ocidental sobre gê-
artigo | mary garcia castro 

1053

nero. Nesse romance, por exemplo, os personagens “Delfina e João dos Montes
se casam para matar a paixão” (Chiziane, 2018: contracapa).
Em Quijano (2000) a ênfase na diferença de sentidos da modernidade
para a Europa e as regiões colonizadas se associaria às relações de dependên-
cia e de exploração das colônias. Destacamos desse autor o acento na relação
entre a vida material, as relações intersubjetivas e sua representação subjeti-
va, legitimada por saberes:

Com a América inicia-se, assim, todo um universo de novas relações materiais


e intersubjetivas. É pertinente, por tudo isso, admitir que o conceito de moder-
nidade não se refere somente ao que ocorre com a subjetividade, não obstante
toda a tremenda importância desse processo, seja pela emergência do ego indi-
vidual, ou de um novo universo de relações intersubjetivas entre os indivíduos
e entre os povos integrados ou que se integram no novo sistema-mundo e seu
específico padrão de poder mundial. O conceito de modernidade dá conta, do
mesmo modo, das alterações na dimensão material das relações sociais. Quer
dizer, as mudanças ocorrem em todos os âmbitos da existência social dos povos,
e, portanto, de seus membros individuais, tanto na dimensão material como na
dimensão subjetiva dessas relações. E como se trata de processos que se iniciam
com a constituição da América, de um novo padrão de poder mundial e da inte-
gração dos povos de todo o mundo nesse processo, de todo um complexo sistema-
mundo, é também imprescindível admitir que se trata de um período histórico
inteiro (Quijano, 2000: 125).

Outros autores relacionados ao movimento decolonial − como os do de-


nominado movimento Modernidade/Colonialidade (ver Ballestrin, 2013) − mais
elaboraram o conceito de “colonialidade do saber”, considerando que a colo-
nialidade do poder teria como um pilar a ideia de uma Europa superior − o
ocidentalismo. Assim, para Lander (2005: 8-9), as próprias ciências sociais seriam
coadjuvantes da colonialidade do saber/poder: “Nesse processo de construção
da imagem da sociedade liberal como sinônimo de avanço e progresso, as ci-
ências sociais operaram, a partir de seus pretensos métodos de objetividade e
neutralidade, como fundamentais instrumentos de naturalização e legitimação
dessa ordem social”. A decolonialidade do saber pede um deslocamento do
olhar, considerando sentidos étnico-culturais, o que bem se encontra em ro-
mances como os de Emecheta (2017), Mukazonga (2016 e 2006), Tavares (2011)
e Chiziane (2018 e 2013), entre outros do Curso.
A decolonialidade do saber pede estar atento a vozes, narrativas relata-
das a partir de experiências locais e legados de histórias ancestrais. O que
colaboraria com resistências, rupturas com projetos globais e ajudaria a trans-
por o universalismo abstrato da epistemologia moderna. Esse seria o projeto
do “giro decolonial”, como cunhado por Maldonato-Torres (Bernardino-Costa;
Maldonado-Torres & Grosfoguel, 2018), que questiona o que chama de conhe-
cimentos eurocêntricos e linguagens fundadas em um imaginário colonial. Pon-
to que é desenvolvido nos escritos da feministas com perspectiva decolonial,
como María Lugones (2019) e Rita Segato (2010), e, já muito antes das formula-
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1054

ções enunciadas como decoloniais, por Lélia Gonzalez (2018: 329), que propõe
busca por um conhecimento “político-cultural da amefricanidade”: “Para além
do seu caráter puramente geográfico, a categoria de amefricanidade incorpora
todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistên-
cia, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada”.
Considerando que a dinâmica cultural a que se refere Gonzalez (2019b
vai além da adoção de modelos pretéritos, calcados em heranças pré-coloniais
ou formas de resistências, mesmo em tempos pós-coloniais, mas que “a criação
de novas formas” resgata, adaptando ou negando experiências, modelou-se um
Curso, interessado em mais conhecer representações sobre Áfricas, relações
sociais várias aí, em especial no campo de gênero e de processos de colonização,
considerando alguns grupos étnicos, ou seja, na micro e macropolítica, a partir
de sujeitos específicos: mulheres romancistas com dupla inserção cultural. Elas
são de países africanos, resgatam tradições étnico-político-culturais diversifi-
cadas, em alguns casos combinam biografia com história de formação da nação,
destacando colonização e resistências pelas mulheres e são herdeiras da tra-
dição griô. São contadoras de estórias, mas foram educadas em centros univer-
sitários de países cêntricos e muitas aí vivem.
Insiste-se, a “decolonialidade do saber” é projeto caro nos debates com
perspectiva decolonial, que destacam a importância de espaço para vozes não
eurocêntricas nas universidades e entrelace de saberes, como os academica-
mente legitimados e aqueles que encarnam vivências comunitárias e heranças
culturais de povos originais e escravizados. Considerando autoras, em especial
feministas, latino-americanas e africanas, sobre pós-colonialismo e decoloniali-
dade, no Curso se analisam romances de autoras africanas e se o desenha como
busca por uma experiência crítica à colonialidade do saber. Tal objetivo, porém,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

não necessariamente foi plenamente realizado no Curso, já que a combinação


de textos diversos por distintas linguagens pedia mais tempo que o disponível;
por isso insistimos em se tratar de um conhecimento em curso que se desenha
combinando saberes alternativos, ou seja, além de textos do campo das ciências
sociais, se explora a produção afrodiaspórica de mulheres romancistas para
mais conhecer Áfricas e formatações diversificadas sobre gênero, feminismo e
sexualidades, por múltiplas vozes; resgatam-se identidades culturais negadas e
se estimula pesquisar maternidade além da comum perspectiva sobre o privado,
mas como construto de reprodução social. Aposta-se também na potencialidade
do entrelace entre ciências sociais e literatura, tema que conta com vasta biblio-
grafia (ver entre outros Bauman & Mazzeo, 2016 e Eagleton, 2019).
É importante ressaltar que a relação entre sociologia e literatura é ela
própria controversa. Conforme salientam Botelho e Hoelz (2016), por vezes, li-
teratura e sociedade são tratadas como instâncias externas uma à outra, des-
favorecendo assim uma perspectiva que parta da relação mútua estabelecida
entre elas. Considerando que as obras literárias são, ao mesmo tempo, produ-
artigo | mary garcia castro 

1055

tos e produtoras dos contextos de que fazem parte, os autores sugerem pensar
essa relação menos em termos de reflexo e mais a partir de um “paradigma da
reflexividade”, posição essa que

Implica a discussão não somente de novas formas de compreensão sociológica


do literário (isto é, do artístico), como vem sendo feito, mas também da própria
vida social como compreendendo tanto estruturas e recursos materiais quanto
imateriais. E de como estes últimos, em interação contingente com os primeiros,
podem ou não inf luenciar a ordem social da qual fazem par te e também são
elementos relevantes para as possibilidades de ação coletiva e mudança social.
No centro dessa problemática, coloca-se a necessidade de se completar o movi-
mento analítico caracter ístico da sociolog ia da literatura como devedora das
premissas fundamentais da sociolog ia do conhecimento, seg undo as quais a
literatura é socialmente construída, para buscar modos consistentes de demons-
tração de que ela também participa da construção da sociedade. A questão da
“ref lexividade social” pode ser entendida, nesse sentido, como o reconhecimen-
to de que diferentes formas de conhecimento sobre o social têm consequências
práticas para a sociedade ou, ainda, que as práticas sociais são afetadas pelo
constante reexame a que são submetidas com base em informações produzidas
sobre elas (Botelho & Hoelz, 2016: 280-281).

Nesse escopo, as obras literárias africanas foram tomadas com base na


premissa de que “o papel da literatura na produção da representação cultural
não deve ser ignorado” (Spivak, 2002: 12). Mais do que isso, entretanto, suben-
tende-se que o próprio ato de as apreender como objeto de estudo já é, por isso
só, uma forma (pós-colonial/decolonial) de engajamento. No Curso, exploramos
intenções, navegando por histórias de cientistas sociais e estórias de contares
femininos sobre Áfricas. Interessou-nos pensar não somente a estrutura interna
das obras – suas narrativas, tramas, personagens –, como também as relações
sociais que as perpassavam, refletindo sobre os impactos dessas análises para
a construção de uma perspectiva pós-colonial/decolonial. O que estava em jogo
era tanto as representações ali contidas – as estratégias narrativas, seus efeitos
e contradições – quanto as possibilidades de se pensar e agir sobre o mundo a
partir e por meio daquelas estórias. Como parte constitutiva e constituinte do
universo simbólico que forma a sociedade, a literatura foi trabalhada menos do
que um ponto de partida (para se pensar a sociedade) ou um ponto de chegada
(para aplicação das teorias estudadas ao longo do Curso): era, sobretudo, um
espaço de experimentação, de reflexão e de construção do “novo”.
Apresentamos referências do Curso, considerando os seus oito blocos
disciplinares e nos dando conta de que o Curso se realizou como um exercício
de aprendizagem mútua com a turma. Surpreendeu-nos o modo como os de-
bates teórico-conceituais de cientistas sociais mais se afinavam nas discussões
das narrativas literárias, assumidas como o campo empírico, uma vivência pró-
xima, com indagações comuns por enlaces de gênero e raça, por identificação
com “saberes localizados”, como Messeder (2016) se refere ao discurso de Mãe
Stella de Oxóssi (2013), na ocasião da sua posse na cadeira de número 33 da
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1056

Academia de Letras da Bahia, ou seja, saberes que remetem a origens silencia-


das e falam de “eus” referenciados a legados. Segundo Mãe Stella de Oxóssi
(Messeder, 2016: 11):

Não sou uma literata ‘de cathedra’, não conheço com profundidade as nuanças
da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares
e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma men-
te formada pela líng ua portug uesa e pela líng ua yorubá. Sou bisneta do povo
lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carre-
go em mim todas as cores. Sou brasileira. Sou baiana. A sabedoria ancestral do
povo africano, que a mim foi transmitida pelos ‘meus mais velhos’ de maneira
oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que
não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo. Compromisso
continua sendo a palavra de ordem. Ela foi sentenciada por Mãe Aninha e eu a
acato com devoção. Em um dos artigos que escrevi, eu digo: Comprometer-se é
obrigar-se a cumprir um pacto feito, tenha sido ele escrito ou não. O verbo obri-
gar, que tem origem no latim obligare, significa unir.

A intenção − anunciando o curso


A intenção do Curso foi acessar debates críticos sobre a modernidade, saindo
de paradigma desenvolvimentista e eurocêntrico, com ênfase no que se vem
destacando como saberes pós e decoloniais. Considerando corpos de conheci-
mento sobre o outro pelo outro, ou melhor a outra, combinaram-se saberes, em
especial de autores, autoras africanas, que investem em outra doxa, como em
romances, o que extravasa a razão fatual, legitimando o imaginário; o que des-
taca o complexo etnicidade e raça no processo de se fazer nação e que, no
caso de África, adverte que há que ir mais além do mapeado na literatura oci-
dental, por exemplo, como família, continente ou país. Ilustra tal chamada a
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

crítica de Oyèronké (2005) ao feminismo ocidental, que segundo essa autora


decolaria da família nuclear, enquanto em etnias como a igbo e a yoruba o
conceito de família seria flexível, a depender dos vínculos etários e conjugações
de autoridade e ancestralidade, o que, em muitos casos, desafiaria a centrali-
dade de conceito caro ao feminismo ocidental, o de patriarcado. Alguns roman-
ces como os de Chimamanda Ngozi Adichie e Scholastique Mukasonga, tendo
como cenário a primeira a formação e queda de Biafra e sua resistência, inclu-
ída a simbólica, sendo referência para muitos nigerianos mesmo depois que
aquele projeto de país foi dizimado, e a segunda o modo como os conflitos
entre as etnias tutsi e interesses de potências como a França, resultando no
massacre de Ruanda, colocam em xeque a ideia da África como um continente
uno e Ruanda como um país delimitado por fronteiras instituídas pelos colo-
nizadores. Essas são ilustrações de conhecimento que busca o diverso e mode-
lado pelos vencidos, ou seja, desmitificador da colonialidade do saber.
A ancestralidade, os vínculos parentais e o grupo étnico impõem normas
de relações sociais, incluindo as de gênero, fronteiras culturais sinalizadoras
de narrativas que não necessariamente autorizam representações sobre o pré-
artigo | mary garcia castro 

1057

colonial, o colonial e o pós-colonial, por trajetórias que enfatizam uma África


quer exótica ou selvagem, quer idílica. Uma doxa que adverte não serem sexu-
alidade, gênero e religião necessariamente assuntos de micropolítica, mas,
como bem reflete Mbembe (2001, 2018), por exemplo, que podem colaborar com
violências de Estado, em “necropolíticas”, assim como a reprodução do cotidia-
no potencializa moto de sustentação de sistemas opressivos, em especial para
as mulheres, em nome do amor, do costume e da tradição, como sugere Fede-
rici (2017). Nessa linha, foram endereçados no Curso romances que destacam
a obrigatoriedade de a mulher ser mãe para se realizar socialmente, cumprir
costumes e sua subversão de sentidos, por mulheres, instituindo formações
matriarcais territorializadas, na casa e na comunidade, e apelando para o poder
do saber mágico (por exemplo, Yaa Gyasi, 2016; Ayòbami Adébayo, 2018; Buchi
Emecheta, 2017).
As resistências, porém, estão em contares que rompem fronteiras disci-
plinares, quando as estórias de escritoras da África diaspórica, ao tempo que
são narrativas biográficas ou de personagens imaginados, alimentados na he-
rança de griôs, em rodas de fogueira dos ancestrais, são histórias de afetos e
de violências, muitas que, se não se originaram com a colonização, em muito
se acentuaram quando balas e bíblias se aliaram em biopolítica de terra/corpos
arrasados e que, em período pós-colonial, se reproduzem por delegação aos
“negros no poder”(ver Mbembe, 2001).
No Curso acessaram-se vozes da África, as polêmicas com feminismos
tidos como eurocentrados (ver Oyèwùmí, 2008); investiu-se em conhecer como
movimentos queer na África desestabilizam a ideia de uma África homogene-
amente homofóbica e passiva (Rea, Paradis & Amâncio, 2018). Refletiu-se com
autores do campo de estudos pós e decoloniais e se estudou o modo como
pioneiras do feminismo interseccional no Brasil, como Lélia Gonzales e Beatriz
Nascimento, investiram em uma “Amefricanidade” (conceito desenvolvido por
Lélia Gonzales) e no resgate do “saber de luta quilombola” (expressão de Beatriz
Nascimento), o que significa ir além de afinidades idealizadas ou ancoradas na
melanina. A ideia foi aprender que lugar de fala pede lugar de escuta, da nossa
herança maior, para saberes decoloniais Sul-Sul.
A bibliografia do Curso, destacada aqui nas Referências, foi farta, mas não
exaustiva e selecionada por afinidades; pedia, portanto, questionamentos e não
leitura acrítica. Orientamo-nos pela intenção de incentivar que se fosse além do
Curso, o que de fato se conseguiu, considerando que, nos trabalhos finais, não
se limitaram as alunas à bibliografia discutida. Reconhece-se, contudo, que o
tempo de curso (um semestre) foi pouco para o aprofundamento na literatura
sugerida. O Curso foi construído combinando aulas que mais focalizaram um ou
dois textos e seminários e trabalhos participativos que recorressem especial-
mente a romances e fizessem a ponte entre eles e os debates oriundos das ci-
ências sociais. Assim exploraram-se os seguintes eixos temáticos:
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1058

1.Etnicidade
2. O “giro decolonial”, lugar da raça
3. Pós-colonialismo – economia política, lugar do gênero, da sexualidade
e do biopoder – violências
4. Contribuições feministas ao debate sobre decolonialidade – vozes nas
Américas
5. A reprodução da vida – conceito com potencialidades para construção
de um pensamento crítico feminista decolonial
6. Exorcizando eurocentrismos em gênero – Críticas de pensadoras/es
de países africanos
7. Vozes da África no feminino. Romances da diáspora (seminários por
alunas participantes)
8. Saber desde a sexualidade e do sagrado, Brasil
9. Pensamento afrodiaspórico no feminino – pioneiras, Brasil: Lélia Gon-
zalez e Beatriz Nascimento

O curso do Curso, entrelaces conceituais


A seguir serão abordadas referências a alguns conceitos centrais do Curso, co-
mo etnicidade, raça e decolonialidade em perspectiva feminista, considerando
entrelaces e autores discutidos.
Iniciou-se o Curso com panorâmica sobre o debate do conceito de etni-
cidade em distintos autores (ver Castro, 2018), privilegiando a formatação teó-
rico-política, sugerida por Carneiro da Cunha (2017: 249), como segue:

Recapitularei um pouco – não será inútil, o que andei dizendo. Tentei mostrar
que a etnicidade pode ser mais bem entendida se vista em situação, como uma
forma de organização política; essa perspectiva tem sido muito fecunda e tem
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

levado a considerar cultura como algo constantemente reelaborado, despojando-


-se, portanto, esse conceito do peso constituinte de que já fora revestido [...] et-
nicidade não seria uma cultura analítica, mas uma cultura ‘nativa’.

Se afirmou a propriedade de debates sobre etnicidade e grupos étnicos


para a intenção de desmitificar homogeneidades e totalizações quando discu-
tindo nações, em especial na África. De fato, os romances focalizados no Curso
bem indicam diversidade de cosmovisões, práticas, sistemas de parentesco,
conjugalidade, e o lugar da mulher em etnias como a dos tutsi em Ruanda
(Mukazonga, 2017a, 2017b, 2016 e 2006); dos igbo (Emecheta, 2017, 2018, 2019;
Ngozi Adichie, 2008, 2009a, 2009b ); e dos yoruba (Adébáyo, 2018) na Nigéria; e
a etnia tzonga, em Moçambique (Chiziane, 2018 e 2013). Identidade, tradição e
fronteiras étnicas constituem conceito acionado na crítica a eurocentrismos
quando a referência é gênero, como o faz Oyèronké (2000, 2005, 2018), ao indi-
car, entre outros argumentos, que ancestralidade e sistemas de parentesco não
restritos à família nuclear teriam mais força identitária também nas relações
sociais entre sexos para a maioria dos grupos étnicos em países africanos.
artigo | mary garcia castro 

1059

O conceito de etnicidade se revela básico igualmente para o debate sobre


colonialismo, pós-colonialismo e decolonialidade. Noções de tribo e etnia foram
usadas pelos colonizadores para desumanizar os africanos, tidos como selva-
gens que se matariam uns aos outros por defesas de identidades étnicas, margi-
nalizando o estatuto conceitual de etnia como “categoria histórica” relacionada
a formas de pertença e, portanto, dinâmica. Segundo Amselle e M’Bokolo (2017
11), no prefácio do livro No centro da etnia. Etnias, tribalismos e Estado na África,

Alguns de nós estávamos cansados, no início dos anos de 1980, da vulgata jor-
nalística que consistia e ainda consiste em explicar um acontecimento qualquer
ocorrido no continente africano como ‘conf lito tribal’ ou ‘luta étnica’ remetendo
a uma espécie de selvageria essencial que apenas teria sido interrompida por
um breve período, o da colonização europeia.

Chrétien (2017: 179) demonstra que os hutu e os tutsi em Ruanda não


se distinguiriam “nem pela língua, nem pela cultura, nem pela história, nem
pelo espaço geográfico ocupado”; clivagens entre essas etnias, contudo, foram
se aprofundando, até estimuladas pelo imperialismo colonial e o cristianismo,
que representavam os tutsi, mais ‘claros’, como descendentes das figuras bí-
blicas Cam e Sem. Em literatura europeia do período 1930-1960, os tutsi eram
representados como relacionados aos egípcios e culturas pastoris, e como su-
periores aos hutu, agricultores, os “negros”. Segundo o padre François Ménard
em 1917 (Chrétien, 2017: 179), “o tutsi é um europeu sob uma pele negra”.
Já em tempos pós-coloniais, ou seja, pós-independência de Ruanda e
Burundi, a depender de seus interesses, belgas, franceses e alemães apoiavam
politicamente, incluindo armamentos, ora os tutsi, ora os hutu. Os belgas, ali-
ás, com a participação da Ação Católica colaboraram ativamente a partir da
década de 1950 para o empoderamento dos hutu, considerando a preocupação
europeia em “frear a ascensão dos nacionalismos, que atingia o Ruanda e o
Burundi [em que os tutsi eram protagonistas] e de barrar o caminho ao comu-
nismo” (Chrétien 2017: 200), o que, para a Igreja, era associado a manifestações
anticolonialistas.
No genocídio dos tutsi pelos hutu em 1994, registra-se a participação
dos colonizadores, com silenciamento criminoso incluído:

Alguém tentou pará-los [os hutus]? ONU e Bélgica tinham forças de segurança
em Ruanda, mas não foi dado à missão da ONU um mandato para parar a matan-
ça. Um ano depois que soldados norte-americanos foram mortos na Somália, os
Estados Unidos estavam determinados a não se envolver em outro conf lito afri-
cano. Os belgas e a maioria da força de paz da ONU se retiraram depois que 10
soldados belgas foram mortos. Os franceses, que eram aliados do governo hutu,
enviaram militares para criar uma zona supostamente segura, mas foram acu-
sados de não fazer o suficiente para parar a chacina nessa área. O atual governo
de Ruanda acusa a França de ligações diretas com o massacre − uma acusação
negada por Paris (BBC, 2014).
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1060

Note-se que Scholastique Mukasonga (2017a) no romance A mulher de


pés descalços ilustra como práticas de mulheres tutsi, confinadas em uma área
de refugiados, onde a população estava predestinada, como o foi, a ser exter-
minada pelos hutu, e, assim, colabora para a sobrevivência, pelo culto a tradi-
ções materiais e psicológicas da comunidade. A tese defendida por Federici
(2019a, 2019b), via debate teórico e pesquisas histórico-sociológicas, de que as
mulheres foram e são elemento básico para a reprodução não somente de suas
famílias e comunidades, mas do sistema macrorreferido, tem ilustrações exis-
tenciais nos romances explorados no Curso (ver destaques nas Referências).
O embaralhamento entre memórias, vidas vividas e estado de nações é
característica da produção de autoras afrodiaspóricas, em romances que tes-
temunham a reprodução da vida, bem como são constantes a ênfase na mater-
nidade e o enfrentamento à reprodução de violências de várias ordens. Em
Leal e Castro (2018: 379), referências ao romance A mulher de pés descalços re-
alçam tais dimensões:

Vozes femininas da África trazem outras ilustrações do matriarcado em nações


dominadas pelo patriarcado e o colonialismo.

