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CAPA

Apoio:
ANPTECRE

ANAIS DO CONGRESSO DA ANPTECRE


IX Congresso da ANPTECRE
A Religiao na America Latina e Caribe: conceitos, relaçoes e perspectivas

PUC-Campinas, 18 a 21 de setembro de 2023


Campinas, Sao Paulo, Brasil

Comunicaçoes
Sessoes Tematicas (STs)

Ediçao Digital

Campinas
2023
ANAIS DO CONGRESSO DA ANPTECRE

ISSN: 2175-9685

IX Congresso da Anptecre / 2023


Tema: A religiao na America Latina e Caribe: conceitos, relaçoes e perspectivas
Local: PUC-Campinas
Campinas, Sao Paulo, Brasil
ANPTECRE – Associaçao Nacional de Pos-graduaçao e Pesquisa em Teologia e
Ciencias da Religiao
Programa de Pos-graduaçao em Ciencias da Religiao da PUC-Campinas

Os textos publicados sao de responsabilidade de cada autor, bem como a revisao


ortografica, gramatical e referenciaçao bibliografica. Cada autor tambem e
responsavel pelo direito do uso de imagens, graficos e tabelas.

Projeto Grafico e Diagramaçao:


Felipe de Queiroz Souto
Renato Kirchner

Capa: Tiago Lopes Parreiras


Arte do congresso: Sergio Ricciuto Conte
Contribuição: Arlindo José Vicente Junior

Equipe de gestão operacional e de atendimento:


Tiago Lopes Parreiras (Seth – Evento Dinâmico)
Vinícius Faria Pereira (Seth – PUC Minas)
Kathleen Vieira (Seth – PUC-PR)

Publicação eletrônica:
Campinas, 2023
CONSELHOS DA ANPTECRE

Conselho Diretor
Presidente: Prof. Dr. Glauco Barsalini
Vice-presidente: Profa. Dra. Fernanda Lemos
Secretária: Profa. Dra. Francilaide de Queiroz Ronsi

Conselho Científico
Prof. Dr. Frederico Pieper Pires
Prof. Dr. Clóvis Ecco
Prof. Dr. David Mesquiati de Oliveira
Prof. Dr. Marinilson Barbosa da Silva
Prof. Dr. Matthias Grenzer

Conselho Fiscal
Profa. Dra. Claudete Beise Ulrich
Profa. Dra. Ceci Maria Costa Baptista Mariani
Profa. Dra. Carolina Bezerra de Souza

Suplência do Conselho Fiscal


Profa. Dra. Suzana Ramos Coutinho
Prof. Dr. Vítor Chaves de Souza
COMISSÕES

Comissão Organizadora
Dra. Ana Rosa Cloclet da Silva (PUC-Campinas)
Dr. Breno Martins de Campos (PUC-Campinas)
Dra. Ceci Maria Costa Baptista Mariani (PUC-Campinas)
Dr. David Mesquiati de Oliveira (FUV)
Dr. Douglas Ferreira Barros (PUC-Campinas)
Dra. Fernanda Lemos (UFPB)
Dra. Francilaide de Queiroz Ronsi (PUC-Rio)
Dr. Jefferson Zeferino (PUC-Campinas)
Dr. Marcio Cappelli Aló Lopes (PUC-Campinas)
Dr. Marinilson Barbosa da Silva (UFPB)
Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (PUC-Campinas)
Dr. Paulo Sérgio Lopes Gonçalves (PUC-Campinas)
Dr. Renato Kirchner (PUC-Campinas)

Comissão Científica
Dr. Alex Villas Boas (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Dra. Angela Ales Bello (Pontifícia Università Lateranense)
Dr. David Mesquiati de Oliveira (Faculdade Unidas de Vitória)
Dr. Douglas Ferreira Barros (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Dra. Dilaine Sampaio (Universidade Federal da Paraíba)
Dra. Fernanda Henriques (Universidade de Évora)
Dr. Frederico Pieper Pires (Universidade Federal de Juiz de Fora)
Dr. Iuri Andréas Reblin (Escola Superior de Teologia)
Dr. Luis Carlos Susin (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)
Dr. Manoel Ribeiro de Moraes Júnior (Universidade Estadual do Pará)
Dra. Maria Clara Bingemer (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
Dr. Matthias Grenzer (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Dr. Miguel Gonzales (Universidad Católica del Chile)
Dr. Ney de Souza (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (Pontifícia Universidade Católica de
Campinas)
Dr. Paulo Sérgio Lopes Gonçalves (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Dr. Pedro Fernández Castelao (Universidad Pontifícia Comillas)
Dr. Rudolf Von Sinner (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Dr. Sinivaldo Silva Tavares (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia)

Comissão Editorial
Dr. Breno Martins de Campos (PUC-Campinas)
Dra. Ceci Maria Costa Baptista Mariani (PUC-Campinas)
Dr. Douglas Ferreira Barros (PUC-Campinas)
Me. Felipe de Queiroz Souto (UFJF)
Dr. Luís Gabriel Provinciatto (PUC-Campinas)
Dr. Paulo Sérgio Lopes Gonçalves (PUC-Campinas)
Dr. Renato Kirchner (PUC-Campinas)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 16

ST 1 – RELIGIÃO E MÚSICA ............................................................................................... 21

“Ave Maria no morro” – rejeições, aderências e sentido religioso em uma


canção popular ..................................................................................................................... 23
Antonio Passos De Souza

Mudanças na música gospel brasileira desde a década de 80 até hoje e suas


inspirações estrangeiras................................................................................................... 29
Caroline Julie da Rosa Cougo

A religião e religiosidade na música de Milton Nascimento: experiências


sonoras e oceânicas ............................................................................................................ 37
Silvério Leal Pessoa e Glaucio José Couri Machado

Variações metodológicas da abordagem da música como religião: quadro


geral e exemplos do gospel no brasil ........................................................................... 44
Waldney de Souza Rodrigues Costa

ST 2 – ECOLOGIA INTEGRAL: A TEOLOGIA CRISTÃ EM DIÁLOGO COM OUTROS


SABERES .................................................................................................................................. 50

Ética intercultural latino-americana: pressupostos para uma educação


escolar. .................................................................................................................................... 52
Alexandre da Silva

Quanto menos, tanto mais: há na Laudato Si’ uma proposta de decrescimento?


.................................................................................................................................................... 61
Chrystiano Gomes Ferraz

Ecologia e pedagogia decolonial: itinerários pedagógicos para uma cidadania


ecológica e ética ................................................................................................................... 66
Clélia Peretti

Pastoral da Ecologia Integral, crise ecológica no capitulo III da Laudato Si’ e o


projeto plástico zero .......................................................................................................... 75
Fabio Augusto Welter

Busca de perspectiva para falar sobre sexualidade na igreja .............................. 84


Kathleen Vieira
Como o itinerário catecumenal pode ajudar a superar a crise ambiental? .... 92
Kedma Aparecida Alves Soares

Considerações sobre Mestre Eckhart e Baruch Spinoza: desprendimento e


causalidade de si em vista da ecoteologia .................................................................. 97
Maria Teresa De Freitas Cardoso

O ser humano como sujeito da própria formação no pensamento de Edith Stein


................................................................................................................................................. 105
Valdirlei Augusto Chiquito

ST 3 – FILOSOFIA DA RELIGIÃO ................................................................................... 112


Contribuições filosóficas dos estudos nietzschianos para a Ciências da Religião
................................................................................................................................................. 114
Ana Carolina Ferreira Sales

O desaparecimento dos rituais e Igreja Católica: fenomenologia da dor a partir


de Byung-Chul Han ........................................................................................................... 119
Arlindo José Vicente Junior

Sigmund Freud e a questão das cosmovisões científica e religiosa ................ 126


Bruno Pinto De Albuquerque

“Amar a Deus por nada”: fé e sofrimento no mito de Jó segundo Kierkegaard e


Ricœur .................................................................................................................................. 132
Carlos Eduardo Cavalcanti Alves

A crítica de Vattimo à bioética católica..................................................................... 140


Felipe de Queiroz Souto

a crítica de kierkgaard ao panteísmo de hegel: a fé em deus ........................... 145


James Vasconcellos Mesquita

A manifestação da idiossincrasia no fenômeno religioso e da fé-razão na pós-


modernidade...................................................................................................................... 151
Lucas Pereira Da Silva Freitas

A articulação entre fenomenologia e significância ética na formação da ideia


de religião em Emmanuel Levinas.............................................................................. 161
Luiz Fernando Pires Dias

Os deuses, o poeta e a natureza: aspectos do sagrado em Heidegger, leitor de


Hölderlin.............................................................................................................................. 168
Luiz Gabriel Provinciatto
A noção autoimunitária de religião no pensamento de Jacques Derrida: uma
análise do texto ................................................................................................................. 177
Manoel Carlos Ucha De Oliveira

O conceito de Deus: uma perspectiva da escola ashʿarita .................................. 184


Mohammad Makdod

A transposição platônica da psychagōgia no Fedro ............................................. 202


Pedro Mauricio Garcia Dotto

No túmulo de Lázaro: perspectivas existenciais sobre a morte e a ressurreição


na filosofia de Kierkegaard. .......................................................................................... 209
Presley Henrique Martins

A abordagem da filosofia intercultural e o caso específico da filosofia andina


................................................................................................................................................. 216
Renato Kirchner

Falsafa: uma visão geral da filosofia muçulmana ................................................. 226


Tarek Chaher Kalaoun

ST 4 – CAPITALISMO COMO RELIGIÃO ...................................................................... 233

Benjamin, cristianismo e capitalismo parasitário................................................ 235


Alberto Da Silva Moreira

“Marxismo quente” e teologia na crítica do “capitalismo como religião”. ... 248


Allan Da Silva Coelho

A influência do reencantamento pelo consumo no comportamento religioso


contemporâneo ................................................................................................................. 254
Amália Fonte Basso

Teoria mimética, desejo, capitalismo e religião .................................................... 262


Edevilson de Godoy

Imunidade tributária aos templos de qualquer culto, liberdade religiosa e


mercado religioso no brasil .......................................................................................... 271
Flávia Ribeiro Amaro

“Igrejas de parede preta”: a superestrutura evangélica do neoliberalismo?


................................................................................................................................................. 277
Francisca Jaquelini De Souza Viração
Solidariedade e educação: em busca de uma sociedade onde caibam todos
................................................................................................................................................. 283
Gefferson Silva Da Silveira

“Vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”: o discipulado como pobreza em
Dietrich Bonhoeffer e o jovem rico ............................................................................ 289
Idail Dos Santos Costa

Idolatria ao mercado e a consequente imagem falsa de ser humano enquanto


“capital humano” .............................................................................................................. 297
Júlio Cezar Nascimento Morais

O capitalismo como religião e a crise ambiental ................................................... 305


Mariana Luzia Oliveira Lima

O conceito de idolatria no pensamento do missionário John A. Mackay ...... 312


Welington De Freitas Gomes

Ética econômica no pensamento teológico do reformador protestante Martim


Lutero ................................................................................................................................... 319
Wilhelm Wachholz

ST 5 – ÉTICA TEOLÓGICA E ANTROPOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS ................ 325

Intolerancia religiosa e as consequências na harmonia social ........................ 327


Ana Paula Mota Ribeiro Tavares

Teologia, ética e consciência. Um diálogo educativo a partir de Tomás de


Aquino e Paulo Freire ..................................................................................................... 333
André Luiz Boccato De Almeida

Um panorama da justiça social, dos profetas ao sermão do monte em Mateus


................................................................................................................................................. 340
Cláudio Araújo Machado

Juventudes, igreja e formação da consciência: uma análise teológica sobre os


desafios atuais ................................................................................................................... 345
Everton Brunaikovics Georgetti

A ética personalista e conjugal na obra amor e responsabilidade de Karol


Wojtyla ................................................................................................................................. 353
Jeronimo Lauricio De Souza Oliveira
Ética religiosa versus ética evangélica: uma análise da práxis de Jesus à luz de
José Maria Castillo ............................................................................................................ 361
Karolayne Maria Vieira Camargo de Moraes

A ética em Gálatas 3,28 “não há homem nem mulher” pelo pensamento de


Elisabeth Schüssler Fiorenza ....................................................................................... 369
Patricia Carneiro De Paula
Da ética que mobiliza o desejo a escuta psicanalítica que tensiona o mal-estar
................................................................................................................................................. 375
Rita de Cassia Mendes Alvares

Regimes alimentares e sindemias – um desafio para a ética cristã ................ 383


Valério Guilherme Schaper

Elementos de antropologia no magistério do Papa Francisco: fé, amor e


verdade ................................................................................................................................ 392
Vilk Junio Araújo de Lima

ST 6 – INTERFACES E DISCURSOS NO (CON)TEXTO DA COSMOVISÃO, DIREITOS


HUMANOS, FORMAÇÃO E ECOLOGIA .......................................................................... 399

Uma interface entre o pensamento pós-moderno e a cosmovisão cristã ..... 401


Franklin Wylliam Bittencourt Melo

Pressupostos cosmovisionais como base do posicionamento humano diante


da questão “quem eu sou” ............................................................................................. 407
Gleyds Silva Domingues

A palavra-corpo-floresta na etnografia sensível de Eliane Brum ................... 415


Helton Thyers Melo Oliveira

Comunidades quilombolas no sertão do São Francisco: turismo religioso,


identidade e patrimônio ................................................................................................ 422
Thaís Chianca Bessa Ribeiro do Valle e Elidomar da Silva Alcoforado

ST 7 – EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO ............................................... 431

Explorando símbolos religiosos: desenvolvimento de uma abordagem


geertziana para análise de textos religiosos antigos ........................................... 433
André Valva e Clovis Ecco

Quando o laico se torna dogmático: a necessidade de outra epistemologias


para o Ensino Religioso .................................................................................................. 440
Eduardo Sales De Lima
Reduzindo fronteiras: um estudo sobre a divulgação científica em Ciência da
Religião ................................................................................................................................ 448
Jandher Custódio Gomes

As teorias concorrentes da origem da religião de Tylor e de Durkheim: uma


análise bourdieuana ........................................................................................................ 455
Luís Jorge Lira Neto

Epistemologia da Ciência da Religião: uma reflexão sobre a noção de


disciplinaridade ................................................................................................................ 465
Tatiane Aparecida De Almeida

ST 8 – NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS E ESPIRITUALIDADES LAICAS ..... 472

Pessoas sem religão com crença: a descontinuidade na transmissão da


tradição e a recomposição da memória religiosa ................................................. 474
Claudia Danielle De Andrade Ritz

Religião e humor na nova era: um estudo de caso da página humor new age
................................................................................................................................................. 481
Fábio Leandro Stern

O rock e a espiritualidade não religiosa na socialização dos/as roqueiros/as


sem religião ........................................................................................................................ 488
Flávio Lages Rodrigues

Espiritualidade nas organizações: contribuições para os estudos sobre


espiritualidade não religiosa ....................................................................................... 496
Jonathan Félix De Souza

Hábitos de leitura e estratégias de contato de sannyasins brasileiros com o


legado oshiano................................................................................................................... 503
Kevin Willian Kossar Furtado

Religião vivida e o estudo de pessoas sem religião com crença: uma proposta
teórico-metodológica ...................................................................................................... 510
Leandro Evangelista Silva Castro

O meme religioso de Dawkins pela ótica da memória de Maurice Halbwachs


................................................................................................................................................. 516
Marcelo Ferreira Cardoso

“Eu sou a grande mãe universal”: reescrevendo faces da literatura feminina à


luz das novas concepções culturais e religiosas de Cora Coralina .................. 525
Marta Bonach Gomes e Clovis Ecco
Uma proposta de mudança para igreja evangélica atual em face ao
crescimento dos desigrejados...................................................................................... 537
Messias José Dos Santos

Ateísmo hermenêutico: apontamentos desde pesquisa realizada com


Programas de Pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil .................... 544
Omar Lucas Perrout Fortes de Sales e Clovis Ecco

América Latina: novo berço espiritual do mundo na nova era de aquário .. 552
Pamela Siegel

Aspectos da espiritualidade no Eneagrama ............................................................ 560


Paulo Sérgio de Souza

Novos ares do espiritismo: do moralismo xavieriano ao individualismo


novaerista ........................................................................................................................... 567
Silas Guerriero

Disciplina epistemologia axiológica de Maria Corbi e a prática cinéfila em um


grupo focal – uma análise .............................................................................................. 575
Thais Fernandes do Amaral

ST 9 – MÍSTICA E ESPIRITUALIDADES ....................................................................... 582

A carência do mito no século XX e seu impacto na construção da identidade


cultural no Ocidente ........................................................................................................ 584
Ana Beatriz de Andrade Borba Delgado

Mística marial na Irmandade da Boa Morte de Cachoeira: Maria, ícone humano


do mistério .......................................................................................................................... 592
Anderson Moura Amorim

Neurociência da religião e mística: uma verdade última? ................................. 598


Brasil Fernandes de Barros

A graça continua: o riso como crítica da religião em “Deus segundo Laerte”


................................................................................................................................................. 605
Breno Martins Campos e Ceci Maria Costa Baptista Mariani

Santo Agostinho: a deficiência ontológica do ser como pressuposto da busca


por Deus ............................................................................................................................... 612
Caio Henrique Esponton
Hermenêutica fundamentalista e hermenêutica mística: um estudo sobre a
leitura literalista de Wahhab e Ibn Arabi ................................................................ 620
Carlos Frederico Barboza de Souza

Humana como pressuposto da mensagem cristã .................................................. 626


Drance Elias da Silva

A regra dos clérigos: mística educativa de Santo Ubaldo de Gúbbio e Padre


Cícero de Juazeiro............................................................................................................. 633
Jonh Anderson Rodrigues de Morais

Experiências de liberdade: Johann Baptist Metz e a autoridade dos sofredores


na mística de Edith Stein ................................................................................................ 642
Jose Diogenes Dias Goncalves e Sérgio Ovídio Wermellinger Goulart

Mística amazônica: estudo de uma experiência yanomami .............................. 650


Lúcia Pedrosa-Pádua

A recepção feminina da espiritualidade inaciana por Cândida Maria de Jesus e


sua atuação educativa ..................................................................................................... 656
Patricia Helena Coimbra

ST 10 – O ENCONTRO DAS RELIGIÕES NO ESPAÇO PÚBLICO LATINO-


AMERICANO E CARIBENHO ........................................................................................... 664

A possibilidade de encontro do catolicismo com outras religiões segundo os


princípios polares de Francisco .................................................................................. 666
André Luiz Rossi

Convergências e divergências do pensamento de Raimundo Panikkar e José


Comblin sobre o pluralismo e o diálogo interreligioso ...................................... 674
Antonio Genivaldo Cordeiro de Oliveira

Papa Francisco e o consumismo, um desafio para a evangelização ............... 682


Emerson de Almeida Amaral

A comunicação eclesial no caminho do CELAM: de Medellín a Aparecida ... 689


José Heitor Vasconcelos de Menezes

Protestantismo e revolução: simetrias semânticas na imprensa ultramontana


– Brasil, segunda metade dos oitocentos ................................................................. 697
Leonardo Henrique de Souza Silva
As pinturas murais da catedral de Jacarezinho no contexto da história
sociocultural e eclesiástica dos anos 1950.............................................................. 705
Maurício de Aquino e Victor Augusto Costa

A diversidade relligiosa na perspectiva filosófica de Xavier Zubiri ............... 712


Paulo Sérgio Lopes Gonçalves

A ordem do carmo no Brasil: uma presença de evangelização ........................ 720


Renê Augusto Vilela Da Silva

Laicidade em Charles Taylor: uma análise sobre a valorização e promoção da


diversidade religiosa....................................................................................................... 727
Rossano Weslley De Luna Silva

Rituais das folias de reis: uma tradição religiosa com suas narrativas de
milagres na contemporaneidade e suas práticas no espaço público ............. 734
Verônica Inaciola Costa Farias da Cruz

ST 11 – ESPIRITUALIDADE/RELIGIOSIDADE E SAÚDE: PERSPECTIVAS


INTERDISCIPLINARES E NOVOS CENÁRIOS ............................................................. 740

A espiritualidade saudável como caminho de redução do estresse laboral 742


Cristiano de Siqueira Mariella

O valor do cuidado espiritual em tempos de fragilidade da COVID-19...........755


Eva Gislane Barbosa

Espiritualidade e saúde – o cultivo da qualidade humana profunda em uma


paciente sem-religião ..................................................................................................... 762
Fabiana de Faria

Neuroteologia: como o uso de ibogaína no trato de dependentes químicos


pode aproximá-los de Deus .......................................................................................... 769
Hugo Leonardo Brandão

Bioética e antropologia teológica: diálogos a partir da perspectiva


antropológica de Lutero................................................................................................. 777
Itamar Marques da Silva e Waldir Souza

Inteligência espiritual: um estudo sob a ótica de psicólogas(os) .................... 784


Jorge Gomes de Oliveira Neto

Conspiritualidade: a convergência de espiritualidade e teorias da conspiração


no campo da saúde........................................................................................................... 791
Lorenzo Lago e Rosemary Francisca Neves Silva
Constelações familiares e saúde emocional: os discursos do embate entre
ciência e espiritualidade ................................................................................................ 798
Marcelo Leandro de Campos

Início de pesquisa: o adolescer na vida religiosa das famílias pastorais ..... 808
Mariana Pacheco Moraes Nascimento

A moral teônoma nos cuidados em saúde ............................................................... 815


Michel Eriton Quintas e Waldir Souza

Entre o divino e o narcisismo: reflexões sobre religião, amor e desafios


contemporâneos ................................................................................................................ 821
René Dentz

Teologia, espiritualidade e psicologia analítica: maior compreensão sobre a


espiritualidade visando auxiliar a alma humana......................................................829
Rosane Göerg Oriques

ST 12 – A INTERDISCIPLINARIDADE DA VIVÊNCIA E DISCURSO LITÚRGICO-


SACRAMENTAL .................................................................................................................. 837

A redescoberta da “história da salvação” como categoria fundamental dos atos


litúrgicos e práticos da igreja ....................................................................................... 839
Anderson Batista Monteiro

Linhas contemporâneas de reflexão litúrgico-sacramental ............................. 846


Washington Da Silva Paranhos
Apresentação

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APRESENTAÇÃO

Com alegria e satisfação apresento os Anais do IX Congresso da ANPTECRE,


intitulado “A religião na América Latina e Caribe: conceitos, relações e perspectivas”,
que se realizou no período de 19 a 21 de setembro de 2023, na Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (SP). Trata-se de um evento que remete ao
direito de associação, à epistemologia da religião e suas implicações relacionais e
perspectivas, ao espaço científico no Brasil e aos afetos desenvolvidos entre as
pessoas que participaram do evento e também para a constituição da “cultura do
encontro”.
O direito de Associação encontra-se respaldado na história do pensamento
filosófico-teológico e possibilita que as pessoas de áreas específicas e similares ou
profundamente diferentes visualizem formas de conjugação epistemológica de seus
respectivos saberes. Além disso, esse direito possibilita articulação política tendo
em vista o bem comum não apenas de uma área científica específica, mas da ciência
em geral, que, por sua vez, possui um estatuto ético que a coloca a serviço da
sociedade, pensada utopicamente como fraterna, justa, imbuída de uma cultura de
paz e inserida no clima intelectual e prático de uma “ecologia integral”. Por isso, a
ANPTECRE é uma associação de Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu que
produzem conhecimento científico para que seus respectivos produtos e suas ações
de extensão do conhecimento repercutam social e ecologicamente.
A epistemologia da religião se concentra na religião como objeto de pesquisa,
propiciando um conjunto de “racionalidades abertas”, com sua respectiva perspectiva
e que produzem diversidade conceitual referente à religião, tanto em Ciências da
Religião quanto em Teologia. Resulta disso a pertinência de colocarmos a pergunta, que
por mais óbvia que possa parecer sua resposta, continua sendo instigante: o que é
religião? Ao debruçarmo-nos sobre esta pergunta, nós assumimos o processo de
(en)caminharmo-nos num caminho metódico de rigor científico de sistematização e
promoção de um diálogo epistêmico entre as ciências e um diálogo social entre as
instâncias da ciência, da sociedade e das religiões. Resulta, então, uma epistemologia
dialógica, construída em redes formadas por quem se põe a pensar, deixando-se
iluminar pela luz da Sapiência, que possibilita superar, tanto na ciência quanto na

17
religião, o fundamentalismo, o sectarismo, o absolutismo e toda forma inibidora de
abertura e de emergência do novum.
Ao levar o direito de associação e uma epistemologia da religião que torna a
Teologia e as Ciências da Religião saberes científicos de “racionalidade aberta”, a
ANPTECRE torna-se um espaço em que docentes e discentes dos Programas
Associados se encontram para produzir ciência com repercussão social e ecológica.
Por isso, surgiram os grupos de trabalho que se configuraram historicamente com
docentes e discentes, de diferentes instituições, para construírem uma tradição de
pesquisa e debate sobre o(s) seu(s) respectivo(s) tema(s), tendo a religião como
objeto de pesquisa. A força da tradição dos grupos de trabalho possibilitou ampliar
similares espaços de investigação e debate, na forma de sessões temáticas
emergentes na precisão do tema específico do IX Congresso ou do espírito da
ANPTECRE. Tanto os grupos de trabalho quanto as sessões temáticas, constituídos
com regras epistemológicas e político-institucionais, intensificam a vivacidade dos
Programas de Pós-graduação Stricto Sensu em Teologia e Ciências da Religião e da
própria área 44 da CAPES, Ciências da Religião e Teologia, que, com o IX Congresso
em todas as suas formulações e com a contribuição das Associações relacionadas à
área, amadurecem no corpus científico brasileiro e internacional.
O afeto entre as pessoas é propiciado à medida que se constrói uma “cultura
do encontro”, em que as alteridades pessoais se sentem provocadas ao encontro,
para que busquem efetivar a produção científica com sua respectiva repercussão
social, visando que a ciência contribua com o bem comum. No encontro, os docentes
e discentes abrem-se não apenas à instigação, à pesquisa e ao debate, mas também
ao desenvolvimento de laços de solidariedade e de amizade. São os afetos que
propiciam o ânimo ao trabalho científico, que, muitas vezes encontra dificuldades
institucionais e sociais, impulsionam à busca de projetos comuns, de
enriquecimento mútuo dos Programas e de formação de redes de pesquisadores,
para que a ciência, tanto em Ciências da Religião quanto em Teologia, aponte a
religião, com toda sua diversidade conceitual e com seu leque de relações, como a
experiência do encontro realizado na vida dos seres humanos, em seu convívio e
situados no mundo, imbuídos de caráter ecológico, em que todos se inter-
relacionam e se interconectam para a constituição de uma rede ecológica,
denotativa da elevação da vida em todas as suas dimensões.

18
Por isso, o IX Congresso tornou-se um evento, que após o tempo de pandemia
– que impunha a virtualidade tecnológica aos eventos científicos – em que as pessoas
puderam se encontrar fisicamente e, consequentemente, além da ciência,
desenvolver momentos afetivos tão próprio da amizade e do companheirismo
acadêmico. Além disso, os colegas que se encontravam virtualmente tiveram ampla
participação tanto nas Conferências e Palestras, quanto em seu respectivo Grupo de
Trabalho ou Sessão Temática.
Cumprimento e agradeço a todos(as) que apresentaram oralmente sua
respectiva comunicação e, principalmente, aos 294 autores e/ou coautores que
submeteram seus textos para essa publicação, totalizando 274 trabalhos em GTs e
STs, engrandecendo ainda mais a ANPTECRE, em sua cientificidade e contribuição
acadêmica aos Programas de Pós-graduação e à própria área 44 da CAPES, Ciências
da Religião e Teologia, evidenciando que a ciência pode repercutir beneficamente
para elevar a dignidade ecológica da vida.
Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de Campinas, pelo apoio de sua
Administração Superior e pela presença marcante, solidária e generosa de
seus(suas) funcionários(as), à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível
Superior (CAPES) pelo apoio financeiro, ao Conselho Diretor, ao Conselho Fiscal e
ao Conselho Científico da ANPTECRE, pela confiança na Comissão Organizadora, a
empresa Seth pela presença permanente na totalidade efetiva deste evento, aos
docentes e discentes do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciências da
Religião da PUC-Campinas pela constante presença e apoio.
Em especial, agradeço ao professor Dr. Renato Kirchner e ao doutorando Felipe
de Queiroz Souto, pelo cuidado especial na organização destes Anais, aos docentes Dr.
Douglas Ferreira Barros, Dra. Ceci Maria Costa Baptista Mariani, Dr. Breno Martins
Campos, Dr. Luís Gabriel Provinciatto, que desde o início se esforçaram paro o êxito
desta produção, levando a cabo a presente edição com amor e sabedoria.
Enfim, mesmo que se tenha conjugado inteligência e afeto nesta simples
apresentação, a melhor atitude é de Laudatio por mais um Congresso, realizado no
encontro, nas apresentações orais e nestes Anais, pelo envolvimento de tantas
pessoas, trabalho coletivo, confiança, alegria e esperança.

Dr. Paulo Sérgio Lopes Gonçalves


Comissão Organizadora

19
ARTE STs Temáticas

20
ARTE ST 1

ST 1 – Religião e Música

21
Arnaldo Erico Huff Jr. (UFJF)
Carlos Eduardo Brandao Calvani (UFS)
Daniel Rocha (PUC-MG)

Musica e religiao caminham juntas, intensamente, ainda que nem sempre de modo
pacífico. Mesmo assim, nao sao abundantes os estudos dedicados ao tema. Na
Ciencia da Religiao brasileira, quando aparecem, demonstram o mais das vezes
privilegiar a letra em detrimento do que e especificamente musical. Deve-se
considerar, ademais, que as relaçoes entre religiao e musica excedem o limite
institucional das religioes e alcançam a cultura como um todo, política, economia,
mercado, etc.; envolvendo ainda indivíduos e grupos em suas experiencias mais
existenciais, quando atravessadas pela poesia, mas tambem pelo som e pela dança.
Nesta Sessao Tematica, serao bem-vindos, portanto, trabalhos que enfrentem a
questao em sua complexidade e amplitude. As disciplinas envolvidas compreendem,
para alem da Ciencia da Religiao, a musicologia, a etnomusicologia, a estetica, a
poetica, os estudos de liturgia, a teologia e a filosofia da musica, a sociologia, entre
outras, em um necessario esforço interdisciplinar no que tange a teoria e
metodologia. As tematicas das comunicaçoes, por sua vez, podem envolver desde
estudos analíticos sobre tradiçoes determinadas ou fenomenos isolados (como por
exemplo, o lugar da musica em rituais judaicos, cristaos, islamicos, hindus, afro-
brasileiros, dos povos originarios, etc.), ate reflexoes de cunho sintetico, que
abarquem um olhar horizontal sobre religiao e musica enquanto fenomenos
humanos e interrelacionados.

22
“AVE MARIA NO MORRO” – REJEIÇÕES, ADERÊNCIAS E SENTIDO
RELIGIOSO EM UMA CANÇÃO POPULAR

Antonio Passos de Souza1

Resumo: A pesquisa fonografica, entendida como levantamento de dados referentes a


fonogramas musicais, envolvendo circunstancias que relacionem seus autores e interpretes
aos processos de composiçao, gravaçao(oes) e difusao, tem sido utilizada como
procedimento metodologico complementar nos estudos voltados para a presença de
sentidos religiosos em cançoes da musica popular brasileira. Tomando como ilustrativo um
exercício de interpretaçao compreensiva da cançao “Ave Maria no morro” (Herivelto
Martins, 1942), intenciona-se aqui destacar o aproveitamento das informaçoes levantadas
na pesquisa fonografica para o enriquecimento compreensivo da presença de sentido
religioso. Considerando rejeiçoes precoces vindas tanto de uma autoridade eclesiastica
quanto de um olhar focado na potencialidade comercial do produto musical, em
contraposiçao ao longevo prestígio alcançado pela cançao, buscou-se nessa discrepancia
alguma contribuiçao compreensiva do sentido religioso. A abordagem demonstrou a
coexistencia entre um tema devocional explícito e simbolismos religiosos profundos,
entremeada na sonoridade e oferecida a sensibilidade intuitiva do publico ouvinte. Desse
modo, insinua-se uma correlaçao entre o explicitamente tematico e as rejeiçoes iniciais, bem
como uma participaçao dos sentidos substanciais como potencializadores de aderencia ou
prestígio alcançado pela cançao. Restou demonstrada ainda a compreensao de que, embora
trate explicitamente de uma louvaçao mariana (de inspiraçao crista catolica), a cançao
dialoga com simbolismos de profundidade arquetípica religiosa, que extrapolam os limites
historicos do cristianismo.
Palavras-chave: Canção Popular Brasileira; Sentido Religioso; Sonoridade; Linguagem
Simbólica.

Introdução
No contexto da pesquisa que atualmente desenvolvo, vinculada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe –
PPGCR/UFS e inserida na linhagem de estudos que correlaciona música popular
brasileira e sentido religioso, uma questão ligada ao objeto de pesquisa foi levantada
em diálogos acadêmicos. As abordagens realizadas nesse campo temático
genericamente referem-se ao formato musical canção como a fonte estudada,
entretanto, verifica-se que a publicidade das canções pertencentes ao acervo da

1 Graduação em História (Licenciatura) pela Universidade Federal de Sergipe – UFS (1992). Mestrado
em andamento em Ciências da Religião no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Federal de Sergipe – PPGCR/UFS. E-mail: mensagem.passos@gmail.com.

23
chamada música popular brasileira, como fenômeno configurado no decorrer do
século XX (TATIT, 2004), é dada quase inteiramente pela audição de fonogramas.
Olhando para as publicações de estudos relacionando sentido religioso e
música popular brasileira constata-se que outros suportes de registro musical são
utilizados nas análises de modo esparso, a exemplo de trechos de partituras ou cifras
que registram o elemento harmônico. As abordagens que reduzem o estudo a uma
análise apenas do texto que é cantado, concentram-se naquilo que se convencionou
chamar de letra (escrita) das canções. Porém, quando a intenção é abarcar a unidade
da canção – o melos e o logos ou a relação orgânica entre a sonoridade musical e as
palavras cantadas – assume destaque a percepção sensorial auditiva e a fonte
tipicamente abordada são as gravações fonográficas.
Muitas das canções da música popular brasileira (a maioria) estão gravadas
em apenas um fonograma ou em poucos (às vezes relançado/s). Mas, existem
também aquelas que recebem longas sequências de diversificadas interpretações
gravadas em muitos fonogramas. Para todas essas situaçoes torna-se importante a
delimitação de uma etapa de pesquisa ou procedimento metodológico específico,
voltado para o levantamento de informações sobre a história do(s) fonograma(s) e
identificado como aporte complementar nos estudos relacionando música popular
brasileira e sentido religioso – contribuição essa que já vem sendo denominada
pesquisa fonográfica. Buscando aprofundar essa questão, foi oferecido à apreciação,
na comunicação que originou o presente texto, um exercício interpretativo realizado
com a canção “Ave Maria no morro” (Herivelto Martins, 1942) e que fez uso de
informações colhidas na pesquisa fonográfica para o enriquecimento da
interpretação compreensiva do sentido religioso.

1. “Ave Maria no morro”: uma canção com muitos fonogramas


A canção “Ave Maria no morro” foi composta e teve seu primeiro lançamento
fonográfico no ano de 1942. Na década seguinte começou a ser regravada por
diferentes artistas não só no Brasil, alcançando uma intensificação dessas
regravações entre os anos 1990 e o início do século XXI.
Todas essas informações, que se mostraram importantes para a
interpretação da circulação de sentido religioso por meio da canção, foram
levantadas no procedimento definido como pesquisa fonográfica. Para ilustrar a

24
destacada repercussão alcançada no decorrer do tempo por essa composição de
Herivelto Martins, foi montado um quadro exemplificativo com 20 (vinte)
fonogramas contento a canção em interpretações musicais variadas, passando por
diversos estilos, lançadas entre os anos de 1942 e 2012. Na listagem estão
identificados os artistas e seus respectivos países de origem, o título do álbum (LP
em vinil) ou suporte similar no qual foi lançado o fonograma e o ano de lançamento:

Quadro 1 – Seleção de registros fonográficos da canção “Ave Maria no morro”


Artista(s) / Grupo País Título do álbum (ou similar) Ano

01 Trio de Ouro Brasil Ave Maria no Morro/Festa de Preto 1942

02 Nelson Gonçalves Brasil Ave Maria no Morro/So eu 1950

03 Helena de Lima Brasil Vale A Pena Ouvir… Helena 1958

04 Trio San Jose Espanha Ave Maria no Morro 1959

05 Wilson Simonal Brasil Mexico’70 1970

06 Eduardo Araujo Brasil Eduardo Araujo 1971

07 The Cats Holanda We Wish You A Merry Christmas 1975

08 Baby Consuelo Brasil Ora Pro Nobis 1991

09 Joao Gilberto Brasil Joao 1991

10 Pery Ribeiro e Chrystian e Ralf Brasil Pery 1991

11 Angela Maria e Cauby Peixoto Brasil Angela e Cauby ao Vivo 1992

12 Andrea Bocelli Italia Il Mare Calmo Della Sera 1994

13 Scorpions Alemanha Live Bites 1995

14 Celina Pereira Cabo Verde Harpejos e Gorgeios 1998

15 Monica Salmaso Brasil Voadeira 1999

16 Gal Costa Brasil Todas as coisas e eu 2003

17 Agnaldo Rayol Brasil Maria Maria Marias 2006

18 Selma Reis Brasil Sagrado 2007

19 Emílio Santiago Brasil Herivelto Martins – 100 Anos 2012

20 Zucchero Italia La Sesion Cubana2 2012


Fonte: Dados da pesquisa (SOUZA, 2022).

2 Essa interpretação do artista italiano Zucchero conta com a participação vocal do cantor, músico e
cancionista brasileiro Djavan.

25
2. Rejeição e reprovação iniciais sofridas pela canção
Em contraste com o prestígio alcançado nos primeiros setenta anos após o
seu primeiro lançamento (1942 a 2012), a pesquisa fonográfica levantou também
informações sobre uma rejeição à composição antes mesmo da sua conclusão e uma
forte reprovação sofrida logo após a estreia fonográfica.
O desprezo prematuro veio da parte do também cancionista Benedito
Lacerda, a quem Herivelto Martins ofereceu parceria, entretanto, a coautoria foi
rejeitada pois o pretendido parceiro considerou que o tema religioso não seria
atrativo comercialmente (ALBIN, 2022). O compositor não se intimidou com a
opinião desanimadora e, no mesmo ano, concluiu a canção e promoveu o
lançamento fonográfico na interpretação do Trio de Ouro, conjunto vocal do qual
participava ao lado de Nilo Chagas e Dalva de Oliveira.
Logo após o lançamento, o fonograma sofre duras críticas vindas de uma
autoridade católica, o Cardeal Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, que taxa a canção
como heresia e pede a sua proibição. Naquele mesmo ano, 1942, veio a falecer o
Cardeal Leme e a solicitação repressiva não prosperou (ALBIN, 2022).

3. Devoção explícita e simbolismos religiosos profundos


Do ponto de vista teórico a pesquisa partiu de uma articulação entre a
teologia da cultura (TILLICH, 2005) e estudos de simbologias religiosas
desenvolvidos no contexto de uma abordagem fenomenológica da religião (ELIADE,
1979). Aproximação teórica essa que favoreceu a observação de coexistência na
canção entre uma temática devocional (explícita) e simbolismos religiosos
profundos (implícitos).
Dos dois referenciais teóricos foi aproveitada a afirmação comum quanto à
presença de um preenchimento substancial de fundo religioso disseminado na
cultura (SOUZA, 2022). Estando essa orientação, norteadora da interpretação, bem
acolhida na distinção enfatizada na teologia da cultura e voltada para a apreciação
artística, entre superficialidade temática e substancialidade espiritual (CALVANI,
1998). Em “Ave Maria no morro”, além da explicitude religiosa devocional trazida
no tema, foi rastreada a presença substancial (implícita) de dois simbolismos
arquetípicos: o simbolismo de centro e o simbolismo de ascensão (ELIADE, 1979).

26
4. O explícito e o implícito, as rejeições e a aderência
As duas rejeições direcionadas à “Ave Maria no morro” foram prematuras:
uma desferida antes mesmo da conclusão da composição e a outra imediatamente
após o lançamento do primeiro fonograma. No caso do desdém vindo de Benedito
Lacerda há uma menção à explicitude do tema religioso como motivo que o levou a
desacreditar do potencial da canção, “pois era ‘música de igreja’ e não ia ‘dar
dinheiro’” (ALBIN, 2022). Aí evidenciada uma dificuldade de percepção, naquele
momento, quanto ao êxito comercial no uso de temas religiosos em canções
populares, que se mostra encorpado a partir das décadas seguintes.3 Quanto à
reprovação proferida pelo Cardeal Leme, a pesquisa não chegou a levantar uma
exposição de argumentos, entretanto, é razoável conjecturar que teve relação com a
apropriação artística do tema devoção mariana, afastada de orientação eclesiástica
e mergulhada no samba (uma sonoridade associada à cultura afro-brasileira).
Fato é que a canção passa a desfrutar de um incomum prestígio, configurado
nas muitas regravações e apenas o tema religioso explícito parece pouco para a
compreensão de tamanha aderência, em comparação com outras canções com tema
semelhante e repercussão bem mais restrita. Assim, insinua-se a presença profunda
de simbolismos religiosos, para além da superficialidade temática e transportados
na unidade orgânica da canção, como força dinamizadora do potencial atrativo que
toca o público ouvinte por via sensorial e intuitiva. Essa hipótese de trabalho
continua sendo explorada nos desdobramentos da pesquisa.

Considerações finais
Embora trate explicitamente de uma louvação mariana (portanto de
inspiração católica), a longevidade fonográfica e as interpretações da canção em
diversos estilos musicais insinuam que a sua força atrativa extrapola uma motivação
vinda apenas do tema. Nessa direção, procurou-se relacionar o prestígio alcançado
pela canção também com a presença implícita de simbologias de grande
profundidade religiosa, que extrapolam os limites históricos do cristianismo
(SOUZA, 2022).

3 Embora trate mais pontualmente da inserção da figura de Jesus Cristo na música popular brasileira,
um panorama da presença de temas religiosos nesse acervo musical, entre as décadas de 1930 e
1970, consta em Jesus Cristo na Música Popular Brasileira (MARASCHIN, 1974).

27
Para além da canção “Ave Maria no morro” a pesquisa em seu estágio atual
desenvolve o argumento da presença de sentidos religiosos, não necessariamente
explícitos, como um “algo a mais” (HUFF JÚNIOR, 2022, p. 38), enredado na
organicidade sonora e potencializador da atratividade das canções.

Referências
ALBIN, Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Verbete “Herivelto
de Oliveira Martins”. Rio de Janeiro: Instituto Cultural Cravo Albin, 2021. Disponível
em: <https://dicionariompb.com.br/artista/herivelto-martins/>. Acesso em: 07
abr. 2022.

CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. Sao Paulo/Sao Bernardo do Campo,


Loyola/UMESP, 1998.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Arcadia, 1979.

HUFF JUNIOR, Arnaldo Erico. A bossa nova como virada existencial: Chega de
saudade! Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 25, n. 2,
jul./dez. 2022, p. 37-58. Disponível em:
<https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/39461/25926>.
Acesso em: 14 out. 2023.

MARASCHIN, Jaci. Jesus Cristo na Musica Popular Brasileira. In Quem é Jesus Cristo
no Brasil? (ed. Jaci Maraschin). Sao Paulo: ASTE, 1974, p. 95-109.

SOUZA, A. P. “Ave Maria no morro” – religiosidade e nostalgia mítica na MPB. Revista


Eletrônica Correlatio, vol. 21, n. 1 – Junho de 2022, p. 107-129. Disponível em:
<https://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1036935>. Acesso em: 10 out. 2023.

TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Atelie Editorial, 2004.

TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 7 ed. Sao Leopoldo: Sinodal, 2005.

28
MUDANÇAS NA MÚSICA GOSPEL BRASILEIRA DESDE A DÉCADA DE
80 ATÉ HOJE E SUAS INSPIRAÇÕES ESTRANGEIRAS

Caroline Julie da Rosa Cougo1

Resumo: A influência estrangeira na América Latina e também no Brasil se faz presente


desde os tempos da colonização, e é constante a tentativa de nos afirmarmos como povo
com cultura própria, mesmo em tempos de globalização. Embora o cristianismo tenha sido
trazido para cá juntamente com a colonização, há características cristãs próprias no Brasil,
e também em sua música cristã. Até que ponto, porém, a música cristã brasileira tem sua
identidade própria? O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise da música
gospel no Brasil desde o final do século XX até a atualidade, verificando o número de
influências estrangeiras nas últimas décadas e verificando se há características próprias no
gospel aqui criado. A partir de CUSIC (2010), veremos as características estrangeiras, e, com
as considerações de Vicente (2008), características das músicas cristãs brasileiras serão
especificadas. Uma análise das músicas mais tocadas em rádios cristãs das últimas décadas
e em serviços de streaming atuais será feita, e será verificado se houve um crescimento de
músicas com características estrangeiras. Resultados preliminares demonstram que houve
uma maior inspiração em características norte-americanas mesmo no cenário cristão, e
busca-se compreender até que ponto isso é benéfico para nossa cultura e reafirmação
identitária, e como isso afeta a religiosidade do brasileiro.
Palavras-chave: música gospel; colonização; influência estrangeira na música gospel
brasileira; cultura musical cristã.

Introdução
A influência estrangeira no Brasil não é novidade; ocorre desde a
colonização. Mesmo o cristianismo, ao ser trazido para cá, não aconteceu sem uma
grande influência de culturas, tanto por parte dos portugueses como, séculos depois,
pelos missionários norte-americanos. A música litúrgica, que veio acompanhada da
colonização, também trazia suas influências. Surge, então, dessa situação, o seguinte
questionamento: Há uma identidade gospel brasileira? Se há, qual é esta? Mais
ainda, surgem outros questionamentos como: Não estaríamos apenas reproduzindo
influências estrangeiras em nossas músicas gospel?
O objeto de pesquisa aqui são as músicas gospel mais tocadas desde os anos
1980. Esta pesquisa se justifica pela necessidade de nos reconhecermos como povo
com identidade própria, mesmo com semelhanças e influências estrangeiras, e
mesmo no contexto cristão, que foi trazido até nós, pois podemos ter nossa própria

1Licenciada em Letras:Português/Inglês. Mestrado em andamento em Teologia na Escola Superior


de Teologia (EST). E-mail: caroline.cougo@gmail.com.

29
identidade a partir de situações e mesmo religiões estrangeiras. Portanto, em
relação ao estudo cultural brasileiro, “estudar cultura brasileira é empreitada de
muito fôlego. Confunde-se com definir a identidade nacional: detectar tudo o que
contribui para nossa diferenciação na sociedade universal, aprofundando a análise
dessa relação de alteridade” (VANNUCCHI, 1999, p. 37).
É relevante também sinalizar que há uma dualidade em análises culturais:
deve-se considerar as especificidades sem desconsiderar as influências, que
também são importantes. Não se deve, então, tratar todas as influências como
maléficas; todas as culturas são misturas de diferentes ideias, povos e costumes e,
portanto, são parte da riqueza de cada local. O Brasil é um país de etnias, culturas,
musicalidades e inspirações variadas, e esta é uma de suas maiores riquezas. A
música gospel brasileira não deixa a desejar: demonstra uma grande variedade de
ritmos, culturas e gêneros, como veremos a seguir nesta pesquisa.

1. Começando com definições e terminologias


Não é à toa que há nomenclatura para todos os movimentos possíveis, pois
“dar nome é criar identidade, estabelecer uma marca” (CUNHA, 2004, p. 16). Há
diversos termos que são usados para identificar os cristãos, usados tanto pelos
próprios cristãos quanto por pessoas que não fazem parte do grupo. Os mais
conhecidos são:
a) protestante
Esse termo passou a ser popularizado desde o início da Reforma
Protestante, justamente pela coragem de Lutero de protestar contra o
sistema papal da época, que detinha as normas para o cristianismo que
criam ser o correto. Ir contra o sistema eclesiástico vigente da época era
quase como um protesto, de fato. Foi a partir de então que surgiu tal
nomenclatura.
b) crente em nosso Senhor Jesus Cristo
Os missionários que vieram ao Brasil no século XIX queriam se
diferenciar de quem não tinha como central a crença em Jesus. Para
tanto, eles se autodenominaram “crentes em nosso Senhor Jesus Cristo”,
mostrando que a maior diferença entre eles e outras pessoas era crença

30
no Messias. O termo foi diminuindo até se tornar “crente”. Atualmente,
muitas pessoas não-cristãs usam “crente” como um termo pejorativo.
c) evangelicals
A palavra evangelical, em inglês, veio de εὐαγγέλιον, do grego. εὗ
significa “bom” e ἄγγέλος significa “mensageiro”. Portanto, εὐαγγέλιον é
“levar as boas novas”. No inglês, essa palavra foi adaptada para a grafia
em inglês e virou “evangelion”. Os missionários americanos começaram,
então, a se denominar “evangelicals”, ou seja, os “portadores das boas
novas”.
d) gospel
Gospel é uma palavra que se considera ser a tradução da palavra
“evangelion”, pois significa “a palavra de Deus”, sendo uma aglutinação
de “God spell”. Desde o início do gênero musical cristão, esta
nomenclatura vem sendo utilizada.

2. Desenvolvimento e evolução da música gospel


As raízes da música gospel remontam ao século XVIII, a partir dos escravos
dos Estados Unidos. Muitos escravos participavam dos cultos cristãos, mas sem
oportunidade de desenvolver seus talentos dentro deles; eram excluídos mesmo
que a palavra de Jesus Cristo não permitisse essa exclusão. Após os cultos, durante
a dura labuta, era o momento em que eles se sentiam à vontade para cantar as
músicas ouvidas durante a liturgia. Porém, eles puseram suas próprias
características nas músicas: elas eram mais dinâmicas, com padrões de pergunta-
resposta e repetição, além de ter um ritmo sincopado.
Foi a partir de então que foi surgindo a música gospel. E esta não era muito
inspirada na hinologia protestante, marcada pela formalidade, e sim, era um estilo
mais dinâmico. A música gospel, é importante frisar, não é a mesma no Brasil e nos
Estados Unidos. Na América do Norte, ela se manteve a mesma, com as mesmas
características musicais, com o padrão de canto de repetição e coral, ritmo
sincopado e acordes difíceis. A única diferença, de uns anos para cá, é que nem
sempre o gospel é um gênero com músicas cristãs; às vezes músicas seculares são
feitas nos moldes do gênero. Esta, porém, é uma mudança mínima, pois a maioria
das músicas gospel estadunidenses continuam sendo cristãs.

31
O gênero gospel, inclusive, foi o início da maioria dos estilos seculares atuais.
A maior parte dos gêneros que fazem sucesso no pop mundial começaram com a
influência dos escravos afro-americanos. O rock, por exemplo, teve sua origem no
blues, que, por sua vez, veio do gospel, assim como o jazz. Elvis Presley é um
exemplo, pois foi um dos primeiros rockeiros, mas que se inspirou diretamente nas
músicas afro-americanas e teve contato tanto com o blues quanto com o gospel, pois
começou a cantar na igreja. Há a necessidade de gratidão ao povo afro-americano,
pois os gêneros musicais mais ouvidos e de maior sucesso são de suas criações.
Infelizmente, muitos brancos foram pegando suas influências e ganhando o crédito
por elas, portanto é de extrema importância que se credite com honestidade o início
dos gêneros musicais atuais.

3. A música gospel brasileira


O protestantismo histórico, com igrejas como Luterana, presbiteriana e
Metodista, levou também para o Brasil sua hinologia protestante. Entretanto, a
música gospel difere muito desse estilo musical, e difere também do gospel
americano. O gospel brasileiro veio diretamente das igrejas protestantes do início
do século XX, quando igrejas como a Assembleia de Deus começaram a criar seus
próprios hinários e arranjos.
Depois, após 1940, quando as rádios começaram a se popularizar, diversos
gêneros musicais passaram a tocar nas rádios. Os cristãos também queriam
incorporar novos ritmos musicais em suas produções. Então, cada vez mais, músicas
cristãs de diferentes ritmos foram sendo feitas até chegar à principal diferenciação
entre o gospel americano e o gospel brasileiro: o gospel brasileiro é uma fusão de
diferentes estilos, e o que reúne esse gênero no país são as letras com conteúdo
cristão. Sendo assim, há gospel forró, samba, rock, metal, pop, rap, worship, e,
recentemente, até novos estilos, como trap.
Nos EUA, a música cristã que não é gospel se chama CCM (christian
contemporary music) e, no Brasil, não há essa diferenciação, sendo todas gospel.
Diferentemente do solo americano, que há inclusive uma certa rivalidade que pode
ser vista em alguns canais de música no Youtube, que consideram a música gospel
melhor por ser mais complexa e ter vocais mais potentes.

32
Com o crescimento do protestantismo e do pentecostalismo em solo
brasileiro, cresceu também o consumo de gênero musical, o que fez com que o
gênero tenha se tornado uma indústria, tendo gravadoras oficiais que produzem
apenas em seu gênero no país. No Brasil, o estilo é tão amplo e tão rico de diferentes
ritmos, que os nomes mais famosos nas últimas décadas são todos de estilos
extremamente diferentes: Kleber Lucas tem um estilo mais formal e mais no estilo
de voz e piano, Cassiane tem músicas com ritmos mais voltados para o forró e o
samba, e Oficina G3, por sua vez, é uma banda que nas últimas décadas vem
produzindo diferentes subgêneros do rock, como metal, pop-rock e hardcore, sendo
mais popular entre os jovens.

4. Análise do gospel brasileiro nas últimas décadas


Observe a seguir os rankings das músicas gospel mais tocadas a cada década
no país. Como fonte principal das décadas de 80 e 90 foi usado o site Super Gospel,
por estar há décadas criando conteúdo e por ser um local que frequentemente faz
reviews de músicas e rankings musicais, diferentemente de outros sites, que têm o
foco voltado mais aos artistas do meio. O ranking de 2010 e de parte de 2000 não foi
incluído, principalmente por repetir músicas dos anos anteriores. O ranking de
2020, tendo sido consultado a partir de uma fonte mais precisa, como o Spotify,
contém diversas músicas e resultados para cada ano. Os dois anos analisados foram
os mais recentes, de 2022 e 2023, principalmente porque os estúdios voltaram a
produzir mais músicas após a pandemia e novos lançamentos podem ter sido
lançados. O ranking pode ser visto na tabela a seguir.

Década de 1980 Década de 1990 Década de 2000 2022 2023

Fonte: Super Fonte: Super Fonte: Super Fonte: Spotify Fonte: Spotify
Gospel Gospel Gospel

1981: Rebanhão – 1990: Marcos Góes 2000: Diante do Maria Marçal – Gabriela Rocha –
Mais doce que o – Autoridade e Trono – Águas Deserto Me atraiu
mel poder purificadoras Maria Marçal – Maria Marçal –
1982: Edson e Tita 1991: Mattos 2001: Diante do Uma coisa nova Deserto
– Novidades de Nascimento – Oh Trono – Preciso de Kellen Byanca – Isaias Saad –
Tita Glória ti Está tudo bem Bondade de Deus

33
1983: Victorino 1992: Actos 2 – 2002: Fernanda Harpa Cristã – Gabriel Brito –
Silva – Não chores Encontro Brum – Porque Ele vive Minha calmaria
mais 1993: Catedral – Quebrantado Samuel Messias – Aline Barros –
1984: Jorge Araújo Está consumado coração Eu não perdi o Jeová Jireh
– Cicatrizes e 1994: Shirley 2003: Eyshila – Na controle
testemunhos Carvalhaes – casa de Deus Cassiane – Hino da
1985: Jessé – Ao Primeiro amor 2004: Rose vitória
meu pai 1995: Aline Barros Nascimento – Para Gabriela Gomes –
1986: Grupo – Sem limites o mundo ouvir Deus proverá
semente – Criação 1996: Oficina G3 – 2005: Oficina G3 – Jefferson e Suellen
1987: Sinal de Indiferença Além do que os – Deus proverá
alerta – Manhãs de 1997: Cristina Mel olhos podem ver Isadora Pompeo –
outono – Dê carinho 2009: Thalles – Na Não há o que
1988: Voz da 1998: Renascer sala do pai temer
verdade – Além do Praise – Tributo ao Harpa Cristã – Em
rio azul deus de amor fervente oração
1989: Mara Lima – 1999: Kleber Anderson Freire –
O valor de uma Lucas – Deus cuida Raridade
alma de mim Fernandinho –
Cassiane – Com Grandes coisas
muito louvor Thalles Roberto –
Mesmo sem
entender
Aline Barros – Casa
do pai
Casa Worship –
Fenda da rocha

Análise e Considerações finais


A partir dos resultados, pode-se perceber que houve uma mudança no gosto
dos cristãos brasileiros: as músicas que mais faziam sucesso em 1890 e 1990 eram
mais nichadas: algumas eram rock, como Oficina G3, outras eram mais estilo
sertanejo ou pentecostal mesmo, como Cassiane, e outras tinham um estilo mais
congregacional, como Aline Barros e Kleber Lucas, que também tinha influência do
soul. Hoje em dia, porém, os resultados mostram que não há mais tanto nicho nos
sucessos atuais. Em sua maioria, os maiores sucessos atuais são do estilo CCM

34
(christian contemporary music), tão inspirado no gospel estrangeiro que às vezes
lança músicas estrangeiras, porém traduzidas para a língua portuguesa.
É de suma importância reiterar que o mercado gospel brasileiro, diferente de
outros, não está sempre em busca de novidades e lançamentos. Há algumas músicas
mais tocadas nos últimos anos que foram lançadas nas décadas de 1980 e 1990, e
estas são as únicas músicas nicho (estilo musical específico, como forró, sertanejo,
rock, etc) que são recordes de vendas no país, diferentemente do CCM, que está
sempre em alta no Brasil, com músicas mais voltadas à congregação e ao worship,
que em inglês significa “adoração”.
As músicas que mais fazem sucesso desde os anos 2000 no gospel brasileiro
– especialmente os atuais CCMs, são, em sua maioria traduzidos de músicas em
inglês, considerando que nos Estados Unidos o CCM também está em alta. Há
inclusive uma playlist no Spotify que tem todas as músicas cristãs traduzidas da
língua inglesa2. Esse crescimento de músicas traduzidas, porém, não ocorre apenas
em solo brasileiro. As músicas que são consideradas as melhores são traduzidas
para diversas línguas, inclusive para o coreano, visto que o cristianismo pentecostal
e carismático vem crescendo muito também em outros países, como a Coreia do Sul.
Embora haja uma óbvia influência da língua inglesa, há uma certa inter-influência
gospel global, mas isso não tira a identidade de cada estilo específico do gospel em
cada país.
Sempre houve influência estrangeira no gospel brasileiro, desde suas
origens, mas há a dualidade da influência estrangeira e da personalidade cultural
brasileira. Mesmo que o número de músicas traduzidas tenha aumentado, grande
parte das músicas mais tocadas no Spotify nos últimos anos são criações brasileiras,
tanto as mais antigas quanto as mais atuais, demonstrando que quando uma música
é boa, ela permanece sendo tocada, não sendo esquecida – tanto em função de sua
letra quando de sua melodia.

Referências

COSTA, Edson Ramos de Oliveira. Mercado de música gospel: como nasce uma
indústria cultural. 2017. Dissertação de mestrado. Comunicação. Universidade
Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2017.

2 Pode ser vista em https://open.spotify.com/playlist/1W5qdvdP7tMuzqImkf0r0G.

35
CUNHA, Magali do Nascimento. Vinho novo em odres velhos: um olhar
comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil.
2004. Tese de doutorado. Ciências da Comunicação. Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2004.

MARTINOFF, Eliane Hilario da Silva. A música evangélica na atualidade: algumas


reflexões sobre a relação entre religião, mídia e sociedade. Revista da ABEM, Porto
Alegre, V. 23, 67-74, mar. 2010.

VANNUCCHI, Aldo. Cultura brasileira: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola,
1999.

36
A RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE NA MÚSICA DE MILTON
NASCIMENTO: EXPERIÊNCIAS SONORAS E OCEÂNICAS

Silvério Leal Pessoa1


Glaucio José Couri Machado2

Resumo: A presente comunicação é resultado de uma etapa de uma pesquisa em


andamento e procura mostrar aspectos da religiosidade e da espiritualidade em parte da
obra de Milton Nascimento, embasado principalmente em duas obras: AMARAL, Francisco
Eduardo Fagundes. A música de Milton Nascimento, 2013; e a obra de DOLORES, Maria.
Travessia: a vida de Milton Nascimento, 2022. Todavia, é um artigo especulativo que tenta,
de certa forma, opinar – não só a partir dos livros citados – a presença de situações que
remetem à religiosidade, religião e espiritualidade na obra do Bituca desde seu primeiro
álbum até os mais recentes, em um ciclo de comemorações dos 50 anos do épico disco Clube
da Esquina. É destacado na pesquisa um traço biográfico de Milton Nascimento, associado
ao território urbano religioso de Belo Horizonte, e de lugares e situações que foram
significativas para que o músico e compositor registrasse em sua obra, toda uma atmosfera,
símbolos, cânticos, harmonias, letras e iconografia presente em seus álbuns referentes à
sacralidade encontrada na sua voz e canções. Importante destacar a diversidade espiritual
na obra de Milton. Do campo cristão, aos povos originários, incluindo a África, a América
Latina e os povos indígenas. O sentimento e a imersão que as vozes de Milton Nascimento
possibilitam ao universo religioso será exposto através de áudios e de um breve mostruário
fotográfico.
Palavra-chave: Música religiosa; Religiosidade Popular; Milton Nascimento;
Espiritualidade; Arte sacra.

Introdução
Este artigo pretende apresentar alguns aspectos que possam remeter à
presença da religião (ou da religiosidade) na obra de Milton Nascimento. E
partirmos de alguns pressupostos presentes nas obras que usamos como
referências, porém, não são as únicas, e são elas: A Música de Milton Nascimento de
Chico Amaral (ED UFMG, 2018) e Travessia de Maria Dolores (Record, 5ª ed, 2022).
Ambas as obras fazem uma espécie de desnudamento do ser chamado Milton Silva
Campos do Nascimento, ou apenas Milton Nascimento, afinal são, a primeira, uma
longa entrevista com apontamentos extras sobre algumas músicas com o nosso
personagem central, e a segunda, a biografia que é considerada por muitos como
referência em matéria de se conhecer a vida e obra do Milton. Também não

1Prof. Dr. PPGCR UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco – silverio.pessoa@unicap.br.


2 Prof. Cientista social Prof. Dr. na UFS – Universidade Federal de Sergipe DED e PPGCR –
gcmachado@hotmail.com.

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pretendemos apresentar esta religiosidade (ou religião) a partir de suas letras
apenas, e sim no computo geral de sua obra onde congregamos aspectos da sua vida,
álbuns realizados e até a parte gráfica de alguns discos, ou seja, não é um estudo das
letras de Milton, embora faça parte do corpo da pesquisa, e sim a tentativa de uma
composição geral de como a religião esteve presente no seu cotidiano e como isso
interferiu nas suas manifestações artísticas.
A obra de Milton Nascimento é envolvida em profundas reflexões emitidas
por amigos músicos e parceiros que fizeram e ainda fazem parte de seu universo
musical. Não existe uma maneira única de conceituar ou tentar explicar o conjunto
da obra de Bituca, carinhosamente como os amigos o tratam.
Para iniciar uma vivência no conjunto de canções que formatam a obra de
Milton, é necessário começar a compreender os caminhos que ele trilhou até chegar
ao seu modo de compor, arranjar e escrever, podemos classificar essa etapa como
entender a fundamentação sonora herdada por Milton e sem dúvidas, descobrir as
conexões com seu mundo musical. “Milton fez a fusão do pop com a música mineira,
sendo que ele tem um conteúdo musical, espiritual que transcende em anos-luz a
dimensão do pop, com seus momentos de êxtase. Ele é êxtase praticamente o tempo
inteiro” (AMARAL, 2013, p. 5). O que normalmente se encontra registrado em
algumas biografias são indagações do tipo: De onde veio essa música? Existe uma
falta ou dificuldade de compreensão do lugar de Milton na música brasileira?
Para surgir alguém como Milton Nascimento, é necessário um ambiente
fecundo, coisa que o Brasil foi perfeitamente capaz de produzir, pelo menos até
aquele momento.
A música popular do século 20, cantada ou tocada, expandida
harmonicamente, dirigida por arranjadores e produtores, gravada, divulgada e
comercializada, traduzindo em grande parte a urbanidade, foi um grande fato novo
na história da cultura mundial. Música popular – música dos povos.
Acreditamos que Milton tenha tido várias influências e uma delas é a obra de
Tom Jobim, um compositor, digamos, original à altura da novíssima tradição, que
recebeu várias fontes: Chopin, Debussy, choro, Villa-Lobos, Gershwin, canções
americanas e, principalmente, uma tradição brasileira que reúne Pixinguinha,
Custódio Mesquita, Ary Barroso, Dorival Caymmi, etc.

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Outras referências em Milton: Radamés Gnatalli, pelo status semierudito e
sofisticado de certa música do início do século, como o choro, o tango brasileiro, a
valsa, a polca, o scottish, a modinha, gêneros praticados por Ernesto Nazareth,
Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado, Anacleto de Medeiros, João Pernambuco e
outros. A música popular foi recebendo novas informações aos poucos. A música
popular buscou na erudita o que lhe interessava, sem perder sua essência. Não é fácil
transitar de um estilo a outro como Milton realizou em sua obra.
Um fato destacado também é que a música de cinema influenciou Milton. Uma
grande tradição que misturou música europeia e americana, popular e erudita:
Franz Waxman, Henri Mancini, Nino Rota. O Jazz e as improvisações de Dave
Brubeck, Miles Davis, Gil Evans, Charles Mingus, John Coltrane, Astor Piazolla,
Moacir Santos, Tom Jobim. “A arte, dizia Mário de Andrade com paixão
característica, não é apenas a obra de arte. A arte é o ambiente, a cultura, o coletivo”
(AMARAL, 2013, p. 21).
Podemos, inclusive, constatar que Milton Nascimento e todos de sua geração,
admiraram a bossa-nova, mas sua ossatura de compositor forma-se num momento
imediatamente posterior, em que despontou o samba-jazz. Era a época do Beco das
Garrafas, de músicos maravilhosos e, especialmente do Tamba Trio de Luís Eça,
fundamental para ele. Ou seja, a música praticada no período de 1962 a 1966,
aproximadamente, já continha os elementos harmônicos, rítmicos e estéticos
importantes para Milton. Nesse contexto Wagner Tiso foi importante na trajetória
artística dele.
Fundamental também foi a influência de Edu Lobo, que assina a apresentação
do CD Travessia de Milton. Wagner Tiso aponta que o primeiro disco de Edu Lobo,
acompanhado pelo Tamba Trio, foi a confirmação de uma direção que parecia
fervilhar na cabeça de Milton, o qual veio acrescentar suas próprias ideias. O cinema
de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 Graus), Vidas Secas. O teatro
Arena, o show Opinião (1964), a resistência inspirada na cultura popular, sempre
capaz de responder à adversidade com criatividade, o exemplo de Cuba, Arena Canta
Zumbi (1965) de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, com músicas de Edu Lobo,
Morte e Vida Severina com música de Chico Buarque, são exemplos seminais da
época, como resultado do golpe civil-militar de 1964.

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Estilos e influências
“E o coro de procissão que introduz BECO DO MOTA apresenta pela primeira
vez o ingrediente religioso. Portanto, a fusão de Milton. Começam a entrar coisas
inesperadas no circuito: Espanha, América Latina (como no Tropicalismo); música
rural, indígena, religiosa; música negra dentro e fora do contexto urbano; algum jazz,
rock progressivo, música clássica, música de cinema e experimentalismos”
(AMARAL, 2013, p. 27). Mas, antes desta constatação de Amaral, Milton já no seu
primeiro disco, o álbum de estreia (1967), lançava sua música com títulos
carregados com palavras religiosas, como Irmão de Fé, Crença e Maria, minha fé. Por
mais que estas não tivessem uma ligação exata com a religião, os títulos nos fazem
perceber o uso e a presença de palavras reconhecidas pelo vocabulário religioso.
Mesmo em Crença há uma negação daquilo que Nascimento crê (seja em qual
aspecto for), o que não deixa de ser um diálogo com suas convicções:
“Eu sei que venho lutando/ Com essa vida de desvalença/ Eu sei que
luto sozinho pois/ Ninguém nunca me ajudou/ Um dia eu largo de
tudo/ Já não importa nenhuma crença/ Se eu morro, eu morro
lutando/ Sozinho eu vou, sei pra onde vou/ Vou, mas quero ir
sabendo/ Se não vou ter outro amor/ E pelas tardes mais frias/ Eu
vou deixar minha dor/ Minha crença morrendo/ E minha vida
nascendo/ Eu vou achar a alegria, eu vou achar/ Na luz de um dia
nascendo/ Eu vou deixar minha dor imensa/ Eu vou achar meu
carinho/ E vou viver só com meu amor”.

Vale ressaltar que Crença saiu não só no LP inaugural de Milton, mas também
no compacto (disco de vinil de 7”) juntamente com Gira Girou (1967) que foram os
primeiros fonogramas gravados por ele e antecedeu a ida do LP para o mercado.
Ainda na religião em Milton há um outro fato que precisa ser levantado.
Pensando na confecção de um álbum (na época, discos de vinil e/ou CD), estes eram
obras de arte que não continham só a música (os fonogramas), mas também os
encartes eram muito preciosos e compunham uma obra única que unia música,
fotografias, desenhos, imagens em geral, papelaria, impressão etc. Neste ponto, a
religião em Nascimento já chega diretamente na capa do seu terceiro disco (1969)
que é nada mais nada menos que uma procissão numa cidade mineira, e citando
alguns exemplos, “Caçador de Mim” de 1981 tem no seu interior fotos de igrejas, e
Sentinela (1980) tem nos encartes uma fotografia com o Bispo Pedro Casaldáliga e
uma citação de Isaias, 21,11.

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Há em Milton Nascimento, sobretudo, algo muito mais difícil de explicar: a
profundidade que tudo adquire em sua música. Estaria isso na alma? No sentimento
do mundo? Nas ausências inseparáveis da condição humana? Na profundidade
aprendida com os grandes intérpretes, especialmente as cantoras?
[ ] a fonte da religiosidade. Esta seria um sentimento peculiar, que
a ele próprio jamais abandona, que ele viu confirmado por muitas
pessoas e pode supor existente em milhões de outras. Um
sentimento que ele gostaria de denominar sensação de
“eternidade”, um sentimento de algo ilimitado, sem barreiras, como
que “oceânico”. Seria um fato puramente subjetivo, não um artigo
de fé; não traz qualquer garantia de sobrevida pessoal, mas seria a
fonte da energia religiosa de que as diferentes Igrejas e sistemas de
religião se apoderam, conduzem por determinados canais e
também dissipam, sem dúvida. Com base apenas nesse sentimento
oceânico alguém poderia considerar-se religioso, ainda que
rejeitasse toda fé e toda ilusão (FREUD, 2010, p. 14-15).

Essa apreciação sobre a música de Milton de profundidade, é destacada na


voz de vários entrevistados que fizeram parte da obra de Milton. Esse sentimento de
amplitude sonora, de vastidão que é percebível nos arranjos e interpretação, a
religiosidade advinda dos sons, dos coros, do órgão, nos coloca em um sentimento
oceânico, sensação de eternidade.

Família e hereditariedade
A mãe de Milton chamava-se Maria do Carmo, morreu de tuberculose no Rio
de Janeiro. O pai desaparecera. A Lília e Josino foram os pais adotivos. O menino
recebeu lições de piano de Lília. BITUCA apelido dado por Lília quando ele tinha um
desejo negado, fazia beiço e ficava de bituca. Lília foi muito importante na vida do
Milton, tanto que em 2002 Milton grava o disco PIETÁ homenageando Lília e às
mulheres. Milton nasceu no Rio de Janeiro, no dia 26 de outubro de 1942, às 6 horas
da tarde. Desde os anos 30, as escolas ofereciam educação musical, um grande
esforço de Villa-Lobos, com apoio de Anísio Teixeira, na época secretário de
educação do Estado do Rio de Janeiro. Os concertos de canto orfeônico chegavam a
apresentar 40 mil jovens cantores, regidos por Villa-Lobos. Lília recebeu aulas de
piano de Villa-Lobos. Os seus pais era Edgard e Augusta, padrinhos de Milton. Três
Pontas, sul de Minas Gerais (Quintais, deslumbramento com os trens de ferro; as
montanhas mágicas, as festas da cidade – carnaval, missa, quermesses e procissões).

41
Aos 16 anos, Milton trabalha como programador e locutor na Rádio ZYV36,
da qual seu pai era um dos diretores. Fundamental foi seu encontro com Wagner
Tiso que cria um novo conjunto de baile, o W’s Boys, no qual Milton era um dos
integrantes. Milton chegou em Belo Horizonte, aos 20 anos, no final de 1962, uma
cidade diferente de Três Pontas e Alfenas. Em BH conhece parceiros decisivos em
sua vida artística: Márcio Borges, irmão do Lô Borges, Toninho Horta, Nelson Ângelo,
Beto Guedes, Fernando Brant. Milton tocou contrabaixo a pedido de Wagner Tiso no
grupo Trio Berimbau. Em 1966 nova época de ouro da MPB, depois da era do rádio
e bossa-nova, os festivais e programas de música, tais como o FINO DA BOSSA e a
JOVEM GUARDA, eram transmitidos pela televisão, TV Excelsior e TV Record. Milton
Ganha no prêmio de melhor intérprete cantando CIDADE VAZIA de Baden Powell e
Lula Freire, atraindo a atenção de Gilberto Gil, Elis Regina que grava CANÇÃO DO
SAL e lança Milton como compositor nacional. Em São Paulo enfrenta várias
dificuldades, volta para Três Pontas, e retorna para SAMPA. Agostinho dos Santos
inscreveu três músicas de Milton (Travessia, Morro Velho e Maria Minha Fé) no II
Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, em outubro de 1967. Milton
tinha quase 25 anos e conquistou a todos com Travessia, primeira letra de Fernando
Brandt. Com mais de 50 anos de carreira, Milton Nascimento continua a surpreender
seus fãs por ser dono de vivacidade e criatividade raras até nos artistas mais jovens.
O cantor, astro da MPB, esteve no programa ENCONTRO, emocionou o
público com seus clássicos e novas composições e ainda falou sobre sua
espiritualidade ao site do programa. Dotado de calma e sabedoria para articular as
palavras, o carioca mais mineiro da música brasileira explicou sua religiosidade.
Várias vezes me falaram que eu ia ter um terreiro ou um centro
espírita e eu falava: ‘Mas eu não sou ligado à religião’. Até que um
dia eu estava em um lugar e descobri a minha coisa com o meu
público. O meu centro espírita é o palco”, contou ele, emocionado
com os fenômenos sobrenaturais que costuma presenciar. “Não
tenho tantas visões quanto tinha antigamente, mas no último mês
eu já vi umas coisas diferentes, que me fazem muito bem e parece
que estão tomando conta da gente (21/03/2014 às 07h40.
Atualizado em 25/03/2014 às 09h07).

Considerações finais
Estamos de fato diante de um grande músico da história da música popular
no Brasil e no mundo. Dificilmente uma pesquisa daria conta de todo o universo que
a obra de Milton pode possibilitar de análises, reflexões, diálogos, unindo vários

42
campos artísticos. Da arquitetura ao canto sacro, dos povos africanos e indígenas,
das vozes da América Latina ao universo ecológico, aos sons das florestas, tantas
vezes reproduzidos pelo amigo e percussionista pernambucano Naná Vasconcelos.
Da dança ao texto composto por ele e seus parceiros, encontramos o sagrado, a
sacralidade, a espiritualidade sonora desse grande artista que continua
perpetuando em sua obra um vasto campo de possibilidades para as ciências da
religião.

Referências
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Novas conferências introdutórias à
psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

AMARAL, Francisco Eduardo Fagundes (Chico Amaral). A música de Milton


Nascimento. Belo Horizonte: Editora e Consultoria Gomes, 2013.

DOLORES, Maria. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Rio de Janeiro: Record, 5ª


ed, 2022.

MINAMI, Edson. Milton Nascimento e o diálogo inter-religioso na Missa dos


Quilombos. Revista Conhecimento e Diversidade, Nº 1, jan/jun, 2009.

COAN, Emerson Ike. “Fé cega, faca amolada”. Milton Nascimento e o sentimento “à
flor da pele” nos álbuns “Minas” e “Geraes”. Anais do 3º Seminário Comunicação
Cultura e Sociedade do Espetáculo, Faculdades Casper Líbero, outubro de 2015.

43
VARIAÇÕES METODOLÓGICAS DA ABORDAGEM DA MÚSICA COMO
RELIGIÃO: QUADRO GERAL E EXEMPLOS DO GOSPEL NO BRASIL

Waldney de Souza Rodrigues Costa1

Resumo: Há diferentes formas de trabalhar a relação entre música e religião. A presença da


música nas religiões, a presença de elementos religiosos nas músicas, as duas atravessadas
por um terceiro fator... O foco dessa comunicação estará na música como fonte para
pesquisa das religiões. De forma ensaística, comentando a bibliografia disponível, o objetivo
é destacar principais alterações que ocorreram ao longo da história do estudo científico das
religiões. Tomando um texto de Michael Pye como ponto de partida, serão comentadas
pesquisas sobre música gospel no Brasil de modo a ilustrar as variações metodológicas. A
literatura parece indicar que a abordagem da música acompanhou a evolução da descoberta
das fontes para pesquisa das religiões. Na descoberta das fontes textuais, o foco recaiu sobre
as letras das canções como texto, e, quando o olhar se voltou para as fontes orais, foi dada
atenção a entonações e silêncios, elementos geralmente analisados em entrevistas. Já o
passo mais recente, com a descoberta das fontes materiais, tem sido tomar o som como
elemento material. Para cada variação dessa, há potencialidades e limitações, que podem
ser observadas nas pesquisas sobre o fenômeno gospel. No tratamento da música como
religião material, embora se perca na análise do que as canções de fato dizem e como dizem,
é possível desvendar uma desinstitucionalização religiosa que surge quando o som passa a
circular em diferentes suportes não atrelados às igrejas e uma dinâmica musical-religiosa,
quando mudanças de compasso, ritmo e harmonia acompanham transformações religiosas
do contexto latino recente.
Palavras-chave: Religião e Música; Evangélicos; Cultura Material; Protestantismo e
Pentecostalismo.

Introdução
Geralmente tida como cultura imaterial, a música sempre foi importante no
estudo científico das religiões, mas a forma se alterou ao longo da história da
disciplina. Esse texto é escrito com o objetivo de destacar principais variações
metodológicas da abordagem da música como religião, a partir de um comentário à
bibliografia disponível. É verdade que existem diferentes formas de trabalhar a
relação entre música e religião: a presença da música nas religiões, a presença de
elementos religiosos nas músicas, as duas atravessadas por um terceiro fator, entre
outras possibilidades, mas o foco dessa comunicação estará na música como fonte
para pesquisa das religiões.

1Doutor e mestre em Ciência da Religião pela UFJF. Professor do Departamento de Ciências da


Religião da UERN. E-mail: professordney@gmail.com

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Não se pretende com essa comunicação exaurir todas as possibilidades, mas
de forma ensaística indicar diferenças essenciais de abordagens que variam no trato
com a música, até o ponto de ser tratada como cultura material. Para isso, serão
tomadas como recurso algumas pesquisas disponíveis sobre o fenômeno da música
gospel no Brasil. A partir da identificação de variações, será possível refletir sobre o
que o caso gospel pode indicar sobre o contexto mais amplo do estudo das religiões.
Isso será feito tomando como ponto de partida a proposta de integração
metodológica da Ciência da Religião de Michael Pye (2017).

1. A evolução das fontes para o estudo científico das religiões em Michael Pye
Michael Pye é um autor que durante muito tempo esteve à frente da IAHR
(Internacional Association for the History of Religions), que é reconhecidamente a
maior agremiação de cientistas da religião do planeta. Talvez por isso, a
preocupação com a criação de consensos mínimos dentro da disciplina tenha se
tornado mais presente em sua carreira. Em um texto em particular ele demostra um
receio de que, diante de tamanha variedade de abordagens circulando na disciplina,
ela fique refém de modismos e carente de memória do que profissionais anteriores
fizeram (PYE, 2017). Ele propõe como alternativa uma integração entre as
metodologias de forma que seja possível uma organização mínima que sirva de filtro
daquilo que recebemos e também memória para as próximas propostas. É um
recurso especialmente didático para lidar com pluralismo metodológico dos estudos
de religião e, no caso específico, para iluminar os diferentes caminhos das
abordagens da música.
Uma questão crucial da proposta de Pye (2017) é a clareza das diferenças das
fontes. Ele argumenta que sem isso, não se percebe os limites de certas abordagens.
De modo geral, é possível dividir as fontes para pesquisa de religião em três
categorias básicas: as fontes textuais, as fontes orais e as fontes materiais. Essa
ordem, de certa forma, reflete a história da Ciência da Religião. A disciplina surgiu
da comparação entre textos sagrados, de forma que era impossível se tornar um
profissional da área sem aprender outros idiomas para lidar com textos antigos.
Contudo, logo nas primeiras décadas, ainda no século XIX, percebeu-se a
importância dos estudos das religiões de tradição oral, muito por conta da
interlocução com a Antropologia. Assim, entrevistas e relatos em geral se tornaram

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escopo de trabalho. E, por fim, ao longo do século XX, a cultura material se revelou
uma fonte tão importante quanto as outras. Há coisas sobre as religiões que só são
perceptíveis pela sua materialidade. É uma descoberta de grande impacto nos
estudos de religião realizados recentemente.
Para Pye (2017), esses tipos de fonte compartilham entre si a demanda por
procedimentos específicos e a dispensabilidade ou indisponibilidade para outros.
Fontes orais e textuais, por exemplo, compartilham entre si a necessidade de
conhecimento linguístico. Ora, não se entende um texto ou um relato oral se não se
domina o idioma em que é falado. Isso é dispensável quando se lida com fontes
materiais. Grande parte do esforço da abordagem da religião material é por não
tratar matéria como texto (MEYER, 2019). Segundo Vásquez (2010), a metáfora das
coisas como texto tende a encobrir como o nosso corpo às percebes, muitas vezes
de maneira prática mesmo, e não semiótica.
Mas essa é apenas uma das diferenças. Pye (2017) também destaca que as
fontes orais e materiais geralmente demandam trabalho de campo com as pessoas
envolvidas, algo que não acontece com as fontes textuais, pois geralmente se opta
pelo texto exatamente porque os interlocutores não estão disponíveis. E o autor
também lembra que as fontes textuais e materiais compartilham entre si a
necessidade de maior historicização, que é algo que as fontes orais acabam
demandando que se abra mão para focar mais na descrição do contexto específico
em que se deu o relato oral.
Em todo caso, o que importa nessa comunicação é destacar a varação entre
as fontes e os limites de cada abordagem, pois quando se opta por uma e não por
outra há ganhos e perdas, de acordo com as possibilidades de estudo. E essa intuição
de Michael Pye pode ser observada nas variações da abordagem da música como
religião, que algo que os estudos sobre o gospel no Brasil podem nos ajudar a
identificar.

2. Música gospel como fonte para pesquisa da religiosidade evangélica no


Brasil
Não é de hoje que a música é tratada como fonte textual para pesquisa das
religiões. Isso é presente em textos clássicos, como de Rudolf Otto (2007). Mas como

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fonte oral e como fonte textual, nem tanto. Em todo caso, os estudos sobre o gospel
no Brasil nos permitem observar as três variações.
Como fonte textual, tem-se um exemplo no clássico livro O celeste porvir, de
Antônio Gouvêa Mendonça (2008). Grande parte das fontes que utiliza para
construir uma história da inserção do protestantismo no Brasil advém dos hinários,
que são espécies de coleções de cantos entoados por protestantes nos cultos e em
outras ocasiões. Um em especial chamou mais a atenção do autor. Ele diz que
“‘Salmos e Hinos’ representavam, no fim do século XIX, a coletânea de cânticos que
englobava hinários que apareceram desde o início do estabelecimento do
protestantismo no Brasil [...] Não há outro documento que expresse a crença do
protestante comum (Mendonça, 2008, p. 133). A análise por temas que ele faz desses
cânticos antigos é um típico uso da música como fonte textual para pesquisa de
fenômenos que envolvem interlocutores que não estão disponíveis. Mesmo que
sejam até hoje são gravados e regravados pelos artistas gospel atuais, a intensão do
autor era recuperar o que era mais cantado na época da inserção dessa fé no Brasil.
No caso da música como fonte oral para pesquisa, é possível observar na obra
de Magali Cunha, sobre a Explosão Gospel. Após apresentar a teologia que alimenta
o movimento evangélico na atualidade, a autora se proõe a analisar a extensão dela
e, nesse trabalho, diz que “o discurso disseminado pela mídia evangélica se tornou
base da linguagem da cultura gospel vivenciada nas igrejas locais [...] As expressões-
chave estão nas músicas cantadas nas liturgias das igrejas, nos sermões e nas
mensagens [...] Isso está presente nas canções (CUNHA, 2007, p. 62). É um exemplo
de como é possível estudar a ressonância de um pensamento religioso específico
tomando canções como relatos orais de sintonia com ele.
Já no caso da abordagem da música como fonte material, há pelo menos três
possibilidades, mas todas dependem de tomar o som como matéria e se afastar um
pouco da preocupação com o que é dito em meio a ele. A primeira é de foco na
dispersão do som. Está presenta no trabalho de Raquel Sant’Anna (2014) sobre as
Marchas para Jesus. Ela diz que “muito se fala em visibilidade evangélica e a Marcha
para Jesus é um espaço privilegiado de produção de imagens, mas em grande medida
é espaço de ‘se fazer ouvir’” (SANT’ANNA, 2014, p. 21). Segundo a autora, “há escuta
involuntária e isso é uma forma de marcar presença no espaço público [...] o som é

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capaz de transformar o espaço, de construir espaços próprios em sua materialidade”
(Sant’Anna, 2014, p. 23).
Outra possibilidade é o foco na estrutura do som. O melhor exemplo é o
trabalho de Milton Souza Junior (2011), sobre o hinário Harpa Cristã, mais usado
pelas Assembleias de Deus. Ele diz que analisando:
[...] a partitura musical, os compassos musicais, os ritmos das
músicas, as tonalidades dos hinos, a amplitude média das canções,
os estilos musicais, as modalidades de execução das músicas,
dentre outros, é possível dizer se existe relação entre a sua
constituição musical e a expansão do pentecostalismo (SOUZA
JUNIOR, 2011, p. 125).

Por fim, também é possível o estudo da música como religião material com
foco nos efeitos do som no corpo. Um exemplo está disponível na tese Curtindo a
presença de Deus. Tem-se que:
Os sons graves, criados em frequências abaixo de 60 hertz, são
captados na parte mais interna dos ouvidos, atingindo em cheio o
labirinto, o que faz o corpo se mexer e coloca o coração para bater
literalmente no ritmo da música [...]
Eles vibram no corpo humano de um jeito que são mais sentidos
que ouvidos. Só são escutados acima de 80 decibéis, o que ajuda a
explicar porque muitas vezes o volume do culto incomoda vizinhos
das igrejas [...]
Se isso é verdade, não seriam os sons parte constitutiva dessa fé?
(COSTA, 2019, p. 129).

Considerações finais
Como foi possível observar, nos estudos sobre o fenômeno gospel no brasil,
há pelo menos três variações da abordagem da música como religião, no sentido de
fonte para o seu estudo. É tratada como fonte textual para falar de períodos sobre
os quais os interlocutores de pesquisa não estão disponíveis, mas também como
fonte oral, observando a ressonância de discursos específicos entre as pessoas que
cantam sobre eles. E, como fonte material, a música pode ser analisada para falar na
dispersão do som causando conflitos religiosos no espaço público, da estrutura
musical que acompanha certas questões religiosas e dos efeitos do som no corpo
daqueles que têm sua experiência religiosa com ele.
Entre o textual, o oral e o material, um método não parece anular o outro, de
modo que há muito o que explorar ao tratar a música como fonte para pesquisa de
religiões. Destaca-se que, como religião material há uma espécie de redução, mas
que permite ver coisas que estavam ocultas nas outras opções metodológicas.

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Entretanto, cabe ponderar que, assim como Patrícia Souza (2019) afirma que
estudar religião material demanda conhecimento do material em que a religião se
manifesta e não apenas do material, tratar música como religião material muitas
vezes depende de conhecimento musical e acústico, sem qual não é possível
descobrir aquilo que está para além do texto. O que é sentido, praticado e vivido,
para além do que é dito.

Referências
COSTA, Waldney. Curtindo a presença de Deus: religião, lazer e consumo entre
crentes e canções. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – PPCIR, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019.

CUNHA, Magali Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre
o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: Instituto Mysterium, 2007.

MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no


Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

MEYER, Birgit. Religião material: como as coisas importam. In: GIUMBELLI,


Emerson; RICKLI, João; TONIOL, Rodrigo (Orgs.). Como as coisas importam: uma
abordagem material da religião – textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2019. p. 81-113.

OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo; EST/Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

PYE, Michael. Integração metodológica na Ciência da Religião. Rever, São Paulo, ano
17, n. 2, p. 162-177, maio-ago. 2017.

SANT’ANA, Raquel. O som da marcha: evangélicos e espaço público na Marcha pra


Jesus. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 210-231, 2014.

SOUZA, Patrícia. Religião material: o estudo das religiões a partir da cultura material.
2019. 188 f. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, 2019.

SOUZA JÚNIOR, Milton. Cantai e multiplicai-vos...: estudo da Harpa Cristã como


instrumento de expansão da missão no pentecostalismo no Brasil (1910-1970).
2011. 145 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São
Bernardo do Campo, 2011.

VÁSQUEZ, Manuel. More than belief: a materialist theory of religion. New York:
Oxford University Press, 2010.

49
ARTE ST 2

ST 2 – Ecologia Integral: a teologia cristã em diálogo com outros saberes

50
Maria Teresa Cardoso (PUC-Rio)
Clélia Peretti (PUCPR)
Matthias Grenzer (PUCSP)
Carlos Estellita-Lins (ICICT/Fiocruz e Museu Nacional)
Everaldo dos Santos Mendes (UFS)
Edilmar Cardoso Ribeiro (PUC-Chile)
Raphael Vianna (PPGeo/UFRRJ)

Os estudos desta Sessão Temática tratam de diálogo entre disciplinas bíblicas e


teológico-pastorais e entre tais disciplinas e outros saberes, ou disciplinas,
especialmente a da educação, a propósito da questão ecológica. Os estudos versam
sobre tópicos de Ecologia, Amazônia, cultura, pandemia, igreja, pastoral, diálogo
ecumênico e interdisciplinar e processos pastorais e educativos, com atenção
especial à relação do ser humano com a natureza, à preservação de fauna e flora, a
perspectivas socioambientais e de ecologia integral, com luzes da Bíblia e das
disciplinas envolvidas nas pesquisas. Observa-se como o processo de valorizar o
cuidado das pessoas e do ambiente é teórico e prático, sendo que envolve um desafio
cultural, espiritual, pastoral e educativo.

51
ÉTICA INTERCULTURAL LATINO-AMERICANA: PRESSUPOSTOS
PARA UMA EDUCAÇÃO ESCOLAR.

Alexandre da Silva1

Resumo: Nas últimas décadas, discussões sobre interculturalidade se efetivaram no cenário


intelectual latino-americano, relacionando os temas mais diversos a partir de diferentes
interlocutores e pensadores. Muitos desses interlocutores fizeram emergir a realidade
latino-americana denunciando o parasitismo colonial (Manoel Bonfim), anunciando que a
Nuestra America, pode libertar-se da dominação Ibérica (José Marti) quando os princípios
universais como a justiça, o reconhecimento do outro e a comunicação forem porta-vozes
de mudanças (Raul Fornet-Betancourt; Ricardo Salas). A educação tem um papel
fundamental nesse processo (Catherine Walsh; Fidel Tubino). Nesta comunicação – fruto de
aulas, leituras e pesquisas ao curso oferecido pela PUC Minas, na disciplina: Educação,
Interculturalidade e Espiritualidade, tem como objetivo identificar os principais
pressupostos para se pensar e desenvolver uma educação escolar, de víeis Intercultural
Latino-Americana. A partir, de uma metodologia qualitativa e pesquisa bibliográfica
desenvolvida com base em material publicado como livros, artigos periódicos e entrevistas.
Diante disso, é urgente refletir sobre educação e interculturalidade latino-americana. De
que maneira este dialogo e pressupostos podem contribuir para a educação escolar? Nestes
tempos, em que se discute novos paradigmas para educação escolar, e o processo de
transformações culturais amalgamado a questão da globalização a interculturalidade crítica
contribui para desvelar os projetos hegemônicos que ocultam a diferença e a estigmatizam,
e ainda, auxilia na compreensão das mudanças nas sociedades pluricêntricas, no qual se
admitem valorações e perspectivas diversas. A Ética Intercultural aplicada na educação
escolar propicia condições fundamentais para um diálogo que assegura o vínculo de
reciprocidade entre novos modos de vida.
Palavras-chave: Ética Intercultural; Educação Escolar; Latino Americano.

Introdução
A presente comunicação constitui-se em um breve panorama, onde
buscaremos identificar pressupostos para uma educação intercultural latino-
americana. Ao propor tal tarefa, parece necessário partir do contexto histórico da
América Latina, esse continente de constituição intercultural que tem sofrido
políticas efetivas pela ideia uniforme cultural. Salas (2010), ao tratar da ética
intercultural, diz que ela precisa ter arraigamentos latino-americano, esse caráter
para o autor é fundamental para que seja assumido de forma adequada. Como ponto
de partida, nossa proposta constitui uma crítica contundente ao colonialismo, ao

1Mestrando em Ciência da Religião na Pontífice Universidade Católica de Minas Gerais, Bolsista PUC
Minas, Membro do grupo de pesquisa REDECLID, Email. ale.kakeje@gmail.com
https://orcid.org/0009-0002-5870-0002

52
reconhecimento da história de dominação, de exploração, da expansão capitalista,
das tentativas de sepultamento de saberes que foram subalternizados, da
marginalização de ideias e tradições dinamicamente marginalizados pela dinâmica
do colonialismo e as tentativas de fixar uma monocultura que visa monopolizar os
saberes. Segundo Betancourt (1994), esse momento marca o processo da violenta
negação do outro, de onde o “outro”, se não é destruído fisicamente, é desvalorizado
e colocado em função dos interesses imperiais. Neste ponto, uma definição de
interculturalidade se faz necessária, Catherina Walsh, define interculturalidade
como:
Um processo dinâmico e permanente de relação e aprendizagem
entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua,
simetria e igualdade. Um intercâmbio que se constrói entre
pessoas, conhecimento, saberes e práticas culturalmente
diferentes, buscando desenvolver um sentido entre elas na busca
da diferença. Um espaço de negociação e de tradução onde as
desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os
conflitos de poder da sociedade não são mantidos e sim
reconhecidos e confrontados (CANDAU, 2013, p. 23, apud
CATHERINE WALSH, 2001, p. 10-11).

A educação intercultural, tem como proposta promover o reconhecimento do


“outro” para o diálogo entre as diferentes culturas, combatendo todas as formas de
exclusões sociais e afirmando a vida em todos os seus aspectos. Para Oliveira (2015,
p. 70), “a educação intercultural apresenta-se como democrática, critica e dialógica
pautada em uma aprendizagem significativa e contextualizada no cenário social e
cultural em que está inserida”. A proposta de uma educação intercultural latino-
americana, reconhece que não existe uma cultura superiores ou inferiores, mas sim
culturas paralelas que devam ser respeitas e valorizas. Freire (2021) refletindo a
educação popular no contexto brasileiro, argumenta que essas histórias e o contexto
não podem ser ignoradas e que refletem não apenas a ideologia dominante, mas,
mesclados com ela, aspectos da visão de mundo das massas populares.
Especialmente em nossa América constitutivamente indígena, negra, mestiça, plural
e diversa. Segundo Oliveira (2015, p. 62) “a interculturalidade critica tem como
ponto de partida o problema do poder, da racialização e da diferença, vista como
colonial e não simplesmente cultural”. Para Ansion: “Essa realidade social, cultural
e psicológica é nosso ponto de partida para qualquer projeto de desenvolvimento de

53
identidade e para a elaboração de uma cidadania que reconheça a diversidade e a
necessidade de intercâmbio” (TUBINO, 2007, p. 43).

1. A importancia de conhecer o contexto histórico latino americano


Acreditamos que um dos pressupostos para uma educação escolar
intercultural latino-americana, deve permear o conceito de Freire, apresentado por
Inês (2010, p. 17), onde cada um possa ser: “Sujeitos de suas vidas, atores de sua
história”. Esse modelo de educação pautado na ética intercultural tem como
proposta a desnaturalização das desigualdades, o posicionamento político para
além do discurso hegemônico, e a oposição contra toda forma de discriminação
preconceito e racismo. Bomfim (1993), denunciando as tradições parasitárias da
colonização da América Latina, imposta pelos hospedeiros luso-espanhóis, aponta
que esta situação casou a degradação e atraso, reduzindo as massas à ignorância e
inferioridade, para o autor é preciso quebrar e transcender essas imposições e
barreiras que forma postas pelos parasitas. De acordo com Bonfim.

As nações sul-americanas têm que romper toda a sua vida política,


administrativa, econômica, social e intelectual; se não querem
morrer entanguidas, mesquinhas e ridículas, têm que travar uma
luta sistemática, direta, formal, conscientemente dirigida contra o
passado, respeitando apenas a sociabilidade afetiva, natural entre
as populações, e os sentimentos hombridade e independência
nacional, característicos destes povos (BOMFIM, 1993, p. 161).

O sergipano Bomfim, historiador, parlamentar, médico e educador, em seu


livro “América Latina Males de Origem” reconhece a defasagem do Brasil e da
América Latina com relação aos outros países ditos de “primeiro mundo”, mas
aponta que esses males foram herdados devido à colonização. Afirma que: “os
regimes parasitários sob o qual nasceram e viveram as colônias da América do Sul
influiu naturalmente sobre o seu viver posterior quando já emancipadas” (BOMFIM,
1993, p. 121), portanto, no que diz respeito à educação e aos sistemas educacionais,
para corrigir esses males de origem, será preciso o aumento maciço do ensino
elementar para as classes populares. Tubino (2005) argumenta que as línguas e
costumes indígenas na América Latina forma suprimidos, mas acredita que a
interculturalidade é capaz de promover a emancipação.
José Martí, propunha uma educação contextual que atendesse às
necessidades de seu povo cubano, uma educação que vai além dos livros, uma

54
educação para a vida cotidiana, enraizada na mutualidade e reciprocidade, capaz
produzir cidadãos melhores, unidos comprometidos com a natureza e a
humanidade.
Não seriam pedagogos que enviaríamos pelos campos, mas sim
conversadores. Não enviaríamos mestres, e sim pessoas instruídas,
que fossem respondendo às dúvidas que os ignorantes lhes
apresentassem, ou às perguntas preparadas para a sua vinda, e que
fossem observando onde tinham sido cometidos erros nas culturas
ou onde não se aproveitavam as riquezas exploráveis, dando os
esclarecimentos necessários de forma pragmática (MARTÍ, 1983, p.
86).

Essa apresentação de Martí, faz lembra o que Freire dizia sobre a


alfabetização, que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, ou seja, a leitura
do contexto e do mundo real que nos cerca, vem antes da leitura das palavras, o que
o autor parece propor é que não é possível uma leitura do texto sem contexto. Para
o autor, é preciso conhecer as necessidades da vida social, nesse ensejo, a educação
se apresenta como ferramenta fundamental para construção da sociedade, esse
projeto para o autor deve ter abrangência tanto na cidade como no meio rural, Martí
diz que: “E tanto no campo como nas cidades, urge substituir o conhecimento
indireto e estéril dos livros pelo conhecimento direto e fecundo da natureza”,
(MARTÍ, 1983, p. 86), algumas de suas ideias sobre educação tinham como proposito
pessoas do campo, daí então, propunha uma formação de “professores ambulantes”,
encarregados de promover a educação no campo.
Urge abrir escolas de formação de professores práticos, para logo
espalhá-los pelos vales, montanhas e lugarejos; da mesma forma
que, como contam os índios do Amazonas, o Pai Amalivaca, para
criar os homens e as mulheres, espalhou pela terra as sementes de
palmeiras moriche!
Perde-se o tempo no ensino elementar literário, criando-se povos
de aspirações perniciosas e vazias. A implantação do ensino
cientifico elementar é tão indispensável quanto a luz do sol (MARTÍ,
1983, p. 86).

Os interlocutores latino-americanos revelam a realidade do nosso continente


que apresentam uma configuração própria. Segundo Candau (2013, p. 17), “A nossa
formação histórica está marcada pela eliminação física do “outro” ou por sua
escravização, que também é uma forma violenta de negação de sua alteridade”. O
estudo da educação escolar, em perspectiva da ética intercultural latino-americana,
poderá nos ajudar a reinventar a educação escolar a partir de uma nova dinâmica.

55
2. O potencial do diálogo intercultural para educação escolar
Um dos principais pressupostos para a condução do dialogo intercultural é
buscar raízes históricas em nossas tradições culturais. A partir do contexto e da
história de nossa cultural, compreender o processo de “inculturação”, na educação
escolar. Pensar a educação numa perspectiva intercultural significa ver a escola
como espaço de diálogo (OLIVEIRA 2015, p. 70, apud LEITE, 2009), a escola como o
local do entrelaçamento das culturas, onde valoriza-se a diversidade, supera toda
forma de discriminação e racismo, local onde se promova integração com o “outro”,
lugar de acolhimento. Além de proporcionar um ambiente propício para essas
discussões, a escola é um local apropriado para poder estruturar projetos
pedagógicos interdisciplinares em busca de uma pedagogia mais articulada. Para
Tubino (2005, p. 14) “Não há uma, há muitas maneiras de ser cidadão em uma
democracia verdadeiramente multicultural. A educação pública deve, portanto, ser
fundamentalmente uma educação intercultural para todos, uma educação para o
exercício da cidadania”. Esses objetivos buscam uma educação intercultural
baseada na convivência acolhedora e justa, fundamentada em princípios
democráticos para todos, reconhecendo e respeitando a diversidade.
O diálogo não só é possível como necessário, entendemos que não pode
haver dialogo e avanços na educação onde predomine uma educação monóloga,
reproduzindo os ideais das classes dominantes, colonizadoras e imperialistas, é
preciso ouvir as diferentes vozes, as multiplicidades de vozes que elevam sua fala
carregadas de contexto e de cultura (BETANCOURT, 1994). Sem o dialogo
intercultural não há perspectiva racional para a solução dessas questões
(BETANCOURT, 1994, p. 19). Ouvi meu professor Paulo Agostinho dizer isso em
uma aula da PUC Minas: “O desafio da interculturalidade e o diálogo”, não só
concordo com ele, mas faço coro dizendo que esse diálogo deve ser baseado no
reconhecimento, no respeito e na solidariedade recíproca.
A proposta de estabelecer um diálogo com o “outro”, significa em sabermos
que o conflito muitas vezes é inevitável, e que provavelmente teremos que propor
mudanças na estrutura dos sistemas escolares, tanto na formação de professores
quanto na formação continuada, na organização do ensino, nos processos
democráticos, na abordagem das pautas educacionais, e na formação de diferentes
lógicas, assim sendo, a ética intercultural nos faz repensar o fazer pedagógico de

56
maneira mais ampla, diversa e reflexiva. Candau (2013, p. 23), afirma que: “A
perspectiva intercultural que defende quer promover uma educação para o
reconhecimento do “outro”, para o dialogo entre os diferentes grupos sociais e
culturais”. No entanto, esse é um compromisso que deve ser assumido pelo Estado,
pelos professores e por toda a sociedade brasileira.

3. Bases para uma educação intercultural polifônica


Betancourt (1994), trata de uma herança polifônica para a filosofia
intercultural, mas acredito que podemos aplicar o princípio a educação e
conjecturarmos uma educação intercultura polifônica, com o objetivo de
redescobrir toda riqueza e sabedoria, e ainda resgatar o protagonismo
apresentando em novas perspectivas para uma educação intercultural latino-
americana. Segundo Betancourt (1994, p. 11), “é um processo eminentemente
polifônico do qual se consegue a sintonia e a harmonia das diversas vozes pelo
continuo contraste com o “outro” e o continuo aprender de suas opiniões e
experiencias”, Betancourt (1994), ao apresentar o conceito da inculturação da
filosofia, diz que devemos estar aptos para aceitar todas as consequências que isso
possa trazer, partindo desta premissa, podemos aplicar o mesmo para uma
educação intercultural latino-americana, reconhecendo que sempre existiram, e
ainda hoje, existe outras maneiras de fazer educação, outros sujeitos, com meios e
resultados próprios, e que é preciso ampliar o diálogo com esses diferentes saberes
e sujeitos. Freire (2021, p. 65-66), afirma: “Temos de respeitar os níveis de
compreensão dos educandos – não importa quem sejam – estão tendo de sua
própria realidade. Isso parece com que Betancourt, (1994, p. 16), chama de “direito
à polifonia, isto é, à voz própria de cada cultura”. Para Kenner Terra, que escreveu
o prefácio do livro: “Brasil Polifônico”, a polifonia e apresentada como uma
ferramenta capaz de superar a miopia e dar uma visão holística da realidade
contraponto uma perspectiva monolítica, o conceito de polifonia ajuda a entender
a pluralidade e a polissemia de textos e culturas. Vejamos como ele o define:
O “polifônico” tem a ver com a multiplicidade de vozes
coexistentes ao lado do narrador, nas ciências das sociedades
o termo anuncia a “unidade plural” do mundo, recupera a
presença do outro e suas alteridades, exige o reconhecimento
dos saberes e das práticas da sociedade à luz das relações

57
dialógicas e preserva a importância das trocas e contribuições
reciprocas (LAGO, 2018, p. 15).

O termo “polifônico” é utilizado por ambos autores, para demonstrar a beleza


da pluralidade e da diversidade, sobretudo a importância de valoriza-las. Esse
conceito nos convida a ouvir múltiplas vozes em nossa volta, afim de avançarmos
diante dos desafios que estão diante de nós, e que surgirão ao longo do caminho.
Nosso tempo é marcado pela pulverização do saber, é ambivalente, plural, diverso,
efêmero, imprevisível, está em constante mudança e expansão. Diante disso, uma
educação polifônica aberta ao diálogo, diversidade e ao “outro”, parece ser um
caminho inevitável e necessário.

Conclusão
A proposta visa analisar interlocutores que promovam o conceito de
interculturalidade na América Latina, seja em questões éticas, religiosas,
filosóficas e especialmente no campo educacional. Não obstante, a comunicação
pretende promover a ideia de que a educação intercultural na América-Latina, pode
se apresentar como caminho de transformação e ressignificação da educação
escolar, e para isso dever levar em conta o respeito à diversidade cultural, abertura
a novos saberes, epistemologias marginais, diferentes tradições e culturas,
apresentando um saber consciente que jamais pode ser fechado pois ele próprio se
constitui, justamente pelo contraste entre as diversas tradições humanas cuja a
carga só elas podem comunicar em um diálogo aberto e continuo (BETANCOURT,
1994).
Não estamos propondo um abandono total ao modelo praticado, mas uma
nova relação com o modelo educacional estabelecido até então e a proposta da
educação intercultural latino-americana. “Não se trata apenas de tolerância, mas de
um novo modo intercultural de conviver reciprocamente” (SALAS, 2010, p. 27). É a
busca de novos espaços novas formas de fazer educação, com base na interação, a
fim de criar um espaço comum de partilha e convivência. Queremos que a educação
intercultural latino-americana seja uma ferramenta de reflexão e ação dos povos
latino-americanos. Betancourt (1994, p. 19) argumenta que: “ o dialogo
intercultural nos parece ser hoje a alternativa histórica para empreendermos a
transformação dos modos de pensar vigentes. Bomfim (1993, p. 331) parece indicar

58
o caminho para sairmos de uma educação parasitária, ao dizer que: “Um povo não
pode progredir sem a instrução, que encaminha a educação e prepara a liberdade, o
dever, a ciência, o conforto, a arte e a moral”.
Pego emprestada uma citação de Frei Betto, pronunciada em conversa com
Paulo Freire: “Penso que o grande desafio do processo pedagógico é fazer com que
a cabeça do oprimido não seja mais hotel de opressor” (KOTSCHO, 1988, p. 39).
Partimos do pressuposto de que a interculturalidade na América Latina carrega em
seu bojo todo um aparato de libertação, emancipação, busca por justiça social, a
reciprocidade entre povos e culturas, a equidade, a solidariedade, respeito e
valorização do “outro” e as diferentes formas de conhecimento. Nossas lutas estão
longe de terminar, elas devem ser realizadas na arena política para sustentar um
currículo que inspire a diversidade (CANDAU, 2013).

Referências
BONFIM, Manoel. A América Latina: Males de origem. Rio de Janeiro. Topbooks.
1993.

CANDAU. Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas.


10 ed. Petrópolis (RJ). Editora Vozes. 2013.

SALAS, Astrain Ricardo. Ética intercultural: (re) leituras do pensamento latino-


americano. São Leopoldo. Nova Harmonia. 2010.

FORNET. Betancourt Raul. Questões de método para uma filosofia intercultural a


partir da Ibero-América. São Leopoldo. Ed. UNISINOS. 1994

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: três artigos que se completam. 52


edições. São Paulo. Editora Cortez. 2021.

INÊS, Ana Souza. Paulo Freire: vida e obra. Organizado por Ana Inês Souza. 2° Edição.
São Paulo. Expressão Popular. 2010

KOTSCHO, Ricardo. Paulo Freire e Frei Betto. Essa Escola Chamada Vida, Depoimento
ao repórter Ricardo Kotscho. São Paulo. Editora Ática. 1988

LAGO, Davi. Brasil polifônico: os evangélicos e as estruturas de poder. 1° ed. São


Paulo. Mundo Cristão. 2018.

MARTÍ, José. Educação em nossa América. Ed. Unijuí, (Coleção Fronteiras da


Educação). 2007

MARTÍ, José. Nossa América Antologia. Tradução. Maria Angélica de Almeida Trajber.
São Paulo. Editora: HUCITEC, 1983.

59
OLIVEIRA. Ivanilde Apoluceno de. Paulo Freire: gênese da educação intercultural no
Brasil. 1° Ed. Curitiba (PR). 2015.

TUBINO. Fidel Juan Ansion. Educar en Ciudadanía Intercultural. Fondo Editorial de


la Pontificia Universidad Católica del Perú. 2007.

TUBINO. Fidel. La praxis de la interculturalidad en los Estados Nacionales


Latinoamericanos Cuadernos Interculturales, vol. 3, núm. 5, julio-diciembre, 2005
Universidad de Playa Ancha Viña del Mar, Chile. Acesso em: 25.06.2023. Disponível
em: La praxis de la interculturalidad en los Estados Nacionales Latinoamericanos
(redalyc.org).

60
QUANTO MENOS, TANTO MAIS: HÁ NA LAUDATO SÍ’ UMA
PROPOSTA DE DECRESCIMENTO?

Chrystiano Gomes Ferraz1

Resumo: Diante da crise socioeconômica atual que coloca em questão os nossos modos de
vida, faz-se necessário repensar as lógicas e paradigmas que regem a nossa sociedade. A
ideia de Crescimento, atrelada exclusivamente ao fator econômico, medido pela capacidade
de produção dos países (Produto Interno Bruto – PIB), vem se mostrando uma ameaça à
vida na/da nossa Casa comum. Pensando na necessidade de um contraponto a tal modelo,
a presente comunicação pretendeu realizar uma breve leitura da Carta Encíclica Laudato Sí’
(2015), do Papa Francisco, buscando responder a seguinte questão: Há na Laudato Sí’ uma
proposta de Decrescimento? Primeiramente, apresentamos as ideias fundamentais da(s)
teoria(s) do Decrescimento, especialmente, a partir da contribuição de Serge Latouche.
Destacou-se a multidisciplinaridade do tema, que parte de diversas linhas de pensamento e
estão colocadas em oposição ao paradigma de crescimento econômico globalmente
estabelecido. Da encíclica de Francisco, destacamos que a ideia de Decrescimento aparece
explicitamente na carta (LS 193), na proposta de diálogo entre política e economia para
favorecer a plenitude humana. Entretanto, é através da espiritualidade cristã que o Papa
propõe uma “forma alternativa de entender a qualidade de vida” (LS 222), uma maneira
sóbria e feliz, que rechaça o lema consumista “crescer, crescer e crescer”, para estabelecer
uma nova convicção: “quanto menos, tanto mais” (LS 222).
Palavras-chave: Decrescimento; Ecologia Integral; Ecoteologia; Papa Francisco.

Introdução
A carta encíclica Laudato Si’ (2015), do Papa Francisco, descreve
cuidadosamente a nossa realidade enquanto sociedade. Acolhendo contribuições
diversas, de “inúmeros cientistas, filósofos, teólogos e organizações sociais” (LS 7),
o Papa expõe uma realidade de desesperança em relação ao presente e ao futuro da
nossa habitação comum. Nosso estilo de vida nos levou a uma crise sem precedentes
– e, provavelmente, sem remédios técnicos para conter a avalanche de
consequências.
Dentro dessa mentalidade destrutiva enraizada no interior do ser humano do
nosso tempo, está a ideia de Crescimento, estritamente vinculada à economia e à
máxima eficácia. Trata-se de uma lógica incompatível com a finitude de nossos

1Chrystiano Gomes Ferraz é bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil
(STBSB), mestre e doutorando em Teologia pelo Programa de Pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: chrysferraz@hotmail.com.

61
recursos naturais, sendo estabelecido um critério não sustentável para os anos
vindouros:
Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou
ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da
finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade
infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até ao limite e
para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que “existe
uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem
utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os
efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser
facilmente absorvidos” (LS 106).

Para que tal dinâmica se sustente, se faz necessário criar falsas necessidades
para que o consumo desenfreado dê conta de uma produção desnecessária. Pior
ainda é o fato desta produção não estar sendo disponibilizada para todos. Uma
imensa desigualdade social e econômica vem se instalando de maneira cruel e
global. Sofremos com as mudanças climáticas, com a fome e extrema pobreza, com
as inseguranças que atentam contra a paz e contra a vida em seu sentido mais amplo.
Uma verdadeira cultura do descarte se estabeleceu, onde se programa o fim precoce
de todas as coisas, convertendo rapidamente em lixo qualquer que seja o bem
disponível.
Tal cenário nos faz questionar os paradigmas que aí estão. Nesta breve
comunicação, pretendemos abrir caminho para colocarmos em questão a ideia de
Crescimento Econômico como paradigma estabelecido. Partimos do contraponto do
conceito de Decrescimento, para analisarmos o impulso da Laudato Sí’ para esta
outra forma de vida na Casa comum.

1. Breve Introdução ao conceito de Decrescimento


O termo décroissance (palavra francesa para decrescimento) foi usado pela
primeira vez pelo intelectual francês André Gorz, em 1972. Gorz fez uma pergunta
que permanece no centro do debate atual sobre Decrescimento: “O equilíbrio da
terra, para o qual o crescimento zero – ou mesmo o decrescimento – da produção
material é condição necessária, é compatível com a sobrevivência do sistema
capitalista? (GORZ, 1972, p. iv)” (D’ALISA; DEMARIA; KALLIS, 2016, p. 19). Tal
questionamento surge da desconfiança de um sistema que começa a mostrar suas
contradições internas de maneira avaçaladora.

62
A partir do otimismo gerado pela sensação de avanço cientifico-tecnológico,
propagado em alto em bom som pelas mass midias, a Modernidade consolidou-se na
ideia fixa de que o pretenso avanço carregava junto de si o aumento da qualidade de
vida das pessoas. Serge Latouche adverte:
A maioria dos economistas defende que não é verdade que não se
pode crescer ao infinito. O decrescimento não é o oposto simétrico
do crescimento. Os decrescentes querem fazer com que cresça a
qualidade da vida, do ar e de toda uma série de coisas que ‘o
crescimento pelo crescimento’ destruiu. Não se deve pensar na
‘revolução’ de outubro, mas em uma descolonização do imaginário.
É um processo muito mais longo, mas necessário. Não se faz isso da
noite para o dia. E não se da mesma maneira no Texas ou em
Chiapas. Deve-se inverter o paradigma. Devemos tratar a natureza
como um jardineiro: se destruirmos a natureza, destruímos a nós
mesmos (SERGE LATOUCHE, 2017, n.p.).

O Decrescimento é um movimento social que busca inverte essa lógica


perigosa que repete como um mantra: “crescimento, crescimento” (SERGE
LATOUCHE, 2017, n.p.) Através da propaganda em massa, dos tentáculos da
publicidade, vendem-nos um padrão de felicidade e satisfação baseado no consumo
desenfreado. Latouche afirma que o Decrescimento advoga por outro critério: Para
mudar é preciso seguir o que o autor chama de oito “Rs”. Ou “revalorizar”,
“reconceitualizar”, “reestruturar”, “redistribuir”, “relocalizar”, “reduzir”,
“reutilizar”, “reciclar” (SERGE LATOUCHE, 2017, n.p.)
Faz-se necessário valorizar outras dimensões da vida, sair deste
aprisionamento hierárquico que sobrepõe o fator econômico aos demais: “Não se
trata de abolir o mercado, mas sim a mercantilização de algumas coisas como o
trabalho. A terra não é uma mercadoria, mas um dom de Deus” (SERGE LATOUCHE,
2017, n.p.)
O Decrescimento nasceu como este ecossocialismo interpelador, bradando
contra a Cultura do descarte, da obsolescência programada, com a globalização da
indiferença em relação às vítimas de um sistema que ameaça atropelar quem não se
enquadra à sua lógica. O futuro do planeta está em risco. Tudo em nome de uma
ilusão que a todos afeta, vitoriosos e derrotados segundo seus padrões de sucesso.

2. A Laudato Sí’ e o decrescimento


Há na Laudato Sí’ uma proposta de decrescimento? Neste segundo momento,
queremos apontar para uma possível alternativa que nos chamou atenção na leitura

63
da encíclica do papa Francisco. Ainda que preliminarmente e de maneira
provocadora, queremos argumentar em favor de uma proposta de Decrescimento
presente na LS.
O autor Serge Latouche corrobora para essa possível leitura
Efetivamente, há a palavra decrescimento [na Laudato si’], mas em
um contexto particular, isto é, enfatiza-se que, em alguns países, é
necessário produzir menos e consumir menos. Eu acho que o papa
poderia concordar com a ideia de uma sociedade de prosperidade
sem crescimento (SERGE LATOUCHE, 2017, n.p.).

Segundo a avaliação do autor francês, decrescer e prosperar podem caminhar


juntos. É preciso desmitificar o Decrescimento econômico enquanto única
possibilidade de prosperidade. Desta maneira, a LS apresenta a sua perspectiva:
Assim, se nalguns casos o desenvolvimento sustentável implicará
novas modalidades para crescer, noutros casos – face ao crescimento
ganancioso e irresponsável, que se verificou ao longo de muitas
décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a
marcha, pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes
que seja tarde. Sabemos que é insustentável o comportamento
daqueles que consomem e destroem cada vez mais, enquanto outros
ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade humana. Por
isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo
nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa
crescer de forma saudável noutras partes. Bento XVI dizia que «é
preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas estejam
dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela
sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia e
melhorando as condições da sua utilização» (LS 193).

Não somente nos trechos isolados, mas a encíclica como um todo está
colocada no sentido do repensar o paradigma dominante. Seja ele o da tecnocracia
ou do Decrescimento, a LS é um apelo à sobriedade. Uma nova perspectiva de viver
pode emergir da espiritualidade:
A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a
qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e
contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado
pelo consumo. É importante adoptar um antigo ensinamento,
presente em distintas tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-
se da convicção de que «quanto menos, tanto mais». Com efeito, a
acumulação constante de possibilidades para consumir distrai o
coração e impede de dar o devido apreço a cada coisa e a cada
momento. Pelo contrário, tornar-se serenamente presente diante de
cada realidade, por mais pequena que seja, abre-nos muitas mais
possibilidades de compreensão e realização pessoal. A
espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma
capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade
que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as

64
possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos
nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar
a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres (LS 222).

Reflexões conclusivas
De maneira embrionária, tanto na explanação conceitual, tanto na análise de
uma proposta de Decrescimento na LS, nossa comunicação quer acender uma
pequena chama de urgência de necessidade de mudança. A constatação da falência
do que se estabeleceu ao longo das últimas décadas nos impulsiona a repensar a
vida. Seja por uma proposta de desaceleração ou de qualquer outra natureza, nos
parece evidente o imperativo da mudança interior, de nova consciência. A LS nos
alerta para tal. Que nossas reflexões no campo da teologia e das ciências da religião
favoreçam um novo tempo e uma nova mentalidade. Que a sobriedade feliz, que nos
permite acessar a alegria da vida em sua beleza mais singela. Que essa nova
convicção de que “quanto menos, tanto mais” (LS 222) é o bastante para satisfazer
nossos anseios.

Referências
D’ALISA, G.; DEMARIA, F.; KALLIS, G. (Orgs.). Decrescimento: vocabulário para um
novo mundo. Porto Alegre: Tomo, 2016.

FRANCISCO, P. Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São
Paulo: Paulus / Edições Loyola, 2015.

LATOUCHE, S. O Decrescimento segundo a Laudato Si’. IHU, 20 de março de 2017.


Disponível em: < https://www.ihu.unisinos.br/categorias/186-noticias-
2017/565926-serge-latouche-o-decrescimento-segundo-a-laudato-si >. Acesso
em: 10 de junho de 2023.

MURACA, B. Décroissance: A Project for a Radical Transformation of Society.


Environmental Values, Vol. 22, No. 2, special issue: Degrowth (April 2013), p. 147-
169 (23 pages).

65
ECOLOGIA E PEDAGOGIA DECOLONIAL: ITINERÁRIOS
PEDAGÓGICOS PARA UMA CIDADANIA ECOLÓGICA E ÉTICA

Clélia Peretti1

Resumo: Pensar a ecologia a partir da pedagogia decolonial, acompanhada das suas


práticas formativas que se dão em distintos modos e, espaços públicos e privados e em
diversos ambientes socais, significa respeitar e valorizar as diversas visões de mundo, de
construção de conhecimentos e seus critérios de validação fora dos padrões moderno,
colonial e europeu e dos modelos tecno econômicos e relativistas ao ser humano, à vida, à
sociedade e à relação com a natureza. A presente comunicação objetiva refletir sobre os
desafios culturais, espirituais e educativos propostos da Laudato Si’ Sobre o Cuidado da Casa
comum, do Papa Francisco (2015), e sobre itinerários pedagógicos para uma cidadania
ecológica e ética. Assim, aprofunda com base na pesquisa bibliográfica a “pedagogia
decolonial” como opção educativa para desenvolver uma consciência basilar que permita o
desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida para as novas gerações. A
situação do mundo atual gera um sentido de precariedade e insegurança, que, por sua vez,
favorece formas de egoísmo coletivo, crises ambientais, obsessão por um estilo de vida
consumista. A educação ambiental, é chamada a predispor-nos a dar um salto para o
Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo e criar uma
cidadania ecológica, incentivando comportamentos que têm incidência direta e importante
cuidado com o meio-ambiente a fim de recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico:
o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o
espiritual com Deus.
Palavra-chave: Ecologia; pedagogia decolonial; cidadania ecológica.; ética ecológica, estilos
de vida.

Introdução
A presente comunicação reflete sobre os desafios, espirituais e educativos
propostos na Carta Encíclica do Papa Francisco Laudato Si’ Sobre o Cuidado da Casa

1 Clélia Peretti, Clélia Peretti, Graduada em Pedagogia pela Libera Università Maria Santíssima
Assunta, Roma – Itália. Graduada em Magistério em Ciências Religiosas pelo Pontifício Ateneo
Antonianum, Roma – Itália. Licenciatura em Pedagogia pela Universidade do Sagrado Coração, Bauru
– SP, Brasil Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba-
PR. Licenciada em História pelo Centro Universitário Claretiano, Curitiba -PR. Especialista em Gestão
de Escolas pela PUCPR Mestre em Educação pela PUCPR. Especialista em Educação a Distância pela
Universidade de Brasília, UNB. Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia EST, São
Leopoldo-RS. Pós-doutorado em Fenomenologia pelo Centro Italiano di Ricerche Fenomenologiche e
Pontifícia Universidade Lateranense – Roma. Docente e pesquisadora no Curso do Bacharelado de
Teologia e no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Teologia – PPGT da PUCPR.
Líder do Grupo de Pesquisa: Teologia, Gênero e Educação e membro de demais grupos de Pesquisa.
Membro de International Academy of Practical Theology – IAPT- USA. Membro da ANTPECRE.
Membro do FONAPER. Presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. SOTER. Professora
Visitante na Universidade Católica de Moçambique. Professora Visitante Professora Visitante no
Instituto Superior de Filosofia e de Teologia Dom Jaime Garcia Goulart – Dili (Timor-Leste). Apoio do
CNPQ – vinculado ao projeto Religião, Política e Teologia no Espaço Público – E-mail:
clelia.peretti@pucpr.br.

66
comum (2015), para reordenar itinerários pedagógicos para uma cidadania
ecológica e ética.
O título da Encíclica Laudato Si’ (“Louvado Seja”), datada do dia 24 de maio
de 2015 e publicada em várias línguas, remete a uma frase do famoso “Cântico do
Irmão Sol”, de São Francisco de Assis, o padroeiro da ecologia. O subtítulo do
documento, “Sobre o Cuidado da Casa Comum”, refere-se à Terra como oikos
(“casa”), raiz grega da palavra ecologia, ao passo que o “cuidado” é uma prática
característica da Igreja Católica. Cabe enfatizar que o texto da Encíclica, foi
produzido ao longo de um ano e, em parceria com uma grande equipe de teólogos,
filósofos e cientistas. O texto revela não somente a autoridade moral do Papa
Francisco, mas, também, a sua pedagogia e familiaridade com conceitos e ideias da
ciência contemporânea.
Ao longo das últimas décadas, uma nova concepção da vida surgiu na
vanguarda da ciência – uma concepção unificadora, que integra as dimensões
biológica, cognitiva, social e ecológica da vida. No âmago dessa nova percepção da
vida reside uma profunda mudança de paradigmas: da visão do mundo como uma
máquina para a compreensão de que, na realidade, ele funciona como uma rede. Essa
nova ciência da vida tem sido estudada e defendida por renomados cientistas e
grupos de pesquisa ao redor do mundo, e seus conceitos e ideias estão integrados e
sintetizados no livro A Visão Sistêmica da Vida, escrito por Fritjof Capra e seu colega
Pier Luigi Luisi (publicado em 2014 pela Cambridge University Press e, no Brasil,
pela Editora Cultrix, em parceria com a Amana-Key).
A visão sistêmica da vida implica um novo modo de pensar, baseado em
conexões, relações, padrões e contextos. Na ciência, esse novo modo de pensar é
conhecido como “pensamento sistêmico”, e é essencial para a compreensão do
funcionamento de qualquer sistema vivo, seja ele um organismo, um sistema social
ou um ecossistema. E é essa visão sistêmica da vida que constitui a base conceitual
da Encíclica do Papa Francisco pela qual compreendemos o conjunto de práticas
epistêmicas de reconhecimento da opressão, mas, sobretudo, um paradigma outro
de compreensão do mundo, interessado a revelar e não esconder, as contradições
geradas pela modernidade/colonialidade, em diálogo crítico com teorias europeias,
mas elaborado, fundamentalmente, a partir de uma perspectiva não eurocêntrica do

67
mundo, atenta as realidades vividas e aos seus conhecimentos, às suas culturas e às
suas estratégias de lutas.
Na encíclica Papa Francisco postula uma ética radical expressa em linguagem
teológica é, em sua essência a ética da ecologia profunda, pensada a partir da linha
filosófica criada pelo filósofo e ecologista norueguês Arne Naess2 na década de 1970.
Papa Francisco, revela também, em sua Encíclica, um verdadeiro pensador
sistêmico. A seguir, discutiremos alguns temas essenciais que emergiram da análise
do documento, tais como: ética e bem comum; ciência e religião; integridade
ecológica; o estado do mundo; a ilusão do crescimento ilimitado e a desigualdade
social.

1. Ética e bem comum


Pela perspectiva sistêmica, o comportamento ético está sempre relacionado
à comunidade; trata-se do comportamento em prol do bem comum. Nos dias de hoje,
existem duas comunidades relevantes às quais todos nós, seres humanos,
pertencemos: somos todos membros da humanidade e somos todos membros da
Família Terra, a biosfera global. Como membros da comunidade humana, nossos
comportamentos devem refletir o respeito pela dignidade e pelos direitos humanos.
Como membros da Família Terra, nossa “casa comum”, não devemos
interferir na capacidade da natureza de sustentar a vida. Esse é o significado básico
da sustentabilidade ecológica. A característica que define a ecologia profunda é a
mudança dos valores antropocêntricos (centrados no ser humano) para os valores
“ecocêntricos” (centrados na natureza como um todo). Trata-se de uma visão de
mundo que reconhece o valor inerente de todas as formas de vida e considera todos
os seres vivos como membros da comunidade da biosfera global, ligados em redes
de interdependência.
Essas novas premissas e o sistema ético radicalmente novo que elas
constroem estão claramente expressos na Encíclica, como demonstram os trechos a
seguir: “A ecologia integral é inseparável da noção de bem comum, princípio este

2 Arne Dekke Eide Næss (Slemdal, 27 de janeiro de 1912 – Oslo, 12 de janeiro de 2009) foi um
filósofo e ecologista norueguês, famoso por ter cunhado o termo “deep ecology” (ecologia
profunda). Foi um importante intelectual e uma figura inspiradora para o movimento
ambientalista do fim do século XX. Næss cita o livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson, como
uma grande influência em sua visão da ecologia profunda. O filósofo combina sua visão ecológica
com não-violência Gandhiana e, em diversas ocasiões, participou em ações diretas.

68
que desempenha um papel central e unificador na ética social” (LS 156). Por sua vez,
“o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e
responsabilidade de todos. Quem possui uma parte da natureza a possui apenas
para administrá-la em benefício de todos” (LS 95). Sendo assim, “toda a sociedade –
e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem
comum” (LS 157).
Nesse sentido, o progresso humano autêntico possui um carácter moral e
pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também
ao mundo natural e “levar em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas
entre todos, num sistema ordenado” (LS 5). O documento afirma que “[...] não basta
pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais ‘recursos’ exploráveis,
esquecendo que possuem um valor em si mesmas […] Por nossa causa, milhares de
espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-
nos a sua própria mensagem. Não temos direito de fazer isso”.
A esse propósito, n. 42 nos assegura “que todas as criaturas estão
interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e
todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros”. Sobre a noção de bem comum,
o número 159 afirma que esse engloba também as gerações futuras. Por sua vez,
aponta:
as crises econômicas internacionais mostrando, de forma atroz, os
efeitos nocivos que traz consigo o desconhecimento de um destino
comum, do qual não podem ser excluídos aqueles que virão depois
de nós. Já não se pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma
solidariedade intergeracional. […] Não estamos falando de uma
atitude opcional, mas de uma questão essencial de justiça, pois a
terra que recebemos pertence também àqueles que ainda estão por
vir.

A grande dificuldade em levar a sério esse desafio tem a ver tem a ver “com
uma deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica” (LS
162). Os valores da ecologia profunda e suas implicações na construção de um
mundo justo, sustentável e pacífico estão elaborados nos dezesseis princípios éticos
expressos na Carta da Terra, um documento único mencionado pelo Papa Francisco
como uma importante fonte de inspiração para todos:

A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a começar de novo


abandonando uma etapa de autodestruição, mas ainda não
desenvolvemos uma consciência universal que torne isso possível.

69
Por isso, atrevo-me a propor de novo aquele considerável desafio:
‘Como nunca na história, o destino comum obriga-nos a procurar um
novo início [...]. Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de
uma nova reverência diante da vida, pelo firme compromisso de
alcançar a sustentabilidade, a intensificação dos esforços pela justiça
e pela paz e a alegre celebração da vida’ (LS 207).

2. Ciência e religião
É impressionante perceber que, ao longo do documento, o Papa Francisco se
utiliza da linguagem científica contemporânea com uma facilidade admirável.
Termos técnicos como “paradigma”, “reducionismo”, “microorganismos”,
“partículas subatômicas”, “salto quântico” etc. são citados várias vezes. Para citar um
exemplo, no número 18 do documento, o Papa ressalta o contraste entre o ritmo
acelerado da vida moderna e o (muito mais lento) ritmo da evolução natural,
dizendo:
Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos,
a velocidade que hoje lhe impõem as ações humanas contrasta com
a lentidão natural da evolução biológica. Na visão dos cristãos
ultraconservadores, que não aceitam a Teoria da Evolução, uma
referência tão pragmática à evolução biológica pode parecer
controversa e questionável.

Entretanto, no início de sua análise, Francisco faz uma afirmação com base
na ciência pura:
Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da
atual crise ecológica, com o objetivo de assumir os melhores frutos
da pesquisa científica atualmente disponível, deixar-se tocar por ela
em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e
espiritual seguido. Na história do cristianismo, afirmações teológicas
sobre a natureza do mundo e dos seres humanos têm sido
consideradas verdades universais e quaisquer tentativas de
questioná-las ou modificá-las têm sido tomadas como heréticas. Essa
rígida postura da Igreja acabou por causar os conhecidos conflitos
que se estendem até os dias atuais, entre a ciência e o Cristianismo
fundamentalista? Nesses conflitos, posições antagônicas são
comumente adotadas por radicais de ambos os lados, que não levam
em conta, por um lado, o caráter limitado e aproximado de todas as
teorias científicas e, por outro, a linguagem simbólica e metafórica
das escrituras religiosas (LS 15).

O Papa Francisco consciente desse problema enfatiza explicitamente a


natureza simbólica da linguagem religiosa, afirmando que “as narrações da criação
no livro do Gênesis contêm, na sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos
profundos sobre a existência humana e a sua realidade histórica” (LS 66). Dessa

70
maneira, faz uso da linguagem religiosa principalmente em referência ao tema da
ética, argumentando que o cuidado com o bem comum é fundamental, seja ele
motivado por uma crença religiosa ou não (LS 199. “É ingênuo pensar que os
princípios éticos possam ser apresentados de modo puramente abstrato, desligados
de todo o contexto, e o fato de aparecerem com uma linguagem religiosa não lhes
tira valor algum no debate público. Os princípios éticos que a razão é capaz de
perceber sempre podem reaparecer sob distintas roupagens e expressos com
linguagens diferentes, incluindo a religiosa” (LS 199).

3. Integridade ecológica
A visão sistêmica da vida – que integra as dimensões biológica, cognitiva,
social e ecológica – está implícita no arcabouço conceitual apresentado na Encíclica.
Desse modo, o Papa afirma com convicção que para solucionar nossos maiores
problemas globais será necessária uma nova forma de pensar e que esta pressupõe
o pensamento baseado em conexões e relações.
Em outras palavras, no pensamento sistêmico, “a educação será ineficaz e os
seus esforços estéreis, se não se preocupar também em difundir um novo modelo
relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza (LS 215). No
nosso universo, composto por sistemas abertos, interligados uns com os outros,
“podemos descobrir inúmeras formas de relação e participação” (LS 79). Tudo está
interligado. “O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem os próprios
átomos ou as partículas subatômicas se podem considerar separadamente” (LS
138).
O Papa Francisco utiliza o termo “ecologia integral” para se referir a essa
abordagem sistêmica e enfatiza a interdependência das questões ambientais e
sociais, além da necessidade de se respeitar e honrar culturas locais e indígenas.
Sobre isso, afirma:
Dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas
atuais requerem um olhar que leve em conta todos os aspectos da
crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a refletir sobre
os diferentes elementos de uma ecologia integral, que inclua
claramente as dimensões humanas e sociais (LS 137).

Para Francisco a abordagem ecológica deverá sempre incluir uma


abordagem social, pois essa “deve integrar a justiça nos debates sobre o meio

71
ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (LS 49). Do
mesmo modo, Francisco inclui na abordagem ecológica o cuidado com patrimônio
natural, histórico, artístico e cultural. “Por isso, a ecologia envolve também o cuidado
com as riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo” (LS143).
“Nesse sentido, é indispensável prestar atenção especial às comunidades aborígenes
com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas
devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com
grandes projetos que afetam os seus espaços (LS 146).
No documento, o Papa não só dá ênfase à ética e aos valores da ecologia
profunda como também apresenta sua própria “alfabetização ecológica”, seu
entendimento dos princípios de organização dos sistemas naturais. Vejamos a
seguir alguns exemplos: a extinção das espécies animais e vegetais; funcionamento
dos ecossistemas naturais e a interligação dos ecossistemas.
Possivelmente perturba-nos saber da extinção de um mamífero ou
de uma ave, pela sua maior visibilidade; mas, para o bom
funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos,
as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e a variedade
inumerável de microorganismos (LS 34).
Custa-nos reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas
naturais é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que
alimentam os herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os
carnívoros, que fornecem significativas quantidades de resíduos
orgânicos, que dão origem a uma nova geração de vegetais (LS 22).
Convém recordar que os ecossistemas intervêm na retenção do
dióxido de carbono, na purificação da água, na contraposição a
doenças e pragas, na composição do solo, na decomposição dos
resíduos, e muitíssimos outros serviços que esquecemos ou
ignoramos [..]. Por isso, quando se fala de “uso sustentável”, é preciso
incluir sempre uma consideração sobre a capacidade regenerativa de
cada ecossistema nos seus diversos setores e aspectos (LS 140).

Todos nós, embora não tenhamos consciência disso, dependemos desse


conjunto para a nossa própria existência.

Considerações finais
Na carta Encíclica, no primeiro capítulo, o Papa no primeiro, apresenta sua
avaliação do estado do mundo, do que está acontecendo com a nossa “casa comum”.
Atualmente, há um amplo consenso entre acadêmicos, líderes comunitários e
ativistas de que os maiores problemas do nosso tempo (energia, meio ambiente,
mudanças climáticas, desigualdades, violência e guerras) não podem ser

72
compreendidos e analisados isoladamente. Eles são problemas sistêmicos, o que
significa que estão interconectados e são interdependentes.
O Papa Francisco está absolutamente de acordo que “os problemas do mundo
não se podem analisar nem explicar de forma isolada” (LS 61), mas deve levar em
conta as diferentes crises ambientais e sociais. Para superar a complexa crise
socioambiental (LS 139), é necessário superar a “lógica que dificulta a tomada de
decisões drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global [pois] essa é a a
mesma que não permite cumprir o objetivo de erradicar a pobreza” (LS 175). O fato
de que os grandes problemas da atualidade são sistêmicos implica na necessidade
de encontrarmos soluções sistêmicas correspondentes, soluções capazes não só de
sanar um problema isolado, mas também combatê-lo no contexto de outros
problemas relacionados. Infelizmente, isso não é completamente compreendido por
nossos líderes políticos e coorporativos, que, em sua maioria, não se mostram
capazes de “ligar os pontos”. É fundamental nos unirmos e focar para problema reais
e concretos como a produção demais energia às custas da biodiversidade, da saúde
pública e da estabilidade climática).
Desse modo, seremos capazes de reconhecer que o pensamento sistêmico ou
a “ecologia integral”, é intrinsicamente multidisciplinar, isto é, na busca de soluções
para nossos maiores problemas globais: “a fragmentação do saber realiza a sua
função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a
perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do
horizonte ampliado: um sentido que se torna irrelevante (LS 110). Essa postura
impede a descoberta de caminhos adequados para resolver os problemas mais
complexos do mundo atual, sobretudo os do meio ambiente e da pobreza, os quais
não se podem enfrentar a partir de uma única perspectiva nem de um único tipo de
interesses.
É necessário de uma visão ampla que “leve adiante uma reformulação
integral, abrangendo em um diálogo interdisciplinar os vários aspectos da crise” (LS
197).
Cabe, desse modo pensar a “complexidade da crise ecológica e as suas
múltiplas causas [...] e, reconhecer que as soluções não podem vir de uma única
maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às

73
diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à
espiritualidade” (LS 63).

Referências
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’. São Paulo: Paulinas, 2015.

CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia, 2015. (eBook Kindle.)

CAPRA, Fritjof, Luisi, Pier Luigi. A Visão Sistêmica da Vida: Uma Concepção Unificada
E Suas Implicações Filosóficas, Políticas, Sociais E Econômica. São Paulo: Cutrix,
2014.

74
PASTORAL DA ECOLOGIA INTEGRAL, CRISE ECOLÓGICA NO
CAPITULO III DA LAUDATO SI E O PROJETO PLÁSTICO ZERO

Fabio Augusto Welter1

Resumo: O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si, destaca o paradigma tecnocrático como
elemento fundamental da crise ambiental. Mais que uma crise ambiental, é uma crise da
humanidade. Frente a essa realidade, acontece a implantação da Pastoral da Ecologia
Integral no empenho de uma ação evangelizadora na perspectiva do acompanhamento de
pessoas e iniciativas que visem uma sensibilização e ao mesmo tempo transformação de
realidades concretas. Essa Pastoral se mostra como oportunidade de enfrentamento dessa
crise da humanidade, de modo particular, no cultivo da proximidade humana e exercício da
ternura, que se abrem também como espaços de diálogo em nível ecumênico baseados nos
valores do cuidado e da profissão de fé comum: “Creio em Deus Pai... criador dos céus e da
terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. “É fundamental buscar soluções integrais que
considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há
duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única crise socioambiental.
As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza,
devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139). O
projeto piloto da Pastoral da Ecologia “Lixo Zero chamado PLASTICO SOCIAL”, no bairro
Três Lagoas, na cidade de Foz do Iguaçu, tem se mostrado eficaz, estabelecendo parceria
com as CEBS, num trabalho de formação descentralizado em pequenos grupos e da ação
concreta de coleta de plástico de porta em porta e conscientização acerca da coleta seletiva
de lixo.

Palavras-chave: Laudato Si; Lixo Zero; Pastoral da Ecologia Integral; ecoteologia.

Introdução
A Solenidade de Pentecostes de 2015 foi um verdadeiro memorial histórico-
salvífico que se evidencia nos binômios: “veio do céu um ruído como o agitar-se de
um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa” (At 2,2) x Carta Encíclica do Papa
Francisco Laudato Sí sobre o cuidado da casa comum; “e todos ficaram repletos do
Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas” (At 2,3) x “quero dirigir-me a
cada pessoa que habita neste planeta” (LS 3). Essa ação do Espírito colocou em curso
um movimento extremamente significativo e, por que não dizer, revolucionário, ao
dar um grande passo na Doutrina social da Igreja Católica convocando a assumir a

1Presbítero da Diocese de Foz do Iguaçu, Coordenador da Ação Evangelizadora com especialização


em Teologia Bíblica, Mestrado em andamento em Teologia Sistemático-Pastoral pela PUC-Rio. E-
mail: pe.fabio.foz@gmail.com.

75
Ecologia Integral como um novo paradigma de relacionamento entre o ser humano
e toda a criação.
Além disso, uniu passo com outros cristãos e pessoas de boa vontade que já
faziam caminho. Poucos meses depois de publicar sua encíclica Laudato Si’ sobre o
cuidado da nossa casa comum, em 2015, o Papa Francisco acrescentou formalmente
o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação2 no calendário católico como um
dia anual de oração, partilhando em sintonia ecumênica a iniciativa dos cristãos
ortodoxos já iniciada em 1989.
No ano passado, o Papa Francisco convidou oficialmente os católicos a
celebrarem o período completo. No último dia 30 de agosto, ao motivar o “Tempo
Ecumênico da Criação” que teve início no dia primeiro de setembro e que neste ano
tem como tema “Que jorrem a justiça e a paz”, o Papa anunciou que uma segunda
parte da Laudato Si’ será publicada na forma de Exortação Apostólica em 4 de
outubro, festa de São Francisco de Assis, que conclui o Tempo ecumênico da Criação.
Estudar a temática da ecologia é fascinante e recorda que a humanidade foi
descobrindo que isso não é uma questão secundária, pois só temos essa casa para
habitar. Olhar com cuidado essa temática é a oportunidade de se reencantar com o
mundo, do qual não somos proprietários, mas inquilinos. Por isso, a atitude de
admiração e respeito e recuperar as inspirações da Laudato Si’ sobre a fraternidade
e beleza na nossa relação com mundo. A recepção criativa da Laudato Si’ já produziu
inúmeras iniciativas, reflexões, aprofundamentos, seja no intuito de compreender o
INTEGRAL, seja de iniciativas locais, regionais e de âmbito geral. É com essas
disposições que a Igreja do Brasil tem assumido e trabalhado cada vez mais na
implantação de uma Pastoral da Ecologia Integral no empenho de uma ação
evangelizadora na perspectiva do acompanhamento de pessoas e iniciativas que
visem uma sensibilização e ao mesmo tempo transformação de realidades
concretas. Nesse tempo de crise, que o Papa Francisco nomeia como crise do
paradigma tecnocrático, a Pastoral se mostra como oportunidade de enfrentamento
dessa crise da humanidade, de modo particular, no cultivo da proximidade humana
e exercício da ternura, que se abrem também como espaços de diálogo em nível

2 É um momento para refletir sobre a nossa relação com o ambiente – não apenas a natureza
“distante”, mas, crucialmente, o lugar onde vivemos – e as formas pelas quais os nossos estilos de
vida e decisões como sociedade podem colocar em perigo o mundo natural e aqueles que o habitam,
tanto humanos quanto outras criaturas.

76
ecumênico baseados nos valores do cuidado e da profissão de fé comum: “Creio em
Deus Pai... criador dos céus e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”
(RIMMER, 2020, p. 1).
Algumas provocações: Como influenciar a realidade concreta? Como levar e
aproximar das pessoas essas reflexões fundamentais da fé? A quem incomoda as
provocações da Laudato Si e porque as suas propostas são desqualificadas? A crise
que ela aponta é incômoda? Como criar uma familiaridade com essas preocupações?
Como atualizar esses questionamentos nas questões práticas de nossa pastoral?
Como relacionar fé e cuidado? (cuidar da vida parece ser sempre classificado com
ideológico).

1. Pastoral quer dizer cuidado, com lugar e rosto concreto


A Igreja tem uma responsabilidade em relação à criação e Ela (a
Igreja) considera sua obrigação, seu dever exercer essa
responsabilidade na vida pública, visando proteger a terra, a água
e o ar, como presentes de Deus, o Criador. Isto significa que para
todos e, acima de tudo, é dever nosso (como cristãos) salvar a
humanidade de sua própria destruição (Papa Bento XVI, Mensagem
no Dia Mundial da PAZ, 01 de Janeiro de 2010).

Se a Laudato Si’ nos ofereceu pistas para uma reflexão e ação mais profunda
como elemento fundamental da nossa fé, a Igreja no Brasil já apresenta um histórico
de passos concretos na relação entre fé e cuidado da criação. Vale a pena destacar as
Campanhas da Fraternidade3, realizadas no período quaresmal, e que se estendem
ao longo do ano com projetos e reflexões que iluminam outros momentos da vida
eclesial.
O pensamento cristão não admite contradição entre o valor peculiar de cada
pessoa humana e o valor próprio das outras criaturas. Por isso afirma “que para uma
relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social
do ser humano nem a sua dimensão transcendente, sua abertura ao Tu divino (LS
119). São justamente essas relações entre os organismos vivos e o meio ambiente
onde se desenvolvem que exigem sentar-se a “pensar e discutir acerca das condições

31979 Por um mundo mais humano. Preserve o que é de todos; 1986 Fraternidade e terra. Terra de
Deus, terra de irmãos; 2002 Fraternidade e povos indígenas. Por uma terra sem males; 2004
Fraternidade e água. Água, fonte de vida; 2007 Fraternidade e Amazônia. Vida e missão neste chão;
2008 Fraternidade e a defesa da vida; 2011 Fraternidade e a vida no planeta; 2016 Casa Comum,
nossa responsabilidade; 2017 Fraternidade e biomas brasileiros e a defesa da vida: cultivar e cuidar
a criação.

77
de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr em questão
modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que
tudo está interligado” (LS 138).
Assim, o foco dessa pastoral é despertar a consciência quanto à importância da
ecologia integral entre os fiéis católicos e também os não católicos, estimulando a
conversão ecológica, enfatizando a dimensão da espiritualidade ecológica e a
cidadania sócio-ambiental. Estamos falando de uma Pastoral que coloca as questões
e os desafios sócio-econômicos e ambientais no contexto da fé cristã, ou seja,
iluminados pela luz da evangelização, inserida no contexto da ação sócio-
transformadora da Igreja no Brasil e por uma espiritualidade engajada e numa
ecoteologia. Outro princípio para ações concretas é a busca de soluções integrais,
que levem em conta os elementos naturais e sociais.

2. Por um novo paradigma de humanidade


Ao vincular clamor da Terra e clamor dos Pobres, a Laudato Si’ dá um grande
passo na questão social da Igreja. Um dos problemas é a questão antropocêntrica,
que dificulta a inclusão da humanidade na grande comunidade de vida do nosso
planeta. Isso se expressa, quase que como um refrão constantemente repetido na
Encíclica: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem
ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos
debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor
dos pobres” (LS 49).
O Papa deixa claro que essa crise não é fortuita, porque é provocada por um
sistema que causa tanto a deterioração do ambiente quanto a opressão dos setores
empobrecidos: “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas
uma única e complexa crise socioambiental [...] requerem uma abordagem integral
para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente,
cuidar da natureza” (LS 139)
Ao tratar das causas da crise ecológica na Encíclica Laudato Si’, o Papa
Francisco nos faz olhar alguns elementos que apontam que não basta um simples
olhar para a natureza e insiste que é necessário olhar também para o ser humano,
porque lhe é essencial viver a relacionalidade. Com duas afirmações contundentes
nos alerta que “a falta de reações diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é

78
um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre
o qual se funda toda a sociedade civil” (LS 225); e pouco mais a frente diz que “assim
se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a
degradação humana e ética” (LS 56) porque hoje, “qualquer realidade que seja frágil,
como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta” (EG 56).
Na Laudato Si’, o Papa Francisco afirma que há um modo desordenado de
conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a
arruinar e por isso, ao falar do paradigma tecnocrático, sugere que se faça algumas
perguntas para compreender também essa crise de humanidade que leva também
uma crise de fé.
A primeira delas é: há verdadeira autonomia do ser humano? Somos
herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças. Somos levados a
acreditar que pelo aumento do progresso e dos elementos a ele ligados (segurança,
utilidade, bem-estar) o bem e a verdade desabrochem espontaneamente do poder
da tecnologia e da economia. Constata que o imenso crescimento tecnológico não foi
acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade,
aos valores, à consciência. E conclui: “O ser humano não é plenamente autônomo. A
sua liberdade adoece quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das
necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal” (LS 105).
A segunda pergunta: o paradigma tecnocrático responde todas as questões
da humanidade? A humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento como
paradigma homogêneo e unidimensional, que leva a um reducionismo em colocá-lo
como norma absoluta:
Uma ciência que pretenda oferecer soluções para os grandes
problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o
conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia
e a ética social. Mas este é atualmente um procedimento difícil de
seguir. Por isso, também não se consegue reconhecer verdadeiros
horizontes éticos de referência. A vida passa a ser uma rendição às
circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como o
recurso principal para interpretar a existência. Na realidade
concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que
mostram o erro, tais como a degradação ambiental, a ansiedade, a
perda do sentido da vida e da convivência social. Assim se
demonstra uma vez mais que “a realidade é superior à ideia” (LS
110).

79
A terceira pergunta: Não seria o poder objetivador do antropocentrismo uma
razão da crise de Deus? Francisco parte da afirmação de que o antropocentrismo
moderno acabou, parodoxalmente, colocando a razão técnica acima da realidade.
Esse excesso antropocêntrico continua minando toda a referência a algo comum e
qualquer tentativa de reforçar os laços sociais. Se o ser humano se declara autônomo
da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua
existência. Isso se caracteriza como uma “esquizofrenia permanente, que se estende
da exaltação tecnocrática, que não reconhece aos outros seres um valor próprio, até
à reação de negar qualquer valor peculiar ao ser humano” (LS 118).

3. A Ecologia integral assumida como pastoral


A Igreja deve empenhar-se em fazer ressoar o grito da Criação e, como São
Francisco, propor uma nova forma de relacionamento com nossa irmã Terra,
levando a uma verdadeira conversão ecológica, como afirma a Laudato Si’. As
pastorais surgem de uma análise da realidade e das necessidades que os fiéis
sentem em relação aos principais desafios desta realidade em que vivem (SILVA,
2021)4. No campo teológico, desenvolveu-se um aspecto significativo de
compreensão dessa relação entre a Teologia e a Ecologia que é a Ecoteologia.
Como um empenho na recepção e acolhida da Encíclica Laudato Si’ do Papa
Francisco, a Igreja do Brasil tem se empenhado na organização da Pastoral da
Ecologia Integral. Certamente terá como finalidade e objetivo geral a Evangelização
e Acompanhamento Pastoral das pessoas e comunidades envolvidas e
comprometidas com o Cuidado da Casa Comum, desenvolvendo processos de
sensibilização, compreensão, formação e transformação; na visão de Ecologia
Integral da Encíclica Laudato Si’, enfatizou Dom Roberto Francisco Ferreria Paz,
Bispo de Campos (RJ)5.
Será importante manter um diálogo constante e aberto com a sociedade civil
e o poder público facilitando parcerias, articulação e coordenação de comunidades
e campanhas que compartilhem estes critérios de animação pastoral, tornar a

4SILVA, Juacy. Pastoral da Ecologia Integral: bases, fundamentos, objetivos e ações. Disponível em:
https://www.sapicua.com.br/pastoral-da-ecologia-integral-bases-fundamentos-objetivos-e-acoes
Acessado dia 19/09/2023.
5 Dom Roberto Francisco Ferreria Paz. A PASTORAL DA ECOLOGIA INTEGRA. In.:

https://www.cnbb.org.br/a-pastoral-da-ecologia-integral/ Acessado em 12 de agosto de 2023.

80
Ecologia Integral uma linha de pensamento e ação que perpasse todas as dimensões
pastorais, em especial a presença pública da Igreja em sua atuação sócio-
transformadora, e sempre oferecer um trabalho de educação na proposta de
Ecologia Integral integrando sua Espiritualidade. Além disso, e não menos
importante, o diálogo inter-religioso, possibilitado pela reflexão Ecoteológica,
irmana os esforços no cuidado da casa comum, justamente porque tem um credo
comum.

4. Projeto Lixo Zero


Há sinais de que a Laudato Si’ e um conjunto de ações começam vislumbrar
vários frutos em várias dimensões: “Estas ações não resolvem os problemas globais,
mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como
foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de
generosidade, solidariedade e desvelo” (LS 58). Exemplo de ações que já vinham
sendo implementadas na região é o projeto Cultivando Água Boa6, da Itaipu
Binancional.
A partir das iniciativas militantes do movimento Focolares, do Instituto Lixo
Zero, da Coordenação Diocesana das CEBS e a Ação Evangelizadora, iniciou na
Diocese de Foz do Iguaçu, situada no oeste do Paraná, algumas iniciativas
embrionárias de Pastoral da Ecologia integral. A primeira iniciativa foram 15
encontros de formação sobre o tema setorizados nas 28 paróquias da Diocese. No
mês de outubro, a Paróquia São Pedro, na cidade de Foz do Iguaçu, quis colocar
imediatamente em pratica essas provocações. Desta forma, se aplicou o projeto
piloto Lixo Zero chamado PLASTICO SOCIAL, no bairro Três Lagoas. É um projeto de
coleta porta-a-porta de plástico (somente plástico), com o objetivo de incentivar a
correta separação dos resíduos recicláveis plásticos gerados nas residências,
garantindo que seja reciclado e transformado em renda para os catadores de
materiais recicláveis ou entidades envolvidas. Tivemos como RESULTADOS:
recolhimento de 27Kg de plástico – 18 famílias envolvidas no projeto – tendo
duração de projeto de 15 dias. Na avaliação dos resultados dessa iniciativa, o

6 Em 2003, a Itaipu criou o programa Cultivando Água Boa (CAB), um conjunto de iniciativas
socioambientais baseadas em documentos nacionais e planetários e relacionadas com a segurança
hídrica da região, com a conservação dos recursos naturais e da biodiversidade, e com a promoção
da qualidade de vida nas comunidades na área de influência da usina.

81
Conselhos Paroquial de Pastoral da Paróquia assumiu o planejamento de ações para
2023.
Para 2023, além das ações específicas na Paróquia São Pedro, a coordenação
diocesana da Pastoral da Ecologia Integral e das CEBS propões a avançar em 3
direções:
a) Formações Interparoquiais com o tema: O que é a economia de Francisco
e Clara? – ao identificando a necessidade de aprofundar o conhecimento em uma
proposta de modelo econômica alinhado em potencializar o andamento das ações
socioambientais já iniciadas;
b) EcoPonto – Com objetivo de interconectar as iniciativas de coletas
voluntarias de resíduos já existente em nossas paroquias. Instalar EcoPontos, de
modo cooperativo entre as empresas coletoras e as recicladoras que realizam a
logística deste material. Assim promoveremos em nossas comunidades a cultura de
uma responsabilidade na destinação adequada dos resíduos;
c) Calendário pedagógico7 – No intuito em fomentar a conversão ecológica
cada vez mais, aplicaremos me modo projeto piloto, na Paroquia São Pedro (3
Lagoas) o calendário pedagógico de ações do Instituto Lixo Zero Brasil, aliado as
ações já existentes na paroquia;

Concluindo
A Ecoteologia recupera essa visão fundamental da fé no olhar ecológico não
apenas exterior, mas reconhecer a graça de Deus na história e na vida, numa
linguagem de pertencimento, como elemento fundamental para pensar a vida e a fé.
Ecoteologia ajuda a não valer-nos apenas de conceitos dogmáticos, mas
também da abertura a vida e às relações com as pessoas e as criaturas. Por isso, o
cuidado da casa comum é para todos, aberto, dialogal, ecumênico. É pensar grande,
é pensar com os outros e colocar em comum as contribuições. Isso acontece porque
é a fé pessoal que move a essa abertura e a esse acolhimento. Estar com os outros,
crescer na fraternidade, construir juntos. A religião é para ser colocada a serviço de
todos, aberta a todos e a todas as necessidades. Não é trabalho em benefício próprio.

7Calendário pedagógico de ações do Instituto Lixo Zero: Março: Atitude Cidadã; Maio: Semana da
Compostagem; Junho: Encontro Lixo Zero Melhores Práticas; Agosto: Dia Lixo Zero; Outubro: Semana
Lixo Zero.

82
É uma ação pastoral de estar uns com os outros, e os outros podem ser ou não
cristãos, ser de diferentes experiencias cristãs, deixar que o diálogo teológico
ilumine a doutrina.
Foi a prática formativa descentralizada que levou a compromissos concretos,
como forma de testemunho da fé, numa realidade concreta.

Referências
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2001.

FRANCISCO, P. Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa. São Paulo: Loyola,
2015.

FRANCISCO, P. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do


Evangelho no mundo atual. São Paulo: Loyola, 2013.

OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. A difícil integração humana na comunidade de vida da


Terra. In. MURAD, Afonso; TAVARES, Sinivaldo Silva. Cuidar da casa comum – Chaves
de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si (p. 90-102).

PAZ. Roberto Francisco Ferreria. A PASTORAL DA ECOLOGIA INTEGRA. In.:


https://www.cnbb.org.br/a-pastoral-da-ecologia-integral/ Acesso em 12 de agosto
de 2023.

RIMMER, Chad, The ecumenical promise of eco-theology. Consensus, vol. 41, Issue 1:
Sustainability and Religion, 2020, p. 1-3.

SILVA, Juacy. Pastoral da Ecologia Integral: bases, fundamentos, objetivos e ações.


Disponível em: https://www.sapicua.com.br/pastoral-da-ecologia-integral-bases-
fundamentos-objetivos-e-acoes Acesso em 19 de setembro de 2023.

83
BUSCA DE PERSPECTIVA PARA FALAR SOBRE SEXUALIDADE NA
IGREJA

Kathleen Vieira1

Resumo: A história da sexualidade é relevante para compreender as novas configurações


familiares e a formação da personalidade. A sociedade é caracterizada pela fluidez,
consumismo, resultando em indivíduos frágeis. A sexualidade é valorizada pelo prazer, leva
ao individualismo e considera o outro como objeto. A discussão sobre sexualidade é objeto
de discussão pública, sendo a educação sexual necessária para a formação da pessoa nas
suas diferentes dimensões: humana, psicofísica e espiritual. O objetivo dessa pesquisa
consistiu em verificar como as pessoas compreendem a sexualidade no processo formativo
de modo especial no Itinerário da Iniciação Cristã. A metodologia é de caráter bibliográfico,
descritivo-analítico, debreou-se de modo especial nos documentos da Igreja Católica, e
também foi realizada uma pesquisa quantitativa. A Igreja avançou na compreensão da
sexualidade, considerando-a não apenas no contexto do matrimônio, mas também no
desenvolvimento afetivo e humano. Todavia, a Igreja ainda precisa avançar para superar
visões reducionistas. A sociedade está imersa em discursos ambíguos, apelativos e
problemáticos sobre a sexualidade, e as pessoas estão sujeitas a essas influências. A
educação sobre sexualidade visa desconstruir tabus e reconstruir conceitos e valores. A
inserção desse tema na educação da fé contribui para a prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis, gravidezes precoces, abortos e abusos sexuais infantis. Para tanto, é
fundamental a formação de profissionais e o cuidado da sexualidade. A educação cristã da
sexualidade está enraizada em uma concepção específica do ser humano e é uma parte
fundamental da personalidade e visa promover um crescimento responsável.
Palavra-chave: Igreja Católica; Catequese – Formação; Sexo; Educação Sexual; Catequista.

Introdução
O grande desafio em qualquer processo formativo é ajudar as pessoas a
perceberem a sexualidade na sua globalidade e oferecer-lhes orientações que
favoreçam uma experiência afetiva corporal, psíquica e espiritualmente valorizada.
Nesse sentido, houve grandes avanços também no Magistério da Igreja,
considerando a sexualidade não apenas na perspectiva do matrimônio. Em vários
documentos da Igreja faz-se presente a preocupação por uma educação que se
preocupe também com o desenvolvimento afetivo e humano da pessoa. O ser
humano vive num ambiente “sexualizado”, e os discursos sobre a sexualidade tecem
todos os domínios da vida cotidiana, de forma ambígua, apelativa,

1 Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Doutorado em


andamento em Teologia pela PUCPR. E-mail: kathleenvieira21@gmail.com.

84
problematizadora, mistificadora e condicionadora. O sujeito está a mercês desses
discursos.
Convém ressaltar que a sexualidade faz-se presente no cotidiano das pessoas,
mas sempre está envolta do mistério. Daí ser necessário decifrar esse enigma e
desvendar esse mistério, pois a sexualidade, como escreve Bento XVI (2010), é “um
dom do Criador, mas também uma função que tem a ver com o desenvolvimento do
próprio ser humano. Quando não é integrada na pessoa, a sexualidade torna-se
banal e ao mesmo tempo destrutiva.”
Assim sendo, a “sexualidade diz respeito à capacidade de amar” (CAT, §
36.13). “A sexualidade afeta todos os aspectos da pessoa humana, em sua unidade
de corpo e alma. Diz respeito particularmente à afetividade, à capacidade de amar e
de procriar e, de uma maneira mais geral, à aptidão a criar vínculos de comunhão
com os outros” (CAT 2332).
Diante disso, não é possível assumir uma visão negativa, fazer generalizações
e afirmar que a sociedade está totalmente entregue à indisciplina sexual. Há que se
observar que vivemos em uma sociedade plural com culturas, filosofias e valores
muito diferentes entre si. Sublinha-se, desse modo, a necessidade de uma
evangelização capaz de favorecer através das famílias e outras instituições um
diálogo pastoral que favoreça o crescimento humano e espiritual. A catequese pode
contribuir para uma formação adequada para tratar dos complexos problemas
atuais relacionados à sexualidade. O acesso a uma formação interdisciplinar permite
aos catequistas desenvolverem o seu mundo psicoafetivo. Uma boa formação sobre
sexualidade capacita para lidar com questões relacionadas ao tema.

1. Educação sexual na catequese


Realizou-se uma pesquisa-ação, a qual aconteceu quando os pesquisadores
se envolvem ativamente, de forma cooperativa e participativa, com o grupo de
pessoas do fenômeno estudado. A pesquisa deu-se por uma abordagem quantitativa
(225 participantes) e de natureza aplicada (quando há a preocupação com a
aplicação prática da pesquisa). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da PUCPR – n. do parecer: 2.348.501, de 25 de outubro de 2017. A pesquisa
foi realizada em uma paróquia em uma cidade da Região Metropolitana de Curitiba,
Paraná. Foi dado ênfase em como os pais dos catequizandos compreendem a

85
abordagem da sexualidade na catequese, se a temática é trabalhada em casa com os
filhos e qual diretriz é utilizada para tanto. Abaixo seguem as perguntas e os
resultados em formato de gráfico.

1.1. “Você conversa sobre sexualidade com seu filho/a?”

7,8% dos pais responderam “nunca”, 42,2% “raramente”, 48,0% “regularmente” e


2,2% não responderam, conforme o Gráfico 1.

Gráfico 1: Você conversa sobre sexualidade com seu/sua filho/a?

Você conversa sobre sexualidade com teu


filho/a
NR Nunca
2% 8%

Regularmen
te Raramente
48% 42%

Nunca Raramente Regularmente NR

Fonte: Os autores, 2018.

1.2. “Para você, a sexualidade deve ser tema de estudo na catequese?”

8,4% dos pais responderam ‘nunca’, 22,7% responderam ‘raramente’, 65,8%


responderam ‘regularmente’ e 3,1% não responderam, como mostra o Gráfico 2.

86
Gráfico 2: Para você, a sexualidade deve ser tema de estudo na catequese?

Para você, a sexualidade deve ser tema de


estudo na catequese?
Nunca NR
8% 3%

Raramente
23%

Regularme
nte
66%

Regularmente Raramente Nunca NR

Fonte: Os autores, 2018.


1.3. Questões cruzadas: “Você conversa sobre sexualidade com teu filho/a?”
x “A sexualidade deve ser tema de estudo na catequese?”.
As perguntas realizadas aos pais foram: 1- “Você conversa sobre sexualidade
com seu filho/a?” e 2- “A sexualidade deve ser tema de estudo na catequese?”. Entre
os pais que responderam “nunca” para a primeira pergunta, 23,5% gostariam de
manter a opinião de que este tema “nunca” fosse exposto na catequese. Já 23,5%
responderam que “raramente” esse tema deve ser abordado, e 52,9% dos pais
gostariam que este fosse tema de estudo “regulamente” na catequese.
Dos pais que responderam que “raramente” conversam com seus filhos sobre
sexualidade, 7,4% responderam que gostariam que este tema “nunca” fosse tratado
na catequese, 29,5% responderam que “raramente” e 60,0% acreditam que a
sexualidade deveria ser “regularmente” tema da catequese.
Entre os pais que responderam que “regularmente” conversam com seus
filhos sobre sexualidade, 4,6% acreditam que este tema “nunca” deveria ser
abordado na catequese, 17,6% acreditam que “raramente” a sexualidade deveria ser
tema de estudo na catequese e 74,1% acreditam que “regularmente” deveria a
sexualidade ser tópico. Possuem situações marcadas como NR, ou seja, não
responderam, conforme Tabela 3.

87
Tabela 3. Tabela cruzada: “Você conversa sobre sexualidade com teu filho/a?” x “A
sexualidade deve ser tema de estudo na catequese”.

Você conversa A sexualidade deve ser tema de estudo na Total


sobre catequese?
sexualidade com Nunca Raramente Regularment NR
teu filho/a? e
4 4 9 0 17
Nunca
23,5% 23,5% 52,9% 0,0% 100,0%
7 28 57 3 95
Raramente
7,4% 29,5% 60,0% 3,2% 100,0%
5 19 80 4 108
Regularmente
4,6% 17,6% 74,1% 3,7% 100,0%
3 0 2 0 5
NR
60,0% 0,0% 40,0% 0,0% 100,0%
19 51 148 7 225
Total
8,4% 22,7% 65,8% 3,1% 100,0%
Fonte: Os autores, 2018.

1.4. “Como você se posiciona se o/a catequista falar que a sexualidade é uma
parte importante e valorizada na vida cristã?”

37,3% dos pais responderam “incentivo”, 51,6% “aceito”, 4,9 “tolero”, 4,4%
“reprovo” e 1,8% não responderam, conforme o Gráfico 3.

Gráfico 3: Como você se posiciona se o/a catequista falar sobre “A sexualidade é


uma parte importante e valorizada na vida cristã”?

Como você se posiciona se o/a catequista falar sobre


“A sexualidade é uma parte importante e valorizada na
vida cristã.
Reprovo NR
4% 2%
Tolero
5% Incentivo
37%

Aceito
52%
Incentivo Aceito Tolero Reprovo NR

Fonte: Os autores, 2018

88
1.5. “Como você se posiciona se o/a catequista falar que o amor é a força
central da vida: que pode nos levar à alegria e prazer e/ou exigir sacrifícios?”

42,7% dos pais responderam “incentivo”, 40,4% “aceito”, 6,2% “tolero”, 5,3%
“reprovo” 5,3% não responderam, conforme o Gráfico 4.

Gráfico 4: Como você se posiciona se o/a catequista falar que o amor é a força
central da vida: que pode nos levar à alegria e prazer e/ou exigir sacrifícios?

Como você se posiciona se o/a catequista falar que o amor é a força


central da vida: que pode nos levar à alegria e prazer e/ou exigir
sacrifícios
NR
Reprovo
5%
5%
Tolero
6% Incentivo
43%

Aceito
41%

Incentivo Aceito Tolero Reprovo NR

Fonte: Os autores, 2018.


Com a pesquisa realizada, percebeu-se que, apesar de uma minoria não
gostar que se falasse do tema da sexualidade na catequese, a qual deve ser
respeitada, percebe-se uma abertura ao tema e a necessidade de abordá-lo, com o
cuidado de comunicar sempre aos pais antes, em consideração aos que resistem à
temática. Dado ser um tema polêmico e pouco discutido nos espaços catequéticos, é
preciso voltar-se aos documentos da Igreja para obter uma base sólida e melhor
educar sobre o tema.

Considerações finais
A inserção do tema da sexualidade na educação contribui para a
desconstrução de grandes tabus e na reconstrução de conceitos e valores
estabelecidos ao longo da vida dos indivíduos. Com o passar do tempo, sentiu-se, no
âmbito das ciências da saúde e humanas, a necessidade de seu ensino
principalmente contribuir para prevenir ISTs (Infecções Sexualmente
Transmissíveis), gravidezes precoces e abortos. O tema da sexualidade passou a

89
compor a matriz curricular de ciências nas escolas, sendo trabalhado como um dos
Parâmetros curriculares, a partir de 1996, sob o viés de orientação sexual.
Esses aspectos contribuíram na formação acadêmica de profissionais no
processo de cuidado à dimensão da sexualidade dos sujeitos. Atentando-se a isso, a
Igreja aprofunda também o tema da sexualidade partindo “do caráter transcendente
da pessoa humana” (CAT 2245). O ser humano é chamado a se realizar em fidelidade
ao seu ser fundamentalmente feito para o amor. A integração dos aspectos corporal,
psíquico, cognitivo e social torna-se determinante no processo de crescimento do
ser humano.
A propósito disso, o Catecismo da Igreja Católica afirma que:
A pessoa humana carrega consigo um profundo desejo de se
realizar como pessoa, como homem/mulher em crescimento, e se
sente chamada a ser produtiva, criativa. A pessoa humana sente a
necessidade de unificar em si o aspecto erótico e espiritual, embora
a sociedade considere estes dois aspectos incompatíveis. “Deus
criou o homem dotado de razão e lhe conferiu dignidade de uma
pessoa agraciada com a iniciativa e o domínio de seus atos. “Deus
deixou o homem nas mãos de sua própria decisão” (Eclo 15,14),
para que pudesse ele mesmo procurar seu Criador e, aderindo
livremente a Ele, chegar à plena e feliz perfeição (CAT 1730).

O documento “Sexualidade humana: verdade e significado” (1995) traz


orientações educativas para as famílias oferecerem uma adequada preparação para
a vida adulta, em particular no que se refere à educação para o verdadeiro
significado da sexualidade. Embora o documento tenha contribuído para alavancar
programas de formação sobre a sexualidade, a Igreja necessita avançar junto com as
outras instituições para garantir uma educação gradual da vida sexual. Trata-se,
portanto, de superar a visão reducionista da sexualidade, que nos remete ao sexo e
ao amor sexual somente.

Referências
BENTO XVI. Carta do Papa Bento XVI aos seminaristas após o Ano Sacerdotal.
Vaticano, 2010. Disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/letters/2010/documents/hf_be
n. Acesso em: 14 jan. 2023.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica


(CAT). São Paulo: Loyola, 2011.

LEONE, Salvino. Educar para a Sexualidade. São Paulo: Ave-Maria, 2004.

90
PAULO VI, Papa. Carta Encíclica Humanae Vitae. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2010.

PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Sobre a igreja no mundo
actual. 1965. Disponível em: https://www.puc-campinas.edu.br/wp-
content/uploads/2016/03/NFC-Constituicao-Pastoral-gaudium-et-spes.pdf.
Acesso em: 07 fev. 2023.

TRUJILLO, Alfonso Cardeal López. Conselho Pontifício para a Família – Sexualidade


Humana: verdade e significado – Orientações educativas em família. Vaticano, 1995.

91
COMO O ITINERÁRIO CATECUMENAL PODE AJUDAR A SUPERAR A
CRISE AMBIENTAL?

Kedma Aparecida Alves Soares1

Resumo: O itinerário catecumenal pode guiar os catequizandos a uma participação mais


efetiva, para uma relação mais equilibrada com o meio ambiente. Os encontros catequéticos
podem ajudar a refletir no desenvolvimento da consciência ambiental, mais profunda em
ações concretas para preservar a natureza. O objetivo é comunicar a fé, agradecer e
valorizar o dom da vida nas suas variadas circunstâncias cotidianas. O encontro catequético
possibilita ver a Deus na natureza, o itinerário catecumenal pode ajudar a redescobrir a
espiritualidade através da criação. Como é realizada a transmissão e o processo de acordo
com a natureza e Deus? O que fazer para conservar o meio ambiente? Por meio da fé, refletir
a motivação para ações sustentáveis e como o itinerário catecumenal pode ajudar a cultivar
uma conexão mais significativa com a natureza e a responsabilidade de protegê-la. A
proteção ambiental pode ser realizada pelas pequenas ações, mudanças no uso dos recursos
tirados da natureza. No momento catequético, também pode ser refletido sobre o papel de
cada um, que possa ser o protagonista para impactar significativamente na preservação
ambiental. A própria vivência catequética suscita no ambiente, a espiritualidade
transformadora. Na educação da fé pode ser utilizado exemplos práticos, histórias pessoais
e linguagem acessível para tornar o conteúdo mais envolvente e fácil de ser compreendido
pelos catequizandos. Primeiramente Deus criou e deixou a herança da natureza para o ser
humano. O catequista poderá mostrar o valor desta herança e transformá-la para melhor e
pelo bem da humanidade.
Palavras-chave: Itinerário; Catequético; Natureza; Ambiente; Catequista.

Introdução
A formação da educação da fé inspirada no itinerário catecumenal tem uma
ligação expressiva com a ecologia. Desde a origem da Bíblia, no livro do Gêneses,
vem uma referência bem destacada sobre a terra. “No princípio, criou Deus os céus
e a terra. A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do
abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas (Gn 1, 1-2)”. Desta forma se
pode entender que a criação de Deus está entrelaçada com o homem e a terra, que
alinha ao conhecimento e sensibilização com a natureza e seus desdobramentos.
Logo a seguir serão demonstrados os passos catequéticos e a relação com a ecologia.
Para entender o processo do itinerário catecumenal é fundamental saber que
possui quatro fases chamadas de tempo: pré-catecumenato, catecumenato,

1 Doutorado em andamento pela PUCPR em Teologia e Sociedade e Mestra em Teologia e


Evangelização pela PUCPR. Pós Latu Sensu em Teologia NT, Ciência da Religião, Gestão
administrativa e Metodologia do Ensino Superior e graduação em Letras. Atuo na coordenação
Diocesana de catequese de Cornélio Procópio – PR. E-mail: kedmasoares@hotmail.com.

92
purificação/iluminação e mistagogia. A proposta catequética vem de início nas
primeiras comunidades cristãos pela vivência do Evangelho e comunhão partilhada.
O itinerário consiste em seguir a caminhada de formação pedagógica da fé, seguindo
as atualizações metodológicas no processo de todo os encontros catequéticos. Ao
lado do processo catecumenal serão mostradas possibilidades de evidenciar a
ecologia.

1. Pré-catecumenato e a ecologia
Pré-catecumenato – tempo querigmático – “fazer a experiência do encontro
com Jesus Cristo favorecendo a adesão e a conversão pessoal (CNBB, 2015, p. 15)”.
É um tempo bem curto de experiência sobre a pessoa de Jesus, é uma amostra para
chamar a atenção de quem tem a pretensão de buscar, conhecer e curiosidades.
A ecologia por sua vez, vista pela janela dos olhos, acolhe como apoio, os pés
e engradece por todas as criaturas em constante transformações. O que se pode
fazer diante da casa comum sem cuidados e preservação? É preciso também uma
conversão ecológica pessoal e comunitária. As mudanças climáticas exigem a cada
dia, uma atitude avaliativa da relação humana com o meio ambiente, que além de
reparar as falhas diante de Deus, deve também recompor a criação e as criaturas.

2. Catecumenato – aprofundamento da vida cristã e a evolução da casa comum


O catecumenato vem do grego, que significa amostra, ser visto, é o que é.
Dentro deste contexto a vida cristã é um marco de ampliação das vivências do Antigo
e Novo Testamento, entre eles os grandes feitos, de Deus na Terra. A Criação e seus
desdobramentos juntamente com os patriarcas, Moisés, os profetas estabeleceram
a revelação de Deus ao povo. O povo de Deus tinha fé, mas também caia no pecado.
Deus guiou sempre o seu povo, com a mão poderosa de bênçãos e o resgate do amor
misericordioso. Os catequistas demonstram aos catequizandos junto à comunidade
de fé, motivos de gratidão e valorização do dom da vida nas suas variadas
manifestações. Estes são passos da Proclamação da Palavra e o uso de símbolos que
remetem à vida.
Os símbolos que são oportunidades de serem vistos, utilizados como sinais
visíveis de Deus, veem da natureza. É a abundância de Deus para nos presentear com
sobriedade. Deus tem amor e misericórdia total. Portanto, Ele demonstra pela

93
criação os vales e campinas, águas e plantações, animais diversos e a cotidianidade.
Deus tem um jeito criativo de nos mostrar a natureza pelas cores, tamanho, espécie
que se assemelha e acrescenta as novidades.
Uma parte da humanidade desonra esta dádiva em poluição: envenenando
rios, extinguindo animais e devastando matas. Alguns ainda plantam e preservam,
porém em número inferior. Esta fase do catecumenato é a oportunidade de
conscientizar que a casa comum é o espaço da convivência de povo de Deus, que
erra, descuida e mata, mas tem uma tarefa de ser sensibilizado para proteger a fauna
e a flora.
Papa Francisco, em sua catequese, sempre nos recorda que cuidar da
natureza é questão de cuidar do presente e do futuro. A natureza está interligada
com o ser humano, que dela depende e também dependerá. É desta maneira que
acumula passos importantes no catecumenato e na preservação. O ser humano pode
demonstrar o cuidado e ser ao mesmo tempo preservado de viver e ser feliz.
Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo,
que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade
especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação
ambiental, do modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte
sobre a vida das pessoas (FRANCISCO, 2015, nº 43).
A degradação que o próprio ser humano provoca, causa o mal para ele
mesmo. É preciso fazer campanha em grande escala, para reverter as causas
maléficas de destruição ambiental. Também deve acontecer em todos os órgãos
governamentais, instituições em todos os níveis de produção e educação, para
estarem cientes desta consequência em avanço, evidenciada.

3. Purificação/Iluminação, uma possibilidade de ressignificar


Iluminação ou purificação – é o momento do grande retiro de preparação
para a recepção dos sacramentos, tempo de intensificar as orações, com a meta de
viver o recolhimento espiritual e revisão da vida, à luz da centralidade do mistério
Pascal e em preparação imediata para o(s) sacramento(s) de IVC: a comunhão ou a
crisma de acordo com as etapas, em que se encontra, o catequizando. Por outro lado,
o nosso planeta clama por sustentabilidade, energias renováveis para possibilitar
um ar mais puro e respirável aos seres vivos, tanto a fauna e a flora.
Quem são os “vilões” das Mudanças Climáticas? “A emissão de gases de efeito
estufa por queima de combustíveis fósseis (dos automóveis, das indústrias, usinas

94
termoelétricas), queimadas, desmatamento, e decomposição de lixo, vem alterando
o clima em nosso planeta e causando o aquecimento global (INPE, 2023)”.
Diante de tantas amostras evidentes, o momento é um convite a reflexão em
relação ao clima. É no silêncio e revisão da vida, que proporciona ao ser humano
uma retomada de conversão pessoal, mudança de atitudes perante o uso dos bens e
recursos naturais, em casa, na rua, na sociedade entre outras demandas. A
consciência ecológica é uma atividade que ilumina para um novo passo de conversão
e sair do pecado que mata e destrói para ressuscitar o planeta terra. Também está
escrito no conteúdo pedagógico com inspiração catecumenal o seguinte texto:
Felizmente está ocorrendo uma sensibilização para com o planeta
como um todo, surgindo daí novos valores, novos sonhos, novos
comportamentos, assumidos por um número cada vez mais
crescentes de pessoas e comunidades. Torna-se necessário, porém,
produzir o suficiente para a atual geração e para os seres dos
ecossistemas, onde ela se situa; tomar da natureza somente o
necessário para a sobrevivência, limitando-se ao que ela pode
repor: preservar para as sociedades futuras, os recursos naturais
de que precisarão (Crescer em comunhão. Vol. 2 págs. 25).

Depois da iluminação da Iniciação à Vida Cristã, a vivência catequética suscita


no ambiente, a espiritualidade transformadora. Na educação da fé pode ser utilizado
exemplos práticos, histórias pessoais e linguagem acessível para tornar o conteúdo
mais envolvente e fácil de ser compreendido pelos catequizandos. Nesta
perspectiva, vem a motivação para colocar em prática as ações aprendidas do
conteúdo e mudança de vida.

4. Mistagogia em ação sempre


O objetivo da mistagogia é viver a vida em comunidade a partir dos mistérios
celebrados. Por meio da fé, refletir a motivação para ações sustentáveis e como o
itinerário catecumenal pode ajudar a cultivar uma conexão mais significativa com a
natureza e a responsabilidade de protegê-la. A proteção ambiental pode ser
realizada pelas pequenas ações, mudanças no uso dos recursos tirados da natureza.
No momento catequético, também pode ser refletido sobre o papel de cada um, que
possa ser o protagonista para impactar significativamente na preservação
ambiental.
O cuidado é um exercício diário pelo bem que se tem. O zelo significa, que o
bem é para durar mais e dar continuidade para o presente e o futuro.

95
Considerações finais
Primeiramente Deus criou e deixou a herança da natureza para o ser humano.
O catequista poderá mostrar o valor desta herança e transformá-la para melhor e
pelo bem da humanidade. É uma pequena ação, que pode mudar para muitos no
mundo. Esta ação pode ser desenvolvida nas mãos de todos para com a casa comum.
A proposta do itinerário catecumenal é de ser inserido nas Igrejas Particulares de
todo o Brasil. É preciso empenho, esforço e perseverança tanto na catequese e no
ambiente da casa comum.

Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1990.

COMISSÃO EPISCOPAL PASTORAL PARA A ANIAMÇÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA.


Itinerário Catequético: Iniciação à vida cristã – um processo de inspiração
catecumenal. Brasília: CNBB, 2015.

FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo:
Paulinas, 2015.

GARCIA. Gilberto Gonçalves. Crescer em Comunhão. Petrópolis: Vozes, 2021.

INPE: Mudanças climáticas. <http://www.inpe.br/faq/index.php?pai= 9> Acessado


em 08 de Set de 2023.

96
CONSIDERAÇÕES SOBRE MESTRE ECKHART E BARUCH SPINOZA:
DESPRENDIMENTO E CAUSALIDADE DE SI EM VISTA DA
ECOTEOLOGIA

Maria Teresa de Freitas Cardoso1

Resumo: Mestre Eckhart e Baruch Spinoza foram pensadores singulares em seus contextos,
um na Idade Média e o outro em tempos modernos. O Grupo de Pesquisa “Ecologia integral
& arquitetura do cuidado ecumênico”, de participação interdisciplinar, vem realizando em
2023 um ciclo de estudos sobre Mestre Eckhart e Baruch Spinoza para diálogo
interdisciplinar sobre ecoteologia, a partir da leitura, em especial, das obras A nobreza da
alma humana e Ética. A comunicação tem como objetivo levantar elementos do pensamento
desses autores. Destacam-se os conceitos de “desprendimento”, comentado por Mestre
Eckhart, e de “causa de si”, dado por Baruch Spinoza. Consideram-se aspectos do
desprendimento, surgindo na reflexão um dado de imutabilidade. Junto ao conceito de
causalidade de si, sobre a substância em relação com a própria existência, considera-se a
potência de ser e agir, onde se destaca uma ideia de atividade. Em ambos os autores a
reflexão faz referência ao Ser divino encontrado ou presente na criação/natureza e sobre a
atuação humana em relação com a ecoteologia. Conclui-se que uma reflexão de diálogo
ecumênico-ecoteológico pode dialogar com essas filosofias em busca de caminhos
despojados e responsáveis por si e pela casa comum.
Palavras-chave: Ecoteologia; Mestre Eckhart; Baruch Spinoza; Diálogo.

Introdução
O Grupo de Pesquisa (CNPq) “Ecologia integral & arquitetura do cuidado
ecumênico”, de participação interdisciplinar, entre várias atividades desde que foi
formado, vem realizando desde o último ano um ciclo de estudos sobre Mestre
Eckhart e Baruch Spinoza, como pensamentos de interesse para um diálogo sobre
ecoteologia. Mestre Eckhart e Baruch Spinoza foram pensadores singulares em seus
contextos, como é sabido, um na Idade Média e o outro em tempos modernos. No
ciclo de pesquisa sobre esses autores, estamos aprofundando a leitura de
comentadores e de textos fundamentais, como “A nobreza da alma humana”, de
Mestre Eckhart, e “Ética”, de Baruch Spinoza.
O objetivo da comunicação é compartilhar uma percepção inicial, que arrisca
tematizar livremente, após uma escuta desses autores, dois pontos a levantar e
articular na perspectiva de ecologia integral: o conceito de “desprendimento”,
proposto por Mestre Eckhart na obra A nobreza da alma humana, e sugestões sobre

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio. E-mail: mtfcardoso@puc-rio.br.

97
a ideia de “causa de si”, um conceito bastante complexo no pensamento de Baruch
Spinoza, junto com a concepção de liberdade, vistos em sugestiva relação com o
finito no ser humano.
O método será destacar de cada um dos autores um elemento que logo nos
chamou a atenção. Os procedimentos serão: para cada um dos autores, apoiar o
estudo em uma consideração básica, escutando um comentador especialista. O
destaque, modesto, de um elemento, pinçado de uma obra. No final, uma observação
ou indagação que traduza já um aproveitamento na perspectiva de ecologia integral,
a motivar subsequentes leituras e aprofundamentos.

1. Notas sobre Mestre Eckhart e o conceito de “desprendimento”


Para introduzir nossa consideração de hoje sobre Mestre Eckhart, apoiamo-
nos no comentário de Étienne Gilson, reconhecida autoridade para o estudo da
Idade Média. Gilson, em seu livro La Philosophie au Moyen Âge, vol. 1, apresenta a
Idade Média como um período que se desdobra do século IX ao século XIV, mas cujos
limites não são bem demarcados, posto que o período demarcado mostra vínculos
que se confundem com os tempos precedentes e os mais modernos. Existe uma
grande diversidade de pensamentos, mesmo se se alude a uma filosofia escolástica,
pois esta fórmula poderia designar um tipo de filosofia que se encaminhou e se
tornou referência para determinados domínios, mas também poderia aplicar-se a
vários nomes que ensinaram em alguma escola reconhecida. A filosofia medieval é,
então, múltipla e dinâmica2. Um nome que sobressai pela robustez e singularidade
é Mestre Eckhart.
Étienne Gilson situa Mestre Eckhart como fundador de um “misticismo
especulativo”, desenvolvido a partir dos princípios do século XIV. Jean Eckhart fez-
se dominicano, tirou licença de teologia em Paris, ensinou principalmente em
Colônia, tornou-se reconhecido como Mestre Eckhart. Seus adversários contestaram
sua ortodoxia. O seu pensamento, que tomou elementos de sínteses filosóficas e
teológicas anteriores, organizou-se de modo diferente, tomando seu próprio rumo.
Ele se recusa a limitar o conceito de Deus a um ser definido e determinado, e segue
um modo próprio de considerar as criaturas, e de relacioná-las com Deus existente

2 GILSON, E. Le Moyen Age, vol.1, p. 3-8.

98
e presente, como sobre o encontro da alma com Deus. O caminho seria por um
percurso da própria alma, dada a continuidade do seu ser com o Ser divino, e
mediante despojamento – de si, das criaturas, no abandono a Deus, atingindo assim
sua liberdade. O despojamento seria a maior das virtudes. Já o mais alto degrau da
mais alta virtude seria abraçar a pobreza. Por ela a alma se entregaria, perdendo-se
a si mesma e a toda determinação, retornando a Deus. As coisas tornam-se como
inúteis, e seria como um novo nascimento, confundindo-se com Deus, na mesma
beatitude3.
Olhamos aqui alguns escritos de Mestre Eckhart, publicados em um livro
intitulado A nobreza da alma humana e outros textos (usamos uma tradução da
Editora Vozes), e nessa publicação a parte II é sobre “o desprendimento, a completa
disponibilidade, a total liberdade” (sendo que o título dessa tradução parece
adaptado). Entre as várias considerações desdobradas no capítulo, destaca-se o
conceito de “desprendimento”, que poderíamos formular também como
“despojamento”, ou no original Abgeshiedenheit. Significaria, junto, os aspectos de
desprendimento, despojamento, disponibilidade, alcançada serenidade.
Como observado por Gilson, aparece a valorização da virtude do
desprendimento como a mais alta das virtudes. O desprendimento é tido como mais
importante do que a caridade, ou do que a humildade, que eram, para a
espiritualidade cristã, as virtudes tradicionalmente vistas como principais. Como se
percebe em Eckhart, a própria caridade ou a humildade por sua vez necessitariam
do desprendimento, para realizarem-se.
Ver o destaque do desprendimento nas palavras de Mestre Eckhart:
os mestres louvam grandemente a caridade, a exemplo de São
Paulo, que diz: Seja qual for a obra que eu faça, se não tiver a
caridade, nada sou (cf.1Cor 13,1s). Quanto a mim, mais que toda a
caridade, louvo o desprendimento. E isso porque, em primeiro
lugar, o que há de melhor na caridade é que ela me força a amar a
Deus, ao passo que o desprendimento força Deus a me amar. Ora, é
preferível, de muito, forçar a Deus a vir a mim do que forçar-me a
ir a Deus. E isso, porque Deus pode entrar mais intimamente em
mim e unir-se melhor comigo do que eu poderia unir-me com
Deus4.

3 GILSON, E. Le Moyen Age, vol.1, p. 142-143.


4 MESTRE ECKHART, A nobreza da alma humana e outros textos, p. 20-21.

99
O autor comenta como no desprendimento a pessoa aproxima-se do Nada, e
por isso dá lugar a Deus:
O desprendimento, porém, tão perto está do Nada que coisa alguma
é sutil bastante para nele ter lugar, a não ser Deus somente. Só Ele,
com efeito, é simples e sutil bastante para bem caber no coração
desprendido5.

Ele acrescenta que se trata de um desprendimento inabalável, constante,


imutável: “tal desprendimento inabalável conduz o homem à máxima semelhança
com Deus”6. Porque o desprendimento teria seu modelo em Deus ou seria a atitude
própria de Deus, desde toda a eternidade:
Pois bem: deves saber que, desde toda a eternidade, Deus esteve,
como ainda está, nesse desprendimento imutável e, ademais, que a
criação do céu e da terra tampouco lhe afetou o desprendimento
imutável como se jamais criatura alguma fora criada. Digo mais:
todas as orações e boas obras tampouco perturbam o
desprendimento divino como se nunca no tempo uma oração ou
boa obra fosse feita, e nem Deus se torna mais benigno ou mais
disposto em relação ao homem do que o seria se este jamais tivesse
feito orações ou boas obras. […] Deus, em seu primeiro olhar eterno
– se é que podemos admitir aqui um primeiro olhar –, viu todas as
coisas assim como sucederiam […] viu também as mais humildes
orações e boas obras […] mas não é amanhã que Deus quer atender
a tua oração e a tua invocação, pois acolheu-a em sua eternidade”7.

Para Mestre Eckhart, a Nossa Senhora teve total desprendimento; e teria sido
pelo seu desprendimento, que aceitou que se louvasse antes sua humildade. Cristo
também teria tido total desprendimento. Já as situações da vida, mesmo para ambos,
fariam aparecerem os aspectos próprios do chamado “homem exterior” e do
chamado “homem interior”. Este, porém, o “homem interior”, seria marcado pela
imutabilidade:
Pois eu comparo a tábua externa da porta ao homem exterior, e o
gonzo, ao homem interior. Ora, quando a porta se abre e se fecha, a
tábua externa se move de cá para lá; o gonzo, porém, permanece
imóvel no seu lugar e por isso nunca se muda8.

Outras passagens no livro indicam implicações para estar desprendido na


alegria e nos sofrimentos, para abraçar a bem-aventurança de humildade como

5 MESTRE ECKHART, A nobreza da alma humana e outros textos, p. 21.


6 MESTRE ECKHART, A nobreza da alma humana e outros textos, p. 24.
7 MESTRE ECKHART, A nobreza da alma humana e outros textos, p. 25.
8 MESTRE ECKHART, A nobreza da alma humana e outros textos, p. 28.

100
espírito de pobreza, o desprendimento, e assim também das criaturas, na estrada da
serenidade.

2. Notas sobre Baruch Spinoza e o conceito de “causa de si” e liberdade


Para introduzir Baruch Spinoza, podemos apoiar-nos nos comentários de
Marilena Chauí, especialista desse filósofo, professora na USP. Um dos seus artigos,
intitulado Imanência e luz: Espinosa, Vermeer e Rembrandt, comenta a perspectiva
filosófica de Spinoza em relação com a ótica de Kepler e a pintura holandesa do
século XVII, que teria diferenciações que Spinoza parece sintetizar, na sua percepção
da luz e da visão no mundo. Situado em relação com a valorização das ciências na
modernidade e sendo ele mesmo um cientista que maneja as lentes, numa época de
desenvolvimento de telescópio e microscópio, a perspectiva de sua filosofia
combinaria com sua noção de intelecto em relação com a visão da luz e no mundo.
Ela comenta: “Talvez seja aqui, no cuidado espinosano com a luz, que possamos
encontrar uma das chaves para a filosofia da imanência de Deus ao mundo e de nós
a Deus”.9 Para o filósofo, cita de novo Chauí: “Certamente como a luz manifesta-se a
si mesma e às trevas, assim também a verdade é norma de si mesma e do falso”.10
Em outro momento, ela indica que na obra Tratado da correção do intelecto
Spinoza teria se aproximado e se afastado da filosofia cartesiana, supondo que “não
começar cartesianamente pela alma […] exige, simultaneamente, que a força do
intelecto, posta por Descartes, seja mantida, mas que o pensamento se faça no meio
do mundo”11. Ela comenta o “duplo percurso do intelecto finito” retomado no livro
da Ética. Daí, ela passa a mostrar alguns axiomas referentes ao conhecimento e uma
dependência em relação com um axioma ontológico: “de uma causa determinada,
segue-se, necessariamente, um efeito; se, ao contrário, não houver nenhuma causa
determinada é impossível seguir-se um efeito”12.
O livro da Ética tem sua parte primeira sobre Deus, e a definição primeira é
sobre “Causa de Si”. Afirma Spinoza: “Por causa de si entendo aquilo cuja essência
implica a existência, ou, o que é o mesmo, aquilo cuja natureza somente pode
conceber-se como existente”. Portanto, o tema da “Causa de Si” está situado nesta

9 CHAUÍ, Marilena, “Imanência e Luz: Espinosa, Vermeer e Rembrandt”. Discurso (26) 1996, p. 114.
10 CHAUÍ, Marilena, “Imanência e Luz”, p. 118, citação de Ética, Livro II. Proposição, 43, demonstração.
11 CHAUÍ, Marilena, “Imanência e Luz”, p. 116-117.
12 CHAUÍ, Marilena, “Imanência e Luz”, p. 118.

101
primeira parte sobre Deus e trata-se de uma essência implicando existência. Porém,
não se trata nesta comunicação de descrever a concepção de Spinoza sobre Deus.
Apenas supondo que possa caber uma aproximação entre infinito e finito, ou uma
realização de um com outro, mais diretamente uma imanência de um ao outro, e
pensado o modo de agir dos finitos, talvez caiba uma intuição sugestiva de aplicar-
se a ideia de que o existente possa influir de algum modo como causa sobre si
mesmo. Aproveitando observações de Madureira de Pinho, possamos aludir, ainda,
à relação de um existir e um agir, ou ainda, uma potência de existir e agir, que para
Spinoza se traduz em desejo13. E ainda que, como causas adequadas, ou na direção
de afetos de alegria ou de tristeza, movemo-nos, podendo ter uso de liberdade.
Madureira de Pinho explica que, para Spinoza, “somos livres enquanto somos
capazes de produzir sentimentos que derivam da razão”. Na linha dos afetos de
alegria, e, organizando os afetos na liberdade (mais do que em qualquer arbítrio, que
poderia dirigir a ação de modo inadequado), caminhamos para uma felicidade mais
plena, chamada de beatitude.
Adentrando mais, com um comentário de novo de Marilena Chauí, em um
texto intitulado Ética e política, sobre Spinoza, a autora considera que de “filósofo da
ontologia da imanência e do necessário, Spinoza passa da imagem à ideia da
liberdade”. Em relação com a liberdade, vai mostrar que, para Spinoza, não se opõem
o dado de ser livre ou o de ser necessário. Eis a descrição do tema nas palavras dela:
a única distinção verdadeira admitida por ele é a que existe no
interior da própria necessidade: há o necessário pela essência – a
substância absolutamente infinita – e o necessário pela causa – os
seres singulares, efeitos imanentes da potência necessária de Deus.
Necessidade e liberdade não são ideias opostas, mas concordantes
e complementares, pois a liberdade não é a indeterminação que
precede uma escolha voluntária racional nem é a indeterminação
dessa escolha. A liberdade é a manifestação espontânea e
necessária da força ou potência interna da essência da substância
absolutamente infinita e da potência interna da essência de cada
um dos modos finitos singulares14.

A esse propósito, ela cita Spinoza (a partir da obra Tratado Político):


O homem é livre na exata medida que tem o poder para existir e
agir segundo as leis da natureza humana […] A liberdade não tira a
necessidade de agir, mas a põe15.

13 MADUREIRA DE PINHO, Curso Passagens da Ética, quarta aula, p.4.


14 CHAUÍ, Marilena, Liberdade ética e política, p. 13.
15 CHAUÍ, Marilena, Liberdade ética e política, p. 13. Cita Tratado Político, 2, $7 e 11.

102
Acrescenta uma distinção: “Spinoza estabelece uma distinção decisiva para a
compreensão da ideia de liberdade, qual seja, a distinção entre estar externamente
determinado e internamente disposto” e mostra em outro lugar da Ética, que o
filósofo “diferencia causa inadequada e causa adequada, passividade e atividade”16.
A interpretação de Chauí esclarece a relação dessa liberdade com o que
chamaríamos de uma coerência ou correspondência, que ela descreve assim:
A liberdade não se encontra na distância entre mim e mim mesma,
distância que, usando a vontade, eu procuraria preencher com algo
que não sou eu mesma, isto é, com o objeto de uma escolha posto
como um fim. Ao contrário, a liberdade é a proximidade máxima de
mim comigo mesma, a identidade do que sou, do que sinto, do que
penso e do que posso17.

Considerações finais
Encontramos uma perspectiva na alusão a Mestre Eckhart, a propósito de
constância e imutabilidade, e destacamos o conceito de desejável desprendimento.
Salta aos olhos que a ecologia integral necessita do cultivo do desprendimento. A
reflexão de Mestre Eckhart é oportuna, mormente em um mundo que sofre pela
voracidade com que se exploram e se extraem e se exaurem os recursos da natureza
para a vida no planeta, com tanto apego e busca desenfreada e ilusória de uma
qualidade de vida que parece prometida, e se apercebeu afundar no engano.
Descobrimos, ao contrário, que a casa necessita de cuidados. Ao modo do
homem exterior, torna-se necessário hoje ocupar-se de muitos cuidados. Para isso,
a caridade, a humildade, e o espírito de pobreza. Para isso, e para além disso, a
experiência mais profunda do seu ser, com base no constante e imutável
desprendimento.
Já com Baruch Spinoza, outra forma de elaborar o pensamento. A ótica situa-
se diferente do mais comumente recebido ou percebido. Aparece, para nós, uma
potência de ser e agir. A noção de Causa de Si aplica-se ao tratado de Deus, mas para
nós pareceria sugestivo pensar na aplicação de sua presença nos finitos. A ideia de
causalidade se conecta com efeito. A ideia de liberdade encontra-se com a
necessidade. Trata-se do agir segundo a natureza do ser.

16 CHAUÍ, Marilena, Liberdade ética e política, p. 14.


17 CHAUÍ, Marilena, Liberdade ética e política, p. 14.

103
Já para a atenção ao contexto de ecologia, ou em busca de cuidado ecológico,
importaria considerar a liberdade, que se estabelece de acordo com a verdade de
sua própria natureza. Conduzir a atividade, em função de afetos de alegria, e,
portanto, de um modo adequado, se correspondente à verdade do ser, da vida, do
planeta, da dignidade, da natureza do universo, das pessoas e das outras criaturas.
Caminhos inadequados são arbítrio que não correspondem à razão.
Indagaríamos: poderão figurar, em vista de ecologia integral, tanto um ponto
como o outro? Uma perspectiva de imutabilidade e uma perspectiva de atividade?
Um desprendimento imutável, certamente libertador; e um dinamismo de
causalidade, onde o ser e o agir se correspondem, aplicando a atividade para um
efeito adequado. O diálogo ecoteológico poderia progredir, com trocas
interdisciplinares bem interessantes.

Referências
CHAUÍ, Marilena, Liberdade ética e política. In: LUCAS, F.J. et alii (orgs.), Spinoza,
Filosofia & Liberdade. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2020.

CHAUÍ, Marilena, Imanência e Luz: Espinosa, Vermeer e Rembrandt. Discurso (26)


1996, p. 113-130.

GILSON, Étienne. Le Moyen Age. Paris: Payot & Cie, 1922, vol. 1.

MADUREIRA DE PINHO, A. Curso Passagens da Ética. Quarta aula – texto ainda não
publicado.

MESTRE ECKHART. A nobreza da alma humana e outros textos. Petrópolis: Vozes,


2016.

SPINOZA, B., Ética. Madrid: Nacional, 1980.

104
O SER HUMANO COMO SUJEITO DA PRÓPRIA FORMAÇÃO NO
PENSAMENTO DE EDITH STEIN1

Valdirlei Augusto Chiquito2

Resumo: As obras de Edith Stein têm um grande cunho pedagógico e formativo. Na sua
busca constante pela Verdade, ela tem uma pergunta chave: quem é o ser humano e como
ele é formado? O ponto original da formação é o direcionamento ao núcleo da pessoa
humana pois, para ela, uma autêntica formação humana tem a missão de levar o ser humano
a uma formação integral. A compreensão do ser humano, em sua complexidade, exige um
conhecimento para além do mundo físico e de suas inúmeras manifestações. Objetiva-se
investigar essa temática a partir da obra A Estrutura da pessoa humana, onde se encontram
os conceitos-chave de um pensamento antropológico, filosófico e teológico de formação
para uma análise mais correta do conceito de pessoa humana em Edith Stein. A pesquisa é
bibliográfica de abordagem qualitativa do tipo explicativa com interpretação e abordagem
reflexiva dos temas. O tema do ser humano como sujeito da própria formação no
pensamento de Edith Stein fundamenta-se na perspectiva fenomenológica, pautada em
visão aristotélico-tomista como também na doutrina católica. Essa abordagem leva a uma
compreensão que a ciência e o conhecimento humano natural possuem carências,
necessitando, assim, de uma fundamentação metafísica cristã. Conclui-se que a formação
autêntica conduz o ser humano a uma compreensão de que ele é o centro e o sujeito por
excelência da formação. Stein, em seus escritos, deixa claro que possui uma pedagogia ímpar
de uma mulher que se preocupa e se dedica para contribuir para um processo real da
formação humana.
Palavras-chave: Edith Stein; Ser humano; Formação. Educador.

Introdução
O pensamento de Edith Stein e sua abordagem única à formação,
profundamente enraizadas em sua perspectiva fenomenológica e fé católica,
destacam a importância da educação como um processo que abrange não apenas o
intelecto, mas também o aspecto espiritual e moral do ser humano. Neste contexto,
Stein argumenta que a formação autêntica deve promover a realização plena da
pessoa equilibrando a mente e o coração.
O ponto mais original do conceito de formação para Stein é, sem dúvida, o

1 Este trabalho é parte da pesquisa apresentada no Mestrado em Teologia na Pontifícia Universidade


Católica do Paraná em 28 de abril de 2021
2 Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Mestre em Teologia pela

Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Especialista em Catequética pela Pontifícia


Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Bacharel em Teologia pelo Studium Theologicum afiliado
à Pontifícia Universidade Lateranense de Roma. Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUCPR. E-mail: chiquito72@gmail.com

105
direcionamento da formação ao núcleo da pessoa. A compreensão do ser humano,
em sua complexidade, exige um conhecimento para além do mundo físico e de suas
inúmeras manifestações. Para Edith Stein, a ciência e os conhecimentos humanos
naturais possuem valia, mas também suas carências precisando assim de uma
fundamentação na metafísica cristã.

1. Vocação para a formação humana


Edith Stein, filósofa e teóloga do século XX, conhecida também como Santa
Teresa Benedita da Cruz (Breslávia 1891 – 1942 Auschwitz) desenvolveu uma
profunda reflexão sobre a natureza do ser humano e sua capacidade de
autodeterminação na formação da própria identidade. Em várias de suas obras,
Stein destacou a importância do sujeito humano como agente ativo na construção
de sua própria formação, ressaltando a complexa interação entre a experiência
individual e a influência do mundo externo.
Nas palavras de Garcia, Stein era uma mulher dedicada e preocupada com a
formação humana.
Com certeza dedicou-se de corpo e alma à formação da mulher,
percebendo ser esse o grande problema de sua época e a missão
que lhe cabia [...] numa época em que, à mulher alemã, não era
permitido nem o voto político, ela fala diante de multidões não só
em sua Pátria, mas em quase toda a Europa (GARCIA, 1988, p. 48).

Desde sua juventude, com seus dezessete anos, Edith já manifestava essa
inclinação para a pedagogia quando se propunha a auxiliar suas colegas que não iam
bem no colégio. Antes mesmo de sua decisão de fazer um curso superior, ela buscava
incessantemente conhecimentos no campo da psicologia e da pedagogia.
Edith Stein, pelas suas características, tinha uma vocação nata para a
docência: educadora por vocação. Referindo-se à Edith Stein, Ales Bello3, diz que:
Sua personalidade multiforme nos permite inseri-la na história das
Ciências Humanas e da Pedagogia, assim como nos convida a ler
com proveito as suas reflexões sobre a relação homem-mulher e
aquelas que nos introduzem no âmbito da espiritualidade e da
mística. O seu pensamento pode ser utilmente explorado também
para um esclarecimento da dimensão religiosa. Deste ponto de
vista, ela se encontra envolvida em uma questão crucial para a
cultura e a religião da civilização ocidental, isto é, na atormentada
relação entre o judaísmo e o cristianismo, que, para alguns, se

3Professora Emérita de História da Filosofia Contemporânea na Universidade Lateranense de Roma


Onde coordena o Centro Italiano de Pesquisas Fenomenológicas.

106
coloca como pedra de escândalo, para outros, como lugar de
reconciliação (2018, p. 19).

Para Edith Stein, o ser humano não é um mero receptáculo de informações e


influências externas, mas um ser dotado de liberdade e intencionalidade. Ela
argumentou que a formação pessoal não é um processo passivo, mas sim um ato de
autodescoberta e autoderminação. Cada indivíduo possui a capacidade de
direcionar sua própria formação, escolhendo os valores, crenças e objetivos que irão
moldar sua identidade. No entanto, Stein também reconheceu que o ser humano não
está isolado do mundo ao seu redor e ressalta que as experiências e interações
sociais desempenham um papel fundamental na formação da pessoa humana em
sua integralidade.
O ser humano é o centro e o sujeito da formação. Stein possuía um dom
natural e peculiar para a vocação de docente. Com efeito, segundo a análise de
Sberga, Stein foi uma “educadora engajada em seu tempo e questionou criticamente
as propostas pedagógicas que, segundo sua compreensão sobre o meio e fim último
da formação, apresentam erros pelas suas limitadas interpretações” (2014, p. 179).
Edith Stein propõe uma formação integral do ser humano. Segundo ela, “o objeto da
formação é o ser humano em sua totalidade”, isto é, “o espírito unido ao corpo na
unidade da natureza com todas as suas faculdades naturais e sobrenaturais,
conhecidas pela razão e pela revelação” (STEIN, 2003, p. 435).
Stein deixa transparecer em seus escritos que tinha uma grande preocupação
com a formação da mulher e dedicou-se de corpo e alma à formação percebendo que
esse era um dos grandes problemas de sua época compreendendo assim a sua
vocação à docência. Sobretudo “numa época em que, à mulher alemã, não era
permitido nem o voto político, ela [Stein] fala diante de multidões não só em sua
pátria, mas também em quase toda a Europa” (GARCIA, 1988, p. 48).

2. Determinação, clareza e consciência formativa


A formação, ou o ato de formar, deve levar o ser humano a alcançar aquilo
que deve ser e que está chamado a ser: um ser humano pleno. Stein afirma que a
atividade formativa é composta por quatro dimensões diferentes: “a) o objetivo
formativo, que é a forma que deve ser conseguida; b) o material que deve ser
formado, que são os educandos; c) os educadores e os instrumentos que eles

107
utilizam; d) o processo formativo e educativo” (STEIN, 2003, p. 113). Sendo assim,
para Stein, toda formação deve ter uma organização e um planejamento pautados
nesses objetivos que devem levar em conta o processo global da formação humana,
visando aos elementos que contribuam para que o ser humano possa trilhar um
caminho de formação e autoformação.
Assim, “todo trabalho formativo é individual e tem por finalidade ajudar a
cada ser humano a trilhar o seu próprio caminho e realizar a sua trajetória. Caminho
este que não se escolhe arbitrariamente e, sim, o caminho pelo qual Deus o leva”
(SBERGA, 2014, p. 25). Formar a alma humana, isto é, o ser humano na sua
integralidade, torna-se o mais sofisticado e desafiador de todos os processos
formativos para Edith Stein.
Há, portanto, a necessidade de uma correta compreensão das condições
necessárias para englobar todos os materiais, forças e recursos externos e internos
para se chegar a esse fim. Segundo Rus (2015), desde o início, Edith Stein via a
formação integral do ser humano, a educação como um processo criativo que se
enraíza na interioridade.
Stein possui uma grande capacidade empática que lhe abre caminho para a
alma do outro, seja na sua forma de pensar como na sua constante interação com o
outro. No prefácio do livro A Mulher: sua missão segundo a natureza e a graça, temos
uma nota importante dos editores que sintetiza a ação pedagógica de Stein:
Paralelamente a estas atividades profissionais em cursos colegiais e
na faculdade, Edith Stein participou ativamente dos trabalhos do
movimento das escolas católicas. No decorrer dos anos conquistou
um lugar de liderança espiritual na associação das professoras
católicas. Vivia dando conferências em reuniões anuais e congressos.
Era procurada para dar consultoria na elaboração de planos de
reforma e em conversações pedagógicas com autoridades oficiais
(GELBER; LEUVEN, 1999, p. 13).

Quando Stein entrava em uma sala de aula, ela entrava movida pelo ideal de
“ver na formação humana em geral e na formação feminina em particular, a missão
mais nobre da mulher. O equilíbrio de seu temperamento, a solidez de seu saber, o
amor impessoal pelos educandos garante a fecundidade de seu trabalho docente”
(GELBER; LEUVEN, 1999, p. 11).
Stein sempre esteve muito atenta a tudo o que se referia aos aspectos
políticos e sociais de sua época, sobretudo no campo educacional do contexto
europeu do seu tempo. Em suas conferências ela tinha muita clareza sobre as bases

108
antropológico-filosóficas da educação e as manifestava como fundamentação aos
profissionais da educação para ampliarem a sua visão naquilo que, de fato, era
fundamental para a formação da pessoa humana.

3. Formação humana e autoformação


A formação humana sempre é acompanhada de grandes desafios dentre os
quais destacam-se os limites da natureza humana. Uma formação só pode ser
considerada madura e equilibrada se ela corresponde à forma interior do formando.
Assim, para Stein, a formação e o formador compõem uma unidade orgânica. Como
pano de fundo da atividade pedagógica de Edith Stein, pode-se dizer que “o
educador pode agir sobre o educando de três formas: pela palavra que ensina, pela
ação pedagógica, pelo exemplo próprio” (GELBER; LEUVEN, 1999, p. 12).
Sberga, baseada na teoria steiniana afirma que: “para formar, […] é preciso
atingir a alma do educando ou o seu núcleo central, a fim de ajudá-lo a viver a partir
da sua interioridade, de modo a fazer fluir a sua singularidade e originalidade
pessoal” (2014, p. 15).
Para Edith Stein, o formador é aquele que deve “voltar a abrir o que estava
fechado. Não é tarefa fácil. Somente o olhar do amor – de um amor formador santo,
totalmente consciente da sua responsabilidade, autêntico – [...], descobrirá uma
brecha para penetrar derrubando os muros da fortaleza” (STEIN, 2003, p. 575).
O formador, segundo Stein, deve contribuir para a abertura da alma do
educando a fim de que ele alcance ser o que deve ser. Só alcançará se olhar cada
formando seu com o olhar penetrante do amor que é capaz de transpor todas as
barreiras possíveis de um bloqueio existente em cada coração, em cada alma
humana. Para a estudiosa da alma humana, “o ser humano está inscrito em sua
integridade, em um processo de desenvolvimento que não se esgota em ser um
simples organismo” (2003, p. 607). Por isso que a verdadeira formação deve incidir
na alma, na profunda essência da pessoa humana para “dar vazão à riqueza genuína
que já está nela contida” (SBERGA, 2014, p. 174).
Segundo Edith Stein:
O material a ser formado é constituído por aquela aptidão que
acabamos de conhecer: as forças germinais existentes em toda alma
humana, mas na distribuição específica que caracteriza a alma e em
sua respectiva manifestação individual. Não se trata de um material
inerte, que precisa ser modelado e formado de fora, como a argila

109
pela mão do artista ou como a rocha pela ação espontânea das
intempéries; trata-se, antes, de uma raiz viva em formação, que
possui em si mesma a força germinativa (forma interna) para
desenvolver-se numa determinada direção, ou seja, em direção
àquela forma completa e figura perfeita que deve crescer e
amadurecer a partir desse germe (STEIN, 1999, p. 117).

Dessa forma, no seu entendimento, a formação possui um processo


semelhante ao processo onde o contexto externo torna-se determinante para o
desenvolvimento da alma humana. A formação torna-se, portanto, uma atividade no
sentido de que o sujeito da formação (o ser humano) se forma a si mesmo porque
recebe de Deus essa capacidade que lhe é própria. Por outro lado, ao formador exige-
se que faça o que está em suas mãos, isto é, sob sua responsabilidade. Quando um
educador possui a convicção plena de que a formação, como fim, pertence a Deus,
terminará por compreender a sua finalidade.
Somente assim poderá alcançar o objetivo último de todo trabalho formativo
que é, exatamente, passar de uma formação como tal para uma autoformação e
permitir que o que lhe falta em sua finitude, seja complementado por Aquele que é
Infinito: Deus. Nas palavras de Sberga, para Stein, “cada ação pedagógica deve
conduzir à autoeducação e à consciência de que o educando tem que ir formando
suas potencialidades intelectuais, seu caráter e seus talentos pessoais” (SBERGA,
2014, p. 178).
Sendo a fé um fator decisivo para o fim da formação, “a espiritualidade se
torna um dado essencial no processo formativo. Sem essa dimensão de abertura
espiritual seria quase que impossível para a pessoa atingir a profundidade de si
mesma e chegar ao seu núcleo” (SBERGA, 2014, p. 179). Na pedagogia steiniana, o
fim da formação consiste em levar o ser humano ao mais profundo do seu interior,
a alma da alma.
Portanto, a contribuição de Edith Stein no contexto educacional de seu tempo
foi, de certa forma, uma crítica a um tipo de educação que não leva em consideração
o ser humano na sua totalidade.

Considerações finais
Certamente, podemos concluir que a formação no pensamento de Edith Stein
representa um processo holístico que visa à realização integral da pessoa,
incorporando os aspectos intelectuais, espirituais e morais. Sua vasta pesquisa nos

110
enfatiza a relevância de reconhecer a singularidade de cada ser humano, fomentar o
diálogo e a comunicação, e cultivar a dimensão espiritual enquanto buscamos
compreender o conhecimento e o significado da vida.
Todo ato pedagógico precisa conduzir o ser humano ao desenvolvimento da
sua autonomia, para que ele governe a sua vida por si mesmo, para que saiba tomar
boas decisões para si e para o outro, além de ter clareza e garantia de por que
cumprir determinadas leis, normas ou propostas. Desse modo, toda formação é uma
autoformação e que “todo ato formativo é um autoformar-se [...] em toda atividade
formadora o ativo se forma a si mesmo [...] toda formação é formação auto
elaborada” (STEIN, 2003, p. 188).
Por fim, a abordagem de Edith Stein continua a influenciar a educação e a
filosofia da formação, destacando a importância de ver a educação como um meio
de crescimento pessoal e de busca pela verdade.

Referências
ALES BELLO, Angela. Edith Stein: A Paixão pela Verdade. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2018.

GARCIA, Aparecida Turolo (Ir. Jacinta). Edith Stein e a formação da pessoa humana.
1. ed. São Paulo: Loyola, 1988.

SANCHO FERMIN, Francisco Javier. Introdução Geral in: STEIN, Edith. Obras
completas de Santa Teresa Benedicta de la Cruz (Edith Stein) – escritos
antropológicos (magistério de vida cristiana, 1926-1933). Tomo 4. Vitoria.
Ediciones El Carmen; Madrid: Editorial de Espiritualidad; Burgos: Editorial Monte
Carmelo, 2003.

SBERGA, Adair Aparecida. A formação da pessoa em Edith Stein: um percurso do


conhecimento do núcleo interior. 1. ed. S. Paulo: Paulus, 2014.

STEIN, Edith. Obras completas de Santa Teresa Benedicta de la Cruz (Edith Stein).
Escritos antropológicos y pedagógicos (magistério de vida Cristiana: 1926-1933).
Tomo 4. Vitoria: Ediciones El Carmen; Madrid: Editorial de Espiritualidad; Burgos:
Editorial Monte Carmelo, 2003.

STEIN, Edith. A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça. Trad. Alfred J.
Keller. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

111
ARTE ST 3

ST 3 – Filosofia da Religião

112
Jonas Roos (UFJF)
José Reinaldo Felipe Martins Filho (PUC-Go)
Luís Gabriel Provinciatto (PUC-Campinas/PUC-Rio)
Renato Kirchner (PUC-Campinas)

A filosofia da religião, como disciplina do cânone filosófico, é, histórica e


sistematicamente, um produto da modernidade, o que não significa que a
Antiguidade Clássica e o pensamento cristão, antigo e medieval, não tenham dirigido
perguntas e produzido reflexões sobre a “religião” e àquilo que com ela está
vinculado. A filosofia da religião, no entanto, não pode ser entendida como a mera
identificação e explicação das características “racionais” do fenômeno religioso,
como se ela buscasse reduzi-lo a um fator não-religioso, negando sua originariedade.
Tampouco ela pode ser vista como uma disciplina única e exclusivamente a serviço
da fé religiosa. A filosofia da religião deve assumir uma posição crítica, demonstrada
pela não redução de seu tema de investigação a modelos previamente fixados
conceitual e/ou metodologicamente. A abordagem filosófica da religião pretende
recolher aquilo que tal fenômeno suscita de maneira propriamente dita,
perguntando pelo que ele é, por como se manifesta, quais suas características, com
o que está vinculado etc. A partir disso, é possível chegar a um conjunto de
problemas, tais como a concepção de Deus, a relação fé-razão, o futuro da religião,
sua relação com a política e abordá-los a partir de diferentes chaves de leitura –
histórico-crítica, fenomenológica, hermenêutica, analítica, psicológica, dentre
outras. Por isso, a Sessão Temática “Filosofia da Religião” abre espaço para acolher
investigações de cunho filosófico sobre as questões relativas à religião;
investigações que, porventura, podem ser provenientes de diferentes áreas.

113
CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS DOS ESTUDOS NIETZSCHIANOS
PARA A CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Ana Carolina Ferreira Sales1

Resumo: O presente texto propõe realizar uma análise das contribuições filosóficas de
Friedrich Nietzsche para a pesquisa em ciências da religião nos programas de pós-
graduação do Brasil. O filósofo Nietzsche durante a sua vida publicou diversas obras
filosóficas, essas que em sua maioria abrange temas e conceitos pertinentes para o estudo
da religião, como a cultura, moralidade, crítica ao cristianismo etc. Não somente notáveis na
filosofia, os estudos nietzschianos têm impactado outras áreas de pesquisa como exemplo a
psicologia, educação e ciências da religião, ocupando lugar desde comentador no diálogo
com outros temas e pesquisadores, Nietzsche se torna também autor principal,
aprofundando seus conceitos na relação com o objeto e método estudado. Para se chegar
aos objetivos propostos nesta pesquisa, a análise foi realizada a partir do mapeamento das
dissertações de mestrado defendidas nos últimos dez anos sobre o tema nietzschiano em
programas de universidades brasileiras da área ciências da religião, utilizando o catálogo
de teses e dissertações da CAPES, site disponibilizado de forma online. Com o mapeamento
foi possível identificar a quantidade de dissertações defendidas sob o tema, quais foram os
principais conceitos de Nietzsche explorados nas pesquisas, e se houve o diálogo da filosofia
nietzschiana com outras filosofias, autores e conceitos relacionados à religião. Por fim, os
resultados obtidos permitiram compreender as contribuições do pensamento de Friedrich
Nietzsche, expondo tanto quantitativamente como qualitativamente a relevância de seus
estudos para o avanço científico da pesquisa em ciências da religião no país.
Palavras-chave: Nietzsche; Ciências da Religião; Filosofia; Morte de Deus; Niilismo.

Introdução
A ciência da religião, nasce como curso de graduação no Brasil em 1957 na
Universidade de São Paulo (USP), mas é na década de 1990 que ocorre a formação
da área como curso de pós-graduação, assim teve sua formação inicial com grande
influência da Teologia e sendo delineada a partir dos seus estudos. Com o
desenvolvimento do curso, que contava com olhares positivistas e eclesiásticos, o
caminho foi de distanciamento da teologia e aproximação para a área de pesquisa
interdisciplinar, principalmente, com o estudo da sociologia, filosofia e história,
compreendendo a complexidade da religião como fenômeno humano.
Frederico Pieper, professor e pesquisador da área, em seu artigo intitulado:
“Aspectos históricos e epistemológicos da Ciência da Religião no Brasil”, ressalta que

1Licenciada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).


Mestrado em andamento no programa de pós-graduação em Ciências da Religião pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, bolsista CAPES. E-mail: anacarolinasalles598@gmail.com.

114
o curso de ciência da religião “foi um marco na história da disciplina no Brasil, pois
representou a institucionalização da área e a consolidação de um campo de pesquisa
e ensino que vinha se desenvolvendo de forma incipiente desde o início do século
XX” (Pieper, 2018, p. 233).
O desenvolvimento da área se expande pelas universidades brasileiras com a
criação de diversos programas de pós-graduação e cursos de graduação em ciências
da religião, tendo uma grande abrangência de pesquisadores de diversas áreas das
ciências humanas. Segundo Pieper, a ciência da religião exerce um papel de destaque
e importância na compreensão tanto das religiões, como de suas relações sociais e
culturais.
A filosofia tem contribuído para a reflexão teórica e crítica no
desenvolvimento de diversos estudos que perpassam questões filosóficas dentro da
ciência da religião, oferecendo ferramentas tanto metodológicas quanto conceituais
que permitem análise e interpretação do objeto estudado, que pode ser desde temas
e filósofos específicos que analisam a religião, até o diálogo com conceitos e filosofias
que não possuem como foco principal a religião, mas oferece ampliação ou
aprofundamento do tema pesquisado.

Contribuições filosóficas dos estudos Nietzschianos para a Ciências da


Religião
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), dedicou grande parte de
sua vida aos estudos filosóficos e publicou diversos livros que são vendidos e
pesquisados até os dias atuais. Nietzsche se deteve a analisar a religião,
especificamente o cristianismo, direcionando críticas tanto à tradição filosófica
ocidental, quanto à tradição socrático-platônica e judaico-cristã. Além de falar do
cristianismo, o filósofo da dinamite2 escreveu sobre diversos assuntos como
moralidade, valores, cultura entre outros temas que são pertinentes à filosofia. É
certo que Nietzsche ocupa um lugar de destaque na pesquisa filosófica, mas não só
nessa área de conhecimento, como em tantas outras, sobretudo a psicologia.
Sabe-se que nos últimos anos tem crescido o número de pesquisadores nos
programas de ciências da religião das universidades brasileiras, como área

2Nietzsche escreve em sua autobiografia intitulada Ecce homo (2017, p. 144): “Eu não sou homem,
eu sou dinamite”.

115
interdisciplinar reunindo filósofos, historiadores, sociólogos e teólogos não é de se
surpreender que os conceitos filosóficos nietzschianos estejam presentes nas
dissertações e teses defendidas, mas para compreender quantitativamente e
qualitativamente quais são as contribuições que os estudos dos conceitos e críticas
filosóficas do autor fornece a área, foi necessário mapear as pesquisas realizadas nos
últimos anos, tendo como base o catálogo de teses e dissertações da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) site disponibilizado online
na internet. O catálogo online da CAPES fornece alguns filtros de pesquisa para
melhorar o selecionamento dos dados das dissertações e teses, para este
mapeamento foram usados quatro filtros: 1)TIPO: Mestrado (Dissertação); 2)ANO:
2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022, 2023; 3)ÁREA DE
AVALIAÇÃO: Ciências da Religião e Teologia; 4)PESQUISA: Nietzsche.
Primeiro analisamos a quantidade total de dissertações defendidas nos
últimos dez anos em todos os programas disponíveis na área de avaliação da CAPES,
obtendo o resultado de cerca de 500 mil dissertações defendidas nesse recorte de
data, já na área de Ciências da religião e Teologia nos mesmo dez anos foram
defendidas cerca de 2.390 mil dissertações. Com o filtro de pesquisa usando a
palavra “Nietzsche” das 2.390 mil dissertações defendidas nos últimos dez anos,
cerca de 8 dissertações citam a palavra Nietzsche seja no resumo, nas palavras-
chave ou nas referências bibliográficas, tendo anualmente de 1 á 3 dissertações sob
o tema nietzschiano, sendo: 2013 (1 dissertação), 2014 (1 dissertação), 2015 (3
dissertações), 2022 (2 dissertações) e 2023 (1 dissertação), cabe ressaltar que entre
2016 e 2021 -cerca 6 anos- não obtivemos dissertações nesse recorte. As 8
dissertações estão concentradas em áreas estabelecidas pelo catálogo, como:
Fenômeno Religioso (2 dissertações), Religião, Cultura e Sociedade (2 dissertações),
Perspectivas histórico-filosóficas literárias das religiões (2 dissertações), Filosofia
da religião (1 dissertação) e Religião e Cultura (1 dissertação).
Dado os resultados quantitativos obtidos e o baixo número de dissertações
sob o tema nietzschiano, para compreender os principais conceitos do filósofo
abordados, foram lidos o resumo e a introdução das 8 dissertações selecionadas de
acordo com a pesquisa no catálogo da CAPES. Partindo dessa análise pode-se
verificar que os principais conceitos e compreensões do filósofo presentes nas
dissertações foram: “niilismo”, “morte de Deus”, “arte”, “moral” e “transvaloração

116
dos valores”, sobretudo tendo diálogo com outros autores como: Feuerbach, Freud,
Lyotard, Paul Ricoeur, Hannah Arendt, Heidegger e Vattimo, com os dois últimos
autores sendo lugar notável dentre o total das 8 dissertações, sobretudo, nos últimos
anos do recorte. Cabe ressaltar que os conceitos citados anteriormente perpassam
também alguns temas específicos dentro dessas dissertações, com destaque ao
cristianismo e sua formação, pós-modernidade, superação da metafísica, os
desdobramentos do anúncio da “morte de Deus”, moralidade teológica cristã,
prática evangélica de Jesus e o perdão.

