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Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 1

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Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 3

Rosemary Lopes Soares da Silva


(Organizadora)

MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO DEBATE EDUCACIONAL:


relações com a interseccionalidade

Salvador-Bahia
2023
4

Diagramação, capa e revisão:


Rosemary Lopes Soares da Silva

Todos os direitos desta edição reservados aos autores dos textos.


O conteúdo e a revisão dos textos deste e-book são de responsabilidade do(s)
autor(es)/da(s) autora(s) de cada texto.
Este e-book pertence ao Grupo de Estudos, Pesquisas e Experimentações Educacionais –
GEPEE, cadastrado no Diretório de Pesquisa do CNPq em 2018 pelo Instituto Anísio Teixeira,
da Secretaria da Educação do Estado da Bahia – IAT/SEC-BA
Coordenação:
Prof.a Dr.a Rosemary Lopes Soares da Silva
Prof.a Dr.a Genigleide Santos da Hora
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 5

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 7
Rosemary Lopes Soares da Silva

1. EDUCAÇÃO BÁSICA, TRABALHO PEDAGÓGICO E AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM:


RELAÇÃO COM A INTERSECCIONALIDADE ...................................................................................... 9
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias, Rosemary Lopes Soares da Silva

2. INCLUSÃO DE ALUNOS COM TRANSTORNOS DE DÉFICITS DE ATENÇÃO E


HIPERATIVIDADE: UMA REVISÃO DE LITERATURA ENTRE 2014 E 2021 .............................. 23
Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo, Genigleide Santos da Hora

3. INCLUSÃO ESCOLAR: DESAFIOS E EXPECTATIVAS ................................................................. 37


Cláudia Pereira Oliveira

4. FUNCIONALIDADE E QUALIDADE DE VIDA: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE


IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS E NÃO INSTITUCIONALIZADOS ........................................ 53
Jacilane Benevides Reis Soares, Maria Penha Oliveira Belém, Leila Valverde Ramos

5. REVISÃO SISTEMÁTICA: POLÍTICAS PÚBLICAS QUE AMPARAM ALUNOS COM


DISLEXIA ..................................................................................................................................................... 63
Vanina Figueiredo Santos Silva, Genigleide Santos da Hora

6. TRANSPOSIÇÃO OU MEDIAÇÃO DIDÁTICA? REFLEXÕES HISTÓRICAS E


CONTEMPORÂNEAS SOBRE A PRÁTICA DOCENTE .................................................................... 75
Aline de Oliveira Costa dos Santos

7. QUANDO O FALAR QUER DIZER SOBRE A PEDAGOGIA WALDORF: CONSIDERAÇÕES


SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO STEINERIANA PARA O DESENVOLVIMENTO
DA EXPRESSÃO ........................................................................................................................................ 83
Dulciene Amparo dos Anjos

8. REFLEXÕES SOBRE A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NO CONTEXTO ESCOLAR


..................................................................................................................................................................... 105
Vânia Santos de Souza, Lilian Aparecida Carneiro Oliveira

9. CLUBE DE CIÊNCIAS ORBITZ DO COLÉGIO ESTADUAL DA BAHIA – CENTRAL: ESPAÇO


NÃO FORMAL NA PROMOÇÃO DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA .................................................. 111
Fernanda Pereira de Brito, Andréia Bárbara Serpa Dantas, Débora Correia dos Santos, Jancarlos
Menezes Lapa

10. TRADIÇÃO ORAL E CULTURA POPULAR A PARTIR DE CONTADORES DE HISTÓRIAS:


INICIANDO O PROCESSO DE ESCUTA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA ILHA DE
MARÉ ......................................................................................................................................................... 119
6

Elisabeth Lopes dos Santos, Laércia Pereira Baptista, Ana Rita de Cássia Santos Barbosa,
Luciene Souza Santos

11. ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA: PONTUANDO OS DESAFIOS E AS


POSSIBILIDADES ENFRENTADAS DURANTE A PANDEMIA .................................................... 131
Jocelia Oliveira Almeida

12. I FEIRA CIENTÍFICA INTEGRADA DAS ESCOLAS DO CAMPO DOS TERRITÓRIOS DO


SUL DA BAHIA (INTEGRA CAMPO): INTERCÂMBIO DE SABERES .......................................... 143
Janille da Costa Pinto

13. AULA MEDIADA NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: CONTRIBUIÇÕES DE


REUVEN FEUERSTEIN NA ATUAÇÃO DO PROFESSOR/MEDIADOR COM JOGOS
ELETRÔNICOS ........................................................................................................................................ 153
Marlene Gonzaga Bitencourt

14. GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS: AÇÃO DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS NA


CIDADE DE SALVADOR .............................................................................................................. ......... 173
Márcia Lidiane Rodrigues Santana
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 7

APRESENTAÇÃO

"Maria, Maria é um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta [...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 1

Neste terceiro e-book do Grupo de Estudos, Pesquisas e Experimentações Educacionais


– GEPEE, completamos um trilogia de publicações de artigos científicos no período entre os
anos de 2022 e 2023, em que os/as pesquisadores/as vinculados ao CNPq, são professores e
professoras que atuam na educação básica e na educação superior, e que buscam refletir acerca
das questões que envolvem a educação contemporânea e as práticas pedagógicas. A busca por
referências significativas que sustentassem nossas questões acerca do trabalho pedagógico nas
instituições escolares, alguns desafios se colocaram em nossas reflexões, como por exemplo,
estudar sobre o conceito de interseccionalidade.
A coleção de textos que compõem este livro apresenta a densidade dos estudos e
pesquisas realizados pelos autores e autoras, nas múltiplas dimensões do debate educacional.
A prática docente é um destes temas que se encontra no centro dos embates e debates da
educação brasileira, sobretudo nos últimos 50 anos, quando a seletividade da escola passou a
ser compreendida como um problema social, político e pedagógico. Ao longo desse tempo, as
análises sobre a atuação do/a professor/a vêm sendo realizada sob as diversas perspectivas e
dimensões que a constitui. Porém, dependendo do contexto e da correlação de forças sociais
em cada época, essas análises são mais ou menos desvinculadas das questões macroestruturais
que incidem sobre a prática do professor e da professora2.
Desejamos a todos e a todas que tenham a oportunidade de conhecer este livro, uma
excelente interlocução com os autores e autoras e os seus estudos.

Rosemary Lopes Soares da Silva,


organizadora.

1
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
2
Trecho do artigo de Aline de Oliveira Costa dos Santos.
8

Uma mulher que merece


viver e amar
como outra qualquer do planeta
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 3

3
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 9

1
EDUCAÇÃO BÁSICA, TRABALHO PEDAGÓGICO E
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM: RELAÇÃO COM A
INTERSECCIONALIDADE
Fernanda Paixão de Souza Gouveia 4, Rosane de Abreu Farias 5,
Rosemary Lopes Soares da Silva 6

INTRODUÇÃO

A busca por referências significativas que sustentassem nossas questões acerca do


trabalho pedagógico nas instituições escolares, especialmente na abordagem da avaliação da
aprendizagem, uma vez que consideramos que a avaliação se materializa na produção da
exclusão e opressão dos estudantes ao subordinar o trabalho pedagógico a lógica da
meritocracia (Freitas, 2010), alguns desafios se colocaram em nossas reflexões, sendo o mais
central trazer a interseccionalidade, entretanto, entendemos ser este um conceito que se
coloca na bibliografia vigente, como divergente ao materialismo histórico-dialético, mas sendo
este último, o nosso ponto de partida de análise teórica.
Entre momentos diferentes de reflexões coletivas, na tentativa de apaziguar os sentidos
aflitos e garantir a rigorosidade teórica, tomamos por fio condutor o reconhecimento da origem
do conceito de interseccionalidade no movimento feminista negro desde a década de 1980,
identificando sua ressignificação pelos autores pós-estruturalistas, conforme ressaltado por
Smith (2017).
Tendo em vista o uso do conceito de interseccionalidade no contexto da pós-
modernidade, para destacar a fluidez e a diversidade com a qual cada sujeito se constitui como
ser individual, buscamos neste texto mostrar que este conceito quando referenciado no
movimento feminista negro indica não a fluidez e o fracionamento dos grupos sociais, mas

4
Fernanda Paixão de Souza Gouveia é doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – PPFH/UERJ. Atua como docente em História na Educação Básica na Rede Municipal de Teresópolis/RJ.
Também é Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro –
IFRJ e professora colaboradora da Pós-Graduação Lato Sensu em Educação de Jovens e Adultos – EJA e da Pós-Graduação
em Práticas de Letramento, deste mesmo Instituto, campus Nilópolis e campus São João de Meriti, respectivamente. E-mail:
fernanda.gouveia@ifrj.edu.br.
5
Rosane de Abreu Farias é doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – PPFH/UERJ e graduada em Pedagogia pela UERJ. Atualmente é professora especialista supervisora educacional
da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: ro.afarias@gmail.com
6
Rosemary Lopes Soares da Silva é doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela universidade do Estado do Rio
de Janeiro – PPFH/UERJ e graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. É coordenadora pedagógica
da Secretaria da Educação do Estado da Bahia – SEC-BA e coordena o Grupo de Estudos, Pesquisas e Experimentações
Educacionais, cadastrado no CNPq, vinculado a Coordenação de Estudos e Experimentações Educacionais da Diretoria de
Formação e Experimentação dos Profissionais da Educação do Instituto Anísio Teixeira –GEPEE/IAT/DIRFE/SEC-BA. E-
mail: roselsoares@yahoo.com.br.
10 Educação Básica, trabalho pedagógico e avaliação da aprendizagem: relação com a interseccionalidade

sinalizar como determinados grupos sociais sofrem concomitantemente mais de uma forma de
opressão/exploração no modo de acumulação capitalista neoliberal.
Para tal, reconhecemos que a acumulação capitalista ainda que apresente regularidade
em seu desenvolvimento, a mesma ocorre de forma a adaptar-se à cultura socioeconômica de
cada país ou região. Assim, as formas de opressão/exploração que se realizam a partir da
contradição capital-trabalho tendem a ser resultado da maneira como é vivenciada pelo sujeito
em sua realidade social. Nesse percurso, o conceito de interseccionalidade aproxima-se do
materialismo histórico-dialético por reconhecer que a identificação das formas de opressão/
exploração que os sujeitos mais sofrem dentro de seu grupo social revelam também as maneiras
pelas quais é possível resistir e lutar para sua transformação.
Desta maneira, no presente texto realizamos uma discussão sobre a diferenciação e
utilização entre conceitos e categorias a partir do campo do materialismo histórico-dialético na
produção de conhecimento. A seguir, buscamos identificar as aproximações do materialismo
histórico-dialético com a interseccionalidade, que aqui assume o lugar de categoria de
conteúdo, conforme Kuenzer (2008) analisa, já que o objeto tomado na especificidade de sua
relação com outros objetos e com a totalidade carece adentrar ao conteúdo, na particularidade
do fenômeno. Investigar as relações, os conceitos, as formas de estruturação e organização, em
recortes particulares, “[...] sempre definidos a partir do objeto e da finalidade da investigação”
(Kuenzer, 2008, p. 66) é próprio desta.
Por fim, buscamos sinalizar como a análise da organização do trabalho pedagógico,
seguindo a perspectiva de Freitas (2010), pode a partir da categoria da interseccionalidade
direcionar para as formas como o mesmo tende a configurar-se como uma produção de
exclusão e subordinação dos sujeitos sociais com a finalidade de melhor adaptá-los ao modo
de produção capitalista.
Destaca-se que as opções epistemológicas aqui realizadas foram orientadas pela
perspectiva da práxis transformadora e de superação da realidade desigual e excludente
vigente no mundo atual.

CONCEITO E CATEGORIAS: O LUGAR DA INTERSECCIONALIDADE NO


DEBATE

Nosso desafio teórico-metodológico, qual seja, circunscrever a interseccionalidade no


campo crítico do materialismo histórico-dialético em interface com a educação, tendo a
dialética por lógica e teoria do conhecimento (Kuenzer, 2008, p. 55) nos exige o retorno ao
significado dos conceitos e categorias na abordagem dos fenômenos sociais.
Nos estudos de Ciavatta (2019, p. 19) na língua portuguesa, categoria e conceito são
termos utilizados quase indistintamente nos trabalhos científicos, podem até ter o mesmo
significado, enquanto termos que se referem a algum atributo dos seres. Mas também podem
servir a uma ordenação mais precisa desses atributos, incluindo os epistemológicos. Categorias
e conceitos são questões fundamentais para o entendimento do próprio conhecimento que se
pretende produzir. Ambos os termos lidam com objetos de estudo visíveis e invisíveis. Tanto
os objetos e fenômenos visíveis quanto os invisíveis ou de pensamento, são seres materiais ou
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 11

mentais (afetivos, emocionais, intelectuais etc.) em situação de relação com outros tantos seres.
Podem designar conteúdos de ordem geral, quanto de natureza específica.
Os conceitos, por sua etimologia (conceptus, concepção), dão conteúdo teórico aos
termos, a exemplo de economia, sociedade, classe, cultura etc. Os conceitos gerais devem
servir ao universo amplo de todos os seres e podem ser objeto de estudo das ciências sociais,
da história e da historiografia. As categorias ordenam, classificam os seres (de acordo com sua
etimologia, κατηγορία, atributo), a exemplo de animais vertebrados e invertebrados, seres
minerais, vegetais ou animais etc., nas ciências sociais, quando falamos nas classes sociais,
classes de alta, de média ou de baixa renda. Quais categorias são gerais e quais são específicas
é uma questão do universo de seres (fenômenos, sujeitos, objetos) aos quais se referem.
Em Kuenzer (2008, p. 62-66), destaca-se que nenhum objeto de investigação “[...] é
bem definido, nem sua determinação mais simples é identificada, permanecendo no nível do
que Marx chama de abstrato”. Neste sentido, temos o tratamento das categorias
metodológicas, que expressam uma perspectiva universal e que definem a forma de
investigação, como ponto de partida para o entendimento dos fatos em sua concretude, na
dinamicidade e especificidade, em articulação com a totalidade; e as categorias de conteúdo,
mais específicas e particulares, que neste trabalho são fundamentais para dar sentido à relação
da interseccionalidade com a educação.
A relação entre as características singulares e mais simples do fenômeno social e os
processos mais amplos é tratada por também Ciavatta (2001) na tentativa de entender este
mesmo fenômeno em sua totalidade concreta. No nível mais simples, singular, o fenômeno é
superficial, fragmentado, individual. As questões apresentadas pelo objeto estudado nesta
etapa se isolam do geral e do próprio processo histórico. Sua compreensão mais profunda se
dá no âmbito das determinações universais, nas quais residem as determinações que interferem
nas relações sociais e de poder, nas leis, nas ações do Estado e do mercado. Isto significa que a
superação da superficialidade e imediaticidade do fenômeno analisado implica na relação, na
mediação, entre o singular e universal (Gouveia, 2018).
A singularidade constitui a superficialidade do objeto, sua aparência, o primeiro nível de
seu conhecimento. As questões que dela emergem são fragmentadas, imediatas e
individualizadas. A análise da realidade social a ela não pode se ater, pois sua compreensão se
encontra isolada do processo histórico. A universalidade é o seu oposto, onde habitam as
determinações universais que interferem nas relações sociais e de poder, nas leis, nas ações do
Estado e do mercado, ou seja, determinações que se relacionam com as questões sociais e
políticas mais amplas e que ultrapassam a dimensão da superficialidade. Já a particularidade é
o elo entre o universal e o singular, ou seja, o campo das mediações. O estudo de Pontes a
define como um espaço vivo, em movimento, necessário para superar a imediaticidade do
fenômeno e nele se aprofundar.
Neste caminho, lembramos Pontes:
[...] a razão cognoscente, tendo negado e superado a imediaticidade (aparência), vai
processar o nível do concreto pensado, penetrando em um campo de mediações, onde se
entrecruzam vários sistemas de mediação, sistemas estes responsáveis pelas articulações,
passagens e conversões histórico-ontológicas entre os complexos componentes do real
(Pontes, s/d, p. 16).
12 Educação Básica, trabalho pedagógico e avaliação da aprendizagem: relação com a interseccionalidade

Todo fenômeno é composto por singularidade, particularidade e por totalidade de


menor ou maior complexidade. As contradições e tensões nele presentes são responsáveis por
dinamizá-lo. Sem elas, seriam inertes, cristalizadas, mortas (Netto, 2011, p. 57) e não se
conheceria sua totalidade. Neste processo, o sistema de mediações é o principal responsável
em articular essas dimensões.
Afirmamos que é a partir da dialética entre as singularidades do fenômeno em mediação
com a totalidade social, que tratamos a relação da interseccionalidade com a educação,
construídos dentro de um tempo histórico, com suas contradições e determinações universais.

INTERSECCIONALIDADE E MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO

Reconhecendo a importância que a categoria da interseccionalidade tem recebido no


campo dos estudos sobre as minorias e a diversidade ao permitir que análises sejam realizadas
a partir da intersecção das opressões sofridas pelos sujeitos, e por sua utilização a partir da
epistemologia da pós-modernidade, que direciona para o campo do individual os fenômenos
que advêm do campo social e coletivo, torna-se necessário a compreensão de tal conceito e de
que forma o mesmo se aproxima da perspectiva do materialismo histórico-dialético.
Partindo da utilização que Kimberlé Crenshaw (2017) faz do mesmo, percebemos
indicações importantes do alcance político e social que o pensamento interseccional pode
realizar.
Utilizei a interseccionalidade como forma de articular a interação do racismo e do
patriarcado em geral. Eu também usei interseccionalidade para descrever a localização das
mulheres não-brancas, tanto dentro dos sistemas de subordinação sobrepostos quanto nas
margens do feminismo e do antirracismo (p. 12 da parte 2).
No entanto, a interseccionalidade pode ser mais amplamente útil como forma de mediação
da tensão entre asserções de identidade múltipla e a necessidade contínua de política
grupal (p. 2 da parte 4).
No materialismo histórico-dialético a contradição principal da sociedade capitalista é a
relação capital-trabalho, discutida na vasta obra de Marx e na qual o autor destaca a
desigualdade entre patrões e empregados. A acumulação de capital em qualquer estágio da
história produz relações sociais mediadas pela desigualdade de poder entre as partes. As
relações de discriminação racial produzidas pelo comércio escravocrata nas Américas
resultaram também em uma hierarquia de poder que subordinaram sujeitos não apenas por seu
poder aquisitivo (capital), mas também pela sua raça (negra ou indígena), espaço de origem
(campo ou cidade) e gênero.
Kevin B. Anderson (2020) demonstrou por meio de seus estudos sobre a obra de Karl
Marx que tais preocupações com a diversidade de exploração e opressões que os sujeitos
sofrem faziam parte das anotações deste autor, reconhecendo as mesmas como formas
diferentes da dinâmica do capitalismo ao redor do mundo. Porém, Anderson destaca que tais
preocupações de Marx não receberam a devida importância em suas publicações, sendo
algumas ainda inéditas. Demonstra que as relações sociais são bem mais complexas do que os
críticos ao materialismo histórico-dialético consideram, uma vez que a contradição capital-
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 13

trabalho tende a produzir modos de ser e estar no mundo, ou seja, uma cultura.
Por um lado, tais críticos equivocam-se pelo simples fato de que o capitalismo consiste num
sistema social único, que subverte e homogeneíza todas as relações sociais previamente
constituídas, tendendo à subordinação de todas as relações humanas à contradição capital-
trabalho. Assim, torna-se impossível compreender as relações familiares e generificadas
contemporâneas, o conflito étnico-racial e comunitário, ou a crise ecológica, sem
examinarmos as relações subjacentes descritas acima. Pois, a família, a questão étnica e o
ambiente natural estão todos condicionados pelo modo de produção capitalista (Anderson,
2020, p. 1507).
Conforme ressalta Barbara Araújo (2013) ao pensar em interseccionalidade e
materialismo, “não é estranho ao marxismo reconhecer que a realidade material é complexa e
determinada por múltiplos fatores, pelo contrário”. É um dos pressupostos do método
materialista histórico-dialético reconhecer as mediações do fenômeno estudado em suas
relações de particularidade e totalidade. Outro ponto importante que a autora destaca é que
não devemos atacar cada forma de opressão/desigualdade de forma fracionada, mas considerar
suas formas e intersecções, desta maneira não se nega a questão de classe, mas a considera em
cruzamento com as questões de gênero e raça.
Entre as “contradições mutáveis” identificadas por Harvey (2016, p. 169) está a
“reprodução social” que o autor definiu como “a contradição entre as condições necessárias
para garantir a reprodução social da força de trabalho e as condições necessárias para
reproduzir o capital”. Assim os capitalistas perceberam que alguns aspectos tornavam a
produção mais lucrativa, tais como: maior instrução, horários rotineiros, constituição familiar, e
passaram a influenciar na forma como os trabalhadores organizavam sua vida fora de seu
horário de trabalho, incidindo assim no trabalho realizado sem remuneração. Nessa discussão,
o autor citado sinaliza como as mulheres sempre assumiram a maior parte dessa atividade.
A reprodução social absorve uma imensa quantidade de trabalho não remunerado, em
grande parte realizado pelas mulheres, tanto no passado quanto hoje, como sempre
apontaram corretamente as feministas. Para o capital, a reprodução social é uma esfera
ampla e conveniente em que os custos reais são terceirizados para as famílias e outras
entidades comunais e incidem desproporcionalmente sobre diferentes grupos da população
(Harvey, 2016, p. 175).
Podemos identificar que, ainda que não apareça o conceito de interseccionalidade como
categoria de conteúdo, sua utilização ocorre quando o autor sinaliza as mulheres como grupo
que mais assume essa reprodução social não remunerada. Se observarmos a função social da
mulher na atualidade, logo aparece como principal problema feminino o acúmulo de funções
domésticas, familiares (principalmente a criação dos filhos) e profissionais, a chamada
sobrecarga mental. Esse tema cada vez mais presentes nas pesquisas acadêmicas, só pode ser
detectado quando observada a intersecção entre classe e gênero, pois as mulheres das classes
trabalhadoras recebem uma carga mental ainda maior que as demais por desempenhar todas
as funções, enquanto as mulheres com maior poder aquisitivo por um lado podem contratar
mão de obra (das mulheres da classe trabalhadora) para desempenhar suas funções domésticas
e familiares enquanto cuidam de sua carreira profissional, ou por outro podem dedicar-se a
criação dos filhos e a realização do trabalho doméstico (ou em alguns casos apenas a sua
administração) enquanto seus esposos dedicam-se a carreira profissional provendo
14 Educação Básica, trabalho pedagógico e avaliação da aprendizagem: relação com a interseccionalidade

financeiramente a família.
Se nessa intersecção colocarmos as mulheres negras da classe trabalhadora, poderemos
identificar como as mesmas estão ainda mais subordinadas nessa hierarquia social, sendo
aquelas que por vezes sujeitam-se aos piores trabalhos para prover suas famílias, não havendo
para elas sequer a possibilidade de compartilhar com um companheiro a dimensão financeira
da reprodução social ou receber qualquer contribuição nas funções familiares e domésticas.
Desta forma, o destaque que Crenshaw (2017) realiza na possibilidade de empoderamento e
resistência que a interseccionalidade proporciona ao ser utilizada como categoria nos mostra
que há subgrupos a serem observados e defendidos dentro da estrutura de classes do
capitalismo.
Claramente, há um poder desigual, mas existe, no entanto, algum grau de agência que as
pessoas podem e exercem na política de nomeação. E é importante notar que a identidade
continua a ser um local de resistência para membros de diferentes grupos subordinados.
[...] Um é o poder exercido simplesmente através do processo de categorização; o outro, o
poder de fazer com que a categorização tenha consequências sociais e materiais. Enquanto
o poder anterior facilita o último, as implicações políticas de desafiar um sobre o outro são
muito importantes. Podemos analisar os debates sobre a subordinação racial ao longo da
história e ver que, em cada caso, houve a possibilidade de desafiar a construção da
identidade ou o sistema de subordinação com base nessa identidade (Crenshaw, 2017, p. 3
da parte 4).

Winnie Bueno no livro “Interseccionalidade”, de Patricia Hill Collins e Sirma Bilge,


publicado em 2020, define que “a interseccionalidade é uma importante ferramenta analítica
oriunda de uma práxis-crítica em que raça, gênero, sexualidade, capacidade física, status de
cidadania, etnia, nacionalidade e faixa etária são construtos mútuos que moldam diversos
fenômenos e problemas sociais” (Bueno, 2020 apud Collins; Bilge, 2020, s/n).
Em um curso online oferecido pela Editora Boitempo, a autora sinalizou que a
interseccionalidade utilizada como método deve ser compreendida como uma forma de análise
que não aceita a explicação por apenas uma categoria, mas que incita ao cruzamento de
categorias como maneira de refinar a análise. Ou em suas palavras, “a análise acadêmica que
não é redutível a uma categoria em si mesma” (Bueno, 2023).
No livro, Collins e Bilge (2020) buscaram construir a categoria interseccionalidade
enquanto uma ferramenta analítica que pode ser utilizada por diversos campos teóricos para
observar sujeitos que sofrem as diversas formas de opressão combinadas. Assim, a categoria
mais que ser uma ferramenta teórica, para as autoras deve ser uma estratégia prática de
reconhecimento e empoderamento desses sujeitos. Nessa perspectiva, apesar das autoras não
declararem-se vinculadas ao campo do materialismo histórico-dialético, podemos perceber que
seu objetivo configura-se o mesmo com a categoria: estabelecer a indissociável relação entre
teoria e prática, utilizando inclusive o termo gramsciano (ou marxiniano) 7 “práxis”.

7
A categoria da “práxis”, como realizar individual e social, é central para toda a produzida por Karl Marx ao abordar os
problemas da produção e da ciência. Em seus escritos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, Marx sinaliza que: “Assim
como a sociedade produz o homem enquanto homem, ela é produzida por ele”. Assim a “práxis humana” não é apenas o
trabalho enquanto atividade produtiva, mas todas as relações sociais e culturais objetificadas por ele. Apesar de Gramsci
não ter conhecido esta obra marxiniana, o termo “filosofia da práxis”, utilizado por ele é uma concepção de unidade entre
teoria e prática. Discutindo sobre a tese 11 de Marx, que propõe mudar o mundo e não mais interpretá-lo, Gramsci destaca
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 15

Por sua vez, Sharon Smith (2017) demonstra evocando a historicidade do conceito de
interseccionalidade que o mesmo recebe duas formas distintas de interpretação: a do
feminismo negro, tendo a ideia de cruzamento de formas de opressão sobre as mulheres negras
sido utilizada antes mesmo de se construir o referido conceito; e a do pós-estruturalismo
enquanto oposição a ideia de coletividade vinculada ao marxismo, defendendo a
individualidade e o empoderamento das minorias. A autora declara que seu objetivo é mostrar
que “a tradição do feminismo negro avança em direção ao projeto de construir um movimento
unificado para lutar contra todas as formas de opressão, algo que é central a um projeto
socialista”.
Collins e Bilge (2020) iniciam sua obra destacando a polissemia no entendimento do
termo interseccionalidade,
[...] em determinada sociedade, em determinado período, as relações de poder que
envolvem raça, classe e gênero, por exemplo, não se manifestam como entidades distintas
e mutuamente excludentes. De fato, essas categorias se sobrepõem e funcionam de
maneira unificada. Além disso, apesar de geralmente invisíveis, essas relações
interseccionais de poder afetam todos os aspectos do convívio social (Collins; Bilge, 2020,
p. 17).
Ainda que as autoras identifiquem como elemento central de suas construções teóricas
a categoria poder, precisamos compreender que a vinculação da mesma para a análise com
base na interseccionalidade não deveria ser desprezada, uma vez que a acumulação de capital
historicamente promove a hierarquização social e a opressão manifesta pelo poder em suas
diversas faces. As próprias autoras assumiram no livro a constatação da teórica feminista Zillah
Eisenstein de que “O capital é interseccional. Ele sempre intersecciona os corpos que produzem
o trabalho. Logo, o acúmulo de riqueza está incorporado nas estruturas racializadas e
engendradas que o aumentam” [grifo da autora] (apud Collins; Bilge, 2020, p. 35). Logo,
podemos constatar que mesmo que as autoras assim não reconheçam, estabelecem
indiretamente a relação capital-trabalho como contradição principal do sistema de acumulação
capitalista, no qual o uso da interseccionalidade como categoria de conteúdo permite refinar
os estudos realizados.
Smith destaca que representantes do movimento feminista negro americano definiam-
se como marxistas, mas identificavam que apenas o conceito de classe não dava conta das
múltiplas opressões sofridas simultaneamente pelas mulheres negras, sendo assim, tornava-se
importante fracionar as especificidades para compreendê-la e fortalecer a unificação das lutas
sociais, ou seja, “ele deve ser baseado não nas necessidades dos menos oprimidos, mas sim nas
necessidades daqueles que são mais oprimidos – pois é isso que está no âmago da questão da
solidariedade” (Smith, 2017).
Collins e Bilge (2020) sinalizam que a categoria interseccionalidade normalmente é
utilizada para auxiliar na resolução de problemas sociais enfrentados, sendo solucionados pela
via da reivindicação por melhores estruturas. Por isso, as mesmas a conceituam como uma
ferramenta analítica. Acreditamos que seu uso está além da perspectiva prática de utilização,
mas como dito acima a mesma é uma categoria ao configurar-se como uma relação indissociável

que a mesma não configura-se como um descartar da teoria, mas como o compromisso com a indissociabilidade entre elas.
Para o autor a separação entre elas leva a abstração sem sentido.
16 Educação Básica, trabalho pedagógico e avaliação da aprendizagem: relação com a interseccionalidade

entre teoria e prática.


Outro ponto importante que as autoras destacam é que a interseccionalidade não se
restringe ao movimento de mulheres negras, mas por meio dela podemos observar fenômenos
dos mais diversos grupos sociais em relações de desigualdade e opressão, reafirmando assim a
amplitude de possibilidade que se desdobram no uso da categoria. Trabalhando no livro com
exemplos práticos, as autoras demonstram como as relações de poder institucionalizadas por
meio de práticas organizacionais se sustentam.
[...] as relações interseccionais de poder sustentam as desigualdades sociais de raça, gênero,
classe, idade, capacidade, sexualidade e nação. As relações de poder dependem de práticas
organizacionais duráveis, embora variáveis, [...]. Quatro domínios de poder distintos, porém
interconectados, definem essas práticas organizacionais – a saber, o estrutural, o cultural, o
disciplinar e o interpessoal. Esses domínios de poder são duráveis ao longo do tempo e no
espaço [grifos das autoras] (Collins; Bilge, 2020, p. 22).
Como domínios interligados, cada um vai produzindo à sua maneira as formas de
sustentação do poder, ou de outra maneira, a manutenção das desigualdades sociais e opressão
entre grupos sociais diversos. Neste ponto, ainda que as autoras refiram-se à produção de
identidades, no campo do materialismo histórico-dialético podemos destacar a relação entre
singularidade e universalidade como a particularidade do fenômeno analisado.
Ao iluminar as análises de tais relações, as autoras sinalizam também como a
desigualdade econômica incide de forma diversa em cada grupo social e sujeito individual,
desdobrando-se nas formas como cada domínio de poder se reproduz: “a interseção entre
identidade e experiências é reflexo dos jogos de poder que acontecem nos domínios
estruturais, culturais, disciplinares e interpessoais do poder, identidades que transparecem
tanto nas interações sociais cotidianas como na imagem pública” (Collins; Bilge, 2020, p. 31).
Ao definir os quatro domínios do poder, as autoras nos indicam quatro mediações pelas
quais a análise de determinado fenômeno precisa considerar.
O domínio estrutural do poder refere-se às estruturas fundamentais das instituições sociais,
como mercados de trabalho, moradia, educação e saúde (p. 22).
O domínio cultural do poder enfatiza a crescente importância das ideias e da cultura na
organização das relações de poder (p. 24).
O domínio disciplinar do poder refere-se à aplicação justa ou injusta de regras e regulamentos
com base em raça, sexualidade, classe, gênero, idade, capacidade, nação e categorias
semelhantes. Basicamente, como indivíduos e grupos, somos “disciplinados” para nos
enquadrar e/ou desafiar o status quo, em geral não por pressão manifesta, mas por práticas
disciplinares persistentes (p. 27).
O domínio interpessoal do poder refere-se ao modo como os indivíduos vivenciam a
convergência de poder estrutural, cultural e disciplinar. Esse poder molda identidades
interseccionais de raça, classe, gênero, sexualidade, nação e idade que, por sua vez,
organizam as interações sociais. A interseccionalidade reconhece que a percepção de
pertencimento a um grupo pode tornar as pessoas vulneráveis a diversas formas de
preconceito, mas, como somos simultaneamente membros de muitos grupos, nossas
identidades complexas podem moldar as maneiras específicas como vivenciamos esse
preconceito (Collins; Bilge, 2020, p. 29-30).
As definições acima nos remetem a estudos realizados no campo do materialismo
histórico-dialético que com outras categorias analíticas permite-nos uma grande aproximação
ao descrito acima, tais como: estrutura, superestrutura, sociabilidade, entre outras.
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 17

Crenshaw (2017) destaca que “(...) a dimensão da dominação racial que tem sido mais
irritante para os afro-americanos não foi a categorização social como tal, mas a miríade de
maneiras pelas quais aqueles de nós tão definidos foram sistematicamente subordinados.” (p.
4 da parte 4) Quando acrescentamos a questão de classe, tão importante para as análises do
campo materialista histórico-dialético, podemos perceber como a subordinação capitalista
produz hierarquias de sujeitos espoliados (Harvey, 2016), que no caso do Brasil, muito bem
caracterizado por Marini (1973) como capitalismo dependente, tem na categoria de raça os
sujeitos mais expropriados do sistema, uma vez que são os descendentes dos negros
escravizados que vivenciam o resultado do racismo estrutural. Desta maneira, a categoria
interseccionalidade como uma categoria de conteúdo permite reconhecer as múltiplas relações
de exploração/opressão que ocorrem para os grupos minoritários na totalidade da sociedade
brasileira, interpretação realizada pelo movimento feminista negro.
Conforme sinalizado por Anderson (2021), os escritos de Marx identificavam
intersecções da exploração realizada pelo movimento de acumulação do capital, demonstrando
que seria necessário análise sobre esses aspectos.
Torna-se crucial compreender tanto suas brilhantes formulações gerais sobre a sociedade capitalista,
quanto perceber as formas concretas pelas quais examinou não apenas a classe, mas também o
gênero, a raça, o colonialismo, e o que hoje pode ser denominado a interseccionalidade de tudo isso.
Seu humanismo revolucionário subjacente era o inimigo de todas as formas de abstração que
negavam a variedade e a multiplicidade da experiência humana, especialmente pelo fato de que a
sua visão se estendeu para além da Europa Ocidental (Anderson, 2021. p. 1522).

O movimento feminista negro reconheceu que dentro da classe havia grupos que
sofriam mais exploração/opressão que outros, e para isso seria necessário reconhecer cada
forma de opressão e fazer o cruzamento das mesmas para assim propor formas de superá-las.
O materialismo histórico-dialético ao propor que a análise parta das mediações entre as
particularidades de uma totalidade sinaliza também para a identificação das diversas relações
existentes no fenômeno analisado, o que conflui para a percepção da intersecção dessas
mediações, nas quais não são isto ou aquilo, mas isto e aquilo.
Isto posto, reconhecendo as especificidades do espaço escolar no contexto social e
histórico em que está circunscrito, a análise da organização do trabalho pedagógico, seguindo
a perspectiva de Freitas (2010), sob o olhar da interseccionalidade nos permite analisar como
se produzem as formas de exclusão e subordinação dos sujeitos sociais na escola, estas
comprometidas com a adaptação ao modo de produção capitalista.

ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO E A INTERSECCIONALIDADE

Questionar quais os objetivos da educação, quem os selecionam e a quem eles servem


são reflexões que cabem na abordagem analítica da interseccionalidade. Desde o surgimento
da teoria do capital humano, discute-se o papel que a escola desempenha na sociedade de
classes. As crenças difundidas pelo liberalismo (que é a ideologia política da burguesia que
defende o livre desenvolvimento dos interesses individuais, sem limitação estatal) são de que
é possível criar uma sociedade de classes na qual os indivíduos escolhem voluntariamente o
caminho que os levem a uma determinada “posição na vida”.
18 Educação Básica, trabalho pedagógico e avaliação da aprendizagem: relação com a interseccionalidade

A defesa de que a organização do trabalho escolar não se restringe a sala de aula, mas
dela, saltar para as relações sociais, implica em enfatizar que a organização global da escola
serve de elemento mediador entre tais relações sociais e a própria sala de aula. A concepção
alargada de didática nos estudos de Freitas (2009), considera, para além da sala de aula e das
relações sociais, a organização do trabalho pedagógico na escola como um todo.
A escola sofre influência das grandes determinações do processo de trabalho na sociedade
capitalista, as quais incorporam-se na forma de organização do trabalho pedagógico. Não é
apenas a didática que deve estar sob análise, mas sim a escola, sua organização e seus
métodos, enquanto processos históricos (Freitas, 2009, p. 58).
Conforme Freitas (2009), o reconhecimento de que o conteúdo e a forma da escola,
inclusive seus métodos didáticos, estão moldados pela função social da escola na sociedade
capitalista, ainda que não de forma mecânica e inevitável, por considerar toda a população
como uma só cultura com os mesmos interesses e vontades, somente separada pela sua
condição financeira. A inclusão na cultura escolar se torna um instrumento de aculturação de
uma parcela da população que deve apagar a sua própria identidade para se tornar incluída na
sociedade e distanciar-se de suas raízes “bárbaras”. Freitas (2010), ao concordar com
Tragtenberg (1982), que diz que uma das funções sociais da escola para adequar os estudantes
ao poder escolar é a subordinação, extrapola que a inclusão tem esse componente de
subordinação ao poder que estrutura o acesso à cultura escolar oficial, é reconhecer que a
inclusão e a subordinação devem ser discutidas juntas, por fazer parte do mesmo processo.
Na reflexão acerca da função social da escola capitalista que é a de produzir a
subordinação, a conformidade com o sistema, de acordo com Freitas (2010), é importante
entender que as relações sociais e econômicas determinam a forma como a educação é
organizada e utilizada na sociedade. Colaboram com este pressuposto os estudos de Gonçalves
Filho, Fernandes e Pinto (2019), em que a educação é constituída de características que
propiciam a manutenção da hierarquia social, contribuindo para o controle das classes
dominadoras sobre as dominadas.
O estudo sobre a “forma escola” e a organização do trabalho pedagógico da escola é o
mote para a crítica ao problematizar que mesmo se nos munirmos de todos os melhores jargões
da educação inclusiva, a inclusão se apresenta como uma subordinação aos valores e visões de
mundo daquele que inclui. De modo que a própria inclusão se apresenta como uma
subordinação, ao pensarmos de forma interseccional quais serão os valores disseminados pela
mesma. É importante entender que a própria forma escolar atual não é inclusiva, nem nula, ela
serve e ocorre dentro de uma sociedade e suas dinâmicas de poder. De acordo com Freitas
(2010), a simples inclusão na escola já ensina a partir das relações de poder vivenciadas, ou seja,
antes mesmo do conteúdo e da avaliação, nas quais a interseccionalidade pode sinalizar para
as formas como são exercidas tais relações e quais sujeitos mais sofrem com as mesmas. Desse
modo, para além da educação inclusiva é necessário repensar e modificar a atual “forma escola”.
Ainda em Freitas (2010), isso tudo nos leva a afirmar que a luta pela inclusão e acesso
ao conteúdo escolar não pode separar-se da luta pela modificação da atual forma escolar,
geradora de subordinação. De acordo com Vincent, Lahire e Thin (2001), a “forma escola”
exprime um tipo específico de relação social, como relação com regras impessoais e relação
com outras formas sociais, dentre estas, principalmente, relações com formas de exercício do
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 19

poder. Ou seja, se refere à estrutura, organização e socialização dentro das escolas.


Uma das características da forma escolar vigente é seu isolamento da vida. Ou seja, não
debate, participa ou apresenta questões que fazem parte da sociedade em que os alunos estão
inseridos. A sociologia da educação é a área que estuda a relação entre a educação, a escola e
a sociedade, tendo essa relação como base é importante compreender que não é possível uma
separação, a educação não existe no vácuo. Sendo assim, entendemos que a educação faz parte
da sociedade exatamente por aparentar não fazer parte dela. Interessa ao capital omitir o
conteúdo, ou certos conteúdos na formação dos trabalhadores, já que interessa ao capital, no
processo formativo, moldar o trabalhador às suas necessidades, e a exclusão da escola tem a
ver com esta sua função excludente, pois ela impede de maneira progressiva, na forma de um
gradiente social, ao longo do processo, o acesso ao conhecimento, exatamente pela exclusão
da escola ou criação de trilhas de progressão diferenciadas (Freitas, 2016 apud Varani, 2016).
A proposta é de ampliar o debate sobre a relação imbricada entre a escola capitalista e
a avaliação escolar, entendendo que esta é um processo que faz parte da nossa vida e do nosso
social, que avaliamos e julgamos tudo o que nos cerca. A avaliação é estimar o valor, condições
ou qualidade de algo. No contexto da educação, a realização de atividades avaliativas, assim
como tudo, deve ter uma intencionalidade e um objetivo. Desse modo, compreendemos que
quem julga, como julga, seus objetivos e intenções nessa prática também estão inseridos na
sociedade, portanto, que a forma da avaliação existente nas escolas está intimamente ligada à
forma escolar constituída pelo sistema capitalista a partir de seus objetivos educacionais.
Na escola corrente, do modo de produção capitalista, a categoria da avaliação emerge
entre aquelas que estão na própria constituição da organização do trabalho pedagógico como
uma categoria diferenciada, modulando as demais, sobredeterminando, as outras categorias
como os objetivos e, fundamentalmente, o próprio método e o conteúdo (Freitas, 2016 apud
Varani, 2016). Existem debates sobre os benefícios de uma avaliação e seu contraponto ao
exame. Avaliar não é pontual, é um processo que acompanha a aprendizagem do aluno.
Examinar é um recorte com finalidade de mensurar pontualmente o que o aluno acerta ou erra
com a intenção eliminatória ou classificatória. “Todas estas maneiras de lidar com a avaliação
não resolvem a questão de sua relação com a legitimação do poder do professor e da escola,
tarefa que é desenvolvida no âmbito escolar a mando dos objetivos educacionais da sociedade
capitalista” (Freitas, 2010, p. 95).
Sobre as possibilidades de novas formas para a escola e a avaliação, o primeiro ponto
de discussão é o de desenvolver o debate para além do acesso. De acordo com Freitas (2010),
o acesso ao conhecimento é apenas uma das faces deste processo de criação de sujeitos
históricos comprometidos com a transformação da sociedade capitalista. É importante superar
a forma que a escola é organizada, retirar esse afastamento aparente da escola com a
sociedade, sendo preciso entender a educação como parte do cotidiano do aluno, integrada a
sua comunidade e sociedade.
De acordo com Freitas (2010), se queremos formar lutadores por uma nova sociedade,
haverá que formá-los a partir da realidade das lutas sociais que se encontram na prática social.
Portanto, torna-se necessário mudar o trabalho pedagógico que acontece na escola capitalista,
uma estrutura posta pelo capital e voltada para duas funções sociais fundantes: 1) a exclusão
20 Educação Básica, trabalho pedagógico e avaliação da aprendizagem: relação com a interseccionalidade

do aluno ao longo do processo; e 2) a subordinação do aluno, menos percebida, mas muito real.
Na atualidade podemos afirmar que a avaliação se materializa como mediação na produção da
exclusão e subordinação do trabalho pedagógico que produz a opressão dos estudantes. A
forma da escola atual ao atrelar a inclusão e a subordinação de tal maneira que uma sempre
leva a outra se não houver resistência, deve atrelar igualmente a luta pela inclusão e acesso ao
conteúdo escolar à luta pela modificação do atual sistema escolar.
O debate proposto por Collins e Bilge (2020, p. 212), inspiradas pela Pedagogia do
Oprimido, de Paulo Freire, acerca das questões sobre as opressões de classe, raça, gênero,
sobre as desigualdades sociais, a inclusão, a diversidade em uma convergência crítica com a
interseccionalidade e a educação, vão no sentido de rejeitar as análises das relações de poder
baseadas apenas em classe, defendendo a linguagem mais robusta e carregada de poder dos
“oprimidos”. Ao evocar como desigualdades interseccionais de classe, raça, etnia, idade, religião
e cidadania afirma-se as necessidades das pessoas oprimidas por justiça. A defesa de Collins e
Bilge (2020) é de que a educação crítica nos lembra que a práxis é importante, sobretudo para
o compromisso da interseccionalidade com a justiça social. Em síntese, o estudo da
interseccionalidade como forma de análise e práxis críticas visam a tocar em questões mais
profundas sobre educação, transformação e justiça social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recorrer aos conhecimentos produzidos e acumulados em relação a produção dos


fenômenos sociais, especialmente, o desenvolvimento da educação e as formas de
materialização do trabalho pedagógico nas escolas, isto é, por quais mediações acontecem (ou
não) a interlocução entre a escola, para além dos seus muros, com a sociedade, nos
encaminharam no sentido de reconhecer as contribuições do conceito de interseccionalidade
como uma categoria de conteúdo, que tentamos trazer neste texto, com o propósito de chamar
a atenção para a necessidade e a possibilidade de se olhar a educação a partir de outros
referenciais.
Nesse sentido, os diferentes autores e referenciais teóricos que atravessam o debate,
especialmente, do ponto de vista pelo qual se analisa o problema da organização do trabalho
pedagógico nas escolas, entendendo-o como sinônimo de práxis, a função social da escola
nesta mediação, materializa-se na reprodução da sociedade capitalista e os seus valores, mas
também, como possibilidade de realizar a formação humana sob outras perspectivas. A relação
entre a escola com a sociedade se constitui em potencialidade para a construção de uma
concepção de educação crítica que possibilita o permanente confronto de distintas
concepções, que se posicione sobretudo avesso a defender o que na atualidade se
convencionou chamar de “pensamento único”.
Concordamos com Ramos (2023), sobre as preocupações com o cumprimento da
principal finalidade do processo educativo, que é a formação humana e o desenvolvimento das
condições para o exercício pleno da cidadania pelos sujeitos em sua vida social, que nos leva a
compreender que a educação científica, cultural e ético-política dos estudantes é uma condição
necessária para vislumbrarmos a transformação das relações sociais, isto implica ir além, na
Fernanda Paixão de Souza Gouveia, Rosane de Abreu Farias e Rosemary Lopes Soares da Silva 21

busca da materialidade para mudar o trabalho pedagógico que acontece na escola capitalista,
uma estrutura posta pelo capital e voltada para duas funções sociais: a exclusão do aluno ao
longo do processo e a subordinação do aluno, sobretudo pela avaliação da aprendizagem que
se materializa como mediação na produção da exclusão e subordinação do trabalho pedagógico
que ao mesmo tempo, produz a opressão dos estudantes.
O direito de todas as pessoas terem acesso ao conhecimento sistematizado construído
pela humanidade ao longo da história e ao próprio processo social de construção desse
conhecimento, implica na organização do trabalho pedagógico comprometido em aprender
ciência, entretanto, é preciso formar as pessoas para construir conhecimentos, compreender e
transformar o mundo em que se vive, sobretudo, formar para a cidadania que não perde de
vista o horizonte dos direitos humanos e a dignidade humana, que não tolera nenhuma das
formas de opressão produzidas historicamente e socialmente, sejam elas, as opressões de raça,
classe, gênero, etnia, etarismo, sexismo.
É preciso relacionar a educação com a prática, e para isso o conceito de
interseccionalidade nos ajuda a perceber as diversas formas que cada sujeito social no interior
da escola produz ou por ela é produzido em função de seu lugar social e das formas de
opressão/desigualdade que sofrem na sociedade.

