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OBRAS INCOMPLETAS DE SIGMUND FREUD CLINICAS Cinco casos paradigmaticos da clinica psicanalitica * CASO DORA + PEQUENO HANS * HOMEM DOS RATOS. * CASO SCHREBER * HOMEM DOS LOBOS Posfacio Marcus André Vieira Tradugao e notas Tito Livio Cruz Romao auténtica 631 DA HISTORIA DE UMA NEUROSE INFAN TI (CASO HOMEM DOS LoOgOS) (1918) ; | NOTAS PRELIMINARES O caso clinico que relatarei aqui‘ — mais uma vez apenas de modo fragmentério — caracteriza-se por um namero de peculiaridades que precisam ser destacadas antes de sua exposi¢ao. Ele diz respeito a um rapaz que aos 18 anos ficou doente apés uma infeccao gonorreica e que se encontrava totalmente dependente e inapto para a vida quando, varios anos mais tarde, entrou em tratamento ‘Esta historia clinica foi escrita logo aps a conclusao do tratamento, no inverno de 1914-1915, sob a impressio recente naquela época das reinterpretagdes que C. G. Jung ¢ Alfred Adler pretendiam realizar dos resultados psicanaliticos. Portanto, ela esta ligada ao ensaio ‘A histéria do movimento psicanalitico” (Ges. Werke, v. X), publicado no Jahrbuch der Psychoanalyse, v. V1, 1914, € complementa a polémica essencialmente pessoal ali contida, mediante uma aprecia¢ao obje- tiva do material analitico. Originalmente, destinava-se ao volume seguinte do Jahrbuch, mas, como a publicagao deste ultimo, deyida aos estorvos da Grande Guerra, foi postergada indefinidamente, decidi inclui-la nesta Colegio organizada por um novo editor. Nao obstante, muito do que nela deveria ter sido discutido pela peiaive vez eu ji precisara abordar em minhas Conferéncias intro wsdrias tne 4 psicandlise, proferidas em 1916-1917. oO texto da pare sees nio sofreu alteragdes de grande importancia; notas adictona 3 indicadas por meio de colchetes. 632. OBRAS INCOMPLETAS DE S. FREUD. psicanalitico. A década de sua juventude anterior ao mo- mento de seu adoecimento, ele a passara de forma prati-. camente normal, tendo cumprido os estudos secundarig sem muito transtorno. Porém, seus primeiros anos haviam,_ sido dominados por um grave distétbio neurético que comecou um pouco antes de seu quarto aniversario como. histeria de medo (fobia @ animais) transformando-se, em _ seguida, em uma neurose obsessiva com contetido relic gioso, estendendo-se, com seus desdobramentos, até seu décimo ano de vida Apenas essa neurose infantil sera objeto de minhas_ comunicacdes. Apesar da solicitagio expressa do paciente, tecusei escrever a histéria completa de seu adoecimento, tratamento e restabelecimento, porque reconheci que essa tarefa era tecnicamente inexequivel e socialmente inad- missivel. Assim, também fica eliminada a possibilidade de revelar 0 nexo entre sua doenga infantil e sua doenga pos- ‘erior definitiva. Sobre esta, apenas posso indicar que, por sua causa, © paciente passou muito tempo em sanatérios alemaes, ¢ na época foi classificado pela mais competen- te autoridade como um caso de “insanidade maniaco- depressiva”, Esse diagnéstico certamente se aplicava ao p aciente, cuja vida rica em atividades ¢ interesses fora atribulada Por repetidos ataques de grave depressio. No proprio filho, ao longo de varios anos de observagio, no pude perceber nenhuma mudanga de humor que, em inten: sidade e de acordo com as condigdes de seu surgi- mento, houvesse excedido a situ: Imaginei a hipétese pai do p: aCio psiquica manifesta. bi de que esse caso, Como muitos outros mprovados pela clinica psiquidtric: Hlados e alternantes, dev, decorrente de um, forma exspontinea a. com diagnésticos va- a ser entendido como uma sequela “ neurose obsessiva que se extinguiu de © foi curada com falhas, HISTORIAS CLINICAS 633 Minha descri¢ao abordard, portanto, uma neurose infantil que nao foi analisada durante a sua existéncia, mas somente 15 anos apés seu término. Comparada a outra, essa situagdo tem suas vantagens e desvantagens. De an- temio, a anilise realizada diretamente na propria crianga neurética parecerd mais confiavel, mas nao logra ser mui- to rica em contetido; precisamos emprestar demasiadas palavras € pensamentos a crianga, e mesmo assim talvez encontremos as camadas mais profundas impenetriveis para a consciéncia. A anilise do adoecimento infantil por meio da lembranga no adulto intelectualmente maduro prescinde dessas restrigdes; levar-se-io em conta, porém, a distorcio € 0 ajuste a que é submetido 0 proprio pasado, ao se fazer uma retrospectiva em um momento mais tardio da vida. O primeiro caso talvez fornega os resultados mais convincentes; 0 segundo é, de longe, 0 mais instrutivo. Mas, seja como for, é licito! afirmar que anilises de neuroses infantis podem exigir um interesse tedrico espe- cialmente elevado. Elas contribuem para 0 correto enten- dimento das neuroses de adultos quase da mesma maneira como o fazem os sonhos infantis em relacio aos sonhos dos adultos. Nao que sejam mais ficeis de interpretar ou mais pobres de elementos; a dificuldade de afinizar-se com a vida animica infantil torna-as uma parte muito Ardua do trabalho do médico. Contudo, nelas esto ausentes tantas das sedimentagdes