Considerações finais
Com a disponibilização das teses e dissertações de forma online feita pela
CAPES, temos acesso a um grande mapeamento sobre o desenvolvimento dos
programas de pós-graduação no Brasil, sendo possível compreender a atualidade
das pesquisas realizadas nos últimos anos. A área de ciências da religião tem
crescido no Brasil, ganhado maior visibilidade pelos eventos acadêmicos e novos
pesquisadores têm adentrado aos programas que estão espalhados em diversas
universidades pelo país, sendo uma área interdisciplinar é possível ressaltar o papel
que a filosofia vem desempenhando nesse desenvolvimento.
Os resultados obtidos a partir do mapeamento das dissertações defendidas
nos últimos dez anos da área, nos revela que quantitativamente há pesquisadores
interessados nas contribuições que a filosofia nietzschiana pode agregar a área,
sobretudo a abordagem crítica às questões éticas e religiosas que o filósofo fornece
em seus estudos, qualitativamente é pertinente ressaltar que, as contribuições
filosóficas dos estudos nietzschianos tem feito relação com outros temas e autores,
aprofundando o debate, ampliando o conhecimento interdisciplinar, utilizando os
conceitos ao relacioná-los com as questões contemporâneas e nos mostrando que
há ainda um grande horizonte a ser percorrido, com diversas oportunidades ainda
não exploradas no estudo dos conceitos de Nietzsche em conversa com a ciências da
religião.

Referências
BRASIL. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Catálogo de
Dissertações e Teses da CAPES, 2023. Disponível em:
<https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/> Acesso: 09 set. 2023

117
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é.
Tradução: Macelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2017.

PIEPER, Frederico. Aspectos históricos e epistemológicos da Ciência da Religião no


Brasil. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 21, n2, p. 232-
291, 2018.

118
O DESAPARECIMENTO DOS RITUAIS E IGREJA CATÓLICA:
FENOMENOLOGIA DA DOR A PARTIR DE BYUNG-CHUL HAN

Arlindo José Vicente Junior1

Resumo: O filósofo Byung-Chul Han, tem se destacado hodiernamente fazendo uma análise
do mundo contemporâneo, principalmente, naquilo que podemos chamar de uma sociedade
inserida no contexto pós-pandêmico. Em 2021, publica O desaparecimento dos rituais: uma
topologia do presente, em que faz um importante estudo do desaparecimento dos processos
ritualísticos na sociedade contemporânea. Apresenta uma correlação entre festa e religião,
chegando afirmar que a religião cristã é marcadamente narrativa pois as festas da Páscoa,
Pentecostes e Natal, são o apogeu narrativo que orientam e promovem um sentido,
oferecendo uma significação em que marca o tempo. Paralelamente, tem se constatado pela
própria instituição, a diminuição do número de participação nas Missas e nos Rituais da
Igreja Católica. Diante deste cenário, são apresentadas algumas questões que traduzem
nosso objetivo e que deverão ser respondidas por esse trabalho. Os desafios implicados para
a fé, com uma doença ou situações de sofrimento, como um fenômeno, podem ser os
responsáveis pela não participação dos adeptos da religião? De que modo o pensamento de
Han, do qual a filosofia da religião se utiliza, pode lançar luzes para a compreensão deste
fenômeno observado e constatado pela Igreja? Qual será o futuro da religião numa
sociedade marcada pelo cansaço? São as questões que surgem neste trabalho diante da
pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Trata-se
de uma pesquisa qualitativa apresentando os resultados parciais obtidos com as leituras
bibliográficas das narrativas da Igreja Católica diante do sofrimento propondo um diálogo
com outros filósofos como Paul Ricoeur.
Palavras-chave: Han; sofrimento; Igreja Católica; fenomenologia; rituais.

Introdução
Em nossos dias, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, tem se destacado por
fazer uma análise do mundo contemporâneo, principalmente, naquilo que podemos
chamar de uma sociedade inserida no contexto pós-pandêmico ou na sociedade do
cansaço: termo também oriundo de seu pensamento, em outra publicação.
Em 2021, publica O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente,
em que faz um importante estudo do desaparecimento dos processos ritualísticos
na sociedade contemporânea. Apresenta uma correlação entre festa e religião,
chegando afirmar que a religião cristã é marcadamente narrativa pois as festas da

1 Bacharel em Teologia pela PUC-Campinas (2015) e Licenciatura em Filosofia pela mesma instituição

(2012). Mestrado em andamento no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-


Campinas. Pesquisa financiada pela CAPES. E-mail: arlindovicentejr@hotmail.com.

119
Páscoa, Pentecostes e Natal, são o apogeu narrativo que orientam e promovem um
sentido, oferecendo uma significação em que marca o tempo.
Paralelamente à obra de Byung-Chul Han, tem se constatado pela própria
Instituição, a diminuição do número de participação nas Missas e nos Rituais da
Igreja Católica Apostólica Romana, de acordo com uma pesquisa publicada pelo
Centro de Pesquisa Aplicada ao Apostolado (CPAA) da Universidade de Georgetown,
nos Estados Unidos, publicada no Jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo,
Brasil.
Os desafios implicados para a fé, com uma doença ou situações de sofrimento,
vistos e analisados como um fenômeno, podem ser os responsáveis pela não
participação dos adeptos da religião. O pensamento de Han, do qual a filosofia da
religião se utiliza, lança luzes para a compreensão deste fenômeno observado e
constatado pela Igreja, mostrado nesta pesquisa em questão. São as questões que
lançamos com esse trabalho que analisaremos a seguir.

1. Quem é Byung-Chul Han?


Byung-Chul Han (1959-) é um filósofo contemporâneo sul-coreano radicado
na Alemanha. Estudou Filosofia na Universidade de Friburgo, Literatura alemã e
Teologia na Universidade de Munique. Doutorou-se em Filosofia, apresentando uma
tese sobre a obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Assim, apoiando-se na
fenomenologia, no existencialismo e no pós-modernismo, Han tem se destacado ao
analisar e descrever a sociedade atual, ajudando-nos a compreender a complexidade
deste século XXI. Han possui como referencial teórico o existencialismo do filósofo
francês Jean-Paul Sartre, ao passo que Michel Foucault e Gilles Deleuze também
podem ser apresentados como seus influenciadores. O desaparecimento dos rituais:
uma topologia do presente, publicado em 2019 e que chegou ao Brasil em 2021, que
colocamos em destaque neste trabalho.

2. O desaparecimento dos rituais


Em linhas gerais, Byung-Chul Ha tem abordado o que tem sido o objeto
privilegiado de suas preocupações recentes: a sociedade capitalista de desempenho
marcada pelo excesso de positividade e pela ausência de negatividade, pelo estímulo

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ao sim da produção, do consumo, do sucesso e pela ausência de restrições, penas,
constrições alheias.
Nesta obra em que destacamos, Han faz uma denúncia contra um
comportamento comum em nosso tempo: a repulsa aos rituais. O sujeito de
desempenho tenderia hoje a encarar o ritual como um conjunto de formalidades
sem sentido, fruto de constrições tradicionais ultrapassadas. Na
contemporaneidade, nosso autor afirma que há uma pobreza de símbolos e tudo é
transitório (HAN, 2021a, p. 10). Essa transitoriedade e esse desapego ao simbólico
explicar-se-ia, pelo estímulo positivo a produzir, a consumir e a se sentir bem-
sucedido.

2.1. A importância do descanso


Festa e Religião parte de um argumento bíblico retirado do Livro do Gênesis,
para nos revelar que o descanso é a essência da criação e desloca a ideia de que o
descanso seria uma atenuação do trabalho:
Deus abençoou e sacralizou os sete dias. O descanso sabático
confere à obra da criação uma consagração divina. Não é mera
inatividade. Ao contrário, constitui uma parte essencial da criação.
[...] O descanso sabático não é consequência da criação. Sem ele, a
criação estaria incompleta. No sétimo dia, Deus não repousou pelo
mero trabalho feito. O descanso é, ao contrário, sua essência (HAN,
2021a, p. 60).

O filósofo sul-coreano diz que o descanso pertence à esfera do sagrado. O


trabalho, ao contrário, é uma atividade profana que, durante as ações religiosas, não
tem lugar. Descanso e trabalho constituem duas formas de existência
fundamentalmente distintas.

2.2. Silêncio
Tendo discorrido sobre a importância do descanso, nosso autor sul-coreano,
falando-nos sobre a importância do silêncio que permite escutar a voz de Deus. Nas
festas, esses momentos sabáticos, de silêncio, tem o poder de “criar uma
comunidade sem comunicação”. “O silêncio deixa escutar. Ele vem acompanhado de
uma sensibilidade particular, de uma atenção profunda, contemplativa. A coação
atual da comunicação faz com que não possamos fechar nem os olhos, nem a boca”
(HAN, 2021a, p. 63).

121
Precisamos do silêncio e da solidão para falar com Deus, para conectar-se ao
Transcendente. Nos contam os Evangelhos, que Jesus fez isso inúmeras vezes. Por
exemplo, entre tantos que podemos dar, assim, nasceu o Pai-Nosso: de um momento
de solidão e silêncio de Jesus em diálogo com o Pai (cf. Mt 6,9-13).
A quietude e o silêncio não têm lugar na rede digital dotada de uma
estrutura rasa de atenção. Ela pressupõe uma ordenação vertical. A
comunicação digital é horizontal. Nada sobressai ali. Nada se
aprofunda. Não é intensiva, mas extensiva, o que faz com que o
ruído da comunicação aumente. Porque não podemos ficar em
silêncio, temos que nos comunicar. Ou não podemos ficar em
silêncio, porque estamos subordinados à coação da comunicação, à
coação da produção (HAN, 2021a, p. 63).

A importância da solitude: momento de deixarmos que Deus nos fale. Assim,


diante do sofrimento humano, deverá haver espaços de silêncio, permitindo que
Deus fale através dos acontecimentos e, principalmente, da caridade e empatia que
desperta concomitantemente ao lado de quem sofre.
Há, então, o que podemos chamar de desfio do tempo presente com as redes
sociais. Para tanto, como milhares de pessoas são interpeladas a se verbalizar nas
redes, a comunicação digital para o filósofo é horizontalizada – no sentido de que
tudo é superficial, nada se sobressai, nem tampouco se aprofunda. Somos impedidos
de descansar, sendo que a própria noção de “festa” é interdependente das pausas,
dos períodos, das ausências. Han (2021) opõe o trabalho ao descanso, pois o
descanso não é uma recuperação do cansaço do trabalho. Descansar é algo que
transcende, relaciona-se com a vontade de viver. É nos feriados que nos
encontramos carregados dessa mística.

2.3. O capital não descansa


Nesse caminho, por sermos coagidos a produzir, nos sentimos mal quando
temos tempo livre, uma tortura do não fazer nada, um não-tempo. O desempenho
contamina o trabalho, rompendo com o início e o fim determinado para dar lugar ao
infinito. Produzir mais e mais. Os próprios locais de trabalho são contaminados por
elementos festivos, empacotando-os como “locais legais para se trabalhar”. “Hoje,
justamente o trabalho assume uma forma de furor, sem que se sinta a necessidade
de fazer festa ou de se reunir. De modo que a coação de produção leva a destruição
da comunidade” (HAN, 2021a, p. 72).

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Com frequência, o capitalismo é interpretado como religião. Se
entendermos, contudo, religião como religare, como vínculo, então
o capitalismo é qualquer coisa do que religião, pois falta-lhe a força
da reunião e da coletivização. [...] Pagando, por exemplo, posso
fazer outro trabalhar por mim, sem que eu consinta qualquer
relação pessoal com ele. E é essencial para a religião o descanso
contemplativo. Este, contudo, é a imagem reversa do capital. O
capital não descansa. Segundo a sua essência, deve trabalhar e estar
em movimento de modo contínuo (HAN, 2021a, p. 73).

Han adverte que capitalismo não tem nada de religião, no sentido de que
religião é uma ligação com uma outridade. O dinheiro justamente nos atomiza dos
outros, igualiza as pessoas e não nos deixa descansar. O capitalismo não tem a marca
narrativo-simbólica da religião cristã, pois conta-se apenas números. Diferente da
atividade turística, precisamos re-ligar o vínculo com os lugares e estabelecer
modus contemplativos: permanecer, estar, ficar em silêncio.
E a religião cristã é marcadamente entre narrativas. Feriados como a Páscoa,
o Pentecostes e o Natal são o apogeu narrativo no interior do todo da narrativa. O
capitalismo, por sua vez, não é narrativo. Não conta nenhuma história. Apenas conta
números.
Isso posto, como podemos analisar a Igreja Católica Apostólica Romana
diante destes desafios apontados por Han e destacados neste trabalho? É o que
veremos a seguir.

3. O “Desaparecimento dos rituais” e frequência dos fieis na Igreja: uma


análise sobre uma pesquisa
Não é de hoje que se tem constado a diminuição da participação dos fieis.
Basta entrarmos em uma Igreja para percebermos o que o quadro nos mostra. E isso,
tem acentuado pós-Pandemia de COVID-19. Também há que destacar, os chamados
“Católicos do IBGE”, que se dizem católicos, mas não frequentam a comunidade; são
cada vez mais frequentes. Uma compilação de novos dados pelo Centro de Pesquisa
Aplicada ao Apostolado (CPAA) da Universidade de Georgetown, nos Estados
Unidos, divulgado pelo Jornal O São Paulo2, lança luz sobre os países ao redor do

2 Pesquisa revela em quais países a frequência às missas é maior. Jornal O São Paulo: publicação
semanal da Arquidiocese de São Paulo. Disponível em < https://osaopaulo.org.br/mundo/pesquisa-
revela-em-quais-paises-a-frequencia-as-missas-e-maior/> Acesso em 07 Setembro de 2023

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mundo que têm os maiores números de comparecimento à Missa: um ritual da Igreja
Católica.
Os pesquisadores apresentaram o resultado de um grande estudo
internacional para examinar 36 países com grandes populações católicas. Desses
países em questão, os pesquisadores os classificaram pela porcentagem de católicos
que se autodenominam praticantes do Catolicismo e que responderam a pesquisa
dizendo frequentar a Missa semanalmente ou mais, excluindo casamentos, funerais
e batizados, outros rituais da Igreja Católica.
De acordo com os dados, a Nigéria e o Quênia têm a maior proporção de
católicos que vão à missa semanalmente ou mais. De acordo com a pesquisa
apresentada no gráfico, noventa e quatro por cento (94%) dos católicos da Nigéria
dizem que vão à Missa pelo menos uma vez por semana. Em segundo lugar está o
Quênia, onde setenta e três por cento (73%) dos católicos vão à Missa na semana, E
em terceiro, aparece o Líbano, como sessenta e nove por cento (69%) de
participação dos católicos nas Missas. O que é impressionante, que esses países que
ocupam os primeiros lugares, são conhecidos por terem recebidos em seus
territórios, numerosos ataques violentos contra os cristãos3.
O Brasil, que há tantos anos foi considerado o maior país católico do mundo,
aparece numa tímida posição, ocupando o penúltimo lugar: somente oito por cento
(8%) dos que se dizem católicos vão às Missas ao menos uma vez na semana.

Considerações finais
Diante do exposto, a Igreja Católica tem que enfrentar essa evasão dos fieis,
ou ainda, lidar com o que chamamos de “católicos do IBGE”, ou seja, os que se dizem
católicos, mas que não frequentam os Rituais da Igreja (a Missa, principalmente). O
que a obra de Han que destacamos com esse trabalho vem lançar luzes para a
compreensão da sociedade na qual a Igreja está inserida: desaparecem os rituais da
sociedade marcada pelo dinheiro, pelo cansaço e pela efemeridade.

3Só para citar um exemplo, no dia 05 de Junho de 2022, durante a Solenidade de Pentecostes,
quarenta pessoas foram assassinadas durante a Missa: Nigéria. Enterrados os corpos dos católicos
mortos em ataque durante uma missa. Disponível em
<https://www.ihu.unisinos.br/categorias/619740-nigeria-enterrados-os-corpos-dos-catolicos-
mortos-em-ataque-durante-uma-missa> Acesso 15 Setembro de 2023.

124
Concomitante aos desafios da Igreja Católica, existe aquele desafio maior
diante da dor: primeiro, a participação ativa na Comunidade para que não se sinta
sozinho diante do sofrimento padecido pela contingência humana, frente ao avanço
das sociedades em que os rituais cada vez mais desaparecem. Crê sozinho, reza-se
sozinho e no silêncio quase imperceptível, se lamenta por não ter com quem
partilhar seu sofrimento com o irmão. Na medida em que os rituais desaparecem,
pode desaparecer também a capacidade de crer.
Eis o desafio maior: de sentir-se pertencente a uma comunidade que possa
estar presente diante do sofrimento.

Referências
DYIKUK, Justine John. Nigéria. Enterrados os corpos dos católicos mortos em ataque
durante uma missa. IHU Unisinos. Disponível
em:<https://www.ihu.unisinos.br/categorias/619740-nigeria-enterrados-os-
corpos-dos-catolicos-mortos-em-ataque-durante-uma-missa>. Acesso em: 11 de
setembro de 2023.

FILHO, José Ferreira. Pesquisa revela em quais países a frequência às missas é maior.
Jornal O São Paulo, 5 de fevereiro de 2023. Disponível em:
<https://osaopaulo.org.br/mundo/pesquisa-revela-em-quais-paises-a-frequencia-
as-missas-e-maior/>. Acesso em: 7 de setembro de 2023.

HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do tempo presente.


Trad. Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021a.

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis:
Vozes, 2021b.

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SIGMUND FREUD E A QUESTÃO DAS COSMOVISÕES CIENTÍFICA E
RELIGIOSA

Bruno Pinto de Albuquerque1

Resumo: Fundamentada em uma ponderada análise acadêmico-bibliográfica, a presente


comunicação explora a última lição das “Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise”, de Sigmund Freud. Intitulado “Conferência XXXV: A questão de uma
Weltanschauung”, o texto aborda a questão da dimensão inconsciente subjacente às
cosmovisões científica e religiosa. Desta forma, o anseio por segurança diante da situação
de desamparo fundamental, a busca por um modo de manejar a complexidade das próprias
emoções e a expectativa frente ao futuro seriam alguns dos motivos que dificultariam a
humanidade a sustentar a dúvida, priorizando as satisfações emocionais. Segundo a
concepção freudiana, a origem metapsicológica da religião estaria no complexo de Édipo,
combinando cosmogonia, consolo e exigências éticas. Deste modo, o sujeito conceberia a
origem do universo tal como a sua própria origem, devendo sua existência ao pai e à mãe,
recebendo deles a garantia de consolo no desamparo e as restrições pulsionais que o tornam
apto a conviver na sociedade humana. Ativando as memórias afetivas da proteção paterna,
valorizada desde a infância, o aparato psíquico elevaria a imagem do pai à condição de
divindade, sustentando a crença em Deus. Ainda que argumente que a ciência
eventualmente superaria a religião, sustentando que a religião tenderia a dificultar o
progresso da investigação científica, o criador da psicanálise afirma também que, para a
psicanálise, a questão da verdade das crenças religiosas não entraria em questão. Neste
contexto, ele situa o dispositivo teórico-clínico que inaugurou na cosmovisão científica,
marcada pela parcialidade e a incompletude, constantemente aberta a revisões.
Palavras-chave: Sigmund Freud; Psicanálise; Cosmovisão; Ciência; Religião.

Introdução
Na abertura da Conferência XXXV: “A questão de uma Weltanschauung”,
Freud indica que se afastará dos “pequenos assuntos cotidianos”, com os quais vinha
se ocupando até então, para arriscar um “salto ousado” (FREUD, 1996
[1933a(1932)], p. 155). Sua tarefa consistirá em delimitar se a psicanálise
conduziria ou não a uma determinada visão de mundo. Deste modo, o criador da
psicanálise retomará algumas linhas de pensamento anteriores sobre as
articulações entre psicanálise e ciência, desenvolvidas em O futuro de uma ilusão.
Antes de tudo, deve-se explorar o próprio significado da palavra Weltanschauung,

1 Doutor em Ciência da Religião (UFJF), com período sanduíche no exterior (Capes) na Facultad de
Teología de Granada (Espanha); estagiário de pós-doutorado em Filosofia (PUC-Rio), com bolsa de
financiamento da John Templeton Foundation (EUA). E-mail:
brunopintodealbuquerque@gmail.com.

126
que pertence a um campo semântico próprio ao contexto alemão, podendo ser
traduzida em língua portuguesa por “cosmovisão” ou “visão de mundo”:
Suponho que Weltanschauung seja um conceito especificamente alemão, cuja
tradução para línguas estrangeiras certamente apresenta dificuldades. Se eu
tentar uma definição sua, minha definição estará fadada a ser incompleta. Em
minha opinião, a Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona
todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma
hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma
pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo
(FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 155)2.

Pode-se compreender que a visão de mundo seja altamente valorizada e


desejada enquanto um dos “desejos ideais dos seres humanos”, pois acreditar nela
produziria segurança, nortearia as expectativas para o futuro e orientaria o modo
de lidar com as emoções (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 155).
A psicanálise, no entanto, segundo Freud, não disporia de uma visão própria
desse tipo: “Na qualidade de ciência especializada, ramo da psicologia – psicologia
profunda, ou psicologia do inconsciente –, ela é praticamente incapaz de construir
por si mesma uma Weltanschauung: tem de aceitar uma Weltanschauung científica”
(FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 156). Mas, para o criador da psicanálise, a própria
cosmovisão científica divergiria muito daquela definição: “É verdade que também
supõe a uniformidade da explicação do universo; mas, o faz apenas na qualidade de
projeto, cuja realização é relegada ao futuro” (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 156,
grifo no original). Suas características seriam marcadamente negativas, pois deveria
limitar-se àquilo que fosse cognoscível no presente, recusando certos elementos que
lhe seriam estranhos e selecionando a “elaboração intelectual de observações
cuidadosamente escolhidas” (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 156).

Desenvolvimento
Para o autor, a ciência deveria ser considerada a única fonte de conhecimento
do universo; outras formas de conhecimento, derivadas da revelação, da intuição ou
da adivinhação, deveriam ser desconsideradas. Segundo ele, esse ponto de vista
teria estado próximo de obter reconhecimento geral, mas passara a ser questionado
no século XX:

2A historiadora da psicanálise Élisabeth Roudinesco contribui para apreciar as complexidades do


campo etimológico referente à expressão: “Literalmente a palavra é composta de Welt, mundo, e
Anschauung, contemplação, visão, experiência. Recobre diversas significações: ideologia, concepção
política do mundo, visão do mundo e até mesmo discurso filosófico” (ROUDINESCO, 2016, p. 399).

127
Parece que esse ponto de vista chegou muito perto de obter
reconhecimento geral, no curso dos últimos séculos; e coube ao
nosso século manifestar a atrevida objeção segundo a qual uma
Weltanschauung como esta é simultaneamente muito pobre, sem
esperança, e despreza as reivindicações do intelecto humano e as
necessidades do psiquismo do homem (FREUD, 1996
[1933(1932)], p. 156, grifo no original).

A psicanálise se alinha às características negativas da Weltanschauung


científica, sublinhando o reconhecimento da parcialidade de suas descobertas, a
incompletude de seu saber e a abertura constante para a revisão e a novidade. Deste
modo, ela considera o psiquismo um objeto de pesquisa científica tanto quanto as
“coisas não-humanas”, incluindo-o no quadro do universo: “Sua contribuição à
ciência consiste justamente em ter estendido a pesquisa à área psíquica”. Assim, ele
acrescenta que “sem tal psicologia, a ciência estaria muito incompleta” (FREUD,
1996 [1933(1932)], p. 156).
Retomando a noção de ilusão apresentada em O futuro de uma ilusão, Freud
considera que a intuição e a adivinhação sejam baseadas na emoção, expressões da
realização de impulsos plenos de desejos. Assim como fizera no texto de 1927, aqui
também, aproximadamente 5 anos depois, o criador da psicanálise especifica a
noção psicanalítica de “ilusão”:
Se, no entanto, a investigação das funções intelectuais e emocionais
do homem (e do animal) é incluída na ciência, então se verá que
nada é modificado na atitude da ciência como um todo, que
nenhuma nova fonte de conhecimento ou novo método de pesquisa
resultou daí. A intuição e a adivinhação seriam as mesmas, se
existissem; porém, seguramente, podem ser tidas na conta de
ilusões, de realização de impulsos plenos de desejos. Também é
fácil verificar que essas exigências feitas a uma Weltanschauung
somente se baseiam na emoção. A ciência apercebe-se do fato de
que o psiquismo do homem cria tais exigências e está pronta a
examinar suas origens, mas não tem o mais leve motivo para
considerá-las justificadas. Pelo contrário, vê isto como advertência
no sentido de cuidadosamente separar do conhecimento tudo o que
é ilusão e o que é resultado de exigências emocionais como estas
(FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 156).

Neste sentido, Freud resgata elementos se aproxima da apresentação daquilo


que considerara uma “educação para a realidade” (FREUD, 1927/1996, p. 57). Ao
defender que a ciência deveria ocupar um lugar diferenciado com relação às artes, a
filosofia e a religião – sem que isto conduzisse a um desprezo dos desejos humanos

128
e de seu valor –, Freud sublinha que o ponto de vista científico apresentaria abertura
a críticas, objeções e rejeições.
Isto absolutamente não significa que se deva repelir com desprezo
esses desejos, ou subestimar seu valor para a vida humana.
Estamos em condições de destacar as realizações que esses desejos
criaram para si mesmos, nos produtos da arte e nos sistemas de
religião e de filosofia; porém, não podemos desprezar o fato de que
seria ilícito e muito impróprio permitir fossem essas exigências
transferidas para a esfera do conhecimento. Pois isto equivaleria a
deixar abertos os caminhos que levam à psicose, seja psicose
individual, seja grupal, e retiraria valiosas somas de energia de
empreendimentos voltados para a realidade, com a finalidade de,
na medida do possível, nela encontrar satisfação para os desejos e
para as necessidades (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 156-157).

Segundo o criador da psicanálise, a combinação de uma cosmogonia, consolo


e exigências éticas indicaria que a religião se origina do complexo de Édipo, na
medida em que o sujeito deve sua existência ao pai e à mãe, assim como recebeu
deles a garantia de consolo no desamparo e as restrições pulsionais que o tornariam
apto a conviver na sociedade humana. Desta forma, ele afirma, o “homem religioso
imagina a criação do universo assim como imagina sua própria origem”; percebendo
a própria impotência frente aos perigos da vida adulta, “retorna à imagem mnêmica
do pai, a quem, na infância, tanto valorizava. Exalta a imagem transformando-a em
divindade, e torna-a contemporânea e real. A força afetiva dessa imagem mnêmica
e a persistência de sua necessidade de proteção conjuntamente sustentam sua
crença em Deus” (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 159-160).
Portanto, a perspectiva freudiana concebe a psicanálise enquanto última
crítica da cosmovisão religiosa, sinalizando que esta última se originaria a partir do
desamparo da criança e da permanência na vida adulta desse desejo de proteção da
infância.
A última contribuição à crítica da Weltanschauung religiosa foi feita
pela psicanálise, ao mostrar como a religião se originou a partir do
desamparo da criança, e ao atribuir seu conteúdo à sobrevivência,
na idade madura, de desejos e necessidades da infância. Isto não
significou necessariamente uma contestação à religião; não
obstante, representou um ajustamento de nosso conhecimento a
seu respeito. [...] Parece não ser verdade que existe um Poder no
universo que vela pelo bem-estar dos indivíduos com desvelo
parental e conduz todas as coisas a um desfecho feliz (FREUD, 1996
[1933a(1932)], p. 163).

129
Apesar de suas críticas agudas, Freud destaca que, para a psicanálise, “a
questão da verdade das crenças religiosas pode ser totalmente colocada à parte”,
pois considera que “seu consolo não merece fé” e que a religião seria superada pela
ciência (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 163-164). Segundo ele, enquanto a ciência
enfatiza o mundo externo, a religião deriva sua força do mundo interno: “Nenhum
menosprezo à ciência pode de algum modo alterar o fato de que ela está procurando
levar em conta nossa dependência do mundo externo real, ao passo que a religião é
uma ilusão e deriva sua força da sua presteza em ajustar-se aos nossos impulsos
pulsionais plenos de desejos” (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 170).

Considerações finais
Em suma, o pai da psicanálise aproxima o trabalho científico do trabalho
analítico, afirmando que, em ambos, os principais traços são negativos:
A psicanálise não precisa de uma Weltanschauung; faz parte da
ciência e pode aderir à Weltanschauung científica. Esta, porém,
dificilmente merece um nome tão grandiloquente, pois não é capaz
de abranger tudo, é muito incompleta e não pretende ser
autossuficiente em construir sistemas. [...] Uma Weltanschauung
erigida sobre a ciência possui, excetuada a sua ênfase no mundo
externo real, principalmente traços negativos, tais como a
submissão à verdade e a rejeição às ilusões (FREUD, 1996
[1933(1932)], p. 177).

Freud conclui a conferência afirmando que aquele que exige mais do que
aquilo que a visão de mundo científica pode oferecer deve procurar consolo em
outro lugar: “Todo semelhante nosso que está insatisfeito com essa situação, que
exige mais do que isso para seu consolo momentâneo, haverá de procurá-lo onde o
possa encontrar. Não o levaremos a mal, não podemos ajudá-lo, mas nem podemos,
por causa disso, pensar de modo diferente” (FREUD, 1996 [1933(1932)], p. 177).
A escolha por apresentar esta conferência de Freud no Congresso da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciência da Religião
(ANPTECRE) foi mobilizada pela aposta de que o debate com colegas das áreas de
filosofia, teologia e ciência da religião poderiam trazer novos elementos para
repensar as elaborações freudianas no contexto do século XXI. Esperou-se, deste
modo, encontrar oportunidade para enriquecer o material de pesquisa, tendo em
vista a publicação de um livro sobre Freud e a experiência religiosa. Enquanto
resultado parcial, haveria que se indicar a profunda reconfiguração epistemológica

130
vivenciada por essas disciplinas desde que o texto freudiano foi escrito. Espera-se
que, em reflexões posteriores, torne-se mais claro o caminho por onde se poderá,
eventualmente, continuar avançando na consideração que a área de Ciências da
Religião e Teologia pode construir a respeito da crítica freudiana da crença religiosa.

Referências
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão [1927]. In: FREUD, Sigmund. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), v. XXI.
Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 11-63.

FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise [1933(1932)].


In: ESB, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 11-177.

ROUDINESCO, Élisabeth. Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar,
2016.

131
“AMAR A DEUS POR NADA”: FÉ E SOFRIMENTO NO MITO DE JÓ
SEGUNDO KIERKEGAARD E RICŒUR

Carlos Eduardo Cavalcanti Alves1

Resumo: A presente comunicação propõe uma análise das leituras feitas pelo teólogo
dinamarquês Søren Kierkegaard e pelo filósofo francês Paul Ricœur do personagem bíblico
Jó, enquanto possível resposta existencial-religiosa à questão do sofrimento. Na abordagem
de Kierkegaard, o personagem bíblico não é considerado desde uma perspectiva metafísica,
mas como padrão de vida piedosa. Para ele, se divorciado de seu caráter tipológico, esse
mito induziria a um indevido tratamento dogmático. Segundo Ricœur, essa epopeia bíblica
apresenta a relação retributiva entre pecado e sofrimento em confronto com questões que
colocam a separação entre estes. Para o filósofo francês, ademais, a transposição da
negatividade do discurso sobre Deus para a antropologia filosófica, empreendida por
Kierkegaard, posiciona a fé como crença que está para além da linguagem e da razão na
relação com o divino, como manifesta por Jó. Assim, a fim de investigar as interpretações de
Ricœur e Kierkegaard a propósito da fé religiosa diante do sofrimento, primeiramente terá
lugar o confronto entre suas concepções do mito de Jó quanto ao paradoxo de se conciliar a
crença no divino com a realidade quando experimentada como sofrimento. Em seguida
serão apresentados os conceitos ricœuriano e kierkegaardiano, respectivamente, de aporia
produtiva e repetição, e sua relação com o personagem bíblico em questão. Como conclusão,
a hipótese defendida é que, em decorrência da correlação da abordagem de ambos os
pensadores, o problema do sofrimento individual enquanto questão existencial-religiosa
implica uma crença teísta de natureza agnóstico-ética.
Palavras-chave: Sofrimento; Aporia; Repetição; Fé.

Introdução
Para o filósofo francês Paul Ricœur (1988), a questão do mal, e por extensão
do sofrimento, é crucial para a filosofia e a teologia. Para aquela revela-se como um
desafio paradoxal: por um lado, a questão, se compreendida, deixa de ser absurdo
para se tornar determinação da razão, o que lhe furta a condição de anomalia; por
outro lado, se não compreendida torna-se lacuna que desafia a própria pretensão da
filosofia em se erigir como sistema de pensamento. Em relação à teologia, para ele
levanta-se de imediato a questão da teodiceia, com proposições que ao longo da
história do pensamento cristão ocidental basearam-se em pressuposições

1Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente faz estágio de
pós-doutorado em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, onde cursou
mestrado na mesma área. E-mail: c.eduardocavalcanti@gmail.com.

132
insatisfatórias, na tentativa de conciliar a realidade do mal e do sofrimento com os
absolutos divinos de conhecimento, poder e bondade.
Quanto ao teólogo dinamarquês Søren Kierkegaard, pensar o problema do
sofrimento de modo abrangente pressupõe um empreendimento exegético para a
compreensão de seus textos, pois são temas que não aparecem de forma
significativa em sua curta e fragmentada biografia, tampouco na vasta produção de
seu corpus literário, o que impossibilita identificar facilmente um amplo escopo de
seu pensamento a respeito. Em outras palavras, uma exegese textual é a forma mais
apropriada, também na opinião de Ricœur (1996), para se chegar a abordagens
filosóficas que estruturem uma concepção kierkegaardiana sobre essa temática.
A questão do sofrimento será tratada a partir do pensamento teísta cristão
ocidental e se refere ao sofrimento enquanto mal moral sofrido e mal natural,
extensivos a todos os seres sencientes. E o desdobramento existencial-religioso
proposto para esse problema procurará lidar com a contradição de se conciliar a
crença cristã, na onipotência e na bondade de Deus, com a realidade da dor
impingida e sofrida, por animais humanos e não-humanos. Assim, com o objetivo de
propor uma análise comparativa das concepções de Kierkegaard e Ricœur a
propósito, esta comunicação abordará a questão em dois momentos.
Primeiramente, apresentará a tipologia kierkegaardiana e a aporia ricœuriana
relativas ao personagem bíblico Jó, quanto à experiência da realidade
experimentada como sofrimento e à fé enquanto crença no divino diante dessa
condição. Em seguida, apresentará os conceitos de Kierkegaard e Ricœur,
respectivamente, de repetição e aporia produtiva, e sua relação com o personagem
bíblico em questão, a fim de se identificar seu posicionamento a respeito do
sofrimento como questão existencial-religiosa.

1. Sofrimento individual em Jó entre a tipologia e a aporia


Na abordagem de Kierkegaard o personagem bíblico Jó não é considerado
desde uma perspectiva metafísica, mas como padrão de vida piedosa. Para ele, se
divorciada de sua condição religiosa e sua função devocional, essa tipologia judaico-
cristã induziria a um indevido tratamento dogmático. Em outras palavras:
[...] crenças religiosas são justificadas, em geral, por fazerem parte
de um esquema teorético sobre o mundo e uma determinada
concepção do divino. De forma abrangente, as abordagens

133
metafísicas têm em comum crenças embasadas em uma ideologia
ou em um sistema de proposições teoréticas. Diversamente, os
conceitos judaico-cristãos no pensamento kierkegaardiano
somente adquirem significado quando associados a uma forma
específica de vida. Entendê-los na epopeia de Jó tem mais a ver com
devoção religiosa do que com tarefa de apreender um sistema de
crenças (ALVES, 2022, p. 144).

Assim, a concepção kierkegaardiana é crítica a qualquer teodiceia construída


conceitualmente, direcionada à busca de hipóteses racionais e pretensamente
plausíveis sobre a relação entre o humano e o divino. Tampouco admite a
instrumentalização ideológico-histórica da história de Jó, como dispositivo de
reforço de valores comunitários que garantam a origem divina do dogma e do telos
da moral humana. Para Kierkegaard a tragédia religiosa deve ser tratada
doxologicamente, não de modo teorético:
Assim, a grandeza de Jó não reside sequer em ter dito: o Senhor deu
e o Senhor o tomou, bendito seja o nome do Senhor; algo que na
verdade disse a princípio e que não repetiu mais tarde. A
importância de Jó reside antes em as disputas de fronteiras a
respeito da fé terem sido travadas dentro de si próprio, em nos ser
aqui apresentada a monstruosa sublevação das forças selvagens e
belicosas da paixão. [...] Esta categoria, provação, não é estética,
ética ou dogmática; é inteiramente transcendente [...] e coloca o
homem numa relação puramente pessoal de oposição a Deus, numa
relação tal que o homem não pode dar-se por satisfeito com uma
explicação de segunda mão (KIERKEGAARD, 2009, p. 120-121;
itálicos do autor).

Como paradigma religioso da provação e da fé, a condição de Jó pode ser


compreendida adicionalmente, pela análise de Kierkegaard, como expressão do
particular em função de sua natureza. Sua provação é espiritual e se encontra no
interior do sofrimento, e somente por este pode ser definida. Está na esfera da
relação com Deus e representa o limite desta, no qual o indivíduo religioso encontra-
se diante de algo superior e imperscrutável (KIERKEGAARD, 2016, p. 174).
Na relação absoluta e limítrofe com Deus, a provação é categoria religiosa
ligada à temporalidade e representa o embate entre a fé e as paixões. Nesse sentido,
Kierkegaard afirma que a prova espiritual não pode ser relacionada ao exterior, pois
é no interior que ocorre a possibilidade de desfalecimento, a saber, rebelião contra
o poder divino e entendimento de se estar sob sua condenação. Quem em sua
interioridade está voltado ao divino, conserva interesse nesta relação e espera o que
explique sua situação, haja vista não poder encontrar resposta por si mesmo. Ao se

134
entender em provação, sente-se confortado mesmo ciente de que a ação divina pode
demorar, tanto como continuidade da prova quanto como espera por socorro. Não
foge da dor, pois embora em situação de aflição insiste em permanecer na relação
absoluta com o absoluto (KIERKEGAARD, 1990, p. 97-98).
Tal indivíduo obtém certeza apenas enquanto fé existencial, paradoxal e em
virtude do absurdo, pois crê contrariamente ao entendimento e, assim, opta por
fortalecer-se interiormente. A provação espiritual pode ser, dessa forma, pensada
como parte integrante da fé: é confiar a própria existência a Deus.
Para Ricœur (1988, p. 23-29) o mal moral cometido, pecado em linguagem
religiosa, requer punição e, portanto, refere-se também ao mal sofrido, que consiste
no não-prazer e faz do humano também vítima pelo sofrimento provocado. Pode-se
dizer, assim, que o mal e o sofrimento exprimem a condição humana de forma
profunda. E, quando tratadas a partir dos mitos religiosos de forma especulativa,
abre-se espaço para as teodiceias racionais e se dirige ao problema da origem do
mal. Particularmente em forma de comunicação sapiencial, a racionalização do mito
distingue o sofrimento do mal moral ao mesmo tempo que utiliza este como
causador e alvo de retribuição daquele.
Dentre outras passagens, segundo Ricœur, a narrativa de Jó apresenta a
relação retributiva entre pecado e sofrimento, bem como o questionamento que
coloca a distinção entre este e o mal moral. Entretanto, para além da discussão
interna à obra bíblica sobre mal, justiça e retribuição, para o filósofo francês Jó
destaca-se existencialmente como tipo da tragédia que envolve toda a humanidade
e os demais seres sencientes, a saber, o sofrimento na forma de mal natural e como
alvo da ação humana. Assim se expressa a propósito:
Em relação a um sentido embora rudimentar de justiça, a
repartição apresenta males e pode parecer arbitrária,
indiscriminada, desproporcional: por que este e não aquele morre
de câncer? Por que a morte de crianças? Por que tanto sofrimento,
como abuso da capacidade comum de endurecimento dos simples
mortais? Se o livro de Job possui na literatura mundial o lugar que
se sabe, é porque primeiramente considera a lamentação como
queixa, e queixa conduzida ao nível da contestação. [...] conduz ao
nível de um diálogo poderosamente argumentado entre Job e seus
amigos, o debate interno da sabedoria, espicaçada pela
discordância entre o mal moral e o mal sofrimento (RICŒUR, 1988,
p. 29-30; itálicos do autor).

135
Jó vê-se, assim, diante de uma aporia, ou seja, da dúvida de como conciliar
racionalmente sua condição de sofrimento com a convicção de que este não seria
punição retributiva por um mal praticado. Ademais, no epílogo da narrativa a
teofania nada responde, e tão somente são apresentadas declarações de Jó –
resignadas ou indignadas, a depender da opção exegética que se faça. Por isso,
pergunta o filósofo francês (RICŒUR, 1988, p. 46; itálicos do autor): “a sabedoria
não será reconhecer o caráter aporético do pensamento sobre o mal, caráter
aporético conquistado pelo próprio esforço de pensar mais e de modo diferente?”
Embora haja diferença entre o tratamento que Ricœur e Kierkegaard dão ao
mito de Jó, qual seja, a relação entre pecado e sofrimento em detrimento da
existência religiosa que exerce fé para além dos limites da elaboração racional,
ambos concordam que a teologia e a filosofia demonstram carência de um
tratamento doxológico e, assim, adequado sobre o mal e o sofrimento. Por isso, a
lamentação de Jó vem à tona tipologicamente como desafio à compreensão da
realidade do mal e sua manifestação como sofrimento entre os seres viventes
(RICŒUR, 1988, p. 34-45).

2. Repetição e aporia produtiva


Para Kierkegaard, estar de forma infinita interessado na realidade efetiva do
outro é realização da fé na relação com seu objeto, isto é, a divindade. Dessa forma,
na relação entre possibilidade e realidade efetiva, o páthos religioso leva o existente
a modificar tudo em sua existência para estar em conformidade com a realidade
suprema do eterno. Semelhantemente, o páthos ético sempre consistirá no agir em
sua relação com a realidade efetiva, através do qual transforma toda a sua existência
em função do seu interesse, contudo, na própria realidade. Assim, se por um lado
repetição é um movimento transcendente, categoria religiosa conectada com a fé,
por outro lado está ligada à ética por excelência, a do amor como prática do bem,
possibilidade esta que consiste em que o eterno toca o temporal no futuro, na
possibilidade do devir.
A ambiguidade do possível, de se realizar como bem ou mal, gera pela
esperança a expectativa temporal do bem, que é a eternidade, ou pelo temor a
expectativa temporal do mal, na temporalidade. Ademais, a ausência da
possibilidade é repetição indolente, paráfrase da mesma coisa, motivo porque quem

136
vive sem possibilidade está desesperado e, assim, rompe com o eterno. Portanto,
desesperar é renunciar à possibilidade assumindo a impossibilidade do bem,
conquanto veja apenas o desespero como possibilidade e assista às possibilidades
do outro sem considerá-las para si. Mesmo ao abandonar a possibilidade do bem
para o outro, a pessoa se torna desesperada e rejeita o amor sem considerar que
possibilidade para si e para o outro estão conectadas através da conjunção entre o
temporal e o eterno pelo próprio amor (KIERKEGAARD, 2005, p. 281-288).
Quando se refere a Job a fim de interpretar o próprio sofrimento, Kierkegaard
reconhece nele a perspectiva de continuidade existente entre fé e amor. O
personagem bíblico continuava a ser ele, mesmo em meio às vicissitudes de sua vida:
Job permanece firme na sua afirmação de que tem razão. Fá-lo de
tal maneira que com isso dá testemunho daquela nobre coragem
humana que sabe o que é um homem, que sabe que este, apesar de
ser frágil e de rapidamente estiolar como a vida da flor, é contudo,
no que diz respeito à liberdade, algo de grande, um ser que tem uma
consciência da qual nem Deus o pode privar, apesar de ter sido ele
a dar-lha. Job mantém-se firme na sua afirmação, fazendo-o de tal
maneira que nele são visíveis o amor e a confiança que estão
convictos de que Deus pode sempre resolver tudo, bastando que
possa falar-se directamente com ele (KIERKEGAARD, 2009, p. 118).

Desse modo, o amor ao divino estrutura a compreensão e a experiência de


uma repetição significativa enquanto páthos ético-existencial da fé em Job. Por isso,
a consciência que age pelas repetições da vida cotidiana com amor, integrante desta
ética religiosa que se volta para o próximo, como bem enfatiza a segunda ética
kierkegaardiana, confere sentido à existência e atenua o desgaste acarretado pelas
contingências da vida humana (ROOS, 2020, p. 224).
Quanto a Ricœur (1988, p. 47-50), o pensamento chega à aporia que envolve
a questão do sofrimento e deve, como resposta, ser produtiva, desdobrando-se pelo
trabalho do pensar, do agir e do sentir. A resposta da ação à pergunta sobre a origem
do mal é “que fazer contra o mal?”, deixando a visão do passado para se direcionar
ao futuro como tarefa a ser realizada, como atuação ética e política. Entretanto, o
sofrimento individual pergunta “por que eu?”, cuja lamentação expõe o papel do
sentimento nessa produção.
Aqui aplica-se o aspecto aporético da fé religiosa quanto ao sentir, em seu
primeiro estágio, que se faz intelectualmente presente na experiência do sofrimento,
a saber, o reconhecimento da aleatoriedade das ocorrências da vida. A culpa ou a

137
responsabilização pessoal sobre os acontecimentos fortuitos requer que, como
ponto de partida, reconheça-se desconhecedor do fundamento do sofrimento. O
segundo aspecto diz respeito à expressão da própria lamentação, manifesta pela
queixa tipicamente encontrada nos salmos do Primeiro Testamento bíblico, que
questiona: “até quando, Senhor?”
O terceiro e final aspecto consiste em se relacionar com o divino apesar do
sofrimento, crendo na desconexão que há entre ele e o mal. Segundo Ricœur:
[...] é descobrir que as razões de acreditar em Deus nada têm em
comum com a necessidade de explicar a origem do sofrimento. O
sofrimento é somente um escândalo para quem compreende Deus
como a fonte de tudo o que é bom na criação, incluindo a indignação
contra o mal, a coragem de suportá-lo e o élan de simpatia em
relação às suas vítimas; então acreditamos em Deus apesar do mal
[...] (RICŒUR, 1988, p. 51; itálicos do autor).

É o “amar a Deus por nada”, nas palavras do filósofo francês, presente na


história de Jó (1988, p. 52).

Conclusão
A propósito do sofrimento humano, tipificado pelo personagem bíblico Jó,
Kierkegaard trata da questão a partir da piedade que caracteriza a vida de quem se
encontra em uma situação limite e, não obstante, crê em virtude do absurdo, ou seja,
para além da racionalidade dogmática ou filosófica e em conflito com as próprias
paixões. Ricœur, por seu turno, concebe em Jó a aporia decorrente de uma situação
diante da qual a vida piedosa é duramente confrontada com a realidade trágica da
existência. Toda a argumentação em torno da culpa ou da inocência do personagem,
e da relação de causalidade entre o mal e o sofrimento, como sua punição, remete à
questão da ausência de motivação racional para se crer ou deixar de fazê-lo.
Conquanto com diferentes abordagens, para ambos os pensadores pode-se
depreender que o sofrimento apresenta-se como desafio às formas tradicionais de
lidar com a questão do mal, e apelo a uma alternativa que considere a fé em
associação às condições existenciais do indivíduo.
Torna-se, assim, possível uma resposta religiosa à questão e que, da mesma
forma que as propostas lógicas ou naturalistas, sempre será passível de crítica. Por
isso, a alternativa religiosa que não reconhece a validade das proposições filosóficas
e dogmáticas acerca do divino e do mal constitui uma aporia que apresenta duas

138
características decorrentes e que deverão ser tratadas em um texto posterior:
constitui um teísmo de perfil agnóstico, pois não faz afirmações sobre o ser e os
atributos do divino objeto da crença; e levanta a questão prática de como lidar
eticamente com o mal nas relações sociais e de alteridade.

Referências
ALVES, Carlos E.C. Repetição como paixão da fé: uma abordagem a partir do
pensamento de Søren Kierkegaard. Juiz de Fora, 2022. 216f. Tese (Doutorado em
Ciência da Religião) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião,
Universidade Federal de Juiz de Fora.

KIERKEGAARD. A repetição. Lisboa: Relógio D’Água, 2009.

KIERKEGAARD. As obras o amor. Bragança Paulista: Universitária São Francisco,


2005.

KIERKEGAARD. Eighteen Upbuilding Discourses. Princeton: Princeton University,


1990.

KIERKEGAARD. Pós-escrito às Migalhas filosóficas. Petrópolis: Vozes; Bragança


Paulista: Universitária São Francisco, 2016, v. 2.

RICŒUR, Paul. Leituras 2: a região dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996.

RICŒUR, Paul. O Mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papirus, 1988.

ROOS, Jonas. When I am Sisyphus: love, repetition and meaning of daily life. In:
LORENTZEN, Jamie; MARINO, Gordon (eds.). Take Kierkegaard Personally: first
person responses. Macon: Mercer University, p. 220-227, 2020.

139
A CRÍTICA DE VATTIMO À BIOÉTICA CATÓLICA1

Felipe de Queiroz Souto2

Resumo: Gianni Vattimo publicou em 2006 o livro La vita dell’altro: bioetica senza
metafisica, texto ainda não publicado no Brasil, no qual faz sua crítica à bioética
católica. Ele considera que o discurso católico sobre bioética está sustentado sobre
a ideia de uma metafísica da presença que identifica “Deus” como o primeiro motor
de toda a criação e para o qual todo o ser humano deve dirigir-se, assim, a ética é um
modo de vida coerente àquilo que o Deus criador deseja para a realização plena da
vida humana. Vattimo critica essa interpretação ao sugerir um pensamento pós-
metafísico que não prevê a necessidade de um Deus criador como justificativa ou
como Deus ex machina para a resolução dos problemas humanos, sociais e éticos.
Deste modo, podemos encontrar no seu texto uma crítica à antropologia teológica
católica e ao discurso pela “vida” que ele entende ser falso. Como proposta frente à
bioética católica, Vattimo apresenta uma ética hermenêutica baseada nos princípios
da conversação das diferentes comunidades culturais. Ao invés de uma imposição
ética dada por uma interpretação absoluta, se tenta promover uma ética livre da
metafísica capaz de ser lida como uma proposição cultural que é validada por uma
comunidade de intérpretes. O texto em questão se dedica a apresentar a crítica do
filósofo à bioética católica.
Palavras-chave: Bioética; Catolicismo; Metafísica; Hermenêutica; Poder.

Introdução

Gianni Vattimo, falecido em setembro de 2023 enquanto ocorria o Congresso


da ANPTECRE na PUC-Campinas, deixou uma filosofia de cunho niilista que busca o
enfraquecimento da metafísica. A metafísica é aquele sistema de pensamento (que
ele chama de “forte”) que estrutura o mundo sob a prerrogativa de uma verdade
absoluta e de um ente supremo. Este que foi o tema de seu incansável trabalho
filosófico, também é objeto da obra La vita dell’altro: bioetica senza verità (2006)
que ainda não possui tradução ao português. No texto, Vattimo critica o discurso
católico acerca da bioética, pois o identifica sobre o paradigma da metafísica

1 O objeto deste texto está estudado em versão ampliada e melhor debatida no artigo de minha
autoria titulado Lançar fora o Deus criador: a crítica de Gianni Vattimo à bioética católica publicado
no volume 26, número 2, ano 2023, da Revista Numen da UFJF.
2 Mestre em Ciências da Religião pela PUC-Campinas (2021). Doutorando em Ciência da Religião pela

UFJF com período sanduíche no Centro para la filosofia y los archivos de Gianni Vattimo da UPF,
Barcelona (2022-2023). E-mail: felipeqsouto@gmail.com

140
clássica, o que o torna violento, já que a metafísica sempre quer impor sua narrativa
em detrimento de outras. Neste sentido, uma ética fundada sobre a metafísica seria
também violenta. Assim, Vattimo percebe que o discurso católico sobre a bioética é
um discurso que busca a validade universal da interpretação e, por isso, se presume
como uma interpretação única da realidade. Neste texto iremos apresentar o
entrelaçamento entre a interpretação católica, a bioética e o poder. Para isso, iremos
utilizar da obra já referenciada do autor para mostrar como o poder da Igreja se
deriva da interpretação e se afirma na moral.

Bioética, poder e interpretação

Vattimo lê com atenção a obra Bioetica cattolica e bioetica laica (2005) de


Giovanni Fornero que nada mais além de sistematizar o pensamento católico acerca
da bioética. Fornero entende a bioética católica como “bioética da sacralidade da
vida”, isto é, que coloca a vida como um valor sagrado que precisa ser respeitado
acima de todos os outros valores. É evidente que Vattimo não se opõe a essa
definição católica, mas busca criticar o que está pode detrás disto e as suas
consequências. Para a suposição de uma sacralidade da vida deve haver antes a
noção “natureza” humana, conceito com o qual Vattimo tem bastante resistência. Ele
explica em seu texto a posição católica:

As teses católicas – e não genericamente religiosas, já que os dois


âmbitos não são necessariamente iguais – sobre bioética são
bastante conhecidas: se resumem, como explica Fornero, na teoria
da sacralidade da vida (abreviada por TSV). A vida é dada ao ser
humano por Deus criador, que imprimiu na sua criação um projeto
inteligente que deve ser reconhecido pelo ser humano e assumido
como base dos seus próprios comportamentos. Ora, a vida como
dom de Deus não é um bem do qual o ser humano possa dispor e,
no entanto, isso que é fundamental para a ética sexual e familiar,
cada faculdade humana tem seu próprio destino claro que serve
como norma para suas escolhas. Homossexualidade, masturbação,
contracepção de qualquer tipo são atos “intrinsecamente”
desordenados e, por isso, imorais, contra a natureza. Na mesma
esteira está o homicídio (afinal, contracepção, aborto, etc., são
frequentemente comparados pelo pensamento católico com o
genocídio) (VATTIMO, 2006, p. 38).

141
O tema da homossexualidade não aparece na obra de Vattimo como um fio
condutor de seu pensamento, mas ela é responsável por auxiliar o filósofo a
perceber alguns discursos violentos e criticá-los (cf. VATTIMO, 2018, p. 75). Essa
questão leva o autor a perguntar-se sobre o porquê da discussão moral da Igreja e
encontra uma correlação entre moral, discurso/intepretação e poder. A moral
católica é justificada pela interpretação que ela faz da Bíblia e do mundo. Entendo o
ser humano como um projeto em direção ao seu Criador, a Igreja precisa lançar as
bases fundamentais para que o ser humano evolua ao encontro daquele que o criou.
Assim, a moral se entrelaça com a antropologia católica e o discurso se torna uma
regra. Por meio da moralidade, a Igreja é capaz de manter seu poder e esse poder é
justificado pela interpretação que ela faz da realidade. A discussão moral perpetrada
pela Igreja Católica revela necessidade de poder na qual fica explícita sua “estrutura
hierárquica, vertical e autoritária”. Em 1994 quando escreveu Credere di Credere,
sob o papado de João Paulo II, Vattimo já observa esse modus operandi do discurso
eclesiástico, mas também identifica que a perda de poder temporal da Igreja no
mundo reforça sua necessidade de sua autoafirmação por meio da moral sexual. Ele
escreve:

a insistência do papa sobre certos aspectos indefensáveis da moral


sexual católica (citemos, p. ex., a proibição do uso de camisinha em
tempos de Aids) não parece motivada tanto em razões
fundamentais (sequer assumindo como base a metafísica
naturalista e essencialista que o papa privilegia), mas pelo
propósito de evitar toda e qualquer impressão de um
enfraquecimento da doutrina e da moral cristãs (VATTIMO, 2018,
p. 54).

Quer dizer, a percepção de Vattimo é a de que moral católica tem como a


principal motivação a manutenção do seu próprio poder. Em termos de bioética,
Vattimo reconhece e respeita (e critica) os argumentos católicos, compreende a
noção católica de sacralidade da vida, mas quer mostrar que os argumentos da Igreja
sobre assuntos relacionados à bioética são, no limite, o espelhamento de sua
doutrina rígida que mantém seus fiéis sobre o seu controle. Desta maneira, a Igreja
emplaca uma interpretação única da realidade, constrói uma definição sobre o
verdadeiro e falso e condiciona a moral a ser reconhecida como correta porque é
oriunda de uma noção de “natureza”. Se tomarmos como exemplo a crítica que
Vattimo faz à Igreja em relação ao aborto, temos que ela se sustenta sobre um

142
equívoco, já que “é por motivos doutrinais – respeitáveis, mas não evidentes para
todos – que a Igreja considera o feto como um ser humano de pleno direito assim
que foi concebido” (VATTIMO, 2006. p. 49). Com sua crítica, Vattimo quer mostrar
que o discurso eclesiástico tem por fio condutor uma doutrina que não precisa
observar os avanços científicos, pois funciona pela simples autoridade espiritual (e
política) que a Igreja exerce com sua interpretação de mundo. Embora seja
respeitável, não é “evidente para todos”. Isso inda pode ser visto de outra maneira
na mesma obra em uma passagem anterior:

Com todo o respeito, continuamos a suspeitar que, como tantas


vezes ocorreu com tantos dogmatismos metafísicos do passado, a
afirmação sobre o desígnio divino para o mundo continuar a
resistir está dada sobretudo porque há uma hierarquia que, longe
de querer respeitá-lo em sua sacralidade, quer se fazer como sua
única autoridade intérprete (VATTIMO, 2006, p. 40).

Aqui, a Igreja continua repetindo aquilo que durante sua história temporal
sempre pôs em desenvolvimento, ela surge como um obstáculo para a fundação de
outras visões éticas e para o desenvolvimento das sociedades contemporâneas. Se
pensarmos em sua atividade passada com uma hermenêutica fechada da Bíblia
frente ao avanço das teses protestantes, o catolicismo continua buscando a mesma
hegemonia da interpretação e moldar o mundo à sua imagem. A crítica de Vattimo
consiste justamente aqui, antes da interpretação sobre a sacralidade da pessoa
humana, está a vontade de poder católica no centro da visão de mundo.

É neste sentido que as teses acerca da “natureza” humana que deveria ser
respeitada funcionam como fundamento do discurso autoritário do magistério
eclesiástico. A interpretação católica é verdadeira, na medida em que tem poder
temporal para interpretar o mundo ao seu modo. Porém, essa posição não é
“evidente para todos” e “toda vez que se deseja fundar uma lei de estado sobre a
pretensa ‘natureza’ das coisas (a ‘verdadeira’ família, a essência da vida, etc.) que
deveria valer como norma universal subtraída às discussões e estipulações
democráticas, se acaba por abraçar conceções e práticas autoritárias” (VATTIMO,
2006, p. 16). O que fica patente com isso é que a interpretação católica de mundo
justifica seu poder e seu poder justifica sua interpretação.

143
Conclusão

Pelo desenvolvimento do argumento de Vattimo observamos que sua


postura se concentra numa crítica à bioética católica por meio da metafísica. Assim,
ele não tem uma preocupação direta com a postura moral da Igreja, mas na forma
como essa postura está formulado e sobre os fundamentos no qual ela está posta. É
bem verdade que isso o leva ao problema da moralidade católica, mas como
resultado de sua crítica, já que seu ponto de partida é antes a metafísica. Por isso,
seu pensamento se interessa por atacar as bases estruturais da formulação moral e
da bioética, mas no interesse de buscar a construção de uma outra forma de
pensamento que não esteja pautada sob a validade de um princípio universal. Uma
ética que vem com outro pensar é o que Vattimo chama de ética da interpretação ou
que podemos dizer como ética da proveniência e que não está desenvolvida aqui,
mas que apresentamos no artigo referenciado acima.

Referências

FORNERO, Giovanni. Bioetica cattolica e bioetica laica. Milano: Paravia, 2005.

SOUTO, Felipe de Queiroz. Lançar fora o Deus criador: a crítica de Gianni Vattimo à
bioética católica. In: Numen, Juiz de Fora, v. 26, n. 2, 2023, p. 43-70.

VATTIMO, Gianni. Crer que se crê. É possível ser cristão apesar da Igreja?. Petrópolis:
Vozes, 2018.

VATTIMO, Gianni. La vita dell’altro. Bioetica senza metafisica. Lungro di Cozenza:


Constantino Marco Editore, 2006.

144
A CRÍTICA DE KIERKGAARD AO PANTEÍSMO DE HEGEL:
A FÉ EM DEUS

James Vasconcellos Mesquita1

Resumo: Georg Wilhelm Hegel concluíra que a religião era o segundo momento do saber
absoluto. Para Hegel, o absoluto existiu transcendentemente acima do mundo e do homem,
mas que, progressivamente, foi-se tornando imanente até atingir o vértice no cristianismo,
que, é a religião absoluta”. Kierkegaard concordava com a imanência do “Deus feito homem”,
mas discordava da imanência do Deus confundido com a natureza. O método de pesquisa
bibliográfica exploratória apresentará a biografia sucinta de Kierkegaard, explanará os
temas da fé em Deus e resumirá os tópicos principais. Retomada do pensamento filosófico
de Kierkegaard. Reforço da possibilidade de entendimento entre filosofia e fé cristã.
Pacificação da percepção equivocada de que a objetividade da ciência é racional e a
subjetividade da fé é irracional. A razoabilidade da encarnação de Cristo. Kierkegaard tinha
predileção por temas relevantes do cristianismo interiorizado. Ele mostrou,
filosoficamente, o caminho de volta ao cristianismo simples da interioridade da fé. Para ele,
somente o compromisso pessoal com a vivência do risco da fé, o existente-individual
conseguiria se relacionar com o Deus que é a realidade, o infinito-eterno, cuja imanência
esteve plenamente presente na pessoa do Cristo histórico-temporal. A religião não deveria
ser um fim em si mesma, mas um meio de se encaminhar até Deus. Não haveria relação com
Deus por meio da natureza porque Deus não estaria fora do ser humano individual; antes,
Deus estaria dentro do ser humano individual. Uma religião alienada a esses conceitos, que
pretenda uma relação direta com o espírito eterno, seria mero paganismo.
Palavras-chave: Kierkegaard; Hegel; Cristianismo; Filosofia; Fé.

Søren Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague, Dinamarca, em 1813.


Seus progenitores eram conservadoramente religiosos e educaram os 7 filhos em
conformidade com os aspectos mais radicais do cristianismo como o pecado, a
santidade, a salvação e o temor a Deus. Essa educação doméstica influenciou a
Kierkegaard a ingressar no curso de Teologia da Universidade de Berlim e escreveu
obras fundamentadas na ética cristã. Na Filosofia, Kierkegaard se especializou no
sistema elaborado por Georg Wilhelm Hegel, a quem ele procurou “responder” nas
reflexões de suas obras. (Hegel é classificado dentro do movimento Idealista e
Kierkegaard, do Voluntarista. No primeiro, são classificados também Fichte e

1 Mestrando em Ciências da Religião Pontifícia Universidade Católica de Goiás


jamesmsqt@gmail.com.

145
Schelling; no segundo, Schopenhauer, Nietzsche e Freud). Kierkegaard faleceu em
11 de novembro de 1855.
A obra Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas filosóficas do filósofo
dinamarquês teve sua primeira edição em 1844. Na Seção 2 dessa obra consta o
capítulo 2 (“A verdade subjetiva, a interioridade; a verdade é a subjetividade”) que
foi de interesse para a confecção deste trabalho. A leitura desse texto da autoria de
Søren Aabye Kierkegaard deixa perceber que ele era engajado com a fé cristã, sendo
esse assunto um tema de sua predileção. O que não deveria ser surpresa uma vez
que sua biografia revela que ele possuía uma forte vocação religiosa, fruto de uma
educação doméstica rígida centralizada em um cristianismo radical, a ponto de se
laurear em Teologia aos 27 anos de idade, em 1840. Contudo, apesar da vocação e
da formação, ele renunciou à carreira de Pastor. Filosofar sobre a fé cristã era o que
ele entendia ser o propósito de Deus para sua vida.
Em 1848, a Constituição da Dinamarca estatizou a Igreja Luterana.
Kierkegaard entendia que essa igreja oficial traiu o cristianismo porque se tornara
convencional, formal e com dogmas sem implicações pessoais, subjetivas. Por isso,
a subjetividade da fé se tornou um tema recorrente para ele. “A experiência religiosa
não pode ser autêntica e verdadeira, se for objetiva e desligada; para ser verdadeira,
ela deve empenhar o sujeito, isto é, tornar-se subjetiva” (MONDIN, 1983, p. 72). Para
Kierkegaard, subjetividade tanto podia se referir ao que é acidental, excêntrico e
arbitrário como podia significar, religiosamente, a sujeição a uma verdade.
O argumento de Kierkegaard se baseava na premissa de que a sujeição a
uma verdade era o mesmo que apropriar-se dela, tornando-a pessoal, vivê-la a ponto
de estar disposto a morrer por ela. Grosso modo, é deixá-la penetrar tão
profundamente até ela se tornar parte interior íntima do cristão. Esse era o
cristianismo pessoal, subjetivo, defendido por Kierkegaard. Ele se insurgia contra a
religião do seu contexto histórico exatamente porque “modernizaram o
cristianismo” (KIERKEGAARD, 2016, p. 206). O cristianismo retratado era objetivo
e sem paixão (πάθος), o que ele considerava inadmissível porque “Somente o
conhecer ético e o ético-religioso são, portanto, conhecimentos essenciais”
(KIERKEGAARD, 2016, p. 209). Esses conhecimentos deveriam ser acompanhados
da paixão porque “a paixão é o ápice da existência” (KIERKEGAARD, 2016, p. 208),
para se tornarem subjetivos porque “paixão é o máximo da subjetividade”

146
(KIERKEGAARD, 2016, p. 211). “O que vale é a paixão pelo infinito: é ele o elemento
decisivo e não o conteúdo” (MONDIN, 1983, p. 72).
Na interpretação de Mondin (1983, p. 72) sobre a subjetividade da fé em
Kierkegaard, além de ela significar a adesão (sujeição) pessoal a uma verdade,
também ela significaria “ausência de elementos objetivos de controle para se
estabelecer a verdade”. Em outras palavras: o compromisso pessoal (sujeição a uma
verdade) aliado à total falta de garantia objetiva (ausência de elementos objetivos
de controle) fazem com que a fé seja um risco: “Sem risco não há fé. Fé é justamente
a contradição entre a paixão infinita da interioridade e a incerteza objetiva”
(KIERKEGAARD, 2016, p. 215). Portanto, o risco é inseparável e indispensável à
verdadeira experiência subjetiva da fé apaixonada.
O conhecimento religioso objetivo não entra em acordo com, nem se
submete a, afirmações sem garantias de uma verdade que possa ser provada e
comprovada. O risco da fé é a proposta de assumir um conhecimento além da razão
humana acerca de uma verdade sem evidência objetiva. Mondin (1983, p. 73) alerta
para a questão de que o risco da fé não é uma aceitação irracional. Kierkegaard
demonstra que objetividade não quer dizer racional, nem subjetividade quer dizer
irracional, ao declarar que “Se eu posso apreender objetivamente Deus, então eu não
creio; mas, justamente porque eu não posso fazê-lo, por isso tenho de crer; e se
quero manter-me na fé, tenho de constantemente cuidar de perseverar na incerteza
objetiva, de modo que, na incerteza objetiva, eu estou sobre ‘70.000 braças de água’,
e contudo creio” (MONDIN, 1983, p. 215).
O tema de Deus possuía a mesma predileção para o filósofo dinamarquês S.
A. Kierkegaard. Ele entendia que Deus “é o infinito que é eterno” (KIERKEGAARD,
2016, p. 229). Ele aceitava “A proposição de que Deus tenha existido em forma
humana, que tenha nascido, crescido etc, é, por certo o paradoxo sensu strictissimo,
o paradoxo absoluto” (KIERKEGAARD, 2016, p. 228). Dois pontos a serem
considerados: primeiro, a aceitação desse entendimento só pode ser pela fé;
segundo, o Deus que “tenha existido em forma humana, que tenha nascido, crescido
etc”, obviamente é o Cristo, que foi conceituado como “o paradoxo sensu strictissimo,
o paradoxo absoluto”. Embora Kierkegaard tenha estabelecido que “do paradoxo
absoluto só se pode compreender que ele não pode ser compreendido”
(KIERKEGAARD, 2016, p. 229), não obstante, ele afirmou peremptoriamente que “o

147
paradoxo surge quando o eterno e um ser humano individual existente são reunidos
[...] paradoxo, que é um escândalo para os judeus, para os gregos uma tolice, e para
o entendimento o absurdo” (KIERKEGAARD, p. 230). Na pessoa do Cristo, Deus, o
infinito que é eterno, se sujeitou “ao tempo e ao devir como qualquer outro
existente” (MONDIN, 1983, p. 71).
Georg Wilhelm Hegel (1770-1831), também laureado em Teologia, com
quem Kierkegaard “dialogou” em suas obras, concluíra que a religião era o segundo
momento do saber absoluto. Para Hegel, “o absoluto” existiu transcendentemente
acima do mundo e do homem, mas que, progressivamente, foi-se tornando imanente
“até atingir o vértice no cristianismo, que, graças à doutrina do Deus feito homem,
do humanizar-se de Deus, do seu identificar-se com o homem, é a religião absoluta”
(KIERKEGAARD, 2016, p. 43). Kierkegaard complementou essa reflexão chamando
a atenção para a cautela contra a imanência radical. Ele concordava com a imanência
do “Deus feito homem”, mas discordava da imanência do Deus confundido com a
natureza: “Ele está na criação, em toda parte na criação, mas ele não está lá
diretamente” (KIERKEGAARD, 2016, p. 255); “Nisto reside todo o paganismo, que
Deus se relacione diretamente com o ser humano, como o que dá na vista ao que se
admira [...] Ele está tão longe de dar na vista que é invisível de modo que a gente não
se dá conta de que Ele está ali, enquanto que sua invisibilidade, por sua vez, constitui
sua onipresença” (KIERKEGAARD, 2016, p. 257).
Kierkegaard ensinou que Deus é “o espírito eterno do qual procedem os
espíritos derivados” (2016, p. 255). Estes “espíritos derivados” são os seres
humanos porque “todo ser humano é espírito” (KIERKEGAARD, 2016, p. 254).
Compreendendo que o espírito é a subjetividade, entender-se-á que Kierkegaard
defendia a tese de que a relação infinito-eterno com o existente-individual
aconteceria na dimensão espiritual. Na natureza, não se encontraria a Deus, mas se
perceberia a onipotência e a sabedoria dele (KIERKEGAARD, 2016, p. 215). A
natureza é obra de Deus, mas não é o Deus (KIERKEGARD, 2016., p. 255-256).
Qualquer tentativa no sentido de uma relação direta com Deus pela natureza se
constituiria paganismo: “A relação direta com Deus é, justamente, paganismo”
(KIERKEGAARD, 2016, p. 215). De igual maneira, a pretensão de uma relação com
Deus por meio do conhecimento religioso objetivo é um equívoco: “saber recitar de
cor uma confissão de fé é paganismo” (KIERKEGAARD, 2016, p. 235). Quem quer

148
uma relação verdadeira com Deus tem que cultivá-la subjetivamente no seu espírito,
pois Deus está dentro do ser humano individual, conforme Kierkegaard. “A natureza,
a totalidade da criação, é obra de Deus e, contudo, Deus não está lá, mas dentro do
ser humano individual há uma possibilidade (ele é, de acordo com sua possibilidade,
espírito) de, na interioridade, ser despertado para uma relação com Deus e, então, é
possível ver Deus em toda parte” (KIERKEGAARD, 2016, p. 259). Essa relação com
Deus é importante porque ela humaniza o ser humano: “é a relação com Deus que
faz de um ser humano um ser humano” (KIERKEGAARD, 2016, p. 257).
O Deus a que Kierkegaard tanto se refere não é nenhum do panteão das
inúmeras religiões do mundo, mas é o apresentado pelo cristianismo, o Deus
manifestado na humanidade do Cristo em que “o eterno e um ser humano individual
são reunidos” (KIERKEGAARD, 2016, p. 230). Para Kierkegaard, o cristianismo não
contém parte da verdade: “Muita coisa estranha, muita coisa lamentável, muita coisa
revoltante tem sido dita sobre o cristianismo, mas a coisa mais estúpida que já se
disse é que ele é verdadeiro até certo ponto” (KIERKEGAARD, 2016, p. 240); antes,
“o cristianismo é subjetivo; a interioridade da fé no crente é a eterna decisão da
verdade” (KIERKEGAARD, 2016, p. 235).
Neste trabalho, procuramos atingir o escopo de que a predileção de
Kierkegaard por temas relevantes do cristianismo interiorizado não era
despropositada, mas, muito pelo contrário, era o corolário de toda sua educação
pregressa, a começar pelo lar de seus pais. O filósofo dinamarquês não podia tolerar
as liturgias convencionais, formais, com dogmas objetivos, ritualísticas e sem paixão
(πάθος) da igreja dinamarquesa. Percebe-se que ele mostrava, filosoficamente, o
caminho de volta ao cristianismo simples da interioridade da fé. Cristianismo não é
cumprimento formal, mas compromisso pessoal. Para Kierkegaard, somente o
compromisso pessoal com a vivência do risco da fé, o existente-individual
conseguiria se relacionar com o Deus que é a realidade, o infinito-eterno, cuja
imanência esteve plenamente presente na pessoa do Cristo histórico-temporal. A
religião não deveria ser um fim em si mesma, mas um meio de se encaminhar até
Deus. Não haveria relação com Deus por meio da natureza porque Deus não estaria
fora do ser humano individual; antes, Deus estaria dentro do ser humano individual
e essa relação só se daria entre o espírito eterno e o espírito derivado. Uma religião

149
alienada a esses conceitos, de dogmas objetivos, ou que pretenda uma relação direta
com o espírito eterno, seria mero paganismo.

Referências
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas
filosóficas: coletânea mímico-patético-dialética, contribuição existencial, por
Johannes Climacus. Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls e Marília Murta de
Almeida. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,
2016.

MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Volume 3 (Os filósofos do Ocidente). Tradução


de Bênoni Lemos; revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo: Paulus, 1983.

150
A MANIFESTAÇÃO DA IDIOSSINCRASIA NO FENÔMENO RELIGIOSO
E DA FÉ-RAZÃO NA PÓS-MODERNIDADE

Lucas Pereira da Silva Freitas1

Resumo: A expressão das características individuais no contexto religioso contemporâneo


e a interação entre fé e razão na era pós-moderna são exploradas neste estudo. A noção de
idiossincrasia ganha destaque na pós-modernidade, refletindo a valorização da diversidade
de perspectivas e singularidades pessoais. No âmbito religioso, isso se evidencia na
multiplicidade de crenças, práticas e interpretações presentes nas várias tradições
religiosas. As pessoas estão se afastando das estruturas religiosas institucionais e buscando
abordagens espirituais mais personalizadas, que estejam em sintonia com seus valores e
necessidades individuais. Enquanto o pensamento moderno tendia a dissociar a fé e a razão,
a pós-modernidade desafia essa dicotomia, promovendo uma abordagem integrada. A
relação entre fé e razão se transforma em uma maneira de unir as dimensões emocionais e
racionais da vivência religiosa, fornecendo bases para compreensão e experiência
espiritual. No entanto, embora a idiossincrasia permita uma expressão religiosa mais aberta
e a abordagem fé-razão ofereça uma perspectiva mais abrangente, ambos apresentam
desafios. A diversidade de crenças pode levar a divisões e conflitos, e a integração entre fé e
razão pode ser complexa de alcançar em um mundo cada vez mais incerto e intricado. Este
estudo investiga a manifestação da idiossincrasia no cenário religioso contemporâneo e a
evolução da relação entre fé e razão na pós-modernidade. Isso é realizado por meio de uma
metodologia qualitativa e análise bibliográfica das obras de Arthur Schopenhauer, David
Harvey, Friedrich Nietzsche, Gianni Vattimo, Jean-François Lyotard, Peter Berger, Theodor
Adorno e Zygmunt Bauman.
Palavras-chave: Idiossincrasia; Religião; Fé; Espiritualidade; Pós-Modernidade.

Introdução
Este artigo explora a notável discrepância ética que existe entre a teoria e a
prática na vivência religiosa do seguidor tradicional de diferentes religiões na pós-
modernidade2 na visão de diferentes filósofos. Com frequência, essas pessoas
enfrentam dificuldades ao tentar aplicar os princípios religiosos estabelecidos por
seus dogmas, pois muitas vezes não conseguem internalizar a profundidade desses
ensinamentos repletos de bem-aventurança e amor.

1Licenciado e Bacharelado em Ciências Sociais pela PUC-Campinas, Tecnólogo em Gestão de Recursos

Humanos pelo SENAC, Licenciado em Filosofia pela Claretiano e Mestrando em Ciências da Religião
pela PUC-Campinas.
2A pós-modernidade é um conceito que trouxe uma série de mudanças significativas para as ciências

da religião e a filosofia, afetando a forma como os acadêmicos estudam, analisam e compreendem os


fenômenos religiosos. Houve profundas mudanças sociais, políticas, culturais e econômicas na
passagem da primeira metade do século XX para a segunda metade dele, essas mudanças suscitaram
novas formas de pensarmos as narrativas, à diversidade religiosa, a interdisciplinaridade, as
experiências individuais, a objetividade da ciência, como irá se dar a linguagem e o discurso e como
se estruturarão os poderes religiosos e políticos.

151
A ideia de idiossincrasia (idiosugkrasía) surge na Grécia antiga e se referia
aos comportamentos peculiares dos indivíduos3. Na discussão pós-moderna da
religião, o termo “idiossincrasia” é utilizado para se referir às características únicas
e distintivas das práticas religiosas e das experiências espirituais individuais. Nesse
contexto, a idiossincrasia religiosa está relacionada à diversidade de interpretações,
é uma peculiaridade e se relaciona através da fé-razão das crenças e práticas
religiosas que surgem em um ambiente pós-moderno. A pós-modernidade valoriza
a pluralidade e a subjetividade nas questões religiosas, reconhecendo que as
pessoas podem abordar a espiritualidade de maneiras muito diferentes, de acordo
com suas experiências, contextos culturais e trajetórias de vida únicas. Portanto, a
idiossincrasia religiosa na discussão pós-moderna da religião destaca a
individualidade e a heterogeneidade das práticas e crenças religiosas, em contraste
com abordagens mais tradicionais que tendem a buscar uniformidade e ortodoxia
em uma fé específica.
A partir da exegese de algumas passagens bíblicas e das
contribuições de pensadores fundamentais que refletiram sobre a
consciência moderna e suas idiossincrasias sociais, veremos o
quanto a grande massa de sectários cristãos vive afastada
efetivamente das práticas evangélicas originárias (BITTENCOURT,
2014, p. 2).

A manifestação de questões idiossincráticas no fenômeno religioso-filosófico


possui relevância, pois retrata o reconhecimento da diversidade, já que a filosofia,
especialmente na era pós-moderna, valoriza a diversidade de perspectivas e
experiências. Aqui está uma ideia inicial para a importância da manifestação de
questões idiossincráticas no contexto religioso-filosófico, especialmente na era pós-
moderna. Os filósofos reconhecem a diversidade de perspectivas e experiências na
religião, o que ajuda a superar visões homogeneizantes ou fundamentalistas. A
análise da idiossincrasia religiosa desconstrói narrativas universais, permitindo
uma abordagem mais inclusiva e respeitosa das crenças religiosas. Além disso, ao
explorar a idiossincrasia, a filosofia questiona a ideia de uma única verdade
religiosa, promovendo um entendimento mais profundo entre diferentes tradições
religiosas e culturais. Também se critica a institucionalização religiosa, destacando
a importância das vozes individuais e questionando as estruturas de poder dentro

3Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Consultado em 03 de setembro de 2023.


Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v5-4/html/index.php#1

152
das religiões. Assim, discutir a idiossincrasia da religião na pós-modernidade na
filosofia pode promover uma abordagem mais inclusiva, respeitosa e crítica das
crenças e práticas religiosas, reconhecendo a complexidade e a individualidade das
experiências religiosas em um mundo diversificado e individualizado.
Coisas que conosco acontecem às vezes são resultantes de uma
simultaneidade ou uma sincronicidade, como diz uma parte da
ciência na área da Física. Coisas que aconteceram ao mesmo tempo,
que foram coincidentes, situações que vieram juntamente e que
deram a impressão de que houve uma ajuda divina, que acabou
cuidando da situação, isto é o que também chamamos de
coincidência, quando a alternativa dada a alguma situação, a algum
tipo de infortúnio, é marcada por uma solução que não
necessariamente se esperava. Acaso ou providência? Nicolas de
Chamfort (1741-1794), na sua obra Máximas e pensamentos,
afirmou: “Alguém dizia que a Providência era o nome de batismo
do acaso. Algum devoto dirá que o acaso é o apelido da
Providência”. Muita gente entende a Providência, com “P”
maiúsculo, quando alguns escrevem, como um auxílio de forças que
são anteriores e superiores a nós. Alguns entendem, inclusive,
Providência como uma divindade que pode auxiliar, apoiar, cuidar
e, também, punir. Desse ponto de vista, quando Chamfort lembra
isso, está colocando duas das possibilidades que, de um lado, a
ciência indica como um caminho e, por outro lado, a religião sugere
como uma possibilidade de fé na qual as pessoas creem em alguma
força que é muito maior do que nós, homens e mulheres. E,
portanto, essa pessoa não acredita em mera coincidência. A ciência
acredita (CORTELLA, 2015, p. 45).

Chamfort4 chama a atenção para que a religião é transcendental e isso se


desenvolveu conjuntamente da essência do pensamento ocidental pelas tradições
greco-romanas.
A cultura antiga gerou muitas palavras ligadas à falta de saber e
prudência. Na Grécia, o sujeito sem refinamento mental ou físico
era implicado na ”amousia”, a vida sem conhecimentos ou arte. Ele
era um casca grossa. O termo para designar o deformado cognitivo
é ”anaístetos”, insensível diante do belo ou verdadeiro. Platão
inventou a palavra para os aferrados ao palpite
inculto: ”misólogos”, inimigos do raciocínio. Na Grécia democrática,
quem recusa a vida pública e se recolhe à ordem privada é
o ”idiótes”. Como não vive entre debates e provas trazidas pelos
demais, ele se agarra às crenças domésticas, não enriquece sua
consciência em ações relevantes ao bem comum. Ao contrário dos
que se empenham na política, ele imagina os valores de sua grei
como os únicos válidos. Assim, tais idiotas criam obstáculos para a
democracia, pois sempre estão dispostos a eleger indivíduos iguais
a eles, os demagogos presos às certezas dogmáticas da clientela. O

4 Sébastien-Roch Nicolas foi um intelectual francês que mais tarde tomou o nome de Nicolas de
Chamfort, foi um poeta, jornalista e humorista que deixou uma obra valiosa para a filosofia da qual
dialoga com o Iluminismo.

153
grego também nos legou vocábulos sobre a tola particularidade, a
recusa do universal. Termos como idiossincrasia indicam o
fechamento mental e físico de um grupo, o que o afasta dos outros
seres humanos (ROMANO, 2015).

A idiossincrasia se diferencia da empatia5 e da alteridade6, pois refere-se a


uma maneira própria de ver e sentir, uma particularidade e peculiaridade de uma
pessoa. Isso implica em uma centralidade dos próprios valores, podendo levar ao
egocentrismo e prejudicar a interação e sensibilidade em relação aos outros. Esse
fenômeno pode ocorrer tanto individualmente quanto em grupos sociais, levando
ao isolamento devido à quebra de padrões e normas. Para superar os problemas
causados pela idiossincrasia seria preciso olhar mais para o outro, compreendê-lo
para ser compreendido, ouvir mais, observar mais e treinar-se para ver as coisas sob
a perspectiva dos outros. A idiossincrasia também está relacionada à ideia de que o
próprio sofrimento é maior do que o dos outros, o que pode levar a uma visão
distorcida da realidade. Além disso, a idiossincrasia se potencializa na pós-
modernidade devido a várias mudanças sociais, culturais e tecnológicas. O
pluralismo cultural na pós-modernidade permite uma ampla gama de perspectivas,
valores e crenças, facilitando a expressão das idiossincrasias pessoais. O aumento
do individualismo encoraja as pessoas a definirem seus próprios valores, o que pode
levar a uma maior ênfase na expressão das idiossincrasias pessoais em oposição às
normas tradicionais. A disseminação da mídia digital e das redes sociais permite que
As Pessoas Compartilhem Suas Visões De Mundo E Experiências Pessoais De
Maneira Única, Contribuindo Para A Manifestação E Reconhecimento Da
Idiossincrasia Na Sociedade contemporânea, embora ainda persista a problemática
de perspectivas religiosas mais abertas que inserem no sujeito pós-moderno a ideia
de que a sua individualidade vale mais do que o dogma , os valores e o cotidiano de
uma instituição.

5 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa Capacidade de compreender o sentimento ou


reação da outra pessoa imaginando-se nas mesmas circunstâncias. Capacidade de se identificar com
outra pessoa; faculdade de compreender emocionalmente um objeto. Disponível
em:https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-1/html/index.php#1. Acesso em:
20/10/2023
6 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Etimologia (origem da palavra alteridade).

Do francês altérité, “mudança”; pelo latim alteritas Caráter ou estado do que é diferente, distinto, que
é outro. Que se opõe à identidade, ao que é próprio e particular; que enxerga o outro, como um ser
distinto, diferente. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-
1/html/index.php#2. Acesso em: 20/10/2023.

154
1. Irracionalismo, perspectivismo e voluntarismo – Arthur Schopenhauer,
Friedrich Nietzsche e Gianni Vattimo
A idiossincrasia pode contribuir para a criação de estereótipos movido pela
vontade e pelo instinto irracional (cego) humano. Por exemplo, dizer que o Brasil é
um país cristão é uma forma de idiossincrasia, pois nem todos os brasileiros
compartilham da mesma religião. Outro exemplo é a ideia de que países latinos são
mais calorosos e receptivos com estrangeiros – uma característica idiossincrática
que pode ser confirmada ou refutada por aqueles que já tiveram a oportunidade de
viajar e comparar com outros países.
Para Schopenhauer7, a religião está frequentemente ligada à busca de um
escape do sofrimento humano, que ele identificava como inerente à vida. A
idiossincrasia se manifesta quando indivíduos interpretam e praticam a religião de
maneira única, com base em suas experiências de sofrimento e perspectivas
pessoais. Alguns podem se voltar para a religião como uma forma de encontrar
consolo e sentido em meio ao caos da existência, enquanto outros podem adotar
uma abordagem mais cética ou até mesmo rejeitar a religião completamente. Na
pós-modernidade, há uma tendência a questionar as grandes narrativas e sistemas
de pensamento unificados, incluindo a religião e a razão. A razão pode ser vista como
uma ferramenta para analisar e compreender as diferentes interpretações da fé, mas
a própria fé pode escapar das limitações da razão, dependendo das experiências e
idiossincrasias individuais, se tornando irracionalidade.
A fé e o saber, segundo Schopenhauer, são coisas
fundamentalmente diferentes e que “têm de permanecer
estritamente separadas, de forma que cada uma siga seu caminho
sem tomar notícia da outra” (P II, §175, 391/236). Ele também
defende que seria necessário distinguir a moral da religião, pois a
autêntica moral não depende de nenhuma religião, ainda que todas
as religiões a sancionem e recebam dela um apoio. Por isso
Schopenhauer considera que qualquer tentativa de conciliar fé e
razão, através de uma mistura que resulte em uma filosofia
religiosa, deve ser combatida, visto que esse tipo de filosofia
constituiria uma espécie estranha de hermafrodita ou centauro.
Portanto, “o mais benéfico para os dois tipos de metafísica seria que
permanecessem nitidamente separados um do outro e se
mantivessem no seu domínio específico” (W II, §185, 204), a fim de

7 Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um filósofo que deixou seu legado por criticar a metafísica
ocidental e grande exemplar do pessimismo filosófico, assim como do voluntarismo e do
irracionalismo.

155
que cada qual possa desenvolver plenamente a sua própria
natureza (BASSOLI, 2021).

Já Friedrich Nietzsche8 acredita que a religião teria a morfologia de ativar e


transvalorar valores, a idiossincrasia para seu legado filosófico mensura a forma
como as visões vazias da existência humana ascendem, por isso ele propunha o
domínio das individualidades enquanto potencial humano mundano do dionisíaco
em controversa do que se propõe o apolíneo (ordem, razão e individualidade
egoísta), criticando a fraqueza de perspectivas isoladas que proponham intolerância
para que haja uma religião própria a partir de um “Deus-Devir” dos prazeres. Para
Nietzsche a idiossincrasia na religião se dá pela expressão cultural e histórica que
tende a reprimir a natureza humana, promovendo valores ascéticos, por isso seria
preciso superar os limites da religião enquanto rebanho, já que se isolar é limitante
e nos torna fracos.
A vida é uma fonte de prazeres: mas para aquele em que fala um
estômago arruinado, o pai de todas as aflições, todas as fontes estão
envenenadas. Conhecer: este é o prazer para aquele que tem a
vontade do leão! Mas aquele que ficou cansado torna-se apenas um
passivo com a qual todas as ondas brincam de levar e trazer. Esta é
a natureza dos homens fracos: eles se perdem em seu próprio
caminho. E por fim seu cansaço lhes pergunta: “Por que sempre ir
por um caminho? Nada faz diferença!” Parece agradável aos seus
ouvidos esse tipo de pregação: “Nada vale a pena! Nada deveis ter
vontade!” Isto, entretanto, é um apelo à servidão! (NIETZSCHE,
2012, p. 203).

Gianni Vattimo9 desenvolveu a ideia de que o “pensamento fraco”10 é uma


forma de abraçar a incerteza e a ambiguidade nas crenças religiosas. Ele argumenta
que, na era pós-moderna, as narrativas religiosas não devem ser tomadas de forma
literal e dogmática, mas sim entendidas como expressões simbólicas e culturais que
carregam significados variados. A idiossincrasia na religião, segundo Vattimo, é uma
manifestação dessa abordagem do pensamento fraco. Ele sugere que as pessoas
podem se envolver com a religião de maneiras mais pessoais e subjetivas,

8 Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão, crítico e poeta, tendo deixado seu legado
na filosofia, por suas reflexões frente a metafísica ocidental, a cultura contemporânea e a moral
religiosa.
9 Gianni Vattimo (1936-2023) foi um filósofo e político italiano, tendo marcado época e deixado um

profundo legado para um entendimento consistente dos fenômenos pós-modernos, assim como
tendo sido um comentador ferrenho da obra de Friedrich Nietzsche e Arthur Schopenhauer.
10 O pensamento fraco é aquele que situado no momento histórico pensa sobre todas as questões,

mas não se fecha numa interpretação única e determinística. Ele é um pensamento aberto para as
possibilidades, pois é passível de questionamento.

156
interpretando os ensinamentos religiosos de acordo com suas próprias
experiências, valores e contexto cultural.

2. Singularidade, interpretações, privatização da religião e estruturas


religiosas – David Harvey, Jean-François Lyotard e Peter Berger
David Harvey11 explora como as estruturas sociais influenciam a experiência
religiosa, Lyotard12 observa como a pós-modernidade leva à diversidade de
interpretações religiosas individuais, e Berger13 investiga a privatização da religião
na sociedade moderna. Todos esses pensadores oferecem insights sobre como a
idiossincrasia na religião é moldada pelo contexto social e cultural em que as
pessoas vivem. Harvey deixa rastros de investigação na manifestação da
idiossincrasia no fenômeno religioso por meio de sua análise das formas como o
poder, a cultura e a identidade se entrelaçam no espaço urbano. Ele argumenta que
a urbanização e a globalização levam a uma concentração de diferentes culturas e
identidades no mesmo espaço, o que resulta em hibridização cultural e na criação
de identidades únicas. A abordagem de Lyotard se alinha mais com uma visão cética
das metanarrativas religiosas e uma ênfase na diversidade de interpretações. É a
idiossincrasia, onde as crenças religiosas individuais são moldadas pelas
experiências pessoais e culturais, ao mesmo tempo em que não há mais espaço para
a afirmação de uma única verdade religiosa. Berger investiga a diversidade de
interpretações em suas obras, onde reconhece que as pessoas podem interpretar as
crenças religiosas de maneiras diversas, com base em suas experiências pessoais,
contextos culturais e sociais. Isso pode levar a uma variedade de perspectivas e
interpretações individuais de forma que a idiossincrasia na religião pode ser
entendida como a diversidade de interpretações individuais das crenças religiosas
subjetivas.

11 David Harvey é um geográfico britânico nascido em 1935 e possui profundas reflexões frente a
pós-modernidade para a Filosofia e a Geografia Urbana.
12 Jean-François Lyotard (1924-1998) foi um filósofo francês importantíssimo para as discussões a

respeito da chamada “pós-modernidade” e das metanarrativas.


13 Peter Ludwig Berger (1929-2017) foi um sociólogo austro-americano.

157
3. Adorno e a cultura de massa religiosa
Embora Theodor Adorno14 não tenha tratado diretamente da idiossincrasia
religiosa na pós-modernidade, suas ideias sobre cultura de massa, alienação,
reflexão crítica e desconfiança na autoridade oferecem perspectivas que podem ser
relacionadas à maneira como as pessoas constroem abordagens religiosas
individuais e adaptadas na era pós-moderna. A idiossincrasia religiosa na pós-
modernidade se refere à tendência de as pessoas construírem abordagens religiosas
personalizadas, combinando elementos de várias tradições e criando sistemas de
crenças adaptados às suas necessidades individuais pela cultura de massa que tanto
propagaram o antissemitismo no século XX.
A emancipação da sociedade relativamente ao anti-semitismo
depende da possibilidade de elevar ao conceito o conteúdo da
idiossincrasia e de tomar consciência de seu absurdo. A
idiossincrasia, porém, apega-se ao particular. O que se considera
como natural é o universal, o que se encaixa no contexto funcional
da sociedade. Mas a natureza que não se purificou nos canais da
ordem conceptual para se tornar algo dotado de finalidade; o som
estridente do lápis riscando a lousa e penetrando até a medula dos
ossos; o haut goût3 que lembra a sujeira e a putrefacção; o suor que
poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se ajustou
inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o
progresso secular tem um efeito irritante e provoca uma
repugnância compulsiva (ADORNO, 1947, p. 85).

4. Zygmunt Bauman e a liquidez da religião idiossincrática


Embora Zygmunt Bauman15 não tenha se concentrado diretamente na
religião em sua obra, suas ideias sobre liquidez, individualização e mudança social
podem ser aplicadas à compreensão da idiossincrasia na religião como uma ação
orientada pelo âmbito racional dos valores. Na perspectiva de Bauman as pessoas
estão cada vez mais aptas a moldar suas próprias identidades, incluindo suas
crenças religiosas, de acordo com suas preferências pessoais. Isso pode levar a uma
idiossincrasia na religião, à medida que as pessoas escolhem elementos das
tradições religiosas que ressoam com elas individualmente, seu conceito de
“modernidade líquida” pode ser utilizado aqui para descrever uma época
caracterizada pela fluidez e pela ausência de estruturas sociais duradouras. Isso se

14 Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903-1969) é um dos maiores expoentes da escola de


Frankfurt com profundas contribuições sobre a estética, a filosofia e a sociologia de massa.
15 Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um sociólogo e filósofo polonês que deixou uma vasta obra de

análise das individualidades, sociedade de consumo, bem como da “modernidade líquida”.

158
aplica também à religião, onde as crenças e as práticas religiosas podem ser
adaptadas ou descartadas com facilidade. As pessoas têm a liberdade de moldar suas
crenças religiosas de acordo com suas preferências, resultando em uma diversidade
de abordagens religiosas e voltadas para um mercado de consumo.
Weber também se referiu a outro tipo de ação orientada, a que
chamou de racional por referência a valores; mas aí se referia à
procura de valores “enquanto tais” e “independente da perspectiva
de sucesso exterior”. Também deixou claro que os valores em que
pensava eram de tipo ético, estético ou religioso – isto é,
pertencentes à categoria que o capitalismo moderno degradou e
declarou praticamente dispensável e irrelevante, quando não
prejudicial, para a conduta racional que promovia (BAUMAN, 2011,
p. 78).

Consideração final
A investigação da idiossincrasia da religião, sob o olhar atento dos filósofos e
teóricos Arthur Schopenhauer, David Harvey, Friedrich Nietzsche, Gianni Vattimo,
Jean-François Lyotard, Peter Berger, Theodor Adorno e Zygmunt Bauman, revela
uma tapeçaria complexa de experiências religiosas em um mundo cada vez mais
diversificado e globalizado. As contribuições desses pensadores oferecem insights
valiosos sobre a interseção entre individualidade, sociedade e religião, desafiando
noções tradicionais e oferecendo novos horizontes para a compreensão das crenças
e práticas religiosas. Em conjunto, essas análises profundas nos instigam a repensar
não apenas o que significa ser religioso em um mundo pluralista, mas também como
a idiossincrasia na religião não é apenas inevitável, mas essencial para a vitalidade
espiritual da humanidade no sentido da fé-razão, bem como os desafios frente a
diversos problemas religiosos ligados a intolerância e individualidade peculiar de
perspectivas, cabendo a cada um de nós refletir e pesquisar sobre como a
idiossincrasia está presente dentro do contexto da fé-razão dos sujeitos pós-
modernos.

Referências
ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos – 1947.
Disponível em:

159
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/208/o/fil_dialetica_esclarec.pdf. Acesso em:
20/10/2023.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BASSOLI, Selma. Schopenhauer e a religião [recurso eletrônico] / Eli Vagner


Francisco Rodrigues, Gleisy Picoli, Vilmar Debona (Orgs.). – Florianópolis:
Néfiponline, 2021. 318 p.

BITTENCOURT, Renato Nunes. As idiossincrasias da vida cristã e a difícil realização


da experiência evangélica. Revista espaço acadêmico – N. 163 – Dezembro/2014.
Disponível
em:https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download
/25860/13973/. Acesso em: 20/10/2023.

CORTELLA, Mario Sergio. Pensar bem nos faz bem! : 3. fé, sabedoria, conhecimento
formação/ Mario Sergio Cortella. Petrópolis: Vozes, 2015.

COSTA, Everton G. Pós-modernidade ou antimodernidade? Uma reflexão em torno


do debate moderno/pós-moderno. Ensaio – Revista Sinais, n. 19 Jan-Jun 2016,
Vitória – BR. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/sinais/article/view/9263/9749. Acesso em:
13/09/2023.

ROMANO, Roberto. Invectiva contra os idiotas. Colunista GHZ – Porto Alegre.


Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-
alegre/noticia/2015/09/roberto-romano-invectiva-contra-as-idiotias-
4840869.html. Acesso em: 13/09/2023.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martins Claret, 2012.

160
A ARTICULAÇÃO ENTRE FENOMENOLOGIA E SIGNIFICÂNCIA ÉTICA
NA FORMAÇÃO DA IDEIA DE RELIGIÃO EM EMMANUEL LEVINAS

Luiz Fernando Pires Dias1

Resumo: O método fenomenológico foi um caminho incontornável na trajetória filosófica


de Emmanuel Levinas, que encontrou em seus professores Husserl e Heidegger a abertura
de novos horizontes ao pensamento. No entanto, mesmo sem abdicar da condição de
fenomenólogo, em especial no que concerne ao método e à disciplina, Levinas desenvolveu
suas reflexões já no limiar da fenomenologia, conferindo ao pensar fenomenológico um
sentido próprio. A presente comunicação tem o propósito de abordar a ressignificação do
método fenomenológico postulada por Emmanuel Levinas, diante da responsabilidade
imperativa pelo outro homem revelada na epifania do rosto. Tal revelação foge aos poderes
da intencionalidade e pressupõe uma ruptura com as estruturas formais do pensamento, na
medida em que o rosto não se restringe às delimitações físicas, expressando-se por si
próprio, significando mesmo sem estar relacionado a um contexto. Nossa hipótese é que
ocorre a interrupção da consciência fenomenológica frente à revelação do Infinito,
antifenômeno por excelência, que tem no rosto do próximo o seu locus original, por onde
passa como vestígio, na forma de ordenamento ético não sujeito à tematização. A passagem
do Infinito no rosto do Outro demanda um exercício hermenêutico de natureza ética. Trata-
se de um movimento exegético que permite (re)pensar a transcendência e a religião de
outro modo, com a religião sendo entendida como a afirmação da primazia de Outrem e,
portanto, correlata à ética e à justiça.
Palavras-chave: Ética, Fenomenologia; Hermenêutica; Levinas, Religião.

Introdução
A identificação da filosofia de Emmanuel Levinas como integrante da escola
fenomenológica prevalece entre os seus intérpretes. No entanto, Levinas empreende
uma ressignificação dos conceitos e dos termos oriundos desse método,
estabelecendo um novo sentido à noção de intencionalidade desenvolvida por
Husserl e contrapondo-se à ontologia heideggeriana, ultrapassando com isso o
âmbito delimitado pela fenomenologia recepcionada de seus antigos mestres.
A proposta do presente ensaio é abordar a articulação entre fenomenologia
e hermenêutica ética no pensamento de Levinas, buscando uma aproximação com a
ideia de religião formulada pelo filósofo. O presente texto será desenvolvido em três
etapas. De início, abordaremos alguns aspectos da interpretação levinasiana
referentes à perspectiva fenomenológica de Husserl e de Heidegger. Em seguida,

1Mestre em Ciências da Religião – (PUC-MINAS). Doutorando em Ciências da Religião – Bolsista


Capes – (PUC-Minas). E-mail: l.ferna2805@gmail.com.

161
trataremos do encontro com o rosto, noção central do pensamento levinasiano, que
apela à conversão ética através da revelação de uma responsabilidade infinita e
incondicional pelo próximo. Por fim, buscaremos delinear a ideia de religião em
Levinas, cuja inteligibilidade tem seu lugar na teia da intersubjetividade humana.

1. Encontrando Husserl e Heidegger


Em 1930, Levinas defende e publica a sua tese de doutorado em filosofia,
Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl (LEVINAS, 2001), livro que
inseriu o pensamento fenomenológico de Husserl no horizonte intelectual francês.
O primeiro aspecto da fenomenologia a despertar o interesse de Levinas é o
tratamento da “[...] filosofia como ciência rigorosa” (LEVINAS, 1982, p. 19, tradução
nossa) e a abertura de novos horizontes ao pensamento. A abordagem do
conhecimento proposta por Husserl partiu de uma nova postura diante do mundo,
questionando-o a partir dele mesmo. Uma das noções mais importantes do método
fenomenológico husserliano é a intencionalidade, que na ótica do filósofo lituano-
francês corresponde ao próprio fundamento da consciência (LEVINAS, 2010b, p.
175), na medida em que todo ato da consciência é intencional, ou seja, a consciência
é sempre consciência de algo (HUSSERL, 1992, p. 21). A consciência é uma intenção
direcionada a alguma coisa que ela não é, com o pensamento tendo a propriedade
de conter idealmente outra coisa que não ele próprio. A intencionalidade
corresponde à própria essência da consciência (LEVINAS, 2001, p. 77). Na
fenomenologia husserliana, o fenômeno é analisado enquanto significado e não
pode ser apartado do noumenon, “[...] de modo que o termo ‘fenômeno’ designa o
modo como o objeto aparece numa vivência intencional” (CAMPOS, 2016, p. 46).
Nesse contexto, a essência do objeto visado encontra-se no plano da significação, o
que reenvia o significado desse objeto ao horizonte do seu aparecer.
Não obstante a importância das noções husserlianas, Levinas, no
desenvolvimento de sua filosofia própria, buscou novos sentidos da
intencionalidade, para além do esquema da representação e da correlação entre
sujeito e objeto. No ensaio La conscience non-intentionnelle (LEVINAS, 1991), escrito
em sua maturidade filosófica, Levinas propõe os seguintes questionamentos:
Perguntamos: a intencionalidade é sempre – como Husserl e
Brentano o afirmam – fundada em uma representação? Ou, a
intencionalidade é o único modo de “doação de sentido”? O sentido

162
(sensé) é sempre correlativo de uma tematização e de uma
representação? Resulta ele sempre da reunião de uma
multiplicidade e de uma dispersão temporal? O pensamento é
imediatamente destinado à adequação e à verdade? Será ele
somente captação do dado na sua identidade ideal? O pensamento
é por essência relação ao que lhe é igual, quer dizer, essencialmente
ateu? (LEVINAS, 1991, p. 136, tradução nossa).

As respostas negativas, contidas de maneira implícita nas próprias perguntas


e de forma explícita no desenvolvimento do texto, indicam que o percurso filosófico
de Levinas, apesar de iniciar em Husserl, segue direção própria, com a referência
central da significação deslizando do horizonte intencional em direção ao âmbito
ético das relações intersubjetivas.
O encontro com o pensamento de Heidegger também foi decisivo ao jovem
Levinas, que se referindo ao período de estudos em Freiburg afirmou o seguinte: “a
grande coisa que encontrei foi a maneira como a via de Husserl era prolongada e
transfigurada por Heidegger” (LEVINAS, 1996a, p. 78, tradução nossa). O
pensamento de Heidegger caminhou na contracorrente de uma metafísica de cunho
determinístico, questionando toda a história da metafísica ocidental, que ao ocupar-
se do ente esqueceu-se do ser. A metafísica ocidental ao pensar o ser em sua
totalidade deparou-se com a essência do ente e com o fundamento último do ser, ou
seja, com o conceito metafísico de Deus, revestindo a metafísica de um fundamento
ontoteológico. Nas palavras de Levinas: “para Heidegger, a compreensão do ser em
sua verdade foi imediatamente recoberta pela sua função de fundação universal dos
entes por um ente supremo, por um fundador, por Deus” (LEVINAS, 1993, p. 139,
tradução nossa).
As concepções filosóficas de Heidegger – no que dizem respeito à redução de
Deus promovida pela metafísica tradicional, tratando-o como o ente supremo a
ocupar a primeira posição na hierarquia dos entes – contam com a aquiescência
inicial de Levinas que, no entanto, busca caminhos diferentes de seu antigo mestre,
através da postulação de uma nova noção de sentido, propondo-se a pensar Deus
fora da ontoteologia, na esfera ética, a partir das relações inter-humanas
(LEVINAS,1993, p. 201). A centralidade conferida à ética permitiu uma perspectiva
fenomenológica própria, uma nova noção de inteligibilidade, pois segundo Levinas,
fazer fenomenologia:
É, sobretudo, buscar e recordar nos horizontes que se abrem em
torno das primeiras “intenções” do dado abstrato, a intriga humana

163
– ou inter-humana – que é a concretude de seu impensado (ele não
é puramente negativo!), a qual é a necessária “encenação” cujas
abstrações se desligaram no dito das palavras e das proposições. É
buscar a intriga humana ou inter-humana como o tecido da
inteligibilidade última (LEVINAS, 1996b, p. 28, tradução nossa).

Levinas desenvolveu seu pensamento já no limiar da fenomenologia,


perspectiva na qual a relação com Outrem é pautada pela responsabilidade
determinada pela epifania do rosto, não se enquadrando, portanto, no domínio da
intencionalidade ou na esfera da ontologia, distanciando-se, com isso, das intuições
dos seus antigos professores.

2. Uma hermenêutica do rosto


Levinas direcionou uma contundente crítica ao pensamento ocidental, no
qual a ontologia alcançou a precedência: “a filosofia ocidental foi, na maioria das
vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um
termo médio e neutro que assegura a inteligência do ser” (LEVINAS, 2014, p. 33-34,
tradução nossa). Aos olhos do pensador lituano-francês, a perspectiva do Mesmo,
presente e preponderante no modelo ontológico, nega o espaço à alteridade e
constitui uma violência. A trajetória filosófica de Levinas caracteriza-se pelo esforço
em afastar-se do primado do Mesmo e de caminhar em direção ao acolhimento do
Outro, em sua absoluta e inapreensível alteridade. Tal perspectiva tem como
alicerce a concepção de rosto, noção central de seu pensamento:
A maneira pela qual o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do
Outro em mim, nós a chamamos, de fato, rosto. Essa maneira não
consiste em figurar como tema sob o meu olhar, a se expor como
um conjunto de qualidades formando uma imagem. O rosto de
Outrem destrói, a todo instante, e transborda a imagem plástica que
ele me deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum – a
ideia adequada (LEVINAS, 2014, p. 43, tradução nossa).

O rosto expressa-se por si próprio, ele é revelação. Para Levinas, não


podemos fazer uma fenomenologia do rosto, visto que a fenomenologia representa
e relata o que aparece. Quando estamos diante de Outrem e prestamos atenção aos
detalhes estéticos de seu rosto, não estabelecemos uma relação com a noção de
rosto formulada pelo filósofo, para quem o rosto transcende as suas delimitações
físicas, manifestando-se além de suas formas plásticas. O acesso ao rosto não ocorre
na esfera do conhecimento, mas sim no domínio ético (LEVINAS, 1982, p. 79-80),
pois o rosto, em sua total nudez, fala, manifestando a fragilidade e a ausência de

164
defesa, próprios da condição humana. O “Tu não matarás” é a expressão primeira do
rosto, logo, “a epifania do rosto é ética” (LEVINAS, 2014, p. 218, tradução nossa). Tal
contexto demanda uma releitura da fenomenologia frente ao comando de
responsabilidade contido no rosto. Na ótica de Levinas, o rosto é revelação do
Infinito, antifenômeno por excelência. O Infinito tem no rosto o tópos original de sua
passagem, na forma de vestígio não tematizável, como preceito ético de
responsabilidade pelo próximo. O Infinito e o rosto escapam da estrutura noético-
noemática da intencionalidade, pois “a intencionalidade que anima a ideia de
infinito não se compara a nenhuma outra; ela visa aquilo que não pode abarcar e
nesse sentido, precisamente o Infinito” (LEVINAS, 2010b, p. 238, tradução nossa).
O rosto é o traço do Infinito que, sem se deixar converter em tema, significa
através do comando de responsabilidade e de substituição em prol de Outrem. A
passagem do Infinito é uma revelação de natureza ética, que demanda, portanto,
uma hermenêutica da mesma natureza. A revelação do Infinito no rosto de Outrem,
por sua própria especificidade, requer um processo de exegese que se difere dos
processos utilizados na mera obtenção de uma informação ou na assimilação de um
conhecimento, uma vez que o Infinito porta uma significação continuada, uma
revelação ininterrupta (LEVINAS, 1989, p. 358).
Trata-se de uma hermenêutica da escuta do apelo contido no rosto, com o
sujeito ético sendo continuamente intimado a responder à prescrição de
responsabilidade em favor do próximo. Tal movimento exegético permite uma outra
perspectiva de religião, tendo como fundamento a afirmação da primazia do outro
homem.

3. A ideia de religião em Emmanuel Levinas


No modelo ontológico ocorre uma correlação entre o ser e o conhecimento,
na qual o Eu assenhora-se da primazia na significação, incorporando e dominando o
Outro, impedindo o espaço à alteridade, instaurando o império do Mesmo e a
interdição à transcendência:
O saber é uma relação do Mesmo com o Outro, em que o Outro se
reduz ao Mesmo e se despoja de sua singularidade, na qual o
pensamento se refere ao outro, mas aqui o outro não é mais outro
enquanto tal, aqui ele já é o próprio, já meu. Ele está a partir de
então sem segredos ou aberto à pesquisa, isto é, mundo. Ele é
imanência (LEVINAS, 1996b, p. 12-13, tradução nossa).

165
Em sentido oposto ao da ontologia, o caminho de Levinas rumo à inteligibilidade da
religião e do transcendente distancia-se da imanência do saber e é buscado na trama
ética das relações intersubjetivas:
A transcendência já não seria uma imanência insuficiente. Ela teria
na socialidade – que já não é um simples visar, mas
responsabilidade para com o próximo – a excelência própria do
espírito, precisamente a perfeição ou o Bem. Socialidade que, por
oposição a todo o saber e a toda imanência – é relação com o outro
enquanto tal e não com o outro, pura parte do mundo (LEVINAS,
1996b, p. 27, tradução nossa).

Em Totalité et infini, a caracterização de religião elaborada por Levinas está


fundamentada na socialidade: “propomos que se chame religião ao laço que se
estabelece entre o Mesmo e o Outro, sem constituir uma totalidade” (LEVINAS, 2014,
p. 30, tradução nossa). Em Levinas, a relação com a transcendência se entrecruza às
relações com o outro homem, pautadas pela ética, uma vez que “a ética é uma ótica.
De sorte que tudo o que eu sei de Deus e tudo o que eu posso entender de Sua palavra
e dizer a Ele razoavelmente deve encontrar uma expressão ética” (LEVINAS, 2010a,
p. 37, tradução nossa).
Logo, a ideia de religião em Levinas se afasta do contexto das religiões
institucionais, assim como da teologia, e estabelece a ética como o fio condutor que
a conecta à transcendência, pois conforme esclarece Levinas: “reservamos à relação
entre o ser aqui embaixo e o ser transcendente que não desemboca em nenhuma
comunidade de conceito nem em nenhuma totalidade – relação sem relação – o
termo de religião” (LEVINAS, 2014, p. 78-79, tradução nossa). Portanto, o acesso à
transcendência se concretiza na relação com o outro homem, que não pode ser
confundido com Deus, mas em cujo rosto – que é vestígio do Infinito – tenho acesso
à palavra de Deus, sob a forma de mandamento ético e de reivindicação de justiça
direcionada ao próximo (LEVINAS, 1991, p. 120).

Considerações finais
O percurso percorrido nesse texto indica que a perspectiva ética de Levinas
abriu-se à experiência do Infinito e à transcendência, entrelaçando de forma
decisiva a ideia de religião às relações humanas. A formação da ideia de religião em
Levinas passa pela contestação do primado alcançado pela ontologia no pensamento
filosófico ocidental e pela reinterpretação que o pensador lituano-francês

166
direcionou à fenomenologia, diante da epifania do rosto, que revela a palavra de
Deus na forma de mandamento instaurador de uma ética heterônoma, que tem
Outrem como ponto de partida. O Eu, afetado pelo apelo de responsabilidade, cede
a Outrem o lugar central na formação do sentido, inclusive no que se refere à
inteligibilidade do religioso.

Referências
CAMPOS, Fabiano Victor de Oliveira. Da fenomenologia à significância ética: Levinas
e o método fenomenológico. Ekstasis: Revista de Hermenêutica e Fenomenologia, Rio
de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 41-68, 2016.

HUSSERL, Edmund. Conferências de Paris. Lisboa: Edições 70, 1992.

LEVINAS, Emmanuel. Dieu, la mort et le temps. Paris : Grasset & fasquelle, 1993. (Le
livre de poche.)

LEVINAS, Emmanuel. Difficile liberté: essais sur le judaïsme. 9.ed. Paris: Albin Michel,
2010a. (Le livre de poche).

LEVINAS, Emmanuel. Écrit et sacré. In: VIEILLARD-BARON, Jean-Louis; KAPLAN,


Francis (Ed.). Introduction à la philosophie de la religion. Paris: Éditions du Cerf,
1989. p. 353-362.

LEVINAS, Emmanuel. En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger. Paris: Vrin,


2010b.

LEVINAS, Emmanuel. Entre nous: essais sur le penser-à-l’autre. Paris : Grasset, 1991.
(Le livre de poche).

LEVINAS, Emmanuel. Entretiens Emmanuel Levinas/ François Poirié. In: POIRIÉ


François. Emmanuel Levinas: essai e entretiens. Paris: Actes Sud, 1996a. p. 59 a169.

LEVINAS, Emmanuel. Éthique et infini. Paris: Fayard, 1982. (Le livre de poche).

LEVINAS, Emmanuel. Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl. 8. ed.


Paris: Vrin, 2001.

LEVINAS, Emmanuel. Totalité et infini: essai sur l’extériorité. Paris: Kluver Academic,
2014. (Le livre de poche).

LEVINAS, Emmanuel. Transcendance et intelligibilité. Genève : Labor et Fides, 1996b.

167
OS DEUSES, O POETA E A NATUREZA: ASPECTOS DO SAGRADO EM
HEIDEGGER, LEITOR DE HÖLDERLIN

Luís Gabriel Provinciatto1

Resumo: Esta comunicaçao assume como ponto de partida teorico a conferencia “Assim
como em dia santo…”, proferida varias vezes por Martin Heidegger (1889-1976) entre 1939
e 1940, publicada pela primeira vez em 1941 e acessível, hoje em dia, no volume Explicações
da poesia de Hölderlin. Nesta conferencia, o filosofo alemao oferece uma
leitura/interpretaçao do poema homonimo de Friedrich Holderlin (1770-1843),
enaltecendo aí o papel do poeta na percepçao e nomeaçao do sagrado (Heilige). Nesse
sentido, tal conferencia sera lida com o proposito de, em primeiro lugar, entender a razao de
o poeta, a partir da terceira estrofe, nao mais falar da natureza de maneira propriamente
dita, mas a respeito do sagrado, interpretando-o, na verdade, como a essencia da natureza.
Em segundo lugar, objetiva-se compreender, a luz da leitura heideggeriana, a razao de o
sagrado, como essencia da natureza, ser captado, nomeado e anunciado precisamente pelo
dizer poetico, mais precisamente, pela poesia de Holderlin. Para cumprir tais propositos,
faremos uso de uma metodologia de exploraçao bibliografica dos textos heideggerianos de
primeira importancia. Conclusivamente, sera possível perceber, por um lado, como a
discussao proposta por Heidegger em tal texto (re)coloca as bases para uma efetiva
interpretaçao do sagrado – e, consequentemente, do divino (Göttliche) e da divindade
(Göttlichkeit) – e, por outro, como a propria poesia pode ser pensada como a linguagem do
sagrado, que, por isso, e fundamentalmente teopoética e nao necessariamente teológica.
Palavras-chave: Sagrado; Divino; Deuses; Poeta; Natureza.

Introdução
O presente trabalho e parte do desenvolvimento de um projeto de pos-
doutorado intitulado Teologia e linguagem em Heidegger: uma análise de sua
proposta de (re)construção do modo de dizer o sagrado, desenvolvido no
Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Catolica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio), cujo proposito e investigar a seguinte tese do filosofo alemao Martin
Heidegger (1889-1976): “o pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado”
(HEIDEGGER, 2008, p. 324). O que aqui se apresenta, por ora, e um resultado parcial
de uma pesquisa ainda em andamento, de modo que nem todas as questoes
colocadas ao início ou ao longo do texto encontrarao uma adequada e suficiente
resposta.

1
Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em Filosofia
pela Universidade de Évora (Portugal). Atualmente, cumpre estágio pós-doutoral no Departamento de
Filosofia da PUC-Rio, sob supervisão do Prof. Dr. Edgar Lyra. Docente da Faculdade de Filosofia da PUC-
Campinas. E-mail: luis.provinciatto@puc-campinas.edu.br

168
A partir disso, apresenta-se o recorte teorico-epistemologico aqui assumido:
com vistas a entender a segunda afirmaçao da tese heideggeriana, foi de
fundamental importancia investigar a forte relaçao existente entre o referido filosofo
e a poesia de Friedrich Holderlin (1770-1843), algo evidenciado, sobretudo, por um
conjunto de preleçoes e conferencias proferidas ao longo das decadas de 1930 e
1940. Dentre estas, destaca-se aqui a conferencia Assim como em dia santo…, nas
quais Heidegger le o poema homonimo de Holderlin, afirmando, por conclusao, que
“a palavra de Holderlin diz o Sagrado, e deste modo nomeia o espaço de tempo da
decisao inaugural para a estruturaçao essencial da historia vindoura dos deuses e
das humanidades” (HEIDEGGER, 2013, p. 91). Como nao e possível tecer uma analise
completa do poema, este trabalho se concentra, sobretudo, em sua terceira estrofe,
com o objetivo de realizar uma exposiçao crítica e interpretativa das concepçoes de
natureza e sagrado. Essa analise hermeneutica mostrara uma “transiçao” da
natureza, inicialmente glorificada em sua onipresença, para uma “entidade sagrada”
que precede os proprios deuses e o curso do tempo, enfatizando, com isso, a
complexidade da relaçao entre o divino, a natureza e o sagrado.

A natureza e o sagrado em Assim como em dia santo


Em primeiro lugar, reproduziremos o referido poema de Holderlin em sua
integralidade, na traduçao oferecida por Claudia Pellegrini Drucker, constante no
volume Explicações da poesia de Hölderlin (HEIDEGGER, 2013, p. 61-63):
Assim como em dia santo, para ver os campos,
O lavrador sai, pela manha, quando
Da noite quente caíram os relampagos refrescantes
Todo esse tempo e o trovao ruge ainda ao longe,
O rio regressa de novo ao seu leito,
E fresco o solo verdeja,
E da chuva alegre do ceu
Goteja a videira, e resplendentes
Ao sol tranquilo se erguem as arvores do bosque:

Assim se erguem eles em tempo propício,


Aqueles, a quem nenhum mestre so, a quem maravilhosa
E omnipresente forma e cria em leve enlace
A potente, a divinamente bela Natureza.
Por isso, quando ela parece dormir em certas estaçoes do ano
No ceu ou entre as plantas ou nos povos,
Se enche de luto tambem a face dos poetas,

169
Parecem estar sozinhos, mas eles pressentem sempre.
Pois, pressentindo, ela propria repousa tambem.

Agora, porem, rompe o dia! Eu esperava e via-o vir,


E o que eu vi, o Sagrado, seja o meu Verbo.
Pois ela, ela mesma, que e mais velha que os tempos
E esta acima dos deuses do Oeste e do Oriente,
A Natureza, acordou agora com ruído de armas,
E do alto do Eter ate ao fundo abismo
Segundo lei fixa, como outrora, saído do caos sagrado,
Sente-se de novo o entusiasmo
Que tudo cria.

E como no olhar do homem brilha um fogo


Quando concebeu altas coisas, assim
Se incendeia do novo sinal, dos feitos do mundo agora,
Um fogo na alma dos poetas.
E o que outrora aconteceu, mas mal se sentiu,
Eis que so agora se revela,
E as que a sorrir nos lavraram a terra
Em figura de escravos, sao-te agora conhecidas,
As sempre vivas, as forças dos deuses.

Queres interroga-los?: na cançao sopra o seu espírito,


Quando do sol do dia e da terra quente
Ela surge, ou das trovoadas do ar, e de outras
Que, mais preparadas nas funduras do tempo
E mais ricas de sentido e a nos mais distintas,
Vagueiam entre ceu e terra e entre os povos.
Sao pensamentos do espírito comum
Que acabam calmos na alma do poeta.

Que ela ferida de repente, ha muito ja


Patente ao Infinito, treme de recordaçao,
E, inflamada do raio sagrado, lhe e dado
O fruto nascido em amor, obra de deuses e homens,
O canto, que de ambos de testemunho.
Assim caíu, como os poetas contam, por ela desejar
Ver com os olhos o deus, o seu raio sobre a casa de Semele,
E ela, ferida do deus, pariu,
Fruto da trovoada, o Baco sagrado.

E por isso bebem fogo celeste agora


Os filhos da terra sem perigo.
Mas a nos cabe, sob as trovoadas do deus,
O poetas! permanecer de cabeça descoberta,
E com a propria mao agarrar o raio do Pai,

170
O proprio raio, e, oculta na cançao,
Oferecer ao povo a dadiva celeste.
Pois se nos formos puros de coraçao
Como crianças, e as nossas maos sem culpa,

O raio do Pai, puro, nao o queimara,


E, fundamente abalado, sofrendo com o deus
A dor do deus, o coraçao eterno bate firme.

Aparentemente, o hino de Holderlin e todo dedicado a natureza, descrita


como “maravilhosa”, “onipresente”, “potente” e “divinamente bela”. A onipresença
nao indica aqui uma determinaçao de carater quantitativo, mas o carater inelutavel
da natureza: a natureza encontra-se presente mesmo no jogo de opostos, em tudo
aquilo que parece se excluir reciprocamente. De maneira analoga, a potencia na o
deve ser entendida como uma propriedade extrínseca, mas, ao contrario, a natureza
e aquilo que da potencia. E ela, entao, um deus ou uma deusa? A resposta e
inequívoca: “se fosse assim, entao ‘a natureza’, que ja esta presente em tudo, inclusive
nos deuses, seria novamente medida com o metro da divindade, e entao ja nao seria
mais ‘a natureza’” (HEIDEGGER, 2013 p. 65-66). Portanto, nao e possível entender a
natureza a partir do divino, mas ao contrario, uma vez que, em sua onipresença, ela
se encontra tambem nos deuses. Por isso, apenas a natureza pode ser considerada
verdadeiramente bela. Os deuses podem suscitar a “mais alta aparencia de beleza”,
mas a pura beleza nao se encontra, no entanto, em seu poder: “ainda assim, o Deus
alcança o grau maximo da aparencia de beleza, e assim e o que mais se aproxima ao
maximo do puro aparecer da onipresença” (HEIDEGGER, 2013, p. 66). Em outras
palavras, os deuses emulam a beleza da natureza, contudo, sem se identificar com
ela. Porque “divinamente bela” e “maravilhosamente onipresente”, a natureza atrai e
enlaça os poetas: “eles sao atraídos para o enlace. Esta atraçao conduz os poetas ao
traço fundamental da sua essencia” (HEIDEGGER, 2013, p. 67).
No fundo, a natureza deve ser aqui entendida em seu sentido originario, como
physis: “o provir e o rebentar, e o abrir-se, que, ao rebentar, ao mesmo tempo retorna
para a proveniencia e se encerra naquilo que concede a todo presente a sua
presenciaçao” (HEIDEGGER, 2013, p. 69). A natureza e tanto a irrupçao no aberto
quanto a retraçao em si daquilo que surge.

171
Porem, a partir da terceira estrofe, Holderlin chama a natureza de “Sagrado”,
de modo que natureza se torna uma palavra poetica superada, inadequada, a ser
ultrapassada enquanto tal. Tal ultrapassagem, para Heidegger (2013, p. 71, trad.
mod.) “e a consequencia e o sinal de um dizer que encontra seu ponto de partida em
um lugar mais inicial [anfänglicher]”. Mais precisamente, o sagrado e a natureza que
desperta; e a natureza “mais antiga que os tempos” e o tempo mais antigo, pois esta
anterioridade nao alude a nenhuma forma de supratemporalidade ou eternidade (cf.
HEIDEGGER, 1999, p. 54-55). Ao contrario, a natureza, entendida como o sagrado,
precede os tempos porque e aquilo que oferece a cada existente a clareira na qual
pode se manifestar: “a natureza e mais temporal que ‘os tempos’ porque, como
maravilhosamente onipresente, ja presenteia tudo o que e real, de antemao, com a
clareira dentro de cuja abertura pode aparecer tudo o que e real, pela primeira vez”
(HEIDEGGER, 2013, p. 72). Nesse sentido, ela tem uma capacidade que e ausente aos
deuses enquanto tais: enquanto clareira, nela tudo e presente.
“Ela e ‘mais velha que os tempos/ e esta acima dos deuses’. A natureza nao
esta um pouco acima dos deuses, como se fosse um ambito do real ‘por cima’ deles.
A natureza esta ‘sobre’ os deuses” (HEIDEGGER, 2013, p. 72, trad. mod.). Porem, tal
prioridade nao significa que ela seja “über den Göttern” – acima dos deuses – como
uma regiao separada ainda mais essencial, mas que ela e “über die Götter” – sobre os
deuses –, pois e ela que define seu ser deuses. Os deuses sao deuses justamente
porque sao sob, isto e, no interior do Sagrado: “portanto, a ‘sacralidade’ [Heiligkeit]
nao e, de forma alguma, uma propriedade que pertença a um Deus subsistente”. O
Sagrado [Heilige] nao e sagrado porque e divino [göttlich]; melhor dizendo, o Divino
e que e divino por que e ‘sagrado’ em sua essencia” (HEIDEGGER, 2013, p. 72, trad.
mod.).
O sagrado e a essencia da natureza, aquilo que atravessa o domínio de todas
as regioes: o eter e o abismo, os ambitos mais extremos do real, mas tambem “as
divindades supremas” (HEIDEGGER, 2013, p. 73). Enquanto abertura, o sagrado
concede o espaço onde os celestes e os mortais podem se encontrar. O sagrado e a
mediaçao que toca e, portanto, coliga tudo. Mas, em si mesmo, o sagrado e o
imediato, aquilo que se subtrai a toda possível mediaçao:
O proprio aberto, contudo, que oferece um ambito a tudo o que e
recíproco e articulado, para que entabulem tais relaçoes, nao
provem de nenhuma mediaçao. O aberto e, ele mesmo, o imediato.

172
Eis porque nada mediado, seja Deus ou homem, consegue atingir
imediatamente o imediato (HEIDEGGER, 2013, p. 74).

Assim, em primeiro lugar, cabe destacar: nem os deuses nem os homens tem
acesso a origem como tal. Isso nao depende de um seu defeito ou impotencia, mas
da natureza mesma da origem, que nao e representavel ou atingível como tal. E, em
segundo lugar, mesmo sendo a origem absolutamente imediata, ela se da apenas no
jogo das mediaçoes. Desta maneira, somos remetidos a dualidade inelutavel da
origem. O sagrado e ao mesmo tempo kaos e nomos, mediaçao e anarquia: em sua
precaria unidade originaria, princípio anarquico. O kaos em uma primeira
aproximaçao e confusao, mas, com este significado, se alude apenas a necessaria
inessencia (Unwesen) do kaos, que significa mais propriamente a cisao: “pensado, a
partir da ‘natureza’ (physis), o caos permanece aquela abertura que se abre a partir
do aberto, para que este conceda a cada coisa distinta sua presenciaçao delimitada”
(HEIDEGGER, 2013, p. 76). Assim, na interpretaçao que Heidegger faz de Holderlin,
o kaos e o proprio sagrado, a origem que permanece em si sa e salva, mas tambem
santa. Contudo, aquilo que e em si salvo concede salvaçao? O sagrado certamente
concede salvaçao na sua demora, mas esta demora e impenetravel, inacessível:
Mas a graça, bem como aquilo que concede a graça, encerram em si,
como o imediato, toda plenitude e cada estrutura, e, deste modo,
nenhum indivíduo, seja ele um deus ou um homem, pode se
aproximar do imediato. Uma vez que o Sagrado nao e passível de
aproximaçao, torna va qualquer pretensao imediata, da parte do
mediado, a impor-se. O Sagrado expulsa toda experiencia de seu
lugar habitual, retira o solo sobre o qual ela se ergue e a destitui do
posto que lhe e atribuído (HEIDEGGER, 2013, p. 76).

Por isso, nem mesmo os poetas conseguem uma autentica experiencia do


sagrado. No comentario a Der Rhein (cf. HEIDEGGER, 1999, p. 155-294), Heidegger
ja havia chamado a atençao para o fato que aos poetas e concedido apenas pressentir
o enigma da origem. O poeta por si mesmo nao e capaz de nomear o sagrado, e se
consegue algo aí e apenas devido a intervençao de alguem que e mais proximo ao
sagrado, mesmo permanecendo sempre sob um deus. Tambem os deuses sao
mediadores: eles assumem o que lhes esta sobre, concentram-no em um unico raio
luminoso e oferecem aos homens. Na realidade, trata-se de uma doaçao em muitos
aspectos necessaria. Em si e por si, nem os deuses nem os homens sao capazes de
sustentar o carater imediato do sagrado. Sua unica possibilidade e entregar-se uns
aos outros: se e verdade que o carater imediato se da apenas como mediaçao – e na

173
mediaçao –, entao e precisamente a relaçao, isto e, a mediaçao entre homens e
deuses que garante paradoxalmente a maxima proximidade ao imediato.
Nesse linha de interpretaçao, os deuses tem necessidade dos homens e vice-
versa. Nesta dependencia recíproca, os poetas tem uma funçao de qualquer maneira
excentrica: eles sao tocados pelos deuses, mas nao para se dirigir aos deuses mesmo,
mas para reascender o sagrado, pois “a condiçao essencial do poeta nao se funda na
recepçao do deus, mas no enlace do sagrado” (HEIDEGGER, 2013, p. 83). Os poetas
tangenciam o sagrado apenas atraves da mediaçao e, por isso, buscam saltar alem
da mediaçao. Dirigindo-se ao sagrado, os poetas rompem o silencio da origem e o
trazem a palavra. Mas exatamente por isso, eles trazem a mediaçao o imediato. A
palavra poetica e assim a mediaçao da mediaçao: uma mediaçao potenciada, que faz
da origem de qualquer forma acessível tambem ao povo. Onde os poetas-vindouros
(cf. HEIDEGGER, 1989, p. 369) encontram-se expostos ao supremo perigo, os
mortais que nao sao poetas nao correm nenhum risco. Assim, a tarefa dos poetas
mostra-se como paradoxal: “os poetas devem abandonar o imediato seu
imediatismo, ao mesmo que em que empreendem, como tarefa unica, ser sua
mediaçao. Por isso sua dignidade e obrigaçao consistem em permanecer referidos
aos mediadores mais altos” (HEIDEGGER, 2013, p. 85).
Trata-se, no fundo, do problema do pensamento de um outro início (cf.
HEIDEGGER, 1989). Quando a poesia consegue nomear o sagrado, ela se constitui
em uma traiçao: porque o sagrado nao aparece nunca como tal, mas apenas na
mediaçao. Isso vale tambem para o pensamento: uma vez que a origem e sempre ja
fora de si, ela nao e pensavel como tal. Todo pensamento da origem e sempre traiçao.
Os poetas, os vindouros e ate mesmo os deuses, ao querer preservar o sagrado, o
perdem enquanto tal, o comprometem irremediavelmente. Afirma Heidegger: “mas
precisamente o fato de o Sagrado depender de uma mediaçao divina e poetica e
permanecer a salvo no canto represente, para a essencia do Sagrado, a ameaça que
ele se converta no seu contrario. O imediato se transforma em algo mediado”
(HEIDEGGER, 2013, p. 86). E, mais adiante, prossegue: “a permanencia do Sagrado e
ameaçada pela mediaçao que surgiu dele mesmo e que foi permitida por sua vinda,
por meio da palavra cantada. Nem sequer e a palavra humana a maior ameaça”
(HEIDEGGER, 2013, p. 87). Os primeiros responsaveis por esta ameaça nao sao os
poetas, mas os proprios deuses, que se encontram sob o sagrado. Porem, este sofrer

174
faz parte da natureza do sagrado, uma vez que toda mediaçao e sempre fruto do
imediato. Dessa maneira, a origem e sempre direcionada nao apenas ao
esquecimento dos mortais, mas tambem, e em primeiro lugar, dos deuses. Na
verdade, o sagrado e o proprio ser, a propria origem, que se constitui no entre
(zwischen) onde celestes e mortais podem se encontrar, mas que enquanto tal escapa
necessariamente tanto aos deuses quanto aos homens.

Considerações finais
Em síntese, o percurso aqui percorrido mostrou uma das faces da intersecçao
entre teologia, compreendida em sentido amplo, e linguagem na filosofia de
Heidegger. A analise, centrada na relaçao entre o filosofo e a poesia de Holderlin,
destacou a importancia da conferencia Assim como em dia santo…, na qual Heidegger
expoe sua interpretaçao do poema homonimo, dando especial atençao a
compreensao da natureza como sagrada, como mais originaria que os proprios
deuses e o curso do tempo. Em conclusao, este trabalho delineou a complexidade da
relaçao entre a natureza, o sagrado e o divino, evidenciando que o sagrado, como
concebido por Heidegger, e a essencia da natureza, precedendo os proprios deuses.
A abordagem da dualidade inelutavel da origem – como kaos e nomos – mostrou e
enfatizou a mediaçao paradoxal do sagrado: poetas sao mediadores, buscando a
proximidade ao imediato atraves da palavra poetica, revelando a ameaça inerente a
propria permanencia do sagrado na mediaçao. Por fim, a natureza do sagrado, sua
impenetrabilidade e sua relaçao com a temporalidade foram elementos
fundamentais para compreender a proposta heideggeriana sobre a linguagem e o
sagrado.

Referências
HEIDEGGER, M. “Assim como em dia santo…”. In: HEIDEGGER, M. Explicações da
poesia de Hölderlin. Trad.: Claudia Pellegrini Drucker. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2013, p. 61-92.

HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis). Frankfurt am Main: Vittorio


Klostermann, 1989.

HEIDEGGER, M. Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung. Frankfurt am Main: Vittorio


Klostermann, 1981.

175
HEIDEGGER, M. Hölderlins Hymnen «Germanien» und «Der Rhein». 3ed. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1999.

HEIDEGGER, M. Posfacio a “O que e metafísica?”. In: HEIDEGGER, M. Marcas do


caminho. Trad.: Enio Paulo Gichini e Ernildo Stein. Petropolis: Vozes, 2008, p. 315-
325.

176
A NOÇÃO AUTOIMUNITÁRIA DE RELIGIÃO NO PENSAMENTO DE JACQUES
DERRIDA: UMA ANÁLISE DO TEXTO

Manoel Carlos Uchôa de Oliveira1

Resumo: O objetivo desta comunicação consiste em analisar a noção de religião por meio
da categoria de autoimunidade no texto Fé e Saber de Jacques Derrida. Dentre alguns
ensaios e palestras do filósofo franco-argelino, “Fé e Saber” ocupa um foco pelo
questionamento da noção de religião no mundo contemporâneo. A proposta do texto reside
em uma leitura de influência kantiana, retomando as condições de possibilidade da
instituição religiosa diante das mudanças da sociedade a partir do impacto de novas
tecnologias. Nessa discussão, Derrida propõe uma linha de reflexão por meio da categoria
de autoimunidade. Basicamente, as comunidades religiosas, principalmente as monoteístas,
criam mecanismos para assegurar sua proteção que se voltam contra si. A autoimunidade é
uma condição em que qualquer entidade está no limiar entre vida e morte. Por exemplo, o
fanatismo religioso é um efeito da lógica autoimunitária: ao tentar defender sua religião às
outras, o fanático mata sua própria doutrina. Por isso, a religião, ao contrário de estabelecer
um sentido para a vida, acaba por destituí-lo. Para o desenvolvimento desse trabalho,
propõe-se uma análise conceitual da estrutura do texto filosófico. O sentido do texto será
reconstruído na medida em que os conceitos sejam estruturados.
Palavra-chave: Desconstrução; Religião; Autoimunidade; Comunidade.

Introdução
A proposta desse trabalho está vinculada ao início de um doutoramento. O
tema da religião na obra de Jacques Derrida (1930-2004) tem sua acumulação
teórica e acadêmica, embora inconstante. Em diversos, textos os problemas
teológicos, divinos e religiosos são apresentados. A sua maneira, categorias como
Deus, messianismo, apocalipse, Babel etc. emergem como eixos de problemas caros
ao que Derrida denominou de logocentrismo no pensamento ocidental (2006).
O caráter logocêntrico da metafísica remete a uma presença centralizadora e
concentrada para o desenvolvimento de qualquer sistema de pensamento. Sua
pretensão é a totalização das formas de ver, ouvir, ler, escrever e pensar. Há um
centro que organiza tudo, porém não se apresenta enquanto tal, no máximo em
elipse. Essa é a contradição mais cara, segundo Derrida, do pensamento ocidental:
existe uma presença pretendida em absoluta, mas que está absolutamente ausente
do próprio sistema que ela cria (DERRIDA, 2009a).

1 Mestre em Filosofia do Direito pelo PPGD-UFPE. Professor assistente II na Escola de Ciências


Jurídicas da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Unicap. E-mail: manoel.uchoa@unicap.br

177
A partir desse preceito elementar da obra de Derrida, é possível investigar
diversos aspectos da Religião como objeto de estudo, tanto quando doutrina. Na
obra do franco-argelino, um texto se destaca como eixo para “pensar a religião”. “Fé
e Saber: as duas fontes da ‘religião’ nos limites da simples razão”, em geral, é a
principal referência, mas não a exclusiva. Esse texto tem precedentes interessantes
na bibliografia derridiana. Não será objeto deste trabalho explorar essa
reminiscência textual. Nesses termos, o propósito será enfrentar a leitura estrutural
de Fé e saber para analisar a noção de religião autoimunitária.
O objetivo deste trabalho consiste, por isso, em analisar a noção de religião
por meio da categoria de autoimunidade no texto Fé e Saber de Jacques Derrida. A
proposta é realizar uma leitura estrutural do texto, ainda que diminuindo o peso a
medida em que algumas conexões com outros textos de Derrida serão feitas. É
preciso esclarecer que problema é pretendido em Fé e Saber, sob que condições essa
problemática será assumida pelo filósofo. A partir disso, observar como a
autoimunidade se torna chave de interpretação para o fenômeno religioso. Não há
apenas uma dimensão conceitual nessa preleção de Derrida, mas são observadas
implicações práticas da religião como um acontecimento.
A religião, de sua singularidade a sua universalidade, expressa um conjunto
de problemas que são crivados pela guerra que ela desempenha contra outros
credos, mas fundamentalmente pela guerra que trava contra si mesma para se
manter pura. Essa é a hipótese derridiana que é preciso levar a cabo na ausência do
autor.

1. Pensar a religião: a estrutura do texto


O seminário de Capri, organizado por Gianni Vattimo e Jacques Derrida,
reuniu autores ligados a hermenêutica contemporânea, Hans-Georg Gadamer,
Maurizio Ferraris entre outros, a fim de discutir o tema “A religião”. Uma semana
dedicada a discussão de um tema por demais aberto teve um aspecto, em 1994, de
expressar um “espírito do tempo”. Havia o entendimento comum entre os
organizadores de que “A religião” se deslocara suficientemente da “morte de Deus”.
Enquanto espírito do tempo, haveria uma distância significativa do
nascimento de Cristo à Morte de Deus até 1994? O que poderia ser evocado ou
conjurado para compreender as circunstâncias d’a religião” ao final do século XX? O

178
que faz “a religião” acontecer ou como ela acontece em nosso tempo? Nesse espírito,
Derrida escreve sua conferência “Fé e Saber: as duas fontes da ‘religião’ nos limites
da simples razão”. O texto é composto por 52 parágrafos, divididos em duas partes:
Itálicos (§1º ao §26) e Post-scriptum (§27 ao §52).
Nos Itálicos, é elaborada a problemática. Há um conjunto de pressuposições,
hipóteses, perguntas circunscrevendo os problemas da realização do seminário, da
elaboração do tema, das possíveis divagações que poderiam travar tal debate. Para
os que não estão acostumados com a argumentação (ou retórica, para os adversários
de má vontade), a dissertação possui uma retenção no ritmo da leitura. Sob uma
perspectiva do leitor em sua recepção, por exemplo, é possível estranhar um
movimento tão disfuncional. Isto é, o propósito dessa parte do texto é explicar as
razões para a existência do texto. Todavia, é constituído um jogo de remessas bem
próprio de Derrida: toda questão filosófica possui uma anterioridade a sua
colocação.
As fontes para o texto são expostas ainda que não diretamente nomeadas. É
possível observar as citações a Hegel, Nietzsche, Benveniste, Heidegger etc. Contudo,
definitivamente e desde o título são os fantasmas de Kant e Bergson que se
apresentam como interlocutores. Por um lado, a “Religião nos limites da simples
razão” reporta uma censura ao tratamento racional do tema.
Kant definiu um itinerário importante no Iluminismo para o estudo da
religião em sua dupla expressão do mal e da esperança. Entretanto, não se trata de
um discurso a Deus. Na verdade, se há algo que define o estudo de Kant é que é
perpassado pelo poder que “a religião” tem de fomentar comunidade,
principalmente no tronco judaico-cristão, tensionada entre o mal da natureza
humana e sua disposição para o bem. Não é a Deus que se questiona a religião, dada
a antinomia da Razão Pura que ela pode solicitar. Todavia, é a configuração da
representação, da crença e da instituição religiosa na formação (moral) de uma
comunidade (humana e eclesiástica). Para Derrida, esse lastro comunitário, a partir
de Kant, precisa ser levado a cabo e radicalmente questionado n’a religião.
Na outra ponta da problemática, a influência de Bergson remente a
necessidade de pensar duplamente “a religião” em seu fechamento institucional e
representativo e, ao mesmo tempo, sua abertura mística e evolucionária. Por um
lado, a prática religiosa depende de um constrangimento coletivo para seu controle

179
dos membros. Ainda que forjada em amor, a comunidade precisa ter seu cerne da
sua manutenção por meio da religião. Por outro lado, a experiência religiosa é a
elevação de certos indivíduos a criar um horizonte renovado para a doutrina. A
mudança desponta pela abertura de novos impulsos para o bem dos outros. O que
muda fundamentalmente é a maneira como a comunidade se perceberá.
Entre essas duas leituras, Derrida apresenta uma problematização voltada a
dupla lógica no interior de “a religião”. Todavia, por que tratar de “a religião”, com o
artigo definido? É possível tratar conceitualmente da religião ou haveria uma perda
de sua compreensão multifacetada? Derrida reitera o problema da diferença quando
se aborda qualquer tema de forma monolítica. Por isso, precisa concentrar sua
inquirição sobre “a religião” como ela acontece, principalmente em relação a guerra.
É possível dizer que a “guerra de religião” passa de um tema a uma categoria de
análise no texto de Derrida. A experiência religiosa está perpassada pela guerra
entre religiões, mas fundamentalmente pela religião contra si mesmo.

2. Pensar a religião em guerra consigo mesma: a finalidade do texto


Como a religião se constitui presentemente em guerra? O recorte mais
imediato é tomar por exemplos os monoteísmos dominantes, Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo. Não será possível explorar esse aspecto histórico neste
trabalho. No entanto, há uma necessidade de digressão mínima sobre a localização
do problema. “Fé e Saber” é um texto de 1994. Isso significa que Derrida já havia
escrito Políticas da Amizade (1998) e Espectros de Marx (2022).
Desde os anos 80, há um conjunto de seminários (ainda não lançados) sobre
o problema da política e da amizade. Com as dissoluções do bloco político soviético
a partir de 1989, foi declarado o fim das ideologias. Uma anunciada boa nova
firmaria o contexto de um novo mundo. A mundialização baseada nos valores da
democracia liberal e do mercado livre tramou um processo de uma Paz Americana.
Todavia, não pareceu haver consistência efetiva esse cenário. Num jogo de cena,
foram emergindo novos inimigos, novos bárbaros a ameaçar o Império vitorioso.
Derrida passa a trabalhar temáticas políticas como mais destaque que nas
primeiras obras. Por isso, pensar a religião não poderia fugir a um contexto em que
a guerra passou a ter outras fronteiras, dimensões e mecanismos. Que herança será
definida e escolhida nessa mudança de um espírito do tempo? Será que é possível

180
anunciar um novo tempo ou um novo espírito para uma nova ordem mundial? Por
isso, para Derrida, a abordagem da religião passa pelo cerne de seu poder de
determinar a unidade do mundo, da história, mas também do dia e do presente.
A religião, ou religio, será pensada partir do signo da salvação, do intacto ou
do indene (2000, §27). Na verdade, Derrida quer enfrentar duas traduções ou
heranças da religião. Por um lado, religare (re-ligar) expressa uma invenção
etimológica cristã de uma pura reconexão com o divino. Está na ordem da salvação
e do sacrossanto. Na constituição de uma representação da vida enquanto tal, a
religião seria o lugar indene do estar-no-mundo ou do mundo mesmo. Por outro
lado, relegere (juntar, colher) significa um recolhimento, um escrúpulo para viver
junto.
Além disso, é a dupla experiência entre a crença e a santidade, que não
permite fixar uma tradução em religio. A religião permanece no limiar da diferença
entre crer e purificar. A constituição de uma comunidade que configura um sistema
de crenças para sua purificação enquanto apartada de um mundo, mas dominante
desse. A partir disso, defender a comunidade defini o propósito de manter o
processo de inclusão e exclusão na realimentação desse corpo comum.

3. O que é isto – autoimunidade? A (anti)lógica das comunidades – religiosas:


a interpretação do texto.
A defesa da vida comunitária passa, então, por um processo de identificação
com os diversos corpos que a formam. Gera-se uma obrigação básica e útil para a
salvação da vida social disseminada a todos que lhe compõem. Todos carregam o
mesmo fardo. Assim, constitui-se a comunidade. Para tanto, é preciso constituir um
sistema para defender e manter essa obrigação para o comum. Diz-se que cada um
não é um corpo, mas partilha de um mesmo corpo. Todavia, cada um é um corpo
disposto em relação aos outros corpos. Nessa medida, essas disposições corporais
engendram um duplo processo de assimilação e individuação.
A dinâmica entre incluir um corpo ou exclui-lo assume uma dupla injunção
entre a vida e a morte. Isto é, a vida social empreende meios para sua conservação
na medida em que reitera sua fundação numa identidade contra os outros corpos.
Nesse sentido, A vida social perfaz uma comunidade pois obriga a cada corpo-
individual a reiterar seu corpo comum. Ao mesmo tempo, o corpo-individual se

181
reconhece pelos mesmos meios que o forçam socialmente. Ora, o meio que força é o
que defende. Por exemplo, alguém ter seus direitos de cidadão instituídos deve ao
mesmo tempo se inscrever enquanto membro do comum para individuar sua
personalidade na ordem.
Ao passo que cada um está submetido a mesma ordem, precisa de uma
proteção para não ser assimilado inteiramente por ela. A chance de não ser
assimilado, o que significaria sua morte, é preciso ceder a ordem social, mas lhe
resistir. Essa tensão gera uma aporia em que a comunidade está em relação
necessária com a imunidade. Ou seja, a força do comum obriga a cada um na mesma
medida que cada um vive a se eximir dessa força. Então, um cidadão precisa de sua
comunidade para se defender dos outros, mas precisa de seus direitos para se
defender da comunidade mesma.
A mesma força a defender é a força a ameaçar. Derrida, por isso, observa o
risco dessa dialética entre comunidade e imunidade, forçar uma obrigação e eximir-
se dela: “um processo auto-imunitário é aquele estranho comportamento pelo qual
um ser vivo, de maneira quase suicida, trabalha ‘por si mesmo’ para destruir sua
própria proteção, para se imunizar contra sua ‘própria’ imunidade” (DERRIDA,
2000, p. 104).
Trocando em miúdos, uma comunidade gera e gesta a violência que, ao
proteger ela mesma, atenta contra si. A autoimunidade não é uma metáfora, mas
uma lógica performativa pela reiteração em contextos (não saturados). Sua origem
jurídico-política (immunitas) é deslocada para o contexto medicinal sem nunca se
fechar para seu propósito: o corpo biológico, psíquico ou coletivo depende de um
sistema de defesa biopolítica em relação ao seu ambiente, mas fadado a colapsar o
próprio corpo que protege.
Na batalha de vida e morte de uma comunidade, os corpos serão assimilados
ou não. Nesse caso, a condição de uma vida social passa a ser um processo de
identificação não dos que estão dentro ou fora da comunidade, mas, antes e
principalmente, haver a indistinção originária dos que estão dentro ou fora. Nesse
ponto, a decisão constitutiva dos termos não é dada ou pressuposta. No instante
decisivo, há um deslocamento em que o regime de forças produz o efeito de inclusão
e exclusão.

182
Considerações finais
A autoimunidadeé uma condição em que qualquer entidade está no limiar
entre vida e morte. Os mecanismos que são constituídos para proteger sua
existência acabam por ser os mesmos que se voltam contra o corpo político. A
religião, na saúde e na doença, se edifica como um processo que é perpassado pela
edificação de uma comunidade que, na sua pureza e abandona do mundo, pretende
assimilá-lo. O mal radical, no sentido de sua inclusão excludente na comunidade, é
ao mesmo tempo condição de criação e destruição da religião. A comunidade
religiosa constitui seu pertencimento último e mais radical no processo da
autoimunidade;

Referências
DERRIDA, J. “Fé e saber”. in: DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. A Religião. São
Paulo: Estação Liberdade, 2000.

DERRIDA, J. Políticas da amizade. Porto-PT: Campos das Letras, 2003.

DERRIDA, J. A escritura e a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009a.

DERRIDA, J. Gramatologia. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

DERRIDA, J. Vadios: dois ensaios sobre a razão. Coimbra-PT: Palimagem, 2009.

DERRIDA, J. Espectros de Marx. Coimbra-PT: Palimagem, 2022.

183
O CONCEITO DE DEUS: UMA PERSPECTIVA DA ESCOLA ASHʿARITA

Mohammad Makdod1

Resumo: O Ashʿarismo é uma das principais escolas teológicas no Islã que utiliza métodos
racionais para apresentar e defender a crença. O seu conceito de Deus foi construído de
forma coerente através de argumentos racionais e textuais. Este artigo apresenta o conceito
de Deus de acordo com a escola ashʿarita, discutindo os nomes e atributos de Deus, assim
como a ética divina. Depois de apresentar o argumento ashʿarita da existência de Deus, o
artigo centra-se no conceito de ser necessário, que constitui a base do conceito ashʿarita de
Deus e mostra como os atributos divinos estão relacionados a esse conceito. O artigo aborda
os tipos de atributos divinos e os métodos utilizados para prová-los, além de explicar a
abordagem reducionista ashʿarita relativa aos nomes divinos. A parte final do artigo é
dedicada à discussão da ética divina e da contribuição ashʿarita para o problema do mal.
Como resultado, o artigo traça uma imagem completa do conceito ashʿarita de Deus,
discutindo alguns argumentos sobre Deus e Seus atributos. Além disso, mostra que o
conceito ashʿarita de realeza divina não exclui a sabedoria divina e também encontra uma
solução para o problema do mal.
Palavras-chave: O conceito de Deus; Atributos; Nomes de Deus; Ética divina; Ashʿarita.

Introdução
Deus como um ser supremo é uma noção partilhada por todos os teístas,
embora a apresentação desta noção num conceito compreensível esteja relacionada
com o campo da teologia. No Islão, a disciplina da teologia chama-se kalām, que pode
ser traduzida como “discurso”. É o discurso sobre Deus e todas as questões
relacionadas com Ele, tais como provar a Sua existência, os Seus atributos e as
mensagens que Ele enviou à humanidade. Neste artigo, discutiremos o conceito de
Deus de acordo com a principal escola teológica do Islão, a escola do Ashʿarismo. Na
literatura inglesa, muitos aspectos desta escola foram apresentados em obras
clássicas e modernas, tais como as obras de W. Montgomery Watt2, H. A. Wolfson3,
Van Ess Josef4, e muitos outros5. No entanto, nenhum destes trabalhos abordou o
conceito de Deus segundo a escola de Ashʿarismo de uma forma abrangente, mas
sim analisando um argumento em particular ou dando uma visão geral da escola e
dos seus métodos. Na literatura portuguesa, apesar da influência histórica que a

1 Doutorado em Estudos Islâmicos pela Universidade Ibn Haldun em Istambul. Professor Autônomo.
2 W. Montgomery, Watt, Free Will and Predestination in Early Islam (London: Luzaz & Co LTP, 1948).
3 H.A. Wolfson, The philosophy of Kalam (Harvard University Press, London, 1970).
4 Josef Van Ess, Theology and Society in the Second and Third Centuries of the Hijra (Leiden: Birll,

2017).
5 Por exemplo, as obras de Majid Fakhry, M.M. Sharif, Binyamin Abrahamov e Ayman Shihadeh.

184
escola do Ashʿarismo deixou na teologia ocidental e cristã, a escola e seus
argumentos são pouco apresentados. Rosalie Helena da Souza Pereira, no seu artigo,
Aspectos da Ética no Islão6, dedicou uma parte a dar uma visão geral da posição
Ashʿarita sobre a ética.
Este artigo vai fazer uma breve introdução à escola do Ashʿarismo e, em
seguida, delinear o seu conceito de Deus, começando pelo argumento da existência
de Deus, o argumento cosmológico, passando pelos atributos e nomes divinos e
terminando na ética divina. Desta forma, apresenta uma conceção abrangente de
Deus e das Suas características.

1. A escola do Ashʿarismo
A escola do Ashʿarismo é atribuída a Abū al-Ḥassan Alī bin Ismāʿīl al-Ashʿarī
(324/936). Al-Ashʿarī nasceu em Basra e recebeu formação como teólogo muʿtazilita
até aos quarenta anos, quando renunciou à teologia muʿtazilita e começou a
defender a teologia islâmica ortodoxa (ahl al-sunna wa Jamah). Al-Ashʿarī, como ex-
muʿtazilita, continuou a usar métodos racionais para provar e defender o credo
islâmico e, assim, estabeleceu as bases para a primeira escola teológica ortodoxa que
foi capaz de apresentar argumentos coerentes provando a verdade do credo
islâmico e respondendo aos muʿtazilitas, aos filósofos e a outras escolas teológicas.
Os principais fundamentos do Ashʿarism foram estabelecidos por Abū al-
Ḥassan al-Ashʿarī; no entanto, a segunda figura da escola, Abū Bakr al-Bāqillānī
(403/1013) foi creditado por desenvolver os argumentos de al-Ashʿarī em uma
escola teológica coerente, e ele também foi o fundador do atomismo islâmico7. Al-
Bāqillānī estudou com o aluno imediato de al-Ashʿarī, abū Abdullah b. Mujāhid al-
Tā’ī (370/980). Contudo, a teologia do Ashʿarismo foi adoptada pelos mais notáveis
eruditos muçulmanos, como Imām al-Ḥaramayn al-Juwanynī (478/1085), Abū
Ḥamid al-Ghāzalī (505/1111), e outros teólogos que enriqueceram e desenvolveram
os argumentos teológicos ashʿaritas. A escola pode ser dividida em três fases: a
primeira é a fase fundamental, que começou com al-Ashʿarī. A segunda fase é a fase
do mutaqaddimin, que começou com al-Bāqillānī e continuou até Fakhr al-Dīn al-

6 Pereira, Rosalie Helena de Souza. 2010. “Aspectos Da ética No Islã”. Cadernos De Ética E Filosofia
Política 2 (17):102-30. https://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/55709.
7 W. Montgomery, Watt. “Islamic Philosophy and Theology” 2nd Ed. (Edinburgh University Press:

1985), 76.

185
Rāzī (d. 606/1209), que iniciou a fase ashʿarita tardia (kalam pós-clássico), que foi
continuada por estudiosos ashʿaritas polímatas, como Syaf al-Dīn al-Amidī (d.631 /
1233), Aḍud al-Dīn al-Ījī (d. 756/1355), Saʿad al-Dīn al-Taftazānī (d. 792/ 1390), e
outros estudiosos proeminentes. A última fase ashʿarita foi repleta de argumentos
filosóficos e introduções lógicas, onde a teologia e a epistemologia Ashʿaritas se
manifestaram em suas formas mais claras.

2. A primeira obrigação
O núcleo da teologia asharita é a existência de Deus e dos Seus atributos,
embora antes de embarcarem nos argumentos que provam a existência de Deus, os
asharitas discutaram qual é a primeira obrigação que a pessoa legalmente
responsável (mukalaf) deve cumprir. Legalmente responsável significa ser uma
pessoa que atingiu a puberdade e tem uma faculdade racional sã. Os estudiosos
asharitas concordaram que o objetivo da primeira obrigação é conhecer Deus, e
depois expressaram essa obrigação com palavras diferentes. Abū al-Ḥassan al-
Ashʿarite afirmou que a primeira obrigação é conhecer Deus, ou seja, conhecer a Sua
existência e os Seus atributos. A segunda figura da escola, al-Baqillānī, concentrou-
se na forma que nos permitiria conhecer Deus e disse que a primeira obrigação é a
especulação racional (naẓar). Conhecer Deus não é um tipo de conhecimento
imediato que existe em nós, mas, de acordo com os asharitas, é um conhecimento
especulativo que alcançamos através de um processo racional. No entanto, essa
especulação racional não se limita aos filósofos ou às pessoas muito inteligentes,
mas é uma especulação simples que qualquer pessoa pode fazer, refletindo sobre a
natureza do mundo e a necessidade de um criador para existir.8
O último asharita cuja opinião sobre a primeira obrigação vamos discutir é
Imām al-Ḥaramīn al-Juwaynī. Ele argumenta que há um passo que precede o
processo de especulação racional (naẓar), que é a intenção (al-qaṣd) para aquela
especulação. Ele explica essa intenção pelo processo de limpar o coração/mente de
todas as outras convicções ou ideias anteriores que possam perturbar o processo de
especulação racional sobre Deus e os Seus atributos. Al-Juwaynī quer deixar claro
que as convicções anteriores que crescemos sem questionar podem impedir ou

8 Ibrahim bin Muhammad al-Bajurī, Sharḥ Jawharatu Tawḥīd, 2. Ed. (Beirut: Dar al-Kutub, 2004), 47.

186
influenciar o processo de investigação especulativa; portanto, a primeira ação que é
exigida do ser racional, de acordo com al-Juwaynī, é limpar a sua mente/coração de
todas as convicções ou ideias anteriores, a fim de ter uma intenção pura de realizar
um especulativo racional.9
Estas três opiniões sobre a primeira obrigação são as principais opiniões na
escola de asharismo. Elas podem parecer diferentes, no entanto, todas elas têm o
mesmo objetivo, que é conhecer a Deus. Al-Ashʿarī afirmou o objetivo e não
mencionou o processo, enquanto al-Baqillānī e al-Juwaynī afirmaram que a primeira
obrigação é tomar os meios para conhecer Deus, quer seja a especulação racional ou
o seu passo pré-requisito, a intenção pura e desimpedida.

3. O argumento para a existência de Deus


O que hoje é conhecido como argumento cosmológico kalām nos volumosos
escritos de William Lane Craig e outros filósofos modernos10 é um sofisticado
argumento ashʿarita desenvolvido por al-Ashʿarī e seus companheiros asharitas. Na
teologia islâmica, o argumento cosmológico remonta a um notável académico
muʿtazilita, Abū al-Hudhayl al-ʿAllāf (d. 235/841), embora o argumento tenha vindo
à superfície e se tenha tornado famoso sob al-Ashʿarī e os seus seguidores. No
entanto, vale a pena notar que o argumento cosmológico demorou algum tempo a
aparecer na teologia cristã. Ele é visto nas obras de Boaventura (1221-1274) e
Tomás de Aquino (1225-1274), e entre os pensadores iluministas, vemos que
Gottfried Leibniz e Samuel Clarke reafirmam o argumento cosmológico11.
Os Asharitas basearam o seu argumento na sua compreensão do universo
(cosmos). Primeiro, afirmaram que tudo no universo é composto por substâncias
(jawahir) e acidentes (arāḍ), e depois argumentaram que tanto as substâncias como
os acidentes têm origem no tempo (ḥadith). O que é originado no tempo é ser
contingente (mumkin) e todo o ser contingente precisa de uma causa para explicar
a sua existência. Os asharitas chamaram à sua versão do argumento cosmológico o
argumento da originação (al-ḥudus), que se destina a provar que o universo, tudo o

9 Abū al-Maʿalī Al-Juwaynī, Al-Irshād ilā Qawaṭiʿ al-Adillah fi Usūl al-ʿItiqād, (Cairo: al-Khaniji
Publication, 1950), 3.
10 William Lane Craig, The Kalām Cosmological Argument, (New York: Macmillan, 1979); Richard

Swinbrune, The Existence of God, (Oxford: Oxford Press, 1979).


11 Reichenbach, Bruce. “Cosmological Argument” The Standard Encyclopedia of Philosophy, Winter,

(2023). https://plato.stanford.edu/archives/win2023/entries/cosmological-argument.

187
que não é Deus, tem origem no tempo e, por isso, precisa de um originador.
Começaram a raciocinar a partir da originação dos acidentes e depois passaram a
provar que as substâncias não podem ser livres de acidentes; finalmente chegaram
à conclusão de que a coisa que não pode ser livre de originação (ḥawadis), deve ser
também originada no tempo. Al-Baqillānī diz, todos os mundos celestes e terrestres
são meramente destes dois tipos, quero dizer substâncias e acidentes, e assim tudo isso
(o universo) é originado no tempo.12
Os Asharitas afirmavam que a originação de acidentes é observada e não
necessita de mais provas. Baseavam-se nos quatro acidentes principais: movimento,
cessação, composição e separação. O movimento é anulado pela cessação e vice-
versa; por conseguinte, tanto o movimento como a cessação têm origem no tempo,
e não há substância/corpo que possa ser desprovida destes dois acidentes ou de ser
composto ou separado. Em outras palavras, as substâncias/corpos e os acidentes
são interdependentes; os corpos não podem existir sem acidentes e os acidentes não
podem existir sem os seus loci. A prova da originação de acidentes e da
interdependência entre substâncias e acidentes é suficiente para provar que as
substâncias também têm origem no tempo.13 No entanto, provar a originação de
substâncias e acidentes não é um argumento simples, mas múltiplo, que requer
vários sub-argumentos, tais como provar a existência de acidentes e a sua
contingência, a interdependência entre substâncias e acidentes, a impossibilidade
de originação sem início (ḥawādith lā awl laha), e outros sub-argumentos.14
Provar a originação de substâncias e acidentes e que o universo é composto
por ambos é ainda o passo inicial que os asharitas deram para provar a existência
de um ser não contingente que é responsável por causar a existência do universo.
Os outros passos estão incluídos na prova da verdade de cinco premissas, que são:
- O contingente necessita de um fator preponderante para a sua existência;
- A causa eficiente tem que existir no momento da existência do seu objeto
causado;
- A causa do existente deve ser existencial;
- A regressão infinita não pode ser possível;

12 Al-Bāqillānī, Tamhīd al-Awail wa Trakhīṣ al-Darla’il, 3rd ed., (Beirut: Al-Kitab publication, 1993),
45.
13 Ibid, AL-JUWAYNĪ, Al-Irshād ilā Qawaṭiʿ al-Adillah fi Usūl al-ʿItiqād, 17.
14 AL-JUWAYNĪ, Al-Irshād, 17-18.

188
- O argumento circular (dawr) é inválido15.
Explorar os argumentos subjacentes a estas premissas está para além do
objetivo deste artigo, mas tentaremos lançar alguma luz sobre algumas delas e
encerrar o argumento de uma forma organizada. A primeira premissa tem um peso
enorme em todo o argumento, porque prova que o ser contingente não pode surgir
na existência com uma causa, ou seja, tem de haver uma causa não causada por
detrás da sua existência. Para colocar essa premissa em termos modernos, dizemos
que é o princípio da razão suficiente. Apesar de os asharitas afirmarem que a
verdade deste princípio é evidente, dedicaram muitas discussões para demonstrar
a sua veracidade16.
O ser contingente requer necessariamente uma causa para vir à existência, e
essa causa não pode ser contingente, ou seja, não pode ser também causada, porque
isso conduziria a uma das duas impossibilidades racionais: a regressão infinita ou o
raciocínio circular. Afirmar que a causa que trouxe o contingente à existência tem a
mesma natureza, isto é, ser contingente, levantaria a questão sobre a sua causa e a
causa de cada causa e assim por diante, infinitamente. Provar a impossibilidade da
regressão infinita não é claramente evidente e, por isso, os asharitas empregaram
muitos argumentos dedutivos para provar a sua impossibilidade. Um desses
argumentos é o argumento da sobreposição (al-taṭbiq). Ele diz que,
Se tomarmos a soma infinita de causas e efeitos e a juntarmos, depois
cortarmos dela uma soma finita e a sobrepusermos à outra, de modo que o início de
cada uma seja igual ao da outra, e depois continuarmos ad infinitum, então a série
mais longa seria semelhante à mais curta, o que é absurdo. No entanto, se a série
mais curta parasse, seria finita, e então a série mais longa também seria finita – uma
vez que o que excede o finito numa certa medida finita é finito.17
Uma série infinita de causas excluiria a possibilidade de existência do
universo como um todo. Aquilo cuja existência se baseia em algo impossível,
também é impossível de existir. A refutação do argumento circular não exigiu muito
esforço porque a afirmação de que o universo surgiu por uma causa e que essa causa

15 Fakhr al-Dīn al-Rāzī, Maṭālib, (Beirut: Darul Kutub al-Arabia, 1987), 1/158.
16 Al-Rāzī menciona que alguns académicos, afirmaram que a verdade deste princípio requer um
raciocínio dedutivo, veja Ibid., 1/73.
17 S. H. Nasr and M. Aminrazavi, Philosophical Theology in the Middle Ages and Beyond (London: I.B.

Tauris & Co Ltd, 2010), 401.

189
foi causada pelo universo não é uma afirmação sustentável e conduz à
autocontradição.
Finalmente, a causa de todos os seres contingentes não pode ser contingente
porque o contingente, por definição, é a coisa que precisa de uma causa para a sua
existência. Portanto, a causa última que distingue a realidade de Deus da realidade
do ser contingente é o conceito de ser necessário, ou aquilo que chamamos Deus. O
conceito asharita de Deus está centrado no conceito de ser necessário, o ser que não
pode deixar de existir, ou seja, a sua inexistência é uma impossibilidade racional.
Definem o ser necessário como o ser cuja natureza é impossível de deixar de existir
e que sempre existiu sem necessidade de uma causa: o seu conceito é impossível de
ser concebido sem conceber a sua existência.18 Provar que o ser necessário/Deus
causou ou criou o universo não nos dá uma noção suficiente de Deus. Por isso iremos
explorar a concepção asharita dos atributos divinos para obter uma imagem clara
do ser necessário.

4. Os atributos de Deus
O conceito de ser necessário não só foi essencial para provar a existência de
Deus, mas também para provar vários dos Seus atributos. Deus, como um ser
necessário, tem atributos necessários que são impossíveis de separar Dele, e é
impossível para Deus existir sem Seus atributos. O primeiro atributo que os
asharitas elaboraram é o atributo da existência. De acordo com al-Ashʿarī, a
existência de Deus não é um atributo adicionado à Sua essência, é apenas a
existência factual da Sua entidade.19 Assim, o conceito de existência é o mesmo para
os seres necessários e para os seres contingentes. A palavra “existência” denota
apenas a realização de uma entidade, independentemente de ser necessária ou
contingente. No entanto, o modo da Sua existência não é o mesmo modo da nossa
existência. A nossa existência é causada, finita, espacial, temporal, e todos os outros
conceitos que estão associados ao ser contingente. Por outro lado, a existência de
Deus é necessária com todas as suas implicações.

18AL-RĀZĪ, Maṭālib, 1/135.


19AL-ĪJĪ, Al-Mawāqif, 270. A discussão ashʿarita sobre a existência é sobre o conceito de existência
em geral, quer seja adicional às entidades ou não, por isso não vamos nos aprofundar neste atributo,
uma vez que já falamos sobre a necessidade da Sua existência.

190
4.1. Atributos negativos
O segundo tipo de atributos divinos são os atributos negativos que negam
algo de Deus e não acrescentam nenhum atributo qualificado a Ele. Os primeiros
asharitas elaboraram estes atributos separadamente, enquanto os asharitas
recentes os discutiram como implicações do conceito de ser necessário. Existem
cinco atributos negativos principais e todos os outros atributos negativos podem ser
reduzidos a eles. São eles a eternidade passada, a eternidade futura, a unicidade, a
dissemelhança dos seres contingentes e a autossuficiência. Vamos dar uma breve
explicação de cada um deles e mostrar como estão relacionados com o conceito de
ser necessário.
Eternidade passada (qidam) significa que a existência de Deus não tem
começo, porque Ele é o ser que não pode não existir e, portanto, Ele existe em todos
os pontos imaginados do passado. A partir deste atributo negativo, compreendemos
que a existência de Deus é atemporal. O tempo, como ser contingente, começou com
a existência de outros seres contingentes.20
O segundo atributo negativo é a eternidade futura (baqa’), o que significa que
a existência de Deus é infinita, uma vez que o que não tem princípio não pode ter
fim. O ser existente que não tem causa não pode parar de existir. O ser necessário,
por definição, é o ser que tem uma natureza que é impossível cessar de existir.21 O
próximo atributo negativo é a unicidade divina (waḥdāniyya). Os asharitas
apoiaram este atributo com vários argumentos porque é a característica mais
importante do credo islâmico. Este atributo nega a existência de qualquer parceiro
de Deus, filho ou cônjuge. Deus não gera, nem é gerado. Os asharitas argumentam
que a existência de dois seres necessários levaria a uma contradição lógica, porque
o ser necessário, que é a causa de todos os seres contingentes, deve ser um e único.
Provaram-no com a ajuda de outro atributo divino, a onipotência. Eles argumentam
da seguinte forma: se existirem dois deuses, eles vão concordar ou discordar na
criação de X. No caso deles concordarem, temos três opções:
- Criar X concomitantemente, e isso é absurdo porque dois poderes não
podem estar ligados a um objeto de poder ao mesmo tempo;

20 Os ashʿaritas definiam o tempo como algo renovável que é conhecido e serve para especificar outra
coisa renovável. Veja Ibid., 269.
21 AL-RĀZĪ. Al-Maṭālib, 1/135.

191
- Criar X consecutivamente, isso também é absurdo porque significa
criar algo que já está criado (taḥṣil al-ḥaṣil);
- Cada um deles cria uma parte de X, o que levaria à restrição do poder
de cada um deles (ligado à parte que cada um não criou), ou seja, isso
provaria que nenhum deles é omnipotente, e, portanto, não é Deus22.
No caso de discordarem quanto à criação de X, ou ambas as vontades
existirão, ou não existirão, ou apenas uma das vontades prevalecerá. A primeira
opção é absurda porque conduz a uma contradição: a existência e a inexistência de
X ao mesmo tempo. A segunda é a mesma porque conduz à mesma contradição. A
existência da terceira opção mostra que aquele cujo poder se sobrepõe é Deus e o
outro não23.
O quarto atributo negativo é a dissemelhança com os seres contingentes. A
prova deste atributo baseia-se na prova de que Deus não é uma substância nem um
acidente. Já provamos que as substâncias e os acidentes têm origem no tempo e,
portanto, são contingentes. No entanto, este atributo nega todos os outros conceitos
que estão associados a substâncias e acidentes. Por exemplo, ser uma substância
implica ocupar espaço (taḥiz), ser corpóreo, ter um tamanho e outras implicações.
Ser um acidente implica residir numa substância, i.e., ser uma qualidade ou atributo
de uma substância, ser efêmero e outras implicações. No entanto, ser diferente do
ser contingente significa negar todas as implicações da substância e do acidente, e
assim provar que o ser necessário não pode ser espacial, corpóreo, qualidade ou
qualquer outra coisa que esteja associada ao ser contingente. O quinto e último
atributo negativo é autossuficiente. Este atributo é bastante semelhante ao último
porque nega que Deus precise de um locus (maḥl) e de um especificador (mukhaṣiṣ).
A necessidade de locus é algo relacionado com acidentes porque os acidentes
subsistem nas substâncias; enquanto as substâncias precisam de um especificador
para as especificar com certos acidentes e qualidades. Deus é um ser necessário, e o
ser necessário não pode subsistir em substâncias, especificadas ou modificadas.

22 AL-ĪJĪ, al-Mawāqif, 278-279; AL-BAJURĪ, Sharḥ Jawharatu Tawḥīd, 71


23 Ibid.,

192
4.2. Atributo positivo (atributos qualificados)
Estes atributos são chamados atributos positivos ou qualificados porque
acrescentam um significado que pode ser concebido separadamente da essência. No
entanto, a existência desses atributos foi um argumento acalorado entre os asharitas
de um lado e os mutazilitas e filósofos do outro. Os asharitas mantêm a distinção
destes atributos, enquanto os outros negam qualquer distinção entre Deus e os Seus
atributos. Discutiremos os atributos e, ao mesmo tempo, esclareceremos a distinção
dos atributos em relação à essência de Deus. Os asharitas afirmam que Deus tem
sete atributos qualificados (sifat al-maʿanī). São eles: poder, vontade, conhecimento,
vida, audição, visão e fala.24
Depois de provar a existência de Deus através do raciocínio racional, o
primeiro atributo que a mente pode conceber é o atributo do poder. Trazer algo à
existência implica ter poder; portanto, o criador do universo deve ter poder. O poder
de Deus é definido como um atributo pelo qual Deus cria ou executa qualquer ser
contingente de acordo com a Sua vontade divina. Em outras palavras, o poder de
Deus é o atributo responsável pela execução da vontade dEle. O poder divino tem
que partilhar o mesmo modo de existência de Deus: é necessário, não causal, pré-
eterno e pós-eterno. A necessidade aqui não implica a multiplicidade do ser
necessário. Há apenas uma essência necessária que é predicada com atributos
necessários. O poder abrange todos os seres contingentes, ou seja, Deus˗aquele que
tem este poder é omnipotente. A onipotência significa tudo o que está relacionado
com o ser contingente, já que Deus não pode criar o que é logicamente impossível,
como criar outro ser necessário ou fazer com que dois mais dois sejam cinco. A
questão de saber se Deus pode criar uma pedra que não é capaz de levantar é uma
questão errada, porque criar e levantar qualquer pedra é um ato contingente e,
assim, afirmar que o poder de Deus pode criar qualquer coisa contingente eliminaria
a questão de saber se Deus é capaz de realizar certas ações contingentes ou não.25
A vontade divina é o segundo atributo entre os atributos positivos. Significa
que Deus tem uma vontade eterna pela qual escolheu criar o universo e especificá-

24 Alguns dos primeiros asharitas consideravam as mãos e o rosto entre os atributos qualificados,
embora negassem qualquer significado antropomórfico. Eles apenas afirmaram a sua existência
porque são mencionados no Alcorão; No entanto, a maioria dos asharitas interpretou estes atributos
metaforicamente e reduziu-os a um dos sete atributos. Por exemplo, as mãos significam poder e o
rosto significa entidade. Veja AL-JUWAYNĪ, al-Irāshad, 155.
25 AL-ĪJĪ, al-Mawāqif, 150.

193
lo com todas as suas propriedades. Os mutazilitas afirmam que a vontade divina é
contingente; é apenas uma ação que Deus realiza. Os asharitas recusaram essa
posição e afirmaram que a vontade divina é necessária, sem causa, pré-eternal e pós-
eternal. A vontade divina determina a existência ou a inexistência de qualquer ser
contingente e, depois de determinar a sua existência, especifica os seus outros
atributos, como o lugar, o tempo, o tamanho e outras propriedades. Para responder
à pergunta: “Como é que a vontade divina é eterna e o contingente é temporal? Os
asharitas afirmaram que Deus, desde a eternidade, quis que cada ser contingente
existisse no seu tempo específico, e assim afirmaram duas relações/ligações entre a
vontade divina e os seres contingentes. Uma ligação potencial desde a eternidade e
uma ligação atual quando o ser contingente passa a existir.26
A prova de que o conhecimento divino é o terceiro atributo positivo é uma
consequência lógica da prova de que Deus é um agente de livre-arbítrio que criou o
universo. O conhecimento de Deus é semelhante aos dois primeiros atributos
positivos, sendo necessário, sem causa, pré-eterno e pós-eterno, mas é diferente
pelo fato de estar relacionado a todos os tipos de seres: necessários, contingentes e
impossíveis. Deus é omnisciente significa que Deus sabe tudo sobre todas as coisas,
sejam elas contingentes, necessárias ou impossíveis. A eternidade passada do
conhecimento de Deus implica o problema da presciência divina, que pode contestar
a liberdade da vontade humana. Os asharitas respondem a este problema afirmando
que o conhecimento de Deus é um atributo revelador (kashifa) e não um atributo
eficiente (mu’thira). Em outras palavras, o conhecimento de Deus revela as coisas
como elas são e não as afeta. Deus sabe desde a eternidade que um determinado ser
humano irá realizar uma determinada ação porque esse mesmo ser humano irá
escolher realizar aquela ação, e não porque o conhecimento de Deus o está forçando
a fazer aquilo.
A vida como atributo positivo é outra consequência lógica da afirmação do
poder, da vontade e do conhecimento. A vida é uma condição lógica para que alguém
seja predicado com esses atributos positivos. Os mortos não podem ser descritos
pelo poder, vontade ou conhecimento, e Deus é predicado com eles; logo, Deus tem
vida. Da mesma forma, a vida de Deus é necessária, sem causa, pré-eternal e pós-

26Ahmat Al-Sijilmāsī, Risalā fi Taʿluq al-Sifāt, (Tunus: Dar Ibn ʿArafa, 2019), 37-9; al-Bajurī, Sharḥ
Jawharatu Tawḥīd, 95.

194
eternal. A única diferença entre a vida divina e os outros atributos positivos é que a
vida não tem qualquer relação com o ser contingente. Estes quatro atributos
positivos são afirmados nas escrituras sagradas islâmicas, mas os asharitas
escolheram prová-los com métodos racionais.
Agora, o método de provar os últimos três atributos positivos (discurso,
audição e visão) é disputado entre os primeiros e os últimos asharitas. Os primeiros
asharitas argumentam que esses atributos são atributos de perfeição e, portanto,
Deus deve ser descrito com eles, caso contrário, Ele seria descrito com seus opostos.
Os asharitas mais recentes não admitiram a força do argumento dos seus
antepassados e, por isso, consideraram a possibilidade de provar estes atributos
através de provas textuais. Vamos dar algumas explicações sobre esses atributos.
O discurso divino (kalām) é um atributo positivo com o qual Deus se atribuiu
de forma pré-eterna. Este atributo não pode ser composto de letras e sons porque é
pré-eterno, e letras e sons são características do discurso contingente. Outros
teólogos não-asharitas negam a existência de tal atributo e afirmam que quando
dizemos que Deus fala, queremos dizer que Deus cria a fala, e a Sua fala é do mesmo
género que a nossa fala. Os asharitas insistiram que a fala de Deus tem uma natureza
diferente da nossa fala; eles disseram que a fala divina, como um atributo positivo,
é a fala interior de Deus (kalām nafsī), que é eterna e não é pronunciada. Quando
dizemos que os livros sagrados são as palavras de Deus, queremos dizer que são
revelados por Deus e que são uma indicação (dalāla) do Seu discurso eterno27.
A audição e a visão são os dois últimos atributos positivos que vamos discutir.
À semelhança do discurso divino, são provados principalmente mediante provas
textuais, porque a mente pode assumir o atributo do conhecimento como substituto
da audição e da visão. A audição e a visão de Deus são dois atributos eternos que
estão relacionados com a essência de Deus e os Seus atributos na eternidade, e
relacionados com os seres contingentes após a sua existência. A maioria dos
asharitas afirma que a audição e a visão divina estão relacionadas com todas as
coisas existentes, enquanto alguns deles argumentam que a audição está
relacionada apenas com os sons e a visão com os objetos vistos28.

27 AL-BAJURĪ, Sharḥ Jawharatu Tawḥīd, 82-4.


28 AL-SIJILMĀSĪ, Risalā fi Taʿluq al-Sifāt, 70-78.

195
De acordo com os asharitas, estes sete atributos são atributos reais que são
distintos da essência de Deus. O que eles querem dizer com essa distinção é que a
mente pode conceber a existência de duas coisas: a essência de Deus e os atributos;
no entanto, o que existe, na realidade, é apenas um Deus que é predicado com Seus
atributos. Portanto, a distinção que os asharitas afirmam em relação aos atributos,
é a existência de um significado (maʿna) que pode ser entendido separadamente da
essência divina. Eles argumentam que se a essência divina fosse idêntica ao atributo
do conhecimento, por exemplo, então o conceito de conhecimento denotaria o
conceito da essência divina, o que é absurdo29.
A possessão destes sete atributos positivos implica a existência de outros
sete atributos com os quais Deus é predicado. Estes atributos são: onipotente
(qadir), dotado de vontade (murid), onisciente (‘alim), vivo (ḥaīī), aquele que é
ouvinte (samīʿ), aquele que é vidente (baṣīr) e falante (mutakalim). Cada atributo é
implicado pela posse de um dos atributos anteriores. Por exemplo, possuir poder
implica ser todo-poderoso, e assim por diante30.

5. Nomes de Deus
Os nomes de Deus são todos os nomes com os quais chamamos Deus, por isso
são mais gerais do que os atributos divinos. Cada nome pode ser considerado um
atributo, mas nem cada atributo é um nome. Por exemplo, o poder e o conhecimento
são atributos positivos que Deus possui, mas não são nomes de Deus. No entanto, as
palavras “nomes” e “atributos” são usadas, na maioria das vezes, como sinônimos. O
profeta Mohammad (que a paz esteja com ele) afirmou que Deus tem noventa e nove
nomes e que quem os conhecer, acreditar neles e agir de acordo com eles entrará no
paraíso.31 Os asharitas entenderam que os noventa e nove nomes são mencionados
na revelação, mas não são os únicos nomes que Deus poderia possuir. Discutir os
noventa e nove nomes e seu significado está além do escopo de nosso artigo, então
será suficiente mencionar as divisões dos nomes de Deus de acordo com os asharitas
e dar alguns exemplos de cada categoria. Eles dividiram os nomes de Deus em quatro
categorias:

29 Sayf al-Dīn Al-Āmidī, Abkar al-Afkar fi Usūl al-Dīn, 2nd. ed., (Cairo: Dar al-Turath, 2004), 3/254.
30 Ibid., 255.
31 Muslim Ibn al-Ḥajaj, Saḥiḥ Muslim (Beirut: Dar Iḥiya al-Turath,1955), 4/2064.

196
- Nomes que denotam a essência de Deus;
- Nomes que denotam uma negação;
- Nomes que denotam os Seus atributos eternos;
- Nomes que denotam as Suas ações32.
Na primeira categoria, temos o nome Allah, em inglês Deus, ou Elohim em
hebraico. A maioria dos asharitas afirma que o nome “Allah” é o nome próprio de
Deus porque indica o ser necessário e pode ser predicado com outros atributos,
como dizer que Allah é misericordioso e poderoso. Outros nomes, como o Mais
Sagrado/Santo (al-Qudus) ou, em hebraico, Qedosh, denotam uma negação. Nega
qualquer falha ou defeito de Deus. Da mesma forma, o Seu nome, a Paz (al-Salam)
ou em hebraico Shalom, tem um significado de negação ou pode ser interpretado
como aquele que dá a paz, ou seja, tem o significado de uma ação. Os dois nomes, o
Beneficente (al-Rahman) e o Misericordioso (al-Rahim) estão relacionados com o
atributo positivo da Vontade. Quando dizemos que Deus é misericordioso ou
benéfico, isso significa que Ele quer ter misericórdia dos Seus servos. Misericórdia e
outros nomes semelhantes que têm conotações físicas ou emocionais são
interpretados de uma forma que exclui os significados que não podem ser aplicados
a Deus. Por exemplo, a misericórdia em relação aos seres humanos pode ser
associada à suavidade do coração, que é um significado impossível de ser aplicado a
Deus. Por conseguinte, os asharitas afirmaram que os atributos que têm conotações
físicas/emocionais são interpretados através das implicações dos mesmos. A
misericórdia é a vontade de fazer o bem a alguém e a raiva é a vontade de punir ou
prejudicar alguém33.
Outros nomes como o Doador da Vida (al-Muḥīī), o Doador da Morte (al-
Mumit), o Ressuscitador (al-Baʿith) e o Sustentador (al-Raziq) são nomes que
denotam ações. Em outras palavras, cada um destes nomes não denota um atributo
real/positivo que Deus possui, mas são significados compreendidos a partir de
ações. Embora todos os nomes que denotam ações estejam relacionados a dois
atributos positivos, Vontade e Poder, eles não denotam esses atributos
imediatamente. Já mencionámos os sete atributos que estão vinculados aos
atributos positivos, que são todo-poderoso (Qadir), O dotado de vontade (Murid), O

32 AL-JUWAYNĪ, al-Irshād, 144.


33 Ibid., 144-9.

197
onisciente (‘Alim), Vivo (Haīī), O ouvinte (Samīʿ), O vidente (Baṣīr) e falante
(Mutakalim). Estes atributos são usados como nomes divinos e denotam
imediatamente os atributos positivos34.

6. Ética divina
Deus é a fonte última e única dos nossos valores éticos; Ele é o criador e
aquele que concede os valores. Por conseguinte, antes do advento da lei religiosa,
˗que é o informador divino dos nossos valores éticos˗o intelecto humano não tem
qualquer autoridade para julgar ou detectar os valores éticos nas nossas ações. O
valor ético que não pode ser detectado pelo intelecto é o verdadeiro valor ético que
provem apenas de Deus, embora os asharitas não neguem que o intelecto humano
possa afirmar que algumas coisas são boas e outras são más com base em outras
perspectivas, como o benefício e o dano, ou serem adequadas ou inadequadas à
nossa natureza humana35. Este é, em suma, o argumento ético dos asharitas no que
diz respeito às ações humanas. No entanto, essa concepção da ética humana é o
resultado de uma concepção mais ampla, que é a concepção de Deus e dos Seus
atributos. Deus, como o único ser necessário na existência, é a fonte de todos os seres
contingentes e dos seus valores éticos. O que quer que Ele faça é bom, e o mal não é
concebido nem n’Ele nem nas Suas ações.36 Os asharitas centram-se no conceito de
realeza (mulk). Deus é o único rei verdadeiro e absoluto (malik); Ele é o criador e o
dono de tudo o que existe; portanto, tudo o que Ele faz é bom e correto porque Ele
tem o direito de fazer o que quiser com o que possui.37 A onipotência e o livre
arbítrio são essenciais para construir a concepção da ética divina. As ações de Deus
são baseadas no Seu livre arbítrio, e Ele é o rei todo-poderoso; por isso, ninguém
pode se opor à Sua decisão. Al-Ashʿarī tem uma declaração que resume essa posição.
Ele diz: “O que quer que Ele faça, Ele tem o direito de fazer: Ele é o rei Todo-Poderoso
que não tem dono (mamlūk) e, acima d’Ele, não há permissivo, comandante,
impedidor e proibidor”38.

34 Ibid.,
35 Shihab al-Dīn al-Qarafī, Naf’is al-Usūl fi Sharḥ al-Mahsul. 1st ed., (Cairo: al-Baz publication, 1995),
1/351.
36 Al-Sharīf Al-Jurjānī, Sharḥ al-Mawāqif, (Beirut: Darul Kutub, 1998), 8/216.
37 AL-ĪJĪ, Al-Mawāqif, 332; AL-JURJĀNĪ, Sharḥ al-Mawāqif, 8/227.
38 Abu Al-Ḥassan Al-Ashʿarī, Al-Lumaʿ fi al-Rad ʿalā Ahal al-Zayg wa al-Bidaʿ 2. Ed. (Beirut: Darul

Kutub, 2012), 117.

198
Dizer que as ações de Deus são baseadas apenas na Sua livre vontade não
exclui a sabedoria e a justiça das Suas ações. Os asharitas afirmam que a justiça e a
sabedoria são intrínsecas às ações de Deus, ou seja, tudo o que Deus faz é justo e
sábio. Al-Juwaynī disse que quando atribuímos justiça a Deus, queremos dizer que
Ele é o justo (al-ʿadil), e o justo significa, “aquele que faz as coisas que tem o direito
de fazer”.39 O que “Deus tem o direito de fazer” não deve ser entendido como se
houvesse coisas que Deus não tem o direito de fazer, mas Ele tem o direito de fazer
o que quiser. Assim, a justiça divina está associada ao conceito de realeza, e este
conceito está relacionado com o nosso primeiro conceito, o ser necessário.
Em relação à sabedoria, os asharitas argumentam de forma inversa,
afirmando que a sabedoria segue as ações divinas, e não vice-versa; ou seja, o
atributo da sabedoria é concebido nas ações divinas depois de conceber que a ação
é divina. Em termos simples, as ações de Deus não perseguem uma sabedoria
específica externa, mas a sabedoria é encontrada em tudo o que Deus faz. A
sabedoria, de acordo com os asharitas, pode ser explicada tanto pelo conhecimento
quanto pelo poder divino. Quando é explicada pelo conhecimento divino, significa o
conhecimento teórico inclusivo das ordens das coisas em suas características
minuciosas e grandiosas e a determinação de como elas devem ser para alcançar as
funções exigidas delas. Por outro lado, quando é explicada pelo poder divino,
significa a execução dessas ordens, tornando-as perfeitas e excelentes. Portanto, a
sabedoria tem dois significados: o primeiro é um tipo de conhecimento, que é
perfeito e abrangente, e o segundo é uma caraterística do poder, que traz as coisas
à existência com excelência, ou seja, tão exatas quanto o conhecimento teológico
pretendia que elas fossem40.

Conclusão
Para os Ashʿarites, a única forma de definir Deus de forma concisa é dizer que
Ele é o Ser necessário. A necessidade, quando associada a um ser, não é apenas um
conceito lógico que exclui a não existência desse ser, mas contém muitos outros
conceitos que, em conjunto, nos dão o conceito de Deus. No entanto, desvendar este
conceito requer inúmeros argumentos teológicos. O primeiro argumento que os

39 AL-JUWAYNĪ, Al-Irshād, 170.


40 Muhammad bin Muhammad Al-Ghazālī, al-Iktiṣad fi al-Iʿtiqād, (Beirut: Darul Minhaj, 2016),225.

199
Ashʿarites defendem é o argumento cosmológico para a existência de Deus. O
universo é contingente e o que quer que tenha uma natureza contingente, deve
precisar de uma causa de natureza diferente para vir à existência. Depois de
afirmarem que o universo foi trazido à existência por um ser necessário, os asharitas
continuam a construir o conceito de Deus provando os Seus atributos necessários.
A primeira categoria de atributos são os atributos negativos. Estes atributos negam
algo e não acrescentam qualquer significado afirmativo a Deus. Os asharitas
mencionaram cinco atributos negativos principais que o ser necessário deve ter e
depois reduziram todos os outros atributos negativos a estes cinco. A segunda
categoria é a dos atributos positivos ou também pode ser chamada de atributos
qualitativos. A distinção destes atributos foi um argumento disputado entre os
Ashʿaritas e outros grupos teológicos. Os Ashʿarites afirmaram que esses atributos
são distintos da essência de Deus. A distinção que eles afirmaram não implica a
multiplicidade do ser necessário; é um significado aditivo que a mente pode
conceber além de conceber a essência divina. Quatro destes atributos podem ser
provados racionalmente e associados ao conceito de ser necessário. Estes atributos
são o poder, a vontade, o conhecimento e a vida. Os restantes três atributos, audição,
visão e fala, podem ser provados tanto por provas textuais como racionais, embora
os asharitas tardios contassem mais com as textuais. Estes sete atributos positivos
implicam outros sete atributos com os quais Deus deve ser predicado. Poder implica
que Deus é todo-poderoso, e conhecimento implica que Deus é onisciente. Assim,
vemos que os Ashʿarites afirmam a existência de Deus e dezanove atributos.
Os nomes divinos são todos os nomes com que chamamos Deus, pelo que
ocupam uma gama mais vasta do que os atributos divinos. Allah ou Deus é o nome
próprio divino, o resto dos nomes denotam a essência de Deus, um dos Seus
atributos ou uma das Suas ações. Finalmente, a abordagem dos asharitas à ética
divina completará o seu próprio conceito de Deus. Deus, como o único ser necessário
na existência, é a fonte de todos os valores éticos. Tudo o que Ele faz é bom, e o
conceito de mal não é sequer concebido nem n’Ele nem nas Suas ações. Os asharitas
enfatizaram o conceito de realeza (mulk) para dizer que Deus é o verdadeiro dono
de tudo e tem o direito de fazer

200
Referências
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WATT, W. Islamic Philosophy and Theology. 2nd ed. Edinburgh University Press:
1985.

WOLFSON, H.A. The philosophy of Kalam. Harvard University Press, London, 1970.

201
A TRANSPOSIÇÃO PLATÔNICA DA PSYCHAGŌGIA NO FEDRO

Pedro Mauricio Garcia Dotto1

Resumo: No Fedro de Platão, Sócrates define a arte da retórica como uma forma de
condução das almas (psychagōgia) por meio do discurso (261a7-9; cf. 271c10). A definição
provoca estranhamento em seu interlocutor, Fedro, e provavelmente causaria uma
sensação semelhante na audiência original do diálogo. O fato é que o significado tradicional
da psychagōgia era o de invocar ou esconjurar a alma dos mortos. É isso o que encontramos
em diversos documentos históricos antes de Platão, como em fragmentos de algumas
tragédias antigas e em materiais arqueológicos como a tábua de Dodona (c. 420-410 AEC.).
Assim, algumas perguntas se impõem: o que o significado tradicional da psychagōgia pode
nos esclarecer sobre o Fedro, e o que Platão pretende exprimir por meio deste conceito? Em
que medida a denotação original do termo é preservada, e de que maneiras Platão estica e
distorce o seu sentido? Quais são as pressuposições envolvidas nesta transposição de
sentido e como a devemos compreender? Argumentarei que Platão não elimina
inteiramente os aspectos mágico-religiosos do significado original da psychagōgia, senão
que os canaliza para desenvolver uma teoria, entrelaçada com elementos metafísicos,
epistemológicos e éticos, da verdadeira retórica, apresentada como condução da alma
através do discurso. Tal como a necromancia psicagógica estabelecia costumeiramente uma
ponte entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos, assim a retórica psicagógica de Platão
teria a tarefa de ligar o mundo sensível ao reino suprassensível e supracelestial das Formas.
Palavras-chave: Platão; filosofia; metafísica; religião arcaica; psychagōgia.

“Psychagōgia” e termos cognatos são formados pela composição do


substantivo “psychē” (“alma”) e do verbo “agein” (“conduzir”)2. “Psychagōgia”,
assim, é o substantivo abstrato que se refere à atividade de conduzir almas;
“psychagōgeō” é a forma verbal expressando a ação; “psychagōgos” é a forma
adjetiva aplicada àquele responsável pela atividade, e “psychagōgion” é o nome que
se dá ao local onde a atividade de condução das almas se realiza.
É possível identificar vestígios da prática da psychagōgia (embora não a
terminologia) já em Homero (Od. XX, XXI e XXIV), com a feiticeira Circe como guia
dos caminhos do submundo, Odisseu como proto-psychagōgos, e Hermes como a

1 Doutor em filosofia pela The New School for Social Research. Atualmente é pesquisador colaborador

pleno do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília (UnB). E-mail:


pmgdotto@archai.unb.br.
2 Neste artigo, utilizarei um estilo de transliteração simplificado do grego, quer dizer, ignorarei todos

os acentos, marcarei a aspiração inicial com “h” e indicarei as distinções entre sílabas longas e breves
com o mácron ( ¯ ).

202
divindade que faz a mediação entre o mundo dos vivos e a terra dos mortos.3 É certo
que nenhuma das formas compostas de psychagōg- aparece na Ilíada nem na
Odisseia. Por outro lado, tanto o episódio da Nekuia (Od. XI) como a atividade do deus
Hermes, de levar a alma dos pretendentes mortos ao Hades (Od. XXIV1-14), já
expressam certas características que, mais tarde, serão intimamente associadas ao
quadro conceitual da psychagōgia enquanto necromancia. Não obstante, é apenas
nos períodos arcaico tardio e começo do clássico (séculos V e VI AEC) que
encontramos provas mais substanciais dessa prática, a partir dos Persas de Ésquilo.
Assim sendo, a primeira ocorrência de um termo da família lexical de
“psychagōgia” se dá nos Persas, a mais antiga tragédia preservada em sua íntegra,
encenada em 472 AEC. O coro de anciãos persas, junto à rainha Atossa, invoca a alma
de Dário da sua tumba por meio de libações funerárias (leite, mel, água, óleo e vinho)
e lamentações veementes, a fim de informar o rei falecido sobre o destino do seu
jovem sucessor Xerxes e pedir-lhe orientação. Dário, quando invocado, anuncia:
“Vós carpis o pranto de pé junto ao sepulcro, e com altos gemidos condutores de
alma (psychagōgois orthiazontes goois) em prantos me invocais” (Pers. 686-688;
tradução de TORRANO, 2002). Aliás, Hermes deve ter desempenhado algum papel
no ritual psicagógico de invocação da alma de Dário, uma vez que é convocado pelo
coro, juntamente com Gaia e Hades, como as divindades sagradas e ctónicas (Pers.
628-629). Por fim, a psychagōgia está já nos Persas associada à persuasão (Pers. 697;
cf. JOHNSTON 2007, p. 108-109), como continuará a estar numa fase posterior como
resultado da derivação semântica do termo.
Além do mais, os fragmentos de uma tragédia de Ésquilo que tem como título
justamente “Psychagōgoi” (“Os invocadores de alma”), uma releitura do episódio da
katabasis de Odisseu ao Hades, atesta uma espécie de institucionalização da
atividade psicagógica, com a formação de técnicos especializados na invocação de
almas atrelados a locais necromânticos específicos. Os psychagōgoi referidos pelo
título instruem Odisseu, assumindo assim o papel de Circe na Odisseia. E Hermes é
expressivamente reconhecido como o antecessor (progonon) que supervisiona o
culto necromântico (Aeschl. TrGF 273). Curiosamente, nessas duas peças de Ésquilo,
há um apelo para que Hermes transporte as almas na direção oposta ao trajeto que

3O sistema de abreviações de autores utilizado é o do Liddell-Scott-Jones Ancient Greek-English


Lexicon (LSJ).

203
acontecia em Homero, isto é, da terra dos mortos para a dos vivos, em vez do que fez
com os pretendentes executados por Odisseu (Od. XXIV 1-14). Os psychagōgoi
estavam presumivelmente sediados em determinados locais ritualísticos, como o
nekuomantēion de Aqueronte mencionado por Heródoto (V. 92g). Mas
provavelmente também viajavam e realizavam ritos in loco para atender a
demandas específicas.
No final da tragédia Alceste de Eurípides, de 438, o rei Admeto não consegue
acreditar no que os seus olhos estão a ver, duvidando que esteja diante dela a sua
esposa, que havia se oferecido para ocupar o seu lugar no reino dos mortos.
Primeiro, o rei afirma que deve ser uma alegria ilusória (kertomos … tis chara)
enviada por um deus. Héracles nega e afirma que é realmente sua mulher que está
diante dele. Em seguida, Admeto pergunta se não seria talvez um espectro do
submundo (ti phasma nerterōn). Héracles, então, responde que “Não hospedaste
invocador de mortos (ou psychagōgon)” (Alc. 1123-128; tradução de TORRANO,
2018). Ora, se Héracles fosse um psychagōgos, teria trazido apenas o espectro
(phasma) da esposa do rei. No entanto, tendo em vista que Héracles enfrentou uma
Morte personificada para realizar este feito heroico, é a Alceste de carne e ossos que
se encontra perante Admeto.
Há ainda outros fragmentos de Sófocles e Eurípedes que dão conta do sentido
primevo da “psychagōgia”, mas não terei tempo de analisá-los (vide Soph. TrGF 327a;
Eur. TrGF 379a). Por outro lado, na comédia Aves de Aristófanes, de 414, nós
vislumbramos um Sócrates que invoca almas (psychagōgei Sōkratēs) e que através
do sacrifício de um camelo consegue, tal como Odisseu (hōsper … houdusseus),
invocar o seu amigo Querefonte (Av. 1553-1564).
Passando das evidências textuais para as arqueológicas, uma tábua de
Dodona do início do século IV AEC (c. 420-410) é um documento significativo que
testemunha a institucionalização e profissionalização da atividade psicagógica de
invocação das almas, especialmente se conjugada com os fragmentos da tragédia
perdida de Ésquilo acima mencionada. Verificamos na tábua um inquérito coletivo
dirigido ao oráculo de Zeus: “Devem ou não fazer uso do psychagōgos Dorios?” (ē mē
chrēuntai Dōriōi tō[i] psychagōgōi;)4.

4 Referência extraída de Christidis, Dakaris e Vokotopoulou (1999, p. 71, nota 5).

204
Em autores da geração de Platão, a partir do início do século IV AEC,
constatamos um uso expandido dos termos da família lexical da “psychagōgia” para
expressar uma ação que pode ser alocada dentro da categoria ampla da “persuasão”,
abrangendo a esfera semântica de “engano”, “encanto”, “atração”, “sedução”, como
também “distração” e “divertimento”, mas aplicada agora ao domínio dos viventes.
Assim, da sua denotação primária, como invocação das almas dos mortos num
contexto necromântico, o termo “psychagōgia” passa a referir-se à influência
exercida na alma dos vivos por meio de diferentes mecanismos, assentados
predominantemente na força de persuasão (seja ela verbal ou extraverbal). Tais
mecanismos incluem práticas capazes de moldar o comportamento e as crenças
humanas, tais como a tragédia, a música e a retórica. É isso o que divisamos em
autores como Isócrates, Licurgo, Ésquines, pseudo-Demóstenes e o diálogo
platônico Minos, comumente tido como espúrio.
Esta pesquisa indica que o sentido original de “psychagōgeō”, de invocar ou
esconjurar os espíritos dos mortos, foi metaforicamente expandido para abranger
instâncias de persuasão, sob diferentes ângulos e aspectos, das almas dos vivos. De
acordo com a teoria da metáfora de Aristóteles (Poet. 1457b1-32; Rh. 1407a,
1410b17-20, 1411b1-21), esse processo compreende uma metáfora por analogia
(kata to analogon). Isso posto, com essa derivação semântica por meio de uma
expansão metafórica, temos que “evocar” está para “o espírito dos mortos” como
“persuadir” está para a “alma dos vivos”. Em grego antigo, a ratio poderia ser
expressa do seguinte modo: psychagōgeō : hoi tethnēkotes :: peithō : hoi zōntes. Nos
Persas de Ésquilo, os verbos “evocar” e “persuadir”, do lado esquerdo da
comparação, já se encontravam em algum tipo de contato (Pers. 687, 697), dado que
a invocação do espírito de Dario é apresentada como uma potência persuasiva
irresistível que incitava a sua presença. Do mesmo modo, a persuasão da alma dos
vivos aproxima-se, analogamente, da evocação de espíritos.
As Leis de Platão (Leg. X 909a-b) fornecem uma evidência precisa e preciosa
do deslizamento semântico da “psychagōgia” ao conceber um jogo de palavras sutil
a partir de ambos os significados do termo, isto é, o original e o expandido;
denotação e conotação. O ateniense nos fala de um tipo específico de impostores
que, mediante a manipulação do medo e da superstição, “persuadem”
(psychagōgōsi) a alma de muitos dentre os vivos ao anunciar que são capazes de

205
“invocar” (psychagōgein) os mortos. Aqui, em paralelo ao uso tradicional do termo,
está uma conotação que associa o verbo ao engano e à ilusão.
Com isso, regressamos para o Fedro de Platão, em que há uma célebre
definição da arte retórica como psychagōgia por meio do logos (261a7-9; cf.
271c10). O prólogo do diálogo, em particular, está repleto de elementos que se
entretecem com o imaginário órfico, com Sócrates a atuar como um psychagōgos que
acolhe a alma de Fedro e o conduz para ser purificado no rio e reunido com os
deuses5. Na arte e na cultura gregas, o rio é frequentemente representado como uma
fronteira liminar entre os mundos dos vivos e o dos mortos. Tanto em Homero como
em Ésquilo, Odisseu realiza o seu ritual psicagógico à beira de um rio que serve de
portal para o Hades. O rio é também a fronteira que Caronte, o barqueiro dos mortos,
atravessa com a sua embarcação – uma figura que também se encontra nas tradições
suméria e egípcia6. A localização extraordinária do Fedro, situado fora dos muros da
cidade, e, em particular, a travessia do rio como linha de demarcação (242a1-2),
podem auxiliar-nos a pensar na conceitualização da retórica como psychagōgia7.
A escolha da personagem, de resto, poderia corroborar a pertinência do
sentido original da psychagōgia para a compreensão do Fedro. Com efeito, o Fedro
histórico figurava na lista dos acusados de profanar os mistérios de Elêusis pouco
antes das expedições sicilianas. Condenado em 415, fugiu para o exílio, teve as suas
propriedades confiscadas e vendidas, e só regressou a Atenas após a anistia geral de
403. A condenação de Fedro pela profanação dos mistérios eleusinos contribui para
a atmosfera religiosa do diálogo, tornando ainda mais explícita a ligação com o
enquadramento conceitual original da psychagōgia. Sob esse ponto de vista, Platão
estaria interessado no cruzamento de fronteiras que as práticas psicagógicas
convencionais poderiam, em princípio, efetuar. O que está em operação é o
conhecido procedimento platônico de revisão e reavaliação de termos tradicionais
que Auguste Diès chamou “la transposition platonicienne” (DIÈS, 1913/1972, p. 400
e seg.).

5 Como sugerido por Nicholson (1999, p. 135).


6 Ver, por exemplo, Burkert (2012, p. 196–97; p. 427, nota 21).
7 Como indicado por Asmis: “This river serves as a sacred border, like the body of water outside Hades

that separates the souls of the living from the souls of the dead. Later Socrates will be prevented by
his inner voice from crossing the river until he has performed a ritual expiation (242b-c); and finally
both men cross the river after offering a prayer to Pan and the other deities of the place (279b-c). As
though conjured by a ritual act, the souls of the two men have been transported to a realm from which
they are normally excluded and win their release through ritual purification” (ASMIS, 1986, p. 159).

206
Desse modo, para que o Fedro seja compreendido como um todo orgânico8, a
discussão sobre o logos na segunda metade do diálogo (257b e seg.), em meio à qual
a retórica é definida como psychagōgia, precisa harmonizar-se com a palinódia
socrática ao divino Eros (243e-257b) e o prelúdio do diálogo (227a-230e). Isso
pressupõe, a meu ver, a recuperação do significado convencional de psychagōgia e a
sua recalibração na definição de retórica oferecida por Sócrates (261a7-9; 271c10),
em que o sentido do termo é ajustado ao projeto filosófico platônico. Caso contrário,
a technē do logos da segunda parte do Fedro permanecerá dissociada do erōs pelas
Formas suprassensíveis, enaltecido por Sócrates como a melhor de todas as formas
de possessão divina (pasōn tōn enthousiaseōn, 249e1-4).
Por isso, discordo de Harvey Yunis (2009, p. 236; 2011, p. 183), para quem
Platão desconsidera as conotações mágico-religiosas do termo “psychagōgia” e se
concentra apenas no seu sentido literal, uma vez que isso desvincularia a arte dos
discursos e o método dialético debatidos por Sócrates e Fedro na segunda parte do
diálogo dos componentes metafísicos, epistemológicos e éticos da primeira parte. À
semelhança da psychagōgia tradicional que supostamente invocava as almas do
reino dos mortos e as transportava para o mundo dos vivos, a retórica psicagógica
de Sócrates está encarregada de guiar a alma de filósofos em potencial, tal como
Fedro, e de os conduzir do mundo humano para o cosmos divino – e, no dorso
exterior dos céus, para a contemplação supracelestial das Formas, tanto quanto seja
possível para um ser humano encarnado.

Considerações finais
A exploração histórico-filológica é um recurso fundamental para
compreender o que está envolvido no emprego do termo “psychagōgia” na definição
de retórica e do poder do discurso no Fedro (261a7-9; 271c10). Sobretudo, a
abordagem facilita a compreensão do diálogo como um todo harmonicamente
integrado. Os elementos mágico-religiosos originais do termo, segundo minha
interpretação, permanecem presentes no diálogo, ainda que essa evocação ocorra
de forma transfigurada, uma vez que o logos, para Platão, pode aproximar o mundo
sensível e ordinário do âmbito extraordinário e supersensível acima dos céus (ton

8 Metáfora que tomo de empréstimo da famosa analogia logos-zōon do próprio diálogo (Phdr. 264c).

207
… huperouranion topon, 247c3), onde as Formas eternamente existem. Desse modo,
os elementos mágico-religiosos da psychagōgia arcaica convertem-se em
componentes metafísicos, epistemológicos e éticos. Assim, tal como o erōs do
ensinamento de Diotima tem um estatuto intermediário (metaxu, Sym. 202b5,
202d11, 202e1, 204b1) que lhe permite fazer a ponte entre o imortal e o mortal, a
abundância e a pobreza, a sabedoria e a ignorância, do mesmo modo o poder
psicagógico do logos no Fedro pode servir para interligar o mundo múltiplo do devir
com a esfera das Formas eternas e imutáveis.

Referências
ASMIS, Elizabeth. Psychagogia’ in Plato’s Phaedrus. Illinois Classical Studies, Urbana-
Champaign, v. 11, n. 1/2, p. 153-1–72, 1986.

BURKERT, Walter. Greek Religion: Archaic and Classical. Malden, Mass: Blackwell,
2012.

CHRISTIDIS, Anastasios-Ph; DAKARIS, Sotiris; VOKOTOPOULOU, Ioulia. Magic in the


Oracular Tablets from Dodona. In: JORDAN, David R.; MONTGOMERY, Hugo;
THOMASSEN, Einar (Orgs.). The World of Ancient Magic: Papers from the First
International Samson Eitrem Seminar at the Norwegian Institute at Athens. Bergen:
Norwegian Institute at Athens, p. 67–72, 1999. p. 67-72.

DIÈS, Auguste. Autour de Platon: essai de critique et d’histoire. Paris: Les Belles
Lettres, 1972.

JOHNSTON, Sarah Iles. Restless Dead: Encounters between the Living and the Dead
in Ancient Greece. Berkeley: Univ. of California Press, 2007.

NICHOLSON, Graeme. Plato’s Phaedrus: The Philosophy of Love. West Lafayette, Ind:
Purdue University Press, 1999.

TORRANO, Jaa. Alceste, de Eurípides. CODEX Codex -– Revista de Estudos Clássicos,


Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 196-232, 2018. Disponível em:
<https://tinyurl.com/5n7kxuc6>. Acesso em: 2 out. 2023.

TORRANO, Jaa. Ésquilo, Persas. Letras Clássicas, São Paulo, n. 66, p. 197-228, 2002.
Disponível em: <https://tinyurl.com/272ccrb7>. Acesso em: 2 out. 2023.

SNELL, Bruno; KANNICHT, Richard; RADT, Stefan (Orgs.). Tragicorum Graecorum


Fragmenta (TrGF). Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1971-2004, 5 volumes.

YUNIS, Harvey (Ed.). Plato: Phaedrus. Cambridge: Cambridge University Press,


2011.

YUNIS, Harvey. Dialectic and the Purpose of Rhetoric in Plato’s Phaedrus. Proceedings
of the Boston Area Colloquium in Ancient Philosophy, v. 24, n. 1, p. 229-2–59, 2009.

208
NO TÚMULO DE LÁZARO: PERSPECTIVAS EXISTENCIAIS SOBRE A
MORTE E A RESSURREIÇÃO NA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD.

Presley Henrique Martins1

Resumo: em 1849, Søren Kierkegaard publica A Doença para Morte, livro de fundamental
importância no conjunto da sua obra, visto que nesse texto Kierkegaard desenvolve o seu
tratado sobre o desespero, conceito que o autor já pressupõe e utiliza desde o início da sua
atividade como escritor. Logo na introdução, Kierkegaard tece breves considerações sobre
a morte e o desespero, iniciando sua reflexão com a passagem bíblica A Morte de Lázaro,
localizada no evangelho de João. O autor indaga sobre o milagre da ressurreição e por que
Cristo ressuscita Lázaro, visto que ele morreria novamente. Contudo, a ressurreição não
será mais explorada no decorrer do livro, sendo que o autor passa a dar ênfase nas diversas
formas de desespero e na sua possibilidade de cura. No entanto, tanto o tema quanto a
indagação não são levantadas por Kierkegaard de forma arbitrária. O objetivo deste
trabalho é apresentar uma leitura existencial acerca da ressurreição e estabelecer sua
relação com o conceito de desespero. Desse modo, faremos uma leitura atenta do capítulo
11 de João, seguindo os passos de Cristo até a tumba de Lázaro, que, ao entrar na tumba,
chora e agradece a Deus, em simultâneo, traçaremos um paralelo entre esse movimento e
os conceitos de gratidão e fé. Isso feito, esperamos demonstrar que, sob um ponto de vista
filosófico-existencial, a ressurreição pode ser entendida como a saída do ser do seu
desespero, que recupera, em sua gratidão, seu sentido existencial a partir da fé que triunfa
sobre a morte.
Palavras-chave: Kierkegaard; Desespero; Morte; Ressurreição.

Introdução
Kierkegaard inicia uma de suas obras mais conhecidas, A Doença para a
Morte, com uma breve reflexão sobre a morte de Lázaro. A Morte de Lázaro está
localizada no Evangelho de João 11:1, e é o ponto de partida para o trabalho de
Kierkegaard sobre o desespero. Logo nas primeiras linhas da obra supracitada, o
autor indaga sobre a ressureição, uma vez que Lázaro eventualmente haveria de
morrer novamente. O fato de Kierkegaard iniciar seu tratado sobre o desespero com
a história de Lázaro não é arbitrário, nossa hipótese é que o autor dinamarquês, logo
na primeira página da introdução, além de nos apresentar a doença para morte, ao
mesmo tempo, também nos apresenta sua possibilidade de cura. E essa

1 Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e doutorando em


Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Possui experiência como pesquisador
convidado no Kierkegaard Research Center na University of Copenhagen, no período de outubro de
2022 a agosto de 2023. E-mail: presley.hmartins@gmail.com

209
possibilidade pode ser compreendida uma vez que analisamos mais de perto a
situação apresentada em relação às outras obras do autor, como Migalhas
Filosóficas, Prática no Cristianismo e As obras do Amor.
A leitura dessas obras também nos auxilia na compreensão da história de
Lázaro, já que a ressurreição só ganha um significado uma vez que ela acontece por
intermédio de Cristo. O que subjaz no modo como Kierkegaard decide nos
apresentar a doença para morte e sua cura, está no seu entendimento sobre a
existência e em sua compreensão da situação humana, que, não distante da tradição,
concebe o indivíduo enquanto constituído por uma síntese de polos heterogêneos,
de finitude e infinitude, sendo sua desestabilização, sua ruptura, o que caracteriza o
desespero. Desse modo, Cristo sendo amor, é a concretização dessa síntese. Ele é a
ressurreição que proporciona a realização e a recuperação da síntese que constitui
o indivíduo.
Desse modo, esse estudo segue a sugestão de David R. Law, apresentada em
seu livro Kierkegaard’s Kenotic Christology, de que a doutrina da kenosis é o ponto
secreto na autoria de Kierkegaard, sendo essencial, caso quisermos entender seu
pensamento teológico. Segundo o autor, no centro da mensagem de Kierkegaard
está uma afirmação ousada do auto-esvaziamento de Cristo que encontra os homens
como homem e, nesse sentido, em seu pensamento contém uma profunda
interpretação de Deus na forma de servo, bem como suas consequências existenciais
(LAW, 2013, p. 1).

1. A doença para morte


“Esta doença não é para morte”. Esta é a primeira frase que lemos na
introdução Da doença para a morte. A frase citada refere-se à resposta de Cristo ao
receber a mensagem de que Lázaro estava doente. Depois, ao tomar conhecimento
da doença de Lázaro, Cristo diz: “Esta doença não leva à morte2.” Logo a seguir, o
que surpreende o leitor e o que Kierkegaard enfatiza é que, embora Cristo tenha dito
que esta doença não é para morte, Lázaro morre. Se é dito que a doença de Lázaro
não é mortal, sabemos imediatamente que a doença mortal que Cristo menciona não

2 João 11:4.

210
se trata da doença física, mas sim da doença do espírito, sendo, nesse sentido, pior
do que a própria morte.
Kierkegaard não se concentra na doença de Lázaro, mas na doença até a
morte, da qual, diz Cristo, Lázaro não padece. Da mesma forma, a ressurreição, tanto
na passagem do Evangelho de João, quanto na introdução Da Doença para a Morte é
centrada em Cristo. Isto indica que tanto a doença para morte como sua cura, não
dizem respeito propriamente a Lázaro, mas referem-se àqueles que sofrem com sua
morte e que podem estar doentes até a morte, isto é, em desespero. É importante
notar na introdução que Kierkegaard enfatiza o fato de que Ele existe, ou seja, Cristo.
Neste sentido, segundo esta perspetiva, Kierkegaard opera um deslocamento, o
milagre não é o facto de que Lázaro ressuscitou (pois cedo ou tarde, ele morreria
novamente), mas é o fato de que foi Cristo quem ressuscitou Lázaro. Esse é o milagre.
Portanto, Lázaro ressuscitar dos mortos não caracteriza um milagre, pois, na
perspetiva de Kierkegaard, o cristianismo descobre uma doença mais mortal do que
todas outras doenças, isto é, o desespero, no entanto, ao mesmo tempo, já apresenta
sua cura: “Ele existe”, e se Ele existe, as doenças não são para a morte.
No evangelho de João, capítulo 11, do versículo 23 ao 25, Marta e Maria, irmãs
de Lázaro que sofrem com a perda, voltam-se para Cristo. Então, Cristo diz a Marta:
“O teu irmão ressuscitará”, ao que Marta responde: “Eu sei que ele ressuscitará na
ressurreição, no último dia”, mas Cristo diz: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aqueles
que acreditam em mim, mesmo que morram, viverão, e todos os que vivem e
acreditam em mim nunca morrerão. Você acredita nisso?”. Marta acredita que a
ressurreição é para o último dia, mas o que está implícito na resposta que Cristo lhe
dá, quando diz que ele é a ressurreição e a vida, é uma resposta que se opõe ao
“último dia”. Cristo está ali, na sua frente, ele é a ressurreição, o que significa que a
ressurreição não é para o último dia, mas para este momento.
Assim, na história da morte de Lázaro, o que é importante destacar é que
acreditar em Cristo significa dizer, com fé, que a morte não é o fim, nem para quem
morreu, nem para aqueles que ficaram em sofrimento em suas perdas. A
ressurreição de Lázaro simboliza o regresso da morte, mas também a esperança
daqueles que perderam alguém. Sua narrativa revela um momento de dor e luto, diz
respeito a todo ser humano que inevitavelmente enfrentará a perda de entes
queridos. A perda de alguém insubstituível é um sofrimento permanente, é uma

211
ferida incurável que o tempo costura na consciência, cujo retalho apenas deixa
transparente uma cicatriz que o recorda da sua dor.

2. Ressureição
A consciência desta separação pode aprisionar o indivíduo no passado, na
morte, tornando a morte permanente na vida, paralisando-a, o que significa viver
sem esperança, desestabilizando a síntese. Para compreendemos a efetivação da
síntese em Cristo, é necessário primeiro compreender o significado que Cristo tem
na obra de Kierkegaard. Uma primeira aproximação é encontrada em Migalhas
Filosóficas. Nesta obra, o pseudônimo Johannes Clímacus estabelece dois modelos
de pensamento para o conhecimento da verdade em relação a salvação eterna. O
primeiro sistema de pensamento é o paradigma grego, onde a verdade é obtida
através da reminiscência. Neste paradigma, Sócrates ajuda o aprendiz na sua busca
pela verdade, mas é sempre o aprendiz quem deve alcançar o conhecimento por si
mesmo porque ele tem a verdade em si mesmo, mas ela está esquecida. O problema
que Clímacus percebe neste modelo é que a temporalidade, o momento em que o
indivíduo chega à verdade, não tem significação decisiva, já que o aprendiz traz
consigo a verdade, o momento de conhecê-la é apenas ocasional.
No segundo modelo de pensamento, embora Clímacus não o nomeie, é o
paradigma do Cristianismo. Neste modelo, o indivíduo é colocado fora da verdade.
Ele perdeu a verdade e a condição para alcançar a verdade, e ele os perdeu por sua
própria culpa. Nesse sentido, o mestre não é o mestre, mas um salvador, porque se
o indivíduo não consegue alcançar a verdade através de seus próprios esforços, o
salvador lhe devolve a verdade e a condição. E, de acordo com Clímacus, o salvador
faz isso por amor, pois vai até o indivíduo, alterando-se para que a condição seja
estabelecida ao ir de encontro ao aprendiz. Assim, Clímacus enfatiza que esta
condição não é dada através de uma elevação, isto é, uma modificação no indivíduo,
mas através de um rebaixamento, que caracteriza a kênosis. Nesse sentido, o instante
ganha um significado decisivo, que é o momento em que o indivíduo sai da condição
de não-verdade para a verdade. O amor aqui ganha um significado muito específico:
porque o salvador ama quem vê, independentemente da condição, nesse sentido,

212
esse amor é incondicional e livre de preferências. Esse paradigma será fundamental
para compreendermos o amor ao próximo3.
Uma segunda aproximação importante para compreendermos Cristo no
pensamento de Kierkegaard é na obra em Prática no Cristianismo, Anticlimacus,
pseudônimo da obra, reflete sobre as palavras de Cristo em Mateus 11:18: “Vinde a
mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”. Do ponto
de vista humano, quem pronuncia estas palavras é o mais humilde. Aquele que olha
Cristo a partir da sua contemporaneidade, isto é, das condições em que o convite foi
feito, aquele que convida é quem parece precisar de mais ajuda. No entanto, aquele
que parece que mais precisa de ajuda é quem mais pode ajudar, pois seu amor é
ilimitado, já que ele não quer nada para si mesmo, mas apenas ajudar4.
O alívio para a dor não poderia ser encontrado em nada humano, mas naquele
que oferece ajuda, no mais necessitado e disposto a ajudar reside amor inesgotável;
um amor capaz de acolher a todos, aos mais necessitados.
Mas quem ama não é esquecido. Não, quem ama esquece de si
mesmo, esquece o seu sofrimento, para pensar no do outro,
esquece toda a sua miséria para pensar no do outro, esquece o que
ele mesmo perde para ter amorosamente em mente a perda do
outro, esquece sua vantagem para pensar com amor na verdade do
outro, tal pessoa não é esquecida (KIERKEGAARD, 1995, p. 281).

Quando Kierkegaard diz que esta doença não é mortal porque Ele existe, isso
significa que é porque o amor existe. E o que o amor faz? Dá sentido ao sofrimento e
traz esperança para os necessitados, mostrando que mesmo quem mais sofre
também pode oferecer ajuda, sendo essa ajuda aquela que vai de encontro ao
necessitado, auxiliando-o em seu sofrimento, fazendo do peso de sua cruz, uma dor
suportável.
Quando dizemos: “O amor salva da morte”, o redobramento do
pensamento é imediato: quem ama salva outra pessoa da morte, e
no mesmo sentido ou ainda em outro sentido salva-se da morte. Ele
faz isso de uma só vez; é um e o mesmo. Ele não salva outra pessoa
num momento e em outro salva a si mesmo, mas no momento em
que salva o outro ele se salva da morte. Mas o amor nunca pensa
neste último, em salvar-se, em obter uma confiança ousada; quem

3 Sobre o que foi dito nos dois últimos parágrafos pode ser visto nos Migalhas Filosóficas, Capítulo I
(Projeto de Pensamento) e Capítulo II (O Deus como Mestre e Salvador) (KIERKEGAARD, 1985, p. 10-
35).
4 Sobre esse tópico ver o capítulo O Convite na obra Prática no Cristianismo (KIERKEGAARD, 1991, p.

13 40).

213
ama pensa apenas em dar amorosamente uma confiança ousada e
salvar o outro da morte (KIERKEGAARD, 1995, p. 281).

Não apenas Lázaro, mas especialmente aqueles que sofreram com sua perda
tiveram uma ressurreição. Esse amor que salva e que tem Cristo como modelo é a
referência do amor ao próximo., o que constitui nossa tarefa enquanto indivíduos
em comunidade. O amor salva da morte, porque o amor dá um novo sentido à vida
que se constrói na relação.
Ao permanecer (e nesta permanência aquele que ama está em
aliança com o eterno), ele mantém o controle sobre o passado;
então ele transforma o que no passado é uma ruptura em um
relacionamento possível no futuro. Vista do ângulo do passado, a
ruptura torna-se cada vez mais óbvia a cada dia e a cada ano, mas
aquele que ama, que permanece, na verdade pertence, por sua
permanência, ao futuro, ao eterno, e do ângulo do futuro a ruptura
não é uma ruptura, mas uma possibilidade. Mas isso requer os
poderes da eternidade e, portanto, aquele que ama, que permanece,
deve permanecer no amor; caso contrário, o passado adquire
gradualmente o poder e então, pouco a pouco, a ruptura aparece.
Ah, são necessários os poderes da eternidade para transformar o
passado no futuro imediatamente no momento decisivo!
(KIERKEGAARD, 1995, p. 305).