O relato de Scholastique Mukasonga (2017) sobre maternidade e o feminino des-


taca como sua mãe modelou proteção, esconderijos territoriais e anímicos, por
trabalho de sobrev ivência e afetos para seus f ilhos, sua família e contr ibuiu
para a vida em comunidade de refugiados da etnia ruandense, tutsis, sob a cons-
tante ameaça e violências dos soldados da etnia inimiga hutus, antes do geno-
cídio que contou com o apoio e o beneplácito das forças coloniais e as nações
soberanas no cenário internacional de 1994.

Narrativa emblemática do ápice do “necropoder”, [segundo Mbembe] ‘um poder


que embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

mártir e liberdade’ [Ver sobre necropoder, Mbembe, 2018: 71].

Scholastique Mukazonga (2017a: 153-154), assim termina o romance so-


bre sua mãe, que vivenciou o exílio no território de desterro e que com cerca
de outros 30 membros da família foi exterminada quando do genocídio de 1994:

Em 1994 , o estupro foi uma das ar mas usada pelo genocídio. Quase todos os
estupradores eram portadores do vírus HIV. Nem toda a água de Rwakibirizi e
de todas as nascentes de Ruanda teriam bastado para ‘lavar’ as vítimas da ver-
gonha pela per versidade que sofreram. Nem toda a água seria suficiente para
limpar os rumores que corriam dizendo que essas mulheres eram portadoras da
morte, e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi nelas próprias e nos
filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram uma fonte viva de
coragem e a força para sobrev iver e desaf iar o projeto de seus assassinos. A
Ruanda de hoje é o país das mães-coragem.

Autoras romancistas africanas, como Scholastique Mukazonga (2006,


2017a e b), que mais se refere ao genocídio de Ruanda, e Chimamanda Ngozi
Adichie (2008), que aborda a Nigéria pós-colonial e o massacre de Biafra, ilus-
artigo | mary garcia castro 

1061

tram também o ativo papel da Igreja, a católica e a protestante, na colonialida-


de do poder e do saber, conceitos esses que foram acessados por autores como
Quijano (2000), Lugones (2019) e Segato (2010), entre outros.
Resgataram-se também no Curso tal tema, a colonização de mentes e o
lugar da manipulação do sagrado, com os debates sobre a contemporaneidade,
focalizando-se Brasil, quando, com Santana (2017a: 108), se estudou o que essa
autora discute como “formação étnica cristianizada de docentes”.
O tema etnicidade também colabora para o estudo de resistências em
perspectiva decolonial e nele também se destacam raça e gênero, eixos que
perpassaram vários blocos temáticos do Curso, presentes, aliás, nos romances.
De fato, no feminismo decolonial enfatiza-se decolar formas de resis-
tência de distintas mulheres, conjugando raça e gênero, como aquelas de gru-
pos não tidos como sujeitos na/da história em leituras mais convencionais,
como os povos originais, os/as escravizados/as e os/as associados/as a “formas
não capitalistas de exploração − quero dizer: formas de exploração não cons-
titutivas do modo de produção capitalista − e ainda indispensáveis à domina-
ção capitalista” (Cahen, 2018: 49).
Ballestrin (2013), em uma panorâmica da perspectiva decolonial, consi-
dera, entre outros, trabalho pioneiro de Quijano (2000) e sua ênfase em raça
como categoria estruturante da modernidade, inaugurada segundo ele com o
‘descobrimento’ da América, a colonização e a desumanização e a exploração
do indígena e do negro.
De fato, uma das primeiras questões que sugere a perspectiva decolonial
é a desumanização do colonizado, por meio dos sistemas de raça e gênero
(Lugones, 2019).
No feminismo decolonial, parte-se da crítica a conceitos de desenvolvi-
mento ancorados em produtividade, extrativismo, competição, propriedade
privada, divisões sócio-sexuais do trabalho e marginalização da natureza; en-
fatiza-se a diversidade de sujeitos para outras histórias que não aquelas en-
caixadas em um neocolonialismo/imperialismo/capitalismo e, em especial,
recorre-se à noção de interseccionalidade entre raça, gênero e classe, focali-
zando resistências comunitárias, considerando sobretudo práticas de povos
andinos (Ver entre outros, sobre crítica aos conceitos de desenvolvimento ba-
seados em produtividade e extrativismo, em Barragan et al., 2016).
A perspectiva decolonial, como formulada por Quijano (2000), é amplia-
da por Lugones (2008, 2010, 2014) que, além de raça, enfatiza a íntima relação
entre sistema colonial de raça e de gênero. Lugones (2008) cunha o conceito de
“sistema colonial/moderno de gênero” no debate sobre a colonialidade do poder.
Raça, segundo Quijano (2000) seria uma categoria inventada para legiti-
mar a exploração colonial, inaugurando a modernidade, afirmando a superio-
ridade do poder, do saber e do ser (formas de vida) eurocêntricos. Lugones (2008)
aceita tal formulação, mas critica o modo como Quijano concebe gênero, não
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1062

criticando o viés heteronormativo e biológico, nem singularizando na coloni-


zação e hoje as mulheres negras e indígenas, ou seja, as não brancas.
Yuderkys Espinosa Miñoso (2016), em 2008 estudante de filosofia orien-
tanda de María Lugones e coorganizadora de uma das mais importantes publi-
cações no campo de estudos feministas decoloniais − Tejiendo de “otro modo”:
feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala (Miñoso, Muñoz &
Correal, 2014) −, assim se refere a María Lugones:

Para Lugones (2008 ), a divisão hierárquica e dicotômica entre humanos e não


humanos é a marca central da colonialidade ocidental. Desse modo, o conceito
de humanidade refere-se, de fato, a um tipo de humano − o homem branco eu-
ropeu. A autora argumenta que a missão civilizatória ocidental cristã se concen-
trou na transformação do não humano colonizado em homem e mulher, por meio
dos códigos de gênero e raça ocidentais (Costa, 2014). A partir dessas análises,
Lugones evidencia a impossibilidade de pensar uma crítica feminista que não
leve em consideração os mecanismos de dominação colonial racista (Miñoso,
2016: 12).

Yuderkys Espinosa Miñoso (2016) lembra que, além do feminismo negro,


como delineado por autoras norte-americanas, indígenas, e do feminismo co-
munitário relacionado a movimentos nas regiões andinas da América Latina,
a proposta de Lugones se orienta por aportes de Quijano, aceitando a crítica à
modernidade, em sua versão eurocêntrica, e sua defesa como produto da con-
quista e colonização, bem como sua ênfase na raça como estruturante de pro-
cessos sócio-econômico-político-culturais na América Latina. Argumenta que
a proposta do feminismo decolonial combinaria elaborações sobre classe com
a “crítica ao feminismo pós-estruturalista, ao essencialismo da categoria mulher
e à política de identidade” 2 e como a colonização na América Latina, calcada
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

no princípio de diferenças, legitimou violências e naturalizou um “sistema ca-


pitalista, heteropatriarcalista y racista que erige a Europa como centro de la
civilización”.
Lugones (2019) reflete sobre sentidos de termos aymaras que, traduzidos,
não expressariam o conteúdo de resistências situadas. Haveria, portanto, a
necessidade de cuidar do que chama de colonialidade da língua, já que “colo-
nialidade de gênero é vivida linguisticamente na tensão de feridas coloniais”
(Lugones, 2019: 360).
Também é em escritos de feministas decoloniais que se tem elaborações
de como a organização patriarcal, via a heterossexualidade compulsória, cola-
boraria com a colonialidade do poder por forças coloniais como a Igreja e o
Estado imperial, e como tais forças continuariam a colonizar corpos e mentes
hoje, reproduzindo via fundamentalismos e familismos, violências simbólicas
e outras contra mulheres e tidos como povos LGBTQ+.
Lugones (2019) defende a impossibilidade de pensar uma crítica femi-
nista que não leve em consideração os mecanismos de dominação colonial
artigo | mary garcia castro 

1063

racista. E enfatiza pesquisas considerando a relação raça e etnicidade, bem


como a importância de compreender cosmovisões nativas desde a lógica nati-
va, abandonando a ideia de uma mulher universal e buscando “aprender sobre
outros e outras que também resistem à diferença colonial”, já que a prática
decolonial pede busca de comunalidades de resistências.
Sobre perspectiva feminista decolonial, no Curso também se discutiu
texto de Rita Segato (2010). Essa antropóloga conta com reconhecido acervo de
pesquisas em diversas partes da América Latina no campo de estudos de gê-
nero, direitos humanos e políticas, como aquele sobre feminicídios em Ciudad
Juarez, no México, outro sobre a cultura yoruba e gênero, no Brasil e na África,
e mais recentemente com mulheres em territórios indígenas, no Brasil. Segato
(2010) discute vínculos entre patriarcado, violências que vitimizam mulheres,
racismo e colonização, ontem e hoje – colonialidades –, e o lugar do Estado em
tais processos. Discute ainda a complexa relação entre o que chama de mundo
da aldeia e o mundo do Estado.
Segato (2010) discorda de Lugones (2008) e de Oyèronké Oyèwùmí (2005)
que defendem a ideia de que o patriarcado e o sistema de gênero teriam che-
gado na América Latina e na África com a conquista e a colonização, e que não
fariam parte do período pré-colonial. Para ela “há uma grande acumulação de
evidências históricas e relatos etnográficos que mostram de forma incontestá-
vel a existência de nomenclaturas de gênero nas sociedades pré-intrusão” 3
(Segato, 2010: 77).
Segato (2010) desenvolve a tese de que o mundo Estado e o mundo aldeia
têm singularidades e que se entrelaçam, caracterizando o mundo aldeia como
palco de um “patriarcalismo de baixa intensidade”. Com a colonização, pelo
mundo Estado, instala-se no mundo aldeia um “patriarcalismo de alta intensi-
dade”, marcado por violências várias, como as de gênero. A autora, porém, ques-
tiona a possibilidade do isolamento do mundo aldeia, e trabalha, junto com
mulheres indígenas, para garantia de sua autonomia e de sua inscrição em
políticas sociais do mundo Estado:

A pergunta que surge é: Desde o longo processo de colonização europeia, o es-


tabelecimento do padrão de colonialidade, e o aprofundamento poster ior da
ordem moderna em mãos das Repúblicas, muitas delas tanto ou mais crueis que
o próprio colonizador de ultramar, poderia agora, subitamente, o Estado se reti-
rar? Apesar de que a colonialidade é uma matriz que ordena hierarquicamente
o mundo de forma estável, esta matriz tem uma história interna: há, por exem-
plo, não só uma história que instala a episteme da colonialidade do poder e da
raça como classificador, senão também uma história da raça dentro dessa epis-
teme, e também uma história das relações de gênero dentro mesmo do cristal
do patriarcado. Ambas respondem à expansão dos tentáculos do Estado moder-
nizador no interior das nações, entrando com suas instituições com uma mão e
com o mercado com a outra, desar ticulando, rasgando o tecido comunitár io,
levando ao caos e introduzindo uma desordem profunda em todas as estruturas
que aqui existiam e no próprio Cosmo (Segato, 2010: 150). 4
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1064

As alunas, debates e interesses


O Curso teve dez alunas. A maioria chegou como ouvinte de outras unidades
de ensino e de áreas diversas como direito, letras, sociologia, psicologia social,
política e antropologia, e com um comum interesse: acercamento a estudos
sobre gênero-raça e classe e certo mal-estar com caixas disciplinares, bem
como busca por conhecimentos indisciplinados, como leituras feministas de-
coloniais.
À pergunta feita na primeira aula, “Por que do interesse no curso?”, al-
gumas respostas das pós-graduandas bem sugerem tais inquietações episte-
mológicas e existenciais:

– Tenho interesse sobre gênero e nos debates sobre decolonialidade, consideran-


do o Brasil. Quero estudar branquitude.

– Mais conhecer sobre a intersecção gênero, classe e raça. Curso ciências políticas,
e não vemos muito sobre esse tema, e em especial quero ler sobre etnicidade. É
tema que só interessa a estudos sobre Áfr ica e povos tradicionais? Por que é
importante hoje?

– Primeira vez que vejo um programa de curso na área de ciências sociais apelar
para romances e de escritoras feministas negras. Venho de direito, lá nem pensar.

– É tanto tipo de feminismo, e agora mais esse “feminismo decolonial”, quero


conhecer a proposta.

– Fala-se muito em intersecção entre classe, raça e gênero, mas a ementa do


curso atrai porque parece que focaliza processos históricos, e que pensa sair do
lugar-comum.

– Parece que África está de moda, mas o foco do curso em etnicidade atrai para
mais conhecer diversidades culturais e olhares feministas, como das escritoras
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

afrodiaspóricas sobre uma África que nos chega, como diz a ementa do curso,
de forma idealizada por uns e tão negativa por tantos.

– Sei não, mas o curso me estimula indagar sobre minha ancestralidade; conhe-
cendo mais sobre o outro creio que mais nos conhecemos; nosso passado colonial
e colonialidades ou heranças coloniais.

A avaliação do Curso constava de fichamentos semanais das leituras,


apresentação em seminário do romance lido e apresentação de textos sobre
temas do curso, ao final.
Era comum em especial nos seminários e no trabalho final o recurso a
pesquisas próprias sobre dimensões dos romances, como a etnia de referência
e sua história, pré, durante e pós-períodos colonial, bem como comparações
com os debates sobre raça no Brasil. Outro tema comum foi como o feminismo
negro apresenta questões de gênero, maternidade e família, e em que medida
os romances focalizados colaborariam com tais debates, como, por exemplo, a
combinação patriarcado e matriarcado, este último exercido principalmente
no cuidado dos filhos e, muitas vezes, pela equação de provedora e cuidadora
artigo | mary garcia castro 

1065

comum às mulheres negras pobres no Brasil e personagens de romances como


os de Chiziane (2018) e de Emecheta (2017, 2018 e 2019). Foram ricas as reflexões
no coletivo aula sobre legados africanos, aproveitando a riqueza dos detalhes
sobre costumes étnicos e mudanças com o processo colonizador, em especial
pela repressão e imposição de parâmetros cristãos pela Igreja quando do perí-
odo colonial. Tal tema, assim como dispositivos de perspectiva feminista deco-
lonial sobre mudanças em padrões de masculinidade com a colonização e por
aí imposição da heteronormatividade (ver Lugones, 2008 e Segato, 2010), além
de ter amplas ilustrações em romances estudados (exempli gratia Emecheta,
2017) foi no coletivo aula referido a casos contemporâneos no Brasil, pesquisas
em desenvolvimento pelas alunas.
De fato, muitas fizeram pontes entre questões de gênero focalizadas nos
romances e situações vividas ou conhecidas, por lógica comparativa. Os títulos
de trabalhos finais ilustram combinações feitas pelas alunas entre ciências
sociais, literatura e corpos locais (histórico/geográficos e em gênero): “Crimi-
nalização por tráfico de droga. Necropolítica e herança colonial”; “O massacre
de Ruanda, colonização e resistências no feminino”; “Colonialidade, tecnologia
e computação. Iniciativas no movimento dos trabalhadores rurais sem terra –
legados africanos”; “Vozes da África. Debates de gênero, raça, etnia e classe: a
pluralidade de vozes em Meio sol amarelo”; A articulação do pensamento femi-
nista negro para uma resistência/agência à colonização de gênero/raça/classe”;
“Menos que humano, apenas uma mulher: Nossa Senhora do Nilo e o processo de
desumanização da Outra no conflito ruandês”, e “Feminismo negro no Brasil,
em que medida as romancistas africanas colaboram para essa perspectiva”

Notas quase finais


A relação entre intenção e gesto do “Curso Pós-colonialismo e Decolonialidades:
etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade – Vozes da África” é alinhavada
neste texto/notas, relacionando sua organização à proposta de feministas de-
coloniais, como as citadas, com ênfase no entrelace histórico, entre gênero e
raça, para um saber sobre uma outra história sobre modernidade e situações
em países do Sul, como em África e América Latina; no resgate de vozes subal-
ternizadas, suas estórias, contadas por autoras, no caso, afrodiaspóricas; no
cuidar dos limites de saberes disciplinares, demarcados por uma razão hege-
mônica, a da razão objetiva, que marginaliza o idealizado, o sacralizado, o ‘fan-
tasiado’ e por um corpo único, como o eurorreferenciado; no exercício da in-
terdisciplinaridade, no caso entre ciências sociais e literatura
Os seminários pelas alunas a partir dos romances de autoras afrodias-
póricas e seus trabalhos finais primaram pela combinação de suas análises e
das formulações mais teóricas, de caráter sociológico ou de outras áreas das
ciências sociais sobre colonialismo, pós-colonialismo e perspectiva decolonial
discutidas no Curso e em alguns casos pesquisas em outros textos, como sobre
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1066

o massacre de Ruanda, e comparações com casos no Brasil quanto a vivências


e representações sobre sexualidade e gênero.
Consideramos que foi positiva a metodologia pedagógica de combinar
saberes, debates informados pela história, antropologia, sociologia e filosofia
com peças de uma literatura singular, como a que transita por literalidade e
oralidade, estórias e histórias, o existencial, vivido e referenciado a tradições,
relações próprias de períodos pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais em terri-
tórios africanos, frisando resistências no feminino. Ficaram, entretanto, alguns
senões a mais considerar em outros cursos, como os riscos de simplificar temas
complexos que pedem, cada, uma disciplina em si, como o da pós-colonialida-
de, da modernidade/colonialidade e das diversas perspectivas feministas sobre
decolonialidade. A sensação é de que mais que apresentar tais temas em pro-
fundidade se despertou o interesse das alunas por perseguir leituras e outros
cursos sobre tais temas.
A crítica literária apresentada nos seminários pode se configurar como
heresia para os treinados em letras e literatura, pelo fato de ser informada
principalmente pelos debates de autores das ciências sociais, e por se orientar,
sem nenhuma instrução didática, pelo princípio feminista de que “o pessoal é
político”, já que as expositoras recorriam a paralelos entre os dramas dos per-
sonagens e casos vividos ou conhecidos.
De fato fica da experiência do Curso a ideia de que há que mais discutir
sobre linguagens próprias de cada disciplina, comum preocupação de debates
sobre interdisciplinaridade (Vasconcelos, 2002) e ser mais seletivo quanto a
temas e referências.
Entretanto se considera que a ambígua mistura propiciada pelos roman-
ces, sobre o eu, questões como mulheres em diversas relações, em especial de
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

gênero, se movem, e por debates contextualizados, sobre outros, outras, tão


idealizados e desqualificados como os conhecimentos relacionados a uma Áfri-
ca imaginada, colaborou para questionar colonialidades do saber, chamar a
atenção para limites da dita superioridade da razão ocidentalizada, o lugar até
do pensamento mágico, do sagrado e de outras lógicas culturais, como de al-
gumas etnias africanas referidas nos romances, e por incentivar buscas por
mais conhecer propostas de resistências étnicas em práticas diversas e assim
desestabilizar hegemonias em várias dimensões do ser, do poder e do saber,
postura tão necessária em tempos de ódios fundamentalistas e racializados.