ulteriores que o essencial da neurose acaba por vir A tona de modo inconfundivel. Sabe-se que a resisténcia aos resultades da psicanilise assumiu uma nova forma na atual fase da disputa pela psicandlise. Antes, contentavam-se em contestar a realidade dos fatos estabelecidos pela anilise, ¢ a melhor técnica de fazé-lo era evitar a verificagdo. Aos poucos, esse procedimento parece estar se esgotando; trilha-se agora © outro caminho 63 4 OBRAS INCOMPLETAS DE S. FREUI D inicas 635 ) HISTORIAS CU e se re ci ando. re econhecerem os fatos elimin, id conc! e Tr usoes deles deco: Tentes media; ‘ s inte ry Em de mod i O que, m; ve V: q als uma vez, ¢ itaramas clinico a ser * chocantes. ‘studo, anti el ntes. O estudo das Neuroses infantis rey d. is tevela Oo imei a dades fecundas, 0 caso 1 em nada a desejar. e nado registraram Jagao a essas dificul qui descrito nao deixo nos do tratamento quas' ermitiu, con— inadequacao dess, 7 reinterpretacao. ae ae Superficiais, ou f mudangas. Uma feliz constelagao de fatores p ae das tao negadas forcas puliga Participagiorg xt tudo, que todas as circunstancias externas ate om ass : da neurose e permite recon! as libidinais mag a continuagio do ensaio terapéutico. Posso facilmen amétasicultuiaickSnabie oe a auséncial imaginar que, em circunstancias menos favoraveis, O an sabe e que, por isso. ae quais.a crianga mento teria sido abandonado apos algum tempo. Quan Outs oe : © podem significa 4 posigao do médico, posso apenas afirmar que, nae ao eadaaecnmiends eee ° qual a anallise: a ele precisa comportar-se de modo tao See sae : sacamele an mus 10 esta relacionado dem o proprio inconsciente, caso queira apreender ¢ a canga a0 do seu tratamento, algo. Realiza-lo-, por fim, se lograr renunciar a ambicao terapéutica tacanha. Em poucos outros casos, sera legitimo que em breve espago de tempo conduzem aun satisfatério serio valiosas para a autoestima ae doen e demonstrario 0 significado médico da ie tocante ao fomento do saber cientifico, Ee maioria das vezes, irrelevantes. Com elas, ni a mesma propor¢io de paciéncia, fle ensio e confianga requerida da parte do d miliares. Mas 0 analista tem o direito de dizera que os resultados que ele obteve em um caso, em Iho tio prolongado, também ajudarao a encurtar almente a duracao do tratamento de uma pro- esperar compre de seus fa si mesmo um traba loente € substanci se pode apreender algo novo partindo-se de xima doenca com a mesma gravidade, superando, assim, Sen dificuldadés-espéciais; para: cus ati Pee a atemporalidade do inconsciente, apos demande ae "7 ter se submetido a ela uma primeira vez. : Ce muito tempo. Somente nesses casos se O paciente d Eee descer as camadas mais p 5 A ciente de quem aqui me ocupo manteve-se a s rofundas e mais primitiv i : Becca rit pas i a a muito tempo inatacavelmente entrincheirado em uma nento psiquico e dali extr: ; oseproblerndsidad eee noua a posic¢io de décil apatia. Escutava atentamente, entendia a S 2 steriores. | i : 5 f tudo e nao deixava que nad: i d i nésaesmioe entaamueiediai 4 que nada se aproximasse dele. Sua im- que, em rigor, somente a anal pecavel inteligéncia encontrava-se como que cortada das forcas pulsionais que dominavam sua conduta nas poucas saber. Para ser mais preciso, ele poderia ensinar tl SEE re nove ic rae Eanes ade i¢do para mové-lo a assumir uma parte inde- pendente no trabalho, e quando, em consequéncia desse esforgo, emergiram as primeiras libertages, ele suspendeu imediatamente o trabalho para evitar outras alteragGes e apenas fOssemos capazes de apreender tudo e nio semos de nos contentar com pouco, pela inexp da prépria percepgao. 636 OBRAS INCOMPLETAS DE S. FREUD manter-se comodamente na situagao estabelecida. Sey, receio frente a uma existéncia autonoma era tio grande que compensava todos os desconfortos da condi¢io de doente. Encontrou-se um tinico caminho para super4-lo, Precisei esperar até que a ligacio 4 minha pessoa se tor- nasse suficientemente intensa para equilibra-la, em se- guida joguei esse fator contra o outro, Determinei, nio sem me deixar guiar por bons indicios de oportunidade, que o tratamento teria de terminar em um determinado prazo, nio importando até onde tivesse avangado. Eu estava decidido a cumprir esse prazo; por fim, 0 paciente acreditou na minha seriedade. Sob a pressio implacével do prazo estabelecido, sua resistencia ¢ sua fixagio na condi¢io de doente cederam, ea andlise forneceu entio, em um periodo desproporcionalmente curto, todo o material que tornou possivel a resolucao de suas inibigdes © a climinagio de seus sintomas. Desse tiltimo periodo do trabalho, em que a resisténcia desapareceu tempora- riamente e em que 0 doente passava a impressio de uma lucidez aleangavel apenas pela hipnose, também provém todos os esclarecimentos que me permitiram compreender a sua neurose infantil, Foi assim que 0 transcurso desse tratamento ilustrou a proposi¢io ha muito tempo reconhecida pela técnica analitica de que a extensio do caminho a ser trilhado pela anilise com o paciente e a abundancia de material a ser dominado nesse caminho esto fora de questao em relagio