O que foi fragmentado pelo tempo, o que é insubstituível e foi perdido, é


recuperado no amor, porque o amor reúne os fragmentos em uma relação com o
futuro, formando um todo coerente. Assim, o que foi no passado não se perde, pois
quando se torna uma relação com o futuro, ele permanece. No amor não há perda,
mas permanência. Antes da ressurreição, no túmulo de Lázaro, Cristo pede a Marta
que ela retire a pedra para ele entrar no túmulo. Ao entrar no túmulo, Cristo faz uma
oração e agradece, Cristo chora, e depois da gratidão no sofrimento, a vida ressurge.
Lázaro ressuscita. A vida recomeça na gratidão. Aqueles que acreditaram no amor,
receberam a vida e receberam Lázaro novamente. No amor foi possível encontrar o
que era capaz de resgatar a vida da morte, e foi também o que lhes devolveu a força,
a coragem e a esperança, possibilitando sustentá-los durante a tempestade, levando-
os para além da catástrofe. A ressurreição não é para “o último dia”, mas para hoje,
se for para hoje, isto faz da ressurreição um alegre presente e uma realidade de
esperança.

214
Referências
DAVID, R. Law. Kierkegaard’s Kenotic Christology. United Kingdom: Oxford,
University Press, 2013.

KIERKEGAARD, Søren. Works of love. Ed. e trad. Howard V. Hong e Edna H. Hong. New
Jersey: Princeton University Press, 1995.

KIERKEGAARD, Søren. The Sickness unto Death. Ed. e trad. com introduçao e notas
de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1980b.
(KW XIX).

KIERKEGAARD, Søren. Philosophical Fragments – Johannes Climacus. Ed. e trad. com


introduçao e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton
University Press, 1985. (KW VII).

KIERKEGAARD, Søren. Practice in Christianity. Ed. e trad. com introduçao e notas de


Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1991. (KW
XX).

KIERKEGAARD, Søren. Upbuilding Discourses in Various Spirits. Ed. e trad. com


introduçao e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton
University Press, 1993b. (KW XV).

215
A ABORDAGEM DA FILOSOFIA INTERCULTURAL E O CASO
ESPECÍFICO DA FILOSOFIA ANDINA

Renato Kirchner1

Resumo: A filosofia e cultura andina só é possível através de um verdadeiro diálogo


intercultural, que exclui qualquer tentativa hegemônica e unidirecional. Na perspectiva da
filosofia intercultural, nenhuma cultura é pura em suas formas cotidianas de experiência
humana. Assim, o maior perigo da pureza cultural é a abstração das pessoas e grupos que
formam e vivem uma determinada cultura. A filosofia pode prestar-se à companhia
supercultural, mas também ao diálogo intercultural. Grande parte dos filósofos ocidentais
(e anatópicos da periferia) ainda alimenta grande projeto supercultural do Ocidente. A
suposta condição grega da filosofia é apenas a expressão mais ingênua dessa posição
ideológica. Assim, o diálogo intercultural ocorre entre pessoas e grupos que vivem uma
determinada cultura e não entre tipos ideias abstratos. A filosofia andina não quer
participar desse diálogo intercultural como uma visão de mundo exótica ou manifestação
estética, mas como uma expressão profunda do ser humano, corporificado nesta cultura
particular. Diante disso, pode-se depreender que as fronteiras entre filosofia, pensamento,
mito e visão de mundo, entre racionalidade e sensibilidade, conceito e imagem, religião e
ciência terão que ser repensadas, ressignificados ou mesmo redefinidas. A abordagem
intercultural sublinha a importância do diálogo (ou polílogo) entre as culturas, ou seja, entre
a cultura andina e a ocidental, ou filosoficamente falando: entre os paradigmas filosóficos
andinos e ocidentais. Segundo Fichte, a “filosofia que se tem depende do tipo de homem que
se é”.
Palavras-chave: Interculturalidade; Filosofia andina; Diálogo ou polílogo; Josef Estermann.

Introdução
Numa perspectiva da filosofia intercultural, nenhuma cultura é pura em suas
formas cotidianas de experiência humana. Somente enquanto tipos ideais podemos
apresentar as diferentes culturas do modo como as exibimos num museu. Mas a
cultura viva consiste, sobretudo, em pessoas e grupos que transformam, evoluem,
interpretam e adaptam seu universo simbólico, de acordo com as necessidades e
objetivos existentes. A chamada cultura inca não é de forma alguma monolítica e
pura. Contém muitos elementos exógenos de culturas contemporâneas e anteriores.
Assim, o maior perigo da pureza cultural é a abstração das pessoas e grupos
que formam e vivem uma determinada cultura. A filosofia pode prestar-se à
companhia supercultural, mas também ao diálogo intercultural. Grande parte dos

1Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do quadro permanente
do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas e, atualmente, diretor da
Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas. E-mail: renatokirchner00@gmail.com.

216
filósofos ocidentais (e anatópicos da periferia) ainda alimenta grande projeto
supercultural do Ocidente. A suposta condição grega da filosofia é apenas a
expressão mais ingênua dessa posição ideológica.
Segundo Fornet-Betancourt, a abordagem da filosofia intercultural e da
filosofia andina são certamente possíveis:
A questão de saber se a filosofia intercultural tem sido significativa
para a filosofia na América Latina pode ser respondida com um
sonoro “sim”. Isto pode parecer exagerado, mas na nossa opinião
reflete a realidade. Sob a influência da filosofia intercultural, a
filosofia na América Latina está a descobrir a diversidade cultural
do seu contexto e a assumir o desafio de ter de começar de novo
para falar pluralmente da pluralidade espiritual do seu contexto
(FORNET-BETANCOURT, 2009, p. 151, tradução nossa).

Num artigo publicado em 2013, Josef Estermann aponta a “ecosofia andina”


como “um paradigma alternativo de coexistência cósmica e viver bem” diante das
diversas crises que a humanidade vive e carece de enfrentar na atualidade. Afinal,
“‘crise’ significa, como sabemos, ‘momento de decisão’, e a filosofia, se não quiser ser
um mero exercício mental ou acrobacias intelectuais, deve responder a esta inflação
ou acumulação de crises” (ESTERMANN, 2013, p. 1, tradução nossa). Mais adiante,
ele continua:
A coexistência tem prioridade ontológica – para usar a terminologia
ocidental – ou pachasófica, porque pacha é o “organismo” cósmico
que só vive e funciona graças às múltiplas relações e articulações
que o constituem. A “des-coexistência” que se vive atualmente em
muitas partes do planeta – entre os seres humanos e a natureza,
entre os seres humanos, entre culturas e civilizações – não é um
fato original, mas o resultado de uma “decadência” ou de desordens
na rede de relacionamentos (ESTERMANN, 2013, p. 5, tradução
nossa).

1. Traços da formação e do pensamento de Josef Estermann


Josef Estermann é um filósofo e teólogo suíço, conhecido por seus estudos no
âmbito da interculturalidade, filosofias e teologias indígenas e a cosmovisão andina.
Estermann nasceu em 1956 em Sursee, perto de Lucerna, na Suíça.
Completou seus estudos em teologia e filosofia na Suíça e na Holanda, concluindo o
doutorado em filosofia na Universidade de Utrect com uma tese sobre Leibniz.
De 1990 a 1998, Estermann serviu como missionário, trabalhando com a
Sociedad Misionera de Belén (SMB) em Cusco, Peru. Durante este período, seus

217
interesses mudaram para culturas autóctones e visões de mundo da região andina.
De 1998 a 2003, Estermann atuou como diretor do Instituto de Missionologia.
De 2004 a 2012, trabalhou em La Paz, Bolívia, como pesquisador do Instituto
Superior Ecumênico Andino de Teologia (ISEAT), uma importante universidade em
San Andreas. Neste período, Estermann dedicou suas investigações à filosofia e
teologia andinas, pesquisando e desenvolvendo metodologias interculturais para as
ciências religiosas e filosóficas. Desde 2013, Estermann atuou como diretor da
Romero Haus em Lucerna e sendo docente na Universidade de Lucerna, na Suíça.
Embora Estermann tivesse sido formado no pensamento ocidental, logo
interessou-se pela filosofia não europeia, especialmente pelas filosofias dos povos
latino-americanos. Nesta evolução foram decisivas as obras de Johann Baptist Metz
(1928-2019), Emmanuel Lévinas (1906-1995) e Enrique Dussel (1934-2023). A
partir da década de 1990, Estermann dedicou sua atenção principalmente aos
conhecimentos indígenas da América Latina.
Estermann é um defensor da filosofia andina, uma forma filosófica de
pensamento indígena (autóctone) das aldeias andinas. Suas investigações sobre a
filosofia andina aplicam métodos e abordagens filosóficas da filosofia intercultural,
bem como da linguística, da antropologia cultural e da história.
A seguir, alguns títulos das publicações de Estermann: Filosofia andina:
estudo intercultural da sabedoria autóctone (1998); Teologia andina: Antologia
(2005); Filosofia andina: Sabedoria indígena para um mundo novo (2006); Se o Sul
fosse o Norte: Chakanas interculturais entre os Andes e o Ocidente (2008);
Interculturalidade: viver a diversidade (2009).
Josef Estermann chegou ao Peru durante seus anos mais difíceis. Corria o ano
de 1990, em meio a um recrudescimento da violência política, e a Sociedade
Missionária de Belén tinha um projeto de paz numa jovem cidade de Cuzco: a
construção de uma comunidade cristã. Embora sempre tenha se interessado pela
Teologia da Libertação e pelos movimentos populares latino-americanos, foi após
sua chegada à América Latina que se tornou um estudioso e defensor de modelos de
pensamento que vão além do padrão de pensamento ocidental.
Muito ciente de que falar do tema de seu interesse por anos e sempre em
diálogo com a tradição europeia de sua própria origem, Estermann abre o prólogo
do livro Filosofia andina: sabedoria indígena para um novo mundo nestes termos:

218
O presente trabalho é fruto de dez anos de convivência com runa e
jaqi andinos e de uma reflexão cada vez mais profunda sobre a
riqueza filosófica escondida nas culturas andinas2. Estou bem
ciente de que a questão da “filosofia andina” é altamente
controversa, especialmente nos meios acadêmicos. Apesar das
muitas dificuldades que encontrei ao longo das minhas reflexões,
parece-me de extrema importância resgatar o pensamento dos
povos andinos como filosofia autêntica. Neste sentido, este
trabalho é um sinal da minha gratidão a todas as pessoas que
encarnam esta filosofia nas suas próprias vidas, os povos andinos
que tanto sofreram e continuam a sofrer mesmo no século XXI.
Espero que este tipo de filosofia (como há muitas no nosso planeta)
não encontre mais rejeição total por parte da filosofia acadêmica
ocidental, nem por parte dos filósofos e filósofas do próprio mundo
andino. A filosofia intercultural é uma necessidade global no início
do terceiro milênio da era cristã. Somente através de múltiplos
diálogos (isto é, “polílogos”) podemos evitar conflitos e guerras
entre etnias e culturas. O presente trabalho é uma pequena
contribuição para isso (ESTERMANN, 2006, p. 7, tradução nossa).

2. O caso específico da filosofia andina


Muito se tem escrito e falado sobre a identidade mestiça do ser humano
andino contemporâneo. A miscigenação, além de ser um traço físico-racial e
costumeiro, é a forma mais autêntica de viver o próprio ser andino. Porém, os
purismos (os ismos) não pertencem ao vocabulário cultural e filosófico do ser
humano andino. A filosofia e cultura andinas só é possível através de um verdadeiro
diálogo intercultural, que exclui qualquer tentativa hegemônica e unidirecional.
Raúl Fornet-Betancourt, num texto intitulado “Filosofia intercultural sob
uma perspectiva latino-americana”, escreve que a
(...) abordagem da filosofia latino-americana não revela quaisquer
diferenças teóricas importantes com a filosofia europeia. É o
resultado de um transplante artificial para um contexto imposto e
criado pela expansão da cultura europeia. É por isso que esta
filosofia latino-americana começou sem qualquer ligação com as
tradições de culturas nativas como as Nahuatl, Maya, Kuna, Guarani
ou as da região dos Andes. Na verdade, surgiu e desenvolveu-se em
desacordo com estas tradições indígenas de pensamento, porque,
de acordo com o ponto de vista eurocêntrico, elas ainda não tinham
dado o passo crucial necessário para o advento da reflexão
filosófica propriamente dita, a saber, a passagem do mitos ao logos,
de modo que essas tradições indígenas foram tradicionalmente

2 Jaqi em aymara e runa em quechua são termos muito importantes para os povos andinos e
significam genericamente “povo”. Chama-se jaqi ou runa aquela pessoa – homem ou mulher – que
conseguiu consolidar seu relacionamento, compreendeu a responsabilidade de assumir um
relacionamento e, portanto, compreendeu a vida em sua pujança e plenitude. Mas essa
complementaridade não é apenas algo de momento, nem mesmo com qualquer pessoa.

219
relegadas ao domínio da mitologia ou da cosmogonia (FORNET-
BETANCOURT, 2009, p. 152, tradução nossa).
O diálogo intercultural (ou polílogo), em sua essência, não é um debate entre
ideias e universos simbólicos, mas entre pessoas que vivem dentro dessas ideias e
universos. Dessa maneira, o diálogo intercultural ocorre entre pessoas e grupos que
vivem uma determinada cultura e não entre tipos ideias abstratos. A filosofia andina
não quer participar desse diálogo intercultural como uma visão de mundo exótica
ou manifestação estética, mas como uma expressão profunda do ser humano,
corporificado nesta cultura particular:
A abordagem intercultural destaca a importância do diálogo (ou
polílogo) entre culturas, neste caso: entre a cultura andina e a
ocidental, ou filosoficamente falando, entre os paradigmas
filosóficos andinos e ocidentais. Estou ciente de que a minha
perspectiva neste diálogo será (nolens volens) o ponto de vista
ocidental que já está expresso na linguagem que uso. Não me
encontro no meio do diálogo, mas deixo-me “questionar” na minha
própria culturalidade pela do “outro”, neste caso: o runa/jaqi
andino (ESTERMANN, 2006, p. 53-54, tradução nossa).

Nessa perspectiva, o filósofo suíço também reflete sobre as potencialidades


da filosofia andina:
Para a filosofia andina, o indivíduo como tal é um “nada” (uma “não-
entidade”), é algo totalmente perdido, se não estiver inserido numa
rede de relações múltiplas. Se uma pessoa já não pertence à
comunidade local (ayllu), porque foi expulsa ou porque se excluiu
devido às suas próprias ações, é como se já não existisse. Uma
pessoa isolada e des-relacionada é uma entidade (socialmente)
morta.
O verdadeiro arqué da filosofia andina é precisamente a
relacionalidade de tudo, a rede de conexões e vínculos que é a força
vital de tudo o que existe. Nada “existe” (num sentido muito vital)
sem esta condição transcendental. Na tradição ocidental, um
problema espinhoso sempre foi a questão de como sujeitos
autônomos e autossuficientes (sejam humanos ou divinos) podem
estabelecer relações com outros, embora ainda sejam soberanos,
livres e “absolutos” (ESTERMANN, 2006, p. 110-111, tradução
nossa).

3. A abordagem da filosofia intercultural


A filosofia e cultura andina só é possível através de um verdadeiro diálogo
intercultural, que exclui qualquer tentativa hegemônica e unidirecional. Na
perspectiva da filosofia intercultural, nenhuma cultura é pura em suas formas
cotidianas de experiência humana. Assim, o maior perigo da pureza cultural é a
abstração das pessoas e grupos que formam e vivem uma determinada cultura. A

220
filosofia pode prestar-se à companhia supercultural, mas também ao diálogo
intercultural. Grande parte dos filósofos ocidentais (e anatópicos da periferia) ainda
alimenta grande projeto supercultural do Ocidente.
A suposta condição grega da filosofia é apenas a expressão mais ingênua
dessa posição ideológica. Assim, o diálogo intercultural ocorre entre pessoas e
grupos que vivem uma determinada cultura e não entre tipos ideais abstratos. A
filosofia andina não quer participar desse diálogo intercultural como uma visão de
mundo exótica ou manifestação estética, mas como uma expressão profunda do ser
humano, corporificado nesta cultura particular.
Num livro publicado em La Paz, intitulado Interculturalidade: Vivendo a
diversidade, Josef Estermann procura fazer uma importante e necessária distinção
conceitual entre intraculturalidade e interculturalidade. O primeiro conceito, ele
define e descreve dessa maneira, bem como procura exemplificar:
A intraculturalidade não tem a ver com relações entre diferentes
culturas, mas com relações e características dentro (intra: do latim,
“para dentro”, “dentro de”) da mesma cultura. A grande maioria das
relações que estabelecemos nas nossas vidas são intraculturais,
exceto no caso de sermos imigrantes de outra cultura ou viajarmos
frequentemente para locais com contextos culturais diferentes.
As relações intraculturais normalmente não enfrentam os
problemas que surgem em contextos interculturais. O âmbito da
intraculturalidade não é coextensivo às fronteiras nacionais, nem a
um território geográfico, mas tem a ver com uma determinada
identidade cultural (por exemplo, o quechua) que pode ser
transnacional (da Colômbia ao norte da Argentina). As relações
intraculturais normalmente fazem uso de uma língua comum, de
códigos culturais e religiosos partilhados e de uma visão do mundo
que é partilhada, mais ou menos, por todos os membros da
respectiva comunidade cultural.
No entanto, também podem surgir problemas de comunicação
intracultural e de identidade. Isso geralmente ocorre quando nem
todos os membros compartilham os valores e costumes
considerados “essenciais” da cultura em questão e fazem uso do
direito à “dissidência cultural”. Uma pessoa de origem europeia,
por exemplo, pode geralmente partilhar os valores culturais da
tradição europeia (o Iluminismo, o pensamento democrático, a
emancipação das mulheres), mas pode “destoar” relativamente à
identidade religiosa e tornar-se monge budista. Ou, então, um
indígena aimara pode partilhar os ritos e a espiritualidade andinos,
mas empregar uma racionalidade altamente capitalista ao fazer
negócios (ESTERMANN, 2010, p. 32-33; tradução nossa).

O conceito de interculturalidade é definido e descrito por Estermann, logo a


seguir:

221
O conceito de “interculturalidade” (do latim inter, “entre”)
pressupõe multi e transculturalidade, mas rejeita categoricamente
a ideologia da super e supraculturalidade e oferece outro modelo
de “universalidade” que não é supracultural. A “interculturalidade”
(...) descreve relações simétricas e horizontais entre duas ou mais
culturas, de modo a enriquecerem-se mutuamente e a contribuírem
para uma maior realização humana (ESTERMANN, 2010, p. 33;
tradução e grifos nossos).

Por isso, somente em diálogo com essa realidade culturalmente diferente é


que podemos estabelecer uma noção de filosofia que afeta e modifica muitas
determinações preconcebidas por um “a priori” filosófico ocidental. Diante disso,
pode-se depreender que as fronteiras entre filosofia, pensamento, mito e visão de
mundo, entre racionalidade e sensibilidade, conceito e imagem, religião e ciência
terão que ser repensadas, ressignificados ou mesmo redefinidas do ponto de vista
conceitual e vivencial.

Abertura para novas reflexões...


Num texto publicado no ano de 2002, organizados por Giancarlo Collet e Josef
Estermann, intitulado Religiões e violência (Religionen und Gewalt), Estermann
apresenta 11 teses a partir das quais procura resumir pontos centrais em torno da
temática “Religiões e violência”. Das 11 teses apresentadas, transcrevemos as duas
últimas:
10. Na era da migração crescente e da globalização intensificada,
ser religioso significa sempre ser inter-religioso.
Tal como as identidades culturais, as identidades religiosas claras
estão começando a dissolver-se cada vez mais. Os fenômenos de
“multilinguismo religioso” e de “identidades religiosas sincréticas”
desenvolvem-se ao longo do tempo, desde identidades minoritárias
até modelos-padrão de autocompreensão religiosa (patchwork
religiosity). No entanto, o movimento oposto de fundamentalização
cria um novo potencial para a violência de motivação religiosa
devido à inconciliabilidade de posições. O modelo de convivência
inter-religiosa evita tanto as tentações fundamentalistas (exclusão)
como pós-modernas (inclusão).
11. Através do intercâmbio mútuo, devemos descobrir até que
ponto e onde as nossas respectivas tradições religiosas nos tornam
vulneráveis à violência ou nos inspiram a resistir à guerra e à
violência. Esta “hermenêutica da violência” inter-religiosa aguça a
nossa consciência das armadilhas e do potencial ocultos nas nossas
próprias tradições religiosas, mas também naquelas que são
estranhas a nós mesmos (ESTERMANN, 2002, p. 137-138;
tradução e grifos nossos).

222
Na perspectiva investigativa e reflexiva proposta por Josef Estermann em
suas publicações, não se deveria perder de vista e, por isso, deveríamos sempre de
novo revisitar as obras de autores tão caros ao filósofo suíço como é o caso de
Enrique Dussel (DUSSEL, 1993; 2000; 1982) e Emanuel Lévinas (LÉVINAS, 2012;
1982; 1988), por exemplo.
Contudo, numa esteira fenomenológica e hermenêutica que atravessou o
século XX e que se mantém igualmente relevante para entender os dilemas e
problemas humanos e cósmicos da atualidade, autores como Wilhelm Dilthey
(1833-1911), Edmund Husserl (1859-1938) e mesmo Martin Heidegger (1889-
1976) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002) são citados e apropriados por
Estermann em seus livros.
Ricardo Salas, no texto intitulado “Filosofia hermenêutica e experiência
humana: uma perspectiva intercultural de cosmovisões e mundo da vida na cultura
mapuche”, escreve:
De qualquer forma, acreditamos que ambos os filósofos nos
fornecem pistas valiosas para uma filosofia intercultural,
inspirada hermenêutica e fenomenologicamente. A
contribuição de Dilthey revela-se crucial para a compreensão
das diversas visões do mundo que operam numa cultura
particular, enquanto a fenomenologia de Husserl é
fundamental para a construção de um critério normativo para
explicar a relatividade de uma consciência da história, o que
sugere fundamentos teóricos mais fortes para servir de base
para as ciências do espírito de uma forma humana racional
que vai além do que a historicidade vitalista de Dilthey havia
tentado preliminarmente (SALAS, 2009, p. 165, tradução nossa).

A abordagem intercultural sublinha a importância do diálogo (ou polílogo)


entre as culturas, ou seja, entre a cultura andina e a ocidental, ou filosoficamente
falando: entre os paradigmas filosóficos andinos e ocidentais. Afinal, segundo o
filósofo Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), a “filosofia que se tem depende do tipo
de homem que se é”. Nessa perspectiva, no intuito de continuarmos sempre abertos
para novas reflexões em torno da temática da filosofia intercultural e da filosofia
andina, as palavras, a seguir, de Josef Estermann quiçá nos provoquem a novas
reflexões:
O problema filosófico do “outro” é também o problema da
alteridade filosófica, isto é, da “outra filosofia”. Em outras palavras:
Ao afirmar que a filosofia é uma criação (exclusiva) do Ocidente que
só pode expandir-se para outras culturas conservando o seu
ocidentalismo inerente, a “outra filosofia” (um povo que tem uma
filosofia distinta) não tem razão de ser. O subjacente tem que ser

223
“essencialmente grego”3. Quando substituímos o atributo “grego”
por atributos menos grosseiros ou monoculturais, como
“raciocínio”, “escrito”, “produzido por indivíduos”, “sistemático”,
“bi-valorizados” ou “racionais”, terminamos com o mesmo
resultado: os “outros” só possuiriam filosofia na medida em que
atendessem a todos os requisitos dos filósofos e da filosofia
ocidentais (os “alguns” ou o “egoísmo” filosófico), defindo-se como
essenciais para merecer tal título (ESTERMANN, 2009, p. 132,
tradução nossa).

Referências
DUSSEL, Enrique. 1492 O encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade.
Petrópolis: Vozes, 1993.
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão.
Petrópolis: Vozes, 2000.
DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-americana: Uma filosofia da
religião antifetichista. São Paulo: Loyola; Piracicaba: Unimep, 1982.
ESTERMANN, Josef. Filosofía andina: Sabiduría indígena para un mundo nuevo. 2.
ed. La Paz: ISEAT, 2006.
ESTERMANN, Josef. Interculturalidad: Vivir la diversidad. La Paz: ISEAT, 2010.
ESTERMANN, Josef. Ecosofía andina: Un paradigma alternativo de convivencia
cósmica y de vivir bien. Revista FAIA, Vol. 2, Num. 9, p. 2-21, 2013.
ESTERMANN, Josef. “Religionen und Gewalt” – Zusammenfassende Thesen. In:
COLLET, Giancarlo; ESTERMANN, Josef (Ed.). Religionen und Gewalt. Münster,
Hamburg, London: LIT, 2002, p. 135-138.
ESTERMANN, Josef. Anatopism as cultural alienation: Dominant and dominated
cultures in the Andean environment. In: FORNET-BETANCOURT Raúl (Ed.). Cultures
and Power: Interaction and asymmetry between cultures in the context of
globalization. Frankfurt: IKO, 2003, 137-163.
ESTERMANN Josef. Andean philosophy as a questioning alterity: An intercultural
criticism of western andro- and ethnocentrism. In: NOTE, Nicole; FORNET-
BETANCOUT, Raúl; ESTERMANN, Josef; AERTS, Diederik (Ed.). Worldviews and
Cultures: philosophical reflections from an intercultural perspective. Berlin:
Springer, 2009, p. 129-147.
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Intercultural Philosophy from a Latin American
Perspective. In: NOTE, Nicole; FORNET-BETANCOUT, Raúl; ESTERMANN, Josef;

3Estermann comenta em nota de rodapé: “A premissa principal é uma petitio principii no sentido de
que estipula a origem da filosofia ocidental como a definição essencial de todo tipo de filosofia.
Embora Heidegger tenha expressado esta posição de uma forma muito clara e excludente, a grande
maioria dos filósofos modernos ocidentais, mesmo da era contemporânea, em outras partes do
mundo, mantêm a posição de ocidentalização fundamental da ‘filosofia’” (cf. também ESTERMANN,
2003, 137-163).

224
AERTS, Diederik (Ed.). Worldviews and cultures: Philosophical Reflections from an
Intercultural Perspective. Berlin: Springer, 2009, p. 149-161.
LÉVINAS, Emanuel. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.
LÉVINAS, Emanuel. Humanismo do outro homem. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
LÉVINAS, Emanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1982.
SALAS, Ricardo. Hermeneutic philosophy and human experience: An intercultural
perspective of worldviews and life world in the Mapuche culture. In: NOTE, Nicole;
FORNET-BETANCOUT, Raúl; ESTERMANN, Josef; AERTS, Diederik (Ed.). Worldviews
and Cultures: Philosophical reflections from an intercultural perspective. Berlin:
Springer, 2009, p. 162-179.

225
FALSAFA: UMA VISÃO GERAL DA FILOSOFIA MUÇULMANA

Tarek Chaher Kalaoun1

Resumo: A falsafa, principal característica é ser medieval, filosofia produzida em língua


árabe, é marcada pela releitura de textos gregos. O pensamento grego foi inserido no mundo
árabe no apogeu do islamismo. A transcrição do termo grego filosofia para a língua árabe
resultou no termo falsafa. Na história intelectual do Islã a falsafa surge das inquietações das
questões teológicas, a religião fez com que a busca do conhecimento fosse obrigatória para
todos os muçulmanos. Com o advento deste “chamado”, os falasifa fizeram as traduções do
grego para o árabe. As primeiras traduções foram feitas na casa de sabedoria em Bagdá,
biblioteca e centro de traduções, estabelecendo vínculo entre a tradição filosófica grega e a
filosofia teológica muçulmana. Assim a falsafa se encarrega de fazer com que os princípios
filosóficos se deparassem com os dogmas do islamismo. O objetivo deste trabalho é definir
a diferença entre a filosofia e a falsafa e o uso inicial da falsafa pela religião islâmica.
Metodologicamente, faz-se uma consulta de referências em árabe e em português. Pretende-
se mostrar, conclusivamente, então, que o uso da falsafa pelos árabes abrangeu tanto a
teologia islâmica quanto as outras áreas do conhecimento. Podemos concluir ainda que a
falsafa é a transmutação da filosofia criada pelos gregos e aplicada pelos árabes em sua nova
religião. Essa visão cria uma hermenêutica própria dentro do islamismo e o seu uso abrange
todas as áreas do conhecimento.
Palavras-chave: Falsafa; Islamismo; Idade Média.

Introdução
No período medieval em terras dominadas pelo Islã, entre os séculos VIII e
XIII d. C./II e VI H2, os pensadores foram denominados, em árabe, pelo termo
Falásifa, isto é, Filósofos.
Antes, vamos nos localizar geograficamente onde nasceu o islamismo. Esta
religião nasce quando um homem pertencente a tribo Coraich, aos quarenta anos de
idade, começa ser revelado a ele os versículos do Alcorão3, em árabe, como diz: “Em

1 Doutorando, Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.


Especialista em ciências Exatas com ênfase em formação de professor e graduado em Licenciatura
plena em Física pela Universidade Católica de Goiás. Bolsista FAPEG (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Goiás.). E-mail: proftarekalaoun@gmail.com.
2 Maomé ao compartilhar da sua experiência religiosa percebe a intolerância dos coraixitas de Meca

e se transforma em perseguição, cárceres e tortura. Recebendo abrigo dos habitantes de Yatrib, mais
tarde Medina, para a fuga até essa cidade. Assim, Maomé deixa a sua terra natal Meca e foge para
Yatrib em 16 de julho de 622, data do começo da Hegirah (H) (Em árabe “Emigração” (BISSIO, 2013,
p. 104 e 105).
3 A palavra Alcorão literalmente significa “leitura por excelência” ou “recitação”. O Alcorão é dirigido,

sem distinção de raça, cor, região ou tempo, e guia a humanidade em todas as sendas da vida:
espirituais, materiais, individuais e coletivas. (Alcorão sagrado, 2020, p. 7 e 11 (Introdução)).

226
elucidativa língua árabe.”, (26, 195)4, entre os anos 610 a 612 d. C., por meio do anjo
Gabriel. Os muçulmanos acreditam, segundo Oliveira (2001), que Maomé era
iletrado5 e não teria a capacidade de escrever uma obra de tanta riqueza linguística
e teológica. Mohammad6 nasce na Arábia Saudita, península arábica, em 570 d. C.
numa região situada na junção da Ásia e da África, a meio caminho entre o Mar
Mediterrâneo e o Oceano Indico. De acordo com Crescenzo (2006), nenhum livro
teve tanto sucesso quanto o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, não pela sua
simplicidade do texto, mas sim por ser ouvido.

1. Filosofia árabe e filosofia muçulmana


Na percepção do Campanini (2010), a filosofia islâmica não indica que é
filosofia árabe. Entende-se que a filosofia islâmica é pensada e elaborada por
homens e mulheres que professam a religião islâmica e a filosofia árabe é
confeccionada na língua árabe qualquer que seja a sua religião, Judeus, Cristãos ou
Muçulmanos ou qualquer que seja a sua nacionalidade. Em vista da Bissio (2013), o
árabe se consolidou como língua das comunicações, assim, passa a ser a língua de
transformação no meio de expressão mesmo para aqueles que não aceitavam o Islã.
A filosofia islâmica tem raiz árabe, que é o Alcorão. O Alcorão não é uma obra
científica e nem filosófica, porém, é uma mensagem para a humanidade: “São
aqueles que Deus iluminou. Toma, pois, seu exemplo. Dize-lhes: Não vos exijo
recompensa alguma, por isto. Ele (o Alcorão) não é mais do que uma mensagem para
a humanidade” (6,90)
Não queremos dizer que não tem partes científicas, assim, no Alcorão
encontram-se dois termos: “ciência” e “sapiência” filosófica, em árabe,
respectivamente, “ilm” e “hikma”. A primeira é utilizada no livro sagrado no sentido
de “conhecer”, “saber” e a segunda, o termo “hikma”, na visão do Attie Filho (2002)
é uma noção de sabedoria que foi usada na tradução do grego (sophia), que é
aplicado no caso de vocabulário filosófico para designar a extensão do conceito

4 A alcorão se divide em capítulos e versículos. O primeiro número representa o surah (Capítulo) e o


segundo representa o Ayah (Versículo)
5 Maomé prezava seu próprio analfabetismo, já que era a prova cabal da autenticidade de seu

testemunho: jamais poderia ter lido e /ou recebido a influência de nenhum texto sagrado, nem
mesmo ter escrito o Alcorão (BATTLES, 2003, p. 66).
6 Aportuguesado por Maomé. (Islamismo: História e Doutrina. p. 7) Irei referenciar o Profeta como

Maomé durante o Texto.

227
“sabedoria”. Em alguns casos o termo “hikma” é usado com o sentido de “ilm”
(Ciência) e “ma’rifa” (conhecimento) que para Campanini (2010), esse termo
designa o saber profano. E então, a falsafa é a pura transcrição da língua grega.
O árabe, na leitura de Campanini (2010), era como hoje em dia é o inglês, a língua
internacional da comunicação cultural. Mas não queremos dizer que não escreveram
em outras línguas, por exemplo, Avicena7 e Al-Ghazali escreveram em persa.
É perceptível notar, na visão de Attie Filho (2002), que os primeiros
pensadores do islamismo se defrontaram com o desafio diante de um texto sagrado.
Dependendo com a interpretação que se dê a uma determinada passagem do
Alcorão, a conclusão pode ser diversa de outra interpretação que parece que nem
era do mesmo texto. Isso aconteceu em todas as comunidades que possuíam um
livro sagrado. Assim, se cria a necessidade exegética (Tafsir, em árabe) e com isso a
filosofia grega entra no mundo muçulmano, portanto, a necessidade de tradução do
grego para o árabe era inevitável. Então, a necessidade de se compreender e se
interpretar racionalmente, na perspectiva de Gilson (2001). o Islã gera, com esse
contato grego, uma especulação filosófica.

2. Traduções
O movimento das traduções na ótica de Pereira (2007), das obras gregas para
o árabe havia um processo de interações entre Judeus, Cristãos, Muçulmanos e ainda
tinha seguidores do Zoroastrismo, os recém-convertidos ao islã, pagãos e heréticos.
Como o pensamento científico grego já estava em circulação em muitos países, os
árabes receberam o legado grego de várias direções.
Na perspectiva do Attie Filho (2002), as primeiras traduções foram do grego
e siríaco e os primeiros temas não foram filosóficos, mas sim, temas que tinham
aplicação prática. À época das traduções, podia-se verificar que havia dois métodos
de traduções. O primeiro consistia em identificar termo a termo o texto grego e

7 Abu Ali Al-Hussain Ibn Abd Allah bn Al-Hassan Ibn Ali Ibn Sina, é mais conhecido por Avicena no
ocidente medieval, nasceu na Pérsia no século X. Avicena leu 40 vezes, a Metafísica de Aristóteles,
mas não teve nenhuma compreensão da obra, perdendo assim o interesse. Certa vez, num mercado
da cidade um vendedor de livros lhe ofereceu uma obra, inicialmente Avicena não se interessou, mas
por insistência do vendedor acabou comprando-o. Era, simplesmente, o livro do Al-Farabi “sobre o
objetivo da metafísica de Aristóteles”. Podemos dizer que, a dificuldade enfrentada por Avicena está
ligada a tradução feita do grego para o árabe, que acarreta no uso de palavras desconhecidas nesta
língua, isso é de uma lado, do outro lado, ao conteúdo da obra, que ISKANDAR (1999) menciona, como
situar as ideias de Aristóteles acerca do primeiro motor face à concepção Alcorânica de Deus.

228
procurar correspondentes na língua árabe. Esse método não foi considerado bom
devido à inexistência de equivalência de termos. E o segundo método, a sentença em
grego era lida até ser compreendida perfeitamente para, depois, o tradutor procurar
o mesmo sentido na língua árabe. Continuando com a percepção de Attie Filho
(2002), o marco decisivo do período de traduções ocorreu em 830 d. C. quando o
Califa Abássida Al-Ma’mun fundou em Bagdá a “Casa de Sabedoria” que era centro
de traduções, biblioteca, museu e instituto de pesquisa. O nome mais importante
durante o reinado de Al-ma’mun foi o do cristão nestoriano Hunayn Ibn Ishaq (809-
873 d. C.) que traduziu para a língua árabe grande parte da filosofia e da ciência dos
gregos. Também o seu filho Ishaq Ibn Hunayn e seu neto Hubaysh, nestorianos, na
óptica de Campanini (2010), traduziram na íntegra o corpus aristotélico, obras
platônicas e peripatética, tratados médicos de Galeno. Amigo do Al-Farabi8, Abu
Bishr Matta Ibn Yunus (morto em 940) continuou com as traduções e foi um grande
expositor da lógica aristotélica. Também temos um jacobita Yahya Ibn Adi que fez a
tradução das obras filosóficas gregas. Qusta Ibn Luqa (morto em 910 d. C.) traduziu
Diofanto e Heron para o árabe. Mas não só apenas os cristãos que desenvolveram
trabalhos intelectuais no mundo islâmico, os judeus, desempenharam livremente
suas atividades sem serem perseguidos e contribuíram diretamente com a filosofia
islâmica. De Saadi Gaon (882-942 d.C.) no Egito a Salomon Ibn Gabirol (1021-1050
d. C.) em Andalus escreviam em hebraico e árabe. O grande Maimônides (1138-1204
d. C.) compôs sua obra Dalala Al-Ha’irin (O guia dos perplexos), em árabe. Assim,
podemos dizer que Maimônides, Abu Bishr Matta eram filósofos árabes, mas
naturalmente não muçulmanos. O rigoroso método desenvolvido por Hunayn
resultou em traduções em que os exemplares gregos eram revistos incansavelmente
até que se chegasse às melhores formas de se adaptar termos que a língua árabe,
algumas vezes, não tinha para se expressar. Aqui podemos destacar na leitura de
Pereira (2015), comprometido com a fé islâmica, Al-Farabi construiu o seu sistema
querendo demonstrar, por meio da razão, as autenicidades reveladas no Alcorão.
Voltando com a exposição de Attie Filho (2002), Al-Kindi9 foi acusado por ter
pouca contribuição original, porém teve mérito reconhecido por introduzir

8 Abu Nasr Muhannad Al-Farabi, mais conhecido como Al-Farabi, Faylasuf (Filósofo) Nasceu em
turquistão em 874 d. C. e o seu “nome” Al-Farabi a homenagem a cidade FARAB onde nasceu.
9 Al-Kindi nasceu na cidade de Kufa, próximo a Bagdá em 796 d. C. e morre em 873 d. C.

229
Aristóteles no ambiente intelectual do islã, pregando exegese filosófica do Alcorão.
Al-kindi discordou dos tradutores cristãos em dois principais aspectos: sua religião
e seu desconhecimento da língua siríaca e da grega. Mesmo não conhecendo outras
línguas, Al-Kindi esteve envolvido com as traduções procurando retocá-las, na
medida em que seguiu corrigindo e adaptando o vocabulário árabe às obras
traduzidas.
Voltando um pouco, o movimento corpus aristotélico, em vista de Attie Filho
(2002), a partir das traduções de seus textos para o árabe, teve três distintos
momentos: Primeiro momento, sua filosofia foi recepcionada, no segundo,
iniciaram-se algumas reações contra suas teses, sobretudo por parte dos teólogos
islâmicos e no último momento, houve uma contrarreação em defesa da filosofia
aristotélica, com objetivo de reforma da Falsafa.
Partindo para o âmbito científico, a tradução dos vocábulos, segundo Bissio
(2013), era inconsistente e existia muitos termos latinos imprecisos ou mesmo
errados. Essa pobreza linguística na visão de Lyons (2011), invadiria as traduções
da filosofia islâmica. Com uma análise linguística moderna, as primeiras traduções
usam mais de setenta transliterações diretas do árabe a fim de apresentar conceitos
básicos de Geometria (Diâmetro, tangente e razão10), que no Latim medieval não
tinha uma terminologia pronta. Na sustentação de Lyons (2011), muitos tendem a
ver o Islã como inimigo do progresso científico, no entanto, o islamismo, em seu
início, estimulou e promoveu a investigação intelectual em diversas frentes do
conhecimento. Os cientistas e filósofos árabes encontraram prontamente um
suporte divino para a ciência na palavra revelada de Deus. Vários versículos do
Alcorão referem-se à ordem inerente ao universo de Deus e à capacidade do homem
de reconhecer e explorar essa ordem para suas necessidades próprias, tal como,
mensurar o tempo: “Ele foi quem fez do sol uma luz e da lua uma claridade, e deu-
lhe fases para que saibais o número dos anos e as estações.... Ele detalha as
revelações aos sensatos” (10,06).

10 No livro filosofia: Antiguidade e idade média, refere-se que o mundo islâmico era depositário da
ciência e do saber produzido na antiguidade, e que posteriormente, o ocidente só conheceu a filosofia
grega através dos árabes. (REALE, 2017, p. 555). Ora, a palavra depositário deixou entender que os
árabes apenas guardaram o conhecimento grego e repassou traduzido para o ocidente. No presente
artigo mostramos a importância da cultura islâmica e como foram aprimorados alguns conceitos.

230
Convém lembrar que em (Faria apud Kalaoun, 2016), depois de Aristóteles, o
Ptolomeu, o último grande astrônomo grego na era cristã penetrando na Idade
Média. A ciência astronômica, já decadente no início da era cristã, não suporta mais
do que dois séculos neste período e, após Ptolomeu, praticamente se extingue. A
predominância do pensamento religioso cristão vem praticamente banir o
desenvolvimento das ciências e até mesmo gerar seu esquecimento. Até o século VII,
são esporádicas as pessoas que se lembram ou que leem algo sobre a filosofia grega.
Nesta época os árabes estavam em expansão e foi neste momento que tiveram o
contato com a filosofia e ciência grega, assimilando-a na tradução de textos do grego
para o árabe, e herdaram um renascimento cultural. Como Pereira (2002) explana:
A filosofia árabe (falsafa) buscou o meio para fazer Deus chegar ao
homem, assim como o homem. Mediante a contemplação, já
encontrara o meio de comunicar-se com Deus. O dilema obrigou os
filósofos a procurar a correspondência entre cosmologia e teologia,
a definir e conceitualizar o acordo entre Islão e falsafa. Entretanto,
a tentativa de conciliar as doutrinas religiosas com a filosofia
aristotélica apresentava problemas: o Liceu já afirmara ser o
mundo eterno, necessário e sem criador, ao passo que, para a
teologia corânica, o mundo fenomênico é criação divina, portanto
teve um princípio, não sendo assim nem eterno nem necessário
(PEREIRA, 2002, p. 56).

Considerações finais
Como conclusão e jamais o fim, a transmissão e as traduções do grego para o
árabe tiveram sua importância para o mundo islâmico e posteriormente para o
ocidente. Os árabes nunca foram “depositários” da filosofia grega, mas sim como um
alicerce exegética do livro sagrado muçulmano e interpretações minuciosas da
filosofia natural, expandindo a filosofia grega que serviu de fundamentação para a
ciência moderna. Então, a falsafa, na visão da Pereira (2007), emprestou da razão
grega as noções necessárias para moldar um pensamento próprio que explicasse a
civilização islâmica, que se tornara uma entidade cultural e política ancorada na
aceitação incondicional da autoridade do Alcorão e da tradição (Hadith). Ao longo
de 150 anos, os árabes traduziram todos os livros gregos segundo Lyons (2011),
disponíveis de ciência e filosofia e substituiu o grego pelo árabe como língua
universal da pesquisa científica. Assim, o ponto inicial para o estudo da filosofia e o
processo das traduções foi encorajado pelo Alcorão. Então, assim dizendo, os textos
traduzidos pelos falasifa foram estudados, comentados e sumarizados.

231
Referências
ALCORÃO. Português. Os significados dos versículos do Alcorão Sagrado: com
comentários. Tradução de Samir El Hayek. São Paulo: Fambras, 2020.

ATTIE FOLHO, Miguel. Falsafa: A filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Atenas,
2002.

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BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: A civilização árabe-islâmica clássica através


da obra de Ibn Khaldun e Ibn Batuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

CAMPANINI, Massimo. Introdução à filosofia islâmica. São Paulo: Estação Liberdade,


2010.

CRESCENZO, Luciano de. História da filosofia medieval. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

DARIO, Antiseri; REALE Giovanni. Filosofia: Antiguidade e idade média, vol. 1. São
Paulo: Paulus, 2017.

GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Avicena: a origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs,


1999.

JOMIER, Jacques. Islamismo: História e doutrina. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992.

KALAOUN, Tarek Chaher. Os pilares da fé: o pensamento racional científico como


sustentação simbólica do islamismo. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)
– Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO. Goiânia. p. 64.

LYONS, Jonathan. A casa da sabedoria: Como a valorização do conhecimento pelos


árabes transformou a civilização ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zaharr, 2011.

OLIVEIRA, Paulo Eduardo. Islã e os muçulmanos. Niterói – RJ: Heresias, 2001.

PEREIRA, Rosalie Helena de Souza. Avicena: A viagem da alma. São Paulo:


Perspectiva, 2002.

PEREIRA, Rosalie Helena de Souza (org). Busca do conhecimento: Ensaios de filosofia


medieval no islã. São Paulo: Paulus, 2007.

PEREIRA, Rosalie Helena de Souza. A teoria das desinteligências na filosofia árabe.


Hypnos, São Paulo, ano 2, n. 3, p. 74-80, 2015.

VERNET, Juan. As origens do Islã. São Paulo: Globo, 2004.

232
ARTE ST 4

ST 4 – Capitalismo como religião

233
Alberto da Silva Moreira (PUC-GO)
Jung Mo Sung (UMESP)
Lauri Emilio Wirth (UMESP)
Oneide Bobsin (EST)
Allan da Silva Coelho (USF)

Esta ST leva em conta o que Renato Ortiz afirma acerca das duas qualidades
religiosas associadas ao mercado global: transcendência e onipresença. A
globalidade do mercado transcende os indivíduos, as classes sociais e as nações. Seu
domínio não conhece fronteiras, abarca o planeta por inteiro; a universalidade do
mercado, confere-lhe a dimensão de totalidade. Nesta visão, a transcendência é
sempre algo latente, ela se manifesta e se perpetua no mundo através do consumo;
mas faltaria às virtudes religiosas do mercado um fundamento ontológico, sagrado,
por isso o mercado se apresentaria como uma “falsa religião”, e sua adoração, uma
“idolatria”. Deve o capitalismo atual ser propriamente pensado e analisado como
uma religião? Se sim, que tipo de religião seria esta, que desafios teóricos coloca às
diversas ciências da religião e à teologia, que desafios práticos ela impõe à política e
ao exercício da cidadania, que desafios pastorais e doutrinais apresenta às religiões?
Se não, onde estariam as fronteiras, os limites, as pertinências de cada um? Esta
Sessão Temática acolhe contribuições que discutam e analisem as pretensões
religiosas do capitalismo, sua produção e uso dos símbolos, a fusão de horizontes da
economia com as expectativas de felicidade e realização humana, a empatia da
mercadoria com a esfera libidinal e do desejo, as experiências de transcendência
ligadas ao consumo, sua linguagem e estética, etc. Também são bem-vindas
contribuições que, desde recortes teóricos e hermenêuticas os mais diversos,
analisem aspectos da transformação da religião pelo capitalismo ou da mutação da
religião por sua conformação à lógica do mercado.

234
BENJAMIN, CRISTIANISMO E CAPITALISMO PARASITÁRIO

Alberto da Silva Moreira1

Resumo: Assumindo a metáfora de Walter Benjamin (O capitalismo como religião, 1921) de


que o capitalismo se desenvolveu no Ocidente como um parasita do cristianismo, parece
necessário analisar formas e modalidades concretas pelas quais esse parasitamento tem
acontecido e com quais consequências. A tese central desta comunicação é de que o
parasitamento mais recente da religião cristã por parte da racionalidade do mercado ocorre
por meio de constelações autoritárias de poder, que favorecem a implantação de sistemas
políticos autoritários, antidemocráticos e (neo)fascistas. No quadro argumentativo mais
amplo assumo a posição de que tais movimentos e grupos autoritários estão, em última
análise, a serviço da ordem econômica capitalista global. No processo social de constituição
e legitimação de uma constelação autoritária, dependendo do contexto específico, a religião
pode desempenhar um papel importante ou mesmo decisivo. Tal parece ser o caso, ainda
latente e ativo apesar da mudança conjuntural, do movimento bolsonarista neofascista no
Brasil. Nas últimas eleições tais grupos e movimentos autoritários mostraram uma
impressionante capacidade de mobilizar afetos, símbolos, linguagens e motivos do
imaginário cristão, além de motivar a adesão pessoal de lideranças religiosas de diversas
igrejas. O objetivo desta comunicação é identificar e analisar recursos afetivos e simbólicos,
motivos e esquemas de pensamento presentes no discurso, nas práticas e no imaginário
cristão que têm sido usados para motivar e legitimar propostas autoritárias e neofascistas.
Interessa entender como discursos e práticas religiosas contribuem, entre outros fatores,
para legitimar e favorecer a formação de constelações autoritárias de poder.
Palavras-chave: Capitalismo; Cristianismo; Bolsonarismo; Autoritarismo; Brasil.

Nesta comunicação gostaria de fazer um exercício hermenêutico, de levar a


sério tal metáfora e tentar desenvolver as implicações e extrair as consequências
que esta intuição de Benjamin contém. Se falamos que o capitalismo parasitou o
cristianismo, torna-se necessário analisar as formas e modalidades concretas pelas
quais esse parasitamento tem acontecido e o que ele pode ter provocado.
Naturalmente Benjamin está assumindo aqui, mesmo se a estende para todas as
correntes, a tese de Max Weber de que a ética calvinista protestante – foi
funcionalizada, aproveitada, direcionada pelo espírito do capitalismo, no sentido de
gerar e fortalecer uma mentalidade, uma cultura, valores e disposições subjetivas
favoráveis a ele, ao capitalismo. Até que o hospedeiro não fosse mais necessário e o
parasita pudesse descarta-lo e tomar o seu lugar. Novamente, a uma conclusão

1Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade


Católica de Goiás. E-mail: alberto-moreira@uol.com.br.

235
semelhante chegou o próprio Weber quando supôs que o capitalismo já não
necessitava da religião para impor-se às consciências e podia deixa-la de lado [...] e
quando, no final da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber classifica
os seguidores dessa racionalidade instrumental moderna, coisificante, impessoal,
burocrática, voltada para o ganho e para a maximização do lucro de “Especialistas
sem espírito, gozadores sem coração. Essa nulidade imagina ter chegado a um grau
de humanidade nunca antes alcançado” (WEBER, 2009, p. 166).
Na verdade Benjamin é ainda mais pessimista na sua crítica ao “progresso” e
à Modernidade do que Weber, basta examinar sua reflexão sobre o anjo da história
de Paul Klee. Mas voltemos à sua metáfora do parasita. Uma pré-condição para se
poder falar em parasitismo ou parasitamento é admitir que existe algum tipo de
comunicação, de compatibilidade, de pontos de contato ou de hospedagem, por onde
uma transferência de material entre dois seres ou entre universos simbólicos
diferentes possa acontecer. Veremos adiante quais seriam esses pontos de contacto.
Uma segunda pré-condição para o parasitamento é que essa compatibilidade, esse
processo infeccioso de transferência de material seja disfarçado ao máximo, que o
parasita sutilmente vá neutralizando ou anulando os mecanismos de defesa do
hospedeiro, os antígenos do outro universo simbólico, para que este não reaja a
tempo, para que não se dê conta de que a sua própria sobrevivência (ou
“identidade”) no final das contas está em risco. Para isso é preciso empregar
sutilidade e esperteza, ou, nas palavras de Marx, “manhas metafísicas”. No início é
preciso parecer que não se trata de um parasitamento, mas de uma simbiose; é vital
que pareça uma combinação proveitosa, uma parceria que seria benéfica para os
dois lados. Em terceiro lugar, é necessário um certo tempo para que cada fase do
processo seja assimilada e naturalizada como algo normal, como algo necessário e
mesmo inevitável, pois afinal de contas é assim que são as coisas, é assim que tem
de ser, “se a gente não quiser voltar ao tempo das cavernas e dos dinossauros....” Se
imaginarmos que os processos analisados por Weber a respeito do calvinismo
ascético no final do séc. 19 e inícios do séc. 20 constituem apenas uma etapa ou uma
modalidade de parasitamento do cristianismo por parte do capitalismo ocidental,
mas que o processo histórico continua, que se trata de uma luta com altos e baixos,
que ainda não está totalmente decidida, fica mais fácil supor que esse enfrentamento
continua em nossos dias.

236
Na verdade, tanto a existência das teologias da libertação como a versão mais
dura das teologias da prosperidade nos mostram claramente que essa luta se
desenrola diante dos nossos olhos; nós mesmos fazemos parte dela. E porque ela
continua na ordem do dia mesmo mais de cem anos depois de Max Weber, ouso dizer
que o capitalismo continua sim, precisando e muito – pelo menos em grande parte
do mundo – de parasitar não só o cristianismo, mas as religiões em geral. Ele não
precisa eliminá-las, basta sequestrar a sua alma; não precisa acabar com ritos, mitos
e cultos, basta funcionalizá-los, roubar sua alma e inserir neles uma alma alien,
torná-los religiões Zombies, religiões mortas-vivas, simulacros meramente estéticos
e vazios de religiões que um dia performaram e conduziram a vida, a conduta, o
sentimento e o pensamento das pessoas. O processo de parasitamento continua, não
sem enfrentamento e luta. O que o capitalismo não só aspira, mas exige
sistematicamente é tornar-se a única religião universal, não apenas
geograficamente, mas como a única visão de mundo aceita, como o único valor
humano, como o único mediador possível da humanidade para o transcendente,
como religião prática do cotidiano de todos no mundo.
Minha tese nesta comunicação é de que a fase mais recente do já longo
processo de parasitamento do cristianismo pelo capitalismo está ocorrendo através
da formação das constelações autoritárias de poder (ZAMORA, 2023). Na formação
das constelações autoritárias de poder entram diversos elementos tirados da
religião cristã que favorecem a implantação de sistemas políticos autoritários,
antidemocráticos e (neo)fascistas. O maior exemplo dessas constelações
autoritárias de poder entre nós é o bolsonarismo, ainda em plena atividade.
Nas últimas eleições no Brasil grupos e movimentos autoritários mostraram
uma impressionante capacidade de mobilizar afetos, símbolos, linguagens e motivos
do imaginário cristão, além de motivar a adesão pessoal de lideranças religiosas de
diversas igrejas. No processo social de constituição e legitimação de uma
constelação autoritária, a religião pode desempenhar um papel importante ou
mesmo decisivo. Este é o caso, ainda latente e ativo apesar da mudança conjuntural,
do bolsonarismo, uma constelação autoritária e neofascista que se estabeleceu no
Brasil nos últimos anos.
O objetivo desta comunicação é identificar e analisar recursos afetivos e
simbólicos, motivos e esquemas de pensamento presentes no discurso, nas práticas

237
e no imaginário cristão que têm sido usados para motivar e legitimar propostas
autoritárias e neofascistas, como o bolsonarismo. Interessa entender como
discursos e práticas religiosas contribuem, entre outros fatores, para legitimar e
favorecer a formação de uma constelação de elementos autoritários, que combinam
nacionalismo populista, anticomunismo, racismo, discursos de ódio contra
minorias, que formaram até bem pouco a base de apoio do bolsonarismo.
Trata-se de identificar e analisar aqueles elementos do discurso e do
pensamento religioso que associados a outros elementos, contribuem para o
surgimento de constelações autoritárias e neofascistas. Algumas perguntas
orientam a reflexão: O que no discurso religioso cristão possui uma aproximação ou
possível ponto de contato e troca com o autoritarismo e o fascismo? Quais elementos
da tradição religiosa cristã são aqui mobilizados para fortalecer ou estimular uma
adesão a candidatos ou programas políticos autoritários ou neofascistas?
Num quadro argumentativo mais amplo defendo a posição de que os
movimentos políticos autoritários e os grupos neofascistas estão, em última análise,
a serviço da ordem econômica capitalista global, uma vez que onde se implantaram
todos os grupos e governos autoritários adotaram a política econômica neoliberal
(Brasil, Hungria, Turquia, India – e Milei na Argentina).
Walter Benjamin escreveu em 1921, no seu famoso fragmento Capitalismo
como Religião, que “o capitalismo se desenvolveu no Ocidente como um parasita do
Cristianismo (MOREIRA, 2012, p. 213). Para Benjamin, em franca discordância com
a tese de Max Weber – que viu na ética do protestantismo calvinista um fator
historicamente favorável à implantação da mentalidade e do espírito capitalistas –,
esse processo atingiu todas as correntes ortodoxas do Cristianismo e não apenas o
calvinismo ascético. Para Benjamin esse processo teria ido tão longe que, afinal, a
própria história do Cristianismo tornou-se a história do seu parasita, o capitalismo.
Sem entrar no mérito desse interessante debate, gostaria de retomar nesse artigo a
metáfora de Benjamin, que julgo forte e consistente, de que o capitalismo parasita
as formas históricas do Cristianismo. Naturalmente esse processo parasitário só é
possível porque o Cristianismo nunca existiu como entidade abstrata, como uma
substância que pairasse etérea ou intocável fora da história. O Cristianismo só existe,
se expressa e se revela nas formas históricas que vai assumindo, mesmo se essas
formas históricas singulares nunca esgotam todo seu potencial e nem expressam

238
toda a “verdade” de que é capaz. Voltando à metáfora de Benjamin, se o capitalismo
parasita as formas históricas que assume o Cristianismo, também parasita suas
formas presentes na sociedade brasileira atual, como o pentecostalismo, o
catolicismo, o espiritismo e outras vertentes cristãs. A tese básica desse texto
consiste em afirmar que nas condições históricas atuais o neofascismo bolsonarista
é o fator ideológico central usado pelo capitalismo autoritário para parasitar as
diversas correntes cristãs. De que forma isso pode acontecer, ou sob quais condições
e com quais consequências esse processo pode se dar?
Em primeiro lugar é preciso ver no fascismo uma forma ou modalidade sócio-
política e cultural específica que se mostrou necessária ao processo histórico do
capitalismo. Por mais críticas que se façam e por mais justas que elas sejam ao
bonapartismo, às ditaduras, ao stalinismo e seus Gulags e ao terror implantado pelo
Khmer Vermelho, não há como dissociar os regimes fascistas de seu enraizamento
histórico na ordem capitalista das sociedades ocidentais. Não se quer afirmar, mais
uma vez, que o capitalismo produz necessária e automaticamente os regimes
fascistas. Sobre isso já se debruçaram gerações de pensadores, defendendo posições
as mais diversas... O que me parece claro e já demonstrado por tantos autores é o
fato de que o capitalismo, sempre quando e onde se mostra necessário e funcional,
não hesita em lançar mão e apoiar regimes políticos autoritários e fascistas, mesmo
se isso vai na contramão da estética liberal e das “boas maneiras” cultivadas pela
direita mais educada.
Autores como Almeida (2022) analisaram o discurso de líderes religiosos
bolsonaristas e mostraram como “o discurso religioso serve de base e/ou é
capturado pelo discurso fascista”:
- O neofascismo bolsonarista infecta, se implanta e parasita as igrejas
pentecostais e o setor mais conservador do catolicismo brasileiro também porque
têm com essas correntes religiosas algumas concordâncias ou afinidades básicas,
tem portos de ancoragem ou pontos de conexão (figura dos ganchos dos vírus) em
comum, que são principalmente os seguintes;
– O messianismo militante – a figura quase mitológica do grande salvador,
daquele que vai colocar a “casa em ordem”, do enviado e abençoado por Deus para
desempenhar, com grandes sacrifícios próprios e sob a incompreensão e ataque das
forças do mal, a missão que lhe foi dada pelo próprio Deus;

239
- A visão dicotômica da realidade do mundo como palco da batalha final entre
as forças de Deus e do bem contra as forças do Mal e do demônio. O fascismo não
subsiste sem a figura permanentemente recriada do seu inimigo (Carl Schmitt), do
seu opositor, que precisa ser não apenas vencido, mas esmagado, destruído. O ponto
de conexão aqui é dado pela teologia da guerra santa, tão bem analisada por Mariano
(1999) e outros autores, que nas igrejas pentecostais e neopentecostais recria
constantemente não apenas a figura do demônio como inimigo a ser vencido, mas
ainda recria o clima e o ambiente necessário para esse enfrentamento. A batalha
final contra o inimigo de Deus se dá, afinal, é no coração e na vida de cada fiel,
mesclando o processo cósmico com acontecimentos na esfera da vida privada de
cada fiel;
- A permanente mobilização e permanente estado de alerta contra a presença
e os ataques do “inimigo” – a necessidade sistêmica do fascismo de só existir
enquanto força mobilizada, em posição permanente de vigília e de ação. Se o
fascismo arrefece sua mobilização e diminui a tensão constante das suas bases em
relação ao “perigo”, às ameaças e ao inimigo, ele tende a desaparecer, a se integrar a
outras correntes, a neutralizar os excessos de suas lideranças;
- Teologia da eleição – o escolhido, o ungido de Deus mostra o caminho
seguro e justifica a violência e o armamentismo como autodefesa da população.
- A oratória inflamada e hiperbólica, a linguagem corporal dos gestos amplos,
definidos, rítmicos e convocatórios dos pastores e dos líderes fascistas – o mesmo
uso competente de uma estética altamente inflamada, emocionante, convocatória e
segura, no sentido de que não deixa margem a dúvidas, a perguntas ou meio-termos;
exige tomada de posição imediata por parte das audiências;
- O fascismo bolsonarista assim como essas formas de religião exigem um
devotamento absoluto dos seus seguidores, uma atitude de fé e de abandono total
das vontades nas mãos e na vontade dos seus líderes, daqueles que lhes revelam
aqui e agora a vontade de Deus, os desígnios do Altíssimo;
- Não se trata de grupos religiosos ou movimentos políticos irracionais, mas
de formas religiosas e políticas totalmente subservientes, subjugadas por uma
racionalidade unilateral, estreita e dogmática. Não são irracionais, como gente burra
que não pensa – eles pensam sempre dentro do mesmo solipsismo enganador,
sempre e necessariamente dentro dos limites de uma racionalidade específica, auto

240
vitimizante, apocalítica e dogmática, que não consegue distanciar-se de seus
pressupostos, e, portanto, fazer autocrítica.

Elementos, afinidades e pontos de contato


1 – Talvez a mais importante, antiga e estrutural dessas afinidades, dessa
compatibilidade de estruturas simbólicas entre religiões e fascismo, seja a
santificação da autoridade e do poder. A teologia imperial e o endeusamento
litúrgico e ritual do poder e da autoridade caracterizaram o Cristianismo, em
praticamente todas as suas grandes modalidades históricas: catolicismo,
protestantismo e ortodoxia. A teologia imperial presente no Cristianismo até hoje
demonstra claramente que na maioria das vezes foi o poder que converteu as igrejas
à sua lógica, e não o contrário. Apenas alguns movimentos e comunidades religiosas
mais radicais, como os mendicantes, alguns grupos de anabatistas, os quakers e os
amish se opuseram à sacralização do poder, eram praticantes da não-violência,
insistiam na igualdade, na partilha dos bens e da vida fraterna.
Infelizmente a experiência histórica mostrou que outras religiões,
abrahâmicas ou não, também não ficaram imunes à convivência prolongada com o
poder. O próprio Deus, muito mais evocado na tradição cristã como “o todo-
poderoso” do que como “o todo-amoroso”, sempre foi chamado a legitimar os
arranjos do poder político dominante. Religiões e regimes políticos são sistemas de
ordenamento social e de disciplinização do comportamento (Foucault – instâncias
totais). Eles retiram sua autoridade da aceitação socialmente articulada de arranjos
de poder, políticos e simbólicos. Ou seja, por dentro das cruas relações econômicas
e políticas um imaginário está sendo sempre gestado e administrado. O imaginário
é poderoso, classifica, justifica, motiva e impulsiona decisões. Regimes políticos
autoritários são sempre sistemas de controle estrito e vigilância constante dos
indivíduos. Também de autovigilância e até de autopunição, dependendo do grau de
subjetivação dos imaginários socialmente construídos. Em determinados contextos,
as religiões podem ser uma coadjuvante importante dos regimes políticos, ao
induzir os indivíduos através do imaginário religioso à sujeição voluntária às
normas da ordem vigente. Na opinião de Bourdieu (1971) elas fazem isso, por
exemplo, ao sacralizar o que é contingente e eternizar o que é efêmero; ao atribuir a
Deus o que é demasiadamente humano.

241
Sabemos que, regimes políticos autoritários e fascistas criam seus próprios
rituais, suas coreografias e sua estética do poder – como fizeram claramente os
nazistas com as grandes paradas em Nuremberg e sua máquina midiática de
propaganda na imprensa, no rádio e no cinema. Trata-se de uma pedagogia de
massas, de internalização de crenças, de inculcação subjetiva de postulados
políticos, raciais, de gênero, etc. Mas as religiões e igrejas, dependendo da conjunção
dos fatores, podem reforçar e agregar a isso tudo suas próprias liturgias, suas
doutrinas e seu capital simbólico. As religiões podem contribuir para a santificação
da autoridade e do submetimento ao poder com suas ritualidades, como por
exemplo o beija-mão, o beija-anel, o toma bênção, o ajoelhar-se perante a
autoridade, o culto machista dos caciques, a unção e a oração sobre candidatos, os
ritos de entronização.
Outra modalidade que adestra e formata o pensamento para a subserviência,
que está muito presente e é cultivada nos meios religiosos, mas não é exclusiva
deles, é o fundamentalismo, a leitura fundamentalista dos textos sagrados. Textos
de sociedades humanas de dois mil e quinhentos anos atrás, de sociedades semi-
nômades e tribais são interpretados ao pé da letra, sem nenhuma consideração para
o contexto, o gênero literário, para os produtores e os destinatários que os geraram.
Isso está ligado com a segunda estrutura de contato.
2 – Um segundo ponto de contato, que facilita o parasitamento da religião e
do imaginário cristão por parte do autoritarismo e do fascismo é a teologia da
eleição e o messianismo que ambos cultivam: Deus ou o destino, a providência, o
povo, a nação ou outra grandeza transcendente tem o seu (ou os seus) escolhido e
o(s) coloca para guiar o povo. Interessante que é sempre um homem, branco
inclusive... O que foi ungido por Deus ou por essa grandeza transcendente é o grande
líder, o condutor, o guia infalível e inquestionável. Trata-se da figura quase
mitológica do grande salvador, daquele que vai colocar a “casa em ordem”, do
messias abençoado por Deus para desempenhar a dura tarefa de salvar o povo. Não
se questiona como a pessoa chegou a essa condição, que estratégias usou, se apelou
para o terrorismo e o assassinato (como Hitler e Mussolini fizeram repetidas vezes),
nem se pergunta se o escolhido tem as qualidades e o preparo necessário para a
tarefa. Se ele está lá, no cume do poder, é porque foi colocado por Deus ou pela nação
para estar lá, portanto é óbvio que tem todas as qualidades. Isso é absolutamente

242
inquestionável, faz parte da estrutura do pensamento dogmático nunca perguntar,
nunca duvidar. O messianismo, como já mostrou José de S. Martins, sempre esteve
presente no imaginário religioso-político brasileiro.
O messias escolhido realiza, com grandes sacrifícios próprios, sofrendo
sempre incompreensão por parte dos seus e ataque por parte das forças do mal, a
missão que lhe foi dada pelo próprio Deus. Por outro lado, a estrutura dessa
narrativa é parecida com aquela examinada no estudo clássico de Joseph Campbell
sobre a jornada do herói. Resumindo: Há uma evidente componente religiosa no
processo de construção social do mito político.
3 – O terceiro ponto de contato e troca entre ambos os sistemas simbólicos é
a visão dicotômica, maniqueísta e, às vezes, apocalíptica da realidade. O mundo
é visto como palco de uma batalha (final) entre as forças de Deus e do bem contra as
forças do demônio e do mal. O fascismo não subsiste sem recriar permanentemente
a figura do seu inimigo (Carl Schmitt), do seu opositor. Esse inimigo, por ser no
fundo uma entidade maléfica e demoníaca, precisa ser não apenas vencido, mas
esmagado, metralhado, destruído. Segundo Jason Stanley (Como funciona o fascismo,
2018, p. 15) o sintoma mais marcante da política fascista é a divisão, é a separação
dicotômica da população entre “nós” e “eles”. Eles querem dizer: os comunistas, os
judeus, os esquerdistas, ou qualquer grupo político, étnico, de gênero que não
partilhe da visão de mundo petrificada do sistema autoritário (ou neofascista).
O ponto de conexão aqui é uma teologia da guerra santa contra o demônio e
as forças do inferno. Esta teologia da guerra santa está bem presente no discurso de
lideranças neopentecostais, como foi analisado por Mariano (1999) e outros
autores. Mas essa visão militarizante está presente, ainda que de forma modificada,
também em círculos católicos super conservadores (“E as portas do inferno não
prevalecerão contra ela”). Interessante que nesta visão maniqueísta de mundo, da
qual comunga o bolsonarismo, há um momento de mobilização para defender o bem
ameaçado (as “tradições cristãs”, a propriedade, etc), ou seja, assume-se a posição
de vítima perseguida. Mas logo em seguida passa-se ao ataque, ou seja à tentativa de
fazer calar ou aniquilar com o pretenso inimigo. Isso tem a ver com a santificação e
teologização do emprego da violência, do sangue, por parte dos anos justiceiros de
Deus. Da potenciais assassinos e arruaceiros, tais pessoas são vistas como heróis,
combatentes pela fé.

243
Outra questão importante nesse mecanismo é a construção social
(imaginário) do inimigo a ser combatido na batalha entre as forças Deus e as forças
do demônio. O que por incrível que pareça continua facilitando a aproximação entre
igrejas e grupos autoritários ou neofascistas, é a figura do comunismo como inimigo
comum a ser vencido. Foi assim na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitller, no
golpe de 64: para evitar o chamado “perigo vermelho”, as igrejas, ou parte delas,
apoiaram ou pelo menos toleraram o fascismo e a ditadura. Mas nós estamos em
2022, quase 30 anos depois do fim dos regimes comunistas na década de 1990. Essa
motivação aparece com clareza cristalina na mensagem do bispo católico. Sinal claro
de que ele e os demais apelam para um imaginário cristão antigo e ainda forte na
mente das pessoas.
A recriação permanente da figura do inimigo, mesmo que seja fictício como o
comunismo, exige manter sempre acesa uma mobilização, um estado de prontidão
e uma alta motivação para fazer o enfrentamento. Há uma mobilização permanente,
que precisa ser mantida acesa a qualquer custo. Segundo Stanley (2020),
desmobilização significa o fim para o fascismo. Para manter a motivação e a
mobilização em alta a linguagem religiosa cristã pode ajudar e muito. O imaginário
cristão possui um estoque enorme de símbolos, de termos apocalípticos, de figuras
bíblicas como demônios, anjos vingadores, juízes, profetas, tribunal de Deus, etc, que
pode ser funcionalizado, vampirizado e parasitado pelas propostas e candidaturas
autoritárias. Frequentemente líderes religiosos comprometidos com o
bolsonarismo utilizam essa linguagem e esses símbolos, através do apelo a
experiências religiosas consideradas como vindas de Deus, como as revelações
(através dos sonhos) e as profecias.
Mas além do repertório de símbolos e figuras de linguagem as igrejas
emprestam a esse discurso dois fatores que podem ser decisivos para a pedagogia
de massas do neofascismo: Em 1. lugar a autoridade e a veracidade de que são
revestidos. A mensagem é passada como sendo uma revelação do próprio Deus ou
de Jesus Cristo. Revelações e profecias aparecem repetidas vezes nos vídeos como
forma de legitimar o discurso de pastores evangélicos. Jesus aparece e se revela nos
modos, nos sonhos e até nas árvores mais inesperadas... Em segundo lugar o
discurso apocalíptico transmite um senso de urgência, uma convocação
imperativa, pois trata-se de um conflito (final) contra as forças do demônio, contra

244
as potências do inferno que já estão às portas. Portanto, é preciso mobilizar-se
imediatamente. Na realidade, trata-se apenas de um embate ou debate que devia ser
civilizado, com pessoas que pensam diferente e que têm preferências políticas mais
democráticas. Mas se a propaganda religiosa reconhecer isso, não vai conseguir tirar
ninguém de casa, não vai mobilizar nenhum adepto.
A oratória inflamada e hiperbólica, a linguagem corporal dos gestos amplos
e rítmicos, olhares incisivos e diretos de ministros religiosos e de líderes
autoritários faz o mesmo uso – eficiente – de uma estética altamente inflamada,
emocionante, convocatória e que infunde clareza e segurança, no sentido de que não
deixa margem a dúvidas, a perguntas ou meio-termos. É dada uma explicação
taxativa e ela exige uma tomada de posição imediata por parte da audiência.
4 – O quarto ponto de contato que a experiência religiosa pode repassar
para a militância política fanatizada e ideologizada (tanto de direita como de
esquerda) é um elemento fundamental: a motivação, o impulso interior para agir.
O neofascismo, assim como essas formas de religião, exigem um devotamento
absoluto de seus seguidores, uma atitude de fé e de abandono nas mãos e na vontade
dos seus líderes, daqueles que lhes revelam aqui e agora a vontade de Deus, ou os
destinos da grande nação, ou os desígnios do Altíssimo para a raça e o povo
escolhido, do qual todos julgam fazer parte.
É muito importante perceber que não se trata de grupos religiosos ou
movimentos políticos irracionais, mas de formas religiosas e políticas subservientes,
subjugadas por uma racionalidade unilateral, estreita e dogmática. Não são pessoas
irracionais, como se se tratasse de gente incapaz de pensar. Como fundamentalistas,
eles pensam sempre dentro do mesmo esquema, dentro de um solipsismo
enganador, sempre e necessariamente dentro dos limites de uma racionalidade
autoreferente, que dependendo das condições pode ser ao mesmo tempo auto
vitimizante e agressiva, apocalítica e dogmática. Mas que de toda forma não
consegue distanciar-se de seus próprios pressupostos e, portanto, é incapaz de
qualquer autocrítica.
5 – Um quinto ponto evidente de contato, ou continuando a metáfora do
parasitamento, um mecanismo de transfusão de material simbólico entre o
discurso fascista e a pregação de determinadas igrejas é a função social que ambos
exercem, de reduzir a complexidade social. O discurso político autoritário recorre

245
à culpabilização compulsória do inimigo político, à transferência de
responsabilidades, à mentira nua e crua sempre repetida nas redes sociais; o
discurso religioso simplifica ao utilizar a a figura do demônio, ao recorrer à guerra
espiritual contra as forças do mal, que determinadas pessoas e partidos
supostamente representariam. Tudo isso são recursos discursivos, simbólicos e
gnosiológicos que simplificam a complexidade da realidade. Transfundidos em
metáforas, figuras de linguagem e imagens religiosas apocalípticas, os processos
sociais mais complexos e demorados se tornam de repente plausíveis e fáceis de
entender para o grande público. Não se explica nada, não se vai a fundo nas causas
das questões econômicas, sociais, políticas e culturais: placatiza-se, imagetiza-se,
simplifica-se iconicamente as causas, ou os pretensos culpados pela situação. A
simplificação se vale da repetição constante dos chavões, dos refrões, dos esquemas
feitos não para fazer entender, mas para acalmar a insegurança e canalizar o
ressentimento, e favorecer a catarse, como o tal culto no congresso invadido.
Além disso a redução da complexidade social através dos dois discursos se
aproveita da falta de tempo dos trabalhadores, do preconceito disseminado contra
o conhecimento científico e mesmo da preguiça mental das pessoas: De repente, ao
invés de examinar e pesquisar porque um político de perfil autoritário, misógino,
preconceituoso e agressivo, que em 28 anos de presença na Câmara deu
pouquíssima contribuição como deputado, fica muito mais fácil ao fiel aceitá-lo se a
autoridade religiosa me garante que ele é o escolhido de Deus nessas eleições.
Redução de complexidade é também terapia de massa, é diagnóstico e remédio ao
mesmo tempo, reduz trabalho e tensões criadas pelo cotidiano. Por isso funciona tão
bem.
Além desses recursos simbólicos os grupos neofascistas utilizam também o
terror simbólico puro e simples, a mentira didaticamente dirigida às camadas
alfabetizadas pela imagem: o bordão de que o governo esquerdista vai trocar a
bandeira verde-e-amarela e introduzir a bandeira vermelha. Ou que vai liberar a
pedofilia, a mamadeira em formato de pênis para os bebês, fechar as igrejas
evangélicas no país e tantos outros disparates.

246
Referências
ALMEIDA, João P. M. “Deus, pátria, família”: os sentidos do fascismo brasileiro.
Revista Rua, Campinas, v. 28, n. 2, nov. 2022, disponível em:
https://www.labeurb.unicamp.br/rua/artigo/pdf/371-deus-patria-familia-os-
sentidos-do-fascismo-brasileiro Acesso em 23 de março de 2023.

BENJAMIN, Walter. Capitalismo como religião. Trad. de Alberto da S. Moreira. O


capitalismo como religião. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2012, p. 209-215.

MARIANO, Ricardo. Os neo-pentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no


Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.

MOREIRA, Alberto da S. (org.). O capitalismo como religião. Goiânia: Ed. da PUC


Goiás, 2012.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Ed. de A.F. Pierucci.


São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ZAMORA, José A. Movilización autoritaria, posfascismo y religión. Conferência no IV


Simpósio Internacional do NEARG – Religião e Fascismo. Goiânia, PUC Goiás, 14-16
de junho, 2023.

247
“MARXISMO QUENTE” E TEOLOGIA NA CRÍTICA DO “CAPITALISMO
COMO RELIGIÃO”.

Allan da Silva Coelho1

Resumo: “O capitalismo deve ser visto como uma religião”, afirmou Benjamin em buscas de
alternativas ao sistema que conduz a humanidade à “casa do desespero”. É provável que
tenha inspiração em Ernst Bloch, que no livro sobre Münzer o chamou de teólogo da
revolução. Bloch entendia que a descoberta do futuro passa pelas aspirações do passado
como promessas não cumpridas que se tornam fonte viva para a ação revolucionária. Sua
obra se caracteriza pela insolência frente a sociedade reificada, articulando a relação entre
utopia e religião, a crítica romântica da civilização que compreende o passado como
tradição e uma espiritualidade messiânica divergente do gradualismo histórico do
progresso. Permite questionar, frente à barbárie insuportável da sociedade capitalista, por
que poucos aderem à luta anticapitalista. Tal luta suporia confrontar o “espírito do tempo”
a partir da gestação de outro espírito, utópico, que brota das aspirações a outra vida, o
desejo de outras relações humanas no mundo. De que modo as categorias de Bloch,
colaboram com o combate do fetichismo hoje? Tal questão norteia o objetivo de revisitar
categorias de Bloch através da revisão bibliográfica de autores do campo de estudos do
capitalismo como religião para “colocá-lo em jogo”. O autor aponta que não se enfrenta o
fascínio somente com a razão, mas mobilizando a imaginação e o desejo, a partir da
capacidade de pensar outros modelos de mundo e de ser humano. Através das suas
categorias de utopia, ateísmo, esperança e marxismo quente, propomos uma maneira de
aplicar a Tese I de Benjamin na articulação entre marxismo e teologia hoje.
Palavras-Chave: utopia; marxismo; teologia; formação da consciência revolucionária.

Introdução
A partir das clássicas afirmações do campo de estudos do “Capitalismo como
Religião”, procuramos na junção entre duas diferentes tradições, uma judaica e
europeia, outra cristã e latino-americana, uma leitura dos elementos de Ernst Bloch
que se tornam referência para esta tradição. É famosa a passagem na qual Walter
Benjamin afirma que “o capitalismo deve ser visto como uma religião”, em buscas
de alternativas ao sistema que conduz a humanidade à “casa do desespero”
(BENJAMIN, 2013). É muito provável que tenha encontrado inspiração para seu
fragmento em Ernst Bloch, que no livro sobre Münzer o chamou de teólogo da
revolução.
Bloch entendia que a descoberta do futuro passa pelas aspirações do passado
como promessas não cumpridas que se tornam fonte viva para a ação

1Doutorado em Ciências da Religião (UMESP). É docente e pesquisador no Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade São Francisco (USF). E-mail: allan.filos@gmail.com.

248
revolucionária. Münzer, teólogo incendiário, representa a força de um conjunto de
promessas não cumpridas com potencial de provocar revolução. Inspirados na
perspectiva de Bloch, refletimos de que modo não é somente com a razão que se
enfrenta o fascínio (do fetichismo ou do fascismo), mas é preciso mobilizar
imaginação e o desejo, como fonte e capacidade de pensar outros modelos de mundo
e de ser humano. De que forma é possível convocar e mobilizar o combate do
fetichismo hoje?
Michael Löwy (2021) afirma que os surrealistas, em sua releitura da obra de
Ernst Bloch, tinham a intenção de colocar Bloch para jogar... Trabalhamos com a
hipótese fundante de que a Teologia da Libertação latino-americana fez a mesma
coisa em outra perspectiva: ao se inspirar em certo diálogo com o autor, mobilizou
as reflexões blochianas e as colocou em jogo, não como entretenimento típico dos
jogos capitalistas, mas como instrumentos a serviço das lutas dos excluídos, da
classe espoliada.
De certo modo, Bloch é uma figura que desperta interesse. Exilado,
desempregado, acusado de revisionismo por parte da esquerda revolucionária,
torna-se grande influência do movimento estudantil que abalou o status da
sociedade capitalista em seu coração europeu e norte americano nos anos 1960-
1970. E tem papel de destaque no diálogo fundador da Teologia da Libertação. A
obra de Bloch se caracteriza pela insolência frente a sociedade reificada, articulando
a relação entre utopia e religião, a crítica romântica da civilização que compreende
o passado como tradição e uma espiritualidade messiânica divergente do
gradualismo histórico do progresso. Permite questionar, frente à barbárie
insuportável da sociedade capitalista, por que poucos aderem à luta anticapitalista,
frente a um mundo de negócios, signo de escroqueria e com sua sede insaciável por
ganhos. Esta pergunta permite pensar o papel da filosofia, em especial da filosofia
marxista (como humanismo da práxis, no dizer de Hinkelammert, XXXX) e discutir
as categorias de formulação teórica que permanecem convocando para o
enfrentamento de classes.

1. A tarefa da filosofia
Segundo o filósofo Jean-Marie Vincent (2002), a compreensão da utopia é
central na teoria de Bloch, que se questiona, frente a barbárie insuportável da

249
sociedade capitalista, por que poucos aderem à luta anticapitalista. Para Bloch, de
uma certa forma, a batalha revolucionária é uma batalha contra o “espírito do
tempo”, pela criação de um outro espírito, o da utopia, em que não se trata de pensar
abstratamente sociedades perfeitas, mas de fazer manifestar as aspirações a outra
vida, o desejo de outras relações no mundo.
Neste sentido, a categoria da utopia, longe de representar um devaneio
qualquer ou uma maneira de alienar a consciência, representa a possibilidade de
uma consciência emancipadora de realidades a criar. Segundo Michael Löwy, “a
aposta fundamental de Ernst Bloch é a seguinte: a filosofia terá a consciência do dia
seguinte, a decisão do futuro, o saber da esperança, ou ela não terá saber nenhum
sobre nada” (LÖWY, 2012, p. 160). O sonho, a latência, a inspiração, a imagem de
desejo se articulam como possiblidade de uma relação dialética entre a descoberta
do futuro e as aspirações do passado, como promessas não cumpridas ainda em
expectativa, que se vislumbram como fonte impulsionadora para a ação
revolucionária.
Neste contexto, Bloch trabalha com outro conceito de verdade que não é
positivista, mas que aborda o valor do verdadeiro (LÖWY, 2019, p. 87) e reconsidera
a importância de religião e da teologia também fora do marco interpretativo da
falsidade e alienação positivistas, reinterpretando-as na chave da utopia e da
esperança. Esta chave convoca o messianismo como ameaça de, quem sabe, arriscar
a possibilidade dos sonhos e desejos. Tal maneira de articular a as lutas concretas
com os desejos subjetivos explicitam uma criativa relação entre mundo material
objetivo e constituições possíveis do mundo subjetivo da consciência (ou da
inconsciência).
Assim, torna-se mais um dos discípulos infiéis de Max Weber, frequentador
do chamado círculo de Weber, usa a característica “análise neutra de valor”
weberiana como uma acusação do capitalismo.

2. Elementos de sua constelação: teologia e marxismo


Entre diferentes elementos do pensamento de Bloch que são fonte de
subversão (ou ao menos convergentes) com a Teologia da Libertação latino-
americana, poderíamos apontar várias, como a perspectiva da análise a partir do

250
ponto de vista da vítima da injustiça, a tradição como fonte do futuro, os vencidos
que permanecem na expectativa da vitória, entre outros.
Porém, nesta reflexão, destacamos a articulação entre o processo de
desencantamento do mundo pela razão com a acusação da formulação de um tipo
de ateísmo burguês que volta suas críticas à religião por desviar-se do conceito de
idolatria. A ideologia burguesa, ilustrada (e positivista), propõe-se a superar toda
mentalidade mítica, no entanto, mesmo esta ideologia possui referência e
fundamentação em categorias míticas. Hinkelammert agumentou que, desse modo,
a compreensão secularizada da realidade é basicamente legitimada por uma outra
racionalidade mítica. A crítica desta fundamentação não é alcançada pela razão
instrumental, mas por um tipo de razão que Vincent (2002) chama de “razão
ampliada”. Esta razão ampliada nos ajuda a entender a dialética, e não oposição,
entre razão e teologia, pensamento científico e aspirações utópicas.
Para Bloch, o marxismo é herdeiro de tradições utópicas do passado,
incorporando em sua concepção os sonhos despertos e as imagens de desejo. O
marxismo articula a sobriedade e imaginação, a razão e esperança, o rigor de
detetive e entusiasmo de sonhador (LÖWY, 2019, p. 92). O otimismo do marxismo
não decorre da crença no progresso, mas da esperança que mobiliza por outro
mundo.
Tal abordagem não nega o caráter científico do marxismo. Porém, entende
que o marxismo só pode jogar seu papel revolucionário na inseparável unidade
entre as duas dimensões, a razão científica e a esperança subversiva das utopias.
Desse modo, ao propor “fundir a corrente fria e a corrente quente do marxismo”,
expressa uma compreensão na qual o marxismo não pode se tornar mais uma entre
as diferentes possibilidades de uma ciência burguesa. Afinal, “a corrente fria existe
para a corrente quente, a serviço desta que necessita da análise científica para poder
desembaraçar-se da abstração e tornar concreta a utopia” (LÖWY, 2019, p. 92). O
marxismo quente expurga a frieza burguesa. Aqui, vislumbra-se um espírito utópico,
aparentado das religiões, na qual a teologia (em especial uma Teologia da
Libertação) se complementam a serviço das lutas dos condenados da terra. Neste
ponto, valeria a pena pensar a Tese I de Walter Benjamin em “Sobre o Conceito de
História” (BENJAMIN, 2013).
Como afirma Löwy:

251
o que o marxismo traz de novidade é a docta spes (esperança douta),
a ciência da realidade, o saber ativo voltado para a práxis
transformadora do mundo e para o horizonte do futuro. Ao contrário
das utopias abstratas do passado – que se limitavam a opor sua
imagem-desejo ao mundo existente –, o marxismo parte das
tendências e das possibilidades objetivas presentes na própria
realidade: é graças a essa mediação real que ele permite o advento
da utopia concreta (LÖWY, 2012, p. 163).

Bloch inverte a lógica da utopia à ciência, para da ciência à utopia. Ele não
aceita que o campo da contemplação, da imaginação, da criatividade seja deixado de
lado a serviço do marketing e do culto do capitalismo (COELHO, 2021). Não aceita
que o marxismo seja vulgarizado a tal ponto em que todo o mundo da imaginação
seja entregue ao inimigo (LÖWY, 2015, p. 243). Segundo Löwy:
o socialismo só pode representar seu papel revolucionário na
unidade inseparável da sobriedade e da imaginação, da razão e da
esperança, do rigor do detetive e do entusiasmo do sonhador.
Segundo uma expressão tornada célebre, é necessário fundir a
corrente fria e a corrente quente do marxismo, ambas igualmente
necessárias. Contudo, ele estabelece entre elas uma clara hierarquia:
a corrente fria existe para a corrente quente, a serviço dela (LÖWY,
2012, p. 164).

Em Bloch, a tradicional alocução medieval na qual a filosofia é serva da


teologia, se reproduz em um novo significado, numa compreensão muito próxima
da expressa por Benjamin na alegoria do anão e do boneco.
As reflexões com a força criativa da subversão não se caracterizam por uma
contemplação filosófica da verdade, mas como fonte de práxis revolucionária, uma
filosofia da práxis. Ou, como define Hinkelammert, um humanismo da práxis.

Referências
BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de História, in: LÖWY, M., Walter Benjamín:
aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’, São Paulo,
Boitempo, 2005.

BENJAMIN, W. Capitalismo como Religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

BLOCH, E. Thomas Münzer: Teólogo da Revolução, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1973.

BLOCH, E. L’Esprit de l’utopie. 2. ed. revisada. Paris: Ed. Gallimard, 1977.

BLOCH, E. Entrevista à Michael Löwy, in: LÖWY, M. A evolução política de Lukács:


1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.

252
BLOCH, E. O Princípio Esperança. Vol.1. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 2005.

COELHO, A. S. Capitalismo como Religião: Walter Benjamin e os Teólogos da


Libertação. São Paulo: Recriar, 2021.

HINKELAMMERT, F. J. Cuando Dios se hace hombre. 2. ed. San José: Universidad


Nacional, 2022.

LÖWY, M. Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo:


Companhia das Letras, 1989.

LÖWY, M. Judeus Heterodoxos: Messianismo, Romantismo, Utopia. São Paulo:


Perspectiva, 2012.

LÖWY, M. Cristianismo de Liberación: Perspectivas marxistas y ecosocialistas.


Barcelona: El Viejo Topo, 2019.

LÖWY, M. O Cometa Incandescente: romantismo, surrealismo, subversão. São Paulo:


Editora 100/cabeças, 2021.

LÖWY, M; SAYRE, R. Revolta e Melancolia. São Paulo: Boitempo, 2015.

VINCENT, J.M. “Bloch”, in: RIOT-SARCEY et al. Dictionnaire des Utopies. Paris:
Larousse, 2002.

253
A INFLUÊNCIA DO REENCANTAMENTO PELO CONSUMO NO
COMPORTAMENTO RELIGIOSO CONTEMPORÂNEO

Amália Fonte Basso1

Resumo: Com o objetivo de discutir como certos valores capitalistas neoliberais refletem
em algumas compreensões religiosas e influenciam comportamentos, apresentamos
algumas situações noticiadas em sites da internet recentemente, discutindo-as à luz das
reflexões do conceito de religião fetichista/antifetichista de Enrique Dussel (1980), e do
conceito de reencantamento de mundo de Assmann (1998) e Sung (2006). Para esses
últimos, o processo de desencantamento não retirou do mundo moderno o aspecto
religioso, mas os seres humanos o substituíram por outros, e uma dessas formas de
reencantamento do mundo se dá pelos mitos capitalistas. Com a hipótese de que esse
sistema econômico que funciona como uma religião tem influenciado significativamente em
certas formas de ver e viver a religião, mais especificamente nessa reflexão, o cristianismo,
procuramos discutir como certos valores capitalistas neoliberais, principalmente a
supervalorização do dinheiro, a reificação e o fetichismo da mercadoria, refletem em
algumas compreensões religiosas cristãs contemporâneas, em que o encanto fetichista se
confunde com a própria religião.
Palavras-chave: Religião fetichista; Reencantamento; Educação.

Introdução
A partir das reflexões da religião fetichista de Enrique Dussel (1980), e das
reflexões do reencantamento de mundo de Assmann (1998) e Sung (2006),
procuramos discutir como certos valores capitalistas neoliberais, principalmente a
supervalorização do dinheiro, a reificação e o fetichismo da mercadoria, refletem em
algumas compreensões religiosas cristãs contemporâneas. Para Enrique Dussel
(1980), “Toda religião real (e por isso aquela em que se presta culto a Outro
absoluto), autentica, metafísica, será sempre um além de todo sistema dado, seja
erótico, pedagógico ou principalmente político (DUSSEL, 1980, p. 27)”. Quando a
religião reflete os mesmos valores do sistema econômico, não estaria então, de
acordo com Dussel, cumprindo seu papel em favor da vida.
Para Assmann (1998) e Sung (2006), o processo de desencantamento não
retirou do mundo moderno o aspecto religioso, mas os seres humanos o
substituíram por outros, e uma dessas formas de reencantamento do mundo se dá
pelos mitos capitalistas. Analisando alguns fatos noticiados sobre igrejas e

1 Doutoranda em Educação, pela Universidade São Francisco – USF – Bolsista PROSUP/CAPES

254
religiosos, em alguns sites de notícias conhecidos, tais como Uol, G1, BBC,
Cointelegraph, entre outros, nos propomos refletir à luz desses autores, como esses
fatos podem ser considerados em um contexto cultural mais amplo e não como fatos
isolados e esporádicos.
Assim, nos propomos pensar como alguns contextos cristãos tem se
mostrado contraditórios entre o que pregam e o que dizem crer a partir de uma
visão mercantilista da fé, buscando compreender como os valores desse sistema
econômico influenciam práticas e comportamentos em diversos grupos religiosos,
que podem ser observados, por exemplo, nos discursos religiosos que enfatizam a
religião como meio de mudança de vida financeira, benção como sinônimo de
sucesso financeiro, pastores liderando esquemas de pirâmide, esquemas financeiros
em igrejas, etc. Neste contexto, ganham forças grupos religiosos que propagam um
ideal imediatista de fé e religião como refúgio e solução rápida dos problemas da
vida. Esses comportamentos compõe um horizonte cultural complexo e há muitas
variáveis a investigar. Nos limites dessa investigação, porém, procuramos delinear
a reflexão em torno da ideia de que maneiras de crer podem determinar formas de
educar e de viver que podem alienar e oprimir os seres humanos, impedindo-os de
compreenderem melhor seu contexto histórico e de “serem mais” (FREIRE, 2019).
O que não significa desprezar o fato de que as mesmas denominações religiosas e
até mesmo os mesmos grupos, também podem conduzir a experiências que tornam
as pessoas mais solidárias, constroem realidades diferentes das formas
hegemônicas de vida, contrapondo-se a modelos opressores de cultura, e tornando-
se fontes de crítica e transformação da realidade social. É o que Dussel (1980) chama
de religião antifetichista. No entanto, não trataremos dessas experiências nesse
texto, dados os limites para essa reflexão. Não se trata de dicotomizar entre a “boa”
e a “má” religião, mas de problematizar que diferentes modos de crer podem
produzir diferentes tipos de educação, que, por sua vez, reproduzem formas de crer,
determinados por mitos nem sempre conscientes, que regem as condutas humanas
dentro de concepções religiosas.
Entre esses mitos, podem estar aqueles que regem o sistema capitalista,
compreendido aqui como religião do cotidiano, e que mobilizam para a adesão
(COELHO, 2021), impondo seu modelo de humanidade, quase sempre colonialista e

255
opressor. Nas palavras de Paulo Freire, os mitos do opressor que se instalam no
interior dos oprimidos parasitando sua humanidade (FREIRE, 2019).

Discussão
Segundo Dussel (1980) religião fetichista é aquela que inverte a lógica do
valor da vida, é a religião que aliena o pensamento e propõe o fundamentalismo
religioso como mais o importante. Aquela que usada pelo opressor, propõe maneiras
de viver a fé que se confundem com os objetivos deste, convencem as massas por
meio da mentira, do medo e do discurso fanático, ou da “dominação religiosa:
dominação da religião do conquistador sobre o oprimido (DUSSEL, 1993, p. 64)”.
Para ele, a religião verdadeira que promove a revolução e a libertação é aquela que
nega a Totalidade vigente fetichizada e em nome da justiça e da libertação nega a
religião-estado-opressor. Então, para ser antifetichista, segundo Dussel, uma religião
precisa romper com os mecanismos de dominação e com a lógica sacrificial,
renunciar o ego que diviniza, fetichiza a ordem das coisas, questionar a realidade em
busca de uma nova práxis, denunciar, interferir, propor novas formas de pensar e
agir.
Para Assmann (1998), e para Sung (2006), o modelo de vida neoliberal
prejudica o desenvolvimento da capacidade de solidariedade, porque não favorece
a experiência de empatia. Os símbolos que norteiam a vida contemporânea levam a
uma perda do sentido da vida ao reencantá-la a partir da cultura do consumo, em
que os mitos de produzidos por essa cultura incentivam comportamentos
individualistas e competitivos. Segundo Sung (2014), há diferença entre “economia
com mercado” e “economia de mercado” e estas incidem na forma como os seres
humanos se organizam dentro de uma sociedade. Economias pré-capitalistas são
economias com mercado, em que o mercado exerce uma função secundária na
sociedade, já que a produção de bens é destinada para a satisfação das necessidades
da comunidade. Já nas regras e valores da economia de mercado, a centralidade está
no mercado que se autorregula. Portanto suas regras e valores acabam por permear
todas as instâncias da vida, entre elas, a religião. Além disso, conforme afirmou
Weber já em sua época,
A ordem econômica capitalista de hoje é um imenso cosmo dentro
do qual o indivíduo nasce e que, a este, ao menos enquanto
indivíduo, está dado como envoltório factualmente imutável no

256
qual ele tem de viver. Ao indivíduo, enquanto este esteja implicado
no contexto do mercado, ele impõe as normas do seu agir
econômico (WEBER, 2020, p. 44).

Nesse sentido, até mesmo o pluralismo religioso, para Sung (2014) seria
incentivado por esse sistema econômico, em que os produtores de bens religiosos
levariam em conta os desejos dos consumidores religiosos que funcionam como
economias comerciais procurando servir os seus consumidores. O pluralismo
religioso, portanto, de acordo com a lógica de mercado, é benéfico por fomentar a
competição entre as religiões e oferecer “variedade religiosa” a seus consumidores
(SUNG, 2014).
Assim, os mitos desse sistema na religião, podem ser observados quando os
discursos religiosos enfatizam os benefícios individuais que se pode ter ao aderir à
determinada religião, igreja ou seita, com a finalidade de “mudar de vida”, obtendo
prosperidade e sucesso financeiro. Esquemas de pirâmide financeira, fetichização
de objetos de devoção e piedade para fins lucrativos, entre outros escândalos
comuns nas mídias. Sem citar o problema do uso da religião para manobra de massa
em campanhas políticas, cujo teor da discussão renderia outro estudo.
Exemplos deste tipo de comportamento apareceram nas recentes notícias
sobre contextos religiosos mais diversos. Alguns fundamentalistas e fanáticos
tiveram destaque no âmbito religioso brasileiro nos últimos anos e, sobretudo no
ano de 2020 durante a pandemia do COVID-19. Uma delas foi a venda de sementes
milagrosas pelo pastor Waldomiro Santiago da Igreja Mundial do Poder de Deus,
fato que apareceu em alguns sites de notícias na internet, como Uol, G1,Catracalivre,
etc2, em que o pastor induzia à crença na cura da COVID-19 ao adquirir e plantar
uma semente vendida por ele, e que supostamente seria um milagre. Os valores
eram variáveis de acordo com a fé do comprador, chegando a mil reais. A esse,
poderiam se somar outros exemplos de crenças em aquisição de objetos mágicos ou
de “devoção” como amuleto de proteção e salvação.

2 Notícia veiculada no site da Uol no dia 07 de maio de 2020:


https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/07/pastor-valdemiro-
santiago-vende-sementes-prometendo-a-cura-da-covid-19.htm; e site Catracalivre no mesmo dia:
https://catracalivre.com.br/mais/pastor-valdemiro-vende-semente-que-promete-falsa-cura-da-
covid-19/. Entre outros. O assunto volta ser debatido em janeiro de 2021 porque, segundo os
jornalistas, nem o pastor, nem o Ministério da Saúde cumpriram a recomendação do Ministério
Público federal para esclarecer a ineficácia da semente. https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2021/01/05/justica-determina-pela-2a-vez-que-ministerio-da-saude-informe-se-
feijao-do-pastor-valdemiro-santiago-cura-covid-19.ghtml.

257
Ao encontro da ideia de mercado religioso, podemos citar também, o
Instituto Brasileiro de Marketing Católico, que contrariando os fundamentos da
crítica profética, defendem uma ação evangelizadora baseada nos pilares das
técnicas do marketing comercial. De acordo com os idealizadores, utilizar as técnicas
de marketing na evangelização, atrairia os fiéis porque adequaria a linguagem ao
público, fazendo-o reconhecer suas necessidades de aderir à Igreja. O pesquisador
Lindolfo Alexandre de Souza (2011) expõe a problemática da instituição, mostrando
que não há uma posição oficial, mas que os documentos oficiais consideram o
marketing ambivalente. O que tenciona desafios à proposta evangelizadora por que,
cria-se uma situação em que o fiel é transformado em um consumidor de produtos
religiosos, que assume a mesma dinâmica da lógica do consumo e do mercado
(SOUZA, 2011).
Na mesma linha, observa-se como a lógica de mercado adentra as igrejas tal
como igreja negócio/empresa com mercado de bens de salvação. De acordo com o
jornalista de um site de noticias financeiras, Cássio Gusson do site Cointelegraph3,
as igrejas neopentecostais Igreja Mundial do Poder de Deus e Igreja Universal do
Reino de Deus envolveram-se em investigações do MPF por supostas denuncias de
esquemas de pirâmide de investimentos em Bitcoins, por membros e pastores
dessas Igrejas. Apoiados pela teologia da prosperidade, essas pessoas ofereciam
investimentos milagrosos para os fiéis, que convencidos pela ostentação de bens
aliada ao discurso religioso, aderiam ao esquema e, sob o risco de prejuízo, alguns
acabaram enganados e endividados. O autor cita nomes de empresas e envolvidos
nos esquemas das igrejas citadas. Segundo o jornalista, a Igreja Universal do Reino
de Deus, em sua defesa, afirmou que um dos acusados apenas frequentou a igreja e
que a instituição não tem nenhuma relação com os envolvidos. Evidencia-se nessas
relações religiosas a noção de ser humano homo economicus, o homem reduzido a
ser agente econômico que calcula racionalmente todas as opções em função de
atingir o seu interesse próprio (SUNG, 2014, p. 296).
Também é possível evidenciar, a prevalência desse homo economicus em
casos como os de cobrança por oração ou dízimos para a obtenção de prosperidade.
Tal como em março de 2023, no Quênia, em Nairóbi, onde um pastor evangélico

3 https://cointelegraph.com.br/news/pastor-valdemiro-santiago-is-investigated-by-the-federal-
public-ministry-for-the-seeds-against-covid-blow de 01 de dezembro de 2020, por Cássio Gusson.

258
cobrava pagamentos para orar pela vida financeira das pessoas, prometendo
solução imediata dos problemas e prosperidade financeira garantida. O pastor
cobrava em média 15.000 xelins quenianos (cerca de R$ 600). A prática é conhecida
como “oferta de sementes”: uma contribuição financeira a um líder religioso, com
um objetivo específico em mente. A notícia conta sobre uma mulher cuja condição
financeira não estava lhe permitindo criar seus 4 filhos, emprestou dinheiro de uma
amiga, que, por sua vez, fez um empréstimo no banco. Com a esperança de obter o
prometido retorno, que, segundo a propaganda, ela veria em uma semana.
Entretanto, o milagre nunca veio. O valor a devolver pelo empréstimo extrapolou
devido aos juros. Ela viu-se ainda mais endividada, desempregada e sem a amizade
daquela que lhe emprestou o dinheiro.4 Vê-se aqui que o pastor aproveitou-se da
condição da mulher, que necessitada, recorreu à fé que a condição de líder religioso
lhe inspirou, e que, no entanto, não passou de um sujeito antiético, cujo interesse
maior era o de conseguir dinheiro. Nesse caso, o deus dinheiro, o mesmo deus
fetiche que, segundo Dussel, é servido desde a modernidade e “ao qual se imolarão
a Ameríndia, a África negra e a Ásia, como as classes trabalhadoras do “centro”, a
mulher, a criança, o ancião, o “pobre” (DUSSEL, 1980, p. 16)”.
Com alguns exemplos como esses é possível perceber que a lógica de
mercado adentra também a religião e transforma algumas igrejas cristãs em
verdadeiros centros de negócios, ancorado em ideias baseadas na produção de
mitos capitalistas, na fetichização da fé, no hedonismo e no individualismo que são
características próprias do sistema capitalista neoliberal. Sistema este, que se
alimenta do sacrifício de suas vítimas empobrecidas e excluídas, o que configura-se
uma contradição com o sentido original da religião cristã, de amor ao próximo.

Considerações finais
O conceito de religião fetichista nos permite uma forma de compreender o
reencantamento de mundo pelo mercado, que fomenta um tipo de cultura de
consumo, cuja lógica é sacrificial, e que garante sua reprodução por meio da
educação e seus processos formativos sociais, entre eles, a religião, que pode

4Um dos sites que veiculou a noticia foi: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cer2v3z8vv8o


(12 de março 2023)

259
funcionar como vítima ou reprodutora desse sistema, quando não funciona de forma
antifetichista, denunciando e promovendo a esperança.
Os fatos discutidos nessa reflexão, não parecem, portanto, fatos isolados e
esporádicos, mas que estão atrelados com as formas de ver o mundo e a lógica
sacrificial do capitalismo como a religião do cotidiano. Já que, como tem afirmado
COELHO (2021) “a consciência fetichizada perverte a vida de todos, também de
cristãos e militantes sociais comprometidos. A mística do fetiche seduz para a
felicidade, não no âmbito das puras ideias racionais, mas nas apostas de realização
(COELHO, 2021, p. 921)” Por isso, a religião pode apresentar-se como mecanismo
de manobra de massa e reforçar uma educação para a barbárie, ao invés de uma
educação para o sentido solidário de coletividade e diálogo.
Dessa forma, se faz necessário, cada vez mais, elucidar o caráter ambíguo e
contraditório da religião, conscientizar as massas sobre os mitos do sistema
capitalista neoliberal e suas estratégias de reencantamento do mundo por meio do
consumismo. Esses, como afirma (Freire, 2019), instalados no interior dos
oprimidos, os fazem querer ser o opressor e parasitam sua humanidade, impedindo-
os de se libertarem e serem integrais em sua existência.

Referências
ASSMANN, H. Igreja eletrônica e seu impacto na América Latina. Petrópolis: Vozes,
1986.

ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis:


Vozes, 1998.

COELHO, Allan da Silva. Paulo Freire e Papa Francisco: Diálogo sobre discernimento
e educação ecológica na Laudato Si. Rev. Pistis Prax., Teol.Pastor., Curitiba, v. 13, n2,
p. 912-930, maio/ago.2021.

COELHO, Allan da Silva. Capitalismo como religião: Walter Benjamim e os teólogos


da libertação. São Paulo: Recriar, 2021.

DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação Latino-Americana: Uma filosofia da


religião antifetichista. Trad. Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola, 1980.

DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Trad.


Ephraim Ferreira Alves, Jaime A Clasen, Lúcia M. E. Orth. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 69. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

260
SOUZA, Lindolfo A. Marketing Católico e a crítica profética: desafios à ação
evangelizadora. Aparecida: Santuário, 2011.

SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida. Petrópolis: Vozes, 2006.

SUNG, J. M. Mercado religioso e mercado como religião. HORIZONTE – Revista de


Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 12, n. 34, p. 290-315, 25 jun. 2014.

WEBER, Max. A Ética protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. Tomas da Costa.


Petrópolis: Vozes, 2020.

261
TEORIA MIMÉTICA, DESEJO, CAPITALISMO E RELIGIÃO

Edevilson de Godoy1

Resumo: O antropólogo René Girard explicou a teoria mimética. Suas reflexões sobre o
desejo triangular e imitativo tornou-se importante ferramenta hermenêutica para estudar
as estruturas antropológicas, metafísicas, religiosas e econômicas do capitalismo. O
“coração” do sistema é a produção e o consumo. Já seu “espírito” é o desejo: vender sonhos
que signifiquem a vida e causem prazer e felicidade. Todavia, esse “espírito” é seletivo
porque não acolhe a todos. Oferece o paraíso para a elite e parte da classe média, mas exclui
milhões de seres humanos considerados descartáveis. A religião é fundamental no
capitalismo para legitimar o “status quo”. O capital tende sempre a apropriar-se dela para
servir seus interesses e esconder sua violência. O capitalismo é comparado a uma
locomotiva cujo piloto está cego pelo desejo de produzir, consumir e ter lucro. Entretanto,
está conduzindo à humanidade ao abismo, principalmente no que se refere à crise climática
e sua ameaça apocalíptica. Faz-se necessário a conversão do desejo, deslocar-se ao outro
polo, para imitar os valores da vida, da justiça e do cuidado com a natureza. Precisamos de
uma religião libertadora e profética que abra nossos olhos e nos ajude a sermos mais
humanos desde o modelo Jesus de Nazaré.
Palavras-chave: Teoria Mimética; Desejo; Capitalismo; Religião.

Introdução
René Girard, ao longo de mais de cinquenta anos, elaborou uma teoria geral
da história, banhada por uma compreensão cada vez mais apocalíptica. Nesta, a
religião está no alfa e no ômega do processo evolutivo. Desloca-se do desejo
mimético ao sagrado violento; da Bíblia Hebraica à paixão e ressurreição de Cristo;
da dialética entre mímesis violenta e libertadora até o remate da própria teoria na
perspectiva escatológica. O artigo parte das contribuições girardianas sobre desejo
para discutir capitalismo, consumo e religião.

1. Antropologia mimética
Seu primeiro insight é a estrutura essencialmente mimética do desejo. Desde
a literatura moderna, especialmente, os escritores “romanescos” (Cervantes,
Stendhal, Flaubert, Proust e Dostoievski) elabora a compreensão triangular do
desejo. Sempre despertado por alguém, o chamado modelo. A teoria mimética
germinou a partir da literatura com a publicação de “Mentira romântica e verdade
romanesca” (1961). Aponta um específico grupo de textos, nos quais as relações

1 Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP). E-mail: pe.edigodoy@uol.com.br.

262
humanas inserem-se em um complexo processo de conflitos, ilusões, projeções e
disputas que revelam a natureza mimética da condição humana. Girard navega na
contracorrente do subjetivismo autotélico moderno. Apresenta uma outra ontologia
em que o ser se constrói a partir do outro e não apenas por si mesmo. O processo de
devir é mediado por um modelo que desperta e impulsiona o processo a construção
da cultura. Funciona como um acendedor de sonhos. Isso é uma realidade natural
dentro do processo evolutivo. Imitar é algo que acontece de maneira inconsciente.
Embora o antropólogo franco-americano não se simpatize com o conceito freudiano,
pois optou pela expressão “meconoscence” para exprimir tal estrutura humana. Ou
seja, não se trata de decisão à priori ou espécie de “contrato social”. O ser humano
não decidiu ser assim, não foi escolha política. Mas um processo inerente à
hominização.
O modelo sente prazer existencial e social por ser admirado, isso potencializa
sua identidade. Porém, apega-se à exclusividade como garantia de poder, status e
realização. A questão está no continuar especial e diferente; não ser diminuído pela
“indiferenciação”. Concomitantemente, desperta o desejo no imitador que aspira
tornar-se semelhante a ele, todavia, procura negar-lhe o acesso para não perder a
diferença que o faz mais importante. No auge do conflito desaparece o objeto e
permanece a tensão. Nesse sentido, o desejo é metafísico, supera o objeto desejado
para situar-se no campo da realização do ser.

2. Relações humanas no capitalismo


A teoria mimética completou seis décadas de sua exposição pública. Seu
mentor faleceu no final de 2015 após tornar-se immortel da Academia Francesa e
deixou-nos a missão acadêmica de aprofundá-la em sua complexidade, sobretudo,
abrir novas vertentes hermenêuticas em que a mesma possa ser estudada e sirva
para iluminar as coisas humanas. Isso está acontecendo, muitos são os trabalhos
publicados em teoria mimética: do direito à economia, da psicologia aos estudos
sociais, da história à teologia, da crítica literária à ciência da religião. Nessa esfera, a
mesma ajuda a discutir as relações humanas na sociedade capitalista. O caráter
mimético é fundamental para impulsionar o consumo, alma do capitalismo. Através
dele situa-se o lugar e o valor das pessoas na sociedade. Define-se os bem-sucedidos,
os abençoados, os bem-aventurados e também os fracassados e descartados.

263
Na sociedade capitalista a propaganda, a publicidade e a mídia apontam a
beleza e a salvação terrena. Possuir, adquirir bens causam grande satisfação; faz
sentir-se especial na sociedade. Dá sentido para a vida. A força da narrativa exerce
uma função poderosa no conjunto das relações sociais. A mídia, através da
propaganda, vende um projeto de vida quase sempre à serviço do capital. O conceito
“indústria cultural”, embora tenha sido explicado por Adorno e Horkheimer na obra
“Dialética do esclarecimento” (1947) onde descortina com maior clareza a função
dos meios de comunicação que a ideia de mídia, pois esclarece seu caráter
econômico (ADORNO, HORKHEIMER, 2002, p. 44).
As potências empresariais espalhadas praticamente em todo o planeta
trabalham com eficácia a dimensão simbólica da vida através da construção de
desejos consumidores de seus produtos. Guy Debord, na obra “A sociedade do
espetáculo” trabalhou o poder das imagens no capitalismo. Definiu “espetáculo”
como o conjunto do tecido social impulsionado pelas imagens. A propaganda tem
um poder decisivo no sistema. Mostra a interdependência entre acúmulo de capital
e divulgação de imagens (DEBORD, 1997, p. 20). O neoliberalismo com sua renovada
defesa da liberdade de produção e consumo como sinal do progresso se fundamenta
na propaganda, espécie de brisa criadora de desejos. Essa é a maior porta-voz
ideológica do capitalismo.
Todos desejam, porém, a lei da exclusividade é primordial. Embora sonhar
seja possível e alimenta o cotidiano, alguns objetos não estão ao alcance de todos,
apenas a elite consegue consumi-los. Quanto mais pessoas os consomem, mas
perdem seu “mistério”, sua magia. Trata-se da dimensão metafísica, possui uma
transcendência que supera a si mesmo. Para além do objeto existe o “status quo”,
isto é, o estado das coisas no sentido ontológico, sociológico e cultural. Possuir um
objeto revela um nível do existir que no capitalismo traduz-se em felicidade, sucesso
e salvação.
O capitalismo é muito organizado e sedutor, gerencia os níveis de desejo
segundo a possiblidade de consumo. Para isso, utiliza o conceito de mercado. O
produto é feito para determinado seguimento da sociedade. Por exemplo, uma
marca de tênis; determinado modelo de carro; estilo de casa ou de viagem. Desta
forma, o sistema sabe criar a “mediação interna”, ou seja, gerar disputas dentro de
um grupo, pautar o que faz ser feliz a partir da realidade de classe.

264
Girard aprofundou detalhadamente essa dimensão de imitação e disputa
entre as pessoas. Dentro de uma comunidade a escolha do modelo que desperta
admiração e sonhos e, posteriormente, torna-se um conflito. A dimensão triangular
do desejo está dividida em “mediação interna e externa”. A primeira é a rivalidade
decorrente do confronto direto entre sujeito e mediador que se encontram no
mesmo espaço. Essa é responsável pelo surgimento dos conflitos pois entra em
disputa um objeto físico, um cargo ou uma pessoa. Algo real dentro do grupo. Duas
ou mais pessoas brigando pela mesma coisa. “[...] envolve um modelo ou mediador
que não foi separado do sujeito pelo tempo, pelo espaço ou por outros fatores,
tornando-se rival e obstáculo na busca do objeto por parte do sujeito” (GOLSAN,
2014, p. 26). Enquanto a segunda, contém uma distância entre ambos, seja
geográfica, intelectual, histórica ou virtual. Por isso, não causa rivalidade e disputa
direta. Explica detalhadamente esse processo em “Mentira romântica e verdade
romanesca” (GIRARD, 2009, p. 25-76).
O capitalismo penetra num determinado grupo social impondo-lhe as
exigências de felicidade e salvação. Sabe despertar desejos e consequentes disputas
dentro da especificidade da classe social. Por outro lado, a “mediação externa”
alimenta o cotidiano das pessoas. O grande jogador de futebol, o astro do esporte,
ator de cinema ou um pobre que se tornou bem-sucedido é apresentado como
referência para os populares continuarem lutando. Isso aparentemente não causa
disputa direta. Como comprar o apartamento de 1 milhão ou um carro de 300 mil
recebendo renda popular? Praticamente impossível! A realização do desejo, dos
sonhos e das ambições são ilimitados e sempre crescem na exclusividade de classe.
Funciona como uma promessa religiosa que sempre se abre para novas fases.
O capitalismo atual tem produzido um ódio étnico e religioso. Percebemos
isso com a escalada da extrema direta na última década. Também a globalização fez
do planeta uma aldeia global. Esses fatos alteram ou colocam em discussão as teses
de “medição interna e externa”, posto que há um ódio do pobre, do migrante
refugiado, do latino ou do afrodescendente. Um ressentimento cultural causador de
disputas e fundamentalismo nesta terceira década do século XXI. Somando à cultura
de descarte, racismo e xenofobismo. Tudo porque esses vulneráveis não consomem,
não trazem riqueza e, na maioria das vezes, dividem os mesmos espaços com nativos
inserindo-se no mercado de trabalho e apresentam demandas sanitárias e sociais

265
vistos como gastos para o estado. Representam um entrave para o capitalismo, um
custo a ser pago. Fosse ao contrário, trouxessem riquezas, consumo e lucro tudo
seria diferente.

3. Elite brasileira
A elite latino americana é conhecida historicamente por seu autoritarismo e
por seu sacrificialismo. Sempre negou os direitos dos nativos e dos vulneráveis. No
caso brasileiro, Jessé de Souza, fala da “elite do atraso” que não tolera políticas
públicas. A promoção social causa-lhe raiva e intolerância. Quando os pobres
começam a dividir os espaços ou consumir produtos reservados para a elite branca
ou a classe média sentem-se incomodadas. Na obra “A Elite do Atraso: da Escravidão
a Bolsonaro” (2019) explica como a escravidão no Brasil formou a sociedade.
Segundo Souza, a elite econômica e a classe média através da mídia usou a Operação
Lava Jato para combater a ascensão social da classe trabalhadora qualificada como
ralé de novos escravos para manter os privilégios da elite e as desigualdades sociais
(SOUZA, 2019, p. 114). A escravidão marcou a formação do Brasil e não a corrupção.
Essa foi a instituição que moveu o país. A antiga família de escravos existe hoje com
poucas mudanças: excluída, habitante da periferia e alvo de racismo. Formam
atualmente “a ralé de novos escravos” em grande parte mestiça, mas destinatária da
superexploração, do ódio e do desprezo que se nutria pelos escravos.
A nova elite econômica é a continuidade da antiga elite escravagista. A
diferença com outros países é que no Brasil a elite saqueia os pobres através de juros
ou pela pilhagem das riquezas naturais. Reproduz-se com ferramentas modernas o
mesmo ódio às classes populares. Construiu-se uma narrativa para dominar a
cabeça das pessoas e depois oprimi-las. A elite e a classe média formam uma
parceria antipopular que se posiciona contra qualquer política de promoção da vida,
capaz de diminuir a desigualdade social. Recentemente esse ódio aos pobres no
Brasil foi escondido ideologicamente pela narrativa da corrupção. A verdadeira
razão dessa intolerância aos pobres é a origem escravocrata no Brasil.
A sociologia de Souza contém implicitamente a crise do desejo. Ou melhor, a
exclusividade do modelo que não tolera perder seu lugar. Isso é bem notório na
classe dominante brasileira, intolerante e agressiva diante de qualquer risco de

266
ascensão social dos pobres. Enxerga nisso uma ameaça à sua particularidade
metafísica na manutenção do “status quo”.

4. Religião
A religião está sempre presente nas relações sociais. O capitalismo soube
apropriar-se com maestria da religiosidade para trabalhar a seu favor. Aprimorou
narrativas espirituais antigas para legitimar sua ação na história, mesmo àquelas
desumanas.
Uma forma tradicional que remonta à Bíblia Hebraica é a religião da
retribuição. Legitima a crise do desejo e justifica espiritualmente a exclusividade da
elite ou da classe média. A tese da retribuição afirma que os justos são premiados
com a riqueza e o sucesso, enquanto, os pecadores castigados com sofrimento. A
teologia da prosperidade representa a tese da retribuição no cenário capitalista
mundial, principalmente, na esfera de liderança norte americana.
Nesta mesma linha está a espiritualidade do mérito. A elite merece porque
tem mérito, mais competência e dedicação. Exemplo, passou no concurso porque foi
mais sério nos estudos. O filósofo Michel Sandel em “A tirania do mérito” (2020)
ajuda a desmitificar essa ideologia opressora. A meritocracia é erosiva e sacrificial,
ferramenta ideológica e religiosa da extrema direita. Desperta o ressentimento nas
classes populares fazendo-as sentirem-se culpadas pelo próprio fracasso. Cada um
é responsável pela própria condição social, ou seja, merecedor da mesma. Desta
maneira, culpa-se os oprimidos pela sua condição e fecha-se à solidariedade. O
mérito é uma ideologia religiosa e ensina que somos responsáveis pelo nosso
destino e pela nossa salvação. Essa espiritualidade serve aos interesses capitalistas,
à exclusividade do desejo e não se encaixa no reino de Jesus.
A religião da libertação está sempre presente. Representa a kenosis do
Espírito na história. Embora a igreja nem sempre seja sua maior representante,
posto que, esteve mais na “casa grande” que na “senzala”; a força da libertação a
partir da fé nunca se apagou. Os movimentos libertários, as pedagogias a favor da
vida, a resistência e todas as formas de luta por um mundo mais humano inspirados
em Jesus, sempre estiveram vivos. Vencem perseguições, causam martírios e
alimentam a esperança utópica.

267
Nessa perspectiva, a religião elucida a consciência histórica e contribui no
processo de humanização. Na linha de Juan Luis Segundo, Deus se revela a partir da
realidade através do “círculo hermenêutico” para ajudar a construir uma sociedade
melhor. A revelação é um processo educativo no qual precisamos aprender a
aprender o que Deus está nos comunicando em cada momento histórico para
ajudar-nos a vencer a opressão e a alienação. Faz-se necessário libertar a teologia
para que não sirva à manutenção do “status quo” (SEGUNDO, 1978, p. 9).
A teoria mimética elaborou uma compreensão dialética da história. Somos o
embate entre “mímesis má” e “mímesis boa”. A primeira é a imitação da violência,
do ódio e das desumanidades, é sacrificial. A segunda é a imitação da vida, da
solidariedade e do amor. Para os cristãos é a imitação de Jesus, libertadora e capaz
de converter a perversidade do desejo capitalista. Essa dialética abre-nos a
necessidade da conversão do desejo, seria exatamente o deslocamento do desejo
destruidor para um mais humano e cuidador da vida.

5. Questão apocalíptica
Em dezembro de 2023 celebra-se 100 anos do nascimento de Girard. Sua
obra é polêmica, alvo de rejeições. Porém, continua sendo bastante estudada por
diferentes setores das ciências humanas: conservadores e progressistas.
Seu último insight remonta à 2007 com a publicação de “Rematar
Clausewitiz: arte da guerra”. Definido como o remate de sua teoria é apocalíptico.
Esse não parece claro, nem bem fundamentado como os anteriores. Bernard Perret,
economista francês de Paris, estudioso de Girard, diz que algumas questões do
mundo como: crise ecológica, desigualdade social, crise do capitalismo, xenofobia e
a revolução tecnológica são temas a serem afrontados neste século. A apocalíptica
insere-se na necessidade de lidar com essas situações urgentes do século que nos
obrigam a construir uma nova ordem mundial não violenta. O desafio é resolver
esses problemas. Será que daremos conta? Nisso está o apocalíptico, posto que,
podem destruir a humanidade (PERRET, 2023, p. 24).
A questão do desejo nas relações capitalistas e a crescente desigualdade
social, o crescimento da extrema direita, o ódio, a violência e a negação dos diretos
humanos exigirá grandes esforços de diálogo, porque do contrário causará ainda
mais caos social. O risco real de a humanidade desaparecer dentro de alguns séculos,

268
ou ainda, a ameaça à qualidade de vida no planeta devido à crise ecológica, somado
às desigualdades colossais do capitalismo tornam-se uma experiência apocalíptica.
No sentido que seremos obrigados a nos converter, mudar a lógica do desejo para
nos salvarmos. Como diz Francisco na Frattelli Tutti: “Ninguém se salva sozinho”
(54). “ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém” (137).

Considerações finais
Discutir a questão do desejo, sua realidade metafísica e usar essa
antropologia para dialogar sobre as estruturas do capitalismo é apenas uma
tentativa de aproxima-se de um tema tão complexo. Todas as hermenêuticas que
nos ajudem a discutir suas desumanidades e contradições; defender direitos e,
sobretudo, não pregar uma religião legitimadora do “status quo”, mas voltar-se ao
reino de Jesus de Nazaré para ficar do lado da vida, é absolutamente válida. A
conversão do desejo é a base antropológica e religiosa para a salvação do planeta
diante da fúria cega do capitalismo.

Referências
ADORNO, Theodor; HOKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Zahar, 2002.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1997.

GIRARD, René. Rematar Clausewitz: além da guerra. São Paulo: É Realizações, 2011.

GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. São Paulo: É Realizações,


2009.

GIRARD, René. A rota antiga dos homens perversos. São Paulo: Paulus, 2009.

GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo: Paz e Terra,
2008.

GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio. Lisboa: Piaget, 2002.

GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.

GOlSAN, Richard. Mito e teoria mimética. São Paulo: É Realizações, 2014.

KIRWAN, Michael. Teoria mimética. São Paulo: É Realizações, 2015.

PERRET, Bernard. Violence des dieux, violence de l’homme. Paris: Seuil, 2023.

269
SANDEL, Michel. A tirania do mérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

SEGUNDO, Juan Luis. A libertação da teologia. São Paulo: Loyola, 1978.

SOUZA, Jessé. A elite do Atraso. São Paulo: Estação Brasil, 2019.

270
IMUNIDADE TRIBUTÁRIA AOS TEMPLOS DE QUALQUER CULTO,
LIBERDADE RELIGIOSA E MERCADO RELIGIOSO NO BRASIL

Flávia Ribeiro Amaro1

Resumo: Partindo de uma abordagem transdisciplinar, nesta comunicação dedico atenção


à questão da imunidade tributária concedida a templos de qualquer culto, prevista na
Constituição Federal brasileira, e a conformação de um mercado religioso de bens materiais
e simbólicos. A comunicação busca aprofundar o entendimento sobre o funcionamento
dessa lei no País, considerando ementas e trâmites recentes e refletindo sobre os possíveis
impactos econômicos e sociais dessa isenção de tributos, questionando se ela é justa e
adequada ao contexto atual. Nesse sentido, apresenta argumentos favoráveis e contrários à
tal política do Estado brasileiro, problematizando, especialmente, a questão da liberdade
religiosa. Destaca-se o crescimento do mercado religioso no Brasil, comentando como ele se
tornou um setor econômico significativo. Aborda-se a diversidade de crenças e
denominações presentes no campo religioso nacional, analisando como essas diferentes
vertentes religiosas competem entre si e atraem fiéis. Discute-se como a isenção de
impostos pode incentivar práticas ilegais e desvios de recursos financeiros dentro das
instituições religiosas. Reflete-se sobre a noção de mercado religioso, amparada em
referencial bibliográfico das ciências sociais e das ciências da religião. E, busca-se
estabelecer conexões entre a imunidade tributária e o fato de a religião ser admitida como
mercadoria.
Palavras-chave: Brasil; Imunidade tributária; Mercado Religioso; Religião.

Introdução
A imunidade tributária concedida a templos religiosos mobiliza duas
posições divergentes na opinião pública brasileira, uma favorável e outra contrária.
Enquanto uma defende o argumento de que a imunidade tributária corrobora à
liberdade religiosa, a outra postula que esse benefício constitucional, na realidade,
abre precedente para que irregularidades e maus usos sejam administrados,
fomentando um poder paralelo e escuso. Pois, essa disputa por influências
ultrapassa o espaço concorrencial da fé e envolve concorrência mercadológica.
A imunidade tributária outorgada a templos de qualquer culto implica que, a
União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não podem instituir e cobrar
impostos sobre as entidades religiosas. Discute-se essa medida e como ela pode
estar relacionada ao fomento e à manutenção de um mercado religioso rentável e
competitivo no País.

1Doutora em ciência da religião pela UFJF. Pós-doutoranda em ciências da religião pela UMESP. E-
mail: flavia.ramaro@gmail.com

271
Parte-se do pressuposto que a proliferação de diferentes matizes religiosas
redunda em um crescente pluralismo no campo religioso brasileiro. E que essas
diversas religiões competem entre si e atuam como verdadeiros empreendimentos
mercadológicos.
A comunicação explora implicações políticas, ideológicas e históricas
vinculadas à essa questão. Pois, num país em que a carga tributária atribuída aos
cidadãos é uma das maiores do mundo como justificar que certas igrejas bilionárias
não contribuam com as receitas da União? Até que ponto é vantajoso, por parte do
Estado, estimular o pluralismo e fomentar o mercado religioso? Acredita-se que esse
debate deva extrapolar o âmbito jurídico e ser interpelado não só pela academia,
especialmente, pelas ciências da religião, como alcançar a esfera pública e o senso
comum, para que esses contrassensos sejam publicizados e problematizados.

1. Imunidade tributária à templos de qualquer culto: um recorte histórico-


político
O privilégio da imunidade tributária contempla os seguintes impostos:
Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU); Imposto sobre
Propriedade de Veículos Automotores (IPVA); Imposto de Renda (IR). A
exequibilidade dessa lei implica em incluir um espectro muito amplo de religiões,
pois o Estado é laico e pautado pelo princípio da isonomia.
O argumento favorável está amparado na prerrogativa de que as religiões
desempenham um importante papel na sociedade. E que, o seu objetivo é estimular
não só a permanência das religiões no País, como promover a expansão do campo
religioso. Seu intuito é garantir que nenhuma entidade religiosa seja impedida de
professar sua fé em razão da impossibilidade de pagar tributos.
Já os argumentos contrários postulam que há uma controversa amplitude da
garantia constitucional e que não há fiscalização, o que abre margem para
irregularidades.
Quanto aos novos trâmites, em 16 de julho de 2020, foi aprovado um projeto
de lei que concedia perdão de dívidas de igrejas para com a União, que
ultrapassavam 1 bilhão de reais. Tal medida foi reivindicada utilizando como
argumento a liberdade religiosa. Entretanto, fica a pergunta: Qual é a procedência
dessa dívida, já que instituições religiosas não pagam impostos?

272
A “Bancada da Bíblia” conseguiu articular um artigo que prevê a liberação do
pagamento da CSLL – Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido, testificando a
isenção do imposto cobrado sobre o lucro líquido de empresas e entidades privadas,
bem como anistiando multas cobradas em função da sonegação desses impostos.

2. Mercado religioso no Brasil


Cada denominação religiosa tem sua própria forma de se organizar e se
apresentar diante do mercado religioso. Isso inclui competição, propaganda
proselitista e arrecadação de recursos junto a organizações públicas e privadas. Com
o processo de secularização e a separação entre Igreja e Estado, oficializada em
1989, os grupos religiosos passaram a competir não só entre eles como, também,
com grupos não- religiosos.
As religiões cristãs, ainda majoritárias, se diversificaram, o que aconteceu
tanto entre as vertentes protestantes e pentecostais quanto com a Igreja católica. No
interior do catolicismo, proliferaram diferentes movimentos, que vão desde a
Teologia da Libertação, e sua opção preferencial pelos pobres, à Renovação
Carismática Católica, centrada na salvação do indivíduo. A partir da década de 1970,
o consumismo, decisivamente, generalizou-se. Nesse contexto, surgiu a Teologia da
Prosperidade e as denominações neopentecostais, responsáveis por destituir o
caráter demoníaco antes atribuído ao dinheiro e ao consumo, ao divulgar um
discurso teológico pautado pela prosperidade, pela exaltação do trabalho e pela
exigência do dízimo como um investimento, um tipo de sacrifício.
Testemunhou-se a decaída dessa teologia com ênfase nos pobres e na justiça
social. Compreende-se que, “Hoje, com a hegemonia da cultura neoliberal, a noção
de justiça de mercado sobrepujou e deslegitimou a noção de justiça social” (SUNG,
2018, p. 14)
A franca concorrência que se apresenta em decorrência do pluralismo e de
facilidades como a imunidade tributária, desencadeou o aparecimento dos
“burocratas religiosos”2. Isto é, agentes religiosos especializados em mobilizar
recursos para as suas respectivas religiões. Pois, uma vez que, as igrejas passaram a
atuar como agências de mercado, elas foram estimuladas a exibir uma aptidão à

2 Tal como nos termos de Peter Berger (1985).

273
competitividade, a criar necessidades, a utilizar de táticas publicitárias e a recorrer
à mecanismos de organização e gestão institucional. Assim, a estreita relação entre
o espírito empresarial e as instituições religiosas pode ser percebida como uma das
características lancinantes do campo religioso brasileiro contemporâneo.
Conforme expõe Berger (1985, p. 149), “A situação pluralista é, acima de
tudo, uma situação de mercado.” Pois, “Agora, os grupos religiosos têm de se
organizar de forma a conquistar uma população de consumidores em competição
com outros grupos que têm o mesmo propósito” (BERGER, 1985, p. 150) Destarte,
as religiões submetem-se à um processo de racionalização e burocratização e
competem não só por uma clientela consumidora, como por lobby junto ao governo.
Haja visto que, as igrejas funcionam como verdadeiras empresas e administram
diferentes fontes de obtenção de lucros e subvenções – para além das doações
espontâneas dos fiéis, pleiteiam financiamentos em agências governamentais.
A teoria do mercado religioso demonstra que, a ampla concorrência entre as
diferentes religiões converge ao aparelhamento à lógica do mercado capitalista
(SUNG, 2014). Admite-se a ideia de que a religião está subordinada à lógica do
mercado. Em resumo, entende-se que nesse modelo, é o sistema capitalista que
assume o papel de legitimador da ordem social. Corroborando para que a lógica de
mercado se torne predominante, e interfira, inclusive, no âmbito das religiões.
A hipótese é que o mercado religioso é beneficiado por essa configuração
constitucional. Porquanto, a religião se torna um empreendimento vantajoso sob o
ponto de vista do capitalismo e da geração de lucros. A polêmica envolve acusações
de que a imunidade tributária oportuniza situações de enriquecimento súbito e
outros negócios escusos. Pois, quanto mais incentivos tributários e quanto menor a
regulação e a fiscalização, maior a incidência do pluralismo e, portanto, de
concorrência no que tange à oferta de bens e serviços religiosos.
Argumentos contrários defendem que qualquer instituição religiosa, que
esteja enriquecendo desproporcionalmente deve ser tributada. Pois, algumas
vertentes religiosas se valem dessas facilidades para cometerem “atos de
mercancia”.

274
3. Um paradoxo envolvendo a liberdade religiosa e o capitalismo como
religião
O texto aborda a controvérsia em torno da liberdade religiosa no Brasil, que
está relacionada ao debate sobre a imunidade tributária e seus contrassensos. A
garantia constitucional acarreta o agravamento de questões como a desigualdade
social, pois se eles fossem tributados esses recursos poderiam ser melhor
empregados, justamente, nas áreas sociais.
O capitalismo se comporta como uma religião idólatra. Há de se reconhecer
que a força mobilizadora responsável por fascinar e justificar a adesão das pessoas
a diferentes denominações religiosas está relacionada ao fato delas exercerem o
mesmo poder de sedução típico das mercadorias, e por despertarem nos indivíduos
fetiches de consumo (SUNG, 2018).
Allan da Silva Coelho e Jung Mo Sung (2019), abordam o sistema capitalista
como expressão de uma religião dedicada a um falso deus – um ídolo. Eles defendem
que, o discurso religioso está pautado pelo fetichismo. Pois, “O conceito que provoca
a crítica do capitalismo como religião é o fetiche da mercadoria e a expectativa é
insurgir-se contra a normalidade da vida cotidiana imposto pelo espírito do fetiche”
(COELHO; SUNG, 2019, p. 663) Das contribuições dos autores, vale reter que o
sistema neoliberal não é completamente secularizado, pois ele está associado a um
tipo de idolatria – a idolatria de mercado, que por sua vez, atua como um mecanismo
oculto, responsável por reproduzir o circuito sacrificial religioso.

Considerações finais
Discutiu-se que tanto a religião atua como uma agência de mercado quanto o
próprio mercado capitalista se constituiu enquanto uma estrutura religiosa,
funcionando tal qual uma religião. Esclareceu-se as semelhanças entre a religião e o
mercado capitalista, a partir da constatação de que ambos são estruturas que
exercem influência mútua e funcionam de forma equivalente. Ressaltou-se a
necessidade de questionar os processos arbitrários que contribuem para a
intensificação das desigualdades e das injustiças sociais. Pois, considera-se
imprescindível que sejam feitos questionamentos sobre a atuação de algumas
igrejas que, transformadas em lucrativos empreendimentos, angariam seguidores e

275
obtêm lucros por meio de benefícios estatais como a imunidade tributária às
religiões.

Referências
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da
religião. São Paulo: Paulus, 1985.

COELHO, Allan da Silva; SUNG, Jung Mo. Capitalismo como religião: uma revisão
teórica da relação entre religião e economia na modernidade. Horizonte, v. 17, n. 53,
mai./ ago., p. 651-675, 2019. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/20384>.
Acesso em: 29 jul. 2023.

PRANDI, Reginaldo. Converter indivíduos, mudar culturas. Tempo Social, v. 20, n. 2,


nov., 2008. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/ts/a/jQWL5LGdsWPGGWCD8cJqLKN/?lang=pt>. Acesso
em: 27 jul. 2023.

SUNG, Jung Mo. Mercado religioso e mercado como religião. Horizonte, v. 12, n. 34,
jan. /abr., p. 290-315, 2014. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P. 2175-
5841.2014v12n34p290>. Acesso em: 30 jul. 2023.

SUNG, Jung Mo. Idolatria do dinheiro e direitos humanos: uma crítica teológica do
novo mito do capitalismo. São Paulo: Paulus, 2018.

276
“IGREJAS DE PAREDE PRETA”: A SUPERESTRUTURA EVANGÉLICA
DO NEOLIBERALISMO?

Francisca Jaquelini de Souza Viração1

Resumo: Este trabalho engloba dentro da alcunha “Igrejas de Parede Preta”, todas as igrejas
evangélicas que copiaram o modelo da Hilllsong Church da Austrália, que adoram uma
estética “dessacralizada”, no intuito de conquistar um público mais jovem. O altar deu lugar
a uma sala de “talk show”, a pregação se transformou em auto-ajuda religiosa, a arquitetura
perdeu sinos, torres e vitrais para aparentar um estúdio TV. Tudo escuro e luz apenas no
“palco”, já que não existe altar, como em uma casa de show. Apesar de toda essa aparente
modernidade, a moralidade continua extremamente puritana com uma ética
profundamente individualista, liberal e que apoiou o bolsonarismo. Através dos conceitos
abordados por Pierre Dardot e Christian Laval em seu livro A nova razão do mundo: Ensaio
sobre a sociedade neoliberal, este trabalho, em fase inicial, busca investigar toda esta
estética religiosa como uma superestrutura evangélica neoliberal. Considerando o conceito
de superestrutura da teoria marxista, para defender que este tipo de teologia evangélica não
poderia ter surgido sem o atual estágio neoliberal do capitalismo e, portanto, deve chegar
ao fim, com o fim do neoliberalismo. E também, a partir da teologia de tradição luterana,
questiona-se se esta teologia não está deslocando a fé do Deus Cristão, para o deus mercado,
investigando pregações e músicas cantadas nestas igrejas.
Palavras-chave: “Igrejas de Parede Preta”; Superestrutura; Neoliberalismo.

Introdução
Esta é uma pesquisa em fase inicial, que pretende ser um projeto para pós-
doutorado na área das ciências econômicas. A indagação inicial para esta pesquisa
partiu, da observação simples, do apoio da esmagadora maioria dessas igrejas, que
aparentam ser bem modernas, ao bolsonarismo nas eleições de 2022. O que nas
pregações, músicas e estética dessas igrejas falam acerca de sua ideologia (na
perspectiva marxista)? E que tipo de Deus é apresentado nas suas teologias, fazendo
a crítica através da teologia luterana?
Desta feita, a pesquisa, em fase inicial indaga, se este estilo de igreja
evangélica é, ao mesmo tempo, uma superestrutura evangélica do neoliberalismo,
como expressa uma característica do neoliberalismo como uma “nova razão”, de
acordo com a visão de Pierre Dardot e Christian Laval. Igrejas são vistas como uma
grande startup, pastores como coachs, e Deus, à partir da crítica luterana, mais para
o deus-mercado e menos para Cristo.

1Doutora em Teologia pela Faculdades EST, professora de História Econômica e Economia Política
na Universidade Regional do Cariri. Email: Jaquelini.souza@urca.br

277
1. O que é uma “Igreja de Parede Preta”?
Conceituo como igrejas que adotam o modelo da Hillsong Church, fundada
em 1983 em Sidney, Austrália. Ela é pensada e administrada como uma empresa,
com conselho de diretores e “ceo’s”. Usa a música como a principal marca para
expansão e evangelização, geralmente tem um “público alvo” jovem e urbano. Para
atraí-los usa uma linguagem dessacralizada, “não religiosa”. Não se identificam com
nenhum ramo tradicional do protestantismo (luteranismo, calvinismo,
pentecostalismo clássico), portanto não se preocupam com identidade confessional
teológica bem definida, tendendo a identidade confessional ser a do pastor líder.
Geralmente usam excessivamente termos em inglês para aparentar “descoladas” e
“globais”. Enfim, querem ser igrejas “legais”, porém são facilmente identificadas
como neopentecostais pela sua adoção à teologia da prosperidade.

2. O que é superestrutura?
Em seu famoso prefácio de Contribuição à Crítica à economia política, Marx
definiu superestrutura como:
A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de
fio condutor de meus estudos, pode formular-se resumidamente
assim: na produção social da sua existência, os homens
estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da
sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas
materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se
eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social. O modo de produção da
vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política
e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, é o seu ser social que, inversamente determina
a sua consciência (MARX, 2003, p. 5).

Ou seja, estrutura tem a ver com a vida concreta da economia, produção,


distribuição etc. E superestrutura todo o arcabouço de ideias que surgem desta
estrutura e que ajudam a sustentá-la. Assim esse tipo de igreja, que no IBGE aparece
como evangélicos não-denominacionais, surgida na década de 1980, não apenas só
foi possível surgir e se proliferar na mentalidade neoliberal, como ajuda a sustentá-
la.
Mas quais elementos podem ser decisivos e definidores para caracterizar
este tipo de igreja evangélica como uma superestrutura neoliberal? Talvez a maior

278
característica seja uma evolução da teologia da prosperidade, o eixo se desloca de
rituais religiosos coletivos em busca de algo, por exemplo: campanhas de oração,
vigílias para curas de doenças, arrumar um emprego, restaurar ou arrumar
casamento, etc. Além disso, mesmo os cultos transmitidos pela TV, de grandes
denominações neopentecostais, como a IURD e a Internacional da Graça, tentavam
criar uma interatividade com o telespectador, como por exemplo, a incentivar que
colocassem um copo com água do lado da TV e bebê-lo somente após a oração do
pastor. Isto também criava uma conexão de identidade coletiva, bem diferente do
que se vê nas “igrejas de parede preta”.
A teologia da prosperidade nessas igrejas saiu de uma busca coletiva por
benção, para um extremo individualismo do “você é capaz”, “seja a melhor versão de
você mesmo”, muito através de pregações que se assemelha muito a palestras de
auto-ajuda com a Bíblia como manual seguro para o sucesso. Perdendo-se o caráter
religioso para transmutar-se para um assemelhado ao mundo corporativo. Isto,
nada mais é do que a “cnpjtização” da vida do homem-empresa que Dardort e Laval
tanto falam em sua obra.
Em uma rápida e simples pesquisa, apenas colocando o nome do pastor no
navegador de buscas do YouTube, vê-se uma série de pregações com títulos que
mais parecem palestras motivacionais, tais como: “Seja você a solução do seu
problema”, do pastor Claudio Duarte no canal Projeto Recomeçar. “A mudança
começa em sua mente” do pastor André Fernandes no canal Lagoinha Aphaville e
“Vão duvidar de você” do pastor Deive Leonardo em seu canal.
Quando comparado a pesquisas de lideranças clássicas do
neopentecostalismo, a mudança de eixo no tema das pregações é clara, pesquisando
por Edir Macedo, vê-se títulos de pregações como estas: “Como resistir aos ataques
do diabo?”, “Como se livrar da mágoa?”, “Como voltar ao primeiro amor?”, todas
postadas no canal do Templo de Salomão. Já para a pesquisa com o nome R.R. Soares,
todas postadas no canal Amar a Deus, as três primeiras que aparecem são: “Entregue
seu fardo a Jesus.”, “A Batalha é de Deus”, “Não julgue injustamente”.
Por mais que haja edição no título que se apresenta do vídeo, até a edição é
uma prova do que se quer enfatizar, para facilitar as buscas e visualizações através
dos algoritmos, pressupondo o que mais se busca para gerar monetização nos
canais. É nítida a diferente de mudança de eixo nos temas das pregações, o foco não

279
é batalha espiritual, suportar problemas, pecado, salvação, como ser mais parecido
com Cristo. Mas como eu, na perspectiva mais individualista possível, posso vencer
nas mais variadas áreas da vida.
Uma das pregações mais polêmicas do meio evangélico, que levou a inúmeras
refutações, o que é comum neste meio, foi a do pastor Deive Leonardo em que ele
afirmou: “Do evangelho Jesus é o centro, mas de Jesus, você é o centro, do coração de
Jesus você é o centro, porque fomos chamados filhos e somos filhos. Você é importante,
tudo que Jesus fez apontou pra você...Você é a pessoa mais importante da Terra, porque
tudo que Jesus fez foi por sua culpa.” Vê-se nitidamente que o sacrifício de Cristo é
usado para elevar a autoestima dos ouvintes.
Assim como nas pregações, nas músicas também é comum ser enfatizado o
poder de Deus, como Deus é poderoso, mas com foco não Nele mesmo, mas em sua
capacidade de socorrer seus filhos. Esta característica nas músicas, no entanto não
é uma exclusividade das “igrejas de parece preta”, cujo louvor é em estilo worship,
que pode ser descrito como músicas grandes, com várias repetições, com muita
ministração e tem como característica principal um órgão/piano ao fundo para
prender emocionalmente.
Enfatizar o poder de Deus em socorro a seus filhos nas músicas é tema
clássico no mundo pentecostal, por exemplo, um clássico do gênero é “Hino da
Vitória”, que nasceu como pentecostal, pela cantora Cassiane, o clipe original no
canal da MK Music, postado em 12 de maio de 2015 tem 27.835.764 visualizações.
Enquanto sua versão worship interpretado por Gabriela Rocha, postado no próprio
canal da cantora em 21 de fevereiro de 2022 tem 36.894.556 visualizações, quase
10 milhões a mais em bem menos tempo. A letra diz:
Toda vez que o Mar Vermelho tiver que passar
Chame logo este Homem para te ajudar
É nas horas mais difíceis que Ele mais te vê
Pode chamar este Homem que Ele tem poder
Se passares pelo fogo não vai te queimar
Se nas águas tu passares não vão te afogar
Faça como Israel que o mar atravessou
E no nome do Senhor um hino de vitória do outro lado cantou.

A centralidade deixa de ser a divindade, para o que a divindade pode fazer


para o ser humano, e como o ser humano faz para alcançar este favor divino. O fiel
torna-se um empreendedor da fé e a fé torna-se um empreendimento. Por mais que
esta divindade seja alcançada na coletividade do culto, as pregações e músicas na

280
primeira pessoa estimulam ao fiel sentir-se só em meio a multidão, já que este Deus
é seu pai, só seu, não nosso, como diz a oração de Jesus. Percebe-se uma enorme
privatização da experiência religiosa coletiva. Nasce o homem-empresa-religioso.
Dando ênfase à ação individual e ao processo de mercado, os
autores austro-americanos visam, em primeiro lugar, a produzir
uma descrição realista de uma máquina econômica que tende ao
equilíbrio, quando não é perturbada por moralismos ou
intervenções políticas e sociais destruidoras. Em segundo lugar,
visam a mostrar como se constrói na concorrência geral certa
dimensão do homem, o entrepreneurship, que é o princípio de
conduta potencialmente universal mais essencial à ordem
capitalista. Desse modo, como diz muito apropriadamente Thomas
Lemke em seu comentário sobre Michel Foucault, o neoliberalismo
apresenta-se como um “projeto político que tenta criar uma
realidade social que supostamente já existe”. É precisamente essa
dimensão antropológica do homem-empresa que, de um modo
diferente daquele da sociologia ordoliberal, será a principal
contribuição dessa corrente” (DARDOT & LAVAL, 2016, p. 134).

3. Uma crítica luterana


A partir da teologia luterana podemos fazer uma crítica que esta teologia, que
seria uma espécie de desdobramento ou “evolução” ou fase da teologia da
prosperidade é uma teologia antropocêntrica. E se as respostas estão em nós
mesmos, como é o título de uma das pregações aqui citadas, então não é preciso
Deus. A teologia luterana enfatiza o paradoxo da vitória, naquele que sofre, que é
derrotado, e que Ele Levanta para Sua Glória e não para a mera satisfação do ser
humano. Em seu comentário ao salmo 38, Lutero disse:
Deus se caracteriza por criar a partir do nada. Logo, Deus nada pode
fazer daquele que ainda não foi reduzido a nada. Os homens, por
outro lado, fazem uma coisa a partir de algo que já existe, o que é
pura perda de tempo. Por isso, Deus só acolhe os abandonados; não
dá saúde senão aos doentes; não restaura a visão senão aos cegos;
não dá vida senão aos mortos; não salva senão pecadores; não dá
sabedoria senão aos incultos. Em resumo: Deus não se compadece
senão dos miseráveis, e não concede graça senão àqueles que se
acham em desgraça. Em vista disso, nenhum santo, sábio ou justo
pode tornar-se matéria-prima a ser trabalhada e transformada por
Deus; esses continuam em suas obras e fazem de si mesmos santos
irrepreensíveis, aparentes, falsos, camuflados, isto é, hipócritas
(LUTERO, 2012, p. 512).

Uma segunda crítica que é possível fazer A partir da teologia luterana é a


questão da graça barata, conceito presente na obra Discipulado. Ou seja, uma vida
cristã que não requer discipulado e caminhada com Cristo, que exige o esvaziamento

281
de si, compromisso, renúncia. Caminhar com Cristo tem um preço, o preço do
discipulado, de ser moldado por Ele, e não apenas receber suas bençãos.
Uma terceira e última crítica a ser feita é ao excesso de privatização da
experiência religiosa. Por mais que tenha sido da tradição luterana, uma
popularização do individualismo na piedade, através da leitura da Bíblia. E mais
tarde com pietismo a necessidade de um encontro pessoal com Cristo, a teologia
luterana é sacramental, a experiência de viver os sacramentos leva ao fiel a uma
piedade coletiva, de viver para ser benção para o outro e a sociedade exercendo seu
sacerdócio geral.

Considerações finais
Esta é uma pesquisa em fase inicial e que pretende investigar se de fato este
tipo de igreja e sua teologia se caracterizam como uma superestrutura do
neoliberalismo. Acredito que sim, ao mesmo tempo em que foi a existência do
neoliberalismo que proporcionou, deu as condições para o sucesso dessas igrejas,
elas ajudam a sustentar ideologicamente esta nova razão de mundo.

Referências
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 2018.

DARDORT & LAVAL. Pierre; Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a
sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes,
2016.

LUTERO, Martinho. In: Bíblia com Reflexões de Lutero. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2012.

282
SOLIDARIEDADE E EDUCAÇÃO: EM BUSCA DE UMA SOCIEDADE
ONDE CAIBAM TODOS1

Gefferson Silva da Silveira2

Resumo: O presente trabalho consiste numa investigação da correlação entre a


solidariedade e a educação no pensamento educacional de Hugo Assmann. A noção de
solidariedade tem sido tratada como indispensável no discurso acerca de uma sociedade
democrática que pretenda a efetivação da justiça social. Embora existam várias nuances do
entendimento acerca da noção de solidariedade, ela geralmente é concebida em relação com
a questão da justiça. Assmann problematiza a necessidade de os âmbitos educacionais
passarem por um reencantamento. Entende-se que reencantar a educação torna-se uma
condição indispensável quando se pretende reencontrar um sentido para a educação, que
se situe para além da reprodução da cultura de consumo e da lógica de acumulação e de
exclusão que dinamizam a sociedade. O desencantamento da educação é uma das
consequências do atravessamento do viés mercadológico/econômico nas mais variadas
instâncias sociais. O viés econômico e mercadológico tenta descaracterizar o âmbito ético e
político da educação. Assmann defende que somente uma educação para a solidariedade
pode fazer frente à cultura de mercado e sua lógica de exclusão. Se o fato maior do mundo
atual são as lógicas da exclusão e o alastramento das insensibilidades que as acompanha, a
educação se configura como a tarefa social mais necessária na busca pela conscientização e
emancipação.
Palavras-chave: Educação; Solidariedade; Hugo Assmann.

Introdução
A noção de solidariedade tem sido tratada como indispensável no discurso
acerca de uma sociedade democrática que pretenda a efetivação da justiça social.
Embora existam várias nuances do entendimento acerca da noção de solidariedade,
ela geralmente é concebida em relação com a questão da justiça. A educação, por
conseguinte, tem sido concebida teoricamente sob duas perspectivas: (i) autônoma
em relação à sociedade, capaz de corrigir as injustiças sociais e (ii) dependente da
sociedade, a qual reproduz. As teorias educacionais do primeiro tipo são
denominadas “teorias não-críticas”, pois não percebem os condicionantes sociais
objetivos, buscando entender a educação a partir dela mesma; já as teorias do
segundo tipo são caracterizadas como “teorias crítico-reprodutivistas”, por

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Brasil. (CAPES) – Código de Financiamento 001. This study was financed in part by
the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001.
2 Mestrado em Filosofia. Doutorado em andamento em Educação pelo Programa de Pós-Graduação

em Educação da Universidade Federal de Pelotas (PPGE-UFPel). E-mail: geff.filo@gmail.com.

283
entenderem que a educação é afetada por condicionantes sociais objetivos e sua
função básica é a reprodução da sociedade (SAVIANI, 1988). Levando em conta essas
considerações iniciais, propomos uma investigação da relação entre solidariedade e
educação no pensamento de Hugo Assmann3

1. O processo de desencantamento da educação


O desencantamento da educação é uma das consequências do
atravessamento do viés mercadológico/econômico nas mais variadas instâncias
sociais. Há uma tendência na América Latina de caracterizar a escola como uma
instituição falida. Entretanto, esse tipo de discurso é introduzido como forma de
apresentar uma nova linguagem no âmbito educacional, ou seja, transformar a
escola em uma empresa, que salvará a educação. A escola começa a ser concebida
como uma prestadora de serviços de aprendizagem ou serviços educativos. Tanto a
escola particular como a pública estão sendo alvos desta perspectiva puramente
mercadológica, que não respeita e não tem nenhum tipo de compromisso com a
preservação das identidades culturais (ASSMANN, 2010).
Assmann problematiza a tendência que subjaz às reformas educacionais pelo
mundo: deixar-se guiar pelos interesses do mercado global. Com a pressuposição da
defesa de uma “qualidade” educacional, o mercado estaria “encurralando” a
educação e o ensino para que atendam aos seus próprios interesses, colocando em
segundo plano, ou até mesmo abandonando, o compromisso da educação com a
capacitação dos recursos humanos. Uma outra questão, que está ligada à anterior, é
a ênfase dada a um conceito de aprendizagem “fortemente calcado sobre os aspectos
especificamente instrucionais e sobre o eficientismo, não raras vezes em prejuízo da
dimensão crítico-formativa do sujeito educando” (ASSMANN, 1994b, p. 20). Nesse
sentido, Assmann coloca como urgência a redefinição da aprendizagem, destacando
o potencial auto-organizativo da corporeidade no processo de aprender a
aprender4.

3 Filósofo, teólogo e sociólogo brasileiro, nascido em Venâncio Aires/RS, em 22 de julho de 1933, e


falecido em Piracicaba/SP, em 22 de fevereiro de 2008.
4 Na obra em questão, Assmann insiste na corporeidade como instância de critérios e referencial

paradigmático básico para se pensar não só a educação, mas a política, a economia, a religião, etc.
“Porque é desde a Corporeidade que se pode radicalizar a redefinição do político, do social, do
educacional etc, e se pode fazer frente à mentira das promessas de ‘qualidade de vida’, que

284
Há um descompasso entre os desafios impostos pela realidade atual e a
condição ética da humanidade. Nesse sentido, os olhares voltam-se para a educação,
pois esse descompasso só poderia ser resolvido a longo prazo, a partir de “uma
profunda revolução pedagógica, voltada para uma espécie de cultura de
sensibilidades” (ASSMANN, 2010, p. 17). É nesse sentido que Assmann (1998, p.
201) afirma que “a escola deve transformar-se não apenas em lugar de ensino
competente, mas também de aprendizagem prazerosa”. Ou seja, a escola, e por
conseguinte a prática educativa, precisa tornar-se um espaço para o despertar das
sensibilidades, do desejo e da paixão por aprender, de viver intensamente e
esperançadamente.
Educar e educar-se significa defender vidas. Pois, “processos vitais e
processos de conhecimento são no fundo a mesma coisa” (ASSMANN, 2000, p. 22).
Assmann parte da premissa de que educar significa defender vidas. Em
contrapartida, entende que a privação da educação corresponde ao mesmo que
decretar a morte do sujeito. Para Assmann, existe uma reciprocidade entre a vida e
o conhecimento, ou melhor, entre processos vitais e processos cognitivos. E, não há
como separar esses dois aspectos.
O problema é que a cultura do consumo e a ideologia neoliberal foram se
tornando o parâmetro mais importante para o sentido da vida. A lógica do mercado
e do consumo desenfreado desencantou a vida. O desencanto atingiu as lutas pela
emancipação e o próprio processo educacional, reduzido cada vez mais ao critério
econômico-financeiro. “Hoje, o encanto se transferiu para o mundo do consumo,
para as mercadorias de marcas famosas, e a vida ficou desencantada” (SUNG, 2006,
p. 12). O viver bem passou a estar geralmente associado ao sucesso profissional e/ou
à capacidade de consumo.
As relações educacionais não podem ser transformadas em meros
relacionamentos comerciais. A educação precisa passar por um processo de
reencantamento, mas reencantar a educação não é tarefa fácil. Os sujeitos
envolvidos nesse processo estão encharcados pelo negativismo e constantemente
se veem atacados e vilipendiados naquilo que têm como valores. O corporativismo

desconsideram a Corporeidade” (ASSMANN, 1994b, p. 47). A corporeidade como critério básico para
se pensar as relações humanas está em consonância com a concepção de Assmann de que as ações
sempre dirigem-se a sujeitos concretos.

285
se alastrou. A maioria dos sujeitos envolvidos no processo educacional perdeu o
entusiasmo com o seu papel na sociedade. Assmann acredita que a questão do
reencantamento e, por conseguinte, da qualidade da educação passa pelo viés
pedagógico. “De posse dessa bandeira, aumenta a credibilidade para exigir atenção
para os demais reclamos” (ASSMANN, 2000, p. 24).

2. Reencantar a educação e o despertar da solidariedade


Assmann (2010) evidencia que durante a década de 1990, a partir da
publicação da obra Educação: um tesouro a descobrir, organizada pela UNESCO,
surgiu a crença de que a educação poderia resolver todos os possíveis males sociais
ocasionados pelo neoliberalismo. De que forma? A educação seria a condição de
possibilidade para o aparecimento de uma geração de seres humanos preocupados
com a dignidade da vida humana. Entretanto, o que se constatou foi que nenhuma
mudança social acontece num passe de mágica, mas muito lentamente, a partir de
ações políticas e econômicas, acompanhadas de perto pelas exigências do mercado,
que tratam de travar qualquer avanço em direção a propostas mais humanistas.
De acordo com Assmann (1998, p. 199), “privar alguém de uma educação de
qualidade representa hoje um atentado à vida”. Embora a ausência da educação não
seja sentida como causa mortis, comparando com outras catástrofes naturais ou
provocadas, nas atuais circunstâncias do mundo realmente impossibilita a vida. A
não garantia de acesso a uma educação de qualidade para todos é uma ameaça direta
à sobrevivência. Assmann (1998, p. 200) afirma que “o termo qualidade, quando
falamos em direito à educação com qualidade, deve estar referido aos direitos vitais
das corporeidades vivas tanto dos docentes como dos alunos”.
O intolerável e a solidariedade se definem a partir da corporeidade. Ou seja,
a corporeidade é a instância radical dos critérios ético-políticos e pedagógicos.
Nesse sentido, a educação, pensada a partir da corporeidade, torna-se terreno fértil
para o despertar da sensibilidade solidária. A sensibilidade solidária permite o
resgate daquelas outras sensibilidades esquecidas, ou melhor, daquelas dimensões
sensíveis adormecidas nos seres humanos, por conta de uma realidade que foca
apenas em dados quantificáveis, econômicos e lucrativos. O resgate dos valores que
defendem a paz, o compromisso para ir desenfeiando um mundo marcado pela
feiura da antivida e a abertura ao respeito e responsabilidade ética com outro,

286
humanos e não-humanos, estão no horizonte de uma proposta de educação para a
solidariedade.
Assmann entende que somente uma educação para a solidariedade pode
fazer frente à cultura de mercado e sua lógica de exclusão. A solidariedade não é um
impulso natural do ser humano. Ou seja, “o sentimento de solidariedade precisa ser
inserido na evolução biopsíquica, e só será adquirido... na medida em que for um
valor social disponível culturalmente no meio social no qual vive” (ASSMANN,
1994a, p. 34). A conversão é uma pré-condição para a solidariedade. Conversão não
no sentido religioso, mas em seu sentido etimológico de mudança, de buscar outros
caminhos possíveis para dinamizar as relações entre humanos e com toda a
diversidade natural. Assim, não se pode esquecer que a solidariedade não é um dado
congênito do ser humano, mas um processo exigente e sempre inconcluso de
conversão5.
Se o fato maior do mundo atual são as lógicas da exclusão e o alastramento
das insensibilidades que as acompanha, a educação se configura como a tarefa social
mais necessária na busca pela conscientização e emancipação. Segundo Assmann
(2000, p. 26), “a educação terá um papel determinante na criação da sensibilidade
social necessária para reorientar a humanidade”. A humanidade se encontra numa
encruzilhada ético-política, sua sobrevivência está ameaçada por si mesma, e não
sobreviverá se não encontrar um modo de incentivar a frágil disposição à
solidariedade. E, como se viu, para esse intuito, a educação desempenha um papel
indispensável. Mas não qualquer tipo de educação. Assmann e Sung (2000)
entendem que a educação precisa trabalhar conjuntamente “as competências sociais
requeridas pelas atividades profissionais mais variadas e as novas atividades que
inventarmos com a sensibilidade social necessária para a construção de um mundo,
no qual caibam todos” (ASSMANN, 2000, p. 14).

Conclusão
Hugo Assmann desenvolve uma crítica ao modelo econômico sob a tutela do
qual estamos vivendo. Sua crítica denuncia uma estarrecedora lógica da exclusão.

5Cf. Assmann (2000, p. 31), “para tornar-nos solidários num sentido mais abrangente precisamos
ascender a um estágio de consciência e opção, que implica numa conversão a valores, que não são
óbvios em nossa experiência cotidiana.

287
Nela há uma inversão de valores, as coisas tomam os lugares das pessoas, a defesa
da vida dá lugar ao abandono para a morte, a solidariedade é desvalorizada
enquanto o egoísmo é exaltado. O sujeito solidário aparece para contrastar com o
sujeito egoísta. A solidariedade aparece como um marco central, determinante para
o surgimento de um novo momento histórico, de um outro mundo possível, de uma
sociedade onde caibam todos. Para que este sonho se concretize, a solidariedade
precisa perpassar todos os âmbitos das relações humanas: econômico, político,
social e cultural. A solidariedade surge a partir do reconhecimento que a outra
pessoa é detentora de dignidade humana. Mesmo que ela não se encaixe no modelo
exigido pelo sistema, como não-consumidora, merece respeito e consideração. Na
busca por essa sociedade mais solidária, a educação tem um papel primordial.

Referências
ASSMANN, Hugo. Crítica à lógica da exclusão. São Paulo: Paulus, 1994a.

ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e


didática. 2. ed. Piracicaba: Editora Unimep, 1998.

ASSMANN, Hugo. Paradigmas educacionais e corporeidade. 3. ed. Piracicaba: Editora


Unimep, 1994b.

ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo a sociedade aprendente. 4. ed.


Petrópolis: Vozes, 2000.

ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Competência e sensibilidade solidária. Petrópolis:


Vozes, 2000.

ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Deus em nós: o reinado que acontece no amor
solidário aos pobres. São Paulo: Paulus, 2010.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara,


onze teses sobre educação e política. São Paulo: Cortez/Autores associados, 1988.

SUNG, Jung Mo. Educar pra reencantar a vida: Teologia e Espiritualidade. 3. ed. São
Paulo: Reflexão, 2006.

288
“VENDE TUDO O QUE TENS E DÁ-O AOS POBRES”: O DISCIPULADO
COMO POBREZA EM DIETRICH BONHOEFFER E O JOVEM RICO

Idail dos Santos Costa1

Resumo: O presente artigo pretende expor, resumidamente, os elementos da


problematização gerada pela desigualdade social e do conflito ético originado pela lógica do
consumo e do aumento da propriedade através do mercado neoliberal e o cataclisma na
ordem econômica mundial, e de como podemos lidar com o problema estrutura da pobreza
diante do desafio do discipulado pelo serviço ao próximo a partir de Dietrich Bonhoeffer.
Palavras-chave: Discipulado; Direitos Humanos; Pobreza; Acúmulo de Riqueza;
Desigualdade Social.

Introdução
Vivemos em um mundo cada vez mais inter-relacionado, onde os fiéis de
inúmeras religiões direcionam o seu olhar para além dos intramuros dos seus
credos, para saberem como as religiões2 lidam com os temas na interseccionalidade
da condição humana, e ainda mais, por entender que há um conflito ético que
permeia as questões do sofrimento da humanidade gerado pela desigualdade social.
Estabelecendo como podemos situar a presença positiva das religiões diante dos
conflitos existenciais diante do sofrimento dos pobres e do acúmulo das riquezas
através do sistema econômico predominante no mundo, consideraremos dois
exponenciais recortes e temas: “discipulado como pobreza” e da “riqueza
acumulada”. A construção destes pensamentos será realizada através do diálogo de
Jesus com o jovem rico (cf. Mt.19:16-22). O texto procura trazer uma reflexão sobre
a contribuição de Dietrich Bonhoeffer na obra do discipulado como pobreza diante
da problemática da riqueza acumulada.

1Mestrado em andamento em Ciências da Religião na área da Religião, Sociedade e Cultura da


Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Bolsista através do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: idailsc@gmail.com
2 Na Declaração Nostra Aetate do Concílio do Vaticano II: “[...]os homens esperam das diversas

religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente
preocupam seus corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado?
donde provém o sofrimento, e para que serve? [...]. Declaração Nostra Aetate Nº1. Acessado
20/08/2023.Disponível
em<https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html>

289
1. O discipulado como um chamado à obediência simples
O discipulado como um chamado à obediência simples é apresentado por
Bonhoeffer e tem a ver com a compreensão na centralidade da revelação de Deus
em Jesus Cristo e a sua presença no mundo, que manifestar-se-á através da igreja,
ou seja, na relação com Cristo, onde todo cristão toma forma na igreja. Na obra
Discipulado o autor apresenta um modelo de obediência simples exigida do “jovem
rico” em sua comunidade (BONHOEFFER, 2004, p. 31-43), para a partir desta análise
compreender qual deve ser o comportamento correto do seguidor de Jesus diante
dos pobres. O texto do jovem rico3 carrega uma pergunta crucial envolta em um
conflito ético: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” A pergunta tem
um valor significativo, pois pelos ensinamentos de Cristo, irá comprometer as
riquezas do jovem e revelará o seu coração, atravessando os seus planos na terra. A
resposta de Jesus é: “Se queres entrar na vida eterna, guarda os mandamentos”
(cf.Mt.19.17). Mesmo sendo este jovem obediente, suas práticas carregavam raízes
nos padrões de riquezas terrenas e por isso foi confrontado com a desconcertante
resposta de Jesus “Ainda te falta uma coisa; vende tudo quanto tens, reparte-o pelos
pobres, e terás um tesouro no céu [...] (cf. Lc.18.22b)”. Ao se justificar dizendo que
conhece o mandamento, demonstra que era insatisfeito com a sua vida espiritual ao
expor “Que me falta ainda?” (cf. Mt.19.20).
O discipulado tem uma relação direta com a fé e a obediência. Uma fé para
fora de si mesmo, onde “o discípulo é arrancado de sua relativa segurança de vida, e
lançado à incerteza completa”, sendo ligado completamente a Jesus em obediência
“Por Jesus ser o único conteúdo, não pode haver qualquer outro. [...] O chamado ao
discipulado e, portanto, comprometimento exclusivo com a pessoa de Jesus Cristo.
[...] O discipulado e comprometimento com Cristo” (BONHOEFFER, 2004, p. 21).
Coloca os mandamentos dentro da exigência da obediência e com frutos visíveis,
pois “a obediência resulta da fé como os bons frutos de uma árvore saudável”, e nisso
reafirma a exigência de crermos “Primeiro a fé, depois a obediência” (BONHOEFFER,
2004, p. 25). A leitura desta afirmativa busca um sentido do que representa esta
forma de crer no pensamento do autor. Em nossas categorias teológicas

3 Cf. Mt.19:16-22; Mc.10:17-31 e Lc.18:18-30.

290
introdutórias, vamos descobrindo que a alegria no viver tem um sentido na nossa
experiência da gratuidade através da fé, o que conhecemos na tradição cristã como
graça. Esta graça nos chama na direção do amor ao próximo, desapossando o ser
humano de si mesmo, onde neste despojo de sua autodependência solitária e sua
loucura por autossuficiência, para colocar-nos no caminho do comprometimento
com Jesus Cristo e da lógica celestial de liberdade, contrária a lógica terrena da
prosperidade, recuperando o ser humano em sua essência, tornar-se uma pessoa
solidária e não solitária.
No modelo de seguir a Jesus, o autor aponta que “cada qual é chamado
individualmente e tem que ser discípulo sozinho”, mas esta solidão inicial conclui-
se como desfeita quando o ser humano se junta às pessoas (BONHOEFFER, 2004, p.
51). O argumento bonhoefferiano acerca deste modelo é de que: “Todos entram
sozinhos no discipulado, mas ninguém fica sozinho nele” (BONHOEFFER, 2004, p.
57). Neste sentido, ser chamado ao discipulado a partir de Jesus implica uma
mudança de essência, que abarca responsabilidades ainda que sendo livres, pois
vive intensamente esta liberdade prestada no serviço ao próximo.

2. O discipulado e a pobreza
Dietrich Bonhoeffer relaciona ‘o discipulado e a pobreza4‘ trazendo ao
discurso as bem-aventuranças a partir do sermão da montanha (cf. Mt.5-7). Para o
autor, os discípulos de Jesus passam a segui-lo e a pertencer unicamente a Ele. O
chamado ao discipulado é para seguir, mas que “em consequência de seu chamado
desistiram de tudo o mais. Passaram a viver em condições precárias, dos pobres os
mais pobres, dentre os tentados os mais tentados, os mais famintos entre os
famintos”, ou seja, fora Cristo, não há mais nada no mundo que o discípulo de Cristo
deve possuir (BONHOEFFER, 2004, p. 58). Nesse sentido, ao direcionar-se aos seus
discípulos, Jesus “fala aos que já estão sob o poder de seu chamado. Esse chamado
os tornou pobres, atribulados e famintos” (BONHOEFFER, 2004, p. 59). Ao declará-
los como sendo bem-aventurados, não será por causa “de sua carência ou renúncia”,

4Não é uníssona a opinião de que uma das particularidades da verdadeira expressão do discipulado
em seu despojamento próprio, seja a pobreza. Temos no mínimo um caráter contraditório, pois a
pobreza afeta a vida de milhões de pessoas, ou seja, a pobreza é ruim. No entanto, o artigo propõe
uma reflexão a partir da construção do entendimento acerca da pobreza a partir do discipulado do
teólogo e pastor luterano alemão Dietrich Bonhoeffer, um dos mais conhecidos e influentes
pensadores cristãos do século XX.

291
mas por causa do seu comprometimento ao chamado de Jesus (BONHOEFFER, 2004,
p. 59). Partindo do primeiro princípio “Bem-aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o reino dos céus;” (cf.Mt.5:3), precisaremos trazer outro sentido para
pobre5, que vem do grego “ptōchós” (πτωχοὶ), que significa humilde. No texto de
Mt.5.3 possui o sentido metafórico de humildade.6 Conforme Haubeck e Siebenthal
os versículos 3-5 contêm reverberações de Is 61.1-3; v. 5 esp. também do Sl 37.11.
π τω χό ς mendicante, dependente do auxílio alheio, pobre. no espírito (isto é, no que
diz respeito à sua postura diante de Deus [e, desse modo, sua relação com ele]: eles
estão cientes de estar perante ele de mãos vazias e, em consequência, depender
inteiramente de seu auxílio).7 Nesse sentido a apresentação da felicidade assume um
modelo diferente da pirâmide social da terra, uma inversão, pois ela vai contrária ao
hedonismo8. O autor destaca:
Os discípulos têm carência de tudo. São simplesmente pobres
(Lc.6.20). Nenhuma segurança, nenhuma propriedade, nenhum
pedacinho de terra por pátria, nenhuma comunhão terrena à
qual poderiam pertencer. [...] Por amor a ele, tudo perderam.
Seguindo-o, perderam-se a si mesmos e, consequentemente, tudo
o que os poderia enriquecer. Estão tão pobres, inexperientes e
néscios que mais nada lhes resta senão confiar naquele que o
chamou. [...]Sobre eles que, por amor a Jesus, vivem em renúncia e
carência, desponta o reino dos céus. Em meio à pobreza, são
herdeiros do reino dos céus. Seu tesouro está profundamente
oculto, eles o têm na cruz. O reino dos céus lhes é prometido
em glória visível e já lhes é dado na pobreza completa da cruz
(BONHOEFFER, 2004, p. 60, grifo nosso).

Nesse sentido, Bonhoeffer mostra que uma das particularidades da


verdadeira expressão do discipulado em seu despojamento próprio é a pobreza. Ele
precisa estar livre, desembaraçado e vivendo em obediência a Cristo, e nisto, precisa

5O termo significa ainda pobre relativo aos bens deste mundo, lit. pedinte reduzido à mendicância,
mendigo; pobre, indigente (Mt 19.21; 26.9,11); metaf. espiritualmente pobre, (Ap 3.17); por impl.
pessoa de condição humilde ou baixa, (Mt 11.4; Lc 4.18; 7.22); metaf. pobre,fraco,(G1 4.9; ICo 15.10);
metaf. Humilde ,( Mt 5.3; Lc 6.20 ). MOUNCE, Willian D. Léxico Analítico Grego do Novo Testamento.
São Paulo: Vida Nova 2013. p. 530.
6 MOUNCE, 2013, p. 530.Veja ainda GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do Novo

Testamento Grego / Português. São Paulo: Vida Nova. 1984. p. 182


7 HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich Von. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego:

Mateus – Apocalipse. São Paulo: Targumim: Hagnos. 2009. p. 63-64


8 Hedonismo – do grego, edonê, que significa prazer. O hedonismo é uma doutrina que defende que o

prazer é o meio correto para atingir o objetivo supremo do homem, a saber, a felicidade; [...]Esta
doutrina resulta da observação de que todos os seres buscam o prazer e tentam escapar ao
sofrimento. Porto Editora – hedonismo na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-
09-08 22:34:57]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$hedonismo

292
ir andando atrás de Jesus (BONHOEFFER, 2004, p. 60). “São os bens do mundo que
querem desviar o coração do discípulo de Jesus. Para onde está orientado o coração
do discípulo? [...] Está orientado para as riquezas do mundo? Ou está orientado
unicamente para Cristo?” (BONHOEFFER, 2004, p. 108). Segundo Bonhoeffer (2004,
p. 108), o discipulado como pobreza exige liberdade que resulte em obediência. Não
se pode, afinal, seguir a dois senhores. Ainda que riquezas, o poder ou outros
senhores assegurem “segurança e sossego ao coração humano”, na verdade apenas
podem oferecer insegurança, ansiedade, medo da derrota (BONHOEFFER, 2004, p.
110).

3. O jovem e o acúmulo de riqueza


Ao discorrer sobre “o jovem e o acúmulo de riqueza”, Bonhoeffer nos
apresenta o recorte da fé e da obediência a partir do Jovem Rico e detecta que ele
coloca obstáculos às exigências do discipulado. Mas reverbera que o discipulado ao
transformar-se em lei não aceita justificativas, não aceita “desculpas de sua
desobediência efetiva ao chamado de Jesus. [...] Não digas: Falta-me a fé para isso!”,
pois está justificativa tem uma correlação com a desobediência (BONHOEFFER,
2004, p. 28). Este modelo de crer é o nosso amoldamento de uma fé em Cristo. É um
modo de caminhar a partir do exemplo de Jesus é chamado aqui pelo autor de
obediência. O conflito ético que nos serve a partir do Jovem rico é que ele não vê
para além dos mandamentos, mas apenas a si mesmo. A sua dúvida ética sugere que
os mandamentos de Deus ainda precisam ser expostos, interpretado e vivido, e que
a sua expectativa ainda poderia desviar o andamento das coisas para uma conversa
sem compromisso sobre questões da eternidade. A tristeza do jovem e que se
assemelha em boa parte do mundo que “[...]retirou-se triste, porque possuía muitas
propriedades (cf.Mt.19.22)”, tem a ver com esta lógica mercadológica do acúmulo
das riquezas.
O tema da nova forma de organização econômica e sua oposição ao acúmulo
de riquezas é apresentado a partir da fé cristã, no recorte bíblico das comunidades
primitivas da Igreja de forma inspirativa, pois “[...]Ninguém considerava
exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (cf. At.4.32,35).
Este modelo de prática literalmente contrapõe o modelo individualista do jovem
rico. Nele temos uma proposta inicial para uma comunidade mais justa e solidária.

293
Jung Mo Sung (SUNG, 2008, p. 77-78) ao apresentar o pensamento socioeconômico
a partir de Atos 4.32,35, cita que o objetivo textual de Atos “não é a igualdade social,
mas sim de não haver necessitados entre eles”. Dessa forma Mo Sung aponta que o
princípio de igualdade que contempla a vida digna não pode ser uma atuação
temporal, pois aponta que um “modelo econômico-social enfocado somente na
distribuição justa não é sustentável ao longo prazo”, mas que “a partilha na
comunidade era um contraponto profético, uma expressão concreta do juízo de
Deus contra a lógica do império”, e para isso somos chamados para “propor e
testemunhar modos alternativos de vida pessoal e comunitária e de organização
social”.
O chamado carece de esclarecimentos, de ver no discipulado uma aventura
ética, portanto é necessário criar uma situação que não permita que se volte atrás,
uma situação irrevogável. Corresponde à uma pobreza voluntária, realizando
desconstruções de um passado acumulativo semelhante àquela exigida do coração
do jovem. O jovem rico não foi chamado à pobreza, mas ao discipulado como
mudança em seu interior. Querer vida eterna, exige que iniciemos a nossa
eternidade hoje. O conflito a ser vencido é de que precisamos nos despir do poder
que as riquezas realizam de divindade na gente, pois o empobrecimento do outro é
fruto do modelo de colonização da humanidade. Neste aspecto, o evangelho é um
golpe no capitalismo narcisista de que tudo é meu pelo meu poder de posse.
O discípulo ao relacionar-se com os valores do reino de Deus, será forjado
como um cristão bom, justo e verdadeiro, e chamado a exercer o seu discipulado na
promoção de uma sociedade mais justa através do modelo de Jesus. O Sermão da
Montanha (cf. Mt.5-7), possui as instruções acerca do padrão ético do Reino de Deus.
Um destes saberes está diretamente relacionado com o acúmulo das riquezas
terrenas, que faz com que o coração do discípulo seja coberto por trevas e se apegue
aos bens do mundo, que diz “Não ajunteis tesouros na terra [...]” (cf.Mt.6.19-21). A
instrução acerca de não acumular riquezas exigirá do discípulo de Jesus uma vida de
desprendimento com o materialismo.
Para tal prática, o seguidor do Cristo precisará caminhar em obediência.
Bonhoeffer afirma que “A vida do seguidor se comprova no fato de nada interpor
entre ele e Cristo, nem a lei, nem a piedade, nem o mundo. O seguidor vê somente a
Cristo. [...] são os bens do mundo que querem desviar o coração do discípulo Jesus”

294
(2004, p. 107-108). Neste sentido, a preocupação com o coração do discípulo está
em qual direção caminha o seu coração? O autor aponta que Jesus não condena e
nem proíbe o uso dos bens, “para isso servem os bens: para que deles façamos uso;
não, porém, para serem amontoados” (BONHOEFFER, 2004, p. 108). A arguição
bonhoefferiana é “juntando-o, porém, para posse definitiva, corrompe a dádiva e a
si mesmo” (BONHOEFFER, 2004, p. 109). A abordagem conclusiva é que “o coração
se apega ao tesouro amontoado. Os bens acumulados interpõem-se entre eu e Deus.
Onde está meu tesouro, ali está minha segurança, meu consolo, meu deus. Tesouro
é idolatria” (BONHOEFFER, 2004, p. 109), e aqui repousa uma afirmação através do
ensino do sermão da montanha, de que se o coração do discípulo estiver voltado
inteiramente para Cristo, ele não poderá servir a dois senhores. Deus e o mundo,
Deus e as riquezas são opostos entre si. Nisso Bonhoeffer corrobora de que “o
mundo e os bens visam conquistar o coração [..] Sem nosso coração, os bens e o
mundo nada são” (BONHOEFFER, 2004, p. 110).
Neste sentido, o espaço ocupado pelo capitalismo no mundo possui uma
racionalidade a partir do lucro e do apego ao dinheiro9 e na absolutização da riqueza
possui um discurso idolátrico acima da condição humana. Com a mudança do
comportamento na sociedade pré-moderna, que outrora trabalhavam para viver, no
capitalismo as pessoas passam a trabalhar para o acúmulo excessivo, tendo como
finalidade última da vida ter mais e mais dinheiro, prefigurando assim, o capitalismo
como religião. Mo Sung afirma que “no capitalismo, o critério último de valoração é
o sucesso econômico ou a quantidade de dinheiro que a pessoa possui e ostenta”
(SUNG, 2018. p. 7). Sendo o cristianismo a religião que segue os ensinamentos de
Jesus, temos que as igrejas se tornam cristãs quando assumem a missão de Jesus
como sendo a sua, dando continuidade ao que receberam de Deus, cuidar dos
pobres. A crise do cristianismo diante da crise do mundo, é detectada por causa da
sua inversão missiológica, deixando de cumprir o seu papel profético, adaptando a
mensagem religiosa à demanda do mercado religioso. Neste modelo temos uma
inversão, ao invés de criarmos uma teologia catequética que desenvolva o papel do
discípulo obediente, com que resgate o convite dos pobres à mesa, criamos o desejo
pelo acúmulo de riquezas.

9Sua forma religiosa não se perfaz nos mesmos ambientes da religião, mas caracterizada pelas
mesmas estruturas religiosas, trabalha uma liturgia sacrificial através do capitalismo.

295
Conclusão
O tema da pobreza, da desigualdade social e o acúmulo de riquezas
apresentado no texto através do jovem rico e sua insensibilidade social, tem o seu
conflito ético diante da responsabilidade social, sendo discípulo de Jesus. Na
atualidade o tema tem uma correlação como o acúmulo de riquezas que é fruto da
produção pelo sistema do mercado neoliberal, produzindo assim um cataclisma na
ordem econômica mundial.
No modelo ofertado através do jovem rico utilizado por Bonhoeffer, o
indivíduo responsável não é individualista, sobre ele recai implicações no serviço ao
próximo para que sirva em obediência. Através da liberdade para seguir a Cristo a
obediência deve ser um fruto visível. Nesse sentido, a pobreza é a libertação do ser
humano de si mesmo, de estar ligado apenas a si mesmo. Diante deste cenário, o
desafio apresentado a partir do discipulado é recuperar a sensibilidade social na
direção do próximo, que em nosso recorte são os pobres.

Referências
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. Trad. por Ilson Kayser. 13. ed. São Leopoldo:
Sinodal, 2004.

GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do Novo Testamento


Grego/Português. São Paulo: Vida Nova. 1984.

HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich Von. Nova Chave Linguística do Novo


Testamento Grego: Mateus – Apocalipse. São Paulo: Targumim: Hagnos. 2009

MOUNCE, Willian D. Léxico Analítico Grego do Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2013.

SUNG, Jung Mo. Cristianismo de libertação: espiritualidade e luta social. São Paulo:
Paulus, 2008.

SUNG, Jung Mo. Idolatria do dinheiro e direitos humanos: Uma crítica teológica do
novo mito do capitalismo. São Paulo: Paulus, 2018. Coleção novos caminhos da
teologia.

296
IDOLATRIA AO MERCADO E A CONSEQUENTE IMAGEM FALSA DE
SER HUMANO ENQUANTO “CAPITAL HUMANO”

Júlio Cezar Nascimento Morais1

Resumo: A presente proposta de comunicação intenta mostrar, de forma muito sintética,


que a noção de “Capital Humano”, um dos pilares do neoliberalismo, é uma falsa imagem do
ser humano e surge como uma decorrência lógica da idolatria do dinheiro e do mercado
divinizado. Assumimos aqui que o ser humano tem como uma de suas dimensões
constituintes a transcendência. Ou seja, na sua relação com o Transcendente, que nós
chamamos Deus, o ser humano descobre sua identidade profunda e vai se constituindo
enquanto tal. O ídolo, portanto, por ser um falso deus, falsifica a compreensão de si daqueles
que com ele estabelecem relação e nele confiam. A afirmação bíblica de que o ser humano é
imagem e semelhança de Deus (Gn 1) tem sua contrapartida na afirmação de que aqueles
que constroem ídolos também ficam iguais a eles (aos ídolos) (Sl 115). O texto, então, se
dividirá em duas partes: primeiro, discorre brevemente sobre a idolatria e, depois,
apresenta a noção de “Capital Humano”, a fim de evidenciar que a imagem falsa de ser
humano enquanto um “capital” é decorrência lógica da idolatria do mercado. Se, hoje, no
centro das questões mais decisivas está o problema do estatuto da própria humanidade, a
teologia tem muito com o que contribuir ao denunciar essa idolatria e a consequente
falsificação do ser humano que ela produz; e ao apresentar aquilo que, do ponto de vista da
fé, o ser humano é realmente chamado a ser: plenamente humano, na medida e estatura de
Cristo.
Palavras-chave: Idolatria; Mercado; Ser Humano; Deus.

Introdução
O próprio ser humano encontra-se hoje “posto em xeque”. Guillebaud (2008),
citando Foucault, recorda que, hoje, “[...] a espécie humana entra como aposta em
suas próprias estratégias políticas. [...] o homem moderno é um animal na política do
qual [sic] sua vida de ser vivo está em questão” (p. 19-20, grifo do autor). A própria
noção de humanidade vem sendo colocada em questão, questionada em sua
legitimidade (GUILLEBAUD, 2008, p. 15-20). Aos poucos, uma espécie de “guerra
silenciosa e sutil” contra a noção mesma de humanidade vem sendo declarada em
diversas “frentes”, seja nos âmbitos filosófico, científico, jurídico, ético e até mesmo
espiritual. A humanidade se dilui, qualquer barreira ética ou legal, política ou
espiritual que ainda poderia existir é derrubada e, assim, o capital e o mercado

1Graduação em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção da PUC-SP (2020),
com bolsa Capes. Mestrado em andamento em Teologia pela mesma Faculdade, com bolsa do ProUni.
Atualmente participa do Grupo de Pesquisa José Comblin do Programa de Estudos Pós-graduados de
Teologia da PUC-SP (GPJC/PUC-SP). E-mail: julionascimentomorais@gmail.com.

297
neoliberal encontram seu curso liberado de qualquer entrave. Já não haveria mais
qualquer limite à transformação do próprio ser humano e da própria vida em
objetos consumíveis, nada que impeça o “sequestro” da vida e do ser humano pela
lógica do mercado neoliberal.
O Papa Francisco também aponta para esse problema de fundo na Encíclica
Laudato Si’ (LS). Segundo o Pontífice, no centro das questões decisivas do nosso
tempo está a questão do estatuto do próprio ser humano, que já não sabe mais quem
é e para onde vai. A crise que vivemos é um problema de ordem eminentemente
antropológica2. Essa questão está por detrás de toda a desordem ambiental e
social/humana. E essas seriam as duas faces da mesma moeda. Aquela guerra contra
a própria noção de humanidade se revela uma guerra à noção de Diretos Humanos
e à noção de Justiça Social que decorre daqueles (SUNG, 2018, passim). Ao minar a
própria noção de ser humano, mina-se a base sobre a qual qualquer “direito
humano” possa se assentar.
O presente texto surge como um pequeno desdobramento do meu objeto de
pesquisa no mestrado, onde procuro apresentar o neoliberalismo como idolatria, e
o projeto de Deus para o ser humano como alternativa a ele, pois leva à vida de
verdade. Partilhamos da perspectiva de inúmeros teólogos e, atualmente, do próprio
Papa, explícita na Evangelii Gaudium (EG), que acreditam que na raiz dos problemas
atuais está a idolatria ao mercado (cf. EG 52-58; LS 56). Assim, quer-se apresentar
como uma determinada noção de ser humano (a de “Capital Humano”) surge como
uma decorrência lógica dessa idolatria. Parte-se do pressuposto que o ser humano
tem como uma de suas dimensões constituintes a transcendência. Ou seja, na sua
relação com o Transcendente, que nós chamamos Deus, o ser humano descobre sua
identidade profunda e vai se constituindo enquanto tal. Assim, o ídolo aparece como
uma falsa transcendência e falsa referência para o ser humano, falsificando a
compreensão que esse tem de si e de sua finalidade/sentido no mundo. Se, hoje, no
centro das questões mais decisivas está o problema do estatuto da própria
humanidade, a grande contribuição da teologia é a denúncia dessa idolatria e da
consequente falsificação do ser humano que ela produz; urge apresentar aquilo que,

2 Cf. Capítulo 3 da LS.

298
do ponto de vista da fé, o ser humano é realmente chamado a ser: plenamente
humano, na medida e estatura de Cristo (cf. Ef 4,13).

1. Dolatria como problema antropológico


Adolphe Gesché (2004) afirma que a idolatria, mais do que um “simples”
problema teológico, é um problema eminentemente antropológico (p. 12; 133). Essa
afirmação ganha todo o peso quando se assume que a relação com o Transcendente
é constituinte do próprio ser do ser humano. Isso é algo assumido desde as primeiras
páginas da Bíblia. O tópos da Imago Dei se refere a isso, Deus cria o ser humano à
sua imagem e semelhança (Gn 1), o que significa que Deus e Humano se
intersignificam. A verdade de um é necessária para se compreender bem a verdade
do outro.
A contrapartida dessa imagem e semelhança de Deus do ser humano aparece
no salmo 115. Tem-se aí uma apresentação do ídolo e da idolatria que ilustra muito
bem o que se quer dizer aqui: ali é dito, logo de início, que os ídolos são “obras de
mãos humanas” (v. 4), ao que se segue (v. 5-7) uma descrição das suas
“características”: têm boca e não falam, olhos mas não veem, mãos mas não apalpam,
pés e não andam..., tudo é colocado de forma a destacar que eles não possuem vida
em si, não subsistem por si mesmos. Sua existência depende daqueles que os criam
e acreditam neles. No versículo 8, finalmente, dá-se o “nó da questão”: “Como eles
[os ídolos] são aqueles que os fazem, cada um que neles confia”. Aqui o ser humano
se torna “imagem e semelhança” do ídolo. Mas em ambos os casos, percebe-se a
relação com um princípio referente último que constitui a identidade do ser
humano. A diferença é que um é tido como verdadeiro, e o outro, falso.
O Deus verdadeiro é apresentado na Bíblia nas antípodas do ídolo. Em Ex 3,
7-10, a apresentação de Deus é feita de forma a criar um paralelo que destaca a
diferença com relação ao ídolo: Deus vê a aflição do povo, ouve/escuta seu clamor,
seu pedido de socorro, conhece as dores do povo que se encontra na mão dos
opressores, desce para libertar, envia (o que pressupõe que fala) a Moisés para tal
missão. Deus é alguém que tem vida em si, subsiste por si mesmo, não depende que
alguém o “crie” para ser o que é, ele é o que é e sua ação o mostra (cf. Ex 3,13-15).
Deus é verdadeiro aqui não simplesmente porque está dito de maneira correta, a
questão não se coloca no nível da descrição metafísica dos atributos, da essência etc.,

299
mas é verdadeiro porque veraz, porque não engana o ser humano nem lhe dá uma
falsa compreensão de si, antes o liberta de toda forma de escravidão que reduz sua
humanidade.
O ídolo aparece assim como a justificativa “sagrada” de determinado status
quo, de um determinado “estado das coisas”, de uma determinada “ordem” que
favorece, sempre, aqueles que estão, de alguma forma, relacionados ao poder e ao
governo das sociedades. Ao dizer que os ídolos não podem falar, ver, ouvir, andar,
além de reforçar que não possuem vida em si, o que se mostra é que aquela
“divindade” acaba servindo de justificativa para o estabelecimento e manutenção de
uma situação onde aqueles que a criam e nela confiam se veem justificados em suas
ações e posições. Mais ainda: realmente opera uma transformação na própria
compreensão dos seres humanos, de suas relações e da finalidade de suas
existências.
A situação criada e gerida pelo sistema-mundo neoliberal se apresenta
totalmente oposta à querida por Deus, essa que pode ser inferida da noção de
Reinado de Deus, tal como Jesus a apresentou. Desse modo, o neoliberalismo se
configura como opositor, como rival de Deus, constituindo-se, assim, como
verdadeira idolatria (cf. SICRE, 1996, p. 340-341). Como o sistema precisa de um
sujeito que se adeque às suas injunções (os interesses do mercado: competitividade,
desempenho, consumismo etc.), que se adeque a situações que vão contra o próprio
ser humano, ele precisa transformar a própria compreensão que os sujeitos têm de
si mesmos. É aí que entra a noção de “Capital Humano”.

2. A noção de “capital humano”, falsa imagem de ser humano


Em Nascimento da Biopolítica, Foucault afirma que a noção de “Capital
Humano” (termo utilizado por Gary Becker) é um dos pilares sobre os quais o
neoliberalismo se constrói e se sustenta. Isso porque, teria sido por meio dessa
noção que a extensão da lógica de mercado para todos os âmbitos da vida humana
foi tornada possível (2008, p. 297; 302; 312). Por meio dela, a análise econômica
passou a adentrar nas esferas da vida humana que eram analisadas com outros
critérios, sob outras lógicas, que não os do mercado. Foucault ainda diz que ela
significou uma “mutação epistemológica” da ciência econômica, que seria vista
agora como a “ciência do comportamento humano” (2008, p. 306-307). Ela tomará

300
a forma de um empreendedorismo assumido por todos em todos os lugares, por
meio de processos de subjetivação. Em poucas palavras: por meio dessa noção de
ser humano enquanto um “capital” – capital esse que se constituiria de suas
habilidades e aptidões, tanto biológicas/genéticas quanto as adquiridas por meio da
cultura/educação –, o ser humano passa a compreender sua vida, suas relações,
tudo, inclusive a si próprio, como uma empresa possuidora de um capital que ele
deve saber gerir e fazer render por meio de investimentos em si. A empresa se torna
um modo de vida, um verdadeiro ethos.
Esse sujeito-empresa-de-si encontra-se jogado em uma situação de mercado
fundamentalmente caracterizada pela competição de todos contra todos, a todo
momento. Essa transformação da compreensão de ser humano, as situações que
engendraram esse sujeito “capital humano”, “empresa-de-si” podem ser todas
reportadas à racionalidade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322). Safatle diz
que essa generalização da forma-empresa de vida é a realização mesma da violência,
pois tal situação de competição engendrada pelo mercado neoliberal é “[...] um
processo de relação fundado na ausência de solidariedade [...] no cinismo da
competição [...] na exploração [...] na destruição ambiental [...]”. E “Essa violência
pede uma justificação [...]” (2022, p. 32), que aqui denunciamos como idolátrica.
Os sujeitos são levados a se verem como “empresas” possuidoras de um
“capital” específico (eles próprios), que estão em uma situação de competição com
outros “sujeitos-empresa-de-si”, o que leva à necessidade de realizarem
“investimentos em si” para alcançar melhor “desempenho” na competição na qual a
vida foi transformada. Isso não se dá somente por questões meramente subjetivas,
enquanto comportamentos que derivariam simplesmente da intencionalidade
pessoal perversa “por natureza”. Existem estruturas objetivas, uma série de
dispositivos que vão criando uma situação tal onde se estimula comportamentos
individualistas, egoístas e violentos. A realização humana passa a ser compreendida,
nesse contexto, como mero “êxito na competição”. Incontáveis pessoas ficarão,
necessariamente, para trás nessa competição.
Com o pouco que se pôde ver até aqui, dados os óbvios limites deste texto, já
se torna possível perceber como essa noção de ser humano enquanto “Capital
Humano”, um dos pilares da lógica do mercado neoliberal, significa uma verdadeira
degradação do ser humano, uma verdadeira falsificação deste, de suas relações, do

301
sentido último da sua existência. Ela é claramente contrária àquilo que está contido
na ideia da “imagem e semelhança” de Deus, que alcança seu ápice na pessoa de Jesus
de Nazaré, o Cristo.

Considerações finais
Se a relação com o referente último (a Transcendência) constitui o próprio
ser do ser humano, o problema da relação com as “falsas referências” se torna
central. Afinal, a falsa referência que ele tomar irá dar uma falsa compreensão de si
próprio, dos outros e de sua destinação. A questão se coloca mesmo em termos de
salvação. A luta contra a idolatria, como diz Gesché, é uma questão de salvação, trata-
se de uma “reinvindicação em favor do homem contra os falsos deuses que o
assediam” (2004, p. 135). Um deus é denunciado como falso em relação a um Deus
reconhecido como verdadeiro. Verdadeiro aqui tomado como veraz, que não engana
nem falsifica o humano; que se mostra tal porque age como tal; porque propicia
verdadeira liberdade e garante a humanidade de todos. Nos faz reconhecer a
humanidade de todos, e isso tem implicações econômicas e políticas bem concretas,
não se pode ficar no mero nível especulativo, teórico, ainda que esse seja, em algum
momento, necessário.
O Deus verdadeiro não é um “bajulador” como o ídolo. O ídolo pode ser tido
como um “bajulador” porque, no final das contas, depende daquele que o cria para
continuar existindo, por isso é “mudo”, “surdo”, “cego” a tudo aquilo que aqueles que
o criam fazem, pois, na verdade, nada mais é do que uma justificativa, com ares de
“divino”, de “sagrado”, criada para aquilo que, de outro modo, não teria justificativa.
O Deus vivo, ao contrário, ouve, vê, fala e, por isso, incomoda, questiona, se mostra
verdadeiro ao levar o ser humano para além da situação na qual esse se encontra (a
transcender-se). Sua “distância” (Transcendência/Santidade) é a condição de
garantia de que o ser humano não absolutize nada que vá contra a vida do próprio
ser humano, nem interesses e formas de poder.
Se a relação com um ou outro referente último se reflete na forma que o
sujeito vai tomando em sua identidade e ação, e se no neoliberalismo o Capital, o
Mercado competitivo e divinizado, o Dinheiro, se isso é o referente último da vida
humana, o sujeito que passa a se compreender como um “capital”, como uma

302
empresa, que vive como se tudo se tratasse de relações econômicas, surge como uma
decorrência lógica da idolatria do mercado, do capital.
A idolatria se define como oposição ao Deus da vida e seu projeto para o ser
humano. Tal projeto tem a ver com a vida (concreta) e a liberdade (real) de todos os
seres humanos. A vida concreta se torna o critério para decidir. A pergunta pelo
sentido da vida está intimamente ligada à pergunta fundamental do que se é afinal.
À essa pergunta sobre, afinal, “o que é o ser humano?” (cf. Sl 8,4), a fé cristã só
conhece uma resposta: a pessoa de Jesus, o Cristo: “Eis o Homem!” (cf. Jo 19,5). Jesus,
Homem-Deus, Deus humanado, revela Deus (o verdadeiro referente último para o
ser humano, pois não o engana, antes, o liberta) e nessa revelação,
concomitantemente, o verdadeiro ser humano e sua verdadeira destinação (cf.
Gaudium et Spes 22). Abre o caminho para se chegar à meta, a de sermos plenamente
humanos à medida da estatura da sua plenitude (Ef 4, 13), sermos “imagem e
semelhança” do Deus que é Amor.

Referências
A Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2023.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”: sobre a Igreja no


mundo de hoje. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Documentos da
Igreja. São Paulo: Paulus, 1997.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France


(1978-1979). Tradução de Eduardo Brandão com revisão de Claudia Berliner. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica “Laudato Si’”: sobre o cuidado da casa comum. São
Paulo: Loyola; Paulus, 2015.

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”: sobre o anúncio do


Evangelho no mundo atual. São Paulo: Loyola; Paulus, 2013.

GESCHÉ, Adolphe. Deus. Tradução de Euclides Martins Balancin. (Coleção Deus para
pensar). São Paulo: Paulinas, 2004.

GUILLEBAUD. Jean-Claude. O Princípio de Humanidade. Tradução de Ivo Storniolo.


Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008. p. 18-20.

303
SAFATLE, Vladimir. A economia é a continuação da psicologia por outros meios:
sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE,
Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian. Neoliberalismo como
gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

DUNKER, Christian (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. 1 ed.


3 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. p. 17-46.

SICRE, José Luis. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. Tradução


de João Luís Baraúna. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

SUNG, Jung Mo. Idolatria do dinheiro e direitos humanos: uma crítica teológica do
novo mito do capitalismo. São Paulo: Paulus, 2018.

304
O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO E A CRISE AMBIENTAL

Mariana Luzia Oliveira Lima1

Resumo: A crise ambiental em escala global e local se caracteriza na contemporaneidade


como um dos maiores problemas a serem enfrentados pela política, devido ao seu alto grau
de intensidade na interferência no ambiente e na humanidade. O Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas e a Organização das Nações Unidas, na Agenda 2030 e em suas
metas de Desenvolvimento Sustentável, destaca a importância crucial do tema
“sustentabilidade” em seus discursos e estatísticas, isso se deve ao fato de simplesmente
manter os índices de aquecimento global não é suficiente para modificar ou minimizar as
mudanças climáticas. O capitalismo enquanto modelo econômico, acentua e favorece a crise
ambiental, pois considera a natureza como parte da mercadoria necessária a produção do
lucro. Diante dessa perspectiva, o objetivo dessa pesquisa é investigar em que medida o
capitalismo como religião intensifica a crise ambiental. Para isso, será realizado um estudo
utilizando o método da revisão bibliográfica, que revisitará artigos, dissertações, teses e
livros que abordam o tema, onde serão utilizados como autores teóricos referenciais como
Walter Benjamin, Jung Mo Sung, Allan Coelho da Silva, Hugo Assmann, Michel Lowy, Franz
Hinkelammert, Bruno Latour, entre outros. Como resultado e conclusão da pesquisa
constatou-se que o capitalismo acentuou a crise ambiental, e sua atuação ocorre de maneira
desigual em diferentes esferas sociais e geográficas no Brasil e no mundo.
Palavras-chave: Capitalismo como religião; Ambiente; Crise ambiental.

Introdução
O capitalismo promove uma cultura do consumo na qual as pessoas são
incentivadas a adquirir bens e serviços para aumentar o crescimento econômico.
Essa cultura leva a um ciclo de desejos insaciáveis, que são fomentadas pela
indústria da publicidade e do marketing que desempenham um papel significativo
na criação e estímulo desses desejos. As estratégias de marketing muitas vezes são
projetadas para criar necessidades e desejos artificiais, incentivando as pessoas a
comprarem produtos e serviços que talvez não precisem realmente – denomina-se
essa ficção criada sob os objetos para as pessoas como fetiche da mercadoria.
A grande problemática do consumo reside obsolescência rápida dos
produtos, o que incentiva as pessoas a substituí-los por versões mais recentes. Isso
contribui para o desejo insaciável de possuir o que é considerado “o último
lançamento” ou a última tendência, aumentando o número de produtos que são

1Doutoranda e mestra em Ciências da Religião, discente em Psicologia e bacharel em Direito pela


PUC Minas. E-mail: limarianaoliveira@gmail.com. Bolsista CAPES.

305
descartados no ambiente, os denominados dejetos. Com isso e em consonância a
isso, o desejo insaciável de consumo leva a uma exploração intensiva de recursos
naturais e gera quantidades significativas de resíduos, contribuindo para os
impactos negativos no ambiente, como a depleção de recursos e a produção de
resíduos sólidos.
Críticos do capitalismo e organismos internacionais argumentam que esse
sistema, com seu foco no crescimento ilimitado e no lucro, promove uma cultura de
consumo insustentável que prejudica o ambiente e contribui para desigualdades
sociais. Propõem alternativas que buscam equilibrar a satisfação das necessidades
humanas com a proteção do ambiente e a promoção da justiça social, como o
“capitalismo consciente” ou sistemas econômicos baseados em princípios de
sustentabilidade, visando como resultado o equilíbrio entre o crescimento e o bem-
estar das pessoas frente ao ambiente. Diante dessa perspectiva, pergunta-se em que
medida o capitalismo intensifica a crise ambiental, analisando essa interrogativa sob
o viés do capitalismo como religião2, uma maneira religiosa de se cultuar o
capitalismo, conforme delineou o crítico e filósofo alemão Walter Benjamin.

1. Capitalismo como religião


As experiências do capitalismo modificaram profundamente toda a textura
social e cultural existente, ramificando-se, visível e invisivelmente, em todos os
acontecimentos e relações do sujeito no espaço. Nesse sistema, a subjetividade dos
indivíduos foi modificada fazendo com que as pessoas se sujeitassem de maneira
irracional e ritualística ao capital, sem, contudo, poder compreender esse
funcionamento.
Um dos temas que assombram o capitalismo é a (im)possibilidade de diálogo
com a ética social ou de uma economia justa. Algumas mudanças históricas como a
globalização e a revolução tecnológica são consideradas eventos determinantes
para a consolidação da sociedade moderna que permeia o seu crescimento. Por
outro lado, o mundo globalizado indiscutivelmente acelerou as ações do capitalismo
e vem permitindo o avanço do extrativismo vegetal. Essas ações verticalizaram

2 Para Walter Benjamin o capitalismo está a favor das mesmas “aflições” que a religião
– O capitalismo
é uma religião que possui ritos, celebrações e adorações, assim como ocorre na religião cristã, sendo
considerados diferentes ao que tange o dogma, a transcendência e a finalidade sobre a vida dos
cidadãos.

306
problemas que ameaçam a devastação dos recursos naturais. Não à toa, os dois
maiores desafios do mundo global estão no aquecimento global que atinge dados
numéricos crescentes na sociedade mundial.
Em 2015 o Papa Francisco já anunciava a discordância da Igreja Católica com
a idolatria do dinheiro e os anseios do capital, vedando a divinização do próprio
mercado e as consequências geradas por essas ações à mãe natureza e à população
mais vulnerável.
Hoje, a comunidade científica aceita aquilo que os pobres já há
muito denunciam: estão a produzir-se danos talvez irreversíveis no
ecossistema. Está-se a castigar a terra, os povos e as pessoas de
forma quase selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta morte
e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia – um
dos primeiros teólogos da Igreja – chamava «o esterco do diabo»:
reina a ambição desenfreada de dinheiro. É este o esterco do diabo.
O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital
se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a
avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína
a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a
fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como
vemos, põe em risco esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra
(FRANCISCO, 2015).

Além das próprias discussões apresentadas pelo Papa Francisco, alguns


especialistas colocam a importância de uma regulamentação do mercado para que
o capitalismo seja freado e o ambiente seja preservado.

2. Crise ambiental
A fim de se alcançar a riqueza o ser humano realizou os esgotamentos de
recursos naturais e também a poluição gerada pela produção de dejetos que são
lançados à natureza. Tanto a extração quanto à poluição são intensificadores das
mudanças climáticas abruptas, como secas, enchentes, perda de biodiversidade e a
própria mortalidade, que colocam a vida terrestre em ameaça. Panorama de
desequilíbrio ambiental que agrava as dificuldades vivenciadas por uma sociedade
já marcada por questões sociais graves, expondo-a a maior vulnerabilidade.
Em 2015 se criou o Acordo de Paris sob a menta de se manter o aumento da
temperatura do planeta abaixo dos 2°C até 2050. O Brasil foi um dos signatários que
concordou com o acordo comprometendo-se, até o ano de 2025, a reduzir suas
emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) em até 37% (comparados aos níveis de
2005) e, em 43%, até 2030. Nesse mesmo ano a Organização das Nações Unidas

307
(ONU) delineou 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 3(ODS) que visam
erradicar a pobreza do Brasil e do mundo, fomentando também proteção ao meio
ambiente. Todas as ações dos ODS são voltadas para o alcance da Agenda 2030, um
plano de ação internacional que visa a uma sociedade mais justa e sustentável até o
referido ano, baseado em cinco (05) princípios: as pessoas, o planeta, a
prosperidade, a paz e as parcerias.
Essas ações se baseiam na minimização das mudanças climáticas. O próprio
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) traz
Claramente que alguns dos impactos das mudanças climáticas são
inevitáveis, mas ainda existe tempo para proteger a humanidade de
algumas das consequências mais desastrosas. Essa reação deve vir
como parte de uma rápida mudança nas estratégias globais visando
evitar emissões significativas de CO2 (IPCC, 2023).

Abaixo é possível verificar quais serão as consequências das mudanças


climáticas caso essas medidas de mitigação não sejam adotadas, em dados oficiais
do IPCC.

3 Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares


Objetivo 2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a
agricultura sustentável
Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades
Objetivo 4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de
aprendizagem ao longo da vida para todos
Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas
Objetivo 6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e o saneamento para todos
Objetivo 7. Assegurar a todos o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia
Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e
produtivo e trabalho decente para todos
Objetivo 9. Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável
e fomentar a inovação
Objetivo 10. Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles
Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e
sustentáveis
Objetivo 12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis
Objetivo 13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e os seus impactos
Objetivo 14. Conservar e usar sustentavelmente os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o
desenvolvimento sustentável
Objetivo 15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de
forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e
deter a perda de biodiversidade
Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável,
proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas
em todos os níveis
Objetivo 17. Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o
desenvolvimento sustentável (ONU, 2015, p. 1).

308
Figura 1: Projeção do futuro das mudanças climáticas mostrando o agravamento
dos impactos nos sistemas naturais e humanos.

Fonte: IPCC, 2023.

Apesar das medidas utilizadas para minimizar os efeitos abruptos das


alterações climáticas, como ocorre com a adesão do processo de descarbonização,
são pequenas se comparadas aos efeitos e avanços dessas devastações ambientais.
Além disso, deve-se rememorar que “cai muito bem” para as empresas utilizarem
planos de ação “verde” em seu marketing, fomentando ainda mais o processo
capitalista.

309
Considerações finais
Segundo pesquisa do Ipea, em 2030 o Brasil terá em média 208 milhões de
pessoas (IPEA, 2021) e, segundo a ONU, a população mundial será de 9,7 milhões de
pessoas em 2050 (ONU, 2019). O consumo se torna uma consequência direta desse
capitalismo que se manifesta como uma religião em sociedade.
E por detrás desse consumo que se manifesta de maneira veloz, há a
devastação ambiental, presente na extração de minerais e produtos da natureza de
maneira indiscriminada para os processos de produção, na eliminação de dejetos do
processo de fabricação de produtos, nos excedentes não consumidos e nos produtos
utilizados e descartados no ambiente.
Essa poluição causa desequilíbrio ambiental, preocupando especialistas
ambientais do mundo inteiro através dos relatórios mundiais mostram os efeitos
desse capitalismo não consciente e as metas que possam minimizar esses efeitos.
Exemplo ocorre com a Agenda 2030 que reuniu os membros da ONU para
elaboração de um documento que pensasse em ações mais sustentáveis aos países,
primando pela manutenção da vida terrestre, ação que deve estar associada ao
desaceleramento do capitalismo.

Referências
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento. 1986. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-
conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-
humanos/decl_direito_ao_desenvolvimento.pdf>. Acesso em: 07 de marc. 2023.

ASSMANN, Hugo; Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia.


Petrópolis: Vozes, 1989.

BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

FISHER, Mark. Realismo capitalista. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o
fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção


do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

ONU BR – NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. A Agenda 2030. 2015. Disponível em:


https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em: 07 de marc. 2023.

SILVA, Allan Coelho da; SUNG, Jung Mo. Capitalismo como religião: uma revisão
teórica da relação entre religião e economia na modernidade. 2022. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/340009037_Capitalismo_como_religia

310
o_uma_revisao_teorica_da_relacao_entre_religiao_e_economia_na_modernidade/lin
k/5e72c43fa6fdcc37caf63333/download. Acesso em: 07 de mar. 2023.

SUNG, Jung Mo. Desejo, mercado e religião. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

SUNG, Jung Mo. Idolatria do dinheiro e direitos humanos. Uma crítica teológica do
novo mito do capitalismo. São Paulo: Paulus, 2018.

SUNG, Jung Mo. Mercado religioso e mercado como religião. Horizonte: revista de
Estudos de Teologia e Ciências da Religiao, ISSN-e 2175-5841, Vol. 12, Nº. 34,
2014, págs. 290-315.

SUNG, Jung Mo. Religião, direitos humanos e o neoliberalismo em uma era pós-
humanista. Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistasmetodista/index.php/ER/article/vie
w/8260. Acesso em: 01 de jun. de 2021.

SUNG, Jung Mo. Teologia e economia. Repensando a teologia da libertação e utopias.


Fonte Editorial Comercio Ltda. 2008.

311
O CONCEITO DE IDOLATRIA NO PENSAMENTO DO MISSIONÁRIO
JOHN A. MACKAY

Welington de Freitas Gomes1

Resumo: John A. Mackay foi um missionário escocês que se lançou numa caminhada de fé
em direção à América Latina, não sem antes, fazer uma escala na Espanha, com o objetivo
de aprender o idioma para então fixar morada em Lima, Peru. A América Latina foi palco de
interesses tanto de missões católicas, desde o período de colonização, quanto de
protestantes de origem estadunidense, a partir de século XIX. A Conferência de Edimburgo,
que ocorreu em 1910, considerou a América Latina como um território cristianizado por
missionários católicos. Nesse contexto, segundo Mackay, a propagação do cristianismo foi
mediada por teorias políticas, ideológicas e teológicas que apontaram para sistemas
abstratos de pensamento e esqueceram a vida em sua concretude. O objetivo é entender em
que medida, para John A. Mackay, essas mediações, que a seu tempo pretendiam atribuir
sentido à vivência do cristianismo na América Latina propagaram uma fé idolátrica. A
comunicação terá por base a produção bibliográfica do missionário John Mackay, em
especial as obras: Realidad e idolatria en el Cristianismo Contemporáneo, e New Idolatry.
Palavras-chave: Idolatria; Teologia Latino-americana; América Latina; Missões.

Introdução
John A. Mackay nasceu em Inverness, Escócia, em 1889, e segundo John
Metzger, “a família de Duncan Mackay não freqüentava nenhuma das principais
denominações, a estabelecida Igreja da Escócia ou a Igreja livre da Escócia. Em vez
disso, eles frequentavam uma igreja da menor denominação escocesa, a Igreja
Presbiteriana Livre, localizada a cerca de um quilômetro e meio da casa onde
moravam” (METZGER, 2010, p. 7). Vale ressaltar que no mesmo país, mas na capital
Edimburgo, ocorreu a primeira Conferência Mundial de Missão, no ano de 1910. No
ano da Conferência, John Mackay era estudante na Universidade de Aberdeen,
obtendo o título no ano de 1913.
Dentro deste contexto, é importante ressaltar a existência de um ambiente
totalmente voltado para as missões. Nomes de missionários escoceses como: David
Livingstone, missionário em África; Alexander Duff foi missionário na Índia; Mary
Slessor também missionária em África, Calabar; Robert Reid Kalley, missionário na

1Mestrado em andamento em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo. E-mail:


welington_gomes@msn.com.

312
Ilha da Madeira, em Portugal, e posteriormente no Brasil, e por fim, James Thomson,
considerado o primeiro agente da Sociedade Bíblica Britânica na América do Sul.
Ao terminar o curso de filosofia, em 1913, John Mackay recebeu uma bolsa
de estudos para continuar sua formação acadêmica, agora seu destino seria os
Estados Unidos da América do Norte, no Seminário Teológico de Princeton.
Finalizando seus estudos em Princeton, no ano de 1915, Mackay é contemplado com
uma bolsa de estudos, escolhendo estudar na Espanha com o objetivo no
aprendizado do idioma visualizando trabalhar como missionário na América Latina.
Os anos 1915 e 1916 são vividos em Madri, Espanha, na Casa dos Estudantes
e neste período conhece um dos grandes intelectuais e será ele quem mais irá
influenciar sua vida, Miguel de Unamuno. O duro combate de Unamuno ao
racionalismo e o positivismo como projeto da modernidade influenciou John
Mackay. Foi revelando para Mackay que não há divórcio naquilo que boa parte do
pensamento teológico teima em dividir: “o perigo do escolasticismo é que, ao buscar
definições cuidadosas, faz com que a teologia se torne abstrata e distante da vida.
Esquece que a vida é mais do que a razão” (LEITH, 1996, p. 173). É preciso, porém,
resgatar a dimensão teológica que se ocupa com os dilemas da vida em seu cotidiano.
Neste contexto, a capacidade de Mackay para trabalhar uma reflexão
teológica revela a forte influência do filósofo espanhol, Miguel de Unamuno. O
filósofo espanhol dizia ser necessário primeiro escutar as perguntas que a cultura
faz à religião, ao invés de ditar as respostas sem antes entender, quais são as
perguntas.
Vale lembrar que John Mackay foi o primeiro a realizar uma pesquisa sobre
o filósofo espanhol Miguel de Unamuno2 na América Latina. Para Raúl Chanamé,
Mackay, “se converteu num dos mais decididos divulgadores do pensamento
unamuniano” na América Latina (CHANAMÉ, 1995, p. 150).
Outro fato que merece atenção, diz respeito sobre o desenvolvimento
intelectual de John Mackay e a sua elaboração sobre o conceito de Idolatria
apresentado no livro: Realidad e idolatria en el Cristianismo contemporáneo.

2 Segundo John Sinclair, “Mackay matriculou-se na Universidade Nacional de São Marcos. No segundo

ano apresentou sua tese sobre Miguel de Unamuno que o qualificou para ganhar o título de Doutro
em Literautura. Mackay disse que foi o primeiro estrangeiro a receber um título acadêmico de
literatura na Universidade São Marcos. A tese recebeu o titulo: Dom Miguel de Unamuno: sua
personalidade, obra e influência” (SINCLAIR, 1995, p. 71).

313
Atualmente, o conceito de idolatria e o livro, “Realidad e idolatria en el Cristianismo
contemporâneo” tem sido objeto dos nossos estudos no programa de pós-graduação
em Ciências da Religião na Universidade Metodista.

1. Idolatria: o desenvolvimento de um conceito


Karla Ann, em seu artigo “La teologia de Juan A. Mackay como Praeparatio
liberationis”, “propõe examinar como Mackay entendeu o fazer teológico, sua
postura referente movimentos revolucionários no continente e sua proposta para o
papel da igreja dentro da sociedade” (KOLL, 2016, p. 10).
Na investigação do princípio, Karla Ann nos ajuda relatando duas visitas de
John Mackay a Costa Rica. A primeira, que aconteceu em julho de 1946, como parte
de uma viagem evangelística em 14 nações e uma segunda visita, que ocorreu em
agosto de 1961, para participar de uma conferência na Cátedra Strachan sobre o
tema: “Realidad y apariencia en el cristianismo de nuestra época”. Essas palestras
foram divulgadas primeiramente no Seminário Teológico de Austin, Texas e
publicadas em 1952, em inglês, por John Mackay com o título: “Christian Reality and
Appearance”. A versão em espanhol foi traduzida em 1953 por “Realidad e idolatria
en el cristianismo contemporâneo”, e divulgadas na Faculdade de Teologia de
Buenos Aires, em 1953, sendo que, segundo o próprio John Mackay informa no
prólogo do livro, foi possível introduzir nesta versão revisada novas idéias dando
maior sentido ainda as teses deste tomo.
É bem possível que toda essa avalanche de ideias tenha se originado a partir
dos anos 50, com o chamado Macarthismo. Vale ressaltar, a importância da Guerra
Fria, quando ao final da segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), o mundo fica
dividido ideologicamente entre dois sistemas políticos: o capitalista e o socialista. A
característica da Guerra Fria é a luta por hegemonia sem a presença de armamento
bélico. Entretanto, nos anos 1950, os Estados Unidos da América estavam vivendo
uma guerra ideológica contra o comunismo, levando o senador Joseph McCarthy
(1908-1957), a incentivar uma caça aos comunistas em solo norte-americano.
Segundo Manoel Bernardino, “o Senador McCarthy contava com grande
apoio do Congresso do governo dos EUA, da liderança protestante e de muitos
empresários para quem a liberdade consistia apenas na liberdade de ganhar
dinheiro” (SANTANA FILHO, 2017, p. 105). O princípio característico deste

314
movimento, diz respeito, na luta por um sistema econômico que legitima tão
somente o ganho financeiro, o capitalista.
Num texto escrito por John Mackay, intitulado, “A nova idolatria”, escrito em
1953, e apresentado ao Conselho da igreja Presbiteriana dos EUA. Denunciava essa
caça aos comunistas como uma devoção religiosa que não representava os
interesses de Deus e tão pouco do seu Reino.
Segundo John Mackay, “o ódio ao comunismo está produzindo em certos
círculos um fervor religioso, e este fervor está criando uma religião substituta. Uma
oposição apaixonada e irrefletida ao demônio comunista está chegando à ser
considerada como a única expressão verdadeira do americanismo e até do
Cristianismo” (MACKAY, 1953, p. 1).
É preciso reconhecer que as críticas pontuadas por John Mackay sinalizam
uma devoção religiosa a outra causa que não Deus e seus propósitos. No próximo
tópico iremos nos deter sobre os ídolos que ocupam a realidade cristã elaborada por
John Mackay.

2. A realidade cristã e os ídolos como substitutos da fé


De maneira breve e sucinta diremos que para John Mackay, a Realidade Cristã
é quadrilátera, ou seja, consta da Revelação feita por Deus, tornando-se num aspecto
objetivo da realidade implicando no lugar da teologia. Um segundo aspecto de
caráter subjetivo da realidade está no encontro com Deus a partir da revelação em
Jesus Cristo. O terceiro aspecto está centrado na formação do povo ou comunidade
de Deus e por fim, o quarto e último que é o aspecto ético, ou seja, os preceitos que
regem a vida cristã.
Entretanto, Mackay nos alerta para o fato, que em algum momento estes
aspectos que devem ser observados podem ser substituídos. Para Mackay, “quando
o que deveria servir de instrumento se torna um fim em si mesmo, torna-se um ídolo,
e neste caso, um substituto da realidade cristã” (MACKAY, 2004, p. 11).
Mackay aponta sinalizando, que os instrumentos que utilizamos devem
desempenhar um papel que consiste numa iluminação na nossa caminhada, mas
nunca substituindo a fé em Jesus Cristo. Segundo Mackay, devemos entender que
uma “doutrina não poderá conter em si tudo o que é divino, o infinito. Não existe
fórmula alguma capaz de abarcar sem medida” (MACKAY, 2004, p. 16).

315
Enfim, para Mackay, “o que salva não é a mera crença na Bíblia como fonte de
conhecimento. A Bíblia é necessária, mas o que salva o homem é a fé em Jesus Cristo,
e não num mero consentimento acerca de uma doutrina bíblica”. Mackay continua,
“uma crença acerca da Bíblia pode chegar a ser um substituto da fé no Salvador a
quem a Bíblia revela. Desta maneira, a Bíblia chega a ser objeto da fé e não órgão da
fé, tornando-se sutilmente num ídolo” (MACKAY, 2004, p. 19).
O segundo aspecto apresentado por John Mackay diz respeito a experiência
que nasce do encontro com Deus. Para Mackay, “Deste encontro nasce a experiência
cristã, a que conduz ou a que se expressa em culto. Poderia dizer, que tanto a
experiência cristã como o culto cristão podem expressar a realidade mesma; mas
ambos podem expressar a aparência3, a idolatria” (MACKAY, 2004, p. 25).
Finalizando este segundo aspecto, Mackay, aponta dizendo que,
o verdadeiro culto é reação, resposta a Deus. Se adora a um Deus
que se preocupa com os homens. Se queremos adorar a Deus de
verdade, não devemos buscá-lo tão somente em sentimento ou
emoção. Pois precisamente, aqui, é onde surge um novo ídolo: a
divinização da emoção, a idolatria do estético (MACKAY, 2004, p.
35).

O missionário escocês parece lutar para uma conscientização centrada na


vivência de uma prática do evangelho, longe de uma contemplação que tem como
característica a estagnação do ser humano.
O terceiro aspecto é uma crítica severa de John Mackay, para ele, “quando
uma igreja particular, seja pequena ou grande, reclama ser a Igreja única de Jesus
Cristo, se converte eclesiasticamente em seita, e cristianamente em ídolo” (MACKAY,
2004, p. 48). Neste caso, é interessante perceber que, cada vez que nos voltamos
para as questões internas alimentando continuamente toda uma estrutura
eclesiástica vivemos uma experiência de idolatria. Para Mackay, “a igreja que deixa
de ser missionária, deixa de ser igreja” (MACKAY, 2004, p. 44). A igreja tem como

3 Vale ressaltar que John Mackay utiliza a palavra “Appearance”, ou seja, “aparência”, no título da obra

“Christian Reality and Appearance” publicada em inglês em 1952, entretanto, a versão em espanhol
traduzida em 1953 recebe o título: “Realidad e idolatria en el Cristianismo contemporâneo”. A partir
desta citação é possível compreender que o missionário escocês tenha o entendimento, que a palavra
aparência não representa diretamente a realidade cristã, ou seja, é um instrumento da ação humana
que aponta atribuindo sentido. Entretanto, para John Mackay, esse instrumento está se tornando um
fim em si mesmo e causando assim uma atitude idolátrica. Está é uma intuição que estamos
trabalhando e desenvolvendo com mais propriedade em nossa pesquisa.

316
missão uma atuação para fora das quatro paredes, ou seja, uma igreja atuante é uma
igreja que sinaliza para as demais esferas da sociedade o amor de Deus.
E por fim, o quarto aspecto, a obediência a Deus é vivida não numa
observação irrestrita a uma doutrina ou um dogma religioso, mas numa relação de
amor a Deus que serve de base para uma relação pessoal com os seres humanos e a
criação divina. Obedecer a Deus está diretamente vinculado a ética do amor. Caso
seja estabelecido normas absolutas de conduta e que de alguma maneira não
revelem a realidade cristã do amor entre os seres humanos será considerada por
John Mackay como idolatria.
Finalizando, para John Mackay, “o cristão no dia de hoje deve ser um
peregrino, que andando na luz da sua consciência iluminada por Cristo, persegue
uma meta que considera a vontade de Deus para sua vida e dirigida para o Reino de
Deus na terra” (MACKAY, 2004, p. 68).