Recebido em 13/02/2020 | Revisto em 02/03/2021 | Aprovado em 11/03/2021


artigo | mary garcia castro 

1067

Mary Garcia Castro é PhD em sociologia pela University


of Florida, pesquisadora visitante emérita Faperj/Uerj/
Nuderg, desde 9/2021; professora visitante no Programa
de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (3/2019 a
3/2021), professora aposentada da UFBA, pesquisadora da
Flacso-Brasil e coorganizadora dos dois volumes de
América Latina. Corpos, trânsitos e resistências. Desenvolve
pesquisa sobre trabalho doméstico remunerado,
feminismos e pós-colonialismo, e literatura assinada por
autoras africanas e afrodiaspóricas.
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1068

NOTAS
1 A referência é o “Curso sobre pós-colonialismo e decolo-
nialidades − etnicidade, reprodução, gênero e sexualida-
des” ministrado por Mar y Garcia Castro − com a colabo-
ração de Thays Monticelli, PhD em sociologia, pós-douto-
randa − no âmbito do Prog rama de Pós-g raduação em
Sociologia e Antropologia/IFCS/UFRJ, durante o segundo
semestre de 2019.
Agradeço a Thays Monticelli e às alunas que dele partici-
param a colaboração por ricos debates em sala. Também
agradeço a Thays Monticelli e Amanda Volotão − douto-
randa em sociologia, com formação em letras e também
aluna no Curso −, bem como a parecer istas da revista
Sociologia & Antropologia. Essas pessoas em muito contri-
buíram com seus comentários para a revisão do artigo
2 Criticas del feminismo posestructuralista, al esencialismo
de la categoría mujer y la política de identidad.
3 hay una gran acumulación de evidencias históricas y re-
latos etnográficos que muestran de forma incontestable
la existencia de nomenclaturas de género en las socieda-
des pre-intrusión.
4 La pregunta que surge es ¿Después del largo proceso de
la colonización europea, el establecimiento del patrón de
la colonialidad, y la profundización posterior del orden
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

moderno a manos de las Repúblicas, muchas de ellas tan-


to o más crueles que el propio colonizador de ultramar,
podría ahora, súbitamente, el estado retirarse? A pesar
de que la colonialidad es una matriz que ordena jerárqui-
camente el mundo de forma estable, esta matriz tiene una
historia interna: hay, por ejemplo, no solo una historia
que instala la episteme de la colonialidad del poder y la
raza como clasificador, sino también una historia de la
raza dentro de esa episteme, y hay también una historia
de las relaciones de género dentro mismo del cristal del
patriarcado. Ambas responden a la expansión de los ten-
táculos del Estado modernizador en el interior de las na-
ciones, entrando con sus instituciones en una mano y con
el mercado en la otra, desarticulando, rasgando el tejido
comunitario, llevando el caos e introduciendo un desor-
den profundo en todas las estructuras que aquí existían
y en el propio cosmos (Segato 2010: 15).
artigo | mary garcia castro 

1069

5 As referências no final assinaladas com ## integraram o


programa do Curso, e a numeração que se segue a esses
símbolos corresponde aos blocos em que ele se dividiu, a
saber: 1. Etnicidade; 2. O “giro decolonial”. Lugar da raça;
3. Pós-colonialismo – economia política, lugar do gênero,
da sexualidade e do biopoder – violências; 4. Contribui-
ções feministas ao debate sobre decolonialidade – Vozes
nas Américas; 5. A reprodução da vida – conceito com po-
tencialidades para construção de um pensamento crítico
feminista decolonial; 6. Exorcizando eurocentrismos em
gênero – pensadoras /es feministas e relacionados /as à
militância e ao debate queer em países da África; 7. Vozes
da África no feminino. Romances da diáspora (seminários
por alunas participantes) segundo grupo étnico e país re-
ferenciados; 8. O saber desde a sexualidade e o sagrado,
Brasil; 9. Pensamento afrodiaspórico no feminino – pio-
neiras, Brasil: Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento.

ReferÊncias 5

Adébáyo, Ayòbámi. (2018 ). Fique comigo. Rio de Janeiro:


Haper Collins. (##7 Nigéria – etnia yoruba)
Amadiiume, Ifi. (2005). Theorizing matriarchy in Africa:
kinship ideologies and de in Africa and Europe. In: Oyè-
ronké, Oyèwùmí (ed). African gender studies, a reader. New
York: Palgrave McMillan, p 83-98. (##6)
Amselle, Jean-Loup & M’Bokolo, Elikia (orgs.). (2017). No
centro da etnia. Etnias, tribalismo e Estado na África. Petró-
polis: Vozes.
Ballestrin, Luciana. (2013). América Latina e o giro deco-
lonial. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol /
n11/04.pdf. Acesso em 20 maio 2019. (##2)
Barragán, Margarita Aguinaga et al. (2016). Pensar a par-
tir do feminismo. In: Dilger, Gerhard; Lang, Mir iam &
Pereira Filho, Jorgel. Descolonizar o imaginário. Debates sobre
pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Pau-
lo: Fundação Rosa Luxemburgo (Grupo Permanente de
Trabalhos sobre Alternativas ao Desenvolvimento), p. 88-
121. (##4)
Bauman, Zygmunt & Mazzeo, Ricardo. (2016). O elogio da
literatura. Rio de Janeiro: Zahar.
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1070

BBC. (2014). Disponível em: http://www.bbc.com /portu-


g uese /noticias /2014 /04 /140407_ruanda_genocidio_ms -
7.4.2014. Acesso em 20 mar. 2018.
Bernardino-Costa, Joaze; Maldonado-Torres, Nelson &
Grosfoguel, Ramón. (2018). Introdução. In: Decolonialidade
e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, p.
9-26.
Botelho, André & Hoelz, Maurício. (2016). Sociolog ia da
literatura: do ref lexo à ref lexividade. Tempo Social, Revis-
ta de Sociologia da USP, 28/3, p. 263-287.
Cahen, Michel. (2018). O que pode ser e o que não pode
ser colonialidade: para uma aproximação ‘pós-pós-colo-
nial’ da subalternidade (Introdução). In: Cahen, Michel &
Braga, Ruy. Para além do pós(-)colonial. São Paulo: Alameda,
p 31-74.
Carneiro da Cunha, Manuela. (2017). Cultura com aspas e
outros ensaios. São Paulo: Ubu Editora.
Castro, Mary Garcia. (2018). Gênero e etnicidade, conhe-
cimentos de urgência em tempos de barbárie. Odeere, Re-
vista do Programa de Pós-graduação em Relações Étnicas e
Contemporaneidade, 3/6, p. 80-101. (##1)
Chiziane, Paulina. (2018 ). O alegre canto da perdiz. Porto
Alegre: Dublinense. (##7 Moçambique – etnia tzonga)
Chiziane, Paulina. (2013). Eu, mulher. Por uma nova visão
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

de mundo. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portu-


guesa e Africana da UFF, 5/10. (# #7 Moçambique – etnia
tzonga)
Chrétien, Jean-Pierre. (2017). Hutus e Tutsis no Ruanda e
no Burundi. In: Amselle, Jean-Loup & M’Bokolo, Elikia
(orgs.). No centro da etnia. Etnias, tribalismo e Estado na Áfri-
ca. Petrópolis: Vozes, p. 169-212.
Eagleton, Terr y. (2019). Como ler literatura. Porto Alegre:
L&PM.
Emecheta, Buchi. (2019). No fundo do poço. Porto Alegre:
Dublinense. (##7 Nigéria – etnia igbo)
Emecheta, Buchi. (2018 ). Cidadã de segunda classe. Porto
Alegre: Dublinense. (##7 Nigéria – etnia igbo)
Emecheta, Buchi. (2017). As alegrias da maternidade. Porto
Alegre: Dublinense. (##7 Nigéria – etnia igbo)
artigo | mary garcia castro 

1071

Federici, Silvia. (2019a). O feminismo e a política dos co-


muns. In: Buarque de Hollanda, Heloisa. Pensamento femi-
nista. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tem-
po, p. 379-396. (##5)
Federici, Silvia. (2019b). O ponto zero da revolução. Trabalho
doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante.
(##5)
Federici, Silvia. (2017). Colonização e cristianização. Ca-
libã e as bruxas no Novo Mundo. In: Calibã e a bruxa. Mu-
lheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, p.
378-418. (##4)
Gonzalez, Lélia. (2019a). A categoria político-cultural da
amefricanidade. In: Buarque de Hollanda, Heloisa. Pensa-
mento feminista. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Ba-
zar do Tempo, p. 341-354. (##9)
Gonzalez, Lélia. (2019b). Racismo e sexismo na cultura
brasileira. In: Buarque de Hollanda, Heloisa Pensamento
feminista brasileiro. Formação e contexto. Bazar do Tempo:
Rio de Janeiro, p. 237-258. (##9)
Gyasi, Yaa. (2016). O caminho de casa. Rio de Janeiro: Roc-
co. (##7 Gana)
Lander, Edgardo. (2005). Ciências sociais: saberes coloniais e
eurocêntricos. Buenos Aires: Clacso Livros, p. 21-53.
Leal, Fernanda & Castro, Mar y Garcia. (2018 ). A impor-
tância de outro lugar de escuta: autoras brasileiras e afri-
canas sobre maternidade e feminismo. In: Esteves de
Calazans, Marcia; Castro, Mary Garcia & Piñeiro, Emilia
(orgs.). América Latina, corpos, trânsitos e resistências. V. 1.
Porto Alegre: fi, p. 363-394.
Lugones, María. (2019). Rumo a um feminismo decolonial.
In: Buarque de Hollanda, Heloisa (org.). Pensamento femi-
nista. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tem-
po, p. 357-378. (##4)
Lugones, Mar ía. (2014). Radical multiculturalisms and
women of color feminisms. Journal for Cultural and Religious
Theory, 13/1, p. 68-80.
Lugones, Mar ía. (2010 ). Toward a decolonial feminism.
Hypatia, 25/4, p. 742-759.
Lugones, María. (2008). Colonialidad y género. Tabula Ra-
sa, 9, p. 73-101.
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1072

Mãe Stella de Oxóssi. (2013). Discurso de posse na cadei-


ra n. 33 da Academia de Letras da Bahia. Disponível em:
http://www.geledes.org.br/patrimonio-cultural/literario-
-cientifico/160-literatura/21030discurso-de-posse-de-mae-
-stella-de-oxossi-na-cadeira-n-33-da-academia-de-letras-
-da-bahia. Acesso em 3 set. 2019. (##8)
Mbembe, Achille. (2018). Necropolitica. Biopoder, soberania,
estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1. (##3)
Mbembe, Achille. (2001). On the post colony. Berkeley: Uni-
versity of California Press. (##3)
Messeder, Suely. (2016). A construção do conhecimento
científico blasfêmico ou para além disso nos estudos de
sexualidades e gênero. In: Irineu, Bruna Andrade (org.).
Diversidades e políticas da diferença: intervenções, experiências
e aprendizagens em sexualidade, gênero e raça. V. 1. Tocan-
tins: Eduft, p. 6-17. (##8)
Miñoso, Yuderkys Espinosa. (2016). De por qué es nece-
sario un feminismo decolonial: diferenciación, domina-
ción co-constitutiva de la modernidad occidental y el fin
de la política de identidad. Glefas Solar, 12/1, p. 141-171.
DOI. 10.20939 /solar.2016.12.0109.
Miñoso, Yuderkys Espinosa; Muñoz, Karina Ochoa & Cor-
real, Diana Marcela Gómez. (2014). Tejiendo de “otro modo”:
feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021

Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca.


Mukazonga, Scholastique. (2017a). A mulher de pés descal-
ços. São Paulo: Nós. (##7 Ruanda – etnia tutsi)
Mukazonga, Scholastique. (2017b). Nossa Senhora do Nilo.
São Paulo: Nós. (##7 Ruanda – etnia tutsi)
Mukazonga, Scholastique. (2016). Coeur tambour. Par is:
Folio/Gallimard. (##7 Ruanda – etnia tutsi)
Mukazonga, Scholastique. (2006). Inyenzi ou les cafards.
Paris: Folio/Gallimard. (##7 Ruanda – etnia tutsi)
Nascimento, Maria Beatriz. (2018). Quilombola e intelectual.
Possibilidades nos dias de destruição. Org. e ed. União dos
Coletivos Pan Africanistas, Diáspora Africana. Rio de Ja-
neiro: Editora Filhos da África. (##9)
Ngozi Adichie, Chimamanda. (2009a). No seu pescoço. São
Paulo: Companhia das Letras. (##7 Nigéria – etnia igbo)
artigo | mary garcia castro 

1073

Ngozi Adichie, Chimamanda. (2009b). Ibisco roxo. São Pau-


lo: Companhia das Letras. (##7 Nigéria – etnia igbo)
Ngozi Adichie, Chimamanda. (2008). Meio sol amarelo. São
Paulo: Companhia das Letras. (##7 Nigéria – etnia igbo)
Oyèronké, Oyèwùmí. (2018). Conceitualizando gênero: a
fundação eurocêntrica de conceitos feministas e o desa-
fio das epistemolog ias africanas. In: Bernardino-Costa,
Joaze; Maldonado-Torres, Nelson & Grosfog uel, Ramón
(orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Ho-
rizonte: Autêntica, p. 171-182. (##6)
Oyèronké, Oyèwùmí. (2005). Visualizing the body: wes-
tern theories and African subjects. In: Oyèronké, Oyèwù-
mí (ed). African gender studies, a reader. New York: Palgra-
ve McMillan, p. 3-22.
Oyèronké, Oyèwùmí. (2000 ). Family bonds /conceptual
binds: African notes on feminist epistemolog ies. Signs,
25/4 (Feminisms at a millennium), p. 1093-1098.
Quijano, Aníbal. (2000). Colonialidad del poder, eurocen-
trismo y América Latina. In: Lander, Edgardo. La colonia-
lidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
latinoamericanas. 9 ed. Caracas: Clacso, p. 201-245. (##2)
Rea, Caterina; Paradis, Clarisse Goulart & Amancio, Izzie
Madalena Santos (orgs.). (2018). Traduzindo a África Queer.
Salvador: Devires. (##6)
Santana, Marise de. (2017a). Formação étnica cristianiza-
da de docentes. In: Rios, Jane Adriana Vasconcelos Pache-
co (org.). Diferenças e desigualdades no cotidiano da educação
básica. São Paulo: Mercado de Letras, p. 108-126. (##8)
Santana, Marise de. (2017b). Legados africanos: Palavra
enunciadora de simbolismos étnicos. Odeere, Revista do
Programa de Pós-graduação em Relações Étnicas e Contempo-
raneidade, 3/3. (##1 e ##8)
Segato, Rita Laura. (2010). Género y colonialidad: en bus-
ca de claves de lectura y de un vocabulario estratég ico
descolonial. In: Quijano, Aníbal & Navarrete, Julio Mejía
(eds.). La cuestión descolonial. Lima: Universidad Ricardo
Palma. (##2)
Spivak, Gayatri Chakravorty. (2002). Literatura. Cadernos
Pagu, 19, p. 9-53.
pós-colonialismo e decolonialidades: etnicidade, reprodução, gênero e sexualidade

1074

Tavares, Paula. (2011). Amargos como os frutos. Poesia reu-


nida. Rio de Janeiro: Pallas. (##7 Angola)
Vasconcelos, Eduardo Mourão. (2002). A complexidade e
pesquisa interdisciplinar. Epistemologia e metodologia operati-
va. Petrópolis: Vozes.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1051 – 1075 , set. – dez., 2021
artigo | mary garcia castro 

1075

PÓS-COLONIALISMO E DECOLONIALIDADES: ETNICIDADE,


REPRODUÇÃO, GÊNERO E SEXUALIDADE – VOZES DA
ÁFRICA – NOTAS A PARTIR DE UM CONHECIMENTO EM
CURSO
Palavras-chave Resumo
Decolonialidade; Este artigo decola da experiência de um curso de pós-gra-
África; duação (o Curso), orientado por perspectiva crítica à ‘colo-
América Latina; nialidade do saber’ e que sublinha a importância de espa-
saberes; ço para vozes não eurocêntricas nas universidades e en-
feminismos. trelace de saberes, como os academicamente legitimados
e aqueles que encarnam vivencias comunitárias e heranças
culturais de povos originais e escravizados. Considerando
autores, em especial feministas, latino-americanos e afri-
canos, sobre pós-colonialismo e decolonialidade, no Curso
se analisam romances de autoras africanas e se o desenha
como uma experiência crítica à colonialidade do saber;
identidades culturais negadas e se estimula pesquisar ma-
ternidade além do privado, como construto de reprodução
social. Demonstra-se também a potencialidade do entre-
lace entre sociologia e literatura.

POSCOLONIALISM AND DECOLONIALITY: ETHNICITY,


SOCIAL REPRODUCTION, GENDER AND SEXUALITY –
AFRICAN VOICES – NOTES FROM AN ACADEMIC COURSE
Keywords Abstract
Decoloniality; This article takes off from the experience of a post-gradu-
Africa; ation course (the Course), guided by a critical perspective
Latin America, to the ‘coloniality of knowledge’ and underlining the im-
knowledge; portance of space for non-Eurocentric voices in universities
feminisms. and interlace of knowledge, such as academically legitimi-
zed and those who embody community experiencs and
cultural heritages of original and enslaved peoples. Consi-
dering authors, especially feminists, Latin Americans and
Africans, about postcolonialism and decoloniality, the
Course analyzes novels by African authors and draws it as
a critical experience to the coloniality of knowledge; denied
cultural identities are rescued and maternity research
beyond the private as a construct of social reproduction is
encouraged. It is also demonstrated the potentiality of the
interlace between sociology and literature.
1076
REGISTROS DE PESQUISA
1078
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11314

1 Ashoka University, Department of Sociolog y and Anthropolog y,


Sonipat, Har yana, Índia;
Brown University, Carney Institute, Providence, Rhode Island,
Estados Unidos
bhrigupati.singh@ ashoka.edu.in
https://orcid.org /0000-0002-8877-3563
Bhrigupati Singh I

“In your writing I am existed”:


Reading the History of Anthropology via
Textures of the Ordinary

In thinking about this sense of a home that one might find in the work of oth-
ers, I am very grateful to have this opportunity 1 to discuss Textures of the ordinary
(Das, 2020) which I receive with a deep sense of acquaintance but also of excit-
ing unfamiliarity. As a way of flagging this conjoined sense of acquaintance
and unfamiliarity, I pause over the dedication with which the book begins: “For
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1079 – 1088 , set. – dez., 2021

Stanley Cavell. In your writing I am existed.” What a strangely gripping and


unusual formulation: I am existed. What does this mean? One could not have
said “in your writing I am born”, since each of us, usually, has multiple sources
of birth and autochthony. And also “I am existed” signals not only birth but
also growth and continuing education, or to put it more urgently, a struggle
against non-life. So the dedication could be “in your writings I found breath
and growth.”
Maybe I could say something similar to Veena? And yet, and this is part
of Veena’s attraction as a teacher, with her such transactions between genera-
tions are not only one-way. Part of my excitement at a first reading of Textures
is to see my own words and concepts appear so recurrently in this book. But
that sounds a bit narcissistic, so let me pose the question of how thought moves
from one to another and then further, more impersonally.
In the preface to Textures Veena describes the process of the composition
of this book, built from essays that have appeared over the past two or so dec-
ades, as expressing “a process of allowing myself to be educated, as it were, in
“in your writing i am existed”: reading the history of anthropology

1080

public.” (Das, 2020: 5) That sounds promising, but let’s ask a further question.
What state were we in prior to that education, and where do we find ourselves
after it? I place this question next to the first line of Kant’s famous essay, “What
is Enlightenment?”: “Enlightenment is man’s release from his self-imposed
immaturity” (Kant, 2006: 16). Unmundigkeit, the word used by Kant to describe
the state of immaturity from which the human seeks or ought to seek freedom,
translates both as “tutelage” and as “minority”. Are there other ideas of con-
tinuing education we might arrive at, rather than as a linear passage into adult-
hood?
Whether or not we find our Wittgenstein or our Walden, early or late in
life, it is among the key lessons of Textures that a continuing education, that is,
to be open to the possibility of being teachable, even in adulthood, is that tu-
telage is not only reception. It is also an art of rewriting oneself, while still
retaining traces, or more than just traces of earlier selves. Differently put, even
with the essays that I have long read and taught in previous incarnations, for
instance “Wittgenstein and Anthropology”, which first appeared in the Annual
Review of Anthropology in 1998, and which is, as Veena puts it, the bija sutra, or
seed of this book, even with these previously familiar essays, the specific re-
writings and additions, are as, if not more striking than the previously unpub-
lished essays in this book.
More on the significance of these rewritings ahead, but first let me sug-
gest an orienting thought on this question of the education of grownups as
Cavell calls it. The Kantian proposition invites us to grow older. In contrast, we
might say that to age well is perhaps to grow older and younger at the same
time. Strange as that sounds, I offer this as my basic proposition for my com-
ments today. In reading Textures I find the author to be older and younger than
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1079 – 1088 , set. – dez., 2021

their previous books. So let me say more about each end of this movement,
growing older and younger, beginning with the former arc. These movements
are not entirely distinct, but for the sake of clarity I offer two ways of under-
standing this bipolar movement, first, in relation to concepts, and second, in
relation to moods, or the range of moods and feelings that a thinker might be
receptive to.
In terms of concepts, how does Textures relate to Veena’s previous books?
Most immediately, how is the concept of textures of the ordinary related to or
distinct from the idea of a descent into the ordinary? One possible answer would
be to read these books in an intensifying order of immanence, with textures
entirely liberated from any transcendent structure or event or nation. But that
is still too teleological an answer for my taste, so, instead of Life and words or
Afflictions, let us begin earlier, with Veena’s first book Structure and cognition:
aspects of Hindu caste and ritual published in 1977. I should say that the thoughts
I offer today build on two previous occasions where I was invited to comment
formally on Veena’s work. The first occasion was in 2018, when, in a reversal
research record | bhrigupati singh

