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Instituto de Treinamento e Pesquisa em

Gestalt-Terapia de Goiânia – ITGT

Volume XXIV – N. 2

2018
Goiânia – Goiás
http://pepsic.bvs-psi.org.br
Ficha Catalográfica

Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies/


Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de
Goiânia – Vol. 24, n. 2 (2018) – Goiânia: ITGT, 2018.

119p.: il.: 30 cm

Inclui normas de publicação

ISSN: 1809-6867

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de


Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.

CDD 616.891 43

Citação:
REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 24, n. 1, 2018. 119p

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Volume XXIV – N. 2 – Mai/Ago, 2018

Expediente

Editor
Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)

Editores Associados
Camila Muhl (Universidade Federal do Paraná)
Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)
Danilo Suassuna Martins Costa (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia)
Paulo Coelho Castelo Branco (Universidade Federal da Bahia)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)

Consultores Especiais de Fenomenologia


Antonio Zirión Quijano (Universidad Nacional Autónoma de México)
Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)

Conselho Editorial
Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
André Barata (Universidade da Beira Interior, Portugal)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)
Danilo Saretta Veríssimo (Universidade Estadual Paulista/Assis)
Ileno Izidio da Costa (Universidade de Brasília)
Irene Pinto Pardelha (Universidade de Évora)
José Olinda Braga (Universidade Federal do Ceará)
Lester Embree (Florida Atlantic University) (in memoriam)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
María Lucrecia Rovaletti (Universidade de Buenos Aires)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo (Universidade Federal de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Michael Barber (Saint Louis University)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Rosemary Rizo-Patrón de Lerner (Pontificia Universidad Católica del Perú)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Editores de Texto – Suporte Técnico
Josiane Almeida
Silvana Ayub Polchlopek

Capa, Diagramação e Arte Final


Innovart Publicidade

Bibliotecário
Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

Financiamento
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)

Apoio
Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica (ABRAPEF)

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A remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência
de seguimento que se fizer necessária, deve ser submetida eletronicamente
endereçada ao site: <http://submission-pepsic.scielo.br/

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Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies.
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Fone/Fax: (62) 3941-9798

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podem ser encontradas no site: <http://pepsic.bvs-psi.org.br

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- Dialnet
- Ebsco
- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)
- Latindex
- Lilacs
- Psicodoc
- Redalyc
- Scopus

Qualis CAPES 2015–A2


ISSN 1809-6867 versão impressa
ISSN 1984-3542 versão on-line

As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão e adequação das referências bibliográ-
ficas são de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.
A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.
SUMÁRIO

EDITORIAL.......................................................................................................................VII

ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA

• Oficina de Desenvolvimento da Escuta: Prática Clínica na Formação em Psicologia . 123


Shirley Macêdo (Universidade Federal do Vale do São Francisco),
Gledson Wilber de Souza (Universidade Federal do Vale do São Francisco) &
Monzitti Baumann Almeida Lima (Universidade Federal do Vale do São Francisco)

• Workshops on Listening: Clinical Practice in Psychology Training........................ 134


Shirley Macêdo (Universidade Federal do Vale do São Francisco),
Gledson Wilber de Souza (Universidade Federal do Vale do São Francisco) &
Monzitti Baumann Almeida Lima (Universidade Federal do Vale do São Francisco)

• Elaborando Tradições na Contemporaneidade: Ausier e a Preservação do Chorinho 145


Roberta Vasconcelos Leite (Universidade Federal de Minas Gerais)
Miguel Mahfoud (Universidade Federal de Minas Gerais)

• Deixou o Corpo em Casa, Foi para Terapia: O Corpo Segundo Psicólogos............. 157
Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná),
Paula Arenhart (Universidade Federal do Paraná) &
Mariana Abuhamad (Universidade Federal do Paraná)

• Ser Além dos Muros: Fenomenologia da Liberdade para Idosos Institucionalizados . 167
Diogo Arnaldo Corrêa (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo /Universidade de Mogi das Cruzes),
Carla de Santana Oliveira (Universidade de Mogi das Cruzes) &
Marlise Aparecida Bassani (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

• Por Um Núcleo de Atendimento Clínico a Pessoas em Risco de Suicídio .............. 173


Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

• “Oi, Meu nome é Ana” – Um Estudo Fenomenológico- Existencial da Experiência de


Mulheres com Anorexia Nervosa .............................................................................. 182
Élida Mayara da Nóbrega Cunha (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) &
Elza Maria do Socorro Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

ARTIGOS: ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

• Foucault e Binswanger: Uma Aproximação Intempestiva? ..................................... 196


Fabio Yasoshima (Universidade de São Paulo) & Guilherme Messas (Faculdade de Ciências Médicas da Santa
Casa de São Paulo)

• Estudo de Caso em Gestalt-terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho Infantil .. 204


Mariana Vieira Pajaro (Universidade de Brasília) & Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)

• Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing .. 215


Sumário

Mariana Vieira Pajaro (Universidade de Brasília) & Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)

VII Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): v-vi, mai-ago, 2018
Sumário

• Cuidado, Ética e Convivência em Saúde Mental: reflexões fenomenológicas ....... 226


Tania Inessa Martins de Resende (Universidade de Brasília/UniCEUB) & Ileno Izidio da Costa (Universida-
de de Brasília)

• Origens do Conceito de Agressão na Gestalt-terapia: Freud, Reich e Outras Fontes ....... 234
Thauana Santos de Araújo (Universidade Federal do Paraná) & Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal
do Paraná)

• The Origins of the Aggression Concept in Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others ....246
Thauana Santos de Araújo (Universidade Federal do Paraná) & Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal
do Paraná)

TEXTOS CLÁSSICOS

• Análise Fenomenal: Exemplificada por um Estudo da Experiência de “Realmente se


Sentir Compreendido” ............................................................................................... 260
Adrian L. Van Kaam (1959)
Sumário

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): v-vi, mai-ago, 2018 VIII
EDITORIAL

Este novo número traz, como novidade, a e que possamos estar construindo juntos novas
firme intenção de publicar o máximo possível de possibilidades e novos caminhos para a democratização
artigos bilíngues, privilegiando nossa língua nativa do conhecimento.
– o português – e, ao mesmo tempo, incentivando os Os três manuscritos bilíngues, aqui apresentados,
autores a publicar seu manuscrito numa versão em trazem temas, contextos e leituras que expressam a
inglês. Nossa intenção, com isto, visa tanto atender às abertura e a diversidade de nossa proposta editorial,
demandas de internacionalização, por um lado; como e são os seguintes: Oficina de Desenvolvimento da
ainda permitir que o leitor brasileiro não seja privado Escuta: Prática Clínica na Formação em Psicologia, de
dessas produções, por uma eventual inacessibilidade autoria de Shirley Macêdo, Gledson Wilber de Souza
a línguas estrangeiras. Acenamos, com isto, tanto para e Monzitti Baumann Almeida Lima, da Universidade
a necessidade de ampliar a visibilidade das nossas Federal do Vale do São Francisco; Estudo de Caso em
produções, como para o reconhecimento que nossa Gestalt-terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho
sociedade não pode, em nome de critérios os mais Infantil, de Mariana Vieira Pajaro (Universidade de
variados, prescindir de sua história, de sua cultura e, Brasília) e Celana Cardoso Andrade (Universidade
por conseguinte, de sua língua materna, elementos Federal de Goiás) e; As Origens do Conceito de Agressão
estes constitutivos de sua própria identidade, mesmo na Gestalt-terapia: Freud, Reich e Outras Fontes, de
estando inseridos na “universalização” da produção e Thauana Santos de Araújo e Adriano Furtado Holanda
do conhecimento. (Universidade Federal do Paraná).
A Phenomenological Studies – Revista da Arte, corpo, liberdade, idosos institucionalizados,
Abordagem Gestáltica não é um periódico vinculado a suicídio, transtornos alimentares, Foucault,
instituições públicas, mas isto não a exime de se posicionar Binswanger, cuidado, ética e Saúde Mental são temas
ética e culturalmente, de analisar o cenário no qual que completam este número, através dos manuscritos:
estamos envolvidos, e de se manifestar enfaticamente Elaborando Tradições na Contemporaneidade:
contrária a qualquer atitude de dominação discursiva, de Ausier e a Preservação do Chorinho, de Roberta
homogeneização e direcionamento de ações, e de posições Vasconcelos Leite e Miguel Mahfoud (Universidade
que consideramos demasiado invasivas ou “colonizantes” Federal de Minas Gerais); Deixou o Corpo em Casa,
e, por consequência, excludentes, visto não termos, Foi para Terapia: O Corpo Segundo Psicólogos, de
em nossa sociedade ou educação, sequer um amplo, Joanneliese de Lucas Freitas, Paula Arenhart e Mariana
livre e digno acesso ao conhecimento, às instituições, Abuhamad (Universidade Federal do Paraná); Ser
ou a toda uma gama de serviços. Entendendo que a Além dos Muros: Fenomenologia da Liberdade para
política de Acesso Aberto deve ser mantida, ampliada Idosos Institucionalizados, de Diogo Arnaldo Corrêa
e qualificada, acreditamos que o respeito às nossas (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Carla
raízes e a nossa sociedade, passa igualmente pela de Santana Oliveira (Universidade de Mogi das Cruzes)
manutenção de uma publicação que mantenha o e Marlise Aparecida Bassani (Pontifícia Universidade
mínimo de possibilidade de acesso linguístico. Católica de São Paulo); Por Um Núcleo de Atendimento
Vivemos num país que ainda comporta Clínico a Pessoas em Risco de Suicídio, de Ana Maria
um contingente de 7,2% da sua população entre Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do
15 anos ou mais na faixa do analfabetismo; Rio de Janeiro); “Oi, Meu nome é Ana” – Um Estudo
dados da OCDE(Organização para Cooperação e Fenomenológico- Existencial da Experiência de
Desenvolvimento Econômico) indicam ainda que até Mulheres com Anorexia Nervosa, de Élida Mayara da
2016, apenas 14% da população adulta brasileira tem Nóbrega Cunha e Elza Maria do Socorro Dutra, da Universidade
acesso ao Ensino Superior; portanto, não podemos Federal do Rio Grande do Norte; Foucault e Binswanger:
considerar razoável, que a publicação científica Uma Aproximação Intempestiva?, de Fabio Yasoshima
brasileira, uma vez veiculada apenas em língua (Universidade de São Paulo) e Guilherme Messas
não-nativa, esteja a serviço desta população e desta (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São
sociedade. Consideramos – e devemos problematizar Paulo), e; Cuidado, Ética e Convivência em Saúde
sempre – o risco de criar novos nichos de saber, novos Mental: Reflexões Fenomenológicas, de Tania Inessa e
modos de exclusão e, com isto, afirmamos nossa Ileno Izidio da Costa, da Universidade de Brasília.
política de publicação bilíngue como um compromisso Finalizamos com a tradução de um documento
social e cultural da revista, e de sua mantenedora, histórico, a versão para o português do artigo que inaugura
mesmo sabendo o ônus acumulado dessa tarefa e o a tradição de pesquisa empírico-fenomenológica nos
custo decorrente da mesma. Convidamos os leitores e Estados Unidos, Análise Fenomenal: Exemplificada
os autores a se engajarem nesta empreitada conosco, por um Estudo da Experiência de “Realmente se Sentir
como parceiros, na dupla direção da qualificação e da Compreendido”, de Adrian L. Van Kaam, publicado
consideração (e respeito) pelas necessidades de nossa originalmente em 1959. Esperamos estar continuando
comunidade. Ademais, afirmamos, com esta ação, a nosso projeto de contribuição com a Fenomenologia no
crença, a confiança e a expectativa de que a produção Brasil e na América Latina.
acadêmica e científica brasileira possa servir de eixo de
mudanças para nossa sociedade. Boa leitura a todos.
Neste número, apresentamos três manuscritos
em publicação bilíngue. Esperamos que a partir disto Adriano Holanda (Editor)
estejamos inaugurando uma nova forma de divulgar
nossos trabalhos e esforços; uma nova tradição, (Este número foi finalizado no dia 01 de fevereiro de 2018)
Editorial

1 Dados IBGE, de 2017. Fonte: Jornal Valor Econômico: http://www.valor.com.br/brasil/5234641/ibge-brasil-tem-118-milhoes-de-analfabetos-metade-esta-no-nordeste


2 Dados de 2016. Fonte: Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/09/1813715-so-14-dos-adultos-brasileiros-tem-ensino-superior-diz-relatorio-da-ocde.shtml

IX Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): vii-ix, mai-ago, 2018


EDITORIAL

This issue brings about a new course for and dissemination of knowledge. The bilingual papers
Phenomenological Studies – Revista da Abordagem are: Workshops on Listening: Clinical Practice in
Gestáltica. From now on, our journal will publish Psychology Training, authored by Shirley Macêdo,
bilingual articles; while Portuguese is still our Gledson Wilber de Souza and Monzitti Baumann
main language, we encourage submissions both in Almeida Lima (Universidade Federal do Vale do
Portuguese and in English. Our intention is twofold. On São Francisco); Case Study in Gestalt therapy:
the one hand, we intend to join a growing demand for Phenomenological Readings of Children’s Drawing,
internationalization in Brazil’s academic environment. by Mariana Vieira Pajaro (Universidade de Brasília)
On the other hand, we fully intend that our articles are and Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de
accessible to all of our readers, even those who can’t Goiás); and, The Origins of the Aggression Concept in
read English. Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others, by Thauana
Internationalization has become a necessity, in Santos de Araújo and Adriano Furtado Holanda
order to enhance the visibility of our researches and (Universidade Federal do Paraná).
papers. However, we must not simply forget our history, Other papers include discussions on art, body,
our culture, and our language; as such, our insertion in liberty, old age, suicide, eating disorders, Foucalut,
the international academic environment must always Binswanger, care, ethics and mental health. They
preserve our identity. are: Elaborating Traditions in Contemporaneity:
Phenomenological Studies – Revista da Ausier and the Preservation of Chorinho, by Roberta
Abordagem Gestáltica is not affiliated to any public Vasconcelos Leite and Miguel Mahfoud (Universidade
organizations. Whether this is a disadvantage or Federal de Minas Gerais); He/she Left the Body Home,
not, nevertheless it does not prevent us from taking Went to Therapy: The Body According to Psychologists,
a stand on both ethical and moral matters, neither by Joanneliese de Lucas Freitas, Paula Arenhart and
does it prevent us from analyzing our times. In this Mariana Abuhamad (Universidade Federal do Paraná);
sense, it behooves us to state, clearly and firmly, that Being beyond Walls: A Phenomenology of Freedom
we oppose any imposition of a dominant discourse. for Institutionalized Elderly, by Diogo Arnaldo Corrêa
We do not accept positions which we deem invasive, (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Carla
or “colonizing”. In Brazil, our society does not have de Santana Oliveira (Universidade de Mogi das Cruzes)
yet ample and free access to information, education, and Marlise Aparecida Bassani (Pontifícia Universidade
or several others essential utilities. Our Open Access Católica de São Paulo); Toward a Clinical Care Center
policy must not restrict itself to free access to our for People at Risk of Suicide, by Ana Maria Lopez
published issues; in our understanding, we must also Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de
take pains to ensure that our Brazilian readers are not Janeiro); “Hi, my name is Ana” - An Existential-
deprived of content, whenever reading in English is not Phenomenological Study of Women´s Experience
feasible. with Anorexia Nervosa, by Élida Mayara da Nóbrega
We live in a country in which 7.2% of our Cunha and Elza Maria do Socorro Dutra (Universidade
population, aged 15 years or more, is completely Federal do Rio Grande do Norte); Foucault and
illiterate; according to OECD (Organisation for Binswanger: An Unexpected Convergence?, by Fabio
Economic Cooperation and Development), in 2016 Yasoshima (Universidade de São Paulo) and Guilherme
only 14% of Brazilian adults have access to college- Messas (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa
level education. As such, we cannot suppose that an de São Paulo); and, Care, Ethics and Coexistence in
academic journal, especially when published only in Mental Health: Phenomenological Reflections, by
a foreign language, would be useful for our society. Tania Inessa and Ileno Izidio da Costa, da Universidade
We understand – and we must always problematize de Brasília.
– that such a course would create knowledge ghettos, We close this issue with a translation to
once again promoting exclusiveness as opposed to a Portuguese of an historical document: the article which
necessary inclusiveness. As such, we understand our started empirical-phenomenological research in the
bilingual policy as a social and cultural commitment, United States: Phenomenal Analysis: Exemplified by a
and we consciously accept the risks and the costs study of the experience of “really feeling understood”,
which it brings. by Adrian L. Van Kaam, originally published in 1959.
We invite our readers and authors to work with We will continue to contribute our work to
us, as always, as partners. We will continue to strive Phenomenology research in Brazil and Latin America.
for excellency, while always respecting the needs of Have a pleasant reading.
our community. Furthermore, it is our firm belief that
the work of Brazil’s academics and scientists can help Good Reading
bring about necessary changes in our society.
In this issue, we present three bilingual papers. Adriano Holanda (Editor)
We hope that this will start a new tradition, and that
this will help create new paths for democratization (This issue was finished at February 01, 2018)
Editorial

1 Source: Jornal Valor Econômico: <http://www.valor.com.br/brasil/5234641/ibge-brasil-tem-118-milhoes-de-analfabetos-metade-esta-no-nordeste>

2 Source: Folha de São Paulo: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/09/1813715-so-14-dos-adultos-brasileiros-tem-ensino-superior-diz-relatorio-


-da-ocde.shtml>

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): vii-ix, mai-ago, 2018 X


EDITORIAL
Este nuevo número trae, como novedad, la posibilidades y nuevos caminos para la democratización
firme intención de publicar la mayor cantidad posible del conocimiento. Los tres manuscritos bilingües,
de artículos bilingües, centrando nuestra lengua aquí presentados, traen temas, contextos y lecturas
materna – Portugués – y al mismo tiempo incentivar a que expresan la apertura y la diversidad de nuestra
los autores publicar su manuscrito en la versión Inglés. propuesta editorial, y son los siguientes: Talleres
Nuestra intención, con ello, pretende tanto atender a las de Desarrollo de Escucha: práctica clínica en la
demandas de internacionalización, por un lado; como formación en psicologia, de Shirley Macêdo, Gledson
también permitir que el lector brasileño no sea privado Wilber de Souza y Monzitti Baumann Almeida Lima
de esas producciones, por una eventual inaccesibilidad (Universidade Federal do Vale do São Francisco);
a lenguas extranjeras. Acentuamos, con ello, tanto para Estudio de Caso en la Terapia Gestalt: Lecturas
la necesidad de ampliar la visibilidad de nuestras Fenomenológicas de Dibujo Infantil, de Mariana Vieira
producciones, como para el reconocimiento que Pajaro (Universidade de Brasília) y Celana Cardoso
nuestra sociedad no puede, en nombre de criterios los Andrade (Universidade Federal de Goiás); y, Orígenes
más variados, prescindir de su historia, de su cultura de lo Concepto de la Agresión en Terapia Gestalt:
y, por consiguiente, de su lengua materna, elementos Freud, Reich y Otros, de Thauana Santos de Araújo
constitutivos de su propia identidad, aun estando todos y Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do
insertados en la “universalización” de la producción y Paraná).
del conocimiento. Otros temas – como arte, cuerpo, libertad,
Phenomenological Studies – Revista da ancianos institucionalizados, suicidio, trastornos
Abordagem Gestáltica no es un periódico vinculado alimentarios, Foucault, Binswanger, cuidado, ética
a instituciones públicas, pero esto no la exime de y Salud Mental – completan este número, a través
posicionarse ética y culturalmente, de analizar el de los manuscritos: Elaborando Tradiciones en la
escenario en el que estamos involucrados, y de Contemporaneidad: Ausier y la Preservación del
manifestarse enfáticamente contrario a cualquier Chorinho, de Roberta Vasconcelos Leite y Miguel
actitud de dominación discursiva, de homogeneización Mahfoud (Universidade Federal de Minas Gerais);
y direccionamiento de acciones, y de posiciones que Ha Dejado el Cuerpo en su Casa, se fue a la Terapia:
consideramos demasiado invasivas o “colonizantes” y, El Cuerpo según los Psicólogos, de Joanneliese de
por consiguiente, excluyentes, ya que no tenemos, en Lucas Freitas, Paula Arenhart y Mariana Abuhamad
nuestra sociedad o educación, ni siquiera un amplio, (Universidade Federal do Paraná); Más allá de las
libre y digno acceso al conocimiento, a las instituciones, Paredes: Fenomenología de la Libertad para Ancianos
o a toda una gama de servicios. Entendiendo que Institucionalizados, de Diogo Arnaldo Corrêa
la política de Acceso Abierto debe ser mantenida, (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Carla
ampliada y calificada, creemos que el respeto a de Santana Oliveira (Universidade de Mogi das Cruzes)
nuestras raíces y nuestra sociedad, pasa también por y Marlise Aparecida Bassani (Pontifícia Universidade
el mantenimiento de una publicación que mantenga el Católica de São Paulo); Hacia a un Centro de
mínimo de posibilidad de acceso lingüístico. Atención Clínica a Personas con Riesgo de Suicidio,
Vivimos en un país que todavía contiene un de Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade
contingente del 7,2% de su población entre 15 años do Estado do Rio de Janeiro); “Hola, mi nombre es
o más en la franja del analfabetismo; los datos de Ana” - Un Estudio Fenomenológico-Existencial de
la OCDE (Organización para la Cooperación y el la Experiencia de Mujeres con Anorexia Nerviosa,
Desarrollo Económico) indican que hasta 2016, sólo de Élida Mayara da Nóbrega Cunha y Elza Maria do
el 14% de la población adulta brasileña tiene acceso Socorro Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do
a la enseñanza superior; por lo tanto, no podemos Norte); Foucault y Binswanger: ¿Una Aproximación
considerar razonable, que la publicación científica Intempestiva? , de Fabio Yasoshima (Universidade de
brasileña, una vez transmitida sólo en lengua no nativa, São Paulo) y Guilherme Messas (Faculdade de Ciências
esté al servicio de esta población y de esta sociedad. Médicas da Santa Casa de São Paulo); Cuidado,
Consideramos – y debemos problematizar siempre – el Ética y Convivencia en Salud Mental: Reflexiones
riesgo de crear nuevos nichos de saber, nuevos modos Fenomenológicas, de Tania Inessa y Ileno Izidio da
de exclusión y, con ello, afirmamos nuestra política de Costa, da Universidade de Brasília.
publicación bilingüe como un compromiso social y Terminamos con la traducción de un
cultural de la revista (y de su mantenedor), aun sabiendo documento histórico en la versión portuguesa del
la carga acumulada de esa tarea y el coste resultante artículo que abre la tradición de investigación empírica
de la misma. Invitamos a los lectores ya los autores a y fenomenológica en los Estados Unidos: Phenomenal
comprometernos en esta empresa con nosotros, como Analysis: Exemplified by a study of the experience of
socios, en la doble dirección de la cualificación y de “really feeling understood”, de Adrian L. Van Kaam,
la consideración (y respeto) por las necesidades de publicado originalmente en 1959. Esperamos estar
nuestra comunidad. Además, afirmamos, con esta continuando nuestro proyecto de contribución con la
acción, la creencia, la confianza y la expectativa de que Fenomenología en Brasil y em America Latina.
la producción académica y científica brasileña pueda
servir de eje de cambios para nuestra sociedad. Buena lectura a todos.
En este número, presentamos tres manuscritos
en publicación bilingüe. Esperamos que a partir de Adriano Holanda (Editor)
este, estar inaugurando una nueva forma de divulgar
nuestros trabajos y esfuerzos; una nueva tradición, (Este numero fue finalizado en primer de Febrero de 2018)
Editorial

y que podamos estar construyendo juntos nuevas

XI Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): vii-ix, mai-ago, 2018


A rtigos :
r elAtos D e P esquisA ....................
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.1

OFICINA DE DESENVOLVIMENTO DA ESCUTA:


PRÁTICA CLÍNICA NA FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA

Workshops on Listening: Clinical Practice in Psychology Training

Talleres de Desarrollo de Escucha: práctica clínica en la formación en psicologia

Shirley Macêdo
GledSon Wilber de Souza
Monzitti bauMann alMeida liMa

Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo geral compreender sentidos da experiência de participação em oficinas de
desenvolvimento da escuta entre estagiários de Psicologia, que as frequentaram antes de adentrar o estágio. Especifi-
camente, buscou-se descrever como competências despertadas e desenvolvidas naquelas oficinas estariam sendo ope-
racionalizadas no estágio; compreender como mudanças em modos de subjetivação desses estudantes favoreceram a
inserção e a manutenção no estágio; e avaliar, na perspectiva destes estagiários, a operacionalidade da oficina para ser
ofertada ao estudante em formação. Usando a hermenêutica colaborativa, uma proposta em pesquisa fenomenológica,
entrevistaram-se 14 estagiários, subdivididos em três grupos de discussão, que puderam resgatar e analisar conjun-
tamente o sentido daquela vivência. Os resultados apontaram que a oficina promoveu alcance terapêutico; favoreceu
autoconhecimento; teve o sentido de ressignificação compartilhada da angústia em relação à futura prática do estágio;
dirimiu ansiedade em relação às limitações pessoais; promoveu desenvolvimento de competências; e favoreceu orga-
nização, sistematização e foco da escuta. Os colaboradores reconheceram a necessidade da oficina antes do estágio,
mas sem ser obrigatória. Concluiu-se, principalmente, que essa pode ser uma prática de capacitação, humanização e
cuidado a futuros estagiários num serviço-escola de Psicologia, pois foi reconhecida pelos colaboradores como espaço
de acolhimento e cuidado de si.
Palavras-chave: Escuta; Pesquisa Fenomenológica; Formação do Psicólogo.

Abstract: This research aimed to understand the meanings of participating in workshops on listening development
among Psychology interns, who attended the workshops before starting the internship. Specifically, the goal was to
describe how the awakened and developed competences in those workshops were being operationalized in the intern-
ship; to understand how the changes in modes of subjectification of these students favored the insertion in the intern-
ship; and to evaluate, from the interns’ perspective, the operability of the workshop offered. By using collaborative
hermeneutics, a proposal in phenomenological research, 14 interns (divided into three discussion groups) were able
to rescue and analyze the meaning of that experience. The results showed the workshop promoted therapeutic reach;
favored self-knowledge; had the sense of shared re-signification of anguish in relation to the future practice of the
internship; decreased the anxiety about personal limitations; promoted skills development; and favored organization,
systematization and focus of listening. Employees acknowledged the need for the workshop prior to the internship,
but not mandatory. Mainly, it was concluded that this could be a practice to enable humanization and caring for future
interns in a Psychology school-service, since it was recognized by the employees as a space for welcoming and caring
for oneself.
Keywords: Listening; Phenomenological Research; Formation of the Psychologist.
Relatos de Pesquisa

Resumen: Esta investigación buscó comprender sentidos de la experiencia de participación en talleres de


desarrollo de la escucha entre pasantes de Psicología. Se buscó describir cómo competencias despertadas
y desarrolladas en aquellos talleres estarían siendo instrumentalizadas; comprender cómo cambios en
modos de subjetivación de estos estudiantes favorecieron la inserción y el mantenimiento en la pasantía; y
evaluar, en la perspectiva de estos pasantes, la instrumentalización del taller para ser ofrecida al estudian-
te. Usando la hermenéutica colaborativa, una propuesta em investigación fenomenológica, 14 pasantes,
subdivididos en tres grupos de discusión, pudieron rescatar y analizar el sentido de aquella vivencia. Los
resultados mostraron que el taller promovió alcance terapéutico; favoreció el autoconocimiento; tuvo el
sentido de buscar una significación compartida de la angustia concerniente a la futura práctica de la pasan-
tía; dirimió la ansiedad relacionada a las limitaciones personales; promovió el desarrollo de competencias;
y favoreció la organización y foco de la escucha. Los colaboradores reconocieron la necesidad del taller
antes de la pasantía, pero sin obligatoriedad. Se concluyó que esa puede ser una práctica de capacitación,
-

humanización y cuidado a futuros pasantes en un servicio-escuela de Psicología, reconocida por los cola-
boradores como espacio de acogida y cuidado de si.
Artigos

Palabras clave: Escucha; Investigación Fenomenológica; Formación del Psicólogo.

123 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018
Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

Introdução a necessidade de mais atividades práticas para que


os estudantes estabeleçam diferentes formas de re-
A escuta clínica na prática psicológica não se lacionamentos interpessoais com os colegas, outros
caracteriza como uma escuta comum, mas como um profissionais, gestores e usuários (Ceceim & Bilibio,
ouvir diferenciado, pois quem escuta e quem fala se 2004; Abbad & Mourão, 2010; Mendes, Fonseca, Bra-
abrem à experiência alteritária e produzem novos sil & Dalbello-Araújo, 2012).
significados que favorecem novos modos de sentir, Ainda que, desde o ingresso na universidade, o
pensar e agir (Dourado, Macêdo & Lima, 2016). estudante tenha representações do que seja um psi-
Bandeira et al. (2006) e Heckert (2007) já defen- cólogo e as vá incorporando à medida que o curso
deram que, mesmo a escuta clínica sendo parte das avança (Gondim, Luna, Souza, Sobral & Lima, 2010),
habilidades interpessoais que devem ser desenvolvi- as atividades práticas nos períodos de estágio vêm se
das num curso de Psicologia, nem sempre a acade- tornando um importante eixo estruturante da identi-
mia permite alcançar tal objetivo, pois ensinar a es- dade profissional, enquanto via de formação, ascen-
cutar seria impossível apenas por um ato pedagógico são e realização. Mas, se os estudantes não estiverem
ou por conteúdos teóricos que se aplicam em sala de conscientes de seus modos de relações interpessoais
aula visando a aprendizagem de uma técnica. Para os com pacientes, equipes e supervisores, nem de como
autores, a escuta se desenvolve na experimentação, seus sentimentos podem interferir em suas habi-
no caminhar da formação como psicólogo. lidades profissionais, suas experiências de estágio
Tendo em vista, contudo, que os processos de podem comprometer sua saúde, ou mesmo impedir
formação graduada do psicólogo, na maioria das ve- que ele compreenda a si e ao outro na relação com
zes, desprezam os saberes e a experiência dos apren- um paciente (Rudnick & Carlotto, 2007).
dizes, constituiria um desafio a quem ensina criar Necessário se faz, pois, que as Instituições de
modos de educar de maneira a fomentar experimen- Ensino Superior (IES) de Psicologia empreendam
tação, reflexão, pensamentos e troca de experiências, esforços para oferecerem práticas nas quais os uni-
para que os educandos possam reinventar o mundo versitários possam ter a chance de ampliarem suas
e eles mesmos, no contato diário com a diferença possibilidades de capacitação. Nesta perspectiva,
do outro, já que todo processo de formação é um Dourado, Quirino, Lima & Macêdo (2016), tendo
processo de produção de subjetividades (Heckert, em vista as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)
2007). Portanto, seria no contato com o outro, na ex- para os cursos de graduação em Psicologia (Resolu-
periência da prática, que o estudante de Psicologia ção CNE/CES Nº 5, de 15 de março de 2011), pers-
poderia lançar mão do dispositivo da escuta clínica, pectivaram uma prática clínica em Psicologia Or-
aprimorando sua competência de ouvir e, como diria ganizacional e do Trabalho (POT), contextualizada
Lima (2005), transitando entre o cuidar e o saber de para contribuir com a formação de psicólogos em
si, para ajudar quem porta certo tipo de sofrimento. Instituições de Ensino Superior (IES), e propuseram
Atividades de sala de aula, estritamente aca- oficinas de desenvolvimento da escuta com grupos
dêmicas, não permitem ao estudante de Psicologia de graduandos de diversos períodos do curso. Parti-
aprofundar a escuta. Esse aprofundamento está mui- ram da ideia de que elas permitiriam aos estudantes
to atrelado ao próprio cuidado e escuta de si mesmo, a apropriação de suas singularidades e promoveriam
e o estudante só vem a se preocupar com isso, mui- novos modos de subjetivação (sentir, pensar e agir),
tas vezes num processo psicoterapêutico individual, tendo, por isso, um alcance terapêutico. Segundo os
nos momentos de estágios de final de curso (Meira autores, os colaboradores de sua pesquisa reconhe-
& Nunes, 2005), investindo muito tardiamente na ceram que escutar não é algo puramente de um, mas
ferramenta que vai lhe permitir ser mais eficaz na acontece na relação, no contato com o outro: é pre-
carreira. E é apenas no último ano que efetivamente ciso se dizer e ser escutado para poder se escutar o
os educandos têm experiências de formação estrutu- que se diz. Reconheceram, também, na prática e na
rada, sendo este período um marco na vida univer- experimentação do escutar, a necessidade de desen-
Relatos de Pesquisa

sitária, pois ocorre nele a preparação para o ingresso volver esta competência para seus futuros exercícios
no mundo profissional (Dourado, Quirino, Lima & profissionais como psicólogos.
Macêdo, 2016). Antes disso, no entanto, a supervalo- Os autores defenderam que seus resultados
rização do conhecimento teórico em detrimento do favoreceram o desenvolvimento de competências
conhecimento prático não tem permitido que as ins- instituídas pelas DCN do Ministério da Educação
tituições de graduação em Psicologia garantam uma (MEC), que propõem que o futuro psicólogo deve ser
formação sólida e superem a dissociação entre teoria capaz de realizar orientação, aconselhamento psico-
e prática (Cruz & Schultz, 2009). lógico e psicoterapia; e gerar conhecimentos a partir
Alguns autores problematizam a formação do de sua prática profissional. Também referendaram
psicólogo ao longo do curso de graduação, questio- que essas oficinas permitem atender ao perfil exigi-
nando a necessidade de novas formas de ensinar e do para a profissão, perfil proposto por autores como
aprender face às mudanças contemporâneas e lem- Malvezzi, Souza & Zanelli, (2010).
bram que a formação deve ser ampliada a partir de A originalidade do estudo de Dourado, Quirino,
-

novos projetos pedagógicos. Contudo, as mudan- Lima & Macêdo, dentre outros fatores, está no fato
ças nos currículos têm sido lentas e superficiais e da pesquisa se inserir na interface entre a POT e a
Artigos

há pouca atenção dispensada aos estágios práticos, Psicologia Clínica, pois foi realizada com estudantes
sem muita preocupação com a realidade concreta do de todos os períodos, inclusive com estagiários de
mercado de trabalho. A literatura aponta, portanto, diferentes ênfases do curso, abordagens e áreas da

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018 124
Oficina de Desenvolvimento da Escuta: Prática Clínica na Formação em Psicologia

Psicologia. Os resultados encontrados fazem pensar sador como do sujeito investigado, reconhecendo-se
que oficinas de desenvolvimento da escuta - se inse- a alteridade. Escolheu-se, diante desta prerrogativa,
ridas no processo de formação de psicólogos, como o método da Hermenêutica Colaborativa, propos-
prática clínica de POT em IES - podem permitir ao to por Macêdo (2015), que consiste numa inovação
estudante em formação esse encontrar consigo mes- metodológica e, apesar de ter sido contextualizado
mo e com o outro, apreendendo os sujeitos, pelos sig- inicialmente como uma possibilidade de ação huma-
nificados da experiência compartilhada em grupo, os nista-fenomenológica em clínica do trabalho, vem se
elementos necessários para a transformação pessoal sedimentando como práxis de pesquisa interventiva.
no sentido de maior efetividade para atuação futura Resultante de aproximações contemporâneas
no mercado profissional. entre humanismo e fenomenologia, tão bem refleti-
Segundo Braga, Daltro & Danon (2012), a escu- das por Holanda (2014), a proposta se embasa nas
ta clínica é um instrumento essencial e indispensá- perspectivas teóricas de Carl Rogers (mais especifi-
vel ao fazer psicológico, que se constitui como seu camente em conceitos como consideração positiva
principal dispositivo de cuidado e que diferencia incondicional e autenticidade - condições facilitado-
seu trabalho em comparação com outros profissio- ras de um processo clínico); no humanismo crítico e
nais. Portanto, oficinas de desenvolvimento da es- pressupostos filosóficos de Maurice Merleau-Ponty
cuta parecem constituir uma possibilidade de, como (considerando as noções de intersubjetividade, mun-
prática clínica em POT, alargar a capacitação dos do da vida e epocké incompleta); e nas preposições
estudantes, propiciando-lhes uma alternativa eficaz da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer
ao investimento na carreira e ao futuro ingresso no (nas suas concepções de tradição, fusão de horizon-
mercado de trabalho. tes, conversação e jogo de perguntas e respostas).
Diante do exposto, a intenção que permeou o A Hermenêutica Colaborativa, assim denomi-
presente estudo, realizado com estagiários que quan- nada por Macêdo (2015), foi construída para inter-
do cursavam o oitavo período, prestes a adentrar o venções em grupo e consiste num processo conjunto
estágio obrigatório, participaram de oficinas de de- de interpretação, pautado no confronto de tradições,
senvolvimento da escuta, foi alimentada pelos se- que viabilizam um encontro intersubjetivo e a reto-
guintes questionamentos: quais os sentidos que as mada da consciência histórica entre os envolvidos
experiências de participação nessas oficinas estavam num diálogo. Neste sentido, o facilitador ou pesqui-
tendo para a prática do estágio desses estudantes? sador - sem ser instigado a suspender totalmente os
Quais mudanças em modos de subjetivação favo- próprios a prioris de sua experiência, mas comparti-
receram inserção e manutenção no estágio? Quais lhá-los naquilo que perceber como significativo para
competências foram despertadas e desenvolvidas os colaboradores (o que se denomina de epokhē in-
nas oficinas e estavam sendo operacionalizadas no completa) - busca promover uma ação intersubjetiva
estágio? Como esses estagiários avaliariam a opera- criativa de produção de significados na qual os su-
cionalidade da oficina para ser ofertada ao estudante jeitos, sendo afetados pelas suas tradições, engajam-
em formação antes de realizar o estágio? -se na conversa e, encarnados que estão no mundo,
Tendo em vista estes questionamentos, o obje- compartilham experiências pela intercorporeidade,
tivo geral do presente estudo foi compreender sen- produzindo novos sentidos.
tidos da experiência de participação em oficinas de Neste contexto dialógico, considera-se impor-
desenvolvimento da escuta para a prática do estágio tante a confiança genuína entre os envolvidos – o
obrigatório entre estagiários de Psicologia. Traçaram- que permite o respeito pelas descrições e histórias
-se como objetivos específicos: descrever como com- de cada um (consideração positiva incondicional),
petências despertadas e desenvolvidas naquelas ofi- assim como promove um espaço para que as pessoas
cinas estariam sendo operacionalizadas no estágio; sejam mais autênticas ao compartilhar experiências
compreender como as mudanças em modos de sub- e expressar opiniões. A confiança, estando presente
jetivação desses estudantes favoreceram a inserção e suportada no processo dialógico, favorece o eclodir
Relatos de Pesquisa
e a manutenção no estágio; e avaliar, na perspectiva de um fundamento de coesão, e o comprometimen-
destes estagiários, a operacionalidade da oficina para to comum emerge quando o diálogo caminha e se
ser ofertada ao estudante em formação. expande entre os sujeitos, que argumentam e con-
tra argumentam, num jogo contínuo de perguntar e
responder. Propõe a autora que “no jogo hermenêuti-
Metodologia co, a compreensão do outro passa, necessariamente,
pela compreensão de si [...]. Trata-se de apreender o
O presente estudo se fundamentou na aborda- sentido considerando-se as tradições dos envolvidos
gem humanista-fenomenológica, para a qual a pes- e suas encarnações no mundo como constituintes e
quisa qualitativa é mais adequada, tendo em vista constituidoras dos sentidos que emergem” (Macêdo,
que o conhecimento vai sendo construído de acordo 2015, p.210).
com as realidades subjetivas que são próprias de su- Nessa contextualização metodológica, os cola-
jeitos inseridos em determinados grupos sociais. boradores da pesquisa foram 14 estagiários do 9° e
-

Assim, optou-se por investigar os sentidos e sig- 10º período do curso de Psicologia da Universida-
nificados de experiências humanas para indivíduos de Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), em
Artigos

que as vivenciaram e as compartilham num contexto Petrolina/PE, que estavam realizando estágio há no
de diálogo. Neste tipo de pesquisa, se inclui a subjeti- mínimo dois meses, independentemente da ênfase e
vidade no próprio ato de investigar, tanto do pesqui- da área escolhida para estagiar e que participaram de

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Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

oficinas de desenvolvimento da escuta nos anos de Giorgi (1985), Forghieri (1993) e Macêdo (2000,
2014 e 2015, quando estavam no 8º período. 2006); ou sugeridos por Amatuzzi (2009) e Macêdo
O estudo foi realizado com recursos do Progra- (2015). No entanto, respeitando que uma pesquisa
ma Institucional de Bolsas de Iniciação Científica fenomenológica se faz ao caminhar, conduziu o pro-
(PIBIC CNPq/UNIVASF 2015-2016) e atendeu aos cesso de análise conforme descrito abaixo, a fim de
preceitos éticos de pesquisas com seres humanos, partir do contato com as gravações até a descrição
contidos na Resolução CNE/CNS 466/2012. A coleta final dos elementos significativos e dos sentidos em
apenas se iniciou após aprovação pelo Comitê de Éti- comum da experiência investigada. Os passos per-
ca e Deontologia em Pesquisa (CEDEP) da UNIVASF, corridos foram:
registrada sob CAEE 44219715.1.0000.5196 e autori- a) Os conteúdos gravados nos grupos de dis-
zada pelo parecer favorável Nº 1.068.786, de 18 de cussão foram posteriormente transcritos na íntegra
maio de 2015. pelos bolsistas. No entanto, cada membro da equi-
Os colaboradores foram convidados para o es- pe de pesquisa escutava a gravação de cada grupo
tudo em reuniões de estagiários do Centro de Estu- e lia a transcrição quantas vezes fossem necessá-
dos e Práticas em Psicologia (CEPPSI), serviço-esco- rias para descrever os elementos significativos da
la da UNIVASF, em meados dos semestres 2015.2 e experiência do diálogo compartilhado entre pes-
2016.1, e apenas participaram da pesquisa após se quisadores e colaboradores. Cada componente da
disponibilizarem a colaborar de forma voluntária e equipe de pesquisa, usando a ferramenta “inserir
terem assinado o Termo de Consentimento Livre e comentários” do editor de texto Word for Windows,
Esclarecido. escrevia sobre os significados que tinham percebi-
A pesquisa foi conduzida em contexto de gru- do na transcrição.
pos de discussão, que são considerados por Laville b) Em um segundo momento, os membros da
e Dionne (1999) como um instrumento original em equipe de pesquisa se reuniam, liam quantas vezes
pesquisa qualitativa. Nesses grupos, o sujeito pode fossem necessárias a conversa registrada e os comen-
defender suas opiniões e contestar as dos outros, tários feitos por cada um, negociando divergências
permitindo ao pesquisador aprofundar sua com- para se chegar a um consenso de como registrariam
preensão das respostas obtidas. Por isso foi promo- os elementos significativos da experiência. Esta ne-
vida em grupos pequenos (dois com cinco e outro gociação muitas vezes levou vários encontros da
com quatro colaboradores), que se reuniram, cada equipe de pesquisa e culminou em uma análise cole-
um, uma única vez. tiva preliminar sobre o que se percebia do que estava
As entrevistas nos grupos de discussão, que fo- sendo compartilhado pelos colaboradores de deter-
ram conduzidas a partir de uma pergunta dispara- minado grupo de discussão, ao que se chamou de
dora, levaram em torno de noventa minutos cada e presentificação dos sentidos das experiências com-
foram gravadas em áudio digital. Esse tipo de entre- partilhadas. Este processo foi feito separadamente
vista é indicada quando o pesquisador quer explorar para cada um dos grupos investigados.
atitudes, opiniões e comportamentos, assim como c) Cada análise preliminar resultou em um tex-
observar processos de consenso e divergência (Tura- to para a entrevista devolutiva de cada grupo. Esse
to, 2003). conteúdo era encaminhado por e-mail a cada cola-
A pergunta disparadora, proposta por Amatu- borador integrante de um referido grupo, a fim de
zzi (1993), é uma interrogação que coloca o sujeito que ele revisasse o texto, desse sugestões, acrescen-
em contato com suas experiências e permite que ele tasse novos elementos e/ou realizasse mudança(s) na
as descreva de modo que o pesquisador alcance o análise do grupo que participou. Era dado um prazo
sentido delas. Tendo a função de abrir o diálogo, de retorno de dez dias para as devolutivas, conside-
essa pergunta permite um desencadear da narrativa rando o tempo definido para conclusão da pesquisa.
da experiência, narrativa que tende a ser detalhada Poucos colaboradores responderam aos e-mails en-
com enfoque em acontecimentos e ações (Jovche- viados, no entanto, esses não propuseram nenhuma
Relatos de Pesquisa

lovitch & Bauer, 2001). No entanto, o pesquisador mudança ao que tinha sido percebido pela equipe de
deve ficar atento ao fenômeno que emerge e inserir pesquisa.
outras perguntas ao longo do diálogo, abrindo espa- d) Após as devolutivas, a equipe de pesquisa,
ço para atender aos objetivos da pesquisa. novamente reunida, procedeu à descrição final das
Neste estudo, a pergunta disparadora proferida Unidades de Sentido da experiência investigada,
foi: “Como você descreveria a sua experiência em ter considerando o que de comum foi descrito em todos
participado de oficinas de desenvolvimento da es- os grupos de discussão, passando essas unidades -
cuta para a sua atuação prática como estagiário em destacadas em negrito no próximo tópico - a serem
Psicologia?”. Com a pergunta proferida, a ideia era a base para a discussão dos resultados desse estudo.
que o pesquisador acessasse o vivido e favorecesse
possibilidades de, efetivamente, os sujeitos narrarem
e compartilharem, num contexto de diálogo, suas ex- Resultados e Discussão
periências.
-

Para fins de compreensão dos registros das Para se manter o sigilo quanto às falas de cada
entrevistas nos grupos de discussão, a equipe de colaborador, usar-se-á as siglas de C1 a C14 como
Artigos

pesquisa (formada pelos bolsistas de iniciação cien- forma de nomeá-los e preservar suas identidades, as-
tífica e a orientadora) esteve atenta aos passos de sim como utilizar-se-á as siglas P1 e P2 para os auxi-
análise fenomenológica definidos por autores como liares de pesquisa envolvidos com a coleta: pessoas

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018 126
Oficina de Desenvolvimento da Escuta: Prática Clínica na Formação em Psicologia

que, necessário ressaltar, eram estudantes do mesmo estágio, apesar de ter coisa da gente que isso ai
curso que conduziram algumas das oficinas como a gente não pode separar, mas a gente buscou
trainees quando os estagiários colaboradores desta trabalhar, o enfoque era o estudante que estava
pesquisa cursavam o oitavo período. adentrando no estágio, (...) eu acho que isso
Vale aqui destacar como a metodologia da pes- quebra muito a possibilidade de você falar mais
quisa esteve ancorada num resgate de tradição. Na de si (C1).
Hermenêutica Colaborativa, o papel do pesquisador
é, através da conversação, contestar tradições para Ainda neste sentido, faz-se mister destacar
que os envolvidos, ao contra argumentarem, che- uma observação por parte dos colaboradores quando
guem a um novo olhar sobre seu caminhar (Macê- apontaram que a formação, embora ofereça suporte
do 2015). O fato dos bolsistas de PIBIC terem sido no sentido técnico, não atenta às questões ligadas à
os próprios trainees em oficinas ajudou em dois as- subjetividade deles, especificamente em suas neces-
pectos: eles compartilharam com os sujeitos a expe- sidades de cuidado, como se pode compreender no
riência relatada e puderam alcançar com mais cla- trecho do relato de C2:
reza os sentidos da experiência investigada, o que
foi comprovado em algumas entrevistas devolutivas Eu acho muito importante a oficina nesse
possíveis. Além disso, os bolsistas desenvolveram sentido, de se criar um momento da gente se
a própria escuta, pois tanto nas oficinas quanto na cuidar, de ver suas questões, por mínimo que
coleta de dados da pesquisa foi promovido um con- seja, porque são poucos encontros, mas, de se
texto de diálogo grupal, focado no compartilhamento cuidar antes de cuidar do outro. (...) A gente tem
de experiências. Em adição, estarem compartilhan- muita técnica, é muito bom o curso, a gente se
do ansiedades e conhecimentos sobre o processo de sente muito preparado para fazer um mestrado,
tornar-se psicólogo na mesma instituição exigiu dos uma especialização, mas não é um curso que
bolsistas uma tomada de consciência de diferenciar se preocupa em cuidar da subjetividade dos
os processos dos outros dos deles e não deixarem estudantes que estão fazendo.
que suas percepções interferissem a ponto de macu-
larem o que ouviam, sendo isso algo perspectivado Este recorte de relato aponta para a possibilida-
pelo método utilizado. de da oficina atender ao preposto de autores como
Tendo isso posto, partindo do conteúdo analisa- Heckert (2007), Heckert & Neves (2010), Rudnicki &
do nos grupos de discussão, tentaram-se compreen- Carloto (2007) e Mendes, Fonseca, Brasil & Dalbello-
der as Unidades de Sentido das experiências dos -Araújo (2012), que, ao discutirem a formação do psi-
colaboradores conforme foram aparecendo com re- cólogo, atentam para a limitação do ensino que visa
corrência, levando em consideração também os ele- apenas o rigor teórico. Para os autores, é necessário
mentos em comum, isto é, os significados que eram que o estudante de Psicologia vivencie o processo de
compartilhados pelos participantes de um grupo escuta e cuidado para, então, trabalhar como profis-
também estavam presentes nos relatos dos demais sional que se debruça sobre tais dimensões da vida
colaboradores de todos os grupos da pesquisa. Vale humana.
destacar que os recortes de relatos e de diálogos esta- Vale, aqui, lembrar Amatuzzi (1990), que já res-
belecidos entre auxiliares de pesquisa e colaborado- saltava a importância de se ouvir e se deixar afetar
res foram extraídos tendo em vista a proposta meto- num processo de escutar. Para o autor, o primeiro
dológica de um processo conjunto de interpretação conhecimento que se tem acerca do humano é o co-
da experiência compartilhada em grupo. nhecimento íntimo, aquele produzido pelo contato
Uma primeira Unidade de Sentido a se destacar direto com o centro da pessoa, que presume uma
foi o alcance terapêutico que as oficinas proporcio- abertura inicial para se despir de qualquer outro co-
naram aos colaboradores, na época em que eles par- nhecimento a fim de se ouvir e acolher a experiên-
ticiparam delas quando eram estudantes do oitavo cia, que, no caso do presente estudo, é a própria ex-
Relatos de Pesquisa
período. Elas foram consideradas por eles espaços periência de escutar.
onde podiam falar de si, porém diferiram, na pers- Também lembra-se Gadamer (2003), um dos
pectiva deles, de uma psicoterapia individual, já que filósofos em cujas bases o método deste estudo se
as atividades mantinham o objetivo de focar no pro- apoia, quando discorreu a respeito do resgate da
cesso intersubjetivo de produção de sentido sobre tradição, ou resgate da consciência histórica, como
ser estudante prestes a adentrar o estágio. Mesmo um movimento do sujeito de se conhecer a partir
assim, parece ter havido processos terapêuticos, pois da imersão em suas raízes e experiências passadas.
eles puderam falar de suas questões e refletir sobre Segundo ele, esse percurso tem como resultado um
estas em um ambiente de compartilhamento de ex- novo saber sobre si. No caso dos estagiários colabo-
periências que promoveu mudanças em seus modos radores desse estudo, a oficina, antes do período de
de sentir, pensar e agir. O trecho abaixo exemplifica estágio, parece ter propiciado uma apropriação do
essa possibilidade: autoconhecimento em prol de se encontrar novos
modos de ser para estar diante do outro.
-

Você não está falando de teoria, você não está O autoconhecimento, enquanto Unidade de
falando de fulano, não está falando de sicrano, Sentido, é compreendida como processo de funda-
Artigos

você está falando de você. (...) Eu acho assim, mental importância para a entrada no estágio, como
que lá a gente estava como estudante de mostra o diálogo a seguir:
psicologia do oitavo período que ia adentrar o

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Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

C4: Eu me senti assim (risos), um freio de mão: C6: Mas ai no momento da oficina você vê que
Para! Porque não é só de literatura que se vive sua é um sentimento compartilhado, que todos os
profissão, mas também do autoconhecimento, seus colegas que estão ali com você durante
das entrelinhas que têm que ser tecidas e esses primeiros quatro anos do curso, e não é só
observadas. Então, foi um freio de mão para você que está sem saber o que fazer.
mim, que normalmente verbalizo muito, no oral
e no papel. Foi um exercício para mim. Estes dados indicam ser confirmativos da pro-
posta de Roriz (2010), que aponta para a necessidade
P 2: Então você traz um dos pontos do tripé da de se ofertar práticas clínicas que permitam ao sujei-
clínica, que é o trabalho pessoal, a necessidade to se apropriar da sua angústia – que, por sua vez, é
de cuidar de si e tal. constitutiva da existência humana -, fazendo assim
com que ele invista em encontrar modos de ser mais
C4: Sim! autênticos, orientados pelo objetivo do cuidado. A
oficina, ao se propor ser prática clínica em institui-
P2: Você sente isso no estágio hoje? ção, parece alcançar tal êxito a partir do que foi com-
preendido dos sentidos produzidos nos grupos.
C4: Difícil pensar como eu estaria no estágio Competências desenvolvidas nas oficinas que
hoje se não tivesse feito isso, porque não tem estariam sendo operacionalizadas no estágio foram
outra forma, já foi. outra Unidade de Sentido identificada. Foi possível
perceber, pelas discussões dos grupos, que tais com-
Outra Unidade de Sentido a ser destacada diz petências parecem atender em significativa medida,
respeito à melhoria nas relações interpessoais que mesmo que indiretamente, às DCN (CNE, 2011), as
os estagiários perceberam ao adentrarem na prática e quais defendem, na formação do psicólogo, o de-
que atribuem à oficina, como mostra o trecho: senvolvimento de competências como coordenar
e manejar processos grupais e relacionar-se com o
Ouvir um pouquinho sobre as batalhas que cada outro de modo a proporcionar o desenvolvimento
um enfrenta, foi interessante para não perpetuar de vínculos interpessoais produtivos com sua clas-
essa falta de escuta. Parte da gente também o se profissional. Também destacam habilidades a se-
compromisso de escutar um pouquinho. Já que rem adquiridas num curso de Psicologia, como, por
não tem essa escuta para conosco algumas exemplo, descrever, analisar e interpretar manifes-
vezes, que tenha esse momento com o outro, e tações verbais e não verbais como fontes primárias
isso no estágio é fundamental (C5). de acesso a estados subjetivos. De acordo com os co-
laboradores, compreende-se que eles puderam, nas
Como já nos diziam Lima (2005) e Coelho & Fi- oficinas: a) escutar ou silenciar de si, para escutar o
gueiredo (2004), o ofício do psicólogo consiste em outro; b) aprimorar a escuta e a sensibilidade para
se deparar no encontro dos sentidos, de modo que escutar o outro; c) interpretar diferentes formas de
o compartilhar das experiências e o reconhecimento linguagem dos clientes; d) organizar, sistematizar e
da alteridade se tornem imprescindíveis para a atua- focar no ato da escuta; e) aprender como lidar com
ção desse profissional. A oficina, assim, favoreceu o silêncio de um cliente; e f) trabalhar com grupos.
aos colaboradores identificarem o seu lugar diante Na perspectiva dos colaboradores, foi uma ca-
do outro e, portanto, atentarem para suas questões racterística da oficina ser um espaço no qual pude-
pessoais. ram refletir sobre a competência de lidar com o si-
Foi compreendida, também, pelas discussões lêncio no processo terapêutico, assim como, sobre as
suscitadas nos grupos, que a oficina teve o sentido competências que ainda não foram desenvolvidas e
de ressignificação da angústia em relação à futura que são importantes para a prática:
prática do estágio, propiciada pelo compartilhamen-
Relatos de Pesquisa

to de experiências dessa angústia entre colegas de C1: Eu acho que a oficina acaba funcionando
um mesmo período e/ou do curso. Para além disto, os como um espaço de percepção. A gente fala
estagiários revelaram uma diminuição da ansiedade quatro anos sobre o silêncio, sobre o olhar, mas
em relação às limitações pessoais que reconheciam acho que são poucos os espaços que a gente
possuir à época das oficinas, ao poder, naqueles mo- acaba tendo no curso para vivenciar o silêncio, e
mentos, perceber que os colegas também tinham tais ai quando a gente tem oportunidade de encarar
limitações. Vê-se isso no recorte de diálogo abaixo: isso, as pessoas ficam sempre desconsertadas,
sem saber como agir.
P1: Então há como se fosse uma ressignificação
daquilo ali não é? [angústia e ansiedade C7: Escutar o silêncio para mim hoje é muito
anteriormente descritas] Por ser compartilhado mais tranquilo, aceitável, fácil, do que foi
já muda, é isso? naquele dia que foi nosso primeiro contato
direto com isso naquela oficina (...) Foi possível
-

C1: Saber que aquilo não era uma coisa desenvolver a partir da oficina. Aprimorando
isolada, era uma coisa do contexto, que todos com as nossas práticas obviamente.
Artigos

de certo modo estavam vivenciando aquilo (...)


compartilhar as experiências, aquele momento C14: Para mim foi maravilhoso, a dinâmica do
foi bastante importante. olhar, o silêncio é muito importante. Eu acho

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018 128
Oficina de Desenvolvimento da Escuta: Prática Clínica na Formação em Psicologia

que é uma das coisas que eu estou levando hoje C10: Talvez seja a primeira experiência com esse
para a clínica. dosar do que é seu e do que é do outro, porque
naquele momento você está num turbilhão (...) E,
Para além das competências listadas acima, as ai, talvez tenha sido uma primeira experiência
falas abaixo apontam para ganhos de aprendizagem para você saber dosar, porque a vida continua
relacionados a técnicas de dinâmica de grupo. Os com seus turbilhões.
colaboradores parecem ter chegado a um nível de
experiência compartilhada que contribuiu para suas P2: Então, vocês viram a oficina como um ganho
vivências atuais nas atividades de estágio, sobretu- de aprendizagem em relação a esse dosar do que
do aquelas que envolvem processos grupais. Ainda é meu e do que é do outro, do que é que precisa
é possível compreender que foi desenvolvida mais ser escutado em mim, o que é que precisa ser
paciência para esperar o tempo inerente a processos escutado no outro?
como esses - o que se pode considerar como mais
uma competência adquirida: C10: Acho que sim, acho que isso a gente não
aprende em livros.
C3: Foi muita expectativa por ser em grupo e
hoje no estágio, por eu estar trabalhando com
grupos, eu achei interessante o fato de em um Os colaboradores também referendaram que,
grupo você compartilhar coisas em comum através da oficina, houve um aprimoramento da
(...) Hoje, no estágio, eu percebo que no grupo escuta clínica, devido à atividade permitir uma dis-
as pessoas fazem isso também, como se fosse cussão acerca das experiências vivenciadas, assim
uma repetição do que aconteceu na oficina. Foi como uma maior sensibilidade ao sentido e à res-
interessante. significação do que está sendo dito pelos clientes
que são atendidos pelos estagiários. Veja-se abaixo
P1: Você se sente, de certa forma, mais um trecho de diálogo, constitutivo dessa Unidade
confortável hoje no estágio? de Sentido:

C3: Sim, por ter percebido um movimento P2: Qual sentido da sua participação?
durante a oficina de como é no grupo, e hoje,
interessante perceber também esse movimento. C1: Bom, eu acho que o que ficou mais para mim
(...) da mesma coisa, foi interessante perceber. foi o momento inicial, da gente poder meio que
Ter um pouquinho mais de paciência, eu acho, debater as versões de sentido, eu acho que isso
para lidar com os grupos hoje. é o que de fato treina, vamos dizer assim, nossa
escuta (...) Eu lembro um pouco da gente no
É possível compreender, portanto, que a oficina plantão psicológico, que quando, na supervisão,
parece ter permitido a capacitação do estudante, ao vem um caso todo mundo participa e acaba que
colaborar com o desenvolvimento de competências isso ajuda um pouco.
básicas propostas pelas DCN para um psicólogo in-
gressar no mercado de trabalho da profissão (CNE, P1: E o que você acha que você tira hoje, no
2011), assim como com a futura carreira do estagiá- estágio, de proveito dessa característica [da
rio de Psicologia, como descrita por Malvezzi, Souza oficina ser um ambiente de compartilhamento
& Zanelli (2010). das experiências]?
A partir da identificação dessas competências,
defende-se que a oficina de escuta parece funcionar C1: Acho que você fica mais atento para alguns
como um chamamento ao estudante de Psicologia sentidos de algumas coisas que não estão
para a responsabilidade de desenvolver uma escu- evidenciadas logo assim na fala. E tem uma
Relatos de Pesquisa
ta qualificada. Os colaboradores perceberam que a sensibilidade maior de buscar um pouquinho
preparação para escutar o outro está relacionada à mais, e isso é totalmente importante na clínica.
necessidade de escutar a si mesmo, sabendo identifi-
car questões pessoais que não interfiram na sua atua- Compreende-se, também, que a metodologia e
ção prática no estágio. Isso constituiu a Unidade de operacionalidade da oficina foi reconhecida pelos
Sentido cuidar de si para cuidar do outro - unidade colaboradores como tendo o sentido de uma iniciali-
atrelada a outra - pois eles reconheceram o processo zação prática para o estágio, principalmente no que
vivido como um ganho de aprendizagem, perceben- diz respeito a uma capacitação para a compreensão
do a oficina como o primeiro momento de contato da linguagem, favorecendo o despertar de uma aten-
com a escuta clínica na prática, entendida, aqui, ção para as diversas formas de linguagem comu-
como mais uma Unidade de Sentido da experiência nicadas pelos clientes durante os atendimentos que
investigada. Veja-se o trecho do diálogo abaixo: eles realizavam:
-

C11: Como é que eu vou parar para escutar, C5: Eu percebi muito durante os encontros das
como é que eu vou parar para ouvir o que oficinas e eu vim perceber um retorno disso
Artigos

aquelas pessoas vão levar para o serviço-escola agora já no estágio, é que a gente aprende que
se eu não estou conseguindo parar para mim, a escuta não é só o ouvir literalmente, é você
sabe? escutar o gesto, é você escutar o silencio.

129 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018
Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

C7: Me trazia muito a experiência das oficinas, P2: Vocês acham que esteve presente na oficina
quando eu fui atender o primeiro paciente que em algum momento a abordagem de quem
teve o silêncio. E você vai escutar o silêncio, estava mediando?
que você não pode se desesperar, você não
pode sair dali. C10: Eu não acho que isso foi negativo, mas
acho que sim. Isso tanto não inviabiliza que a
C13: Na prática, os atendimentos que eu gente hoje está aqui em abordagens diferentes,
realizei com certeza aparece, a gente ficar mas não deixamos de pontuar os ganhos da
atento, conectando ali ao discurso das pessoas, oficina.
não só a fala, mas o corpo, como ela se
apresenta. C8: O que é que une a psicologia? É escutar,
porque independente da abordagem que você
Uma outra Unidade de Sentido diz de organi- for levar, de como você vai talvez interpretar o
zação e foco da escuta que a oficina propiciou. Se- que o cliente diga, você tem que escutar o que
gundo os colaboradores, nas oficinas eles puderam ele vai lhe trazer, até mesmo o silêncio.
se organizar e se disciplinar mais no ato de ouvir o
outro: C7: A forma como as oficinas foram acontecendo,
de forma muito metódica e explicativa, todas as
C5: A gente quando chega na oficina, já sabe atividades foram exaustivamente explicadas e
a importância da escuta, mas eu acho que a ao final de cada encontro a gente poderia fazer
forma como as oficinas foram organizadas uma versão de sentido e concretizar na escrita
fazem a gente vivenciar a escuta. aquela vivência e no próximo encontro ler aquilo
e rememorar e no próximo encontro conseguir
C7: Será que eu estou pronto para a escuta fazer uma ligação. Eu acho que foram alguns
clínica? (...) Às vezes, escutar traz uma coisa dos pontos que facilitaram vivenciar a oficina.
que é sua mas que não cabe naquele processo,
e você tem que se distanciar disso. Eu acho que Diante desses recortes de diálogo, parece que,
foram encontros que possibilitaram esse tipo de mesmo que não tenha sido colocada em cheque a
reflexão para a gente. abordagem teórico-metodológica que estava subja-
cente à condução da oficina, os colaboradores con-
As falas acima são bem representativas daqui- seguiram perceber e reconhecer a importância de
lo que no método da pesquisa é considerado como uma sistematização metodológica que ajudou na
epokhē incompleta. Numa perspectiva merleau- condução do processo. Sinalizaram, também, que
-pontyana, poderia-se dizer que os colaboradores os ganhos de aprendizagem promovidos pela oficina
se esforçaram para suspender o que impediria o independiam, inclusive, da abordagem que o próprio
encontro intersubjetivo e que a oficina parece ter estagiário viria a eleger para a prática de estágio.
permitido o amadurecimento daquilo que Merleau- Por fim, os colaboradores sinalizaram a relevân-
-Ponty (2006) lembra: o maior ensinamento da re- cia de se ofertar as oficinas como atividade de forma-
dução fenomenológica é a impossibilidade de uma ção em Psicologia como uma prática não obrigató-
redução completa. ria. Segundo eles, seria de suma importância que os
Ademais, os colaboradores reconheceram que participantes tenham disponibilidade e desejo pela
a fase que antecedeu o estágio foi um momento sig- vivência, sobretudo pelo efeito terapêutico que a ofi-
nificativo na sua trajetória acadêmica, por isso con- cina promoveu, embora não tenha se configurado
sideraram positiva a oferta da oficina nesse período como um grupo terapêutico:
específico:
C14: Eu acho que o contato um pouco, desde
Relatos de Pesquisa

Eu acho que influencia indiretamente, se mais cedo dessas dinâmicas, dessas ferramentas,
mistura com muitas outras experiências da acho que colaborariam muito para uma imersão
mesma fase, mas, eu acho que influencia nessas formas de entrar em contato com o outro,
positivamente, uma vez que você consegue com o cuidado.
pensar sobre isso, acho que por mais que
você não consiga calcular os ganhos disso, eu C1: Como algo disponível, vamos dizer, uma
acredito que tenha uma influência positiva disciplina optativa, algo disponível ao longo do
nesse período, nesse início de estágio. Talvez curso, poderia ser algo que seria muito válido.
um aspecto do que estão inerentes a isso (C10).
C3: Talvez se a gente fosse obrigada a passar por
Foi possível compreender, também, que para isso para poder entrar no estágio, a gente não
os colaboradores, a oficina permitiu a compreensão estaria falando aqui de forma tão positiva e nem
de que escutar independe de abordagem e área de tão aberta, porque a gente se dispôs. A gente não
-

aplicação da Psicologia. Os relatos abaixo, além de foi obrigado.


tornarem possível essa ideia, abrem à possibilidade
Artigos

de compreender que a forma como a oficina foi con- No contexto da oficina, a permissividade do
duzida não enviesou os estudantes para uma escuta ambiente – denotada na credibilidade e confiança
pautada no método de trabalho utilizado: enquanto funções facilitadoras -, foi essencial para a

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018 130
Oficina de Desenvolvimento da Escuta: Prática Clínica na Formação em Psicologia

abertura à experiência, num dizer de Rogers (1997), e da escuta como componente de projeto pedagógico
se revelou na fala dos estagiários ao trazerem aspectos de curso de Psicologia, tendo em vista seus alcances
que fazem desta atividade um momento privilegiado positivos com atenção ao desenvolvimento de com-
de fala e escuta, como o partilhar do mesmo tema em petências dos colaboradores envolvidos. Além disso,
questão, o comprometimento dos sujeitos envolvidos reconhece-se que atividades acadêmicas como essas
e o acolhimento da alteridade que acompanha o pro- podem constituir espaços para a troca de experiências
cesso. Portanto, como uma prática clínica, a oficina de estudantes, a fim de que estes, no ato de serem cui-
parece ter proporcionado um espaço de confiança en- dados num processo de facilitação de grupo, possam
tre os membros do grupo para compartilharem suas também se apropriar de modos de sentir, pensar e agir
particularidades. Ao mesmo tempo, indica ter promo- que favoreçam o cuidado de outrem, no mundo con-
vido um sentimento de autoconfiança para a entrada temporâneo no qual predomina o individualismo em
na prática do estágio, pelo reconhecimento da trajetó- detrimento da solidariedade.
ria vivenciada nos quatro anos de curso. Veja-se: Reconhece-se que houve limitações na pesquisa
relacionadas à disponibilidade que os colaboradores
C3: E a oficina vem para dar um certo estalo tiveram para a devolutiva da análise preliminar, o que
de: olha a gente está aqui, está passando pela reduziu o número de sujeitos que colaborassem efeti-
mesma situação, mas vocês estão preparados, vamente com a análise dos dados e gerou contratem-
vocês passaram quatro anos aqui e não foi à toa, pos para o passo final da análise. Mas isso não preju-
e aí eu acho que a oficina pelo menos para mim dicou o estudo de maneira significativa.
pôde promover isso. Espera-se, portanto, que esta investigação tenha:
colaborado para a formação profissional do estudan-
C8: Eu acho que outra coisa importante também te de Psicologia da UNIVASF; servido como fonte de
que teve foi a questão do cuidado com o indicadores para se ofertar essas oficinas como uma
estagiário. (...) Porque na supervisão o que você capacitação a mais para subsidiar a entrada dos estu-
sabe do paciente vem do estagiário, e como você dantes nos estágios em Psicologia no serviço escola da
está? E a oficina vem muito para isso, como você instituição, mesmo em caráter não obrigatório; e am-
está ai para esse novo contexto? pliado conhecimentos de como conduzir uma prática
clínica em Psicologia Organizacional e do Trabalho
C9: Eu acho que a oficina se propõe a ser o no contexto da formação universitária. Neste sentido,
cuidado ao ouvidor, eu acho que esse diferencial sugerem-se estudos que descrevam a condução con-
ai vem no momento certo. tinuada dessas oficinas e/ou enfoquem o desenvol-
vimento de competências possibilitados por elas em
C5: E eu achei que foi extremamente importante, grupos de estudantes de outros períodos específicos
um momento de cuidado, um momento que você do curso.
também pode ser ouvido. Eu também posso ter Por fim, espera-se que o presente estudo possa
problemas, eu também posso me expressar, eu ampliar discussões e pesquisas sobre como a forma-
também posso, de alguma forma, ser ouvida. ção acadêmica nos cursos de graduação em Psicologia
no Brasil tem atendido às DCN instituídas pelo MEC
Diante disto, respondendo ao último objetivo da no que concerne ao desenvolvimento de competên-
presente pesquisa, parece ter sido possível aos colabo- cias e promover reflexões no contexto acadêmico so-
radores conceber a oficina de desenvolvimento da es- bre a importância de atividades focadas nas referidas
cuta como um espaço não apenas de capacitação para competências para uma atuação prática de futuros
a prática do estágio, mas de humanização e cuidado psicólogos mais efetiva, em especial no que se refere
para com a pessoa do estagiário, o que possibilita pen- ao dispositivo da escuta clínica.
sar nesta como uma prática clínica em instituição de
formação de psicólogo, como já propuseram Dourado,
Relatos de Pesquisa
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formação graduada, esta pesquisa alcançou seus ob-
jetivos e permitiu uma expansão das leituras acerca Amatuzzi, M. M. (1990). O que é ouvir. Estudos de Psico-
do processo de tornar-se psicólogo, assim como dos logia, 7 (2), 86-97.
temas escuta e cuidado. Como conceitos importantes
da ciência psicológica, a escuta e o cuidado foram res- Amatuzzi, M. M. (1993) Etapas do processo terapêutico:
um estudo exploratório. Psicologia, Teoria e Pesqui-
significados pelos pesquisadores envolvidos, e o olhar sa, 9, 1-21.
sobre eles se enriqueceu com a produção do saber/fa-
-

zer propiciado pelo estudo. Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana. São
Acredita-se que os resultados apresentados trou- Paulo: Editora Alínea.
Artigos

xeram contribuições importantes para produções


científicas sobre o tema referido, ratificando a pos- Amatuzzi, M.M. (2009). Psicologia fenomenológica: uma
sibilidade de se pensar oficinas de desenvolvimento aproximação teórica humanista. Estudos de Psicolo-
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131 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018
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Shirley Macêdo Vieira de Melo é Professora do Cole-


giado de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Dinâmicas de Desenvolvimento
do Semi-Árido (PPGDiDes) e da Residência Multi-
profissional em Saúde Mental da Fundação Univer-
sidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).
É Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade
Católica de Pernambuco; Mestre em Psicologia Clí-
nica pela Pontifícia Universidade Católica de Cam-
pinas, SP; Especialista em Psicologia Clínica pela
Universidade Católica de Pernambuco; Graduada e
Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal
de Pernambuco; e Bacharel em Administração pela
Faculdade de Ciências Humanas ESUDA. E-mail:
mvm.shirley@gmail.com.
Gledson Wilber de Souza é Graduado no Curso de
Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São
Francisco.
Monzitti Baumann Almeida Lima é Graduado no
Curso de Psicologia pela Universidade Federal do Vale
do São Francisco.

Recebido em 26.05.2017
Primeira Decisão Editorial em 05.09.2017
Aceito em 02.10.2017

Relatos de Pesquisa
-
Artigos

133 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 123-133, mai-ago, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.2

WORKSHOPS ON LISTENING: CLINICAL PRACTICE


IN PSYCHOLOGY TRAINING

Oficina de Desenvolvimento da Escuta: Prática Clínica na Formação em Psicologia

Talleres de Desarrollo de Escucha: práctica clínica en la formación en psicologia

Shirley Macêdo
GledSon Wilber de Souza
Monzitti bauMann alMeida liMa

Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo geral compreender sentidos da experiência de participação em oficinas de
desenvolvimento da escuta entre estagiários de Psicologia, que as frequentaram antes de adentrar o estágio. Especifi-
camente, buscou-se descrever como competências despertadas e desenvolvidas naquelas oficinas estariam sendo ope-
racionalizadas no estágio; compreender como mudanças em modos de subjetivação desses estudantes favoreceram a
inserção e a manutenção no estágio; e avaliar, na perspectiva destes estagiários, a operacionalidade da oficina para ser
ofertada ao estudante em formação. Usando a hermenêutica colaborativa, uma proposta em pesquisa fenomenológica,
entrevistaram-se 14 estagiários, subdivididos em três grupos de discussão, que puderam resgatar e analisar conjun-
tamente o sentido daquela vivência. Os resultados apontaram que a oficina promoveu alcance terapêutico; favoreceu
autoconhecimento; teve o sentido de ressignificação compartilhada da angústia em relação à futura prática do estágio;
dirimiu ansiedade em relação às limitações pessoais; promoveu desenvolvimento de competências; e favoreceu orga-
nização, sistematização e foco da escuta. Os colaboradores reconheceram a necessidade da oficina antes do estágio,
mas sem ser obrigatória. Concluiu-se, principalmente, que essa pode ser uma prática de capacitação, humanização e
cuidado a futuros estagiários num serviço-escola de Psicologia, pois foi reconhecida pelos colaboradores como espaço
de acolhimento e cuidado de si.
Palavras-chave: Escuta; Pesquisa Fenomenológica; Formação do Psicólogo.

Abstract: This research aimed to understand the meanings of participating in workshops on listening development
among Psychology interns, who attended the workshops before starting the internship. Specifically, the goal was to
describe how the awakened and developed competences in those workshops were being operationalized in the intern-
ship; to understand how the changes in modes of subjectification of these students favored the insertion in the intern-
ship; and to evaluate, from the interns’ perspective, the operability of the workshop offered. By using collaborative
hermeneutics, a proposal in phenomenological research, 14 interns (divided into three discussion groups) were able
to rescue and analyze the meaning of that experience. The results showed the workshop promoted therapeutic reach;
favored self-knowledge; had the sense of shared re-signification of anguish in relation to the future practice of the
internship; decreased the anxiety about personal limitations; promoted skills development; and favored organization,
systematization and focus of listening. Employees acknowledged the need for the workshop prior to the internship,
but not mandatory. Mainly, it was concluded that this could be a practice to enable humanization and caring for future
interns in a Psychology school-service, since it was recognized by the employees as a space for welcoming and caring
for oneself.
Relatos de Pesquisa

Keywords: Listening; Phenomenological Research; Formation of the Psychologist.