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Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo e Genigleide Santos da Hora 23

2 INCLUSÃO DE ALUNOS COM TRANSTORNOS DE


DÉFICITS DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE: UMA
REVISÃO DE LITERATURA ENTRE 2014 E 2021 8
Caliane Santana Matos 9, Michelle Ferreira Bispo 10, Genigleide Santos da Hora 11

INTRODUÇÃO

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH é uma temática


recorrente como justificativa das dificuldades de aprendizagens dos indivíduos em seu período
de escolarização. Desse modo, o presente estudo visa analisar as percepções obtidas, a partir
das análises secundárias e sua abordagem é qualitativa e exploratória, em artigos publicados no
repositório acadêmico SciELO tendo como base temporal o período de 2014 a 2021, com base
nos descritores: TDAH, educação inclusiva e formação de professores. O trabalho oferece uma
discussão teórica da perspectiva da abordagem histórico-cultural de Vygotski12(1998), que
sustenta as demandas atuais tanto da teoria quanto na pesquisa educacional e, também, da
inclusão escolar.
A motivação pela investigação se deu por conhecer o referido transtorno com base em
uma vivência de estágio não obrigatório de coensino e por considerarmos a importância do
diagnóstico deve ocorrer no período inicial da vida que e, muitas vezes, o espaço escolar pode
se tornar um “divisor de águas” para o estudante ao solicitar à família a investigação de suas
necessidades ao indicar as especificidades do aprender que ele não dá conta. E quando não
ocorre essa investigação (ou esse diagnóstico) em tempo hábil, seus impactos poderão
repercutir negativamente na fase adulta desse aluno, principalmente em suas emoções que,

8
Trabalho apresentado em 2023 como requisito para conclusão do Curso de Licenciatura em Pedagogia, do
Departamento de Ciências da Educação, da Universidade Estadual de Santa Cruz – DCIE/UESC.
9
Caliane Santana Matos é licenciada em Pedagogia, pelo Departamento de Ciências da Educação, da
Universidade Estadual de Santa Cruz – DCIE/UESC. E-mail: csmatos.pdg@uesc.br.
10
Michelle Ferreira Bispo é licenciada em Pedagogia, do Departamento de Ciências da Educação, da
Universidade Estadual de Santa Cruz – DCIE/UESC. E-mail: mfbispo.pdg@uesc.br.
11
Genigleide Santos da Hora é doutora e mestra em Educação pela Universidade Federal da Bahia – UFBA;
especialista em Didática do Ensino Superior e em Psicopedagogia pela Universidade Católica do Salvador –
UCSAL; pedagoga pela UCSal. Atua como professora e pesquisadora do Departamento de Ciências da Educação,
da Universidade Estadual de Santa Cruz– DCIE/UESC, nas áreas de formação professores, políticas públicas,
educação especial e inclusiva. É vice-coordenadora do Grupo de Estudos, Pesquisas e Experimentações
Educacionais, do Instituto Anísio Teixeira, da Secretaria da Educação do Estado da Bahia – GEPEE/IAT/SEC-BA.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7429029261141451; Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1824-9608. E-mail:
gshora@uesc.br.
12
Apesar de ainda não existir no Brasil uma uniformização na grafia do nome de Vygotski, no decorrer do
trabalho optamos pelo registro de “Vygotski” como recurso para referenciar as variadas formas de escrita do
nome do autor.
Inclusão de alunos com Transtornos de Déficits de Atenção e Hiperatividade: uma revisão de literatura
24
entre 2014 e 2021

quando negligenciadas, suas ações inclusivas ficam impraticáveis no âmbito relacional; bem
como, em especial, nas ações voltadas às intervenções do professor no processo da
observação, avaliação das características predominantes e do planejamento didático do aluno
com TDAH.
Nessa perspectiva, entende-se que o processo de aprendizagem é estabelecido a partir
da percepção do professor, das condições sociais – saúde mental e física do aluno – e da
interação estabelecida entre o professor e aluno. O planejamento didático por sua vez, que
deverá atender as exigências de conteúdos, é postulado a partir do Plano Nacional de Educação
– PNE que propõe viabilizar a compreensão dos alunos incluídos, com o intuito de promover
um conhecimento igualitário no espaço institucional e o ensino integrativo para os alunos com
dificuldades cognitivas e/ou sensoriais (Brasil, 2014).
Assim, objetiva-se com o estudo evidenciar a relação professor-aluno no processo de
inclusão de alunos com o TDAH, a configuração deste processo no âmbito escolar e a
necessidade da formação especializada para a educação inclusiva. Dessarte, essa necessidade
de inclusão no âmbito escolar, conforme as políticas públicas, e a recorrência de alunos com o
TDAH (que apresentam dificuldade em manter a sua atenção e o controle de seus impulsos)
nos despertou o interesse em investigar o tema. Para Vygotski (1997), as emoções são funções
psicológicas superiores, portanto, culturalizadas e passíveis de desenvolvimento,
transformação ou novas aparições.
Além disso, a concepção vygotskiana de emoção coloca esse processo psicológico em
estreita relação com outros do psiquismo humano. Ainda, chegou à seguinte conclusão “[...]
para inseri-las na estrutura de todos os outros processos psíquicos” (Vygostski, 1997, p. 149)
e, de acordo com a Teoria Histórico-Cultural, o homem age na realidade e, também, reage a ela.
Essa teoria seguramente “[...] figurou-se como um dos marcos basilares da história
epistemiológica das ideias vygotskianas [...]” (Hora, 2020, p.192) processo da inclusão e
transformação social das gerações.
Vale considerar, que o autor realizou a complementaridade entre o biológico e o social
nos sentimentos: sem eliminar as reações instintivas, mas sim restringi-las, assim, não privilegia
os polos, o social ou o biológico; porém, se uma emoção é expressa por um signo (palavra,
gesto), persiste na interatividade linguística, em um plano intersubjetivo – por conseguinte,
social e que acompanha cada palavra, situado no tempo e na história. Assim, opinamos que a
tentativa de compreender os processos de inclusão dos alunos com TDAH é uma aposta nas
relações complexas entre o biológico e o social, o cognitivo e o emotivo, conectadas à questão
de aprendizagem, que estão diretamente imbricadas com as normas e os valores culturais.
Este capítulo é composto por duas seções, a primeira nomeada de A gênese e a diagnose
dos alunos com TDAH, o qual conduz à abordagem teórica que corrobora com a categorização
do TDAH, tratando de conceitos, causas, impactos sociais, cognitivos e escolares. Na segunda
seção, TDAH e a relação professor-aluno, contemplamos as análises de dados dos artigos
obtidos, considerando os pontos de convergência e divergência na orientação argumentativa.
Por fim, as considerações finais, espaço em que retomamos as discussões dos dados analisados,
propiciando o entendimento para as especificidades das aprendizagens e emoções do aluno
com TDAH na sala de aula por considerarmos uma valorosa advertência e por ser uma temática
Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo e Genigleide Santos da Hora 25

recorrente como justificativa para a dificuldade de aprendizagem dos indivíduos em seu


período de escolarização.

A GÊNESE E A DIAGNOSE DOS ALUNOS COM TDAH

Segundo Associação Brasileira do Déficit de Atenção – ABDA (2021), o TDAH se


caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. Isto é, a patologia é
determinada por fatores genéticos desenvolvidos, ainda no período embrionário, cujos
sintomas mais recorrentes são desatenção e hiperatividade/ impulsividade. Nessa perspectiva,
as informações da ABDA (2021) sugerem que pessoas com “TDAH têm alterações na região
frontal e as suas conexões com o resto do cérebro”. Assim, essas alterações fazem com que o
indivíduo não consiga inibir certos comportamentos inadequados, interferindo, pois, na
capacidade de prestar atenção, na memória, no autocontrole, na organização e no
planejamento.
As investigações acerca das causas do TDAH vêm se intensificando ao longo dos anos.
Embora os pesquisadores não possuam explicações plausíveis para o mau funcionamento
neurológico em indivíduos acometidos pela patologia, apontam-se relações de causa e efeito
da exposição ao álcool ou cigarros, bem como da influência de aspectos externos (sociais) no
período pré-natal, pois:
[...] acredita-se que o TDAH relaciona-se a alterações biológicas e neuroquímicas, mas que
o diagnóstico depende de fatores contextuais que envolvem uma visão de conjunto, isto é,
de interface que contém e integra substrato neurobiológico, fatores genéticos, modulação
ambiental, que, na sua múltipla interação, condicionam as várias apresentações do
transtorno nos seus também diversos fenótipos comportamentais (Muszkat; Miranda;
Rizzutti, 2012, p. 36).
Nessa perspectiva, a manifestação das características predominantes do TDAH advém
de transferência genética direta (dos pais para o filho), por meio de agentes psicossociais – o
meio atribui uma sobrecarga psicológica na genitora que, no que lhe concerne, transfere para
o embrião ou das duas vertentes (genético e social) simultaneamente. À vista disso, conclui-se,
segundo Muszkat, Miranda e Rizzutti (2012), que a compreensão do transtorno é de alta
complexidade, bem como seu diagnóstico, o qual exige análises multifatoriais e
multidisciplinares a fim de perceber as variadas formas de manifestação dos sintomas para um
planejamento adequado no processo de intervenção.
O TDAH, inicialmente, apresentava a sua categorização pautada em associações com
outras patologias existentes devido às semelhanças dos conjuntos de sintomas que o indivíduo
acometido pelo TDAH apresenta, segundo Barkley (2002). Dessa forma, o transtorno, no
decurso do tempo, foi associado à Lesão Cerebral Mínima – LCM, posteriormente, à Disfunção
Cerebral Mínima – DCM, reconhecido em 2013 pela American Psychiatric Association – APA,
como “um padrão persistente de desatenção, hiperatividade e impulsividade [...] crônico” (APA,
2013 apud 2018, p. 244). Isto é, o aluno acometido pelo TDAH tem suas limitações e/ou suas
demasias comportamentais e necessita de atenção especializada.
Vale, pois, salientar que a capacidade do indivíduo com o transtorno não deve ser
Inclusão de alunos com Transtornos de Déficits de Atenção e Hiperatividade: uma revisão de literatura
26
entre 2014 e 2021

restringida ou depreciada, pois, “se o aluno for inserido em práticas discursivas desfavoráveis
ao seu desenvolvimento na escola, é possível que adentre a um processo de baixa autoestima
em relação à sua condição de sujeito/aprendiz”. (Signor, 2016, p. 312). Portanto, compreende-
se que as pessoas com TDAH devem, a priori, ter um diagnóstico coerente visando mitigar os
aspectos da disfunção mental e, consequentemente, serem conduzidas a um processo de
socialização especializado e multidisciplinar.

Considerando o comportamento do indivíduo acometido pelo transtorno, evidencia-se


o hiperfoco, uma característica que diverge do padrão representativo do TDAH e é responsável
por permitir uma concentração exacerbada sobre determinado objeto/atividade. Deste modo,
o transtorno pode apresentar características distintas do ponto de vista neurológico
certificando a necessidade de um diagnóstico consistente e coerente a fim de estimular, nas
variadas vertentes, as particularidades de cada indivíduo e, em simultâneo, viabilizar uma
educação igualitária e a inserção dele no contexto social.
Entender o TDAH é reconhecer a extensão dos transtornos na vida do sujeito, o que
não o impossibilita a prestar atenção em algum momento, de realizar as tarefas ou de contribuir
na progressão social e intelectual dele, segundo Barkley (2002). Isto é, as estratégias
ponderadas para o controle dos sintomas (comportamentos) do TDAH devem ser
individualizadas, considerando os aspectos predominantes em cada ser e tendo o seu
planejamento voltado para o desenvolvimento quando o transtorno promover um lento
aproveitamento nas atividades cognitivas, sensoriais e de interação, bem como de controle
naqueles em que há a predominância do hiperfoco, hiperatividade ou a instabilidade
pertinentes aos impulsos da doença.

TDAH: RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO

A seção em questão enfatiza a dependência do TDAH com o processo educativo da


criança, assim como demonstra os impactos na progressão cognitiva, interpretativa e
associativa do indivíduo. À vista disso, nota-se que uma das problemáticas para o ensino e
aprendizagem no âmbito educativo é o transtorno, principalmente, nas séries iniciais, visto que
esse enfoque deve estar voltado para as relações sociais, cuja mediação professor – aluno é
possibilitada através da afetividade.
Até porque, o “fator essencial nas relações em sala de aula e por meio dela a mediação
pedagógica estabelece a qualidade do vínculo aluno-objeto-professor”. (Emiliano; Tomás, 2015,
p.66), ou seja, a mediação pedagógica, assim como a progressão da aprendizagem ocorre por
meio do processo afetivo, pois, “existe um sistema significativo dinâmico que constitui uma
unidade de processos afetivos e intelectuais” (Vygotski, 1987 apud Emiliano; Tomás, 2015, p.
50).
Nessa lógica, a inteligência surge posterior à afetividade, segundo Galvão (2007), o autor
defende que antes do processo educativo a criança sofre influência das emoções e destaca que
a existência do intelecto advém do desenvolvimento afetivo, além de reafirmar a relação
indissociável entre o âmbito escolar e as sensações no processo de aprendizagem. Dessa
Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo e Genigleide Santos da Hora 27

maneira, entende-se que na escola a aprendizagem é desenvolvida por meio da relação


professor-aluno, promovendo a construção dos saberes, pois as emoções são utilizadas como
“facilitadores do conhecimento”, segundo Almeida (2005).
O início escolar é demarcado por transições de contextos e cenários, os quais dispõe
para a criança o processo de sociabilidade, contato inicial com outros indivíduos permitindo o
acesso às culturas, aos costumes, as crenças, as didáticas, etc., ao mesmo tempo em que se
inicia o contato físico antes direcionado aos pais e membros familiares e o desenvolvimento de
habilidades exigidas a partir das novas experiências, tais como foco, fala e memória. Sendo
assim, considerando uma criança com o TDAH, essa transformação drástica acrescidas das
exigências do contexto atual evidenciam as dificuldades que podem ter relação com o cenário,
o contato social e o ambiente intensificando os sintomas/comportamentos do indivíduo.
Na perspectiva de mudança e das novas exigências, inicia-se o agravamento dos
sintomas ou o acúmulo destes, tendo em vista que, inicialmente, os comportamentos isolados
se assemelham com a má educação, a realização de todas as vontades do indivíduo e o
desinteresse, visto pelo professor como tal. Isto é, o indivíduo com TDAH tende a não ter uma
boa receptividade da imposição de regras, ordem e mudança tendo como resposta negativa aos
estímulos maiores dificuldades de adaptação, pois, “A criança com TDAH apresenta mau
rendimento escolar por ter dificuldade em prestar atenção a detalhes, comete erros nas
atividades escolares, não consegue acompanhar longas instruções nem permanecer atenta para
concluir suas tarefas escolares” (Muszkat; Miranda; Rizzutti, 2012, p. 111).
Diante disso, torna-se evidente a função do professor para além do fazer docente, ou
seja, a didática do docente deve ser pautada na observância do desenvolvimento dos alunos
visando uma educação igualitária, a qual considere a capacidade e desenvolvimento individual
de cada aluno. Para tanto, salienta a carência da formação continuada, esta cuja finalidade seja
promover uma didática inclusiva, que viabilize um aprendizado coerente, associativo e
direcionado, pois o ensino deve envolver todo indivíduo e o olhar do mediador deve estar
atento às particularidades do transtorno, segundo Muszkat, Miranda e Rizzutti (2012).
No tocante ao planejamento especializado, ressalta-se a função do professor para uma
didática inclusiva, a qual atenda as orientações da educação inclusiva pelo Plano Nacional de
Educação – PNE, visa, que a meta 4 (quatro) deve:
universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à
educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede
regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos
multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados”
(Brasil, 2014, p. 11).
E, do mesmo modo envolva a escola com a visão de possibilitar estruturas físicas
favoráveis para os alunos com o TDAH, bem como profissionais capacitados acerca dos
transtornos psicossociais e neurológicos para permitir um efetivo planejamento e a progressão
educacional desses indivíduos.
Inclusão de alunos com Transtornos de Déficits de Atenção e Hiperatividade: uma revisão de literatura
28
entre 2014 e 2021

O MÉTODO INVESTIGATIVO EM QUESTÃO


A abordagem deste estudo é qualitativa, segundo Chizzotti (2008), essa modalidade de
pesquisa objetiva, em geral, provocar o esclarecimento de uma situação problema. Nesse
sentido, essa investigação analisa sete artigos acerca do TDAH, sendo que destes, quatro
artigos versaram sobre a educação inclusiva e os outros três sobre a formação continuada dos
professores, atendendo os descritores da pesquisa. Lembrando que qualitativo pressupõe “que
há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o
sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”
(Chizotti, 2018, p. 34). Isto é, a análise discorre da concepção real, empírica, da relação entre o
meio social e o indivíduo, considerando todos os fatores socioculturais a incorrer sobre o aluno
no período escolar, ressaltando, portanto, o protagonismo da representatividade do sujeito em
seu espaço individual.
Para isso, a pesquisa tem seu respaldo nas abordagens teóricas de Barkley (2002) e
Muszkat, Miranda e Rizzutti (2012), sobre o TDAH, buscando entender a percepção e as
definições do transtorno em estudo. Dessa forma, a relevância do estudo se fundamentou na
compreensão da disfunção comportamental e atentou especificamente aos impactos escolares
e extraescolares, do mesmo modo em que evidencia o papel da afetividade no processo de
ensino, a necessidade da especialização do professor e a implicação da multidisciplinaridade no
diagnóstico e na intervenção. Assim, o transtorno leva o docente a sucessivas reflexões sobre
a conduta pedagógica, a prática docente, o planejamento didático, a inclusão e acessibilidade,
a interação social e a progressão escolar, segundo Muszkat; Miranda e Rizzutti (2012).
Atendendo à proposta deste estudo, seguramente na última etapa, ou seja, às análises
das pesquisas na plataforma SciELO 13 que evidenciaram a inclusão de alunos com Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH na sala de aula no recorte temporal específico
entre 2014 e 2021, rastreamos os objetos de análise utilizando como palavras-chave os termos
“transtorno de déficit de atenção e hiperatividade” e a sua sigla “TDAH”; “educação inclusiva e
TDAH”; “formação de professor e TDAH”.
No tocante ao recorte temporal, a escolha veio mediante estudos realizados pelo
Instituto de Educação e Análise do Comportamento – IEAC, em 2014, o qual evidenciou uma
progressão no número de indivíduos entre dois e dezessete anos acometidos pelo TDAH. Em
2016, outra pesquisa do IEAC salientou que a crescente no número de casos da doença seguia
constante e enfatizou, também, a existência de outros transtornos do neurodesenvolvimento,
afirmando a necessidade de um diagnóstico assertivo para um tratamento adequado. Diante
disso, o estudo em questão delimitou o período ante ao advento dos transtornos, os quais
repercutem na contemporaneidade.
Os artigos selecionados foram publicados no Brasil, portanto em língua portuguesa, com
os títulos referidos ou relacionados com o transtorno. Foram encontrados, em sua totalidade,
441 artigos publicados no decurso da pesquisa, dos quais 49 são pertinentes ao TDAH, 191

13
Diante da seleção dos descritores, do recorte temporal e do referencial teórico, conclui-se que as pesquisas do repositório
da SciELO atendem aos critérios de triagem de forma integral ou em sua maioria, além de ser uma plataforma de
reconhecimento e referência nacional e internacional no âmbito da educação. Portanto, justifica-se a escolha.
Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo e Genigleide Santos da Hora 29

argumentam acerca da educação inclusiva e 201 discorrem sobre a formação continuada do


professor.
Posterior à seleção, realizou-se uma triagem acerca da relação entre afetividade-
educação inclusiva-formação de professor TDAH com a publicação em consonância com a base
temporal do estudo em questão. Em seguida, foram analisados os conteúdos abordados,
extraindo, portanto, uma síntese de suas abordagens. No ano de 2014, foi encontrado 1 artigo
nas especificidades da pesquisa na base de dados SciELO. Em 2015, foram encontrados 5
artigos. E, em 2016, foi encontrado 1 artigo.
Ponderamos, então, analisar os artigos cujo enfoque está direcionado, exclusivamente,
para o “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH”; “a formação especializado
do professor e o TDAH”; “a educação inclusiva e o TDAH”. À vista disso, foram selecionados
sete artigos, que compõe o corpus desta pesquisa (Tabela 1). Em seguida serão descritos o teor
dos respectivos artigos.

Tabela 1. Artigos publicados na plataforma SciELO entre os anos de 2014 e 2021


Área de
Ano Quantidade Título
concentração

2014 Educação 1 Revisão sistemática das políticas de educação inclusiva para formação de professor

Psicoeducação 1 Os significados do TDAH em discursos de docentes dos anos iniciais


Estratégias de ensino e recursos pedagógicos para o ensino de alunos com TDAH
1
em aulas de educação física
2015 Educação 1 A formação docente no contexto da inclusão: para uma nova metodologia
1 Educação inclusiva: entre a história, os preconceitos, a escola e a família
Educação Repercussões do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH na
1
Superior experiência universitária
2016 Educação 1 A educação inclusiva: um estudo sobre a formação docente
Fonte: Elaboração das autoras, 2022.

No ano de 2014, foi encontrado nos parâmetros de seleção um artigo, intitulado


“Revisão sistemática das políticas de educação inclusiva para formação de professor”,
elaborado por Ingles, Antoszczyszen, Semkiv e Oliveira (2014) 14.
A pesquisa versou um estudo cujo objetivo foi sistematizar as políticas públicas
educacionais, sobretudo a formação docente e as implicações dessas nas práticas pedagógicas.
Paralelo a isto, evidenciou-se o processo “deficitário” 15 da educação inclusiva de alunos com
transtornos diversos e, em específico, o TDAH ressaltando a importância do papel do docente

14
INGLES, M. A; ANTOSZCZYSZEN, S.; SEMVIK, S. I. A. L.; OLIVEIRA, J. P. Revisão sistemática acerca das
políticas de educação inclusiva para a formação de professores. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 20,
p. 461- 478, 2014.
15
Considera-se este termo excludente e inapropriado para se utilizar no âmbito educacional, diante das
inúmeras discussões acadêmicas. Portanto, é preferível utilizar o termo “deficiência”. A exemplo das inúmeras
discussões da Lei Brasileira da Inclusão, n. 13.146, de 6 de julho de 2015, também conhecida como Estatuto da
Pessoa com Deficiência, “[...] destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos
direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”
(Brasil, 2015).
Inclusão de alunos com Transtornos de Déficits de Atenção e Hiperatividade: uma revisão de literatura
30
entre 2014 e 2021

para esse processo a fim de viabilizar a efetivação dela nos padrões necessários e coerentes às
limitações do indivíduo, como proposto na legislação.
As repercussões ressaltaram a visão equivocada, por parte da sociedade, da educação
inclusiva, a qual foi consolidada na perspectiva de educação de qualidade para todos, não
atendendo, exclusivamente, aos preceitos da inserção devida de crianças com necessidades
educacionais especiais. Salienta-se, portanto, imprescindível para a educação inclusiva a
especialização do corpo docente no intuito de atender as particularidades dos transtornos, bem
como do planejamento adequado, da (re)socialização e encorajamento do indivíduo acometido
pelo transtorno e das práticas e políticas de inclusão na/para educação.
Desse modo, considerando o estudo acerca da formação do professor para a educação
inclusiva, depreende-se que há discussões teóricas e ponderações relativas às políticas de
formação docente e à educação inclusiva, porém apenas a prática pedagógica não promove a
inclusão, isto é, embora tenha (e tem) sido sinalizado pelo Ministério da Educação (Brasil, 2014),
a necessidade de incorporar os conteúdos da educação especial nos cursos de graduação,
sobretudo, os de licenciaturas, as práticas pedagógicas evidenciam especificidades no processo
inclusivo que não são priorizadas e nem atendidas, ainda, na formação básica e especializada
do professor e no processo didático, as quais destacam a fragilidade da inclusão e do
desenvolvimento dos indivíduos acometidos pelos transtornos e outras necessidades de
caráter especial.
Em 2015, foram encontrados cinco artigos. O primeiro deles, intitulado “Os significados
do TDAH em discursos de docentes dos anos iniciais”, escrito por Silva, Santos e Oliveira Filho
(2015)16. No estudo, foi aplicado um questionário aos professores da educação básica de
Pernambuco considerando o conhecimento sobre o TDAH, sua causa, seu efeito, a intervenção
e os impactos na aprendizagem. Os autores analisaram os discursos dos professores acerca do
TDAH e de superdotação (hiperfoco) no contexto escolar. Dessa forma, percebe-se a
incompatibilidade entre a definição do TDAH e a compreensão dos educadores, cujo destaque
é a importância da capacitação e do planejamento individualizado para os casos de educação
inclusiva.
E, ratificado para política pública, visa o reconhecimento e a garantias de direitos, a Lei
Federal nº 14.254/21, dispõe sobre o acompanhamento integral aos educandos com dislexia,
TDAH e outros transtornos de aprendizagem. Estabelece que:
As escolas da rede pública e privada devem garantir acompanhamento específico,
direcionado à dificuldade e da forma mais precoce possível, aos estudantes com dislexia,
TDAH ou outro transtorno de aprendizagem que apresentam instabilidade na atenção ou
alterações no desenvolvimento da leitura e da escrita (Brasil, 2021).
A percepção do corpo docente, salientada na pesquisa, acerca da categorização das
características do TDAH se mostra de forma genérica, isto é, os professores não possuíam
conhecimento suficiente acerca do transtorno e concluíam as definições e intervenções
pautadas no conhecimento superficial, o que inviabilizava a educação inclusiva efetiva na sala
de aula e, consequentemente, no âmbito social. Assim, conclui- se que a ausência ou

16
SILVA, S. P.; SANTOS, C. P.; OLIVEIRA FILHO, P. Os significados do TDAH em discursos de docentes dos
anos iniciais. Pro-Posições, v. 26, p. 205-221, 2015.
Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo e Genigleide Santos da Hora 31

superficialidade do conhecimento sobre o TDAH pode prejudicar ações pedagógicas que


possam atender adequadamente esses alunos devido os impactos sociais, interativos e
intelectuais repercutirão na fase adulta.
O segundo artigo, deste mesmo ano, com o título “Estratégias de ensino e recursos
pedagógicos para o ensino de alunos com TDAH em aulas de educação física”, realizado por
Costa, Moreira e Seabra Júnior (2015)17, que abordou sobre uma proposta de intervenção,
seguindo um planejamento individualizado para educação inclusiva, por meio de atividade
lúdica, associativa com o intuito de estimular a memória, a atenção e a concentração das
crianças com TDAH, enquanto flexibiliza o processo afetivo no ensino e na aprendizagem.
Desta forma, foi aplicado um formulário para identificar as condições psicológica e
motora dos alunos em questão. A afetividade foi a mola propulsora para o desenvolvimento
das atividades, as quais visavam atender a seis categorias: a relação professor/aluno e
aluno/aluno possibilitando a interação social e a partilha ou aquisição de conhecimento; o
trabalho cooperativo; a mediação, colocando o indivíduo como personagem principal nas
tomadas de decisão; a rotina; a seleção; e o ambiente, promovendo o desenvolvimento da
percepção e do planejamento. Nessa perspectiva, compreende-se no estudo que o processo
afetivo na prática pedagógica corrobora para a progressão intelectual do aluno, além de
promover a inclusão social e educativa dos indivíduos acometidos pelo TDAH.
A teoria vygotskiana (1998) acerca do desenvolvimento do indivíduo por meio das
interações socioculturais em que está inserido é reafirmada no estudo em foco. Tal abordagem
demonstrou a potencialização do desenvolvimento promovida por uma prática pedagógica
proativa, a qual Vygotski confere como “nível de desenvolvimento real”, de modo a dar
autonomia ao indivíduo na realização da atividade segundo a sua capacidade. Do mesmo modo
em que, na segunda etapa da didática, estabelece o “desenvolvimento potencial”, ou seja, a
efetivação do processo de orientação, reconhecimento e ação. Assim, conclui-se que a
interação promove o desenvolvimento do indivíduo acometido por transtornos, em específico,
o TDAH e, simultaneamente, destaca a importância da prática docente voltada para uma
educação de autogestão do sujeito.
O terceiro artigo encontrado em 2015 foi “A formação docente no contexto da inclusão:
para uma nova metodologia”, escrito por Mendonça e Silva (2015)18. O artigo tem a sua
discursividade nas questões pertinentes à inclusão escolar, à deficiência intelectual e à
formação de professores, discutindo o eixo inclusão atualmente, explícita nas práticas
excludentes no âmbito educacional. Isto é, um planejamento sem direcionamento coerente
para o TDAH parece, a priori, uma prática inclusiva, entretanto, essa prática promove ações e
atitudes dissociativas, uma vez que o manejo, a atenção e a interação são isoladas.
Desse modo, a bipolaridade do processo de escolarização pode viabilizar a educação
inclusiva e a inclusão social, reduzindo os impactos que comprometem o desenvolvimento e
vida da criança com TDAH, como também pode impedir o objetivo da inclusão nos variados
contextos. À vista disso, a pesquisa evidencia que um ponto importante para evitar o

17
COSTA, C. R.; MOREIRA, J. C. C.; SEABRA JÚNIOR, M. O. Estratégias de ensino e recurso pedagógicos para o ensino de
alunos com TDAH em aulas de educação física. Revista Brasileira da Educação Especial, v. 21, p. 111- 126, 2015.
18
MENDONÇA, F. L. R.; SILVA, D. N. H. A formação docente no contexto da inclusão: para uma nova metodologia.
Cadernos de Pesquisa, v. 45, p. 508-526, 2015.
Inclusão de alunos com Transtornos de Déficits de Atenção e Hiperatividade: uma revisão de literatura
32
entre 2014 e 2021

embrutecimento do processo está ligado a formação do professor, tendo em vista o seu


conhecimento e a sua criticidade para agir de acordo as necessidades, sejam elas simples ou
especializadas. Pois, o processo inclusivo não deve viabilizar uma prática voltada para funções
elementares e limitações vinculadas à deficiência, ele deve visar o desenvolvimento de funções
excepcionais para processos complexos de aprendizagem, segundo Vygotski (1998).
O quarto artigo encontrado neste mesmo ano foi “Educação inclusiva: entre a história,
os preconceitos, a escola e a família”, de Nunes, Saia e Tavares (2015)19. O estudo objetivou
problematizar as relações entre escola e família, tendo como pressuposto a educação especial
sob o viés da educação inclusiva. Dessa maneira, o contexto histórico foi resgatado a fim de
contextualizar os percalços, o preconceito e as estereotipias vinculados ao longo das
percepções.
Em convergência com os demais artigos, fomenta a exigência da formação continuada
especializada em apoio com as áreas correlatas para minimizar os impactos psicossociais e
intelectuais dos alunos com TDAH, isto é, repensar a escola, as políticas públicas e as práticas
pedagógicas. Mas, divergente em detrimento dos outros, reconhece que a legislação
educacional deveria ser elaborada por profissionais da área da educação, uma vez que eles são
os protagonistas do processo para a efetivação dele. Conflitua, também, o entendimento de
“estar preparado”, tendo em vista a subjetividade dos casos e da intencionalidade da educação
especial, sobretudo, da inclusiva.
O quinto artigo, “Repercussões do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade –
TDAH na experiência universitária”, elaborado por Oliveira e Dias (2018)20. O estudo visava
identificar os impactos do TDAH na fase adulta, sobretudo, no âmbito universitário. Tal
abordagem analisou publicações acerca da temática no período de 2004 a 2014, na SciELO,
destacando as diferenças e semelhanças entre os indivíduos acometidos pelo transtorno e os
demais, tendo analisado quinze artigos em sua totalidade.
Como tópico de convergência, destacou-se o autoconhecimento, considerando a
compreensão, a sociabilidade e a inclusão, e o bem-estar psicológico no que concerne o
processo afetivo do aluno. Em divergência, observou-se que a adaptação e o desempenho
acadêmico reafirmaram os impactos do transtorno na fase adulta. Dessa forma, a pesquisa
destaca haver pontos significativos entre os indivíduos com TDAH e os sem, em razão
psicológica, intelectual, emocional e interpessoal, concluindo que um diagnóstico e tratamento
indevido promove o agravamento dos sintomas repercutindo, negativamente, na fase adulta
dos alunos.
Em 2016, foi encontrado um artigo intitulado de “A educação inclusiva: um estudo sobre
a formação docente”, organizado por Tavares, Santos e Freitas (2016)21. O artigo investigou a
formação em educação inclusiva de professores da rede pública que atuam com crianças com
deficiência em escolas comuns do ensino fundamental. Dando importância à pesquisa, realizada

19
NUNES, S. S.; SAIA, A. L.; TAVARES, R. E. Educação inclusiva: entre a história, os preconceitos, a escola e a
família. Psicologia: ciência e profissão, v. 35, p. 1106-1119, 2015.
20
OLIVEIRA, C. T.; DIAS, A. C. G. Psicoeducação do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade: O que,
como e para quem informar?. Trends in Psychology, v. 26, p. 243-261, 2018.
21
TAVARES, L. M. F. L.; SANTOS, L. M. M.; dos; FREITAS, M. N. C. A educação inclusiva: um estudo sobre a
formação docente. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 22, p. 527-542, 2016.
Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo e Genigleide Santos da Hora 33

por meio de entrevistas com professores regentes, de apoio e de diversas disciplinas, obtiveram
a percepção acerca da problemática sobre a formação insuficiente do docente e o
distanciamento entre teoria e prática.
Nessa perspectiva, constatou-se que os impactos na educação inclusiva ocorrem devido
a uma “falha”22 na formação dos professores, visando discussões, vivências e análises teóricas
ainda na graduação; insuficiência das políticas públicas no que concerne a reformulação do
sistema, infraestrutura e apoio multissetorial; extinção das incoerências nas
avaliações/diagnóstico e promoção do acompanhamento profissional adequado a fim de
mitigar prováveis consequências dos transtornos nas séries iniciais. Em atenção para a Lei
Federal nº 14.254/21, que determina “aos sistemas de ensino devem capacitar os professores
da educação básica para identificação precoce dos sinais relacionados aos transtornos de
aprendizagem ou ao TDAH”.
Nos anos de 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021 não houve publicações científicas que
atendessem aos descritores da pesquisa em questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O TDAH tem sido estudado superficialmente pelos docentes e difundido, em sua


maioria, equivocadamente. Desse modo, salienta-se a carência de uma formação continuada
adequada no intuito de capacitar o professor para a observância, identificação e conduta
congruente, considerando que as características do TDAH podem ser facilmente confundidas
com outros transtornos ou com uma educação domiciliar inadequada. Desse modo, o
tratamento deve ser voltado às características de prevalência do aluno, sejam elas de
desatenção, impulsividade e hiperatividade ou de hiperfoco e superdotação.
O estudo em andamento avalia as pesquisas que abordaram sobre a educação inclusiva
de crianças com o TDAH, da formação de professores e das políticas públicas. Os resultados
obtidos evidenciaram a precariedade das políticas públicas no processo de escolarização do
aluno com o transtorno, compreendendo que a educação inclusiva é composta por uma
estrutura física apropriada, conhecimento especializado e multidisciplinar, pois, o incentivo
diário promove ao indivíduo com TDAH maiores estímulos psicossociais, melhor interação
social, incitação intelectual frente às exigências de um ensino mediador, etc.
As análises assinalam percepções que incentivam o professor a um planejamento
direcionado, a metodologias integrativas e lúdicas, pois, cabe-lhe relacionar à temática TDAH
cautelosamente, afetiva e atenta, e é essa afetividade que concretizará a progressão intelectual
e educativa, promovendo o desenvolvimento da aprendizagem e da inclusão. Isto é, a
incipiência da educação, dos professores, da sociedade e das entidades federativas, no
processo inclusivo margeia socialmente crianças que precisam se sentir parte do ambiente
escolar, um ambiente que deve ser tanto educativo como afetivo, sendo a afetividade algo
indispensável para a formação humana e social do sujeito.

22
Observamos novamente a utilização de mais um termo utilizado de forma equivocada e inapropriado para o
âmbito educacional. Uma falha é a causa raiz de um ou mais defeitos identificados pela observação etc. Portanto,
opta-se, preferivelmente, utilizar o termo: “lacunas teóricas”.
Inclusão de alunos com Transtornos de Déficits de Atenção e Hiperatividade: uma revisão de literatura
34
entre 2014 e 2021

Constata-se a importância da multidisciplinaridade no processo inclusivo,


essencialmente, do papel do pedagogo e da pedagogia, tendo em vista o contato inicial com a
criança e o desenvolvimento dela no processo de aprendizagem. Assim, o docente das séries
iniciais, responsabiliza-se por elaborar multimetodologias, ferramentas e planejamentos que
viabilizem o processo educativo, mesmo diante de limitações. Salienta-se, portanto, que a
inclusão é estabelecida ante o diagnóstico e com isso há necessidade do envolvimento de
outras áreas, a fim de promover a educação inclusiva e o desenvolvimento adequado para cada
especificidade.
Por fim, é oportuno considerar a natureza utilizada por alguns termos excludentes e
inapropriados para a inclusão de alunos com TDAH na escola comum. Os termos em destaque
no decorrer das análises dados, prenunciam uma série de situações que promoveram
questionamentos e ressignificações para a inclusão dos alunos com TDAH. Pincipalmente, por
percebermos que formação pedagógica inclusiva e continua é uma grande aliada tanto para os
professores quanto para os alunos, possibilitando abarcar diversos aspectos do processo ensino
e aprendizagem deste público-alvo. Assim, destacamos o quanto é lacunar os requisitos de
desempenhos especificados na área de saúde que impregnam a área educacional e carecem
inúmeras reflexões para o âmbito da educação especial e inclusiva.
Os empregos desses termos em decorrência das multiplicidades de opiniões foram
considerados, pelo menos, com o intuito de motivar ações crítico-emancipatórias
contemporâneas, embora ponderemos valiosas as contribuições que os autores nos
recomendam dentre outros aspectos ações de qualidade para a educação especial e inclusiva,
ainda advertimos usarem também a empatia para melhor entenderem a função e o profundo
do ato de compartilhar ideias inclusivas sobre o TDAH. É fato a urgência de estabelecer mais
diálogos inclusivos nas escolas e ao incentivarmos as vertentes pedagógico-críticas e de
movimentos sociocultural e, principalmente, consideramos a dimensão afetiva fundamentada
nos estudos vygotskianos e de aspectos político-epistemológico contínuo.
Vale, pois, salientar que, conquanto tenham variados estudos sobre o TDAH, há muitos
aspectos, impactos e influências a serem investigados. Sendo assim, compreende-se a
importância da continuidade do estudo tendo em vista o crescente número de crianças
acometidas por esse transtorno e na demanda por profissionais capacitados. Desse modo,
cabe-se entender quais áreas devem se envolver para uma educação inclusiva efetiva, como a
escola e estrutura, corpo docente – se adequará às especificidades dos transtornos, uma vez
que ela deve atender, também, aos demais alunos e qual o papel da sociedade no processo de
inclusão escolar e social.

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Caliane Santana Matos, Michelle Ferreira Bispo e Genigleide Santos da Hora 35

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Inclusão de alunos com Transtornos de Déficits de Atenção e Hiperatividade: uma revisão de literatura
36
entre 2014 e 2021

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Cláudia Pereira Oliveira 37

3 INCLUSÃO ESCOLAR: DESAFIOS E EXPECTATIVAS


Cláudia Pereira Oliveira 23

INTRODUÇÃO

Direcionar da minha investigação para as questões relacionadas com a inclusão escolar


adveio da minha atuação profissional na área de educação. Há 24 anos atuo como
coordenadora pedagógica na rede estadual de ensino público do estado Bahia/Brasil, destes,
10 anos num colégio estadual, intitulado como colégio de referência em educação inclusiva na
rede pública de ensino. Foi a partir da minha atividade laboral que surgiu o interesse de
desenvolver a pesquisa, pois verifiquei que ainda há muitos entraves e desafios a superar com
o público da educação e, em particular, da educação especial, seja para diretores/as escolares,
para famílias, professoras e professores, profissionais da comunidade escolar e os/as
estudantes com deficiência. Assim, surgiu o interesse de investigar os desafios enfrentados
pelos estes profissionais da educação.
Acreditamos que o domínio Educação, Gênero, Corpo e Violência muito contribuirá para
o desenvolvimento da investigação, uma vez que, de entre outros aspectos, este domínio
favorecerá a mobilização de conceitos em perspectivas históricas, antropológicas e sociológicas
da situação da pessoa com deficiência. Este estudo se justifica dentre tantos motivos, pelo fato
de que, ainda em dias atuais, existem milhares de pessoas que têm seus direitos cerceados e
violados em situações do quotidiano relacionadas com a restrição de direitos à educação no
Brasil, visivelmente em desacordo com a legislação existente para a efetiva práxis pedagógica
inclusiva.
A educação especial perpassa por todas as outras modalidades vigentes no país
(educação de jovens, adultos e idosos; educação quilombola; indígena; no campo; profissional
e níveis de ensino), desde a Educação Infantil até ao Ensino Superior. Dados do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), em 2010, no Brasil,
contava mais de 528 mil matrículas nos diferentes níveis de ensino na categoria de educação
especial. Mais de metade dessas matrículas (53%) estavam registradas nas séries iniciais do
ensino fundamental e quase 22% nas séries finais do ensino fundamental. Este número já saltou
para cerca de 1.308.900 estudantes em 2020 (QEdu, 2010)1. Inquieta-nos pensar no público
da Educação Especial que, apesar de determinações legais, ainda enfrenta muitos problemas
no espaço de educação inclusiva.
Convenções internacionais determinam que a educação, em todas as suas formas e
níveis, deve ser: disponível, acessível, aceitável e adaptável (Rizzi et al., 2008; UNESCO, 2003).
Historicamente, constata-se que as dificuldades de acesso aos serviços de educação impõem
desafios para amplos segmentos da população (Rodrigues, 2006), incluindo a população

23
Cláudia Pereira Oliveira é mestra em Ciências da Educação, Género, Corpo e Violência pela Universidade do Porto, em
Portugal e pedagoga. Atua como coordenadora pedagógica na rede estadual de educação da Bahia. E-mail:
claudiacoordena@gmail.com.
38 Inclusão escolar: desafios e expectativas

brasileira particularmente nos estados da Região Norte e Nordeste do país. Este problema de
inclusão na educação se torna particularmente dramático para as pessoas com deficiência
(física, mental, intelectual e sensorial), devido a um conjunto de problemas que incluem desde
incumprimento ou insuficiência de aplicação dos parâmetros legais e normativos para
implantação e execução da educação especial e/ou inclusiva, até a falta de recursos materiais
e humanos.
Ademais, as pessoas com deficiência são marcadas por preconceito, discriminação social
e exclusão, enraizadas ao longo da história da humanidade (Silva, 1986). Sabe-se de vidas
marcadas por extermínio e abandono, passando por segregação. No Brasil, desde os anos 1960,
é possível traçar um esforço estatal de implantação de atendimento educacional às pessoas
com deficiência, chamadas no texto de “excepcionais” – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN) (Lei n. 4.024, 1961). Apesar desta lei, os problemas para a inclusão das
pessoas com deficiência permanecem até à atualidade.
Os problemas enfrentados pelas pessoas com deficiência têm grande extensão,
começando com o preconceito e a falta de apoio às questões conceituais e terminológicas que
lhes são aplicadas. O conceito de deficiência, já incorporado pela Constituição Federal 1988
define no Art. 2º:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas (Lei n. 13.146/2015).

De acordo com a Resolução do Conselho Estadual de Educação da Bahia – CEE n. 79


de 2009, também faz parte desse público da Educação Especial as pessoas com deficiência, os
indivíduos com transtorno do espectro autista – TEA e com altas habilidades/superdotação 24.
Constatamos que outros obstáculos podem ser encontrados nas características da
legislação, neste ramo de ensino, que, ao longo dos últimos 60 anos, vem passando por
constantes revisões e ajustes. Dessa forma, essa legislação nem sempre se torna exequível, seja
pela escassez de investimento público para realizar essa política pública, seja pela falta de
recursos das próprias famílias dos/as estudantes com deficiência(s) para acessar as unidades
escolares. O fato é que o debate sobre a Educação Especial e Inclusiva no Brasil tem sido
intenso nos últimos anos. Atualmente, o Ministério da Educação – MEC, está revisando a atual
Política Nacional de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI.
A organização não-governamental Todos Pela Educação declara que o texto proposto
para a atual Política Nacional de Educação Especial (2020), enfrenta forte oposição de alguns
grupos de educadores que tratam do assunto. Eles/as temem que essa nova redação estimule
a volta da separação das pessoas com deficiência da convivência com os/as demais estudantes,
como também venha a criar brechas para se negligenciarem as ações para a promoção da

24
O Glossário da Educação Especial do Censo Escolar de 2019 define que o Transtorno do Espectro Autista – TEA
compreende as “pessoas que apresentam quadro clínico caracterizado por alterações qualitativas nas interações sociais
recíprocas e na comunicação, tendo um repertório de interesses e atividades restrito e repetitivo”, enquanto “Altas
habilidades/superdotação” incluem as “pessoas que demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas,
isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, artística, psicomotora e de liderança, além de apresentar grande
criatividade, envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse”.
Cláudia Pereira Oliveira 39

acessibilidade e venha permitir a produção de “currículos escolares excepcionais”, que


reproduzem discriminações aos deficientes.
Em linhas gerais, a pesquisa intitulada “Inclusão Escolar: desafios e expectativas” buscou
investigar as perspectivas de gestores/as escolares e docentes sobre o panorama da educação
inclusiva nas escolas da rede pública do Estado da Bahia, procurando identificar os principais
desafios para gestão e desenvolvimento deste ramo da educação, voltado para o atendimento
e educação de pessoas com alguma deficiência, na visão de diretores/as escolares e
professores/as.
Assim, pretende-se contribuir para a eliminação de barreiras de diversa ordem, inclusive,
as relacionadas à acessibilidade, pois ainda há muito a se conquistar neste âmbito. Tornar
escolas em espaços inclusivos, e democráticos, que favoreçam efetivamente a aprendizagem e
participação de qualquer estudante, independente de suas características individuais e sociais,
só será possível se investigarmos as reais condições em que este ensino é oferecido.
Trata-se de um projeto situado no âmbito das Ciências da Educação, no domínio da
Educação, Gênero, Corpo e Violência, com um enfoque na área da gestão educacional, que tem
por objetivo contribuir para garantir o direito de aprender e prevenir toda e qualquer forma de
violência. A pesquisa pode constituir um contributo para a avaliação de políticas públicas
setoriais, para garantir direitos já definidos por legislação, promover novos modelos
pedagógicos inspirados no desenvolvimento humano com cerne no resgate da dignidade,
independentemente das diferenças.

CONCISA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA SOBRE PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA

O processo de exclusão/inclusão das pessoas com deficiência nas sociedades configura-


se como objeto de estudo, ainda que seja necessário um aprofundamento de como essa
inclusão se dá na escola pública.
Otto Marques da Silva, no seu livro A epopeia ignorada (1986), salienta indícios da
existência de doenças incapacitantes e deficiências físicas desde a Pré-história e de um sistema
de crenças e simbolismo acerca de indivíduos com deficiências, apesar de não haver nada de
concreto quanto à vida de pessoas com deficiência física ou mentais, a não ser suposições
baseadas em indícios extremamente tênues.
Quer na Grécia clássica quer no império romano, as leis não eram favoráveis a pessoas
com deficiência. Aos pais era permitido eliminar as crianças após o nascimento desde que
apresentassem deformidades físicas (Silva, 1986). O autor menciona alguns males desta época
caracterizados como incapacitantes que dificultaram e dificultam ainda hoje a integração do
indivíduo:
Amputação de vários níveis e membros; cegueira e suas várias limitações; surdez e reduções graves
de audição; afasia ou problemas de comunicação oral; defeitos de nascimento ou malformações;
problemas cerebrais; epilepsia; paralisia cerebral de intensidades diversas; deficiências mentais nos
vários graus; distrofia muscular; esclerose múltipla; paralisia infantil, doenças venéreas; doenças
dermatológicas transmissíveis; doenças crônicas; hanseníase; síndromes incapacitantes diversas;
fissuras labiopalatais; fraturas e problemas ortopédicos os mais variados; problemas respiratórios
40 Inclusão escolar: desafios e expectativas

e/ou pulmonares; idade avançada (Silva, 1986, p. 14).

No início da Idade Média, os/as deficientes físicos/as e mentais eram vistos como
possuídos pelos demônios, sendo frequentemente queimados/as em muitas regiões da Europa
medieval como bruxas/os. Neste mesmo período, o nascimento de pessoas com deficiência era
visto como castigo de Deus pela população, já os supersticiosos viam nessas pessoas poderes
especiais de bruxarias (Silva, 1986).
Sabe-se que a história da pessoa com deficiência foi marcada por extermínio,
discriminação e preconceito. Sem alternativas, os que sobreviviam, viviam à margem da
sociedade ou eram por ela explorados, como por exemplo, pessoas conhecidas com nanismo e
“tolas naturais”, eram aproveitadas para apresentação de rua, em feiras, ou afastadas das suas
famílias e levadas para entreter a realeza, denominadas como bobos da corte. Em sociedades,
onde a miséria predomina, pobres, pedintes, mendigos e ex-criminosos viviam misturados com
pessoas com deficiências de nascença, adquiridas por acidentes ou pela aplicação de penas
corporais que as mutilavam (Silva, 1986).
Nas épocas já referidas, a cegueira era utilizada para castigar, se vingar ou mesmo como
sentença judicial. Destacamos a sentença do Basílio II, imperador de Constantinopla, que,
depois de ter vencido os búlgaros (século XI), ordenou a retirada dos olhos de 15 mil homens
prisioneiros antes do retorno à sua pátria (Silva, 1986).
De acordo com alguns/mas historiadores/as e antropólogos/as, antes dos europeus
chegarem à América, no Brasil, já havia práticas de exclusão entre os indígenas:
Quando nascia uma criança com deformidades físicas, era imediatamente rejeitada, acreditando-
se que traria maldição para a tribo, dentre outras consequências. Uma das formas de se livrar
desses recém-nascidos era abandoná-los nas matas, ou atirá-los de montanhas e, nas mais radicais
atitudes, até sacrificá-los em chamados rituais de purificação (Figueira, 2021, p. 20).

Os indígenas praticavam a exclusão, por horror e nojo das doenças. O pajé, curandeiro
da comunidade, poderia trazer tanto a saúde como a morte. De acordo com Figueira (2021),
aqueles desenganados pelo pajé eram desprezados pelos demais e deixados à própria sorte até
morrer (p. 21). Entretanto, o missionário La Margelle, em 1578, e o pesquisador alemão Carl
Friedrich von Martius, em 1794, afirmaram a existência de indígenas com deficiência em
território brasileiro (Figueira, 2021).
Ademais, o período colonial e imperial brasileiro destaca-se pelo tráfico de povos
africanos oriundos de Angola, Moçambique, Guiné e Benin. Trazidos em embarcações
superlotadas e em péssimas condições, os/as escravizados/as, quando não morriam durante a
longa viagem, adquiriam doenças que provocavam sequelas e/ou deficiências (Figueira, 2021).
Eram castigos corporais comuns, permitidos por lei e com a permissão da Igreja. Documentos que
legitimavam o açoite, a mutilação e até a execução desses negros. [...] Mutilações eram inevitáveis,
uma vez que muitos eram retalhados dos fundilhos com faca e cauterização das fendas com cera
quente; açoitados com chicote em tripas de couro duro, com palmatória, com uma argola de
madeira parecida com uma mão para golpear as mãos dos escravos. Existiam os Pelourinhos,
lugares oficiais para tais açoites, onde os escravos ficavam com as mãos presas ao alto, recebendo
lombadas de acordo com a infração cometida (Figueira, 2021, p. 41).
Para abordamos a educação inclusiva, temos que falar da história da educação especial.
As primeiras ações educativas tinham caráter assistencialista, dispensando as pessoas
Cláudia Pereira Oliveira 41

consideradas anormais. O paradigma concebido do chamado modelo caritativo, reafirmado


com o cristianismo ao longo da Idade Média, foi superado posteriormente pelo modelo médico
ou clínico.
A conceituação de deficiência teve início com um modelo médico na década de 60,
compreendido como uma limitação do indivíduo. O modelo social da deficiência também foi
criado na década de 60, este modelo compreendia a deficiência como o resultado das limitações
e estruturas do corpo, mas também da influência de fatores sociais e ambientais no meio do
qual o indivíduo está inserido.
Acredita-se que, por influência do Iluminismo e do conhecimento científico, a Educação
Especial se estabeleceu. O modelo médico desponta como um novo paradigma para perceber
a deficiência. Com atendimento centrado em instituições especializadas, o trabalho era voltado
para um conjunto de terapias individuais (fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia,
psicopedagogia, de entre outras) e pouca ênfase nas atividades acadêmicas. A educação escolar
não era considerada necessária, especialmente, para aqueles/as com deficiências cognitivas
e/ou sensoriais severas. Sobre este modelo médico Diniz (2012) considera:
O modelo médico, ainda hoje hegemônico para as políticas de bem-estar voltadas para os
deficientes, afirmava que a experiência de segregação, desemprego e baixa escolaridade,
entre tantas outras variações da opressão, era causada pela inabilidade do corpo lesado
para o trabalho produtivo (Diniz, 2012, p. 24).
O modelo social considera que a deficiência é resultado tanto de barreiras ambientais
quanto das condições de saúde ou das lesões. À vista disso, a deficiência é qualificada como
uma experiência de segregação e opressão, com ênfase no resultado negativo da interação
entre o corpo com lesões e a sociedade. Neste contexto, a primeira geração de teóricos deste
modelo assumiu duas metas:
• Alargar a compreensão sobre deficiência como uma questão multidisciplinar,
e não exclusiva do discurso médico sobre a lesão;
• Promover uma leitura sociológica: a de que a experiência da opressão pela
deficiência era da ideologia capitalista (Diniz, 2012, p. 55).
A segunda geração de teóricos do modelo social contou com abordagens pós-modernas
e de críticas feministas. Estes/as fizeram uma analogia entre opressão do corpo deficiente e
sexismo. As críticas feministas ao paradigma social revigoram e acrescentaram elementos para
o enfrentamento da questão, pois desafiaram simultaneamente os teóricos do modelo social e
os proponentes do modelo médico. Diniz (2012) resume a força da argumentação feminista nos
estudos sobre deficiência em pontos:
• a crítica ao princípio da igualdade pela independência;
• a emergência do corpo com lesões;
• a discussão sobre o cuidado (Diniz, 2012, p. 60).
O movimento feminista coloca em evidência também as especificidades produzidas
pelas limitações intelectuais e sensoriais, chamando a atenção para a necessidade do cuidado
e fragilidade da pessoa com deficiência, em maior ou menor escala, quando se considera que a
42 Inclusão escolar: desafios e expectativas

experiência da exclusão social está também articulada com as diferenças de gênero, etnia,
religião, classe social e outros. Assim, Diniz (2012) considera que “Há desigualdades de poder
no campo da deficiência que não serão resolvidas por ajustes arquitetónicos [...]”(p. 69) e
acrescenta “[...] o que existe são contextos sociais pouco sensíveis à compreensão da
diversidade corporal como diferentes estilos de vida” (p. 8).
Nesta conjuntura, não podemos deixar de enquadrar ao tema a questão da violência
como fenômeno complexo e multidimensional e a sua importância nos debates para a
construção da mudança social, seja em contextos educacionais formais ou não formais. Com o
conceito de Matriz de Dominação, Collins (1990) permite-nos visibilizar as diversas dimensões
da opressão- discriminação-exploração que muitas meninas e mulheres sofrem. Na matriz,
interseccionam as variantes gênero, raça, orientação sexual, religião, idade e classe social.
Pensamos que “deficiência” venha, futuramente, a emergir como nova variante ao conceito.
Ao longo da história da humanidade, foram diversos os cenários que marcaram e ainda
hoje marcam a vida de pessoas com deficiência, seja de nascença ou adquirida, resultante de
processos de opressão, extrema violência e apartação
social.
O estigma da inferioridade mantém-se presente
na vida das pessoas com deficiência e das suas
respectivas famílias. O preconceito, a discriminação e a
segregação seguem em passos firmes adentrando os
contextos escolares da nossa sociedade que validam
rótulos de outrora. “ Já existia a segregação, apoiando-se
no tripé: preconceito, estereótipo e estigma. Surgia o
seguinte mecanismo em um círculo vicioso: o
preconceito gera um estereótipo, que cristaliza o
preconceito, fortalecendo o estereótipo, que atualiza o
preconceito” (Figueira, 2021, p. 23).
Em contrapartida, os movimentos das pessoas com deficiência têm surtido efeitos
positivos para este novo século, pois se distanciam da hegemonia do corpo belo e perfeito e
imprimem novos modos de reconhecimento da diferença, em termos políticos e sociais.
(Carvalho, 2011).