Considerações finais
A advertência de John Mackay recai, quando a vida espiritual cristã é
substituída por algo visível, e na atribuição de um sentido pleno, ou seja, enquanto
um fim em si mesmo. Desta tentativa irá surgir uma espécie de ídolo a ser adorado,
alimentando uma devoção que torna as pessoas estéreis e insensíveis.
Para John Mackay (2004), o Deus que se encarnou no Cristo sempre buscou
o bem-estar humano em toda a sua integralidade. O verdadeiro propósito do ser
Cristão está na busca incessante do Reino de Deus e sua justiça. Essa busca ocorre
em meio a caminhada e em voltas com uma atitude crítica, ou seja, a teologia deve
ser crítica de si mesma.

Referências
CHANAMÉ, Raúl. La relación de Mariátegui con John A. Mackay. p. 145-160.
PORTOCARRERO, Gonzalo. CACERES, Eduardo. TAPIA, Rafael. La aventura de
Mariátegui: Nuevas perspectivas. Pontificia Universidad Católica Del Peru, Fondo
Editorial, 1995.

KOLL, Karla Ann. La teologia de Juan A. Mackay como praeparatio liberationis. San
José, Costa Rica. Editorial Sebila, Escuela de teologia. Revista Aportes Teológicos,
número 2, ano 2016.

LEITH, John. A tradição reformada: uma maneira de ser comunidade cristã. São
Paulo: Pendão Real, 1996.

317
MACKAY, John A. Realidad e idolatría en el cristianismo contemporâneo. Buenos
Aires: Kairós, 2004.

MACKAY, John A. The New Idolatry. Theology Today, X (October, 1953).

METZGER, John Mackay. The hand and the Road: the life and times of John A. Mackay.
Louisville, Kentucky, Published by Westminster John Knox Press. 2010.

SANTANA FILHO, Manoel Bernardino. O caminhar da igreja: o conceito de missão no


pensamento de John A. Mackay. São Paulo: Garimpo, 2017.

SINCLAIR, John. John A. Mackay: um escocês com alma latina. Manhumirim: Didaquê,
1995.

318
ÉTICA ECONÔMICA NO PENSAMENTO TEOLÓGICO DO
REFORMADOR PROTESTANTE MARTIM LUTERO

Wilhelm Wachholz1

Resumo: Deus é autor da vida a partir da criação da boa economia, enquanto o diabo,
pervertendo a economia, se alia ao usurário e comerciante fraudulento, que tornam-se
“devoradores” e “homicidas” de pessoas necessitadas. Esta é a compreensão do reformador
protestante Martim Lutero quando a economia favorece ricos, drenando a riqueza de
pessoas pobres e necessitadas. Neste ponto, a crítica de Lutero tem atualidade com a lógica
da concentração de riqueza por países, grupos empresariais, ou pessoas individualmente. O
objetivo deste artigo é analisar o pensamento sobre economia de Lutero, a partir de textos
primários. De um lado, Lutero denuncia abusos econômicos, seja pela usura e negócios
fraudulentos, de outro, oferece impulsos teológicos para uma ética econômica cristã
diaconal e solidária, especialmente em favor das pessoas mais necessitadas, e princípios
racionais de governo para justiça social e econômica.
Palavras-chave: Martim Lutero; Economia; Ética; Protestante.

Introdução
Martim Lutero (1483-1546), reformador protestante do século XVI, ousou
uma teologia interdisciplinar, abordando, por exemplo, temas como direito, política,
economia, ainda que não fosse – e reconhecia isso! – um especialista nestes
assuntos2. Nossa intenção aqui também não é abordar propriamente a ciência
econômica, mas, a partir da teologia, refletir o tema da economia na perspectiva da
ética teológica de Lutero, especialmente no que diz respeito aos seus impactos na
sociedade.

1. Economia em Martim Lutero


Nossa intenção não é fazer uma análise moralista de riqueza e pobreza.
Também não propomos uma discussão propriamente da ciência econômica. A
pergunta fundamental que nos move é a reflexão da ética econômica, isto é, sobre a
indignidade da vida humana resultante da concentração de riqueza. A discussão
sobre este tema pode ser encontrada no reformador protestante Martim Lutero,
denunciando abusos nas práticas comerciais e de juros/usura. Evidentemente, o

1 Doutor em Teologia. Professor de Teologia e História na Faculdades EST, São Leopoldo/RS. E-mail:
wachholz@est.edu.br.
2 Apesar disso, Karl Marx descreveu Lutero como “o mais antigo economista político alemão.” MARX,

Karl; ENGELS, Frederick. Collected Works. Nova York: International Publishers, 1975. p. 448.

319
século XVI de Martim Lutero é muito diferente do século XXI, por isso, “soluções”
apresentadas por ele para o seu tempo não necessariamente devem ser tomadas
como adequadas. Ainda assim, impulsos teológicos para uma ética econômica e
princípios racionais de governo para justiça social e econômica podem ser
relevantes ainda cinco séculos mais tarde.
O pensamento sobre economia em Lutero pode ser verificado de forma
transversal em diversos escritos. Mais destacados escritos sobre o tema são
Comércio e Usura (1524), (Sermão) Sobre a Usura (1520/1524), Prédicas Semanais
sobre Mateus 5-7 (1530/32) e Aos Pastores, para que preguem contra a usura (1540).
Para nosso estudo, nos concentraremos principalmente na análise do último escrito,
além da Preleção sobre Gênesis (1545). Iniciamos por este último escrito, fruto de
cerca de dez anos de atividade docente de Lutero na cátedra de Bíblia da
Universidade de Wittenberg.
Segundo Westhelle (2013, p. 317, 322-323), o significado de “economia” no
pensamento de Lutero abrange, em seu sentido original, os meios de sustentação
(produção) e multiplicação (reprodução) da vida. Ou seja, Lutero concebeu a
economia como uma unidade de produção e reprodução da vida. A produção diz
respeito aos meios que visam à sustentação da vida e, a reprodução, à sexualidade e
multiplicação da vida. Por esta razão, Lutero concebia a economia não como
“mercado”, mas como a complexidade a partir do “governo doméstico” de produção
e reprodução. A economia, então, era concebida a partir da casa, a partir do homem
e da mulher os quais, pelo matrimônio, são cooperadores da economia de Deus em
favor da vida.
Tudo o que Deus criou, ou seja, a “boa economia”, foi corrompido pelo pecado.
O pecado é aversão e separação do ser humano de Deus. Pelo pecado, o ser humano
se encurva em si mesmo e fecha-se em si mesmo. Neste movimento, a própria auto-
relação do ser humano, que originalmente estava em identidade com Deus, torna-se
egocentrada, monóloga, autorreferente. Em sua Preleção sobre Gênesis, Lutero
(2014, p. 60, 144; BAYER, 2007, p. 127-1283) concebe que o autofechamento se
expressa através da separação inicialmente em relação a Deus e, na sequência, de
Adão com Eva e vice-versa, e, por fim, de ambos em relação à criação como um todo.

3Veja também BAYER, 2007, p. 130-131; ASENDORF, 1998, p. 316, 321, 335; BARTH, 2009, p. 191-
196, 207.

320
Como pecador, passou a construir imagens idolátricas, ao invés de louvar em culto
a Deus.
Bayer, a partir de Lutero, relaciona o pecado da idolatria com a avareza.
Conforme Bayer, para Lutero, a avareza evidencia o pecado humano por excelência.
A avareza expressa o isolamento e a ingratidão humana, pois, ao invés de, em
gratidão, compartilhar, passar adiante, deixar fluir o que recebe de Deus, retêm para
si, interrompendo o ciclo da vida. Por esta razão, a avareza revela o ser humano
encurvado e fechado em si mesmo. Bayer provoca a seguinte pergunta: “O que tens
que não recebeste?” Ao que responde: “Essa pergunta é capaz de transformar nosso
olhar, sim, nosso coração – e assim o nosso ser e ter, juntamente com a distribuição
dos bens desta Terra” (BAYER, 2007, p. 221).
Lutero (2014, p. 174, 234, 235) concebe o diabo não em perspectiva de
pervertor da moral, mas como homicida4 ao “incitar o ser humano para a idolatria.”
Ao afastar o ser humano de Deus, o diabo o seduz, com a promessa de que pode
tomar posse de tudo (LUTERO, 2014, p. 174). O diabo não nega Deus, mas perverte
“[...] a Palavra e a vontade de Deus como pretexto àquilo que o desejo sugere”
(LUTERO, 2014, p. 182). A justiça original, caracterizada pela co-habitação e co-
existência justas, é anulada e o pecado original resulta em perversão das relações
econômicas (LUTERO, 2014, p. 187, 191, 198). Por sua vez, o pecado é justificado de
forma que o ser humano se autojustifica, defendendo seu pecado como justiça
(LUTERO, 2014, p. 202). Os “sucessos financeiros/econômicos/materiais”, por
exemplo, são justificados como “sorte” ou “bênçãos” nos negócios, ao invés, de
avareza.
A idolatria, então, é resultado do autofechamento do ser humano,
construindo suas imagens idolátricas. Ao invés de uma “inter/extra-comunicação”,
o ser humano somente ainda se “auto-comunica”, tornando-se egocentrado, egoísta.
Neste “auto-relacionamento”, o ser humano busca juntar para si tanto mais que
puder. Em seu escrito O Debate de Heidelberg (1518), Lutero (1987, p. 51)
caracteriza o egoísmo ou a avareza como “hidropisia da alma”, segundo a qual

4 Para Lutero, “Deus abomina [...] o homicídio; ele quer que os seres humanos se multipliquem na
terra. E homicídios a despovoam e causam desolação, como acontece nas guerras. Deus não criou a
terra em vão, mas para que ela fosse habitada [...]. Pois sua vontade é a vida, e não a morte. [...] Tudo
isso testemunha que Deus não ama a morte, mas da vida, exatamente como, no início, também criou
o ser humano não para que morresse, mas para que viesse” (LUTERO, 2014, p. 332).

321
“quanto mais [a alma] bebe, mais sede tem.” Sentido semelhante pode ser
encontrado no conceito grego “pleonexia”, que significa “querer mais do que a sua
parte, querer sempre ter mais”. Relacionado com a criação, o “pecado da hidropisia
ou pleonexia” expressa a privatização do bem coletivo. Portanto, é gerado pelo
egoísmo individualista que aniquila a noção do coletivo, do público. O espaço público
somente ainda persiste como espaço de guerra, violência, competição e busca da
causa individual.

2. Admoestação aos pastores


Em Aos Pastores, para que preguem contra a usura, Lutero tece fortes críticas
aos abusos cometidos por aproveitadores. A Alemanha atravessava grave crise
econômica. Neste contexto, Lutero escreve aos pregadores: “Peço em nome de Deus
a todos os pregadores e párocos que não queiram calar-se nem deixar de pregar
contra a usura, admoestar e alertar o povo” (LUTERO, 1995, p. 447). O reformador
sabe que a usura, ou seja, ganho desenfreado em detrimento da pobreza alheia, está
estabelecido e naturalizado. Ainda assim, o clamor é necessário e urgente e Lutero
solicita que os pregadores também o façam, mesmo que as pregações consigam
“arrancar [apenas] algumas pessoas” desta prática. Ele não quer que a usura seja
aceita como senso comum na sociedade. A praxe de juros abusivos e vendas
exploratórias exigem que “[...] você [pregador] deve falar e não calar, mas mostrar
ao povo com clareza e nitidez, que não pode se constituir em serviço ou favor o que
é feito contra a palavra de Deus e contra o direito” (LUTERO, 1995, p. 452). O
reformador protestante não condena relações comerciais a priori; “numa compra
justa e honesta não há usura” (LUTERO, 1995, p. 493).
Para Lutero, “[...] a usura não podia transformar ninguém em escravo”
(LUTERO, 1995, p. 461). Por isso, considera que um usurário é mais perverso do que
um ladrão, razão pela qual “[...] se deva punir um ladrão duas vezes, um usurário
porém quatro” (LUTERO, 1995, p. 462). Isso deveria ser assim porque “[...] um
usurário é um assassino, pois quem suga o alimento de outra pessoa, quem assalta
e rouba, esse comete um assassinato de igual tamanho (no que lhe diz respeito)
como aquele que deixa uma outra pessoa passar fome até que seja aniquilada”
(LUTERO, 1995, p. 463). Por tudo isso, é necessário que os pregadores “provoquem-

322
nos e admoestem-nos, a fim de que coíbam tais diabruras e salvem os pobres!”
(LUTERO, 1995, p. 465).

Considerações finais
A crítica de Lutero lembra a história de Os Miseráveis, no qual o personagem
principal, Jean Valjean, era extremamente pobre e estava morrendo de fome, e, por
esta razão, roubou um pedaço de pão de uma padaria para comer. Acabou preso por
isso e foi condenado a trabalhos forçados. Por fim, após muitos anos, conseguiu fugir
da prisão e ser perseguido pelo inspetor Javert, que tinha como lema “fazer a justiça
a todo custo”, sem nem considerar a situação de Valjean. Os Miseráveis foi escrito no
século XIX, durante a época da Revolução Francesa. Ainda assim, a história de Os
Miseráveis remete à crítica de Lutero, denunciando abusos econômicos que
recrudesciam ainda mais a miséria os pobres, os quais sofriam o “peso da lei” por
pequenos roubos, enquanto ricos e poderosos, que roubavam à custa dos pobres,
permaneciam livres.
A economia, concebida como criação de Deus, é sinônimo de vida. Produção
e reprodução estão a serviço da vida. A economia se torna sinônimo de morte
quando é privatizada pela avareza idolátrica; quando se torna autônoma da própria
vida. Por isso, em perspectiva diaconal e solidária, a economia precisa estar a serviço
do melhoramento da vida humana e de toda a criação, em perspectiva de justiça
social e sustentabilidade. Quando a economia se torna um “sistema” à parte da vida
humana, torna-se um ídolo e, como ídolo, se torna injusta, escravizante, homicida.

Referências
ASENDORF, Ulrich. Lectura in Biblia: Luthers Genesisvorlesung (1535-1545).
Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1998.

BARTH, Hans-Martin. Die Theologie Martin Luthers; eine kritische Würdigung.


Gütersloh: Gütersloh Verlagshaus, 2009.

BAYER, Oswald. A teologia de Martim Lutero; uma atualização. São Leopoldo:


Sinodal, 2007.

LUTERO, Martinho. Aos Pastores, para que preguem contra a Usura (1540). In: Obras
Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. p. 446-493.

LUTERO, Martinho. Debate de Heidelberg. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo:


Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1987. v. 1, p. 37-54.

323
LUTERO, Martinho. Preleção sobre Gênesis. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo:
Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2014. v. 12, p. 53-530.

MARX, Karl; ENGELS, Frederick. Collected Works. Nova York: International


Publishers, 1975.

WESTHELLE, Vítor. Poder e Política – incursões na teologia de Lutero. In: HELMER,


Christine. Lutero: um teólogo para tempos modernos. São Leopoldo: Sinodal, 2013.
p. 315-331.

324
ARTE ST 5

ST 5 – Ética teológica e antropologias contemporâneas

325
André Luiz Boccato de Almeida (PUCSP)
Mário Marcelo Coelho (FDT/SP)
Marta Luzie de Oliveira Freicheiras (SBPM)

Esta Sessão Temática é proposta pelo Grupo de Pesquisa PHAES – Pessoa Humana,
Antropologia, Ética e Sexualidade, da Faculdade de Teologia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC SP, devidamente cadastrado junto ao
CNPq, e que agrega pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento e de
diversas regiões. Trata-se de um grupo de pesquisa interdisciplinar que procura
refletir de modo analítico, crítico e interpretativo acerca do diálogo entre as ciências
e a teologia com parâmetros que envolvem a Pessoa Humana, tais como:
antropologia, ética, teologia, sexualidade, psicanálise e áreas afins. O objetivo desta
sessão temática é aprofundar esse debate ético-teológico sobre questões relativas à
Ética cristã, nos seus mais diversos níveis: moral fundamental, bioética,
decolonialidade, ética sócio-política, ética sexual, questões de gênero, ética familiar,
ética digital, direitos humanos, dentre outros. Contudo, debater tais temas impõe
uma investigação do conceito de pessoa humana que está imerso na cultura
subjacente aos problemas morais investigados, além de seus aspectos emocionais
pesquisados tanto pela psicologia, quanto pela psicanálise. O método de trabalho é
o hermenêutico-argumentativo e dialogal, próprio das ciências humanas.
Esperamos que o resultado desta sessão temática seja de profícuos debates em
torno da Ética cristã, mas tendo como contraponto o diálogo interdisciplinar. Dessa
feita, desejamos contribuir com a ampliação do debate em Ética teológica no
contexto latino-americano a partir da compreensão de Pessoa Humana e sua
contribuição para a sociedade atual.

326
INTOLERANCIA RELIGIOSA E AS CONSEQUENCIAS NA HARMONIA
SOCIAL

Ana Paula Mota Ribeiro Tavares1

Resumo: O transcendente e o sagrado fazem parte da realidade humana. A procura de


respostas ao sentido da vida tem sido uma busca em todo decorrer da história humana. No
entanto, essas divergências podem extrapolar o limite da liberdade de expressão e
comprometer a paz social. Esse fator gera desarmonia social que requer intervenção da lei.
Com base nessa realidade, o presente estudo tem como objetivo investigar como a
intolerância religiosa afeta a harmonia e a paz social. Foi realizada uma breve pesquisa de
natureza básica, com objetivo exploratório, de abordagem qualitativa, mediante os
procedimentos da pesquisa bibliográfica. Identifica-se que a intolerância religiosa afeta a
harmonia social por meio de ofensas patrimoniais, morais e psicológicas e sua superação
exige atitude ética e de conscientização.
Palavras-chave: Intolerância Religiosa; Harmonia Social; Lei.

Introdução
Desde os primórdios da humanidade, o ser humano está em constante busca
de sentido da vida. Sua origem, propósito, futuro, questões sobre a morte, buscando
respostas para sua existência. Os anseios por respostas não encontram suporte
definido na ciência e filosofia, e essa busca continua direcionando a atenção e o
interesse na religião, que têm para oferecer respostas, tomando por base a
divindade de seres superiores, que são criadores, mantenedores e provedores da
alma.
De tal modo, a religião como fenômeno humano, abre diversidades de
representações, como assim são as diversidades humanas, e cada grupo defende
seus princípios, respostas, regras e rituais. No entanto, é dentro da diversidade que
surgem as intolerâncias religiosas, por acreditar que suas crenças são superiores à
do outro, ou que merecem maior credibilidade. Assim, diante das divergências
geradoras de intolerância, harmonia e paz social são comprometidas.

1 Psicopedagoga, professora na rede municipal de Fortaleza desde 2001 e atualmente exercendo a


função de coordenadora pedagógica. Mestranda em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de
Vitória.

327
Nesse embate de posicionamentos surge a questão: Quais são as
consequências da intolerância religiosa para a sociedade? Essa intolerância religiosa
tem sido entendida pelo Estado como prática de discriminação ou preconceito e,
dependendo do nível da ofensa ou intervenção patrimonial, moral ou psicológica, há
repercussões criminais.
Com base nesse cenário o presente estudo apresenta como objetivo
investigar as formas de como a intolerância religiosa desarmoniza a paz social.
Para contemplar o objetivo proposto, foi realizada uma breve pesquisa de
natureza básica, com objetivo exploratório, de abordagem qualitativa, mediante os
procedimentos da pesquisa bibliográfica, elaborada a partir de material já publicado
em livros, periódicos e artigos devidamente publicados, de relevância ao tema,
juntamente com a menção dos dispositivos jurídicos que tratam sobre os crimes de
intolerância religiosa.

Desenvolvimento
A busca do sentido da vida tem permeado todo o percurso da história da
humanidade e se apresenta através das artes, música, ciência e cultura, revelando
seus preceitos, concepções de vida e morte, valores e rituais de formas diversas de
cultos a divindades. E, com base nessa diversidade de expressões, surgem
posicionamentos de maior ou menor domínio popular no decorrer da história, bem
como de divergências na sociedade, podendo ocasionar desarmonia e comprometer
a paz social (AQUINO, et al, 2009).

A religião, a sociedade e a lei


A relação entre religião e sociedade são construídas no contexto cultural e
histórico e permeiam ideias, condutas, posicionamentos que buscam responder
questões de maior ou menor impacto social. Posicionamento sobre aborto,
casamento, condutas morais, dentre outros, possuem de certa forma, seu viés
religioso, com base nas doutrinas, e em cada época e lugar no qual prevalece
influências.
As diversas crenças, do mesmo modo, revelam as diversas concepções morais
e de valores que buscam ditar regras de condutas, e junto com as regras somam

328
também, seus rituais e ritos próprios. A oposição às regras, preceitos e ritos de
determinada crença, advém do outro, que não participa da mesma concepção.
Na imensa diversidade religiosa em que vivemos nos dias de hoje,
é preciso ser tolerante para com os outros, ou seja, é preciso
respeitar a liberdade de culto e de crença dos mesmos; pois quem
não respeita, quem acha que só ele através da sua crença ou religião
se salva, se torna intolerante, causando conflitos e desarmonia
onde vive (BORSUK, 2012, p. 10).

O direito ao culto e suas expressões é garantido constitucionalmente como


no art. 5, VI, da Constituição Federal (BRASIL, 1985), que estabelece a
inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre
exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e as suas liturgias. Do mesmo modo a Lei 10.825 de 22 de dezembro de 2003,
que repete o que já é constitucionalmente garantido, prevendo no artigo 44, § 1º, do
Código Civil a liberdade de criação, organização, estruturação interna e o
funcionamento das organizações religiosas.
A referida lei tem consonância com a Lei 9.459, de 13 de maio de 1997, que
garante a liberdade religiosa e pune criminalmente a incitação, prática e indução de
discriminação, preconceito, e seus agravantes quando em publicidade.

Liberdade versus Intolerância


Com base nos estudos de Trento (2021) haveria uma linha tênue entre a
liberdade religiosa, assegurada legalmente e os limites das expressões, que podem
chegar à intolerância pelo seu excesso de proselitismo.
Dentro da sociedade sempre haverá pluralidade de ideias, sendo estas partes
que compõem as religiões, no entanto, os excessos do uso dessa liberdade,
ultrapassam os limites da defesa de suas convicções, podendo direcionar a
intolerância religiosa, como ofensivas a outras crenças.
Nesse sentido, Reimer (2013) destaca que é necessário refletir sobre o
exercício da diferenciação entre liberdade de crença e de consciência. A primeira
refere-se a liberdade de se expressar sobre a própria crença, com seus rituais,
doutrinas, costumes, utilizando a crença como instrumento de atuação da própria
liberdade de expressão e do proselitismo, enquanto que a liberdade de consciência
envolve tanto a crença, o culto, quanto a autodeterminação, pelas convicções
filosóficas.

329
Essas diferenciações fazem parte da diversidade em qualquer sociedade, e
para que haja harmonia social requer de tolerância, aceitação das convicções
religiosas do outro. No entanto, a intolerância religiosa tem sido fator real, e requer
de leis de regulação para inibir ou, dependendo do grau de ofensa, punir os atos,
sejam estes contra o patrimônio religioso, quanto a discriminação e preconceito por
atos que afetam a dignidade humana (FONSECA, 2017).
Tais aparatos jurídicos, já mencionados acima, buscam, do mesmo modo,
garantir a liberdade e coibir as ofensas, discriminação e preconceito, visto que: “ A
Intolerância religiosa consiste numa atitude mental caracterizada pela falta de
habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças ou crenças religiosas
de outros, podendo resultar em perseguição religiosa e em crimes com a pessoa e a
dignidade humana” (BORSUK, 2012, p. 10).
Esses fatos ocorridos de forma reiterada na sociedade podem disseminar a
discórdia e comprometer a paz social.

Intolerância religiosa e desarmonia social


A tolerância de um modo geral é um aspecto necessário para a paz e
harmonia social. Quando esses fatores de divergência ultrapassam a liberdade de
expressão e partem para o preconceito e discriminação mediante ofensa física,
moral e psicológica, a aplicação da lei se faz necessária.
No entanto, não deriva da presença da lei para que haja a paz social;
necessário se faz que haja conscientização dos direitos do outro em professar sua fé
e atuar em liberdade com seus ritos, convicções, rituais e valores.
Com base nessa linha de pensamento Fonseca (2017) realizou uma análise
do Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015), da
Secretaria de Direitos Humanos. Nessa análise, identificou que um aumento dos
casos de intolerância religiosa no período de cinco anos estudados, ou seja, que
ocorreram em média um episódio de intolerância religiosa a cada dois dias, num
total de 965 casos. Identificou também que há maior presença de fiéis de religiões
afro-brasileiras entre as vítimas, seguidos de evangélicos e católicos. Destaca que há
uma significativa presença de violência psicológica e episódios de violência
patrimonial. Dentre os dados destacados está a discriminação e intolerância

330
ocorrida dentro do ambiente domiciliar e nas escolas, o que se torna agravante pela
proximidade entre agredidos e agressores.
Portanto, a desarmonia que ocorre por motivos de intolerância religiosa
pode estar sendo disseminada entre as relações próximas e se estendem ao nível
macrossocial, o que pode comprometer a paz social e gerar conflitos internos e
externos em seus mais diversos graus de ofensa. Deste modo pode-se citar que: “a
intolerância religiosa ocorre quando indivíduos que seguem uma determinada
crença impõe seu pensamento sobre outros, determinando que qualquer crença que
venha a divergir daquela, é incorreta” (CAMPOS e RIBEIRO, 2020, p. 12).
Acreditar em algo, seguir rituais, ter suas convicções religiosas e sobre o
sentido da vida e da morte é um direito humano, mas não implica em querer obrigar
o outro a ter as mesmas práticas e convicções. Do mesmo modo pela discordância,
não dá ao outro o direito de profanar, humilhar e atacar moral, patrimonial e
fisicamente aos que seguem religiões e atos de espiritualidade divergente.
Para que a intolerância religiosa não comprometa a paz social é necessário,
como descreve Reimer (2013), que haja um exercício ético, mental e de condutas de
respeito pelas convicções contrárias, do mesmo modo, exercendo sua liberdade de
expressão sem exceder na convicção de que sua liberdade pode ofender ou
descriminar com base na própria verdade e escolha.

Conclusão
As consequências da intolerância podem advir de ofensas verbais, morais,
psicológicas, patrimoniais e comprometer a harmonia social, gerando conflitos que
perturbam a paz, sendo necessária a intervenção legal.
Os conflitos e a desarmonia social são um perigo ao bom funcionamento da
sociedade. Assim, se faz necessário atitudes éticas e de respeito a diversidade de
convicções religiosas. A superação da intolerância religiosa, não está apenas na
imposição da lei, mas na conscientização que há diversidade de pensamentos e
convicções e dentro dessa diversidade, é possível viver em harmonia ao manter o
respeito pelas crenças do outro.

331
Referências
AQUINO, Thiago Antônio Avellar de et al. Atitude Religiosa e Sentido da Vida: Um
Estudo Correlacional. Revista Psicologia Ciência e Profissão, 2009, 29 (2), 228-243.
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/pcp/a/jcr6zkDFyPWHbdjQJKvF9HD/?format=pdf&lang=
pt

BORSUK, Natalia. Identidade e diversidade religiosa. Cadernos Pedagógicos, vol. 1.


Paraná, Prudentópolis, 2012. Disponível em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoe
s_pde/2012/2012_unicentro_filo_pdp_natalia_borsuk.pdf.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.


Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Lei 10. 825, de 22 de dezembro de 2003. Dá nova redação aos arts. 44 e 2.031
da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil.

BRASIL. Lei 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de


1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prever pena de
suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade
esportiva ou artística e prever pena para o racismo religioso e recreativo e para o
praticado por funcionário público.

BRASIL. Lei 9.459 de 3 de maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5


de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de
cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940.

CAMPOS, Luis Heleno Simas; RIBEIRO, Thaysa Navarro de Aquino. A intolerância


religiosa à luz da suposta laicidade do Estado brasileiro. Revista JusNavegandi, nov.
2020, (online). Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86724.

FONSECA, Alexandre Brasil. Intolerância e violência religiosa no Brasil: notas sobre


uma pesquisa de abrangência nacional. Revista Intolerância Religiosa 2(1), jul-dez,
2017. Disponível em: https://observatoriodh.com.br/wp-
content/uploads/2020/09/alexandre-brasil_intolerc3a2ncia-e-violc3aancia-
religiosa-no-brasil_notas-sobre-uma-pesquisa-de-abrangc3aancia-nacional.pdf.

REIMER, Haroldo. Liberdade Religiosa na História e nas Constituições do Brasil. São


Leopoldo: Oikos, 2013.

TRENTO, Nathália. Liberdade de expressão: A linha tênue entre autoafirmação e


intolerância religiosa. Revista jusnavegandi, jun, 2021. Disponível em:
https://jus.com.br/imprimir/91626/liberdade-de-expressao-a-linha-tenue-entre-
autoafirmacao-e-intolerancia-religiosa

332
TEOLOGIA, ÉTICA E CONSCIÊNCIA. UM DIÁLOGO EDUCATIVO A
PARTIR DE TOMÁS DE AQUINO E PAULO FREIRE

André Luiz Boccato de Almeida1

Resumo: A proposta desta presente reflexão vem como desdobramento da questão da crise
na reflexão ético-teológica e na educação, ambas, ciências formadoras do ser humano em
contextos distintos, mas não inconciliáveis. A reflexão se desdobra em uma interpretação
do pensamento de dois autores, distantes no tempo e no espaço – Santo Tomás de Aquino
(teólogo italiano medieval) e Paulo Freire (pedagogo e educador brasileiro) –, distantes no
tempo e no espaço, mas que contribuem imensamente para o atual panorama
contemporâneo enquanto formadores da consciência crítica e da subjetividade
contemporânea. Esta se centrará mais na obra De Magistro de Santo Tomás, mesmo
reconhecendo que há outras possibilidades de conhecer sua visão sobre o ensino, e nas
obras em geral de Paulo Freire. O foco concentra-se na apresentação de ambas as
perspectivas ético-educacionais em suas especificidades contextuais próprias, mas
sobretudo na contribuição interdisciplinar e dialogante dos dois autores problematizados
entre si. Destacamos que ambos contribuem, cada um a seu modo, para o problema
antropológico de fundo: ressignificar o sentido humano a partir da interioridade dinâmica
que é a consciência. Pretende-se, então, integrar âmbitos distintos – a teologia e a educação
– e deles coletar contribuições de dois pensadores que ainda propõem uma reflexão audaz
e corajosa diante do cenário de anestesiamento do pensar no contexto acadêmico, mas
também social.
Palavras-chave: Ética; Teologia; Consciência; Educação; Aquino e Freire.

Introdução
A proposta da presente reflexão vem como desdobramento da questão da
crise na reflexão ético-teológica e na educação, ambas, ciências formadoras do ser
humano em contextos distintos, mas não inconciliáveis. Partimos da ideia segundo
a qual, a teologia, sendo uma ciência que interpreta a realidade à luz das suas fontes
específicas, hoje, em uma perspectiva interdisciplinar e pluridisciplinar, é chamada
a dialogar com outros saberes, no caso a educação, aprendendo a inserir a
conflitualidade e a discursividade em seu horizonte de compreensão. Neste aspecto
mais geral, foca-se na interpretação e pensamento dos dois autores, distantes no
tempo e no espaço – Santo Tomás de Aquino (teólogo italiano medieval) e Paulo
Freire (pedagogo e educador brasileiro) – mas que contribuem imensamente para o
atual panorama contemporâneo enquanto formadores da consciência crítica e da
subjetividade contemporânea. Esta se centrará mais na obra De Magistro de Santo

1 Doutor em Teologia Moral (Academia Afonsiana/Lateranense – Roma). Pós-Doutor em Teologia


(PUC-PR). Professor de Teologia na PUC-SP. E-mail: albalmeida@pucsp.br

333
Tomás, mesmo reconhecendo que há outras possibilidades de conhecer sua visão
sobre o ensino e nas obras em geral de Paulo Freire. O escopo concentra-se na
apresentação de ambas as perspectivas ético-educacionais em suas especificidades
contextuais próprias, mas sobretudo na contribuição interdisciplinar e dialogante
dos dois autores problematizados entre si. Destacamos que o Aquinate e Freire
contribuem, cada um a seu modo, para o problema antropológico de fundo:
ressignificar o sentido humano a partir da interioridade dinâmica que é a
consciência.

1. Ética, teologia e educação em Tomás de Aquino


Estudar e analisar o pensamento de Santo Tomás é uma empreitada delicada
que exige sempre rigor acadêmico e capacidade de síntese. Tratar sobre a
subjetividade no Aquinate poderia ser considerado um anacronismo de
terminologia filosófica moderna, contudo, vemos que é plausível quando se
interpreta e atualiza sua reflexão. O tema do ensino e a educação no teólogo Tomás
de Aquino (Aquinate), embora pouco ainda aprofundado ou estudado de forma
precisa, ocupa um lugar central no seu pensamento, pois por ter sido um pregador
itinerante, mestre em Sacra Página – comentador das Escrituras – ele um professor,
um verdadeiro mestre da fé e da teologia; portanto, alguém dedicado ao estudo, sua
transmissão e a recepção por parte dos alunos.
A educação ou o ensino, no contexto medieval, era colocada de modo distinto
da percepção contemporânea; esta é mais focada em métodos que auxiliam na
absorção de ideias, conhecimentos e percepções a serem assumidas pelo aluno
(MORIN, 1999, p. 22). A perspectiva medieval e escolástica, própria do tempo de
Santo Tomás (MONDIN, 2013, p. 17-18), colocava-se em um horizonte de disputas
ou questões a serem esclarecidas por meio de debates acadêmicos. Pode-se conhecer
a verdade, mas não se pode dirimi-la simplesmente. Santo Tomás – como é próprio
do seu método – dá ao adversário da disputa, a possibilidade de, com honestidade e
rigor próprios, apresentar sua visão sobre a verdade. Diante deste cenário de ensino
riquíssimo que Tomás de Aquino foi gerado e contribuiu, emanam várias questões,
e dentre elas a do ensino, De Magistro (THOMAE AQUINATIS, 1964, p. 223-233). Esta
quaestio disputata encontra-se no contexto da quaestio mais abrangente De Veritate.
O De Magistro pode ser considerado a obra mais próxima ao problema do ensino e

334
da problemática educativa. Esta quaestio está organizada por ele em quatro artigos:
1. Se o homem – ou somente Deus – pode ensinar e ser chamado mestre; 2. Se se
pode dizer que alguém é mestre de si mesmo; 3. Se o homem pode ser ensinado por
um anjo; 4. Se ensinar é um ato da vida ativa ou da vida contemplativa.
Com as quaestiones disputatae em geral, e a sobre o ensino em particular,
avista-se em Santo Tomás o produto realizado do pensamento escolástico (filosófico
ou teológico), bem como com o trabalho mais rico de seu gênio pessoal. Para Tomás
de Aquino, o mais importante, por meio desta quaestio sobre o ensino, era afirmar
uma visão positiva de ser humano – uma antropologia filosófica – que acentuava a o
homem em sua totalidade (o espírito integrado à matéria), evitando certo exagero
de uma visão ou iluminação provinda imediatamente de Deus, próprio destas
correntes de pensamento. A iluminação, na verdade, Deus já concedeu ao ser
humano quando o dotou pela racionalidade, contudo, é propriamente o exercício
desta racionalidade em sua integridade que era defendida por ele em uma
perspectiva de virtude ou pedagogia a ser aprendida e desenvolvida. Convém
recordar que para o teólogo dominicano a conquista de cada verdade parcial,
mediante um processo de ensino e educação, conduz à única Verdade, de modo que
se entrega àquelas para alcançar esta (BEDNARSKI, 1986, p. 27-42). Assim, se abrem
na mente – próprio de um teólogo que aventura na nascente academia – muitos
espaços infinitos. Diz o próprio Aquinate, em seu De Magistro acerca da importância
de adquirir o conhecimento pelo ensino:
[...] o professor deve conduzir o aluno ao conhecimento do que ele
ignorava, seguindo o caminho trilhado por alguém que chega por si
mesmo à descoberta do que não conhecia. Ora, o processo pelo qual
a razão chega ao conhecimento mediante a descoberta de coisas
evidentes a determinadas matérias e daí chegar a algumas
conclusões particulares, e destas, por sua vez, chegar a outras etc.
E é por isto que se diz que o professor ensina o aluno: porque este
processo da razão – que a razão natural faz em si – é proposto de
fora pelo professor por meio de sinais, e assim a razão do aluno –
por meio do que lhe é proposto como certos instrumentos de ajuda
– atinge o conhecimento do que ignorava [...]. O professor causa o
conhecimento no aluno com a atividade da razão natural do aluno.
E é nesse sentido que se diz que um homem ensina a outro e se
chama mestre [...]. Essa luz da razão, pela qual conhecemos os
princípios, foi posta em nós por Deus como uma certa semelhança
da Verdade incriada em nós (TOMÁS DE AQUINO, 2004, 32-33).

Para Tomás de Aquino, no que se refere ao ensino e à educação, era


importante apresentar salientar o papel do mestre em ajudar o aluno na busca do

335
seu próprio conhecimento – pelo ensino – e enfatizar a autonomia que o próprio
educando possui, em sua condição ontológica, de ser protagonista da arte do
conhecer. A arte do ensino, na verdade, não faz surgir a natureza intelectual, mas a
pressupõe.

2. Educação, ética e consciência crítica em Paulo Freire


O pensamento de Paulo Freire é sempre um universo a ser conhecido pois ele
procurou conhecer o ser humano tanto a partir das suas múltiplas possibilidades de
aprendizado e educação, como também a partir das tentativas de sua
desumanização impostas pela situação externa ao sujeito. Sua rica antropologia,
geradora de uma ética e uma filosofia da educação, possibilitam à pessoa, isto é, à
subjetividade humana mediada pela própria consciência crítica, rever princípios,
teorias e práticas que podem aprisionar ou libertar o espírito humano.
Em Paulo Freire, a subjetividade forma-se a partir de uma experiência de
consciência emancipada, realizada pelo próprio sujeito, à medida que
dialeticamente e dialogicamente toma contato com suas dimensões ou camadas de
opressão, veiculadas pelas instâncias externas e que condicionam o seu próprio eu.
A educação em Paulo Freire é uma palavra-chave que identifica a sua vida e
acompanhou todo o seu itinerário como educador e ser humano preocupado com as
consciências. O ensino e os processos de formação do sujeito – da subjetividade –
estiveram entre as maiores buscas do pedagogo e filósofo brasileiro (JESUS, 2012, p.
43-61). Para o intelectual brasileiro, Cristóvão Buarque, Paulo Freire pode ser
considerado como um dos poucos, no Brasil, que influenciaram e formaram o
pensamento de uma geração, dentro e fora do país, lançando as bases para um
humanismo pedagógico e filosófico (GADOTTI, 1996, p. 656). O pensamento
educacional de Freire nasce e se desenvolve a partir da sua história de vida. Para ele,
a educação devia ir além do mero aprendizado sistemático na escola. Falava em
educação ou alfabetização social, isto é, da necessidade de o aluno conhecer, analisar
e se apropriar também dos problemas sociais que o afligiam. Não via o processo
educativo simplesmente como meio para dominar os padrões acadêmicos de
escolarização ou para profissionalizar-se, mas como uma necessidade de
engajamento (ANDREOLA, 2010, p. 148-149), ou seja, de estímulo para que o povo

336
a participasse do seu processo de emersão na vida pública no todo social
(BRANDÃO, 2005, p. 53).
A sua visão de educação está em estreita relação com a ideia de consciência
crítica, formadora e emancipadora da subjetividade do sujeito envolvido em
processos humanos e sociais. As suas obras sobre o tema da consciência e
conscientização exprimem um lento e contínuo amadurecimento sobre a sua visão
de educação. Eis suas principais obras sobre o tema da consciência e a educação:
Educação como prática da liberdade (FREIRE, 1975); Pedagogia do oprimido
(FREIRE, 1975); Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao
pensamento de Paulo Freire (FREIRE, 1980); Ação Cultural para a Liberdade e outros
escritos (FREIRE, 1982); Educação e mudança (FREIRE, 1985); Medo e ousadia
(FREIRE; SHOR, 1997) e Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa (FREIRE, 2013).
Em Paulo Freire, a sua visão de educação advem da própria compreensão que
ele tem de ser humano e de consciência, contribuindo para uma perspectiva sobre a
formação da subjetividade (MIZUKAMI, 1986, p. 85-103) a partir de uma ética
humanista e emancipadora do sujeito. Na sua abordagem acerca do ensino e da
educação é central o humanismo presente em seu pensamento, proveniente do seu
contínuo contato epistemológico com uma visão dialética e fenomenológica
(TORRES, 2014, p. 82). Freire não repete as estruturas de pensamento da tradição
filosófica centrada no sujeito, mas busca inovar a partir do desafio da realidade do
oprimido, em diálogo com os instrumentos de análise da reflexão teórica (ZITKOSKI,
2010, p. 115-117). Foi da dialética e da fenomenologia que ele buscou vencer o
relacionamento oposto entre teoria e práxis, superando o que não deve ser feito
num nível idealista, ampliando sua visão sobre o ser humano e a educação.

Considerações finais
O tema do ensino e da educação em ambos os autores apresentam
acentuações importantes e particulares que apontam valores a serem colocados em
diálogo e assim estabelecer uma proposta de formação da subjetividade e de
consciência crítica. As abordagens de Santo Tomás e Paulo Freire – no que se refere
ao ensino e à educação – são marcadas por visões e horizonte diferenciados que
indicam específicas respostas nos seus contextos próprios. Em Tomás, o paradigma

337
filosófico e ontológico, centrado na ideia de ser, apresenta uma forma de
compreender o ser humano, a ética e o processo de ensino (aprendizagem) a partir
de uma racionalidade de cunho metafísico-naturalístico, enquanto em Paulo Freire,
a abordagem é assumidamente fenomenológico-hermenêutica, buscando
compreender as relações de poder e a política que influenciam a consciência do
sujeito. Entre Tomás e Freire há a confiança na inteligência do sujeito, capaz de ser
um auto-construtor da própria subjetividade, mediante um lento processo de
formação que exige a capacidade interior de se abrir ao universo exterior. Para
Tomás de Aquino, o diálogo com o agostinismo e aristotelismo escolástico o fez
buscar uma síntese de pensamento que encontrava na forma de ensinar e educar,
uma crítica reflexiva em forma de debates e discussões (questione disputatae). Diga-
se que em Tomás, a opção metodológica do ensino prioriza o aspecto dos princípios
aos temas particulares, situados nos debates teológicos. Para Paulo Freire, mais
próximo cronologicamente, ter que lidar com o desafio de classes analfabetas da
língua, embora humanizadas e capazes de aprender, o fez ser um contínuo
construtor da esperança, apresentando com maestria que antes mesmo do processo
de ensino, é necessário conhecer as camadas de opressão existentes em zonas
obscuras da psiquê humana. A formação da subjetividade e da consciência em
Tomás e Freire está em estreita relação com suas visões de ser humano, educação,
ética e mundo. Para ambos os pensadores, pensar de forma a reproduzir um status
quo ou manter uma ideia, não se sustenta.

Referências
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Horizonte: Autêntica, 2010, p. 148-149.

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pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980.

338
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Tradução e estudos introdutórios Luis Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes,
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THOMAE AQUINATIS. Questiones Disputatis. De Veritate: De Magistro. Q. 11, art. 1-


4. Romae: Marietti, 1964, p. 223-233.

TORRES, C. A. Diálogo e práxis educativa. Uma leitura crítica de Paulo Freire. São
Paulo: Loyola, 2014.

ZITKOSKI, J. J. Dialética. In: STRECK, D. R. (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo


Horizonte: Autêntica, 2010, p. 115-117.

339
UM PANORAMA DA JUSTIÇA SOCIAL, DOS PROFETAS AO SERMÃO
DO MONTE EM MATEUS

Cláudio Araújo Machado1

Resumo: Uma possível chave de leitura no Profetismo de Israel, sobretudo, no período pré-
exílico é o tema da “Justiça Social”, assunto relevante e de “última hora” no tempo presente.
Os órfãos e as viúvas estão entre as categorias fragilizadas em um ambiente socioeconômico
predador, mesmo protegidas pela legislação é necessária uma intervenção contundente,
logo, os profetas intercedem e salientam a necessidade de uma conversão às classes
dominantes. Nesse sentido, pode-se focar um pouco em um dos aspectos mais famosos e
importantes da mensagem profética, sua denúncia dos problemas sociais e seu esforço em
prol de uma sociedade mais justa.
Palavras-chave: Justiça Social; Profetas; Mateus.

Introdução
O tema da justiça é recorrente na tradição bíblica, os profetas servem de base
para que escritores neotestamentários denunciem esse dilema das fissuras
humanas.
Nesse sentido, a comunidade Mateana parte do seguinte pressuposto, ser um
trabalho de resistência, escrito por um grupo religioso majoritariamente judeu. Esse
se situa e/ou fala contra o “status quo” dominado pelo poder imperial romano e o
controle da sinagoga. Resistente a estas estruturas culturais. É também um trabalho
de defesa e esperança. O evangelho constrói uma cosmovisão e uma comunidade
alternativas. Afirma um modo de vida marginal às estruturas dominantes, que por
sua vez promove injustiças, sobretudo aos mais fragilizados socialmente. Mateus,
desafia sua audiência a viver esta forma de vida resistente, fielmente em suas
condições presentes. E promete que Jesus retornará para estabelecer o reinado de
Deus e a salvação de forma definitiva.
Por fim, o texto traz reflexões de Comblin, apontando a luta contra as
injustiças sociais, como uma marca dos sinais dos tempos, caracterizando que esta
premissa fez parte do povo da Bíblia, bem como de todo e toda que acolhe o texto
bíblico de maneira coerente.

1 Mestre em Teologia pela PUC-SP; Doutorando em Teologia pela PUC-SP; claudioamacha@gamil.com

340
1. Profetismo e a justiça social
O Profeta é uma pessoa apaixonada e a paixão é por algo ou alguém. A paixão
do Profeta é pelo Senhor que se revelou através de Moisés e se mantém revelando
pela sua própria ação na história. O Profeta é um paradigma de ação, de adesão, de
arrebatamento pela Palavra do Senhor, que o toma de modo quase absoluto”
(NEGRO, 1996, p. 153).
Pensa-se comumente que o que constitui formalmente o profetismo é prever
e predizer o futuro. E logo se pensa nas figuras bíblicas, cujos escritos formam uma
das quatro grandes partes do Antigo Testamento. Segundo a ideia corrente, a sua
missão teria consistido em concentrar a atenção sobre a intervenção escatológica de
Deus, ainda distante, e sobre o Messias como Salvador esperado. Esta concepção,
porém, não corresponde de modo adequado à função e à importância das figuras e
dos escritos proféticos do Antigo Testamento. Seria uma visão muito unilateral e
incompleta tanto da função quanto da extensão do profetismo bíblico. De um lado, o
fenômeno profético bíblico historicamente ultrapassa de muito os quatro profetas
maiores e os doze menores; de outro, profetizar, no sentido de “pré-dizer” o futuro,
constitui apenas uma pequena parte, frequentemente menos importante, da ampla
atividade profética (SCHREEINER, 2004, p. 169).
Os órfãos e as viúvas estão entre as categorias fragilizadas em um ambiente
socioeconômico predador, mesmo protegidas pela legislação é necessária uma
intervenção contundente, logo, os profetas intercedem e salientam a necessidade de
uma conversão às classes dominantes.
A utilização da expressão “Profeta” (nabi’), com seus 315 usos no Antigo
Testamento, nabi’ é o termo mais frequente, o clássico, para referir-se aos profetas.
Sobretudo, a partir do final do século VII e durante o século VI, coincidindo com a
redação da História Deuteronomista e com profetas como Jeremias, Ezequiel,
Zacarias (SICRE, 1992, p. 81).
No centro da pregação profética está Deus e a união com ele. Mas seria
desconhecer os profetas e a Bíblia pensar em uma relação individualista e
puramente interior com Deus. A polêmica anticultual mostra que a situação perante
Deus depende da atitude para com o próximo, e que o serviço divino da liturgia deve
ser sempre acompanhado do serviço ao homem (SHREINER, 2004, p. 189).

341
2. A comunidade mateana e o senso de justiça social
A leitura do contexto e ambiente no Evangelho segundo Mateus, parte do
seguinte pressuposto, ser um trabalho de resistência, escrito por um grupo religioso
majoritariamente judeu. Esse se situa e/ou fala contra o “status quo” dominado pelo
poder imperial romano e o controle da sinagoga. Resistente a estas estruturas
culturais (CARTER, 2002, p. 15).
É também um trabalho de defesa e esperança. O evangelho constrói uma
cosmovisão e uma comunidade alternativas. Afirma um modo de vida marginal as
estruturas dominantes. Desafia sua audiência a viver esta forma de vida resistente,
fielmente em suas condições presentes. E promete que Jesus retornará para
estabelecer o reinado de Deus e a salvação de forma definitiva (VITÓRIO, 1998, p.
45).
A comunidade mateana era formada por muitos cristãos convertidos do
judaísmo e não tinha a pretensão de cortar as ligações do tronco donde nascera.
Todavia, ela se recusou a entrar nesta nova dinâmica de harmonização proposta
pelos fariseus, obviamente que havia pressões para que isso ocorresse (VITÓRIO,
1998, p. 46).
Neste ambiente, a tradição Mateana nos apresenta o “Sermão do Monte”. A
introdução e a conclusão do Sermão do Monte oferecem os elementos necessários
para caracterizar 5,1-12 como ensino ( : v. 5,2; 7,28-29), que
conclui com um imperativo/ de sentido escatológico (v. 12), cujo
objetivo é animar e encorajar para a vivência da práxis da justiça. Este ensino é
palavra que sai da boca de Jesus (5,2), que, em posição de mestre, assenta-se para
ensinar.
As multidões ( ) que seguiram Jesus e seu grupo (4,23-25) podem
ser entendidas também como receptoras deste ensino, junto com os(as)
discípulos(as) ( ), a partir de dois indícios textuais: os termos plurais
e (v. 2) podem estar subsumidos no pronome plural das bem-
aventuranças, o que é corroborado, ao final, com o destaque do termo
vinculado com o ensino que acontece no e a partir do monte (7,28.29). Mesmo que
o grupo discipular esteja mais próximo de Jesus (5,1b), a multidão não está excluída
do ensino de Jesus, portanto, também do chamado para o seguimento na práxis da
justiça (REIMER, 2018, p. 141).

342
3. Injustiça como uma das marcas históricas dos sinais dos tempos
Para Comblin, em primeiro lugar os sinais dos tempos referem-se aos
acontecimentos e situações da sociedade ocidental contemporânea, ou seja, as
mudanças ocorridas na sociedade. Para ele, há uma referência a Mt 16.4, ou seja, os
sinais escatológicos, sinais da presença do reinado de Deus neste mundo (COMBLIN,
2005, p. 101).
Quando se olha no mundo da Bíblia o tema da injustiça social, ou até mesmo
nos tempos modernos, deve-se observar a estratificação social, seja em qual período
histórico. Ricos e pobres nunca estão separados, dependem um do outro. Os ricos
tiram a sua riqueza dos pobres, e os pobres são pobres porque são espoliados pelos
ricos. Existe uma relação de exploração que caracteriza tanto o Egito, a Assíria,
Babilônia, Tiro, Sidônia etc., como o próprio Israel no tempo dos reis (COMBLIN,
1983, p. 124).
Ressalta-se que os ricos não são ricos porque Deus quis que fossem assim,
nem os pobres porque Deus quis que fossem pobres. Deus permitiu que tudo isso
acontecesse, para preparar um caminho de mudança e libertação, sinalizando que
esta condição de injustiça social não deve permanecer desse modo, muito pelo
contrário. Deus condena a exploração dos pobres pelos ricos por meio da boca dos
profetas. Durante toda a história da Igreja, sempre houve profetas que levantaram a
voz para denunciar as injustiças estruturadas. Por outro lado, também houve muitas
vezes cristãos que ficaram calados e assim aceitaram ser cúmplices dos ricos que
exploram os pobres (COMBLIN, 1983, p. 125).

Conclusão
Percebe-se ao mergulhar no mundo das Sagradas Escrituras que existe uma
ética contundente que faz eco a toda humanidade.
Passando pela leitura profética, pode se enxergar fortes denuncias contra a
opressão das categorias mais fragilizadas na sociedade da época. A voz profética
sempre se levantou contra sistemas injustos que eram estabelecidos a duras penas
da população que em seu período era de maioria camponesa.

343
A tradição do profetismo, soma-se a fé cristã das origens, e pode-se perceber,
como a Comunidade mateana trabalha essas denuncias e nas palavras de Jesus,
contrapõem se também, a condições de explorações e injustiças.
Essa luta que sempre parte de um olhar profético, estende-se ao nosso
tempo, Comblin, magistralmente aponta esses pressupostos, dando condições para
que o teólogo (a), leia as Escrituras com um olhar que acolhe a opção que Jesus
acolheu.
Conclui-se que, a tradição bíblica-teológica, parte de uma ética que sobretudo
abraça a causa dos pobres. E por quê dos pobres? Porque estes sempre serão os mais
afetados pelos pecados estruturais, que promovem injustiças e opressões. O
seguidor ou seguidora de Jesus de Nazaré, deve sem dúvidas ficar do lado de Jesus,
e o lado de Jesus é o lado dos pobres.

Referências
CARTER, W. O Evangelho de S. Mateus, comentário sociopolítico e religioso a partir
das margens. São Paulo: Paulus. 2002.

COMBLIN, J. A Sabedoria Cristã. São Paulo: Paulinas, 1983.

COMBLIN, J. Os sinais dos tempos. Revista Concilium. Ed Queriniana, p. 101-105,


2005/4.

DIAZ, J. L. S. Introdução ao Profetismo Bíblico. Petrópolis: Vozes, 2016.

NEGRO, M. Profetas e Profetismo: Identidade e Missão. Revista de Cultura Teológica,


17. p. 153. São Paulo.

REIMER, I. R. As bem-aventuranças como antídoto contra a dominação e corrupção.


RIBLA, v. 78, p. 141, 2018.

SCHREEINER, J. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento Teológica. São Paulo. p.


169, 2004.

SICRE. J. L. Profetismo em Israel: O Profeta, Os Profetas, A Mensagem. Petrópolis:


Vozes, 1992.

VITÓRIO. J. Cristologia em contexto de conflito, o caso Mateus. Convergência 33.


Número 309, p. 45-61, 1998.

344
JUVENTUDES, IGREJA E FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA: UMA
ANÁLISE TEOLÓGICA SOBRE OS DESAFIOS ATUAIS

Everton Brunaikovics Georgetti1

Resumo: Na sociedade contemporânea, cheia de transformações culturais, nota-se diversos


desafios para a formação da consciência das juventudes. Pode-se afirmar, que é missão
eclesial auxiliar na formação da consciência dos jovens para a construção de uma sociedade
mais acolhedora, fraterna e justa. Dessa maneira, num primeiro momento, apresenta-se
uma breve reflexão da definição do período da vida chamado juventude. Em seguida, reflete-
se sobre a questão de que não existe apenas a concepção de uma juventude específica, tendo
em vista que se observa, na contemporaneidade, uma pluralidade de juventudes. Num
segundo momento, pretende-se desenvolver uma visão sintética dos desafios que
encontrados na atualidade e como eles repercutem no universo juvenil. Enfatiza-se que a
sociedade contemporânea está marcada, pelo consumismo, pelo subjetivismo, pelo
pessimismo e pelos meios de comunicação social que atingem fortemente a população
juvenil. Por fim, diante desses desafios da contemporaneidade, desenvolve-se uma reflexão
demonstrando que a Igreja tem como missão auxiliar na formação da consciência das
juventudes. Com isso, apresenta-se a partir de uma análise teológica da exortação apostólica
pós-sinodal Christus vivit, do Papa Francisco, a necessidade da Igreja estar aberta para
acolher sem julgar, dialogar e ajudar na formação das consciências, das diversas juventudes
presentes na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Juventudes; Consciência; Formação; Igreja; Contemporaneidade.

Introdução
Na sociedade contemporânea, cheia de transformações culturais, nota-se
diversos desafios para a formação da consciência das juventudes. No entanto, é
missão eclesial auxiliar na formação da consciência dos jovens para a construção de
uma sociedade mais fraterna e justa, tendo como base que “a juventude mora no
coração da Igreja e é fonte de renovação para sociedade” (CNBB, 2007, n. 1).
A princípio apresenta-se uma breve reflexão sobre a definição do período da
vida chamado juventude. Em seguida, demonstra-se que não existe apenas a
concepção de uma juventude específica, tendo em vista, que se nota uma pluralidade
de juventudes na contemporaneidade.
Em um segundo momento, desenvolve-se uma visão sintética dos desafios
que encontramos na atualidade e como eles repercutem no universo juvenil.

1Graduado em Filosofia pela Faculdade João Paulo II (FAJOPA) e Teologia pela Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia (FAJE), Especialista em Pastoral Juvenil pelo Centro Universitário Salesiano de
São Paulo (UNISAL), Mestrando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
E-mail: everton_brunaikovesc@hotmail.com

345
Enfatiza-se que a sociedade atual está marcada, pelo consumismo, pelo pessimismo,
pelo subjetivismo e pelos meios de comunicação social que atingem fortemente a
população juvenil. Por isso, torna-se um desafio a formação da consciência das
juventudes na sociedade contemporânea.
Diante dos desafios da contemporaneidade, a Igreja tem como missão a
formação da consciência das juventudes. Para isso, é necessário que a Igreja entre
em diálogo com a sociedade atual. A credibilidade da Igreja depende, em grande
parte, do reconhecimento da pluralidade, das novas sensibilidades e da diversidade
típica da atualidade.
Por fim, a partir de uma reflexão tendo como base estudiosos das juventudes
e da sociedade atual, da Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano
II, de documentos do pontificado do Papa Francisco e alguns escritores e mestres da
teologia moral, pretende-se abrir horizontes reflexivos sobre a formação da
consciência das juventudes na sociedade contemporânea.

1. Definição de juventudes
O período da juventude sempre foi objeto de estudos de diversas pessoas e
das mais variadas ciências. Esta fase da vida do ser humano é o momento de
formação, é um tempo de incertezas. A “juventude é o momento das grandes
decisões na vida do ser humano. É a etapa das escolhas sobre estudos, carreiras,
valores a serem seguidos, projeto de vida e vocação” (SÁ, 2010, p. 15). Dessa forma,
o período da juventude é intenso e belo. Mas, pode ser um tempo de grandes crises
existenciais.
O estudo sobre juventude se torna fascinante e empolgante, pois em meios as
incertezas dessa idade, percebe-se a beleza do ser humano que busca um sentido
para a existência. Libanio define a juventude como um paradoxo entre fragilidade e
potencialidade.
A idade juvenil fascina pelo tremendo paradoxo da vulnerabilidade
e da potencialidade. Na fragilidade da idade que deixa para trás a
serenidade e segurança da infância, mas ainda não atingiu a solidez
da idade adulta, existe estupenda potencialidade. Precisamente
porque ainda não aterrissou na maturidade, dispõe do infinito do
céu para voar (LIBANIO, 2011, p. 7).

A conceituação de juventude pode ser desenvolvida a partir de vários pontos


de partida, a saber: faixa etária, período da vida, contingente populacional, categoria

346
social, capacidade intelectual e outros pontos. Mas, todas essas conceituações se
vinculam, de algum modo, à dimensão de fase do ciclo vital entre a infância e a
maturidade. O termo jovem na etimologia é aquele que atingiu a idade de poder
ajudar.
Depois de definir a fase da juventude, algo pretende-se explicar porque a
utilização do o termo juventudes, no plural. Libanio, propõe um percurso de reflexão
importante:
Juventudes, assim, no plural? Sim, porque são muitas. Muitas pela
rapidez das mudanças, pois as crianças de hoje já não nascem no
mesmo mundo de cinco anos atrás. Muitas, por causa das
diferenças de proveniência, de situação sociocultural e existencial:
jovens de favela, de classe média baixa, de classe média alta, jovens
de tendência intelectual e jovens que dispensam o pensar
(LIBANIO, 2013, p. 175).

Como observa-se é insustentável utilizar o termo juventude na sociedade


contemporânea, pois existem várias juventudes, com suas histórias e vidas
concretas. O teólogo Portella faz uma distinção entre juventude e juventudes
interessante: “É consequentemente possível em nossos dias se jovem de diversas
maneiras, com distintas configurações, a ponto de se preferir falar mais em
juventudes no plural do que uma única juventude, como se fosse uma massa
uniforme” (AMADO, 2019, p. 46). A fase juvenil não é algo que pode-se definir
sistematicamente e de forma rigorosa, pois existe uma diversidade de juventudes na
sociedade contemporânea.

2. Juventudes, igreja e sociedade contemporânea: caminhando por uma


sociedade de profundas transformações
A Igreja tem a missão de ajudar na formação da consciência de seus fiéis. No
entanto, percebe-se que essa temática da formação de consciências maduras se
torna um desafio para os dias atuais. Afinal, estamos vivenciando uma época de
profundas transformações culturais, que afetam principalmente a Igreja.
Quando se aborda, de forma específica, a temática das juventudes, nota-se
que essas profundas transformações do mundo contemporâneo afetam fortemente
a vida dos jovens. Dessa forma, é necessário que a Igreja entre em diálogo com as
juventudes na sociedade contemporânea. Somente pelo diálogo é possível ajudar a
formação da consciência das juventudes.

347
Olhando para a atualidade observa-se que umas das grandes tensões da
contemporaneidade é a questão do consumismo, como mostra Pagola:
Neste momento, a história da humanidade está presa a um sistema
econômico-financeiro gerado basicamente pelo capitalismo
neoliberal. A dinâmica imposta por esse sistema é irracional e
desumana. Por um lado, estimula os povos mais poderosos a
acumular bem-estar; por outro, gera fome, pobreza e morte nos
países mais necessitados do planeta (PAGOLA, 2022, p. 26).

As juventudes são bombardeadas a todo instante por essa cultura desumana


do consumismo. Infelizmente, não é possível se desligar desse sistema consumista,
“esse modo de vida atraído pelo consumismo está tendo um impacto cada vez mais
profundo. Muitas pessoas acabam vivendo apenas para satisfazer à sua sede por
novas ofertas de consumo” (PAGOLA, 2022, p. 27). Com isso, nota-se que as pessoas,
mais especificamente os jovens, que nasceram nesse contexto, estão se tornando
compulsivos por uma vida consumista.
Verifica-se também uma tendência ao pessimismo que atinge profundamente
as juventudes. Castilho em seu livro, Ética de Cristo, expõe sobre a questão do
pessimismo:
No momento que estamos vivendo, e tal como a vida se tornou,
muitas pessoas estão pessimistas, sentem-se mal, porque são
demasiadas as coisas que, efetivamente, vão mal. E como disse, as
duas grandes instituições (religião e família), que dão sentido para
o comum dos mortais estão indo mal (CASTILHO, 2010, p. 23).

Os jovens vivem nessa sociedade de constantes mudanças e relatividades, não


encontram segurança nas grandes instituições, como a família ou até mesmo a
Igreja. O sentimento é que parece que todos estão perdidos diante da avalanche de
mudanças rápidas da contemporaneidade. Em meio as inseguranças presentes na
contemporaneidade, o pessimismo toma conta do coração das juventudes. Por isso,
é urgente a necessidade da Igreja se abrir ao diálogo com a cultura atual. Afim, de
conseguir chegar ao coração dos jovens para ajudar na formação de suas
consciências.
Na sociedade hodierna verifica-se também o desafio dos meios de
comunicação social que atingem fortemente grande parcela das juventudes. É
próprio das juventudes a abertura a tudo que é novidade. Os jovens se lançam e
facilmente se inserem em novos contextos com facilidade. Por meio, das novas

348
tecnologias, redes sociais, os jovens se expressam e tentam encontrar o seu lugar no
mundo.
O ambiente virtual é característico da sociedade contemporânea. Atualmente
nos meios de comunicação social, o ambiente digital se tornarou característica do
mundo presente, como afirma o Papa Francisco: “A web e as redes sociais criaram
uma nova maneira de se comunicar e criar laços” (FRANCISCO, 2019, n. 87).
O universo virtual é território de conhecimento e também de manipulação.
Nos meios de comunicação encontra-se um paradoxo entre pontos positivos e
negativos. Mas, tem algo que é certo, esse ambiente faz parte da vida real dos jovens.
Não existe uma forma de fugir desse universo virtual que está em descobrimento a
cada dia.
Entre os vários desafios da contemporaneidade observa-se também o
fenômeno do subjetivismo que afeta profundamente a vida dos jovens. O
subjetivismo pode gerar “a permissividade, o egoísmo, a identificação simples da
felicidade com o prazer, a incompetência de lidar com a pluralidade de solicitações
e ofertas” (CNBB, 2007, n. 16). Dessa forma, “A evangelização da juventude exige
atualização permanente do conhecimento da dinâmica da subjetividade” (CNBB,
2007, n. 16). Esse fenômeno é complexo e atinge fortemente a realidade.
Em síntese, nota-se que o acúmulo e aceleração das mudanças da sociedade
contemporânea exigem, da Igreja, o esforço de escuta atenta das diferentes
experiências, convicções e paradigmas. Sendo que, os impasses éticos desafiam não
apenas a consciência cristã, mas a consciência de toda a humanidade. Pode-se dizer
que a formação da consciência das juventudes é questão central para reflexão da
vida da humanidade e da Igreja.

3. Contribuições do Concílio Vaticano II e do Papa Francisco para formação da


consciência juvenil
O Concílio Vaticano II é um marco de abertura da Igreja para o diálogo com a
contemporaneidade, ele ocorreu de 11 de outubro de 1962 a 08 de dezembro de
1965, enquanto os outros concílios traziam uma amplitude em suas discussões num
teor doutrinário e disciplinar, o Concílio Vaticano II proporcionou à Igreja uma
reflexão mais pastoral, que se propôs apresentar a fé numa nova ótica. Essa visão
mais pastoral atinge diretamente os corações do ser humano da atualidade. O

349
Concílio Vaticano II, volta as fontes da Sagrada Escritura e da Tradição, e ao voltar a
essência do cristianismo consegue dialogar com a sociedade atual, a exemplo do
mestre Jesus de Nazaré.
Diante dessa abertura do Concílio Vaticano II, de suma importância, para o
diálogo com a modernidade e com a realidade contemporânea, percebe-se também
a valorização da consciência do ser humano na Constituição Pastoral Gaudium et
Spes. Christoph Theobald afirma que “em razão da abertura radical da modernidade
e dos problemas de orientação que ela coloca, a Gaudium et Spes remete os homens
essencialmente à sua consciência (n. 16) e à sua capacidade de buscar juntos a
verdade” (THEOBALD, 2015, p. 578). Dessa maneira, a Igreja deve refletir, dialogar
e valorizar a consciência dos seres humanos em busca da verdade. Frente aos
desafios da sociedade contemporânea, é missão da Igreja ajudar as juventudes,
nessa busca da formação de uma consciência madura.
Percebe-se que a partir do Concílio Vaticano II “a consciência voltar a ter uma
dimensão globalizante e a exercer um papel fundamental para a realização da
pessoa. Recupera também a sua dimensão teológica como lugar de encontro e escuta
da vontade de Deus” (JUNGES, 2002, p. 156). Assim, pode-se afirmar que a
consciência se entende como propriedade fundamental do ser e precisa ser bem
formada, por meio de reflexões consistentes, que ajudem as juventudes a fazerem a
diferença, no modo de agir, nessa sociedade de tantas transformações rápidas.
Olhando para o pontificado do Papa Francisco, verifica-se que ele continuará
a seguir profundamente o Concílio Vaticano II, de modo que se percebe em seus
escritos e também em suas atitudes uma volta ao coração do evangelho, a figura de
Jesus de Nazaré. Na sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia, Francisco
ensina que como Igreja, “somos chamados a formar as consciências, não a pretender
substitui-las” (FRANCISCO, 2016, n. 37). Para isso, é necessária a escuta e
valorização da consciência e história das pessoas: “A escuta adequada da voz do
Espírito, refere-se, necessariamente, à valorização da consciência pessoas, na qual a
Amoris Laetitia deseja o melhor envolvimento e a adequada formação”
(FUMAGALLI, 2019, p. 67).
O pontífice, na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christus Vivit, valoriza
também a todo instante a formação da consciência, para o discernimento através da
práxis de Jesus Cristo: “jamais deve substituir-se está alegre experiência de encontro

350
com o Senhor por uma espécie de ‘doutrinação’” (FRANCISCO, 2019, n. 215). A Igreja
tem que comunicar a experiência viva de Jesus Cristo, auxiliando as juventudes na
formação da consciência que ilumina no agir do ser humano na sociedade
Em síntese, percebe-se uma abertura enorme do Papa Francisco, para acolher
as novidades de nosso tempo e dialogar com as juventudes atuais. Portanto, por
meio dos evangelhos, da tradição e do diálogo com a realidade deve-se percorrer um
caminho permanente de formação da consciência das juventudes.

Considerações finais
A formação da consciência, das juventudes, é um verdadeiro desafio para
Igreja na sociedade contemporânea. A partir de uma definição do conceito de
juventudes, como uma fase de incertezas, decisões e também de sonhos, foi
percorrido um caminho de análise teológica sobre os desafios da
contemporaneidade para a formação da consciência dos jovens.
Em uma sociedade acelerada, com profundas transformações culturais que
afetam a Igreja e toda a humanidade. Verifica-se, de forma especial, que o
consumismo, o pessimismo, o subjetivismo e os meios de comunicação social
atingem fortemente grande parte da população juvenil. Diante dessa sociedade
contemporânea é necessário que a Igreja entre em diálogo com as juventudes, com
a finalidade de tentar, por meio do Evangelho e da escuta da realidade propor um
caminho de formação da consciência para as juventudes.
Em suma, o Concílio Vaticano II e o magistério do Papa Francisco abrem
possibilidades de diálogo com o mundo hodierno. Dessa maneira, a Igreja deve
desempenhar bem o papel de contribuir na formação de consciências maduras, de
modo que, a mensagem da Igreja deve brotar de um olhar sobre o Evangelho
anunciado por Jesus e outro sobre a condição humana, histórica e cultural do fiel (cf.
GS, n. 46).

Referências
AMADO, Joel Portella. Aspectos antropológicos para a evangelização junto às
Juventudes: reflexões a partir do Sínodo dos Bispos de 2018: Atualidade teológica.
v. 23 n. 61 (2019): p. 39-61.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2012.

351
CASTILLO, José M. A Ética de Cristo. São Paulo: Loyola, 2010.

CNBB. Documento sobre a Evangelização da Juventude. Brasília: CNBB; São Paulo:


2007.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: Sobre a Igreja no


mundo de hoje. In: Vier, Frederico (Org.). Compendio Vaticano II: Constituições,
decretos, declarações: Petrópolis: Vozes, 2000.

FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia: sobre o amor na


família. São Paulo: Loyola, 2016.

FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit: para os jovens e para


todo o povo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2019.

FUMAGALLI, Aristide. Caminhar no amor: A teologia moral do Papa Francisco.


Brasília: Edições CNBB, 2019.

JUNGES, José Roque. Identidade e função da Consciência Moral. In: Evento Cristo e
ação humana: Temas fundamentais de ética teológica. São Leopoldo: Unisinos, 2002.

LIBANIO, João Batista. Juventude e a fé cristã: Perspectiva Teológica. v. 45 n. 126


(2013): p. 235-266.

LIBANIO, João Batista. Para onde vai a juventude?. São Paulo: Paulus, 2011.

PAGOLA, José Antonio. A renovação do cristianismo. Petrópolis: Vozes, 2022.

THEOBALD, Christoph. A recepção do Concílio Vaticano II. São Leopoldo: UNISINOS,


2015.

352
A ÉTICA PERSONALISTA E CONJUGAL NA OBRA AMOR E
RESPONSABILIDADE DE KAROL WOJTYLA

Jeronimo Lauricio de Souza Oliveira1

Resumo: Após exatamente 10 anos de experiência com preparação para o matrimônio, o


então Bispo Karol Wojtyla, cuja formação estava embasada no personalismo, na
fenomenologia e no conteúdo teológico claramente tomista, havia concebido a ideia de
elaborar uma obra que fosse uma defesa dos ensinamentos da Igreja Católica sobre o amor
conjugal a partir de um ponto de vista ético e antropológico. Assim, precisamente dois anos
após a sagração episcopal do jovem Padre Wojtyla, estava sendo publicada, em 1960, Amor
e responsabilidade com uma intenção pastoral e um conteúdo claramente ético e
antropológico. Assim, o presente artigo tem por objetivo analisar por meio da revisão de
literatura, como o amor humano, as relações interpessoais e tudo o mais a que Wojtyla se
refere nesta obra, no campo da sexualidade, não podem ser entendidos, sem antes construir
uma visão sobre o homem e a mulher a partir de uma ética personalista em contraposição
a uma ética de princípio utilitarista.
Palavras-chave: João Paulo II; Teologia do Corpo; Amor e Responsabilidade; Ética
Personalista; Antropologia.

Introdução
A publicação de Amor e Responsabilidade está precedida e acompanhada por
uma intensa atividade pastoral, literária e teológica de Wojtyla, que se soma à sua
ética filosófica de caráter personalista. Karol Wojtyla, como sacerdote e logo como
bispo, teve uma especial dedicação na preparação dos jovens ao matrimônio. Sua
presença nos ambientes universitários se dinamizou principalmente por esse tipo
de experiências pastorais. É sobre essa perspectiva que se pode compreender toda
sua atividade intelectual, e em particular, a obra Amor e responsabilidade.
Esta obra é fruto de muitos anos de amizade e partilhas com jovens casais e
universitários que lhe tinham confiado os segredos dos seus corações. Era resultado
do seu encontro com os jovens e do seu trabalho pastoral, como mais tarde o papa
João Paulo II, sinalizou no livro-entrevista a Messori:
[...] Aqueles jovens com suas dúvidas e com suas perguntas, em um
certo sentido, indicaram o caminho também para mim. Pelos
nossos contatos, pela participação nos problemas de sua vida,
nasceu um estudo cujo conteúdo sintetizei no título Amor e

1 Mestrado em Teologia Sistemática pela FAJE. Doutorado em andamento em Teologia pela PUC-Rio.
Professor da Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília – FATEO. E-mail:
jeronimolauricio@gmail.com.

353
responsabilidade. [...] Portanto, a genealogia dos meus estudos
centrados no homem, na pessoa, é antes de tudo pastoral
(MESSORI, 1994, p. 186).

Ou seja, Amor e responsabilidade, surgiu daquela necessidade pastoral de


orientar os jovens que se preparavam para o matrimônio, bem como os recém-
casados. Embora fosse professor universitário da cátedra de ética em Lublin,
Wojtyla nunca foi apenas um acadêmico. Alternava atividade pastoral com ensino e
investigação.
Olhando para o horizonte histórico do recém bispo Wojtyla, é possível saber,
de acordo com Andrea Riccardi, que o “comunismo tinha introduzido uma visão da
moral sexual e da família que se afastava do catolicismo” (RICARDI, 2011, p. 110). E
se analisarmos bem atentamente, é possível observar que Amor e responsabilidade
foi escrito antes da chamada “Revolução Sexual” de maio de 1968. Nesta obra, ele
procurou abordar o tema do amor como ponto de partida para analisar a complexa
dinâmica das relações humanas.

1. Três ações de despersonalização do amor: o utilitarismo, o subjetivismo e o


egoísmo
Ao discorrer sobre o verdadeiro significado do amor, a ética personalista
wojtyliana compreende que “o amor é a realização mais completa das possibilidades
do homem. É a máxima atualização da potencialidade intrínseca da pessoa. Esta
encontra no amor a maior plenitude do seu ser, da sua existência objetiva”
(WOJTYLA, 2016, p. 76) . Contudo, na visão de nosso autor, ao menos três atitudes
podem inevitavelmente despersonalizar o amor. Elas estão intrinsecamente ligadas
umas às outras, chegando quase que sutilmente a se confundirem, devido ao método
espiral costumeiro de Wojtyla apresentar seu pensamento. Por isso, para fins de
compreensão, nos propomos fazer uma breve análise de cada uma delas separadas,
a partir dos pressupostos metodológicos de nosso autor, sem, no entanto, entrar nos
seus pormenores.

1.1. O princípio utilitarista


A primeira análise é sobre o utilitarismo, que identifica o bem maior do ser
humano com o prazer e inclusive o próprio ser humano como instrumento, meio

354
para tal fim. O utilitarismo2, segundo Wojtyla, manifesta-se como “característica do
modo de pensar e viver do homem contemporâneo e de suas ações perante a vida e
concebe tudo como meio” (WOJTYLA, 2016, p. 29). Com esse agir, o valor da pessoa
é compreendido pelo valor da sua função ou utilidade, que pode ser ou não
hedonista. Ou seja, a pessoa deixa de ser o sujeito e o fim último ontológico da ação
e é rebaixada à condição de objeto, no nível ontológico de meio e instrumento, a fim
de satisfazer desse modo o egoísmo explorador do prazer alheio. O outro passa a ser
desrespeitado e violentado em sua natureza pessoal. Com essa atitude, esquece-se
que a força moral do verdadeiro amor conduz ao desejo do verdadeiro bem para a
outra pessoa e não se servir dela como um bem útil para si.
Todavia, porque as pessoas não foram criadas para serem usadas e
descartadas, tal atitude frente ao outro compromete a moralidade da relação com
essa pessoa, por não a contemplar na sua totalidade unificada, como sempre se
referia Wojtyla:
Para um utilitarista, é só o prazer como tal que conta, porque o seu
modo de considerar o outro não lhe permite descobrir nele a sua
evidente complexidade: a matéria e o espírito, dois elementos
constitutivos de um só ser-pessoa, que deve toda a sua
especificidade à sua alma espiritual (WOJTYLA, 2016, p. 31)

Karol Wojtyla, ao tratar desse tema, nos faz perceber que na esteira da
tendência puramente utilitarista e consumidora, não apenas as coisas, mas inclusive
as pessoas têm sido cada vez mais desejadas conforme suas utilidades. Como
resultado disso, a ética utilitarista vai se tornando uma clara ameaça à própria
essência do amor, por colocar o prazer como o motor que move a vida humana. Em
outras palavras, esse modo de viver utilitarista “está presente inevitavelmente nos
diversos setores da vida e das relações humanas, mas é o campo sexual o que parece
ser particularmente ameaçado” (WOJTYLA, 2016, p. 31). E se encontra ameaçado
inclusive no que se refere especificamente ao ato conjugal em si. Sobre isso,
acrescenta Wojtyla:

2“O seu nome provém do verbo latino uti (“utilizar”, “tirar proveito de”) e do adjetivo utilis (útil).
Conforme a sua etimologia, o utilitarismo coloca o acento na utilidade da ação. Ora, tudo o que dá
prazer e exclui o sofrimento é útil, porque o prazer é o fato essencial da felicidade humana.
Analisando o utilitarismo verificamos que, partindo da norma que ele admite, nunca chegaremos ao
amor. O princípio do prazer se atravessaria sempre no nosso caminho para o amor, e isso pelo fato
de tratarmos a pessoa como um meio para atingir o fim, neste caso o prazer, o máximo prazer”
(WOJTYLA, 2016, p. 29 e 34).

355
Definimos o amor como uma tendência para o verdadeiro bem de
outra pessoa, e, por conseguinte, como uma antítese do egoísmo.
Como no matrimônio, o homem e a mulher se unem também no
campo das relações sexuais, é necessário que procurem este bem
neste campo. Do ponto de vista da pessoa e do altruísmo, é preciso
exigir que no ato sexual o homem não seja o único a atingir o ponto
culminante da excitação sexual, e que este se produza com a
participação da mulher e não à sua custa (WOJTYLA, 2016, p. 271).

O justo amor à pessoa exige que se negue sua coisificação e utilização. E a


sexualidade, de maneira particular, cria condições para que se trate o ser humano
como objeto de uso. Por isso, a outra razão que faz com que o utilitarismo seja uma
ameaça, de forma muito particular, à esfera sexual na vida conjugal, é a tendência ao
uso mútuo entre o casal, através de uma combinação de egoísmos disfarçados de
amor. Neste sentido, procura-se o máximo de gozo para as pessoas envolvidas, para
dessa forma alimentarem cada vez mais o egoísmo compartilhado, que não tem
outra intenção, senão, conquistar o prazer comum.

1.2. O subjetivismo e o egoísmo


A seguir temos o subjetivismo, que tende também a despersonalizar o
aspecto subjetivo do amor. “Este último faz parte da própria natureza do amor. O
subjetivismo, pelo contrário, é uma deformação da essência do amor, uma
hipertrofia do elemento subjetivo, que absorve parcial ou totalmente o valor
objetivo do amor” (WOJTYLA, 2016, p. 146). E outro grande perigo, de acordo com
nosso autor, é o “subjetivismo dos valores”, que:
Consistem em considerar todos os valores objetivos como
elementos que servem unicamente para dar prazer em graus
diversos. O prazer chega a ser o único valor e a base de toda
apreciação. [...] O prazer torna-se o objetivo, ao passo que todo o
resto, a pessoa, o seu corpo, a sua feminilidade ou masculinidade,
não são senão um meio. [...] Quando o prazer é o único valor que
conta como atitude mútua do homem e da mulher, nunca poderá
haver entre eles nem reciprocidade, nem união das pessoas
(WOJTYLA, 2016, 148-149).

A seguir, nosso autor chama ainda a atenção para distinguirmos o que ele
denominou de o “egoísmo dos sentidos” e o “egoísmo dos sentimentos”, e ambos têm
como origem os sentimentos. Por um lado, o “egoísmo dos sentidos” está
fundamentalmente ligado “ao sentimento físico, à satisfação da sensualidade”
(WOJTYLA, 2016, p. 150). Como bem explica Paulo César da Silva, trata-se, portanto,

356
de uma espécie de “egoísmo sensual, por levar uma pessoa a vivenciar sentimentos
eróticos que têm conexão com o corpo e o sexo” (SILVA, 2001, p. 168). Por outro
lado, o “egoísmo dos sentimentos” está enraizado num sentimento psíquico e
afetivo, em “que se transforma muitas vezes numa espécie de jogo (joga-se com os
sentimentos do outro) e pode ser dissimulado sob aparências de amor” (WOJTYLA,
2016, p. 150). Este jogo é antes marcado pela “busca do eu, do que pela busca de
prazer”. Por isso, esta espécie de egoísmo afetivo, por ser menos definida e muitas
vezes confusa, pode envolver mais facilmente a pessoa.

2. A norma personalista do amor


Se, por um lado, o princípio da norma utilitarista visa a busca do prazer por
si mesmo, isto é, ao reconhecimento do prazer como valor superior e base da norma
moral, por outro, o princípio da norma personalista afirma que “a pessoa é um bem
em relação ao qual só o amor constitui a atitude plenamente válida”( WOJTYLA,
2016, p. 35). Ou seja, a pessoa é o ser que, conforme a própria natureza, tem o amor
como referência e medida. Só a pessoa é capaz de partilhar o amor:
É preciso sublinhar aqui que o amor é a realização mais completa
das possibilidades do homem. É a máxima atualização da
potencialidade intrínseca da pessoa. Esta encontra no amor a maior
plenitude do seu ser, da sua existência objetiva. O amor é ato que
realiza do modo mais completo a existência da pessoa. É autêntico
quando realiza a sua essência, isto é, quando se orienta para um
bem autêntico, e de modo conforme à natureza desse bem. É
preciso aplicar esta definição também ao amor entre o homem e a
mulher. Também neste campo, o verdadeiro amor, aperfeiçoa o ser
da pessoa e amplia a sua existência (WOJTYLA, 2016, p. 76).

De fato, só o amor pode relacionar-se adequadamente a uma pessoa e assim


cumprir a norma personalista da sua ação. Mais ainda: numa hierarquia axiológica,
à luz do mandamento do amor, a norma e a atitude sobre o ser humano não pode ser
outra, senão a personalista, “aquela em que o valor da pessoa é sempre considerado
superior ao valor do prazer” (WOJTYLA, 2016, p. 35). E no que se refere ao amor
entre o homem e a mulher, por causa da grande facilidade em confundir o campo
sexual com o conceito de amor, a esse aspecto, Karol Wojtyla acrescenta:
[...] se desejamos encontrar soluções cristãs no campo da moral
sexual, é na norma personalista que devemos procurá-las. É preciso
que elas tenham o seu ponto de apoio no mandamento do amor.
Embora a aplicação total do mandamento do amor, no seu
significado evangélico, se realize através do amor sobrenatural a

357
Deus e ao próximo, este amor não se realiza em contradição com a
norma personalista, e muito menos pode prescindir desta norma
(WOJTYLA, 2016, p. 37).

Em suma é o caráter personalista do amor que confere aos cônjuges o mais


profundo fundamento e sentido de fidelidade até o fim.
A norma personalista, que está acima da vontade e das decisões das
pessoas interessadas, exige que a união conjugal dure até a morte.
Qualquer outra concepção põe a pessoa na situação de objeto de
prazer, o que equivale à destruição da ordem objetiva do amor, que
afirma o valor supra utilitário da pessoa (WOJTYLA, 2016, p. 208).

Como se pode verificar, fica cada vez mais claro o quanto a norma
personalista está absolutamente no centro da antropologia ética e da pastoral de
Karol, como ele mesmo explicou anos depois em seu livro-entrevista, Cruzando o
limiar da esperança:
[...] É precisamente a partir da perspectiva pastoral, como também
em Amor e responsabilidade, que formulei o conceito de norma
personalista. Tal norma é a tentativa de traduzir o mandamento do
amor na linguagem da ética filosófica. A pessoa é um ser para a qual
a única dimensão adequada é o amor. Nós somos justos no tocante
a uma pessoa se a amamos: isto vale tanto para Deus, como também
para os seres humanos. O amor por uma pessoa exclui que se possa
tratá-la como um objeto de gozo (MESSORI, 1994, p. 186).

2.1. O amor e a responsabilidade como afirmação da pessoa e de seu valor


A norma personalista do amor conduz o ser humano, por assim dizer, a três
importantes movimentos, conforme o pensamento de Karol Wojtyla: considerar o
outro como um valor pelo fato mesmo de ser pessoa; considerar os seus outros
valores pessoais e distinguir a hierarquia desses valores pessoais.
Em outras palavras, enquanto o ser humano é sempre alguém, o mundo à sua
volta, por sua vez constitui sempre algo. A realidade pessoal aparece no cosmo como
alguém específico, original, único, irrepetível e insubstituível. Conforme entende
nosso autor, justamente por não ser nem uma coisa e nem um animal, a estrutura do
seu ser pessoal a diferencia dos outros seres inanimados e viventes. A pessoa
humana, na realidade do mundo visível, traz a capacidade de integrar e unir em si
mesma a realidade material e espiritual. Essa distinção se deve, sobretudo, à sua
potencialidade interior de autoconsciência, autoconhecimento, autodeterminação,
autodoação e autotranscedência.

358
Como se pode verificar, conforme Wojtyla propõe, o ser humano possui uma
dignidade e perfeição ontológica enquanto pessoa tão profundas, que somente o
amor é capaz de afirmá-lo como tal. Nas palavras de nosso autor, “a essência do amor
inclui a afirmação do valor da pessoa como tal” (WOJTYLA, 2016, p. 36). O amor
verdadeiramente é amor se afirmar a pessoa. Sem essa afirmação não é possível
perceber a pessoa constituída de uma valoração em si mesma. Neste sentido,
A estrutura da pessoa compreende a sua interioridade, onde
descobrimos elementos de vida espiritual, o que nos obriga a
reconhecer a natureza espiritual da alma humana e da perfeição
própria da pessoa. O seu valor depende desta perfeição. Sendo a
perfeição da pessoa de caráter espiritual, sendo a pessoa espírito
encarnado e não apenas corpo, por mais magnificamente que este
possa estar, não se podem considerar iguais uma pessoa e uma
coisa (WOJTYLA, 2016, p. 115).

Outro aspecto que conduz o amor à afirmação de uma pessoa enquanto tal é
saber que o seu valor está acima de quaisquer outros valores, de modo especial os
sexuais, no que toca ao amor conjugal. O valor da pessoa está intimamente ligado à
sua inviolabilidade, pelo fato de ser alguém e não alguma coisa como objeto de
prazer. Por isso, o valor do seu ser pessoal antecede e supera inclusive o valor do
ato conjugal e outros valores relacionados à afetividade e sexualidade.

Considerações finais
Num rápido sobrevoo sobre a obra Amor e responsabilidade já pode-se
observar que O bispo Wojtyla, dando-se conta da necessidade e do direito que os
homens e as mulheres jovens tinham, não só de instrução, mas também de afirmação
e celebração das suas vocações para o matrimônio, iniciou então um percurso de
desenvolvimento e de reapresentação da moral conjugal da Igreja. Uma obra sobre
a ética sexual e conjugal, que teve como objetivo dar resposta às necessidades
pastorais de então. Para nosso autor, a ética não pode se limitar a apontar o que é
bom para o homem. Precisa indagar sobre as razões pelas quais o homem deve agir
bem, levando diretamente à reflexão do dever e da lei moral.
Por isso, ele apresentou nesta obra, a sexualidade como um bem, que deve
ser exercido na liberdade, inserindo a moralidade sexual no contexto de um amor
que é uma expressão de responsabilidade, não só pessoal, mas perante um outro ser
humano e perante Deus. Neste cenário, como que justificando o título de sua obra, o
amor segundo Karol Wojtyla, implica responsabilidade. O outro é sempre concebido

359
como pessoa. E a pessoa como tal não deve ser considerada objeto de prazer. O amor
é, pois, a antítese do prazer. “Há no amor uma responsabilidade”, que nada mais é
que uma responsabilidade pela pessoa, pelo seu bem autêntico e seu valor. O amor,
que afirma verdadeiramente a pessoa, compromete quem ama, tornando-o
responsável pelo ser amado. Como conclui o autor que inspirou este breve ensaio:
“Um amor que rejeite esta responsabilidade é a negação de si mesmo. É sempre e
inevitavelmente egoísmo. Quanto mais um sujeito se sente responsável pela pessoa,
mais presente está nele o verdadeiro amor” (WOJTYLA, 2016, p. 124).

Referências
MESSORI, Vittorio. Cruzando o Limiar da Esperança. São Paulo: Círculo do Livro,
1994.

RICCARDI, Andrea. João Paulo II: A biografia. Lisboa: Paulinas, 2011.

SILVA, Paulo César da. A ética personalista de Karol Wojtyla. Aparecida: Santuário,
2001.

SILVA, Paulo César da. A antropologia personalista de Karol Wojtyla. Aparecida:


Ideias & Letras, 2015.

WOJTYLA, Karol. Amor e responsabilidade. São Paulo: Cultor de Livros, 2016.

360
ÉTICA RELIGIOSA VERSUS ÉTICA EVANGÉLICA: UMA ANÁLISE DA
PRÁXIS DE JESUS À LUZ DE JOSÉ MARIA CASTILLO

Karolayne Maria Vieira Camargo de Moraes1

Resumo: A presente proposta de comunicação visa apresentar a relação, muitas vezes,


antípoda, entre a ética que deriva da religião e a ética que deriva do Evangelho, enquanto
fontes norteadoras de conduta e mentalidade. Se propõe a falar disso à luz da pessoa, vida
e prática de Jesus, na perspectiva de José Maria Castillo. Para tanto, num primeiro momento,
buscar-se-á esclarecer em que consiste a ética que decorre da religião, enquanto uma forma
bem estruturada e sistemática que prega e propicia o relacionamento com Deus, através,
sobremaneira, do culto e das normas. Em seguida, a análise busca compreender a exigência
ética que resulta da Boa Nova, vivida e anunciada por Jesus, como atestam os Evangelhos.
Em muitos aspectos, observar-se-á, de forma conclusiva, que foi, é e será necessário se opor
a alguns preceitos religiosos a fim de manter-se fiel à novidade e abertura que emanam da
Boa Nova de Jesus, enquanto fonte de vida libertadora. Desse modo, objetiva-se contribuir
para pensar a vivência da fé em uma realidade secularizada, fragmentada e, sob alguns
aspectos, marcada por fundamentalismos. Urge retirar o Evangelho da margem e lhe
devolver a centralidade que lhe é requerida na fé cristã e no diálogo, em vista de um
humanismo integral.
Palavras-chave: Ética; Religião; Evangelho; Vida.

Introdução
A presente comunicação tem como ponto de partida as seguintes questões:
religião cristã e Evangelho são a mesma coisa? E a ética cristã religiosa é a mesma
que a ética que emerge do Evangelho? Para muitos cristãos tais perguntas podem
parecer até mesmo inconvenientes, isso porque a grande maioria das pessoas não
consegue compreender e aceitar que a religião cristã é algo diferente do Evangelho,
embora esse último deveria ser a centralidade daquela. Mesmo assim, segundo
Castillo, ambos jamais seriam idênticos porque a religião continua necessitando de
suas estruturas organizacionais e cultuais que, caso se identificassem plenamente
com a proposta evangélica, pode-se dizer que já não existiriam como tais.
Isso tudo não significa que seja possível viver sem algum tipo de
religiosidade, ou ainda que Jesus, tal como apresentam os Evangelhos, proponha
uma forma de vida laicista, pois a relação com o transcendente é uma dimensão
fundamental do ser humano e sua historicidade é uma consequência direta disso.

1Mestra em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP (2023). Graduada
em Teologia pela PUC-SP (2020). Atualmente é docente convidada no curso de Teologia e Ensino
Religioso da PUC-SP. karolaynecamargo18@gmail.com

361
Desse modo, como entender a relação entre a Religião Cristã e o Evangelho? A fim
de compreender a relação complexa entre essas temáticas é que aqui se propõe a
presente comunicação.
Ela se divide em três partes: a primeira, na qual buscar-se-á esclarecer em
que consiste a ética que decorre da religião, enquanto uma forma bem estruturada
e sistemática que prega e propicia o relacionamento com Deus através de mediações
como o culto e das normas estabelecidas; uma segunda, na qual se propõe
compreender a exigência ética que resulta da Boa Nova, vivida e anunciada por
Jesus; e uma terceira, em que se conclui como viver diante das contrariedades entre
Evangelho e religião. Desse modo, objetiva-se lançar luzes sobre a vivência da fé em
contexto plural e fragmentado como hoje, destacando aquilo em que se considera
como central na proposta de vida cristã.

1. A religião como um “problema” para a vivência da ética de Jesus


A razão de se pensar e propor a religião como um “problema” para a vivência
da fé cristã, a partir de José Maria Castillo, advém da sua observação, atual ainda
hoje, de que muitos países onde o cristianismo é forte, enquanto uma religião, a
realidade mostra-se, porém, profundamente marcada pela injustiça, pela corrupção
e a desigualdade que assola sobretudo os mais pobres, impedindo-os de terem uma
vida digna. Diante disso a pergunta que fica é: como pode o cristianismo ser
expressivo em um lugar cuja prática social se opõe nitidamente à mensagem
principal da fé cristã? O que está sendo compreendido como cristianismo, anunciado
como Deus de Jesus, e vivido como a ética de decorre da afirmação de um Deus que
se fez carne? Ou ainda como a religião cristã é, muitas vezes, utilizada para manter
um status quo?
A partir dessas observações, na esteira de Castillo, é possível pensar que tais
problemas não decorrem apenas de uma falta de comprometimento de muitos que
se denominam cristãos. Vide o cenário das últimas eleições em que cristãos assíduos
em suas comunidades chegavam a apoiar pautas como o porte de armas, ações
violentas e até mesmo antidemocráticas, sem nenhum peso na consciência, mais
ainda, convictos de que suas ações agradavam a Deus, realizando a sua vontade. Daí
a necessidade de analisarmos com profundidade e reconhecermos a possibilidade
de que entre a vivência da fé cristã, tal como propõe o Evangelho, e uma determinada

362
forma de religião existe uma incompatibilidade que está na origem de ambos, de
modo que é impossível viver como Jesus viveu sendo alguém profundamente
religioso.
Para Castillo, a religião em si, enquanto fenômeno humano, é algo muito mais
complexo do que se pode imaginar, devido a sua origem e desenvolvimento histórico
(CASTILLO, 2014, l, 163). Além disso, ela revela muito sobre as relações humanas
com as demais criaturas e com o divino, permeada pela culpa e a violência. Com base
em estudos de teóricos como Walter Burker, Castillo afirma que os primórdios da
religião, são marcados pelo sacrifício de animais realizados por caçadores para
alimentarem-se. Todavia, devido a essa violência cometida contra os animais,
realizavam-se os rituais sagrados como forma de reparação do ato e da culpa que
decorre desse, a fim de que o estado anterior de não violência pudesse ser retomado
(CASTILLO, 2014, l. 163).
A partir desses dados e de outas descobertas arqueológicas e etnológicas, é
possível atestar, diz o autor, a relação intrínseca existente entre a religião, a
violência e a culpa. Afinal para manter a própria vida era necessário matar outra de
forma violenta e, em seguida, realizar um sacrifício de reparação a fim de ser
“redimido”, e a situação retornar ao estágio anterior. Em outros termos “a
necessidade de se alimentar se via e se vivia como necessidade satisfeita mediante
o ritual religioso em que se estabelecia o ato de matar, comer e enterrar a vítima”
(CASTILLO, 2014, l. 185, tradução nossa).
Para o autor, isso evidencia na verdade, “uma inclinação natural e própria do
ser humano de definir e celebrar mediante rituais, acontecimentos importantes da
vida e isso se faz unido ao derramamento de sangue, à violência” (CASTILLO, 2014,
l. 250 tradução nossa), de modo que à medida que se sacrifica outra vida se mantém
a própria. Todavia, se a religião consiste em mediações históricas e culturais
determinadas e, portanto, passiveis de alterações para se relacionar com o divino,
Castillo se pergunta se não chegou a hora (ou já passou da hora) de abandonarmos
a mediação privilegiada do “religioso”, do sagrado que é separado da vida comum,
para reconhecermos que esse deu lugar ao laico, ao humano como o espaço da
presença e o meio para nos encontrarmos com Deus, sobretudo na perspectiva
cristã, que tem como base a encarnação (CASTILLO, 2014, l. 381).

363
Além disso, a religião, diz o autor, estrutura-se com base em três elementos,
a saber: o mito, o rito e a lei (CASTILLO, 2022, l. 1129). De modo que, sobretudo o
rito, é o que muitas vezes a religião antepõe à ética, pois devido ao rigor e a
observância de suas normas ela se torna um fim em si mesmo capaz de oferecer
tranquilidade e paz àquele que o pratica, contrário ao caos da vida e ao medo.
Cumprindo-o eximiamente se sente bem e “bem com o divino”. Para o autor, está aí
o coração da oposição entre Evangelho e Religião, ética evangélica e a religiosa, a
religião centra o sujeito religioso ‘no bem de si mesmo’, enquanto o Evangelho
centra o sujeito evangélico ‘no bem dos demais’. E o centra nos demais, tanto quanto
são e se sentem necessitados” (CASTILLO, 2022, l, 1137, tradução nossa)
Em outras palavras, urge reconhecer que esse modo de religiosidade foi
suficiente em um determinado tempo histórico, mas que hoje não corresponde ao
projeto de vida oferecido pelo Evangelho. Daí é que Castillo passa a falar da laicidade
do Evangelho e da vivência da fé cristã como um todo, isto é, compreender que com
Jesus, plenitude da revelação de Deus, o religioso deu lugar ao humano e ao que
humaniza, o que é atestado no momento crucial de sua morte na cruz. Castillo afirma
que, o mais genial que se encontra nos Evangelhos é que
Jesus deu uma reviravolta completa ao ato central que está na
origem da religião. Com a sua morte na cruz, só o que ficou de pé foi
o ato mais laico que se pode imaginar, o despojo de toda religião e
inclusive de Deus. Daí que não se mata mais para potencializar a
própria vida, mas se dá a própria vida, para que tenham vida os que
veem sua vida ameaçada ou limitada. Um crucificado era o ato mais
oposto a um ato religioso. Todavia, um crucificado que era Deus, e
fica sem Deus, isso é reduzir a religião a nada (CASTILLO, 2014, l.
435, tradução nossa).

Ademais, no que diz respeito ao núcleo da fé cristã, o autor nos pergunta


como é possível que se possa compreender o Evangelho ou mesmo a práxis de Jesus
como fonte de uma nova religião quando o Nazareno fora visto como subversivo,
como alguém que desrespeitou os preceitos religiosos mais importantes como o
descanso do sábado, as refeições com cobradores de imposto e o contato físico dos
leprosos etc. e o fazia em nome de um Deus que ousava chamar de Pai (CASTILLO;
ESTRADA, 1987, p. 17-18). A partir dessas incompatibilidades entre a práxis de
Jesus e a forma de vida delimitada pela religião de seu tempo é que Castillo nos
propõe reler todo o Evangelho a partir da noção de laicidade, onde o humano e tudo
que favorece a vida humana tornam-se as mediações para se relacionar com Deus e

364
fazer a sua vontade, pois foi esse o caminho que Ele escolheu, em Jesus, para relevar-
se como é e como somos chamados a ser, a saber: verdadeiros humanos.

2. A práxis de Jesus como conversão da religião


A partir do que fora dito sobre a religião é, contudo, importante cuidar-se
para não afirmar que Jesus foi uma pessoa antirreligiosa no sentido mais profundo
do termo, enquanto aquele que se relacionou com o divino através de uma mediação.
Ao contrário, segundo os Evangelhos, embora Jesus tenha se oposto assiduamente à
religião oficial de seu tempo, a seus líderes e ritos, ele foi uma pessoa profundamente
religiosa (CASTILLO, 2014, l, 106). Mas ele o fez através de sua vida e humanidade
como mediação. Aqui, portanto, é que se encontra a importante contribuição do
teólogo para pensarmos a vivência da fé tal como Jesus viveu, a saber que a partir
do Evangelho alguém pode ser ao mesmo tempo religioso e antirreligioso, isto é,
nossa relação com Deus pode nos levar a viver em desacordo, e até,
em conflito mortal, com os “representantes oficiais de Deus”, bem
como com tudo o que esses representantes dispõem, organizam e
impõe aos fiéis, uma vez convencidos de que devem fidelidade ao
clero (CASTILLO, 2014, l. 126, tradução nossa).

Em outras palavras, para o autor, o que Jesus fez com a sua Boa Nova foi
deslocar a centralidade da religião, do que era visto como sagrado em detrimento
do humano, considerado profano, para tornar central aquilo que é profundamente
humano, laico, e por conseguinte divino pois laico é o sofrimento (CASTILLO, 2014,
l. 570). Mas isso não foi tudo, Jesus chaga, por meio de sua prática e discursos a
esvaziar a credibilidade das exigências religiosas ao evidenciar explicitamente que
o Deus verdadeiro se encontra no humano, o habita e, justamente, por isso, o
humano deve tornar-se o meio e o lugar privilegiado de encontro com Deus
diversamente do que propunha, e diga-se, ainda hoje continuam afirmando diversos
líderes cristãos durante as cerimônias religiosas. Nas palavras do autor,
Jesus, retirou a religião do templo, das mãos dos sacerdotes e dos
teólogos (mestres da lei), da violência dos dogmas, das normas e
ritos e, o fez, tornando central na vivência religiosa a vida mesma,
o humano, a possibilidade de relações melhores com todos os seres
humanos, a ética da bondade e da misericórdia com todos, cristãos
e não cristãos (CASTILLO, 2014, l. 561, tradução nossa).

Castillo mostra que Jesus só conseguiu viver dessa forma, opondo-se à


vivência religiosa oficial corrompida pelo poder e pela autoridade, e vivendo uma

365
religiosidade laica, devido a sua relação com Deus e a oração. Jesus questionou a
forma comum de se relacionar com Deus naquele tempo, mas não o fez por meio de
discursos, dogmas, leis etc., nem mesmo junto aos líderes religiosos, mas na Galileia,
região afastada do templo, através de sua práxis junto aos simples e vistos como
ignorantes. Jesus compreendeu e nos ensina que para mudar algo o meio mais eficaz
é a forma de viver, o comportamento cotidiano, as preferências e convicções que dão
forma a nossa vida, ao nosso modo de ser e compreender o mundo a nossa volta
(CASTILLO, 2013, l. 647). Dessa forma, Jesus revelou um Deus que é profundamente
humano, próximo e Pai (uma forma de chamá-lo questionadora da visão
predominante em sua época). Jesus fez isso sobretudo através do anúncio e da
própria presença encarnada do Reino de Deus, isto é, da atuação de Deus em nosso
meio perceptível através da oferta de vida em abundância (CASTILLO, 2014, l. 672).
O segundo elemento que permitiu a Jesus viver uma religião alternativa
consiste na oração. Esta teve um papel fundamental em sua vida, pois, segundo
autor, é a expressão de nossos desejos. Daí que desejar o bem de alguém ou mesmo
compadecer-se de alguém é orar intensamente a Deus por aquilo e isso possibilita
uma vida de constante oração em espírito e em verdade (Jo 4,23-24). Todavia, certo
é que nem sempre desejamos o bem, daí a oração do Pai-nosso ser o exemplo de um
pedido a Deus de ordenamento de nossos desejos, ou seja, de que a sua vontade seja
feita (CASTILLO, 2014, l. 1040;1070).
Significativo é também como e onde Jesus rezava, a saber em ligares
afastados e sozinho, em profunda intimidade. Jesus não rezava no templo, nem
mesmo nas sinagogas, pois tais lugares eram associados com a maldade, segundo os
Evangelhos. Castillo conclui que o Deus de Jesus deseja que pratiquemos uma
religiosidade que fique oculta, porque ele é um Deus que só vê no escondido
(CASTILLO, 2014, l. 1070) e para a sociedade o que deve aparecer é o bem que
fazemos, a bondade que praticamos de tal modo que leve outros a acreditar nele (Mt
5,16) (CASTILLO, 2014, l. 1079). Em outras palavras, a oração deve ser o momento
da partilha de nossa vida com Deus ao mesmo tempo que a experiência profunda do
seu amor que nos impele à prática do bem sem limites.

366
Considerações finais
À guisa de conclusão, constata-se que quando a religião, por meio de seus
preceitos, mandamentos e observâncias, apresenta-se presunçosamente como
aquela que conhece a Deus e garante que a ligação à Ele só se dá a través do
cumprimento de tudo isso, profana a novidade trazida por Jesus, Evangelho vivo.
Isso porque a religião, por meio do mito, do rito e da lei é meio de relacionamento
com um divino distante, com o qual buscamos por medo e culpa, a fim de
permanecermos bem com ele. Em outros termos, preocupados conosco mesmos e
com a tranquilidade de nossa consciência.
Com Jesus, temos a revelação da plenitude da laicidade de Deus. Jesus revela
um Deus que se faz presente no humano, não longe deste, opondo-se à sua
fragilidade, mas a torna meio para encontrá-lo como o Deus da vida. Consequência
direta dessa novidade de Jesus é que a garantia de fazer a vontade de Deus não é
assegurada por nenhum preceito religioso cumprido, sacrifício ritual realizado, ou
mandamento observado, mas assenta-se sobretudo na prática do bem ao outros, isto
é, na dinamicidade da vida. Paradoxalmente, atestam em favor dessa realidade que
os mais significativos testemunhos de fé relatados pelo Evangelhos derivam de
pessoas não pertencente ao círculo conhecido dos discípulos de Jesus, mas ousados
na fé que possuíam Nele. Fala-se aqui do centurião romano, da mulher hemorroísa,
do cego de nascença e outros. Em todos esses relatos, verifica-se uma fé capaz de
ultrapassar os limites dos preceitos religiosos e culturais depositando sua confiança
em Deus.
Em outros termos, parafraseando Gesché, são aqueles que levam o problema
até o altar de Deus e depositando nele as questões da vida, acreditam que aquilo
também seja um problema dele. Essa fé que arrisca é a única capaz de conhecer
verdadeiramente a Deus, sem querer de antemão afastá-lo de tudo o que é humano,
como se esse não fosse sagrado, como muitas vezes prega e induz a crer os discursos
e as práticas religiosas. Em suma, a proposta de Castillo, trata-se, à luz de Jesus e da
sua vida narrada pelos Evangelhos, libertarmos a proposta de vida cristã das
exigências religiosas cultuais e institucionais a fim de viver a relação com o Deus
encarnado através do humano e nele. Isso, na perspectiva castilliana é o caminho
que nos permite tornarmo-nos sensíveis ao sofrimento do muitos caídos nas

367
estradas de nossas vidas, ou seja, vivermos uma ética da necessidade vital em
oposição a uma ética da norma, muitas vezes insensível e desumana.

Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 10. ed. São Paulo: Paulus, 2010.

CASTILLO, José M. La laicidad del evangelio. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2014, E-


Book Kindle.

CASTILLO, José M. Declive de la religión y futuro del evangelio. Bilbao: Desclée De


Brouwer, 2022, E-Book Kindle.

CASTILLO, José M. El Proyecto De Jesus. Salamanca: Sigueme, 2006.

368
A ÉTICA EM GÁLATAS 3,28 “NÃO HÁ HOMEM NEM MULHER” PELO
PENSAMENTO DE ELISABETH SCHÜSSLER FIORENZA

Patricia Carneiro de Paula1

Resumo: A presente proposta de comunicação tem como objetivo analisar o pensamento


da teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza a respeito do texto de Gálatas 3,28 em sua obra “As
origens cristãs a partir da mulher. Uma nova hermenêutica”, na qual a autora desenvolve
uma hermenêutica crítica feminista em diálogo com outros autores e também reconstrói, a
partir de sua hermenêutica, as origens cristãs, inserindo a presença feminina apagada pelas
próprias Escrituras, assim como pela tradução e demais interpretações que se seguiram. O
intuito deste ensaio é destacar a ética presente no mencionado texto bíblico e a
hermenêutica empregada pela autora, bem como analisar como uma nova proposta
hermenêutica pode contribuir para assegurar a unidade objetivada pelo texto, inclusive,
para a superação da violência contra mulheres e meninas, e reconhecer, ainda, que a religião
muitas vezes pode ser usada como instrumento de violência. Assim, pretende-se, por meio
de uma pesquisa bibliográfica, discorrer a respeito do texto de Gálatas 3,28, em diálogo com
o pensamento de Fiorenza e a hermenêutica contemporânea, bem como analisá-lo a partir
de sua compreensão ética, de modo que esse estudo tenha relevância para demonstrar que
a teologia também deve se ocupar dessa problemática e apresentar caminhos de superação.
Palavras-chave: Ética; Gálatas; Fiorenza; Violência; Hermenêutica.

Introdução
Elisabeth Shüssler Fiorenza é uma teóloga feminista católica, nascida na
Romênia em 1938. É professora aposentada na Harvard Divinity School (USA),
atuando desde 2022, como professora pesquisadora.
A obra em estudo foi publicada em 1983 com o título In memory of her: A
Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins, que conta com inúmeras
traduções como francês, alemão, holandês, espanhol, coreano, italiano (In memoria
di lei, Brescia, Queriniana), ainda, em sueco, japonês, indonésio, comemorando, em
1994, o aniversário da 10ª Edição.
Em português, foi traduzida com o título As origens cristãs a partir da mulher:
uma nova hermenêutica, e publicada em 1992. Tal obra representa uma “pedra de
toque” no estudo do Novo Testamento e no desenvolvimento da hermenêutica

1Graduada em Direito e Pós-graduada lato sensu em Direito Processual Civil ambas pelo CENTRO
UNIVERSITÁRIO UniFMU/SP. Mestrado e graduação em Teologia pela PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE SÃO PAULO. Integrante do grupo de pesquisa PHAES – Pessoa Humana, Antropologia,
Ética e Sexualidade. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teologia – PPGT da PONTIFÍCIA
UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ – PUC PR. Email: patriciacdepaula@gmail.com

369
feminista. Na primeira parte do livro, ela desenvolve seu método interpretativo e,
na segunda, realiza uma “reconstrução feminista das origens cristãs”, inserindo na
história dos primeiros séculos do cristianismo uma presença feminina que dele foi
excluída, em parte pelas próprias Escrituras e em parte pela tradução e
interpretação sucessivas (GREEN, 2009, p. 111/112).
O título “Não há homem nem mulher” se refere ao capítulo 6 da segunda parte
do livro e nos interessam, para esta oportunidade especificamente, os subcapítulos:
“Não há homem nem mulher”; Análise e interpretação de Gálatas 3,28 e
Modificações paulinas de Gálatas 3,28, cuja análise visa considerar que uma nova
hermenêutica crítica, reconstrutiva tem o condão de assegurar igualdade de
dignidade entre os seres e, por consequência, iniciar um caminho que, inclusive,
possa superar a violência e assegurar reparação e equidade.

“Não há homem nem mulher” – Gálatas 3,28. Visão alternativa e modificação


paulina
Fiorenza nos afirma que o texto de Gl 3,28 é considerado o locus classicus do
ensino de Paulo sobre as mulheres e centro organizador de sua teologia e que, em
contraposição com esse texto, há os chamados “códigos domésticos”, como em
Colossenses (Col 3,18-4,1) e o de Efésios (Ef 5,21-6,9), que frisam a subordinação
das mulheres aos maridos e demonstram clara discrepância com a hermenêutica de
Gl 3,28.
A autora expõe, ainda, o pensamento de vários outros autores sobre a relação
dos chamados “códigos domésticos” e a narrativa de Gl 3,28, evidenciando as
divergências de entendimento. Todavia, enfatiza que Paulo insiste na distinção
simbólica entre homem e mulher, mas que ele nitidamente abandona “distinções
funcionais” porque tal abandono leva à edificação da comunidade, evitando-se,
assim, confrontos desnecessários diante da nova unidade dos seres em Cristo, sem
distinção funcional entre si.
Ressalta ainda que exegeses mais antigas insistiam na subordinação e
diferença entre mulheres e varões e que parte da exegese mais recente sustenta a
“suposição igual mas diferente” – diferença sexual e de subordinação das mulheres,
de modo que, de certa forma, continuam a reduzir o valor e a dignidade das mulheres

370
baseado, sobretudo, na diferença sexual e atribuindo maior valor a um do que a
outros, no caso, as mulheres.
Enfatiza também a interpretação que faz distinção entre “ordem da criação”
e “ordem da redenção” e que, por consequência, ao reduzir a mulher na ordem da
criação e tentar igualá-la ao homem na ordem de redenção, cria-se um hiato em que
mulheres deixam de ter importância e visibilidade, contrariando, inclusive, a
necessária igualdade em Cristo, que não pode ser postergada apenas ao final.
Assim, afirma Fiorenza:
Esses comentários estão dispostos a afirmar o oposto do que Paulo
realmente diz para preservar uma interpretação ‘puramente
religiosa’. Ao fazê–lo, frisam vigorosamente a realidade da
igualdade diante de Deus sacramentalmente e ao mesmo tempo
‘negam que se possa tirar qualquer conclusão disso com relação aos
ofícios eclesiásticos(!) e à ordem política (FIORENZA, 1992, p.
240/241).

Há ainda outra tradução relevante para análise do tema, que é “Não há


homem (macho) e mulher (fêmea)”. Para Fiorenza, essa possível tradução não evoca
necessariamente à androginia, mas a expressão (macho e fêmea) pode designar o
primeiro casal, o tema da procriação e da fertilidade ou, ainda, o casamento e família
(exegese judaica); entende-se, portanto, em termos de casamento e relações sexuais.
Assim, ela expõe que:
Gl 3,28c não afirma que não haja mais homens e mulheres em
Cristo, mas que casamento patriarcal – e relações sexuais entre
macho e fêmea – não é mais constitutivo da nova comunidade em
Cristo (FIORENZA, 1992, p. 245).

Análise e interpretação de Gálatas 3,28


Consoante se depreende da obra de Fiorenza, o texto de Gálatas 3,26-28 pode
ser classificado como uma “confissão batismal” citada por Paulo (fórmula batismal),
que era utilizada pelos primeiros cristãos e que Paulo também teria assumido.
É claro que o interesse de Paulo na Carta aos Gálatas é a relação religiosa
entre judeus e gentios, e não as distinções político-culturais entre judeus e gregos.
O enfoque dele é a união dos fiéis gentios com Cristo, a posição de todos os fiéis como
“filhos de Deus” e como “descendência de Abrão” e, ainda, “herdeiros” em Cristo, o
que torna sem nenhum valor qualquer tentativa de alcançar posição superior pelas
prescrições religiosas, como a circuncisão, ou pela observância da lei (HANSEN,
2008, p. 590).

371
Ainda que este trabalho não seja destinado a uma análise exegética, optou-se
por transcrever a análise narrativa feita por Fiorenza do texto em questão
(FIORENZA, 1992, p. 242):
I. 3,26a Pois vós sois todos crianças de Deus
II. 3,27a Pois os muitos que foram batizados em Cristo
b vestiram-se de Cristo
III. 3,28 a Não há judeu nem grego
b Não há escravo nem livre
c Não há homem e mulher
IV. 3,28d Pois vós todos sois um.

A autora enfatiza, assim, que o cerne da fórmula tradicional é justamente Gl


3,28abc, sem se olvidar dos pares de oposição (judeu/grego e escravo/livre), mas
que a fórmula batismal modifica os papéis sociais, ressaltando a questão das
mulheres que exerciam papéis de liderança nas igrejas domésticas e na missão do
movimento cristão primitivo (FIORENZA, 1992, p. 242).
Assim, diante desse cenário, que evidencia sobretudo a opção por deixar de
lado essas questões religiosas como a circuncisão (ou a incircuncisão), verifica-se
que Paulo frisa o mesmo ponto, que é a questão a respeito da nova criação:
Essa luta de Paulo por igualdade entre cristãos gentios e judeus
tinha ramificações importantes igualmente para as mulheres
gentias e judias. Se não mais era a circuncisão, mas o batismo e o
rito de iniciação, então as mulheres tornavam-se membros plenos
do povo de Deus com os mesmos direitos e deveres. Isso gerava
mudança fundamental, não somente em sua posição diante de
Deus, mas também em seu status e função social-eclesial, porque no
judaísmo diferenças religiosas segundo a lei também se
expressavam em comportamento comunitário e prática social
(FIORENZA, 1992, p. 244).

Reforçando tal entendimento, a autora afirma, ainda que


Enquanto se nascia no judaísmo – mesmo o prosélito pleno não
podia alcançar o status do israelita varão –, o movimento cristão
baseava-se não em linhas raciais de herança e parentesco, mas em
novo parentesco em Jesus Cristo (FIORENZA, 1992, p. 244).

E ainda:
No batismo, os cristãos entravam em relacionamento de
parentesco com pessoas vindas de background raciais, culturais e
nacionais muito diferentes. Essas diferenças não deviam
determinar as estruturas sociais da comunidade, nem o deviam a
de família ou clã. Por isso, o status e papéis tanto das mulheres
judias como das gentias eram drasticamente mudados, pois a
família e o parentesco não determinavam as estruturas sociais do
movimento cristão (FIORENZA, 1992, p. 244).

372
Modificações paulinas de Gl 3,28
Apesar da utilização da fórmula batismal, em Gl 3,28, conforme se depreende
do pensamento de Fiorenza e da própria leitura das cartas atribuídas a Paulo, é
difícil se afirmar com certeza a posição dele a respeito das mulheres e escravos na
comunidade. Registre-se que não é claro qual a teologia e a prática, por exemplo, dos
coríntios, no assunto e Paulo se refere explicitamente a Gl 3,28 em 1Cor 12,13 e 1Cor
7,17-24, mas não menciona o terceiro par “homem e mulher”.
Segundo assevera Fiorenza, não há como não reconhecer que a comunidade
de Corinto consistia possivelmente em um grande número de mulheres cristãs
ativas na teologia e na prática da comunidade e, embora existam poucas
informações, a comunidade tinha pelo menos três importantes mulheres líderes
(Cloé, Prisca e Febe), que tinham boas relações de trabalho com Paulo, pois ele
expressa seu respeito por elas e as enaltece como colaboradoras (FIORENZA, 1992,
p. 254/255).
Para a mencionada autora, diante da realidade daquela comunidade, Paulo
interpreta e adapta a declaração batismal de igualdade e unidade em Cristo, e
aborda as questões como casamento, escravidão, divórcio e celibato (1Cor 7), de
costume e conveniência a respeito da assembleia litúrgica em 1Cor 11 e 14, e, ainda,
em sua discussão com outros “partidos” cristãos, sua compreensão como “um pai”
dos que batizou (4,14-17). E em 2Cor 11,2-3, quando introduz a imagem de Eva
como contraimagem da igreja como noiva e de Cristo como esposo. Assim, todas
essas qualificações de Gl 3,28, feitas numa determinada situação concreta, foram
desenvolvidas posteriormente em sentido patriarcal pela “escola” paulina
(FIORENZA, 1992, p. 255/256).
Entretanto, não resta dúvida de que Paulo interpreta e adapta a declaração
batismal de unidade e igualdade em Cristo e não faz distinção dos papéis/funções
sociais atribuídos a homens e mulheres em Gl 3,28, o que garante simetria em seu
pensamento de sustentar a unidade de todos em Cristo.

Considerações finais
O trabalho de apresentar uma hermenêutica reconstrutiva, inserindo a
presença feminina, ressalta o pensamento ético de Fiorenza, que consiste em
demonstrar, mediante uma análise crítica, ou o que ela denomina hermenêutica

373
crítica feminista da libertação, a existência da real e igual dignidade entre homens e
mulheres, sobretudo a partir do batismo.
Assim, seja pelo princípio da igualdade, seja pelo fundamento da dignidade
humana, seu entendimento articulado e bem elaborado, pautado em estudos
exegéticos, tem por finalidade justificar que, pelo batismo, assim como se fazia no
cristianismo primitivo, passamos a ser UM em Cristo, para o qual não há diferença
nem distinção.

Referências
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova
hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.

GREEN, Elizabeth. Teólogos do Século XX. Elisabeth Schüssler Fiorenza. São Paulo:
Loyola, 2009.

HANSEN, G. Walter. Gálatas. In: HARWTHRONE, Gerald F.; MARTINS, Ralph P. (org.).
Dicionário de Paulo e suas Cartas. 2. ed. São Paulo: Loyola, Paulus, Vida Nova, 2008.

374
DA ÉTICA QUE MOBILIZA O DESEJO A ESCUTA PSICANALÍTICA QUE
TENSIONA O MAL-ESTAR

Rita de Cassia Mendes Alvares1

Resumo: O texto discute o quanto a escuta psicanalítica pode tensionar o mal-estar, que
está presente no viver, e pode favorecer a emergência de um exercício possível para além
de acordos regulatórios, determinações sociais, princípios superegoicos, sustentada por
uma ética pautada no desejo. Tal ética é suscetível de propiciar uma ruptura com verdades
absolutas, podendo haver então aposta nas construções e elaborações que ocorrem no
contexto de uma relação de escuta, implicam em deparar-se com uma estrangeiridade
constitutiva e responsabilizar-se pelo que produz sofrimento.
Palavras chave: ética; escuta psicanalítica; mal-estar.

Introdução
Para introduzir as discussões em torno da problemática proposta, salienta-
se que o surgimento da psicanálise, ocorreu a partir das elaborações de Freud ao
longo de pesquisas cientificas e da experiência clínica. Seus estudos sobre a vida
inconsciente, desenvolvidos no curso da elaboração da sua vasta obra, são hoje
referência para várias áreas da ciência contemporânea. Foram ao longo dos anos
retomados, reelaborados, o que a manteve viva2.
Pode se dizer que inaugurou uma forma muito particular e inédita de
produzir ciência e conhecimento. Instaurou uma ruptura com a tradição do
pensamento ocidental, e fundou, a partir dos seus estudos, um novo modo de
abordar o sujeito, que deixa de ser visto exclusivamente pela ótica do pensamento
cartesiano, consciente e racional.

1 Psicanalistae Psicóloga. Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São


Paulo IP-USP, Mestre em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS, Especialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS, integrante do Grupo de Pesquisa Pessoa Humana, Antropologia, Ética e Sexualidade –
PHAES vinculado a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. E-mail:
ritacalvares@gmail.com
2 Freud (1917/2010) no texto Caminhos da Terapia Psicanalítica sublinha que, se houvesse aumento

da quantidade de psicanalistas, estes poderiam tornar acessível a psicanálise a um número maior de


pessoas, e aponta para a necessidade de as técnicas de trabalho se adaptarem as novas condições.
Para ele o “puro ouro” da psicanálise teria que passar por modificações, mas os pressupostos éticos
se manteriam.

375
Devemos ressaltar que uma análise convoca um movimento de construção,
desconstrução e reconstrução, e envolve um processo de elaboração, recordação e
repetição3.
Como salienta a psicanalista Julia Kristeva (1987) é na “palavra trocada” e
nos acidentes desta troca entre dois sujeitos, em situação de transferência, que
opera o trabalho analítico.
Desse modo, tem-sle como objetivo refletir sobre o quanto a escuta
psicanalítica tensiona o mal-estar, que está presente no viver, e pode favorecer a
emergência de um exercício possível para além de acordos regulatórios,
determinações sociais, princípios superegoicos, sustentada por uma ética que
aposta no desejo.

1. Escuta psicanalítica aposta em deslocamentos


Para darmos continuidade a nossa exposição, nos aprofundando nas
implicações da escuta psicanalítica na vida de um sujeito, nos parece, importante,
inicialmente sublinhar que existe algo que determina o sujeito e o marca de maneira
irreversível na condição de estrangeiro a si mesmo.
Lembremos a afirmação feita por Freud: o “Eu [...] não é nem mesmo senhor
de sua própria casa, mas tem de satisfazer-se com parcas notícias do que se passa
inconscientemente na sua psique” (FREUD, 1917/2014, p. 381). Essas esparsas
notícias, ao apontar para algo que fala em nós, também marcam a presença de algo
que nos escapa.
A ‘capacidade’ para perceber e apreender essa estrangeiridade constitutiva
talvez seja uma forma de reconhecer no outro a diferença como algo que também
nos concerne. Aceitar-se como estrangeiro a si mesmo implica, pagar o preço da
singularidade, bem como reconhecer e acolher o inesperado – aquilo que escapa a
imagem especular, que está para além do idêntico.
Poderíamos dizer que esse estrangeiro que nos constitui é suscetível de
aparecer sempre que tentamos mudar de posição, quando produzimos um
deslocamento que propicia uma interrogação sobre o lugar subjetivo.

3 Em diálogo com o importante texto freudiano “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914)

376
Situações que apontam para o fato de sermos atravessados pelo inconsciente
que nos habita e nos obriga a não esquecer que o estrangeiro não está do outro lado
de uma fronteira, mas em nós mesmos. É aquela língua que não compreendemos,
suscita interrogações, pontos de incompreensão, sentido ambíguo e
estranhamento, algo que não é, a princípio, reconhecido. Tal presença nos lembra a
alteridade que nos constitui.
Esse movimento de estranhamento, faz parte de um processo de análise.
Ocorre muitas vezes quando o sujeito começa a escutar-se, a perceber as posições
que ocupa no que está falando e pensando. Necessariamente, implica em deparar-
se com isso que escapa ao controle e ao mesmo tempo é constitutivo.
Esse processo, depende, por sua vez, do estabelecimento de uma relação
transferencial, do sujeito confiar e falar, e, de algum modo, de um implicar-se nisso
que lhe produz sofrimento.
Muitos aspectos estão presentes nessa relação. Trata-se pelo lado do
psicanalista, de uma abertura e receptividade ao que o outro tem a dizer. Muitas das
pessoas que se encontram pela primeira vez com um psicanalista, por outro lado,
conforme já observava Dolto, deparam-se com uma forma única de escutar: “uma
escuta no sentido pleno do termo, faz com que o discurso delas se modifique,
adquira um sentido novo aos seus próprios ouvidos. O psicanalista não da razão
nem a retira; sem emitir juízo, escuta” (DOLTO, 1981, p. 11).
Podemos então dizer que a posição de escuta psicanalítica é suscetível de
produzir uma diferenciação no modo de o sujeito se situar em relação ao outro. Na
medida em que a sustentação, pelo psicanalista, do desejo de escuta envolve a
sustentação de um esvaziamento dos lugares de saber sobre o sujeito, a emergência
de outros sentidos, que podem se produzir dentro daquele campo transferencial, é
tornada possível.
Essas elaborações envolvem queixas e demandas, que se atualizam na
transferência e encontram expressão na presença do analista, mas não estão
diretamente referidas a ele. Apontam para outros aspectos, para além da figura
deste que está oferecendo suporte para o que está sendo dito.
O processo de uma análise envolve um trabalho de construção e
reconstrução. Como aponta Freud, no seu conhecido texto sobre construção em
análise, tal construção pode ser considerada um trabalho de reconstrução. Ele

377
chega a compará-lo com o trabalho do arqueólogo, e salientando que o analista
trabalha em melhores condições, dispõe de mais material; e não lida com vestígios
materiais que devem ser escavados, mas com algo vivo, mesmo que remeta à
história pregressa do sujeito.
Esse algo vivo, cabe sublinhar, torna-se presente no momento em que o
sujeito enuncia a sua narrativa. E o analista pode produzir intervenções a partir do
material e das construções suscetíveis de serem elaboradas numa relação de escuta.
Assim como o arqueólogo constrói a sua investigação a partir dos restos
encontrados nos escombros, o psicanalista faz suas intervenções partindo de
fragmentos de lembranças: “ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por
meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram” (FREUD,
1937/1996, p. 293). É a partir desses restos que retornam na fala que o analista
pode elaborar a sua construção, em seu trabalho de interpretação, durante uma
sessão.
Cabe lembrar que o tratamento não irá mudar totalmente um sujeito.
Entretanto, na medida que consiga implicar-se no que está dizendo, pode oferecer
possibilidades para que ele se depare, talvez mais rapidamente, com questões que
lhe são próprias.
O tratamento propicia ao sujeito deparar-se com interrogações que já
estavam colocadas para ele, a partir do momento em que o analista, dentro da
relação transferencial, encontra-se ao lado disso que é do inconsciente.
Na análise as formações do inconsciente4 estão em movimento, se
manifestando em ato. Ao manifestarem-se rompem o sentido corrente e abrem
possibilidade para que outra lógica de saber possa se colocar – a lógica do desejo.
E assim, oferecem outro modo de se relacionar com as tensões presentes nas
exigências superegoicas, com o meio social, cultural no qual está inserido.

2. Tensionamentos do mal-estar: ética do desejo


Uma análise, envolve, movimentos de construção e desconstrução, que se
desdobram num possível processo de responsabilização pelo desejo e modifica a

4Entendemos por formações inconscientes, os sonhos, os lapsos, os chistes, as palavras antitéticas.


Elas constituem manifestações em ato do inconsciente. Trabalhadas em uma relação de análise,
abrem possibilidade para novas elaborações e produções de sentido.

378
relação com princípios regulatórios, mandatos superegoicos, com verdades e ideais
de felicidade absoluta. O que nos leva a pressupostos éticos, do que seja o bem do
sujeito, pilares no trabalho do psicanalista.
Lembremos que a felicidade pode ser alcançada apenas como fenômeno
episódico. Há uma idealização presente na busca pela felicidade; algo imposto, de
certo modo, pela sociedade de consumo, pelos ideais capitalistas e neoliberais.
Entretanto, essa idealização de um prazer pleno a ser alcançado, é fadada, em boa
parte, à frustração – tanto pelo lado da obtenção do prazer como pelo âmbito da
contensão do sofrimento.
Freud aponta três fontes para o sofrimento: “o poder superior da natureza,
a fragilidade do nosso próprio corpo e a deficiência das disposições que regulam os
relacionamentos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade” (FREUD,
1930/2010, p. 80). Quanto às duas primeiras, não haveria muito a fazer; quanto à
terceira – que Freud acredita ser a mais dolorosa –, salienta que, por trás disso, deve
haver uma porção de algo invencível, próprio à constituição psíquica.
Mediante as possibilidades de sofrimento, resistir e escapar à infelicidade
acabam sendo medidas mais prováveis. Nesse contexto, a solidão e a quietude
aparecem como formas de defesa do sofrimento. Por outro lado, deve ser
considerado que muitos ambientes sociais – através da imposição de regras de
conduta e convivência – busca a determinação de um certo padrão de bem-estar.
Mesmo que essas regras tenham utilidade, isso não explica inteiramente a aspiração
presente nessas atitudes.
Nossa cultura, como salienta Seligmann-Silva, pode ser descrita “como
geradora de uma enorme culpa, na medida em que seu componente erótico
direciona nossa sociedade no sentido de construir uma massa coesa de seres
humanos” (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 36). A culpa, em associação com as
exigências da cultura, na qual as diferenças são negadas em nome de uma
unificação, faz florescer o mal-estar.
O mal-estar, pode ser considerado uma condenação advinda da sociedade,
do ideal do eu instituído pela sociedade em determinada etapa de sua história. Ele
provém, porém, antes de tudo, dos mandatos superegoicos, que operam por meio
da culpa, no modo de o sujeito se posicionar. Tais mandatos tendem a sacrificar o

379
sujeito, produzir autopunições, que podem levar a processos melancólicos, a
estagnação, a repetição. Desencadeiam em última instancia, sofrimento psíquico.
Logo, se o que o sujeito demanda é seu bem-estar, o psicanalista, entretanto,
não responde desse lugar – ao contrário do que pode ocorrer com outras
abordagens, que se colocam do lado da produção de sentido, no lugar de saber sobre
o que pode resolver o sofrimento do outro.
O analista, de sua parte, questiona o fato de o sujeito querer
fundamentalmente seu próprio bem-estar, em vez de interrogar-se sobre o fato de
estar ou não agindo em conformidade com seu desejo.
Tal questionamento nos traz a questão do posicionamento ético e ao
apontamento de Lacan, no seminário sobre a ética, quando lança a pergunta: “agiste
em conformidade com seu desejo?” (LACAN, 1959-60, p. 364). Nesta acepção, em
conformidade com o desejo, nos remete a algo indispensável de ser levado em
conta, conforme nos ensinou Lacan: o fato da psicanálise, não trabalhar a serviço
dos bens, sejam eles privados, de família, da casa, do ofício, da profissão ou da
cidade.
A ética da psicanálise não é uma especulação que incide sobre a
ordenação, a arrumação do que chamam serviço dos bens. Ela
implica, propriamente falando a dimensão do que se chama de
experiência trágica da vida. É na dimensão trágica que as ações se
inscrevem, e que somos solicitados a nos orientar em relação aos
valores (LACAN, 1959-60, p. 376).

Acreditamos que a escuta psicanalítica deva propiciar um espaço,


sustentado pela ética do desejo, para essa proximidade da experiência trágica da
vida. Essa postura não se encontra na promessa, no ideal de felicidade ou de um
bem-estar.
Lembremos o ato de Antígona, que não abriu mão do seu desejo de dar
sepultura ao irmão morto. Ao adotar tal postura, materializou uma posição. Ao
mantê-la, a personagem de Sófocles desafia as leis da cidade e a posição do rei de
Tebas, Creonte, que determinou a não realização do funerário de Polinices –
condenado a ficar insepulto. Através do seu ato, Antígona busca manter algo de
outra natureza, não relacionado aos valores das leis da cidade. Sustenta a lei do
desejo.5.

5 Lacan comenta sobre a tragédia grega de Sófocles em dialogo com a ética da psicanálise no
Seminário 7 (LACAN, 1959/1960, p. 289-338).

380
Podemos dizer que esse não ceder do seu desejo, postura de Antígona, nos
defronta com um processo de assumir uma posição que afronta o rei de Tebas, e
constitui um deslocamento em relação as proibições sociais impostas pelas leis da
cidade, e sustenta um desejo.
Dito de outro modo: o desejo do sujeito se movimenta em torno de ser
desejado. Está em questão ser aquilo que falta ao outro. E, ainda, suscitar o desejo
do outro.
O desejo é marcado por uma impossibilidade essencial. O que se poderia
hipoteticamente denominar adequação ou coincidência entre desejo e objeto só
pode ser pensado de modo idealizado. Tal coincidência é impossível de ser
reencontrada, encontra-se desde sempre perdida6.
Reside aqui algo que pode ser considerado paradoxal: embora o sujeito seja
determinado por algo fora dele – ou seja, em função do reconhecimento do Outro –
, precisa responsabilizar-se pelo seu desejo.
Esse processo de responsabilização do sujeito pelo seu fazer, passível de
ocorrer em um processo sustentado pela ética da psicanálise, pode estar presente,
entretanto, em outros processos, já que a psicanálise não se propõe a posição de
único e absoluto referencial.

Considerações finais
Conforme demonstramos, um dos deslocamentos que pode se colocar em
uma análise, é o de um reposicionamento, ou até mesmo uma ruptura, na relação
com os ideais contemporâneos de felicidade, suscetível de levar o sujeito a lidar de
outra maneira com mandatos morais e exigências superegoicas. A romper com a
pressuposição de que alguém pode oferecer uma resposta pronta para o que seja o
bem. As novas interrogações do sujeito sobre sua vida exigem então um processo
de elaboração, não sendo oriundos de uma fonte prioritariamente externa.
Desse modo, a ética do trabalho analítico sustentada na aposta no desejo, se
coloca em movimento através da escuta que ocorre no contexto de relação
transferencial, e necessariamente tensiona o mal-estar, partindo de uma logica, que

6Tal adequação, só passível de ser pensada de modo idealizado, ou mítico, nos remete ao mito do
Andrógeno e aos seres providos de dois sexos, duas cabeças, quatro pernas e quatro braços. Viviam
andando em círculos. Nada parecia lhes faltar. Até que um dia, entretanto, veio Zeus e os separou. A
partir de então ficaram tentando reencontrar as suas metades perdidas.

381
considera que o mal-estar está presente, ainda que estejamos em um contexto social
no qual a felicidade parece objetivo a ser alcançado a qualquer preço.
Nesse processo o sujeito pode vir a sair da posição de indiferenciação, sentir-
se implicado no que está ocorrendo consigo e em seu em torno. Pode haver, então,
abertura de um espaço para a diferença – o que veicula a presença de alteridade.

Referências
DOLTO, F. Prefácio. In: MANNONI, M. A primeira entrevista em psicanálise. Tradução
Roberto Cortes Lacerda. Rio de Janeiro: Campus, 1981, p. 9-30.

FREUD, S. (1937) Construções em análise. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio
de Janeiro: Imago, 1975. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v. 23, p. 289-304.)

FREUD, S. (1930). O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM,
2010, p. 39-185.

FREUD, S. (1917) A fixação no trauma, o inconsciente. In: Conferencias introdutórias


à psicanalise. Trad. Sergio Tellaroli sob a revisão de Paulo Cezar de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014, v. 13, p. 364-381.

LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1988.

KRISTEVA, J. No princípio era o amor: psicanálise e fé. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SELIGMAN-SILVA, M. A cultura ou a sublime guerra entre amor e morte. In: FREUD,


S. O mal-estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 21-38.

382
REGIMES ALIMENTARES E SINDEMIAS – UM DESAFIO PARA A
ÉTICA CRISTÃ

Valério Guilherme Schaper1

Resumo: A recente pandemia de COVID-19 (11.03.20-05.05.23) assustou o mundo e abriu


muitos debates. Muitos destes debates focaram nos aspectos éticos da doença em várias
direções (área médica, vida em sociedade etc.). Boa parte do debate sugeria que a
humanidade passaria por uma transformação profunda. É possível que sim. Contudo,
defendemos nesta comunicação que esta transformação não estará completa, se não
incluirmos um debate sobre a relação entre as formas de produção agrícola e as dietas
alimentares. Trata-se de uma relação mutuamente implicativa que tem a força para deslocar
o debate sobre o cenário de doenças recorrentes (surtos, epidemias, pandemias) que tem
se abatido sobre as populações mundo afora. Abraça-se de saída o referencial teórico
proposto por Merril Singer (1990) que propõe que, quando se dá uma interação intensa
entre aspectos biológicos e sociais, deve-se falar de sindemia ao invés de pandemia. Nesta
comunicação defendemos a tese de que determinados modelos de produção agrícola,
decorrentes de certos padrões alimentares atrelados à economia agroindustrial,
contribuem decisivamente para destruição das barreiras ambientais naturais que contêm
as zoonoses. A destruição das barreiras e a ocupação das áreas para cultivo ou criação geram
ambientes favoráveis para que os patógenos, sobretudo viroses, acelerem
progressivamente os mecanismos de sua mutação, encontrando caminhos biológicos para
a contaminação humana. Esta perspectiva coloca para a teologia cristã um desafio
significativo, pois estabelece, neste caso particular, a incontornável urgência de uma ética
alimentar.
Palavras-chave: Modos de produção agrícola; Regimes Alimentares; Zoonoses; Teologia
Cristã; Ética.

Introdução: tive fome e sede (Mt 25)


Tradicionalmente, a ética cristã tem se ocupado com o tema da alimentação
sempre na perspectiva da fome. Por muito tempo esta preocupação conduzia a
reflexão para as ações individuais de caridade ou ações filantrópicas de espectro
mais coletivo. A questão era reduzida ao problema da hospitalidade, conforme
expressa em Mt 25.35: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de

1– Possui Bacharelado (1989) e doutorado em Teologia (1997). É professor dos cursos de graduação
e pós-graduação da Faculdades na área de ética. É líder do Núcleo de Pesquisa em Religião e Direitos
Humanos e do Núcleo de Estudos em Teologia e Ética Contemporânea do PPG da Faculdades EST.
Tem desenvolvido pesquisas na área de ética, publicado artigos e colaborado na organização de livros
em temáticas relacionadas com a ética. De 2013 a 2023 foi Coordenador do Instituto Sustentabilidade
América Latina e Caribe. Desde o início de 2023 é Diretor Geral Faculdades EST, São Leopoldo, RS.
valerio@est.edu.br

383
beber”. A questão costumava esgotar-se no tema da esmola na forma de alimento.
Enfim, esta ética estruturou uma piedade específica, que se esgotava na dispensação
bondosa de um prato de comida ou de um copo d’água.
Assim, a ética da esmola e a piedade filantrópica correspondente foram
colocadas em questão pela teologia latino-americana. Contudo, não obstante a
centralidade que a fome desempenhou na teologia latino-americana de libertação,
sua análise não foi além do caráter estrutural da dinâmica econômica que,
prisioneira de um modelo agrário submetido à lógica da industrialização, produz
recordes na produção de grãos e na de proteína animal, mas não consegue extinguir
a fome. Em grande medida esta questão foi traduzida na luta pela reforma agrária e
na luta pela posse da terra. Isto possibilitou debates novos e estes precisam ser
colocados em evidência. No entanto, o sistema de produção agrícola de alimentos
associada ao sistema econômico capitalista persiste. Em que se assenta este
sistema?

1. A construção do convencimento por meio de dois sofismas


O fato é que o sistema de produção agrícola tem se mantido e evitado o debate
direto das questões anteriormente mencionadas. Numa aproximação não podemos
deixar de considerar a força combinada de dois argumentos que tem a força dos
sofismas filosóficos: o desenvolvimento sustentável e a segurança alimentar. Vamos
examiná-los rapidamente.

1.1. O sofisma do desenvolvimento sustentável


Há uma longa história do percurso feito pela ideia de desenvolvimento na
tradição ocidental. Desenvolver e progredir são verbos que descrevem uma
mentalidade que se fixou no nosso imaginário desde o renascimento e que foi
consolidada com o iluminismo. A etapa mais recente da ideia de desenvolvimento e
de seus modelos de sociedade pode ser caracterizada pela noção de
“desenvolvimento sustentável”. Esta compreensão foi exposta em 1987, no relatório
elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas (ONU), que trazia o título “Nosso futuro comum”,
que passou a ser popularmente conhecido como Relatório Brundtland (NOSSO
FUTURO COMUM, 1988).

384
O relatório recuperava a noção de sustentabilidade (que já vinha do século
XVI) e associava-a ao desenvolvimento, propondo um tipo de dinâmica de
desenvolvimento capaz de atender as necessidades do presente sem comprometer
as necessidade e aspirações das gerações futuras. A concepção de desenvolvimento
sustentável estabelecia, assim, um novo modelo que rapidamente ganhou as mentes
e os corações. John Elkington aplicou a ideia ao mundo empresarial e a imagem
gráfica do “Triple Botton line” ou “Tripé da Sustentabilidade”, tornou-se onipresente
(ELKINGTON, 1997).
A ONU, a partir do seu relatório acima mencionado desenvolve a Agenda de
Desenvolvimento do Milênio (2000-2015) e, a partir de 2016, a Agenda 2030,
baseada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Em 2004, a terminologia
ESG (Enviromental – Social – Governance), aparece um relatório produzido pelo
Banco Mundial em parceria com o Placto Global da ONU, endossado por várias
instituições financeiras, manifestando a mesm crescente preocupação com o
desenvolvimento sustentável desde a perspectiva do mercado de capitais (WHO
CARES WINS, 2004).
Entretanto, vozes ainda mais radicais, entenderam que esta foi a elaboração
mais perversa da trajetória mistificadora da ideologia do desenvolvimento. A prévia
constatação de que o desenvolvimento era insustentável em função da finitude dos
recursos acalentava a ideia de que, em algum momento, ele seria vítima de suas
próprias contradições e encerraria sua carreira destrutiva. A nova elaboração
concedeu-lhe sobrevida.
A ideia de desenvolvimento sustentável assegurava uma eternidade ao
desenvolvimento, uma vez que a única trava de segurança – o limite dos recursos e
o nível da degradação do meio – passa para o controle exclusivo das iniciativas
empresariais e para as diversas instâncias científicas que criam indicadores e
aferem os danos ambientais. Desta forma, o tema do desenvolvimento foi reabilitado
e, batizado pela noção de sustentabilidade, ganhou autorização e verniz moral.
Trata-se, na verdade, de uma sobrevida em que o tema do desenvolvimento,
associado à ideia de progresso ininterrupto, ganha salvo-conduto nos debates a
respeito da crise alimentar que assola o mundo.

385
1.2. O sofisma da segurança alimentar
Segundo José Raimundo Souza Ribeiro (RIBEIRO, 2022), doutor em geografia
humana, o termo segurança alimentar surge no contexto das grandes guerras
mundiais. Segurança alimentar, terminologia militar, surge como a tática de usar os
alimentos como arma de guerra. A segurança alimentar passa a servir aos propósitos
das nações ricas e sua estratégia de estabelecer hegemonia global, usando os
alimentos como arma. Assim, a fome na periferia do capitalismo é atribuída à baixa
produtividade da agropecuária e o modelo agroindustrial é proposto como única
resposta possível.
A noção de segurança alimentar não problematiza as relações econômicas e
sociais presentes na dinâmica capitalista (ex.: a propriedade privada da terra). O
modelo agroindustrial propõe a adoção de um pacote tecnológico que prometia uma
“revolução verde”. Este modelo se consolidou, conjugando as trocas entre
produtores agropecuários e a indústria e estabelecendo o concurso de toda lógica
da financeirização na produção e comercialização de commodities (alimentos). Ela
acomoda uma concepção de estratégia militar em seu cerne. Segurança alimentar,
associando a gestão dos alimentos com a noção estratégica do alimento como arma
de cerco aos adversários, incorpora a lógica da guerra no enfrentamento entre os
países.

1.3. Dos sofismas aos regimes alimentares


Parece-nos especialmente promissora a metodologia do “regime alimentar”
proposta por Harriet Friedmann (em 1987) e desenvolvida posteriormente por
Friedmann e McMichael (1989). Segunda esta pesquisadora e este pesquisador, a
perspectiva metodológica do “regime alimentar” permite perceber “[...] o modo
como a cadeia alimentar interliga e transforma as diversas culturas mundiais pela
mercantilização” (MCMICHAEL, 2013, p. 13). Esta abordagem nos permite superar
os sofismas que ocultam a sustentação do sistema agrícola que produz fome e dano
ambiental.
A questão, então, não é apenas o alimento em si, mas é a “política das relações
alimentares” (MCMICHAEL, 2013, p. 14). Portanto, o propósito da abordagem dos
regimes alimentares é especificar as relações entre o comércio agroalimentar e a
ordem mundial do capital. Procurando interligar todas as dimensões, McMichael

386
insiste que a análise do regime alimentar “[...] não diz respeito apenas às relações
internacionais de produção e consumo, mas também ao papel da agricultura
comercial no processo de construção do Estado na era moderna” (MCMICHAEL,
2013, p. 17-18).
Assim, mediante o recurso de um método histórico-comparativo, os regimes
alimentares detalham “[...] a construção política das ordens agroalimentares que, ao
mesmo tempo, moldam e são moldadas pela dinâmica da acumulação específica.
Neste sentido, o regime alimentar e a história do capital podem ser compreendidos
como mutuamente condicionantes” (MCMICHAEL, 2013, p. 22). Segundo as
pesquisas de Harriet Friedmann e Philip McMichael podem ser identificados três
regimes alimentares entre os séculos XIX a XXI, que atuam de forma cumulativa, isto
é, cada regime subsequente integra, modificando, elementos dos regimes anteriores.

2. A sindemia nossa de cada dia


Há muito que sabemos que a forma como nomeamos as coisas determina a
nossa compreensão dos eventos que se dão na sociedade. Por esta razão, assumimos
aqui o referencial teórico proposto por Merril Singer (1996) que propõe que,
quando se dá uma interação intensa entre aspectos biológicos e sociais, deve-se falar
de sindemia ao invés de pandemia. Desde a perspectiva da noção de sindemia, a
COVID-19 não pode ser encarada isoladamente. Ela entrelaça-se com fatores sociais,
políticos e econômicos, como desigualdade social, distribuição de riqueza, acesso a
bens essenciais, como moradia e saneamento. Acrescentaríamos a esta abordagem
os regimes alimentares como apresentando anteriormente.
Então, nesta comunicação defendemos a tese de que determinados modelos
de produção agrícola, decorrentes de certos padrões ou regimes alimentares
atrelados à economia agroindustrial, contribuem decisivamente para destruição das
barreiras ambientais naturais que contêm as zoonoses.

2.1. Zoonoses: os seres que partilham conosco o planeta


As zoonoses descrevem um variado conjunto de patógenos (vírus, bactérias)
transmissíveis entre os animais e o ser humano, representando uma importante
ameaça à saúde e ao bem-estar da população (WALLACE, 2020). Entretanto, há
linhas naturais de defesa que impedem o livre trânsito desses patógenos: os

387
ambientes ecológicos naturalmente construídos e a diversidade genética das
espécies envolvidas. Na medida em que descontruímos os habitats naturais (que
funcionam como barreiras naturais para muitos vírus e bactérias) este cenário
modifica-se violentamente.

2.2. Destruição das barreiras ambientais naturais


A cadeia de contágio de todas as doenças infecciosas emergentes começa com
a destruição da natureza. À medida que a produção agropecuária de matriz
industrial avançou sobre as áreas úmidas (charcos, pântanos, etc.) muitas espécies
de aves perderam lugar de pousio em suas migrações. Elas buscam alimentos no que
agora são latifúndios de produção agroindustrial. O contato entre aves selvagens e
domésticas aumenta. Em 2003 isso detonou a gripe aviária. Não é difícil
imaginarmos o que significa o avanço da agroindústria no Pantanal e na Região Pan-
amazônica (um dos maiores repositórios de coronavírus do planeta).

2.3. Destruição das barreiras genéticas


Além disso, o sistema de criação de animais para consumo humano em
modelo industrial cria um outro cenário: as condições ideais para que os vírus
exercitem suas mutações até encontrarem o caminho para infectar humanos. As
instalações de criação e engorda da pecuária industrial criaram as condições ideais
para que os patógenos testem caminhos evolutivos que permita o aumento de sua
virulência e patogenicidade.
No modelo tradicional a reprodução dos animais se dava in loco. Esta
ancestral prática pecuária ampliava a diversidade genética e imunológica dos
animais. Os atuais complexos agroindustriais, com sua tecnologia avançada,
estabeleceram, para ganhos de escala, o “monocultivo genético” que é uma espécie
de bomba-relógio microbiológica. Milhares de animais, geneticamente similares, são
uma verdadeiro plataforma de testes para o transbordamento de doenças
zoonóticas para os seres humanos. O Global Virome Project estima que há mais de 1
milhão de vírus desconhecidos circulando em animais selvagens. Metade deles tem
potencial para causar zoonoses.

388
3. Teologizando: origens da dissociação entre natureza e ser humano
A trilha para o desenvolvimento secularizado começou na teologia cristã. Em
1967, um professor universitário de história, chamado Lynn White Jr., escreveu um
artigo intitulado “As raízes históricas da nossa crise ecológica”. Nesse artigo, muito
citado, ele dizia que a matriz do nosso comportamento em relação à natureza foi
construída a partir da teologia cristã.
A visão dessacralizadora que a teologia cristã imprimiu no pensamento
ocidental explica a forma objetiva (e predatória) com que lidamos com a natureza.
Essa leitura já havia sido detalhada exaustivamente na obra de um teólogo
protestante, Friedrich Gogarten, no seu livro “Fatalidade e esperança da
modernidade” de 1953. Gogarten distingue entre secularização, como dinâmica
positiva e pertinente à teologia cristã, e secularismo como sendo uma distorção
daquela.
Entretanto, esta mudança de perspectiva foi se construindo na teologia de
forma muito clara desde a antiguidade. A teologia antiga, desde Agostinho pelo
menos, dizia que Deus havia escrito dois livros: o da escritura e o da natureza. Bacon
dava a entender que o caminho para o novo domínio sobre a natureza passava pelo
processo de sujeição à leis da própria natureza. Esta “obediência” às leis (as da
matemática) era, na verdade, o subterfúgio científico sobre o qual deveria se apoiar
um impiedoso processo técnico de expropriação da natureza.
O fim dos temores diante de uma natureza desconhecida só ocorreria por
uma conjugação sem precedentes de saber e poder, mediada por violentos
procedimentos técnico-científicos que confluiriam no complexo industrial-
corporativo-monopolista. No renascimento, F. Bacon (1561-1626) e G. Galilei
(1564-1642) já haviam sinalizado este caminho quando afirmaram que o que estava
escrito no livro da natureza só poderia ser decifrado a partir do uso dos códigos
matemáticos. A apropriação das ciências era fundamental para que o ser humano
recuperasse seu perdido direito adquirido sobre a natureza:
Que o gênero humano recupere os seus direitos sobre a natureza,
direitos que lhe competem por dotação divina. Restitua-se ao
homem este poder e seja o seu exercício guiado por uma razão reta
e pela verdadeira religião (BACON, 1979, Livro II, Aforismo LII).

389
Considerações finais: uma revisão da teologia
Lynn White Jr. naquele seu famoso artigo de 1967, “As raízes históricas da
nossa crise ecológica”, fez uma afirmação bombástica que merece atenção: “O
cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo já conheceu” (WHITE,
2003). Esta afirmação somada ao recente debate sobre o antropoceno faz crer que
o antropocentrismo é um urgente obstáculo que a teologia cristã precisa vencer.
É urgente ressignificar a noção de “imago dei”. Não somos imagem e
semelhança de um Deus indivíduo, branco e masculino, mas de um Deus que se
revela como Trindade. Sua natureza é relacional: as pessoas da Trindade entregam-
se umas às outras de forma plena e contínua (perichoresis). Mais do que isso: a
Trindade entrega-se integralmente e dinamicamente à sua criação, sustentando a
vida e promovendo diversidade (Gn 1.2, Rm 8.18-30, Jo.1.3)
mundo como criação não está destinado à destruição, mas Deus o criou para
ser habitado. Afinal, o mundo é boa criação divina. As falas calamitosas sobre a
questão ambiental parecem flertar com a ideia de, talvez, “seja tarde demais”. A
visão apocalíptica sobre as calamidades finais não condiz com a promessa e a
esperança que animam a fé cristã.
A palavra criadora de Deus está sendo pronunciada sobre mundo de forma
contínua. A teologia cristã precisa conjugar de forma mais decidida a criação
(protologia) com a ultimação (escatologia). Não se trata de fim, pois a escatologia é
o futuro a criação. Trata-se da obra salvadora de Deus (soteriologia). A criação é o
primeiro ato salvífico de Deus. Esta obra salvadora vem ao nosso encontro e
dinamiza nossa experiência cotidiana.
Embora tenha criticado duramente a tradição cristã, é próprio White que
sugere a solução ao indicar que a palavra final cabe à teologia:
Nosso comportamento ecológico depende de nossas ideias da
relação homem-natureza. Nem mais ciência e nem mais tecnologia
vão nos livrar da atual crise ecológica até que encontremos uma
nova religião, ou reconsideremos nossos antigos valores religiosos.
[...]. Se as raízes da nossa preocupação ecológica são basicamente
religiosas, o remédio também deve ser essencialmente religioso,
queiramos ou não (WHITE, 2003).

390
Referências
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comum. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1988.

DAVIS, Mike. O monstro bate à nossa porta. A ameaça global da gripe aviária. São
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Business. 1997.

FRESSATO, Soleni B; NÓVOA, Jorge (Orgs.). Soou o alarme. A crise do capitalismo


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bio-social context. Med. Anthropol. Q. 2003;17(4):423–441.

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WHITE JR., Lynn. As raízes históricas da nossa crise ecológica. In: SCHAEFFER,
Francis A. Poluição e a morte do homem. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, Anexo.

391
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA NO MAGISTÉRIO DO PAPA
FRANCISCO: FÉ, AMOR E VERDADE

Vilk Junio Araújo de Lima1

Resumo: As questões de ordem antropológica no magistério do Papa Francisco se refletem


a partir da sua primeira Encíclica Lumen Fidei. Ele entende que a fé tem um modo próprio
de conhecer, pois no coração do ser humano se entrecruzam todas as dimensões: o corpo e
o espírito; a interioridade da pessoa e sua abertura para o mundo, além de outros
predicados, como inteligência, vontade e afetividade. Assim, o coração é o “lugar” no qual o
ser humano se abre à verdade e ao amor. Essa pesquisa bibliográfica, no que lhe concerne,
tratará essa temática em três tópicos: fé e verdade; abertura para o amor e abertura para a
verdade. Compreendendo que o sujeito se torna um com a fé, a medida que age com amor,
e leva uma luz. Portanto, a Igreja deve inicialmente na sua pregação respeitosa e amável,
promover uma partilha com o outro, escutando suas alegrias, esperanças, preocupações, e
ouvindo outras coisas que enchem seu coração para num segundo momento apresentar a
Palavra – o amor de Deus que se encarnou, e oferece a todos amizade e salvação. Assim, o
interlocutor entenderá que foi ouvido e compreendido e que sua situação foi colocada nas
mãos de Deus, além de reconhecer que Ele fala realmente a sua vida.
Palavras-chave: Fé; Amor; Verdade; Papa Francisco.

Introdução
O pensamento do Romano Pontífice, o Papa Francisco tornou-se público
para a Igreja universal, mas seus fiéis na Argentina, já conheciam seu ímpeto
reformador que nasce diretamente da fonte do Evangelho, sem se tornar impositivo.
Para tratar sobre as origens do pensamento do Papa, muitos já se aventuraram, seja
dentro ou fora da América Latina, como o teólogo Scannone, com a “clássica”:
Teologia do Povo e, o italiano Fumagalli com a Teologia moral do Papa Francisco. De
qualquer forma, abordar o axioma é, sem dúvida, um retorno a Jesus.
Na primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium foi possível verificar
seu estilo teológico, de uma empolgante evangelização. A alegria do Evangelho
enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus, afirmou na
primeira página da EG n. 01. Francisco convida a todos os cristãos a experimentarem
a Palavra de Deus, que é multifacetada, abrangente em todas as dimensões da
pessoa, preenchendo os espaços mais obscuros da existência e do espírito, ao ponto
de que aqueles que a acolhem sejam libertos do pecado.

1Graduado em Filosofia e Teologia pela Faculdade Diocesano São José – FADISI– AC. E Mestrado em
andamento em Teologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Email:
vilkjunio@gmail.com.

392
Quando se pensa na antropologia do Papa Francisco, se pode encontrá-la
especialmente na Lumen Fidei e na Evangelii Gaudium. Nesse breve texto da Lumen
Fidei, a fé é colocada com o amor, pois é no coração do ser humano onde se
entrecruzam as dimensões e se encontram as verdades. Esse texto, por sua vez,
apresentará alguns aspectos dessa antropologia, sobretudo na Lumen Fidei.

1. Aspectos gerais sobre Antropologia do Papa Francisco


O Papa Francisco não participou in loco do Concílio Vaticano II, como Bento
XVI e, tantos outros pontífices que antes de assumirem o ministério petrino, estavam
envolvidos em eventos marcantes em suas épocas, como sínodos e concílios. Não
obstante, Francisco é filho desse grande Pentecostes de novidades para toda a orbe
eclesial, que continua a suscitar verdades ao longo do tempo para dentro e fora da
Igreja aos homens e mulheres de hoje.
Dentre os documentos mais relevantes do Concílio se destaca a Gaudium et
Spes, hoje frequentemente suscitada no magistério de Francisco. Devido ao novo
paradigma e o método inaugurado por essa Constituição Pastoral, a Igreja pôde
experimentar compreensões da verdade não descobertas no tempo, sem perder de
vista a candura da veracidade do dogma e logicamente na doutrina, a partir do
método ver-julgar-agir (cf. SCANONE, 2019). De tal modo que verdades descobertas
fora do “centro teológico europeu” eram demonstradas como tendo total condição
de servir para outras realidades, a depender do caso (cf. AMADO, 2018, p. 67).
Alinhado com a Gaudium Et Spes, o Papa Francisco jamais desconsidera a
dimensão histórica do indivíduo. Na Amoris Laetitia, ele retomou a lei da
gradualidade presente na Familiaris Consortio, para recordar à Igreja, a necessidade
de observar as distintas realidades das famílias e especialmente dos casais de novas
uniões, por vezes, reféns da própria história e por isso, não em “total condição” de
assumir as obrigações relativas ao matrimônio (cf. FUMAGALLI, 2018).
Ademais, na Evangelii Gaudium, escrito programático do Santo Padre, está
contida sua antropologia teológica, indicada desde as primeiras linhas ao afirmar:
“A alegria do Evangelho” e apontar para um anúncio “no mundo atual” (EG n. 01).
Como se sabe, ao se remeter ao Evangelho, Francisco não se refere exclusivamente
a um texto do NT, entretanto à Palavra de Deus, revelada desde o AT aos profetas.
Essa Palavra, segundo Francisco, definirá a vida das pessoas no mundo presente, ou

393
seja, na história. Tal afirmação se remete diretamente à Gaudium et Spes, da qual faz
uma descrição do ser humano no mundo atual, perpassando pelos ordenamentos
sociais, psicológicos, morais e religiosos (cf. HÜNERMANN, 2018, p. 27).
A constituição pastoral aborda os desequilíbrios do mundo atual e
apresenta as aspirações mais gerais do ser humano, além dos seus questionamentos
mais profundos nos três primeiros capítulos (GS n. 1-38) e, ao final deles, está
presente um escrito cristológico, o qual reza: na “verdade o mistério do homem só
no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro
homem, era efetivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor” (GS n. 15).
A GS ao referir-se sobre a dimensão antropológica afirma, categoricamente,
que, sem o Verbo, o homem não se compreende como tal, em primeiro lugar como
criatura, entendida na sua dimensão natural e, em segundo lugar, como pessoa, no
sentido ético. A Exortação coloca Deus como uma espécie de chave de leitura para
própria vida na sua totalidade. Isto é possível porque o predicado que acompanha o
Verbo é encarnado. Isto é, decodificado ao modo humano, já que assumiu a carne.
Portanto, é na história e na cultura onde ocorrem a revelação de Deus, por meios
humanos.
É importante esclarecer que quando se fala de humanidade corre-se o risco
de misturar o que é humano com os elementos da cultura, pois nunca existiu uma
pessoa isolada da cultura. Mesmo os caçadores nômades em vários cantos da terra,
por pinturas e outros meios deixaram claros sinais de formas de cultura. Dito isso,
se nota a existência de elementos comuns nas diversas civilizações ao ponto de
afirmar categoricamente o presente do “minimamente humano” em cada uma delas.
Três elementos são anteriores a toda espécie de cultura e civilização. O
primeiro deles: todos os seres humanos são feitos de carne e osso. Isso leva a crer,
que onde faltam esses dois componentes não pode haver ser humano. O segundo:
todos os seres humanos são seres sociais, portanto, a alteridade o constitui. E o
terceiro: todos são seres individuais, isso mostra a condição pessoal que inclui a
capacidade de decidir, ou seja, a liberdade. Esses três pontos parecem não poder
faltar no ser humano. Assim, esses três, constituem o minimamente humano (cf.
CASTILHO, 2015, p. 282-283).
O mistério da encarnação é fundamental para o conhecimento de Deus, pois,
partir desse evento, Deus começa ser diferente para a humanidade porque se

394
encarnou. Aqui Ele “se funde e se confunde com o humano”, ao ponto de já não ser
possível nem entender, nem ter acesso a Deus prescindindo do humano, e menos
ainda entrando em conflito com o humano, com tudo o que é plenamente humano e,
portanto, tudo o que torna o ser humano feliz e realizado (cf. CASTILHO, 2016, p. 28-
29).
Essa relação entre cristologia e antropologia, foi esclarecida também por K.
Rahner em diversos textos, compreendendo que a cristologia é o início e o fim da
antropologia. É o início uma vez que, os seres humanos existem porque o Filho de
Deus devia existir feito homem. Na criação Deus estabeleceu a “gramática” para a
sua possível automanifestação, daí a definição de homem. Essa definição é dada
conforme a encarnação, que é radicalmente cristocêntrica, portanto, a cristologia
não é apenas o começo, mas o fim da antropologia (cf. RAHNER apud LADARIA,
2016, p. 59).
O Papa Francisco, nesse sentido, na Carta Encíclica Lumem Fidei ao referir-
se ao Evangelho, assegura que a luz da fé, tem uma característica única, capaz de
iluminar toda a existência do ser humano. Essa fé, nascerá do encontro com Deus,
que nos chama a revelar seu amor. Um amor que nos antecede, e sobre o qual
podemos nos apoiar. Essa fé recebida de Deus como dom sobrenatural é como uma
luz para o caminho, colaborando no discernimento dos passos (LF n. 4). Assim, é no
encontro com Jesus, onde se nota a sua palavra previdente para a realidade histórica
de cada ser humano, no qual resplandece o sentido, e a plenitude do ser-no-mundo,
um sentido contido em cada pessoa, que não se pode evitar (cf. HÜNERMANN, 2018,
p. 30). Deste modo, Francisco não se escusa em afirmar que: a “alegria do Evangelho
enche o coração e a vida inteira dos que se encontram com Jesus. [...] Com Jesus
Cristo, renasce sem cessar a alegria. Alegria que se renova e se comunica (EG n. 01).

2. Fé, amor e verdade


Ao observar os textos magisteriais do Papa Francisco, sobre o tema da
Antropologia, se encontra grande referência na Lumen Fidei. Em especial o segundo
capítulo com o título: “se não credes não compreendereis”, a partir da perícope (Is
7,9). Lá está o tema sobre fé e verdade; conhecimento da verdade e amor; fé como
escuta e visão; diálogo entre fé e razão; fé e busca de Deus e fé e teologia.

395
Após uma breve introdução sobre a fé, como uma luz a ser descoberta, o Papa
faz, no primeiro capítulo, um resgate histórico dos grandes momentos de fé,
começando em Abraão, o Pai na fé, e concluindo na forma eclesial de fé. Para ele a fé
poderá colaborar no entendimento da verdade, com base no seu âmbito de
conhecimento. Segundo São Paulo, esse momento ocorre no coração, uma vez que
“ele é o centro do homem, onde se entrecruzam todas as suas dimensões: o corpo e
o espírito, a interioridade da pessoa, e a sua abertura ao mundo e aos outros, a
inteligência, a vontade a afetividade” (LF, n°26).
O coração entendido como centro do ser humano, onde se agrupam todas as
dimensões, demostram as características do ser-aí-humano, que fundam essas
dimensões e onde se encontram sem se tornarem outra coisa, são como linhas de
um ponto. Por isso, ocorre no coração, pois ele tem essa capacidade fundamental de
manter unidas as dimensões, isto é, encaminhá-las a unidade cooperativa, pois é
nesse lugar, onde o ser humano se abre à verdade e ao amor (cf. HÜNERMANN, 2018,
p. 64).
Para Francisco, o amor leva a uma compreensão da verdade, entendendo que
é justamente ele que abre os olhos humanos para enxergar a realidade inteira, de
maneira nova, em união com a pessoa amada. Ou seja, é um modo relacional de ver
o mundo, tratando-se de conhecimento partilhado, “visão na visão do outro, e visão
comum sobre todas as coisas”. Para ele, essa descoberta do amor como fonte de
conhecimento como parte da experiência primordial do ser humano, está
categorizada na sua compreensão de fé, por exemplo, Israel experimentando o amor
de Deus, com o qual o elegeu, chega entender-se como povo, como unidade
designada por Deus (cf. LF 27-28).
Se se passa a outros textos do Papa nesse mesmo entendimento, nota-se
outros pontos a serem observados segundo um contexto mais negativo, na
apresentação das dores, imperfeições, injustiças, que vivem os seres humanos. E
despontam na descrição dos desafios aos quais o Evangelho convida e encoraja, se
destacando os exemplos do cotidiano, que os fiéis realizam e implementam-no como
luz e alegria (cf. EG n° 76-109). Assim sendo, pode se entender a fé à medida que
está ligada ao amor, já que este traz uma luz (cf. LF, n° 26). “Aqui a própria fé se torna
um sujeito que age com amor, que leva uma luz. Não é um Eu ou um Tu que acredita

396
em um ‘isso’ ou em um ‘aquilo’ que o ama. A fé é totalmente objetiva” (HÜNERMANN,
2018, p. 65).
A luz do Evangelho ainda permeia as relações nas quais se comunica a fé e
vem transmitindo o Evangelho. O ideal cristão sempre convida a superar uma
atitude de viver na defensiva, imposta muitas vezes pelo mundo atual. O Evangelho,
por sua vez, convida a acolher o outro, e correr o risco do encontro, com sua
presença física que interpela com sofrimentos e reivindicações, além da sua alegria
contagiosa. A fé verdadeira no filho encarnado é inseparável no dom de si mesmo,
no pertencimento à comunidade, no serviço e no encontro com a carne do outro (cf.
EG n° 88).
Nesse diálogo, se refere ao outro, como um ser individual, um Tu. E nesse
espaço dialógico da confiança se permite abrir o próprio coração, momento em que
se deve propor ao outro a fé em Deus Pai, que ama em Jesus (cf. HÜNERMANN, 2018,
p. 66). Segundo o Papa, “nessa pregação respeitosa se inicia com um diálogo pessoal,
partilhando suas alegrias, esperanças e preocupações [...] e muitas coisas que
enchem o coração. Só depois desta conversa é que pode apresentar a Palavra” (EG
n°128). Mediante esse encontro, deve anunciar a esse Tu que: “o amor pessoal de
Deus que se fez homem, entregou-se a si mesmo por nós e vivo, oferece a sua
salvação e a sua amizade” (Ibidem).
É deste modo que o interlocutor se sentirá: “que foi ouvido e interpretado,
que sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a Palavra de Deus
fala realmente à sua própria vida” (Ibidem). Nas palavras do Papa Francisco, esse
momento é uma: “fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a grandeza
sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano, que sabe tolerar
as moléstias da convivência, agarrando-se ao amor de Deus, que sabe abrir o coração
ao amor divino [...] (Ibidem, n° 92).

Considerações finais
O pensamento do Papa Francisco inspirado na GS tem estimulado as
realidades humanas, a partir do ver-jugar-agir, uma vez que elas não podem ser
desconsideradas. Seu magistério revela um claro retorno ao Evangelho, entendido
como Palavra de Deus, que enche o coração e a vida do ser humano.

397
O Evangelho, embora seja divino, é plenamente humano, pois se deu no
tempo e no espaço, na pessoa de Jesus de Nazaré. Portanto, são palavras de um Deus
que se fez humano para os seres humanos, de carne, osso, seres sociais e livres. De
modo que, a fé derivada da Palavra é capaz de iluminar todas às dimensões
antropológicas.
A fé nasce no coração, uma vez que ele é o centro do ser humano, onde se
entrecruzam as dimensões: o corpo, espírito, interioridade, espiritualidade,
abertura, vontade e afetividade. A fé verdadeira no Deus encarnado, é inseparável
do dom de si mesmo, no pertencimento à comunidade, no serviço e no encontro com
a carne do outro.

Referências
AMADO D. Joel P. O Documento de Aparecida e sua proposta para toda a Igreja. In.
ATeo, Rio de Janeiro, v. 22, n. 58, p. 65-90, jan./abr.2018 artigo. PUC-RJ. 2018.

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CASTILHO, José M. A Ética de Cristo. São Paulo: Loyola, 2016.

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Paulo: Paulinas, 2014.

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FUMAGALLI, Aristides. Caminhar no Amor e na Alegria. A teologia Moral do Papa


Francisco. Prior Velho: Paulinas, 2018.

HÜNERMANN, Peter. Homens segundo Cristo hoje: A antropologia do Papa Francisco.


Brasília: Edições CNBB, 2018.

LADARIA, Luis F. Introdução à Antropologia Teológica 7. ed. São Paulo: Loyola, 2016.

LESEGRETAIN, Claire. Lumen Fidei. “Uma fé mais itinerante que doutrinal”.


Entrevista com Christoph Théobald. UNISINOS.
(https://www.ihu.unisinos.br/categorias/171-notícias-2013/521865). Acesso: 13
julho 2013.

SCANNONE, Juan Carlos. A teologia do Povo: raízes teológicas do Papa Francisco. São
Paulo: Paulinas, 2019.

398
ST 6 ARTE

ST 6 – Interfaces e discursos no (con)texto da cosmovisão, direitos humanos,


formação e ecologia

399
Gleyds Silva Domingues (FABAPAR)
Kátia Silva Cunha (UFPE)
Jacqueline Ziroldo Dolghie (FTSA)
Osvaldo Luiz Ribeiro (UNIDA)
Reginaldo Pereira de Moraes (FABAPAR)

A proposta da Sessão Temática nasce da possibilidade de integrar diferentes campos


do saber oriundos das ciências sociais e humanas, que em diálogo possam se
debruçar não apenas sobre os diferentes olhares, mas, sobretudo, a forma que são
tecidos os discursos sobre cosmovisões, formação humana e ecologia. Por isso que
a compreensão acerca do objeto em análise precisa ter uma visão de natureza
interdisciplinar, a qual propicia uma perspectiva transversal sobre possíveis temas
que possam contribuir com o debate e a investigação direcionados às questões
atinentes às visões e leituras de mundo presentes no contexto social; e que
impactam diretamente nos posicionamentos assumidos sobre o processo de eleição
da lente de mundo referente à formação humana, consciência ecológica e
desenvolvimento sustentável. A finalidade é que se possa ter uma explicitação sobre
a temática advinda de reflexões e pesquisas e que somadas aos estudos da Teologia
possam oferecer possibilidades de interlocução entre as áreas do conhecimento.
Reconhece-se, que por sua abrangência, a necessidade de limitação dos trabalhos a
serem recepcionados, por isso, essa Sessão Temática se debruça sobre as seguintes
interfaces: perspectivas paradigmáticas; linguagens discursivas; propostas teórico-
práticas; contextos formativos; e cultura, educação, ensino eclesiástico, história,
política e direito. A partir dos trabalhos espera-se contribuir com o avanço das
discussões e quiçá trazer novas proposições ao aprofundamento do objeto em
evidência.

400
UMA INTERFACE ENTRE O PENSAMENTO PÓS-MODERNO E A
COSMOVISÃO CRISTÃ

Franklin Wylliam Bittencourt Melo1

Resumo: Os adeptos do Cristianismo enfrentam o desafio de entender as demandas e os


pensamentos do seu tempo. O século XXI é descrito como sendo o tempo da pós-
modernidade. Por ser algo novo, torna-se difícil compreender com clareza a mentalidade e
as ênfases defendidas. Essa comunicação visa explanar sobre as principais características
da pós-modernidade, na tentativa de criar um diálogo com a cosmovisão cristã. Dessa
maneira, os cristãos podem entender as tendências do mundo em que estão imersos,
mantendo um diálogo mais compreensível no ato de apresentar a sua própria cosmovisão
cristã. Ressalta-se que, enquanto a modernidade tinha como grande característica a ênfase
na razão, a pós-modernidade se caracteriza pela recusa de metanarrativas, pela diversidade,
pela pluralidade e pela liquidez. A “cosmovisão” pós-moderna é justamente a recusa de
cosmovisões, mas, mesmo sem querer, acaba sendo também uma cosmovisão, pois,
defende-se a não ausência de uma cosmovisão. Além disso, a diversidade / pluralidade é
muito importante para o pensamento pós-moderno, pois este tem grande rejeição com a
ideia de unidade. A liquidez é mais um aspecto do pensamento pós-moderno, tudo se torna
fluído e sem concretude, até mesmo as relações e as identidades. O Cristianismo, por sua
vez, é formado por uma comunidade presente na diversidade, porém, ele agrega um
conteúdo comum, ou seja, uma metanarrativa que atribui sentido a sua existência.
Palavras-chave: Pós-modernidade; Cosmovisão; Cristianismo.

Introdução
O Cristianismo, assim como as demais religiões, tem a necessidade de
dialogar com os desafios de cada tempo. Cada século traz consigo os seus próprios
dilemas, tensões, desafios e tendencias. Desde o início da fé cristã, ela teve que lidar,
interagir e respostar a diversos pensamentos e cosmovisões ao longo dos séculos.
A era presente é chamada de pós-modernidade. Sendo o Cristianismo a maior
religião do mundo em número de adeptos com cerca de aproximadamente 2,2
bilhões de seguidores considerando todas as diversas denominações. Por isso, os
cristãos se veem diante do desafio de compreender o seu tempo e saber interagir
com ele.

1Mestrando em Teologia na Faculdade Batista Brasileira. Especialista em Educação Clássica pela


Faculdade Serra da Mesa.

401
1. Pós-modernidade
A Pós-modernidade é caracterizada por um rompimento com os valores e
conceitos da modernidade. A modernidade considerava em alta estima a razão, e
compreendia que a razão era o meio pelo qual a verdade seria estabelecida e o
mundo iria progredir. Grenz descreve a modernidade (GRENZ, 2008, p. 13 e 14):
Bebendo na fonte da Renascença, o Iluminismo elevou o indivíduo
ao centro do mundo. René Descartes lançou as bases filosóficas do
edifício moderno ao privilegiar o papel da dúvida, concluindo daí
que a existência do ser pensante é a primeira verdade que não pode
ser negada pela dúvida – um princípio formulado por meio de sua
apropriação da máxima de Agostinho Cogito ergo sum [Penso, logo
existo]. Descartes, portanto, definiu a natureza humana como uma
substância pensante e a pessoa humana como um sujeito racional
autônomo. Posteriormente, Isaac Newton deu à modernidade seu
arcabouço científico ao descrever o mundo físico como uma
máquina cujas leis e regularidade podiam ser aprendida pela mente
humana. O ser humano moderno pode muito bem ser descrito
como a substância autônoma e racional de descartes, cujo hábitat é
o mundo mecanicista de Newton.

Nessa perspectiva, a modernidade seria uma metarrativa, isto é, discurso que


visa explicar as grandes questões da humanidade, como a origem da humanidade, o
propósito, como se conhece a verdade etc. A epistemologia da modernidade é
fundamentalmente a razão. Em contraste com a modernidade, a pós-modernidade
enfatiza a desconstrução de metanarrativas, segundo Lyotard: “Simplificando ao
extremo, considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos”
(LYOTARD, 2009. p. 16). Portanto, a pós-modernidade surge com o sentimento de
incredulidade e rejeição diante dos grandes discursos sobre o mundo e a existência.
Além disso, a pós-modernidade é conhecida pela fluidez dos valores. Convicções e
valores que eram sólidos, se tornam líquidos. Essa analogia comunica a rigidez e a
firmeza do sólido em contraste com a característica fluída do líquido, que se adapta
a qualquer forma, que se encaixa em qualquer padrão, que muda com facilidade.
Bauman descreve dessa maneira (BAUMAN, 2001, p. 84):
No mundo pós-moderno todas as distinções se tornam fluidas, os
limites se dissolvem, e tudo pode muito bem parecer seu contrário;
a ironia se torna a sensação perpétua de que as coisas poderiam ser
um tanto diferentes, ainda que nunca fundamental ou radicalmente
diferentes.

Além da recusa das metanarrativas e da liquidez, outra característica forte da


pós-modernidade é a diversidade. Há uma grande ênfase na diversidade e um

402
desprezo pela unidade e pelos absolutos. A superestima pela diversidade se
relaciona bem com a recusa das metanarrativas, pois para o pensamento pós-
moderno, a verdade é apenas um discurso sobre o mundo em meio a vários
discursos, a verdade é diversa. Grenz explica (GRENZ, 2008, p. 20):
A obra de Derrida, Foucault e Rorty reflete o que parece ter se
tornado o axioma central da filosofia pós-moderna: “Tudo se
resume à diferença”. Essa visão bane o “uni” de “universo” que
buscava o projeto do Iluminismo. Ela abandona a procura por um
significado unificado da realidade objetiva. Segundo essa visão, o
mundo não possui centro algum, somente pontos de vista e
perspectivas distintas. Na verdade, até mesmo o conceito de
“mundo” pressupõe uma unidade objetiva ou um todo coerente que
não existe “lá fora”. No fim das contas, o mundo pós-moderno não
passa de um palco onde assiste a um “duelo de textos”.

Existem diversos fatores que podem contribuir para essa grande ênfase na
diversidade. Um deles é a velocidade das informações e dos transportes
aproximando as pessoas do mundo inteiro. Dessa maneira, diversas culturas,
pensamentos, visões de mundo entram em diálogo e as diferenças se tornam
evidentes. Esse fenômeno pode ser chamado de aldeia global, onde o mundo se torna
como uma aldeia onde as pessoas são próximas (GRENZ, 2008, p. 35):
O advento da sociedade da informação pós-industrial como
sucessora da sociedade industrial moderna contribui para com o
fundamento do espírito pós-moderno. A vida na aldeia global imbui
seus cidadãos de uma consciência vívida da diversidade cultural de
nosso planeta – uma consciência que parece estar nos encorajando
a adotar uma nova atitude mental pluralista. Essa nova
mentalidade compreende mais do que simplesmente a tolerância
por outras práticas e pontos de vista: ela afirma e celebra a
diversidade. A celebração da diversidade cultural, por sua vez,
requer um novo estilo – o ecletismo – o estilo da pós-modernidade.

Como resultado de todas essas características, a Pós-modernidade prova


desesperança e pessimismo. A modernidade colocou suas esperanças de um mundo
melhor na razão. Porém as guerras mundiais e os grandes genocídios da história
mostraram que a razão não é suficiente para construir um futuro melhor. A
desesperança é uma reação possível ao fracasso, neste caso, da modernidade. A Pós-
modernidade não tem valores sólidos para oferecer esperança, além a incredulidade
de diante de metanarrativas promove uma falta de perspectivas e expectativas. Por
fim, o resulto é o pessimismo. Grenz afirma (GRENZ, 2008. p. 27):
A consciência pós-moderna abandonou a crença iluminista do
progresso inevitável. Os pós-modernos não deram continuidade ao

403
otimismo que caracterizou as gerações precedentes. Pelo contrário,
demonstram um pessimismo corrosivo. Pela primeira vez na
história recente, a geração emergente não compartilha da
convicção de seus pais de que o mundo está se tornando um lugar
melhor para viver. Dos buracos cada vez maiores na camada de
ozônio à violência entre adolescentes, esta geração observa nossos
problemas crescerem sem cessar. Eles não estão mais convencidos
de que a engenhosidade humana será capaz de resolver esses
conflitos tão grandes ou de que seu padrão de vida será mais
elevado do que o de seus pais.

Portanto, observa-se que a era presente, intitulada de Pós-modernidade,


apresenta um vazio de esperança e um desanimo oriundo do pessimismo. Pessoas
que buscam o sentido da vida, não o encontrarão na Pós-modernidade. Assim, o
indivíduo continuará procurando algo que faça sentido e motive a viver, algo que
comunica esperança. Diante dessa necessidade o Cristianismo é apresentado como
uma alternativa que dialoga com essas lacunas tentando trazer sentido e esperança.

2. Cosmovisão cristã
Como o Cristianismo pode conseguir dialogar diante do desafio da pós-
modernidade que carrega o sentimento de incredulidade diante das
metanarrativas? A fé cristã é uma cosmovisão e uma metanarrativa. Sire traz o
seguinte conceito de cosmovisão (SIRE, 2018, p. 26):
Cosmovisão é o compromisso, a orientação fundamental do
coração que pode ser expresso em uma história ou um conjunto de
pressupostos (suposições que podem ser verdadeiras, verdadeiras
em parte ou de todo falsas) que mantemos (de forma consciente ou
subconsciente, consistente ou inconsistente) sobre a constituição
básica da realidade e que fornece o fundamento sobre o qual
vivemos, nos movemos e existimos.

O Cristianismo comunica valores sólidos, não líquidos. Faz afirmações


categóricas sobre Deus, homem, pecado, salvação, condenação, julgamento final,
Jesus Cristo, eternidade, família, universo, ética etc. Ao mesmo tempo que a Pós-
modernidade cultiva o sentimento de incredulidade diante de verdades absolutas, o
Cristianismo, assim como as demais religiões, reivindica verdades absolutas. O
Cristianismo surgiu em um mundo plural do século I, afirmando ter uma verdade
exclusiva, afirmando que a verdade é o próprio Jesus Cristo (Jo 14.6). Portanto, Deus
é a verdade, é aquele que determina a verdade e aquele que possibilita o
conhecimento da verdade. Sire afirma (SIRE, 2018, p. 44).

404
O fundamento do conhecimento humano é o caráter de Deus como
Criador. Somos feitos à sua imagem (Gn 1.27). Como ele é o
conhecedor de todas as coisas, também podemos as vezes ser
conhecedores sagazes de algumas coisas. [...] O Verbo (em grego
Logos, de onde vem nossa palavra “lógica” é eterno, um aspecto do
próprio Deus. Ou seja, a logicidade, inteligência, racionalidade e o
significado são inerentes a Deus. A partir dessa inteligência o
mundo, o universo, veio a existir. Portanto, por causa dessa fonte o
universo conta com estrutura, ordem e significado.

É evidente essa grande diferença: a pós-modernidade recusa e relativiza a


verdade, o Cristianismo afirma crer na verdade que é Jesus Cristo. Porém, há
algumas semelhanças. Uma delas é a aceitação da diversidade, entretanto as
compreensões sobre diversidade da pós-modernidade e da fé cristã são diferentes.
Para a pós-modernidade, diversidade é a ênfase do diferente e a negação da unidade
e da verdade. Para o Cristianismo, a diversidade existe ao lado da unidade e da
verdade. O Cristianismo reconhece a diversidade da criação de Deus inclusive
reconhece a diversidade e a unidade em Deus mesmo. A maior parte do Cristianismo
acredita na doutrina da Trindade, que é a crença que Deus é um só, mas que subsiste
em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto, dentro dessa compreensão, o
próprio Deus é o fundamento da diversidade e da unidade.
Outra diferença é que, enquanto a pós-modernidade aponta para o
pessimismo, o Cristianismo é essencialmente esperançoso. A cosmovisão cristã se
baseia na expectativa e esperança de um mundo melhor, de novo céu e nova terra,
da restauração das coisas e no banimento do mal. A fé cristã se fundamenta na
esperança de que Deus vai resolver os principais problemas do mundo e da
humanidade, como pecado, condenação eterna, morte e o mal.
Partindo do conceito de Sire sobre cosmovisão, o pensamento pós-moderno
se aproxima e muito de uma cosmovisão. Apesar de se propor como uma negação
das cosmovisões acaba sendo uma também. Portanto, o diálogo da pós-
modernidade com a fé cristã é uma interação entre uma cosmovisão da negação e
uma cosmovisão propositiva. Isso ajuda a compreender as diferenças e
semelhanças. Nas palavras de Hicks (HICKS, 2021, p. 11):
O pós-modernismo costuma se declarar antifilosófico, no sentido
de que rejeita muitas das alternativas filosóficas tradicionais. No
entanto, qualquer declaração ou atividade, incluindo o ato de
descrever uma explicação pós-moderna de qualquer coisa,
pressupõe ao menos uma concepção implícita de realidade e
valores. Portanto, apesar de seu desprezo oficial por algumas

405
versões do abstrato, do universal, do estabelecido e do preciso, o
pós-modernismo oferece um conjunto consistente de premissas
em que situar nossos pensamentos e ações.

Conclusão
Pós-modernidade e Cristianismo têm pontos de divergências e
concordâncias. O diálogo se torna possível quando ambos os lados são
compreendidos e até mesmo comparados. Mesmo numa época em que grandes
pensadores negam a verdade, o Cristianismo continua sendo relevante, afirmando a
verdade.
Numa época de valores líquidos que não transmitem seguranças, o
Cristianismo continua sendo relevante com seus valores e princípios sólidos. Numa
era de desesperança, o Cristianismo aponta para a esperança transcendental que
vem por meio de Jesus Cristo. Mesmo no período da Pós-modernidade, o
Cristianismo continua sendo relevante e necessário.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso


tempo. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2008.

HICKS, Stephen R.C. Guerra Cultural: Como o pós-modernismo criou uma narrativa
de desconstrução do ocidente. São Paulo: Faro, 2021.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 12. ed. Rio de Janeiro: José


Olympio, 2009.

SIRE, James W. O universo ao lado. 5. ed. Brasília: Monergismo, 2018.

406
PRESSUPOSTOS COSMOVISIONAIS COMO BASE DO
POSICIONAMENTO HUMANO DIANTE DA QUESTÃO “QUEM EU
SOU”

Gleyds Silva Domingues1

Resumo: A proposta a ser desenvolvida no artigo visa explicitar sobre os pressupostos que
fundamentam o posicionamento assumido de homens e mulheres diante da questão “quem
sou?”. Os posicionamentos estão enraizados em diferentes sistemas de crença, a partir dos
pressupostos eleitos, contudo, são analisados os que se encontram contemplados nas lentes
da cosmovisão teísta, animista e secularista. As lentes podem ser encontradas nos estudos
de Domingues, Mangalwadi, Miller, Nash, Hiebert e Sire. É claro que o tratamento às
cosmovisões diante da questão analisada, requer tecer aproximações, devido à diversidade
religiosa encontrada no contexto social, entretanto, compreende-se a presença de
pressupostos que fornecem explicações associadas às dimensões da vida e que são
influenciadas diretamente pela maneira como se enxerga a realidade primordial, não
havendo que falar de espaços separados entre o espiritual e o material. Isso revela que, as
posturas e atitudes humanas refletem o modo como se explica e justifica essa realidade.
Nesse sentido, a investigação levanta a seguinte questão: de que maneira os pressupostos
influenciam os posicionamentos de homens e mulheres diante das questões existenciais e,
como isso afeta os seus relacionamentos? O tratamento teórico-metodológico é o da
pesquisa do tipo bibliográfica e explicativa, cuja abordagem é qualitativa. Conclui-se que os
pressupostos cosmovisionais não apenas influenciam os posicionamentos dos seres
humanos, mas interferem na maneira como olham, avaliam, explicam, significam,
interpretam e convivem consigo mesmo e com o seu próximo.
Palavras-chave: Pressupostos; sistemas de crença; questões existenciais.

Introdução
Uma das inquietações humanas tem a ver com a formação de sua identidade,
visto que aponta para a procedência, ao mesmo tempo em que confere a
compreensão do sentido de sua presença no mundo. O ato de o ser humano
perguntar-se “quem eu sou”, ainda é indicativo da necessidade de conhecimento
sobre si mesmo. Observa-se que essa pergunta é feita em diferentes tempos e
espaços da história.
No desejo de responder à pergunta “quem eu sou”, o ser humano busca a
proposta de esclarecimento advindas de diferentes áreas do conhecimento, por isso,

1Doutora em Teologia. Pós-Doutora em Religião e Educação. Professora do Programa de Mestrado


Profissional em Teologia- FABAPAR, e do Mestrado em Ministério da Carolina University.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Práxis Educativa na Formação e no Ensino Bíblico. Pesquisadora
do Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPPER). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em
Laboratório Currículo e Formação de Professores – LAPPUC. E-mail: gleyds2016@hotmail.com.

407
é que se pode observar a inserção da dimensão da epistemologia (como se conhece),
da metafísica (constituição do ser); ontologia (estudo do ser), teleologia (da
finalidade e propósito) e da axiologia (moralidade).
No presente estudo, as dimensões vão ser utilizadas à luz de uma cosmovisão,
ou seja, de um sistema de crenças. Não se tem a pretensão de formatá-la, mas de
apresentar a diretiva aceita para a maneira como responde à questão existencial
“quem eu sou”. Ressalta-se que a resposta variará de acordo com as premissas que
os sistemas de crenças estabelecem como lentes que darão origem à leitura e à
explicação diante da situação levantada.
Os sistemas de crenças ao apresentar premissas, pautam a forma como
homens e mulheres irão conduzir sua forma de pensar, agir, crer, conhecer, sentir e
fazer. Isso porque, elas fundamentam a vida e os relacionamentos que são
estabelecidos em relação ao outro. O que pode trazer valoração ou não sobre o
sentido de ser pessoa, a partir da leitura que tece sobre o cosmos e a existência
humana.
Para a construção do caminho metodológico adotado, elege-se o tipo
descritivo, uma vez que consiste em elucidar sobre as características defendidas no
interior de um sistema de crença e são repassados aos grupos que aderem tal
perspectiva. Afinal, como o próprio nome sugere, descreve fato ou fenômeno,
apresentando suas características e especificidades. Sua finalidade é trazer
conhecimento e esclarecimento (DOMINGUES, 2022, p. 31).
Há que ressaltar, ainda, que foram adotados a divisão apresentada por Miller
(2003), dos sistemas de crença teísta, secularista e animista. Essa divisão é
meramente metodológica, uma vez que ajuda no processo de compreensão sobre as
lentes eleitas, no que diz respeito à questão essencial “quem eu sou”.
É claro que o tratamento às cosmovisões diante da questão analisada, requer
tecer aproximações, devido à diversidade religiosa encontrada no contexto social,
entretanto, compreende-se a presença de pressupostos que fornecem explicações
associadas às dimensões da vida e que são influenciadas diretamente pela maneira
como se enxerga a realidade primordial, não havendo que falar de espaços
separados entre o espiritual e o material.
Defende-se que posturas e atitudes humanas refletem o modo como se
explica e justifica essa realidade. Nesse sentido, a investigação levanta a seguinte

408
questão: de que maneira os pressupostos influenciam os posicionamentos de
homens e mulheres diante das questões existenciais e, como isso afeta os seus
relacionamentos? Busca-se dar visibilidade à problemática, sem intentar padronizar
respostas. A finalidade é evidenciar a presença de diferentes posicionamentos e
explicações referentes à questão “quem eu sou”.

1. A finalidade de uma cosmovisão na compreensão da realidade


O estudo sobre cosmovisão é fascinante porque evidencia a maneira como
homens e mulheres tecem leituras sobre a realidade. Essa leitura pauta o modo
como eles representam suas crenças, valores e comportamentos e como se
relacionam consigo mesmo, com o outro, com o transcendente e com o cosmos. Isso
indica que uma cosmovisão gera posicionamentos e não pode ser considerada
neutra.
A cosmovisão é responsável não apenas pela adoção de pressupostos, mas
alcança a forma como o ser humano interpreta o mundo e estabelece seus
relacionamentos. Ela tem conexão com o agir, pensar, fazer, sentir e crer que se
manifesta na forma de apresentar respostas às questões existenciais. É por esse
motivo que Sire a define como:
[...] um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que
pode ser expresso como uma narrativa ou como um conjunto de
pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras,
parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas), que nós
sustentamos (consciente ou inconscientemente) sobre a
constituição básica da realidade, e que provê o fundamento sobre a
qual vivemos, nos movemos e existimos (SIRE, 2004, p. 122).

Na acepção de Sire, a cosmovisão funciona como uma diretriz em que se


acredita, mesmo que não se tenha consciência. O certo é que ela estabelece as bases
que tecem a maneira como o ser humano vive, move e existe. Por isso, que ela tem
uma carga valorativa de compromisso, uma vez que gera significado e convicção
sobre o modo como esclarece questões levantadas sobre a existência.
Nash (2012) caminha na mesma direção de Sire ao afirmar que a cosmovisão
é formada por crenças que se tecem sobre as questões da vida. Ela apresenta
conceitos que estruturam e organizam o modo como o ser humano define,
interpreta, julga e se relaciona com a realidade. Contudo, cabe ressaltar que esse
modo expresso por uma cosmovisão é, primeiramente, eleito por um grupo social.

409
O que indica que ao aderir a uma cosmovisão, adere-se à forma como um grupo elege
sua cosmovisão, a qual é comunicada de geração em geração.
Miller (2003, p. 35) explicita que a cosmovisão requer exame diante dos
pressupostos eleitos. Quando se examina, há adesão consciente porque recai como
uma escolha feita. Diferentemente de quando não se tem consciência, porque indica
que foi absorvida por meio dos processos de aculturação e socialização.
De fato, a cosmovisão envolve impactos na forma de ser e agir de diferentes
grupos sociais, isto porque em seu interior há concepções relacionadas à forma
como homens e mulheres tecem leituras, interpretações e apresentam explicações
diante da realidade. Pode-se constatar esse processo no contexto social a partir de
decisões e respostas que são dadas frente às problemáticas levantadas. E uma delas
diz respeito ao sentido de ser do ser humano, travestido na pergunta “quem eu sou”.
Para Miller (2003, p. 36), “A maneira como os povos e as sociedades respondem a
essas perguntas determina o tipo de culturas e sociedades que elas criam. Algumas
respostas a essas perguntas levam à pobreza e ao barbarismo; outras ao
desenvolvimento e à civilização”.
Se a cosmovisão impacta o processo e o desenvolvimento cultural, isso indica
o grau de influência exercido no interior de um grupo social. Ainda, evidencia como
esse grupo estabelece suas prioridades e defende sua perspectiva da vida. É por isso,
que não se pode falar de visões únicas, mas de uma diversidade delas, as quais
organizam e estruturam o pensamento e a sua materialização nos relacionamentos
mantidos. Esse também é o posicionamento de Hiebert (2016, p. 35), ao declarar
que “as cosmovisões são o fundamento sobre o qual elaboramos nossos sistemas de
explicação e fornecem justificativa racional para as crenças nesses sistemas”, o que
indica que não se pode descartar o uso da razão e da lógica neste processo.
Ryken (2015, p. 13) assevera que: “uma cosmovisão ou visão do mundo e da
vida, como alguns chamam, é a estrutura de entendimento que usamos para que o
mundo faça sentido”. Isso revela que a cosmovisão não trata da existência de um
mundo ideal, mas de como é possível compreender o cosmos e a sua constituição.
Indica, ainda, que uma cosmovisão é algo que está bem presente na realidade social
e que é definidora do jeito de ser de cada grupo social, ou seja, da forma que pensa,
move, vivencia e interpreta a sua essência e existência na realidade.

410
Cabe salientar que quando as normas do grupo social são quebradas, observa
“a interação entre cosmovisões e sistemas sociais [...] os indivíduos e grupos da
sociedade traçam estratégias para impor o que acreditam ser as normas do grupo”
(HIEBERT, 2016, p. 98), e isso pode ser temerário, visto que tem início um processo
de exercício de poder, na medida em que se força para todos uma visão
particularizada, como se fosse única e decisiva.
Cabe agora apresentar as cosmovisões e como respondem à questão “quem
eu sou”. Salienta-se que essa resposta pode variar de tempos em tempos, na medida
em que ocorrem alterações, tendo em vista que um grupo social verifica a ausência
de significado na explicação apresentada. Contudo, ela pode ser perpetuada por
outro grupo que assume a lente como sua propriedade. De uma forma ou outra,
existem categorias gerais de uma cosmovisão e que são compartilhadas por
diferentes grupos, aproximando-os frente à estrutura de pensamento por ela
adotada.

2. Três cosmovisões e formas de responder à questão existencial


Os sistemas de crenças apresentam pressupostos que definem
posicionamentos, os quais se verificam nas respostas em que serão abordadas as
questões associadas à existência. Eles fornecem diretrizes para o modo como
homens e mulheres enfrentam às situações da vida. Esses sistemas foram
categorizados por Miller (2003) em três grandes grupos: teísta, secularista e
animista. Os grupos sinalizam para estruturas de pensamento que evidenciam o
modo como se deve enxergar a realidade.
A forma como as cosmovisões enfrentam à pergunta “quem é sou”, evidencia
como eles organizam a estrutura básica da vida. Assim, o animismo sustenta que o
ser humano é portador de um corpo mortal e de uma alma imortal. Já o secularismo
defende que o ser humano é apenas constituído de um corpo mortal. Essas duas
posições são diametralmente opostas ao teísmo que afirma que tanto o corpo como
a alma são imortais.
A convergência entre as cosmovisões é que o ser humano é composto por
matéria física. Contudo, na animista essa não tem valor algum. Na secularista tem
valor, enquanto reside a vida. Na teísta ela tem valor eterno. É por isso, que as
afirmações sobre o valor da vida vão ser pautadas e balizadas por cada uma das
lentes utilizadas.

411
Na tentativa de responder à questão “quem eu sou” na perspectiva animista,
cabe considerar que o ser humano “deve viver em harmonia com os deuses. Afinal,
o mundo que vemos é uma ilusão. O alvo do homem é sobreviver ao infindável ciclo
de existência e escape do mundo” (MILLER, 2003, p. 58), por isso que defende a
reencarnação como meio que busca o aperfeiçoamento e a evolução de sua alma,
pois ele é espírito.
Na condição de espírito, os seres humanos “estão ligados à terra. Eles formam
as próprias comunidades e interagem na vida cotidiana” (HIEBERT, 2016, p. 120).
Por isso, são categorizados tais como animais e espíritos. Não são bons ou maus,
antes são as duas coisas e se relacionam com espíritos, recebendo deles proteção ou
castigo, diante de sua atitude quer de veneração, quer de ofensa e negligência.
No sistema secularista, o ser humano vive num universo impessoal e
mecânico. Ele é um ser independente e produtor da história. Os seres humanos
“nada mais são do que variáveis efêmeras em uma máquina eternamente repetitiva
de identificação e rejeição (HIEBERT, 2016, p. 247). O que assegura um caráter
fluido à vida que só tem sentido quando se está presente no aqui e agora.
Ainda, no sistema secularista, o ser humano é visto como “deuses no mundo
e que podem administrar o mundo por meio da razão, da ciência e do governo”. Essa
forma de pensar atribui o controle da vida ao ser humano, embora a sua descrição
como um “deus”, implica orgulho, prepotência, visão individualista e hedonista, o
que é impeditiva de defender uma prática pautada na alteridade e no espírito de
comunidade.
No sistema teísta bíblico, o ser humano é imagem e semelhança de Deus. A
ele foi conferido um mandato cultural para desenvolver cultura. Afinal, o objetivo de
sua existência é glorificar com todo o ser o Criador. Segundo Ryken (2015, p. 50), é
nela que se encontra “a mais profunda alegria e maior satisfação: na adoração ao
nosso Deus Criador”. Ele arremata “Quem somos e o que somos é ordenado por
Deus, nosso Criador [...] Dependemos de que Deus fale conosco e nos revele o
significado e propósito de nossa existência” (RYKEN, 2015, p. 46).
O teísmo bíblico responde à questão “quem eu sou” à luz da criação de Deus,
ao mesmo tempo em que atribui uma missão, uma responsabilidade ao ser humano:
o de cuidar, preservar, conservar a criação. Para isso, ele foi dotado de inteligência,
vontade e capacidades. Nesse sentido, Geisler (2002, p. 201) explicita que a criação

412
confere dignidade ao ser humano, dá sentido à moralidade, unifica a humanidade,
legitima a autoridade de governo, por esse motivo é que a realidade pode ser
conhecida. E ainda:
Os seres humanos são especiais apenas se eles são vistos como
seres criados e especiais para o seu Criador. Se os seres humanos
são criados à imagem do próprio Criador, então eles são ainda mais
especiais. E se os indivíduos estão se relacionando com o Criador
em relacionamento íntimo, pessoal e realizam a vontade do Criador
neste mundo, então eles são realmente muito especiais
(MANGALWADI, 2012, p. 75).

Os sistemas de crenças se posicionam em relação à formação da identidade


do ser humano, contudo, o que é preciso destacar é que o modo de olhar e enxergar
a realidade influenciará os relacionamentos constituídos pelo ser humano em
relação a si, ao outro ao transcendente e à criação. A adesão é voluntária e não
imposta. Se for imposta, não se tem como falar de uma cosmovisão. Afinal, ela é um
compromisso que requer mente e coração envolvidos com a leitura eleita da vida e
da existência.
As cosmovisões se apresentam no interior da cultura e regem a vida em
sociedade. Assim, a questão “quem eu sou” poderá ser respondida de maneiras
diferentes e divergentes. E essa maneira pode traduzir nas escolhas e nos
posicionamentos que os grupos sociais apresentam sobre o sentido de ser humano.
Inclusive, podem valorizar como banalizar a vida do ser humano. Isso com certeza
será influenciado pelo pressuposto que sustenta a perspectiva adotada num
contexto social específico.
Está claro que os pressupostos cosmovisionais, não apenas influenciam os
posicionamentos dos seres humanos, mas interferem na maneira como olham,
avaliam, explicam, significam, interpretam e convivem consigo mesmo e com o seu
próximo. Assim, se quiser conhecer como um grupo pensa, aprenda a identificar os
pressupostos que sustentam sua cosmovisão.

Considerações finais
Para que se possa levantar possíveis respostas ao problema apresentado,
cabe dizer que as cosmovisões exercem influências na vida do ser humano, na forma
como pensa, acredita, faz, age, sente e desenvolve cultura. Isso indica que elas dão
orientações sobre a maneira que cada um enfrenta e responde às questões
existenciais.

413
As respostas são contempladas nos pressupostos estabelecidos diante de
inquietações humanas. Uma delas diz respeito ao “quem eu sou”. Por isso, compete
aos pressupostos esclarecer e indicar a forma como essa questão será respondida
no interior de um sistema de crenças, na medida em que fornece leituras e
interpretações da realidade.
As leituras influenciam os posicionamentos de homens e mulheres diante das
questões existenciais e, isso com certeza afeta os seus relacionamentos consigo, com
o outro, com o transcendente (quando se acredita) e com toda a criação. Inclusive,
se haverá ou não valoração do ser por meio da dignidade a ser atribuída. Afinal, é no
encontro com a sua identidade que o ser humano apresentará formas de enfrentar
a realidade e as situações vividas.
As cosmovisões assumem perspectivas diferenciadas e o processo de adesão
de grupos e indivíduos ocorrerá pelo grau de significação gerado, ou seja, se fez ou
não sentido, produzindo ou não convicção. Por isso, que esse processo é alimentado
pelo fator fé, que busca na razão a conexão do que se acredita com a sua aplicação
na vida.

Referências
DOMINGUES, Gleyds Silva. Pesquisa em prática: orientações e normas de editoração
de trabalhos científicos em teologia. Winston-Salem, EUA: Carolina University, 2022.

GEISLER, Norman L. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã.


São Paulo: Vida Nova, 2002.

HIEBERT, Paul G. Transformando cosmovisões: uma análise antropológica de como


as pessoas mudam. São Paulo: Vida Nova, 2016.

MANGALWADI. Vishal. Verdade e Transformação: um manifesto para curar as


nações. Curitiba: Transforma, 2012.

MILLER, Darrow L. Discipulando Nações: o poder da verdade para transformar


culturas. Curitiba: Fato É, 2003.

NASH, Ronald H. Cosmovisões em Conflito: escolhendo o cristianismo em um mundo


de ideias. Brasília: Monergismo, 2012.

PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta. São Paulo: Vida Nova, 2012.

SIRE, James W. Naming the elephant: wordview as a concept. Downers Grove:


Intervariety, 2004.

414
A PALAVRA-CORPO-FLORESTA NA ETNOGRAFIA SENSÍVEL DE
ELIANE BRUM

Helton Thyers Melo Oliveira1

Resumo: Este trabalho tem como proposição efetivar uma análise escriturística à luz da
experiência vital, jornalística e pessoal, que a escritora e ativista ecológica Eliane Brum
narra em sua obra Banzeiro Òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo. Tomamos
como problema evidenciar quais balizas experienciais apresenta a narrativa autoral na
travessia do corpo humano com os ritos originários de imersão na floresta. Desenvolveu-se
metodologia qualitativa de cunho exploratório-bibliográfico, dialogando por meio do campo
interdisciplinar, realizando-se leitura hermenêutica entre psicologia e sociologia da
religião. A então repórter, introduzida aos ritos originários, narra a metamorfose de seu
corpo como organismo imerso em uma outra configuração de mundo, redescoberta do
tempo e espaço, contrastando-se às marcas de um corpo-outro constituído pela formatação
da cidade. Nova organicidade agora habitada por não-humanos e novas paisagens. Nesse
sentido, o trabalho demarcou como se apresenta em sua literatura um processo de escritura
que forma com a lapidação da palavra, a expressão de noções de ritualidade e corporeidade,
enquanto ação política no mundo. Observa-se que através de sua experiência ecopolítica, o
texto literário da autora é produzido como corpo atravessado por uma ambiência específica
que se torna capaz de fazer eco-ressonância em outros corpos-distantes. Torna-se evidente
que a composição e reorganização da experiência sensível etnográfica da jornalista
traduzida em texto-palavra produz um processo de iniciação da relação entre o corpo e a
floresta que pode aproximar experiências, trans-formando-se em comunidade de partilha
como gesto político.
Palavras-chave: Palavra; Corpo; Floresta Amazônica; Experiência; Comunidade.

Uma etnografia sensível do centro do mundo: uma jornalista habitante da


Amazônia
Já se passou mais de uma década que uma das maiores lideranças políticas
indígenas conhecidas, Davi Kopenawa, nomeava o que reconhecemos por ecologia
como urihi, a terra-floresta, e seus espíritos habitantes, os xapiri: sem eles, dizia o
escritor e xamã yanomami, a terra esquenta e os seres maléficos e as epidemias se
aproximam de nós (KOPENAWA, 2015). Para o antropólogo Viveiros de Castro, esse
“recado da mata” deveríamos escutar uma vez que provém daqueles que são
especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles acabou em 1500 (VIVEIROS
DE CASTRO, 2021).

1Graduação em Psicologia (UNIFOR) e Teologia (FAJE), Mestrado em andamento em Ciências da


Religião (PUC-GO). E-mail: thyerscssr@gmail.com

415
É seguindo estas intuições que reconhecemos a importância da literatura
etnográfica de Eliane Brum enquanto repórter e ativista ecológica2, numa realidade
pós-coronavírus, em seu premiado livro Banzeiro Òkòtò: uma viagem à Amazônia
centro do mundo. A narrativa experiencial da escritora define a capacidade de
transformação na existência humana pela permissão que damos ao estranhamento
do mundo, das coisas e de seus seres. Sua imersão na floresta Amazônica, e o que
esta faz com suas noções de corporeidade, vida e comunidade, nos conduz a um
posicionamento narrativo que faz da experiência estética partilhada um grito da
sensibilidade de um corpo de mulher unido ao corpo-mulher da floresta-útero
(BRUM, 2017, p. 20). A palavra literária de Brum vem acompanhada pelo
padecimento de seu corpo sobre os efeitos da floresta, bem como dos efeitos do
neoliberalismo no corpo da floresta:
A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso
corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que
somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como
um bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso
pensamento e nos mistura à medula do planeta. As pessoas seguem
nos chamando por nossos nomes, atendemos, aparentemente
estamos com nossas identidades intactas – mas o que somos, já não
sabemos. O que nos tornamos não tem nome. Não porque não
tenha, mas porque não conhecemos a sua língua. [...] Desde que a
barragem interditou o rio, o Xingu carrega pedaços mortos. Em
alguns trechos, arrasta penosamente braços e pernas sem
movimento, que chamam de reservatórios ou lagos artificiais. Em
outros, seu corpo seca e universos inteiros são asfixiados, como na
Volta Grande do Xingu. Os peixes tentam nadar e se reproduzir, mas
acabam morrendo, somando-se aos outros cadáveres. A morte não
gosta de morrer sozinha. Vai morrendo em cadeia. A morte não
sofre de agorofobia, ela gosta de toda gente, de peixe, carapanã,
árvore, nós” (BRUM, 2021, p. 10-11).

Quando de sua iniciação no Rio Xingu dentro da cultura originária, o texto da


repórter narra a produção de um outro corpo, imerso na “desestruturação” que a
Amazônia causa em relação à mentalidade estrutural que introjetamos enquanto
“povo da mercadoria”, “comedores de floresta”3. A literatura não é romantizada, é

2 Conferir o Portal Sumaúma: Jornalismo do Centro do Mundo. Disponível em: https://sumauma.com


3 Definição de Kopenawa para distinguir, independente de raça e cor, aqueles que não são “índios”.
Ainda a respeito do modo como a humanidade organiza seu modo de habitação e produção sobre o
planeta, o historiador israelense Harari (2015) estabelece três grandes revoluções: 1) Cognitiva, há
mais de 70 mil anos, nos descolamos da realidade produzindo símbolos, narrativas compartilhadas
intersubjetivamente criando sociabilidade (cooperação flexível); 2) Organização em grande escala
com a revolução agrícola africana na Mesopotâmia-Egito, cerca de 12 mil anos atrás, onde a terra se

416
erigida como suporte para a palavra dar conta dessa nova corporeidade que a habita
e na qual ela passa a habitar.
Nesse sentido, torna-se palavra-corpo que foi transformada(o) pelo contato
com a vitalidade da Amazônia, mas também seu organismo está atravessado pela
ritualidade da liminaridade: também existem as marcas da guerra, destruição,
consumo e poluição ali vividos.
Destarte, faz-se imprescindível a compreensão do campo cultural e suas zonas
limítrofes para adentrar suas palavras como experiência estética portadora de
sentido, e não enquanto discurso ou informação.

Culturas híbridas e a performatividade ritual


A noção de cultura que nos guia parte da compreensão de que esta seja um
tecido hermenêutico, com suas diversas camadas de estruturas de significação
sobrepostas em um mundo globalizado, trata-se de uma teia de significados, em que
a experiência religiosa compõe apenas um de seus vários traços, em que não
necessariamente se destaca por sua institucionalidade ou por seu caráter privado-
subjetivo, mas enquanto um “beliscão do destino” com presença de sentimentos,
sentidos, pertencimentos e construção de identidade, empoderamento ou mesmo
submissão (GEERTZ, 1989). Nesse sentido, descreve a jornalista sua iniciação no rio:
Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do
rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de
perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar. Quem rema
espera o banzeiro recolher suas garras ou amainar. E silencia
porque o barco pode ser virado ou puxado para baixo de repente.
Silencia para não acordar a raiva do rio. Não há sinônimos para
banzeiro. Nem tradução. Banzeiro é aquele que é. E só é onde é
(BRUM, 2021, p. 9).

Assim, para nos situarmos nesta zona intermediária entre-mundos, dos


humanos e não-humanos viventes, do neoliberalismo e da cultura dos povos
originários, da cidade e da floresta, do religioso e do não-religioso, compreendemos
que a cultura contemporânea se apresenta como “zona de liminaridade e
hibridação”, apresentando uma performatividade própria enquanto uma realização
ritual e simbólica constitutiva (CANCLINI, 2011). Em outras palavras, a cultura

torna uma grande fazenda; e 3) Antropocentrismo, com domínio tecnológico (científico), há nove mil
anos. Para o autor, religião universal atual é a do consumismo (cristãos não seguem Cristo, budistas
não seguem Buda), de modo geral avessa à frugalidade ou qualquer outra forma de moderação.

417
híbrida da narrativa entre-mundos produz seus ritos simbólicos de passagem, que
ultrapassam a dimensão religiosa sagrada, e se fala da produção da ritualidade para
a expressão do humano permeando sua existência, como uma “abertura a realidade
sensível, fenômeno liminar que interrompe a cotidianidade e abre portas de acesso
à transcendência, [...] ativando as dimensões corpórea e emotiva”, sem que se
caracterize por um teatro com seu público expectador, mas enquanto experiência
de imersão (BONACCORSO apud ECCO; SILVA, 2023, p. 470-471).
Narrar com o corpo, enquanto ritualidade do vivido, é o modo de
sobrevivência e respiração para um corpo-floresta poluído e devastado pelo
analfabetismo econômico das políticas ambientais de proteção, em meio a
realidades tão complexas e de delicadas redes de interação harmônica. A palavra
escrita, proferida, visualizada e comunicada propõe a composição de uma outra
noção de corporeidade, sendo esta mais organísmica (BRUM, 2017), ou seja,
permitindo-se a formação de subjetividades que sejam atravessadas pelas
ambiências que as rodeiam e as compõem.

A organicidade da palavra
A desconstrução das noções modernas de subjetividade desde a psicanálise
freudiana e passando pelas contribuições semióticas de Lacan, foram deslocadas a
uma nova concepção epistemológica a partir do advento das discussões ecológicas
quanto aos processos de subjetivação. Não era mais apenas a fantasia familiar quem
definia o núcleo da dinâmica inconsciente do sujeito, mas também o capitalismo,
bem como a geologia, a temperatura, o clima, a vegetação, o tempo e os espaços. O
romance e o drama da personalidade individual agora cediam espaço para incluir a
força simbólica dos devires da terra, dos animais e das estrelas na composição
subjetiva e social (DELEUZE; GUATTARI, 2010; GUATTARI, 2009).
Contudo, permanecendo como objeto da Psicologia o estudo das interações
entre organismo e seu meio ambiente (HARZEM; MILES, 1978), a noção
antropológica primeva que destaca a compreensão do humano em seu diferencial
pela sua relação com a palavra continua sendo explorada pelos diversos campos das
Ciências Humanas, dentre eles, a Filosofia da Educação.
Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como zôon
lógon échon. A tradução desta expressão, porém, é muito mais
“vivente dotado de palavra” do que “animal dotado de razão” ou

418
“animal racional”. Se há uma tradução que realmente trai, no pior
sentido da palavra, é justamente essa de traduzir logos por ratio. E
a transformação de zôon, vivente, em animal. O homem é um
vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a
palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma
ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto
palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em
palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse
vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra (BONDÍA,
2002, p. 21).

Nesse sentido, a palavra-corpo-floresta de Eliane Brum e sua travessia pelo


Banzeiro Òkòtò do rio na Amazônia quer nos comunicar uma
religiosidade/espiritualidade que preza a vida enquanto um grande organismo vital.
Habitando a floresta, nela e com seu corpo se encontram outros corpos vivos, em
que a terra que se movimenta e a floresta e o rio não são coisas, mas partes de sua
existência. Sua literatura não é romance açucarado do “bom selvagem”, narra a
guerra da sobrevivência por aqueles “seus” que agonizam feridos e morrem
atacados, humanos e não-humanos. Não existe possibilidade do silêncio e da espera
quando sua sensibilidade habita um corpo que está vivo com os outros-vivos. Trata-
se de uma experiência estética expandida, estendida, não formatada.
Para Bingemer e sua Teopioesis, a experiência estética literária é processo de
humanização, de sinalização do sagrado enquanto uma urgência vitalizadora, o
profetismo que vem em defesa dos mais vulneráveis e silenciados, em que “a poesia
não representa um gênero literário praticado por um escritor, mas uma atitude, um
exercício espiritual caracterizado por aquele movimento de desapego de si que
transforma nosso pensamento e nossa ação, uma transformação da relação com o
real, uma “transfiguração do cotidiano” (BINGEMER, 2023, p. 146).
Portanto, podemos destacar que a experiência da corporeidade na narrativa
literária etnográfica da repórter não se resume em uma literatura esotérica, mágica
ou espiritual. Trazer o corpo e a palavra para a cena enquanto organismo sensível e
consciente (organicidade) é um modo de resistência em tempos de crise ecológica e
econômica que ameaçam a sustentabilidade do planeta há um certo tempo.
Das extinções em massa da vida causadas pela modificação da face geológica
da Terra já ocorridas na superfície terrestre, sua denúncia reverbera vozes
científicas e indígenas que afirmam estarmos na iminência de um “ponto de não
retorno”, em que dessa vez é uma raça de mamíferos habitante do planeta – uma

419
minoria hegemônica que não opta por mudança – quem está provocando tal
mudança climática de proporções irreversíveis e comprometedoras da vida e seus
diversos sistemas bioquímicos como um todo.

Considerações finais
Esta pesquisa exploratória, de cunho bibliográfico, evidenciou um percurso
hermenêutico por textos que ritualizam uma experiência estética de imersão em
uma ambiência de organicidade, em que o “arejar da mente” produz conceitos
ambientais diversos do exercício de pensamento citadino. Assim, do ponto de vista
psicológico, a ritualidade é uma inscrição corpórea e existencial, em que o rito
inscreve no corpo uma narratividade.
As religiões, todas elas, produzem corpos e práticas sobre eles. Eliane Brum
nos apresenta um traço religioso originário, é iniciada na vida da floresta pela
escuta, pela observação, pela imersão narrativa, por sua pele, e por seus ritos
iniciáticos de participação nas andanças e faros por comunidades do Xingu. Ela
narra os efeitos da floresta no seu corpo forjado outrora pela vivência citadina, agora
então atravessado de fluxos, cantos, símbolos e seres, pela presença de divindades
que nomeiam a experiência vital encarnada em Ònkòtò.
A partir dessa etnográfica sensível, a palavra aparece como experiência
estética, vem do corpo de uma mulher, e essa palavra está produzia pelo que padece
esse corpo da floresta que é feminino também. Com o pacto que seu corpo faz com a
palavra e a floresta, temos um compromisso gerado que é mais político do que
panfletário.
A comunidade de leitores-escritores da floresta que compõem a plataforma
de jornalismo Sumaúma, provindos dos mais diversos mundos, interligados pelos
mais diversos meios, constitui-se então como uma ecopolítica (pólis ecológica), uma
vez que seus corpos estão agora habitados e passam a habitar, se tornam habitantes
na relação com humanos e não-humanos, constituindo uma nova expressão de
cidadania mediada pelas narrativas e histórias de seus habitantes.

420
Referências
BINGEMER, M. C. Teopoética: uma conexão entre teologia, mística e estética. In:
MARTINS FILHO, J. R.; SILVA, D. (Orgs.). Religião, arte e cultura: multiplicidades
convergentes [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Fi, 2023. 402p. Disponível em:
http://www.editorafi.org Acesso em 11 de jun 2023.

BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira


de Educação, n. 19, p. 20–28, jan. 2002. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003

BRUM, E. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. 2ª ed.
Porto Alegre: Arquipélago editorial, 2017.

BRUM, E. Banzeiro Òkòtò: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2021.

CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São


Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2010.

ECCO, C.; SILVA, D. C. da. Ritualizar é preciso... Revista Eclesiástica Brasileira, [S. l.],
v. 83, n. 325, p. 466–483, 2023. DOI: 10.29386/reb.v83i325.4889. Disponível em:
https://revistaeclesiasticabrasileira.itf.edu.br/reb/article/view/4889 Acesso em:
17 ago. 2023.

GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. São Paulo: LTC, 1989.

GUATTARI, F. As três ecologias. 20ª ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas:
Papirus, 2009.

HARARI, Y. N. Sapiens: uma breve história da humanidade. São Paulo. Editora


Companhia das Letras, 2015.

HARZEM, P.; MILES, T. R. Conceptual issues in operant psychology. Chichester: Wiley,


1978.

KOPENAWA, D; ALBERT, B. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami.


Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra


Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=VMGOmmJESkQ Acesso em 25
abr. 2021.

421
COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO SERTÃO DO SÃO FRANCISCO:
TURISMO RELIGIOSO, IDENTIDADE E PATRIMÔNIO

Thaís Chianca Bessa Ribeiro do Valle1


Elidomar da Silva Alcoforado2

Resumo: Na região do Sertão do São Francisco, em Pernambuco, historicamente, a


religiosidade tem sido um fator determinante para o desenvolvimento das comunidades
locais desde a época colonial até os dias atuais. Especialmente no que diz respeito às
Comunidades Remanescentes de Quilombos – CRQs da região, o Turismo Religioso
configura-se como expoente do Turismo Cultural e adquire grande importância econômica
e cultural, a partir de manifestações da cultura popular como o Reisado, o Samba de Roda, a
Dança de São Gonçalo e as Bandas de Pífanos. Porém, apesar de dotadas de riqueza cultural
ímpar, o potencial turístico parece pouco aproveitado, e as comunidades, isoladas e
empobrecidas. Com base em pesquisa exploratória e a partir de pesquisa bibliográfica,
documental e de entrevistas com gestores do turismo da Administração Pública nos
municípios, bem como a partir da Análise de Conteúdo na análise das entrevistas, o presente
estudo tem por objetivo analisar o desenvolvimento do Turismo Religioso nas CRQs da
região. Enquanto os resultados apontam para uma intensa cristianização que pode
ocasionar na perda da identidade das comunidades estudadas, o processo induz o
surgimento de manifestações culturais mistas que enriquecem a região. Sugere-se, para
tanto, maior atenção do Poder Público para as formas de Turismo que podem ser
desenvolvidas nas comunidades, notadamente os Turismos Religioso, Étnico, de Base
Comunitária e Patrimonial.
Palavras-chave: Turismo Religioso; Sertão do São Francisco; CRQs.

Introdução
A ocupação não originária de Pernambuco é marcada pela cristianização dos
povos africanos escravizados utilizados como mão-de-obra em engenhos com
senhorio cristão. Assim, os povos africanos foram sujeitados à catequese e à
conversão forçada da Igreja Católica (CABRAL; COSTA, 2012; GUERRA, 1984). Com
o tempo, o desenvolvimento da atividade econômica movida pelos engenhos viria a
originar vilas e, posteriormente, municípios, de forma que atualmente, a região do
Sertão do São Francisco encontra-se composta por sete municípios: Afrânio,
Cabrobó, Dormentes, Lagoa Grande, Orocó, Petrolina e Santa Maria da Boa Vista.
O presente estudo tem por objetivo analisar o desenvolvimento do Turismo
Religioso nas Comunidades Remanescentes de Quilombolas – CRQs da região. Uma

1 Doutorado em andamento em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco. E-


mail: thaischianca@gmail.com.
2 Doutorado em andamento em Turismo pela Universidade do Algarve. E-mail:
elidomar.alcoforado@gmail.com.

422
pesquisa exploratória (SCHLÜTER, 2003) que tem como instrumento de coleta de
dados complementar à pesquisa bibliográfica e documental, a realização de
entrevistas com autoridades da Administração Pública do Turismo nos municípios
em questão, as quais foram eleitas a partir de trabalho de pesquisa desenvolvido
sobre a região durante a realização de estágio curricular da autora. Comunidades
estas identificadas como potencialmente turísticas no que se refere à temática do
estudo desenvolvido, entretanto com aparente pouca visibilidade concedida pelo
Poder Público de seus municípios.
As entrevistas foram feitas de forma semiestruturada e com base em grupos
focais (SCHLÜTER, 2003; BAUER; GASKELL, 2011), utilizando-se da Análise do
Conteúdo (BARDIN, 1977) sobre o material coletado. Tem-se, pois, o quadro a
seguir:

Tabela 1 – Nome, Cargo, Município dos Entrevistados e Datas das Entrevistas


Nome Cargo Município Data da entrevista
Ítalo Diretor de Turismo da Secretaria de Cabrobó 26 de julho de 2022
Fernandes Planejamento, Desenvolvimento Econômico,
Habitação e Turismo
Hiandra Secretária da Secretaria de Cultura, Turismo e Santa Maria 29 de julho de 2022
Leite Lazer da Boa Vista
Josimeire Coordenadora de Turismo da Secretaria de Afrânio 29 de julho de 2022
Ferreira Educação
Edivaldo Diretor de Turismo do Departamento de Lagoa 02 de agosto de
Barbosa Cultura, Turismo e Esporte da Secretaria de Grande 2022
Educação
Anastácia Secretária da Secretaria de Turismo e Orocó 02 de agosto de
Vasconcelos Desenvolvimento Econômico 2022
Taís Farias Diretora de Turismo da Secretaria de Cultura, Petrolina 10 de março de
Turismo e Esportes 2023
Lenísio Secretário da Secretaria de Cultura, Esportes Dormentes 10 de março de
Coelho e Turismo 2023
Fonte: A autora, 2023.