Resumen: Esta investigación buscó comprender sentidos de la experiencia de participación en talleres de desarrollo
de la escucha entre pasantes de Psicología. Se buscó describir cómo competencias despertadas y desarrolladas en
aquellos talleres estarían siendo instrumentalizadas; comprender cómo cambios en modos de subjetivación de estos
estudiantes favorecieron la inserción y el mantenimiento en la pasantía; y evaluar, en la perspectiva de estos pasantes,
la instrumentalización del taller para ser ofrecida al estudiante. Usando la hermenéutica colaborativa, una propuesta
em investigación fenomenológica, 14 pasantes, subdivididos en tres grupos de discusión, pudieron rescatar y analizar
el sentido de aquella vivencia. Los resultados mostraron que el taller promovió alcance terapéutico; favoreció el auto-
conocimiento; tuvo el sentido de buscar una significación compartida de la angustia concerniente a la futura práctica
de la pasantía; dirimió la ansiedad relacionada a las limitaciones personales; promovió el desarrollo de competencias;
y favoreció la organización y foco de la escucha. Los colaboradores reconocieron la necesidad del taller antes de la pa-
santía, pero sin obligatoriedad. Se concluyó que esa puede ser una práctica de capacitación, humanización y cuidado
-

a futuros pasantes en un servicio-escuela de Psicología, reconocida por los colaboradores como espacio de acogida y
cuidado de si.
Artigos

Palabras clave: Escucha; Investigación Fenomenológica; Formación del Psicólogo.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018 134
Workshops on Listening: Clinical Practice in Psychology Training

Introduction their modes of interpersonal relationships with


patients, teams, and supervisors, or how their fee-
The clinical listening in the psychological lings may interfere with their professional skills,
practice is not a common listening, but a differen- their internship experiences may compromise
tiated hearing, because those who listen and who their health, or even prevent them from understan-
speak open themselves to the otherness experien- ding themselves and the other in the relationship
ce and produce new meanings that favor new ways with a patient (Rudnick & Carlotto, 2007).
of feeling, thinking and acting (Dourado, Macêdo It is necessary, therefore, that the Higher
& Lima, 2016). Education Institutions (HEI) in Psychology make
Bandeira et al. (2006) and Heckert (2007) have efforts to offer practices in which the university
argued that even clinical listening being part of the students can have the chance to expand their pos-
interpersonal skills that must be developed in a sibilities of qualification. In this perspective, Dou-
Psychology course, the academy does not always rado, Quirino, Lima & Macêdo (2016), in view of
achieve this goal, because teaching to listen wou- the National Curriculum Guidelines for undergra-
ld be impossible only by a pedagogical act or by duate courses in Psychology (Resolution CNE/CES
theoretical contents that are applied in the class- Number 5, March 15, 2011), envisaged a clinical
room aiming the learning of a technique. For the practice in Organizational and Work Psychology,
authors, listening develops in experimentation, in contextualized to contribute to the training of psy-
the course of training as a psychologist. chologists in Higher Education Institutions (HEI),
However, in view of the fact that the gra- and proposed listening development workshops
duated psychologist’s training processes, for the with groups of undergraduate students from di-
most part, disregard the learners’ knowledge and fferent periods of the course. They started from
experience, would be a challenge for those who the idea that they would allow students to appro-
teach ways of educating in ways that foster ex- priate their singularities and promote new modes
perimentation, reflection, thoughts and exchange of subjectivation (feeling, thinking and acting),
of experiences, so that learners can reinvent the and, therefore, a therapeutic scope. According to
world and themselves in daily contact with the the authors, the collaborators of their research re-
difference of the other, since every process of for- cognized that listening is not something purely of
mation is a process of production of subjectivities one, but it happens in the relationship, in the con-
(Heckert, 2007). Therefore, it would be in the con- tact with the other: it is necessary to say and to be
tact with the other, in the experience of practice, listened in order to be able to listen to what is said.
that the student of Psychology could use the devi- They also recognized in practice and in the expe-
ce of clinical listening, improving the competence rimentation of listening, the need to develop this
to listen and, as Lima (2005) would say, transiting competence for their future professional exercises
between the care and the knowledge of the self, to as psychologists.
help those who carry a certain kind of suffering. The authors argued that their results favored
Classroom activities, strictly academic, do the development of skills instituted by National
not allow the Psychology student to deepen lis- Curriculum Guidelines of the Ministry of Educa-
tening. This deepening is very much related to tion, which propose that the future psychologist
self-care and self-listening, and the student only should be able to conduct counseling, counseling
comes to worry about it in an individual psycho- and psychotherapy; and generate knowledge from
therapeutic process, at the moments of end-of-cou- its professional practice. They also noted that the-
rse internships (Meira & Nunes, 2005), investing se workshops allow to meet the profile required
very late in the tool that will allow it to be more for the profession, a profile proposed by authors
effective in the career. And it is only in the last such as Malvezzi, Souza & Zanelli, (2010).
year that the students effectively have structured The originality of the study by Dourado, Qui-
Relatos de Pesquisa
formation experiences, this period being a miles- rino, Lima & Macêdo, among other factors, lies in
tone in university life, since it is the preparation the fact that the research is inserted in the interfa-
for entry into the professional world (Dourado, ce between Organizational and Work Psychology
Quirino, Lima & Macêdo, 2016). However, prior and Clinical Psychology, since it was carried out
to this, the overvaluation of theoretical knowled- with students from all periods, including interns
ge to the detriment of practical knowledge has not of different emphases of the course, approaches
allowed undergraduate psychology institutions to and areas of Psychology. The results found suggest
guarantee a solid formation and to overcome the that workshops listening development - if inserted
dissociation between theory and practice (Cruz & in the process of psychologist training, such as cli-
Schultz, 2009). nical practice of Organizational and Work Psycho-
Although, since entering the university, the logy in HEIs - may allow the student in training
student has representations of what a psychologist to find itself and the other, apprehending the sub-
is and incorporates them as the course progresses jects, the meanings of the shared experience in a
-

(Gondim, Luna, Souza, Sobral & Lima, 2010), the group, the necessary elements for personal trans-
practical activities in the internship periods come formation in the direction of greater effectiveness
Artigos

becoming an important structuring axis of the pro- for future action in the professional market.
fessional identity, as a way of formation, ascension According to Braga, Daltro & Danon (2012),
and achievement. But if students are not aware of clinical listening is an essential and indispensab-

135 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018
Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

le to psychological doing, which constitutes as its a clinical process), resulting from contemporary
main care device and that differentiates its work approaches between humanism and phenomeno-
in comparison with other professionals. Therefo- logy, so well reflected by Holanda (2014); in the
re, listening development workshops seem to be a critical humanism and philosophical assump-
possibility, as a clinical practice in Organizational tions of Maurice Merleau-Ponty (considering the
and Work Psychology, to extend the training of stu- notions of intersubjectivity, world of life and in-
dents, providing them with an effective alternative complete epocke); and in the prepositions of Hans-
to investing in the career and future entry into the -Georg Gadamer’s philosophical hermeneutics (in
labor market. his conceptions of tradition, fusion of horizons,
In view of the above, the intention that per- conversation and play of questions and answers).
meated the present study, conducted with trainees Collaborative Hermeneutics, so called by
who, when they were in the eighth period, about Macêdo (2015), was built for group interventions
to enter the obligatory internship, participated in and consists of a joint process of interpretation,
listening development workshops, was fed by the based on the confrontation of traditions, that make
following questions: what are the meanings of par- possible an intersubjective encounter and the re-
ticipating in these workshops have for the practice sumption of historical awareness among those in-
of these students? What changes in modes of sub- volved in a dialogue. In this sense, the facilitator
jectivation favored insertion and maintenance in or researcher - without being instigated to totally
the internship? What skills were raised and deve- suspend the own a prioris of its experience, but
loped in the workshops and were they being ope- to share them in what it perceives as meaningful
rationalized in the internship? How would these to the collaborators (what is called incomplete
interns assess the operability of the workshop to epokhē) - seeks to promote a creative intersubjec-
be offered to the training student before the inter- tive action of meaning production in which the
nship? subjects, being affected by their traditions, engage
Regarding these questions, the general goal in the conversation and, incarnated in the world,
of the present study was to understand the mea- share experiences through intercorporeity, produ-
nings of experience of participating in workshops cing new meanings.
to develop listening for the practice of obligatory In this dialogical context, genuine trust among
internship among psychology interns. The speci- those involved is considered important - allowing
fic objectives were: to describe how competencies respect for each other’s descriptions and stories
aroused and developed in those workshops were (unconditional positive consideration), as well as
operationalized in the internship; to understand promoting a space for people to be more authentic
how the changes in modes of subjectivation of in sharing experiences and expressing opinions.
these students favored the insertion and the main- Trust, being present and supported in the dialo-
tenance in the internship; and evaluate, from the gical process, favors the emergence of a founda-
perspective of these interns, the operability of the tion of cohesion, and the common commitment
workshop to be offered to the student in training. emerges when the dialogue walks and expands be-
tween the subjects, who argue and contradict, in
a continuous game of asking and answering. The
Methodology author proposes that “in the hermeneutic game,
the understanding of the other necessarily requi-
The present study was based on the huma- res an understanding of itself […]. It is a question
nist-phenomenological approach, for which quali- of apprehending meaning by considering the tra-
tative research is more adequate, considering that ditions of those involved and their incarnations in
knowledge is being constructed according to the the world as constituents and constitutors of the
subjective realities that are characteristic of sub- emerging senses” (Macêdo, 2015, p. 210).
Relatos de Pesquisa

jects inserted in certain social groups. In this methodological context, the resear-
Thus, it was decided to investigate the senses ch collaborators were 14 interns from the 9th and
and meanings of human experiences for indivi- 10th period of the Psychology course of the Federal
duals who lived them and shared them in a context University of the São Francisco Valley (UNIVASF),
of dialogue. In this type of research, subjectivity is in Petrolina, State of Pernambuco, who had been
included in the act of investigating of both the re- in internship for at least two months, indepen-
searcher and the investigated subject, recognizing dently of the emphasis and the area chosen for
the otherness. In view of this prerogative, the me- internships and who participated in listening de-
thod of Collaborative Hermeneutics proposed by velopment workshops in the years 2014 and 2015,
Macêdo (2015) was chosen, which is a methodolo- when they were in the 8th period.
gical innovation and, although initially contextua- The study was carried out with resources from
lized as a possibility of humanist-phenomenologi- the Institutional Program of Undergraduate Scien-
cal action in the work clinic, has been sedimented tific Research (PIBIC CNPq/UNIVASF 2015-2016)
-

as a praxis of intervention research. and met the ethical precepts of researches with
The proposal is based on the theoretical human beings, contained in Resolution CNE/CNS
Artigos

perspectives of Carl Rogers (more specifically on 466/2012. The collection only started after appro-
concepts such as unconditional positive conside- val by the Research Ethics Committee of UNIVASF,
ration and authenticity - facilitating conditions of registered under CAEE 44219715.1.0000.5196 and

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018 136
Workshops on Listening: Clinical Practice in Psychology Training

authorized by opinion 1.068.786, dated May 18, recording of each group and read the transcript
2015. as often as needed to describe the significant ele-
The collaborators were invited for the study ments of the shared dialogue experience between
in interns’ meetings of the Center for Studies and researchers and collaborators. Each component
Practices in Psychology (CEPPSI), a school service of the research team, using the “insert commen-
of UNIVASF, in the middle of the semesters 2015.2 ts” tool of the Word for Windows text editor, wro-
and 2016.1, and only participated in the research te about the meanings they had perceived in the
after they volunteered to collaborate and signed transcript.
the Free and Informed Consent Form. b) Secondly, members of the research team
The research was conducted in the context of meet, read as many times as necessary the recor-
discussion groups, which are considered by Lavil- ded conversation and the comments made by each
le and Dionne (1999) as an original instrument in one, negotiating differences to reach a consensus
qualitative research. In these groups, the subject on how they would record the significant elemen-
can defend its opinions and challenge those of ts of the experience. This negotiation often took
others, allowing the researcher to deepen its un- several meetings of the research team and culmi-
derstanding of the answers obtained. Therefore, it nated in a preliminary collective analysis of what
was promoted in small groups (two with five and was perceived of what was being shared by the in-
the other with four interns), that met, each, only terns of a particular discussion group, which was
once. called presentification of the meanings of shared
The interviews in the discussion groups, whi- experiences. This process was done separately for
ch were driven from a triggering question, took each of the groups investigated.
about ninety minutes each and were recorded in c) Each preliminary analysis resulted in a
digital audio. This type of interview is indicated text for the return interview of each group. This
when the researcher wants to explore attitudes, content was sent by e-mail to each collaborator of
opinions and behaviors, as well as observe proces- the group in order to review the text, make sug-
ses of consensus and divergence (Turato, 2003). gestions, add new elements and/or change the
The triggering question, proposed by Amatu- analysis of the group that participated in. A return
zzi (1993), is a question that puts the subject in period of 10 days was given for the returns, con-
contact with its experiences and allows it to des- sidering the time set for completing the survey.
cribe them so that the researcher reaches their Few contributors responded to the emails, howe-
meaning. With the function of opening the dialo- ver, they did not propose any changes to what had
gue, this question allows triggering the narrative been noticed by the research team.
of experience, a narrative that tends to be detailed d) After the returns, the research team, recon-
with a focus on events and actions (Jovchelovitch vened, made the final description of the Units of
& Bauer, 2001). However, the researcher must be Meanings of the experiment investigated, consi-
attentive to the phenomenon that emerges and in- dering what was commonly described in all the
sert other questions throughout the dialogue, ope- discussion groups, and these units - in bold in the
ning space to meet the objectives of the research. next topic – came to be the basis for the discussion
In this study, the triggering question was: of the results of this study.
“How would you describe your experience in par-
ticipating in workshops on listening development
for your practical work as a Psychology intern?” Results and Discussion
With the question asked, the idea was for the re-
searcher to access the experience and to favor pos- In order to maintain confidentiality regarding
sibilities for, effectively, the subjects to narrate and the statements of each collaborator, the acronyms
share, in a context of dialogue, their experiences. C1 to C14 will be used as a way of naming them
Relatos de Pesquisa
In order to understand the interview records and preserving their identities, as well as the
in the discussion groups, the research team (for- abbreviations P1 and P2 for the auxiliaries of re-
med by the undergraduate scientific initiation search involved in the collection: people who, it is
students and the advisor teacher) was attentive to necessary to emphasize, were students of the same
the steps of phenomenological analysis defined by course who conducted some of the workshops as
authors such as Giorgi (1985), Forghieri (1993) and trainees when the collaborator interns of this re-
Macêdo (2000, 2006); or suggested by Amatuzzi search were in the eighth period.
(2009) and Macêdo (2015). However, respecting It is worth noting, as the research metho-
that a phenomenological research is done while dology was anchored in a rescue of tradition, in
walking, led the process of analysis as described Collaborative Hermeneutics, the researcher’s role
below, in order to start from the contact with the is, through conversation, to challenge traditions
recordings to the final description of the signifi- so that those involved, when they argue, will
cant elements and common meanings of the expe- get a new look at their path (Macêdo 2015). The
-

riment under investigation. The steps taken were: fact that PIBIC undergraduate students were the
a) The contents recorded in the discussion workshop trainees helped in two respects: they
Artigos

groups were later transcribed in full by the under- shared the experience with the subjects and were
graduate scientific initiation students. However, able to more clearly achieve the meanings of the
each member of the research team listened to the experience investigated, as evidenced by some

137 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018
Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

possible devolution interviews. In addition, PIBIC take care of themselves, to see their issues,
undergraduate students developed their own lis- no matter how small, because there are few
tening, because both in the workshops and in the meetings, but, to take care of yourself be-
data collection of the research, a context of group fore taking care of the other. (...) We have a
dialogue was promoted, focused on sharing expe- lot of technique, the course is very good, we
riences. Further, sharing anxieties and knowledge feel very prepared to do a master’s degree, a
about the process of becoming a psychologist in specialization, but it’s not a course that takes
the same institution required the scholarship hol- care of the subjectivity of the students who
ders to become aware of differentiating the pro- are attending it.
cesses of others from theirs and not letting their
perceptions interfere to the point of altering what This section of the report points to the pos-
they heard, being this is somewhat predicted by sibility of the workshop to meet authors such as
the method used. Heckert (2007), Heckert & Neves (2010), Rudnicki
Taking this from the content analyzed in the & Carloto (2007) and Mendes, Fonseca, Brasil &
discussion groups, attempts were made to unders- Dalbello-Araújo (2012), when discussing the for-
tand the Units of Meaning of the collaborators’ ex- mation of the psychologist, observe the teaching
periences as they appeared with recurrence, taking limitation that only aims at theoretical rigor. For
into account also the common elements, that is, the authors, it is necessary for the student of Psy-
the meanings that were shared by the participants chology to live the process of listening and care,
of one group were also present in the reports of the and then to work as a professional that deals with
other collaborators from all the research groups. It such dimensions of human life.
is worth mentioning that the reports and dialogues It is worth remembering here Amatuzzi
that were established between research assistan- (1990), who already emphasized the importance of
ts and collaborators were extracted in view of the listening and being influenced in a listening pro-
methodological proposal of a joint process of inter- cess. For the author, the first knowledge about the
pretation of shared experience in a group. human is intimate knowledge, that produced by
A first Unit of Meaning to stand out was the direct contact with the center of the person, whi-
therapeutic reach that the workshops provided ch presumes an initial opening to strip away any
to collaborators at the time they attended them other knowledge in order to hear and welcome ex-
when they were eighth-grade students. They were perience, which, in the case of the present study,
considered as spaces where they could talk about is the experience of listening.
themselves, but differed, in their perspective, from Also remembered is Gadamer (2003), one of
an individual psychotherapy, since the activities the philosophers on whose bases the method of
maintained the goal of focusing on the intersub- this study relies on, the rescue of the tradition, or
jective process of producing meaning about being rescue of historical consciousness, as a movement
a student about to enter the internship. Even so, of the subject to know itself from the immersion in
there seem to have been therapeutic processes, as its roots and past experiences. According to him,
they were able to talk about their issues and reflect this course results in a new knowledge about it-
on them in an environment of sharing experien- self. In the case of the interns collaborating in this
ces that promoted changes in their ways of feeling, study, the workshop, before the internship period,
thinking, and acting. The following excerpt illus- seems to have propitiated an appropriation of sel-
trates this possibility: f-knowledge in order to find new ways of being to
be in front of the other.
You’re not talking about theory, you’re not Self-knowledge, as a Unit of Meaning, is un-
talking about so-and-so, you’re talking about derstood as a process of fundamental importan-
you. (...) I think that there we were as a psy- ce for entering the internship, as shown in the
Relatos de Pesquisa

chology student of the eighth period that was following dialogue:


going to enter the internship, although there
is something about us that we cannot sepa- C4: I felt that like (laughs), a handbrake: Stop!
rate, but we tried to work, the focus was the Because it is not just literature that you live
student who was entering the internship, (...) I your profession, but also self-knowledge, be-
think this breaks the possibility of talking more tween the lines that have to be woven and
about you (C1). observed. So, it was a handbrake for me, I
usually verbalize a lot, both in the oral and in
Still in this sense, it is necessary to emphasi- the paper. It was an exercise for me.
ze an observation on the part of the collaborators
when they pointed out that the training, although P 2: So, you bring one of the tripod points of
offers support in the technical sense, does not pay the clinic, which is personal work, the need
attention to the questions related to their subjecti- to take care of yourself and such.
-

vity, specifically in their needs of care, as can be


understood in the excerpt of the C2 report: C4: Yes!
Artigos

I think the workshop is very important in P2: Do you feel it in the internship today?
this sense, to create a moment for people to

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018 138
Workshops on Listening: Clinical Practice in Psychology Training

C4: It’s difficult to think about how I would such success on the basis of what was understood
be in the internship today if I had not done it, from the meanings produced in the groups.
because it has no other way, it already was. Skills developed in the workshops that were
being operationalized in the internship were ano-
Another Unit of Meaning to be highlighted ther Unit of Meaning identified. It was possible
concerns the improvement in the interpersonal to perceive, through the group discussions, that
relations that the interns perceived as they ente- these skills seem to attend to a significant extent,
red the practice and which they attribute to the even indirectly, to the National Curricular Guide-
workshop, as the excerpt shows: lines (CNE, 2011), which defend, in the formation
of the psychologist, the development of competen-
To listen a little bit about the battles that each cies such as coordinating and managing group pro-
one faces, it was interesting not to perpetua- cesses and to relate to the other in order to provide
te this lack of listening. Some of us are also the development of productive interpersonal ties
committed to listening a little. Since you do with their professional class. They also highlight
not have this listening to yourself sometimes, skills to be acquired in a Psychology course, such
you have that moment with the other, and as describing, analyzing and interpreting verbal
this at the internship is fundamental (C5). and non-verbal manifestations as primary sources
of access to subjective states. According to the col-
As Lima (2005) and Coelho & Figueiredo laborators, it is understood that they could, in the
(2004) have already told us, the job of the psycho- workshops: a) listen or silence themselves, to lis-
logist is to find a meeting of the senses, so that ten to the other; b) improve listening and sensitivi-
sharing experiences and recognizing otherness be- ty to listen to the other; c) interpret different forms
come essential for the professional performance. of language of the clients; d) organize, systematize
The workshop thus favored collaborators to iden- and focus on the act of listening; e) learn how to
tify their place in front of the other and, therefore, deal with the silence of a client; and f) working
to observe their personal issues. with groups.
It was also understood by the discussions From the perspective of the collaborators, it
that arose in the groups that the workshop had a was a characteristic of the workshop to be a spa-
meaning of resignification of the anguish in rela- ce in which they could reflect on the competence
tion to the future practice of the internship, pro- to deal with silence in the therapeutic process, as
pitiated by sharing the experiences of this anguish well as on the competences that have not yet been
between colleagues of the same period and/or cou- developed and which are important for practice:
rse. In addition, the interns showed a decrease in
anxiety about the personal limitations recognized C1: I think the workshop ends up working as
at the time of the workshops, and the power, at a space of perception. We talk four years about
that time, to realize that their colleagues also had silence, about the look, but I think that the-
such limitations. This is observed in the dialog re are few spaces that we have in the course
box below: to experience the silence, and then when we
have the opportunity to face this, people are
P1: Then, there is as if it were a resignifica- always disturbed, without know how to act.
tion of that, it is not? [anguish and anxiety
previously described] Being shared it already C7: Listening to silence for me today is much
changes, is this? more peaceful, acceptable, easy, than it was
that day that was our first direct contact with
C1: Knowing that this was not an isolated that in that workshop (...) It was possible to
thing, it was something of the context, that develop from the workshop. Improving with
Relatos de Pesquisa
everyone was experiencing it in a way (...) our practices obviously.
sharing the experiences, that moment was
very important. C14: For me it was wonderful, the dynamics
of the look, the silence is very important. I
C6: But then, at the time of the workshop, think it’s one of the things I’m taking to the
you see that it is a shared feeling, that all your clinic today.
colleagues who are there with you during the-
se first four years of the course, and it is not In addition to the skills listed above, the
only you who are not knowing what to do. following statements point to learning gains rela-
ted to group dynamics techniques. Collaborators
These data confirm the proposal of Roriz seem to have reached a level of shared experien-
(2010), which points the need to offer clinical ce that contributed to their current experiences in
practices that allow the subject to appropriate its internship activities, especially those involving
-

anguish - which, in turn, is constitutive of human group processes. It is still possible to understand
existence -, thus making the subject to invest in fin- that more patience has been developed to wait for
Artigos

ding more authentic ways of being guided by the the time inherent in processes like these - what
goal of care. The workshop, by proposing to be a can be considered as one more acquired compe-
clinical practice in an institution, seems to achieve tence:

139 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018
Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

C3: It was a lot of expectation to be in a group The collaborators also agreed that, through
and today in the internship, because I’m the workshop, there was an improvement in clini-
working with groups, I found it interesting cal listening, due to the activity to allow a discus-
that in a group you share things in common sion about the experiences lived, as well as a grea-
(...) Today, in the internship, I realize that in ter sensitivity to the meaning and re-signification
the group people do it too, as if it were a re- of what is being said by the clients that are atten-
petition of what happened in the workshop. ded by the interns. Below is an excerpt from the
It was interesting. dialogue, which is part of this Unit of Meaning:

P1: Do you feel, in a way, more comfortable P2: What is the sense of your participation?
on the internship today?
C1: Well, I think that what was left for me was
C3: Yes, for having noticed a movement the initial moment, we could kind of debate
during the workshop as it is in the group, the versions of meaning, I think that’s what
and today, it is interesting to notice this mo- really trains, let’s say, our listening (...) I re-
vement as well. (...) of the same thing, it was member a little of the people in the psycholo-
interesting to notice. Have a little more pa- gical shift, that when, in supervision, comes
tience, I think, to deal with groups today. a case everyone participates and ends up that
helps a little.
It is possible to understand, therefore, that
the workshop seems to have enabled the student’s P1: And what do you think you learn from
qualification, by collaborating with the develop- the experience today, in the internship, of
ment of basic skills proposed by the National Cur- this feature [of the workshop being a sharing
riculum Guidelines for a psychologist to enter the environment of experiences]?
job market of the profession (CNE, 2011), as well
as with the future career of the intern of Psycho- C1: I think we become more attentive to some
logy, as described by Malvezzi, Souza & Zanelli of the meanings of some things that are not
(2010). immediately apparent in speech. And a grea-
From the identification of these competences, ter sensitivity to seek a little more, and that is
it is argued that the listening workshop seems to totally important in the clinic.
function as a call to the Psychology student for the
responsibility of developing a qualified listening. It is also understood that the methodology
The collaborators realized that the preparation to and operationality of the workshop was recogni-
listen to the other is related to the need to listen to zed by the collaborators as having the meaning of
themselves, knowing how to identify personal is- a practical initiation to the internship, mainly in
sues that do not interfere with their practical per- what concerns a training for understanding the
formance in the internship. This constituted the language, favoring the awakening of attention to
Unit of Meaning taking care of itself to care for the different forms of language communicated by
the other - unit tied to another - because they re- the clients during the services they performed:
cognized the process as a learning gain, perceiving
the workshop as the first moment of contact with C5: I realized a lot during the workshop meet-
clinical listening in practice, understood here as ings and I came to realize a return of this now
one more Unit of Meaning of the investigated ex- in the stage, is that we learn that listening is
periment. See the excerpt from the dialogue below: not just listening to you literally, it’s you lis-
tening to the gesture, it’s you listening to the
C11: How am I going to stop to listen, how am silence.
Relatos de Pesquisa

I going to stop to hear what those people are Eu percebi muito durante os encontros das
going to take to the school-service if I cannot oficinas e eu vim perceber um retorno disso
stop for myself, you know? agora já no estágio, é que a gente aprende que
a escuta não é só o ouvir literalmente, é você
C10: Maybe this is the first experience with escutar o gesto, é você escutar o silencio.
this dosage of what is yours and what is of
the other, because at that moment you are in C7: It brought me a lot of experience from the
a whirlwind (...) And, then, maybe it was a workshops, when I went to meet the first pa-
first experience for you to know how to dose, tient who had the silence. And you will listen
because life continues with its swirls. to the silence, you cannot despair, you cannot
leave there.
P2: So, you saw the workshop as a learning
gain in relation to this dosing of what is mine C13: In practice, the attendances that I made
-

and what is in the other, what needs to be for sure appear, to be attentive, connecting
heard in me, what needs to be heard in the there to the discourse of the people, not only
Artigos

other? the speech, but the body, as it presents itself.

C10: I think so, I guess we do not learn that Another Unit of Meaning tells of the organi-
from books. zation and focus of listening that the workshop

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018 140
Workshops on Listening: Clinical Practice in Psychology Training

provided. According to the collaborators, in the what the client says, you have to listen to
workshops they were able to organize and disci- what it will bring you, even silence.
pline themselves more in the act of listening to the
other: C7: The way the workshops were going on,
in a very methodical and explanatory way, all
C5: When you arrive in the workshop, you al- activities were exhaustively explained and
ready know the importance of listening, but I at the end of each meeting we could make a
think that the way the workshops were orga- meaningful version and concretize in writing
nized makes us experience listening. that experience and at the next meeting read
it and remember and at the next meeting you
C7: Am I ready for clinical listening? (...) So- can make a call. I think it was some of the
metimes, listening brings something that is points that made it easier to experience the
yours but that does not fit in that process, and workshop.
you have to distance yourself from it. I think
it was meetings that made this kind of reflec- In the face of these dialogue stretches, it
tion possible for us seems that even if the theoretical-methodologi-
cal approach underlying the workshop was not
The above statements are well representati- checked, the collaborators were able to perceive
ve of what in the research method is considered and recognize the importance of a methodological
incomplete epokhē. From a Merleau-Pontyana systematization that helped to guide the process.
perspective, one could say that the collaborators They also pointed out that the learning gains pro-
struggled to suspend what would prevent the in- moted by the workshop were independent of the
tersubjective encounter and that the workshop approach that the intern itself would choose to
seems to have allowed the maturation of what practice internship.
Merleau-Ponty (2006) recalls: the greatest teaching Finally, the collaborators signaled the rele-
of phenomenological reduction is impossibility of vance of offering workshops as a training activity
a complete reduction. in Psychology as a non-compulsory practice. Ac-
In addition, the collaborators acknowledged cording to them, it would be very important that
that the phase that preceded the internship was a the participants have availability and desire for
significant moment in their academic trajectory, so the experience, especially for the therapeutic ef-
they considered positive the offer of the workshop fect that the workshop promoted, although it has
in that specific period: not been configured as a therapeutic group:

I think it influences indirectly, mixes with C14: I think the contact a little bit earlier of
many other experiences of the same phase, such dynamics, of these tools, I think wou-
but, I think it influences positively, once you ld collaborate a lot for an immersion in these
can think about it, I think that as much as you ways of getting in touch with each other, with
cannot calculate the gains of this, I believe care.
you have a positive influence in this period,
at the beginning of the internship. Perhaps an C1: As something available, let’s say, an elec-
aspect of what is inherent in it (C10). tive course, something available throughout
the course, could be something that would be
It was also possible to understand that for very valid.
the collaborators, the workshop allowed the un-
derstanding that listening is independent from the C3: Maybe if we were forced to go through
approach and application area of Psychology. The this to be able to enter the internship, we
Relatos de Pesquisa
following reports, besides making possible this would not be talking here so positively and
idea, open to the possibility of understanding that not so openly, because we were willing. We
the way the workshop was conducted did not bias did not have to.
the students to a listening based on the method
used: In the context of the workshop, the permissi-
veness of the environment - denoted in credibility
P2: Do you think that the approach of the me- and trust as facilitating functions - was essential
diator was present in the workshop at some for openness to experience, as Rogers (1997) said,
point? and it was revealed in the speech of interns in
bringing aspects that make this activity a privile-
C10: I don’t think that was negative, but I ged moment of speech and listening, such as sha-
think so. This does not prevent us from being ring the same theme in question, the commitment
here on different approaches, but we do not of the subjects involved and welcoming the other-
-

fail to score the gains of the workshop. ness that accompanies the process. Therefore, as
a clinical practice, the workshop seems to have
Artigos

C8: What is it that unites psychology? It is provided a space of trust among group members
listening, because regardless of the approa- to share their particularities. At the same time, it
ch you take, how you will perhaps interpret indicates that it has fostered a feeling of self-confi-

141 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018
Shirley Macêdo; Gledson Wilber de Souza; Monzitti Baumann Almeida Lima

dence for the internship practice, for the recogni- vidualism predominates to the detriment of soli-
tion of the trajectory experienced in the four years darity.
of the course. See: There were limitations in the research related
to the availability that the interns had to return the
C3: And the workshop comes to give a snap: preliminary analysis, which reduced the number
look, we’re here, going through the same si- of subjects that collaborated effectively with the
tuation, but you’re prepared, you’ve spent analysis of the data and generated setbacks for the
four years here and it was not for nothing, final step of the analysis. But this did not signifi-
and then I think the workshop, at least for cantly affect the study.
me, was able to promote this. It is expected, therefore, that this research
had collaborated for the professional training of
C8: I think another important thing was the the student of Psychology of UNIVASF; served as
issue of caring for the intern. (...) Because in a source of indicators to offer these workshops as
supervision what you know of the patient co- an additional training to subsidize the entry of stu-
mes from the intern, and how are you? And dents in the Psychology internships in the insti-
the workshop comes for this, how are you tution’s school service, even in a non-mandatory
there for this new context? form; and expanded knowledge of how to conduct
a clinical practice in Organizational and Work Psy-
C9: I think the workshop proposes to be the chology in the context of university education. In
care for the listener, I think this differential this sense, studies are suggested that describe the
comes at the right moment. ongoing conduction of these workshops and/or fo-
cus on the development of competencies that they
C5: And I thought it was extremely impor- can offer to groups of students from other specific
tant, a moment of care, a moment that you periods of the course.
can also be heard. I can also have problems, I Finally, we expect that the present study
can express myself too, I can also, somehow, may expand discussions and research on how
be heard. the academic training in undergraduate courses
in Psychology in Brazil has attended the National
Given this, responding to the last objective of Curriuculum Guidelines instituted by Ministry of
the present research, it seems to have been possi- Education regarding the development of skills and
ble for the collaborators to conceive the workshop promote reflections in the academic context on the
on listening development as a space not only for importance of activities focused on the said com-
training for the internship, but for humanization petences for a more effective practical action of fu-
and care for the intern person, which allows us to ture psychologists, especially regarding the device
think of this as a clinical practice in a psychologist of clinical listening.
training institution, as already proposed by Doura-
do, Quirino, Lima and Macêdo (2016).
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149.
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Shirley Macêdo Vieira de Melo é Professora do Cole-


giado de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Dinâmicas de Desenvolvimento
do Semi-Árido (PPGDiDes) e da Residência Multi-
profissional em Saúde Mental da Fundação Univer-
sidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).
É Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade
Católica de Pernambuco; Mestre em Psicologia Clí-
nica pela Pontifícia Universidade Católica de Cam-
pinas, SP; Especialista em Psicologia Clínica pela
Universidade Católica de Pernambuco; Graduada e
Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal
de Pernambuco; e Bacharel em Administração pela
Faculdade de Ciências Humanas ESUDA. E-mail:
mvm.shirley@gmail.com.
Gledson Wilber de Souza é Graduado no Curso de
Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São
Francisco.
Monzitti Baumann Almeida Lima é Graduado no
Curso de Psicologia pela Universidade Federal do Vale
do São Francisco.

Received: May 26, 2017


First Revision: September 05, 2017
Accepted: October 02, 2017
Relatos de Pesquisa
-
Artigos

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 134-144, mai-ago, 2018 144
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.3

ELABORANDO TRADIÇÕES NA
CONTEMPORANEIDADE: AUSIER E A PRESERVAÇÃO
DO CHORINHO
Elaborating traditions in contemporaneity: Ausier and the preservation of chorinho

Elaborando tradiciones en la contemporaneidad: Ausier y la preservación del chorinho

roberta VaSconceloS leite


MiGuel Mahfoud

Resumo: Objetivamos investigar o modo como a tradição é elaborada por um guardião de memórias contemporâneo:
Ausier Vinícius dos Santos, fundador do bar musical Pedacinhos do Céu (Belo Horizonte – MG). Realizamos entrevista
semiestruturada, analisada fenomenologicamente. Respondendo ao chamado a constituir uma obra de preservação, o
sujeito elabora o passado e a alteridade como presenças a partir das quais se dá conta do próprio ser. Aceitar sacrifícios
para dedicar-se ao que vem do outro significa para ele ser fiel à própria experiência, abrindo caminho para a atualiza-
ção da tradição num processo pessoal de buscar contribuir para a constituição do mundo. Concluímos que para dar
continuidade de modo próprio ao que lhe foi transmitido, Ausier reafirma a centralidade dos valores que convergem
num ideal que a tradição suscita em si. Dando-se conta de que seu ideal lhe foi dado e o supera, vive sua obra como
gratidão e doação de si a algo que lhe dá um lugar no mundo e realiza o próprio ser.
Palavras-chave: Tradição; Guardiões de memórias; Fenomenologia

Abstract: We aim to investigate how the tradition is elaborated by a contemporary guardian of memories: Ausier dos
Santos, founder of the musical bar Pedacinhos do Céu (Belo Horizonte - MG). We conducted a semi-structured in-
terview, analyzed phenomenologically. Responding to the call to constitute a work of preservation, he elaborates the
past and otherness as presences from what he realizes his own being. Accepting sacrifices to dedicate oneself to what
comes from another means that he is faithful to his own experience, opening the way for the update of the tradition
in a personal process of seeking to contribute to the constitution of the world. We conclude that to give continuity in
his own way what has been transmitted to him, Ausier reaffirms the centrality of the values that converge in an ideal
that tradition provokes in itself. Realizing that his ideal was given to him and overcomes himself, he lives his work as
gratitude and given himself to something that gives a place in the world and realizes his own self.
Keywords: Tradition; Guardians of memories; Phenomenology

Resumen: Objetivamos investigar cómo la tradición es elaborada por un guardián de memorias contemporáneo: Ausier
dos Santos, fundador del bar musical Pedacinhos do Céu (Belo Horizonte - MG). Realizamos una entrevista semiestruc-
turada, analizada fenomenológicamente. Respondiendo al llamado a constituir una obra de preservación, el sujeto ela-
bora el pasado y la alteridad como presencias a partir de las cuales se da cuenta del propio ser. Aceptar sacrificios para
dedicarse a lo que viene del otro significa para él ser fiel a la propia experiencia, de modo que la tradición se actualiza
en un proceso personal de buscar contribuir a la constitución del mundo. Concluimos que para dar continuidad de
modo propio lo que le fue transmitido, Ausier reafirma la centralidad de los valores que convergen en un ideal que la
tradición suscita en sí. Dándose cuenta de que su ideal le fue dado y lo supera, vive su obra como gratitud y donación
Relatos de Pesquisa
de sí a algo que le da un lugar en el mundo y realiza el propio ser.
Palabras clave: Tradición; Guardianes de recuerdos; Fenomenología

Introdução co da cidade e segue concebendo o próprio trabalho


como tributo àquele que se tornou sua grande refe-
Um menino que aprendia a tocar cavaquinho rência e inspiração musical.
é apresentado ao choro e à obra do músico conside- Em experiências como esta, vemos que algo
rado como o maior expoente naquele instrumento1. precioso não se conserva por si: é preciso que al-
Cresce dedicando-se à pesquisa de sua vida e obra, guém reconheça como valor e lhe dedique cuida-
cria um bar musical em homenagem a ele, torna-se dos. Nos dias atuais, a vinculação com o passado
amigo de sua viúva e filha, faz o que estiver ao seu é problematizada como algo a ser superado e as
expressões mais características do sujeito tendem
-

alcance para divulgar as composições do mestre que


não chegou a conhecer. Destaca-se no cenário artísti- a ser lidas como processos de invenção da própria
subjetividade. Nesse cenário, produções em ciên-
Artigos

1 O presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa


de doutorado Experiência ontológica e tradição na experiência de cias humanas que se ocupam de temas como a per-
guardiões de memórias (Leite, 2015) desenvolvida no âmbito do cepção do sujeito sobre ele mesmo ou a tradição
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal tendem a tomá-los como processos antagônicos,
de Minas Gerais, com bolsa CAPES.

145 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018
Roberta Vasconcelos Leite

tornando-se difícil compreender o caso dos guar- Demarcando o campo: que é a tradição?
diões de memórias contemporâneos2: sujeitos que
num movimento pessoal decidem se dedicar a algo Como referencial teórico-metodológico,
que vem do passado, estruturando obras de cuida- adotamos a Fenomenologia Clássica3 de Husserl
do de memórias. Imersos em verdadeiras “socie- (1913/2006, 1954/2012) e seguidores (Stein, 1917-
dades do esquecimento” (Simson, 2003), pergun- 9/2005, 1936/2007; van der Leeuw, 1933/1964; Ales
tamo-nos como entender a preservação quando o Bello, 1997/1998). Nessa vertente, a compreensão do
novo dita o ritmo e a volta ao antigo pode até ser que venha a ser a tradição articula-se intimamente
moda, mas dificilmente constitui-se efetivamente à noção de mundo-da-vida. É vinculada à reflexão
como critério de orientação. Como compreender sobre a radicalidade do contexto intersubjetivo de
vivências de reconhecimento de si mobilizadas significação para a constituição da realidade expe-
pelo empenho em registrar memórias empoeira- rimentada pelo homem que Husserl (1954/2012) te-
das, em cuidar de tradições esquecidas, em dar vez matiza a noção de mundo-da-vida, mundo sociohis-
a personagens que o discurso oficial não tornou tórico concreto com seus usos e costumes, saberes
protagonistas para o senso comum? e valores (Zilles, 1997). Por referir-se ao que é ha-
Diante de tantos questionamentos possíveis, bitual e estável, o mundo-da-vida constitui-se como
interessa-nos compreender como o ato de se de- base da experiência cotidiana, oferecendo respostas,
dicar à causa da memória pode unir o que é mais recortes que permitem ao sujeito lidar com o real a
profundamente individual ao patrimônio de ge- partir de perspectiva compartilhada e integrada. Âm-
rações pretéritas. Para muitos esses polos seriam bito originário das formações de sentido, ele ancora
irreconciliáveis: a inserção nos quadros sociais as experiências particulares, permitindo juízos de
amplos, como as tradições de um povo, sempre certeza e conferindo segurança à ação, já que o sujei-
significariam subjugamento da expressão pessoal. to não precisa reinventar continuamente o mundo:
Nessa vertente, a tradição tende a ser associada existem soluções disponíveis que abrem caminho
a contextos sociais retrógrados e herméticos que para que ele elabore o real – inclusive em seu aspecto
impediriam o florescimento da subjetividade indi- desconhecido – de modo situado. Embora seja pré-
vidual (Calligaris, 1998). Por outro lado, identifi- -reflexivo, o mundo-da-vida pode se tornar objeto de
camos também o risco de que a subjetividade seja reflexão, e é justamente por isso que o sujeito pode se
tomada tão somente como chave de acesso a ten- posicionar diante do que recebeu das mais diferentes
sões, representações e discursos que atravessam a formas: aderindo, reformulando, refutando, contem-
trajetória pessoal. Nessa perspectiva, a ênfase nos plando possibilidades outras.
processos amplos inscritos nas experiências pes- É no bojo da conceitualização do mundo-da-vi-
soais pode resultar na subjugação da individuali- da que se situa a compreensão husserliana do con-
dade aos contextos socioculturais (Manica, 2010). ceito de tradição4. Segundo Ales Bello (1997/1998), o
Esse cenário remete ao ainda recorrente an- fenomenólogo correlaciona tradição à “vida natural”,
tagonismo entre psicologismo e sociologismo em entendida como
teorias das ciências humanas. Nesse contexto, en-
quanto o centramento em processos intrapsíqui- terreno a partir do qual expressamos os nossos
cos introduz o risco do esquecimento ingênuo das juízos e construímos as nossas crenças; ela é a
tensões sociais que atravessam o sujeito, a ênfase vida ligada a uma normalidade “estável”, e por
em processos macroestruturais pode conduzir ao “normal” deve-se entender aquilo que é aceito
achatamento da subjetividade, inviabilizando a pelos indivíduos pertencentes a um determi-
compreensão da pessoa como elemento criativo e nado grupo. (...) Ter experiências do ponto de
dinamizador das matrizes sociais (Gonzalez-Rey, vista da vida natural significa “receber”; nela
2001; Moreno Márquez, 1988). Percebemos que todos os interesses teóricos, os interesses de
esta polarização tem sido problematizada em di- verdades, estão ligados à simples experiência,
Relatos de Pesquisa

ferentes frentes, como – a título de exemplo – o aos hábitos presentes no âmbito do horizonte
faz Paiva (2013) no campo dos estudos literários do mundo-da-vida. Por conseguinte, o mundo-
ao perguntar-se “como a tradição cultural faz-se -da-vida natural é o mundo da tradição (p. 46).
contemporânea ao nosso tempo, ou no modo como
nós a reatualizamos incessantemente” (p. 45). In- Enquanto mundo-da-vida natural, o mundo
serindo-nos nesta vertente, objetivamos nessa pes- da tradição se apresenta como solo compartilhado
quisa investigar o modo como a tradição é elabo- coletivamente em que nossas elaborações se enraí-
rada na contemporaneidade por um guardião de zam cotidiana e estavelmente. Na formulação de
memórias, isto é, uma pessoa que se dedica à pre- Husserl, entendemos que tradição pode ser tomada
servação cultural.
3 O termo “fenomenologia clássica” foi consagrado por Ales
Bello (1997/1998) para designar os trabalhos de Husserl e de dis-
cípulos que se mantiveram fieis às proposições do mestre, como
Edith Stein. No Brasil, esta corrente tem sido desenvolvida nas
-

2 Simson (2005) indica que o papel social de guardiões de me- ciências humanas especialmente por meio de “aprofundamentos
mórias cabe aos idosos em “sociedades da memória”, função que foi compreensivos da fenomenologia enquanto método para investi-
sendo gradativamente obliterada na história ocidental. Entendemos gação de fenômenos culturais em psicologia” (Valério & Barreira,
Artigos

ser interessante tomar a mesma expressão para designar pessoas 2015, p. 430).
que tomam iniciativa de se dedicarem ao cultivo da memória em 4 Husserl dedicou-se à reflexão sobre o tema no manuscrito AV
contextos contemporâneos justamente como forma de explicitar a 11, Begriff der Tradition (Conceito de tradição), de 1930-1, comenta-
peculiaridade de experiências desse tipo. do por Ales Bello (1997/1998).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018 146
Elaborando Tradições na Contemporaneidade: Ausier e a Preservação do Chorinho

como forma particular de cultura, em que as crenças, existencial ou ontológico: eles surgem em nós como
costumes e valores de determinado grupo inserem- produtos do verdadeiro horizonte histórico que é a
-se num horizonte global de significado e carregam tradição. Trata-se, portanto, de admitir a inevitabi-
necessariamente um caráter de normatividade e con- lidade dos preconceitos, da autoridade, da tradição,
tinuidade. No processo de atualização da tradição, o sem propor, contudo, uma submissão cega a eles.
“receber” a totalidade dos recortes de mundo se faz Como seres históricos e finitos, somos determina-
possível a partir da re-apresentação e aceitação cole- dos pelo que nos foi transmitido – ainda que não o
tiva e contínua de certos hábitos como sendo natu- aceitemos racionalmente – porém não subjugados:
rais, óbvios. Por isso a normatividade se faz presen- podemos perguntar quais seriam os “preconceitos le-
te na dinâmica da tradição como dado da “simples gítimos” que favorecem a aproximação à alteridade;
experiência”, a princípio transmitido de modo não podemos aceitar a primazia da autoridade não por
problematizado, mas passível de questionamento, sua força de opressão, mas a partir do reconhecimen-
reformulação e mesmo rejeição, como é próprio de to da verdade de seu juízo e perspectiva; podemos
toda dinâmica cultural humana. acolher a tradição como dado que não nos retira a
Para melhor a compreender esta descrição do possibilidade de conhecer, mas antes a torna possí-
dinamismo da tradição colhida na análise do mun- vel ao inserir-nos num horizonte de pré-compreen-
do-da-vida empreendida por Husserl, buscaremos o são do mundo (Bonfim, 2010).
concurso de outros autores que em graus diversos Identificamos então a urgência de retomar uma
se aproximam da corrente fenomenológica: Arendt compreensão de tradição que contemple a tensão
(1954/2005), Gadamer (1960/2008, 2002) e Giussani entre o pessoal e o coletivamente transmitido, sem
(1995/2004, 2008, 1986/2009). tentar eliminá-la, considerando a possibilidade de
De modo similar a Husserl, Arendt (1954/2005) relacionamento entre ambas as dimensões como
ressalta o valor da tradição enquanto fio condutor facetas constitutivas do nosso ser no mundo. Nes-
que conecta passado, presente e futuro e avança ana- se sentido, encontramos em Giussani5 (1995/2004,
lisando sua deterioração no mundo moderno. Reela- 2008, 1986/2009) a ênfase no processo pessoal de
borando a provocação lançada por René Char de que recepção, avaliação, reconfiguração e possível trans-
não há testamento que nos guie na apropriação da missão da tradição, de modo que podemos identifi-
herança que nos foi deixada, a filósofa identifica na car como característico da elaboração da tradição o
tradição a possibilidade de compreendermos aquilo movimento de reenvio à origem constitutiva da co-
que nos foi legado e o seu respectivo valor, tal como letividade, bem como a recepção intergeracional de
um testamento que indica ao herdeiro o que lhe cabe valores, apreendidos como dados na experiência e
daquela herança. Nesse sentido, a tradição se refere que podem ser retransmitidos às novas gerações na
a um processo – e não a um conteúdo estático – que medida em que forem apropriados ou transformados
tem a função de selecionar, nomear, transmitir, pre- pela elaboração pessoal. Com este autor, reconhece-
servar e indicar o que é significativo, o que é valor a mos ainda como marca distintiva da elaboração da
ser cultivado no tempo. tradição a referência à totalidade por meio da afir-
Entendemos que, para afirmar alguns pontos mação de um significado exauriente da realidade,
significativos à coletividade desde suas raízes, a tra- referência que pode ser apreendida nos processos
dição instaura a tensão entre a elaboração pessoal e em que, partindo de percepções finitas, chega-se a
alguns valores que precisam ser repassados por meio compreensões globais sobre o horizonte total da ex-
de formas determinadas. Na ênfase da forma por si periência.
mesma, frequentemente se incorre no risco de des-
merecer a elaboração pessoal – e este parece ser o
grande entrave que a contemporaneidade apreende Procedimentos Metodológicos
na dinâmica da tradição. Por outro lado, na ênfase
da expressão individual abstraída da tradição, há o Realizamos a pesquisa situando-nos no cam-
Relatos de Pesquisa
risco de que a pessoa se torne incapaz de reconhecer po da psicologia da cultura de orientação fenome-
e afirmar valor, chegando a alienar-se de si mesma nológica (Augras, 1995; Mahfoud, 2003), a qual
pela dificuldade em perceber o terreno em que seus se empenha por acolher a convocação de Husserl
posicionamentos se ancoram e os problemas comuns (1954/2012) à reconstrução do fazer científico a par-
que suas propostas tencionam responder. tir dos aportes da fenomenologia (Leite & Mahfoud,
Encontramos também em Gadamer (1960/2008, 2010). Com Mahfoud (2003) entendemos a pertinên-
1986/2002) a elaboração do que seja a tradição a par- cia de realizar investigações em psicologia da cultura
tir da perspectiva da autoridade e da continuidade. analisando as elaborações dos sujeitos da experiên-
Conhecido tanto por sua contribuição à hermenêu- cia. Trata-se de uma via de acesso privilegiado por-
tica quanto por seu empenho em reabilitar este con- que, ao elaborar o que vive, a pessoa expressa sua
troverso conceito em pleno século XX, o filósofo de- pessoalidade enquanto ressignifica práticas e cren-
dicou-se a demonstrar como a crítica a tudo aquilo ças de sua coletividade, reconstruindo a experiência
que é estabelecido pela autoridade e pela tradição
-

não passa de “preconceito iluminista”, isto é, “pre- 5 Educador, filósofo e teólogo italiano, cuja proximidade à cor-
conceito contra os preconceitos”. rente fenomenológica tem sido explicitada por Mahfoud (2016) e
Di Martino (2010), com destaque para o reconhecimento do doar-se
Artigos

Avançando em relação ao que fora proposto por do fenômeno como condição de possibilidade da experiência e para
Heidegger, Gadamer (1960/2008, 1986/2002) afirma o modo como descreve o dinamismo mais propriamente humano,
que nossos preconceitos não são abstratos, ou de tipo em grande sintonia aos aportes de Stein (1917-9/2005, 1936/2007)
sobre o núcleo da pessoa (Mahfoud, 2012).

147 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018
Roberta Vasconcelos Leite

em constante diálogo com os problemas e tensões Para favorecer a análise das vivências comuni-
próprios de sua realidade social. cadas, realizamos transcrição integral da entrevista
O participante da presente pesquisa foi sele- audiogravada, que posteriormente foi textualizada
cionado pelo procedimento da amostragem inten- com reordenação dos trechos quando se fez neces-
cional: formulamos critérios para o reconhecimento sário, de modo que o conjunto se configurasse como
de figura emblemática para a temática estudada e narrativa. Para respeitar estilos de linguagem do en-
buscamos, considerando a possibilidade de acesso, trevistado, buscamos nos aproximar ao máximo da
identificar pessoas que atendessem a esses critérios forma como o próprio sujeito escreveria aquilo que
(Gil, 2008). Os critérios adotados foram: 1) adequa- fala (Mahfoud, 2003).
ção ao perfil de guardião de memórias contemporâ- Para empreender a análise dos dados, seguimos
neo (pessoa que, não sendo membro de comunidade as diretrizes de van der Leeuw7 (1933/1964). Parti-
tradicional, toma iniciativa e se dedica à preservação mos da atenção à experiência relatada para chegar
cultural de algo que toma do passado); 2) incidência a compreender as vivências e suas conexões de sen-
social da atuação do sujeito, com vistas a favorecer a tido. Buscamos colecionar diversas formas de po-
compreensão dos modos como a elaboração pessoal sicionamento do sujeito para chegar a uma síntese
contribui para a constituição do mundo; 3) possibi- complexa característica da elaboração da experiên-
lidade de privilegiar um sujeito cuja formação pro- cia. O fenomenólogo designa o composto vivo que
fissional a princípio não implicaria na dedicação a ordena as vivências em relação a um conjunto obje-
atividades dessa natureza, mas que, por diferentes tivo maior como “experiência-tipo”, cuja delimitação
motivos, tomou para si esta tarefa de preservação. busca descrever em termos experienciais os elemen-
Com este procedimento, identificamos quatro tos constitutivos do fenômeno investigado. Ao nos
guardiões de memórias6, tendo escolhido desenvol- empenharmos na identificação da experiência-tipo,
ver no presente trabalho a análise da experiência não nos limitamos a analisar reflexões, sentimentos
de Ausier Vinícius dos Santos, proprietário do bar ou atitudes idealmente isentas de influências, mas
musical Pedacinhos do Céu, especializado em cho- buscamos compreender justamente o modo próprio
ro e concebido como homenagem ao cavaquinista e da pessoa lidar com suas relações e contexto socio-
compositor Waldir Azevedo. Possui também, em sua cultural (Stein, 1917-9/2005).
casa, um extenso acervo relativo à história da músi- A seguir, apresentamos nossa análise da expe-
ca, particularmente do choro, que conta com algu- riência de Ausier, permeada por algumas imagens de
mas obras raras e mais de mil e quinhentos discos de seu bar Pedacinhos do Céu por nós registradas. Para
vinil. Por sua atuação no cenário musical, recebeu favorecer a dinâmica da leitura e o acesso à experiên-
o título de cidadão honorário de Belo Horizonte e é cia, optamos por grafar em itálico todas as expressões
reconhecido nacionalmente como um dos principais retiradas da transcrição, intercalando-as com nossas
intérpretes da obra de Waldir Azevedo no cavaqui- sínteses e compreensões8. Por fim, na discussão dos
nho. Natural da cidade de Peçanha/MG, há anos re- resultados, buscamos confrontá-los com marcos teó-
side em Belo Horizonte, capital do mesmo Estado. ricos de modo a ampliar e retificar as análises.
A estratégia de coleta de dados adotada foi a en-
trevista semiestruturada de orientação fenomenoló-
gica, inteiramente gravada em áudio e realizada em Resultados
julho de 2014, no Pedacinhos do Céu. Entendendo
a importância de que em nossa pesquisa não fosse O Pedacinhos do Céu é um bar musical, de cho-
mantido sigilo quanto à identidade do participan- ro, criado em 1996 em homenagem a Waldir
te, além da assinatura do Termo de Consentimento Azevedo9. Preservação tem a ver comigo por-
Esclarecido, recebemos autorização para manter os que, na realidade, o meu espírito é um espírito
nomes próprios de todas as pessoas e instituições velho, é um espírito que gosta de coisas velhas,
citadas. Como indicam Barreira e Ranieri (2013), ao sabe? (…) Quer dizer: a gente quando preserva,
Relatos de Pesquisa

longo da entrevista buscamos favorecer a descrição no meu entendimento, é uma forma simples de
das vivências por meio de uma pergunta norteadora agradecer a alguém que fez alguma coisa boa
que provocasse o participante a retomar sua traje- para a humanidade, que prestou um serviço. No
tória evidenciando como elabora seu envolvimento caso do Waldir Azevedo: música, alegrou cora-
com atividades de preservação cultural. A pergunta ções. Eu acho que é importante preservar.
proposta foi: como você chegou a se envolver neste
trabalho dedicado à memória? Não seguimos um ro- Uma forma simples de agradecer a alguém que
teiro com outras questões elaboradas previamente, fez alguma coisa boa. Assim Ausier define o seu bar
de modo a apreender os caminhos que o participante musical, o Pedacinhos do Céu: como uma homena-
escolheria para tematizar sua experiência. Quando
7 Buscamos seguir a proposta metodológica desenvolvida
necessário, pedimos esclarecimentos ou buscamos pelo fenomenólogo no capítulo Fenômeno e fenomenologia, que
auxiliá-lo a retomar a descrição do modo como vi- se encontra traduzido para o português: confira van der Leeuw
vencia os temas abordados (Bosi, 1979/2005). (1933/2009).
-

8 A nomeação e organização dos conjuntos de vivências de


6 Considerando os critérios definidos para seleção e a viabilida- modo a torna-las inteligíveis é uma das diretrizes propostas por van
de de acesso aos sujeitos para realização das entrevistas, os quatro der Leeuw (1933/1964) no percurso de análise dos dados com vistas
Artigos

guardiões de memórias identificados foram: Ausier Vinícius dos à delimitação da experiência-tipo


Santos, Anette Hoffmann, Olga Regina Frugoli Sodré e José Eduar- 9 Waldir Azevedo (1923-1980). Compositor e músico brasileiro.
do Ferreira Santos. Os dados relativos às entrevistas e análises dos Considerado o maior mestre do cavaquinho, teve grande influência
demais sujeitos estão disponíveis em Leite (2015). no desenvolvimento do choro no país (Bernardo, 2004).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018 148
Elaborando Tradições na Contemporaneidade: Ausier e a Preservação do Chorinho

gem a Waldir Azevedo. Tendo se afeiçoado ao cava- A simplicidade para Ausier é um imperativo:
quinho ainda menino, ele se apaixonou ao encontrar tudo o que é considerado frescura é por ele rechaça-
a grande obra desse instrumento na produção de do, como trocar as cadeiras de lata por outras de ma-
Waldir. E, mesmo não tendo chegado a conhecê-lo deira. Ao mesmo tempo, certos cuidados são anun-
pessoalmente, se apegou de tal forma que concebe ciados como fundamentais: o som é modulado para
todo o seu trabalho como tributo a esse mestre do estar num volume agradável; como atual cozinheiro
choro que alegrou corações com sua música. Home- do bar (além de músico), ele serve somente a comida
nagem que quer fiel aos primórdios do choro ao unir que passa pelo seu crivo pessoal.
comida simples e música de qualidade. Para que as pessoas gostem e tenham vontade
de voltar, Ausier afirma lhes proporcionar o que re-
conhece ser o melhor: o que é do seu gosto e que
é oferecido com gosto, com satisfação. E o que ele
oferece é antes de tudo o choro, estilo de música que
tanto ama e deseja preservar.

Eu vejo assim: o choro é importantíssimo, é a


base da música brasileira. É uma música que o
mundo baba, tá? Outro dia um cara perguntou:
“mas o choro é o jazz brasileiro?”. “Não! Choro
é choro! Choro é muito melhor que jazz!”

Desde o início, o bar visa à divulgação dessa


que, para Ausier, é a primeira10, a mais importante,
a base da música brasileira, seja por ser especializa-
do em choro, seja pelo constante envio de partitu-
Figura 1. O Pedacinhos do Céu: mesas e cadeiras em primeiro pla- ras para o mundo inteiro. Ao longo dos anos, Ausier
no, o palco ao fundo à direita e paredes com fotos à esquerda. compreende que o Pedacinhos do Céu virou uma coi-
sa cultural, um buteco conhecido e reconhecido na-
No Pedacinhos do Céu impera o que para Au- cional e internacionalmente por ser espaço de choro.
sier faz sentido, a decoração é bem do seu jeito. Nos Um espaço que ele faz questão de manter simples,
quadros que preenchem todas as paredes, além do para que todo mundo que chega possa tocar o que
registro das visitas ilustres, ele nos indica que está sabe. Espaço de encontro em que, apresentando-se
estampado o melhor do choro em fotos e caricaturas. como mineiro da roça, ele faz o que gosta, conversa
com o mundo todo pelo idioma universal que é a mú-
sica e recebe vultos que jamais pensou que fosse ver
um dia de perto.
Acompanhando sua narrativa, fica-nos eviden-
te como, para Ausier, no Pedacinhos do Céu impera
tudo o que é típico do choro em seus primórdios:
comida simples; caras reunidos para tocar; flexibi-
lidade para incluir visitantes, instrumentos e estilos
novos, desde que não se perca a sua característica
própria. A fidelidade para com a origem emerge
como ponto importante em sua vivência, expressan-
do-se tanto nesse apego ao modo original do choro,
quanto no gosto em desvelar insuspeitos precursores
Relatos de Pesquisa
dos ritmos musicais:

Na realidade, o que Altamiro Carrilho11 fala-


va com toda a propriedade? O pai do choro é
Bach12! Tudo do Bach que você pegar e colocar
um grupo de choro, é choro! (…) Na época do
Callado13, que era muito bom flautista, o que
se tocava era o erudito mesmo. De onde ele ti-
10 A tese que Ausier defende é polêmica na história da música
brasileira, em que comumente se afirma que o samba é mais antigo
por ter surgido a partir de manifestações musicais de escravos afri-
canos. A esse respeito, cf. Lopes, 2003.
11 Altamiro Carrilho (1924-2012). Músico, compositor e flautista
-

brasileiro, grande difusor do choro no país e no exterior. É conside-


rado por muitos um dos maiores flautistas do mundo.
12 Johann Sebastian Bach (1685-1750). Compositor, cantor, cra-
Artigos

vista, maestro, organista, professor, violinista e violista alemão,


considerado o maior nome da música barroca e um dos melhores
Figuras 2 e 3. Paredes com fotografias de visitantes ilustres (acima)
compositores da história.
e caricaturas (abaixo).
13 Joaquim Antônio da Silva Callado Júnior (1848-1880). Flautis-

149 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018
Roberta Vasconcelos Leite

rou o choro? Naquela época era Bach mesmo, Bandolim15, ícone que ele não cultua e não toca16,
era o erudito. Ao que tudo indica, veio real- tem exaltada sua importância no desenvolvimento
mente de Bach. do choro. O mesmo se dá ao discorrer sobre músi-
ca popular brasileira, sobre música internacional,
Essa relação com a origem é relevante para Au- sobre quaisquer temáticas: a narração é ditada pela
sier não como mero saudosismo por algo que se pas- peculiaridade de certos personagens e seus respec-
sou, mas como reconhecimento da potência atual de tivos legados.
algo que começou no passado. Assim, por exemplo, Em sua narrativa, Ausier é categórico ao afir-
quando ele afirma que as coisas de Bach realmente mar que saber o que foi o país, as coisas boas, im-
têm gosto de choro, entendemos que não se trata ape- plica em saber quem as fez e quem as preserva.
nas de enaltecer o choro modulando evidências que Assertiva que nos indica que, para ele, não basta
liguem seu nascimento ao grande expoente do eru- preservar o objeto, a obra material: é importante
dito, mas da satisfação em descobrir uma identidade enaltecer seu autor e a potência do gesto de criação
com as próprias raízes, em evidenciar uma continui- de algo que continua nos provocando ao longo do
dade ao longo do tempo. tempo. Por isso, não obstante ele perceba que seu
Continuidade que identificamos também quan- trabalho teve reconhecimentos que lhe trazem ale-
do Ausier discorre sobre seu acervo, afirmando deter grias, entende que este tipo de retorno é raro neste
a história na mão: nosso país em que, para ele, sequer a consciência
da urgência da preservação é compartilhada: Ausier
Acho que é importante preservar, sempre! acha que o Brasil não se preocupa, pois as pessoas
Tudo! Tudo. Em casa tenho o meu acervo, te- se comportam como se a coisa fosse para sempre.
nho as minhas correspondências com a Dona Mas se você não lembrar, perde mesmo: em sua ela-
Olinda Azevedo14, tudo em pasta! Sou muito boração, percebe que não há continuidade sem em-
organizadinho nisso. Tenho os discos velhos, penho, e a evidência da finitude e do valor que está
as pessoas podem ver como são, como funcio- em jogo o mobilizam a cuidar.
nam. Essa é outra vantagem da preservação. Es- Assim fazendo, ao se dedicar a preservar a obra
ses discos velhos que comprei desde os quinze de Waldir Azevedo como forma de agradecimento,
anos de idade, que compro o tempo todo, mui- Ausier cuida também do choro de modo mais amplo.
tos desses as gravadoras não existem mais. Não E insiste que o que ele segue é o sentimento que Wal-
tem nem como relançar, não existe, mas eu te- dir e outros músicos colocaram:
nho lá. É uma matriz que nós podemos fazer
um CD, já parou para pensar? Isso é importante, Já hoje querem até modernizar demais [o
nós temos a história na mão, é importante ter a choro]. Hoje tem a cultura de dar muita nota.
história na mão! Quer dizer, se a pessoa ganhasse por nota
ficava rico! Mas não é, ainda acho que é o
Para ele, a história pode ser possuída quando sentimento. É o sentimento que foi colocado
preservamos artefatos – como, no caso da música, os pelo Waldir Azevedo, pelo Jacob do Bandolim,
LPs – que permanecem carregando um sentido atual, é isso que a gente segue. É por isso que tenho
desafiando a máxima de que tudo acaba no correr lá em casa um acervo de mais de mil e qui-
inexorável do tempo. Entendemos que sua atenção nhentos vinis de choro. Volta e meia estou es-
não está lançada no objeto por ele mesmo, mas no cutando um lá para trás.
tipo de experiência que ele pode solicitar. Por isso
ele elabora que seu esforço abre caminho para que Ausier enfatiza o sentimento, mas para ele não
os jovens possam ter acesso ao tipo de experiência se trata de algo intimista: o sentimento é colocado
que marcou gerações no passado e continua o pro- por alguém na música e pode ser apreendido e re-
vocando pessoalmente, já que até o chiado do vinil transmitido por aqueles que se dispõem a escutar o
Relatos de Pesquisa

para ele é música! Daí seu entusiasmo em contar so- que está lá para trás. Há algo que crava no coração,
bre o acervo e instigar visitas e pesquisas, reconhe- algo fascinante que os grandes ícones imprimem em
cendo que seu esforço já concentrou preciosidades, sua obra e que merece ser seguido: não se pode atua-
facilitando o trabalho de quem se interessar depois e lizar o choro deixando isso de lado. Daí sua crítica
possibilitando até mesmo eventuais relançamentos. aos músicos que fazem da interpretação das obras
Cuidando pessoalmente do que tem na mão, um ato auto-centrado na capacidade de dar muita
Ausier opta por narrar a história do choro enfati- nota, tocando apenas como ocasião de demonstrar
zando a contribuição própria de cada pessoa que foi a própria técnica. Para Ausier, é primordial ser fiel
marcante nesse percurso. Seu modo de elaborar a àquilo que permite com que uma música desafie o
tradição que chega até ele lança luzes sobre os pro- tempo emocionando diferentes gerações.
tagonistas que a constituíram. Até mesmo Jacob do Assim, vemos que a questão afetiva é central
e apresenta contornos muito próprios em sua expe-
ta brasileiro considerado criador do choro, Callado formou o grupo
-

“Choro Carioca” por volta de 1870, em que sua flauta era acompa- 15 Jacob Pick Bittencourt (1918-1969). Músico, compositor e ban-
nhada por dois violões e um cavaquinho. Os três instrumentistas de dolinista brasileiro de choro. Alcançou popularidade ao montar o
cordas tinham boa capacidade de improvisar sobre o acompanha- conjunto Época de Ouro no início da década de 1960.
Artigos

mento harmônico, que é a base do choro. 16 A notória rixa entre Jacob e Waldir Azevedo, mestre de Ausier,
14 Viúva de Waldir Azevedo, que Ausier conheceu após a morte do é atribuída por muitos ao fato de Waldir ter sucedido Jacob na gra-
mestre e de quem se tornou muito amigo: ela me passou quase tudo, vadora Continental, e por ter rapidamente emplacado sucessos que
acho que ninguém conhece a obra de Waldir Azevedo como eu conhe- alcançaram uma vendagem de discos muito superior à de Jacob. Cf.
ço. Realmente ela me abriu a porta da casa dela como a um filho. Paz, 1997.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018 150
Elaborando Tradições na Contemporaneidade: Ausier e a Preservação do Chorinho

riência. Para melhor delineá-los, tomemos a narrati- xinguinha, Tom Jobim, para o menino saber
va da primeira vez em que ouviu o disco de Waldir disso!
Azevedo:
Para ele, o desafio é justamente transformar
Até o dia em que um cara falou assim comigo: esse meio, implantando o que há de melhor na mú-
“você gosta de cavaquinho, eu vou te mostrar sica, dando prioridade ao que é nacional, o que não
um que toca: Waldir Azevedo!” Esse cara, que significa rechaçar o estrangeiro, mas saber reconhe-
era escrivão do Fórum, me levou para sua casa cer quando a aproximação enriquece e quando não
– eu, menino pobre, tinha uns nove, dez anos, favorece o crescimento da pessoa. Por isso sua op-
bem menino mesmo. Passei a ouvir o disco do ção é por apresentar algo próximo e ao mesmo tem-
Waldir e fiquei doido: “que negócio bacana!” po excepcional: um horizonte possível muito além
E comecei a tentar tirar aquelas coisas. (…) A daqueles limites estreitos em que algumas visões de
identificação com o Waldir Azevedo foi assim, mundo podem nos encarcerar.
quer dizer, foi uma questão mesmo de emoção: E, para isto, o caminho que ele adota é o de
mexeu comigo e resolvi realmente cultuar. construir pontes: para o jovem que pergunta o que
é chorinho?, por exemplo, propõe a aproximação a
Chama-nos atenção a certeza com que ele atri- partir de músicas famosas que podem ser transfor-
bui o ato de cultuar Waldir à potência da emoção madas em choro, para só então começar a apresen-
despertada naquele encontro: o elemento afetivo tar figuras menos conhecidas. Para quem conhece
é descrito como o fundamento de seu posiciona- música e quer aprender a tocar choro – como vários
mento. Esse modo de tematizar a própria experiên- estrangeiros que o procuram – fornece partituras, in-
cia aparece outras vezes em sua narrativa, e se faz termedia a confecção de instrumentos, se dispõe a
presente também quando ele justifica seu empenho ficar tocando para mostrar como é que se faz. Já para
incomum de preservação asseverando que seu espí- aqueles que conhecem e querem seguir por essas
rito gosta de coisas velhas. veredas, seu método é priorizar os grandes mestres
Instigados por seu modo de elaboração, vemos de cada instrumento: para quem toca cavaquinho
que quando Ausier usa termos como paixão, gosto, sempre recomenda Waldir Azevedo, porque não tem
emoção, sentimento ele não está se referindo apenas nada melhor.
a ressonâncias internas, mas afirmando que a inten- Ainda que valorize muito a audácia do pionei-
sidade de uma vivência afetiva sinaliza o reconheci- rismo – é o que eu falo: se não tivesse doido, ninguém
mento de algo ao qual vale a pena se dedicar por in- andava de avião! – Ausier sabe que a continuidade
teiro. Entendemos que esta é a compreensão que ele se concretiza pelo trabalho de muitas mãos. Apreen-
formula sobre o próprio dinamismo: o que mexe con- demos o valor do esforço conjunto no modo como
sigo revela o que é valor para si. E seu modo de res- ele enfatiza o apoio que recebe de sua atual esposa;
ponder ao valor é tomando-o como critério de ação, como se pergunta quem irá cuidar da obra dos ícones
mesmo que isso implique em sacrifícios. Ao longo do choro que faleceram, cujos filhos não se mostram
da entrevista, ele enumera diversas situações em que tão ligados; como aponta a importância dos laços de
abriu mão de outras coisas para seguir fazendo o que amizade para a constituição de suas coleções. E, em
lhe dá tanto prazer: chegou a passar a cheeseburger se tratando de uma tradição que promove vínculos,
para poder comprar discos; se desdobra para lidar apreendemos como a importância do coletivo se ex-
com a dor de cabeça que são as contas; tornou-se o pressa também em seu gosto por destacar os amigos
cozinheiro do bar e assume todo o trabalho com a maravilhosos que fez aqui e no mundo inteiro graças
ajuda da esposa enquanto tiver saúde. à sua trajetória musical no choro.
Nesse sentido, Ausier percebe a si mesmo como Em suma, Ausier nos apresenta o empenho de
alguém que aceita sacrifícios para afirmar o que gos- preservar como seu modo de expressar gratidão por
ta, do modo como reconhece ser justo. De modo cor- quem lhe abriu caminho. E preservar, para ele, é cui-
Relatos de Pesquisa
relato, apreendemos como ele abraça certa tradição dar da tradição tomando o que encontrou explicitan-
na música, que prioriza o sentimento que pode ser do sua a vitalidade atual, trazendo para o presente a
transmitido e que se diferencia daquelas que valori- presença dos mestres e do que eles comunicam. Esse
zam a técnica musical por si mesma ou a reprodução encontro ressoa afetivamente nele, convocando-o à
sem preocupação com a qualidade, a qual ele recha- apreensão do que é valor para si, ao cuidado e à ava-
ça veementemente. Aliás, em sua concepção, se fala liação crítica de outras perspectivas que permeiam o
palavrão e deseduca o filho da gente nem música mundo da música. Tendo clareza do que vale a pena
é: afinal, música verdadeira tem sentido e atualiza afirmar e dos vínculos propiciados pela experiência
algo que os mestres colocaram, despertando emoção da música verdadeira, Ausier se dedica à transmis-
genuína. Como corolário, Ausier não tolera a com- são de sua tradição oferecendo aos jovens a possibi-
preensão difundida de que, se a pessoa gosta de mú- lidade de, como ele, se fascinarem com o que há de
sica de má qualidade, não há saída se não continuar melhor na música brasileira.
reproduzindo o que é do meio em que ela vive:
-

Não, eu não concordo, não concordo! Temos Discussão dos resultados


Artigos

é que melhorar o meio em que o menino vive!


Não é não? Precisa implantar o Brasil na coi- Tendo nos empenhado em reapresentar a expe-
sa. Eu sou brasileiro! Vamos colocar então Pi- riência de Ausier, a proposta agora é explicitar como

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Roberta Vasconcelos Leite

as compreensões alcançadas dialogam com o dina- porque, na paixão que tantas vezes enfatiza, ele traz
mismo da experiência humana e da elaboração da questões relativas à busca por sentido e à possibilida-
tradição descritos tanto pelos autores de nosso refe- de de realização pessoal ao se posicionar afirmando
rencial teórico, quanto por outros que se mostraram valores reconhecidos e aceitando sacrifícios para isto
pertinentes. Buscamos assim a retificação da análi- quando necessário. Em suma, tocado afetivamente,
se preconizada por van der Leeuw (1933/1964), de ele apreende um sentido razoável pelo qual vale a
modo que nossas conclusões possam se constituir pena se dedicar por inteiro e, mesmo diante das ad-
como provocações para a compreensão da temática versidades, pode continuar se dedicando e realizan-
pesquisada em contextos diversos (Leite & Mahfoud, do: saio sapecado, saio queimado, mas saio feliz.
2010). Voltando ao diálogo com Stein (1936/2007), en-
Ao elaborar a própria experiência, Ausier nos tendemos que o conceito de núcleo pessoal pode nos
indica como busca se posicionar no mundo tomando ajudar a melhor compreender como Ausier discorre
a emoção como bússola que lhe permite orientar-se sobre seu modo particular de guiar sua vida a partir
em direção ao que realmente faz sentido e o satis- do que reconhece como constitutivo para si. Segun-
faz pessoalmente. Stein (1917-9/2005) nos auxilia do a fenomenóloga, o núcleo é o coração, o aspecto
a compreender este dinamismo ao clarificar que “o mais íntimo, o centro da vida. Quando o eu passa a
sentir é sinônimo de estimar valores” (p. 801) e que viver a partir de seu centro, esta abertura para den-
se pode definir um sentimento como racional na me- tro de si se irradia também como abertura para fora,
dida em que ele é capaz de mobilizar atos de vonta- passando a orientar o posicionamento no mundo. É a
de orientados à realização do valor apreendido. Com partir de seu núcleo que a pessoa pode efetivamente
este aporte, podemos superar uma visão simplista assumir a própria singularidade e agir com liberdade
que dissocia as vivências afetivas e racionais, con- nas relações e contextos onde está inserida. Nestes
templando com maior claridade a unidade da expe- termos, ao afirmar e cuidar do choro, podemos dizer
riência que Ausier nos anuncia. que Ausier se posiciona a partir do próprio centro
Também Giussani (1986/2009), ao descrever que “imprime seu selo sobre cada característica e
como podemos nos posicionar afirmando e exaltan- cada atitude do homem, e constitui a chave da estru-
do todos os elementos que compõem nossa relação tura de seu caráter” (Stein, 1936/2007, p. 1087).
com o mundo, evidencia uma unidade orgânica No tocante à elaboração da tradição, vimos como
entre razão e sentimento. Metaforicamente, o sen- Ausier se empenha para sintonizar-se às origens do
timento é descrito como uma lente que nos aproxi- choro, evidenciando uma busca por identidade com
ma do objeto, permitindo que a razão o veja em sua as próprias raízes. Seu modo de concretizar essa
especificidade. Ou seja, é pelo sentimento que nos busca passa por re-apresentar a obra de Waldir como
aproximamos e interessamos pelo objeto do conheci- excepcional, referência incontestável para todos os
mento, abrindo caminho para que possamos apreen- cavaquinistas assim como ele reconheceu ser para si.
der o valor do que se mostra a nós. O desafio é que o Nesta naturalidade com que ele assevera essa figura
sentimento esteja em seu justo lugar e para isto cabe de autoridade, identificamos o caráter de estabilida-
ao sujeito se posicionar para ajustar o foco das lentes, de e normalidade que Husserl18 atribui à tradição, tal
priorizando a atenção ao que se apresenta em detri- como evidenciado por Ales Bello (1998).
mento das imagens pré-concebidas. Em suma, cabe Acolhendo essa autoridade como correspon-
afirmar o “amor à verdade do objeto mais do que o dente a si, Ausier elabora ligar-se à música de modo
apego às opiniões que já formamos sobre ele” (p. 55). diverso daqueles que absorvem influências de má
Comentando estas contribuições de Giussani, qualidade sem juízo crítico. Gadamer (1960/2008,
Mahfoud (2012) explicita como não é razoável nem 2002) compartilha essa compreensão de que, sem
tentar eliminar o sentimento em virtude de um pro- consciência da tradição que abraçamos, o que nos
jeto abstrato que concebe o conhecimento imparcial resta é a submissão não problematizada. Para o fi-
como ideal, nem exaltá-lo como única expressão lósofo, a pertença consciente à tradição, ao invés,
Relatos de Pesquisa

genuína da condição humana, pois “a experiência pode sedimentar encontros com tradições diferentes
aponta para alguma coisa não somente para o eu” (p. marcados pelo entendimento mútuo e pela expansão
161). Isso significa que tomar a experiência apenas de horizontes. E é algo assim que apreendemos na
pelo caráter reativo do sentimento é uma redução, experiência de Ausier: ele adere à direção que seus
pois o próprio sentimento nos conduz a algo que nos mestres anunciam tendo como norte a emoção, a
transcende, não sendo razoável fixar a atenção ape- realização pessoal e os vínculos que esse caminho é
nas na ressonância interior. capaz de gerar. E assim, tendo clareza das raízes que
Apropriando-nos dessas contribuições, com- afirma e porque se liga a elas, ele expressa inúmeras
preendemos que o sentimento emerge para Ausier vezes o quanto valoriza a relação com estrangeiros e
como borbulhar que tem como fonte experiências com a música internacional. Nesse movimento, tan-
de maravilhamento17 nas quais ele vivencia profun- to exalta com entusiasmo o que tem qualidade e é
da satisfação pessoal. A complexidade de sua expe- genuinamente brasileiro quanto reconhece o que há
riência não pode ser reduzida à ressonância afetiva de bom em outras terras que merece ser implantado
-

no país. Como corolário, apreendemos como Ausier


17 Com Bersanelli e Gargantini (2003/2006), entendemos que a apresenta com sua experiência a possibilidade de
vivência de maravilhamento refere-se a admirar-se com a existência
Artigos

do que se apresenta a nós. Para os autores, maravilhar-se é condição um intercâmbio fecundo entre tradições, sem sobre-
fundamental para o conhecimento, tanto porque a atração pelos fe- posição, em que o critério permanece sendo o cultivo
nômenos nos instiga a buscar compreendê-los, quando porque via-
biliza o rigor ao mobilizar atenção, abertura, dedicação. 18 Manuscrito AV 11, Begriff der Tradition (Conceito de tra-
dição), de 1930-1.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018 152
Elaborando Tradições na Contemporaneidade: Ausier e a Preservação do Chorinho

do que é apreendido como valor. transformação histórica a partir do compromisso


Valor que ele nomeia como o sentimento que os entre gerações. Com esta perspectiva, vislumbramos
mestres colocaram em suas músicas. Já afirmamos uma nova luz sobre o desafio por ele anunciado de
que a complexidade do que ele entende por sen- que cada geração tanto escreva a história de modo
timento nos indica que o que ele quer preservar é próprio quanto revisite, recupere, reelabore e redi-
mais que a ressonância afetiva: há algo de precioso ma o passado afirmando sua fecundidade presente
que emana do autor e pode de algum modo se impri- e futura.
mir na obra artística. Assim, a presença dos mestres Ainda no que concerne à elaboração da tradi-
– mesmo daqueles que não se tornaram referência ção por Ausier, vimos que ele concebe toda sua obra
para o grande público – pode permanecer no tempo, como homenagem ao mestre Waldir Azevedo, que
desde que alguém se disponha a cuidar. ele sequer chegou a conhecer pessoalmente. Para
Para aprofundar essa compreensão, tomaremos a avançar em nossa aproximação a esta complexidade,
discussão de Walter Benjamin (1940/2012) acerca do buscamos as contribuições de Giussani (1992) acer-
dinamismo da memória como reconhecimento de que ca do significado da doação de si à obra de um outro.
somos tributários do que se passou antes de nós. Re- Para o autor, na vivência de um acontecimento19 cor-
conhecimento que problematiza a tendência moder- respondente, a pessoa pode se posicionar afirmando
na de nos comprometermos apenas com as gerações a pertença ao ideal ali anunciado e à autoridade que
vindouras, convocando-nos a sermos solidariamen- anuncia e favorece a retomada do ideal como presen-
te responsáveis especialmente com o nosso passado ça. Uma possibilidade concreta de afirmação dessa
oprimido. Para que um processo assim seja possível, a pertença é “dar a vida pela obra de um outro”: doa-
história precisa ser concebida não como um passado ção de si em que, quanto mais se reconhece perten-
factual, imóvel, mas como uma dinâmica marcada por cente a algo maior que si mesma, mais a pessoa vive
dramas, conquistas, dominações, rupturas, silencia- letícia20 e se dá conta de quem é, do sentido da pró-
mentos, possibilidades. Uma dinâmica que traz à tona pria vida, do ideal que a realiza e mobiliza sua ação.
não só as experiências vividas que permaneceram no Podemos afirmar que Ausier reconhece dar a
tempo, mas sobretudo as expectativas não realizadas vida pela obra de Waldir Azevedo? Entendemos que
das gerações precedentes. É nesse sentido que para sim e que ele traduz essa doação de si ao mestre com
ele o trabalho de memória deve focar não somente o uma expressão particularmente interessante: cul-
que permaneceu como legado, mas também os proje- tuar. Em sua narrativa, compreendemos que cultuar
tos não concretizados e as esperanças que foram de sintetiza admirar e afirmar, reconhecer valor e pre-
algum modo oprimidas. Neste processo de reconstru- servar, divulgar a excepcionalidade e se submeter a
ção, erros podem ser corrigidos, injustiças reparadas, ela porque se trata de algo pessoalmente correspon-
feridas cicatrizadas: Benjamin (1940/2012) reconhece dente. Cultuando seu mestre, Ausier mostra ser evi-
no trabalho da memória a possibilidade da redenção. dente para ele que dá tudo de si a uma obra que não
Embora a maioria daqueles que foram injustiçados ao é sua e, ao mesmo tempo, é tão profundamente sua.
longo do tempo não possa receber diretamente a re- Sua porque ele se identifica inteiramente com a ex-
paração no curso social dos acontecimentos – já que periência de maravilhamento vivida por meio dela e
a história é irreversível – a redenção possível situa- por isso entendemos que Ausier pertence ao ideal de
-se na reelaboração dos significados do passado e na vida pautado nesse maravilhamento e à autoridade
abertura de novos horizontes para o presente e para as que Waldir é para ele. E, como vimos em sua expe-
gerações futuras. riência, os vários sacrifícios que ele mesmo reconhe-
Entendemos que em seu esforço por preservar ce assumir e o fato de optar por um caminho que
o choro e especialmente a obra de Waldir Azevedo, não dá dinheiro – contrariando o que é socialmente
Ausier em certo sentido dedica-se a esta redenção esperado – exaltam ainda mais para ele essa realiza-
de que fala Benjamin (1940/2012). Entretanto, co- ção vivida como vinculação a esse mestre.
lhemos nas assertivas do filósofo o risco de que essa De fato, Giussani (1992) esclarece que “dar a
Relatos de Pesquisa
redenção seja concebida como um retorno às feridas vida” não significa morrer pelo ideal, mas sim afir-
do passado, de tal modo que confirmá-las e deixá- má-lo continua e diariamente em cada experiência.
-las sangrando seja entendido como a melhor moti- “Dar a vida” significa oferecer tudo de si a partir do
vação para a mobilização no presente. Na análise da próprio centro em função de algo reconhecido como
experiência de Ausier, ao invés, vimos que ele não plenamente correspondente. Significa formular a
se ocupa prioritariamente em explicitar a injustiça vida em função do ideal apreendido e se dispor à
do pouco reconhecimento dos mestres do choro, mas presença reconhecida. Num certo sentido, essa dis-
sim em difundir a potência do sentimento que eles
19 Para Giussani (1992/2000), “acontecimento é ‘algo’ que repen-
colocaram na música, de tal modo que possa se alas- tinamente se introduz: não-previsível, não-previsto, não-conseqü-
trar a admiração e a valorização que ele experimenta ência de fatores antecedentes (…) é tal justamente enquanto não
em primeira pessoa. Nesse sentido, compreendemos pode ser dominado, tem algo que escapa” (p. 12). Ainda segundo
que, dedicando-se integralmente a esta difusão, Au- o autor “só um acontecimento pode iniciar o processo através do
sier nos mostra que seu foco está na certeza quanto qual o eu chega à consciência ou conhecimento de si. A categoria
-

de ‘acontecimento’ é, portanto, capital, tanto para o conhecimento


ao valor reconhecido e que precisa ser continuamen- do eu como para qualquer tipo de conhecimento” (p. 13).
te afirmado. Assim, acreditamos que experiências 20 Segundo Giussani (1996), a experiência de letícia emerge da
Artigos

como a de Ausier nos ajudam a avançar no entendi- união entre gratidão, certeza de felicidade e confiança no funda-
mento de como a proposta de Benjamin (1940/1994) mento da existência. Trata-se de modalidade de alegria que não
se enraíza na dimensão psíquica, mas na dimensão espiritual da
pode se constituir como um projeto vitalizado de pessoa, podendo portanto ter estabilidade no tempo e ser vivida
concomitantemente ao extremo sofrimento.