Deficiência, capacitismo e terminologias adjacentes

Em 1980, a Organização Mundial de Saúde – OMS publicou um catálogo oficial de


lesões e deficiências, denominado Catálogo Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e
Saúde – CIF (OMS, 2001), semelhante à Classificação Internacional de Doenças – CID, com o
objetivo de sistematizar a linguagem biomédica relativa a lesões e deficiências. Entretanto,
sofreu críticas por manter o modelo médico de deficiência considerada, aqui, como “resultado
de uma lesão no corpo de um indivíduo considerado anormal” (Diniz, 2012, p. 41) e representou
um retrocesso para as conquistas do modelo social.
Neste sentido, Diniz (2012, p. 41) complementa:
Cláudia Pereira Oliveira 43

Para os teóricos do modelo social, o resultado foi o revigoramento do modelo médico, com
a devolução da deficiência ao campo das doenças ou consequências de doenças. Mais do
que nunca, a deficiência resumiu-se a uma questão biomédica, um retrocesso inadmissível
para o modelo social Diniz (2012, p. 41).
Dessa forma, as narrativas sobre deficiência corroboram para fortalecer o entendimento
que pessoas com deficiência são originadas de um erro médico ou de um acidente, algo
inesperado. Uma tragédia pessoal e não como um estilo de vida, dispondo rótulos de
ineficiência e incapacidade, “uma desumanização do corpo com deficiência” (Marco, 2020, p.
18).
Em 1994, com a Declaração de Salamanca, o debate sobre a deficiência e práticas
inclusivas ocupava o cenário internacional (Brasil, 1997), especialmente nas investigações
científicas.
Desse modo, a investigação sobre as deficiências foi implementada de forma mais
abrangente, pois incorporou o conceito de limitação de atividades para identificar deficiências
em relação à capacidade de realização, ao comportamento e participação social.
Elaborado e difundido pela Organização Mundial de Saúde – OMS, o conceito de base
segue as recomendações internacionais, especialmente da Classificação Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF, 2001). Esta inclui diversos níveis de limitação para
as atividades e, com isso, foi possível revelar um aumento significativo de pessoas que se
declararam com alguma deficiência.
Até mesmo os estudos estatísticos de recenseamento demográfico do Brasil,
incorporaram novos conceitos para investigação sobre deficiência, na medida em que outrora
ainda não havia considerável sensibilidade em relação às deficiências e às pessoas com
deficiência.
Além disso, Cantorani et al., (2015) evidencia que:
No Censo Demográfico de 1940 o levantamento das deficiências ainda se limitou às
deficiências sensoriais: cegos e surdos-mudos. No entanto, houve uma novidade em relação
a esta investigação. O levantamento dos dados a respeito dos cegos foi acrescido da
investigação da natureza dessas deficiências sensoriais (p. 161).

No Censo de 2010, foi adotada a nova terminologia “pessoas com deficiência” em


substituição a terminologia do Censo 2000 “pessoas portadoras de deficiência”. Acreditamos
que esta mudança se deu como um indicativo para o consenso universal sobre a temática na
atualidade. Os dados revelam que 23,9% da população brasileira possui algum tipo de
deficiência, que corresponde a 45.606.048 milhões de pessoas da população total que era, na
altura, de 190.755.799 milhões de pessoas. Observa-se que 18,8% dos respondentes,
revelaram deficiência visual, 5,1% deficiência auditiva, 7% deficiência motora e apenas 1,4%
deficiência mental ou intelectual.
No que se refere à proporção de pessoas com pelo menos uma das deficiências
inquiridas, em razão dos três grandes grupos de idade, constatou-se que 7,5% das crianças de
0 a 14 anos de idade apresentaram pelo menos um tipo de deficiência. Para a população de 15
a 64 anos de idade a prevalência de pelo menos uma das deficiências foi de 24,9%. E para a
população de 65 anos ou mais de idade, a prevalência de pelo menos uma das deficiências foi
de 67,7%, perfazendo, em seu total, mais da metade desta população.
44 Inclusão escolar: desafios e expectativas

Por este prisma, deduzimos que o aumento da condição de deficiência está relacionado
ao aumento da idade. Naturalmente, à medida que as pessoas envelhecem, aumenta a
proporção de pessoas com alguma deficiência, seja para enxergar, ouvir e/ou se locomover.
Assim, podemos concluir que a idade gera incapacidades e inclui pessoas à condição de
deficiência, o fato insere todos em rota de encontro com a deficiência.
Em sociedades que primam por um padrão social de “normalidade”, a ideia de
capacitismo ganha amplitude, desde os anos 2000. Pessoas com deficiências ficam em
desvantagem, numa experiência sofrida, e segregadas dos espaços socialmente esperados.
(Carvalho, 2011).
Somente em 2006, início do século XXI, pela Convenção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência (ONU, 2006), foi estipulada, no seu artigo 1º, nova conceituação para deficiência:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interações com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas (Convenção dos Direitos
da Pessoa com Deficiência, 2006).

Esta Convenção tinha o propósito de equiparar oportunidades e fruição de benefícios,


que têm sido negados às pessoas com deficiência no percurso de rejeição e segregação social.
Este acontecimento contou com a efetiva participação das pessoas com deficiências sob o mote
nothing about us without us, ou seja, nada sobre nós sem a nossa participação.
Apesar de lento, o processo de resgate da identidade da pessoa como ser de limitações
e de potencialidades, já foi iniciado. No Brasil, quase uma década depois, é sancionada a Lei
Federal n. 13.146/2015, em consonância às disposições da Convenção de 2006, que
regulamenta no seu artigo 2º:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais
barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas (Brasil, 2015).
Apesar de marcos legais, o conceito de deficiência é complexo, pois “reconhece o corpo
com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente (Diniz,
2012, p. 10).
Diniz (2012) compara os estudos sobre deficiência com outras formas de opressão,
exemplificando o sexismo e o racismo e pondera que a deficiência constitui, “uma das ideologias
mais opressoras da nossa vida social: que humilha e segrega o corpo deficiente” (idem, p. 10).
A questão em pauta ainda não superou da autoridade biomédica, embora haja uma
demanda por ações políticas voltadas para o entendimento da causa do movimento PCD25 que
traz como reclamação a inclusão e acessibilidade:
Todos somos diferentes e queremos ser reconhecidos em nossas diferenças sem sermos
igualados aos demais, negando-se nossas experiências, subjetividades e nossas identidades!
Pleiteamos e lutamos pela igualdade de direitos, inclusive o de sermos diferentes (Carvalho,
2011, p. 56).
Em linhas gerais, estamos imersos numa sociedade que, apesar da diversidade, mantém-
se dominantemente excludente; neste sentido, constatamos que as minorias étnicas; meninas,

25
PCD – Pessoa com Deficiência
Cláudia Pereira Oliveira 45

mulheres, negros/as, pessoas com deficiência e/ou pessoas que se distanciam da orientação
sexual normatizada socialmente são alvo da exclusão. Além disso, há uma concepção de que
sempre seremos independentes, não envelheceremos e/ou não ficaremos doentes.
As sociedades têm sido capacitistas, as potencialidades da pessoa são banalizadas. O
indivíduo é percebido pelo que falta em termos assistenciais e não pelo seu potencial latente,
que exige oportunidades para manifestação e desenvolvimento, conforme a seguinte ideia:
Capacitismo é a opressão e o preconceito contra pessoas que possuem algum tipo de
deficiência, o tecido de conceitos que envolve todos que compõem o corpo social. Ele parte
da premissa da capacidade, da sujeição dos corpos deficientes em razão dos sem
deficiência. Acredita que a corporalidade tangue à normalidade, a métrica, já o capacitismo
não aceita um corpo que produza algo fora do momento ou que não produza o que
acreditam como valor. Ele nega a pluralidade de gestos e de não gestos, sufoca o desejo,
mata à vontade e retira, assim, a autonomia dos sujeitos que são lidos como deficientes
(Marco, 2020, p. 18).
O combate ao capacitismo deve começar com a própria família que, por vezes, enxerga
a pessoa com deficiência como um fardo. O sujeito é visto apenas na sua deficiência, não há
relação com o indivíduo, antes com a deficiência. Fato que limita o sujeito de se conhecer a si
e ao próprio corpo. De acordo com Marco (2020, p. 19), o problema está nas diversas
valorações das diferenças: É uma ideia binaria de melhor e de pior, mais forte e mais fraco,
sendo que não existe uma lei universal que encontre um padrão de corpo, porque ele é variante.
A exclusão social é percebida: na escola, no trabalho, no lazer, na cidadania, no lazer, na
acessibilidade, dentre outros. Um fenômeno que se exprime no conjunto da sociedade com
implicações geracionais distintas.
A exclusão social não é um fenómeno conjuntural ou um elemento epifenoménico das
realidades sociais. Pelo contrário, encontra-se associada ao crescimento das desigualdades
sociais, em especial [...] nos países com os índices mais baixos de desenvolvimento humano
e nos contextos sociais mais vulneráveis a processos de discriminação étnica, racial ou
cultural e com vínculos mais precários com o trabalho [...] (Sarmento, 2003, p. 76).
Com base nisso, o conceito de inclusão e diversidade são necessários para o mundo em
que vivemos, sendo importante para a nossa evolução. Entretanto, estes conceitos ainda não
são bem incorporados ou mesmo compreendidos na nossa sociedade, configurando-se em
problemas sociais contemporâneos (Rodrigues, 2003).
Até mesmo na atualidade, nos deparamos com determinadas denominações para
designar pessoas com deficiência. Estas reforçam a segregação, o preconceito e,
consequentemente, a exclusão. Como afirma Diniz (2012, p. 10) “ para os precursores dos
estudos sobre deficiência, a linguagem referente ao tema estava carregada de violência e de
eufemismos discriminatórios[...].” Denominações depreciativas como: “ceguinho”, “manco”,
“aleijado”, “mongoloide”, “débil mental”, “defeituoso”, entre tantas outras expressões ainda
vigentes em nosso vocabulário “de modo geral, carregam significados negativos, [...] apontam
para um certo determinismo ou fatalismo, o que suscita diversas emoções” (Carvalho, 2011, p.
25).
Convém destacar que, a partir de meados de 1980, começaram a adotar expressões
como “pessoa portadora de deficiência”, “portadores de deficiência”, “especiais”, “pessoas com
necessidades especiais”, termos que ressaltam a deficiência frente à pessoa, através de rótulos
a partir de características física, auditiva ou intelectual. Em 1981, passou a ser adotado o termo
46 Inclusão escolar: desafios e expectativas

“deficientes” por influência da ONU, através do Ano Internacional e da Década das Pessoas
Deficientes. Somente por volta da metade da década de 1990, passou a ser “pessoa com
deficiência”.
Sobre as sutilezas das expressões, Diniz (2012) complementa:
Há sutilezas no debate sobre cada uma dessas expressões. Os primeiros teóricos optaram
por “pessoa deficiente” e “deficiente” para demonstrar que a deficiência era uma
característica individual na interação social. “Pessoa com deficiência” foi uma escolha que
seguiu uma linha argumentativa semelhante e é expressão mais comum no debate
estadunidense” (Diniz, 2012, p. 11).
Portanto, o tema deficiência será emergente para as políticas públicas futuras,
especialmente quanto ao caráter distributivo e de proteção social. Deve considerar-se o novo
conceito de deficiência como instrumento de justiça social e não simplesmente como assunto
familiar ou individual (Diniz, 2012). Além disso, a sociedade atual tem recusado discursos
exclusivistas e discriminatórios e é por isso que demanda ações afirmativas que supram as
necessidades de atendimento justo e de qualidade às pessoas com deficiência, sujeitos de
direitos.

FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS PARA UMA ESCOLA INCLUSIVA

A proposta da educação inclusiva configura uma verdadeira revolução nos sistemas


tradicionais de ensino, uma vez que os modelos de ensino são historicamente construídos para
serem seguidos como um produto pronto, eterno, imutável e universal, em outras palavras, “Em
sua inflexibilidade, torna-se inquestionável, e a escola o vai reproduzindo, de forma mecânica,
como um padrão, um modelo a ser seguido e copiado” (Santos, 2013,p. 149).
Santos (2013), afirma que a escola regular quando anula diferenças, padroniza e
modeliza, acaba por excluir quem não cabe em seus parâmetros engessantes. Instaura critérios
que compartimentam, gerando dualidade. Fato que torna a escola regular para alguns, quando
deveria ser de todos.
O impacto dos movimentos globais de inclusão na vida escolar promove a necessidade
de um novo olhar para as práticas pedagógicas. De acordo com Santos (2013), a transformação
da escola precisa existir para atender as demandas do mundo atual:
A transformação da escola, em face das demandas do mundo atual, para atender às
diversidades culturais e à necessidade de novos conhecimentos, não é mera exigência legal,
modismo, ou vontade isolada. É uma responsabilidade inerente à cidadania, porque a escola
de qualidade é a que contempla as diferenças, pois só assim será a escola de todos, sendo
a inclusão uma consequência natural (Santos, 2013, p. 150).
O movimento da escola inclusiva admite uma nova forma de entender a educação com
o compromisso de escolarização sem exclusão, voltado para atender à diversidade dos
indivíduos. Assim, “A formação em serviço e a aprendizagem permanente devem ser ações
propulsoras de uma Escola para Todos, sempre pronta a acolher, de fato, diferenças e
deficiências” (Santos, 2013), sendo um verdadeiro espaço de aprendizagens.
Nesta perspectiva, “Os investimentos financeiros com formação em serviço são
prioridades passíveis de serem atendidas, por não constituírem os gastos que mais oneram o
orçamento da educação” (Santos, 2013). A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Cláudia Pereira Oliveira 47

Nacional – LDBEN (1996) prevê formação adequada para professores do AEE, bem como para
professores classes regulares “professores com especialização adequada em nível médio ou
superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados
para a integração desses educandos nas classes comuns” (Art. 59, III).
Neste mesmo contexto, o Censo 2020 evidência que 68,8% dos professores do ensino
fundamental possuem grau acadêmico de licenciatura e 10,2% com nível médio ou inferior.
Todavia, com vistas na formação acadêmica, os dados não explicitam quantos
professores/as têm capacitação para atuar no sistema educacional inclusivo e,
consequentemente, aptos/as a elaborar e a implantar novas propostas e práticas de ensino
inclusivo.
Nesta lógica, Prieto (2006) nos alerta que a mera matrícula de alunos/as com deficiência
“pode acentuar a resistência de alguns profissionais da educação e não contribuir para que os
sistemas de ensino e suas escolas se constituam também em espaços para educação para esses
alunos em classes regulares.” (p. 67).
Entendemos que o trabalho docente, sobretudo na educação básica no Brasil são
indispensáveis para transformar a atual conjuntura educacional, para tanto, “[..] é essencial que
o professor tenha uma formação teórica e metodológica adequada com domínio do
conhecimento a ser transmitido, a fim de contribuir efetivamente para o processo de
humanização dos indivíduos com deficiência” (Dambros et al., 2021, p. 114). E reitera que, “uma
prática pedagógica voltada para apropriação de conceitos científicos oportunizará uma
revolução favorável para transpor o senso comum à consciência filosófica” (Dambros et al.,
2021).
Ademais, são necessárias políticas públicas e/ou ações que validem o que já
prescreveram as legislações internacionais e nacionais há algum tempo no que se refere à
educação sem exclusões de qualquer ordem. Por este ângulo, Pietro (2006) complementa que
dois grandes desafios estão colocados para os sistemas de ensino e para a sociedade brasileira
“fazer que os direitos ultrapassem o plano do meramente instituído legalmente e construir
respostas educacionais que atendam às necessidades dos alunos” (p. 69).
Mantoan (2013) considera que há muitas barreiras a serem transportadas no que se
refere a uma escola de todos, a citar determinadas práticas educativas até mesmo no ensino
superior. Para a autora, professores geralmente têm dificuldades de entender princípios
inclusivos, devido à formação acadêmica e/ou profissional e, nem mesmo cursos esporádicos
conseguirão transmitir inovações educacionais. Ademais, a formação de professores/as, seja
inicial ou continuada, deve centrar em problemas reais, concretos, relativos ao ensino nas
escolas e do aproveitamento deste ensino para os estudantes.
A relutância de certos/as professores/as à inclusão escolar conta com a falta de preparo
para ensinar toda uma turma, sem discriminações, com ensino adaptado, diferenciado. O foco
reduz-se à aprendizagem padronizada, sendo oportunidades diferentes de aprender
desprezadas, esquecidas (Mantoan, 2013).
Nesta questão, Sartoretto (2013) complementa que o argumento do despreparo dos
professores não deve continuar sendo álibi para impedir a inclusão escolar de pessoas com
deficiência e afirma:
48 Inclusão escolar: desafios e expectativas

nesse processo, a responsabilidade é de todos – pais, diretores, supervisores, orientadores


educacionais, professores, alunos, - e, principalmente das autoridades responsáveis pela
definição e implementação das políticas educacionais” (p. 79).
Assim, seguiremos por uma sociedade melhor, mais humana, que prime uma
convivência baseada no respeito, na ética e sentimento de pertença, “ancorada pela educação
em toda sua complexidade, que somente se efetiva num contexto permeado pela riqueza das
diferenças” (Sartoretto, 2019), seus estudos reafirmam ainda, que fatores como a falta de
políticas públicas adequadas, ausência de mínimas condições de acessibilidade física, falta de
equipamentos e materiais didáticos indispensáveis ao atendimento das necessidades
educacionais dos/as alunos/as, o não- funcionamento ou utilização inadequada de salas de
recursos multifuncionais, a inexistência de projetos sérios de formação continuada para
professores/as, dificultam e até mesmo frustram a implantação de práticas inclusivas. No
entanto, não devem servir de pretexto para impedir a consolidação de escolas verdadeiramente
inclusivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inclusão de pessoas com deficiência e transtorno do espectro autista no sistema


educativo, mesmo em dias atuais, não tem sido fácil para as escolas, para os/as professores/as,
para as famílias e, muito menos, para os alunos e as alunas com alguma necessidade educativa
específica.
Há algum tempo, existem inúmeras normas e recomendações internacionais que exigem
a prática da educação inclusiva, das quais destacamos a Convenção das Nações Unidas sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), à qual a União Europeia aderiu com seus
respectivos Estados-Membros.
O respeito pelas diferenças é uma das particularidades que caracteriza a sociedade
contemporânea. Apesar disso, a temática inclusão escolar, desde algum tempo, tem provocado
debates acirrados em todo o mundo devido à complexidade do tema ou mesmo frente a
resposta por vezes simplistas e talvez equivocadas por parte dos governantes, a respeito de
paradigmas educacionais inclusivos.
O assunto merece um entendimento mais profundo da questão, demanda repensar
novos parâmetros educacionais com o intuito de romper com o modelo educacional elitista de
nossas escolas, para reconhecer igualdade de aprender e as diferenças no aprendizado como
processo e ponto de chegada (Mantoan, 2006).
A inclusão considera que todos/as os/as estudantes aprendam num ambiente regular
que lhes proporcione o desenvolvimento das suas capacidades, conforme explicado na
Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994).
Ainda hoje observa-se que pessoas com deficiência no Brasil são marcadas por
preconceito e discriminação social. Sabe-se de vidas marcadas por extermínio e abandono,
passando por segregação, enraizados ao longo da História. Em consequência, transformar para
o paradigma educacional inclusivo exige mudanças estruturais significativas a vários níveis:
organização escolar, práticas escolares e políticas públicas.
Cláudia Pereira Oliveira 49

O fato é que o problema escolar brasileiro é bastante complexo e corrobora com a


reflexão de Torres (1994), quando traz a concepção estatal do alcance do currículo mínimo, em
que a redução dos critérios para o avanço escolar aparece como o remédio para um mal que
permeia ao longo do tempo. É inegável que o ensino escolar brasileiro é limitado, acessível a
poucos e marcado no caso das pessoas com deficiência, apesar de presentemente certos
contextos escolares se verifique a integração ou algumas possibilidades de inclusão dessas
pessoas com deficiência.
Este estudo se justifica, de entre tantos motivos, pelo fato de que, ainda em dias atuais,
existem milhares de pessoas que têm os seus direitos cerceados e violados em situações do
quotidiano relacionadas com a restrição de direitos à educação no Brasil, visivelmente em
desacordo com a legislação existente para a efetiva práxis pedagógica inclusiva.
O domínio Educação, Gênero, Corpo e Violência muito contribuiu para o
desenvolvimento da investigação, uma vez que, de entre outros aspectos, este domínio
favoreceu a mobilização de conceitos em perspectivas históricas, antropológicas e sociológicas
da situação da pessoa com deficiência.
Na pesquisa realizada, tivemos o entendimento que não há um planejamento
sistematizado de intervenção junto às famílias dos estudantes com deficiência por parte da
gestão escolar. O trabalho pedagógico junto às famílias é gerado a partir das necessidades de
cada estudante, através de entrevistas no momento da matrícula e durante o ano letivo, caso
seja necessário. Em específico, para os professores de sala de aula, é realizada uma pauta para
educação especial, no início de cada ano letivo, com o propósito de partilhar as especificidades
dos alunos, assim como sinalizar ao corpo docente quais os respectivos professores
especialistas que atenderão os alunos com deficiência em sala de recursos multifuncionais.
A investigação nos mostrou que apesar da fragilidade no que se refere a formação inicial
ou continuada de parte dos envolvidos, a maioria desses profissionais realizam com satisfação
as suas atividades laborais, mesmo diante da diminuta formação ou mesmo das adversidades
do fazer pedagógico inclusivo de escolas públicas estaduais.
Ademais, os educadores entrevistados elucidaram a inclusão escolar como um processo
repleto de dificuldades a serem superadas. A sala de aula configura-se como o grande desafio
do fazer pedagógico inclusivo. Nos dizeres dos sujeitos entrevistados, pontuaram como grande
dificuldade, a elaboração de material adaptado para cada aluno na sua especificidade, seguida
de um insuficiente tempo para planejamento das diversas atribuições destinadas aos docentes,
quantitativo elevado de alunos por sala e sua diversidade e, falta de profissionais de apoio
especializado nas salas para mediação ou mesmo apoio e cuidados dos educandos com
deficiência.
Compreendemos que, para esses educadores/as, a educação inclusiva se apresenta
como um desafio, principalmente pela ausência de formação. Constituindo-se desta maneira
um dos muitos obstáculos de práticas pedagógicas inclusivas. Contudo, como Mantoan (2006,
p. 29) reitera, esta razão não pode continuar a ser usada como justificação para impedir uma
verdadeira inclusão escolar.
O estudo também identificou escassez de recursos financeiros, materiais e humanos
para suprir o atendimento e ensino aos estudantes com deficiência, apesar das legislações
50 Inclusão escolar: desafios e expectativas

vigentes no país e na capital baiana. Concebemos que determinadas legitimações poderiam


favorecer as práticas inclusivas das escolas públicas estaduais, tais como a presença de
coordenadores pedagógicos, psicopedagogos/as, psicólogos/as, assistentes sociais,
fonoaudiólogos/as e até enfermeiras no interior das unidades escolares. A criação de uma
melhor rede de apoio, que possibilite celeridade nos encaminhamentos a médicos especialistas,
para laudos médicos e/ou receitas, relatórios pedagógicos e psicopedagógicos, assistência
social, seria uma alternativa viável a fim de melhor sistematizar o atendimento e o ensino desse
público-alvo da educação especial.
Para além disto, entendemos que uma melhor valoração dos benefícios sociais às
famílias de estudantes com deficiências, muito colaboraria para o desenvolvimento
biopsicossocial dos educandos. Estes, por vezes, se constituem como única fonte de renda
familiar. Ademais, compreendemos que a geração de políticas públicas que contemplem as
famílias mais carentes, que não ao acaso, na capital baiana, são majoritariamente negros/as e
afrodescendentes, cuja responsabilidade da família centra-se nas mulheres, chefes de família,
abandonadas na maioria das vezes por seus companheiros, possivelmente em virtude da
deficiência dos seus filhos.
Neste âmbito, ressaltamos que os contextos educacionais também podem
desempenhar um papel importante na construção de sociedades mais igualitárias, nas quais
todas as mulheres e as suas respectivas famílias podem construir e buscar livremente os seus
projetos de vida e verem os seus direitos respeitados, enquanto mulher, chefe de família e mãe
de pessoa com deficiência.
As compreensões construídas nesta pesquisa nos fazem entender que a sociedade está
em constante modificação e que a escola necessita adentrar neste contexto social de
mudanças. Mudanças essas que devem contemplar as especificidades do sujeito e, sobretudo,
o respeito às diferenças. Mudanças para reavaliar antigos paradigmas educacionais e propor
novos paradigmas. Mudanças para novos contextos de aprendizagens. Mudanças para tornar
as escolas efetivamente inclusivas, direito de todos os educandos.
Assim, consideramos que a maior contribuição desta pesquisa possa estar no fato de
dar “pistas” de que, para incluir e ser incluído, é preciso que a equipe gestora, diretores/as e
vice- diretores/as escolares, proporcionem aos educadores espaços de formação e, inclusive,
participem dessas formações, a fim de dividir experiências, anseios e vitórias decorrentes do
processo inclusivo. Para mais, faz-se necessário uma considerável reestruturação na rede
escolar de ensino público com o propósito de melhor propiciar condições favoráveis, a começar
pela acessibilidade, para aprendizagem e para práticas pedagógicas inclusivas.

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Jacilane Benevides Reis Soares, Maria Penha Oliveira Belém e Leila Valverde Ramos 53

4 FUNCIONALIDADE E QUALIDADE DE VIDA: UM ESTUDO


COMPARATIVO ENTRE IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS
E NÃO INSTITUCIONALIZADOS
Jacilane Benevides Reis Soares 26, Maria Penha Oliveira Belém 27,
Leila Valverde Ramos 28

INTRODUÇÃO

O crescimento progressivo do número de idosos nos últimos anos, acompanhado do


aumento da longevidade, são fatores que associados podem elevar o número de doenças e
dependência funcional durante o processo natural do envelhecimento. Tal fato pode
representar desafios para a sociedade e gerar problemas relacionados a diversos setores,
especificamente, à saúde pública, aos serviços de assistência e previdência social (Fernández-
Blázquez et al., 2021). Dessa forma, diante da maior prevalência de idosos mais velhos, muitas
vezes, com necessidades de atenção e cuidados especializados, as famílias passam a enfrentar
dificuldades para mantê-los em suas residências, o que tem aumentado a procura pelas
Instituição de Longa Permanência para Idosos- ILPI (Freitas; Scheicher, 2010).
No Brasil, com o intuito de responder essa demanda populacional foi instituída a Política
Nacional de Saúde do Idoso, cujo foco central está relacionado em manter por mais tempo a
funcionalidade do indivíduo que envelhece (Brasil, 2006). A esse respeito, ressalta-se que com
o avançar da idade, o indivíduo vivencia aumento progressivo das limitações para a realização
das atividades da vida diária – AVD, o que, por conseguinte, pode afetar a autonomia e a
independência, já que são aspectos intrinsecamente relacionados à capacidade de realizar
tarefas com seus próprios meios (Murakami; Scattolin, 2010).
No que concerne à Qualidade de Vida –QV, dos idosos, é necessário referir que a
temática tem gerado muitas discussões, pois, nos últimos anos, existe elevada preocupação em
manter a saúde global dos indivíduos para que possam envelhecer ativamente e com dignidade
(Nogueira et al., 2016). A esse respeito, realça-se que, para alguns idosos, o convívio com

26
Jacilane Benevides Reis Soares é graduada em Fisioterapia pela Faculdade Salvador – FACSAL. E-mail:
jacilanebenevidesreis@hotmail.com.
27
Maria Penha Oliveira Belém é doutora em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; mestra em
Ciências Morfológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; graduada em Odontologia pela UFBA. É
professora associada 3 do Departamento de Biomorfologia da UFBA. E-mail: mapbelen@gmail.com.
28
Leila Valverde Ramos é doutoranda em Processos Interativos dos Órgãos e Sistemas pela Universidade Federal da Bahia
– UFBA; mestra em Pedagogia do Movimento Humano pela Universidade de São Paulo – USP; graduada em Fisioterapia
pela Universidade Católica do Salvador – UCSal; licenciada em Biologia pela Faculdade de Ciências da Bahia –FACIBA. É
professora substituta do Departamento de Biomorfologia da UFBA e coordenadora da linha de pesquisa “Educação, saúde
e formação profissional para atuação na Política Nacional de Atenção Básica” do Grupo de Estudos, Pesquisas e
Experimentações Educacionais do Instituto Anísio Teixeira, da Secretaria da Educação do Estado da Bahia –
GEPEE/IAT/SEC-BA. E-mail: leila.valverde@ufba.br.
54 Funcionalidade e qualidade de vida: um estudo comparativo entre idosos institucionalizados e não
institucionalizados

familiares na mesma residência é essencial, seja para ajudar a resolver questões do dia a dia
(física ou financeira), seja para manter o contato com os entes queridos. Para outros, esse
convívio pode ser indesejado e a alternativa plausível é a institucionalização. Existe, igualmente,
a hipótese de o idoso morar sozinho, o que pode ser uma opção para os que não possuem
família e se esforçam para permanecer em seus próprios lares. Essa alternativa, possivelmente,
os ajudará a manterem a autonomia e a independência por mais tempo (Borges; Filippi; Batista,
2013).
A perda da autonomia, comum em idosos institucionalizados, é capaz de acarretar fortes
impactos na saúde dos idosos, visto que se associa diretamente à independência – capacidade
de fazer o que deseja, e, à liberdade de locomoção (Michel; Kressig; Gold, 1997). Por outro lado,
é necessário referir que os idosos não institucionalizados, ainda que com alguma doença
crônica, têm a possibilidade de se manterem ativos e inseridos na sociedade. Tal fato,
geralmente, não ocorre com os indivíduos institucionalizados, os quais tendem a perder esse
convívio social e, por vezes, seu direito de escolha. Sob essa perspectiva, embora o estereótipo
negativo das ILPI ainda permaneça no Brasil, as concepções relacionadas à questão da
institucionalização têm-se alterado, ligeiramente, nos últimos tempos. Assim, muitas ILPI têm
surgido com novas propostas que envolvem maior interatividade, de modo a manter os idosos
mais ativos e independentes (Juthavantana et al., 2021).
Diante do exposto, com o propósito de apresentar informações relacionadas ao
desenvolvimento de estratégias terapêuticas para minimizar os impactos da incapacidade e
gerar QV mais favorável, este estudo objetiva comparar, por meio de uma revisão narrativa da
literatura, o nível da funcionalidade e da QV dos idosos institucionalizados e não
institucionalizados.

METODOLOGIA
A presente pesquisa trata-se de uma revisão narrativa da literatura, realizada nas bases
de dados eletrônicas SciELO, Biblioteca Virtual em Saúde – BVS e Pubmed. Os artigos foram
publicados no período entre 2012 a 2022, sem restrições de idioma. Utilizou-se como palavras-
chave os seguintes termos e respectivos equivalentes na língua inglesa: International
Classification of Functioning, Disability and Health (Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde); aged (idosos); quality of life (qualidade de vida); health of institutionalized
elderly (saúde do idoso institucionalizado).
Os estudos selecionados foram analisados de acordo com a qualidade metodológica,
sendo incluídos artigos com textos completos de estudos clínicos publicados em periódicos
oriundos de dados primários que abordassem acerca da funcionalidade e da QV em idosos
institucionalizados e não institucionalizados. Excluíram-se as revisões de literatura; estudos
experimentais in vitro e in vivo; pesquisas que não disponibilizasse o acesso integral dos textos;
artigos anteriores a 2010; estudos relacionados à COVID-19 ou outras patologias;
investigações com o propósito de testar efeitos de medicamentos; estudos de validação de
instrumentos; e, pesquisas sem comparação entre idosos institucionalizados e não-
institucionalizados.
Jacilane Benevides Reis Soares, Maria Penha Oliveira Belém e Leila Valverde Ramos 55

RESULTADOS
Inicialmente, encontrou-se um total de 19 artigos, distribuídos nas bases de dados
SciELO (n=11), BVS (n=7) e Pubmed (n=1). Após análise do título e do resumo, desse total, cinco
foram excluídos por estarem fora da temática; três por duplicidade; e, um por não ter sido
possível acesso ao texto integral. Dos dez artigos selecionados para leitura completa, após a
aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, nove artigos foram selecionados para integrarem
a presente revisão, condizentes com objetivo e critérios pré-estabelecidos (Figura 1).
Figura 1. Artigos selecionados após critérios de inclusão e exclusão
N. de artigos encontrados nas bases de dados (n=19):
SciELO (n=11); BVS (n=7); Pubmed (n=1)

N. de artigos excluídos (n=9):


fora da temática (n=5), duplicidade (n=3), sem acesso ao texto completo (n=1)

N. de artigos selecionados para a amostra final (n=9)

Fonte: Dados da pesquisa

Após leitura criteriosa de cada um dos 9 artigos, os resultados foram discutidos e


interpretados. As características metodológicas dos mesmos foram descritas na Tabela 1.
Tabela 1. Características metodológicas dos artigos selecionados com resultados de comparação da funcionalidade e da
qualidade de vida (QV) em idosos institucionalizados e não institucionalizados
Principais resultados e
Título/autor/ano Objetivo Participantes Método
conclusões
1. Análise comparativa da Para a triagem foi aplicado o Mini
Os idosos institucionalizados
capacidade funcional e 42 idosos: 21 no grupo Exame do Estado Mental – MEEM.
Conhecer a capacidade apresentam maior dependência,
mobilidade de idosos institucionalizados e Foram coletados os dados
funcional e a mobilidade quando comparados aos idosos não
institucionalizados e não 21 no grupo não sociodemográficos para identificação
de idosos moradores da institucionalizados; a mobilidade e a
institucionalizados na institucionalizados. do sexo e idade. Em seguida, foram
ILPI capacidade funcional diminuem em
cidade de Maceió/AL aplicados os Questionário de Pfeffer e
função do aumento da idade
(Teixeira et al., 2019) Escala de Barthel
Não foram encontradas diferenças
Para a avaliação do nível de atividade
quanto à mobilidade funcional entre
física, utilizaram o Questionário
32 idosos com idade idosos institucionalizados e
Internacional de Atividade Física –
2. Qualidade de vida, nível Comparar a QV, os níveis média de 76,82±8,01 domiciliados (15,99±4,34s vs
IPAQ ; para a avaliação da mobilidade
de atividade física e de atividade física e a anos, divididos em 13,69±4,27s, p>0,05). Em relação à
funcional foi usado o Teste Timed Up-
mobilidade funcional entre mobilidade funcional dois grupos: 16 QV, constatou-se que os grupos
and-Go – TUG; para verificar
idosos institucionalizados e entre idosos institucionalizados e apresentaram valores similares
indicadores de QV, utilizou-se o
domiciliados (Costa; institucionalizados e 16 domiciliados, (p>0,05) nos oito domínios da QV.
questionário genérico SF–36. A análise
Tiggemann; Costa, 2018) idosos domiciliados ambos apresentando Acerca do nível de atividade física,
estatística dos dados constituiu da
75% de mulheres verificou-se que idosos domiciliados
análise descritiva com média, desvio
são mais ativos quando comparados
padrão e distribuição de frequência
aos institucionalizados
Havia mais idosos totalmente
dependentes em instituições (9,4%),
em comparação com os não
institucionalizados (2,2%). 46,3% de
3. Funcionalidade de idosos: Comparar a todos os idosos incapazes de viver
uma comparação entre funcionalidade dos idosos 270 idosos: 135’ (50%) de forma independente viviam nas
A funcionalidade dos idosos foi avaliada
idosos institucionalizados e institucionalizados e dos não institucionalizados ILPI, em comparação com 6,3% dos
por meio do questionário de Barthel
não institucionalizados no idosos que vivem com e 135 (50%) viviam em não institucionalizados; mais de 60%
Modificado para idosos
município de Nairóbi, no sua família ou membros ILPI de todos os idosos eram capazes de
Quênia (Mugo, 2018) da comunidade realizar AVD. A maioria das pessoas
que viviam na comunidade (93,7%)
conseguiam viver de forma
independente (maior parte eram
homens)
56 Funcionalidade e qualidade de vida: um estudo comparativo entre idosos institucionalizados e não
institucionalizados

(continuação)
Principais resultados e
Título/autor/ano Objetivo Participantes Método
conclusões
Os idosos do Centro Dia,
independente do sexo, possuem
Foram utilizados um instrumento de maiores índices de QV em
coleta de dados para a caracterização comparação aos asilados.
sociodemográfica (sexo, raça, anos de Considera-se que a
Comparar a QV de idosos 48 idosos: 27 asilados
4. Estudo comparativo da estudo, uso da TV, quantidade de institucionalização não proporciona
institucionalizados e (11 mulheres e 16
qualidade de vida de idosos doenças e realização de atividades piora na QV da pessoa idosa e sim,
frequentadores do homens) e 21
asilados e frequentadores domésticas) e dois questionários de que a percepção dessa qualidade
Centro Dia do Asilo Vila frequentadores do
do centro dia (Simeão et al., avaliação da QV, o WHOQOL-BREF e pode já estar comprometida quando
Vicentina, no município Centro Dia (16
2018) WHOQOL-OLD, respondidos se procura a institucionalização. Por
de Bauru/SP mulheres e 5 homens)
conjuntamente. Todas as análises outro lado, a assistência
foram realizadas ao nível de 5% de proporcionada no Centro Dia
significância potencializou melhora ou
manutenção da QV dos
participantes
O estudo mostrou que os idosos
não institucionalizados
40 idosos: 20
apresentaram melhor QV, em
participavam do grupo
Para a obtenção dos dados foram comparação com os
Avaliar de modo Alegria de Viver,
5. Comparando a qualidade utilizados dois instrumentos – o institucionalizados. Os resultados
comparativo a QV de configurando-se como
de vida de idosos formulário de caracterização ressaltam a necessidade de
idosos institucionalizados não institucionalizados
institucionalizados e não- socioeconômica e demográfica dos desenvolver ações que visem a
e não institucionalizados e 20 foram
institucionalizados. participantes; e o questionário de reintegração do idoso
no município de Cuité, identificados como
Nogueira et al. (2016) mensuração da QV de idosos institucionalizado à sociedade e
estado da Paraíba institucionalizados,
WHOQOL-OLD suscita a efetiva implementação de
uma vez residentes no
políticas públicas direcionadas a
Asilar
esse público, com o intuito de
promover melhores níveis de QV
Os idosos moradores de ILPI
apresentaram pior desempenho da
Comparar o desempenho
49 indivíduos de mobilidade, do equilíbrio e da
6. Avaliação funcional de funcional de idosos
ambos os sexos (≥ 60 Foram aplicados seguintes testes marcha em comparação aos da
idosos institucionalizados e residentes na
anos de idade): 20 funcionais: Berg Balance Scale, Dynamic comunidade, com maior risco de
não institucionalizados comunidade e
recrutados no Ciclo de Gait, Performance-Oriented Mobility declínios futuros nas AVD e quedas.
independentes para a institucionalizados e
Palestras e 29 Assessment of Gait and Balance e o Portanto, os resultados obtidos
marcha (Rodrigues; Molnar; analisar a correlação
recrutados em uma Timed Up and Go Test apontam para a necessidade de
Abreu, 2016) entre os diferentes testes
ILPI estratégias terapêuticas para
clínicos aplicados
minimizar o impacto da
institucionalização
136 idosos com 60
Os resultados demonstraram
anos ou mais divididos
7. Avaliação da qualidade se relevância significativa entre os
em dois grupos: Grupo
vida: Comparação entre grupos, tanto na avaliação da QV
1, composto por 100 Para a coleta de dados, utilizaram-se
idosos não Avaliar a QV de idosos por meio do instrumento
idosos, sendo 37 dois instrumentos de avaliação da QV
institucionalizados participantes de um WHOQOL-OLD, como na utilização
homens e 63 da OMS – WHOQOL–BREF e o
participantes de um centro centro de convivência, do WHOQOL-BREF. Os idosos
mulheres, que vivem WHOQOL-OLD, que foram aplicados
de convivência e idosos que não são institucionalizados apresentaram
na sociedade; Grupo 2, por um dos pesquisadores. Realizou-se
institucionalizados em Ji- institucionalizados e grau de satisfação inferior em todos
composto por 36 testes de inferência estatística para
paraná/RO (Dagios; avaliar a QV de idosos os domínios, enquanto os idosos
idosos, sendo 25 verificar possíveis associações entre as
Vasconcellos; Evangelista, residente em uma ILPI que vivem em sociedade e
homens e 11 variáveis.
2015) participam do centro de
mulheres, que residem
convivência, de uma forma geral, a
no Lar do Idoso
avaliação foi melhor.
Aurélio Bernardi
Ser institucionalizado ou residir na
A amostra comunidade nas regiões
Comparar a QV de idosos
probabilística do selecionadas não teve influência na
de duas regiões
8. Qualidade de vida de estudo foi constituída Os dados do primeiro estudo foram QV. Já os fatores idade,
brasileiras, cenários de
idosos da comunidade e de por 292 pessoas coletados por meio de inquérito escolaridade, autoavaliação de
pesquisa de uma tese de
instituições de longa idosas. A amostra do domiciliar e, no segundo estudo, nas saúde e possuir atividade de lazer,
doutorado, realizada em
permanência: estudo segundo estudo foi ILPI, por amostragem não quando controlados
Porto Alegre, RS, e uma
comparativo (Vitorino; constituída por 76 probabilística por quotas. A QV foi estatisticamente, interferiram na
dissertação de Mestrado,
Paskulin; Vianna, 2013) idosos. As duas avaliada pelo instrumento WHOQOL- percepção da QV dos idosos. Os
desenvolvida em Porto
pesquisas incluíram BREF idosos mineiros foram
Alegre e Santa Rita do
participantes acima de institucionalizados e se percebiam,
Sapucaí, MG
60 anos. de modo geral, com pior QV porque
eram mais velhos.
A análise dos escores da MIF
mostrou que os idosos
9. Avaliação da Foram utilizadas escalas de Medida de entrevistados apresentaram escores
Investigar a correlação
independência funcional e 63 participantes, com Independência Funcional (MIF) e elevados, o que indicou pouca
entre a independência
da qualidade de vida de idade igual ou superior WHOQOL-OLD na Investigação da QV dependência para a realização das
funcional e a QV de
idosos institucionalizados a 60 anos. em idosos. As análises estatísticas com AVD. A média dos escores de QV
idosos institucionalizados
(Murakami; Scattolin, 2010) nível de significância de 5% (p<0,05) nesta pesquisa foi de 69,81, o que
sugere a avaliação da QV como
pouco comprometida
Fonte: Dados da pesquisa
Jacilane Benevides Reis Soares, Maria Penha Oliveira Belém e Leila Valverde Ramos 57

DISCUSSÃO
Este estudo objetivou comparar, por meio de uma revisão narrativa da literatura, o nível
da funcionalidade e da QV dos idosos institucionalizados e não institucionalizados.
Relativamente à funcionalidade, Rodrigues, Molnar e Abreu (2016) analisaram 49 idosos de
ambos os gêneros, dentre os quais, 20 foram recrutados em um ciclo de palestras e 29 em uma
ILPI. Os pesquisadores utilizaram a escala de Berg para avaliar o equilíbrio e a mobilidade.
Verificaram que idosos residentes em ILPI apresentaram desempenho inferior no que se refere
à mobilidade, ao equilíbrio e à marcha, comparativamente aos idosos da comunidade, o que
pode acarretar, à posteriori, maior propensão às quedas e declínio nas AVD. Esse fato, aponta
para a necessidade de se aperfeiçoarem as estratégias terapêuticas para minimizar o impacto
da institucionalização.
Souza et al. (2013) acrescentam que as quedas são importantes causas de
morbimortalidade na população idosa, com consequências que vão desde pequenas lesões até
a morte. A avaliação da funcionalidade pode ser usada para predizer o risco das quedas e para
mensurar o resultado de intervenções que visem reduzir a sua ocorrência. Esses pesquisadores
verificaram que a mobilidade funcional é maior entre os idosos residentes na comunidade, os
quais, apresentam menor risco e sugeriram intervenções que auxiliem os diferentes grupos de
idosos a incrementarem sua mobilidade, diminuindo, portanto, o risco das quedas.
No tocante à capacidade de realizar AVD, segundo o estudo de Mugo (2018), 270
idosos foram analisados pelo Índice de Barthel Modificado, entre os quais, 135 eram
institucionalizados e, 135 não institucionalizados. Os pesquisadores observaram que havia mais
idosos totalmente dependentes nas instituições (9,4%), comparativamente aos idosos não
institucionalizados (2,2%). A maioria dos idosos não institucionalizados (93,7%) eram homens e
conseguiam viver de forma independente. Mais de 60% de todos os idosos eram capazes de
realizar AVD. Corroborando esses achados, o trabalho de Teixeira e colaboradores (2019),
analisou 42 idosos, sendo 21 institucionalizados e 21 não institucionalizados. Aplicou-se o Mini
Exame do Estado Mental, o Questionário de Pfeffer e a Escala de Barthel, bem como a coleta
de dados sociodemográficos. Baseado no que foi pesquisado e discutido foi possível comprovar
que os idosos institucionalizados apresentam maior dependência, quando comparado aos
idosos não institucionalizados. Além disso, observaram que a mobilidade e a capacidade
funcional diminuem com o avançar da idade.
Nesse contexto, Pongiglione, Ploubidis e Stavola (2017) ressaltam a importância de se
esclarecer o significado das palavras independência e autonomia. A primeira refere-se à
capacidade de realizar atividades físicas da vida diária – tomar banho, comer, preparar
refeições, fazer compras, administrar dinheiro –, enquanto a autonomia associa-se mais à
capacidade de tomar decisões, de raciocinar, de expressar uma opinião apropriada em uma
determinada situação.
Relativamente à QV, Simeão e colaboradores (2018) analisaram 48 idosos, sendo, 27
asilados e 21 frequentadores de um Centro Dia. Os pesquisadores aplicaram os questionários
Whoqol-Bref e Whoqol-Old que apontaram resultados para os idosos do Centro Dia,
independente do gênero, possuírem maiores índices de QV em comparação aos
institucionalizados, pois apresentam uma vida e um espectro social mais amplo, maior número
58 Funcionalidade e qualidade de vida: um estudo comparativo entre idosos institucionalizados e não
institucionalizados

de AVD e maior autonomia para executá-las, o que contribuiu para uma autoestima mais
elevada e um bom nível de saúde.
Segundo o estudo de Dagios, Vasconcellos e Evangelista (2015), que analisou 136
idosos distribuídos em dois grupos – 100 não institucionalizados e 36 institucionalizados e
utilizaram Whoqol-Bref e o Whoqol-Old como instrumento de avaliação, observaram diferença
estatisticamente significativa entre os grupos, tanto na avaliação da QV por meio do
instrumento Whoqol-Old como na utilização do Whoqol-Bref. Os idosos institucionalizados
apresentaram grau de satisfação inferior em todos os domínios. Enquanto os idosos que viviam
em sociedade e participavam do centro de convivência, o resultado da avaliação foi melhor de
forma geral. É importante ressaltar que as ILPI não devem possuir características de “prisões”
ou “depósitos de idosos”. É preciso inseri-los na sociedade, possibilitar momentos de convívio
com as famílias daqueles que ainda as possuem, de forma a manter o vínculo afetivo com vistas
ao bem-estar físico-mental-social e incremento da QV.
Reforçando os achados dos estudos acima, o trabalho de Nogueira et al. (2016), com
uma amostra de 40 idosos, aplicaram o questionário de QV Whoqol-Old, e mostrou que idosos
não institucionalizados apresentaram uma melhor QV, em comparação com os
institucionalizados. Os resultados desses estudos propõem de modo específico, a necessidade
de desenvolver ações que visem a reintegração do idoso institucionalizado à sociedade. Além
disso, suscita a efetiva implementação de políticas públicas direcionadas a esse público, com
vistas a promover melhores níveis de QV.
A esse respeito, no estudo de Costa, Tiggemann e Costa (2018), com 32 idosos, não
foram encontradas diferenças quanto à mobilidade funcional entre idosos institucionalizados e
não institucionalizados. Os pesquisadores avaliaram o nível de atividade física, por meio do
Questionário Internacional de Atividade Física – IPAQ; para a avaliação da mobilidade funcional
foi usado o Teste Timed Up-and-Go – TUG; para verificar indicadores de QV, utilizaram o
questionário genérico SF – 36. Em relação aos resultados obtidos sobre a QV dos idosos, pôde-
se constatar que os grupos apresentaram valores similares nos oito domínios da QV. Já quanto
ao nível de atividade física, ficou evidente que idosos domiciliados são mais ativos quando
comparado aos seus pares institucionalizados. A partir desses resultados, pôde-se constatar o
impacto que pode ser gerado na funcionalidade e na QV quando o idoso está institucionalizado
e pouco estimulado no âmbito físico e socioemocional.
A pesquisa de Freitas e Scheicher (2010), com 36 idosos, utilizou para avaliação da QV
o Medical Outcome Study 36 - item Short Form – MOS SF-36. Os pesquisadores perceberam
que a QV dos idosos analisados foi superior quando comparada a outros estudos,
provavelmente, devido às diferenças entre as instituições avaliadas nos trabalhos. Os
resultados permitiram concluir que QV em idosos institucionalizados tende a ser insatisfatória,
principalmente em ILPI que não oferecem alternativa como recreação e/ou fisioterapia. Em
concordância com o estudo anterior, Vitorino, Paskulin e Vianna (2013) analisaram 292 idosos
não institucionalizados na primeira pesquisa e na segunda analisaram 76 idosos
institucionalizados. A avaliação da QV foi pela Whoqol-Bref, a qual observou que ser
institucionalizado ou residir na comunidade nas regiões selecionadas não teve influência na QV
nos modelos de análise realizados. Já os fatores idade, escolaridade, autoavaliação de saúde e
Jacilane Benevides Reis Soares, Maria Penha Oliveira Belém e Leila Valverde Ramos 59

possuir atividade de lazer, quando controlados estatisticamente, interferiram na percepção da