1081

of the customary order of transactions between generations, Veena invited me


to write a foreword to the new edition of Critical events (Singh, 2018). An earlier
occasion was an essay I wrote, titled “Conceptual vita” (2015a), for a festschrift,
the subtitle of which was phrased in a recognizably Cavell-Wittgensteinian
form, as “scenes of inheritance” in relation to Veena’s work.
My point of entry into this question of inheritance was to ask how one
might narrate a scholarly life across texts. In “Conceptual vita”, I examined
three books, written over three different decades: Structure and cognition (Das,
1977), Critical events (Das, 1995), and Life and words (Das, 2007). On a first reading
the movement across these three books would seem to express a recognizable
telos through which the history of anthropology is often narrated (Singh, 2016).
For example, Structure and cognition is written in light of (quote) “the classic
writings of Lévi-Strauss”. It analyzes a set of Sanskrit Puranas to understand
the Hindu social order by (quote) “extracting the principles underlying the con-
ceptual order envisaged in these myths” (Das, 1977: 4). In a seemingly sharp
contrast, the events of the mid-1990s book, Critical events are newsworthy, his-
torical events − the aftermath of the industrial disaster in Bhopal, Sikh mili-
tancy, the sati (or death by immolation) of Roop Kanvar. As the author puts it,
the analytical aim of Critical events is to engage “living emotions” such as pain
rather than (quote) “systems of abstract thought” (Das, 1995: 8). In this vein, we
might say that Life and words, published in 2007, intensifies this impulse even
further, with its hauntingly etched voices of particular interlocutors, like Asha
and Manjit, with whom we learn ways of inhabiting the partition of India and
Pakistan in 1947, and the 1984 violence against Sikhs.
In terms of a continuing education, if it is to be received as continuous,
we might ask: is a conversation possible between these generations and regen-
erations within an anthropological self, or selves, if such movements are not
to be read as wholly self-negating, that is to say, in which a next generation or
a next self must dialectically negate its predecessor, as with the familiar story
that we were told, now thankfully less widely narrated, of a teleological move-
ment from structuralism to so-called “post-structuralism”, whatever that meant,
or even worse, a description of anthropological thought as moving from a so-
called pre-reflexive past to a more self-reflexive, “interpretively” driven present.
Are there other ways to understand maturity?
Rather than reading Veena’s first three books in opposition to one an-
other, in “Conceptual vita”, I suggested that the twin concepts of structure and
event help create a different, non-teleological map of continuities, transfigura-
tions, and differences. Structure and cognition for instance, argues against the
two best known organizing principles of Hinduism, and of South Asian studies
at the time, Louis Dumont’s opposition of pure and impure, and M.N. Srinivas’s
distinction of Sanskritic vs. lower caste Hinduism. Instead, Veena offers differ-
ent oppositional coordinates, of ritual and myth as navigating (quote) “a zone
“in your writing i am existed”: reading the history of anthropology

1082

between life and death”, with forms of liminality that potentially threaten and
renew social and cosmic orders. (End quote) If we take these structural coordi-
nates to be virtual, in a Bergsonian sense, then we can see these virtualities
reappear one book, two books later. For instance, the habitation of a zone be-
tween life and death is a central issue of Life and words, as with Shanti, who
tragically takes her own life, unable to live with the loss of her husband and
sons, who were killed in the 1984 riots. In the time before her suicide (I quote
from Life and words): “Shanti would often get up in the middle of the night and
wander to the park opposite their house, where she would gather sticks and
make them into little piles, which she would proceed to burn. She was unable
to explain what she was doing, but some neighbors believed that she was try-
ing to cremate the bodies of the dead” (Das, 2007: 142).
Resonantly, while the events of Critical events are some of the most news-
worthy of its preceding decade (as the subtitle puts it, the book is: An anthro-
pological perspective on contemporary India), the idea of the contemporary is not
straightforwardly “historical” or timely. Rather, the quite varied events of the
book, the Bhopal Gas tragedy, Sati, Sikh militancy, and questions of “founding”
national violence, are understood through a transfiguration of concepts of sac-
rificial death and theodicy, or how suffering is understood to be distributed.
This is not to point to a seamless continuity across these books, since the
transfigurations are as important. For example, we can see a significant shift
in the concept of the event, as we move from Critical events with its conception
of the event, as (quote) “moments when new modes of action came into being”
(Das, 1995: 12).
In contrast, Life and words sets out a significantly revised conception of the
event, which many of us will remember, with questions like: when might an event
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1079 – 1088 , set. – dez., 2021

be said to begin and end; the relation between event and everyday, and further,
the ways in which skepticism, and voice, and the “evented-ness of the everyday”
appeared as living concepts in Life and words. Within these forms of newness, as
I indicate, it is still possible to read the concerns of Structure and cognition, if we
do not take books to be dated only by their year of publication, or maturity to be
a linear ascent, even as we may recognize findings and innovations.
Within this trajectory, if I was to extend “Conceptual vita” further, we might
say that Affliction (published in 2015) extends this arc. The animating structure in
some ways is the experience of ill-health in the context of urban poverty, and the
concept of the event goes even further into the nooks and crannies of the ordinary,
with what Veena calls the “quasi-event”, or the aspects of life and non-life that
we begin to see, for example with the opening chapter of Affliction on “how the
body speaks”, and the intensification of the question of what evented-ness might
be, as we see how much happens, even when seemingly “nothing” is happening.
So far so good. I was pleased to have arrived at a conceptual architecture, with
which this body of thought may be received non-teleologically.
research record | bhrigupati singh

1083

But then, Textures of the ordinary seems to disrupt this dynamic architec-
ture of structure and event. Or does it? I want to leave this as a puzzle for
further discussion, of what kind of a transfiguration this book might be from
its past. Is Textures a further intensification of the “descent” into the ordinary
or is it a rupture? Again, rather than an opposition between the implied tran-
scendence or non-transcendence of “descent”, as against the purer immanence
of “textures”, I suggest that perhaps a crucial point of continuity and trans-
figuration is what it means to go “further”, not as transcendence but still in a
form of the metaphysical, understood as the joining of threads with that which
exceeds what is immediately visible.
How is this further shore reached within the threads of Textures? This
can take a variety of forms, for instance, with uncanny near-death voices of
kin, or intimates whom we thought we knew. One discovery of this book, among
others, which continues conversations that this group has had, led by Sandra
and Andrew Brandel among others, is the methodological and metaphysical
significance of details. (I quote from p.2 of Textures): “I contend that the ethno-
graphic impulse to render the texture of the ordinary depends upon close at-
tention to detail. But how much detail and what kind of detail?” (Das, 2020: 2).
Some chapters later, Veena suggests that more than Renato Rosaldo’s
canonical anthropological essay on grief and the headhunter’s rage, written in
the aftermath of his wife Shelley’s untimely death during fieldwork, his poems
published nearly two decades after her death in 1981, (I quote from Textures)
“go further, much further, in explicating the relations between biography and
ethnography” (Das, 2020: 202). What is the meaning of the word further here?
Consider the second aspect of Kant’s unmundigkeit, which we were meant to
outgrow, not as tutelage, but “minority” or the minor. Here is how Veena sug-
gests Rosaldo goes further (I quote) “…minor currents of stories, accidental
encounters in the field, words blurted out that derange the context, are pre-
cisely what make up the texture of the ordinary in the present book. Rosaldo’s
genius lies in the fact that he absorbs these as part of the milieu even when
they were absent in the initial ethnography” (Das, 2020: 212).
Let us say that one form of aging and maturity evident in Textures is the
temporality of return, as a mode of rewriting the self and one’s sense of others,
as with the rewriting of the chapter on Swapan from Affliction, to arrive at a
strikingly different thought in Textures, contra Foucault. So far I have spoken
about the forms that maturity might take, without the negation of a younger
self. But as you’ll remember, I opened with a two-part proposition: the author
grows older and younger. So as steps to a conclusion, let me point out three
ways in which this book also expresses forms of youthfulness.
While signs of youth may be many and varied, one feature we might say
is a combative, agonistic spirit. As I mentioned, Structure and cognition began, as
a young person might announce themselves, by contesting two global notables,
“in your writing i am existed”: reading the history of anthropology

1084

Dumont and Srinivas. Such contests though are not over prestige, but in sharp-
ening what might be critical disagreements. One such critical disagreement in
Textures is with Foucault. One of the discoveries of Foucault’s Psychiatric power
lectures, in which, as we know, he rewrites his own difference and distance
from Madness and civilization, is the idea of madness not only as a discursive
formation but what Foucault memorably called a “contest of wills”. Within this
battlefield, as Veena points out in Textures, in the Foucauldian microphysics of
power, the family appears simply as a juncture or a node through which indi-
viduals are injected, as Foucault put it, into circuits of disciplinary power. In
contrast, we might say that in continuity with earlier books and broader an-
thropological preoccupations, Textures points us to a much richer microphysics
of power, where the lines of battle and care within kinship, intimacy and the
domestic, can be unpredictably drawn and redrawn, in an aspect or threshold
of life that would remain invisible with Foucault.
In itself, disagreement is not necessarily a sign of youth. What I also
want to emphasize is the way in which critique may be voiced and addressed,
at times, to everyone and no one. For instance, in Chapter 10 of Textures, “Con-
cepts Crisscrossing”, Veena is discussing her enduring preoccupation with the
theme of sacrifice. Here is how she voices the problem: “I was bold enough in
1980 when I delivered the Henry Myers lecture to conclude it by saying ‘Vedic
sacrifice may be seen to constitute a global alternative to the Christian idea of
sacrifice…’ Of course, my claim went unheeded, but it was never extinguished
for me” (Das, 2020: 285).
One can imagine a “mature” masculine way of flagging this kind of an
unheeded claim, in ways that would make it even more unappealing. Instead,
Veena lures us back to her argument by broaching it not as a critique of Euro-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1079 – 1088 , set. – dez., 2021

centrism, which it partly is, but – and here is how this chapter of Textures ends
–, by offering this critique as (quote) “an expression of gila (a Hindi Urdu word)
– a loving reproach – to my interlocutors in anthropology” (Das, 2020: 305).
One last expression of youthfulness or minority status, in which hope-
fully I played a small part! To hazard a contestable difference, we might say
that Veena is justly known, if not explicitly so, as a profound writer of tragedies.
In Textures, perhaps for the first time, other moods and genres appear. I hesitate
to call the contrary of tragedy as comedy, although consider a character like
Prem Singh (in Chapter 2, “A politics of the ordinary”), who writes a letter to
George Bush as the leader of the world, and posts it to the “White House, Wash-
ington”, about his neighbors spreading garbage in the streets, along with com-
puter-generated notices on neighborhood walls, with texts like (I quote from
Veena’s translation), “Dogs in the form of Humans, of their Barking, Neither is
there any specific time, nor any limit” (Das, 2020: 72). Molière or Chekov might
recognize such a character as their own.
research record | bhrigupati singh

1085

A shift in mood is not only to do with minor characters. The seed or the
bija sutra has also altered slightly. I was delighted to notice a seemingly minor
addition to the opening chapter, “Wittgenstein and anthropology”, which was
not there in the 1998 version of the essay. Rather than comedy, following Cavell,
we might call this addition, the entry of an Emerson mood. The addition I am
referring to, briefly, is Veena’s expression of admiration for Cavell’s 2005 essay
“Fred Astaire asserts the right to praise”. Perhaps it needed an Indian, steeped
in Bollywood, to be genuinely moved by the philosophical appreciation of seem-
ingly mundane cinematic song and dance.
In an Emerson mood, comedy can be deadly serious, as it is in Cavell’s
emphasis on the political significance of Fred Astaire’s almost crazed dance
with a black shoeshine boy, copying his moves and making them his own, not,
as Cavell suggests, as an “appropriation of black culture”, but rather, citing
Cavell in the passage quoted in Textures: “Astaire’s dance of praise is to be un-
derstood specifically as this painful and deadly irony of the white praise of a
black culture whose very terms of praise it has appropriated, even climatically
about being brushed with madness in one’s participation in it” (Das, 2020: 41).
In other words, rather than appropriation Cavell takes Astaire to express a form
of gratitude that makes (quote) “America’s partial democracy happier or more
heartened than it might otherwise be” (Das, 2020: 42). We might take this to be
the bija (or seed), for instance, of the marriage of Kuldip and Saba in a chapter
ahead, and the question of what it might mean for a Hindu and a Muslim to be
married, while maintaining their sense of self.
It is easy to dismiss cheerfulness, as Cavell variously shows us in rela-
tion to Emerson, but it is not to speak lightly, as I hope I have also indicated, in
emphasizing this particular new opening in Textures. I had some role to play in
this, he said modestly. I cite a line from my own 2015 book, Poverty and the quest
for life, where I argued that one way to be more attentive to the “quality of life”
was to be open to varying moods and thresholds of life. Here is a line from that
book which remains dear to me (I quote): “Strangely enough, in my scholarly
neck of the woods, such is the view of life (or is it only a mode of feigning
gravitas?) that it is harder for now to prompt a smile than it is to confirm a
global catastrophe. What spirits possess us?” (Singh, 2015b: 62).
That said, happily, or sadly, now in my 40s, having lived a bit more, I am
naively less cheerful, and am preparing to write a dark and gloomy book. So
maybe now Veena and I can switch places, and she can write comedies and I
will write tragedies. And here I’ll stop with the beautiful last line with which
Textures closes: “Should thought stop here?”

Received on 03-Jan-21 | Accepted on 24-Feb-21


“in your writing i am existed”: reading the history of anthropology

1086

note
1 This essay was initially presented as a talk as part of a
book panel on Textures of the ordinary organized by the
Department of Philosophy, Sapienza, University of Rome.
I am grateful to Piergiorgio Donatelli and Sandra Laugier
for organizing this forum and for several years of ongoing
conversation and inspiration, all the more cherished in
these pandemic-infused years. I am g rateful to Leticia
Ferreira and Adriana Vianna for inviting me to be share
these thoughts as part of the special issue of Sociologia &
Anthropologia honoring Veena Das’s work.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1079 – 1088 , set. – dez., 2021

Bhrigupati Singh is an associate professor of sociology and


anthropology at Ashoka University (India) and a visiting associate
professor of psychiatry at the Carney Institute, Brown University
(USA). His first book Poverty and the quest for life: spiritual and
material striving in rural India was awarded book prizes by the
American Institute of Indian Studies and the American Academy of
Religion. He is the co-editor of The ground between: anthropological
engagements with philosophy and serves as a co-editor of the book
series Thinking from Elsewhere, Fordham University Press.  He is
currently working on a project on mental health and illness in
India, with fieldwork based at the Department of Psychiatry, All
India Institute of Medical Sciences, Delhi, with recent articles from
this project published in Medical Anthropology Quarterly and
Philosophy, Psychiatry, Psychology.
research record | bhrigupati singh

1087

REFERENCES

Das, Veena. (2020). Textures of the ordinary: doing anthropo-


logy after Wittgenstein. New York: Fordham University
Press.
Das, Veena. (2015). Aff liction: health, disease, poverty. New
York: Fordham University Press.
Das, Veena. (2007). Life and words: violence and the descent
into the ordinary. Berkeley: University of California Press.
Das, Veena. (1995). Critical events: an anthropological pers-
pective on contemporary India. New Delhi: Oxford University
Press.
Das, Veena. (1977). Structure and cognition: aspects of hindu
caste and ritual. New Delhi: Oxford University Press.
Kant, Immanuel. (2006). Towards perpetual peace and other
writings on politics, peace and history. Trans. David Colcla-
sure. New Haven: Yale University Press.
Singh, Bhrigupati. (2018). “Foreword” to the new edition
of Critical events: an anthropological perspective on contempo-
rary India. New Delhi: Oxford University Press (2018 re-
print).
Singh, Bhrigupati. (2016). Introduction: A Joyful History
of Anthropolog y. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 6/2,
as part of a Special Issue titled A Joyful History of Anthro-
pology. Eds. Bhrigupati Singh & Jane Guyer. p. 197-211.
Singh, Bhrigupati. (2015a). Conceptual vita. In: Chatterji,
Roma. Wording the world: Veena Das and scenes of inheritan-
ce. Fordham: Fordham University Press.
Singh, Bhr ig upati. (2015b). Poverty and the quest for life:
spiritual and material striving in rural India. Chicago: Uni-
versity of Chicago Press.
“in your writing i am existed”: reading the history of anthropology

1088

“Na sua escrita eu sou existida”: lendo a


história da antropologia via Textures of the
ordinary
Resumo Palavras-chave
Nesse ensaio tento sugerir uma forma não teleológica de História da antropologia;
ler a história da antropologia, situando o livro de Veena Das Veena Das;
Textures of the ordinary, de 2020, em relação a suas obras tragédia e comédia;
anteriores, começando por Structure and cognition: aspects of Cavell;
Hindu caste and ritual, de 1977. Em vez de um movimento estrutura e evento.
teleológico do estruturalismo ao “pós-estruturalismo” ou a
um trabalho “autorreflexivo”, aponto para a continuidade
e transfiguração dos conceitos de estrutura e evento nos
diferentes livros de Das, como forma de também imaginar
movimentos no interior da teoria social mais ampla sem
que cada sucessivo “paradigma” tenha que negar dialetica-
mente seu antecessor. Pergunto ainda o que significa enve-
lhecer ou “amadurecer” no interior de um corpo de trabalho
acadêmico, e como podemos considerar que um autor está
envelhecendo e rejuvenescendo ao mesmo tempo, se con-
siderarmos que envelhecer no pensamento não é necessa-
riamente apenas uma questão de cronologia ou teleologia.

“In your writing I am existed”:


Reading the History of Anthropology via
Textures of the Ordinary
Abstract Keywords
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1079 – 1088 , set. – dez., 2021

In this essay I try to suggest a non-teleological way of read- History of anthropology;


ing the history of anthropology, by placing Veena Das’s Veena Das;
Textures of the ordinary (2020) in relation to her previous tragedy and comedy;
books, beginning with Structure and cognition: aspects of Cavell;
Hindu caste and ritual (1977). Rather than a teleological Structure and event.
movement from structuralism to “post-structuralism” or
“self-reflexive” work, I point to the continuation and trans-
figuration of the concepts of structure and event across
Das’s different books, as a way of also imagining move-
ments within social theory more broadly, without each
successive “paradigm” having to dialectically negate its
predecessor. Further, I ask what it means to age or to “ma-
ture” within a body of scholarly work, and how we might
take an author to be growing simultaneously older and
younger, if we take aging in thought not necessarily to be
solely a question of chronology or teleology.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11315

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de


Pós-graduação em Sociologia e Antropologia e Núcleo de Estudos
de Sexualidade e Gênero, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
sorjbila@gmail.com
https://orcid.org /0000-0003-1253-0335

Bila Sorj I

Estudos sobre o cuidado na sociologia:


a contribuição de Nadya Araujo Guimarães
e Helena Hirata

As últimas décadas assistiram em âmbito nacional e internacional a crescente


interesse pelos estudos sobre o cuidado como uma dimensão fundamental da
vida social. Essa prática, que joga luz sobre o emaranhado de redes de pessoas
comprometidas com o atendimento das necessidades de outras pessoas e evi-
dencia que somos vulneráveis e dependentes uns dos outros, foi, por muito
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1089 – 1097 , set. – dez., 2021

tempo, negligenciada pelo projeto normativo moderno, ancorado na figura do


indivíduo autônomo, livre e soberano (Tronto, 2007). A teoria social, ao compar-
tilhar, em larga medida, dessa matriz cultural, descuidou da análise crítica da
contraparte que sustenta tal narrativa: o trabalho reprodutivo, realizado na
esfera privada por um ator específico − as mulheres. A crença naturalizada na
diferença entre os sexos, seja por mandato biológico ou divino, fez com que o
cuidado, um dos principais pilares da vida em comum, fosse esquecido.
Só a partir dos anos 1980 o cuidado passou a ser tema abordado pelas
diferentes disciplinas ou subdisciplinas das ciências sociais e tratado a partir
de um amplo espectro de questões. Em uma ponta, encontram-se teorias de
grande alcance relativas à ética do cuidado, que questionam as abordagens
tradicionais da ética da justiça baseadas em princípios abstratos e universais.
A ética do cuidado desenvolve uma nova perspectiva moral referenciada a con-
textos particulares e à interdependência das pessoas (Gilligan, 1982; Tron-
to,1993).
Na outra ponta estão estudos empiricamente orientados, como aqueles
realizados sobre as práticas de interação face a face entre provedoras de cui-
estudos sobre o cuidado na sociologia: a contribuição de nadya guimarães e helena hirata