153 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018
Roberta Vasconcelos Leite

ponibilidade implica em obediência e sacrifício, mas atenção à própria experiência e ao que lhe foi legado,
não coincide com abrir mão de si mesmo em função a pessoa pode fundamentar sua resposta positiva ao
do outro. Pelo contrário, trata-se de uma disponibili- chamado de preservar valores de uma certa tradição.
dade vivida como gesto de amor, isto é, de afirmação E sobre essa mesma base, ela pode elaborar sua críti-
do ser do outro que coincide com a afirmação mais ca a tradições que não se revelam propícias à concre-
radical de si. tização do ideal que apreende em seu ser.
Essa experiência de amor é também evidente Como estratégia para a promoção e difusão do
para Ausier: em seus termos, ele é apaixonado real- valor que reconhece, Ausier nos mostrou que cuida
mente pela obra de Waldir. Uma paixão nascida no de um certo modo de registros, documentos, obras e
maravilhamento vivido quando ainda era menino e equipamentos que anunciam esses valores apreendi-
constantemente atualizado ao longo de sua vida. Uma dos na tradição. O ponto fundamental que emergiu é
paixão alimentada pela amizade com Dona Olinda e que a descoberta do valor que os registros materiais
pela satisfação em materializar seu reconhecimento querem comunicar se dá numa experiência de mara-
ao mestre mantendo um bar em sua homenagem. Por vilhamento, que abre caminho para a conexão entre
isso afirmar exaustivamente a obra e a pessoa de Wal- passado, presente e futuro. Assim, para ele, não se
dir como presença não é algo que se sobrepõe à pes- trata de colecionar artefatos como curiosidade his-
soa de Ausier: ao invés, é justamente uma grande ex- tórica ou de defender moralisticamente o retorno a
pressão de sua pessoalidade. Agradecendo contínua e algo pretérito, mas de atualizar a correspondência vi-
diariamente a quem lhe abriu o caminho que tanto o vida tanto na percepção de um ideal anunciado pela
realiza, Ausier afirma o próprio ser. tradição, quanto na adesão a ele. É por meio desse
Por fim, destacamos que para Giussani (1992) acontecimento presente que o passado pode fecun-
a doação de si não é afirmação de um ideal abstrato dar o futuro, que a pessoa pode reconhecer que seu
justamente por ser empenho com uma obra concreta, posicionamento incide no mundo gerando novidade
existencialmente presente, histórica. É dedicando-se a partir da atualização da tradição.
ao legado de um outro que a pessoa se dedica a ele, Assim, enquanto como sociedade nos voltamos
afirma a sua presença no mundo. E assim são gera- para o futuro tentando direcionar nosso destino sem
das novas obras, novos caminhos, novas possibilida- atinar para como o que vem do passado modula nos-
des para si e para o mundo. Portanto, na perspectiva sa experiência atual, a experiência de um guardião
do autor, “dar a vida pela obra de um outro” carrega de memórias contemporâneo nos anuncia outras
um caráter criativo: a pessoa se dedica de modo pró- possibilidades de articulação entre os três tempos.
prio, original, o que inclusive pode solicitar outros a Advertimos o delineamento de um caminho para a
também se dedicarem, cada um a seu modo, dando a compreensão de como a tradição pode ser elaborada
sua contribuição. e cultivada de forma vitalizada na contemporanei-
Com Ausier, apreendemos como a criatividade dade, o que não significa que este seja um processo
na adesão à obra de um outro pode se expressar por fácil. Justamente por não ser favorecida pela cultura
meio da recriação: o Pedacinhos do Céu, ao mesmo que prevalece atualmente, a valorização da tradição
tempo que é totalmente forjado do seu jeito, nos é abre um campo de tensões a serem continuamente
apresentado como uma espécie de microcosmo, enfrentadas num percurso que pode ser vivido de
que re-edita a tradição original do choro e divulga forma não alienada se contemplar o reconhecimento
os grandes chorões. Nesse espaço, tocando em seu de que algo que vem do passado tem a ver consigo,
cavaquinho a música com que se identifica, é a auto- desperta em si maravilhamento e convoca a cuidar
ridade de Waldir Azevedo que Ausier está buscando como gesto de gratidão.
repropor e ofertar àqueles que se dispõem a ouvir.
Ciente de que poucos se interessam por se dedicar
assim integralmente a um valor reconhecido num Referências
encontro, Ausier exalta seu pioneirismo e segue ela-
Relatos de Pesquisa

borando o quão correspondente é ser agradecido e


materializar essa gratidão numa homenagem àquele Ales Bello, A. (1998). Culturas e religiões: uma leitura
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à atualização da tradição de modo pessoalizado? Barreira, C. R. A., & Ranieri, L. P. (2013). Aplicação de
Em primeiro lugar, ressaltamos como nossos contribuições de Edith Stein à sistematização de
-

resultados apontam para a centralidade da apro- pesquisa fenomenológica em psicologia: a entrevis-


priação pessoal da tradição para que a pessoa possa ta como fonte de acesso às vivências. Em M. Mah-
Artigos

acolher sua herança e se dedicar à promoção de sua foud & M. Massimi (Org.s). Edith Stein e a psicolo-
continuidade. Vimos que com um trabalho pessoal gia: teoria e pesquisa (pp. 449-466). Belo Horizonte:
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Roberta Vasconcelos Leite é Graduada, Mestre e


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de
Minas Gerais, com estágio doutoral na Università di
Bologna (Italia). Atualmente é Professora Adjunta da
Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Minas Gerais. Endereço Institucional: Departamento
de Ciências Aplicadas à Educação – Gabinete 1622.
Faculdade de Educação – Universidade Federal de
Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha
– Cep.: 31.270-901. Belo Horizonte – Minas Gerais.
-

E-mail: vasconcelosroberta@yahoo.com.br
Miguel Mahfoud possui graduação em Psicologia
Artigos

(1980), Mestrado em Psicologia (1990) e Doutorado


em Psicologia Social (1996), todos pelo Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. Pós-dou-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 145-156, mai-ago, 2018 156
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.4

DEIXOU O CORPO EM CASA, FOI PARA TERAPIA: O


CORPO SEGUNDO PSICÓLOGOS

He/she left the body home, went to therapy: the body according to psychologists

Ha dejado el cuerpo en sucasa, sefue a la terapia: el cuerposegún los psicólogos

JoannelieSe de lucaS freitaS


Paula arenhart
Mariana abuhaMad

Resumo: O problema corpo-mente está historicamente vinculado à compreensão de psiquismo em psicologia. A lite-
ratura aponta que apesar de terem aumentado os estudos sobre corpo e corporeidade na psicologia brasileira, ainda
prevalece entre psicólogos um conceito de corpo reduzido ao bios. No presente trabalho investigou-se a concepção de
corpo entre psicólogos atuantes em uma cidade do sul do Brasil. Foram realizadas entrevistas com 21 profissionais,
seguidas de análise qualitativa fenomenológica dos resultados utilizando-se o método de Van Manen. Foi observado
que os participantes apresentam dificuldades na problematização da relação entre corpo e psiquismo e na articulação
do tema em seus aspectos teóricos e práticos. Há uma tendência a separar os fenômenos em “interiores” e “exteriores”.
Em geral, entendem que o corpo estaria subordinado à linguagem e ao psiquismo, excetuando no adoecimento orgâ-
nico, quando a corporeidade ganha maior evidência. Concluímos que os entrevistados tendem a compreender o corpo
de maneira dicotômica ao mental, predominando uma compreensão de corpo como mera expressão do psiquismo,
freqüentemente desenraizado de sua historicidade.
Palavras-chave: Corpo; Psiquismo; Psicologia.

Abstract: The body-mind problem is historically connected to the understanding of the psyche in psychology. The
literature points out that despite the recent increase in the number of studies about body and corporeality in Brazilian
psychology, the concept of a body reduced to bios still prevails among psychologists. In this paper, we investigate the
conception of the body among psychologists in a city in southern Brazil. We interviewed twenty-one professionals and
analyzed the results by Van Manen’s phenomenological qualitative method. We observed that participants presented
difficulties to circumscribe the relation between body and psyche and to articulate its theoretical and practical aspects.
There is a tendency to separate phenomena as “inner” and “outer”. Frequently they understand that the body is sub-
ordinated to language and psyche, except during organic illness when corporeality gains more evidence. We conclude
that interviewees tend to understand the body in a dichotomous relation to the mental, as predominates among them
an understanding of the body as a mere expression of the psyche, often uprooted from its historicity.´
Keywords: Body; Psyche; Psychology.

Resumen: El problema cuerpo-mente es históricamente vinculado a la comprensión del psiquismo en psicología. La li-
teratura señala que a pesar de haber aumentado los estudios sobre cuerpo y corporeidad en la psicología brasileña, aún
prevalece entre psicólogos un concepto de cuerpo reducido al bios. En el presente trabajo se investigó la concepción
de cuerpo entre psicólogos actuantes en una ciudad del sur de Brasil. Se realizaron entrevistas con 21 profesionales,
seguidas de análisis cualitativo fenomenológico de los resultados utilizando el método de Van Manen. Se observó
que los participantes presentan dificultades en la problematización de la relación entre cuerpo y psiquismo y en la
Relatos de Pesquisa

articulación del tema en sus aspectos teóricos y prácticos. Hay una tendencia a separar los fenómenos en “interiores”
y “exteriores”. En general, entienden que el cuerpo estaría subordinado al lenguaje y al psiquismo, exceptuando en la
enfermedad orgánica, cuando la corporeidad gana mayor evidencia. Concluimos que los entrevistados tienden a com-
prender el cuerpo de manera dicotómica al mental, predominando una comprensión de cuerpo como mera expresión
del psiquismo, frecuentemente desenraizada de su historicidad.
Palabras-clave: Cuerpo; Psiquismo; Psicología.

Introdução e consciência (Bueno, 1997). Refletir sobre o tema


Compreender os problemas relativos à dimen- é, pois, ampliar a compreensão sobre como corpo-
são corporal humana implica pensar também o reidade e consciência são pesquisados e trabalha-
“psiquismo” e suas acepções, uma vez que histo- dos em seus problemas teóricos e práticos.
ricamente, estas são duas concepções que se mo- O modo de se entender a relação soma-psiqué
-

dulam e se implicam mutuamente (Costa, 2011). tem mudado ao longo dos anos no campo psicoló-
Trabalhos de autores tão diversos quando Piaget e gico e tem se tornado cada vez mais, interesse da
Artigos

Luria, bem como de filósofos com impacto relevan- área (Freitas, Bevilacqua, Castilhos, Michel,& Pér-
te na psicologia, tal como Merleau-Ponty, não ces- tile, 2015; Scorsolini-Comin & Amorim, 2008). Em
sam de apontar para as relações entre corporeidade uma revisão sistemática sobre a produção científica

157 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018
Joanneliese de Lucas Freitas; Paula Arenhart; Mariana Abuhamad

brasileira a respeito da temática do corpo e da cor- com forte influência dos aspectos sociais em seu
poreidade, Freitas et al. (2015) apontam que embora pensamento. Contudo, Freitas et al. (2015) apontam
haja incremento no interesse pela questão em diver- que este campo não tem produzido em suas publica-
sas perspectivas teóricas e áreas de aplicação, esta é ções problematizações expressivas em torno do pro-
ainda fortemente tratada apenas teoricamente pela blema do corpo, quando comparada a outras áreas.
literatura, pouco pensada em seus problemas práti- Desde o final do séc. XX vemos crescer a in-
cos, aplicados e éticos. Tornando o problema ainda fluência das abordagens fenomenológicas na psi-
mais difícil, os autores apontam que são evidentes a cologia (Castro & Gomes, 2011), com impactos
complexidade e a fragmentação ontológica, episte- importantes para a compreensão do problema do
mológica e metodológica deste campo, produzindo corpo e da corporeidade (Freitas et al., 2015). Sua
não apenas problemas diversos, mas também práti- contribuição permite-nos recolocar o bios em sua
cas e técnicas múltiplas e variadas. condição cultural e humana, radicalmente diferen-
O problema já esteve presente como tópico te da leitura cartesiana e das neurociências (Freitas,
central do paralelismo psicofísico, mesmo que im- 2011). A perspectiva fenomenológica da corporei-
plicitamente (Araiza & Gisbert, 2007; Correio & Cor- dade em psicologia é fortemente estruturada a par-
reio, 2014). Os primeiros estudos em psicologia que tir das reflexões husserlianas de Körper e Leib, bem
centram especificamente na experiência corporal como dos estudos posteriores de Merleau-Ponty
do sujeito surgem no campo da neuropatia, no iní- (1945/2009) sobre corpo. A psicologia fenomenoló-
cio do século XX. Atribui-se ao neurologista Henry gica fundamentada neste autor, evidencia a cons-
Head a compreensão do importante conceito de “es- ciência como “consciência encarnada no mundo”,
quema corporal” que “de modo mais geral, trata-se sempre em situação irredutível ao nível biológico,
de reconhecer a existência de um sistema dinâmico constituindo-se como alternativa às explicações
que constitui modelos organizados acerca de nos- por vezes biologizantes, bem como às proposições
sa condição corporal e que governa, principalmen- construtivistas sobre o corpo (Ortega, 2008). Sua in-
te, nossa postura e nossa motricidade” (Verissimo, fluência tem sido encontrada até mesmo como su-
2012, p. 389). As variáveis psicológicas eram con- porte para análises de perspectivas outras que não
cebidas de maneira bastante limitada e o esquema as fenomenológicas, tais como, por exemplo, no tra-
corporal permitia explicar mudanças e problemas balho de Amorim e Ferreira (2008), nomeadamente
no nível corporal, além de atribuir ao corpo um pa- no campo da psicologia do desenvolvimento.
pel de centralidade. Seu pressuposto era o de que O estudo de Freitas et al. (2015) aponta que no
tais mudanças seriam coordenadas por mecanis- início do séc. XXI, no escopo da psicologia brasileira,
mos neurais (Fisher, 1986; Pruzinsky& Cash, 2002). a corporeidade tem sido predominantemente tratada
Com Schilder (1935/1950) o conceito de es- em seu aspecto teórico, carecendo de estudos empí-
quema corporal permitiria a explicação de proble- ricos ou que apontem para problemas práticos. Os
mas como o do membro fantasma, tratando a pro- autores também chamam atenção para o fato de que
blemática do corpo a partir de espaços de relação tópicos tais como distúrbios alimentares, transexua-
entre o sujeito e seu mundo, organizando os “co- lidade e fibromialgia, são freqüentemente discutidos
nhecimentos pré-existentes acerca da relação en- pela literatura psicológica sem qualquer referência a
tre psique e soma” (Penna, 1990, p. 167). Schilder uma concepção de corpo ou corporeidade, apesar de
sofreu influência da psicanálise e da sociologia e intimamente conectados a esta temática.
propôs uma nova leitura do conceito de esquema A preocupação com o corpo como objeto e
corporal, articulando estes saberes com a fisiologia, questão para as práticas psicológicas, não é recente
introduzindo o conceito de imagem corporal (Bar- (Neubern, 2013), contudo não há trabalhos publi-
ros, 2005; Penna, 1990). A imagem corporal institui cados sobre os modos de compreensão do tema en-
a existência de duas instâncias de realidade, uma tre profissionais de psicologia (Freitas et al., 2015).
interna a todo ser humano e outra externa ao mun- Quando o corpo é discutido no bojo da prática é
Relatos de Pesquisa

do que sempre esteve lá. Não por acaso, segundo geralmente reduzido ao campo biológico, em opo-
Barros (2005), “houve uma predominância do ter- sição ao psiquismo (Correio & Correio, 2014; Neu-
mo ‘esquema corporal’ na neurologia e de ‘imagem bern, 2013), conduzindo a métodos e práticas que
corporal’ nos meios da psicologia” (p. 548). De fato, paradoxalmente, não tematizam o corpo como pro-
de acordo com Capisano (1992), há na literatura blema psicológico, desbravando o comportamento,
“sinonímias de confusão” entre esquema corporal o campo simbólico ou o campo social, permitindo
e imagem corporal, mesmo entre autores consagra- às ciências médicas e biológicas a colonização do
dos. Contudo, a literatura aponta que esta é uma somático (Birman, 1999;Connolly, 2013). Segun-
temática que, ao menos do ponto de vista da produ- do Freitas et al. (2015) a área de atuação que mais
ção científica, tem perdido espaço para outras com- tem se preocupado com a temática é a clínica, es-
preensões do corpo e da corporeidade, mesmo entre pecialmente entre as abordagens fenomenológicas
psicanalistas (Freitas et al., 2015). e psicanalíticas. Goia (2007) afirma que as terapias
Outro campo clássico de reflexão sobre o cor- corporais exerceram forte influência sobre o ima-
-

po presente na psicologia é o da psicossomática, que ginário dos profissionais de psicologia, entretanto


também sofreu forte influência da psicanálise. Se- não é um dado que foi corroborado pela literatu-
Artigos

gundo Mello Filho (1992), a psicossomática desen- ra, não tendo sido apontadas as terapias corporais
volveu-se em três fases: a inicial ou psicanalítica, a como influência marcante no campo teórico dos es-
intermediária ou behaviorista e a multidisciplinar, tudos sobre corpo (Freitas et al.,2015).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018 158
Deixou o Corpo em Casa, Foi para Terapia: O Corpo Segundo Psicólogos

Há muito a literatura aponta uma separação Participantes


entre o mundo acadêmico e a prática psicológica
(Bastos & Gomide, 1989; Bastos, Gondim & Bor- Foram realizadas entrevistas com 21 profis-
ges-Andrade, 2010). Em uma tentativa de com- sionais de psicologia que atuam na área da saú-
preender como o problema corpo-mente pode de, recrutados por conveniência, sendo 18 deles
implicar na prática profissional do fisioterapeuta, atuantes em consultórios particulares e três em
por exemplo, Paim e Kruel (2012) investigaram os hospitais, representantes de variadas vertentes
modos como estagiários do curso de graduação de teóricas, na região da cidade de Curitiba/PR. Os
fisioterapia entendem o corpo. Os autores con- 21 entrevistados, de ambos os sexos, tinham idade
cluem que suas concepções estão profundamente entre 24 e 58 anos. Apenas quatro atuavam há me-
marcadas pela técnica e centradas na compreen- nos de cinco anos, todos os outros atuavam na área
são dos aspectos biológicos do corpo, apontando há mais de dez. De todos os entrevistados apenas
para entrelaçamentos importantes entre suas con- três possuíam título de especialista pelo Conselho
cepções teóricas e sua prática. Entretanto, em uma de Psicologia.Os critérios de inclusão foram: ser
primeira busca no Google acadêmico não foram formado em psicologia e atuar na área da saúde
encontrados trabalhos semelhantes na psicologia. há pelo menos um ano. O critério de exclusão foi
Nota-se que as revisões sobre o tema também não negar-se a assinar o Termo de Consentimento Livre
fazem referência a trabalhos sobre este problema, e Esclarecido (TCLE).
mas apontam aí uma lacuna. Constatando-se uma
necessidade de maior compreensão desse fenôme-
no no campo da psicologia e suas implicações e Procedimentos
impactos na prática psicológica, tal como apon-
tado por Freitas et al. (2015), a presente pesquisa Para a realização das entrevistas foi apresenta-
teve como objetivo investigar a forma como o cor- do TCLE que informava ao participante os detalhes
po e a corporeidade são atualmente conceituados da pesquisa, seu caráter voluntário e confidencial,
e compreendidos por psicólogos que atuam na clí- bem como todos seus direitos. Todos os procedi-
nica, seja em consultórios ou hospitais. Destaca-se mentos éticos foram resguardados. As entrevistas
que devido às confusões teóricas e inúmeras dife- foram realizadas por duas das três pesquisadoras
renças epistemológicas encontradas no estudo de responsáveis. Todas as entrevistas foram gravadas e
Freitas et al. (2015), o presente trabalho tratou de posteriormente transcritas.
forma equivalente os termos “corpo” e “corporei- O roteiro de entrevistas semiestruturado era
dade”, entendendo que uma diferenciação de tais composto por basicamente três eixos estruturantes.
termos, não se coaduna com o escopo da pesquisa O primeiro eixo (1) A Definição de Corpo, teve o
que tem por objetivo justamente compreender o objetivo de compreender de que maneira profis-
modo como os profissionais entendem o proble- sionais distantes do debate teórico, definem corpo
ma, não cabendo a nós, portanto, defini-los a prio- conceitualmente; (2) O Lugar do Corpo do Pacien-
ri, mas justamente buscar compreender o modo te na Prática Psicológica, que pretendeu investigar,
como estes termos se mostram para certo grupo de por meio da solicitação de exemplos práticos de sua
profissionais da psicologia, em suas articulações atuação, se a dimensão corporal tem sido relaciona-
teóricas e práticas. Destarte, os termos são toma- da à dimensão psíquica na prática psicológica; e (3)
dos no presente trabalho como equivalentes. O Corpo do Psicólogo na Prática, com o interesse de
investigar como o profissional percebe seu próprio
corpo e o corpo do seu cliente, uma vez que essa re-
Metodologia lação é parte significativa das diversas formas de in-
tervenção. Ao final, perguntou-se quais autores os
Trata-se de um estudo exploratório, de caráter participantes utilizavam para a compreensão da te-
Relatos de Pesquisa

qualitativo. O foco do desenho metodológico – des- mática da pesquisa, com o objetivo de esclarecer as
de a construção da entrevista até a análise – foi o de referências utilizadas para o trabalho, visto que não
investigar os sentidos atribuídos por psicólogos à necessariamente a filiação teórica é determinante
temática do corpo, tanto do ponto de vista teórico, destas relações práticas.O roteiro se estruturou da
quanto do ponto de vista de suas experiências na seguinte maneira:
prática clínica. Optou-se por um modelo de entre-
vista semiestruturado e os dados dos relatos foram 1. Perguntar sobre os elementos que fundamen-
submetidos a uma análise fenomenológica temá- tam a sua prática em psicologia (Ex: Com o que
tica, segundo o método de Van Manen (1990). A você trabalha, especificamente? No que a sua
análise proposta por Van Manen busca identificar prática está centrada?)
no corpus dos dados falas significativas dos parti- 2. O que é corpo para você?
cipantes e posteriormente, agrupa tais declarações 3. Este corpo X (inserir definição do entrevista-
em unidades temáticas. Em seguida, o pesquisador do) aparece na sua prática?
-

sintetiza os temas em uma descrição estrutural que - Se sim: Como aparece?


possa contribuir para a compreensão da experiên- 4. Perguntar sobre exemplo da atuação onde a
Artigos

cia do participante, no caso, com o problema da questão corporal se apresenta.


corporeidade, por meio dos sentidos revelados. 5. E o corpo do terapeuta? Tem relevância no
processo terapêutico? De que modo?

159 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018
Joanneliese de Lucas Freitas; Paula Arenhart; Mariana Abuhamad

6. No que diz respeito ao corpo, quais autores das Unidades Temáticas e descrição estrutural das
lhe oferecem subsídios para a sua prática? Qual mesmas.
a relação entre esta teoria e a sua prática?
Resultados e Discussão
A análise seguiu os seguintes passos meto- As unidades temáticas foram reagrupadas em
dológicos para a construção temática (Van Manen, quatro grandes eixos, em função daqueles sentidos
1990): (1) abordagem holística para identificação que se mostraram mais evidentes e relevantes fren-
de falas e expressões significativas; (2) abordagem te aos objetivos do trabalho, a saber: (a) Sentidos de
seletiva para apreensão de falas representativas; Corpo; (b) Elementos Centrais Norteadores da Prá-
(3) abordagem detalhada ou linha por linha para tica Psicológica; (c) O Lugar do Corpo do Paciente
aprofundamento da compreensão de sentido e (4) na Prática Psicológica e (d) O Corpo do Psicólogo,
agrupamento das expressões para a discriminação conforme pode ser verificado na Tabela 1.
Tabela 1
Distribuição dos Participantes por Unidades Temáticas
Relatos de Pesquisa

Destaca-se que não houve nenhuma tendência mática, ou mesmo, uma invisibilidade do tema para
significativa de respostas quanto à linha teórica, es- estes profissionais que não conseguem identificar
pecialização ou área de atuação. Dos 21 profissio- em suas abordagens autores de relevo para o seu
nais entrevistados, apenas quatro indicaram facil- estudo, ou mesmo se o corpo é campo de estudo em
mente autores que lhes oferecem respaldo teórico sua perspectiva.
em relação às concepções de corpo e corporeidade, Observa-se a partir destes dados que as tera-
o que conduz ao questionamento se realmente estes pias corporais ainda exercem influência sobre o
são considerados pelos psicólogos como objetos ou imaginário dos profissionais de psicologia, con-
problemas relevantes. Os 17 entrevistados restan- forme defendido por Goia (2007), entretanto, sua
tes, ou não sabiam indicar nenhum autor que lhes influência técnico-teórica na prática profissional
fosse uma referência na área, ou acabaram indican- parece ser pequena, como veremos a seguir. Alguns
do dois dos autores best-sellers em publicações so- profissionais declararam não utilizar nenhuma li-
-

bre a temática: Pierre Weil e Wilhelm Reich. Con- teratura referente à temática, apontando mais uma
tudo, ressalta-se que apesar dessas indicações, tais vez para o problema da invisibilidade do corpo en-
Artigos

autores não representam referência para os partici- quanto capítulo relevante para o psicólogo, o que
pantes ou suas abordagens, apontando para uma in- conduz ao questionamento sobre como e se tais
consistência prático-conceitual no trato da proble- questões têm sido tematizadas na graduação.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018 160
Deixou o Corpo em Casa, Foi para Terapia: O Corpo Segundo Psicólogos

Eixo 1: Sentidos de Corpo O terceiro grupo, que apresentas compreen-


Os sentidos dados ao corpo nas entrevistas, sões teóricas de mente e corpo como entidades
podem ser divididos em três grupos distintos que separadas, agrupa as concepções fortemente dico-
refletem três noções diferentes sobre a relação entre tomizadas tanto nas descrições teóricas do tema,
corpo e psiquismo, a saber, (a) Compreensão teórica quanto em sua exemplificação da prática. Esta é
e prática da unidade entre mente e corpo, (b) Com- uma concepção sobre a relação mente-corpo que
preensão teórica da unidade entre mente e corpo e parece ainda se apresentar com maior força entre os
(c) Compreensão de mente e corpo como entidades entrevistados, pois além de estar explícita em seus
separadas. argumentos teóricos e em seus exemplos práticos, é
No primeiro grupo, percebe-se que seja do a unidade temática que agrega o maior número de
ponto de vista teórico, seja em exemplos práticos, participantes, tal como podemos notar na tabela 1.
as concepções de corpo dos entrevistados estão fun- Neste grupo, o corpo sempre aparece nos dis-
dadas em uma compreensão de que corpo e men- cursos como uma categoria objetiva, delineado
te constituem-se como uma unidade mente-corpo. desde de uma perspectiva mecanicista e dualista,
O corpo é, pois, apresentado pelos entrevistados e representa, dessa forma, apenas uma “parte” do
como articulado em uma unidade constitutiva com “indivíduo”. É destacado nas falas em seu aspecto
o psiquismo. Essa categoria reúne as compreensões concreto e biológico, como depositário de conflitos
de corpo não dualistas, nas quais não há sentido internos, ou como reflexo do próprio “psiquismo”.
separar o somático do psíquico. Aqui, apenas dois Como depositário, o corpo surge como o reflexo de
psicólogos romperam com a concepção dual de um estado emocional e, nesse sentido, se transfor-
corpo-mente, assinalando que o sujeito “é corporei- ma em um “corpo-objeto”, puro reflexo da psiqué:
dade” (sic) e por isso não haveria distinção entre “Bom, o corpo é um depositário, muitas vezes, né,
corpo e sujeito, apontando uma compreensão feno- um depositário, assim, de sintomas, da angústia,
menológica de corpo, embora sejam profissionais da tristeza... ele manifesta muitas vezes aquilo que
que não se alinham a tal abordagem. Esta perspecti- você não quer dizer” (P14).
va aparece tanto nas respostas conceituais dos dois Analisando as três diferentes apreensões so-
participantes, quanto em seus exemplos práticos: bre corpo, nota-se que, apesar de nem sempre pro-
“corpo é um jeito da gente se colocar no mundo e blematizado e por vezes invisibilizado, a questão
também da gente poder discutir esse mundo” (P20); parece estar conquistando maior espaço não ape-
“é o todo do sujeito” (P10). nas na literatura, tal como apontam Freitas et al.
Na segunda unidade temática, os psicólogos (2015) e Scorsolini-Comin e Amorim (2008), mas
entrevistados demonstraram uma concepção teó- também tem sido tema e ponto de articulação e re-
rica de corpo como fenômeno não dicotomizado, flexão nas práticas psicológicas. Porém, pudemos
ou seja, o definem a partir de uma referência de identificar nas entrevistas uma dissonância entre o
totalidade, não dualista, como podemos verificar: modo como o corpo é compreendido teoricamen-
“eu não sei se consigo separar muito o corpo da te e como é tratado na prática. Mesmo constatan-
mente e tudo, eu acho que é uma coisa só, né, do que uma parte significativa das conceituações
um todo” (P6); “[o corpo] sou eu, eu sou corpo” encontradas sobre o corpo utiliza-se da ideia de
(P5). Entretanto, nota-se que ao relatarem exem- “totalidade”, delineando o seu significado a partir
plos de suas práticas, estes mesmos participantes de um sentido de unidade, poucos profissionais
contraditoriamente falaram do corpo como mani- demonstraram de fato romper com um pressu-
festação de uma dimensão interior, das emoções, posto de separação entre as instâncias psíquicas
do inconsciente ou mesmo como uma expressão e somáticas ao exemplificarem suas práticas. Essa
da saúde ou de uma autoimagem interiorizada dissonância parece refletir uma apropriação ainda
conforme, por exemplo, observa-se na fala de P3: superficial da escassa, mas crescente, bibliogra-
“Eu sempre imagino que o corpo acaba sendo ou fia que a psicologia dispõe sobre o assunto, uma
Relatos de Pesquisa
refletindo a forma como uma mente está, né”, logo vez que a literatura aponta que as tendências das
após de ter definido o corpo como unidade, tota- compreensões teóricas em psicologia são plurais
lidade: “eu imagino que seria um conjunto nos- e rejeitam apreensões dicotomizadas do problema
so, ... alguma coisa inteira, o corpo, a mente, as corpo-mente (Freitas et al., 2015).
suas manifestações como sendo um conjunto, não Os resultados da pesquisa evidenciam um cor-
separados”. Identifica-se, portanto, que esse gru- po “dividido” entre teoria e prática. Apesar do fre-
po a princípio tem uma compreensão teórica que quente relato de que se considera o sujeito como to-
busca romper com concepções que antagonizam talidade, ao longo das entrevistas essa totalidade foi
soma e psiqué, porém, os entrevistados demons- representada como uma mera soma entre as partes
tram dificuldade de implicar esta concepção em - corpo, “mente” e mundo - e não como uma confi-
suas intervenções práticas. Nota-se que do ponto guração complexa do humano, confirmando a tese
de vista das intervenções técnicas, o psiquismo de Ortega (2008) de que tal dicotomia mente-corpo
se apresenta para estes mesmos participantes não foi ainda superada pela psicologia. Não que o
-

como aspecto predominante na compreensão dos corpo tenha sido negligenciado na relação entre su-
fenômenos, em detrimento dos eventos sociais jeito e mundo, ou em relação a uma “interioridade”,
Artigos

ou das expressões e vivências corporais, sendo o mas ele é compreendido de maneira tal que apenas
psiquismo considerado como a causa destes fenô- se relaciona, parte extra partes, com o “mundo” e
menos últimos. com a “interioridade”, cindindo o humano.

161 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018
Joanneliese de Lucas Freitas; Paula Arenhart; Mariana Abuhamad

É reconhecida, sem dúvida, a sustentação ma- Quando o elemento norteador da prática psi-
terial exercida pela fisiologia do corpo humano e o cológica foi o Paciente, pode-se perceber que o cor-
sistema nervoso em nossa condição humana. Entre- po apareceu, mesmo que implicitamente, como ele-
tanto, parece-nos ainda difusa e pouco aprofundada mento significativo, porém, sempre articulado ao
entre os entrevistados a compreensão de que é di- discurso. Nesse sentido, podemos considerar que
ferente considerar que, apesar de as condições neu- o corpo está inserido como recurso do fazer psi-
ropsicológicas serem condições sine qua non para o cológico, conforme afirmação de P6: “eu acho que
psiquismo, não são, entretanto, per se produtoras do você tem que olhar um todo, né, o momento, a for-
fenômeno humano, nem tampouco podem ser com- ma como ele diz, a voz..., a expressão muitas vezes”.
preendidas como causa de uma consciência, ou in- O discurso seria, portanto, um modo pelo qual o
versamente a consciência ou o psiquismo, causa de corpo se insere na clínica, mas aqui, um discurso
fenômenos tais como o adoecimento (Freitas, 2011). indireto, como expressão corporal.
Aqui se levanta a hipótese de que a questão sobre a O corpo estaria, deste modo, inserido na clíni-
relação mente-corpo não tem sido discutida nos cur- ca de três modos: como um “corpo que fala”: “acho
sos de psicologia, no mínimo no que tange à relação que é muito importante o quanto o corpo pode co-
teoria-prática, tão relevante para a formação, como municar coisa pra gente”(P3); como delimitador e
nos aponta Bueno (1997), especialmente ao notar-se denunciante de uma fala:“[o corpo] é então instru-
que os avanços conceituais apontados pela literatu- mento nesse sentido de estar dando alguns indícios
ra (Freitas et al., 2015; Scorsolini-Comin & Amorim, de como que você tem que trabalhar (...) o corpo co-
2008) não estão representados nas compreensões e loca assim, um limite, de como você vai trabalhar e
práticas dos profissionais aqui estudados. por onde” (P9); ou ainda, como uma fala sobre o cor-
po, desconectada da prática, como discutido acima.
Eixo 2:Elementos Centrais Norteadores da Prática O corpo não surgiu explicitamente como ele-
Psicológica mento norteador da prática dos entrevistados,
Após análise cuidadosa do material, podemos entretanto destaca-se que o tema apareceu impli-
afirmar que há uma tendência entre os participantes citamente como elemento fundante do vínculo te-
para considerar o corpo em suas práticas, seja como rapeuta-cliente em três entrevistas (P2, P7 e P9).
expressão, seja como modo de alcançar a autoper- Explicando: os psicólogos entrevistados entendem
cepção ou, ainda, como recurso a ser utilizado pelo que o vínculo entre psicólogo e paciente seria al-
psicólogo, mesmo que não seja considerado por eles cançado não apenas por meio da fala, mas também
como um elemento de relevância central para o seu por meio do corpo, e nesse sentido, o corpo se in-
trabalho. Os elementos centrais que constituem e seriria como o locus da empatia no estabelecimento
norteiam a prática do psicólogo, tal como descritos do vínculo e da relação: “o corpo é também como
pelos participantes foram:(a) o Discurso, (b) a His- um instrumento de comunicação, de interação ali
tória Pessoal e (c) O Paciente. Frente às dificuldades do vínculo”(P9).
apresentadas por alguns para responder sobre quais Ter o discurso como central para o trabalho do
aspectos sua prática se fundamenta, percebeu-se psicólogo é coerente com a prática psicoterapêuti-
que a prática psicológica é alicerçada em diferentes ca, uma vez que o relato do paciente é o material
questões que nem sempre são evidentes aos pró- de trabalho primeiro neste contexto. Interessante
prios profissionais. notar, como fica evidente nas entrevistas, que toda
O discurso foi referenciado como elemen- experiência do corpo se “contamina” pela ideia da
to norteador da prática em psicologia que, segundo linguagem e da comunicação, como vemos na fala
os entrevistados, além de articular a história pes- de P5: “o discurso é reconhecidamente o mais impor-
soal, distingue o sujeito, explícita ou implicitamen- tante, né”, onde o corpo passa a se apresentar como
te. Aqueles que destacam o discurso como central um corpo “falante”, que denuncia os processos psí-
em seu fazer técnico, o fazem por entender que é quicos humanos, porém, destaque-se: sempre como
Relatos de Pesquisa

a partir da fala que são realizadas intervenções e instrumento para o sentido, nunca como origem do
progressos diversos em seu trabalho, tais como: a sentido: “o corpo aparece e me reflete bastante coisa
construção do vínculo terapêutico, a organização desse morador”(P9); “todas as emoções acabam re-
das sensações de seus clientes ou a edificação de fletindo no corpo”(P12).
um novo repertório, como, por exemplo, explicita-
do na fala de P5: “o discurso é reconhecidamente Eixo 3: O Lugar do Corpo do Paciente na Prática
o mais importante”. As dualidades corpo-mente, Psicológica
interioridade-exterioridade, também aparecem nos Na análise deste eixo percebe-se que há várias
casos em que o corpo é significado como discurso e formas de compreensão sobre os modos como o cor-
se mostraria na clínica apenas como tal. po do paciente pode aparecer na prática psicológi-
Mesmo quando os psicólogos apontavam que ca. As temáticas aqui delimitadas foram: (a) Refle-
o elemento norteador de suas práticas é A História xo/Expressão de Interioridade, (b) Psicossomática,
Pessoal, esta foi sempre vinculada ao discurso. No- (c) Instrumento de Trabalho, (d) Evidência Clínica,
-

ta-se que a fala para este grupo é sempre destacada - (e) Denúncia de Estado Emocional, (f) Casos-Limite
nunca a corporeidade -como elemento estruturador e (g) Imagem Corporal.
Artigos

e articulador de sentido da história pessoal, como O único momento no qual foi encontrada uma
observa-se na fala de P14: “essa história [do pacien- diferença significativa entre as falas dos psicólogos
te] é como ela se narra”. hospitalares e daqueles que trabalham em consultó-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018 162
Deixou o Corpo em Casa, Foi para Terapia: O Corpo Segundo Psicólogos

rios, diz respeito à significação do corpo do pacien- né” (P6). Mesmo quando não foi estabelecida uma
te. Destaca-se que não foram encontradas diferenças relação direta entre patologias diversas e corporei-
entre abordagensou especializações, como foi apon- dade, o corpo é o lugar concedido ao sofrimento hu-
tado anteriormente. Entre os psicólogos que atuam mano: “a depressão é uma coisa que deixa o corpo
em consultórios, o corpo apareceu como evidência acabado, bem visivelmente”(P2).A compreensão do
de estados corporais momentâneos, enquanto entre sofrimento orgânico enquanto somatização permite
aqueles psicólogos que atuam em contextos hospi- que a corporeidade se torne um problema de maior
talares, o corpo emerge como marca permanente evidência, fortemente manifesta para os participan-
que afeta inquestionavelmente a direção da inter- tes da pesquisa e corrobora os estudos de Correio e
venção. Tal diferença aponta para o fato de que a Correio (2014) e Neubern (2013), que apontam que
área de atuação pode marcar as compreensões a res- o tema da corporeidade se restringe ao biológico no
peito do corpo mais densamente que o referencial contexto das discussões da prática psicológica.
teórico adotado. Entretanto, as alterações corporais Esse corpo que “comunica “está, nas entrevis-
observadas nos processos de adoecimento orgânico tas, diretamente vinculado a um corpo que subsidia
não pareceram ressaltar aos entrevistados quais- o trabalho do terapeuta, tal como um Instrumento
quer consequências maiores além de uma alteração de Trabalho, demarcando a separabilidade entre
da imagem corporal, marcando que diferentemente corporeidade e sujeito, entre corpo e consciência. O
da tendência apontada nos estudos teóricos (Freitas corpo do cliente assim tematizado é tido como um
et al., 2015), o conceito de imagem corporal ainda recurso que oferece subsídios ao terapeuta, alerta
parece ter repercussões nas compreensões e no fa- sobre as condições do paciente e também pode ser
zer cotidiano dos psicólogos.Temos como exemplo um instrumento para que ele redirecione a atenção
a fala de P1 ”eu trabalho muito com a alteração de do cliente a fim de que este se perceba de outro
imagem corporal, né...o tratamento oncológico afeta modo, como vemos, por exemplo, na fala de P13:
muito a imagem corporal e a percepção que a pes- “vou usando o corpo como referência pra ir traba-
soa tem do seu próprio corpo também se altera”. lhando né, pra ir chamando a atenção, porque daí
Mesmo com as reconhecidas ambiguidades le- é uma coisa bem concreta”. Em alguns casos, essa
vantadas, apesar de ainda ser pouco problematiza- elaboração ganha sofisticação e complexidade, e o
do, o corpo e a corporeidade parecem ganhar posi- corpo aparece no cotidiano da prática como se in-
ção de maior destaque em casos que apontam para fluenciasse na elaboração psíquica, isto é, o corpo
questões de saúde e adoecimento, confirmando os é utilizado como um dispositivo para o paciente
dados de Scorsolini-Comin e Amorim (2008) e Frei- atingir um estado de relaxamento que permitiria
tas et al. (2015). Apesar de o tema parecer assumir a emergência de processos criativos: “eu uso como
posição de importância em tais casos, é automatica- um dispositivo para o paciente entrar em estado de
mente tomado como “reflexo”, carecendo, portanto, relaxamento... que vai permitir os estados de regres-
de um espaço de reflexão mais profunda, restrin- são à dependência na clínica e de emergência de
gindo-se a ser tomado em seu aspecto biológico, tal processos criativos, né” (P4).
como apontado por Correio e Correio (2014) e Neu- Outro modo de significação do corpo no pro-
bern (2013). Essa necessidade se instaura à medida cesso terapêutico é como Denunciante de um Es-
em que percebemos a dificuldade em delimitar o tado Emocional, o que também pode oferecer, se-
corpo como categoria conceitual em psicologia, te- gundo os entrevistados, subsídios ao terapeuta e
mática de relevância para futuros estudos. promover redirecionamentos do processo. Em ou-
O modo mais comum de compreensão do cor- tras palavras, o corpo ganha relevo quando a fala e a
po na prática psicológica encontrado foi como “re- corporeidade estão incongruentes e contraditórias,
flexo de um campo mental”, de uma interioridade uma em relação à outra, estabelecendo-se como um
ou do inconsciente, isto é, um corpo que reflete as tipo de linguagem: “às vezes o cliente diz uma coisa
questões emocionais do sujeito, como vemos por e o corpo fala outra, né, às vezes fala: ‘eu não tô ner-
Relatos de Pesquisa
exemplo, em P12: “todas as emoções acabam refle- voso’, mas você vê a pessoa mexendo muito a perna,
tindo no corpo”. Na análise dos exemplos práticos né, vermelho” (P6).
fornecidos pelos entrevistados, nota-se que o corpo Além de ser considerado como denunciante de
é também significado como expressão de um “eu” um estado emocional momentâneo, o corpo é tam-
interiorizado: “a gente se utiliza muito dessa lingua- bém tido pelos psicólogos como o lugar da Evidên-
gem corporal, que vai expressar o eu da pessoa, né” cia Clínica, onde os avanços se tornam evidentes
(P7), ou ainda: “O corpo é a tela, onde as nossas tanto em suas formas concretas tais como a postura,
emoções são projetadas, então ele vai...ele vai rece- o andar e o vestuário, até nas mudanças estabeleci-
ber essa emoção que pode ser uma forma alegre né, das na relação com o corpo ao longo do tratamento:
como uma paixão”(P1). “os pacientes ao longo do tratamento vão mudando
Outro modo frequente de compreensão sobre a maneira de se vestir, né, vão mudando a maneira
a inserção da corporeidade na prática, remete aos de se portar...” (P4).
conceitos da Psicossomática, onde o corpo é evi- As temáticas Casos-limite e Imagem Corporal
-

denciado pelos fenômenos das somatizações e das apresentam pouca expressividade, mas são rele-
patologias: “tem muito do corpo na psicossomática, vantes por tornar visível o corpo como um objeto
Artigos

do quanto as pessoas adoecem por conta do psíqui- pouco pensado na prática clínica cotidianamente,
co... têm muitas pessoas que eu vejo que não con- se manifestando apenas no extraordinário. Apenas
seguem lidar com algumas situações e adoecem, fora do limite, no exacerbado, no exagero, há corpo:

163 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018
Joanneliese de Lucas Freitas; Paula Arenhart; Mariana Abuhamad

“em alguns casos limites, em casos mais graves, em senta a sua própria unidade, o lugar das experiên-
situações iniciais, talvez é... quando a coisa é muito cias vividas que estaria interferindo e influencian-
corpórea, uma agitação muito grande, daí eu consi- do diretamente na relação terapêutica: “é claro que
dero, né” (P5); ou ainda: faz, né [parte da relação terapêutica], considerando
que eu também sou meu corpo” (P5).
(...) quando elas conseguem falar dessa dor É bastante expressiva a compreensão do cor-
da perda, automaticamente esse corpo vai po do terapeuta como Elemento de Comunicação,
voltando ao estado “normal”, digamos assim contato e troca: “comunicação corporal, é nosso,
que é o estado natural que é o corpo dela, ela é instintivo, e necessariamente vai interferir no re-
sai dessa conversão à medida que ele coloca lacionamento paciente-terapeuta” (P17). Mas não
essa dor em palavras, aí o corpo deixa de se é apenas como contato que o corpo aqui aparece.
manifestar. (P17) Percebe-se que os entrevistados consideram que a
relação entre terapeuta e cliente sofre influência do
A imagem corporal agiria como uma represen- corpo concreto do terapeuta, da sua postura, dos
tação, segundo P13: “em algum momento da sessão seus olhares, movimentações, timbre de voz e in-
eu peço para o paciente fazer um bonequinho ali clusive de seu vestuário, apontando para os aspec-
que represente ele, quer dizer ele vai me mostrar um tos sociais e simbólicos do corpo na cultura:
corpo, né... geralmente são pessoas que têm uma
imagem regredida dentro de si mesmas”. a forma como o terapeuta se veste... como ele
Nota-se que nos relatos de suas atividades se comporta com o seu corpo, também fere na
práticas, grande parte dos psicólogos pareceu in- relação com o paciente... o que você ia achar
centivar a autopercepção corpórea de seus pacien- se eu viesse trabalhar de bermuda ou chinelo,
tes como uma possibilidade de conscientização também existe uma postura que a gente tem
da realidade psíquica, em que, a partir da corpo- que respeitar. (P1)
reidade do cliente, poder-se-ia inferir sobre sua
vida psíquica. Isso porque a corporeidade apare- Com o intuito de estabelecer qualidade na
ce fortemente como manifestação de um tipo de relação terapêutica, o corpo do terapeuta também
linguagem – a linguagem corporal, que viria con- aparece como carecendo de cuidados básicos acer-
cretizar a subjetividade em determinado momento ca de suas necessidades fisiológicas e psicológicas:
da experiência. O corpo, então, favoreceria nesses “tem que comer bem pra você não estar com fome
casos a individuação. As experiências subjetivas no horário da sessão, não dá pra ficar com vontade
são compreendidas pelos entrevistados como sen- de ir pro banheiro...” (P2). Outro aspecto relevante
do vividas e expressas com e pelo corpo. O corpo para a relação terapêutica é, segundo os entrevis-
do cliente seria, portanto, um dado imediato sobre tados, um desgaste do corpo do terapeuta ao longo
o sujeito que permite o trabalho do terapeuta, mas do trabalho. Como relata P4: “tem uma paciente,
ainda um sujeito cindido. assim, que me deixa tensa, tensa, tensa, que eu ter-
Percebe-se que o corpo não é considerado mino o atendimento, sabe, com uma dor nas costas”.
como um elemento central nas práticas dos profis- Para P4 e P6, isso acontece também porque o corpo
sionais entrevistados, nem tampouco tema frequen- do terapeuta está inserido na prática como lugar de
te de suas reflexões cotidianas. Por outro lado, no- acolhimento: “a postura do terapeuta interfere bas-
ta-se que o corpo emerge ao longo das entrevistas tante, de você acolher, de você ouvir... o paciente vai
como fortemente articulado à prática, mesmo que se identificar muito com isso, né” (P6).
de formas variadas, servindo de apoio para avalia- Ao tentar compreender o lugar do corpo do
ção do processo psicoterapêutico e das interven- próprio psicólogo na prática, pode-se perceber que
ções técnicas, porém, não exatamente no campo seu corpo está completamente inserido em suas
das psicoterapias corporais, tal como defendido por práticas, já que a caracterização de suas atuações
Relatos de Pesquisa

Goia (2007), mas marcadamente influenciados por como relacionais pressupõe que esse corpo seja o
conceitos da psicossomática e da imagem corporal, lugar de estabelecimento da relação e da interação.
mesmo que pouco estruturados pelos entrevistados. Apesar disso, este corpo foi descrito com pouca re-
presentatividade no processo. Apenas uma peque-
Eixo 4: O Corpo do Psicólogo na parte dos entrevistados consegue pensar sobre
O Corpo do Psicólogo parece não merecer a seu corpo, mas, faz-se imperativo observar que não
atenção dos entrevistados no processo psicotera- apresentar reflexões sobre seu corpo não se relacio-
pêutico, uma vez que este não foi evocado antes na nos resultados a uma redução da importância do
que fosse perguntado especificamente sobre ele, terapeuta na prática psicológica, apenas evidencia
excetuando-se nas entrevistas de P2 e P4. Porém, a separação corpo-mente presente na compreensão
quando questionado, o corpo do psicólogo tornou- dos entrevistados.
-se elemento indispensável às práticas psicológi-
cas para todos os entrevistados. As temáticas aqui
-

apreendidas foram: (a) Corpo como Sujeito, (b) Ele- Considerações Finais
mento de Comunicação e (c) Acolhimento.
Artigos

O corpo do terapeuta ser compreendido como A manipulação do corpo pelas ciências o tem
Sujeito dentro do setting terapêutico significa que compreendido apenas em sua concretude e materia-
os psicoterapeutas entendem que seu corpo repre- lidade, propiciando a omissão desse corpo enquan-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018 164
Deixou o Corpo em Casa, Foi para Terapia: O Corpo Segundo Psicólogos

to conjunto de experiências subjetivas. É o que per- mas perspectivas fenomenológicas, passando pela
cebemos nas entrevistas: os participantes entendem análise do comportamento e leituras estruturalistas
que o homem experimenta seu corpo para construir da psicanálise, ou mesmo perspectivas histórico-
sua imagem corporal, todavia, há um esquecimento -culturais contemporâneas. O fazer psicológico con-
do corpo, que somente é lembrado no adoecimento. temporâneo parece, constantemente, estar buscando
Nesse sentido, o adoecimento parece ser condição assimilar o mental ao físico. Entretanto, a relevância
relevante para que o campo da psicologia questione do corpo entre os psicólogos entrevistados ainda se
e reformule as concepções vigentes sobre o corpo e revela atrelada a um projeto de uma “engenharia me-
a corporeidade, o que pode ser retomado e aprofun- tafísica”, na qual a atitude mental se insere em uma
dado por estudos posteriores. atitude corporal de maneira dicotômica e frequente-
Neste mesmo caminho, merece investigação mente desenraizada de sua historicidade.
mais aprofundada a relação da área de atuação com
as concepções de corporeidade, uma vez que se
demonstrou que a área de atuação parece ter mais Referências
influência nas concepções sobre corpo e corporei-
dade do que a formação teórica. Destaca-se ainda a Amorim, K., & Ferreira, M. C. R. (2008). Corporeidade, sig-
relevância de ampliar tal estudo para outras áreas nificação e o primeiro ano de vida. Arquivos Brasilei-
de atuação do psicólogo, bem como um aprofun- ros de Psicologia, 60, 67-81. Recuperado de <http://
damento das questões relativas à prática específi- www.redalyc.org/articulo.oa?id=229017544007>
ca do psicólogo hospitalar, devido à sua lida com
o adoecimento orgânico diariamente, sendo este, Araiza, A., & Gisbert, G. (2007). Transformaciones
como apontado, um problema relevante para que o del cuerpo en psicología social. Psicologia: Teo-
corpo seja compreendido de modo específico entre ria e Pesquisa, 23, 111-118. doi:10.1590/S0102-
os entrevistados. 37722007000100013
Percebe-se a necessidade de um aprofunda- Barros, D. D. (2005). Imagem corporal: A descoberta de si
mento do tema pela Psicologia, frente à falta de mesmo. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 12,
unidade encontrada entre o discurso dos entre- 547-554. doi:10.1590/S0104-59702005000200020
vistados e a literatura científica, bem como entre
seus discursos e exemplos práticos. Se por um lado Bastos, A. V. B., & Gomide, A. I. C. (1989). O psicólogo
o corpo está sendo conceituado a partir da ruptu- brasileiro: Sua atuação e formação profissional. Psi-
ra com o dualismo cartesiano, essa ruptura ainda é cologia: Ciência e Profissão, 9(2), 6-15. doi: 10.1590/
superficial, pois, nas entrevistas analisadas, ela não S1414-98931989000100003
se articula com um referencial teórico adequado e,
na maioria das vezes, não se encontra presente nos Bastos, A. V. B., Gondim, S. M. G., & Borges-Andrade, J.
exemplos. E. (2010). O psicólogo brasileiro: sua atuação e for-
Concluímos que entre os psicólogos entrevis- mação profissional. O que mudou nestas últimas
tados, o corpo não é visto desconectado da psiqué, décadas? In O. H. Yamamoto & A. L. F. Costa (Eds.),
mas ainda é fortemente representado como reflexo Escritos sobre a profissão de psicólogo no Brasil (pp.
dessa. Percebemos que as concepções sobre corpo 255-279). Natal: EDUFRN.
são ainda fortemente marcadas pelos conceitos de
“esquema corporal” e “imagem corporal”, primeiros Birman, J. (1999). Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro:
construtos sobre a questão em psicologia. A corpo- Civilização Brasileira.
reidade estaria conectada sim à subjetividade, mas
Bueno, J. L. (1997). Corpo, consciência e psicologia. Psi-
apenas como imagem ou reflexo, raramente tida
cologia Reflexão e Crítica, 10, 147-154. doi: 10.1590/
como lugar de apreensão do sentido ou da própria
S0102-79721997000100010
emergência de sentido como vemos nas perspecti-
Relatos de Pesquisa
vas fenomenológicas, a despeito de se articular com Castro, T. G., & Gomes, W. B. (2011). Movimento fenome-
o fenômeno da linguagem em alguns exemplos. nológico: Controvérsias e perspectivas na pesquisa
Este dado mostra que apesar de estudos apontarem psicológica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27, 233-
para um incremento da influência desta abordagem 240. doi: 10.1590/S0102-37722011000200014
do ponto de vista teórico, seu impacto na prática
e suas implicações técnicas não se mostram ainda Capisano, H. F. (1992). Imagem corporal. In J. Mello Filho
significativas. (Ed.), Psicossomática hoje (pp. 179-192). Porto Ale-
Nota-se, como apontado pela literatura, uma gre: Artes Médicas.
separação entre o mundo acadêmico e a prática,
especialmente no que tange à compreensão da te- Connolly, A. (2013). Out of the body: Embodiment and
mática do corpo e da corporeidade. Ao observar as its vicissitudes. Journal of analytical psychology, 58,
dificuldades em problematizar a relação entre corpo 636-56. doi:10.1111/1468-5922.12042
e psiquismo encontradas nas entrevistas, e a tendên-
-

Correio, F. T., & Correio, S. O. (2014). Por uma revisão


cia a uma separação inequívoca entre “interiorida-
teórica da psique em Aristóteles: Um ensaio epis-
de” e “exterioridade”, questionamos sobre a condu-
Artigos

têmico-filosófico para uma psicologia complexa do


ção da formação em psicologia, tendo em vista que
século XXI. Ágora Filosófica, 1, 190-218. Recupera-
grande parte das teorias psicológicas rejeitam noções
do de <http://www.unicap.br/ojs/index.php/agora/
como “interioridade” e “exterioridade”, desde algu-
article/view/525>

165 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018
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Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 157-166, mai-ago, 2018 166
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.5

SER ALÉM DOS MUROS: FENOMENOLOGIA DA


LIBERDADE PARA IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

Being beyond walls: a phenomenology of freedom for institutionalized elderly

Más allá de las paredes: fenomenología de la libertad para ancianos institucionalizados

dioGo arnaldo corrêa


carla de Santana oliVeira
MarliSe aParecida baSSani

Resumo: O estudo objetivou compreender os significados da liberdade para nove idosos que foram entrevistados indi-
vidualmente numa Instituição de Longa Permanência para Idosos localizada na região do Alto Tietê. Às suas narrativas
foi procedida análise qualitativa considerando a narrativa como uma técnica em pesquisa fenomenológica. Na análise,
os significados da liberdade para os idosos entrevistados se desvelaram relacionados à sua abertura e suas experiên-
cias para além das restrições institucionais e de seu momento de vida articulados nos seus modos de ser-no-mundo e
ser-com-os-outros. O estudo revelou que é possível aos idosos serem livres ante as restrições que enfrentam, o que os
destina às suas possibilidades de existir numa realidade transformadora de sua história pessoal para além de quaisquer
fronteiras.
Palavras-chave: Envelhecimento; Institucionalização; Liberdade.

Abstract: The study aims to understand the meanings of freedom for nine elderly individuals who were interviewed
individually in a home for old people located in the Alto Tietê. Its narratives were made by qualitative analysis, con-
sidering the narrative as a technique in phenomenological research. In the analysis, the meanings of freedom for the
elderly people respondents proved to be related to your opening and your experiences in addition to the institutional
constraints and your moment of life hinged on their ways of being-in-world and being-with-the-others. The study
showed that it is possible for the elderly are free before the restrictions they face, what is intended by their ability to
exist in processing of your reality personal history beyond any borders.
Keywords: Aging; Institutionalization; Freedom.

Resumen: El estudio buscó comprender los significados de la libertad para nueve ancianos que han sido entrevista-
dos individualmente en un asilo de ancianos ubicado en Alto Tietê. Sus narrativas se analizaron cualitativamente
considerando la narrativa una técnica en la investigación fenomenológica. En el análisis, los significados de libertad
para los ancianos entrevistados se revelaron relacionados con su apertura y experiencias más allá de las limitaciones
institucionales y momento de vida articulado en sus modos de ser en o mundo y ser con los otros. El estudio reveló
que la libertad es posible para los ancianos incluso frente las restricciones que enfrentan, que señala sus posibilidades
de existir en una realidad transformadora de su biografía más allá de cualquier frontera.
Palabras-clave: Envejecimiento; Institucionalización; Libertad.

Introdução contexto das interrelações familiares levantando di- Relatos de Pesquisa


Os diversos significados designados ao enve- versos conflitos que podem encaminhar a inserção
lhecer desafiam a compreensão sobre os modos de do idoso em uma Instituição de Longa Permanência
ser-no-mundo de uma pessoa idosa. Guimarães e para Idosos por vontade da pessoa idosa ou por de-
Carneiro (2012) e Silva et al., (2016) destacam, por terminação dos familiares.
exemplo, o envelhecer como sinônimo de declínio As Instituições de Longa Permanência para
enfatizando a perda de várias das funções fisiopsi- Idosos delimitam-se como espaços que oferecem as-
cológicas. Minayo e Coimbra Júnior (2002), por sua sistência às pessoas idosas procurando garantir seu
vez, referem a ideia de “peso social” em relação à bem-estar físico, psicológico e social em consonân-
pessoa idosa assinalando que o direito da aposen- cia ao Estatuto do Idoso e demais políticas voltadas
tadoria é um dos aspectos reforçador dessa noção a idosos. Nelas, o poder disciplinar é característico,
combinado aos imperativos do sentimento de rebai- regido por normas que privam a pessoa idosa de
xamento da produtividade e a perda de laços afeti- se expressar de modo singular e livre (Alves-Silva,
vos. Scorsolini-Comin & Santos, 2013). Institucionali-
-

As indagações acerca do momento do desfecho zada, mesmo recebendo cuidado para suprir suas
da vida e a proximidade da morte (Teixeira & Neri, necessidades imediatas, a pessoa idosa confronta-
Artigos

2008) é outro aspecto que assinala a heterogenia so- -se com novos desafios como o relacionar-se social-
bre o envelhecer. E Alves-Silva, Scorsolini-Comin mente com pessoas que estão no mesmo momen-
e Santos (2013) ainda destacam a representação do to de vida que ela – e, às vezes, somente com elas
envelhecimento como adversidade e empecilho no –; o suportar a ausência da família e dos amigos;

167 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 167-172, mai-ago, 2018
Diogo Arnaldo Corrêa; Carla de Santana Oliveira; Marlise Aparecida Bassani

o adaptar-se a uma rotina e a regulamentos e nor- nológica conforme defendido por Dutra (2002).
mas próprias da instituição que visam o bem-estar A análise qualitativa em pesquisas fenomeno-
coletivo e a procura e participação individual ou lógicas, de acordo com Moreira (2002), compreende
coletiva em atividades que preencham as lacunas três aspectos fundamentais: a) a construção ativa do
do tempo vivido na instituição (Pavan, Meneghel & conhecimento a partir da análise das ideias expres-
Junges, 2008; Alves-Silva, Scorsolini-Comin & San- sadas na linguagem; b) uma observação dinamizada
tos, 2013). a partir do revelado que conserve o que os entrevis-
Freitas, Queiroz & Sousa (2010) destacam que, tados apresentaram e c) a descrição e interpretação
em situações de institucionalização, adoecimentos do modo como os participantes relacionaram suas
tornam-se percalços frequentes e limitantes para os experiências (o que foi vivenciado), os significados
idosos. Por isso, a independência para os cuidados (o que acredita-se ter sido experienciado), a lingua-
consigo passa a ser importante critério de bem-es- gem (a designação acerca do vivido) e os comporta-
tar. mentos (o que a pessoa realizou durante o vivido).
A questão que se apresenta nesse contexto, E a narrativa como técnica em estudos si-
para a qual essa pesquisa objetiva esboçar respostas tuados na esteira fenomenológica, de acordo com
é: como a pessoa idosa pode experienciar a liberda- Dutra (2002), inspira-se nas ideias de Benjamin
de em uma instituição de longa permanência para (1994) e sustenta-se na noção de que o retorno às
idosos? Compreender os significados da liberdade experiências dos entrevistados implica o reconheci-
para o ser humano requer o debruçamento reflexi- mento da abertura e da relação pelas quais estamos
vo sobre as experiências dadas na facticidade em- inferidos no mundo. Em se tratando dos procedi-
-o-mundo. Afinal, toda reflexão é um exercício do mentos metodológicos em razão de tal noção, Dutra
entendimento daquilo que acontece na vida e sobre (2002) defende que os discursos dos participantes
as coisas do mundo, retirando o fenômeno de seu “[...] devem ser gravados, transcritos e literalizados.
velamento e o lançando à luz, sendo revelados no- Posteriormente, devem ser submetidos à aprecia-
vos aspectos (Critelli, 2013). ção dos entrevistados, para que os mesmos possam
Para Heidegger (1989/1999), a liberdade faz re- conferir a sua fidelidade à narrativa feita. A seguir,
ferência à abertura própria do Dasein. Trata-se de os depoimentos são comentados e interpretados,
um entregar-se do Dasein ele mesmo à sua abertura, a partir dos significados que se revelam na expe-
um conferir-se a si mesmo. Dasein é o modo como riência narrada e como produto das reflexões feitas
indica o ser da existência. Nesse desvelar-se, o “dei- pelo pesquisador na sua trajetória de vida pessoal
xar-se, isto é, a liberdade, é, em si mesmo, exposição e profissional, ancoradas numa ótica existencial da
ao ente, isto é, ek-sistente” (Heidegger, 1989/1999, condição humana.” (p. 377).
p. 161). Na atitude de ser-com-os-outros, a existên- Nesse sentido, os nove idosos participantes do
cia é assinalada pela liberdade num horizonte de estudo foram entrevistados individualmente numa
possibilidades. Desse modo, o ser humano é livre ILPI localizada na região do Alto Tietê sendo uti-
para escolher por aquilo que está no mundo e para lizadas as seguintes perguntas: “o que é liberdade
ser ele mesmo ou não. Ser livre implica ser inaca- para o(a) senhor(a)?” e “o(a) senhor(a) se sente li-
bado, ser incompleto. Assim, a existência busca dar vre residindo aqui?”. Dos nove participantes, cinco
sentido, encaminha-se na procura das razões sobre eram do gênero feminino e quatro do gênero mascu-
seu existir e permanece numa constante inconclu- lino. As entrevistas foram realizadas de modo que
são. O tempo todo há algo pendente que, por ele, os entrevistados pudessem discorrer livremente a
pode ser compreendido e interpretado (Heidegger, respeito do tema e, via diálogo com o entrevistador,
1927/2012). aprofundá-lo.
A liberdade para ir e vir está articulada com Na transcrição dos discursos e na análise das
a espacialidade existencial. Conforme Rée (2000), informações consideraram-se os cuidados éticos
o espaço vivido é definido pelas várias atividades conforme o Termo de Consentimento Livre e Es-
Relatos de Pesquisa

cotidianas e vivenciado em termos de proximida- clarecido utilizado no protocolo do estudo fazendo


de e distância. E Almeida Prado, Caldas e Queiroz viger a preservação da identidade dos participantes
(2012) destacam que a existência não se movimenta (para assinalar nos excertos das narrativas a identi-
no mundo de acordo com o que entende objetiva- ficação dos participantes foram adotadas as iniciais
mente como espaço, mas segundo sua intenciona- de seus nomes).
lidade que o situa no mundo. Assim, a vivência es- Após a transcrição das narrativas, conferidas
pacial do idoso torna-se uma importante questão na em sua integralidade pelos participantes, procedeu-
análise do ser-no-mundo no cenário do envelhecer. -se a análise em busca do significado do mundo da
experiência dos participantes entendendo-se que a
procura dos significados do vivido numa narrativa
O Percurso do Estudo corrobora a confiança do “[...] mundo para as coi-
sas, abrigando ao mesmo tempo as coisas no brilho
O estudo foi marcado por três momentos: (1) a do mundo. O mundo concede às coisas sua essên-
-

realização de entrevistas com nove idosos de uma cia. As coisas são gesto de mundo. O mundo conce-
Instituição de Longa Permanência para Idosos; (2) de as coisas” (Heidegger, 1959/2003, p. 18).
Artigos

a transcrição de seus discursos e (3) a realização de No percurso metodológico do estudo, portan-


análise qualitativa das alocuções considerando a to, concentrou-se o interesse nos significados atri-
narrativa como uma técnica em pesquisa fenome- buídos pelos participantes às experiências em seu

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 167-172, mai-ago, 2018 168
Ser Além dos Muros: Fenomenologia da Liberdade para Idosos Institucionalizados

mundo vivido, conforme expõe (Moreira, 2002) escolha pelos idosos em situações simples do coti-
considerando-se a participação dos pesquisadores diano nas quais mais de uma opção é dada para o
em todas as suas dimensões existenciais no mo- seu vir-a-ser. Escolher entre tomar sopa e comer o
mento da narrativa dos participantes acerca do seu lanche da tarde ou o horário para caminhar consti-
vivido. Afinal, conforme Dutra (2002) “assumir tuem formas de expressão da liberdade mesmo em
uma estratégia qualitativa de pesquisa fenomeno- instituição. Nestas situações, ainda que subsista
lógica, como a narrativa, significa, antes de tudo, um conjunto de regras e normas a serem seguidas,
adotar como horizonte teórico e filosófico a exis- a autodeterminação referida em algumas escolhas
tência, compreendida na experiência vivida. [...] individuais pode ser preservada. O ser-livre para os
A narrativa, portanto, ao considerar essa dimensão idosos institucionalizados expressa-se também no
do mundo vivido, nos sinaliza com a possibilidade sentido de um modo de existir que transcende a di-
de nos aproximarmos do outro, sem que se perca a tadura do impessoal surgido na convivência com o
principal característica que o distingue no mundo, outro.
que é a existência” (p. 377).
“Às vezes você tem limites e tem que respei-
tá-los, ou seja, pelos terceiros ou de qualquer
Os Significados da Liberdade Desvelados pelos forma você tem que respeitar, não é? ” (LA).
Idosos na ILPI
Respeitar as regras pelos terceiros faz alusão ao
Revelaram-se nas narrativas dos idosos as al- ser-com-o-outro. É acolher as restrições vigentes na
cunhas do seu ser-livre sedimentadas em sua co- Instituição de Longa Permanência para Idosos não
tidianidade na Instituição de Longa Permanência só por si, mas também pelo outro. Conforme coloca
para Idosos. Inicialmente, seu ser-livre se revelou Freitas (2011), o respeito pela liberdade do outro re-
nas restrições do poder deliberar sobre algo, tomar presenta a origem do espaço da própria liberdade.
decisões e fazer escolhas para si e por si no cotidia- Assim, o exercício da autodeterminação dos idosos
no vivido na Instituição de Longa Permanência para na Instituição de Longa Permanência para Idosos se
Idosos. mostra no seu acolhimento às regras e limites que
ali estão tramadas no viver em-o-mundo-com-os-
“[...] Aqui a gente não se sente livre [...] fazer -outros. As exigências na instituição acabam sendo
coisas de artesanato a gente pode fazer, mas condições para algo. E, recolhendo os limites que
outras coisas não. A gente não tem liberdade inferem sobre seu ser naquela realidade, realizam o
para fazer o que a gente quer” (BC). seu ser-livre em direção a si mesmo e ao outro em
um mundo que impõe suas próprias reservas. Ou
“Eu me sentia melhor para fazer as coisas den- seja, é-se livre sendo com os outros, conforme a fala
tro da minha casa, não é? Porque, às vezes, de uma entrevistada:
você quer fazer alguma coisa aqui e você não
pode fazer” (MJ). “Aqui é livre, viu? Só quando eu estou doen-
te que eu preciso de ajuda, mas quando estou
As narrativas manifestam essa noção e referem saudável eu faço tudo o que desejo sozinha.”
que se adaptar às novas normas é um dos desafios (NL)
enfrentados pelos idosos que partem de um ambien-
te familiar para um novo lugar onde são priorizadas No envelhecer, os idosos são desafiados por
as necessidades coletivas, conforme discutido por experiências de adoecimento decorridas dos per-
Pavan, Meneghel & Junges, (2008). Visto que as ins- calços próprios desse momento da vida. Por isso, à
tituições de longa permanência são marcadas por medida que a pessoa envelhece, seu bem-estar pas-
uma rotina diária regida por horários determinados sa a ser determinado, em muitos casos, pela capa-
Relatos de Pesquisa

tal como regras rígidas, o modo de ser singular e as cidade de manter-se em sua independência (Freitas,
escolhas individuais podem ter um caráter secun- Queiroz & Sousa, 2010). Todavia, como uma restri-
dário quando comparadas às coletivas (Alves-Silva, ção temporária das possibilidades que não retira do
Scorsolini-Comin & Santos, 2013). Mas, a possibili- existir o poder ser livre, o estar doente é compreen-
dade de escolher, mesmo em regime de institucio- dido como um convite para ainda escolher, apesar
nalização, não é exonerada pelos idosos. de tudo: ser-com-o-outro referido num pedido de
ajuda que assinala a solicitude.
“Eu posso arrumar meu cabelo, posso tingir o
cabelo, eu posso deitar a hora que eu quiser. “[...] Aqui você tem uma liberdade diferente.
Eu posso fazer tudo o que eu quiser. A única Você tem a liberdade aqui dentro, não é? Não
coisa que eu não gosto é tomar sopa à tarde ou tem a sua liberdade lá de fora. [...] É isso que
senão eu faço assim: como o lanche das três me foi tirado, não é? Essa liberdade lá de fora.
horas ou tomo a sopa” (NL). E talvez eu já não esteja na idade de gozar essa
-

liberdade. Principalmente pela idade, porque


“Você tem um pouco de liberdade. Você pode você acha que pode fazer, mas na realidade
Artigos

andar o horário que você quiser” (LA). não pode. Você fica restrito. Então a solução, o
que é? É você com a sua liberdade aqui dentro
Tais discursos mostram as possibilidades de ir tentando conviver” (LA).

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Diogo Arnaldo Corrêa; Carla de Santana Oliveira; Marlise Aparecida Bassani

poder habitar. Corrobora esta afirmação a análise da


A narrativa de LA expressa a compreensão das espacialidade de Almeida Prado, Caldas e Queiroz
possibilidades que lhe estão à mão a partir da liber- (2012), para quem a existência não se movimenta
dade que é experienciada na instituição. Esse po- no mundo de acordo com o que entende objetiva-
sicionamento também é encontrado na fala de JX, mente como espaço, mas segundo sua intencionali-
que afirma: dade, que o situa no mundo.
Dessa forma, a intencionalidade dos idosos re-
“[...] estou aqui há quatro anos e pouco. Então lacionada à instituição os situa num lugar onde os
eu fico meio enjoado [...] Aí do outro lado eu muros delimitam seu espaço acessível, restringin-
penso também que lá fora não está fácil, não é? do suas escolhas e ações àquelas possíveis naquela
[...] Aqui eu me acho mais livre”. área. E, assim, habitam em seu ser-livre nesse espa-
ço geográfico que pode ser transposto, ou não.
As nuances próprias do envelhecer, expressa- LI assinala a impossibilidade dessa transposi-
das nas dimensões psicológica, biológica e social do ção:
idoso, aludem a uma tensão entre aquilo que o ido-
so gostaria de fazer (sua vontade) e aquilo que ele “para mim, ficar aqui é uma prisão” (LI).
pode fazer (sua realidade). Tal tensão pode ser in-
terpretada equivocadamente como um tipo de apri- Nesta perspectiva, entende-se que a liberdade
sionamento. No entanto, conforme defende Freitas em “não viver preso” configura-se na relação entre
(2011), mesmo que se revele encolhida, a condição o limite físico estabelecido pela instituição e a via-
humana de liberdade permanece presente à medi- bilidade de ultrapassá-lo abrindo-se as portas que
da que a existência se posiciona diante das reservas restringem. LT, por sua vez, amplia a noção do “não
que se lhe apresentam no mundo. viver preso” relatando que, em sua chegada na Ins-
A temporalidade é outro elemento que se mos- tituição de Longa Permanência para Idosos, perce-
tra em relação ao ser-livre dos idosos em uma Insti- beu que:
tuição de Longa Permanência para Idosos. NL men-
ciona o lanche das três horas da tarde. LA refere que “eles prendiam muito as pessoas que estavam
pode caminhar na ILPI no horário que quiser e que aqui. As pessoas que vinham para aqui eram
talvez já não esteja no tempo de gozar da liberdade. presas; assim, não podiam nem vir conversar
JX alude que já está há mais de quatro anos na Ins- com ninguém. Não podiam. A gente não podia
tituição de Longa Permanência para Idosos. Nestas ter liberdade nenhuma, não é?” (LT)
narrativas, a cronologia abarca uma totalidade, en-
globa o envelhecer como um processo complexo e É no projetar-se que o ser humano pode
multifatorial que permeia a existência com memó- assumir ou não a sua existência. Em tal projetar-
rias dadas num hoje e para um devir. -se, circunscreve-se a possibilidade de ser ou não si
Para o cuidado da liberdade, as Instituições de mesmo numa liberdade antecipatória, um desígnio
Longa Permanência para Idosos podem propiciar por si mesmo para além de qualquer aspecto res-
direções relevantes para os contornos do sentido do tritivo, desígnio que revela a existência assinalada
ser-livre do idoso. A esse respeito Piexak, Freitas, pela liberdade num horizonte de possibilidades em
Backes, Moreschi, Ferreira & Souza (2012) retratam que pode escolher ser ele mesmo autenticamente,
o acolhimento humanizado das pessoas idosas for- ou não (Corrêa & Brojato, 2016).
necendo-lhes alimentação, cuidados com higiene, As possibilidades de o idoso assumir ou não
moradia, segurança e saúde, além de proporcionar seu ser livre numa Instituição de Longa Permanên-
atividades recreativas, esportivas, manuais e so- cia para Idosos referem-se ao exercício de sua auto-
ciais possibilitando um envelhecer digno e, o quan- determinação para além das paredes da instituição.
to possível, independente. Pois, como informa uma Mesmo havendo um espaço restritivo que pode pro-
Relatos de Pesquisa

entrevistada, mover o sentimento de estar-preso, a pessoa tam-


bém pode se colocar a caminho da liberdade, do
“a liberdade é não viver preso. É muito ruim voo livre em sua abertura plena (Freitas, 2011).
viver preso. Viver na liberdade é bom, mas, Nesse sentido, a liberdade é uma potenciali-
agora, ficar preso num lugar só... Preso, preso, dade do ser livre do idoso enquanto existência, um
preso a gente desanima” (LI). ente privilegiado que se projeta transcendendo a
espacialidade num tempo. Em seu ser-livre, o ido-
O viver livre é não viver preso. Na relação en- so, no contexto de uma Instituição de Longa Perma-
tre liberdade e prisão, é revelada a significação de nência para Idosos está para além dos muros que
espaço e limites físicos como determinantes para o contornam afinando a realidade que o circunda
as possibilidades de liberdade que aqui aparecem àquilo que lhe é próprio. Pois, conforme defendem
a priori atadas e sem condução para espaços afo- Sá e Barreto (2011), afinação é o modo como o ser
ra. Essa significação de espaço ou espacialidade é humano, enquanto abertura de sentido, sintoniza
-

uma localização humana finita que compreende aquilo que lhe vem em encontro no mundo se re-
lugares apropriados simbolicamente e não somente lacionando de diferentes modos com os entes que a
Artigos

um espaço geométrico. Conforme Rée (2000), esses ele se apresentam.


espaços são definidos pelas várias atividades e ame- No lançar-se para o ser-livre que supera os mu-
nidades e daquilo que mais próximo se encontra ao ros da instituição, os idosos revelaram a possibili-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 167-172, mai-ago, 2018 170
Ser Além dos Muros: Fenomenologia da Liberdade para Idosos Institucionalizados

dade do entregar-se a atividades que proporcionam décadas e as inerências da relevância do cuidado


satisfação e realização e que ampliam seus modos em cenários institucionais que visam o bem-es-
de existir registrando tal afinação. tar das pessoas conclamam, portanto, que demais
estudos tematizem e ampliem tais questões que
“[...] liberdade aqui é poder pedalar na bici- atravessam a contemporaneidade alargando o ho-
cleta, conversar com os amigos quando vem rizonte dos sentidos do ser-livre no envelhecer e
aqui, que eu adoro falar, viu? [...] Brincar com em qualquer outro momento da vida, sentidos que
a Priscila, com a Gisele [suas bonecas]. Fazer conjugam o passado aos certames no presente e às
vestidinho para elas. Essa é a minha liberda- preocupações e repouso no futuro.
de” (NL). Os idosos na Instituição de Longa Permanên-
cia para Idosos vivem um constante movimento de
NL refere o significado da liberdade nas pos- fundação da própria história, presentificado por
sibilidades de ser no presente que ocupam seu co- restrições dadas pelo envelhecimento e/ou pelo
tidiano e a partir de escolhas que a aproximam da cerceamento dos muros num contexto geográfico,
autenticidade. Assim, a ocupação é o modo mais mas que não o privam em seu ser. Desse modo, sua
imediato de cuidado por preencher os dias dos se- liberdade é cadenciada por peculiaridades diversas
res humanos (Fernandes, 2011). como restrições dadas na instituição e em seu mo-
Existir é empenhar-se no mundo, se interessar mento de vida e a adaptabilidade necessária ante as
pelas coisas. Para tanto, há necessidade de empe- relações com o outro e as constantes mudanças que
nho contínuo para atualizar o que está à mão. E, enfrenta. No entanto, é possível aos idosos serem
assim, configurar a autenticidade, a possibilidade livres para além de tais peculiaridades e dos muros
para a existência ser o que é em liberdade frente a que circundam a instituição que os abriga, pois, em
tudo que se lhe apresenta no mundo. Liberdade é... sua posição ontológica fundamental, estão lançados
à clareira de seu poder-ser num tempo e espaço que
“ser livre com a sociedade, com a diretoria, acendem – trazem à luz – sua realidade existencial.
com a autoridade e não aqui apenas, mas no A existência se dá no mundo em que habita-
mundo inteiro. Ser livre [...] com a nossa hu- mos. Portanto, numa Instituição de Longa Perma-
manidade” (JG). nência para Idosos, os idosos não têm reduzidas as
possibilidades de se lançarem no seu vir-a-ser numa
“quando saio lá para fora [no quintal da insti- realidade que convoca escolhas e ações com os ou-
tuição] eu vou conversar com uma colega e eu tros e consigo gerando e transformando, no devir, a
me sinto bem [...] Eu fico sentada lá fora bas- própria biografia. Afinal, como “capacidade onto-
tante tempo”. lógica, a liberdade pertence à essência do próprio
ser. O homem é livre para se tornar algo diferente
O “lá fora” é mundo no qual a palavra – “eu do que é; é livre sobre sua facticidade” (Corrêa &
vou conversar” – enleva o vir-a-ser mais próprio na Rodrigues, 2013, p. 40).
sua abertura para as possibilidades existenciais do
ser-livre circunscrito numa temporalidade – “eu
fico sentada lá fora bastante tempo”. Referências
Assim, a existência, em sua abertura para rea-
lizar suas distintas possibilidades de ação, pode
escolher e agir em benefício da sua autenticidade Almeida Prado, R. A., Caldas, M. T. & Queiroz, E. F. (2012).
em diferentes contextos, inclusive em instituciona- O corpo em uma perspectiva fenomenológico-existen-
lização, corroborando o entendimento expresso por cial: aproximações entre Heidegger e Merleau-Ponty.
Freitas (2011). O idoso, nesse sentido, pode dirigir- Psicologia: Ciência e Profissão, 32(4), 776-791. <ht-
-se para além dos muros que parecem empecilhos tps://doi.org/10.1590/S1414-98932012000400002>
Relatos de Pesquisa
para seu vir-a-ser, porém, na verdade, são condições
únicas que o impelem a contornar o seu escolher, Alves-Silva, J. D., Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A.
falar, agir, seu superar-se e, assim, viver e existir. (2013). Idosos em instituições de longa permanência:
desenvolvimento, condições de vida e saúde. Psico-
logia: Reflexão Crítica, 26 (4), 820-830. <https://doi.
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Benjamin, W. (1994). Obras escolhidas. Magia e técnica, arte


Nesse estudo, a compreensão dos significados e política (7a ed.). São Paulo: Brasiliense.
da liberdade para os idosos na Instituição de Lon-
ga Permanência para Idosos se mostra embrionária Critelli, D. M. (2013). História pessoal e sentido de vida: his-
numa paisagem que trata de uma fenomenologia toriobiografia. São Paulo: EDUC: FAPESP.
que vem convocando, florescendo e frutificando
“devido aos esforços em recuperar suas raízes e seu Corrêa, D. A. & Rodrigues, C. M. D. (2013). Finitude e
-

solo fertilizador, através de reflexões profundas e Sentido da Vida: do torpor à tarefa. Logos e Existên-
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te, anuncia uma nova história a ser contada daqui <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/le/article/


em diante” (Holanda, 2016, p. 392). view/15915/10038>
O aumento da população idosa nas próximas

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Diogo Arnaldo Corrêa; Carla de Santana Oliveira; Marlise Aparecida Bassani

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Minayo; C. E. A. Coimbra Junior (Orgs.), Antropologia, É Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica
Saúde e Envelhecimento (pp. 11-24). Rio de Janeiro: de São Paulo. Atualmente é Coordenadora do Núcleo
Fiocruz. Configurações Contemporâneas da Clínica Psicológica
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Moreira, D. A. (2002). O método fenomenológico na pesqui- Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
sa. São Paulo: Cengage Learning. lo. Email: marlise@pucsp.br

Pavan, F. J., Meneghel, S. N.; & Junges, J. R. (2008). Mulhe-


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res idosas enfrentando a institucionalização. Cader- Recebido em 23.04.2017


nos de Saúde Pública, 24(9), 2187-2189. <https://doi.
Primeira Decisão Editorial em 20.06.2017
Artigos

org/10.1590/S0102-311X2008000900025>
Segunda Decisão Editorial em 27.10.2017
Aceito em 26.11.2017

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 167-172, mai-ago, 2018 172
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.6

POR UM NÚCLEO DE ATENDIMENTO CLÍNICO A


PESSOAS EM RISCO DE SUICÍDIO
Toward a Clinical Care Center for People at Risk of Suicide

Hacia a un Centro De Atención Clínica a Personas con Riesgo de Suicidio

ana Maria loPez calVo de feiJoo

Resumo: O estudo versa sobre a criação de um núcleo de atendimento psicológico a pessoas em risco
de suicídio por meio de uma análise fenomenológica daquilo que nos diz aquele que pensa em suicídio
em suas diferentes etapas: a redução fenomenológica, a descrição dos vetores internos ao fenômeno e a
explicitação das experiências. Para tanto, acompanhamos as questões que foram apresentadas pelas duas
primeiras pessoas encaminhadas pelo Núcleo de Atenção ao Estudante (NACE) da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro ao Núcleo de Atendimento Clinico (NAC) a pessoas com risco de suicídio e concluímos
que antes de cometer o suicídio algumas pessoas procuram por ajuda, o que justifica a pertinência e a ur-
gência da criação de núcleos de atendimento clínico com psicólogos devidamente preparados para a lida
com essa situação.
Palavras-chave: Suicídio; Psicoterapia; Método fenomenológico, Núcleo de apoio.