com a resisténcia encontrada durante o trabalho, e que so entram em questio na medida em que forem necessaria~ mente proporcionais a ela. Trata-se do mesmo processo que ocorre qu: ando agora um exército inimigo gasta se manas e meses para atravessar o trecho de uma regido que, normalmente, em tempos de paz, seria percorrido por um HISTORIAS CLINICAS 637 trem expresso em poucas horas, que, pouco tempo antes, havia sido transposto pelo exército local em alguns dias. Uma terceira peculiaridade da anilise aqui descrita apenas tornou mais dificil minha decisio em comunics-la, Grosso modo seus resultados coincidiram satisfatoriamente com © nosso conhecimento atual ou ajustaram-se bem a ele, Entretanto, a mim mesmo alguns detalhes pareciam tio notaveis ou inverossimeis que hesitei em pedir a outros que acreditassem neles. Exortei o paciente a fazer a critica mais severa de suas lembrangas, mas ele nada encontrou de improvavel em suas afirmagées, atendo-se firmemen- te a clas. Que os leitores estejam ao menos convencidos de que eu mesmo apenas relato aquilo que se ofereceu a mim como experiéncia independente, nao influenciada pela minha expectativa. Assim, s6 me restava recordar as sibias palavras: hé mais coisas entre 0 Céu ea Terra do que sonha nossa filosofia.? Aquele que fosse capaz de eliminar mais radicalmente suas convicgdes prévias certamente conseguiria descobrir ainda mais coisas desse tipo. " PANORAMA DO AMBIENTE E DA HISTORIA CLINICA Nio posso escrever a historia de meu paciente de forma puramente hist6rica ou puramente pragmitica, no posso fornecer uma hist6ria do tratamento ou uma histéria clinica; em vez disso, vejo-me obrigado a combinar enlze si ambos os modos de exposi¢io. Como & sabido, no se encontrou nenhum caminho para de alguma maneira abrigar, no relato da anilise, a convic¢io dela resultante. Registros protocolares exaustivos dos processos 20 lon- go das sessdes de analise certamente nko contribuiriam em nada para esse fim; também se exclui sua confecgao 638 OBRAS INCOMPLETAS DE S. FREUD devido 4 técnica do tratament nao sao publicadas Para suscitar conviccs, ‘ até agora exibiram uma conduta asda a S6 se espera levar algo de novo aude que, pelas préprias experiéncias com do ie adquirido convic¢des. I ie 0. Portanto, 3 Vou comeg¢ar retratando © mundo. da: municando, da histéria de f sua infancia, aquilo vira conhecer sem esforgo, eo que, por anosa tornou mais completo nem mais transparent: Pais que haviam se casado jovens le vida conjugal feliz, sobre.a qual seus doe passam a langar as primeiras sombras,,as-enferm abdominais da mie e os primeiros acessos de humor do pai que culminaram em sua.ausénc O paciente, naturalmente, 36. viria a-entende liri : dirigidos ao médico que ela acompanha ate ap as suas palavras para mais tarde utiliza-las para si1 Nao é filho tinico; antes dele vem uma irma doi velha, cheia de vida, talentosa e precocementet que desempenharia um grande papel em sua) i Uma baba toma conta dele, até onde eles uma mulher do povo, velha e iletrada, cheia dedi carinho por ele. Para ela, 0 garoto era.o sucedanes filho seu que morrera precocemente. A familia uma propriedade rural que, no verao, é trocada pong A cidade grande nao fica longe de ambas as pfopH “a Uma ruptura ocorre em sua vida quando os pals enden HISTORIAS CLINICAS 639 iedades e mudam-se para a cidade. Com frequéncia, propr : : rentes proximos hospedam-se por longas temporadas a ‘5 sa = % 5 oe 5 rest ou naquela propriedade, irmaos do pai, irmas da nes mide e€ OS respectivos filhos, os av6s maternos. No verao, am fazer uma viagem de algumas semanas. ncobridora mostra-lhe 0 momento em lo da baba, segue com os olhos o e e airma, e em seguida volta os pais costum Uma lembranga € que ele, acompanhad carro que rapta 0 pai, a mai r pacificamente para dentro de casa. Aquela época, ele devia ser muito pequeno.' No verao seguinte, deixaram a irma em casa e contrataram uma governanta inglesa, a quem cabia a supervisio das criangas. Em anos posteriores, contaram-lhe muitas historias de sua infancia." Muitas coisas, ele mesmo ja as sabia, mas naturalmente sem contexto de tempo ou contetido. Uma dessas lendas, que devido a seu adoecimento ulterior fora repetida infGmeras vezes diante dele, apresenta-nos o problema de cuja solug¢do nos ocuparemos. Em prin- cipio ele deve ter sido uma crian¢a muito meiga, décil e normalmente calma, de tal modo que costumavam dizer que ele deveria ter sido a menina, e a irma mais velha, 0 menino. Mas, certa vez, ao voltarem das férias de verao, Dois anos ¢ meio. Posteriormente, quase todas as datas puderam ser determinadas com seguranga. Em geral, € licito que comunicagdes desse tipo sejam aproveitadas como material de irrestrita confiabilidade. Por isso, seria natural que se preenchessem, com facilidade, as lacunas na meméria do paciente mediante informages obtidas junto aos familiares mais idosos; s6 que eu desaconselho o uso dessa técnica com bastante determinagio. Tudo ° ANE Os Parentes contam, estimulados por perguntas ¢ solicitagdes, os ee as consideragSes criticas que se possam conceber. peace laments Se que a criagio de uma dependéncia dessas in 4 provocado, nesse contexto, um prejuizo i confianga naana ee ce 2 analise ¢ colocado uma instincia acin geral possa ser lembr, ma dela. Tudo aquilo que em ado vird 4 tona ao longo da anilise. 