QV dos idosos estudados. Os idosos mineiros foram institucionalizados e se percebiam, de
modo geral, com pior QV porque eram mais velhos, tinham piores condições socioeconômicas
e piores condições de saúde.
Noronha et al. (2021), em uma pesquisa com o propósito de caracterizar o perfil do
idoso não institucionalizado com incapacidade funcional, observaram que 17% dos idosos
relataram alguma dificuldade em realizar pelo menos uma das AVD e a incapacidade foi maior
entre os idosos com menor poder aquisitivo, menor escolaridade e maior presença de
morbidades. Entre os idosos com incapacidade funcional, 10% relataram não receber ajuda,
com maior prevalência entre os mais pobres, que moram sozinhos e mulheres. Apenas 6% dos
idosos com incapacidade funcional recebiam ajuda por meio de um cuidador formal, sendo mais
expressivo entre os idosos com ensino superior completo e maior poder aquisitivo.
Na investigação de Murakami e Scattolin (2010), com 63 idosos, os pesquisadores
utilizaram escalas de Medida de Independência Funcional – MIF e Whoqol-Old. A análise dos
escores da MIF mostrou que os idosos entrevistados apresentaram escores elevados, o que
indicou pouca dependência para a realização das AVD. A média dos escores de QV nesta
pesquisa foi 69,81 apontando que os idosos estudados avaliaram a QV como pouco
comprometida. Assim, os dados encontrados nesse estudo permitem inferir que a avaliação
contínua da funcionalidade do idoso pode subsidiar estratégias de manutenção da capacidade
funcional.
À vista disso, percebe-se que a perspectiva da funcionalidade e QV indesejadas, não
dependem apenas de os idosos estarem institucionalizados ou não. Vai muito além disso. Sabe-
se que a institucionalização é uma variável importante, no entanto, existem outros fatores que
podem interferir na funcionalidade e QV, tais como, idade, doenças crônicas, classe econômica
e o ambiente/apoio familiar. É válido mencionar ainda o papel da equipe interdisciplinar dentro
das ILPI, onde cada profissional possui uma grande relevância no sentido de manter a saúde
física e mental dos idosos. Minimizar o impacto gerado, pelo fato de estar não
institucionalizado, relacionar-se-á, diretamente, pela quantidade de estímulos e afeto recebido
pelos idosos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constatou-se, portanto, que a maioria dos artigos analisados apontou para uma redução
dos níveis de funcionalidade e QV dos idosos institucionalizados, comparativamente aos não
institucionalizados. Observou-se que essa diferença ocorre, provavelmente, devido ao estímulo
reduzido oferecido nas ILPI; poucas ações que visem à reintegração do idoso à sociedade; a
falta do convívio familiar; e, reduzida oferta de alternativas como atividade recreativas, lazer
e/ou fisioterapia. Infere-se, desse modo, que os idosos institucionalizados, geralmente,
apresentam maiores chances de envelhecer com algum grau de dependência e se ressalta a
importância de serem ofertadas estratégias terapêuticas sob a perspectiva interdisciplinar, com
o intuito de atuar não só na disfunção, mas, principalmente, na prevenção das incapacidades,
mantendo os indivíduos mais ativos e autônomos. Ter-se-ão, assim, idosos mais integrados
socialmente, o que propiciará, um envelhecimento com mais funcionalidade e QV.
60 Funcionalidade e qualidade de vida: um estudo comparativo entre idosos institucionalizados e não
institucionalizados

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SOUZA, C. C. et al. Mobilidade funcional em idosos institucionalizados e não
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VITORINO, L. M.; PASKULIN, L. M. G.; VIANNA, L. A. C. Qualidade de vida de idosos da
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a/XXZmZcxrKjDWtTc7L4PGFCv/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 30 dez. 2022.
62

“Maria, Maria é o som


é a cor, é o suor
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 29

29
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
Vanina Figueiredo Santos Silva e Genigleide Santos da Hora 63

5
REVISÃO SISTEMÁTICA: POLÍTICAS PÚBLICAS QUE
AMPARAM ALUNOS COM DISLEXIA30
Vanina Figueiredo Santos Silva 31, Genigleide Santos da Hora 32

CONCEITOS E CARACTERIZAÇÕES DA DISLEXIA

É bastante comum pesquisadores se ocuparem com a análise da produção acadêmica,


pois essa inquietação é respeitável em todas as áreas de conhecimento. Essa análise admite a
constatação e uma sistematização de temáticas já estudadas relativas à dislexia e suas políticas
públicas, com vista nas ações que possam prover resultados e suas possíveis implicações e
esboços para os novos dispositivos científicos.
Para tanto, lançamos um olhar crítico sobre as concepções científicas que se baseiam
os enigmas gerais da educação em decorrência da temática dislexia, estes abordados e
analisados a partir da abordagem Histórico-cultural de Vygotsky (1995, 1998). Considerando
que, se em algum lugar há uma ruptura antagônica de concepções científicas em relação à
educação e ao desenvolvimento, está no estudo e na intervenção dos problemas expostos pelas
pessoas com deficiência 33. E para ressignificar as perspectivas negativas para este público,
acreditamos que os educadores deverão conhecer e investir cada vez mais para desmistificar
as concepções equivocadas da inclusão escolar e da sociedade.
Reflexões que nos permitiram fazer releitura de dados secundários do fenômeno
estudado, aqueles considerados por pesquisadores voltados para as dislexias – termo deriva do
grego, etimologicamente dis significa dificuldade e lexia, leitura – na tentativa de encontrar
nelas um ponto de chegada como concepções, características e políticas públicas que darão
assistência para a pessoa com dislexia, tendo como ponto de partida a educação, como aquele
espaço inclusivo e que assume o seu papel essencial.
30
Texto oriundo do trabalho apresentado em 2023 como requisito para conclusão do curso de licenciatura em Pedagogia
do Departamento de Ciências da Educação, da Universidade Estadual de Santa Cruz – DCIE/UESC.
31
Graduanda em Pedagogia no Departamento de Ciências da Educação, da Universidade Estadual de Santa Cruz –
DCIE/UESC. E-mail: vfssilva.pdg@uesc.com.
32
Genigleide Santos da Hora é doutora e mestra em Educação pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; especialista em
Didática do Ensino Superior e em Psicopedagogia pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL; pedagoga pela UCSal.
Atua como professora e pesquisadora do Departamento de Ciências da Educação, da Universidade Estadual de Santa Cruz
– DCIE/UESC, nas áreas de formação professores, políticas públicas, educação especial e inclusiva. É vice-coordenadora do
Grupo de Estudos, Pesquisas e Experimentações Educacionais, do Instituto Anísio Teixeira, da Secretaria da Educação do
Estado da Bahia – GEPEE/IAT/SEC-BA. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7429029261141451; Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-1824-9608. E-mail: gshora@uesc.br.
33
O artigo 1º da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização Nações Unidas, de 2008, e ratificada
pelo artigo 2º da Lei n. 13.146/15, denominada Lei Brasileira de Inclusão, a deficiência é o impedimento de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir a participaç ão
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
64 Revisão sistemática: políticas públicas que amparam alunos com dislexia

É sabido que a aprendizagem da leitura é uma ação complexa que requer a conversão
de símbolos gráficos (grafemas) nos sons (fonemas) referentes e envolve um simultâneo
desempenho de inúmeras funções neurocognitivas e o acionamento de assinaladas regiões
cerebrais. Ações neurocognitivas para um vasto número de crianças a aprendizagem da leitura
desenvolve‐se com relativa naturalidade, contudo, para outras esta aprendizagem é
particularmente difícil, caracterizando dificuldade na habilidade, precisão e/ou fluência na
leitura de palavras com reduzidas competências ortográficas. Além disso, as dificuldades na
leitura resultam de um déficit fonológico da linguagem, com reduzidas competências cognitivas
e condições educativas correspondentes.
No entanto, o desempenho nas mencionadas alcances de inúmeras funções
neurocognitivas deverá ser corroborado com instrumentos de recursos para as provas de
referência conduzidas individualmente, com base nas avaliações clínica abrangente que
necessitará incluir a coleta de informação médica, desenvolvimental, escolar e dos adventos
sintomatológicos, bem como uma avaliação psicológico-cognitiva e psicopedagógica. Assim,
certamente, as dificuldades na descodificação da leitura não resultarão apenas de dificuldade
intelectual, atraso global do desenvolvimento, agitações sensoriais, inquietações neurológicas
e/ou psicomotoras.
São vários os indícios para identificar a dislexia, mas para que obtivéssemos com
criteriosidade os diferentes aspectos, requereu uma avaliação essencialmente interdisciplinar
em função de tratar-se de um transtorno de base orgânica (neurológica) e genética assinalada
em decorrência das falhas nos mecanismos cerebrais responsáveis pelo domínio da estrutura
sonora das palavras e/ou pela dificuldade na transposição da representação gráfica em seu
correspondente fonológico, daí a inabilidade específica de aprendizagem, anteriormente
definida também como um distúrbio, transtorno de aprendizagem ou dificuldades de
aprendizagem na área da leitura, escrita e soletração.
E, para ampliarmos as discussões acerca da dislexia, consultamos Martins (2006) sobre
a origem do termo Dificuldades de Aprendizagem – DA que evidenciou ter surgido por volta
dos anos de 1960, com os termos disfunção/lesão cerebral mínima, dificuldades de
aprendizagem neuropsicológicas, dislexia, ou dificuldades perceptivas etc., e que estes
constituíram um conjunto de características que, posteriormente, foram denominadas por
dificuldades de aprendizagem. A autora destaca a lista elaborada por Fonseca (1984):
- dificuldade de leitura adquirida (Lordat, 1843); - impercepção (Broadbent, 1872; Jackson,
1876); - cegueira verbal congénita (congenital word blindness) (Kussman, 1877;
Hinshelwood, 1900); - dificuldades específicas da leitura (Morgan, 1896); - dislexia (Berlin,
1898); - dislexia específica e estrefossimbolia (Orton, 1937); - distúrbios perceptivos
(Strauss & Lehtinen, 1942); - neurfrenia (Doll, 1951); - alexia congénita evolutiva; -
sindroma de Strauss (Stevens & Birch, 1957); - aprendizagem lenta (slow learner) (Kephart,
1954); - dislexia (clumsy child); - dificuldades visuomotoras; - hiperactividade; e - disfunção
cerebral (Bax & Mackeith, 1963) (Fonseca, 1984, p. 225-226 apud Martins, 2006, p. 30).
A autora também destaca que Fonseca (1984), com o seu apanhado conceitual,
organizou um arcabouço teórico e histórico acerca do termo Dificuldades de Aprendizagem –
DA e que incidiu nas concepções da dislexia. A tese de Martins (2006), comparativa com
diversos países para tentar compreender o fenômeno das DA, identificou terminologias
Vanina Figueiredo Santos Silva e Genigleide Santos da Hora 65

semelhantes e o modo como a escola se organizavam para responder às necessidades e


características destes alunos, além de revelar a importância e seriedade de adotar os diferentes
aspectos das comunidades acadêmicas para descreverem os transtornos da aprendizagem na
tentativa de reverter os aspectos negativos destes enquadres que por muito tempo ficaram à
parte do processo inclusivo. Apesar das dúvidas e implicações deste último aspecto, a autora
revela, principalmente, os processos de adaptações para atendê-los e, que muitas vezes as
políticas públicas não atentem adequadamente para esta população, que por muito tempo se
encontrou à parte para ações mais inclusivas e que exigem práticas pedagógicas significativas,
às quais se fazem necessárias e amplamente discutidas para fazerem valer a força da lei para
intervir junto a este público, inclusive para o disléxico.
A dislexia pode ser entendida como um transtorno específico de aprendizagem, levando
em consideração que cada pessoa é única em suas potencialidades e dificuldades, as principais
características são nos anos iniciais, dificuldades de aprender o alfabeto, lembrar-se da
sequência e do som das letras, tendência a esquecer do conteúdo trabalhado, então a
aprendizagem precisa de mais atenção na pratica e exercícios de repetição, mesmo quando
desenvolvem a leitura não tem fluência é feita com lentidão, dificuldades também na escrita,
muitos erros ortográficos, tanto na troca de letras como na ordem, pois apesar de conhecer os
sons tem dificuldade em organizar a palavra no momento de escrever.
Assim, evidente que o desconhecimento acerca da dislexia pode ser um dos fatores mais
preocupantes ainda na atualidade, por isso é tão importante que se esclareçam dúvidas para
que os leigos possam perceber as nuances e interpretar como se revelam as características da
dislexia. Por ser mãe de um disléxico este foi o primeiro empurrão para atentar sobre essa
problemática da identificação das dificuldades de aprendizagem em termos de fenômeno a
investigar, além da carência de estudos e de profissionais da área que contribuíssem de forma
preponderante para o conhecimento que se tem sobre o tema das dificuldades de
aprendizagem e em especial o da dislexia.
A dislexia é um transtorno específico de aprendizagem, que tem como principal
característica a dificuldade com o reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra lida. A
escrita e a matemática também podem estar prejudicadas. É comum que os transtornos
prejudiquem o desenvolvimento da linguagem, fala, escrita e da compreensão de palavras,
muitas vezes, repercutem nas situações e interação social. Ainda, de acordo com a Associação
Brasileira de Dislexia – ABD34, a dislexia não é consequência de uma alfabetização ruim,
desmotivação, falta de atenção, condição socioeconômica ou falta de inteligência, mas sim de
alterações genéticas e do padrão neurológico.
No que se refere à classificação da dislexia, consideramos as perspectivas de Moojen
(apud Rotta, 2006) para melhor compreendermos as três formas: dislexia fonológica, dislexia
lexical e dislexia mista.
A dislexia fonológica tem como característica a dificuldade para operar a rota fonológica,
apresentando um funcionamento aceitável da rota lexical. Assim, a maior dificuldade está em
ler palavras não familiares, sílabas sem sentido ou pseudopalavras, mostrando maior
desempenho na leitura de palavras familiares. Há também dificuldades em tarefas que

34
Acesso através do link: http://www.dislexia.org.br.
66 Revisão sistemática: políticas públicas que amparam alunos com dislexia

envolvam memória e consciência fonológica, acarretando dificuldades de compreensão do que


foi lido. Na dislexia lexical, as principais dificuldades estão na rota lexical, e apresentam a rota
fonológica relativamente preservada, afetando fortemente a leitura de palavras irregulares.
Assim, os disléxicos deste tipo leem lentamente e com erros. E na dislexia mista o indivíduo
apresenta comprometimento nas duas vias, a via lexical e a via fonológica, que são casos mais
graves.
Para essas questões fonológica, lexical e mista dos disléxicos concordamos com Lima
(2018), ao apontar para que ocorra o processo de leitura e escrita de modo significativo, faz-se
necessário considerar a vontade da criança, o incentivo e a motivação intrínsecas como
maneiras possíveis de atingir o pleno exercício da leitura destes alunos. Apesar de ser um
processo árduo, lento e desmotivador para algumas crianças, é fundamental persistir para se
obter resultados positivos e competirá às famílias e professores prosseguirem nos seus
trabalhos de apoio, a alfabetização e letramento etc., ou seja, todas aquelas ações ligadas às
práticas que permitam alcançarem resultados exitosos.
Desse modo, a classificação da dislexia evidencia os prejuízos tanto na infância quanto
na fase adulta, visto que os danos não são apenas na escola, mas também podem acarretar
diversas dificuldades nas habilidades cognitivas, emocionais e sociais. Não só no tocante à
conceituação básica e características relativas à dislexia, mas também ampliar essas discussões
que necessitam urgentemente de contar com as políticas públicas atuantes e continuadas, a
fim de resolver os problemas que afligem esse público e, consequentemente, os contextos
família e escola.

POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS

Um dos aspectos, a ser destacado em nosso texto, é abordar questões decisivas para a
efetivação de uma política de inclusão entre outros aspectos atrelados aos indivíduos com
dislexia, além de propor a disseminação e discussões educacionais para que, de fato,
contribuam com o processo ensino e aprendizagem destes alunos com dislexia, distúrbio,
transtorno ou dificuldades de aprendizagem entre outras condições atípicas de
desenvolvimento.
A Resolução n. 2/2001, da Câmara de Educação Básica, do Conselho Nacional de
Educação – CEB/CNE, que instituiu as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na
Educação Especial, trazem que os sistemas de ensino passam a se organizar para incluir todos
os alunos para atender suas Necessidades Educacionais Especiais – NEE. Os eixos dessas
diretrizes são: a) concepção das NEE em contraposição ao trabalho pedagógico tradicional; b)
defesa de um trabalho pedagógico voltado na diversidade e no reconhecimento das diferenças.
Ainda, vale considerar neste documento os aspectos legais que o fundamentou com ações
garantidoras para ratificar essas diretrizes nacionais como a Constituição Federativa Brasileira
– CFB (1988); o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990); a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDBEN (1996); o Plano Nacional de Educação – PNE (Lei n.
10.172/2001); a Declaração de Educação para Todos – DET, Tailândia (1990) e; a Declaração
de Salamanca – DS, Espanha (1994).
Vanina Figueiredo Santos Silva e Genigleide Santos da Hora 67

Nesse sentido, esses documentos referenciados pelas diretrizes advertem que os


sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, competindo às escolas organizarem-se
para o atendimento dos educandos com NEE, inclusive os alunos com diagnóstico de dislexia.
Sobretudo, por considerarmos os princípios de “preservação da dignidade humana; busca da
Identidade e exercício da cidadania. Em vez de pressupor, que o aluno deve ajustar-se a padrões
de “normalidade” para aprender, aponta para a escola o desafio de ajustar-se para atender à
diversidade de seus alunos” (Brasil, 2001, p. 14).
Ressaltam ainda a urgência dos serviços pedagógicos especializados devem atender: a)
na escola regular; b) na escola especial com diferentes níveis de atendimento; c) em classe
hospitalar e atendimento domiciliar; d) alunos com necessidades educativas significativas que
a escola não consegue suprir. Até porque, o direito à educação das pessoas com deficiência é
conquistado lentamente.
A disposição jurídica brasileira assinala que a deficiência não está na pessoa, mas sim
nos vários segmentos da sociedade quando não atendem as demandas destes indivíduos. De
tal modo que, para deliberar sobre o significado de deficiência, faz-se necessário averiguar os
modelos teóricos e seus impactos dessa condição quando diagnosticada a situação de
‘deficiência’.
Em relação à abordagem do modelo social, podemos considerar que este diagnóstico
poderá interferir no pleno desenvolvimento e na possível funcionalidade da pessoa,
especialmente em respeito ao contexto em que o indivíduo faz parte. No entanto, os
ensinamentos do modelo médico consideram a dislexia como um transtorno neurobiológico
(mental), aquele que segue a pessoa por toda vida (condição imutável) comprometendo o
desempenho acadêmico em diferentes situações (barreiras) intervindo negativamente ou
impedindo a assimilação do conhecimento e, por conseguinte, atinge diretamente o seu pleno
desenvolvimento profissional e pessoal.
Assim, a dislexia não é deficiência conforme o modelo médico, porém gera uma série de
limitações consideradas deficiência para o modelo biopsicossocial e para fins de inclusão social
estas situações impeditivas requerem de cada caso análises dos aspectos concretos em
diferentes perspectivas no âmbito da saúde (ou seja, biológica, individual e social). Isto porque
o modelo biopsicossocial aprovado pela legislação brasileira manifesta-se de forma dinâmica e
interativa, com a perspectiva de afiançar equiparação de direitos e oportunidades, autonomia
e protagonismo ao indivíduo com distintas circunstâncias de saúde, contudo ressalvando
atentamente as relações interpessoais de cada indivíduo.
Ratificamos, portanto, que a pessoa com dislexia tem direito à inclusão educacional, em
atendimento aos artigos 205, 206, 208 da CFB (Brasil, 1988) e pelos artigos 27, 28 e 30 da Lei
Brasileira de Inclusão – LBI, especificamente em seus artigos 27, 28 e 30, que ratificam o
sistema educacional inclusivo. É imperativo notar que faltava um tratamento honroso, de
âmbito nacional, voltado para a temática dos direitos humanos, especificamente para as
pessoas com dislexia, recentemente foi alcançado com a Lei Federal n. 14.254/2021, conforme
discorremos a seguir.
68 Revisão sistemática: políticas públicas que amparam alunos com dislexia

Legislações recentes em favor à pessoa com dislexia


Ao adotar o sistema educacional inclusivo, o Brasil assumiu nacional e
internacionalmente um compromisso público de reconhecer e atender as necessidades
educacionais do indivíduo e reconhecer seus ritmos de aprendizagem, além de assegurar uma
educação de qualidade para todos, independentemente de sua condição diagnóstica, seu credo,
sua origem, sua etnia etc.
A inclusão educacional não se restringe à modalidade de ensino denominada de
educação especial, mas sim a educação inclusiva por considerar a diversidade humana e que
deve perpassar todos os níveis, etapas e modalidades de ensino brasileiro. Importante destacar
o papel da Lei Federal n. 14.254/21, de 30 de novembro de 2021, que visa o reconhecimento
e a garantia de direitos das pessoas com dislexia. A referida normativa dispõe sobre o
acompanhamento integral aos educandos com dislexia, Transtorno do Déficit de Atenção com
Hiperatividade – TDAH e outros transtornos de aprendizagem e afirma que o diagnóstico deve
ser realizado por uma equipe multidisciplinar. Em seu artigo 3º assegura ao educando
acompanhamento específico direcionado à sua dificuldade, tanto pelos educadores e contando
com o apoio e orientação da área de saúde, de assistência social e de outras políticas públicas
existentes no território.
Em nível baiano, as leis estaduais n. 14.351 e n. 14.352, ambas de 10 de agosto de 2021,
instituíram, respectivamente, a Semana Estadual de Conscientização e Informação sobre a
Dislexia e Transtornos de Aprendizagem a ser comemorada, anualmente, em 8 de outubro e; o
laço azul com laranja como o símbolo de conscientização sobre a dislexia no Estado da Bahia.
Existem leis que apoiam o atendimento para pessoas disléxicas, mas elas não são leis
objetivas ou exclusivas para as pessoas disléxicas. São leis que abre uma gama de possibilidades
para algum tipo de deficiência ou disfunção cognitiva ou aprendizado. Então, as leis existem e
podem ser utilizadas para pessoas disléxicas. Entendemos que o professor é aquele que
consegue mobilizar a escola a respeito da diversidade que existe na sala de aula, mostra o que
é possível fazer com aquele aluno que consiga desenvolver a sua capacidade de aprendizagem
no seu ritmo próprio, a partir da compreensão e do incentivo docente.

ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

A metodologia desta pesquisa tem abordagem qualitativa. Trata-se de pesquisa


secundária que podemos caracterizá-la como de tipo de revisão sistemática de literatura, como
define Gough (2007) como “[...] qualquer síntese de pesquisa feita por outros (pesquisa
secundária) precisa ser tão explícita em seus métodos quanto a pesquisa primária” (GOUGH,
2007, p. 66).
Optamos por análises da produção cientifica nas áreas de dislexia e das políticas
públicas, com foco para os aspectos da Lei Federal n. 14.254/21, para a assistência e atuação
de professores em contextos inclusivos. Para realizar uma revisão sistemática é necessário
seguir um rigor metodológico como nitidez na exposição dos resultados, de forma que o leitor
identifique as características reais dos estudos incluídos na revisão, para tanto, o presente
Vanina Figueiredo Santos Silva e Genigleide Santos da Hora 69

estudo indagou quais concepções de dislexia foram encontradas nos anais do III Congresso
Internacional de Educação Inclusiva – III CINTEDI, cujos objetivos eram identificar e analisar a
partir da revisão sistemática a concepção de dislexia, com base nos dados secundários do
evento científico e; refletir sobre as políticas públicas que protegem os alunos com dislexia
amparados na Lei n. 14.254/2021.
Ancoramos o pressuposto desta revisão sistemática na Teoria Sócio-Histórico-Cultural,
de Vygotsky (1995) para fundamentarmos os achados sobre as concepções de dislexia e as
práticas pedagógicas, de modo a gerar uma compreensão mais consistente do fenômeno
estudado.

Analisando os achados da revisão sistemática


Recapitulando, esta pesquisa é de cunho qualitativo e de revisão sistemática, a partir da
coleta de dados secundários com base nos anais do III CINTEDI, acerca da dislexia e suas
estratégias dos processos de ensino e de aprendizagem, a partir da palavra-chave “dislexia”
e/ou “transtornos de aprendizagem”. Ressalta-se que uma leitura significativa ou análise de
conteúdo dos textos com base nas múltiplas instâncias da dislexia podem permitir uma
compreensão dos temas conceituais consistentemente surgidos, representativos de forma mais
confiável na perspectiva de Vygotsky (1995), sobre o tópico sobre a investigação de revisão
sistemática.
Nos anais do Congresso Brasileiro de Educação Especial – CBEE, evento situado na
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, no ano de 2016, dos 916 artigos, apenas 2 (dois)
tratavam do tema, sendo um voltado ao ensino superior e o outro é uma pesquisa feita em
Portugal e não se encontra de acordo com as demandas desta pesquisa. Já em 2018, no mesmo
evento científico, dos 791 artigos apenas 1 (um) aborda o tema, mas também é direcionado ao
ensino superior. Em 2021, no mesmo congresso, realizado online, dos 438 artigos, 3 (três)
constam com o tema nas palavras-chave, mas, ao se analisar resumos e títulos, não abrangem
a temática. Nos anais do Simpósio de Pedagogia – SIMPED, evento realizado na Universidade
Estadual de Santa Cruz – UESC, foram analisadas as três últimas edições (2021, 2019 e 2018)
e nenhum artigo foi encontrado. O IV Congresso Internacional de Educação Inclusiva –
CINTEDI, evento promovido pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, realizado em 2021,
contou com um total de 319 artigos e em apenas 1 (um) foi encontrado a palavra-chave, porém,
ao analisá-lo, é possível verificar que este trabalho aborda novas tecnologias, não sendo
relevante para esta pesquisa. O III CINTEDI, em 2018, computa 986 artigos sendo que 5 (cinco)
abordam o tema, mas apenas 4 (quatro) serão utilizados e condescendentes com a pesquisa.
Sendo assim, foi possível compreender que a dislexia não tem recebido o devido olhar,
por isso, a busca para encontrarmos autores, políticas públicas que deem respaldos para os
atendimentos da dislexia. Nestes eventos supracitados, não encontrar pesquisas relacionadas
ao tema, pode comprovar a falta de conhecimento e interesse por parte de pesquisadores e
profissionais da educação para entender e buscar estratégias que possam facilitar os processos
de ensino e de aprendizagem e os métodos de intervenção adequados a fim de garantir o
desenvolvimento integral dos educandos. As reflexões a partir desta temática despertam o
interesse, no sentido de se elaborar uma didática que proporcione o desenvolvimento da
70 Revisão sistemática: políticas públicas que amparam alunos com dislexia

prática que auxilie os discentes com dislexia, considerando as particularidades desses discentes
no que diz respeito à idade, a cultura corporal e os seus interesses individuais.
Os 4 (quatro) artigos encontrados nos anais do III CINTEDI interessam à pesquisa, a
partir dos descritores anteriormente citados, por isso foram analisados.
Tabela 1. Artigos publicados na plataforma CINTEDI, 2018
Autor/ano Definição Características

• Apesar de aprenderem a ler, apresentam captação da leitura afetada


Dificuldade no processo de leitura e escrita, de
e lenta;
caráter genético, com manifestações clínicas que
• ausência de interligação em algumas partes do cérebro;
incluem déficits na leitura, no procedimento
• agressividade, agitação, dificuldade de concentração, esquecimento,
fonológico, na memória, na capacidade de nomeação
falta de atenção, depressão e dificuldade de aprendizagem;
instantânea, na coordenação sensório-motora, na
Lima et al. • confunde letras e tem dificuldades na pronúncia;
automatização, e no processamento sensorial. O
(2018) • atraso na fala, na primeira infância é o primeiro sinal de alerta,
transtorno que não atinge o cognitivo das crianças,
dificuldades na pronúncia de palavras até depois dos 5 anos;
pois quando lhe são ofertadas condições adequadas
• supressão de fonemas e silabas e substituem palavras de pronúncia
para o seu desenvolvimento o sujeito avança,
complexa por outra com mesmo significado, tendência a esperar
contudo, ainda apresenta dificuldades na linguagem
adivinhar as palavras e a caligrafia é imperfeita;
escrita
• grande habilidade em raciocínio lógico e imaginação
• Desatentos, desligados, que aprendem e esquecem fácil, que não
retém conteúdos, briguentos, bagunceiros, agressivos, desmotivadas
e com a autoestima abalada;
A dislexia também é analisada como um transtorno
• funcionamento atípico do cérebro no que diz respeito aos
Soares et al. do desenvolvimento. Distúrbio de aprendizagem e
processamentos linguísticos referentes à leitura. São pessoas
(2018) seus sintomas são problemas na leitura e escrita,
comuns, mas com um processamento bastante atrapalhado para a
concepção e soletração das palavras
parte de aprendizagem escolar;
• os disléxicos estabelecem o pensamento transformando as palavras
ouvidas em representações
• Apresenta discrepância entre seu desempenho e sua habilidade
intelectual em uma ou mais das seguintes áreas; expressão oral e
Desordem neurológica que interfere na recepção, escrita, compreensão de ordens orais, habilidades de leitura e
integração ou expressão da informação, compreensão e cálculo e raciocínio matemático;
Melquiades
caracterizando-se, em geral, por uma discrepância • apresenta um desempenho irregular, isto é, a criança tem
(2018)
acentuada entre o potencial estimado do aluno e sua desempenho satisfatório e insatisfatório alternadamente, no mesmo
realização escolar tipo de tarefa;
• dificuldades em realizar rimas, confusão temporal-espaciais,
esquemas corporal e lateralidade (palavras e conceitos)
Fonte: Dados da pesquisa, 2022

Argumentamos que uma abordagem inclusiva mais explícita para nossas análises e
interpretações dos textos quando fundamentados nas obras de Vygotsky podem acrescentar a
inteireza e a confiabilidade dos argumentos teóricos que os pesquisadores da área
proporcionam em seu nome.
Tabela 2. Artigos publicados na plataforma CINTEDI, 2018
Autor/ano Diagnóstico Avaliações e intervenções

• As avaliações são distintas e mudam de acordo com a idade do indivíduo,


não havendo uma única maneira de avaliar;
O diagnóstico é realizado por meio de consultas, avaliação
• o ensino precisa acontecer de modo estruturado e cumulativo começando
Lima et al. multidisciplinar, atendimento social e triagem, processamento
do mais geral para o mais específico de forma explicita;
(2018) auditivo e audiometria, treinamento auditivo em cabine;
• as metodologias, devem valorizar suas potencialidades e respeitar as
exame neurológico
etapas de leitura a fim de integrá-las e estimulá-las para o
desenvolvimento de sua aprendizagem
• Cabe ao professor Indicar metodologias alternativas, jeitos de fazer, que os
auxiliem a memorizar e cumprir as atividades e/ou solucionar problemas,
Identificar e intervir são da responsabilidade dos pedagogos e sem submetê-los a circunstâncias que irão mostrar suas dificuldades na
dos demais profissionais de educação. Os professores devem frente dos colegas, como por exemplo, ler em voz alta;
Soares et al.
solicitar apoio de uma equipe multidisciplinar, incluindo • compete ao educador se sensibilizar, como mediador, tendo em vista os
(2018)
psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas diferentes tipos de dislexia e níveis existentes em seus discentes. Nesse
infantis, etc caso, ele precisa observar em sala de aula e ampliar seu campo de pesquisa
para auxiliar o aluno, e proporcionar atividades de maneira diversificada,
incluindo-o junto aos outros colegas, possibilitando a interação social.
Vanina Figueiredo Santos Silva e Genigleide Santos da Hora 71

Continuação

Autor/ano Diagnóstico Avaliações e intervenções

Através de um diagnóstico psicopedagógico, ou seja, uma


• Psicodrama: trata-se de uma abordagem teatral que permite o disléxico a
investigação sobre o processo de aprendizagem do sujeito a
Melquiades expor seus sentimentos e retomar sua autoestima;
fim de identificar qual a origem do problema. No diagnóstico
(2018) • Arteterapia, através de pinturas, colagens, modelagens e outros, permite a
psicopedagógico estão envolvidos o indivíduo, a família, a
interação entre o imaginário e o real
escola e o professor
• O estudo aponta sobre a importância da autoestima e do próprio disléxico
Tavares
encontrar estratégias de enfrentamento para superar as dificuldades, além
(2018)
de abordar sobre a importância do apoio social.
Fonte: Dados da pesquisa, 2022.

Os 4 (quatro) artigos selecionados e analisados de modo a decidir pela sua inclusão ou


exclusão. Os trabalhos foram, ainda, avaliados em relação à presença ou ausência dos
elementos apresentados nas Tabelas 1 e 2. Os critérios procuraram hierarquizar os estudos de
acordo com os seus níveis de ênfases e qualidade.
A análise da literatura revisada sugere que, apesar de os direitos de alunos com dislexia
estarem previstos tanto na LDBEN, como na Lei n. 14.254/2021, o número de periódicos
localizados nos anais dos congressos e simpósios demonstra que, se comparado à relevância
do tema, poucas pesquisas tratam do argumento. Visto que buscamos em vários anais de
eventos em diversas localidades e diferentes períodos, até encontrar um que correspondesse
expectativa temática sobre a dislexia. Nessas buscas, salientamos que não foram localizados
artigos com especificidades sobre as políticas públicas para a atipicidade dislexia.
Um dos impedimentos de concretizar o diagnóstico de dislexia é o tempo que leva para
que o disléxico consiga um laudo, é um transtorno que pode estar atrelado a outras
comorbidades e apresentam características que podem ser confundida com outros transtornos,
como por exemplo, o disléxico assim com o TEA (autista) apresenta hiperfoco, alguns disléxicos
possuem alterações auditivas e TPAC um transtorno do processamento da informação e
quando outros diagnósticos são feitos ou não concretizados isso inviabiliza ou esconde a
dislexia.
Na maioria das vezes, a pessoa com dislexia é confundida com crianças que possuem
transtorno intelectual ou déficit de atenção, por isso, a importância de o professor
compreender quais são os pré-requisitos para a alfabetização, pois quando a criança atende
essa questão e mesmo assim não se apropria da leitura e da escrita, se evidencia um sinal para
início da investigação. Estes alunos terão direito a um atendimento especializado ou contarão
com aulas especiais ou terão seu ritmo respeitado, etc., porém, e os alunos que não se encaixam
com esses critérios, rótulos. etc.?
A Resolução n. 2/2001 foi o primeiro documento a assegurar o direito ao serviço
especializado às crianças com dificuldades acentuadas de aprendizagem, e isso é de
fundamental importância, pois é o que garante que alunos em processo de investigação já
tenham acesso ao AEE. O que fazer: – Se cruzam os braços? – Não há nada por fazer, mesmo
que tenham dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita? Os decretos podem até
definir o diagnóstico de dislexia, dispor sobre o andamento das avaliações etc., mas é necessário
saber o que fazem no cotidiano da sala de aula com respaldos.
É possível garantir que essa temática envolve diversas áreas do conhecimento, tanto da
72 Revisão sistemática: políticas públicas que amparam alunos com dislexia

educação, quanto da saúde e, claro, com a implementação da Lei n. 14.254/2021, se propõe


que para que ocorra o desenvolvimento integral desse educando, é necessário um trabalho
multidisciplinar, contudo, o reduzido número de artigos evidencia a necessidade de expandir
essa discussão com os profissionais e estudantes da educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As revisões sistemáticas de pesquisa secundária, de cunho qualitativo e de revisão


bibliográfica indicam valorosas abrangências acerca da origem das DA e dos transtornos, como
da dislexia, suas causas e características. Observamos, também, a importância do profissional
da educação estar atento ao seu alunado e aos conhecimentos teóricos na tentativa de
identificar precocemente este distúrbio de aprendizagem, possibilitando uma intervenção
adequada, com o auxílio de uma equipe multidisciplinar como preconiza a lei.
Apesar da dislexia ser mais perceptível nos anos iniciais do Ensino Fundamental, pois é
quando se inicia o processo de alfabetização, pais e responsáveis devem se atentar aos
primeiros seus primeiros indícios que, segundo estudos científicos das neurociências aplicadas
à educação, os principais sinais para identificação precoce são o atraso no desenvolvimento
espacial, o atraso na linguagem, além do histórico familiar do aluno. A identificação e a
intervenção precoce garantem, posteriormente, menos traumas e reduz a possibilidade de
evasão escolar.
O diagnóstico de dislexia leva em torno de 8 (oito) a 9 (nove) anos, pois deve ser
realizado após dois anos da alfabetização e, dessa maneira, entra, novamente, o papel do
professor mediador para que possa estimular as crianças com sinal de risco e, desse modo, elas
possam superar suas dificuldades até a idade correta para o diagnóstico. O encaminhamento
para a educação especial deve ser realizado somente depois de o aluno demonstrar
inadequação em relação aos graus de resposta à intervenção nos níveis das apropriações
cognitivas. Daí a prevalência de uma prevenção primária no sentido de atenuar as DA.
A implementação da Lei n. 14.254/2021, além de dispor sobre o acompanhamento
integral para educandos com dislexia, tenta avançar num diagnóstico efetivo e precoce para
tentar atenuar os outros problemas de saúde mental, como o transtorno de ansiedade, a baixa
autoestima e a depressão que podem ficar ocultos. É por isso que existe a necessidade de
acompanhamento de uma equipe multidisciplinar.
A expectativa de indagar sobre o que tem sido produzido e publicado no meio
acadêmico e congressos de educação sobre o tema, é no sentido de refletir sobre como
identificar as DA desde os primeiros anos de vida da criança e intervir precocemente, seja qual
for o tipo de DA o grau de comprometimento. O interesse pela temática da dislexia tem
contribuído para o alicerce das políticas públicas voltadas à atipicidade, na formação de
professores (inicial e continuada) e na consideração de diferentes formas de avaliação das DA,
para que possam escolher e recolher informação útil de planejamento e intervenção pedagógica
inclusiva.
Para o nosso olhar, a legislação deve ser o bastante para apurar os avanços técnicos e
especialistas que ocorram na contemporaneidade, assim, não é incumbência à legislação
Vanina Figueiredo Santos Silva e Genigleide Santos da Hora 73

deliberar o que é uma dificuldade de aprendizagem ou diferenciar entre a dislexia. A


incumbência à legislação é descrever, caso exista uma dificuldade de aprendizagem, as
categorias do sistema educativo diferenciando estas ou aquelas. Para tanto, a formação dos
profissionais é indispensável para que saiba ‘identificar e distinguir ocorrências específicas’,
para as quais ‘se empregaria um diagnóstico especializado da dislexia, e que não obedecem ‘aos
critérios da definição técnica da dislexia’, mas que igualmente necessitam de apoio. Por fim, a
inexistência de prevenção acrescenta os custos humanos e financeiros, ainda que economize
dinheiro momentaneamente, mas consinta que as pessoas, durante algum tempo, não se
atentem para o contexto e futuramente complexificam ou agravar a situação das não
aprendizagens.
Defendemos a ideia de que é de extrema importância uma ação conjunta entre família,
escola e profissionais da saúde. Visto que só assim constituirá em desenvolvimento integral dos
nossos educandos, considerando suas especificidades, minimizando a existência do desprezo,
das frustrações e da indiferença em sala. Almejamos que todos sejam capazes de transformar
nossas práticas pedagógicas, levando em consideração o processo inclusivo das escolas.

REFERÊNCIAS

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com deficiência. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008. Disponível em:
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para educandos com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH)
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nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 20
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74 Revisão sistemática: políticas públicas que amparam alunos com dislexia

GOUGH, D. Peso da evidência: uma estrutura para a avaliação da qualidade e relevância da


evidência. Trabalhos de Pesquisa em Educação, n. 22, p. 213-228, 2007.
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VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo III. Madrid, ES: Editorial Aprendizaje/Visor, 1995.

Sites
Associação Brasileira de Dislexia – ABD
http://www.dislexia.org.br.
Aline de Oliveira Costa dos Santos 75

6 TRANSPOSIÇÃO OU MEDIAÇÃO DIDÁTICA? REFLEXÕES


HISTÓRICAS E CONTEMPORÂNEAS SOBRE A PRÁTICA
DOCENTE
Aline de Oliveira Costa dos Santos 35

INTRODUÇÃO

A prática docente é um tema que se encontra no centro dos embates e debates da


educação brasileira, sobretudo nos últimos cinquenta anos, quando a seletividade da escola
passou a ser compreendida como um problema social, político e pedagógico. Ao longo desse
tempo, as análises sobre a atuação do professor vêm sendo realizada sob as diversas
perspectivas e dimensões que a constitui. Porém, dependendo do contexto e da correlação de
forças sociais em cada época, essas análises são mais ou menos desvinculadas das questões
macroestruturais que incidem sobre a prática do professor.
Nesse sentido, é importante ressaltar que a transposição didática, tema-objeto do
presente texto, será analisada, considerando a multidimensionalidade e a complexidade da
questão didática. Sobretudo, a partir das contribuições de Yves Chevallard (1991); Alice
Casemiro Lopes (1997), Alda Junqueira Marin (2011), Stela Piconez (2012); Maria Amélia
Franco (2012) e Demerval Saviani (2013). Quanto às considerações, elas serão expostas a partir
dos seguintes pontos: a) Transposição didática ou mediação didática b) Abordagem histórica
das tendências pedagógicas e suas consequências sobre a prática docente c) Perspectivas para
atuação do professor na transposição/mediação didática.

TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA OU MEDIAÇÃO DIDÁTICA

O processo de transformação do conhecimento científico em conhecimento escolar é


denominado de transposição didática. Esse termo foi difundido no Brasil pelas pesquisas no
campo do Ensino de Ciências, principalmente do Ensino de Matemática a partir da obra de Yves
Chevallard (1991). Para esse matemático e pesquisador francês, o papel da escola não se limita
a selecionar os conhecimentos produzidos por cada cultura dentro da evolução sócio-histórica
da humanidade, mas conjuntamente à escola cabe o papel de tornar os conhecimentos
selecionados transmissíveis e assimiláveis por meio de uma (re)organização e estruturação.
Essa noção de transposição didática levantou a perspectiva de um conhecimento
propriamente escolar, e foi cunhada pela primeira vez pelo matemático francês Verret, em sua
tese de doutorado defendida em 1975. Apoiado em suas formulações, Chevallard (1991)
35
Aline de Oliveira Costa dos Santos é doutora e mestra em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado
da Bahia – UNEB, especialista em Educação Profissional Científica e Tecnológica pelo Instituto Federal da Bahia – IFBA e
pedagoga pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Atua como docente na UNEB. E-mail: olliveiracosta@gmail.com
76 Transposição ou mediação didática? reflexões históricas e contemporâneas sobre a prática docente

defende que esse processo de transposição didática passa por movimentos externos e internos
à escola. O espaço social no qual acontecem esses movimentos é denominado pelo autor de
noosfera, e os processos para transformar um saber científico em escolar incluem o processo
de descontextualização, des-historicização e recontextualização.
Para Alice Casemiro Lopes (1997), esse processo de transposição retira do conceito
científico sua historicidade e sua problemática, prejudicando a forma de apropriação do
conhecimento pela escola. Nesse processo, o saber a ser ensinado surge sem origem, sem
produto e sem lugar, não representando, assim, a ideia de (re)construção de saberes na
instituição escolar, uma vez que o próprio termo sugere a ideia de “transportar”. Por isso,
defende a utilização do termo mediação didática, considerando a mediação no sentido dialético:
processo de constituição de uma realidade através de mediações contraditórias, de relações
completas não imediatas e com um profundo sentido dialógico.
De acordo com Lopes (1997), a mediação didática ou didatização do conhecimento
científico não é meramente a adaptação de um conhecimento produzido nos centros de
pesquisa/universidades. Trata-se de uma atividade de produção original que resgata o papel da
escola como produtora e socializadora de conhecimentos.
Analisando historicamente as teorias/concepções pedagógicas que influenciam a
prática escolar, é possível perceber que a forma como a escola lida com o conhecimento, ao
longo do tempo, reforça a defesa do termo mediação didática em lugar de transposição, tendo
em vista, principalmente, o movimento crítico e reflexivo do pensamento educacional brasileiro
apresentado através das tendências pedagógicas e no movimento da didática crítica, em torno
da construção de uma escola comprometida com a formação humana integral.

ABORDAGEM HISTÓRICA DAS TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS E SUAS


CONSEQUÊNCIAS SOBRE A PRÁTICA DOCENTE

Depois da família, a escola é a instituição social mais enraizada em nossa sociedade, o


que denota sua importância sobretudo do ponto de vista do alcance e das possibilidades de
transformação social. Assim, a história das instituições escolares e de suas práticas, de algum
modo, nos ajuda a compreender as práticas sociais e sua relação com a produção escolar.
A análise da atuação do professor, hoje, prescinde de uma compreensão de que sua
prática é uma construção histórica e social. Ou seja, uma prática atravessada por outras, de
forma consciente ou não. Nesse sentido, conhecer as tendências pedagógicas na dimensão
histórica é um movimento necessário para compreensão e problematização da prática docente,
uma vez que toda prática está impregnada de uma concepção de processo de ensino-
aprendizagem explícita ou implicitamente. Embora as tendências tenham surgido e se
propagado em determinados períodos, suas influências sobre as práticas dos professores
transcendem os espaços-tempo e de algum modo se conjugam na realidade.
Saviani (2013), no livro “História das Ideias Pedagógicas no Brasil, aponta a hegemonia
da Tendência Liberal Tradicional (1549-1932) com a vertente religiosa, especialmente com os
Jesuítas da Companhia de Jesus e após a Reforma Pombalina (1759) com a vertente leiga. À
escola caberia a formação intelectual e moral do indivíduo para atuar na sociedade, o ensino
Aline de Oliveira Costa dos Santos 77

rígido para a disciplina e a obediência ao professor, que era o centro do processo.