Abstract: This study is about the establishment of a psychological service center for people at risk of suicide.
It will work by means of a phenomenological analysis of what is in question in the different stages of the
possible suicide: the phenomenological reduction, the description of internal vectors of the phenomenon
and the explanation of the experiments. To do so, we followed the issues that were presented by the first
two people referred by the Student Care Center (NACE) of the State University of Rio de Janeiro to the
Psychological Service Center (NAC) for people at risk of suicide. We concluded that before committing
suicide some people look for help, which justifies the relevance and urgency of creating clinical care
centers with psychologists properly prepared to deal with this situation.
Keywords: Suicide; Psychotherapy; Phenomenological method; Supporting nucleus.

Resumen: El estudio es sobre la creación de un centro de servicios psicológicos a las personas en riesgo
de suicidio a través de un análisis fenomenológico de lo que nos dice aquellos que tienen pensamientos
de suicidio en sus diferentes etapas: la reducción fenomenológica, la descripción de vectores internos al
fenómeno y la explicación de experiencias. Para ello, seguimos los temas que fueron presentados por las
dos primeras personas remitidas por el Centro de Atención al Estudiante (NACE) de la Universidad del
Estado de Rio de Janeiro al Centro de Atención Clínica (NAC) en personas con riesgo de suicidio y la con-
clusión a que llegamos es que antes de suicidarse las personas buscan ayuda, lo que explica la importancia
y la urgencia del establecimiento de la atención clínica con psicólogos debidamente preparados para lidiar
con esta situación.
Palabras clave: Suicidio; Psicoterapia; Método fenomenológico; Núcleo de apoyo.
Relatos de Pesquisa

Introdução Finalizado o projeto, criamos um Núcleo


de Atendimento Clínico (NAC) a pessoas em risco
Este artigo faz parte do projeto intitulado Por Um de suicídio, com ações locais destinadas à assistên-
Núcleo de Atendimento Clínico a Pessoas em Risco cia a essas pessoas. Esse núcleo se estabeleceu no
de Suicídio: Uma Análise Fenomenológica do Ato de SPA/UERJ, em parceria com um núcleo já consagra-
Decidir Pôr Fim à Vida. O objetivo do projeto alicer- do, denominado UERJ Pela Vida. Assim, a equipe
ça-se em duas reivindicações. A primeira delas parte UERJ Pela Vida continuou na recepção ou triagem
da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2015) – de daqueles que procuram ou são encaminhados por
que sejam criados mais núcleos de atendimento a pes- outros Centros da Universidade para esse núcleo.
soas que têm ideias suicidas. A outra reivindicação E as pessoas avaliadas como em risco, ou aquelas
é do Conselho Regional de São Paulo (Santos, 2011) que quiserem dar continuidade aos encontros com
– para que haja um maior preparo dos profissionais profissionais e estudantes preparados para esse fim
de psicologia para a atuação clínica com pessoas que são atendidas pelo NAC.
-

pensam em pôr fim à vida. O objetivo desta pesquisa, A preparação de profissionais de psicologia
no sentido de atender às solicitações acima, foi o de para o atendimento clínico, pelo NAC, àqueles que
Artigos

criar um núcleo de atendimento clínico, com a devida têm ideias suicidas aconteceu em três vertentes. A
formação dos estudantes e profissionais de psicologia primeira pautou-se em estudos sobre o atendimento
para a lida com pessoas que pensam em suicídio. clínico em uma perspectiva existencial em psico-

173 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

logia (Feijoo, 2017). O conteúdo discutido nesses vida não consumariam o ato se tivessem a oportuni-
estudos foi sobre o modo de cuidado que se estabe- dade de ser acolhidas. Isso pode ser constatado no
lece na relação clínica com bases existenciais. A se- documentário A Ponte (Blaustein & Fleming, 2009),
gunda vertente ateve-se aos estudos sobre a ação de em que fica evidente a hesitação daquele que pre-
pôr fim à vida – desde os gregos antigos, passando tende suicidar-se, parecendo que a aproximação de
pelos hebreus, Idade Média até a Moderna – para, um dos transeuntes poderia reverter a decisão.
dessa forma, poder verificar como, em cada época Diante dessas informações, não resta dúvida
histórica, o suicídio ganha modulações próprias ao sobre a importância e a necessidade de se criar nú-
horizonte histórico em que a existência se encon- cleos de atendimento às pessoas que pensam em
tra (Minois, 1995). Por fim, colhemos informações pôr fim à sua vida. Também ressaltamos que profis-
e conquistamos aprendizado sobre aquilo que os sionais e estudantes de psicologia devem ser devi-
estudiosos do tema suicídio, bem como os núcleos damente preparados para encaminhar esses atendi-
de atendimento têm estudado e concluído. Na ter- mentos clínicos.
ceira vertente, estagiários e psicólogos voluntários Santos (2011) confirma a importância da cria-
realizaram atendimentos clínicos que foram devi- ção de projetos e núcleos de atendimento. No en-
damente registrados e analisados para compreender tanto, alerta para a insuficiência da qualificação do
o que estava em jogo quando as pessoas queriam pessoal envolvido na lida com a situação de sui-
dar fim às suas vidas. cídio. Ele ainda se refere à importância do imple-
O Ministério da Saúde (Brasil, 2015) criou, em mento de “políticas de recheio”, ou seja, uma maior
22 de dezembro de 2005, a portaria de número 2542, preocupação com a qualificação técnica, sem aban-
que versa sobre a Estratégia Nacional de Prevenção donar a humanização dos profissionais envolvidos
do Suicídio, estimulando algumas ações locais desti- com a temática. E, por fim, o Conselho Regional de
nadas à prevenção; assinalou, no entanto, não haver Psicologia de São Paulo (Santos, 2011) refere-se à
iniciativas de maior alcance nesse campo. Na ten- preocupação com a falta de maiores discussões dos
tativa de mobilizar a prevenção do suicídio, o MS psicólogos sobre a lida desses profissionais com
estimulou a realização de Projetos com o propósito aqueles que querem pôr fim à vida.
de acolher as pessoas que pensam em suicídio. Daí Para poder criar um núcleo de atendimento
surgiram alguns projetos como ComViver, no Rio de para essas situações específicas, empenhamo-nos
Janeiro, e Programa de Prevenção de suicídio im- na preparação de profissionais de psicologia para
plantado no Hospital Ouro Verde, em Campinas. atendimento a pessoas que pensam em pôr fim às
Na World Health Organization (WHO, 2016) suas vidas. Desse modo, caminhamos na posição
encontramos três informações acerca do suicídio defendida por Dillon (2009) acerca da formação de
que são muito pertinentes para justificar a neces- redes de ajuda devidamente preparadas, para assim
sidade de criação de núcleos de atendimento a evitar o Complexo de Agar, ou seja, na tarefa de aju-
pessoas que pensam em suicídio. A primeira infor- dar o outro, aquele que se propõe a ajudar acabar
mação é de que 800.000 pessoas se suicidam anual- ficando fragilizado.
mente. A segunda diz que o suicídio é a segunda Ao pensar na clínica psicológica com bases
maior causa mortis de pessoas entre 15 e 29 anos de existenciais, nos deparamos com um grande desa-
idade. E a terceira é de que a cada quarenta segun- fio: como encontrar um caminho clínico para pen-
dos uma pessoa comete suicídio. Minayo e Caval- sar a questão do suicídio sem recair nas instruções
cante (2010) trazem mais uma notícia, também de de um manual, mas também não ficar na indife-
grande pertinência para o nosso projeto. As autoras rença? Os manuais, os questionários e as escalas
dizem que em escala global morrem mais pessoas de avaliação do risco de suicídio foram o que mais
vítimas do suicídio do que a soma das que morrem encontramos na atuação do psicólogo e de outros
vítimas de homicídios e de guerras. Segundo a car- profissionais que lidam com a questão. Os profis-
tilha intitulada Suicídio: informando para prevenir, sionais agem para não deixar que o ato aconteça,
Relatos de Pesquisa

da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2014), aproximando-se de algo policialesco e moralizante,


o Brasil é o oitavo país em números absolutos de chegando até a internações compulsórias. Na ten-
suicídio, registrando em 2012 um total de 11.821 tativa de não recair nesse modo de lida, corremos
mortes, com aproximadamente 30 mortes por dia. o risco de ficar no polo oposto, ou seja, na indife-
Vasconcelos-Raposo, Soares, Silva e Teixeira (2016) rença, em que se pensa o suicídio como algo da or-
afirmam que o suicídio é um problema de saúde pú- dem do desejo ou da escolha estritamente pessoal e,
blica, por se encontrar entre as dez primeiras cau- portanto, nada nos cabe fazer a não ser deixar que a
sas de morte mundialmente, considerando todas as pessoa aja naquilo que lhe convier.
faixas etárias, e ocupar o terceiro lugar entre 15 e 35 Outra questão recorrente naqueles que lidam
anos. Com as informações acima, não resta dúvida com pessoas que pensam em suicidar-se é a de pro-
de que o suicídio é um problema de saúde pública, curar o responsável pela situação. Há aqueles que
como ressaltado pela Organização Mundial de Saú- responsabilizam o individuo, com diferentes alega-
de (OMS). ções: portador de uma doença psíquica, frágil psiqui-
-

Com relação a atendermos à solicitação da camente etc. Há ainda aqueles que responsabilizam
OMS para que se criem mais núcleos de atendimen- os pais ou a família, pelos seus comportamentos de
Artigos

to a pessoas com ideação suicida, vamos nos ater às desatenção, conflitos etc. E encontramos aqueles que
informações dessa Instituição. A OMS (2015) consi- culpabilizam o Estado, pela manutenção de questões
dera que 90% das pessoas que pensam em dar fim à sociais como desemprego, pobreza, falta de oportu-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018 174
Por Um Núcleo de Atendimento Clínico a Pessoas em Risco de Suicídio

nidades etc. Berenchtein (2013), por exemplo, consi-


dera o suicídio algo que se dá pela responsabilidade Análise fenomenológica do relato das
do Estado e, portanto, como consequência da ordem experiências daquele que decide pôr fim à vida
social vigente. Esse estudioso do tema refere-se ao
suicídio como uma questão de saúde pública e um Para procedermos à investigação fenomeno-
desafio para a psicologia clínica – sugerindo, como lógica do fenômeno de decidir pôr fim à vida – e
medida preventiva, uma ação do profissional de saú- assim podermos aceder aos sentidos que estão em
de no sentido de “promover ou valorizar a questão da jogo quando alguém pensa nesse ato – considera-
vida” (Berenchtein, 2013, p. 21). mos a proposta de Feijoo e Mattar (2014) que apon-
Cattapan (2012) – em Moralização do Suicídio? tam para três elementos presentes no modo como os
– defende uma postura oposta à de Berenchtein. Ca- filósofos Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty se apro-
ttapan pauta-se na responsabilização do indivíduo priaram da fenomenologia para investigarem alguns
por suas decisões e seus atos. Com isso, ele defende fenômenos presentes na existência humana. Essas
a inutilidade de redes de atendimento com fins à estudiosas do tema consideram esses três elemen-
prevenção. Ele ainda argumenta que a criação de tos imprescindíveis na investigação fenomenológi-
núcleos de atendimento já é, por si só, moralizante, ca. São eles: a redução fenomenológica, passando
uma vez que estes remetem à psicopatologização da atitude natural, na qual predomina o julgamento
da vida. E ainda diz que com esses núcleos aparece e a conduta moral e assumindo uma postura anti-
uma perspectiva biopolítica, em que o objetivo é o natural diante do que se apresenta; a descrição dos
controle da vida e da morte. Cattapan (2012) finali- vetores internos ao fenômeno, de modo que aquele
za a sua apresentação da seguinte forma: “O suicida que investiga acompanha o fenômeno em sua mo-
não tolera a vida e a sociedade biopolítica não tole- bilidade estrutural por meio daquele que traz a sua
ra o suicídio” (p. 183). experiência de querer dar fim à sua vida; e, por fim,
Da discussão anterior surgiu o nosso segundo a explicitação das experiências, na medida em que,
desafio na lida com aqueles que querem dar fim às ao acompanhar o fenômeno tal como ele acontece
suas vidas. Trata-se de como assumir uma atuação no seu campo de mostração, torna vigente aquilo
clínica que não se incline ante uma perspectiva que se dá na situação singular em que essa decisão
moralizante, seja ela de ordem médica, jurídica ou aparece. Passemos ao primeiro momento da inves-
sacerdotal. Essas ordens que se inserem no nosso tigação, qual seja, assumir uma atitude antinatural,
tempo são características de um mundo onde ainda saindo da perspectiva empírica para apreender o
predominam as determinações cristãs, que na prá- ato de pôr fim à vida fenomenologicamente, como
tica sacerdotal recebem a classificação de pecado. veremos a seguir.
Na medicina, o suicídio é diagnosticado como um
ato patológico. E na justiça, até pouco tempo, como
crime. E como nós somos homens desse mundo, Redução fenomenológica
encontramo-nos totalmente tomados por essas de-
terminações. Para podermos proceder à análise fenomeno-
Para alcançar uma postura de acolhimento sem lógica do relato das experiências daquele que de-
recair em algo policialesco foi que nos dedicamos à cide pôr fim à vida e vai à busca de atendimento
preparação dos profissionais envolvidos no núcleo clínico no SPA/UERJ, primeiramente tivemos que
de atendimento. Nossos estudos aconteceram no operar com a redução fenomenológica e superar
sentido de que estudantes e profissionais de psico- alguns desafios. O primeiro deles foi suspender a
logia se apropriassem de uma postura fenomenoló- ideia, vigente em nosso mundo, de tomar o ato de
gica diante de questões, tanto moralizantes quanto pôr fim à vida em uma conotação de patologia, erro,
indiferentes, sobre a decisão de pôr fim à vida. Para pecado e até de crime contra a própria vida. Desse
que esses estudantes e profissionais pudessem con- modo, o ato do suicídio vem, na maioria das vezes,
Relatos de Pesquisa
quistar um modo fenomenológico de atendimento permeado de uma perspectiva moral, presente tan-
clínico, precisamos prepará-los mediante três vias to naquele que pensa ou tenta o ato, como naquele
de estudos e pesquisas: sobre o exercício da clínica que lhe dá assistência. Consideramos que em uma
existencial; sobre a compreensão de que as verda- apreensão fenomenológica do fenômeno de pôr fim
des acerca do suicídio são historicamente construí- à vida, precisamos, antes de qualquer lida com o
das; e por meio de uma análise fenomenológica dos fenômeno, suspender todos os atravessamentos que
relatos sobre suicídio na relação clínica – para, as- impliquem em diagnóstico, julgamento e morali-
sim, poderem apreender o sentido que está em jogo zação do comportamento. Diante disso, a questão
quando uma pessoa pensa em dar fim à sua vida. que primeiramente enfrentamos é como suspender
posições moralizantes acerca do suicídio, uma vez
que estamos totalmente inseridos em um mundo
Método cujas determinações são cristãs? Como fazer tais
suspensões de modo a não velar a dinâmica exis-
-

Para proceder aos nossos estudos e investigar tencial própria ao fenômeno? Antes de qualquer
os sentidos que estão em jogo na decisão de pôr fim coisa, precisamos nos colocar ante o fenômeno de
Artigos

à vida, estabelecemos a nossa rotina de trabalho por modo sereno (Heidegger, 1959) ou, como assinala
meio de uma análise fenomenológica do relato das Kierkegaard, (1859/1986) na adição. Essa postura
experiências daquele que decide pôr fim à vida e ante o fenômeno consiste em poder dar um passo
vai à busca de atendimento clínico.

175 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

atrás diante daquilo que o mundo articula como clínico. E a análise dos relatos foi realizada junto ao
verdades inquestionáveis acerca do suicídio. grupo de supervisão e estudos em suicídio.
Para dar o passo atrás ou reduzir fenomeno- Algumas questões podem surgir ante os proce-
logicamente o fenômeno que queremos investigar, dimentos inerentes ao método fenomenológico. São
temos que, primeiramente, refletir acerca das de- elas: a seleção da amostra foi aleatória? A amostra
terminações do mundo em que nos encontramos. composta por dois indivíduos tem o poder de ge-
No mundo moderno, como denominado por Hei- neralização? Primeiramente, temos que esclarecer
degger (1953/1997), predomina a máxima de que a que amostra significativa e generalização são ele-
vida deve ser mantida a qualquer preço, tal como se mentos próprios das pesquisas nas ciências natu-
fosse um manancial energético. Além disso, somos rais, ou ainda, nas ciências humanas, que tomam
regidos por um modelo normativo acerca de como para suas pesquisas o modelo das ciências naturais.
devemos nos alimentar, nos exercitar, nos divertir Esse não é o caso daquele que quer investigar feno-
a fim de manter a saúde e, consequentemente, pro- menologicamente, pois nesta perspectiva basta ver
longar a vida. Logo, nessa lógica em que conduzi- um homem para que eu possa compreender a dinâ-
mos as nossas vidas na atualidade, o ato de pôr fim mica existencial dos homens em um determinado
à vida torna-se, automaticamente, algo que deve ser horizonte histórico. Em segundo lugar, na fenome-
evitado, também a qualquer preço. Nisso há, sem nologia não se pretende alcançar leis gerais sobre as
dúvida, uma posição moral, mesmo que sutil. Fora coisas e sim a sua essencialidade. Enquanto as leis
isso, incluem-se nessa moralidade as máximas das se constituem pela significação numérica, a essen-
instituições religiosas cristãs, em que o suicídio é cialidade se alcança pelo deter-se demoradamente
pecado e aquele que o cometer terá sua alma dirigi- ante aquilo que o próprio fenômeno tem a dizer.
da para as trevas após a morte. A significação numérica diz respeito à signi-
Uma vez tendo conquistado uma atitude se- ficação estatística dos dados de acordo com a fre-
rena perante aquilo que predomina como verdade quência em que uma situação acontece. Se a fre-
em nosso tempo, podemos nos abrir para o fenôme- quência for numericamente significativa podemos
no sem nenhum preconceito. Assim, podemos nos generalizar o acontecimento e estabelecer uma or-
aproximar daquele que decide pôr fim à sua vida dem causal mesmo que probabilística. Ao nos re-
sem nenhuma ideia anteriormente concebida. Tra- ferirmos a alcançar a essencialidade do fenômeno,
ta-se de reduzir o fato tomado, na maioria das vezes queremos mostrar que não é o numérico que posi-
empiricamente, a uma visada fenomenológica. Isso ciona a verdade do fenômeno. O que importa é o
significa poder entender que tudo que vemos e in- fato de que a questão aparece e se mostra em seu
terpretamos acontece como intencionalidade, logo, elemento existencial, independente da frequência
não partimos da ideia de que é o sujeito o deten- em que ele apareça.
tor da verdade sobre as coisas – a verdade aparece Uma vez esclarecidas as questões acima, vamos
sempre na experiência, na qual homem e mundo prosseguir na descrição dos fenômenos por meio das
são cooriginários. E é desse modo que tomamos o experiências que nos são relatadas. Os relatos desses
fenômeno do ato de decidir pôr fim à vida. atendimentos foram organizados em agrupamentos,
cujas denominações se deram a posteriori.
Larissa relata que já tentou suicídio, com in-
Descrição dos vetores internos ao fenômeno gestão de veneno, por três vezes. Ela diz que tem vá-
rios episódios de depressão, que se expressam por
Passamos, então, à descrição dos vetores in- querer isolar-se e, nessas ocasiões, nem mesmo quer
ternos ao fenômeno do suicídio. Para tanto, preci- sair de casa. Também, quando deprimida, percebe-
samos, primeiramente, acompanhar a experiência -se como uma pessoa sem valor e sem importância.
daquele que decidiu finalizar o curso de sua vida, Nessas ocasiões, seu maior desejo é acabar com sua
e assim ver o que ele tem a nos dizer. Para cumprir vida. Para tanto, vai para um lugar bem distante de
Relatos de Pesquisa

essa etapa, apresentaremos os fragmentos de relatos sua residência e ingere veneno. Age desse modo
de duas pessoas que procuraram o SPA/UERJ para porque se preocupa com o sobrinho, não querendo
atendimento clínico, cuja queixa era o desejo de pôr que ele presencie a cena. Há algum tempo isso não
fim à vida. ocorria; no entanto, agora ela vem percebendo que
As duas pessoas com as quais trabalhamos o desinteresse e as depreciações com relação a si
receberam nomes fictícios: Larissa, com 21 anos e mesma estão voltando. Diante disso, decidiu pedir
Darly, com 25 anos. A decisão por esses relatos clí- ajuda. Foi ao psiquiatra e este a encaminhou para
nicos se deu pelo fato de terem sido os dois primei- uma psicoterapia comportamental (TCC). Larissa,
ros atendimentos após o início da pesquisa. Depois então, procurou o SPA/UERJ – no entanto, como a
desses, outros atendimentos vêm ocorrendo; no equipe de TTC não dispunha de vagas para o aten-
entanto, não serão considerados no interior deste dimento imediato, ela aceitou ser atendida pelos
manuscrito. pesquisadores. Seguem abaixo os diferentes agru-
Os atendimentos foram realizados por estagiá- pamentos e os respectivos relatos de Larissa:
-

rios do grupo de supervisão denominado Análise


existencial, sob a orientação, coordenação e super- Tentativas de suicídio mediante a ingestão de
Artigos

visão de um profissional com bastante experiência substâncias lesivas e inalação de gás


na atuação psicoterápica. Os atendimentos foram “Uma vez que fui para longe de casa e ingeri
registrados por escrito no decorrer do atendimento veneno. Quando comecei a espumar, chamei

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018 176
Por Um Núcleo de Atendimento Clínico a Pessoas em Risco de Suicídio

alguém que encontrei na rua para ajudar-me. sica e o pré-vestibular”.


A pessoa ligou para o SAMU e fui socorrida”.
“Das vezes que tomei chumbinho, queria mes- Última crise
mo morrer, mas quando as reações começa- “A última crise foi há algumas semanas. Senti
ram, me arrependi. Foram muitas vezes. Uma muito medo e não consegui falar nem me olhar
vez liguei o gás e fui dormir. Uma vizinha sen- no espelho. Como estou fazendo yoga e medita-
tiu o cheiro e bateu à porta. Ela desligou o gás. ção, tentei me acalmar e perceber o que estava
Desta vez, eu me sentia inútil e incapaz”. sentindo. Então, pedi a minha mãe para pegar
um remédio. Não sei porque senti tanto medo”.
Preocupação com o sobrinho e a relação com
seus pais Desistência dos tratamentos:
“Na segunda vez que tomei chumbinho, fiquei “Não sei se virei mais à terapia, porque acho
internada e meu pai não foi me visitar. Da úl- que falar não está me ajudando”. “Já fiz tera-
tima vez, fiquei irritada porque minha irmã pia antes, mas não gostei, pois os terapeutas
contou ao filho. Eu me preocupo com o meu so- eram conservadores e rudes”.
brinho, tenho medo que ele entre em depressão
quando perceber que a mãe dele não o procu- Darly foi ao atendimento acompanhada pela
ra”. “Eu brigo muito com a minha mãe, a casa namorada, que permaneceu na sala de espera en-
em que moro é da minha mãe, eu não consigo quanto Darly estava em sua consulta. No relato so-
falar minha casa”. bre sua situação, Darly falou com clareza em uma
linguagem correta e bem articulada. O relato pare-
Motivos que levam Larissa ao desejo de querer cia ser difícil, falava pausadamente e, por vezes,
pôr fim à sua vida prendia o choro. Darly utiliza o gênero masculino
“Briguei com a minha mãe há pouco tempo e ao referir-se a si mesma.
decidi sair de casa. Agora, estou com medo,
pois da última vez que saí de casa fiquei mal”. Sensações de angústia
E, ainda, relembrando as suas tentativas de “Há mais ou menos dois anos venho passando
suicídio: “Saí de casa aos 16 anos e voltei a por episódios de muita angústia, sem motivo al-
morar com a minha mãe aos 18. Saí de casa, gum. Nessas situações tenho a sensação de que
pois brigávamos muito. Essa foi a primeira vez. vou explodir”. “Do mesmo modo que o sofrimen-
Fui para um terreno baldio e tomei chumbinho; to e o desespero vêm, vão embora, não sei quan-
um amigo telefonou para mim, nesse momen- do esses sentimentos virão, por isso não posso
to, e contei o que fiz e onde eu estava. Ele me me preparar”. “Não me sinto feliz, mas tenho
socorreu e fiquei em coma, internada por al- momentos alegres. No momento, estou melhor.
gum tempo”. “A segunda vez que tentei suicí- Eu acho estranho ter alegria e tristeza ao mesmo
dio, também com 18 anos, eu fazia parte de um tempo. Parece que o sofrimento vem do nada e
partido, mas, por estar depressiva, as pessoas eu não consigo lidar, não estou preparado para
não queriam me dar muitas tarefas para fazer, isso”. “Tenho muito medo do que posso fazer
para que eu não me estressasse. Com isso, eu comigo e com os outros, quando eu explodir. Já
me sentia inútil. Hoje, me arrependo de ter ten- pensei em me drogar para acabar com isso, mas
tado me matar, por isso, meu pedido de ajuda”. não me drogo”. “Eu me sinto vulnerável ao fa-
Ao ser questionada acerca dos motivos das lar sobre essas coisas para minha namorada e
crises, Larissa responde: “Sinto-me incapaz e agora para você na terapia, embora na terapia
inútil quando não consigo ir para o curso, estu- me sinta menos. Acho que às vezes estou me vi-
dar, cumprir com as minhas obrigações”. timizando, pois os meus problemas não são tão
graves como eu faço parecer”.
Relatos de Pesquisa
Sua história de estupros
“Quando mais nova, fui abusada. Depois disso Tentativas de suicídio mediante a ingestão de
costumava me machucar, me arranhar. Sinto substâncias lesivas
muita raiva”. “Há mais ou menos duas sema- “Há um ano tentei suicídio por ingestão de me-
nas fui para a casa de um amigo e ele me estu- dicamentos. Nesse momento, enviei uma men-
prou. Cedi por medo dele pegar algum objeto e sagem de despedida, por e-mail, à minha na-
que me machucasse. Eu ainda não digeri essa morada. Ela, imediatamente, telefonou-me na
situação. Que quando acontece algo assim, fico tentativa de acalmar-me, então parei de ingerir
em casa chorando e trancada. Desta vez, não os remédios e desisti do ato”. “No último domin-
fiquei, acho que não digeri essa situação. Não go, senti, outra vez, vontade de morrer e recorri
prestei queixa porque tenho medo de falarem de novo à minha namorada”. “Tentei suicidar-
que eu estava na casa dele porque quis. Não -me setes meses após a morte de minha mãe”.
fui ao posto tomar pílula do dia seguinte nem “Ano passado, tentei me matar, tomei remédios,
-

coquetel porque tinha muita coisa para fazer”. mas sabe, não foram eficazes. Se conhecesse
um método eficaz, eu faria”.
Artigos

Momentos que ela está bem:


“Quando estou bem, procuro me cuidar, me Relações afetivas
tratar. Mas quando estou mal, tenho vontade Ela diz, sobre o fato de procurar pela namorada
de morrer”. “Agora estou fazendo aula de mú-

177 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

quando pensa em terminar com sua vida: Principais incômodos


“Isso me preocupa, tenho medo que ela fique por “As coisas que mais me incomodam são a vida
medo que eu me mate e não porque me ama. acadêmica, a relação com a minha mãe e a re-
Não tenho minha família, desde que minha lação com meu pai. É mais difícil falar daquilo
mãe morreu, há mais de um ano, meu irmão foi que causa sofrimento. Durante muito tempo sofri
morar com o meu pai e eu fiquei sozinha”. “Aos agressões e insultos das pessoas de quem eu pre-
16 anos, assumi junto à minha família que me cisava de apoio. Por isso, sempre carreguei muita
relacionava homo afetivamente. Minha família, raiva e rancor por isso”. “Saí de casa e depois
principalmente minha mãe, reagiu muito mal. de dois meses a minha mãe descobriu um câncer
Ela não tolerou a situação e eu me surpreendi, de mama, que depois foi para o cérebro. Minha
não esperava essa reação por parte dela. Com mãe me insultava, dizia que eu não era capaz e
isso, sofri agressões físicas e verbais por parte não era ninguém. Logo que ela começou a falar
de minha mãe, e reagi à altura, não me dobrei”. isso para mim, eu não ligava, depois isso mudou.
“Há mais ou menos cinco anos, quando eu es- Quando a minha mãe me batia, sentia vontade
tava quase acabando outro curso na faculdade de espancá-la, mas me lembrava que era minha
e decidi sair, trocar de profissão”. “Minha mãe mãe e não podia fazer isso”. “Quando saí de
não concordou com a minha decisão e me cha- casa, resolvi revidar as agressões, dizendo para
mou de incapaz, disse também que eu já estava minha mãe que ela não era uma boa mãe. Isto foi
velho para morar com ela”. logo após a cirurgia de mama. Sinto-me culpado,
penso: será que o estresse que causei a ela pro-
Seu desempenho vocou a doença? Também me sinto culpado por
“sempre fui distraído, mas logo conseguia recu- não ter estado ao lado dela, não ter ido com ela
perar a atenção. Hoje, não consigo mais recu- às consultas. Nos últimos nove meses de vida, eu
perá-la, passo horas fazendo alguma coisa que me aproximei da minha mãe e tentamos conviver
qualquer pessoa faria em pouco tempo. Por isso, bem. Mas eu me pergunto se essa aproximação
me sinto burro. Tenho dois braços e duas pernas, foi boa, pois assim sofri mais com a morte dela”.
tenho saúde, por isso deveria ser feliz. Mas não “Acho que ter falado da minha mãe me fez mal,
sou. Tanta gente leva uma vida medíocre e é fe- não estou legal”.
liz. Acontece que eu só me vejo em posição de
destaque, bem sucedido. Se não for assim, pre- Retorno do convívio familiar
firo não viver”. “No estágio, a supervisora disse “Penso em entrar em contato com meu pai e
que eu era o melhor estagiário. Achei estranho, com a minha família para ter mais um apoio,
em vez de gostar me senti mal”. mas não sei se seria certo ou errado estabele-
cer laços, não sei como eles irão reagir”. Depois
Sua escolha sexual de alguns encontros, Darly relata: “Resolvi falar
“Talvez fosse mais fácil se não tivesse assumido com minha família. A minha madrinha disse
que era gay. Mas não conseguiria viver hoje sem que os meus problemas não eram nada. Depois,
me assumir”. falei com a minha tia e ela disse que os meus
problemas eram muito fáceis de resolver. Elas
Tratamentos acham que sofrimento e a crise de depressão
“Já tentei fazer terapia antes, porém abandonei não são nada”.
após três sessões”. “Já fiz terapia antes. Da pri-
meira vez não senti empatia pela psicóloga; na Conflitos com a namorada
outra, achei que não precisava. Agora sei que “Ainda estou mal, tão mal quanto antes”. “Saí
preciso de terapia, pois o momento ruim vai vol- com a minha namorada e com umas amigas
tar e ele volta cada vez pior. Agora eu preciso de e fui dormir na casa de minha namorada. Lá,
Relatos de Pesquisa

apoio profissional. Se existisse um remédio para “surtei” e não deixei ninguém encostar-se a ela.
o sofrimento e para o desespero não acontece- Sinto vergonha, pois fiz isso na frente dos pais
rem, eu tomaria. Eu não venho para a sessão dela. Eles são umbandistas e disseram que eu
feliz, venho me arrastando, mas venho porque não estava sozinho. Desde agosto ou setembro,
sei que é necessário, pois me faz bem falar”. brigo muito com a minha namorada. Há três
anos, só sofro. Depois da crise que dei na casa
O desabafo com as pessoas dela, pensei em me matar. Só não o fiz porque
“Eu me sinto bem ao falar de minhas mazelas, é não queria que ela passasse por outro sofrimen-
melhor do que guardá-las para mim. As pessoas to”. “Eu não sei criar vínculos nem proximida-
falam para eu mudar, como se fosse fácil. Man- de, não consigo me reaproximar das pessoas de
dei mensagem para uma amiga, da qual esta- quem me afastei”. “Não consigo me desvincular
va afastado há algum tempo, e a minha amiga da minha namorada. Me sinto sozinho”. “Tenho
respondeu com frieza, por isso não a procurei tentado encarar de frente, mas só piora. Me sin-
-

mais. Penso o mesmo com relação à minha na- to muito perdido”.


morada, acho que ela não aguenta mais, tam-
Artigos

bém. Estamos juntos há dois anos, mas a minha Passaremos, então, para a última etapa da in-
família não sabe”. vestigação fenomenológica. Trata-se da explicitação
das experiências em seus diferentes sentidos, que
tradicionalmente é denominada de resultados.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018 178
Por Um Núcleo de Atendimento Clínico a Pessoas em Risco de Suicídio

Resultados poder compreender o que está em jogo no projeto


de pôr fim à vida.
O objetivo proposto nesta investigação foi de Pedidos de ajuda: ambas relatam a desistência
averiguar a pertinência de se criar um núcleo de do ato pela presença do outro. Em ambas há um
atendimento clínico a pessoas que pensam em sui- pedido de ajuda e perante a ajuda, elas desistem.
cídio tal como foi reivindicado pela OMS (2015). E, Essa unidade de sentido mostra a importância de
ainda, tentando atender a reivindicação do Conse- que haja núcleos de atendimentos clínicos de modo
lho regional de São Paulo (Santos, 2011), preparar a que se possa evitar a consumação do ato.
os psicólogos para esse tipo específico de atendi- Retomada da experiência passada: Ambas re-
mento. A análise fenomenológica dos discursos clí- tomam a experiência passada como fonte de frus-
nicos, obtidos em nossa investigação, nos mostrou a trações e abandono. Na situação clínica, essa re-
importância e pertinência da criação do NAC/UERJ tomada é importante para que aquele que se sente
pelo fato de que na medida em que as pessoas aten- abandonado e frustrado tenha a oportunidade de
didas falavam de seus incômodos, a ideia de suicí- dar outros sentidos a essas experiências.
dio desaparecia. Ambiguidade ante a (in) decisão do suicídio:
Com relação à reivindicação de que os profis- Larissa, quando toma o veneno, pede ajuda. Ela
sionais sejam devidamente preparados para essa quer morrer, mas quando está conseguindo, há o
modalidade de atendimento, a própria investigação arrependimento pela tentativa de suicídio. A am-
foi fundamental para que o aprendizado se desse – biguidade aparece no fato de que ela quer morrer,
uma vez que a modalidade de investigação exigiu mas quando está conseguindo, pede ajuda e desiste.
do pesquisador um exercício da clínica psicológica. Darly refere-se ao medo de cometer o ato. Essa si-
A explicitação das experiências em seus dife- tuação reforça a importância da criação de núcleos
rentes sentidos, que se desvelou ao acompanhar o de atendimento clínicos, na medida em que tais nú-
fenômeno tal como ele acontece no seu campo de cleos podem acolher aquele que se arrepende e, ain-
mostração por meio das expressões singulares em da trabalhar clinicamente o que se apresenta como
que a decisão de terminar com a própria vida apa- questão no ato de arrepender-se.
receu, é de importância fundamental para a ação Presença de sentimentos, afetos e humor: am-
clínica propriamente dita. bas referem-se à raiva; autoagressão; oscilação de
Apresentaremos os resultados da investigação humor: estando bem, valorizam a vida; estando mal,
em unidades de sentidos tal como explicitados nos querem morrer; arrependimento; medo; episódios de
relatos das experiências de Larissa e de Darly que angústia, sofrimento e desespero; rancor; preocupa-
aparecem em outros relatos e nos quais o psicólogo, ção em parecer frágil e vulnerável; auto culpabiliza-
em sua atuação tal como desenvolvido por Feijoo ção. Todos esses afetos podem ser trabalhados du-
(2017), deve ater-se no sentido de trabalhar o inten- rante os atendimentos clínicos de modo que a pessoa
to de pôr fim à vida: possa compreender e apreender as experiências que
Identidades e rótulos: ambas referem-se a ró- se apresentam na oscilação do seu humor.
tulos que definem uma identidade como depressi- Fuga do sofrimento: ambas parecem querer es-
va, que na clínica psicológica devem ser destruídos, capar ao sofrimento. Em Darly isso aparece quando
a fim de que a pessoa possa conquistar a si mesma, ela se pergunta se deveria ter se reaproximado da
uma vez que se encontrar totalmente distanciada de mãe, já que assim sofreu mais com sua morte; tam-
tais rótulos ( Feijoo, 2017). bém quando toma remédios e álcool para dormir.
Autodepreciação: tanto Larissa quanto Darly Larissa não expressa tão claramente essa fuga, em-
referem-se a si mesmas autodepreciando-se. Afir- bora fique subentendida. O espaço clínico em sua
mam ser inúteis, incapazes, descartáveis, sem valor vocação para uma acolhida atenta, pode abarcar o
e sem importância. No atendimento clínico, há toda sofrimento de modo que esse apareça como possi-
uma tentativa de que a pessoa possa repensar o seu bilidade existencial.
Relatos de Pesquisa
valor, que não tem que necessariamente estar atre- A lida com situações adversas: dificuldade de
lado ao valor posicionado pelo mundo. lida com adversidades. Larissa, quando briga com
Vínculos afetivos: aparecem no valor que La- a mãe, sai de casa e quando está mal, quer sair da
rissa dá ao sobrinho, preocupando-se com ele e na vida. O modo de lidar com a adversidade é saindo
preocupação de Darly com a namorada, caso venha da situação. Larissa e Darly sentem-se rejeitadas por
a dar cabo da própria vida. Na clínica, o psicólogo um membro da família e, também, depreciadas por
dá destaque aos vínculos afetivos de modo a abrir parte da família. Ambas se referem a conflitos fa-
um espaço para que a pessoa se demore neles e, as- miliares e a decisão de afastar-se dos mesmos. Esse
sim, possa repensar aquilo que na vida ainda faz modo de sair da situação pode ser trabalhado clini-
sentido. camente para que outras possibilidades de lida com
Identificação daquilo que antecede o desejo de tais conflitos possam aparecer.
suicídio: Darly diz que não percebe os sinais que Queixa a respeito dos tratamentos: ambas
antecedem o desejo de pôr fim à sua vida. Já La- queixam das psicoterapias anteriores por diferentes
-

rissa percebe claramente e por isso pede ajuda. A motivos, e com isso justificam o fato de terem aban-
identificação desses elementos é de importância donado o tratamento. É importante, que o psicólogo
Artigos

fundamental para que a pessoa possa pedir ajuda. clínico permaneça atento a tais queixas de modo a
Além disso, aquele que já identifica os sinais pode poder trabalhar o abandono do tratamento.
demorar-se na tematização dos mesmos de modo a Motivos para a decisão pelo suicídio: ambas se

179 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

sentem inúteis e, por isso, não merecem viver. Isto pessoas que querem e solicitam ajuda; isso aponta
as leva à desistência, pois quem não é útil merece para o fato de que a decisão, nesses casos, não é
ser descartado. Tanto Larissa quanto Darly evitam definitiva – conclusão essa a que também chegaram
de forma específica a dor e fogem do sofrimento. Toro et al (2013).
Em Darly isso aparece quando ela diz que gostaria Vimos também, nos relatos de Larissa e Dar-
de um remédio para acabar com o sofrimento, e que ly, a presença de vínculos afetivos e a consequente
já pensou em se drogar para acabar com a dor. Pare- preocupação com aquilo que vai ocasionar na vida
ce que a única saída para ambas é a autodestruição. daqueles com os quais esse vínculo se estabele-
Na situação clínica, pode-se abrir um espaço para ce. No entanto, não interpretamos tais expressões
reconstruir o modo que as pessoas que pensam em como fatores que aumentam o risco de ocorrência
suicídio lidam com a dor e o sofrimento. do suicídio (Toro et al, 2013), ao contrário, defende-
Durante a pesquisa, outros atendimentos fo- mos que se trata de um elemento importante a ser
ram realizados e as queixas também se deram em trabalhado pelo psicoterapeuta. O vínculo afetivo,
termos de conflitos e ressentimentos com relação a procura por ajuda e a ambiguidade ante a decisão
aos amigos e aos familiares, seja por terem se sen- de pôr fim à vida mostram que tanto Larissa quan-
tido abandonados ou superprotegidos. Apareceram to Darly mantêm-se compromissadas com a vida.
também relatos de violência sexual, estupros e difi- O fato daquele que pensa pôr fim à vida procurar
culdades financeiras. Muitos se referem às frustra- atendimento clínico e mostrar que afetos o ligam
ções pelo fato da vida não ter transcorrido da forma à vida justifica a pertinência e a urgência de mais
como planejaram. É unânime a declaração de que o pesquisas sobre o tema, como também da criação
motivo pelo qual procuram atendimento é o medo de núcleos de atendimento clínico com psicólogos
de acabarem cometendo suicídio. Concluímos, por- devidamente formados para a lida com essas situa-
tanto, que naqueles que solicitam atendimento clí- ções.
nico, o desejo de morrer não supera o de viver. Ao alcançar o final dessa etapa da pesquisa,
De posse dos sentidos presentes nas situações concluímos que para nos aproximarmos mais da-
acima, podemos destacar a importância e a neces- quilo que está em jogo na decisão de pôr fim à vida,
sidade da atuação clínica psicológica, bem como a precisamos buscar o que disseram aqueles que efe-
pertinência de criação de núcleos de atendimento tivamente se suicidaram tal como defendido por
clínico destinado àqueles que, em algum momento, Pompili (2010). Para tanto, passaremos a analisar as
pensam em dar fim às suas vidas. cartas deixadas pelos suicidas.

Discussão Referências

Vasconcelos-Raposo et al (2016), ao pesqui-


sar acerca dos níveis de ideação suicida em jovens ABP (2014). Suicídio: informando para prevenir. Brasília,
adultos, querem buscar as variáveis que podem Brasil: Associação Brasileira de Psiquiatria - Comis-
estar influenciando o aumento quantitativo de são de Estudos e Prevenção de Suicídio.
suicídio nos últimos cinquenta anos. Ou seja, es-
Brasil (2015) Portaria n.2542, de 22 de dezembro de 2015.
ses pesquisadores buscam medidas preventivas ao
Aprova as diretrizes sobre a Estratégia Nacional de
suicídio, que acreditam obter uma vez conhecidas
Prevenção ao Suicídio, Ministério da Saúde.
as causas. Com a pesquisa aqui apresentada, pen-
samos a prevenção não em seu caráter causal, indo Berenchtein, N. (2013). Suicídio: uma questão de saúde
ao encontro daquilo que defendem Pompili (2010) pública e um desafio para a psicologia clínica. Bar-
e Dutra (2011), nem preventivo no sentido de acre- ros, M. (Org.). Suicídio e os desafios para a Psicolo-
ditar que por essa via teremos controle do ato de gia. Brasília: CFP.
Relatos de Pesquisa

suicidar-se como defendem Toro, Nucci, Toledo,


Oliveira & Prebianchi (2013). Com isso sustenta- Cattapan P. (2012). Moralização do suicídio? Revista Ilumi-
mos que a liberdade do homem escapa de todo e nart, 9, 183-194. Disponível em: http://revistailuminart.
qualquer controle. Tentamos, com nossa pesquisa, ti.srt.ifsp.edu.br/index.php/iluminart/article/view/147
esclarecer aquilo que está em jogo na (in) decisão
quanto ao ato de pôr fim à vida, para assim poder- Dillon, G. (2010). O Complexo de Agar. Rio de Janeiro:
mos, junto àquele que pensa no ato, mobilizá-lo no O Globo e, 13/11/2009.http://suicidiopesquisaepre-
sentido de que ele se demore na decisão, de modo vencao.blogspot.com.br/2010/11/o-complexo-de-a-
a poder esclarecer para si mesmo o que afinal ele gar.html acessado em 25/10/2016
deseja, como argumenta Feijoo (2017) ao referir-se a
disposição do psicólogo clínico. Dutra, E. (2011). Pensando o suicídio sob a ótica feno-
Na análise fenomenológica dos discursos clí- menológica hermenêutica: algumas considerações.
nicos, pudemos observar que alguns elementos Revista da Abordagem Gestáltica, 17 (2): 152-157.
-

mostram a importância e a necessidade da forma- Feijoo, A.M. & Mattar, C.M. (2014). A Fenomenologia
ção dos psicólogos como defendem Dillon (2010) e
Artigos

como Método de Investigação nas Filosofias da


Berenchtein (2013) para a atuação em núcleos de Existência e na Psicologia. Psicologia: Teoria e Pes-
atendimentos clínicos a pessoas que pensam em quisa, 30 (4), 417- 423.
dar fim às suas vidas. Pudemos acompanhar que há

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018 180
Por Um Núcleo de Atendimento Clínico a Pessoas em Risco de Suicídio

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Relatos de Pesquisa

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pinas), 33 (2), 345-354.

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo é Doutora em Psi-


cologia, Professora Adjunta da UERJ, atuando no
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social
e no Curso de graduação em psicologia. Coordena
na UERJ o Laboratório de Fenomenologia e Estudos
em psicologia Existencial (LAFEPE). Vice-diretora
do Instituto de Psicologia. É bolsista produtivida-
-

de- PQ2/CNPQ e Procientista da UERJ. Participa


do GT Psicologia & Fenomenologia da ANPEPP
Artigos

(Associação Nacional de Pesquisa e Pós-gradua-


ção em psicologia). Sócia fundadora do Instituto
de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio

181 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 173-181, mai-ago, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.7

“MEU NOME É ANA” – UM ESTUDO


FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL DA EXPERIÊNCIA
DE MULHERES COM ANOREXIA NERVOSA
“Hi, my name is Ana” - A women´s experience existential-phenomenological study with nervosa anorexia.

“Hola, mi nombre es Ana” - Un estudio de las mujeres experimentan fenomenológico-existencial con


anorexia nervosa.
Élida Mayara da nóbreGa cunha
elza Maria do Socorro dutra

Resumo: A pesquisa teve como objetivo compreender, a partir de um olhar fenomenológico-existencial hei-
deggeriano, a experiência de anorexia. Foram utilizadas entrevistas semiestruturadas como meio de acesso
à experiência. Foram entrevistadas duas pessoas do sexo feminino, com idades de 17 e 30 anos. A entrevista
iniciava-se com uma pergunta disparadora: “Como foi, ou como é, a sua experiência de anorexia?”, que permi-
tiu às entrevistadas falarem sobre as suas experiências. O diário de campo também foi utilizado como recurso
metodológico, buscando uma maior aproximação das experiências das entrevistadas e da pesquisadora. As en-
trevistas e o diário de campo foram interpretados à luz da hermenêutica heideggeriana. Os sentidos que apare-
ceram nas narrativas desvelaram questões para além do corpo físico e da patologia, estando envolvidos família,
desejos, amigos, experiências, projetos de vida. Dentre as ideias heideggerianas ressaltadas, estão o cuidado,
inospitalidade, habitar, abertura às possibilidades e facticidade, que puderam ser discutidos na interpretação,
gerando reflexões acerca dos sentidos da experiência de anorexia nervosa na existência das entrevistadas.
Palavras-chave: Anorexia Nervosa; Pesquisa Fenomenológica; Heidegger.

Abstract: This research’s objective was to understand, from an existential-phenomenological perspective, an-
orexia experience. Semi-structured interviews were used as a means of access to the experience. Female two
people were interviewed, at the age of 17 and 30. The interview begins with a starter question, “How was, or
how, their anorexia experience?”, which allowed the interviewee to talk about their experience. The field diary
was also used as a methodological resource, seeking a greater approximation of the experiences of the inter-
viewees and the researcher. The interviews and the field diary were interpreted by Heidegger’s hermeneutics.
The senses unveiled in the narratives revealed issues beyond the physical and pathological issue, being in-
volved family, wishes, friends, experiences, life projects. Among the Heideggerian ideas highlighted are careful,
inhospitality, to dwell, openness the possibilities and factuality, which could be discussed in the interpretation,
generating reflections on the meanings of anorexia nervosa experience in the existence of the interviewees.
Keywords: Anorexia Nervosa; Phenomenological Research; Heidegger.

Resumen: La investigación tuvo como objetivo comprender, desde una mirada existencial-fenomenológica de
Heidegger, la experiencia de la anorexia. Fueron utilizadas entrevistas semiestruturadas como medio de acceso
a la experiencia. Fueron entrevistadas dos personas del sexo femenino, con edades de 17 y 30 años. La entre-
vista comienza con una pregunta de arranque (“¿Cómo fue o es su experiencia de la anorexia?”), permitiendo
la entrevistada habla de su experiencia. El diario de campo también fué utilizado como recurso metodologico,
buscando una mayor aproximación de las experiencias de los entrevistados y el investigador. Las entrevistas y
Relatos de Pesquisa

el diario de campo fueron interpretados a la luz de la hermenéutica de Heidegger. Los sentidos que aparecen
en los relatos revelan temas más allá del cuerpo físico y la patología, siendo tambén implicado la familia, los
amigos, deseos, experiencias, proyectos de vida. Entre las ideas de Heidegger, hay énfasis al cuidado, inhospi-
talidad, la apertura de las posibilidades y facticidad, discutidos en la interpretación, promoviendo reflexiones
sobre sus sentidos y su existencia.
Palabras-claves: Anorexia nerviosa; Investigación fenomenológica; Heidegger.

Introdução cas para as doenças. No olhar heideggeriano, pois,


o físico e o psíquico não são considerados simples
A presente pesquisa pretendeu, a partir da óti- objetos de estudo objetivando determinar seus prin-
ca fenomenológica heideggeriana, lançar luz sobre cípios e funcionamento, e sim se atribuem à possi-
a experiência de mulheres que passam, ou passa- bilidade própria do existir humano em sua abertura
-

ram, pela vivência da anorexia nervosa. O olhar existencial (Dantas, 2011b).


fenomenológico-existencial vai de encontro ao mo- Diante disso, pode-se discutir sobre existirem
Artigos

delo que compreende a realidade humana dicoto- outras formas de se abordar a temática, que não
mizada como objetiva (corpo) e subjetiva (mente), somente através da perspectiva dos manuais diag-
assim como a concepção de busca de causas psíqui- nósticos. Para tal, o artigo inicia-se trazendo a ideia

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 182-193, mai-ago, 2018 182
“Oi, Meu nome é Ana” – Um Estudo Fenomenológico- Existencial da Experiência de Mulheres com Anorexia Nervosa

pela qual a anorexia e os transtornos alimentares Borges, 2006), e os da bulimia, desde a Antiguidade
são usualmente pensados, para, então, caminhar (Cordás; Salzano & Rios, 2004). Há bastante discus-
e buscar desvelar outros possíveis sentidos diante são sobre os fatores de risco, com ênfase na pressão
dessa experiência. contemporânea sobre o corpo ideal, que poderiam
Na atualidade, ao abordar os transtornos ali- levar ao desencadeamento desses transtornos. Al-
mentares (TAs), a discussão avança no sentido de guns estudos epidemiológicos reforçam a ideia de
serem compreendidos como síndromes psiquiátri- que a incidência de anorexia e bulimia tem relação
cas que costumam acometer, principalmente, jo- com a forte valorização da magreza nas sociedades
vens adolescentes. Os mais conhecidos TAs são a ocidentais desenvolvidas, denotando que o aumen-
anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN), to desse índice sucede, concomitantemente, com a
ambas apresentando um alto grau de morbidade/ evolução e a valorização da magreza como ideal de
mortalidade e sendo acompanhadas, frequente- beleza feminino (Ahem & Hetherington, 2006; Mor-
mente, por uma série de complicações clínicas. gan; Vecchiatti & Negrão, 2002; Morgan & Azevedo,
Além disso, a incidência de TAs tem crescido (Sil- 1998).
va, Bezerra, Borges, Bitencourt, Honorato & Amaral, Há uma tendência, por parte dos estudos de
2006), o que aponta para uma necessidade de se es- amostras clínicas, em subestimar as taxas de inci-
tudar, pesquisar e buscar melhoras na prevenção e dência, pois é apenas uma minoria que procura aju-
tratamento desses transtornos. da nos serviços de saúde. As taxas da AN variam
A inspiração para o título do presente artigo de 0,10% (registros hospitalares) a 12% (registros
vem de uma carta da Ana, um texto que circula na ambulatoriais) para grupos de 100.000 pessoas/ano
internet, cuja autoria é atribuída a Ana (entidade (Nunes, Appolinario, Galvão, Coutinho & colabora-
que personifica a anorexia), mas o autor, de fato, dores, 2008). Inclusive, há poucos dados sobre essa
não é divulgado. A carta inicia-se da seguinte for- epidemiologia e escassez de números atualizados.
ma: “Meu nome, ou como sou chamada pelos tam- Foram encontradas algumas pesquisas, em
bém chamados ‘doutores’, é Anorexia. Anorexia português, que compreendem a anorexia de modo
Nervosa é meu nome completo, mas você pode me fenomenológico. Entre estas, há um conhecido arti-
chamar de Ana. Felizmente nós podemos nos tornar go que discute o caso clínico de uma mulher que, se
grandes parceiras...”. vivesse nos dias atuais, e pensando de acordo com
Os transtornos alimentares são incansavel- o modelo médico atual e os conhecimentos desen-
mente estudados, porém o olhar comumente é per- volvidos sobre a temática, poderia ser considerada
passado por questões diagnósticas e médicas. Há com anorexia – segundo os conceitos de Ludwig
uma vasta produção acerca desse tema, atravessan- Binswanger, médico suíço fortemente influencia-
do as diversas áreas de conhecimento. Caminhos do pelas ideias heideggerianas (Moreira, Cruz &
que vão desde a etiologia, discussão da conceitua- Vasconcelos, 2005). Outros estudos, alguns per-
ção e dos critérios diagnósticos, às diretrizes para o passados pela psicanálise e gestalt-terapia também
tratamento. Ainda que exista uma extensa produ- abordam a Anorexia pelo olhar da fenomenologia
ção, há linhas de pesquisa pouco exploradas, como, (Jonckheere, 2004; Nunes & Vasconcelos, 2010; Nu-
por exemplo, a experiência de quem passa pela nes, 2010).
Anorexia Nervosa, pelo olhar da fenomenologia Ao adotar a ótica da fenomenologia-existen-
heideggeriana. Ao debruçar-se sobre esse fenôme- cial, que considera o homem como um ser de pos-
no a partir de um olhar fenomenológico-existencial, sibilidades, em constante movimento e atribuindo
pode-se trazer à tona a perspectiva existencial, dife- sentidos ao mundo, é possível pensar a experiência
rindo, assim, das principais pesquisas sobre o tema. de Anorexia Nervosa como sendo uma das muitas
Tais motivações, de ordem existencial, nos inspira- possibilidades de ser-no-mundo. Martin Heideg-
ram a conhecer a experiência de quem vivencia o ger (1889-1976), filósofo alemão, cunhou o termo
adoecer anoréxico, o que envolve compreender o Dasein (ser-aí) ou pre-sença, como o modo-de-ser
Relatos de Pesquisa
que a pessoa experiencia (ou experienciou) nesse do ser humano. A essência do Dasein é sua própria
processo, e não apenas os seus sintomas. Buscou-se existência, visto que ele “compreende a si mesmo
ouvir não somente “sua anorexia”, mas sim a sua a partir de sua existência, de uma possibilidade
experiência de vida. própria de ser ou não ser ela mesma” (Heidegger,
A partir do problema de pesquisa, algumas 1927/2013, p. 48). Isto é, o Dasein, na existência,
questões foram suscitadas nesse contato com a rea- possui uma essência que é sua e assim ele é “pura
lidade com pessoas que sofrem com Transtornos expressão de ser” (Heidegger, 1927/2013, p. 48), e é
Alimentares, mais especificamente da anorexia ner- através da existência que ele compreende a si e as
vosa: como é a relação da pessoa que sofre com ano- suas possibilidades.
rexia nervosa, com o seu corpo? Quais os sentidos Diante do exposto, o objetivo geral da pesquisa
atribuídos a esse corpo? Como é vivenciar a busca foi compreender, a partir de uma perspectiva feno-
incessante pela perda de peso? Qual o sentido do menológica-existencial heideggeriana, a experiên-
não-comer e a relação com o alimento? Existiria cia de anorexia. Isto é, a experiência no sentido da
-

uma busca por um padrão de beleza? existência, em busca da compreensão dos possíveis
Mesmo tendo em vista que os sintomas dos sentidos que essa experiência tem para a pessoa en-
Artigos

TAs não são específicos da modernidade, já que os trevistada.


indícios do que se conhece hoje como a anorexia são
descritos desde a Idade Média (Galvão; Claudino &

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Élida Mayara da Nóbrega Cunha; Elza Maria do Socorro Dutra

Ana, quem é você? era até então – agora ela passa a alcançar um nú-
mero maior da população, já que o ser humano está
A anorexia, tal qual se conhece hoje, é um mais conectado à tecnologia. A compreensão atual
advento da idade moderna. De acordo com Cordás de corpo diferencia-se de qualquer outro período
(2004), é a partir de 1960, com o crescente número histórico já vivenciado. É o período com maior ên-
de pacientes com Anorexia Nervosa e as tentativas fase na beleza associada à magreza, juventude e pra-
de diferenciar os tipos de pacientes com o quadro, zer. A constante busca pelo hedonismo é, também,
que surgiu o reconhecimento da doença como sín- um fator determinante nesse processo (Maroun &
drome psiquiátrica específica, com aspectos carac- Vieira, 2008). É preciso apontar a relação entre a
terísticos que a distinguem de outros transtornos. anorexia e a concepção de corpo vigente, levando
Sendo esta forma, vale salientar, biologizante e res- em consideração que essa concepção nem sempre
trita de se olhar a anorexia, como ainda será abor- foi a mesma ao longo das civilizações.
dado. E “o biológico é, para nós, sempre tardio e A história do corpo está sempre em movimen-
sempre curto demais para dar conta de nosso modo to, em aberto e em um eterno porvir. Juntamente
de ser originário” (Casanova, 2013, p.42). com a história do corpo caminha o ideal de bele-
Apesar de se apontar que a anorexia tem suas za. Este segue o fluxo histórico, apresentando suas
raízes há muitos séculos (Cordás, 2004), é impor- próprias nuances diante do contexto social vivido
tante destacar que as semelhanças dizem respeito (Jorge & Vitalle, 2008), e, em cada momento históri-
aos sintomas de séculos atrás e os de hoje em dia. co, as significações hermeneuticamente solidifica-
Mas o sentido entre as épocas é diferente, visto que das favorecem determinados modos de ser. Como
antigamente o intuito era distinto do emagrecer e já apontado anteriormente, há autores (Ahem &
possuir um corpo esbelto, como na atualidade. As Hetherington, 2006; Morgan; Vecchiatti & Negrão,
primeiras menções à condição de aversão à comida 2002; Morgan & Azevedo, 1998) que acreditam que
despontam com o termo fastidium em fontes latinas o atual horizonte histórico seja um intensificador
da época de Cícero (106-43 a.C.) e variados textos no que concerne ao desenvolvimento dos transtor-
do século XVI. Já no século XIII, é encontrada uma nos alimentares.
grande quantidade de descrições de mulheres que De acordo com Oliveira e Hutz (2010), o final
se infligiam jejum como uma forma de aproxima- do século XX e início do século XXI são caracteri-
ção espiritual de Deus; eram as chamadas “santas zados pelo culto ao corpo. É uma frenética busca
anoréxicas”. Os sintomas eram acompanhados de pelo corpo perfeito (e idealizado), assumindo-se
perfeccionismo, rigidez no comportamento e insa- uma postura obsessiva, passando a ser um estilo
tisfação consigo própria. de vida para muitas pessoas, especialmente para
De acordo com Weinberg (2010), Richard Mor- mulheres das classes médias urbanas. Os meios de
ton, em 1694, é autor do primeiro relato médico de comunicação, por sua vez, veiculam propagandas
Anorexia Nervosa, descrevendo o tratamento de de corpos que se encaixam em um padrão estético,
uma jovem mulher que apresenta recusa alimentar corporal, que é inacessível para a maior parte da
e ausência de ciclos menstruais, rejeitando qual- população, mediado pelos interesses da indústria
quer ajuda oferecida, chegando a morrer de ina- de consumo. Divulga-se a representação da beleza
nição. No entanto, a denominação mais específica estética associando-a a específicos ideais de saúde,
para a “anorexia nervosa” surgiu com William Gull, magreza, beleza e comportamento (Barbosa, Matos
a partir de 1873, referindo-se à forma peculiar de & Costa, 2011).
doença que afeta, principalmente, mulheres jovens No tocante às influências sócio-culturais, se-
e caracteriza-se por emagrecimento extremo, cuja gundo Teixeira (2001), a busca pela magreza tem
falta de apetite é decorrente de um estado mental sido um caminho percorrido por inúmeras pessoas
mórbido e não de qualquer disfunção gástrica. Ao do sexo feminino, gênero no qual recai a maior co-
passo que, nos dias atuais, o termo Anorexia não é brança por um corpo magro, em sua maioria, e é
Relatos de Pesquisa

utilizado em seu sentido etimológico para a Ano- a partir da década de 1980 que a mesma passa a
rexia Nervosa (o termo anorexia deriva do grego ser valorizada, enfaticamente, na cultura ocidental.
“an-”, deficiência ou ausência de, e “orexis”, ape- Para isso é necessário, às mulheres, submeterem-se
tite), pois tais pacientes não apresentam real perda a dietas, horas na academia, utilização de produtos
de apetite até estágios mais avançados da doença, e dietéticos. Frente a essa ideia da cobrança às mu-
sim uma recusa alimentar, objetivando o emagrecer. lheres, “os transtornos alimentares têm sido vistos
Ou seja, o termo “Anorexia” significa falta de ape- como uma construção e exposição de gênero, como
tite; contudo, os pacientes costumam sentir fome, uma inscrição corporal, dolorosa e caricaturada das
porém, a controlam em demasia e rigidamente (Cor- normas que regem a construção do feminino na
dás & Claudino, 2002). contemporaneidade” (Mattos, 2006, p. 41).
Percebe-se que a cada momento histórico o Diante do cenário contemporâneo, como acon-
corpo era visto através de significados que refletiam tece o desenvolvimento da anorexia nervosa? Se-
o seu horizonte histórico (Barbosa, Matos & Costa, gundo Fernandes (2006), o quadro da AN instala-se
-

2011). No que respeita à essa imagem corporal, é de forma progressiva e, diversas vezes, de forma tão
importante lançar luz no atual horizonte. Com a lenta que inibe a precoce busca por ajuda profis-
Artigos

chegada do século XX, o corpo passa a se apresentar sional. É comum que a restrição alimentar tenha
por outro viés, a reprodução corporal não se exibe seu ponto de partida no silêncio, escondida atrás
somente na área da pintura – ou fotografia, como de uma suposta falta de apetite ou na busca pelo

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 182-193, mai-ago, 2018 184
“Oi, Meu nome é Ana” – Um Estudo Fenomenológico- Existencial da Experiência de Mulheres com Anorexia Nervosa

emagrecer. coexistimos com os entes – levam a uma mudança


Como já dito, a Anorexia Nervosa hoje é com- na visão de homem e dos meios para compreendê-
preendida como uma psicopatologia, sendo objeti- -lo, sendo o pesquisador fenomenológico aquele
ficada e diagnosticada, segundo a psiquiatria mo- que viabiliza esse “projeto” de olhar o homem dife-
derna. Os critérios diagnósticos, de acordo com renciadamente das ciências naturais, por exemplo,
o DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of e sendo as relações subjetivas entre pesquisador e
Mental Disorders, 5ª edição) são, principalmente: fenômeno consideradas (Souza, 2007). O pesquisa-
Medo intenso de ganhar peso ou de se tornar gordo, dor, então, aproxima-se dessa realidade e faz parte
mesmo estando com peso abaixo do normal; pertur- da experiência narrada, visto que o poder estar-
bação no modo de vivenciar o peso ou a forma do -com-o-outro faz parte do poder estar em contato,
corpo; e restrição da ingesta calórica em relação às e de se comunicar; o ouvir e contar história fazem
necessidades, levando a um peso corporal significa- parte deste contexto, que assume suas próprias con-
tivamente baixo. figurações na ocasião da entrevista (Dutra, 2002).
É interessante trazer aqui a reflexão sobre os A estratégia utilizada para atingir o objetivo
manuais diagnósticos, por exemplo, e o uso de me- proposto foi o uso da narrativa, como instrumento
dicações, que ignoram qualquer referência à esfe- de acesso à experiência. Foram realizadas entrevis-
ra do singular, o que podem remeter à questão da tas semi-estruturadas, com uma pergunta dispara-
técnica, abordada por Heidegger (1954/2012a). Os dora – “Como foi, ou como é, a sua experiência de
manuais limitariam a experiência de quem adoece anorexia?” – que permitiu à entrevistada falar sobre
à hipótese, sintomas e relações de causa-efeito? A a sua vivência.
sociedade atual vive em uma era tecnológica, isto Diante das relações e do mundo, o homem é
é, está sob o horizonte histórico de uma ciência tec- um ser de compreensão, ele está sempre compreen-
nicista. A discussão hermenêutica vai de encontro dendo e dando sentidos ao mundo. Para Heidegger,
a esse pensamento categorial-abstrativo. Heidegger de acordo com Dantas (2011a), a compreensão é a
defende que não é necessário, e possível, não fazer estrutura fundamental da existência humana e a
uso da técnica, pois mesmo que o homem negue interpretação é uma elaboração do que já foi com-
veementemente o uso da mesma, ele está preso, preendido. Para Heidegger (1927/2013), o que foi
sem liberdade. Heidegger vai apontar que “livre é interpretado não é isento de pressuposições. É na
o relacionamento capaz de abrir nossa Pre-sença à circunvisão que o ente vai se abrindo às suas pos-
essência da técnica” (Heidegger, 1954/2012a, p.11). sibilidades.
Como seria, então, poder considerar o saber médico No que concerne ao procedimento de análise
vigente e não se aprisionar somente nele? buscou-se a interpretação das entrevistas com base
É importante apontar que, por mais que os na analítica existencial. Tendo isso em vista, cons-
transtornos alimentares venham crescendo entre o trutos como Dasein, ser-no-mundo, ser-com, corpo-
público masculino, a prevalência em mulheres é rar, inautenticidade, angústia, técnica e tonalidade
muito maior, o que faz com que eles sejam consi- afetiva apresentaram-se como possibilidades na in-
derados desordens femininas (Mattos, 2006). Isto terlocução da analítica existencial com as narrati-
pode apontar para uma questão de gênero, já que vas provenientes das entrevistas.
das mulheres ainda hoje se espera que sejam “fe- As participantes da pesquisa foram seleciona-
mininas”, isto é, sorridentes, simpáticas, atencio- das através de divulgação, entre os profissionais da
sas, abnegadas, submissas, discretas, contidas ou área da saúde, quais sejam: nutricionistas, psicólo-
até mesmo apagadas. Frente ao olhar do outro, as gos, enfermeiros, médicos – assim como divulgação
mulheres se veem impostas a experienciar conti- virtual – rede social e blogs. Na divulgação foram
nuamente a distância entre o corpo real, a que es- explicitados os objetivos da pesquisa, sendo solici-
tão presas, e o corpo ideal, a que estas procuram, tado que, caso a pessoa atendesse aos critérios do
incessantemente, alcançar. No cenário contempo- estudo, participasse, ou caso conhecesse alguém
Relatos de Pesquisa
râneo, ser magra contribui para essa concepção que esteve vivendo a experiência da anorexia ner-
de “ser mulher” (Bordieu, 1999). Esse é o público vosa, indicasse para participação.
mais cobrado para que siga e apresente beleza e jo- Foram realizadas incontáveis ligações e estabe-
vialidade. Dos homens, então, costuma-se esperar lecidos inúmeros contatos, na busca por realizar a
provisão financeira, força e vigor. pesquisa. No entanto, a maior parte deles foi infru-
tífera. O que, de certa forma, já era esperado, pois
este é um público de difícil acesso, já que quem está
Método doente não se reconhece enquanto tal. Foram, en-
tão, entrevistadas duas pessoas. O número de parti-
Este estudo é caracterizado como uma pesqui- cipantes não respondeu a um critério a priori, mas
sa qualitativa fenomenológica, de inspiração heide- sim a como o campo de pesquisa se apresentou.
ggeriana. Na pesquisa fenomenológica consideram- Nesse molde de pesquisa, acredita-se ser possível,
-se a experiência vivida, a historicidade, as muitas em termos de existência, compreender seu fluir e
-

formas de linguagem, o tempo, isto é, a experiência não reduzi-la a seu caráter representativo, quantita-
como instrumento indispensável para a compreen- tivo e explicativo.
Artigos

são da existência humana. Esse modo de olhar e Das duas entrevistadas, uma estava vivendo a
compreender o mundo e as variadas formas de ex- experiência da Anorexia Nervosa, e tinha 17 anos; e
pressão do Dasein – que somos nós, os homens, que outra que já tinha passado por essa vivência, duran-

185 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 182-193, mai-ago, 2018
Élida Mayara da Nóbrega Cunha; Elza Maria do Socorro Dutra

te adolescência, na ocasião tinha 30 anos de idade.


Houve um encontro com cada participante e cada As entrevistadas
entrevista durou cerca de uma hora.
Como já dito, a narrativa foi usada como instru- Foram duas entrevistadas: Lia e Tris1. Aqui se-
mento de acesso à experiência. A forma de acessar o rão apresentados trechos das narrativas com o in-
vivido pela linguagem aconteceu, nesta pesquisa fe- tuito de ilustrar essa etapa do estudo.
nomenológica heideggeriana, através da narrativa.
É através dela que a coisa desvelada é conservada, é Lia. Não sei se um dia vou descobrir o que é
através, então, da linguagem que o que foi desvela- verdade”.
do pode ser registrado. Critelli (1996), de forma tão Lia, 17 anos, estudante, mora com a família.
leve, nos fala que o que foi desvelado é exposto na e Faz acompanhamento com psiquiatra, psicóloga e
pela palavra. É o homem quem guarda o sentido do nutricionista. Os tratamentos começaram após a
ser, através das palavras. “A linguagem é a morada mesma dizer que se sentia mal emocionalmente e
do ser” (p.74). família procurar ajuda psicológica. Lia conta um
Assim, a narrativa, segundo Dutra (2002), des- pouco da sua experiência de não-comer, conside-
taca-se na pesquisa fenomenológica, pois a expres- rando-a como um estilo de vida, e que começou há
são da experiência se dá através da linguagem, atri- cerca de dois anos, apesar dela mesma se dizer ma-
buindo sentido ao vivido. Heidegger (1927/2013) gra e a pouca alimentação ter sido uma constante
defendia que “o fundamento ontológico-existencial em sua vida.
da linguagem é a fala” (p. 223), ela é tão originária
quanto a disposição e o compreender. Ele vai além Pode parecer um pouco estranho, mas eu não
e defende ser necessário apropriar-se do conhecido, vejo como algo ruim. Porque eu admiro muito
abrindo-se à afetação das experiências para dar for- a pessoa ser magrinha. Eu vejo isso como um
ma à sua interpretação. E, “só o que é falado pode caminho para ter esse estilo de vida. Já vi his-
ser presença” (Critelli, 1996, p.76). tórias de pessoas que morreram, que ficaram
Um diário de campo também foi utilizado, ser- muito doentes, mas eu não consigo ver como
vindo como mais um instrumento de pesquisa, no doença. (...). Desde pequena eu tive muita difi-
qual foram registradas impressões sobre as entre- culdade para comer, todo mundo reclama que
vistadas, os lugares, as expressões corporal e facial, sou bem ruim para comer. (...) esse ano mes-
assim como os sentimentos e pensamentos que na mo que as médicas falaram [sobre a anorexia],
entrevistadora emergiram. Através dele é comunica- mas eu sempre tive esse estilo de vida de não
do o vivido, percebido, sentido; é tecer histórias in- comer. Mas foi há cerca de uns dois anos que
terligadas, que também são tecidas por entre outras comecei a não comer por não querer.
narrativas. É uma forma de ver, pela perspectiva de
quem escreveu, a experiência e como ocorreu o des- Apesar de considerar o não-comer um estilo de
velar dessa troca existente na entrevista. O uso de vida, começou o tratamento da anorexia de forma
mais esse instrumento visava auxiliar na compreen- indireta, pois relata que se sentia mal emocional-
são das experiências de pesquisadas e pesquisadora. mente (isolava-se e sentia-se triste com frequência)
No momento da entrevista, as entrevistadas e foi esse o motivo de procurar tratamento psico-
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Es- lógico. Assim, pois, ela inicia o acompanhamento
clarecido, assim como o termo de autorização de medicamentoso e o psicoterapêutico. Lia comple-
gravação de voz. A pesquisa foi aprovada pelo menta contando que “eu sempre fui assim, mas
Comitê de Ética, sendo o CAAE (Certificado de nesses últimos meses estava insuportável. Aí falei
Apresentação de Apreciação Ética) o de número com minha avó e a gente começou a procurar [ajuda
42952015.0.0000.5537. profissional]”. À época da entrevista Lia estava em
O caminho percorrido para a análise das falas acompanhamento há cerca de um ano.
Relatos de Pesquisa

das participantes passou pelo registro/gravação das Lia conta que algumas pessoas vinham falar
entrevistas e transcrição. Posteriormente os depoi- com ela, “brigar” para que ela comesse, porém con-
mentos foram interpretados. Acerca dessa etapa, ta nunca ter se preocupado quando as pessoas fala-
pode-se dizer que “os depoimentos são comentados vam que emagrecer muito faz mal, “por mais que as
e interpretados a partir dos significados que se reve- pessoas viessem falar, mas na minha visão eu não
lam na experiência narrada e como produto das re- iria chegar a esse ponto. É como se fosse fantasia, às
flexões feitas pelo pesquisador na sua trajetória de vezes. Eu nunca cheguei a me sentir mal mesmo”.
vida pessoal e profissional, ancoradas numa ótica Já que ela se sentia bem com seu corpo magro, não
existencial da condição humana” (Dutra, 2002, p. chegava a passar mal (desmaios, por exemplo, por
377). A análise, então, seguiu por esses caminhos: falta de alimentação) e via como estilo de vida, faz
gravação e transcrição das entrevistas; leitura das total sentido, durante todo seu relato, que ela não
referências concernentes à temática e olhar heide- acreditasse que algo ruim (como se vê nas notícias)
ggeriano, interpretação hermenêutica, análise do pudesse acontecer como consequência do seu não-
-

diário de campo e, finalmente, a síntese compreen- -comer.


siva da experiência. Um trecho que chama a atenção e pode causar
Artigos

certa apreensão, é quando ela conta que “algumas


vezes eu cheguei a pensar em como seria ter me-
Resultados e discussão
1 Nomes fictícios

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 182-193, mai-ago, 2018 186
“Oi, Meu nome é Ana” – Um Estudo Fenomenológico- Existencial da Experiência de Mulheres com Anorexia Nervosa

nos [peso], mas eu não sei se conseguiria. Por mais eu comecei a perceber que eu achava bonita
que eu tivesse menos, em alguma hora eu não ia a magreza quando eu via algumas pessoas e
conseguir porque tem outras coisas dentro de mim me dei conta que eu poderia conseguir aqui-
[referindo-se aos órgãos]”. Então o que aconteceria lo. Acho que isso começou quando eu tinha
com Lia caso ela não tivesse “coisas dentro” de si? em torno de 11, 12 anos. (...) São as imagens
Emagreceria ao ponto de não-existir mais? que as pessoas colocam, por exemplo. Eu acho
Ao continuar o relato sobre seu corpo, Lia diz que que posso chegar assim. Não tão magra quan-
to, mas próximo. (...). Não as pessoas famo-
Eu, sempre fui assim, com esse corpo, mas sas, porque me parece meio artificial: elas têm
quando eu me vejo, eu vejo que está uma coisa muito dinheiro, podem fazer o que quiserem.
em excesso em mim. Nesses dois anos para cá É mais das meninas que são minha faixa de
comecei a me ver assim. A maioria das pessoas idade, que têm essa coisa mesmo, como estilo
diz que não vê. Mas sou eu mesma, eu me olho de vida. Mais ou menos isso, pessoas iguais a
no espelho e acho que tem alguns lugares que mim. (...). Acho que eu via muitas imagens e
têm muita coisa, por mais que não pareça, mas achava aquilo muito bonito, queria aquilo para
para mim tem. mim. Então acho que foi isso que me fez fazer
isso consciente, com noção de querer.
Para Heidegger (1987/2001), o corpo é sempre
um corporar (Leiben), em que o corporar é sem- Desperta a atenção quando ela fala sobre pes-
pre o modo-singular-de-ser-do-homem-no-mundo. soas famosas, de serem artificiais. Apesar de todo o
Em vista disso, o fenômeno do corporar opõe-se à horizonte histórico, o olhar de Lia não é para essas
mensurabilidade. Para ele, o corpo humano não é pessoas e sim para com seus pares, meninas como
compreendido como um objeto de carne e osso, e ela; como há identificação da parte dela com as me-
nem como um puro organismo, biológico. O Dasein ninas que são “iguais a mim”. Identificação que tal-
não tem um corpo, ele é seu corpo, ele é corpóreo. vez ela não encontre em muitas outras situações.
O corpo humano expressa ideias, significados, ex- Lia conta que antes ela conseguia ver o espaço
periências pessoais. Com base nessa ideia, fica o entre suas pernas, “esse osso daqui [aponta para os
questionamento sobre qual é o sentido que Lia atri- ossos da bacia] eu também via bastante e eu acho
bui a si mesma, à sua experiência do emagrecer e isso muito legal. Aí quando eu não consigo ver isso,
estar cada vez com o peso mais baixo. O que signi- para mim, está fora do comum, do meu padrão”.
fica isso para ela? Esse espaço entre as pernas e os ossos da bacia já
Em outro momento ela traz as relações fa- não estão mais tão visíveis, segundo ela, porque seu
miliares e diz não ter intimidade com o pai “(...) peso aumentou, por consequência do uso das me-
eles são separados, acho que desde que eu nasci. Eu dicações.
meio que nunca tive intimidade com eles, só com Na busca por esses corpos que Lia olhava e
minha avó. A minha mãe é como se fosse minha admirava, ela conta sobre os sintomas físicos:
irmã mais velha”. E mais para o fim da entrevista
ela traz uma fala forte, mas que é dita de forma ab- Meu ciclo [menstrual] ficou confuso... eu não
solutamente impessoal: “por mais que eu não tenha sabia desse detalhe, estava tudo bagunçado.
culpa de ter nascido, eu acho que isso foi um pro- Acho que vim me dar conta quando comprei
blema para os meus pais. É esse o pensamento que um livro que falava de uma menina que tinha
eu tenho”. Talvez, ao ser um problema para os pais, anorexia... O livro é Garotas de Vidro2. Eu gosto
ela pudesse se sentir um peso. Como lidar com esse bastante desse livro. E tem uma parte que ela
“excesso” de peso? Outra impressão que emerge é fala desde o período que ela começou a ter esse
a de que Lia se sente um fardo para quem convive estilo de vida foi quando ela parou de mens-
com ela. Um fardo tão grande que ela, talvez, pre- truar, aí me dei conta. Eu não sabia que uma
Relatos de Pesquisa
cise diminuir o peso. Incomoda tanto o outro, é um coisa tinha a ver com a outra.
fardo tão grande, que ela quer sumir: (não) comer
até sumir. Seria isso? O livro citado pela entrevistada é narrado, e
É interessante refletir sobre as relações estabe- tem por protagonista, Lia (e daqui vem a inspiração
lecidas na família de Lia. Segundo ela, seu padrão para o codinome da entrevistada), uma jovem de 18
alimentar sempre foi de pouco consumo, não era anos, que está no último ano do colégio. Em certas
algo que ela escondia, era explícito e toda sua famí- passagens do livro, a personagem Lia está tão per-
lia sabia. No entanto, somente de pouco tempo para dida em meio às suas dores, dúvidas e angústias,
cá foi que começou um olhar voltado para com sua parecendo achar âncora no seu desejo de manter
alimentação, para com sua saúde. Isso aconteceu, um peso cada vez mais baixo; das certezas que ela
segundo a cronologia que Lia narrou, após procurar parece ter, a constante perda de peso aparenta ser
ajuda por não se sentir bem emocionalmente e, en- uma das únicas.
tão, as profissionais (psiquiatra e psicóloga) terem E foi esse livro que chamou atenção da entre-
-

alertado para a questão da anorexia. Surgem as per- vistada. Foi através dele que ela disse ter se dado
guntas: Ela era vista? Como ela era vista? conta que, realmente, poderia estar com alguns
Artigos

Lia fala sobre o admirar a beleza magra e narra sintomas da anorexia – lembre-se que ela não fala
que diretamente, em momento algum, que desenvolveu
2 Garotas de Vidro é um livro da autora americana Laurie Halse
Anderson (2012).