1090

dado e aqueles que o recebem, nos quais as dimensões de trabalho emocional


ganham relevo (Molinier, Laugier & Paperman, 2009), passando por estudos
comparativos dos padrões institucionais e lógicas políticas dos regimes de bem-
estar social (Lewis, 2001; Jenson, 1997, Razavi, 2007; Sorj, 2008). Mais recente-
mente, desenvolveram-se ainda os estudos sobre cadeias internacionais do
cuidado com base no trabalho de imigrantes dos países do sul global para aten-
der ao chamado deficit de cuidado dos países mais ricos (Hochschild, 2014).
De modo geral, no Brasil, os estudos sobre o cuidado se voltam para o
tema das relações de trabalho e, portanto, se aproximam da sociologia do tra-
balho, área com longa tradição acadêmica no país. Por conta das críticas em-
preendidas pelos estudos feministas e de gênero, as categorias fundamentais
da sociologia do trabalho foram profundamente afetadas. Ao questionar a na-
turalização do trabalho doméstico não remunerado, e consequentemente, a
divisão sexual do trabalho, os estudos feministas não apenas ampliaram o es-
copo das relações sociais nomeadas como “trabalho”, mas indicaram a comple-
xa e inextricável articulação entre trabalho produtivo e trabalho doméstico
(Hirata & Kergoat, 2007; Sorj, 2000).
Em momento subsequente, os estudos feministas passaram a distinguir
trabalho doméstico e cuidado, entre outras razões, porque o cuidado vem sen-
do destacado como o principal fator responsável pelo limitado volume e baixa
qualidade da participação feminina no mercado de trabalho remunerado (Him-
melweit, 2000). A definição do trabalho de cuidado como uma prática que en-
volve afetos, emoções e responsabilidade para com o outro ensejou sua distin-
ção das outras tarefas domésticas, apesar de as fronteiras entre eles serem
bastante porosas. Além disso, o crescimento exponencial da mercantilização
do cuidado em domicílios e em instituições de longa permanência, sobretudo
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1089 – 1097 , set. – dez., 2021

nos países do norte global, e as variadas formas institucionais que assume fi-
zeram do cuidado um campo de estudos específico.
As elaborações feministas ocorreram simultaneamente às mudanças
sociais de grande escala que colocaram o cuidado no centro das atenções. As-
sim, o tema do cuidado emerge como um problema social, uma arena de con-
flitos mais ou menos explícitos, marcando novas e importantes divisões sociais
e tensões subjacentes, em razão de diversos processos: o acelerado aumento
da inserção de mulheres no mercado de trabalho, as mudanças demográficas,
como o envelhecimento da população, os novos modelos de política social que
continuamente redefinem as fronteiras entre responsabilidade privada e social,
e a expansão da mercantilização das relações sociais.
A recente publicação de três volumes sobre o trabalho do cuidado de
Nadya Araujo Guimarães, do Departamento de Sociologia da USP, e Helena Hi-
rata, do CNRS, Paris (Guimarães & Hirata, 2021, 2020a, 2020b), evidencia a ex-
pansão do interesse a respeito do tema nas ciências sociais no Brasil e na
América Latina. Fruto de longa e profícua parceria entre as autoras, seus estu-
registro de pesquisa | bila sorj

1091

dos sobre cuidado se tornaram uma referência na produção acadêmica nacional


e internacional.
O primeiro deles, O gênero do cuidado. Desigualdades, significações e identi-
dades, reúne e sistematiza reflexões por elas produzidas nos últimos dez anos
que desvendam o vigor da perspectiva do cuidado como trabalho e destacam
aspectos importantes das desigualdades sociais do país. Baseando-se em rica
variedade de fontes e em esmerada proposta analítica, o livro é denso e arguto.
Diferentemente das pesquisas de que dispomos, que, em geral, adotam recortes
empíricos específicos, o livro oferece uma ferramenta conceitualmente podero-
sa que privilegia as relações sociais abrangidas em vários domínios do cuidado,
estudados a partir de quatro dimensões analíticas: o significado atribuído ao
trabalho, os atores considerados aptos a realizar o trabalho, o tipo de relação
social (mercantilizada ou não) e as formas de retribuição (monetária ou não).
A estratégia heurística de definir as modalidades de cuidado pelos sig-
nificados atribuídos pelas próprias cuidadoras é o ponto de partida para a ela-
boração de um novo conceito: circuitos de cuidado. Três circuitos de cuidado
são identificados: primeiramente, o trabalho doméstico não remunerado, em
que o cuidado é significado enquanto uma “obrigação”. Nesse caso, o “amor” e
a “responsabilidade familiar” conferem sentido à conduta subjetiva e estrutu-
ram o reconhecimento social de quem a realiza. Em segundo lugar, as formas
mercantilizadas do cuidado, em que ele pode ser reivindicado como “profissão”
(caso das cuidadoras) ou, apesar de semelhante, não ser entendido como um
“trabalho de cuidado” (caso das trabalhadoras domésticas). O significado de
cuidadora emana da vida cotidiana, da autodesignação das atoras, e se apre-
senta como uma forma de se diferenciar das empregadas domésticas, que, por
sua vez, apesar de exercer múltiplas tarefas de cuidado nos domicílios, não se
reconhecem como tais. Por fim, o terceiro tipo de circuito de cuidado refere-se
às formas das “ajudas”, que remetem à reciprocidade da vida comunitária, re-
corrente em meio à população empobrecida de países altamente desiguais.
O livro se debruça de maneira mais detalhada sobre o trabalho mercan-
tilizado de cuidadoras de idosos, uma atividade que vem se ampliando acele-
radamente nas últimas décadas. Trata-se de ocupação que oferece desafios
analíticos de primeira ordem. Ao mesmo tempo em que é uma atividade insti-
tucionalmente reconhecida pelos órgãos produtores de estatísticas sociodemo-
gráficas, ela não é legalmente reconhecida como profissão. Apesar da criação
de uma nomeação alternativa, que a distingue de outras formas mais estigma-
tizadas como o emprego doméstico, as cuidadoras têm que enfrentar estratégias
de desclassificação por outras trabalhadoras, cujo trabalho de cuidado já foi
socialmente reconhecido como profissão, como é o caso das enfermeiras e au-
xiliares de enfermagem. Comprimidas entre estas duas categorias regulamen-
tadas – das domésticas e das enfermeiras –, as cuidadoras têm seu pleito por
reconhecimento profissional continuamente frustrado.
estudos sobre o cuidado na sociologia: a contribuição de nadya guimarães e helena hirata

1092

A complexidade e as ambivalências do trabalho de cuidadora não decor-


rem exclusivamente da fluidez das fronteiras que o separam da trabalhadora
doméstica e das enfermeiras, nem somente pelo arcabouço institucional e legal
que as define ou exclui de um status profissional, mas se manifestam também
na relação de trabalho concreto entre beneficiário e provedora do cuidado, que
envolve afetos, emoções e, como Julia Twigg (2004) argumentou, constante re-
lação física e íntima.
Em vista disso, a análise fina da dimensão da sexualidade no trabalho
de cuidado em domicílios e em instituições de idosos dependentes em diferen-
tes países, como Argentina, Brasil, França e Japão, permite desvelar o complexo
de emoções envolvidas, que não cabem na imagem arrumada de organismos
internacionais como a Organização Mundial da Saúde a respeito da saúde se-
xual aceitável dos idosos e da “boa distância” prescrita aos profissionais de
cuidado. A apreensão das experiências perturbadoras das cuidadoras e das es-
tratégias por elas adotadas para “deserotizar sem desafetizar” a relação com a
pessoa cuidada deslinda a imensa carga de trabalho emocional exigida e as
negociações constantes que são implicadas na relação de trabalho. Apesar dos
vários instrumentos de pesquisa disponíveis, o acesso às vivências e experiên-
cias desse trabalho é difícil, pois se trata de um tema revestido de tabus que
atingem igualmente os próprios pesquisadores.
Se o gênero é a abordagem privilegiada pela qual o trabalho de cuidado
é teorizado, pois todos os “circuitos de cuidado” são nichos femininos, as aná-
lises são também atravessadas pela perspectiva das múltiplas desigualdades
como raça, classe, nacionalidade, que produzem um sistema interdependente
de poder que leva à subvalorização das competências do trabalho de cuidado,
sobretudo no circuito mercantilizado. Essa característica comum é ilustrada na
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1089 – 1097 , set. – dez., 2021

comparação internacional empreendida pelas autoras entre Brasil, França e


Japão. O trabalho de cuidado de idosos nos domicílios ou em instituições de
longa permanência para idosos (Ilpis), apesar das importantes variações no que
concerne à gestão do trabalho, ao modo de engajamento e ao perfil de traba-
lhadores/as, compartilham características comuns, isto é, a centralidade do
trabalho de mulheres e a sua desvalorização econômica e simbólica.
A discussão travada no último capítulo do livro sobre os deslocamentos
provocados na vida cotidiana pela crise econômica e sanitária recente põe em
relevo a atualidade do livro. A crise torna evidente que o cuidado afeta a todos
e não apenas às pessoas dependentes porque privadas de autonomia. As auto-
ras se perguntam se esse reconhecimento permitirá imaginar uma sociedade
mais solidária, em que cuidado seja percebido como essencial para o bem-estar
coletivo.
A riqueza das reflexões e de recortes empíricos contidos nesse livro
representa um grande avanço nos estudos sobre cuidado, gênero e trabalho. A
abordagem compreensiva, no duplo sentido da expressão – como amplitude do
registro de pesquisa | bila sorj

1093

fenômeno estudado e como um método que valoriza o significado que os ato-


res conferem a suas ações –, é uma referência imprescindível para os estudio-
sos do tema.

Perspectivas Latino-americanas
As desigualdades sociais têm sido um dos principais temas da sociologia latino-
americana desde a segunda metade do século XX. A questão foi formulada
sobretudo a partir do prisma das teorias da modernização e da dependência,
fortemente ancoradas em abordagens econômicas dos processos sociais. Re-
centemente, o estudo das desigualdades sociais na região passou a incorporar
perspectivas teóricas mais multifacetadas e complexas. As duas coletâneas em
língua estrangeira sobre a América Latina representam essa virada analítica,
que tem no tema do cuidado um lugar privilegiado de observação e produção
de conhecimentos sobre a região.
Publicadas no exterior, El cuidado en América Latina e Care and care workers
são coletâneas que reúnem um notável grupo de pesquisadoras, sobretudo
latino-americanas, que participaram de seminário realizado na Universidade
de São Paulo em 2018. As organizadoras, Nadya e Helena, mostram mais uma
vez que ocupam um lugar destacado na formação de redes de estudiosas que
atravessam diferentes países.
A perspectiva interseccional das desigualdades de gênero, de raça e de
classe é a postura analítica que informa as análises apresentadas. Ao reunir
estudos sobre o trabalho de cuidado e sua organização social em cinco países
da região, Brasil, Uruguai, Argentina, Chile e Colômbia, as coletâneas apresen-
tam análises abrangentes e diversificadas, apoiadas em sólidas pesquisas em-
píricas.
A diversidade de temas que compõem as coletâneas é impressionante.
Eles vão desde a questão do cuidado estético de mulheres negra que, ao assu-
mir o cabelo afro, resgatam uma identidade coletiva abafada pelas representações
racistas do corpo negro, até análises macrossociológicas sobre mudanças estruturais
que vêm alterando os padrões de oferta e procura por trabalho de cuidado, além de
abordar regimes de proteção social e políticas públicas de cuidado nos países sele-
cionados, passando pela análise das tensões entre mercantilização e ética do cuida-
do e ainda diferentes ativismos políticos que emergiram recentemente entre pesso-
as com deficiências.
O chão comum do trabalho de cuidado é a informalidade, a fragilidade
dos sistemas de proteção social, a precária institucionalização da atividade e
seu pouco reconhecimento social, marcas que refletem a longa experiência da
colonização, escravidão e formas de dominação racial e étnica na região, apesar
das especificidades das trajetórias históricas nacionais. A identificação de ra-
ízes históricas de tais processos não implica uma leitura estática da questão
do cuidado, pois as autoras identificam novas e emergentes tendências do tra-
estudos sobre o cuidado na sociologia: a contribuição de nadya guimarães e helena hirata

1094

balho de cuidado na região. Movimentos migratórios intrarregionais têm se


feminizado e crescido em ritmo mais rápido do que a emigração para os países
mais desenvolvidos. Nesses novos fluxos destacam-se as trabalhadoras de cui-
dado que compartilham baixos salários, status legal precário e discriminação
racial, tornando mais complexas as configurações da estratificação social nos
países receptores de imigrantes. Vários artigos das coletâneas destacam também
que novas políticas de cuidado vêm marcando presença na região. O olhar pro-
piciado pelas teorias feministas aguça uma leitura crítica sobre posições nor-
mativas que moldam tais políticas emergentes e questiona em que medida é
possível ir além da provisão de acesso a serviços para dependentes a fim de
promover mudanças culturais, sobre a divisão sexual do trabalho, apoiadas em
modelos assentados na solidariedade e corresponsabilidade.
A riqueza dos recortes empíricos e a densidade analítica dos artigos
alçam os três livros a obras seminais a ser exploradas pelos estudiosos do tema
por muito tempo. A sociologia do cuidado vem se firmando no campo científi-
co das ciências sociais, e o interesse público sobre o tema se alargou conside-
ravelmente com a crise sanitária. Em vista disso, podemos antever que a reno-
vação do apelo crítico e criativo da sociologia deve passar, nos próximos anos,
pela consideração sobre a vulnerabilidade da vida humana e por posicionar a
ética do cuidado no centro das suas reflexões.

Recebido em 10/06/2021 | Aprovado em 25/10/2021


sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1089 – 1097 , set. – dez., 2021

Bila Sorj é professora titular do Programa de


Pós-graduação em Sociologia e Antropologia e
coordena o Núcleo de Estudos de Sexualidade e
Gênero (Neseg) da UFRJ. É pesquisadora do CNPq e
do Programa Cientista do Nosso Estado da Faperj.
Suas áreas de interesse são: gênero, cuidado,
família e feminismos. Publicou recentemente
Clássicas do Pensamento Social: Mulheres e
Feminismos no Século XIX.
registro de pesquisa | bila sorj

1095

Referências

Gilligan, Carol. (1982). Uma voz diferente. Rio de Janeiro:


Rosa dos Tempos.
Guimarães, Nadya Araujo, A. & Hirata, Helena (eds.).
(2021). Care and care workers. A Latin American perspective.
Switzerland: Springer.
Guimarães, Nadya Araujo, A. & Hirata, Helena (comps.).
(2020a). El cuidado en América Latina Mirando los casos de
Argentina, Brasil, Chile, Colombia y Uruguay. Buenos Aires:
Fundación Medifé Edita.
Guimarães, Nadya Araujo, A. & Hirata, Helena S. (2020b).
O gênero do cuidado. Desigualdades, significações e identidades.
SP: Ateliê Editorial.
Himmelweit, Susan (ed.). (2000). Inside the household. From
labour to care. London: Palgrave Macmillan.
Hirata, Helena & Kergoat, Danièle. (2007). Novas configu-
rações da divisão sexual do trabalho. Caderno de Pequisa,
37/132.
Hochschild, Arlie Russell. (2014). Global care chains and
emotional surplus value. In: Engster, Daniel & Metz, Ta-
mara ( eds.) . Just ice, polit ics, and the family. New York:
Routledge.
Jenson, Jane. (1997). Who cares? Gender and welfare re-
gimes. Social Politics, 4/2.
Lewis, Jane. (2001). Legitimizing care work and the issue
of gender equality. In: Daly, Mary (ed.). Care work: the quest
for security. Geneva: ILO.
Molinier, Pascale; Laugier, Sandra & Paperman, Patricia
(dir.). (2009). Qu’est-ce que le care? Souci des autres, sensibi-
lité, responsabilité. Paris: Petite Bibliothèque Payot. 
Razavi, Shahra. (2007). The political and social economy
of care in a development context: conceptual issues, re-
search questions and policy options. Gender and Develo-
pment Programme Paper, 3. Geneva: UNRISD.
Sorj, Bila. (2008 ). O trabalho doméstico e de cuidados:
novos desafios para ig ualdade de gênero no Brasil. In:
Silveira, Mar ia Lucia da & Tito, Neuza (orgs.). Trabalho
doméstico e de cuidados: por outro paradigma de sustentabili-
estudos sobre o cuidado na sociologia: a contribuição de nadya guimarães e helena hirata

1096

dade da vida humana. São Paulo: Sempreviva Organiza-


ção Feminista.
Sorj, Bila. (2000). Sociologia e trabalho: mutações, encon-
tros e desencontros. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
15/43.
Tronto, Joan. (2007). Assistência democrática e democra-
cias assistenciais. Sociedade & Estado, 22/2, p. 285-308.
Tronto, Joan. (1993). Moral boundaries: a political argument
for an ethic of care. NewYork: Routledge.
Twigg, Julia. (2004). The body, gender, and age: feminist
insights in social gerontology. Journal of Aging Studies, 18/1.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1089 – 1097 , set. – dez., 2021
registro de pesquisa | bila sorj

1097

Estudos sobre o cuidado na sociologia: a


contribuição de Nadya ARAUJO Guimarães e
Palavras-chave Helena Hirata
Trabalho de cuidado; Resumo
gênero; O objetivo desse registro de pesquisa é situar os três livros
desigualdades sociais. publicados recentemente por Nadya Araujo Guimarães e
Helena Hirata sobre o trabalho de cuidado na consolidação
de um novo campo de estudos e pesquisas nas ciências
sociais e salientar as contribuições que oferecem à socio-
logia do trabalho e ao entendimento multifacetado das
desigualdades sociais no país e na América Latina.

Studies on care in sociology:


the contribution of Nadya ARAUJO Guimarães
Keywords and Helena Hirata
Carework; Abstract
gender; The aim of this research register is to situate the three
social inequalities. recently published books on carework by Nadya Araujo
Guimarães and Helena Hirata in the consolidation of a new
field of studies and research in the social sciences and to
highlight the contributions they offer to the sociology of
work and to the multifaceted understanding of social in-
equalities in the country and in Latin America.
1098
RESENHAS
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11316

1 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento


de Antropologia, Campinas, SP, Brasil
carolparreiras@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9741-4776

Carolina Parreiras I

Tessituras, texturas, treliças e tramas:


o cotidiano, o ordinário e a tarefa da
antropologia

Das, Veena. Textures of the ordinary. Doing anthropology


after Wittgenstein.
New York: Fordham University Press, 2020.