Realizadas as entrevistas, e a partir das respostas dadas, o referido estudo


põe-se a questionar o desenvolvimento do Turismo Religioso na região, a existência
de possíveis apagamentos, bem como novas possibilidades para o mesmo.

423
1. Comunidades Quilombolas no Sertão do São Francisco: Turismo Religioso,
Identidade e Patrimônio
Encontram-se certificadas como Comunidades Remanescentes de Quilombos
– CRQs as seguintes comunidades do Sertão do São Francisco:

Tabela 2 – Comunidades Remanescentes de Quilombos – CRQs no Sertão do São


Francisco
Município Comunidade Quilombola
Afrânio Quilombo Sítio Baixa do Caldeirão; Quilombo Sítio Araçá; Quilombo
Sítio Boa Vista
Cabrobó Quilombo Cruz do Riacho; Quilombo Fazenda Santana; Quilombo
Jatobá II; Quilombo Fazenda Bela Vista; Quilombo Fazenda
Manguinha
Dormentes - Não há registros -
Lagoa Grande Quilombo Lambedor
Orocó Conjunto de Quilombos em um único processo de registro:
Quilombo Fazenda Caatinguinha, Mata São José, Remanso,
Umburana e Vitorino
Petrolina Quilombo Afranto; Quilombo Fandango
Santa Maria da Boa Vista Quilombo Serrote; Quilombo Inhanhum; Quilombo Cupira;
Quilombo Saruê
Fonte: FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES – FCP, 2023.

O Decreto nº 4.887/03 regula identificação, reconhecimento, delimitação e


remarcação de terras quilombolas, conforme a Constituição de 1988: “Art. 68. Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”
(BRASIL, [2020]). Diz o Decreto:
Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos
quilombos, para fins deste decreto, os grupos étnicos-raciais3,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida (BRASIL, [2003]).

3O Turismo Étnico se desenvolve a partir do contato direto com os modos de vida e a identidade de
grupos étnicos-raciais, possibilita a participação em atividades tradicionais e a observância de
expressões culturais e costumes.

424
São quilombolas as comunidades que resistiram ao regime escravocrata e se
rebelaram, mantendo suas tradições culturais. A identificação dessas comunidades
é feita pela Fundação Cultura Palmares, sendo exigidos o requerimento de
certificação, a ata de reunião ou assembleia constatando a auto atribuição, e um
relato histórico com manifestações culturais e religiosidade (FUNDAÇÃO
CULTURAL PALMARES – FCP, 2023). Em geral, essas comunidades são formadas por
agricultores e pessoas que desenvolvem o turismo de base comunitária4 em
territórios pelos quais continuam a lutar. Tem-se, pois, a valorização da memória e
o reconhecimento de uma dívida histórica do Estado brasileiro para com a
população negra do país (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES – FCP, 2023).
As CRQs do Sertão do São Francisco receberam suas certificações entre os
anos de 2005 e 2015, e analisando-se os processos conclusos, bem como demais
processos abertos, em análise e visita técnica, e aguardando complementação de
documentos, nenhuma comunidade mais se autodeterminou como quilombola na
região estudada até 20 de maio de 2023, data do último acesso dos pesquisadores
do presente estudo ao acervo da FCP (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES – FCP,
2023).
Os estudos decoloniais, com origem no final dos anos 90, buscam a renovação
crítica das ciências sociais e novas formas de interpretar fatos históricos a partir dos
povos oprimidos (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019). O Turismo, enquanto
ciência social, deve analisar o fenômeno turístico a partir de sua motivação,
geralmente vinculada às características culturais marcantes das comunidades, entre
elas, a religiosidade (GAZONI, 2003, p. 99).
A motivação para o Turismo Religioso é a religião enquanto fator cultural das
comunidades. Mas para se enxergar, de fato, as manifestações culturais (e religiosas)
oriundas das CRQs, é preciso antes enxergar tais expressões religiosas como
manifestação do interior dos indivíduos, e para além, pois o ato de interpretar rituais
e comportamentos é também parte de interpretar o ambiente em que as pessoas se
inserem, e de entender que interpretar não significa traduzir só para si, mas
perceber o outro (GIOVANNINI JÚNIOR, 2003, p. 148-149). Surge, assim, a

4Turismo de Base Comunitária, é aquele no qual a própria comunidade se organiza para receber os
visitantes. Manifesta-se, por exemplo, através do trabalho de um grupo de moradores que se reúne
para levar turistas para pescar, conhecer plantações, ou oferece-lhes hospedagem.

425
necessidade de interpretar rituais como herança de culturas oprimidas pela
dominação cristã.
Para o Turismo Religioso, os lugares com atrativos religiosos podem ser
percebidos a partir de santuários, espaços religiosos histórico-artísticos, ou
encontros e celebrações desta natureza (DIAS, 2003, p. 18), o que, a partir da cultura,
da identidade e do patrimônio cultural, evidencia o potencial para o
desenvolvimento deste em comunidades quilombolas.

2. Percepções dos entrevistados


Questionada sobre a existência de CRQs em Orocó, disse Anastácia
Vasconcelos: “Nós temos um território quilombola com cinco comunidades”. E
continuou: “Todos são cristãos. Eu achei até uma oportunidade da gente pensar no
Turismo Religioso, uma forma de despertar a cultura deles, o que eles têm que
poderiam mostrar para a gente da história deles, dos antepassados. Mas pelo que eu
vejo ali é tudo igual à nossa5“. Edivaldo Barbosa, ao falar do Quilombo Lambedor, em
Lagoa Grande, transparece a predominância cristã: “Lá, inclusive, acontece, do dia 25
de dezembro até 6 de janeiro, o Reisado6, que eles saem de casa em casa, nas portas
cantando, e muita gente vem visitar durante esse período de Natal, até o dia de Santos
Reis”.
Ainda, Hiandra Leite, que ao falar das comunidades quilombolas do
município de Santa Maria da Boa Vista, apesar de mencionar a existência de
expressões de matrizes africanas, enfatiza o Reisado como patrimônio imaterial:
A gente tem as comunidades quilombolas, geralmente elas são mais
voltadas para o afrodescendente, e a cultura deles, geralmente a
maioria é católico ou de terreiro [...] tem o Batuque7, que aqui é bem
conhecido e é mais lá deles [...] A Banda de Pífanos8, que é cultural
também e eles fazem essas apresentações lá nos eventos [...] o

5 O Censo do IBGE de 2010: 86,8% da população brasileira se diz cristã (TEIXEIRA; MENESES, 2013,
p. 24).
6 O Reisado ou Folia de Reis é uma manifestação da cultura popular que relembra a visita dos reis

magos a Belém.
7 Batuque: forma genérica de denominação das religiões afro-brasileiras com origem em Guiné, Benin

e Nigéria.
8 As Bandas de Pífanos são grupos instrumentais de percussão e sopro que se acredita ter

semelhanças com as bandas e orquestras de São Tomé e Príncipe.

426
Reisado daqui é patrimônio imaterial9, foi reconhecido há quatro
anos.

Por fim, sobre as CRQs em Afrânio, Josimeire Ferreira reafirma a


cristianização:
Boa parte é evangélica, mas existem muitas que são consideradas
católicas. Alguns nem praticam o catolicismo em si, mas se
consideram católicos [...] Eles não usam a cultura afro em si, a única
coisa que eles usam é o Samba de Roda10 [...] porque é uma região
em que a Igreja Evangélica, principalmente a Assembleia de Deus,
eles fizeram muito a questão de conquista [...] Inclusive, lá em uma
das comunidades quilombolas o padroeiro é São Francisco de Assis
[...] Eles estão construindo uma Igreja [Católica] lá agora, e já tem
mais de uma Igreja Evangélica na região, por isso que não tem
manifestações afro11.

Uma cristianização que busca, ainda hoje, a conversão massiva de


comunidades não-cristãs. Nesse contexto, Ítalo Fernandes, de Cabrobó, quando
perguntado se havia expressão religiosa não-cristã em seu município, respondeu:
“Não. Tem não”. E completou: “Tem comunidade quilombola, mas não é tão forte não”.
Indagado se o Poder Público do município teria contato com essas comunidades,
disse: “Hoje muito pouco”.
Um afastamento reforçado por alguns depoimentos anteriores, e por
comentários como o de Anastácia Vasconcelos, de Orocó: “Nas comunidades
quilombolas, por exemplo, eles têm o novenário deles também lá, mas é muito fechado,
muito deles”, sendo comum a utilização de expressões como “eles lá”, “muito deles”,
“eles têm”, “eles fazem lá” em todas as entrevistas.
Um afastamento que gera o empobrecimento e o isolamento de comunidades
que, segundo Josimeire, de Afrânio, acabam perdendo o sentimento de pertença:
Nós temos alunos que, quando eu digo “você faz parte de uma
comunidade quilombola”, ele não quer ser quilombola [...] Mas a
gente está sempre buscando fazer debates, palestras na

9 “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos


diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem: [...] § 5º Ficam tombados todos
os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (BRASIL,
[2020]). O Turismo Patrimonial caracteriza-se por atividades e visitas a lugares que representam a
história e o patrimônio cultural da comunidade.
10 O Samba de Roda é uma manifestação da cultura popular herdada dos povos africanos escravizados

na Bahia.
11 Foi identificado pela autora do presente estudo um site da denominada Aliança Evangélica Pró-

quilombolas do Brasil, onde constam todos os registros das CRQs do país em ordem alfabética,
incluindo-se as comunidades certificadas do Sertão do São Francisco (ALIANÇA EVANGÉLICA PRÓ-
QUILOMBOLAS DO BRASIL, 2023).

427
comunidade, para que a comunidade tenha uma aceitação maior
[...] porque lá nós temos o Grupo Cultural, temos a Banda de Pífanos
[...] temos também o Samba de Roda [...] Então são tradições que a
gente não pode perder [...] o Reisado aqui de Lagoa Comprida – que
é outra comunidade que era quilombola e agora não é mais, eles se
desmembraram do grupo e eles têm uma própria associação do
Reisado –, inclusive eles foram contemplados com a Lei Aldir Blanc
de incentivo à cultura. O Pífanos também foi contemplado [...] Nós
estamos tentando passar o Samba de Roda e o Pífano para as
crianças na escola, porque é onde a gente consegue fazer com que
eles participem [...] através de comunidade a gente não consegue
devido a essa falta de aceitação.

Existem, pois, comunidades que eram quilombolas e deixaram de ser por


vontade própria, mas também comunidades que sequer buscaram seus registros,
como expõe Taís Farias, de Petrolina: “Temos a Ilha do Massangano que é de
remanescência quilombola [...] que é muito forte a questão da Festa de São Gonçalo”12.
A Ilha do Massangano não consta na lista das CRQs da FCP, o que pode evidenciar o
desinteresse da comunidade de se determinar como tal. Por outro lado, as
comunidades certificadas de Petrolina, quais sejam Afranto e Fandango, não foram
mencionadas pela gestora durante a entrevista, o que pode demonstrar certo
desinteresse também do Poder Público na questão.

Conclusão
A cristianização no Sertão do São Francisco ocasionou a supressão das
religiões de matrizes africanas pela religião cristã em um processo que evidenciou,
na região, o surgimento de manifestações culturais – religiosas – mistas, como o
Reisado e a Dança de São Gonçalo, os quais favorecem o desenvolvimento de
diversas formas de turismo atreladas ao Turismo Religioso, como o Turismo Étnico,
o Turismo Comunitário e o Turismo Patrimonial.
No caso das CRQs, o racismo, ainda que inconsciente, têm ocasionado
ausência de visibilidade e perda de identidade nas comunidades, as quais seguem
tratadas como “elas lá”. Tem-se, portanto, a importância de se elaborar projetos
turísticos pensados para dar visibilidade a essas comunidades, e assim erradicar a
pobreza, estimular a agricultura sustentável e o crescimento econômico e reduzir

12 A Dançade São Gonçalo, Baile de São Gonçalo ou Roda de São Gonçalo, é uma manifestação popular
para pagamento de promessas em homenagem a São Gonçalo, beato português, casamenteiro e
milagroso no Brasil.

428
desigualdades. Ainda, ações educativas e de conscientização para a comunidade,
agentes do turismo e turistas, podem ser realizadas através de formação para o
Turismo Étnico, Comunitário e Patrimonial, melhorando a autoestima da população
e conservando a memória e o patrimônio.

Referências

BARBOSA, Edivaldo. Entrevista concedida a Elidomar Alcoforado e Thaís Chianca.


Recife, 2 ago. 2022. [A entrevista encontra-se transcrita como Apêndice “C”, arquivo
pessoal dos entrevistadores].

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1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em:
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BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o


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titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília,
DF: Presidência da República, [2003]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Acesso em: 21
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CABRAL, Flávio José Gomes; COSTA, Robson (orgs.). História da escravidão em


Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.

COELHO, Lenísio. Entrevista concedida a Elidomar Alcoforado e Thaís Chianca. Recife,


10 mar. 2023. [A entrevista encontra-se transcrita como Apêndice “D”, arquivo
pessoal dos entrevistadores].

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FARIAS, Taís. Entrevista concedida a Elidomar Alcoforado e Thaís Chianca. Recife, 10


mar. 2023. [A entrevista encontra-se transcrita como Apêndice “D”, arquivo pessoal
dos entrevistadores].

FERNANDES, Ítalo. Entrevista concedida a Elidomar Alcoforado e Thaís Chianca.


Recife, 26 jul. 2022. [A entrevista encontra-se transcrita como Apêndice “A”, arquivo
pessoal dos entrevistadores].

429
FERREIRA, Josimeire. Entrevista concedida a Elidomar Alcoforado e Thaís Chianca.
Recife, 29 jul. 2022. [A entrevista encontra-se transcrita como Apêndice “B”, arquivo
pessoal dos entrevistadores].

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES - FCP. Certificação Quilombola. Disponível em:


https://www.palmares.gov.br/?page_id=37551. Acesso em: 20 mai. 2023.

GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento Turístico de Recursos Mítico-Religiosos: os


Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo; SILVEIRA, Emerson José Sena da (orgs.).
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GIOVANNINI JÚNIOR, Oswaldo. Turismo, Religião e Patrimônio Cultural. In: DIAS,


Reinaldo; SILVEIRA, Emerson José Sena da (orgs.). Turismo religioso: ensaios e
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GUERRA, Flávio. História de Pernambuco. Recife: Editora Raiz Ltda, 1984.

LEITE, Hiandra. Entrevista concedida a Elidomar Alcoforado e Thaís Chianca. Recife,


29 jul. 2022. [A entrevista encontra-se transcrita como Apêndice “B”, arquivo
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QUINTERO, Pablo; FIGUEIRA, Patricia; ELIZALDE, Paz Concha. Uma breve história
dos estudos decoloniais. São Paulo: MASP: Afterall, 2019.

SCHLÜTER, Regina G. Metodologia da pesquisa em turismo e hotelaria. São Paulo:


Aleph, 2003.

TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (orgs.). Religiões em movimento: o Censo de


2010. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

VASCONCELOS, Anastácia. Entrevista concedida a Elidomar Alcoforado e Thaís


Chianca. Recife, 2 ago. 2022. [A entrevista encontra-se transcrita como Apêndice “C”,
arquivo pessoal dos entrevistadores].

430
ARTE ST 7

ST 7 – Epistemologia da Ciência da Religião

431
Fabiano Victor Campos (PUC-MG)
Frank Usarski (PUC-SP)
Humberto Araújo Quaglio de Souza (UFJF)

Esta sessão temática visa o intercâmbio científico sobre temas relacionados à


Epistemologia da Ciência da Religião. Trata-se de discutir os pressupostos
epistêmicos, as regras e os princípios teórico-metodológicos da Ciência da Religião
enquanto área de conhecimento, elucidando o que assegura e legitima o caráter
propriamente científico desse ramo do saber e definindo as posturas que o cientista
da religião deve assumir diante do que se considera o seu campo próprio de estudo.
Nesta perspectiva, dentre outros subtemas correlatos, a presente sessão temática
busca refletir criticamente: a) questões relativas à história da Ciência da Religião,
seja através do estudo dos clássicos e pioneiros, seja contemplando a forma como
essa disciplina acadêmico-científica foi se constituindo no decorrer do tempo; b)
abordagens acerca do modo particular como essa ciência é exercida em
determinado contexto sócio-cultural, de maneira a elucidar possíveis variações
conforme os lugares em que é praticada; c) questões e desafios de natureza
metodológico-teóricas, bem como pressupostos sobre os quais a episteme dessa
disciplina se assenta; d) problematizações referentes ao procedimento
epistemológico próprio da Ciência da Religião enquanto uma disciplina das
chamadas Ciências do Espírito, também conhecidas como Ciências Humanas; e) a
postura específica do cientista da religião diante do seu objeto de estudo; f) os ramos
empírico e sistemático da Ciência da Religião; g) problemas concernentes à
apropriação de metodologias e de conhecimentos oriundos de outras disciplinas
científicas que investigam o mesmo objeto, bem como o arranjo e o ordenamento
desses saberes e métodos pela Ciência da Religião.

432
EXPLORANDO SÍMBOLOS RELIGIOSOS: DESENVOLVIMENTO DE
UMA ABORDAGEM GEERTZIANA PARA ANÁLISE DE TEXTOS
RELIGIOSOS ANTIGOS

André Valva1
Clovis Ecco2

Resumo: A Ciência da Religião é uma área que enfrenta constantes desafios referente à
definição de suas epistemologias. Assim, no intuito de contribuir com a área, desenvolveu-
se de uma abordagem científica para a análise simbólica de textos antigos, com base em
Clifford Geertz. O objetivo do artigo é demonstrar os aspectos materiais dessa abordagem e
explicar os principais pontos de sua construção, associando-a à Ciência da Religião.
Denominou-se ‘Abordagem Geertziana’ esse empreendimento acadêmico, entendendo-se
‘abordagem como o conjunto entre epistemologia e método. Dessa forma, a metodologia
utilizada consistiu na revisão bibliográfica e documental, relacionada à construção de
frameworks para elaboração de estruturas significantes. Os resultados apontam para a
eficácia dessa metodologia em possibilitar a identificação dos elementos que compõe os
símbolos presentes nos manuscritos e a posterior interpretação dos dados de sentidos dos
autores do texto, e a consequente reconstrução do cenário sócio-histórico e cultural.
Conclui-se que a Abordagem Geertziana pode ser uma importante ferramenta para a Ciência
da Religião, não apenas para a análise de textos antigos, mas também para a compreensão
de práticas e rituais religiosos contemporâneos, uma vez que propõe um novo olhar para
símbolos religiosos e seu entendimento pelos dados de sentidos impressos nestes pelos
autores dos manuscritos.
Palavras-chave: Ciência da Religião; Abordagem Geertziana; Análise Simbólica; Textos
Antigos; Metodologia.

Introdução
A Ciência da Religião é uma área que enfrenta constantes desafios referente
à definição de suas epistemologias. Assim, no intuito de contribuir com a superação
desses desafios, desenvolveu-se de uma abordagem científica para a análise
simbólica de textos antigos, com base nos conceitos de Clifford Geertz, denominada
de Abordagem Geertziana. Entende-se enquanto “abordagem” o conjunto dos
elementos epistemologia e método; sendo assim o objetivo deste artigo é
demonstrar os aspectos materiais dessa abordagem e explicar os principais pontos

1 Mestrado em Ciência da Religião pela PUC-SP, com Bolsa CAPES; Doutorado em andamento em
Ciências da Religião na PUC Goiás, com Bolsa – CAPES/PROSUP. Instituição de origem: Pontifícia
Universidade Católica de Goiás – PUC-GO. E-mail: andrevalva@gmail.com.
2 Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás e Coordena o Programa de Pós-Graduação Stricto

Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Integra o grupo de


pesquisa em Religião, Cultura e Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail:
clovisecco@uol.com.br.

433
de sua construção, associando-a com os fundamentos da Ciência da Religião. A
‘Abordagem Geertziana’, enquanto empreendimento investigativo, é fruto de
doutoramento pela PUC-Go, no Programa Stricto Sensu de Ciências da Religião;
dessa forma, a metodologia utilizada consistiu numa revisão bibliográfica e pesquisa
documental, relacionada à elaboração de frameworks para elaboração de estruturas
significantes, tendo como principal referencial teórico Clifford Geertz.

Fundamentação teórica: Ciência da Religião e Clifford Geertz


O presente artigo adota como compreensão de Ciência da Religião o
postulado de Frank Usarski, onde ela é uma disciplina, cujo foco reside na realização
de estudos empíricos, sistemáticos e históricos das religiões concretas, abrangendo
diversas dimensões e contextos socioculturais (2006). Nesse sentido, ela se
caracteriza por ser interdisciplinar e plurimetodológica (CRUZ, 2013, p. 46-47),
desdobrando-se em duas vertentes: a ciência base, centrada na análise ética dos
conteúdos religiosos, e a ciência aplicada, que contempla propostas
intervencionistas (STERN, 2022).
Ciência da Religião busca apreender a religião como uma totalidade em
constante evolução e adaptação a variados contextos. Isso requer o estudo de
diversas religiões e a aplicação de métodos comparativos (CRUZ, 2013). Para
estudar “religião”, porém, pesquisadores devem observar o objeto de diferentes
perspectivas, considerando-a como algo concreto, composto por comunidade,
sistema de atos, conjunto de doutrinas e experiências religiosas (GRESCHAT, 2005).
Neste sentido, a Ciência da Religião ainda não conseguiu unanimidade do conceito
daquilo que estuda, uma vez que a palavra “religião” é polissêmica e culturalmente
condicionada3. Como Greschat observa, a busca por uma definição universal muitas
vezes leva a uma abordagem genérica e anacrônica, negligenciando as
singularidades de cada religião (2005).

3 A perspectiva polissêmica foi apresentada pelo Professor Dr. Frederico Pieper Pires (PPGCR da
UFJF), durante sua palestra intitulada Análise Epistemológica do Conceito de Religião. Apresentação
foi proferida no XI Congresso da ANPTECRE – A Religião na América Latina e Caribe: conceitos,
relações e perspectivas. Congresso realizado na PUC Campinas, às 8h45m da manhã no Auditório
Principal do Evento, dia 19 de setembro de 2023, sendo a conferência coordenada pelo Dr. Douglas
Ferreira Barros (PPGCR da PUC-Campinas) e debatida pelo Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira
(PPGCR da PUC-Campinas).

434
Assim sendo, o conceito de “religião” é um tema complexo e multifacetado,
abordado ao longo da história e cada teórico ofereceu uma perspectiva única, seja
como um fenômeno cultural, psicológico, social ou simbólico (PALS, 2019). Clifford
GEERTZ, um renomado antropólogo, define a religião como uma concepção
supratemporal da realidade (GEERTZ, 2004, p. 16)4, que é construída por um grupo
a partir de imagens e metáforas. Essas representações da realidade têm um
significado profundo para o grupo e são fundamentais para a cultura desse grupo
humano. Em outras palavras, a religião surge como uma resposta à necessidade de
atribuir significado à vida e ao mundo.
Para Geertz religião é
(1) Um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos
homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de
existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de
fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem
singularmente realistas (GEERTZ, 2015a, p. 67)5.

Em resumo, a perspectiva de Geertz enfatiza seu papel como uma instituição


cultural, criando uma concepção compartilhada da realidade, dando sentido à
experiência humana por meio de símbolos e rituais, com atuação fundamental na
formação da identidade cultural e dos valores sociais.

Abordagem geertziana: epistemologia e método


[...] e um ciclo recorrente de termos – símbolos, significado,
concepções, forma, texto... cultura – cujo objetivo é sugerir que
existe um sistema na persistência, que todas estas perguntas, com
objetivos tão diversos, são inspiradas por uma visão estabelecida
de como devemos proceder para construir um relato da estrutura
imaginativa de uma sociedade (Geertz, 2014, p. 11).

A Abordagem Geertziana, conforme delineada no artigo, é um quadro de


trabalho destinado (Framework) à análise aprofundada de significados simbólicos
e culturais em textos religiosos antigos. Essa abordagem se destaca por seu
compromisso em compreender os elementos culturais e simbólicos que subjazem
às práticas sociais e textos (GEERTZ, 2014, p. 11-12).

4 Em inglês, o termo correto é transtemporal (GEERTZ, 1968, p. 2). Entretanto, apropriou-se de Geertz
o termo oriundo da tradução para o português disposta em Observando o Islã.
5 Na edição em inglês, a citação consta na página 90 (GEERTZ, 1973).

435
A epistemologia geertziana é fundamentada nos conceitos centrais que
orientam as reflexões do autor, tais como “religião”, “cultura”, “senso comum”,
“estrutura social”, “símbolos”, “padrões culturais”, “perspectiva” e “crenças
religiosas”. Esses conceitos delimitam o escopo do conhecimento derivado das
investigações. Geertz postula que “todo pensamento é resultado de uma
manipulação intencional das formas culturais” (GEERTZ, 2014, p. 153), o que
estabelece um alicerce epistemológico essencial para a Abordagem. Além disso, a
escrita é considerada um sistema simbólico que estrutura o pensamento humano
(GRANGER, 2013, p. 136-142), corroborando a base epistemológica da Abordagem.
Utilizando o exemplo muçulmano sobre a importância da linguagem, pode-se,
pretensiosamente, transportar para as demais culturas antigas redatoras de textos
religiosos que “o homem que desempenha o papel de poeta no islã faz o tráfico – não
totalmente legítimo – da substância moral de sua cultura” (GEERTZ, 2014, p. 113).
O método geertziano é notavelmente claro e estruturado. Clifford Geertz
explica de forma refinada que a instituição religiosa é, em sua essência, um
fenômeno social que utiliza símbolos para expressar devoção a suas entidades. A
adoração é uma atividade social que engloba tanto a atitude religiosa quanto a
experiência religiosa, e essa atividade é sustentada por aparatos sociais que
conferem significado à realidade (GEERTZ, 2004, p. 16-32). Os símbolos religiosos
compreendem quatro elementos, nomeadamente “ethos”, “visão de mundo”,
“motivação” e “disposição” (GEERTZ, 2015a, p. 93-103). Esses elementos são
organizados hierarquicamente em estruturas de significados, conceituadas por
Geertz como a “Hierarquia Estratificada de Estruturas Significantes” (HEES)
(GEERTZ, 2015a, p. 15).
A Abordagem Geertziana representa a justaposição da “esfera” religiosa em
contraste com a “esfera” do senso comum; Geertz trabalha com o conceito de círculo
hermenêutico, numa ação dialética entre as partes e o todo, onde essas “esferas” são
tidas como estruturas sociais (GEERTZ, 1980, p. 103-104). A partir dessa
contraposição supracitada, emerge a possibilidade de realizar uma análise cultural,
com ênfase em dois pontos essenciais. O primeiro ponto envolve a compreensão das
interações, sobreposições, complementos e aprofundamentos entre essas esferas,
ou seja, os círculos culturais. O segundo ponto aborda a avaliação dos resultados
dessa análise em relação à insuficiência do senso comum como guia abrangente para

436
a vida, ao impacto formativo do próprio senso comum e à capacidade de questionar
o que é considerado inquestionável e, ainda, à formação da apreensão do mundo
cotidiano (GEERTZ, 2004, p. 102-103).
Ao término dessas análises, o objetivo primordial é identificar padrões
culturais. Com isso em mente, a Abordagem busca aplicar uma abordagem
semântica, que é fundamentalmente simbólica, a esses padrões. A finalidade dessa
abordagem é analisar os padrões de significados utilizados para moldar a
experiência, os objetivos e as ações coletivas e/ou individuais. Além disso, a
Abordagem visa a examinar as concepções incorporadas nos símbolos e investigar
o poder direcionador dessas concepções na esfera pública e/ou privada.
Uma vez cumpridas essas etapas, prossegue-se com o estudo dos símbolos,
que compreendem quatro elementos, a saber: “ethos”, “visão de mundo”,
“motivação” e “disposição”. Esses elementos são hierarquicamente organizados em
estruturas de significados, definidas por Geertz como a “Hierarquia Estratificada de
Estruturas Significantes” (HEES). O intuito da hierarquização é tentar separar o
aparato simbólico advindo do Estado, enquanto uso de poder e dominação cultural;
isto porque o texto – como materialização da língua e do pensamento – também é
instrumento de autoridade e repressão por parte daqueles que o redigem (GEERTZ,
2001, p. 120-122).
Consequentemente, acredita-se que, ao final da análise cultural, da
abordagem simbólica e do estudo dos elementos simbólicos, é viável compreender
não apenas textos religiosos antigos, mas também a sociedade e a religião da qual
esses textos derivam e à qual estão intrinsecamente ligados (GEERTZ, 2004).

Considerações finais
A Abordagem Geertziana apresenta-se como uma ferramenta valiosa e
inovadora na análise de textos religiosos antigos e, por extensão, na compreensão
das religiões e sociedades a que esses textos estão intimamente ligados. Através de
sua epistemologia e método fundamentados nos conceitos de Clifford Geertz, essa
abordagem permite uma análise aprofundada de significados simbólicos e culturais,
contribuindo significativamente para a Ciência da Religião.
Ao destacar a importância da cultura, símbolos e rituais na formação da
identidade e valores sociais, a Abordagem Geertziana oferece uma perspectiva

437
abrangente que vai além da mera análise textual. Ela promove uma compreensão
holística das religiões, reconhecendo a complexidade e diversidade das práticas
religiosas e de seus significados subjacentes.
A ênfase na análise semântica e simbólica dos padrões culturais permite aos
pesquisadores desvendarem os significados profundos que moldam a experiência
religiosa e as ações individuais e coletivas. Isso enriquece nossa compreensão das
religiões como sistemas de significados que influenciam a vida cotidiana e a visão de
mundo das pessoas.
A Abordagem Geertziana, ao incorporar a perspectiva de Geertz sobre a
religião como um sistema de símbolos que estabelece disposições e motivações nos
indivíduos, oferece uma base sólida para a análise de textos religiosos antigos. Ela
não apenas enriquece a interpretação desses textos, mas também lança luz sobre as
sociedades e religiões em que eles se originaram.
Assim, a Abordagem Geertziana é uma contribuição significativa para a
Ciência da Religião, permitindo uma compreensão mais profunda e enriquecedora
das complexidades das religiões e de como elas moldam as experiências humanas e
as sociedades. Seu compromisso com a análise simbólica e cultural é um passo
importante em direção a uma abordagem mais abrangente e holística no estudo das
religiões e textos religiosos antigos.

Referências
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F. Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas / Paulus, 2013. p. 37-50.

GEERTZ, C. Islam Observed: religious development in Morocco and Indonesia.


Chicago: The University Chicago Press, 1968.

GEERTZ, C. The Interpretation of Cultures – selected essays. New York: Basic Books,
Inc. Publishers, 1973.

GEERTZ, C. Negara: the theater state in nineteenth-century Bali. New Jersey:


Princeton University Press, 1980.

GEERTZ, C. Nova Luz Sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

GEERTZ, C. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na


Indonésia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

GEERTZ, C. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 2014.

438
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2015a.

GRANGER, G.-G. Filosofia, Linguagem, Ciência. Aparecida: Ideias & Letras, 2013.

GRESCHAT, H.-J. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005.

PALS, D. L. Nove Teorias da Religião. Petrópolis: Vozes, 2019.

STERN, F. L. Ciência da Religião. In: USARSKI, F.; TEIXEIRA, A.; PASSOS, J. D.


Dicionário de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas: Loyola: Paulus, 2022. p. 143-
149.

USARSKI, F. Constituintes da Ciência da Religião: cinco ensaios em prol de uma


disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.

USARSKI, F. História da Ciência da Religião. In: PASSOS, J. D.; USARSKI, F. Compêndio


de Ciência da Religião. São Paulo: Paulus; Paulinas, 2013. p. 51-61.

439
QUANDO O LAICO SE TORNA DOGMÁTICO: A NECESSIDADE DE
OUTRA EPISTEMOLOGIAS PARA O ENSINO RELIGIOSO

Eduardo Sales de lima1

Resumo: Um dos maiores desafios do Ensino Religioso no Brasil é a identificação de uma


epistemologia que se relacione coerentemente com o sentido de laicidade. O problema
inicial reside no fato de que este conceito foi produzido no contexto do positivismo, que no
caso brasileiro, teve seu sentido formado relacionado à Proclamação da República. A partir
dessa relação, nosso objetivo é explicar como a influência do positivismo contribui para
solidificar e dogmatizar a interpretação das religiões, tornando-se incompatível com a
proposição de uma compreensão plural e inclusiva propostas pela BNCC. Para esse objetivo
apresentar-se-á a epistemologia positivista e sua relação com a proposta curricular para o
ensino religioso apresentada na BNCC. Para apuração da influência da episteme positivista
na educação brasileira, será utilizada a pesquisa bibliográfica parcial no portal de Periódicos
da Capes e em livros de referência sobre a história do positivismo no Brasil. A metodologia
de análise será epistemológica, pela verificação argumentativa da validade metodológica
para um ensino religioso laico, plural e inclusivo. Espera-se que ao término seja verificado
a inviabilidade da metodologia positivista para o ensino religioso, pois, entende-se que a
episteme positivista favorece a criação de dogmatismos que produzem discriminação,
exclusão e universalizações que invalidam a proposta de um ensino religioso laico, plural e
inclusivo.
Palavras-chave: Positivismo; Religiões; BNCC.

Introdução
Além das dificuldades básicas comuns a todas as disciplinas, o Ensino
Religioso (ER) possui algumas problemáticas singulares. No ambiente de aula, assim
como em congressos e simpósios testemunhamos diversos professores
apresentando suas dificuldades quanto aos desafios de um ensino laico num
contexto plural e ainda comprometido com modelos científicos.
Diante disso, esse trabalho se propõe a investigar a relação entre o ensino
religioso segundo a BNCC e a episteme positivista, a fim de identificar possibilidades
e incompatibilidades.
A seleção do material de pesquisa foi parcial, baseada em seleções de
bibliografias na plataforma de periódicos da Capes e em livros sobre a temática. Essa
amostragem seguiu a proposta por conveniência, dando preferência aos artigos que

1Doutor em Teologia (EST), Doutorado em andamento em Ciências da Religião (FUV), Professor


Unicesumar; UniCV; pf.eduardo.sales@hotmail.com.

440
tratasse diretamente da relação entre epistemologia positivista e educação, na falta
de artigos sobre Ensino Religioso (ER) segundo a BNCC e a dita episteme.
Para fins didáticos o texto foi apresentado observando primeiro o formato do
ER na BNCC com breves considerações sobre ausências relevantes. Em seguida,
apresentar-se-á o contexto de formação e desenvolvimento do positivismo,
observando suas implicações possíveis para a sociedade e para o ER.
Espera-se que ao término, o trabalho evidencie a necessidade de se
questionar as influências dessa episteme e se proponha o desafio de ampliar a
pesquisa em outras epistemologias que considerem a complexidade social.

1. O Ensino Religioso na BNCC


A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018), a partir de um olhar
semiótico, ressalta um percurso narrativo voltado para a alteridade como caminho
para o reconhecimento do outro e de suas crenças. Com isso, seguindo o princípio
da oposição semântica de Greimas, pode-se entender que o objetivo é “lidar” com as
formas de totalitarismo e intolerância religiosas.
A BNCC para o Ensino Religioso (ER) nos primeiros cinco anos, propõe
estudos relacionados à identificação, reconhecimento, acolhimento, caracterização,
exemplificação e respeito. E, a partir do sexto ano, as habilidades exigem atividades
críticas, como discutir, analisar, debater e construir. Em geral os temas são
apresentados de forma lógica e linear. Por exemplo, propõem que se estude os locais
sagrados, os espaços sagrados, a dinâmica cultural, os símbolos e objetos sagrados
em geral. Percebe-se dessa proposta uma metodologia de observação
fenomenológica.
Em geral a abordagem nos primeiros anos é focada na observação de
semelhanças e diferenças entre os sentimentos, memórias, lembranças, ritos,
práticas, tradições, textos, doutrinas, e suas formas de registro. E nos últimos anos,
assume uma postura mais crítica e consciente, com algumas reflexões que
relacionam as religiões e a sociedade como um todo. Até o quarto ano as
manifestações religiosas estão relacionadas à “Religiosidade” em geral e, no período
mais crítico, com o estudo dos conceitos de “divindades”, inicia-se um processo de
entendimento das “Religiões” como instituições com saberes sistematizados e
organizados racionalmente.

441
Embora tenha uma abordagem que se pretenda ampla, ainda é possível notar
ausências relevantes. A influência metodológica apresenta uma proposta temática,
desistoricizada, sem considerar elementos sociais e contextuais, não trata de
questões políticas, nem de questões sociais. Também não se pronuncia quanto à
reflexão de gênero e etno-racialidades, demonstrando a dificuldade de dialogar com
a diversidade cultural. Essas e outras lacunas servem de abertura para
fundamentações epistemológicas diversas.

2. O paradigma positivista
O positivismo pode ser contextualizado desde o conservadorismo após a
Revolução Francesa (CHAGAS, 2015). Quando a burguesia assumiu o poder e lutava
contra a classe trabalhadora para manter seu status e controle, em meio às
ideologias dessa época, August Comte (1798-1857), principal expoente do
positivismo, ao lado da burguesia, defendia um regime ditatorial contra as ameaças
revolucionárias, inclusive cooperando com a proposta de naturalização da pobreza.
No período brasileiro pré-republicano foram identificados diversos alunos
diretos de Comte, na Escola Politécnica ou alunos particulares de Comte (LINS,
1964). E, desde 1850 os ensinos de Comte também passaram a ser divulgados na
Escola Militar do Rio de Janeiro (LINS, 1964). Assim, no Brasil, o paradigma
positivista surge no processo de formação da república divulgado principalmente
pelo movimento positivista do Brasil e pala Igreja positivista Brasileira (IPB)
(LEMOS, 1881). O positivismo influenciou movimentos de profissionais liberais e
militares. A proposta de modernização centrada na ação do Estado favoreceu o
movimento republicano. Dentre as principais personalidades destacamos os
ministros Benjamin Constant (ministério da Guerra e da Instrução Pública) e
Demétrio Ribeiro (ministro da agricultura), mas também, Teixeira Mendes, autor da
atual bandeira nacional (LINS, 1964).
Em 1868 Benjamin Constant funda uma sociedade para estudar e divulgar o
positivismo. E, no relatório do diretor do Instituto de Meninos Cegos apresenta-se a
seguinte consideração sobre o positivismo:
Aqui está a doutrina da escola: o positivismo é o ateísmo
matemático, que desterra Deus para a ordem das hipóteses inúteis;
não quer saber do absoluto, das causas primárias, dos fins da
sociedade e do homem. O chefe da escola disse que a palavra direito

442
deve ser riscada da linguagem da moral e da política, como a
palavra causa da linguagem filosófica (LINS, 1964, p. 39).

Em 1876 formou-se a primeira associação positivista do Brasil com objetivo


de divulgar a literatura recomendada por A. Comte. No começo surge como um
movimento político, inclusive como propõe a “Política Positiva” de A. Comte cujo
papel era direcionar todos os esforços à formação da nova escola “[...] tinha que
atender a duas necessidades: formar crentes e modificar a opinião pública por uma
intervenção oportuna. Assim, cumpria: 1º Desenvolver o culto. 2º Organizar o
ensino. 3º Intervir oportunamente nos negócios públicos” (LEMOS, 1881, p. 21).
Quanto aos pressupostos epistemológicos do positivismo destaco:
Primeiro, a incompatibilidade original com o Ensino Religioso. O positivismo
parte do pressuposto que o conhecimento teológico é retrogrado e precisa ser
ultrapassado. Assim propõe Benjamin Constant:
Pleiteava Benjamin, nesse Relatório, um plano de instrução
primária que fosse, para o povo, “uma espécie de religião, contendo,
como dogma de fé científica, o maior número possível de princípios
teóricos reduzidos a preceitos de imediatas aplicações à vida
prática”. Esse plano visaria ainda a fazer desaparecer aquelas
“crenças funestas, contos fantásticos, práticas supersticiosas que
então circulavam na sociedade dando a medida do seu estado de
ignorância, e que, exaltando a imaginação do homem, lhe
enfraqueciam o espírito, o coração e o caráter, criando pusilânimes
de moral doentio, os quais haveriam de ressentir-se por toda a vida
dos funestos efeitos do mal enraizado desde a infância. “E quantas
dessas concepções concluía Benjamin – não se inspiraram em falsas
crenças religiosas e são por isso um veneno moral sem antídoto
possível depois de inoculado” (LINS, 1964, p. 37).

A neutralidade científica também surge como impasse a ser mensurado. A


proposta positivista, centrada na produção e no “objeto” a ser criado invalida e
desqualifica percepções não empíricas. Puentes Cala (2020) questiona essa
proposta continuada pelo positivismo que prega a separação entre conhecimento
experimental/natural e hermenêutico do espírito humano (pois este não pode,
segundo os padrões positivos, demonstrar suas hipóteses). Com isso possibilita a
ênfase no paradigma clássico que separa ciência de “pseudociência” (imaginação,
crença, falsidade, etc.).
Puentes Cala (2020) ainda alerta para os perigos da universalização
conceitual. Onde uma prática científica centrada na necessidade de identificar leis
naturais mediadas por construtos empíricos podem reduzir as ciências do espírito

443
e a própria subjetividade como algo sem valor, como opinião, imaginação,
superstição etc. Como se fosse possível uma autoneutralização do cientista. Essa
concepção é incompatível com os fenômenos sociais, pois estes não são instâncias
imutáveis, mas são plurais e diversas, originalmente complexas.
Também deve-se atentar para o foco no progresso, no mecanicismo prático e
na eliminação das proposições metafísicas. A sociedade como um organismo
funcional que se desenvolve do estado teológico e mítico, para o metafísico e por fim
para o positivo e científico. No começo era uma proposta de caráter ambíguo, pois
aliava proposições progressistas como a luta pela libertação da escravidão, pela
valorização da mulher, pela educação emancipadora, pelo desenvolvimentismo
industrial, social e econômico, mas também defendia posições ditatoriais para
imposição do positivismo (OLIVEIRA MARTINIAK, 2018).
Segundo Passos (2015), também podemos pensar na influência do
positivismo no desenvolvimento das “Ciências de Mercado”, assim como no
desprezo para com as humanidades. Assim, segundo a proposta positivista, há uma
desvalorização das ciências consideradas “não-empíricas” ou metafísicas. Essa
postura é uma forma de dogmatismo científico pela não aceitação de outras
perspectivas metodológicas. Inclusive, era uma proposta de dogmatismo a-religioso,
que no caso brasileiro, foi apoiada pelo Estado desde a implantação do laicismo. Essa
proposta tem se intensificado com a propagação de ideais “emancipatórios”
relacionados ao mercado e propagados na formação acadêmica, principalmente no
NEM (Novo Ensino Médio).
Um terceiro problema a se considerar, conforme observa Victor Narvaez
(2014), era o próprio conceito de “Ciência” que foi assumido socialmente como um
sistema positivista, e isso de forma totalitária, configurando inclusive as
universidades e disciplinando as diversas formas de saber às propostas da
“supremacia científica”. O paradigma científico passou a influenciar toda a vida. A
“Ordem e Progresso” funcionava como marco regulador da modernidade pela
Civilização, Industria e Ciência. Surge como uma proposta de reordenação da vida
social, formando uma “Epistemologia da Ordem”, onde as coisas, o exame racional e
a interpretação se tornam mecanismos controlados por essa episteme (MARCUSE,
1994).

444
Assim, por meio da influência positivista na formação epistemológica do
tecido social, diversos elementos da metodologia cartesiana, como o dualismo
radical, a dúvida metódica e a categorização foram incluídas não apenas nos
processos científicos, mas nas práticas sociais e na formação educacional,
principalmente por ser dirigida pela episteme positivista como única forma válida
para a verdade. Dessa forma, como apresentado por Martín González Samartin
(2013), o positivismo tem funcionado como uma espécie de “polícia do pensamento
científico” e, neste cenário, o próprio ensino foi reduzido a formas sequenciadas de
competências e habilidades a serem desenvolvidas com a finalidade de uma melhor
formação para o mercado de trabalho. A influência do positivismo nos modelos
epistemológicos contemporâneos precisa ser estudada e considerados os possíveis
efeitos na elaboração e prática do ER no contexto brasileiro.

Considerações finais
A partir da pesquisa realizada evidencia-se a incompatibilidade entre a
proposta positivista e um ER que se pretenda Laico, Plural e Científico. Isso de se
deve principalmente aos fundamentos do positivismo que se remetem às propostas
cartesianas clássicas. Embora esse paradigma possa até ser válido para ciências
exatas é incompatível com as ciências humanas, e seus recortes, ao invés de ampliar
os conhecimentos, podem ampliar e dogmatizar as diferenças.
Assim, quando a proposta da BNCC apresenta, por exemplo, um paradigma
desistoricizado e fundado no estudo fenomenológico de categorias, corre o risco de
aprofundar as diferenças e cooperar para a criação de dogmatismos religiosos pela
redução da diversidade à classificação de percepções específicas. Ou seja, quando se
propõe um estudo temático, se não for apresentado de acordo com um paradigma
complexo (não dualista), corre-se o risco de reduzir a diversidade a uma experiência
única e proporcionar uma classificação estereotipada que, ao invés de ampliar a
compreensão, reduz a diversidade a determinados comportamentos. Assim, a
metodologia cartesiana clássica pregada e desenvolvida nas metodologias que
seguem as ciências positivas cumpre o papel da Navalha de Ocham, onde a
simplificação, fundamento do método cartesiano, quando aplicado às ciências
humanas, cria mais exclusão que inclusão, fundamenta estereótipos e cria padrões
dogmáticos.

445
Aliado a isso, o positivismo também se mostra problemático pois reduz a
compreensão científica ao desenvolvimentismo e às ciências de mercado. Dessa
forma, alarga o preconceito e, reduz a complexidade das relações sociais à números
e resultados da balança comercial.
Diante disso, resta a provocação sobre a necessidade de se pensar a partir de
outras epistemologias possíveis para o ER, pois, mesmo o método fenomenológico
também apresenta cumplicidade com os ideais cartesianos, como o dualismo e o
distanciamento do objeto, assim, também têm dificuldade para fundamentar uma
proposta de ER que seja Laica, Plural e Científica. Todavia, neste contexto, ainda há
propostas epistêmicas a serem consideradas, como as metodologias que procuram
articular sistemas complexos, como a teoria dos sistemas de Luhmann, a teoria da
complexidade de Morin, e o pensamento pós-crítico de Tomáz Tadeu da Silva. São
propostas pouco estudadas enquanto paradigmas para a reflexão religiosa
contemporânea, mas que podem servir à reflexão complexa do cenário brasileiro.

Referências
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http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_s
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CHAGAS, Bárbara da Rocha Figueiredo. Positivismo e marxismo: o debate sobre a


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https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/ssrevista/article/view/21954/17692
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446
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PASSOS, Décio João. Epistemologia do Ensino Religioso: do Ensino à Ciência, da


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SAMARTIN, Martín González. «La moderna inquisición: la ciencia como instrumento


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http://www.magma.analisiqualitativa.com/1102/articulo.it_18.htm > Acesso em
23/10/23.

447
REDUZINDO FRONTEIRAS: UM ESTUDO SOBRE A DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

Jandher Custódio Gomes1

Resumo: Este texto é fruto das primeiras impressões acerca uma dissertação de mestrado
em andamento, que tem como principal objetivo investigar como a Ciência da Religião pode
realizar uma divulgação científica em prol do esclarecimento da população quanto ao do
universo religioso. Acredita-se que além de trazer visibilidade para a disciplina, a divulgação
científica do conteúdo produzido pela Ciência da Religião possa contribuir para uma cultura
de paz, laicidade e combate às intolerâncias religiosas, apresentando-se como instrumento
essencial para a sociedade contemporânea. Neste sentido, será aqui esboçado um cenário
inicial relativo à problematização e objetivos da pesquisa em andamento, tendo como
princípio norteador os seguintes questionamentos (i) como o conhecimento religioso tem
sido construído e divulgado, (ii) qual sua relação com a Ciência da Religião e, por fim, (iii)
como a Ciência da Religião tem sido aplicada a sociedade contemporânea auxiliando no
entendimento sobre o que está por detrás do universo religioso, através da divulgação
científica. Este estudo ainda conta com entrevistas com coordenações dos cursos de pós-
graduação em Ciência da Religião no Brasil, além do mapeamento das ações especificas
realizadas por eles em prol da divulgação científica. Com este estudo espera-se também
mapear o atual status da divulgação científica feita pelos programas de Ciência da Religião
no Brasil, tal como o entorno da questão, contemplando seus desafios e benefícios.
Palavras-chave: Divulgação Científica; Ciência da Religião; Ciência da Religião Aplicada;
Ciência Aplicada; Diversidade Religiosa.

Introdução

Foi somente na segunda metade do século XXI que a Ciência da Religião foi
institucionalizada como disciplina nas universidades europeias. E se por um lado é
considerada por alguns como um fruto recente no meio científico, por outro, seu
objeto de estudo perpassa um longo período da história, revelando-se como antigo,
primordial e quem sabe indispensável. Contudo, não se pretende aqui tratar da
infindável discussão sobre os primeiros indícios do aspecto transcendental da
história humana, nem tão pouco abordar a necessidade ou condições que levaram o
indivíduo a manifestar sua crença neste aspecto nas diferentes culturas. O que
importa-nos dizer é que, independentemente do surgimento da disciplina de forma
estruturada pela academia, seu objeto central atravessa a construção da

1
Mestrado em andamento em Ciência da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós-
graduação master em Marketing e Gestão Comercial, Business School São Paulo; Bacharel em Relações
Internacionais, Universidade Anhembi Morumbi de São Paulo. E-mail: jandhergomes@gmail.com.

448
humanidade. Portanto, identificar nas organizações humanas mais recentes
qualquer civilização, sociedade ou arranjo que tenha dispensado completamente o
objeto de estudo da Ciência da Religião - a relação da humanidade com o aspecto
transcendental e seus impactos no indivíduo e na coletividade - não é tarefa fácil.
Tendo em vista a importância do fenômeno religioso, seu entorno, impacto e
questões que se desdobram sobre os indivíduos e sociedades e a Ciência da Religião,
chega-se o questionamento central deste estudo: compreender o papel que
disciplina pode ocupar na promoção de uma divulgação científica que beneficie a
população, levando esclarecimento sobre universo religioso.
Antes de abordar diretamente o assunto, é preciso reforçar que a Ciência da
Religião não se limita apenas a perceber e analisar os atores sociais. A ela cabe
auxiliar a sociedade através do fomento de uma cultura de paz e diálogo, da
mediação entre conflitos culturais-religiosos e da informação neutra acerca do
universo religioso.
Assim entende-se aqui que o conhecimento produzido pela área pode
contribuir para a disseminação de uma cultura de paz e combate às intolerâncias
religiosas, mostrando-se como essencial.
Posto isto, também é necessário considerar um fator igualmente importante
para este estudo as camadas que compõem a divulgação do conhecimento.
Reconhece-se a existência de diferentes níveis de produção de conhecimento - seja
ele feito por qualquer disciplina ou área. E o correto entendimento destes níveis
auxilia a entender o que é divulgação científica, disseminação científica e difusão
científica, conceitos que frequentemente se misturam e são utilizados de maneira
errônea, mascarando a falta de ações específicas quanto a divulgação científica pela
disciplina.
Por fim, para que fique claro, reconhece-se neste estudo três possibilidades
para a divulgação do conhecimento produzido. A primeira delas contempla a
produção de conhecimento para a própria disciplina. A segunda, ainda é focada no
meio acadêmico e considera a produção de conhecimento para o meio acadêmico de
maneira geral, incluindo áreas correlatas e outras disciplinas ou áreas, por exemplo.
E, por fim, a terceira delas preocupa-se com a produção de conhecimento voltado
para a sociedade. É sobre esta última que repousa este estudo.

449
1. A maneira de construir conhecimento acerca do universo religioso
Mircea Eliade (2010) reconhece que a religião ocupa um lugar primordial na
história. E que, apesar de muitas vezes ser colocada erroneamente como uma fase
do conhecimento humano menos evoluído, ela representa assim uma estrutura
presente na consciência humana.
Já no intuito de refletir sobre o pensamento religioso, David Hume (2005),
em 1757, busca investigar o fundamento racional da religião. O livro publicado por
Hume não somente procura decifrar o que se propõe, mas de certa forma confere
ataques a história contada sob pressupostos teológicos. Assim, ainda que este
exemplo pareça ser distante, ele é plausível para responder o questionamento sobre
como o conhecimento acerca do universo religioso tem sido em sua maior parte
historicamente perpetuado, deixando claro que a visão científica do mundo pode ser
considerada, relativamente, recente quando comparada a um longo período.
Em relação a construção do conhecimento, Lakatos e Marconi (2003)
propõem uma diferenciação. Os conhecimentos religiosos e científicos são validos,
mas tem suas diferenciações. Para as autoras cabe a distinção de que o
conhecimento religioso é construído através de revelações, de verdades infalíveis
sendo impossível sujeitá-lo a verificação. Enquanto o conhecimento científico é
falseável, verificável e pressupõe método.
Assim sendo, a Ciência da Religião é ciência e baseia-se no conhecimento
científico. Já a teologia, no conhecimento teológico, não se apresentando como
ciência (Bunge, 1980, p.37).
O motivo desta afirmação não é alimentar a contenda entre religião e ciência,
com ares de invalidade ou validade, mais ou menos significância. Ela é feita
sobretudo pois, como afirma Japiassu (1996) a visão do mundo de uma sociedade
influencia sua formação. Portanto, acreditar que a visão religiosa não tenha
influenciado a formação dos indivíduos e da sociedade, tendo ela sido um fator
estruturante de muitas destas sociedades é, no mínimo, uma falácia.
Há de se convir que como afirma Lori Gressler (2003), que a tradição
religiosa pautou o desenvolvimento social e organizacional, fornecendo um
conhecimento pautado na tradição autoridade e costumes. E que isto influenciou
inclusive a maneira como se passa a visão acerca do universo religioso adiante. A
construção conhecimento religioso, das informações acerca de outras religiões e do

450
aspecto transcendental da natureza humana, tem sido, majoritariamente,
apresentados sob o viés teológico. E ao propor a divulgação científica da Ciência da
Religião e sua produção, esbarra-se nestes componentes que muitas vezes
dificultam o entendimento ou a busca por diferentes tradições ou religiões – uma
vez que aquela sempre é a verdadeira, e isto não se discute.

2. Divulgação Científica na Ciência da Religião


Ao elaborar um processo evolutivo a respeito da comunicação ciência, pode-
se pensar resumidamente em uma linha do tempo que possibilita entender o
caminho seguido.
Willian Burkettt (1990) e Sheila Grillo (2013) apontam que no início do
século XVI, em várias cidades da Europa, cientistas se reuniam para trocar
informações sobre ciência o que se conhecia por filosofia natural na época. Há,
portanto, neste primeiro momento um interesse em compartilhar informações, em
difundir o que se descobre ou aprende, sendo este um começo do interesse pela
difusão do conhecimento científico.
Dando sequência, os autores também apontam que já no século XVII as
comunicações passaram a ser feitas por cartas. E estas cartas passaram a ser
traduzidas em outros idiomas –permitindo maior difusão do conhecimento
científico. Posteriormente, mas ainda no século XVII, as primeiras impressões de
jornais na Europa traziam colunas com textos científicos, contribuindo também para
a difusão do conhecimento científico de modo geral.
Ao ler o trecho acima, parece-nos possível entender com clareza o começo da
divulgação científica. Contudo é preciso chamar atenção para o termo utilizado no
parágrafo acima: difusão científica e divulgação científica são objetos diferentes.
Ambos tratam da comunicação da ciência, mas em diferentes níveis.
Quando se fala em difusão científica, fala-se de um conceito muito amplo, que
não pressupõe uma linguagem específica, tão pouco possui regras ou formas que
qualifiquem a informação. Difusão científica é “todo ou qualquer processo ou
recurso utilizado para a veiculação de informações científicas ou tecnológicas”
(Bueno, 1985, p.1420). Como foi feito na Europa do século XVI e XVII.
Os jornais e cartas, por exemplo, que brotavam em cidades da Europa, eram
consumidos por uma determinada classe de indivíduos. Não havia o cuidado em

451
adaptar o discurso para que outras meios sociais o compreendessem. Assim, toda
esta revolução, em termos de difusão do conhecimento científico, facilitou a
expansão da ciência, mas não necessariamente trouxe o que se entende por
divulgação científica.
Por outro lado, quando se trata de disseminação científica, pode-se
reconhecê-la como “um processo de que pressupõe a transferência de informações
científicas e tecnológicas, transcritas em códigos especializados, a um público
seleto” (Bueno, 1985, p.1420). Ou seja, ainda que haja uma adaptação da linguagem
ela é direcionada para um público seleto. E especificando ainda mais, a disseminação
científica pode ser direcionada a (i) intrapares, sendo estes especialistas da área ou
áreas conexas e (ii) extarpares, referindo-se a especialistas fora da área em questão.
Por fim, quanto a divulgação científica entende-se a “[...] utilização de
recursos, técnicas, processos e produtos (veículos ou canais) para a veiculação de
informações científicas, tecnológicas ou associadas a inovações ao público leigo”
(Bueno, 2009, p.162). Ou seja, ela necessariamente precisa ser direcionada ao
público leigo. E, portanto, pressupõe certa adaptação. A informação precisa ser
quase traduzida, para alcançar seu destinatário final.
Divulgação científica é produção de conhecimento para a população. Não é a
divulgação de textos acadêmicos ou com linguagem especializada em congressos da
área ou revistas acadêmicas. A informação precisa ser repaginada e circular em um
meio mais acessível, não tão específico.
Mas porque investir na divulgação científica?

“A divulgação científica cumpre função primordial:


democratizar o acesso ao conhecimento científico e
estabelecer condições para a chamada alfabetização
científica. Contribui, portanto, para incluir os cidadãos no
debate sobre temas especializados e que podem impactar sua
vida e seu trabalho, a exemplo de transgênicos, células
tronco, mudanças climáticas, energias renováveis e outros
itens” (Bueno, 2010, p. 5).

A divulgação científica democratiza o acesso à informação, leva


conhecimento a população, informa e através do conhecimento reduz preconceitos
e estigmas. Neste sentido, em qual patamar se encontram as ações da Ciência da
Religião?

452
Considerações finais
Até o outubro de 2023 foram ouvidas 32% dos coordenadores e
coordenadoras de programas de Pós-Graduação em Ciência da Religião no Brasil.
Também foram ouvidos membros da área 44 de Teologia e Ciências da Religião na
Capes. E a maioria das ações dos programas de pós-graduação em Ciências da
Religião do Brasil investem na difusão e disseminação do conhecimento científico,
mas não possuem ações específicas focadas da divulgação científica da área. Há
exceções: há programas que possuem programas de TV com episódios constantes e
produções exemplares.
Entretanto, tornar os temas investigados pela Ciência da Religião mais
palatáveis parece ser um desafio, visto o engajamento e total de seguidores em redes
como Instagram por exemplo, tal como o número de inscrições em canais no
youtube e de interações nos mesmos. E ainda se tem o questionamento em mente:
este conteúdo tem sido direcionado mais a população em geral ou ainda é concebido
e pensado para um público especializado? Espera-se responder esta pergunta ao
final do estudo, com planejamento para conclusão em janeiro de 2024.
Por outro lado, algumas questões se colocam no caminho e que também serão
melhor exploradas. Uma delas é por exemplo o papel da divulgação científica. Ele é
do pesquisador (a) ou da universidade? O pesquisador ou pesquisadora é preparado
para isto? E como fazê-lo quando a maioria dos cursos de pós-graduação não conta
com um setor específico para cria-lo?
Não menos importante é o status que se dá para a produção do conhecimento
direcionado a população. Ele é tido como importante? E ainda, ainda qual o incentivo
de produzir conteúdo para a sociedade se este não for um requisito para avaliação
do curso? Parece uma visão utilitarista, mas ela compõe também a o entorno da
divulgação científica.
A divulgação científica no Brasil é um assunto complexo e que precisa ser
melhor investigado tal como incentivado. A produção da Ciência da Religião precisa
ser melhor direcionada. Há ainda aqueles que acreditam que a divulgação científica
deveria ser feita através de cursos de extensão. Contudo, ainda para que haja publico
para os cursos de extensão é preciso que este público saiba do que a área trata e
como ela pode contribuir para a sociedade, formação ou informação do indivíduo.

453
Não obstante, a atração de público para os programas de pós-graduação tem se
tornado uma outra questão a ser explorada.

Bibliografia
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cultura, v.37, n.9 p.1420 – 1427, 1985.

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C.; CALDAS, G.; BORTOLIERO, S. (Org.). Jornalismo científico e desenvolvimento
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Pedra aos mistérios de Elêusis. Tradução Roberto Cortês de Lacerda. Rio de Janeiro:
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HUME, David. História natural da religião. Tradução de Jaimir Conte. São Paulo:
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f. Tese de Doutorado – Universidade São Paulo, São Paulo.

LAKATOS, Eva M.; MARCONI, Marina de A. Fundamentos da metodologia científica. 5


ed. São Paulo: Atlas, 2003.

454
AS TEORIAS CONCORRENTES DA ORIGEM DA RELIGIÃO DE TYLOR
E DE DURKHEIM: UMA ANÁLISE BOURDIEUANA

Luís Jorge Lira Neto1

Resumo: Os pioneiros da antropologia social buscavam os primórdios da religião, essa força


de coesão do extrato social e modeladora da cultura. Nomes como Edward Tylor e Émile
Durkheim se exercitavam na definição e nas origens da religião, calcados na perspectiva
científica, predominante na modernidade. O inglês Tylor formulou a Teoria Animista para o
fenômeno da religião (todas as coisas têm uma alma), inaugurando a Antropologia e o termo
moderno de Cultura, refletidas em sua obra principal Primitive Culture (1871). Neste
contexto discursivo, surgiu Émile Durkheim colocando a sociedade anteposta à cultura e
elaborou a Teoria Totêmica que a defendeu como sendo a melhor opção para explicar as
origens das manifestações religiosas na humanidade. Na sua obra As Formas Elementares da
Vida Religiosa (1912) concluiu que o totemismo australiano é a religião primeira e foi
originária de fenômenos sociais, a coletividade. Esse texto analisou essas duas correntes sob
a conceituação teórico-prática de Pierre Bourdieu, a qual indica que o olhar do observador
perpassa pelo sentido para onde se dirige, o objeto olhado. O que se vê é distinto do que se
olha, pois o que é visto decorre da vivência do sujeito observador, este carreia consigo toda
uma estrutura que lhe condiciona a forma de observar. A pergunta central do texto é se as
teorias concorrentes de Tylor e de Durkheim carreavam intrinsecamente o sentido de
religião destes pesquisadores e por isso nortearam suas teorias sobre a origem da Religião.
Pela análise bourdieuana do contexto sócio acadêmico de ambos é possível inferir que sim.
Palavras-chave: Religião; Animismo; Totemismo; Bourdieu.

Introdução
Na origem, os pioneiros da antropologia social buscavam os primórdios da
religião, essa força de coesão do extrato social e modeladora da cultura. As respostas
aos questionamentos passavam pela aplicação de método científico sobre a
realidade dos denominados “povos primitivos” e de culturas “descobertas” pelos
impérios ocidentais nos seus avanços sobre os espaços e realidades orientais. Desse
encontro desencontrado pelo poder de possuir, surgiu o fascínio sobre a linguagem,
os ritos, os mitos e as transcendências estranhas ao olhar centrado na herança
greco-judaica-cristã, esquecida das tradições da parte do sol nascente.
Na formação da disciplina Antropologia foram construídas teorias sobre o
fenômeno religioso, empregando métodos científicos, mas na sua origem os

1Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (2022- ). Mestre em


Economia pela Universidade Federal de Pernambuco (2008). Graduado em Engenharia Elétrica pela
Universidade de Pernambuco (1982). Membro do Instituto Arqueológico Histórico Geográfico
Pernambucano. E-mail: luis.lira.al@gmail.com.

455
pioneiros estavam influenciados pela teoria evolucionista de Charles Darwin (1859)
e pelo predomínio da ciência na sociedade. Na busca por uma essência ou natureza
da religião a percebiam como mecanismo da mente humana e foram comprovar suas
hipóteses na análise de dados empíricos coletados em pesquisas de campo e no
contato com povos “primitivos”, considerados “resquícios primitivos da
humanidade”, que deveriam conservar “as formas elementares” das expressões
religiosas (Guerriero, 2013, p. 248). Com base nesses pressupostos, o inglês Edward
B. Tylor formulou a Teoria Animista para o fenômeno da religião (todas as coisas
têm uma alma), inaugurando a Antropologia e o termo moderno de Cultura,
refletidas em sua obra principal Primitive Culture (1871), uma proposta de um
positivismo progressista em contraposição aos estudos comparativos das religiões
de Max Müller (Lectures on the Science of Language – 1861). Considerou as religiões
dos “selvagens” no mesmo nível das religiões dos “civilizados”, numa visão
naturalista e “romântica” (Agnolin, 2013, p. 29-31).
Neste contexto, surgiu Émile Durkheim colocando a sociedade anteposta à
cultura, elaborou a Teoria Totêmica e a defendeu como sendo a melhor opção para
explicar as origens das manifestações religiosas na humanidade. Na sua obra As
Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) concluiu que o totemismo australiano
é a religião primeira e foi originária de fenômenos sociais, a coletividade (Durkheim,
1990, p. 17). Para defender essa tese, Durkheim teceu críticas às teorias
concorrentes à época, como o Animismo representado por Tylor e o Naturalismo de
Max Müller.
A pergunta central desse texto é se as teorias concorrentes de Tylor e de
Durkheim carreavam intrinsecamente o sentido de religião destes pesquisadores, e
por isso nortearam suas teorias sobre a origem da Religião, isso sob a conceituação
teórico-prática do sociólogo francês Pierre Bourdieu.

1. Edward Burnett Tylor (1832-1917)


Antropólogo inglês, autodidata, nascido numa família quacre (protestante),
fazia parte da escola do evolucionismo social ao lado de Morgan, Frazer e Spencer.
Era interessado na compreensão dos costumes de outras culturas. Foi o primeiro
professor britânico de antropologia (1896) e é considerado fundador da
antropologia cultural. Formulou o conceito moderno de cultura, apresentado no

456
início de sua principal obra, Primitive Culture, publicada em 1871. Entendia que a
humanidade evoluía de forma progressiva e que as expressões religiosas
“primitivas” conservavam-se em sociedades ditas mais avançadas (Castro, 2005, p.
9). Segundo Agnolin (2013), Tylor empreendeu uma procura pelas origens da
cultura, para isso, defendeu cientificamente a tese de que os “selvagens”
representariam a origem da humanidade. Na sua obra Primitive Culture (1871)
tratou de correlacionar cultura e religião, ampliando o conceito desta última para
uma definição mínima que contemplasse as dos povos “primitivos”. Propôs então, a
crença em “seres espirituais” denominada de Animismo, do latim anima (alma), era
“a denominação do mais primitivo estágio da evolução cultural”, algo que se
transformaria em religião. Nesse sistema, os seres espirituais interviam nos
fenômenos da natureza e todas as coisas tinham uma alma, os animais, os vegetais,
os seres humanos e até os objetos inanimados, uma substância espiritual que estaria
além do corpo físico.
Tylor defendia o método histórico-comparativo, pelo qual equiparar era
comparar e não distinguir. De acordo com Guerriero (2013, p. 244-245) Tylor
defendeu, também, a existência de uma linha histórico-evolutiva das religiões, do
animismo ao politeísmo e depois ao monoteísmo. Constatou que as crenças das
sociedades civilizadas tinham raízes nas manifestações religiosas de culturas “mais
primitivas” e que não haveria ineditismo, os artigos de fé foram todos herdados
desses povos; exemplificou através da crença na metempsicose (reencarnação) que
se encontrava em vários povos primitivos e em culturas avançadas (Rosa, 2010, p.
299). Sua famosa definição de cultura encontra-se na primeira página do Primitive
Culture: “Cultura ou Civilização, considerada no amplo sentido etnográfico, é todo um
complexo no qual estão incluídos conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e
quaisquer outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da
sociedade” (Tylor, 1871, p. 1, tradução nossa)2.

2 No original:
“Culture or Civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which
includes knowledge, belief, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by
man as a member of society” (Tylor, 1871, p. 1).

457
2. David Émile Durkheim (1858-1917)
Sociólogo francês, também antropólogo, cientista político e psicólogo social,
é citado como um dos fundadores da sociologia, ao lado de Karl Marx e Max Weber.
Suas principais obras foram: Elementos da Sociologia (1889), Da Divisão do Trabalho
Social (1893), As Regras do Método Sociológico (1895), O Suicídio (1897) e As Formas
Elementares da Vida Religiosa (1912), além de outras obras póstumas (Giannotti,
1983, p. vii-ix).
Durkheim trabalhou ativamente para estabelecer a sociologia como
disciplina autônoma no mundo acadêmico. Promoveu o que foi denominado de
realismo epistemológico e defendeu o método hipotético-dedutivo como o mais
adequado para os estudos na ciência social. Abordou a sociedade como um fato sui
generis, não redutível a outros. Criou conceitos como de “consciência coletiva”, um
sistema de representação de crenças coletivas da sociedade e de “solidariedade
social” que a definiu para os principais tipos de grupos sociais. Concebia o ser
humano como fruto da criação da coletividade. Para ele, a sociologia era a ciência
das instituições, tendo como objeto os fatos sociais estruturais. Parte de suas
pesquisas foi para demonstrar que os fenômenos religiosos resultam do contexto
social, da coletividade e não de fatores divinos, segundo estudos das origens da
religião nos grupos primitivos. Deixou um legado importante no desenvolvimento
da antropologia e da sociologia, sendo o maior destes, o estabelecimento da
sociologia como uma disciplina acadêmica independente e reconhecida. Seu
trabalho teve influência significativa no estruturalismo e inspirou diversos
acadêmicos.
No livro As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) ele deslocou o
conceito de religião e a definiu como representação coletiva, destacando sua função
lógica. Defendeu que as crenças totêmicas eram construções simbólicas que
ordenam a vivência dos clãs. O Totemismo era uma “força anônima e impessoal” que
se manifestava em cada membro da tribo, mas ninguém individualmente a detinha
inteiramente, todos participavam dela. Durkheim comprovou ser essa força a
própria coletividade, que submetia os participantes do clã às regras de conduta,
conferindo uma dimensão de sagrado à coletividade; o totem seria, então, a
representação simbólica da sociedade e da sua força religiosa – “força coletiva e
anônima do clã”. O simbolismo emblemático do totem seria o corpo visível do deus

458
(Durkheim, 1990, p. 260; p. 277). Para ele, portanto, a religião não seria apenas um
sistema de ideias, seria “antes de tudo um sistema de forças” e sintetiza o que é
religião no seu conceito clássico “é um sistema solidário de crenças seguintes e de
práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas
que unem, na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem”
(Durkheim, 1990, p. 79).

3. Refutações de Durkheim à teoria animista de Tylor


Na obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, Durkheim analisou as
principais concepções da religião elementar (as origens da religião). Iniciou pelos
fundamentos da Teoria Animista, definindo Edward Tylor como o melhor
representante desta tese por ele ter constituído seus traços essenciais. A Teoria
Animista defendia que a crença em espíritos era o estágio mais primitivo das
expressões religiosas e que a ideia de alma surgiu pelas experiências da “dupla vida”
do indivíduo, o estado de vigília e durante o de sono. Das repetições dessas
percepções nasceu no “selvagem” a ideia da existência de um duplo, que seria um
outro organismo que, em determinadas circunstâncias, tinha o poder de “sair do
corpo” e vivenciar outras situações em sonhos e visões. A transformação da alma em
espírito ocorreria após a morte do corpo, daí o culto aos mortos e os ritos funerários
presentes em todos os povos.
Durkheim passou ao exame crítico das teses concorrentes. Em princípio,
distinguiu duas, que a seu ver, eram contraditórias na determinação da origem da
religião: a Animista e o Naturismo. Ao colocar em contraposição os conceitos dessas
duas correntes, uma que defendia a origem da religião no culto aos espíritos
(Animismo) e a outra que defendia o culto à natureza como ponto de partida da
religião (Naturismo), desqualificou ambas por essa divergência de fundamento.
Questionou o Animismo por não ter uma resposta plausível para justificar como,
partindo do culto aos seres sobrenaturais, os povos “primitivos” derivaram para os
cultos aos elementos da natureza. No caso, Tylor explicou que os “primitivos” não
distinguiam bem os seres vivos dos inanimados, viam nas coisas do mundo o modelo
humano, à semelhança do pensamento infantil. Essa resposta foi contradita pela
reflexão comparativa com o proceder dos animais que sabem distinguir coisa
inanimada da viva, sendo inferiores aos humanos.

459
Após essas objeções, rebateu a tese dos sonhos e do culto aos mortos
derivados da crença nos espíritos. Descartou a ideia dos sonhos por considerá-la
simplória demais para dar existência as forças da expressão religiosa. Quanto ao
culto aos mortos, considerou que só teve início em sociedades avançadas, não tendo
origem primitiva. Com essa argumentação descartou a teoria Animista, por faltar-
lhe base sólida de argumentação e comprovação, e concluiu com a observação de
que a fé da religião continuava, mesmo quando era contrariada pela natureza dos
fatos, assim, a causa da religião deveria ser encontrada em outro lugar. E ele a
assinala no Totemismo considerando-a “como a mais elementar” que se tem notícia
e que surgiu imbricada com a sociedade, a qual teria todas as condições para
despertar nos seres humanos a “sensação do divino”, isto porque, a sociedade tem a
mesma representação para seus membros que um deus tem para seus seguidores
(Durkheim, 1990, p. 160).

4. O que se vê é distinto do que se olha


Neste texto, o objeto não está no comparativo dessas duas teorias, o
Animismo, defendida por Tylor e o Totemismo por Durkheim, mas o que em suas
defesas os argumentos refletiram a concepção a priori da religião de seus
formuladores. De fato, na conclusão de sua análise, David Pals (2019, p. 371 – 381)
questionou se havia uma relação entre as convicções pessoais de um teórico e a
proposição de sua teoria. Deduziu que os pesquisadores clássicos analisados em seu
livro, sendo seres humanos, possuem conceitos, juízos e ideologias pessoais que
permeiam suas conclusões sobre religião, portanto, não haveria “um estudioso
puramente imparcial”. Citou como principal característica de Tylor a percepção de
ser um “teórico científico”, dentro das disciplinas Antropologia e Etnologia,
assumindo que qualquer explicação sobre religião teria, necessariamente, que
excluir fatos milagrosos e revelações divinas, por isso considerou-o “racionalista
antirreligioso”, que pensou a religião como um sistema de crenças e de ideias que
foram desenvolvidas para explicar o mundo, e que a religião só seria assimilada na
coletividade, depois de passar de forma gradativa a ideia do indivíduo para seu
grupo (Pals, 2019, p. 32; p. 60).
Por outro lado, de acordo com Hervieu-Léger e Willaime (2009, p. 165),
Durkheim, filho e neto de rabinos, mas afastado de suas raízes judaicas, se

460
autodenominava de agnóstico, racionalista e ateu, bastante preocupado com a
moral. Segundo Pals (2019, p. 99-105) Durkheim tinha uma visão sociológica dos
fatos religiosos (até certo ponto ateísta), onde religião e moral seriam dependentes
entre si e inseparáveis de uma estrutura social. A religião seria de essência social e
que o indivíduo, desde o nascimento, seria moldado pela sociedade.
Dada essa percepção a priori desses teóricos sobre religião, aplica-se a
conceituação teórico-prática de Pierre Bourdieu (2013, p. 87-88) sobre o processo
de observação (pesquisa), em que o observador age sobre suas relações como
estrutura estruturante, concebida de forma ordenada (por isso estrutura), visando
estruturar com o que interage, transformando suas relações em estruturas
estruturadas. Daí surge o habitus como um “sistema de disposições adquiridas,
permanentes e geradora de práticas” que visa adaptar o objeto observado (no caso a
religião) ao seu observador (pesquisador), na forma de uma aparente necessidade
natural, validando ou invalidando as condições postas. Portanto, o que se vê é
distinto do que se olha, pois o que é visto decorre da vivência do sujeito observador,
este carreia consigo toda uma estrutura que lhe condiciona a forma de observar.
Surgindo assim, como necessidade da prática acadêmica nas observações do fato
social, o que Bourdieu denominou de “vigilância epistemológica”, utilizando-se da
estatística a fim de minimizar os efeitos da “ilusão do conhecimento imediato”; e a
“crença da neutralidade das técnicas de pesquisa” – com o sentido de que o
pesquisador é um sujeito social que, com suas idiossincrasias, influência de forma
inconsciente a escolha dos dados, a aplicação da metodologia e mesmo o relato dos
resultados (Monteiro, 2018, p. 38).
O conceito de Reflexividade em Bourdieu, reforça o argumento do uso
imprescindível de procedimento metodológico nas pesquisas científicas na esfera
social, para se obter um “saber válido” sobre a sociedade, sem grandes interferências
pelo habitus do observador que influencia sua interpretação sobre o objeto de
pesquisa, condicionado pela sua posição no campo científico e pelo volume de capital
simbólico. Segundo Grenfell (2018, p. 256) o exercício da reflexividade contribui para
suprimir as projeções do inconsciente dos cientistas na relação com seu objeto de
pesquisa.
No caso de Tylor, segundo Rosa (2010) e Agnolin (2013), defendia o conceito
de “religião natural”, caracterizada como inevitável e universal, mas vinculada a

461
cultura, num sentido positivista, destituída do sobrenatural por ser criação humana.
Buscou em suas pesquisas as origens da cultura – imbricada à religião e o que
encontrou, afirmou sua perspectiva progressista da religião “civilizacional”, uma
visão tipicamente inglesa à época. Encontrou a fórmula mínima de religião que, em
seus primórdios, assentava-se na crença em “seres espirituais”. Em relação à
Durkheim, segundo análise de Queiroz (2017), o tema religião como fato coletivo
circundou suas pesquisas muito antes da publicação do seu livro As Formas
Elementares da Vida Religiosa (1912), não havendo propriamente um ponto de
inflexão do tema em relação às obras precedentes deste. Corrobora com esse
entendimento Renato Ortiz (1990) e Maria Machado (2013), os quais concordam
que Durkheim, na sua obra Da Divisão do Trabalho Social (1893), já analisava o papel
da religião como um sentimento de pertencimento e do compromisso moral dos
indivíduos na coletividade, partindo do conceito de “Consciência Coletiva”, que gera
mecanismos de coesão social, a denominada “Solidariedade Mecânica”. Para Igor
Machado (2019, p. 126-130) “Durkheim espera explicar o social pelo social” e que o
pensamento religioso se articula com o social e a sociedade é a fonte do pensamento
lógico, o que implica numa circularidade.
Os conceitos da teoria de Pierre Bourdieu aplicados no contexto sócio
acadêmico desses pesquisadores – bem posicionados no campo científico, aliado ao
nível dominante em capital acadêmico cultural obtido por eles, transformado pela
comunidade em capital simbólico por considerá-los formadores e consolidadores de
disciplinas, infere-se que é grande a probabilidade3 desses agentes terem agido de
acordo com suas disposições, como estrutura estruturante sobre suas relações –
aqui representada pelo objeto de pesquisa, a religião.

Conclusão
Na modernidade, a Academia inventou novas disciplinas que foram aplicadas
também para entender o fenômeno religioso, além do olhar da História e da
Teologia, tais como, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Ciência da Religião e novas
abordagens filosóficas. As teorias foram se formando, interpretações ainda
carregadas de parâmetros ocidentalizados desfilavam seus achados. Os pioneiros

3Possibilidade em dois sentidos, um devido ao formato discursivo desta análise e a forma como
Bourdieu concebe sua teoria com base em pesquisas empíricas e na estatística dos dados, sendo
provável apenas para aquelas condições observadas.

462
debruçaram seus saberes sobre as reminiscências vivas de primevas culturas,
nomes como Edward Tylor e Émile Durkheim se exercitavam na definição e nas
origens da religião, calcados na perspectiva científica da modernidade.
Na atualidade essas teorias pioneiras, vencidas pelo dinamismo
metodológico e epistêmico dos continuadores, servem de exemplo pela intrepidez
dos seus originários, vida dedicada ao conhecimento das origens, influenciados pelo
darwinismo e, utilizando-se de escassos recursos metodológicos, constituíram
ciências, deixando um legado para as próximas gerações, que, apropriando-se desse
arcabouço científico, constituíram críticas e formularam outras proposições
classificatórias, histórico-críticas que em essência, também traduzem o habitus de
seus incentivadores, caso fosse aplicada a todos a teoria bourdieuana do espaço
social. Ela mesma, passa por revisões críticas apoiando-a ou rejeitando-a, no todo
ou em parte, dada a sua forma hegemônica de explicar o mundo social, a análise
estática das ações no campo social, o hermetismo nas relações entre campos de
modalidade diferente, o determinismo das ações não conscientes dos atores sociais
(Jourdain; Naulin, 2017, p. 171-173).
A aplicabilidade dos conceitos de Bourdieu, no presente, tende para a
contextualização a fim de suavizar sua centralidade na cultura francesa, mas usufrui
de força suficiente para lançar reflexões extensivas a outras áreas, como a da Ciência
da Religião, prima-irmã da Antropologia Social, na qual consta em seus postulados
epistêmicos e metodológicos a suspensão do juízo do sujeito observador, como
pressuposto metodológico, o que, de partida, tende a minimizar os efeitos do
habitus. Seja qual for a ambiência, o pesquisador precisa estar cônscio de suas
limitações e influência no objeto observado. O próprio Durkheim, aqui analisado, já
alertava para este fato quando definiu As Regras do Método Sociológico (2004, p. 63),
o sociólogo deveria então “afastar sistematicamente as prenoções” que, pelo
resultado dessa análise, esta regra continua válida e com mais intensidade.

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TYLOR, Edward. Primitive culture. vol I. London: John Murray, Albermale Street,
1871.

464
EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO: UMA REFLEXÃO
SOBRE A NOÇÃO DE DISCIPLINARIDADE

Tatiane Aparecida de Almeida1

Resumo: A noção de disciplina é o ponto central de nossa reflexão. Partindo desse


pressuposto nosso objetivo é apresentar a Ciência da Religião como disciplina autônoma e
consolidada no campo teórico-metodológico e epistemológico dentre as áreas de
conhecimento. No primeiro momento, abordar-se-á como enfatizam os especialistas da
nossa disciplina, que a Ciência da Religião é uma disciplina autônoma, dedicada à
abordagem empírica e sistemática de fatos religiosos concretos, de perfil não normativo.
Desse modo, em um segundo momento nos guiaremos por esse entendimento que atravessa
o último século e meio de consolidação da disciplina em nível internacional, e mais
recentemente nos últimos cinquenta anos em nosso país, período em que, consideradas as
abordagens metodológicas interdisciplinares, consideramos que a disciplina, em sua
delimitação teórico-metodológica dialoga e se enriquece na intersecção com outras áreas
do conhecimento e com as suas respectivas disciplinas “... da religião”. Reconhecemos que
dessa forma se constitui o perfil interdisciplinar, em sentido teórico-metodológico, na
perspectiva disciplinar. Partindo desse pressuposto compreenderemos que tal processo,
contudo, não elimina de forma alguma a tarefa de construção de sua identidade própria
como disciplina, inclusive demonstraremos nessa comunicação que essa tarefa é essencial
para o reconhecimento da disciplina no âmbito de sua importância no campo científico-
acadêmico e social brasileiro.
Palavra-chave: Ciência da Religião; Epistemologia da Ciência da Religião; Disciplinaridade.

Introdução
A Ciência da Religião estabeleceu-se como disciplina acadêmica somente na
segunda metade do século XIX e, sendo assim, é perceptível que a disciplina
desenvolveu traços específicos de cada nacionalidade, sendo ainda no caso
brasileiro que o ponto de vista internacional segue ainda de entendimento
complexo.
Acreditamos que tal fato se deve a necessidade da dedicação aos estudos em
epistemologia da disciplina em especial ao contexto brasileiro, uma vez que essa
tarefa segue em desenvolvimento por estudiosos da disciplina.

1Doutora e mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião


da PUC Minas e graduação em Pedagogia com aprofundamento em Ensino Religioso, ambos cursos
realizados na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: tatyanealmeida-
10@hotmail.com.

465
Partindo desse pressuposto, apresentamos nossa reflexão que se dedicará a
pensar sobre o perfil disciplinar da Ciência da Religião com intuito de fomentar
discussão epistemológica tão necessária.

1. Disciplina
Barros (2011) se propôs a desenvolver com o esquema a seguir, uma linha
de raciocínio que lhe permitiu explanar o que considerava serem os dez elementos
constitutivos de um campo disciplinar, ou seja, uma disciplina.
De acordo com as reflexões de Barros (2011), um campo disciplinar é
organizado e sistematizado a partir de: campo de interesses (1), singularidade (2),
campos intradisciplinares (3), padrão discursivo (4), metodologias (5), aporte
teórico (6), oposições e diálogos interdisciplinares (7), interditos (8), rede humana
(9) e olhar sobre si (10).
Barros (2001) explica que uma nova disciplina pode vir a surgir de
desdobramentos de um campo disciplinar existente, ou que se desprenda dele para
se constituir como uma nova, adquirindo identidade própria. E assim como a
história, a disciplina avança e se transforma. Barros (2011) se propôs a desenvolver
com o esquema a seguir, uma linha de raciocínio que lhe permitiu explanar o que
considerava ser os dez elementos constitutivos de um campo disciplinar.
Figura 1. Constituição de um campo disciplinar

Fonte: BARROS, 2011, p. 268.

466
Para o autor, o primeiro aspecto diz respeito ao campo de interesses.
Segundo Barros (2011), pode ocorrer que o centro de interesses de uma disciplina
esteja situado em uma confluência, em uma conexão de saberes e pode ocorrer
também que o conjunto de interesses de uma disciplina passe por transformações
no decorrer de sua própria história e “pode ocorrer ainda que dois campos de saber
separados se agrupem para formar um só, se fortalecendo mutuamente a partir de
uma unidade” (BARROS, 2011, p. 258). Mediante o exposto, o campo de interesses
trata do objeto de estudo. Destarte, toda disciplina parte desse princípio. O objeto
de pesquisa se refere ao eixo central no qual tramita o interesse de estudo do
pesquisador/a.
A singularidade é o segundo aspecto. Diz respeito ao que diferencia a
disciplina das outras disciplinas do conhecimento. Para Barros (2011), a
singularidade justifica de fato a existência da disciplina. Na descrição realizada no
quadro, o autor salienta que é a singularidade que define a disciplina, porque é ela a
responsável por dar identidade e projeção à disciplina o que a habilita para ocupar
um lugar institucional específico no mundo acadêmico.
O terceiro aspecto se refere aos campos intradisciplinares. Barros (2011)
explicita no quadro que cada campo disciplinar gera especializações e
desdobramentos de cunho interno, o que denomina de campos intradisciplinares.
Esse aspecto remete à especialização construída no seio do campo disciplinar
quando atinge certo nível de complexidade.
De forma conjunta trataremos do quarto, quinto e sexto aspectos tal qual
propõe o autor. Ambos se referem ao padrão discursivo, à metodologia e à teoria.
Isto porque, nessa compreensão, ambos os aspectos estão intimamente interligados.
Segundo Barros (2011), a disciplina possui discurso próprio. Ou seja, existe
um vocabulário específico, que pode ser baseado em termos e/ou siglas que
permitem e favorecessem o diálogo entre os praticantes, embora possa haver um
discurso amplo e comum. Destaca o autor que “o desenvolvimento de um campo
disciplinar acaba gerando uma linguagem comum através da qual poderão se
comunicar os seus expoentes, teóricos, praticantes e leitores” (BARROS, 2011, p.
260). Percebemos que o desenvolvimento dessa linguagem própria se consolida na

467
prática. Ou seja, há a necessidade de se refletir sobre a disciplina partindo dos
pressupostos que denominamos de constituintes.
Fato é que o método reflete em grande medida os constituintes da disciplina,
auxilia na compreensão das teorias e nos fornece orientação na coleta de dados
empíricos. Lakatos e Marconi (2010), que trabalham com a definição de método,
explicam que o que caracteriza uma ciência é a utilização de um método. Caso
contrário, não há ciência.
Ou seja, tendo em vista essa definição, constatamos que o método trata da
teoria da investigação. Não obstante, reconhecemos que toda disciplina deve reunir
esforços em prol do estudo da abordagem metodológica. A consolidação de uma
disciplina deverá passar pelo crivo de sua própria compreensão e clareza do método
adotado que a auxiliará no esforço de autocompreensão da pedagogia da disciplina.
O sétimo aspecto trata das Oposições e diálogos interdisciplinares. Para o
autor, a interdisciplinaridade é entendida como um desafio para a produção da
ciência. Logo, também pode ser entendida como um caminho transversal à
disciplinaridade. Para Barros (2011), é comum que um campo disciplinar contribua
a partir de suas próprias questões a outro campo disciplinar, seja propiciando
diálogos ou movimentos de oposição. A interdisciplinaridade está presente,
sobretudo no intercâmbio teórico metodológico entre as disciplinas, não elimina as
contribuições individuais, mas as integra.
O oitavo aspecto, identificado como Interditos, remete ao lado exterior ao
campo disciplinar. Barros (2011, p. 62) denomina como o proibido aos seus
praticantes. E preciso identificar o que não contempla a disciplina, ou seja, além de
ter muito claro o que nela cabe é mais importante ainda saber o que nela não lhe
cabe. Esse aspecto é caro ao campo disciplinar, pois assegura as escolhas
interdisciplinares.
O nono aspecto, chamado Rede humana, é considerado pelo autor como
aquilo que perpassa todos os demais aspectos, pois “é constituída por todos aqueles
que já praticaram ou praticam a disciplina” (BARROS, 2011, p. 263). Para o autor, ao
se falar em uma rede humana estamos nos referindo em grande medida à rede
institucional que é composta pelos grupos existentes em universidades, institutos de
pesquisa, grupos de pesquisa, conselhos editoriais de revistas científicas dentre
outros agrupamentos científicos. Estamos nos referindo às pessoas que contribuem

468
com a manutenção do campo disciplinar a qual denominamos de comunidade
científica.
Barros (2011) afirma que, ao reconhecer a existência dessa rede humana, o
campo disciplinar é conduzido de encontro ao décimo aspecto que é sobre realizar
um olhar sobre si. Em nossa compreensão, isso quer dizer ter consciência de si, o que
estabelece, a certa altura, o próprio amadurecimento do campo disciplinar.
Esse olhar, para Barros (2011, p. 265), é revelado em formas de produção
científica, do tipo que reúne saberes e análises, denominado de histórias do campo
pelos praticantes do campo disciplinar. Os praticantes são considerados sujeitos
capazes de se compreenderem historicamente e revelaram esse tipo de resultado
partindo do olhar sobre si mesmo.
Findamos, assim, a apresentação dos dez aspectos que, segundo o exposto
por Barros (2011), são dimensões capazes de nortear a compreensão de disciplina.
Ademais, reconhecemos que esta lógica supramencionada muito nos auxilia na
atividade de examinar os pressupostos que constitui uma disciplina.
De acordo com as reflexões apresentadas, os dez aspectos podem sofrer
mutações, sendo estáticos somente os conceitos, uma vez que a história ainda está
em curso e no ensino, os conhecimentos são organizados em função das disciplinas.
Esses critérios possibilitariam o estudo e conhecimento das disciplinas e constituir-
se-iam numa etapa anterior à interdisciplinaridade.

Considerações finais
A partir do exposto identificamos que a Ciência da Religião atende aos dez
elementos constitutivos que de acordo com Barros (2011) organizam uma
disciplina.
Dessa maneira, inferimos que a Ciência da Religião se refere a uma disciplina
que é dedicada à abordagem empírica e sistemática de fatos religiosos concretos, de
perfil não normativo.
Ademais, deve ser considerada autônoma e aqueles que não a percebem
assim, ainda lhes falta o conhecimento disciplinar.

469
Em vias disso, entendemos que a disciplinaridade e a interdisciplinaridade
atravessam a história da ciência e pela lógica não se distanciam da história 2 da
disciplina Ciência da Religião. Dessa maneira, vale ressaltar que a Ciência da Religião
se refere a uma disciplina autônoma e aqueles que não a percebem assim, ainda lhes
faltam o conhecimento disciplinar.
Em vias disso, compreendemos que ainda se faz necessário a maturação
epistemológica como pauta para discussão interna a ser realizados pelos(as)
estudiosos(as) da disciplina para evitar que os trabalhos produzidos no âmbito de
nossa disciplina não sejam equivocamente atrelados a outra natureza cientifica que
não da Ciência da Religião.
Não obstante, vale ressaltar que não estamos orientando que haja supressão
de disciplinas em detrimento a outras, mas sim que estabeleça o rigor da reflexão
disciplinar no tange o objetivo da disciplina que se dedica à abordagem empírica e
sistemática de fatos religiosos concretos, de perfil não normativo para
posteriormente suscitar alguma convergência interdisciplinar.
Insurge ainda como sugestão que a Ciência da Religião se faça reconhecer nas
demais disciplinas. Entendemos que a nossa disciplina ainda se revela bastante
desconhecida ou incompreendida pelas disciplinas que estabelece relações
interdisciplinares. Sobre isso, vale ressaltar que por interdisciplinaridade
compreendemos que as trocas epistemológicas decorrem da reciprocidade e não de
trocas unilaterais.
Faz-se urgente fomentar estudos em epistemologia da disciplina em especial
ao contexto brasileiro, uma vez que essa tarefa segue em desenvolvimento por
estudiosos da disciplina.

Referências
ALMEIDA, Tatiane Aparecida de. Disciplinaridade e interdisciplinaridade em Ciência
da Religião: estudo analítico-comparativo sobre o perfil teórico-metodológico das
propostas pedagógicas dos Programas de Pós-graduação em Ciência (s) da (s)
Religião (ões) no Brasil (2017-2020). 2022. Tese (Doutorado em Ciências da
Religião) – Programa Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Minas Gerais, 2022.

2Os debates sobre a identidade teórica e metodológica da Ciência da Religião tiveram início na
Alemanha, com Max Müller, na segunda metade do século XIX. Posteriormente, destacamos como o
debate foi desenvolvido por Cornelis Petrus Tiele, Chantepie de la Saussaye e Joachim Wach.

470
ALMEIDA, Tatiane Aparecida de Almeida. SENRA, Flávio. Disciplinaridade em
Ciências da Religião. INTERAÇÕES. v. 16, n.1, p. 8-10, 17 mar.2021.

ALMEIDA, Tatiane Aparecida de. Disciplinaridade e interdisciplinaridade: um


debate contemporâneo para as ciências da religião. In: SENRA, Flávio; CAMPOS,
Fabiano Victor; ALMEIDA, Tatiane Aparecida de (Org.). A epistemologia das ciências
da religião: pressupostos, questões e desafios. 1ed. Curitiba: EDITORA CRV, 2020, v.
01, p. 117-129.

ALMEIDA, Tatiane Aparecida de. Interdisciplinaridade: contribuições para a escola.


Revista Senso. Disponível em: https://revistasenso.com.br. Acesso em: 22 jul. 2021.

BARROS, José D’Assunção. Uma Disciplina: entendendo como funcionam os diversos


campos de saber. Opsis, vol.11, n°1, p. 252-270, 2011.

SILVA, Maurílio Ribeiro da Silva. SENRA, Flávio. Ciência da Religião: uma disciplina.
Estudos de Religião, v. 35, n. 3, p. 9-32, set.-dez. 2021.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo e identidade social: territórios contestados. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1995.

USARSKI, Frank. A TRADIÇÃO DA SEGUNDA ORDEM COMO FONTE IDENTITÁRIA


DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO – Reflexões epistemológicas e concretizações. In: SENRA,
Flávio. CAMPOS, Fabiano Victor, ALMEIDA, Tatiane (Orgs.). A epistemologia das
Ciências da Religião: pressupostos, questões e desafios. Curitiba: Editora CRV, 2020.
p. 55-68.

471
ARTE ST 8

ST 8 – Novos movimentos religiosos e espiritualidades laicas

472
Clóvis Ecco (PUC-GO)
Flávio Senra (PUC-MG)
Silas Guerreiro (PUC-SP)

Esta ST tem como objetivo acolher trabalhos que busquem compreender as


características assumidas por indivíduos e grupos religiosos na sociedade
contemporânea, a partir de diferentes perspectivas teóricas no âmbito da Ciência da
Religião. Almeja lançar luzes sobre as bricolagens e interlocuções feitas pelos novos
modos de lidar com a espiritualidade, as denominadas espiritualidades laicas– entre
as quais o advento dos sem religião, nova era e dos novos movimentos religiosos –
e os processos de privatização da religião. Pretende-se reunir tanto trabalhos que
lidam com dados empíricos, como também aqueles que levantam questões teóricas
pertinentes, suscitando o diálogo com outras ciências. Serão aceitas comunicações
decorrentes de pesquisa sobre as novas formas de espiritualidade, os “novos
movimentos religiosos” e as transformações, arranjos, rearranjos, diálogos e
interlocuções feitas no âmbito das espiritualidades não religiosas com vistas à
constituição de sentido.

473
PESSOAS SEM RELIGÃO COM CRENÇA: A DESCONTINUIDADE NA
TRANSMISSÃO DA TRADIÇÃO E A RECOMPOSIÇÃO DA MEMÓRIA
RELIGIOSA

Claudia Danielle de Andrade Ritz1

Resumo: Esta comunicação é parte integrante da pesquisa de doutorado que versou sobre
o fenômeno dos sem religião. Considerando a pesquisa de campo realizada, objetivamos
apresentar o perfil das pessoas sem religião com crença e alguns dados relativos à
transmissão da tradição e da memória religiosa. Analisaremos os dados considerando a
questão da transmissão da tradição religiosa e refletiremos sobre os aspectos que integram
a memória na relação com a atual identificação religiosa sem religião com crença.
Defendemos a tese de que há fragilização da herança religiosa e recomposição da memória.
A metodologia utilizada foi mista, composta pelas pesquisas bibliográfica e de campo. A
pesquisa de campo foi facultativa, voluntária e não probabilística, realizada por meio de
questionário estruturado digital com discentes da graduação matriculados em Cultura
Religiosa e da Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, contendo quarenta
questões, no mês de setembro de 2020. A partir das contribuições das pessoas sem religião
com crença, concluímos que, predominantemente, não há comprometimento para com a
transmissão da tradição e a memória relacionada com a herança religiosa, é relativizada.
Destarte, confirmamos a presença de indícios de fragilização da herança religiosa e da
recomposição da memória, aspectos presentes na identificação sem religião com crença.
Palavras-chave: Pessoas sem religião com crença; Identidade; Transmissão da Tradição;
Fragilização da herança religiosa; Memória religiosa.

Introdução
Esta comunicação é parte integrante da pesquisa de doutorado que versou
sobre os indivíduos que se autodeclaram no Censo religioso do IBGE como sem
religião2. Ao designarmos pessoas sem religião, estamos nos referindo ao fenômeno
do sem religião: ateus, agnósticos e sem religião sem religião, sendo este último
designado por nós como sem religião com crença (RITZ, 2023b). Esta comunicação
trata especificamente das pessoas sem religião com crença. A metodologia utilizada
na pesquisa foi mista (CRESWELL; CLARK, 2011), abarcando pesquisas bibliográfica
e de campo. A pesquisa de campo (MARCONI; LAKATOS, 2012), ocorreu mediante

1 Doutora em Ciências da Religião pela PUC Minas. Doutora em Estudos da Religião na Universidade
Católica Portuguesa. Trabalho realizado no doutorado como bolsista FAPEMIG. Membro do Grupo de
Pesquisa Religião e Cultura na PUC Minas. Mestra em Ciências da Religião na PUC Minas como bolsista
CAPES. Bacharel em Direito pela PUC Minas. Especialista em Direito do Trabalho pela UCAM RJ.
Bacharel em Teologia pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. E-mail:
claudiaritz7@gmail.com
2 O detalhamento sobre o Censo 2010 pode ser verificado em (RITZ, 2023b); (RITZ, SENRA, 2022) e

(VIEIRA, 2018).

474
questionário estruturado digital no mês de setembro de 2020, com a juventude
urbana e universitária da PUC Minas, incluindo discentes da graduação matriculados
na disciplina de Cultura Religiosa e da pós-graduação do PPGCR em Ciências da
Religião.
A participação na pesquisa de campo na PUC Minas, foi facultativa3 e
voluntária. Alcançamos um total de (75a)4 participantes 100% e a amostragem não
foi probabilística. A pesquisa de campo (MARCONI; LAKATOS, 2012, p. 84) nos
permitiu compreender um pouco melhor o complexo fenômeno dos sem religião,
sobretudo entre a juventude urbana universitária. Obtivemos em nossa pesquisa de
campo, dados socioeconômicos e de identificação religiosa. A abordagem deste texto
se restringe ao aspecto da descontinuidade na transmissão da tradição e a
recomposição da memória religiosa. Deste modo, o nosso objetivo é apresentar
alguns dados do perfil socioeconômico das pessoas sem religião com crença e
analisar dados relativos à transmissão da tradição e da memória religiosa.

1. Dados do perfil das pessoas sem religião com crença


A nossa pesquisa de campo, composta por 75 participantes compreendeu
discentes da graduação 76% e discentes da pós-graduação em Ciências da Religião
24%, foram indagados sobre dados socioeconômicos e sobre a própria identificação
religiosa. A identificação religiosa é parte da identidade (HALL, 2019) da pessoa. As
respostas mostram uma pluralidade religiosa, conforme gráfico a seguir.

28%
23%
17%

8% 7% 5% 5%
3% 3% 1%

Católica Sem-religião Evangélico Agnóstico Espírita Ateu Múltiplas Cristã/Cristão Umbanda Candomblé
Apostólica específica, mas pertenças anglicano
Romana tenho crenças
religiosas

Gráfico 1 – Identificação religiosa 2020


Fonte: Pesquisa de campo da autora, 2020.

3 Pesquisa aprovada: CAAE: 24706819.4.0000.5137, mediante o Parecer Consubstanciado do CEP: n.:

3.717.358 expedido em 21 de novembro de 2019 e emenda para conversão em questionário digital


em razão da pandemia da Covid-19, aprovada pelo Comitê de ética da PUC Minas mediante o Parecer
Consubstanciado do CEP n.: 4.264.447, expedido em 08 de setembro de 2020.
4 A designação (75a), corresponde ao número absoluto de participantes. A letra “a” corresponde à

indicação de número absoluto.

475
Embora tenhamos uma latente pluralidade religiosa, salientamos que nesta
comunicação, trabalharemos apenas com os dados das pessoas que se identificaram
como “sem religião, mas tenho crenças religiosas” (23%). A síntese do perfil
socioeconômico das pessoas sem religião com crença, pode ser verificado no quadro
a seguir.

Quadro 1 – Síntese do perfil predominante das pessoas sem religião com crença

Fonte: Pesquisa de campo da autora, 2020.

Notamos uma maioria de discentes da graduação, preponderância do gênero


feminino, na autodeclaração da cor de pele/raça verificamos indivíduos pardos,
brancos e negros, são civilmente solteiros, residentes em áreas urbanas e na variável
econômica observamos um modesto rendimento médio mensal familiar.
Apresentados os dados de perfil socioeconômico e de identificação religiosa
da nossa pesquisa de campo, analisaremos alguns aspectos relativos à transmissão
da tradição e da memória religiosa, os quais integram a memória do indivíduo e a
memória coletiva (HALBWACHS, 2006).

2. A transmissão da tradição na família das pessoas sem religião com crença


Indagamos na pesquisa de campo, a respeito da infância e da adolescência
destes indivíduos, “como era a prática religiosa nas respectivas casas?” As respostas
podem ser observadas no quadro a seguir.

476
Quadro 2 – A prática religiosa nos lares das pessoas sem religião com crença
Alternativa %

Não falavam nada sobre religião em casa.


Religião não era uma prática transmitida na 18%
minha família.
Meus pais (responsáveis) me ensinavam
sobre a religião deles, mas me deixavam 12%
livre para escolher outra religião.
Meus pais (responsáveis) me ensinavam
sobre a religião deles, porque aquela 41%
deveria ser também a minha religião.
Frequentávamos o local das reuniões
formais religiosas (ex.: Igreja, Centro, 59%
Mesquita, etc).
Além de frequentar as reuniões formais,
participávamos de trabalhos sociais e 18%
grupos, vinculados à nossa religião.
Em casa também tínhamos práticas
religiosas da nossa religião. Ex.: jejum
24%
religioso, cânticos, orações, ritos, leituras e
estudos.
Em nossa casa nunca, ou raramente
tínhamos práticas religiosas (ex.: oração, 18%
cânticos, jejum, ritos, etc).
Além de frequentar a religião deles, meus
pais e eu também visitávamos outras 12%
religiões.

Fiz catecismo, primeira comunhão, etc. 41%

Fonte: Pesquisa de campo da autora, 2020.

A maior concentração está na opção “frequentávamos o local das reuniões


formais de religiosas (ex.: Igreja, Centro, Mesquita, etc.)” 59%; “Meus pais
(responsáveis) me ensinavam sobre a religião deles, porque aquela deveria ser
também a minha religião” 41% e “Fiz catecismo, primeira comunhão, etc.” 41%. As
memórias são principalmente sobre a transmissão pelos ascendentes e
responsáveis via locais formais de reuniões e remetem especialmente às memórias
católica – catecismo e primeira comunhão, etc.
No mesmo sentido, a indagação posterior, “considerando sua infância e
adolescência, quando o assunto é religião, quais as situações são parte da sua
memória?”, corrobora com a verificação da memória religiosa.

477
Gráfico 2 – A memória religiosa das pessoas sem religião com crença

Fonte: Pesquisa de campo da autora, 2020.

A memória mais assinalada foi “missa e eucaristia” 65%; “imagem de santos


e rezas” 65%; “cultos sem imagens e com leitura da Bíblia” 47%. Essas memórias
indicam uma herança religiosa predominantemente católica seguida por evangélica,
ou seja, memórias de tradições cristãs. Entretanto, quando indagados sobre essas
memórias e a relação com as crenças atuais, para 88% representam apenas
“lembranças do passado”, enquanto para 12% “ainda representam minhas crenças
atuais”. Ponderando sobre a transmissão da tradição, ao serem indagados se
“ensinariam a sua religião ou não religião, aos seus filhos/as? Justifique”, as pessoas
sem religião com crença dissertaram:
SRC I: Não ensinaria, deixaria eles tomarem o caminho que
quisessem.
SRC IV: Não, pois acredito que no momento certo, eles irão decidir
qual o melhor caminho.
SRC VII: Sim. Vou ensinar a não seguir religião, hoje o que vemos é
líderes religiosos enganando as pessoas é pedindo dinheiro para
você “comprar um pedaço do céu”.
SR XIII: Não, como eu disse não sou uma pessoa religiosa, eu tento
exercer minha espiritualidade, então provavelmente se um dia
tiver filhos vou deixar que sejam livres para experienciar diferentes
religiões se quiserem.
SR XIV: Não. Não tenho o que ensinar, e se tivesse não o faria. Acho
justo que o indivíduo, quando possível, escolha seu próprio
caminho.
SR XV: Não. Mostraria para ele várias tradições. Ele escolhe.
Pesquisa de campo da autora, 2020 (RITZ, 2023).

Conforme a citação, a maioria dos participantes sem religião com crença


adotam uma posição contrária à transmissão da tradição e justificam as razões,
dentre as quais, destaca-se a autonomia do indivíduo. A desinstitucionalização

478
religiosa e a individualização da crença são traços identitários evidenciados nas
pessoas sem religião com crença como expressão da autonomia que se situa na
modernidade e principalmente no contexto urbano (RITZ, 2023b). Danièle Hervieu-
Léger (2015) fala sobre os “descendentes da fé” como resultado da continuidade. A
continuidade é decorrente da transmissão da tradição, mas, se não houver
transmissão a tendência é de descontinuidade, porque ocorre um enfraquecimento
no “fio da memória”. Em nossa tese consideramos a fragilização da herança religiosa
como uma das razões para o fenômeno dos sem religião, sobretudo na modernidade,
contando com o contributo da urbanização, aspectos que desafiam a continuidade
da transmissão da tradição.

Considerações finais
Apresentamos os dados de identificação religiosa da pesquisa de campo e
evidenciamos uma pluralidade religiosa. O segundo maior percentual de
identificação religiosa é de pessoas que se identificam como “sem religião, mas
tenho crenças religiosas” 23%, designadas em nosso estudo como sem religião com
crença. Assim, atendendo ao nosso objetivo, apresentamos o perfil socioeconômico
predominante das pessoas sem religião com crença pois esses dados revelam uma
estratificação social.
Avançando para o segundo objetivo dessa comunicação, apresentamos dados
relativos à memória religiosa das pessoas sem religião com crença. As memórias
mostram os locais formais de cultos, mas não uma vivência que fomenta a afeição
religiosa (OLIVEIRA, 2012). Outrossim, as memórias indicam especialmente a
herança religiosa católica seguida pela evangélica, situando principalmente a
tradição cristã nas memórias religiosas. Estas memórias são consideradas
predominantemente como “meras lembranças” pois não repercutem nas crenças
atuais da maioria. A tendência é de não transmissão da tradição religiosa para as
gerações futuras, pois as pessoas sem religião com crença da pesquisa de campo se
mostram contrárias à transmissão, justificada pelo argumento de autonomia do
indivíduo5 na escolha da identificação religiosa.

5 Em outro texto apresentamos a relação entre Arte e Religião nas pessoas sem religião com crença.
Foi evidenciado a predileção dessas pessoas pela arte e pela vivência da arte de modo autônomo e
individual, enquanto a religião foi ignorada. (RITZ, 2023a).

479
Destarte, frente ao exposto, a nossa tese de fragilização da herança religiosa
se confirma e podemos dizer que a tendência verificada foi de descontinuidade na
transmissão da tradição, com recomposição da memória religiosa dos jovens
urbanos, universitários e sem religião com crença da nossa pesquisa, bem como nos
seus respectivos futuros descentes.

Referências
CRESWELL, John. W.; PLANO CLARK, Vicki. L. Designing and conducting mixed
methods research. 2nd. Los Angeles: SAGE Publications, 2011.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed. Tradução de Beatriz Sidou. São


Paulo: Editora Centauro, 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro:


Lamparina, 2019.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento.


Tradução de João Batista Kreuch. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Religioso


2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br. Acesso em: 10 abr. 2020.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Técnicas de pesquisa. 7. ed. São
Paulo: Atlas, 2012.

OLIVEIRA, Pedro Assis Ribeiro. Pertença/desafeição religiosa: recuperando um


antigo conceito para entender o catolicismo hoje. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n.
28, p. 1230- 1254, out./dez. 2012.

RITZ, Claudia Danielle de Andrade. Agnósticos, ateus e sem religião com crença: a
ausência da religião e a predileção pela arte como traços identitários. Revista
Caminhos, Goiânia, v. 21, n. 2, p. 360-379, 2023a.

ITZ, Claudia Danielle de Andrade. Eu sou sem religião com crença: a fragilização da
herança religiosa e a conservação da crença como elo de memória. Tese (Doutorado
em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2023b.

RITZ, Claudia Danielle de Andrade; SENRA, Flávio. Pessoas sem religião com
crenças: considerações sobre o fenômeno religioso dos sem religião. Revista
Caminhos, Goiânia, v. 20, n. 3, p. 316-334, 2022.

480
RELIGIÃO E HUMOR NA NOVA ERA: UM ESTUDO DE CASO DA
PÁGINA HUMOR NEW AGE

Fábio Leandro Stern1

Resumo: O presente estudo objetivou analisar a produção humorística da página de


Facebook Humor New Age, a maior página humorística voltada ao público novaerista em
língua portuguesa. Foram analisadas todas as publicações de 1º de junho de 2020 a 27 de
março de 2022, totalizando 401 memes únicos. Os memes foram classificados em nove
categorias de temas de piadas: (1) orientalismos, (2) moral e política, (3) natureza e corpo,
(4) cultura pop, (5) sacralização da psicologia e psicologização da religião, (6) esoterismo
europeu cristão, (7) mitologias de ciência, (8) magia, bruxaria e paganismo, e (9) teorias de
conspiração, podendo ter um meme classificado em mais de uma categoria ao mesmo
tempo. Para a organização dessas categorias, utilizamos dois juízes especialistas em Nova
Era, que elaboraram uma primeira versão de categorias, e depois tiveram as suas categorias
confrontadas para se chegar à classificação atual. Todos os memes foram analisados pelos
dois juízes. Baseado nas considerações sobre ethos de Bateson, o estudo demonstrou que
estudar o humor de um grupo religioso também permite captar elementos centrais de seu
ethos. As principais características e práticas descritas pelos pesquisadores do NEO, grupo
de estudos do CNPq que estuda Novos Movimentos Religiosos e também o movimento da
Nova Era, foram identificadas no conteúdo humorístico da página estudada.
Palavras-chave: Movimento da Nova Era; Religião e humor; Memes; Religião e Internet;
Charges.

Introdução

Enquanto contribui à compreensão dos grupos e suas práticas, o estudo das


visões de mundo possui desafios teóricos e metodológicos relevantes. Um deles é a
eventual dificuldade de observar e registrar discursos e comportamentos
espontâneos representativos dessas visões de mundo. Tal dificuldade pode ocorrer
por variadas razões, como a pouca elaboração consciente e consubstanciada no
discurso e o viés da desejabilidade social, pelo qual entrevistas e respostas podem
estar enviesadas pelas expectativas dos interlocutores em relação ao contexto,
incluindo o que acham que os pesquisadores desejam ou esperam ouvir (MARLOW;
CROWNE, 1961).
Entre as soluções propostas a tais desafios está o estudo das formas de
humor. Na teoria de Bateson sobre ethos (2006), o humor de uma comunidade faz
parte dessa dimensão não racional, emocional e, portanto, pré-hermenêutica de

1 Doutor em Ciência da Religião (PUC-SP). Professor do PPG em Ciência da Religião da PUC-SP.


flstern@pucsp.br

481
convenções culturais, um veículo mais espontâneo de expressão de elementos da
visão de mundo de um grupo. Um exemplo de como isso se dá são as piadas
consideradas de bom ou de mal gosto, pois sinalizam crenças e valores intimamente
naturalizados pelo grupo. As formas e conteúdos humorísticos mais e menos típicos
em determinado grupo, portanto, podem ser objetos de interesse para a
compreensão de valores não mediados de suas visões de mundo. No presente
trabalho, estudamos uma página novaerista brasileira da Internet de humor.
Nova Era compreende um conjunto mais ou menos típico de cosmovisões,
ícones e práticas relacionados ao esoterismo contemporâneo secularizado
(GUERRIERO et al., 2016). Mas, diferentemente do século passado, quando o próprio
meio estudado utilizava a nomenclatura “Nova Era”, hoje esse termo se trata de uma
categoria acadêmica muito mais do que um termo êmico. Por isso, estudiosos de
Nova Era enfrentam desafios para a captação de variadas nuances das visões de
mundo subjacentes ao campo, visto que parte considerável não pode ser
evidenciada por abordagens convencionais, como aplicação de questionários
diretos ou entrevistas que perguntam objetivamente se o participante se considera
novaerista. A grande maioria, como explica Gilhus (2013), simplesmente
desconhece o termo “Nova Era”, que teve seu ápice de utilização na década de 1970,
mas gradualmente caiu em desuso até ser suplantado por termos mais amplos, como
“espiritualidade”, ainda que suas práticas e cosmovisões continuem existindo na
sociedade do século XXI.
O estudo de expressões mais espontâneas do ethos Nova Era, através do
humor, contribui para a diminuição dessas dificuldades. Uma das expressões
contemporâneas mais recorrentes, e por isso convidativas, de humor é o meme.
Como ocorre com incontáveis outros seguimentos, novaeristas também veiculam
memes pela Internet. Este estudo se valeu dos memes do maior grupo novaerista de
humor na Internet em língua portuguesa, a página de Facebook Humor New Age, que,
no fechamento desta pesquisa, possuía 139 mil seguidores. O período de análise
envolveu todas as publicações de 1º de junho de 2020 a 27 de março de 2022,
totalizando 410 postagens. Destas, 308 eram arquivos de dispositivos móveis, 75
fotos de linha do tempo e 27 fotos do Instagram, totalizando 401 memes inéditos.
Além disso, duas postagens eram propagandas, e 7 memes foram postados em
duplicidade, os quais foram desconsiderados em nossa análise.

482
Após a coleta dos dados, dividimos os 401 memes em 9 categorias de temas
das piadas: (1) orientalismos, (2) moral e política, (3) natureza e corpo, (4) cultura
pop, (5) sacralização da psicologia e psicologização da religião, (6) esoterismo
europeu cristão, (7) mitologias de ciência, (8) magia, bruxaria e paganismo, e (9)
teorias de conspiração. Em grande medida, para criar tais categorias, orientamo-nos
pelos grandes temas da Nova Era identificados por Hanegraaff (1996) em sua tese
de doutorado sobre esse universo.
A ordem da apresentação das categorias diz respeito à popularização de cada
uma delas na própria página estudada, de acordo com a média de engajamento que
receberam. Engajamento se refere a quanto o público reage (curtidas, comentários,
compartilhamentos) a um conteúdo na Internet. Como a página não produz a mesma
quantidade de memes por tema, consideramos que organizá-los pelo engajamento
nos daria um critério de análise mais objetivo. Se focássemos apenas aquilo que a
página mais produz, como ela é administrada por uma única pessoa, esse estudo
diria mais respeito ao dono da página e suas predileções sobre a Nova Era do que ao
público maior que o segue. Na Tabela 1 apresentamos a frequência de memes
produzidos, além do engajamento total de cada categoria e sua média de
engajamento por meme.

Tabela 1 – Frequência de engajamento por temática de piada


Memes Engajamento Média de
Tema das piadas postados total engajamento

Orientalismos 41 33945 828

Política 72 50070 695

Natureza, corpo e enteógenos 36 24755 688

Cultura pop 56 38094 680

Psicologização da religião /
24 13893 579
sacralização da psicologia

Esoterismo europeu cristão 49 27987 571

Mitologias de ciência 40 22483 562

Magia, bruxaria e neopaganismo 22 11874 540

Teorias de conspiração 4 682 171

483
Pelo espaço disponibilizado nesses Anais, não será possível adentrar em cada
categoria em pormenores. Entretanto, a versão completa deste estudo foi publicada
na REVER: Revista de Estudos da Religião, v. 23, n. 1, onde podem ser encontradas
tais considerações e também imagens de alguns dos memes do período analisado.

Discussão

A principal questão tratada neste estudo diz respeito ao que pode ser
concluído através da análise dos memes novaeristas, considerando-se o humor
como veículo mais espontâneo de expressão de crenças e valores do referido ethos.
Todas as categorias de meme investigadas veiculam dimensões relevantes nesse
sentido. Ademais, como peças sintéticas de comunicação humorística, as mensagens
de tais memes prescindem de profundidade e seu caráter intuitivo busca a rápida
compreensão do leitor.
Os memes novaeristas sobre ciência veicularam crenças disseminadas no
ethos que são intuitivas e ambivalentes em relação à ciência. O pressuposto da
comunicação menos filtrada através do humor pode ser verificado na expressão
aberta de temas sensíveis cuja apresentação seria pouco cortês se feita de modo não
humorístico. Entre os exemplos estão as acusações diretas de arrogância e alienação
contra pessoas que representariam pontos de vista distintos dos valorizados no
ethos ou que se encontrariam em patamares anteriores na evolução de consciência,
o que inclui o interlocutor se distinguir daqueles a quem critica. Uma vez que a
humildade e a empatia são valores no ethos Nova Era, a expressão de sentimentos e
ideias contrários pode ser facilitada pelo humor. Um meme ilustrativo apresentava
um astronauta boiando relaxadamente em um rio, encimado pela frase “Quando as
pessoas acham que eu estou sem fazer nada, mas estou viajando
multidimensionalmente”. Em outro meme, de inspiração psicológica, uma imagem
da personagem Neo, da franquia cinematográfica The Matrix, parando projéteis de
armas de fogo no ar, é acompanhada da sentença “Quando te insultam, mas você é
consciente de si e não leva pro pessoal, pois sabe que a opinião do outro é apenas
um reflexo dele mesmo”. Assim, sugere-se que a visão de mundo transmitida através
dos memes sobre ciência critica, sob os atenuantes do humor, diferentes condições
diante do conhecimento: ora a ignorância, ora a arrogância do suposto saber.

484
Por sua vez, a categoria política, pela página ter viés ideológico de esquerda,
veiculou piadas tipicamente críticas ao governo Bolsonaro, vigente no período
estudado. Novamente, a comunicação menos filtrada permitida pelo humor acabou
por estimular críticas bastante diretas e ridicularizantes ao referido governo, algo
que seria menos viável em um discurso regido pela compaixão e ponderação bem-
vindas em pessoas ditas espiritualizadas. Atestou-se que a maioria dos seguidores
da página se ofendeu com as críticas humoradas ao governante de direita, dizendo
que isso não se tratava de um Humor New Age. Entretanto, nas poucas vezes que a
página criticava o Lula, tal revolta dos seguidores não foi observada.
Já em relação à sexualidade livre e as drogas, ainda que se trate de tabus na
sociedade, no ethos Nova Era esses são temas corriqueiramente aceitos e bastante
propagados. Hanegraaff (2014) cita como muito das descrições de estados
xamânicos de consciência e experiências de canalização descritas nos livros êmicos
de novaeristas se assemelham a relatos de experiências com LSD e outros
enteógenos. Com isso, apesar do meio novaerista tender a um posicionamento mais
à direita, tanto a sexualidade livre quanto o consumo de drogas – e em especial a
maconha – foram amplamente aceitos pelo público da página, com um bom
engajamento. Isso demonstraria, de acordo com a concepção de ethos tal como
proposta por Bateson (2006), que se trata de um comportamento não apenas
tolerado, mas considerado normal no meio do grupo estudado.
Já a falta de profundidade e de compromisso teológico dos memes sobre
orientalismo sugere o uso de ícones valorizados no ethos, como divindades asiáticas
e respectivas filosofias, para legitimar questões cotidianas comuns como
impaciência, beber no fim de semana, o uso de palavrões, ícones da cultura pop,
entre outros tantos exemplos. Isso é coerente com o que Hanegraaff (2015) chamou
de orientalismo platônico, em que ícones e visões de mundo orientais tendem a ser
concebidas no ethos Nova Era como dotados de uma sabedoria antiga e idealizada,
que então é apropriada e adaptada ao contexto ocidental, mas sem o interesse em
resguardar a própria cultura original de onde tais saberes estão sendo retirados. No
fim do dia, trata-se ainda de uma forma de orientalismo porque os saberes são
apropriados, ressignificados e moldados para atender as necessidades do próprio
ocidente, que se considera capaz de refazer tais visões para que se adaptem à

485
cosmologia ocidental moderna, autoconcedendo-se autoridade para fazer tais
sínteses.
Os memes sobre magia, bruxaria e neopaganismo também se valeram de
temas cotidianos, incluindo memes mais consagrados e ícones pop. É possível
compreender essa aproximação como uma expressão do desencanto da sociedade
ocidental que penetra todos os domínios, mas que possui especial apelo nos meios
da Nova Era. A imagem da bruxa moderna, que utiliza magia no cotidiano, parece ter
bastante apelo entre o público novaerista, que não necessariamente precisa se
autoidentificar como sendo uma bruxa para admirar essa figura social.
Por fim, de modo mais específico, um dos temas seculares mais usualmente
associados à religião/espiritualidade na Nova Era é a psicologia. A psicologização da
religião e a sacralização da psicologia nos memes permitiu que objetividade e
subjetividade se interpenetrem, enquanto a fronteira entre saúde psicológica e
transtornos mentais se torne turva ou mesmo inexistente. Como em categorias
anteriores, o humor permitiu que críticas fossem mais diretas e ácidas. Entretanto,
mantendo o caráter contracultural da Nova Era: usualmente as críticas eram
dirigidas aos modos comuns de vida, incluindo relações de trabalho e outras formas
daquilo que emicamente eles entendiam como “alienação”, supervalorizando a
loucura como mais próxima da espiritualidade do que a sanidade mental.
Com isso, notou-se que o estudo das formas de humor de um grupo religioso
não apenas contém informações importantes sobre o ethos do grupo estudado, como
também permite captar essas informações que, por outros métodos de coleta de
dados, muitas vezes são filtradas ou até manipuladas pelos respondentes. Ao
estudar a página Humor New Age, pudemos perceber que muitos dos valores do
ethos Nova Era apareceram como memes, sem maiores mediações, permitindo-nos,
inclusive, um recorte de preconceitos, sentimentos conflitantes e até mesmo
conflitos entre os próprios novaeristas, tal como retratado entre as interações dos
visitantes da página e teor das piadas produzidas.

Referências

BATESON, Gregory. Naven: um esboço dos problemas sugeridos por um retrato


compósito realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova
Guiné. 2. ed. São Paulo: Editora da USP, 2006.

486
GILHUS, Ingvild Sælid. All over the place: the contribution of New Age to a spatial
model of religion. In: SUTCLIFFE, Steven J.; GILHUS, Ingvild Sælid (Org.). New Age
spirituality: rethinking religion. New York: Routledge, 2014, p. 35-49.

GUERRIERO, Silas, et al. Os componentes constitutivos da Nova Era: a formação de


um novo ethos. REVER: Revista de Estudos da Religião, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 9-30,
2016.

HANEGRAAFF, Wouter J. New Age religion and Western culture: esotericism in the
mirror of secular thought. Leiden: Brill, 1996.

HANEGRAAFF, Wouter J. Entheogenic esotericism. In: ASPREM, Egil; GRANHOLM,


Kennet. Contemporary esotericism. Abingdon: Routledge, 2014. p. 392-409.

HANEGRAAFF, Wouter J. How Hermetic was Renaissance Hermetism? Leiden: Aries,


v. 15, n. 2, p. 179-209, 2015.

MARLOW, David; CROWNE, Douglas P. Social desirability and response to perceived


situational demands. Journal of consulting psychology, Philadelphia, v. 25, n. 2, p.
109-115, 1961.

487
O ROCK E A ESPIRITUALIDADE NÃO RELIGIOSA NA SOCIALIZAÇÃO
DOS/AS ROQUEIROS/AS SEM RELIGIÃO

Flávio Lages Rodrigues1

Resumo: Nesta comunicação apresentaremos um fragmento da nossa tese de doutorado


com a pesquisa de campo através dos relatos dos entrevistados, com uma pergunta que
indaga, se, e como o rock poderia gerar um tipo de espiritualidade não religiosa na
socialização dos/as roqueiros/as sem religião nos círculos urbanos headbangers em Belo
Horizonte. Nossa hipótese procurou identificar se havia algum tipo de espiritualidade não
religiosa na sociabilidade e solidariedade desses/as roqueiros/as sem religião nos círculos
urbanos headbangers. A metodologia nesta parte da pesquisa ocorreu de forma mista,
primeiro com a pesquisa de campo, neste caso, para conhecer e entender como se dão as
experiências desses/as roqueiros/as sem religião, fundamentada também pela pesquisa
bibliográfica, tendo como principal teórico o sociólogo francês Michel Maffesoli. Embora,
para a maioria desses participantes da pesquisa ocorra essa espiritualidade não religiosa
com a socialização e solidariedade, que é gerada nesse grupo através do rock, heavy metal e
de seus subgêneros. Percebemos que esta espiritualidade não religiosa não ocorre de forma
unanime para os participantes da pesquisa, devido à rejeição que eles demonstram em
relação aos círculos e instituições religiosas, bem como a qualquer manifestação religiosa
ou espiritual, e também pela possibilidade de diversidade de cosmovisões que podem
ocorrer dentro desse grupo.
Palavras-chave: Socialização; Roqueiros/as sem religião; Rock, heavy metal e seus
subgêneros; Espiritualidade não religiosa; Círculos urbanos headbangers.

Introdução
Notamos que o surgimento das cidades intensificou o processo de
urbanização das metrópoles e megalópoles do Brasil e do mundo, e foram
fundamentais para novos modos de socialização como observado com os círculos
urbanos headbangers. Nessa direção, entre outros fatores, Michel Maffesoli aponta
para a cidade como fomentadora de vários grupos dos iguais com o que ele
categorizou como “tribos2“, “tribos urbanas” e “neotribos”, designando

1 Doutor (2023) e Mestre (2018) em Ciências da Religião pela PUC Minas PPGCR, bolsista pela CAPES
e membro do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura/CNPq desde 2015. Graduado em Bacharel em
Teologia (2005) e especialista em Teologia Sistemática (2007) pela Faculdade Evangélica de Teologia
de Belo Horizonte-FATE-BH. E-mail: flavioposttrevor@yahoo.com.br.
2 Utilizamos na pesquisa o conceito de tribo que foi teorizado e proposto de forma metafórica pelo

sociólogo francês Michel Maffesoli, justamente para observar a metamorfose do vínculo social.
(MAFFESOLI, 2010, p. 4). Utilizamos a categoria tribo pelo próprio grupo pesquisado se autodeclarar
como uma tribo urbana headbanger. Entretanto, devido aos problemas que o conceito tribo possa
inferir aos integrantes desses grupos juvenis e de várias idades, que se aglutinam em torno de
variados objetos e ideologias, como no caso do rock, do heavy metal e de seus subgêneros. Em nossas
pesquisas futuras não adotaremos mais o conceito tribo, mas utilizaremos o conceito circo ou círculo

488
metaforicamente essas formas de socialização e coletividade, que estão nascendo e
tomando corpo dentro do tecido urbano. Através desses novos modos de
sociabilidade, procuramos entender com a pesquisa bibliográfica, e principalmente,
com a pesquisa de campo3, se o rock poderia gerar um tipo de espiritualidade não
religiosa na socialização desses/as roqueiros/as sem religião4. Nossa hipótese foi
confirmada pela da maioria dos participantes5, embora ocorra essa espiritualidade
não religiosa através da socialização e solidariedade, que é gerada com o rock, heavy
metal e seus subgêneros, isto não foi uma unanimidade, devido à rejeição a qualquer
manifestação ou traços de uma prática religiosa ou espiritual dentro desse grupo.

1. Crises como abertura para novas formas de socializações nos círculos


urbanos headbangers
Notamos com o percurso histórico no nascimento do rock, desde 1940,
passando por 1980 e 1990, até os nossos dias com os/as roqueiros/as sem religião,
que alguns grupos sociais e os círculos urbanos headbangers tiveram um
posicionamento de atrito e resistência em relação à sociedade. Assim, o rock, o heavy
metal e seus subgêneros foram e ainda são utilizados como um instrumento social,
político e cultural para o protesto e contestação, contra os poderes instituídos, entre
eles o religioso. Pensando nos círculos urbanos headbangers e nas tribos urbanas
headbangers como mesma significação para categorizar este grupo, percebemos que
Maffesoli apesar de usar a metáfora da tribo para designar as transformações do

urbano headbangers, o que nos ajudará a demarcar sociologicamente os indivíduos que pertencem a
esses círculos urbanos headbangers dos que estão fora desses círculos.
3 Para a realização da pesquisa de campo foi aprovado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

junto ao Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas (CEP), sob o número N.º Registro CEP: CAAE
25890719.1.0000.5137.
4 Esta é a pergunta 23 do nosso questionário, que indaga aos participantes da pesquisa se o rock pode

gerar um tipo de espiritualidade não religiosa na socialização dos/as roqueiros/as sem religião nas
tribos urbanas headbangers em Belo Horizonte.
5 Na pesquisa de campo, aplicamos um questionário com a entrevista semiestruturada com 26

perguntas, entre elas utilizamos 10 categorias de espiritualidade desenvolvidas por Streib e Klein,
2016, p. 76-77, que foram transformadas em 10 perguntas. Os pré-requisitos para a seleção dos
participantes da pesquisa era ser maior de 18 anos de idade, ser roqueiro/a sem religião e ter
vivenciado algum tipo de experiência nas tribos urbanas headbangers em Belo Horizonte. Também
aplicamos um questionário socioeconômico que foi preenchido pelos/as participantes e nos ajudou
a entender melhor a composição do grupo. Recrutamos 10 participantes nas entrevistas, sendo 8
homens e 2 mulheres. As entrevistas ocorreram entre os meses de fevereiro e abril de 2020. Foram
9 entrevistas gravadas presencialmente ou por skype através de áudio, totalizando 13 horas 20
minutos e 13 segundos, que transcritas geraram 495 páginas no formato word. Apenas 1 entrevista
foi realizada de forma escrita.

489
tempo vigente, ele entende que ela não dá conta de expressar com segurança este
conceito. Pois, na sua visão, os intelectuais não conseguem se comunicar com a
geração vigente, por seus conceitos e categorias serem ineficazes e obsoletos.
Há, reconheço, um verdadeiro paradoxo: indicar uma direção
garantida com “palavras” não tendo, de modo algum, a segurança
do conceito. [...] Talvez seja preciso saber aceitar, e viver, esse
paradoxo. [...] é preciso saber se contentar com as metáforas,
analogias, imagens, todas coisas vaporosas, que seriam os meios
menos piores possíveis para dizer ‘o que é’, o que está em estado
nascente. [...] E é a isso que se dedica a maior parte dos intelectuais,
jornalistas, políticos, assistentes sociais e outras boas almas, que se
sentem ‘responsáveis’ pela sociedade. Qualquer que seja a situação,
quaisquer que sejam os protagonistas, eles só têm na fala as
palavras, cidadania, República, Estado, contrato social, liberdade,
sociedade civil, projeto. É, sem dúvida, honroso e mesmo bastante
gentil. Sim, mas são palavras que parecem vir do planeta Marte
para a maior parte dos jovens que não sabem o que fazer da política
e mesmo do social. A abstenção, por ocasião das eleições, é, a esse
respeito, esclarecedora pelo fato de que ela mostra bem em que o
mecanismo de representação não tem mais qualquer relação com o
que é vivido (MAFFESOLI, 2010, p. 4-5).

Nessa não aceitação da tribo pelo que é imposto como padrão cultural pela
cultura de massas, que podemos ver o sentimento de pertencimento, o convívio e o
sentimento de estar juntos. Nesse aspecto, as tribos urbanas unem as pessoas mais
jovens e de todas as idades, que têm as mesmas sensações, emoções, interesses e
ideais. Maffesoli mostra que as jovens gerações e os mais variados grupos se
aglutinam justamente no prazer de estar juntos e partilhar das mesmas experiências
sociais:
Ajudar-se mutuamente, encontrar novas formas de solidariedade,
de generosidade, criar ocorrências caritativas, há tantas ocasiões
para vibrar junto, para exprimir ruidosamente o prazer de estar-
junto, ou, para retomar uma expressão trivial frequentemente nas
novas gerações, para “gozar”. Expressão judiciosa no que ela
ressalta bem o fim da forte identidade individual. Goza-se na
efervescência musical, na histeria esportiva, no calor religioso, mas
igualmente em uma ocasião caritativa, ou, ainda, em determinada
explosão política (MAFFESOLI, 2010, p. 18).

Essa solidariedade também foi observada com a efervescência musical


através do heavy metal e seus subgêneros na capital mineira, com os/as
roqueiros/as sem religião, no desenvolvimento de um tipo de espiritualidade não
religiosa em torno da música rock, na sociabilidade entre os adeptos das tribos
urbanas headbangers, desde a década de 1980.

490
Belo Horizonte, com suas características sociais provincianas
muito ligadas à religiosidade cristã, colaborou para o surgimento
de um novo grupo social nos anos 1980, que trouxe em seu gene o
espírito da criação da cidade. Um espírito de vanguarda que buscou
romper com o antigo, opondo-se à tradição, mas se valendo de
práticas quase sagradas para se alcançar essa finalidade, lançando
luzes a uma ritualística quase litúrgica nas formas de
comportamento da cena. Práticas que podiam ir desde os encontros
nas lojas todos os fins de semana, até as reuniões para ensaios que
se desdobravam noite adentro nos botecos da cidade
(NASCIMENTO; CALAÇA; DINIZ; CALVO, 2019, p. 194).

O que percebemos é que esses/as roqueiros/as buscavam uma ruptura com


qualquer instituição que pudesse representar a tradição, entre elas a igreja católica
que era predominante na cidade naquela época. Essa ruptura dos sem religião de
um modo geral com os círculos e instituições religiosas, tem sido objeto crescente
de pesquisas no Brasil e em outros países, devido à recusa da transmissão da
tradição religiosa às próximas gerações, como afirma Ritz:
Aliás, em nossa pesquisa de campo, as pessoas sem religião com
crença, majoritariamente, se disseram não comprometidas com a
transmissão; ao contrário, pontuaram que irão privilegiar a escolha
individual dos descendentes. [...] A ausência de interesse ou a
recusa em transmitir a tradição nos faz considerar que há uma
erosão no sentido simbólico contido na tradição, isto é, a perda de
afeição à tradição, e esta não alcança a subjetividade da pessoa e
por isso não é legitimada. Afinal, a adesão evoca no indivíduo
urbano a autonomia (RITZ, 2023, p. 200).

Na demarcação dos rituais do grupo e no distanciamento a qualquer poder


instituído, as práticas desses/as roqueiros/as tomaram formas quase sagradas na
socialização, com o ritual no comportamento de todos que aderiam aos círculos
urbanos headbangers na cena underground. O que tornava essas práticas sociais
variadas, como demarcação dos rituais sociológicos entre os participantes do círculo
de roqueiros/as em oposição aos moradores de Belo Horizonte.
A sociabilidade juvenil tem uma amplitude no contexto urbano e a
vida citadina possibilita e ainda potencializa variados
relacionamentos nas áreas sociais, política, econômica, cultural e
religiosa. Se no contexto rural a vida girava em torno da Igreja
Católica, com suas paróquias, matriz e com toda a comunidade de
fiéis que previamente sabia como lidar com as mais diversas
manifestações eclesiais, sociais e familiares, hoje o que percebemos
é uma certa diluição dessas normas e costumes: a cidade
proporciona essa efervescência e liberdade individual em que o
sujeito faz seu próprio percurso com autonomia e liberdade de
escolha (RODRIGUES, 2020, p. 202).

491
Nesse esvaziamento das instituições sociais que se potencializa no contexto
citadino com uma diluição das normas e costumes. É que percebemos que as crises
expostas pela pós-modernidade6 se tornaram fomentadoras de novos modos de
socialização e solidariedade nos círculos urbanos headbangers com geração de uma
espiritualidade não religiosa através do rock, do heavy metal e de seus subgêneros.

2. Rock, heavy metal e seus subgêneros, fontes para uma espiritualidade não
religiosa
Verificamos através dos relatos dos/as roqueiros/as sem religião, que Belo
Horizonte se apresentou na década de 1980 e ainda hoje, se apresenta como um
espaço potencializado para os relacionamentos pessoais e interpessoais, com a
sociabilidade e o sentimento de pertencimento de pessoas das mais variadas idades,
que se unem nos círculos urbanos headbangers. Isso mostra o potencial do rock, da
cidade e da pós-modernidade, como fomentadores das mais variadas manifestações
sociais e diversidade nos relacionamentos.
Essa coletividade participativa foi o que Maffesoli (2010) denominou como
tribos urbanas ou simplesmente tribalismo:
Em face da anemia existencial suscitada por um social
racionalizado demais, as tribos urbanas salientam a urgência de
uma sociedade empática: partilha das emoções, partilha dos afetos.
[...] O tribalismo lembra, empiricamente, a importância do
sentimento de pertencimento, a um lugar, a um grupo, como
fundamento essencial de toda a vida social (MAFFESOLI, 2010, p.
11).

Dessa forma, as tribalizações contribuíram e ainda contribuem na


socialização nos grandes centros urbanos, com a partilha e com o sentimento de
pertencimento entre os membros desses grupos. Essa riqueza da diversidade nos
relacionamentos, para Maffesoli tem solo fértil com o tribalismo pós-moderno. “O
quotidiano e seus rituais, as emoções e paixões coletivas, simbolizadas pelo

6 Para marcar a contemporaneidade em nossa pesquisa, utilizamos como pano de fundo o conceito
de pós-modernidade amplamente difundido por Michel Maffesoli. De acordo com Maffesoli (2010),
as marcas da pós-modernidade podem ser vistas por toda a parte. Para ele as pessoas buscam o
sentido para vida, aqui e agora com experiências que são vividas no presente na partilha dos mesmos
gostos, emoções e que gerem prazer. Maffesoli adota o termo pós-modernidade no livro: O tempo das
tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa, para mostrar as transformações
contemporâneas nos vínculos sociais. Conforme, Maffesoli (2010), páginas 03, 05, 07, 08, 09, 10, 11,
15, 31, 66, 153 e 171. Sobre pós-modernidade ver também, Maffesoli (1984), Maffesoli (1985),
Maffesoli (2002), Maffesoli (2003), entre outras obras do autor.

492
hedonismo de Dionísio, a importância do corpo em espetáculo e do gozo
contemplativo, a revivescência do nomadismo contemporâneo, eis tudo que
acompanha o tribalismo pós-moderno (MAFFESOLI, 2010, p. 3).
Notamos através do grupo dos sem religião, que estão nos círculos urbanos
headbangers com a espiritualidade não religiosa através da música rock um
posicionamento contrário as imposições da sociedade. Essa contraposição sinaliza
para a descrença e a insatisfação, com todas as instituições sociais contemporâneas,
entre elas a igreja. Nesses casos, essa espiritualidade não religiosa com os círculos
urbanos headbangers fomenta o percurso em que a pessoa escolhe a que grupo
pertencer, como forma de resistência e não conformidade aos padrões impostos
pela sociedade no contexto ocidental.
Toda a proposição contra cultural da cena underground com os/as
roqueiros/as sem religião, que estão nas tribos urbanas headbangers, já apontam
para o arcaísmo, com o retorno às bases. Não só com a negação à religião, mas
também da forma altamente veloz e agressiva como as músicas são executadas, o
vocal gutural, que mostra um retorno à animalidade, também com as letras das
músicas ácidas e agressivas, que apresentam o caos e o fim. As indumentárias dos
adeptos dessas tribos, as tatuagens e os acessórios, também mostram o retorno ao
tribal, a fonte e a tudo que possa representar o primitivo e porque não dizer o bestial.
Ao analisarmos o discurso dos dez participantes da pesquisa, para 70% que
compõem a maioria dos entrevistados, há o entendimento que o rock realmente gere
um tipo de espiritualidade não religiosa na socialização dos/as roqueiros/as sem
religião. Verificamos que rock pode ser também um elemento de ruptura com as
instituições sociais, entre elas a religião. Como pode ser um elemento aglutinador na
derivação de múltiplos pertencimentos, e também na fonte de várias formas de
solidariedade e socializações.
Através do discurso dos sete participantes da pesquisa, percebemos que o
rock se torna um tipo gerador de espiritualidade não religiosa, justamente por
proporcionar interações sociais mais diversas e plurais aos participantes das tribos
urbanas headbangers. Nos relatos observamos ações que sinalizam para
sociabilidades através do rock e isto também é verbalizado nos discursos com a
procura pela música rock, bem como a comunhão que nesses momentos é gerada na

493
solidariedade em reunir, escutar, organizar, divertir, envolver, fazer as coisas,
socializar e gerar um prazer.
Este prazer é mostrado como um prazer que começa com o rock como estilo
musical e pode levar o adepto da tribo a um nível mais elevado de espiritualidade
não religiosa, com o prazer naquela música, te leva até uma transcendência. Não só
essa transcendência foi relatada pelo viés de uma comunhão com aspectos de uma
religiosidade. Para os participantes da pesquisa o rock é capaz de gerar uma
espiritualidade não religiosa na nebulosa afetiva identitária, que proporciona uma
união dos fiéis, com um elo que não quebra o vínculo da sociabilidade, e que vai ser
professada e gera o acolhimento.

Considerações finais
Observamos que a cidade pode fomentar várias formas de socialização,
mesmo com as contradições que são próprias aos contextos citadinos, no qual, novas
formas de utilização dos espaços públicos podem surgir através dos atores públicos
e dos inúmeros grupos e círculos urbanos juvenis. Verificamos também, através da
maioria dos relatos dos participantes da pesquisa, que a socialização de
roqueiros/as sem religião em torno da música rock, do heavy metal e de seus
subgêneros, pode ser entendida como uma espiritualidade não religiosa.
Por meio dos relatos, estes participantes da pesquisa mostram a força da
socialização que é gerada através do rock como objeto principal. Há um desejo, que
segundo eles, começa com a procura pela música rock. Esse desejo ou anseio pela
música rock gera uma socialização, comunhão e solidariedade, ao reunir, escutar,
organizar, divertir, envolver, fazer as coisas, socializar e gerar um prazer. Há
elementos que foram relatados e mostram esses traços de uma espiritualidade não
religiosa através da música rock, com o prazer naquela música, que te leva até uma
transcendência.
Também foi relatado a potência do rock na geração de uma espiritualidade
não religiosa com a nebulosa afetiva identitária, união dos fiéis, elo que não quebra o
vínculo da sociabilidade, e que vai ser professada e gera o acolhimento. Observamos
nas categorias descritas pelos participantes, que mesmo falando da possibilidade de
uma espiritualidade não religiosa através da música rock, do heavy metal e de seus

494
subgêneros, categorias que são muitas vezes utilizadas pelas religiões acabaram
emergindo nos relatos para descrever suas experiências com o rock.

Referências
MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.

MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dionísio: contribuição a uma sociologia da orgia.


Rio de Janeiro: Graal, 1985.

MAFFESOLI, Michel. Entre o bem e o mal: compêndio de subversão pós-moderna.


Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-


modernas. São Paulo: Zouk, 2003.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades


de massa. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

NASCIMENTO, Leonardo Henrique Alves de Lima; CALAÇA, Gleyber Eustáquio;


DINIZ, Alexandre Magno; CALVO, Julia. Heavy metal Made in Minas Gerais: a
construção de um movimento headbanger em Belo Horizonte na década de 1980.
Cadernos de História, v. 20, n. 32, 2019. p. 180-197. Disponível em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/18352.
Acesso em: 26 jun. 2020.

RITZ, Claudia Danielle de Andrade. Eu sou sem religião com crença: a fragilização da
herança religiosa e a conservação da crença como elo de memória. 2023. Tese
(Doutorado em Ciências da Religião) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.
Disponível em:
http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/CienciasDaReligiao_ClaudiaDanielleDeA
ndradeRitz_30425_Textocompleto.pdf. Acesso em: 24 de julho de 2023.

RODRIGUES, Flávio Lages. As trajetórias da música rock na Comunidade Caverna de


Adulão. Interações, Belo Horizonte, v. 15, n. 1, p. 197-213, 2020. Disponível em:
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STREIB, Heinz; KLEIN, Constantin. Religion and Spirituality. In: STAUSBERG,


Michael; ENGLER, Steven (org.). The Oxford Handbook of the Study of Religion. New
York/London: Oxford University Press, 2016. p. 73-83.

495
ESPIRITUALIDADE NAS ORGANIZAÇÕES: CONTRIBUIÇÕES PARA
OS ESTUDOS SOBRE ESPIRITUALIDADE NÃO RELIGIOSA

Jonathan Félix de Souza1

Resumo: Essa comunicação apresentará algumas contribuições da tese em fase final que
analisa a busca por espiritualidade em organizações empresariais brasileiras, investigando
se ela segue um modelo de Epistemologia Mítica (EM) ou Epistemologia não mítica (EnM),
nos termos da disciplina Epistemologia axiológica proposta por Marià Corbí. A pesquisa
contou com a participação de 12 executivos/as de empresas reconhecidas como melhores
lugares para trabalhar no Brasil. Foi identificada uma influência da EM nos padrões de
pensamento, sentimentos e ações, evidente nos discursos e comportamentos dos
participantes. Percebe-se um processo de continuidade e descontinuidade entre o que foi
ensinado e o que foi aprendido, assimilado e adotado como valor axiológico e motivador, o
que se reflete na forma como eles/elas articulam seus sistemas de valores. Apesar da
intenção de desenvolver práticas alinhadas à EnM, as iniciativas e definições sobre
espiritualidade nas organizações mantêm elementos da EM devido à carga semântica
presente. Observa-se uma reconfiguração e valorização dos conteúdos semânticos
religiosos, adaptados às individualidades, indicando uma tendência de individualização das
crenças. Embora seja possível identificar uma tendência em direção à EnM em alguns
discursos, é importante ressaltar que essa transição ocorre gradualmente e não representa
uma ruptura completa com a EM. Existe um desgaste progressivo do modelo mítico, porém,
ainda há muito a ser feito para que as práticas sejam efetivamente orientadas pela
Epistemologia não mítica. A religião, apontada por Marià Corbí como um Projeto Axiológico
Coletivo, exerce, no campo, uma influência tão forte que se manifesta mesmo onde não se
espera encontrá-la.
Palavras-Chave: Espiritualidade; Organizações; Epistemologia Axiológica; Ciência da
Religião Aplicada.

Introdução
A espiritualidade nas organizações revela-se como um fenômeno
multifacetado, atraindo a atenção de disciplinas tão diversas quanto a psicologia,
teologia, ciência da religião e administração. Carneiro, Serafim e Tezza (2018, p.
161) frisam que, para tornar as pesquisas sobre o tema espiritualidade mais
robustos e com maior confiabilidade, recomenda-se realizar aprofundamentos
semânticos das palavras que envolvem esse campo “de forma a delimitar os
significados e garantir que elas foram empregadas nos estudos de maneira
equivalente”. Este vasto panorama traz à tona a complexidade da linguagem e a

1 Mestre em Ciências da Religião. Administrador, Pedagogo. Doutorando em Ciências da Religião e


Doutorando em Administração pela PUC Minas. Bolsista CAPES. E-mail:
jonathanfelixadm@gmail.com.

496
maneira como ela molda e expressa nossas experiências e compreensões mais
íntimas, revelando nosso sistema de valores coletivos.
Na compreensão aqui adotada, os sistemas de crenças são aqueles preceitos
e valores coletivos legitimados pelo divino (religião), ou descobertos na natureza
das coisas (ideologias). Por definição são heterônomos (Prat-i-Pubill, 2018, p. 101,
tradução nossa). São sistemas que possuem uma noção fixa e intocável, assumida
como verdadeira e legitimadora da realidade, sendo uma afirmação racionalizada
que é pensada e assumida como verdadeira. Um sistema de crenças poderá se tornar
um sistema de valores coletivo quando as configurações culturais mínimas que o
orienta “se tornam interpretações automáticas, evidentes e verdadeiras do mundo”
(Prat-i-Pubill, 2018, p. 84, tradução nossa)2, um modo de pensar, sentir, organizar e
agir coletivo.
No projeto doutoral3, buscamos contribuir para os estudos de espiritualidade
não religiosa nas organizações, utilizando a Epistemologia Axiológica (EA) de Marià
Corbí como base. A EA, centrada no paradigma da linguagem, analisa a formação de
sistemas de valores coletivos. Existem duas lentes principais para essa análise: a
Epistemologia Mítica (EM), que vê a realidade conforme expressa por mitos e
teorias, e a Epistemologia não Mítica (EnM), que considera todas as interpretações
da realidade como modelagens humanas. Essas perspectivas serão adotadas para
analisar a linguagem organizacional e entender o sistema de valores axiológicos.

Espiritualidade nas organizações, pistas identificadas


Na presente pesquisa, ancorados na técnica de entrevistas por profundidade
delineada por Oliveira (2016), elaboramos um questionário para investigar a rotina
dos executivos, bem como suas necessidades, tendências em gestão de pessoas,
senso religioso e práticas que promovem qualidade humana e espiritualidade no
contexto organizacional. Para Corbí, os conceitos de qualidade humana (QH) e
qualidade humana profunda (QHP) traduzem o que antes era denominado
espiritualidade. Essa qualidade é um dado antropológico que não depende das
religiões (Senra; De Souza, 2021).

2 [...] to those automatic, evident, “true” interpretations and valuations of the world, which are
transparent to us and constitute individuals in a collective.
3 Trabalho sob orientação de Flávio Senra. Investigação compõe o processo formativo no curso de

doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências a Religião da PUC Minas.

497
Utilizando o método de Lawrence Bardin (2011) para análise de conteúdo,
focamos na axiologia das falas e nas mudanças linguísticas, empregando a análise de
similitude para identificar padrões linguísticos. Mesmo com entrevistados e
empresas não confessionais, detectamos códigos linguísticos no discurso dos
executivos que apontam para um sistema de valores e possíveis interpretações
míticas da realidade, revelando sua estrutura axiológica subjacente.
Por exemplo, ao perguntar se elas são pessoas de fé, o olhar, a tonalidade da
voz, muda. Ocorre uma ênfase que podemos tentar expressar pelas letras do
discurso abaixo:
De fé, muita! Muita. Muita fé. Eu tenho muita fé. E assim, quando eu
falo fé em Deus mesmo, eu acredito nesse ser supremo. [...] quando
eu falei antes que se eu sou resiliente, que eu sou isso, que eu tenho
minhas dores, para mim isso é fé, para mim tem um único ser que
me faz sair desse espaço: Deus (E6).

Além das questões que buscamos identificar os elementos do sistema de


valores, pedimos para compartilharem algumas práticas e iniciativas. Iremos
destacar algumas. O Momento com Deus é descrito como um espaço ecumênico de
acolhida voltado para oração, meditação e reflexão, objetivando proporcionar às
pessoas uma palavra de conforto. Ele ocorre de forma semanal, é aberto a todos e
divulgado para 100% da organização. A executiva destaca que esse não é um espaço
religioso, mas sim dedicado ao cultivo da espiritualidade.
O Clube do Propósito foi criado para compartilhar e realizar práticas
propostas pelo livro Encontre seu porquê: Um guia prático para descobrir o seu
propósito e o de sua equipe de Sinek, Mead e Docker (2018). Esta iniciativa é semanal
e partiu dos próprios colaboradores. O Clube de Leitura é um espaço destinado a
compartilhar percepções e discutir descobertas acerca dos livros que estão sendo
lidos pelos participantes. Há também os Grupos de Afinidade ou Circles, compostos
por diversos grupos focados em temáticas como a presença feminina, pessoas
negras, LGBTIQA+, mães, pais, saúde mental, entre outros. Essa iniciativa incentiva
as pessoas a se conectarem para aprenderem juntas, seja sobre música, idiomas ou
outros temas. Esses encontros são flexíveis, podendo ocorrer semanalmente,
quinzenalmente ou mensalmente.
O Grupo de Mindfulness foca em práticas com o objetivo de sentir, ouvir e
viver plenamente o momento presente, também servindo como uma forma de

498
cuidado com a saúde mental. A participação é livre. Uma outra iniciativa é a Partilha
de Saberes, que consiste em semanas temáticas dedicadas a compartilhar
conhecimentos específicos com a equipe. Estes podem variar desde culinária
saudável a práticas de meditação, ioga e interpretação de sonhos. Os membros são
incentivados a participar e convidar pessoas de seu círculo familiar, amigos e outros.
É um evento aberto a todos.
Essas atividades e tantas outras são articuladas com o objetivo de estabelecer
qualidade de vida, cuidando integral e coletivamente a saúde das pessoas. Nas
palavras de uma das entrevistadas, existe “um propósito organizacional que é
inspirar pessoas a cuidar de pessoas. [...] as pessoas para nós, estão no centro da
estratégia, estão no centro do cuidar” (E6)4. Em todas as falas não aparece uma
intencionalidade de impor uma realidade ou um sentido, pelo contrário reforçam a
necessidade de favorecer a liberdade e a coparticipação para construção do sentido
e interesse pelo propósito. O centro é um cuidado com aquilo que o outro sente que
é importante, até mesmo a prática que recebe o nome de momento com Deus é
oferecida sem imposição. A intenção é abrir espaço para que as pessoas fortaleçam
aquilo em que acreditam.
Nessa prática em específico, podemos identificar uma das nossas hipóteses
iniciais, isto é, a de que alguns desses momentos estão enraizados com crenças,
buscando um espaço para apaziguar a dor e ganhar um suspiro. Contudo, a forma de
tratar nos revela um outro aspecto que podemos observar a partir da atuação dos/as
gestores/as, que enxergam nas práticas não uma imposição da crença, mas uma
ideia de que todos precisam de momentos como esses para se sentirem acolhidos e
respeitados, além disso destacam o aspecto da mobilidade, entendida aqui como
uma facilidade para exercer aquilo em que acredita.
As práticas realizadas não possuem nenhuma vinculação com a religião
institucionalizada, esse aspecto frisamos em análise mais aprofundadas na tese,
contudo, o que é que existe é o reconhecimento e a valorização daquilo que faz o
outro se conectar em profundidade e buscar suas respostas, com o objetivo de
oferecer equilíbrio e bem-estar. Pode-se perceber que as definições dos/as
entrevistados/as sobre espiritualidade nas organizações apontam para uma

4 A letra E, representa a fala do/a entrevistado.

499
possível transição da EM para uma perspectiva não mítica. No entanto, é importante
lembrar que as práticas ainda estão imersas em uma EM, mesmo que se apresentem
como escolha livre dos colaboradores. Isso significa que, mesmo que haja uma
mudança gradual em direção a uma EnM, ainda há uma forte influência da EM nas
práticas organizacionais. A EnM parece ser vista como uma possibilidade, mas ainda
não é a perspectiva dominante.
Há diversas razões que podem explicar o fato de que o discurso dos
entrevistados demonstre uma EM. Em primeiro lugar, a epistemologia mítica está
profundamente enraizada em nossa cultura e é transmitida por meio de diversos
mecanismos, como a educação, a religião e as tradições familiares. Mesmo que uma
pessoa tenha interesse em adotar uma perspectiva não mítica, é possível que seja
difícil romper com essa herança cultural e mudar seu sistema de crenças e valores.
Dessa maneira, muitas vezes as pessoas podem estar adotando uma EM
porque ela oferece um senso de segurança e estabilidade em um mundo que é
percebido como incerto e caótico. As mitologias e as crenças religiosas podem
fornecer explicações simples e reconfortantes para os eventos da vida, o que pode
ser especialmente atraente em momentos de crise ou transição.
Podemos inferir que a EA como disciplina pode auxiliar no cultivo da
qualidade humana. A adoção de uma perspectiva não mítica exige um esforço
consciente e contínuo para questionar e reformular nossas crenças e valores. Nem
todos estão dispostos ou preparados para realizar esse trabalho de auto-reflexão e
mudança, especialmente se a epistemologia mítica está fortemente enraizada no
sistema de valores coletivos. A EA se propõe a tratar as questões axiológicas
humanas, especialmente na criação de novos projetos axiológicos coletivos
adequados às sociedades de conhecimento e suas frequentes modificações.
Esse cuidado com o sentir apontado pelos/as entrevistados/as é olhado
como um apaziguamento interno da dor, mas também um olhar cuidadoso consigo
para cuidar do outro e do ambiente. Podemos inferir, nos termos corbianos, um
reconhecimento da QH e QHP. Ao proporcionar um espaço de confiança, a
organização possibilita para as pessoas sair de um sentir superficial para um sentir
profundo.

500
Considerações finais
Diante deste cenário, nos abrem a possibilidade de analisar em que medida o
surgimento de uma espiritualidade nas organizações, a partir das definições por
elas/eles apresentadas, podem contribuir para compreensão de uma
espiritualidade não religiosa. Esse fenômeno traz novos elementos para
compreender a problematização da política de produção dos sentidos na nova
configuração do ethos contemporâneo, tendo como atores as organizações e os
colaboradores.
O fenômeno da busca por espiritualidade em organizações revela uma
reconfiguração dos conteúdos semânticos religiosos, destacando a individualização
da crença e a influência da religião como um Projeto Axiológico Coletivo (PAC) na
vida coletiva. Contudo, essa espiritualidade não necessariamente depende da
mediação de uma instituição religiosa, e as práticas nas organizações nem sempre
refletem uma estrutura religiosa tradicional. Por outro lado, há uma forte busca pelo
cultivo da qualidade humana profunda (espiritualidade), com a Ciência da Religião
Aplicada e a Epistemologia Axiológica, podemos oferecendo ferramentas para essa
compreensão. Podemos inferir, que apesar da ênfase em inovação e criatividade no
campo da pesquisa e da suposta flexibilidade das Sociedades de Conhecimento, o
PAC anterior com estratégias fixas, mentem o padrão operativo.

Referencias
CARNEIRO, Lucas Carregari; SERAFIM, Maurício Custódio; TEZZA, Rafael. Uma
análise bibliométrica da relação entre ética e espiritualidade/religiosidade nas
organizações. RIGS revista interdisciplinar de gestão social, Vale do Canela, v. 7, n. 2,
mai./ago. 2018.

CORBÍ, Marià. El gran olvido: la gratuidad del vivir. Principios de epistemología


axiológica 6. Edició: Ed. Bubok, 2020.

CORBÍ, Marià. El sentir hondo de la vida. Principios de epistemología axiológica 7.


Edició: Ed. Bubok, 2021.

SINEK, Simon; MEAD, David; DOCKER, Peter. Encontre seu porquê: Um guia prático
para descobrir o seu propósito e o de sua equipe. Rio de Janeiro: Editora Sextante,
2018.

SENRA, Flávio.; DE SOUZA, Jonathan Felix. Espiritualidad como cualidad humana y


cualidad humana profunda en el pensamiento de Marià Corbí. Theologica Xaveriana,
[S. l.], v. 71, 2021. DOI: 10.11144/javeriana.tx71.echchp. Disponível em:

501
https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/teoxaveriana/article/view/33272.
Acesso em: 16 set. 2023.

PRAT-I-PUBILL, Queralt. Axiological knowledge in a knowledge driven world:


considerations for organizations. 2018. Thesis (Doctor in Organization and
Management Studies). Copenhagen Business School, Denmark, 2018.

502
HÁBITOS DE LEITURA E ESTRATÉGIAS DE CONTATO DE
SANNYASINS BRASILEIROS COM O LEGADO OSHIANO

Kevin Kossar Furtado1

Resumo: O trabalho apresenta um recorte de pesquisa em andamento que objetiva


compreender como o legado do guru indiano Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho, orienta a
religiosidade de sannyasins brasileiros. A investigação partiu de pesquisa documental de
todo o conteúdo disponível na OSHO Online Library sobre corpo, meditação, dinheiro,
riqueza, sexo, sexualidade e Zorba que fundamentou a construção de um roteiro de
entrevista em profundidade feita com adeptos da religiosidade proposta pelo guru, com o
intuito de compreender as demandas, motivações, apropriações e usos efetuados da
herança filosófica do Osho. O recorte estabelecido trata dos hábitos de leitura de sannyasins
brasileiros dos livros do guru. Se, no início do seu sannyas, os entrevistados liam mais os
livros de Osho, atualmente preferem acessar seus discursos por outras vias, como áudios e
vídeos para rememorar sua voz, sua imagem e seus gestos. Alguns sannyasins criticam o
modo como as traduções contemporâneas dos livros do guru são feitas e a maneira como a
Osho International Foundation administra seu legado. O menor contato dos sannyasins com
os livros do Osho, compreendemos, guarda relação com o efeito da figura do mestre que não
está mais presente, situação prevista pelo guru que, em diferentes ocasiões, notou a
diferença entre um movimento próspero em que o mestre está presente e um movimento
que, após sua morte, tende a se tornar mais burocrático, dogmático e institucionalizado.
Palavras-chave: Sannyasins. Rajneesh/Osho. Hábitos de leitura. Osho International
Foundation.

Introdução
Este texto apresenta recorte de pesquisa que investigou como ensinos e
orientações do guru indiano Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho, estimulam a
religiosidade; e como sannyasins brasileiros do Osho se apropriam das referências
de seu legado teórico-filosófico corpo, meditação, riqueza, consumo, dinheiro,
sexualidade e sexo.
Por meio de pesquisa documental na OSHO Online Library e pesquisa
bibliográfica (GERHARDT; SILVEIRA, 2009), este texto trata da figura de
Rajneesh/Osho e da definição de neossannyasins para Osho. Depois, discute os
hábitos de leitura e estratégias de contato dos sannyasins com o legado de Rajneesh.

1Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Pós-doutorando em


Sociologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Departamento de Comunicação
Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). E-mail: kevin@aol.com.br.

503
1. Metodologia
Dez sannyasins participaram de entrevistas em profundidade. Delimitou-se
que os entrevistados deveriam ter no mínimo 18 anos; serem ou terem sido
participantes de um centro de meditação ou ashram inspirado por Osho; e já terem
lido livros do guru. As entrevistas foram realizadas entre fevereiro e março de 2022
por programas de videoconferência.
A pesquisa documental buscou referências do legado do guru que orientam a
religiosidade e serviu para a elaboração do roteiro de entrevista semiestruturado
aplicado aos sannyasins para identificar a construção de sua religiosidade. As
entrevistas em profundidade combinaram questões fechadas e abertas (BONI;
QUARESMA, 2005).
Todos os entrevistados assinaram termo de consentimento livre e
esclarecido que apresentava a pesquisa, seus objetivos, o modo de participação, os
instrumentos utilizados e o compromisso de não identificação por parte do
pesquisador. Os sannyasins indicaram nomes sannyas não relacionados aos seus
próprios, visto a garantia de anonimato da pesquisa. As entrevistas, gravadas em
áudio, foram realizadas entre fevereiro e março de 2022 e tiveram uma média de
1h25.
Cinco entrevistados se identificaram como homens (Prakash, Swami, Anand,
Samadhi e Gyanand) e cinco como mulheres (Ramita, Leela, Prem, Ranga e Komala).
Os participantes tinham idade entre 60 e 74 anos. Nove possuem ensino superior
completo e um superior incompleto. Três entrevistados são de Minas Gerais, dois de
São Paulo, um do Distrito Federal, um do Ceará, um do Rio de Janeiro, um da Bahia
e um de Goiás. Quatro são terapeutas, um aposentado, um professor de meditação,
um designer de joias, um psicólogo, um instrutor de meditação e um numerólogo.
Sete são solteiros (um em união estável), dois divorciados e um casado. Sua renda
variava de três a 16 salários mínimos2.

2. Rajneesh/Osho
Nascido em 1931, na Índia, como Chandra Mohan Jain, Bhawgan Shree
Rajneesh se constitui em um dos líderes religiosos mais controversos e

2 No momento das entrevistas, o salário mínimo no Brasil era de R$ 1.212.

504
financeiramente bem-sucedidos do século XX (URBAN, 2005, p. 169). Rajneesh
afirmou ter atingido a iluminação em 1952, aos 21 anos (URBAN, 2015, p. 33).
Popularmente conhecido como “guru do sexo” e “guru dos ricos”, desenvolveu “um
tipo radicalmente iconoclasta de espiritualidade” que se tornou bastante popular na
Índia e, na década de 1980, nos Estados Unidos, quando o guru se estabeleceu em
Rajneeshpuram, comuna criada para ele por seus sannyasins no Condado de Wasco,
no Oregon (URBAN, 2005, p. 169).
Para Urban, Rajneesh se configura no primeiro guru verdadeiramente global
e, talvez, no primeiro “guru pós-moderno” do século XX (URBAN, 2015, p. 27).
Quando adotou o título de Osho, no final da vida, sua mensagem se tornou
progressivamente universal, menos controversa e mais aceitável tanto para seu
público indiano como o ocidental (URBAN, 2012, p. 458). O guru faleceu em seu
ashram em Pune, na Índia, em janeiro de 1990.
O interesse por Osho e seus livros cresceu com a série documental Wild wild
country (2018) da Netflix. Após a série, o Google Trends registrou um aumento de
100% nas buscas virtuais pelo guru no mundo (MENON, 2018).

3. Os neosannyasins
Osho estimulou um caminho religioso que integrava o desejo do prazer
sexual na experiência espiritual, além do desejo da transcendência espiritual com o
da riqueza material e prosperidade. Seu ideal de ser humano para seus sannyasins
se constituía em “Zorba, o Buda”, a pessoa que une a espiritualidade de Buda com o
materialismo de Zorba, o grego (URBAN, 2005, p. 170).
Para Rajneesh, o voto pelo sannyas não deve ser vitalício, mas de curto prazo,
para que o sannyas não se torne uma prisão (OSHO, 1970a). Por isso, ele não pode
ser institucionalizado; do contrário, se tornará escravidão. Osho deixa que cada
pessoa tome sua decisão por tomar ou não sannyas para que, se futuramente optar
por abandoná-lo, o faça sem ser condenado – e que não haja condenação se decidir
retomá-lo (OSHO, 1970b).
Rajneesh dava sannyas aos que o solicitavam sem exigir nenhuma condição
(OSHO, 1985) – ainda que tivesse expressado que o sannyas não pode ser dado por
um guru, mas somente pelo divino, e que apenas era uma testemunha da iniciação
(OSHO, 1970a). Para ele, entrar no sannyas não deve ser apenas um voto, mas

505
oferecer a sensação de liberdade a tal ponto que, se a pessoa sentir que tomou uma
decisão errada, decline dela. “Acredito que uma pessoa que entra em sannyas não
voltará [a ser o que era antes], mas essa capacidade deve ser experimentada dentro
do próprio sannyas” (OSHO, 1970b, tradução nossa).
Osho situa que os diferentes tipos de sannyas existentes até então estavam
ligados a alguma religião, o que impedia os sannyasins serem verdadeiramente
livres. Para ele, um sannyasin deve nutrir religiosidade em sentido lato (OSHO,
1970b).
Os sannyasins existentes até o nascimento do seu neossannyasin, alega
Rajneesh, raramente adotavam sannyas inspirados por acontecimentos alegres, mas
para se refugiar da miséria, do desespero, da infelicidade, da tristeza e da dor (OSHO,
1970a). Seus sannyasins não são escapistas do mundo (OSHO, 1970b), não se
limitam ou inibem nem aceitam imposições, regras e regulamentos. Osho projeta
que o sannyas do futuro flui da alegria e do êxtase da vida, diferentemente do antigo
tipo de sannyasin que abandona o mundo por desespero. Ele considera que um
sannyasin não pode viver isolado, como outrora ocorria, porque a riqueza de todas
as experiências da vida (dor, prazer, apego, desapego, amor, ódio, amizade,
inimizade, guerra e paz) estão no mundo, não fora dele (OSHO, 1970a); não há
oposição nem conflito entre a vida mundana e o sannyas (OSHO, 1970b).

4. Hábitos de leitura e estratégias de contato dos sannyasins com seu guru


Os sannyasins foram indagados, entre outros temas, sobre seus hábitos de
leitura dos livros do Osho. No início de seu sannyas na década de 1980, Prakash
chegou a ter todos os livros do Osho, que passavam de 30, e adquiria todos os
lançamentos. Ele chegou a ler cerca de 50 dos livros lançados em português. No
momento, possui cerca de 200 livros em inglês, os quais prefere, por ter a sensação
de ver e ouvir o Osho discursar presencialmente. Ele não possui nem acompanha as
publicações dos livros mais recentes, formados por compilações de temas
específicos.
Leela também menciona que, no começo do seu sannyas, lia bastante; leu
cerca de 10 livros. Ela critica as compilações atuais. “Virou uma coisa de autoajuda.”
Leela possui muitos livros em inglês que não foram publicados no Brasil, mas
circularam na Índia e nos Estados Unidos. No presente, ela lê livros de outros

506
mestres espirituais e justifica não ter lido mais no início do seu sannyas por ter
trabalhado, cerca de dois anos, no departamento responsável pelas filmagens e
edições dos discursos de Osho no ashram em Pune, na Índia, no período pós-
Rajneeshpuram, e, consequentemente, ter assistido presencialmente às falas do
guru. “As pessoas mandavam perguntas e o Osho respondia [...], que são essas
compilações. Os livros originais são o Osho respondendo aos sannyasins. O Osho
nunca sentou pra escrever um livro. [...] As perguntas foram gravadas, transcritas e
[viraram] livros.” A produção de livros originados das transcrições dos discursos e
palestras do Osho, calcula-se, ultrapassa 600 títulos (KOSSAR FURTADO, 2022, p.
459). Em 2000, a revista India Today estimou que eram 1500 livros publicados em
40 idiomas (URBAN, 2015, p. 155).
Gyanand, que traduziu ou participou da tradução de cerca de 50 livros de
Osho para o português, quando trabalhou no departamento de tradução do ashram
em Pune, na Índia, depois de Rajneeshpuram, e para editoras brasileiras, diz ter lido
cerca de outros 20 livros e que, nos dias de hoje, lê pouco. Anand, que igualmente
atuou no departamento de tradução do ashram em Pune na mesma época, e, no
Brasil, fez trabalhos de revisão de traduções, leu cerca de 50 e, agora, opta por ouvir
áudios dos discursos do guru no site Osho World.3 Sobre as críticas às traduções
contemporâneas, ele esclarece que quando Osho estava vivo, eram pessoas próxima
ao guru que as faziam. Presentemente, tradutores profissionais não familiarizados
com Osho, seu movimento e com práticas dos sannyasins, realizam esse trabalho. As
compilações de diferentes discursos do Osho sobre temas específicos, explica,
substituíram os livros formados por transcrições de séries de discursos contínuos
do guru que possuíam um encadeamento de ideias.
A internet fez Ramita alterar seus hábitos de leitura, ler menos e consumir
mais conteúdos virtuais. Mesmo assim, ela conta ter lido cerca de 50 livros. Por mais
que não se coloque como um grande leitor do Osho, Swami relata ter lido entre 100
a 200 livros dele. Na atualidade, motivado pelo comodismo, escolhe ouvir seus
discursos na Osho Radio da Osho International Foundation. Sem precisar quantos
foram, Prem leu todos os livros do Osho disponíveis no período em que morou na
Osho Commune International (que se tornou, posteriormente, o Osho International

3 Disponível em: https://oshoworld.com/. Acesso em: 7 mar. 2023.

507
Meditation Resort), na Índia, entre 1988 e 1998. Ela ouvia seus discursos e lia seus
livros diariamente desde quando voltou ao Brasil, em 1998, até 2005, além de
acompanhar o trabalho de todos os editores dos livros do Osho no Brasil a serviço
da Osho International. Ranga leu de 20 a 30 livros editados antes da morte de Osho.
Samadhi acredita ter lido cerca de 50 livros do Osho, mas tem lido menos nos dias
atuais, pois aprecia ver seus discursos em vídeo. “Ele me diz muito pela
gestualização, pelo jeito de olhar”. Sem apontar exatamente quantos, Komala afirma
ter lido muitos livros do Osho quando se tornou sannyasin. Atualmente, embora não
leia muito, quando o faz, busca por escritos do Osho que digam respeito a temas
específicos.

Considerações finais
O menor contato dos sannyasins com os livros do Osho parece ter relação com
o efeito da figura do mestre que não está mais presente, situação prevista pelo guru
que, em diferentes ocasiões, lembra Urban (2015, p. 158), notou a diferença entre
um movimento próspero em que o mestre vivo está presente e um movimento que,
após sua morte, tende a se tornar mais burocrático, dogmático e institucionalizado.
Como expediente para sentir o guru, os sannyasins entrevistados usam de
estratégias, para acessar sua mensagem, de gravações em áudio e vídeos para ter
contato com sua voz, sua imagem e seus gestos. As críticas dos sannyasins ao modo
como as traduções contemporâneas dos livros do Osho são feitas e ao modo como a
Osho International Foundation administra sua obra ressoam os embates
financeiros, legais, políticos e de direitos autorais45 e marcas registradas6 em torno
do legado do guru conforme discutidos por Urban (2015, p. 155-178).

Referências
BONI, Valdete; QUARESMA, Sílvia Jurema. Aprendendo a entrevistar: como fazer
entrevistas em Ciências Sociais. Em Tese, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 68-80, jan./jul.
2005.

4 Declaração da Osho International Foundation sobre a propriedade dos direitos autorais das obras
do Osho: https://www.osho.com/copyrights. Acesso em: 29 mar. 2023.
5 Nota pública da Osho International Foundation sobre a propriedade dos direitos autorais das obras

do Osho: https://www.osho.com/read-media-and-publishing/public-notice. Acesso em: 29 mar.


2023.
6 Declaração sobre as marcas registradas da Osho International Foundation:
https://www.osho.com/trademarks. Acesso em: 29 mar. 2023.

508
GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (Orgs.). Métodos de pesquisa.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

KOSSAR FURTADO, Kevin. Religiosidade, seguimento e despertar da consciência


para sannyasins do Osho. Caminhos, Goiânia, v. 20, n. 3, p. 452-475, set./dez. 2022.
Disponível em:
https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/12750/5798.
Acesso em 2 ago. 2023.

MENON, Isabella. Série impele procura por Osho na internet e nas livrarias. Folha de
S.Paulo, 24 jun. 2018. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/06/serie-impele-procura-
por-osho-na-internet-e-nas-livrarias.shtml. Acesso em: 14 mar. 2021.

OSHO. From the false to the truth. Nova York: Osho International Foundation, 1985.

OSHO. Krishna: the man and his philosophy. Nova York: Osho International
Foundation, 1970a.

OSHO. The art of living. Nova York: Osho International Foundation, 1970b.

URBAN, Hugh B. Osho, from sex guru to guru of the rich: the spiritual logic of late
capitalism. In: FORSTHOEFEL, Thomas A.; HUMES, Cynthia A. Gurus in América. Nova
York: State University of New York Press, 2005. p. 169-192.

URBAN, Hugh B. Tantra, American style: from the path of power to the Yoga of sex.
In: KEUL, István (Ed.). Transformations and transfer of Tantra in Asia and beyond.
Berlin; Boston: De Gruyter, 2012. p. 439-477.

URBAN, Hugh B. Zorba the Buddha: sex, spirituality, and capitalism in the global
Osho movement. Oakland: University of California Press, 2015.

509
RELIGIÃO VIVIDA E O ESTUDO DE PESSOAS SEM RELIGIÃO COM
CRENÇA: UMA PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA

Leandro Evangelista Silva Castro1

Resumo: Embora não considerem pertencer à religião institucional, pesquisas revelam


haver no grupo dos que se autodeclaram sem-religião, um número expressivo de pessoas
que mantêm crenças religiosas. O objetivo desta comunicação é investigar as contribuições
do uso da categoria religião vivida como horizonte teórico-metodológico para o estudo de
pessoas sem religião com crença. Por religião vivida compreende-se a atenção à religião
praticada no cotidiano por pessoas comuns. Trata-se de um enfoque que provoca um
redirecionamento do olhar. Toma-se como metodologia a pesquisa bibliográfica. No que se
refere a conceituação de religião vivida foram assumidos os autores clássicos desse debate:
David Hall, Robert Orsi, Meredith McGuire e Nancy Ammerman. A partir desse estudo
consideramos cinco contribuições centrais da categoria religião vivida para o estudo de
pessoas sem religião com crença: 1) O redirecionamento do foco para o cotidiano, uma vez
que, as práticas conservadas pelas pessoas sem religião se dão no cotidiano e distantes do
vínculo institucional. 2) A atenção à autonomia criativa das pessoas, visando perceber como
as pessoas ressignificam práticas da herança religiosa em suas vidas. 3) A singularidade das
práticas cotidianas, o que implica uma análise científica mais regionalizada e menos
estrutural. 4) O fomento de uma abordagem decolonial, na medida seu enfoque está sobre
as vozes subalternizadas na história e na academia. 5) Maior atenção ao corpo, indicando
uma vivência corporificada da religião. Sendo assim, julga-se conveniente alinhar as
discussões da religião vivida e a pesquisa sobre pessoas sem-religião no âmbito da Ciência
da Religião.
Palavras-chave: Sem religião; Religião vivida; Teoria; Método; Ciência da Religião.

Introdução
Religião vivida, compreendida como categoria analítica, tem como objetivo
redirecionar o olhar para determinados aspectos da religião. Não se trata de uma
categoria nativa, nesse sentido, utilizar a categoria religião vivida para o estudo de
pessoas sem religião, não tem a pretensão de sistematizar/institucionalizar a
experiência vivida pelas pessoas. Para além da categoria, importa mais o conteúdo
e os enfoques que têm caracterizado essa abordagem. Toma-se como pressuposto,
que as pessoas, além do discurso, da crença e do pertencimento e instituição, tendem
a atribuir significados religiosos a determinadas ações do seu cotidiano. Essa
comunicação tem como objetivo apresentar debates que emergem no âmbito da

1 Mestre em Ciências da Religião, doutorado em andamento em Ciências da Religião pelo Programa


de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. Bolsista Capes. Trabalho sob orientação do
Prof. Flávio Augusto Senra Ribeiro como parte integrante do processo de pesquisa da tese doutoral,
Religião vivida e pessoas sem religião com crenças: interfaces teórico-metodológicas.

510
religião vivida, buscando refletir sobre possíveis contribuições para a pesquisa
sobre pessoas que se autodeclaram sem religião.

1. Religião vivida e as pesquisas sobre pessoas sem religião com crença


A princípio, busca-se apresentar brevemente as definições que sustentam o
debate em torno da religião vivida e das pessoas sem religião com crença. A religião
vivida, considerando o debate norte americano, tem sua gênese no final da década
de 90. Pesquisadoras e pesquisadores principalmente da Sociologia e História
passaram a questionar seus modos de produzir conhecimento sobre a religião. Por
parte da Sociologia havia uma constatação de que as teorias da secularização já não
respondiam à realidade do campo. Ammerman (2021, p. 6) indica o esgotamento da
teoria da secularização, de acordo com a autora, “entre os sociólogos, a rebelião
começou com o fracasso em espremer a realidade religiosa do mundo em uma teoria
universal da secularização. Nem toda sociedade se encaixa no modelo de
modernização de estilo ocidental que leva ao declínio religioso de estilo europeu.”
Os historiadores se questionavam sobre o perfil e foco de suas pesquisas. Hall (1997,
p. VII) afirma que “embora saibamos muito sobre a história da teologia e (digamos)
da igreja e do estado, sabemos quase nada sobre a religião praticada e muito pouco
sobre o pensamento e a ação cotidiana de homens e mulheres leigos”. A categoria
surge como um redirecionamento do olhar para determinados aspectos da religião
que anteriormente haviam sido ignorados. Ammerman (2021, p. 05), indica que o
objetivo da religião vivida é “[...] incluir as práticas de pessoas comuns, não apenas
líderes religiosos. É esperar encontrar a religião tanto nos lugares ‘religiosos’ quanto
em todos os outros lugares cotidianos. É focar no que as pessoas estão fazendo, bem
como no que estão dizendo.” Ou seja, buscar pela religião vivida é se atentar aos
movimentos religiosos operados por pessoas comuns em seu cotidiano. Hall (1997,
p. XI) aponta que “embora seja certo que nenhuma chave abre a porta para a religião
vivida, um termo – ‘prática’ – tem uma importância particular”. A prática é central
nos estudos de religião vivida, uma vez que evidencia os modos como as pessoas
têm assumido a crença e a herança institucional. Em síntese, a categoria religião
vivida diz respeito à prática religiosa cotidiana de pessoas comuns.
Considera-se pessoa sem religião com crença, aqueles e aquelas que afirmam
não pertencerem a uma determinada religião, mas que conservam crenças. O

511
fenômeno tem crescido consideravelmente no Brasil e no exterior. Além de uma
categoria censitária, a autodeclaração sem religião tem sido recorrente no campo.
De acordo com Vieira (2020, p. 105), “esses preservam a fé, contudo não se agregam
a nenhuma igreja. Tudo indica que é uma fé diferenciada, uma fé independente de
instituições religiosas”. Ritz (2023, p. 234), também apresenta algumas
características do grupo, em suas palavras, “ao pensarmos o fenômeno dos sem
religião crentes, deparamo-nos com perfis de indivíduos cujos vestígios são de
desinstitucionalização, individualização e ‘bricolagem’ de crenças, que podem ou
não realizar trânsito religioso”. Lages (2023, p. 141), indica que “[...] esvaziamento
religioso, ruptura, cisão, fratura e também o distanciamento das instituições
religiosas” são característica que recorrentemente são atribuídas a esse fenômeno.
A primeira contribuição da categoria religião vivida para o estudo de pessoas
sem religião é a atenção a prática religiosa cotidiana. Robert Orsi (1997, p. 7) afirma
que as pesquisas de religião vivida se dedicam a investigar “[...] a religião como ela
é moldada e experimentada na interação entre os locais da experiência cotidiana.”.
Olhar para o cotidiano é redirecionar a atenção para os modos pelos quais uma
crença se insere, é praticada e passa a fazer sentido em uma vivência particular. No
cotidiano os conteúdos religiosos são adaptados, ressignificados e construídos em
diálogo com outros aspectos da cultura. Nesse sentido, enfatizar a prática cotidiana
da religião é se atentar à autonomia criativa das pessoas. A autonomia na escolha e
significação da crença marca o fenômeno dos sem religião. Ritz (2023, p. 234) afirma
que “o indivíduo regula sua própria crença. A herança religiosa se perpetua não
necessariamente pela força da tradição como outrora, mas pela capacidade de
atender às demandas dos indivíduos, os desejos dos crentes, por meio de bens
simbólicos atrativos.”. A religião vivida aponta para outro aspecto do fenômeno dos
sem religião: além das motivações que levam às pessoas a se autodeclararem sem
religião, do cenário de fragilização da transmissão das doutrinas, da conceituação de
religião e espiritualidade, a religião vivida incentiva a perguntar sobre as práticas
cotidianas que recebem significação religiosa. A atenção a prática cotidiana tende
questionar os limites entre instituição e indivíduo. Ammerman (2016, p. 92) indica
que se deve dar uma devida atenção a “como as práticas cotidianas obscurecem as
próprias fronteiras institucionais.” As pessoas que se autodeclaram sem religião
tendem, como tem demostrado as pesquisas, a afirmar certa autonomia diante das

512
instituições. Religião, na perspectiva dessas pessoas, é sinônimo de instituição,
conjunto de regras e preceitos morais. Vieira (2020, p. 199) afirma que “distantes
da prática institucional e desobrigados de preceitos doutrinais, os sem-religião são
compelidos a reavaliar e a reformular, ou renegar, suas crenças, e a criar ou a sondar
outras formas de conceber e de experienciar Deus, ou algo transcendente, ou
simplesmente o mistério da vida”. Nesse cenário, a religião vivida pode oferecer uma
perspectiva crítica sobre os limites da desinstitucionalização. Olhar para as práticas
poderá indicar novos cenários de estreitamento entre aquilo que é oferecido pelas
instituições e os modos pelos quais as pessoas incorporam esses conteúdos em seu
cotidiano.
A segunda reflexão proposta pela categoria religião vivida para os estudos de
pessoas sem religião diz respeito a atenção a localidade da crença e prática religiosa.
Orsi (1997, p. 14) afirma que “a liberdade, como a criatividade religiosa, não reside
apenas no domínio do agente, mas no espaço entre o agente e seu tempo, não
transcendentalmente além da história, mas inevitavelmente e ironicamente dentro
dele.” Nesse sentido, o discurso das pessoas sem religião sempre será pautado pelo
ambiente no qual elas estão inseridas. Vieira (2020, p. 188) acompanha o
historiador ao afirmar que “embora seja fundamentalmente subjetiva, toda
experiência religiosa sendo experiência humana se desenvolve inevitavelmente a
partir das condições histórico-sociais de quem experiencia.”. Ou seja, o discurso e a
prática das pessoas sem religião são sempre condicionados pelo tempo e pela
cultura. A religião vivida, sobre esse aspecto, reflete sobre a relação dialética entre
a agência e a estrutura. Sendo assim, as práticas e crenças religiosas das pessoas são
resultados da interação entre a autonomia das pessoas e os conteúdos oferecidos
pela cultura. A religião vivida aponta para uma ciência regionalizada, em detrimento
de análises de nível macro e de estruturas universais. Em síntese, o perfil das
pessoas sem religião requer uma análise localizada, que leve em consideração a
particularidade de cada pessoa e ambiente.
A terceira possível contribuição da religião vivida para o estudo das pessoas
sem religião se refere ao questionamento sobre o lugar do corpo nas práticas
religiosas. Segundo Ammerman (2021, p. 76) “a prática religiosa é corporificada
assim como todas as práticas sociais são corporificadas. Agimos com e através de
nossos corpos.” Pelo viés da religião vivida os corpos tendem a assumir certo

513
protagonismo na prática religiosa. As práticas consideradas religiosas pelas pessoas
se valem do corpo para sua efetivação. Como afirma McGuire (2007, p. 188) os
“significados e compreensões espirituais são incorporados e realizados através do
corpo (por exemplo, sentidos corporais, posturas, gestos e movimentos).” A religião
vivida, nesse sentido, propõe para as pesquisas sobre pessoas sem religião um
questionamento sobre em que medida o corpo interfere na manutenção e na escolha
das crenças.
Por fim, a religião vivida pode impulsionar um debate sobre a
decolonialidade nas pesquisas sobre pessoas sem religião. Orsi (1997, p. 18), já
indicava o caráter pós-colonial dos estudos de religião vivida. Ao apresentar os
artigos da obra que é considerada o marco inicial das reflexões sobre religião vivida,
o autor afirma que o “[...] volume propõem o que pode ser considerado um estudo
pós-colonial da religião.” Os estudos de religião vivida têm se caracterizado pela
atenção ao modo como pessoas comuns praticam e significam suas crenças. Desse
modo, se atentar a discursos não hegemônicos tem alargado a própria compreensão
de religião. Além disso, Orsi já apontava que a especificidade dos fenômenos
religiosos implica novos meios de produzir ciência. Para o historiador, “exige-se um
novo vocabulário para discutir tais fenômenos, uma linguagem tão híbrida e tensa
quanto as realidades que procura descrever” (Orsi, 1997, p. 11). Nesse sentido, se
autonomia e liberdade são prerrogativas centrais para as pessoas sem religião, a
ciência deve produzir um discurso que não limite a criatividade das pessoas. Em
síntese, a religião vivida em perspectiva decolonial estimula duas reflexões centrais
para o estuda das pessoas sem religião: por um lado a necessidade de se ouvir as
vozes dissonantes da história e por outro lado operar uma revisão crítica dos termos
utilizados para análise de fenômenos marcados pela diferença e criatividade.

Considerações finais
O fenômeno das pessoas que se autodeclaram sem religião tem crescido e
merece atenção. O cientista da religião é fruto de seu tempo e não deve ser
indiferente às constantes transformações do campo religioso. É importante se
atentar às transformações do campo e articular meios de compreendê-lo e explicá-
lo. Os temas abordados pela religião vivida questionam e indicam um novas
possibilidades e enfoques para as pesquisas sobre pessoas sem religião no Brasil. A

514
categoria religião vivida possibilita um redirecionamento do olhar e com isso
alargar o horizonte de pesquisa e interpretação do fenômeno das pessoas sem
religião. A religião vivida tem sido utilizada por diversas disciplinas. Nesse sentido,
se faz necessário refletir sobre a inserção da categoria no âmbito da Ciência da
Religião e do campo religioso brasileiro.

Referências
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York: New York University, 2021.

AMMERMAN, Nancy Tatonn. Lived Religion as an Emerging Field: An Assessment of


Its Contours and Frontiers. Nordic Journal of Religion and Society v. 29, n. 2, p. 83–
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HALL, David (Org.). Lived Religion in America. Princeton: Princeton University Press,
1997.

McGUIRE, Meredict. Embodied practices: Negotiation and Resistance. In:


AMMERMAN, Nancy Tatom. Everyday Religion: observing modern religious lives.
Oxford: Oxford University Press, 2007.

ORSI, Robert. Everyday miracles: the study of lived religion. In: HALL, David D. Lived
Religion in America. Princeton: Princeton University Press, 1997.

VIEIRA, José Álvaro Campos. Ensaio de espiritualidade não religiosa: estudo a partir
de indivíduos sem religião em Belo Horizonte. 2020. Tese (Doutorado em Ciências
da Religião). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020.

LAGES, Flávio Rodrigues. O rock e a espiritualidade não religiosa. Estudo sobre os


rituais, sociabilidades e cosmovisão de roqueiros e roqueiras sem religião em Belo
Horizonte. Tese (Doutorado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.

RITZ, Cláudia Danielle de Andrade. Eu sou sem religião com crença: a fragilização da
herança religiosa e a conservação da crença como elo de memória. Tese (Doutorado
em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2023.

515
O MEME RELIGIOSO DE DAWKINS PELA ÓTICA DA MEMÓRIA DE
MAURICE HALBWACHS

Marcelo Cardoso1

Resumo: O neoateísmo se apresenta como um movimento antirreligioso concentrando seus


principais argumentos na esfera do campo científico e buscando combater principalmente
as religiões ou qualquer tipo de prática religiosa na contemporaneidade. A adoção do
cientificismo pelo ateísmo moderno ou neoateísmo aproximou o movimento para uma linha
de pensamento mais voltada à racionalidade e que se fundamenta nas antigas teorias
evolucionistas do biólogo inglês Charles Darwin. Os pressupostos darwinianos atualmente
foram repaginados como conceitos neodarwinistas, tendo como um dos seus expoentes
Richard Dawkins. Em sua obra: O gene egoísta (2001), Dawkins apresenta seu principal
argumento para a existência do interesse humano pelas religiões como sendo uma mera
consequência da expansão do processo da seleção natural no indivíduo e alimentada por
predisposições mnemônicas, contribuíndo por tornar assim a religião um vírus que se
alastra e se propaga com facilidade na mente humana, denominado por ele como meme.
Sabido que a religião tem uma enorme força na produção de experiências e na construção
da coletividade, não há como desprezar o papel da memória no armazenamento dessas
experiências, se tornando com isso uma fonte mnemônica na construção espiritual
individual. Portanto, a presente comunicação proporá a leitura deste argumento neoateu
contra as religiões pela ótica da dialética do sociólogo francês Maurice Halwbachs,
apontando a importância da memória na religiosidade humana e questionando se os
processos mnemônicos se tornam realmente ponto convergente no interesse e na
necessidade de religiosidade no indivíduo.
Palavras-chave: Neoateísmo; Neodarwinismo; Memória; Religiosidade.

Introdução
Nos últimos anos tem surgido na sociedade contemporânea um dos
movimentos mais significativos do ateísmo, chamado de neoateísmo. O novo
ateísmo é considerado um movimento antirreligioso que teve seu início no limiar do
século XXI em favor do ateísmo e de sua propagação. Ele é promovido na atualidade
por autores ateus que defendem suas ideias a partir de interpretações científicas e
filosóficas de que as religiões não devem ser simplesmente toleradas, mas
efetivamente combatidas (HOPPER, 2019).
As várias formas multifacetadas do neoateísmo estabelecem ações
diversificadas levantando lideranças capazes de disseminar uma mensagem ateia

1Doutorando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória (FUV). Possui bacharelado
em Teologia pela Universidade Adventista de São Paulo (2000), pós-graduação Lato-Sensu em
Liderança pela Andrews University em Michigan-EUA (2014). Mestrado em Ciências das Religiões
pela Faculdade Unida de Vitória (2019) e atualmente é professor da Faculdade Adventista do Paraná.
E-mail: marceloelda@gmail.com

516
mais atraente em uma sociedade cada vez mais secularizada. Seu principal e mais
atuante autor é Richard Dawkins, Dawkins é um biólogo de formação e apresenta
em sua principal obra, O gene egoísta (2001), um ataque direto a propagação da
religião através de sua visão evolucionista por meio de uma releitura do conceito
evolucionista de Darwin, conhecido como neodarwinismo. Em sua obra é
apresentado o meme religioso, que consiste numa metáfora sobre a evolução dos
genes e sua influência na vulnerabilidade cognitiva humana pela busca de sentido
ou propósito de vida por meio da religião.
Aparentemente, semelhante à proposta de Dawkins, encontra-se a visão do
sociólogo francês Maurice Halbwachs, que é formado pela escola de Émile Durkheim
e que foi um profundo estudioso sobre o tema da Memória Coletiva na cultura e
religião. Halbwachs apresenta em seu estudo os efeitos da religião no ser humano e
por meio desse recorte serão comparadas e analisadas pela perspectiva da visão
neoateia. Para Halbwachs as memórias não são apenas um fenômeno individual,
mas algo moldado e influenciado por grupos sociais aos quais os indivíduos
pertencem, construindo e compartilhando de suas memórias em contextos sociais,
culturais e até mesmo religiosos, sendo as mesmas formadas e mantidas em quadros
sociais da memória.
Aliás, há muito se tem falado sobre religião e sua importância para o ser
humano, havendo na academia diversos trabalhos que abordam o tema e como ela
supostamente auxilia no oferecimento de respostas sobre o propósito de vida e
significado da existência humana. Porém, no cenário neoateu isso é altamente
discutido e rebatido. Um dos seus ferrenhos oposicionistas, Richard Dawkins,
utiliza-se da biologia através de uma visão neodarwiniana para contrapor-se por
meio do conceito do “gene egoísta”, afirmando que a religião só se propaga na
sociedade por se assemelhar a um vírus. A pergunta que se pretende responder
nessa comunicação será: Há possibilidade de uma análise do conceito de Dawkins
sobre o “meme religioso” pela ótica da Memória Coletiva de Halbwachs?

A religião na visão neoateia de Dawkins e o meme religioso


Entre os muitos pontos apresentados pelo neoateísmo, um em especial se
torna pacífico dentro do movimento e que está no enfraquecimento da religião na
sociedade contemporânea, trazendo a clássica proposta de laicização do Estado e

517
consequente esvaziamento da religião em qualquer nível. Os principais autores
neoateus advogam a necessidade de se apartar a religião e seus símbolos de
qualquer área social, quer seja na política, na educação, na saúde, entre tantas
outras, além de propor a transformação de espaços públicos em ambientes
totalmente secularizados. Para isso tentam atrair o maior número de simpatizantes
à causa ateia e à bandeira de um mundo livre das religiões (HARRIS, 2007, p. 14).
Dawkins se apresenta como um dos principais expoentes do neoateísmo e
um dos mais ferrenhos combatentes da influência da religião na sociedade e de sua
própria existência, apresentando-a como excessivamente maléfica ao ser humano
(DAWKINS, 2015, p. 156). É reconhecido no meio neoateu como um evolucionista
defensor das ideias de Charles Darwin sobre a teoria da evolução, trazendo uma tese
reforçada na afirmativa de que todo o organismo individual se comporta como se
premeditasse com toda a consciência a melhor conduta para preservar e propagar
seus genes (DAWKINS, 2001, p. 91).
Em sua linha de pensamento e atuação neodarwinista, Dawkins tenta
distanciar a ciência da religião, partindo do pressuposto de que todos os
questionamentos e dúvidas humanas devem buscar respostas em explicações
científicas e não em suposições metafísicas, chegando a colocar a existência de Deus
no patamar de uma hipótese científica e dando uma áurea de cientificismo ao novo
ateísmo (DAWKINS, 2006, p. 69). Mesmo reconhecendo que a secularidade tem
enfraquecido a presença da religião nos espaços públicos e na esfera privada,
Dawkins diz que a ciência tem sido ainda insuficiente para eliminar a religião de
maneira completa na vida das pessoas, apesar de ter em sua análise mecanismos
para isso. Em sua visão, a religião persiste não por conta de uma necessidade
genuína de evolução de nossa espécie, mas em função da necessidade de reprodução
do meme “parasitário” conhecido como religião (DAWKINS, 2001, p. 135).
O pensamento neodarwinista de Dawkins carrega implicações conceituais de
um imaginário que identifica na ciência um ideal de racionalidade e objetividade de
cunho quase salvacionista. Isso é quase como dizer que a racionalidade é um
atributo da modernidade e que quanto mais a ciência evolui, tanto mais as coisas
podem ser aprendidas de modo objetivo e racional. Já as religiões por se
fundamentarem em um conhecimento subjetivamente suficiente, seriam
representantes do universo emocional e que, portanto, estariam muito longe da

518
verdade, não podendo preencher o vazio existencial humano com algo
relativamente sólido e plausível.
Dawkins, diferente de outros autores neoateus trabalha a noção da seleção
do gene, rejeitando a seleção de grupo e se contrapondo aos elementos que
caracterizam o sistema religioso como uma expansão da seleção de grupo, através
de mecanismos como cooperação, altruísmo, solidariedade e coesão. A teoria do
“meme religioso” apresentado por Dawkins coloca a religião como um vírus que se
replica facilmente na mente humana por estar já inserido no seu subconsciente e o
classifica como um parasita.
O conceito do “meme religioso” é apresentado por Dawkins como uma
analogia aos genes da biologia, sugerindo que ideias, crenças, comportamentos e
tradições religiosas são transmitidas coletivamente de uma mente para outra
semelhante à transmissão de genes de geração em geração. O termo “meme
religioso” cunhado por Dawkins é utilizado frequentemente para destacar como as
religiões se espalham e persistem explorando as fragilidades humanas e suas
necessidades pela busca de um sentido de vida e a resposta pelo medo da morte. Na
sua visão a religião nada mais é que uma adaptação cultural que explora essas
vulnerabilidades do ser humano na busca pela sua própria sobrevivência.
De acordo com Dawkins a transmissão da fé se assemelha a um processo
biológico de transmissão viral que ocorre na mente humana, como vimos. A
transmissão da religião de pessoa para pessoa funcionaria como resquícios culturais
que insistem em permanecer na memória coletiva de alguns. Esses “memes” vão
desde o idioma que se fala até os ritos e uso de símbolos inseridos de forma cultural
por meios de celebrações e crenças. Assim como um vírus, essas informações
culturais e religiosas sempre alcançam meios de se adaptar e se propagar, sendo
transmitidas de uma geração para outra.
Dawkins destaca que os genes sempre atuam em seu próprio benefício no
processo de sobrevivência e assim também são os “memes”. A teoria memética
coloca a religião como um vírus que se replica de maneira muito fácil na mente
humana e que uma das formas de se combater seu alastramento seria o exercício do
raciocínio crítico. Ou seja, o fenômeno religioso não deve ser entendido pelo campo
do sobrenatural, mas sim entendidas e estudadas pelo âmbito das inclinações
mentais e cognitivas do ser humano.

519
Na proposta de Dawkins percebe-se uma leitura neodarwinista como uma
metanarrativa, intentando a busca por uma explicação à religião dentro de um plano
evolutivo e o compara como produto de um acidente no processo da evolução
humana. Sua intenção visivelmente é reduzir um fenômeno tão anfigúrico como é a
religião, a algo sem importância. O “meme religioso” também é uma maneira de
olhar para a disseminação das crenças religiosas sob uma perspectiva evolucionista
e uma forma de pensar como as religiões e suas práticas são transmitidas ao longo
do tempo.

A memória coletiva de Maurice Halbwachs e sua aproximação com Dawkins


Maurice Halbwachs é um conhecido filósofo francês que se notabilizou pelo
estudo da memória coletiva no início do século XX. Suas ideias explicam de maneira
bem simples que as pessoas têm mais facilidade em recordar quando estão ligadas
a estruturas sociais por meio da ancestralidade posterior e a importância das
relações sociais, espaciais e temporais acabam então sendo compartilhadas e
assimiladas por determinado grupo. Para ele a memória coletiva fornece dados para
a constituição das memórias individuais e às vezes o indivíduo pode achar que há
diferença entre elas, mas na verdade as memórias individuais e coletivas estão
sempre interligadas e se fundem. Como exemplo, há a memória da infância, a
memória da escola, a memória da religião e todas elas podem ser classificadas como
memórias individuais ou ressignificação de uma memória coletiva. Destarte, as
memórias individuais são um reflexo, uma interpretação das memórias coletivas do
espaço e do tempo, onde o indivíduo está inserido (HALBWACHS, 1968, p. 35).
Para Halbwachs, os indivíduos, partindo de uma perspectiva ocidentalizada,
são constituídos e contaminados por atributos judaico-cristãos desde sua origem,
mesmo que não compartilhem de um ramo familiar religioso ou afeitos à
religiosidade. Fazendo com que eles se alimentem da releitura de elementos antigos
que uma tradição religiosa possa trazer, incluindo aqui a preocupação pelo seu bem-
estar e de outras pessoas. Isto acaba por implicar em uma necessidade de se buscar
um sentido existencial como já foi tratado anteriormente e que se torna o ponto
central sobre a relevância e o sentido da religião.
Os grupos humanos desenvolveram ao longo da sua história toda a espécie
de recursos mnemônicos e sistemas de registros para facilitar o acesso posterior a

520
algo que foi descoberto, produzido ou adquirido. A religião e consequentemente o
desenvolvimento da própria religiosidade acaba por absorver um pouco dessas
experiências humanas na construção de uma coletividade. Sendo assim, a memória
é contida na sociedade que a reconstrói e para que as memórias individuais tenham
significado elas necessitam de respaldo, ecos nas memórias coletivas e o grupo do
qual o indivíduo está inserido também deve ter contato com a rememoração dessas
memórias individuais.
De acordo com Halbwachs, há existência de diversas memórias, seja sobre a
vida, sobre os ideais nacionalistas ou até mesmo valores religiosos/espirituais.
Essas memórias coletivas diversas que permeiam o imaginário social garantem a
integração enquanto indivíduos em grupos sociais, fato esse devidamente defendido
dentro do neoateísmo pelo “meme religioso”. Quando uma pessoa nasce, nasce
desprovida de memórias, porém com o passar do tempo, essa mesma pessoa vai
acumulando vivência e experiência de vida, permitindo adquirir suas próprias
memórias individuais em contato com seu grupo social que está inserido no
tempo/espaço.
A memória constrói a identidade de um indivíduo guardando vivências e
experiências na expectativa de dizer quem é o sujeito, além de falar sobre o mundo
ao seu redor. Por isso, Halbwachs conclui que as tradições religiosas, nisso pode-se
incluir a necessidade de se praticar ou viver uma religiosidade, têm a capacidade de
integrar e unificar as diferentes camadas da sociedade. Ou seja, para uma
significativa compreensão desse ponto, a memória proporciona um entendimento
das condições em que elas se encontram e suas diversas modificações no decorrer
do tempo (HALBWACHS, 1968, p. 42).
A relação entre a memória social de Halbwachs e a religião está
principalmente ligada à maneira como as memórias coletivas se manifestam e são
transmitidas através das práticas espirituais, dos ritos e nos próprios espaços
religiosos. É muito próprio aplicar sua teoria da memória social no entendimento de
como a própria religiosidade pode ser construída e mantida no ser humano por meio
dos lugares sagrados, das narrativas, e das tradições orais e escritas.
Através da memória da origem da religião, se oferece uma oportunidade de
organizar costumes e inscrever narrativas em formas de códigos próprios para cada
religião no entendimento do sagrado e profano. A memória social auxilia na criação

521
da arte e rememora lugares fundadores, porém aqui vai uma ressalva, muitas vezes
os lugares fundadores não são apenas locais físicos, como sítios importantes para
algumas religiões especificamente. Os lugares fundadores podem ser um evento
significativo ou datas ligadas a algo importante para alguma religião
especificamente. Doravante, esses lugares são estabelecidos pela tradição e são de
extrema importância para se criar uma unidade em torno de um significado,
auxiliando, assim, a memória no estoque de simbolismos sobre determinada
religião.
Outro ponto a ser comentado é que a durabilidade de uma cultura religiosa
está atrelada à estabilidade da sua tradição e para se tornar como tal, necessita de
tempo para a construção de um conjunto de doutrinas, de visão de mundo, de
valores e costumes. No caso de pessoas ditas não-religiosas, esse entendimento é de
fundamental importância para uma compreensão de que os mesmos mecanismos
utilizados pela religião no objetivo de agregar valores éticos e morais, também
podem dar uma visão e sentido de responsabilidade individual pelo pertencimento
em uma coletividade por meio da prática de uma espiritualidade laica.
As memórias individuais passam a ser construídas em contato com as
memórias coletivas de outros, assim o indivíduo vai se integrando gradualmente à
sociedade na qual ele nasceu construindo um senso comum de pertencimento e
gerando responsabilidades sobre esse grupo. Por isso, a importância da assimilação
das memórias coletivas sendo ressignificadas no âmbito das memórias individuais
servem para que elas tragam o sentido de vida tão almejado por todos. Na prática
percebe-se que a memória social fornece contextos ricos nos quais a religião pode
ser sustentada e praticada ao longo de gerações por qualquer indivíduo, quer seja
crente ou não e que o auxiliam nessa busca pelo sentido de vida tão comum a todos.

Conclusão
Como vimos os conceitos apregoados por Dawkins e Halbwachs orbitam em
esferas diferentes da ciência, porém em algumas situações bem específicas se
assemelham e podem estar relacionados de certa forma na discussão sobre como as
informações são transmitidas e influenciam os indivíduos e grupos. Enquanto
Dawkins aponta que os genes são unidades fundamentais de seleção natural e que
eles selecionam as características dos organismos que os hospedam com a

522
finalidade de sua própria replicação e que o “meme religioso” se assemelha a um
gene egoísta que nada mais é que uma unidade fundamental de seleção natural e
que compete para se replicar e persistir ao longo das gerações.
Já a teoria da Memória Coletiva de Halbwachs se concentra na forma como a
sociedade e os grupos sociais constroem e compartilham suas memórias coletivas,
que influenciam a identidade e consciência tanto coletiva quanto individual. A
memória coletiva examina a forma como as pessoas em uma sociedade interagem,
além de caracterizar que essas memórias são influenciadas pela cultura, pelo
contexto social, pela interação com outros membros do grupo e com a própria
religião.
Ambos os conceitos estão relacionados à transmissão de informações,
embora em diferentes contextos. Dawkins aborda a transmissão de informações
genéticas ao longo de gerações, enquanto que a Memória Coletiva de Halbwachs se
concentra na transmissão de memórias e narrativas culturais dentro de certo grupo
social também através de gerações. Em um nível mais amplo, ambos os conceitos
podem ser relacionados na discussão sobre como a informação influencia a
evolução, seja ela genética ou sociocultural.

Referências
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sociedade e no futuro. São Paulo: Avalon, 2010.

DAWKINS, Richard. Fome de saber: a formação de um cientista – memórias. São


Paulo: Editora Schwarcz, 2015.

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

DAWKINS, Richard. The God delusion. New York: Houghton Mifflin Company, 2006.

HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris: PUF, 1968.

HARRIS, Sam. Carta a uma nação cristã. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HOPPER, Simon. The rise of the ‘New Atheists’. CNN International. Washington, 9
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<www.cnn.com/2006/WORLD/europe/11/08/atheism.feature/index.html>.
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523
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Richard Dawkins, seleção natural e a improbabilidade da existencia de Deus.
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ZENK, Thomas. “Neuer Atheismus”: “new atheism”. Germany: Approaching Religion,


v. 2, n. 1, p. 241-258, 2019.

524
“EU SOU A GRANDE MÃE UNIVERSAL”: REESCREVENDO FACES DA
LITERATURA FEMININA À LUZ DAS NOVAS CONCEPÇÕES
CULTURAIS E RELIGIOSAS DE CORA CORALINA

Marta Bonach Gomes1


Clovis Ecco2

Resumo: Este artigo propõe uma análise unificada das esferas da literatura, religião, arte e
da cultura através do poema “Todas as Vidas.” O texto enfoca a poesia de uma mulher
genuína de Goiás, Cora Coralina, que empoderadamente incorpora todas as suas
identidades. Por meio de sua expressão literária, ela amplia os horizontes, dialogando com
as experiências cotidianas da mulher do povo, da cozinheira, da mulher vivendo uma vida
desafiadora, da cabocla e da lavadeira do rio vermelho, e promove essa simbiose em sua ars
poética. Seus escritos exibem uma espiritualidade, seja ela religiosa ou não, que introduz
novas perspectivas para a participação das mulheres nas esferas da arte e da cultura,
refletindo a visão de mundo e a autocompreensão da autora.
Palavras-chave: Poesia; Religião; Arte; Literatura Feminina; Goiás.

Introdução
Cora Coralina3 é um dos nomes mais importantes da literatura goiana do
século XX, destacando-se como escritora do cerrado. Escritora e poeta goiana,
nascida na Cidade de Goiás4, que atravessou a linha entre a realidade e a ficção,
revelando na obra, uma vida dedicada à uma conexão e interligação com o humano,
com o outro. Por outro lado, é na doçura dos frutos de Goiás que Coralina faz sua
viagem de volta, onde tachos e doces projetam seu recomeço em sua terra natal, a
partir da volta inicia-se seu projeto de publicar o seu primeiro livro em que iniciou
sua carreira literária. Embora tenha dado início à sua carreira literária em sua
juventude, a publicação de seu primeiro livro “Poemas dos becos de Goiás e estórias
mais” só aconteceu quando ela já contava com 76 anos (1965). Até o momento de

1 Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC Goiás. E-mail: marthabonach@gmail.com.


2 Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás e Coordena o Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Integra o grupo de
pesquisa em Religião, Cultura e Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail:
clovisecco@uol.com.br.
3 Cora Coralina (1889-1985) foi uma poetisa e contista brasileira, cujo nome verdadeiro era Anna

Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Sua obra literária, marcada pela simplicidade e profundidade,
retrata o cotidiano, a natureza e a cultura popular de Goiás.
4 Cidade de Goiás: Ilustre marco histórico, efêmera capital goiana, preserva arquitetura colonial.

Antiga Vila Boa de Goiás.

525
seu falecimento, em abril de 1985, manteve-se produtiva e engajada em sua criação
literária, com de prosa poética que celebra a cultura e a vida no interior do Brasil
Central.
Deste modo, almejamos que a própria obra nos guie pelo caminho a ser
trilhado, pois acreditamos que ela se constitui como um roteiro onde se entrelaçam
os versos da vida interior da autora, neles se reconstituem angústias, indagações,
solidão e esperança. Nessa empreitada, a poesia de Cora Coralina coleta como
matéria prima as sensações compartilhadas por mulheres e homens marginalizados
na sociedade. E, por meio de um processo de renovação cósmica, eles são alçados
em seus versos, desvendando as conexões entre as esferas da literatura, religião,
arte e cultura presentes em sua obra.”O poder de transformar e de satisfazer as
necessidades anímicas do povo que representa refulge, em Cora Coralina, tanto em
sua épica vida/poesia quanto na luminosidade das imagens literárias com que
revela o ser das coisas, poeticamente cantadas” (PESQUERO, 2003, p. 145).
Cora Coralina incorpora suas múltiplas identidades, incluindo aquelas
relacionadas à sua condição de mulher do povo, cozinheira, mulher da vida, cabocla
e um dos aspectos mais interessantes da obra de coralineana é sua habilidade em
mesclar arte, tradição e inovação, trazendo elementos da cultura popular para a
literatura contemporânea, valorizando todas as formas de vida em sua ficção. O
poema ‘Todas as Vidas’ celebra a diversidade da vida, reconhecendo sua
importância e dignidade em meio à complexidade e incerteza do mundo. Neste
sentido, apresentaremos o legado estético de Cora Coralina, uma sertaneja goiana.
O texto de abertura apresenta a poesia de uma mulher do povo, que traz consigo
“todas as vidas” numa nova possibilidade de expressão artística feminina, refletindo
sua vida cotidiana e suas raízes no sertão. Entre o murmurejar do Rio vermelho, o
escorrer das águas fluidas, Cora se arvora na função de saída dos jardins da casa da
ponte e se anuncia na força dos seus versos e vai para o espaço das mulheres
lavadeiras:
Vive dentro de mim
A lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
D’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

526
A consciência social coralina não apresenta apenas o lado luminoso, mas
revela o mundo social: sua angústia, sua impotência perante a realidade pátria nos
aspectos humano-existenciais da mulher do povo, isso se refere a desvendar os
aspectos relacionados à sociedade humana, incluindo sua organização, cultura,
valores, normas e interações sociais, no intuito de aumentar os espaços de
vocalização para que as vozes silenciadas das mulheres pudessem ecoar. A voz
poética canta:
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

A obra de Coralina reflete sua leitura do mundo e de si mesma, e este ensaio


busca aprofundar essa compreensão e a importância da literatura produzida por
mulheres em goiás na época dos coronéis.

Identificações de Cora
“Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado. Acocorada
ao pé do borralho, [...] Todas vidas dentro de mim. Na minha vida -
” (Cora Coralina),

“Todas as vidas”, o poema já no seu livro de estreia, Poemas dos becos de


Goiás e estórias mais (1965), com seus poemas empapados de religião, cultura e vida
cotidiana, a poetisa goiana Cora Coralina resgata a presença há muito excluída do
âmbito poético: a presença de um mundo progressista, luminoso, e redescobre a
poesia como uma necessidade vital – a de satisfazer a fome universal decorrente das
privações impostas pela vida moderna aos seres humanos. “E graças sobretudo à
sua peculiar sensibilidade poética e filosófica” (PESQUERO, 2003 p. 51).
Assumindo, destemida, sua condição humana e seu destino de mulher e de
poeta, Cora adentra a poesia brasileira de forma desafiadora: surge para superar a
influente corrente poético-político-cultural que atormenta o estado atual do mundo
e, em seu caminho, estabelecer uma nova relação Eu-mundo, na qual a poetisa
feminina se afirma com vigor explosivo ou tranquilo, porém indomável,
identificando-se cada uma com sua própria e única força vital.

527
Por outro lado, apresenta a resiliência e a coragem das pessoas diante das
adversidades da vida dura do campo, muitas vezes marcada pela exploração do
trabalhador rural. Como recorda Franz Boas (2010), o desbravador do horizonte da
Antropologia Cultural:
Nas culturas mais pobres, nas quais se requer a energia integral de
cada indivíduo para satisfazer as necessidades elementares da vida,
tanto mais que a consecução de alimento e habitação constitui o
conteúdo principal de toda atividade, pensamento e emoção da
vida diária e nas quais não se desenvolveu nenhuma divisão de
trabalho, a uniformidade dos hábitos de vida será tanto maior
quanto mais unilaterais forem os meios de obtém alimento (BOAS,
2010, p. 141).

Sobra-se pouco tempo para a fruição do espírito, dada a exigência de


manter-se vivo o corpo. Assim é com as personagens criadas por Cora
Coralina:
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!

Assim, exalta a variedade da existência como uma construção humana,


encontrando sentido e organização na religião e lidando com a complexidade e a
incerteza do universo. A autora também menciona a figura da mulher da vida, que
representa as mulheres marginalizadas e estigmatizadas pela sociedade.
É crucial destacar também a literatura feminina na atualidade brasileira e a
reformulação da escrita que tem sido significativa para a autora de Goiás,
contribuindo assim para o desenvolvimento da questão da mulher na literatura.
Para isso, iremos reinterpretar a valorização da vida cotidiana no interior de Goiás
e a representação da mulher na literatura contemporânea nos últimos vinte e cinco
anos. Não restam dúvidas de que as mudanças do dia a dia estão transformando o
mundo herdado do passado, e os conceitos que antes definiam, social, econômica e
politicamente, as figuras da mulher, da jovem e da criança estão agora em um
processo de profunda transformação.

528
Angústia e felicidade são componentes intrínsecos do enigmático processo
da existência. Sua transitoriedade e aparente irracionalidade, uma vez que está
fadado ao fim inevitável da morte, não aniquila a esperança: há poesia, uma espécie
de garantia da continuidade humana, e há as afinidades femininas, e existe a certeza
de ressurreição da carne em Deus.
A obra literária de Cora Coralina, uma autora ribeirinha brasileira, traz
consigo uma profunda conexão com a natureza e com o ser humano. Em seus
poemas, ela faz referência a elementos cósmicos e sociais, retratando a vida no
sertão e as diversas identidades femininas que compõem a sociedade. Cora Coralina
reconhece a importância da continuidade do ser e a constante renovação da vida,
abordando temas como o trabalho árduo das mulheres, a religiosidade popular, a
cultura rural e a desigualdade social.
A autora ribeirinha no poema “Todas as Vidas”, canta:

A identificação e conexão com a natureza


Na relação com a natureza, Cora Coralina destaca a presença do sol e outros
elementos naturais em seus poemas. Ela compreende que a arte, “a natureza da arte
depende do que acontece no contexto histórico, econômico, social, de classe ou de
dominação, em que está ‘situado’ o artista ou o escritor” (COELHO,1993, p. 15) está
intimamente ligada ao contexto histórico, econômico, social e cultural em que o
artista está inserido.
A autora reconhece que a poesia não é apenas um reflexo mecânico da
história, “Não, a poesia não é um reflexo mecânico da história. As relações entre
ambas são mais sutis e complexas. A poesia muda; não progride nem decai. Decaem,
sim, as sociedades” (PAZ, 1982, p. 53) sim uma expressão complexa que muda ao
longo do tempo. Ao mergulhar nos elementos sociais e culturais do sertão, Cora
Coralina traz à tona a história, as crenças e as tradições da humanidade como parte
integrante do mundo em constante transformação.

A representação do ser humano


No que diz respeito ao ser humano, a sensibilidade de Cora Coralina é
evidente em sua poesia. Ela personifica as experiências e emoções humanas,

529
abordando temas como o trabalho duro das mulheres, a religiosidade popular e as
divisões sociais. Cora cita:
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Relação com a cultura popular e a tradição culinária brasileira: a figura da


lavadeira do Rio Vermelho representa o trabalho árduo e a vida simples das
mulheres trabalhadoras, enquanto a mulher cozinheira está ligada à tradição
culinária brasileira e à importância da alimentação na cultura do país. A mulher do
povo, por sua vez, representa a classe trabalhadora e a linguagem popular brasileira,
lutando por direitos e reconhecimento. Cora Coralina reconhece a importância de
todas essas figuras femininas na narrativa da vida e na totalidade da existência.

A expressão do ser mulher


A autora goiana, utiliza recursos linguísticos singulares para expressar sua
essência artística e cultural, explorando a perspectiva da mulher no mundo rural e
celebrando a força, a sabedoria e a coragem das mulheres.
A poética de Cora Coralina, juntamente com outras vozes femininas na poesia
contemporânea brasileira, busca recobrar a força vital e trazer representatividade
aos acervos literários. Há neles a plena consciência do espaço e de seus contornos,
contribuindo diretamente na composição das identidades:
O que tocamos e vemos e ouvimos e degustamos e sentimos e
pensamos, as realidades que inventamos e as realidades que nos
veem, nos ouvem e nos inventam, tudo o que tecemos e destecemos
e nos tece e destece, instantâneas aparições e desaparições, cada
uma distinta e única, é sempre a mesma realidade plena, sempre o
mesmo tecido que se tece ao destecer-se: também o vazio e a
mesma privação são plenitude (talvez seja o ápice, o cúmulo e a
calma de plenitude tudo está cheio até as bordas, tudo é real, todas
essas realidades inventadas e todas essas invenções são reais [...]
(PAZ, 1988, p. 52).

Força de poesia e vida, interrogações e certezas em constante diálogo com o


mistério. Além disso, Cora Coralina aborda desde a voz silenciada na figura da
mulher roceira que vivia entre coronéis em Goiás, até a mulher-poeta que assume

530
seu destino que parece normal à primeira vista, mas que na verdade é de grande
importância e fundamental. E mais, implica um Eu que comunga com o Outro,
destacando as dificuldades enfrentadas e ressalta a importância de se conectar com
as raízes culturais e históricas de um povo para que a vida possa florescer.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal

Valorização da classe trabalhadora e da linguagem popular:


Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Cora Coralina reconhece a triste realidade enfrentada por essas mulheres,


mas também aponta para a possibilidade de mudança e redescoberta.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Um eu-poético que se sente pertencer a um ‘todo’ em contínuo devir, há um


rigor nessa linguagem primitiva. Cora é uma mestra na utilização do seu verbo e
manipula habilmente os recursos expressivos da linguagem poética. Ela consegue
criar uma conexão perfeita entre a matéria verbal e o pensamento.
A dor funciona como um estímulo que desperta sua consciência e a conecta
com o presente. O tempo é retratado como eterno, globalizante e sem fronteiras,

531
unindo passado, presente e futuro, transcendo a limitação da finitude. Assim, Cora
mergulha na eternidade do mito, onde suas palavras e pensamentos se tornam
imortais.

O sagrado em Cora Coralina


Dessa forma, podemos compreender a obra de Coralina como uma
manifestação da construção do sagrado pela humanidade, reconhecendo a
importância e a nobreza de todas as formas de vida. A relação de Cora Coralina com
o sagrado também está presente em seus poemas. Ela mescla elementos da
religiosidade popular brasileira, como os orixás e as práticas de cura, com sua
própria visão sagrada da vida.
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Ao mencionar a figura da cabocla velha, Cora Coralina destaca a importância


da espiritualidade e da conexão com o divino. Ela reconhece a presença de
elementos afrodiaspóricos na cultura brasileira e enaltece a própria força da vida.
“Uma força que vem de uma exaltante imersão na vida concreta e da profunda
ligação de seu ser cotidiano-comum (‘mulher do povo, mãe de filhos’) com Deus”
(COELHO, 1993, p. 30)
“O sagrado em Cora Coralina” aborda a relação entre a poetisa e o sagrado.
“Quando um poeta encontra sua palavra, reconhece-a: já estava nele. E ele já estava
nela. A palavra do poeta se confunde com ele próprio. Ele é a sua palavra” (PAZ,
1982, p. 55). O poema é feito de palavras necessárias e na singularidade do que
envolve o mundo, as coisas, para que haja um reforço de representação dos acervos
literários no sentido de um amplo empreendimento de alquimia social.
Cora dá voz a narrativa da vida, proclama “uma maior divulgação da crença
nos punhos líricos femininos que ousaram grafar, nas margens, páginas que aos
poucos têm impactado o centro de nossa vida literária principalmente no que há de

532
comum entre as literaturas brasileiras à polaridade metrópole-periferia” (BRITO,
2016).
A manifestação do sagrado na literatura de Cora, na qual mulher e a poeta se
assumem, vai além da poesia feminina tradicional e se conecta à construção de um
sentido para a vida. Coralina representa a coragem e figura da cabocla velha, que
está associada à religiosidade popular brasileira, mesclando elementos do
catolicismo, candomblé, umbanda e outras tradições religiosas.
A poesia, segundo Cora, atua como um meio poderoso que revela verdades
ocultas aos vivos ou abre caminhos inesperados para serem descobertos. O mundo
que ela cria não é apenas uma representação, mas uma realidade que se manifesta
por meio da linguagem. Essa perspectiva destaca a importância da poesia como uma
forma de acesso a conhecimentos profundos e experiências incomuns. Cora acredita
que a poesia possui um poder especial para revelar o invisível e expandir a
compreensão humana.
O poema “Todas as vidas” é destacado como um exemplo poderoso dessa
busca, enaltecendo a importância das mulheres na continuidade do ser. Conclui-se
que a palavra poética de Cora Coralina ressoa nos versos, promovendo uma maior
divulgação da crença nos punhos líricos femininos e impactando a vida literária
brasileira.

A conexão com a diversidade da vida


A obra de Cora Coralina reflete um profundo reconhecimento da importância
de todas as formas de vida. A autora consegue transmitir em seus textos uma
reflexão sobre a vida, a morte e a existência humana, despertando nos leitores uma
consciência sobre a efemeridade da vida e a valorização dos momentos presentes.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

533
Além disso, ela utiliza elementos cósmicos e sociais em suas obras,
mostrando a interconexão entre o ser humano e o universo que o cerca. A
preocupação com as causas sociais e a justiça social também se faz presente em sua
escrita, revelando um comprometimento com a busca por um mundo mais
igualitário.
Cora Coralina é amplamente reconhecida como uma importante
representante da cultura goiana. Sua identificação com a vida do povo goiano pode
ser observada em suas narrativas, que retratam o cotidiano e os desafios
enfrentados por essa comunidade. O conto, a poesia, os objetos estéticos, ou seja, as
obras de arte, transcendem a experiência imediata porque estão conectados a
diversos aspectos da cultura e possuem uma linguagem estética própria que não se
limita a uma referência direta e simplista. A isso também alude Clifford Geertz, em
seu livro A interpretação das culturas, como segue:
A capacidade de uma pintura de fazer sentido (ou de poemas,
melodias, edifícios, vasos, peças teatrais, ou estátuas) que varia de
um povo para outro, bem assim como de um indivíduo para outro,
é, como todas as outras capacidades plenamente humanas, um
produto da experiência coletiva que vai bem mais além dessa
própria experiência (GEERTZ, 1989, p. 165).

Para Geertz (1989), a arte não pode ser totalmente compreendida apenas
através da experiência sensorial ou emocional direta que temos ao contemplá-la. Ela
envolve conhecimentos e referências culturais, além de uma linguagem estética que
geralmente se revela complexa e simbólica. Trata-se de um artifício presente no
entrelaçamento de mundos operado por Cora Coralina
A autora enaltece as figuras femininas presentes no contexto goiano, dando
voz e valorizando suas histórias, saberes e vivências. Além disso, a obra de Cora
Coralina estabelece uma forte conexão com as raízes culturais da região, resgatando
tradições, lendas e memórias, e evidencia a importância da educação como forma de
preservar e transmitir essa rica herança cultural. Através de sua escrita, a autora
questiona a construção social da mulher “bem parideira, bem criadeira”, rompendo
com estereótipos e empoderando as mulheres.