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Élida Mayara da Nóbrega Cunha; Elza Maria do Socorro Dutra

Anorexia Nervosa. Foi através dele que ela relacio- -ser se desvelam. O Dasein é sempre essa possibi-
nou as consequências do transtorno alimentar com lidade de vir-a-ser. Então, “a ontológica inospitali-
algo que estava sendo vivido por ela naquele mo- dade do mundo e a ontológica liberdade humana
mento: a amenorreia. Algo externo, a narrativa do são regentes de toda forma do homem conhecer o
livro, foi o que fez Lia atentar para a possibilidade mundo” (Critelli, 1996, p. 18).
da anorexia. E, de fato, a amenorreia era, até pou-
quíssimo tempo, um dos critérios diagnósticos, isto Às vezes parece que, para algumas pessoas que
é, uma das consequências da anorexia, sendo um eu tenho mais proximidade, elas não têm inte-
indicativo sério de uma disfunção fisiológica. resse em ouvir essas coisas. Estou me referindo
Voltando às falas da entrevistada, “A minha às coisas que eu penso tanto em relação a isso
psicóloga fala que eu tenho que tomar meu lugar [da tristeza], em relação a peso
no mundo. Aí isso parece meio errado para mim,
mas eu estou tendo que lidar com isso. Para mim, E o que seria a depressão, com a qual Lia é
era algo normal eu não conseguir ficar à vontade na diagnosticada e medicada, se não a falta de sentido
minha própria casa”. diante do mundo? O mundo é “uma trama fluida,
A compreensão da possibilidade da existência que desaparece sob nossos pés tão logo o sentido
de Lia estar tão atrelada à expectativa do outro, bus- que ser faz se dilui e, então, nos faz falta” (Critel-
cando a não-decepção do outro, o não-incomodar, li, 1996, p. 18). Quando o sentido se esvai, sobra o
remete à ideia de talvez ela buscar ser invisível, ou ser-aí, sozinho, solto, cara a cara com o nada, sem
pouco vista. Ela conta, também, que não se sente fa- as coisas e pessoas para lhe abraçar e unir na exis-
zendo morada em sua própria casa. O habitar, para tência, como antes.
Heidegger (1954/2012b), diz da abertura de sentido. Heidegger (1927/2013) disse que “o irromper
Ele se refere à construção de um sentido que pode fisiológico da angústia só é possível porque a pre-
vir a possibilitar ao homem uma aproximação com -sença, no fundo do seu ser, se angustia” (p. 257). E
o seu ser si mesmo, de maneira a poder habitá-lo. foi essa angústia que Lia parece ter sentido e que a
Ao trazer Camasmie (2014) para a discussão, fez buscar por ajuda. Não foi seu corpo, o não-co-
ela aponta que habitar esse espaço “de estranheza, mer, a amenorreia, etc. Nada disso gerava angústia
de desamparo, pode ser tão insustentável, que ele ao ponto de buscar por ajuda. Porém, seus senti-
arrasta muitas vezes de volta o ser-aí a abrigar-se na mentos com relação a si mesma, e ao outro, sim.
convivência imprópria” (p.130). A convivência im- A falta de sentido diante de sua história de vida
própria, à qual a autora se refere, remete à discus- foi angustiante a ponto de não mais suportar viver
são sobre impropriedade. Heidegger (1981) aponta com isso. A angústia aparece como um mobilizador
que, no modo de ser impróprio, o Dasein preserva existencial. Diante dela, então, Lia abriu-se à pos-
o conhecido e evita a abertura de sentido, ou seja, sibilidade de transitar pelos dois modos: próprio e
restringe suas possibilidades de ser. impróprio.
Talvez seja possível pensar na relação entre o Lia termina a entrevista dizendo que, ao ver
não-comer e um possível modo impróprio da exis- cenas mais fortes sobre a AN, “(...) nessa visão me
tência, levando em consideração que é no mundo, parece algo ruim, mas o que eu vivo, não me parece.
e a partir dele, como horizonte de constituição dos Fica essa confusão. Não sei se um dia vou desco-
sentidos, que a experiência do não-comer pode ser brir o que é verdade” (grifo nosso).
compreendida. Assim como as conseqüências des- A questão de descobrir o que é verdade,
se não-comer, sendo o emagrecimento extremo uma remete à ideia de aletheia. A palavra aletheia vem
delas. Quiçá Lia, por habitar um lugar de estranhe- do grego e tem seu sentido atrelado à verdade. Já
za, seja “empurrada” à impessoalidade, experien- Heidegger (1927/2013) retoma o termo para definir
ciando, então, o viver da massa, a busca do “a gen- a tentativa de compreensão da verdade, porém, ele
te” pela magreza. Que lugar “estranho” seria esse aponta seu uso no sentido do desvelamento, da de-
Relatos de Pesquisa

que Lia estaria habitando? socultação, de trazer à luz. A verdade sendo aquilo
Ao voltar a narrativa aos seus sintomas, ela que se mostra desvelado. Pensando nisso, surge o
conta que “Eu não sabia que eram sintomas de de- questionamento de que verdade é essa que Lia quer
pressão, não diretamente. Achava que tinha algu- descobrir? O que ela busca desvelar? Que sentidos
ma coisa errada, mas não a esse ponto. Quando a são esses que podem vir a ser desvelados?
médica falou da possibilidade de tomar remédio, eu Diante da frase acima, pode-se remeter a
fiquei pensando no que minha avó ia achar. Esse foi uma frase dita pela Lia, do livro Garotas de Vidro,
o problema maior. (...). Não gosto de decepcionar os sobre sua possível distorção corporal: “Ninguém
outros. Não espero nada de mim. Para mim, é nor- consegue me explicar por que meus olhos funcio-
mal se eu não conseguir alguma coisa”. nam diferentes dos delas. Ninguém pode fazer isto
O não-ter lugar no mundo, que se desvela parar”.
durante toda a entrevista de Lia, remete ao pensa-
mento de Critelli (1996) de que é condição existen- Tris - “Nosso corpo não é fita métrica!”
-

cial do homem a não-pertença ao mundo, a inospi-


talidade. O mundo não oferece fixação, nem abrigo, A segunda entrevistada entrou em contato
Artigos

nem acolhimento, como acontece com os elementos depois da divulgação realizada. Para a surpresa da
naturais; um mundo provisório e imprevisível. É entrevistadora, ela é uma pessoa conhecida: seus
diante dessa fluidez que os infindáveis modos-de- caminhos se cruzaram nos cursos. Marcou-se data,

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 182-193, mai-ago, 2018 188
“Oi, Meu nome é Ana” – Um Estudo Fenomenológico- Existencial da Experiência de Mulheres com Anorexia Nervosa

local e horário, e a pesquisadora foi ao seu encon- Era. Me enxergava como magra? Não, por causa
tro. da minha barriga. Hoje quando eu vejo foto, “eu
Antecipando aqui um pouco a descrição, era tão magra”. Era como se eu dissesse assim
no final da entrevista, questionada se tinha algum “ah, eu não tenho esse corpo violão como o de-
nome que gostaria de ser chamada na pesquisa, ela las, mas eu vou ter uma barriga assim”.
pensou por um segundo e, então, seus olhos bri-
lharam e ela respondeu rapidamente: Tris. Tris de A experiência de mundo de Tris estava perpas-
Divergentes, sabe? “Divergentes” é uma série de li- sada pela questão corporal, de acordo com o seu re-
vros (e estão virando filme), com quatro volumes; o lato, pela forma como ela experienciava seu corpo.
primeiro deles se chama exatamente Divergente. O Retomando o corporar, de Heidegger, e, ao pensar
livro volta um pouco mais adiante. o corpo como uma dimensão de realização da exis-
Tris, 30 anos, profissional da área da saúde e tência, segundo Dantas (2011b), não podemos falar
mora com sua família. À época da entrevista sem de uma pessoa que adoece como algo somente físico
sintomas de anorexia. que ocorre diante de um corpo biológico, mas, sim,
precisamos falar sobre a totalidade de uma exis-
Tudo começou, eu não digo cronologicamente, tência, pois é sempre uma existência humana que
mas se eu fosse organizar na minha cabeça, eu sofre e não somente um corpo simplesmente dado.
acho que tudo começou quando eu tinha uns 12 Então não era o querer emagrecer, e não ter barriga,
anos, eu estava na sexta série e eu me desen- e, consequentemente, o ter chegado à anorexia que
volvi muito depois das minhas amigas. Se você trazia o sofrimento relatado por Tris, mas, sim, sua
olhar em fotos, é bem interessante porque é todo existência como um todo que estava em sofrimento.
mundo “pá, pá, pá” [e faz gestos que indicam Na adolescência foi que eu fiquei muito ma-
volume de corpo: seios, bumbum, pernas] e eu grinha, nessa época, até os 13, 14. (...). E eu sem-
bem com corpinho de criança; não tinha peito, pre aparentei ser muito mais nova do que eu era.
era muito magrelinha, muito. (...). Aí o que é que Até aí, a ir pela cara, tudo bem, mas o meu corpo
aconteceu? Eu também fui a última a menstruar, denunciava que eu não estava nessa idade ainda.
então eram os sinais da adolescência chegando Nesse trecho da fala da entrevistada, há semelhan-
para todo mundo, menos para mim. ça com uma fala da Tris, a personagem do livro, ao
falar sobre seu corpo: “Ainda pareço uma criança,
Interessante como, ao longo da entrevista, Tris apesar de ter completado dezesseis anos em algum
aponta seguidas vezes para sua não-menstruação e momento dos últimos meses”. Em outra parte do li-
como isso a colocava mais ‘distante’ (do desenvolvi- vro, há essa fala: “Eu gostaria de ser mais alta. Se
mento físico) das amigas. Porém, mais à frente, ela eu fosse alta, meu físico magro seria considerado
relata que uma das características que apontavam esbelto, e não infantil”, demonstrando a insatisfa-
para a anorexia foi exatamente a amenorreia. Algo ção consigo mesma. Insatisfação que a entrevista-
que fazia falta, no começo do seu desenvolvimento da também demonstrou, ao longo de sua narrativa.
de transição de criança para adolescente, e mais li- Essa insatisfação da entrevistada cresceu ao ponto
gado à feminilidade, foi exatamente o que foi para- de fazê-la querer modificar seu corpo, e a forma que
lisado durante alguns meses. ela achou para tal foi começar a dieta para ficar com
a barriga “retinha”.
Ela fala sobre a influência das imagens que via Sobre ela buscar magreza e a participação de
“eu sempre comprava Boa Forma. Lembro de- sua família, Tris conta que:
mais que minhas amigas compravam Capricho,
era febre. Eu não. Eu comprava Boa Forma. E Ninguém percebia isso. Começaram a perceber
tem exercícios, né? Eu fazia todos! Todos!”. quando eu comecei a aloprar em dieta. Porque
eu ficava pedindo para minha mãe, ‘mãe, eu
Relatos de Pesquisa
É comum, de acordo com Bittencourt e Almei- quero emagrecer, eu quero emagrecer’. Aí fui
da (2013), que os jovens, principalmente as adoles- para a endócrino. E ela passou a dieta. Então,
centes do sexo feminino, busquem um ajustamen- por um lado, minha mãe ficou mais segura,
to dos seus corpos, no que cerne à exibição de um mas eu comecei a aloprar. Por exemplo, se co-
corpo considerado esteticamente adequado, tendo mia X num dia, eu comia metade. E eu comecei
como padrão as imagens de mulheres considera- a emagrecer muito, muito mesmo. Eu cheguei a
das ideais, como modelos e atrizes. Com ajuda das ficar com 47kg, com essa altura que tenho hoje
thinspiration (fotos de mulheres jovens e magras, [cerca de 1,67]. Eu fiquei um bom tempo, na 8ª
que servem como inspiração), elas mantêm-se for- serie, com 47kg.
tes no propósito de que qualquer sacrifício de dese-
jos é válido para alcançar o objetivo estético. Ao não Os sinais físicos do seu não-comer começaram
se desenvolver fisicamente como suas amigas, fala a ficar mais visíveis “minha mãe começou a perce-
também da sua motivação para emagrecer: ber que meu cabelo estava caindo. (...) Um dia me-
-

xendo no meu cabelo, tinha um buraco. Um buraco!


O que motivava a emagrecer era a barriga. (...) eu Que tinha começado a cair. E eu já estava há seis
Artigos

não tinha uma barriga como a das meninas. En- meses sem menstruar”. Tris relata que seu cabelo
tão, na minha cabeça, era parando de comer que cair foi um choque para si, ainda mais porque ela
minha barriga iria diminuir. Eu era magrinha? conta que achava seu cabelo lindo e que o mesmo

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Élida Mayara da Nóbrega Cunha; Elza Maria do Socorro Dutra

era muito elogiado. Com a amenorreia, Tris conta qual as coisas se desvelam. Essa disposição afetiva
que relatou sobre isso para a mãe, mas a mãe achou conduz a maneira como o homem se relaciona com
que pudesse ser pelo período inicial do seu ciclo, da o que lhe vem ao encontro, atribuindo-lhe sentidos.
adolescência. No entanto, Assim sendo, o homem possui uma pré-compreen-
são das coisas que foi predisposta pelo seu humor;
quando começou a queda do cabelo, aí ela co- tudo que vem ao encontro do homem, como as coi-
meçou a preocupar. Aí a gente foi fazer uma sas e os outros, passam a afetá-lo e através dessa
bateria de exame. (...). Foram seis meses assim, afetação é possível uma compreensão. Heidegger
aí eu lembro que eu fui à nutricionista. Eu tive chama de temor (ou medo).
uma nutricionista muito legal na época, eu Diante disso, é interessante perceber como as-
acho que ela ajudou muito. (...). Foi ela quem pectos de pertencimento em seu corporar, algo que
nomeou a questão da anorexia. Tris tentava construir, a colocam diante do temor.
Diante desta tonalidade afetiva, o temor manifesta,
Esse modo de cuidar, por parte da família, é em termos ônticos, a condição ontológica da an-
relatado por Tris quando ela fala que “A nutricio- gústia, já que não existem garantias ou parâmetros
nista falou sobre a anorexia para minha mãe. Meu fixos na possibilidade de ser. Tris lida, pois, com
pai nunca foi muito engajado, não. Muito mais no o não-pertencimento, com a singularidade de seu
sentido dela comentar, sabe? ‘olha, presta atenção corpo e com o seu próprio ser si mesma.
se Tris está comendo’. Eles nunca foram, como eu Ao sair da fase obsessiva pela magreza, Tris
posso dizer, muito envolvidos com isso, não”. conta que, ao chegar ao pré-vestibular, cerca de dois
Tris conta que, apesar da pressão materna em anos depois da fase mais magra, a pressão e a ansie-
vigiar a sua alimentação, a mesma não chegou a de- dade, costumeiramente características desse perío-
senvolver características da bulimia, que seria um do, ela começou a comer em excesso e a engordar.
comportamento purgativo, depois de comer. “Na “Quando foi no pré-vestibular foi que a coi-
frente da minha mãe eu comia. Nunca desenvolvi sa saiu do eixo porque eu engordei muito. Muito,
bulimia ou algo do tipo, não. Mas ela ficava vigian- muito, muito. No Pré eu cheguei a pesar 68. Saí de
do”. No entanto, depois desse tipo de situação, ela um extremo para outro. A coisa era triste porque eu
costumava exagerar ainda mais na atividade física. descontava o estresse na comida e era aquela coisa,
Diante de todo seu contexto vivido, o pon- ‘eu desconto aqui, mas eu estou ficando uma bola’.
to-chave para que Tris percebesse que algo estava Era compulsivo mesmo”. Tris aponta que “a sensa-
acontecendo consigo e fosse buscar ajuda, foi quan- ção, era muito mais prazerosa de eu estar muito ma-
do seu cabelo – do qual ela tanto tinha orgulho – gra do que eu estar gordinha”.
começou a cair e a amenorreia já se estender há seis Interessante como Tris reagia e demonstra-
meses. É interessante pontuar como a anorexia foi va, através do corpo, suas questões vividas em cada
sendo desenvolvida diante da experiência de não época: magreza, sobrepeso, peso saudável. Quando
adequação a um corpo socialmente esperado para tinha o corpo mais infantil, ela emagreceu ao ponto
aquela determinada idade, mas é na perda de as- de ficar ainda mais infantilizado. Após esse perío-
pectos de seu corpo, vividos como possibilidade de do, ela engorda. Ao engordar, passa a tentar escon-
pertencimento, que a anorexia passa a ser reconhe- der seu corpo, com ênfase na sua barriga. A relação
cida. com seu corpo parece permeada por insatisfações.
As consequências físicas da anorexia se Que relação é essa com seu próprio corpo?
alastram, de fato, por todo o corpo. Consequências Ao retomar a história de vida de Lia, a entre-
essas que passam pelas alterações metabólicas, en- vistada anterior, abordou-se sobre o habitar. Na
dócrinas – como a amenorreia –, ósseas e de cres- cotidianidade elas parecem habitar o que já está
cimento, hidroeletrolíticas – como arritmias car- habitado por outros, no modo de ser do impessoal.
díacas –, hematológicas, visuais, cardiovasculares, Ficam absortas no que já está previamente dado,
Relatos de Pesquisa

pulmonares, renais e gastrointestinais (Assumpção apresentando-se enquanto uma habitação tranqui-


& Cabral, 2002). No caso de Tris, os principais sin- la e satisfatória, já que, além de abrigar-se, pode
tomas, percebidos e relatados por ela, foram a que- também identificar-se com os demais que ali se en-
da do cabelo e amenorreia. contram. Uma habitação que é de todos, mas não
Diante do seu cabelo caindo, pode-se refle- aponta para ninguém, a habitação do “todos nós,
tir sobre se o temor, enquanto tonalidade afetiva, ninguém”. Como Tris tem se relacionado com suas
se posiciona diante de si. Diante da imagem que possibilidades de ser-no-mundo?
ela tem de si mesma, do medo do que pode estar Essa possível restrição nos modos-de-ser, pode
acontecendo para seu cabelo cair; de ouvir do ou- remeter à técnica que Heidegger (1954/2012a) abor-
tro (no caso, a nutricionista) que tinha uma doença. dava, e foi falada no início deste artigo. A questão
Heidegger (1927/2013) aborda a disposição afetiva, da técnica moderna é que ela se compreende como
mais conhecida como humor, “o estar afinado num elemento de mediação que não permite desvelar
humor” (p. 193). Para Heidegger, o homem, na com- outras possibilidades dos entes, mas apenas uma
-

preensão, encontra-se disposto com um humor que única verdade sobre. O padrão de beleza imposto
aponta como ele – o homem – está. Este humor, pois, seria uma dessas verdades, levando a refletir sobre
Artigos

influencia a percepção sobre algo. Através do olhar a objetificação e coisifição, características tão pró-
ontológico, a disposição afetiva é um modo funda- prias dessa era da técnica, que reduz o homem a
mental do Dasein, sendo ele a abertura original na uma categoria específica de corpo. Ao coisificar seu

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 182-193, mai-ago, 2018 190
“Oi, Meu nome é Ana” – Um Estudo Fenomenológico- Existencial da Experiência de Mulheres com Anorexia Nervosa

corpo – seja na anorexia ou, no outro extremo, o ex- objetivando apreender aquilo que se mostrou na ex-
cesso de peso – Tris experimenta sofrimento, redu- periência das participantes da pesquisa. Para tanto,
zindo boa parte da sua cotidianidade ao corpo. Ao foi preciso estar aberto para o que ali se desvelava,
trazer sua narrativa para os dias atuais, Tris expõe da forma como era apresentado pelas entrevistadas.
que a preocupação com o corpo, Há uma ideia que tenta ser afirmada por alguns pes-
quisadores: a de que as pessoas que passam pela
dura até hoje. Só que hoje é mais assim: anorexia nervosa apresentam determinadas carac-
eu sei que a dobra da calça existe porque meu terísticas semelhantes, como tipos de personalida-
bucho vai para cima, o que é natural. Hoje eu de, famílias com determinados traços, entre outras.
consigo ver como natural, antes era muito en- Porém, o que o estudo mostrou, mesmo o número
graçado. Eu ia sair com meus amigos, na época de entrevistadas podendo ser considerado pequeno,
de cursinho, eu não sentava. Porque era aquela é que elas são tão diferentes! É importante pontuar
coisa, não podia dobrar a barriga. Quando eu aqui que alguns aspectos em comum foram encon-
ia para aula, era sempre com blusa muito fol- trados, mas muito mais na construção de sentido
gada, para esconder. Eu não me sentia bem, desenvolvida na interpretação das entrevistas do
eu não me sentia bem. Hoje em dia, eu sento, que em aspectos externamente observáveis. Nesse
o negócio vai dobrar, mas não estou nem aí, contexto simultaneamente simbólico e concreto, a
entendeu? [risos]. anorexia aparece como possibilidade. Lia e Tris têm
suas próprias peculiaridades, suas próprias histó-
Tris narra, de forma bem tranquila, que hoje rias. E como seria restringi-las somente à anorexia?
ela olha para tudo que viveu e compreende que a Reduzir-se-ia, pois, suas ricas trajetórias a um diag-
experiência da anorexia trouxe mais benefício do nóstico?
que malefício. Trouxe uma noção e conscientização Heidegger (1987/2001), em seus Seminários
do que, e quanto, precisa comer para estar saudá- de Zollikon, amparou boa parte da discussão sobre
vel. Tris ainda ao falar sobre o hoje: “se você per- o que é considerado doença. A questão da anorexia
guntar ‘você está bem com seu corpo?’, não. Porque nervosa, inspirada em uma fenomenologia heideg-
eu viajei agora e comi muito, entendeu? Mas muito geriana, não pode ser pensada como uma doença
feliz comendo [risos]”. Continua ao falar sobre a física ou psicológica, como costuma ser vista, de
situação atual, do quanto é interessante como “fica acordo com o saber médico vigente. Mas, sim, o pa-
registrado no corpo. (...). Se alguém me perguntar se decer enquanto modo de desvelamento da própria
eu estou satisfeita com meu corpo hoje, não estou. existência, sendo o sofrer ontológico e inerente à
Mas estou estressada com isso ou isso faz parte das condição humana, e não somente como algo que
minhas cinco maiores preocupações? Não. De forma precisa ser expurgado, como a medicina moderna
alguma”. leva a crer.
Talvez Tris estivesse no modo impessoal A pessoa que está no modo de ser da ano-
e, apropriando-se dessa sua condição, construin- rexia precisa ser compreendida como um ser-no-
do e começando a habitar seu corpo, possa ter se -mundo capaz de construir seus próprios sentidos.
aproximado, em alguns momentos, da proprieda- E essa não é tarefa fácil: estar imerso na cotidiani-
de. Ela conseguiu, inclusive, enxergar e abrir no- dade faz com que o pensamento objetivante seja o
vas possibilidades de existir diante do mundo e do predominante. No caso específico da anorexia, seria
seu corpo. Heidegger (1981) não faz juízo de valor pensar a experiência como uma doença, e somente
quanto aos modos próprio e impróprio, não existin- ela, com determinado tipo de tratamento – medica-
do aspecto evolutivo e nem definitivo. É uma deci- mentoso e psicoterapêutico, muitas vezes um trata-
são que acontece a cada momento, não havendo na mento descontextualizado da vida do paciente.
existência nada predefinido. Ele aponta apenas que O corpo foi algo muito pensado, narrado e per-
são modos de-ser-no-mundo e que o Dasein transita passado por tantos sentidos. Heidegger (1987/2001)
Relatos de Pesquisa
entre esses modos durante a vida. fala sobre o corporar, algo que vai além de se pensar
Quando, ao ir finalizando a entrevista, foi o corpo meramente físico. Ele propõe exatamente a
questionada sobre deixar um recado para quem está não-dicotomia do corpo. O corporar do corpo, para
ou esteve na anorexia, Tris encerra dizendo que Heidegger (1987/2001), é um modo do Dasein. E “o
corpo não é alguma coisa, algum corpo material,
O recado que eu deixo para quem está ou es- mas sim todo o corpo” (Heidegger, 1987/2001, p.
teve com anorexia é que comam felizes [risos], 114), em que o limite do corporal é o horizonte-do-
que comer é bom! [risos]. Que seu corpo não é -ser no qual o Dasein permanece. Ficou muito claro,
fita métrica, que para mim é bem isso, eu via com a fala das participantes, que não foi um cor-
meu corpo como fita métrica. Acho que o maior po físico que adoeceu. A existência foi atravessada
recado que eu podia passar era isso: nosso cor- pela experiência da anorexia, pelo modo de ser pos-
po não é fita métrica!(grifo nosso) sível naquele momento. E quantos sentidos Lia e
Tris mostraram, com suas narrativas, sobre o corpo!
-

Perante as duas histórias tão ricas, é possí-


Considerações finais vel levantar alguns pontos quanto à anorexia: existe
Artigos

outra forma de se tratar a anorexia, conhecida en-


A pesquisa buscou posicionar o leitor, o mais quanto doença, diferente de como é tratada hoje?
próximo possível do fenômeno anorexia nervosa, Como será que é hoje o olhar da família e dos profis-

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Élida Mayara da Nóbrega Cunha; Elza Maria do Socorro Dutra

sionais que cuidam de pessoas com o quadro? Algo dagem fenomenológico-existencial: contribuições
pode e/ou precisa ser alterado? Ao pensar e lançar heideggerianas. Ed. Via verita, Rio de Janeiro.
respostas a esses questionamentos, consideramos
que a anorexia pode, sim, ser compreendida e olha- Cordás, T. A., & Claudino, A. de M. (2002). Transtornos
da de uma outra forma, que não somente como uma alimentares: fundamentos históricos. Revista Bra-
psicopatologia. Talvez aqui caiba, por parte dos pro- sileira de Psiquiatria, 24 (3), 03-06.
fissionais e familiares, um cuidado especial; cuida-
Cordás, T.A. (2004). Transtornos alimentares: classifi-
do esse que possa ir além dos sintomas da doença,
cação e diagnóstico. Revista de Psiquiatria Clíni-
podendo buscar uma aproximação para com essas
ca, 31 (4), 154-157.
histórias de vida.
A tão defendida e enaltecida eficácia das Cordás, T. A.; Salzano, F. T. & Rios, S. R. (2004). Os
medicações apresenta-se como uma ratificação da transtornos alimentares e a evolução no diagnós-
compreensão da subjetividade como engrenagem, tico e no tratamento. In: Philippi, S. T.; Alvarenga,
que pode ser ajustada ou consertada. Entraria, pois, M. (orgs.). Transtornos alimentares: uma visão nu-
a anorexia nessa roda-vida de que é algo que preci- tricional. (pp. 39-62). São Paulo: Manole.
sa ser ajustado? Ou melhor, seria possível ela ficar
de fora desse movimento técnico contemporâneo? Casanova, M.A. (2013). Heidegger e o escuro do existir:
A anorexia se desenvolve como tentativa de ajuste, esboços para uma interpretação dos transtornos
como visto, e é olhada exatamente através de novas existenciais. In: Evangelista, P. E. (org.). Psicologia
tentativas de ajuste! fenomenológica-existencial. (pp. 25-42). Rio de Ja-
Uma das contribuições, para o campo cien- neiro: Via Verita
tífico, da pesquisa realizada é exatamente essa, de
se tentar pensar a anorexia, tão vista como apenas Critelli, D. M. (1996). Analítica do sentido: uma aproxi-
um transtorno que busca magreza extrema, e às mação e interpretação do real de orientação feno-
vezes estereotipada – como meninas que querem menológica. São Paulo: EDUC: Brasiliense.
emagrecer para parecer com determinada pessoa
Dantas, J. B. (2011a). Angústia e existência na contempo-
que apareceu na capa da revista famosa –, de outra
raneidade. Rio de Janeiro: Editora Rubio.
forma, através de outro um olhar, por outro prisma,
quem sabe. Olhar esse que repousa nos desvela- Dantas, J. B. (2011b). Corpo e Existência: Outro Modo de
mentos de diversas outras possibilidades, que Lia Compreensão da Psicossomática. Interação Psicol.,
e Tris puderam ajudar a pensar a partir das suas 15 (1), 71-80.
experiências neste trabalho. O adoecer, então, pode
ser visto como uma das possibilidades de ser, que DSM – IV –TR (2002). Manual diagnóstico e estatístico
estão em jogo no existir, nesse eterno vir-a-ser. de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed.
Trazer as ideias heideggerianas de inospita-
lidade, habitar, abertura às possibilidades, e tantas Dutra, E. (2002). A narrativa como uma técnica de pes-
outras, pode fazer pensar não somente no fenôme- quisa fenomenológica. Estudos de Psicologia, 7 (2),
no aqui estudado, a anorexia, mas também na vida 371-378
que cada um vive. Pois a vida está repleta de histó-
rias, permeadas por impessoalidades, dificuldades, Fernandes, M. H. (2006). Transtornos Alimentares – clí-
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Élida Mayara da Nóbrega Cunha é Mestre em Psi-
lescente, Arq Sanny Pesq. Saúde 1 (1), 57-71.
cologia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Gestalt-terapeuta e Especialista em Psicologia
Mattos, J. M. (2006). Os aspectos sócio-culturais dos Clínica com foco Humanista-Existencial Fenomeno-
transtornos alimentares na constituição da subje- lógico pela UFRN. E-mail: elida.mnc@gmail.com
tividade de mulheres portadoras destes distúrbios.
Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do
Elza Maria do Socorro Dutra É Professora
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ.
Titular de Psicologia Clínica Fenomenológica na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e
Maroun, K., & Vieira, V. (2008). Corpo: uma mercadoria Pós-doutora pela UFF-RJ. Docente-pesquisadora
na pós-modernidade. Psicologia em Revista, 14 (2), do PPgPsi, orientadora de Mestrado e Doutorado.
171-186. Coordenadora do Grupo de Estudos Subjetividade
e Desenvolvimento Humano-GESDH/UFRN/CNPq.
Moreira, V., Cruz, A. V. H., & Vasconcelos, L. B. (2005). Coordenadora do GT- Psicologia & Fenomenologia-
O caso Ellen West de Binswanger: fenomenologia ANPEPP (2014-2016) e Vice-coordenadora (2016-
clínica de uma existência inautêntica. Revista Mal- 2018). E-mail: elzadutra.rn@gmail.com
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194
195

A rtigos :
e stuDos t eóricos ou H istóricos ....
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.8

FOUCAULT E BINSWANGER: UMA APROXIMAÇÃO


INTEMPESTIVA?
Foucault and Binswanger: An Unexpected Convergence?
Foucault y Binswanger: ¿Una Aproximación Intempestiva?
fabio yaSoShiMa
GuilherMe MeSSaS

Resumo: Os nomes de Foucault e Binswanger figuram lado a lado com tão pouca frequência que, à primeira
vista, a aproximação entre os autores pode apresentar-se como uma questão despropositada. No presente tra-
balho, com base na análise de algumas de suas obras e nas contribuições de seus comentadores, procuramos
apresentar algumas indicações para uma breve incursão em certos aspectos da história desse acercamento,
cujos desdobramentos não se reduzem a uma casual afinidade intelectual entre o filósofo francês e o psiquia-
tria suíço. Defendemos a existência de uma convergência entre ambos, centrada em aspectos como a recusa
de modelos explicativos organicistas e psicodinâmicos; e a utilização metodológica da noção de a priori.
Concluímos pela existência de uma importante aproximação entre as obras dos dois autores.
Palavras-chave: Michel Foucault; Ludwig Binswanger; Fenomenologia.

Abstract: The names Foucault and Binswanger are so seldom seen together that the question of any conver-
gence between the authors may at first sound preposterous. In the present study, based on the analysis of
some of their works and on contributions from their commentators, we sought to present some indications
for a brief incursion into certain aspects of the story behind this connection, whose implications cannot be
dismissed as a mere casual intellectual affinity between the French philosopher and Swiss psychiatrist. We
argue that there exists a convergence between the two, centered on aspects such as the rejection of organicist
and psychodynamic explanatory models; and the methodological use of the notion of a priori. We conclude
that there is an important convergence between the works of the two authors.
Keywords: Ludwig Binswanger; Michel Foucault; Phenomenology.

Resumen: Los nombres de Foucault y Binswanger aparecen uno junto al otro tan infrecuentemente que,
inicialmente, la aproximación entre los autores puede presentarse como una cuestión sin sentido. En este
trabajo, basado en el análisis de algunas de sus obras y en las contribuciones de sus comentadores, hemos
buscado presentar algunas indicaciones para una breve incursión en determinados aspectos de la historia de
esta aproximación, cuyos desenvolvimientos no se reducen a una casual afinidad intelectual entre el filósofo
francés y el psiquiatra suizo. Defendemos la existencia de una convergencia entre los dos, centrada en aspec-
tos como el rechazo a los modelos explicativos organicistas y psicodinámicos; y el empleo metodológico de
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

la noción de a priori. Concluimos en favor de la existencia de una importante aproximación entre las obras
de los dos autores.
Palabras clave: Ludwig Binswanger; Michel Foucault; Fenomenología.

Introdução obra binswangeriana. Outrossim, essas semelhan-


ças intelectuais talvez pudessem atenuar o valor da
O nome do filósofo cujo método, em um pri- ênfase com que o filósofo francês posteriormente
meiro momento, ficou conhecido como arqueolo- recusaria a fenomenologia (Basso, 2008; 2012). No
gia, e o nome daquele que chegou a ser chamado de entanto, para que possamos desenvolver essa pos-
“pai da psicopatologia fenomenológica” (Van den sível aproximação, faz-se mister que, em primeiro
Berg, 1981, p. 123) figuram lado a lado com tão pou- lugar, apresentemos algumas indicações para uma
ca frequência que, salvo quando se trata de estudos breve incursão em certos aspectos desse acerca-
biográficos ou introdutórios em que um ou outro é mento, o qual permite a descoberta de uma inter-
mencionado en passant, a aproximação entre Mi- locução bastante profícua, cujos desdobramentos,
chel Foucault (1926-1984) e Ludwig Binswanger notadamente a partir da primeira tradução france-
(1881-1966), à primeira vista, pode causar surpresa sa (Binswanger, 1954) do ensaio de 1930 intitula-
ou apresentar-se como uma questão desproposita- do Sonho e existência (Traum und Existenz), não se
da, compreendida a partir de um movimento secun- reduzem a uma casual afinidade intelectual entre
-

dário na obra do então jovem filósofo francês. Foucault e o Binswanger da Daseinsanálise.


Contudo, contribuições recentes vêm revelan- Posto isso, convém explicitar o escopo e a pre-
Artigos

do insuspeitadas similaridades entre o pensamento tensão do presente artigo. Inicialmente, diremos o


dos dois autores (Basso, 2010; 2011), apresentando que ele não é ou não almeja ser, a saber: uma re-
afinidades que ultrapassariam o simples interesse constituição histórica da aproximação entre Fou-
do primeiro Foucault por determinado período da cault e Binswanger ou uma discussão exaustiva de

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 196-203, mai-ago, 2018 196
Foucault e Binswanger: Uma Aproximação Intempestiva?

seus desdobramentos. Pelo contrário, pretendemos reria sobre características universais do homem, as
tão somente indicar alguns dos aspectos que, a quais seriam, por assim dizer, imunes às influên-
partir do intercâmbio entre os autores em questão cias da história. Mas teria sido essa a única posi-
(iniciado a partir da tradução francesa de Sonho e ção intelectual de Foucault ante a loucura? E essa
Existência), julgamos relevantes para justificar a re- conhecida posição do filósofo francês teria sido tão
lativização do afastamento das posições teórico-me- homogênea, a ponto de não permitir a identificação
todológicas de ambos (sobretudo de Foucault em re- de qualquer ambiguidade em seu interior? Será me-
lação ao psiquiatra suíço), procurando matizar a sua diante a investigação dessas questões – e do cotejo
suposta irreconciliabilidade. A partir daí, pretende- dessas mesmas interrogações, na economia da obra
mos endossar a tese da aproximação, mostrando de binswangeriana – que pretendemos desenvolver o
que modo ela ultrapassa as simples menções diretas argumento do presente artigo.
de Foucault a Binswanger. Nossa curta perspectiva
histórica procura salientar as continuidades progra-
máticas entre os dois autores, no interior da obra de “Doença mental e existência”, passando
cada um, com ênfase em suas compreensões antro- pelo sonho: a “protoarqueologia”2 encontra a
pológicas e em seus procedimentos metodológicos. Daseinsanálise
É bem conhecida a problematização que, no
século das Luzes, Kant expõe ao formular a pergun- Sabemos que a Análise Existencial, já em 1928,
ta sobre as condições de possibilidade do conhe- na obra de Binswanger intitulada Função Vital e his-
cimento, em sua Crítica da Razão Pura. O pensa- tória interior da vida, apresentara uma “alternativa”
mento de Foucault também fez época ao se lançar, à “ciência natural” e à própria psicanálise (1973a),
antes de tudo, mas não exatamente à maneira de desenhando claramente uma crítica ao modelo po-
uma “teoria do sujeito do conhecimento”, em uma sitivista. Ademais, como lembra Basso (2012, p. 91-
profunda “análise dos diferentes códigos de saber” 92), alguns expoentes da chamada antipsiquiatria
que conferem “positividade” e “unidade” a certos parecem reivindicar, de certo modo, sua filiação à
discursos de uma época (Sabot, 2014, p. 45), como fenomenologia existencial, apoiando-se em autores
o discurso científico sobre a doença mental. da então recente psicopatologia fenomenológica.
Sabemos que, em Doença mental e psicologia Neste ponto, não custa lembrar que, a despei-
(Maladie mentale et Psychologie, 1962), edição re- to das divergências sobre os primeiros direciona-
manejada do texto originalmente intitulado Doença mentos propriamente fenomenológicos no âmbito
mental e personalidade (Maladie mentale et Person- da investigação psiquiátrica (que nos fariam recuar
nalité)1, o qual fora publicado em 1954, ano em que a Jaspers ou até mesmo a Dilthey e sua ampla in-
surge também a primeira versão francesa de Sonho fluência), é possível apontar objetivamente para o
e existência, Foucault (1962/2005, p. 88) apontou surgimento do primeiro esforço sistemático em prol
para as origens do “homo psychologicus” – o ho- de certa fundação das bases da psicopatologia fe-
mem enquanto “espécie psicologizável”. nomenológica, como bem apontou Holanda (2011),
Ao seguirmos, ainda com Foucault, a história em seu artigo intitulado Gênese e histórico da psico-
das condições que permitiram o aparecimento da patologia fenomenológica:
própria psicologia enquanto ciência, deparamos ne-
cessariamente com a loucura, que, desde o Renas- [...] o “nascimento” de uma psicopatologia fe-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
cimento, imiscuiu-se profundamente nas diversas nomenológica – do ponto de vista formal e ob-
linguagens artísticas. Com efeito, para Foucault, o jetivo – tem data, marco e filiação. O “dia his-
testemunho de Nerval vem juntar-se ao de Artaud tórico” é 25 de novembro de 1922; o marco é a
ou àquele de Roussel, como exemplos de resistên- 63ª Sessão da Sociedade Suíça de Psiquiatria,
cia a certa orientação determinista e excludente reunida em Zurique; e a filiação tem dois no-
da então recente medicina psicológica, cujas con- mes: Ludwig Binswanger (1881-1966) e Eugène
dições de possibilidade mobilizaram, a partir da Minkowski (1885-1972), como aponta Tatos-
modernidade, as figuras conceituais da insanida- sian [...]. Foi neste encontro que Minkowski
de e da alienação (1972, p. 412). Como escreveria apresentou seu estudo sobre um caso de melan-
Foucault (1972, p. 47), de maneira lapidar: “sob a colia esquizofrênica [...] e Binswanger apresen-
consciência crítica da loucura e suas formas filosó- ta o texto Ueber Phaenomenologie [...], artigo no
ficas ou científicas, morais ou médicas, uma oculta qual analisa as influências da fenomenologia
consciência trágica não deixou de velar”. Essa cons- sobre a psiquiatria (Holanda, 2011, p. 134).
ciência trágica seria uma condição de possibilidade
do saber sobre a loucura que demarcaria uma clara Importa ressaltar, no presente artigo, o fato de
distinção entre o saber médico-psicológico, cada que o “olhar fenomenológico”, ou essa nova inter-
vez mais hegemônico, e o entendimento clássico rogação sobre a existência humana3 – patológica,
dos desvarios da razão. Assim, o filósofo francês inclusive –, concorreu sobremodo, como asseve-
procurou sustentar que o conhecimento histórico ram Moreira & Pita (2013, p. 681), para a “abertura
-

dos interesses e métodos científicos é capaz de re-


velar descontinuidades no entendimento da loucu- 2 Empregaremos, aqui, o termo utilizado por Nalli (2006) para
designar os textos da fase anterior à(s) chamada(s) arqueologia(s) de
Artigos

ra. Outrossim, Foucault pôde recusar a ideia de que Foucault.


a ciência – ao menos a médico-psicológica – discor- 3 Para uma discussão mais aprofundada sobre as origens e o
1 Um rigoroso cotejo entre esses dois textos encontra-se em Ri- desenvolvimento da psicopatologia fenomenológica, remetemos o
bas (2014, p. 53-87). leitor ao já citado artigo de Holanda (2011).

197 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 196-203, mai-ago, 2018
Fabio Yasoshima; Guilherme Messas

de um novo espaço dentro do campo da psiquia- p. 373), eram “o determinismo causal aplicado à
tria.” E nisso teve especial importância a contribui- existência humana e a tendência de supor forças
ção de Binswanger (cuja abordagem fenomenoló- e complexos psíquicos ocultos sob os modos de
gica em psicopatologia, em suas diferentes fases, ser diretamente perceptíveis”. Em outras palavras,
as quais mencionaremos a seguir, esteve apoiada a crítica binswangeriana atinge em cheio as duas
nas fenomenologias heideggeriana e husserliana), correntes majoritárias de sua época, o positivismo
ao questionar os fundamentos epistemológicos da biologicista e o dinamicismo da psicanálise. Sua
psiquiatria (Binswanger, 1971). proposta pretende, por meio de uma retomada de
Como se sabe, o pensamento fenomenológico conceitos da filosofia, reformar o entendimento
de Binswanger pode ser dividido em três “fases”4 psicopatológico e, por fim, toda a psiquiatria.
(Tatossian, 2006; Moreira & Pita, 2013). Sem nos Ainda sobre a recusa de Binswanger em acei-
determos nas controvérsias acerca dessas fases, tar certo “dualismo de substâncias à moda cartesia-
atentemos para alguns traços do desenvolvimento na”, conforme nos lembra Messas (2012, p. 183),
do pensamento fenomenológico de Binswanger, os Moreira & Pita (2013, p. 680) apontam justamente
quais são esboçados durante o momento em que para o fato de que, em seu já citado texto de 1928,
Foucault trava diálogo com o grande psiquiatra “Função Vital...” (Binswanger, 1973a), o psiquiatra
suíço da “análise da presença, ou análise existen- suíço recusava a separação entre elemento psíqui-
cial” (Kuhn & Maldiney, 1971, p. 16); ainda que te- co e corporal. Essa posição binswangeriana pode
nhamos de reconhecer a existência de importantes ser compreendida como uma busca por estruturas
pontos de divergência entre os conceitos (Töpfer, antropológicas originais, que dão sentido à noção
2013), métodos (Machado, 2015) e antropologias de causalidade. Essa introdução temática da com-
(Binswanger, 1964) de ambos os autores. Eis o que plexidade da noção de causalidade no campo psi-
Moreira e Pita afirmam sobre esse momento do per- copatológico inaugurou um profícuo diálogo que
curso de Binswanger: se estendeu do período inicial da psicopatologia
fenomenológica, no começo do século XX (Straus,
[...] o conceito de Dasein fornece a Binswan- 1930/1978), até a época contemporânea (Messas,
ger a oportunidade de aprofundar a descrição 2016). Neste sentido, vale frisar um relevante mo-
do paciente psicótico a partir de sua existên- tivo pelo qual, de acordo com Naudin (1997, p. 20,
cia no mundo. A introdução deste conceito grifo nosso), o pensamento do psiquiatra e filóso-
provoca uma modificação na antropologia fo suíço buscou inspiração na fenomenologia de
fenomenológica de Binswanger que se torna Husserl, a saber: “[...] se a linguagem heideggeria-
Daseinsanálise [...] (Moreira & Pita, 2013, p. na convém à compreensão pática e biográfica do
683). delírio, ela não permite uma melhor compreensão
de sua gênese”. Ora, se seguirmos Naudin, consta-
Nesse momento de sua obra, já fica claro o taremos que a reviravolta husserliana de Binswan-
modo como Binswanger visa à construção de uma ger, como iremos retomar adiante, de modo algum
“ciência empírica, preocupada com uma aborda- abandona a perspectiva biográfica, mas, pelo con-
gem antropológica da essência individual do ser trário, procura enriquecê-la, ampliando seu escopo
humano” (Chamond, 2011, p. 4). É interessante antropológico, por meio do estudo das alterações
notar que há aqui uma clara aproximação entre das condições constituintes da consciência – a cha-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

essa mesma definição e a apresentação da análise mada gênese transcendental.


existencial feita pelo Foucault de Doença Mental e Em Doença mental e personalidade, os esfor-
personalidade (1954). ços de Foucault se voltaram para a consideração da
O projeto binswangeriano é, pois, decorren- doença mental e suas perturbações a partir de um
te de um significativo interesse “antropológico e “novo estilo de análise”, cujas bases foram lança-
epistemológico pelo problema do psíquico” (Basso, das pela “análise fenomenológica” de Minkowski,
2010). Tal projeto encontra-se, desde a constituição Binswanger, Kuhn, entre outros; e que procura dar
da Daseinsanálise, fortemente marcado por uma conta de formas de experiência – a angústia, por
crítica radical às concepções mecanicistas, “natura- exemplo – que não se deixam “reduzir por uma
listas” e psicodinâmicas da psicologia e da psiquia- análise de tipo naturalista”, nem se esgotam em
tria então vigentes. Como psiquiatra – e também uma “análise de tipo histórico” (Foucault, 1954, p.
como pensador – Binswanger dirige suas críticas a 53). Como sustenta Foucault, em sua Introdução
uma determinada concepção de homem que o na- ao ensaio de Binswanger, trata-se de “uma forma
turaliza, incluindo a obra de Freud no arco de suas de análise que se designa como fundamental em
reflexões (Binswanger, 1973b; 1973c). Seu esforço relação a todo conhecimento concreto, objetivo e
intelectual se volta, antes de tudo, para uma antro- experimental; cujo princípio e método enfim são
pologia fenomenológica (Binswanger, 1946). determinados desde o início apenas pelo privilé-
Ora, os aspectos centrais da abordagem cien- gio absoluto de seu objeto: o homem, ou melhor, o
tífica vigente “contra os quais a análise existencial Ser-homem, o Menschsein” (Foucault, 1954, p. 10).
-

se opunha”, como bem lembra Novaes de Sá (2013, É curioso notar que, diferentemente dos ou-
tros membros do “‘quadrunvirato fenomenológico’
Artigos

4 Cabe-nos, aqui, lembrar que Spiegelberg (1972) não dividia o dos anos 1920” – no qual Binswanger figurava ao
pensamento de Binswanger em três fases, e sim em quatro, a saber:
a chamada “fase pré-fenomenológica”, a “primeira fase husserlia-
lado de Minkowski, Straus e Von Gebsattel –, os
na”, a “fase heideggeriana” e a “segunda fase husserliana” (p. 200). quais, segundo Tatossian, “são muito menos leva-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 196-203, mai-ago, 2018 198
Foucault e Binswanger: Uma Aproximação Intempestiva?

dos a citar os filósofos, ao menos como garantias qual seria o escopo desses primeiros estudos em-
de suas análises, e não insistem além da medida preendidos por Foucault? A propósito dessa inter-
em sua submissão à filosofia fenomenológica”, rogação, Nalli explica que:
toda a obra do psiquiatra-filósofo suíço, prossegue
Tatossian, seja qual for a sua “fidelidade sempre Enquanto na Introdução a O Sonho e a exis-
discutida5 [...] às intenções próprias de Husserl e tência Foucault se posicionava em prol da
Heidegger, [...] está apoiada em cada página nas re- proposta de análise de Binswanger em oposi-
ferências filosóficas e técnicas explícitas e se reco- ção tanto a Freud como a Husserl, em Doença
nhece como tal” (Tatossian, 2006, p. 32). Mental e personalidade ele buscou assinalar
Não por acaso, de 1952 a 1954, será Foucault os elementos, a um só tempo existenciais e
o colaborador da germanista e tradutora Jacqueline ontológicos, que caracterizam tanto a cons-
Verdeaux, na tarefa de verter para a língua france- ciência como o universo patológico do doente
sa, pela primeira vez, um desses textos crivados de mental, exatamente em consonância com sua
referências filosóficas que foi o “manifesto progra- leitura de Binswanger. Essa unidade entre
mático” – como quer Basso (2010) – da Daseinsa- consciência e mundo (tomamos aqui ‘univer-
nálise, qual seja, o já mencionado ensaio intitulado so’ e ‘mundo’ como sinônimos) forma uma es-
Sonho e existência (Eribon, 1989, p. 63 et seq.). Esse trutura (Nalli, 2006, p. 39).
texto, que em extensão ultrapassou o próprio en-
saio de Binswanger, pode ser considerado, segundo
Castro (2009, p. 54), como “o ponto de maior apro- Arqueologia versus Fenomenologia?
ximação entre Foucault e a fenomenologia”.
Sabemos que, pelos menos em um primeiro Sabemos que as pesquisas de Foucault não
momento, para Binswanger (e também para o Fou- escaparam às críticas de seus contemporâneos.
cault leitor e, de certa maneira, “adepto” do mo- A recepção da História da Loucura, por exemplo,
delo analítico-existencial binswangeriano), a expe- pela psiquiatria francesa, foi marcada por uma for-
riência onírica revelou-se como uma “experiência te crítica, por meio da qual a postura intelectual de
imaginária absolutamente privilegiada, na medida Foucault seria taxada de “ideológica” (Basso, 2012,
em que desvela, através de sua rede de imagens, p. 89). Certo é que os críticos de Foucault – como
a estrutura fundamental da existência humana.” Henry Ey, ou o próprio Minkowski (1999, p. 70),
(Sabot, 2014, p. 48). Em Sonho e existência, o es- que elogiara efusivamente a Introdução de 1954 a
forço de Binswanger concentra-se na tentativa de Le Rêve et l’existence – terminaram por recriminar
esclarecer o lugar e a importância do sonho no sua postura “psiquiatricida” (Roudinesco, 1994, p.
seio desse fundamento que é a própria existência 11); postura essa, segundo Basso (2012, p. 89), que
(Binswanger, 1954, p. 193). Para tanto, à diferença esses mesmos críticos consideravam contraditória
do empenho que havia demonstrado anteriormente com “as primeiras obras do filósofo”, sobretudo
no sentido de uma “problematização epistemoló- com a Introdução ao ensaio de Binswanger.
gica da psicologia e da psiquiatria”, o Binswanger Em uma entrevista concedida a Raulet, cujo
de Traum und Existenz revela a grande “ambição tema girava em torno do estruturalismo e do pós-
filosófica de conjugar a analítica fenomenológica -estruturalismo, Foucault se pergunta: “Será que
de Heidegger com a psicopatologia.” (Basso, 2012, um sujeito de tipo fenomenológico, ‘transhistóri-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
p. 88). co’, é capaz de dar conta da historicidade da ra-
Entretanto, apesar do diálogo constante do zão?”; para em seguida indicar, justamente, o autor
psiquiatra suíço com o “pai da psicanálise”, a “psi- que teria encetado o seu afastamento da tradição
copatologia fenomenológica” de Binswanger, con- fenomenológica6: “É aí que, para mim, a leitura de
forme Chammond (2011, p. 4), “não buscava uma Nietzsche foi a ruptura: há uma história do sujeito,
verdade do sintoma ocultada pelo inconsciente, exatamente como há uma história da razão; e desta,
como era entendida pela psicanálise”; antes, pro- a história da razão, não se deve requerer a extensão
curava compreender o paciente como “intérpre- a um ato fundador e primeiro do sujeito racionalis-
te de seu próprio sofrimento”. A perspectiva de ta.” (Foucault, 2001, p. 1255).
Binswanger, notadamente no momento em que se Mas apesar da imposição desta suposta pecha
encontra imbuída da fenomenologia descritiva de de ‘transhistoricidade’ à tradição fenomenológica,
Husserl, afasta definitivamente de seu horizonte Foucault não conservaria, por mais tempo do que
teórico a noção de inconsciente instaurada pela comumente se imagina, certa “atitude fenomeno-
psicanálise freudiana; e isto porque, ao destacar lógica”, qual seja, a da interrogação sempre reno-
essa mesma noção, o fundador da psicanálise natu- vada das “evidências fundamentais”? (Foucault,
ralizava e mecanizava o homem, tornando-se inca- 2001, p. 1569). Neste sentido, parece-nos digna de
paz de identificar o genuinamente humano de suas interesse a evocação do autor das Considerações in-
vivências (Binswanger, 1973c). tempestivas, como um alerta contra “qualquer pro-
Sobre essa mesma discussão, cabe-nos aqui cedimento intelectual que, digamos, erre na dose
-

ressaltar o fato de que Foucault, desde os seus pri- de utilização do passado como insumo cognitivo”
meiros textos, dirigirá igualmente suas críticas a (Messas, 2010, p. 9). Com efeito, Nietzsche (2003,
Artigos

Freud, descobrindo no Binswanger da Daseinsaná- p. 17) assevera que, “em meio a um certo excesso
lise um aliado de fundamental importância. Afinal,
6 Ainda que, na suposta “influência” de Nietzsche na ruptura
5 Sobre as críticas à importação da filosofia heideggeriana por de Foucault com a fenomenologia, haja algumas nuanças a serem
Binswanger, ver Loparic, 2002; Heidegger, 2009. ressaltadas, conforme indicação de Nalli (2009, p. 108).

199 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 196-203, mai-ago, 2018
Fabio Yasoshima; Guilherme Messas

de história, a vida desmorona e se degenera [...]”; que o único modo de sustentar esse encontro com
e ainda propõe uma doutrina da saúde na qual “o os a priori é a investigação histórica minuciosa dos
a-histórico e o supra-histórico são os antídotos na- detalhes de uma vida singular. Seus cinco casos
turais contra a asfixia da vida pela história, contra clínicos daquela que é talvez sua obra maior, a sa-
a doença histórica” (Nietzsche, 2003, p. 96). ber: Esquizofrenia (1957), são um libelo pela defesa
Ora, esse “louco mestre alemão” que inegavel- da individualidade contra a abstração de modelos
mente provocou impacto no pensamento foucaul- gerais interpretativos da doença mental. A doença
tiano (Nalli, 2009, p. 108), afinal teria sido ineficaz, mental é uma tipicidade que pode ser vista como
no caso de Foucault, como “antídoto natural” ca- essencialmente geral da humanidade, mas apenas
paz de agir “contra a asfixia da vida pela história, em suas atestações ônticas, visualizadas na pro-
contra a doença histórica”, por conta da “fraqueza7 gressão dos acidentes e incidentes, das alternativas
de acreditar na história, mesmo quando se trata da e imposições de existências (Dasein) historicamen-
existência”? (Foucault, 1954, p. 41). te situadas. Ademais, como aponta Basso (2009, p.
Em Doença mental e personalidade, preci- 15), é somente prescindindo de “qualquer caracte-
samente em sua introdução, Foucault (1954, p. 2) rização filosoficamente ‘forte’ da noção de a prio-
sustentara que a origem da patologia mental não ri” que Binswanger pôde assumir o termo em sua
devia ser buscada em “uma especulação sobre uma procura pelos fundamentos da existência. Mesmo
‘metapatologia’ qualquer, mas somente em uma re- nas obras finais de Binswanger (1960; 1965), muito
flexão sobre o próprio homem”. Conforme a aná- criticadas por Tatossian (2006), pelo seu grau de
lise de Ribas (2014, p. 55-57), na posterior intro- abstração, não se pode deixar de mencionar o fato
dução remanejada desse mesmo texto (que, como de que a utilização do aparato husserliano para a
dissemos, seria então chamado de Doença mental revisão do sentido antropológico das patologias
e psicologia), lê-se o seguinte acréscimo: “Gostaría- mentais é apoiado extensamente nas vicissitudes
mos de mostrar que a raiz da patologia mental não existenciais de casos clínicos. Há, assim, como in-
deve ser buscada em uma ‘metapatologia’ qualquer, dica o próprio Binswanger (1960, p. 13; 1965, p.
mas em certa relação, historicamente situada, do 12), dizendo-se surpreso com as críticas a sua su-
homem ao homem louco e ao homem verdadeiro” posta conversão husserliana, uma continuidade
(Foucault, 1962/2005, p. 2). Ora, esta “relação his- entre a sua fase daseinsanalítica e a fenomenoló-
toricamente situada”, à qual Foucault se refere nes- gica. Assim, entendemos que a aparente distância
se último texto, em certo sentido dará ensejo a um do pensamento foucaultiano em relação à obra de
distanciamento do modelo de análise das patolo- Binswanger, quando o filósofo francês rejeita a no-
gias mentais preconizado por Binswanger e do qual ção de um a priori antropológico geral e assume a
Foucault (sequioso por criticar o modelo “organicis- particularidade histórica dos a priori, é, por assim
ta”, a psicanálise e certa tradição em fenomenolo- dizer, injustificada, na medida em que também o
gia) fizera um grande elogio, quase irrestrito, tanto psiquiatra suíço jamais recusou em absoluto a no-
em sua Introdução à tradução de Sonho e existência ção de historicidade em sua concepção de a priori.
quanto em Doença mental e personalidade. E quando aparentemente o fez, empregou o concei-
Após essas observações, portanto, não é de to de um modo intimamente ligado às historicida-
estranhar a afirmação que – como observa Basso, des singulares humanas.
em seu Posfácio à tradução francesa de Sonho e A despeito dos aspectos que indicamos mais
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

existência –, de forma “quase provocativa” (Basso, acima – a análise crítica das abordagens psico(pa-
2012, p. 89), encerra o sexto capítulo (“A loucura, to)lógicas então vigentes e, naturalmente, a busca
estrutura global”) da última parte de Doença men- de uma alternativa à psicanálise –, os quais nos pa-
tal e psicologia. Eis o que assevera Foucault: “Na recem aproximar as pesquisas do jovem Foucault
realidade, somente na história é que podemos des- ao Binswanger de Sonho e Existência, a investi-
cobrir o único a priori concreto em que a doença gação do interesse de Foucault, a partir dos anos
mental, com a abertura vazia de sua possibilidade, 1950, pela psiquiatria existencial, súbito encontra
obtém suas figuras necessárias” (Foucault, 2005, p. obstáculos que, se nos fiarmos nas rigorosas pes-
101). quisas de Basso (2012; 2011; 2010; 2008), uma vez
Contudo, não nos parece despropositado lem- enfrentados, poderão nos conduzir ao cerne não
brar o fato de que a “via aberta pelo método feno- apenas das dissensões entre os dois autores, mas,
menológico à análise existencial, na qual o Dasein em um determinado momento, a uma insuspeitada
está diretamente em jogo, leva necessariamente a espécie de koinonia metodológica.
uma reflexão sobre a condição do homem na psi- Neste sentido, parece-nos defensável a exis-
quiatria e a uma análise das principais concepções tência de uma “coerência” entre o pensamento
de homem que determinaram historicamente e de de Foucault e o de Binswanger (Basso, 2011). Tal
maneira significativa essa condição” (Kuhn e Mal- coerência, segundo a autora italiana, revela-se no
diney 1971, p. 14, grifo nosso). seio das proposições referentes à noção de a prio-
Ora, as principais obras de Binswanger, em- ri em Foucault (o chamado a priori histórico) e em
-

bora procurem, de fato, um a priori antropológico Binswanger (o a priori estrutural, como o designa
como fundamento da psicopatologia, consideram Basso, identificando-o, sobretudo, na fase dasein-
Artigos

sanalítica do psiquiatra suíço). Com efeito, na obra


7 É o próprio Foucault quem o confessa, precisamente na Introdu- intitulada Três Formas da Existência Malograda, ao
ção ao ensaio de Binswanger: “[...] temos a fraqueza de acreditar na
história mesmo quando se trata da existência” (Foucault, 1954, p. 41). citar o Heidegger de Ser e Tempo, em uma longa

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 196-203, mai-ago, 2018 200
Foucault e Binswanger: Uma Aproximação Intempestiva?

passagem que, segundo Messas (2010, p. 1), remete tropologia trans-histórica, nem a fenomenologia
àquela busca por um “arcabouço último” das “vi- binswangeriana foi tão insensível à historicidade.
vências psicológicas”, Binswanger sustenta que:

[...] a ontologia do ser-aí trouxe à luz uma es- À guisa de conclusão (ou apontamentos sobre
trutura essencial apriórica, juntamente com um debate inconcluso)
elementos estruturais essenciais (os ‘existen-
ciais’) que permitem ao psiquiatra investigar e Em certo sentido, não deixa de ser problemá-
descrever as formas mórbidas a serem inves- tica a atitude de Foucault diante da fenomenologia,
tigadas e descritas por ele como modificações pois em diversos de seus escritos – principalmente
fácticas dessa estrutura apriórica. (Binswan- a partir da fase arqueológica, passando pelas ge-
ger, 1977, p. 188, grifo nosso). nealogias, até a chamada fase ética –, há um sem-
-número de apontamentos críticos que às vezes só
Neste ponto, ao tangenciarmos o conceito de parece corroborar a opinião segundo a qual o breve
estrutura, vale lembrar o apontamento de Messas, período da aproximação entre o leitor de Binswan-
segundo o qual a “atitude fenomenológica em psi- ger, o então jovem Foucault, filósofo e estudante de
copatologia”, desde o seu “momento fundador” psicologia, e aquele grande fundador da Dasein-
(i.e., os anos 1920), justamente “procura escavar a sanálise, afinal de contas, teria sido um episódio
epiderme das vivências psicológicas em busca de absolutamente marginal, se comparado às viradas
seu arcabouço último, fornecedor das condições antiantropológica e antifenomenológica de um Fou-
de possibilidade da própria consciência e, com ela, cault posterior e, em geral, mais conhecido e com
da mesma existência” (Messas, 2010, p.1). “Exis- melhor acolhida entre os filósofos e historiadores
tir – prossegue Messas – é integrar-se necessária e de filosofia (Basso, 2011).
inescapavelmente consigo mesmo, com o mundo A partir das análises de diversos comentado-
do semelhante humano e com o mundo circundan- res e da leitura de algumas de suas obras fundamen-
te cósmico. Desvendar as modalidades e caracte- tais, pudemos perceber certos pontos de contato,
rísticas dessas amarras primordiais da existência, muitas vezes insuspeitados, entre o pensamento de
quando dadas as condições de seu colapso, vem Foucault e o de Binswanger, sobretudo na recusa
sendo, pois, a tarefa da fenomenologia psicopato- de modelos explicativos organicistas e psicodinâ-
lógica” (Messas, 2010, p.1). micos; e na utilização metodológica da noção de a
Ao examinar esta aproximação entre o a priori priori ou, precisamente, no que diz respeito a uma
histórico (Foucault) e seu correspondente estrutu- possível convergência entre o funcionamento do a
ral (Binswanger), Basso aponta para a função do priori histórico em Foucault e o da “historicização
conceito de a priori na economia de alguns dos do a priori”.
principais textos das diferentes fases (“proto-ar- Como bem observou Eribon (1995, p. 201), no
queológica”, arqueológica, genealógica e ética) do pensamento de Foucault, podemos encontrar certos
filósofo francês, assim como na obra do psiquiatra “ecos” da fenomenologia e da psiquiatria existen-
suíço. Ao realizar essa tarefa, lança luz ao arcabou- cial binswangeriana na “ideia de uma ‘experiência’
ço teórico a partir do qual (ou contra o qual) vão fundamental da loucura”. Neste sentido, lembre-
surgindo os contornos do pensamento de Foucault mos a significativa indicação de Foucault, mediante

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
e o de Binswanger, no que se refere às noções de a qual esse pensador multifacetado nos lembra que,
a priori histórico e a priori estrutural, identifican- ao fazer a história da loucura, em vez da descrição
do a metodologia como o ponto de convergência de um “tipo psicológico” (i.e., o louco), ao longo de
entre ambos os autores, que acabam por divergir aproximadamente “cento e cinquenta anos de sua
apenas secundariamente, nos campos de aplicação história”, o que suas pesquisas afinal alcançaram se
dessa metodologia. Assim, sustenta Basso (2011, inscreve menos nos âmbitos da “crônica das desco-
s/p): “[...] se é possível assinalar uma coerência en- bertas” e da “história das ideias” do que no da in-
tre o programa de Binswanger e a arqueologia, isto vestigação daquilo que, no capítulo com o qual con-
se dá em um plano metodológico: Foucault teria clui sua História da loucura, ele caracteriza como
de alguma maneira retomado o modelo da análise o “encadeamento das estruturas fundamentais da
binswangeriana das estruturações normativas das experiência” (Foucault, 1972, p. 653). No entanto,
formas de experiência ou dos ‘projetos de mundo’, também não devemos esquecer que essa tese, a qual
desenvolvendo seu princípio metodológico em um foi redigida aproximadamente na segunda metade
plano epistemológico, isto é, no projeto de estudar dos anos 1950, pode ser compreendida como uma
os saberes a partir dos saberes mesmos, de suas for- “etapa intermediária e decisiva neste percurso, já
mas intrínsecas, de seu funcionamento.” que se trata, nesta circunstância, de vincular a aná-
Não parece, portanto, despropositado, afirmar lise de uma experiência (aquela da loucura) às suas
que Foucault, ainda que sem o desejar, tenha con- condições históricas de possibilidade, fazendo-a
duzido a novas fronteiras um método de investigar assim escapar à miragem de uma consciência cons-
-

o mundo inaugurado por Binswanger, guardando titutiva e de uma significação subjetiva, a-histórica”
suas características centrais (Smyth, 2011). A ar- (Sabot, 2014, p. 50).
Artigos

queologia e a fenomenologia não se situam, enfim, Enfim, não seria descabido recuperar, a propó-
de modo tão oposto como poderiam aparentar; ou sito da conclusão de As palavras e as coisas, muitas
seja, a arqueologia não se afastou tanto de uma an- vezes lida como a indicação de uma vaga de certo

201 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 196-203, mai-ago, 2018
Fabio Yasoshima; Guilherme Messas

pessimismo antropológico foucaultiano, a afirmação Binswanger, L. (1957). Schizophrenie. Pfullingen: Verlag


de Nalli (2009, p. 114), segundo a qual esta “conjec- Günther Neske.
tura do fim do homem como tema/problema do pen-
samento, como limite arqueológico-histórico da mo- Binswanger, L. (1960). Melancholie und Manie. Phänomeno-
dernidade que ainda é a nossa, também é, de modo logische Studien. Pfullingen: Verlag Günther Neske.
mais específico, uma aposta pelo fim histórico da
Binswanger, L. (1965). Wahn. Beiträge zu seiner phänomeno-
fenomenologia como todas as filosofias do sujeito”.
logischen und daseinsanalytischen Erforschung. Pful-
Todavia, prossegue Nalli, não devemos nos pergun-
lingen: Verlag Günther Neske.
tar, antes, se esse prognóstico sinalizaria que:
Binswanger, L. (1971). Introduction à l’analyse existentielle.
[...] enfim, Foucault teria se liberado de toda a Trad. Jacqueline Verdeaux & Roland Kuhn. Paris: Les
fenomenologia? Mas será que Foucault tinha Éditions de Minuit.
tal pretensão? Será que um dos aspectos mais
instigantes dessa relação voltada ao desapa- Binswanger, L. (1973a). Función vital e historia vital interior.
recimento não reside justamente na tensão In: Binswanger, L. Artículos y conferencias escogidas.
constante que ela implica? E que esse desapa- Madrid: Gredos.
recimento, mais do que aniquilamento, deve
ser pensado como esquecimento; naquele ve- Binswanger, L. (1973b). Freud y la constituición de la psiquia-
lho sentido presente tanto na fenomenologia tría clinica. In: Binswanger, L. Artículos y conferencias
quanto em Foucault, de que o esquecimento escogidas. Madrid: Gredos.
se faz fundamental? Não temos respostas para
Binswanger, L. (1973c). La concepción freudiana del hombre
tais questões... (Nalli, 2009, p. 114).
a la luz de la antropología. In: Binswanger, L. Artículos
y conferencias escogidas. Madrid: Gredos.
Nós tampouco as temos. Todavia, claro está
que essas mesmas questões afinal suscitam, como Binswanger, L. (1977). Três Formas da Existência Malograda –
lembra Nalli (2009, p. 114), “novas maneiras de Extravagância, Excentricidade, Amaneiramento. Trad.
pensar velhos problemas”, de refletir sobre os “em- Guido A. Almeida. Rio de Janeiro: Zahar.
preendimentos filosóficos e analíticos” de autores
da envergadura de Foucault, ou de Binswanger, ou Binswanger, L. (2012). Rêve et existence. Trad. Françoise Das-
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da arqueologia. Curitiba: UFPR.


Primeira Decisão Editorial em 25.09.2017
Aceito em 24.10.2017

203 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 196-203, mai-ago, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.9

ESTUDO DE CASO EM GESTALT-TERAPIA: LEITURAS


FENOMENOLÓGICAS DO DESENHO INFANTIL
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

Estudio de Caso en la Terapia Gestalt: Lecturas Fenomenológicas de Dibujo Infantil


Mariana Vieira PaJaro
celana cardoSo andrade

Resumo: O presente estudo aborda o desenho infantil como um recurso revelador da criança. Tem por objetivo ilus-
trar o processo psicoterapêutico de um menino de 6 anos por meio da leitura fenomenológica de sete desenhos rea-
lizados por ele ao longo de seus atendimentos. Ademais, pretende refletir sobre as contribuições desse caso para a
compreensão e intervenção na clínica infantil na perspectiva da Gestalt-terapia. Para tanto, realizou um estudo de
caso documental ex post facto descritivo com base no diário de campo da psicoterapeuta, que continha os desenhos
do participante e suas respectivas anotações. A metodologia fenomenológica favoreceu o acesso ao vivido por meio de
descrições do cliente que puderam ampliar o contato com sua experiência. O autor da produção gráfica é concebido,
portanto, como detentor único do sentido de sua obra. Esse estudo evidencia que o desenho pode favorecer a expres-
são de algumas crianças de modo a contribuir com o processo psicoterapêutico na Gestalt-terapia.
Palavras-Chave: desenho infantil, Gestalt-terapia, método fenomenológico; estudo de caso.

Abstract: The present study approaches children’s drawing as a revealing feature of the child. It aims to illustrate the
psychotherapeutic process of a boy of 6 years from the phenomenological reading of seven drawings made by him
during his visits. In addition, it intends to reflect on the contributions of this case to the understanding and interven-
tion in the children’s clinic from the Gestalt therapy perspective. To do so, he carried out a documentary case study ex
post facto descriptive from the field diary of the psychotherapist, which contained the drawings of the participant and
their respective notes. The phenomenological methodology favored the access to the lived one through descriptions of
the client that could extend the contact with its experience. The author of graphic production is therefore conceived as
the sole holder of the meaning of his work. This study shows that the design may favor the expression of some children
in order to contribute to the psychotherapeutic process in Gestalt therapy.
Keywords: infant design, Gestalt therapy, phenomenological method; case study.

Resumen: Este estudio se ocupa de dibujo infantil como una característica que revela el niño. Su objetivo es ilustrar el pro-
ceso psicoterapéutico de un niño de 6 años de edad con la lectura fenomenológica de siete dibujos realizados por él durante
su tratamiento. Además, se pretende reflexionar sobre las contribuciones del caso para la comprensión e intervención en
la clínica de los niños desde la perspectiva de la terapia Gestalt. Para este propósito, se realizó un estudio de caso descriptivo
documental a posteriori del diario de campo de psicoterapeuta, que contiene dibujos de lo partícipe y sus respectivas notas.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

La metodología fenomenológica favoreció el acceso a vivido a través de las descripciones de los clientes que podrían
ampliar el contacto con su experiencia. El autor de la producción gráfica está diseñada, por lo tanto, como único titular
del significado de su obra. Este estudio muestra que el diseño puede favorecer la expresión de algunos niños con el fin
de contribuir al proceso psicoterapéutico en la terapia Gestalt.
Palabras clave: dibujo infantil, terapia Gestalt, método fenomenológico; estudio de caso.

Introdução ciência. Isso significa não ater-se ao sujeito em si, à


criança, recaindo sobre um subjetivismo, tampouco
O desenho infantil se apresenta como um po- fixar-se unicamente ao desenho, configurando um
deroso recurso revelador dos modos de ser e estar objetivismo, mas ao modo intersubjetivo como este
no mundo da criança. Estudos sobre o tema eviden- desenho é capturado por esta consciência, isto é, na
ciam, predominantemente, diferentes leituras e en- relação dessa criança com sua obra.
foques teóricos que fundamentam uma diversidade Este estudo justifica-se pela carência de estu-
de compreensões possíveis a esse tipo de produção dos com tal recorte que possibilitem uma discussão
(Aguiar, 2004; Derdyk, 2015; Ferreira, 1998; Mère- teórico-prática do trabalho do psicoterapeuta da
dieu, 2006). A despeito dessa variedade, é possível abordagem gestáltica frente à possibilidade de uso
constatar a ausência de trabalhos direcionados a do desenho pelo cliente em seu processo psicote-
ilustrar, com base em casos clínicos, sua contribui- rapêutico. Ademais, apresenta um modelo de com-
-

ção para com o processo psicoterapêutico – sobre- preensão alternativo, em contraposição às apreen-
tudo na perspectiva da Gestalt-terapia. Nesta abor- sões tradicionais desse recurso, ancorado sobretudo
Artigos

dagem, a leitura do desenho se dá pela metodologia na metodologia fenomenológica e demais conceitos


fenomenológica, ao primar pela busca incessante dessa abordagem, tais como awareness, contato e
da apreensibilidade do objeto, enfim, pela cons- funções de contato. Doravante, oferece a pais, edu-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018 204
Estudo de Caso em Gestalt-terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho Infantil

cadores e demais profissionais, a possibilidade de entendidos como o “fundo” que dá sentido às ma-
ampliar seus olhares para a relevância do desenho, nifestações da criança, além de exercerem grande
expressão essa tão recorrente na infância. poder e influência em seu processo psicoterapêu-
A questão norteadora do estudo é: de que modo tico (Aguiar, 2014). Em vista disso, são realizadas
o desenho infantil pode contribuir para o processo sessões com os responsáveis e pessoas significa-
psicoterapêutico infantil da abordagem gestáltica? tivas, visitas à escola e comunicação com demais
Para responder a tal indagação, o presente trabalho profissionais, caso o cliente faça algum outro tipo
tem por objetivo principal ilustrar e descrever o de acompanhamento (Aguiar, 2014; Antony, 2010;
processo psicoterapêutico de uma criança com base Fernandes, 2016; Zanella, 2010). A literatura apre-
na leitura fenomenológica de sete de seus desenhos senta diferenças em relação ao modo de definir a
realizados nas sessões. Secundariamente, refletirá frequência de tais encontros (Aguiar, 2014; Antony,
sobre as contribuições gerais do caso ilustrado para 2010; Fernandes, 2016; Oaklander, 1980; Zanella,
a compreensão e intervenção clínica em desenhos 2010), no entanto, preconizam uma regularidade
na perspectiva da Gestalt-terapia com crianças. Os flexível, isto é, encontros periódicos que respeitem
dados aqui apresentados foram recuperados dos re- sobretudo a necessidade verificada em cada caso.
gistros de atendimento da psicóloga responsável e No atendimento com crianças, os pais (ou res-
serão compostos pela cópia desses desenhos e pelas ponsáveis) também são clientes do processo psico-
anotações referentes a cada sessão da criança par- terapêutico de seus filhos (Fernandes, 2016). Essa
ticipante. afirmação é coerente com a perspectiva de que o
Para alicerçar este estudo serão apresentados a psicoterapeuta também deve acolhê-los de modo
seguir os princípios fundamentais do atendimento cuidadoso e atentivo posto que são a maior influên-
clínico com crianças na Gestalt-terapia e a leitura cia na vida da criança, os responsáveis pelas deci-
do desenho infantil a partir do método fenomeno- sões a serem tomadas a seu respeito e o cerne de
lógico. É relevante destacar que, embora o luto seja sua convivência. A ideia de conceder aos pais um
o tema predominante no caso pesquisado, optou-se papel ativo no atendimento de seus filhos em nada
por não explorar sua fundamentação teórica visto viola os limites de trabalho que se valem sempre
que não contempla os objetivos propostos pelo es- da criança como ponto de partida (e de retorno)
tudo – centrados sobre a metodologia de trabalho para a compreensão de seu ambiente. A família
com desenhos em um processo de psicoterapia, e como um todo desenvolve uma dinâmica da rela-
não sobre a especificidade do conteúdo desses – o ção entre todos os seus membros, assim, o trabalho
que, portanto, impõe um recorte necessário. com qualquer um de seus integrantes afeta todo o
campo relacional. A viabilidade e disponibilidade
desse todo integrado para reconfigurar-se frente às
O processo psicoterapêutico infantil na novidades decorrentes da psicoterapia, dependerão
Gestalt-terapia também do suporte oferecido pelo psicólogo e do
vínculo existente entre eles. Muitos atendimentos
A psicoterapia infantil distingue-se do aten- são precocemente interrompidos ou não evoluem
dimento dos demais públicos em função de dois em função de demasiado foco sobre a criança e con-
aspectos fundamentais: a abrangência do atendi- sequente negligência de seus responsáveis: descui-
mento e o modo de acesso ao mundo da criança. No dar da família é descuidar da criança.

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
que diz respeito à abrangência ou amplitude, e em A despeito da segunda particularidade des-
concordância com a perspectiva de campo desen- se atendimento, e fazendo uma analogia, atender
volvida por Kurt Lewin, na clínica com crianças a crianças exige que o psicoterapeuta retome o exer-
Gestalt-terapia preocupa-se em explorar a gama de cício e a compreensão de um idioma já “falado”
contextos dos quais ela faz parte e aos quais consti- por ele anteriormente – quando criança – e mui-
tui, a fim de conhecer a diversidade de percepções tas vezes esquecido ao distanciar-se de sua infân-
existentes a seu respeito, as múltiplas influências cia durante o processo de tornar-se adulto. Afinal,
às quais está submetida (sejam elas familiares, so- “poucos felizardos teimam em continuar crianças”
ciais, culturais etc), bem como a complementarida- (Ribeiro, 2015, p. 35). A brincadeira é a linguagem
de presente nas relações existentes. Isso significa da criança (Aguiar, 2014; Zanella, 2004), por isso
que, de acordo com a Gestalt-terapia, a compreen- predomina neste atendimento e se destaca como
são da criança se dá pelos micro e macro sistemas principal diferencial em relação ao modo de aces-
aos quais pertence – o que justifica-se tanto pela so às demais faixas etárias. Por assim ser, quando
situação de dependência à qual está sujeita como brincam, psicoterapeuta e criança se encontram em
pelo entrelaçamento de realidades que se co-cons- um território comum e compartilham do mesmo
tituem. Por assim ser, qualquer sintoma, comporta- dialeto. Recuperar essa expressão envolve o proces-
mento, emoção e sensação da criança só podem ser so de resgate da própria criança do psicoterapeuta
compreendidos em função do seu campo. (Aguiar, 2014; Zanella, 2004; Oaklander, 1980) ao
De modo geral, o primeiro e principal contexto mergulhar em suas memórias de infância: “não se
-

da criança é a família, entretanto, há de se consi- trata tanto de lembrar incidentes e acontecimentos,


derar o movimento contemporâneo da escolariza- mas lembrar de ser” (Oaklander, 1980, p. 350).
Artigos

ção cada vez mais precoce (e mais estendida) que Por meio do “brincar com”, o gestalt-terapeuta
vem conferindo à escola uma posição de crescente se interessa pela criança e seu funcionamento, pela
destaque no cotidiano infantil. Esses contextos são sua vida e história, sua configuração, percepção e

205 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

atuação no mundo. Embora possa soar como supér- um conhecimento sistematizado a respeito de algo;
fluo ou confuso para alguns, reiterar que o processo e como método, abarca uma metodologia de pesqui-
psicoterapêutico infantil acontece por intermédio sa desta mesma realidade. A esse respeito, Ribeiro
da brincadeira não exclui sua relevância e serieda- (2012) esclarece que a aproximação da psicologia
de. Ao contrário, a relevância do brincar é enfatiza- com a Fenomenologia se dá por analogia e exten-
do por Huizinga (2014) por ser um fenômeno que são, ao buscar nessa um método de compreensão
ultrapassa os limites da atividade puramente física da realidade que ajude o gestalt-terapeuta a ler e
ou biológica posto que contém uma função signifi- descrever o que está presente diante de si, isto é, o
cante, isto é, carregada de sentido. Para esse autor, fenômeno.
a expressão homo ludens traduz a convicção de que Na Gestalt-terapia, o desenho infantil consti-
é no brincar e pelo brincar, atividade inata ao ho- tui uma forma concreta de expressão. O interesse
mem, que a civilização se desenvolve, sendo o as- do gestalt-terapeuta é acessar, pela investigação,
pecto lúdico uma de suas principais bases. Além de descrição e compreensão do fenômeno, a experiên-
um modo de comunicação possível com a criança, cia vivida e expressada por cada criança, em cada
brincar encerra uma função física, biológica e emo- uma de suas produções. Nessa perspectiva, o de-
cionalmente vital ao homem “capaz de absorver o senho infantil é reconhecido como uma produção
jogador de maneira intensa e total” (Huizinga, 2014, autoral, carregada de sentido, que somente a pró-
p.16). Daí a recorrente percepção de que brincar, pria criança tem a tradução – e não o outro, seja ele
por si só, é terapêutico – embora não seja necessa- quem for. Nessa direção, a fenomenologia contribui
riamente psicoterapêutico. por meio da busca de um instrumento de investiga-
Os recursos lúdicos e brinquedos são impor- ção do psicológico que seja mais humana e menos
tantes, pois favorecem o brincar, a expressão e a laboratorial (Aguiar, 2004). Desenhar é, primordial-
criatividade da criança – embora não sejam indis- mente, uma tentativa de aproximação com o mundo
pensáveis para emergirem brincadeiras no contexto (Derdyk, 2015) e, concretamente, uma atuação nele.
clínico ou fora dele. Alguns exemplos são: o dese- Nos anos escolares, aprende-se nas escolas um
nho, os jogos, a família de bonecos, os fantoches, jeito “correto” de desenhar e pintar, normalmen-
a casinha, os bichos, a massa de modelar, a argila, te dentro da linha e com cores “coerentes” com a
os livros de histórias, a caixa de areia, dentre ou- realidade, repetindo por séculos a padronização de
tros. No contexto da psicoterapia são relevantes por ensino que aniquila diferenças. A nuvem verde e
funcionarem como um convite e estímulo à crian- o rabisco, por exemplo, tendem a ser repreendidos
ça, além de concretizarem a aproximação daquele por fugirem das normas habituais, o que tem impli-
adulto com o mundo infantil. O uso de tais recursos cações diretas na expressão singular e criativa da
na perspectiva gestáltica deve estar em consonância criança posto que denunciam um tipo de explora-
com a metodologia fenomenológica, que convida o ção ou subversão (Derdyk, 2015). O campo retan-
psicoterapeuta ao exercício de apreender a crian- gular do papel, acrescenta essa autora, propicia ao
ça alicerçado nessa perspectiva em detrimento aos desenho sua potencialidade como instrumento de
possíveis equívocos decorrentes de interpretações reflexão, abstração e conceituação na medida em
pessoais do profissional (Aguiar, 2014). que se torna o campo do possível, do devaneio, da
invenção, da concretização de suas carências e de
seus desejos – fenômenos pelos quais a psicoterapia
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Leitura fenomenológica do desenho infantil se interessa.