640 OBRAS INCOMPLETAS DE S. FREUD os pais encontraram-no transformado. O menino passarg. 1 ser descontente, itritivel, violento, por qualquer mo tivo ficava ofendido, entio se enfurecia e gritava como. um selvagem, a ponto de os pais, vendo esse estado per. durar, manifestarem a preocupa¢io de que, no futuro, nio seria possivel envid-lo a escola. Era o vero em qu estava presente a governanta inglesa, que se revelou uma esse motivo, a mie inclinou-se a relacionar a alteragio di carater do garoto a influéncia dessa inglesa, supondo q ela o tivesse irritado com seu modo de trata-lo. A arguta av6, que compartilhara 0 verdo com os netos, sustentot chamara repetidas vezes a baba de bruxa, obrigando-a a sair do aposento; 6 garoto tomara partido abertament por sua querida “Nania”,> mostrando, assim, seu édio governanta. Seja como for, logo apés o retorno dos p a inglesa foi demitida, sem que algo mudasse na manei insuportavel da crianga certa vez, nao ganhou dois presentes no Natal, ao conti do que deveria ter sido, j4 que o dia de Natal era, 20 mi mo tempo, o dia do seu aniversario. Com suas once e suscetibilidades, ndo poupava nem sequer sua que Nania; na verdade, talvez a atormentasse da maneira m impiedosa. Mas, em suas lembrangas, a fase de mudan de carter esté indissoluvelmente ligada a mulled outros fendmenos peculiares e doentios que ele nao) sabe Py sso que devera ser relat 0 simultane em ordem cronolégica. Tudo : agora, que nao pode ter acontecido de mo ve 4 : es de contetido, ele joga € est cheio de contradig HISTORIAS CLINICAS 641 mesmo ¢ tinico intervalo de tempo, que exprime com as palavras “ainda na primeira propriedade”. Ele acredita que teriam deixado essa propriedade quando ele estava com 5 anos. Dessa maneira, sabe contar que sofreu de um medo do qual sua irmi se aproveitava para atormenté-lo. Havia certo livro de imagens em que um lobo estava re- presentado em posigio ereta e avancando a passos largos. Quando Ihe mostravam essa imagem, comegava a gritar como se estivesse enfurecido, temendo que 0 lobo viesse devora-lo. Todavia, a irma sempre sabia dar um jeito de ele forgosamente ver a figura, deleitando-se com o pavor do menino. Entretanto, ele também sentia medo de outros animais, grandes e pequenos. Uma vez saiu cagando uma grande e bonita borboleta de asas com listras amarelas que terminavam em pontas,* para apanh4-la. (Era sem diivida uma “borboleta rabo-de-andorinha”.’) De repente foi tomado por um terrivel medo do animal, desistindo da perseguicao aos gritos. Também sentia medo e aversio diante de besouros ¢ lagartas. Porém, conseguia lembrar-se de que naquela mesma época torturara besouros e reta- Ihara lagartas; para ele, cavalos também eram criaturas infamiliares [unheimliche]. Gritava quando batiam em um cavalo, ¢ uma vez, por esse motivo, precisou sair de um circo. Outras vezes, era ele mesmo quem gostava de bater em cavalos. Sua lembranca nio permitiu decidir se esses Upos opostos de conduta em relagao aos animais tiveram efetivamente uma vigéncia simultanea, ou se, em vez disso, nao havi: am sucedido um ao outro, e, nesse caso, em que sequéncia e quando ocorrera. Também nio era capaz de dizer se seu periodo de malvadeza dera lugar a uma fase de doenga, ou se prosseguiu ao longo desta ultima. Em todo caso, através das suas comunicacées due serio relatadas a seguir, estavamos justificados em 642 OBRAS INCOMPLETAS DE S. FREUD HISTORIAS CLINICAS 643 supor que ele passou, naqueles anos da infincia, por um pequeno, teve orgulho do pai e sempre dizia que queria adoecimento bem reconhecivel como neurose obsessiva,_ se tornar um senhor como ele. A Nania Ihe dissera que a irmi eraa filha da mae, mas ele, 0 do pai, o que o deixa- va muito satisfeito. No final da infancia, instalou-se um estranhamento entre ele ¢ © pai. O pai preferia indubi- tavelmente a irma, ¢ ele ficou muito ofendido com isso. Mais tarde, 0 medo do pai foi se tornando dominante. Por volta dos 8 anos, desapareceram todos os fend- menos que © paciente atribui a fase de vida iniciada coma ruindade. Nao desapareceram de um s6 golpe, mas algu- mas vezes retornavam, terminando por ceder finalmente, como pensa o paciente, a influéncia dos professores ¢ edu- cadores que passaram entio a ocupar o lugar das mulheres encarregadas de sua criacio. Estes sio, portanto, em um curtissimo esbogo, os enigmas cuja solugio foi confiada A anilise: de onde vinha a repentina mudanga de cardter do garoto, 0 que significavam sua fobia e suas perversidades, como ele chegou sua devogio compulsiva, ¢ como se Contou que, durante todo um longo tempo, fora muito devoto. Antes de adormecer, precisava rezar um longo tempo ¢ fazer uma série interminavel de sinais da cruz, A noite, também costumava pegar uma cadcira, na qual subia para dar uma volta por todas as imagens de santos nas paredes do quarto, beijando cada uma com devogio. Esse