De acordo com Marin (2011), a didática relacionada a essa tendência também foi
nomeada de Didática Tradicional. A prática escolar era baseada na concepção da criança como
um adulto em miniatura, com grande capacidade de memorização e mente maleável na qual
deveriam ser impressos conhecimentos e valores. Assim, o professor seria o transmissor dos
conhecimentos, sua prática baseada na exposição e repetição, por isso os exercícios deveriam
ser exaustivos. Obedecer, copiar, memorizar, fazer os exercícios, isso caberiam aos alunos. Ou
seja, cumprir a rigorosa disciplina.
A palavra do professor, os textos didáticos e algum material visual e concreto para a
exposição constituíam o recurso da prática docente. Castigos (físicos e/ou psicológicos) e
coação eram utilizados para punir os alunos que não conseguiam cumprir o prescrito.
É importante lembrar que, até o início do século XX, a escola era para poucos, e as
questões de ensino-aprendizagem não faziam parte dos grandes temas discutidos
nacionalmente. O Manifesto da Educação Nova, lançado em 1932 marcou, oficialmente, um
novo capítulo na história da educação brasileira. Além de apresentar à sociedade uma nova
concepção de educação e de escola, o documento endereçado “ao Governo e ao povo” trouxe
para cena política o debate sobre ensino brasileiro.
Nas primeiras décadas do século XX, com importantes mudanças na economia, na
política e na cultura, a necessidade de mão de obra mais qualificada demandou a organização
e expansão do sistema de educação. Também nesse período, o movimento denominado de
Escola Ativa ou Escola Nova, que tem Jonh Dewey como grande expoente, exerceu influência
no pensamento de educadores brasileiros, a exemplo de Anísio Texeira. A Pedagogia Nova ou
Tendência Renovadora Progressivista propunha uma ruptura radical com a Tradicional ao
colocar a criança (o aluno), no centro do processo de ensino-aprendizagem, e o professor no
lugar de orientador.
Para Franco (2012), as marcas mais fortes dessa tendência foram: a escola para todos
como instrumento da democracia social; a postura ativa do aluno no processo; a busca dos
interesses e necessidades do aluno para adequação do ensino; a pesquisa como caminho para
a construção do conhecimento e uma educação cognitiva com base nas ciências (Pedagogia,
Psicologia e Sociologia).
Naquele contexto, a Didática Renovada tentava reformar, internamente, a escola
baseada nas contribuições da Psicologia, buscava compreender os interesses e necessidades
da criança, os princípios de liberdade e de individualização, afirmava a necessidade de
“aprender fazendo” e “aprender a aprender”. Assim, as metodologias mais utilizadas eram:
“centros de interesse”, estudos dirigidos, unidades didáticas, método de projetos, fichas
didáticas, aulas-passeio, etc. (Candau, 2014).
A perspectiva do professor-pesquisador e da escola como espaço de construção do
conhecimento tem suas raízes na Pedagogia Nova, especialmente nas ideias e ações de Anísio
Teixeira que defendia, com veemência, tanto a pesquisa no planejamento educacional e
formação de professores quanto a pesquisa/experimentação/observação do aluno tomadas
como instrumentos didático. Apesar do avanço no campo das ideias pedagógicas e nos cursos
de formação de professores, os princípios escola novistas não conseguiram modificar a prática
78 Transposição ou mediação didática? reflexões históricas e contemporâneas sobre a prática docente

escolar do conjunto das escolas brasileiras, embora algumas experiências tenham sido exitosas.
A hegemonia da Pedagogia Nova perdurou até a década de 1960, quando começou a
entrar em declínio. Nessa etapa, o ensino da didática assume uma perspectiva idealista e
centrada na dimensão técnica. Idealista, porque a realidade pedagógica das escolas não era
objeto de reflexão. Acreditava-se que as práticas pedagógicas dependiam, exclusivamente, da
“vontade” e do “conhecimento” dos professores, desconsiderando-se os condicionantes sociais
e políticos. A Tendência Tecnicista surge com o desenvolvimento da Tecnologia Educacional e
do Ensino Programado, exercendo forte impacto na prática docente. Durante a Ditadura Militar
(1964-1985) o modelo tecnicista se estabeleceu em todo o ensino brasileiro, por meio de leis
e coação político-ideológica. A concepção de educação ancorada nos princípios da Teoria do
Capital Humano passou a ser vista a partir da relação linear com o mercado de trabalho, visando
ao lucro e à produtividade.
O modelo industrial penetra na educação, e a didática é considerada estratégica para o
alcance dos “produtos” do processo de ensino-aprendizagem. O enfoque sistêmico passa a
vigorar com a formulação de objetivos instrucionais, taxionomias, construção de instrumentos
de avaliação, treinamento de habilidades de ensino. Segundo Candau (2014), as tendências
Renovadora e Tecnicista se diferenciam em muitos aspectos, mas partem de um pressuposto
comum: “o silenciar da dimensão política”. Silêncio que se assenta no pressuposto da
neutralidade do técnico.
Ainda sob a égide do tecnicismo, surgiram no Brasil as teorias crítico-reprodutivistas,
denunciando a seletividade social do sistema educacional francês. Essas teorias contribuíram
para análise da realidade brasileira. Tornaram-se ainda mais explícitas a dualidade do nosso
sistema educacional, a precariedade das escolas, as sala de aulas superlotadas e as práticas
pedagógicas excludentes. A didática ensinada nos cursos de formação não encontrava respaldo
na realidade e sua importância passou a ser contestada. Foi um período de afirmação da
dimensão política do processo de ensino-aprendizagem e de negação da dimensão técnica, o
período da antididática.
A Tendência Pedagógica Libertadora exerceu forte influência antes, durante e depois
da Ditadura Militar. As contribuições de Paulo Freire (1996) – principal representante dessa
tendência – para análise e reflexão de uma prática docente elitista, alienada, opressora e
excludente conclamou os professores a repensar da prática, a partir de uma visão crítica das
questões sociais e políticas da sociedade brasileira. Ao denunciar a educação que denominou
de “bancária” , Freire (1996) criticava, principalmente, o tradicionalismo e o tecnicismo na
educação.
Do ponto de vista didático, é possível afirmar que a Tendência Libertadora propõe uma
mediação entre conhecimento científico, conhecimento popular e conhecimento escolar. Para
essa Pedagogia, o contexto sociocultural em que o aluno está inserido é o material principal da
prática docente. Para Freire (1996), educar é, antes de tudo, um ato político, e o professor
precisa ter clareza se sua atuação é direcionada para transformar ou manter a sociedade
capitalista e o seu sistema de desigualdade.
Entre o final de década de 1970 e início de 1980, havia uma cisão entre os educadores:
de um lado, aqueles que defendiam a competência técnica na formação de professores; de
Aline de Oliveira Costa dos Santos 79

outro, os que defendiam que o compromisso político era mais importante. É nesse contexto
que surgem duas tendências pedagógicas: a Crítico Social dos Conteúdos, formulada por José
Carlos Libâneo e a Histórico-Critica por Demerval Saviani. O elo entre as duas tendências é
justamente o esforço de apresentar uma proposta que contemple a multidimensionalidade do
processo de ensino-aprendizagem.
Para Libâneo (2013), a Tendência Crítico Social dos Conteúdos busca fazer uma síntese
superadora de traços significativos da Pedagogia Tradicional e da Pedagogia Nova. A partir da
valorização da escola pública e do trabalho do professor, do ensino de qualidade para o povo
que contemple o acesso ao conhecimento científico de forma sólida, crítica e comprometida,
como condição para participação do povo nas lutas sociais. A didática para essa pedagogia tem
muita importância, pois é ela que vai pensar nas finalidades sociopolíticas e pedagógicas do
processo de ensino-aprendizagem e nas condições e meios-formativos, de modo que o aluno
assuma uma postura ativa no processo.
Para a Pedagogia Histórico-Crítica, a educação é entendida como mediação no seio da
prática social global. A prática social se põe como porta de partida e de chegada da prática
educativa, visto que a educação é entendida como o “ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 2019).
Em termos didáticos, a Pedagogia Histórico-Crítica se desenvolve em cinco momentos:
no primeiro momento, o método pedagógico parte da prática social em que alunos e
professores encontram-se igualmente inseridos, em posições distintas. No segundo momento,
serão destacadas questões para uma problematização. No terceiro momento, teremos a
instrumentação, entendida como apropriação dos instrumentos teóricos práticos para
responder às questões detectadas. No quarto momento, chamado de catarse, é quando ocorre
a efetiva incorporação dos instrumentos culturais transformados em elementos ativos da
transformação social. No quinto momento, a chegada na prática social pode-se se concluir uma
alteração qualitativa da compreensão e da vivência da prática social (Saviani, 2009).
Retomando a prerrogativa de que toda prática docente está impregnada de uma
concepção de ensino-aprendizagem, a partir da análise dos pressupostos de cada tendência
pedagógica, é possível afirmar que o termo transposição didática estaria mais coerentemente
colocado em práticas influenciadas pelas tendências Tradicional e Tecnicista, enquanto o termo
mediação didática coincide com os pressupostos da Tendência renovadora e das tendências
Progressivas e ou Críticas.

PERSPECTIVAS E ORIENTAÇÕES PARA ATUAÇÃO DO PROFESSOR NA


TRANSPOSIÇÃO/MEDIAÇÃO DIDÁTICA

Conforme explicita Franco (2012; 2014), práticas pedagógicas são práticas sociais
exercidas com a finalidade de concretizar expectativas educacionais solicitadas/requeridas por
uma dada comunidade social. Enquanto prática social, ela produz uma dinâmica social entre o
dentro e o fora da escola. Ancorada numa visão da didática, é a construção de conhecimentos
que possibilite a mediação do que é preciso ensinar e do que é necessário aprender, entre as
80 Transposição ou mediação didática? reflexões históricas e contemporâneas sobre a prática docente

atuais formas de relação com o saber e as novas formas possíveis de reconstrui-lo.


Nesse sentido, longe de apresentar um manual ou um receituário de como o professor
pode atuar no processo de mediação didática, com base no conceito de prática pedagógica,
enquanto prática social e no conceito de didática como processo de construção e mediação,
busco apresentar componentes imprescindíveis para atuação do professor e exemplos de
atividades que possibilitam uma ação tendo em vista o processo de mediação didática.
O ponto de vista do sujeito-aprendiz é um componente fundamental para o
desenvolvimento da mediação didática. Na prática, o levantamento dos conhecimentos prévios
sobre o conceito/tema que se pretende trabalhar é uma estratégia que possibilita a entrada dos
dois polos do processo de ensino-aprendizagem em um espaço-tempo necessário para que as
trocas aconteçam e as questões em torno do conceito/tema apareçam.
A pesquisa é um outro componente indispensável ao processo de mediação, vez que
possibilita a busca de outros e referenciais e referências, ampliando, problematizando e/ou
extrapolando até os livros didáticos e outros conhecimentos construídos. Na área do Ensino de
Ciências, por exemplo, a pesquisa histórica e contextualizada dos conceitos e a biografia de
seus formuladores tem resultado em importantes apropriações e indagações não apenas sobre
os conceitos científicos, como de questões que extrapolam o próprio componente,
possibilitando sua reconstrução.
O movimento de ação-reflexão-ação sobre a prática é um componente que é
igualmente imprescindível para o processo de mediação didática. É a partir desse movimento
que o professor poderá analisar sua ação tendo em vista a complexidade imposta pela realidade.
A ação-reflexão-ação reforça a ideia de didática, enquanto processo contínuo que coloca o
professor no movimento ininterrupto construção e (re)construção de sua prática.
Como exemplos de atividades que possibilitam uma atuação comprometida com o
processo de mediação didática nos termos apresentados nesse texto situam-se: Metodologia
de Projetos e Situação-problema.
A metodologia de projetos é uma prática presente nos espaços escolares, da educação
infantil ao ensino superior. Piconez (2010) ressalta a importância da criação de projetos no
espaço escolar por envolver situações que privilegiam o desenvolvimento de atitudes, hábitos
e habilidades próprias de uma postura questionadora e crítica; por ser uma prática que envolve
a interdisciplinaridade e por possibilitar o trabalho coletivo.
A situação-problema é uma atividade que geralmente é tomada como uma metodologia
ou técnica que ajuda a explorar situações hipotéticas e/ou reais no processo de ensino-
aprendizagem. Para Ott (2014), mais do que uma técnica, a prática docente baseada em
situações-problema é uma forma de tornar o ensino “vivo”, significa um mergulho nos conceitos
científicos para responder questões da realidade empírica. Com base em pesquisas
desenvolvidas em escolas da educação básica, a autora afirma que a utilização de situações-
problema da realidade dos alunos produz um alto nível de envolvimento e responsabilidade dos
estudantes em um clima dialogal de construção, reconstrução de conhecimentos.
O tema-problema desse texto “a atuação do professor na transposição-didática” nos
colocou a refletir sobre a noção de transposição e mediação, sobre as tendências pedagógicas
que incidem sobre a prática docente e sobre perspectivas e orientações para essa atuação. Tais
Aline de Oliveira Costa dos Santos 81

reflexões apontam a necessidade de reconfiguração do espaço escolar, enquanto espaço da


problematização, da criatividade, da criação, da alegria e do prazer de aprender-ensinar... Enfim,
da construção coletiva de conhecimentos e saberes que nos autoriza, enquanto sujeitos e nos
humaniza.

REFERÊNCIAS
CANDAU, V. M. (org.). A didática em questão. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
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FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
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supervisionado. 24.ed. Campinas: Papirus, 2012.
SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4.ed. Campinas. Autores Associados,
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SAVIANI, D. Formação de Professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto
brasileiro. Revista Brasileira de Educação, v. 14, n. 40, p. 143-155, jan./abr. 2009.
82 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

“É a dose mais forte e lenta


de uma gente que ri
quando deve chorar
e não vive, apenas aguenta
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 36

36
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
Dulciene Amparo dos Anjos 83

7 QUANDO O FALAR QUER DIZER SOBRE A PEDAGOGIA


WALDORF: CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONTRIBUIÇÃO
DA EDUCAÇÃO STEINERIANA PARA O
DESENVOLVIMENTO DA EXPRESSÃO
Dulciene Amparo dos Anjos 37

INTRODUÇÃO

Você̂ sabe que é Waldorf quando...


Você̂ toca instrumentos e canta afinado;
Você̂ já usou sapatilha e bata de euritmia;
Você̂ entra na faculdade e ainda acha que a primeira aula é de Época;
Você̂ se forma e podem colocá-lo para falar diante da China que você̂ não tem vergonha;
Pensava que é natural ter quatro aulas duplas de artes por semana e não
entende porque seus amigos de fora achavam isso estranho;
Você̂ sente falta dos últimos 15 minutos da aula de época, que tinha a
historinha em capítulos que o Professor de Classe contava;
Você̂ adora aprender, estudar... mas estudar para você̂ não tem o mesmo
significado que para o resto dos mortais;
Seus cadernos são coloridos e cheios de desenhos...
alguns trocam de cor a cada parágrafo, outros a
cada classe gramatical, outros quando acham bonito;
Ao invés de aprender a ler e a escrever logo no pré,
ou “de cara” no grau, aprende a respeitar a natureza e as pessoas,
a valorizar o espírito... porque todo o resto é consequência...
Entende que deve aprender tudo em épocas porque certas coisas
devem "dormir em nós para amadurecer";
Compreende que na nossa escola "TODOS VENCEM";
Durante todo o ano, fala um verso de manhã̃, no dia da semana em que nasceu.
GEA (Grupo de Ex-Alunos Waldorf)

Ao mesmo tempo em que anuncia algumas especificidades que caracterizam a


Pedagogia Waldorf enquanto um modelo pedagógico diferenciado e alternativo ao sistema
tradicional de ensino, a epígrafe que abre esta introdução, de autoria de ex-estudantes

37
Dulciene Amparo dos Anjos é doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Atua como docente do
Departamento de Linguística, Letras e Artes, campus II (Alagoinhas), da Universidade do Estado da Bahia – DLLARTES-
II/UNEB. E-mail: dasilva@uneb.br.
84 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

Waldorf38, destaca a percepção desses educandos com relação ao tema deste artigo: a relação
entre a Pedagogia Waldorf e o desenvolvimento da expressão oral.
Como bem o sinalizam os egressos Waldorf, os estudantes que tiveram acesso a essa
orientação pedagógica apresentam um perfil diferenciado com relação a estudantes do sistema
tradicional de ensino. Eles se destacam, dentre outras prerrogativas, por apresentarem um
desempenho comunicativo oral marcado por uma notória autonomia – o que faz com que, em
diferentes plateias, independente do grau de formalidade do registro de linguagem, consigam
se expressar com razoável segurança.
Pesquisas realizadas a partir de entrevistas com ex-estudantes Waldorf (Gerwin;
Mitchell, 2007; Barz; Randoll, 2007), cujo propósito foi identificar os efeitos dessa proposta
educacional em sua vida prática e conhecer o percurso de vida pessoal, estudantil e profissional
que esses indivíduos empreenderam a partir da conclusão do seu ensino médio, apontam que,
de fato, os egressos de escolas Waldorf costumam apresentar um perfil diferenciado com
relação a ex-estudantes do sistema convencional de ensino. Tais pesquisas demonstraram que,
além de valorizarem a oportunidade de pensarem por si próprios e de terem uma forte
inclinação para por em prática as suas ideias, demonstrando ter um pensamento autônomo e
grande capacidade criativa, esses indivíduos “são guiados por uma bússola moral interior” que
imprime um teor ético às suas condutas em sua vida profissional e privada, valorizando as
relações humanas e buscando formas de participação ativa no meio em que vivem. São
portadores, pois, do que o psiquiatra e psicanalista Erik Erikson, responsável pelo
desenvolvimento da Teoria do Desenvolvimento Psicossocial, denominou de “generatividade”,
ou seja, a capacidade de promover ações em retorno à comunidade e à cultura da qual fazem
parte, demonstrando um real interesse pelo mundo em que vivem.
Tanto no cenário estudantil quanto no profissional, esses estudantes destacaram-se por
atuarem cooperativamente e buscarem soluções criativas e coletivas para os problemas,
demonstrando grande habilidade para o diálogo e as interações sociais, além de uma excelente
capacidade de se expressarem através da linguagem verbal. Como depõem seus professores
universitários entrevistados, “all have the same broad approach to education. They are flexible,
creative, and willing to take intellectual risks”. [...] “His imagination, his nuanced verbal skills,
and his leadership qualities had been richly nourished in him by his prior schooling” 39 (Gerwin;
Mitchell, 2007, p. 13).
Diante desse panorama, algumas questões se anunciam para a compreensão das
relações entre educação e desenvolvimento da expressão oral: o que faz com que os estudantes
Waldorf, conforme atestam estudos e depoimentos, apresentem um domínio satisfatório da
expressão oral? Quais são os fundamentos e princípios dessa Pedagogia – e de que modo eles
se relacionam com o estímulo à fluência expressiva desses indivíduos? Para elucidar essas
questões, este artigo apresentará, em primeiro lugar, um breve apanhado sobre o tema
educação e desenvolvimento da expressão oral, para, em seguida, após localizar as bases

38
Esta epígrafe é uma versão condensada e revisada do texto produzido por ex-estudantes Waldorf da capital paulista
publicado no site da Sociedade Antroposófica do Brasil: http://sab.org.br/pedag-wal/artigos/gea-sabe-waldorf.htm.
39
“Todos têm a mesma abertura para a educação. Eles são flexíveis, criativos e dispostos, intelectualmente, a correr riscos”.
[...] Sua imaginação, suas nuances verbais, suas qualidades de liderança certamente foram ricamente nutridas em sua
escolarização anterior”. Tradução livre do original. In: http://www.waldorflibrary.org/Journal_Articles/GradPhase2.pdf.
Dulciene Amparo dos Anjos 85

históricas e filosóficas da Pedagogia Waldorf, destacar os elementos curriculares e princípios


didático-metodológicos que se mostram associados ao desenvolvimento da expressividade dos
estudantes.

EDUCAÇÃO, ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E DESENVOLVIMENTO DA


EXPRESSÃO ORAL

A experiência de quase três décadas dedicadas à docência no ensino superior tem me


permitido observar que os estudantes das escolas convencionais, ao ingressarem na
universidade, apresentam, em sua maioria, uma série de dificuldades com relação a sua
expressão oral. Nas situações em que necessitam se colocar oralmente, tais estudantes
manifestam-se com muita insegurança e hesitação, utilizando estruturas linguísticas nem
sempre adequadas ao registro de linguagem formal e recorrendo a um vocabulário restrito,
demasiado repetido e insuficiente, além de utilizarem-se de muitas expressões feitas e gírias.
Sobrepõe-se a esses elementos o fato de nem sempre conseguirem exprimir os seus
pensamentos, ideias e sentimentos com clareza e precisão.
Além de fazer parte da percepção cotidiana de um sem-número de educadores que
exercem esse ofício em diversas áreas de conhecimento, esse fenômeno também tem sido
observado por pesquisadores que têm se debruçado ao estudo do desempenho expressivo e
comunicativo dos estudantes, quer compondo um diagnóstico da expressão oral desses
estudantes, quer refletindo sobre o processo de ensino-aprendizagem da linguagem oral.
Em sua tese de doutoramento, Milanez (1993) desenvolveu um estudo investigativo
para examinar a contribuição da escola no desempenho linguístico oral dos estudantes, com o
objetivo de verificar se o que esses indivíduos aprenderam ao longo dos onze anos de
escolaridade foi compatível com as situações comunicativas em sociedade, principalmente as
que demandam o uso do nível formal da língua. A pesquisa demonstrou que, desde a dificuldade
em resumir e destacar dados relevantes para uma comunicação oral, até a fragmentação e
descontinuidade do discurso, passando pela insegurança frente a um público (mesmo que
restrito), os problemas vivenciados pelos estudantes foram inúmeros - o que ratifica que o
modelo de educação convencional não tem contribuído para desenvolver o potencial
comunicativo e expressivo dos educandos.
Na gênese desse fenômeno, está o pouco espaço que é atribuído à oralidade em sala de
aula, graças ao privilégio que a instituição escolar historicamente tem atribuído à linguagem
escrita. Buscando identificar como e quando ocorre a prática da expressão oral no ensino de
Língua Materna, também Muniz (1986) procedeu a uma pesquisa, sistematizada em sua
dissertação de mestrado. Os resultados indicaram que, embora atribuam importância à prática
da expressão oral em sala de aula, as professoras observadas realizavam, em seu exercício,
atividades de produção condicionada à modalidade escrita – ou então, atividades que
propunham a oralização da escrita, mas que não buscavam desenvolver as estratégias
discursivas necessárias à interação oral.
Em investigação mais recente, Leal, Brandão e Nascimento (2010), a partir da análise de
75 aulas de cinco professoras do 7º ano do Ensino Fundamental, identificaram que, ainda que
86 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

essas professoras tenham reconhecido a importância do trabalho com a oralidade no ensino da


língua materna, as atividades pedagógicas que propunham para essa modalidade da língua não
ultrapassavam conversas e discussões, de modo que, em sua aulas, essas docentes não
priorizavam situações didáticas que envolvessem reflexões sobre as propriedades da língua
falada e/ou sobre as habilidades demandadas para sua utilização em determinadas
situações sociais que requeiram registos específicos, a depender dos diferentes graus de
formalidade das situações comunicativas.
Ora, graças ao fato de que a fala é uma habilidade da qual nos apropriamos em um
processo espontâneo e independente da escolarização, de modo que, ao chegar à escola, a
criança já evidencia um domínio do falar e do ouvir, ainda é bastante recorrente a crença de
que o trabalho com a oralidade na escola não é passível de ser objeto da reflexão linguística
sistemática e cotidiana – o que reflete um grande desconhecimento com relação à necessidade
de uma abordagem pedagógica sistemática para desenvolver a oralidade dos estudantes.
Nas últimas décadas, tornou-se mais expressivo, no âmbito dos estudos linguísticos, o
número de pesquisas que apresentam como objeto a linguagem oral, enfatizando a
preocupação em integrá-la ao trabalho escolar com a Língua Portuguesa, sobretudo como
ponto de partida para o ensino da língua escrita. Alguns, inclusive, têm apresentado propostas
de intervenção para atender à inclusão da modalidade oral da língua ao ensino. Entretanto,
como já havia anunciado Ball (1973), se, por um lado, a dificuldade que os estudantes
demonstram para se expressarem oralmente é o resultado do caráter artificial do ensino da
língua materna, cujas estratégias, além de enfatizarem o uso abstrato da língua e a hegemonia
da língua escrita, não priorizam as situações reais de comunicação, por outro, está intimamente
relacionada com a própria organização didático-metodológica do ensino, em que o formalismo
e rigor disciplinar impedem a promoção dos atos de fala do estudante e dificultam sua
manifestação.
Herdeira da tradição epistemológica moderna, a nossa educação tem consagrado um
ensino eminentemente voltado para a aprendizagem cognitiva conceitual e priorizado a
transmissão de conteúdos em detrimento do desenvolvimento das habilidades dos educandos
– inclusive aquelas que são essenciais para o seu desempenho comunicativo e expressivo.
Graças ao caráter predominantemente expositivo das aulas, a quantidade dos turnos de fala do
professor, em sala de aula, é consideravelmente maior do que a quantidade de turnos dos
estudantes - o que evidencia que a fala, na escola, ainda tem se estabelecido como uma
atividade eminentemente docente. Nesse contexto, a expressão própria do educando não tem
tido espaço para se desenvolver, o estudante não tem voz, e são pouco estimuladas, no
cotidiano escolar, situações de interação verbal. Não é por acaso que, nas situações em que
necessitam se expor oralmente, esses indivíduos, ao contrário do que os próprios ex-estudantes
Waldorf identificam em si próprios - e do que tem sido constatado em estudos sobre sua
habilidade no âmbito dessa modalidade de expressão - demonstram possuir diversas
dificuldades.
Para que o processo de escolarização possa promover o desenvolvimento da expressão
oral dos estudantes, é fundamental, do ponto de vista da área de Língua Portuguesa, organizar
o ensino com vistas a atender ao desenvolvimento das quatro habilidades linguísticas (ler, ouvir,
Dulciene Amparo dos Anjos 87

falar e escrever), como propõem os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997), tornando
também a oralidade objeto da reflexão linguística sistemática e cotidiana. Do ponto de vista da
área da educação, é essencial que o processo de mediação da aprendizagem esteja
comprometido com a superação da orientação instrumental e estritamente racionalista que tem
atribuído ênfase irrestrita ao ensino de noções e conteúdos acadêmicos em detrimento do
desenvolvimento das demais habilidades dos educandos - inclusive aquelas que são essenciais
para o seu melhor desempenho comunicativo e expressivo.
Ao localizar na Pedagogia Waldorf uma alternativa educacional comprometida com o
desenvolvimento do ser humano em suas diferentes dimensões e potencialidades, identifiquei
em suas proposições um fértil campo para aprofundar, no doutorado em Educação (Andrade e
Silva, 2010), a compreensão acerca das relações intrínsecas entre educação integral e o
desenvolvimento da expressão oral.

A PEDAGOGIA WALDORF E A EXPERIÊNCIA INTERIOR E SUBJETIVA NA


EDUCAÇÃO

Nas últimas décadas, tem sido expressivo o número de estudos que, fundamentados
nos pressupostos do paradigma cientifico da contemporaneidade, têm chamado atenção para
a necessidade de superação do viés formalista e estritamente racionalista no ensino, de modo
a buscar reintegrar o que fora descartado na educação moderna em função da ênfase ao
racionalismo estrito. Esses estudos têm chamado a atenção para a necessidade de se promover
uma educação que não esteja essencialmente focada no desenvolvimento das habilidades
acadêmicas dos educandos, mas que também considere o seu desenvolvimento emocional e
afetivo, o cultivar de sua sensibilidade e de suas habilidades sociais. Enfim, uma educação que,
transcendendo a ênfase no pensar, e buscando um processo de aprendizagem significativo,
possa também orientar-se para o sentir e o fazer do educando, voltando-se para o
desenvolvimento do SER inteiro.
Orientações institucionais que recentemente se propuseram a nortear a Educação
Básica igualmente têm-se apresentado bastante consoantes com essa perspectiva de se atribuir
à Educação a função de promover o desenvolvimento global do ser humano, a partir de uma
compreensão do educando como uma totalidade integrada e sinalizando que “a educação deve
contribuir para o desenvolvimento total da pessoa – espírito e corpo, inteligência, sensibilidade,
sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade” (Delors, 2001, p. 99). Para isso,
insiste na necessidade de que “se ultrapasse a visão instrumental da educação (...) e se passe a
considerá-la em toda a sua plenitude: realização da pessoa que, na sua totalidade, aprende a
ser” (p. 90).
Entretanto, embora tais estudos e proposições venham apontando para um novo modo
de conceber a Educação que tem contribuído para a difusão da noção de que o educando
participa da construção do conhecimento não apenas com o uso predominante do raciocínio e
da percepção do mundo exterior pelos sentidos (como nos ensinou o pensamento cartesiano e
o positivista), a concretização de modelos pedagógicos fundados nesses propósitos tem se
deparado com várias dificuldades. O cotidiano da sala de aula ainda revela que os professores,
88 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

em seu exercício, realizam procedimentos tão abstratos e descontextualizados como os que


aprenderam a desprezar conceitualmente, por ocasião de sua passagem pelos centros de
formação docente.
Evidentemente, a esse paradoxo têm-se confrontado algumas (poucas) alternativas
formativas que não apenas se apresentam consoantes com as necessidades e exigências da
educação na contemporaneidade, mas que inclusive demonstram um compromisso em levar
para a práxis tais fundamentos e pressupostos teóricos, delineando uma mediação pedagógica
orientada para a promoção e o estímulo ao desenvolvimento do educando em seus
desdobramentos cognitivos, emocionais, éticos, estéticos, relacionais, espirituais. A Pedagogia
Waldorf desponta-se nesse cenário como uma dessas alternativas, uma vez que tem se voltado
para o desenvolvimento integral dos educandos e, por conseguinte, para a
multidimensionalidade do processo educativo - o que a qualifica como um correspondente
metodológico e operacional das formulações teóricas cujo princípio é a superação da
cosmovisão positivista em favor de uma abordagem significativa no processo de ensino-
aprendizagem, apresentando-se consoante com os pressupostos e diretrizes destacados pelo
paradigma educacional emergente.

A Pedagogia Estética Waldorf: gênese, princípios e fundamentos


A Pedagogia Waldorf é uma abordagem pedagógica implementada pelo filósofo
austríaco Rudolf Steiner, em Stuttgart, na Alemanha, para atender, inicialmente, à educação dos
filhos de operários da fábrica de cigarros Waldorf Astória, a pedido dos próprios operários.
Investido em buscar iniciativas para contribuir com a superação das questões sociais e
econômicas que assolava a Europa no período pós primeira guerra mundial, Steiner passou a
proferir uma série de palestras nas quais explicitava os fundamentos de seu pensamento sobre
a questão social. Ancorado em sua cosmovisão, a Antroposofia, um método científico, filosófico
e espiritual desenvolvido por ele próprio para compreender a natureza, o ser humano e o
universo, Steiner pretendia buscar alternativas para intervir na vida prática de modo a
desenvolver um organismo social saudável.
Na plateia de uma dessas palestras, encontrava-se Emil Molt, o diretor da Waldorf-
Astória, que viria a se tornar um dos seus mais comprometidos seguidores. Seguindo a
orientação de Steiner, Molt realizou para os operários uma série de palestras socioeducativas
que, por sua vez, instigaram o desejo de oferecer aos seus filhos uma educação também
ancorada nos fundamentos antroposóficos. Molt, então, convidou Steiner para ajudá-lo na
organização dessa escola. Assim, em setembro de 1919, após um intenso estudo sobre
pedagogia, didática e metodologia com os professores que atuariam na sua recém-elaborada
proposta pedagógica, nasceu a primeira Escola Waldorf, que ficou sob direção do próprio
Steiner até sua morte, em 30 de março de 1925. Graças a esse episódio, as instituições
educativas que comungam dos princípios e fundamentos da filosofia educacional Steineriana
são denominadas de “Escolas Waldorf”.
De acordo com o levantamento das instituições educativas Waldorf 40 realizado em

40
Dados extraídos do sítio https://www.freunde-waldorf.de/en/waldorf-worldwide/waldorf-education/waldorf-world-
Dulciene Amparo dos Anjos 89

2022 pelo Diretório Internacional da Pedagogia Waldorf , existem atualmente mais de 1.270
escolas Waldorf (além de 1.928 “Jardins de Infância” Waldorf) em 75 países do globo terrestre.
Em território nacional, a Federação das Escolas Waldorf do Brasil – FEWB divulgou, em 2019,
a existência de 97 instituições Waldorf filiadas distribuídas em 21 estados brasileiros. Ainda de
acordo com a FEWB, no Estado da Bahia há, atualmente, nove instituições que atendem à
Educação Infantil (sendo que apenas uma já se encontra formalmente associada; as demais
ainda em vias de preencher os requisitos obrigatórios para constituir-se uma escola Waldorf),
seis que atendem até o primeiro ciclo do Ensino Fundamental (sendo apenas três já federadas)
e apenas duas que oferecem formação até o segundo ciclo do Ensino Fundamental (ambas em
vias de formalizar associação)41.
O crescimento exponencial da Pedagogia Waldorf no mundo e os resultados positivos
que suas escolas têm alcançado em diferentes países têm chamado a atenção de organismos
que, como a UNESCO, têm buscado conhecer essa pedagogia. Em outubro de 1994, na 44ª
sessão da Conferência Internacional sobre Educação, em Genebra, o “Internacional Bureau of
Education” solicitou ao organismo internacional que responde pela Pedagogia Waldorf que lhes
apresentasse a sua proposta educativa. Talvez não seja coincidência que, no Relatório da
Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, elaborado por Delors (2001) para a
UNESCO, são identificadas proposições e metas para a educação em grande consonância com
os propósitos da Pedagogia Waldorf.
A Pedagogia Waldorf é uma aplicação prática da Antroposofia à educação. De acordo
com a Antroposofia, o ser humano é um ente cuja constituição é trimembrada, ou seja, é
constituído de corpo físico, alma e espírito, aos quais estão relacionadas, respectivamente, as
faculdades do fazer, do sentir e do pensar. Ampliando a teoria aristotélica sobre a estruturação
da vida segundo os setênios, Steiner (2003) explica o desenvolvimento humano a partir de
princípios evolutivos que compreendem etapas de sete anos. Segundo ele, embora latentes
desde o momento no nascimento físico, aqueles três constituintes têm o seu desenvolvimento
inicial ancorado gradualmente nos três primeiros setênios. Esta especificidade faz com que em
cada um dos três primeiros setênios, as energias vitais estejam mais fortemente centradas em
um determinado aspecto do desenvolvimento humano - o que acarreta modificações
biológicas, fisiológicas e cognitivas específicas que irão exigir da educação atitudes e
orientações diferenciadas. Assim, todo o currículo Waldorf é estruturado a partir desses
fundamentos, de modo a orientar-se pelas características e necessidades da criança em cada
fase de seu desenvolvimento (Mizoguchi, 2006).
Segundo a Antroposofia, no primeiro setênio (do nascimento físico aos sete anos,
aproximadamente), o cenário do desenvolvimento infantil tem como pano de fundo a
individuação somática. É o período em que todas as energias vitais da criança estão investidas
no desenvolvimento de seu organismo físico, exigindo-lhe intensa atividade corporal. Assim, a
educação infantil Waldorf prioriza o movimento, a experiência corporal que faz uso da
motricidade, como também o movimento da imaginação, da fantasia da criança, pois
compreende que o movimento será a base para não apenas o seu desenvolvimento físico e

list/. Acesso em: 01 de outubro de 2023.


41
Dados extraídos do sítio https://www.fewb.org.br/territorios.html. Acesso em: 01 de outubro de 2023.
90 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

motor, mas também para o seu desenvolvimento emocional, neurológico e até mesmo
cognitivo, preparando as estruturas neurológicas para a aprendizagem a ser requerida
posteriormente em seu processo de escolarização.
Contrariando a vocação da educação infantil que, orientada pelo signo do pensar
intelectual utilitarista, tem estimulado a alfabetização linguística e matemática precoce, a
Pedagogia Waldorf defende que, uma vez que nesse estágio de desenvolvimento as crianças
ainda não apresentam habilidades mentais necessárias à manipulação de símbolos, já que os
prolongamentos de seus neurônios não completaram o processo de mielinização 42, só sejam
alfabetizadas a partir dos seis anos e meio 43.
Uma vez concluído o processo inicial de maturação orgânica, o foco do
desenvolvimento, no segundo setênio (dos 7 aos 14 anos, aproximadamente), volta-se,
conforme a Antroposofia, para o funcionamento psicoemocional da criança, mobilizando suas
faculdades psíquicas (para possibilitar a sua progressiva utilização a serviço do pensamento e
da aprendizagem) e, ao mesmo tempo, proporcionando uma intensa vivência emocional
(favorecida pelo desenvolvimento das suas emoções, dos seus sentimentos). Desse modo,
embora nesse momento de seu desenvolvimento a criança já evidencie que consegue raciocinar
aproximando-se da lógica adulta, os seus esquemas conceituais e ações executadas
mentalmente ainda necessitam ser manipulados ou imaginados de forma concreta 44. Em
atenção e respeito a essa especificidade no desenvolvimento do educando, o processo de
aprendizagem no ensino fundamental Waldorf é conduzido não de forma abstrata e teórica,
mas a partir da vivência, da observação e da descrição dos fenômenos (Lanz, 2003).
Ademais, em consonância com a disposição sentimental e estética latente nos
educandos que passam por esta fase, o currículo Waldorf elege a arte como a mediadora
primordial de toda a educação. Conforme esclarece von Kügelgen (1989), nessa Pedagogia não
há nenhum domínio de aprendizagem que não seja enriquecido pela atividade artística, através
da qual se aprofunda a experiência. Entretanto, diferentemente do que acontece na grande
maioria das escolas convencionais, as atividades artísticas não têm um espaço restrito no
currículo, e não ocorrem à margem dos demais estudos: são “o laço de união entre as diversas
matérias”. Aliás, o lugar atribuído à arte apresenta-se muito bem configurado no pensamento
de Steiner (2003, p. 125): “a pedagogia não pode ser uma ciência - deve ser uma arte. E onde
existe uma arte que se possa aprender sem viver constantemente em sentimentos?”.
O sentido da arte na educação Waldorf transcende, assim, o aspecto da mera
possibilidade de promoção de atividades artísticas: a arte é concebida como o próprio processo

42
Trata-se do processo de revestimento dos axônios por uma capa ou bainha de mielina, substância lipoproteica que
possibilita aumentar a velocidade da transmissão dos estímulos nervosos ou impulsos elétricos (sinapses), atribuindo maior
eficiência na transmissão da informação pelos neurotransmissores.
43
Essa orientação, inclusive, está de acordo com o que também diz o epistemólogo suíço Jean Piaget (1967, 1975) em seus
estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, segundo os quais dos dois até os seis/sete anos, aproximadamente, as crianças
encontram-se no estágio pré-operacional, não demonstrando possuir recursos cognitivos e/ou neurológicos suficientes
para as operações objetivas.
44
Assim como Steiner, também Piaget (1967, 1975), em sua teoria psicogenética, compreende que no período dos seis/sete
até os doze anos, aproximadamente, a que denomina de estágio operatório concreto, embora já manipule objetos da
realidade, aproximando-se das regras, das operações lógicas, a criança ainda não o faz com abstração característica da
próxima etapa, o estágio das operações formais ou abstratas.
Dulciene Amparo dos Anjos 91

educativo, igualmente criador, cuja finalidade é proporcionar aos estudantes a vivência do


estado estético - caminho efetivo para que eles possam ser conduzidos ao estado ético (Schiller,
2002). Para Friedrich von Schiller (1759-1805), grande pilar que alicerça os fundamentos da
Pedagogia Waldorf, é através da educação estética que o indivíduo é conduzido ao
desenvolvimento pleno de suas capacidades intelectuais e sensíveis. É, pois, através da
liberdade que se realiza através da arte que o propósito primeiro da Pedagogia Waldorf se
realiza: o desenvolvimento do pensar livre do educando – ou seja, a formação de indivíduos
com pensamento individual e criativo, e com habilidades para o agir em consonância com os
seus objetivos e impulsos, assim como para o atuar de modo participativo, coerente e
responsável no âmbito social.
No período correspondente ao terceiro setênio (dos catorze aos vinte e um anos,
aproximadamente), como esclarece a Antroposofia, as energias vitais liberadas da função de
desenvolvimento do sistema psicoemocional são, então, destinadas ao despertar das forças do
pensar lógico, abstrato e conceitual do indivíduo, que é a base para a formação do seu
julgamento pessoal: é a fase do desabrochar da individualidade do educando - para Steiner, do
seu constituinte espiritual. Nessa etapa de seu desenvolvimento, o adolescente busca uma
compreensão mais intelectual da vida e seus fenômenos. Essa demanda encontra ressonância
num ensino médio Waldorf que estimula o seu espírito mais lógico.
Como esclarece Lanz (2003), enquanto no ensino fundamental os conteúdos giravam
em torno da realidade (e não da abstração), com foco na observação e descrição dos
fenômenos, nesse novo ciclo, o ensino médio, volta-se para a compreensão da realidade através
de uma abordagem mais teórica, abstrata e conceitual, já que é nesse setênio que o sistema
neurossensorial apresenta maturação necessária para que o educando possa cumprir essa
tarefa sem prejudicar o seu desenvolvimento físico e/ou psicoemocional 45.
Mas, assim como as diretrizes curriculares para a educação infantil, o ensino
fundamental e o ensino médio Waldorf são organizadas, respectivamente, de modo a
atenderem ao desenvolvimento dos aspectos volitivos (fazer), psicoemocionais (sentir) e
cognitivos (pensar) do educando, também a orientação didática e metodológica de cada aula
busca a harmonização da tríade pensar, sentir, fazer, evitando-se a unilateralidade em uma ou
outra esfera de atividade, e procurando um equilíbrio entre os conteúdos formais, as atividades
artísticas (e/ou artesanais) e as atividades corporais (Mizoguchi, 2006). Assim, toda aula, nas
escolas Waldorf, é organizada de modo a promover a alternância entre a atividade mais
intelectualizada e as atividades práticas ou artísticas: o conteúdo formal é sempre
acompanhado, por um lado, pelo enfoque prático (ênfase nas atividades corporais e artesanais)
e, por outro, pelas atividades artísticas que, como sinalizado, no currículo Waldorf são um
veículo didático para todas as matérias.
A estrutura de um turno da aula é dividida em dois blocos. A aula principal, realizada
antes do intervalo, tem a duração aproximada de 120 minutos, e as aulas complementares, que
são atividades com ênfase prioritária na atividade artística e ou manual, que fecham o turno
escolar. Alternam-se entre os dias da semana, após o recreio, aulas de Artes Aplicadas

45
Também para Piaget (1967, 1975) é nesse estágio, a que denomina de estágio das operações formais ou abstratas, que o
adolescente apresenta estruturas mentais que o permitem realizar operações baseadas num tipo de raciocínio abstrato.
92 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

(Aquarela, Escultura em argila, Marcenaria, Desenho em preto e branco e Perspectiva,


Euritmia46, Arte da Fala, Teatro), Trabalhos Manuais (Tricot, Crochet), Educação Física e
Jardinagem. Mas, também durante a aula principal, as atividades são organizadas de modo a
alternar atividades de conteúdo formal (pensar) com atividades artísticas (sentir) e atividades
corporais (fazer).
A aula principal é sempre iniciada com uma parte “rítmica”: há recitação de versos, jogral,
trava-língua, exercícios de canto coral, flauta doce (todos os estudantes tocam), intercalados
por muito movimento, ritmo e percussão corporal. Como asseverou Steiner (2005), uma vez
que as estruturas mentais da criança não comportam, ainda, os processos abstratos, é
fundamental que, no processo de aprendizagem, os conteúdos sejam trabalhados em
associação à experiência corporal. Esses exercícios propõem grandes desafios em que os
estudantes necessitam coordenar movimentos diferentes em seus membros superiores e
inferiores e, muitas vezes, também associar esses movimentos ritmados a emissões vocais,
como versos ou canções. Segundo Steiner (idem), esses exercícios exercem uma grande
influência não só como facilitadores do processo de aprendizagem, ou no desenvolvimento
psicomotor do estudante, mas inclusive no desenvolvimento da sua fala, haja vista as relações
existentes entre o centro da fala e o movimento das mãos e dos braços47.
Na maioria das vezes, esses exercícios estão associados à Época temática específica:
todo o currículo, na Pedagogia Waldorf, é organizado em Épocas. Durante aproximadamente
um mês, uma matéria é destacada como tema principal ao longo de três a quatro semanas. À
Época de uma matéria, segue-se outra, de modo que, sucessivamente, as Épocas se alternam
durante o ano letivo. Durante uma determinada Época, as demais disciplinas que compõem o
currículo são desenvolvidas de forma bem articulada, visando garantir a sua
complementaridade e formando um todo orgânico, sob perspectiva interdisciplinar, de modo
que, em termos metodológicos, o currículo Waldorf pode ser comparado a uma espiral
ascendente: as matérias são revistas várias vezes, em diferentes épocas, e a cada nova
exposição, uma nova e mais profunda visão do conteúdo exposto vai sendo oferecida
(Mizoguchi, 2006).
Após a roda rítmica, o estudante faz uma retrospectiva oral do conteúdo trabalhado na
aula anterior: é a fase da aula que corresponde ao pensar. O professor, então, faz perguntas,
complementa, amplia, ratifica ou retifica o que os estudantes trazem, expandindo a abordagem.
O próximo momento é relativo ao sentir: para introduzir o conteúdo do dia, o docente
primeiramente apresenta-o sob forma de imagem (contextualizando o assunto através de
alguma narrativa elaborada para este fim específico), para que o estudante se vincule
afetivamente ao objeto de conhecimento. Assim, para apresentar os substantivos, os verbos,

46
A Euritmia é uma arte gestual-poético-musical criada por Steiner que desenvolve os gestos e os movimentos do corpo
humano para que sejam a expressão visível e artística daquilo que, na fala e na música, se ouve mas não se vê. Busca, através
de movimentos não arbitrários que acompanham a recitação de uma obra poética ou musical, a expressão formada no
movimento do fluxo de ar no organismo fonador ao emitirmos os fonemas. Cf.: www.sab.org.br/euritmia/euritmia.htm
47
No cérebro humano, a área motora que controla movimentos do braço e mão direitos encontra-se próxima a área de
Broca, setor responsável pelo processamento da linguagem e produção da fala, localizada no hemisfério cerebral esquerdo.
Segundo Greenfield (1991, 1998), essas áreas derivam da mesma estrutura nos níveis ontogenético e filogenético e uma
grande evidência de sua íntima conexão é a facilidade de se redirecionar as funções linguísticas da área de Broca para a
mão, como ocorre na aprendizagem da linguagem escrita ou da linguagem de sinais.
Dulciene Amparo dos Anjos 93

os adjetivos, as preposições, por exemplo, o professor, ciente de que nesse estágio em que se
encontram as crianças ainda não possuem a capacidade de interpretação intelectual, esforça-
se para que elas compreendam a qualidade vinculada a cada uma dessas classes de palavras, e
não o seu conceito, como usualmente se faz nas pedagogias convencionais - já que o conceito,
como já mencionado, é uma abstração que eles só conseguem compreender, de fato, por volta
do terceiro setênio.
A terceira fase da aula é a fase do fazer: o professor solicita que seus estudantes
exercitem, através da escrita e/ou do desenho, o conteúdo apresentado no dia anterior. Nesse
momento, os estudantes constroem o seu material didático, já que não há a adoção de livros
didáticos nessa Pedagogia. À cada Época, os estudantes trabalham na construção de um
caderno no qual, com desenhos e textos coloridos, vão expondo, eles próprios, o conteúdo
trabalhado, de modo que, ao final, eles têm a matéria que foi trabalhada em cada Época
específica sintetizada a partir de sua própria elaboração pessoal.
Assim como acontece na educação infantil, também no ensino fundamental Waldorf os
professores contam histórias ao final da aula principal. Mas, desta vez, elegem não mais contos
de fadas, e sim outros textos gradualmente mais extensos e/ou mais complexos, narrados em
capítulos. Também antes de começar um novo capítulo, os estudantes realizam oralmente uma
retrospectiva do capítulo do dia anterior.
Diante dessa exposição sobre a organização curricular e os procedimentos didáticos da
Pedagogia Waldorf, portanto, é possível identificar o seu compromisso em considerar, no
processo formativo do educando, a sua multimensionalidade – o que aponta para o seu
pioneirismo no sentido de superar a abordagem formalista e instrumental do processo de
aprendizagem, inclusive atribuindo à arte uma dimensão fundamental para o desenvolvimento
integral do educando. Resta, após essas primeiras considerações acerca dos fundamentos
epistemológicos e didático-pedagógicos da Pedagogia Waldorf, compreender em especial
como tais princípios se articulam com o desenvolvimento da expressividade de seus educandos:
tarefa desenvolvida no tópico a seguir.