Algumas crianças sentem-se envergonhadas,
A fenomenologia (traduzida do grego “estu- e alegam não terem habilidade com desenhos, opi-
do do fenômeno”) é uma escola filosófica que tem niões muitas vezes decorrentes de julgamentos
como pai e mestre Edmund Husserl, e teve início externos que podem gerar resistência a essa expe-
na Alemanha no final do século XIX (Bello, 2006). riência. Por isso, nem sempre o uso deste recurso
Prima pelo fenômeno como aquilo que aparece se dá espontaneamente, podendo acontecer por um
“diante de mim”, e não “em mim” (Holanda, 2014), convite do psicoterapeuta. Diante dessa resistên-
e contempla a consciência como intencional. Dife- cia é oportuno diferenciar algumas alternativas de
rente do sentido de intenção como ato volitivo, a condutas do psicoterapeuta em relação ao cliente:
intencionalidade da consciência refere-se à relação elogiar, manipular e encorajar a criança. O elogio
dialética que concebe a consciência como captura pode aparecer com afirmativas do profissional que
do mundo, direcionamento para o objeto, correla- tentem convencê-la de que é capaz, o que invalida
ção essencial sem a qual não haveria nem consciên- sua sensação (de que não é boa) e, portanto, rom-
cia nem objeto, posto que é ela quem lhe confere pem com o princípio psicoterapêutico. Manipular,
sentido (Andrade, 2007). de modo claro ou velado, acontece quando a crian-
Destrinchando a Fenomenologia, Holanda ça é direcionada, independentemente de sua von-
(2014) a descreve como uma epistemologia, uma tade, a fazer aquilo que o psicoterapeuta propôs
filosofia, uma ciência e um método. Segundo o au- valendo-se de barganha, de modo a atender a uma
-

tor, em termos epistemológicos, preocupa-se com necessidade pessoal dele e não de seu cliente. Di-
a possibilidade do conhecimento e do conhecer, ferente dos anteriores, encorajar a criança é um ato
Artigos

como uma crítica à própria ciência em seu sentido que acolhe sua percepção ao passo que lhe convida
original; enquanto filosofia, é entendida como a re- a experimentar ir além, propiciando contato com o
flexão sobre a realidade; como ciência, compreende novo por meio de uma relação suportiva. Sendo as-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018 206
Estudo de Caso em Gestalt-terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho Infantil

sim, o psicoterapeuta esclarece em seu chamamen- Participante


to que não há um jeito certo ou único de desenhar,
que isso não é o que importa naquele contexto, e Pedro (nome fictício) iniciou o processo de
sim a liberdade de fazê-lo como quiser e conseguir. psicoterapia aos seis anos de idade, após o assassi-
Com esse estímulo, algumas crianças se encorajam, nato de seu pai no exercício de seu trabalho como
outras mantêm a mesma decisão: qualquer que seja policial – queixa referida pela responsável. Na nova
a escolha, é preciso respeitar e seguir adiante. configuração familiar, morava com a mãe e seu ir-
A leitura fenomenológica possibilita a com- mão de 10 anos. Com considerável repercussão do
preensão do desenho por meio de sua descrição, caso na imprensa, a morte repentina do pai foi o
o que só pode ser feito pelo próprio autor. Aguiar tema predominante de seus atendimentos, com
(2014) corrobora que essa forma de trabalho permi- destaque para brincadeiras que frequentemente en-
te que a criança construa gradativamente o signifi- volviam o antagonismo perder/ganhar. Sua família
cado de seu material. O psicoterapeuta poderá aju- materna, com a qual tinha maior convivência, é de
dá-lo com intervenções que possam ampliar a sua origem japonesa e caracterizava-se por uma expres-
percepção, cuidando para que suas perguntas não são comedida. A mãe, especialmente, relatava com
virem um interrogatório que desfavoreça a atribui- clareza sua dificuldade em demonstrar para os fi-
ção de sentido. Isso contraria a conduta do profis- lhos seu sofrimento e, consequentemente, optava
sional que cegamente impõe a sua própria imagem habitualmente por não conversar sobre o assunto.
de infância ao interpretar o desenho infantil (Der- A psicoterapia teve duração de um ano e dez meses,
dyk, 2015). Pretende-se, no atendimento clínico em totalizando 49 sessões. Tanto Pedro quanto sua mãe
Gestalt-terapia, valendo-se do método fenomenoló- consentiram por escrito a participação no estudo
gico, o exercício e a busca constantes pelo sujeito da por meio da assinatura dos termos de assentimento
experiência, por seu vivido tal qual o percebe. e consentimento, respectivamente, aprovados pelo
comitê de ética em pesquisa da Pontifícia Universi-
dade Católica de Goiás.
Método

Este trabalho configura-se como um estudo de Resultados e Discussão


caso a partir de uma pesquisa documental ex post
facto descritiva, com a descrição de desenhos livres Serão apresentados à seguir alguns desenhos
de uma criança que já finalizou seu processo de de Pedro, seguidos de sua descrição, e de reflexões
psicoterapia. A pesquisa ex post facto caracteriza-se específicas e gerais sobre o método fenomenológico
pelos dados serem utilizados após a ocorrência do como aporte do processo psicoterapêutico ilustrado.
evento, neste caso, após o fim da psicoterapia deste O ponto de partida frente a uma produção gráfica é
cliente. O caráter documental refere-se ao uso de a descrição, isto é, solicita-se à criança que conte
tais desenhos como fonte de informações dispersas como “vive” aquela experiência, os sentimentos e,
que podem ser reorganizadas, conferindo-lhes uma por extensão, seu desenho (Aguiar, 2004). A autora
nova importância como fonte de consulta (Proda- ratifica ainda que somente assim será possível, na
nov & Freitas, 2013). Os autores complementam: presença do psicoterapeuta (e com ele), alcançar os
significados e sentidos únicos co-constituídos, pos-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Entendemos por documento qualquer registro sibilidade inexoravelmente articulada à palavra. A
que possa ser usado como fonte de informa- premissa fenomenológica aqui esboçada recai sobre
ção, por meio de investigação, que engloba: a perspectiva de ir às coisas mesmas, apreender o
observação (crítica nos dados da obra); leitura mundo tal qual se apresenta, por intermédio de um
(crítica da garantia, da interpretação, do valor olhar “ingênuo” e anterior a qualquer reflexão (Ho-
interno da obra); reflexão (crítica do processo e landa, 2014). Atentando-se ao risco de apropriar-se
do conteúdo da obra); crítica (juízo fundamen- equivocadamente da Fenomenologia enquanto filo-
tado sobre o valor do material utilizável para o sofia, a ideia de transposição possível à Psicologia
trabalho científico. (p. 56) concerne ao método fenomenológico, em termos de
metodologia, e não de técnica. Em outras palavras,
A escolha pelo estudo de caso advém da ne- como assim descreve Holanda (2014), diz respeito
cessidade de compreender o fenômeno humano em ao uso da Fenomenologia como método para com-
uma perspectiva holística, na qual não há um con- preender o fenômeno psíquico.
trole do pesquisador sobre os eventos envolvidos. O Pedro chega à psicoterapia trazido por sua mãe
estudo de caso é útil para investigar novos concei- poucos dias após a perda do pai que se deu de modo
tos, bem como para verificar como são aplicados e inesperado e trágico ao ser assassinado a tiros no
utilizados na prática elementos de uma teoria (Yin, trabalho como policial. Na ocasião, ela explicita a
2009). Para tanto, recorrer-se-á a sete de seus dese- emergência do acompanhamento psicológico para
nhos, realizados em diferentes sessões, e ao diário seu filho que, mesmo estando presente, permane-
-

de campo da psicoterapeuta contendo seus regis- ce calado e de cabeça baixa ante os relatos emo-
tros de atendimentos, isto é, relatos textuais da pro- cionados da mãe. Ao fim deste primeiro contato, a
Artigos

fissional sobre o trabalho realizado a cada encontro criança foi consultada sobre seu interesse em vol-
com a criança. tar a reencontrar a psicoterapeuta e concordou. Em
suas primeiras sessões individuais observou-se que

207 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

Pedro não falava espontaneamente sobre o tema criança exigiu da profissional um trabalho com a
da morte do pai, tão pouco mostrava-se receptivo própria ansiedade e com suas expectativas. Diferen-
a aproximações da psicoterapeuta. A Gestalt-tera- te do esperado por ela, naquele momento Pedro “só”
pia, em sua postura clínica, pauta-se pelo respeito quereria brincar. Embora pareça simples e despre-
à escolha do cliente, facultando-lhe a decisão sobre tensioso, é “brincando que a criança entra em con-
o que abordar ou fazer na sessão – o que vale igual- tato com suas dores, seus temores, sua raiva, sua
mente para o contexto infantil. emoção, seu carinho, seu amor; é um laboratório de
A criança que chega ao atendimento, traz con- sua vida” (Zanella, 2004).
sigo um terreno sagrado e completamente desco- Em sua nona sessão, ao construir um cenário
nhecido para o profissional que lhe recebe, fonte com blocos de montar e figuras humanas, Pedro
de curiosidade e, fundamentalmente, de respeito. identifica o pai e o localiza dentro de sua casa, rela-
Frente a isso, o vínculo psicoterapêutico pode ser tando à psicoterapeuta o quanto o percebe presente
comprometido a partir do momento em que o psi- naquele lugar. A partir dessa ocasião fora possível
cólogo tem a expectativa de que a criança aborde a identificar o início de um movimento cíclico de gra-
mesma queixa referida por seus responsáveis, o que dativa aproximação e afastamento desse tema que
pode interferir e prejudicar sua manifestação autên- fora repetido ao longo de todo seu processo psico-
tica. Ao contrário disso, em grande parte das vezes terapêutico: se em uma sessão a criança abordava
(e por diferentes motivos), elas chegam com outros sua experiência presente em relação à perda do pai,
interesses e temas para a sessão. Tal discrepância sobretudo através de desenhos, no encontro seguin-
pode estar relacionada, por exemplo, a uma diferen- te escolhia qualquer outra atividade que não fizesse
ça de demanda e/ou percepção entre os membros da alusão direta ao luto – e assim sucessivamente.
mesma família; em outros casos pode sinalizar uma No processo psicoterapêutico de Pedro, dese-
dificuldade em aproximar-se do conteúdo comum a nhar revelou-se como um modo de acesso possí-
todos eles, por vezes, fonte de excessivo sofrimento vel à sua experiência da morte do pai. O desenho
para o cliente. Nesse caso, uma espécie de “fuga do é compreendido como resultado de uma atividade
tema” pode traduzir o que Hycner (1995) denomina que emerge do imaginário, do percebido e do real,
de sabedoria da resistência, que acontece quando que se torna objeto de investigação e exploração
uma pessoa sente, por qualquer razão, não ter su- (Ferreira, 1998), portanto, ponto de partida para
porte suficiente para lidar com determinada situa- descrições e percepções decorrentes delas. Dada a
ção e, portanto, se mantém distante dela como ten- sua amplitude, não é meramente uma técnica, o que
tativa organísmica de se autoproteger. Perls (1977) implicaria uma visão reducionista, mas uma ativi-
corrobora com essa compreensão ao propor a ideia dade reveladora da experiência humana em qual-
de que nem todo enfrentamento é saudável, se con- quer faixa etária que pode ser utilizada no contexto
siderada a melhor forma possível de ser em dado psicoterapêutico a partir de um referencial teórico-
momento. -metodológico coerente com a prática estabelecida.
As primeiras brincadeiras de Pedro perma- A Fenomenologia, referencial filosófico basilar na
neceram pouco interativas e, notoriamente, não fundamentação da Gestalt-terapia, compreende
incluíram a psicoterapeuta. É fundamental que o que, contrariamente à perspectiva tradicional ex-
profissional saiba tolerar o silêncio da criança e plicativa, caracterizada por uma atitude apriorística
sua ansiedade de “não saber bem o que fazer” nesse em que se considera a compreensão dos fenômenos
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

novo contexto (Aguiar, 2011), ou mesmo, sua não- a partir de algo dado e posto anteriormente, fazer
-disponibilidade para a relação em dado momento. Fenomenologia é o exercício do questionamento
A Gestalt-terapia compreende que não há um modo contínuo e ininterrupto das aparências (Holanda,
correto ou esperado em relação ao comportamento 2014), na busca infindável pela compreensão do
infantil na psicoterapia, o que remete ao angustian- sujeito da experiência.
te e necessário exercício do psicólogo: acolher a au- O modo de investigação descritivo, e não de-
tenticidade da criança em sua infinidade de mani- dutivo, postula que ao mostrar-se o fenômeno será
festações. Exige-se, com isso, uma abertura humana conhecido por tal via, sem nada supor que exista
a partir da qual facilita-se a emersão do ser do clien- por trás do que se mostra Feijoo (2010). Nessa lógi-
te (Holanda, 2014), ainda que essa postura envolva ca, a metodologia fenomenológica retira o psicote-
relativo desconforto no psicoterapeuta. A despeito rapeuta do lugar de sujeito suposto-saber detentor
disso, a profissional relata nas anotações do caso da verdade sobre o cliente. Em relação ao desenho,
sua considerável aflição nesta fase por não falarem isso significa reconhecer o lugar da criança como
sobre a morte do pai de Pedro, dado o impacto do idealizadora e, consequentemente, melhor intérpre-
tema causado na profissional e sua necessidade de te de sua criação, reposicionando-a em um papel
ajudar. ativo perante sua produção (Aguiar, 2004).
Nas situações em que se verifica uma dificul- A contar da décima sessão começam a surgir
dade real no atendimento, o auxílio de um profis- os primeiros desenhos de Pedro. Percebendo sua
sional mais experiente que oriente e supervisione dificuldade de expressar-se pela fala (característica
-

o caso se torna fundamental para o andamento do comum entre as crianças, sobretudo em contexto de
processo. Nessa situação, a supervisora alertou a tragédias) a psicoterapeuta propôs que seu cliente
Artigos

psicoterapeuta de que falar abertamente sobre a usasse livremente um papel para manifestar o que
morte do pai não parecia ser a necessidade atual do estava sentindo naquele momento. No desenho 1,
cliente. Acompanhar a emergência espontânea da Pedro fala dos sentimentos de saudade e de tristeza

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018 208
Estudo de Caso em Gestalt-terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho Infantil

pela falta do pai. Em paralelo, relata sentir-se feliz assim descreve. Conversando sobre o desenho, par-
ao lembrar-se dos dois jogando futebol, quando o tindo de sua descrição, novos sentimentos foram
pai lhe passava a bola para que ele marcasse o gol – manifestados, como quando ele conta do seu medo
de perder outras pessoas que ama.

Desenho 1

Quando polaridades aparecem no mesmo de- ser contemplado em dado momento, tais experiên-
senho, como no exemplo sobre tristeza e felicida- cias de contato envolvem, fundamentalmente, ser
de, é fundamental que ambos sejam acolhidos em tocado, isto é, o contato como uma forma de toque
sua legitimidade, como a experiência total vivida (Polster & Polster, 2001). Contato, na perspectiva da
e percebida. Sendo assim, o psicoterapeuta não Gestalt-terapia, tem a ver com “relacionar-se, com
privilegia um ou outro sentimento, em lugar disto encontrar-se consigo mesmo e com o 11 outro, sem
pode fazer leituras que explicitem esta totalidade nunca perder a perspectiva de que tudo ocorre no
ou sugerir experimentos que os “coloquem para mundo” (Ribeiro, 2006, p.91).
conversar”, como por exemplo perguntar o que um Nas sessões seguintes, a psicoterapeuta e o
sentimento tem a falar para o outro. Além disso, cliente conversaram e brincaram com diferentes
poderá solicitar que a própria criança escolha um sentimentos, a fim de que Pedro se familiarize com
deles para experimentar dialogar, dar cor, locali- as emoções humanas – já que inicialmente mos-
zar no corpo onde se concentra, expressar com um trou desconhecer algumas delas e ter dificuldades
movimento corporal etc. Em seguida é convidada a em nomeá-las. Pôde, por intermédio de um outro
fazer o mesmo com o sentimento polar. Todas estas desenho, experimentar localizá-los no corpo e dar
opções, e quantas outras a criatividade permitir que cor a cada um deles: pintou a saudade de preto e a
emerjam no contexto psicoterapêutico, são formas localizou no coração. Nessa direção, Derdyk (2015)

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
lúdicas possíveis de se explorar as funções de con- descreve por meio da investigação e da experimen-
tato (visão, audição, tato, olfato, paladar, fala e mo- tação novos significados surgem entre a criança e o
vimento) sendo, portanto, relativas à forma como a adulto. No desenho 2, ao ser convidado a desenhar
criança capta e percebe o mundo do qual faz parte sua família, Pedro escolhe representar respectiva-
e está em relação. Embora um desses modos possa mente sua mãe, irmão, tios, avós e primos – confor-
me narra ao apontar e nomear cada um deles. -
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Desenho 2

209 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

Após descrever quem eram as pessoas, uma a psicoterapeuta a tocar a linha construída por ela e
uma, a psicoterapeuta percebe que o pai não fora prestar atenção ao que sente enquanto o faz. Após
representado no desenho, tampouco citado entre os passar a mão sobre a linha algumas vezes, descreve
familiares nomeados. Esta novidade experimentada que a linha que os liga é a saudade. Esta proposta
no desenho e por ela captada é relatada à criança evidencia o convite para recuperar a disposição de
em função da atualização, antes de tudo, esboçada ver e tocar e sentir os efeitos desse olhar (Polster &
graficamente. A intervenção psicoterapêutica é ba- Polster, 2001).
lizada pela possibilidade de favorecer a oportuni- No desenho seguinte, transcorridas algumas
dade de novas compreensões e experimentações, o sessões, Pedro descreve o pai no céu, acima das nu-
que fomenta o enfrentamento do novo (Fernandes, vens, e sua família embaixo. O pontilhado, segundo
2016; Aguiar, 2014). Quando Pedro se dá conta de ele, é o caminho de volta de seu pai: ele assistiu em
que não o havia ilustrado, imediatamente o desenha um filme que depois que as pessoas morrem, elas
no canto da folha, ligando-o com uma linha a ele, à voltam. O desenhar revela, as introjeções e crenças
mãe e ao irmão. Para favorecer o contato da crian- de uma pessoa que muitas vezes não são acessadas
ça consigo mesma, é essencial trabalhar com seus diretamente pelo seu discurso. O psicoterapeuta é
sentidos, a fim de expandir e integrar suas percep- apenas um facilitador nesse processo de investiga-
ções. Neste momento, a criança é convidada pela ção e compreensão (Soares, 2009).

Desenho 3

Desenvolver a expressão da criança e escutá-la informa à psicóloga seu incômodo frente ás novas
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

com aceitação é uma tarefa do gestalt-terapeuta que manifestações de descontentamento do filho, por
deve ser compartilhada com a família. Isso significa ela descritas como “birras”. O ajustamento criati-
dizer que, quanto mais ela experimenta e arrisca se vo diz respeito ao modo como a pessoa consegue
mostrar em uma relação e contexto seguros, maior a organizar-se entorno de sua experiência, e poderá
probabilidade que essa capacidade ultrapasse o set- ser considerado disfuncional quando se transforma
ting terapêutico. No atendimento de Pedro, algumas em uma generalização diante de contextos distintos
sessões foram destinadas à orientação da mãe, com (Aguiar, 2014; Antony, 2010; Fernandes, 2016).
o objetivo de favorecer nela uma postura acolhedo- Em um de seus atendimentos subsequentes,
ra diante da dor do filho. Nesse sentido, as sessões Pedro começa a dar-se conta de que seus gritos e bir-
com os responsáveis tem por objetivo escutá-los e ras são a forma encontrada por ele para ser escutado
conversar sobre questões relativas à criança que se- e visto pelas pessoas – o que pode ser facilmente
jam pertinentes ao andamento do processo (Aguiar, compreendido se considerado seu contexto familiar
2005). Tais encontros guardam em si a rica possi- regido pelo silêncio. A partir de então, evidenciada
bilidade do psicoterapeuta inteirar-se do funcio- sua necessidade, torna-se possível abordar novas
namento da família e de seus sistemas de crenças, formas – mais efetivas para ele – de poder se mos-
aspectos essenciais nos desdobramentos comporta- trar e ser visto por quem deseja. Pedro finaliza esse
mentais apresentados pela criança. atendimento dizendo que o que aprendeu nessa
No decorrer dos atendimentos, e no acompa- sessão é que “todo dia a gente sente”. Ao priorizar
nhamento contínuo da família, novas demandas uma maior awareness da criança, a psicoterapia na
-

são trazidas como foco da psicoterapia. Isso signi- abordagem gestáltica tem por objetivo favorecer no-
fica que antigos comportamentos dão lugar a no- vas possibilidades de ser e estar no mundo (Aguiar,
Artigos

vos, nem sempre aceitos e acolhidos pelo contexto, 2014). Isso significa tornar os clientes conscientes
dado o arranjo destas novas configurações articu- (aware) do que estão fazendo, como estão fazendo
ladas pela criança. Nesta altura do processo, a mãe e de como podem transformar-se (Yontef, 1998), fa-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018 210
Estudo de Caso em Gestalt-terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho Infantil

vorecendo uma autopercepção integradora nos ní- à melhor compreensão de sua realidade, o que exige
veis afetivo, cognitivo e sensóriomotor, por meio da um intercâmbio eficiente entre estes dois contextos
qual a pessoa possa “dar-se conta” de si mesma no (Aguiar, 2014; Zanella, 2010). Nessa sessão, Pedro
mundo. é convidado a desenhar o que ele imagina da festa
Próximo ao dia dos pais, a escola e a família que acontecerá na escola. No desenho 4, descreven-
solicitaram suporte da psicoterapia, por não sabe- do sua fantasia, narra uma cena com crianças can-
rem como lidar com as comemorações desta data. O tando, uma mesa de lembrancinhas, outra com o
olhar da escola é fundamental pois complementa a som, e o espaço dos pais: a cadeira de seu pai está
história do cliente e fornece informações relevantes vazia.

Desenho 4

Fazendo contato com sua tristeza, Pedro pede Pedro ilustrava graficamente o processo de psico-
que seu avô não participe da comemoração repre- terapia vivido. Ao olhar, Pedro entra em profundo
sentando seu pai (proposta da mãe) e, por fim, silêncio, emocionado. Esse modelo de intervenção
decide não comparecer à comemoração. Quando pode ser aplicado em situações nas quais seja ne-
comunicada pelo filho sobre sua vontade, a mãe cessário percorrer a trajetória do processo psicote-
consegue ampará-lo com uma postura acolhedora rapêutico infantil de modo concreto, podendo in-
e compreensiva, o que desvela passos significativos cluir as diferentes produções do cliente; permitindo
de seu processo pessoal cuidadosamente abarcado uma visualização clara de sua caminhada.
ao longo dos atendimentos. Isso ilustra a abrangên- A criança em acompanhamento psicológico si-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
cia do trabalho psicoterapêutico infantil que se es- naliza de diversas formas quando se aproxima o fim
tende à família como possibilidade de suporte às natural de seu processo, é preciso estar atento a sinais
novas experiências da criança. É importante que a que indiquem o término. A família que busca pela
psicoterapia auxilie a identificação de necessida- psicoterapia infantil traz consigo uma queixa que, ao
des e a busca por sua satisfação. Ao autonutrir-se, a ser acolhida e trabalhada entre seus membros, comu-
criança passa a respeitar-se, fortalecendo o seu eu, o mente dá lugar a novas demandas que reivindicam
que lhe dará suporte para enfrentar acontecimentos atenção. Porém, confusões podem acometer profis-
percebidos por ela como negativos (Antony, 2010). sionais que nutrem expectativas equivocadas quanto
De acordo com a autora, a autonutrição torna a a duração de tal acompanhamento, como por exem-
criança capaz de cuidar de si, ao conseguir integrar plo quando relacionam eficiência a tempo ou mesmo
partes negadas à sua experiência total. quando desacreditam no autossuporte da criança e da
Com o decorrer do tempo, os atendimentos co- família para caminharem sem seu auxílio. O fato é que
meçaram a ter novas configurações, nas quais o luto cada sistema tem sua necessidade e seu ritmo que, ao
já não aparecia como figura. Novos jogos e brinca- serem atingidos, conduzem naturalmente para o fim.
deiras surgiram e, concomitantemente, algumas Alguns indícios de término dizem respeito à fluidez
faltas. Pedro resistia em trabalhar novos temas, de- e flexibilidade no modo da criança se colocar, nas
monstrando uma energia cada vez menor nos aten- novas soluções encontradas por ela para questões co-
dimentos e gradativo desinteresse pelas sessões. A tidianas, remissão dos sintomas iniciais, sua falta de
psicoterapeuta, em sua supervisão, é alertada sobre entusiasmo com a sessão, faltas, interesse por outras
-

possíveis sinais de fim do processo de Pedro. Em atividades no mesmo horário dos encontros (Aguiar,
sua 40ª sessão, todos os desenhos feitos e guardados 2014; Antony, 2010; Fernandes, 2016). Identificada a
Artigos

com autorização do cliente, são posicionados pela possibilidade de conclusão, é fundamental dar aten-
psicoterapeuta no chão, na ordem em que foram ção especial a trabalhos relativos a términos e separa-
realizados. O mosaico formado pelas produções de ções (Aguiar, 2014).

211 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

“√” seu momento atual no processo: “estou entran-


A alternativa lúdica de trabalho de encerra- etapas por ele percebidas como concluídas, e com
mento deste atendimento fundamentou-se na analo-
gia com o desenvolvimento natural da vida: nascer, do no fim”. No mundo infantil, o desenho promo-
crescer e morrer em correlação ao processo de ini- ve a concretização da experiência, tão necessária à
ciar, desenvolver e finalizar suas sessões. Valendo-se compreensão de crianças menores, facilitando sua
dessa metáfora, Pedro desenhou o desenvolvimento percepção. “A arte não imita o visível, torna visível”
de diferentes seres vivos. Em seguida, a pedido da (Klee, 1977, apud Derdyk, 2015).
psicoterapeuta, pôde identificar os momentos pelos Conversar sobre separação, perda, despedi-
quais passou na psicoterapia e localizar-se no aqui- da, são condutas de cuidado indispensáveis a um
-e-agora. No desenho 5, representou com um “X” as fechamento (Antony, 2010). Ficando evidente um

Desenho 5

fim, que remete à impossibilidade vivida por Pedro 7). No desenho 6, descreve seu pai no céu, ao lado
de despedir-se do pai – tema central de seu proces- de Deus olhando para sua família, que ainda vive
so psicoterapêutico – a psicóloga lhe assegura nesse uma tempestade. No desenho 7, retrata o dia em
contexto a possibilidade de poder “dar tchau” para que fizeram do atendimento uma sessão de cine-
ela e para seu atendimento. Nesse instante ele soli- ma, com a presença de seu irmão, ocasião em que,
cita: “eu quero 22 sessões pra me despedir”, pedido embora não fora trabalhado explicitamente o tema
aceito pela psicoterapeuta. Não por acaso, decor- da perda do pai, assistiram ao filme “Up”, sugerido
ridas seis sessões, Pedro encerra os atendimentos, pela psicoterapeuta, que faz menção à morte.
por escolha própria. Finaliza com 2 desenhos: um Portanto, Pedro reproduz como marco de seu
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

sobre o pai (desenho 6), e o outro sobre o momento processo uma situação em que, ao invés de abordar
mais importante para ele nos encontros (desenho a dor explicitamente, viveram um momento lúdico.
-
Artigos

Desenho 6

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018 212
Estudo de Caso em Gestalt-terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho Infantil

Desenho 7

A sugestão do cinema, fruto da percepção intersub- sua abertura é fundamental para se trabalhar com
jetiva, reafirma a relevância da dimensão dialógica este tipo de linguagem, quando essa for a escolha
na Gestalt-terapia. De tal modo, “o terapeuta não da criança.
deve ser apenas amigável, mas deve estar disposto a A psicoterapia tem o papel de acompanhar a
efetivamente contribuir com seu próprio self para o criança em sua construção de sentidos e percepção
encontro” (Hycner, 1995, p. 113), quaisquer que se do mundo. Assim, espera-se que o psicólogo infantil
sejam os formatos possíveis para que ele aconteça. trabalhe, não em um ideal de “cura”, mas focado em
Isso reitera a premissa de que não há uma técnica contribuir com o livre fluir da criança em seu con-
mais ou menos eficaz, um formato enrijecido co- texto maior. Isso significa reconhecer na elaboração
mum aos processos infantis: a criatividade do psi- gráfica o sujeito da produção e toda sua tempora-
coterapeuta e da criança, conjugadas, devem estar a lidade intrínseca nessa manifestação. O exercício
serviço da necessidade presente, o que envolve im- fenomenológico é ler por de trás das racionalidades
preterivelmente a capacidade de perceber o outro. postas, na busca constante pelas singularidades e
A evidência do encontro com o humano transcende conexões da criança com o mundo.
(ou deveria!) teorias e tecnicismos. O trabalho pôde explicitar o processo psico-
terapêutico de uma criança evidenciando algumas
das infindáveis possibilidades de intervenção. Não
Considerações Finais se pretende aqui esgotá-las, mas reafirmar o convi-
te à reflexão que envolve prática e fundamento. Os
O desenho infantil é um recurso “disparador” limites do estudo dizem respeito a exibir um caso

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
por meio do qual a vivência da criança é revelada. em que o recurso do desenho foi fundamental ao
Embora nem todas as crianças tenham proximida- processo, o que obviamente não é unanimidade.
de e optem por este recurso, quando adotado, pode Conclui-se que o desenho foi uma via de expres-
facilitar sua expressão e favorecer a awareness, são favorável neste estudo de caso pela afinidade
corroborando com o objetivo desta abordagem. As da criança e da psicoterapeuta com este trabalho.
leituras fenomenológicas exprimem a impossibili- Sendo assim, sugere-se estudos que possam descor-
dade de dedução ou interpretação por parte do psi- tinar o alcance e limites de outros recursos a partir
coterapeuta do material produzido, posto que estão da compatibilidade que têm (ou não) com psicote-
submetidos ao rigor desta metodologia descritiva rapeutas e seus clientes.
do sujeito.
Ainda que o desenho seja um recurso carrega-
do de significados, é extremamente cuidadoso não Referências
“engessar” a criança em sua produção. De acordo
com os princípios da Gestalt-terapia, ele representa
uma forma de estar-no-mundo no seu aqui-e-agora, Aguiar, E. (2004). Desenho livre infantil: leituras fenome-
e não uma representação rígida e imutável da sua nológicas. Rio de Janeiro: E-papers.
realidade – dimensão contextual. Oaklander (1980)
Aguiar, L. (2011). O brincar na psicoterapia e a ansiedade
atenta para a responsabilidade do psicoterapeuta
do psicoterapeuta em “saber” e “entender”. Recupe-
infantil de prover métodos para que as crianças
-

rado em Julho de 2013, de http://www.gestaltcom-


expressem seus sentimentos, já que muitas vezes, criancas.blogspot.com.br
as crianças que chegam à psicoterapia não sabem
Artigos

como fazê-lo. Isto confirma a relevância de que Aguiar, L. (2014). Gestalt-terapia com crianças: teoria e
esse profissional se comprometa com o exercício de prática. São Paulo: Livro Pleno.
questionamento constante sobre o desenho, já que

213 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

Andrade, C. C. (2007). A vivência do cliente no processo Ribeiro, J. P. (2012). Gestalt-terapia: refazendo um cami-
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Mariana Vieira Pajaro é Graduada em Psicologia
pia (pp. 56-82). São Paulo: Summus.
pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Pós-
-graduada em Gestalt-terapia, pelo Instituto de Trei-
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cologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasí-
Holanda, A. F. (2014). Fenomenologia e Humanismo: re- lia, Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvol-
flexões necessárias. Curitiba: Juruá. vimento Humano pela Universidade de São Paulo.
Coordenadora e Professora do Instituto Figura-Fundo
Huizinga, J. (2014). Homo Ludens: o jogo como elemento (IFF). Email: marianapajaro@uol.com.br
da cultura. São Paulo: Editora Perspectiva.
Celana Cardoso Andrade possui Graduação em Psi-
Hycner, R. (1995). De pessoa a pessoa. São Paulo: Sum- cologia pela Universidade Católica de Goiás, Licen-
mus. ciatura em Educação Física pela Escola Superior de
Educação Física de Goiás, Especialização em Gestalt-
Mèredieu, F. (2006). O desenho infantil. São Paulo: Cul-
-terapia pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa Em
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

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Gestalt Terapia de Goiânia - ITGT, Mestrado em Psi-
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Summus. sidade de Brasília, Professora Assistente e superviso-
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Summus.

Polster, E. & Polster, M. (2001). Gestalt-terapia integrada.


São Paulo: Summus.
Recebido em 16.07.2017
Prodanov, C. C. & Freitas, E. C. (2013). Metodologia do
trabalho científico: métodos e técnicas de pesquisa Aceito em 02.11.2017
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-
Artigos

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 204-214, mai-ago, 2018 214
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.10

CASE STUDY IN GESTALT THERAPY:


PHENOMENOLOGICAL READINGS OF CHILDREN’S
DRAWING
Estudo de Caso em Gestalt-Terapia: Leituras Fenomenológicas do Desenho Infantil

Estudio de caso en la terapia Gestalt: lecturas fenomenológicas de dibujo infantil

Mariana Vieira PaJaro


celana cardoSo andrade

Resumo: O presente estudo aborda o desenho infantil como um recurso revelador da criança. Tem por objetivo ilus-
trar o processo psicoterapêutico de um menino de 6 anos por meio da leitura fenomenológica de sete desenhos rea-
lizados por ele ao longo de seus atendimentos. Ademais, pretende refletir sobre as contribuições desse caso para a
compreensão e intervenção na clínica infantil na perspectiva da Gestalt-terapia. Para tanto, realizou um estudo de
caso documental ex post facto descritivo com base no diário de campo da psicoterapeuta, que continha os desenhos
do participante e suas respectivas anotações. A metodologia fenomenológica favoreceu o acesso ao vivido por meio de
descrições do cliente que puderam ampliar o contato com sua experiência. O autor da produção gráfica é concebido,
portanto, como detentor único do sentido de sua obra. Esse estudo evidencia que o desenho pode favorecer a expressão
de algumas crianças de modo a contribuir com o processo psicoterapêutico na Gestalt-terapia.
Palavras-chave: Desenho infantil; Gestalt-terapia; Método fenomenológico; Estudo de caso.

Abstract:The present study analyzes children’s drawing as a revealing feature of the child, aiming to illustrate the
psychotherapeutic process of a 6-year-old boy from the phenomenological reading of seven drawings made by him
during his visits. In addition, it analyzes the contributions of this case to the understanding and intervention in the
children’s clinic from the Gestalt therapy perspective. To do so, a documentary, descriptive ex post facto case study
was performed based on the records of the psychotherapist, which contained the drawings of the participant and their
respective notes. The phenomenological methodology favored the access to that lived through descriptions of the
client that could extend the contact with his experience. The author of graphic production is therefore conceived as
the sole holder of the meaning of his/her work. This study shows that the drawing may favor the expression of some
children in order to contribute to the psychotherapeutic process in Gestalt therapy.
Keywords: Child’s drawing; Gestalt therapy; Phenomenological method; Case study.

Resumen: Este estudio se ocupa de dibujo infantil como una característica que revela el niño. Su objetivo es ilustrar el
proceso psicoterapéutico de un niño de 6 años de edad con la lectura fenomenológica de siete dibujos realizados por él

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
durante su tratamiento. Además, se pretende reflexionar sobre las contribuciones del caso para la comprensión e inter-
vención en la clínica de los niños desde la perspectiva de la terapia Gestalt. Para este propósito, se realizó un estudio
de caso descriptivo documental a posteriori del diario de campo de psicoterapeuta, que contiene dibujos delo partícipe
y sus respectivas notas. La metodología fenomenológica favoreció el acceso a vivido a través de las descripciones de
los clientes que podrían ampliar el contacto con su experiencia. El autor de la producción gráfica está diseñada, por lo
tanto, como único titular del significado de su obra. Este estudio muestra que el diseño puede favorecer la expresión
de algunos niños con el fin de contribuir al proceso psicoterapéutico en la terapia Gestalt.
Palabras clave: Gráfico de los niños; La terapia Gestalt; Método fenomenológico; Estudio de caso.

Introduction perspective. In this approach, the reading of the


drawing is made by the phenomenological metho-
Children’s drawing is a powerful resource re- dology, when it excels by the incessant search of
vealing the ways of being and being in the world the apprehensibility of the object, finally, by the
of the child. Studies on the subject show, predomi- conscience. This means not to stick to the subject
nantly, different readings and theoretical approa- itself, the child, falling on a subjectivism, nor to
ches that support a diversity of possible unders- stick solely to the drawing, configuring an objecti-
tandings to this type of production (Aguiar, 2004, vism, but to the intersubjective way this drawing
-

Derdyk, 2015, Ferreira, 1998 and Mèredieu, 2006). is captured by this consciousness, that is, in the
Despite this variety, it is possible to observe the relation of this child with its work.
Artigos

absence of studies aimed at illustrating, based on This study is justified by the lack of studies
clinical cases, its contribution to the psychothera- with such a cut that allow a theoretical-practical
peutic process - especially from a Gestalt therapy discussion of the work of the psychotherapist of
the Gestalt approach regarding the possibility of

215 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

using the drawing by the client in the psychothe- tom, behavior, emotion and sensation of the child
rapeutic process. In addition, it presents an alter- can only be understood in terms of its field.
native understanding model, in opposition to the In general, the first and main context of the
traditional apprehensions of this resource, ancho- child is the family, however, we must consider
red, above all in the phenomenological methodo- the contemporary movement of schooling that is
logy and other concepts of this approach, such as increasingly precocious (and more extended) that
awareness, contact and contact functions. From has given the school a position of increasing im-
now on, it offers to parents, educators and other portance in children’s daily life. These contexts are
professionals the possibility to broaden their looks understood as the “background” that gives mea-
for the relevance of drawing, an expression so re- ning to the child’s manifestations, besides exerting
current in childhood. great power and influence on the psychotherapeu-
The guiding question of the study is: in what tic process (Aguiar, 2014). As a result, sessions
way can children’s drawing contribute to the child are held with those responsible and significant
psychotherapeutic process of the Gestalt approa- persons, visits to the school and communication
ch? To answer this question, the main purpose of with other professionals, in case the client does
this paper is to illustrate and describe the psycho- some other type of follow-up (Aguiar, 2014; An-
therapeutic process of a child based on the phe- tony, 2010; Fernandes, 2016; Zanella, 2010). The
nomenological reading of seven drawings perfor- literature is divergent in the way of defining the
med in the sessions. Secondarily, it will reflect on frequency of such meetings (Aguiar, 2014; Antony,
the general contributions of the illustrated case 2010; Fernandes, 2016; Oaklander, 1980; Zanella,
to the understanding and clinical intervention 2010), however, advocates a flexible regularity,
in drawings from the Gestalt therapy perspective that is, periodic meetings which, above all, meet
with children. Data presented here were collected the need in each case.
from the records of the responsible psychologist In childcare, parents (or guardians) are also
and will be composed of the copy of these drawin- clients of the psychotherapeutic process of their
gs and the remarks referring to each session of the children (Fernandes, 2016). This statement is con-
participating child. sistent with the view that the psychotherapist shou-
To support this study, we will present be- ld also welcome them in a careful and attentive
low the fundamental principles of clinical care manner, since they are the greatest influence in the
with children in Gestalt-therapy and the reading child’s life, those responsible for the decisions to
of children’s drawing from the phenomenological be made and the core of its coexistence. The idea of
method. It is important to note that, although grief giving parents an active role in caring for their chil-
is the predominant theme in the case studied, we dren does not violate the limits of work that always
decided not to explore its theoretical basis since use the child as a starting (and returning) point for
it does not contemplate the objectives proposed understanding its environment. The family deve-
in the study - centered on the methodology of lops a mode of functioning among its members,
working with drawings in a psychotherapy pro- thus, working with any of its members affects the
cess, and not on the specificity of their content - entire relational field. The feasibility and availa-
which, therefore, imposes a necessary clipping. bility of this integrated whole to reconfigure itself
in the face of the new developments arising from
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

psychotherapy will also depend on the support


Child Psychotherapeutic Process in offered by the psychologist and the link between
Gestalt-therapy them. Many services are early interrupted or do not
evolve due to too much focus on the child and con-
Child psychotherapy is distinguished from sequent negligence of those responsible: neglecting
the assistance of other publics due to two funda- the family is neglecting the child.
mental aspects: the scope of care and the way of In spite of the second particularity of this care,
accessing the world of the child. In terms of scope and taking an analogy, attending children requires
or breadth, and in agreement with the field pers- that the psychotherapist resume the exercise and
pective developed by Kurt Lewin, in the clinic understanding of a language already “spoken” pre-
with children, Gestalt therapy is concerned with viously - as a child - and often forgotten when dis-
exploring the range of contexts of which it forms tancing him/herself from his/her childhood during
part, and to which it constitutes the in order to the process of becoming an adult. After all, “few
know the diversity of perceptions about it, the lucky ones insist on continuing children” (Ribeiro,
multiple influences to which it is subjected to and 2015, p.35). The play is the language of the child
produces (be they familial, social, cultural, etc.), (Aguiar, 2014; Zanella, 2004), so it predominates
as well as the complementarity present in existing in this service and stands out as the main differen-
relationships. This means that, according to Ges- tial in relation to the way of access to the other age
talt therapy, the child’s understanding comes from groups. Thus, when playing, psychotherapist and
-

the micro- and macro-systems to which it belon- child are in a common territory and share the same
gs and with which it interacts - which is justified dialect. Recovering this expression involves the
Artigos

both by the dependency situation to which it is rescue process of the psychotherapist’s own child
subject and by the interweaving of realities that (Aguiar, 2014; Zanella, 2004; Oaklander, 1980) as
are co-constituted. That being the case, any symp- he/she delves in his/her childhood memories: “it

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018 216
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

is not so much a matter of remembering incidents Unraveling the Phenomenology, Holanda


and events, but remembering to be” (Oaklander, (2014) describes it as an epistemology, a philoso-
1980, p.350). phy, a science and method. According to the au-
Through “play with”, the gestalt-therapist thor, in epistemological terms, it is concerned with
is interested in the child and its functioning, in the possibility of knowledge and knowing, as a cri-
its life and history, its configuration, perception tique of science itself in its original sense; as philo-
and acting in the world. Although it may sound sophy, it is understood as the reflection on reality;
superfluous or confusing to some, reiterating that as science, comprises a systematized knowledge
the child psychotherapeutic process occurring about something; and as a method, encompasses a
through play does not exclude its relevance and research methodology of this same reality. In this
seriousness. On the contrary, the relevance of play regard, Ribeiro (2012) clarifies that the approxima-
is emphasized by Huizinga (2014) because it is a tion of psychology with Phenomenology is by ana-
phenomenon that goes beyond the limits of purely logy and extension, when seeking in this a method
physical or biological activity because it contains of understanding reality that helps the gestalt-the-
an expressive, meaning-filled function. For this rapist to read and describe what is present before
author, the expression homo ludens expresses the him/her, that is, the phenomenon.
conviction that it is in play and by playing, innate In Gestalt therapy, children’s drawing is a
activity to man, that civilization develops, and the concrete form of expression. The interest of the
play aspect is one of its main bases. In addition to gestalt-therapist is to access, through the investi-
a possible mode of communication with the child, gation, description and understanding of the phe-
playing implies a physical, biological and emotio- nomenon, the experience lived and expressed by
nally vital function for the man ‘capable of absor- each child, in each of its productions. In this pers-
bing the player intensely and completely” (Hui- pective, children’s drawing is recognized as an au-
zinga, 2014, p.16). Hence the recurring perception thorial production, full of meaning, that only the
that playing on its own is therapeutic - even if it is child itself has the translation - and not the other,
not necessarily psychotherapeutic. whoever he/she may be. In this direction, pheno-
Playful resources and toys are important be- menology contributes through the search for an
cause they favor playfulness, expression and crea- instrument of investigation of the psychological
tivity of the child - although they are not indis- that is more human and less laboratorial (Aguiar,
pensable to emerge games in the clinical context 2004). To draw is primarily an attempt to approach
or outside. Some examples are: drawing, games, the world (Derdyk, 2015) and, concretely, an act
family of dolls, puppets, house, animals, modeling in it.
dough, clay, story books, sandbox, among others. In school years, a “right” way of drawing and
In the context of psychotherapy, they are relevant painting is learned in schools, usually within the
because they act as an invitation and encourage- line and with colors “coherent” with reality, repea-
ment to the child, in addition to concretizing the ting for centuries the standardization of teaching
approach of that adult with the child world. The that annihilates differences and blocks creativity.
use of such resources in the Gestalt perspective The green cloud and the scribble, for example,
should be in line with the phenomenological me- tend to be reprimanded for escaping from custo-
thodology, which invites the psychotherapist to mary norms, which have direct implications on

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
exercise of apprehending the child based on this the child’s unique and creative expression since
perspective, to the detriment of possible miscon- they denounce a kind of exploitation or subver-
ceptions resulting from personal interpretations of sion (Derdyk, 2015). The rectangular field of pa-
the professional (Aguiar, 2014). per, adds the author, gives the drawing its poten-
tiality as an instrument of reflection, abstraction
and conceptualization insofar as it becomes the
Phenomenological reading of children‘s field of possibility, reverie, invention, the concre-
drawing tization of its needs and desires - phenomena for
which psychotherapy is interested.
Phenomenology (translated from the Greek Some children feel embarrassed, and claim
“study of the phenomenon”) is a philosophical to have no skill with drawings, opinions often de-
school, whose father and master is Edmund Hus- rived from external judgments that can generate
serl, and began in Germany in the late nineteenth resistance to this experience. Therefore, the use
century (Bello, 2006). Pray for the phenomenon as of this resource is not always given spontaneou-
that which appears “before me”, not “in me” (Ho- sly, and it may occur through an invitation from
landa, 2014), and contemplates consciousness as the psychotherapist. Faced with this resistance, it
intentional. Unlike the sense of intention as a vo- is opportune to differentiate some alternatives of
litional act, the intentionality of consciousness re- the psychotherapist’s conducts in relation to the
fers to the dialectical relation that conceives cons- client: to praise, to manipulate and to encoura-
-

ciousness as the capture of the world, directing ge the child. Praise may come with professional
towards the object, essential correlation without statements that try to convince that the child is
Artigos

which there would be neither consciousness nor capable, which invalidates its feeling (that is not
object, since this is what gives it meaning (Andra- good), and therefore breaks with the psychothe-
de, 2007). rapeutic principle of confirmation. Manipulating,

217 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

in a clear or veiled way, happens when the child case study is useful to investigate new concepts
is directed, independently of its will, to do what as well as to verify how elements of a theory are
the psychotherapist proposed using a bargain, in applied and used in practice (Yin, 2009). To do
order to meet a personal need and not of its client. so, we will use seven drawings, made in different
Unlike the previous ones, to encourage the child is sessions, and the psychotherapist’s record book
an act that welcomes its perception while inviting containing the records of attendance, that is, the
it to try to go beyond, propitiating contact with the textual reports of the professional on the work per-
new one through a supportive relation. Thus, the formed at each visit of the child.
psychotherapist clarifies in his/her call that there
is no right or only way to draw, that this is not
what matters in that context, but the freedom to do Participant
it as you want and achieve. With this encourage-
ment, some children are encouraged, others keep Peter (fictitious name) began the process of
the same decision: whatever the choice, you have psychotherapy at the age of six, shortly after the
to respect and move on. murder of his father in the exercise of his work as
The phenomenological reading makes possi- a police officer - a complaint referred to by the per-
ble the understanding of the drawing through its son in guardian. In the new family configuration,
description, which can only be done by the author he lived with her mother and his 10-year-old bro-
itself. Aguiar (2014) corroborates that this form of ther. With considerable repercussion of the case
work allows the child to gradually construct the in the press, the sudden death of the father was
meaning of its material. The psychotherapist will the predominant theme of his attendance, highli-
be able to help with interventions that can broa- ghting games that often involved losing/winning
den its perception, taking care that the questions antagonism. His maternal family, with which he
do not come to an interrogation that will not make had more coexistence, is of Japanese origin and
sense. This is contrary to the behavior of the pro- was characterized by a restrained expression. The
fessional who blindly imposes his/her own chil- mother, in particular, clearly reported her diffi-
dhood image when interpreting children’s drawin- culty in showing her children her suffering, and
gs (Derdyk, 2015). It is intended, in the clinical consequently habitually chose not to talk about it.
care in Gestalt-therapy, using the phenomenologi- Psychotherapy lasted for one year and ten months,
cal method, the exercise and the constant search totaling 49 sessions.
for the subject of the experience, for its experience
lived as it perceives it.
Results and Discussion
Method Next, we will present some drawings of Pe-
dro, followed by description, and reflections on
This is a case study from a documentary, the phenomenological method as contribution of
descriptive ex post facto research, with the des- the illustrated psychotherapeutic process. The
cription of free drawings of a child with a finished starting point of a graphic production is the des-
psychotherapy process. The ex post facto research
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

cription, that is to say, the child is asked to tell


is characterized by the data being used after the how it “lives” that experience, feelings and, by ex-
occurrence of the event, in this case after the end tension, its drawing - Aguiar (2004). The author
of the client’s psychotherapy. The documentary affirms that only in this way will it be possible,
character refers to the use of such drawings as a in the presence of the psychotherapist (and with
source of scattered information that can be reorga- him/her), to achieve the co-constituted single mea-
nized, giving them a new importance as a source nings and senses, an inexorably possibility articu-
of consultation (Prodanov & Freitas, 2013). The au- lated to the word. The phenomenological premise
thors complement: outlined here rests on the prospect of going to the
same things, apprehending the world as it is, by
We understand by document any record means of a “naive” look and before any reflection
that can be used as a source of information, (Holanda, 2014). In view of the risk of misappro-
through investigation, which includes: ob- priating Phenomenology as a philosophy, the idea
servation (critical in the data of the work); of possible transposition to Psychology concerns
reading (criticism of the guarantee, interpre- the phenomenological method in terms of metho-
tation, internal value of the work); reflection dology, not of technique. In other words, as des-
(criticism of the process and content of the cribed by Holanda (2014), it concerns the use of
work); criticism (reasoned judgment on the Phenomenology as a method to understand the
value of the material usable for scientific psychic phenomenon.
work. (p. 56) Pedro comes to psychotherapy brought by his
-

mother a few days after the loss of the father that


The choice for the case study comes from the occurred in an unexpected and tragic way when
Artigos

need to understand the human phenomenon in a being shot to death at work as a police officer. At
holistic perspective, in which there is no control the time, she explains the emergence of psycho-
of the researcher about the events involved. The logical counseling for her son who, even present,

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018 218
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

remains silent and head down in the face of his cess. Faced with the sensations referred to by the
mother’s emotional reports. At the end of this first psychotherapist, the supervisor warned her that
contact, the child was consulted about his inte- talking openly about her father’s death seemed not
rest in returning to the psychotherapist office and to be the current need of Pedro. Accompanying
agreed. In his first individual sessions, Pedro did the spontaneous emergence of the child required
not speak spontaneously on the subject of his fa- the professional to work with her own anxiety and
ther’s death, nor was he receptive to the approa- expectations resulting from the encounter with
ches of the psychotherapist. Gestalt-therapy, in this client. Unlike what she expected, at that mo-
its clinical posture, is guided by respect for the ment, Pedro “only” wanted to play. Although it
client’s choice, giving him the decision on what to seems simple and unpretentious, it is “by playing
address or do in the session - which also applies to that the child comes into contact with its pain, its
the child’s context. fears, its anger, its emotion, its affection, its love;
The child who comes to psychological assis- is a laboratory of its life” (Zanella, 2004).
tance, brings with it a sacred ground and comple- In his ninth session, Pedro, in constructing a
tely unknown to the professional who receives it, scenario with building blocks and human figures,
source of curiosity and, fundamentally, of respect. he identifies the father and finds it inside his hou-
In view of this, the psychotherapeutic bond can be se, telling the psychotherapist how much he per-
compromised as soon as the psychologist expects ceives him in that place. From this time on, it was
the child to address the same complaint referred possible to identify the beginning of a cyclical mo-
to by those guardians, which may interfere with vement of gradual approximation and withdrawal
and hamper its authentic manifestation. On the of this theme that had been repeated throughout
contrary, for the most part (and for different rea- its psychotherapeutic process: if in a session the
sons), they come with other interests and themes child approached his present experience in rela-
for the session. Such discrepancy may relate, for tion to the loss of the father, especially through
example, to a difference in need and/or percep- drawings, at the next meeting, he chose any other
tion among members of the same family; in other activity that did not make a direct reference to
cases, it may indicate a difficulty in approaching grief - and so on.
the demand that is sometimes a source of exces- In the psychotherapeutic process of Pedro,
sive suffering for the client. In this case, getting drawing proved to be a possible mode of access
away from the subject may translate what Hycner to the experience of the father’s death. Drawing is
(1995) calls “wisdom of resistance”, that is, when understood as the result of an activity that emer-
a person feels for some reason that do not have su- ges from the imaginary, from the perceived and
fficient support to deal with a particular situation the real, which becomes the object of investigation
and therefore stay away from it as an organismic and exploration (Ferreira, 1998), therefore, a star-
attempt to protect itself. Perls (1977) corroborates ting point for descriptions and perceptions arising
this understanding by proposing the idea that not from them. Given its breadth, it is not merely a te-
all coping is healthy, not all escape is unhealthy - chnique, which would imply a reductionist view,
if considered the best possible way to be at a given but a revealing activity of human experience (in
moment. any age group) that can be used in the psychothe-
The first plays of Pedro remained uninteres- rapeutic context from a theoretical-methodologi-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
ting and, notoriously, did not include the psycho- cal framework consistent with the practice estab-
therapist. It is fundamental that the professional lished. The Phenomenology, the basic philosophy
knows how to tolerate the time, silence and anxie- in Gestalt-therapy’s foundation, understands that,
ty of the child of “not knowing what to do” in this contrary to the traditional explanatory perspecti-
new context (Aguiar, 2011), or even its non-availa- ve, characterized by an aprioristic attitude in whi-
bility to the relationship at any given time. Gestalt- ch one considers the understanding of the pheno-
-therapy understands that there is no correct or ex- mena from something given and put before, to do
pected mode in relation to the child’s behavior in Phenomenology is the exercise of continuous and
psychotherapy, which refers to the distressing and uninterrupted questioning of appearances (Holan-
necessary exercise of the psychologist: to accept da, 2014), in the endless search for the understan-
the authenticity of the child in its infinity of ma- ding of the subject of experience.
nifestations. It requires, therefore, a human ope- The descriptive mode of investigation, di-
ning from which facilitates the emergence of the fferent from the deductive one, postulates that
client’s being (Holanda, 2014), although this pos- the phenomenon shows up by itself and will be
ture involves relative discomfort in the psychothe- known by such a way, without assuming that there
rapist. In this phase of the visits, the professional is something behind what is shown (Feijoo, 2010).
reports in the records of the case her distress for In this logic, the phenomenological methodology
not addressing the issue of the death of Pedro’s fa- removes the psychotherapist from the place of the
ther, given the impact of this theme on her and her supposed-knowledge subject, holder of the truth
-

willingness to help him. about the client. In relation to drawing, this means
In situations where there is a real difficulty recognizing the child’s place as an idealizer and,
Artigos

in attending, the assistance of a more experien- consequently, a better interpreter of its creation,
ced professional to guide and supervise the case repositioning it in an active role in its production
becomes fundamental for the progress of the pro- (Aguiar, 2004).

219 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

From the tenth session, the first drawings of sed that her client freely use a sheet of paper to
Pedro begin to appear. Realizing his difficulty in express what he was feeling at that moment. In
expressing himself through speech (a common drawing 1, Pedro speaks of the feelings of missing
characteristic among children, especially in the and sadness for the lack of the father. In parallel,
context of tragedies), the psychotherapist propo- he says he feels happy when he remembers they

Drawing 1

playing soccer, when his father handed him the vement), thus being relative to the way the child
ball so he could score the goal - he describes. captures and perceives the world of which it is part
Talking about the drawing, starting from his des- and is in relation. Although one of these modes can
cription, new feelings were manifested, as when be contemplated at a given moment, such contact
he tells of his fear of losing others he loves. experiences involve, fundamentally, being touched,
When polarities appear in the same drawing, that is, contact as a form of touch (Polster & Polster,
as in the example of sadness and happiness, it is 2001). In the Gestalt-therapy perspective, contact
essential that both be welcomed in their legitimacy, has to do with “relating to, encountering with one-
as the total experience lived and perceived. Thus, self and with others, without ever losing sight of
the psychotherapist does not privilege one or the everything happening in the world” (Ribeiro, 2006,
other feeling, instead he/she can make readings that p. 91).
explain this totality or suggest experiments that In the following sessions, the psychothera-
“put them to talk”, such as asking what one feeling pist and the client talked and played with diffe-
has to say to the other. In addition, he/she can ask rent feelings, so that Pedro became familiar with
the child to choose one of them to try to dialogue, human emotions - as he initially showed some of
color, locate in the body where it concentrates, ex- them to be unaware of and have difficulty naming
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

press with a body movement, etc. The child is then them. He could, by means of another drawing, try
invited to do the same with the polar feeling. All to locate them in the body and give color to each
these options, and many others that allow creativi- one of them: he painted the miss of his dad with
ty to emerge in the psychotherapeutic context, are black and located it in the heart. In this direction,
playful ways of exploring the functions of contact Derdyk (2015) describes that through investigation
(sight, hearing, touch, smell, taste, speech and mo- and experimentation new meanings arise between
-
Artigos

Drawing 2

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018 220
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

the child and the adult. In drawing 2, when invited immediately draws him in the corner of the page,
to draw his family, Pedro chooses to represent res- linking it with a line to him, to his mother and
pectively his mother, brother, uncles, grandparents brother. To facilitate the child’s contact with itself,
and cousins - as he narrates in pointing and naming it is essential to work with its senses in order to
each one of them. expand and integrate its perceptions. At this mo-
After describing who the people were, one by ment, the child is invited by the psychotherapist
one, the psychotherapist realized that the father to touch the line drawn and pay attention to what
had not been represented in the drawing, nor men- he feels as he does so. After passing his hand over
tioned among the relatives named: it was the first the line a few times, he describes that the line that
time that he was not concretely present. The no- connects them is nostalgia. This proposal eviden-
velty experienced in the paper and captured by the ces the invitation to recover the willingness to see
professional was reported to the child due to the and touch and feel the effects of this look (Polster
update outlined graphically. The psychotherapeu- & Polster, 2001).
tic intervention is marked by the possibility of fa- In the following drawing, after some sessions,
voring the opportunity of new understandings and Pedro describes his father in the sky, above the
experiments, which foments the confrontation of clouds, and his family underneath. The dotted line,
the new (Fernandes, 2016, Aguiar, 2014). When according to him, is his father’s way back: he tells
Pedro realizes that he had not illustrated it, he of having watched in a movie that after people die,

Drawing 3

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
they come back. Drawing reveals a person’s intro- behaviors give room to new ones, not always ac-
jections and beliefs that are often not directly ac- cepted and welcomed by context, given the arran-
cessed by his speech. The psychotherapist is only gement of these new configurations articulated by
a facilitator in this process of investigation and un- the child. At this stage of the process, the mother
derstanding (Soares, 2009). informs the psychologist of her discomfort in the
Developing the child’s expression and liste- face of the child’s new manifestations of discontent,
ning to it with acceptance is a task of the gestal- described by her as “tantrum”. Creative adjustment
t-therapist that must be shared with the family. refers to how a person can organize around his or
This means that the more she experiences and risks her experience, and may be considered dysfunc-
showing herself in a secure relationship and con- tional when it becomes a generalization in the face
text, the more likely it is that she will surpass the of different contexts (Aguiar, 2014, Antony, 2010,
therapeutic setting. In the care of Pedro, some ses- Fernandes, 2016). In one of his subsequent atten-
sions were aimed at the mother’s guidance, with the dances, Peter begins to realize that his shouts and
aim of favoring a welcoming posture with respect to tantrums are the way he found to be heard and seen
her son’s pain. In this sense, the sessions with the by people - which can be easily understood if consi-
guardians are intended to listen to them and talk dered his family context governed by silence. From
about issues related to the child that are pertinent then on, evidencing its necessity, it became possi-
to the progress of the process (Aguiar, 2005). Such ble to approach new ways - more effective for him
meetings hold within the rich possibility of the psy- - to show and be seen by those who wish, as well as
chotherapist to know the functioning of the family to increase the understanding of the functioning of
-

and its belief system, essential aspects in the beha- the family field. Pedro finishes this service saying
vioral breakdowns presented by the child. that what he learned in this session is that “every
Artigos

In the course of the visits, and in the conti- day we feel”. By prioritizing a greater awareness of
nuous follow-up with the family, new demands the child, psychotherapy in the gestaltic approach
emerge in psychotherapy. This means that old aims to foster new possibilities of being and being

221 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

in the world (Aguiar, 2014). This means making not knowing how to handle the commemorations
clients aware of what they are doing, how they are of the date. The view of the school is fundamental
doing and how they can transform themselves (Yon- as it complements the client’s history and provi-
tef, 1998), favoring an integrative self-perception at des relevant information to a better understanding
the affective, cognitive and motor-sensory levels, of its reality, which requires an efficient exchange
whereby a person can “realize” itself in the world. between these two contexts (Aguiar, 2014; Zanella,
Near the father’s day, the school and the fa- 2010). In this session, when informed about this
mily requested support of the psychotherapy, for concern, Pedro is invited to draw what he imagi-

Drawing 4

nes of the father’s day party that will happen in placed on the floor by the psychotherapist, in the
the school. In drawing 4, describing his fantasy, he order in which they were performed. The mosaic
narrates the scene with children singing, a table of formed by his productions graphically illustrated
souvenirs, another with the sound, and the space of the process of lived psychotherapy. Looking at it,
the parents: his father’s chair is empty. Pedro enters in deep silence, moved. This model of
Making contact with his sadness, Pedro asks intervention can be applied in situations in which
that his grandfather to not participate in the cel- it is necessary to highlight the trajectory of the child
ebration representing his father (proposal of the psychotherapeutic process in a concrete way, and
mother) and, finally, decides not to attend the party. may include the different productions of the client;
When communicated by the child about his will, allowing a clear view of its walk.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

the mother can support him with a welcoming and The child in psychological counseling signals
understanding attitude, which reveals significant in different ways when the natural end of its pro-
steps of her personal process carefully covered cess approaches, we must be alert to signs that in-
throughout the care. This illustrates the breadth of dicate the term. The family that searches for child
child psychotherapeutic work that extends to the psychotherapy brings with it a complaint that,
family as a possibility to support the child’s new ex- when welcomed and worked among its members,
periences. It is important that psychotherapy helps usually gives rise to new demands that demand
to identify needs and the search for their satisfac- attention. Nevertheless, confusions can affect pro-
tion. By self-managing, the child begins to respect fessionals who have mistaken expectations about
itself, strengthening its self, which will give it sup- the duration of such follow-up, such as when they
port to face events perceived as negative (Antony, relate efficiency to time or even when they discredit
2010). According to the author, self-nutrition makes the self-support of the child and the family to walk
the child able to take care of itself, by being able to without their help. The fact is that each system has
integrate denied parts to the total experience. its necessity and its rhythm which, when contem-
With the passage of time, visits began to have plated, naturally leads to the end. Some signs of
new configurations, in which grief no longer ap- termination are related to fluidity and flexibility in
peared as a figure. New games and plays arose and, the way the child is placed, in the new solutions
at the same time, some faults. Pedro seemed not to it encounters for everyday issues, remission of the
be interested in new subjects, showing a decreasing initial symptoms, reduced enthusiasm with the ses-
-

energy in the attendances and gradual disinterest sion, faults, interest in other activities at the same
for the sessions. The psychotherapist, in her super- time of the meetings (Aguiar, 2014; Antony, 2010;
Artigos

vision, is alerted to possible signs of the end of the Fernandes, 2016). Once the possibility of conclu-
process of Pedro. At the 40th session, all drawings sion is identified, it is essential to pay particular
made and stored with the client’s permission are attention to works on terms and separations (Agu-

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018 222
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

iar, 2014). rent living beings. Then, at the request of the psy-
The playful alternative of closing this assis- chotherapist, he was able to identify the moments
tance was based on the analogy with the natural he spent in psychotherapy and to locate himself in
development of life: to be born, to grow and to die the here-now. In drawing 5, he represented with

with “√” his current moment in the process: “I am


in correlation with the process of initiating, de- an “X” the steps he perceived as completed, and
veloping and finalizing sessions. Drawing on this
metaphor, Pedro drew the development of diffe- entering the end”. In the children’s world, drawing

Drawing 5

promotes the realization of the experience, so ne- being able to “say goodbye” to her and her care. At
cessary to the understanding of younger children, that moment he asks: “I want 22 sessions to say
facilitating their perception. “Art does not imita- goodbye” - request accepted by the psychothera-
te the visible, it makes visible” (Klee, 1977, apud pist. Not by chance, after six sessions, Pedro closes
Derdyk, 2015). the appointments, by choice. He finishes with 2
Talking about separation, loss, farewell, are drawings: one on the father (drawing 6), and the
indispensable care behaviors to a closure (Antony, other on the most important moment for him in
2010). As an end is evident, which refers to the the meetings (drawing 7). In drawing 6, he des-
impossibility of Pedro to say goodbye to his father cribes his father in heaven, beside God looking at
- the central theme of his process - the psycholo- his family, who still lives a storm. In drawing 7, he

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
gist assures him in this context the possibility of depicts the day we made the visit a movie session,

-
Artigos

Drawing 6

223 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018
Mariana Vieira Pajaro; Celana Cardoso Andrade

Drawing 7

with the presence of his brother, at which time, al- to provide methods for children to express their
though the theme of the father’s loss had not been feelings, since often children coming to psychothe-
explicitly worked, they watched the film “Up”, rapy do not know how to do it. This confirms the
suggested by the psychotherapist, which makes relevance of this professional being committed to
mention of death. the constant questioning of the drawing, since its
Pedro, therefore, reproduces as a milestone openness is fundamental to work with this type of
in his process a situation in which, instead of ex- language - when this is the client’s choice.
plicitly approaching pain, they lived a playful mo- Psychotherapy has the role of accompanying
ment. The suggestion of the movie, the fruit of in- the child in its construction of meanings and per-
tersubjective perception, reaffirms the relevance of ception of the world and in the world. Thus, it is
the dialogical dimension in Gestalt-therapy. In such expected that the child psychologist works, not in
a way, “the therapist should not only be friendly, an ideal of “cure”, but focused on contributing to
but must be willing to effectively contribute with the free flow of the child in its larger context. This
his/her own self to the encounter” (Hycner, 1995, p. means recognizing in the graphic elaboration the
113), whatever the possible formats for it to happen. subject of production and all its intrinsic tempora-
This reiterates the premise that there is no more or lity in this manifestation. The phenomenological
less effective technique, a stiff format common to exercise is to read behind the rationalities, in the
children cases: the creativity of the psychotherapist constant search for the singularities and connec-
and the child, combined, must be in the service of tions of the child with the world.
the present need, which involves, in all probability, This study was able to explain the psychothe-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

the capacity to perceive the other. The evidence of rapeutic process of a child, highlighting some of the
the encounter with the human transcends (or shou- endless possibilities of intervention. It is not inten-
ld!) theories and technicalities. ded here to exhaust them, but to reaffirm the in-
vitation to reflection that involves foundation and
practice. The limits of the study are concerned with
Final Considerations displaying a case in which drawing was fundamen-
tal to the process, which obviously is not unanimi-
Children’s drawing is a “trigger” feature throu- ty. It was concluded that drawing was a favorable
gh which the child’s experience is revealed. Althou- expression path in this case study by the affinity of
gh not all children have proximity and opt for this the child and the psychotherapist with this form of
resource, when adopted, it can facilitate the expres- work. Therefore, we suggest studies that can reveal
sion and promote awareness, corroborating to the the scope and limits of other resources based on
purpose of this approach. The phenomenological existing (or not) compatibility with psychotherapis-
readings express the impossibility of deduction or ts and their clients.
interpretation by the psychotherapist of the mate-
rial produced, since they are subject to the rigor of
this descriptive methodology of the subject. References
Although the drawing is a resource loaded
with meanings, it is extremely careful not to “im- Aguiar, E. (2004). Desenho livre infantil: leituras fenome-
nológicas. Rio de Janeiro: E-papers.
-

mobilize” the child in its production. According


to the principles of Gestalt therapy, it represents
Aguiar, L. (2011). O brincar na psicoterapia e a ansiedade
Artigos

a form of being-in-the-world in its here-now, not a


do psicoterapeuta em “saber” e “entender”. Recupe-
rigid and unchanging representation of its reality
rado em 10 de julho de 2013, em http://www.gestal-
– a contextual dimension. Oaklander (1980) looks
at the responsibility of the child psychotherapist

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 215-225, mai-ago, 2018 224
Case Study in Gestalt therapy: Phenomenological Readings of Children’s Drawing

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Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.11

CUIDADO, ÉTICA E CONVIVÊNCIA EM SAÚDE


MENTAL: REFLEXÕES FENOMENOLÓGICAS
Care, Ethics and Coexistence in Mental Health: phenomenological relections

Cuidado, Ética y Convivencia en Salud Mental: relexiones fenomenológicas


tania ineSSa MartinS de reSende
ileno izídio da coSta

Resumo: A convivência é o conceito articulador para uma reflexão sobre a ética e o cuidado no campo da saúde mental.
Tal reflexão é uma exigência ética neste campo, marcado historicamente por violência, estigma e abandono. São con-
siderados, a partir de uma leitura heideggeriana, os modos deficientes e insuficientes presentes na convivência, com o
objetivo de, com a ajuda de Lévinas, vislumbrar um horizonte ético de presença que permita que a atuação em saúde
mental se construa a partir da menor violência possível. A exigência ética levinasiana que me faz mais responsável do
que todos frente ao sofrimento do outro ganha uma maior significação ao pensarmos que no campo da saúde mental os
modos deficientes de estar com e conviver encontraram formas extremas de violência e exclusão, muitas vezes sob o
pretexto do cuidado. Por isso se faz necessário um esforço para sair da impessoalidade cotidiana para encontrar o outro
em sua irredutível alteridade. A partir de considerações de Derrida acerca da hospitalidade, produz-se uma reflexão
sobre como efetivar um cuidado que, frente à responsabilidade que o sofrimento de outrem produz em nós, acolha a
diferença.
Palavras-chave: Cuidado; Ética; Convivência; Saúde Mental.

Abstract: Coexistence is the articulator concept for a reflection on ethics and care in the mental health field. Such
reflection is an ethical requirement in this field, historically marked by violence, stigma and abandonment. Disabled
and insufficient modes present in the coexistence are considered from a Heideggerian perspective, aiming to envision,
with a help from Levinas, an ethical horizon of presence that allows the action in mental health to be built from the
lowest violence possible. The Levinasian ethics requirement that makes us more responsible than all in face of the
suffering of the other gains greater significance when we consider that, in the field of mental health, disability modes
of being with and coexisting found extreme forms of violence and exclusion, often under the pretext of care. Thus, an
effort is necessary to leave the everyday impersonality to find the others in their irreducible otherness. From Derrida’s
considerations about hospitality, we produced a reflection on how to conduct a care that, in face of the responsibility
that the suffering of others produces in us, embraces the difference.
Keywords: Care; Ethics; Coexistence; Mental Health.

Resumen: La convivencia es un concepto articulador que nos permite reflexionar sobre la ética y el cuidado en el cam-
po de salud mental. La reflexión se produce por la exigencia ética en este campo marcado históricamente por la violen-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

cia, el estima y el abandono. Desde una lectura del pensamiento heideggeriano se consideran los modos deficitarios e
insuficientes presentes en la convivencia para vislumbrar con las ideas de Levinas un horizonte ético de presencia que
permita construir la conducta en salud mental a partir de un menor grado de violencia. La exigencia ética levinasiana
la que me hace responsable más que todos ante el sufrimiento del otro logra mayor significación cuando se conside-
ran que en el campo de salud mental los modos deficitarios de estar con y convivir encontraron formas extremas de
violencia y de exclusión, a veces bajo el pretexto del cuidado. Para ello se necesita un esfuerzo para salir de la imper-
sonalidad cotidiana para encontrar al otro en su alteridad irreductible. Desde las consideraciones de Derrida acerca de
la hospitalidad, se reflexiona sobre la manera de establecer un cuidado que acoja la diferencia ante la responsabilidad
que nos produce el sufrimiento del otro.
Palabras clave: Cuidado; Ética; Convivencia; Salud Mental.

Introdução em nossa discussão sobre o cuidado no campo da


saúde mental.
A partir de uma reflexão oriunda de nossa O campo da saúde mental historicamente fez
tese de doutoramento no campo da saúde men- da convivência questão central – ainda que na sua
tal, o presente artigo busca caracterizar o cuidado, forma predominantemente negativa desde a redu-
fundamentado em Heidegger, Lévinas e Derrida. ção do fenômeno da loucura à ideia de doença men-
As questões que nos guiaram foram: de que cuida- tal (Foucault, 2002). Em nome de uma suposta éti-
-

do se trata na saúde mental, campo marcado his- ca de tratamento que visava uma também suposta
toricamente por violência e exclusão? Que ética cura, inúmeros atos de violência, sustentados por
Artigos

está implicada e pode fundamentar o cuidado em um mandato de exclusão social, foram executados.
saúde mental a partir de uma lógica de desinsti- Como afirma Tenório (2001), revelando a tensão
tucionalização? A convivência será o articulador entre tutela e cuidado no esforço de construção de

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 226-233, mai-ago, 2018 226
Cuidado, Ética e Convivência em Saúde Mental: reflexões fenomenológicas

serviços substitutivos ao manicômio: no fio delica- pessoal tira o encargo de cada pre-sença em sua co-
do “entre mandato terapêutico e mandato social de tidianidade” (1927/1995, p. 180), retira a responsa-
exclusão têm sido construídas as formas renovadas bilidade de cada pre-sença, foge de si mesma.
de aproximação” (p. 52) com o sofrimento psíquico Ao fazer uma análise da cotidianidade mais
em suas formas mais intensas e graves. O esforço imediata, conclui Heidegger que o ser-no-mundo é
no presente artigo é, considerando os modos de- cuidado3, posto que a essência da pre-sença é exis-
ficientes e insuficientes presentes nas relações de tência. Por ser lançado, o ser-no-mundo precisa se
cuidado, pensarmos um horizonte ético para nossa cuidar e de cuidado. No entanto, o cuidado não
atuação em saúde mental. indica uma atitude isolada do eu consigo mesmo:
já ser-em e ser-junto-a compõem estruturalmente
o cuidado. Costa (2009, p. 30) reitera esta relação
Modos deficientes de estar com e cuidar: inevitável entre cuidado e vida; “com isso se quer
Heidegger e o ser-com-os-outros dizer que não há distinção entre cuidado e vida
humana. Ambos se entrelaçam, confundem-se
Em sua caracterização ontológica da pre-sen- numa unidade: o homem, vivendo, cuida; cuidan-
ça1, Heidegger (1927/1995) afirma que a estrutura do, vive” (p. 30).
fundamental do ser-no-mundo se caracteriza por Heidegger (1987/2009) defende que a analítica
ser com os outros: ser-com pertence ao ser da pre- da pre-sença não tem nada a ver com um solipsismo
-sença que sendo está em jogo seu próprio ser. A ou subjetivismo, visto que a pre-sença (como bre-
própria pre-sença e a co-presença dos outros vêm vemente apresentada acima) é caracterizada como
ao encontro, de início e na maior parte das vezes, um ser-uns-com-os-outros, de modo a estar sempre
a partir do mundo compartilhado nas ocupações. preocupado – ainda que a preocupação possa onti-
O ser-em é ser-com os outros, no sentido de que o camente, como com certa frequência acontece, as-
mundo da pre-sença é sempre um mundo comparti- sumir a forma de descuido e indiferença - também
lhado; a pre-sença é em função dos outros. O outro com os outros (Heidegger, 1927/1996).
vem ao encontro nunca como algo simplesmente Na segunda parte de Ser e Tempo, Heidegger
dado, mas como co-pre-sença nas mais diversas for- (1927/1996) afirma que a consciência se revela como
mas, “a partir do que está à mão dentro do mundo” clamor do cuidado: a pre-sença se vê então concla-
(p. 71), a partir da ocupação (Besorgen) com o mun- mada a sair do impessoal e assumir o seu poder-ser
do e da preocupação/solicitude (Fürsorge) com os mais próprio. Faz parte do modo de ser da pre-sença
outros2. Mesmo estar-só é uma forma de ser-com: a não dar ouvidos ao clamor, e permanecer, de início
falta e a ausência são modos da co-pre-sença. e na maior parte das vezes, na impessoalidade do
Para Heidegger a convivência cotidiana é mar- falatório. Faz parte também do modo de ser da pre-
cada, de início, por modos deficientes ou indiferen- sença, contudo, a possibilidade de abertura ao ser,
tes de preocupação: “ser por um outro, contra um ao poder-ser. Enquanto cuidado, a pre-sença é o
outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, fundamento lançado de sua morte: a partir do cla-
o não sentir-se tocado pelos outros” (1927/1995, mor da consciência que é compreensão, a pre-sença
p. 173). Neste sentido, para o autor, de início e na recupera seu poder-ser si mesma em sua compreen-
maior parte das vezes, a pre-sença se apresenta no são do ser-para-a-morte (Heidegger, 1927/1996). A
modo impessoal, de modo que a curiosidade, o fala- pre-sença, em sua existência, pode se abrir de modo

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
tório e a ambiguidade dominam a convivência. Ini- impróprio ou próprio. “Existindo, ela se compreen-
cialmente, o outro está presente pelo que se ouviu de de tal maneira que esta compreensão não consti-
impessoalmente a seu respeito: “a convivência no tui uma pura apreensão mas o ser existenciário do
impessoal não é, de forma alguma, uma justaposi- poder-ser de fato. O ser que se abriu é o ser de um
ção acabada e indiferente, mas um prestar atenção ente em que está em jogo o seu ser” (p. 119).
uns nos outros, ambíguo e tenso. Trata-se de um No esforço da convivência, a pre-sença perde-
escutar uns aos outros secretamente. Sob a más- -se, com frequência, na publicidade do impessoal:
cara da composição, o que realmente acontece é a não ser ele mesmo é o modo em que na maior parte
oposição entre um e outro” (Heidegger, 1927/1995, das vezes, o ser-no-mundo, absorvido pelas ocu-
p. 236). No esforço da convivência, a pre-sença pações e pela co-pre-sença dos outros, se mantém.
perde-se na publicidade do impessoal: não ser ele Segundo Heidegger (1927/1996), precisamente nos
mesmo é o modo em que na maior parte das vezes, modos “de deficiência e indiferença caracterizam
o ser-no-mundo, absorvido pelas ocupações e pela a convivência cotidiana e mediana de um com ou-
co-pre-sença dos outros, se mantém. tro” (p. 173). Eis um dos desafios que se configuram
A pre-sença possui em si diversas possibilida- para caracterizar um cuidado no campo da saúde
des de concretizar-se: a impessoalidade é o modo mental que vise superar as históricas relações de
de ser do início e na maior parte das vezes. “O im- tutela, silenciamento e exclusão.

1 Pre-sença (escolha do tradutora Márcia de Sá Cavalcante, na 5a


-

3 A tradução brasileira de Ser e Tempo para Sorge é cura, já em


edição de Ser e Tempo, para o termo Dasein) é o ente que nós mes-
Seminários de Zollikon, traduz-se por cuidado. Costa (2009) esclare-
mos somos e que possui em seu ser a possibilidade de questionar a
ce que o sentido latino de cura não corresponde mais ao sentido da
Artigos

si mesmo: “é na pre-sença que o homem constrói o seu modo de ser,


palavra cura como a utilizamos atualmente no português. O sentido
a sua existência, a sua história” (p. 309).
latino está presente nos verbos acurar e descurar, ligado à ideia de
2 “O ente, com o qual a pre-sença se comporta enquanto ser-com,
cuidado. Seguiremos a tradução de Seminários de Zollikon optan-
também não possui o modo de ser do instrumento à mão, pois ele
do pelo termo cuidado e a palavra “cura” será utilizada somente em
mesmo é pre-sença. Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa”
respeito as citações literais de Ser e Tempo.
(Heidegger, 1927/1995, p. 173, grifo do autor).