Dar às palavras um lar. É com essa lavras está, por exemplo, em seu reco-
proposição que Veena Das (2007) en- nhecimento da dificuldade e da im-
cerra seu livro, já clássico e recente- possibilidade de prosseguir na escrita
mente traduzido para o português, de determinados textos ou de certas
Life and words. A expressão, repetida narrativas; ou em sua abertura a ser
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1101 – 1106 , set. – dez., 2021

inúmeras vezes ao longo de sua obra, instruída publicamente a partir da


é menção a formulações do filósofo leitura de referenciais teóricos; ou
Ludwig Wittgenstein (1953) em Inves- quando permite que acontecimentos
tigações filosóficas, influência central autobiográficos “se infiltrem” no tex-
para o pensamento de Veena Das. to; ou ainda ao recontar as vidas coti-
Além de seu significado teórico e filo- dianas de colaboradoras/es que habi-
sófico, ao longo de Textures of the ordi- tam contextos marcados pela violên-
nary. Doing anthropology after Wittgens- cia, pelo horror, pela precariedade
tein (Das, 2020), essa expressão ganha material e por vulnerabilidades.
outros significados: o que o livro mos- Assim, o livro é definido por ela
tra é Veena Das em busca de encontrar, mesma como uma “coleção”, que mes-
por meio da escrita, um lugar para as cla doses de autobiografia, dados et-
palavras, sejam elas as suas, as de su- nográficos de mais de 30 anos de pes-
as/seus interlocutoras/es ou as das/os quisa em Delhi, exemplos de textos
várias/os teóricas/os por ela acessa- literários e fragmentos de relações
das/os. A busca de um lar para as pa- com suas/seus colaboradoras/es de
tessituras, texturas, treliças e tramas: o cotidiano, o ordinário e a tarefa da antropologia

1102

campo e com colegas da academia. O ainda que a autora negue ser uma
livro, composto por 11 capítulos, con- scholar especialista em Wittgenstein
ta também com novas “encarnações” – o fio condutor utilizado por Das para
para ensaios escritos em outros mo- propor reflexões que, em última ins-
mentos, revisitados e que reaparecem tância, buscam avançar na compreen-
com nova conformação a partir da são do que pode ser entendido como
passagem do tempo. Essa forma de cotidiano e como ordinário. Para os
entender a montagem do livro e sua leitores mais familiarizados com a
narrativa, em que reconhece a dificul- obra de Veena Das, esses temas não
dade de recontar, reinterpretar e res- serão novidade, visto que um de seus
significar dados e relações, está de grandes argumentos está em pensar o
acordo com seu projeto mais amplo entendimento da vida social a partir
de pensar como a vida cotidiana – a do cotidiano e do que ela chama – e
dela mesma aí incluída – se faz a par- que funciona como orientação para a
tir de uma trama, da composição de própria feitura da etnografia – de des-
uma textura em que fios diversos se cida ao ordinário. O léxico fornecido
misturam, se sobrepõem e se entre- por Wittgenstein permeia todo o livro,
cruzam. Desse modo, cada capítulo especialmente a partir de ideias como
traz um aspecto do cotidiano e atesta formas de vida, gramática e lingua-
o caráter evasivo do ordinário. Mostra, gem, ceticismo, aprendizagem e cenas
sobretudo, o quanto o projeto argu- de instrução. Esta última ideia fornece
mentativo de Veena Das só pode ser os subsídios para que Veena Das tra-
compreendido a partir da compreen- balhe, em quase todos os capítulos,
são da tessitura de vidas concretas, com a tessitura de cenas, com base em
que não podem e nem devem ser en- dados etnográficos de diferentes mo-
cobertas pelos muitos conceitos que mentos de sua trajetória e em exem-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1101 – 1106 , set. – dez., 2021

vai dissecando. Os conceitos, funda- plos literários.


mentais em todo o livro, só ganham No primeiro, segundo e terceiro ca-
significado na concretude ordinária pítulos, ela empreende esforço de elu-
das formas de vida que se revelam e cidar o pensamento de Wittgenstein −
se ocultam, na atenção aos detalhes, inspirada em Cavell (1979) e Laugier
nos fluxos cotidianos de conversas, (2015, 2016) −, propondo linhas possí-
“micro-histórias” e “micro-geografias” veis de interlocução entre filosofia e
dos locais em que realizou pesquisa antropologia e convidando a “introdu-
de campo (com pessoas envolvidas zir uma hesitação” em como habita-
com a Partição e em regiões de baixa mos – nós e nossas/os interlocutoras/
renda de Delhi). es – conceitos como cultura, vida coti-
Não é por acaso, então, que Textu- diana e interior/exterior. Veena Das
res of the ordinary recebe o sugestivo propõe, então, retomar o conceito wit-
subtítulo de “fazer antropologia de- tgenstainiano de formas de vida, a
pois de Wittgenstein” (tradução mi- partir da releitura sugerida por Cavell,
nha). São as ideias de Wittgenstein – para repensar sua discussão sobre a
resenha | carolina parreiras

1103

relação entre violência em contextos quanto dos lados obscuros da vida


domésticos cotidianos e a violência cotidiana que podem ser captados em
em contextos extraordinários, como a “momentos minúsculos” da vida. Algo
Partição e os riots de 1984. Assim, para semelhante é encontrado no capítulo
ela, o ponto central está em pensar 5, no qual Das analisa o que chama de
nos limites dessas formas de vida esforço moral, a partir do qual a vida
atravessadas pela violência, em como do outro é engajada no cotidiano. Ao
a violência é incorporada ou não no narrar uma cena, de modo cênico e
cotidiano e nas possibilidades concre- dramatizado, em que dois jovens de
tas de reabitar o mundo e os espaços religiões diferentes se apaixonam, a
de devastação. A cena etnográfica que autora reflete sobre como os desejos
embasa o capítulo 8 – o sequestro e rompem noções de moralidade e pres-
estupro de uma menina de oito anos, crições normativas, produzindo pos-
seguido do processo penal para punir sibilidades de habitar novos mundos.
os culpados – descreve, a partir de re- A relação entre antropologia e li-
latos de campo e da análise do proces- teratura é trabalhada com mais pro-
so jurídico, a brutalidade e a cruelda- fundidade no capítulo 7, dedicado à
de que aparecem a qualquer instante análise de dois livros de Coetzee (1982,
na vida cotidiana. Também propõe 2007) e dos modos como aparecem
pensar na “treliça de relações” que en- questões como ética, responsabilidade
volve moradores de bairros pobres – e vulnerabilidade das formas de vida.
clínicas, laboratórios, delegacias, tri- Ao se voltar para o literário, quando
bunais – e como o procedimento legal enxerga uma relação similar entre, de
é visto a partir de interpretações con- um lado, o autor e seus personagens
flitantes e de rumores. É nesses entre- e, de outro, a antropóloga e pessoas
cruzamentos que se dá a produção de que encontra em campo, Das busca
“fatos”. Esses fatos, no entanto, ga- compreender como as condições de
nham vidas diferentes na vizinhança vida são enquadradas por práticas de
da menina e nas narrativas policiais e violência perpetradas por meio do
jurídicas (que ela chama de ficções da aparato estatal e que contam com a
lei). conivência dos cidadãos, perguntan-
É importante remarcar que Veena do-se a respeito da responsabilidade
Das aposta no caráter misterioso e de cada um de nós, enquanto mem-
incerto do cotidiano, apontando sua bros de comunidades políticas, frente
dupla natureza: é o espaço da rotina a projetos de violência para os quais
e dos hábitos, mas também o local da não demos nosso consentimento – e
incerteza em torno das relações, que um exemplo seria a normalização da
podem se tornar aniquiladoras. A cena tortura em alguns contextos. Outro
etnográfica – a loucura de um jovem ponto trabalhado pela autora diz res-
e sua relação com a família – apresen- peito à maneira como podemos com-
tada no capítulo 6 é um exemplo tan- preender as ideias de humano e de
to da exaustão da habilidade de cuidar forma de vida humana, bem como ao
tessituras, texturas, treliças e tramas: o cotidiano, o ordinário e a tarefa da antropologia

1104

fato de que formas de vida contêm em suas experiências de trabalho de


formas de morte, o que aponta tanto campo, especialmente – como é seu
para a fragilidade de nossos acordos caso – estando na “vizinhança da mor-
quanto para a necessidade de pensar te”, em contextos marcados pela vio-
ética e vida moral a partir de noções lência e pelo horror. Além dos autores
de cuidado e do ordinário, entendido citados, Das também utiliza bastante
como o lugar de reabitação do mundo. o pensamento de Austin (1962), reto-
Ainda que cuidado e reabitação sejam mando sua discussão sobre enuncia-
incomensuráveis com a grandeza do dos performativos e sobre ato ilocu-
horror, eles representam saídas para cionário e efeito perlocucionário, em
o enfrentar. Vem daí seu conceito de que interessa pensar a falha dos enun-
“ética ordinária”, sobre a qual reflete ciados e a instabilidade do contexto.
em profundidade nos capítulos 3 e 4. Vem dessa influência a discussão so-
De modo geral, argumenta que ética e bre vulnerabilidade, que aparece em
moralidade devem ser pensadas no diferentes capítulos do livro, e a pro-
registro do ordinário, tecidas como posição de uma política do ordinário,
fios na trama da vida e que estão além baseada na “costura” de ação e expres-
de fórmulas condensadas de bom ou são.
mau. Ética ordinária inclui reconhecer Ao nos deparar com referenciais
a vulnerabilidade e a fragilidade da teóricos dessa magnitude (ainda que
vida cotidiana, o que é notável, por Das se refira aos conceitos que utiliza
exemplo, nas “pequenas disciplinas” como “modestos, cotidianos e nada
executadas por pessoas ordinárias (e magistrais” – p. xiii), é possível reco-
as cenas etnográficas que apresenta nhecer outra das marcas da obra da
caminham nesse sentido) para manter autora: as aproximações entre filoso-
a vida. fia e antropologia. Mesmo que a leitu-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1101 – 1106 , set. – dez., 2021

Ainda em termos de influências ra seja, por vezes, extremamente eru-


teóricas, além de Wittgenstein, reapa- dita e difícil para os não familiariza-
rece a centralidade de Stanley Cavell. dos com conceitos filosóficos, Veena
Além de lhe dedicar o livro, Das reto- Das evidencia o quanto esses concei-
ma algumas de suas obras e algumas tos não são dados de antemão, não
de suas lições, como quando, por são neutros e estão, também eles, li-
exemplo, no último capítulo da obra, gados ao cotidiano. Possuem uma
reproduz um comentário feito por Ca- “textura aberta” (p. 8). Esse tema, ainda
vell a um artigo que havia submetido que percorra toda a obra, ganha espe-
para uma revista e havia provocado cial atenção nos capítulos 9, 10 e 11,
“reações mistas” (p. 307) nos pareceris- propondo-se a autora a pensar no mo-
tas. De acordo com ela, é a partir do do como conceitos antropológicos são
generoso texto escrito por ele, que ela gerados. Para tal, ela utiliza casos
se dá conta de seu próprio lugar no exemplares: as observações de Witt-
mundo, notando o quanto antropólo- genstein à obra O ramo de ouro, de Fra-
gas/os nem sempre sabem quem são zer (2004) (e ela mesma tece novas
resenha | carolina parreiras

1105

observações); revisita duas etnogra- mos teóricos quanto empíricos. Vem


fias clássicas – Evans-Pritchard (1940), dessa constatação sua maior contri-
sobre os Nuer, e Liendhardt (1961), so- buição para a antropologia: só é pos-
bre os Dinka; e analisa um experimen- sível pensar em teoria a partir dos
to, da junção entre etnografia e bio- problemas que emergem da trama da
grafia, representada pela “antropoesia” vida e só se encontra o humano – ta-
(anthropoetry) de Renato Rosaldo (2014) refa antropológica central – por meio
e um livro de Nayanika Mookherjee do engajamento com a vida concreta,
(2015), ambos sobre perdas, para pen- miúda, dos momentos minúsculos. É
sar a respeito da voz autobiográfica somente desse modo que podemos
que atravessa a produção de nossos compreender o cotidiano e as amea-
textos e do próprio conhecimento an- ças (ordinárias e extraordinárias) a
tropológico. Desse modo, ela afirma esse cotidiano, bem como encontrar
que os conceitos surgem dentro de as palavras a partir das quais narrar e
uma forma de vida constituída a par- descrever as formas de vida humana.
tir do engajamento de antropólogas/ É no cotidiano – esse “recontar de
os com o trabalho de campo e com eventos domésticos” (p. 27) – que po-
seus ambientes intelectuais. Nesse demos encontrar o outro e a nós mes-
sentido, não se trata de pensar em mos no “sobe e desce nas intensidades
uma hierarquia entre conceitos antro- por meio das quais aprendemos a es-
pológicos e conceitos vernaculares, tar/ser no mundo” (p. 2). Assim proce-
mas tomar ambos como “imersos no dendo, torna-se possível, como alerta
mundo ordinário” (p. 308). Veena Das, em afirmação quase poé-
Assim, o que a textura criada por tica, encontrar o amor da antropologia,
Veena Das e brevemente sumarizada conquistado a partir do momento em
neste texto mostra é a centralidade do que deixamos o conhecimento do ou-
cotidiano e do ordinário, tanto em ter- tro nos marcar e afetar.

Recebido em 15/04/2021 |
Aprovado em 19/07/2021

Carolina Parreiras é antropóloga, desenvolve pesquisa de


pós-doutorado no Departamento de Antropologia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É doutora
em ciências sociais pela Unicamp. Foi visiting scholar do
Institute of Latin American Studies da Columbia University.
Tem experiência e publicações nas temáticas de
antropologia digital, violência e gênero e sexualidade. Entre
suas publicações mais recentes estão “The covid-19
pandemic and the reconfigurations of domestic space in
favelas” e, em coautoria, “Conflicting care in Brazil”.
1106

Referências Laug ier, Sandra. (2016). Politics of


vulnerability and responsibility for
Austin, John. (1962). How to do things
ordinary others. Critical Horizons, 17/2,
with words. Cambridge: Harvard Uni-
p. 207-223.
versity Press.
Laug ier, Sandra. (2015). Voice as
Cavell, Stanley. (1979) The claim of rea-
forms of life and life form. In: Witt-
son. Wittgenstein, skepticism, morality,
genstein and forms of life Special
and tragedy. Oxford: Oxford University
Issue. Nordic Wittgenstein Review, p.
Press.
63-82.
Coetzee, John. (2007). Diary of a bad
Lienhardt, Godfrey. (1961). Divinity
year. London: Penguin.
and experience. The religion of the Dinka.
Coetzee, John. (1982). Waiting for the Oxford: Claredon.
barbarians. London: Penguin.
Mookherjee, Nayanika. (2015). The
Das, Veena. (2020). Vidas e palavras. A spectral wound. Sexual violence, public
violência e sua descida ao ordinário. São memories, and the Bangladesh War of
Paulo: Editora Unifesp. 1971. Durham: Duke University Press.
Das, Veena. (2007). Life and words.Vio- Rosaldo, Renato. (2014). The day of
lence and the descent into the ordinary. Shelly’s death. The poetry and ethnogra-
Berkeley: University of California phy of grief. Durham: Duke University
Press. Press.
Evans-Pritchard, Edward. (1940). The Wittgenstein, Ludwig. (1953). Philoso-
Nuer. A description of the modes of live- fical investigations. London: MacMillan
lihood and political institutions of a nilo- Publishing Company.
tic people. Oxford: Clarendon.
Frazer, James (2004). The Golden bough.
Sioux Falls: NuVision Publications.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11317

1 Universidade de São Paulo (USP), Departamento de Antropologia,


São Paulo, SP, Brasil
johndaws@usp.br
https://orcid.org/0000-0003-1427-7804

John C. Dawsey I

Victor Witter Turner, Kavula!

Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. (2020).


Drama, ritual e performance: a antropologia de Victor Turner.
Rio de Janeiro: Mauad. 146 p.

Em foco, Victor Turner (1920-1983). Um que, os conceitos de drama social e


ancestral. Em seu livro, Drama, ritual e símbolo ritual.
performance: a antropologia de Victor Tur- Num salto no remoinho do tempo,
ner, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti busca a força originária da
Cavalcanti procura recompor a obra antropologia de Turner. O processo de
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1107 – 1111 , set. – dez., 2021

de um ancestral antropológico. O títu- criação de um conceito de performance


lo sinaliza um percurso. na antropologia, em inícios dos anos
Em sua análise da recepção de 1980, que Turner associa a uma antro-
Turner no cenário atual da antropo- pologia pós-moderna, se afunda no
logia Cavalcanti detecta uma espécie tempo e, particularmente, na etnogra-
de empobrecimento na leitura da fia realizada pelo autor nos anos 1950,
obra e na experiência antropológica. numa aldeia ndembu. Há uma conti-
Um risco de sparagmos ou desmem- nuidade entre o que vem antes e de-
bramento da obra. Uma antropologia pois. Schism and continuity. As primei-
interessada nos últimos escritos do ras palavras do título do livro de es-
autor, que surgem como os primeiros treia de Turner, publicado em 1957,
esboços de uma antropologia da per- sinalizam um movimento ritual que
formance, produz possivelmente um também se detecta na narrativa de
esquecimento da obra anterior. E de Cavalcanti. No estudo cuidadoso do
algumas das contribuições mais cria- conjunto da obra de Victor Turner, Ma-
tivas do autor. Entre elas, em desta- ria Laura Cavalcanti realiza uma es-
victor witter turner, kavula!

1108

pécie de rito de cura, recompondo dramas sociais. Detalhadamente, Ca-


uma obra e um campo de estudos. valcanti descreve três deles. Observa-
Retomando o percurso de Turner, se um processo estrutural, um sistema
o livro de Cavalcanti tem uma intro- em movimento. Membros da aldeia se
dução e três capítulos tratando de manifestam como pessoas concretas,
drama social, símbolo ritual e perfor- personagens singulares.
mance, respectivamente. Seguem, em A sequência dos dramas desembo-
apêndice, duas entrevistas, uma com ca no “magnífico capítulo X”, no qual
Roberto DaMatta e outra com Yvonne Turner analisa a fase regenerativa de
Maggie, duas figuras que iluminam a um “culto de aflição” – o ritual do
recepção originária de Turner e sua Chihamba. Um rito de cura se apre-
obra, nos anos 1970, na antropologia senta como ação reparadora. Em
brasileira. DaMatta escreve o prefácio. Schism and continuity, diz Cavalcanti,
O percurso narrativo de Cavalcan- Victor Turner apresenta “poemas em
ti encena o próprio movimento da forma de ação” (p. 42).
obra de Turner acerca do conceito de No capítulo 2, Símbolo ritual: luzes
ritual – o eixo, diz Cavalcanti, em tor- e sombras no dia social, as atenções
no do qual se mobilizam outros temas, se voltam para o Chihamba. Em des-
tais como os que compõem os três taque, o personagem/artefato Kavula,
capítulos. um estranho ser sobrenatural, cujo
No capítulo 1, Drama social: o tea- nome evoca o relâmpago, a chuva, a
tro adentra a antropologia, Cavalcanti mandioca e outros grãos, e, ainda, a
encontra um momento originário: figura de Mwantiyanvwa, o ancestral
Schism and continuity in an African socie- originário. Na noite do primeiro dia do
ty: a study of Ndembu village life (1957). rito, por meio da atuação de um adep-
O livro de Turner produz uma inflexão to sênior, Kavula se apresenta como
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1107 – 1111 , set. – dez., 2021

altamente criativa no social-estrutu- um palhaço. No dia seguinte, presen-


ralismo de meados do século XX. Res- tifica-se na forma de um artefato ou
salta-se a força da etnografia e da me- boneco. Sua morte ritual produz um
todologia inovadora dos “casos em efeito de cura individual e coletiva.
processos” (extended case method). Nas trilhas de Turner, Cavalcanti exa-
Particularmente, chama atenção a mina o conceito de símbolo ritual em
originalidade do uso da metáfora do ação. E mostra como, na obra desse
drama, inspirada na tragédia grega. Na autor, os símbolos podem ser ambiva-
organização do material etnográfico, lentes, polifônicos e multivocais.
Turner elabora uma noção de drama Na parte final do capítulo, Caval-
social consistindo de quatro momen- canti chama atenção para o diálogo de
tos: ruptura, crise, ação reparadora e Turner com a psicologia profunda de
desfecho. Na narrativa de Turner, a Bettelheim, Jung e Freud. Em foco, as
vida social se manifesta como um te- propriedades dos símbolos, discutidas
atro dramático marcado por tensões, por Turner, com inspiração nas análi-
contradições e conflitos. Em foco, sete ses freudianas do trabalho do sonho.
resenha | john c. dawsey

1109

Nos símbolos se encontram elementos ta a leitura: On the edge of the bush


inconscientes, suprimidos. Há latên- (Turner, 1985); The anthropology of per-
cia nos símbolos. De acordo com Tur- formance (Turner, 1987); e “Dewey, Dil-
ner, se a estrutura social se caracteri- they and drama: an essay in the an-
za como um mascaramento, os ritos thropology of experience” (Turner,
de cura, tais como o Chihamba, pro- 1986). Dos escritos dessa fase, apenas
duzem momentos de revelação. Ten- From ritual do theatre (Turner, 1982) foi
tam dizer o indizível. Nos símbolos, publicado em vida.
sombras se agitam. E a vida se ilumina. A respeito desses escritos, eu gos-
O título do capítulo 3, de Cavalcan- taria de sugerir um adendo. Na última
ti, Do drama à performance, sugere um fase do percurso intelectual de Victor
deslocamento: a virada performativa Turner se detecta um momento de
(performance turn) de Victor Turner. De transição, uma espécie de límen. Há
início, uma etimologia. Performance, do uma fragilidade nesses textos, um
latim formare, “formar, dar forma”. No inacabamento. Ou, mesmo, uma de-
inglês, perform, “executar, realizar”. No composição. Observa-se uma diminui-
francês, parfourmer, “cumprir, acabar, ção de vitalidade do trabalho etnográ-
concluir”. fico. Ao mesmo tempo, percebe-se um
Em seus últimos escritos, Turner renascimento. Tomb and womb (túmu-
procura esboçar os traços de antropo- lo e útero). Turner se permite correr
logias da experiência e da performance. novos riscos.
Mas, chama atenção a continuidade. Percebe-se a força do deslocamen-
Como um leitmotiv de sua obra, retor- to, enunciado em The ritual process
nam os conceitos de drama social, (1969): de uma aldeia ndembu ao cha-
símbolo ritual, liminaridade e commu- mado mundo ocidental. Em finais dos
nitas. anos 1970, Turner se depara com o
Acompanhando esse movimento, empobrecimento da experiência do
Cavalcanti retoma o ritual do Chiham- límen e dos rituais. Suas atenções se
ba e o personagem/artefato Kavula, voltam para o florescimento, desde a
narrados no capítulo X de Schism and Revolução Industrial, de outras for-
continuity. Kavula, o ser liminar, pre- mas de ação simbólica, chamadas li-
nuncia temas vindouros. “Kavula é minoides. Comparadas às formas limi-
performance”, diz Cavalcanti (p. 84). nares, as liminoides ocorrem mais às
Tem a ver com teatro, disfarce, mani- margens dos poderes centrais da vida
pulação de artefato, encenação e efi- social. E podem ser mais críticas, lú-
cácia ritual. dicas e subversivas. Abrem-se, com
Em relação aos últimos escritos de elas, possibilidades de interromper
Turner, em finais dos anos 1970 e iní- uma espécie de eterno retorno, schism
cios da década seguinte, Cavalcanti and continuity.
chama atenção para sua natureza ex- Também se abre, com elas, em
ploratória. E, sobretudo, para sua edi- meio ao estilhaçamento da experiên-
ção e publicação póstuma, que dificul- cia, uma multiplicidade de formas de
victor witter turner, kavula!