cerimonial religioso combinava muito. pendurad mal ~ou talvez, por que nio, muito bem — com 0 fato de ele se lembrar de pensamentos sacrilegos, que lhe vinham 4 cabeca como uma inspirago do deménio, Ele tinha de pensar: Deus-porco ou Deus-excremento. Alguma vez, durante uma viagem a um balneario alemio, foi atormens _ tado pela compulsio de pensar na Santissima Trindade, quando ele via pela rua trés montinhos de estrume de cavalo ou de outro excremento. Aquela época também seguia um cerimonial singular, sempre que via pessoas que _ Ihe causavam pena, como mendigos, aleijados,* anciies. relacionam todos esses fendmenos? Lembro mais uma vez Precisava entao expirar ruidosamente, para evitar ficar do que nosso trabalho terap@utico dizia respeito a um adoe- mesmo jeito que eles, e em outras determinadas situagSes Cimento neurético entio recente, mas posterior, e que s6 também era preciso inspirar com forca. Naturalmente, | cra possivel obter esclarecimentos para aqueles problemas fazia sentido, para mim, supor que esses nitidos sintomas anteriores se o transcurso da anilise se afastasse do presente de neurose obsessiva pertenciam a um perfodo e a uma_ por algum tempo, a fim de nos forgar ao desvio através 7 dos primérdios da infancia fase de desenvolvimento um pouco mais tardios que 0s | Pp cia. sinais de medo e€ as ages cruéis contra animais. Os anos mais maduros do paciente foram determi-_ mM nados por uma relacao muito desfavoravel com seu pai, ASEDUGAO E SUAS CONSEQUENCIAS IMEDIATAS que, naquele tempo, apés reiteradas crises de depressao, Rone =e el a s facetas doentias de seu carater. nao conseguia esconder as facetas doentias de seu carat : i a i ara a Nos ciros anos da infancia, essa relagdo fora muito P governanta inglesa, diante de cuja presenga ocorreu Che eee eee ; : a alteragio no garoto. Em relagio a ela, foram conservadas carinhosa, como preservou a lembranga do filho. O pat Desde duas lembrangas encobridoras em si incompreensiveis. © queria muito bem e gostava de brincar com ele. Desde — Ss DES. FREUD 644 OBRAS INCOMPLETAS DE S. FREU! Uma vez, enquanto ela caminhava na frente, teria dito aos que a seguiam: Othem s6 6 meu rabinho!” De outra feita, durante uma viagem, seu chapéu fora levado pelo vento, para a grande satisfacio dos irmios. Isso apontava ao complexo de castracio, permitindo, talvez, a cons. trugio de que uma ameaca sua dirigida ao garoto teria contribuido muito para 0 seu comportamento anormal, Nio ha nenhum perigo em comunicar esas construgdes ao analisado, elas jamais causam danos a anilise, se ¢s- tiverem equivocadas, e € claro que no as formulamos se nao tivermos a intengio de alcangar, por meio delas, uma aproximagio qualquer com a realidade. Como efeito imediato dessa formulacio, surgiram sonhos cuja inter- pretagao nao foi inteiramente bem-sucedida, mas que sempre pareciam jogar com © mesmo contetido. Até onde se podia entendé-los, tratava-se de agées agressivas do garoto contra a irma ou contra a governanta, bem como de enérgicas repreensdes € castigos por isso. Como se ele tivesse... ap6s o banho... querido desnudar a irma. arrancar-lhe as roupas... ou os véus... ¢ coisas do género, Mas nio se conseguiu obter um contetido seguro a partir da interpretagao, e quando tivemos a impressio de que © mesmo material estava sendo trabalhado nesses sonhos de maneira sempre alternada, estava garantido o entendi- mento dessas supostas reminiscéncias. S6 podia tratar-se de fantasias que um dia 0 sonhador, provavelmente nos anos da puberdade, havia criado sobre sua infincia “a agora mais uma vez emergiam dessa forma tio dificil de ser reconhecida. Seu entendimento surgiu de um s6 golpe, que paciente repentinamente se lembrou que a irma, quads lo cle ainda era muito pequeno, na primeira propriedade”, 0 teria seduzido para praticas sexuais. Primeiramente velo HISTORIAS CLINICAS 645 a lembranga da irma, no mesmo banheiro que as criangas compartilhavam, fazendo esta exigéncia: Vamos mostra o bumbum um ao outro, e fez seguir a acio as palavras. Depois disso apresentou-se 0 mais essencial da seducio, com todos os detalhes de tempo e lugar. Foi na primavera, em uma ocasido em que o pai estava ausente; as criangas estavam brincando no cho de um cémodo, enquanto a mic trabalhava no compartimento contiguo. A irmi agarrou o seu membro, brincou com cle, enquanto dizia coisas incompreensiveis sobre a Nania, como uma expli- ca¢ao. Que a Nania fazia essas mesmas coisas com todo mundo, por exemplo, com 0 jardineiro, que ela punha de ponta-cabeca ¢ agarrava seus genitais, Com isso, estava dada a compreensio das fantasias previamente supostas. Elas deviam apagara lembranga de um processo que mais tarde a autoestima masculina do paciente considerou chocante, ¢ atingiram essa meta colo cando um oposto de desejo no lugar da verdade histérica, Segundo essas fantasias, no fora ele quem desempenhara © papel passivo perante a irmi; ao contrario, fora agressivo, quisera ver a irma desnuda, fora repudiado e castigado, ¢ Por isso teve o ataque de raiva de que a tradicio familiar tanto falava. Também era adequado enredar a