227 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 226-233, mai-ago, 2018
Tania Inessa Martins de Resende; Ileno Izídio da Costa

Uma certa forma de presença face ao sou responsável (Lévinas, 1982/2010). No sentido
sofrimento... em que todos os homens são responsáveis uns pelos
outros, mas eu mais do que todo o mundo, aquele
A partir de reflexões éticas sobre o sofrimento cuja obrigação para com o próximo é infinita, nun-
presentes no pensamento de Lévinas, buscaremos ca está quite com outrem4 (Lévinas, 1986a/2010).
alguns subsídios para o enfrentamento dos desafios Bergo (2011) aponta que, em Totalidade e In-
da convivência, considerando o objetivo de confi- finito (reconhecida como a principal obra de Lé-
gurá-la como uma estratégia de cuidado no campo vinas), o novo modelo de transcendência como a
da saúde mental. Lévinas (1947/1996), em seu livro responsabilidade do homem, desenvolvido através
Le temps et l’Autrui, afirma que o sofrimento é visto justamente da exploração do relacionamento face-
como um acontecimento em que o vivente encontra -a-face, produz importantes questionamentos no
toda sua solidão, isto é, toda intensidade de sua li- campo da justiça e do convívio social. Estamos sem-
gação consigo mesmo, o definitivo de sua identida- pre em relações sociais e, mais importante ainda,
de e, ao mesmo tempo, se encontra em relação com somos sempre impactados pela expressão do viver
o acontecimento que ele não assume, em relação ao do outro. Este impacto é afetivo – a transcendência
qual ele é pura passividade, que é absolutamente é não conceitualizável; uma experiência imediata
outro, em relação ao qual ele não pode mais poder. de transcendência e fraternidade – o Rosto5 do ou-
No seio mesmo da relação com o outro, que tro, em seu desamparo e nudez, é um comando e
caracteriza a vida social, a alteridade aparece como uma intimação: ‘Não me matarás’. “Lévinas fala da
relação não-recíproca. O espaço intersubjetivo não face do outro que é ‘viúva, órfão ou estrangeiro’. Es-
é simétrico (Lévinas, 1947/1996). Ao colocar a alte- tas figuras são mais do que alegóricas. A cada uma
ridade de outrem como mistério, o autor não a des- delas falta algo essencial em sua existência: esposo,
creve como liberdade idêntica a minha, não a colo- pais, lar” (Bergo, 2011, p. 13, tradução livre).
ca como outro existente frente a mim; a alteridade Em Totalidade e Infinito, Lévinas (1961/1974)
que o outro porta é essencial. apresenta seu livro como uma defesa da subjetivida-
Lévinas (1990/2010), em sua tarefa de fazer de, “mas não ao nível do protesto puramente egoís-
da ética a filosofia primeira, faz do encontro com ta contra a totalidade, nem na angústia frente à mor-
o outro, com a alteridade, tema central de suas re- te, mas fundada na ideia de infinito” (1961/1974, p.
flexões. “Na economia geral do ser e de sua tensão XIV, tradução livre). A subjetividade é apresentada
sobre si, eis que surge uma preocupação pelo outro como acolhedora a outrem, como hospitalidade.
até o sacrifício, até a possibilidade de morrer por O esforço neste livro é perceber no discurso uma
ele; uma responsabilidade por outrem. De modo di- relação que não seja alérgica a alteridade, que não
ferente que ser!” (p. 19). reduza o Outro ao Mesmo.
Em seu contundente texto O sofrimento inútil A alteridade, isto é, a heterogeneidade radical
(1982/2010), Lévinas apela para um princípio ético do outro, não é em relação ao mesmo relativa, é ab-
supremo que faz, a partir da dor, o outro prioritário soluta. O absolutamente outro, é outrem: ausência
em relação ao eu: de pátria comum que faz do outro, o estrangeiro.
Este é livre; sobre ele não posso poder. O eu é idên-
o sofrimento pelo sofrimento inútil de outro tico mesmo em suas alterações. A estrangeiridade
homem, o justo sofrimento em mim pelo so- de outrem é sua liberdade, afinal apenas livres os
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

frimento injustificável de outrem, abre sobre seres podem ser estrangeiros uns aos outros (Lévi-
o sofrimento a perspectiva ética do inter-hu- nas, 1961/1974).
mano. Nesta perspectiva, faz-se uma diferença Lévinas tenta responder em sua obra-prima a
radical entre o sofrimento em outrem no qual seguinte questão: como o mesmo, ao produzir-se
é, para mim, imperdoável e me solicita e me como egoísmo, pode entrar em relação com um ou-
chama (p. 121). tro sem o privar de sua alteridade? Esta relação é
descrita como linguagem: o outro, a despeito de sua
O postulado de que o sofrimento em outrem é relação com o mesmo, permanece transcendente e
injustificado parece ser o fundamento ético do cui- sua relação se mostra como discurso, discurso éti-
dado: um responsabilizar-se, uma exigência de pre- co. Nesta relação, os termos não formam uma totali-
sença. Lévinas, ao relembrar os horrores vividos nas dade. O outro coloca em questão o mesmo. Outrem
grandes guerras do século XX, analisa o sofrimento é interloculor face-a-face, presença em face de um
em uma perspectiva inter-humana, de modo que o rosto. Chama Rosto a maneira como o outro, ultra-
sofrimento é inútil em outrem, mas significativo em passando a ideia de outro em mim, se apresenta
mim: exigência de uma posição ética, distinta tanto (Lévinas, 1961/1974). O Rosto não se manifesta por
do cidadão quanto do indivíduo, de me tornar res- suas qualidades, ele se exprime. O Rosto, em sua
ponsável pelo outro, sem preocupação com recipro- nudez, suplica e exige: “Reconhecer outrem é reco-
cidade: “é no meu apelo a seu socorro gratuito, é na nhecer um faminto. Reconhecer Outrem é se doar”
assimetria da relação de um ao outro” (p. 129). Para (p. 48, tradução livre). O Rosto se recusa à posse,
-

o autor, o inter-humano está na não indiferença de aos meus poderes; me convida a uma relação.
uns para com os outros, em uma responsabilidade 4 Lévinas (1982a/2010, p. 132) retira esta fórmula de um perso-
Artigos

assimétrica de uns para com os outros, uma respon- nagem de Dostoiévski: “somos todos culpados de tudo e de todos, e
sabilidade altruísta: não importa o que outrem é em eu mais que todos os outros”.
5 Optamos por manter a grafia do conceito de Rosto de Lévinas
relação a mim, ele é antes de tudo aquele por quem (2010) tal como utilizada pelos tradutores do livro Entre nós: en-
saios sobre a alteridade.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 226-233, mai-ago, 2018 228
Cuidado, Ética e Convivência em Saúde Mental: reflexões fenomenológicas

Pensar o infinito, o transcendente, o estrangei- não é agradável ou divertida, mas é o bem, sendo o
ro não é pensar um objeto. O Rosto significa a ante- principal problema conciliar a exigência ética in-
rioridade filosófica do ente sobre o ser, uma exterio- finita do Rosto e o surgir do outrem como indiví-
ridade que não se reduz ao poder nem à possessão. duo. “O temor de cada um por si, na sua própria
A linguagem supõe interlocutores, seu comércio mortalidade, não consegue absorver o escândalo
é ético. A relação da linguagem supõe a transcen- da indiferença ao sofrimento de outrem” (Lévinas,
dência, a separação radical, o ser estrangeiro dos 1986b/2010, p. 218).
interlocutores, a revelação do outro ao eu. O eu é Tal exigência ética se faz ainda mais presen-
colocado em questão pelo outro. É a ideia de infini- te no campo da saúde mental, marcado historica-
to que mantém a exterioridade do outro em relação mente por violência, estigma e abandono (Foucault,
ao mesmo; não se trata de uma alteridade relativa, 1993; 2002). A exigência ética levinasiana que me
uma comparação em uma comunidade de um gêne- faz mais responsável do que todos frente ao sofri-
ro. A resistência do outro – em não se deixar reduzir mento do outro ganha uma maior significação ao
ao mesmo – é uma relação não violenta, portanto, considerarmos que no campo da saúde mental os
ética. O ser, que assim se exprime, se impõe em seu modos deficientes de estar com encontraram for-
apelo, sem que eu possa me ensurdecer, me esqui- mas extremas de violência e exclusão, muitas ve-
var. Sua miséria que grita justiça me coloca como zes sob o pretexto do cuidado. Lobosque (2003), ao
responsável. A presença do Rosto me coloca em re- nos lembrar a vocação disciplinadora na origem das
lação com o ser (Lévinas, 1961/1974). disciplinas clínicas da área psi, afirma que a pala-
Para o autor, mesmo quando eu uno outrem a vra ajuda contém muitos riscos: “principalmente
mim pela conjunção “e”, outrem continua a me fa- por ser o pretexto comum da autoridade de todas
zer face, se revela em seu rosto; hostil, meu aluno, as filantropias e do pedantismo de todos os privilé-
meu mestre, amigo; através da minha ideia de infi- gios. Afirmar que o outro precisa de ajuda pode ser,
nito. Outrem permanece infinitamente estrangeiro. e muitas vezes costuma sê-lo de fato, uma forma de
A presença do rosto – o infinito do outro – é desnu- interferir, aliciar, tutelar, dominar” (p. 21).
damento: a humanidade que me olha, me convoca
a servir, que antes do nós venha o tu. A fraternidade
surge, não de nossa semelhança, mas de minha res- A menor violência possível: buscando apoio em
ponsabilidade face a um rosto que me olha como Derrida...
absolutamente estrangeiro.
Bergo (2011) afirma que, no seio do pensa- Não se trata aqui de tentar reduzir Heidegger e
mento maduro de Lévinas (seus trabalhos de 1961 Lévinas ao mesmo; tampouco buscar uma reconci-
a 1974), estão as descrições do encontro com outra liação. Mas deixar que a leitura entre eles, especial-
pessoa. Diferente do encontro husserliano instalado mente mediada pelo pensamento afeito ao parado-
no universo da vida social compartilhada, para Lé- xo e à desconstrução de Derrida, afete nosso tema:
vinas o outro me convoca. Para o autor, é a relação a convivência, com seus conflitos e ambivalências,
não-recíproca da responsabilidade a intuição fun- como uma estratégia de cuidado no campo da saúde
damental da filosofia de Lévinas. mental.
Lévinas (1983/2010) associa o Rosto à morte de Derrida (1967/2009) questiona que qualquer
outrem, como se o em-face do Rosto na sua mortali- filosofia da não-violência, situada na história,

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
dade convocasse, suplicasse que eu não fique indi- pode apenas sempre escolher a menor violência
ferente, que não o deixe morrer só, que eu responda em uma economia da violência. Segundo Derrida
pela vida do outro. Ser indiferente é ser cúmplice! (1967/2009), a violência, para Lévinas, seria a so-
lidão de um olhar mudo, de um Rosto sem fala.
Assim, se liberaria, neste temor pelo outro ho- Na visada ética, o Rosto abre e excede a totalidade,
mem, uma responsabilidade ilimitada, com a marcando o limite de todo poder e violência. Neste
qual nunca se está quite, que não cessa no pon- sentido, o que escapa ao conceito como poder é a
to extremo do próximo, mesmo que a respon- existência de outrem (Derrida, 1967/2009). Assim, o
sabilidade não consiga senão responder, no im- outro só pode ser outro se sua alteridade for irredu-
potente afrontamento com a morte de outrem, tível infinitamente. Para Lévinas, o imperativo ético
“eis-me, aqui” (1983/2010, p. 178, grifo nosso). por excelência é o respeito pelo outro como outro.
Neste estar-junto como separação, infinita-
Eis-me aqui! Aqui se apresentam indicações mente outro, parece haver um caminho para carac-
preciosas para caracterizar a dimensão ética da con- terizar o modo de estar na convivência no campo
vivência enquanto estratégia de cuidado no campo da saúde mental: nem distanciamento, tampouco
da saúde mental, ponto que retomaremos em segui- amizade. Diferentemente, trata-se de um esforço
da. Em nossa leitura de Lévinas, a ética é entendida para entrar em contato com o radicalmente, infini-
como o cuidado reservado ao ser do outro que não tamente outro, e neste instante, estarmos em segun-
si mesmo, na não indiferença pela morte de outrem do plano junto a quem cuidamos. Se com Heidegger
-

e possibilidade de morrer por ele, rompendo com a consideramos que o ser-no-mundo é ser-com, é a
obstinação em ser (Lévinas, 1987/2010). Uma cer- partir desse co-pertencer que toda e qualquer ação
Artigos

ta gratuidade da transcendência-ao-outro que in- de cuidado, de preocupação com o outro emerge.


terrompe o ser sempre preocupado com o próprio Um efeito possível do pensamento de Lévinas em
ser (Lévinas, 1987/2010). O autor afirma que a ética nosso tema é justamente o esforço de separação no

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Tania Inessa Martins de Resende; Ileno Izídio da Costa

estar com. Mas esta separação vai, precisamente, Como distinguir entre um hóspede e um parasita?
em direção a fazer do outro privilégio frente ao eu. Derrida salientará esta ambiguidade, vendo a hosti-
Lévinas chama de assimétrica a relação de um ao lidade como par da hospitalidade: “hostipitalidade”
outro. (1996/2003, p. 41). Em uma discussão contempo-
Como profissionais no campo da saúde men- rânea, Derrida dirá, sobre a hospitalidade, que esta
tal, esta ideia de assimetria, ainda que necessa- inclui uma delimitação “das soleiras ou fronteiras”,
riamente sustentada em uma horizontalidade das entre o familiar e o não-familiar, cidadão e não-ci-
relações (princípio fundamental da desinstitucio- dadão, privado e público.
nalização que é base para a política nacional de Ao hospedar, sou senhor em casa, recebo
saúde mental), é potencial. O cerne da proposta quem eu quero. Meu hóspede pode vir a se tornar
de desinstitucionalização é a premissa de que o um estrangeiro indesejável, sujeito hostil de quem
conceito de doença mental é a redução, grosseira corro o risco de me tornar refém. Para o autor, a
e simplificada, de um fenômeno complexo: a exis- questão da hospitalidade começa aqui: devemos
tência e a relação entre os homens (Basaglia, 1995; pedir ao estrangeiro que fale nossa língua, em to-
Amarante, 2007). Neste sentido, a política brasi- dos os sentidos do termo e em todas as extensões
leira de saúde mental visa a desconstrução, não possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo? Se ele
apenas da instituição psiquiátrica a ser substituída já falasse a nossa língua, se nós já compartilhás-
gradativamente por serviços abertos e comunitá- semos tudo o que está compartilhado quando fa-
rios, mas do conjunto de aparatos institucionais, lamos a mesma língua, o estrangeiro continuaria
simbólicos, teóricos, sociais e políticos (Resende, sendo um estrangeiro e ainda falaríamos em asi-
2015). Mais do que regionalizados, os novos servi- lo e hospitalidade? É este o paradoxo (Derrida,
ços (Centros de Atenção Psicossocial e Residências 1996/2003). Esta é a primeira violência, o estran-
Terapêuticas) têm uma base territorial e buscam geiro, “desajeitado ao falar a língua”, se arrisca,
reconstruir as formas como a sociedade lida com sem defesa, a pedir, em uma língua estrangeira,
a pessoa em sofrimento psíquico intenso que “tra- hospitalidade. “O Estrangeiro teme que o tratem
dicionalmente, desde Pinel, estava relacionado ao de louco” (p. 11), afirma ao discutir O Sofista, de
erro, à periculosidade, à insensatez, à incapacida- Platão. Derrida (1996/2003) afirma que, a partir de
de” (Amarante, 2007, p. 58). um pacto, o estrangeiro tem direito ao asilo, mas
De modo que insistimos na ideia de assime- também deveres, ele não é o bárbaro, o heterogê-
tria, pois na relação de cuidado, o sofrimento do neo. No pacto, o estrangeiro tem um nome, é um
outro (e não o meu) é intolerável… Para Derrida sujeito de direito, representa uma linhagem.
(1967/2009), o encontro em Lévinas tem a forma da
separação, o encontro é possível pelo outro, pelo (...) esse direito à hospitalidade oferecida a um
imprevisível; “o eu e o outro não se deixam suplan- estrangeiro “em família”, representado e pro-
tar, não se deixam totalizar por um conceito de re- tegido por seu nome de família, é ao mesmo
lação” (p.135). Derrida nos ajuda a encontrar uma tempo o que torna possível a hospitalidade (...)
medida no esforço/desejo de deixar que os dois pen- Nessas condições não se oferece hospitalidade
sadores (Heidegger e Lévinas), apesar – e também ao que chega anônimo e a qualquer um que
justamente por causa - de suas diferenças, impac- não tenha nome próprio, nem patronímico,
tem em nosso tema. nem família, nem estatuto social, alguém que
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Há, segundo Derrida (1967/2009), necessaria- logo seria tratado não como estrangeiro, mas
mente, uma violência presente: como mais um bárbaro. (...) a diferença, uma
das sutis diferenças, às vezes imperceptíveis
(…) toda filosofia da não-violência não pode entre o estrangeiro e o outro absoluto, é que
nunca, na história – mas teria ela sentido este último pode não ter nome e nome de famí-
alhures? –, senão escolher a menor violência lia; a hospitalidade absoluta ou incondicional
numa economia da violência (p. 130). Um ser que eu gostaria de oferecer a ele supõe uma
sem violência seria um ser que se produzis- ruptura com a hospitalidade no sentido cor-
se fora do sendo: não-história; não-produção; rente, com a hospitalidade condicional, com
não-fenomenalidade. Uma fala que se produ- o direito ou o pacto de hospitalidade (p. 23).
zisse sem a menor violência não determinaria
nada, não diria nada, não ofereceria nada ao Na história, desde que despojado de seu lugar
outro; não seria história e não mostraria nada: de sujeito ao se tornar um doente mental (Foucault,
em todos os sentidos da palavra e, primeira- 2002), a pessoa em intenso sofrimento psíquico não
mente, em seu sentido grego, seria uma fala recebe hospitalidade, mais bárbaro que estrangei-
sem frase (p. 213). ro. A instituição psiquiátrica, supostamente lugar
de cura e hospedagem, foi e ainda é na melhor das
Como minimizar a violência presente em hipóteses, se nos apropriarmos do conceito acima
qualquer pensamento e ação que caracteriza o modo apresentado de Derrida, espaço de “hostipilidade”,
-

de ser-no-mundo? Surge aqui a questão da hospita- na maior parte das vezes inimigo e não hóspede.
lidade, ideia que passará a interessar Derrida6. Hos- Mas Derrida (1996/2003) pergunta se a hospi-
Artigos

tis, em latim, significa hóspede e também inimigo. talidade consiste em interrogar quem chega:
6 Derrida (1997/2008) afirma que Totalidade e Infinito é um trata-
do sobre a hospitalidade.
É mais justo e mais amável perguntar ou não

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 226-233, mai-ago, 2018 230
Cuidado, Ética e Convivência em Saúde Mental: reflexões fenomenológicas

perguntar? Chamar pelo nome ou sem o nome? outro. Para Boff (2011), no modo-de-ser do cuidado,
Dar ou aprender um nome já dado? Oferece- o ser-no-mundo estabelece uma relação que não é
-se hospitalidade a um sujeito? A um sujeito de domínio sobre o outro, mas de convivência.
identificável? (...) a um sujeito de direito? Ou Heidegger nos conduziu a caracterizar a con-
a hospitalidade se torna, se dá ao outro antes vivência a partir da ideia do ser-com: estar vivo, se
que ele se identifique, antes mesmo que ele ocupar e se preocupar é convivência, quando o pró-
seja (posto ou suposto como tal) sujeito (...)? prio do humano é construir sua existência em um
(Derrida, 1996/2003, p. 25). mundo que lhe (co)pertence junto a outros entes. Ao
cuidar de nossa vivência, cuidamos da convivência.
Frente à responsabilidade que o sofrimento de Destaca-se aqui a potencialidade de uma forma de
outrem produz em nós, como efetivar um cuidado cuidar, a partir da convivência, no campo da saúde
que seja hospitaleiro, que acolha? O desafio da im- mental que aposta no estar com (Resende, 2015).
plementação da política nacional de saúde mental, Estar com, junto a quem sofre, em estado de
sustentada como acima mencionado pela proposta disponibilidade para acolher o que vem do outro
de desinstitucionalização, tendo como objetivos a e que destoa do discurso dominante. Em um modo
reabilitação psicossocial e a reinserção social (Gri- de conviver que suporta “uma certa desordem, algo
golo, 2010), exige que deixemos, como ainda é in- de aleatório, dores, vozes, angústia e sofrimento
felizmente tão comum em nossos serviços, de criar para acolher o outro no cuidado” (Resende, 2015, p.
condições para cuidar. Exige-se, com frequência 185). O desafio no estar com é fazer ouvir a poten-
mesmo nos novos serviços de saúde mental, que o cialidade terapêutica do cotidiano, não nos encap-
sujeito de que cuidamos seja outro e não ele, ten- sulando em sua aparente banalidade.
tando ‘corrigir’ e ‘consertar’ sua existência e modo Mas, Heidegger, especialmente, nos inspirou a
de ser. “As pessoas são sensíveis e reagem muito mal considerar as dificuldades e impasses da convivên-
quando colocamos condições para tratar delas: a clí- cia, visto que nos parece inevitável ao esforço de
nica do sofrimento mental grave tem uma dimensão caracterizar como a convivência pode se constituir
necessariamente incondicional” (Lobosque, 2003, p. em uma estratégia de cuidado no campo da saúde
26). A ideia é, inversamente, através da convivência mental, refletir sobre os modos deficientes ou indi-
entre usuários e profissionais, engendrar um esforço ferentes de preocupação. De início e na maior parte
cotidiano para acolher incondicionalmente. das vezes, na impessoalidade da convivência, o es-
tar com assume a forma da tensão e da ambiguida-
de: “sob a máscara da composição, o que realmente
Eis-me aqui: o estar com na convivência acontece é a oposição entre um e outro” (Heidegger,
1927/1995, p. 236). A impessoalidade retira o en-
Como resposta para a crescente solidão e inco- cargo de cada um na cotidianidade: ao fugir de si
municabilidade entre as pessoas na sociedade con- mesma, por caracterizar-se como ser-com, foge tam-
temporânea, Boff (2011, p. 11) propõe o regaste do bém do outro em sua abertura para ser.
cuidado, este entendido como ethos fundamental As marcas da tensão e ambiguidade da convi-
do ser humano, em suas dimensões de liberdade, vência tornam o imperativo ético de Lévinas ain-
inteligência e criatividade. Para Boff (2011), o cui- da mais forte e necessário. Não porque a ontologia
dado é o princípio inspirador para a convivência. heideggeriana seja violenta como supõe Lévinas,

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Defende que a falta de cuidado caracteriza o mal-es- pois Derrida apresenta uma justa medida: todo
tar contemporâneo: descuido, abandono e descaso. e qualquer saber está envolto em uma economia
A falta de cuidado perpassa as mais diversas esfe- de violência, como também nos ensinou Foucault
ras, o meio ambiente, a coisa pública, a dimensão (2002). Assumimos aqui que toda e qualquer ação
espiritual, e, em especial, os laços sociais: “há um de cuidado também está inscrita em uma economia
descuido e um abandono crescente da sociabilida- da violência, em uma complexa estrutura de poder,
de nas cidades. A maioria dos habitantes se sentem sendo necessário, portanto, a cada vez, escolher-
desenraizados culturalmente e alienados social- mos a menor violência. Recolocada desta forma, a
mente” (p. 19). ética em Lévinas assume um outro lugar: não uma
A partir de sua leitura de Heidegger,7 enten- caracterização do ser humano distinta, superando
de o cuidado como uma atitude, um modo de ser supostamente a caracterização heideggeriana; mas,
essencial, ontológico, não temos cuidado, somos ao assumir como esta caracterização ilumina - mais
cuidado; sem cuidado deixamos de ser humanos. do que provavelmente todos gostariam - o modo de
A indiferença, neste sentido, é, para Boff (2011), ser cotidiano do homem, se faz necessário um es-
uma experiência de desumanização. A característi- forço em direção ao acolhimento do outro em sua
ca singular do humano é que em todo projeto e ação alteridade, a ser realizado a cada vez, horizonte de
coloca cuidado (Boff, 2011). Para o autor, o cuidado nossas ações.
inclui duas significações entrelaçadas: atitude de A relação com o outro é uma relação com o
preocupação e inquietação, ao me tornar responsá- mistério (Lévinas, 1947/1996). O mistério não
-

vel por quem, ao cuidar, me sinto afetivamente en- tem aqui o sentido de ser algo desvendado por
volvido; e atitude de desvelo e solicitude, de modo mim: aí estaríamos na dominação do Ser (Lévinas,
Artigos

que a pessoa deixa de ser o centro e concentra-se no 1947/1996), que parece caracterizar também (pro-
vavelmente com mais frequência do que gostaría-
7 Para Boff, Heidegger é o “filósofo que melhor viu a importância mos de admitir) a relação cuidador-cuidado no co-
essencial do cuidado” (p. 33-4).

231 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 226-233, mai-ago, 2018
Tania Inessa Martins de Resende; Ileno Izídio da Costa

tidiano: o outro como algo a ser desvendado e, em Derrida, J. (2009). Violência e metafísica: ensaios sobre o
seguida, submetido a mim e ao meu conhecimen- pensamento de Emmanuel Lévinas. Em J. Derrida,
to… A alteridade, em Lévinas, aparece como uma A escritura e a diferença (pp. 111-223). São Paulo:
relação não-recíproca, não-simétrica. Não porque o Perspectiva (Originalmente publicado em 1967).
Eu sabe ou pode mais (posição tão assumida por
nós profissionais de saúde), justamente o contrário: Foucault, M. (1993). A história da loucura. São Paulo:
frente ao Outro tenho uma responsabilidade indele- Perspectiva.
gável. Surge o princípio ético supremo: o sofrimen-
Foucault, M. (2002). Problematização do sujeito: Psicolo-
to é inútil em outrem, mas significativo em mim,
gia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro: Foren-
me torna responsável pelo outro sem reciprocidade.
se Universitária.
Contudo, Heidegger não nos deixa esquecer,
de início e na maior parte das vezes, não susten- Grigolo, T. M. (2010). O CAPS me deu voz, me deu escu-
tamos de modo próprio nosso ser – o que também ta: um estudo das dimensões da clínica nos CAPS
potencializaria que o outro emergisse em sua auten- na perpectiva de trabalhadores e usuários. (Tese de
ticidade - de modo que ser responsável sem recipro- Doutorado). Universidade de Brasília, Brasília.
cidade é algo que exige sobremaneira de nós…
A complexidade presente no cuidar em saúde Heidegger, M. (1995). Ser e tempo. Parte 1. Petrópolis: Vo-
mental, no esforço para consolidar o campo da aten- zes. (Originalmente publicado em 1927).
ção psicossocial, nos levou a caracterizar o cuidado
a partir de intensas, afetivas e ambivalentes rela- Heidegger, M. (1996). Ser e tempo. Parte 2. Petrópolis: Vo-
ções construídas na convivência. Esta complexida- zes. (Originalmente publicado em 1927).
de desvela necessariamente nossa insuficiência en-
Heidegger, M. (2009). Seminários de Zollikon. Petrópolis:
quanto profissionais frente ao sofrimento psíquico
Vozes. (Originalmente publicado em 1987).
grave: não conseguimos a todos cuidar e a cuidar a
todo momento; o sofrimento de outro pode produ- Lévinas, E. (1974). Totalité et infin. Essai sur l’extériorité.
zir ressonâncias em nós que, se não forem por sua Paris: Haya de Conde (Originalmente publicado em
vez bem cuidadas, afetam nosso potencial de cuida- 1961).
do; nossas ações, mesmo bem intencionadas, estão
marcadas por uma complexa economia de poder; Lévinas, E. (1996). Le temps et l’Autre. Paris: Presses Uni-
nosso desejo de construir um cuidado sob medida versitaires de France. (Originalmente publicado em
pode se configurar em excesso ou falta de cuidado. 1947).
Estes desafios nos convocam a responder à
exigência ética levinasiana: não ceder à indiferença Lévinas, E. (2010). O sofrimento inútil. Em E. Lévinas,
de uns com os outros, de ser – cada um, mas eu Entre nós. Ensaios sobre a alteridade (pp. 117-129).
mais do que todos – responsável pelo outro, em mi- Rio de Janeiro: Vozes (Originalmente publicado em
nha responsabilidade infinita de cuidado frente ao 1982).
irredutivelmente outro, pois minha indiferença me
torna cúmplice. Lévinas, E. (2010). Do uno ao outro. Transcendência e
tempo. Em E. Lévinas, Entre nós. Ensaios sobre a
alteridade (pp. 160-183). Rio de Janeiro: Vozes (Ori-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

ginalmente publicado em 1983).


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Tania Inessa Martins de Resende é Psicóloga Clínica


e Bacharel em Psicologia pela Universidade de Brasí-
lia. Mestrado em Psicologia Clinica e Doutorado em
Psicologia Clínica e Cultura pela UnB. Professora do
Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). E-mail:
taniainessa@gmail.com
Ileno Izídio da Costa é Professor Adjunto do Depar-
tamento de Psicologia Clínica, Membro (Mestrado e
Doutorado) do PPG-PsiCC/IP/UnB, Coordenador dos
Grupos GIPSI, Personna (Estudos e Pesquisas sobre
violência, criminalidade e psicopatologia) e do CR-
R-UnB/Darcy Ribeiro/ Senad. E-mail: ileno@unb.br.

Recebido em 30.05.2017
Primeira Decisão Editorial em 24.08.2017
Aceito em 27.11.2017

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
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Artigos

233 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 226-233, mai-ago, 2018
Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.12

ORIGENS DO CONCEITO DE AGRESSÃO NA GESTALT-


TERAPIA: FREUD, REICH E OUTRAS FONTES
The origins of the aggression concept in Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others

Orígenes de lo concepto de la agresión en terapia Gestalt: Freud, Reich y Otros


thauana SantoS de araúJo
adriano furtado holanda

Resumo: O conceito de Agressão está na base da construção da Gestalt terapia, sendo central para o primeiro trabalho
de Fritz Perls, Ego, Fome e Agressão, de 1942. O tema foi desenvolvido por Fritz e Laura Perls, a partir de um trabalho
desta de observação de crianças. Objetivou-se resgatar as origens do conceito, que remonta às primeiras experiências
com a psicanálise, buscando esclarecer os elos entre esta e a Gestalt terapia. O trabalho se pautou por uma análise
de fontes primárias – obras de Fritz, de Freud e de Laura – e secundárias pertinentes. Evidenciou-se a necessidade de
se retomar um elo claro entre a Gestalt terapia e sua fonte psicanalítica, bem como clarificar as influências de outros
nomes, como Reich, Goldstein, Horney e Nietzsche, na construção desse conceito.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; Agressão; Psicanálise.

Abstract: The concept of Aggression, is in the basis of the construction of Gestalt therapy, and being central
to the first work of Fritz Perls, Ego, Hunger and Aggression, of 1942. The theme was developed by Fritz and
Laura Perls, from a work of watching children of this. The objective of the paper was to recover the origins
of the concept, which goes back to the first experiences with psychoanalysis, seeking to clarify the links
between this and Gestalt therapy. The work was based on an analysis of primary sources - works by Fritz,
Freud and Laura - and relevant secondary sources. It points to the need to re-establish a clear link between
Gestalt therapy and its psychoanalytic source, and clarified, as well, the influences of other names, such
as Reich, Goldstein, Horney and Nietzsche, in the construction of this concept.
Keywords: Gestalt-therapy; Aggression; Psychoanalysis.

Resumen: El concepto de Agresión está en la base de la construcción de la Gestalt terapia, siendo central
para el primer trabajo de Fritz Perls, Ego, Hambre y Agresión, de 1942. El tema fue desarrollado por Fritz
y Laura Perls, a partir de un trabajo de ésta de observación de niños. Se objetivó rescatar los orígenes del
concepto, que se remonta a las primeras experiencias con el psicoanálisis, buscando esclarecer los eslabo-
nes entre ésta y la Gestalt terapia. El trabajo se basó en un análisis de fuentes primarias - obras de Fritz, de
Freud y de Laura - y secundarias pertinentes. Se evidenció la necesidad de reanudar un vínculo claro entre
la Gestalt terapia y su fuente psicoanalítica, así como aclarar las influencias de otros nombres, como Reich,
Goldstein, Horney y Nietzsche, en la construcción de ese concepto.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Palavras-clave: Gestalt-terapía; Agressión; Psicoanálisis.

Introdução Laura Perls (1992/1994) já sugeria que a inserção da


GT no círculo acadêmico não foi facilitada por esta
Uma abordagem sólida se constrói por diver- excessiva ênfase na prática vivencial, somado a um
sos caminhos, e seus alicerces devem se estabelecer discurso anti-intelectualista, que ocasionou o enfra-
a partir de discussões epistemológicas, delimitando quecimento da abordagem. Prestrelo (2012) aponta
seu valor objetivo, e buscando uma crítica de seus para semelhanças, em realção ao surgimento da GT
fundamentos (Jolivet, 1975). Nessa direção, pode-se no Brasil, pois aqui instaurou-se também a ideia de
considerar que houve um incremento na produção uma abordagem debruçada sobre técnicas de ex-
brasileira sobre questões de fundamentação, envol- pressão de sentimentos, o que exigiu dos pioneiros,
vendo a abordagem gestáltica, como se observa pu- explanações sobre o que não era Gestalt.
blicações recentes (Holanda, 2009; Belmino, 2014; Na esteira desses acontecimentos, conceitos
Helou, 2015). Atualmente, segundo Frazão (2013), são esquecidos e pouco visualizados, como o de
existem mais de 60 livros publicados, bem como agressão (Holanda, 2005; Staemmler, 2009). O de-
inúmeros artigos e capítulos de livros, além do nú- sinteresse no tema, para Staemmler (2009), se deve
mero crescente de dissertações de mestrado e teses à sua exposição pouco nítida nas obras de Perls,
-

de doutorado. bem como pelo fato desta noção referir a uma con-
É comum a associação da GT a um aglomerado sideração intrapsíquica, em contraposição a uma
Artigos

de técnicas, o que ajudou a construir a imagem de perspectiva de campo. Tomamos aqui, por objeto, a
uma abordagem pouco fundamentada, cuja origem origem desse conceito, que fundamentou a primeira
remonta aos workshops conduzidos por Fritz Perls. obra de Perls (1942/2002).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 234-245, mai-ago, 2018 234
Origens do Conceito de Agressão na Gestalt-terapia: Freud, Reich e Outras Fontes

Delimitação do Tema ocasião do congresso de psicanálise (Checoslová-


quia, 1936), que “ainda era escrita em termos freu-
A agressão dental foi um dos temas que funda- dianos” (Perls, 1969/1979, p. 50).
mentou a primeira obra de Fritz Perls (1942/2002), No prefácio à edição de 1969 da Random
com contribuições significativas de sua esposa Lau- House, o próprio Fritz afirma que seu primeiro li-
ra, colaboradora tanto na escrita do livro quanto na vro representa a transição da psicanálise ortodoxa
própria elaboração do conceito, oriundo de um tra- para a GT (Perls, 1942/2002). Joe Wysong (2002)
balho seu de observação de crianças em período de revela que as notas pessoais de Perls para uma par-
transição da sucção para a fase de mordedura (Perls, te não publicada da introdução para a edição de
1992/1994). 1969 mostram que o projeto visava expor suas re-
Objetiva-se, aqui, resgatar as origens do con- visões da teoria freudiana e desenvolver suas habi-
ceito, que remonta às suas primeiras experiências lidades em inglês. Há consenso de que Ego, Fome e
com a psicanálise. A pesquisa se apoia em um Agressão nasceu dessa palestra sobre “Resistências
apanhado geral das origens da teoria da agressão Orais”, e que Laura Perls teve significativa partici-
na psicanálise, e outras fontes, considerando-se as pação em sua produção (Tellegen, 1984; Loffredo,
influências que ambos sofreram ao longo de sua 1994; Perls, 1992/1994; Frazão, 1997, 2002, 2013;
vida profissional e pessoal, tanto de cunho inte- Helou, 2015).
lectual e acadêmico, quanto cultural e político. Na introdução à Edição do The Gestalt Journal,
Este estudo teórico-conceitual está baseado em From e Miller (1997) também relatam que o embrião
um levantamento bibliográfico em fontes primá- da GT foi um artigo escrito por Perls por volta de
rias e secundárias. A busca resultou na utilização 1930, no qual inferia que as “resistências” – o jeito
das seguintes obras e artigos como fontes primá- psicológico de dizer não a si mesmo ou ao próximo
rias: 1) Da psicanálise, Três Ensaios sobre a Teoria – eram de origem oral; e apontam ainda que a rele-
da Sexualidade (Freud, 1905/1996); Os instintos vância dessa consideração não é exatamente revo-
e suas vicissitudes (Freud, 1915/1996); Além do lucionária, posto que se configurava numa peque-
Princípio de Prazer (Freud, 1920/1996); O Ego e na mudança em uma ênfase psicanalítica clássica
o Id (Freud, 1923/1996); O Mal-Estar na Civiliza- (a psicanálise tradicionalmente outorgava a origem
ção (Freud, 1930 [1929]/1996); Conferência XXXII das resistências à região anal), embora seus desdo-
(Freud, 1933a/1996); Esboço de psicanálise (Freud, bramentos tenham sido subversivos. Ambos enun-
1940a [1938]/1996), selecionados a partir de um ciam a relevância do “oral”, sendo a boca, o “lugar”
critério de temporalidade – pois antecedem Ego, do comer, de mastigar, degustar, como também da
Fome e Agressão (Perls, 1942/2002) – e relevân- linguagem e do amar. Expresso de outro modo, “um
cia, por tratarem dos escritos que abarcam os es- local de encontro mais óbvio entre o indivíduo e o
tudos de Freud, anteriores a 1942, da sexualida- mundo” (From & Miller, 1997, p. 21).
de, das pulsões e da agressão propriamente dita Fritz (Perls, 1969/1979), constata que a pales-
(Strachey, 1996b); 2) Textos relativos a Laura Perls tra sofreu profunda desaprovação e que “o veredi-
(Perls, 1977; 1988; 1992/1994; Bernard, 1986); 3) to ‘todas as resistências são anais’” (p. 51) o deixou
e Fritz Perls (1942/2002, 1951/1997, 1969/1979, perplexo, e: “(...) não percebi, na época, quão revo-
1973/2011, 1977). Além destas, fontes secundárias lucionária era a palestra, e quanto ela balançaria e
foram consultadas e selecionadas na revista Ges- até mesmo invalidaria alguns fundamentos básicos

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
talt Review e nas bases de dados Scielo, PePSIC e da teoria do Mestre” (p. 51). A rigor, deveríamos –
BVS. ao menos – supor, que Fritz construiu uma interpre-
tação particularizada da Psicanálise. Isadore From
(citado por Frazão, 2013) afirma que a divergência
A Posição da Questão de Perls com Freud seria que este asseverava que a
introjeção era necessária até os seis anos, enquanto
A importância de se adentrar na questão das que para Perls, Freud despendeu pouca atenção às
origens reside, principalmente, na apropriação feita consequências psicológicas e emocionais da eclo-
por Fritz desse conceito. À época em que lançou sua são dos dentes da criança, o que permitiria a ela
primeira obra, Perls (1942/2002) era psicanalista e deixar de introjetar sem crítica desde idade muito
visava, com esta produção, dar conta do que espe- anterior aos seis anos.
cifica no subtítulo do livro (uma revisão da teoria e Para Laura Perls (1988, 1992/1994), a palestra,
do método de Freud). Pela leitura dessa obra, nota-se que compôs depois a seção “Metabolismo Mental”
que a noção de agressão nasceu de uma tentativa de da obra de 1942, é oriunda de uma pesquisa que
esboçar uma teoria da personalidade, o que torna ela própria realizou quando do nascimento de sua
um retorno a Freud imprescindível, ainda que Perls filha Renate. Ela notou que o desmame ou era efe-
se aprofunde mais na fase oral e em suas resistên- tuado muito cedo ou muito tardiamente, e que a
cias para balizar o desenvolvimento humano. Na iniciação da alimentação infantil negligenciava a
transferência de foco do psíquico para o organís- importância da mastigação, amadurecendo a ideia
-

mico, Perls acaba por esboçar uma teoria da perso- de que o começo da mastigação teria ligação com a
nalidade de cunho holístico, assunto fundamental aprendizagem a respeito do processo de assimila-
Artigos

da obra Gestalt-terapia, de 1951 (Perls, 1977; Boris, ção, antagônico ao processo de introjeção sem assi-
2002; Helou, 2015). Um trabalho sobre esse tema, milação que ocorre de forma mais frequente e cons-
Resistências Orais, foi objeto de apresentação, por tante neste período de amamentação. Para Laura,

235 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 234-245, mai-ago, 2018
Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

mastigar requer tempo, paciência e conscientização Perls diz em sua autobiografia que não leu toda
sobre o que está sendo mastigado, considerando o a obra de Freud, mas não especifica o que exatamen-
“alimentar” como um processo de consciência. Em te leu (Perls, 1969/1979). Encontramos apenas uma
entrevista a Bernard (1986), coloca que ela e Fritz breve menção à origem psicanalítica – ao menos em
começaram o livro juntos; que estava a par de tudo parte – do instinto de fome: “considero a análise
no começo e que discutiam tudo, e que deixou es- do instinto de fome como uma enteada da psica-
crito dois capítulos para o livro: “O complexo de nálise, sem subestimar a importância da análise do
fantoche” e “O significado da insônia”, como uma instinto sexual” (Perls, 1942/2002, p. 283). Perls se
revisão da análise freudiana. dedicará, nesta obra, a desenvolver a teoria das fun-
Laura Perls (1992/1994) admite ser o proces- ções dos instintos de autopreservação individuais,
so de alimentação e desmame uma das primeiras representados pelo atendimento das necessidades
bases do pensamento psicanalítico clássico. Conta alimentares e pela autodefesa; prioridade ao sexual,
que Fritz estava no exército durante os anos que tra- considerado como um instinto de preservação.
balharam em Ego, Fome e Agressão, e que Smuts, Em Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade,
com o holismo, igualmente o influenciou sobre- Freud (1905/1996) explica que, na fase oral, os lábios
maneira. Diz ainda que a exigência da paz se opõe do bebê representam a zona erógena corresponden-
a um dos mais vitais instintos do ser humano: a te, cuja satisfação, a princípio, pode ser associada
agressividade; de imediato associada a destruição, com a necessidade de alimento, e que a atividade
sendo, por isso, censurada; e que normalmente os sexual se respalda, de início, numa das funções que
adultos respondem a qualquer sinal de agressivida- servem à preservação da vida, alcançando indepen-
de da criança com reprovação e, apesar da educação dência em momento ulterior. Portanto, a necessida-
ao longo dos séculos frisar a censura à agressão, os de de repetir a satisfação sexual desvincula-se da
resultados decepcionam. necessidade de absorção de alimento, uma separa-
Ao ser privado de questionar, o infante se vê ção que se impõe inevitavelmente quando surgem
obrigado a engolir muitas coisas sem mordê-las, os dentes e o alimento não é mais sugado, mas mas-
mastigá-las ou digeri-las. Para Laura, essa relação tigado. Assim, na fase oral, atividade sexual e nutri-
não é mera metáfora – o que Staemmler (2009) ques- ção ainda não estão separadas, e o alvo sexual resi-
tionará –, pois tanto a capacidade de realizar esses de na incorporação do objeto, o que irá prestar um
processos com o alimento físico quanto a capaci- papel psíquico importante futuramente, por meio
dade de realizá-los com os alimentos intelectuais da identificação (como destaca Freud).
(como a capacidade de pensar, criticar, entender) Freud quase não faz referência aos instintos
são manifestações do mesmo instinto1 agressivo. A de autopreservação, com exceção de menções so-
experiência dos psicanalistas demonstra que a coi- bre a libido se ligar a eles nas primeiras fases do
bição de uma dessas funções afeta as demais; e a desenvolvimento (Strachey, 1996b, Laplanche e
repressão da agressividade individual pode resultar Pontalis, 2001). Em artigo, de 1910, sobre as pertur-
em aumento da agressividade universal, pois a co- bações psicogênicas da visão, Freud, ao que parece,
munidade buscará saídas para ela por outros meios. repentinamente, introduz a expressão “instintos do
Por fim, Laura argumenta que a maneira como se ego”, identificando-os com os instintos autopreser-
come ensina a aprender e fazer contato com o mun- vativos e com a função repressiva, a partir do que
do. O bebê, ao se alimentar, reduz a tensão; e passa o conflito passa a ser considerado como se dando
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

a fazer contato com o outro, a partir do nascimento entre dois conjuntos de instintos: os da libido e os
dos dentes (Perls, 1992/1994). do ego. O ponto decisivo da classificação freudia-
na dos instintos ocorreu em Além do Princípio do
1 Sobre os conceitos “instinto” e “pulsão”, faz-se mister um bre- Prazer. É nessa marcha dualista dos instintos que
ve comentário. Gomes (2001a) afirma que as duas teorias de Freud
das pulsões usam conceitos muito diversos. Na primeira, as pulsões vai chegar à hipótese do instinto de morte. Freud
fundamentais eram as sexuais e as de autopreservação. Já na segun- apresenta uma discussão do assunto no capítulo IV
da, as pulsões de vida e de morte. Freud nunca usou o vocábulo ins- de O Ego e o Id (1923b), retomando o tema no capí-
tinto (instinkt) como alternativa ou sinônimo de pulsão, posto que, tulo VI de O Mal-Estar na Civilização (1930a/1974),
nas vezes em que fez uso dessa palavra, teve significado diferente
de seus dois conceitos de trieb (pulsão). Em contrapartida, Freud
analisando neste último, pela primeira vez, com es-
nunca se opôs às traduções de trieb, como sinônimo de instinto. pecial atenção, os instintos agressivos e destrutivos,
Quando Freud usa especificamente a palavra instinto, ele está se re- trazendo-os como derivados do instinto de morte.
ferindo ao inato, hereditário, que independe da experiência indivi- Por fim, o assunto é revisado na segunda metade da
dual, noção esta que não condiz com pulsão – posto que o objeto da Conferência XXXII (1933a) e em um resumo final,
pulsão é contingente –, embora remeta à força motriz, oposta à ra-
zão e à reflexão. Assim, no português, uma tradução aceitável seria no segundo capítulo, da obra póstuma Esboço de
“impulso”. Porém, há a desvantagem de não remeter ao somático, Psicanálise (1940a [1938]/1974) (Strachey, 1996b).
que era a ideia freudiana e, quando adjetivada para “impulsivo”, in- Em Os instintos e suas vicissitudes, Freud
dica o irrefletido. Assim, a tradução mais recomendável é “pulsão”, (1915/1996) vai dizer que o ego odeia, não tolera e
que ocupou o lugar de “instinto”, muito usada nas traduções fran-
cesas, embora “instinto” ainda seja mais usual em inglês. Portanto,
persegue, “com intenção de destruir, todos os obje-
as forças de autopreservação são, para Freud, pulsões ao longo de tos que constituem uma fonte de sensação desagra-
-

toda sua obra (e não instintos). Logo, fome e sede são pulsões. Dessa dável para ele, sem levar em conta que significam
forma, a pulsão agressiva, tomada como pulsão de domínio, pode uma frustração quer da satisfação sexual, quer da
Artigos

ser pensada como autoconservação. Laplanche e Pontalis (2001) de- satisfação das necessidades autopreservativas” (p.
finem instinto como um comportamento herdado de uma espécie
animal, pouco variável de um indivíduo a outro, que se estende ao 142-143). Assim, o berço da relação de ódio não é
longo do tempo sem muitas alterações e que aparentemente serve a sexual, mas sim a luta do ego para se preservar. O
alguma finalidade.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 234-245, mai-ago, 2018 236
Origens do Conceito de Agressão na Gestalt-terapia: Freud, Reich e Outras Fontes

amor e o ódio, para Freud, nasceram de fontes di- Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2007)
ferentes: o amor se origina da satisfação auto-eró- pontuam que, ao contrário de Freud, Perls não iden-
tica do ego pela obtenção do prazer, nesse sentido, tifica essas orientações como pulsão de vida e de
“amamos” o alimento que supre a necessidade do morte, denominando-as “funções organísmicas”,
órgão/zona oral por comida, fornecendo-lhe prazer. com suporte em Goldstein, e por meio delas os
O ódio é a expressão do desprazer provocado por elementos materiais envolvidos na vivência atual,
objetos e, nesse sentido, sempre mantém uma re- sejam do presente ou do passado, serão orientados
lação com os instintos de autopreservação. Dessa para unificação ou destruição. Naquela, esses ele-
forma, os instintos de autopreservação e os sexuais mentos são estabilizados na experiência, para con-
permanecem opostos na mesma medida que o são servação. Na destruição, são transcendidos como
o amor e o ódio. canais de abertura para o novo: o crescimento. Por-
Em Além do Princípio de Prazer, Freud tanto, “Perls compreende as pulsões descritas por
(1920/1996) sustenta que há na mente uma forte ten- Freud como um fluxo de awareness ambíguo: ora
dência no sentido do princípio de prazer e que, do em direção à conservação da experiência, ora em
ponto de vista da autopreservação, isto se mostra ine- direção à sua transformação” (p. 53). As pulsões
ficaz, sendo substituído pelo princípio de realidade. não seriam conteúdos arcaicos cujo destino deveria
O princípio de prazer não cessa, por muito tempo, de ser a recuperação ou substituição. Representariam
insistir em voltar ao comando, funcionando como o o modo ambíguo do organismo funcionar. Ou seja,
método empreendido pelos instintos sexuais, amiú- para assimilar o novo e se manter, se atualizando,
de conseguindo vencer o princípio de realidade. deve se destruir o velho. Perls, em seção não pu-
Freud (1920/1996) conceitua instinto como blicada do prefácio à edição de 1969 da Random
“um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar House (Wulf, 1996), alude que uma nova aborda-
um estado anterior de coisas, impulso que a entida- gem do homem em sua saúde e situação emergiu,
de viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de e que deixou de ser analista. Deixa claro que não
forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espé- concebia agressão como uma energia mística nas-
cie de elasticidade orgânica, (...)” (grifos do autor, p. cida de Thanatos, mas como uma ferramenta para
47), e expressam a inércia inerente à vida orgânica. sobrevivência, e que conceitos como reflexos (estí-
Quanto aos instintos sexuais, Freud assinala que mulo-resposta) e instintos como propriedades está-
são conservadores num nível mais alto por resis- veis tornaram-se obsoletos.
tirem mais eficazmente a estímulos externos, além Helou (2015) coloca o conceito de metabolis-
de preservarem a própria vida, ao que denomina mo mental como uma grande inovação de Perls,
“instintos de vida”. Nesse contexto, operam contra embora esta advenha da noção de trabalho psíqui-
outros instintos, que trabalhariam para atingir o ob- co. Perls desenvolve a hipótese do trabalho organís-
jetivo finalista do organismo e da vida mais rapida- mico por meio da assimilação mental de conteúdo
mente; os instintos sexuais opõem-se, portanto, aos interno e externo (percepções e sensações internas,
instintos do ego. Os instintos de morte e de vida te- e da realidade); e comunga da ideia de que a agres-
riam algo de conservador: restabelecer o estado das são é uma energia fundamental necessária à sobre-
coisas. No caso do instinto de morte, um retorno vivência humana, chamando de “força biológica”
a uma vida inanimada; já o instinto de vida, visa- (Perls, 1942/2002). Com a ação do ego por meio das
ria sua continuidade. A vida em si seria, assim, um forças agressivas, o material novo pode ser rejeita-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
conflito e uma conciliação entre tais tendências. do ou assimilado. Com isso, a proposta perlsiana
Haveria, então, dois tipos de processos anta- – e, acrescente-se, de Laura também, inspirados
gônicos atuando, um em uma direção construtiva, de em Smuts e Goldstein – aponta para o acréscimo
unificação (instintos de vida), e outro numa direção de um aspecto saudável (de assimilação e rejeição)
destrutiva (instintos de morte). Freud (1920/1996) do trabalho de identificação do ego à concepção
finalmente define o dualismo entre instintos de freudiana de introjeção (“não sadia”, para os Perls,
vida versus de morte; mas adverte que ambos estão pois envolveria apenas engolir/incorporar sem sele-
associados desde o início, de modo que há um ca- ção) (Helou, 2015). Ainda no mesmo prefácio, Fritz
ráter lidibinal, portanto, de vida, nos instintos de assevera que agressão insuficientemente aplicada
autoconservação. Partindo desse dualismo, apon- na fase de entrada (fome) e desestruturação de ali-
ta como outro exemplo de polaridades a oposição mentos mentais e físicos externos prejudica a ma-
entre o amor (afeição) e o ódio (agressividade). Em turação, e que a ideia de assimilação enfraquece o
síntese, para Freud ambos são de natureza libidinal, modelo de Freud, especialmente a relação instintiva
mas haveriam outros instintos pertencentes ao ego Super-Ego/Ego, e sua visão desigual da vida como a
que poderiam ser encontrados nos instintos destru- luta de Eros-Thanatos (Wulf, 1996). Esses processos
tivos, daí a oposição instintos de vida e instintos de de assimilação e rejeição delinearão os contornos
morte. Laplanche (1985), verifica duas intenções no da noção de autorregulação organísmica que será
modo como a pulsão de morte é descrita em Além do edificada na obra de 1951.
princípio de prazer: reafirmar o princípio econômico Para Staemmler (2009), Perls define a agressão
-

fundamental – a tendência ao zero; e conferir um es- como uma força positiva de vida relacionada com
tatuto metapsicológico às descobertas no campo da assimilação, e os termos associados (destruição, as-
Artigos

“agressividade” ou da “destrutibilidade”. Antes de similação, crescimento) ilustram o contexto históri-


1920, a pulsão de agressão não aparece e mesmo o co no qual Fritz desenvolveu sua teoria: a tentativa
termo agressividade também quase não se vê. de superar a visão de Freud quanto à agressão, que a

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Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

relacionava ao instinto de morte. “O primeiro rom- Na Conferência XXXII, Freud (1933a/1996) co-
pimento foi em 1936 (...). Eu queria impressionar menta que a teoria da libido (ou teoria dos instin-
com o meu voo e com uma palestra que transcen- tos) é uma mitologia. Coloca que o organismo está
desse Freud” (Perls, 1969/1979, p. 49-50). sob o comando da autopreservação e da preserva-
Em O Ego e o Id, Freud (1923/1996) diz que ção da espécie que, independentes, não partilham
os impulsos destrutivos, ao serem neutralizados em da mesma origem e, não raras vezes, conflitam.
favor da vida, são desviados para o mundo externo Quando passam a dominar o cenário, os impulsos
com o auxílio dos músculos, de modo que a forma sádicos e anais, em conexão com o surgimento dos
de expressão desse instinto seria pela destruição di- dentes, o fortalecimento do aparelho muscular e
rigida ao mundo e outros seres. Dessa forma, tais o controle dos esfíncteres, colocam em questão a
instintos em parte tornam-se inofensivos quando se incorporação oral e o desejo de manter e possuir,
fundem com componentes eróticos e, outra parte, é pois derivam, pela primeira vez, elementos da am-
desviada para o exterior sob a forma de agressivida- bivalência (unir e possuir, mas também destruir e
de. Freud destaca que, quanto mais um indivíduo perder), mais evidentes na fase sádico-anal. “A ati-
controla sua agressividade contra o mundo exterior, vidade de nutrição fornece as significações eletivas
mais agressivo ele se torna um ideal do ego, voltan- pelas quais se exprime e se organiza a relação de
do a agressão para si. Fritz, corroborando, acredita- objeto; por exemplo, a relação de amor com a mãe
va que a atividade da agressão interna é necessária será marcada pelas significações seguintes: comer,
para um metabolismo saudável; que externalizar a ser comido” (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 245).
agressão é necessária para manter a saúde psico- Por esse prisma, o ato de comer é uma destruição
lógica (Staemmler, 2009). Staemmler acrescenta do objeto com o fim de incorporá-lo, e o ato sexual
que, presumivelmente, essa concepção se baseia visaria uma união (Freud, 1940a [1938]/1996).
na ideia psicanalítica que sustentava que a energia A intuição de Perls em relação ao desenvolvi-
devia ser descarregada antes que acumulasse e cau- mento infantil, que valoriza a desconstrução implíci-
sasse danos. Em Perls, a solução para a agressão mal ta no desenvolvimento dos dentes, é baseada em uma
canalizada ou evoluída a um nível patológico seria concepção capaz de autorregulação (Lobb, 2015). A
sua saída biológica pela utilização dos dentes. capacidade da criança de morder, apoia e acompa-
No O mal-estar na civilização (Freud, nha sua capacidade de desconstruir a realidade. Essa
1930/1996), o tema principal era justamente o con- força espontânea, positiva e agressiva tem a função
flito invariável entre as necessidades instintuais e as de sobrevivência, mas também da interligação social
limitações da civilização. Somente posteriormente e permite ao indivíduo ativamente alcançar o que no
Freud reconhece a independência original da agres- ambiente pode satisfazer suas necessidades.
são, e acrescenta que as fontes independentes advi- Assim, a partir de uma noção inovadora de
riam dos instintos autopreservativos. Os impulsos ego – como função e não instância psíquica (Perls,
de agressividade sempre pertenceram ao instinto 1977) –, diversa da psicologia do ego americana,
autopreservativo, porém, como este encontrava-se embora influenciada pela teoria de Karen Horney,
incluso na libido, não havia porque depor a favor Perls, com amparo na autorregulação organísmica
da independência do instinto agressivo. Somente de Goldstein, explicitará as implicações advindas
após o surgimento do “instinto de morte” que um das dificuldades do ego de se conduzir no meio (ao
instinto agressivo, de fato autônomo, apareceu em que Perls chamará de ações de unificação ou des-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Além do Princípio de Prazer. Por último, há uma truição), que são a base do crescimento. Ego saudá-
carta na qual Freud parece aludir que no começo vel é aquele que consegue exercer a função de assi-
da vida toda a libido é voltada para o interior e toda milar ou rejeitar por meio das ações de unificação
agressividade para o mundo externo, e que, ao lon- ou destruição (Helou, 2015).
go da vida, esse vetor paulatinamente mudaria, ao Para Laplanche e Pontalis (2001), a psicaná-
inverso. Entretanto, o próprio Freud pede cuidado lise conferiu uma importância cada vez maior à
na consideração dessa suposição e que suas obser- agressividade, aludindo que opera desde cedo no
vações do instinto de agressão necessitam de mais desenvolvimento do homem e enfatizando o me-
ponderações (Strachey, 1996a). canismo complexo da sua fusão e desfusão com a
Nota-se, com isso, que a ideia de que a fon- sexualidade; advertindo que a noção de pulsão de
te da hostilidade é a repressão dos instintos não é morte não se refere meramente a um conglomerado
perlsiana. Freud (1930/1996) coloca que os huma- indiscriminado de manifestações agressivas, com-
nos carregam considerável carga de agressividade, portando, outrossim, uma tendência para a dimi-
e que esta inclinação é o que dificulta as relações nuição irrestrita das tensões. Após 1920, o que se
interpessoais e leva a civilização a desperdiçar tan- renova, portanto, é a ampliação do campo em que
ta energia. A natureza do homem seria, pois, agres- se reconhece a agressividade em ação. Esta con-
siva. É de Freud também a afirmação de que luta cepção perde a conotação de hostilidade e passa a
e competição são indispensáveis, e que a civiliza- ser sinônimo de espírito empreendedor. Todavia,
ção se preocupa pouco com a satisfação individual, quanto à terminologia, em Freud encontra-se um só
-

tentando solapar, à custa do bem-estar individual, a termo, Aggression, para denominar as agressões e
agressividade humana. A agressividade constitui a a agressividade (Laplanche & Pontalis, 2001). Essa
Artigos

base de toda relação de afeto e amor entre os indiví- concepção e a consideração freudiana de agressão
duos, e é também fonte de satisfação. A inibição da enquanto energia necessária à sobrevivência estão
satisfação instintiva produz a agressão. no bojo da ideia de agressão positiva de Perls.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 234-245, mai-ago, 2018 238
Origens do Conceito de Agressão na Gestalt-terapia: Freud, Reich e Outras Fontes

Perls e a Psicanálise: “uma gestalt aberta” co de Viena. Segundo Bocian (conforme citado por
Helou, 2015), em virtude da programação, Perls fre-
É em 1925 que Fritz Perls tem seu primeiro quentava seminários teóricos de nomes como Otto
contato com a psicanálise (Helou, 2015). Sua aná- Fenichel, Anna Freud e Wilhelm Reich; o seminário
lise com Karen Horney despertou esse interesse, Análise Infantil de Anna Freud aparentemente mo-
cuja formação – que se deu em meio a muitas idas bilizou Fritz a escrever sua primeira obra, que foca-
e vindas – iniciou no renomado Instituto de Psica- lizava o ego. Anna, pioneira no assunto, não acre-
nálise de Berlim. Fritz e Laura Perls foram submeti- ditava ser possível uma análise infantil focada no
dos a treinamento psicanalítico primeiro em Berlim inconsciente pela falta de maturidade do superego.
e depois em Frankfurt e Viena (Wulf, 1996). Fritz Fritz e Laura postulavam que a análise de crianças
começou com Karen Horney e depois prosseguiu se dava por meio da utilização de atividades e de
com Wilhelm Reich, enquanto Frieda Fromm-Rei- ferramentas para promover a expressão, daí a ale-
chmann foi um dos analistas de treinamento de gação de que Anna Freud inspirou Perls na elabora-
Laura. Karen Horney teve participação na criação ção do método em GT, um método ativo, criativo e
do primeiro instituto de psicanálise, e sua trajetória experiencial. Depois de passar por outros analistas
teórica voltada para o culturalismo – contrapondo- – Hélène Deustch, Eugen Harnick e Wilhelm Reich
-se ao universalismo freudiano –, para a autorreali- – e prorrogar algumas vezes sua formação psicana-
zação, reconstrução do self e para a autonomia do lítica, Fritz a conclui na Holanda. Já na África, Perls
eu influenciou fortemente a Fritz. se liga a temas que lhe haviam despertado interesse,
Horney (1936/2007) faz uma análise sobre os como o holismo de Smuts, e estudos da semântica
fatores culturais, relevantes à estrutura das neuro- geral de Alfred Korzybski (Loffredo, 1994). A admi-
ses e à personalidade. Considera ter Freud negli- ração por Smuts foi um dos motivos que o fez se
genciado esses fatores (para Freud, a cultura seria o mudar para este país. O casal Perls funda, então, o
resultado de uma sublimação de impulsos sexuais e Instituto de Psicanálise de Johannesburgo. Após a
agressivos), indicando não haver dados históricos e viagem para a Europa para apresentar seu trabalho
antropológicos que endossem a tese do crescimen- no Congresso de 1936, a ruptura com a psicanálise,
to da civilização sendo diretamente proporcional com a qual já vinha distanciando-se, inicia. Com
ao crescimento da supressão dos instintos, e que a isso, Perls passa a desenvolver melhor as ideias
experiência clínica demonstra que a neurose não é contidas no trabalho sobre as resistências orais e
fruto simplesmente da quantidade de supressão de a encadeá-las com o que aprendera com Smuts e
um ou outro impulso instintivo, mas principalmen- Goldstein, se reorientando para outra direção, dife-
te de dificuldades com relação às demandas que rente da freudiana, como expressa em sua autobio-
se impõem aos indivíduos. Para Wulf (1996), essa grafia (Perls, 1969/1979).
visão orientada para as influências ambientais na Na origem da GT, Wulf (1996) comenta que
gênese da neurose é também de Reich, tendo ambos merece destaque a terapia de Otto Rank, pois esta
sido responsáveis por essa mesma orientação em era centrada na vontade e nas funções do ego como
Fritz. Tais temas, e também a relação entre cultura e uma força organizadora autônoma dentro do indi-
indivíduo como responsável por determinar saúde víduo. Rank requeria ao cliente re-experimentar e
e doença, permeiam todo o caminho teórico e prá- repetir (em vez de lembrar), o que implica um papel
tico de Perls. ativo do terapeuta. Para Loffredo (1994), há uma fal-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Em sua autobiografia, Perls (1969/1979) afir- ta de uniformidade entre os autores que se propu-
ma que estava atraído pelo trabalho do neurologis- seram a resgatar o quadro de influências que deram
ta Kurt Goldstein, pelos grupos existenciais e pela origem à GT, especialmente quanto às influências
rica atmosfera cultural de Frankfurt. Frankfurt foi dos pós-freudianos. Contudo, a influência de Reich
o período de contatos de Fritz com o holismo de é unânime, o que se percebe ao longo dos textos de
Smuts, com a Psicologia da Gestalt e com os estudos Perls devido às diretas menções que faz. Em sua au-
de Kurt Lewin (Wulf, 1996; Helou, 2015). É a partir tobiografia, Perls (1969/1979) deixa claro que a obra
de uma releitura de Smuts e de Goldstein que Fritz A análise do caráter foi uma contribuição funda-
formulará sua revisão da psicanálise. Foi também mental para ele; e, para Tellegen (1984), até mesmo
em Frankfurt, no Instituto de Goldstein, que Fritz e o conceito de “retroflexão” de Perls remetia a uma
Laura se conheceram. Essa mudança para Frankfurt, retenção de impulsos via contração muscular. Con-
ainda, colocará Perls em contato com a “esquerda tudo, antes mesmo das contribuições reichianas, a
freudiana”, e com os pesquisadores do Instituto de atenção à percepção corporal deve ser creditada às
Pesquisa Social, que trabalhavam em colaboração experiências de Laura com a dança moderna, o mo-
com o Instituto de Psicanálise de Frankfurt (apoian- vimento expressivo e criatividade e a sua atenção
do-se igualmente na fenomenologia e no marxismo, aos métodos de Alexander e Feldenkrais (Loffredo,
resultando em contribuições que revolucionaram 1994; Frazão, 2013).
o panorama acadêmico do século XX) e pavimen- Diante de toda essa discussão, não seria exa-
taram o terreno no qual Perls pôs em marcha suas gero dizer que a GT é “filha” da psicanálise – mes-
-

postulações teóricas de 1942 (Helou, 2015). mo que uma filha rebelde – expressão, ao menos de
Encaminhado por Clara Happel – discípula de início, da forte revolta de Perls contra Freud. Foram
Artigos

Horney que vivia em Frankfurt – Perls, em 1927, vários os psicanalistas contestadores de Freud que
muda-se para Viena para terminar a última fase de influenciaram Perls e Laura, muitos com técnicas
sua formação psicanalítica no Instituto Psicanalíti- ativas e intervenções físicas. Fritz não desfrutou

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Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

de uma experiência tradicional da psicanálise, de dade funcional na qual as leis biológicas podem ser
modo que suas críticas devem ser situadas nesse aplicadas ao psíquico, mas não o contrário. Assim,
contexto. Afora isso, Perls pretendia fortalecer e há uma constante oscilação de tensão e alívio de
conferir uma identidade a seu método, daí seu foco tensão; a autorregulação elimina a luta contra o ins-
nas diferenças e o reforço das fronteiras. tinto, pois é compatível com os instintos naturais.
Nos EUA, Perls, que já estava distante da psi- Reich, também, vai refletir sobre o conflito entre so-
canálise freudiana, afastou-se ainda mais ao passar ciedade e indivíduo e as implicações desse conflito
a frequentar os meios artísticos e intelectuais de es- para este.
querda do pós-guerra, voltando a se envolver com Essa influência de Reich em Perls é algo que
o teatro. O desenvolvimento da psicanálise freudia- merece maior destaque. Kyian (2001), reúne da-
na em solo estadunidense se deu em meio a atritos dos de caráter histórico e teórico, e influências que
que resultaram no neofreudismo, movimento que constituíram o processo de existência de Perls e sua
questionava importantes conceitos de Freud, como abordagem; concluindo que há um “todo” integra-
sexualidade, pulsão, recalque e transferência, bem do entre Fritz, sua história e sua abordagem, dei-
como se opunha ao dogmatismo e universalismo xando a questão: Quem foi Frederick Perls? A isso,
freudianos. Foi nessa onda de dissidências que Fritz argumenta que uma resposta segura seria a de que
se instalou em Nova York. foi um psicanalista dissidente que edificou uma
Ser psicanalista revisionista significava vol- abordagem que se contrapôs à psicanálise, a par-
tar-se mais ao intersubjetivo, às relações de objeto tir de uma frustração pessoal e por divergências na
(Helou, 2015). Em sua primeira obra, p.ex., Perls concepção de homem. Ou que foi o criador de uma
não evoca os conceitos psicanalíticos de pulsão e abordagem, reconhecida a partir dos anos 1960, por
inconsciente, focando no trabalho de mediação do conta das mudanças no contexto histórico social,
ego, por meio do instinto agressivo, em relação ao que convergiram com suas premissas. Nesse resga-
ambiente, sem mencionar o âmbito inconsciente do te, menciona a admiração de Perls por Reich, que
ego proposto na segunda tópica freudiana. Contu- acabaria por influenciar toda sua obra, e pode ser
do, revisões da teoria freudiana do Ego não eram observado por comentários na sua autobiografia
prerrogativa de Perls na década de 1940. Por outro (Perls, 1969/1979).
lado, Fritz pôs em curso um estudo do ego muito pe- Ginger e Ginger (1995) comentam que Reich
culiar e próprio, diferente de outras correntes pós- atribuiu ao acúmulo de tensão sexual genital a ori-
-freudianas e de outros movimentos psicanalíticos. gem da agressividade e das neuroses e insistiu na
De um modo geral, para Loffredo (1994), ancorada “função do orgasmo”, propondo a análise do caráter,
na linha de raciocínio de Marcuse, o fio condutor visando dissipar a couraça do caráter ou muscular,
comum de divergência dos revisionistas de Freud pois acreditava que se devia fomentar a expressão
era a atitude deste de desconsiderar a relação com total do cliente, e não apenas seu discurso verbal,
o meio na formulação das neuroses e na construção o que se daria pelo como, e não pelo porquê, na for-
da personalidade. ma, e não só no conteúdo da mensagem. A heran-
Em resumo, Helou (2015) conclui que “os ça do pensamento reichiano é clara. Perls também
instintos de autoconservação de fome e defesa, ressaltava a importância do como, e não do porquê;
estudados por Perls, têm como referência as pul- sua visão holística do homem relevava uma forma
sões de autoconservação freudianas” (p. 103). Perls de expressão total e integrada. O aspecto corporal
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

(1942/2002), que contesta alguns pares de opos- igualmente está presente em ambas as abordagens,
tos apontados por Freud, rejeita o par de opostos uma vez que é por meio de algumas manifestações
“pulsão de vida” e “pulsão de morte” introduzido corporais que alguns conteúdos internos podem ser
na segunda tópica freudiana. Em vista disso, Perls exibidos. Também utilizavam no trabalho terapêu-
aparentemente parte dessa segunda tópica, pois a tico o instrumento da frustração.
pulsão de vida seria a responsável por aglutinar as Com relação ao tema da agressão, em Análise
funções de autopreservação e as libidinais, e não do Caráter, Reich (1933/1998) se posiciona contrá-
reconhece as pulsões de morte (Helou, 2015). O rio à existência de uma teoria da pulsão de morte
conceito de necessidade também foi emprestado ou de que haja qualquer empenho biológico pelo
de Freud, com o qual este se remetia às pulsões de desprazer. Para ele, a suposta “pulsão de morte” po-
autopreservação, tal como Perls, Hefferline e Good- deria ser explicada por alguma forma específica de
man (1951/1997) reproduzem em Gestalt-terapia. angústia de orgasmo. Ainda, demonstra sua concor-
Dessa forma, Perls tenta trocar o conceito de pulsão dância com a teoria freudiana, segundo a qual os
pelo de necessidade, mais simples e organísmico sentimentos destrutivos, que são geralmente causa-
(Helou, 2015). dos por inibições de pulsões, são dirigidos inicial-
A influência de Reich sobre Perls é mais evi- mente contra o mundo externo, se voltando contra
dente do que a de Freud, especialmente pelo apelo a própria pessoa somente posteriormente. Dito de
ao corpo como expressão da realidade, o que tam- outro modo, para Freud, o desenvolvimento psíqui-
bém permeia toda a obra de Perls. Para Perls e Rei- co se realizaria com base no conflito entre a pulsão
-

ch, o alívio de uma tensão muscular quase sempre e o mundo externo. O conflito colocado depois por
proporciona a eclosão de angústia, ira ou excitação Freud – entre Eros e a pulsão de morte – reduziu
Artigos

sexual, que são as três excitações básicas biológi- a importância do primeiro. A neurose, então, não
cas. Como a energia biológica domina o somático mais resultaria do conflito original e, com isso, o so-
e também o psíquico, consideram que há uma uni- frimento não mais resultaria do mundo externo, da

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Origens do Conceito de Agressão na Gestalt-terapia: Freud, Reich e Outras Fontes

sociedade opressora, e sim de uma vontade biológi- raiva) ou, pelo menos, uma redução significativa da
ca interna de sofrer, de se autopunir e se autodes- corrente vegetativa” (Reich, 1933/1998, p. 319. Grifo
truir. Com isso, Reich demonstra sua discordância do autor). Seria dizer que a inibição das funções vi-
de que há alguma tendência primária para autodes- tais (libido, angústia, agressão) se realiza por meio
truição, independente do meio, que vinha de “den- da formação de uma couraça muscular ao redor do
tro”, de uma pulsão interior de morte. núcleo biológico. Assim, há uma relação funcional
Para Reich (1933/1998), o ritmo básico do me- entre o caráter neurótico e a distonia muscular.
tabolismo no atendimento à necessidade de alimen- Costa (1984) afirma que a forma pela qual uma
to e satisfação sexual ocorre pela dinâmica entre pessoa faz contato consigo e com o mundo organi-
tensão e relaxamento. Afirma que apenas um desejo za-se nos variados traços de caráter. O organismo,
emerge da unidade biopsíquica do indivíduo: o de para Reich, funciona integradamente, expressa-se
descarregar tensões internas, sejam elas advindas em diversos níveis e a um só tempo. Tanto o cará-
da fome ou da sexualidade, que não seria possível ter quanto o sujeito como um todo não eram obje-
sem o contato com o mundo externo. A fome é algo to da análise freudiana. Esta, se circunscrevia aos
que não se pode sublimar, ao contrário da energia sintomas e às transferências positivas, pois consi-
sexual. Toda frustração de uma satisfação pulsional derava-se que as negativas dificultavam o processo.
pode provocar angústia, que é o contraponto da li- Assim, a prioridade, para Reich, passou a ser ana-
bido ou, a fim de evitar a angústia, gerar um impul- lisar a forma como os clientes evitavam entrar em
so destrutivo. A inibição do impulso agressivo por contato consigo mesmos. Ao trabalhar a inibição
uma ameaça de punição advinda do meio externo corporal, trabalha-se também a repressão dos ins-
além de aumentar a angústia, prejudica a descarga tintos ou impulsos reprimidos. Todos esses pontos
da libido, ocasionando o lançamento do impulso são validados e incorporados por Perls à sua teoria.
destrutivo parte para o mundo e parte para o ego, Embora as observações clínicas de Reich fossem de
produzindo novos antagonismos: entre a pulsão de encontro aos postulados iniciais de Freud que rela-
destruição e a de autodestruição. Todo impulso libi- cionava a formação das neuroses com a repressão
dinal que não é direcionado para o mundo, termina da sexualidade, para Reich são especialmente os
por não passar de reações a frustrações resultantes fatores sociais que transformam a excitação sexual
da não satisfação das necessidades libidinais e de em angústia, reflexo do conflito entre as necessi-
se saciar a fome, frustrações geradas pelo sistema dades sexuais e o mundo exterior. O conflito entre
social, em nada tendo a ver com pulsões de morte. as necessidades internas, e as proibições sociais de
Assim, a pessoa se destrói não por ser impulsiona- gratificá-las, levam tais proibições a serem inter-
da a isso biologicamente, por algum querer obscu- nalizadas sob a forma de moral. Nesse ponto, Perls
ro, e sim porque a realidade gerou tensões internas (1942/2002; 1951/1997; 1975/1977) também trava
insustentáveis que só podem ser aliviadas pelo um debate sobre as normas sociais, a repressão im-
autoaniquilamento. Em verdade, são as proibições posta por elas aos instintos e à moral do organismo.
morais da sociedade que produzem esses “meca- Porém, no caso de Perls, sua teoria centra-se mais
nismos internos” antagônicos à pulsão sexual. Por- especificamente na repressão da agressão, e não na
tanto, os impulsos destrutivos não são determina- repressão da sexualidade. Reich dizia que se o mo-
dos biologicamente, mas no social; a repressão da vimento espontâneo do organismo for reprimido,
sexualidade pela educação autoritária transforma a necessidade de gratificação dele ficará cada vez

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
a agressão numa exigência, em outras palavras, a maior, aumentando também a necessidade de refor-
energia sexual represada torna-se destrutividade, e ço da barreira, o que, na mesma medida, aumenta
o que parece autodestrutitvo na verdade são genuí- por sua vez a pressão por gratificação, ficando cada
nas manifestações de intenções destrutivas de uma vez mais violenta a necessidade, para si e para o
sociedade tirana, não de pulsões de autoaniquila- mundo.
mento. Costa (1984) alega que Reich corrobora o pres-
A ambivalência de sentimentos, como amor suposto de Freud de que a sexualidade representa
e ódio, igualmente não é uma lei biológica, sendo, o movimento emocional de prazer do organismo,
portanto, oriunda do desenvolvimento social. Acre- que tende a se regular por este princípio, isto é, o
ditando que seja possível extrair toda a gama de afe- organismo se autorregula pelo princípio do prazer.
tos a partir dos três afetos básicos prazer, angústia e Assim, se uma criança é privada do afeto, do conta-
raiva, Reich coloca que a excitação sexual e a angús- to, isto é, frente à frustração de seu movimento de
tia podem ser entendidas como duas direções con- prazer, vivenciará angústia, da qual nasce a raiva,
trárias, porém, o ódio se relacionaria com esses dois e um movimento que era de descarga e de prazer,
afetos do seguinte modo: quando a couraça do ca- torna-se destrutivo, até mesmo violento. Para se es-
ráter é desfeita, a agressividade emerge em primei- quivar da dor, a criança então reterá suas sensações
ro lugar. Posteriormente, liberada a agressividade, e sentimentos dolorosos, e retira o seu contato do
liberar-se-á a angústia. Isso significa que a angústia mundo. Essas concepções claramente encontram-
pode tornar-se agressão e vice-versa. A inibição da -se na teoria de Perls, como vemos no escrito de
-

agressão, ainda, está ligada a um aumento do tônus, 1942. Portanto, a noção de quedestrutividade é um
a um enrijecimento da musculatura. Agressão inibi- impulso originado das inibições de movimentos vi-
Artigos

da leva a um bloqueio afetivo. Assim, toda “hiper- tais espontâneos e preponderantemente prazerosos
tonia muscular crônica representa uma inibição do é de Reich, que da mesma forma desenvoleu tais
fluxo de toda forma de excitação (prazer, angústia, ideias a partir de Freud, o que leva à dedução de que

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Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

ambos estão no bojo das postulações de Fritz, isto manteve-se fiel às ideias iniciais de Freud, princi-
é, a teoria da agressão é predominantemente uma palmente sobre o fato de que a neurose seria fruto
elaboração perlsiana dos pressupostos de Freud e das repressões sexuais impostas pela sociedade às
Reich, escolhidos de acordo com a conveniência e necessidades internas. Em suma, “quanto maior for
afinidade de Perls. a couraça, menor será a motilidade sexual e agressi-
Portanto, segundo Reich – reproduzido e ree- va para o prazer e a realização” (p. 81). Normalmen-
laborado por Perls, posteriormente –quando não te, a liberação do conteúdo contido ocorrerá nessa
atrelada à sobrevivência, a destrutividade decorre ordem: angústia, ódio, raiva, prazer, amor. Todos es-
da inibição do prazer sexual, como pressupunha ses modos de teorizar, analisar e conceituar a agres-
também Freud – em Perls, decorre da inibição da são são observados na teoria da agressão de Perls,
agressão. A destrutividade também pode estar or- especialmente nos escritos de 1942, 1951 e 1975.
ganizada de forma espontânea, libertária e natural,
verdadeira, amorosa e cordial, o que lembra muito
a noção de agressividade positiva aventada por Fritz Outras possíveis influências nas raízes da
Perls em 1942 e em 1951. Reich, ainda, relata a im- Teoria da Agressão
portância do sexo e da nutrição para o equilíbrio
das demais funções do organismo, pois por meio Helou (2015) também aponta a influência da
da alimentação, o organismo se refaz, e pelo sexo, filosofia nietzschiana em Perls que, timidamente,
se autorregula, e a vida do organismo se mantém faz alusões ao filósofo em alguns dos seus escritos.
por tensão, carga, descarga e relaxamento. Quanto De acordo com Petzold (citado por Loffredo, 1994),
à economia sexual, para Costa (1984), agressão não Friedlander, filósofo que influenciou sobremaneira
é concebida como destruição, sadismo ou instinto Perls por meio da sua teoria da Indiferença Criativa,
de morte. Em si mesma, não é destrutiva nem sá- também escreveu sobre Nietzsche, especialmente so-
dica. Há, nessa concepção reichiana, uma agressão bre os aspectos dionísicos do pensamento dele, o que
primária que se torna secundária e destrutiva pro- atingiu Fritz que, direta e indiretamente, igualmente
veniente da insatisfação das necessidades básicas, visitou o pensamento de Nietzsche. Para o comen-
mormente as sexuais. Agressão por si só significa tador, o ensino e a prática da GT são uma aplicação
atividade, acercamento, movimento, descarga, por desses aspectos nietzschianos e da sua doutrina
isso deve-se discriminar suas mais variadas formas do super-homem. Nesta ocasião, Loffredo encoraja
de expressar-se: sexual, destrutiva, sádica, loco- maiores investigações sobre as relações da GT com
motora, etc. Com efeito, a agressão é colocada por Nietzsche. Smith (2007) se dedica a apontar as seme-
Costa, que se respalda em Reich, como energia de lhanças entre a teoria da agressão de Perls e o pensa-
ação, semelhante ao que vemos em Perls e sua con- mento de Nietzsche argumentando com propriedade
cepção de agressão positiva, como movimento de e ilustrando com muitos exemplos e passagens bem
vida. Talvez essa variada maneirade Freud e Rei- similares no legado de ambos, a fim de atribuir a ori-
ch conceituarem agressão e referirem-se a ela, de gem dessa teoria ao filósofo. Segundo Smith, Nietzs-
tantas formas, explique o fato de Fritz denominar che foi quem primeiro discutiu as desvantagens de
a agressão de vários modos também: energia, força, se “engolir inteiro” e de se “engolir as palavras dos
ação, função, instrumento, etc. outros”, e o quanto essa atitude acaba por contribuir
Agressão, nesse sentido, é o meio pelo qual a para a formação de uma confluência prejudicial. As-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

vida é preservada e perpetuada, “é a própria energia sim, o ponto central da metáfora do comer seria de
vital em movimento” (Costa, 1984, p. 74). O instin- Nietzsche, tendo sido desenvolvida por Perls.
to se gratifica por meio dela, é a força dele em movi- Goldstein (1951), que também está na raiz da
mento. Quando não satisfeito o instinto, essa agres- teoria da agressão, ensina que um comportamento
são como força de ação vai se acumulando e, então, inter-relacional inerente ao homem é o fato de que
torna-se destrutiva. Não ocorrendo a descarga emo- a autoatualização do indivíduo em seu meio social
cional de forma espontânea, acabará ocorrendo apenas se dará se ele usurpar a liberdade do outro,
de forma reativa e provavelmente inapropriada. A se reivindicar algo do outro, impondo-se a esse ou-
insatisfação biológica, tanto de nutrição quanto se- tro até certo ponto. O fato de que o indivíduo não
xual, pode levar a agressão, por conseguinte, a tor- existe sozinho e sim com outros, necessariamente
nar-se destrutiva. Porém, mesmo quando ela se ma- aponta para a incompleta realização da natureza
nifesta destrutivamente, vem seguida de um prazer, de cada indivíduo, e isso implica em impacto, an-
pois toda descarga de energia é acompanhada da tagonismo, conflito e competição com os demais.
sensação de alívio da tensão. Em sendo a agressão Portanto, é possível afirmar que a atividade de usur-
o próprio movimento, é a atividade em si mesma, par a liberdade alheia também pertence à natureza
em busca de gratificação. Ela é um movimento for- do homem. Assim, a autorrealização só pode ser
te, decidido, ativo, firme, doce, terno e espontâneo alcançada mediante alguma renúncia por parte de
quando as condições internas e externas são com- um outro, e cada um deve requerer dos outros, tal
patíveis com sua realização. renúncia. Goldstein explica que esses dois tipos de
-

De um modo geral, Costa comenta que Reich comportamento – autorrestrição e usurpação – fo-
afirma que a sociedade obsta a que os indivíduos ram mencionados por McDougall sob as alcunhas
Artigos

satisfaçam sua fome e sua sexualidade, e o supos- de “submissão” e “agressão”, como duas “direções”
to instinto de morte nada mais é do que um desejo básicas da natureza humana (Goldstein, 1951; Ho-
inconsciente de alívio orgástico da tensão. Reich landa & Moreira, 2017).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 234-245, mai-ago, 2018 242
Origens do Conceito de Agressão na Gestalt-terapia: Freud, Reich e Outras Fontes

Em sua crítica geral à teoria das pulsões e ins- influência de Goldstein no pensamento de Perls. Te-
tintos, esclarece Goldstein que não há razão para llegen (1984) ainda indica que se encontra, na GT,
supor que tais pulsões são inerentes ao homem, ten- concepções de Goldstein a respeito de o organismo
do em vista que ambos os comportamentos não são possuir um movimento natural para o crescimento
tendências distintas e antagônicas que operam no e para a autoatualização.
ser humano. O homem não é nem agressivo, nem
submisso por natureza. Ele é levado a atualizar-se
e chegar a um acordo com seu meio. Ao fazê-lo, ele Considerações Finais
às vezes tem que ser submisso e, às vezes, agressi-
vo, dependendo da situação. Nesse ponto, fica clara A teoria da agressão, na GT, foi uma idealiza-
a influência de Goldstein em Fritz, que preconizou ção do casal Perls, com base em trabalhos de Laura
uma teoria do “não-instinto” (Perls, 1969/1979) – e desenvolvimentos (um tanto erráticos, dada a mi-
segundo Mayer (1986), a discordância de Perls da ríade de temáticas que associa), de Fritz. As origens
abordagem freudiana começa em relação à teoria dessa tese estão intimamente entrelaçadas com a
dos instintos e da libido –, e a aplicação da energia Psicanálise freudiana (principalmente a segunda
agressiva a serviço da situação, isto é, o homem está tópica), com as pulsões de autoconservação e a di-
em constante interação e atualização com seu meio cotomia pulsões de vida versus pulsões de morte.
(Perls, 1942/2002; 1951/1997). Desse modo, Golds- Ademais, a complexidade da formulação dos Perls
tein considera a agressão enrijecida como um sinto- ainda agrega outras contribuições relacionadas,
ma característico da neurose. como as de Horney, com seu conceito de ego; as de
Se essa concepção da relação entre os indiví- Reich e suas concepções de resistência e do conflito
duos estiver correta, se todas as relações entre as dos instintos com o meio (que diferia do conflito
pessoas são determinadas pela tendência de cada psíquico de Freud); as de Anna Freud, por seu en-
um para realizar-se, então é possível chegar à con- tendimento de ego ativo; e a conceitos derivados de
clusão geral de que o indivíduo é primário (no sen- outras fontes, como Goldstein, Smuts e Nietzsche.
tido de principal, mais importante) em toda a or- Grande número de estudiosos tem denunciado
ganização social. Muitas vezes, o “nós”, a relação a necessidade de se circunscrever a influência da
entre o indivíduo e os outros é considerada o prin- psicanálise no pensamento de Perls (Helou, 2015).
cipal fator, e o comportamento do indivíduo é to- É de Freud a alegação de que a neurose resulta de
mado como compreensível apenas em termos des- um conflito entre indivíduo e sociedade, mas Fritz
se “nós”. Com efeito, a suposição difundida é a de inova ao colocar, em 1942, a opressão da energia
que a natureza não está interessada no indivíduo. agressiva no âmago desse conflito, que estaria sen-
Parece um desperdício de indivíduos não ter outro do deslocada de sua função biológica. Com isso, o
objetivo do que a perpetuação da espécie. Genérica foco da terapia seria a retomada das funções bioló-
como é, esta hipótese não é de forma alguma ba- gicas. Com a energia agressiva represada, o único
seada em fatos. Em toda a natureza, deparamo-nos caminho possível de realização seria a neurose, e a
com indivíduos, tanto no reino do homem como no potência destruidora da agressão encontraria saída
de animais e plantas. Essas reflexões de Goldstein, na violência. Porém, o próprio Perls parece deixar
juntamente com as conclusões de Freud a respeito a teoria da agressão em segundo plano nas obras
das consequências da supressão do individual na seguintes, e passa a apostar na proposição ou de-

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
civilização, também podem estar no cerne da teo- senvolvimento de outros construtos, privilegiando
ria da agressão, que igualmente reflete um caráter a perspectiva de campo.
individual. Em meio a tantos questionamentos, espera-se
Goldstein, ainda, assevera que não há nada que esse tema possa ser retomado, tanto por sua re-
negativo na natureza. Se o indivíduo é o elemen- levância histórica, quanto pela eventual influência
to mais importante da natureza, o tempo presente que o mesmo possa ainda ter no escopo da aborda-
passa a ser o centro de importância, pois o presente gem.
é sempre individual. O que se denomina como “es-
pécie” nunca é presente; a espécie pertence ao pas-
sado ou ao futuro. A natureza em geral parece viver Referências
em apenas uma dimensão (o presente), a dimensão
do concreto, do indivíduo. Só o ser humano e pos-
sivelmente alguns dos animais mais desenvolvidos Belmino, M.C. (2014). Fritz Perls e Paul Goodman.
vão além desta dimensão. Dessa forma, não seria Duas Faces da Gestalt Terapia. Fortaleza: Edi-
precipitado supor que o foco de Perls na conserva- tora Premius.
ção do indivíduo e na agressão como positiva tam-
bém seja fruto dessas reflexões goldsteinianas. Para Bernard, J. M. (1986). Laura Perls: from ground to
Tellegen (1984), embora Perls fale que a interação figure. Life Lines.Journal of Counseling and
organismo-meio deve ser tomada de modo plural Development, 64, 367-373.
-

(envolvendo aspectos físicos, biológicos, psicoló-


gicos e socioculturais do campo), geralmente ele Boris, G.D.J.B. (2002). Sobre Fritz Perls e “Ego, Fome
Artigos

acaba enfocando o que é biologicamente essencial, e Agressão”. Em F. S. Perls (1942/2002). Ego,


e o fato de ele utilizar metáforas digestivas e fisio- Fome e Agressão (p. 19-28). São Paulo: Sum-
lógicas com frequência pode ser reflexo da grande mus.