A PEDAGOGIA WALDORF E O DESENVOLVIMENTO DA EXPRESSIVIDADE


ORAL DOS EDUCANDOS: TECENDO OS FIOS

Com o intuito de compreender a relação entre a Pedagogia Waldorf e o


desenvolvimento do potencial expressivo e comunicativos dos estudantes, recorrerei à
pesquisa realizada em meu doutoramento (Andrade e Silva, 2010), que contou, em sua vertente
empírica, com um estudo de caso realizado com uma classe de 30 estudantes matriculados
inicialmente no 5º ano de uma escola Waldorf localizada na cidade de Botucatu, São Paulo.
Trata-se de uma iniciativa educacional sem fins lucrativos que funciona sob o sistema
de gestão participativa, em conformidade com os pilares estabelecidos por Steiner para as
escolas praticantes dos seus princípios 48. Graças a ajudas financeiras provenientes de

48
Tais pilares são: a associação mantenedora (sociedade civil composta por associados que podem ser pais, professores e
amigos da escola que, além de administrar as receitas e as despesas da escola, responde por ela juridicamente), a direção
pedagógica (formada por um grupo de professores que tem como tarefa gerenciar pedagogicamente a escola) e o conselho
94 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

organismos internacionais que apoiam iniciativas antroposóficas, na época da pesquisa essa


escola conseguia atender a trezentos e cinquenta estudantes oriundos de diferentes segmentos
sociais, sendo considerada uma escola “de integração social”, de acordo com os critérios
elencados por Steiner 49. Dentre os trinta estudantes da classe pesquisada, 30% (ou nove
estudantes) eram beneficiados pelo programa de bolsas concedidas àqueles que integram
categorias menos favorecidas socioeconomicamente.
Para responder à questão norteadora da pesquisa, os dados foram coletados em três
momentos: no início do estudo, para elaborar um diagnóstico inicial da expressão oral dos
sujeitos da pesquisa; ao longo do estudo, para acompanhar o trabalho pedagógico realizado e
verificar as estratégias de intervenção docente face às dificuldades expressivas identificadas
na sondagem inicial; e no final do estudo, para elaborar o diagnóstico final dos estudantes e
detectar o efeito do trabalho pedagógico realizado em seu desenvolvimento expressivo.
As técnicas de coleta utilizadas no momento inicial, como a observação sistemática, a
entrevista semiestruturada com a professora de classe e a pesquisa nos relatórios avaliativos
dos discentes, permitiram que fossem reunidos dados que possibilitaram configurar um
diagnóstico da expressão oral dos estudantes matriculados no 5ºano, a classe de sujeitos da
investigação. Essa sondagem inicial revelou que dois terços da classe (vinte estudantes) se
destacavam por apresentar um bom domínio da oralidade, manifestando-se através de um
discurso bem estruturado e fluente, demonstrando clareza, organização do pensamento e
adequação ao registro de linguagem às situações comunicativas específicas. Além disso, esses
estudantes mostraram-se aptos a destacar o essencial para a comunicação e revelaram ter um
bom domínio de vocabulário e uma ótima dicção. Uma vez que esses dois terços de estudantes
estavam matriculados na escola desde o início de sua escolarização, a variável “bom
desempenho oral versus ano de ingresso na escola” mostrou-se bastante relevante. No rol
desses educandos mencionados, destaca-se uma estudante que fazia parte dos nove
beneficiados pelo sistema de integração social, sendo isenta integralmente da mensalidade
escolar.
Conforme verificado em relatórios avaliativos sobre o desempenho discente elaborados
pela regente da classe, nem sempre esses dois terços anunciados apresentaram essa
espontaneidade ao falar no início de seu processo de escolarização. Para alguns deles, essa foi
uma conquista gradual, de modo que a timidez, a insegurança e o medo da exposição oral foram
identificados como o maior impedimento para uma expressão oral mais espontânea,
apresentando-se (ou já tendo se apresentado, como no caso de alguns estudantes que
compõem o grupo dos dois terços com bom domínio da oralidade) como o fator mais restritivo
à expressividade oral desses estudantes.
A observação pôde atestar que, sobretudo quando a situação de expressão oral esteve
relacionada à exposição na frente da sala, como por exemplo nas ocasiões em que recitavam

de mães e pais (órgão deliberativo da comunidade de pais composto por representantes dos pais ou responsáveis dos
estudantes, eleitos anualmente).
49
Ao aceitar o desafio para a criação da primeira escola Waldorf, Steiner estabeleceu quatro condições: que a escola
atendesse a crianças de qualquer procedência, capacidade, raça e religião; que fosse coeducacional, instituindo a
modalidade de interação sociocomunitária; que possuísse um currículo unificado de doze anos; e que, sem fins lucrativos,
funcionasse sob os moldes da autogestão colegiada.
Dulciene Amparo dos Anjos 95

diante dos demais colegas o seu verso individual 50, nem todos conseguiam, no início do ano
letivo, trazer seus novos versos com espontaneidade, assim como nem todos se apresentaram
confortáveis nessas situações. Mais de um terço revelou dificuldade de encarar os colegas, ora
mantendo a cabeça baixa ao falar – e falando em tom de voz muito baixo, ou falando rápido
demais, de modo que a dicção e a entonação ficassem prejudicadas e que o texto fosse
anunciado de forma muito mecânica –, ora demonstrando muita timidez, deixando flagrar uma
excessiva movimentação corporal. Ou seja, dentre aqueles estudantes identificados como
portadores de várias habilidades com relação à expressão oral, havia um grupo que ainda não
explorava de forma mais plena seu potencial expressivo em função das limitações impostas
pela timidez.
Outra variável que se mostrou significativa foi “dificuldades expressivas versus ano de
ingresso na escola Waldorf”: estudantes que iniciaram a escolarização em escolas
convencionais (quer públicas, quer particulares) apresentavam muitas limitações associadas ao
seu desempenho expressivo e comunicativo oral - o que os diferenciava muito dos veteranos
Waldorf. Suas dificuldades expressivas se relacionavam à falta percepção de si (não saber
anunciar seus incômodos ou opiniões), à falta de percepção do essencial para a comunicação
(ser evasivo, não destacar o fundamental a ser comunicado) e à falta de percepção do outro
(não respeitar os turnos de fala alheios). Além dessas dificuldades, a agressividade e a
dificuldade de ouvir foram também identificados nos estudantes que não haviam iniciado sua
escolaridade em instituições de ensino Waldorf.
Ora, como nas escolas convencionais são priorizadas estratégias relacionadas ao
desenvolvimento da linguagem escrita, e a ênfase do trabalho pedagógico recai sobre os
conteúdos acadêmicos ou conceituais, seus educandos são privados de desenvolver
habilidades essenciais às situações de interação verbal, faltando-lhes uma visão abrangente do
“todo comunicativo” no qual estão inseridos e, consequentemente, uma percepção do outro
enquanto elemento da interlocução. Ademais, em um modelo onde a expressão subjetiva e
pessoal não é estimulada, dificilmente lhes é possível desenvolver um senso de percepção que
os possibilite ter clareza de si. Por outro lado, uma vez que não foram estimulados a perceber
seus incômodos nem encorajados a expressá-los para que pudessem desenvolver um maior
domínio sobre suas emoções (especialmente as mais primitivas) e sobre modos menos
intempestivos de expressá-las, em situações de discordância com o outro, comumente
manifestam-se com violência e agressividade.
Uma vez que, dos nove estudantes beneficiados pelo programa de integração social da
escola, oito apresentavam dificuldades com relação ao seu potencial comunicativo e expressivo
(e inclusive a metade deles compunha o grupo das maiores dificuldades, ainda que estudassem
na escola desde o Jardim de Infância, como uma estudante portadora de necessidades
especiais), a variável classe social também mostrou-se muito significativa. Pertencentes a um
substrato social cuja cultura não é valorizada pelas classes dominantes, e inclusive por serem
portadores de uma variante linguística que é estigmatizada e desprestigiada socialmente

50
Na Pedagogia Waldorf, é prática recorrente que, ao final do ano letivo, a professora de classe elabore um verso para cada
estudante, em seu boletim. No ano letivo seguinte, apenas aqueles cujo aniversário correspondem ao dia de semana
específico da aula se dirigem à frente da sala, juntos, para, individualmente, recitarem, um de cada vez, o seu verso particular.
96 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

enquanto cultura, esses estudantes demonstraram cultivar um sentimento de baixa autoestima


promovido e estimulado pela cultura hegemônica – e até mesmo reproduzido por seus próprios
pais que, igualmente vítimas desse processo, muitas vezes demonstravam desacreditar em sua
própria capacidade cognitiva, refletindo essa crença, mesmo que de modo inconsciente, em
seus filhos – ou para eles.
Em se tratando da segunda etapa da pesquisa, o acompanhamento do trabalho
pedagógico desenvolvido ao longo dos dois anos de observação, pude observar que todo o
planejamento pedagógico da professora de classe para o 5º e o 6º ano, assim como as
estratégias e procedimentos efetivamente observados ao longo das 60 horas de observação
em sala de aula, demonstraram atuar muito favoravelmente no desenvolvimento expressivo
dos estudantes - inclusive no que tange ao atendimento daquelas dificuldades diagnosticadas
na sondagem inicial.
Algo que chamou a atenção logo no início da pesquisa empírica foi a relação implícita
existente entre a estrutura de uma aula de Época na Pedagogia Waldorf e a dinâmica inerente
à comunicação oral. Toda a organização da aula principal, que ocupa, no currículo, a primeira
parte da manhã, como mencionado, parece trabalhar, subliminarmente, a consciência acerca
dos dois polos da comunicação oral. Seguindo a mesma disposição de um diálogo, a aula é
estruturada de modo a configurar uma alternância entre o falar e o ouvir, revezando-se
professor e estudantes. Enquanto no momento reservado às atividades do pensar, no qual se
dá a retrospectiva, os estudantes detêm a palavra, na etapa seguinte, reservada ao sentir, cabe
ao professor apresentar, em forma de imagem, o conteúdo. Novamente, após a etapa do fazer,
na qual o estudante trabalha o aspecto volitivo com as atividades de desenho e de escrita, dá-
se início, no momento da narração história, a uma nova retrospectiva realizada pelos estudantes
– desta vez referente ao trecho da história do dia anterior –, a que se segue finalmente, a
continuação da narrativa realizada pela professora. Desse modo, o fato de os estudantes
utilizarem - e muito! - a linguagem oral em sala de aula, quer em atividades artísticas envolvendo
a fala, quer em atividades de caráter discursivo, desfrutando de quantidades de turnos de fala
proporcionais aos utilizados por sua professora, evidencia que a fala, na educação Steineriana,
não consiste em uma atividade eminentemente docente.
No rol das atividades regulares envolvendo a linguagem oral, portanto, destaca-se a
retrospectiva do conteúdo e do conto do dia anterior. O momento da retrospectiva mostrou-
se de fundamental importância por possibilitar que o estudante se exercitasse na construção
de seu próprio discurso: não se trata de reproduzir o que o professor anunciou, mas sim de
expor o resultado de uma atuação pessoal para com o conteúdo trabalhado (FEWB, 1999): ao
trazer o que foi vivenciado no dia anterior com suas próprias palavras, a partir de uma
elaboração particular e através de recursos e estilos também particulares, os estudantes são
estimulados, diariamente, a exercitar a sua expressão pessoal.
Nesses momentos destinados aos exercícios retrospectivos, as mãos levantadas para
pedir a palavra ilustrava o desejo, sobretudo dos veteranos Waldorf, em participar da atividade.
E, ao receberem da professora a permissão para darem sua contribuição, geralmente o faziam
demarcando bem claramente a sucessão temporal dos acontecimentos narrados, evidenciando
ter grande domínio da estrutura narrativa. Os estudantes demonstravam relembrar detalhes
Dulciene Amparo dos Anjos 97

muito particulares sobre o conteúdo conceitual e surpreendiam pelo emprego adequado do


vocabulário específico a determinados temas. Também na retrospectiva do conto literário, era
evidente o quão a narrativa parecia significativa para os educandos: havia um envolvimento
dessas crianças com o que estavam falando, elas mostravam-se solidárias a cada personagem
e, quando mencionavam seus sentimentos ou dificuldades, pareciam estar falando de suas
próprias questões - ou das dificuldades de alguém que lhes era muito próximo.
Outro elemento que chamou logo a atenção nas primeiras observações foi a presença
de diferentes linguagens artísticas no cotidiano escolar. Vale, aqui, chamar a atenção que, além
de serem desenvolvidas nas aulas avulsas que seguem a aula principal, as atividades artísticas
também são realizadas na própria dinâmica da aula principal, quer no contexto das atividades
rítmicas, quer como proposição docente no planejamento das referidas Épocas, atuando muito
favoravelmente no propósito de desenvolver as habilidades comunicadoras necessárias a uma
boa expressão oral, assim como no domínio da timidez, da segurança e da autoconfiança face
à exposição a um público ouvinte.
Ao longo dos dois anos de observação sistemática no 5º e 6º anos escolares, muitas das
atividades artísticas realizadas na parte rítmica da aula tiveram um público efetivo, já que é uma
prática corrente nas Escolas Waldorf a apresentação de muitas das atividades praticadas na
aula para a comunidade escolar. Nesses encontros semanais, todos os estudantes do ensino
fundamental (e todos do ensino médio, em um outro dia) elegem uma de suas práticas rítmicas
cotidianas para demonstração à comunidade interna. E a partir dessas apresentações para um
público interno, vão se familiarizando para as apresentações maiores que também são
realizadas nas festas comemorativas de cada estação do ano - desta vez abertas não apenas à
comunidade escolar, mas também aos pais e visitantes em geral, como foi o caso do teatro
folclórico do Boi de Mamão e do projeto do Circo – este último com uma montagem que
atravessou praticamente todo o 6º ano letivo.
Ainda que apresentadas nas festas de estação, é importante mencionar que o grande
objetivo dessas atividades não era o de preparar um espetáculo, mas proporcionar vivências
individuais e coletivas que atuassem no desenvolvimento de suas aptidões e habilidades físicas,
emocionais e sociais. No caso específico do Circo, como sinalizado, o processo contou com o
tempo necessário para o despertar das aptidões de cada estudante, para a escolha coletiva do
tema e para a construção grupal de todo o roteiro.
Ao incorporar ao cotidiano escolar as atividades artísticas, de modo a incluir a arte, as
emoções e os sentimentos num espaço onde, tradicionalmente, graças ao advento do
cientificismo, esses elementos têm ficado alheios ao cotidiano escolar, a Pedagogia Waldorf
mostrou-se também particularmente favorável ao desabrochar do potencial comunicativo e
expressivo dos estudantes. Além de trabalhar as habilidades comunicadoras da fala (como
articulação, dicção, tom de voz, postura) e favorecer a expressão pessoal, tais atividades, assim
como a retrospectiva, possibilitavam o exercício de exposição pública, dando-lhes a
oportunidade de se confrontarem com a timidez e o medo de se expor, identificados como um
grande limitador da expressão oral.
Estudiosos que se debruçaram à importância das atividades artísticas no
desenvolvimento da criança (Lowenfeld; Brittain, 1977; Slade, 1978) esclarecem que a arte, em
98 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

suas múltiplas linguagens, como a literatura, o teatro, a dança, a música, a pintura, o desenho,
além de trabalhar capacidades psíquicas que influenciam a aprendizagem (como a percepção, a
imaginação, a observação, a reflexão, o raciocínio, a organização do pensamento) e
proporcionar um maior domínio do próprio corpo, possibilita a criança exteriorizar, através de
diferentes linguagens, não somente o que pensam e sentem, mas também elementos de sua
própria personalidade - o que lhes amplia as possibilidades expressivas, potencializando a sua
expressividade oral.
Cumpre ainda observar que, no próprio trabalho com a Língua Portuguesa, também se
destacaram estratégias especificamente relacionadas ao desenvolvimento da expressão oral
dos estudantes. Diferentemente do que tem sido usual no sistema convencional de ensino, no
qual a ênfase de todo o trabalho com essa disciplina recai sobre as habilidades do ler e do
escrever, e na crença de que o ensino de teoria gramatical é suficiente e necessário para
desenvolver essas habilidades linguísticas, o currículo Waldorf evidencia uma real orientação
para que as quatro habilidades da língua (o ouvir, o falar, o ler e o escrever) sejam trabalhadas
com a mesma ênfase e prioridade – e convoca a que todo conteúdo gramatical seja um
facilitador – e não a finalidade – desse processo.
Chamou a atenção o enfoque para que toda a produção textual do estudante, quer em
linguagem escrita, quer em linguagem oral, estivesse voltada ao desenvolvimento de uma
maneira individual e particular de falar e de se expressar - a exemplo do que também acontece
com as expressões artísticas. Assim, embora as diretrizes curriculares para o 5º e o 6º anos
escolares com a modalidade oral, em seus aspectos discursivos, não enfatize, ainda, a
necessidade de se promover atividades que exijam do educando um julgamento pessoal,
variadas foram as indicações para que o estudante pudesse, nesse período, familiarizar-se com
situações de exposição nas quais necessitasse se expressar oralmente.
Finalmente, na última etapa da pesquisa empírica, as mesmas técnicas de coleta
utilizadas na sondagem inicial possibilitaram configurar, desta vez, um diagnóstico final da
expressão oral dos estudantes. O objetivo foi identificar os efeitos das intervenções
pedagógicas realizadas pela professora da classe ao longo dos dois anos letivos e, em especial,
verificar se houve algum progresso no que diz respeito às dificuldades localizadas por ocasião
do diagnóstico inicial dos estudantes matriculados no 5º ano.
A sondagem final revelou que houve um crescimento significativo do grupo como um
todo com relação às habilidades comunicativas e expressivas. Desde uma postura mais solta,
passando por um maior domínio da gesticulação corporal e um maior controle do tom de voz,
até a segurança geralmente manifesta nas situações de interação e/ou apresentação oral em
classe, os estudantes, que ao final da pesquisa estavam cursando o 6º ano, demonstraram um
maior domínio com relação a suas habilidades comunicadoras. Também a qualidade de seus
enunciados mereceu destaque pela clareza, organização e estruturação, evidenciando a
capacidade de reflexão e/ou autorreflexão desses estudantes ao anunciarem com fluidez e
desenvoltura o que pensavam, o que sabiam, o que queriam, o que gostavam ou não. Muitos
dos mais tímidos também progrediram no sentido de adquirir maior desenvoltura e naturalidade
nas situações de exposição oral - embora não demonstrassem ter superado totalmente suas
dificuldades nesse âmbito. Mas era notório que já demonstravam avanços significativos nessa
Dulciene Amparo dos Anjos 99

perspectiva: o movimento que demonstraram realizar, o quanto que conseguiram avançar


numa perspectiva qualitativa e individualizada, é que foi levado em consideração pela pesquisa.
Conforme esclareceu a professora por ocasião da entrevista final, embora, na Pedagogia
Waldorf, toda a orientação curricular tenha o objetivo de criar condições para que os
estudantes desenvolvam a sua expressão pessoal, não necessariamente se espera que todos
tenham a mesma facilidade ou o mesmo desempenho com relação a esta habilidade. Busca-se
oferecer oportunidades para que todos possam desenvolver a sua expressividade através do
estímulo às vivências de diferentes linguagens, quer através das variadas atividades artísticas
do currículo, quer através do grande incentivo ao exercício sistemático e regular com a
linguagem verbal, com a finalidade de propiciar que cada individualidade em formação possa
se expressar em maior consonância com suas aptidões pessoais, pois nem todos aprendem
e/ou se desenvolvem da mesma maneira, através dos mesmos recursos, nem em um mesmo
ritmo.
Uma vez que a variável classe social se destacou como uma variável significativa quanto
ao desempenho oral dos sujeitos da pesquisa, vale aqui fazer algumas observações acerca do
perfil final dos estudantes bolsistas. À exceção da estudante que, desde o início da pesquisa, já
se destacava por uma boa expressão oral, dos bolsistas que apresentavam dificuldades
expressivas (quatro portadores das maiores dificuldades), três apresentaram avanços no que
tange ao seu potencial expressivo e comunicativo, embora esses avanços, que se manifestaram
de forma muito diferenciada, e às vezes bem sutilmente (como é o caso das conquistas da
portadora de necessidades especiais), não os possibilitassem apresentar um desempenho oral
equivalente à maioria da classe. Em sua última entrevista, a professora regente também
mencionou as conquistas asseguradas por dois desses educandos com o trabalho realizado com
o Circo:
Eu vi uma transformação muito grande neles. Eles ficaram muito mais confiantes de si.
Mesmo naqueles que nem chegaram a falar propriamente no espetáculo, era visível a
transformação. Jorge 51, por exemplo, é um menino muito tímido e, no Circo, ficou com o
trabalho do malabarismo – e também com a parte da acrobacia. Ele não se expôs
verbalmente para o público em nenhum momento, mas a postura dele, hoje, é totalmente
diferente mesmo em se tratando da fala. Hoje eu fiquei impressionada quando ele pediu
para apresentar o diálogo na sala, na frente, porque ele j-a-m-a-i-s fez isso nesses seis anos
de grupo! Então, pensei, salve o Circo! Olha o que fez para esse menino!
Já a Carina, é outra história. No caso dela, ela precisou muito exercitar a fala, não no
espetáculo em si, mas no processo de construção do Circo. Como ela brilhou no Circo por
conta do movimento (o movimento dela era impecável), isso a colocou numa situação onde
ela precisava falar, porque ela precisava ensinar os outros colegas. E como isso desenvolveu
a sua expressão oral! Ela precisava fazer correções para os colegas que não tinham ainda a
habilidade dela e, com isso, todo mundo precisou entender o que ela falava (porque, às
vezes, é realmente é difícil compreendê-la, ela tem dificuldade de articulação e tem
acompanhamento com fonoaudióloga). E está segurando essa conquista: tem conseguido
se expressar melhor em outras situações, na sala e fora da sala.

Foi realmente notório como a experiência como as dramatizações, o Teatro do Boi de

51
Para preservar as crianças informantes da pesquisa, optei por substituir aleatoriamente seus nomes.
100 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

Mamão e o Circo demonstraram ter exercido um significativo efeito para que esses estudantes
conquistassem novas possibilidades expressivas. O primeiro estudante mencionado, por meio
das linguagens circense e dramática, através da possibilidade de representar situações ou
papeis, foi estimulado a se confrontar com situações que, no contexto de sua vida social, o
constrangiam e/ou o ameaçavam. Assim, pôde experimentar, nas situações cênicas, as
possibilidades e soluções vislumbradas por ocasião desses “jogos”, desenvolvendo um
sentimento de segurança e de confiança em si mesmo que, pouco a pouco, lhe possibilitou, em
outros contextos, apropriar-se desse arsenal já organizado em sua experiência psicoemocional,
ampliando as suas possibilidades expressivas.
O processo com o Circo também exerceu um significativo efeito para que a estudante
mencionada conquistasse novas possibilidades expressivas. Através de uma das modalidades
circenses, a estudante (que inclusive apresentava dificuldades em algumas habilidades lógico-
matemáticas e linguísticas) pôde expressar o seu potencial e ter a oportunidade de ver também
valorizada uma de suas aptidões pessoais. Certamente o sentimento de realização ali
experimentado, ao fortalecer a sua autoestima e a autoconfiança, lhe possibilitou expandir essa
conquista para outras instâncias de sua vida, ampliando o seu repertório expressivo inclusive
na linguagem oral.
Outras linguagens artísticas, a exemplo da música, do desenho e da pintura foram
também atuantes no propósito de proporcionar experiências de autossuperação e de conquista
de novas possibilidades que intercederam favoravelmente nas habilidades comunicadoras e
expressivas dos estudantes. Assim, a arte, que nessa pedagogia extrapola, como assinalado, a
prática aleatória de atividades artísticas, consistindo no esteio fundamental dessa pedagogia,
demonstrou exercer, a partir do que foi possível verificar com a pesquisa, um papel essencial
no desenvolvimento da expressividade do educando como um todo - o que repercutiu,
inclusive, no desenvolvimento de suas habilidades relacionadas à linguagem verbal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve por objetivo compreender as relações entre a Pedagogia Waldorf e o
desenvolvimento da expressão oral dos estudantes, recorrendo, para tal, a um estudo de caso
realizado com uma classe de estudantes de uma escola Waldorf localizada no estado de São
Paulo. A partir do diagnóstico da expressão oral dos estudantes ao início e ao final da pesquisa,
o estudo empírico buscou verificar os efeitos das intervenções pedagógicas realizadas ao longo
de dois anos letivos no desempenho linguístico desses educandos, bem como localizar, através
de observação sistemática em sala de aula, do exame do currículo para as respectivas séries
escolares e do planejamento docente, aspectos específicos da organização didática e
metodológica do ensino Waldorf que pudessem estar associados a esse desenvolvimento.
O diagnóstico inicial revelou que, muito embora a maioria dos estudantes da classe
tenha demonstrado um bom domínio da oralidade, manifestando-se com clareza, organização
e adequação ao registro específico de linguagem requerido pelas situações comunicativas
promovidas, a timidez, localizada como o maior impedimento para o domínio de uma expressão
oral mais espontânea na classe, se apresentava ou já havia se apresentado como um fator
Dulciene Amparo dos Anjos 101

restritivo também à expressividade oral de alguns desses estudantes. E, uma vez que, dentre
os estudantes beneficiados pelo programa de integração social da escola, 88,88% apresentaram
dificuldades com relação ao seu potencial comunicativo e expressivo, o fator classe social
revelou-se muito significativo com relação ao desempenho oral da classe.
Também a variável ano de ingresso na escola repercutiu na configuração desse
diagnóstico, apontando uma grande diferença entre os matriculados na escola Waldorf desde
o início de sua escolarização e aqueles que chegaram para a classe no meio do ensino
fundamental. Além de não terem manifestado facilidade para exprimirem seus pensamentos e
seus sentimentos, demonstrando muita dificuldade para destacar o objetivo e essencial para a
comunicação, os novatos oriundos de escolas convencionais frequentemente utilizavam a fala
de modo agressivo e/ou desrespeitavam os turnos de fala alheios, evidenciando uma grande
dificuldade de ouvir e partilhar o espaço de enunciação – o que os diferenciava muito dos
veteranos da classe.
Desde as primeiras sessões de observação, foi possível constatar que os estudantes
usavam muito a linguagem oral, tanto em atividades artísticas envolvendo a fala, quanto em
atividades de caráter discursivo, desfrutando de uma quantidade de turnos de fala
proporcionalmente correspondentes àqueles utilizados por sua professora, o que evidenciou
que a fala, na Pedagogia Waldorf, não consiste em uma atividade eminentemente docente: ao
contrário, o elemento rítmico da comunicação oral, que se expressa através da dinâmica do
ouvir (contração) e do falar (expansão) mostrou-se um elemento chave em todo o processo de
aprendizagem – o que ilustra a importância atribuída, nessa pedagogia, aos aspectos
comunicativos e expressivos em linguagem oral.
Com relação ao trabalho específico com a língua materna, foi possível identificar que
havia um planejamento sistemático para o trabalho com a modalidade oral, de modo que o ouvir
e o falar eram, ao mesmo tempo, exercitados em suas especificidades, com a mesma ênfase e
prioridade com que eram tratadas as outras habilidades linguísticas.
Por sua vez, o diagnóstico final possibilitou constatar que houve um crescimento
significativo do grupo com relação às suas habilidades comunicadoras, quer na qualidade dos
enunciados, quer na segurança e desenvoltura manifestas nas ocasiões de exposição oral -
inclusive em se tratando daqueles que haviam se destacado por apresentarem maior timidez.
Entretanto, por se tratar de uma classe que, além de ser composta por indivíduos que possuem
singularidades e histórias de vidas diferenciadas, atende a estudantes com realidades
socioeconômicas e culturais distintas e também convive com indivíduos portadores de
habilidades e necessidades cognitivas e psicoemocionais específicas, essas conquistas não
foram asseguradas de modo uniforme. Os progressos relacionados ao desempenho
comunicativo e expressivo dos estudantes indubitavelmente foram assegurados: todos
demonstraram estar em um movimento crescente nesse sentido, embora o desenvolvimento
de alguns estudantes tenha sido mais expansivo.
Um destaque coube ao papel das atividades artísticas do currículo Waldorf no
desenvolvimento da expressividade desses estudantes. Uma vez que as disciplinas artísticas
buscaram estimular que o estudante exteriorizasse, através de seus veículos específicos, a sua
vivência interior com os temas em questão, elas exerceram um papel fundamental no sentido
102 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

de abrir canais que possibilitassem aos educandos a expressão de suas percepções e de seus
sentimentos através de diferentes linguagens. Evidentemente, ao proporcionar o
desenvolvimento de uma expressão pessoal plena de sentido e significado, essas atividades
acabam por favorecer que esses estudantes, gradualmente, se apropriassem das ferramentas
que fortaleceram o seu potencial expressivo como um todo, inclusive o que se manifesta
através da fala.
Assim, quer pelas habilidades comunicadoras que exercitaram (nesse caso quando essas
atividades estavam diretamente associadas à linguagem oral, envolvendo dicção, articulação,
tom de voz, postura, etc), quer pelas possibilidades expressivas globais que evocaram (quando
não necessariamente a linguagem oral era requisitada, mas, ainda assim, o indivíduo era
clamado a se expressar em alguma linguagem), quer pelos conteúdos emocionais que
mobilizaram (quando era favorecido o confronto e a superação de determinadas limitações não-
físicas, como timidez, medo, insegurança, autoestima...), essas atividades demonstraram
exercer um importante papel nas conquistas asseguradas pelos estudantes no que diz respeito
à sua expressividade - inclusive a que se manifesta através da linguagem oral. O que a pesquisa
empírica revelou foi que, muitos dos estudantes que demonstravam muita timidez, ou
mostravam-se inseguros e pouco confiantes para expressarem nas situações em que lhes era
demandada o uso da palavra falada, graças às possibilidades asseguradas em uma ou outra
modalidade de expressão artística, foram gradualmente expandindo essas conquistas a outros
domínios expressivos, inclusive o da fala, e já evidenciavam, por ocasião da sondagem final,
maior autoconfiança e espontaneidade para enfrentarem as situações de exposição oral. A
dimensão estética dessa pedagogia, portanto, se destacou no que tange às relações entre
Pedagogia Waldorf e desenvolvimento da expressão oral.
A arte, como observado, é o grande instrumento da Pedagogia Waldorf. Ao destacá-la
como pilar essencial para fundamentar a sua Educação e ao elegê-la como estratégia primordial
para mediar a integração das faculdades humanas do sentir, do pensar e do fazer, Steiner atribui
à arte o papel que, desde Platão, lhe era reservado. Mostrou-se, pois, como um dos pioneiros
(senão o primeiro) a conceber uma educação verdadeiramente voltada para a formação
estética, articulando, no currículo vivo praticado pelos professores de sua pedagogia, essa
intencionalidade.
Entretanto, o que a pesquisa empírica também sinalizou é que, subjacente a esses
aspectos pragmáticos do currículo, e que comprovadamente atuaram de modo a desenvolver
o potencial comunicativo e expressivo dos estudantes, há algo que potencializa e amplia o
espectro de ação dessas atividades - e é exatamente nesse “algo” que localizo uma grande
chave para a compreensão do binômio “Pedagogia Waldorf e desenvolvimento expressivo dos
educandos”. Esse algo tem a ver com a compreensão que os seus professores demonstram ter
sobre o que é o educar, sobre quem é o estudante que se porta diante de si, sobre o sentido e
o significado da sua mediação pedagógica.
Para o professor Waldorf, o estudante não é visto como um depositório a quem se deve
oferecer, através de estratégias impessoais e desconectadas das suas vivências e dos seus
interesses, conteúdos e informações. Ele é uma essência individual única, de modo que seu
processo de educação deve favorecer que sua singularidade possa se expressar e se
Dulciene Amparo dos Anjos 103

desenvolver em suas múltiplas potencialidades e dimensões. Dessa concepção advém um


profundo respeito que os educadores nutrem por esse ser individual em desenvolvimento, e
isso institui, no setting educativo, uma atmosfera de confiança e acolhimento à diversidade - o
que é fundamental para possibilitar o desabrochar das diversas habilidades do educando e
estimular que, ao apropriar-se do seu SER, esse sujeito desenvolva uma expressão pessoal e
apropriada para, inclusive, colocar-se oralmente com coerência, adequação e segurança.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Língua Portuguesa – PCN-LP
chamam a atenção para o fato de que o expressar-se oralmente é algo que só é possível
desenvolver em um ambiente acolhedor e favorável à manifestação do que se pensa, do que
se sente e do que se é: “o desenvolvimento da capacidade de expressão oral do aluno depende
consideravelmente de a escola constituir-se num ambiente que respeite e acolha a vez e a voz,
a diferença e a diversidade” (Brasil, 1997, p.49). Com a consciência do potencial único que cada
educando tem a desenvolver, e ajudando-os na tarefa de torná-los o que eles realmente são, a
professora da classe atuou, ao longo dos dois anos de investigação, na direção de favorecer
que seus educandos caminhassem em direção a encontrar e afirmar a sua própria identidade, a
sua própria voz.
Ao final, o que a pesquisa empírica demonstrou acerca do que é favorecido aos
estudantes no ambiente Waldorf extrapolou o domínio do desenvolvimento da expressividade
dos educandos. Como vimos, as atividades artísticas, sobretudo o Circo, também favoreceram
o exercício do respeito mútuo e da solidariedade entre os estudantes, suscitando, nesses
indivíduos, a sua humanidade. Não é por acaso, pois, que as pesquisas mencionadas na
introdução desse texto sobre o perfil dos ex-estudantes Waldorf revelam que, além de
evidenciarem ter um bom domínio das habilidades comunicativas, esses indivíduos
demonstram ser “guiados por uma bússola moral interior” que imprime um teor ético às suas
condutas em sua vida profissional e privada. O desenvolvimento da expressividade, pois, é
apenas um pretexto do que a educação estética Waldorf pode proporcionar ao
desenvolvimento global do educando.
Creio que, através do exposto, é possível compreender o motivo pelo qual a Pedagogia
Waldorf, extrapolando a dimensão meramente instrumental do ensino, tem criado meios para
que seus estudantes, através da sua educação integradora e estética, possam desenvolver as
várias instâncias constitutivas do seu Ser em (trans)formação – o que lhes tem assegurado uma
autoexpressão mais inteira e significativa, que inclusive tem se manifestado através de uma
desenvoltura em seu desempenho comunicativo oral. Do latim expressione, “expressão”, em seu
sentido primordial, significa “pressão para fora”. Se relacionarmos a acepção desse vocábulo
com o correspondente etimológico de “educação” – do latim educere: “conduzir de dentro de”,
identificaremos que, em seu significado essencial, a educação traz para si o compromisso de
promover o desabrochar da autêntica expressão do sujeito, de modo a criar condições para que
a sua interioridade possa emergir de forma plena. Afinal, só um sujeito que se constitui
enquanto tal é que verdadeiramente poderá se apropriar da sua expressão em plenitude. E o
que a pesquisa revelou é que esse tem sido um compromisso da Pedagogia Waldorf.
104 Quando o falar quer dizer sobre a Pedagogia Waldorf: considerações sobre a contribuição da educação
steineriana para o desenvolvimento da expressão

REFERÊNCIAS
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oral dos educandos: um estudo sobre a Pedagogia Waldorf. 2010. 370 f. Tese (Doutorado em
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São Paulo: Antroposófica, 2003.
Vânia Santos de Souza e Lilian Aparecida Carneiro Oliveira 105

8 REFLEXÕES SOBRE A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA


NO CONTEXTO ESCOLAR
Vânia Santos de Souza 52, Lilian Aparecida Carneiro Oliveira 53

INTRODUÇÃO

Compreendendo o papel da educação no enfrentamento das desigualdades em seus


mais diversos aspectos, e como está se relaciona com a perpetuação de interesses da ideologia
hegemônica. Afinal a questão social está associada a uma gama de situações de
vulnerabilidades que afetam a vida das pessoas perpetuando desigualdades, infligindo
violências e violando direitos.
No Brasil de desigualdades sociais, econômicas e educacionais tão marcantes, fica
evidente a extrema desigualdade nos mais diversos contextos, inclusive no contexto
educacional. Diante desse cenário, justificamos a relevância do tema da pesquisa que busca
trazer reflexões da Pedagogia Histórico-Crítica – PHC no contexto escolar, com o objetivo de
que a partir dessa perspectiva os estudantes nessas condições de desigualdade possam
vislumbrar no conhecimento adquirido nos espaços escolares, um conhecimento que faça
sentido para eles, contribuindo com sua formação para continuidade dos estudos, para o
trabalho e para a vida.
Dessa forma, analisaremos como a PHC se fundamenta na ciência e no sujeito humano
(Saviani, 2012), buscando uma base em contraste com a teoria de ensino que aliena o aluno,
limitando-o às adaptações impostas pela lógica capitalista (Duarte et al., 2020). Portanto, é
preciso compreender os fundamentos da PHC como parte do movimento contra hegemônico
e o arcabouço teórico da pedagogia socialista, a partir de uma leitura marxista do conhecimento
e da sociedade, para a transformação da sociedade e dos indivíduos que a integram (Saviani,
2012).
As predisposições pedagógicas podem ser um caminho para esta superação, pois se
baseiam em movimentos filosóficos, sociais e antropológicos, atendendo ao momento histórico
no qual estão entrepostas. Estas instigam as práticas pedagógicas que estão conectadas às
perspectivas da sociedade. Assim, é imperativo que os educadores estejam familiarizados com
as tendências pedagógicas, para que estes possam construir conscientemente a sua própria
trajetória político-pedagógica. Mediante estes conhecimentos poderão propor transformações,
modificando a prática educativa em uma ação efetiva para que o ensino consiga transpassar as

52
Vânia Santos de Souza é especialista em Psicopedagogia e Inteligência Emocional pela Faculdade Descomplica; em
Gestão Educacional: Supervisão, Inspeção e Orientação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de
Minas Gerais – IFSULDEMINAS; em Práticas Assertivas da Educação Profissional Integrada à pelo Instituto Federal da Bahia
– IFBA; em Gestão Escolar pela Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI; pedagoga pela Universidade Norte do
Paraná – UNOPAR. E-mail: vaniass1914@gmail.com.br.
53
Lilian Aparecida Carneiro Oliveira é mestra em Educação pela Universidade Federal de Viçosa – UFV e pedagoga do
Instituto Federal Sudeste MG – campus Rio Pomba. É tutora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul
de Minas Gerais – IFSULDEMINAS, campus Três Corações. E-mail: liliancarneiro085@gmail.com.
106 Reflexões sobre a Pedagogia Histórico-Crítica no contexto escolar

proporções do espaço escolar. O educador que experienciar a teoria que embasa sua prática,
pode mudar a consciência dos alunos e demais colegas, alcançando condições sociais que
tornam o processo de ensino e aprendizagem muito importante, propício à transformação da
educação e da sociedade atual.
Para atingir tais objetivos, realizamos uma pesquisa bibliográfica com base em estudos
que problematizam a relevância do método da PHC. Em seguida, cruzamos as informações
obtidas com as várias experiências partilhadas nesses espaços, com intuito de provocar novas
construções e novos diálogos.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Na tentativa de superar a pedagogia tradicional e acrítica no Brasil nasce a PHC, teoria


desenvolvida pelo educador Dermeval Saviani, com o intuito de entender os problemas
educacionais brasileiros em um cenário onde a educação não correspondia aos anseios e
necessidades políticas e socioculturais. Para facilitar a compreensão do debate em torno da
temática, vamos realizar uma breve contextualização do que é a pedagogia histórico crítica. De
acordo com Saviani (2008), a PHC traz em si a compreensão da determinação operada pela
sociedade sobre a educação. Pois ela é construção de conhecimento coletivo, é partilha de
saberes e ao mesmo tempo, é acúmulo de habilidades para construção de um bem comum, para
a construção sobre maneira de um bem que exige de nós, habilidades emocionais e habilidades
intelectuais, que transformam o nosso eu e que incidam na coletividade a qual pertencemos.
É importante ressaltar, que a PHC é um processo de ensino e aprendizagem, baseado
em cinco momentos não lineares, sendo eles: prática social (ponto de partida); problematização;
instrumentalização; catarse; prática social (ponto de chegada), não foi pensado para ser
aplicado passo a passo ou de forma uniforme em todos os contextos. Para entender a
fundamentação teórica do método da PHC, é imperativo a compreensão da lógica (concepções
teóricas) que sustenta essa lógica. Caso não tenhamos clareza nessas definições, será apenas
mais um método de ensino tradicional. Dessa maneira, delinearemos cada momento
mencionados por Saviani (2008).
A prática social é o ponto de partida para PHC. Segundo Araújo (2009, p.13) “a prática
social inicial implica em conhecer a experiência de cada aluno, sua memória e seu saber prático”.
Não é o cotidiano simplesmente, é pensada como a forma como nos relacionamos com a nossa
realidade (Por que vamos ao trabalho? Por que esse trabalho existe? Qual o nosso papel na
nossa família em nosso bairro?) Aqui há o pressuposto que o aluno precisa do professor e da
escola para olhar e entender a realidade. O aluno vê a realidade de forma caótica, daí a
importância do professor.
Problematização é o momento em que o professor deve oferecer ao aluno todos os
meios para que ele possa entender o conteúdo que está sendo trabalhado vinculando com a
sua prática social. De acordo com Gasparin (2007), a problematização representa o momento
do processo pedagógico em que a prática social é posta em questão, analisada, interrogada,
levando em consideração o conteúdo a ser trabalhado e as exigências sociais de aplicação desse
conhecimento.
Vânia Santos de Souza e Lilian Aparecida Carneiro Oliveira 107

Instrumentalização envolve possibilitar aos alunos os instrumentos teóricos e práticos


necessários para resolver os problemas detectados na prática social. Não apenas no sentido
tecnicista. São recursos culturais necessárias a conscientização.
Já a catarse é o momento mais importante do trabalho educativo. Podemos resumir a
catarse em uma palavra “conscientização”, é o momento em que a consciência se eleva, uma
nova forma de conceber o mundo de uma maneira mais crítica e fundamentada. A catarse é a
transformação ao mesmo tempo, intelectual, emocional, educacional, política e ética. Uma nova
forma de entender o mundo, de maneira crítica e fundamentada, que é conseguida por toda
instrumentalização fornecida pelo professor. Gasparin e Petenucci (2008, p. 5) apontaram que
nesse momento os alunos assumem uma "nova postura mental, combinando vida cotidiana e
ciência em um novo pensamento global concreto. É uma elaboração psicológica do conceito de
novo conteúdo". Portanto, os professores devem utilizar ferramentas de avaliação para
verificar se o conteúdo é assimilado e se os alunos apresentam alguma dificuldade, ou se é
possível avançar no processo de ensino.
Prática social é o ponto de chegada. Não é a mesma prática social do início, de uma
realidade caótica. Mas sim uma nova prática social compreendida de maneira organizada.
Reunindo nesse momento condições para agir e transformar a realidade. Pressuposto: o aluno
recebeu a fundamentação suficiente para olhar e entender a realidade. Dessa forma a prática
social torna-se mais organizada e o aluno alcançará um nível mais elevado em que aluno e
professor possuem conhecimentos para entender essa realidade a qual estão submetidos.
Na perspectiva da PHC, a educação não envolve apenas conhecimento cientifico
(transmissão de conteúdo). Objetiva conscientizar as pessoas sobre o seu papel na sociedade e
no mundo, sendo, portanto, agentes sociais ativos. Dessa maneira, a PHC articula educação e
sociedade, ou seja, seu contexto sócio-histórico, o que torna a PHC essencialmente diferente
da Pedagogia Tradicional – PT, que se baseia em conteúdos acríticos, sem considerar a
realidade e o social dos educandos e reproduzem a ordem social vigente.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Depois de entender a educação como instrumento de conscientização, devemos


lembrar que os cinco momentos do desenvolvimento do método da PHC, não devem ser
lineares, antes devem ser articulados entre si. A PHC é fundamentada na dialética. O método
muda de acordo com a situação e da realidade social na qual o aluno está inserido. O que existe
são passos, caminhos ou momentos sugeridos. A PHC é uma teoria, um modo de planejar, não
uma técnica automática ou modo de executar.
Nesse contexto, a educação não envolve apenas conhecimento cientifico (transmissão
de conteúdo), antes objetiva conscientizar as pessoas sobre o seu papel na sociedade e no
mundo (agentes sociais ativos). Preocupa-se com a relação entre a escola e a realidade social e,
também, como a escola pode formar agentes sociais ativos de transformação. Não é pensar
apenas a sala de aula ou o conteúdo, mas sim na articulação de educação e sociedade.
Nesse contexto, a partir das reflexões advindas da minha prática pedagógica e
observações enquanto Agente da Educação, no município de Salvador-Bahia, e a conclusão da
108 Reflexões sobre a Pedagogia Histórico-Crítica no contexto escolar

graduação em Pedagogia no ano de 2022, na qual pude vivenciar as situações precárias e de


carência no que se refere a assuntos como saúde, educação, alimentação, higiene, e outras na
qual vivem os alunos e suas famílias, instigaram- me a buscar mais conhecimento sobre como
fazer com que a educação para esse público pudesse ter mais sentido para suas trajetórias, a
partir de conhecimentos que partissem da realidade social deles e que pudessem ser
instrumento de transformação social para estes e suas famílias.
Partindo dessas ideias, foram propostas experiências que fossem subsidiadas pela PHC
durante o estágio de conclusão do curso de Pedagogia. Dentre essas experiências foi proposto
a pesquisa-ação, que foi concretizada neste estudo mediante cinco fases: 1) articulação: com o
mote de reunir 30 (trinta) pessoas e saber a aplicabilidade da PHC no cotidiano da sala de aula;
2) planejamento: tomou-se a decisão de realizar aulas mais expositivas, onde a realidade do
aluno é trazida para o centro do aprendizado; 3) divulgação: mediante o compartilhamento dos
banners virtuais pelo aplicativo multiplataforma de mensagens WhatsApp e nas redes sociais
virtuais, Instagram e Facebook de pessoas que participam do método da PHC; 4)
operacionalização: professores e alunos foram sensibilizados para a importância urgente de
realizar debates profícuos quanto à defesa de uma educação pública, dentro da concepção
crítica, de forma coletiva e participativa, pois uma resistência individual não tem força para
contrapor às atuais políticas públicas e; 5) avaliação: registrou-se o interesse demonstrado
pelos professores e alunos, contribuiu para aplicabilidade dos critérios da PHC, coletando as
impressões de todos os agentes educativos envolvidos.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A experiência vivenciada e relatada indica que o método da PHC é uma teoria aplicável
a qualquer segmento, nível e modalidade de ensino. Em qualquer área, matemática, literatura,
português, dentre outras disciplinas. É indispensável vincular a teoria à pratica social global,
empregando instrumentos para compreender a nossa realidade. O objetivo central da PHC é a
elevação do nível cultural das massas para entender e intervir sobre a realidade na qual estão
inseridos.
Para a PHC, o papel da escola é possibilitar o acesso dos indivíduos aos conhecimentos
formais, a cultura letrada, através da socialização do conhecimento sistemático. Refere-se as
instituições que possibilitam o conhecimento sistemático, o conhecimento detalhado e uma
cultura aprendida. É a existência de uma nova geração de conhecimento sistemático que torna
necessário a existência da escola. “A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos
instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio
acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola básica devem organizar-se a partir
dessa questão” (Saviani, 2013, p. 14).
Em uma sociedade como a brasileira, marcada pelo mascaramento das diferenças sociais
a fim de disfarçar preconceitos, discriminações e reproduções de vantagens sociais, as
instituições escolares têm um relevante papel à medida que se configuram como um lócus de
educação e socialização de sujeitos provindos de contextos considerados de risco. Observamos
que essas instituições tanto podem contribuir para a perpetuação das diferenças de classes e
Vânia Santos de Souza e Lilian Aparecida Carneiro Oliveira 109

privilégios sociais como podem auxiliar os sujeitos a ultrapassarem os limites dados pelo
contexto social de origem, passando a ver sua condição na sociedade como construída, e não
como natural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa nos amparou na realização de múltiplas interpretações sobre a integração


aos parâmetros da PHC, possibilitando-nos compreender que há desafios a serem enfrentados
em relação à promoção do ensino crítico, capaz de tornar nossos alunos protagonistas de sua
realidade social. Por fim, vivemos num momento delicado da educação, onde, mais que a
preocupação em avanços, está a preocupação com os retrocessos. A pedagogia histórico-crítica
nessa realidade pode ser um importante mecanismo de luta. Manifestando-se em defesa da
escola pública e parte, também, do princípio de que, em uma sociedade de classes, a educação
é sempre política e querer que ela seja neutra é colocá-la a serviço dos interesses dominantes.
Concluímos que a didática da PHC é muito relevante, aplicável e que contribui
extremamente com o processo ensino-aprendizagem, pois assegura ao educando uma
aprendizagem significativa, por intermédio da socialização do saber sistematizado, que é capaz
de produzir alterações no comportamento dos educandos, para que estes possam posicionar-
se conscientemente no âmbito social. Confiamos que os educadores empreguem essa teoria
como aporte para fazer sua prática docente mais dinâmica, envolvente e prazerosa.
Concebemos que a efetivação na prática pedagógica da PHCrítica seja um dos caminhos para
uma educação mais significativa e que prepare os educandos, de fato para a vida.

REFERÊNCIAS

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2008.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 10.ed. rev. Campinas:
Autores Associados, 2008.
110 Reflexões sobre a Pedagogia Histórico-Crítica no contexto escolar

“Mas é preciso ter força,


é preciso ter raça
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 54

54
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
Fernanda Pereira de Brito, Andréia Bárbara Serpa Dantas, Débora Correia dos Santos e Jancarlos 111

9
Menezes Lapa

CLUBE DE CIÊNCIAS ORBITZ DO COLÉGIO ESTADUAL


DA BAHIA – CENTRAL: ESPAÇO NÃO FORMAL NA
PROMOÇÃO DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Fernanda Pereira de Brito 55, Andréia Bárbara Serpa Dantas 56,
Débora Correia dos Santos 57, Jancarlos Menezes Lapa 58

INTRODUÇÃO

Ao se pensar em um projeto de Iniciação Científica em uma escola é necessário que a


gestão escolar esteja aberta ao diálogo e comprometida com a educação, além de estar disposta
a fechar parceria, disponibilizar recursos e conhecer os projetos que a equipe de professores
propõe. Sendo assim, a construção de um Clube de Ciências é um esforço que envolve toda
comunidade escolar, para contribuir com a melhoria das práticas de ensino proporcionando
uma aprendizagem significativa para os estudantes. Para Freire (1983, p. 46), “é fundamental,
contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no
mundo, mas com o mundo”. Portanto, explorar o mundo deve ser um dos objetivos do Clube
de Ciências, assim seu objetivo deve:
[...] parece voltar-se para uma comunidade de onde provêm as pessoas que o frequentam,
analisando fatores que contribuem para o seu desenvolvimento, na intenção de melhorar
sua qualidade de vida. A escola estaria, assim, integrando-se harmoniosamente à
comunidade onde atua (Mancuso; Lima; Bandeira, 1996, p. 47).
Com o intuito de promover a Iniciação Científica dos estudantes e aproximar os
conhecimentos científicos dos alunos, os Clubes de Ciências surgem com a possibilidade de
Ensino por Investigação que se propõem a superar o modelo de educação propedêutica,
baseada na transmissão de conteúdos isolados e desconexos e proporcionar a inserção dos
estudantes no “mundo da ciência”, a partir do estudo de questões levantadas do seu contexto
de vida. Dessa forma, construindo um modelo de educação politécnica, humanizada e com
formação integrada. Para Gadotti (2000, p. 8), a escola deve ser norteadora e exercer o papel

55
Fernanda Pereira de Brito é licenciada em Química pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, mestranda em Educação
Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal da Bahia – IFBA, Salvador/Bahia. Professora da rede estadual no Colégio
Estadual da Bahia – Central. E-mail: fernanda.brito1@enova.educacao.ba.gov.br.
56
Andréia Bárbara Serpa Dantas é mestra em Ciências Ambientais pelo Instituto Federal Baiano – IF Baiano, Serrinha/Bahia,
licenciada em Química pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professora da rede estadual no Colégio Estadual
Helena Magalhães. E-mail: andreia.dantas@enova.educacao.ba.gov.br.
57
Débora Correia dos Santos é doutora em Ciências da Energia e Meio Ambiente e licenciada em Química pela Universidade
Federal da Bahia – UFBA, Salvador/Bahia. Professora da rede estadual no Colégio Estadual Maria Odette Python Raynal.
E-mail: debora.correia@enova.educacao.ba.gov.br.
58
Jancarlos Menezes Lapa é doutor em História, Filosofia no Ensino de Ciências pela Universidade Federal da Bahia –
UFBA, licenciado em Física pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Professor do Instituto Federal da Bahia –
IFBA. E-mail: jancarloslapa@ifba.edu.br.
112 Clube de Ciências Orbitz do Colégio Estadual da Bahia – Central: espaço não formal na promoção da
iniciação científica

de orientadora, oferecendo uma formação geral na direção de uma educação integral.


Assim, educar pela pesquisa é de extrema importância, e segundo Demo (2011, p.43),
faz parte integrante de todo processo emancipatório. E, conforme afirma o autor, é nesse
processo de emancipação que:
[...] se constrói o sujeito histórico autossuficiente, crítico e autocrítico, participante, capaz
de reagir contra a situação de objeto e de não cultivar os outros como objeto [...] pesquisa
como diálogo é processo cotidiano, integrante do ritmo da vida, produto e motivo de
interesses sociais em confronto, base da aprendizagem que não se restrinja a mera
reprodução; na acepção mais simples, pode significar conhecer, saber, informar-se para
sobreviver, para enfrentar a vida de modo consciente (Demo, 2011, p. 43).
Diante desses fatores, os Clubes de Ciências são espaços não formais capazes de
desenvolver inúmeras ações de aprendizagem a partir de questões levantadas pelos alunos
envolvidos. Esta prática educativa, que acontece em contextos de educação não formal, ocorre
em ambientes que estão normalmente dentro das escolas, espaço formal, e a participação dos
alunos é por livre escolha, o que “difere da educação formal porque esta última possui uma
legislação nacional que normatiza critérios e procedimentos específicos” (Gohn, 2010, p. 22),
como a frequência obrigatória e aprovação vinculada a nota dos estudantes na Educação
Básica.
Sobre a educação não formal Libâneo (2010) enfatiza que são práticas educativas que
possuem um certo nível de intencionalidade e sistematização conforme os interesses
específicos do grupo, e, conforme Medeiros, Vasconcelos e Nicot (2022) a flexibilidade do
currículo representa a educação não formal, pois não há diretrizes nacionais, e conteúdos e
abordagens são delineados pelos participantes. Estes autores consideram os clubes de ciências
como espaços de pouca hierarquização e formalização favorecendo a cooperação coletiva dos
integrantes e “são um exemplo de programas que condizem dentro da educação não formal”
(Medeiros; Vasconcelos; Nicot, 2022, p. 133).
Embasadas em Gohn (2014, p. 44, grifo nosso) consideramos que “a educação não
formal é um processo de aprendizagem, não uma estrutura simbólica edificada e corporificada
em um prédio ou numa instituição; ela ocorre via o diálogo tematizado”, segundo a autora, na
educação não formal:
as metodologias operadas no processo de aprendizagem parte da cultura dos indivíduos e
dos grupos. O método nasce a partir de problematização da vida cotidiana; os conteúdos
emergem a partir dos temas que se colocam como necessidades, carências, desafios,
obstáculos ou ações empreendedoras a serem realizadas (Gohn, 2006, p. 31).
Nesse contexto, os Clubes de Ciências, se estabelecem em espaços não formais de
educação e caracterizam-se quanto à produção científica nas diversas áreas do conhecimento.
Na rede estadual de ensino da Bahia, o Programa Ciência na Escola – PCE, em parceria com o
Instituto Anísio Teixeira – IAT, atua incentivando e promovendo formação para professores no
intuito de criação de novos Clubes de Ciências e motivando os já existentes. Dessa forma,
professores de diferentes unidades escolares conseguem dialogar e divulgar suas ações, bem
como construir trabalhos em forma de cooperação.
Nessa perspectiva, a importância de um Clube de Ciências se dá tanto para estudantes
como para professores, pois ambos passam por um processo de troca de saberes e iniciam no
Fernanda Pereira de Brito, Andréia Bárbara Serpa Dantas, Débora Correia dos Santos e Jancarlos 113
Menezes Lapa

“mundo da pesquisa”. Nessa direção destacamos que: “em relação à participação e


contribuições de um Clube de Ciências, podemos dizer, também, que a experiência enriquece
não somente os estudantes, mas os professores, porque eles são considerados parte de um
grupo, e não apenas alguém que transmite informações” (Longhi; Schroeder, 2012, p. 550).
Desta maneira, a aprendizagem científica de forma significativa pressupõe a
participação efetiva dos estudantes e professores durante os processos de construção do
conhecimento. Já que entendemos que aprendizagem não se dá somente no âmbito da sala de
aula, mas também em ambientes não formais, como por exemplo, os Clubes de Ciências
(Ramalho et al., 2011).
Nesta perspectiva, os Clubes de Ciências possuem potencial para o desenvolvimento
de atitudes éticas e senso crítico, uma vez que propiciam condições adequadas para o
estudante debater, discutir e refletir sobre os mais variados temas, reconhecendo a importância
da consciência e da criticidade nas ações dentro da escola. Proporcionando ao aluno enxergar
que é possível fazer pesquisa no Ensino Médio, colaborando para que os alunos saiam da escola
com maior compreensão das escolhas acadêmicas futuras, favorecendo o protagonismo dos
estudantes e engajamento nas resoluções de problemas. Segundo Gomes (1988):
Clube de Ciências é uma atividade em que o processo ensino-aprendizagem se desenvolve
paralelamente a um importante processo formativo e educativo; e que ambos se
desenrolam de modo espontâneo e pleno de AFETIVIDADE, com resultados
verdadeiramente magníficos (Gomes, 1988, p. 40).
Desse modo, este relato se justifica uma vez que o conhecimento elaborado pela
pesquisa poderá contribuir com elementos para aqueles que buscam na leitura confrontar as
ideias dos autores com as suas próprias e encontrar novos enfoques de pesquisas. Podendo ser
utilizado pelos professores de Ciências e de Iniciação Científica, potencializando suas práticas
ou incentivando a criação de novos Clubes de Ciências nas escolas.