1110

expressão, do ritual ao teatro e aos teatro adentra a antropologia”. Como


outros gêneros de performance. Em per- nota Cavalcanti, a aparição da noção
formance, o contido ou suprimido ga- do ritual em Schism and continuity’ é,
nha uma forma de expressão. Da ex- de certa forma, inesperada. Em rela-
periência e, particularmente, da arti- ção ao título de um dos seus últimos
culação que ela proporciona entre escritos, Do ritual ao teatro, o percurso
passado e presente, no aqui e agora, de Turner não deixa de revelar um mo-
depende a significação do mundo. A vimento inverso, surpreendente: do
etimologia da palavra “experiência” é teatro ao ritual. E, depois, do ritual ao
reveladora. Assim como a palavra “pe- teatro.
rigo”, ela deriva do termo indo-euro- Na segunda entrevista, um comen-
peu per, “aventurar-se, correr riscos”. tário de Yvonne Maggie a respeito da
Performance é uma expressão da expe- recepção da obra de Turner na antro-
riência, implica correr riscos. Em fi- pologia brasileira, nos anos 1970, tam-
nais dos anos 1970, em Turner, se en- bém chama atenção. Era preciso re-
contra uma antropologia em perfor- descobrir o Brasil. Foi o que ela fez em
mance. Guerra de orixá (1975) e outros escritos.
Um detalhe: no conceito de drama Maria Laura Viveiros de Castro Ca-
social se manifesta a possibilidade de valcanti faz parte dessa linhagem. Ela
uma experiência coletiva (mais Er- é uma das principais referências em
fahrung que Erlebnis), principalmente estudos de rituais no Brasil. Realizou
de communitas. Nos últimos escritos de pesquisas marcantes sobre o carnaval
Turner, como mostra Cavalcanti, o carioca e o boi-bumbá de Parintins.
conceito de drama social retorna com Em encontros de antropologia e per-
força. formance, tenho tido o privilégio de
Na primeira entrevista que se en- ouvir e aprender com as suas ideias e
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1107 – 1111 , set. – dez., 2021

contra em apêndice, Roberto DaMatta contribuições, sempre instigantes.


comenta que é sempre no final que se Seu livro Drama, ritual e performan-
volta ao início. E relata a surpresa dos ce: a antropologia de Victor Turner pro-
discípulos de Turner ao verificar que, duz um efeito de cura, recompondo
nos anos finais, ele só se interessava uma experiência antropológica. Um
por teatro. Ele parecia só querer saber livro em performance, uma expressão
de Richard Schechner, o diretor de te- da experiência. Ao longo do percurso,
atro experimental e fundador do The a autora propicia um encontro com o
Performance Group (TPG) em Nova nosso ancestral antropológico, Victor
York. Witter Turner, uma espécie de Kavula,
Nesse período final, porém, Turner como ela mesma sugere, um ser limi-
voltava, sim, ao começo e à infância. nar capaz de nos surpreender.
Victor Turner é filho de Violet Witter
– uma das fundadoras do Teatro Nacio- Recebida em 16/03/2021 |
nal Escocês. O subtítulo do primeiro Aprovada em 20/05/2021
capítulo de Cavalcanti é revelador: “o
resenha | john c. dawsey

1111

REFERÊNCIAS theatre. New York: Performing Arts


Journal Publications.
Maggie, Yvonne. (1975).Guerra de orixá.
Rio de Janeiro: Zahar. Turner, Victor. (1969). The ritual pro-
cess. Piscataway, NJ: Transaction Pu-
Turner, Victor. (1987). The anthropology
blishers.
of performance. New York: PAJ Publica-
tions. Turner, Victor. (1957). Schism and conti-
nuity in an African society: a study of
Turner, Victor. (1986). Dewey, Dilthey
Ndembu village life. Manchester: Rho-
and drama: an essay in the anthro-
des-Livingstone Institute /Northern
pology of experience. In: Turner, Vic-
R ho de s i a / M a nc he s t e r Un i v e r s it y
tor W. & Bruner, Edward M. (eds.). The
Press.
anthropology of experience. Urbana /
Chicago: University of Illinois Press.
Turner, Victor. (1985). On the edge of
the bush. Tucson: The University of
Arizona Press.
Turner, Victor. (1982). From ritual do

John C. Dawsey é professor titular de antropologia da Universidade


de São Paulo (USP). Atua como apoio docente junto ao Núcleo de
Artes Afro-Brasileiras da USP, desde 2007. Coordena o Núcleo de
Antropologia, Performance e Drama (Napedra) desde sua fundação
em 2001, tendo organizado e coordenado diversos projetos de
pesquisa e eventos, incluindo o I Encontro Nacional de
Antropologia e Performance (Enap), em 2010, o I Encontro
Internacional de Antropologia e Performance (Eiap), em 2011, e o
Sismologia da Performance: Napedra 20 Anos, em 2021. Tem
publicado artigos, coletâneas e livros, destacando-se De que riem os
boias-frias? Diários de antropologia e teatro.
1112
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752021v11318

1 Universidade Federal do Ceará, Departamento de Ciências Sociais,


Fortaleza, CE, Brasil
mariana.barreto@pq.cnpq.br
https://orcid.org/0000-0002-0335-7123

Mariana Barreto I

Autor e obra podem ser separados?


“Sim e não” responde GisÈle Sapiro

Sapiro, Gisèle. (2020).


Peut-on dissocier l’œuvre de l’auteur?
Paris: Seuil, 238p.

, O novo livro de Gisèle Sapiro, Peut-on que continue devedora de crenças co-
dissocier l’œuvre de l’auteur?, parte de letivas profundas e antigas. Se o autor
uma questão que não é nova, remete macula sua obra por condutas, priva-
às noções de autor e obra, construções das ou públicas, repreensíveis, as con-
sociais que ganham significados par- cepções que o singularizam ganham
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1113 – 1119 , set. – dez., 2021

ticulares a partir da emergência mo- força nos debates que se estabelecem.


derna da figura do autor. Variaram ao As polêmicas suscitadas criam cons-
longo da história e no interior das trangimentos, controvérsias amplifi-
culturas. A criação da responsabilida- cadas pelas mídias e redes sociais,
de penal do autor, no século XVI, as- para quem, igualmente, o criador é,
sim como da propriedade intelectual invariavelmente, alguém que se expri-
no século XVIII, estreitou sobremanei- me em nome próprio, um ser isolado,
ra as relações entre a pessoa do autor demiurgo da criação literária e/ou ar-
e sua obra, acentuando a individuali- tística. Crimes de assédio, pedofilia,
zação da “personagem autor”, instau- injúria, filiações e apoios a regimes
rando, como observa Foucault (2001: fascistas, muitas vezes expressos nas
266), “esta categoria fundamental da próprias obras, declarações racistas,
crítica, ‘o homem e a obra’”. xenófobas, antissemitas, sexistas são
No século XXI a discussão sobre os alguns dos atos que desencadeiam o
vínculos íntimos entre o autor e sua debate frequentemente comprometi-
obra tomou novos contornos, ainda do por reações em estilo panfletário,
autor e obra podem ser separados? “sim e não” responde gisèle sapiro

1114

por vezes revelando posturas autori- tornam públicas: os limites de seu pe-
tárias que tendem a rechaçar, desqua- rímetro e a coesão de sua unidade. O
lificar as argumentações racionais nome do autor funciona bem para de-
sobre as questões. Por essas razões, a signar cada uma de suas obras, toda-
autora convida a examinar os argu- via, quando escolhemos uma e não
mentos do confuso debate, a fim de os outra para isso, isto é, quando a esco-
clarificar, oferecendo elementos capa- lha se torna seletiva, altera-se o perí-
zes de permitir que cada leitor/a se metro que dava coesão à obra como
posicione nessa arena, desenredando- conjunto. Situação que pode ser ob-
se das confusões e más-fés discursi- servada quando a obra é dividida em
vas que, muitas vezes, se impõem períodos, fases, gêneros, fazendo com
como forma de desacreditar quem que duas descrições de um mesmo
possa lhe parecer adversário/a. autor não sejam intercambiáveis (p.
Na primeira parte do livro, a dis- 45), ou, ainda, quando o autor denega,
cussão se dá sobre as formas de iden- recusa-se a reconhecer como sua a
tificação entre o autor e sua obra. Ela própria obra.
é concebida a partir de uma tripla re- A relação de semelhança entre o
lação entre metonímia, semelhança e autor e a obra remete à pessoa, o que
causalidade interna (intencionalida- não ocorre na relação metonímica. A
de) que, se à primeira vista fortalece crença coletiva na responsabilidade
a crença no vínculo íntimo entre um moral do autor é tão forte, que a maior
e outro, sob olhar agudo não resiste evidência dessa illusio, ultrapassando
ao confronto com as estratégias dos as fronteiras do campo da produção
próprios autores e dos intermediários cultural, talvez esteja na sua institu-
culturais, e à recepção das obras. Co- cionalização, como expresso na legis-
mo formas de identificação, metoní- lação dos direitos autorais, entre ou-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1113 – 1119 , set. – dez., 2021

mia, semelhança e causalidade inter- tras culpas penais imputadas aos


na são argumentos que legitimam a autores, criadores etc. A obra seria
proteção formal e institucional da uma emanação direta da pessoa do
obra (direitos autorais, por exemplo), autor; presumem-se relações internas
prestígio desonrado pelos movimen- e psicológicas estreitas entre ambos.
tos de produção e circulação delas Outra evidência disso estaria no tra-
mesmas e de seus criadores. balho de ficcionalização (em suas for-
A relação metonímica se estabele- mas alegóricas, metafóricas, escritos
ce pela identificação do nome do autor autobiográficos etc.), forma que favo-
designando o conjunto de sua obra, rece a criação de um espaço relacional
uma produção alegadamente coeren- complexo, em que os vínculos entre a
te e inscrita em um projeto presciente personalidade do autor, sua biografia
maior. Os movimentos de circulação e seus valores são mascarados pelo
e apropriação, no entanto, questionam trabalho de ficção (p. 56-57). Essas es-
essa coerência por duas realidades tratégias de escrita, no entanto, abrem
que se colocam quando as obras se espaços interpretativos que somente
resenha | mariana barreto

1115

o recurso aos elementos externos à identificação entre ambos é questio-


obra permite explicar. Eis uma primei- nada pelos processos de circulação
ra contribuição que a sociologia apre- das obras e autores nos seus três ti-
senta para decifrar as inconsistências pos: na metonímica, a identificação
das certezas: propondo em suas aná- vira diferenciação pelas instabilidades
lises não separar a obra do autor, ela do perímetro da obra e de sua coerên-
os confronta em seus vínculos de cia interna; na semelhança moral, pe-
identificação. lo jogo interpretativo entre autor, nar-
A relação de intencionalidade, por rador e seus personagens, que é na
seu turno, os identifica, dado que a verdade o lugar das estratégias do
ação aparece orientada por intenções autor e das estratégias artísticas; na
livres, sem determinações, como “um intencionalidade (causalidade inter-
projeto” inalterado e linear. A intencio- na), pelos efeitos da obra, por sua au-
nalidade social e culturalmente desan- tonomização relativa do criador quan-
corada dessa perspectiva esbarra nos do se torna pública, em seu processo
efeitos da autonomização relativa da de recepção.
obra, e o momento da recepção consti- A segunda parte do livro é consa-
tui seu melhor exemplo. Nesse proces- grada ao exame de casos emblemáti-
so, é plausível que a moral da obra es- cos de autores, criadores, e o enfren-
teja em questão, sem que a de seu autor tamento público das responsabilida-
seja questionada. Por isso, a importân- des sobre seus atos e suas criações. 1
cia da discussão sobre a violência sim- A autora se concentra no modo como
bólica que as obras correm o risco de se colocam os argumentos que movem
perpetuar; suas condições de produção as polêmicas em torno dos eventos.
e recepção devem ser interpeladas (p. Analiticamente, divide-os em dois
88). Do contrário, criam-se, à revelia grupos de fenômenos: os comporta-
dos autores e das próprias obras, opo- mentos privados repreensíveis, crimes
sições fictícias entre “coisas semelhan- de estupro, pedofilia e assassinato, e
tes e falsas semelhanças entre coisas as tomadas de posição ideológicas
diferentes” (Bourdieu, 2009: 34). condenáveis, incitação ao ódio racial,
Assim sendo, a primeira parte do antissemitismo, adesão a regimes fas-
livro é sintetizada por Sapiro da se- cistas etc. Aqueles que intervêm pu-
guinte maneira: as três relações de blicamente, quer justifiquem suas
identificação portadoras de crenças posições por princípios morais, polí-
coletivas seculares, como já mencio- ticos ou estéticos, o fazem deixando
nado, transformam-se em estratégias ver suas adesões aos princípios de
de diferenciação, colocando em xeque identificação discutidos na primeira
o segundo grupo de argumentos que parte, sem ainda conseguir distinguir
anima as polêmicas no debate público representação de apologia ao ódio ou
atual, ou seja, aquele que defende a à discriminação. Circunstancialmente,
indissolubilidade entre a moral do au- as práticas e as estratégias acusató-
tor e a moral da obra. A relação de rias ou de defesa redundam na perpe-
autor e obra podem ser separados? “sim e não” responde gisèle sapiro

1116

tuação da violência física e simbólica ideais, talvez generalizáveis: a posição


que suspeitam atacar ou punir. “do esteta”, amplamente acolhida na
Como citado, uma vez parte do de- França, por exemplo, e a posição mais
bate público, os fatos que atingiram o radical da “cultura do cancelamento”,
autor e/ou sua obra, quando as mora- intensamente reiterada nos Estados
lidade e moral de um e outro foram Unidos − isto é, um conjunto de argu-
convulsionadas, convergem para dois mentos aparece marcado por certo
tipos de respostas em reação aos universalismo, e outro, por certa pos-
acontecimentos: a primeira está em- tura moralista, produto de sensibili-
basada na concepção singularizante dades exacerbadas e elevado limite de
do autor, isto é, preconiza a separação intolerância justificados pela história
entre o autor e sua obra, sob o argu- dos combates contra o racismo insti-
mento de que as obras são autônomas tucional no país.
e, portanto, devem ser apreciadas por Se o livro não tem pretensões pres-
elas mesmas, independente da moral critivas, a posição da socióloga espe-
de seu autor. A segunda, então, afirma cializada no estudo dos universos
seu oposto: a obra é indissociável da culturais é clara. Trata-se de aperfei-
moral do autor. Autônoma ou não, a çoar um ponto de vista intermediário
obra pode ser censurada? Na perspec- que não negue as relações entre a mo-
tiva radical da “cultura do cancela- ralidade do autor e a moral da obra,
mento”, que emerge nos Estados Uni- mas que julgue as obras de modo re-
dos, sim; não só a obra como seu autor lativamente autônomo, ou seja, se-
podem ser repelidos. Duas reações gundo critérios específicos do campo
que iluminam as tipologias: as contes- da produção cultural, desde que, por
tações francesas ao César atribuído a quaisquer razões, não comportem in-
Polanski não exigiam sua censura, citações ao ódio contra pessoas ou
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1113 – 1119 , set. – dez., 2021

mas o debate público sobre seus cri- grupos, tampouco façam apologia à
mes, sobre sua torpe conduta e, o se- violência física ou simbólica (p. 20).
gundo exemplo, o New York Times per- Daí porque, sua resposta à questão
guntava se era hora de censurar Gau- posta no título do ensaio é simultane-
guin, quando de uma exposição, em amente “sim” e “não”.
Londres, dos retratos do pintor fran- Por que sim? Porque a identifica-
cês acusado de abuso de menores (p. ção entre a obra e o autor jamais é
13 e 14). São os argumentos envolvidos completa; a obra lhe escapa. Autono-
nesses dois grupos de respostas que miza-se no processo mesmo de pro-
circulam de um país a outro, dando dução; sua existência é fruto de um
formas específicas às polêmicas. O trabalho coletivo implicado na exis-
objetivo no pequeno ensaio é exami- tência de uma série de intermediários
nar alguns desdobramentos dos argu- culturais. De modo semelhante, trans-
mentos dos adeptos das duas posições gride-lhe uma segunda vez, nos pro-
extremas. Uma vez delineados, são cessos de recepção, pelas formas de
sintetizados em duas posições típico- apropriação, que podem ser contradi-
resenha | mariana barreto

1117

tórias entre si e entre as intenções do autor e às estratégias de criação fren-


autor. Quando circulam, o fazem em te às transformações do campo de
tempos e espaços diferentes; se reti- produção cultural em que ela se ins-
radas de seus contextos de produção, creve, e que termina por lhe atribuir
podem servir a interesses que outra significado.
vez fogem ao autor. Além disso, se a Especialmente neste ponto, as ci-
recepção se vincula a uma mudança ências humanas têm o importante pa-
temporal nos “horizontes de expecta- pel de fazer avançarem as discussões,
tivas”, ela pode revelar visões de mun- para além do que já pratica a sociolo-
do preconceituosas, discriminatórias, gia, e não convergir com as abordagens
anteriormente toleradas e inaceitá- das obras, distinguindo-as das biogra-
veis noutro momento. São caracterís- fias e dos engajamentos de seus auto-
ticas das formas de recepção, das res. Os novos tempos exigem a trans-
“operações de leitura” (Bourdieu, 2009: cendência das fronteiras que resistem
31), que contribuem para evidenciar a entre as posições dos exegetas autori-
autonomia relativa das obras. Vide o zados e as dos autores que defendem
exemplo de Heidegger, os esforços uma abordagem sócio-histórica das
empreendidos durante muito tempo obras. O momento requer a combina-
para julgar de forma absoluta a auto- ção de esforços para a realização “de
nomia de suas obras, separando-as um trabalho de anamnese” imprescin-
das vinculações políticas fascistas do dível, um exame a um só tempo inter-
filósofo, e as controvérsias quando do no e externo das obras. Isso teria impli-
lançamento de seus Cahiers noirs, por- cações até mesmo sobre o futuro das
tadores da eufemização de seu racis- ciências humanas como disciplinas.
mo antissemita. Sua exclusão não Segundo Sapiro, só elas são capazes de
seria suficiente, visto que ela também fazer a história social do “inconsciente
o desobrigaria da “responsabilidade epistêmico” das produções que, mes-
sobre as consequências do apelo à res- mo tendo passado pelo “teste da pos-
ponsabilidade” (p. 166) que ele deve teridade”, precisam ser exumadas pa-
sobre o que produziu. Precisamente ra que se retire delas qualquer possibi-
por isso, a resposta é bifronte. lidade de alimentar construções de
Por que não? Porque a obra carrega novos cânones nacionalistas, racistas
traços da visão de mundo do autor, de e xenófobos (p. 229-230).
suas disposições ético-políticas, quer Suprimir as obras, “cancelar” os
estejam metamorfoseadas ou subli- autores, isso é ignorar a autonomia
madas pelo seu ofício. As responsabi- relativa das obras, é recusar-se a exa-
lidades sobre ela precisam ser assu- minar o lugar dos cânones, é sublimar
midas, também sobre os efeitos que suas fabricações nacionais e interna-
lhes escapam, quer o autor tenha su- cionais, isto é, desconsiderar os me-
cesso ou fracasse em sua carreira. Im- canismos que os movem, os mesmos
porta igualmente analisá-la em sua que excluíram e excluem as mulheres
evolução, em relação às estratégias do e as minorias por motivos relaciona-
autor e obra podem ser separados? “sim e não” responde gisèle sapiro

1118

dos a sua pessoa e não a seus traba- não anule o debate público, pois que
lhos. Uma vez que não são denegados, é ele, animado pelos movimentos fe-
assim como os cientistas sociais, os ministas, antirracistas ou contrários
intermediários culturais, editores, crí- a toda sorte de discriminação e inci-
ticos, tradutores etc., têm um singular tação ao ódio contra populações, que
papel no exercício de suas responsa- pode sensibilizar para problemáticas
bilidades nesse trabalho de releitura, ainda ocultadas, provocando a eleva-
reavaliação e atualização dos padrões. ção dos níveis de tolerância em cada
Por fim, a discussão nos conduz a período de tempo histórico. Para com-
observar que os casos cuja notorieda- preender os argumentos suscitados
de internacional foi incontestável tal- pela forma que as polêmicas tomam
vez estejam associados aos movimen- entre nós, resta refletir sobre o modo
tos norte-americanos, #MeToo e a como a elas respondemos: censura-
cancel culture, os dois que convidam a mos nossos/as autores/as, criadores/
suprimir autores, criadores e suas as e artistas, suprimimos suas obras,
obras sexistas e racistas. O poder de ou as discutimos e os/as chamamos
internacionalização dessas lutas, as- para assumir as consequências de su-
sim como a própria posição cultural as responsabilidades e cumplicida-
dominante dos Estados Unidos, não des? Material para iniciar o debate não
deve impedir o debate público sobre nos falta.
as condições de produção das obras
intelectuais ou artísticas. Assimilar a Recebido em 23/11/2020 |
censura, assumindo uma postura re- Aprovado em 14/01/2021
comendável, de “bom tom”, equivale-
ria a eliminar o próprio debate, num
momento em que “sua existência é
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1113 – 1119 , set. – dez., 2021

vital para o trabalho de conscientiza-


ção sobre as questões sociais da cria-
ção e, mais amplamente, da reflexivi-
dade coletiva sobre as formas de vio-
lência simbólica que se exercem em
nossas sociedades” (p. 19).
Em síntese, Gisèle Sapiro trabalha
duas questões assim resumidas: po-
demos separar a obra do autor? Pode-
mos e não podemos. A dupla resposta
dificulta a formulação da questão se-
guinte, mas não a invalida, podemos
suprimir autor e/ou obra? Não, sob a
condição de que haja uma distinção
entre apologia e representação. Eis
outro motivo para que o cerceamento
resenha | mariana barreto

1119

Nota ReferÊncias

1 Nesse sentido, Peut-on dissocier l’œuvre Bourdieu, Pierre. (2009). Les condi-
de l’auteur? continua a discussão que tions sociales de la circulation inter-
a autora faz em outros trabalhos, mas nationale des idées. In: Sapiro, Gisèle
notadamente em Des mots qui tuent, (dir.). L’espace intellectuel en Europe. De
igualmente publicado no segundo se- la formation des États-nations à la mon-
mestre de 2020, em que trata do pro- dialisation XIXe-XXIe siècle. Par is: La
cesso de autonomização do autor em Découverte, p. 27-39.
relação à moral pública, tomando co- Foucault, Michel. (2001). O que é um
mo objeto o julgamento das respon- autor? In: Ditos e escritos: estética – li-
sabilidades dos intelectuais que cola- teratura e pintura, música e cinema (v.
boraram com a ocupação alemã na III). Rio de Janeiro: Forense
França em 194 4-1945. Tanto numa Universitária, p. 264-298.
obra quanto na outra, a questão da
Sapiro, Gisèle. (2020). Peut-on dissocier
responsabilidade do autor vincula-se
l’œuvre de l’auteur? Paris: Seuil.
a seu processo de autonomização, so-
bretudo em relação a uma moral pú-
blica.