governanta nessa ficgdo, tendo em vista que a mie ¢ a avé The atribuiam 4 culpa principal pelos seus acessos de raiva. Portanto, essas fantasias correspondiam exatamente i formagao de uma lenda através da qual uma nagio, que mais tarde se torna grande e soberba, procura esconder a pequenez ¢ a desventura de seus primérdios. Na realidade, a governanta s6 podia ter uma partici~ Pacio muito remota na sedugio e suas consequéncias. As cenas com a irmi aconteceram na primavera do mesmo ano, em cujos meses de pleno verio a inglesa entrou como >BRAS INCOMPLETAS DE S. FREUD HISTORIAS CLINICAS 647 substituta dos pai A hostilidade do menino com a go- a i ‘ sobre como fora maltratada por sua acompanhante, mas, vernanta deu-se, muito mais, de outro modo. Ao insultar es E ea ‘ ees ee ao que tudo indica, passou a ter uma fixagdo na suposta 1 baba ¢ difama-la, chamando-a de bruxa, a governanta abs : : 7 ee torturadora, Em uma segunda viagem, logo em seguida, seguia, em relagao a ele, os passos da irma, que primei- guia, las Goisas terriveis sobre: tat envenenou-se ¢ morreu longe de casa. Provavelmente, sua snte contara aquelas colsas te a baba, = A Higa P Tamente Contata.aqi 3 luz, contra el, «a afecgio correspondia ao inicio de uma dementia praecox.* ‘ > permitia que trouxesse a luz, contra ela prépri 3 assim The permitia qi ‘ Pa Era uma das testemunhas da considerivel heranga neuropa~ aaversio que, como veremos mais tarde, desenvolvera-se contra a irm ee : tica na familia, mas, de forma nenhuma, a tinica. Um tio, em consequéncia da seducio. irmio do pai, morreu depois de longos anos de existéncia Contudo, € certo que a sedugao por parte da irma excéntrica, com sinais que permitem concluir uma grave nio foi nenhuma fantasia. Sua credibilidade foi aumentada neurose obsessiva; um bom niimero de parentes colaterais por uma comunicagao jamais esquecida obtida em anos estava ¢ estd afetado por perturbacées nervosas mais leves. posteriores, jf na maturidade. Um primo, uma década Para nosso paciente, a irma era na infancia — ex- mais velho que ele, disse-Ihe, em uma conversa sobre a cetuando-se no momento a sedugio — uma concorrente incémoda pelo prestigio junto aos pais, e ele sentia como opressiva a superioridade cruelmente ostentada por ela. A irma, ele invejava particularmente o respeito que o pai testemunhava diante das capacidades de seu espirito e de suas habilidades intelectuais, enquanto ele proprio, inte- imi, que lembrava muito bem como ela havia sido uma _ coisinha atrevida e sensual. Com a idade de 4 ou 5 anos, _ uma vez ela teria sentado no seu colo e aberto a sua calga para agarrar seu membro. , Gostaria agora de interromper a historia da infancia de meu paciente para falar dessa irmi, de seu desenvol- lectualmente inibido desde sua neurose obsessiva, precisava vimento, de seus destinos posteriores e de sua influéncia contentar se com uma avaliagio mediocre. A partir dos seus 14 anos de idade, a relagio entre os irmios comecou a melhorar; uma disposica sobre ele. Era dois anos mais velha que ele e sempre perma- necera 4 sua frente. Quando crianga, fora indomavel como. intelectual semelhante e uma oposicao conjunta aos pais uniram-nos a tal ponto que mento intelectual; destacava-se por uma inteligéncia aguda | passaram. um menino, mais tarde iniciou um brilhante desenvolvi- a conviver como os melhores companheiros. € realista, em seus estudos preferia as ciéncias naturais, mas Na tempestuosa excitacio sexual de sua puberdade, ele também produzia poemas que o pai apreciava muito. Era ousou buscar uma aproximacio corporal intima junto a ‘ambéi s ‘ por: telect as nite muito superior a seus intimeros primel- cla. Quando ela, com igual determinagio ¢ habilidade, o intelectualmei s 2 gual d tendentes, costumava escarnecer deles. Porém, nos — repelira, ele voltou-se imediatamente dela para uma ga- ne ee frer alterages rota camponesa que trabalhava na casa ¢ tinha o mesmo primeiros anos da casa dos 20, comegou a softer alterag 7 nome d, 5 a ta de humor, queixava-se de no ser suficientemente bonit ja irma. Assim consumava um passo decisivo para : a sua escolha heterosse: s as mocas got ci: aa t 2 ac: retirando-se de Wivio social. Enviadi i " ee € acabou retirando-se os eon hora ani a por quem mais tarde veio a se apaixonar, amitide sob os uma viagem na companhia de uma sen| ’ a claros indicios de obsessio, eram igualmente servicais ual de objeto, pois tod. i i idosa, contou, ao retornar, coisas totalmente inveross! Ss DE S. FREUD as INCOMPLETA’ 648 o8R caja instrucio e inteligencia precisavam ser bem inferio- res i sua. Se todos esses objetos de amor eram substitutos da irma que lhe foi negada, ent. nao é possivel refutar gue, nesse contexto, uma tendéncia a degradar a irma, a eliminar sua superioridade intelectual, que outrora tanto © oprimira, tenha obtido © poder de decisio sobre sua escolha do objeto. Segundo Alfred Adler, a conduta sexual do ser hu- mano, como tudo 0 mais, estaria subordinada a motivos desse tipo oriundas da vontade de poder, da pulsio de autoafirmagao do individuo. Sem jamais negara validade desses motivos de poder