METODOLOGIA

O relato de experiência neste trabalho tem como pressuposto o ensino por investigação
dentro de um Clube de Ciências. Inicialmente a professora responsável pela proposta de
implementação do Clube Orbitz, com a chegada do Novo Ensino Médio no Colégio Estadual da
Bahia – Central , passou a lecionar além do componente curricular de química a unidade
curricular Iniciação Científica no ano de 2020. Com isso, foi elaborado um planejamento
fundamentado nos documentos da Feira de Ciências, Empreendedorismo e Inovação da Bahia
– FECIBA, com foco na construção de projetos, cujos temas foram trazidos pelos alunos. Assim
a ideia do Clube de Ciências começou a ser pensada como uma possibilidade de introduzir um
trabalho mais abrangente e de adesão espontânea do aluno.
Destarte, em um contexto pandêmico e de trabalho remoto no Colégio Estadual da
Bahia – Central foi fundado o Clube de Ciências do Central posteriormente denominado Clube
de Ciências Orbitz, que passou a desenvolver inúmeras ações como palestras, oficinas,
parcerias, planejamento de projetos a partir das necessidades demonstradas pelos estudantes,
que na época contava com apenas três alunas clubistas. As pesquisas desenvolvidas possuíam
114 Clube de Ciências Orbitz do Colégio Estadual da Bahia – Central: espaço não formal na promoção da
iniciação científica

caráter qualitativo, exploratório e propositivo. Foi desenvolvido no primeiro momento,


divulgação da Astronomia, com o intuito de colaborar com o desenvolvimento dos alunos na
produção do conhecimento científico e direcionar o olhar para sua realidade, possibilitando que
alunos da rede pública estadual de ensino passassem a enxergar possibilidades de um futuro
como pesquisadores.
Ao longo do ano de 2020, as integrantes do Clube criaram um perfil na rede social
Instagram, intitulado @orbitz.clube com a finalidade de divulgar conhecimentos sobre a
Astronomia, permitindo manter as três alunas em contato com o estudo, leituras e atividades
acadêmicas.
Com o retorno das aulas no modelo híbrido em agosto de 2021, o Clube Orbitz adquiriu
novos participantes chegando a ter treze alunos com projetos e em 2022, passou a contar com
vinte e três alunos/as do Ensino Médio de diferentes séries e turmas, possibilitando maior
integração dos diversos sujeitos da comunidade escolar. As atividades propostas pela
professora de Iniciação Científica têm como foco o Ensino por Investigação, cuja abordagem
didática estimula o questionamento, o planejamento, as explicações com base nas evidências e
a comunicação. Criar atividades investigativas para a construção de conceitos e resolução de
problemas é uma forma de oportunizar ao aluno ser protagonista em seu processo de
aprendizagem. Carvalho (2013, p. 10) afirma que:
[...] qualquer que seja o tipo de problema escolhido, este deve seguir uma sequência de
etapas visando dar oportunidades aos alunos de levantar e testar suas hipóteses, passar da
ação manipulativa à intelectual estruturando seu pensamento e apresentando
argumentações discutidas com seus colegas e com o professor (Carvalho, 2013, p. 10).
Sobre o Clube de Ciências considera-se sua importância no Educar pela Pesquisa, pois
oportuniza o estudante a compreender as etapas de construção do conhecimento científico. E,
conforme Fourez (2003), a aprendizagem de um método científico só acontece ao estudar
assuntos do cotidiano próximos à vivência do aluno e decodificados pelo conhecimento
científico. Dessa forma, as atividades desenvolvidas no Clube de Ciências facilitam a
compreensão dos métodos e conceitos e pode contribuir para que o aluno reflita sobre os
problemas de sua comunidade, investigue e compreenda as possibilidades de resolução. O
despertar pela curiosidade torna mais prazeroso o estudo e é uma estratégia pedagógica usada
nos encontros do Clube. Logo o Clube de Ciência,
[...] parece voltar-se para uma comunidade de onde provêm as pessoas que o frequentam,
analisando fatores que contribuem para o seu desenvolvimento, na intenção de melhorar
sua qualidade de vida. A escola estaria, assim, integrando-se harmonicamente à
comunidade onde atua (Mancuso; Lima; Bandeira, 1996, p. 47).
No cotidiano das reuniões do Clube os estudantes costumam realizar pesquisa
bibliográfica e documental, de acordo com a temática investigada. Constroem questionários e
realizam entrevistas com familiares, funcionários da escola, alunos, professores e
coordenadores, com o intuito de coletar dados, discutir os resultados e construir textos
científicos. Além disso, fazem divulgação das ações do Clube nas redes sociais da escola.
Com o apoio da gestão, o Clube Orbitz possui espaço próprio, equipamentos diversos
disponíveis e material de apoio. Os encontros ocorrem no contraturno, e as reuniões são
divididas com grupos de trabalho – GT conforme a escolha do tema de pesquisa, que são:
Fernanda Pereira de Brito, Andréia Bárbara Serpa Dantas, Débora Correia dos Santos e Jancarlos 115
Menezes Lapa

Robótica, Energia Solar, Maus Tratos de Animais, Consumo da geração Z, Cultura da Paz na
escola, Equipe de podcast e Mídias Digitais. Além disso, são realizadas reuniões da gestão do
Clube composta por alunos clubistas eleitos, palestras com convidados e cursos em parceria
com outras instituições, participação em concursos e olimpíadas de conhecimento, e
organização de feiras na unidade escolar.
É importante destacar que no Clube Orbitz há estagiários de licenciatura em Química
da Universidade Federal da Bahia – UFBA atuando como apoio nas atividades. Destarte, além
da aprendizagem focada nos alunos do ensino médio, as atividades do Clube também
contribuem para a formação inicial de alunos da licenciatura. Destaca-se o empenho da gestão
escolar na formação integral e humanizada, disposta a abrir a escola para a universidade. Sem
esse apoio, seria difícil o crescimento do Clube. Infere-se que o professor não faz nada sozinho,
logo um trabalho harmônico e exitoso é feito por diferentes sujeitos dispostos a construir uma
educação que favoreça experiências com mais significados para os alunos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No relato em questão, os clubistas têm se apropriado de técnicas e análises de


diferentes áreas do conhecimento, desenvolvendo o espírito colaborativo. Observa-se
crescente participação em eventos científicos apresentando trabalhos desenvolvidos no Clube,
aumento de parcerias como a UFBA, Fundação Oswaldo Cruz com os projetos: Meninas na
Ciência e Sons e Imagens da Bahia, maior engajamento dos/as alunos/as e desenvolvimento da
autonomia demonstrando maior protagonismo estudantil. Esses resultados têm impactado a
professora na crescente participação em eventos e escritas científicas.
Dentre algumas participações dos alunos no ano de 2021 como forma de divulgação
das pesquisas realizadas temos: no Ciência Jovem de 2020 foi aprovado um trabalho intitulado
“Instagram como recurso para divulgação da Astronomia”, já na 9a. FECIBA, em 2021, os
trabalhos aprovados foram: Feminismo - preconceitos, impactos e influência na sociedade, “Os
impactos dos lixos biomédicos causados pela COVID-19” e participação de Olimpíadas de
Ciências com medalha de ouro na ONC. As alunas clubistas foram convidadas para a mesa-
redonda Meninas na Ciência na Feira dos Municípios e Mostra de Iniciação Científica da Bahia
– FEMMIC, em 2021, possibilitando a divulgação dos trabalhos do Clube bem como a interação
com outros alunos e professores clubistas. Todas essas ações são de extrema importância para
divulgação científica, o que possibilita visibilidade dos trabalhos desenvolvidos e assim, a
conquista de parcerias.
Dessa forma, podemos evidenciar como um Clube de Ciências aproxima o aluno ao
“mundo da ciência”, democratizando o acesso à formação científica e cidadã, para aqueles que
muitas vezes estão em condições de vulnerabilidade e mesmo na escola percebe-se distante
do que é ensinado.
Cabe destacar também o valor da participação da gestão em apoiar, disponibilizar
recursos, fazer adesão nos projetos e acompanhar todas as ações do Clube, incentivando e
buscando dialogar sobre os planejamentos do Clube de Ciência.
116 Clube de Ciências Orbitz do Colégio Estadual da Bahia – Central: espaço não formal na promoção da
iniciação científica

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se que os participantes do Clube Orbitz, têm adquirido novos saberes antes
desconhecidos ao desenvolverem seus projetos. Em nossa vivência podemos pontuar diversos
aspectos positivos de um Clube de Ciências em uma escola, tais como: aprofundamento do
ensinar e aprender, desenvolvimento da capacidade criativa e interativa do aluno, compreensão
e solução de problemas, autogestão dos alunos, maior engajamento em atividades extraclasse,
melhora da oralidade e escrita, maior diálogo e interação entre professores e alunos. As aulas
de iniciação científica propiciam tanto o conhecimento curricular como a formação de pessoas
autônomas e capazes de pensar de maneira crítica.
Percebe-se que a iniciação científica dentro de um Clube de Ciências ocorre a partir de
uma relação horizontal entre estudantes e professores, em que ambos trocam saberes para
construção de projetos que desenvolvam proatividade e curiosidade para resolução de
problemas. Sendo propósito do Clube Orbitz normalizar a aprendizagem fora da sala de aula.

REFERÊNCIAS

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implementação em sala de aula. São Paulo: Cengage Learning, 2013, p. 2-10.
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8, n. 3, p. 109-123, 2003. Disponível em: https://ienci.if.ufrgs.br/index.php/ienci/article/view
/542. Acesso em: 01 out. 2023.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 14.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
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GOHN, M. G. Educação não formal, aprendizagens e saberes em processos participativos.
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view.php?id=2346870. Acesso em: 08 set. 2023.
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projetos sociais. São Paulo, SP: Cortez. 2010.
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Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?pid=S0104-40362006000100003&script=
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GOMES, C. M. B. Aspectos Psíquicos e Políticos do Ensino no Clube de Ciências. Revista do
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sobre ciência, natureza da ciência e iniciação científica numa rede municipal de ensino. Revista
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Menezes Lapa

Electrónica de Enseñanza de las ciencias, v. 11, n. 1, 2012.


MANCUSO, R.; LIMA, V. M. R.; BANDEIRA, V. A. Clubes de Ciências: criação, funcionamento,
dinamização. Porto Alegre: SE/CECIRS, 1996.
MEDEIROS, D. C.; VASCONCELOS, E. R.; NICOT, Y. E. O Clube de ciências Baquara e o ensino
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V. Clubes de Ciências: educação científica aproximando universidade e escolas públicas no
litoral paranaense. Anais do VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências,
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118 Clube de Ciências Orbitz do Colégio Estadual da Bahia – Central: espaço não formal na promoção da
iniciação científica

“É preciso ter gana sempre,


quem traz no corpo a marca
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 59

59
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
Elisabeth Lopes dos Santos, Laércia Pereira Baptista, Ana Rita de Cássia Santos Barbosa , Luciene Souza 119

10
Santos

TRADIÇÃO ORAL E CULTURA POPULAR A PARTIR DE


CONTADORES DE HISTÓRIAS: INICIANDO O PROCESSO
DE ESCUTA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA ILHA
DE MARÉ
Elisabeth Lopes dos Santos 60, Laércia Pereira Baptista 61,
Ana Rita de Cássia Santos Barbosa 62, Luciene Souza Santos 63

INTRODUÇÃO

O presente capítulo apresenta reflexões e resultados parciais frutos do


desenvolvimento do Projeto de pesquisa desenvolvido em rede com mais três universidades
do Estado da Bahia: Cacimba de histórias: vidas e saberes dos contadores de histórias tradicionais
de cidades do interior da Bahia 64. Trata-se de uma ação interinstitucional cujo objetivo é
investigar e dar visibilidade a narradores orais tradicionais que se encontrem no interior da
Bahia, reconstituindo as suas histórias de vida, bem como registrando seus repertórios, e
disponibilizando-os por meio de um repositório. A questão norteadora que mobiliza a pesquisa
está na busca de intercâmbios entre os saberes tradicionais e o conhecimento acadêmico
relacionados aos repertórios e à performance das tradições orais e da cultura popular dos
mestres e mestras, sujeitos participantes do estudo. No contexto da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB, a pesquisa envolve mestres e
mestras que vivem na região do Recôncavo Baiano, sobretudo em comunidades quilombolas,
tais como Acupe (Santo Amaro), Monte Recôncavo (São Francisco do Conde), Ilha do Paty (São
Francisco do Conde) e Ilha de Maré (Salvador).
Os resultados parciais que serão aqui discutidos referem-se especificamente ao
contexto da comunidade quilombola da Ilha de Maré. A partir de relatos colhidos por meio da
entrevista narrativa, dispositivo de coleta de dados utilizado nas pesquisas (auto) biográficas,
60
Elisabeth Lopes dos Santos é estudante de Pedagogia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira – UNILAB; bolsista de Iniciação Científica PIBIC/FAPESB. E-mail: elisabettylopes2553@gmail.com.
61
Laércia Pereira Baptista é pedagoga pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira –
UNILAB; ex-bolsista de Iniciação Científica PIBIC/UNILAB. laerciaprereira@gmail.com.
62
Ana Rita de Cássia Santos Barbosa é professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira – UNILAB; orientadora do projeto de pesquisa Cacimba de histórias: encontros e intercâmbios com os contadores de
histórias tradicionais de cidades do interior da Bahia, desenvolvido no âmbito da UNILAB. E-mail:
anarita.barbosa@unilab.edu.br.
63
Luciene Souza Santos é professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS; coordenadora da
pesquisa em rede Cacimba de histórias: vidas e saberes dos contadores de histórias tradicionais de cidades do interior da Bahia.
E-mail: lssantos@uefs.br.
64
Projeto de pesquisa desenvolvido em rede, em quatro universidades públicas baianas: Universidade Estadual de Feira de
Santana – UEFS, Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB e Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB, sob a coordenação geral da Professora Luciene Souza
Santos – UEFS.
120 Tradição oral e cultura popular a partir de contadores de histórias: iniciando o processo de escuta na
comunidade quilombola da Ilha de Maré

pretende-se fomentar a discussão sobre a importância da preservação da história e cultura


local, bem como a valorização dos saberes daqueles que são considerados “bibliotecas vivas”,
trazendo-os para o centro do debate acadêmico enquanto sujeitos produtores de uma literatura
oral que historicamente não tem sido reconhecida devidamente, mas que deve ser divulgada e
valorizada também nos cursos de formação de professores, através da disponibilização de um
repositório65 que se configure em conteúdo aberto. Observa-se que "este mesmo mundo
contemporâneo começa a perceber que há valores nas culturas tradicionais e populares que
não foram substituídos plenamente pela tecnologia, informação ou outras linguagens e
expressões atuais” (Ribeiro, 2010, p. 9). Portanto, é nesta perspectiva que o presente projeto
de pesquisa se concentra, na tentativa de resgatar esses valores culturais que estão sob risco
de desaparecimento.
Nesse sentido, apresentaremos a seguir as principais discussões teóricas que têm
guiado o percurso de pesquisa, a descrição dos passos metodológicos utilizados, bem como
apresentaremos os primeiros resultados e discussões colhidos à medida que “puxamos o balde”
para buscar a água pura dessa cacimba. Mas tendo a consciência de que há muito ainda para se
cavar…

A TRADIÇÃO ORAL E O CONTADOR DE HISTÓRIAS TRADICIONAL NO


CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

Walter Benjamim (1994) tem já há algum tempo alertado sobre o desaparecimento dos
narradores, ressaltando assim o risco de extinção da arte de narrar por conta de uma nova
forma de comunicação que é a informação. Esta dá acesso a conhecimentos importantes,
porém muitas vezes distantes, que tão logo se esvaem. A informação dá explicações, verdades.
Mas a narrativa, não; ela perdura por anos e pode ser interpretada de variadas formas; não tem
compromisso com a verdade; não se explica; ela é. Diante desse cenário, em que as pessoas
buscam constantemente por interpretações, a narrativa não sobrevive. Nas palavras de
Benjamim (1994, p. 203):
Cada manhã, recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em
histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de
explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e
quase tudo está a serviço da informação (Benjamin, 1994, p. 203).
No entanto, um dos motivos que mais nos chama a atenção em relação a tal
desaparecimento está vinculado a outro desaparecimento: o do/a ouvinte. De acordo com
Benjamim (1994, p. 205), o tédio contribui para a assimilação e memorização, portanto,
atividades pacatas e silenciosas, como o tecer, contribuem para a memorização de histórias: “as
atividades intimamente associadas ao tédio já se extinguiram na cidade e estão em vias de
extinção no campo”, sendo que esses são cenários perfeitos para ouvir e contar histórias.
Entretanto, nós vivemos em uma sociedade que adotou a pressa, onde se é exigido rapidez na
execução do trabalho, contribuindo assim para o desaparecimento do ouvinte. A arte da

65
É possível acessar acervo parcial já coletado e disponibilizado no endereço: https://geppouefs.wixsite.com/uefs.
Elisabeth Lopes dos Santos, Laércia Pereira Baptista, Ana Rita de Cássia Santos Barbosa , Luciene Souza 121
Santos

narrativa é compreendida, portanto, como uma espécie de artesanato das palavras, pois
“durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade -, é ela
própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação” (Benjamin, 1994, p. 205).
Sabendo que o ofício de mestres/as da tradição não é dado (ninguém nasce sabendo
contar histórias), mas é construído, ao passo que se alimenta da memória, através da escuta
atenta, os/as mestres/as contadores são memorialistas. Nesse sentido, o ouvir é
preponderante, pois o narrador/a narra não apenas suas experiências, mas também aquelas
que ele/a escuta no seu cotidiano, e assim constrói o seu repertório de contos, de cantigas, de
piadas, de disse-que-me-disse, e até mesmo de fofocas. É comum ouvirmos de um contador/a
de histórias frases como: “os mais antigos contavam”, “ouvi de minha comadre”, “era assim que
contavam os mais velhos”, pois então, antes de levantar para contar suas histórias, eles/as
sentaram para ouvi-las de outro/as. Nas palavras de Benjamin (1994), “os narradores gostam
de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos
fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência
autobiográfica” (p. 205).
Independente da forma que a palavra toma, o narrador/a tem a destreza para manipulá-
la, e a manipula como ninguém, mas para isso, foi e é necessário aprender a arte de ouvir. Mas
então, por que não queremos mais ouvir as histórias e as narrativas dos contadores/as? Como
vamos escutar os nossos mais velhos se eles foram e continuam sendo silenciados?
Essas reflexões nos ajudam a compreender a importância de pensarmos formas de
remar em direção a possibilidades de valorizar saberes, vivências, pessoas e vozes que mantêm
vivo o patrimônio cultural imaterial, que são bibliotecas vivas e transferem saberes ancestrais
apesar de nunca terem, muitas vezes, tocado em caneta ou papel.
Apesar da falta de valorização da oralidade no mundo contemporâneo, ela funcionou (e
ainda funciona em determinados contextos), durante muito tempo, como canal central da
transmissão dos valores culturais.
O fato de o conhecimento passar a ser armazenado nos textos escritos, levou os estudiosos
a dar menor valor e atenção às formas artísticas orais. Sinal disto, é possuirmos um termo,
“literatura”, para designar o conjunto dos escritos, mas não possuirmos um outro que
designe satisfatoriamente a herança oral. No passado, criaram a expressão “literatura oral”,
empregada ainda hoje por alguns, mas que é gritantemente imprópria, já que a palavra
“literatura” vem de “letra” (do alfabeto) (Filho et al., 2004).
Sobre tal aspecto, Gislayne Matos (2005), quando tenta diferenciar os contadores de
histórias tradicionais de outros “artistas da palavra”, aborda sobre o fato de que a palavra do
contador está relacionada com a performance e essa afirmação se articula com o conceito de
Oralitura, que para Leda Maria Martins (2002):
Não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da
tradição verbal, mas especificamente, ao que em sua performance indica a presença de um
traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente constituinte, inscrito na grafia do
corpo em movimento e na vocalidade (Martins, 2002, p. 87).
Com isso, percebemos que ao narrar uma história do passado, o contador performa,
reencena e, até mesmo, revive aquela narrativa. O seu corpo não está distante dali, não é
apenas a sua voz. Segundo Martins (2002, p. 88), a Oralitura é “do âmbito da performance, sua
122 Tradição oral e cultura popular a partir de contadores de histórias: iniciando o processo de escuta na
comunidade quilombola da Ilha de Maré

âncora; uma grafia, uma linguagem, seja ela desenhada na letra performática da palavra ou nos
volejos do corpo”. É a escrita do e pelo corpo, ou seja, a tradição oral não se perpetua apenas
pelas narrativas que os narradores contam, mas também pelo corpo que carrega essas
memórias e as reescrevem, as reencenam, as revivem.
Assim, cabe relembrar que, nas sociedades de tradição oral, as histórias eram
reservatórios de saberes e meios de transmissão dos mesmos, memória e palavra em
movimento. Por exemplo, na África subsaariana, o povo peul acreditava que Deus, Maa, criara
o homem para ser seu interlocutor, Maa Ngala, e dera a este o poder da palavra para que
pudessem se comunicar (Ribeiro, 2010). Diante dos expostos, é possível entender que:
A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos.
Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a
mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da
tradição oral, na verdade, o espiritual e material não estão dissociados. Ao passar do
esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens,
falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões
humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte,
história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite
remontar à Unidade primordial. Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral
conduz o homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para
criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana. Uma vez que se liga ao
comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a “cultura” africana não é, portanto,
algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou,
melhor dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como um Todo
onde todas as coisas se religam e interagem (Hampâté Bâ, 1982, p. 183).
Considerando que a cultura africana, veiculada através da tradição oral, não é algo
abstrato que possa ser isolado da vida, é imprescindível que ela esteja visível nas concepções
curriculares, assim como nas experiências e práticas educacionais desenvolvidas pelos
contextos formais e informais de ensino/aprendizagem.
Uma das formas que isso pode ser feito é levando as crianças a pesquisar em sua
comunidade receitas culinárias, contos de assombração, brincadeiras ou receitas de
remédios naturais que vêm sendo passados de uma geração a outra. Todos esses
conhecimentos permanecem através do tempo por meio de diferentes gêneros orais que
são adotados pelas pessoas para interagirem com as novas gerações e com os que fazem
parte de seu convívio. Se as crianças tomam consciência disso, elas passam a valorizar mais
aqueles com os quais convivem e, consequentemente, a se valorizarem mais (Leal; Brandão;
Lima, 2018, p. 4).
Observa-se, portanto, que nem o tempo foi capaz de apagar as memórias que se
passaram de maneira intergeracional, sem que se perdesse a raiz, a base que até hoje dá frutos,
visto que a oralidade tem um caráter permanente, é imprescindível. Mergulhando nas águas da
tradição oral, compreendemos que essa permanência se dá por diferentes fatores, no entanto,
diferente do que se pensa, a cultura popular não precisa de inspiração externa, ela se alimenta
e respira sozinha. Muitos são os meios de sobrevivência e do não desaparecimento, visto que
a cultura popular, a narrativa oral, tem utilidade para além do divertimento, ela carrega
memórias e valores de uma sociedade, além de proporcionar a manutenção de hábitos e
costumes. É preciso, portanto, apostar na tradição oral, pois ainda somos reflexo dela. Que
possamos aprender a ser bons ouvintes da nossa própria história ancestral.
Elisabeth Lopes dos Santos, Laércia Pereira Baptista, Ana Rita de Cássia Santos Barbosa , Luciene Souza 123
Santos

METODOLOGIA

O projeto apresenta uma metodologia comum a todos os contextos nos quais tem
acontecido, salvo pequenas adaptações conforme cada realidade. No contexto específico da
comunidade quilombola de Ilha de Maré o percurso metodológico tem acontecido a partir das
seguintes etapas:
1) Pesquisa e estudo bibliográfico das principais obras de autores que discutem a
formação do contador de histórias e a valorização das narrativas orais;
2) Identificação dos Mestres e Mestras da comunidade a partir das vivências e
experiências realizadas por uma das estudantes pesquisadoras, nativa e moradora da
comunidade;
3) Realização da entrevista narrativa, registrada por meio de câmera de celular, após
prévia autorização do entrevistado/a e assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido – TCLE e o termo de autorização de uso de imagem. Sobre tal técnica, a
dinâmica
“[...] é deixar os entrevistados contarem suas histórias. O pesquisador precisa mostrar-se
atento, interessado por elas; expor interesse não verbal ou para-linguístico; formular as
perguntas imanentes para, quando o entrevistado fizer a “coda narrativa”, como chama
Schütze (2011), aproveitar e dar continuidade à narrativa” (Moura; Nacarata, 2017, p. 18-
19).
4) Transcrição dos contos coletados para posterior catalogação e organização do acervo
no repositório virtual;
5) Sistematização e intercâmbio a partir do trabalho realizado em cada uma das
universidades.
Ressalta-se que o projeto foi submetido e aprovado pelo comitê de ética em pesquisa.
Os resultados parciais que serão aqui descritos e discutidos referem-se às primeiras quatro
etapas acima citadas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES PRELIMINARES: o projeto Cacimba de histórias na


comunidade quilombola de ilha de maré

“Eu acredito nas histórias que conto’’.


Ebomi Cici66

Ebomi Cici, mestra griot, exala nessa frase citada acima, um sentimento compartilhado
entre os guardiões da memória. O/A contador/a de histórias acredita nas histórias narradas,
mesmo que essas sejam alocadas em um lugar de descrédito pelos ouvintes. Pertenço 67 à

66
UFSB, Auditório virtual. Redemoinho de Saberes: Jornada de pesquisa em Narração Oral: Encontro com mestres 3 -
Ebomi Cici. Youtube, 5 de novembro de 2021. Disponível em: https://youtu.be/_gHH6XVBiLE . Acesso em: 4 mar. 2022.
67
Reflexões feitas pela pesquisadora, nativa da comunidade de Ilha de Maré, Elisabeth Lopes dos Santos.
124 Tradição oral e cultura popular a partir de contadores de histórias: iniciando o processo de escuta na
comunidade quilombola da Ilha de Maré

Comunidade Pesqueira e Quilombola de Bananeiras, em Ilha de Maré, Salvador, Bahia. Aqui, os


processos de registros e manutenção da memória se dão a partir da narração dos mais velhos
e, para nós, a compreensão histórica possibilitou avanços em nossas lutas por direitos e
visibilidades. Foi a partir das histórias contadas que conseguimos, em 19 de abril de 2004, o
reconhecimento enquanto “Comunidade Remanescente de Quilombo”, sem nem ao menos
tocar em uma caneta. Reafirmo, portanto, banhada por Ebomi Cici, que os contadores de
histórias acreditam em suas histórias, pois pude presenciar nas vivências em comunidade, nos
momentos de luta, nos processos educativos a partir do olhar que um/a contador/a lança ao
iniciar uma história, no cuidado com as palavras, na postura que se adota e até mesmo na
entonação de sua voz, que vai oscilando, mas nunca errando o desenrolar do que se é dito.
Entretanto, também presenciei o outro lado da narração, que é o lado da escuta. Já vi olhares
de desaprovação, expressões de deboche, ou melhor, de descrédito. Descrédito porque as
vozes que ecoavam eram marginais, subalternas; porque a linguagem empregada era carregada
de variações linguísticas, consideradas “inadequadas” pela norma padrão.
Por ser também uma comunidade pesqueira, somos regidos pela linguagem das marés
e o conhecimento que temos da escrita é tão raso que, posso dizer com certeza, a obrigação de
utilizá-la, muitas vezes, dificulta a nossa travessia, e então permanecemos “ilhados”, o que para
mim não é uma desvantagem, pois temos diferentes “formas de remar”. Para dar ênfase, trago
comigo nessa embarcação, uma colega de luta e escritora, Elionice Conceição Sacramento, que
nos diz: “Nossas noções de letramento se dão no costeiro de pesca, a partir da apreensão dos
conhecimentos de luas, marés e ventos” (2022, p. 54). Utilizamos, quase que
predominantemente, a linguagem oral, os horários das marés, as virações da lua, tudo
aprendemos ouvindo. Posto isso, ressalto, a importância dos primeiros meses no projeto
Cacimba de histórias, que me levou a conhecer mais sobre a tradição e a narração oral, abrindo
assim uma compreensão mais abrangente do ofício de contador/a de histórias.
Pude, a partir das pesquisas, entender as funções políticas e sociais de um mestre griô,
que em muitos momentos adota os papéis de conselheiro e de guardião das memórias, dos
conhecimentos e saberes de um povo. Logo, mais do que um compromisso acadêmico, a
pesquisa me impulsionou a pensar na contação de histórias como uma forma de reexistir em
uma sociedade que prioriza a palavra deitada (que é aquela escrita no papel) 68. Aprendi que o
narrar permite manter viva a memória de pessoas que já não estão nesse plano. Já ouvi histórias
de vida de pessoas que deram origem a comunidade, de pessoas que fizeram a passagem muito
antes do meu nascimento e o narrar resgata essas vivências que nos situam enquanto parte de
um todo, nos orientam na direção do nosso lugar de pertencimento. E eu sei quem sou porque
os meus avôs, os meus tios, os meus mais velhos/as me contaram sobre mim.
Nesse sentido, andarilhar em minha comunidade, Ilha de Maré, em busca de narrativas
orais foi um prazer e um desafio, mas fazer a pesquisa com o senhor Ernandes, que é meu tio,
foi uma grande vantagem, pois não houve nenhuma desconfiança e nem constrangimentos. Eu
estava entre os meus pares. Porém, não nego que estava muito nervosa e, às vezes, atropelava

68
Lima, H. P. UFSB, Auditório virtual. Redemoinho de Saberes: Jornada de pesquisa em Narração Oral: Mesa 2 - Do griô
africano ao mestre-griô em território brasileiro: apropriações e ressignificações. Youtube, 19 de dezembro de 2021.
Disponível em: https://youtu.be/9Z0lYJWO8Vs. Acesso em: 31 mar. 2022.
Elisabeth Lopes dos Santos, Laércia Pereira Baptista, Ana Rita de Cássia Santos Barbosa , Luciene Souza 125
Santos

as palavras, principalmente por me saber estando diante de uma pessoa que é mestre no que
faz. Segundo Oswaldo Elias (1967), a narrativa popular, no folclore, é a mais fascinante e
também a mais difícil de ser coletada. Percebi toda essa fascinação e dificuldade na prática. Em
alguns momentos, parecia que estava viajando por épocas longínquas; o corpo arrepiava de
tanta emoção. Entretanto, houve momentos de completo silêncio, silêncio de boca cheia, mas
sem saber o que dizer (se é que devia dizer algo). Em momentos como esse, fiquei quieta e
deixei que o mestre guiasse a entrevista, visto que para ele era um cenário de contação de
histórias.

Mestre Djalma
Ernandes Carlos Lopes, mais conhecido como Djalma, contou-me sobre suas aventuras
na infância, sua labuta na roça e no mar. Foi necessário retornar à sua casa muitas vezes para
coletar algumas histórias69 e canções.
Djalma é um grande compositor e tem vários cadernos com todas as suas músicas. A
sua forma de palavra é o canto e ele o utiliza para expressar o seu amor pela sua esposa Vilma,
como também o amor por seu lugar de pertencimento. Em uma de suas letras, ele declara:
“Minha ilha só tem mato, mas é boa de viver, eu não troco minha ilha nem por mim e nem por
você”. Essa música é conhecida por todos da comunidade e tem um enorme peso por ser uma
composição de um de nós, falando sobre nós. “O canto é, assim, uma forma de palavra. Na
cultura mandingue, de acordo com Salia Traoré, informante Burkinabe, ele é considerado a
palavra mais vasta de todas” (Ribeiro, 2013, p.55). Já na tradição guarani, “o canto é uma palavra
prenhe do espírito e carregada de poder” (Casoy, 2009, p. 19).
O mestre Djalma com toda a sua cantoria costurou uma relação entre política e
produção artista popular, de quanto em quanto, ele foi me dizendo a sua opinião sobre a
situação de exclusão pelo qual os negros e as negras foram e são submetidos. Em uma de suas
canções, ele declara “Eu sou africano de pele e de cor”, mostrando-me que ainda está aceso em
seu peito o amor pela mãe África, mesmo depois de tantos anos de exílio. Segundo ele, nem
todas as suas músicas estão registradas no cartório, só que ele passou essa tarefa para sua neta,
Clara, que herdou todo o seu repertório de músicas e a responsabilidade de registrá-las e de
gravá-las.
Seguem abaixo algumas das suas cantigas coletadas:

Eu não troco a minha Ilha


Minha Ilha só tem mato, mas é linda de se vê
Eu não troco a minha Ilha nem por mim, nem por você
Minha Ilha deu petróleo
Tem azeite de dendê

69
É possível acessar os podcasts “Histórias da Mãe D’Água”, contada pelo Mestre Djalma nos seguintes endereços:
https://open.spotify.com/episode/3GwgAoZ1aYynmH8bEMAseT e
https://open.spotify.com/episode/7rwPKC13WpMj9uKWk5ZcNJ. Coleta realizada por Belisa Andrade do Amaral, pelo
Projeto de Extensão Brinquedoteca de Histórias (UNILAB, 2020).
126 Tradição oral e cultura popular a partir de contadores de histórias: iniciando o processo de escuta na
comunidade quilombola da Ilha de Maré

Minha Ilha deu petróleo


Tem azeite de dendê
E ainda tem marisco que dá pra sobreviver.
Minha Ilha de Maré fica perto de São Tomé
Faz fronteira com Caboto e também faz com Passé.

Eu sou africano
Eu sou africano de pele e de cor
Eu tenho muito orgulho, eu tenho muito amor
Eu sou Zumbi ê, eu sou Zumbi
Vocês mataram ele, mas eu estou aqui
Vocês são brasileiros e eu sou africano
Eu estou aqui por um grande engano
Eu vou voltar ê, eu voltar
A África é minha terra, eu vou voltar pra lá.

Sr. Noca
Para entrevistar Claudionor, conhecido como Sr. Noca, tive de atravessar de barco para
a comunidade de Praia Grande. Fiz essa travessia e encontrei o mestre Noca sentado em sua
varanda. O mestre Noca me contou um pouco sobre sua infância, mas tive muita dificuldade
para fazê-lo relembrar histórias de sua vida, de contos que ouviu quando criança, etc. Segundo
Laricia, integrante do projeto Ancestralidade Griot e também moradora da comunidade, o Sr.
Noca narrava muitas experiências de seu passado e também contava muitas histórias, mas de
uns tempos para cá, vinha-se esquecendo de muita coisa. No entanto, no momento da
entrevista, tentei rememorá-lo, a fim de que se lembrasse de alguma narrativa. Daí veio-lhe à
mente sua relação com os seus pais.
Mestre Noca tem 92 anos e mora sozinho. Parte do seu tempo é dedicada ao seu velho
rádio e a cuidar de pássaros que mantém em gaiolas. O dia passa com ele sentado em sua
varanda, vendo as pessoas passarem, mas poucas são aquelas que vão à sua casa ouvir suas
histórias, pedir seus conselhos e ensinamentos. Nesse contexto de esquecimento, o narrador
não sobrevive, porque a memória precisa ser exercitada, e é a oralidade que a alimenta, que a
exercita.

Dona Janira
Agosto, período de maré grande, é quando saímos para lançar as redes, e a minha rede
pescou uma contadora de histórias. No fim da entrevista com o Mestre Noca, uma senhora me
chamou para saber de quem eu era filha e o que eu estava fazendo: “você é a neta de Dona
Sica?”, perguntou-me ela, e eu respondi-lhe que sim, eu era. Curiosa, como toda contadora de
histórias, ela quis saber o porquê da entrevista com o Senhor Claudionor. Falei-lhe sobre o
Elisabeth Lopes dos Santos, Laércia Pereira Baptista, Ana Rita de Cássia Santos Barbosa , Luciene Souza 127
Santos

projeto e ela me disse que também queria contar uma história. E eu, que não sou de acreditar
em milagres, senti as mãos sagradas da tradição oral orientando-me para ser vista. Confesso
que estava um tanto desanimada com a ideia de que os narradores estão em um lugar de
desaparecimento, mas a chamada daquela senhora me deu uma gota de esperança.
Ela pediu para me achegar e me ofereceu café. Aceitei-o e começamos a bater um papo.
Janira dos Reis Moraes Neves é devota de Nossa Senhora das Neves, padroeira de Ilha de Maré.
Segundo ela, na sua infância, era preciso ajudar os pais trabalhando para sobreviver e a
educação escolar não era prioridade. Dona Janira me contou que em certo dia ela chorou muito
para ir à escola, mas o pai disse-lhe: “você vai chorar pitangas, mas não vai à escola”.
Por isso, ela desistiu de insistir e seguiu trabalhando. Ela casou-se muito cedo com
Berivaldo do Nascimento Neves, e tiveram três filhos. Berivaldo tem 80 anos e é baleeiro, assim
como a sua esposa.
A história que Dona Janira me contou se relaciona com o contexto religioso e social do
qual ela faz parte, mas também pontifica a fé com a magia. Ouvi de seus lábios a história da
aparição de Nossa Senhora das Neves, em Ilha de Maré. A partir de seu relato, comecei a refletir
sobre alguns pontos.
A narrativa apresentada relata a história de um casal que tinha uma plantação de fava,
e toda lua cheia uma mulher subia das águas para se alimentar dessa plantação. Quando
percebia que a lua se despedia, a mulher retorna para o seu leito/mar. A narrativa popular
fundamenta-se, constrói-se, por muitas vezes, respeitando o contexto que está sendo
transmitida. Pode-se dizer que essa história não foi criada na ilha (até porque se parece bastante
com uma variante do conto da Mãe-d’água70), mas foi adaptada para ser aderida pelos ouvintes.
Evoco, para reforçar a minha fala, a escritora e pescadora Elionice Conceição Sacramento
(2022, p. 61) quando diz que somos determinados “pelos horários das marés, pelas fases da lua
e pela direção e força dos ventos”. Sendo assim, a narrativa passa também por esses processos
e as histórias, os contos e os cantos aderem e se encaixam nessa organização social. Por isso,
encontramos na aparição de Nossa Senhora elementos como a lua, o mar e a plantação.
Em comunidades que utilizam a oralidade como predominante, todas as atividades
exercidas pelas pessoas vão-se relacionar. A religião, o trabalho, as formas de se manter
culturalmente, tudo terá um único propósito: a manutenção do modo de vida. Portanto, nesse
cenário, as narrativas religiosas irão vincular-se com as águas, a roça, a culinária, a família, etc.
Tudo é uma coisa só e sem muito se explicar.
As lágrimas de dona Janira rolaram ao narrar a história da Nossa Senhora das Neves, e
nesse momento, senti a fascinação que Oswaldo Elias Xidieh retrata em “Narrativas Populares”,
assim como me fez recordar a fala de Ebomi Cici, já aqui citada: “eu acredito nas histórias que
conto”. Esse “acreditar” traz uma sensação de vivência, ou seja, pode até não ter sido uma
experiência do narrador, mas a transmissão e o processo de rememoração transformam a
história em algo ainda emocionante. Essa é, pois, a forma que a literatura popular encontra para

70
Era um homem muito pobre que tinha sua plantação de favas na beira do rio; porém, quando elas estavam boas para
colher, não apanhava uma só, porque, da noite para o dia, desapareciam. Afinal, cansado de trabalhar para os outros
comerem, tomou a resolução de espiar quem era que lhe furtava as favas. Um dia, estava à espreita, quando viu uma moça,
bonita como os amores, no meio do faval, abaixo e acima, colhendo as favas todas”. Maravilhas do conto popular. Adaptação
de Nair Lacerda. Cultrix, 1960.
128 Tradição oral e cultura popular a partir de contadores de histórias: iniciando o processo de escuta na
comunidade quilombola da Ilha de Maré

sobreviver, para reaparecer.


Outro aspecto pertinente é a relação entre a religião e a magia – também falada por
Xidieh – que eu pude presenciar na narrativa da mestra Janira. Xidieh 71 reflete sobre os signos
e os elementos religiosos que nas culturas populares ganham uma dimensão mágica e que, em
alguns casos, a religião submete-se à magia. É possível também encontrar, nos relatos da
Mestra Janira, sincretismo, porque para fortalecer a sua reza, ela utiliza ervas medicinais a fim
de fazer uma simpatia, e sabemos que a utilização de ervas é herança de crenças
afroameríndias. Sobre isso, Oswaldo Elias Xidieh (1993) fala que:
Entre as práticas mágico-religiosas enquadram-se os ensalmos ou benzimentos. São eles,
sob forma e execução mais ou menos complicadas, ritos de cura, de propiciação, de
produção e de afastamento, que flutuam entre a magia que existe e a religião que pede, e
na sua contextura, geralmente, esses dois elementos se entrosam, entrando a magia com
os gestos e o material simpáticos e a religião, com as fórmulas de comunicação com o
sobrenatural, as orações e, às vezes, com objetos consagrados e lugares dedicados ao culto
(Xidieh, 1993, p. 98).
O autor explica que essa relação mágico-religiosa surge da necessidade que o ser
humano tem de reivindicar que seja sempre feita a sua vontade. Por isso, não consegue apenas
deixar no sobrenatural suas aspirações e seus desejos. É preciso interferir através de simpatias,
de rezas e de benzimentos, para “agradar/ajudar os santos”. Por fim, acho interessante notar
que nas culturas populares tudo se conecta. Nada é por si só e a narrativa dentro desse campo
também funciona com várias (in)dissociações.
No mais, finalizo essa descrição das entrevistas com a simpatia contra insônia que dona
Janira me ensinou. Segundo ela, há um tempo, quando se deitava na cama para dormir, o sono
não a procurava, mas era encontrada por muitos pensamentos. Ao relatar a situação para sogra,
esta a ensinou uma reza que deveria ser usada todos os dias antes de deitar-se:
Com Deus eu me deito
Com Deus eu me levanto
Com a graça de Deus e do divino Espírito Santo
A virgem Senhora cobre-me com o vosso manto
Se toda coberta eu for, não terei medo de nenhum pavor
Nem coisas que desse mundo for
Com o Senhor dormir eu quero
Minha alma vos entrego
Se eu dormir, me acordai
Se eu morrer, vos me alumiai
Com três velas acesas da santíssima Trindade
Pai, Filho e Espírito Santo. Amém!
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Matos (2005), ao parafrasear Hampâtê Bá, nos adverte que no ensinamento tradicional

71
XIDIEH, O. E. Narrativas populares: estórias de Nosso Senhor Jesus Cristo e mais São Pedro andando pelo mundo.
Editora Itatiaia, 1993.
Elisabeth Lopes dos Santos, Laércia Pereira Baptista, Ana Rita de Cássia Santos Barbosa , Luciene Souza 129
Santos

africano existem coisas que não podem ser explicadas. Portanto, para compreendê-las é preciso
experimentá-las. Assim, é preciso apostar na cultura oral, pois ainda somos reflexo dela.
Retomando essa reflexão produzida por Laércia Baptista, proveniente da Guiné Bissau, país do
continente africano, e uma das pesquisadoras que esteve envolvida no projeto 72, percebemos
uma conexão com o significado de Sankofa, símbolo Andinkra representado pela imagem de
um pássaro que necessita olhar para trás para poder prosseguir adiante. Através dos contos,
rezas, cânticos e palavras, ditas e não ditas, pelos mestres e pela mestra participantes deste
estudo, tentamos iniciar um pouco desse processo de olhar para trás, consultando nossas
bibliotecas vivas. Até os silêncios e o esquecimento do Sr. Noca nos diz algo: nos faz refletir
sobre a importância de manter vivo o interesse dos ouvintes. Em tal contexto é papel, também
da escola e das universidades, fomentar ações para a valorização e divulgação de todo o
repertório cultural emanado pela tradição oral. Não apenas por conta da obrigatoriedade do
ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, através da implementação das
Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08. Mas, sobretudo, porque queremos ser ouvintes. Desejamos
olhar para trás e sabermos quem somos. E quanto mais olharmos para trás, no sentido de
conhecermos cada vez mais toda a história e cultura que nos foi estruturalmente negada,
“escondida” e deixada à margem, saberemos como caminhar e trilhar no tempo presente, pois
conheceremos mais um pouco sobre nós mesmos. Nesse sentido, os resultados parciais
apresentados nos indicam uma conexão profunda entre as narrativas coletadas e o território
no qual os sujeitos da pesquisa se inserem. Eles nos apresentam outras epistemologias e outras
formas de ver e conceber a vida, a partir de suas próprias experiências. Percebemos portanto
que este é apenas o início de um longo caminho que precisa ser percorrido a fim de destacar e
visibilizar a história, a vida e os saberes dos mestres e mestras da tradição, que têm na oralidade
o principal veículo de difusão da cultura popular, emanada de geração em geração. Há muitas
e muitas águas que precisam ainda vir à tona, do fundo dessa Cacimba.
Ao visitarmos e entrevistarmos Seu Mano, por exemplo, morador da Ilha do Paty 73,
bastante conhecido pelas histórias guardadas na memória, percebemos que suas palavras
fluíam cada vez mais à medida que ele teve a oportunidade de contá-las, sentindo-se assim
ouvido, valorizado, convidando-nos para retornar pois havia ainda mais histórias para nos
contar. Seu Mano nos faz reconhecer, dentro do próprio processo de pesquisa de campo, que
os mais velhos sentem a necessidade de serem ouvidos. Isso de fato é uma grande verdade.
Contudo essa é uma outra história e falaremos mais sobre ela em outra oportunidade... Que
possamos, cada vez mais, multiplicar e divulgar reflexões sobre a tradição oral, aprendendo
sobretudo com as comunidades quilombolas, locais preciosos como uma grande e rara
biblioteca, que guardam tantos mestres e mestras que ainda precisam ser ouvidos.

REFERÊNCIAS

72
Laércia Baptista participou da pesquisa de campo realizada na Ilha do Paty, comunidade quilombola de São Francisco do
Conde-Bahia.
73
“O lugar é um distrito de São Francisco do Conde — município a 72 quilômetros de Salvador, próximo a Santo Amaro e
conhecido por sua atual importância na indústria do petróleo. Na ilha, as principais fontes de renda ainda são a pesca, o
roçado e ser funcionário da prefeitura”. Trecho retirado do livro de Lázaro Ramos intitulado “Na Minha Pele”, publicado em
2017.
130 Tradição oral e cultura popular a partir de contadores de histórias: iniciando o processo de escuta na
comunidade quilombola da Ilha de Maré

BENJAMIN, W. O narrador. In: ______ (ed.). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. 7.ed. Tradução de Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1994.
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HAMPÂTÉ BÂ, A. A tradição viva. In: HISTÓRIA geral da África, I: metodologia e pré-história
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do tempo espiralar: errâncias, textuais e territoriais. Belo Horizonte: Departamento de Letras
Românicas, Faculdade de letras/UFMG: Polist, 2002. p. 69-92.
MATOS, G. A. A palavra do contador de histórias. São Paulo, 2005.
MOURA, J. F.; NACARATO, A. M. A entrevista narrativa: dispositivo de produção e análise de
dados sobre trajetórias de professoras. Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 24, n. 1, p. 15-30.
jan./abr. 2017.
RIBEIRO, K. C. O contador de histórias tradicional: memória e esquecimento. UFBA, 2010. VI
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SACRAMENTO, E. C. Da diáspora negra ao território de terra e águas: ancestralidade e
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Editora Appris, 2022.
XIDIEH, O. E. Narrativas pias populares. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros -USP, 1967.
Jocelia Oliveira Almeida 131

11 ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA: PONTUANDO OS


DESAFIOS E AS POSSIBILIDADES ENFRENTADAS
DURANTE A PANDEMIA74
Jocelia Oliveira Almeida 75

INTRODUÇÃO

O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC é um compromisso formal


assumido entre Governo Federal, Distrito Federal, Estados, Municípios e sociedade de
assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até 8 anos de idade, ao final do 3° ano
do Ensino Fundamental. Na história do Brasil, é possível identificar a dura realidade de que
muitas crianças têm concluído sua escolarização sem estarem alfabetizadas. Assim, este pacto76
nacional surgiu como uma luta para garantir o direito pleno de alfabetização a meninas e
meninos, até o final do ciclo de alfabetização.
Busca-se, para tal, contribuir para o aperfeiçoamento profissional dos professores
alfabetizadores. Este Pacto foi constituído por um conjunto integrado de ações, materiais e
referências curriculares e pedagógicas a serem disponibilizados pelo Ministério da Educação –
MEC, tendo como eixo principal a formação continuada de professores alfabetizadores. O
presente artigo trata dos estudos iniciais para o desenvolvimento de uma pesquisa que tem por
objetivo trazer uma reflexão acerca da importância do processo de alfabetização de crianças
na Educação Infantil (do Ensino Fundamental I).
A realização da pesquisa parte de um relato de experiência, a partir da observação de
uma experiência que foi vivenciada durante a pandemia com criança de 7 anos que tinha
acabado de sair da pré-escola para adentrar na instituição de ensino Educação Infantil (do
Ensino Fundamental I), porém este processo foi interrompido por conta do momento atípico
vivenciado por causa da COVID-19.
Os estudos iniciaram-se a partir da percepção de uma mãe, estudante do curso de
licenciatura em pedagogia, com sua filha, ambas dentro de casa sem poder sair por conta do
risco de contaminação do vírus. Essa foi uma situação complicada, tendo em vista que a
alfabetização é o início da vida escolar, a etapa da escolarização destinada às crianças a partir
dos seis anos. Nesta idade, elas se encontram em pleno processo de formação e
desenvolvimento; a escola e o/a professor/a são fundamentais para que este desenvolvimento
aconteça.