Considerações finais
A obra de Cora Coralina revela-se como um reflexo da cultura e da sociedade
em que a autora está inserida. Através de suas palavras, ela transmite a pluralidade

534
e a diversidade presentes no mundo, ao mesmo tempo em que enaltece a cultura
goiana e valoriza as mulheres e suas histórias. A literatura feminina desempenha um
papel fundamental na arte e na cultura, trazendo perspectivas únicas e rompendo
com narrativas dominantes. Nesse sentido, Cora Coralina destaca-se como uma voz
potente que, por meio de suas reflexões, nos faz repensar a continuidade do ser e as
possibilidades de transformação presentes na literatura e na sociedade como um
todo.
Neste artigo, discutimos como todas as vidas das mulheres se relacionam
com a identidade dos personagens, com a cultura local e com os fatores culturais
envolvidos pela construção narrativa da poesia-mundo (sob a forma de prosa ou de
poesia). Através dessa análise, compreendemos que em ‘Todas as Vidas’ está em
transmissão de tradições e a força da cultura no cerrado goiano. A liberdade está no
gesto estético criativo, que se configura como prática de liberdade em um mundo
associado à servidão, à alienação e à reificação, buscando em cada coisa, como no
poema de Cora Coralina, a sua transcendência, o seu quinhão de universalidade.
Assim ocorre com a força extraída da fragilidade do povo nascido em solo goiano,
com marcas profundas sobre a sensibilidade da autora, que dali resgata a sua
potência criativa.
Assim, estabelece conexões profundas com a diversidade da vida,
representando a cultura goiana e promovendo reflexões sobre questões sociais e a
construção da identidade feminina. Sua escrita se torna um importante legado,
transmitindo uma visão de mundo mais inclusiva e justa, além de destacar a
relevância da literatura feminina na arte e cultura.

Referências
BOAS, Franz. A mente do ser humano primitivo. Petrópolis: Vozes, 2010.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e histórias mais. São Paulo: Global, 2014.

DENÓFRIO, Darcy. Antologia do conto goiano. Goiânia: Ed. UFG, 1992.

ECCO, Clóvis; MARTINS FILHO, José Reinaldo F. Espiritualidades: múltiplos olhares.


Porto Alegre: Editora Fi, 2022.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. São Paulo: LTC, 1989.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

535
GEERTZ, Clifford. Identidade e diferença: perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis: Vozes, 2000

PAZ, Otávio. O Arco e a Lira. Trad. L. de Barros e J. Simão. Rio de Janeiro: Guanabara,
1988.

PESQUERO RAMOM, Saturnino. Cora Coralina: O mito de Aninha. Goiânia: Ed da UFG:


Ed da UCG, 2003.

536
UMA PROPOSTA DE MUDANÇA PARA IGREJA EVANGÉLICA ATUAL
EM FACE AO CRESCIMENTO DOS DESIGREJADOS

Messias José dos Santos1

Resumo: A grande questão é o que tem levado essas pessoas a se afastarem de forma tão
rápida em um número tão crescente? Se no passado denominávamos grande parte de
católico romanos como católicos “nominais” hoje esse se fenômeno invadiu os arraiais
denominado de evangélico. Hoje essa realidade é presente em nosso meio, por isso a
discussão sobre o assunto se faz necessária, não só para entender as razões, mas
entendendo-as como reduzi-la (se for o caso), não falo em dissipar, pois vejo que isso é uma
impossibilidade real. Objetivo: Apresentar uma proposta relevante para o atual cenário da
igreja evangélica Método: Observação e dissertação Resultados: Uma igreja mais voltada
para a comunidade e menos institucionalizada. Um entendimento correto de uma
comunidade de fé. Conclusão: O problema não são os desigrejados, mas a razão que os levou
a se tornarem assim, igrejas que abusam da fé de pessoas que de certa forma estão atrás de
bênçãos materiais e por fim terminam sustentando esses tais pastores que não passam de
charlatões da fé. Creio que essa “crise” permanecerá, o que pode ser feito talvez seja frear
essa enxurrada como acima descrito através de igrejas mais voltadas para o evangelho, sem
promessas mirabolantes e fraudulentas, menos institucional e mais voltada para os
relacionamentos. Muitos ainda desistirão da igreja, mas independente disso a igreja seguirá
firme e forte.
Palavras-chave: Comunidade; Escrituras; Fé; Desigrejados; Igreja.

Introdução
Segundo o censo do IBGE de 2010 (fonte do autor) o número de
“desigrejados” levava a monta de 21% dos que se dizem evangélicos, o que hoje deve
ser um número ainda maior, mas o número apenas aponta para a realidade de que
muitas pessoas estão abandonando a vida na comunidade de fé para trilhar sua vida
cristã sem as “amarras” de uma igreja institucional.
A grande questão é o que tem levado essas pessoas a se afastarem de forma
tão rápida em um número tão crescente? Se no passado denominávamos grande
parte de católico romanos como católicos “nominais” hoje esse fenômeno invadiu os
arraiais denominado de evangélico. Hoje essa realidade é presente em nosso meio,
por isso a discussão sobre o assunto se faz necessária, não só para entender as
razões, mas entendendo-as como reduzi-la (se for o caso), não falo em dissipar, pois
vejo que isso é uma impossibilidade real.

1 Pós-graduado em Docência do Ensino Superior, Docência do Ensino Técnico e EAD e as Tecnologias


Educacionais pela UNOPAR. Mestrado em Andamento em Teologia pela FTSA

537
1. A realidade da igreja brasileira
De modo geral pode-se notar que os chamados desigrejados entendem que a
igreja está desvirtuada em sua natureza, na essência, na proposta relacional
comunitária e em sua oferta de missão e serviço. Além disso parta da descrença na
igreja são os conflitos que ela apresenta entre seus pares e em muitos casos contra
a liderança e quanto a esse quesito encontramos pessoas que preferem ser lideradas
por pessoas autoritárias, outros preferem uma liderança participativa e alguns não
querem nenhum tipo de liderança, essa confusão vai criando o ambiente propício
para que o número daqueles que preferem se afastar deste tipo de confusão apenas
aumente.
Esse fenômeno do afastamento da igreja institucional indo para o
isolacionismo religioso ou para uma experiência com grupos menores sem nenhuma
realidade de uma igreja constituída nos moldes tradicionais tem ganhado corpo a
cada dia. Ao olhar os diversos pontos elencados tendo a acreditar que a maior parte
dessas pessoas são os desencantados com a igreja e desesperançados para com sua
liderança e direção, sem uma proposta transformadora para o meio em que vivem e
na maioria das vezes cobrando e nada oferecendo.
O que fica muito claro a partir da realidade dessas pessoas é que a grande
maioria não quer um compromisso com qualquer grupo religioso que tenha um tipo
de denominação, muito embora existam aqueles que se dizem desigrejados mas
frequentam as reuniões semanais em comunidades de fé e assim experimentam a
vivência em um grupo como igreja, mesmo tentando se desvincular do “rótulo”,
outros apenas entendem que podem expressar sua espiritualidade à partir de
reunir-se em sua casa sem tempo definido, nem dia, nem horário, sem ofertas e etc.,
como forma de culto a Deus. Um tipo de prática religiosa mais informal e rompida
definitivamente com as estruturas institucionais. Portanto, trata-se de uma
proposta religiosa que consiste em apresentar uma nova perspectiva de
compreender o cristianismo e a participação na comunidade eclesial sem a
necessidade de uma instituição reguladora.
A grande maioria daqueles que se sentem de alguma forma lesados e
descontentes com a igreja tradicional ou de alguma outra forma sofreram abusos
espirituais por falsos mestres que se passavam por pastores. Outros apenas não
querem ter um grupo oficial para pertencerem onde devam prestar contas uns aos

538
outros, assim uma vida afastada de uma comunidade de fé o deixa mais confortável
com seus pensamentos e motivações.
Minha leitura pessoal é que grande parte desse cenário se dá por culpa das
igrejas e de seus respectivos líderes, anos e anos discutindo coisas com pouco valor
para vida e pouca relevância no espectro do cuidado e comunhão saudável. Um
púlpito fraco que criou uma geração de crentes fracos que estão cada vez menos com
prometidos com o reino de Deus e cada um querendo criar seu próprio reino
pessoal.

2. Uma proposta de mudança


Uma igreja local onde os crentes se comprometem uns com os outros
motivados pela obediência a Cristo, há uma profundidade de compromisso, o que
torna minha participação e minha presença como algo que me traz alegria e
satisfação, não apenas um compromisso por afinidade, o que muitos desigrejados
procuram, mas um compromisso que depende do amor inabalável de Cristo.
A comunidade de fé, seja ou não uma igreja institucionalizada, precisa do
corpo para perseverar na verdade e dividir de maneira contribuitiva com seus dons
espirituais, crentes independentes, soltos pelo mundo, podem fazer algumas coisas
em prol do reino e da comunidade onde está inserido, mas sem o ajuntamento da
comunidade dos salvos, a comunidade sobrenatural, ela terá dificuldade de realizar
a missão dada pelo Senhor Jesus.
Uma comunidade sobrenatural tem no seu amor uma expressão do amor de
Deus, é tornar visível o amor de um Deus invisível. Uma necessidade premente nos
tempos de hoje com essa nova configuração é trazer novamente os cristãos a
vivenciar a esperança bíblica, e vivendo isso na comunidade dos salvos haverá uma
melhor expectativa para que isso aconteça. Naturalmente que não é possível essa
nova vivência sem uma mudança de estruturas de pensamentos. Essas mudanças
não se dão apenas nos campos das ideias, mas através de uma busca maior pela
verdade, pela comunhão, oração e adoração.
Outros problemas se dão no campo de que somos tentados a permitir que
nossa fascinação pelo novo direcione nossos pensamentos e determine nossos
métodos. Vivemos uma época em que surgem diversos métodos prometendo

539
solução rápida para os diversos problemas da igreja, especialmente o crescimento
numérico dela.
A tentação de buscar estes métodos para tais soluções tem se tornado muito
sedutora no contexto de uma cultura evangélica emergente que se distancia, cada
vez mais, da proclamação clara das convicções doutrinárias fundamentadas na
verdade das Escrituras. Quando deixamos de lado nossa herança doutrinária, o
inovador e o criativo começam a parecer mais plausíveis. Desta forma os “métodos”
para edificação da Igreja podem se tornar tão proeminentes, que começam a tomar
para si a glória do crescimento da igreja, a glória que pertence legítima e
exclusivamente ao Evangelho.
Nesse contexto, o pragmatismo prevalece. Sem compreendermos ou
meditarmos sobre isso, nos pegamos empolgados em relação aos mais recentes
modelos criativos que prometem resultados imediatos e que podem ser observáveis
e medidos por estatísticas que são as medidas para o “sucesso” da igreja local.
Essa busca por esse “sucesso” faz com que as pessoas sejam “atropeladas” e
desconsideradas como seres que precisam de cuidado e direção e perdemos o
apreço pelo evangelho, As pedras que edificam a igreja são as palavras de Deus nas
Escrituras, e como líderes ou pastores nossa maior prioridade é nos certificar de que
o evangelho é a centralidade funcional na vida da igreja. Ou seja, temos que ter a
certeza de que o Evangelho governa a maneira como a igreja funciona. Quando isso
acontece a igreja pode exercer sua influência em vários campos. Quando pensamos
em manter o evangelho como “centralidade funcional”, os métodos não podem
suplantar a Palavra de Deus, assim como a personalidade do pregador não pode ser
mais importante que a pregação, o método não pode ser mais importante que a
centralidade do evangelho.
Quando isso acontece no seio da igreja o evangelho vai fazer a diferença na
vida das pessoas o que as deixará mais confortáveis no meio da comunidade de fé
em que elas vivem e podem se doar de maneira a glorificar a Deus em suas
atribuições e sem medo de estarem em apenas mais um “empreendimento”.
Como então devemos edificar a igreja? É necessário que retornemos à
Palavra de Deus a fim de que ela nos mostre o que devemos fazer para cumprir esse
propósito. O fato de que a igreja não é uma instituição criada pelo homem, deve nos
levar a buscar informações com aquele que a instituiu. Se não fizermos isso

540
corremos o risco de passarmos o tempo edificando outra coisa que não é a igreja de
Cristo.
No aspecto temporal, a igreja é uma casa espiritual difícil de ser construída,
pois tem como objetivo ser usada para promover relacionamentos intensos, isso
necessita de materiais fortes, que devem ser colocados nas suas posições corretas,
esses materiais devem ser procurados na “planta” das Escrituras, de modo que esses
relacionamentos sejam saudáveis e com integridade.
Dever & Alexander falam do aspecto eterno “nossa obra resistirá ao fogo do
último Dia somente se edificarmos com “ouro, prata, pedra preciosas”, especificados
na planta bíblica (1 Co. 3.12)” (2015, p. 38). Edificar sem essa planta garantirá que
construiremos com os recursos mais abundantes e mais baratos de madeira, feno e
palha. Ignorar o plano de Deus para a igreja e substituí-lo com seu próprio plano
será uma obra inútil que será provada na eternidade. Ignorar o plano de Deus para
a igreja e substituí-lo com seu próprio plano assegurará a eterna futilidade de sua
obra. Portanto, é essencial que pensemos neste início sobre uma questão
fundamental: O que é a igreja local?
A igreja é a demonstração coorporativa da glória e sabedoria de Deus. A igreja
tem uma mensagem singular: O Evangelho. A estrutura da Igreja é centralizada
fundamentalmente em Deus. A igreja é um ministério de exaltação, igreja está sendo
edificada por Cristo.
Muito do que leva pessoas a se afastarem ou mudarem constantemente de
igreja é que quando não há a presença de relacionamentos profundos de discipulado
entre os cristãos, as pessoas vêm e vão, pulando de igreja em igreja ou deixando-as
para viverem suas vidas longe de uma comunidade de fé. Elas se associam facilmente
às igrejas e facilmente às abandonam, visto que o fato de fazerem isso não viola sua
concepção de relacionamento de amor e de compromisso. Elas não param para
medir as consequências de seu afastamento na vida dos outros. Elas não sentem o
peso de sua responsabilidade pelos outros. Não discutem as razões de sua saída com
os pastores. Elas apenas se vão. Devolvem suas compras no balcão não é nada
pessoal, e não cria uma atmosfera favorável para o mais importante nesse tipo de
relacionamento que é o demonstrar o evangelho.
Esse relacionamento pessoal deve ter como base um amor centrado em Deus.
O amor centrado em Deus não ama o pecado. O que é pecado? Pecado é qualquer

541
coisa que se oponha a Deus. Por essa razão o amor de Deus fará discriminação entre
o que é pecado e o que não é; entre aqueles que pertencem ao pecado e aqueles que
não pertencem; entre aqueles que o amam e buscam a sua glória e aqueles que não
o fazem. Nossos relacionamentos pessoais de discipulado não podem acobertar ou
aceitar atitudes constantes de pecado na vida daqueles a quem temos investido
nosso tempo.
Outra observação importante é que um resultado de relacionamentos
pessoais de discipulado ajuda a quebrar as resistências para as mudanças na igreja
ou o abandono dela. Mostrando ser um amigo próximo que ama de verdade e se
interessa pelo bem-estar da igreja traz um ambiente de confiança, assim as
mudanças bíblicas necessárias serão vistas como uma iniciativa visando o bem da
igreja. Isso solidifica o caminho para o crescimento bíblico, centrado no evangelho e
na pessoa de Deus.

Considerações finais
A Palavra de Deus é o seu poder sobrenatural para realizar sua obra
sobrenatural. Por isso eloquência, inovações e programas tem muito menos
importância do que pensamos. Essa é a razão por que os pastores devem se dedicar
à pregação e não à programas. As igrejas precisam ser ensinadas que a Palavra de
Deus é mais valiosa do que os programas. O poder de Deus é mostrado na vida da
igreja através da pregação da sua Palavra.
Não existe questão mais importante para a igreja do Senhor Jesus do que
cultuarmos a Deus como ele deseja que o façamos. Embora muitos cristãos
mencionem a Palavra de Deus como uma parte necessária do culto o modelo mais
comum de culto é definido pelas músicas e inovações. A pregação tem sido
removida, em grande parte, inúmeras inovações de entretenimento têm ocupado o
seu lugar.
A verdadeira pregação nunca é uma exibição do brilhantismo ou do intelecto
do pregador, mas sim uma exposição da sabedoria e do poder de Deus. Esse tipo de
pregação só pode acontecer quando o pregador se mantém submisso ao texto da
Escritura. A autoridade não é do pregador a autoridade é da Palavra pregada.
Estou convencido que o melhor método para o desenvolvimento da igreja é a
exposição da Palavra de Deus. Exposição é pregação e pregação é exposição. O

542
apetite por pregação séria quase desapareceu entre os cristãos que se contentam
em ouvir aquilo que lhes agrada ou que massageiam seu ego a partir do púlpito.
O problema não são os desigrejados, mas a razão que os levou a se tornarem
assim, igrejas que abusam da fé de pessoas que de certa forma estão atrás de
bênçãos materiais e por fim terminam sustentando esses tais pastores que não
passam de charlatões da fé.
Creio que essa “crise” permanecerá, o que pode ser feito talvez seja frear essa
enxurrada como acima descrito através de igrejas mais voltadas para o evangelho,
sem promessas mirabolantes e fraudulentas, menos institucional e mais voltada
para os relacionamentos. Muitos ainda desistirão da igreja, mas independente disso
a igreja seguirá firme e forte.

Referências
BRIDGES, Jerry. O evangelho para a vida real. Tradução de Ingrid de Andrade
Fonseca. São José dos Campos: Fiel, 2015.

BRIDGES, Jerry. O poder transformador do Evangelho. Tradução de Márcia Piedade


Santos de Oliveira. São Paulo: Batista Regular, 2015.

DEVER, Mark, & ALEXANDER, Paul. A Igreja Intencional. Tradução de Francisco


Welington Ferreira. São José dos Campos: Fiel, 2015.

DEVER, Mark. Nove Marcas de Uma Igreja Saudável. Tradução de Pr. Wellington
Ferreira. São José dos Campos: Fiel, 2007.

MACARTHUR, John F. Jr. Evangelismo. Tradução de Giuliana Niedhardt. São José dos
Campos: Thomas Nelson Brasil, 2017.

MARSHALL, Colin & PAYNE, Tony. A Treliça e a Videira: a mentalidade de discipulado


que muda tudo. Tradução de Francisco Welington Ferreira. São José dos Campos:
Fiel, 2015.

MOHLER, Albert Jr. Deus Não Está em Silêncio. Tradução de Francisco Welington
Ferreira. São José dos Campos: Fiel, 2011.

PIPER, John. Deus é o Evangelho. Tradução de Francisco Wellington Ferreira. São


José dos Campos: Fiel, 2006.

STILES, Mark. Marcas de um evangelista. Tradução de Francisco Welington Ferreira.


São José dos Campos: Fiel, 2015.

543
ATEÍSMO HERMENÊUTICO: APONTAMENTOS DESDE PESQUISA
REALIZADA COM PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS
DA RELIGIÃO NO BRASIL

Omar Lucas Perrout Fortes de Sales1


Clóvis Ecco2

Resumo: A contemporaneidade se distingue por apresentar realidade multifacetária e


ambígua em suas diversas nuances políticas, culturais, religiosas, econômicas, etc.
Especificamente, no plano religioso, multiplicam-se e acentuam-se tipificações ou mesmo
manifestações dissonantes do que aqui se denomina provocativamente como ateísmo
hermenêutico. A presente reflexão apresenta inspiração junto aos dados obtidos por meio
de pesquisa qualificada realizada junto a docentes de dois programas de pós-graduação em
Ciências da Religião no Brasil. Por ateísmo hermenêutico compreende-se a constatação da
ausência de crenças religiosas absolutas e totalitárias uma vez que os universos dos
paradigmas objetivos se renderam à diversidade e à possibilidade de multiplicidade de
interpretações. Propõe-se originalmente considerar o ateísmo hermenêutico desde as
provocações críticas do filósofo italiano Gianni Vattimo no tocante à sua filosofia
hermenêutica e aos seus estudos sobre a religião. Dentro desse universo interpretativo do
ateísmo hermenêutico importa considerar, por exemplo: a) o ateísmo metafísico; b) o
ateísmo dos sem religião e o ateísmo institucional; c) o ateísmo religioso; d) o ateísmo
político. Assim sendo, a presente comunicação traz à baila um olhar ou olhares sobre o
contexto religioso contemporâneo no intuito de contribuir criticamente para a pertinente
reflexão sobre os novos movimentos religiosos e sobre as novas espiritualidades em voga3.
Palavras-chave: Ateísmo hermenêutico; tipificações de ateísmo; novos movimentos
religiosos; espiritualidades contemporâneas.

Introdução
As constantes transformações a assolarem a sociedade atual, em múltiplas
instâncias, acenam para horizonte aberto e indeterminado por se tratar de realidade
a escapar às possibilidades diversas de apreensão e de delimitação conceitual e ou
prática. O cenário em voga caracteriza-se pela plasticidade de noções e de ideias,
pela mutabilidade de horizontes interpretativos e pela volatilidade de “normas”
mediante as quais são frustradas as diversas tentativas de determinar, de classificar
e de nomear objetivamente os dados dessa realidade. Consequentemente a própria

1 Doutor em Teologia (FAJE) e doutor em Filosofia (UFMG). E-mail: omarperrout@yahoo.com.br.


2 Doutor em Ciências da Religião. É Professor de Pós-Graduação e Coordena o PPGCR da PUC Goiás
(Stricto Sensu). E-mail: clovisecco@uol.com.br.
3 A pesquisa de campo considerada para a presente discussão encontra-se registrada sob o CAAE

83164618.0.0000.0037.

544
noção de realidade se vê posta em questão, uma vez que o real apresenta-se
cerceado de virtualidades e passível de diversos enfoques e interpretações.
A escuta atenta dos atores a protagonizarem a existência à nossa volta
permite simultaneamente compreender e depreender dados um tanto melhor
delineados acerca do modo pelo qual se desdobram questões tocantes, por exemplo,
ao universo da religião não necessariamente em âmbito institucional, sobretudo
desde a perspectiva da vivência de crenças e (des)pertenças. Nessa perspectiva,
importa apresentar e analisar e publicizar os dados obtidos por meio da pesquisa
realizada com docentes de dois programas de pós-graduação em Ciências da
Religião no Brasil.
A pesquisa de campo considerada apresenta caráter descritivo, exploratório,
analítico e propositivo. Foram realizadas entrevistas junto a docentes e discentes de
dois programas de pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil. A partir dos
dados obtidos delimitou-se a compreensão da questão do ateísmo a fim de se dar o
passo esperado de proposição do ateísmo hermenêutico como eixo interpretativo
do cenário atual. Nessa empreitada foram considerados, como referencial teórico,
os escritos do filósofo italiano Gianni Vattimo, a explorarem sobremaneira a
hermenêutica filosófica e a questão da religião na pós-modernidade4.

1. Configuração e escuta do ateísmo hermenêutico


A despedida da verdade ou o adeus à verdade absoluta (VATTIMO, 2009, p.
7-9), instaura a possibilidade de emergência de outras possibilidades
interpretativas e de outros modos do acontecer da verdade, do dar-se da verdade no
cotidiano. Afirmar positivamente a existência de interpretações múltiplas acerca da
realidade implica no reconhecimento de um mundo plural não mais pautado por
uma verdade única. Tal constatação perpassa o universo das religiões não apenas

4 A partir das provocações e elementos conceituais obtidos junto às fontes bibliográficas foi
elaborado o roteiro da entrevista aplicado junto aos participantes de pesquisa. No caso das
entrevistas, trata-se de aplicação de metodologia qualitativa de investigação As entrevistas foram
realizadas presencialmente e via e-mail. O material foi fidedignamente transcrito com realização de
dupla checagem. A partir da análise e do agrupamento de dados foram elaborados gráficos e tabelas.
Como fruto do trabalho de compreensão e crítica de todo esse material emergiu a compreensão atual
que se tem acerca do ateísmo hermenêutico. Para o presente artigo considera-se recorte do material
obtido junto ao corpo docente. Oportunamente será publicado artigo com análise a contemplar tanto
o material levantado junto ao corpo docente quanto junto a discentes doutorandos(as). O número de
docentes entrevistados corresponde a 35% do número total de docentes em Ciências da Religião em
atuação no Brasil.

545
tomado como um conjunto de valores, ordenamentos e preceitos, mas também
considerado como um arcabouço humano regido por estruturas institucionais.
Depreende-se daí a aplicação da hermenêutica num universo de valorações e de
certezas plurais, em oposição a uma ordem vigente e pré-estabelecida. Diante do
exposto, a ideia de se acrescentar logo após termo ateísmo o atributo hermenêutico,
e assim formar ateísmo hermenêutico, converge no fato de se propor visão
interpretativa de ateísmo que se compreende múltiplo, aberto, dinâmico e em
constante processo de mutabilidade. A intuição para se propor a expressão ateísmo
hermenêutico advém da obra de Gianni Vattimo em conjunto com Santiago Zabala,
intitulada Comunismo hermenêutico (VATTIMO; ZABALA, 2012). A saber, a intuição
se dá em dúplice via: por via direta para a consideração e proposição da
nomenclatura em questão; e, por via indireta – intuição para a formulação ora
proposta, a qual apresenta componentes teóricos já consolidados de pesquisas e
estudos desenvolvidos especificamente junto às Ciências da Religião. Por ateísmo
hermenêutico não se propõe aqui uma representação “mais real” e tampouco “mais
objetiva” do ateísmo. Afirmativamente, ateísmo hermenêutico pressupõe o
reconhecimento de múltiplas possibilidades e modulações de descrenças e
despertenças para além da clássica definição de ateísmo.
Diante do exposto, importa conceber o ateísmo desde a ocular
hermenêutica, enquanto o destino de um acontecimento, uma espécie de vocação ao
“desenraizamento” da matriz única e desde a multiformação e multiforme
proliferação de horizontes interpretativos tecidos desde matrizes diversas e
ambíguas. Desse modo implica a “desfundação” de narrativas e visões de mundo até
então tomadas como incontestes. Ateísmo hermenêutico não implica simplesmente
na adjetivação passiva do ateísmo, mas na afirmação de uma via interpretativa mais
condizente com a complexidade presente no ateísmo contemporâneo. Subjacente às
possibilidades de escuta e de tradução das vozes do ateísmo em voga, perpassa a
dimensão interpretativa do ateísmo hermenêutico a possibilitar a tessitura de redes
de sentidos diversos, contraditórios e mesmo excludentes.
Conscientes desse aparato hermenêutico a permear a recepção e
interpretação das entrevistas realizadas junto aos docentes abordam-se a seguir os
resultados obtidos ao longo de todo o processo.

546
2. Compreensão/interpretação acerca dos dados coletados
As entrevistas com docentes de pós-graduação em Ciências da Religião
permitem obter material ímpar por se tratarem os participantes de pesquisa em
questão os operadores diretos da área a atuarem na pesquisa e na produção
científica sobre o tema e desdobramentos afins. Na sequência apresenta-se o quadro
a contemplar o agrupamento das respostas dadas por docentes ao serem
perguntados sobre a compreensão acerca do ateísmo contemporâneo. Vamos aos
dados:

QUADRO 1 – Professores(as) – Sobre o ateísmo contemporâneo: como você


compreende o fenômeno do ateísmo contemporâneo?
Número de
Respostas
ocorrências
Produto da LIBERDADE que muitas pessoas têm conseguido perante as religiões 5
e as instituições. Capacidade de se sentir LIVRE em relação às instituições.
Desconfiança diante das instituições e do discurso religioso.
O ateísmo cresce na medida em que crescem as possibilidades de as pessoas 3
terem acesso a outras formas de conhecimento.
O ateísmo é algo positivo. Uma conquista feita com muita luta independente do 2
que se crê e do que não se crê. O debate com o ateísmo é positivo para a sociedade.
O ateísmo não é um fenômeno novo, mas tem ganhado força e adeptos. 2
Fenômeno presente em toda a cultura e toda a sociedade. Os grandes valores são 1
abalados, relativizados. O ateísmo seria mais uma negação das religiões do que
uma negação de Deus. Ateísmo como negação da categoria divina que as religiões
apresentam.
O ateísmo em si não é uma presença tão forte. Há pessoas com outras crenças, 1
outras bases de valores religiosos e bases e trajetórias e combinações de crença.
Não é o ateísmo uma presença tão grande. Falta uma distinção conceitual mais
precisa.
Com a grande abertura e variedade de religiões e a não necessidade de ficar presa 1
a uma instituição, a pessoa tem a opção de não fazer parte de nenhuma instituição
religiosa. O ateísmo vem com grande força e vem para ficar. As pessoas não têm
mais vergonha de se dizerem ateias.

547
Os dados apontam: 18% e 25% de ateus, em duas pesquisas realizadas. Os ateus 1
não querem se identificar em função de vivermos numa sociedade que,
contrariando os teóricos, os valores religiosos têm se exacerbado.
O fenômeno do ateísmo contemporâneo é decorrente do processo de 1
secularização. Advém de uma sociedade extremamente individualista e
consumista e centrada fundamentalmente em incertezas.
No contexto da contemporaneidade o ateísmo é um fenômeno da sociedade 1
ocidental, o qual aponta para uma questão mais ampla que é o que chamamos de
pluralismo de visões de mundo.
Há ao mesmo tempo uma continuidade e uma descontinuidade em relação ao 1
ateísmo clássico. A novidade é que hoje o ateu pode “sair do armário”, por assim
dizer, e divulgar sua mensagem. Seja por que há uma visão negativa da religião
(preceitos rígidos, autoridades “pecadoras”), seja porque Deus perdeu um pouco
da plausibilidade de sua existência, cresce o número de ateus e tendem a se
organizar, até na forma de religião substituta.
Creio existir poucos ateus. Vejo o ateísmo como uma postura política de se colocar 1
contra a religião, no sentido de não ter nenhuma religião.

Diante dessa plêiade de ideias e de proposições recolhidas junto às


entrevistas docentes realizadas propõe-se abordar ateísmos no plural, a fim de
melhor amplificar o ateísmo contemporâneo e como convite à interlocução dos
pares. Provisória e provocativamente elencam-se os nichos a seguir.
a) Ateísmo metafísico: A pós-modernidade pode ser caracterizada como um
período de crise dos valores objetivos, absolutos, metafísicos. Dogmas, normas e
fundamentos pré-estabelecidos e ou divinos, cedem espaço para sempre novas e
mais “enfraquecidas” interpretações e proposições da realidade. Aqui exerce
importante papel a hermenêutica, uma vez que a “... hermenêutica se compromete
historicamente e compreende seu próprio objetivo em termos radicalmente não
transcendentais” (VATTIMO, 1991, p. 70). Considerar aqui o ateísmo hermenêutico
em primeiro plano, como carro abre-alas de todo conjunto, implica tomá-lo como
eixo interpretativo de compreensão das racionalidades subjacentes às
possibilidades de expressão do ateísmo aqui circunscritas. Trata-se de trazer
presente a “força” dissolutiva de um ‘“[...] pensamento mais consciente dos limites,
que abandona as pretensões das grandes visões metafísicas globais, etc; mas

548
sobretudo teoria do enfraquecimento como característica constitutiva do ser na
época do fim da metafísica” (VATTIMO, 1999, p. 25-26)5.
b) Ateísmo dos sem religião e ateísmo institucional: A possibilidade de
existência e de crescimento dos sem religião, conforme se constata nos últimos
censos do IBGE, tem a tônica de produto da LIBERDADE que muitas pessoas têm
conseguido perante as religiões e as instituições. Capacidade de se sentir LIVRE em
relação às instituições. Desconfiança diante das instituições e do discurso religioso.
Tal novidade bem ilustra e “encarna” o destino de enfraquecimento das verdades
absolutas, a vocação niilista a hermenêutica, conforme demonstra o pensiero debole
(VATTIMO, G. ROVATTI, P. A: 1986). Com a grande abertura e variedade de religiões e a
não necessidade de ficar presa a uma instituição, a pessoa tem a opção de não fazer
parte de nenhuma instituição religiosa. De outro modo, com o maior número de
ocorrências junto às respostas dos docentes (cinco ao todo): Produto da
LIBERDADE que muitas pessoas têm conseguido perante as religiões e as
instituições. Capacidade de se sentir LIVRE em relação às instituições. Desconfiança
diante das instituições e do discurso religioso. Pode-se considerar que a descrença
já direcionada a instituições civis estende-se às instituições religiosas, uma vez que
se trata do avanço da perda das crenças em realidades, posicionamentos e verdades
e objetivas. O processo contínuo e gradativo de enfraquecimento das instituições,
inclusive religioso-eclesiásticas, traduz a força da liberdade dos crentes/descrentes
que se autodenominam pessoas sem religião/crentes sem religião. Liberdade
enquanto exercício de autonomia e de desprendimento dos pilares e alicerces a
ancorarem o universo categórico, objetivo e normativo de instituições guardiãs do
status quo de outrora. A imagem de desprendimento bem ilustra esse processo
porque evoca o que melhor caracteriza tal mudança: movimento gradativo e
contínuo. A saber, atitude de liberdade não violenta e não sumária. Aqui reside uma
das qualidades mais expressivas do coletivo dos crentes sem religião: a conquista e
a liberdade do exercício da autonomia mediante movimentos e eixos pacificadores.

5 Vattimo sempre pontua com Nietzsche “não existem fatos, somente interpretações”, bem como
considera o anúncio da “morte de Deus”. Afirmar com Nietzsche que não existem fatos, somente
interpretações traduz a íntima relação entre o processo de perda da objetividade metafísica e o
caráter interpretativo da experiência. Tais anúncios abriram caminhos para a efervescência de novas
e não metafísicas formas de pensar, no caso a hermenêutica (VATTIMO, 1995, p. 38).

549
c) Ateísmo religioso: “O ateísmo em si não é uma presença tão forte. Há
pessoas com outras crenças, outras bases de valores religiosos e bases e trajetórias
e combinações de crença. Não é o ateísmo uma presença tão grande. Falta uma
distinção conceitual mais precisa”. A força do ateísmo não reside necessariamente
em sua expressão numérica. Expressão esta que tende a crescer se consideramos os
sem religião como vertente e manifestação contemporânea de um veio do ateísmo.
Sua força reside na capacidade de condensar outros modos de ser a questionar,
rechaçar e mesmo ignorar verdades e doutrinas reinantes desde sempre. No âmbito
religioso, a capacidade de não simplesmente negar uma religião ou determinadas
religiões, mas também as habilidades de recompor e de plasmar, de criar
bricolagens e estabelecer arranjos desde a composição de novos registros, revela o
deslocamento da força e da magia do religioso para a razão e sensibilidades dos
sujeitos.
d) Ateísmo político: Cada vez mais os diversos ateus se preocupam menos
com a classificação e ou a delimitação de nichos aos quais pertencem ou possam vir
a pertencer. A liberdade evocada nas respostas das entrevistas possibilita inclusive
o posicionamento de indiferença ou aparente apatia perante questões políticas da
sociedade e ou políticas das próprias religiões. Considerando-se que por natureza o
ser humano é um animal político (zoon politikon), a própria postura de alheamento
ao político regulador da sociedade demarca e encarna o crescimento de
possibilidades das pessoas que têm acesso a outras formas de conhecimento. Ou
seja, ampliam-se as conexões e redes de possibilidade de exercício da vida do
cidadão em sociedade. A pluralização desses tecidos comporta a perda da força da
verdade metafísica.

Considerações finais
As proposições das possibilidades de ateísmo aqui consideradas, como o
ateísmo político, aventam para a existência de outros modos de ser e de se expressar
do ateísmo e de espiritualidades não religiosas. Encarnam um convite à reflexão do
ateísmo à luz do registro hermenêutico da perda dos absolutos metafísicos. Tal
intuição articula-se junto ao pensamento de Vattimo e não se limita a ele. O que ora
se propõe encontra seara fértil junto às entrevistas concedidas pelos docentes, as

550
quais fornecem elementos consistentes para a compreensão do ateísmo (ou dos
ateísmos) em nossos dias.

Referências
VATTIMO, G. Addio alla verità. Roma: Meltemi, 2009.

VATTIMO, G. Credere di credere: è possibile essere cristiani nonostante la Chiesa? 2.


ed. Roma: Garzanti, 1999.

VATTIMO, G. Ética de la interpretación. Barcelona: Paidós, 1991.

VATTIMO, G. Más allá de la interpretación. Barcelona: Paidós, 1995.

VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-


moderna. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

VATTIMO, G. ROVATTI, P. A. Il pensiero debole. 4. ed. Milano: Feltrinelli, 1986.

VATTIMO, G.; ZABALA, S. Comunismo hermenéutico: de Heidegger a Marx. Barcelona:


Editorial Herder, 2012.

551
AMÉRICA LATINA: NOVO BERÇO ESPIRITUAL DO MUNDO NA
NOVA ERA DE AQUÁRIO

Pamela Siegel1

Resumo: embora a Grande Fraternidade Universal seja um movimento existente em mais


de 30 países, tendo sido fundado na Venezuela, em 1948, pelo francês Serge Raynaud de la
Ferrière, ele tem sido negligenciado pelos acadêmicos da Ciência da Religião. Além de ser
um pioneiro na introdução do yoga, vegetarianismo, naturismo, esoterismo e conceitos da
Nova Era em muitos países latino-americanos, o fundador deixou um legado cultural
significativo por meio de seus 98 livros e a influência carismática de seus discípulos. Este
artigo explora a trajetória e construção de um yogue autodidata e dito avatar, bem como as
formas de produção-consumo-identidade e regulação cultural de seu movimento, dentro do
marco dos Estudos Culturais, e as possíveis categorias de novas religiosidades em que ele
possa se encaixar. A metodologia se baseia na aplicação do Circuito da Cultura de Paul du
Gay e no pensamento dos principais estudiosos da Nova Era. Resultado: a Grande
Fraternidade Universal é vista como um movimento iniciático muito eclético, de magia,
ocultismo e yoga, que combina ensinamentos pré-colombianos com especulações sobre a
Nova Era. Conclusão: devido as suas múltiplas características, a Grande Fraternidade
Universal perpassa as fronteiras porosas das diversas categorias novaeristas.
Palavras-chave: Grande Fraternidade Universal; Serge Raynaud de la Ferrière; Nova Era;
Circuito da Cultura; América Latina.

Introdução
Serge Raynaud de la Ferrière (1916-1962) nasceu em Paris (SIEGEL, 2014, p.
16, 234), e atuou como astrólogo e pintor na França, onde teve contato com
personalidades esotéricas, entre outros, Maha Chohan Kout Houmi Lal Singh,
Omraam Mikhaël Aïvanhov e Lanza del Vasto. Contudo, foi após alguns encontros
com o misterioso Soun-Wou-Koun (1882-1966), que ele decidiu viajar para as
Américas, com a sua esposa Louise Baudin, onde fundou a Gran Fraternidad
Universal-Fundación Dr. Serge Raynaud de la Ferrière (GFU doravante) em Caracas,
Venezuela, em 1948. Pouco tempo depois, fundou o Ashram n° 1 na cidade de
Maracay, Venezuela. Seus principais discípulos foram: José Manuel Estrada, Juan
Victor Mejías, Alfonso Gil Colmenares e David Ferriz Olivares, este último não o
conheceu pessoalmente, pois chegou tardiamente quando de la Ferrière (SRF

1 Pamela Siegel, psicóloga e doutora em Saúde Coletiva. Membro do LAPACIS (Laboratório de Práticas

Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde)/Unicamp e do NEO (Núcleo de Estudos de


Novas Religiões e Novas Espiritualidades), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui
pós-doutoramentos em Saúde Coletiva e em Ciência da Religião. E-mail: pamsky@mpc.com.br.

552
doravante) já havia viajado. SRF permaneceu apenas 16 meses na Venezuela, e,
quando partiu para Nova Iorque com o intuito de atender a um congresso
internacional sobre a paz, o governo venezuelano não renovou o visto de entrada
dele, assim, ele jamais retornou à Venezuela. Dos Estados Unidos, após separar-se
da esposa, ele partiu para a Europa de onde viajou várias vezes para o Oriente e para
a Austrália. Em 1955 ele se estabeleceu em Nice, na França, com sua nova
companheira, onde faleceu em 27 de dezembro de 1962. Administrou a sua
instituição à distância, e, durante a sua estadia em diversos países, pintou quadros,
deu palestras e escreveu 98 obras, cujos temas abrangem: a astrologia e o advento
da Nova Era de Aquário, yoga, esoterismo, naturismo, tradições pré-colombianas, as
principais tradições iniciáticas e sociedades secretas, e a arte, entre outros. Foi o
pioneiro na introdução do yoga, naturismo e conceitos sobre a Nova Era na América
Latina, e o estilo de vida vegetariano, isento do tabagismo e do alcoolismo, e a prática
da ginástica psico-física e do hatha-yoga, beneficiou uma quantidade enorme de
pessoas em praticamente todos os paises latinoamericanos.
O objetivo deste trabalho é explorar brevemente a trajetória e construção de
um yogue autodidata e dito avatar, bem como as formas de produção-consumo-
identidade e regulação cultural de seu movimento de acordo com o Circuito da
Cultura de Paul du Gay, e do pensamento dos principais estudiosos da Nova Era.

1. Sobre métodos e fontes


O Circuito da Cultura (DU GAY et al, 1997) é uma ferramenta analítica de
pesquisa social que explora o modus operandi de produção e difusão de sentidos
nas sociedades contemporâneas. Neste texto, a Grande Fraternidade Universal é
estudada como um evento cultural, o que significa explorar como é representada e
produzida, que identidades sociais lhe estão associadas e que mecanismos regulam
a sua fundação em vários países e o consumo dos bens culturais que produz. Além
disso, neste resumo expandido analisam-se algumas categorias de novas
religiosidades na quais a GFU possa se encaixar.

553
2. Produção-Consumo-Identidade e regulação cultural da Grande
Fraternidade Universal na América Latina
A instituição é constituída pelo Conselho Supremo localizado em Caracas,
Venezuela, e de numerosos Conselhos Executivos atuando em diversos países. A
parte administrativa e exotérica sediada em Caracas é chamada de Missão, enquanto
que a sede iniciática está localizada no Ashram nº1, em Maracay, Venezuela, e é
chamada de Ordem de Aquário.
Os 22 Estatutos Universais são as normas civis e jurídicas que regem a
instituição. Para ilustrar o alcance da ideologia de SRF, apresentamos aqui extratos
dos três primeiros artigos destes estatutos. No artigo 1 é dito que “o objetivo da
instituição é reunir Ciência, Arte e Religião para aprimorar o intelecto e reeducar o
espírito, unindo todas as seitas e associações, incluindo organizações humanitárias,
filosóficas, científicas, artísticas, esotéricas, religiosas e iniciáticas.” O artigo 2
explicita que: “os objetivos da Instituição podem ser assim resumidos: unir todas as
pessoas, independentemente de credo, nacionalidade, sexo ou classe
socioeconômica, que lutam pela supremacia do espírito e que concordam em
estabelecer a paz no coração de todos os homens, a fim de realizar uma Fraternidade
Universal [...]”. O artigo 3 determina que a sede da instituição fica na Venezuela, na
rua Guamito a Minerva nº 5B, Caracas (GRAN FRATERNIDAD UNIVERSAL, 1984, p.
55).
A renda básica da instituição provém de doações espontâneas dos
associados, da venda das obras do fundador, de lojas de alimentos naturais e venda
de refeições vegetarianas, de aulas e retiros de yoga, e de diversos tipos de cursos
(diplomados) sobre saúde, esoterismo, astrologia, cabala, etc., voltados ao grande
público.

2.1. A vida nos ashrams da GFU


O ritmo de vida nos ashrams da instituição é marcado por quatro práticas
coletivas distribuídas ao longo do dia: a ginástica psico-física (criada pelo fundador,
em três séries), o cerimonial cósmico, o hatha-yoga e a meditação, todas praticadas
com vestimentas brancas e precedidas de banhos frios. Nos períodos entre as
práticas ocorrem os afazeres da vida material: organização administrativa, tarefas

554
domésticas, manutenção, jardinagem, compras, preparação de refeições, padaria,
venda de produtos alimentícios, etc.

2.2. A Cerimônia Cósmica


A Cerimônia Cósmica, segundo SRF, é uma sessão de magia branca que teria
sido praticada nos santuários astecas, nas escolas maias, entre os atlantes e nos
conventos dos iniciados da antiguidade (FERRIÈRE, 1972, p. 129, 130). É constituída
por sete passos, sendo o primeiro a Oração ao Demiurgo (FERRIÈRE, 1972, p. 140,
141), que, curiosamente, é a Oraison des 33 Taus, recitada em francês, e que aparece
no livro Magia Sperimentale de Gian Piero Bona (1977, p. 169). Este teria seguido o
sistema apresentado por Jules Boucher no livro Magie Pratique, publicado pela
Editora Niclaus, Paris, em 1941, mas SRF não dá crédito ao autor.

2.3. A identidade aquariana


A identidade aquariana é forjada por um mosaico de crenças espirituais
baseadas em três ensinamentos-chave de SRF: 1) a Nova Era de Aquário teria
começado em 21 de março de 1948, supostamente com a entrada do ponto vernal
na constelação de Aquário, e ela seria marcada pelo advento de um avatar, ou o
Cristo em sua segunda vinda (FERRIÈRE 1972, p. 390, 391); 2) SRF insinua que ele
próprio é o avatar da Era de Aquário e que a sua missão é elevar o nível de
consciência da humanidade (FERRIÈRE 1975, p. 317-319); 3) SRF afirma que os
poderes geomagnéticos do globo se deslocaram do Oriente para o Ocidente e que a
América Latina foi escolhida pelos Grandes Anciãos da Fraternidade Branca como o
novo centro espiritual do mundo (FERRIÈRE 1972, p. 93, 366, 367).
Segundo González-Reimann (2013, p. 118), o conceito de Nova Era de
Aquário é derivado dos tempos cíclicos indianos, os Yugas. Se a literatura purânica
atribui ao Kali-Yuga -a idade do ferro e do declínio moral- a duração de 432.000
anos, com início em 3.102 a.C, como, indaga González-Reimann, poderiam diversos
autores e pensadores proclamar que o Satya Yuga, a Idade de Ouro, estaria prestes
a começar? Segundo Heelas (1996, p. 25, 29), quiçá a Índia sempre tenha sido a fonte
mais importante da Nova Era, podendo apresentar novas versões daquilo que ele
cunhou como a religiosidade do eu, um eu individualizado ou cósmico, que outrora
aparecia nos Upanishads.

555
2.4. O emblema sagrado de Aquário
O principal símbolo usado na GFU é o emblema de Aquário, uma cruz de
Malta, que está presente nos templos da GFU, sobre o altar, e também é usado pelos
iniciados aquarianos como emblema peitoral. Contém as seguintes inscrições:
Saber-Querer-Ousar e Calar. Os tamanhos das cruzes, e seus materiais e cordões,
variam de acordo com o grau iniciático recebido pelo discípulo, e vão de 2 a 9 cm. É
de se notar que o próprio SRF foi a única pessoa “autorizada” a usar uma cruz de Sat-
Guru, de 9 cm, talhada em madeira.
SRF criou, em sua linhagem, sete graus iniciáticos para simbolizar o
desenvolvimento dos respectivos chakras (FERRIÈRE, 1974, p. 33). Embora
pregasse contra as divisões no yoga, muitos grupos dissidentes surgiram dentro de
sua própria instituição, principalmente no México e no Peru. González-Reimann
produziu uma árvore genealógica da instituição, com mais de 20 dissidências
(GONZÁLEZ-REIMANN, 2014, p. 413).

3. A Grande Fraternidade Universal e algumas categorias novaeristas

3.1. A GFU, um culto, um exemplo de Cultic Milieu ou seita?


A GFU apresenta, do culto, semelhanças com uma religião mística, como
descrito por Campbell (2002, p. 8), e a conotação de certa manipulação carismática
e lavagem cerebral mencionada por Sutcliffe (2014, p. 25), porém, não apresenta
uma posição de confronto com relação à cultura societal dominante e nem a
característica de ser individualista e fracamente estruturada (CAMPBELL, 2002, p.
9).
Ao mesmo tempo, a GFU manifesta aspectos hinduístas e budistas, que, por
sua vez, fazem parte do Cultic Milieu, como a crença na reencarnação e a não
matança dos animais, além de características pertinentes às instituições de religião
heterodoxa do Cultic Milieu, como são as ordens e fraternidades. Contudo, não se
pode dizer que conforma completamente com as principais características do Cultic
Milieu, quais sejam, a ideologia de busca espiritual (seekership), a tradição do
misticismo unicamente, as práticas de cura e o dom de profetizar. Outrossim, a GFU
possui a organização comunitária, segregada e coesa de uma seita (SUTCLIFFE 2014,
p. 25).

556
3.2. GFU, uma expressão do religionismo ou um Novo Movimento Religioso?
SRF trabalha com dois conceitos que podem ser assimilados ao religionismo,
que, segundo Hanegraaff (2012, p. 115), busca verdades permanentes do sagrado
intocadas pelo tempo, e defende a soberania exclusiva do espírito: o primeiro é a
Tradição Iniciática, a preservação da Ciência Sagrada através dos tempos, que teria
sido transmitida pelas Ordens Secretas, e da qual a GFU seria a porta-voz, acrescida,
segundo SRF, dos descobrimentos da ciência que confirmariam os múltiplos
fenômenos ocultos (FERRIÈRE, 1972, p. 454). O segundo é o Yoghismo, apresentado
na sua obra prima, Yug, Yoga, Yoghismo, Una Matesis de Psicologia, um sistema que
abrangeria a totalidade e permaneceria imperturbável ao longo dos séculos
(FERRIÈRE, 1969, p. 42), sendo que ele equipara a cabala, o yug e o Tao dos chineses
(FERRIÈRE 1969, p. 507, 508), expressando, assim, uma inclinação para a filosofia
perene de Frithjof Schuon e René Guenon.
Os Novos Movimentos Religiosos (NMRs), seriam grupos que se distanciam
dos modelos das grandes religiões (cristianismo, islamismo, budismo, hinduísmo,
judaísmo), embora usem alguns dos seus elementos, e que às vezes são relacionados
com seitas, cultos, ou movimentos New Age (GUERRIERO, 2006, p. 40). Em alguns
aspectos, a GFU se encaixa neste conceito pois abraça ritos, lojas, seminários, igrejas,
templos, conventos e movimentos, etc., e a Ordem de Aquário não seria uma religião
senão a união de todas (FERRIÈRE, 1972, p. 352).

Considerações finais
Embora a principal obra de SRF seja o seu livro sobre yoga, Yug Yoga
Yoghismo, Una Matesis de Psicologia a GFU não é necessariamente vista pelo grande
público como uma instituição que ensina tão somente yoga. O Centro de Estudos
sobre Novas Religiões (CESNUR), classifica a GFU como uma organização não
religiosa, que pode ser comparada com a Sociedade Biogênica Internacional ou a
Nova Acrópole (CESNUR n/d). Segundo Faivre (1994, p. 105), a GFU fundada por
SRF atua principalmente na América Central e do Sul, é muito eclética e combina
ensinamentos pré-colombianos com especulações sobre a Nova Era de Aquário. O
Programa Latino-Americano de Estudos Sócio-Religiosos (PROLADES) classifica a
GFU sob o código D6.07, significando uma sociedade de ocultismo e magia originária
da América Latina e do Caribe (HOLLAND, 1993, 2002), enquanto que Siegel e

557
Barros (2022, p. 63) listam a GFU como um possível Novo Movimento Religioso.
Portanto, devido as suas múltiplas características, a Grande Fraternidade Universal
perpassa as fronteiras porosas das diversas categorias novaeristas.

Referências
BONA, Gian Piero. Magia Sperimentale: manuale pratico. Roma: Edizioni
Mediterranee, 1977.

CAMPBELL, Collin. The Cult, the Cultic Milieu and Secularization. In: KAPLAN, Jeffrey
and LÖÖW, Heléne (eds.). The cultic milieu: oppositional subcultures in an age of
globalization. New Yor: Altamira Press, 2002. p. 12-25.

CESNUR. n/d. Le Fraternità Universali: La Línea Raynaud de La Ferrière. Disponível


em: <https://cesnur.com/le-fraternita-universali/le-fraternita-universali-la-linea-
raynaud-de-la-ferriere/> Acesso em: 3 mar. 2021.

DU GAY, Paul; HALL, Stuart; JANES, Linda; MACKAY, Hugh; NEGUS, Keith. Doing
cultural studies: the story of the sony walkman. 1997. London/Thousand Oaks/New
Delhi: Sage Publication/The Open University, 1997.

FAIVRE, Antoine. O esoterismo. Campinas: Editora Papirus, 1994.

FERRIÈRE, Serge Raynaud de la. Los Grandes Mensajes. México D.F.: Ed. Diana, 1972.

FERRIÈRE, Serge Raynaud de la. Simbolismo Astral. In: DE LA FERRIÈRE, Serge


Raynaud. Los Propósitos Psicológicos. Vol. III, Tomo XVIII. Trujillo, Peru: Ediciones
GFU, 1975. p. 283-373.

FERRIÈRE, Serge Raynaud de la. Sus Cartas Circulares. Tomo I. Lima, Peru: Ed. GFU.
1974.

FERRIÈRE, Serge Raynaud de la. Yug Yoga Yoghismo, Una Matesis de Psicologia.
México, D.F.: Ed. Diana. 1969.

GONZÁLEZ-REIMANN, Luis. The Coming Golden Age: On Prophecy in Hinduism. In:


HARVEY, Sarah and NEWCOMBE, Suzanne (eds.). Prophecy in the New Millennium.
When Prophecies Persist. England, USA: Ashgate Publishing Company, 2013. p. 105-
122.

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autora, 2014. p. 413-421.
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GUERRIERO, Silas. Novos movimentos religiosos, o quadro brasileiro. São Paulo:


Paulinas, 2006.

558
HANEGRAAFF, Wouter Jacobus. Western Esotericism: the next generation. In: Mystic
and Esoteric Movements in Theory and Practice, Fifth International Conference. St.
Petersburg: Russian Christian Academy for Humanities, 2012. p. 113-129.

HEELAS, Paul. A Nova Era no contexto cultural: Pré-Moderno, Moderno e Pós-


Moderno. Religião e Sociedade, v. 17, n. 1-2, p. 15-32, 1996.

HOLLAND, Clifton L. Towards a Classification System of Religious Groups in the


Americas by Major Traditions and Family Types. Costa Rica: Prolades, 1993, 2001.

SIEGEL, Pamela. Serge Raynaud de la Ferrière: Aspectos biográficos. Campinas:


edición de la autora, 2014. ISBN 978-85-912978-1-8.

SIEGEL, Pamela; BARROS, Nelson Filice de. Yoga, Tradição e Prática Integrativa de
Saúde. Campinas: Ed. Pontes, 2022.

SUTCLIFFE, Steven J. New Age, world religions and elementary forms. In:
SUTCLIFFE, Steven J and GILHUS, Ingvild Saelid (eds.). New Age Spirituality,
Rethinking Religion. London and New York: Routledge, 2014. p. 17-34.

559
ASPECTOS DA ESPIRITUALIDADE NO ENEAGRAMA

Paulo Sérgio de Souza1

Resumo: Este breve estudo tem como escopo apresentar o Eneagrama como um caminho
de autoconhecimento e de expansão da consciência, o que favorece também a percepção de
uma Espiritualidade que será necessária para um “salto” entre a dimensão da psique
(psique como anima ou aspectos emocionais) e o espírito (dimensão espiritual) do
indivíduo que está nesta abertura ao Transcendente (Espiritualidade). A metodologia
aplicada será a revisão de literatura com o apoio da epistemologia fenomenológica, onde, a
partir do psiquiatra chileno Cláudio Naranjo vamos apresentar o desenvolvimento psíquico
do Eneagrama e apontar para a Espiritualidade que muito auxiliará nesta compreensão
mais alargada do próprio Eneagrama, como um mapa “psico-espiritual”. O objetivo do
estudo é apresentar como a Espiritualidade é percebida nos estágios mais avançados do
Eneagrama, justamente quando se faz necessário ao indivíduo romper com a personalidade
(Tipo), estabelecendo uma abertura à consciência. Algumas práticas espirituais como a
meditação e respiração consciente favorecem esta comunhão com a Espiritualidade. Dessa
maneira, o Eneagrama capacita o indivíduo a romper com as crenças limitantes e a
desconstrução das falsas imagens de Deus enquanto projeção do seu próprio Tipo
(personalidade).
Palavras-chave: Eneagrama; Espiritualidade e Eneagrama/ Desenvolvimento humano.

Introdução
A partir da década de 1990, testemunhamos uma transformação significativa
no panorama espiritual e religioso. À medida que a sociedade avança em direção a
um mundo cada vez mais pluralista e diversificado, as abordagens espirituais
tradicionais têm sido desafiadas e complementadas por uma variedade de novas
perspectivas e práticas. Neste contexto, o Eneagrama, um sistema de personalidade
ancestral com raízes profundas na mística cristã e na tradição sufi, surgiu como uma
ferramenta intrigante e multifacetada de autoconhecimento e crescimento pessoal.
Este artigo explora a relação entre o Eneagrama e as novas espiritualidades
que estão moldando uma nova compreensão do eu (indivíduo), do relacionamento
com os outros e do significado da vida. À medida que mergulhamos nessa jornada,
examinaremos como o Eneagrama se entrelaça com as tendências espirituais
contemporâneas, oferecendo insights que podem ajudar a iluminar o caminho em
direção a um entendimento mais profundo e holístico de nossa existência.

1 Doutorando em Ciência da Religião pela PUC Goiás (bolsista /CAPES). E-mail:


freipaulosergio@gmail.com.

560
1. Aspectos históricos do eneagrama
Os principais trabalhos sobre o eneagrama (RISO e HUDSON, 2003;
CHESTNUT, 2019; PALMER, 1993; ROHR e EBERT, 1993) sempre apresentam o
surgimento do símbolo do Eneagrama em Alexandria do Egito. Nesse sentido
estamos falando do surgimento de um símbolo fundamentado nas leis matemáticas
(Lei do UM, do TRÊS e do SETE) que tinha a intenção de compreender os
movimentos dos astros, através da matemática. O símbolo aqui não significa o
eneagrama enquanto caminho ou mapa psicoespiritual como conhecemos hoje, mas
as intuições que proporcionaram as suas origens.
Cláudio Naranjo (1932-2019) atesta que o eneagrama “se trata de uma figura
geométrica que foi dada a conhecer por Gurdjieff (1866-1949), que se referiu a ela
como uma representação simbólica de certas leis universais” (NARANJO 2015, p.
11). O eneagrama da personalidade, nos vem de Oscar Ichazo (1931-2020) que o
redescobriu numa de suas viagens ao oriente e Afeganistão, apresentando-o como
um mapa psíquico a partir da personalidade e suas fixações. Foi no ano de 1969 que
Ichazo apresentou o eneagrama como um mapa de conhecimento e
desenvolvimento humano junto à Associação de Psicologia do Chile (NARANJO,
2015).
A partir de Ichazo e Naranjo, o eneagrama é desenvolvido e aplicado como
uma técnica terapêutica, sendo que o mesmo foi levado para os Estados Unidos da
América onde encontrou ambiente favorável para sua expansão. Ichazo e Naranjo
também introduziram a “teoria dos instintos” ampliando a compreensão dos
eneatipos2. Dessa maneira, como o eneagrama apresenta sua tipologia em NOVE (de
1 a 9), com a introdução da teoria dos instintos que são TRÊS, passou-se a
compreender os tipos como vinte e sete. De acordo com Naranjo (2015), os três
instintos são: autopreservação (conversacional), sexual (sintonia) e social
(relacional). Tais aspectos contribuíram para uma maior abrangência do
eneagrama, ampliando também os tipos que passaram de NOVE para VINTE e SETE.

2 Eneatipos: são dos nove tipos do eneagrama. Termo utilizado para distinguir os tipos psicológicos
a partir do eneagrama.

561
2. Aspectos psicológicos no desenvolvimento do eneagrama
O eneagrama foi buscar em Evágrio Pôntico (345-399 d.C.), fundamentação
para aquilo que foi chamado de “pecado de raiz” para cada eneatipo. Um dos
elementos centrais para esse crescimento é a apatheía, a impassibilidade da alma
diante das paixões” (NUNES e CUNHA, 2020, p. 277). A apatheía é um estado de
equilíbrio das emoções, onde o monge conseguiria um certo controle sobre as
emoções, construindo um estado de impassibilidade da alma (psique). Esta
impassibilidade significava uma capacidade de não ser tão atingido pelas emoções
ou paixões (NUNES e CUNHA, 2020).
Evágrio descreveu as “oito paixões alma” a partir de muito diálogo com os
monges (eremitas = monges que viviam isolados) que habitavam o Baixo Egito. A
estrutura dos oitos vícios dá-se de acordo com a tríplice divisão da alma de Platão:
desejos, emocional e espiritual. Gula, luxúria e cobiça são a parte dos desejos;
tristeza, ira e preguiça (ou acídia), parte emocional; vaidade e orgulho, parte
espiritual (PEQUENA FILOCALIA, 1995). Nessa perspectiva tempos as oito paixões
da alma, descritas por Evágrio. As nove paixões (ou pecados de raiz) dos tipos no
eneagrama são: ira, soberba, ilusão (vaidade ou vanglória), inveja, avareza, medo,
gula luxúria e preguiça (RISO e HUDSON, 2003).
Como um mapa psíquico, o eneagrama apresenta nove tipos de
personalidade. Tais tipos são referência às nove personalidades fundamentais que
foram desenvolvidas. A personalidade (persona significa máscara) é o “lugar” onde
a criança ferida vai se refugiar (num dos eneatipos) como defesa para a “ferida” que
sofreu. O caminho do desenvolvimento vai ser o resgate da ferida para a cura e a
redenção do Tipo.
Nessa perspectiva, o eneagrama serve de grande contribuição para este
reconhecimento da personalidade. Cada Tipo traz o seu pecado de raiz e, ao mesmo
tempo a sua virtude (virtus em latim significa força, virilidade). Rohr e Ebert (1992)
descrevem tais “virtudes” como dons que a alma já trouxe para vida de cada tipo
(personalidade). Tais dons “não podem ser produzidos, mas podem apenas crescer
ou desenvolver” (ROHR, R e EBERT, A. pg. 228). Os dons ou virtudes são: Ação
diligente, Serenidade, Humildade, Veracidade (Lealdade), Equilíbrio, Sabedoria,
Coragem, Sobriedade e Inocência. Os nomes das virtudes podem sofrer pequenas
alterações, pois são aplicações bíblicas e frutos de captação nas culturas antigas.

562
A psicologia do eneagrama procura, num primeiro momento, um olhar para
o passado: a personalidade. Depois, para uma experiência no aqui e agora,
vislumbrando um futuro pelo desenvolvimento da consciência. Por isso, Chestnut
(2019) salienta que o eneagrama traz, no seu longo caminho de desenvolvimento,
aspectos arquetípicos universais que agem na psique coletiva e também individual.
Os arquétipos são forças que se manifestam na psique e vêm carregadas de intensa
energia psíquica e tem uma ação poderosa e transformadora na psique e também no
ego (JUNG,1964/2008).
Nesse sentido o eneagrama parte da personalidade (Tipo) como um caminho
de autoconhecimento que traz à tona os vários aspectos da experiência da pessoa.
Começa pela raiz onde situa-se o humano para, depois, abrir-se também para a luz
da consciência. O tipo será sempre uma marca, mas não será determinante para o
caminho da redenção. A redenção significa a evolução e o desenvolvimento que
rompe com a couraça da personalidade levando a luz da consciência para as sombras
e as fixações da personalidade.

3. A espiritualidade no eneagrama
O eneagrama foi se desenvolvendo como um caminho de autoconhecimento
e, os tipos, estão em comunhão com os estudos da personalidade na psicologia.
Cunha (2016) afirma que o eneagrama vai além dos aspectos psíquicos e o apresenta
também como um “mapa psicoespiritual”, pois o mesmo foi construído sobre as
percepções que foram retiradas das experiências dos monges do deserto, que eram
homens que buscavam uma vivência dos ensinamentos de Jesus Cristo de uma
maneira mais intensa e radical. Riso e Hudson (2003, p. 353) afirmam que o
eneagrama “oferece grandes revelações a qualquer pessoa que esteja trilhando o
caminho da terapia ou do espírito”.
A Espiritualidade tem a ver com o caminho da consciência que se abre para o
grande salto da personalidade para a essência. Riso e Hudson (2003) apresentam as
contribuições das grandes religiões no sentido de apontar práticas (meditação,
contemplação) ou exercícios espirituais que sempre contribuíram para o caminho
da iluminação. Os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola (publicado em
1548) serviram de inspiração para muitas pessoas no sentido de propor práticas de

563
meditação e ascese através da consciência. Tais buscas e/ou desejos de comunhão
com o Sagrado já estariam presentes na alma das pessoas.
De acordo com Rohr e Ebert (1992) tanto nas tradições sufistas (Islamismo)
e cristãs, o eneagrama teve sempre um viés na espiritualidade. Os monges sufis
chamavam o eneagrama de “a face de Deus” (manifestações das nove faces de Deus).
Os cristãos reconheceram em Jesus Cristo, o Filho de Deus (encarnação do verbo da
Vida) e foram capazes de perceber os vários tipos de Jesus em seus ensinamentos e
parábolas. Faz-se necessário ressaltar que em todos os tipos, Jesus estavam sempre
como redimido.
A utopia da redenção não se apoia no esforço humano, pois todo esforço
ainda está na mente (o ego precisa se esforçar para alcançar alguma coisa). Palmer
(1993) afirma que quando estamos em momentos de consciência não há esforço
para pensar e nem regras para seguir. O corpo se movimenta com tranquilidade e
sem sobressaltos. Em comunhão com a essência há vislumbres de momentos de
intensa presença. Tais experiências nos colocam em comunhão com a natureza, a
vida e as pessoas. São momentos onde vivenciamos a redenção do tipo que já não é
mais tão importante assim, pois já aconteceu o “salto” a “passagem” do estado da
mente (ego) para a consciência.
Tanto Cunha (2016) quanto Zuercher (2001) sustentam a importância da
espiritualidade no caminho do desenvolvimento do eneagrama. O primeiro aponta
a meditação como caminho, propondo a “meditação como pratica silenciosa, com
fundamento na respiração consciente e na repetição de um mantra ou algo que ajuda
a manter a mente focada” (CUNHA 20016, p. 161). Zuercher (2001) apresenta a
importância fundamental da conversão para a retomada da vida. Conversão
entendida como “metanóia”, ou seja, uma capacidade de ir além da mente,
transcender a mente, entrar em comunhão com a consciência. O eneagrama “provou
ser uma das maneiras mais claras e mais iluminadoras de as pessoas examinarem a
si mesmas a as pessoas com quem convivem” (ZUERCHER 2001, p. 181).
Na nossa opinião, a Espiritualidade perpassa o caminho de desenvolvimento
do eneagrama quando o sujeito, conhecendo seu tipo (olhar para o passado), coloca-
se (no aqui e agora) num caminho de desenvolvimento pela consciência. Nessa
perspectiva há uma grande abertura na visão para o grande voo através das flechas

564
de desenvolvimento3. A meditação silenciosa, a respiração consciente, a capacidade
da autoescuta e investigação (olhar para dentro) e o mergulho na Espiritualidade
favorecerão uma transposição do Tipo e suas fixações para a comunhão com a
consciência. De acordo com Zuercher (2001), “enquanto não transcendermos a
construção do nosso caráter, a tentativa de incorporação à nossa personalidade das
virtudes dos outros pontos do eneagrama, ainda estaremos fazendo as vezes de
Deus” (p. 180). Para que o caminho da Espiritualidade se abra diante do humano,
faz-se necessário sair da dualidade da mente. O humano deve colocar-se na
experiência fantástica de lançar-se na aventura da vida e permitir Deus ser o que Ele
é: o totalmente outro, aquele que olha para sua criação e é capaz de dizer: “Eu vi
vocês e vocês são bons!” (Cf. Gn 1, 11).

Considerações finais
Este breve estudo apresentou alguns aspectos fundamentais do eneagrama,
enquanto mapa psicoespiritual que têm favorecido um caminho de evolução para
inúmeras pessoas em todos o mundo. Pareceu-nos oportuno um percurso histórico
e algumas conexões do eneagrama com a psicologia e a Espiritualidade, objetivo
maior do estudo. Também está sendo oportuno trazer um diálogo que possa gerar
abertura para que o eneagrama possa ser objeto de pesquisa nas academias, uma
vez que ainda ocupa pouco espaço. O eneagrama possui uma vasta literatura que o
coloca como um conhecimento sistematizado, passível de artigos e pesquisas
qualitativas. Com este pequeno impulso fica a abertura para outros e importantes
passos neste caminho infinito que é o conhecimento que gera bem-estar, melhoria
na saúde física, psíquica e espiritual.

Referências
CUNHA, Domingos. Eneagrama da Transformação (Vol. 1). Fortaleza: Karuá, 2016.

CUNHA, Domingos. Eneagrama da Transformação (Vol. 3). Fortaleza: Karuá, 2016.

CHEESTNUT, Beatrice. O Eneagrama Completo. Trad. Simone Palma. Goya, 2019.

3 Flechas de desenvolvimento: a partir da consciência a pessoa conseguirá acessar a tríade de


inteligências que estão disponíveis dentro de indivíduo, a saber: inteligência emocional, racional e
prática.

565
JUNG, Carl. G. Tipos Psicológicos. Trad. Lucia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 1991.

JUNG, Carl. G. O Homem e seus Símbolos. Trad. Maria Lucia Pinho. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1964/2008.

NARANJO, Cláudio. Personjes em busca del Ser: Experiencias de transformación a luz


del eneagrama. Barcelona: La Llavre, 2015.

NUNES, M. V. S.; Cunha, M. P. S. A psicologia de Evágrio Pôntico: o caminho da práxis;


Revista de Filosofia (v. 20), n.3, p. 274-283, outubro. Amargosa (BA): 2020.

PALMER, Helen. O Eneagrama: compreendendo-se a si mesmo e aos outros em sua


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ZUERCHER, Suzanne. A Espiritualidade do Eneagrama: da compulsão à


contemplação. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Paulus, 2001.

566
NOVOS ARES DO ESPIRITISMO: DO MORALISMO XAVIERIANO AO
INDIVIDUALISMO NOVAERISTA
Silas Guerriero1

Resumo: O Espiritismo esteve, desde seus primórdios, muito ligado a um ideal moral
cristão. O maior expoente do Espiritismo clássico no Brasil foi Francisco Xavier, que pregou
durante a maior parte de sua vida uma austeridade, humildade e caridade para com o
próximo fortemente calcada em um moralismo restrito e valorizado enquanto ideal de
comportamento. O objetivo deste trabalho é refletir sobre as influências da Nova Era na
moralidade espírita no Brasil e suas repercussões internas entre os grupos espíritas. As
últimas décadas trouxeram grandes mudanças e o Espiritismo sofreu um significativo
amálgama com os ideias e práticas novaeristas.
Palavras-chave: Espiritismo; Espiritismo e Nova Era; moralidade espírita.

Introdução
Recentemente, o diretor do Grupo Espírita da Prece, um centro espírita de
Uberaba/MG, local em que Chico Xavier, o mais famoso médium brasileiro,
psicografou a maior parte de seus livros, chamou a atenção de que grande parte dos
centros espíritas estaria se distanciando dos ensinamentos da doutrina, da filosofia
e da ciência do Espiritismo (MANFRIN, 2023). Em seguida, acusou a maioria dos
centros espíritas da própria cidade de Uberaba a terem deixado de lado a realização
de caridade e praticarem atividades usuais de centros holísticos identificados como
de Nova Era, tais como reike, cromoterapia e apometria, assim como também se
voltarem a questões imediatas, individuais e materialistas (MANFRIN, 2023).
Longe de ser um fato isolado, ou um arroubo saudosista de um líder religioso
conservador, esse sinal indica uma mudança profunda em curso não apenas no
interior do Espiritismo, como no campo religioso brasileiro em geral. Chamamos
esse processo de novaerização das religiões tradicionais. Isso não significa, como
veremos mais à frente, uma suposta e poderosa influência da Nova Era por sobre as
demais religiões, mas que os valores sociais e religiosos passam por mudanças
profundas que afetam a todo o universo de crenças e práticas religiosas e que a Nova
Era é apenas uma das mais afinadas com esse processo por carregar em si elementos
que dialogam diretamente com as novas maneiras de comportamento em relação ao

1Silas Guerriero é doutor em Antropologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência


da Religião da PUC-SP.

567
mundo espiritual e religioso. Como veremos, o Espiritismo carregava em si mesmo,
desde seus primórdios, algumas características afins desses novos ares, além de um
moralismo cristão, da qual Chico Xavier foi referência destacada.

O Espiritismo
O Espiritismo no Brasil tomou rumos bastante diversos daqueles ocorridos
em seu país de origem, a França. Na segunda metade do século XIX, os livros de Allan
Kardec, pseudônimo do educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, fizeram
enorme sucesso em uma sociedade ávida por compreender os fenômenos ditos
espiritualistas num viés que se acreditava científico (ALMEIDA; GOMES; PIMENTEL,
2020, p. 215).
Segundo Sandra Stoll, essa aproximação a um discurso de virtudes e,
principalmente, a admissão da divindade cristã como o criador e pai eterno e Jesus
não como um deus, mas como o maior exemplo de um espírito evoluído, trouxe o
Espiritismo para próximo do gosto religioso dos brasileiros. Além do mais, a
literatura espírita logo se difundiu no Brasil, tendo como aspecto central muito mais
sua dimensão mágica e menos uma perspectiva intelectualista e esotérica como na
França (STOLL, 2004, p. 58).
Difícil afirmar as causas do sucesso do Espiritismo no Brasil e do seu relativo
insucesso no país de origem. De certo, há inúmeros fatores que não cabem aqui
serem analisados. Fato é que se na França os seguidores foram atraídos por um
cientificismo esotérico, por aqui o lado religioso se alastrou feito pólvora num
ambiente ávido por questões mágicas acrescidas de um forte moralismo cristão.
Em seu meio original, as ideias iniciais de Kardec retomaram uma
curiosidade existente na sociedade europeia, principalmente a possibilidade de
comunicação com o mundo dos mortos. No entanto, distanciava-se
fundamentalmente do universo mágico e do mundo das feitiçarias, vistos como
primitivos e infantis. Influenciado pelos valores da época, notadamente a visão
positivista e evolucionista, Kardec propunha um recorte científico e experimental
(MARQUES, 2020, p. 278). Kardec foi influenciado, também, por correntes esotéricas
então em voga na época que eram inseridas no rol de um Espiritualismo Moderno
(HANEGRAAFF, 1996, p. 435). Assuntos como misticismo, magia, feitiçaria,
magnetismo, e outros antes vistos como crenças pueris, chamaram a atenção de

568
intelectuais que viam na ciência uma maneira de lidar com esses fenômenos. Afinal,
a própria ciência avançava a passos largos e estava desbravando um mundo de
mistérios até então desconhecido, como por exemplo o eletromagnetismo. Kardec
se apoiou em elementos científicos da época para justificar, e quem sabe até provar,
suas crenças espiritualistas.
Vamos reter algumas das ideias até aqui apresentadas e que servirão para
nossa argumentação. A questão da evolução, ou desenvolvimento, que qualquer um
que seguisse a doutrina pode alcançar; a capacidade de cura e a perspectiva de
tratamento do corpo e espiritual ao mesmo tempo; a noção de evolução do espírito,
no sentido de chegar a ser um espírito de luz; o forte viés cientificista e a noção de
que a ciência explicaria as coisas do mundo espiritual; a junção de uma
espiritualidade ao campo da ciência; a negação de se afirmar enquanto uma religião
e a oposição ao cristianismo enquanto instituição, embora Jesus fosse tido como
grande modelo de espírito evoluído e a divindade cristã fosse tida como o ser
superior e criador de tudo. Além dessas características, devemos acrescentar o viés
moralista, do qual falaremos mais detalhadamente a seguir. No entanto, os
elementos aqui destacados guardam uma similaridade bastante evidente com
alguns princípios da Nova Era. Deles retornaremos mais tarde.

O moralismo espírita
Se na França de Kardec a doutrina espírita já incorporava o aspecto da
caridade, por aqui esse viés ficou mais evidenciado. Destacou-se a criação de centros
espíritas por todo o país, e principalmente o desenvolvimento de atividades
doutrinárias associadas à práticas de cunho assistencial (STOLL, 2004, p. 51). Junto
a isso, também se constituíram uma série de instituições filantrópicas com ações
voltadas principalmente ao atendimento de doentes, idosos e crianças. Vários
autores que estudaram o Espiritismo brasileiro concordam que nesse processo,
além do viés assistencial, a doutrina kardecista adquiriu feições mais populares,
destituindo-se dos aspectos científicos e intelectualistas e assumindo características
mágicas (CAMARGO, 1973; ORTIZ, 1978). A difusão do Espiritismo no Brasil atingiu
camadas menos favorecidas, muito embora procurasse sempre se distinguir dos
elementos mágicos de outras práticas religiosas brasileiras, como a Umbanda. Nas
camadas mais abastadas, o espiritismo se mostrou um caminho letrado e

569
intelectualizado de se praticar o bem e a caridade cristã, em uma religião mesclada
a elementos racionais científicos. Por outro lado, nas camadas mais populares, o
espiritismo se assemelhou as práticas mágicas de cura, como a benzeção e mostrava
uma maneira de vivenciar as práticas de possessão afastada daquilo que era então
considerado “baixo espiritismo”, a Umbanda.
Porém, mesmo na França o kardecismo se alimentava da moralidade cristã.
A hostilidade sofrida pelas investidas dos cristãos que viam nas ideias espíritas uma
blasfêmia levou Kardec a se afastar cada vez mais da instituição eclesiástica, mas ao
mesmo tempo em reforçar a necessidade de uma educação moral rígida que fosse
não imposta pela Igreja, mas ensinada no que ele acreditava ser a liberdade
iluminista (SAMPAIO, s.d.).
Chico Xavier representou, e ainda representa para muitos espíritas voltados
a essa perspectiva mais moralista e assistencial, um ícone de tudo aquilo que possa
ser exemplo de pessoa iluminada. Fosse em um universo católico poderia até ter se
convertido em santo. Sua insistência em renunciar a uma vida material, não apenas
em bens, mas também em relação ao seu próprio corpo e sexualidade, aponta para
um aspecto de vida semelhante a uma vida monástica, a um conjunto de renúncia
que um cidadão normal não se dispõe, e não consegue, fazer. Sinal evidente de uma
vida espiritual elevada. Personificou, portanto, o tipo ideal de ser espírita. Segundo
Sandra Stoll, Chico Xavier representou o que há de mais sagrado no ethos do
Espiritismo: sofrimento, sacrifício, renúncia, pobreza, humildade e caridade (STOLL,
2004).
Essa vida de restrições é importante, segundo o Espiritismo, para o
aperfeiçoamento moral e espiritual naquilo que é denominado como escola terrena.
A passagem por essa vida não deve ser fácil, pois é assim que o espírito aprende e
consegue evoluir a estágios superiores. O fazer o bem deve ser fraternal e
desinteressado. Segundo a doutrina espírita, é preciso estar sempre atento e
praticar o bem, sendo este fundado na observância da Lei de Deus (FEB, 2022). Essa
Lei de Deus foi passada aos seres humanos por Jesus. Fazer o mal é justamente ir
contra esse ensinamento e infringir essa lei. Compreender essa lei e agir segundo tal
é condição necessária à elevação espiritual. Nessa orientação dada por uma
instituição que representa um Espiritismo tradicional, como é o caso da Federação

570
Espírita Brasileira, o egoísmo é visto como um grande mal e a prática do altruísmo
é fortemente incentivada (FEB, 2022, p. 3).
Embora muitas vezes criticada, como mero assistencialismo, a ação espírita
para com o próximo ainda é uma marca indelével do ethos espírita. Simões (2020)
aponta para o fato de que os parâmetros atuais de assistência muitas vezes
deixariam de lado os aspectos religiosos da doutrina. No entanto, pode-se perceber
como que esse viés de atenção e seu caráter religioso ainda são presentes,
notadamente em situações de uma visão mais tradicionalista dessa religião
(SIMÕES, 2020, p. 373). Mudanças recentes no interior do Espiritismo têm apontado
para uma outra direção.
Entendemos que o norte da perspectiva moralista espírita se alterou. Chico
Xavier, que para alguns ainda é visto como referência de ser espírita, para muitos é
tido então como algo ultrapassado e fora de seu tempo. Como visto, esse processo
não é absoluto ou livre de controvérsias, mas indica uma mudança bastante
significativa nesta que é uma das religiões mais tradicionais da sociedade brasileira.

O ethos nova era e a novaerização das religiões tradicionais


Aparentemente essas mudanças no meio espírita são uma influência da Nova
Era. Tal fato não seria uma exclusividade, visto que muitas outras religiões também
passam pelo mesmo processo. Vários estudos já apontaram para essas mudanças e
para a novaerização das religiões tradicionais (OLIVEIRA, 2016; GUERRIERO, 2009).
Tanto as espiritualidades nova era, também chamadas de neo-esoterismo ou
práticas holísticas, como as demais religiões, em maior ou menor grau, recebem
influências dos contornos sociais presentes em nossa sociedade. São esses os
responsáveis por aquilo que estamos denominando de novaerização das religiões.
Atribuímos esse nome porque as características que assumem são bastante
assemelhadas àquelas das vivências nova era. Em outras palavras, a Nova Era se
tornou possível e se fez presente devido aos condicionantes sociais externos a ela e
que propiciaram suam emergência. Há uma forte afinidade dessa religião secular
(HANEGRAAFF, 2017) com os contornos culturais. A esse contexto cultural
denominamos ethos nova era.
Muito além do âmbito religioso, as transformações culturais apontavam para
uma individualização no âmbito dos sujeitos e para uma racionalização das

571
mentalidades, além de uma valorização acentuada da modernidade em lugar da
tradição. Segundo o autor, a religião toma lugar chave nesse processo. Em termos
gerais, passa-se a uma visão de mundo que mais se parece com a de religiões
orientais do que com a visão transcendente dominante no Ocidente. O resultado é
uma formação de um princípio divino imanente (CAMPBELL, 2007, p. 13).
Imerso na cultura de seu tempo, Kardec acabou transferindo para a doutrina
espírita uma série de elementos que são hoje reconhecidos como elementos do
movimento Nova Era. Em nossa argumentação, trata-se de elementos de um ethos
nova era que se faz cada vez mais visível atualmente, tendo reflexo nas próprias
religiões tradicionais. No caso do Espiritismo, já se encontravam desde seus
primórdios os seguintes pontos: evolução espiritual individual; capacidade de cura
e de tratamento do corpo; cura espiritual; sujeito como agente de sua própria
doença e de sua cura; noção de energia; viés cientificista; negação da religião
instituída; busca de uma religião mais voltada ao desenvolvimento de uma
espiritualidade pessoal. A postura moralista era fortemente marcada por
características cristãs. Essa, no entanto, veio a se modificar, na linha da influência do
ethos nova era, muito mais recentemente.

Considerações finais
Chico Xavier representou o ideal de moralidade espírita. Um ethos calcado na
visão de caridade, altruísmo e amor ao próximo. Representou, desta feita, um viés
presente já na obra de codificação realizada por Kardec. Essa postura de moralismo
restrito e valorizado enquanto ideal de comportamento, realçado em um
desprendimento material, não estava afinado com um ethos individualista e
consumista já existente desde o momento de surgimento da doutrina. Se em seu país
de origem a vertente religiosa marcada pelo moralismo cristão não foi avante, aqui
no Brasil encontrou terreno fértil em diferentes camadas sociais para progredir e se
transformar não em uma religião numerosa, mas sem dúvida em uma vertente
religiosa de referência. Elementos constitutivos do ethos nova era já estavam
presentes na formulação doutrinária espírita. Porém, a roupagem moralista cristã
perdurou. Cedo ou tarde essas características emergiriam. Foi na figura de médiuns
como Gasparetto, e sob as afinidades com o ethos nova era, que aquele moralismo
xaveriano viria a ser questionado.

572
No Espiritismo, dada a aproximação de conteúdos, cedo ou tarde o choque de
posturas viria a acontecer. Diferentemente de uma transição pacífica e gradual, o
embate se coloca hoje como algo inevitável. De um lado a afirmação de que a
mediunidade pode ser utilizada em prol de uma prosperidade e material, bem nos
moldes da Nova Era. De outro, a posição de resistência como a do diretor do Grupo
Espírita da Prece, para o quem o “Espiritismo, não só em Uberaba, mas em várias
partes do Brasil, está perdendo o norte; está perdendo a referência de simplicidade,
humildade, desapego e o cunho moral que é ensinar o correto, o justo e ajudar as
pessoas a se tornarem pessoas de bem” (MANFRIN, 2023). São exemplos típicos de
uma religião em movimento e em busca de adequação aos contextos sociais em que
se encontra inserida.

Referências
ALMEIDA, Angélica A. S., GOMES, Adriana; PIMENTEL, Marcelo G. Um panorama
histórico da trajetória do Espiritismo da França até o Brasil. Interações, Belo
Horizonte, v. 17, n. 02, p. 213-233, jul./dez., 2020.

CAMARGO, Cândido Procópio de. Católicos, protestantes e espíritas. Petrópolis:


Vozes, 1973.

CAMPBELL, Colin. The Easternization of the West: a thematic account of cultural


change in the modern era. London; New York: Routledge, 2007.

GUERRIERO, Silas. Novas configurações das religiões tradicionais. Ressignificação e


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2009.

HANEGRAAFF, Wolter. New Age religion and western culture. Esotericism in the
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HANEGRAAFF, Wouter J. Espiritualidades da Nova Era como uma religião secular:


perspectiva de um historiador. Religare, João Pessoa, v. 14, n. 2, p. 403-424, 2017.

MANFRIN, Renato. Diretor de grupo onde Chico Xavier atuava alerta sobre rumo do
Espiritismo. Disponível em: https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/diretor-
de-grupo-onde-chico-xavier-atuava-alerta-sobre-rumo-do-Espiritismo/ar-
AA19ri8D?ocid=msedgntp&cvid=97408786745e431d91bf463b00843a65&ei=23#
image=1. Acesso em: 04 abr. 2023.

MARQUES, Marcos M. A ciência espírita: da França a sua chegada ao Rio de Janeiro


imperial. Interações, Belo Horizonte, Brasil, v. 17, n. 02, p. 276-296, jul./dez., 2020.

OLIVEIRA, Amurabi. “É tudo energia”. A Nova Era e a Umbanda em diálogo. Rever,


São Paulo, ano 16, n. 02, p. 92-107, mai./ago., 2016.

573
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Petrópolis: Vozes, 1978.

SAMPAIO, Jáder. Kardec e o ensino moral de base cristã. S.d. Disponível em:
https://www.espiritualidades.com.br/Artigos/SAMPAIO_Jader_textos/SAMPAIO_J
ader_tit_Kardec_e_o_ensino_moral_de_base_crista.htm. Acesso em 10 ago. 2023.

SIMÕES, José P. O assistencialismo espírita. Interações, Belo Horizonte, Brasil, v. 17,


n. 02, p. 358-375, jul./dez.2020.

STOLL, Sandra J. Espiritismo à brasileira. São Paulo, Edusp/Orion, 2004.

574
DISCIPLINA EPISTEMOLOGIA AXIOLÓGICA DE MARIA CORBI E A
PRÁTICA CINÉFILA EM UM GRUPO FOCAL – UMA ANÁLISE1

Thais Fernandes do Amaral2

Resumo: Com vistas a ampliar as discussões relativas aos estudos de Marià Corbí na
disciplina Ciências da Religião no Brasil, essa comunicação objetiva responder a seguinte
pergunta: pode a prática cinéfila contribuir para o cultivo da Qualidade Humana e da
Qualidade Humana Profunda na perspectiva da disciplina Epistemologia Axiológica de
Marià Corbí? Para tal, valendo-se da abordagem qualitativa, inicialmente por meio da
pesquisa bibliográfica, o percurso partiu da compreensão da mudança social entre
sociedades rígidas para sociedades do conhecimento, as implicações dessa mudança, como
a necessidade da disciplina Epistemologia Axiológica, bem como na compreensão da
bifurcação da língua, que trouxe à tona a Dimensão Relativa e a Dimensão Absoluta.
Posteriormente foram demonstrados os elementos que compõem a dupla tríade de aptidões
IDS-ICS, além de uma conceituação relativa à Qualidade Humana e a Qualidade Humana
Profunda. A seguir, foram abordados pontos com relação a função da arte nas sociedades do
conhecimento, desaguando, por meio de um recorte específico, em um breve mapeamento
da história do cinema. Por fim, por meio do segundo método de coleta de dados, a realização
do grupo focal, os dados foram apresentados e analisados, contrastando com aqueles
obtidos por meio da pesquisa bibliográfica. Foram encontrados dados capazes de evidenciar
que, pela perspectiva do grupo pesquisado, o que contribuirá para o cultivo da Qualidade
Humana e da Qualidade Humana Profunda na perspectiva da disciplina Epistemologia
Axiológica de Marià Corbí, além da prática cinéfila, é a amizade e a simbiose que a perpassa.
Contou com financiamento da PUC Minas.
Palavras-chave: Epistemologia Axiológica; Espiritualidade sem religião; Qualidade
Humana Profunda; Ciências da Religião; Arte; Prática cinéfila.

Introdução

“Medicina, direito, administração, engenharia: são atividades nobres e necessárias à vida. Mas a
poesia, beleza, romance, amor… são as coisas pelas quais vale a pena viver.”
(Sociedade dos Poetas Mortos, 1989).

1 Essa comunicação é parte de dissertação intitulada “QUALIDADE HUMANA E QUALIDADE HUMANA

PROFUNDA NAS SOCIEDADES DO CONHECIMENTO CONTEMPORÂNEAS: Estudo sobre a prática


cinéfila em um grupo focal a partir da disciplina Epistemologia Axiológica de Marià Corbí”, realizada
na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sob orientação do Prof. Dr. Flávio Augusto Senra
Ribeiro.
2 Mestra em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, licenciada em Pedagogia com Aprofundamento em


Ensino Religioso pela mesma instituição. Atualmente dedica-se à pesquisa sobre espiritualidade não
religiosa, ou espiritualidade laica, atravessada por questões relativas à prática cinéfila. Membra do
grupo de pesquisa Religião e Cultura da PUC – Minas. E-mail: thais77fa@hotmail.com.br.

575
Permita-me dar início às reflexões contidas nesta comunicação a partir de
John Keating, professor de literatura inglesa no filme Sociedade dos Poetas Mortos,
de 1989. Em uma aula, Keating se dirige a seus alunos e diz a seguinte frase:
“Medicina, direito, administração, engenharia: são atividades nobres e necessárias à
vida. Mas a poesia, beleza, romance, amor… são as coisas pelas quais vale a pena viver.”
Em um entrelaçamento de coisas postas sobre nós pelas pessoas que denominamos
como família – em grande parte dado os laços consanguíneos – está presente a
expectativa sobre a profissão que seguiremos. A santíssima trindade socialmente
esperada versa entre os cursos de Medicina, Engenharia e Direito. Áreas como as da
educação ou das artes, que aqui tem o foco, são prontamente negadas e vistas sob
uma ótica de pena, pois são compreendidas como determinantes para uma condição
de pobreza financeira e fracasso social. Todavia, a arte, algo a ser considerado nobre,
não é o que nos mantém vivos? Não é o que, em uma sociedade soterrada por
inúmeras parafernalhas tecnológicas cada vez mais sofisticadas, tem o poder de
manejar nosso axiológico?
Nesse contexto, e tendo em vista que a prática cinéfila se relaciona uma forma
de arte, Cinema – que alcançou esse status em Ricciotto Canudo3 –, essa comunicação
objetiva responder a seguinte pergunta: pode a prática cinéfila contribuir para o
cultivo da Qualidade Humana e da Qualidade Humana Profunda na perspectiva da
disciplina Epistemologia Axiológica de Marià Corbí?

1. Aproximações entre a arte e Marià Corbí – breves apontamentos


O senso comum, geralmente, compreende a arte como sendo algo subjetivo,
que tem a função última de expressar o ideal de belo. Há ainda a tentativa de se
elitizar a arte, relegando-a para grandes galerias, monumentais museus, famosas e
históricas salas de cinema, restaurantes cinco estrelas ou páginas de renomados
críticos. A meu ver, esse modo de categorizar, perceber, experienciar e compreender
a arte é uma forma de demarcar quem terá ou não acesso a ela, o que vai de encontro
com a perspectiva de liberdade nas sociedades do conhecimento, defendida por
Marià Corbí. Ora, quando se demarca lugar e valor com relação à arte, isso tira a
possibilidade de quem não consegue chegar ou pagar por ela de vivenciá-la. Não

3 Cf. CANUDO, Ricciotto.. Manifeste des sept arts. Paris: Séguier, 1995.

576
obstante, cabe aqui refletir que, ao redor do mundo, um montante das peças exibidas
nas grandes galerias de arte são frutos de saques e massacres entre nações invasoras
e colonizadoras e nações colonizadas . Por mais que o pesquisador afirme que a arte
não tem nenhuma reivindicação direta de desempenho ou utilidade, em sua
construção, a arte se mostra completamente útil para que possamos acessar a
Dimensão Absoluta.
Dessa forma, Marià Corbí aponta para o fato de que a arte é uma possibilidade
para nos colocarmos a caminho do cultivo da Qualidade Humana Profunda. Um dos
pontos centrais com relação à arte nas sociedades do conhecimento é que ela, em
consonância com Marià Corbí, tem o potencial de mitigar a nossa condição de
depredadores. Nós, seres humanos, depredamos a Terra a fim de satisfazer nossos
desejos e necessidades pessoais, desconsiderando que somos essa Terra, a qual
insistimos em esgotar todos recursos. Precisamos, dessa forma, de aportes que
manejem nosso axiológico para que possamos violar essa condição de
depredadores. A disciplina Epistemologia Axiológica, que tem como objeto o
axiológico humano, pode se apropriar da arte para nos auxiliar alcançar a Dimensão
Absoluta, imprescindível para que possamos cultivar a Qualidade Humana Profunda.

2. A análise
Enveredei-me por um caminho entrecortado pela hipótese de que na prática
cinéfila há uma busca pelo cultivo da Qualidade Humana e da Qualidade Humana
Profunda, nos termos propostos por Marià Corbí. Essa perspectiva havia emergido
em mim levando em conta que, nas sociedades de conhecimento, – aquela que
estamos em transição para – as experiências relacionadas à arte são reconhecidas
pelo pesquisador, em sua disciplina Epistemologia Axiológica, como possibilidades
para o cultivo citado, como visto no subitem acima.
Dessa forma, é possível partir do pressuposto de que nós, os sujeitos desse
período de transição para sociedades do conhecimento – aquelas que, de acordo
com Marià Corbí (2020), vivem da aceleração constante – estamos em crise. Nos
defrontamos, então, com a importância dos Projetos Axiológicos Coletivos, que são as
diretrizes para guiar toda a dinâmica de uma sociedade. Se, nas sociedades estáticas
– aquelas que permaneceram por muitos anos realizando exclusivamente as
mesmas atividades –, abarcadas pela Epistemologia Mítica, esses projetos eram

577
impostos hierarquicamente, nas sociedades do conhecimento esse movimento não
poderá se repetir. Logo, precisarão ser construção coletiva, livres de submissão.
Nesse sentido, a crise que nos rodeia e transpassa emerge da inaptidão das ciências
e tecnologias – pilares das sociedades do conhecimento – em auxiliar na construção
desses Projetos Axiológicos Coletivos justamente pelo fator axiológico, o qual as
ciências e tecnologias buscam podar de sua linguagem. O sistema da religião
também se revela inapto.
Para que pudéssemos chegar a essa percepção, é preciso compreender o
papel da língua em Marià Corbí, bem como o duplo acesso ao real não dual que ela
proporciona. A língua é o que nos caracteriza como animais humanos, nos tirando
de uma antropologia dual da qual fomos, historicamente, reféns –
animais/racionalidade, corpo/espírito. Será, por meio da língua, que estaremos
aptos a criar a cultura, que permitirá nos adaptarmos ao meio em que vivemos –
diferente dos animais, que necessitam de mutações morfológicas. Não obstante,
tendo a cultura a capacidade de manejar nossas tendências básicas, dando a elas o
agir, é por meio dela que devem ser construídos os Projetos Axiológicos Coletivos. A
língua nos coloca em contato com a Dimensão Absoluta e Dimensão Relativa – dupla
dimensão do real não dual necessária para que os seres humanos possam se
relacionar com o meio – que são as bases para a criação de um Projeto Axiológico
Coletivo adequado para as sociedades de conhecimento.
A Epistemologia Mítica, um dos termos chave na construção de Marià Corbí,
implica em que os Projetos Axiológicos Coletivos sejam algo prontamente instituído
– pelas ideologias, pela ciência, pela Filosofia, pelo sistema da religião – de forma
impositiva para as sociedades. Esses projetos tinham como pretensão descrever a
realidade mesma e as formas de sentir e agir sobre ela. A estrutura contida na
Epistemologia Mítica tinha como desejo nos impor as formas de perceber, de viver e
sentir o nosso entorno. Sua pretensão envolvia mais que abarcar o real do real, a
Dimensão Absoluta, senão determiná-la. Nesse contexto podemos perceber que o
sistema da religião – pilar estruturante das sociedades estáticas – abarcava a
questão da espiritualidade, termo de propriedade dessa estrutura da Epistemologia
Mítica e que se remete a hierarquia, submissão e imposição. Dessa forma, em se
tratando das sociedades do conhecimento, este termo já não encontra solo fértil
para lançar suas raízes pois, na nova configuração social será preciso o encontro

578
com a liberdade e a criatividade. Esse encontro, por sua vez, é incompatível com a
bagagem carregada pela espiritualidade. Nesse contexto, o que se vê, portanto, que
há uma crescente de buscas por formas de espiritualidades não religiosas, porque a
Epistemologia Mítica já não dá conta de atuar nesse campo. Buscam-se, portanto,
formas desinstitucionalizadas para tal. Dessa forma, nas sociedades do
conhecimento, a Epistemologia Mítica não terá espaço, uma vez que devemos tomar
consciência de que é responsabilidade nossa a construção de Projetos Axiológicos
Coletivos. Para essa tomada de consciência teremos o auxílio da Epistemologia
Axiológica, que é uma disciplina cujo objeto são os fenômenos axiológicos humanos,
partindo de nossa condição animal: a língua.
Os Projetos Axiológicos Coletivos, nas sociedades do conhecimento devem,
portanto, levar em conta o axiológico. Haja visto que a língua das ciências e da
tecnologia buscam podar os traços axiológicos, por meio delas não será possível a
construção necessária. É nesse sentido que precisamos da disciplina Epistemologia
Axiológica, uma vez que, por meio dela, poderemos encontrar caminhos que levem
a uma restituição de nossas bases axiológicas, perdidas nesse momento de transição
social. A disciplina Epistemologia Axiológica tem potencial de nos ajudar a atravessar
esse período de transição para sermos, de fato, sociedades do conhecimento. Não
obstante, por ser uma disciplina, contempla procedimentos, conteúdos, a
metodologia e formas para fazer emergir certas aptidões dos alunos. Nesse
momento nos deparamos com IDS-ICS – interesse, distanciamento, silenciamento,
indagação, comunicação, serviço –, uma dupla tríade de aptidões que funciona em
conjunto. Se trata de uma dupla tríade de aptidões necessária para que possamos
nos conduzir pelo caminho rumo ao encontro da Qualidade Humana e a Qualidade
Humana Profunda. Nesse sentido, compreendemos que a Qualidade Humana e
Qualidade Humana Profunda não são duas coisas separadas sendo, deste modo, uma
dimensão não dual do ser humano. O que as difere é a maneira com a qual se
apropriam de IDS-ICS. A primeira usa essas aptidões em condições postas pelo ego,
a segunda as usa sem condições. Esse contexto faz emergir a questão das artes que,
como pudemos perceber, são essenciais nas sociedades do conhecimento por sua
capacidade de fomentar a Dimensão Absoluta. Isso a fim de gerar, manter e cultivar
a Qualidade Humana e a Qualidade Humana Profunda. Marià Corbí aponta, assim,
para o fato de que a arte é uma possibilidade para nos colocarmos a caminho do

579
cultivo da Qualidade Humana Profunda. Essa foi a ponte que usei para propiciar o
encontro entre a construção de Marià Corbí e a prática cinéfila.
Para coletar os dados, tendo como suporte metodológico, nesse momento, a
realização do grupo focal online, precisei encontrar um campo que tivesse a prática
cinéfila. Encontrei um grupo de conhecidos das aulas compartilhadas dos tempos da
graduação que se autodenominava como tendo essa prática. O grupo selecionava
obras cinematográficas, as assistiam e discutiam, por videoconferência, sobre suas
percepções. Por mais que, nas intuições iniciais, o pano de fundo fosse o cinema, por
causa dos dados obtidos com esse grupo, o foco acabou se voltando para filmes.
Por meio da articulação entre pesquisa bibliográfica em Marià Corbí e o
grupo focal online com esse grupo, para minha surpresa, com certa dose de alegria,
minha hipótese foi parcialmente confirmada. Dessa forma, respondendo a pergunta
norteadora desta comunicação, que foi pode a prática cinéfila contribuir para o
cultivo da Qualidade Humana e da Qualidade Humana Profunda na perspectiva da
disciplina Epistemología Axiológica de Marià Corbí?, a resposta é também. Trazendo
à tona minha formação inicial de pedagoga, digo a mim mesma para dar uma
resposta completa à questão acima. Afirmo que, no recorte do grupo pesquisado,
não é somente a prática cinéfila que contribui para o cultivo da Qualidade Humana
e da Qualidade Humana Profunda na perspectiva da disciplina Epistemología
Axiológica de Marià Corbí, mas sim a amizade. A prática cinéfila é como se fosse o
meio de transporte, onde o passageiro é a amizade e o ponto de chegada é esse
cultivo.

Conclusão
A amizade possui potencial, como visto nos dados coletados, de manejar o
axiológico humano. Nesse sentido, pode ser trabalhada por meio da disciplina
Epistemologia Axiológica, nos centros a serem destinados a isso. Além disso, a
amizade entre os sujeitos impacta em voltar o olhar para a questão da simbiose,
partindo de nós para com o meio em que vivemos. Essa dinâmica se ampliará para a
tomada de consciência de que somos esse próprio meio. Cultivando relações
humanas baseadas nessa simbiose a questão da hierarquia e submissão poderá ter
suas raízes cortadas, nos tirando das garras da Epistemologia Mítica. Consegue
compreender? Não me entenda mal, ainda acho que nesses centros citados por

580
Marià Corbí as artes devam ter um lugar, contudo, também haverá de ter um lugar
para que se ensine a amizade. Parece estranho essa afirmação, todavia, pense, caro
leitor, em uma configuração social dominada pela ciência e tecnologia, onde tudo é
aceleração e a linguagem visa podar o axiológico, como fazer amigos? Como manter
as amizades? Suas respostas perpassaram por IDS-ICS, que são a aptidão necessária
para que se tenha o cultivo da Qualidade Humana e da Qualidade Humana Profunda?
Talvez fosse interessante dedicar um estudo exclusivo à questão da amizade
dentro das sociedades do conhecimento, traçando um paralelo com a crescente das
redes sociais, que proporcionam quase que uma mescla entre o real e o virtual, e as
relações palpáveis entre os seres humanos. Contudo, essa é, certamente, uma
questão para outra investigação.

Referências
CORBÍ, Marià. El Conocimiento silencioso. Las raíces de la Cualidad Humana.
Barcelona: Fragmenta, 2016.

CORBÍ, Marià. La Construcción de los Proyectos Axiológicos Colectivos Principios. De


Epistemología Axiológica. Madri: Bubok Publishing S.L, 2013.

CORBÍ, Marià. Métodos de Silenciamiento. Barcelona: CETR, 2006.

CORBI, Marià. Para uma espiritualidade leiga. Sem crenças, sem religioes, sem
deuses. Sao Paulo: Paulus, 2010.

CORBÍ, Marià. Proyectos colectivos para sociedades dinámicas. Principios de


Epistemología Axiológica. Barcelona: Herder, 2020.

SOCIEDADE dos Poetas Mortos. Direção: Peter Weir. Estados Unidos: STAR+. 1989.
128 min.

581
ARTE ST 9

ST 9 – Mística e Espiritualidades

582
Ceci Maria Costa Baptista Mariani (PUC-Campinas)
Maria José Caldeira do Amaral (Labô PUC-SP)
Carlos Frederico Barboza de Souza (PUC-MG)
Edson Fernando de Almeida (UFJF)

O termo mística tem sido pensado e difundido com vasta gama de espectros e
significados, muitos dos quais em flagrante contradição com o sentido mais
profundo que o termo foi ganhando a partir de longa tradição, qual seja: o encontro
com o Sagrado em seu mistério inefável. De igual maneira, se fala muito em
espiritualidade. No mundo contemporâneo, o significante espiritualidade parece
remeter a alguma espécie de mercadoria destinada a possibilitar ao consumidor
momentos de “bem-estar”. Nesse sentido, é urgente uma reflexão que se proponha
a resgatar esses termos da banalidade que os enlaça, devolvendo a densidade que
lhes é própria, fruto de longa tradição. Por outro lado, há também buscas sérias,
coerentes e epistemologicamente adequadas de se estabelecer uma reflexão em que
a espiritualidade dialogue com áreas como a saúde, o mundo do trabalho, a questão
ecológica, dentre outras. A presente Sessão Temática quer reunir pesquisadores e
pesquisadoras que estejam desenvolvendo estudos de mística e espiritualidade e
que se proponham a discutir criticamente o sentido desses termos a partir de seus
diferentes atravessamentos: seja por meio da imensa gama de itinerários espirituais
encontrados no interior das religiões ou para além delas, seja em sua aparição no
âmbito da sociedade secularizada, considerando o potencial crítico da mística para
implodir mecanismos de alienação e sua contribuição para uma vida livre e
comprometida com o mundo. O conteúdo expresso nesta discussão compreende,
ainda, o diálogo com as ciências humanas, a literatura, a filosofia, a teologia e todas
as ciências que desenvolvem em seus métodos e contextos temáticos os sentidos e
significados que apontam para a pesquisa da experiência mística e espiritual em sua
profundidade.

583
A CARÊNCIA DO MITO NO SÉCULO XX E SEU IMPACTO NA
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO OCIDENTE

Ana Beatriz de Andrade Borba Delgado1

Resumo: Este estudo examinou a carência de mitos no século XX e seu impacto na


identidade cultural religiosa no Ocidente. A análise apresentou a diminuição da influência
dos mitos tradicionais, considerando o surgimento do individualismo e pluralismo. A era
secular, marcada pela primazia do racionalismo, levou a uma dessacralização intensa e a
falta de uma estrutura simbólica e mitológica na sociedade contemporânea. Apesar disso, a
busca por um significado transcendente persiste, visto as memórias religiosas e mitológicas
como elementos latentes. Ao aprofundar-se nos significados simbólicos dos mitos, este
trabalho buscou reavaliar as tradições na dimensão simbólica, destacando a importância
das narrativas arquetípicas que permeiam a cultura. Em última análise, o estudo ressalta a
relevância dos mitos como fontes de significado e ferramentas para compreender os
desafios do mundo contemporâneo, enfatizando o aspecto sapiencial dos mitos, na busca
por uma compreensão mais profunda da realidade.
Palavras-chave: Mitos; Narrativas Simbólicas; Contexto Contemporâneo.

Introdução
A presença do mito na construção da identidade cultural no Ocidente revela-
se como um fio condutor permeado por rupturas e ressignificações ao longo da
história das civilizações. Ao lançarmos nosso olhar sobre a riqueza mitológica
presente na própria civilização ocidental, somos confrontados com a necessidade de
uma análise aprofundada, capaz de captar suas nuances, diferenças e semelhanças.
Segundo a perspectiva de Mircea Eliade (1992), os mitos apresentam uma narrativa
sagrada que reverberam a história de um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, no “princípio”. Dessa forma, o mito assume uma função convocando a
transcendência do ser diante de sua própria condição, estabelecendo modelos pelos
quais avaliamos a adequação e a bondade de nossas ações e abstenções.
Com efeito, este trabalho adotará uma abordagem qualitativa, em uma
análise bibliográfica a fim de compreender como as transformações culturais
contribuíram com a relação de diminuição da influência dos mitos na sociedade

1 Graduada em Teologia pela Faculdade Internacional Cidade Viva. Pós-Graduação em Educação


Cristã Clássica pela mesma instituição. Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade
Estadual da Paraíba. Mestranda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: anabeatriz.acad@gmail.com

584
contemporânea, especificamente diante do cenário no final do Século XX. Analisando
a presença do individualismo e do pluralismo nesse cenário, abordando a dualidade
entre a fugacidade cultural atual e a busca por uma essência simbólica.
Paralelamente, examina-se como a ausência de mitos tradicionais impactou a
fragmentação cultural e a busca por significado em um contexto pluralista.
Em suma, os mitos desvendam as complexidades do ser humano e as
aspirações que impulsionam em direção à transcendência. Os mitos revelam-se
como um elo inextricável entre a tradição e a transformação, fornecendo narrativas
que explicam as origens e fundamentos da existência, tornando-se expressões de
verdades simbólicas e arquetípicas que moldam as crenças, os valores e as práticas
de uma determinada cultura.

1. Transformações culturais: individualismo e pluralismo


Os mitos buscam atender às necessidades religiosas do ser humano, como a
busca pelo transcendente, a adoração, o sacrifício e a contemplação do divino. A
mitologia, enquanto reunião de mitos, pode assemelhar-se a uma religião, mas é na
beleza e não na razão que ela encontra seu cerne. Desse modo, ao considerarmos a
presença do mito na construção da identidade cultural no Ocidente, somos
conduzidos a uma compreensão mais profunda e abrangente das complexidades de
nossa própria existência, transmitindo narrativas sagradas, fornecendo um
arcabouço simbólico compartilhado que sustenta uma visão de mundo coletiva.
Durante o século XX, ocorreram mudanças profundas na sociedade ocidental
que afetaram a forma como as pessoas percebiam o mundo e construíam sua
identidade cultural. Um aspecto significativo deste período foi a ausência de mitos,
ou seja, a diminuição da presença e influência das narrativas míticas na vida das
pessoas. Essa ausência de mitos tradicionais teve um impacto na maneira como as
pessoas se entendiam e compreendiam o mundo ao seu redor.
No passado os mitos desempenhavam um papel central e vital na vida das
comunidades, transmitidos de geração em geração, atuando como um elo entre as
pessoas, oferecendo uma estrutura simbólica profunda para explicar não apenas a
origem da civilização, mas também para fornecer modelos morais e humanos pelos
quais os indivíduos poderiam orientar suas vidas e contemplar questões
fundamentais, como o propósito primeiro e último de todas as coisas e da própria

585
existência. Ao explorar narrativas míticas, o homem era levado a refletir sobre sua
relação com a criação, os seus valores, instigando a mente a considerar questões
transcendentais que permeiam a realidade.
No entanto, com o avanço da modernidade, a sociedade passou por mudanças
culturais e sociais significativas. As comunidades tornaram-se maiores e mais
complexas, e as narrativas míticas perderam espaço à medida que a urbanização e o
desenvolvimento científico ganhavam destaque. A razão, a ciência e o
individualismo passaram a ser valorizados cada vez mais. Nesse contexto, o mito foi
gradualmente relegado ao passado, considerado irracional. A era secular emergiu,
na qual a crença em um ser divino se tornou apenas uma opção entre muitas outras.
Segundo Charles Taylor (2010), uma das noções de secularidade que é
importante está ligada ao modo como nossa sociedade concebe a possibilidade ou
impossibilidade de certos tipos de crenças e experiências em nossa era. Agora, não
é apenas possível a descrença na existência de um ser Transcendente, mas manter a
fé em alguns contextos se torna difícil. Por isso, o secular não apenas torna possível
a não crença, mas também muda a própria estrutura da crença, de modo que as
condições de crença mudam. As pessoas passaram a ter liberdade para escolher
diferentes visões de mundo, desde o ateísmo até o esoterismo e outras alternativas.
Contudo, esse pluralismo não impacta apenas a crença em um ser divino, isto é, a
era secular em que vivemos não apenas nos leva a duvidar, mas também é
assombrada pela ideia transcendental. Dessarte, há uma tensão em todas as crenças
devido a esse pluralismo: não apenas os que acreditam são assombrados pela
dúvida, mas os céticos se veem tentados pela crença (TAYLOR, 2010, p. 15-20).
De certo ponto de vista, quase se poderia dizer que, entre os
modernos que se proclamam a religiosos, a religião e a mitologia
estão “ocultas” nas trevas de seu inconsciente – o que significa
também que as possibilidades de reintegrar uma experiência
religiosa da vida jazem, nesses seres, muito profundamente neles
próprios. De uma perspectiva cristã, poder-se-ia dizer igualmente
que a não religião equivale a uma nova “queda” do homem: o
homem a religioso teria perdido a capacidade de viver
conscientemente a religião e, portanto, de compreendê-la e assumi-
la; mas, no mais profundo de seu ser, ele guarda ainda a recordação
dela, da mesma maneira que, depois da primeira “queda”, e embora
espiritualmente cego, seu antepassado, o Homem primordial,
conservou inteligência suficiente para lhe permitir reencontrar os
traços de Deus visíveis no Mundo. Depois da primeira “queda”, a
religiosidade caiu ao nível da consciência dilacerada; depois da

586
segunda, caiu ainda mais profundamente, no mais fundo do
inconsciente: foi “esquecida” (ELIADE, 1992, p. 102).

Com efeito, apesar de entender que a mitologia compreende a um contexto


distinto a compreensão da religião, Eliade argumenta que a mitologia como a
religiosidade foi perdida conscientemente, mas permanece latente no inconsciente,
como uma memória esquecida. Assim, faz uma conexão entre a queda do homem,
sua perda de conexão consciente com a religião, e a presença dessas memórias
religiosas no nível mais profundo do ser humano. Essas perspectivas de Taylor e
Eliade destacam a mudança na estrutura da crença e a presença das memórias
religiosas e mitológicas na sociedade moderna.
Outrossim, no livro “Religião Pós-Moderna” de Zygmunt Bauman, o autor
aborda a relação entre a religião e a sociedade pós-moderna, discute a natureza
fluida e fragmentada que afeta a forma como as pessoas vivenciam a religião, a qual
enfatiza cada vez mais o individualismo e o pluralismo, carecendo de uma narrativa
compartilhada que unisse as pessoas e fornecesse um sentido de identidade cultural
coletiva.
Essa carência de mitos teve um impacto profundo na construção da
identidade cultural, as pessoas se encontraram em um vazio simbólico, isto é, sem
uma estrutura narrativa que lhes permitisse compreender sua história. Além disso,
movimentos políticos e sociais ganharam força, oferecendo narrativas alternativas
que prometem transformar a sociedade e fornecer um novo senso de identidade
coletiva. As ideologias surgem como um conjunto de crenças que buscam oferecer
uma compreensão abrangente do mundo e da história. Porém, enfrentam um desafio
inerente: a realidade é multifacetada e vai além de qualquer conceito isolado, a
pluralidade de narrativas e a falta de consenso levaram a conflitos ideológicos e a
uma sensação de fragmentação social.

2. A dicotomia entre a efemeridade contemporânea e a busca pela essência no


enigma dos mitos
Uma vez que os mitos buscam narrar a origem da própria civilização e, ao
fazê-lo, mobilizam modelos morais que devem guiar o percurso histórico de uma
sociedade. É por meio da experiência do tempo sagrado que o homem religioso

587
encontra periodicamente o Cosmos tal como era em princípio, no instante mítico da
criação (ELIADE, 1992, p. 37).
Nas antigas civilizações a cosmogonia mítica se referia à compreensão e
explicação da origem e formação do universo por meio de narrativas que envolviam
a participação divina. Com efeito, essas narrativas míticas atribuíam aos deuses a
responsabilidade pela criação e organização da sociedade e com o tempo, houve
uma mudança nesse padrão de pensamento, no qual os homens têm um
protagonismo maior, serviam como modelos a serem seguidos pela sociedade.
Assim, observando o cenário o qual estamos inseridos podemos observar uma
transição gradual em que o foco e a ênfase passaram a se deslocar do domínio e
influência da divindade dos deuses para um maior reconhecimento e valorização do
homem.
É importante ressaltar que desde a década de 1990, a sociedade tem
discutido fervorosamente a questão da autenticidade na modernidade, com uma
crescente valorização da originalidade e da individualidade. Ser autêntico, neste
contexto, implica em não assumir a imitação do outro, mas ser fiel a si mesmo
(TAYLOR, 2011, p. 26). Paradoxalmente, essa busca pela autenticidade está
intrinsecamente ligada a modelos de imitação, uma vez que nossa identidade é
moldada por influências e referências externas.
Alasdair MacIntyre (2001), apresenta que a identidade de um indivíduo está
inerentemente ligada à sua história narrativa, situada dentro de um contexto mais
amplo. Isto é, compreender as intenções e motivações de alguém requer a
compreensão de sua história pessoal e como essas intenções se relacionam com seus
objetivos de longo prazo. Nesse sentido, a história narrativa proporciona o pano de
fundo essencial para entendermos as conexões entre nossas ações e escolhas.
Sendo assim, o mito desempenha um papel crucial na busca por respostas
diante dos mistérios compartilhados pela humanidade. Embora os mitos não
ofereçam soluções prontas, eles fornecem chaves interpretativas que nos permitem
compreender a nós mesmos e nossa posição na história. Essas narrativas míticas
abrangem aspectos como sociabilidade, dependência dos outros, comportamento
público, imagem de si e a busca por reconhecimento, os arquétipos que habitam o
inconsciente coletivo, as profundas raízes dos dias hodiernos. O aprofundamento

588
nas histórias de deuses e heróis, torna possível discernir em si mesmo uma gama de
emoções, pensamentos, virtudes, disposições e vícios.
Os contos de fadas são exemplos emblemáticos de como o mito penetra em
nosso mundo interior, convidando-nos a transcender a superfície da nossa imagem
pública. Não são meras fantasias, mas sim expressões simbólicas que ressoam com
verdades fundamentais. Por exemplo, como diz G. K. Chesterton (2017, p. 71), os
contos de fadas podem retratar maçãs douradas para nos lembrar da realidade de
que elas são verdes, ou rios cheios de vinho para nos lembrar que eles são, na
verdade, cheios de água. Essa abordagem literária demonstra que a fantasia não é
uma fuga da existência tal qual como ela é, mas uma forma de relembrar e fazer o
homem pensar sobre a verdade subjacente a toda realidade. Chesterton enfatiza que
os contos de fadas revelam o aspecto mágico e encantador do mundo.
Tomamos consciência da nossa essência relacional, da nossa natureza de
seres em constante alteridade. Com efeito, os mitos, ao simbolicamente
representarem a superação de monstros e sombras, despertam em nós a consciência
de nosso potencial pleno, da força que habita em nós e da luz que podemos trazer
ao mundo. Ademais, a sua profunda capacidade de nos tocar está presente desde a
infância até fases avançadas da vida, revelando-se em diferentes camadas de
significado. Essas narrativas míticas estão intrinsecamente conectadas ao
inconsciente coletivo, sendo, portanto, inesgotáveis em suas revelações.
Diante da cultura contemporânea, percebemos uma ênfase marcante nas
narrativas de entretenimento imediato, impulsionada pela mídia e pela tecnologia,
diferentemente das mitologias antigas, tais histórias e personagens populares não
possuem uma conexão tão profunda com o transcendente. Da mesma forma que não
se propõem mais, necessariamente, a serem exemplos ou padrões morais, pois
muitos buscam apenas o sucesso, o poder e a fama, com uma narrativa simplista que
visa a gratificação instantânea. Com seu enfoque em narrativas superficiais e
imediatas, percebemos um contraste marcante com a complexidade e profundidade
dos mitos. Enquanto a cultura popular busca a gratificação imediata, os mitos nos
convidam a explorar questões existenciais, a mergulhar em nossa alteridade e a
buscar respostas para os mistérios que nos cercam.
A dualidade entre a cultura popular contemporânea e o mito nos instiga a
refletir sobre a busca pela suposta autenticidade em um mundo repleto de

589
narrativas efêmeras. Despertando a consciência de nossa essência que deseja o
transcendente e convidando-nos a explorar os mistérios que permeiam nossa
existência. Nessa jornada, descobrimos que a autenticidade não pode ser alcançada
simplesmente buscando ser diferente dos outros, mas sim ao compreendermos
quem somos em relação à nossa história e aos arquétipos que nos permeiam, por
meio da imitação.

Conclusão
Em síntese, este estudo proporcionou uma análise sobre a ausência de mitos
no Século XX e seu impacto na construção da identidade cultural religiosa no
Ocidente, foram identificadas as transformações culturais e as mudanças de
paradigma que levaram à diminuição da influência dos mitos tradicionais, em
consonância com a valorização do individualismo e do pluralismo de crenças.
Portanto, foi apresentando a era secular, caracterizada pela primazia do
racionalismo, a qual desencadeou uma intensa dessacralização. Resultando, porém,
na escassez de uma estrutura simbólica e mitológica na sociedade contemporânea.
Nesse contexto, mesmo frente à ausência de mitos tradicionais, a
religiosidade e a busca por um significado transcendente persistem como elementos
inerentes à condição humana. Diante disso, o presente estudo explorou a relevância
das memórias religiosas e mitológicas na sociedade, oferecendo a possibilidade de
reintegração de uma experiência religiosa significativa na vivência das pessoas. Por
meio de um aprofundamento na compreensão dos significados simbólicos
imanentes aos mitos, abrindo o espaço para uma abordagem mais densa e refinada,
capaz de reavaliar as tradições na dimensão simbólica, das narrativas arquetípicas
que permeiam a cultura.
Em última análise, este estudo incentiva uma reflexão sobre a importância
dos mitos enquanto fontes de significado e instrumentos para a compreensão das
realidades e desafios do mundo contemporâneo, como a estética no que tange
resgatar e valorizar o aspecto sapiencial dos mitos.

590
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.

CHESTERTON, G.K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2017.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru: Edusc, 2001.

NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Religião e linguagem: proposta de articulação


de um campo complexo. Horizonte, Belo Horizonte, v. 14, n. 42, p. 240-261, 2016.

TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. São Paulo: É Realizações, 2011.

TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Londres: Routledge and


Kegan Paul, 1974.

591
MÍSTICA MARIAL NA IRMANDADE DA BOA MORTE DE CACHOEIRA:
MARIA, ÍCONE HUMANO DO MISTÉRIO

Anderson Moura Amorim1

Resumo: A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira, formada unicamente


por mulheres negras, caracteriza-se pela devoção a Nossa Senhora da Boa Morte e sua
Assunção aos Céus. Devidamente amparadas na dupla pertença religiosa, ao catolicismo e
ao candomblé, as irmãs da Boa Morte, com muita desenvoltura, a partir de uma dinâmica
sincrética, celebram o fenômeno da transcendência corporal de Maria, tradição
antiquíssima da fé cristã católica, como a vitória sobre a matéria e a morte. Com o objetivo
de propor um caminho de interpretação para esse fenômeno místico, a proposta deste
artigo é procurar demonstrar que na devoção mariana mantida pela Irmandade da Boa
Morte, podemos encontrar elementos de uma Mística Marial, uma experiência de Deus que
conta com Maria como Ícone do Mistério. A fim de alcançar o objetivo do trabalho
desenvolvemos nossa pesquisa em três momentos: O termo mística: breve significado;
Mística marial na Irmandade da Boa Morte; Ícone humano do mistério: busca por uma
experiência. Do ponto de vista metodológico, será feita uma pesquisa bibliográfica tendo
como referenciais teóricos o teólogo Bruno Forte e Juan Martin Velasco, especialista em
fenomenologia da religião e estudioso de mística cristã. Maria, é modelo de integridade
humana e vida plena de experiência, de encontro com o Mistério, pois carregou em seu seio
o Mistério de um Deus que se fez humano. Acreditamos que o resultado de nossa pesquisa
possa contribuir no estudo teológico da experiência de fé vivida na Irmandade da Boa Morte
e para a evangelização da Igreja.
Palavras-Chave: Mística; Fé; Maria; Irmandade da Boa Morte.

Introdução
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira (Ba), trata-se de
uma confraria católica, fundada supostamente no início do século XVIII,
possivelmente por volta de 1820 (NASCIMENTO, 1999, p. 14), nas proximidades da
Barroquinha, em Salvador, formada unicamente por mulheres negras e mestiças,
ligadas às religiões de cultos de matriz africana.
Diferentemente de outras associações religiosas negras, a Irmandade da Boa
Morte tem na dupla pertença (participação em duas correntes religiosas, o
pertencimento e prática tanto na religiosidade católica quanto na
afrodescendente), um aspecto de grande originalidade. A ‘irmãs’ da Boa Morte, em
meio a sociedade escravista, marcadamente patriarcal e machista, forjaram com
muita desenvoltura e com um reiterado respeito em relação às duas filiações
religiosas (CASTRO, 2005, p. 51), um sincretismo religioso capaz de resistir o

1 Mestrado em Teologia (UNICAP). E-mail: christo.moura@hotmail.com.

592
discurso lusitano em torno da devoção à Dormição de Maria e ressignificar, a partir
de sua visão religiosa de matriz africana, valores de ambos os credos, sobretudo no
que diz respeito aos elementos da morte, ou melhor, da Boa Morte, como
episódio/rito de passagem entre dois mundos: o mundo material e o mundo
espiritual (CONSORTE, 2000, p. 11).
Assim sendo, a proposta deste artigo é procurar mostrar que na devoção
mariana mantida pela Irmandade de Cachoeira podemos encontrar elementos de
uma Mística Marial, ou seja, uma experiência de Deus que conta com Maria como
ícone do mistério.

1. Termo mística: breve significado


A palavra mística vem da transcrição do termo grego, do adjetivo mystikós, de
origem das religiões mistericas (tá mystika) das cerimônias nas quais os mystes, o
fiel, era iniciado nos grandes mistérios (VELASCO, 2009, p. 19).
Conforme Martin Velasco, o termo mística é encontrado no cristianismo a
partir do século III, adquirindo, por sua vez, três sentidos: espiritual, simbólico e
teológico, que seguem ainda até nossos dias:

Mística designa em primeiro lugar, o simbolismo religioso em geral


e será aplicado por Clemente e Orígenes, ao significado típico ou
alegórico da sagrada Escritura que origina um sentido espiritual ou
místico em contraposição ao sentido literal. Em segundo lugar,
próprio do uso litúrgico, remete ao culto cristão e a seus diferentes
elementos. Assim Santo Atanásio fala do cálice místico da
celebração da eucaristia. Neste âmbito cultual místico significa o
sentido simbólico, oculto dos ritos cristãos. E em terceiro lugar
místico em sentido espiritual e teológico, se referindo ás verdades
inefáveis, ocultas do cristianismo (Orígenes, Metodio de Olímpia)
as verdades mais profundas, objeto, portanto de um conhecimento
mais íntimo (VELASCO, 2009, p. 20).

Para Velasco, fenomenólogo da religião, o termo mística é impreciso em sua


semântica, tanto na linguagem ordinária como na terminologia própria das distintas
ciências da religião, da filosofia e da teologia (VELASCO, 2009, p. 21). No entanto, em
termos gerais, o termo mística se refere as experiências interiores, imediatas,
fruitivas, que tem lugar em um nível da consciência que supera a experiência
ordinária e objetiva; Ou ainda, mística como experiência direta da presença de Deus.
De uma íntima união com Deus. É o mistério humano imerso no Mistério de Deus, o
inefável (VELASCO, 2009, p. 471).

593
A realização da experiência de fé é o centro do fenômeno místico, por ser uma
livre e pessoal resposta do sujeito à presença do Mistério. Neste estado de união sem
palavras a linguagem do místico é a linguagem de uma experiência vivida – Uma
linguagem simbólica que pode ser traduzida na poesia, música, pintura, etc.

2. Maria, ícone humano do mistério: busca por uma experiência.


Ao tratamos o termo mística como experiência de Deus, do Mistério, na
mística marial, podemos pensar no mistério que viveu Maria, a mãe de Jesus,
acrescentado à experiência de fé, que para Velasco é o centro do fenômeno místico.
Os dados bíblicos sobre Maria, a mãe do Senhor, são sóbrios e ao mesmo
tempo denso. Pela sobriedade vemos que os textos são marcados pela relação com
os textos neotestamentários e pela densidade porque: “revela desde os inícios, a
estreita conexão entre os mistérios da mãe e a totalidade do mistério do Filho”
(FORTE, 1991, p. 43).
Na carta de Paulo aos Gálatas (Gl 4,4-7), primeiro texto mariano do Novo
Testamento, Maria aparece como uma pessoa anônima, em função de Cristo:
nos dá o Filho e nos faz filhos. A mãe do Senhor não é nomeada, mas apenas
designada como a “mulher” – uma mulher como qualquer outra, sem uma identidade
pessoal. Desse modo, observa-se que Maria é ‘vista’ em função de Cristo.
No arco da História da Salvação, Maria se situa precisamente no tempo da
plenitude. Ela está estreitamente relacionada com o Filho e com seu “envio”. O Filho
de Deus torna-se filho de Maria. É Maria que possibilita a “adoção filial”, conceito
exclusivo de Paulo (Rm 8,15-23).
Nos relatos evangélicos encontramos Maria como uma Mulher profunda,
meditativa, rica em delicadezas de caridade, solidariedade, autônoma, capaz de
antecipar-se às necessidades (Lc 1,39-45; 2, 19 e 51); Mulher forte na dor (Mc 3,31-
35), permanece de pé junto a cruz (Jo, 19,25-27); Mulher que celebra as maravilhas
do Senhor e vive um ato de obediência à vontade de Deus (Lc 1,46-55); Sensível e
atenta às necessidades dos noivos em Caná (Jo 2,1-11) (FORTE, 1991, p. 145).
A partir dos textos sagrados que falam de Maria, podemos perceber que ela é
uma pessoa plenamente integrada, livre, reconhecida como ícone humano do
mistério, por sua experiência de encontro e união com Deus. Maria sinaliza a cada

594
pessoa humana, independe de sua crença, que como ela também podemos viver uma
experiência de união com o Mistério de Deus.

3. Mística marial na Irmandade da Boa Morte de Cachoeira – Bahia


A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira, formada
unicamente por mulheres negras, caracteriza-se pela devoção a Nossa Senhora da
Boa Morte e sua Assunção aos Céus. Amparadas na dupla pertença religiosa, ao
catolicismo e ao candomblé, as ‘irmãs’ da Boa Morte, forjaram um sincretismo
religioso em torno da mística mariana capaz de resistir e ressignificar valores de
ambos os credos, no que tange aos elementos da morte, de modo a poderem se
manter integradas em seu contexto multicultural, marcado pela diversidade
religiosa.
Entre as ‘irmãs’ da Boa Morte há um pensamento de que suas antepassadas
realizaram uma promessa à Virgem Maria pelo fim da escravidão. Diante de tão
grande sofrimento dos negros, a morte caracterizava a libertação, o fim do
infortúnio terrestre.

3.1. A Boa Morte celebra o imensurável valor da vida humana


Maria, elevada na glória, efetivamente salva, representa o sentido último de
nossa corporalidade de maneira harmoniosa e completa, a síntese da imortalidade.
Por isso, é sinal de esperança escatológica da vitória final da salvação (BOFF, 2006,
p. 524). Em consonância ao pensamento do Ocidente em torno da devoção mariana,
podemos perceber que na Cosmogonia Africana, tudo no universo está interligado,
como teia de aranha. Desse modo, o ser humano deve cuidar da natureza e viver em
harmonia com tudo o que existe, cuidando, protegendo e salvando.
Posto isto, compreendemos que a Irmandade Boa Morte celebra a assunção
de Maria, o valor da vida humana, como “integridade” do ser humano, assumida na
glória, e como um protesto contra toda forma de destruição desta mesma vida, pois
“Maria prolonga, em sua assunção gloriosa, a tarefa da luta contra as estruturas de
pecado que levara a cabo durante sua vida mortal” (CODINA, 1985, p. 205).

3.2. A Boa Morte celebra a dignidade do corpo humano


Maria assumida corporalmente no céu revela o sentido da vida humana
sacralizada em Deus e nos convida a considerar, “de modo luminoso a que excelso

595
fim estão destinados os corpos” (MD, 1950, n. 42). No corpo de Maria glorificado, o
corpo humano como um todo, em todas as suas dimensões, participa da natureza
celeste na absoluta realização.
Ao afirmar a assunção de Maria ao céu em corpo e alma, não se trata de
dogmatizar um esquema antropológico (BOFF, 1979, p. 180), mas enfatizar a
integralidade do humanum, em seu caráter totalizante da glorificação da mãe de
Deus. Pela assunção de Maria, não apenas a alma, que de per si supõe ser de natureza
divina, mas também a corporalidade (a realidade material) em sua profunda
obscuridade, é acolhida na glória de Deus (BOFF, 1979, p. 248). Nesse sentido,
Puebla declara explicitamente: “Maria, arrebatada ao céu, é a integridade humana,
corpo e alma, que agora reina” (PUEBLA, 1982, p. 298).
Partindo deste contexto, Clodovis explica que o corpo de Maria assumido na
glória, não se trata somente de uma “antevisão e a entrevisão” (BOFF, 2006, p. 533)
do destino jubiloso do cosmos assumido para sempre no mistério da comunhão
trinitária, mas de um protesto contra os corpos humilhados.
Assim sendo, as integrantes da Irmandade da Boa Morte em Cachoeira, através
de seu corpo escravizado, amparadas pela crença e devoção a Maria, bem como em
seus orixás, revelam, seja através das palavras no cumprimentar das senhoras, da
cor da pele, nas vestes com os diversos tons, na gestualidade dos ritmos, nas orações
e cânticos em suas mais variadas faces (ceia, procissão, missas), sua identidade,
marcada por luta e resistência.

3.3. A Boa Morte celebra a glória da mulher e de seu corpo


Maria, assunta ao céu na integridade de seu ser, viabilizado em sua
corporeidade, exalta o corpo feminino, restaurado e reintegrado no seio de Deus. A
Irmandade mariana da Boa Morte em Cachoeira, com suas mulheres negras, tendo
presente o momento glorioso da vida de Maria, bem como, as humilhações e
sofrimentos advindo da escravidão, celebra a glória de Maria como exaltação da
dignidade da mulher.
Em Maria, e através dela, uma mulher desta terra entra no mistério íntimo de
Deus tornando-se a mulier revelata, na plenitude de sua feminilidade em sumo grau
(BOFF, 2006, p. 539), resgatando o corpo feminino de todas as intempéries da vida.

596
Considerações finais
Maria, na devoção da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira-Ba, é ícone
humano do mistério, por ser ela uma mulher virgem, esposa e mãe, semelhante a
cada mulher, a cada ser humano que na vida busca um encontro pessoal com a sua
essência, com o seu eu mais profundo. Ela é modelo de integridade humana e vida
plena de experiência, de encontro com o Mistério, pois carregou em seu seio o
Mistério de um Deus que se fez humano. Na Irmandade mariana da Boa Morte, a
Virgem Maria é sinal de esperança em meio às desesperanças da vida.

Referências
BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. Ensaio interdisciplinar sobre o feminino


e suas formas religiosas. Petrópolis: Vozes, 1979.

BOFF, Clodovis. Mariologia social: O significado da Virgem para a sociedade. São


Paulo: Paulus, 2006.

CODINA. V. Mariologia desde los pobres. In. Modernidad versus solidaridad. Lima:
CEP, 1985.

CONSORTE, Josildeth Gomes. Sincretismo ou africanização? Os sentidos da dupla


pertença. In: Travessia – Revista do Migrante, Vol. 36, São Paulo, 2000.

CASTRO, Armando. Irmandade da Boa Morte; memória, intervenção e turistização


da festa em Cachoeira, Bahia. Ilhéus: UESC/UFBA, 2005 (Dissertação de Mestrado em
Cultura e Turismo).

FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone do mistério. São Paulo: Paulus, 1991.

LADARIA, Luis. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998.

NASCIMENTO, Luís Cláudio. Candomblé e Irmandade da Boa Morte. Cachoeira:


Fundação Maria América da Cruz, 1999.

PAPA PIO XII. Bula Munificentissimus Deus: Definição do Dogma da Assunção de


Nossa Senhora em corpo e alma ao céu. São Paulo: editora Paulus, 2015.

PUEBLA (Texto oficial da CNBB): A Evangelização no Presente e no futuro da América


Latina. Petrópolis, Vozes, 1982.

VELASCO, J.M. El fenómeno místico, estúdio comparado. Madrid, Editoral Trotta,


2009.

597
NEUROCIÊNCIA DA RELIGIÃO E MÍSTICA: UMA VERDADE ÚLTIMA?

Brasil Fernandes de Barros1

Resumo: A neurociência da religião é uma tentativa de descrever e explicar o pensamento


e o comportamento religioso no nível do cérebro. Esta área tem como objetivo identificar os
substratos neurobiológicos desses mecanismos. No entanto, a neurociência às vezes é usada
de forma inadequada por não especialistas, que desejam aumentar a credibilidade de
determinados relatos cognitivos ou evolutivos da religião, sugerindo uma ligação com o
cérebro físico. Para evitar usos especulativos da neurociência em outras disciplinas da
religião, os pesquisadores dessa área sugerem que seja definida de forma mais restrita como
pesquisa científica sobre religião, que se baseia principalmente nos métodos e teorias
usados nas ciências do cérebro. Mas por outro lado as dificuldades encontradas para
aplicações dependem de uma importante questão, que é ao nosso ver fundamental para a
associação deste campo com a mística: a mediação. O objetivo de nossa comunicação é de
demonstrar as dificuldades de explorar o que em nossa pesquisa definimos por dimensão
fisiológica da mística em função da mediação. A partir de uma pesquisa bibliográfica, sobre
as dificuldades da análise empírica dos experimentos em Neurociência da Religião, para
explicar o comportamento religioso no nível de questões fisiológicas do cérebro,
pretendemos enumerar algumas das dificuldades dessa atividade que não levam em conta
a questão da mediação. Com isso pretendemos demonstrar que apesar das indicações da
existência de uma camada fisiológica, ela não é uma “verdade última” porque depende de
mediação do místico.
Palavras Chave: Mística; Neurociência da Religião; Mística em Camadas; Cérebro;
Espiritualidade; Mediação da Mística.

Introdução
No 35° Congresso Internacional da SOTER no GT de Mística e Espiritualidade
apresentamos o trabalho intitulado “Neurociencia da Religiao: uma possível camada
no estudo da mística”. Neste trabalho apresentamos a possibilidade da exploraçao
dos aspectos do que chamamos em nossa tese de doutorado “Na intimidade do
Coraçao: a mística na vida e obra de Chico Xavier” (BARROS, 2023) de uma dimensao
fisiologica da mística. Essa dimensao pode ser, nao exclusivamente, tratada como
Neurociencia da Religiao. O objetivo de nossa comunicação é complementar a nossa
pesquisa tentando demonstrar as dificuldades de explorar o que definimos por
dimensão fisiológica da mística em função das questões de mediação. A partir de
uma pesquisa bibliográfica, apresentaremos as dificuldades da análise empírica dos
experimentos em Neurociência da Religião, pretendemos explicar porque o

1 Doutorado em Ciências da Religião – PPGCR – PUC Minas.E-mail: brasil@netinfor.com.br.

598
comportamento religioso e a mística não podem tão somente se circunscrever aos
níveis das dimensões fisiológicas do cérebro.
Essa area, a Neurociencia da Religiao, nos apresenta uma tentativa de
descrever e explicar o pensamento e o comportamento religioso no nível do cerebro,
e tem como objetivo identificar os substratos neurobiologicos desses mecanismos.
Mas seria esse caminho para a avaliaçao da experiencia mística? Poderíamos reduzir
todos os itens abordados pela mística a impulsos eletricos em nossos cerebros? A
existencia de fator de ordem fisiologica seria a verdade ultima para a mística?
Acredito que nao! A neurociencia as vezes e usada de forma inadequada por nao
especialistas que desejam aumentar a credibilidade de determinados relatos
cognitivos ou evolutivos da religiao, sugerindo uma ligaçao com o cerebro físico, para
tentar justificar suas crenças pessoais e trazer uma “credibilidade científica” as suas
crenças, e isso na verdade e o que se chama de Neuroteologia (SCHJOEDT, 2009, p.
310).
Sacrificar o controle experimental para obter um comportamento e uma
experiencia mais autentica, tem dificultado os esforços para isolar o efeito de uma
variavel independente. Variaveis de confusao na psicologia social, como
características de demanda (pistas no experimento que revelam o objetivo do estudo
aos participantes) e o efeito de desejabilidade social (tendencia dos participantes de
responder de maneiras socialmente desejaveis) tem se mostrado especialmente
problematicas em estudos que medem o comportamento religioso explícito.

1. Neurociência da religião – limitações


Para que possamos desempenhar uma pesquisa no campo da Neurociencia
da Religiao, e necessario que se realizem experimentos empíricos, de ordem tecnica
no campo da medicina para que se possam obter evidencias claras. A falta de
controle experimental, por outro lado pode deixar os pesquisadores com padroes
observados de atividade neural que sao difíceis de interpretar porque nao podem
ser vinculados a construçoes e funçoes cognitivas bem definidas. Nao ha referencias
empíricas que possam corroborar a existencia de um fenomeno religioso ou místico
em curso, para toma-lo como ponto de partida. So temos como referencia acerca da
existencia de um fenomeno a palavra daquele que diz o estar vivendo.
Se a oraçao, por exemplo, provoca atividade em varias areas do cerebro, como

599
podemos entender sua funcionalidade? Normalmente, os pesquisadores procuram
ativaçoes cerebrais semelhantes em outros estudos para fazer interpretaçoes
significativas. Essa abordagem e chamada de “inferencia reversa”, que e considerada
um metodo controverso na neurociencia porque a funcionalidade de cada regiao do
cerebro atende a muitas funçoes diferentes e esta funcionalmente conectada a
muitas outras regioes. Certamente, qualquer inferencia sobre a cogniçao baseada
apenas na atividade cerebral sobreposta sera, na melhor das hipoteses, especulativa,
mas, em alguns casos, a especulaçao informada baseada na inferencia reversa e a
unica abordagem viavel. Nao ha como atestar se o indivíduo em questao esta fazendo
uma oraçao, ou se esta pensando no que comeu no cafe da manha.
Ha quem tente identificar no cerebro humano, um “orgao religioso”, assim
como aqueles que pretendem identificar um orgao que fosse responsavel pela
mente. Esse orgao religioso, seria o responsavel pelo acionamento das experiencias
religiosas, ou que determinadas atitudes ritualísticas pudessem acionar estas
regioes específicas, atuando sobre estes “orgaos espirituais”. Mas nao ha evidencias
científicas que corroborem essas proposiçoes.
A Neurociencia nao apresentou nem evidencias sobre a existencias de orgao
espirituais, bem como tambem nao conseguiram identificar alteraçoes evidentes em
nenhuma area do cerebro que fossem acionadas especialmente por uma atitude
religiosa. Rituais, oraçoes, nem mesmo com uso de drogas alucinogenas conseguem
oferecer garantias sobre isso. Apesar disso, autores como Peres e Newberg (2013)
afirmam que a associaçao entre mediunidade e neurociencia pode ser uma
promissora linha de pesquisa científica. Essa linha de pesquisa ainda esta em fase
inicial, porem ja conseguimos encontrar estudos consistentes na literatura
academica que fazem uso de metodos rigorosos de analises neurais para avaliar
mediunidade (BASTOS et al., 2016; DELORME et al., 2013; HUGHES; MELVILLE,
1990; KAWAI et al., 2017; MAINIERI et al., 2017; OOHASHI et al., 2002; PERES et al.,
2012).

600
2. Neurociência da religião e mediunidade
A capacidade de comunicaçao com os mortos, ou com “agentes da realidade
periestesica2“ (BARROS, 2023) e chamada por algumas tradiçoes de mediunidade,
particularmente no Espiritismo e nas religioes de matriz africana. A Neurociencia da
Religiao de maneira geral nao restringe essa capacidade ao termo mediunidade, e
investiga todas as experiencias que alegam abordar outras realidades. Mas a
chamada mediunidade tem sido tomada por alguns pesquisadores sobre
manifestaçoes desta ordem dessa area.
De forma geral, todas as pesquisas já realizadas com essa
abordagem representam grande avanço na investigação do
funcionamento cerebral durante o fenômeno mediúnico.
Entretanto, os estudos apresentam uma limitação em relação à
complexidade do fenômeno, pois os métodos não são capazes de
captar as alterações temporais durante o transe, bem como, as
conexões entre as áreas cerebrais. Atualmente, a compreensão de
que o cérebro funciona de forma interconectada integrada tem
ganhado centralidade nas abordagens em neurociência. Nessa
concepção, as diversas áreas interagem de maneira sincronizada
afim de otimizar o processamento da informação (SILVA, et al.,
2023, p. 178).

Os estudos apresentados por Silva et al. sao baseados na analise das Redes
Funcionais Cerebrais com o uso Eletroencefalograma (EEG)3 cuja a tecnologia pode
ser levada a uma sala mediunica em um ambiente onde o medium estaria mais
proximo de seu comportamento usual. Mas outros metodos rigorosos neuroimagem
por exemplo, oferecem imensas limitaçoes as pesquisas em funçao da
impossibilidade de serem levadas para fora de um hospital. As leituras que sao feitas
nos EEG, por exemplo comprovam o acionamento de determinadas areas do cerebro
durante a chamada manifestaçao mediunica, porem nao sao conclusivas no sentido
de oferecerem elementos solidos para dizer que foram causadas tao somente por

2 Esta seria segundo nossa tese de doutorado (BARROS, 2023) uma terminologia, para definir a
realidade que iria além dos sentidos humanos, (peri prefixo grego que exprime a ideia de “à volta de”,
“ao redor de”, mais “estésico” do grego aisthēsía [αῖσθησις]: “capacidade de perceber, de sentir;
percepção”). Uma realidade cuja percepção não se daria a partir dos sentidos na realidade ordinária,
e que pode ser percebida tanto aqui (no mundo físico através das mais diversas experiências) como
na transcendência ou na imanência (de acordo com certas tradições), seja esta visão religiosa seja
filosófica. Ou seja, uma realidade que iria, segundo a descrição de quem diz tê-la
experimentado/vivenciado, além da realidade ordinária corpórea/física captada pelos nossos
sentidos e que não poderia ser expressa com palavras.
3 Este é um exame que analisa a atividade elétrica cerebral espontânea, captada através da utilização

de eletrodos colocados sobre o couro cabeludo, para captar as atividades elétricas espontâneas que
estão presentes desde o nascimento de uma pessoa.

601
esse suposto fenomeno, ja que poderiam estar associadas a outras açoes. Elas nao
descartam essa possibilidade, mas tambem nao apontam de nenhuma forma para o
uso exclusivo de nenhuma parte específica do cerebro, ou combinaçoes específicas.

3. A questão da mediação
Mesmo que fosse comprovada a existencia de uma atividade específica no
cerebro que estivesse ligada a um ato religioso, nao podemos desprezar a questao
da mediaçao. Steven Katz (2020, p. 1367), afirma que a interpretaçao da experiencia
mística nao pode ser verificada, pois nao ha elementos que digam que estamos
falando da mesma “coisa”, ou “estado de coisas”, e complementa que essas
experiencias nao sao puras, pois, sao mediadas pela cultura, pela religiao, bem como
pelos anseios daqueles que a experimentam. Em nosso ponto de vista, a “experiencia
concreta” em níveis fisiologicos (nos estados nao usuais de consciencia) pode ser a
mesma, porem, e ou podera ser externada de forma diversa pelas pessoas que a
vivem, ou seja, em sua dimensao experiencial, que dependera da tradiçao de
experiencia de cada indivíduo, como tratamos no capítulo dois de nossa tese
(BARROS, 2023), quando explicamos a nossa hipotese sobre as diversas camadas da
experiencia mística.
Desta forma a experiencia de um indivíduo podera ser mística ou nao, apesar
de seus “tecidos cerebrais” terem sido afetados por algum fenomeno. O registro por
EEG ou por uso de metodos rigorosos de neuroimagem poderiam indicar a presença
de um estado nao usual de consciencia, mas ele nao significa que outras areas do
cerebro do indivíduo tenham sido afetadas, particularmente no campo da emoçao. E
que este efeito causara num indivíduo uma experiencia mística, que toque as fibras
de sua personalidade, mudando comportamentos e açoes do indivíduo.
Alem disso ha ainda problemas de metodo, que precisam avançar, por
exemplo, os estudos de EEG feitos por Prado et al, identificam alteraçoes da
psicofonia, mas nao medem por exemplo, o período do transe mediunico sem a
comunicaçao propriamente dita. Avaliam o acionamento das regioes da fala, mas nao
levam em conta outras questoes de ordem emocional.

602
Considerações finais
Poderemos dizer em alguns casos que pode haver acionamentos de ordem
fisiologica, mas a experiencia mística em si nao depende tao somente destes
processos de atuaçao. O horizonte de experiencia do indivíduo e parte fundamental
na forma em que se lida com estes fenomenos, mas eles podem ser um importante
“motor” no acionamento da experiencia mística mediada.
Por essa razao pensamos que a mística deve ser dividida em camadas, como
declaramos em nossa tese de doutorado, porque se o fenomeno eventualmente for o
mesmo, a sua mediaçao (interpretaçao), sera invariavelmente diferente, assim como
sao diferentes os indivíduos que a vivem de acordo com diversos fatores culturais e
de experiencias pregressas.

Referências
BARROS, Brasil Fernandes de. Na intimidade do coração: a mística na vida e obra de
Chico Xavier. 2023. 244 f. Tese (Doutorado em Ciencias da Religiao) – Programa de
Pos-graduaçao em ciencias da Religiao, Belo Horizonte, 2023.

BASTOS JR., M. A. V.; BASTOS, P. R. H. de O.; OSÓRIO, I. H. S.; MUASS, K. A. R. C.;


IANDOLI JR., D.; LUCCHETTI, G. Frontal electroencephalographic (EEG) activity and
mediumship: a comparative study between spiritist mediums and controls. Archives
of Clinical Psychiatry, [S. l.], v. 43, n. 2, p. 20-26, 2016.

DELORME, Arnaud; BEISCHEL, Julie; MICHEL, Leena; BOCCUZZI, Mark; RADIN,


Dean; MILLS, Paul. Electrocortical activity associated with subjective
communication with the deceased. Frontiers in Psychology. v.4, 2013. Disponível em:
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2013.00834/full Acesso em:
31 out. 2023.

HUGHES, D.; MELVILLE, N.T. Changes in Brainwave activity during trance channeling:
A pilot study. Journal of Transpersonal Psychology, US, v. 22, p. 176-189, 1990.

KATZ, Steven T. Linguagem, Epistemologia e Mística. Traduçao: Brasil Fernandes de


Barros. Horizonte – Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, Belo
Horizonte. v. 18. n. 57. p. 1334-1389, 2020.

KAWAL, N.; HONDA, M.; NISHINA, E.; YAGI, R.; 00HASHI, T. Electroencephalogram
characteristics during possession trances in healthy individuais. NeuroReport, v. 28,
n. 15, p. 949-955, 2017. Disponível em:
https://journals.lww.com/neuroreport/Fulltext/2017/11010/
Electroencephalogram_characteristics_during.2.aspx. Acesso em: 31 out. 2022.

603
MAINIERI, A. G.; PERES, J. F. P.; MOREIRA-ALMEIDA, A.; MATHIAK, K.; HABEL, U.;
KOHN, N. Neural correlates of psychotic-like experiences during spiritual-trance
state. Psychiatry Research. Neuroimaging, v. 266, p. 101-107,2017.

OOHASHI, T.; KAWAI, N.; HONDA, M.; NAKAMURA, S.; MORIMOTO, M.; NISHINA, E.;
MAEKAWA, T. Electroencephalographic measurement of pos-session trance in the
field. Clinical Neurophysiology: Official journal of the International Federation of
Clinical Neurophysiology, v.113, n. 3, p. 435-445, 2002.

PERES, J. F.; MOREIRA-ALMEIDA, A.; CAIXETA, L.; LEAO, F.; NEWBERG, A.


Neuroimaging during Trance State: A Contribution to the Study of Dissoci-ation.
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http://dx.plos.org/10.1371/journal.pone.0049360
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PERES, J.; F. P.; NEWBERG, A. Neuroimaging and mediumship: a promising research


line. Archives of Clinicai Psychiatry (Sao Paulo), v. 40, n. 6, p. 775-232, 2013. a.
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rpc/a/QNKXDgcXdW9RV6ZNPSjzs6b/abstract/?lang=pt.
Acesso em. 31 out. 2023.

SCHJOEDT, Uffe. The Religious Brain: A General Introduction to the Experimental


Neuroscience of Religion. Method & Theory in the Study of Religion. v. 21, n. 3, p. 310-
339, 01 jan. 2009.

SCHILLEBEECKX, Edward. História humana, revelação de Deus. São Paulo: Paulus,


1994.

SILVA, Jéssica Pacido; et al., in: COELHO, Humberto Schubert. Org. Perispírito:
concepções e pesquisas. São Paulo: CCDPE-ECM, 2023.

604
A GRAÇA CONTINUA: O RISO COMO CRÍTICA DA RELIGIÃO EM
“DEUS SEGUNDO LAERTE”

Breno Martins Campos1


Ceci Maria Costa Baptista Mariani2

Resumo: Esta comunicação responde teologicamente a um interesse que nutrimos há


algum tempo: as tirinhas de Laerte dedicadas a Deus (como tema e protagonista das
estórias). Publicadas periodicamente em veículos de imprensa, num segundo momento, as
tirinhas divinas foram agrupadas em três livros que saíram pela Editora Olho d’Água: Deus
segundo Laerte (2000), Deus 2: a graça continua (2002) e Deus 3: a missão (2003). De dentro
da própria obra de Laerte, antes de tudo, apropriamo-nos de uma mediação hermenêutica
que se apresenta em “Os Palhaços Mudos” (1987): é a estória dos bufões (palhaços) que
zombam dos homens sérios e poderosos – e que, sem dizer nenhuma palavra, criticam a
ordem vigente. De fora do corpus laertiano, baseamo-nos, neste trabalho, em Harvey Cox (A
festa dos foliões, 1969), para quem a teologia do folião (palhaço) – aquela que consegue
enxergar o arlequim que há no Cristo – propõe que se façam novas todas as coisas. Portanto,
por meio de uma teologia que se pretende aberta à linguagem cômica, podemos nos
aproximar de tirinhas de Laerte – que caminham na contramão da doutrina clássica da
revelação, pois vão assumidamente do ser humano ao divino –, extraídas do segundo
volume da trilogia “Deus segundo Laerte”, que tematiza a criação, a personificação do mal,
a oração, o juízo final, além de trazer um divertido diálogo inter-religioso com o budismo.
As tiras escolhidas para esta comunicação provocam riso porque desconstroem nossas
explicações sobre o modo de ação de Deus e nossa tentação de manipular a religião.
Palavras-chave: Humor; Crítica da Religião; Teologia; Harvey Cox; Laerte.

Introdução
Com esta comunicação, queremos oferecer um passo a mais numa trilha
aberta há pouco tempo dentro de nossas pesquisas, cuja direção é a das relações
possíveis entre religião e humor – relações que se estabelecem, de acordo com
nossas opções analíticas, pela mediação entre teologia e ciências da religião. Nesse
mesmo sentido, nossa última contribuição para o campo dos estudos da interface
entre religião e humor foi a apresentação da comunicação “Crítica da religião e
espiritualidade da compaixão em Deus segundo Laerte”, no “GT 6 – Mística e
Espiritualidade” do 35º Congresso Internacional da Sociedade de Teologia e
Ciências da Religião (SOTER), em julho de 2023.

1 Doutorado em Ciências Sociais (PUC-SP), professor no PPG em Ciências da Religião da PUC-


Campinas, e-mail: brenomartinscampos@gamil.com.
2 Doutorado em Ciências da Religião (PUC-SP), professora no PPG em Ciências da Religião da PUC-

Campinas, e-mail: cecibmariani@gmail.com.

605
Em diálogo crítico com Peter L. Berger e Rubem A. Alves (cf. CAMPOS;
MARIANI, 2015), dentre outros autores, a intenção daquela comunicação foi
mostrar que a religião, ao longo da história, tem sido uma força de manutenção ou
de transformação do mundo, bem como de alienação ou de desalienação das
pessoas. Em meio ao debate teológico e sociológico a respeito de a religião ser fator
de sacralização ou de transformação da ordem social, encontramos espaço para
realizar o antigo sonho de trazer o humor para dentro da discussão – o que também
foi realizado tanto por Berger (2017) como por Alves (1989), autores que nos
inspiraram na tarefa.
Decidimos, então, compreender a crítica da religião que a cartunista Laerte
Coutinho elabora em suas tirinhas dedicadas a Deus (como tema ou personagem
protagonista das estórias). Laerte brinca com a imagem tradicionalmente
constituída e sustentada de Deus, apresentando-a em contraponto: no lugar de um
ser Todo-poderoso, um Deus compadecido, que se coloca ao lado do ser humano no
enfrentamento dos desafios da vida. Ainda assim, Laerte não deixa de desenhar Deus
com longas barbas brancas e um triângulo sobre a cabeça – dentro do qual, há um
olho. Todavia, trata-se de um olho que oferece cuidado e proteção, e não vigilância
e punição.
O que Laerte faz é um santo humor. Livra-nos daquela imagem de
um Deus carrancudo, mal-humorado, provedor do inferno, para
nos aproximar da imagem evangélica que Jesus nos passa: Deus é
amor, mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos, como dizia Santo
Agostinho. Portanto, se brincamos com tudo o que nos é íntimo, por
que excluir Deus de nosso bom humor e carinho? (FREI BETTO,
2000, p. 5).

Por meio da aproximação teopoética a uma seleção de tiras que compõem a


obra, pretendemos demonstrar que o humor crítico de Laerte é também revelador
da graça (em mais de um sentido, é claro). Como a teologia é nossa referência nesta
comunicação – mais do que a sociologia, por exemplo –, entendemos que ela (a
teologia), sem deixar de ser uma forma de conhecimento, sobretudo, é sabedoria
que também se expressa em poesia e arte, e que se abre para o humor, o riso, a
alegria.

606
1. Uma aproximação às relações entre teologia e humor
Antes de chegarmos propriamente ao conjunto da obra Deus segundo Laerte,
vamos nos apropriar de uma mediação (ou transição) entre o humano e o divino,
encontrada no próprio corpus laertiano: os palhaços ou bufões. Em A noite dos
Palhaços Mudos, os protagonistas da estória (os próprios Palhaços) invadem a
mansão em que os poderosos de plantão – homens adultos, sisudos e engravatados
– estão reunidos para tramar o extermínio dos Palhaços. Importa destacar a fala de
um dos líderes do movimento pela manutenção da ordem e dos bons costumes: “[Os
Palhaços Mudos...] Estes seres ignóbeis, com sua obstinada e teimosa mudez,
ameaçam as bases da nossa sociedade, nossa religião e nossas famílias!” (LAERTE,
2023, p. 11). Por sua vez, de fato, os Palhaços Mudos criticam a ordem vigente, de
modo que os conservadores não medem esforços para os destruir.
No espírito da teologia de Rubem Alves (1989, p. 155), a zombaria do(s)
palhaço(s) é de um tipo que “desenha bigodes no rosto solene de presidentes e usa
botas de guerra como vasos de flores, proclamando que as coisas podem ser
diferentes...”. Teologia bem-humorada é aquela que faz brotar vida e paz de
instrumentos próprios para a guerra e morte. No capítulo “O Cristo arlequim” do
livro A festa dos foliões, Harvey Cox (1974, p. 146) ajuda-nos a radicalizar o
argumento da importância do palhaço – e, consequentemente, do humor – para
subverter a ordem vigente:
[...] há na própria imagem bíblica de Cristo elementos que podem
facilmente sugerir símbolos de palhaço. Como o jogral, desafia
Cristo os costumes e faz pouco caso de frontes coroadas. Como o
trovador ambulante, não tem onde reclinar a cabeça. Como o
palhaço no picadeiro, satiriza a autoridade existente, entrando em
lombo de burro na cidade regurgitante de régia comitiva, mas sem
dispor de nenhum poder terreno. Como o menestrel, frequenta
banquetes e reuniões sociais. E termina sendo embrulhado por
seus inimigos, numa ludribiante caricatura de pompas régias.
Pregam-no na cruz, entre risadas e galhofas, ostentando, sobre sua
cabeça, um cartaz berrante de sua pretensão ridícula.

Assim, estabelecidos alguns dos fundamentos teórico-teológicos de nossa


comunicação – a respeito do cômico na religião e seu poder de transformação social
–, podemos, então, apresentar nossa interpretação de algumas tirinhas de Laerte.

607
2. A contribuição do humor para uma nova imagem de Deus
“Dize-me como é teu Deus, e dir-te-ei como é tua visão do mundo; dize-me
como é tua visão do mundo, e dir-te-ei como é teu Deus” (QUEIRUGA, 1998, p. 11).
Se Harvey Cox nos permite compreender o que há de palhaço (ou arlequim) no
Cristo que encarnou, Laerte transpõe a dinâmica – na qual enxergamos a teologia da
artista (ainda que ela mesma não se declare religiosa)3 – para a pessoa do próprio
Deus. Ao ver e ouvir o Deus de Laerte é possível captar nossa visão de mundo e nossa
visão de Deus.
O personagem Deus de Laerte nos faz rir da imagem que construímos de
Deus, desvela nossa busca de um Deus criado à semelhança de nossas expectativas,
isto é, um Deus Todo-poderoso, que intervém no mundo para oferecer explicações
e resolver nossos problemas. Diferentemente do “fator Deus” de Saramago (2001)4,
que tem justificado as violências físicas e espirituais cometidas pela humanidade ao
longo da história, o Deus de Laerte é o criador que escuta a sugestão da samambaia
sobre o nascer e o pôr do sol, e ironiza a maneira humana de atribuir os fenômenos
da natureza ao divino poder de intervenção: “Ainda bem que meu cargo não é
eletivo”, ele se consola (LAERTE, 2002, p. 49).

Fonte: LAERTE, 2002, p. 7.

Segundo o paradigma moderno, Deus não é mais necessário como hipótese


explicativa da realidade, afirma Andrés Torres Queiruga (1998), pois a modernidade
demanda uma imagem de Deus não intervencionista e delicadamente respeitosa da

3 “[...] a
identidade (visual etc.) do divino com o humano sobreviveu à minha fase ateia, que dura mais
ou menos até hoje, com algumas frestas em que faço as minhas devoções, principalmente a Santa
Edwiges” (LAERTE, 2000, p. 59). Comentário nosso: nunca é demais que a santa da devoção de Laerte
é a padroeira das pessoas pobres e das endividadas.
4 A coluna de opinião de Saramago foi publicada poucos dias depois do 11 de setembro de 2001.

608
autonomia do mundo, isto é, exige-se a superação do pressuposto de uma
onipotência (divina) abstrata e arbitrária.

Fonte: LAERTE, 2002, p. 49.

A imagem de Deus discutida nas tiras acima tratam da secular reflexão entre
a onipotência divina e a liberdade humana, que se aprofundou na modernidade. Das
várias tentativas de solução para esta questão, Edward Schillebeeckx (1994) propõe
considerar o caráter indefeso de Deus, que se desarma quando confere liberdade a
sua criação e que faz do humano seu parceiro de aliança. A liberdade, um dos valores
mais apreciados pela modernidade, tem exigências, supõe esforço. A necessidade de
decidir é trabalhosa. Às vezes, brinca Laerte (2002, p. 10), o humano “preferia um
Deus mais tirânico”.

Fonte: LAERTE, 2002, p. 10.

Deus se faz vulnerável, continua Schillebeeckx (1994, p. 123), quando cria o


humano com vontade própria, Deus “cede poder livremente. Ele se torna por isso de
certa forma ‘dependente’ do homem e, sendo assim, vulnerável”. Concedendo poder
à liberdade humana, Deus, entretanto, não deixa de ser presença salvífica junto à
criação. A energia criadora de Deus “evidencia-se como energia de amor que
convida, outorga vida e liberta os homens, pelo menos aos que se abrem à sua oferta”

609
(SCHILLEBEECKX, 1994, p. 123. Deus está entre nós, atuando onde menos se espera,
ironiza Laerte (2002, p. 27): “Ei, só estou ajudando a empurrar carro alegórico!
Tratem é de rebolar!!”.

FONTE: LAERTE, 2002, p. 27.

Considerações finais
Brincar com a imagem de Deus é coisa séria! A nossa imagem de Deus não só
revela nossa imagem de mundo, mas justifica e orienta nossas ações no mundo. A
imagem de Deus tem sido – a história nos mostra – caso de vida ou morte. De fato, o
culto ao “fator Deus”, que é a imagem de um Deus de onipotência arbitrária, tem
justificado a violência, como denunciou Saramago (2001). Com uma tira de Laerte
(2002, p. 61), sem necessidade de muitas explicações ou mediações, concluímos, por
ora, nossa reflexão nesta comunicação.

Fonte: LAERTE, 2002, p. 61.

Em tempo: como se lê em letras miúdas acima, esta tira foi publicada,


originalmente, no contexto do 11 de setembro de 2001.

610
Referências
ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte: o feitiço erótico-herético da
teologia. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1989.

BERGER, Peter L. O riso redentor: a dimensão cômica da experiência humana.


Petrópolis: Vozes, 2017.

CAMPOS, Breno Martins; MARIANI, Ceci Maria Costa Baptista. Peter Berger e Rubem
Alves: religião como construção social entre a manutenção do mundo e a libertação.
Protestantismo em Revista, São Leopoldo, v. 36, p. 3-20, jan.-abr. 2015. Disponível
em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/nepp/article/view/2396. Acesso em:
12 jul. 2023.

COX, Harvey. A festa dos foliões: um ensaio teológico sobre festividade e fantasia.
Petrópolis: Vozes, 1974.

FREI BETTO. Brincando nos campos do Senhor. In: LAERTE. Deus segundo Laerte.
São Paulo: Olho d’Água, 2000. p. 5.

LAERTE. A noite dos Palhaços Mudos. São Paulo: Conrad, 2023.

LAERTE. Deus 2: a graça continua. São Paulo: Olho d’Água, 2002.

LAERTE. Deus segundo Laerte. São Paulo: Olho d’Água, 2000.

QUEIRUGA, Andrés Torres. Um Deus para hoje. São Paulo: Paulus, 1998.

SARAMAGO, José. O fator Deus. Folha de S. Paulo, 19 set. 2001. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u29519.shtml. Acesso em: 13
set. 2023.

SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus,


1994.

611
SANTO AGOSTINHO: A DEFICIÊNCIA ONTOLÓGICA DO SER COMO
PRESSUPOSTO DA BUSCA POR DEUS

Caio Henrique Esponton1

Resumo: Os problemas assumidos por Agostinho em seu tempo ainda são temas de debates
e aprofundamentos. Dentre os problemas mais caros ao mestre de Hipona se encontra a
questão antropológica, em sua obra, marcada pela concepção do ser humano como um
sujeito ontologicamente deficiente, isto é, o ser humano é assumido como alguém cuja
natureza é deficitária em relação à plenitude com a qual era dotada na criação e com a qual
será coroada ao final. Esse caráter deficitário da condição humana é consequência do
pecado primordial que foi transmitido à toda humanidade tornando-se parte característica
da natureza humana. Neste sentido, partindo da premissa de que o ser humano é um sujeito
deficiente, pode-se assumir que no trajeto de sua existência ele se coloca em busca daquilo
que lhe falta ou daquele que pode lhe suprir essa carência ontológica: Deus. Este estudo
objetiva expor a relação entre a deficiência ontológica do ser humano e a busca por Deus,
utilizando-se para tal intento, como método, uma leitura sistemática das Confissões. Espera-
se com este estudo trazer à luz as principais caraterísticas da relação entre a condição
humana em sua natureza deficiente e o impulso à busca de Deus pelos meios da
espiritualidade. Desta forma, ao apresentar a relação entre a natureza decaída e a busca por
Deus, poder-se-á concluir que a queda original que marcou a humanidade, vista sob a ótica
da Graça divina, torna-se um meio para a ação salvadora de Deus percebida no itinerário
espiritual de cada sujeito.
Palavras-chave: Agostinho; Ontologia; Pecado Original; Graça; Confissões.

Introdução
O pensamento e obra de Agostinho de Hipona não são realidades legadas ao
passado nem restritas historicamente ao momento de sua elaboração. A leitura de
Agostinho interpela, ainda hoje, homens e mulheres que buscam compreender sua
existência e as experiências que a compõe à luz da fé cristã. Salvo os aspectos
próprios da temporalidade de todo autor, Agostinho ainda se constitui como um dos
principais fundamentos do pensamento ocidental. Dentre as concepções do
hiponense que forjaram quase que definitivamente a cultura ocidental está a sua
antropologia cujas raízes determinam a espiritualidade, a filosofia, e a teologia ainda
hoje, uma vez que, construída sobre a existência em sua concretude complexa, a
antropologia agostiniana coloca o ser humano diante de si mesmo e convida-o a

1Mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Especialista


em Espiritualidade pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Graduado em Filosofia, História
e Pedagogia. E-mail: caio.h.e@hotmail.com.

612
olhar-se como um sujeito que ao longo de sua vida experimenta a decadência e a
ascensão, o pecado e a graça, a alegria e o sofrimento, como componentes que lhe
conferem a identidade humana.
Neste sentido, este estudo visa abordar fenomenologicamente algumas ideias
centrais de Agostinho que assumem um aspecto narrativo espiritual e místico nas
Confissões. As ideias abordadas – queda, pecado original, deficiência ontológica,
retorno a Deus e desfrute eterno – compõe o sistema teológico do hiponense e
perpassam a maioria de suas obras. Observa-se que ao longo de sua trajetória
intelectual a formulação da antropologia agostiniana ganha contornos mais
evidentes até atingir sua forma final nas obras tardias como o De Trinitate e a Civitas
Dei. Entretanto, é nas Confessiones que a antropologia agostiniana demonstra todo
seu drama existencial e revela o mais humano do humano, isto é, sua constituição
como ser faltante que empreende uma busca redentora. Para tal empreendimento
far-se-á uma leitura panorâmica dos principais aspectos da antropologia
agostiniana cotejando-os com os acentos espirituais e místicos das Confissões de
modo a esclarecer que o caráter deficiente da natureza humana não é um mal
fechado sobre si, mas um impulso necessário para o encontro com Deus que não se
exime do humano tal como ele é.

1. A queda original e a constituição humana


O pensamento de Agostinho lida com temas que se relacionam de entre si de
modo significativo. A fé e a razão conduzem o ser humano à felicidade e lhe oferece
a possibilidade de viver a vida tal como ela deve ser vivida para o desfrute correto
dos bens temporais e a posse dos bens eternos. A felicidade é, na concepção de
Agostinho, algo que se pode possuir, uma realidade da qual se pode desfrutar, ainda
que não de modo completo nesta vida. Essa felicidade almejada pelo ser humano e
pelo qual anela seu coração é imutável, perene, eterna, perfeita e sumamente boa,
capaz de saciar todos os desejos humanos, isto é, torna-lo pleno. A busca pela
felicidade, porém, compreende um desenvolvimento progressivo das faculdades
humanas e o reordenamento de sua vontade, uma vez que, apenas quando o ser
humano amar e ansiar somente pela felicidade perfeita, ou seja, Deus, é que ele
poderá desfrutar da plenitude eterna, momentaneamente experimentada nessa vida
(De b. vita).

613
O desejo de possuir e desfrutar da felicidade leva à questão do por que o ser
humano não é feliz. O que faz da condição humana uma condição infeliz? O que faz
do homem um ser disperso entre as criaturas? O que leva ao ser humano perder a
posse da plenitude da qual foi dotado e para qual anseia? Essas questões estão na
base da antropologia agostiniana e são respondidas por Agostinho de diversas
formas ao longo da vida. Antes, porém, de delinear o pensamento de Agostinho
sobre o ser humano e sua condição, é preciso compreender que as obras e as
próprias concepções do hiponense não constituem um sistema fechado, mas estão
em nítida progressão ao longo de sua vida. Observa-se que posições antropológicas
incipientes no Agostinho dos tempos de Cassicíaco são radicalizadas nos escritos
tardios, especialmente aqueles nos quais se desenvolvem a doutrina da Graça e do
Pecado Original.
Isto posto, a medida em que Agostinho tenta compreender os motivos que
levam o ser humano a não desfrutar da plenitude divina, forja-se na pena do
hiponense a sistematização de uma doutrina conhecida da Igreja Africana: o Pecado
Original. Em suas obras aparecem a concepção de pecado como elemento
profundamente enraizado no coração humano devido à queda dos primeiros pais.
Na sua Catequese aos não-cristãos, Agostinho explica que na origem do mundo Deus
criou a humanidade em um lugar perfeito e lhes deu um preceito. Na tentativa de
salvaguardar a justiça e a bondade divina, Agostinho tece uma argumentação
interessante, dizendo que se Deus deu ao homem um preceito, logo ele lhe deu a
liberdade para obedecer ou desobedecer a este preceito a fim de que o homem não
fosse governado pelo poder de um tirano. A decisão de Deus pela liberdade o isenta
de culpabilidade pelo mal, pois o mau uso da liberdade recai exclusivamente sobre
o homem. É a liberdade humana que faz o homem pecar, mas é essa liberdade que
também o possibilita voltar-se novamente para Deus (De cat. rud. XXVIII, 30).
É precisamente a tendência para o mau uso da liberdade que caracteriza a
presença do Pecado Original como um fator que torna o homem deficitário
ontologicamente. O mal que convida a liberdade humana a ama-lo é um elemento
desordenador na criação que insere a humanidade no palco de uma história
conflitiva. No pensamento de Agostinho a criação se fundamenta numa ordem e se
desenvolve no interior desta ordem estabelecida por Deus cujo fim é a plenitude. O
pecado e o mal são elementos que desordenam o conjunto da criação por

614
permitirem a dispersão do ser humano em relação ao Uno (Deus). Tal dispersão é
sanada em nível pessoal e universal na medida em que as coisas voltam para si
mesmas e descobrem-se como pertencentes a um ordenamento divino cuja força
será superior ao mal (De ord. I, 1-3).
Em resumo, a doutrina do Pecado original marca a antropologia agostiniana
na medida em que evidencia o ser humano como um sujeito dotado de liberdade. Tal
liberdade é a possibilidade de se realizar o bem ou o mal, isto é, de obedecer ou
desobedecer a prescrição divina diante da qual o ser humano coloca em jogo sua
própria história. A escolha pela desobediência é fruto exclusivo da liberdade
humana mal utilizada que produz consequências históricas e ontológicas, isto é, o
mau uso da liberdade pelos primeiros pais desencadeou uma série de consequências
que se confrontam no devir da história e colocam-se como expressões da realidade
humana em sua concretude e complexidade.
O humano, neste sentido, em Agostinho, não é idealizado, mas é visto
atentamente como uma condição fragilizada, marcada pelo pecado, por uma
liberdade que se arrisca enquanto possibilidade de obediência, isto é, de
ordenamento do amor à felicidade almejada, ou desobediência que significa o
fechamento do homem sobre si, sobre seu mundo. O Pecado Original, portanto, não
é um ato restrito ao tempo, mas uma condição que permanece na história humana
como elemento constituinte da mesma, que participa do ordenamento de todas as
coisas até que triunfe a Jerusalém celeste no final dos tempos. Ora, esse pecado que
marca de modo definitivo a natureza humana insere-se na ordem divina das coisas
e é ocasião para que a Graça de Deus se manifeste de modo mais claro e evidente (De
cat. rud. XVII, 28).

2. Espiritualidade como empreendimento de retorno a Deus


A antropologia do homem decaído povoa a mente de Agostinho com maior
intensidade na medida em que seu pensamento avança. Diferente dos livros
anteriormente citados nos quais essa visão antropológica está presente como
elemento constitutivo da condição humana, mas com menor intensidade e
dramaticidade, nas Confissões a presença do homem decaído é incontornável para a
compreensão da obra. Agostinho, ao colocar-se como penitente, revê sua vida
pregressa sob a ótica do conflito permanente entre o pecado e a graça. A visão

615
consolidada de que a existência humana é conflitiva está na base de uma análise
espiritual das Confissões que permite observar como a condição humana decaída é a
fonte para uma experiência autêntica de Deus no interior de uma humanidade que
não pode ser renunciada.
O mau uso da liberdade pelos primeiros pais marcou definitivamente a
humanidade e tornou a natureza humana deficiente. A deficiência humana, isto é,
sua carência de plenitude e sua impossibilidade de possuir definitivamente a Deus
(felicidade) nesta vida, obriga o homem a buscar aquilo que lhe completa. Todavia,
nem sempre é claro ao ser humano aquilo que ele busca e as motivações que o levam
a empreender este caminho. O início das Confissões delineia estes pontos do
pensamento de Agostinho quando ele cunha sua célebre frase capaz de condensar
toda sua espiritualidade: “Vós o incitas a que se deleite nos vossos louvores, porque
nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós
(Conf. I, 1). A inquietação do coração que busca o repouso em Deus sem sabe-lo, ou
incapaz de faze-lo de modo perfeito, é a porta de entrada para o caminho humano
de descoberta de Deus e de si, ou seja, da espiritualidade.
O desejo de Deus como único bem confronta-se com a vida e os pecados
passados de Agostinho. Diz o hiponense “Quem me dera repousar em Vós! Quem me
dera que viésseis ao meu coração e o inebriásseis com vossa presença, para me
esquecer dos meus males e me abraçar convosco, meu único bem” (Conf. I 5). Este o
conflito marcante da espiritualidade agostiniana. Deseja-se Deus, anseia-se por
possuí-lo e amá-lo intensamente, todavia, o homem ainda se vê preso em sua
condição mortal, seus pecados passados. A condição pecadora do homem lhe
angustia, lhe coloca diante de um drama que apenas Deus pode sanar, como diz
Agostinho: “Minha alma é estreita habitação para vos receber; dilatai-a Senhor.
Ameaça ruína, restaurai-a. Tem manchas que ferem o vosso olhar. Eu o reconheço e
confesso. Quem há de purifica-la? A quem hei de clamar senão a Vós?” (Conf. I, 6). É
essa situação angustiante e dramática que confere o tom do itinerário de volta para
Deus.
A juventude e a mocidade são momentos fortemente marcados na vida de
Agostinho pela presença e pela força do pecado que lhe domina. Na medida em que
Agostinho coloca-se a lembrar e confessar seu passado, mais evidente fica o drama
diante do qual sua vida é lida:

616
Que coisa me deleitava senão amar e ser amado? Mas nas relações
de alma para alma, não me continha a moderação conforme o limite
luminoso da amizade, visto que, da lodosa concupiscência da minha
carne e do borbulhar da juventude, exalavam apores que me
enevoavam e ofuscavam o coração a ponto de não se distinguir o
amor sereno do prazer tenebroso (Conf. II, 2).

O borbulhar das paixões, a luxúria e os prazeres são elementos humanos. É


próprio do ser humano sentir a paixão e o prazer, realidades que Agostinho irá lutar
para eliminá-las em toda sua vida. Porém, já maduro, conclui que a luta contra sua
concupiscência não atingiu seu fim. Ela ainda está presente quando Agostinho, já
adulto e maduro, defronta-se com as tentações de modo honesto. Ao olhar para
essas tentações, ele admite prontamente que elas estão gravadas em sua memória
sob o signo de imagens que o atormentam durante o sono. Clama de modo
angustiado: “Meu Deus, não sou eu mesmo nessas ocasiões?” (Conf. X, 41). Agostinho
toma consciência de que mesmo na maturidade ainda não obteve aquilo que
desejava, isto é, a vitória final sobre as tentações, pois, gradualmente ele descobre
que não pode vencer sua própria humanidade (Conf. X, 41).
A longa lista de tentações citada no Livro X aponta para uma visão de que a
condição humana de Agostinho se vê sempre desnuda frente à perfeição que ele
almeja, mas que percebe ser incapaz de atingir, pois não pode vencer a si mesmo
nesta vida. Agostinho trava uma luta constante contra os prazeres dos sentidos,
contra o orgulho, o desejo de ser louvado e o amor próprio. Nas palavras do
hiponense, os males que habitam seu coração são como feridas que Deus é diligente
em curar e que ele não pode empenhar-se para aumentar (Conf. X, 64). A presença
destes males faz com que Agostinho perceba que o encontro com Deus não está além
de sua humanidade, mas no interior da mesma, isto é, percorre o caminho de
conhecer a si e seus limites, descobre que Deus o acompanha nesta empresa e é ele
quem ensina a perceber o que é bom e mau, o que se deve amar e rejeitar (Conf. X,
65).
O olhar para a interioridade em Agostinho é o empreendimento de volta de
uma humanidade decaída para a percepção da presença constante de Deus em seu
existir, É em Deus que a dispersão do pecado, a presença da tentação e o
reordenamento do amor ganham sentido e podem ser compreendidos como
elementos de salvação. A alma que busca incessantemente a Deus defronta-se com
momentos de doçura e especial devoção, mas também com sua miséria, mesmo

617
diante dos mais altos cumes da contemplação mística. O momento do arrebatamento
não isenta o homem do peso de sua existência (Conf. X, 65).
O olhar sobre as Confissões, na ótica de uma espiritualidade da volta para
Deus, coloca em evidência dois elementos constitutivos da antropologia agostiniana
que merecem atenção. Em primeiro lugar, percebe-se que a alma busca aquilo que
lhe falta, isto é, Deus. A busca por Deus não isenta o homem de confrontar-se
constantemente consigo mesmo reconhecer os seus limites, ter diante dos olhos a
própria constituição enquanto ser deficiente. As reiteradas motivações de Agostinho
para voltar ao interior de si mesmo, seja enquanto filósofo em busca da sabedoria,
seja enquanto homem espiritual em busca de Deus, denotam a indissociabilidade
que existe entre o homem que descobre a si e Deus que o habita.
Neste sentido, o voltar-se para si recomendado insistentemente por
Agostinho como elemento fundamental da espiritualidade desde o tratado De Vera
Religione até sua máxima expressão nas Confessiones, não se constitui como uma
fuga da humanidade e do mundo, mas numa tomada de consciência do que se é e
para onde se vai. As experiências extáticas de Agostinho, assim como todo itinerário
das Confissões, permitem perceber que o homem busca algo cuja posse lhe é
impossível nesta vida, mas o desfrute parcial, momentâneo e arrebatador lhe pode
corroborar a entrever no aqui e agora aquilo que será pleno no final. O retorno do
homem buscador a Deus que abre as Confissões, é concluído com a esperança do
encontro final que não anula os encontros pontuais que marcam a existência do
homem:
Também então repousareis em nós, da mesma forma que agora
operais em nós. Este nosso repouso será vosso por nós, assim como
são estas ações por nós, Senhor. [...] Nós, agora, somos inclinados a
praticar o bem, depois que o nosso coração o concebeu inspirado
pelo vosso Espírito. Mas ao princípio, desertando de Vós, éramos
arrastados para o mal. Contudo Vós, meu Deus e único Bem, nunca
deixastes de nos beneficiar. Com a vossa graça algumas obras
realizamos, mas essas não são eternas. Depois de as termos
praticado, esperamos repousar na vossa grande santificação (Conf.
XIII, 52-53).

Considerações finais
A amplitude das obras de Agostinho e sua densidade não permite que este
estudo esgote aquilo que se pretende abordar. Nas breves páginas que se seguiram
intentou-se colocar em evidência aspectos fundamentais do pensamento

618
antropológico do hiponense em conjunto com sua espiritualidade. A doutrina do
Pecado Original é um elemento fundamental na própria concepção de mundo cristã.
Ela justifica o mal e o sofrimento, como também traz à luz a condição humana em
sua dramaticidade. O Pecado, isto é, o mau uso da liberdade lança o homem na
aventura da vida e permite-o descobrir por si mesmo o amor ao transitório e ao
eterno. Esse caráter deficitário da natureza humana derivado do pecado abre a
possibilidade de uma experiência de Deus que se dá no próprio devir da vida, fruto
da tomada de consciência de que o humano é o locus no qual Deus é encontrado. No
mais íntimo do homem, no lugar onde ele se defronta consigo, com suas fraquezas,
com seus anseios e sua busca, Agostinho encontra Deus. Um Deus que preenche o
vazio deixado pelo pecado, que aponta para a plenitude, mas que compreende a
humanidade de sua criatura.

Referências
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Coleção Os Pensadores).

AGOSTINHO. A Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998 (Coleção Patrística).

AGOSTINHO. Catequese aos não-cristãos. São Paulo: Paulus, 2013 (Coleção


Patrística).

AGOSTINHO. Sobre a Ordem. São Paulo: Paulus, 2008 (Coleção Patrística).

619
HERMENÊUTICA FUNDAMENTALISTA E HERMENÊUTICA MÍSTICA:
UM ESTUDO SOBRE A LEITURA LITERALISTA DE WAHHAB E IBN
ARABI1

Carlos Frederico Barboza de Souza2

Resumo: A proposta desta comunicação é discutir, por meio de pesquisa bibliográfica, duas
formas literalistas de interpretação do Corão: a de Ibn Abd al-Wahhab e a de Ibn Arabi. Há
autores que associam a interpretação fundamentalista de um texto sagrado como sendo
literalista. E esta seria sua especificidade. Porém, místicos como Ibn Arabi também são
literalistas em suas abordagens de textos sagrados. O que diferencia esta abordagem
literalista entre estas dois autores, de modo que um seja considerado fundamentalista e
outro não? Wahhab é um dos teóricos importantes associados ao movimento wahhabita e
com grande influência na perspectiva religiosa do reino da Arábia Saudita ainda hoje.
Nasceu na região do Nejd, península Arábica, em 1703. Já Ibn Arabi nasceu na cidade de
Murcia, na Espanha, em 1165. Ambos são de tradição islâmica e a relação de ambos com o
Corão caracteriza-se como um elemento fundamental de suas expressões de fé. Para esta
discussão, após uma breve introdução biográfica acerca destes autores, passar-se-á a
abordar textos de ambos, apresentando como Wahhab faz uma leitura monossêmica do
texto sagrado e Ibn Arabi, por sua vez, mesmo sendo literalista, faz uma leitura que se abre
à polissemia dos vocábulos e expressões que compõem seu léxico árabe. Para fazer isto, ele
lança mão de recursos alusivos, metafóricos e simbólicos, assentado na lógica do mundus
imaginalis, descrito por Henry Corbin.
Palavras-chave: Wahhab; Ibn Arabi; Fundamentalismo; Hermenêutia Mística.

Introdução
Esta comunicação visa discutir comparativamente, pautado em uma
metodologia de análise bibliográfica, dois fragmentos de comentários do Corão de
duas obras de autores importantes da tradição islâmica, a saber, o Kitab al-tawhid,3
de Ibn Abd al-Wahhab (1703-1792), e o Fusus al-hikam, de Ibn Arabi (1165-1240).
É concepção difundida em diversos meios acadêmicos que a leitura fundamentalista
de um texto sagrado se pauta em uma abordagem literalista do texto. Entretanto, os
dois autores em questão utilizam-se de uma concepção que valoriza a literalidade

1 Comunicação decorrente de financiamento de demanda universal a projeto de pesquisa realizado


pela FAPEMIG, sob o número APQ-00769-17. Nesta pesquisa, agradeço a Gabriel Tupy Ferreira,
bolsista de iniciação científica e estudante da PUC Minas, que tem participado e colaborado na
pesquisa.
2 Doutor em Ciência da Religião pela UFJF. Instituição de origem: PUC Minas. E-mail:

fred@pucminas.br
3 No teor desta comunicação, optou-se por aportuguesar todos os termos árabes e não se utilizar de

transliterações. De igual maneira, as datações serão realizadas segundo o calendário gregoriano e


não segundo o calendário islâmico, contado a partir da Hégira.

620
do texto corânico, chegando, no entanto, a conclusões e perspectivas bem
diferenciadas. Assim sendo, pode-se perceber que o problema não está na
abordagem literalista de um texto em si, mas, antes, em como esta abordagem é
realizada: a que encontra um significado apenas no mesmo ou a que propicia uma
inflação dos termos contidos no texto em direção a uma leitura polissêmica do
mesmo.
Para desenvolver esta discussão, inicialmente partir-se-á de uma breve
apresentação de quem foram Ibn Abd al-Wahhab e Ibn Arabi. Em seguida,
apresentar-se-á as duas obras em questão: o Kitab al-tawhid e o Fusus al-hikam. Por
fim, estabelecer-se-á que a diferença entre as duas abordagens acerca do Corão se
deve, sobretudo, aos recursos alusivos e metafóricos sobejamente utilizados por Ibn
Arabi, a diferença de Ibn Abd al-Wahhab.

1. Ibn Abd al-Wahhab


Muhammad Ibn Abd al-Wahhab nasceu no oásis de Al-Uyayna, na região de
Nejd, em 1703. Foi educado na tradição hanbalita, a tradição mais conservadora
dentre as escolas jurídicas islâmicas sunitas e viajou por diversas localidades do
mundo islâmico de sua época em busca de um melhor aprendizado teológico: Meca,
Medina, Al-Ahsa, Basra, Bagdá, Damasco e Cairo, entre outras. Voltando para sua
terra natal, escreve o Kitab al tawhid, sua principal obra. Em 1740, é aceito pelo
governante local, membro do clã dos Saud, em seus princípios teológicos, de modo
que uma aliança político-religiosa é estabelecida e seguirá até sua morte em 1792.
Aliança esta que será fundamental na futura constituição do estado da Arábia
Saudita.

2. Ibn Arabi
Muḥammad ibn ‘Alī ibn Muḥammad al-’Arabī al-Ṭā’ī al Ḥātimī é um dos
pensadores mais influentes da segunda metade da história islâmica. A partir dele, o
Sufismo muda de orientação enfatizando a questão da unidade ontológica entre o
Real e o cosmo. Conhecido como Muḥyī al-Dīn (o revificador da Religião) e como
al-Šayḫ al-akbar (O maior dos mestres), nasceu em Múrcia, no sudeste da Espanha,
em 27 ou 28 de julho de 1165, tendo seus antepassados provenientes da tribo dos
Banu Tayyi’, originária do Nejd e lendária por sua generosidade. Ainda criança foi

621
morar em Sevilha e por volta dos 15 anos faz um retiro que será marcante em seu
percurso de iluminação. Após uma visão tida em 1198, em Múrcia, com 33 anos,
resolve deixar a Andaluzia rumo ao Oriente, quando percorre o Egito, a Síria e
Jerusalém, rumando para realizar sua peregrinação a Meca. Passa pela Anatólia,
Meca, Maghreb e Tunísia até se instalar em Damasco, onde passa seus últimos
quinze anos de vida e vem a falecer em 1240.

2.1. Kitab al tawhid


Esta obra, que traduzida livremente significa “O Livro da Unidade” ou
“Unicidade” [divina], foi escrita por Ibn ‘Abd al-Wahhab aproximadamente em 1740,
após o seu retorno ao Nejd. O livro contém 67 capítulos, nos quais o autor argumenta
sobre a importância do tawhid, condena atribuições ou associações (shirk) de outras
divindades com Allah, denuncia os perigos da idolatria a outras crenças e divindades
dentro do Islã e discute a importância da submissão a Allah e seus mandamentos.
Para isso, ao longo do livro, Wahhab cita trechos do Corão e passagens da vida de
Muhammad.
Esta obra possui a seguinte estrutura: 1. Citação de um texto corânico; 2.
Comentário do texto corânico; 3. Indicação dos benefícios do texto citado; 4.
Exposição sobre a relevância do texto citado em relação ao tawhid; 5. Citação de um
ou mais hadiths e, na sequência, segue a mesma estrutura presente nos comentários
corânicos. No final de cada capítulo faz apontamentos em tópicos a fim de instruir o
que deve ser extraído de essencial do texto sagrado pelos seus leitores.

2.2. Fusus al-hikam


Trata-se de importante obra de Ibn Arabi, escrita em Damasco já próximo ao
final de sua vida, em 1229, e que lhe foi revelada em um sonho no qual o profeta
Muhammad lhe dita seu conteúdo e lhe pede que transmita às pessoas seu conteúdo.
Nesta obra, que pode ser traduzida como “Os engastes da sabedoria”, são
apresentados 27 profetas, cada um representando um tipo específico de sabedoria,
de modo que nela se expõe certa tipologia místico-profética-sapiencial. Assim, cada
capítulo apresenta um profeta em particular e o associa a um tipo de sabedoria
específico, como a sabedoria do coração, a sabedoria transcendente, sublime, etc.
Além disso, é uma obra que se revela como uma leitura esotérica do Corão.

622
3. Hermenêutica fundamentalista e hermenêutica mística
A ideia que aqui se defende é que nas obras acima brevemente apresentadas,
de Wahhab e Ibn Arabi, encontramos dois modelos de leitura do texto sagrado: uma
fundamentalista4 e outra mística.
A fundamentalista, se caracteriza, sobretudo, no caso aqui estudado, por sua
monossemia, ou seja, por sua insistência em um único modo de se interpretar um
texto sagrado, sem recursos ao debate ou a concepções plurais. Wahhab sempre
estabelece o significado dos textos comentados a um apenas e a aplicabilidade deste
significado é limitada a uma interpretação necessária e exclusiva. Dela, derivam
verdades que trabalham na lógica da exclusão: isto não pode, como se pode ver
abaixo.
No Kitab al Tawhid, cap. 4, Wahhab cita o Corão: “E quando Abraão disse a
seu pai e a sua gente: sou inocente do que servis; Eu não sirvo senão a Quem me
criou. Ele me dirigirá” (C 43:26-27). Em seguida, o comenta: “Allah nos informa
nestes versos que Seu Mensageiro e Kalil (amigo íntimo), Abraão, disse a seu pai,
Aazar, e seus familiares que ele era totalmente isento de culpa e que se associava
unicamente a Allah, o único”. Após este comentário, relaciona alguns benefícios
decorrentes destes versos: “1. Que a base da Religião ensinada por todos os Profetas
era uma: Tawhid. [...] 5. Evidencia que o povo de Abraão costumava adorar Allah,
mas associava parceiros a Ele” (WAHHAB, 1998, p. 41-43. Tradução nossa).
Por sua vez, a perspectiva mística vai na direção contrária, na qual o texto
sagrado é lido de forma polissêmica. Podemos ver esta realidade no capítulo 5 do
Fusus al-Hikam, intitulado “A sabedoria de um amor apaixonado segundo o verbo de
Abraão”:
Abraão é chamado [no Corão] de “Amigo íntimo” [de Deus: khalil
Allah] porque ele “penetrou” e assimilou as Qualidades da Essência
divina, como a cor que penetra um objeto colorido, de modo que o
acidente confunde-se com a substância, e não como algo extenso
que ocupa um dado espaço; ou ainda, seu nome significa que Deus
(al-haqq) penetrou essencialmente a forma de Abraão. Cada uma
destas duas afirmações é justa, pois cada qual visa um certo aspecto
[do estado de que se trata], sem que estes dois aspectos sejam
cumulativos. Não vemos que Deus Se manifesta nas qualidades dos
seres efêmeros, como Ele próprio o afirma [nas palavras divinas],
que Ele Se manifesta mesmo nas qualidades de imperfeição e nas
qualidades reprováveis [ou que são tais quando reportadas ao

4O termo fundamentalismo, quando aplicado ao Islã, exigiria algumas considerações, que não serão
possíveis no curto espaço desta comunicação.

623
homem, como a inveja e a cólera por exemplo]? Por outro lado, a
criatura se manifesta com as Qualidades divinas, atribuindo-as a si
mesma, da primeira à última; elas pertencem verdadeiramente à
criatura; da mesma forma, as qualidades dos seres efêmeros
pertencem verdadeiramente a Deus. “A louvação é para Deus”
(Corão, I, 2): vale dizer que, em definitivo, toda glória, de tudo o que
louva e de tudo o que é louvado, dirige-se apenas a Deus. “A Deus
retorna toda realidade (amr)” (Corão, XI, 123): esta palavra
compreende tanto o louvável quanto o reprovável; um não existe
sem o outro (IBN ARABI, s/d, p. 39).

Neste comentário de Ibn Arabi acerca de Abraão como “Amigo íntimo de


Deus”, ele propicia um diálogo entre o texto corânico e as concepções nascidas de
sua experiência mística. Assim, o texto será lido a partir da perspectiva das
“Qualidades da Essência Divina” que “penetram” as demais realidades cósmicas,
inclusive a pessoa de Abraão e também as qualidades imperfeitas e reprováveis.
Além disso, neste comentário, ele compreende de uma forma complexa a relação
entre Abraão e Allah, pois ambos mutuamente se interpenetram um no outro. O
louvável e o reprovável andam juntos, de modo que um não vive sem o outro. Não
se trata de uma lógica da exclusão, mas de uma lógica da inclusão, em que ao mesmo
tempo duas realidades coexistem e não se contradizem, embora assim o pareça. E
ao propor este tipo de leitura, Ibn Arabi acaba por expandir a compreensão da noção
de “Amigo íntimo de Deus”, que difere em muito da compreensão wahhabita que
insiste na reprovação do povo de Abraão. Segundo a lógica deste capítulo do Fusus,
embora Ibn Arabi não esteja comentando a mesma aleia, o Real (al-haqq) também
se manifesta no povo de Abraão, apesar de por meio de uma maneira diferente.
Neste processo de discussão, o texto se amplia em seus significados, propiciando que
se acesse um “excesso de significado”.
Ibn Arabi consegue esta hermenêutica mística porque é devedor de uma
lógica imagética e do imaginal, segundo expressão feliz de Henri Corbin. Esta lógica
é desenvolvida pela intuição que se abre ao desvelamento interior (kashf),
revelando-se como intuição mística e esotérica (ta’wil).

Referências
BOWEN, Wayne H. The History of Saudi Arabia. Westport: Greenwood Press, 2008.

CRAWFORD, Michael. Ibn ‘Abd al-Wahhab. [S. l.]: Oneworld Publications, 2014.

624
HAJ, Samira. Reordering Islamic Orthodoxy: Muhammad ibn ‘Abdul Wahhab. In: HAJ,
Samira. The Muslim World. [S. l.: s. n.], 2002. p. 333-370.

IBN ARABI. The bezels of wisdom. Translation and introduction by R. W. J. Austin.


New York: Paulist Press, 1980.

IBN ARABI. A sabedoria dos profetas. Sem especificação de tradutor. [S. l.; S. d.]

V.V.A.A.. The Encyclopaedia of Islam. Leiden: E. J. Brill, 1979.

WAHHAB, Muhammad Ibn Abdul. Kitab al-tawheed explained. Riyadh: International


Islamic Public House, 1998.

625
HUMANA COMO PRESSUPOSTO DA MENSAGEM CRISTÃ

Drance Elias da Silva1

Resumo: A teologia, como reflexão crítica sobre a fé e sobre a práxis, quer nos levar a uma
compreensão nova de Deus e de nossa identidade cristã. Mas, além da compreensão da fé,
temos necessidade de algo que envolva a totalidade de nossa vida. Precisamos de uma
espiritualidade e, mais precisamente, de uma espiritualidade de libertação; espiritualidade
essa que envolva o indivíduo de ânimo para com a defesa da vida, sobretudo, a defesa da
vida dos pobres que merecem a centralidade do nosso compromisso. A pergunta central é:
em que essa espiritualidade consiste? Como uma espiritualidade centrada no amor de
justiça pode agir em um mundo que sofre de desamor social? O que está na base da
mensagem cristã, senão, a defesa da vida humana? Apartar-se da convivência que exige uma
relação face a face com o outro é caminho de compromisso com a vida? A resposta não deve
ficar apenas por conta de teólogos, mas, também, por parte de todos aqueles e aquelas que
estão empenhados(as) no compromisso evangelizador e de perspectiva transformadora da
vida e da sociedade. O objetivo dessa comunicação consiste numa visita reflexiva a noção de
Espiritualidade à luz da Teologia da Libertação, destacando algumas características
significativas da Espiritualidade da libertação cristã, como a conversão a Deus, a vida e ao
pobre.
Palavras-chave: Espiritualidade; Fé cristã; Teologia da Libertação; Amor de justiça;
Compromisso social.

A perspectiva libertária da fé
Numa perspectiva teológica libertária, a experiência pessoal da fé, toda a
realidade pessoal, comunitária, social e cósmica é perpassada pela presença divina,
assim como inserida em um contexto de projeto histórico do Deus dos cristãos. A
adesão a um Deus de libertação, que inspira uma mística de abertura ao “outro”, não
fica restrita ao pertencimento no espaço do religioso e eclesial (SILVA, 2018, p.
79/81).
A busca pela justiça de Deus está posta sob a inspiração de exprimir o desejo:
a transformação do mundo. Os ideais sociais modernos, por exemplo, a liberdade, a
participação, a fraternidade, a solidariedade, o respeito à diferença, à dignidade das
pessoas, o cuidado pelos fracos, estão colocados como pressupostos da mensagem
cristã. A fé nessa perspectiva exprime compromisso. Assim, a espiritualidade bem
como sua reflexividade teológica libertária não corre risco de viver no vazio de

1Graduação em Filosofia (UNICAP) e Teologia (ITER), Mestrado e Doutorado em Sociologia (UFPE).


Pós-doutorado pela Escola Superior de Teologia – RS (Faculdades EST). Atualmente é professor do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e do Bacharelado em Teologia da Universidade
Católica de Pernambuco. País de origem: Brasil. E-mail: dranceelias1991@gmail.com.

626
piedosas abstrações, pois encontram na base do compromisso o meio eficaz de sua
efetiva encarnação.
A tarefa da fé, sob tal ótica, não é vista e entendida como uma abstrata
afirmação da existência de Deus, mas o discernimento concreto do Absoluto. Nesse
discernimento, a fé em sua relação com a vida, é tratada como matéria de amor.
O Deus de Jesus, sabemos, age e fala pelos profetas, na coragem dos que são
capazes de questionar e se opor à situação de morte de milhões de pessoas, no
anúncio dos que proclamam a esperança e nas propostas alternativas dos que se
preocupam com a vida e a natureza (Cf. MUÑOZ, 1986, p. 187s). Em todas as nações
prósperas, a má vontade de fazer alguma coisa para combater a pobreza tornou-se
cada vez mais evidente (Cf. MOORE, 1999, p. 236).
A perspectiva libertária de uma espiritualidade aberta ao diálogo e a
participação com o diferente, exige sintonia com a perspectiva originariamente
cristã:
O amor cristão, como o de Jesus no seu tempo, não desconhece o
conflito da história humana. Assumi-o, propondo uma superação
pelo afrontamento real, aceitando, na luta, o desafio e o julgamento
da história. Esta é a lição da vida, Paixão e Morte de nosso Senhor
Jesus Cristo, realizador do designío do Pai, em meio à história
concreta dos homens (CAVALHEIRA, 1980, p. 37).

Algumas características da Espiritualidade de Libertação


Em primeiro lugar, o processo de libertação exige da pessoa a conversão a Deus
e ao pobre, isto é, à pessoa humana explorada, oprimida, aos doentes e
marginalizados. A conversão exige uma ruptura por causa de Cristo e do Evangelho:
Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua
cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-
la; mas o que perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho,
vai salvá-la. Com efeito, que aproveita o homem ganhar o mundo
inteiro e arruinar a sua vida?” (Mc. 8, 34-36). “Aquele que ama pai
ou mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10, 37).

A virada nos parece ser total e radical.


Trata-se de uma ruptura com nossa concepção do mundo, da nossa
maneira de nos relacionarmos com os outros, com a maneira velha
com que nos relacionamos com o Senhor e Deus, com o nosso
ambiente cultural, com nossa classe social, ou seja, com tudo
quanto é obstáculo a um relacionamento de solidariedade real e
profunda com aqueles que se encontram esmagados e sofridos
numa situação de miséria e injustiça. Conhecer a Deus significa
praticar a justiça (GUTIERREZ, 1980, p. 204).

627
O conhecimento na perspectiva bíblica não é apenas acontecimento
intelectual, é por certo, o encontro com o outro. Assim, não pode encontrar-se com
Deus, relacionar-se com Ele quem pratica a injustiça, maltratando o pobre que Deus
privilegia.
Reconhecer Cristo no pobre e dirigir-se para ele constitui para o cristão um
verdadeiro encontro espiritual, místico. Esse ensinamento de Cristo (Cf. Mt. 25, 31-
46) sempre esteve presente na consciência e na prática dos grandes cristãos, como
por exemplo, São Francisco de Assis que, no começo da sua conversão a Deus,
quando ainda não conhecia o Senhor, como ele humildemente vai confessar ao ver
um leproso no seu caminho e que, mais tarde, Francisco convenceu-se que havia
encontrado o próprio Cristo. Além da lenda piedosa, fica a verdade profunda da
presença mística de Cristo no pobre e a lição a ser aprendida.
Em Puebla, vale aqui lembrar, os bispos refletiram sobre a realidade latino-
americana expressando a mesma fé da presença mística de Cristo nos pobres. Diz o
documento: “Essa situação de extrema pobreza generalizada adquire, na realidade,
feições muito concretas, nas quais deveríamos reconhecer os traços do Cristo
sofredor, o Senhor que nos questiona e interpela” (nº 31). E enumera
detalhadamente as “identidades coletivas” desses rostos: rostos de crianças, rostos
de jovens, rostos de indígenas, rostos de trabalhadores e desempregados... (Cf. os
números 31-44 e 51-62 do referido Documento de Puebla).

Uma espiritualidade da gratuidade


Isso significa que nosso compromisso com os outros não espera retorno: é
gratuito. Lembremos: o terreno do Espírito é o da liberdade: “de graça recebeste, de
graça dais” (Mt. 1,8), recomenda Jesus aos seus discípulos. O amor de Deus para os
pobres é gratuito e o nosso amor ao pobre passa por Deus. Descobrimos o pobre a
partir da nossa fé em Deus, e por causa dela nos solidarizamos com as pessoas
sofridas. O nosso amor, passando por Deus deve-se purificar e universalizar, deve
tornar-se gratuito.

628
Uma espiritualidade da alegria
A alegria nasce da fé-esperança na salvação de Deus, que com certeza
realizar-se-á. O profeta Baruc anuncia ao povo deportado o dia da libertação, que
será dia de grande alegria:
Levanta-te, Jerusalém, sobe a um lugar elevado e olha na direção do
Oriente: contempla os teus filhos, reunidos pela palavra do Deus
Santo, desde o Oriente até o Ocidente, exultantes de alegria porque
Deus se lembrou deles. Saíram de ti a pé, arrastados por animais,
mas Deus agora os traz de volta a ti, transportados com glória, como
num trono de rei (Bar. 5, 5-6).

Assim, a alegria nasce da vitória de Javé sobre os opressores de seu povo;


para nós cristãos a alegria é pascal, profundamente enraizada no âmago da nossa fé.
Se os pobres, hoje, choram, amanhã rirão (Lc. 6,21), e “esse riso se revela como
expressão de uma profunda confiança no Senhor... É a alegria subversiva de um
mundo de tantas opressões, que por isso mesmo inquieta o dominador, denuncia o
medo dos vacilantes e revela o amor de Deus da Esperança” (Cf. GUTIERREZ, 1981,
p. 58).

Uma espiritualidade tendo por fonte o Evangelho


Frei Beto em um de seus artigos sobre Fé e Política (1989, p. 28-29), reflete,
na perspectiva de uma práxis cristã, que é no Evangelho que se deve procurar a fonte
da espiritualidade. Jesus anunciou uma espiritualidade que se abastecia na
intimidade amorosa com o Pai e no contato direto com o povo. Os Evangelhos
mostram Jesus entregue a uma intensa atividade pública (Mt. 9,35) que não o
impedia de ficar horas em oração (Lc. 6,12), sobretudo em momentos de opções
decisivas. Sua disposição ao serviço ao povo e sua fé reabasteciam-se no exercício
da gratuidade amorosa que é a oração pessoal e comunitária. Ao que parece, ainda
os cristãos não sabem rezar. Fala-se de Deus, sobre Deus ou a Deus, mas quase não
há espaço para que Ele fale “em nós mesmos” (Rom. 8, 26-27). O desafio é saber
encaixar, na luta diária, o momento da oração. Sem esse espaço da gratuidade corre-
se o risco do desumanizar-se, endurecer, perder o senso autocrítico e passar a
racionalizar as próprias incoerências. Por essa atitude, toda diferença aparece como
divergência; toda crítica, como ataque; todo concorrente, como inimigo. Uma
espiritualidade centrada no Evangelho passa pela descoberta da relação entre
conflitividade, oração e ação. E isso exige consciência do amor a Deus:

629
Mais do que crer em Deus trata-se de crer que Deus nos ama. Crer
que Deus nos ama estabelecendo a justiça e o direito nesta história
conflitiva que é a nossa. Crer é amar a Deus, ser solidário com os
pobres e explorados deste mundo a partir do centro dos confrontos
sociais, das lutas populares pela libertação. Crer é, como Jesus,
anunciar o Reino a partir da luta pela justiça que o levou à morte.
Evangelizar é transmitir essa fé em um Deus irredutível, que exige
uma atitude de confiança e que reconhecemos em suas obras
libertadoras, em seu filho feito história humana (Conf. Episcopal
Latino-Americana, 1979, p. 34/35).

Nesse mesmo espírito e entendimento, Méier (2006), faz alusão aos discípulos de
Jesus quando eles pedem para que o mestre os ensine a rezar. O mestre então
começa rezando...
“Pai nosso”, revelando-nos que a fraternidade deve ser uma das
colunas mestras de nossa vida e da sociedade. [...]. A oração de Jesus
revela que o nome de Deus será santificado por nós quando
estivermos comprometidos com a construção da vida, quando
formos mediadores para que ele possa reinar no amor, na
misericórdia e na justiça que gera a paz. No centro da oração está o
pedido de o “pão nosso de cada dia” para que a vida de todos,
principalmente dos mais pobres, seja defendida e garantida. Esse
ensinamento “re-ligioso” (porque re-liga, re-lê, re-elege) deve ser a
base e, ao mesmo tempo, a coluna da ética. Ética e religião são
temas centrais no processo de humanização das pessoas e na
solução de nossa crise econômica e social (MÉIER 2006, p. 56/56).

A pessoa humana como pressuposto da mensagem cristã


A Ética Cristã tomo como fonte de inspiração o Evangelho. Partindo do
princípio de que o pressuposto da mensagem cristã é a pessoa humana, afirmamos,
portanto, que, a base de toda construção ética, cujo campo é a prática, se baseia nesta
pressuposição: a ética surge quando emerge diante de nós o outro. A prática de Jesus
não deixa dúvida quanto a essa afirmação. Mas, esse pressuposto, supõe uma base
fundamental: o amor a Deus. No Evangelho existem princípios fundamentais e
recomendações pastorais, mas não regras fixas. O horizonte primordial da ética
cristã é o Reino de Deus, e a máxima fundamental no Reino é o amor a Deus, ao
próximo e a si mesmo.
Um professor da lei estava ali ouviu a discussão. Viu que Jesus tinha
dado uma boa resposta, e por isso perguntou: – Qual é o mais
importante de todos os mandamentos? Jesus respondeu: – É este:
Escute povo de Israel! O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor.
Ame o Senhor seu Deus com todo o coração, com toda a alma, com
toda a mente e com toda as forças. E o segundo mais importante é

630
este: Ame os outros como você ama a você mesmo. Não há outro
mandamento mais importante do que esses dois (Mc. 12, 28-31).

A prática do amor é fundamental. Se não se exercita viver no amor de forma


cotidiana entre as pessoas, não é possível afirmar que em verdade se ame a Deus.
Ama-se a Deus e reconhece-o na prática do amor entre os seres humanos.
Finalmente, a redação desse mandamento em Marcos, apresenta o “a si mesmo”
como terceira dimensão da prática do amor. O amor a si mesmo, isto é, a
preocupação que as pessoas devem ter por si mesmas é posterior ao amor a Deus e
ao próximo. É uma advertência contra o egoísmo de colocar-se em primeiro lugar.
Essa maneira de falar não quer dizer tampouco que o ser humano se abandone a si
mesmo, que não se preocupe com sua própria sorte ou segurança. Deve fazê-lo
sempre. Todos devemos amarmo-nos, mas, de modo algum é a ocupação primeira
na prática do amor divino. O amor ao próximo tem a ver não apenas com o amor
próximo como pessoa ou indivíduo, mas com a comunidade e o povo ao qual se
pertence. O amor ao próximo tem a ver com as relações humanas no sentido amplo,
com o mundo da família, as justas relações sociais, o trabalho, a economia. A partir
dessa perspectiva, veremos que o amor ao próximo vai muito além do que
comumente costumamos praticar.

Conclusão
Portanto, nosso percurso até aqui, buscou expressar uma visão de
espiritualidade focada em torno do amor a Deus, da justiça feita ao pobre, do
reconhecimento das suas lutas, da força que transborda impacientemente a
indignação. Essa espiritualidade de libertação que toma a pessoa humana como
pressuposto da mensagem evangélica, é a que se revela da experiência da injustiça
social dos sujeitos. Essa perspectiva é sinal de permanência firme no amor, no
direito e na solidariedade ao outro que sofre. Eis o sentido dessa espiritualidade, sua
mística bem como o sentido de sua oração.

Referências
CAVALHEIRA, D. Marcelo. (Relatório). A propósito do III Encontro de Agentes e
Animadores da Pastoral de Juventude do Nordeste, onde se discutia “Pastoral de
Juventude vs. Meios Sociais, 1980.

631
SILVA, Drance Elias da. A fé como expressão de compromisso com a vida, a justiça e
a cidadania. In: Fronteiras. Revista de Teologia da UNICAP. Recife v 1 n. 1 p. 79/81
jan/jun 2018.

GUTIERREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981.

GUTIERRES, Gustavo. Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1980.

MEIER, Célio. A educação à luz da pedagogia de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulinas,
2006.

MUÑOZ, Ronaldo. O Deus dos Cristãos. Petrópolis: Vozes, 1986.

MOORE, Barrignton. Aspectos Morais do Crescimento Econômico. Rio de Janeiro:


Record, 1999.

632
A REGRA DOS CLÉRIGOS: MÍSTICA EDUCATIVA DE SANTO UBALDO DE
GÚBBIO E PADRE CÍCERO DE JUAZEIRO

Jonh Anderson Rodrigues de Morais1

Resumo: Ubaldo, muito venerado na Cidade de Gúbbio, nasceu em 1085, foi bispo e
reconstruiu a cidade. A educação moral, espiritual, cultural e disciplinar era a regra vivida
pelos Cônegos Regulares, neste aspecto, Ubaldo foi um místico reformador: um educador.
Por outro lado, Padre Cícero de Juazeiro, o santo popular que fazia milagres, nasceu em 1844
na cidade de Crato. Muito jovem foi atraído pela vocação sacerdotal. Chegando ao vilarejo
chamado Tabuleiro Grande, ali construiu a cidade dando-lhe o nome de Juazeiro, neste local
morou mais de 60 anos de sua vida. Com base nesses contextos, o estudo tem como
referência uma série de artigos na obra: “sant’ Ubaldo e la Regula Clericorum: um
insegnamento oltro tempo”, colocado em confronto com a biografia “Padre Cícero de Juazeiro
Santo dos Pobres Santo da Igreja”, de Annette Dumoulin. Utilizou-se a metodologia
especulativa através de leituras e fichamentos. Nesse sentido, refletimos que, o Padre Cícero
foi fiel a seu povo, o fundador de Juazeiro juntou milhares de sertanejos ao seu arredor.
Fenômeno extraordinário como esse aconteceu também na Itália, com o Santo Ubaldo em
Gúbbio, embora, já se tenham passado mais de 800 anos de sua morte os peregrinos ainda
podem venerar o seu corpo incorrupto no santuário construído sobre o monte Ingino.
Portanto, o estudo tem como objetivo apresentar a Regra Canonical, um caminho sólido
para a educação no comprometimento com os mais pobres, para tanto, nos espelhamos,
para tal discussão, na história de vida dessas figuras veneradas hodiernamente.
Palavras-chave: Ubaldo; Cícero; Educação; Romeiros; Fenômeno Religioso.

Introdução
Não faz muito tempo que o Padre Cícero de Juazeiro, ainda era considerado
pelo clero como um padre rebelde e excomungado. Mesmo com essa má fama por
parte dos clérigos é cada vez mais o padrinho do Nordeste, o intercessor junto a
Deus que abranda os problemas da vida. A nação romeira não dava atenção às
normas eclesiásticas. Então veio a Congregação das Cônegas de Nossa Senhora que
apoiando e ajudando o padre Murilo se empenharam a reverem toda a situação
eclesiástica histórica de Padre Cícero com a ajuda de muitos colaboradores. A
atenção dos bispos como dom Delgado, dom Fernando Pânico fizeram com que se
acelerasse o processo de reconciliação do Padre Cícero que recebeu recentemente a
permissão da Santa Sé para o seu processo de Beatificação.

1 Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Mestrando no PPGT.


Graduado no curso livre de Filosofia do Centro Acadêmico São João Maria Vianney, Campina Grande,
Paraíba; Padre religioso da Ordem dos Cônegos Regulares Lateranenses.
andersonjonhmorais@outlook.com.

633
Há mais de 700 anos antes da vida de Padre de Cícero, nascia na cidade de
Gúbuio, Ubaldo, um grande reformador, com sua vida toda coerente e de oração.
Tornou-se o bispo da cidade, reconstruindo-a após o incêndio. Toda a redondeza e
a própria cidade venera-o de forma tão peculiar que as manifestações que ocorrem
a cada ano no dia 15 de maio são de grande proporção religiosa, folclorista e civil.
Dado isso, a proposta desse trabalho é analisar a Regra dos Clérigos: uma mística
educativa de Santo Ubaldo e Padre Cícero do Juazeiro. Nesse viés, tem como objetivo
analisar o fenômeno religioso que ocorre ao redor do povo eugubino e juazeirense.
Nosso aprendizado levou também a descobrirmos pontos de semelhanças na
atuação pastoral de Santo Ubaldo e Padre Cícero ao serem conselheiros e
impactarem na vida sócio-política e econômica cada qual em sua época.
O trabalho está dividido em três momentos, no primeiro tópico será
apresentada a vida de Santo Ubaldo. No segundo tópico a vida de Padre Cícero de
Juazeiro. Em seguida, serão apresentados os paralelos feitos na perspectiva da
mística dos Romeiros que até hoje agradecem a ambos os Pastores que deram a vida
pela cidade de qual podem ser considerados os fundadores e idealizadores.

1. Ubaldo de Gúbbio
Ubaldo, muito venerado na Cidade de Gúbbio, onde nasceu, provavelmente
em 1085, tinha ficado órfão quando ainda era recém-nascido, por esta razão sua
primeira educação foi cuidada por um tio e pela comunidade de São Segundo, em
Gúbbio, a qual o tio o entregara. Foi bastante natural nele o amadurecimento do
amor à vida Canonical. Conforme Fanucci (2019, p. 111): “Santo Ubaldo se dedicava
as escrituras e temos prova disso nas três razões apresentadas pelo jovem Ubaldo
para justificar a sua opção pelo celibato, todas ligadas ao Evangelho: Bíblia, Teologia,
Regra Portuense.”
Alunno (2019, p. 24) afirma que em Gúbbio se encontrava três sedes da vida
Comum dos Cônegos: a canônica de São Segundo; a canônica de São João e a canônica
de São Mariano. Essa última se distingue das demais, por ser a sede do bispado de
Gúbbio e onde Santo Ubaldo introduziu a Regra Portuense.
Guglielmi (2010, p. 85) conta que vizinho a Gúbbio encontra-se em Fonte
Avelana, onde São Pedro Damiani vivera, rezara, trovejara e escrevera para repor no
centro da vida da igreja “o modelo da Igreja primitiva”. O prior de Fonte Avelana,

634
uma vez eleito bispo de Gúbbio, quis perto de si o jovem cônego de São Segundo:
Ubaldo Baldassini, que, por sua vez, foi feito prior e, portanto, responsável da
comunidade canonical da catedral, sentiu necessidade para pôr ordem nesse
ambiente, de encontrar uma norma, uma regra de Vida, conforme o espírito da regra
gregoriana.
A regra de Vida Comum, impregnada de muitos momentos de oração, quer
ser fiel à regra bíblica que diz: “Sete vezes ao dia eu te louvo por causa de tuas
normas justas” (Sl 119 (118), 164), mas que de uma tradição antiga do número 7
passado ao número 8, já que ao fim do dia a comunidade se reúne no chamado
Capítulo canonical. A oração, a reunião da comunidade têm como finalidade a
adoração a Santíssima Trindade a contemplação da obra divina, mas também o
caminho de concórdia (MONFRINOTTI, 2019, p. 38-41).
A vida comum do Clero que os cônegos Regulares aspiravam era uma forma
rígida que assume a viver juntos compartilhando espaços vivendo a espiritualidade
e assumindo os desafios, desse modo, afirma Guglieme (2010, p. 85) Ubaldo
endereçou-se a Ravena, onde, na igreja de Santa Maria em Porto, florescia a Vida
Comum dos Cônegos ao redor da figura de Pedro de Onesti. Ele compusera uma
regra para seus confrades que fora aprovada pelo Pascoal II. Na assinatura ao pedido
de aprovação, Pedro escrevera: “Petrus peccator clericus”: por isso lhe permaneceu
o curioso e sugestivo apelido de Pedro, o Pecador. Essa Regra foi adotada em muitas
casas de Cônegos Regulares, na Itália a exemplo dos Cônegos Regulares de São
Frediano de Lucca (GUGLIEMI, 2019).
Em Santa Maria, em Porto, Ubaldo quis se dirigir pessoalmente, procurava
uma regra, mas também uma experiência, um exemplo vivo: codividir, levantar
questões, procurar respostas. Por duas vezes, diz a lenda, “Santo Ubaldo foi
atormentado pelo demônio no caminho de volta, com estratagemas e fastios: o
demônio não queria que o manuscrito chegasse a Gúbbio” (GUGLIEMI, 2010, p. 86).
A canônica é um centro também educacional; onde prevê que as crianças sejam
educadas com as santas instruções cristãs. Giglio (2019) atesta que o principal
aspecto da formação para o novo membro admitido a vida da canônica, ocorre
quando um jovem abraça radicalmente a vida comum e vai sendo instruído nas
Sagradas Escrituras e aprendendo o valor da humildade.

635
Não foi uma aventura fácil a reforma da catedral de Gúbbio, nem podia ser
suficiente somente a regra sem a coragem, a determinação e a doçura do santo, mas
ela foi encaminhada. E, uma vez feito bispo de Gúbbio, o Santo bispo foi o cerne da
comunhão entre seu clero. A sua popularidade notória veio por ser reconhecido
como santo da reconciliação, pois construiu a cidade com uma infraestrutura de
pedras, que até os tempos atuais podem ser admiradas. O poder de Santo Ubaldo
manifestou-se, sobretudo, na expulsão dos maus espíritos.

2. Padre Cícero de Juazeiro


Cícero Romão Batista era o seu nome. Nascido no dia 24 de março de 1844,
filho de Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana. Ele, desde criança,
chamava a atenção dos adultos por sentir-se atraído pela oração. Dumoulin (2017,
p. 54) atesta que com a idade de 12 anos tomou a decisão de conservar a virgindade
e a castidade influenciado pela leitura da obra prima Introdução a vida devota, de
São Francisco de Sales.
O jovem Cícero foi para o Seminário de Fortaleza que era dirigido pelos
padres Lazaristas e depois de muitas dificuldades foi ordenado no dia 30 de
novembro de 1870, aos 26 anos. Desapegado das coisas materiais, desde estudante,
conservou essa virtude até o final da existência. Em 1869, a maneira de
evangelização no Cariri do Padre Mestre Ibiapina incomodou o bispo da recém-
criada diocese de Fortaleza. Dom Luiz o proibiu de visitar as fundações das Casas de
Caridade no Vale do Cariri. Para essa “Fundação de Beatos e Beatas” o Padre Ibiapina
escreveu uma espécie de “Regra”. Essa pode ser encontrada no livro: Instruções
Espirituais do Padre Ibiapina que em uma de suas máximas conclama: “Não tem tudo
feito que tem ainda o que fazer; portanto não nos contentemos com o que fizemos,
por não termos pago a dívida toda, que devemos” (IBIAPINA, 1984, p. 27).
Assim, para o Padre Cícero como para a região do Ceará; a expulsão do Padre
Ibiapina foi vivida com grande desolação. Porém, “como Ibiapina o Padre Cícero
recrutou, desde o início algumas moças solteiras ou viúvas do povoado, algumas
delas tinham sido beatas do Padre Mestre, nas casas de Caridade do Vale do Cariri”
(DUMOULIN, 2017, p. 84). De certo modo o Padre Cícero adota a Regra de Padre
Ibiapina, preocupando-se com a educação de moças pobres e marginalizadas. As
beatas eram empreendedoras como a Beata Joana Tertuliana de Jesus, conhecida

636
como Mocinha, ou professoras como a Beata Isabel da Luz; dentre elas tinha a mais
jovem e ainda analfabeta: a Beata Maria de Araújo. Conforme Dumoulin (2017) havia
dias que a casa do Padre Cícero repartia a mesa com umas 30 pessoas de todas as
classes sociais.
Foi no dia 6 de março de 1889, Padre Cícero já morava no vilarejo de
Tabuleiro Grande, havia sido um ano de seca, a Beata Maria de Araújo ao receber a
comunhão das mãos do Padre Cícero, “ela caiu por terra sem nenhuma explicação.
No mesmo momento, a hóstia caiu-lhe da boca e ficou no chão. Ora a hóstia estava
tingida de sangue” (COMBLIN, 2011, p. 17). Esse fato causou admiração nos
presentes, dando início as Romarias da cidade e sua grande construção. O bispo dom
Joaquim ao ter conhecimento dos fatos ocorridos no Juazeiro não aprovou. E em
1891 enviou uma comissão de inquéritos que durou um mês, no qual foram
interrogados: 10 beatas, 8 padres e 5 civis. Essa primeira comissão concluiu que era
um fato sobrenatural. Porém, em 1892, dom Joaquim formou uma nova comissão,
nesta afirmaram que não havia milagre em Juazeiro, e por isso, em 05 de agosto de
1892 suspendeu de ordens do Padre Cícero.
O fato é que o povo acorria numeroso ao Juazeiro. No dia 21 de junho de 1897,
o Padre Cícero recebe a portaria de excomunhão se não saísse em dez dias do
Juazeiro; logo em seguida se exila em Salgueiro, Pernambuco; por prudência já
escreve ao bispo de Olinda e em seguida parte para a Itália para rever a sua situação;
um detalhe é que nesse mesmo ano ocorre a canonização de São Pedro Fourier
cônego regular. Em 27 de abril de 1898 Padre Cícero se apresenta aos membros do
Santo Oficio, promete guardar silêncio obsequioso e ordenar silêncio a todos os
seguidores. No mesmo ano, dia 1º de setembro, dom Joaquim recebe a sentença do
Santo Ofício. Padre Cícero recebia a licença de celebrar missa em Roma e,
dependendo do bispo também no Ceará, foi recebido, em brevíssima audiência com
Leão XIII (DUMOULIN, 2017, p. 145-143). Mas a volta à diocese não foi tão feliz. O
bispo não viu essa atitude com bons olhos. Entretanto, quanto mais crescia a
perseguição, mais o povo defendia o seu “Padim”, chamado assim porque: “Não
podendo confessar e pregar, ele passou a apadrinhar todas as crianças que eram
batizadas e assim, se tornou padrinho de todos” (COMBLIN, 2011, p. 25).
Todos os dias na frente da janela de sua casa ao entardecer rezava o rosário;
e em seguida dava conselhos, exortações e advertências ao povo. O dinheiro

637
abundava em suas mãos. Estimulou a abertura de cacimbas, ensinou ofícios comuns
de: carpinteiro, pedreiro, ferreiro, marceneiro. De acordo com Comblim (2011, p.
42), “abriu doze escolinhas particulares. Abriu o primeiro orfanato (1916) e
colaborou na instalação da Primeira Escola Rural (1932). Costumava dizer: ‘cada
casa deve ser um santuário, uma oficina e cada quintal uma horta’”.
Desse modo, o Juazeiro foi crescendo e se tornando o refúgio dos pobres.
Logicamente para viver a vida Comum perfeita, não é estritamente necessário que
haja uma coabitação como aconteceu em Jerusalém, mas é preciso aquela ação
comunitária que regre pela fé e pela caridade. Desse modo, os versos aclamam: “Meu
padrinho é padre santo/ Como ele outro não há/ Pois tudo o que ele recebe/ Tudo
de esmola dá” (COMBLIN, 2011, p. 44).