243 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 234-245, mai-ago, 2018
Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

Costa, R. A. (1984). Sobre Reich, Sexualidade e Helou, F. (2013). Frederick Perls, inquietações e tra-
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trado em Psicologia. Universidade de Brasília,
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Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.13

THE ORIGINS OF THE CONCEPT OF AGGRESSION IN


GESTALT-THERAPY: FREUD, REICH AND OTHERS
Origens do Conceito de Agressão na Gestalt-Terapia: Freud, Reich e outras Fontes

Orígenes de lo concepto de la agresión en terapia Gestalt: Freud, Reich y Otros


thauana SantoS de araúJo
adriano furtado holanda

Resumo: O conceito de Agressão, está na base da construção da Gestalt terapia, sendo central para o primeiro trabalho
de Fritz Perls, Ego, Fome e Agressão, de 1942. O tema foi desenvolvido por Fritz e Laura Perls, a partir de um trabalho
desta de observação de crianças. Objetivou-se resgatar as origens do conceito, que remonta às primeiras experiências
com a psicanálise, buscando esclarecer os elos entre esta e a Gestalt terapia. O trabalho se pautou por uma análise
de fontes primárias – obras de Fritz, de Freud e de Laura – e secundárias pertinentes. Evidenciou-se a necessidade de
se retomar um elo claro entre a Gestalt terapia e sua fonte psicanalítica, bem como clarificar as influências de outros
nomes, como Reich, Goldstein, Horney e Nietzsche, na construção desse conceito.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; Agressão; Psicanálise.

Abstract: The concept of Aggression lies on the basis of the construction of Gestalt therapy, being central to the first
work of Fritz Perls, Ego, Hunger and Aggression, of 1942. The theme was developed by Fritz and Laura Perls, from a
work of watching children. The objective of the paper was to recover the origins of the concept, which goes back to
the first experiences with psychoanalysis, seeking to clarify the links between this and Gestalt therapy. The study was
based on an analysis of primary sources - works by Fritz, Freud and Laura - and relevant secondary sources. It points
to the need to re-establish a clear link between Gestalt therapy and its psychoanalytic source, and clarified, as well,
the influences of other names, such as Reich, Goldstein, Horney and Nietzsche, in the construction of this concept.
Keywords: Gestalt-therapy; Aggression; Psychoanalysis.

Resumen: El concepto de Agresión está en la base de la construcción de la Gestalt terapia, siendo central para el primer
trabajo de Fritz Perls, Ego, Hambre y Agresión, de 1942. El tema fue desarrollado por Fritz y Laura Perls, a partir de un
trabajo de ésta de observación de niños. Se objetivó rescatar los orígenes del concepto, que se remonta a las primeras
experiencias con el psicoanálisis, buscando esclarecer los eslabones entre ésta y la Gestalt terapia. El trabajo se basó en
un análisis de fuentes primarias - obras de Fritz, de Freud y de Laura - y secundarias pertinentes. Se evidenció la nece-
sidad de reanudar un vínculo claro entre la Gestalt terapia y su fuente psicoanalítica, así como aclarar las influencias
de otros nombres, como Reich, Goldstein, Horney y Nietzsche, en la construcción de ese concepto.
Palavras-clave: Gestalt-terapía; Agressión; Psicoanálisis.
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

Introduction the approach. Prestrelo (2012) points to similarities


A solid approach is built on several paths, related to the emergence of GT in Brazil, because
and its foundations must be set from epistemologi- here it was also established the idea of an approa-
cal discussions, delimiting its objective value, and ch based on techniques of expression of feelings,
seeking a critique of its foundations (Jolivet, 1975). which demanded from pioneers explanations about
In this direction, one can consider that there has what was not Gestalt.
been an increase in Brazilian production on foun- In the wake of these events, concepts are for-
dations issues, involving the gestaltic approach, as gotten and little visualized, such as that of aggres-
observed in recent publications (Holanda, 2009; sion (Holanda, 2005; Staemmler, 2009). The lack of
Belmino, 2014; Helou, 2015). Currently, according interest in the theme, for Staemmler (2009), is due
to Frazão (2013), there are more than 60 published to its unclear exposure in Perls’s works, as well as
books, as well as numerous articles and book chap- because this notion refers to an intrapsychic consi-
ters, in addition to the growing number of master’s deration, as opposed to a field perspective. We have
dissertations and doctoral theses. here, by object, the origin of this concept, which
It is common the association of GT with a founded the first work of Perls (1942/2002).
cluster of techniques, which helped to construct
the image of a poorly supported approach, whose
origins date back to the workshops conducted by Theme Delimitation
-

Fritz Perls. Laura Perls (1992/1994) already sugges-


ted that the insertion of GT into the academic circle Dental aggression was one of the themes that
Artigos

was not facilitated by this excessive emphasis on founded the first work of Fritz Perls (1942/2002),
experiential practice, coupled with an anti-intellec- with significant contributions of his wife Laura,
tualism discourse, which led to the weakening of collaborator both in the writing of the book and

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 246-257, mai-ago, 2018 246
The Origins of the Aggression Concept in Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others

in the elaboration of the concept, derived from a dian theory and develop his English skills. There is
work of observation of children in transition from a consensus that Ego, Hunger and Aggression was
sucking to biting (Perls, 1992/1994). born from this lecture on “Oral Resistance”, and
The aim here is to rescue the origins of the con- that Laura Perls had a significant participation in its
cept, which goes back to his first experiences with production (Tellegen, 1984; Loffredo, 1994; Perls,
psychoanalysis. The research is based on a general 1992/1994; Frazão, 1997, 2002, 2013; Helou, 2015).
overview of the origins of aggression theory in psy- In the introduction for the edition of The Ges-
choanalysis, and other sources, considering the in- talt Journal, From and Miller (1997) also report that
fluences that both suffered during their professional the GT embryo was an article written by Perls arou-
and personal life, both intellectual and academic as- nd 1930, in which he inferred that “resistances” -
pects, as well as cultural and political. This theoreti- the psychological way of saying no to himself same
cal-conceptual study is based on a literature review or next - were of oral origin; and they point out that
of primary and secondary sources. The search resul- the relevance of this consideration is not exactly re-
ted in the use of the following works and articles as volutionary, since it represented a small change in a
primary sources: 1) From psychoanalysis, Three Es- classical psychoanalytic emphasis (psychoanalysis
says on the Theory of Sexuality (Freud, 1905/1996); traditionally granted the origin of resistances to the
Instincts and their vicissitudes (Freud, 1915/1996); anal region), although its developments were sub-
Beyond the Pleasure Principle (Freud, 1920/1996); versive. Both state the relevance of “oral”, being the
The Ego and the Id (Freud, 1923/1996); Civilization mouth, the “place” of eating, chewing, tasting, as
and its Discontents (Freud, 1930 [1929]/1996); Con- well as language and love. In other words, “a more
ference XXXII (Freud, 1933a/1996); An Outline of obvious place of encounter between the individual
Psychoanalysis (Freud, 1940a [1938]/1996), selected and the world” (From & Miller, 1997, p.21).
from a criterion of temporality - because they precede Fritz (Perls, 1969/1979) notes that the lectu-
Ego, Hunger and Aggression (Perls, 1942/2002) - and re was strongly disapproved and that “the verdict
relevance, for dealing with the writings that cover ‘all resistances are anal’” (p 51) left him perplexed,
the studies of Freud, prior to 1942, of sexuality, dri- and: “(...) I did not realize at the time, how revo-
ves, and aggression itself (Strachey, 1996b); 2) Texts lutionary the lecture was, and how much it would
relating to Laura Perls (Perls, 1977; 1988; 1992/1994; shake and even invalidate some basic foundations
Bernard, 1986); 3) and Fritz Perls (1942/2002, of the Master’s theory” (p.51). Strictly speaking,
1951/1997, 1969/1979, 1973/2011, 1977). In addi- we should at least assume that Fritz constructed a
tion, secondary sources were consulted and selected particular interpretation of Psychoanalysis. Isado-
in the journal Gestalt Review and in the databases re From (quoted by Frazão, 2013) states that Perls’s
Scielo, PePSIC and BVS. disagreement with Freud would be that he insisted
that introjection was necessary until the age of six,
while for Perls, Freud paid little attention to the
The Position of the Question psychological and emotional consequences of the
eruption of the teeth, which would allow the child
The importance of addressing the question of to stop introjecting without criticism much before
origins lies mainly on Fritz’s appropriation of this the age of six.
concept. At the time he launched his first work, For Laura Perls (1988, 1992/1994), the lecture,

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
Perls (1942/2002) was a psychoanalyst and aimed, which later composed the section “Mental Metabo-
with this production, to account for what he speci- lism” of the work of 1942, comes from a research
fies in the subtitle of the book (a revision of Freud’s she carried out during the birth of her daughter Re-
theory and method). Through the reading of this nate. She noted that weaning was either carried out
work, it is noticed that the notion of aggression very early or very late, and that the initiation of in-
was born of an attempt to sketch a theory of the fant feeding neglected the importance of chewing,
personality, which makes indispensable a return to maturing the idea that the beginning of chewing
Freud, although Perls delves more deeply into the would be linked to learning about the assimilation
oral phase and its resistances to mark the human process, antagonistic to the process of introjection
development. In the shift of focus from the psychic without assimilation that occurs more frequently
to the organismic, Perls ends by outlining a theory and constantly in this breastfeeding period. For
of holistic personality, a fundamental subject of the Laura, chewing requires time, patience and aware-
Gestalt-therapy work of 1951 (Perls, 1977; Boris, ness about what is being chewed, considering “fee-
2002; Helou, 2015). A work on this theme, Oral Re- ding” as a process of consciousness. In an interview
sistance, was presented at the congress of psychoa- with Bernard (1986), she states that she and Fritz
nalysis (Czechoslovakia, 1936), which “was still started the book together; she was aware of every-
written in Freudian terms” (Perls 1969/1979, p. 50). thing in the beginning and discussed everything,
In the preface to the 1969 edition of Random and left two chapters written for the book: “The pu-
House, Fritz himself states that his first book repre- ppet complex” and “The meaning of insomnia” as a
-

sents the transition from orthodox psychoanalysis review of Freudian analysis.


to GT (Perls, 1942/2002). Joe Wysong (2002) reveals Laura Perls (1992/1994) admits that the pro-
Artigos

that Perls’s personal notes for an unpublished part cess of feeding and weaning is one of the first bases
of the introduction for the 1969 edition show that of classical psychoanalytic thinking. She says that
the project aimed to expose his revisions of Freu- Fritz was in the army during the years that worked

247 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 246-257, mai-ago, 2018
Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

in Ego, Hunger and Aggression, and Smuts, with the baby’s lips represent the corresponding ero-
holism, also influenced him greatly. Also, the de- genous zone, whose satisfaction, in principle, can
mand for peace is opposed to one of the most vital be associated with the need for food, and that the
instincts of the human being: aggressiveness; im- sexual activity is initially supported by one of the
mediately associated with the destruction, and is functions that serve the preservation of life, achie-
therefore censored; and that adults usually respond ving independence at a later time. Therefore, the
with disapproval to any sign of aggression from the need to repeat sexual satisfaction is separated from
child and, despite education over the centuries em- the need for food absorption, a separation that is
phasizing censorship to aggression, the results di- inevitably imposed when teeth arise and food is no
sappoint. longer sucked but chewed. Thus, in the oral phase,
By being deprived of questioning, the infant sexual activity and nutrition are not yet separated,
is forced to swallow many things without biting, and the sexual aim lies in the incorporation of the ob-
chewing or digesting. For Laura, this relationship is ject, which will play an important psychic role in the
not a mere metaphor - which Staemmler (2009) will future, through identification (as Freud points out).
question - because both the ability to perform these Freud makes almost no reference to the self-
processes with physical food and the ability to per- -preservation instincts, with the exception of refe-
form them with intellectual foods (such as the abili- rences on libido attach to them in the early stages
ty to think, criticize, understand) are manifestations of development (Strachey, 1996b, Laplanche and
of the same aggressive instinct1. The experience of Pontalis, 2001). In an article of 1910 on psychoge-
psychoanalysts demonstrates that the inhibition of nic disorders of vision, Freud appears to suddenly
one of these functions affects the others; and the introduce the expression “ego instincts”, identi-
repression of individual aggressiveness may result fying them with the self-contained instincts and the
in increased universal aggression, as the communi- repressive function, from which the conflict starts
ty will seek out other means. Finally, Laura argues to be considered as occurring between two sets of
that the way one eats teaches one to learn and make instincts: those of the libido and those of the ego.
contact with the world. The baby, when feeding, re- The decisive point of the Freudian classification
duces tension; and begins to make contact with the of instincts occurred in Beyond the Pleasure Prin-
other, from the birth of the teeth (Perls, 1992/1994). ciple. It is in this dual march of the instincts that it
Perls says in her autobiography that she did will arrive at the hypothesis of the death instinct.
not read Freud’s entire work, but does not specify Freud presents a discussion of the subject in chap-
exactly what she read (Perls, 1969/1979). We find ter IV of The Ego and the Id (1923b), retaking the
only a brief mention of the psychoanalytic origin - theme in chapter VI of Civilization and its Discon-
at least in part - of the hunger instinct: “I consider tents (1930a/1974), analyzing in the latter for the
the analysis of the hunger instinct as a stepchild first time, with special attention, the aggressive and
of psychoanalysis, without underestimating the destructive instincts, bringing them as derived from
importance of analyzing the sexual instinct” (Perls the death instinct. Finally, the subject is revised in
1942, 283). Perls will devote herself in this work to the second half of Conference XXXII (1933a) and
developing the theory of the functions of individu- in a final summary, in the second chapter, of the
al self-preservation instincts, represented by food posthumous An Outline of Psychoanalysis (1940a
needs and self-defense; sexual priority, considered [1938]/1974) (Strachey, 1996b).
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

as an instinct for preservation. In Instincts and Their Vicissitudes, Freud


In Three Essays on the Theory of Sexuality, (1915/1996) says that the ego hates, does not to-
Freud (1905/1996) explains that, in the oral phase, lerate and persecutes, “with intent to destroy, all
objects that constitute a source of unpleasant sen-
1 On the concepts “instinct” and “drive”, a brief comment is sation for him, without taking into account that
made. Gomes (2001a) states that Freud’s two theories of drives use
very different concepts. In the first, the key drives were sexual and they represent a frustration of both sexual satisfac-
for self-preservation. In turn, in the second, the drives of life and tion and the satisfaction of self-preservative needs”
death. Freud never used the word instinct (instinkt) as an alterna- (142-143). Thus, the cradle of the hate relationship
tive or synonym of drive, since in the times in which he made use is not sexual, but the struggle of the ego to preser-
of that word he had a different meaning from its two concepts of
trieb (drive). In contrast, Freud never opposed the translations of
ve itself. Love and hate, for Freud, were born from
trieb as synonymous of instinct. When Freud specifically uses the different sources: love originates from the ego’s sel-
word instinct, he is referring to the innate, hereditary, which is in- f-erotic satisfaction for pleasure, in that sense we
dependent of individual experience, a notion that does not fit with “love” food that supplies the organ/oral zone’s need
drive - since the object of the drive is contingent - although it refers for food, providing pleasure. Hate is the expression
to the driving force, opposite to reason and reflection. Thus, in Por-
tuguese, an acceptable translation would be “impulse”. However, of displeasure provoked by objects and, in this sen-
there is the disadvantage of not referring to the somatic, which was se, always maintains a relation with the instincts of
the Freudian idea and, when it is called “impulsive”, it indicates the self-preservation. In this way, the instincts of sel-
unreflective. Thus, the most recommendable translation is “drive”, f-preservation and the sexual instincts remain as
which took the place of “instinct”, much used in the French trans-
lations, although “instinct” is still more usual in English. Therefore,
opposed to love and hate.
-

the forces of self-preservation are, for Freud, drives throughout his In Beyond the Pleasure Principle, Freud
work (not instincts). Therefore, hunger and thirst are drives. In this (1920/1996) says that there is a strong tendency
Artigos

way, the aggressive drive, taken as a drive for dominance, can be in the mind towards the pleasure principle and
thought of as selfconservation. Laplanche and Pontalis (2001) de- that, from the standpoint of self-preservation, this
fine instinct as a behavior inherited from an animal species, slightly
variable from one individual to another, which extends over time is ineffective and replaced by the reality principle.
without many changes and which apparently serves some purpose.

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 246-257, mai-ago, 2018 248
The Origins of the Aggression Concept in Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others

The principle of pleasure does not cease for a long (p 53). The drives would not be archaic contents
time to insist on returning to command, functio- whose destination should be recovery or replace-
ning as the method undertaken by the sexual ins- ment. They would represent the ambiguous way the
tincts, often succeeding in overcoming the princi- organism functions. That is, to assimilate the new
ple of reality. and keep up, updating, the old must be destroyed.
Freud (1920/1996) conceptualizes instinct as Perls, in an unpublished section of the preface to
“an impulse, inherent to organic life, to restore an the 1969 edition of Random House (Wulf, 1996),
earlier state of things, an impulse that the living en- alludes to the fact that a new approach to man in
tity was forced to abandon under the pressure of his health and situation emerged, and no longer is
external disturbing forces, that is, it is a kind of or- analyst. It makes it clear that she did not conceive
ganic elasticity, (...)” (emphasis added, p. 47), and aggression as a mystical energy born of Thanatos,
express the inherent inertia of organic life. As for but as a tool for survival, and that concepts such as
the sexual instincts, Freud points out that they are reflexes (stimulus-response) and instincts as stable
conservatives at a higher level by resisting external properties have become obsolete.
stimuli more effectively, as well as preserving their Helou (2015) puts the concept of mental me-
own lives, what they call “instincts of life”. In this tabolism as a great innovation of Perls, although
context, they operate against other instincts, which this comes from the notion of psychic work. Perls
would work to achieve the ultimate goal of the or- develops the hypothesis of organismic work throu-
ganism and life more quickly; sexual instincts are gh the mental assimilation of internal and external
therefore opposed to the ego instincts. The instincts content (internal perceptions and sensations, and
of death and life would have something conserva- of reality); and shares the idea that aggression is a
tive: to restore the state of things. In the case of the fundamental energy necessary for human survival,
death instinct, a return to an inanimate life; the ins- calling it “biological force” (Perls, 1942/2002). With
tinct of life, in turn, would aim at its continuity. Life the action of the ego through aggressive forces, new
itself would thus be a conflict and a reconciliation material can be rejected or assimilated. In this way,
between such tendencies. the Perlsian proposal - and, furthermore, Laura’s,
There would then be two kinds of antagonis- inspired by Smuts and Goldstein - points to the ad-
tic processes acting, one in a constructive direc- dition of a healthy aspect (of assimilation and rejec-
tion, of unification (instincts of life), and another tion) of the work of identifying the ego to the Freu-
in a destructive direction (instincts of death). Freud dian conception of introjection (“not healthy”, for
(1920/1996) finally defines the dualism between the Perls, since it would only involve swallowing/
instincts of life versus death; but warns that both ncorporating without selection) (Helou, 2015). Still
are associated from the beginning, so that there is in the same preface, Fritz asserts that insufficiently
a lidibinal, therefore, life, character in the instinc- applied aggression in the stage of entry (hunger)
ts of self-preservation. Starting from this dualism, and de-structuring of external mental and physi-
he mentions as another example of polarities the cal foods impairs maturation, and that the idea of
opposition between love (affection) and hatred (ag- assimilation weakens Freud’s model, especially
gression). In summary, for Freud both are libidinal the instinctive relationship Super-Ego/Ego, and the
in nature, but there would be other instincts belon- uneven view of life as the struggle of Eros-Thanatos
ging to the ego that could be found in the destruc- (Wulf, 1996). These processes of assimilation and

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
tive instincts, hence the opposition instincts of life rejection will delineate the contours of the notion
and instincts of death. Laplanche (1985) verifies of organismic self-regulation that will be built up in
two intentions in the way the death drive is des- the 1951 work.
cribed in Beyond the pleasure principle: to reaffirm For Staemmler (2009), Perls defines aggres-
the fundamental economic principle - the tenden- sion as a positive life force related to assimilation,
cy to zero; and give a metapsychological status to and the associated terms (destruction, assimilation,
the discoveries in the field of “aggressiveness” or growth) illustrate the historical context in which
“destructiveness”. Before 1920, the aggression drive Fritz developed his theory: the attempt to overcome
does not appear and even the term aggressiveness is Freud’s view of aggression, which related it to death
also hardly seen. instinct. “The first break was in 1936 (...). I wanted
Müller-Granzotto and Müller-Granzotto (2007) to impress with my flight and with a lecture that
point out that, unlike Freud, Perls does not identi- transcended Freud” (Perls, 1969/1979, p. 49-50).
fy these orientations as a drive of life and death, In The Ego and the Id, Freud (1923/1996) says
calling them “organismic functions”, supported by that the destructive impulses, being neutralized in
Goldstein, and through them the material elemen- favor of life, are diverted to the external world with
ts involved in the current experience, whether of the aid of the muscles, so that the form of expres-
the present or of the past, will be oriented toward sion of this instinct would be by the destruction di-
unification or destruction. In that, these elements rected to the world and other beings. In this sense,
are stabilized in the experience, for conservation. such instincts become in part harmless when they
-

In destruction, they are transcended as channels of merge with erotic components and, on the other
openness to the new: growth. Therefore, “Perls un- hand, are diverted to the outside as aggressive-
Artigos

derstands the drives described by Freud as an ambi- ness. Freud points out that the more an individual
guous flow of awareness: either toward the conser- controls his/her aggressiveness against the outside
vation of experience, or towards its transformation” world, the more aggressive he/she becomes an ideal

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Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

of the ego, turning aggression towards him/herself. nized; for example, the relationship of love with the
Fritz, corroborating, believed that the activity of in- mother will be marked by the following meanings:
ternal aggression is necessary for a healthy metabo- eating, being eaten” (Laplanche & Pontalis, 2001,
lism; that externalizing aggression is necessary to p. 245). From this perspective, the act of eating is
maintain psychological health (Staemmler, 2009). a destruction of the object in order to incorporate
Staemmler adds that this conception is presumably it, and the sexual act would aim at a union (Freud,
based on the psychoanalytic idea that energy was 1940a [1938]/1996).
to be discharged before it accumulated and caused Perls’s intuition about child development,
damage. In Perls, the solution to aggression poorly which values implicit deconstruction in tooth de-
channeled or evolved to a pathological level would velopment, is based on a self-regulated conception
be its biological output by the use of the teeth. (Lobb, 2015). The child’s ability to bite, supports
In Civilization and its Discontents (Freud, and accompanies the ability to deconstruct reality.
1930/1996), the main theme was precisely the in- This spontaneous, positive and aggressive force has
variable conflict between the instinctual needs and the role of survival, but also of social interconnec-
the limitations of civilization. Only later Freud re- tion and allows the individual to actively achieve
cognized the original independence of aggression, what in the environment can satisfy his/her needs.
and he added that independent sources would Thus, from an innovative notion of ego - as a
come from the self-preservation instincts. The im- function and not a psychic instance (Perls, 1977) -,
pulses of aggressiveness always belonged to the different from the American ego psychology, though
self- preservation instinct, but as this was included influenced by Karen Horney’s theory, Perls, suppor-
in the libido, there was no need to testify for the ted by Goldstein’s organismic self-regulation, will
independence of the aggressive instinct. Only after explain the implications of the ego’s difficulties of
the emergence of the “death instinct” that an ag- conducting itself in the medium (to what Perls will
gressive, indeed autonomous, instinct appeared in call the actions of unification or destruction), whi-
Beyond the Pleasure Principle. Finally, there is a let- ch are the basis of growth. Healthy ego is the one
ter in which Freud seems to allude to the fact that at who can exert the function of assimilating or rejec-
the beginning of life all libido is turned inward and ting through actions of unification or destruction
all aggressiveness towards the external world, and (Helou, 2015).
that, throughout life, this vector would gradually For Laplanche and Pontalis (2001), psychoa-
change, in reverse. Nevertheless, Freud himself nalysis has given increasing importance to aggres-
calls for careful consideration of this assumption siveness, alluding to the fact that it operates at an
and that his observations of the instinct of aggres- early age of human development and emphasizing
sion need further consideration (Strachey, 1996a). the complex mechanism of its fusion and defusion
It is noted, therefore, that the idea that the with sexuality; warning that the notion of the dea-
source of hostility is the repression of instincts is th drive does not merely refer to an indiscriminate
not Perlsian. Freud (1930/1996) argues that humans conglomeration of aggressive manifestations, but
carry considerable burdens of aggression, and that also entails a tendency towards an unrestricted re-
this inclination is what hinders interpersonal rela- duction of tensions. After 1920, what is renewed,
tions and leads civilization to waste much energy. therefore, is the extension of the field in which the
The nature of man would therefore be aggressive. aggressiveness in action is recognized. This concep-
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

It is also Freud’s assertion that struggle and compe- tion loses the connotation of hostility and becomes
tition are indispensable, and that civilization cares synonymous with entrepreneurial spirit. However,
little for individual satisfaction, trying to undermi- in terms of terminology, Freud finds a single term,
ne, at the expense of individual well-being, human Aggression, to denote aggression and aggressiveness
aggressiveness. Aggressiveness is the basis of every (Laplanche & Pontalis, 2001). This conception and
relationship of affection and love between indivi- the Freudian consideration of aggression as energy
duals and is also a source of satisfaction. Inhibition necessary for survival are at the center of Perls’s
of instinctive satisfaction produces aggression. idea of positive aggression.
In Conference XXXII, Freud (1933a/1996) com-
ments that the theory of libido (or theory of instinc-
ts) is a mythology. It states that the organism is under Perls and Psychoanalysis: “an open gestalt”
the control of self-preservation and the preservation
of the species that, independent, do not share the In 1925, Fritz Perls has his first contact with
same origin and, not infrequently, conflict. When psychoanalysis (Helou, 2015). His analysis with Ka-
they come to dominate the scene, the sadistic and ren Horney aroused this interest, whose training -
anal impulses, in connection with the emergence of which took place amidst many comings and goings
the teeth, the strengthening of the muscular appa- - began at the renowned Institute of Psychoanalysis
ratus and the control of the sphincters, call into in Berlin. Fritz and Laura Perls underwent psychoa-
question the oral incorporation and the desire to nalytic training first in Berlin and then in Frankfurt
-

maintain and to possess, elements of ambivalence and Vienna (Wulf, 1996). Fritz started with Karen
(uniting and possessing, but also destroying and lo- Horney and then went on with Wilhelm Reich,
Artigos

sing), more evident in the sadistic-anal phase. “The while Frieda Fromm-Reichmann was one of Laura’s
activity of nutrition provides the elective meanings training analysts. Karen Horney participated in the
by which the object relation is expressed and orga- creation of the first institute of psychoanalysis, and

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The Origins of the Aggression Concept in Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others

her theoretical trajectory turned to culturalism - in choanalytic formation, Fritz concludes it in the Ne-
opposition to Freudian universalism - for self-reali- therlands. Already in Africa, Perls draws attention
zation, self-reconstruction and self autonomy stron- to themes that have aroused his interest, such as
gly influenced Fritz. Smuts holism, and studies of the general semantics
Horney (1936/2007) analyzes the cultural fac- of Alfred Korzybski (Loffredo, 1994). The admira-
tors, relevant to the structure of the neuroses and tion for Smuts was one of the reasons that made
the personality. She considers Freud to have ne- him move to this country. The Perls couple founded
glected these factors (for Freud, culture would be the Institute of Psychoanalysis in Johannesburg.
the result of a sublimation of sexual and aggressive After the trip to Europe to present his work in the
impulses), indicating that there are no historical Congress of 1936, the break with psychoanalysis,
and anthropological data that endorse the thesis of with which he had already been distancing him-
the growth of civilization as directly proportional to self, began. Consequently, Perls develops better the
the growth of the suppression of the instincts, and ideas contained in the work on oral resistances and
that clinical experience shows that neurosis is not links them with what he had learned from Smuts
simply the result of the suppression of one or other and Goldstein, redirecting himself to a different di-
instinctual impulse, but mainly of difficulties in rection from Freudian as expressed in his autobio-
relation to the demands that are imposed on indi- graphy (Perls 1969/1979).
viduals. For Wulf (1996), this view oriented toward At the origin of the GT, Wulf (1996) comments
environmental influences in the genesis of neurosis that Otto Rank’s therapy deserves special mention,
is also of Reich, both having been responsible for since it was centered on the will and functions of
this same orientation in Fritz. These themes, and the ego as an autonomous organizing force within
also the relationship between culture and indivi- the individual. Rank required the client to re-ex-
dual as responsible for determining health and di- perience and repeat (rather than remember), whi-
sease, permeate the entire theoretical and practical ch implies an active role of the therapist. For Lo-
path of Perls. ffredo (1994), there is a lack of uniformity among
In his autobiography, Perls (1969/1979) states the authors who have proposed to rescue the set
that he was attracted to the work of the neurolo- of influences that gave rise to the GT, especially re-
gist Kurt Goldstein, the existential groups and the garding post-Freudian influences. However, Reich’s
rich cultural atmosphere of Frankfurt. Frankfurt influence is unanimous, which can be seen throu-
was Fritz’s period of contact with Smuts’ holism, ghout Perls’s writings because of the direct mention
Gestalt psychology, and Kurt Lewin’s studies (Wulf, he makes. In his autobiography, Perls (1969/1979)
1996; Helou, 2015). It is from a re-reading of Smuts makes clear that the work The analysis of character
and Goldstein that Fritz will formulate his review was a fundamental contribution; and, for Tellegen
of psychoanalysis. It was also in Frankfurt at the (1984), even the Perls’s concept of “retroflexion” re-
Goldstein Institute that Fritz and Laura met. This ferred to a retention of impulses through muscular
shift to Frankfurt will also put Perls in touch with contraction. In the meantime, even before the Rei-
the “Freudian Left”, and researchers at the Institute chian contributions, attention to body perception
for Social Research, who worked in collaboration must be credited to Laura’s experiences with mo-
with the Frankfurt Institute of Psychoanalysis (also dern dance, expressive movement and creativity,
based on phenomenology and Marxism, resulting and her attention to the methods of Alexander and

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
in contributions that revolutionized the academic Feldenkrais (Loffredo, 1994; Frazão, 2013).
landscape of the twentieth century) and paved the In the face of all this discussion, it would not
ground on which Perls launched his theoretical be an exaggeration to say that the GT is the “daugh-
postulations of 1942 (Helou, 2015). ter” of psychoanalysis - even a rebellious daughter
Directed by Clara Happel - disciple of Horney - an expression, at least initially, of Perls’s strong re-
who lived in Frankfurt - Perls, in 1927, moved to volt against Freud. Several psychoanalysts that con-
Vienna to finish the last phase of his psychoanaly- tested Freud have influenced Perls and Laura, many
tic training at the Vienna Psychoanalytic Institute. with active techniques and physical interventions.
According to Bocian (as quoted by Helou, 2015), Fritz did not enjoy a traditional experience of psy-
Perls was attending theoretical seminars on names choanalysis, so his criticisms must be placed in this
such as Otto Fenichel, Anna Freud and Wilhelm context. Aside from this, Perls intended to streng-
Reich; Anna Freud’s Child Analysis seminar appa- then and give an identity to his method, hence his
rently mobilized Fritz to write his first work, which focus on differences and the strengthening of bou-
focused on the ego. Anna, a pioneer in the subject, ndaries.
did not believe that an infant analysis focused on In the United States, Perls, who was already
the unconscious was possible because of the supe- far from Freudian psychoanalysis, became even
rego’s lack of maturity. Fritz and Laura postulated more distant when he started to participate in arts
that the analysis of children was through the use and intellectual Marxists circles of the post-war
of activities and tools to promote expression, hen- period, becoming involved again with the theater.
-

ce the claim that Anna Freud inspired Perls in the The development of Freudian psychoanalysis in the
elaboration of the method in GT, an active, creati- United States occurred amid conflict that resulted
Artigos

ve and experiential method. After passing through in neofreudism, a movement that questioned im-
other analysts - Hélène Deustch, Eugen Harnick portant concepts of Freud, such as sexuality, drive,
and Wilhelm Reich - and extend sometimes its psy- repression and transference, as well as opposed to

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Thauana Santos de Araújo; Adriano Furtado Holanda

Freudian dogmatism and universalism. It was in choanalyst who constructed an approach that con-
this wave of dissent that Fritz settled in New York. trasted with psychoanalysis, from personal frustra-
Being a revisionist psychoanalyst meant to tion and from divergences in the conception of man.
turn more to the intersubjective, to object relations Or, he was the creator of an approach, recognized
(Helou, 2015). In his first work, e.g., Perls does not from the 1960s on account of the changes in the
evoke the psychoanalytic concepts of drive and un- social historical context, which converged with his
conscious, focusing on the work of mediation of the premises. In this rescue, he mentions Perls’s admi-
ego through aggressive instinct in relation to the ration for Reich, which would ultimately influence
environment, without mentioning the unconscious his entire work, and can be observed by comments
scope of the ego proposed in the second Freudian in his autobiography (Perls, 1969/1979).
topic. However, revisions of the Freudian theory of Ginger and Ginger (1995) comment that Rei-
the Ego were not Perls’s prerogative in the 1940s. ch attributed to the accumulation of genital sexual
On the other hand, Fritz set in motion a very pe- tension the origin of aggressiveness and neuroses
culiar and proper study of the ego, different from and insisted on the “function of orgasm”, proposing
other post-Freudian currents and other psychoa- the analysis of the character, aiming to dissipate the
nalytic movements. In general, for Loffredo (1994), muscular or character armor, believing that the total
anchored in reasoning of Marcuse, the common expression of the client should be fostered, and not
cause of divergence of the revisionists of Freud was only his/her verbal discourse, what would be given
his attitude of disregarding the relation with the en- by the how, and not by the why, in the form, and not
vironment in the formulation of the neuroses and only in the content of the message. The heritage of
in the construction of the personality. Reichian thought is clear. Perls also stressed the im-
In summary, Helou (2015) concludes that “the portance of how, and not why; his holistic view of
instincts of self-conservation of hunger and defen- man was a total and integrated form of expression.
se, studied by Perls, are based on Freudian drives The corporeal aspect is also present in both approa-
for self-conservation” (p.103). Perls (1942/2002), ches, since it is through some bodily manifestations
who questions some pairs of opposites pointed out that some internal contents can be exhibited. They
by Freud, rejects the pair of opposites “life drive” also used in their therapeutic work the instrument
and “death drive” introduced in the second Freu- of frustration.
dian topic. In view of this, Perls apparently starts Regarding the subject of aggression, in Charac-
from this second topic, since the life drive would ter Analysis, Reich (1933/1998) opposes the existen-
be responsible for bringing together the self-preser- ce of a theory of the death drive or of any biological
vation and libidinal functions, and does not recog- commitment for displeasure. For him, the supposed
nize the death drives (Helou, 2015). The concept “death drive” could be explained by some specific
of necessity was also borrowed from Freud, with form of orgasm anguish. Moreover, it demonstrates
whom he referred to the drives of self-preservation, its agreement with Freud’s theory that destructive
as Perls, Hefferline and Goodman (1951/1997) re- feelings, which are usually caused by inhibitions
produce in Gestalt-therapy. In this way, Perls tries of drives, are initially directed against the external
to change the concept of drive by necessity, simpler world, turning against the person only later. In other
and organismic (Helou, 2015). words, for Freud, psychic development would take
The influence of Reich on Perls is more evi- place on the basis of the conflict between the drive
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

dent than that of Freud, especially by the appeal to and the external world. The conflict later posed by
the body as an expression of reality, which also per- Freud - between Eros and the death drive - reduced
meates the entire work of Perls. For Perls and Reich, the importance of the former. Neurosis, then, wou-
the relieving of a muscular tension almost always ld no longer result from the original conflict, and
gives rise to anguish, anger or sexual excitement, hence suffering would no longer result from the ex-
which are the three basic biological excitations. As ternal world, from oppressive society, but from an
biological energy dominates the somatic as well as internal biological will to suffer, to self-punch and
the psychic, they consider that there is a functional self-destruct. With this, Reich demonstrates his di-
unit in which biological laws can be applied to the sagreement that there is some primary tendency for
psychic, but not vice versa. Thus, there is a cons- self-destruction, independent of the environment,
tant oscillation of tension and relief; self-regulation which came from “inside”, from an inner drive of
eliminates the struggle against instinct, as it is com- death.
patible with natural instincts. Reich will also reflect For Reich (1933/1998), the basic rhythm of me-
on the conflict between society and individual and tabolism in meeting the need for food and sexual
the implications of this conflict. satisfaction occurs through the dynamics between
This influence of Reich on Perls is something tension and relaxation. He states that only one de-
that deserves greater prominence. Kyian (2001) brin- sire emerges from the individual’s biopsychic one-
gs together data of historical and theoretical cha- ness: that of unloading internal tensions, whether
racter, and influences that constituted the process they come from hunger or sexuality, which would
-

of existence of Perls and his approach; concluding not be possible without contact with the external
that there is an integrated “whole” between Fritz, world. Hunger is something that can not be subli-
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his history and his approach, leaving the question: mated, unlike sexual energy. Any frustration of a
Who was Frederick Perls? To this, he argues that a satisfaction drive can cause anguish, which is the
sure answer would be that he was a dissident psy- counterpoint of the libido or, in order to avoid an-

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The Origins of the Aggression Concept in Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others

guish, generate a destructive impulse. The inhibi- working on bodily inhibition, the repression of re-
tion of the aggressive impulse by a threat of punish- pressed instincts or impulses is also worked. All
ment from the external environment in addition to of these points are validated and incorporated by
increasing the anguish, impairs the discharge of the Perls into his theory. Although Reich’s clinical ob-
libido, causing the release of the destructive im- servations were against Freud’s early postulates re-
pulse to the world and to the ego, producing new lating the formation of the neuroses to the repres-
antagonisms: between the drive of destruction and sion of sexuality, for Reich they are especially the
self-destruction. Every libidinal impulse that is not social factors that turn sexual excitement into an-
directed towards the world ends up being nothing guish, reflecting the conflict between sexual needs
but reactions to frustrations resulting from the fai- and world. The conflict between internal needs,
lure to satisfy libidinal needs and to satisfy hunger, and social prohibitions to gratify them, leads such
frustrations generated by the social system, having prohibitions to be internalized in the form of mo-
nothing to do with death drive. Thus, a person des- rals. Perls (1942/2002, 1951/1997, 1975/1977) also
troys him/herself not because he/she is driven bio- debates social norms, the repression imposed on
logically by some obscure will, but because reality instincts and morals of the organism. However in
has generated unsustainable internal tensions that Perls’s case, his theory focuses more specifically
can only be relieved by self-annihilation. Indeed, on the repression of aggression, not on the repres-
it is the moral prohibitions of society that produce sion of sexuality. Reich said that if the sponta-
these “internal mechanisms” antagonistic to the se- neous movement of the organism is repressed, the
xual drive. Therefore, destructive impulses are not need for gratification will be increasing, and the
determined biologically, but socially; the repression need for reinforcement of the barrier is increased,
of sexuality by authoritarian education transforms which, in turn, increases the pressure for gratifi-
aggression into a demand, in other words, the ac- cation as well, turning more violent the need, for
cumulated sexual energy becomes destructiveness, himself and for the world.
and what seems self-destructive in fact are genui- Costa (1984) argues that Reich corroborates
ne manifestations of destructive intentions of a Freud’s assumption that sexuality represents the
tyrannical society, not drives of self-annihilation. emotional pleasure movement of the organism,
The ambivalence of feelings, such as love and which tends to be regulated by this principle, that
hate, is also not a biological law, and therefore co- is, the organism regulates itself by the pleasure
mes from social development. Believing that it is principle. Thus, if a child is deprived of affection,
possible to extract the full range of affections from of contact, that is, in the face of the frustration of
the three basic affections pleasure, anguish, and its pleasure movement, it will experience anguish
anger, Reich argues that sexual excitement and an- from which anger arises, and a movement which
guish can be understood as two contrary directions, was both discharge and pleasure becomes destruc-
but hate would relate to these two affections in the tive, even violent. To avoid the pain, the child will
following way: when the armor of character is un- then retain their painful feelings and sensations
done, aggressiveness emerges first. Subsequently, and withdraw contact from the world. These con-
when the aggressiveness is released, the anguish ceptions are clearly to be found in Perls’s theory,
will be released. This means that anguish can be- as seen in the 1942 writing. Therefore, the no-
come aggression and vice versa. Inhibition of ag- tion that destructiveness is an impulse originated

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
gression, moreover, is linked to an increased tone, from the inhibitions of spontaneous and prepon-
to a stiffening of the musculature. Inhibited aggres- derantly pleasurable vital movements is of Reich,
sion leads to an affective blockage. Thus, all “chro- who likewise evolved such ideas from Freud, which
nic muscular hypertonia represents an inhibition of leads to the deduction that both are in the basis of
the flow of all forms of excitation (pleasure, anguish, the postulates of Fritz, that is, the theory of aggres-
anger) or at least a significant reduction of the vege- sion is predominantly a Perlsian elaboration of the
tative current” (Reich, 1933/1998, p. 319. Emphasis assumptions of Freud and Reich, chosen according
added). It would be like saying that the inhibition to the convenience and affinity of Perls.
of vital functions (libido, anguish, aggression) is Therefore, according to Reich - reproduced
achieved through the formation of a muscular ar- and reworked by Perls, later - when not linked to
mor around the biological nucleus. Thus, there is a survival, the destructiveness derives from the inhi-
functional relationship between neurotic character bition of sexual pleasure, as Freud also assumed
and muscular dystonia. - in Perls, arises from the inhibition of aggression.
Costa (1984) states that the way in which a Destructiveness can also be organized in a sponta-
person makes contact with him/herself and the neous, libertarian, natural, true, loving, and cor-
world is organized in the various character trai- dial fashion, which strongly resembles the notion
ts. The organism, for Reich, functions integrally, of positive aggressiveness suggested by Fritz Perls
is expressed in several levels and at one time. Both in 1942 and 1951. Reich further reports on the im-
the character and the subject as a whole were not portance of sex and nutrition for the balance of the
-

the object of Freudian analysis. This was limited to other functions of the organism, because through
the symptoms and the positive transfers, because food, the organism is rebuild and by sex, it regulates
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negative ones were considered to hinder the pro- itself, and the life of the organism is maintained by
cess. Thus, the priority for Reich was to analyze tension, load, discharge and relaxation. As for se-
how customers avoided contacting themselves. In xual economics, for Costa (1984), aggression is not

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conceived as destruction, sadism or death instinct. aspects of his thinking, which struck Fritz who, indi-
In itself, it is neither destructive nor sadistic. There rectly, also visited the thought of Nietzsche. For the
is, in this Reichian conception, a primary aggres- commentator, the teaching and practice of GT are an
sion that becomes secondary and destructive from application of these Nietzschean aspects and of his
the dissatisfaction of basic needs, especially sexual superman doctrine. On this occasion, Loffredo en-
ones. Aggression by itself means activity, approach, courages further investigation into GT relations with
movement, discharge, so it must be discriminated Nietzsche. Smith (2007) is dedicated to pointing out
its most varied ways of expression: sexual, destruc- the similarities between Perls’s theory of aggression
tive, sadistic, locomotive, etc. In fact, aggression is and Nietzsche’s thinking by rightly arguing and illus-
posed by Costa, who is endorsed in Reich, as ener- trating with many very similar examples and passa-
gy of action, similar to what seen in Perls and his ges in their legacy in order to attribute the origin of
conception of positive aggression, as a movement this theory to the philosopher. According to Smith,
of life. Perhaps this varied way of Freud and Rei- Nietzsche was the first to discuss the disadvantages
ch to conceptualize aggression and refer to it, in so of “swallowing whole” and “swallowing the words
many ways, explains the fact that Fritz denominates of others”, and how this attitude ultimately contribu-
aggression in several ways as well: energy, force, ac- tes to the formation of a harmful confluence. Thus,
tion, function, instrument, and so on. the central point of the metaphor of eating would be
Aggression, in this sense, is the means by whi- Nietzsche’s, having been developed by Perls.
ch life is preserved and perpetuated, “it is life itself Goldstein (1951), who is also in the root of
in motion” (Costa, 1984, p. 74). Instinct gratifies itself the theory of aggression, teaches that an inherent
through it, it is the force of it in movement. When inter-relational behavior is the fact that the self-
instinct is not satisfied, this aggression as a force of -actualization of the individual in his social envi-
action accumulates and then becomes destructive. If ronment will only occur if he usurps the freedom
emotional discharge does not occur spontaneously, of the other, if to claim something from the other,
it will occur in a reactive and probably inappropria- imposing him/herself to that other to some extent.
te way. Biological dissatisfaction, both of nutrition The fact that the individual does not exist alone but
and sexual, can lead to aggression, therefore, to be- with others necessarily points to the incomplete
come destructive. However, even when manifested realization of the nature of each individual, and this
destructively, it is followed by a pleasure, because implies impact, antagonism, conflict and competi-
every discharge of energy is accompanied by the sen- tion with others. Therefore, it is possible to affirm
sation of relieving tension. When aggression is the that the activity of usurping the freedom of others
movement itself, it is the activity itself, in search of also belongs to the nature of man. Thus, self-reali-
gratification. It is a strong, determined, active, firm, zation can only be achieved by some renunciation
sweet, tender and spontaneous movement when the on the part of another, and each one must request
internal and external conditions are compatible with from others, such renunciation. Goldstein explains
its accomplishment. that these two types of behavior - self-restraint and
In general, Costa comments that Reich asserts usurpation - were referred to by McDougall under
that society precludes individuals from satisfying the nicknames of “submission” and “aggression” as
their hunger and sexuality, and the supposed death two basic “directions” of human nature (Goldstein,
instinct is nothing more than an unconscious de- 1951, Holanda & Moreira, 2017).
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

sire for orgasmic relief from tension. Reich remai- In his general critique of the theory of drives
ned faithful to Freud’s initial ideas, especially on and instincts, Goldstein clarifies that there is no
the fact that neurosis was the fruit of the sexual reason to suppose that such drives are inherent to
repressions imposed by society on internal needs. man, since both behaviors are not distinct and an-
In short, “the greater the armor, the less sexual and tagonistic tendencies that operate in man. Man is
aggressive motility for pleasure and fulfillment” (p. neither aggressive nor submissive by nature. He is
81). Normally, the release of contained content will led to update himself and come to terms with his
occur in that order: anguish, hatred, anger, pleasu- environment. In doing so, he sometimes has to be
re, love. All these modes of theorizing, analyzing submissive and sometimes aggressive, depending
and conceptualizing aggression are observed in on the situation. At this point, Goldstein’s influen-
Perls’s theory of aggression, especially in the wri- ce on Fritz, who advocated a theory of “non-ins-
tings of 1942, 1951, and 1975. tinct” (Perls, 1969/1979) is clear, - according to
Mayer (1986), Perls’s disagreement with the Freu-
dian approach begins with the theory of instincts
Other possible influences in the roots of and the libido and the use of aggressive energy in
Theory of Aggression the service of the situation, that is, man is in cons-
tant interaction and updating with his environment
Helou (2015) also points out the influence of (Perls, 1942/2002, 1951/1997). Thus, Goldstein re-
Nietzsche’s philosophy on Perls who, timidly, makes gards stiffened aggression as a characteristic symp-
-

allusions to the philosopher in some of his writings. tom of neurosis.


According to Petzold (cited by Loffredo, 1994), Frie- If this conception of the relationship between
Artigos

dlander, a philosopher who greatly influenced Perls individuals is correct, if all relationships between
through his theory of Creative Indifference, also people are determined by the tendency of each to
wrote about Nietzsche, especially on the Dionysian be accomplished, then it is possible to arrive at the

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 246-257, mai-ago, 2018 254
The Origins of the Aggression Concept in Gestalt-therapy: Freud, Reich and Others

general conclusion that the individual is primary A large number of researchers have denounced
(in the sense of principal, most important) in the the need to circumscribe the influence of psychoa-
whole social organization. Often the “we”, the re- nalysis on Perls’s thinking (Helou, 2015). According
lationship between the individual and others is to Freud, neurosis results from a conflict between
considered the main factor, and the behavior of the individual and society, but Fritz innovates by pla-
individual is taken as understandable only in terms cing, in 1942, the oppression of aggressive energy
of this “we”. Indeed, the widespread assumption at the heart of that conflict, which would be displa-
is that nature is not interested in the individual. It ced from its biological function. With this, the focus
seems a waste of individuals to have no other pur- of therapy would be the resumption of biological
pose than the perpetuation of the species. Generic functions. With accumulated aggressive energy, the
as it is, this hypothesis is by no means based on only possible path of realization would be neuro-
facts. In all of nature, we encounter individuals, sis, and the destructive power of aggression would
both in the realm of man and in that of animals and find its way out in violence. However, Perls himself
plants. These reflections of Goldstein, along with seems to leave the theory of aggression in the back-
Freud’s conclusions about the consequences of the ground in the following works and starts betting on
suppression of the individual in civilization, may the proposition or development of other constructs,
also lie at the heart of the theory of aggression, whi- favoring the field perspective.
ch also reflects an individual character. Among so many questions, it is expected that
Goldstein further asserts that there is nothing this theme can be retaken, both for its historical re-
negative about nature. If the individual is the most levance and for the possible influence it may still
important element of nature, the present time beco- have on the scope of the approach.
mes the center of importance, because the present
is always individual. What is called “species” is ne-
ver present; the species belongs to the past or to the References
future. Nature in general seems to live in only one
dimension (the present), the dimension of the con-
crete, of the individual. Only the human being and Belmino, M.C. (2014). Fritz Perls e Paul Goodman. Duas Fa-
possibly some of the more developed animals go ces da Gestalt Terapia. Fortaleza: Editora Premius.
beyond this dimension. Thus, it would not be rash
to suppose that Perls’s focus on the conservation of Bernard, J. M. (1986). Laura Perls: from ground to figure.
the individual and aggression as positive is also the Life Lines.Journal of Counseling and Development, 64,
fruit of these Goldsteinian reflections. For Tellegen 367-373.
(1984), although Perls says that organism-environ-
Boris, G.D.J.B. (2002). Sobre Fritz Perls e “Ego, Fome e Agres-
ment interaction must be taken in a pluralistic way
são”. Em F. S. Perls (1942/2002). Ego, Fome e Agressão
(involving physical, biological, psychological and
(p. 19-28). São Paulo: Summus.
sociocultural aspects of the field), it usually focuses
on what is biologically essential, and the fact that Costa, R. A. (1984). Sobre Reich, Sexualidade e Emoção. Rio
it frequently uses digestive and physiological me- de Janeiro: Achiamé.
taphors is a reflection of Goldstein’s great influence
on Perls’s thinking. Tellegen (1984) still indicates Frazão, L. M. (1997). Apresentação à edição brasileira. Em F.

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
GT contains Goldstein’s conceptions about the or- S. Perls; R. Hefferline; P. Goodman (1951/1997). Ges-
ganism having a natural movement for growth and talt-terapia (p. 7-10). São Paulo: Summus.
self-actualization.
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and developments (somewhat erratic, given the fluências filosóficas (p. 11-23). São Paulo: Summus.
myriad of themes that associates), by Fritz. The ori-
gins of this thesis are intimately intertwined with Freud, S. (1996). Além do princípio de prazer. Em Além do
Freudian psychoanalysis (especially the second princípio de prazer (p. 11-75). Rio de Janeiro: Imago
topic), with the drives of self-conservation and the (Original de 1920).
dichotomy of life drives versus death drives. In ad-
dition, the complexity of the formulation of the Perls Freud, S. (1996). Conferência XXXII: ansiedade e vida ins-
still adds other related contributions, like those of tintual. Em Novas conferências introdutórias sobre psi-
Horney, with her concept of ego; those of Reich and canálise e outros trabalhos (p. 85-112). Rio de Janeiro:
his conceptions of resistance and the conflict of ins- Imago (Original de 1933a).
-

tincts with the environment (which differed from


Freud’s psychic conflict); those of Anna Freud, by Freud, S. (1996). Esboço de psicanálise. Em Moisés e o mo-
Artigos

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Thauana Santos de Araújo. Mestre em Psicologia


Clínica pela Universidade Federal do Paraná. Possui
graduação em Psicologia pela Universidade Tuiuti do
Paraná (2014) e graduação em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (2010). Atualmen-
te, é profa. nas Faculdades FACEL e trabalha também
como psicóloga clínica (CRP-08/20667). É membro
do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade/
UFPR. Atua como gestalt-terapeuta. Email: thaua-
naaraujo@hotmail.com.
Adriano Furtado Holanda é Doutor em Psicologia,
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia
e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Endereço
Institucional: Departamento de Psicologia, Universi-
dade Federal do Paraná. Praça Santos Andrade, 50 –
Sala 215 (Ala Alfredo Buffren). 80020.300. Curitiba/
PR. Email: aholanda@yahoo.com

E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s
First Revision: May 07, 2017
Second Revision: November 11, 2017
Accepted: December 27, 2017
-
Artigos

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258
259

t extos c lássicos .........................


Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n2.14

TEXTOS CLÁSSICOS

ANÁLISE FENOMENAL:
EXEMPLIFICADA POR UM ESTUDO DA EXPERIÊNCIA
DE “REALMENTE SE SENTIR COMPREENDIDO”*
Adrian L. Van Kaam (1959)¹
Brandeis University, Waltham, Mass.

O método conhecido como análise fenomenal, festas que possa ter validade geral e que seja útil para
ou a análise do que uma dada situação significa à uma a construção de uma teoria organizada da experiência
pessoa, tem influenciando, em anos recentes, as áreas humana? Intrigado por essa questão, nós estamos pro-
de psicoterapia, aconselhamento e teoria da personali- pondo um método para apreender um tipo de expe-
dade. A questão é saber o que esse método tem a ofere- riência humana, a saber, a experiência de realmente se
cer ao estudo de fenômenos psicológicos gerais. sentir compreendido, e submetê-la a uma análise con-
Vários psicólogos sabem ou especulam sobre a trolada. O objetivo dessa análise foi encontrar os cons-
possível contribuição da análise fenomenal para a psi- tituintes necessários e suficientes dessa experiência.
cologia geral. Esse fato foi enfaticamente reconhecido Nossa premissa básica é que o núcleo de tais expe-
por Koehler: “Nunca, eu acredito, seremos capazes de riências comuns é o mesmo em diferentes indivíduos.
resolver quaisquer problemas relativos a princípios Esta premissa não parece desarrazoada quando se lida
últimos enquanto não retornarmos à fonte dos nossos com indivíduos normais pertencentes a grupos não mui-
conceitos – em outras palavras, enquanto não utilizar- to diferentes. As pessoas, em geral, compreendem bem
mos o método fenomenológico, a análise qualitativa da quando alguém diz “Estou feliz”, ou “Estou entediado”,
experiência” (Koehler, 1938, p. vii). MacLeod (1951, p. ou “Sinto-me triste” (Merleau-Ponty, 1942; 1945).
215) tentou transmitir o valor da análise fenomenal ao
declarar: “Ser científico é ser curioso de uma manei- Sujeitos
ra disciplinada, isto é, tentar compreender (não mera- Para chegar ao núcleo da experiência comum, co-
mente prever ou controlar) com a ajuda dos melhores letamos explicações de 365 estudantes: 245 estudantes
métodos de observação, dedução e verificação”. Em re- de final de ensino médio1 (95 homens e 150 mulhe-
ferência à psicologia social, Asch (1953, p. X) disse: “Eu res), e 120 estudantes universitários (60 homens e 60
entendo como necessário manter em primeiro plano os mulheres). Esse número de sujeitos não-treinados, re-
modos humanos de experienciar o mundo da natureza lativamente alto para um estudo deste tipo, assegura o
e do homem, visto que as ações sociais de que falamos relato de situações numerosas e variadas nas quais os
são aquelas de seres conscientes que atuam, em grande sujeitos vivenciaram a experiência, e nos permite dis-
parte, em termos daquilo que compreendem e sentem”. tinguir o que é constante e o que varia em situações
Quando o humano começa a pensar ou falar so- diferentes.
bre suas experiências, ele está tentando expressar sua
consciência. É através desta formulação que a cons-
ciência se torna conhecimento conceitual e uma con- Obtendo os dados
dição necessária para qualquer comunicação relativa a Cada sujeito recebeu uma folha de papel com as
fenômenos subjetivos. A consciência implícita e vaga seguintes instruções: “Descreva como você se sente
de um fenômeno subjetivo complexo é capaz de mu- quando você sente que é realmente compreendido por
dar graças ao processo de expressão e de formulação alguém: (a) recorde alguma situação ou situações em
em conhecimento explícito de seus componentes. Esse que você sentiu que foi realmente compreendido por
processo é conhecido como explicação. É o que temos alguém, por exemplo, mãe, pai, sacerdote, namorada
de essencial no processo de psicoterapia, no qual o pa- (namorado), tio, médico, professor, etc.; (b) tente des-
ciente gradualmente aprende a expressar sua experiên- crever como você se sentiu nessa situação (não a situa-
cia implícita, vaga e dolorosa em uma descrição expli- ção em si); (c) tente descrever seus sentimentos exata-
Te x t o s C l á s s i c o s

citamente reconhecida do que está ocorrendo em sua mente como foram; (d) por favor, não pare até que sinta
vida subjetiva. que descreveu seus sentimentos tão exaustivamente
quanto possível”.
Além disso, solicitou-se aos sujeitos que infor-
O método da análise fenomenal geral massem idade, sexo, estado civil, e ocupação, mas omi-
tissem o nome. Reservou-se para a tarefa um período
de aula e os sujeitos eram livres para responderem,
Seria possível um método replicável, mais ou
usando o tempo disponível como desejassem.
menos controlado, para análise das experiências mani-
1 High school seniors, no original (Nota do tradutor).

Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 260-264, mai-ago, 2018 260
Adrian L. Van Kaam

Análise dos dados relevante comum da experiência foram unidas em um


Dado que o objetivo desta análise foi encontrar conjunto nomeado de forma mais abstrata que expres-
os constituintes necessários e suficientes da experiên- sasse o momento comum. Assim, uma expressão pode
cia em questão, os dados foram processados de acordo pertencer a vários conjuntos, no caso de representar
com seis operações que, apesar de poderem ser espe- momentos diversos da experiência.
cificadas, frequentemente se sobrepunham e não se- 6. Identificação final dos constituintes descritivos
guiam uma ordem fixa. As seis operações descrevem por aplicação. A operação consiste em checar os cons-
parcialmente o conjunto de abstrações ordenadas que o tituintes provisoriamente identificados contra casos
experimentador vivencia como uma totalidade natural. aleatórios da amostra para conferir se preenchem as
1–2. Listagem e agrupamento preliminar. A aná- seguintes condições: (a) estar explicitamente expresso
lise fenomenal é baseada em dados apresentados pelo em algumas explicações; (b) estar explicita ou impli-
sujeito, e cada expressão deve ser listada, sejam ou não citamente expresso na ampla maioria das explicações;
julgadas importantes pelo pesquisador. A fidelidade às (c) ser compatível com as explicações nas quais não foi
“coisas tal como se apresentam” (fenômeno = aquilo expresso; por fim, (d) se uma explicação é considerada
que se apresenta) resulta em uma ampla gama de ex- incompatível com um constituinte, deve-se provar que
pressões, incluindo aquelas que podem ser supérfluas a explicação não é uma expressão da experiência em
para o propósito final da análise. Essa inclusão evita estudo, mas de outra experiência que se introduz na
a influência seletiva de qualquer filosofia implícita do experiência em questão.
pesquisador neste estágio. Ela também permite a outros Em relação à confiabilidade da análise, as seis
pesquisadores conduzir análises de controle baseadas operações foram executadas por dois juízes adicionais
nos dados brutos. independentemente. Os resultados de cada operação
3–4. Redução e eliminação. Cada expressão de foram baseados no consenso de todos os três juízes.
um sujeito é testada com relação a dois requisitos: (a)
a expressão conteria um momento da experiência que
pode eventualmente ser um constituinte necessário e Resultados
suficiente da experiência em estudo? (b) se sim, seria
possível abstrair esse momento e classificá-lo, sem Desta maneira, chegamos aos constituintes ne-
violar a formulação apresentada pelo sujeito? As ex- cessários da experiência em estudo, com a seguinte
pressões que não preenchessem esses requisitos foram definição operacional geral: um constituinte necessá-
eliminadas. As expressões concretas, vagas e que se rio de uma determinada experiência é um momento da
sobrepõem foram reduzidas a termos mais descritivos. experiência que, sendo expresso explícita ou implici-
Por exemplo, expressões como “sinto-me trinta quilos tamente em uma maioria significativa de explicações
mais leve” e “tirei um peso dos ombros”2 foram reduzi- por uma amostra aleatória de sujeitos, também é com-
das a “sentimento de alívio”. patível com aquelas descrições que não o expressam.
5. Identificação provisória dos constituintes descri- Ao final, nove constituintes foram identificados como
tivos. Todas as expressões do passo anterior considera- sendo ao mesmo tempo necessários e suficientes para
das representantes diretas ou indiretas de um momento a experiência de “realmente se sentir compreendido”;
2 Respectivamente, “I feel a hundred pounds less heavy” e “a estes componentes são mostrados na Tabela 1.
load is off my chest”, no original (Nota do tradutor).

Tabela 1
Constituintes da experiência de “realmente se sentir compreendido” tal como identiicados ao inal, e porcentagem de 365
sujeitos que expressou cada constituinte, explícita ou implicitamente.

Te x t o s C l á s s i c o s

261 Phenomenological Studies - Revista da Abordagem Gestáltica - XXIV(2): 260-264, mai-ago, 2018
Análise Fenomenal: Exemplificada por um Estudo da Experiência de “Realmente se Sentir Compreendido”

A descrição sintética da experiência de ser o que algo significa para o sujeito: O sujeito per-
realmente compreendido, contendo esses consti- cebe que a pessoa que compreende experiencia
tuintes, é apresentada abaixo, seguida por uma jus- os eventos, situações e comportamentos que
tificativa e por uma explicação para cada frase da afetam o sujeito da maneira como lhe afetam, e
descrição. não como afetaria a outros.
A experiência de | “realmente se sentir com-
preendido” | é uma Gestalt perceptual-emocional: e o aceita: Até mesmo quando compartilha de
| Um sujeito, percebendo | que uma pessoa | co- experiências do sujeito que a pessoa que com-
-experiencia em conjunto| o que algo significa para preende não aceita pessoalmente, ela manifesta
o sujeito | e o aceita, | sente, inicialmente, alívio exclusivamente e consistentemente interesse
da solidão experiencial, | e, gradualmente, uma co- genuíno, preocupação, e confiança básica com
munhão experiencial segura | com aquela pessoa | relação ao sujeito, tenha o sujeito intenção ou
e com aquilo que o sujeito percebe que essa pessoa não de mudar suas próprias visões, sentimen-
representa. tos e comportamento.

A experiência de: O termo “experiência” é pre- sente, inicialmente, alívio da solidão experien-
ferido ao termo “sentimento” porque os dados cial: O sentimento inicial de alívio é o senti-
mostram que esse fenômeno, comumente deno- mento prazeroso que ocorre quando a solidão
minado sentimento, contém também momen- experiencial, uma Gestalt perceptual-emocio-
tos perceptuais. nal desagradável, está diminuindo para um
grau em que uma compreensão verdadeira é
realmente: o advérbio “realmente”, adicionado experienciada. O adjetivo “experiencial” espe-
ao “se sentir compreendido”, enfatiza a distin- cifica que não se trata principalmente de uma
ção entre compreensão objetiva e subjetiva. solidão física, mas de estar-sozinho em certas
Esta última inclui o elemento de “o que isso sig- experiências internas.
nifica para mim”, e o envolvimento emocional
do sujeito. e, gradualmente, uma comunhão experiencial
segura: Este constituinte expressa que o sujei-
se sentir compreendido: esta expressão popular to gradualmente experiencia que o self está na
é mantida devido ao seu uso pela maioria das condição aliviada e prazerosa de compartilhar
pessoas quando expressa esta experiência es- sua experiência com a pessoa que compreen-
pontaneamente. de. “Segura” enfatiza que o sujeito não se sen-
te ameaçado pela experiência de compartilhar
é uma Gestalt perceptual-emocional: os dados algo seu.
nos compelem a distinguir entre percepções e
sentimentos (emoções), sendo as percepções di- com aquela pessoa: A relação pessoal profunda
recionam-se predominantemente ao objeto, e os entre o sujeito e a pessoa que compreende não
sentimentos ao sujeito. Mas percepções e emo- é prevalente apenas no campo perceptual, mas
ções estão entrelaçadas na experiência; o termo também, e de uma maneira mais fundamental,
“Gestalt” implica que a distinção que fazemos no campo emocional. Assim, nossa descrição
entre momentos perceptuais e emocionais não sintética não apenas inicia, mas também encer-
corresponde a uma separação na realidade. ra, com uma referência a essa relação pessoa-a-
-pessoa.
um sujeito, percebendo: O momento perceptual
é mencionado primeiro devido a sua priorida- e com aquilo que o sujeito percebe que essa
de nas explicações obtidas. O sentimento de pessoa representa: Quando a pessoa que com-
realmente se sentir compreendido pressupõe a preende é capaz de tipificar para o sujeito um
percepção de uma compreensão tal como evi- certo segmento da humanidade, ou talvez todos
denciada por vários sinais comportamentais de os seres humanos ou todos os seres, isto é, hu-
compreensão. manidade e natureza, ou a fonte onipresente de
todo o ser (Deus), então o sujeito experiencia
que uma pessoa: O sujeito percebe que uma uma comunhão com todos aqueles seres que
“pessoa”, um ser humano próximo, o com- para ele são exemplificados pela pessoa que
preende de uma forma pessoal. A pessoa que compreende, e o faz tanto mais quanto ele per-
compreende não é experienciada apenas como cebe que essa pessoa realmente representa es-
um superior, um professor, um adulto, e assim ses segmentos da humanidade.
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por diante, mas como sendo-uma-pessoa.

co-experiencia: A pessoa que compreende com- Comparação com outras abordagens


partilha, em um nível emocional, as experiên-
cias do sujeito compreendido. O prefixo “co-” A análise fenomenal dará uma descrição de-
representa a consciência do sujeito de que a pes- finitiva de certas experiências que as pessoas em
soa que compreende ainda é uma outra pessoa. uma dada cultura ou subcultura possuem em co-
mum. O psicólogo experimental que trabalha com

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Adrian L. Van Kaam

o método fenomenal não deve, entretanto, parar mento, isolados do seu conteúdo experiencial. A
por aqui: ele pode, a partir da descrição definitiva análise geral que o fenomenólogo conduz da situa-
obtida pela análise, deduzir várias hipóteses testá- ção humana concreta tal como é dada, ela leva a
veis e submetê-las ao teste experimental (Ex, 1957; uma descrição qualitativa complexa das experiên-
Linschoten, 1955; MacLeod, 1951; Wellek, 1957). cias nessas situações, como vimos acima, a partir
Um exemplo de tal estudo é aquele conduzido por da qual outras hipóteses testáveis podem ser dedu-
Ex e Bruyn (1956) sobre a influência do set men- zidas. As psicologias mais antigas tendem a reduzir
tal na percepção de identidade e substituição. Eles a situação, tais como são dadas, a hipóteses testá-
encontraram que pessoas muito próximas e muito veis muito mais cedo. O resultado é que suas hipó-
íntimas tendem nos seus julgamentos, a mudar me- teses parecem bastante diferentes e – ao menos na
nos quanto ao julgamento independente do seu par- opinião do psicólogo fenomenal – possuem menos
ceiro, do que sujeitos que não têm uma relação tão relevância para a condição concreta da existência
íntima. A partir de um estudo como esse, fica claro humana.
que não há diferença alguma na técnica da expe- No que se refere à aplicação, os resultados da
rimentação em si, mesmo considerando sua mecâ- psicologia fenomenal parecem ser mais úteis para o
nica funcional-operacional-estatística entre a forma encontro das camadas mais profundas da existência
como é empregada na psicologia fenomenológica e humana comum, que é a preocupação do presente
em outras psicologias. estudo. Seus resultados são mais úteis para proble-
A respeito das operações da análise fenomenal mas de terapia e aconselhamento, interpretação de
em si, nota-se uma certa similaridade com a análise testes de personalidade, desenvolvimento da perso-
corriqueira de questões abertas em uma enquete de nalidade, criatividade, e relações humanas (Stras-
opinião. A diferença entre os métodos é essencial- ser, 1957; Van den Berg, 1955). Os resultados de
mente relativa ao objetivo. O analista fenomenal se psicologias acadêmicas tradicionais aparentam ser
restringe a uma questão, cuidadosamente dirigida à de maior utilidade na construção de testes de inte-
obtenção de descrições espontâneas da experiência ligência e aptidão, em problemas de percepção sen-
subjetiva e formulada de maneira que os sujeitos sorial, engenharia humana, aprendizagem mecâni-
sejam capazes de relacioná-la a uma variedade de ca, e psicologia industrial. Fica claro, então, que os
situações. O propósito é descobrir os momentos resultados de ambas as psicologias não se excluem
comuns a todas as experiências individuais de um mutuamente, mas complementam uma à outra.
mesmo tipo. O analista das pesquisas de opinião,
por outro lado, usa uma série de questões que são
formuladas de maneira a obter reações específicas Referências
de certas populações para definir objetos, pessoas
ou eventos. O seu propósito é compreender a expe-
riência humana não enquanto tal, mas como um in- Asch, S. E. (1953). Social psychology. New York: Pren-
dicador da maneira como as pessoas se relacionam tice-Hall
com certos objetos em um certo ambiente social.
Desta diferença principal surgem certas diferenças Ex, J. (1957). Situatie-Analyse en sociaal-psychologisch
na análise dos dados, as quais, no entanto, não se- Experiment. Bussum, Holland: Paul Brand.
rão apresentadas aqui.
No geral, as diferenças entre a abordagem fe- Ex, J., & Bruyn, G. L. de (1956). An experimental study
nomenológica e a de outras psicologias consiste não on the influence of the mental set on the percep-
tanto no método, mas nas premissas filosóficas, na tion of identity and substitution. Acta Psychol., 12,
natureza da hipótese, na aplicação dos resultados e 198-208.
nas áreas de interesse fundamental. Enquanto que
Koehler, W. (1938). The place of value in a world of facts.
o antigo introspeccionismo era baseado no raciona-
New York: Liveright.
lismo, e o behaviorismo é baseado no positivismo,
a psicologia fenomenal-existencial tem raízes em Linschoten, J. (1955). Das Experiment in der phaenom-
uma síntese original de certos princípios do positi- enologischen Psychologie. Unpublished. Bonn,
vismo e do racionalismo, e da fenomenologia e do 1955.
existencialismo. Um sistema sintético de construtos
inteligíveis, baseado em pressupostos filosóficos e MacLeod, R. B. (1947). The phenomenological analysis
testado gradualmente, ainda está em um estágio ini- in social psychology. Psychol. Rev., 54, 193-210.
cial na fenomenologia fenomenal-existencial. Ela
está se desenvolvendo de forma diferente de outros MacLeod, R. B. (1951). The place of phenomenological
sistemas na medida em que está preocupada com as analysis in social psychological theory. In J. H.
Te x t o s C l á s s i c o s

leis que governam a experiência humana. Rohrer, & M. Sherif (Eds.), Social psychology at the
Na formação de hipóteses, a psicologia feno- crossroads (pp. 215-241). New York: Harper.
menal tende a começar por uma análise geral da
Merleau-Ponty, M. (1942). La structure du comortement.
situação humana tal como é dada imediatamente;
Paris: Presses Univer. France.
ao passo que o introspeccionismo começou por “ob-
jetos” que supostamente estariam dentro da mente, Merleau-Ponty, M. (1945). La phenomenologie de la per-
isolados da situação existencial total; e o behavio- ception. Paris: Gallimard.
rismo começa por aspectos externos do comporta-

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Análise Fenomenal: Exemplificada por um Estudo da Experiência de “Realmente se Sentir Compreendido”

Strasser, S. (1957). Phenomenological trends in Europe-


an psychology. Phil. Phenomenol. Res., 18, 18-34.

Van den Berg, J. H. (1955). The phenomenological ap-


proach to psychology. Springield, Ill.: C. C. Thom-
as.

Wellek, A. (1957). The phenomenological and experi-


mental approach to psychology and characterolo-
gy. In H. P. David & H. von Bracken (Eds.), Perspec-
tives in personality theory (278-299). New York:
Basic Books.

Nota Biográfica

Adrian Van Kaam (1920, The Hague, Holanda – 2007,


Pittsburgh, USA). Sacerdote católico da Congregação
do Espírito Santo, mais conhecido como professor
universitário, psicólogo existencialista, escritor so-
bre espiritualidade formativa e fundador do Institute
of Formative Spirituality (Instituto de Espiritualidade
Formativa) da Duquesne University e da Epiphany
Association de Pittsburgh, Pensilvânia, Estados Uni-
dos. Em 1940, durante a ocupação nazista da Holan-
da, estava no Grande seminário de Gemert. Foi pre-
so em 1944, precisando sobreviver ao “inverno de
fome”, o que não o impediu de buscar refúgio para
judeus e outros evadidos. Ordenou-se em 1946, mes-
mo com sua saúde frágil. Chegou a lecionar aulas de
fé para jovens adultos, a pedido do então Monsenhor
Giovanni Montini, future Papa Paulo VI. Em 1954 é
enviado para a Duquesne University, para lecionar
Psicologia. Por não dominar o assunto, passa a viajar
pelos Estados Unidos, estudando com Carl Rogers e
Erik Erikson. Obtém seu doutoramento em Filosofia
na Case Western Reserve University. Faleceu em 17
de novembro de 2007, no lar das Pequenas Irmãs dos
Pobres, Pittsburgh, e foi enterrado no Cemitério Rai-
nha do Céu, no município de Peters, na Pensilvânia.
Publicou mais de trinta livros e grande volume de
artigos, embora seja mais conhecido pelo artigo aqui
publicado, considerado uma das primeiras investiga-
ções empíricas de cunho fenomenológico.
Tradução: Alexandre Nobre e William B. Gomes
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Recebido em 25.07.2017
Aceito em 30.11.2017
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