Mariana Barreto é mestre e doutora em sociologia pela


Universidade Estadual de Campinas, professora adjunta IV do
Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação
em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Suas publicações
mais recentes são “The Kalunga Project: the meanings of popular
Brazilian and Angolan musical productions beyond national
territory” e, como coorganizadora, Retratos do Ceará moderno:
emergência de um padrão de modernização cultural nas margens.
1120 Erratum
In the manuscript “Time and the Production of Space in Sociology”, DOI: 10.1590/2238-
38752021v1122, published in Sociologia & Antropologia, 11(2):389-414 (according to the
SciELO guidelines, the following mistakes are absent from the present version – and the
corresponding pdf file),

On pages 389, 395, 396, 397 On page 409, On page 411,


and 398, For: For:
For: “Bourdieu, Pierre. (1972). “Lefebvre, Henri. (2000a).
“Lefebvre (2000b)” Esquisse d’une théorie de la Espace et politique. 2 ed.
Read: pratique. Paris: Éditions du Paris : Anthropos.
“Lefebvre (2000a)” Seuil. Lefebvre, Henri. (2000b). La
Bourdieu, Pierre. (1982). La production de l’espace. 2. ed.
On page 408, note 3, lines
mort du sociologue Erving Paris: Anthropos. »
1-2,
Goffman. Le découvreur Read:
For:
de l’infiniment petit. Le “Lefebvre, Henri. (2000a). La
“Lefebvre (2000[a ou b?]: 87)”
Monde. Available at: http:// production de l’espace. 2. ed.
Read:
www.homme-moderne. Paris: Anthropos. »
“Lefebvre (2000a: 87)”
org/societe/socio/bourdieu/ Lefebvre, Henri. (2000b).
On page 408, note 6, line 3,
varia/mortEGoffman.html. Espace et politique. 2 ed.
For:
Access on 18 Aug. » Paris : Anthropos.”
of the 1980s.”
Read:
On page 412,
Read:
“Bourdieu, Pierre. (1972).
For:
of the 1980s (Lefebvre &
Esquisse d’une théorie de la
“Lefebvre, Henri. (1958).
Régulier, 1985).”
pratique. Paris: Éditions du
Critique de la vie quotidienne. v.
On page 408, note 6, lines Seuil.
1. Paris: L’Arche Éditeur. »
6-7, Bourdieu, Pierre. (1980). Le
Read:
For: sens pratique. Paris: Les
“Lefebvre, Henri. (1958).
“Lefebvre & Régulier, 1992 Éditions de Minuit.
Critique de la vie quotidienne.
[favor confirmar; Bourdieu, Pierre. (1982). La
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1120 – 1120 , set. – dez., 2021

v. 1. 2. ed. Paris: L’Arche


nas ref. só aparece 1985]: mort du sociologue Erving
Éditeur. »
97-109; on” Goffman. Le découvreur
On page 414,
Read: de l’infiniment petit. Le
For:
“Lefebvre, 1992: 97-109; on” Monde. Available at: http://
“TEMPO E PRODUÇÃO DO
www.homme-moderne.
ESPAÇO EM SOCIOLOGIA”
org/societe/socio/bourdieu/
Read:
varia/mortEGoffman.html.
“O TEMPO E A PRODUÇÃO DO
Access on 18 Aug.”
ESPAÇO NA SOCIOLOGIA”

On page 414,
For:
“TIME, AND THE
PRODUCTION OF SPACE IN
SOCIOLOGY”
Read:
“TIME AND THE
PRODUCTION OF SPACE IN
SOCIOLOGY”
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL



Sociologia & Antropologia busca contribuir para a divulgação, expansão e
aprimoramento do conhecimento sociológico e antropológico em seus diversos
campos temáticos e perspectivas teóricas, valorizando a troca profícua entre
as distintas tradições teóricas que configuram as duas disciplinas. Sociologia
& Antropologia almeja, portanto, a colaboração, a um só tempo crítica e
compreensiva, entre as perspectivas sociológica e antropológica, favorecendo
a comunicação dinâmica e o debate sobre questões teóricas, empíricas,
históricas e analíticas cruciais. Reconhecendo a natureza pluriparadigmática
do conhecimento social, a Revista valoriza assim as oportunidades de
intercâmbio entre pontos de vista convergentes e divergentes nesses diferentes
campos do conhecimento. Essa é a proposta expressa pelo símbolo “&”, que,
no título da revista Sociologia & Antropologia, interliga as denominações das
disciplinas que nos referenciam.

Sociologia & Antropologia aceita os seguintes tipos de contribuição em


português, inglês e espanhgol:
1) Artigos inéditos (até 9 mil palavras incluindo referências
bibliográficas e notas)
2) Registros de pesquisa (até 4.400 palavras). Esta seção inclui:
a. Apresentação de fontes e documentos de interesse para a história das
ciências sociais
b. Notas de pesquisa com fotografias
c. Balanço bibliográfico de temas e questões das ciências sociais
3) Resenhas bibliográficas (até 1.600 palavras).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1121 – 1126 , set. – dez., 2021

4) Entrevistas

Manuscritos originais podem ser submetidos em português, espanhol,


inglês e francês, porém os textos somente serão publicados em português,
espanhol e inglês. Se necessário, o autor se responsabilizará pela tradução.
Excepcionalmente será concedido auxílio financeiro.

A pertinência para publicação será avaliada, numa primeira etapa, pela


Comissão Editorial no que diz respeito à adequação ao perfil e à linha
editorial da revista e, se aprovados, numa segunda etapa, por pareceristas ad
hoc brasileiros e estrangeiros, sempre doutores, de reconhecida expertise tema
no que diz respeito ao conteúdo e à qualidade das contribuições.

A revista funciona sob o princípio do duplo anonimato: os artigos serão


submetidos a dois pareceristas ad hoc e, em caso de pareceres
contraditórios, uma terceira avaliação será requerida. Sendo
identificado conflito de interesse da parte dos pareceristas, o texto será
1122

reencaminhado para avaliação. Os artigos serão avaliados de acordo


com os critérios de qualidade e rigor dos argumentos, validade dos dados,
oportunidade e relevância para sua área de pesquisa, atualidade e adequação das
referências.

A editoria demanda de todos os autores e avaliadores que declarem


possíveis conflitos de interesse relacionados a manuscritos submetidos a
Sociologia & Antropologia. Entende-se conflito de interesse como qualquer
interesse comercial, financeiro ou pessoal relacionados a dados ou questões
do estudo de um ou mais autores que levem a potenciais conflitos entre as
partes envolvidas. Conflitos de interesse podem influenciar os resultados e
conclusões de um estudo e do processo de avaliação. A sua existência não
impede a submissão de um artigo ou sua publicação na revista, porém, os
autores deverão explicar a razão do conflito aos editores, que tomarão uma
decisão sobre o encaminhamento do manuscrito.

A revista encaminhará, em prazo estimado de aproximadamente (6) seis


meses, uma carta de decisão sobre o artigo recebido, anexando, de acordo
com cada caso, os devidos pareceres. Um dos seguintes resultados será
informado: (a) aceito sem alterações; (b) aceito mediante pequenas revisões;
(c) reformular e reapresentar para nova avaliação; e (d) negado. Ao revisar os
manuscritos aceitos para publicação, os autores devem marcar todas as
alterações feitas no texto e justificar devidamente quaisquer eventuais
exigências ou recomendações de pareceristas não atendidas.

O periódico segue as diretrizes dos Códigos de Ética do Committee on


sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1121 – 1126 , set. – dez., 2021

Publication Ethics (COPE) (<http://www.publicationethics.org/>), do


Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (<http://
www.cnpq.br/web/guest/diretrizes>) e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (<http://www.fapesp.br/boaspraticas/>).

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE COLABORAÇÕES


Forma e preparação de textos

O texto completo não deverá conter os nomes dos autores e deverá incluir
notas substantivas (de fim de texto) em algarismos arábicos; referências
bibliográficas; título e resumo (entre cem e 150 palavras) acompanhado
de cinco palavras-chave, em português e inglês; e, quando for o caso,
os créditos das imagens utilizadas. Agradecimentos e notas biográficas
dos autores (de até 90 palavras) incluindo formação, instituição, cargo,
áreas de interesse e principais publicações deverão ser enviados em
arquivo separado.
1123

Desenhos, fotografias, gráficos, mapas, quadros e tabelas devem conter


título e fonte, e estar numerados. Além de constarem no corpo do
artigo, as imagens deverão ser encaminhadas em arquivo separado do
texto, em formato .tiff (de preferência) ou .jpg e em alta resolução (300
dpi), medindo no mínimo 17cm (3.000 pixels) pelo lado maior. No caso
de imagens que exijam autorização para reprodução, a obtenção da
mesma caberá ao autor.

Os textos deverão ser escritos em fonte Times New Roman, tamanho 12,
recuo padrão de início de parágrafo, alinhamento justificado,
espaçamento duplo e em páginas de tamanho A4 (210x297cm), numa
única face.

As notas devem vir ao final do texto, não podendo consistir em simples


referências bibliográficas. Estas devem aparecer no corpo do texto com
o seguinte formato:
(sobrenome do autor, ano de publicação),
conforme o exemplo: (Tilly, 1996)

No caso de citações, quando a transcrição ultrapassar cinco linhas


deverá ser centralizada em margens menores do que as do corpo do
artigo; quando menor do que cinco linhas, deverá ser feita no próprio
corpo do texto entre aspas. Em ambos os casos a referência seguirá o
formato:
(sobrenome do autor, ano de publicação: páginas),
conforme os exemplos:
(Tilly, 1996: 105)
(Tilly, 1996: 105-106)

As referências bibliográficas em ordem alfabética de sobrenome devem vir


após as notas, seguindo o formato que aparece nos seguintes exemplos (os
demais elementos complementares são de uso facultativo):
1. Livro
Pinto, Luis de Aguiar Costa. (1949). Lutas de famílias no Brasil: introdução
ao seu estudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
2. Livro de dois autores
Cardoso, Fernando Henrique & Ianni, Octávio. (1960). Cor e mobilidade
social em Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa
comunidade do Brasil meridional. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
3. Livro de vários autores
Wagley, Charles et al. (1952). Race and class in rural Brasil. Paris: Unesco.
4. Capítulo de livro
Fernandes, Florestan. (2008). Os movimentos sociais no “meio negro”. In: A
integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo, p. 7-134 (vol. 2).
1124

5. Coletânea
Botelho, André & Schwarcz, Lilia Moritz (orgs.). (2009). Um enigma
chamado Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
6. Artigo em coletânea organizada pelo mesmo autor
Gonçalves, José Reginaldo Santos. (2007). Teorias antropológicas e
objetos materiais. In: Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan, p. 13-42.
7. Artigo em coletânea organizada pelo autor em conjunto com outro
Villas Bôas, Glaucia. (2008). O insolidarismo revisitado em O problema do
sindicato único no Brasil. In: Villas Bôas, Glaucia; Pessanha, Elina Gonçalves
da Fonte & Morel, Regina Lúcia de Moraes. Evaristo de Moraes Filho, um
intelectual humanista. Rio de Janeiro: Topbooks, p. 61-84.
8. Artigo em coletânea organizada por outro autor
Alexander, Jeffrey. (1999). A importância dos clássicos. In: Giddens,
Anthony & Jonathan Turner (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Ed.
Unesp, p. 23-89.
9. A rtigo em Periódico
Lévi-Strauss, Claude. (1988). Exode sur exode. L’Homme, XXVIII/2–3,
p. 13-23.
10. Tese Acadêmica
Veiga Junior, Maurício Hoelz. (2010). Homens livres, mundo privado:
violência e pessoalização numa sequência sociológica. Dissertação de
Mestrado. PPGSA /Universidade Federal do Rio de Janeiro.
11. Segunda ocorrência seguida do mesmo autor
Luhmann, Niklas. (2010). Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis:
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1121 – 1126 , set. – dez., 2021

Vozes.
Luhmann, Niklas. (1991). O amor como paixão. Lisboa/Rio de Janeiro:
Difel/Bertrand Brasil.
12. Consultas on-line
Sallum Jr., Brasílio & Casarões, Guilherme. (2011). O impeachment de
Collor: literatura e processo. Disponível em <http://www.acessa.com/gr
amsci/?page =visualizar&id=1374>. Acesso em 9 jun. 2011.
1125

ENVIO DE CONTRIBUIÇÕES

Sociologia & Antropologia não assume responsabilidade por conceitos
emitidos pelos autores, aos quais solicita que declarem
responsabilidade pelo conteúdo do manuscrito submetido, bem como
que especifiquem, em caso de coautoria, a participação de cada um na
sua versão final, da pesquisa à redação.

Os trabalhos enviados para publicação devem ser originais e inéditos,


não sendo permitida sua apresentação simultânea em outro periódico.
O sistema Plagius é utilizado para identificação de plágio.

A revista não cobra taxa de submissão, avaliação e processamento dos


artigos e tem acesso aberto, seguindo o princípio de que disponibilizar
gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona maior
democratização mundial do conhecimento.

Possíveis modificações de estrutura ou de conteúdo, por parte da


Editoria, serão previamente acordadas com os autores, e não serão
admitidas após os trabalhos serem entregues para composição.

Contribuições deverão ser submetidas eletronicamente através do


sistema ScholarOne acessando o link:
<https://mc04.manuscriptcentral.com/sant-scielo>

A revista solicita aos autores que registrem um identificador


digital ORCID.

Autores que publicam em Sociologia & Antropologia (1) mantêm os direitos


autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o
trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons
Attribution  que permite o compartilhamento do trabalho com
reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista; (2) têm
autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para
distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada nesta revista
(ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro),
com reconhecimento de autoria e publicação inicial nesta revista; e (3)
têm permissão e são estimulados a publicar e distribuir seu trabalho
online (ex.: em repositórios institucionais ou na sua página pessoal e
sistemas de auto arquivo), já que isso pode aumentar o impacto e a
citação do trabalho publicado (veja O efeito do acesso aberto em <http://
opcit.eprints.org /oacitation-biblio.html>).

1126

Para mais informações, consultar os editores no Programa de


Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia:

Sociologia & Antropologia
Revista do PPGSA
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia/UFRJ
Largo de São Francisco de Paula, 1, sala 420
20051–070 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Telefone/Fax +55 (21) 2224–8965 ramal 215
revistappgsa@gmail.com
sociologiaeantropologia.com.br
revistappgsa.ifcs.ufrj.br
scielo.br/sant

The guidelines for submitting manuscripts are available in


English at our website
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.11.03: 1121 – 1126 , set. – dez., 2021
Preâmbulo. O valor e os benefícios provenientes da pesquisa dependem essencialmente da sua inte-
gridade. Embora haja diferenças entre países e entre disciplinas na maneira pela qual a pesquisa é
organizada e conduzida, há também princípios e responsabilidades profissionais comuns que são
fundamentais para a integridade da mesma, onde quer que seja realizada.
PRINCÍPIOS
Honestidade em todos os aspectos da pesquisa.
Responsabilização na condução da pesquisa.
Respeito e imparcialidade profissionais no trabalho com outros.
Boa gestão da pesquisa em benefício de outros.
RESPONSABILIDADES
1. Integridade: Os pesquisadores devem assim como, em todas as atividades de
assumir a responsabilidade pela revisão.
confiabilidade de suas pesquisas. 10. Comunicação pública: Os pesquisadores
2. Cumprimento com as regras: Os devem limitar seus comentários profissionais à
pesquisadores devem estar cientes das regras sua própria área de especialização
e políticas de pesquisa e segui-las em todas as reconhecida quando participarem em
etapas. discussões públicas sobre a aplicação e
3. Métodos de pesquisa: Os pesquisadores relevância de resultados de pesquisa, e devem
devem utilizar métodos de pesquisa distinguir claramente entre comentários
apropriados, embasar as conclusões em uma profissionais e opiniões baseadas em visões
análise crítica das evidências e relatar os pessoais.
achados e interpretações de maneira integral 11. Notificação de práticas de pesquisa
e objetiva. irresponsáveis: Os pesquisadores devem
4. Documentação da pesquisa: Os notificar às autoridades competentes qualquer
pesquisadores devem manter documentação suspeita de má conduta profissional, inclusive
clara e precisa de suas pesquisas, de maneira a fabricação e/ou falsificação de resultados,
que sempre permita a averiguação e plágio e outras práticas de pesquisa
replicação do seu trabalho por outros. irresponsáveis que comprometam a
5. Resultados: Os pesquisadores devem confiabilidade da pesquisa, tais como
compartilhar seus dados e achados pronta e desleixo, inclusão inapropriada de autores,
abertamente, após assegurarem a negligência no relato de dados conflitantes ou
oportunidade de estabelecer a prioridade e uso de métodos analíticos enganosos.
propriedade sobre os mesmos. 12. Resposta a alegações de práticas de
6. Autoria: Os pesquisadores devem assumir pesquisa irresponsáveis: As instituições de
plena responsabilidade pelas suas pesquisa, assim como as revistas,
contribuições em todas as publicações, organizações profissionais e agências que
solicitações de financiamento, relatórios e tiverem compromissos com a pesquisa em
outras representações de suas pesquisas. A questão devem dispor de procedimentos para
lista de autores deve sempre incluir todos responder a alegações de má conduta e outras
aqueles (mas apenas aqueles) que atendam os práticas de pesquisa irresponsáveis, assim
critérios de autoria. como proteger aqueles que, de boa fé, tenham
7. Agradecimentos na publicação: Nas denunciado tais comportamentos. Quando for
publicações, os pesquisadores devem confirmada a má conduta ou outra prática de
reconhecer os nomes e papéis daqueles que pesquisa irresponsável, devem ser tomadas as
fizeram contribuições significativas à pesquisa, medidas cabíveis prontamente, inclusive a
inclusive redatores, financiadores, correção da documentação da pesquisa.
patrocinadores e outros, mas que não atendem 13. Ambientes de pesquisa: As instituições de
aos critérios de autoria. pesquisa devem criar e sustentar ambientes
8. Revisão de pares: Ao participar da que incentivem a integridade através da
avaliação do trabalho de outros, os educação, políticas claras e normas razoáveis
pesquisadores devem fornecer pareceres para o progresso da pesquisa, ao mesmo
imparciais, oportunos e rigorosos. tempo em que fomentam ambientes de
9. Conflitos de interesse: Os pesquisadores trabalho que apóiem a integridade da mesma.
devem revelar quaisquer conflitos de interesse, 14. Considerações sociais: Os pesquisadores
sejam financeiros ou de outra natureza, que e as instituições de pesquisa devem reconhecer
possam comprometer a confiabilidade de seu que têm uma obrigação ética no sentido de
trabalho nos projetos, publicações e pesar os benefícios sociais contra os riscos
comunicações públicas de suas pesquisas, inerentes apresentados pelo seu trabalho.

A Declaração de Singapura sobre Integridade em Pesquisa foi desenvolvida como parte da II Conferência Mundial sobre Integridade
em Pesquisa, realizada de 21 a 24 de julho de 2010, em Singapura, como guia global para a condução responsável de pesquisas. Não
é um documento regulatório, nem representa as políticas oficiais dos países e organizações que financiaram ou participaram na Con-
ferência. Para informações sobre políticas oficiais, normas e regras na área de integridade em pesquisa, devem ser consultadas as
agências nacionais e organizações apropriadas. A Declaração original em inglês está disponível em: <http://www.singapore
statement.org>.

Você também pode gostar