3. Os romeiros de Gúbbio e Juazeiro


Após a breve exposição histórica da vida de Santo Ubaldo e Padre Cícero de
Juazeiro, os acenos feitos a dedicação de cada um pela sua cidade, na instrução, na
educação e na Regra de vida adotada cada qual a seu modo, apresentemos desse
modo a convergência popular.
Sabe-se que o bispo Ubaldo buscou a Regra dos Clérigos de Pedro para a
reforma dos clérigos na diocese de Gúbbio (MONFRINOTTI, 2019). E o manuscrito
das “Crônicas da Casa de Caridade” de Padre Ibiapina o pesquisador Hoornaert
recebeu das mãos de dona Amália Xavier, que já o recebera do doutor José Marrocos,
primo do Padre Cícero e residente no velho Juazeiro (CARVALHO, 2008). A Regra
escrita para a Casa de Caridade também foi aplicada na construção da cidade do
Juazeiro. Santo Ubaldo é recorrido no momento de tentações e poções diabólicas; o
mesmo acontece com o Padre Cícero, já também em vida, tendo a fama de exorcista.
No topo da serra do Araripe, por desejo do prefeito José Mauro se construiu
uma grande estátua em Juazeiro do Norte em homenagem ao Padre Cícero. Em
Gúbbio, o corpo de Santo Ubaldo a princípio foi sepultado na catedral, no processo
de canonização ao fazer a sua exumação encontraram seu corpo incorrupto, e foi
colocado no topo do monte Ingino observando a cidade e, por desejo do duque de
Urbino, os Cônegos Regulares construíram uma bela Igreja. Na região do Nordeste a
devoção de Padre Cícero é muito grande, a ponto de várias famílias homenagearem
o padre, dando o nome de Cícero/a para seus filhos e filhas. Na região da Úmbria é

638
enorme a devoção a Santo Ubaldo, e especialmente em Gúbbio, pelo menos um
membro da família se chama Ubaldo.
Desse modo, se vai percebendo que ao redor da mística de ambos os patronos
ou fundadores das cidades, da qual tiveram importância, se vai formando um
fanatismo religioso popular, que, por vezes, não é tão apreciado pela Igreja Oficial.
Bello (2018, p. 141) pontua que “a experiência mística é caracterizada por uma
manifestação do divino e também pelo arrebatamento provocado pelo divino”.
Por exemplo, a corrida folclórica que acontece todo dia 15 de maio, em
Gúbbio, desde 1160. Nela, três equipes carregam prismas enormes de madeira, com
quase 300 quilos cada um, do centro da cidade até a Basílica. Os objetos representam
Santo Ubaldo, Santo Antão e São Jorge. A tradição é o outro motivo que faz Gúbbio
levar a fama de louca, mas pode ser uma forma popular mística de contato com o
Divino, bem como os romeiros de Padre Cícero que se espremem para passar pelas
pedras em um local chamado o Horto, sinal de Penitência.
A cidade de Juazeiro do Norte, por sua vez, faz uma maior peregrinação
especialmente nas grandes festividades: Nossa Senhora das Candeias; Nossa
Senhora das Dores e o dia de Finados. No caminho de Juazeiro a fé. As práticas
folclóricas e celebrativas vão tomando conta do cenário de milhões de romeiros que
se entusiasmam ao redor da fé. O Papa Francisco (2014) afirmou: “Ser pastor na
metade do caminho é uma derrota, um pastor deve ter o coração de Deus e ir até o
final [...] Arrisca as vidas, arrisca sua fama, arrisca perder sua comodidade, seu
status, inclusive perder sua carreira eclesiástica, mas é bom Pastor”. Tanto Santo
Ubaldo como Padre Cícero foram bons pastores, humildes e fiéis ao evangelho se
dedicaram a corrigir os vícios e os abusos morais. Procuraram alimentar a fé e
animar a prática religiosa do povo, seja andando pelas redondezas como o Padre
Cícero que conciliava e neutralizava as oligarquias no sertão do Ceará, seja como
Santo Ubaldo que em 1160 salvou a cidade de Gúbbio do cruel Frederico Barba
Rocha.
Será muito difícil não reconhecer as características de Santo Ubaldo imitador
de Jesus Bom Pastor a quem os próprios eugubiesses e Cônegos aclamam: “Pai e
pastor piedoso são títulos que a ti dão na Ordem que, juntos fazemos parte, te
pedimos com tuas preces, elevas a perfeição” (LITURGIA DAS HORAS). A carta de
Reconciliação feita com o Padre Cícero traz a seguinte afirmativa: “[...] no arco de

639
sua existência, viveu uma fé simples, em sintonia com o seu povo e, por isso mesmo,
desde o início, foi compreendido e amado por este mesmo povo” (PAROLIN, 2015).

Considerações finais
O presente trabalho trouxe a contribuição sobre a regra dos Clérigos que é a
Vida Comum instituída pelo próprio Jesus Cristo. A forma que seja Santo Ubaldo
vivida como um Carisma ou o Padre Cícero como uma transformação para
testemunhar o Reino vai de encontro aos termos compreensíveis que
profeticamente respeitam as condições sociais.
Ademais, pode-se dizer que a luta por dignidade, acolhida, paz e atuação
Missionárias de Santo Ubaldo e Padre Cícero é apenas iniciada. Há um grande
percurso a fazer e redescobrir, e para isso é preciso restaurar uma positividade que
só pode vir da dinâmica Trinitária no processo criativo do amor de Deus, que se
utiliza de Homens para acentuar a Presença de Deus no meio dos pobres. Sabe-se
que o conteúdo e regra de fé oferece todo um arcabouço de doutrina, mas, a
manifestação da divindade é imprevisível.
Nesse aspecto, é preciso que a Comunidade eclesial eduque os fiéis para não
deixá-los com a ilusão das formas mágicas que tendem a acreditar na própria
onipotência. Na realidade Deus é Uno que é Amor dinâmico Trinitário; e de tempos
em tempos aparece esses sinais de pessoas que se dedicaram ao Evangelho com uma
Regra de vida caminho sólido para a educação no comprometimento com os mais
pobres, como foi Ubaldo e Cícero de Juazeiro

Referências
ALLUNO, Silvia. Gli spazi della Regula e alcune note sulla canônica di San Mariano a
Gubbio. In: Sant’Ubaldo e la Regula Clericorum: um insegnamento oltre il tempo.
Diocesi de Gubbio, 2019.

BELLO, Angela Ales. O sentido do Sagrado da arcaicidade à dessacralização. Tradução


de Paulo Sérgio Lopes Gonçalves, Dilson Daldoce Júnior. São Paulo: Paulus, 2018.

CARVALHO, Ernando Luiz Texeira. A Missão Ibiapina. Passo Fundo: Berthier, 2008.

COMBLIN, José. Padre Cícero de Juazeiro. São Paulo: Paulus, 2011.

DUMOULIM, Annette. Padre Cícero, Santos dos Pobres, santo da Igreja: revisões
históricas e reconciliação. São Paulo: Paulinas, 2017.

640
FANUCCI, Agelo Maria Fanucci. San’Ubaldo riformatore: la figura religiosa. In:
Sant’Ubaldo e la Regula Clericorum: um insegnamento oltre il tempo. Diocesi de
Gubbio, 2019.

FRANCISCO, Papa. Meditações Matutinas na Santa Missa Celebrada na Capela da


Domus Sanctae Marthae. Deus vai sempre até ao limite. Disponível em:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/cotidie/2014/documents/papa-
francesco-cotidie_20141106.html. Acesso 18 de julho de 2023.

GIUGLIELME. Pietro. La vita Comune nel Clero. I Canonici Regolari Lateranensi, Roma
Stamperia romana, 2010.

GIUGLIELME. Pietro. La Regula Clericorum di Pietro degli Onesti. In: Sant’Ubaldo e


la Regula Clericorum: um insegnamento oltre il tempo. Diocesi de Gubbio, 2019.

GIGLIO, Elena. Ubaldo e la Regula Clericorum: il valore dell’educazione. In:


Sant’Ubaldo e la Regula Clericorum: um insegnamento oltre il tempo. Diocesi de
Gubbio, 2019.

IBIAPINA, José Antônio Maria. Instruções Espirituais do Padre Ibiapina. Org. José
Comblin. São Paulo: Paulinas, 1984.

LITURGIA DAS HORAS. Próprio dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, 2017.

MONFRINOTTI, Matteo. La preghiera delle Ore Canoniche nela Regula Clericorum.


In: Sant’Ubaldo e la Regula Clericorum: um insegnamento oltre il tempo. Diocesi de
Gubbio, 2019.

PAROLIN, Pietro Card. Carta de Reconciliação com o Padre Cícero. Disponível em:
https://www.cnbb.org.br/vaticano-reconhece-virtudes-de-padre-cicero/Acesso
18 de julho de 2023.

641
EXPERIÊNCIAS DE LIBERDADE: JOHANN BAPTIST METZ E A
AUTORIDADE DOS SOFREDORES NA MÍSTICA DE EDITH STEIN

José Diógenes Dias Gonçalves1


Sérgio Ovídio Wermelinger Goulart2

Resumo: Esta pesquisa aborda a transversalidade da dimensão mística na teologia pública.


O texto examina a vida de Edith Stein como paradigma para o conceito de “memória do
sofrimento” proposto por Johann Baptist Metz, em que enfatiza a autoridade universal na
voz das vítimas da história. Inicialmente, consideramos a relevância de Stein para a análise
da função pública da teologia em um mundo em crise. Stein refletiu sobre a verdade no
contexto da fé cristã, expressando a sua esperança mística no Cordeiro sacrificado e na ideia
de participação comunitária na sua morte para a redenção da humanidade. Na segunda
parte, Metz nos convida a testemunhar o calvário de Stein em Auschwitz. Porém, para
recordar criticamente este horror, é imprescindível reconhecer a visão compassiva de Deus
em relação aos que sofrem. Consequentemente, emerge uma releitura sob a perspectiva das
vítimas, enfatizando a importância da “mística de olhos abertos”. Esta mística, que
sobrepuja o ascetismo, compromete-se publicamente na promoção do cristianismo
inclusivo e solidário. O último bloco apresenta a empatia como conceito-chave em Edith
Stein para compreender o caráter humano, onde a correlação solidária entre o amor e a
verdade se conecta às experiências que moldam a totalidade da pessoa humana. Assim, por
meio da espiritualidade de Edith Stein, este trabalho explora a função pública da teologia na
órbita da mística cristã, destacando a ideia de Metz sobre a autoridade dos sofredores e a
importância da empatia de Stein na integração desta categoria teórica com a exegese da
história do sofrimento no mundo.
Palavras-chave: Edith Stein; J. B. Metz; Mística; Vítimas; Auschwitz.

Introdução
No itinerário da mística de olhos abertos, encontramos princípios para o
impulso crítico-libertador da mensagem cristã, elementos que norteam as vidas e os
conceitos teóricos de Edith Stein e Metz. Embora suas abordagens sejam distintas,
ambas buscam compreender a condição humana, explorando as dimensões da fé, da
razão e da espiritualidade. Edith Stein nos guia através de perspectivas filosóficas e
antropológicas, enquanto Johann Baptist Metz enfatiza a autoridade da voz das

1 José Diógenes Dias Gonçalves, doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, doutorado em Ontologia Trinitária pelo “Istituto Universitario Sophia”,
Florença, Itália e participante do grupo de pesquisa Religião, Mística e Modernidade. E-mail:
dioggeness@gmail.com.
2 Sérgio Ovídio Wermelinger Goulart, mestrado e doutorado em andamento no curso de Teologia

Sistemática na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisador no Grupo de Estudos


em Gestão e Políticas de Proteção e Defesa Civil, Secretaria de Defesa Civil do Estado do Rio de
Janeiro. E-mail: wgoulart@hotmail.com.

642
vítimas e o importante papel das teologias da libertação na compreensão do
sofrimento injusto (METZ, 2007, p. 121).
O texto aborda o alcance dessa mística na teologia pública, tomando a vida e
o legado de Edith Stein como caso prático do conceito de Johann Baptist Metz sobre
a autoridade universal encontrada na voz das vítimas. Examinamos a figura de Stein
e sua relevância na reflexão sobre o papel da filosofia, da mística e da teologia na
esfera pública. Pois, a sua busca pela verdade não apenas convergiu com os
princípios da fé cristã, mas também se manifestou de forma significativa na
esperança depositada no Cordeiro sacrificado, demostrando uma profunda
integração soteriológica em sua perspectiva.
Johann Baptist Metz nos desafia a testemunhar o martírio de Edith Stein em
Auschwitz. Entretanto alerta que, para encarar essa terrível realidade, é essencial
adotar a compaixão de Deus em relação àqueles que sofrem. A história requer, dessa
forma, uma revisitação a partir da perspectiva das vítimas, destacando a relevância
da “mística de olhos abertos” (METZ, 2013, p. 22). Esta mística cristã ultrapassa os
limites da convencional renúncia pessoal, assumindo a espiritualidade compassiva
e inclusiva, na qual a empatia desempenha um papel central (STEIN, 2018, p. 203)
para a compreensão da natureza humana. O amor e a verdade estão intrinsecamente
entrelaçados com as vivências que moldam a integralidade do ser humano, e a
empatia emerge poderosamente na conexão com as experiências alheias na reflexão
sobre uma fé cristã engajada com a narrativa do sofrimento no mundo plural,
complexo e em constante evolução.

1. Edith Stein -Vida Integral


Nascida em uma família judia na Alemanha em 1891, Edith Stein seguiu um
caminho único para a santidade. A sua história é marcada por desafios significativos,
desde as restrições impostas à educação das mulheres até à ascensão do Nacional-
Socialismo em 1933. No entanto, Edith Stein resistiu e se converteu ao catolicismo,
ingressou na Ordem Carmelita, onde assumiu o nome de Teresa Benedita da Cruz. A
sua vida tornou-se um testemunho de fé e inconformismo com a violência
banalizada do seu tempo, em 1942 faleceu em Auschwitz (STEIN, 2018, p. 23). Edith
Stein impressiona pela unidade afetiva e intelectual. Ao contrário de alguns teóricos
de sua época, ela não separou o que ensinava do que vivia, recordando a importância

643
de uma base filosófica sólida para encontrar coerência entre vida e convicções
teóricas. A sua formação teórica utiliza a metafísica de Tomás de Aquino e a
fenomenologia de Husserl para descrever a constituição essencial do ser humano
(STEIN, 2019, p. 12) e nos leva a explorar a antropologia filosófica como modo de
compreender a formação integral do indivíduo.
Segundo Stein, uma separação completa entre fé e política só pode ser
imaginada através de conceitos abstratos de amor cristão ou da sua derivação
individualista do sujeito humano. Stein percebeu a ameaça que o cristianismo estava
enfrentando ao ceder à inclinação de uma neutralidade social e política que relegaria
a fé, e sua reflexão teológica, a uma esfera egoisticamente privada e inteiramente
alheia aos desafios sociopolíticos, correndo o risco da Igreja e da teologia não ter
mais o que dizer à sociedade (RATZINGER, 2007, p. 374), em outras palavras, não
cumprir a função profética é uma ameaça a sua pertinência no mundo “…el futuro
del cristianismo, pero también el camino y el futuro de la humanidad en general”
(METZ, 2007, p. 144).

2. Johann Baptist Metz – A Teologia da Libertação e a Autoridade da Vítima


Johann Baptist Metz traz uma perspectiva teológica única para o diálogo com
o mundo secularizado, com ênfase na autoridade da vítima e no compromisso com
as teologias da libertação em um mundo marcado pela injustiça e pelo sofrimento,
onde é imperativo dar voz àqueles que foram marginalizados e oprimidos. A teologia
da libertação, que ele ajudou a formar, destaca essa necessidade de agir em
solidariedade com os pobres e oprimidos, enraizando a teologia nas dimensões ética
e social. Metz desafia a teologia tradicional a se tornar mais engajada na resolução
dos problemas do mundo, essa abordagem encontrou forte resistência por parte de
alguns setores da Igreja. No entanto, sua voz permanece como um apelo à ação em
nome da justiça e da solidariedade, para o anúncio do Reino de Deus, “Dio si è
avvicinato a noi nella grazia. Egli ci ha donato la sua vita e ha fatto propria la nostra.
Non ha dunque abolito o guastato la nostra povertà innata, ma l’ha soltanto ancora
soverchiata e raffinata (METZ, 2007, p. 26).
Segundo o Autor, a fé na transcendência de Deus como criador implica,
inicialmente, em uma secularização do mundo, uma vez que esta conduz à
compreensão de que Deus não abandona o que cria, mas permite a existência plena

644
como um domínio não-divino. Para o crente, todas essas realidades mundanas se
apresentam desencantadas e entregues à sua responsabilidade, sua compreensão e
ao controle ativo, ou melhor, são os seres humanos que respondem à promessa de
Deus e moldam ativamente esta realidade como parte da sua história. Por outro lado,
em contextos onde falta a crença em um criador transcendente, como nas
sociedades grega e pagã, o mundo pode parecer deificado ou semi-divino, porém
com uma aura superior inalcançável ao ser humano. Neste caso, a realidade e
desafios estão afastados de seu domínio, isentando-o de responsabilidade.
No contexto desta teologia inserida na história, emerge o projeto de Metz
para uma Nova Teologia Política, que se fundamenta em uma reinterpretação dos
eventos à luz dos recentes avanços das ciências humanas. Esta abordagem surge
como uma crítica à influência da filosofia existencial já abordada na antropologia de
Karl Rahner (METZ, 2007, p. 118). Metz desafiando uma perspectiva teológica
estritamente personalista e existencialista propõe, em seu lugar, uma teologia
voltada para o mundo e para a sociedade.

3. O Diálogo entre Edith Stein e Johann Baptist Metz


A interlocução entre Edith Stein e Johann Baptist Metz colabora para a
reflexão da mística cristã reconhecendo a importância da busca pela verdade, da
santidade e da justiça. Stein compreende o ser humano no interior de relações e
considera tratar o indivíduo isoladamente uma estéril abstração (SBERGA, 2014, p.
35), portanto as relações que cada pessoa estabelece definem a própria experiência
na medida que se deixa afetar como indivíduo inserido na comunidade. Metz, por
outro lado, recorda que a teologia deve ter um impacto prático na vida e na
sociedade, e nos desafia a viver a fé na história e na sociedade. Nessa dinâmica a
práxis do seguimento fundamenta o empenho de tornar-se sujeito solidário, “…que
se compreende como esperança solidária no Deus de Jesus, enquanto Deus dos vivos
e dos mortos, que chama todos para o ser-sujeito diante de sua face” (METZ, 1980,
95).
Liberdade, paz, reconciliação e perdão são características da tradição bíblica
e, portanto, o cristianismo não deve se deixar monopolizar no ambiente privado.
Nesse sentido, a teologia política reage à privatização da mensagem cristã que a
reduz na esfera íntima e privada, em outras palavras, limitam a prática da fé à

645
decisão exclusiva do indivíduo. Por consequência, a teologia que anseia assumir
verdadeiramente esta crítica tem uma tarefa tripla: enfrentar a objeção do ceticismo
iluminista; trabalhar a favor da libertação da força crítico-social da fé; além de
desenvolver a relação com o âmbito político e social como um momento favorável
da “razão política” na participação em todas as reflexões críticas da teologia: “Sendo,
como é, performativa, a linguagem da fé descobre e manifesta a realidade do ser
humano à medida que a liberta. Liberta o se humano da violência muda dos instintos,
da rotina, do imediato; provoca a liberdade abrindo-lhe espaço de liberdade”
(BINGEMER, 2013, p. 117).
Stein concentra-se na coesão entre filosofia e vida, enfatizando a viabilidade
de uma filosofia cristã ao buscar suporte na filosofia francesa de E. Gilson e J.
Maritain “…o que Maritain, com Gabriel Marcel, designam como um escândalo da
razão” (STEIN, 1994, p. 40). Considera, ainda, que a sabedoria é revelada por Deus
aos seres humanos progressivamente pelos conceitos teóricos e por meio da
experiência mística (STEIN, 1994, p. 45). Nesse sentido, Metz direciona a atenção
para a práxis cristã, enquanto “recordação perigosa”, principalmente no esforço
comunitário de repelir as opressões, denunciar as injustiças e criticar a lógica da
violência e do ódio “Cada utopia de libertação que questiona e rompe as
plausibilidades dominantes, tem suas raízes, afinal, em uma tal recordação, que não
é, simplesmente reflexo, reprodução das determinantes socioeconômicas do
presente” (METZ, 1980, p. 73). A vivência dessa teologia fundamental prática é a
base para que o discurso atual de Deus tenha estrutura e eficácia, pois enfrenta os
desafios iluministas, trabalhando pela expressão crítica e solidária da fé, além de
buscar a integração política e social nas reflexões teológicas.

4. A compreensão da Mística de Olhos Abertos


Ao considerarmos a mística de olhos abertos à luz desses autores, podemos
identificar a urgência do diálogo com o mundo marcadamente plural. O panorama
atual é frequentemente encarado por muitos cristãos como um conjunto de
incertezas que abala a consciência da sua fé. Isso ocorre devido ao desaparecimento
de muitos elementos outrora familiares à experiência religiosa e,
consequentemente, se instala uma crise pela ausência de representações
convencionais da fé cristã. Essa dificuldade se intensifica ao considerar que as

646
formas mais significativas e específicas do ateísmo teórico surgem como
interpretações dessa nova configuração do mundo. Isso implica em uma
transformação da ordem social deificada para um mundo otimizado, passando da
concepção da realidade como natureza misteriosa para a visão da sociedade no
contexto da liberdade criativa do ser humano e da secularização. Para explicar esse
ateísmo teórico e apresentar sua teologia fundamental prática, Metz evoca figuras
como Nietzsche, que proclamou a morte de Deus, Marx com sua crítica à religião e a
previsão de Russell de um futuro desprovido de crença (METZ, 1999, p. 171). Todas
essas formas de pensamento consideram o cristianismo intrinsecamente ligado à
visão divinizada do mundo, tornando-se, assim, incapaz de assimilar a secularização
contemporânea e de assumir as responsabilidades humanas na construção do
futuro. Edith Stein, ao viver a mística de olhos abertos, oferece uma alternativa para
esse desafio na medida em que estabelece uma relação efetivamente empática que
amálgama o viver transformador da fé cristã com os desafios presentes na realidade
humana.

Considerações finais
As contribuições de Edith Stein e Johann Baptist Metz nos incentivam a
buscar a verdade, resistindo às injustiças de nosso tempo, tal como eles
efetivamente fizeram nas suas próprias vidas (METZ, 2011, p. 50). A fé do crente
deve, portanto, assumir os desafios do pluralismo do mundo, reconhecendo o
caráter fundamentalmente complexo da realidade que não pode ser completamente
controlada. Os autores ainda destacam a importância de não impor uma unicidade
global ou ideológica ao mundo, mas de aceitá-lo em sua diversidade e buscar a
unidade nas promessas de Deus, permitindo que a realidade social exista em sua
singularidade.
Nesse processo de construção do futuro da humanidade, o cristão enfrenta a
grande responsabilidade de lidar com a coisificação das pessoas e do mundo,
tornando urgente reconhecer Deus no rosto do outro. Edith Stein enfatiza que amar
ao próximo significa afirmar e respeitar a sua dignidade, protegendo-o da
exploração e afastando a instrumentalização. Essa tarefa da fé, como defendida por
Johann Baptist Metz, é um compromisso que o crente deve assumir com esperança.
O Autor alerta que no atual ambiente sociocultural não há espaço para um

647
cristianismo hegemônico e autoritário, em vez disso, a missão do cristão é contribuir
para a autêntica secularização, combatendo as injustiças do pecado e permitindo a
graça de Deus. A Igreja como sinal visível e instituição terrena da graça divina, não
concorre com o mundo, mas o defende e sustenta. Neste contexto plural, a fé cristã
encontra novas formas de expressão, menos ostensivas e mais sutis. Assim, a
responsabilidade da comunidade de crentes em relação ao mundo é exercida de
maneira indireta. Isto significa que a fé não deve interferir no planejamento
tecnológico, ou na condução autônoma da ciência, mas necessita respeitar a
autonomia das leis políticas e sociais, mantendo, ao mesmo tempo, o compromisso
político e a denúncia profética.
Edith Stein e Johann Baptist Metz representam duas abordagens
complementares para a importância da mística de olhos abertos na sociedade atual.
Stein volta seu olhar para o ser humano e as relações que o indivíduo estabelece com
o mundo, concebendo a pessoa em sua dimensão corporal e valorizando o contato
relacional com os outros e com Deus. Nesse caminho da fé, o entendimento natural
acolhe as verdades divinas, especialmente na vivência da experiência mística como
um modo simples e completo de conhecer Deus, elevando o espírito humano. Metz
nos desafia a considerar a perspectiva ética e social do sofrimento das vítimas da
injustiça, o pobre, o oprimido. Ambos reconhecem a importância da coerência entre
vida e pensamento, bem como a necessidade de agir empaticamente em nome da
justiça e da solidariedade. Juntos nos inspiram a buscar a verdade e a viver de acordo
com os princípios evangélicos que apelam para abrir os olhos ao outro pela
fraternidade, na força criativa do amor divino.

Referências

BINGEMER, Maria Clara, Viver como crentes no mundo em mudança. São Paulo: Ave
Maria, 2013.

METZ, Johann Baptist, A fé em história e sociedade: estudos para uma teologia


fundamental prática. São Paulo: Paulinas, 1980.

METZ, Johann Baptist, Mística de olhos abertos. São Paulo: Paulus, 2013.

METZ, Johann Baptist, Por una cultura de la memoria. Barcelona: Anthropos, 1999.

METZ, Johann Baptist, Povertà nello spirito – passione e passioni. Brescia:


Queriniana, 2007.

648
METZ, Johann Baptist e WIESEL, Elie, Dove si arrende la notte: un ebreo e un cristiano
in dialogo dopo Auschwitz. Soveria Mannelli: Rubbettino, 2011.

RATZINGER, Joseph, Dogma e anúncio. São Paulo: Loyola, 2007.

SBERGA, Adair Aparecida, A formação da pessoa em Edith Stein. São Paulo: Paulus,
2014.

STEIN, Edith. Ser finito y ser eterno. México: Fondo Cultura Econômica, 1994.

STEIN, Edith. Textos sobre Husserl e Tomás de Aquino. São Paulo: Paulus, 2019.

STEIN, Edith. Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. São Paulo:
Paulus, 2018.

649
MÍSTICA AMAZÔNICA: ESTUDO DE UMA EXPERIÊNCIA YANOMAMI

Lúcia Pedrosa-Pádua1

Resumo: A pesquisa “Mística amazônica: estudo de uma experiência yanomami” busca uma
aproximação à experiência mística do pajé Davi Kopenawa em sua sua infância e na fase
adulta, ambas inseridas na complexa autocompreensão yanomami em sua relação com a
floresta, os animais, os espíritos, os ancestrais e o cosmos. Esta aproximação possui duas
intencionalidades. A primeira, a de deixar-nos estranhar por uma narrativa mística que vem
acompanhada da cosmovisão amazônica, especificamente de um povo que se auto-identifica
como guardião da floresta. A segunda, levantar perguntas à teologia mística e à antropologia
cristãs, diante de uma experiência ao mesmo tempo diversa e comum em vários elementos
constitutivos da experiência mística. O objeto principal da pesquisa é a narrativa do livro A
queda do céu: Palavras de um xamã yanomani, dos autores Davi Kopenawa e Bruce Albert. A
obra foi publicada primeiramente em francês (2010), depois em inglês (2013) para,
finalmente, vir à luz em língua portuguesa (2015, Companhia das Letras), no solo que
engendrou a experiência. São 725 páginas de narrativa intensa e original, que possibilita a
análise que intentamos realizar. A Exortação Querida Amazônia convida a ouvir os povos
originários amazônicos (QA 33-37; 107) para maior respeito, diálogo e aprendizagem entre
sujeitos verdadeiros.
Palavras-chave: Amazônia; Experiência mística; Antropologia teológica; David Kopenawa;
Yanomami.

Introdução
Nos últimos anos, através do apoio da FAPERJ, pude entrar em maior contato
com a realidade amazônica e sua cosmovisão. O objetivo era conhecer melhor a
Baixa Amazônia e, para isso, entrar primeiramente com contato com a mitologia de
vários povos, motivada pelas orientações da Exortação Querida Amazônia. Num
segundo momento, deixei-me impactar pelas experiências místicas vividas no
contexto amazônico, que continham aspectos e lógica interna muito semelhantes,
em sua estrutura fenomenológica, aos descritos na mística cristã, por Santa Teresa
de Ávila. Como teresianista, não pude deixar de perceber em algumas narrativas
elementos tão bem descritos por essa “Doutora da Igreja”, assim reconhecida em

1Dra. em Teologia sistemática pela PUC-Rio, onde é pesquisadora e professora em tempo contínuo.
Graduada em teologia pela FAJE e em Economia pela UFMG. Prêmio Internacional: Teresa de Jesus y
el diálogo interreligioso (CITeS-Centro Internacional Teresiano-Sanjuanista, Espanha). Pesquisadora
FAPERJ. E-mail: lpedrosa@puc-rio.br

650
1970, pelo Papa Paulo VI. Se a mística oferece um privilegiado subsolo de diálogo
interreligioso, eu vi aqui um exemplo inesperado, mas real.
O Papa Francisco, na Exortação acima mencionada, convida ao
aprofundamento nas culturas dos diferentes povos indígenas amazônicos. Do ponto
de vista da antropologia, narrar as próprias histórias é valorizar, amar e cuidar das
raízes, ir contra a homogeneização das culturas que é, ao mesmo tempo, um
empobrecimento humano. Das raízes vem a força para crescer, florescer e frutificar
(FRANCISCO, 2020, n. 33). A transmissão oral da sabedoria cultural por meio de
mitos, lendas, narrações mantém a comunidade viva (FRANCISCO, 2020, n. 34). As
narrativas, para além da construção de uma identidade étnica, faz ver que os povos
indígenas são depositários de preciosas memórias pessoais, familiares e coletivas –
depositários de um dom e uma promessa divina. E possibilitam que outros entrem
em contato com suas raízes (FRANCISCO, 2020, n. 35).
Entrar em contato com as culturas indígenas, e especialmente amazônicas,
tem sido possível pelo trabalho de escritores que as representam, para além dos
estereótipos de terceiros. Dentre as narrativas místicas, a experiência yanomami do
pajé Davi Kopenawa ocupa lugar especial. Está inserida no livro A queda do céu:
Palavras de um xamã yanomani, dos autores Davi Kopenawa e Bruce Albert. A obra
foi publicada primeiramente em francês (2010), depois em inglês (2013) para,
finalmente, vir à luz em língua portuguesa (2015, Companhia das Letras), no solo
que engendrou a experiência. São 725 páginas de narrativa intensa e original, que
possibilita a análise que intentamos realizar.
Trata-se da experiência do xamã (como foi traduzido na edição brasileira,
“xamã”, e não “pajé”) Davi Kopenawa durante a sua infância e na fase adulta, ambas
inseridas na relação com a floresta, os animais, os ancestrais. O presente texto inicia-
se com a famosa descrição teresiana das etapas da experiência mística, que nos dará
um arcabouço para a leitura das experiências de Kopenawa que apresentaremos. Ao
final, algumas conclusões.

Santa Teresa de Jesus: as três graças


É Teresa de Ávila quem nos dará chaves para ver a experiência mística em
gradações. No capítulo 17 do Livro da Vida levará o leitor e leitora a compreenderem
que há diferença entre experimentar uma graça mística, compreendê-la e expressá-

651
la. Para cada um destes momentos é preciso a graça de Deus: “um favor é receber a
graça do Senhor, outro é entender qual o favor e qual a graça, e outro ainda saber
entender e explicar como é” (SANTA TERESA, 2021, p. 98-99). Teresa explica que,
embora muitos pensem que basta a experiência inicial, essa pode (e deve) ser
compreendida para maior efeito na vida de todos. E, na comunicação há ainda uma
terceira graça, pois a expressão literária da experiência mística tropeça no limite das
palavras, porém oferece narrativas importantes e possibilita que os leitores e
leitoras sejam inseridos na mesma experiência.
Interessante graduação de três graças, que vão desde a experiencia mística
até a expressão literária. Na sabedoria mística teresiana, o sentimento está unido à
compreensão e à busca de comunicação.
Sabemos quantas experiências conjugadas com fenômenos extraordinários
Santa Teresa teve: raptos, arroubamentos ou êxtases; visões ou aparições; falas
místicas; profecias do futuro ou do futuro ainda mais longe; feridas místicas e, entre
elas, a conhecida “graça do dardo” (ou “transverberação do coração”) que lhe
transpassa o coração, provocando amor; revelações do plano divino. Também:
levitações; voo do espírito; júbilos; toques de amor; recolhimento infuso de toda a
atividade intelectual e imaginativa e quietude amorosa da vontade, absorvida pelo
objeto amado. Tudo bem documentado em suas próprias obras (PEDROSA-PADUA,
2022, p. 68-70). Estas experiências conjugadas com fenômenos extraordinários são
objeto de particular atenção da Santa de Ávila no seu discernimento e compreensão.
Algumas vezes, o entendimento vem no interior do próprio fenômeno, outras vezes
mais tarde, através da reflexão e do diálogo sincero e amigo com outras pessoas.

As três graças em Davi Kopenawa


Voltemos às três graças: experimentar, entender, expressar olhando agora
para Davi Kopenawa.
Comecemos pela última: expressar. É difícil negar que Kopenawa seja um
mestre da expressão. Não sem razão Viveiros de Castro, antropólógo, classificou o
livro Queda do céu, no Prefácio da edição brasileira, como uma obra intensa, “só
comparável à do segundo volume da coleção Tristes trópicos”, de Lévi-Strauss
(VIVEIROS DE CASTRO, 2021, p. 11). A comunicação apresenta a complexa
autocompreensão yanomami em sua relação com a floresta, os animais, os espíritos,

652
os ancestrais e o cosmos, apresentada na primeira parte do livro. Kopenawa é um
comunicador. Como militante dos direitos indígenas, fez parte daquela geração que
denunciou no exterior, diante da cooperação internacional, o genocídio e os abusos
contra as terras yanomami na década de 80 e 90, tendo recebido o prêmio da ONU
Global 500 em 1989.
Na raiz das convicções descritas por Kopenawa, uma experiência mística.
Evidentemente vivida em um contexto inimaginável para Santa Teresa: a Amazônia
baixa, da floresta e todos os seus seres, rios e minerais, com as quais se pode falar
da formação de uma subjetividade e sociedade construídas no diálogo intersubjetivo
com os entes da floresta, com a macro-lógica do bioma amazônico. Experiência que
forma subjetividades em parentesco verdadeiro com plantas, animais e minerais.
“Somos habitantes da floresta”, se autodescreve o xamã. “Nossos ancestrais
habitavam as nascentes dos rios desde antes de nossos pais” (KOPENAWA; ALBERT,
2021, p. 78).
A experiência tem início na infância e se prolonga durante a vida de xamã.
Desde criança é despertado para a realidade dos entes da floresta através dos
sonhos. Na literatura indígena, o sonho é uma experiência transcendente que abre a
outras visões da vida (KRENAK, 2021, p. 66). Kopenawa descreve para o seu
interlocutor, o antropólogo Bruce Albert, que o sonho é um estado de ausência
corpórea para ir para longe (KOPENAWA; ALBERT, 2021, p. 90). Dentre os muitos
sonhos narrados detalhadamente por Kopenawa, encontramos a sensação de ficar
imenso, de voar e ver de cima a floresta e as pedras, de ataques de animais na
floresta, como a anta gigante, a temida onça, um bando de queixadas, um enorme
jacaré preto. Os sonhos eram experiências assustadoras.
É a compreensão das experiências que vai lhe trazer paz e maturidade. Em
vários momentos utiliza a expressão “só mais tarde entendi” (KOPENAWA; ALBERT,
2021, p. 91). De fato, mais tarde entendeu que já eram os xapiri que vinham a ele, ou
seja, imagens dos ancestrais animais míticos (KOPENAWA; ALBERT, 2021, p. 616,
nota 6). Viveram no “primeiro tempo” (KOPENAWA; ALBERT, 2021, p. 111) em que
todos os animais eram humanos com nomes de animais. Eles surgem à noite e não
morrem nunca. Sustentam a floresta. Parecem com os seres humanos, são
minúsculos, como poeira de luz e são invisíveis para gente comum. Falam e cantam
em línguas sábias do primeiro tempo (KOPENAWA; ALBERT, 2021, p. 113).

653
Quando ele se lembra dos sonhos, já adulto, exclama: “Eram os xapiri mesmo
que vinham a mim! Por que não respondi a eles antes”? Seria impossível não nos
lembrarmos de Santa Teresa, que tanto demorou a responder a Deus e, no Prólogo
do Livro da Vida exclama “Bendito seja Deus para sempre, que tanto me esperou”
(SANTA TERESA, 2021, p. 43). E, em outro momento, reconhece que Deus a queria
para si mas ela, ignorante e distraída, fugia (SANTA TERESA, 2021, p. 49). A mesma
sensação de Kopenawa: “eles queriam dançar para mim, mas eu tinha medo deles”
(KOPENAWA; ALBERT, 2021, p. 89). Ou seja, da experiência à compreensão, houve
um tempo – compreender “é outra graça”, nos diz Santa Teresa.

Conclusão
Podemos ver a experiência do mistério na cultura yanomami, na forma das
três graças: experiência, compreensão e expressão. O místico encontra-se inserido
em sua cultura e cosmovisão e essa vivência é um dom para a comunidade, não é
para si mesmo. Trata-se de uma sabedoria particular que destaca o místico na
comunidade. Se Santa Teresa se tornou mestra espiritual e reformadora da Igreja,
Kopenawa se tornou um xamã, estruturado em relação com a floresta, sabendo
andar por ela, fugir dos perigos, caçar com sabedoria e curar. Escutar as línguas das
árvores, da dança e do canto da floresta. Como já dito, na experiência indígena
forma-se uma subjetividade e sociedade construídas no diálogo intersubjetivo com
os entes da floresta, com a macro-lógica do bioma amazônico. Não estaria aqui uma
realidade misticamente experimentada de que tudo está interligado?

Referências
FRANCISCO, P. Encíclica Laudato si’. Sobre o cuidado da casa comum, 2015. In:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html , acesso em 02/07/2023.

FRANCISCO, P. Exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia. Ao povo de Deus


e a todas as pessoas de boa vontade, 2020. In:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/pa
pa-francesco_esortazione-ap_20200202_querida-amazonia.html , acesso em
02/07/2023.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomani,


2015, São Paulo: Companhia das Letras, 14. reimpressão, 2021.

654
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2021.

PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. A experiência do corpo na mística de Santa Teresa d’Ávila:


conflito, amor e transcendência. In: DE MORI, Geraldo. Esses corpos que me habitam
no sagrado do existir. São Paulo: Loyola, 2022, p. 59-72.

TERESA DE JESUS, Santa. Livro da Vida. In: TERESA DE JESUS, Santa. Obras
Completas. 8. ed., São Paulo: Loyola/Carmelitanas, 2021, p. 37-219.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Prefácio. O recado da mata. In: KOPENAWA, Davi;


ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomani, 2015, São Paulo:
Companhia das Letras, 14. reimpressão, 2021, p. 11-41.

655
A RECEPÇÃO FEMININA DA ESPIRITUALIDADE INACIANA POR
CÂNDIDA MARIA DE JESUS E SUA ATUAÇÃO EDUCATIVA

Patrícia Helena Coimbra1

Resumo: Este projeto de pesquisa é um estudo fenomenológico da recepção da


espiritualidade inaciana a partir da atuação da mulher no século XIX, entre as quais neste
trabalho se destaca Cândida Maria de Jesus. A Pesquisa tem o objetivo de recuperar a
memória e atuação feminina de Cândida Maria de Jesus no campo da educação a partir da
espiritualidade evidenciando através da sistematização dos elementos espirituais
encontrados uma contribuição original de caráter espiritual e educativo na formação cristã
e integral do ser humano. A metodologia da pesquisa é de cunho bibliográfico, sobretudo,
na contextualização e análise crítica do tema a ser estudado em relação a condição da
mulher no século XIX como também de caráter documental, esse é o referencial
metodológico principal, ou seja, faremos uma aproximação fenomenológica dos escritos de
Cândida Maria de Jesus, através das cartas. Um dos resultados esperados desse projeto é a
elaboração de uma dissertação que demonstre a sistematização dos elementos encontrados
da recepção feminina da espiritualidade inaciana em Cândida Maria de Jesus, que justifica e
evidencia sua atuação no campo educativo. A pesquisa se insere na discussão acadêmica
sobre a atuação feminina no campo educativo a partir de uma espiritualidade como uma
contribuição acadêmica original na ausência de pesquisas, trabalhos, reflexões em torno do
tema da recepção feminina da espiritualidade inaciana e sua atuação no campo da educação.
Palavras-chave: formação; mulher; espiritualidade; educação.

Introdução
Esta comunicação é um recorte da pesquisa desenvolvida a partir das
Ciências da Religião. Ela recebe como tema a recepção feminina da espiritualidade
inaciana por Cândida Maria de Jesus e sua atuação na educação. Seu objetivo é
sistematizar, a partir de cartas escritas por ela, alguns elementos da espiritualidade
inaciana que contribuíram para sua atuação na educação.
As Ciências da religião utilizam métodos científicos, como a observação, a
pesquisa documental e análise quantitativa para estudar e compreender o
fenômeno religioso em sua totalidade, incluindo seus aspectos históricos, sociais,
culturais e psicológicos.
A pesquisa estabelece uma relação entre a espiritualidade e educação, a
teologia ofereceu ao este estudo elementos para uma compreensão mais profunda

1Graduada em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Curso de Pós-
Graduação Lato Sensu – Especialização em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia FAJE. Curso de Pós-Graduação em nível de Especialização
em Teologia – Faculdades Integradas Claretianas. Mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas. E-mail: patriciacoimbrafi@gmail.com.

656
do conceito de espiritualidade, bem como suas implicações para a educação e como
ela pode ser desenvolvida.
A comunicação insere-se na discussão acadêmica sobre a atuação feminina
no campo educativo a partir de uma espiritualidade, e oferece uma contribuição
original frente à escassez de pesquisas, trabalhos e reflexões em torno do tema.
Assumimos durante toda a pesquisa a perspectiva de gênero buscando perceber a
condição da mulher no século XIX.
Para isso, recorremos às abordagens históricas sobre a atuação da mulher na
sociedade e na Igreja que permitiram colocar em evidência a misoginia, opressão e
subordinação que sofreram as mulheres. Veremos que a necessidade de recuperar
a memória da atuação feminina na história revela uma negação histórica no tocante
ao lugar da mulher na sociedade, sobretudo na esfera religiosa.
A metodologia da pesquisa é de cunho bibliográfico, sobretudo na
contextualização e análise crítica do tema, como também – e principalmente –
documental; ou seja, fizemos uma aproximação fenomenológica dos escritos de
Cândida Maria de Jesus, desde cartas e apontamentos espirituais até algumas
orientações deixadas por ela em relação à educação cristã.

1. A condição feminina no século XIX e Cândida Maria de Jesus


Nesta breve comunicação compartilho parte do caminho que fizemos no
estudo a partir das ciências da religião da recepção feminina da espiritualidade
inaciana por Cândida Maria de Jesus e sua atuação na educação. No desenvolvimento
da pesquisa vimos o contexto, a condição da mulher no século XIX, situando dentro
desse contexto a atuação de Cândida Maria de Jesus. Nele tecemos o ambiente
educacional que foi possibilitado à mulher neste período buscando desvelar as
tensões e conflitos existentes em relação à condição da mulher. Tecemos o contexto
histórico, social, cultural e religioso na Espanha no qual nasceu e viveu Cândida
Maria de Jesus (1845 a 1912), assumindo os limites da história com bem explicita
Pilar Ballarín e Perrot – O silêncio histórico – as mulheres não eram mencionadas no
espaço público, político e religioso e o silêncio das fontes – o acesso à escrita e às
universidades para a mulher foi tardio assim como foi para Cândida Maria.
No tecido histórico, religioso e cultural delineamos o perfil de Cândida Maria
de Jesus. Filha de tecelão, família de campesinos, doméstica, uma biografia que

657
aparentemente não teve ressonâncias na sociedade de seu tempo. Sua vivência e
atuação fundamentada na experiência religiosa respondeu às vozes esquecidas de
seu tempo. A formação das mulheres.
Uma biografia que, parafraseando Michelle Perrot, segue em uma narrativa
histórica em construção na contemporaneidade. Poderíamos dizer uma biografia em
narrativa histórica universal que se estende por 18 países do mundo hoje.
Destacamos a partir das autoras pesquisadas Perrot, Ballarin e Tomero:
O lugar da mulher na sociedade: dona de casa, mãe e esposa.
O processo de industrialização: as autoras coincidem na constatação de que
neste período da industrialização o êxodo rural afetava as mulheres, sobretudo as
mais jovens. Não somente porque elas continuam no campo. Seus pais as colocavam
como criadas em propriedades rurais ou como criadas na cidade, por intermédio do
vigário, do senhor do castelo ou de um primo; mas também na fábrica. Fábricas de
seda, e tecelagem.
As autoras identificam que a maior parte das meninas não aprendiam a ler.
Ensinavam-lhe a fazer rendas, bordado e costura é o mesmo que afirma Tomero em
relação aos dados da infância de Cândida Maria. Conforme Tomero (1988, p. 27),
podemos supor que Cândida Maria colaboraria com sua mãe realizando as
atividades próprias de seus anos, no cuidado de suas irmãs menores, ocupação que
sem dúvida restou pouco para sua formação escolar.
O trabalho doméstico: conforme Perrot (2019, p. 115), o trabalho doméstico
é fundamental na vida das cidades e na vida das mulheres. Neste tempo histórico o
caráter doméstico marca todo o trabalho feminino: a mulher é sempre uma dona de
casa.
Perrot aborda três figuras do trabalho doméstico: a dona de casa de origem
humilde, dona de casa burguesa e a criada, que atualmente deu lugar à empregada
doméstica ou diarista. É nesta terceira figura: criada/empregada doméstica que está
inserida Cândida Maria de Jesus.
Cândida Maria e sua experiência religiosa cristã: conforme Tomero (2019,
p.30), uma experiência religiosa cristã que tem origem na convivência familiar, na
pequena casa de Berrospe. Cândida Maria conviveu com seus avós. A convivência
com os avós era garantia de uma educação religiosa muito esmerada e detalhista.

658
A experiência religiosa de Cândida Maria de Jesus traz consigo um forte
aspecto relacional e familiar. Essa experiência relacional e familiar que mais tarde
será refletida em sua experiência carismática no dia 2 de abril de 1869. Recebeu a
instrução religiosa através de sua mãe e sua avó materna. Instruir na fé, na moral
era também uma responsabilidade das mulheres neste tempo.
Uma experiência religiosa que não está acabada, que vai se consolidando ao
longo de sua trajetória de vida, que não está desconectada do contexto histórico,
cultural e religioso. Uma experiência religiosa que possui uma relevância muito forte
em seu projeto de vida que se expande e consegue consolidar toda uma obra
educativa.
Recepção da espiritualidade inaciana: conforme Tomero (1998, p. 35) em
Tolosa (Espanha), com 04 anos se encontra com a imagem de Santo Inácio, quando
vê o livro das Constituições e diz: “Santo meu, quero fazer o que diz esse livro”, é um
primeiro sinal de sua vocação e vem marcada com uma clave inaciana, uma
espiritualidade que naquele momento não sabia que estava nascendo. A relação
entre esse gesto primeiro e a missão concreta que Cândida Maria de Jesus se sente
chamada a cumprir, será para a fundadora motivo de trabalho muitos anos depois.
Segundo Tomero (1998, p. 36), temos, pois, dados para afirmar que esta
espontânea projeção espiritual começa muito cedo em sua infância e vai continuar
em Burgos e Valladolid, até que se cristalize na Fundação da Congregação das Filhas
de Jesus.
Outro dado importante a destacar é sua opção de vida diante dos
acontecimentos em sua vida é o fato de que vamos encontrando na jovem sua opção
fundamental, ou seja, com uma decidida vocação religiosa.
Parece que essa opção pela vida religiosa foi causa de contradição na família
por parte de seu pai que a todo custo queria o casamento vantajoso e que ela se
negava a aceitar. “Eu só para Deus”, dizia ela para evidenciar sua inclinação à vida
religiosa.
Durante toda a trajetória de seu discernimento vocacional foi sempre
acompanhada por Padres da Companhia de Jesus. O acompanhamento espiritual
inaciano marcou positivamente toda a sua trajetória de vida.
No acompanhamento espiritual inaciano, Cândida Maria de Jesus é
impulsionada a fundar a Congregação das Filhas de Jesus com o legado da Educação

659
da infância e da Juventude. Poderíamos dizer que Cândida Maria se dedicou à
formação da mulher para as mulheres, encurtando a total inexistência da mulher e
sua contribuição à cultura no discurso e na narrativa histórico tradicional.

2. A condição da mulher na educação no século XIX


Destacamos a partir das autoras Perrot, Ballarín e Tomero, como se construiu
o sistema educacional na Espanha e vimos que ele se construiu desde as
desigualdades entre homens e mulheres.
O currículo na escola para as meninas: bordado, noções de higiene, virtudes
femininas. Perrot, destaca que nesse tempo pensava-se que era preciso educar as
meninas, e não exatamente instruí-las, ou instruí-las apenas no que é necessário
para torná-las agradáveis e úteis: um saber social. Formá-las para seus papéis
futuros de mulher, de dona de casa, de esposa e de mãe.
Oferecer-lhes bons hábitos de economia e de higiene, os valores morais de
pudor, obediência, polidez, renúncia, sacrifício, que tecem a coroa de virtudes
femininas. Este conteúdo comum a todas, varia segundo as épocas e os meios, assim
como os métodos utilizados para ensiná-lo.
Para os meninos, em seu lugar estudavam breves noções de agricultura,
indústria e comércio; princípios de geometria, desenho linear e noções gerais de
física e de história natural. Nesta linha instrutiva, a obra dirigida aos meninos dedica
dez páginas a recomendar o estudo da religião, a língua latina, a língua materna, a
geografia e a história.
A educação esteve tradicionalmente nas mãos da Igreja que serviu a esta
tarefa por meio das instituições de ensino. Desta forma, há uma eclosão de institutos
religiosos dedicados à educação.
A igreja católica era considerada o guia espiritual e referência moral da
sociedade. A promulgação da Ley Moyano em 1857 estabeleceu a necessidade de
cobrir a demanda da instrução feminina, o que contribuiu para a proliferação dos
colégios de religiosas que a partir do século XIX se instalaram no território espanhol
e encontraram na mulher um veículo extraordinário para transmitir aos filhos a
moral cristã.

660
Conforme Perrot (2019, p. 84, 85,86), a reforma protestante é uma ruptura
ao que já estava estabelecido em relação à educação para as meninas, ao fazer da
leitura da bíblia um ato e uma obrigação de cada indivíduo homem ou mulher.
Na crise revolucionária de 1868-1874 – Nasce o instituto das Filhas de Jesus,
segundo Tomero (1988, p. 187), a Congregação das Filhas de Jesus nasceu em plena
crise revolucionária (1868-1874) e naquele contexto a abertura do ensino a todas
as classes sociais implicava uma fidelidade ao carisma de toda a Igreja nestes anos.
Como vimos, nasce por inspiração de Cândida Maria de Jesus a Congregação das
Filhas de Jesus com a missão de educar em um momento em que existe um grande
desejo de restauração religiosa, a partir dos graves problemas políticos e
eclesiológicos.

Considerações finais – Possibilidades e limites da atuação feminina na


educação a partir da espiritualidade
A partir da breve provocação histórica em relação a mulher, educação e
religião podemos concluir que em geral durante o século XIX devido à política
favorável de alguns governos os colégios religiosos na Igreja católica proliferaram
por todo o território nacional espanhol e desde aí nas instituições católicas e
podemos dizer por todo o mundo, inclusive na América Latina através das
congregações religiosas.
Nestes colégios que atendia a classe média o ensino era considerado algo
prestigioso fundamentalmente no caso das meninas, era muito apreciado pela
burguesia e garantia que a menina não ia se relacionar com outras meninas de
diferente condição social.
O nível de rendimento e qualidade do ensino eram melhores nestes colégios
com instrução de qualidade e métodos pedagógicos eficientes. Em consequência a
isso as famílias burguesas escolheram massivamente esta oferta educativa, isso
proporcionou a igreja católica o controle de um poderoso instrumento socializador:
a formação de um modelo, no caso das meninas, se tratava da mulher cristã
encarregada da educação de seus filhos mediante a transmissão da tradição e dos
valores cristãos.
Neste fato ocorrido contemplamos os limites da história do catolicismo que
mudou o lugar social em que as mulheres se encontravam (mãe, dona de casa,

661
esposa fiel) para os espaços públicos, aqui de modo especial na educação, mas não
possibilitou a ela o fácil acesso ao conhecimento.
Por outro lado, contemplamos também as possibilidades ao reconhecer o
nascimento de muitas dessas instituições católicas lideradas por mulheres que no
decorrer da história foram capazes de fazer leituras abertas, inclusivas, dialógicas e
relacionais com o mundo, com a sociedade transformando o mundo educacional
para um olhar humano e integral a todas as pessoas.
Nas palavras de Ballarín, em relação história das mulheres hoje podemos
dizer que o feminismo criou e teorizou um número significativo de categorias de
análises da sociedade e da história, sem perder nunca de vista o movimento de
mulheres, ou seja, sem perder nunca de vista a prática política porque se trata de
instrumentos de análises e de criação de saber das mulheres e não só sobre as
mulheres.
Essas categorias de análise são códigos culturais do presente e do passado
com a experiência histórica de quem viveu antes de nós um sentido, e sobretudo
com formular e criar um mundo a partir das mulheres, o mundo onde o universal
seja fruto de uma relação entre indivíduos homens e mulheres.
No catolicismo, através de instituições religiosas dedicadas à educação
continua um grande desafio como bem nos recorda o Papa Francisco na Evangelii
Gaudium 103 – 104). “A igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na
sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares,
que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos homens... as
reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de
que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões
profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente.”

Referências
BALLARÍN, P.D. La educación de la mujer española en el siglo XIX. Madrid: Síntesis,
2001.

JESUS, Cândida Maria. Apuntes Espirituales. Congregación de las Hijas de Jesús.

JESUS, Cândida Maria. Consejos para la Educación Cristiana. Congregación de las


Hijas de Jesús.

662
LUCIA, Teresa. Madre Cândida Maria de Jesus: Cartas I (1872-1901) e Cartas II
(1901-1912). Madrid, 1983.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2019.

SAMPAYO, M.F.P. Evolución y desarrollo de los colegios religiosos femeninos en


España. Revista Brasileira de História da Educação, v. 15, n. 2, p. 221-245, 2015.

TOMERO, Maria del Carmen de Frias. Cándida María de Jesús. Roma, 1998.

VASQUES, Ulpiano. A orientação espiritual: mistagogia e teografia. São Paulo: Loyola,


2001.

663
ARTE ST 10

ST 10 – O encontro das religiões no espaço público latino-americano e


caribenho

664
Carlos Ribeiro Caldas Filho (PUC-MG)
Ney de Souza (PUC-SP)
Paulo Sérgio Lopes Gonçalves (PUC-Campinas)

O pluralismo religioso é um acontecimento contemporâneo de plausibilidade


histórica, denotativo de que as religiões se institucionalizam e se encontram no
âmbito social. Nesse encontro, as religiões afirmam a sua respectiva identidade e
possuem atitudes diversas dentre as quais destacamos a abertura à proximidade,
diálogo, reconhecimento mútuo e elaborações de sincretismos, e o proselitismo que
faz com que a religião se feche à alteridade e se pretenda absoluta. Ao se situarem
socialmente, as religiões se encontram em espaços públicos, em que se situam
“pessoas seculares” e vige a laicidade do Estado, podendo haver recepção
acolhedora em que as religiões possuem presença significativa nos processos de
transformação social de efetividade da justiça, ou recepção de indiferentismo ou de
rechaço, em que as religiões são ignoradas ou marginalizadas e perseguidas.
Considerando essa situação, o objetivo desta Sessão Temática é constituir-se em
espaço de análise do encontro entre as religiões e das religiões com outros
segmentos, denotativos da laicidade e da própria liberdade religiosa. Para atingir
esse objetivo, as propostas poderão ser de âmbito metodologicamente teórico –
autores, obras, documentos, etc – ou empírico – experiências de grupos, instituições
e pessoas –, de caráter universal ou particular – personagens religiosos, instituições
religiosas, obras literárias –, em que se manifestam as diversas perspectivas:
histórica, antropológica, teológica, filosófica, psicológica e das teorias literárias.

665
A POSSIBILIDADE DE ENCONTRO DO CATOLICISMO COM OUTRAS
RELIGIÕES SEGUNDO OS PRINCÍPIOS POLARES DE FRANCISCO

André Luiz Rossi1

Resumo: A primeira Exortação Apostólica que Francisco lançou, já no início do seu


pontificado, em 2013, tratou da Evangelização no mundo atual. Com ela, o Papa propôs
reflexões sobre como a evangelização deve ser empenhada pela Igreja, e elenca já as bases
dos documentos que viriam a ser lançados depois por ele, e ao mesmo tempo registra um
conteúdo programático de temas e prioridades que marcam seu governo à frente da Igreja
Católica. No capítulo quarto, Francisco escreve sobre o aspecto social da evangelização e ali
concede a Igreja quatro princípios polares que servem para análise das questões sociais. Os
axiomas propostos por Francisco são instrumentos de análise e ajudam as decisões
necessárias dentro do campo social e eclesial, são eles: “o tempo é superior ao espaço”, “a
unidade prevalece sobre o conflito”, “a realidade é mais importante que a ideia” e “o todo é
superior à parte” (EG n. 222-237). O objetivo dessa comunicação é explicitar que os
princípios propostos por Francisco, aplicados nas relações do catolicismo com outras
religiões, possibilitam um encontro onde é possível estabelecer relações e diálogo entre as
religiões. Tendo como método a análise sistemática dos princípios polares presentes na
Evangelii Gaudium, relacionando-os com outros escritos de Francisco, pretende-se como
resultado mostrar em que medida é possível estabelecer os quatro princípios como
instrumentos hermenêuticos que fundamentam o diálogo e a relação do catolicismo com
outras religiões. Desta forma será possível perceber esse diálogo como instrumento de
construção de uma alteridade que contribua com a paz social.
Palavras-chave: religiões; catolicismo; diálogo; princípios polares; Papa Francisco.

Introdução
Jorge Mario Bergoglio é eleito Pontífice da Igreja Católica em 13 de março de
2013. Ao escolher o nome de Francisco, fazendo referência ao santo pobre de Assis,
ele já aponta que seu pontificado priorizaria a realidade social, assim como São
Francisco no seu tempo. Nisso ele já expressava, mesmo que latente o princípio que
ele viria a elaborar de forma sistemática na Evangelli Gaudium: “a realidade é mais
importante que a ideia” (EG n. 231). Em sua primeira viagem fora de Roma, à
Lampeduza na Itália, por ocasião da morte de muitos imigrantes que morrem
afogados na tentativa de entrar na Europa, Francisco elabora um discurso
emblemático e atemporal, com inquietações antropológicas, éticas e religiosas que
questionam o papel do ser humano frente o sofrimento do outro. Nesta ocasião, em

1Mestre em Ciências da Religião pela PUC-Campinas. Bacharel em Filosofia e em Teologia pela PUC-
Campinas, especialista em Psicanálise e em Doutrina Social da Igreja. E-mail:
andluizrossi@gmail.com.

666
sua homilia, Francisco demonstra seu desejo de comunhão e encontro com outras
religiões. Saudando os muçulmanos presentes, Francisco cita o momento religioso
que eles celebravam (início do Ramadão, período de jejum para os muçulmanos) e
saúda-os usando um termo próprio de sua cultura: oshiá! (FRANCISCO, 2013). Deste
modo, Francisco já alude ao respeito e a possibilidade do Diálogo Fraterno, fazendo
do Catolicismo um espaço de encontro entre as diversas religiões.
Já em sua primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, Francisco
elabora seu conteúdo programático de governo, e ali deixa as bases para os
documentos e temas que viriam a ser trabalhados por ele nos próximos anos.
Contribui ainda, de forma significativa com a Doutrina Social da Igreja ao elaborar
no capítulo quarto os princípios polares que “orientam especificamente o
desenvolvimento social e a construção de um povo onde as diferenças se
harmonizam dentro de um projeto comum” (EG n. 221). Esse ‘projeto comum’, como
há de supor, é “um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo
inteiro” (EG n. 221). Sendo assim, ao legar para o catolicismo e para a sociedade
esses princípios sociais, Francisco demonstra nos próprios axiomas uma abertura à
realidade, à diversidade e principalmente à unidade, elaborando-os dessa forma: “o
tempo é superior ao espaço” (EG n. 222-225), “a unidade prevalece sobre o conflito”
(EG n. 226-230), “a realidade é mais importante que a ideia” (EG n. 231-233) e “o
todo é superior à parte” (EG n. 234-237).
Francisco postula os enunciados como princípios que “orientam
especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo
onde as diferenças se harmonizam” (EG n. 221). Porém, eles também podem ser base
de análise da realidade social e principalmente, fundamento para ação pessoal e
social no campo religioso, servindo como orientação frente o necessário diálogo e
encontro entre as religiões.

1. Os princípios polares como instrumentos para o encontro entre as religiões


Francisco apresenta os princípios polares com o duplo objetivo de serem
instrumentos que orientam: o desenvolvimento no campo social e a construção de
um povo onde as diferenças se harmonizam. Sobre o primeiro objetivo, tendo a
religião um caráter social relevante, e compondo ela esse tecido social, é possível
presumir que o desenvolvimento social almejado por Francisco, do qual os

667
princípios polares são instrumentos, só será possível com a efetiva participação das
religiões. Segundo o Compendio de Doutrina Social da Igreja, essa missão está no
cerne do que é ser Igreja, pois faz parte da essência dela: é ser “na humanidade e no
mundo o sacramento do amor de Deus e, por isso mesmo, da esperança maior, que
ativa e sustém todo autêntico projeto e empenho de libertação e promoção humana”
(CDSI n. 60). Além disso, seus ensinamentos também têm como objetivo “anunciar
e atualizar o Evangelho na complexa rede de relações sociais” (CDSI n. 62). A
respeito do segundo objetivo, no que se refere a harmonia almejada por Francisco,
nota-se que ele não pretende negar as diferenças, mas através desses princípios
polares, fazer com que essas diferenças possam se harmonizar, conviver, sem
confusão nem anulação uma da outra. Posteriormente, na Encíclica Fratelli tutti,
Francisco já tendo posto os princípios polares como base, elenca ferramentas para
atingir essa harmonia: o diálogo fraterno e a amizade social. Amplos aplicados à
religião possibilitam o encontro entre as religiões.
Porém, já na Evangelii Gaudium podemos perceber os princípios como base
para um encontro entre as religiões. Ao entender a tensão polar e a proposta de
Francisco de uma dialética que sempre retoma a tese na tentativa da não exclusão
de nenhum polo, compreende-se que na base da resolução das tensões polares já
está latente uma dialética que necessariamente permita o diálogo com as diferentes
religiões. Disso deriva a abertura e o respeito as diferenças e a necessidade do
Diálogo Fraterno como instrumento de consolidação da Paz Social.
Partindo da tensão plenitude/limite, Francisco elabora o princípio de que “o
tempo é superior ao espaço”. Segundo Scannone, “a palavra ‘tempo’ equivale ao
horizonte sempre aberto para um futuro positivo e pleno, incondicional, que nos
solicita como fim último e é vivido já teologalmente na esperança” (2019, p. 262). Já
espaço é aquilo que contrapõe, é o momento presente com suas limitações e
contingências, segundo Francisco “é o muro que nos aparece pela frente” (EG n.
222). Para Francisco, dar prioridade ao tempo é se preocupar mais em iniciar
mudanças do que em obter resultado imediatos. Nas palavras do Papa:
Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do
que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e
transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem
marcha atrás. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos
dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos
que os desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos

668
importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes
(EG n. 223).

É com esse princípio que se entende o otimismo do Papa frente a dificuldade


de diálogo entre as religiões. Os fundamentalismos existentes na sociedade e nas
religiões são obstáculos árduos para o encontro sadío entre as diferentes tradições
religiosas, porém, Francisco é sóbrio diante da contribuição que pode ser dada por
ele, por isso escreve com o otimismo de quem sabe da importância de gerar
processos de mudanças:
Assim aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente de
ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos
assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá
tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no
qual se procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além
do aspecto meramente pragmático, um compromisso ético que cria
novas condições sociais. Os esforços à volta dum tema específico
podem transformar-se num processo em que, através da escuta do
outro, ambas as partes encontram purificação e enriquecimento
(EG n. 250, grifo nosso).

Recentemente, em viagem à Mongólia, Francisco se reuniu com líderes de


outras religiões, num encontro ecumênico e inter-religioso. Nesse discurso pode-se
perceber a aplicação dos princípios nas ideias de Francisco. Especificamente sobre
esse primeiro princípio “o tempo é superior ao espaço” e sobre a esperança de gerar
processos, pode-se nota-lo com clareza na seguinte afirmação:
Irmãos e irmãs, o facto de nos encontrarmos aqui hoje é sinal de
que é possível ter esperança. Esperar é possível. Num mundo
dilacerado por lutas e discórdias, isto poderia parecer utópico;
entretanto, as maiores empresas começam no escondimento, com
dimensões quase imperceptíveis [...]. Façamos florescer a certeza
de que não são vãos os nossos esforços comuns para dialogar e
construir um mundo melhor. Cultivemos a esperança. Como disse
um filósofo: ‘Cada um foi grande segundo aquilo esperava. Um foi
grande esperando o possível; outro esperando o eterno; mas quem
esperou o impossível foi o maior de todos’ (S. A.
Kierkegaard, Temor e tremor, Milão 2021, 16) (FRANCISCO, 2023).

Da tensão plenitude/limite também deriva o segundo princípio apresentado


por Francisco: “a unidade prevalece sobre o conflito”. A prevalência da unidade
sobre o conflito não quer negar às divergências. Diante do conflito não se deve nega-
lo, querendo ignora-lo na esperança de que seja resolvido, nem mesmo parar diante
dele como se fosse instransponível (Cf. EG n. 226), mas a solução é justamente
aceita-lo e transforma-lo em um elo de um novo processo, um processo em que haja

669
respeito e todos sejam considerados (Cf. EG n. 227). Esse princípio é o que mais
explicita a necessidade do encontro entre as religiões, ainda que Francisco não o faça
claramente em seu enunciado. É com ele que será possível assumir a diversidade
como algo positivo, e não como um conflito a ser negado: “a diversidade é bela,
quando aceita entrar constantemente num processo de reconciliação até selar uma
espécie de pacto cultural que faça surgir uma ‘diversidade reconciliada’” (EG n. 230).
A prevalência da unidade fará com que as diferenças entre as religiões não
tenham centralidade no processo de diálogo, mas sim a superação harmônica das
divergências e o respeito pelas diferenças:
O compromisso ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus
pedindo “que todos sejam um só” (Jo 17, 21). A credibilidade do
anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos superassem as
suas divisões [...]. Devemos sempre lembrar-nos de que somos
peregrinos, e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o
coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças,
e olhar primariamente para o que procuramos: a paz no rosto do
único Deus. O abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é
artesanal (EG n. 244).

Esse segundo princípio basilar do ecumenismo e do diálogo inter-religioso


também está presente no recente discurso acima citado. Francisco não só evidencia
a necessidade da unidade, mas explicita que ela não significa uma anulação das
particularidades de cada um, mas sim uma convivência harmônica que supere o
conflito na confluência harmônica das partes opostas:
Neste sentido, quero confirmar-vos que a Igreja católica deseja
caminhar assim, crendo firmemente no diálogo ecuménico, no
diálogo inter-religioso e no diálogo cultural. [...] Com efeito, o
diálogo não se contrapõe ao anúncio: não nivela as diferenças, mas
ajuda a compreendê-las, preserva-as na sua originalidade e
permite-lhes confrontar-se para um franco e mútuo
enriquecimento. Assim, a chave para caminhar na terra pode-se
encontrar na humanidade abençoada pelo Céu. Irmãos e irmãs,
temos uma origem comum, que confere a todos a mesma dignidade,
e temos um caminho compartilhado, que só podemos percorrer
juntos, habitando sob o mesmo céu que nos envolve e ilumina
(FRANCISCO, 2023).

O terceiro princípio proposto por Francisco, “a realidade é mais importante


que a ideia” é um princípio que deriva da tensão polar ideia/realidade. Segundo o
pontífice, separar a ideia da realidade é perigoso, pode-se levar a soberania da
palavra, da imagem e do sofismo, e por consequência à nominalismos, totalitarismos
e purismos angélicos (Cf. EG n. 231). Por detrás dessa dicotomia está uma oposição

670
à realidade, ao concreto e à contingência histórica da humanidade. Negar isso é viver
num mundo ideal, porém não real. A ideia tem que estar a serviço da captação,
compreensão e condução da realidade, e essa por sua vez é iluminada pelo raciocínio
das ideias. Mais uma vez é necessária a harmonia, ainda que a realidade seja mais
importante que a ideia.
A importância da realidade para Francisco é perceptível no seu agir.
Francisco é o Papa da realidade, da contingência e do social. Essa maneira de agir
está como base do diálogo com outras religiões, tanto que afirma Francisco que “este
diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana” (EG n. 250). Em
seus discursos, como o da Mongólia que aqui é paradigma de análise, Francisco parte
da realidade dos seus ouvintes, demonstrando que suas ideias seguem o princípio
por ele formulado:
Esta ocasião de nos juntar para nos conhecermos e enriquecermos
mutuamente é-nos proporcionada pelo amado povo mongol, que se
pode gloriar duma história de convivência entre expoentes de
várias tradições religiosas. É bom recordar a virtuosa experiência
da antiga capital imperial de Kharakorum, dentro da qual se
encontravam lugares de culto pertencentes a diferentes “credos”,
testemunhando uma louvável harmonia. [...] A respeito dos vossos
costumes, já aludi ao facto de, ao preparar-me para esta viagem, ter
ficado fascinado pelas habitações tradicionais nas quais o povo
mongol revela uma sabedoria que se foi sedimentando ao longo de
milénios de história (FRANCISCO, 2023).

O quarto princípio elencado na Evangelii Gaudium é de que “o todo é superior


à parte” e ele parte da tensão polar entre global/local. Essa tensão entre global e
local deve ser equilibrada para não se cair em erros. Tanto privilegiar o local quanto
apenas o global seria algo ruim, pois, para Francisco a harmonia nesse princípio
mais do que nunca é necessária. Priorizar apenas o global, pode-se como
consequência, viver uma alienação e uma indiferença onde tudo é considerado, mas
nada adquire importância: “os cidadãos vivem num universalismo abstrato e
globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de
artifício do mundo” (EG n. 234). Por outro lado, a primazia do local pode levar a um
estreitamente de visão, sem perspectivas, onde se vive fechado somente numa
cultura de forma alienante. Francisco alerta que pode acontecer de que transformem
o mundo “num museu folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir sempre
as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar
a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras” (EG n. 234). É a partir desse

671
princípio, e do modelo poliédrico que Francisco também apresenta na Evangelii
Gaudium que possibilitará um olhar para as periferias, para as minorias e para os
excluídos. Apesar do todo ser superior à parte, na dialética assumida por Francisco
todos podem colaborar, e a harmonia garante a integralidade de todas as partes. É
dar voz e valorizar aquilo que de outra forma seria descartado diante de uma
sociedade pragmática e utilitarista. É essa valorização que Francisco destaca na
Mongólia: “a Ásia tem muito para nos oferecer neste sentido e a Mongólia, que está
no coração do continente, guarda um grande património de sabedoria, que as
religiões aqui difundidas contribuíram para criar e, a todos, convido a descobrir e
valorizar” (FRANCISCO, 2023).
Esse princípio é basilar para se pensar a Fraternidade Universal e a Casa
Comum, temas importantes para as encíclicas Fratelli tutti e Laudato Si’ e que se
relacionam diretamente às outras religiões e a necessidade do diálogo e do encontro
entre elas: “Isto gera a convicção de que nós e todos os seres do universo, sendo
criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma
espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito
sagrado, amoroso e humilde” (LS n. 89). Daí deriva a unidade do todo, de todas as
religiões em prol das partes. Privilegiar o todo é entender que nenhuma religião
pode fechar-se, mas precisa caminhar em harmonia, por isso Francisco exorta:
Que as orações que elevamos ao céu e a fraternidade que vivemos
na terra nutram a esperança; sejam o testemunho simples e
credível da nossa religiosidade, do caminhar juntos com o olhar
voltado para o alto, de habitar o mundo em harmonia – não
esqueçamos a palavra “harmonia” – como peregrinos chamados a
guardar a atmosfera de casa, para todos (FRANCISCO, 2023).

Considerações finais
O discurso de Francisco no encontro com líderes de outras religiões na
Mongólia é apenas um exemplo do quanto é possível estabelecer os princípios
polares do Papa como instrumentos de análise e ação que favoreçam o encontro
entre as religiões. Destaca-se que durante o discurso Francisco insiste na palavra
harmonia: “Harmonia: quero sublinhar esta palavra de sabor tipicamente asiático.
Trata-se daquela relação particular que se cria entre realidades diversas, sem as
sobrepor nem homogeneizar, mas no respeito pelas diferenças e em benefício da
convivência” (FRANCISCO, 2023). A harmonia é a base do poliedro, imagem que

672
Francisco usa para explicar a necessidade de que todas as partes sejam
consideradas, e que entre elas se tenha uma harmonia perfeita, é a “confluência de
todas as partes que nela mantêm a sua originalidade” (EG n. 236). Para Francisco,
harmonia é estilo de vida, é unidade que deriva do princípio do todo que é superior
à parte:
Já várias vezes convidei a fazer crescer uma cultura do encontro
que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo
de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces,
muitos lados, mas todos compõem uma unida de rica de matizes,
porque “o todo é superior à parte” (FT n. 215).

É pela harmonia que os princípios adquirem solidez, pois, aquilo que é polar
não precisa ser polarizado, pela harmonia é possível que haja um equilíbrio onde a
convivência sadia e o respeito estejam presentes. Portanto, se bem aplicados, os
princípios possibilitam a religião católica um diálogo fraterno e frutuoso com outras
religiões, e podem ainda, nortear uma ação conjunta pela construção de um mundo
melhor, onde as religiões sejam agentes cada vez mais positivos de construção de
um mundo onde reine a Fraternidade na Casa Comum de todos.

Referências
SCANNONE, J. C. A teologia do povo: raízes teológicas do Papa Francisco. São Paulo:
Paulinas, 2019.

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli tutti: sobre a fraternidade e a amizade


social. São Paulo: Loyola, 2020.

FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da Casa Comum. São
Paulo: Paulinas, 2015.

FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre no encontro ecumênico e inter-religioso


durante a viagem apostólica à Mongólia. 03/set de 2023. Disponível em:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2023/september/docu
ments/20230903-mongolia-incontro-ecuminter.html. Acesso dia 15/09/2023.

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas,


2013.

673
CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS DO PENSAMENTO DE
RAIMUNDO PANIKKAR E JOSÉ COMBLIN SOBRE O PLURALISMO E
O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO

Antonio Genivaldo Cordeiro de Oliveira1

Resumo: O texto resultante da comunicação traçará um paralelo entre o pensamento de


Raimundo Panikkar e José Comblin sobre o pluralismo e o diálogo interreligioso. Embora
em contextos distintos, suas inspirações podem dialogar e se complementarem oferecendo
rumos para este desafio cada vez mais presente. Faremos uma análise comparativa das
ideias defendidas nas obras de Panikkar Pluralism and interculturality (2018) e os textos de
Comblin «Dominus Iesus» Cinco anos depois (2005) entre outros. Ambos destacavam que
estamos no início de uma jornada e defendiam a necessidade de que àqueles que se dispõem
a enfrentar o desafio do diálogo interreligioso precisam estar abertos à inspiração do
Espírito Santo. Deste modo, não são as instituições religiosas que deveriam direcionar os
rumos do diálogo interreligioso. As ideias destes autores são certamente inspiradoras para
quem se dispõe a promover o encontro das religiões no espaço público.
Palavras-chave: Panikkar; Comblin; pluralismo; diálogo; abertura.

Introdução
O presente texto é o primeiro esboço da tentativa de aproximação entre o
pensamento de Raimundo Panikkar e José Comblin. Suas ideias continuam a ter
importância para pensar os desafios que o pluralismo religioso traz para a reflexão
teológica da prática cristã.
Nesta temática o pensamento de Panikkar tem uma grande originalidade ao
propor a interculturalidade como uma abordagem dos diferentes contextos das
grandes tradições religiosas e propor possíveis caminhos de aproximação e
enriquecimento mútuo por meio da espiritualidade e da mística. Ele enfrenta o
desafio de pensar a diversidade religiosa na Ásia, partindo especialmente do
hinduísmo para mostrar os grandes desafios do pluralismo ao Cristianismo.
O Pluralismo é atualmente um problema existencial humano que
traz questões agudas sobre como iremos viver nossas vidas no
meio de tantas opções. Pluralismo, já não é um velho livro escolar
de questões sobre o Uno e o Diverso: se tornou um dilema concreto
do dia a dia ocasionado pelo encontro mútuo de filosofias e visões
de mundo incompatíveis. Hoje, enfrentamos o pluralismo como a

1 Doutor em Ciênciada religião. Professor dos programas de graduação e pós-graduação em Teologia


na área de Teologia Prática com ênfase em missiologia na PUC-SP. E-mail: agcoliveira@pucsp.br;
genoli73@gmail.com.

674
verdadeira questão prática da coexistência humana (PANIKKAR,
2018, p. 5).
Comblin, por sua vez, embora tivesse as bases de seu pensamento na
realidade ocidental, especialmente na América Latina, historicamente marcada por
uma hegemonia cristã católica, também reconhecia o desafio do pluralismo
religiosos, bem como barreiras conceituais que distanciavam o pensamento
religioso ocidental e oriental. Já em 1980, ao tratar o tema do universalismo cristão
defendia que: “ser cristão não é revestir-se de um conjunto de conhecimentos ou de
estruturas. É viver, libertar-se do que não é vida, para viver plenamente” (COMBLIN,
1980, p. 81). Posteriormente, ressaltará o tema do pluralismo das religiões como o
segundo dos temas teológicos atuais na sequência da questão dos pobres que para
ele ocupava o primeiro lugar. Nesta obra, destacava a necessidade de abertura de
reflexão para que a teologia cristã pudesse ser enriquecida por outras matrizes
culturais e religiosas.
Não vamos anunciar a Boa-Nova como algo que exclui ou destrói
tudo o que os seres humanos sabiam antes. A boa-nova vem no final
do edifício do saber. Jesus não disse que os judeus deviam esquecer
todo o AT, apesar dos erros que continha. Preservou o AT e
apresentou a Boa-Nova como estado mais perfeito e acabado da fé
que já tinham. Podemos fazer a mesma operação com os escritos
das outras religiões. Não é preciso destruí-las, mas apresentar a
Boa-Nova como o que completa e aperfeiçoa o que já sabiam. Não
devem renunciar ao que já sabiam, mas receber uma confirmação e
um aprofundamento. Um exemplo disso já tivemos com a filosofia
grega, mas ainda falta experimentar isso com uma das grandes
religiões mundiais. Pode ser que o budismo seja o melhor candidato
neste momento (COMBLIN, 2005, p. 21-22).

1. José Comblin e o pluralismo das religiões


Na sequência das discussões sobre a Declaração Dominus Iesus (DI), Comblin
não ignorava as dificuldades apresentadas pelo documento, mas tomava por base o
chamado à teologia para enfrentar o desafio de considerar e explorar “as figuras e
elementos positivos de outras religiões reentram no plano divino de salvação (DI
14b)” (COMBLIN, 2005, p. 25).
A partir desta premissa, passa a discutir os problemas concretos do diálogo
entre as religiões. As premissas apresentadas podem ser questionadas, pois embora
tente fugir da afirmação de superioridade do Cristianismo acaba reforçando a
mesma ideia. Na sua leitura, “somente a Igreja católica tem um corpus de doutrina
claramente definido. Nenhuma outra Igreja cristã e nenhuma outra religião tem

675
semelhante corpus de doutrina. Isto daria à Igreja católica uma posição de
superioridade” (COMBLIN, 2005, p. 29). Ao nosso ver, isto é reflexo do pouco
entendimento que se tem das grandes religiões orientais que na maioria dos casos,
nos chegam por meio de comentários pouco aprofundados dadas as limitações de
conhecimento linguístico em que estão escritos os tratados doutrinais dessas
religiões. Tal fato, porém, não invalida sua crítica quanto ao entendimento de
superioridade presente no Cristianismo, bem como o seu chamado a renunciar à
pretensa ideia de posse da verdade. “O diálogo somente tem sentido entre pessoas
que andam buscando. Não há diálogo possível com pessoas que acham que já têm a
verdade completa” (COMBLIN, 2005, p. 29).
Um dos pontos de convergência de Comblin e Panikkar será o
reconhecimento da dificuldade apresentada pelo “edifício conceptual” presente na
dogmática cristã. Para refutar, os que defendem a adesão à fé cristã a partir dessa
via, Comblin apresenta as limitações dos padres conciliares no conhecimento dos
textos bíblicos e seu contexto cultural.
A cultura bíblica não tem preocupação pelo «ser» das realidades.
Não diz o que as coisas são, mas o que fazem. Em lugar do verbo
«ser», usam verbos de ação. Ora, a cultura grega inspirada pela
filosofia durante séculos procura justamente as essências, procura
saber o que as coisas são. De fato, os Concílios procuraram dizer o
que Jesus «é», o que os sacramentos «são», etc (COMBLIN, 2005, p.
30).

Comblin, com base em sua experiência na América Latina e sua valorização


da religiosidade popular, defende que “O diálogo verdadeiro e com resultados
históricos realiza-se a nível popular. [...] Uma religião verdadeira é uma religião
vivida” (COMBLIN, 2005, p. 30). Em consequência, teólogos e especialistas deveriam
acompanhar os resultados destas discussões para aprender como as coisas se dão
concretamente e não ficarem presos em realidades “virtuais”. Este é será um dos
pontos de divergência com o entendimento de Panikkar que se empenhou em um
nível mais especializado entre teólogos e especialistas.
Ao abordar o tema do relativismo, apontado como o grande risco para a
mensagem cristã pela DI, mostra a contradição entre o desejo da Congregação da
Doutrina da Fé, e do que se sucede na história da salvação, uma vez que
em Jesus, Deus quis entrar na história e, por conseguinte,
submeter-se a todas as dependências da história. Jesus situou Deus
num ponto determinado da história e do mundo. Não podemos não

676
entendê-lo sem levar em conta todas as distâncias culturais que há
entre nós e ele. Isto nos quita a tranquilidade, mas ao entrar na
nossa história parece que Deus não deu prioridade à nossa
tranquilidade. Entrar na história é entrar na relatividade. No meio
dessa relatividade, o que é a revelação de Deus? Eis o problema
(COMBLIN, 2005, p. 29).

É exatamente como parte da encarnação de Deus na história humana que


Comblin buscava ultrapassar alegado perigo do relativismo, mostrando sua
abertura à um novo momento: “permanece aberto o problema da relação entre
cristianismo e história. E o encontro com as outras religiões é parte da história, uma
nova etapa da história” (COMBLIN, 2005, p. 30).

2. Raimundo Panikkar: pluralismo e interculturalidade


Panikkar também enfrenta as acusações de relativismo sobre seu
pensamento na aproximação que faz entre o Cristianismo e o Hinduísmo. No seu
entendimento, a tradição cristã ocidental enfrenta um esgotamento na transmissão
de sua mensagem. Tal desafio poderia ser enfrentado por meio de “uma fertilização
cruzada, ou uma mútua fecundação, permitirá superar a atual situação; só
ultrapassando os limites culturais e filosóficos poderá o cristianismo voltar a ser
criativo e dinâmico” (apud VIGIL, 2006, p. 431). Para essa abertura, o Cristianismo
necessitaria enfrentar também uma autocrítica:
Para que seja real, o diálogo inter-religioso deve estar
acompanhado de um diálogo intra-religioso, ou seja, deve começar
por questionar a mim mesmo e por definir a relatividade de minhas
crenças (que não é o mesmo que o relativismo), aceitando o risco
de mudança, de conversão, de alteração de meus modelos
tradicionais. Quaestio mihi factus sum, transformei-me num
problema, dizia o grande africano Agostinho. Não se pode entrar na
arena de um diálogo inter-religioso sem a atitude autocrítica
(PANIKKAR, 2001, p. 115).

Em convergência com o pensamento de Comblin, Panikkar apresenta o


diálogo entre culturas, civilizações e religiões como sinais positivos de nosso tempo.
Embora chame a atenção para as dificuldades presentes no Cristianismo faz sua
crítica apontando as saídas presentes na própria identidade cristã.
A superação das dicotomias presentes nas formulações do
pensamento ocidental. “Superação” não significa cancelamento de
diferenças, ao invés transcender o pensamento analítico, não com
uma síntese dos resultados da análise, mas com um pensamento
holístico, que podemos chamar católico ou mesmo contemplativo.
De fato, minha esperança é que as palavras ‘Católica’ e

677
‘contemplativo’ recuperem seu sentido original (PANIKKAR, 2018,
p. XVI).

Panikkar faz um chamado a necessidade de se assumir de fato o desafio do


pluralismo ao afirmar: “Ou levamos o pluralismo a sério, ou se tornará somente
outro rótulo para nosso imperialismo filosófico!” (PANIKKAR, 2018, p. 15). Isso leva
a um sério questionamento ao monoteísmo e à “cristalização das noções” em suas
diferentes formas políticas ou de persuasão religiosa que levaram à afirmação de
“um único Deus, uma Igreja, um Império” (Cf. PANIKKAR, 2018, p. 9).
Novamente em convergência com o pensamento de Comblin, mostra o
desafio do monoteísmo ao transformar a experiência viva de encontro com Deus em
um ser (ou Substância suprema) que terminou limitando-o em “especulações
racionais” sobre o mistério divino (PANIKKAR, 2018, 90). A crítica é aprofundada ao
defender que seria um erro metodológico julgar o politeísmo a partir do
monoteísmo. “Seria um erro metodológico julgar um problema intercultural a partir
de um ponto de vista monocultural (neste caso a partir do monoteísmo). É fácil
criticar o politeísmo a partir de premissas monoteístas. O problema está em quem
“Deus” é” (PANIKKAR, 2018, p. 88). Ele defende que se faria necessário resgatar o
entendimento de “Deus” como um nome universal, em seu sentido etimológico
herdado do sânscrito – Luz (cf. PANIKKAR, 2018, p. 90). Esta é apontada como uma
questão central.

Estamos tocando o nervo central da teologia católica do terceiro


milênio que não pode mais continuar congelada nas culturas
semíticas (monoteísta, histórica que tem um deus como legislador
e juiz) de acordo com os conceitos de um tempo linear (como a de
uma “vida eterna”). Precisamos de uma nova cosmologia e de um
novo pluralismo. Não devemos esquecer que a fundação do
pluralismo é a experiência da contingência humana (PANIKKAR,
2018, p. 92-93).

Panikkar aponta ainda as consequências da mentalidade semita que pensa a


identidade pela exclusão, e a aplicação conceitual grega do princípio da não
contradição. Isso leva a firmar que um cristão não pode ser hindu ou budista. Essa
diferença de entendimento, é uma barreira para a mentalidade Indiana, por
exemplo, que pensa a identidade em termos de inclusão. Consequentemente não
haveria escrúpulos para receber os sacramentos mesmo e permanecendo em sua
identidade hindu ou budista2 (cf. PANIKKAR, 2018, p. 47).

2 Vale ressaltar, que Comblin também tinha apontado para esta questão a partir da crença na
reencarnação presente em muitos que se declaram cristãos: uma grande proporção de seres
humanos acredita na reencarnação. Para eles e elas a ressurreição final não tem significado. Também
a salvação das almas não faz sentido e o céu não interessa. Somente poderiam entender isso e
renunciar à reencarnação depois de assimilarem outros dogmas. Por sinal, há uma grande proporção

678
A partir destas constatações, defende a necessidade da teologia é,
especialmente a teologia oficial cristã católica de cruzar os limites simbólicos. Para
tanto, ele usa a metáfora da geografia das religiões, presente em vários de seus
escritos, para falar da necessidade de integração da religiosidade pessoal como as
águas dos rios que podem se encontrar na forma de vapor. Esta fecundação cruzada,
no entanto, precisa ir além do Jordão e do Tibre (imagem da passagem de Jerusalém
para Roma), para chegar ao Ganges, Paraná, Amazonas, Purus, Madeira... (cf.
PANIKKAR, 2018. p. 51-52).
Os rios da terra nunca se encontram, mesmo nos oceanos, nem
mesmo precisam se encontrar para que sejam verdadeiros
geradores de vida. Mas se encontram, nos céus. Os rios não se
encontram mesmo como água. Se encontram na forma de nuvens,
uma vez que tenham sido transformados em vapor, os quais
eventualmente irão cair novamente sobre os vales dos mortais para
alimentar os rios da terra. Religiões não ‘fundem’, certamente não
enquanto religiões organizadas. Elas se encontram uma vez que
sejam transformadas em vapor, uma vez metamorfoseadas em
Espírito, o qual é então derramado em diferentes línguas. Os rios
são alimentados pelas nuvens que se derramam, também pelas
fontes terrestres e subterrâneas, depois de outras transformações
pela neve ou pelo gelo se voltam em água. O verdadeiro
reservatório das religiões está não somente nas águas doutrinais
da teologia; também está no vapor transcendental (revelação) das
nuvens divinas, também nos imanentes gelo e neve (inspiração)
das geleiras e montanhas geladas dos santos (PANIKKAR, 1988, p.
92).

Considerações finais
Como apresentado, ambos os pensadores convergem ao reconhecer as
dificuldades da utilização de categorias conceituais gregas que cristalizaram o
pensamento cristão. Apontam para o desafio das múltiplas pertenças religiosas tal
como vividas por muitos cristãos e a dificuldade da teologia oficial cristã e da
instituição em aceitar este tipo de pertença plural. O entendimento exclusivista e
suas profundas raízes na tradição cristã ocidental.
Os autores também convergem em defender que a desejada interação entre
as religiões deve se dar no âmbito das religiões vividas. No entanto, para Comblin
isso se daria na vivência popular sem uma participação efetiva de teólogos e
especialistas. Comblin, apontava a dificuldade de reconhecimento dos erros

de católicos que creem na reencarnação e não parecem perceber uma contradição entre a sua
pertença à Igreja católica e a reencarnação (COMBLIN, 2005, p. 29-30).

679
históricos e a falta de abertura à ação do Espírito Santo nos rumos do diálogo entre
as religiões. “não hesita[va] em apontar os erros gigantescos praticados pela igreja
ao longo de sua história. Para evitar a repetição desses erros, há de se deixar guiar
pelo Espírito Santo, que constitui a maior surpresa da mensagem cristã e ‘sopra
onde quer’” (CALADO, 2022, p. 16). Panikkar atuava mais em meio à especialistas,
porém não deixava de questionar o controle institucional e oficial que buscar
determinar os rumos para o diálogo entre as religiões e apontava para a necessidade
de se deixar guiar pelo Espírito.
A transformação religiosa não é fruto de uma violenta revolução ou
ataque de fora, mas fruto do crescimento interna de cada tradição
de modo que o caminho não se dá pela apostasia ou abandono, mas
por uma maior fidelidade à graça insondável do espírito, que a
Bíblia Judaica expressa como “brisa suave” (1Rs 19,12)
(PANIKKAR, 2018, p. 52).

No campo das divergências está o entendimento da história. Comblin


compreende o mistério da encarnação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré, a
compreende em um entendimento linear próprio da tradição ocidental. Seguindo o
entendimento oriental, Panikkar vê essa perspectiva bastante problemática
conclamando a um novo tipo de entendimento cosmológico.
Embora, não tenhamos abordado acima, o tema do “povo de Deus”, bastante
caro à teologia de Comblin é criticado por Panikkar que vê no termo um “sintoma do
colonialismo”. Embora represente um avanço quanto ao entendimento reducionista
de Igreja ao longo dos séculos, ainda se faz necessário resgatar o entendimento da
Patrística que expressa claramente que “toda a humanidade é ‘povo de Deus’, e é
peregrino” (PANIKKAR, 2018, p. 91-92). Tal resgate, permitiria a teologia católica
mantendo sua identidade, preservar sua “capacidade de ser católica” ao mesmo
tempo que pode ser fecundada por outras religiões do planeta. Nos dois autores
abordados, as questões apresentadas buscam conectar à prática cristã ao empenho
por um mundo de justiça e de paz com desdobramentos em outros campos como no
espaço público que a religião vem retomando sua participação depois do ostracismo
imposto na modernidade.

680
Referências
CALADO, Alder Júlio Ferreira. O Tempo da Ação: Ensaio sobre o Espírito e a história.
In: NETO, Adauto Guedes; CALADO, Alder Júlio Ferreira; HOORNAERT, Eduardo
(org.). José Comblin: guia de leitura. Campina Grande: EDUEPB, 2022. p. 19-34.

COMBLIN, «Dominus Iesus» Cinco anos depois. In: O atual debate da Teologia do
Pluralismo Depois da Dominus Iesus. Libros Digitais Koinonia, Volumen 1. 2005.
Disponível em: <LDK1port.pdf (servicioskoinonia.org)>. Acesso em: 30 oct. 2023. p.
25-30.

COMBLIN, J. O debate atual sobre o universalismo cristão. Concilium, n. 155, 1980/5,


p. 74-83.

COMBLIN, José. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo: Paulus,
2005.

PANIKKAR, Raimon. II dialogo intrareligioso. Assis: Cittadella, 2001, p. 27-58.

PANIKKAR, Raimon. Pluralism and Interculturality. Maryknoll: Orbis Books, 2018.

PANIKKAR, Raimundo. The Jordan, the Tiber, and the Ganges. In: HICK, John;
KNITTER, Paul (Editores). The Myth of Christian Uniqueness. Maryknoll: Orbis Books,
1988. p. 89-116.

VIGIL, José Maria. Teologia do Pluralismo Religioso Para uma releitura pluralista do
cristianismo. São Paulo, Paulus, 2006.

681
PAPA FRANCISCO E O CONSUMISMO, UM DESAFIO PARA A
EVANGELIZAÇÃO

Emerson de Almeida Amaral1

Resumo: Diante dos novos desafios da modernidade com os avanços da tecnociência, da


informação globalizada (“era da infocracia”) e do poder econômico excludente e opressor,
percebe-se o surgimento sutil de um grande risco: uma civilização centrada no desejo. Esta
civilização do desejo alicerçada num consumo desenfreado que deteriora as relações
humanas, movida por uma falsa felicidade, constrói novos modos de viver e se comportar:
uma nova sociedade do hiperconsumo. Neste caminho, ao completar uma década de Papado,
pretendemos refletir sobre a temática do consumismo incansavelmente combatido por
Francisco, e, ao mesmo tempo, buscaremos um diálogo com elementos do pensamento do
filósofo e sociológico de Gilles Lipovetsky, a partir da seguinte questão: como construir uma
nova humanidade (hiper)consumista centrada no espírito evangélico da inclusão? No
diálogo com a modernidade, compreendemos que a nossa missão é: apontar caminhos
novos de escuta e reflexão; abrir espaços de integração permanente do ser humano;
resgatar e respeitar a dignidade da pessoa; promover a educação do cuidado com o outro e
o mundo. Neste sentido, acreditamos que, no respeito e na tolerância, podemos acompanhar
e ajudar as pessoas a tomarem consciência de que poderão livremente tomar novas decisões
diante desta espiritualidade consumista. Iluminados por Francisco e fundamentados em
Gilles Lipovetsky, faremos a tentativa de construir uma reflexão que provoque um novo
olhar evangelizador sobre a cultura consumista.
Palavras-chave: Francisco; Consumismo; Evangelização.

Introdução
Ao completar uma década de Papado, pretendemos refletir a temática do
consumismo incansavelmente combatido por Francisco, e, ao mesmo tempo,
buscaremos um diálogo com elementos do pensamento sociológico de Gilles
Lipovetsky, a partir da seguinte questão: como construir uma nova humanidade
(hiper) consumista centrada no espírito evangélico da inclusão?
Dentre as características da globalização excludente geradora de
rupturas das relações fundamentais, o magistério de Francisco tem
enfatizado o individualismo anestesiante; o consumismo que
solapa as dimensões mais solidárias da humanidade, gera
isolamento e tristeza; o sistema financeiro e econômico regido
pelas forças do mercado globalizado; a mentalidade tecnocrática
que reduz o humano e a natureza à utilidade que possam oferecer
(PEDROSA-PÁDUA, acessado em 25/04/2023).

1 Bacharelem Filosofia (PUC-Campinas). Bacharel em Teologia (ITESP). Mestrado em andamento em


Teologia (PUC-SP). Sacerdote da Arquidiocese de Campinas. E-mail: contato.premerson@gmail.com

682
É fácil perceber a dominação do mundo pelas forças do mercado globalizado,
dentro deste sistema financeiro e econômico excludente que determina até o humor
e a vida das pessoas. A ditadura da infocracia não se cansa em formar uma
mentalidade tecnocrática que transforma o homem e a natureza em meros objetos
de consumo, isto é, são reduzidos às utilidades oferecidas no mercado.
Diante disso, urge, aqui, a necessidade da busca de novas hermenêuticas
acerca da política do mercado, pois este não quer somente vender o seu produto ao
sujeito, mas há uma nova força de uma cultura que transforma o próprio sujeito
como produto de compra. O mercado, para tanto, está atento aos desejos mais
profundos de cada um de nós: imóveis, investimentos, férias, viagens, celulares,
conforto e prazeres. Somos, assim, o sujeito e o objeto do próprio mercado.
A preocupação com o futuro da humanidade que vive a cultura do
consumismo ou a cultura do descarte vem sempre denunciada pela Igreja,
sobretudo com o Pontificado de Francisco. Em vários discursos, homilias e
pronunciamentos, ele busca denunciar e alertar a sociedade que caminha para o
enfraquecimento das relações fraternas, solidárias e justas, e para a insensibilidade
ao sofrimento dos pequenos, desfavorecidos e abandonados.
A maior crítica de Francisco se encontra na Encíclica “Laudato’Si”, trazendo
para o centro das discussões da Igreja e do mundo a atenção para com a casa comum.
É nesse problema ético que percebemos o quanto a humanidade passa por
inseguranças, angústias e incertezas, enfim, uma crise discreta e escondida pela
lógica do capital que gera uma cultura de feridos, frustrados e massacrados pelo
desejo do consumo.
Ao mesmo tempo, no entanto, dentro deste turbilhão de sentimentos
paradoxais, cresce uma preocupação com as pessoas, sobretudo a forma como
podemos favorecer novos caminhos e respostas aos novos tempos. É Francisco que
não se cansará de propor a toda humanidade: o diálogo, a abertura e a escuta ao
outro, ao diferente e ao último. Ele afirma que “para tornar a sociedade mais
humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social [...]
fazendo dele a norma constante e suprema do agir” (LS, n. 158), fazendo deste o
elemento fundamental para compreender e responder aos problemas éticos que
ameaçam o futuro da humanidade.

683
Na discussão tão pertinente desta era do consumo desequilibrado, seja
virtual ou presencial, inspirado por Gilles Lipovetsky, acerca da ideia de sociedade
do hiperconsumo e pelo testemunho do Papa Francisco, procuramos, nesta reflexão,
reafirmar a profunda oportunidade da construção de uma sociedade que possar
semear a esperança dentro da cultura da inclusão, do amor e da casa comum.

1. Civilização do consumismo
No campo da ética teológica e numa prática pastoral, a centralidade da
reflexão em torno da identidade e da realização do ser humano se faz urgente e
necessário, sobretudo diante de novas formas de escravidão que o fazem objeto e
vitrine dum mercado excludente e cada vez mais voraz.
Gilles Lipovetsky ao analisar a sociedade da cultura do consumo, traz
presente a ideia de sociedade do hiperconsumo que gera a idolatria pela
comercialização e faz o ser humano sentir a necessidade de consumir, tornando-se
a “civilização do desejo”. Ele, com clareza e distinção, afirma:
Uma nova modernidade nasceu: ela coincide com a “civilização do
desejo” que foi construída ao longo da segunda metade do século
XX. Essa revolução e inseparável das novas orientações do
capitalismo posto no caminho da estimulação perpetua da
demanda, da mercantilização e da multiplicação indefinida das
necessidades: o capitalismo de consumo tomou o lugar das
economias de produção. Em algumas décadas, a affluent society
alterou os gêneros de vida e os costumes, ocasionou uma nova
hierarquia dos fins bem como uma nova relação com as coisas e
com o tempo, consigo e com os outros. A vida no presente tomou o
lugar das expectativas do futuro histórico e o hedonismo, o das
militâncias políticas; a febre do conforto substituiu as paixões
nacionalistas e os lazeres, a revolução. Sustentado pela nova
religião do melhoramento contínuo das condições de vida, o maior
bem-estar tornou se uma paixão de massa, o objetivo supremo das
sociedades democráticas, um ideal exaltado em todas as esquinas.
Raros são os fenômenos que conseguiram modificar tão
profundamente os modos de vida e os gostos, as aspirações e os
comportamentos damaioria em um intervalo de tempo tão curto.
Jamais se reconhecerá tudo que o homem novo das sociedades
liberais “deve” a invenção da sociedade de consumo de massa
(LIPOVETSKY, 2007, p. 8).

Neste sentido, no decorrer da história, desde os avanços industriais e


tecnológicos até os dias atuais, percebe-se o grande risco da deterioração do ser
humano e de suas relações sociais que acenam a um novo estilo do cotidiano das
pessoas que nasce do espírito consumista. “A sociedade de hiperconsumo coincide

684
com um estado da economia marcado pela centralidade do consumidor”
(LIPOVETSKY, 2007, p. 9). Hoje, é inegável que há uma grande ânsia pelo bem-estar
individual, através desta necessidade em viver um consumismo hedonista que,
aparentemente, levará a uma estranha e efêmera felicidade. Com a perda da
qualidade de vida, qual sentido terá o amanhã frente a acelerada consolidação desta
nova sociedade do consumo?
Gilles aponta reflexões e críticas sobre as mudanças da relação entre sujeito
e objeto de consumo, sobretudo nas causas e impactos da nova sociedade do
hiperconsumo, pois é na eminência da busca pela satisfação das vontades, que o ser
humano corre inconscientemente ao encontro dos prazeres do consumo que se
multiplicam nos espaços imaginários e virtuais. Ele afirma: “um hiperconsumidor à
espreita de experiências emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e
de saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicação”
(LIPOVETSKY, 2007, p. 9).
Nesta análise da sociedade do consumo, Gilles apresenta uma abordagem
trazendo uma profunda reflexão sobre o chamado consumo emocional, marcado
pela paixão por marcas no qual o corpo molda o desejo das pessoas. Ele afirma que
este “consumo emocional aparece como forma dominante quando o ato de compra
[...] passa para uma lógica desinstitucionalizada e intimizada, centrada na busca das
sensações e do maior bem-estar subjetivo” (LIPOVETSKY, 2007, p. 28). Isso reforça
a relação entre consumo e o tempo, uma vez que a experiência vivida na satisfação
imediata pelos desejos subjetivos alcançados gera um rejuvenescimento, “por aí se
vê que o consumo mantém relações íntimas com a questão do tempo existencial. [...]
O importante já não é tanto acumular coisas quanto intensificar o presente vivido”
(LIPOVETSKY, 2007, p. 43). É como se fosse uma chamada espiritualidade
consumista:
A sociedade do objeto apresenta-se como civilização do desejo,
prestando um culto ao bem-estar material e aos prazeres
imediatos. Por toda parte exibem-se as alegrias do consumo, por
toda parte ressoam os hinos aos lazeres e as férias, tudo se vende
com promessas de felicidade individual. Viver melhor, “aproveitar
a vida”, gozar do conforto e das novidades mercantis aparecem
como direitos do indivíduo, fins em si, preocupações cotidianas de
massa. Espalha-se toda uma cultura que convida a apreciar os
prazeres do instante, a gozar a felicidade aqui e agora, a viver para
si mesmo; ela não prescreve mais a renúncia, faz cintilar em letras
de neon o novo Evangelho: “Comprem, gozem, essa e a verdade sem

685
tirar nem pôr”. Essa e a sociedade de consumo, cuja alardeada
ambição e liberar o princípio de gozo, desprender o homem de todo
um passado de carência, de inibição e de ascetismo. Não mais
injunções disciplinares e rigoristas, mas a tentação dos desejos
materiais, a celebração dos lazeres e do consumo, o sortilégio
perpetuo das felicidades privadas. Há um individualismo de massa,
hedonista e consumista (LIPOVETSKY, 2007, p. 63).

2. Caminho da inclusão
Conscientes de que, atualmente, as relações são extremamente
fragmentadas, mas carregadas de esperança de que a mudança de percurso é viável
para reconstruir uma nova civilização, a cultura da inclusão se apresenta como luz
que pode iluminar esta situação. A sobrevivência humana dependerá da inclusão
frente ao outro, ao meio ambiente, ao cosmos e a Deus. A valorização das relações é
fundamental nesta nova civilização: “é o sujeito ou pessoa humana quem, no
concreto, se realiza nas relações, consigo mesmo, como mundo da natureza, com os
outros seres pessoais e, na dimensão mais profunda, com Deus” (GARCIA RUBIO,
2006, p. 312).
A espiritualidade inclusiva torna-se o fundamento essencial para curar e
sanar as dores causadas pela indiferença e insensibilidade social. Profeticamente, a
dinâmica da inclusão nos capacitará na abertura à escuta do mundo e na vivência da
prática de Jesus e das comunidades primitivas. A inclusão será o remédio
pedagógico para um mundo doente, ferido e chagado.
Nas passagens do evangelho, a prática da inclusão estava presente na
tradição judeu-cristã e, que, após milênios, continua preservado e perpetuado em
nossa cultura. A proposta de Jesus sempre residiu nesta ética antropológica: nele
não havia restrições de contato com o excluído. O seu ministério foi inclusivo! A
inclusão social e religiosa são atos puros de amor e vida. Não se pode mais viver de
discursos e boas intenções, pois a humanidade grita por um modelo de cultura que
olhe às periferias físicas e existenciais. Isto será um verdadeiro desafio que
ultrapassará a fé cristã ou qualquer forma de experiência religiosa de fé. É
necessária uma conversão dos “convertidos”! “Os excluídos eram os preferidos do
Reino e, para eles, se designava a prática de salvação, além de sustentação das suas
esperanças” (KUZMA, 2014, p. 49).
Francisco apela à capacidade de, no dia a dia, alargar o círculo em
direção àqueles que, “espontaneamente, não sinto como parte do
meu mundo de interesses”, embora estejam perto. Nessa expansão

686
do círculo fechado, é possível reconhecer xenofobias e racismos
dissimulados com quem está próximo e abrir-se à possibilidade da
“amizade social” inclusiva. Em algum momento da vida, é preciso
um “dar-se conta de quanto vale um ser humano”! (PEDROSA-
PÁDUA, acessado em 25/04/2023).

Paradoxalmente, face ao mercado voraz que sacia sua incansável busca pela
riqueza e descarta a vida dos pequenos, afirma-se que ele mesmo se nutre da
escassez da maioria, produzindo pobreza, empobrecidos e excluídos, uma vez que
estes não produzem e nem consomem.
Uma cultura que inclui deve superar a ideia de que os pobres, os pequenos
ou os fracos vivem apenas uma condição de explorados, pois, em sua maioria, são
vítimas de uma condição de descartados pela sociedade, sobretudo, os moradores
em situação de rua, os encarcerados, os viciados, os famintos, as vítimas da violência,
os doentes da rede pública de saúde, os migrantes, os idosos desassistidos, os
desempregados, os sem-teto, os sem-terra, os povos originários, os usuários do
bolsa-família etc. É impossível não sentir a escravidão de tantos descartados pelo
consumismo neste mundo, mas “não deixemos, não deixemos entrar no nosso
coração a cultura do descartável, porque nós somos irmãos. Ninguém é descartável!”
(PAPA FRANCISCO, 2013, acessado em 22/09/2023).
Nesse sentido, a resistência ao mundo do descarte poderá ser uma nova ética
capaz de absorver o íntimo do ser humano e suas possibilidades em compreender o
sistema que gera violência e opressão na construção de uma civilização da inclusão.
É no diálogo com o mundo contemporâneo e na profundidade das novas
interpelações que poderemos mergulhar nos problemas e nas ânsias de cada pessoa,
uma vez que reconhecemos que em cada um reside a semente da esperança e do
bem. Assim sendo, lutar por um mundo mais inclusivo é fazer a experiência de que
há um Deus que não abandona nenhum dos seus filhos e filhas e, acima de qualquer
tipo de juízo, mostra-se misericórdia e cuidado para com todos!
Uma civilização inclusiva, contagiante e evangelizadora estará fundamentada
na espiritualidade do cuidado que se traduz em diálogo de presenças, numa
verdadeira superação das palavras e discursos, reconhecendo que todos são
vulneráveis e nos encontramos em nossa vulnerabilidade.

687
Considerações finais
É necessário um resgate do fundamento da nossa fé, ou seja, da experiência
de Jesus: inclusão e cuidado. O diálogo torna-se o eixo de esperança com este mundo
contemporâneo propulsor de uma civilização do desejo e do descartável que destrói
as dimensões mais solidárias da humanidade, multiplicando, cada vez mais, pessoas
indiferentes, insensíveis, isoladas e tristes.
A civilização inclusiva é o projeto que pode enfrentar a cultura individualista
e a religião intimista, alimentando a luz de relações mais humanas e de estruturas
mais justas a todos. Entretanto, é necessário assumir a necessidade da mudança que
exige a saída das bolhas construídas em torno da pessoa com perspectivas de viver
para o outro: uma espiritualidade do cuidado. É uma quebra das seguranças e do
orgulho. A reconstrução desta civilização somente será possível com um movimento
de uma cultura da resistência nascida a partir dos excluídos e oprimidos da
sociedade contemporânea do hiperconsumo.

Referências
FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’. Sobre o cuidado da casa comum. Brasília:
CNBB, 2015.

FRANCISCO. Discurso do Santo Padre à comunidade de Varginha – RJ (25/07/2013).


Disponível em:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2013/july/documents/p
apafrancesco_20130725_gmg-comunita-varginha.html. Acesso em 22 de setembro
de 2023.

GARCIA RUBIO, A. Unidade na pluralidade. O ser humano à luz da fé e da reflexão


cristãs. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2006.

LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo.


São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Linhas-força da espiritualidade do Papa Francisco: uma


reforma a parir de dentro da Igreja. Revista de Cultura Teológica. No. 98. Ano XXIX.
Jan-Abr 2021. p. 34-66

KUZMA, Cesar Augusto. O futuro de Deus na missão da esperança: uma aproximação


escatológica. São Paulo: Paulinas, 2014.

688
A COMUNICAÇÃO ECLESIAL NO CAMINHO DO CELAM: DE
MEDELLÍN A APARECIDA

José Heitor Vasconcelos de Menezes1

Resumo: Este artigo analisa a relevância da comunicação na Igreja Latino-Americana,


abordando seu papel vital na evangelização e no fomento do diálogo inter-religioso. Através
da exploração dos documentos do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), desde
Medellín até Aparecida, destaca-se como a comunicação transcende a simples transmissão
de informações, moldando a compreensão, promovendo a justiça social e contribuindo para
o entendimento mútuo entre diferentes crenças. Neste contexto, a comunicação emerge
como um elemento-chave na construção de pontes entre os fiéis e na busca por um mundo
mais justo e solidário.
Palavras-chave: Igreja; Comunicação; América Latina; Evangelização; CELAM.

Introdução
A Igreja Católica, desde primórdios, reconheceu o mandato de Cristo de ide e
anunciai e assumiu a missão de comunicar o Evangelho. Para cumprir esse mandato,
a Igreja sempre utilizou os recursos disponíveis para difundir a mensagem bíblica e
sua própria Doutrina, muitas vezes desenvolvendo novos meios e práticas. A
comunicação da Boa Nova sempre envolveu criatividade e adaptação às diferentes
épocas.
Este texto foca nas Conferências do Episcopado Latino Americano e
Caribenho, realizadas após o Concílio Vaticano II, em Medellín (1968), Puebla
(1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Ele busca identificar as
propostas constantes e variáveis relacionadas à compreensão da importância dos
Meios de Comunicação Social, seu papel na sociedade e na evangelização, e como
eles se encaixam na ação pastoral da Igreja na América Latina e no Caribe.
Essas conferências mostram a evolução do pensamento da Igreja em relação
à comunicação, destacando que a comunicação é mais do que apenas a utilização de
meios de comunicação; é um processo dinâmico. Além disso, o catolicismo
desempenhou um papel fundamental na compreensão da comunicação no
continente.

1Mestrando em Teologia no Programa de Estudos de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pertence ao Grupo de Pesquisa Religião e Política no
Brasil Contemporâneo pela PUC-SP. E-mail: heitorcmf@gmail.com.

689
1. Comunicação no horizonte teológico
Conceitualmente, comunicação abrange mais do que meras palavras, gestos
ou sinais. Trata-se do fio que tece as interações humanas, numa teia invisível que
conecta as pessoas e constrói pontes entre diferentes mundos. De acordo com Díez
(1997, p. 113) “é preciso remontar até as alturas ou profundezas do mistério
trinitário para se compreender teologicamente a comunicação”. Em consonância
com essa acepção, sabe-se que no desenvolvimento da teologia trinitária o conceito
de pericórese (gr.: περιχωρησις), cunhado pela patrística grega, “exprime a
habitação das pessoas da Trindade uma na outra, assim como o seu dom mútuo”
(LACOSTE, 1966, p. 388). Assim, como as Pessoas da Santíssima Trindade estão
intrinsecamente relacionadas e em constante comunhão, a comunicação na Igreja
deve refletir essa interconexão. Essa imagem pericorética lembra que a
comunicação não se limita apenas a transmitir informações, mas também é uma
dança de amor-comunhão.
Através da comunicação, a Igreja estabelece conexões entre pessoas de
diferentes crenças, seguindo uma tradição que remonta aos primórdios do
cristianismo, criando redes de relacionamento. Ao longo dos séculos, a Igreja
Católica tem consistentemente utilizado a comunicação para cumprir o mandato
evangelizador, persistindo após o Concílio Vaticano II e com o surgimento das
Conferências Episcopais dos Bispos Latino-Americanos (CELAM). Essas
conferências buscam revisar sistematicamente o conteúdo relacionado à
comunicação em documentos conclusivos, influenciando a agenda do catolicismo na
América Latina, tornando-a mais próxima da realidade do povo crente na região.

2. Medellín (1968)
A II Conferência Geral do Episcopado, realizada em Medellín, Colômbia, em
1968, teve como objetivo reinterpretar e aplicar as diretrizes do Concílio Vaticano
II na América Latina e Caribe. Este evento ocorreu em um momento de intensa
reflexão sobre os desafios econômicos e os conflitos políticos que afetaram a região
(ALVARENGA, 2023, p. 38-42).
Segundo Souza (2008, p. 134), a Conferência de Medellín evidenciou o
pensamento teológico cristão latino americano conhecido como Teologia da
libertação. Nesse contexto, marcado por uma aura de renovação, era plausível que o

690
tema da comunicação ocupasse uma posição proeminente. Isso se justificava
plenamente, uma vez que o propósito subjacente era a efetiva implementação do
Concílio Vaticano II, o qual conferiu significativa importância à dimensão
comunicativa. O documento conclusivo da conferência intitulado A Igreja na atual
transformação da América latina à luz do Concílio (1968), dedica um capítulo
exclusivo à temática, desenvolve sua reflexão partindo do pressuposto de que “a
comunicação social é hoje uma das principais dimensões da humanidade. Abre uma
nova época” (CELAM, 1968, p. 158).
Com as palavras “a Igreja universal acolhe e fomenta os maravilhosos
inventos da técnica” (CELAM, 1968, p. 159), foi sublinhado o reconhecimento desses
avanços tecnológicos, tais como a imprensa, o cinema, o rádio, a televisão, o teatro e
os discos, que se mostraram capazes de inaugurar novas sendas para a comunicação
entre os seres humanos. Nesse contexto, os MCS foram enaltecidos como “essenciais
para sensibilizar a opinião pública diante do processo de mudanças que vive a
América Latina” (CELAM, 1968, p. 159). Eles foram encarados não apenas como
veículos de informação, mas também como meios indispensáveis para apoiar e
promover as transformações sociais em curso.
A Conferência, ademais, evidenciou a importância crucial dos MCS para a
Igreja ao proclamar que esses meios eram fundamentais para apresentar uma
representação precisa e fiel da própria Igreja ao continente latino-americano. Assim,
a Conferência de Medellín abordou com sagacidade a magnitude dos MCS como
instrumentos de evangelização, bem como na construção da identidade e no apoio
às mudanças sociais que permeavam a América Latina na época.

3. Puebla (1979)
O tema desenvolvido no decorrer da conferencia, embora contasse ainda com
alguns reportes ao Concílio Vaticano II, teve como principal orientador a Exortação
Apostólica Evangelli Nuntiandi, do Papa Paulo VI (SOUZA, 2008, p. 135). Obviamente
a questão da comunicação foi tratada nesta perspectiva. O documento destaca que
os Meios de Comunicação Social desempenham um papel abrangente e profundo nas
relações humanas, influenciando indivíduos e a sociedade como um todo. Tal
característica é fundamental dentro do contexto da evangelização.

691
A diversidade dos meios de comunicação, como cinema, rádio, televisão,
imprensa e teatro, atuando simultaneamente e em massa, exerce uma influência
decisiva, consciente e subliminar sobre a vida das pessoas. Segundo Teixeira (2015,
p. 52) “Puebla reafirmou a visão de que os meios de comunicação possibilitam à ação
pastoral da Igreja na América Latina, pois a comunicação é entendida, também,
como meio de participação e missão”
No entanto, a conferência também denuncia aspectos negativos, como o
controle e a manipulação ideológica exercida por poderes políticos e econômicos,
visando à manutenção do status quo ou à criação de uma nova ordem de
dependência-dominação (CELAM, 1979, p. 297). Além disso, o monopólio da
informação, tanto por governos quanto por interesses privados, permite a
manipulação das mensagens de acordo com interesses setoriais, incluindo os
interesses transnacionais que afetam os países latino-americanos. Ao analisar as
conclusões desta conferência no tocante à comunicação, Alvarenga (2023, p. 69)
sublinha que um elemento de especial atenção no documento é “a questão da
integração da comunicação na estrutura da Igreja Católica, como parte de uma
política transversal e da pastoral de conjunto”. Essa é, na nossa acepção, uma
importante estratégia.

4. Santo Domingo (1992)


O documento conclusivo da IV Conferência Geral do Episcopado Latino
Americano tratava da Nova evangelização; Promoção humana; Cultura Cristã. Desde
o advento das Conferências do Conselho Episcopal Latino-Americano, é notável o
agravamento da situação de pobreza e marginalização na América Latina. As
conferências de Medellín e Puebla foram marcos significativos ao proclamarem a
opção preferencial pelos pobres como um imperativo ético e pastoral. Entretanto, à
medida que o tempo avançou, a situação socioeconômica da região continuou a
deteriorar-se, tornando evidente a necessidade de uma ampliação e reafirmação
desse compromisso (TEIXEIRA, 2015, p. 63).
A conferência reconheceu Jesus Cristo como modelo de comunicador: “n’Ele,
Deus, o totalmente Outro, sai ao nosso encontro e espera nossa resposta livre. Este
encontro de comunhão com Ele É sempre crescimento. É o caminho da santidade”
(CELAM, 1992, p. 133). Assim, Cristo foi identificado como aquele que, através do

692
diálogo, convida a humanidade a responder livremente ao chamado divino. Os
desafios da comunicação contemporânea incluem adaptar a mensagem evangélica à
cultura visual e aos meios tecnológicos, como a televisão, e lidar com o impacto
prejudicial da publicidade, violência, pornografia e seitas nos meios de
comunicação.
A conferência também reconheceu a necessidade de uma maior presença da
Igreja nos meios de comunicação e a falta de agentes devidamente preparados para
enfrentar esse desafio. Para lidar com essas questões, Santo Domingo delineou
várias linhas pastorais, incluindo o apoio àqueles que defendem a identidade
cultural e promovem o diálogo autêntico, bem como a necessidade de políticas de
comunicação que promovam a liberdade de expressão e valores culturais.

5. Aparecida (2007)
Através dessa conferência, a Igreja na América Latina reafirmou seu
compromisso com o discipulado e a missão: “A conferencia tem como proposta
animar os missionários e missionárias do continente, a assumirem sua missão de
discípulos e discípulas, evangelizando, assumindo Jesus Cristo e seu projeto de
amor, justiça e solidariedade para que todos tenham vida (SOUZA, 2008, p. 144).
No que se refere à comunicação, o texto conclusivo no seu X capítulo dedica
uma seção à Pastoral da Comunicação Social, destacando que a evangelização é uma
forma de comunicação que busca promover a comunhão entre as pessoas e com
Deus. Essa comunicação tem suas raízes na Trindade Divina, onde a palavra se
transforma em diálogo, criando novos encontros, intercâmbios e comunhão. Assim,
a comunicação desempenha um papel significativo na vida da Igreja ao promover a
comunhão, não se limitando apenas ao âmbito humano.
Os meios de comunicação ainda continuam sendo vistos, como nos outros
documentos, como uma ferramenta moderna e eficaz para proclamar a fé cristã, um
púlpito contemporâneo que permite que a Igreja alcance as multidões. Nova é, no
entanto, a questão da Internet e sua relevância na comunicação evangelizadora.
Destaca que a Internet oferece oportunidades magníficas de evangelização, desde
que seja usada com competência e consciência de suas forças e fraquezas. No
entanto, ressalta que os meios de comunicação, incluindo a Internet, não podem
substituir as relações pessoais e a vida comunitária, mas podem complementá-las.

693
Além disso, chama a atenção para a exclusão digital e propõe a criação de pontos de
rede e salas digitais para promover a inclusão, especialmente em paróquias e
instituições católicas (CELAM, 2008, p. 218-220). Em acordo à esta perspectiva,
Teixeira (2015, p. 71) traz a reflexão de que o mais importante na reflexão sobre
comunicação apresentada no documento está na preocupação da comunidade
cristã. Ou seja, a comunicação, com seu potencial evangelizador, deve gerar
processos de encontro de toda a comunidade cristã.

6. A comunicação na perspectiva do CELAM e a questão do encontro das


religiões
Os documentos emanados do Conselho Episcopal Latino-Americano
(CELAM) ressaltam a importância da comunicação no interior das comunidades
religiosas, indo além da mera transmissão de informações para assumir uma
dimensão relacional mais ampla. Nessa perspectiva, a comunicação adquire a função
de fortalecer os laços interpessoais entre os membros da fé, transcendendo o mero
compartilhamento de ideias para abraçar a expressão de sentimentos e crenças,
essenciais para a coesão e identidade religiosa. Alvarenga (2023, p. 83) fazendo uma
exposição da comunicação para a transformação social, o autor vale-se das palavras
de Dragon (2011, p. 32) que aqui nos ajuda a entender a temática a qual estamos a
refletir: a comunicação “é um processo de diálogo e debate, baseado na tolerância,
no respeito, na equidade, na justiça social e na participação ativa de todos”.
Neste contexto, as religiões enfrentam o desafio de manter suas identidades
e promover o diálogo inter-religioso com respeito mútuo e compreensão. Isso
envolve não apenas líderes religiosos, mas também todos os leigos, que buscam
entender e respeitar diferentes crenças na sociedade em evolução. Esse diálogo não
se limita à compreensão entre religiões diferentes, mas também inclui a busca por
respostas espirituais na sociedade em mudança.
A comunicação, concebida como uma ferramenta capaz de construir pontes,
surge como um elemento-chave na abordagem destas questões, uma vez que pode
fomentar a compreensão mútua e o respeito. Em síntese, o diálogo inter-religioso,
seja no seio eclesial ou no espaço público, desponta como um componente essencial
para a promoção da compreensão e da tolerância entre as diversas crenças,

694
contribuindo para a coexistência harmoniosa em uma sociedade cada vez mais
pluralista.

Considerações finais
A comunicação desempenha um papel essencial no contexto eclesial e nas
interações entre religiões e a sociedade contemporânea na América Latina. Além de
transmitir informações, ela conecta pessoas, constrói pontes entre diferentes
mundos e reflete a relação intrínseca da Santíssima Trindade. Os documentos do
CELAM enfatizam a importância dos Meios de Comunicação Social para a
evangelização, justiça social e identidade religiosa, reconhecendo sua influência na
sociedade latino-americana. No entanto, a comunicação eclesial enfrenta desafios,
como manipulação ideológica e exclusão digital, enquanto promove o diálogo inter-
religioso para superar estereótipos religiosos, promover a liberdade religiosa e
buscar a justiça social. Nesse contexto, a comunicação não é apenas um meio de
informação, mas uma expressão do amor-comunhão que reflete a essência da
experiência humana e da fé religiosa e que deve sempre, em nossa análise, ser um
fio condutor e facilitador dentro do contexto do encontro das religiões.

Referências
ALVARENGA, Ricardo. A comunicação da Igreja católica na América Latina: O que
nos ensinam os documentos do Celam. São Paulo: Paulus, 2023.

ARENAS, Sandra. “Conferências do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam)” .


In: DI MORI, Geraldo (org.). Theologica Latinoamericana: enciclopedia digital. Belo
Horizonte: Theologica Latinoamericana, 2017. Disponível em: http://the-
ologicalatinoamericana.com/?p=1475. Acesso em: 01/09/2023.

BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

CELAM. A igreja na atual transformação da América Latina à luz do


concílio: conclusões de Medellín. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1980. 182 p. (Documentos
CELAM).

CELAM. Evangelização no presente e no futuro da América Latina: Conclusões da


Conferencia de Puebla: Puebla de Los Angeles, México, 17-1 a 13-2 de 1979 (Texto
provisório). São Paulo: Paulinas, 1979.

CELAM. Santo Domingo: Conclusões da IV Conf. do Episcopado Latino


Americano: nova evangelização, promoção humana e cultura crista. Texto
Oficial. 2.ed Petrópolis: Vozes, 1993.

695
CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 de maio de 2007. 5 ed.
Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2008. 311 p. ISBN 978-85-349-2774-1.

DAGRON, Alfonso Gumucio. “Comunicación para el cambio social: clave del desarrollo
participativo”. In: G., José Miguel Pereira; B., Amparo Cadavid (org.). Comunicación,
desarrollo y cambio social: interrelaciones entre comunicacion, movimentos
ciudadanos y medios. Bogotá: Uniminuto, 2011.

DÍEZ, F. M. Teologia da Comunicação. Tradução: Rodrigo Concreta. São Paulo:


Paulinas, 1197.

LACOSTE, Jean Yves (coord.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas,
Loyola, 2004. 1966 p.

SOUZA, Ney De. 2013. “Do Rio de Janeiro (1955) à Aparecida (2007). Um Olhar Sobre
as Conferências Gerais Do Episcopado Da América Latina e Do Caribe.” Revista de
Cultura Teológica. ISSN (Impresso) 0104-0529 (Eletrônico) 2317-4307, no. 64 (Junho,
2008). Portal de Revistas PUC SP: 127. doi:10.19176/rct.v0i64.15533.

TEIXEIRA, Pauliene José. A comunicação da Igreja Católica latino-americana: dos


meios à pastoral. São Paulo: Paulus, 2015. ISBN 978-85-349-4116-7.

696
PROTESTANTISMO E REVOLUÇÃO: SIMETRIAS SEMÂNTICAS NA
IMPRENSA ULTRAMONTANA – BRASIL, SEGUNDA METADE DOS
OITOCENTOS

Leonardo Henrique de Souza Silva1

Resumo: Em uma fase marcada pelo recrudescimento de sua postura reacionária e


combativa aos supostos “erros da modernidade”, o catolicismo ultramontano acompanhara
o avanço numérico e propositivo do protestantismo no Brasil, rival direto no campo
religioso cristão e que, ao longo da segunda metade do século XIX, galgara novos espaços na
cena pública. Almejando a forja de uma opinião pública que lhes fosse favorável, o
ultramontanismo lançara mão de seus veículos de imprensa na montagem e difusão de uma
formulação discursiva condenatória e combativa ao protestantismo, a partir da qual tendera
a associá-lo a um dos principais conceitos anatemizados pela Santa Sé: o conceito de
revolução, veiculado em seus sentidos mais disruptivos, sinônimo de uma suposta ameaça
a um dado constructo civilizatório, de matriz cristã-católica. Neste âmbito, perscruta-se
esboçar um panorama das estratégias discursivas assumidas pelo catolicismo ultramontano
no enfrentamento do protestantismo na conjuntura elencada, focalizando os usos e sentidos
simetricamente estabelecidos quanto ao conceito de revolução. Para tanto, recorre-se ao
referencial teórico-metodológico da História dos Conceitos, tendo em Reinhart Koselleck a
principal referência. Espera-se dimensionar o teor da batalha discursiva que será
empreendida por meio da imprensa periódica, em moldes maniqueístas e escatológicos,
desenvolvida em torno de urgências contingenciais, porém alicerçadas em uma semântica
de longa duração, a partir do qual pode-se verificar a materialidade histórica refletida na
linguagem e que por esta última era também modelada.
Palavras-chave: Ultramontanismo; Protestantismo, Imprensa católica; Conceitos;
Revolução.

1. O avanço protestante e a reação ultramontana


De um grupo diminuto e esparso na primeira metade do século XIX,
descolado de qualquer potência propositiva concreta via mecanismos jurídico-
institucionais à um crescente mosaico de tendências reformadas e organizadas ao
longo da segunda metade dos oitocentos, os protestantes tornaram-se, também no
Brasil, um incômodo para a Igreja Católica Romana, à época modelada segundo
premissas ultramontanas. Um concorrente direto no campo religioso cristão estava
se consolidando em um espaço até então hegemonicamente católico romano.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Ciências da Religião da PUC-Campinas.


Licenciado em História pela Escola de Ciências Humanas, Jurídicas e Sociais da PUC-Campinas.
Membro do Grupo de Pesquisa “História das religiões e religiosidades no Brasil”. E-mail:
leonardohenrique.ss@outlook.com.

697
A postura combativa aos princípios doutrinários protestantes, reportada às
diretrizes pontifícias reativas às principais tendências da modernidade, se
intensificara ao longo da década de 1860 e, em meados da década de 1870,
encontraria seu clímax nas tensões, acusações e investidas discursivas, nos marcos
da Questão Religiosa. Naquela altura, as diversas tendências alvo das críticas
ultramontanas – dentre os quais os protestantes e maçons – entoaram uma guerra
discursiva declarada, através da imprensa, contra o pensamento ultramontano, o
que desembocaria em um cenário pouco favorável a vias conciliatórias, à medida em
que o ultramontanismo recorrera ao mesmo instrumento combativo, ora
declaradamente ancorada em uma postura intransigente, ora mais tolerante
(ABREU, 1999).
Sustentados por diretrizes e recomendações emanadas da Santa Sé (SILVA;
SILVA, 2020), os representantes do ultramontanismo assumiriam uma férrea
oposição em relação ao protestantismo, discursivamente travestido do manto de
“inimigo da religião”, da ordem social, da civilização cristã. Reiterando tais
posicionamentos pontifícios, representantes do ultramontanismo no Brasil
mobilizariam, no combate discursivo empreendido contra os “males modernos”, os
mesmos instrumentos adotados por seus rivais: a imprensa periódica. No intuito de
frear o avanço protestante, uma série de periódicos católicos seriam fundados, a
exemplo dos jornais A Estrela do Norte (Pará), A Cruz (Rio de Janeiro) e A Estrela do
Sul (Porto Alegre) (SILVA, 2021; VASCONCELOS, 2010).
Nestes periódicos, clérigos e leigos ultramontanos entoaram uma inflamada
crítica teológica em relação ao protestantismo e outros supostos “inimigos” da
Igreja, dentre os quais as maçonarias, os liberalismos, anticlericalismos e tantos
outros “ismos” (O Apóstolo, n. 1, p. 2, 7 de janeiro de 1866). Mediante vaticínios
escatológicos, tais periódicos configuraram uma rede semântica altamente
pejorativa em torno de uma ideia própria de protestantismo, taxando-o de “[...]
divisão vergonhosa, uma aglomeração confusa de doutrinas disparatadas” (A
Estrella do Sul, n. 1, p. 6, 7 de janeiro de 1866). Acusação esta que fomentará uma
associação semântica particular: o protestantismo como correlato simétrico ao
conceito moderno de revolução.

698
2. O conceito de revolução à luz da materialidade histórica
Se no século XVI, no âmbito das chamadas Ciências Naturais, o conceito de
revolução indicava um “movimento cíclico, recorrente, regular, necessário e
irresistível dos astros em suas órbitas, sem relação com os assuntos humanos”
(ORTEGA; SILVA, 2020, p. 141), o século XVII trar-lhe-ia outras notas semânticas, à
medida que passava a acenar a um “retorno à ordem política anterior que tinha sido
alterada por turbulências” (SILVA; SILVA, 2009, p. 362). Uma espécie de “retorno
providencial” baseada na mesma ideia de movimento cíclico expressa pelo conceito
em seus usos referentes à física copernicana (SANTOS JUNIOR, 2018).
No decorrer do século XVIII, o conceito seria interpretado segundo
tendências políticas e filosóficas de matriz ilustrada, registrado na Encyclopedie de
Diderot e D’Alembert como uma espécie de transformação “significativa” no
governo do Estado (SANTOS JUNIOR, 2018, p. 135). Por sua vez, desde as décadas
finais do século XVIII, em especial com a Revolução Francesa, o conceito passara a
identificar “uma mudança estrutural, convulsiva e insurrecional” (SILVA; SILVA,
2009, p. 362).
Reformulado enquanto “um produto linguístico de nossa modernidade”
(KOSELLECK, 2006, p. 62), atravessada por uma transformação na própria
“experiência temporal” (SANTOS JUNIOR, 2018, p. 123), o conceito de revolução fora
redesenhado segundo certa filosofia da história, assumindo uma face “meta-
histórica” capaz de “concentrar em si as trajetórias de todas as revoluções
particulares” (KOSELLECK, 2006, p. 69). Sob tal remodelagem, revolução passa a ser
entendido como um conceito capaz de dimensionar uma experiência “sempre
traumática porque tira a sociedade de sua inércia, movimentando a estrutura social”
– o que tendera a torná-lo condenável (porque temido) por determinados setores
dirigentes e socialmente privilegiados do mundo ocidental (SILVA; SILVA, 2009, p.
363).
Justamente esta última parece ter sido a principal marca a ser assumida pelo
pensamento ultramontano nos usos discursivos do conceito de revolução.
Visualizando o Império do Brasil sob o prisma dual dos “arroubos intempestivos”
pretensamente promovidos pelas transformações da modernidade, o conceito de
revolução assumiria centralidade nas publicações dos jornais aqui analisados.
“Monstruosa doutrina” (A Cruz, n. 99, 5 de julho de 1863, p. 3), o “gênio da

699
destruição”, “inimiga da paz, da ordem, da liberdade” (A Estrella do Norte, n. 44, 30
de outubro de 1864, p. 346), o “espírito satânico” (A Boa Nova, n. 53, 5 de julho de
1873, p. 1), são apenas algumas das expressões e dos conceitos assumidos como
correlatos simétricos ao de revolução, conceito este cujos usos foram capazes de
conferir sentidos à ideia de um mal a ser destruído e que encontravam respaldo na
documentação pontifícia. Seus usos serão recorrentes sobretudo no jornal O
Apóstolo, onde o conceito contribuíra decisivamente na construção de uma “rede
semântica do mal”.
Assim, o conceito em questão, ao menos entre os anos 1860 e fins dos anos
1880, sinalizava para os representantes do ultramontanismo uma mudança
disruptiva da ordem natural, o que será entendido como “a coroação de um plano
diabólico urdido há muito tempo, prosseguido com infernal perseverança e cujo
objetivo é derrubar a própria Igreja” (O Apóstolo, n. 1, 1 de janeiro de 1871, p. 4).
Vejamos agora como os usos discursivos deste conceito fizeram-se presentes na
imprensa católica ultramontana do período em questão.

3. Revolução e protestantismo: correlações discursivas


Acusado pelo ultramontanismo de buscar a destruição das crenças do que
entendiam por “população brasileira”, isto é, a matriz católica romana (A Estrella do
Norte, n. 10, p. 8, 6 de março de 1864), o protestantismo será constantemente
questionado quanto ao fato de se considerar igualmente uma religião. Considerar-
se-ia que no protestantismo “[...] tudo é frio, triste e nu como as paredes de seus
templos, onde bem se conhece a ausência de Deus (A Cruz, n. 159, p. 2, 28 de agosto
de 1864). A um só tempo, os redatores destes jornais católicos ultramontanos, ao
reabilitarem a pretensa condição universal da Igreja Católica como matriz da
“verdadeira e única religião”, consideravam o protestantismo
[...] uma revolta que Deus detesta e amaldiçoa na terra, como
detesta e amaldiçoa no céu a revolta de seus anjos rebeldes.
Devemos amar os protestantes e detestar o protestantismo, como
devemos amar o pecador e detestar o pecado […]. O Protestantismo
é uma doutrina enganadora: guerra ao erro (O Apóstolo, n. 14, 7 de
abril de 1872, p. 3-4).

Sob tal entendimento, o protestantismo tornara-se alvo de associações


semânticas em relação ao conceito de revolução. Em passagem do periódico O
Apóstolo, o protestantismo será considerado a própria “desordem, a anarquia e a

700
revolução” (O Apóstolo, n. 129, 7 de novembro de 1879, p. 4). Vejamos um trecho
capaz de nos esclarecer acerca desta associação discursiva:
O protestantismo apresentou sempre como elemento forte de sua
existência a desordem. Para viver precisou negar tudo, atacar todas
as instituições e aniquilar a autoridade. [...] É da reforma de Lutero
que saiu, no século XVI, este monstro; dessa reforma que gerou a
revolução francesa, que perverteu e desmoralizou as nações, que
cobriu a França de crimes e a inundou de sangue [...]” (O Apóstolo,
n. 11, 14 de março de 1869, p. 4).

A publicação anterior reflete uma compreensão que radica nos momentos


iniciais de veiculação do jornal O Apóstolo. Na edição n. 24 de 1867, encontramos
uma publicação, escrita por um “assinante de Minas”, capaz de dimensionar tais
“enlaces” desde o título: “O protestantismo e a revolução”. Voltado a discutir uma
suposta linha histórica linear que articulava o protestantismo aos movimentos
revolucionários, o artigo é enfático ao afirmar ser o protestantismo “todo
revolucionário”, em especial por uma suposta negação da suma autoridade
hierarquicamente estabelecida: o pontífice romano, o que será considerado uma
corrupção da ordem natural da sociedade, um princípio corruptor do edifício social.
O artigo aprofunda tais conexões, considerando a Revolução Francesa como
um fruto do protestantismo – discurso este que permanece corrente até fins do
século XIX (O Apóstolo, n. 60, 15 de setembro de 1900, p. 1) –, uma espécie de
desdobramento da Revolução religiosa na Inglaterra – ou seja, se não o grande
responsável, um dos. Tendo supostamente um berço comum, protestantismo e
revolução seriam considerados conceitos correlatos, posto que, para obter êxito, os
revolucionários tendiam a recorrer a um ideário comum: o protestantismo. Uma
estratégia discursiva que articulava dois supostos “males” modernos de forma a
criar a imagem de um robusto e ameaçador inimigo público a ser condenado e
esquecido na história (O Apóstolo, n. 24, 16 de junho de 1867, p. 6-7).
Tal narrativa parece ter sido edificada na busca por materializar os supostos
perigos trazidos pelo crescimento protestante no Brasil, em especial a partir de fins
dos anos 1860, com o surgimento do jornal Imprensa Evangélica (CARVALHO,
2018). Assim, o ultramontanismo associara uma certa ideia de protestantismo ao
conceito de revolução em uma relação semântica correlata e simétrica, almejando
instigar uma reação mais contundente, inclusive entre lideranças políticas, no trato
de seus inimigos públicos – considerados inimigos da nação:

701
O protestantismo e a revolução tem entre si muita afinidade. Se um
quer a liberdade civil sem limites, o outro proclama-a também na
religião. Ambos porém querem a destruição da autoridade. Ambos
querem o domínio das massas, isto é, o extermínio da ordem. Em
todos os tempos, em todos os Estados o protestantismo [...], tem
sido precursor da revolução (O Apóstolo, n. 50, 13 de dezembro de
1868, p. 2).

Este posicionamento, importante frisar, nada tinha de inédito, a julgar pelas


publicações do jornal A Estrella do Sul (A Estrella do Sul, n. 45, 16 de agosto de 1863,
p. 355) e A Cruz, que já apostavam em uma suposta ligação histórica entre o
protestantismo e a explosão da Revolução Francesa (A Cruz, n. 12, 3 de novembro
de 1861, p. 2) – em especial no tocante à livre interpretação dos textos bíblicos e a
circulação de bíblias protestantes (A Cruz, n. 157, 14 de agosto de 1864, p. 2).
Considerava-se, assim, que “todo o protestantismo foi sempre essencialmente
revolucionário, como toda a revolta foi sempre essencialmente protestante” (O
Apóstolo, n. 45, 23 de abril de 1880, p. 3).

Considerações finais
Mediante o exposto, nota-se que os usos discursivos do conceito de revolução
alargaram-se ao longo da segunda metade do século XIX no Brasil, tendendo a ser
associado a posturas pretensamente contrárias e, de saída, incompatíveis com o
modelo de Igreja e sociedade veiculado pelo ultramontanismo – por isso mesmo,
danosas e passíveis de condenação e combate. Neste cenário discursivo, catolicismo
ultramontano e protestantismos continuaram trocando farpas durante os anos
1880 através da imprensa, mas os esteios deste embate logo passariam por uma
profunda mutação. No âmbito do recém instalado regime republicano, a ratificação
do Decreto Nº 119-A, em 7 de janeiro de 1890, não apenas sepultara o até então
vigente status do catolicismo romano com o fim do regime do padroado, como
também instituíra a liberdade religiosa.

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702
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Disponível em:
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703
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São Paulo, São Paulo, 2010.

704
AS PINTURAS MURAIS DA CATEDRAL DE JACAREZINHO NO
CONTEXTO DA HISTÓRIA SOCIOCULTURAL E ECLESIÁSTICA DOS
ANOS 1950

Maurício de Aquin1
Victor Augusto Costa2

Resumo: Pretende-se analisar a produção e os sentidos das pinturas murais da Catedral de


Jacarezinho no contexto da história sociocultural e eclesiástica dos anos 1950. Ao explorar
e descrever as variedades de fontes, como escritas, imagéticas e arquitetônicas, torna-se
evidente a importância deste patrimônio histórico, cultural, simbólico e teológico-
eclesiástico. Usaremos o pressuposto de que a relação se estabelece entre materialidade
(Catedral) e imaterialidade (aqueles que adentram ao templo) e dos valores que estes
recebem. A análise documental será realizada através do diálogo entre passado e presente
e a própria historiografia da época. Por tanto, a partir do estudo realizado, é proposto neste
ST as relações entre Dom Geraldo de Proença Sigaud, então bispo diocesano de Jacarezinho,
e seu irmão, Eugênio de Proença Sigaud, artista comunista do círculo de Cândido Portinari,
expressas em suas pinturas murais, de meados do século XX, diante do conjunto da história
sociocultural e eclesiástica da Catedral de Jacarezinho.
Palavras-chave: Catedral de Jacarezinho; Pinturas Murais; Arte, sociedade e religião.

Introdução
O estudo das pinturas murais da Catedral de Jacarezinho no contexto da
história sociocultural e eclesiástica dos anos 1950 tem por objetivo compreender a
produção e os sentidos estético-teológicos expressos nessas pinturas que foram
tecidos nas tramas sociopolíticas, culturais e religiosas daquela época. Nessas
tramas observa-se a simbólica relação entre dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo
católico conservador, e o seu irmão, Eugênio de Proença Sigaud, artista comunista,
autor das pinturas murais.
O trabalho justifica-se na medida em que essas pinturas murais são
patrimônio histórico-cultural do Estado do Paraná, tombadas no ano de 1990, e
nelas expressam-se elementos variados da população, geografia e imaginário de
Jacarezinho, e região, nos anos 1950, bem como expressam uma composição de
sentidos estético-teológicos resultante do encontro entre dois irmãos que

1 Professor Associado de História da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP/Campus


Jacarezinho. Doutor em História pela UNESP. E-mail: mauriaquino12@uenp.edu.br
2 Graduando em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP/Campus

Jacarezinho. Bolsista PIBIC/Fundação Araucária (Paraná). E-mail: victoraugustocosta1@gmail.com.

705
representam lugares e visões de mundo distintos da época. Nas paredes da Catedral
de Jacarezinho, espaço cultual aberto ao público, encontram-se percepções,
concepções e expressões distintas sobre o sagrado e sua relação com a humanidade.
Considerando essas perspectivas e propósitos, este breve texto está
organizado em duas partes: na primeira, abordam-se as pinturas murais em seu
contexto de produção e principais aspectos; na segunda, analisa-se a relação entre
os “irmãos Sigaud”, o bispo Geraldo e o artista Eugênio, e as pinturas murais
propondo pensar os processos de significação resultantes dessa relação. O texto
encerra-se destacando o encontro entre esses irmãos mediado pela religião no
espaço público jacarezinhense.

1. As pinturas murais da Catedral de Jacarezinho


A Catedral Imaculada Conceição e São Sebastião, localizada na cidade de
Jacarezinho, no Norte Pioneiro do Paraná, é o marco da sede de um episcopado
paranaense e abriga a cátedra do Bispo Diocesano. Nesta, encontra-se, também, um
grande acervo de seiscentos metros quadrados de pinturas parietais, realizadas pelo
renomado pintor, conhecido por “pintor dos operários”, Eugênio de Proença Sigaud,
entre os anos de 1954 e 1957. Pretendemos, então, estabelecer conexões e relações
entre o trabalho realizado por Eugênio e seu irmão, Dom Geraldo de Proença Sigaud.
Ao falar sobre o processo de construção da Catedral, é necessário evidenciar
o seu contexto histórico e sociocultural que impulsou as pinturas como um “espelho
de Sigaud” (cf. CORREA, 2015) no interior do Templo. Segundo o Livro Tombo,
As pinturas murais de Eugênio de Proença Sigaud nas paredes da
Igreja Matriz da Imaculada Conceição perfazem um total de
seiscentos metros quadrados, e foram tombados em 1990. Cobrem
o interior da igreja, as paredes da galeria lateral que separa a nave
do coro e a cúpula. Pintadas em 1957, foram consideradas
patrimônio do Estado e inscritas no Livro do tombo das Belas Artes
[...] Onde o sagrado se mistura ao profano num estilo que, segundo
Frederico Morais, se caracteriza como viril, algo rude e tosco na
energia dos volumes (LIVRO DO TOMBO DAS BELAS ARTES apud
KERSTEN, 1998, p. 282-283).

De caráter compulsório, ou seja, de apresentar tributos ao Estado do Paraná,


responsável pelo tombamento das pinturas, destaca que “o valor artístico dos
murais é superior ao valor arquitetônico do templo, o edificado torna-se objeto de
preservação por conter obras de arte” (LIVRO DO TOMBO DAS BELAS ARTES, nº 8).

706
Figura 1: Catedral de Jacarezinho. 2023
Fonte: Acervo pessoal de Victor Augusto Costa.

Com a leitura de Pastro (2010), o objeto em evidência, ou seja, a Catedral,


carrega em si uma verticalidade do Sagrado e uma horizontalidade da beleza,
que se tornam um ponto referencial para esta estrutura eclesiástica, fragmentos
para nossa análise, de um período moderno e a valorização de uma sociedade em
construção. Destacamos para uma “história cristalizada” (MARTINS, 2009, p. 239),
gerada a partir de acontecimentos históricos: produção de café e de cana-de-açúcar,
conflitos gerados pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), transição para o
governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e o próprio modelo institucional da
Neocristandade, da aproximação de Igreja e Estado, conforme é possível notar em
Evangelista (2012), Corrêa (2015) e Silva Júnior (2006).
Eugênio apresentava traços do “Expressionismo”, de contrastes de cor,
grossas camadas de tintas e valorização da expressão emocional do ser humano,
assim “o ‘suor do simples’, a expressão sisuda e rude no trabalhador rural das
fazendas de café, nos motoristas, nos descendentes de escravos” (EVANGELISTA,
2013, p. 32).

707
Figura 2: Pintura parietal sobre a nave central da Catedral, da Profecia da Profetisa Débora
(cf. Jz 4,4ss). Fonte: Evangelista, 2013.
Para que Eugênio chegasse na cidade de Jacarezinho, houve a presença de seu
irmão, Dom Geraldo de Proença Sigaud, que o encarrega desta função, de decorar o
interior da Catedral Diocesana Imaculada Conceição e de São Sebastião.

2. Os irmãos Sigaud
As relações estabelecidas entre os irmãos Geraldo e Eugênio, em outros
trabalhos, sempre se apresentam opostas e de interesses particulares. Nesta
pesquisa, evidenciaremos as relações constitutivas entre ambos, mas antes
abordaremos uma breve biografia de cada um.
Eugênio de Proença Sigaud nasceu em Porciúncula, no Rio de Janeiro, em
1899, filho de Paulo da Nóbrega Sigaud e Maria de Proença Sigaud, uma família
tradicionalmente católica e francesa. Ainda pequeno, mudou-se com seus pais para
Belo Horizonte, Minas Gerais. Ao retornar para o Rio de Janeiro, formou-se em
arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes, voltando-se para a pintura. Pintor da
segunda fase da Arte Moderna, enquadrava-se na geração de pintores dos anos 30,
que tinham como pano de fundo o fim da República Velha e a crise de 1929,
demarcado por preocupações sociais (EVANGELISTA, 2013, p. 26). Era membro do
Núcleo Bernadelli, formado em 1931, com objetivo de criar uma alternativa para o
ensino da Escola Nacional de Belas Artes, em enfatizavam a liberdade de expressão

708
artística. Após ser expulso deste grupo e com a expressão artística de Cândido
Portinari em construção, passa então a fazer parte deste círculo de pintores, que
tiveram inspirações nas pinturas murais do México, demarcando o cotidiano e
denúncias sociais, especialmente dos trabalhadores. O Muralismo e o
Expressionismo marcam sua trajetória de pintor. Em 1954 é convidado por seu
irmão, Dom Geraldo de Proença Sigaud, para decorar o interior da Catedral de
Jacarezinho, mesmo considerando-se ateu, realiza intervenções no projeto original
de Benedito Calixto.
Geraldo de Proença Sigaud nasceu em Belo Horizonte, em 1909, teve uma boa
educação na infância. Mais tarde, tornou-se Religioso Verbita. Apresentou ser um
homem erudito e conservador dos ideais do Catolicismo. Ao lado de Plínio Corrêa de
Oliveira, apoiou seu livro “Em Defesa da Ação Católica”, em 1943, juntamente com
Padre Antonio de Castro Mayer, formando o “Grupo do Plínio”. O Papa Pio XII rendeu
elogios e a sagração episcopal a Sigaud e Mayer, que atuavam em defesa da
Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada
em 1960. Dom Geraldo fez inúmeras críticas ao comunismo, escrevendo seu
“Catecismo Anticomunista”. A frente da Diocese de Jacarezinho, entre 1946 e 1960,
continua com o projeto de construção da Catedral Diocesana e solicita o trabalho de
seu irmão, Eugênio. Criou a Faculdade de Filosofia de Jacarezinho (FAFIJA – atual
Universidade Estadual do Norte do Paraná) e participou do Concílio Vaticano II
(1962-1965).

Figura 3 (esquerda): Dom Geraldo de Proença Sigaud. Fonte: Diocese de Jacarezinho.


Figura 4 (direita): Autorretrato de Eugênio de Proença Sigaud. Fonte: Evangelista (2013).

709
Ambos eram letrados e intelectuais. A relação estabelecida baseia-se nas
ideias de Cláudio Pastro (2010), de sentidos estético-teológicos entre os irmãos:
deixa de ser das ideologias pessoais e volta-se para a contribuição perante o cenário
da construção da Catedral Diocesana de Jacarezinho, permitindo que Eugênio
imortalizasse suas habilidades artísticas nas paredes da Catedral, a partir de seu
conhecimento e de técnicas, capturando com maestria a vida e contexto
sociocultural da região, dando lugar para os valores externos (imaterial) no e no
interior da Catedral (material). Para dom Geraldo, a partir de sua teologia e relação
com o transcendente, cumprir com sua missão de bispo, apologeta, perante do
cenário histórico, econômico e social.

Considerações finais
Nos limites desse breve texto, pretendeu-se apresentar a produção e os
significados das pinturas murais da Catedral de Jacarezinho no contexto da história
sociocultural e eclesiástica dos anos 1950. Tempo de desenvolvimentismo
brasileiro, com avanços no campo das artes clássicas, modernas e populares,
Eugênio Sigaud pintou os trabalhadores e foi um operário da pintura (cf.
MENEGUELLO, 2014). Na história eclesiástica, a Igreja Católica criava instituições
colegiadas, como a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, de 1952, e o
CELAM – Consejo Episcopal Latino Americano, de 1955, de modo a melhor realizar
sua missão pastoral e evangelizadora, mais atenta aos sinais dos novos tempos, o
que levaria ao Concílio Vaticano II (cf. SOUZA, 2020), convocado no ano de 1959, e
realizado durante os anos de 1962 a 1965. Dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo
da Diocese de Jacarezinho até o ano de 1961, quando então foi nomeado arcebispo
de Diamantina, em Minas Gerais, foi homem da Igreja, dedicado ao ofício, e cônscio
da tarefa da Igreja como mestra.
Os irmãos Sigaud deram às pinturas murais da Catedral de Jacarezinho os
seus contornos e significados estético-teológicos. A estética de Eugênio, de cores
fortes, tamanhos desproporcionais, assinalando as formas do homem local, da
liberdade e do trabalho, com a teologia de Geraldo, da humanidade que caminha
neste mundo, guiada pelo Espírito Santo, amparada pela Imaculada Conceição,
orientada pela Igreja, rumo à Glória Celeste. Um encontro mediado pela religião no
espaço público jacarezinhense.

710
Referências
ARÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. Tradução Andréa Dore.
Bauru, SP: EDUSC, 2006

BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Medellín a
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CORRÊA, Hugo Emmanuel da Rosa. O espelho de Eugênio Sigaud: imagens e


representações na Catedral Diocesana de Jacarezinho. Dissertação (Mestrado em
História Social). Londrina-PR, Universidade Estadual de Londrina, 2015.

DIOCESE DE JACAREZINHO. Jubileu de Ouro da Diocese de Jacarezinho: 1926-1976.


Curitiba: Gráfica Vicentina Ltda, 1976.

EVANGELISTA, Luciana de Fátima Marinho. O artista e a cidade: Eugênio de Proença


Sigaud em Jacarezinho (1954-1957). Dissertação (Mestrado em História Social).
Londrina-PR, Universidade Estadual de Londrina, 2012.

KERSTEN, Márcia S. de Andrade. Os rituais de tombamento e a escrita da história:


bens tombados no Paraná entre 1938-1990. Tese (Doutorado em História). Curitiba,
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MARTINS, Ana Luiza. Fontes para o patrimônio cultural: uma construção


permanente. In.: PINSKY, Carla B.; DE LUCA, Tânia Regina (orgs.). O historiador e
suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 281-305.

MENEGUELLO, Cristina. Sigaud, operário da pintura. História. São Paulo, n. 33, Jun.
2014.

PASTRO, Cláudio. A arte no Cristianismo: fundamentos, linguagem, espaço. São


Paulo: Paulus, 2010.

SILVA JÚNIOR, Alfredo Moreira. Catolicismo, poder e tradição: um estudo sobre as


ações do conservadorismo católico brasileiro durante o bispado de dom Geraldo de
Proença Sigaud em Jacarezinho (1947-1961). Dissertação (Mestrado em História e
Sociedade). Assis, SP, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2006.

SOUZA, Ney de (org.). Vaticano II: história, teologia e desafios. Curitiba: CRV, 2020.

711
A DIVERSIDADE RELLIGIOSA NA PERSPECTIVA FILOSÓFICA DE
XAVIER ZUBIRI

Paulo Sérgio Lopes Gonçalves1

Resumo: Objetiva-se nesta comunicação analisar filosoficamente a diversidade religiosa


segundo a perspectiva filosófica de Xavier Zubiri. Esse objetivo se justifica em duas
dimensões: a histórica e a epistemológica. A dimensão histórica explicita que a obra
zubiriana El Hombre y Dios aponta a análise da religião a partir do problema de Deus,
concebido com um grande problema contemporâneo e compreendido a partir do problema
teologal do homem, pela qual se abre à análise da religião, desembocando em uma
compreensão filosófica da história das religiões. A dimensão epistemológica realça uma
definição filosófica de que a religião seja um fenômeno experimentado antropologicamente,
em especial na história das religiões, em que Deus se apresenta como “fundamentalidad de
lo real”. Nesse sentido, o conceito de religião se identifica com a concepção de religación,
tornando-se fundamental na obra Zubiri, por se referir a Deus como fundamentação da
realidade humana em sua relação com realidade do mundo, que é o palco histórico das
religiões. Para atingir esse objetivo, tomar-se-á a obra Sobre la Religión e decifrar-se-á
filosoficamente o que é a pluralidade religiosa a partir da categoria religación, que ao
realizar a sua plasmação se apresenta na história das religiões, concebidas em sua
singularidade real. Por isso, a estrutura da comunicação apresentará o status quaestionis¸
situando a identificação entre religião e religación em Zubiri, para então abordar a
diversidade religiosa e a plausibilidade histórica e filosófica das religiões. Espera-se
filosoficamente comunicar a contribuição que a concepção zubiriana de pluralidade
religiosa pode servir às Ciências da Religião e à Teologia.
Palavras-chave: Diversidade Religiosa; “Religación”; Filosofia; Religião.

Introdução
Objetiva-se nesta comunicação analisar filosoficamente as contribuições da
filosofia Xavier Zubiri acerca da diversidade religiosa. Esse objetivo é justificável por
dois fatores, um de ordem filosófica e outro de ordem histórica. No primeiro, a
filosofia é um saber acadêmico que se põe a pensar a realidade do ser humano e do
mundo no âmbito de suas relações intrínsecas e profundas, nas quais se situa o
problema da religião, que na obra de Xavier Zubiri pertence ao próprio problema de
Deus, considerado como um problema fundamental na contemporaneidade
humana. Trata-se de um problema pensado filosoficamente pelo pensador espanhol
a partir de categoria “religación” em uma era de crítica à metafísica fortemente
realizada tanto por Friedrich Nietzsche (1993) quanto por Martin Heidegger (2002).

1 Doutor e Teologia pela Pontificia Uni8versità Gregoriana (Roma, Itália) e docente do corpo
permanente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (SP).

712
No segundo fator, a diversidade religiosa é um acontecimento histórico
imbuído de arcaicidade, complexidade e modernização (ALES BELLO, 2014), em que
é possível visualizar, especialmente pela via fenomenológica, as estruturações
primitivas, clássicas e atuais da religião. Nesse sentido, Zubiri não hesitou em sua
análise da religião, em promover um diálogo científico com a sociologia da religião,
com a história das religiões e com a teologia fenomenológica.
Para atingir este objetivo, tomar-se-á a obra Sobre la Religión (2017) como
objeto material fundamental, para apresentar o núcleo norteador do pensamento
zubiriano na análise da religião, presente na categoria “religación”, e analisar
filosoficamente a diversidade religiosa e seus desdobramentos fundamentais.

1. O fio condutor da análise zubiriana da religião


Xavier Zubiri se preocupou com o problema de Deus em 1936 (ZUBIRI, 1974)
ao escrever um artigo homônimo, em que afirmava ser esse problema efetivamente
um dos núcleos das questões fundamentais da contemporaneidade filosófica.
Compreendia ser um problema que, desde a crítica à metafísica, presente na
sentença nietzscheniana da “morte de Deus” e no projeto de “superação da
metafísica”, do qual Zubiri aproximou-se especialmente no que se refere à abertura
que o pensamento deve ter para ser um pensamento efetivamente filosófico, não
deixou de ser um problema do ser humano contemporâneo. Por isso, o problema de
Deus para Zubiri, haveria de ser um problema pensado em forma teologal à medida
que é o ser humano o ente pelo qual se pode pensar Deus.
Zubiri já visava superar a entificação de Deus – uma espécie de ontoteologia
na visão heideggeriana – para pensar Deus como uma “realidade real” de
fundamentalidade do ser humano, cuja vida está imbuída de marcas históricas e
enigmáticas ou misteriosas, na qual se apresenta como pessoa que experimenta a
religación por estar aberto à constituição da referida fundamentalidade. Ao pensar
o problema de Deus a partir da religación, Zubiri se estende para análise filosófica
das religiões, pelas quais é possível visualizar a fundamentalidade do “poder do real”
na experiência religiosa. Ao ter em vista a consistência da análise filosófica, Zubiri
faz o caminho da ascendência da religião para a “religación”, utilizando-se da
sociologia, especialmente aquela trazida por Émile Durkheim (1989) e da história
das religiões, desenvolvida por Mircea Eliade (1978), e da teologia fenomenológica

713
de Rudolf Otto (2007) como subsídios à sua metafísica realista da religião ou
propriamente filosofia da religião (ZUBIRI, 2017, p. 18-32).
A metafísica realista de Zubiri se caracteriza por se constituir de uma
“inteligência senciente” (ZUBIRI, 2019, p. 289-308) em que o inteligir e o sentir são
simultâneos no próprio desenvolvimento filosófico de compreensão da realidade do
ser humano e do mundo das coisas em que está inserido. Por isso, ao refletir a
realidade com essa inteligência, Zubiri se atenta para a inteligência da própria
realidade, que, por conseguinte, permite compreender o problema de Deus a partir
da realidade do ser humano. A relação e Deus com o ser humano, porém, não é dois
entes e nem tampouco de um fundamento divino em relação com o humanum, mas
de “religación” ou de “fundamentalidade do real”, em que Deus se situa “en la
realidad” humana (ZUBIRI, 2017, p. 33-50).
Essa “fundamentalidade do real” se situa nas religiões, em sua historicidade,
propiciando que a história das religiões seja a experiência histórica da deidade que
o ser humano realiza em sua vida, em busca do sentido de sua existência. Por isso, a
pluralidade das religiões encontra na “religación” sua plausibilidade filosófica e
mostra-se como uma realidade denotativa da singularidade da cada religião, de sua
abertura e da possibilidade de convivência para que o ser humano, em sua condição
de pessoa, dê sentido à sua existência.

2. A diversidade de religiões em suas formas


O movimento de “religación” na história humana possibilita compreender a
diversidade formal das religiões como um fato histórico, presente nas diferentes
civilizações, em que a respectiva religião emergiu e desenvolveu-se em articulação
com a cultura, que selou uma forma de convívio entre as pessoas e de viver dos
povos. Por isso, a formas religiosas diversas são formas históricas, propiciando que
a história das religiões seja a história da própria deidade. Trata-se de uma história
em que o ser humano se insere na realidade das coisas com as quais convive, cria
mundos e nesses mundos estabelece significações de sentido de existência humana
(ZUBIRI, 2017, p. 57-74).
A pluralidade religiosa emergente do movimento de “religación” propicia o
surgimento da religião do “Deus do céu”, que historicamente tanto no politeísmo,
quanto no monoteísmo, propiciou a emergência das concepções de Deus Pai, Deus

714
Mãe, o Deus Sol, as Deusas Lua e Mãe Terra. Essa pluralidade desenvolve uma
diversidade de graus das dimensões da religião, principalmente nos âmbitos do
culto e da moral. Nesse sentido, pode-se afirmar os diversos graus de elevação
cultual, em que podem ser acrescentados objetos, orações, rituais, e os diversos
graus de elevação doutrinal e moral, em que as concepções tomam novos
significados à medida que a tradição se dinamiza na recepção que dela fazem as
pessoas (ZUBIRI, 2017, p. 74-75).
A diversidade de graus de elevação, em consonância com cada religião,
possibilita pensar a pretensão singular de verdade que é intrínseca a cada religião.
Por isso, mais do que buscar maneiras de convivência das religiões, denotativas de
respeito e reciprocidade, Zubiri visualizou a presença intrínseca da “religación” na
singularidade da religião, como elemento que possibilita trazer à tona o valor e a
veracidade da religião. Por isso, é tão contundente a tese zubiriana de que a história
das religiões é a histórias de formas de deidade, cujo poder é marcado por
complexidade, enriquecimento estrutural e características próprias (ZUBIRI, 2017,
p. 76-79).
A complexidade da deidade é constatada no próprio decurso histórico do ser
humano, pois na experiência de deidade, vivida nas formas de vida social e pessoal,
o ser humano visualiza novas formas e novas possibilidades de vida. Essa
complexidade se efetiva tanto no politeísmo quanto no monoteísmo à medida que
as formas estruturais dos deuses e de Deus, respectivamente estabelecidas na
história, se enriquecem e se corporificam historicamente em sua riqueza estrutural,
propiciando um dinamismo que as constituem uma totalidade aberta e denotativa
de realidade enigmática.
A história das formas de deidade enquanto história das religiões só se efetiva
em função do poder da deidade, sempre complexo, estruturado e estruturante.
Trata-se de um poder transcendência, por evocar a transcendência do poder divino,
que é princípio criador, germinador e conformativo das coisas e organização dos
seres vivos. Por ser um poder de transcendência e de principiar as coisas é um poder
técnico das relações interpessoais e das relações dos seres humanos com as coisas,
que são relações marcadas pela inserção humana nas coisas. Por ser poder de
relações é um poder que vincula os seres humanos no âmbito da família, na
constituição da tribo, nos contratos estabelecidos tanto para períodos aprazados

715
quanto para períodos indeterminados e até mesmo para a perpetuidade. Por isso, é
um poder que se manifesta nas diferentes agregações humanas, inclusive para
estabelecer vínculos durante a guerra e para se buscar formas próprias de paz. Por
ser vinculativo, esse poder mostra-se também como um poder de existência dos
seres humanos e das coisas, já que é poder de possibilitar o nascimento dos seres
vivos e a emergência de coisas e de reger a vida inclusive no que se refere à morte.
Por isso, é um poder de regência e de destinação denotando o sentido próprio da
existência humana e do mundo. Ao reger e destinar o sentido da existência, esse
poder é personificado na espacialidade cósmica e nos atos pessoais dos seres
humanos, constituindo-se como um poder de totalidade por abarcar o todo do
existir humano e do universo, e um poder que perdura sempre, por ser imbuído de
transcendência e efetivar a sua complexidade e potencialidade estruturante. Resulta
então que é esse poder é sacro, por exprimir o numinoso e inefável, e por propiciar
que seja efetivado o sacrifício em detrimento do que é propriamente o sagrado que
conduz à divindade. Por ser esse poder sacro, são explicáveis os ritos sacrificais das
religiões, as posturas de adoração e veneração à(s) divindade(s), passíveis de
manifestação tão somente quando a deidade se torna uma experiência de
“religación” (ZUBIRI, 2017, p. 79-87).
A divindade então não é concebida de modo uniforme na história das
religiões, pois a própria “religación” possibilita que as concepções sejam consoantes
às diversas de formas de vida religiosa e de configurações próprias das religiões. O
que há de comum na diversidade das religiões é que o poder da deidade é sempre
último, possibilitante e imponente. Isso significa que é um poder de sentido da
existência humana e da regência do cosmos, que abre possibilidades para que o ser
humano se efetive como pessoa em suas relações inter-humanas e com as coisas e
que se impõe na própria “realidade real” da vida humana e das coisas.
O poder da deidade se efetiva de forma própria na história das religiões, cuja
atuação é diferente no politeísmo e no monoteísmo (ZUBIRI, 2017, p. 87-93). Assim
sendo, no politeísmo, em sua ultimidade, esse poder atua trazendo um conjunto de
divindades que estão presentes no céu, que possuem poder celestial e uma
identidade celeste. Por isso, cada divindade pode ser concebida como Deus-no-céu,
Deus-do-céu e Deus-no-céu, evidenciando o direcionamento de sentido da
existência para o que possui poder transcendente. Com esse poder de conotação

716
celestial, têm-se aqui realçadas a onisciência e a onipotência dos deuses, porque
possuem presença nas coisas e poder intrínseco às próprias coisas. Por isso, é
pertinente o panteão dos deuses, como espaço de plasmação das divindades e
derivação do poder complexo funcional da deidade à medida que cada divindade
possui sua respectiva função, e ainda, mostrando-se como reflexo estrutural da
deidade.
A pertinência e a relevância do panteão dos deuses para apresentar a
funcionalidade dos deuses e a funcionalidade estrutural da vida humana, é
evidenciada em gêneros literários, especialmente nos mitos e nas fábulas,
constituindo-se estruturalmente em um pensar fantástico, que por meio de uma
linguagem simbólica, traz à tona a força religiosa de todo o panteão e de cada um
dos deuses. Analogamente ao panteão, mas em forma própria, se encontra o
henoteísmo, no qual a fé afirmada em uma única divindade não isenta a existência
de outros deuses. No henoteísmo, o teísmo mostra que a divindade afirmada possui
características propriamente originárias agregadas a outras herdadas da
convivência com outros deuses. Por isso, o henoteísmo exprime a totalidade do
poder da deidade, já que em uma única divindade é possível afirmar esse poder
oriundo de outras divindades.
O monoteísmo apresenta o poder da deidade como um poder da
transcendência concentrado no todo funcional, que irradia a organização religiosa e
social dos seres humanos nele implicados. Ainda que se considere que todo tipo de
monoteísmo tenha a crença em única divindade e nem admita outras divindades, é
importante frisar que sua constituição não é isenta da influência de politeísmos e de
henoteísmos. Por isso, três aspectos devem ser considerados ante a afirmação do
Deus único. O primeiro é não obstante que a figura do demiurgo esteja ausente, é
possível considera-lo analogamente em outro formato. O segundo é a constituição
da divindade ou propriamente a complexidade da deidade com dimensões
hipostáticas, que indicam formas sutis de monoteísmo. Desse modo, a hipóstase
indica elementos próprios da divindade que estão presentes na forma religiosa
monoteísta, tais como “o bom pensamento, a melhor verdade, a boa lei, a sabedoria,
a riqueza e a imortalidade” (ZUBIRI, 2017, p. 94). O terceiro aspecto é a afirmação
do Deus único, só, sem intermediários e sem atributos hipostáticos, que é capaz fazer

717
o mundo, levar a cabo o destino dos seres humanos e os religar à divindade (ZUBIRI,
2017, p. 93-95).
O movimento da “religación” se efetiva não somente no politeísmo e no
monoteísmo, mas também nas religiões que correspondem à totalidade do real com
a via da imanência do poder da deidade. Aqui, o poder da deidade é transcendente
por dominar o real, sem concentrar-se em “alguma realidade divina distinta das
coisas reais nas quais esse poder reside” (ZUBIRI, 2017, p. 96). Aqui se situam o
budismo, algumas religiões chinesas, o brahmanismo indiano e o estoicismo grego.
O budismo interpreta esse poder da deidade no cosmos como um dharma,
correspondente a lei e doutrina a serem seguidas. Há expressões religiosas na China
em que a deidade possui dois princípios, o Yang, que é o luminoso, e o Yin, que é o
escuro, mas ambos se interconectam e tal interconexão é a lei e a história do
universo. Outra forma religiosa é o brahmanismo indiano, em que o cosmos inteiro
é concebido como a única deidade: a deidade do sagrado, do sacrifício, a identidade
brâhmica. O estoicismo na Grécia concretizou a deidade como razão cósmica
universal e imanente ao mundo (ZUBIRI, 2017, p. 95-97).
Enfim, a diversidade das religiões concebida filosoficamente em Xavier
Zubiri, que é o pai de uma metafísica realista, constituída de uma “inteligência
senciente”, é plausível e legítima mediante a “religación”, que propicia a experiência
da deidade. Dessa forma, a religião só pode ser concebida de modo plural, ainda que
cada forma religiosa tenha sua organização própria, seu sistema ritualístico, seu
corpus doutrinário e seu modus vivendi de religião que propicia ao ser humano a sua
consolidação de pessoa humana. Ao admitir a plausibilidade filosófica da
pluralidade das religiões, Zubiri mostra que a “religación” em movimento é que
propicia a experiência da deidade nas formas religiosas de politeísmo, de
monoteísmo e de totalidade do real.

Referências
ALES BELLO, A. Il senso del sacro. Roma: Castelvecchi, 2014.

DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.

ELIADE, M. História das Crenças e das Idéias Religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Perópolis – Braganças Paulista: Vozes – São


Francisco, 2002.

718
OTTO, R. O Sagrado. Os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. São Leopoldo – Petrópolis: Sinodal – Vozes, 2007.

ZUBIRI, X. Escritos Menores (1953-1983). Madrid: Alianza– Fundación Xavier Zubiri,


2019.

ZUBIRI, X. Naturaleza, Historia, Dios. Madrid: Nacional, 1974.

ZUBIRI, X. Sobre La Religión. Madrid: Alianza Editorial – Fundación Xavier Zubiri,


2017.

719
A ORDEM DO CARMO NO BRASIL UMA PRESENÇA DE
EVANGELIZAÇÃO

Renê Augusto Vilela da Silva1

Resumo: A Ordem do Carmo ou carmelitas marcam presença no território brasileiro desde


1580. A Ordem do Carmo passou por diferentes transformações ao longo da sua história
(eremíticos, cenobiticos, mendicantes e, ex-cruzados, devotos, religiosos (as) e vida laical)
o que permite compreender a amplitude do carisma contemplativo que perpassa pela
dinâmica da vida fraternidade, de missão e oração. A presença desses religiosos nos ajuda a
compreender as raízes da evangelização no Brasil e de forma especial a compreender a
manifestação da fé católica nesse território. Com base na literatura bibliográfica
pretendemos demonstrar a presença dessa Ordem e de seus membros no início da
evangelização do Brasil e consequentemente observar as marcas/heranças do trabalho
desenvolvido e como se deu a presença desses religiosos/leigos na ação de evangelização.
Veremos a chegada e a demarcação da presença dos religiosos carmelitas, sua expansão no
território brasileiro e como se deu o desenvolvimento da sua proposta catequética e a
contribuição no que toca a piedade popular. Com base na literatura carmelitana pós-concílio
Vaticano II veremos como o carisma responde as demandas de evangelização na América
Latina e quais traços são consequências da primeira evangelização e quais são resultados
de uma recepção criativa do último Concílio ecumênico. Pretende-se apresentar a presença
dos carmelitas no processo de evangelização e identificar sua participação na identidade
religiosa no Brasil.
Palavras-chave: Carmelitas; Evangelização; Brasil; Religiosidade Popular; Concílio
Vaticano II.

Introdução
A formação cristã católica do povo brasileiro esteve desde o início envolto em
diferentes perspectivas e que foram agrupadas num ideal que mesmo direcionado a
uma vivência católica teve como base a diversidade de carismas religiosos e mesmo
culturais. A Ordem do Carmo trouxe mais uma colaboração a esse mosaico histórico-
religioso-teológico, pois com seu histórico e pela sua compreensão de Igreja, fé e
experiência com o sagrado teve oportunidade de apresentar-se enquanto carisma e
ao mesmo tempo reconfigurar-se a uma nova realidade ou colocar em prática a sua
herança espiritual que já havia sido migrada do Monte Carmelo para a Europa e
agora para a América portuguesa.

1Renê Augusto Vilela da Silva, Mestre em Teologia Sistemática pela FAJE. Doutorando em Teologia
pela PUC-SP, bolsista pela FUNDASP. Teologia pelo ITESP/Santo Anselmo. Filosofia pela UFSJ.

720
O carisma carmelitano se desenvolveu desde o primeiro momento de
ocupação e evangelização. A presença dos Carmelitas no Brasil no Brasil se
desenvolveu como continuidade da história da Igreja e da sociedade. A realidade
religiosa marcou uma presença de propagação da fé católica, mas também foi um
contributo para o desenvolvimento social, cultural, filosófico e teológico. A
compreensão de fé se entrelaça com a construção da identidade brasileira e o
carisma carmelitano permeia no que tange a piedade popular e a comunicação com
Deus.

Ordem do Carmo e a evangelização


Entende-se que revisitar a história é fundamental, pois possui uma relação
com a verdade, a reconstrução narrativa do passado conforme vários elementos e
discursos, respeitando à realidade preexistente ao texto e que busca produzir um
relato inteligível. “É o que constitui a história e que a distingue da fábula ou da
falsificação” (SILVA, 2005, p. 92).
Compreender a atualidade e escrever a partir dela é buscar reescrever o
passado. Compreender o humano pelo próprio descrever da história humana. Isto
é:
como todo historiador, que escrever é encontrar a morte que habita
este lugar, manifestá-la por uma representação das relações do
presente com seu outro, e combatê-la através do trabalho de
dominar intelectualmente a articulação de um querer particular
com forças atuais. Por todos estes aspectos, a historiografia envolve
as condições de possibilidade de uma produção, e é o próprio
assunto sobre o qual não cessa de discorrer (CERTEAU, 1982, p.
23).

Para falarmos dos Carmelitas no Brasil, deve-se levar em conta que os


Carmelitas em Portugal marcam a presença desde 1251 chegaram primeiramente
em Moura e depois se expandiram em todo o território. A vinda dos carmelitas para
o Brasil foi em 1580 diante do contexto das reformas sociais e da Igreja e
internamente no Carmelo diante das reformas em busca do retorno as fontes. Deve-
se levar em conta que a realidade do Carmelo espanhol muito influenciará no
Carmelo português e consequentemente em todas as Colônias. A presença dos
carmelitas no Brasil se dará com os religiosos e com a forte presença dos leigos das
Ordens Terceiras que terão forte influência social e religiosa. Sabe-se que os

721
religiosos aportaram no Brasil num compromisso com a Coroa Portuguesa, num
misto de Padroado e Contrarreforma.
Todo esse movimento reflete também na realidade do Carmelo brasileiro e
entre os diferentes membros da Ordem. Quanto às irmandades dos leigos, mesmo
sendo frutos de uma realidade medieval tiveram que revisar de forma criativa o
carisma. Muitas confrarias e associações desapareceram ao longo dos anos e outras
que se mantiveram ainda mantém muitas características das antigas confrarias
europeias com idênticos cultos e festividades. As irmandades que marcam presença
em Portugal desde o século XIII vieram para o Brasil com o mesmo escopo, isto é,
dedicando-se a manutenção da fé e desenvolvendo obras de caridade voltadas aos
próprios membros e para pessoas carentes (cf. MOLINA, 2002, p. 110-111).
Os conventos carmelitas da América portuguesa buscavam viver a
espiritualidade carmelita, mas sabe-se que havia uma disputa doutrinária, fruto das
reformas ocorridas na Europa e que tiveram suas consequências além-mar; é o caso
da reforma dos descalços que na América dividiram o espaço entre América
portuguesa – Antiga Observância e América espanhola – Descalços. E no Brasil,
nordeste, ainda houve a presença de uma nova compreensão do carisma pela
reforma de Turren ou reforma turônica que enfatizava a uma maior piedade e trazia
elementos da Devotio Moderna com suas experiências místicas. Destacando que a
vida mística era retratada pelas figuras de Elias e Maria e serviam como inspiração
para a vida missionária. Enfatizava a vida piedosa e a luta contra os falsos ídolos,
cura interior e experiência de deserto que permite a vivência do amor divino na vida
terrena; escutar o divino e torna-se instrumento de ação (cf. HONOR, 2019, p. 32-
33).
Sabe-se que os Carmelitas prestaram relevantes serviços à Religião e ao
Estado no Brasil quando se colocaram de em missão no vastíssimo território
brasileiro, espalhando-se entre igrejas, conventos e confrarias de leigos
consagrados. Trabalhou na instrução religiosa e catequética entre os índios, e
também auxiliaram na dinâmica religiosa atendendo os europeus, que vieram para
aqui habitar e posteriormente trabalhar no Brasil (cf. PRAT OC, 1941, p. 76). Uma
visão romantizada compreende que os Carmelitas no Brasil ajudaram não somente
na fé, mas, sobretudo na irradiação do carisma de forma missionária. Conta-se que
a expansão da Ordem no território da Colônia se deu num espírito pacífico e

722
ordenado. A presença dos Carmelitas no norte e nordeste se deu num clima de
corroboração e amistosidade (cf. PRAT OC, 1941, p. 38-46).
A história e a formação do povo brasileiro “nasceu sob a égide da cultura
ibérica, na era das grandes navegações, da divisão das igrejas cristãs, da reforma da
igreja romana – da qual resultaram os ditames do Concilio de Trento (1545-1563)”
(FLEXOR, 2008, p. 29) e com apoio das ordens monásticas, na qual destacamos os
Carmelitas que em consequência, influenciou os costumes e estilos da sociedade
baiana e do inicio da Terra Nova. Os frades do Carmelo foram aos poucos moldando
a história dos nativos com os interesses da monarquia, visto que naquele tempo
tinha-se a ideia que os imperadores recebiam a missão de governar por ação divina
(cf. HONOR, 2014, p. 10). “Assim, ciente desses novos ventos que levavam a Igreja
Católica até os quatro cantos do mundo, a Ordem de Nossa Senhora do Carmo
aportava no Brasil com a missão de catequizar os indígenas e evangelizar as
pessoas” (HONOR, 2014, p. 18).
A questão cultural, e mesmo social, são fundamentais já que além dos
religiosos (ou missionários) os leigos pertencem ao mesmo tempo, ao Povo de Deus
e à sociedade civil. As pessoas pertencem à nação em que nasceram, e carregam
consigo os tesouros culturais e estão ligados pelos múltiplos laços sociais. Os leigos
cooperam não somente com o progresso cultural, mas na busca de solucionar as
demandas civis, porém como cristãos seu principal dever é o testemunho de Cristo
e são convidados a exprimir o homem novo criado segundo Deus em justiça e
santidade no meio da vida social e cultural. Os cristãos são chamados a transmitir a
fé em Cristo e que o testemunho se manifeste na realidade cultural e civil, pois se
torna um chamado que se impõe para que o Evangelho seja conhecido, pois toda
humanidade se torna transmissor desse anúncio e comunicar a doutrina cristã (Cf.
AG, n. 21).
São muitos os dados e fatos que devem ser observados para a construção do
pensamento teológico e valemos das palavras da Gaudium et spes para entender esse
progresso constante da teologia e história da Igreja.
Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o
momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho;
para que assim possa responder, de modo adaptado em cada
geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da
vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso,
necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as

723
suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes
dramático. Algumas das principais características do mundo atual
podem delinear-se do seguinte modo (GES, n. 4).

Pode-se considerar que a recepção do Concílio Vaticano II se deu em duas


fases na Ordem do Carmo: a primeira fase foi com a convocação de um Capitulo Geral
em 1965 e essa recepção se estendeu até o capitulo de 1971, com revisões, estudos
dos documentos conciliares e adaptações das realidades já existentes. A segunda
fase dessa recepção do concílio se dá de 1972 até 1995 com a aprovação das
constituições da Ordem, que também foi adequada ao novo Código de Direito
Canônico de 1983. Nesse mesmo período surgiu a primeira Ratio Institutionis
Ordinis Carmelitanae (RIVC) em 1988 com finalidade de indicar, estruturar e
organizar a vida religiosa carmelitana (cf. ROZIN, 2013, p. 260-262).
O Carmelo na América Latina é reconhecido por buscar caminhar e afinar
seus passos com o Concílio Vaticano II, pois de várias maneiras os carmelitas no
Brasil e na América Latina buscam rapidamente respostas as necessidades e as
varias situações pastorais. Desde Puebla apresenta um desejo de dar uma resposta
viva, concreta e criativa as demandas dessa realidade. Sabe-se que não são
apresentadas facilidades, mas pela renovação e criatividade se expressa a
esperança. A esperança está na compreensão que a diversidade de povos na América
Latina que permitem um constante avivamento e reflorescimento da Igreja. A rica
história, cultura e costumes são fontes para superar aquilo que condena esses povos
a viveram à margem da vida: como a pobreza, injustiças, situações de colonialismo
econômico e político. O Carmelo e a Igreja na América Latina têm uma extraordinária
capacidade de intuição e inspiração capazes de compreender a realidade e de
estarem abertos a esperança, visto que viva como Igreja de Comunhão, serva de
Cristo através dos tempos. E toda a ação missionária é enriquecida pela coragem e
criatividade frente a realidade civil, cultural e religiosa (cf. THUIS, 1980, p. 6).
O Carmelo brasileiro não apresenta nenhum grande tratado sobre teologia
ou mesmo sobre a espiritualidade, pois seguiam a cartilha comum do que era
ensinado. Mas nota-se que absorveram as ideias teológicas vindas da cultura
carmelitana desde as origens e na reformulação que se deu no movimento
mendicante. As transformações internas da Ordem possibilitaram uma amplitude
para adaptar-se aos diferentes contextos, em vista da própria sobrevivência. A
grande tensão entre vida eremítica e apostólica não se torna um conflito em vista de

724
extinção, mas um caminho para novas reinterpretações ou considerações, nesse
interim o elo se torna a vida fraterna ou vida de comunidade. A vivência comunitária
será oportuna para viver a realidade das reformas da Igreja e internas e também
para acolher a atualização pedida pelo Concílio Vaticano II; acredita-se que esse
evento conciliar com seus documentos trazem novamente uma nova carta magna
para a vida religiosa consagrada. A Ordem do Carmo no transcorrer dos anos foi se
moldando as necessidades da evangelização e atuando na ação cultural e religiosa
buscando anunciar a Palavra de Deus.

Considerações finais
Sabe-se que o resgate da memória, que passa pelo tempo e o espaço, passado-
presente-futuro são fundamentais para compreender o local e a nós mesmos,
identificar os eventos históricos e a sua relação com nossa vida e para a construção
dos projetos para o futuro (cf. CHAGAS, 2019, p. 37). É preciso perceber as relações
oriundas da memória e daquilo que escapou dos registros e que são responsáveis
pela nossa existência (cf. CHAGAS, 2019, p. 35). A história da Ordem do Carmo traz
essa dimensão de passado-presente-futuro, traz aspectos medievais, história do
Brasil e irradia a história para as futuras gerações. São expressões normativas que
nos compeli a reconhecer, denominar e compreender algo mediante nossas
experiências (cf. TRACY, 1997, p. 97).
A proposta de evangelização sempre estará atrelada a missão, mas também
agregada a questões políticas e culturais. A Igreja comunica e introduz os fiéis a um
caminho mistagógico e ao mesmo tempo transparece as realidades sociais e
políticas. A missão se torna sempre um conjunto de alianças em favor da propagação
da fé, mas também preservação de interesses que visam construir uma consciência
que se torna identidade de um conjunto de pessoas. A formação ou construção da
consciência se dá num conjunto de interesses e de linguagem que expressão a
realidade e dão respostas aos sujeitos que compõe as alianças, mesmo que
temporariamente. Notar-se-á que todo o caminhar teológico do Brasil terá fortes
influências da primeira evangelização e da piedade popular que se desenvolveu
junto com a cultura brasileira. Todo esse caminho se estende até os dias atuais e de
forma especial após o Concílio Vaticano II com a participação na construção do
pensamento cultural, social, religiosos e teológico.

725
Referências
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982.

FLEXOR, Maria Helena Ochi. Igrejas e Conventos da Bahia, v. 1, Brasília, DF: IPHAN,
2008.

CHAGAS, Mario de Souza. Memória Social em fragmentos: o poder das encruzilhadas


e a museologia em ação. p. 36-40 In: Cadernos SESC de Cidadania. Memórias. Ano 10,
N° 15, Edições SESC: São Paulo, 2019.

CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES. Documentos do Concílio Ecumênico


Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997.

HONOR, André Cabral. O envio dos carmelitas à América portuguesa em 1580: a


carta de Frei João Cayado como diretriz de atuação. In: Revista Tempo, v. 20, p. 1-19,
2014.

HONOR. O Ressurgimento do Profeta Elias: a Pintura Setecentista da Nave da


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726
LAICIDADE EM CHARLES TAYLOR: UMA ANÁLISE SOBRE A
VALORIZAÇÃO E PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE RELIGIOSA

Rossano Weslley de Luna Silva1

Resumo: Este estudo analisa a perspectiva de Charles Taylor sobre a laicidade, explorando
sua visão complexa e multifacetada. Taylor, um filósofo canadense conhecido por seu
trabalho no multiculturalismo e política da identidade, contribui para o debate sobre a
laicidade ao destacar o equilíbrio necessário entre liberdade religiosa e funcionamento
democrático das sociedades. Ele propõe que a laicidade não seja apenas uma separação
entre religião e Estado, mas um compromisso ativo em proteger e promover a diversidade
religiosa, assegurando a liberdade de consciência e crença para todos os cidadãos. Sua
abordagem inclusiva valoriza a expressão das convicções religiosas, reconhecendo a
religião como parte integrante da identidade e cultura. Taylor enfatiza a importância do
diálogo intercultural e da convivência entre perspectivas religiosas e seculares para
promover o entendimento mútuo e o respeito. Ele também ressalta a necessidade de
proteger os direitos individuais e coletivos como base da laicidade genuína, evitando
discriminação. Em síntese, a visão de Taylor enriquece o entendimento da laicidade,
promovendo uma sociedade inclusiva e respeitosa onde a diversidade religiosa é valorizada.
Palavras-chave: Multiculturalismo; Laicidade; Diversidade religiosa; Diálogo inter-
religioso.

Introdução
A pesquisa explorará a visão de Charles Taylor sobre a laicidade, destacando
suas contribuições para o debate sobre a relação entre religião e Estado. A
abordagem inclusiva de Taylor, que vai além da separação estrita, será analisada,
enfocando seu compromisso ativo com a diversidade religiosa e a proteção da
liberdade de consciência. O trabalho examinará a obra seminal de Taylor, “Um
Mundo Secular: Caminhos para a Coexistência”, onde ele defende um equilíbrio que
permita a participação plena de perspectivas religiosas e seculares na sociedade. A
pesquisa visa ampliar a compreensão da diversidade religiosa, analisando como as
ideias de Taylor contribuem para uma sociedade pluralista e respeitosa.

1 Mestrando em Ciência da Religião pela FUV. E-mail: rossano_weslley@hotmail.com.

727
1. Estratégias para uma educação religiosa confessional não proselitista,
respeitosa e inclusiva

1.1. A importância da religião na identidade e cultura


Nas obras de Charles Taylor, como “Um Mundo Secular: Caminhos para a
Coexistência”, destaca-se uma perspectiva abrangente sobre o papel da religião na
formação das identidades individuais e coletivas. Taylor argumenta que a religião
não se limita a um conjunto de crenças; é uma dimensão essencial da experiência
humana. Além de moldar a visão de mundo e os valores individuais, as tradições
religiosas carregam o potencial de transmitir uma herança cultural rica por meio de
narrativas e rituais, conectando as pessoas a um passado compartilhado e a uma
comunidade de crenças
Nesse contexto, Taylor defende que a autêntica laicidade não deve ignorar a
dimensão religiosa da vida humana, mas sim permitir que as pessoas expressem
livremente suas crenças religiosas e as vivenciem. Isto implica reconhecer que a
religião desempenha um papel crucial na formação da identidade, tanto individual
quanto coletiva. A expressão religiosa não deve ser restringida ou marginalizada na
esfera pública.
Por outro lado, Taylor enfatiza que a laicidade deve ser inclusiva,
preservando a liberdade de consciência para todos, independentemente de suas
crenças. A autêntica laicidade não favorece nem impõe uma religião sobre os
cidadãos, mas cria um ambiente pluralista para que perspectivas diversas, sejam
religiosas ou seculares, coexistam respeitosamente. Ele destaca a necessidade de
proteger a diversidade religiosa, assegurando tratamento igualitário para todas as
crenças e evitando discriminação ou marginalização. Sua abordagem reconhece o
valor intrínseco das diferentes tradições religiosas na riqueza cultural da sociedade
laica.
As obras de Charles Taylor ressaltam a relevância da religião na identidade e
cultura individuais. Ele advoga pela autêntica laicidade, que reconhece essa
dimensão religiosa, permitindo a livre expressão das crenças. Ao mesmo tempo,
destaca a importância de uma abordagem inclusiva, protegendo a liberdade de
consciência para todos, valorizando a diversidade religiosa e fomentando o diálogo
intercultural. Sua perspectiva enriquece o debate sobre a laicidade, buscando

728
conciliar a salvaguarda dos direitos individuais com o respeito à dimensão religiosa
da experiência humana.

1.2. Tolerância e diálogo inter-religioso: valorizando a diversidade espiritual


em uma sociedade laica
As contribuições de Charles Taylor para a compreensão da diversidade
religiosa em uma sociedade laica são notáveis. Ele destaca a importância de
preservar e reconhecer a multiplicidade de crenças e práticas religiosas, defendendo
que a verdadeira laicidade não busca suprimir a religião, mas garantir igualdade de
tratamento a todas as convicções religiosas. Sua visão sugere que uma sociedade
laica deve abraçar e respeitar as diversas expressões de fé, considerando-as
contribuições valiosas.
Taylor defende que a diversidade religiosa enriquece a sociedade, ao oferecer
um amplo leque de visões de mundo, valores éticos e maneiras de atribuir
significado à existência. Ele insiste que a autêntica laicidade deve criar um espaço
propício para a convivência pacífica entre várias tradições religiosas, onde o
compartilhamento de perspectivas e diálogos construtivos possam florescer. Ao
reconhecer o valor cultural e espiritual da diversidade religiosa, Taylor sublinha a
importância de assegurar que todos os grupos religiosos desfrutem do direito de
expressar suas crenças e praticar sua fé livremente, contanto que isso não infrinja
nos direitos fundamentais de outros. Isso implica, por sua vez, promover a liberdade
religiosa como um princípio irrevogável, zelando para que nenhuma crença seja alvo
de discriminação ou marginalização.
As reflexões de Charles Taylor nos convidam a superar preconceitos em
relação à diversidade religiosa. Ele destaca a importância do diálogo inter-religioso
para promover tolerância e respeito entre diferentes tradições espirituais em uma
sociedade laica. Seu ponto de vista desafia a concepção tradicional da laicidade,
propondo-a como um princípio inclusivo que valoriza e protege a diversidade
religiosa, fundamental para a riqueza cultural e espiritual de uma sociedade plural.

729
1.3. Uma abordagem inclusiva: valorizando a participação plena de
perspectivas religiosas e seculares no espaço público
Charles Taylor propõe uma abordagem inclusiva e participativa em relação à
presença da religião no espaço público. Contrariando uma visão estritamente
secularista, que busca excluir rigidamente a religião, Taylor defende a valorização
da participação plena e igualitária de todas as perspectivas, sejam religiosas ou
seculares. Ele argumenta que uma sociedade verdadeiramente laica não deve
suprimir ou marginalizar as convicções religiosas dos cidadãos, mas garantir o
direito de expressar livremente essas crenças, desde que não prejudiquem os
direitos e liberdades alheios. Essa abordagem reconhece a importância tanto da
liberdade religiosa quanto da liberdade de consciência para todos os cidadãos.
A inclusão religiosa no espaço público, segundo Taylor, não significa impor
uma única visão religiosa, mas criar um ambiente onde diversas perspectivas
possam coexistir e contribuir para o debate público. Ele destaca a igualdade de
consideração para todas as vozes, religiosas ou seculares, promovendo um diálogo
rico e plural. Essa abordagem reconhece o papel significativo da religião na vida das
pessoas, evitando a marginalização e exclusão ao negar sua presença e participação
no espaço público.
A sociedade laica autêntica, ao ser inclusiva e participativa, promove a
liberdade de expressão e consciência para todos os seus membros. Isso implica criar
espaços onde as pessoas possam expressar suas crenças religiosas, contribuindo
ativamente para o debate público e decisões que afetam a sociedade. Para Charles
Taylor, refletir sobre a relação entre religião e espaço público e valorizar uma
abordagem inclusiva são fundamentais para construir uma sociedade diversa e
democrática.

1.4. Diálogo intercultural e cooperação: promovendo a coexistência pacífica


entre perspectivas religiosas e seculares
Na abordagem de Charles Taylor sobre a laicidade autêntica, destaca-se a
ênfase no diálogo intercultural e cooperação entre visões religiosas e seculares. Ele
argumenta que esse diálogo não apenas reconhece a diversidade religiosa, mas
também fomenta o entendimento mútuo e respeito, essenciais para lidar com os
desafios da diversidade em um mundo secularizado. O diálogo facilita a identificação

730
de convergências, a compreensão das diferenças e a colaboração para promover a
coexistência pacífica.
Ao promover o diálogo intercultural, as diversas tradições religiosas têm a
oportunidade de compartilhar experiências, crenças e valores, contribuindo para
uma compreensão mais profunda e a superação de estereótipos. Esse aprendizado
mútuo pode resultar em maior tolerância e respeito entre diferentes perspectivas,
fortalecendo a harmonia social. A cooperação entre essas tradições e a sociedade
secular é crucial para abordar questões compartilhadas e trabalhar pelo bem-estar
coletivo. Charles Taylor destaca a possibilidade de encontrar pontos de
convergência, mesmo diante de diferenças substanciais, em áreas como justiça
social, direitos humanos e preservação ambiental, permitindo colaborações em
projetos que beneficiem toda a sociedade.
O diálogo intercultural e a cooperação propostos por Taylor são meios de
superar divisões e construir pontes entre as tradições religiosas e a sociedade
secular. Eles permitem que as diferenças sejam compreendidas e valorizadas, ao
mesmo tempo em que promovem a busca de interesses comuns e a criação de um
ambiente de coexistência pacífica e harmoniosa. Portanto, a visão de Charles Taylor
destaca a importância do diálogo intercultural e da cooperação como ferramentas
essenciais para enfrentar os desafios da diversidade religiosa em um mundo
secularizado, promovendo entendimento mútuo, respeito e coexistência pacífica
entre diferentes perspectivas religiosas e seculares.

1.5. Proteção dos direitos individuais e coletivos: a base da laicidade autêntica


Na perspectiva de Charles Taylor sobre a laicidade autêntica, a proteção dos
direitos individuais e coletivos é central. Ele destaca a necessidade de um verdadeiro
Estado laico garantir igualdade para todos, independentemente de crenças
religiosas, evitando discriminação. Taylor enfatiza que a autêntica laicidade não
deve favorecer ou marginalizar religiões específicas, mas sim tratar todas com
equidade e respeito.
Taylor destaca o respeito à liberdade de crença individual, defendendo a
prática ou não da religião sem discriminação. Além dos direitos individuais, ele
enfatiza a proteção dos direitos coletivos das comunidades religiosas, incluindo
liberdade de culto, acesso a locais religiosos e preservação de tradições culturais.

731
Ao salvaguardar direitos individuais e coletivos, a autêntica laicidade,
segundo Taylor, promove igualdade e respeito. Além de prevenir discriminação
religiosa, busca coexistência pacífica e tratamento equitativo para todos. Em
resumo, a perspectiva de Charles Taylor contribui para uma sociedade inclusiva,
justa e respeitosa.

1.6. Superando visões hostis: reconhecendo o valor da religião na sociedade


Na abordagem de Charles Taylor, ele desafia visões hostis à religião na esfera
pública, defendendo sua contribuição positiva para a vida social e cultural. Destaca
o papel legítimo da religião na formação de valores e busca por significado,
buscando uma perspectiva equilibrada que reconhece sua importância integral na
sociedade.
Charles Taylor destaca a importância de valorizar a diversidade religiosa,
reconhecendo a valiosa contribuição que a religião traz à sociedade. Sua abordagem
visa superar visões hostis, promovendo um diálogo construtivo entre diversas
perspectivas religiosas e seculares para uma coexistência harmoniosa.
A superação de hostilidades viabiliza discussões colaborativas entre grupos
religiosos e a sociedade secular. Essa abordagem, ao invés de enfatizar diferenças,
busca cooperação em questões como justiça social e preservação ambiental. Charles
Taylor propõe reconhecer o valor da religião, promovendo uma convivência
harmoniosa que aprecie a diversidade religiosa como enriquecimento cultural e
espiritual.

Considerações finais
A análise da perspectiva de Charles Taylor sobre a laicidade revela uma
contribuição significativa para o debate sobre a relação entre religião e Estado.
Taylor propõe uma abordagem equilibrada, inclusiva e respeitosa em relação à
diversidade religiosa, desafiando visões hostis e estereotipadas sobre a religião. Sua
visão transcende a mera separação entre religião e Estado, abraçando um
compromisso ativo de proteger e fomentar a pluralidade religiosa, assegurando a
liberdade de consciência e crença para todos os cidadãos. Este enfoque ressalta a
relevância da religião na identidade e cultura individuais, enquanto reconhece sua
positiva contribuição à sociedade.

732
Em resumo, a visão de Charles Taylor nos convoca a repensar a laicidade,
valorizando a diversidade religiosa, promovendo o diálogo intercultural,
protegendo os direitos individuais e coletivos e superando visões hostis em relação
à religião. Sua abordagem contribui para a construção de uma sociedade pluralista,
inclusiva e respeitosa, onde as diferenças religiosas são reconhecidas e apreciadas
como parte intrínseca da riqueza cultural e espiritual. A perspectiva de Taylor
desafia-nos a encontrar um equilíbrio entre a liberdade religiosa e o funcionamento
democrático da sociedade, promovendo uma coexistência pacífica e igualitária entre
diversas perspectivas religiosas e seculares.

Referências
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Estrutura e Dogmática. 2019. 476 f. Tese (Doutorado) – Curso de Direito, Faculdade
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733
RITUAIS DAS FOLIAS DE REIS: UMA TRADIÇÃO RELIGIOSA COM
SUAS NARRATIVAS DE MILAGRES NA CONTEMPORANEIDADE E
SUAS PRÁTICAS NO ESPAÇO PÚBLICO

Verônica Inaciola Costa Farias da Cruz1

Resumo: Os rituais das folias de reis são classificados por alguns autores, como uma prática
da cultura popular, ou no máximo como uma religiosidade, mas os seus seguidores a tem
como religião. São devotos que não a desvincula do seu mito fundador, “o nascimento de
Jesus”, embora assumam na contemporaneidade todo sincretismo que perpassa as suas
cosmovisões, que não descarta as crenças nas tradições religiosas afro-brasileiras. Práticas
rituais que não ficaram no passado, se reinventam no espaço público em que circulam em
cumprimento a seus fundamentos. Peregrinam para visitar os seus devotos durante jornada
e recebem outros grupos em suas festas de arremate. Como exemplificou Brandão (1985),
essa prática teve predominância rural, principalmente após o seu afastamento da igreja,
causado pelas novas normas advindas da romanização do catolicismo nos fins do século XIX.
Neste sentido objetivamos neste trabalho mostrar como esses agentes populares da religião
conduzem a devoção, em uma viagem simbólica, na representação do caminho feito pelos
Reis Magos. Partindo dessa premissa, podemos ver na Folia de Reis um bom exemplo dessa
preservação de valores que se dá no estabelecimento de relações sociais simbólicas, que no
corpus da tradição teórica integram significados diferentes aos das ordens legitimadoras
institucionais, encontrando plausibilidade para suas permanências na contemporaneidade
em suas narrativas de milagres.
Palavras-chave: Rituais; Folias de Reis; Tradição; Contemporaneidade.

Introdução
Os autos devocionais como os das Folias de Reis na contemporaneidade,
conservam as suas características ritualísticas originárias, pois é essa, uma
religiosidade pautada no percurso histórico de um catolicismo que se propagou
como religião hegemônica por mais de quatro séculos no Brasil e que ao longo da
construção histórica brasileira, foi se adequando as impingências da igreja que
entronizou o culto aos Santos Reis.
As Folias de Reis são grupos de pessoas que saem as ruas e visitam devotos
entre o dia de Natal e o dia de Reis com suas bandeiras, violas e caixas com cantorios
dedicados ao menino que nasceu em Belém e aos Santos Reis, levando benções e
angariando donativos para a festa (Castro; Couto, 1979). Atravessaram séculos,
reproduzindo em outro tempo e em outro espaço a passagem da visita dos magos
ao menino Jesus, tal qual descrita no Evangelho de Mateus 2: 1-12 (Brandão, 2010).

1 Mestre em Ciência da Arte – UFF; Doutorado em andamento em Ciências da Religião – UNICAP.

734
Neste sentido dialogamos com Brandão (1985, p. 133), em ser as Folias de
Reis reminiscências de um passado remoto, fruto de um trabalho religioso de uma
igreja que durante séculos protagonizou a cena do sagrado no Brasil, uma hierarquia
que se valeu de inúmeros recursos para difundir o cristianismo desde a Colônia,
gerando assim uma “quantidade inimaginável de agentes populares”. Como esses
mestres que conduzem esses grupos, que representam em outro tempo e em outro
espaço o caminho percorrido pelos magos para visitar o menino Jesus, tal qual como
está descrito no Evangelho de Mateus 2. Porém revitalizados e reinterpretados,
principalmente nas suas expressões urbanas, mas sem perder o respeito e os valores
dos mitos fundadores dessa crença.
Esses grupos devocionais que são na sua essência rurais, com aos processos
de migração, seus integrantes, portadores dessa crença nos Santos Reis, passam a
habitar as periferias das cidades, principalmente após a década d e 1960 , e a
praticarem seus rituais, que são dirigidos pelo mestre, ou seja, aquele que detém o
conhecimento do sagrado., não se fazendo necessária a presença de um sacerdote.
Portanto. São grupos que circulam no espaço público em um território em que as
disputas religiosas estão cada dia mais frequentes, principalmente as causadas pela
teologia da prosperidade, que vem ocasionando uma enorme mudança no campo
religioso brasileiro.
Na medida em que essas são práticas imbuídas de religiosidade que circulam
no espaço público, pois os seus principais rituais, embora exista uma sede onde está
o altar e recolhida a bandeira2 do grupo, eles circulam no espaço público em suas
festas de arremate3 e no período da jornada4. E nestes espaços existem ameaças que
assolam esses grupos rituais na RMRJ (Região Metropolitana do Rio de Janeiro).

2 A bandeira, descreve Bitter (2008), sobre ter esse objeto um efeito cosmológico para esses foliões
devotos dos Santos Reis, onde facilmente reconhecemos no seu formato de capela, santuário, altar,
sendo essa a conexão. Segundo Frade (2022), ela assume uma dupla função, porque também designa
o nome do grupo.
3 São festas que comemoram o sucesso da jornada, as graças, os donativos e os milagres alcançados.

Vários outros grupos são convidados para irem à sede da folia anfitriã festejar.
4 A jornada é o ponto alto do ritual. acontece entre os dias 25 de dezembro e 6 de janeiro (com

algumas variantes). É quando o grupo sai para visitar os devotos em suas casas. Representando em
outro tempo e em outro espaço o caminho feito pelos magos para visitarem o menino Jesus.

735
1. Os interditos para os grupos de Folias de Reis circularem
Se no passado a própria igreja que entronizou essa devoção, com o advento
da romanização a excluiu das normas eclesiásticas, na contemporaneidade esses
devotos encontram variados interditos para continuarem os seus rituais. As
ameaças que assolam esses grupos rituais na RMRJ (grupos estudados), migrantes
que saíram do campo desde a década d e 1960, em busca de qualidade de vida
melhor.
Por se tratar de migrantes, ocupantes de um território permeado de conflitos,
os portadores dessa crença, precisam enfrentar uma série de adversidades, que são
também comuns impostas aos outros habitantes desses territórios, como o descaso
do Estado com as populações das periferias; as promessas de prosperidade do
neopentecostalismo; a violência causada pelo tráfico de drogas nesses territórios; A
intolerância religiosa e o racismo. Inúmeras são as ameaças.
No contexto em que o repertório sagrado das Folias de Reis assume um
caráter contíguo, em que a crença não se distancia da vida cotidiana, assim como no
caso do povo Bororo estudado por Lévi-Strauss (1996), onde sagrado e profano não
caracterizam uma cisão, é que encontramos essa continuidade dos ritos das Folias
dos Santos Reis entre o indivíduo e a coletividade, muitas vezes muito próximos das
religiões primitivas, em que sociedade e natureza precisam estar em comunhão para
que ocorra a experiência que caracteriza o encontro com o sagrado , que para eles
tem como principal função a aproximação com a divindade.
Neste sentido é que precisamos cada vez mais promover o diálogo
interdisciplinar para compreendermos o campo religioso na América Latina, e essa
diversidade religiosa, que mesmo não apresentando uma filiação, encontra-se
sempre fincada em suas raízes históricas, conferindo legitimidade as práticas
devocionais.
Partindo do pressuposto de que a diversidade religiosa é permitida no Brasil
e a laicidade do Estado precisa ser exercida em pleno direito é que apontamos os
enfrentamentos feitos por esses grupos devocionais pautados no catolicismo
popular, imbuídos pelo sincretismo religioso, como são a s Folias de Reis.
Eu acho que no Brasil a diversidade religiosa ainda é muito
pequena. [...] Das chamadas “grandes religiões da humanidade” ou
“religiões mundiais”, quais são as que nos fertilizaram com ideais e
instituições, quais as que nos tem formado pra valer? Temos o
cristianismo, e só. [...] Costumo falar, de brincadeira, que o destino

736
(religioso) do cidadão brasileiro (religioso) não é nada invejável –
é converter-se de católico em protestante (PIERUCCI, 1997a, p.
259-260).

Quando o autor aborda a questão da conversão, nos aproxima dos


questionamentos que fazemos sobre o trânsito feito por esses devotos dos Santos
Reis para a barganha oferecida pela teologia da prosperidade, contribuindo em
demasiado para o afastamento desses devotos das suas metáforas sagradas que
trazem a resistência de suas memórias.

2. As resistências para a permanência dessas práticas devocionais


Uma crença que atravessou séculos e se ressignificou no fluxo da cultura,
reafirmando os seus símbolos sagrados, onde nos novos territórios para os quais se
deslocaram reconstruíram o espaço simbólico necessário para elaboração de suas
subjetividades, fazendo com que esses devotos sintam-se contemplados pelas
dádivas que circulam na coletividade. São gestos de solidariedade que se convertem
no milagre que funcionam como insubordinação aos descasos produzidos pelas
desigualdades sociais, eles fornecem um espaço utópico para a sobrevivência dos
pobres e subalternos. Para Certeau (2003), é a compensação das injustiças
históricas sofridas, causadas por ideologias políticas que não incluem o pobre no
sistema de bens comuns.
Nessa realidade inclusiva dos milagres, situamos esses devotos dos Santos
Reis na RMRJ. Para Brandão (2010), existe uma força diferenciada nas religiões dos
pobres, porque ela traz a memória viva e preservada, recriada pelas forças coletivas.
Essa dimensão do sagrado que esses devotos foliões dos Santos Reis exprimem, não
encontra-se presente apenas nos momentos dos seus rituais, que se materializam
nas jornadas que realizam entre o Natal e o dia de Reis, quando saem para visitar os
devotos, com suas caixas e violas, ritmando suas toadas em comemoração ao
nascimento de Jesus, e em suas festas de arremate para agradecer as dádivas, no
campo imaterial, como proteção, livramentos e no campo material, saúde, emprego,
moradia. É nessa relação com a divindade que esses devotos sustentam sua fé,
mesmo diante dos inúmeros interditos para que seus rituais aconteçam. Na foto
abaixo podemos observar essas resistências tão presentes em dois grupos que se
encontram para celebrar na festa de arremate todas as graças alcançadas, pelas
promessas feitas aos Santos Reis.

737
Figura 1 – Ritual de cruzamento de bandeiras

Fonte: Hélio Azevedo (2023)


Esta foto do encontro de dois grupos na rua demonstra como a tradição
resiste nesses tempos de intolerâncias e proselitismo religioso. A experiência com o
sagrado, revela um sentido intrínseco de relação com o potencial simbólico a ele
atribuído, onde vida social e crenças caminham juntas, ancoradas, segundo
Wunenburger (2006), por um símbolo, um mito e um rito. O poder criador que o
sagrado exerce na cultura, isto é, no modo de vida de uma determinada sociedade é
que permite a experiência.

Considerações finais
O exemplo exposto das Folias de Reis na RMRJ teve por finalidade
demonstrar a importância do diálogo para o direito desses grupos se
movimentarem nos espaços públicos. e discute conceitos e paradigmas-chave, como
secularização, laicidade, pluralismo religioso e diversidade religiosa. Portanto, todos
esses movimentos da modernidade não encontraram ressonância na América latina,
movimentos religiosos como a expansão do movimento pentecostal, o sucesso da
literatura esotérica, etc., estariam a revelar um fortalecimento do sagrado no espaço
público.
Nesse contexto, em que o repertório sagrado das Folias de Reis assume um
caráter contíguo, em que a crença não se distancia da vida cotidiana, assim como no
caso do povo Bororo estudado por Lévi-Strauss (1996), onde sagrado e profano não
caracterizam uma cisão, é que encontramos essa continuidade dos ritos das Folias
dos Santos Reis entre o indivíduo e a coletividade, muitas vezes muito próximos das
religiões primitivas, em que sociedade e natureza precisam estar em comunhão para
que ocorra a experiência com o sagrado.

738
Referências
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739
ARTE ST 11

ST 11 – Espiritualidade/religiosidade e saúde: perspectivas


interdisciplinares e novos cenários

740
Márcio Luiz Fernandes (PUC/PR)
Waldir Souza (PUC/PR)
Everton de Oliveira Maraldi (PUC/SP)
Ana Paula Fernandes Rodrigues UFPB)
Mary Rute G. Esperandio (PUC/PR)

A pesquisa em espiritualidade/religiosidade (E/R) tem adquirido significativa


atenção acadêmica nas últimas décadas, sobretudo, em relação às implicações na
saúde física e mental. Nessas investigações, a E/R é geralmente descrita como
importante função protetora contra uma série de condições e patologias, da dor
crônica ao abuso de substâncias e à depressão. Com base nessas evidências,
pesquisadores(as) e organizações de saúde destacaram a necessidade de se levar
em consideração as exigências espirituais das pessoas como parte de uma
concepção mais ampla de bem-estar, busca de sentido e de cuidado humanizado.
Não obstante, restam controvérsias quanto à generalização da relação entre E/R e
saúde, havendo estudos que mostram que ela depende de como a E/R é definida e
medida. Tal debate tem muito a ganhar das discussões teóricas e metodológicas em
Teologia e Ciências das Religiões, sendo necessários mais estudos abordando as
inter-relações entre esses campos na pesquisa e atuação profissional. Mais
recentemente, as publicações envolvendo pesquisadores de países como Brasil-
Portugal exploraram conceitos e práticas de cuidado e a atenção à espiritualidade
em diferentes contextos e as respectivas políticas de institucionalização da E/R para
o cuidado em saúde apresentados em cenários multi e interdisciplinares. A
diversidade de olhares sobre o tema revela a importância do diálogo entre
diferentes áreas do conhecimento. A presente proposta é precisamente discutir as
relações entre E/R e saúde a partir de perspectivas multi e interdisciplinares,
visando contribuir para melhor compreensão dos cenários de inserção nos eixos
teórico-conceitual, empírico-metodológico, atuação profissional e as implicações
políticas no campo da Saúde.

741
A ESPIRITUALIDADE SAUDÁVEL COMO CAMINHO DE REDUÇÃO DO
ESTRESSE LABORAL

Cristiano de Siqueira Mariella1

Resumo: A situação-problema do presente trabalho de investigação teológico-científica


levanta a seguinte inquietação: como a prática de espiritualidade no mundo corporativo
pode ser eficaz na redução do estresse laboral por meio da construção de um clima
organizacional baseado no respeito e no bem-estar no trabalho? O objetivo geral traçado
para o estudo em questão foi discutir as práticas de espiritualidade no contexto corporativo
como estratégias para minimização do estresse laboral a partir da institucionalização de um
clima organizacional agradável e respeitoso diante da pluralidade que o ambiente
empresarial apresenta. A metodologia traçada como canal para alcançar os objetivos
definidos é o levantamento bibliográfico e a pesquisa teórica, priorizando a taxonomia das
fontes primárias. Os resultados da pesquisa demonstraram uma urgência em tratar o tema
da espiritualidade nas empresas como um caminho eficiente e possível no combate ao
estresse laboral e na construção de práticas de espiritualidade saudáveis no exercício do
trabalho.
Palavra-chave: Espiritualidade; Estresse; Trabalho; Empresa; Capitalismo.

Introdução
O estresse laboral já é considerado um tipo de doença epidemiológica pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). A Organização Internacional do Trabalho
(OIT) e a OMS solicitaram novas medidas para enfrentar os problemas de saúde
mental no trabalho por meio de diretrizes globais, pois estima-se que 12 bilhões de
dias de trabalho são perdidos anualmente devido à depressão e à ansiedade que
custam à economia global quase um trilhão de dólares (OIT, 2023, n.p.).
A discussão do tema “espiritualidade emocionalmente saudável” integrada
ao exercício do trabalho ainda é considerada um contrassenso nas empresas. O clima
organizacional construído com base no respeito aos anseios antropológicos precisa
considerar a integralidade humana. Acredita-se que uma das formas de construir
um clima de trabalho harmônico é estimular a prática de espiritualidade no
ambiente laboral.

1 Doutorando e Mestre em Teologia pela PUC-Rio. Mestre em Engenharia Civil pela UFF. Pós-
graduado em Marketing Empresarial pela UFF. Bacharel em Teologia, Administração e Ciências
Contábeis. Bacharelado em andamento em Filosofia. Coordenador dos Cursos de Administração e
Ciências Contábeis da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO/SG) e Professor dos Cursos de
Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá (UNESA) nas áreas de Finanças, Auditoria,
Controladoria e Análise Balanços. E-mail: professorcristianomariella@gmail.com.

742
1. Os conceitos de espiritualidade e suas formas
O conceito de “espiritualidade” é relativamente recente, com origem na
escola espiritual francesa do século XVIII. Mas pode ser identificado também no
século V, em um texto de Pelágio, que anteriormente foi atribuído a São Jerônimo
que diz assim: Age, ut in spiritualitate proficias sua, que significa “Comporta-te de
modo a progredires na espiritualidade” (WOLFF, 2016, p. 15). O termo
“espiritualidade” está relacionado com a palavra hebraica ruach2 que geralmente é
traduzida por “espírito”. Refletir sobre espiritualidade, então, é abordar tudo aquilo
que possibilita vida, que anima o interior com princípio essencial, que ativa e que
impulsiona o ser humano à existência e a um estado melhor e mais avançado, numa
espécie de transcendência além do material que promove um aperfeiçoamento
contínuo no processo de viver o intangível intensamente. É um desprendimento
espiritual sem desconectar da realidade integral e holística que a antropologia
define para tornar a vida possível.
Numa perspectiva cristã, espiritualidade é designada nas relações do ser
humano com Deus que criou todas as coisas. É uma busca autêntica e satisfatória a
Deus, estabelecendo um relacionamento íntimo de amor, “envolvendo as ideias
fundamentais do cristianismo com toda a experiência de vida baseada em e dentro
do âmbito da fé cristã” (MCGRATH, 2008, p. 20). “Espiritualidade”3 é um termo que
não consta na Bíblia Sagrada de forma literal e passou a ser relacionada com as
práticas ligadas a alguma religião. Recentemente, a palavra “espiritualidade”
começou a ser empregada para representar também atividades que engrandecem o
ser, descrevendo sensações experimentadas durante os avanços além no físico em
conexão com o Superior.

2 De acordo os autores do Dicionário Bíblico Wycliffe, o substantivo hebraico ruach aparece trezentas

e trinta e sete vezes nas páginas do Antigo Testamento, assumindo, além de “espírito”, outros
significados como “fôlego” e “vento” (Gn 6,17, 8,1 e 41,8). O substantivo deriva de um verbo que
significa “expelir o ar pelo nariz com violência”. Ruach, considerando a realidade humana, também
representa a expressão “centro da vida”, sendo praticamente um sinônimo de nephesh (“alma”).
Contudo, vale ressaltar que nephesh significa a pessoa como um indivíduo próprio, e ruach entendido
como o princípio interno animador do indivíduo (PFEIFFER et al, 2000, p. 680-681).
3 Deus regenera o homem pecador e torna real a possibilidade de alcançar a verdadeira

espiritualidade. De acordo com Jo 6,63, “o espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita”. Deus
dá ao homem cristão o entendimento espiritual (Cl 1,9), além do vocabulário necessário para o
homem expressar as verdades de Deus de forma espiritual (1 Co 2,12-13). O cristão que atingiu a
maturidade é um homem espiritual que reúne os frutos do Espírito (1 Co 2,15, 3:1 e Gl 6,1). Então,
percebe-se que a imaturidade espiritual prejudica o exercício da espiritualidade em qualquer lugar.

743
A “espiritualidade” pode ser definida como a inclinação do ser humano em
busca de significados para a vida por meio de vias transcendentais, indo além do
tangível, para encontrar-se com algo superior, podendo ser uma divindade ou não4.
A espiritualidade, então, pode representar caminhos espirituais pelos quais muitas
pessoas buscam o além do físico por intermédio dos exercícios e práticas o tão
almejado e inquietador sentido da vida.
Sendo assim, algumas outras conceituações se fazem necessárias para dirigir
a leitura desta pesquisa neste contexto introdutório. Um passo importante nessa
direção é entender que o termo “espiritualidade” nem sempre está ligado à religião.
Viver uma vida baseada em caminhos e conexões espirituais significa possibilitar o
sentir da vida na essência de como ela se apresenta, fazendo o possível para que
esses percursos trilhados sejam, possivelmente, mais harmônicos, equilibrados e
saudáveis.
Uma definição direta e básica do termo “espiritualidade” está relacionada
com a busca de uma vida com princípios e valores pertinentes à determinada
religião, considerando todas as experiências de vida com base no âmago religioso.
Delimitando um pouco mais o termo, chega-se à expressão “espiritualidade cristã”.
Esta se refere ao encontro relacional com Jesus Cristo, usufruindo da presença de
Deus, envolvendo, autenticamente, os princípios e ideias fundamentais do
cristianismo, além de experiências concernente à fé cristã (MCGRATH, 2008, p. 20).
Elucidando um pouco mais o tema desta pesquisa e ajudando na
compreensão da delimitação do assunto, consideram-se práticas de espiritualidade
religiosa as ações realizadas no exercício da fé, das crenças e dos dogmas de
determinadas religiões como, por exemplos, cultos, celebrações, orações, preces,
rezas, conexões com o sagrado, rituais, adoração e louvores a Deus. Entretanto,

4 Muitos autores se dedicaram à conceituação do termo “espiritualidade” relacionado à religião e ao


Sagrado. George Ganss, na parte introdutória da Ignatius of Loyola, afirma que “espiritualidade é uma
experiência viva, o esforço de aplicar elementos relevantes do depósito da fé cristã para orientação
de homens e mulheres, com vistas ao seu crescimento espiritual”. Richard O’Brien, em Catholicism,
ressalta que “espiritualidade tem a ver com nossa experiência de Deus e com a transformação de
nossa consciência e vida com resultado dessa experiência”. Don E. Saliers, em Spirituality, observa
que “espiritualidade refere-se a uma experiência vivida e a uma vida disciplinada de oração e ação,
mas não pode ser compreendida fora das crenças teológicas específicas que são os ingredientes nas
formas de vida que manifestam fé cristã autêntica”. Richard Wood, na obra Christian Spirituality, diz
que “o caráter autotranscendente de todo ser humano e tudo que seja pertinente a isso, incluindo, e
de modo mais importante, como esse caráter, talvez infinitamente maleável, se apresenta
concretamente em situações cotidianas da vida”.

744
existem diversas compreensões de espiritualidade e muitas expressões e formas de
vivenciá-las, que não necessariamente estão associadas à religiosidade. São práticas
que embora não estejam envolvidas com qualquer religião, elevam o caráter
espiritual do ser humano, tais como: o cuidado e a conexão com a natureza, as
relações de amizade, a ajuda ao semelhante necessitado, o trabalho realizado com
dedicação, o exercício da gratidão5, a cortesia e a gentileza com os pares, a prática
de falar a verdade, as manifestações de honestidade, as boas intenções e
pensamentos saudáveis, a abertura para mudanças e melhoria de vida, a economia
de energia elétrica e de água, a utilização de material reciclável e realização de coleta
seletiva de lixo para reciclagens, o exercício da caridade6 na entrega de alimentos às
famílias necessitadas, os hábitos da alimentação saudável, o cuidado com a saúde
mental, dentre muitas outras ações capazes de promover o bem-estar humano e
elevação espiritual, sem que tais práticas passem necessariamente pelas religiões.
O tema “espiritualidade” ainda é visto como controverso no ambiente
corporativo, cuja dinâmica é muito agressiva proveniente das preocupações com o
desempenho financeiro por meio dos lucros. Na verdade, os interesses corporativos,
não generalizando, beiram a ganância econômica em vez da humanidade e da
espiritualidade. Harmonizar espiritualidade e trabalho, portanto, parece ser uma
tarefa não muito fácil. Isso acontece também por conta da cultura ocidental,
fortemente influenciada pelo capitalismo, que rejeita a prática da espiritualidade
fora das comunidades de fé. Por isso, qualquer avanço na integração entre
espiritualidade e trabalho nas empresas ainda são bem tímidos.

5 Afonso Murad, Doutor em Teologia pela Pontificia Universitas Gregoriana e Pós-doutor em Teologia
pela PUC-RS, apresenta uma explanação belíssima e profundamente proficiente sobre a importância
da gratidão no cultivo da espiritualidade, no vídeo intitulado Espiritualidade em tempos turbulentos.
O autor ressalta: “Outra questão importante de como cultivar a espiritualidade, eu creio que é cultivar
o sentimento da gratidão. Agradecer a Deus e as pessoas, agradecer à nossa ancestralidade (aqueles
que estão vivos): pais, tios e todos que compõem o nosso grupo familiar, que têm seus defeitos
também e têm suas falhas, mas eles nos trouxeram à vida. Agradecer aqueles amigos e amigas que
estão mais próximos. Agradecer o alimento que a gente toma. O ar que a gente respira. Essa atitude
de gratidão nos faz felizes com a vida. E nos faz também diminuir a nossa ansiedade. Então, exercitar
a gratidão. E para quem cultiva a espiritualidade cristã, os salmos são uma experiência belíssima de
gratidão. Quanta coisa a gente pode começar com salmos e continuar agradecendo a Deus. A gratidão
é fundamental porque ela nos faz expressar a alegria de estar vivo e participar da vida”. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=fR0n5Nrk91 o>. Acesso em: 20 ago. 2023.
6 Sobre a prática da caridade em amor, Tomás de Kempis, no capítulo 15 (Das obras feitas com

caridade), página 36, da obra Imitação de Cristo escreve: “Muito faz aquele que muito ama. Muito faz
quem bem faz o que faz. Bem faz quem serve mais ao bem comum que à sua própria vontade. Muitas
vezes parece caridade o que é mero amor-próprio, porque raras vezes nos deixam a inclinação
natural, a própria vontade, a esperança da recompensa, o nosso interesse”.

745
Entretanto, mesmo com avanços modestos, em algumas corporações o tema
“espiritualidade” vem ganhando propósitos na própria definição do trabalho. A
discussão permeia sobre a importância das empresas e organizações estarem
abertas e receptivas para as vivências que a prática de espiritualidade no trabalho
corporativo plural e ecumênico pode proporcionar. Diante de tanta diversidade de
pensamento e heterogeneidade no ambiente corporativo cada vez mais inóspito
para as expressões individuais de fé e espiritualidade, a discussão de novos modelos
de trabalho apropriados para a humanização organizacional, com base na harmonia
e no respeito, é muito crucial e inadiável.