e privilégio, nunca estive con= victo de que podem desempenhar o papel dominante e exclusivo a elas atribuido. Se eu nao tivesse conduzido a andlise de meu paciente até o final, eu entio teria pre- cisado tomar a observagio deste caso como ocasiao para fazer uma corregio de meu julgamento no sentido de Adler. Inesperadamente, a conclusao desta anilise trouxe novo material que voltou a mostrar que esses motivos de poder (em nosso caso, a tendéncia 4 degradagao) haviam determinado a escolha do objeto apenas no sentido de uma contribuigao e de uma racionalizagio, ao passo que a verdadeira determinag4o, mais profunda, permitir-me-4 insistir em minhas convicgées.! Quando chegou a noticia da morte da irma, con- tou-me o paciente, ele mal sentiu um indicio de dom Compeliu-se a esbogar sinais de luto e, com toda a frieza, pode alegrar-se de agora ter se tornado 0 tinico herdeiro dos bens. Quando isso aconteceu, ele ja se encontrava afetado por sua recente doenga. Nao obstante, confesso que essa comunicagio me deixou inseguro na anilise V. adiante, p. 733 HISTORIAS CLINICAS 649 diagnéstica do caso durante todo um periodo. Cabia supor, certamente, que a dor da perda do membro mais amado de sua familia sofreria uma inibi¢ao em sua ex- pressio através do citime persistente alimentado contra ela e da intromissio da paixao incestuosa tornada incons- ciente, mas eu nao conseguia renunciar a um substituto para a irrupgao de dor que nio aconteceu. Por fim, um substituto foi encontrado em outra manifestagio de sen- timentos que lhe permanecera incompreensivel. Poucos meses aps a morte da irmi, ele proprio fez uma viagem 4 regido onde ela falecera e la procurou o timulo de um grande poeta, que aquela época era seu ideal, derramando lagrimas ardentes sobre a sepultura. Essa foi uma reacio que causou estranheza também a ele mesmo, pois ele sabia que ja haviam transcorrido mais de duas geragdes desde a morte do venerado poeta. Ele s6 a compreendeu ao lembrar que o pai costumava comparar os poemas da falecida irma com os do grande poeta. Outra pista relativa 4 correta intepretagio dessa homenagem aparentemente enderecada ao poeta fora-me fornecida por ele, em seu relato, mediante um erro que eu pude extrair nesse Ponto. Antes, ele havia indicado repetidas vezes que a irmi teria se dado um tiro, ¢ depois precisou retificar que ela tomara veneno. O poeta, no entanto, fora morto em um duelo de pistolas, Retomo agora a historia do irmao, mas a qual, a partir deste trecho, tenho de expor, em certa medida, de forma pragmitica. Revelou-se que a idade do ga- Toto, no momento em que a irma iniciou seus atos de sedugao, era de 3 anos e 3 meses. Como ja adiantamos, © fato ocorreu na primavera do mesmo ano em que os Pais, durante o outono subsequente, o encontraram tio radicalmente transformado. E bastante plausivel associar 5 INCOMPLETAS DE S. FREUD 650 OBRAS INC langa com © despertar de sua atividade sexual essa mudanga orrida nesse interim. Como 0 garoto reagia as sedugdes da irma mais ve- tha? A resposta & com repiidio, mas 0 repiidio concernia 4 pessoa, nao Neto saul aE era apropriada, provavelmente por que aya relagdo com ela ja estava determinada em sentide hostil pela concor- rancia pelo amor dos pais. Ele a evitava, ¢ os galanteios desta também logo tiveram fim. Porém, em vez dela, ele procurou conquistar outra pessoa mais amada, e comu- nicagdes da propria irma, que se referira ao modelo da ‘olha para esta. Passou entao a brincar com seu membro diante da Nania, 0 que, como oc 3 coisa. Como objeto sexual, a irma nao Ihe Nania, orientaram a sua e: ocorre em muitos outros casos em que as criancas nao es- condem 0 onanismo, precisa ser entendido como tentativa de sedugdo. A Nania 0 decepcionou, fazia uma cara séria e explicava que aquilo nio era bom. Criangas que fizessem isso ficariam com uma “ferida’”’ no local. O efeito dessa comunicagao, que equivaleu a uma ameaga, deve ser acompanhado em varios angulos. Sua dependéncia da Nania foi consequentemente afrouxada. Ele poderia ter ficado bravo com ela; mais tarde, quando seus acessos de raiva comecaram, também ficou claro que ele realmente estava irritado com ela. Entretanto, era uma caracteristica sua primeiramente defender com obstinagdo, contra algo novo, toda e qualquer posigio libidinal que ele devesse abandonar, Quando a governanta entrou em cena, pondo-se a insultar a Nania, expulsando-a do cémodo, querendo aniquilar sua autoridade, ele, a0 contririo, exacerbou seu amor pela ameacada e assumiu um comportamento de reptidio e desafio em relagao 4 agressiva governanta. Apesar disso, comegou a buscar em segredo outro objeto sexual. A sedugio havia Ihe dado a HISTORIAS CLINICAS 651 meta sexual passiva de ser tocado nos genitais: saberemos com quem ele pretendia alcanga-la, e que caminhos 0 conduziram a essa escolha. Corresponde inteiramente as nossas expectativas saber que com suas primeiras excitagdes genitais iniciou investigacio sexual, ¢ que, logo a seguir, ele viu-se con- frontado com o problema da castracio. Nesse periodo, ele pode observar duas meninas, sua irmi e uma amiga dela, enquanto