2. Trabalho e a prática de espiritualidade


O trabalho foi criado por Deus e entregue ao homem e a mulher para sua
dignidade e consciência de que o labor tem uma dimensão espiritual. O Papa Emérito
Bento XVI, no ano de 2011, já destacava que o trabalho aproxima o ser humano de
Deus porque trabalhando com amor e fazendo com dedicação o que se propõe, o ser
humano está mais perto de Deus7.
Na visita pastoral a Cagliari, em 22 de setembro de 2013, o Papa Francisco
disse que “trabalho quer dizer dignidade, trabalho significa trazer o pão para casa,
trabalho quer dizer amar!”8. O trabalho faz parte da criação e essa realidade está
inteiramente envolvida com o homem e com a mulher no cotidiano que deve
expressar a essência do amor nas atividades que realiza.
A relevância do trabalho especificado na Bíblia está evidenciada no início
da criação. O autor do Livro do Gênesis, logo nos trajetos introdutórios, registra
que Deus é um trabalhador muito ativo, diligente e dinâmico. De acordo com o
testemunho bíblico, o trabalho que Deus realizou abrange sua ação criadora original,
e nova a cada momento, sua preocupação ordenadora e preservadora por sua
criação e também seu governo soberano sobre os seres criados, pois todas as coisas
que são feitas pela vontade de Deus permanecem sob os seus cuidados e
preservação (SCHNEIDER, 2012, p. 145).

7 TEMPESTA, O. J. A dignidade do trabalhador. CNBB, Rio de Janeiro, 01 mai. 2020. Disponível em:
<https://www.cnbb.org.br/a-dignidade-do-trabalhador/>. Acesso em: 01 set. 2023.
8 FRACCALVIERI, B. Papa Francisco: trabalho significa dignidade, significa amar. Disponível em:

<https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2018-05/papa-francisco-trabalho-dignidade.html>.
Acesso em: 05 set. 2023.

746
No segundo relato da criação (Gn 1,4b-2,25)9, por exemplo, podemos
encontrar um ser humano mais integrado com a natureza e com o meio ambiente.
Pode-se encontrar também um Deus (Javé) muito mais próximo da sua criação. Os
contornos laborais que Deus imprime para a sua criação, o de plantar um jardim, se
assemelha com o modo natural que o ser humano trabalha e cria. Trata-se de uma
realidade essencialmente camponesa, que envolve os problemas do campo, da seca,
da chuva, bem como do trabalho camponês de cultivar a terra e cuidar da criação
(KAEFER, 2013, p. 11).
O trabalho essencialmente ocupa um lugar muito significativo na vida da
maioria das pessoas. Para os servos de Jesus, fica a responsabilidade de aprender a
refletir sobre essa realidade de maneira cristã. “Precisamos aprender a celebrá-lo [o
trabalho] como uma dádiva de Deus, a protestar contra práticas injustas e
opressivas, onde quer que existam, e a chamar as pessoas a trabalhar com
integridade, num mundo de trabalho muitas vezes comprometido” (STOTT, 2019, p.
255).
“O trabalho não é um mal necessário nas Escrituras, mas uma instituição
divina na criação. Deus deu uma ocupação a Adão no Jardim do Éden antes da Queda,
e então, devemos avaliar o trabalho como uma dádiva, não como maldição”
(GRUDEM, 2006, p. 31).
Desde o princípio Deus trabalhou na criação da humanidade, dos animais e
de tudo que existe na face terrestre. O trabalho não é um mal necessário que
adentrou o cenário humano e que estava aquém da dignidade do Deus Poderoso.
Deus trabalhou, se alegrou em suas atividades e se regozijou com sua produção. O
trabalho dificilmente teria um início mais esplendoroso e glorioso (KELLER;
ALSDORF, 2014, p. 37).

9 Na seção intitulada “A tarefa de submeter a terra”, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja


apresenta: “255 O Antigo Testamento apresenta Deus como criador onipotente (cf. Gn 2,2; Jó 38-41;
Sal 103[104]; Sal 146-147[147]), que plasma o homem à Sua imagem e o convida a cultivar a terra
(cf. Gn 2,5-6) e aguardar o jardim do Éden em que o pôs (cf. Gn 2,15). Ao primeiro casal humano Deus
confia a tarefa de submeter a terra e de dominar sobre todo ser vivente (cf. Gn 1,28). O domínio do
homem sobre os demais seres viventes não deve todavia ser despótico e destituído de bom senso;
pelo contrário ele deve ‘cultivar e guardar’ (cf. Gn 2, 15) os bens criados por Deus: bens que o homem
não criou, mas os recebeu como um dom precioso posto pelo Criador sob a sua responsabilidade.
Cultivara terra significa não abandoná-la a si mesma; exercer domínio sobre ela e guardá-la, assim
como um rei sábio cuida do seu povo e um pastor, da sua grei”. Disponível em:
<https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_
doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html>. Acesso em: 18 ago. 2023.

747
3. Sobre estresse laboral no contexto contemporâneo
Por “estresse” entende-se as respostas de ordem física e/ou mental
determinadas por agentes estressores (os estímulos externos) que possibilitam que
o indivíduo (ser humano ou animal) supere as exigências e percalços do meio
ambiente no qual está inserido. Ou seja, trata-se de um desgaste mental e fisiológico
causado por um processo estressor. O termo “estresse”, inicialmente, era apenas
empregado nas ciências da física com o objetivo de designar a tensão e o desgaste
que os materiais estavam expostos. Posteriormente, o termo “stress” foi usado pela
primeira vez no sentido hodierno no ano de 1936 pelo médico endocrinologista
húngaro Dr. Hans Hugo Bruno Selye em um artigo da revista científica Nature e,
posteriormente, mais detalhado na obra do autor intitulada “Estresse: um estudo
sobre ansiedade”, de 1950.
A palavra “estresse” significa “pressão”, “tensão” ou “insistência”. Portanto,
estar estressado está relacionado a “estar sob pressão” ou “estar sob a ação de
estímulos estressores insistentes”. Pode-se considerar “estressor” qualquer
estímulo que provoca o surgimento de um grupo de reações psicológicas capazes de
proporcionar alterações fisiológicas, orgânicas e comportamentais na vida humana.
De acordo com os estudos do Dr. Selye, notadamente em 1956, os sintomas
do estresse se apresentam em três fases sucessivas: 1) Alarme; 2) Resistência e 3)
Esgotamento. Após a fase de esgotamento, pesquisar realizadas constataram o
surgimento de doenças como úlcera, artrites, lesões no músculo cardíaco, infarto e
tensão muscular.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu nos últimos anos o
estresse como uma epidemia global, pois essa “doença” atinge grande parte da
população mundial (estima-se 90%). No Brasil, 70% da população sofrem com
estresse, sendo que 30% chegam a ter níveis elevados desse mal. Apesar da
frequência, nem sempre os sintomas são facilmente percebidos. Com o dia a dia cada
vez mais acelerado e tantas atribuições na vida profissional, fica difícil evitar o
estresse.
Descontrole emocional no trânsito, sobrecarga de trabalho, falta de período
regular para descanso com qualidade, ambiente familiar em crise, dentre muitos
outros, são fatores favoráveis ao surgimento de estresse. O estresse não é

748
necessariamente ruim em todos os casos e níveis. Apenas os graus demasiadamente
elevados de estresse que desiquilibram o organismo humano a ponto de
proporcionar o surgimento de sérias patologias.
De acordo com uma pesquisa realizada pela empresa Gallup Poll, considera-
se que “os níveis de estresse entre os americanos são superiores à média mundial
geral. Além disso, a pesquisa anual ’Stress in America’ realizada pela American
Psychological Association descobriu que 63% dos americanos estão estressados com
o futuro da nação, dinheiro, trabalho, clima político, violência e crime” (HCA
HEALTHCARE, 2023, n.p.).

4. A espiritualidade emocionalmente saudável no pensamento de Peter


Scazzero
Peter Scazzero10 é fundador e pastor titular da New Life Fellowship Church,
em Nova York. Neste estudo teológico-científica será discutido o pensamento que o
autor depositou na sua premiada obra intitulada The Emotionally Healthy Church.
Nesta obra inquietante, o autor desenvolve um esquema para ilustrar os sinais da
espiritualidade emocionalmente saudável. Ele fornece algumas formas bíblicas de
exame da realidade para prosseguir em uma verdadeira revolução cujo propósito é
Cristo. Uma forma de combinar saúde emocional e espiritualidade contemplativa,
afirma o autor, move o Espírito Santo dentro do ser humano para conhecer, de forma
experimental, o poder de uma autêntica vida em Cristo.
Na primeira parte da obra, Scazzero apresenta o que chamou de
“espiritualidade emocionalmente doentia”. Trata-se de alguns sintomas que as
pessoas geralmente sofrem. Um deles é “espiritualizar o conflito”. Ninguém gosta de
conflitos, mas eles estão por toda parte, principalmente no local de trabalho cada
vez mais estressante. Entretanto, uma espiritualidade doentia é ignorar a realidade
desses conflitos, passando a pessoa a viver sem que sejam devidamente resolvidos.
Essa prática é extremamente destrutiva, pois os conflitos não resolvidos ficam
latentes e podem causar transtornos naqueles que estão envolvidos.
Jesus nos mostra que cristãos saudáveis não evitam conflitos. Sua
vida foi cheia deles! Tinha momentos de tensão sistemáticos com

10Peter Scazzero é formado pelo Seminário Teológico Gordon-Conwell e possui Doutorado em


Ministério da Família. Ele e sua esposa Geri são fundadores do ministério inovador denominado
“Espiritualidade Emocionalmente Saudável”, que integra saúde emocional e espiritualidade
contemplativa para pastores, líderes e igrejas locais.

749
os líderes religiosos, com as multidões, com os discípulos – até
mesmo com sua família. Com o desejo de trazer paz verdadeira
Jesus rompeu a falsa paz ao seu redor. Ele se recusou a
“espiritualizar” o conflito (SCAZZERO, 2013, p. 44).

O que acontece é que poucas pessoas sabem, ou se pré-dispõem, a resolver


os conflitos da mesma forma que Jesus fez. Além disso, sabe-se que o estresse laboral
pode ser reflexo ou consequência de conflitos que emergem o tempo todo, fora ou
dentro do local de trabalho, justamente por falta de trato e solução. Então, ter
coragem para resolver conflitos e tensões no ambiente e trabalho é uma forma
saudável de evitar viver uma espiritualidade doentia.
“Encobrir a fragilidade, a fraqueza e o fracasso” é um outro sintoma associado
à falta de uma espiritualidade emocionalmente saudável. Nas empresas,
principalmente, onde a busca por resultados é tão exigida e aflorada, os
colaboradores são, de certa forma, pressionados a apresentar uma imagem
intrépida diante das dificuldades do contexto corporativo. Contudo, o colaborador
esquece que, enquanto ser humano, é falível e pecador e, portanto, nunca existirá
perfeição nas suas ações. A exemplo disso, grandes homens da Bíblia erraram em
momentos cruciais da vida, e a fraqueza deles não foi escondida por Deus.
Muitas pessoas buscam alta performance no trabalho, na arte, no esporte, na
política, na igreja, e vem à mente se esses resultados são de fato extraordinários ou
até quando serão, considerando que para essas pessoas o movimento de resultados
de qualidade parece ser contínuo e cíclico. Assim, é importante assumir as
fragilidades, as fraquezas e os fracassos no exercício do trabalho como algo natural
da vida humana. Encobrir essa realidade pode adoecer a alma, na construção de uma
essência que o ser humano não tem.
O ser humano é chamado a realizar suas tarefas laborais da melhor forma
possível para a glória de Deus. Como afirmou Irineu de Lyon muitos séculos atrás:
“A glória de Deus é um ser humano plenamente vivo”. É bem verdade que Jesus
afirmou o seguinte: “Se alguém vir após mim, negue a si mesmo, tome cada dia a sua
cruz e siga-me” (Lc 9,23). Entretanto, é bem complicado seguir essas orientações à
risca nos dias atuais, onde a necessidade de subsistência repousa em ter um trabalho
que fomente renda familiar.
O próximo sintoma de uma espiritualidade emocionalmente doentia que será
trabalhando é: “Morrer para as coisas erradas”. Significa que o ser humano deve

750
morrer para as partes erradas que são originadas na essência do pecado (Rm 2:23),
mas essa “morte” não pode ser radical a ponto de gerar estresse. Jesus nunca pediu
para que o ser humano morresse para as partes boas que Deus essencialmente
colocou na sua criação. Amizades, alegria, entretenimento, beleza, riso, dentro
outros, são prazeres que Deus plantou no coração dos homens para serem nutridos.
“Quase sempre esses desejos e paixões são convites de Deus, dons dele. Todavia, de
alguma forma sentimo-nos culpados ao desembrulhar esses presentes” (SCAZZERO,
2013, p. 37).
Deus não deseja que o cristão seja um robô, uma engrenagem, um “não
humano” com recursos e atividades programadas perfeitamente para serem
executadas nas instâncias da vida. Ao contrário, Deus criou o ser humano para um
relacionamento de amor consciente e vivo. Mesmo se entristecendo com o pecado
que transmutou a essência humana, o amor de Deus nunca sofre variação, nunca é
duvidoso.
Depois de apresentar alguns sintomas do que Peter Scazzero denominou
“espiritualidade emocionalmente doentia”, fazendo as hospedagens necessárias no
contexto organizacional, será apresentado, adiante, parte da segunda seção da obra
já citada que foi denominada de “Caminhos para uma espiritualidade
emocionalmente saudável”.
Grandes homens da humanidade escreveram algo como autoconhecimento
no relacionamento com Deus. O apóstolo Paulo, inspirado por Deus, escreveu: “[...]
vos despir do velho homem [...] e vos revestir do novo homem, criado segundo Deus
em verdadeira justiça e santidade (Ef 4,22-24). Sócrates, filósofo da Antiguidade,
afirmou: “Conheça-te a ti mesmo, tenha consciência da sua ignorância e serás sábio”.
Nas Institutas da Religião Cristã, João Calvino deixa registrado o seguinte sobre
autoconhecimento: “A sabedoria verdadeira e substancial consiste quase
inteiramente em duas coisas: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós
mesmos”. Neste ínterim, o primeiro caminho para construir uma espiritualidade
emocionalmente saudável é “conhecer a si mesmo para conhecer a Deus”. Muitas
pessoas vivem uma vida inteira e não se conhece, não sabem quem é. Em muitos
casos, passam do escondimento da gestação para o escondimento do túmulo sem
nenhum esclarecimento. Sem autoconhecimento, o ser humano prejudica suas
relações com seus pares e com Deus. Não conhecer as próprias emoções e as formas

751
de lhe dar com elas pode prejudicar o ambiente de trabalho, gerado mais estresse. É
importante conhecer aqueles com quem se trabalha, suas aflições e alegrias, para
evitar conflitos e ressentimentos, já que o ambiente de trabalho, muitas vezes, é uma
máquina de desumanizar.
É fulcral “descobrir os ritmos do ofício divino e do descanso semanal”, para
uma espiritualidade efetivamente saudável no trabalho. Esse é o segundo caminho.
O ofício divino funciona como subterfúgios para o homem enfrentar as
controvérsias da vida de maneira alegre e madura, entendendo que possui os frutos
do Espírito (Gl 5,22-23). Deus está no controle de tudo e isso inclui o ambiente de
trabalho em todas as suas nuances. Paulo disse: “porque vivemos pela fé, não pelo
que vemos” (2Cor 5,7), depositando toda sua confiança em Deus. Deus governa toda
a sua criação, nada escapa dos seus desígnios e tudo está em suas mãos. Fica a
seguinte recomendação bíblica: “Entregue o seu caminho ao Senhor; confie nele, o
mais ele fará” (Sl 37,5). O descanso semanal, suficiente e merecido, alivia a carga de
estresse construída no ambiente de trabalho e renova a mente e as energias
fisiológicas para o trabalhador enfrentar novas rotinas de trabalho. Deus instituiu
um dia de descanso semanal durante a peregrinação do povo hebreu no deserto,
quando usou Moises para registrar as orientações de guardar o sábado para
descanso (Ex 20,8-11).
O último caminho para efetivar uma espiritualidade emocionalmente
saudável no ambiente de trabalho é “tornar-se um adulto emocionalmente maduro”.
A imaturidade é um grande problema. Muitos cristãos frequentam a igreja
semanalmente, oram, conhecem a Bíblia, mas são emocionalmente imaturos e não
praticam os princípios genuínos da vida cristã. No trabalho, muitas vezes as pessoas
alcançam cargos elevados, geram resultados e lucros para os acionistas em escalas
astronômicas, mas não sabem controlar suas emoções. Tanto quanto as habilidades
técnicas, as habilidades relacionais são importantes para compreensão das relações
laborais e construção de um clima organização harmonioso e respeitoso, primando
pelo bem-estar no trabalho.

Considerações finais
Chega-se à conclusão deste estudo com um “fim parcial” que ensejarão novas
pesquisas e novos rumos na construção de conhecimento. Os resultados da pesquisa

752
demonstraram uma urgência emergencial em tratar o tema da espiritualidade nas
empresas como um caminho eficiente e possível no combate ao estresse laboral e na
construção de práticas de espiritualidade emocionalmente saudáveis que tendem a
ajudar o ser humano a enfrentar ambientes de trabalho muitas vezes nocivos à
saúde humana.
Percebeu-se que nas esferas micro organizacionais do labor (individual), as
práticas de espiritualidade saudável como, por exemplo, orações e meditações, têm
as vias mais largas de aplicação. Entretanto, nas esferas macro organizacionais
(coletivo), ou seja, em níveis institucionais mais elevados, o desafio é bem maior,
mas também oportuno.

Referências
BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Rio de Janeiro:
Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.

GRUDEM, Wayne A. Negócios para a glória de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

HCA HEALTHCARE. Stress, the “health epidemic of the 21st century”. Disponível em:
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754
O VALOR DO CUIDADO ESPIRITUAL EM TEMPOS DE FRAGILIDADE
DA COVID 19

Eva Gislane Barbosa1

Resumo: Em meio aos desafios e fluxos trazidos pela pandemia da COVID-19, muitas
pessoas buscaram e continuam buscando, formas de enfrentar os sentimentos emocionais
e psicológicos decorrentes do isolamento social, da perda de entes queridos e da mudança
radical em suas rotinas quando estiveram internadas ou não. Analisar de que modo o
cuidado espiritual pode ser um recurso valioso no enfrentamento da fragilidade humana.
Método: Reflexão teórica baseada na literatura científica da área. O cuidado espiritual tem
se mostrado uma ferramenta importante para a preservação da saúde mental e emocional,
proporcionando um suporte significativo para muitos indivíduos. Neste contexto,
exploramos o valor do cuidado espiritual durante a pandemia, destacando como pode
oferecer conforto, esperança e resiliência diante dos tempos difíceis; como recurso para
profissionais de saúde diretamente envolvidos no combate à pandemia; como recurso na
compreensão de situações de luto. A busca por significado e propósito, diante de uma crise
global, é comum que as pessoas enfrentam uma sensação de desamparo e desconexão. O
cuidado espiritual, seja por meio da religião, meditação, oração ou outras práticas, oferece
uma oportunidade para os indivíduos se reconectarem com seus valores fundamentais,
encontrando significado nos desafios enfrentados e buscando um propósito maior, mesmo
em meio à adversidade se torna uma fonte de conforto e esperança.
Palavras-chave: Pandemias; Teologia; Espiritualidade; Cuidado.

Introdução

Na China, em dezembro de 2019, deu início a pandemia da COVID 19 que


flagelou o mundo, doença que veio na bagagem de muitos turistas alcançou lugares
inimagináveis. Desde a Europa com sua potência e riqueza até a vida simples nas
aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas do Brasil, o avanço epidêmico, em
maior ou menor escala de tempo e espaço geográfico, deixou um rastro catastrófico
de infectados e mortos, gerando pânico, medo e incerteza, sobretudo ao estado de
vulnerabilidade que se encontravam as pessoas, nos dias mais difíceis.
Ao acompanhar o crescente avanço da doença, percebemos o grande
despreparo das instituições governamentais e religiosas. Essas não sabiam como
atender a demanda de mortes, oferecendo um processo rápido e insensível. Devido
ao medo do contágio, a emergência que algumas cidades e Estados adotaram foi a

1Doutoranda em Teologia Ético Social pela PucPR, Mestre em Teologia pela PUCPR 2019. E-mail:
evagislane40@gmail.com.

755
de calamidade pública, postergando os sentimentos e ritos de despedida dos
familiares e amigos, deixando uma marca traumática na vida de milhares de seres
humanos.
Esse trabalho irá fazer um recorte de estudo no período mais crítico da
pandemia, de janeiro a junho de 2021 onde aconteceu o recorde de mortes por covid
19 no Brasil, em 29 de março 3.541 pessoas foram a óbito devido à doença2. O nosso
foco da pandemia é o Brasil, objetivando o Estado do Paraná, a capital Curitiba e suas
regiões metropolitanas.
Ao observar a quantidade de covas abertas em vários cemitérios Brasil afora,
e a forma com que os corpos humanos foram despejados, mostrou-se claramente a
falta de humanidade a despeito das vítimas, seus sonhos e suas religiões.
Destacando-se principalmente às pessoas que fizeram parte de sua história e que
diante daquela tragédia terão a triste lembrança do caixão lacrado, ou em outros
lugares mais pobres, a imagem de um saco plástico preto nos remetendo ao modelo
utilizado para colocar o lixo.
Conforme essa triste projeção, se fez necessário a intervenção de políticas
públicas e privadas, houve solidariedade, dedicação e esperança pelos dias que se
seguiram, principalmente no ápice da pandemia. As pastorais religiosas e laicas
foram promovidas no sentido de acompanhamento e ações realizadas com muita
cautela, no sentido de comunhão e de solidariedade com o próximo. As famílias
enlutadas e em estado de vulnerabilidade foram a grande preocupação das
comunidades, com o propósito de amparar a dor e o sofrimento da perda precoce de
seus entes queridos.
Diante dessa triste realidade, como deixamos o medo nos tornar tão
insensíveis? Mesmo tendo várias formas de proteção, foi preferido esconder-se em
regras temporariamente criadas para diminuir a culpabilização de traumas
causados em familiares. Desse modo procuraremos aqui abordar possíveis
respostas que auxiliem os familiares enlutados a encontrarem a resiliência e assim
o sentido de vida.

2 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2022/01/17/dia-mais-letal-da-
pandemiano-pais-teve-mais-mortes-que-dezembro-de-
2021.htm#:~:text=Foram%203.541%20mortes%20no%20dia,dos%20cart%C3%B3rios%20de%2
0registro%20civil.

756
1. Cuidados espirituais negados diante da Covid-19
A Bioética é uma ciência que permite a cooperação e interação de diversas
ciências humanas, entre elas a teologia. Ela traz em si um discurso de tolerância
porque entende que existe uma pluralidade moral na humanidade. Busca a
harmonia de todas essas crenças e valores, “são essas situações que a bioética deve
iluminar, com reflexão crítica e oportuna”. O diálogo bioético é necessário como
estrutura que comporta os dilemas da humanidade, trazendo assim possíveis
soluções para as maiores dificuldades da vida, incluindo nos cuidados paliativos3.
O cuidado espiritual pode ser um forte aliado nos cuidados paliativos. A
contribuição da espiritualidade deve entender que tratando de cuidados paliativos
ela não está relacionada a uma possibilidade de cura. Assim, deve estar relacionada
justamente com o cuidado e amparo que pode proporcionar tanto ao paciente como
aos familiares4.
Partícipe dos cuidados paliativos, o cuidado espiritual começa a ser
desenvolvido por congregações religiosas no continente europeu em 1842. As
igrejas possuíam uma espécie de hospedaria destinada aos enfermos terminais. Este
trabalho passou a ser reconhecido internacionalmente em 1967 com a médica Lady
Cicely Saunders, fundadora do St. Christopher’s Hóspice com o intuito de tratar
paliativamente os enfermos terminais. O propósito não era curar os pacientes e sim
dar-lhes qualidade de vida5.
Como mencionado acima, a espiritualidade e os abrigos instalados ao lado
das igrejas têm sua contribuição positiva, pois “Compreende-se a espiritualidade
como uma dimensão que pode propiciar às pessoas uma condição de lidar com sua
força vital mais profunda, o seu ânimo de viver, seu sopro profundo (ruah)”.
Segundo o relato bíblico, esse sopro está presente em toda a criação e traz
significado à existência através da interação com o outro que possui o mesmo
sopro6.

3 SANCHES, M. A. Bioética: ciência e transcendência: uma perspectiva teológica. São Paulo: Loyola,
2004. p. 79.
4 SOUZA; in CORRADI, C.; ESPERANDIO, M. R. G.; SOUZA, W. Biohcs: Bioética e Tanatologia. Curitiba,

PR: CRV, 2020. p. 121.


5 D’ASSUMPÇÃO, E. A. Sobre O Viver e o Morrer: Manual de Tanatologia e Biotanatologia para os que

partem e os que ficam. Petrópolis: VOZES, 2011, p. 19–20.


6 SOUZA; in CORRADI, C.; ESPERANDIO, M. R. G.; SOUZA, W. Biohcs: Bioética e Tanatologia. Curitiba,

PR: CRV, 2020. p. 127.

757
Tendo em vista a impossibilidade de aumento dos dias vividos, esses tipos de
hospedarias multiplicaram-se tanto na Europa, como nos Estados Unidos. Inclusive
é no continente norte-americano que em 1976 surge a Adec. Association for Death
Education and Counseling. Um local próprio para os interessados nesta ciência,
reunindo profissionais de diversas especialidades e competências relacionadas ao
ser humano7.
A Dra. Mary Rute em artigo científico e com os resultados alcançados em sua
pesquisa chega a conclusão que há grande espaço para desenvolver a
espiritualidade nos hospitais. Contudo, relata, que os profissionais da saúde sentem-
se despreparados para tamanha responsabilidade. Já quando se sentem disponíveis
provavelmente algum tipo de proselitismo irá ocorrer8.
A presença da espiritualidade nos cuidados paliativos é necessária de muita
cautela, pois não se trata de problemas resolvidos de forma instantânea. Ela se
desenvolve com o viver diário no diálogo compreensivo, acolhedor e promotor de
toda a inteireza humana. Este papel não está relacionado somente à atividade
pastoral, sendo necessário que os profissionais de saúde também se atentem para
isto. O cuidador espiritual deve ter entendimento suficiente se a abordagem feita
não for aceita pelo enfermo9.
Alguns cuidados devem ser considerados, é muito fácil sair da espiritualidade
e declinar para uma religiosidade. Com isso facilmente se tem o proselitismo, o que
não é saudável. Aqueles que se submetem ao cuidado espiritual devem em primeiro
lugar entender a fé professada pelo paciente, não a negando e sim promovendo-a.
Assim a fé do teólogo está em segundo plano diante da fé do paciente.10
É diante das dificuldades da vida que a teologia ocupa seu melhor local de
atuação acolhedora e de esperança na vida do ser humano. Independente da crença
que siga, o ser humano tem algo dentro de si que o faz transcender para algo que é
divino. Aqui tem-se a deixa da aplicação dos ensinamentos do próprio Cristo, afinal
“para ser divino, não é necessário deixar de ser humano; aliás, esquecer a

7 D’ASSUMPÇÃO, E. A. Sobre O Viver e o Morrer: Manual de Tanatologia e Biotanatologia para os que


partem e os que ficam. Petrópolis: VOZES, 2011, p. 20.
8 ESPERANDIO, M. R. G. Teologia e a pesquisa sobre espiritualidade e saúde: um estudo piloto entre

profissionais da saúde e pastoralistas. HORIZONTE, v. 12, n. 35, p. 822, 28 set. 2014.


9 SOUZA; in CORRADI, C.; ESPERANDIO, M. R. G.; SOUZA, W. Biohcs: Bioética e Tanatologia. Curitiba,

PR: CRV, 2020. p. 128–131.


10 ESPERANDIO, M. R. G. Teologia e a pesquisa sobre espiritualidade e saúde: um estudo piloto entre

profissionais da saúde e pastoralistas. HORIZONTE, v. 12, n. 35, p. 820, 28 set. 2014

758
humanidade é o caminho mais curto para se desviar da divindade” desta forma o
teólogo pode, sim, ser um instrumento não somente teórico, mas da práxis divina na
vida do próximo. Para tornar-se mais humano não basta somente conhecer Jesus,
mas de assumir seu jeito, a marca que ele deixou: a de amar a todos ao exemplo do
mestre11.
Desta maneira, o acompanhamento espiritual deve ser seguido de algumas
regras. Deve-se ter em mente que o ato transcendente é possuidor de uma forma de
restauração que promove o indivíduo fazendo-o superar as dificuldades
enfrentadas. Quem conduz e dá o espaço para esse momento de espiritualidade
sempre é o paciente e nunca o cuidador. Há também aquilo que é particular de cada
paciente, ou seja, a sua crença. Isso deve ser respeitado, não sendo este momento
oportuno para oferecer conteúdo doutrinal ou dogmático. Atentar sempre para que
a concepção do que é espiritual ao cuidador, pode não ser a mesma do enfermo12.
A espiritualidade é uma grande oportunidade nos cuidados paliativos.
Apresenta em si o seu enorme valor e contribuição totalmente necessária no fim da
vida de qualquer ser humano. Por isso, tal exercício deve ser feito com promoção, a
fim de que o outro possa alcançar seu verdadeiro significado neste mundo, obtendo
a paz e a tranquilidade proporcionada13.
Por fim, a Teologia, bem como a Bioética em suas ciências correlacionadas,
tem um longo trabalho pela frente. Tendo em vista a valorização do ser humano
tanto no decorrer como no fim de sua vida, sendo assim cada vez mais devem ser
promotoras do sentido da vida intervindo em favor dos mais vulneráveis.

Considerações finais
Não há como descrever a dor ou o sofrimento de uma pessoa diante a morte,
pois cada um tem a sua forma de sofrer a perda, é um sentimento único para cada
ser humano, mas podemos acolher e demonstrar respeito para com eles. Dentro
dessa perspectiva, o cuidado espiritual pode muito bem ser o caminho para

11 SANCHES, M. A. Bioética: ciência e transcendência: uma perspectiva teológica. São Paulo: Loyola,
2004. p. 126.
12 SOUZA; in CORRADI, C.; ESPERANDIO, M. R. G.; SOUZA, W. Biohcs: Bioética e Tanatologia. Curitiba,

PR: CRV, 2020. p. 138–139.


13 SOUZA; in CORRADI, C.; ESPERANDIO, M. R. G.; SOUZA, W. Biohcs: Bioética e Tanatologia. Curitiba,

PR: CRV, 2020. p. 143.

759
contribuir no enfrentamento de uma perda e também no cuidado das feridas da
alma causadas em momentos de fragilidade
A diversidade das ciências possibilita uma análise mais profunda e que
cooperem entre si para acolher as necessidades humanas, por isso precisa sempre
se pensar em um grupo interdisciplinar nos cuidados essenciais de uma pessoa, e o
cuidado espiritual é um desses cuidados.
A pandemia da COVID 19, revelou o quanto se precisa estar atento ao
enfrentamento com a morte e buscar atender as necessidades religiosas que uma
pessoa venha a solicitar em seus momentos de finitude. Assim como queremos uma
qualidade de vida, todos também merecem uma qualidade de morte. Que a
passagem da vida para a morte, possa ser tranquila, respeitosa e principalmente
digna.

Referências

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Fiocruz. EXAME, 2021. Disponível em: https://exame.com/brasil/quase-20-
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CORRADI, C.; ESPERANDIO, M. R. G.; SOUZA, W. Biohcs: Bioetica e Tanatologia.


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D’ASSUMPÇÃO, E. A. Sobre O Viver e o Morrer: Manual de Tanatologia e


Biotanatologia para os que partem e os que ficam. Petrópolis: VOZES, 2011.

ESPERANDIO, M. R. G. Teologia e a pesquisa sobre espiritualidade e saúde: um estudo


piloto entre profissionais da saúde e pastoralistas. HORIZONTE, v. 12, n. 35, p. 805–
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GOMES, Ricardo. O distanciamento não pode ser desaparecimento, por isso a


importância de se redescobrir novas formas de presença”. Vatican News, 2021.
Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2021-06/pandemia-
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761
ESPIRITUALIDADE E SAÚDE – O CULTIVO DA QUALIDADE
HUMANA PROFUNDA EM UMA PACIENTE SEM-RELIGIÃO

Fabiana de Faria1

Resumo: O aumento significativo nas publicações sobre saúde e espiritualidade, está


associado à expansão do campo de pesquisa em espiritualidade e saúde. A busca por
conhecer e compreender as mais diversas formas de espiritualidade, se faz de suma
importância para que se possa integrar o cuidado espiritual no atendimento ao paciente. A
presente comunicação tem como objetivo apresentar a espiritualidade na perspectiva
epistemólogo Marià Corbí – a Qualidade Humana e a Qualidade Humana Profunda através
de estudo de caso sobre a vivência da espiritualidade não religiosa de uma paciente em
cuidados paliativos. Esta comunicação traz uma análise qualitativa preliminar, com base na
Disciplina Epistemologia Axiológica de Marià Corbí, levando em conta as informações
coletadas em entrevista individual. Onde se identificou vestígios do cultivo da
espiritualidade não religiosa na vivência da paciente, desde a fase inicial de seu tratamento
– câncer pulmonar-CPNPC ALK-positivo, sítio primário da paciente, até os dias atuais em
cuidados paliativos. Este estudo afirma a necessidade de pesquisas empíricas para apoiar o
conhecimento desenvolvimento da espiritualidade em muitos campos, especialmente na
saúde, e visa elucidar e fortalecer a necessidade de cuidados adequados para pacientes não
religiosos. A reflexão sobre espiritualidade e saúde a partir de perspectivas
multidisciplinares e interdisciplinares visa avançar na compreensão de cenários teórico-
conceituais, métodos empíricos, operações e implicações. Dessa forma, suprir a necessidade
de capacitação de toda equipe multidisciplinar em relação à fundamentação teórica e
prática para a tomada de decisão frente à complexidade da área.
Palavras-chave: Espiritualidade; Saúde; Sem-religião.

Introdução
A disciplina Epistemologia Axiológica de Marià Corbí nos permite refletir
acerca do rápido e contínuo progresso das ciências e das tecnologias nas sociedades
contemporâneas e o impacto de todo esse avanço em nossas vidas. Um dos
principais movimentos percebidos por Marià Corbí devido a esse avanço é o declínio
das religiões. O autor afirma que “[...] esse colapso é geral em todas as tradições

1 Mestranda em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior– CAPES. Dedica-se à pesquisa sobres saúde espiritualidade não
institucionalizada. Membra do grupo de pesquisa Religião e Cultura da PUC Minas –
fabiana.defaria@hotmail.com. Orientador: Prof. Dr. Flávio Senra Doutorado e estágio de pós-
doutorado em Filosofia pela Universidade Complutense de Madri. Licenciado em Filosofia,
Especialista e Mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisa
sobre a Epistemologia das Ciências da Religião e sobre as transformações da religião na
contemporaneidade. Na PUC Minas é professor do Departamento de Ciências da Religião.
flaviosenra@pucminas.

762
religiosas europeias” (CORBÍ, 2010, p. 15). A disciplina Epistemologia Axiológica de
Marià Corbí nos alerta sobre a necessidade de um novo cultivo, de um novo olhar
sobre as questões axiológicas e também sobre a espiritualidade. Um olhar que
ultrapasse a Epistemologia Mítica.

1. A diciplina epistemologia axiológica de Mariá Corbí


Marià Corbí (2010), afirma que a língua é um dado antropológico
fundamental para nós seres humanos, sua função comunicativa, nos distancia dos
outros seres vivos. A competência linguística, permite nossa adaptação às
modificações do meio, sem que haja a necessidade de modificação morfológica. De
acordo com Corbí, “[...]a linguagem é uma estrutura, própria de um ser vivo;
portanto, na linguagem natural, tudo é axiológico. A característica fundamental da
relação entre os seres vivos e seu ambiente é que esta relação é axiológica: estrutura
das necessidades – estrutura dos estímulos (CORBÍ, 2020, p. 83, tradução nossa2).
A linguagem que nos possibilita o acesso à dupla dimensão do real, é formada
por sinais acústicos, uma estrutura fonética ligada a um significado semântico. Dessa
maneira, formam sinais acústicos, palavras com significados referentes a coisas e
pessoas para os seres humanos. Nas outras espécies de animais, a compreensão da
realidade é “[...] dual: sujeito de necessidades/mundo correlato a esse quadro de
necessidades” (CORBÍ, 2010, p. 25). Observa-se uma estrutura binária, realidade
sendo construída a partir de necessidades específicas, geneticamente padronizada,
com um certo grau de conhecimento. Para a nossa espécie, graças ao nosso sistema
de comunicação, a nossa percepção da realidade se torna ternária: “[...] sujeito de
necessidades/língua/mundo correlato às necessidades [...]” (CORBÍ, 2010, p. 25).
Através da linguagem, dos sinais acústicos que a fala emite, passamos a separar e
dar significação às coisas e às pessoas, o que também nos permite entender que uma
coisa são as realidades e outra o significado. Nem sempre o significado que damos
às coisas é realmente a realidade, a realidade independe do significado que damos a
ela, a realidade é absoluta. Segundo Marià Corbí,

2“[…] es la estructura comunicativa básica que determina todo el ser humano en su ser de viviente,
en su comprensión de la realidad y en sus modos de actuación y organización. La lengua es una
estructura, propia de un ser viviente; por consiguiente, en la lengua natural todo es axiológico. El
rasgo fundamental de la relación de los vivientes con el medio es que esa relación sea axiológica:
estructura de necesidades-estructura de estimulaciones”.

763
A língua é um instrumento de um ser vivo para viver, cuja função é
modelar a realidade conforme suas necessidades, tanto as
necessidades individuais como coletivas. Não descreve a realidade
como ela, e sim como ela é em si mesma. Nossa estrutura
antropológica e nosso mundo compartilham da mesma estrutura
da linguagem a qual os edificamos. A linguagem cria a simbiose
(CORBÍ, 2020, p. 87, tradução nossa3).

A língua permite ao ser humano o acesso a duas realidades não duais4:


a dimensão relativa e a dimensão absoluta, que são a base para o desenvolvimento
de Projetos Axiológicos Coletivos para as sociedades contemporâneas, as
sociedades do conhecimento.

2. Dimensão relativa
A dimensão relativa é vivida através de estímulos à nossa ação, dando
significado a nossa vida, estipulando valores de sobrevivência, a relação entre o ego,
nossas necessidades e o mundo, o meio onde estamos inseridos, dando origem a um
conhecer e um sentir relativos, interessados, em conhecer e um sentir gerados a
partir de nossas necessidades, consequentemente egoístas.

3. Dimensão absoluta
A presença da dimensão absoluta descarta toda pretensão de
individualidade, está presente em nós sem ter nenhuma dependência de nós,
simplesmente se faz presente, sem ter relação com nossas necessidades e com o
nosso ego. Não nos impõe limites, viabiliza-nos o cultivo da Qualidade Humana e da
Qualidade Humana Profunda. A dimensão relativa e dimensão absoluta não são
dimensões divididas, são dois aspectos do mesmo aperfeiçoamento, que nos
diferencia das outras espécies animais.

3 “[…] que la lengua es un instrumento de un viviente para vivir y que la lengua, como la función de
la lengua en nuestra especie, instrumento de un viviente, modela la realidad a la medida de sus
necesidades individuales y de grupo, no pretende describir la realidad como es en sí. Nuestra
estructura antropológica y nuestro mundo tienen la misma estructura que la lengua con la que los
hemos construido. Sin la lengua no hay simbiosis posible, la lengua crea la simbiosis.”
4 Concebe o ser humano como uma única unidade, um animal constituído pela fala, um fato que o

diferencia dos outros animais. Isto permite que ele não seja totalmente determinado geneticamente
e seja mais flexível em relação ao meio ambiente. Graças à fala, a realidade é apresentada como uma
unidade com duas dimensões inseparáveis: a dimensão relativa às necessidades (DR) e a dimensão
absoluta (DA) (CETR, 2022).

764
4. Qualidade humana e qualidade humana profunda
O autor nos traz que “[...] a Qualidade Humana é a consciência de viver e
cultivar nosso duplo acesso à realidade: a da dimensão relativa às nossas
necessidades e a da dimensão não relativa a essas necessidades ou dimensão
absoluta” (CORBÍ, 2020 p. 189, tradução nossa5). Para desenvolver a QH, M a r i à
Corbí cita três tipos de características indispensáveis, que se resumem em aptidões
e atitudes, primeira característica interesse pela realidade, segunda característica,
adquirir capacidade de distanciamento da realidade e terceira característica
capacidade de silenciamento interior completo. Essas três características unidas,
inseparáveis, transformam-se em uma atitude de total interesse pela realidade, em
estado de alerta, com o foco nas nossas necessidades de sobrevivência. Em síntese,
interesse, distanciamento e silenciamento – IDS é o resultado final da Qualidade
Humana.
Segundo Marià Corbí, “[...] A Qualidade Humana Profunda é o que nossos
ancestrais chamavam de espiritualidade. Quando se trata da disciplina
Epistemologia Axiológica de Marià Corbí, não se usa o termo espiritualidade porque
corresponde a uma antropologia corpo-espírito que não mais é a característica das
novas sociedades” (CORBÍ, 2020, p. 189, tradução nossa6). A diferença entre QH e
QHP é o grau de radicalidade, ambas se desenvolvem através das mesmas
características, IDS quando pensada de forma individual e através da junção da ICS
partindo para um pensamento de cultivo de forma coletiva. O ICS é composto pelas
seguintes características, Primeira característica Indagação, Segunda característica
Comunicação e Terceira característica Serviço. Considerada a nossa condição de
animais falantes, o conhecimento do acesso à Dimensão Absoluta, permite-nos
cultivar a Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda em sociedades sem
crenças e sem religiões (CORBÍ, 2021, p. 72, tradução nossa7). Sem dualidade, sem
corpo e espírito, sem transcendência.
Em virtude do que foi mencionado sobre a Qualidade Humana e a Qualidade

5 “[...] La cualidad humana es la conciencia de vivir y cultivar nuestro doble acceso a la realidad: el de
la dimensión relativa a nuestras necesidades y el de la dimensión no relativa a esas necesidades o
dimensión absoluta”.
6 La cualidad humana profunda es lo que nuestros antepasados llamaron «espiritualidad». Hemos

mencionado ya que no adoptamos el término «espiritualidad» porque corresponde a una


antropología de cuerpo-espíritu que ya no es la propia de las nuevas sociedades.
7 Siempre se empieza, gracias a nuestra condición de animales constituidos por la lengua, por cobrar

clara conciencia de nuestro acceso a la DA en toda realidad.

765
Humana Profunda, entende-se que o cultivo de suas características de forma
individual e ou coletiva que nos permite a construção de um axiológico livre de
submissão, crenças e amarras. Isso tanto no individual quanto no coletivo,
permitindo suprir as necessidades dos sujeitos pertencentes às sociedades do
conhecimento, o que não é mais possível através das religiões e ideologias.

5. Enfrentamento da enfermidade e vivência da espiritualidade não religiosa


Com o avanço das pesquisas na temática espiritualidade e saúde, criou-se um
campo próprio de estudo (ESPERANDIO, 2020, p. 156). Nesse contexto, surgem
questionamentos, como um exemplo: é possível o cultivo da espiritualidade em
pacientes que se autodenominam sem-religião? Na tentativa de responder esse
questionamento, foi realizado um estudo de caso com uma paciente oncológica, com
câncer pulmonar-CPNPC ALK-positivo, sítio primário da paciente. A paciente Larissa
Garcia, 35 anos de idade, não está vinculada a nenhuma instituição religiosa ou
ideologia. Busca, através de seu trabalho como atriz, do amor de seu marido e de sua
família, levar da melhor maneira seu tratamento paliativo, o que fez com que ela
desenvolvesse uma espiritualidade não religiosa, baseada na sua realidade e nos
seus limites como ser humano. Desde o início de seu tratamento, Larissa se pautou
em pesquisas científicas, em novos tratamentos que poderiam lhe dar a melhor
resposta para efetivar seu tratamento. A partir dos dados coletados através de
entrevista com a paciente, buscamos identificar traços de cultivo da Qualidade
Humana e da Qualidade Humana Profunda – em seu processo de adoecimento. Foi
possível encontrar as seguintes características, capacidades de para se cultivar a
Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda – na paciente:

766
Figura 1 – Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda –
características encontradas na paciente.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Marià Corbí (2010; 2020).

Conclusão
A presente comunicação tem como objetivo destacar o possível
desenvolvimento da Qualidade Humana e da Qualidade Humana Profunda em uma
paciente que se declara sem- religião. Para a análise dos dados coletados no campo,
utilizamos a disciplina Epistemológica Axiológica de Marià Corbí a fim de identificar
características de uma espiritualidade não religiosa, ou seja, o cultivo de práticas
não fundamentadas em uma Epistemologia Mítica. Inicialmente, ressaltamos
características marcantes da Qualidade Humana e da Qualidade Humana Profunda
na paciente, conforme demonstrado acima. A paciente enfatiza a necessidade de
profissionais qualificados para abordar assuntos de tão grande importância, como a
experiência de cada paciente em relação às práticas religiosas e espirituais, sejam
elas institucionalizadas ou sem afiliação religiosa. O embasamento teórico sobre a
relação entre saúde e espiritualidade nos instiga a buscar mais respostas no campo

767
da pesquisa, para podermos revelar a realidade de como os pacientes encaram e
desenvolvem sua espiritualidade no processo de adoecimento.

Referências
CETR – Centro de Estudos das Tradições de Sabedoria. La mente y la cualidad
humana. Principios de Epistemología 8. Barcelona. 2022. Disponível em:
https://cetr.net/ Acesso em: 15 de jan. 2023.

CORBÍ, Marià. El sentir hondo de la vida. Principios de epistemología axiológica 7.


Espanha: Bubok Publishing S.L. 2021.

CORBÍ, Marià. Para uma espiritualidade leiga. Sem crenças, sem religiões, sem
deuses. São Paulo: Paulus, 2010.

CORBÍ, Marià. Proyectos colectivos para sociedades dinámicas. Principios de


Epistemología Axiológica. Barcelona: Herder, 2020.

ESPERANDIO, Mary Rute Gomes; MACHADO, Geilson António Silva. Brazilian


Physicians’ Beliefs and Attitudes toward Patients’ Spirituality: Implications for
Clinical. Journal of Religion and Health, [s.l.], v. 58, n. 4, p. 1172-1187, Aug. 2020.

GRANES-BAYONA, Marta. Para uma espiritualidade leiga. Horizonte, Belo Horizonte,


v. 13, n. 37, p. 650-654, jan./mar. 2015. Disponível em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/8513. Acesso
em: 23 ago. 2022.

768
NEUROTEOLOGIA: COMO O USO DE IBOGAÍNA NO TRATO DE
DEPENDENTES QUÍMICOS PODE APROXIMÁ-LOS DE DEUS

Hugo Leonardo Brandão1

Resumo: A Neuroteologia tem como objeto de estudo o cérebro humano, a mente, e como
ela responde neurologicamente as atividades e experiências tipicamente religiosas e
espirituais. Nela, ciência e religião dividem lado a lado o mesmo espaço. É fato
cientificamente comprovado que determinadas práticas contemplativas como a meditação,
orações e rezas, por exemplo, produzem estímulos neurológicos em áreas específicas do
cérebro. O resultado das análises dessas sinapses serve como fundamento para este estudo,
que visa explicar cientificamente, a base fisiológica da religiosidade e espiritualidade. Tais
experimentos, desenvolvidos em laboratórios e que estimularam essas áreas (hipocampo,
amígdala, e núcleo caudado) resultou em “experiências espirituais” como alterações no
estado de consciência, visões, alucinações de sonhos e viagem astral. Relatos semelhantes a
este, são descritos por pessoas que fizeram uso abusivo de substâncias alucinógenas como
maconha, LSD, entre outras. Dentro deste aspecto, e corroborando com o objeto de estudo
deste presente artigo, apresentamos o Tabernanthe Iboga, mas conhecido como Ibogaína
ou droga da reestruturação neural, para mostrar como a ciência pode ajudar a aproximar o
homem de Deus, transformando e ressignificando o cérebro. A Ibogaína é capaz de
interromper transtornos por uso abusivo de substâncias psicoativas, além de possuir outros
benefícios neurológicos e psicológicos.
Palavras–chave: Neuroteologia; Neuroreligião; Reestruturação Neural; Dependência
Química; Bio-Psico-Socio-Espiritual.

Introdução
A Neuroteologia tem como objeto de estudo o cérebro humano, a mente, e
como ela responde neurologicamente às atividades e experiências tipicamente
religiosas e espirituais. Esses experimentos, desenvolvidos em laboratórios e que
estimularam essas áreas (hipocampo, amigdala e núcleo caudado) resultou em
“experiências espirituais”, tais como, alterações no estado de consciência, visões,
alucinações de sonhos e viagem astral. Relatos semelhantes a este, são descritos por
pessoas que fizeram uso abusivo de substâncias alucinógenas como maconha,
cocaína, LSD2, entre outras. Por isso, muitas religiões utilizam em seus cultos de

1 Graduação em Ciências Teológicas – FBN – Manaus/AM; Especialista em Psicologia Pastoral – FBN


– Manaus/AM; Especialista em Ciências da Religião – FBN – Manaus/AM; Especialista em Ensino
Religioso – FBN – Manaus/AM; Especialista em Neurociência a Psicologia Aplicada – Universidade
Mackenzie – São Paulo/SP; Especialista em Aconselhamento Cristão Contemporâneo – Faculdade
Teológica Sul-Americana – FTSA – Londrina/PR; Mestrando em Teologia Profissional – Faculdade
Teológica Sul-Americana – FTSA – Londrina/PR. E-mail: seuconselheirocristao@gmail.com
2 Dietilamida do ácido lisérgico, alucinógeno vulgarmente chamado de ácido, doce ou papel, cujos

efeitos podem durar de quatro a 12 horas.

769
adoração, ervas e chás alucinógenos, com o intuito de potencializar suas
experiências religiosas e atingir o Nirvana.3
Dentro deste aspecto, e corroborando com o objeto de estudo deste presente
artigo, apresento o Tabernanthe Iboga, uma planta originária do Gabão e por ser
considerada sagrada, é comumente utilizada em rituais religiosos por tribos locais.
Da raiz da planta é extraída a Ibogaìna ou droga da reestruturação neural, um
poderoso alcaloide psicoativo capaz de interromper transtornos por uso abusivo de
substâncias psicoativas, além de possuir outros benefícios neurológicos e
psicológicos. ‘‘
Por isso, o presente artigo busca refletir sobre os princípios da Neuroteologia
associados a utilização do Thabernate Iboga e sua relevância, não apenas no
processo de tratamento da dependência química, mas como um condicionante ativo
na transformação/reestruturação neural, capaz de devolver a capacidade de
raciocínio, reflexão e razão que foram bloqueados pelo uso abusivo dessas
substâncias psicoativas, possibilitando assim o “Religare”4 ao poder superior, onde
essa conexão/contemplação com o divino irá provocar o impacto necessário para a
transformação e organização dos pensamentos, trazer de volta a sanidade e
possibilitar o desenvolvimento de uma inteligência espiritual necessária para uma
realização plena do indivíduo no âmbito Bio-Psico-Socio-Espiritual.
Esta pesquisa usará o método dedutivo e a observação sistemática que
compreende fenômenos sociais a partir da temática geral e busca uma proposição
particular. A técnica empregada caracteriza-se como pesquisa bibliográfica,
realizada por intermédio de publicações científicas, livros, teses e outros
documentos.

1. Os aspectos neuroteológicos na ciência e na religião


Historiadores afirmam com base em documentos antigos, que o estudo da
mente e sua relação com o comportamento, tem despertado o interesse em se
descobrir o papel do cérebro nas determinantes humanas, desde os tempos mais
remotos, perpassando pela fase áurea da filosofia grega, o homem insistentemente

3 Origem no sânscrito: निर्वा ण; no pensamento religioso indiano, pode ser traduzido por “extinção” no
sentido de “cessação do sofrimento” ou estado de liberdade transcendental alcançado por meio da
eliminação do desejo, da consciência individual e do eu empírico.
4 Do latim “Religare” (Religião) – religar, ligar novamente, juntar; União entre o homem e o divino.

770
reflete o desejo de conhecer os mistérios da mente, o insaciável ego, a inquietude da
alma, o desejo do eu, e assim por diante.
Recentemente, o neurocientista norte-americano e diretor de pesquisa do
Centro Myrna Brind para Medicina Integrativa, do Hospital Universitário Thomas
Jefferson, na Pensilvânia, EUA, o Dr. Andrew Newberg e Mark Robert Waldman,
membro do conselho do Centro para a Espiritualidade e Mente, na Universidade da
Pensilvânia, utilizando-se de equipamentos neuronais de última geração, estudaram
o cérebro humano e suas experiências com o sobrenatural religioso, dando um
grande passo no processo de reconciliação entre Ciência e Fé.
Durante os últimos quatro anos, Mark e eu estudamos como
os diferentes conceitos de Deus afetam a mente humana.
Realizei tomografias cerebrais em freiras franciscanas
enquanto elas ficavam absortas diante da presença de Deus, e
mapeei as mudanças neurológicas de budistas que
contemplavam o universo. Observei o que acontece no
cérebro de fiéis pentecostais que convidaram o Espírito Santo
para conversar com eles em outras línguas e vi como o
cérebro dos ateus reage – e não reage – quando meditam
sobre a imagem concreta de Deus5.

Os registros mostram um aumento de atividades nas áreas dos lobos frontais


e na área de linguagem do cérebro. Em COMO DEUS PODE MUDAR SUA MENTE,
2009, p. 19, Newberg afirma ainda que “As práticas espirituais também podem ser
usadas para aumentar a cognição, a comunicação e a criatividade e, com o tempo,
podem até alterar nossa percepção neurológica da própria realidade”6.
Portanto, é fato cientificamente comprovado que determinadas práticas
contemplativas como a meditação, orações e rezas, por exemplo, produzem
estímulos neurológicos em áreas especificas do cérebro, o resultado das análises
dessas sinapses serve como fundamento para o estudo que visa explicar
cientificamente, a base fisiológica da religiosidade e espiritualidade. A
Neuroteologia vem para mediar uma nova relação “Ciência-Religião”, onde uma
ajuda a entender as partes da outra, e juntas ajudam a entender o todo.
Nossa equipe de pesquisa na Universidade da Pensilvânia tem
demonstrado consistentemente que Deus é parte de nossa
consciência e que quanto mais pensamos nEle, mais alterações
ocorrem nos circuitos neurais de áreas especificas do cérebro, [...].

5 NEWBERG, Andrew; WALDMAN, Mark Robert. Como Deus pode mudar sua mente. São Paulo:
Prumo, 2009.
6 NEWBERG, Andrew; WALDMAN, Mark Robert. 2009.

771
É por isso que eu digo, com a máxima confiança, que Deus pode
modificar seu cérebro. E não importa se você é cristão ou judeu,
muçulmano ou hinduísta, agnóstico ou ateu7.

Durante a prática meditativa, o cérebro sofre alterações físicas provocadas


pela liberação de neurotransmissores que são responsáveis pela sensação de bem-
estar e felicidade. Isso ocorre devido à redução de cortisol, o conhecido hormônio
do estresse. Essa liberação hormonal é responsável pela Neuroplasticidade ou
Plasticidade Neuronal, que nada mais é que a capacidade que o cérebro tem de
moldar-se, adaptar-se, isto é, uma capacidade de reestruturação e desenvolvimento
de novas funções neuronais à medida que novas experiências vão sendo vivenciadas
pelo ser humano.
A dependência química desestabiliza neurologicamente o sistema de
recompensa no cérebro. Quando não há alterações ou distúrbios neurológicos no
sistema de recompensas, ele é responsável por comportamentos e atitudes
saudáveis que garantem a sobrevivência do indivíduo, como sentir sede ou fome,
desejo de socialização ou interação sexual.
Existem diferentes tipos de drogas que agem por diferentes mecanismos
bioquímicos no organismo, e que afetam aspectos distintos do sistema neurológico,
mas independente da área de atuação, a quantidade de dopamina acumulada nas
sinapses, é absurdamente anormal. Provocando super-estimulação dos neurônios
pós-sinápticos, caracterizada por uma euforia prolongada e intensa de prazer,
comumente experimentada por usuários dessas substâncias.
Nossa compreensão atual do cérebro humano mostra que
deteriorações sutis em qualquer área de um neurônio – em suas
sinapses, em seu revestimento ou no modo como ele responde às
neuroquímicas – impede suas funções cognitivas [...] se a situação
que está causando o stress terminar, a função se restaura de novo8.

Esse contínuo bombardeio de dopamina nas sinapses causados pelas drogas,


desequilibram completamente o sistema de recompensa. Deixando de lado os
estímulos naturais e passando a responder apenas aos estímulos químicos,
tornando o vício a única fonte de prazer. Essa compulsão leva o indivíduo a definir
suas prioridades de vida com base na manutenção de um sistema de recompensas
deficiente e egoísta. A perda de controle e a tentativa forçada do cérebro em manter

7 NEWBERG, Andrew; WALDMAN, Mark Robert. 2009.


8 NEWBERG, Andrew; WALDMAN, Mark Robert. 2009.

772
o equilíbrio do sistema dopaminérgico, ocasiona no organismo o chamado sistema
de tolerância, exigindo do usuário, doses mais elevadas para se atingir determinado
nível de prazer, levando a morte por overdose.

1.1. Ibogaína: a droga da reestruturação neural


De acordo com o Instituto Brasileiro de Terapias Alternativa – IBTA9, que
vem trabalhando exclusivamente com a Ibogaína no tratamento da dependência
química a quase duas décadas, observou a atuação dela no organismo em 3 (três)
fases distintas:
1. Fase aguda (como a pessoa se sente): Revive as experiências que o
levaram a chegar aonde está, produzindo uma recordação ampla e abrangente
de tudo, como se fosse em um sonho, contudo esse processo acontece com o
indivíduo acordado e consciente;
2. Fase avaliativa/reflexiva 4 – 8h: A Ibogaína traz à tona muitas
lembranças esquecidas, fazendo o indivíduo reviver e avaliar momentos e
experiências de sua vida, provocando uma reflexão, revisão e autoanalise;
3. Fase Estimulação Residual 12 – 24hs após ingestão ou entre 24 –
72hs: São observados uma redução aguda dos sintomas de abstinência, fissura,
depressão. Atenção ao meio externo, a experiência psicoativa é menor.
Redução do sono também é comum.
A ibogaína tem mostrado a sua eficiência na desintoxicação de
opioides, crack, maconha, cocaína. O benefício de interromper o uso
dos mesmos, é ganhar autocontrole sobre seus comportamentos
destrutivos, e tornando-se motivados a mudanças10.

Com a interrupção do uso abusivo de drogas, é possível uma avaliação


positiva por parte do próprio indivíduo em seu sistema de crenças, fazendo-o buscar
novos caminhos para a satisfação pessoal, entendendo que o homem em sua
constituição intelectual, possui qualidades e sentidos próprios. Com características
comportamentais oriundas do meio em que vive e que afetam culturalmente sua
tomada de decisão.

9 E-book IBOGAÍNA – IBTA – Instituto Brasileiro de Terapias Alternativas.


https://clinicaibta.com.br/dicas-links/ – (acessado em 08/09/2020 ás 18:35).

10SOUZA, Rogério Moreira de. Fundador e Diretor Executivo do IBTA – Instituto Brasileiro de
Terapias Alternativas, E-book IBOGAÍNA – IBTA, 2018.

773
Ainda que não seja uma cura para a dependência de álcool e drogas,
os estudos disponíveis e relatos de pacientes sugerem que a
ibogaína é capaz de abrir uma “janela de oportunidade” que não
existiria com os outros tratamentos até então disponíveis. Essa
“janela de oportunidade” permite ao paciente iniciar uma
psicoterapia sem a presença dos sintomas da dependência física,
aumentando significativamente as chances de manutenção da
abstinência. A ibogaína tem ainda a vantagem de ser um tratamento
que normalmente é utilizado uma única vez ou poucas vezes, e não
causa dependência, como ocorre com as terapias de substituição11.

A atuação da Ibogaína no cérebro é capaz de proporcionar o equilíbrio


necessário a uma tomada de decisão assertiva. O sistema dopaminérgico passou por
uma formatação e foi reestruturado neurologicamente, devolvendo ao individuo a
esperança de viver sem as drogas de abuso ou a perda de controle. Para tanto, faz-
se necessário a criação de um novo sistema de crenças para substituir o anterior e a
elaboração de planos estratégicos para uma manutenção do tratamento, evitar
recaídas e manter uma recuperação plena. Se o indivíduo tinha a crença de que não
podia viver sem o prazer proporcionado pelas drogas de abuso, agora, ele precisa
de um novo sistema de recompensas que o conduza a levar uma vida saudável, ativa,
positiva e de completude consigo mesmo e o mundo ao seu redor.
Em muitos casos, os efeitos subjetivos da ibogaína ajudam o
paciente a estabelecer sua decisão em interromper o uso nocivo de
drogas e ganhar autocontrole sobre seus comportamentos
destrutivos. Tem sido observado que pacientes inicialmente
ambivalentes se tornam motivados a buscar tratamentos de longo
prazo, pois a experiência com a ibogaína parece reforçar os
próprios recursos motivacionais do paciente para a mudança12.

Em outras palavras, a Ibogaína reestrutura os neurônios afetados pelo uso


abusivo de substâncias psicoativas, criando um ponto de restauração no cérebro
para antes do uso, permitindo o desenvolvimento de um sistema de crenças capaz
de devolver a capacidade de raciocínio, reflexão e razão que foram bloqueados pelo
uso abusivo dessas substâncias psicoativas, possibilitando assim o “Religare” ao
poder superior.

11 BRANGIONI, 2017.
12 BRANGIONI, 2017.

774
2. 0s princípios da neuroteologia e os benefícios de sua aplicação nos sistemas
de crença e recompensa
As descobertas da Neuroteologia ultrapassam o sentimento religioso de
pertencimento, independente se há ou não Fé nas práticas contemplativas como a
meditação, orações e rezas. Os estudos claramente evidenciam uma mudança
neuronal no cérebro. Em nível clínico, pesquisas realizadas nos últimos 15 anos, tem
mostrado que muitos tipos diferentes de práticas espirituais como meditação, rezas
e oração, têm efeitos clínicos e cerebrais significativos, capazes de reduzir os
sintomas relacionados à depressão e ansiedade, e podem realmente ajudar a
melhorar a maneira como o cérebro funciona cognitivamente.
Deus pode mudar seu cérebro. Até aqui nós mostramos. Mas, agora,
nossa pesquisa sobre meditação nos trouxe até um ponto decisivo,
porque pudemos refinar, a partir das práticas espirituais
existentes, um conjunto de exercícios simples que irão melhorar o
funcionamento neural do cérebro. Quando praticarmos, iremos
fazer progredir nossa saúde física, emocional e cognitiva,
adicionando muitos anos de grande felicidade à nossa vida13.

Essas atividades meditativas que envolvem preces e orações intensivas, tem


o poder de fortalecer permanentemente as partes do cérebro ligadas ao
funcionamento neuronal responsáveis por reduzir ansiedade e depressão, aumento
da empatia e da consciência social, aperfeiçoar as funções intelectual e cognitivas,
isso irá estimular a produção de dopamina necessária a sustentabilidade desse novo
sistema de recompensas.

Conclusão
A Neuroteologia em seus inúmeros estudos e abordagens científica,
comprova claramente que através de práticas contemplativas como a meditação,
orações e rezas por exemplo, produzem estímulos neurológicos em áreas especificas
do cérebro, atuando diretamente nas sinapses e construindo novos circuitos. Essas
atividades meditativas, tem a capacidade de fortalecer permanentemente as partes
do cérebro ligadas ao funcionamento neuronal responsáveis por reduzir ansiedade
e depressão, aumento da empatia e da consciência social, aperfeiçoar as funções
intelectual e cognitivas e ainda estimular a produção de dopamina necessária a
sustentabilidade de um novo sistema de recompensas.

13 NEWBERG, Andrew; WALDMAN, Mark Robert. 2009.

775
O Tabernanthe Iboga, mais conhecido como Ibogaína ou droga da
reestruturação neural, através de um condicionante ativo presente na planta,
propícia uma transformação/reestruturação neural, com potencial de devolver a
capacidade de raciocínio, reflexão e razão que foram bloqueados pelo uso abusivo
dessas substâncias psicoativas, possibilitando assim o “Religare” ao poder superior,
onde essa conexão/contemplação com o divino irá provocar o impacto necessário
para a transformação e organização dos pensamentos, trazer de volta a sanidade.
Portanto, tudo isso, associado a aplicabilidade dos princípios apresentados na
Neuroteologia, possibilitam o desenvolvimento de uma inteligência espiritual ativa,
necessária para uma realização plena do indivíduo no âmbito Bio-Psico-Socio-
Espiritual.

776
BIOÉTICA E ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA: DIÁLOGOS A PARTIR
DA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DE LUTERO

Itamar Marques da Silva1


Waldir Souza2

Resumo: Neste estudo, exploramos a possibilidade de diálogo entre a Bioética e a


Antropologia Teológica de Lutero. Problema: Nos questionamos se a Antropologia
Teológica de Lutero, mesmo com suas limitações de informações, pode estabelecer um
diálogo com a Bioética, que possui um vasto conhecimento sobre o ser humano. Os objetivos
deste estudo são: apresentar as teses de Lutero sobre o ser humano; reconhecer os escritos
e pesquisas sobre a Antropologia de Lutero; listar compreensões antropológicas que
possam enriquecer a discussão entre fé e ciência genética; verificar a possibilidade de
diálogo com a Bioética. Por meio de uma revisão crítica da literatura, exploramos como a
Bioética e a Antropologia Teológica de Lutero podem ou não dialogar, oferecendo uma
abordagem ética mais ampla para os avanços tecnológicos relacionados à vida e à saúde.
Hägglund aponta que Lutero conceitua a pessoa humana de forma holística, embora não
traga grandes inovações antropológicas para sua época. Sua Antropologia Teológica foca na
contínua ação de Deus na criação, provisão e preservação do ser humano. Essa perspectiva
não aborda questões evolutivas ou criativas, conforme apontado por Schumacher. A
compreensão holística do ser humano em Lutero, aliada à visão antropológica que não lida
com questões evolutivas ou criativas, abre espaço para um diálogo frutífero com a Bioética.
Essa abordagem permite uma compreensão abrangente da vida humana, sem entrar em
conflito com as perspectivas evolucionistas ou criacionistas, favorecendo discussões
bioéticas sobre diversos temas.
Palavras-chave: Bioética; Antropologia Teológica; Lutero; Diálogo.

Introdução
O presente estudo investiga a interseção entre Bioética e Antropologia
Teológica, a partir da perspectiva teológica de Martinho Lutero em relação ao ser
humano. A Bioética é uma abordagem interdisciplinar que se dedica à análise das
questões éticas relacionadas à vida humana, enquanto a Antropologia Teológica se
concentra na compreensão teológica da natureza e dignidade humanas.
Ao examinar o verbete “ser humano” no dicionário de Lutero, assim como em
sua obra “História da Teologia”, Hägglund afirma que a antropologia de Lutero não
traz grandes inovações em relação à compreensão do ser humano em sua época. No
entanto, outros estudos sobre a antropologia de Lutero apresentam elementos
distintos que diferem dos teólogos contemporâneos.

1Mestre em Teologia etico-social (PUCPR). Email: itamar.marques@pucpr.edu.br


2Doutor em Teologia, Professor no Programa de pos-graduaçao em Teologia (PUCPR). Email:
Waldir.souza@pucpr.br

777
Por sua vez, a bioética está intrinsecamente ligada às concepções
antropológicas, uma vez que aborda questões relacionadas à saúde, à vida e aos
dilemas éticos que envolvem esses aspectos. Diante disso, surge a seguinte
pergunta: Seria possível que a antropologia teológica de Lutero, mesmo com suas
limitações em relação aos elementos presentes na antropologia teológica atual,
possa dialogar com o método bioético, que possui um vasto conhecimento acerca do
ser humano?
A hipótese deste estudo é que, apesar das limitações da antropologia
teológica de Lutero em relação às concepções contemporâneas, sua compreensão da
natureza humana, sua visão sobre a relação entre pecado e graça, e sua ênfase na
importância da pessoa em comunidade podem fornecer insights e fundamentos
relevantes para uma discussão ética mais abrangente no âmbito da bioética.
Acredita-se que a perspectiva teológica luterana pode contribuir para o
desenvolvimento de uma abordagem ética mais holística que considere tanto os
avanços científicos quanto os aspectos teológicos da dignidade humana.
O objetivo deste estudo é apresentar as teses de Lutero sobre o ser humano,
assim como outras obras e pesquisas de diferentes autores, buscando possibilidades
de diálogo com a bioética. Além disso, serão elencadas as principais compreensões
antropológicas que podem iluminar a discussão entre fé e ciência genética, a fim de
deduzir se há um diálogo viável com a bioética.
A partir de uma revisão crítica da literatura, este trabalho explora como esses
dois campos podem se complementar e oferecer uma abordagem ética mais
holística diante dos avanços tecnológicos relacionados à vida e à saúde.
A escolha desse tema se justifica pela importância de compreender as
implicações éticas e teológicas envolvidas na discussão sobre o ser humano,
considerando o avanço das tecnologias médicas e genéticas. A bioética, como um
campo interdisciplinar, oferece uma abordagem sistemática para examinar os
desafios éticos que surgem com esses avanços, enquanto a antropologia teológica
traz uma perspectiva baseada na fé e na compreensão teológica da humanidade.
Explorar o potencial de diálogo entre essas áreas pode enriquecer tanto a reflexão
teológica quanto a tomada de decisões éticas no campo da bioética.
1. A antropologia como base essencial para a bioética em tempos de incertezas

778
De acordo com Pessini (2010), a resposta que a antropologia busca é a pedra
fundamental sobre a qual se fundamenta qualquer paradigma bioético. O artigo que
abre o primeiro capítulo da obra “Bioética em tempos de incertezas” (2010) é
justamente o texto de Leo Pessini que questiona: “Qual antropologia para
fundamentar a bioética em tempos de incertezas?” A pergunta de Pessini continua
atual, especialmente porque a bioética tem o ser humano como o principal centro de
suas reflexões. Mais que isso, Pessini constata que: “Neste início de novo milênio,
estamos num momento histórico em que o [ser humano] se tornou
incondicionalmente problemático para si próprio. Ele não sabe mais quem ele é, mas
ao mesmo tempo sabe que não sabe” (PESSINI, 2010, p. 36).
É interessante pensar que essa constatação de Pessini já se distancia da data
de escrita desse texto uma década, ou seja o temor recente sobre a inteligência
artificial – AI, era uma ameaça que ainda não estava tão palpável, acentuando ainda
mais sobre quem é o ser humano, pois Pessini ainda traz como concepção
antropológica a ideia filosófica que mais resistiu: “A ideia de ser humano como um
ser racional,[...] permaneceu mais ou menos intacta até Descartes, conceitualmente
dividindo corpo e alma” (PESSINI, 2010, p. 32). Essa definição do ser humano
enquanto razão parece estar ameaçada diante das possibilidades da autonomia das
IA.
Pessini menciona “mais ou menos intacta” pois houve percepções
dissonantes e refutantes da compreensão filosófica ainda na idade média. Pois
quando Descartes nasceu, Lutero já havia discordado dessa compreensão.

2. A visão antropológica de Martinho Lutero e sua relevância para a bioética


contemporânea
Em suas teses sobre o “Ser Humano”, de 1536, Lutero já dizia que a filosofia
tinha uma definição correta dentro de limites, pois: “Se comparar a filosofia ou a
própria razão com a teologia, ficará evidente que não sabemos nada sobre o homem”
(LUTERO, OSel. 3, p. 195, tese 11). Desse modo, Lutero apresenta uma antropologia
teológica como superior à filosofia. Além disso, ele rompe com o ser humano
dividido em corpo e alma. De acordo com as constatações de Hägglund, “Ao invés do
dualismo escolástico entre corpo e alma, poderes superiores e inferiores, Lutero
introduziu o conceito de totus homo em sua antropologia teológica” (1981, p. 195).

779
A antropologia teológica em Lutero perpassa por algumas considerações,
pois sua compreensão sobre a complexibilidade da vida humana estava limitada ao
desconhecimento de coisas que a Bioética leva em consideração. “Lutero não sabia
nada a respeito de Charles Darwin, da teoria econômica de Adam Smith e Karl Marx
ou da psicologia de Freud, do DNA e da moderna ciência genética” (SCHUMACHER,
2017, p.48). Mesmo assim, Lutero parece ter desenvolvido percepções
antropológicas que não enfrentam problemas na atualidade, além de reconhecer o
ser humano em sua integralidade. Em 1519, Lutero criticava algumas visões
reducionistas que dividiam o ser humano em duas ou três dimensões distintas, para
justificarem “obras e sacrifícios” implicando em dores físicas para purificação da
alma (SCHUMACHER, 2017).
Lutero critica Orígenes e expõe a sua compreensão de ser humano, dizendo:
“Eu em minha audácia, de modo algum, separo a carne da alma e do espírito. A carne
não desenvolve a concupiscência senão pela alma e pelo espírito em que vive.
Entendo o [ser humano] como um todo” (LUTERO, WA 2,585,31-35, tradução do
autor).
Além de Lutero sustentar sua crítica àqueles que maltratam o corpo físico,
ele, com todas as limitações mencionadas anteriormente, parece compreender,
nessas palavras, que a dimensão psicológica e espiritual faz parte da vida humana, e
que, se estas dimensões estiverem afetadas, elas comprometem, também, o corpo
físico.

3. A dignidade da vida humana e a igualdade na perspectiva antropológica de


Lutero
Schumacher lembra que além do tratado específico de Lutero sobre o ser
humano, seus catecismos falam muito sobre o ser humano, e eles não foram escritos
em momentos acalorados de debates, portanto possuem uma sensatez maior
(SCHUMACHER, 2017). Nesse sentido, é possível que a mais explícita compreensão
antropológica em Lutero esteja na sua interpretação do quinto mandamento. O
mandamento “não matarás”, na compreensão de Lutero, parece implicar em várias
dimensões da vida, não somente física, pois, no catecismo maior, Lutero afirma que:
Transgride este preceito não só quem pratica ações más, mas,
também, aquele que, podendo fazer o bem ao próximo e obviar,
obstar, proteger e salvar, de modo que nenhum mal ou dano lhe

780
suceda no corpo, todavia não o faz. Assim, se despedes uma pessoa
desnuda quando poderias vesti-la, deixaste-a sucumbir ao frio; se
vês alguém que sofre fome e não o alimentas, estás permitindo que
morra de fome (LUTERO, OSel.7, p. 364).

A interpretação de Lutero parece sugerir que a omissão diante de uma


situação de iniquidade social também implica em matar. Ainda, é possível que
mesmo com as limitações do contexto, o reformador tenha reconhecido a dignidade
humana, apontando para mortes da dignidade. Essa interpretação de Lutero parece
ecoar para os cristãos da atualidade, pois suas atitudes não poderiam ser
indiferentes diante de necropolíticas que se instalaram pelo mundo.
É possível que em Lutero, esse cuidado com a dignidade da vida humana
esteja no fato do ser humano ser criação de Deus, imagem divina, ainda que perdida
segundo suas teses sobre o “Ser Humano”, mas também imagem que será restaurada
em Cristo, fato que não se opõe ao pensamento bioético atual, pois Lutero não se
ocupa de como explicar o processo da criação.
Para Lutero, a criação original, lá no princípio, nunca é, de fato, o
assunto principal a ser discutido... No sistema teológico de Lutero,
as atenções estão todas voltadas para a ação contínua e constante
de Deus, que cria, provê e preserva. A afirmação..., creio que Deus
me criou a mim e a todas as criaturas, celebra o fato da criação, sem
se preocupar muito com o como (SCHUMACHER, 2017, p. 53-54).

Nesse sentido, mesmo distante das percepções recentes sobre vida humana,
a compreensão de Lutero parece estar mais coerente e propícia, inclusive, ao diálogo
com as áreas de Bioética clínica, do que com o pensamento limitador de muitos
teólogos contemporâneos em relação à criação. Lutero também enfatizava a
importância da igualdade entre todos os seres humanos. Ele acreditava que, apesar
das diferenças culturais, sociais e econômicas, todos os seres humanos são
igualmente amados por Deus e, portanto, devem ser tratados com igualdade e justiça
(LUTERO, OSel.7).

Resultados e conclusões
A antropologia teológica de Lutero, segundo Hägglund (2021), não parte da
análise dos possíveis componentes constitutivos do ser humano, nem da relação que
ele tem consigo mesmo. A pessoa humana é definida e compreendida a partir de sua
existência em relação aos outros. Essa abordagem coloca a explicação do ser

781
humano no contexto de sua totalidade, e não em seus elementos e estrutura. Lutero
tinha uma visão holística do ser humano.
No estudo de Schumacher (2017), a antropologia teológica de Lutero não se
ocupa em responder o processo criativo ou evolutivo, mas responder quem é o ser
humano. No sistema da antropologia teológica de Lutero, as atenções estão todas
voltadas para a ação contínua e constante de Deus, que cria, provê e preserva. A
afirmação..., creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas, celebra o fato da
criação, sem se preocupar muito com o como.
A antropologia desempenha um papel crucial na fundamentação dos
princípios bioéticos, buscando compreender a natureza e a essência do ser humano.
Tanto a visão antropológica de Lutero quanto as reflexões contemporâneas
destacadas por Pessini (2010) fornecem contribuições valiosas para o campo da
bioética. A ênfase na integralidade do ser humano, na dignidade da vida e na
igualdade entre os seres humanos destaca-se como um ponto de partida essencial
para abordar os desafios éticos enfrentados em tempos de incertezas. Ao considerar
essas perspectivas antropológicas, é possível desenvolver uma abordagem ética que
promova o respeito à vida e a justiça social.
Ao considerar a compreensão holística de ser humano em Lutero, bem como
a constatação que Schumacher (2017) faz da antropologia teológica de Lutero que
não se preocupa em dar respostas do como, percebe-se uma possibilidade de diálogo
aberta com a bioética, pois além de compreender a vida humana em sua totalidade,
essa percepção não entra em conflito com a questão evolucionista e ou criacionista,
favorecendo as discussões bioéticas sobre manipulações genéticas.

Referências
HÄGGLUND, Bengt. História da teologia. Porto Alegre: Concórdia, 1981.

HÄGGLUND, Bengt. Ser Humano, In: LEPPIN, Volker; SCHNEIDER-LUDORFF, Gury


(Eds.). Dicionário de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2021. p. 1041-1043.

LUTERO, Martinho. Catecismo Maior [1529]. In: LUTERO, Martinho. Obras


selecionadas, Vol.7. 2.ed. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas:
Ulbra, 2016. p. 325-446.

LUTERO, Martinho. Debate do reverendo senhor Dr. Martim Lutero acerca do


homem. In: id. Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia,
1992. v. 3, p. 192-200.

782
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Weimar], ed.

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618. Disponível em:
https://archive.org/details/werkekritischege02luthuoft/page/586/mode/2up?vi
ew=theater. Acesso em: 17 jun. 2023.

PESSINI, Leo. Qual antropologia para fundamentar a bioética em tempo de


incertezas. Pessini L, Siqueira JE, Hossne WS, organizadores. Bioética em tempos de
incertezas. São Paulo: Loyola/Centro Universitário São Camilo, p. 23-40, 2010.

SCHUMACHER, William. Antropologia em Lutero e Osiander: Uma diferença que


persiste. In: BUSS, Paulo Wille (Org.). Lutero e a antropologia: potencialidades do ser
humano. Porto Alegre: Concórdia, 2017. p. 47-71.

783
INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL: UM ESTUDO SOB A ÓTICA DE
PSICÓLOGAS(OS)

Jorge Gomes de Oliveira Neto1

Resumo: Este estudo parte do pressuposto de que muitas psicólogas(os) enfrentam


desafios para compreender e lidar com a dimensão espiritual em suas práticas. Nesse
contexto, levantou-se a hipótese de que o construto inteligência espiritual poderia
contribuir para uma maior abertura desses profissionais em relação à dimensão espiritual,
refletindo-se em suas práticas terapêuticas. Assim, buscou-se entender a perspectiva de
psicólogas(os) acerca do construto inteligência espiritual, bem como analisar como eles
compreendem a possível relação entre inteligência espiritual e saúde mental. Para alcançar
esses objetivos, foi conduzida uma pesquisa exploratória-descritiva com abordagem
qualitativa, utilizando entrevistas semiestruturadas com 20 (vinte) profissionais de
psicologia que atuam na área clínica. A análise de conteúdo foi o método utilizado para a
análise dos dados, com o auxílio do software Iramuteq. Desse modo, foi identificado que os
profissionais entrevistados conceituam a inteligência espiritual como uma capacidade de
busca por sentido, afastando-se significativamente de uma perspectiva religiosa, ao
contrário do que aconteceu quando questionados sobre espiritualidade. Quanto à relação
entre inteligência espiritual e saúde mental, a maioria dos entrevistados acredita nessa
conexão, considerando que a espiritualidade é inerente ao ser humano e, portanto, abrange
aspectos relacionados à saúde. Portanto, a inteligência espiritual surge como uma
alternativa, especialmente quando se busca trabalhar a espiritualidade além de uma
abordagem religiosa. Portanto, considera-se esse construto relevante e aplicável na prática
clínica psicológica.
Palavras-chave: inteligência espiritual; saúde mental; psicologia; espiritualidade.

Introdução
A Inteligência Espiritual, um construto reconhecido nas últimas décadas,
envolve a capacidade de usar a espiritualidade para dar sentido à vida, lidar com
desafios e ir em busca do transcendente (TORRALBA, 2013; ZOHAR; MARSHALL,
2020). Zohar e Marshall propuseram uma abordagem científica para esse construto
nos anos 90, definindo-a como a habilidade de abordar questões de significado e
valor (ZOHAR; MARSHALL, 2020).
Desse modo, enquanto a espiritualidade se refere a um conceito mais amplo
que diz respeito à procura de significado e propósito para a vida (GIESEKE, 2014), a
inteligência espiritual, por sua vez, ressalta as atividades que se embasam nestes

1Graduação em Psicologia; Pós-graduação em Psicologia Hospitalar e da Saúde; Mestrado em


andamento em Ciências das Religiões (UFPB) | E-mail: jorgegomes.psico@gmail.com

784
conceitos para aprimorar o funcionamento e resposta frente aos problemas
(AMRAM; DRYER, 2008). Vale frisar que essa inteligência não está vinculada à
religião e é uma abordagem cognitiva que pode ser desenvolvida (FIDELIS;
FORMIGA; FERNANDES, 2023). No entanto, a religiosidade pode ser uma forma de
cultivar a inteligência espiritual (TORRALBA, 2013).
Muitos psicólogos, apesar de uma crescente demanda dos pacientes por
questões espirituais, podem sentir despreparo, visto que a espiritualidade foi muitas
vezes negligenciada em sua formação (PEREIRA; HOLANDA, 2019). A inteligência
espiritual pode ser uma ponte para despertar o interesse dos profissionais nesse
aspecto, dada a presença do estudo acerca das inteligências humanas na própria
graduação.
Portanto, o presente estudo visa compreender as visões dos profissionais de
psicologia sobre a inteligência espiritual e sua relação com a saúde mental. Embora
pesquisas tenham explorado essa relação, ainda existem lacunas em nosso
entendimento sobre a inteligência espiritual. Portanto, este trabalho contribui para
esse campo de estudo, focando na perspectiva dos profissionais de psicologia.

1. Compreendendo a inteligência espiritual


No início do século XX, a inteligência era vista principalmente de forma
intelectual e medida pelo QI (FERREIRA, 2014), mas evoluiu para uma definição
mais ampla como a capacidade de resolver problemas, adaptar-se e enfrentar
desafios (ANTUNES, 2016). Em essência, a inteligência envolve discernimento,
permitindo refletir e separar o essencial do acidental (TORRALBA, 2013). King
(2008) e Gardner (2011) consideram a inteligência como um conjunto de
habilidades inter-relacionadas que se desenvolvem ao longo da vida e facilitam a
adaptação e a resolução de problemas em um contexto cultural.
No cenário contemporâneo, onde prevalece a aceleração do tempo e a busca
incessante pelo imediatismo, emerge um apelo interno para o desenvolvimento da
Inteligência Espiritual, proporcionando uma abordagem que transcende a mera
existência (MELO, 2019). O conceito de Inteligência Espiritual, sistematizado por
Danah Zohar e Ian Marshall em 1997, é a capacidade de lidar com questões de
sentido e valor na vida, permitindo uma compreensão mais profunda da existência
(ZOHAR; MARSHALL, 2020).

785
Esta inteligência não se confunde com inteligência religiosa, que está
relacionada a práticas religiosas específicas (HASSNER, 2011). A Inteligência
Espiritual é considerada uma parte intrínseca da condição humana (TORRALBA,
2013) e envolve a capacidade de fazer perguntas fundamentais sobre o sentido da
vida e buscar respostas (EMMONS, 2000; KING, 2008; NASEL, 2004). Ela não se
limita a “como” ou “por que”, mas busca principalmente o “para quê” das coisas,
questionando os objetivos finais de atividades e processos (TORRALBA, 2013).
Várias abordagens enfatizam a importância da Inteligência Espiritual na
promoção do bem-estar e na capacidade de enfrentar desafios existenciais (KING,
2008; WOLMAN, 2002). Ela permite que as pessoas se tornem mais criativas,
conectem-se ao transcendente e encontrem significado na vida (ZOHAR;
MARSHALL, 2020). A inteligência espiritual também auxilia na busca de valores
significativos e na transcendência em meio a adversidades (EMMONS, 2000). É uma
força vital que permite o contato com o sagrado, a compaixão, a gratidão e a
humildade (WOLMAN, 2002). Essa inteligência é vista como a capacidade de aplicar
recursos espirituais para melhorar a vida cotidiana (AMRAM, 2007).
Embora não seja facilmente mensurável e não tenha um corpo teórico
consensual (GREEN; NOBLE, 2010), ela se tornou parte do quadro das inteligências
humanas ao lado do Quociente Intelectual (QI) e da Inteligência Emocional (QE)
(SANTOS, 2019). Ao contrário do QI, que se baseia em regras, e do QE, que se
relaciona com situações, o Quociente Espiritual (QS) funciona como um guia interno
que é crucial para o funcionamento eficaz do QI e do QE (ZOHAR; MARSHALL, 2020).
É uma capacidade intrínseca que pode ser cultivada e usada com significado e
propósito na vida (GIESEKE, 2014). Portanto, qualquer pessoa possui essa
capacidade de busca por sentido e conexão com algo maior (TORRALBA, 2013).
Em síntese, embora as concepções de inteligência espiritual sejam
ligeiramente diferentes, diversos autores concordam que a mesma se refere à
capacidade de busca por sentido e significado na vida que, como efeito, possibilita a
lida e a resolução de questões existenciais conectando-se ao transcendente. Assim,
por meio desta habilidade, o ser humano consegue autotranscender-se em direção
a uma vida plena de sentido e significado (AMRAM, 2007; EMMONS, 2000; KING,
2008; NASEL, 2004; TORRALBA, 2013; WOLMAN, 2002; ZOHAR; MARSHALL, 2020).

786
2. Considerações metodológicas
Neste estudo, foi adotada uma abordagem de pesquisa exploratória-
descritiva, com análise qualitativa usando-se a análise de conteúdo como método. A
pesquisa foi realizada de forma virtual, utilizando o Google Meet para entrevistas
síncronas. A amostra consistiu em 20 (vinte) profissionais de psicologia,
selecionados com base na acessibilidade e usando uma amostragem por “bola de
neve”. Após a coleta, as entrevistas foram transcritas e analisadas com a ajuda do
software IRAMUTEQ, que oferece análises quantitativas e qualitativas de
documentos textuais. O estudo utilizou técnicas como Nuvem de Palavras, Análise
de Similitude e Classificação Hierárquica Descendente para analisar os significados
e contextos das respostas dos participantes.

3. Resultados
Acerca dos resultados, na técnica da Nuvem de Palavras, foram identificadas as
palavras mais frequentes associadas à espiritualidade e inteligência espiritual. Na
concepção de espiritualidade, palavras como “religião”, “espiritualidade”, “vir”,
“forma” e “estar” se destacaram. Já na concepção de inteligência espiritual, as
palavras mais frequentes incluíam “inteligência”, “espiritualidade”, “vir”,
“capacidade”, “sentido” e “religião”. Assim, infere-se que os entrevistados percebem
a espiritualidade como uma experiência mais subjetiva e abrangente, enquanto a
inteligência espiritual parece ser entendida de modo mais restrito, como uma
capacidade cognitiva de busca por sentido. A espiritualidade, por ser mais ampla,
aparece mais próxima da religião, enquanto a IE distancia-se significativamente.
A técnica da Análise de Similitude mostrou como as palavras se relacionam
nos discursos dos entrevistados. A palavra “espiritualidade” se mostrou central,
conectando-se a palavras como “sentido”, “questão”, “humano”, “religião” e “vida”. O
segundo eixo da análise enfatizou as palavras “inteligência”, “espiritual” e
“acreditar”, sugerindo uma relação entre inteligência espiritual e saúde mental. Os
outros dois eixos se relacionam às demandas dos pacientes e ao papel do psicólogo
em relação à espiritualidade.
A técnica da Classificação Hierárquica Descendente resultou em cinco
classes. A primeira e principal classe representa as concepções dos participantes
sobre a espiritualidade e inclui palavras como “deus”, “crença”, “conexão” e

787
“religioso”. A segunda classe aborda a relação entre inteligência espiritual e saúde
mental, destacando palavras como “sim”, “inteligência”, “espiritual” e “saúde”. Além
disso, outras classes tratam das demandas dos pacientes, do papel do psicólogo e de
como os psicólogos lidam com a espiritualidade em suas práticas clínicas.
No geral, essa análise oferece uma compreensão das percepções e
concepções dos participantes sobre espiritualidade, inteligência espiritual e sua
relação com a saúde mental, fornecendo insights sobre como esses temas são
abordados na prática clínica.

4. Discussão
O objetivo deste estudo foi compreender a perspectiva de profissionais da
psicologia sobre o construto de inteligência espiritual, especialmente em relação à
saúde mental. Os participantes foram questionados sobre suas concepções de
espiritualidade e inteligência espiritual. Constatou-se que a maioria dos
entrevistados associava a espiritualidade à religião, mas dissociava a inteligência
espiritual dessa relação, entendendo-a como a busca de sentido na vida.
As diferentes abordagens psicológicas dos participantes moldaram suas
concepções da inteligência espiritual. Em linhas, gerais, na terapia cognitivo-
comportamental, a inteligência espiritual foi relacionada à integração de crenças
religiosas de forma positiva. Na abordagem centrada na pessoa, a IE foi vista como
uma busca de crescimento pessoal. A abordagem psicanalítica a considerou como
parte do desenvolvimento psíquico. A logoterapia enfatizou a busca por sentido e
propósito na vida. Por último, a terapia familiar sistêmica reconheceu a importância
da espiritualidade nas dinâmicas familiares.
Também houve destaque para a relação entre inteligência espiritual e saúde
mental, com os participantes enfatizando que a busca por sentido na vida está ligada
a uma boa saúde mental. Alguns participantes desejaram mais estudos sobre essa
relação, mas a maioria mostrou receptividade a essa conexão. Por fim, sugere-se a
inclusão da Psicologia da Religião na formação de psicólogas e psicólogos para uma
melhor compreensão e abordagem das questões espirituais e religiosas em
contextos clínicos. Isso permitiria aos profissionais lidar de forma mais eficaz com
as necessidades dos indivíduos nessa área.

788
Considerações finais
Este estudo buscou entender como profissionais de psicologia percebem a
inteligência espiritual. Assim, em linhas gerais, a inteligência espiritual foi definida
como a capacidade de buscar sentido na vida. Os entrevistados também se
consideraram facilitadores do desenvolvimento da espiritualidade, mas enfatizaram
que isso deve ser orientado pelas demandas dos pacientes, em respeito ao código de
ética.
Os resultados sugerem que a espiritualidade é frequentemente confundida
com religiosidade, enquanto a inteligência espiritual é vista como uma habilidade
humana separada. Ela pode ser uma ferramenta útil na psicoterapia, semelhante à
inteligência emocional. No entanto, são necessárias mais pesquisas e ferramentas
específicas para aplicar a inteligência espiritual na prática clínica, sempre
respeitando a abordagem ética e sensível ao aguardar a demanda do
paciente/cliente.
Em resumo, este estudo contribui para o campo da saúde mental e da
psicologia da religião ao promover uma compreensão ética das demandas
espirituais no cuidado psicológico, enriquecendo a relação terapêutica e
promovendo o bem-estar dos pacientes/clientes, reconhecendo a relevância da
espiritualidade na saúde mental.

Referências
AMRAM, Y. The seven dimensions of spiritual intelligence: An ecumenical, grounded
theory. Trabalho apresentado na 115ª Conferência Anual da American Psychological
Association – APA, 2007. Disponível em: http://www.geocities.com/isisfindings/.
Acesso em: 23 abr. 2020.

AMRAM, Y.; DRYER, D. C. The integrated spiritual scale (ISIS): Development and
preliminary validation. Palo Alto, Califórnia: Institute of Transpersonal Psychology,
2008.

ANTUNES, R. R. Liderança pedagógica, bem-estar e inteligência espiritual em


educadores de infância e professores dos ensinos básico e secundário. Tese de
doutorado. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Faculdade de
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EMMONS, R. A. Is spirituality an intelligence? Motivation, cognition, and the


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10(1), 2000, pp. 3-26.

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FERREIRA, C. Educational strategies for the development of spiritual intelligence (SQ)
in south african secondary schools. Tese de doutorado, University of South Africa,
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FIDELIS, A. C. F.; FORMIGA, N. S.; FERNANDES, A. J. Spiritual Intelligence: A matter of


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GARDNER, H. Inteligência: um conceito reformulado. Tradução: Adalgisa Campos da


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GIESEKE, A. R. The relationship between spiritual intelligence, mindfulness, and


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HASSNER, R. E. Religious Intelligence. Terrorism and Political Violence, v. 23, n. 5, pp.


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KING, D. B. Rethinking claims of spiritual intelligence: A definition, model, and


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MELO, W. D. O princípio e fundamento da espiritualidade inaciana para a


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PEREIRA, K. C. L.; HOLANDA, A. F. Religião e espiritualidade no curso de psicologia:


revisão sistemática de estudos empíricos. Interação em Psicologia, Curitiba, v. 23, n.
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TORRALBA, R. F. Inteligência espiritual. Tradução: João Batista Kreuch. 2. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

WOLMAN, R. Inteligência Espiritual. 2 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

ZOHAR, D.; MARSHALL, I. QS: inteligência espiritual. Rio de Janeiro: Viva Livros,
2020.

790
CONSPIRITUALIDADE: A CONVERGÊNCIA DE ESPIRITUALIDADE E
TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO NO CAMPO DA SAÚDE

Lorenzo Lago1
Rosemary Francisca Neves Silva2

Resumo: Em 2011 Charlotte Ward e David Voas propuseram chamar de “conspiritualidade”


o fenômeno de confluência e sobreposição, ou hibridização, em ambiente digital de teorias
da conspiração e de percepções de mundo da Nova Era. Segundo os autores, a
conspiritualidade se desenvolveu na internet com uma conotação político-espiritual
articulada por duas convicções centrais: (a) um grupo secreto estaria agindo
conspirativamente para assumir o controle da ordem social e política global e (b) essa
ameaça pode ser desativada somente pelo despertar de uma nova consciência planetária,
uma mudança de paradigma nas mentes e nos estilos de vida individuais. Com o
desenvolvimento das redes sociais digitais, a pandemia de COVID-19 e o crescimento do
movimento do wellness, o campo dos estudos sobre saúde e espiritualidade adotou a
conspiritualidade como uma categoria analítica relevante para discutir as relações entre
saberes autorizados e saberes rejeitados ou estigmatizados. O presente estudo promoveu
uma revisão de literatura para identificar os cenários de aplicação da categoria, com
especial atenção ao contexto da pandemia. Os resultados evidenciaram que a categoria da
conspiritualidade contribui para dar visibilidade à interseção entre específicas narrativas
religiosas e espirituais, percepções e comportamentos de saúde e teorias da conspiração em
ambientes digitais.
Palavras-chave: Conspiritualidade; saúde; espiritualidade; religião; conspiração.

Introdução
Em 2011 Charlotte Ward e David Voas propuseram chamar de
“conspiritualidade” o fenômeno, por eles observado, da confluência e sobreposição,
ou hibridização, em ambiente digital, de teorias da conspiração e de percepções de
mundo da Nova Era. A conspiritualidade teria se desenvolvido na internet articulada
por duas convicções centrais: (a) um grupo secreto estaria agindo
conspirativamente para assumir o controle da ordem social e política global e (b)
essa ameaça poderia ser desativada somente pelo despertar de uma nova
consciência planetária, uma mudança de paradigma nas mentes e nos estilos de vida
individuais.

1 Doutorando em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail:


lorenzo@pucgoias.edu.br.
2 Doutora em Ciências da Religião e professora no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: rosemarynf@gmail.com.

791
Segundo Ward e Voas (2011), as duas formas de pensamento, a Nova Era e
as teorias da conspiração, tem alguns traços em comum: a negação da contingência
(nada acontece por acaso); a desconfiança em relação à experiência socialmente
compartilhada (nada é como parece) e a crença numa conexão global (tudo está
conectado). Essas crenças permitem enfrentar a ação de forças percebidas como
randômicas e desconexas na vida social e pessoal.
Apesar das convergências apontadas, a duas percepções teriam diferenças
significativas:
1. A Nova Era persegue a integração mente/corpo/espírito; o perfil de seus
seguidores é predominantemente feminino, liberal, otimista, centrado nas relações
pessoais e na transformação individual. Valoriza a percepção de realidades não
materiais e promove a crença em agências de formas invisíveis de energia;
2. As teorias da conspiração desenvolvem processos de negação da
contingência e da confiabilidade da experiência. Buscam a identificação de padrões
em sequências randômicas de eventos e valorizam a atribuição de agência a forças
ocultas. São grupos prevalentemente masculinos, conservadores e pessimistas, com
atenção centrada nos negócios e na política.
Apesar de diferentes e por alguns aspectos contrapostas, essas duas formas
de percepção e de experiência confluem em ambiente digital, dando vida ao
fenômeno da conspiritualidade, a cujas narrativas milhões de pessoas já forma
expostas. O precursor da fusão seria David Icke, um escritor britânico ativo desde a
década 1980, ainda em ambiente off-line, e a revista australiana Nexus3, que iniciou
sua atividade na mesma década e hoje está disponível on-line. Na década de 2000,
com o crescimento do acesso à internet (era dos blogs) e o início das redes sociais
digitais, aparece a segunda geração conspiritualista. Exemplos dessa fase são o
escritor norte-americano John Perkins, o site do Projeto Avalon4 e o portal Infowars5,
que junto com notícias promove a venda de suplementos alimentares.

3 https://nexusmagazine.com/
4 https://projectavalon.net/ e https://projectcamelotportal.com/
5 https://www.infowars.com/

792
A recepção da proposta
A proposta da categoria da conspiritualidade recebeu críticas, não tanto por
sua plausibilidade teórica quanto por sua pretensa novidade. Asprem e Dyrendal
(2015) argumentaram que a convergência entre espiritualidades alternativas, ou
melhor o “cultic milieu”, o ambiente de crenças, símbolos e cultos heterogêneos e de
interações efêmeras, que se formam por contraposição à cultura dominante,
descrito por Campbell (2002), e os discursos conspiracionistas é resultado
previsível dos elementos estruturais dessas espiritualidades. A sensação de
novidade na conspiritualidade decorreria dos modelos simplificados de Nova Era e
de teorias da conspiração adotados por Ward e Voas (2011).
A Nova Era pode ser entendida num sentido estrito, denotando o movimento
milenarista originado nos ambientes contraculturais das décadas de 1960 e 1970,
que aguarda o despertar da consciência cósmica e a mudança de paradigma da Era
de Aquário; ou em sentido amplo, denotando o inteiro “cultic milieu”, o reservatório
de místicas com foco na experiência pessoal e de saberes alternativos, que
constituem um conglomerado de subculturas, denominado por Partridge (2012) de
“occulture” por sua contraposição à cultura dominante.
A Nova Era no sentido estrito aparentemente estaria no polo oposto dos
grupos conspiracionistas, habitualmente considerados de extrema direita.
Guerreiro e Bein (2021) observaram, porém, que a proposta da Nova Era consiste
exatamente na conspiração aquariana, que é na realidade uma contra-conspiração,
como estratégia para promover o despertar espiritual cósmico. A lógica e o discurso
conspiracionista está estruturalmente inscrito nas narrativas da Nova Era.
A Nova Era em sentido amplo é tecida pelos saberes alternativos do cultic
milieu, que Barkun (2013) compreende como saberes estigmatizados, por não
serem aceitos pelas agências ou instituições convencionadas para a verificação. Essa
contraposição entre saberes autorizados e estigmatizados cria o ambiente do
encontro da “occulture” com discursos conspiracionistas. A dinâmica da
contraposição se torna, de alguma forma, o mecanismo identitário do “cultic milieu”.
Sua unidade depende de sua contraposição aos saberes dominantes e não de uma
específica unidade narrativa ou discursiva. A contraposição gera estigmatização e
rejeição, que por sua vez confirmam a identidade e o reconhecimento no “cultic
milieu”, reforçando a lógica conspiracionista.

793
Essa dinâmica é antiga e pode ser reconhecida na história do esoterismo
ocidental, que Asprem e Dyrendal (2015) repercorrem desde o neoplatonismo
renascentista e sua estigmatização como paganismo pela Reforma e Contrarreforma
e como superstição pelo Iluminismo.
Quanto às teorias da conspiração, David Robertson (2015) observa que a
categoria tem quase sempre um viés polêmico e não pode ser definida
substantivamente, isto é, não é possível caracterizar absolutamente uma teoria
como conspiratória. Algumas narrativas são definidas conspiratórias quando
desafiam as autoridades epistêmicas, apresentando saberes negados, esquecidos ou
ignorados (Barkun, 2013). Por isso propõe falar em narrativas e não em teorias ou
crenças de conspiração, para evitar distinções sobre as evidências e os regimes de
verdade, superando o viés tradicional, que rotula essas narrativas como
pensamentos errados.
O estudo da relação entre as narrativas de conspiração e as narrativas
religiosas se articula em três abordagens: (1) a análise de narrativas de conspiração
a respeito de determinadas religiões, que têm sido discriminadas pela cultura
envolvente (bruxas, judeus, satanistas…), construindo identidades de grupo
centradas na contraposição nós/eles em base moral ou ideológica; (2) a análise de
narrativas de conspiração nas religiões, como é o caso da conspiritualidade na Nova
Era; e (3) o estudo das narrativas de conspiração como religião, discutindo a
semelhança de narrativas e mecanismos cognitivos religiosos com os
conspiracionistas.
Para Robertson (2015) a convergência entre religião e narrativas de
conspiração está se tornando um subcampo de pesquisa, com específicas unidades
discursivas, entre as quais se destaca justamente a saúde alternativa, em sua
contraposição ao campo formal das ciências e profissões de saúde. Mesmo Asprem
e Dyrendal (2015) reconhecem que a conspiritualidade, apesar das limitações
analíticas, é importante para denominar o movimento web (Youtube, redes, jogos
etc.), que se apropria de uma miscelânea de motivos conspiracionistas e de saberes
rejeitados ou esotéricos.

794
Conspiritualidade na pandemia
A década de 2010 foi marcada pela consolidação e pelo crescimento
exponencial da adesão de milhões de pessoas às redes sociais digitais e se encerrou
com a eclosão da pandemia de Covid-19. O cenário, que levou Ward e Voas (2011) a
propor o tema da conspiritualidade mudou muito, confirmando a relevância da
proposta e incluindo elementos analíticos até então não considerados. Entre eles,
destacam-se a lógica das próprias plataformas das redes sociais digitais (Youtube,
Facebook, Instagram etc.) e o mercado do wellness, isto é, a crescente oferta de
produtos e serviços voltados para a promoção do bem-estar e da saúde, que porém
não integram o portfólio das ciências e tecnologias formais da saúde.
Durante essa década Stephanie Alice Baker (2022) estudou as redes com foco
no mercado do wellness e identificou as estratégias de um grupo de influenciadores
digitais de saúde alternativa, que na pandemia adotaram recursos e discursos das
narrativas de conspiração típicas da extrema direita.
O movimento wellness desenvolveu-se na Califórnia nas décadas de 1960-70
como subproduto da contra-cultura dedicado ao autocuidado em alternativa ao
sistema médico formal. Rapidamente o mercado se apropriou do discurso e o
transformou em produtos de alto faturamento e baixa regulação.
Uma pesquisa da empresa de consultoria McKinsey6, estimava que em 2021
o mercado global do wellness já alcançava o valor de 1,5 trilhões com uma
perspectiva de crescimento de 5 a 10% ao ano. Essa mesma pesquisa, apontava que
no Brasil e na China 50% dos negócios já eram promovidos por influenciadores
digitais. A disponibilidade de produtos e os ambientes digitais de comunicação
estimularam o surgimento de microempreendedores do wellness, os influenciadores
de saúde e bem-estar, em busca de remuneração social e econômica. A principal
estratégia de validação de seus discursos é a ênfase na experiência subjetiva, que
cria intimidade com o público, e a intuição, o apelo a argumentos do senso comum
(por exemplo: tudo que é limpo ou natural faz bem), em contraposição aos pareceres
dos especialistas.
A pandemia potencializou a eficiência dessas estratégias e aproximou, por
convergência de temáticas e interesses, três narrativas até então distintas: o

6 https://www.mckinsey.com/industries/consumer-packaged-goods/our-insights/feeling-good-
the-future-of-the-1-5-trillion-wellness-market/pt-BR#/.

795
milenarismo da Nova Era com suas propostas alternativas de autocuidado, o
discurso do movimento wellness e as narrativas de conspiração. O que conecta essas
unidades discursivas não é necessariamente uma opção ideológica explícita de
integração, mas uma estratégia de marketing induzida pelas regras de remuneração
das plataformas, inscritas em seus algoritmos.
O resultado é um discurso que gera confiança justamente provocando
desconfiança nas autoridades políticas e científicas, responsáveis pelas estratégias
de enfrentamento da pandemia. Baker observa que “wellness influencers may not
share QAnon’s far-right extremism, but both groups are bound by distrust of
institutional authority – the government, the pharmaceutical and vaccine industry”
(Baker, 2020, p. 3).
Por isso, tanto as narrativas da Nova Era como as narrativas de conspiração
se tornaram endêmicas no ambiente digital do wellness, com serias implicações para
a saúde das pessoas e para o sucesso das políticas de promoção e atenção à saúde.
Suas posturas negacionistas e de contraposição alimentaram comunidades on-line
de forte engajamento, que se tornaram um significativo ativo para a empresas que
controlam as plataformas. O Pandemics Profiteers Report 20227, do Center for
Countering Digital Hate, calculou que o movimento anti-vacina alcançava um total
de 62 milhões de seguidores e valia para as plataformas 1.1 bilhões de dólares.
Baker conclui que, em tempos de pandemia e de redes sociais, a categoria da
conspiritualidade é de extrema relevância porque “these technologies also enable
conspiritual content to be produced and shared online at an unprecedented speed and
scale” (Baker, 2020, p. 13).

Conclusão
Desde 2011 a categoria da conspiritualidade, originariamente proposta para
analisar a confluência de narrativas milenaristas da Nova Era com as narrativas de
conspiração, permitiu observar a convergência pragmática dessas narrativas no
mais amplo cultic milieu e nas estratégias do mercado do wellness. O crescimento
dessa modalidade híbrida de discurso foi acelerado e potencializado pela dinâmica
interna das plataformas das redes sociais digitais e pela pandemia de Covid-19.

7 https://counterhate.com/wp-content/uploads/2022/05/210601-Pandemic-Profiteers-
Report.pdf.

796
Referências
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WARD, Charlotte; VOAS, David. The Emergence of Conspirituality. Journal of


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http://dx.doi.org/10.1080/13537903.2011.539846. Acesso em 8/9/2023.

797
CONSTELAÇÕES FAMILIARES E SAÚDE EMOCIONAL: OS DISCURSOS
DO EMBATE ENTRE CIÊNCIA E ESPIRITUALIDADE

Marcelo Leandro de Campos1

Resumo: Nossa proposta é de oferecer uma contribuição ao debate sobre o uso da


espiritualidade/religiosidade no campo da saúde emocional, seu diálogo com as práticas
terapêuticas com embasamento cientifico e seus impactos na atuação profissional e
implicações político-sociais no campo da saúde. Nos interessa analisar as estratégias
discursivas envolvidas no debate público, que envolvem, de um lado, a legitimação e o
reconhecimento do uso terapêutico de elementos espiritualistas e/ou religiosos, e do outro,
que apontam para os perigos envolvidos e que demonizam tais práticas como
pseudocientíficas. Nos propomos, dentro deste debate amplo, a estudar especificamente
uma técnica conhecida como Constelação Familiar, criada pelo terapeuta alemão Bert
Hellinger na década de 1980. A partir de um breve resumo da evolução histórica da técnica,
vamos conduzir um levantamento bibliográfico sobre as estratégias discursivas de
legitimação, vistas a partir de um olhar histórico-cultural e enquanto elementos de
representação2. A revisão da literatura em torno do tema se concentra nas obras do
fundador e de seus principais discípulos, nos trabalhos acadêmicos sobre o uso de
constelações familiares, em especial no campo de conciliação e mediação familiar, onde se
concentra a maior oposição ao uso da técnica, e nos debates públicos promovidos, em
especial a discussão realizada junto ao senado brasileiro. O objetivo da revisão é esclarecer
aspectos históricos, histórico-culturais (discursivos) e estabelecer limites conceituais que
contribuam com a condução de pesquisas sobre o tema.
Palavras-chave: Constelação Familiar; Terapia Sistêmica; Abordagem Fenomenológica.

Uma disputa antiga


No filme Paracelsus, do diretor alemão George W. Pabst, lançado em 1943, o
célebre alquimista Paracelso é retratado em conflito com o Magister, o médico e
diretor da faculdade de medicina de uma cidade alemã. A disputa entre o mago e o
médico é retratada de forma claramente dicotômica; é uma luta entre o bem e o mal.
Paracelso aparece atendendo os pobres e imbuído de um profundo espirito
investigativo; o Magister, por sua vez, está claramente ocupado numa luta por poder
e prestigio social.
Envolvidos numa disputa pelo tratamento de um paciente, o Magister tenta
desqualificar seu opositor dizendo: “Ele não age de forma cientifica”. Ao que
Paracelso responde: “sim, está correto, não é cientifico, mas ele está curado”. E
acrescenta: “a natureza é uma professora melhor que sua universidade. O terreno

1 Mestre em Ciências da Religião pela PUC Campinas; e-mail: mlcampos_2005@hotmail.com


2 Teoria das Representações Sociais: Durkheim, Peter Berger, Moscovici.

798
mais elevado da verdadeira medicina é o amor; você somente se importa com o ouro
e sua posição”. O Magister, furioso, se queixa: “Opor-se a mim é opor-se à ciência.
Mas, afinal, quem vai me pagar meus honorários nessa disputa?”
No final do filme, convidado para ser o médico da corte alemã, Paracelso
aponta para multidão de pobres que aguarda atendimento e diz: “é a eles que devo
servir”. A ciência retratada no filme é elitista e falsa: para o Magister, a ocupação do
médico se limita a observar os sintomas do paciente e prescrever um tratamento a
partir de Avicena e Galeno, que ele se orgulha de poder citar em latim. Paracelso, por
sua vez, acredita que toda doença é oriunda de um desequilíbrio entre o homem e a
natureza; e que somente pesquisando a essência de plantas e minerais se pode
elaborar remédios que restabeleçam este equilíbrio. Enquanto o Magister carrega
seus livros para consulta, Paracelso possui um laboratório alquímico. Seu espirito
investigativo e empirista se identifica muito mais com a proposta cientifica
moderna.
Por trás dessa disputa metafisica sobre quem detém a verdade, o filme
mostra claramente uma disputa mais palpável: o médico da cidade tem poderes
absolutos para impor restrições em tempos de peste, e para conceder ou receber
privilégios e monopólios de compra de medicamentos. A medicina reconhecida
socialmente detém enorme autoridade e poder econômico.
É curioso observar, pensando historicamente, que magos e cientistas foram
aliados durante o Renascimento, contra o monopólio do poder detido então pela
Igreja Católica; ciência e magia estavam então longe de ser o que entendemos hoje;
ambos eram aspectos de um grande campo de reflexão e experimentação chamado
de filosofia natural. Questionamentos empíricos sobre o funcionamento do universo
coexistiam tranquilamente com reflexões de caráter metafisico; homens como
Giordano Bruno se debruçavam igualmente sobre temas como Heliocentrismo,
Matemática e Astrologia. Estes homens, ainda, possuíam um inimigo comum: a
Igreja Católica e seu monopólio da verdade. Findas as guerras religiosas, e com o
advento de uma nova mentalidade, o iluminismo, os vitoriosos passaram a disputar
o novo espaço de poder. Se antes a verdade era ditada pelo ortodoxia, a mediação
entre deus e os homens, agora tornou-se monopólio dos homens da ciência, que
desvendavam os mistérios do universo com o uso da razão. Isso faz com que um
número cada vez maior de áreas dispute o status de científicas; é o caso das ciências

799
médicas, ciências jurídicas, ciências históricas, etc. Tudo isso tem uma motivação
muito prática: reconhecer uma área de estudo como científica significa reconhecer
sua autoridade (SAFATLE 2010). Ao declarar que meu trabalho é científico, e o de
meu adversário não, estou, na prática, declarando que eu detenho a verdade, e ele a
mentira; esse tipo de estratégia discursiva é extensivamente estudada na obra de
Pierre Bourdieu, sobre os usos sociais das ciências (ORTIZ, 1983, p. 122).
Esse cenário é particularmente evidente em relação ao universo
psicoterapêutico. Carl Rogers, num artigo voltado ao tema, “Pessoas ou ciência? Uma
questão filosófica”, afirma:
À medida que adquiri experiência como terapeuta, desenvolvendo
a excitante e gratificante experiência de psicoterapia, e trabalhando
como investigador científico, apto a descobrir parte da verdade
sobre a terapia, tornei-me progressivamente consciente da lacuna
entre esses dois papéis. [...]Ao me tornar um melhor investigador,
rigoroso e mais científico (como acredito que aconteceu), senti um
desconforto crescente quanto à distância entre minha objetividade
rigorosa como cientista e minha subjetividade, quase mística, como
terapeuta (ROGERS, 1955).

Para lidar com este conflito, Rogers examina com muita sinceridade a atuação
do terapeuta e do cientista; sobre o primeiro ele diz:
Entro no relacionamento terapêutico não como cientista, nem
como médico que pode diagnosticar com precisão e curar, mas
como uma pessoa, entrando numa relação pessoal. Na medida em
que o veja apenas como objeto, o cliente tenderá a se tornar apenas
um objeto. [...] Não estou conscientemente respondendo de modo
planejado ou analítico, mas simplesmente de modo espontâneo,
diante de outra pessoa, sendo minha reação baseada (mas não
conscientemente) na minha sensibilidade organísmica total para
com essa outra pessoa. Vivo a relação nessa base (WOOD, 1994, p.
125).

E sobre sua atuação como cientista:


Abordar o complexo fenômeno da terapia com a lógica e os
métodos da ciência, tem por objetivo trabalhar em direção a uma
compreensão do fenômeno. Em ciência isso significa um
conhecimento objetivo dos eventos e das relações funcionais entre
eles. [...] Deveria ficar claro que, qualquer que fosse a profundidade
de nossa investigação científica, não poderíamos nunca através
dela descobrir qualquer verdade absoluta, mas somente descrever
relações que tivessem uma probabilidade cada vez maior de
ocorrência. [...] Poderíamos apenas descrever relações entre
eventos observáveis (WOOD, 1994, p. 130).

O problema da cientificidade das psicoterapias é complexo. A compreensão


usual das psicoterapias como Psicologia aplicada (FIGUEIREDO, 1995) é

800
reducionista, e disputada e apropriada por técnicas alternativas que lutam por
reconhecimento da comunidade cientifica a partir de discursos de legitimação
próprios. Há uma disputa em que, por um lado, se cobra por flexibilizações e
mudanças nos paradigmas contemporâneos de cientificidade, e por outro, a luta por
critérios que estabeleçam limites e protejam a sociedade contra abusos e usos
indevidos do estatuto de legitimidade conferido pela denominação de uma prática
como psicoterapêutica (Marques, 2010, p. 135). Este debate, no Brasil, tem sido
particularmente intenso em relação à adoção de prática integrativas e
complementares no Serviço Único de Saúde e, mais particularmente, na adoção de
dinâmicas de constelações familiares como parte dos processos de mediação em
varas de família, no sistema judiciário. A Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares (PNPIC) e o chamado Direito Sistêmico são taxados como
religiosistas e pseudocientíficos (TONIOL, 2015). Vamos ver agora esse conflito
dentro do universo específico das Constelações Sistêmicas.

1. A Trajetória de Bert Hellinger


Anton Suitbert Hellinger (1925 – 2019), mais conhecido como Bert Hellinger,
nasceu numa família católica alemã. Sua formação como seminarista acontece nos
anos 40, e se torna padre em 1952. Atuou como missionário durante 16 anos na
África do Sul (COHEM, 2006; BOLZMANN, 2011; HEINZEN E SILVA, n/d); deixou
batina e tornou-se psicanalista. Nos anos seguintes estuda Terapia Familiar, com
Virginia Satyr, Análise Transacional, Psicodrama e Hipnose Ericksoniana (HEINZEN
E SILVA, n/d; FRANKE, 2017, p. 90). No início da década de 1980 Hellinger está
trabalhando como analista transacional e tem contato com as contribuições que vão
modelar seu trabalho com constelações: o conceito de Lealdades Invisíveis, do
psiquiatra húngaro-americano Ivan Boszormenyi-Nagy (1920-2007), e as
Esculturas Familiares de Virginia Satyr. Hellinger vai chamar sua técnica de
Familienaufstellung (representação familiar). Em 1992 ele já está conduzindo
treinamentos em grupo; estas experiências vão ser reunidas em seu primeiro livro,
A Simetria Oculta do Amor, escrito em parceria com Gunthard Weber e Hunter
Beaumont. No lançamento da edição deste livro em inglês, o termo
familienaufstellung foi traduzido como “constelação familiar”, e doravante a técnica
tornou-se conhecida com esse nome. Em 1995 é publicado seu segundo livro, As

801
Ordens do Amor. Em 2000 ele funda a Hellinger Schule e se casa em 2003 com Sophie
Hellinger (OLIVEIRA, FORTUNATO, 2020). Sophie, que tinha então uma longa
trajetória como terapeuta em abordagens alternativas e “energéticas”, vai
influenciar profundamente Hellinger no sentido de caminhar para uma técnica cada
vez mais holística (BASSOI, 2016, p. 56).
Em 2004 acontece uma ruptura importante entre Hellinger e algumas
associações alemãs de terapia sistêmica. Hellinger é acusado de se afastar dos
marcos teóricos e éticos das terapias sistêmicas convencionais; é desligado da
Systemischen Gesellschaft (Sociedade Sistêmica) (SCHILIPPE, 2004); um manifesto
crítico é assinado também pela Deutsche Gesellschaft für Systemische Therapie.
Uma intensa campanha difamatória vai acusa-lo de simpatia com o nazismo
(OLIVEIRA, FORTUNATO, 2020; BERTH, 2020).
Hellinger reage, no ano seguinte, criando a Hellinger Science; seu trabalho
supera os limites terapêuticos e adaptado para usos educativos, organizacionais e
políticos. Em 2006 ele passa a oferecer a primeira graduação em Constelações
Familiares, associado à Universidade Europeia Jean Monnet, em Bruxelas. E desde
então acumula diversos títulos honoris causa na área de Medicina Integrativa. Seu
trabalho conhece um importante crescimento na América Latina e na Ásia. Em 2018
Hellinger transfere o controle da Hellinger Schule para sua esposa, Sophie. E morre
no ano seguinte, com 94 anos.

2. O que é a Constelação Familiar


A constelação é uma técnica terapêutica, de caráter sistêmico e
fenomenológico, em que se oferece ao cliente um ambiente seguro para projetar
espacialmente uma dada realidade interior, normalmente inconsciente, e visualizar
as dinâmicas de ressignificação e alinhamento que conduzem a uma imagem
harmônica, numa sessão de terapia em grupo; o cliente é convidado a escolher, entre
os participantes, um representante para si mesmo, representantes para seus pais e
para outras pessoas que sejam significativas em sua trajetória de vida;
eventualmente podem ser escolhidos representantes para valores, doenças ou
outros elementos. Assim que o cliente posiciona as pessoas, Hellinger interpreta a
“imagem” criada; o posicionamento dos representantes permite identificar as
dinâmicas básicas de relacionamento e os pontos de conflito. Os representantes são

802
incentivados a se manifestarem sobre seus sentimentos num determinado lugar;
dependendo do que dizem, normalmente ao se sentirem desconfortáveis, são então
movimentados pelo constelador. Neste processo os representantes podem ser
solicitados a pronunciar frases que resumem a situação do representante; a
movimentação mexe com os representantes; é comum que se emocionem e que
chorem. O cliente também experimenta uma intensa catarse.
Na imagem inicial o constelador atua basicamente segundo a escultura
familiar de Virginia Satir; o espaço e o posicionamento funcionam como uma
linguagem inconsciente que informa as dinâmicas de comunicação presentes dentro
da família: quem se relaciona com quem, e como; quem é excluído; quem deseja se
reconciliar, quem se sente culpado, quem cobra, etc. A imagem construída pode ser
interpretada a partir da teoria das lealdades invisíveis, de Borzomeny-Naghi. Uma
vez identificado o elemento causador do conflito, o “emaranhamento”, ele é
confirmado e ressignificado na forma de frases sistêmicas, um recurso que usa em
grande medida a hipnose ericksoniana; ocorrem então movimentos entre os
representantes que vão levar à imagem de resolução, um novo posicionamento que
mostra como pode ser encontrado o equilíbrio naquela situação específica. A
movimentação e expressão dos representantes lembra, esteticamente, uma sessão
de psicodrama, principalmente quando o constelador faz intervenções terapêuticas
com algum propósito definido (HELLINGER 2009, 2015, s/d).
A técnica utiliza, em grande medida, leitura corporal; o cliente,
inconscientemente, fornece um grande volume de informações, à medida que reage
emocionalmente ao que acontece; os representantes são colocados num estado em
que se tornam profundamente empáticos e receptivos às impressões do cliente. O
processo de projeção espacial e de catarse mobiliza emocionalmente o cliente e os
participantes, e cria um cenário bastante propício para dinâmicas de ressignificação;
a morte de um ente querido, ou uma determinada situação traumática podem ser
vistas numa perspectiva muito distinta daquela experimentada até então pelo
cliente; este novo olhar tem potencialmente enorme poder transformador na vida
do cliente.
Esta primeira narrativa descreve tecnicamente uma sessão. Toda essa
trajetória é percebida de forma muito distinta pelos adeptos de uma constelação
quântica: nessa lógica uma constelação abre um campo morfogenético, uma

803
condição de caráter espaço-temporal que permite um acesso privilegiado à memória
familiar; nessa condição os representantes colocam-se à serviço de forças que
conduzem a consciência familiar, e vão se posicionar de forma a reproduzir os
emaranhamentos sistêmicos, num primeiro momento, e a curar os bloqueios que
impedem o livre trânsito das forças do sistema; a constelação estaria, nessa leitura,
trabalhando as energias da consciência familiar, e portanto afetando o destino de
todos os envolvidos, além do próprio cliente.

Conclusão
Na medida em que o trabalho das constelações ganha relevância em espaços
laicos como instituições educacionais, sistemas públicos de saúde e centros de
conciliação e mediação judicial, ao mesmo tempo em que se reconfigura cada vez
mais como um espaço de espiritualidade multifacetada, instaura o conflito e a
crescente resistência daqueles que se opõem à presença de elementos religiosos
nestes espaços, vistos, por um lado, como ameaça às técnicas construídas a partir do
método científico, e por outro como ameaça aos grupos que, a partir deste discurso,
monopolizaram o controle dos ambientes educacionais, médicos e jurídicos, e vêm
seu monopólio ameaçado por novos players. Postura que comporta, principalmente,
questões éticas, na medida que sua cientificidade e eficiência tão reforçada
discursivamente, é de difícil verificação prática, e em que as preocupações
financeiras e de status parecem se sobrepor, muitas vezes, ao efetivo atendimento
do público.
Por outro lado, a falta de regulamentação das práticas holísticas e o crescente
apelo e promoção das constelações como solução mágica de dificuldades emocionais
ou comportamentais, cria de fato um ambiente preocupante, novamente do ponto
de vista ético, em que as carências das pessoas são exploradas e alimentam um
rentável mercado de práticas psicoterapêuticas, muitas vezes de duvidosa
eficiência.
Um diálogo entre ciência e espiritualidade tem se revelado, ao longo do
tempo, um importante vetor de transformação e crescimento para ambas as áreas;
os caminhos terapêuticos para a cura são complexos; a combinação entre práticas
tradicionais, ritualistas, sistêmicas, com o universo dialógico das técnicas
construídas academicamente, acrescidas das novas descobertas oferecidas por

804
campos como a neurociência, e oferecidos num ambiente solidamente aferrado à
ética profissional, somente podem enriquecer o instrumental à disposição do
terapeuta. Uma importante contribuição, neste debate, é o conceito de racionalidade
médica, proposto pela socióloga brasileira Therezinha Madel Luz. Segundo Luz, as
racionalidades médicas devem integrar cinco dimensões básicas concebidas a partir
de modelos teóricos, simbólicos ou práticas: (1) uma morfologia humana; (2) uma
dinâmica vital humana; (3) uma doutrina médica; (4) um sistema de diagnose; e (5)
um sistema terapêutico. Todas elas estariam inseridas em uma cosmologia,
orientadas por raízes filosóficas, simbólicas e culturais. Através do conceito, Luz faz
comparações entre a biomedicina, a medicina tradicional chinesa, a ayurveda e a
homeopatia (LUZ 2013, p. 3595; 1993, p. 6).
As chamadas práticas integrativas e complementares em saúde (PICS) se
diferenciam da medicina baseada em evidências porque constituem saberes ou
condutas menos estruturadas epistemologicamente. Essas abordagens podem
variar de acordo com a cultura, a época histórica, a formação do médico e até mesmo
a filosofia de cuidados de saúde adotada.
Em resuma, as “racionalidades médicas” são as diferentes maneiras pelas
quais os profissionais de saúde abordam a prática médica, cada uma com suas
próprias crenças e métodos. A escolha da abordagem pode variar de acordo com a
cultura, a formação do médico e as preferências do paciente, mas todas têm o
objetivo comum de melhorar a saúde e o bem-estar das pessoas. Cada uma dessas
racionalidades médicas tem seus próprios princípios, métodos de diagnóstico e
tratamento, e filosofias subjacentes. Deixando de lado o debate, muitas vezes pouco
produtivo, dada sua subjetividade, das evidências cientificas de eficácia do
tratamento, mas colocando ênfase no efetivo oferecimento de cuidado emocional, e
em suas implicações éticas, o terapeuta pode, com muito mais sucesso, adotar
abordagens de múltiplas racionalidades, dependendo do paciente e da situação.

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807
INÍCIO DE PESQUISA: O ADOLESCER NA VIDA RELIGIOSA DAS
FAMÍLIAS PASTORAIS

Mariana Pacheco Moraes Nascimento1

Resumo: Filhos e filhas de pastores não escapam das experiências típicas da adolescência,
e frequentemente enfrentam pressões adicionais e expectativas inalcançáveis. As famílias
pastorais possuem uma dinâmica específica, se desgastam com a miscelânea de emoções
que envolvem o trabalho pastoral e muitas vezes, os descendentes estão imersos ao ofício
do pai. Essa sobrecarga pode levá-los a perceber suas próprias necessidades como
obstáculos a serem superados, o que tem potencial de afetar adversamente sua saúde física
e mental.2 Por outro lado, a religiosidade que promove a autonomia pode desempenhar um
papel preventivo e promotor de saúde ao longo da adolescência. É importante notar que
uma grande porcentagem dos distúrbios mentais surge na adolescência, mas a maioria não
é reconhecida ou tratada. Compreender os desafios enfrentados por adolescentes, em
contextos religiosos e familiares específicos, ajudará na investigação a respeito da medida
em que o tornar-se adolescente influencia na vida religiosa de descendentes de pastores. A
pesquisa poderá contribuir na sociedade como um fator de proteção, visto que adolescentes
religiosos se colocam em menos comportamentos de risco (comportamento sexual, uso de
drogas, conduta violenta, antissocial e suicidário) comparativamente com os não devotos.3
Esta publicação é uma parte conceitual de uma revisão teórica mais abrangente sobre
adolescência, religiosidade e famílias pastorais, que servirá como base para a minha
dissertação de mestrado.
Palavras-chave: Adolescência; Religiosidade; Saúde Mental; Famílias Pastorais.

Introdução
As famílias pastorais estão constantemente em exposição diante à
comunidade. O pastor pode ser alguém muito admirado, valorizado e respeitado na
igreja, entretanto, na convivência familiar, o pai talvez seja alguém diferente nas
maneiras, atitudes e formas de falar. Filhos e filhas de pessoas que exercem outras
funções, normalmente não acompanham tão de perto o trabalho do pai. No entanto,
descendente de pastor, algumas vezes, não tem a opção de não acompanhar o pai,
visto que, entre vários outros possíveis motivos, a comunidade da igreja espera ter
contato próximo com família pastoral, os filhos são vistos como uma extensão de seu
trabalho. Na mentalidade de muitos, não é tolerado que homens dedicados ao

1 Psicóloga, pós-graduada em saúde mental e desenvolvimento humano e mestrado em andamento


em teologia pelas faculdades EST. E-mail: maripsi@outlook.com.br.
2 NAKANO, Érika Feltrin Marques. Burnout, representação social e discurso do sujeito coletivo em

pastoras e pastores. 2017. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.


3 JAHN, Guilherme Machado; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco. A religiosidade em adolescentes

brasileiros. Revista de Psicologia da IMED, Passo Fundo, v. 9, n. 1, p. 38-54, 2017.

808
ministério pastoral, que estão sempre compartilhando da palavra de Deus, tenham
crises familiares. Existe um mito de que as famílias pastorais sejam perfeitas,
entretanto, é perceptível que ninguém está imune a divergência e conflito. Alguns
pais perpassam a expectativa da comunidade eclesiástica para as crianças, e muitas
vezes, é na adolescência que o filho ou a filha percebe que esta era uma demanda da
congregação e não meramente familiar, o que pode gerar indignação.

1. Adolescência
Adolescer e o ato de entrar na adolescência, palavra sinônimo para crescer.
O conceito de existir um período que separa a infância da idade adulta e recente na
sociedade e ainda não existe um consenso de quando inicia e termina essa etapa, ou
seja, sua duração é misteriosa. Tófoli (2018, p. 5) diz que neste período os pais
passam por uma espécie de limbo, pois, falta conhecimento e divulgação sobre esta
fase da vida. Durante a infância, os cuidadores são mais abertos para compartilhar
suas experiências e pedir ajuda a respeito do comportamento da criança. Na
adolescência, os genitores tendem a esconder, visto que alguns, sentem vergonha da
atitude do adolescente ou do julgamento dos outros pais e mães, sentindo como se
houvessem falhado na educação do filho ou filha.
Calligaris (2009, p. 12) reafirma a adolescência como uma espécie de
“moratória social”, termo que também foi utilizado por Erik Erikson (1968),
enfatizando que neste período o sujeito está apto para várias atividades, mas a
sociedade o obriga a aguardar por algo que nem o responsável ou o próprio
adolescente sabe o que é. Segundo o autor, a adolescência é uma interpretação dos
sonhos dos adultos, e estes colocam que o adolescente tem o dever de ser feliz, pois,
esta é a etapa da vida em que todos idealizam, como se o adolescente não sofresse,
amasse ou vivesse de verdade. Conforme o autor, por ser a fase entre a infância que
ficou para trás e o adulto que ainda não chegou, essa época da vida pode ser
entendida como a mais vulnerável em relação à de autoestima, depressão e
tentativas de suicídio, sendo a insegurança uma característica própria desta etapa
da vida.
A formação da identidade própria é um processo extenso e desafiador, é um
trabalho para a vida toda, conforme Crestani (2016, p. 35). No entanto, esse
percurso pode se tornar menos árduo e mais fácil quando o adolescente encontra

809
um modelo de identificação, uma figura de referência que ele escolhe como exemplo.
Além disso, o conhecimento do adulto sobre a adolescência contribui para uma
maior aproximação e afinidade entre ambos. O autor apresenta alguns sinais que
atestam a uma boa identidade, entre eles está o sujeito que possui seu projeto e
conscientemente trabalha e luta para torná-lo real (CRESTANI, 2016, p. 68).
Em sua tese, Miranda (2003, p. 127) descreve a adolescência como um
“descortinar de possibilidades” em que elas devem ser conquistadas e rejeitadas a
cada dia, fazendo da vida e com a vida o sentido de viver. A busca da identidade é
percebida como um processo dinâmico, ativo e turbulento, de autonomia, de
posicionar-se no mundo como único e reconhecível, em que se pretende combinar
individualidade e liberdade com unidade e solidariedade com o seu intenso
universo. A autora pontua que a família é o núcleo central das socializações, pois, é
nela que ocorrem as etapas iniciais mais importantes e determinantes da
individuação e da inserção social, o que moldará o comportamento e o sentimento
de identidade da criança. São as pessoas significativas e importantes para o
adolescente que podem contribuir, positiva ou negativamente, na composição das
imagens do próprio eu, para identidade e a fé em formação. O que dá sentido para a
vida dos adolescentes são os familiares, a escola, os amigos, Deus e a confiança neles
próprios. Para a autora, por meio da projeção da fé, o adolescente começa a se
reconhecer como alguém que tem valor e pode desempenhar tarefas importantes e
significativas sem perder o sentido de sua própria identidade no mundo adulto. O
sentimento de confiança nas figuras parentais e em si próprio se converte em
crenças e valores que guiam a fé externa do adolescente.
Knobel e Aberastury (1992), psicanalistas argentinos que estudaram por
muitos anos a adolescência, entenderam que, para o adolescente ser normal, ele
precisa apresentar uma série de “sintomatologia”. Para eles, o normal da
adolescência é não se encaixar nos padrões que a sociedade exige. A exteriorização
é a principal característica do desenvolvimento dentro do contexto cultural e social
na adolescência. Nesse período o sujeito passa a ter novos conceitos a respeito de si,
o que faz com que ele rejeite a sua autoimagem infantil e se projete no futuro de sua
vida adulta. Esse processo faz com que o adolescente exteriorize seus conflitos, e ele
o faz conforme a sua estrutura e suas experiências. Os autores percebem a
adolescência não apenas como uma etapa estabilizadora, mas sim, como um

810
processo contínuo de desenvolvimento, destacando inclusive que as crises
religiosas são uma das características dessa fase, pois, os adolescentes passam a se
preocupar mais com questões metafísicas, e essas crises religiosas não são apenas
reflexos caprichosos do místico, como às vezes pode parecer para os adultos. Em vez
disso, são tentativas de enfrentar a angústia existencial enquanto buscam
identificações positivas e confrontam o fenômeno da mortalidade de seu ego
corporal. Para a construção dos valores éticos, morais e ideológicos, é preciso que o
adolescente desenvolva novas crenças e ideologias de vida.

2. Religiosidade
Fugindo de uma conceituação genérica de religião, Paiva (2022, p. 31) sugere
que ela seja feita de modo substantivo, a partir do uso linguístico, considerando sua
pluridimensionalidade: subjetiva, social e cultural. O autor apresenta que a pessoa
possui ou não uma religião, mas a religião é fundamentalmente compartilhada entre
indivíduos, dando forma e significado à sua experiência no mundo, visto que ela gira
em torno do eixo central das convicções e crenças ideológicas. “Cada forma religiosa
e um complexo de sistema de símbolos, ritos, doutrinas e injunções morais” (PAIVA,
2022, p. 192)
Uma das conceituações mais aceitas hoje sobre religiosidade é a de Koenig:
Religião pode ser definida como um sistema de crenças e práticas
observados por uma comunidade, apoiado por rituais que
reconhecem, idolatram, comunicam-se com, ou aproximam-se do
Sagrado, do Divino, de Deus (em culturas ocidentais), ou da
Verdade Absoluta da Realidade, ou do nirvana (em culturas
orientais). A religião normalmente se baseia em um conjunto de
escrituras ou ensinamentos que descrevem o significado e o
propósito do mundo, o lugar do indivíduo nele, as
responsabilidades dos indivíduos uns com os outros e a natureza
da vida após a morte (KOENIG, 2012, p. 11).

O termo religiosidade e espiritualidade com frequência aparece nos estudos


de uma maneira entrelaçada. Silva e Silva (2004, p. 208) afirmam que “a
espiritualidade pode ser definida como um sistema de crenças que engloba
elementos subjetivos, que transmitem vitalidade e significado a eventos da vida”,
que pode ou não estar vinculada com uma religião. Camboim e Rique (2015, p. 251),
concluíram que os adolescentes comumente estavam mais envolvidos em práticas
religiosas e frequentam mais as instituições religiosas que os jovens.

811
A fé dos adolescentes e suas vivências religiosas ocorrem no mundo real, no
meio de dificuldades, contradições e anseio por proteção. Nesta etapa da vida, as
necessidades prioritárias incluem envolvimento ou afeição, apreço ou mérito, e a
escolha individual de tarefas a serem executadas é uma experiência fundamental. A
religiosidade dos adolescentes está ligada às circunstâncias específicas de suas
vidas, independentemente de serem ligadas ou não à religião dos pais (GUIRAL,
2017, p. 101)

3. Famílias pastorais
Torres (2009, p. 99) cita um trecho do livro Mulher Sem Nome, em que a
autora diz o seguinte: “a família do pastor é como aqueles manequins que estão
sempre na vitrine das lojas. Os transeuntes passam; uns olham, gostam ou não
gostam, enquanto outros são indiferentes” (Dusilek, 1995 apud Torres, 2009, p. 99).
Algumas vezes, esta não é uma situação confortável para estar. Frequentemente,
membros da igreja não percebem que os filhos de pastores são como qualquer outra
criança, com suas habilidades e desafios. É cobrado de um ser que não teve a
oportunidade de escolha, algo que não é humano. A expectativa de uma família
pastoral perfeita existe, e é necessário muito cuidado e atenção dos responsáveis,
para que os filhos sejam percebidos como indivíduos que detém necessidades
espirituais e sociais como os demais membros da igreja, e não como protótipos de
santidade perfeita.
Valim e Buhr (2019, p. 69) afirmam ser possível que famílias pastorais
enfrentem pressões para suprir as expectativas de sua igreja, mas também que elas
podem estar emocional e espiritualmente saudáveis, desenvolvendo seus dons na
comunidade com qualidade e transmitindo aos membros da igreja a segurança que
vem da família à qual pertencem. É comum que filhos de pastores tenham grandes
oportunidades para se desenvolverem em diversos aspectos da vida, recebam
carinho genuinamente de irmãos da igreja e é possível também que a família seja
relativamente estável emocionalmente, existindo assim privilégios de fazer parte da
família pastoral.
As famílias pastorais podem encontrar crises familiares como qualquer
outra, porém, muitas vezes sentem que são capazes de resolver seus problemas
sozinhos ou acreditam que não existe possibilidade de ajuda fora do contexto

812
familiar, visto que estão acostumados a lidar com as demandas externas. O trabalho
pastoral é visto como uma missão que envolve a salvação espiritual, o auxílio aos
necessitados, ser o reflexo de Cristo em seu ambiente e preparar sermões para
influenciar espiritualmente uma comunidade. Muitas vezes as demandas acontecem
fora do horário convencional de trabalho, cenário que pode representar um grande
desafio para conciliar com a vida familiar. Segundo Valim e Behr (2009, p. 74), os
filhos podem sentir afetados, percebendo que a igreja tira a atenção de seus pais do
ambiente familiar, o que pode gerar ciúmes em algumas situações. Os membros da
comunidade religiosa podem perceber os filhos de pastores como participantes na
função que seus pais exercem e não considerar as singularidades de cada indivíduo.
Além disso, eles podem ser alvos de fofocas, e, em alguns casos, os membros
acreditam que podem mandar, cobrar e avaliar, pois, os filhos fazem parte do
“pacote pastoral”, conforme os autores (VALIM e BEHR, 2009, p. 75).

Considerações finais
Na adolescência, a convivência familiar é fundamental. O adolescente precisa
ser escutado, precisa sentir que é valorizado e levado em consideração como um ser
humano. Deve existir consenso entre o que é dito para a igreja e o que acontece em
casa. O pastor e pai precisa entender que ele mesmo é uma pessoa como qualquer
outra, com desejos, personalidade, habilidades e defeitos, assim como o seu filho ou
sua filha. Tal qual todos os outros pais falham em determinados momentos, os
pastores não estão ilesos a isso e não devem cobrar a perfeição de si próprio ou do
adolescente. Além disso, o pai precisa lembrar da sua função paterna em casa e que
o adolescente não é meramente um de seus membros da congregação.

Referências
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CAMBOIM, Aurora; RIQUE, Julio. Religiosidade e espiritualidade de adolescentes e


jovens adultos. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 3, n. 7, 2015

CRESTANI, Irmão Alfredo. Adolescência: tentando compreender o que é difícil


entender. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2016.

GUIRAL, E. C. V. S. As experiências e os significados de fe e religiosidade para


adolescentes em conflito com a lei. Dissertação de Mestrado, Universidade de São
Paulo, 2017.

813
JAHN, Guilherme Machado; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco. A religiosidade em
adolescentes brasileiros. Revista de Psicologia da IMED, Passo Fundo, v. 9, n. 1, p. 38-
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NAKANO, Érika Feltrin Marques. Burnout, representação social e discurso do sujeito


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TÓFOLI, Daniela. Pré-adolescente: Um guia para entender seu filho. Rio de Janeiro:
Globo Livros, 2018.

TORRES, Tânia M. Lopes. Agridoce: a vida da esposa de pastor. Belo Horizonte:


Edição do autor, 2009.

VALIM, Cinara Costa de Souza; BUHR, João Rainer. Uma análise dos desafios das
famílias envolvidas no ministério pastoral. Revista Cógnito, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 68-
86, 2019.

814
A MORAL TEÔNOMA NOS CUIDADOS EM SAÚDE

Michel Eriton Quintas1


Waldir Souza2

Resumo: Na contemporaneidade, os cuidados em saúde aparecem cada vez mais imbuídos


da reflexão bioética, o que implica que princípios como a autonomia e a liberdade são
sempre orientativos para os processos saúde-doença e relações médico-paciente. Na esteira
do reconhecimento dos conflitos entre heteronomia e autonomia que, desde a crítica da
razão prática, também se concretizam nos ambientes de cuidado, o artigo objetiva
apresentar a moral cristã – como moral teônoma – em benefício destes. Para tanto, mediante
metodologia bibliográfica com análise e discussão de conteúdo, propõe-se: distinguir
brevemente heteronomia, autonomia e teonomia; reconhecer a importância da
espiritualidade e da religiosidade para a saúde; e relacionar a moral com as possibilidades
de cuidados. Deste modo, vê-se a necessidade da participação ativa dos próprios indivíduos
nas dinâmicas de decisão sobre as intervenções que lhes foram orientadas. De modo que a
moralidade teônoma proposta pelo cristianismo favorece não apenas a auto implicação de
um sujeito cujo relacionamento com Deus ilumina a consciência da responsabilidade para
declinar ou aderir a uma prática, mas também reflete em correntes bioéticas, como a
principialista e a personalista. Conclui-se, portanto, que a presente reflexão pode figurar
com mais um argumento para o presente debate, sobretudo ao apresentar relevância nas
tentativas dirimir os impasses que ameaçam a dignidade humana em ambientes
vocacionados para o exercício da técnica com sensibilidade e delicadeza.
Palavras-chave: Corpo; Ética; Bioética; Teologia.

Introdução
Nos últimos anos, vimos que “espiritualidade, religião e religiosidade têm
relação com a saúde humana [e que esta] é uma assertiva que já se tornou senso
comum” (ESPERANDIO, 2020, p. 7). Isso implica que, entre as práticas de cuidados,
estão presentes muitos elementos. Dentre eles, os conflitos entre consciência,
liberdade, lei e responsabilidade aparecem com grandes complexidades desde as
influências das religiões, tradicionalmente propícias à sujeição. Deste lugar, então,
pode-se falar das estratégias de bases religiosas e espirituais de enfrentamento de
situações de estresse, o coping (PARGAMENT, 1997 apud ESPERANDIO et al., 2017,
p. 304), atrelado a um conjunto de crenças, do qual a moral faz parte, estabelecidas

1 Doutorando e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); e


bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior (CAPES). E-mail:
michel.quintas@pucpr.edu.br.
2 Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); e professor

adjunto dos Programas de Pós-graduação em Teologia e Bioética da PUCPR. E-mail:


waldir.souza@pucpr.br.

815
para “dominar, reduzir ou tolerar as demandas internas e/ou externas que são
criadas por [estas] operações” (ESPERANDIO et al., 2017, p. 307).
Nesse sentido, ao pensarmos a moral como costumes e “valores de uma
sociedade, numa determinada época” e a moralidade como “sistema regulador da
vida [...] por meio de mores” (CHAUÍ, 2000, p.446), bem como a exigência de
cumprimento do dever que dela decorre, propomos algumas aproximações entre o
debate clássico da razão existencial (heteronomia e autonomia) e a teoria de Paul
Tillich (teonomia) para apresentar a moral cristã em benefício – e não em
detrimento – de processos saúde-doença e relações médico/profissional-paciente
mais próximas do que se poderia chamar de enfrentamento positivo. Para tanto,
julgamos necessário: aproximar moral e moralidade do conceito de coping;
distinguir brevemente heteronomia, autonomia e teonomia; e relacionar a moral
com as possibilidades de cuidado.

1. Espiritualidade, religiosidade e moral em saúde


Na medida que o coping “diz respeito aos elementos do sagrado na forma de
responder [aos cenários estressores]” (ESPERANDIO et al., 2017, p. 307), reiteramos
a importância de pensar também os elementos da moral que, por sua vez,
contribuem no direcionamento dos processos (de forma positiva ou negativa) e
incidem nas práticas de cuidado, contribuindo com elas ou dificultando-as. De saída,
vemos em Piaget a importância do desenvolvimento da moralidade não como
imposição de regras, mas feito possibilidade de reflexão sobre elas para a produção
de algum consenso que favoreça a autonomia (REGO, 2003, p. 81). Por esta razão,
entendemos que pensar a moral é pensar o exercício da autodeterminação em uma
vida marcada por dependências, e não nas leis que se estabelecem ao longo dos
processos.
A este cenário aludimos também em teologia moral para que ela possa
favorecer a liberdade e a consciência, na direção do cuidado e da responsabilidade,
e não a mera formulação de manuais. Isto implica contornar a heteronomia, ou seja:
impedir a isenção do indivíduo na tomada de decisões relativas às práticas de
cuidado (na relação médico-paciente); e protegê-lo da imposição das vontades
alheias sobre tais práticas (na relação médico-paciente e na mediação dos conflitos
espirituais por eventuais autoridades religiosas). Nesse sentido, ao pensarmos a

816
moral cristã no conjunto dos recursos que os indivíduos consultam para definir suas
posições diante das contingências humanas, parece-nos fundamental falar de
autonomia. E Piaget mesmo entende a autonomia como “liberdade do
constrangimento causado pela heteronomia” (DUSKA; WHELAN apud REGO, 2003,
p. 83).

2. Heteronomia, autonomia e teonomia


Do ponto de vista cristão e, obviamente, tratando de coping
religioso/espiritual, há, ainda, outro elemento que pode ser colocado: a moral
teônoma. Em Tillich, se a heteronomia é a reivindicação da autoridade por um
sujeito finito, em nome do infinito e, portanto, marcada pelo autoritarismo, onde a
moral é dada pelo agente especializado – o padre, pastor ou de qualquer que seja o
produtor do capital simbólico (cf. BOURDIEU, 1989, p. 7-16) –, é certo que ela não é
capaz de satisfazer o compromisso ontológico do humano. Já a autonomia, ao
preservar a liberdade (TILLICH, 2005, p. 157-158), dá espaço para a elaboração da
teonomia, ou seja, de uma autodeterminação que considera o relacionamento com
Deus e, satisfazendo sua vocação, satisfaz a vontade do Criador.
A teonomia está baseada na revelação, impede que a razão autônoma perca
em profundidade e sentido e que a razão heterônoma se estabeleça contra a
autonomia. Ela, por fim, liberta (TILLICH, 2005, p. 157-158). A moral cristã,
portanto, é este lugar de teonomia, da prática do amor desde as particularidades das
experiências de cada pessoa. Se concreta, deve favorecer o coping
religioso/espiritual positivo. Deus, na figura de companhia, corrobora com o
processo de discernimento. A moral do sujeito, portanto, não recorre às respostas
binárias de sim e não construídas pelas instituições. Do contrário, pode analisar as
orientações desde sua pertença religiosa para decidir, na concretude da dor, pela
decisão mais adequada. Enquanto uma moral heterônoma poderia colocar o
indivíduo em negação e sofrimento devido a uma orientação contrária às normas da
Igreja, a moral teônoma poderia transgredir a norma para colocar a fidelidade
consigo em primeiro lugar.
Isto não significa, de nenhuma maneira, que ela resolva a totalidade dos
conflitos da espiritualidade, religiosidade e saúde. Ela não tem o poder de convencer,
por exemplo, mulheres de fé que pensam no aborto a fazê-lo, sequer de apelar às

817
Testemunhas de Jeová para aceitarem transfusões de sangue. Isto porque seu papel
não é o do convencimento, mas do discernimento que oferece paz ao indivíduo
porque ele se torna qualificado a produzir seu próprio convencimento acerca da
melhor decisão. Por esta razão, em ambos os casos, a moral teônoma é capaz de
diminuir o sofrimento, sobretudo na medida que se desloca do campo da culpa para
o campo da responsabilidade. Logo, é preciso considerar que cada pessoa envolvida
em uma situação deve protagonizar o papel de agente ético-moral e não figurar
apenas como objeto inerte sobre o qual se propõe tal reflexão (CARLOTTI apud
ZACHARIAS, 2020, p. 305).

3. Moral e cuidados em saúde: aproximações com a bioética


Deste modo, defendemos a relação entre moral teônoma e coping
religioso/espiritual positivo. A norma não é extrínseca, o indivíduo não se aliena,
não se resigna às escolhas alheias e não vê conflito entre a sua vontade e a vontade
de Deus. A moral, então, possibilita ao crente uma – ainda – maior liberdade. De
modo que falamos em uma convergência na direção daquilo que a bioética
compreende por princípios, a saber, autonomia, não-maleficência, beneficência e
justiça (ANJOS, 1996, p. 138), mas também, com as elaborações das correntes
personalistas, onde o indivíduo faz a mediação das relações de cuidado a partir de
sua história – sua cultura, suas crenças, sua moral. Há, portanto, um acento
antropológico “na capacidade e vocação [do ser humano] a dar sentido às coisas e ao
próprio rumo de sua vida [...] [que] valoriza a racionalidade teleológica dos juízos e
normas éticas” (ANJOS, 1996, p. 139, grifo nosso).
Isto significa proteção frente uma eventual frustração por não obter aquilo
que esperava através da decisão alheia, como nos casos em que a autoridade
religiosa orienta o abandono do tratamento, tido como desnecessário, em virtude da
crença de que Deus oferecerá uma cura... e isso não acontece. Em suma, é importante
reiterar – e voltando ao conceito de coping – que a moral teônoma não exclui o
indivíduo da participação dos processos. Não o retira de cena, prometendo-lhe
intervenções mágicas. Do contrário, propõe torná-lo comprometido com as práticas
concretas de cuidado (adesão ao tratamento/ressignificação da
cura/ressignificação da morte/Deus como figura de amparo/imposição de limites
para as intervenções que prolongariam seu sofrimento e não sua vida – distanásia –

818
etc.) na direção do bom enfrentamento. A moral teônoma ampara a capacidade de
autodeterminação do indivíduo e lhe fornece elementos para participar ativamente
da vida – e não para lhe eximir dela, transformando-o em objeto passivo e sujeito à
manipulação irrestrita da técnica/da dominação alheia.

Considerações finais
Assim, concluímos que a espiritualidade e a religiosidade são relevantes para
o campo da saúde, mas também que a heteronomia não pode imperar nas práticas
de cuidado. Estas, por sua vez, devem ser mediadas pela liberdade autônoma do
indivíduo (teonomia). Deste modo, ainda que ele dependa de uma rede de apoio para
ser cuidado, sua vontade é colocada em prática. Aqui, os profissionais oferecem
informações claras e respeitam a liberdade e o estado de direito daqueles que se
encontram sob seus cuidados (MARCHI, SZTAJN, 2009, p. 1), na direção do “poder
que tem o usuário de decidir que profissional escolher, que tratamento aceita ou
admite, seja por razão de credo ou não, determinando seus interesses, que exerce de
forma independente” contra “o poder [...] que alguns profissionais pretendem ter,
de determinar como seus pacientes devem se comportar, impondo sua vontade”
(MARCHI, SZTAJN, 2009, p. 3-4, grifo nosso).
Por fim, ainda que o itinerário estabelecido tenha argumentado na direção de
reconhecer uma moral madura como fator protetivo frente o sofrimento, acenamos
para a necessidade de aprofundamento da questão. De todo modo, os elementos
postos no âmbito deste artigo já parecem suficientes para justificar uma atenção
especial voltada as relações da moral com o coping, quiçá na mesma direção da
discussão da moral no campo (geral) da saúde. Por fim, em virtude de escopo e
extensão, tratamos da razoabilidade argumentativa, reconhecendo seus limites,
dentre os quais está a necessidade – futura – da soma de métodos empíricos e
quantitativos para maiores esclarecimentos quanto aos fenômenos em questão.

Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1989.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

819
ESPERANDIO, Mary Rute Gomes. Espiritualidade e saúde: a emergência de um
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820
ENTRE O DIVINO E O NARCISISMO: REFLEXÕES SOBRE RELIGIÃO, AMOR E
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Rene Dentz 1

Resumo: Este texto aborda a complexa interseçao entre religiao e narcisismo, explorando
perspectivas do filosofo cristao Jean-Luc Marion, do Papa Francisco e do psicanalista
Christopher Lasch. Marion desafia concepçoes tradicionais, destacando a revelaçao divina
como incondicional e misteriosa, contrastando com a mentalidade narcisista
contemporanea. O Papa Francisco enfatiza a importancia da misericordia divina e convoca
os fieis a praticarem gestos de generosidade. Lasch critica a cultura narcisista, apontando
seu impacto nas relaçoes sociais e na busca por prazeres passageiros. A reflexao explora as
nuances do narcisismo na sociedade consumista, destacando a superficialidade das relaçoes
e a busca incessante por autoafirmaçao. A felicidade, muitas vezes procurada de forma
egocentrica, torna-se o equivalente moderno da salvaçao. A analise revela a dificuldade de
construir pontes genuínas entre o eu e o outro, desafiando o apelo do Papa Francisco para a
construçao de uma “cultura do encontro”. A segunda parte do texto aprofunda a interseçao
entre teologia e psicanalise, destacando a importancia da subjetividade e da escuta na
compreensao da condiçao humana. A reflexao culmina na necessidade de uma teologia que
considere a corporeidade pulsional e vulneravel da pos-modernidade. O cuidado pastoral,
inspirado na mística da Encarnaçao, e apresentado como uma abordagem honesta diante
das armadilhas do narcisismo, promovendo uma resistencia baseada na escuta e na
esperança. Em ultima analise, o texto propoe a construçao de uma sociedade mais justa e
humana atraves da busca pela gratuidade divina e da sabedoria do amor, desafiando a
cultura narcisista predominante.
Palavras-Chave: Narcisismo; Encontro; Amor; Gratuidade; Paradoxos.

Introdução
A complexa interseçao entre a religiao e o narcisismo revela-se como um
campo fertil para a compreensao da dinamica humana contemporanea. O filosofo
cristao Jean-Luc Marion desafia concepçoes tradicionais ao argumentar que a
revelaçao divina ocorre de maneira incondicional e alem de qualquer logica
previsível. Deus, segundo Marion, doa-se sem limites, convidando-nos a um
encontro pessoal e misterioso com o divino. Essa visao contrasta com a perspectiva
narcisista prevalente na sociedade atual, onde o indivíduo e muitas vezes guiado por
uma busca incessante por autoafirmaçao, consumismo desenfreado e satisfaçao
imediata.
O Papa Francisco, adotando uma abordagem pastoral, destaca a importancia
da misericordia e do amor incondicional de Deus, manifestados especialmente no
perdao, na compaixao e na busca pela justiça social. Ele convoca os fieis a serem
agentes dessa gratuidade divina, estendendo-a aos outros por meio de gestos de

1
Doutor em Teologia pela FAJE e professor na PUC-Minas. E-mail: dentz@hotmail.com.

821
generosidade e solidariedade. A religiao, portanto, emerge como um chamado para
promover uma cultura do encontro e acolhimento, desafiando a mentalidade
narcisista que permeia a sociedade contemporanea. Christopher Lasch, renomado
psicanalista, entra na discussao ao analisar a cultura narcisista na sociedade
moderna. Ele aponta para a enfase na individualidade e autoestima inflada na
sociedade consumista, resultando em relaçoes sociais superficiais e uma busca
incessante por prazeres passageiros. A crítica de Lasch destaca como o narcisismo
enfraquece os laços comunitarios, comprometendo a solidariedade social e a
formaçao de relacionamentos significativos. A seçao seguinte explora as nuances
dessa problematica, destacando a influencia do narcisismo contemporaneo nas
relaçoes humanas, especialmente no ambito do amor. A felicidade, muitas vezes
buscada de maneira egocentrica, torna-se o equivalente moderno da salvaçao. A
analise do narcisismo revela a dificuldade de construir pontes genuínas entre o eu e
o outro, desafiando o apelo do Papa Francisco para a construçao de uma “cultura do
encontro”. A segunda parte do texto mergulha em uma analise mais profunda,
explorando a interseçao entre teologia e psicanalise. Destaca-se a importancia da
subjetividade e da escuta na compreensao da condiçao humana, evidenciando como
a externalizaçao e a estetizaçao na pos-modernidade impactam a construçao da
identidade. O dialogo entre teologia e psicanalise emerge como um caminho para
resgatar a dimensao relacional, superando a polarizaçao entre interioridade e
exterioridade. A reflexao se aprofunda na compreensao do corpo como elemento
fundamental na abordagem teologica e psicanalítica. O esquecimento do corpo e a
negaçao do afeto sao apontados como geradores de uma espiritualidade paranoica
e repressiva. A enfase na escuta, proposta pelo Papa Francisco, destaca a importancia
de reconhecer a dimensao do afeto e situar o sujeito em suas dimensoes reais,
superando projeçoes vazias e racionalizaçoes. A conclusao destaca a necessidade de
uma teologia que considere a corporeidade pulsional e vulneravel da pos-
modernidade. O cuidado pastoral, inspirado na mística da Encarnaçao, e
apresentado como uma abordagem honesta que reconhece a ferida aberta na
humanidade contemporanea. Em ultima analise, a reflexao propoe que a resistencia
as armadilhas do narcisismo se encontra nas novas manifestaçoes da corporeidade,
onde a escuta e a esperança resistem diante das ameaças da morte.

822
1. Paradoxos contemporâneos
O filosofo cristao Jean-Luc Marion argumenta que Deus revela-se a nos de
forma incondicional e alem de qualquer logica previsível. Ele doa-se a nos sem
limites e sem exigencias, caracterizando a sua natureza como pura gratuidade. Essa
concepçao desafia visoes tradicionais e abre espaço para um encontro pessoal e
misterioso com o divino. O divino encontra-se na diferença, no outro que expressa o
infinito, sendo impossível conceitua-lo de forma absoluta. Nesse sentido, a religiao
deve promover uma cultura do encontro e do acolhimento.
O Papa Francisco adota uma abordagem pastoral ao abordar a questao da
gratuidade. Ele enfatiza a importancia da misericordia e do amor incondicional de
Deus. Segundo o Pontífice, a gratuidade divina manifesta-se especialmente no
perdao, na compaixao e na busca pela justiça social. Ele nos encoraja a sermos
agentes dessa gratuidade em nossas proprias vidas, estendendo-a aos outros por
meio de gestos de generosidade e solidariedade.
Ao considerarmos essas diferentes perspectivas, somos convidados a refletir
sobre a gratuidade divina em sua totalidade, reconhecendo tanto a sua dimensao
pessoal e misteriosa quanto a sua implicaçao na transformaçao do mundo. A
gratuidade em Deus e um convite para vivermos uma vida de generosidade,
compaixao e justiça, trazendo esperança e transformaçao para aqueles que a
experimentam e para o mundo ao nosso redor. Tambem considerando a perspectiva
psicanalítica, a relaçao interesseira com Deus pode ser vista como contraditoria, pois
se assemelha a uma relaçao narcisista. Essa concepçao refere-se a um termo
desenvolvido por Freud para descrever a fixaçao excessiva ou o amor por si mesmo.
Segundo a psicanalise, o narcisismo e uma fase normal do desenvolvimento
psicossexual humano, porem, quando persiste de forma patologica na vida adulta,
pode levar a problemas psicologicos. Christopher Lasch, um renomado psicanalista
e crítico social, analisou a cultura contemporanea e o narcisismo na sociedade
moderna. Ele argumentou que a cultura ocidental estava passando por uma
mudança em direçao a uma personalidade narcisista, impulsionada pelo
consumismo e pela busca incessante de satisfaçao imediata.

823
2. Narcisismos contemporâneos
A sociedade consumista enfatiza o individualismo e a autoestima inflada,
promovendo uma mentalidade narcisista. As pessoas se tornam cada vez mais
centradas em si mesmas, buscando sua propria satisfaçao e gratificaçao imediata,
sem considerar o bem-estar dos outros ou o impacto de suas açoes na comunidade.
Isso resulta em relaçoes sociais superficiais, falta de comprometimento e uma busca
constante por estímulos e prazeres passageiros. Lasch tambem criticou a industria
cultural e a mídia por promoverem um ideal de vida baseado na aparencia, no
consumo e na busca constante por autoafirmaçao. Ele argumentava que a cultura
narcisista estava minando a capacidade das pessoas de desenvolver
relacionamentos significativos, compromissos duradouros e um senso de proposito
e significado na vida. Ao criticar o consumismo, Lasch ressaltou que a busca
incessante por bens materiais e o consumismo desenfreado estavam substituindo
valores mais profundos, como solidariedade, responsabilidade social e
autoconhecimento. Ele acreditava que o consumismo exacerbado levava as pessoas
a dependerem de coisas externas para sua satisfaçao e felicidade, resultando em um
sentimento de vazio interior e insatisfaçao cronica. Lasch e sua crítica ao
consumismo e a cultura narcisista chamaram a atençao para os efeitos psicologicos
e sociais de uma mentalidade voltada para o ego, que valoriza a gratificaçao
imediata, a autoestima inflada e o consumismo desenfreado. Ele argumentava que
essa mentalidade narcisista estava enfraquecendo os laços comunitarios, a
solidariedade social e o desenvolvimento de relacionamentos significativos. A
relaçao interesseira com a religiao se manifesta em uma sociedade narcisista, na
qual o “eu” e o centro e o “outro” e marginalizado, e a gratuidade perde espaço para
a busca por recompensas e pragmatismo.
A felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo,
revelando-se como o equivalente autêntico da salvação (Baudrillard, 1995, p. 97). O
filósofo francês insiste na formação de narcisismos contemporâneos associados à
busca incessante pela felicidade, o problema é que apenas pela própria. Com
frequência nos apegamos a um modelo único de vida e de mundo, normalmente o
nosso mundo. Temos características constitutivas da nossa personalidade que
tendem ao narcisismo. Por conseguinte, acreditamos que o que é nosso, em diversos
âmbitos, é o melhor. O contrário também é verdadeiro. Muitas vezes, pensamos que

824
não temos nada de bom e que não podemos assumir nada dos outros; pois, não
temos essa ou aquela condição. Em ambas as situações, o outro e o seu mundo estão
distantes, como colocados diante de um muro. Torna-se fácil levantar muros e difícil
construir pontes, em detrimento ao apelo do Papa Francisco de que construamos a
cultura do encontro: “o isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios
interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma
renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a
proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim (FT, 30).
3 Sabedoria do amor
O amor nos tempos de narcisismo apresenta formas de relação muito
específicas, diferentes do que gerações passadas presenciaram. Amor não é uma
força transcendente ao eu, como se viesse do destino, é uma construção humana e
nesse humano está o divino. “Amar como Cristo significa dizer não a outros ‘amores’
que o mundo nos propõe: amor pelo dinheiro – quem ama o dinheiro não ama como
ama Jesus – amor pelo sucesso, pela vaidade, pelo poder”, afirma Papa Francisco.
Alguns tentam encontrar segurança, certezas e acabam mergulhados em
paranoias sem fim. No fundo, tudo o que leva para longe do humano passa também
longe do amor. Tudo o que colocamos fora da subjetividade para dar conta do que
sentimos, pode nos apresentar armadilhas. O problema é que há uma tentação de
identificarmos o nosso eu com um elemento controlável. Precisamos nos aproximar
do real, suportando frustrações e atestando vulnerabilidades. O outro é um reflexo,
mas não de forma ideal. A relação com ele é uma desconstrução. É algo totalmente
contrário ao mundo narcisista atual. Afinal, vivemos um mundo de supervalorização
do eu e, por isso, não são muitos que estão dispostos a suportar a vulnerabilidade
do outro, muito menos a sua própria. Pe João Batista Libaneo, que ressaltava
constantemente a importância da escuta e da atenção ao cotidiano humano: “O
cotidiano costura muitas iniciativas, muitas práticas pequenas, que enlaçadas vão
formando uma transformação maior. Em vez de um grande projeto, pequenas ações.
O cotidiano educa para uma entrega a uma causa maior a partir dos pequenos
gestos” (LIBANEO, 1994, p. 34).
Esse é o mundo onde o habitar é movido pelo inevitável, onde tudo parece
atender a urgente necessidade que a tudo sacraliza. Rebusca as longínquas terras da
infância e, na potencialidade ali resguardada – no encantamento sem reservas, lá

825
onde nos desvencilhamos do medo de estar entre o dizível e o indizível -, encontra
modos para desconstruir a obviedade existente. Conclama-nos a penetrar por
frestas da subjetividade, da liberdade individual, conscientes de que no império do
necessário e da impossibilidade não há sujeito, não há liberdade, tampouco criação
(BÊTA, 2012, p. 28). Embora não se trate de negar que o ser humano tenha uma
tarefa a realizar, a luta pela ética é a luta pela liberdade, ou seja, luta para que
possamos experimentar nossa “própria existência como possibilidade ou potência”
(AGAMBEN, 2007, p. 9).
A sabedoria do amor é a compreensão do real a partir de uma significação
original, mais original que a própria realidade, que exclui qualquer pretensão de
conhecimento fechado ou sistemático, tanto no presente como em qualquer futuro
previsível (LÉVINAS, 2006, p. 12). Essa renúncia não é o fracasso de um
conhecimento limitado que comprove a grandeza do labor que se tem proposto,
senão algo que se estabelece de antemão -uma compreensão do real e suas
consequentes revelações humanas.
O narcisismo atual faz predominar um tipo de relação na qual o outro é retido
enquanto serve para o próprio usufruto do sujeito, sendo dispensado ao menor
indício de essa experiência relacional trazer desprazer ou conflito (BIRMAN, 2014).
Assim, as relações intersubjetivas se localizam no registro da efemeridade. O
narcisismo enquanto metáfora da condição pós-moderna cria possibilidade de
extrair consequências do modo de ação do sujeito atual frente à sua realidade:
“proporciona-nos ele [o conceito de narcisismo], em outras palavras, um retrato
toleravelmente agudo da personalidade ‘liberada’ de nossos dias [...] sua
superficialidade protetora, sua evitação da dependência, sua incapacidade de sentir,
pesar, seu horror à velhice e à morte” (LASCH, 1983, p. 76). Em uma outra
perspectiva teórica, podemos sublinhar que o conjunto de características que, de
uma forma ampla, permite apontar o modus operandi do sujeito atual se encontra
no delineamento da chamada pós-modernidade.

Conclusão
Em síntese, a reflexão sobre os paradoxos contemporâneos, que abrange
desde a gratuidade divina até os desafios do narcisismo na sociedade atual, revela
um cenário complexo e desafiador. A visão de Jean-Luc Marion e do Papa Francisco

826
destaca a necessidade de uma abordagem pessoal e misteriosa diante do divino,
promovendo uma cultura do encontro e do acolhimento. A crítica de Christopher
Lasch à cultura narcisista ressalta os efeitos psicológicos e sociais dessa mentalidade
voltada para o ego, que mina os laços comunitários e a busca por valores mais
profundos.
Ao explorar a sabedoria do amor, a narrativa destaca a importância de uma
compreensão do real a partir de uma significação original, que transcende a busca
por satisfação imediata e narcisismo. A referência a São José como exemplo de
humildade e capacidade de dar um passo atrás destaca a necessidade de construir
relacionamentos significativos, promovendo a cultura do encontro em um mundo
onde o individualismo e a busca pelo próprio interesse muitas vezes prevalecem.
Diante dessas reflexões, emerge o desafio de resistir à cultura narcisista,
construindo pontes em vez de levantar muros, e promovendo uma transformação
baseada em gestos de generosidade, compaixão e justiça. A busca pela gratuidade
divina e a sabedoria do amor oferecem caminhos para uma existência mais plena e
significativa, onde a atenção ao outro e a renúncia ao egoísmo são fundamentais
para a construção de uma sociedade mais justa e humana.

Referências
BAUDRILLARD, J. La société de consommation: ses mythes, ses structures. Paris:
Denoël, 1995.

BÊTA, J. Entre o dizível e o indizível: ensaios sobre a experiência mística. São Paulo:
Paulinas, 2012.

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

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http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-
francesco-lettera-ap_20201208_patris-corde.html.

LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de expectativas em


declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

LÉVINAS, E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 2006.

LIBANEO, J. B. Teologia da libertação e ideologia burguesa. São Paulo: Loyola, 1994.

MARION, J.-L. O visível e o revelado. São Paulo: Loyola, 2010.

827
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de expectativas em


declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

828
TEOLOGIA, ESPIRITUALIDADE E PSICOLOGIA ANALÍTICA: MAIOR
COMPREENSÃO SOBRE A ESPIRITUALIDADE VISANDO AUXILIAR A
ALMA HUMANA

Rosane Goerg Oriques1

Resumo: O presente trabalho visa a abordar o papel da Psicologia Analítica, em


alinhamento com a Teologia Prática, como facilitador no processo de compreensão da
espiritualidade do indivíduo contemporâneo. Para tanto, traz levantamentos bibliográficos
no intuito de demonstrar a relação entre Psicologia e Teologia, passando por estudos sobre
os respectivos entendimentos de Freud e Jung. Aponta para a dupla missão da Teologia
Prática, como premissa para o afazer teológico e como consciência crítica da Teologia, e
ressalta a importância de ela estar em constante atualização com conhecimentos
sociológicos e psicológicos. Aborda ainda os conceitos de Poimênica e Aconselhamento
Pastoral, traçando uma análise no sentido de ambos compreenderem práticas que
extrapolam o fazer de pastores e especialistas da igreja, sendo a expressão da vida em
comunidade. A pesquisa encaminha para o entendimento de que todos os conceitos
abordados devem ser postos a serviço da alma humana, num trabalho que entende a
espiritualidade como a totalidade do ser humano, ou seja, diz respeito à pessoa viver a sua
existência de acordo com a dinâmica profunda da vida. Por fim, discorre a respeito da
indissociabilidade de religiosidade e espiritualidade da experiência humana e reforça a
função da Psicologia Analítica no resgate de uma relação mais profunda do ser humano
consigo e com Deus, por meio de processos como o da individuação.
Palavras-chave: Ciência; Espiritualidade; Psicologia Analítica; Religião; Teologia.

Introdução
A inspiraçao para este trabalho e o fruto de varios anos de estudos,
observaçoes e pesquisas no que tange a relaçao entre a Psicologia e a Religiao. E
tambem o resultado de uma busca particular por viver a espiritualidade, por estudar
e constatar o quanto essa dimensao e importante para a grande maioria das pessoas.
Ao estudar a Psicologia Analítica, teoria desenvolvida por Carl Gustav Jung ―
que ve o ser humano em sua totalidade, incluindo a dimensao religiosa ―, foi que
esta pesquisadora passou a encontrar as respostas que procurava; respostas
complexas, certamente, mas profundas o suficiente para trazer sentido.
O fato de inumeros teologos realizarem a formaçao em psicanalise instigava
esta autora, sobretudo porque sabe-se que Sigmund Freud elaborou sua teoria sobre

1 Graduada em Psicologia/FEEVALE; Especialista em Religiosidade e Espiritualidade na Prática


Clínica/PUCRS; Pós-graduada em Psicologia Analítica/IJRS/FAMAQUI; Mestrado em andamento em
Teologia/FACULDADES EST/CAPES. E-mail: oriquesrosane@gmail.com.

829
a questao da Religiao de forma extremamente reducionista e negativa, contraria a
visao de Carl Jung, que refletiu sobre essa dimensao de forma absolutamente ampla
e positiva.
Partindo da analise dessas duas linhas, e analisando os conceitos de
Espiritualidade, Teologia, Psicologia Analítica, Poimenica, Aconselhamento Pastoral
e Pratica Clínica, esta pesquisa apresenta, de forma resumida, algumas ideias pelas
quais tem passado nesta busca por respostas.

1. O pensamento de Freud

Freud, sendo ateu, compreendia a religião como uma forma de alienação,


como neurose a ser ultrapassada, a ser vencida pela razão. É claro o exame ácido que
ele assinala em relação às instituições religiosas, embora não se esclareça quando
suas críticas apontam para as instituições ou para o sentimento pessoal do homem
sobre a religião.
Tendo como interlocutor o reverendo protestante Oskar Pfister, Freud
debateu a questão da religião em obras como O futuro de uma ilusão e A ilusão de um
futuro, dele e do reverendo, respectivamente. Pfister afirmava não ser o
conhecimento o que assegurava a evolução ― segundo ele, a ciência fria e seca em
tempo algum poderia conquistar o lugar da religião. Repisava que a fé real e
verdadeira era uma defesa, uma segurança contra a neurose, e que o
posicionamento de Freud era a própria ilusão.
Em resposta, Freud dizia que a sua teoria ― a psicanálise ― não seria nem
religiosa nem irreligiosa, podendo ser usada tanto por religiosos como por leigos,
desde que o propósito de ambos fosse o de aliviar a aflição de quem sofre (FREUD,
2014).
No século passado, à semelhança do que ocorre ainda nos dias atuais, a
psiquiatria entendia como fonte das perturbações mentais as causas orgânicas, e,
portanto, as intervenções eram essencialmente sobre o corpo. Sigmund Freud sentia
um profundo anseio para que sua teoria se tornasse uma disciplina científica, pois
no seu entendimento eram as mesmas as leis que sustentavam o mundo físico e a
mente.

830
2. O pensamento de Jung

Carl Gustav Jung, por sua vez, considerou e estudou profundamente a religião
e a religiosidade durante toda sua existência, o que constituiu questão fundamental
em sua vida. Aprofundou o estudo da psique humana de uma maneira muito
singular, procurando bases para seus estudos e pesquisas nas manifestações da
psique em várias culturas, no estudo comparado das religiões e nas distintas
vivências religiosas.
Em relaçao a esse ponto, e importante salientar que chamava a atençao de
Jung o fato de a Teologia ter se voltado tanto a Psicanalise e, nesse sentido, o
fundador da Psicologia Analítica se manifesta em uma carta escrita para Andrew R.
Eickhoff, em 07 de maio de 1956:
Sempre fiquei surpreso por que exatamente os teologos sao tao
entusiastas da teoria de Freud, pois e difícil encontrar algo mais
hostil as suas pretensas crenças. Este fato curioso me deu muito o
que pensar (JUNG, 2003, p. 20).

Apesar do movimento de Jung, os representantes religiosos o julgavam um


cientista que intencionava restringir a teologia a causas psicologicas, alguem que
reduzia a religiao ao patamar da subjetividade humana. Em razao disso, foi acusado
de “psicologismo”, o que nao correspondia a realidade de sua obra.
Ele buscava, na verdade, construir um caminho para o metafísico, lutando
para buscar a harmonia entre a Ciencia e a Religiao por meio da Psicologia.
Enfrentou, contudo, inumeras dificuldades, contestaçoes e ma vontade em cada
movimento, nao sendo compreendido nem pela Ciencia nem pela Religiao, sendo
desconsiderado por ambas.
Na tentativa de apresentar uma ideia do pensamento de Jung sobre essa
questao, considera-se importantíssimo, aqui, registrar parte da carta que enviou
como resposta ao pastor Dr. C. Damour:
Prezado Pastor Damour,
[...] Nao se pode rasgar a humanidade em duas partes, entregando
uma aos medicos e outra aos teologos. Vale hoje para os teologos o
mesmo que aconteceu aos medicos: assim como o medico teve que
aprender sempre de novo para entender o problema psíquico de
um neurotico, tambem a teologia deve fazer o seu sacrifício para ter
alguma probabilidade de exito neste problema que e o mais difícil
de todos. [...] Sabe Barth ou alguem mais o que e o inconsciente, ou
pretende talvez Barth provar que a experiencia religiosa provem de
outra fonte que nao seja a psique? [...] A psique humana e os panos
de fundo psíquicos sao subestimados em larga escala. Como se

831
Deus falasse aos homens exclusivamente atraves do radio, dos
jornais ou dos sermoes. Deus nunca falou de outro modo aos homens
que não na e pela psique; e a psique o compreende, e nós o
experimentamos como algo psíquico. Quem diz que isso é
psicologização nega o olho que enxerga o sol. [...] (C. G. Jung) (JUNG,
2003, p. 113 e 114, grifo do autor).
Esta autora considera esse ponto específico como um dos complicadores para
que uma certa incompreensao e distanciamento sejam mantidos entre a Teologia e
a Psicologia.

3. Teologia e teologia prática

Enveredando, agora, a Teologia, esta e considerada como a “ciencia ou o


estudo que se dedica a Deus, as suas características, as suas particularidades e as
suas relaçoes estabelecidas com o universo e com o homem” (TEOLOGIA, 2023).
Em relaçao a Teologia Pratica, especificamente, traz-se aqui a seguinte
reflexao:
A nossa situaçao de teologos praticos e, sem duvida, peculiar. Somos
solicitados a nos posicionar sobre questoes que dizem respeito a
muitos temas que se situam no limite entre a teologia e outras areas
do conhecimento humano. Para faze-lo, precisamos de
conhecimento oriundos nao so de todas as disciplinas teologicas,
como tambem de conhecimentos sociologicos e psicologicos que a
abordagem de uma tematica nao raro requer (HOCK, 2011, p. 24).

De acordo com Hoch, cabe a Teologia Pratica uma dupla missao:


a) Teologia Pratica como premissa para o afazer teologico:
[...] A Teologia Pratica cabe a tarefa de ser um posto avançado de
escuta das preocupaçoes e angustias que atormentam as pessoas e
a sociedade na atualidade. [...] A Teologia Pratica e a interlocutora
privilegiada da teologia com as ciencias sociais.
[...]
b) Teologia Pratica como consciencia crítica da teologia:
[...] Teologia que nao se destina a transformaçao do mundo e da
propria igreja perde sua vinculaçao com o evangelho
transformador e questionador de Jesus Cristo. Torna-se uma
ciencia esteril. A Teologia Pratica contribui para salvaguardar a
relevancia da teologia e da atuaçao da igreja para a atualidade
(HOCH, 2011, p. 32-33).

Ja em relaçao aos termos Poimenica e Aconselhamento Pastoral, encontra-se,


em Schneider–Harpprecht e Zwetsch, a definiçao do primeiro como “o ministerio de
ajuda da comunidade crista para os seus membros e para outras pessoas que a
procuram na area da saude, atraves da convivencia diaria no contexto da igreja”,

832
sendo o segundo definido como “uma dimensao da Poimenica que procura ajudar
atraves da conversaçao e outras formas de comunicaçao metodologicamente
refletidas” (SCHNEIDER–HARPPRECHT E ZWETSCH, 2011, p. 256-257).
Um e outro baseiam-se na fe crista, sendo o objetivo do aconselhamento
pastoral o de encontrar com os indivíduos, principalmente com aqueles em
situaçoes de conflitos e crises. Tanto a Poimenica quanto o Aconselhamento Pastoral
sao basicamente uma expressao da vida da comunidade, e nao um afazer reservado
a pastores, pastoras e outros especialistas da igreja (SCHNEIDER–HARPPRECHT;
ZWETSCH, 2011).

5. Espiritualidade

Em relaçao ao termo Espiritualidade, pode-se dizer que busca designar a


totalidade do ser humano, ou seja, diz respeito a pessoa viver a sua existencia de
acordo com a dinamica profunda da vida.
A Espiritualidade e fundamental para alavancar o desenvolvimento de uma
sociedade realmente humana. Embora cada indivíduo a defina de forma pessoal e
particular, para ser considerada verdadeira, e preciso voltar-se com amor profundo
a tudo o que seja humano.
Partindo dessa ideia, compreende-se a Espiritualidade como:
• A valorizaçao do corpo.
• Solidariedade humanitaria e cosmica.
• Espiritualidade da escuta.
• Espiritualidade que acolhe a diferença.
• Espiritualidade ecologica.
• Espiritualidade da compaixao.
A compaixao move a matriz, a base mais intrínseca do indivíduo como ser
espiritual.
Exegeticamente, compaixao significa que todas as entranhas se
revolvem para sentir com todo o corpo a dor do outro. A compaixao,
portanto, supoe a identidade de todos os seres no fato de que a dor
nao pertence exclusivamente aquele que padece, senao a todo o ser.
Uma vez que tudo tem a ver com tudo e consequentemente
encontra unificaçao no coraçao de Deus (TEIXEIRA, 2015, p. 9).

833
Ainda em relaçao a Espiritualidade, nas ultimas decadas, foi possível observar
o crescimento de uma forma de religiosidade que se pode chamar de metafísica
moderna, contemporanea, compreendendo uma espiritualidade sem relaçao com
igreja, mas ecletica e psicologica.

6. Psicologia Analítica

A palavra “Espiritualidade”, como e usada atualmente, nao era comum na


epoca de Jung. Religiosidade e Religiao eram as nominaçoes estabelecidas. Jung
constatou o quanto a Religiao faz parte da vida psíquica, alem de reconhecer que a
religiosidade e um dos agentes fundamentais para a cura.
Na analise e na terapia, surgem temas religiosos, questoes sobre o sentido da
vida, sendo este ultimo o ponto que distingue a teoria de Carl Jung de todas as
demais. Ao tratar e buscar recuperar a saude do ser humano em sua totalidade, a
terapia deve tambem se voltar para o numinoso, para tudo o que envolve as questoes
espirituais e religiosas, inseparaveis da existencia humana.
Entende-se que a verdadeira religião, em sua profunda manifestação
espiritual, deve estar capacitada e atualizada para gerar o maior número possível de
homens de bem, harmonizados, fortalecidos para o enfrentamento de sua realidade,
conscientes na busca de seu próprio desenvolvimento como seres humanos.
O homem e a espiritualidade que carrega são o norte da Psicologia Analítica.
Para Jung, tornar realidade em nossa vida a orientação que vem registrada em
nossas almas é o que cura nossa unilateralidade, tendo como resultado a saúde ―
naquilo que isso significa em toda sua amplitude.
Concluindo, imagina-se que seja esse o motivo pelo qual Jung colocou o
conhecido e misterioso oráculo de Delfos acima da porta principal de sua casa, em
Küsnacht: “Vocatus atque non vocatus Deus aderit”, cuja tradução é “Chamado ou não
chamado, Deus estará presente”.
Pode-se, assim, concluir pela importância da harmonia, do enriquecimento
mútuo entre a Teologia, a Psicologia Analítica e a Espiritualidade em benefício do
ser humano.

834
Considerações finais

Neste artigo, buscou-se analisar a ligação entre as áreas da Psicologia e da


Teologia, particularmente à luz dos estudos de Jung e Freud, com o intuito de
aproximar as abordagens num movimento de resgate da Espiritualidade do
indivíduo contemporâneo. Nessa senda, trabalhou-se com a linha de pensamento de
Carl Jung, para quem o centro da Psicologia é justamente o trabalho com o aspecto
espiritual do ser humano, o que o diferencia de outros autores.
Partindo da ideia de que os estudos em Psicanálise são incompletos por não
abarcarem a visão religiosa como parte importante no tratamento de pacientes é
que se busca, a partir dos estudos de Jung, dar conta dessas lacunas. Observou-se
que a visão da Espiritualidade se destaca justamente na fala de Jung e sugere-se que
esse movimento poderia ser corroborado pela Teologia, dentro da Teologia Prática.
Chegou-se a considerações como as que seguem: propõe-se que a Teologia
Prática busque operar como uma ciência que reconhece e leva em conta as situações
externas advindas de uma sociedade cada vez mais plural e complexa; que a
Espiritualidade seja tratada em sua inteireza; que a Psicologia Analítica seja
reconhecida como a que caminha nesse viés, uma vez que tem a Espiritualidade
como o centro dos processos de cura de almas; ainda, que Teologia e Psicologia
procurem se harmonizar nesse caminho, de forma a trabalharem juntas no resgate
de sentido da vida humana, colaborando, assim, com a evolução do homem e, por
conseguinte, da sociedade como um todo, aproximando novamente o ser humano de
seu criador.

Referências

FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 17. Inibição, sintoma e angústia, O futuro
de uma ilusão e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

HOCK, Lothar Carlos. O lugar da teologia pratica como disciplina teologica. In:
SCHNEIDER–HARPPRECHT, Christopher; ZWETSCH, Roberto E. Teologia prática no
contexto da América Latina. 3. ed. rev. e ampl. Sao Leopoldo: Sinodal/EST, 2011.

HOCK, Lothar Carlos. Reflexoes em torno do metodo da Teologia Pratica. In:


SCHNEIDER–HARPPRECHT, Christopher; ZWETSCH, Roberto E. Teologia prática no
contexto da América Latina. 3. ed. rev. e ampl. Sao Leopoldo: Sinodal/EST, 2011.

JUNG, Carl Gustav. Cartas de C. G. Jung: volume I. Petropolis: Vozes, 2003.

835
JUNG, Carl Gustav. Cartas de C. G. Jung: volume III. Petropolis: Vozes, 2003.

SCHNEIDER–HARPPRECHT, Christopher; ZWETSCH, Roberto E. Teologia prática no


contexto da América Latina. 3. ed. rev. e ampl. Sao Leopoldo: Sinodal/EST, 2011.

TEIXEIRA, Evilasio. Prefacio. In: SILVA, Leonardo Machado da. Psicologia &
Espiritualidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015.

TEOLOGIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus. Disponível em:
https://www.dicio.com.br/teologia/. Acesso em: 05 jul. 2023.

836
ARTE ST 12

ST 12 – A interdisciplinaridade da vivência e discurso litúrgico-sacramental

837
Washington da Silva Paranhos (FAJE)
Creômenes Tenório Maciel (UNICAP)
Joaquim Fonseca (ISTA)
Danilo César dos Santos (PUC-MG)
Jerônimo Pereira Silva (UNICAP)

Esta ST visa discutir questões teóricas e experiências relevantes da relação entre


Religião e ações litúrgico-sacramentais. A atitude postulada pela
interdisciplinaridade oferece a visão de conjunto de uma realidade, mediante
permanente associação das diferentes dimensões – disciplinas – com que pode ser
analisada, uma visão global e não fragmentada da realidade, uma óptica que abrange
todos os aspectos da produção e uso do conhecimento, enfim, é a superação do saber
disciplinar, em vista da síntese vital para o conhecimento e a vivência da fé e a
formação do cidadão cristão. Sempre foi demonstrado pelo cristianismo o interesse
em promover a presença do pensamento cristão no seio das culturas. Desde a
antiguidade, a teologia busca formas diferentes para melhor expressar o mistério
cristão. É notório que a teologia cristã nasceu de forma inter, multi e transcultural.
O dado litúrgico-sacramental não pertence unicamente à pesquisa teológica. Outros
âmbitos e disciplinas não teológicas também demonstram interesse pelo rito
litúrgico-sacramental, as ciências humanas são especialmente interessadas em
extrair as múltiplas relações da fenomenologia celebrativa com a condição humana.

838
A REDESCOBERTA DA “HISTÓRIA DA SALVAÇÃO” COMO
CATEGORIA FUNDAMENTAL DOS ATOS LITÚRGICOS E PRÁTICOS
DA IGREJA

Anderson Batista Monteiro1

Resumo: Em junho de 2022, o Papa Francisco, na sequência da publicação do Motu Proprio


Traditionis custodes, sobre o uso da liturgia romana anterior a 1970, apresentou a Carta
Apostólica Desiderio desideravi, na qual refletiu sobre a sobre a formação litúrgica do Povo
de Deus e a celebração cristã. Logo no início desta Carta, Francisco apresenta a Liturgia
como o “hoje” da história da salvação. Tal categoria foi assumida durante o Concílio Vaticano
II como um princípio inspirador dos principais documentos conciliares, como resultado do
retorno às fontes bíblicas e patrísticas que formaram a estrutura das principais
constituições conciliares, restabelecendo a dimensão histórico-salvífica da teologia católica.
Sendo assim, este trabalho tem como objetivo refletir a categoria “história da salvação” à luz
das Constituições Sacrosanctum Concilium e Lumen Gentium. Entre outros aspectos sobre a
Igreja, a teologia conciliar recorre a noção Ecclesia ab Abel, utilizada pelos Padres da Igreja
para expressar que a Igreja, sacramento de Cristo, do justo Abel até o último eleito, conduz
todos os homens e mulheres ao Pai. Desse modo, como fonte e cume da vida cristã, a liturgia
da Igreja deve manifestar, com clareza, em todos os instantes da história, que é sinal eficaz
de salvação do gênero humano. Em vista das posturas contrárias à reforma litúrgica do
Concílio Vaticano II, redescobrir a categoria “história da salvação” pode contribuir a toda
teologia cristã compreender a íntima união entre liturgia e espiritualidade, isto é, viver o
que celebra e celebrar o que vive.
Palavras-chave: Liturgia; Espiritualidade; História da Salvação; Teologia Prática; Pastoral.

Introdução
Nos primeiros parágrafos da Constituição Conciliar Sacrosanctum
Concilium sobre a Sagrada Liturgia, os padres conciliares apresentam a “história da
salvação” como fundamento principal da natureza da liturgia. A visão jurídico-
institucional dos manuais litúrgicos é abandonada pelos padres conciliares que
apresentam a liturgia como revelação e última etapa da história da salvação.
Segundo S. Marsili, grande expoente da teologia litúrgica no período do pós-concílio,
pela primeira vez um documento magisterial aborda a relação da liturgia com a
história da salvação (1987, p. 107-108). A partir disso, a liturgia passa a ser
compreendida como a manifestação do mistério de Deus Pai, revelado em Cristo e
comunicado no Espírito Santo, por meio de atos e palavras (SC 48).

1Doutor em Teologia Sistemático-Pastoral pela PUC-Rio, professor do Departamento de Teologia da


PUC-Rio. E-mail: andersonbatista@puc-rio.br.

839
Em síntese, história da salvação indica o desígnio de Deus concebido desde
toda eternidade que se realizou historicamente no Antigo e Novo Testamento e se
reatualiza sacramentalmente nas ações litúrgicas da Igreja, em vista do seu
cumprimento definitivo no fim dos tempos. Contudo, desde o século VI, com a
propagação do cristianismo por toda a Europa, a Igreja viveu um processo de
esvaziamento do processo mistagógico-catecumenal da iniciação cristã e os
primeiros sacramentos ao invés de serem uma celebração que compromete
profunda e existencialmente a vida de toda comunidade cristã, foram se tornando
para muitos um ato social ou familiar.
No início segundo milênio da Igreja, sobretudo nos séculos XII e XIII, a
teologia sacramental passa por uma fixação do vocabulário teológico e
sistematização teológica. Nesta época, o conceito de sacramento é definido como
“signo visível da graça invisível” e são atribuídos aos sacramentos as noções de
forma e virtus, signum e res como formas de esclarecer a eficácia sacramental. Apesar
da importância de elaborar uma síntese teológica da celebração litúrgica, a busca
pelos aspectos formais dos sacramentos, não conseguiu compreender toda a riqueza
histórico-salvífica do mistério cristão e promoveu um conteúdo empobrecido da
liturgia da Igreja.
No século XIX, a partir da descoberta de importantes textos litúrgicos da era
patrística da Igreja e o constante debate da teologia sacramental com os
protestantes, dá-se início a um longo processo da redescoberta da liturgia, que será
promovido décadas depois pelo Movimento Litúrgico. Com o surgimento de
inúmeras iniciativas de investigações históricas e arqueológicas influenciaram a
divulgação da ciência litúrgica e deram os primeiros passos de um grande
movimento de mudança não somente na liturgia, mas em toda a Igreja.

A formulação do termo “história da salvação”


Apesar de a expressão “história da salvação” ser conhecida na literatura
teológica e tivesse sido utilizada já no fim do século XIX utilizado, notadamente por
alguns teólogos de Erlanga e Tübingen, como Von Hofmann, Adolf Schlater e Johann
Beck, foi o teólogo luterano Oscar Cullmann que reformulou o seu conceito e o
desenvolveu na contemporaneidade, concedendo-lhe novos significados.

840
Cullmann compreendeu por “história da salvação”, o modo pelo qual Deus se
revela na história do homem. Essa revelação, que se deu através de uma série de
ações, atinge o clímax na encarnação, crucificação e ressurreição de Jesus Cristo,
fonte de salvação para o mundo. A apresentação do conceito de história da salvação
como núcleo do cristianismo pode ser considerada como uma formulação inédita na
teologia (GIBELLINI, 2012, p. 260). Segundo o teólogo, a história da salvação e a
história do mundo devem ser compreendidas entrelaçadas, integrantes do núcleo
essencial da revelação. A história da salvação não e excluída da história geral, ela
transcorre na história formada por uma sequência de acontecimentos especiais,
ligados entre si, em um contínuo desenvolvimento tendo em vista a salvação dos
homens (CULLMANN, 1967, p. 203). Nesta linha expositiva, a Igreja está inserida no
período intermediário que vai desde a ressurreição de Cristo até a parusia
(CULLMANN, 1967, p. 301).
Referente ao tempo da Igreja, O. Cullmann cunha o axioma pelo qual ficou
conhecido: a tensão do “ja e ainda não”. Esse axioma relaciona o pensamento grego,
que não conhece a espera, com a cultura judaica, que vive a espera. Essa relação faz
surgir no cristianismo uma tensão, refletida no Novo Testamento, entre um “já” e
um “ainda não”, e entre um “já realizado” e um “ainda não plenamente realizado”
(GIBELLINI, 2012, p. 257). Isto é, há um futuro já realizado em Cristo, e ao mesmo
tempo ainda esperado pelos homens. O reino já foi iniciado pela vinda de Cristo, e
os cristãos que fazem parte deste reino. Enquanto a salvação já foi realizada, os
cristãos aguardam a sua consumação que acontecerá no dia do retorno de Cristo.
Assim, o reino de Deus não é somente uma realidade futura, é uma realidade que
compreende o presente e o futuro da história da salvação.
O. Cullmann deixou um legado teológico que repercutiu no debate católico
das décadas de 40 e 50. Sua teologia influenciou a teologia católica, contribuindo de
modo particular para a compreensão da natureza teológica da história. Um dos
expoentes da teologia católica que se inspirou na teologia de Cullmann foi J.
Daniélou. Ele também defende que a revelação de Deus acontece na história, não
apenas em um único evento, mas na sucessão em uma sucessão de fatos Deus se
revela por atos e palavras e a história atinge seu clímax em Cristo.
A ideia central na obra de Danielou e que Deus age na história. Isso quer dizer
que a historia salutis é constituída por atos divinos. Deus age em toda a história e

841
seus atos salvíficos constituem a história sagrada. Enquanto Cullmann desenvolveu
sua teologia dentro da exegese bíblica, Daniélou desenvolveu a temática,
acrescentando a teologia patrística. Ele destaca ainda que o desenvolvimento da
história sagrada acontece segundo a lei da tipologia, isto é, as figuras do Antigo
Testamento prefiguram as realidades apresentadas no Novo Testamento, e são
prolongadas no mundo por meio da Igreja. Nesse sentido, os atos salvíficos descritos
no Antigo Testamento apontam para realidades espirituais e sacramentais no Novo
Testamento. Após a ascensão de Jesus, o Espírito Santo é apresentado como o
protagonista dos atos de Cristo atualizados por meio das ações sacramentais da
Igreja. Por estas ações, a graça sacramental chega até os homens, os atos salvíficos
de Cristo são atualizados na forma de atos sacramentais para santificar os homens
e inseri-los na vida divina.

A teologia da história da salvação no Sacrosanctum Concilium

O primeiro documento conciliar, publicado em 1963, no final da segunda


sessão conciliar, foi a Constituição Sacrosanctum Concilium. Neste documento, os
padres conciliares, ao tratarem da natureza da liturgia, deixam a perspectiva
jurídico-institucional e rubrical, para aplicar uma compreensão da liturgia a partir
da teologia histórico-salvífica. Nos parágrafos quinto e sexto, a Constituição conciliar
expõe o caminho histórico da revelação como história da salvação, partindo da
revelação bíblica e chegando à sua realização no plano litúrgico. Assim, a revelação é
apresentada como um suceder-se de eventos, que, de “maneiras e em tempos
diferentes”, promovem o mistério da salvação, desde sempre existente na
eternidade de Deus. Esta “diversidade de modos” se refere a todas as formas em que
Deus conduziu o seu plano salvífico. E a “diversidade de tempos” denota a dimensão
histórica da revelação como um “evento real” do mistério pascal de Cristo, precedido
de “eventos” de anúncio profético.
Em relação aos diferentes tempos da revelação, os padres conciliares
descrevem o percurso histórico, onde a história da salvação é apresentada em três
etapas. A primeira, é a profética, do anúncio do plano de salvação que
progressivamente revela o “mistério escondido desde os séculos em Deus” (Cl 1,26).
A segunda, é a “plenitude dos tempos”, a salvação antes anunciada torna-se
realidade. A salvação entra no tempo e a “palavra se faz carne” (Jo 1,14). O que era

842
“profecia-anúncio” passa a ser “realidade”. E, por fim, a última etapa é o “tempo da
igreja”, a continuação do “tempo de Cristo”, onde a obra de salvação se prolonga e
atualiza no mundo mediante os sacramentos da Igreja (Ef 3,9; Cl 1,26).
Assim, “afirmar a existência de uma história da salvação equivale a asseverar
que a salvação se realiza mediante atos humanos livres e contingentes, com os quais
o homem constrói a sua história, que é a história da salvação, por iniciativa e por
auxílio de Deus” (TRIACCA, 2009, p. 1165). A liturgia, por sua vez, aparece como
momento de revelação e evento salvífico que realiza a salvação, ao mesmo tempo
que realiza o anúncio salvífico de Cristo, tal como as antigas profecias. Observa-se,
então, na liturgia que “a sua tarefa é a de completar progressivamente em cada um
dos homens e na humanidade a plena imagem de Cristo” (MARSILI, 1987, p. 111).
Nesse sentido, a celebração litúrgica da Igreja é a síntese da história da salvação,
como Deus nos salva na história, ela se transforma em história da salvação.

A categoria história da salvação na Lumen Gentium

A recuperação da categoria “história da salvação” possibilitou a compreensão


da unicidade do desígnio salvífico de Deus, operado na história humana por meio de
atos e palavras. Afirmar que a liturgia é síntese da história da salvação é apresentá-
la dentro da dinâmica linear da história em que, por meio dos sinais sacramentais, a
Igreja recorda e celebra os atos salvíficos de Jesus, atualizando-os no hoje da
salvação. Tendo, portanto, a teologia histórico-salvífica como uma das bases
teológicas do Concílio Vaticano II, além de relacioná-la com a liturgia, também serviu
de base para fundamentar a natureza da Igreja na Constituição Lumen Gentium.
Ao recuperar as nas fontes bíblicas e patrísticas da Igreja, a Lumen Gentium
compreende a Igreja inserida mistério salvador de Cristo em chave histórico-
salvífica. Assim, apresenta o antigo axioma patrístico “desde o justo Abel até ao
último eleito” (LG 2) para afirmar que, assim como Cristo, a Igreja também existe
desde o princípio do mundo.
A partir da narrativa bíblica de Caim e Abel, Santo Agostinho, entre outros
padres da Igreja, demonstra que no confronto entre os dois irmãos está presente a
condição fundamental da história humana em geral (SANTO AGOSTINHO, 1997, p.
140). Caim e Abel são o tipo de realidade histórica como a experimentamos. Caim

843
representa a humanidade, que vive sem acreditar na vontade de Deus, enquanto
Abel representa a Igreja, aquela parte da humanidade que pela fé acredita em Deus.
Ao designar a “Ecclesia ab Abel”, os padres conciliares não só quiseram
indicar que a a Igreja existiu desde o princípio do mundo através de todos os séculos,
mas também apresenta a relação de Abel com a Igreja, ambos puros, sofrem o
martírio e se aproximam do sofrimento de Cristo. A “Igreja desde Abel” quer nos
lembrar que em todos os tempos houve pessoas justas que sofreram a morte por
causa de sua retidão, e, esta Igreja cumprirá sua missão onde as pessoas vivem na
verdade revelada através da história de Caim e Abel e trazida à plena luz da
consciência através da morte de Cristo. Ela é o sacramento de Cristo presente em
toda história da humanidade.

Considerações finais
Diante de posições eclesiais, tanto em âmbito teológico como também
pastoral, que caminham na contramão do Concílio Vaticano II, redescobrir a teologia
da “história da salvação”, que perpassou por todos os documentos conciliares,
possibilita a toda teologia cristã compreender os mistérios da fé cristã, em chave
hermenêutica, a partir das fontes bíblicas, patrísticas e históricas da teologia, e
transmiti-los aos homens e mulheres do tempo de hoje. Ao recuperar a teologia
histórico-salvífica, no retorno às fontes da salvação, a teologia permanece fiel as
reformas conciliares, que redescobriu a autêntica natureza da liturgia e o significado
da espiritualidade litúrgica e cristã.
Por conseguinte, esta reforma conciliar que teve início pela liturgia, fonte e
cume de toda vida cristã, possibilitou aprofunda a reflexão teológica sobre toda a
vida da Igreja. Logo, a natureza histórico-salvífica da Igreja foi aprofundada e
proporcionou inúmeras análises e considerações. Entre elas, o resgate do adágio
patrístico, a Igreja desde Abel, que provoca a todos os cristãos, a refletirem e se
sensibilizarem, que diante do sofrimento e da violência, o amor divino supera todo
mal, e se coloca ao lado das vítimas, para construir um novo mundo de paz e
fraternidade.

844
Referências
SANTO AGOSTINHO. Comentário aos Salmos. Salmos 51-100. São Paulo: Paulus,
1997.

CASEL, Odo. O mistério do culto no cristianismo, p. 20.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja. In:
KLOPPENBURG, B. Compêndio do Vaticano II. Constituições, decretos e declarações.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 39-120.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada


Liturgia. In: KLOPPENBURG, B. Compêndio do Vaticano II. Constituições, decretos e
declarações. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 259-308.

CULLMANN, Oscar. Salvation in History. New York: Harper & Row, 1967.

DANIÈLOU Jean. Bíblia e liturgia. A teologia bíblica dos sacramentos e das festas nos
Padres da igreja. São Paulo: Paulinas, 2013.

DANIÈLOU Jean. Saggio sul mistero della storia. Brescia: Morcelliana, 2012.

GIBELLINI, Rosino. Teologia do seculo XX. São Paulo: Loyola, 2012.

MARSILI, Salvatore. A liturgia, momento histórico da salvação. São Paulo: Paulinas,


1987

MONTEIRO, Anderson. Os sacramentos como forças que saem do corpo de Cristo:


um contributo ao conceito de sacramento à luz da teologia do Concílio Vaticano II.
Rio de Janeiro, 2022. 221f. Tese (Doutorado em Teologia) – Departamento de
Teologia, PUC-Rio.

TRIACCA, Aquiles Maria. Tempo e liturgia. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA,


Aquiles Maria (Orgs.). Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 2009, p. 1163-1174.

845
LINHAS CONTEMPORÂNEAS DE REFLEXÃO LITÚRGICO-
SACRAMENTAL

Washington Paranhos1

Resumo: Nos últimos anos a teologia sacramentária, mas também a litúrgica, passaram por
profundas transformações, passando da compacta homogeneidade do modelo da
neoescolástica à pluralidade de endereços que se sucederam no pós-concílio. A entrada no
terceiro milênio foi claramente uma ocasião propícia para reconstruir a história dessas
mudanças, destacando os fatores envolvidos, a contribuição dos principais autores, a
abertura de novas frentes de investigação e a introdução de novas categorias. Aqui trata-se
apenas de trazer à luz particulares características, consideradas primordiais, que permitam
a leitura dos sacramentos valorizando os múltiplos aspectos. São interpretações possíveis e
lícitas ao mesmo tempo. A riqueza valorativa permite de tomar consciência da amplitude
dos horizontes em que os sacramentos colocam o fiel. Tomaremos como exame a
perspectiva da práxis na reflexão litúrgico-sacramental a partir da leitura de alguns autores
para desenvolver considerações, em base aos argumentos que estes autores tratam
amplamente em suas obras, e que servem como base para o pensar da teologia sacramental
atualmente. As várias abordagens não podem ser vistas como ilhas isoladas, nem serem
consideradas as únicas, mas vividas e refletidas no conjunto. É no diálogo constante entre
as escolas, teólogos, liturgistas, abordagens e Magistério que será possível alcançar a
interdisciplinaridade almejada pelo Concílio.
Palavras-chave: Sacramentos; liturgia; práxis; sacramentalidade; teologia.

Introdução
Se consideramos os sacramentos como uma das formas de
comunicação/acolhida da graça2, o discurso teológico sobre este fenômeno deveria
proceder como uma espécie de inversão epistemológica do seu dinamismo, a
acolhida humana dizendo (que revela) a comunicação divina, a forma antropológica
refletindo o modelo teológico, o fenômeno sacramental mediando o fundamento da
graça (Cf. LUKKEN, 2002, p. 68-91). “Podemos dizer que a teologia tem que ser
desenvolvida como teoria de uma práxis histórica; contudo, não pode renunciar a
desenvolver-se como teoria contemporânea da graça” (VILANOVA, 1983, p. 27).
Porém, aqui, os termos em jogo não podem mais ser dicotômicos (subjetividade e

1 Washington da Silva Paranhos: Possui Doutorado em Teologia com especialização em Liturgia e


Sacramentária pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma (2017). Atualmente é professor da
graduação e pós-graduação na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE – Belo Horizonte –
MG. E-mail: wparanhossj@gmail.com.
2 A relação entre as formas rituais/sacramentais de comunicação da graça e as suas formas

existenciais de presença é indagada por George GUIVER (Cf. GUIVER, 1996).

846
objetividade), mas intersubjetivos: de modo que a teologia diga o fenômeno
sacramental na inversão epistemológica imposta pela comunicação/acolhida da
graça, o teólogo deve estar envolvido desde o início na forma antropológica que
realiza a forma teológica da sacramentalidade (Cf. CARDITA, 2008, p. 64-69)3.
Portanto, há um excedente do objeto (graça, sacramentalidade,
sacramentos/liturgia) em relação a qualquer método teológico, que o método deve
salvaguardar necessariamente, sob a forma de uma responsabilidade e humildade
do teólogo sobre a realidade prévia à sua reflexão, uma vez que o conceito teológico
jamais poderá substituir o símbolo ritual4. Mas a condição de possibilidade desta
transcrição conceitual responsável e humilde é a imersão (da subjetividade) do
teólogo no objeto (Cf. CARDITA, 2008, p. 66)5. Neste sentido, podemos compreender
a proposta de Ione Buyst de uma ciência litúrgica na perspectiva da teologia da
libertação:
Para poder fazer Ciência Litúrgica na perspectiva da libertação, o
liturgista deverá, portanto, inserir-se tanto quanto possível na vida
do povo pobre, viver, pensar, testemunhar e celebrar a fé na ótica
do pobre e com ele. Esta experiência de fé, esta espiritualidade lhe
darão as condições para fazer Ciência Litúrgica, isto é, para
interpretar e refletir criticamente a prática litúrgica daquela Igreja
(BUYST, 1990, p. 88).

1. A leitura das práxis


Toda essa premissa é para dizer que a fé cristã não se limita ao pessoal e
institucional. Ela, na verdade, gera práxis. Como nos alertava Libânio, a fé cristã não
se reduz ao indivíduo na sua autonomia. Tem impacto direto nas estruturas que

3 Como nos faz perceber A. Cardita, “na inversão realizada pela reflexão teológica não se dá uma total
identidade entre o ‘dado prévio’ e a sua categorização: a teologia será sempre um discurso sobre algo
original, pré-categorial, excedente. Porque a teologia realiza como ‘transcrição’, emprega uma sintaxe
diversa daquela originária, ou seja, muda o jogo linguístico e se constitui como metalinguagem, para
que a realidade prévia (a experiência do evento de salvação no acontecimento da fé, através da
mediação simbólica) possa falar ainda hoje” (CARDITA, 2008, p. 66).
4 O exercício da fé envolve, portanto, humildade. É algo que se relaciona com um horizonte de amor,

com uma verdade que é aletheia, desvelamento permanente. A palavra a-letheia, derivada do grego,
“resulta da combinação do prefixo a (privativo) com lanthano (‘esconder’). Desse modo, ‘verdade’ é
des-ocultuar, des-velar: a pessoa vive a verdade quando é autêntica, quando descobre a própria
existência” (LIBÂNIO, 1999, p. 7).
5 Mas é também interessante o pensamento de Sequeri: “Sarà forse tempo di mettere mano al curioso

pregiudizio che domina il linguaggio occidentale, dove ‘soggettivo’ significa per ciò stesso non
oggettivo, arbitrario, inaffidabile?” (SEQUERI, 2005, p. 97).

847
compõe a sociedade. Ou seja, concebe uma práxis transformadora6. Por isso mesmo,
a práxis é uma dimensão antropológica do ato de crer7. A confiança em Deus gera
compromisso libertador. Em Deus, o outro não se torna alheio e indiferente. O outro
nos conduz a Deus e Deus nos leva ao outro. Dialética substancial8. A fé cristã deve
produzir uma ação conscientizadora no cristão e desse modo, possibilitar um
discurso na, para, pela e da práxis. A Teologia da Libertação é a tentativa da vivência
dessa práxis9.
Como nos faz perceber Libânio, o ato de crer difere nos vários contextos.
Viver a fé na América Latina não é a mesma forma de vivê-la na Europa, na África,
na Ásia. Os contextos se diversos em inúmeros elementos. Por um lado, predomina
a hermenêutica (na Europa). Por outro, a práxis (na América Latina), a reconciliação
(na África) e a multireligiosidade (na Ásia). Ambas procuram fazer uma verdadeira
experiência de Deus no coração da existência (Europa) e da história (América
Latina) (Cf. LIBÂNIO, 2000, p. 437)10. Para Libânio, a práxis é uma dimensão
antropológica. A fé cristã gera consequentemente uma ação no mundo. A práxis,

6 A fé sem obra é morta (Tg 2,17). A caridade é expressão de uma verdadeira fé. O cristão responde
aos desafios que a sociedade lhe impõe e, por isso, a política, o compromisso social são o exercício
verdadeiro da caridade.
7 “Para abrir trilhas da teologia fundamental dentro da selva pós-moderna, rasgamos a subjetividade

do ‘eu creio’ no referente à experiência, à história, à sociedade, ao cosmo. E desde aí pensamos a


estrutura antropológica, racional, de liberdade e trinitária da fé. Só então arriscamos caminhar para
dentro do ‘nós cremos’ eclesial, comunitário, cristológico, histórico, em confronto com a Escritura e
com a Tradição. Finalmente, enfrentamos três desafios do momento atual: a ecologia, o diálogo inter-
religioso e da libertação. Entramos pela subjetividade. Mas ultrapassamo-la por força das exigências
da fé cristã. Ela não se detém no puramente individual que contradiz frontalmente a pregação e a
práxis de Jesus. Insere-se no comunitário, no eclesial, no social” (LIBÂNIO, 2012, na introdução).
8 Na concepção de Libânio: “Há um círculo hermenêutico entre sujeito e sociedade de modo que entre

ambos se estabelece uma relação mútua em contínuo devir. A estrutura social influencia a
constituição da subjetividade e esta marca, por sua vez, a natureza da sociedade. A sociedade, ao
mesmo tempo, possibilita e interdita ao indivíduo alternativas de pensar, de querer, construir-se,
expressar-se, de amar-se” (LIBÂNIO, 2000, p. 110).
9 Na visão de Libânio, os problemas se acumulam nesse campo de reflexão, em razão das mediações

humanas que se interpõem na relação com Deus, muitas vezes tomadas pelas ambiguidades: “os
sacramentos e ritos caem facilmente na rotina e no formalismo, perdendo sua referência à
experiência humana. As prescrições tornam-se imposições heterônomas, pesadas e insuportáveis; a
organização enrijece-se; os tempos e espaços secularizam-se; os templos perdem a sacralidade”
(LIBÂNIO, 2004, p. 53).
10 A vivência da fé na Europa contrasta a experiência da América Latina. Essa articula a Revelação

com a situação alarmante de pobreza que vive a maioria da população. Àquela, dialoga com as
ciências e a cultura para encontrar sentido existencial na vida do cristão.

848
como “ação pensada que implica sempre uma transformação das estruturas sociais”
(LIBÂNIO, 2008, p. 255), é inerente ao ato daquele que crê11.
A Teologia da Libertação, especialmente no estudo dos sacramentos, buscou
articular a práxis com a festa e com a categoria Reino de Deus. Na verdade, procurou
superar as bipolaridades: “sacramentos e práxis histórica, símbolos do Reino e
realização do Reino, sacramentalizar e evangelizar, sacramentos e vida cristã,
religião e fé. Igreja de sacristia e Igreja engajada, verticalismo e horizontalismo”
(TABORDA, 1987, p. 14). O ponto de partida é aquele elemento fundamental a todo
cristão latino-americano comprometido: o cristianismo é vida, compromisso de
transformação, práxis histórica. Para entender que os sacramentos pertencem a esta
dimensão da práxis, a categoria da festa serve de mediação. Categoria que não
apenas “corresponde ao espírito dos nossos povos que sabem festar e gostam de
fazê-lo, mas provém do interior mesmo de uma visão de cristianismo que se entende
como fé atuante na caridade” (TABORDA, 1987, p. 16).
O próprio Taborda, procura explicitar a sua escolha e nos diz que a práxis é
uma categoria apta para entender a ação humana e festa permite captar a gratuidade
em contraposição à eficácia de modo que ambas dão conta da dupla dimensão da
existência humana de eficácia e gratuidade. Ao serem pensadas na teologia
sacramental, elas desvelam o duplo aspecto do sacramento: a graça, a liberdade de
Deus que atua nele e a dimensão de acolhida construtiva, atuante do ser humano.
Festa denota a dimensão de celebração tão fundamental em todo sacramento. Mas
uma celebração que não sô recorda, atualiza, anuncia, mas também engaja aquele
que a faz (práxis) (Cf. TABORDA, 1989, p. 85-99).

1.1. Ione Buyst


Depois dessa premissa podemos agora tratar das contribuições mais
expressivas dessa chave de leitura. A reflexão segue a perspectiva teológica latino-
americana da opção preferencial pelos pobres e o método ver, julgar e agir. Daqui,
surge o nome de Ione Buyst, um dos grandes expoentes da reflexão teológico-
litúrgico na América Latina. A sua perspectiva litúrgico-teológica tem como

11Ambas são realidades próprias do ser humano. São simultaneamente intrínsecas. Uma não existe
sem a outra. A Teologia da Libertação, na sua gênese, evolução e ápice procura efetivar a práxis na
vida do cristão.

849
horizonte principal a participação do povo na preparação e celebração de uma
liturgia popular, orante, expressão de uma fé engajada na transformação social e na
busca ecumênica pela paz. No contexto acadêmico, sempre procurou desenvolver
uma pedagogia ativa, que favorecia o envolvimento e uma metodologia científica
que parte da realidade litúrgica e se articula com a teologia e a pastoral. Ela também
desenvolveu a técnica de observação participante na área da ciência litúrgica e foi
uma das criadoras da técnica de laboratório litúrgico para a formação litúrgica (Cf.:
BUYST, 1990; BUYST, 1994; BUYST, 1995).
É possível compreender a proposta de Buyst contextualizada na práxis
pastoral da Igreja Latino-Americana, a parir de uma leitura profunda e consciente
que realizou como estudo (Cf.: BUYST, 2008, p. 29-32). Buyst, elenca algumas
dimensões para mostrar os traços característicos da teologia litúrgica Latino-
Americana: 1) Dimensão eclesial – A liturgia assume a opção pelos pobres,
comprometendo-se com suas lutas por melhores condições de vida. A assembleia
litúrgica dos pobres é semente do Reino; Dimensão crística e missionária – A liturgia
é entendida e vivida no contexto social, político, econômico, cultural. Nenhuma
celebração litúrgica é ‘neutra’ politicamente falando: sempre traz em seu bojo uma
proposta para a vida em sociedade e, numa sociedade rachada entre ricos e pobres,
sempre fará opção para apoiar um dos lados; Dimensão pneumática, espiritual,
mística – Pouco a pouco redescobrimos na liturgia a ação transformadora do
Espírito Santo. O Espírito faz de nós um só corpo e um só espírito, em Cristo
Ressuscitado. Sua ação permeia toda a celebração: o encontro e os abraços dos
irmãos e irmãs, o canto, a proclamação e interpretação da Sagrada Escritura, as
orações, os gestos simbólico-sacramentais, o espaço litúrgico; Dimensão
escatológica, doxológica e de intercessão – O horizonte utópico da liturgia é o Reino
de Deus prometido por Jesus. Faz-nos sonhar com o dia em que não haverá mais
injustiça, desigualdade e discriminação social, guerras e perseguições. Por isso, a
liturgia ganha ares festivos, de alegria, principalmente aos domingos; Dimensão
simbólico-sacramental – Símbolos litúrgicos tradicionais são reinterpretados a
partir da experiência de fé na vida dos pobres e na solidariedade com eles: a cruz
deixa de ser símbolo de resignação e se torna apelo ao compromisso libertador; o
pão e o vinho da eucaristia ganham densidade nova, seja como frutos da exploração
dos trabalhadores/as, seja como frutos da partilha fraterna no trabalho cooperativo;

850
Dimensão de inculturação – Celebrações tradicionais são adaptadas à realidade das
comunidades: celebração dominical da palavra de Deus, ofício divino (das
comunidades, dos mártires, dos jovens, dos adolescentes e crianças...) (Cf. BUYST,
2008, p. 29-32).

1.2. Victor Codina


Um segundo autor desse contexto é Victor Codina. Codina identifica a sua
sobre os sacramentos como uma sacramentologia da libertação, cujo centro e meta
é o Reino de Deus, o projeto de Deus para a libertação da humanidade que se nos
revela em Cristo e do qual a Igreja é sacramento. O Reino de Deus é o sacramento
primordial e os sete sacramentos definidos no Concílio de Trento são como símbolos
proféticos do Reino. O Reino de Deus é dos pobres que são símbolos proféticos do
Reino na história (Cf. CODINA, 1988, p. 267-274)12.
Assim, Codina apresenta as bases da sua teologia sacramental:
El situar la sacramentalidad en el horizonte del reino de Dios, como
intenta hacer la teología de la liberación, no solo no es desviarse de
la tradición eclesial, sino que es volver a los orígenes bíblicos y más
primitivos del misterio sacramento. Reasume el horizonte
personalista, cristológico y eclesiológico en el horizonte más
abarcante del reino de Dios, del que Cristo constituye el mediador
escatológico único y la Iglesia su fermento visible en la historia.
Esto significa que los siete sacramentos deberán interpretarse a la
luz del reino de Dios y por consiguiente que su sentido, su eficacia,
su validez, su misma eclesialidad, deberán siempre hacer
referencia al reino de Dios. Si desde el primer milenio la
sacramentalidad quedaba referida únicamente a los ritos
sacramentales en los que parecía agotarse, y desde el Vaticano II
dice referencia a la Iglesia, la perspectiva de la teología de la
liberación remite la sacramentalidad al reino, lo cual entronca con
la tradición más primitiva de la Iglesia patrística (CODINA, 1988, p.
276).

Para Codina, os sacramentos são símbolos proféticos da Igreja que por sua
vez, expressam ou deveriam expressar, os momentos privilegiados da história, ou
seja, presença do Reino de Deus. Essa profecia dos sacramentos desdobra-se em
quatro elementos que manifestam a eficácia dos sacramentos13. O primeiro se refere

12 Para esta obra, tomaremos como base a edição espanhola: CODINA V., El mundo de los sacramentos,
Oruro, Centro de Investigación y Servicio Popular, 1989.
13 “La eficacia de los sacramentos brota de su mismo ser símbolos proféticos: es la eficacia de la

profecía in actu, de unos gestos que realizan lo que simbolizan proféticamente. Es la eficacia – temida
por algunos, celebrada por otros – de los gestos proféticos de los profetas y Jesús. En ellos el reino se

851
aos sacramentos como signum rememotativum. Os sacramentos anunciam a boa
notícia do Reino presente na história; o segundo visualiza os sacramentos como
signum demonstrativum, uma vez que denunciam o pecado do mundo, o anti-reino
presente na história e nas pessoas, a verdadeira raiz da morte; o terceiro apresenta
os sacramentos como signum prognosticum que transformam e exigem a
transformação da realidade pessoal e histórica. São propriamente, os sinais
escatológicos do Reino de Deus presente na história; o quarto elementos destaca os
sacramentos como sacramentum tantum que na sua globalidade é símbolo profético
(Cf. GONÇALVES, 1997, p. 250). A junção das partículas res e et demonstra a
dimensão eclesial da profecia sacramental – res et sacramentum – e a realização do
Reino como obra de Deus por meio da profecia sacramental – res tantum14.
Colocando o Reino de Deus, como princípio fundante e fim último para o qual
são orientados os sacramentos, fica evidente na proposta de Codina que, todos
aqueles que recebem os sacramentos devem assumir o compromisso que os
identifica com Jesus e seu projeto.

1.3. Francisco Taborda


O último autor que apresentamos é Francisco Taborda. Como já fizemos uma
apresentação de uma das suas obras, aqui buscaremos indicar alguns princípios da
sua contribuição à reflexão teológico-litúrgico-sacramental na práxis Latino-
americana (Cf. TABORDA, 2001). Na busca de articulação entre vida cristã e
sacramentos de modo menos formal e mais existencial, e ao mesmo tempo sem a
perda do referencial ao compromisso histórico, Taborda propõe o paradigma
antropológico, com as categorias práxis e festa, mostrando que os sacramentos
celebram o mistério de Cristo a partir da práxis histórica de libertação15. A

hace presente ya. Su eficacia no es sólo eclesial (vinculan a la Iglesia) sino basileica (en orden al reino
o basileia). Son don y tarea, opus operatum y opus operantis, exigen conversión personal y social,
tienden a la transformación de la sociedad en dirección al reino de Dios. Por esto los sacramentos se
deben ir haciendo eficaces en la historia, impulsan al seguimiento de Jesús”. (CODINA, 1988, p. 283).
14 É importante salientar que todos esses elementos proféticos dos sacramentos são manifestados na

comunidade eclesial, especialmente nas celebrações dos sacramentos.


15 “A práxis histórica libertadora é um imperativo epocal na situação de opressão em que vive a

absoluta maioria da população (também majoritariamente cristã) da América Latina. “Epocal”


significa que marca época. Um modo de agir novo em ruptura e continuidade dialética com o
imperativo ético do passado. Além disso, o conceito de “práxis”, por sua estrutura interna, permitia
desentranhar da ação elementos que permitiriam unir o agir cristão com a festa. Mas os sacramentos
podem ser entendidos como festa também por quem não deseje aceitar a categoria de práxis, pois o

852
elaboração teológica vem apresentada em seus três elementos constitutivos: a) Fato
valorizado: é o motivo da festa. No caso dos sacramentos, o fato valorizado é o
seguimento de Jesus Cristo, a fé viva e vivida no concreto das situações históricas;
b) Expressão significativa: compõe-se de gestos simbólicos e de palavras narrativas.
Os gestos simbólicos (passagem pela água, imposição das mãos, assinalação, unção
com óleo) são a expressão significativa do Batismo – Crisma; c) Intercomunhão
solidária: trata-se dos agentes da festa, seus sujeitos. O Batismo-Crisma é o
sacramento de incorporação à Igreja (Cf. TABORDA, 1998, p. 46-60).
É muito interessante a conclusão que chega Taborda:
É preciso reconhecer o difícil aprendizado de viver num mundo
pós-cristão. Cada vez mais, ser batizado deixará de ser evidente.
Pelo menos, se pela palavra “batizado” não entendermos apenas a
submissão a um rito, mas – levando ao rito e decorrente dele – a
adesão pessoal à fé batismal, a adesão vivencial ao Deus que, no
Espírito, se revelou em Cristo (TABORDA, 2001, p. 251).

É importante salientar que depois que F. Taborda teve contato com a obra de
Cesare Giraudo, a sua compreensão teológico-litúrgica foi enriquecida e a sua
abordagem ganhou uma nova consideração. Seus últimos trabalhos seguem a
tendência metodológica mistagógica da teologia dos sacramentos, que consiste em
partir da celebração para encontrar o sentido do sacramento, segundo o axioma lex
orandi – lex credendi. Esse método se explicita em três momentos: o primeiro é
buscar a fundamentação escriturística do axioma; essa é reforçada pelo uso da
Igreja, o sensus ecclesiae, expresso em sua prática litúrgica, em sua Tradição. Por fim,
se considera o conteúdo das preces da Igreja, das fórmulas litúrgicas que se baseiam
na Escritura e na Tradição universal da Igreja.

À guisa de conclusão
Percebemos que a leitura da práxis propõe uma breve discussão a respeito
de algumas posições da antropologia cultural sobre o rito. Na verdade, considera-se
a perspectiva da antropologia cultural como uma interessante tentativa de
compreender o fenômeno humano como um todo e nos seus aspectos individuais e
coletivos, capaz de considerar também a dimensão simbólica fundamental para um
estudo da religião e da ritualidade. Por outro lado, mantém-se um verdadeiro nexo

que se diz sob o termo “práxis” pode ser entendido também sob categorias como “vida”, “caminhada”,
“seguimento”, “engajamento”, “f é” (viva)” (TABORDA, 1989, p. 85-99.

853
entre a teologia do rito e a investigação entre esta orientação de estudo sobre o
homem e as reflexões e os caminhos da teologia e da pastoral da liturgia.
Podemos concluir, recordando algo fundamental hoje, que a recepção do
Concílio Vaticano II pela Igreja da América Latina foi criativa e inovadora; não se
tratou de uma mera aplicação dos princípios gerais, mas de uma verdadeira
releitura do Concílio a partir de um novo lugar teológico: a partir dos pobres. O
Concílio não foi simplesmente historicizado, mas o aspecto eclesiológico do Concílio
foi cristologizado, a ação litúrgica ganha forma nas pequenas comunidades com
vários rostos, em que os sacramentos da iniciação são pensados nas categorias do
Reino de Deus e sempre buscam considerar a problemática da relação sacramento-
vida (Cf. TABORDA, 1998, p. 11-16), ou na categoria de festa que se apresenta como
um paradigma apto para expressar teoricamente a unidade entre realização
histórica do seguimento de Jesus e rito sacramental, aprofundá-la e sublinhá-la.
Dentro de tal perspectiva, os sacramentos são a celebração da práxis histórica no
Senhor, ou seja, celebração da fé viva e vivida.
As várias abordagens não podem ser vistas como ilhas isoladas, nem serem
consideradas as únicas, mas vividas e refletidas no conjunto. É no diálogo constante
entre as escolas, teólogos, liturgistas, abordagens e Magistério que será possível
alcançar a interdisciplinaridade almejada pelo Concílio. Mas diante desse drama,
que método poderia ajudar na compreensão e experiência do dado litúrgico-
sacramental? Como responder hoje aos desafios com a linguagem sacramental,
experiência de fé e dinâmica comunitária?

Referências
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