urinavam. Diante dessa visio, sua perspicicia ja poderia té-lo feito entender do que se tratava, s6 que, naquela situagio, cle comportou-se como bem sabemos que © fazem outros meninos. Rechacou a ideia de ver ali confirmada a ferida mencionada pela Nania em sua ameaca e explicou para si mesmo que aquilo seria “o bumbum da frente” das meninas. Mas essa decisio nao liquidava o tema da castragio; de tudo 0 que ouvia, extraia novas alusdes a isso. Uma vez, quando as criangas ganharam umas ben- galas coloridas de agticar,’ a governanta, que era inclinada a fantasias torpes, explicou que seriam pedacos de cobras retalhadas. A partir disso ele se lembrou de que certa vez o pai, durante um passeio, encontrara uma cobra e a cortou em pedagos com sua bengala. Escutow a leitura da historia (extraida de “Reineke, a raposa”"”) em que o lobo queria Pegar peixes no inverno, e, ao usar o rabo'! como isca, este Partiu-se no gelo. Aprendeu os diferentes nomes com que se designam os cavalos conforme o carter intacto de seu sexo.” Portanto, ele estava ocupado com o pensamento da castrag4o, mas ainda nao tinha nenhuma crenga e nenhum medo em relagao a isso. Outros problemas de ordem sexual surgiram-lhe através das historias infantis que ele conheceu aquela época. Em “Chapeuzinho Vermelho” ¢ em “Os sete cabritinhos”, as criangas eram resgatadas da barriga do lobo. O lobo entio era um ser feminino, ou homens nse a sua 2 BRAS INCOMPLETAS DE S. FREUD 652. oBRAS INCO! também podiam carregarfilhos no ventre? Naguele tempo, exo ainda nao estava decidido, Além disso, na época dessa snvestigagio, ele ainda nio conhecia nenhum medo do lobo, Uma das comunicagées do paciente nos trilhard caminho para 0 entendimento da alteragio de carater que Ihe aconteceu durante a auséncia dos pais, em uma conexio mais remota com a sedugio. Ele conta ter abandonado a masturbagio logo apés a rejeigio e a ameaca da Nania, Portanto, a vida sexual que comecou sob a regéncia da zona ge- nital sucumbiu a uma inibigéo externa e, influenciada por esta, foi remetida a uma fase anterior de organizacao pré-genital. Em ‘consequéncia da repressio [Unterdriickung] do onanismo, a vida sexual do garoto assumiu um cardter sidico-anal. Ele tornou-se itritadico, atormentador, satisfazendo-se,"* dessa maneira, com animais e pessoas. Seu objeto principal era a querida Nania, que ele sabia martitizar até ela irromper em ligrimas. Assim ele se vingava dela pela rejeigio sofrida c, ao mesmo tempo, satisfazia seu apetite sexual na forma correspondente & fase regressiva. Ele comegou a praticar contra animais pequenos, a cagar moscas para Ihes arrancar as asas, a pisotear besouros; em sua fantasia, adorava também bater em animais de grande porte, tais como cavalos. Eram, pois, exercicios inteiramente ativos, sédicos; em um contexto posterior falaremos sobre as mog crueldade: eS al s dessa época. E muito precioso que na lembranga do paciente tam- bém emergissem fantasias simultaneas de natureza total- mente diversa, em cujo contetido garotos eram castigados © espancados, espancados principalmente no pénis; a query m de bodes expiatérios, pode-se facilmente adivinhar, através de outras fantasias, que representavam o herdeiro do trono sendo preso num espago estreito e espancado. O herdeiro do trono era esses objetos andnimos servi HISTORIAS CLINICAS 653 evidentemente ele proprio; portanto, 0 sadismo voltara-se contra a propria pessoa na fantasia, e foi invertido em ma- soquismo. O detalhe de o préprio membro sexual receber © castigo admite concluirmos que, nessa transformacio, Ja havia a participagio de uma consciéncia de culpa em relagio ao onanismo. Na anilise, no restou diivida de que essas aspiragdes passivas haviam surgido concomitantemente com as ten déncias ativo-sidicas ou logo apés estas.' Isso corresponde & ambivaléncia do doente, caracterizada por uma nitidez, uma intensidade ¢ uma persisténcia incomuns, que aqui se manifestou pela primeira vez na formacio homoggnea dos pares de pulses parciais opostas. Mesmo no que se seguiu, esse comportamento permaneceu tio caracteristico para ele quanto 0 outro trago de que, na verdade, nenhuma das Posi¢des jé institufdas da libido era eliminada completa mente por uma posterior. Ao contririo, ela contimuava a existir com todas as outras, permitindo-Ihe uma oscila¢io constante que se revelou inconciliével com a aquisi¢io de um carater fixo, As aspiragdes masoquistas do garoto conduzem a Outro ponto que me poupei de mencionar, porque s6 podera ser assegurado através da andlise da fase seguin- te do seu desenvolvimento, J4 mencionei que, apés ser rejeitado pela Nania, desatrelou dela sua expectativa libidinosa, pasando a ter em vista, como objeto sexual, Outra pessoa. Essa pessoa era o pai, que estava ausente naquela época. Com certeza, foi levado a essa escolha por uma confluéncia de fatores, inclusive fortuitos, como a Entendo por aspiragSes passivas aquelas com meta sexual passiva, + Neste caso, certamente io tenho em vista uma transformagao. pulsional, mas apenas uma transformagio de meta.

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