74
Artigo apresentado como trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Pedagogia em março de 2022.
75
Jocelia Oliveira Almeida é licenciada em Pedagogia. E-mail: joceliaw1@hotmail.com.
76
O PNAIC foi criado em 2012 e tinha como principal desafio garantir que todas as crianças brasileiras até 8 anos (3 º ano
do Ensino Fundamental) fossem alfabetizadas plenamente. Para isso, contemplava a participação da União, estados,
municípios e instituições de todo o país com base em quatro eixos de atuação: formação continuada de professores;
materiais didáticos e pedagógicos; avaliações; gestão, controle social e mobilização.
132 Alfabetização na idade certa: pontuando os desafios e as possibilidades enfrentadas durante a pandemia

Sabe-se que a educação promove o processo de transformação de seres humanos, mas


é preciso considerar que historicamente o sistema educacional brasileiro também tem uma
tendência de valorizar uma formação simplesmente instrutiva, técnica e profissionalizante,
preparando os indivíduos apenas para atuarem como seres produtivos, funcionais, úteis, que
contribui sobremaneira para o processo de transformação de seres humanos.
Acredita-se também que a formação continuada presencial para professores
alfabetizadores poderá propiciar ao pedagogo discussões sobre elementos (metodologias),
necessários para possibilitar o desenvolvimento dessas crianças no processo de aprendizagem
dentro do período de alfabetização; essa formação, inclusive, contribuiu muito no processo de
alfabetização descrito no relato de experiência trazido neste artigo. Sendo assim, a
problemática é: quais os desafios e as possibilidades podem contribuir para o processo de
alfabetização de crianças na idade certa durante a pandemia da COVID- 19?
O ensino remoto foi bastante desafiador no ano de 2020, tanto para o professor quanto
para o estudante e sua família; claro, ninguém estava preparado para este momento atípico. A
pandemia trouxe um conjunto de fatores, lições sobre como tirar o melhor proveito do ensino
remoto para que ele seja bem aproveitado. Dentro desse contexto, é importante que o
professor esteja em constante formação para que ele possa ajudar a criança a identificar suas
necessidades e reconstruir suas concepções sobre a educação como todo.
A abordagem parte de uma pesquisa qualitativa, apresentará os resultados de um relato
de experiência, no qual a mãe foi desafiada em alfabetizar sua filha dentro de um contexto de
ensino remoto, momento este no qual utilizou métodos e estratégias com base em sua vivência
para entender o processo de alfabetização, realizado no campo não formal.
Entende-se que ao se iniciar qualquer pesquisa é de fundamental importância que sejam
definidos e entendidos os diversos termos pertinentes ao tema principal. Assim, a
fundamentação teórica do presente trabalho, inicia-se com o conceito de alfabetização na idade
certa. Em seguida apresenta-se como base um relato de experiência que conta a história de
uma mãe que conseguiu alfabetizar sua filha no campo não formal (casa), o que significa a
competência “autoconhecimento e autocuidado” da mãe para com a criança. Após isso, o artigo
traz a importância da ludicidade na alfabetização. Acredita-se que só com a apresentação
desses conceitos será possível responder à questão que norteará a pesquisa.
O objetivo geral desta pesquisa é identificar as contribuições do professor alfabetizador
no processo de alfabetização das crianças, a partir dos problemas enfrentados na pandemia da
COVID-19. Os objetivos específicos são: refletir sobre a importância da formação do pedagogo
para ajudar no processo de alfabetização da criança; estudar a influência do professor
alfabetizador nos processos de ensino e de aprendizagem da criança; identificar os saberes das
crianças como ponto de partida para alfabetização.

METODOLOGIA

A metodologia de uma pesquisa é o caminho a ser percorrido para a sua realização. E


assim, tão logo foram definidos o objeto de estudo e a questão norteadora, esse caminho
começou a ser percorrido. Como a intenção de familiarizar-se com o tema (alfabetização na
Jocelia Oliveira Almeida 133

idade certa: pontuando os desafios e as possibilidades enfrentadas durante a pandemia), esse


estudo se trata de uma pesquisa exploratória. A pesquisa exploratória amplia o conhecimento
com o assunto do projeto e dá suporte para a construção dos conceitos e hipóteses iniciais e
não exige um planejamento tão rigoroso.
Para Gil (1999), um bom pesquisador precisa, além do conhecimento do assunto, ter
curiosidade, criatividade, integridade intelectual e sensibilidade social. Ainda de acordo com o
autor, são igualmente importantes a humildade para ter atitude autocorretiva, a imaginação
disciplinada, a perseverança, a paciência e a confiança na experiência. No momento atual,
percebe-se a necessidade de ter curiosidade no que diz respeito ao processo de
ensino/aprendizagem no período da alfabetização de crianças. É essa curiosidade que leva o
sujeito a perceber a importância do pensar sobre o assunto antes mesmo de ler o conteúdo.
A pesquisa exploratória tem por finalidade proporcionar maior familiaridade com o
problema (explicitá-lo). Pode envolver levantamento bibliográfico, entrevistas com pessoas
experientes no problema pesquisado. Geralmente, assume a forma de pesquisa bibliográfica e
relato de experiência. Por ser um relato de experiência, quanto à forma de abordagem trata-se
de uma pesquisa qualitativa já que não será preciso a utilização de técnicas para quantificação
dos dados coletados, mas analisar e interpretar aspectos subjetivos do objeto de estudo
(vivência, conhecimento, prática, vontade de alfabetizar uma criança etc.) (Gil,1991).
A pesquisa qualitativa não se preocupa com números e nem gráficos normalmente ela
se inicia pela coleta de dados que pode ser entrevista, pesquisa em vídeos, revistas, filmes etc.
logo esses dados passaram por um tratamento. Entretanto, não estamos afirmando que os
dados quantitativos não tenham nenhuma importância uma vez que estes estudos também são
relevantes para educação, conforme nos afirma (Gatti, 2012):
A dicotomia, quantitativo–qualitativo, como julgamento de valor científico, não se sustenta,
o que não significa negar que as perspectivas metodológicas em cada caso são diferentes
nas características, métodos e propósitos. Porém, as exigências de validade e consistência
interna e externa valem para as duas formas de abordagem. Outro aspecto a considerar é
que as mensurações quantitativas, tanto quanto as tematizações ou categorizações
qualitativas (com base em observações cursivas, entrevistas, questionários abertos,
depoimentos etc.) são aproximações do fenômeno a ser estudado e o problema levantado,
não são o próprio fenômeno. São um tipo possível de tradução deste sob certas condições,
são abstrações que devem ter assegurada sua validade, de alguma forma (Gatti, 2012, p.
30).
A ludicidade também será abordada neste capítulo: o lúdico trabalhado na educação
infantil possibilita a criança a aprender de forma mais tranquila, possibilitando o alcance dos
mais diversos níveis do desenvolvimento. Sendo assim a criança desenvolve sua capacidade de
explorar, refletir e imaginar os conteúdos e adquirir conhecimento necessário para uma
aprendizagem significativa.

DESENVOLVIMENTO

A escolha deste tema foi influenciada pela relevância presente no exercício da profissão
de professora alfabetizadora. Atuar como professora é de suma importância para orientar e
134 Alfabetização na idade certa: pontuando os desafios e as possibilidades enfrentadas durante a pandemia

ensinar as crianças pequenas que estejam no processo de ensino/aprendizagem da


alfabetização, a partir dos conhecimentos na área, por meio de uma concepção de alfabetização
adequada, como lugar e tempo, oferecendo-se às crianças oportunidades e estímulos que
promovem o aprendizado.
Contudo, Paulo Freire diz que acreditava em uma educação por meio de gentileza, do
amor fraternal e das amabilidades, e acrescentou que isso é um diferencial que quebra os
paradigmas até dos métodos então conhecidos (Freire, 2011). Para isso, o educador precisa
saber quem ele é e onde quer chegar, quais são os seus objetivos, para poder ter condições e
competências e ajudar as crianças que estejam no processo de aprendizagem, podendo assim
despertar nelas interesse pelos estudos e pelo sucesso escolar.
Ainda, ao construir a trajetória, a identidade profissional do professor vai, também, sendo
formada. Esse processo é dinâmico, constante e alicerçado nas vivências, nas trocas e no
significado que cada professor confere à sua atividade. Esse significado deriva dos valores,
de sua visão de mundo e da educação, de sua história de vida pessoal, das escolhas, das
representações, dos aprendizados, das angústias, dos desejos e, é claro, do sentido que tem
em sua vida o fato de ser professor (Pimenta, 2002, p. 271).
Justifica-se também a partir do entendimento de que a alfabetização, processo de
aprendizado da leitura e da escrita, deve ser realizado na primeira fase de desenvolvimento da
criança. Em alguns casos, antes mesmo da criança aprender a ler e escrever, elas também
passam pelo processo de letramento, pois é na vivência de dentro de casa que todo esse
processo se inicia, e um completa o outro. Através deste processo que as crianças constroem
seus conhecimentos, e considerando cada um como suas particularidades.
De acordo com Soares (2004), “tem-se tentado, ultimamente, atribuir um significado
demasiado abrangente à alfabetização, considerando-a um processo permanente, que se
estenderia por toda a vida, que não se esgotaria na aprendizagem da leitura e da escrita” (p.
15). De acordo com a Lei n. 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN,
para estar na posição de educador é preciso, em primeiro lugar, ter nível superior em
licenciatura em uma instituição de ensino superior, gostar da profissão que escolheu, ter
comprometimento com a formação integral do ser humano e com a sua interação com a família
e a sociedade.
Além disso, é importante que o educador conheça a própria essência, tenha pleno
domínio de si mesmo, no que tange aos pensamentos, desejos, frustrações e crenças, sabendo
traçar seu próprio mapa pessoal. Assim, ficará mais fácil propiciar aos educandos a
oportunidade de interpretar melhor quem eles são, o que sabem, onde querem chegar e o que
desejam aprender.
A relevância científica da discussão do tema parte da compreensão que para o educando
participar do processo de aprendizagem faz-se necessário um educador com olhar sensível,
atento às necessidades e dificuldades da criança. Além de ensinar a criança a ler e escrever é
preciso dar autonomia para que elas se desenvolvam; deve ser mostrado que, mesmo que não
esteja na idade certa, ela pode sim ser alfabetizadas. A educação é um direito fundamental; é
preciso respeitar os limites de cada criança, estimular e acompanhar de perto. Nogueira e Pilão
(1998) também entendem que:
Esse conhecimento é construído socialmente e, que o educador, dessa forma, preparará o
Jocelia Oliveira Almeida 135

ambiente para que desenvolva habilidades cognitivas no aluno, respeitando seu


desenvolvimento individual e ultrapassando dificuldades que os alunos possam presenciar
em determinadas situações (Nogueira; Pilão, 1998, p. 20).
Reforça Cury (2003) que “os educadores, apesar das suas dificuldades, são
insubstituíveis, porque a gentileza, a solidariedade, a tolerância, a inclusão, os sentimentos
altruístas, enfim todas as áreas da sensibilidade não podem ser ensinadas por máquinas, e sim
por seres humanos” (p. 65).
O período escolhido neste artigo é muito relevante, pois com a COVID-19 o mundo
parou, as pessoas ficaram dentro de suas casas, sem poder ir à rua, seja para passear ou cumprir
suas obrigações. Neste momento que as pessoas precisaram desacelerar, pôde-se perceber e
refletir o modo com as coisas estavam sendo feitas e como deveriam ser feitas. A educação, a
saúde, a segurança estavam um caos, havia um índice alto de pessoas não alfabetizadas,
instituições de ensino com pouco acesso à tecnologia, pessoas com dificuldades em
desenvolver suas habilidades na sua área de atuação.
Profissionais precisaram se reinventar, se conhecer, se desenvolver por meio da
formação contínua, de modo a tornar sua formação mais rica em conhecimento. Foi preciso
que um profissional ajudasse o outro e todos se ajudassem ao mesmo tempo, contribuindo para
o fundamental processo de formação do indivíduo. Tudo isso é importante porque possibilita
às crianças experiências que as ajudam a desenvolver além das habilidades cognitivas, as
habilidades motoras e sociais que lhe capacitam a compreender a sociedade e o contexto no
qual vivem.
O processo de aprendizado da criança, seja em casa ou no ambiente escolar as ajuda
também a traçar os caminhos da busca interior, por meio de formação acadêmica pautada na
reflexão de valores e práticas pedagógicas significativas. A formação do educador e das
crianças tem objetivo de proporcionar ao indivíduo a conscientização do papel individual e
social no mundo que essa criança habita.
Os estudos de Marta Kohl de Oliveira (1997), a partir da teoria de Vygotsky vão afirmar
que a criança necessita de atividades específicas que proporcionem o aprendizado, pois seu
desenvolvimento é dependente dessa aprendizagem por intermédio das experiências e
interações vivenciadas. O professor é o mediador desse processo, por ser o mais experiente e
planejar suas intervenções.
Assim, acredita-se que esta pesquisa poderá ser útil para a sociedade e para a
comunidade acadêmica quando servir de referência para novos trabalhos sobre a importância
da alfabetização de crianças e na elaboração de propostas pedagógicas que propiciem o
desenvolvimento infantil de forma significativa e prazerosa.
O relato de experiência trazido neste artigo aborda a inventividade da mãe no processo
de alfabetização da sua filha, tendo em vista o momento atípico de não poder sair devido à
pandemia. Muitas ideias tiveram que ser criadas para dinamizar o processo, captar a atenção
da criança e efetivar a aprendizagem. A ludicidade teve um papel fundamental neste período e
foi de grande importância para a criança.

Processo de alfabetização
136 Alfabetização na idade certa: pontuando os desafios e as possibilidades enfrentadas durante a pandemia

De acordo com Ferreiro (2001), é o professor o principal mediador entre a


sistematização do ensino e as questões culturais no processo de desenvolvimento do saber de
modo expansivo. Ele é o responsável em levar para o contexto escolar, os elementos da ação
docente, somados as experiências da vida, promovendo uma maior interação e ampliação de
conceitos. Dentro deste contexto, o professor irá ajudar os estudantes a passarem por esse
processo, e será melhor se for de forma criativa, lúdica, acreditando na capacidade dos
estudantes e aprimorando a sua didática de ensino.
Essas novidades irão propiciar aos estudantes um momento favorável na aprendizagem.
A função do professor não é uma tarefa fácil como muitos pensam, é muito mais que ensinar,
é ajudar a desenvolver mundo, é abrir várias portas e janelas para uma educação de qualidade.
Ele leva esses estudantes a um nível mais avançado de conhecimento, pois a educação é uma
via de mão dupla, é dar a mão a quem está aprendendo a se desenvolver, é dar autonomia a
esses pequenos para que possam progredir e não regredir.
Não se pode falar de alfabetização sem falar no letramento, pois ambos caminham
juntos. São processos muito importantes, pois é nesse momento que os estudantes estarão
inseridos no mundo da leitura e da escrita; alfabetizar significa aprender a ler e escrever, letrar
significa conhecer o mundo e poder ler e compreender o que foi lido, bem como escrever. De
acordo com Ferreiro (2001),
As crianças “iniciam o seu aprendizado do sistema de escrita nos mais variados contextos,
porque a escrita faz parte da paisagem urbana, e a vida urbana requer continuamente o uso
da escrita”. Ou seja, o interesse sobre o mundo letrado e alfabetizado faz sentido pelo fato
da criança estar imersa nesse contexto e formar opiniões com base nas práticas sociais
podendo assim fortalecer a autoestima e a autoconfiança em relação a si mesma, ao outro
e ao mundo (Ferreiro, 2001, p. 98).
Quando se diz que uma pessoa é alfabetizada, se refere ao fato de que esta pessoa
adquiriu a capacidade de ler e escrever, já a pessoa que é alfabetizada e letrada, ela sabe ler e
escrever e faz uso do que aprendeu, faz uso da leitura e da escrita. Ela compreende a leitura de
um jornal, uma revista, ou um simples bilhete. A pessoa alfabetizada pode não ser uma pessoa
letrada, e ao contrário uma pessoa letrada pode não ser uma pessoa alfabetizada. Quando a
pessoa é alfabetizada e não sabe ler e escrever, mas ela não sabe o que leu ou o que escreveu.
Uma pessoa pode não saber ler e escrever, mas ela pode ser letrada. A alfabetização não
acontece apenas no ambiente escolar, ela pode acontecer também fora e mesmo antes da
criança entrar na escola e ainda continua após (Martins; Spechela, 2012).
A necessidade de se começar a falar em letramento surgiu da tomada de
consciência que se deu, principalmente entre os linguistas, de que havia alguma coisa além da
alfabetização, que era mais ampla, e até determinante desta (Tfouni, 2010, p. 32). Faz-se
necessário que durante o processo de letramento a criança crie um hábito de ler, que sejam
apresentadas coisas novas, pois é nesse momento que as novidades impressionam. O momento
da leitura pode ser exibido com ilustrações, fazendo com que as crianças observem os desenhos
e desenvolvam curiosidade sobre a história que lhes foi apresentada.
Uma leitura lúdica é bastante eficaz com as crianças, pois pode levá-las imaginar cores,
beleza, magia e um mundo no qual tudo é possível. O ato de ler precisa ser algo prazeroso; no
caso das crianças, a leitura não pode ser forçada em hipótese alguma, o professor precisa
Jocelia Oliveira Almeida 137

desenvolvê-la com muito cuidado para que não se torne uma tarefa chata para os pequenos. É
muito importante que o professor saiba apresentar a leitura como algo agradável, lúdico,
fazendo com que a criança vivencie um momento de descontração para que esta prática ganhe
um lugar de grande relevância na vida da criança, se faça um processo contínuo e se torne um
hábito, pois também pode ser trabalhada dentro e fora do contexto escolar. Freire (1996) diz
que “saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua
própria produção ou a sua construção” (p. 52). O professor aberto às indagações dos alunos e
a curiosidade.
O relato de experiência falado na introdução deste artigo trata-se muito sobre essa
ludicidade: uma criança de 7 anos que gostava muito de brincar, confinada em casa por causa
da pandemia aprendeu de forma lúdica com a mãe, que sabendo do perfil da filha, adaptou
brincadeiras e criou jogos para que houvesse aprendizado, desenvolvimento e autonomia. Essa
alfabetização foi feita fora da escola e precisou ter sido feita nesse momento, sem poder deixar
para depois, tendo em vista o momento de confinamento e a importância da alfabetização na
idade certa.
Um exemplo dessa ludicidade foi a invenção da mãe do Dominó das palavras; esse
planejamento metodológico teve como objetivo promover o aprendizado da criança no
processo de aquisição da leitura e da escrita. O jogo possibilita um conjunto de vivências
recreativas, que mobilizam a familiarização com a escrita e a leitura. Assim tal método tem como
objetivo levar a criança a refletir para, então, construir a formação de conceitos e
conhecimentos para conquista da autonomia essencial a todo ser.
O dominó é um jogo bastante conhecido, sendo descrito em sua apresentação com
peças retangulares, é um jogo de estratégia, no seu formato tradicional possui 28 peças e pode
ser jogado em duplas, grupos de 4 ou mais pessoas. Os jogadores começam com 7 peças e ao
distribuir para os participantes o restante das peças fica como reserva para as próximas jogadas.
O dominó das palavras, que foi elaborado pela própria mãe, pode ser aplicado aos estudantes
do Ensino Fundamental do 1º e 2º dos anos iniciais com intuito de ajudar nesse processo da
alfabetização e aprendizagem da língua materna, para potencializar o estudo da fonética da
classificação das palavras dissílaba e trissílabas.
O jogo dominó das palavras foi elaborado para trabalhar as dificuldades com a interação
com a língua materna, identificando os sons das palavras, suas semelhanças e diferenças. A mãe
precisou encarar o desafio de assumir uma postura de professora e mãe ao mesmo tempo, de
modo que pudesse envolver o conhecimento e o domínio que queria ensinar principalmente
quando o assunto é alfabetizar.
A ludicidade contribui muito positivamente nesse processo de alfabetização; a mãe
aplicava atividades, cantava cantigas de rodas, contava historinhas, brincava e dançava. A
alfabetização é em si o ensino de código alfabético e ortográfico, enquanto a ludologia, é estudo
do que é lúdico, ou seja, do movimento humano que gera aprendizagem. Não se pode pensar
no lúdico só como brincadeira, pois é através da brincadeira que se ensina a criança de uma
forma mais leve, descontraída. Para Santos (2002),
[...] é uma necessidade do ser humano em qualquer que seja a idade e não pode ser vista
apenas como diversão. O desenvolvimento do aspecto lúdico facilita a aprendizagem, o
desenvolvimento pessoal, social e cultural, colabora uma boa saúde mental, facilita os
138 Alfabetização na idade certa: pontuando os desafios e as possibilidades enfrentadas durante a pandemia

processos de socialização do conhecimento (2002, p. 12).


Alfabetizar a criança introduzindo a ludicidade é importante. Ao usar o jogo, brincadeira
e música, a criança trabalha a criatividade, interação social, cognitiva, regras e o relacionamento
com o outro. Esses elementos quando trabalhados nos anos iniciais possibilitam que a criança
aprenda de forma mais tranquila, realizando o alcance aos diversos níveis do desenvolvimento.
Com as atividades lúdicas, espera-se que a criança desenvolva a coordenação motora, a
atenção, o movimento ritmado, conhecimento quanto à posição do corpo, direção a seguir
e outros; participando do desenvolvimento em seus aspectos biopsicológicos e sociais;
desenvolva livremente a expressão corporal que favorece a criatividade, adquira hábitos de
práticas recreativas para serem empregados adequadamente nas horas de lazer, adquira
hábitos de boa atividade corporal, seja estimulada em suas funções orgânicas, visando ao
equilíbrio da saúde dinâmica e desenvolva o espírito de iniciativa, tornando-se capaz de
resolver eficazmente situações imprevistas (Bittencourt; Ferreira, 2002, p. 12).
Com a ludicidade, a criança desenvolve sua capacidade de explorar, refletir e imaginar
os conteúdos e adquirir conhecimento necessário para uma aprendizagem significativa.
Segundo Bomtempo (1996), o brinquedo é a companhia da criança e dá rumo à brincadeira.
Quando a criança entra em contato com vários brinquedos ela aprende a interagir com os
colegas, aprende a respeitar as regras dentro e fora do contexto escolar. Nas fases do
desenvolvimento da criança entre dois, seis e sete anos, as atividades lúdicas se apresentam de
forma concreta, ou seja, a criança acaba utilizando as figuras e acaba fazendo uma associação
com a realidade que vivencia.
Em razão disso, pode-se perceber que quando estão brincando de casinha, médico,
fazem os mesmos papéis e imitam os sons ao mesmo tempo. Isso também acontece quando
nos contos clássicos as crianças veem as figuras e recontam as histórias do mesmo jeito que
ouviram, ou seja, basta verem as imagens para desenvolverem perfeitamente suas habilidades
e reconhecerem suas emoções. Afirma Friedmann (1996) que “a seguir, surge a fase em que a
criança dos seis/sete anos em diante ultrapassa a fantasia para situações reais através dos jogos
de construção, que representam um tipo de transição entre jogo simbólico e o jogo de regras”.
A pandemia gerou dificuldades para as pessoas, como a ida das crianças para a escola.
Isso foi desafiador para os pais, pois eles tiveram que se aproximar mais da educação dos filhos
e orientá-los dentro do contexto de aulas online. A mãe do relato da experiência trazida neste
artigo, por exemplo, conseguiu aproveitar muito bem esse tempo para aplicar seus
aprendizados do curso de licenciatura em pedagogia. Ela alfabetizou sua filha em casa, mesmo
sem nunca ter antes vivido algo parecido; percebendo os desafios, a mãe tentou obter êxito de
várias formas e recorreu a vídeos na internet e leituras sobre o assunto até encontrar uma
metodologia e sua didática de ensino.
Houve uma dificuldade em captar a atenção dessa criança de 7 anos de idade, pois ela
só queria brincar. Daí surgiu a necessidade de trazer a ludicidade para o ensino; alguns jogos
foram criados e outros adaptados para seguir com esse processo. Em alguns momentos, houve
resistência da criança, pois ela não conseguia separar o momento que sua mãe “incorporava” a
professora e quando “voltava a ser a mãe”. Isso foi difícil para a mãe porque a criança chorava
querendo a mãe de volta; se sentindo culpada, a mãe decidiu interromper esse processo. Porém
após alguns dias, a criança verbalizou querer a mãe também como professora, na condição de
Jocelia Oliveira Almeida 139

não haver gritos e haver paciência.


Para separar a figura de mãe da figura de professora, a mãe passou a se vestir como a
antiga professora da filha e tornou a sala da casa a sala de aula. A criança acordava, vestia a
farda antiga da escola, tomava café, ia para sala e simulava na sua própria casa seu espaço de
escola. A mãe ficou muito orgulhosa com todo o processo e ficou feliz por conseguir ajudar no
desenvolvimento da sua filha no processo de ensino/aprendizagem. As brincadeiras, os jogos,
as cantigas de roda e a contação de histórias aceleraram o processo da criança; ela mesma
escolhia os livros que a mãe iria usar, as histórias que iriam ser contadas, os jogos que seriam
jogados, as músicas que seriam cantadas no momento da aprendizagem; isso só fez crescer a
vontade da mãe de alfabetizar sua filha.
Da construção dos jogos à forma como cada um seria aplicado surgiu uma leveza e um
encontro da mãe consigo mesma. Ela concluiu que seu propósito de vida seria transformar a
vida de cada criança que por ela passasse. O processo de alfabetização foi uma experiência
extraordinária na vida dessa mãe e fez ela perceber que a ludicidade é de extrema importância
no processo de alfabetização, seja com jogos, dança, música ou canto, e que deve ser sempre
aplicada nas escolas. Além disso estimulou a sua resiliência, pois ela entendeu a importância de
colocar foco no objetivo desejado e levar o propósito até sua realização final.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo se propôs a analisar os desafios trazidos pela pandemia na educação.


As impossibilidades das crianças irem para a escola gerou uma necessidade dos pais exercerem
um papel ativo na alfabetização delas, tendo em vista a importância de se alfabetizar na idade
certa. Como exemplo, o artigo trouxe um relato de experiência de uma mãe que conseguiu, em
casa, alfabetizar sua filha de 7 anos.
Os estudos e experiência dessa mãe sobre o tema concluíram pela importância da
ludicidade na educação e o uso do lúdico na alfabetização. A mãe do relato de experiência é
exemplo disso, principalmente por ter obtido êxito. Foram criados jogos e receitas com o
propósito de alfabetizar e inserir a criança no contexto das letras.
As escolas também precisaram se adequar ao momento e fizeram aulas online,
modalidade inovadora na educação infantil. A idade certa para alfabetizar não permitiu que se
esperasse o final da pandemia para continuar o desenvolvimento da criança. Mesmo sendo
desafiador, o professor e as instituições tiveram que buscar meios eficazes para gerar o
aprendizado esperado.
O professor possui um papel imprescindível na alfabetização porque ele tem condições
e competências para ajudar as crianças no processo de aprendizagem, tendo o poder de
despertar nelas interesse pelos estudos, contribuindo com o sucesso escolar. O ciclo do
processo de alfabetização e letramento é ensinado aos professores no seu curso de formação.
A formação continuada de professores é uma atualização e aprofundamento de
conhecimentos. Nela há, por exemplo, reciclagens e encontros pedagógicos, que são
fundamentais para a educação infantil, principalmente dentro do contexto de pandemia. A
formação do professor não se encerra com a prática educativa diária, pois desafios surgem,
140 Alfabetização na idade certa: pontuando os desafios e as possibilidades enfrentadas durante a pandemia

bem como inovações, e o profissional precisa estar atualizado.

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TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez Editora, 2010.
142 Alfabetização na idade certa: pontuando os desafios e as possibilidades enfrentadas durante a pandemia

“Maria, Maria
mistura a dor e a alegria
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 77

77
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
12
Janille da Costa Pinto 143

I FEIRA CIENTÍFICA INTEGRADA DAS ESCOLAS DO


CAMPO DOS TERRITÓRIOS DO SUL DA BAHIA (INTEGRA
CAMPO): INTERCÂMBIO DE SABERES
Janille da Costa Pinto78

O SURGIR DA FEIRA INTEGRA CAMPO

A I Feira Científica Integrada das Escolas do Campo dos Territórios do Sul da Bahia –
INTEGRA CAMPO, coordenada pela pesquisadora Janille Pinto, em parceria com os integrantes
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo – GEPEC-Litoral Sul e a equipe da
Diretoria de Educação dos Povos e Comunidades Tradicionais da Secretaria da Educação do
Estado da Bahia – SEC-BA, nasce em 2022 mediante a inquietação dos integrantes do
supracitado grupo de estudos e pesquisa em constatar que a rede estadual de educação da
Bahia não possuía um espaço específico para discutir a produção de conhecimento, nem
promover o incentivo a pesquisa científica focalizadas nas especificidades da modalidade da
educação do campo.
Então, em julho de 2022, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações – MCTI, por
meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, torna
pública a Chamada CNPq/MCTI/FNDCT n. 06/2022 Feiras de Ciências e Mostras Científicas
a ser executada com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
– FNDCT. Convida os interessados a apresentarem propostas para poder “apoiar projetos que
visem contribuir significativamente para o desenvolvimento científico e tecnológico e a
inovação do país, por meio da realização de Feiras de Ciências e Mostras Científicas em âmbito
nacional, estadual e municipal, em todas as áreas do conhecimento” (Brasil, p. 1, 2022).
Nesse momento, a coordenador do grupo GEPEC-Litoral Sul mobilizou os integrantes e
juntos construíram a proposta para a Linha 2 - Abrangência Estadual e fizeram inscrição. A
proposta foi aprovada com a nota 9,56, recebeu financiamento e quarenta bolsas de Iniciação
Científica Júnior – ICJ, quatro bolsas de Apoio Técnico em Extensão no País Nível Superior –
ATP-A e duas bolsas de Apoio à Difusão do Conhecimento – ADC-1C.
Assim, a equipe começou o processo de mobilização com a Diretoria de Educação dos
Povos e Comunidades Tradicionais da Secretaria da Educação do Estado da Bahia – SEC-BA e

78
Janille da Costa Pinto é mestra em Ciências da Educação; especialista em Docência para Educação Profissional e
Tecnológica; em Docência do Ensino Superior; em Linguagens, suas Tecnologias e o Mundo do Trabalho; em EAD; em
Produção em Mídias para Educação Online; em Gestão do Trabalho Pedagógico: Orientação e Supervisão Escolar; licenciada
em Pedagogia e bacharela em Administração. É professora da rede municipal de Ilhéus-Bahia; coordenadora pedagógica
(Estado da Bahia) e pesquisadora do Grupo de Estudos Movimentos Sociais, Diversidade Cultural e Educação do Campo e
da Cidade – GEPEMDECC/UESB; do Grupo de Estudos, Pesquisas e Experimentações Educacionais – GEPEE/IAT/SEC-BA.
É coordenadora do Grupo de Estudos e pesquisas em Educação do Campo no Território Litoral Sul – GEPEC- Território
Litoral Sul); coordenadora da Feira Integra Campo vinculada ao CNPq. e-mail: janille_80@hotmail.com.
I Feira Científica Integrada das Escolas do Campo dos Territórios do Sul da Bahia (Integra Campo):
144
intercâmbio de saberes

os Núcleos Territoriais da Educação Litoral Sul – NTE 05, Extremo Sul – NTE 07, Costa do
Descobrimento – NTE 27 e Baixo Sul - NTE 06, visto que na chamada do CNPq para a
realização da feira de abrangência estadual as propostas deveriam seguir as regras a seguir:
a) Reúnam, no mínimo, 80 trabalhos científicos de estudantes do ensino fundamental,
ensino médio e técnico, de escolas públicas e privadas de pelo menos 10% dos municípios
do Estado ou, no caso do Distrito Federal, de pelo menos 20% de suas escolas; b) Divulguem
o evento e a inscrição de trabalhos com amplitude estadual, respeitando-se as regras de
participação e seleção definidas pela instituição proponente (Brasil, p. 1, 2022).
Mediante essa exigência, a equipe organizadora da feira, por fazer parte do NTE 05 -
Litoral Sul, decidiram envolver todos NTEs localizados no Sul da Bahia, para assim, promover
um intercâmbio de saberes e conhecimento dos estudantes matriculados nas escolas do/no
campo, visto que cada NTE possui suas especificidades e abrangência como podemos notar a
seguir:
• Litoral Sul – NTE 5: ocupa uma área aproximada de 14.665 Km2, o que corresponde a
2,6% do território estadual (Bahia, 2015, p. 147), sendo composto por 26 municípios:
Almadina, Arataca, Aurelino Leal, Barro Preto, Buerarema, Camacan, Canavieiras,
Coaraci, Floresta Azul, Ibicaraí, Ilhéus, Itabuna, Itacaré, Itaju do Colônia, Itajuípe, Itapé,
Itapitanga, Jussari, Maraú, Mascote, Pau-Brasil, Santa Luzia, São José da Vitória,
Ubaitaba, Una, Uruçuca. Nesse Território de Identidade, a rede estadual de ensino é
composta por 93 unidades escolares (incluindo os anexos localizados nas comunidades,
vilas, distritos e povoados);
• Baixo Sul – NTE 6: ocupa uma área de 7.695 Km2, o que corresponde
aproximadamente 1,4% do território estadual (Bahia, 2016, p. 87), sendo composto por
15 municípios: Aratuípe, Cairu, Camamu, Gandu, Ibirapitanga, Igrapiúna, Ituberá,
Jaguaripe, Nilo Peçanha, Piraí do Norte, Presidente Tancredo Neves, Taperoá,
Teolândia, Valença, Wenceslau Guimarães. Nesse Território de Identidade, a rede
estadual de ensino é composta por 53 unidades escolares (incluindo os anexos
localizados nas comunidades, vilas, distritos e povoados);
• Extremo Sul – NTE 7: ocupa uma área de quase 18.536 Km², o que corresponde
aproximadamente 3,9% do território estadual (Bahia, 2015, p. 202), sendo composto
por 14 municípios: Alcobaça, Caravelas, Ibirapoã, Itamaraju, Itanhém, Jucuruçu, Lajedão,
Medeiros Neto, Mucuri, Nova Viçosa, Prado, Teixeira de Freitas, Vereda. Nesse
Território de Identidade, a rede estadual de ensino é composta por 83 unidades
escolares (incluindo os anexos localizados nas comunidades, vilas, distritos e povoados);
• Costa do Descobrimento – NTE 27: ocupa uma área de cerca de 12.132 Km2,
corresponde aproximadamente 2,2% do território estadual. Sendo compostos por 8
municípios: Belmonte, Eunápolis, Guaratinga, Itabela, Itagimirim, Itapebi, Porto Seguro
e Santa Cruz Cabrália (Bahia, 2015, p. 235). Nesse Território de Identidade, a rede
estadual de ensino é composta por 46 unidades escolares (incluindo os anexos
localizados nas comunidades, vilas, distritos e povoados).
Janille da Costa Pinto 145

Assim, o público-alvo era composto por estudantes da Educação do/no Campo


pertencentes à rede pública estadual da Bahia, moradores nos municípios do Sul baiano já
destacados acima e todas as etapas da educação básica que são ofertadas nesses espaços
campesinos serão envolvidas.
Posteriormente, a equipe proponente da INTEGRA CAMPO construiu a Chamada
Pública Interna para seleção de projetos de pesquisas concluídos ou em andamento para
participarem da Feira. E foi realizada uma reunião online pelo aplicativo Google Meet para fazer
seu lançamento.
As inscrições dos projetos se realizaram em duas etapas:
• Etapa 1: inscrição das Escolas do Campo dos Territórios de Identidades participantes
por meio de formulário eletrônico através do link no Google Formulário, de 20.03.2023
até dia 31.05.2023;
• Etapa 2: inscrição dos projetos de pesquisas pelos professores de 24 de abril a 16 de
junho de 2023.
No momento da inscrição dos projetos, foram enviados documentos pessoais dos(as)
estudantes e professores(as), bem como do projeto de pesquisa para categorias “em
andamento” e “concluído”, vinculados às áreas do conhecimento: Ciências Humanas e suas
Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Linguagens, Códigos e suas Tecnologias;
Matemática e suas Tecnologias. E as modalidades: Empreendedorismo; Mundo do Trabalho;
Projeto de Vida; Sustentabilidade; Produção agroecológica; Interiorização da Ciência;
Protagonismo feminino na Ciência; Valorização dos saberes Tradicionais; Cultura campesina;
Fortalecimento da agricultura familiar.
Cada projeto poderia ser composto por no máximo 2 (dois) estudantes e 1 (um)
professor(a) orientador(a). Somente foi admitida uma única proposta por estudante e os(as)
mesmos(as) deveriam estar regularmente matriculados na rede estadual de educação da Bahia,
nos ensinos Fundamental e Médio e/ou técnico, até dezembro de 2024, período que findará a
proposta. Foram avaliados por uma comissão científica que homologaram as inscrições dos
projetos de acordo com os critérios: aplicação do método científico, profundidade, criatividade
e inovação, clareza do conteúdo e relevância social.
A INTEGRA CAMPO foi planejada para se realizar em cinco fases a saber:
• Fase 1: submissão dos projetos para a comissão organizadora através do e-mail:
integracampo2023@gmail.com, que durou de 24 de abril a 16 de junho de 2023;
• Fase 2: avaliação dos projetos pela comissão de avaliadores/as para a participação na
INTEGRA CAMPO, durante os meses de junho e julho de 2023, e a homologação de 37
projetos em 3 de agosto de 2023;
• Fase 3: exposição presencial das pesquisas e realização da votação popular (online e
presencial) dos projetos aprovados pela comissão cientifica para a INTEGRA CAMPO,
que foi realizada no dia 17 de agosto de 2023;
• Fase 4: implementação das bolsas ICJ, ATP-A e ADC-1C pelo CNPQ, que iniciou em
setembro de 2023;
I Feira Científica Integrada das Escolas do Campo dos Territórios do Sul da Bahia (Integra Campo):
146
intercâmbio de saberes

• Fase 5: acompanhamento dos projetos em andamento e as ações provenientes dos


projetos que já foram finalizados até 31.12.2024.
A INTEGRA CAMPO no mês de setembro de 2023 realizou a etapa 5. Os projetos que
tiveram maior votação popular e científica estão sendo acompanhados pelos(as) professores(as)
orientadores(as) e por coorientadores(as) voluntários(as) do GEPEC-Litoral Sul. Nesse
acompanhamento, são realizadas as formações continuadas, reuniões para aprimoramento da
proposta e divulgação das ações nos eventos científicos, acadêmicos e culturais.

O CONCRETIZAR DA FEIRA INTEGRA CAMPO

A INTEGRA CAMPO se concretizou no 17 de agosto de 2023, no Colégio Estadual de


Tempo Integral Professor Carlos Roberto Arléo Barbosa, localizado na Rua Jasiel Martins, 43 -
Barra do Itaípe, Ilhéus - BA, 45658-180, como um grande evento de intercâmbio cultural,
artístico e científico da Educação do Campo do Sul da Bahia. Conseguiu concretizar seus
objetivos elencados na proposta enviada para o CNPQ que foram:
• Promover a democratização da ciência por meio da apresentação das produções
científicas desenvolvidas por estudantes regularmente matriculados nas escolas do/no
campo da Rede Pública do Estado da Bahia situados nos territórios de identidades do
Litoral Sul, Extremo Sul, Costa do Descobrimento e Baixo Sul;
• fomentar a inserção dos (as) estudantes do campo nas ações de produção e divulgação
científica e tecnológica no seu território de identidade;
• promover compartilhamento de experiências entre estudantes do campo e comunidade
em geral, que visem o não silenciamento das camadas populares, mas sim, a valorização
de sua cultura e saberes;
• estimular a participação de jovens do campo (agricultores familiares, extrativistas,
pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária,
trabalhadores rurais assalariados, quilombolas, caiçaras, povos da floresta, caboclos,
dentre outros povos) nos espaços que promovam a ciência, tecnologia e inovação
quebrando o status quo de que são espaços para os privilegiados da elite brasileira;
• fomentar a formação de estudantes e professores (as) da educação do/no campo para
serem sujeitos críticos, capazes de lutar e construir um projeto de desenvolvimento para
o campo;
• desenvolver competências e habilidades com percepção científica na busca de uma
formação integral e autônoma dos(as) estudantes das escolas do|no campo para
realização de seus projetos de vida que fortaleça a sua comunidade;
• favorecer práticas e reflexões interdisciplinares da ciência, tecnologia e inovação nas
áreas dos conhecimentos, promovendo o desenvolvimento das diversas linguagens nos
ambientes escolares do/no campo:
Janille da Costa Pinto 147

• fortalecer o “espírito de pesquisador (a)” dos(as) professores(as) e a capacidade


investigativa dos(as) estudantes por meio da construção de projetos de pesquisa e;
• oportunizar o compartilhamento e intercâmbio de vivências/experiências de
estudantes e professores (as) do/no campo dos Territórios contemplados.
Nesse contexto, a INTEGRA CAMPO se constituiu como um espaço de fortalecimento
das ações realizadas pelas unidades escolares do/no campo situadas nos Territórios de
Identidades Litoral Sul, Extremo Sul, Costa do Descobrimento e Baixo Sul, bem como
evidenciou que o campo também produz pesquisas, ciências, tecnologias e inovações, pois não
podemos aceitar que “o campo” seja visto como um lugar de retrocesso e atraso social e
tecnológico, mas sim, um espaço de luta e reivindicação que desde a década de 1990 vem
sendo travadas pelos(as) trabalhadores(as) do/no campo, na busca de garantia de uma
educação de qualidade, onde valorize a produção e reprodução da vida no campo, bem como
do trabalho, de cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao combate (de
classe) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações no projeto
de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de educação e formação humana
(Caldart, 2012, p. 257).
Logo, precisamos evidenciar por meios de propostas curriculares como a da Feira
Integra Campo, a necessidade de estabelecer a relação teoria e prática com o caráter científico,
as problemáticas e realidades no/do campo, os modelos de desenvolvimento,
empreendedorismo, agronegócio e das contradições existentes nesses territórios campesinos
apontando para a elaboração de possibilidades de ressignificação do conteúdo escolar, alinhada
às especificidades do campo de maneira reflexiva, crítica e criativa, na perspectiva de
resistência às manobras para a negação da educação aos trabalhadores(as) do/no campo.
Para a concretização da I INTEGRA CAMPO foi realizado um plano de trabalho com 6
(seis) frentes: 1ª (administrativo-financeiro); 2ª (divulgação em redes sociais e meios de
comunicação); 3ª (alimentação); 4ª (hospedagem e transporte); 5ª (comissão científica) e; 6ª
(programação cultural, artística e científica).
Cada frente de trabalho teve um membro do GEPEC- Litoral Sul, como responsável,
para assim, conseguir mobilizar a comunidade local e escolar para participarem da feira como
expositor de alimentos e artesanatos, voluntário nas palestras e oficinas, parceiro na realização
da programação artística e cultural, bem como colaborador nas demais necessidades para a
realização da feira.
Assim, foram realizadas diversas reuniões virtuais e presenciais da equipe organizadora,
com a gestão da Escola Arléo Barbosa (local onde ocorreu a Feira) e também com as equipes
escolares dos 4 (quatro) territórios para explicar a proposta da feira e tirar possíveis dúvidas.
Após esse momento de apresentação da proposta para as equipes escolares da rede
estadual foram desenvolvidas atividades de divulgação da Feira em âmbitos local, nacional e
internacional, por meios das redes sociais como no canal do YouTube: Educação Científica em
Foco e entrevista no podcast Café com Pão e a cobertura durante o evento da TV CACAU;
entrevista nas rádios Gabriela FM e Rádio Bahiana, em Ilhéus. No dia da Feira, ocorreu a
cobertura e reportagem na TV Santa Cruz.
Ao longo da organização, a I INTEGRA CAMPO contou com a parceria: 1) de grupos de
I Feira Científica Integrada das Escolas do Campo dos Territórios do Sul da Bahia (Integra Campo):
148
intercâmbio de saberes

estudos e pesquisas que abordam a temática: a) Grupo de Estudos e Pesquisas em Movimentos


Sociais, Diversidade, Educação do Campo e da Cidade – GEPEMDECC; b) GEPEC- Litoral Sul)
e; c) Grupo de Estudos e Pesquisas em Experimentações Educacionais – GEPEE; 2) órgãos e
entidades educacionais públicas: a) Secretaria Municipal de Educação de Ilhéus; b)
Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC; c) Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
– UFRB e; d) Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano – IFBAIANO, campus
Uruçuca.
A INTEGRA CAMPO fez parcerias com instituições voltada para a pesquisa, como o
Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico em Informática e Eletroeletrônica de
Ilhéus – CEPEDI e a Incubadora de Base Tecnológica – INETI, além de parcerias dos militantes
da educação do/no campo, ativistas e a comunidade local como o Núcleo de Educação Popular
e Diálogos Freiriano, Assentamento Margarida Alves e o Frei Vantuy que, juntos, formaram
uma grande rede de fortalecimento e integração das escolas do/no campo desses territórios e
de escolas da rede estadual e municipal que participaram da programação da Feira nos
momentos culturais e artísticos, como o Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Acuípe de
Baixo e a Escola Municipal Sergio Carneiro.
Dessa forma, INTEGRA CAMPO foi se constituído, sendo divulgada e conhecida. As
equipes escolares se mobilizaram para fazer inscrição de suas pesquisas, assim, a Feira teve a
participação de 16 escolas, sendo que algumas enviaram mais de um projeto, portanto, foram
44 inscrições e 35 projetos homologados, representando os quatro Territórios de Identidades
(NTE 27, com 1 projeto; NTE 07, com 8 projetos; NTE 06 com 20 projetos; e NTE 05 com 16
projetos) e 14 municípios, a saber: Caravelas, Mucuri, Prado, Valença, Piraí do Norte, Ituberá,
Jaguaripe, Arataca, Maraú, Ibiraçu distrito de Maraú, Uruçuca, Ilhéus, Aurelino Leal e Porto
Seguro.
A INTEGRA CAMPO contou com a exposição de pesquisas de 83 estudantes e 31
professores orientadores das seguintes escolas da rede estadual de educação da Bahia: Escola
Estadual do Campo Dr. Eraldo Tinoco; CEEP da Floresta do Cacau do Chocolate Milton Santos;
Colégio Estadual Professora Maria Olímpia ; Cetep Litoral Sul Comunidade Quilombola; Colégio
Estadual do Campo Jorge Calmon; Colégio Estadual do Campo de Serra Grande; Colégio
Estadual Clemente Mariani; CEMIT Litoral Sul; Colégio Estadual de Tempo Integral Dr. Aristides
Maltez; Colégio Estadual Idelzito Eloi de Abreu – Anexo Joseney Hipólito (Escola Luana
Carvalho); Colégio Estadual Luiz Navarro de Brito; Colégio Estadual Onildo Raimundo de Cristo
- Comunidade Quilombola; Colégio Estadual do Campo Hermínio Manoel de Jesus; Colégio
Estadual do Campo Anderson França; Colégio Estadual Alcides Afonso de Souza e Colégio
Polivalente de Caravelas.
Durante a Feira, ocorreram diversas atividades artísticas, culturais e cientificas que
iniciaram às 7h30, com a entrega de credenciais e recepção das escolas parceiras, bem como a
organização dos stands pelos estudantes expositores. Às 8h00, foi aberta ao público com a a
apresentação da banda musical do Colégio que tocou hinos e músicas de seu repertório. Alunos
do Colégio Estadual do Iguape cantou o Hino da Bahia.
Ocorreu a composição da mesa com fala breve de Janille Pinto (pesquisadora e
organizadora da Feira); de Poliana Reis (Diretoria de Educação dos Povos e Comunidades
Janille da Costa Pinto 149

Tradicionais da SEC-BA); de Leninha Cavalcante (Superintendente de Políticas para a Educação


Básica da SEC-BA); Eliane Oliveira “Lora” (Secretária municipal de educação de Ilhéus), Josué
de Souza (Diretor do IFBAIANO, campus Uruçuca); Cláudio Magalhães (vereador e indígena) e;
Dulcineia Pereira (Diretora da escola onde ocorreu a Feira), como podemos visualizar na Figura
1,

conforme programação disponível na Figura 2.


Após a composição da mesa, foi realizada a
Mística com a equipes dos Colégio Estadual
Indígena Tupinambá de Acuípe de Baixo, Colégio
Estadual Indígena Tupinambá Amotara e o Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Abaete.
Durante todo o dia foi realizado as exposições de artesanatos e alimentos dos
empreendedores locais, estudantes, professores e gestores de escolas que desejam expor suas
produções. Além da exposição de artes visuais dos estudantes do Colégio Estadual do Campo
de Serra Grande, Colégio Estadual do Iguape (estudante autista Carlos Daniel) e do Colégio
Estadual Milton Santos como podemos
visualizar na Figura 3.
Durante o turno matutino foi
realizado também as seguintes palestras:
“Os desafios e realidades da educação
no/do campo” com a palestrante Arlete
Ramos, da UESB e a segunda “Os
desafios e realidades da pesquisa,
ciências e inovação na educação no/do
campo” com o palestrante Ivan Oliveira
Pereira do IFBAIANO.
Para os estudantes expositores
das pesquisas foram realizadas 8 oficinas com os seguintes temas: 1- Tema: Círculo de Cultura:
Abayomi e as relações étnicorraciais; 2- Tema: Grafismo Índígena; 3- Tema: Vivências
Corporais: psicomotricidade no contexto da Educação Básica; 4-Tema: Empreendedorismo
e Associativismo; 5- Tema: Casos Práticos de Inovação; 6- Tema: Trânsito seguro no Campo:
uma questão de escolha; 7- Tema: O Fortalecimento da agricultura familiar; e 8- Tema: Práticas
permacultura na Educação do Campo.
I Feira Científica Integrada das Escolas do Campo dos Territórios do Sul da Bahia (Integra Campo):
150
intercâmbio de saberes

Já durante o turno vespertino continuaram as exposições dos projetos científicos, dos


produtos artesanais e alimentos. Acrescentando as apresentações de escolas do campo
municipal e estadual com a: apresentação musical do Grupo Musical Trup Girassol/Educação
do Campo/UFRB; apresentação de música e poesia do Colégio Estadual Acuípe de baixo;
apresentação de Fanfarra e Ballet do Colégio Estadual Arléo Barbosa; apresentação de capoeira
do Colégio Estadual Modelo de Ilhéus e da Escola Municipal Professora Regina Célia Matos,
do município de Canavieiras-BA; apresentação de poema do Colégio Estadual do Iguape ;
apresentação de dança da Escola Municipal Nossa Senhora das Neves, do munícipio de Ilhéus;
apresentação de xaxado e carimbó do Colégio Estadual Catalão; apresentação de música e
poesia do Colégio Estadual Jorge Calmon.
Ao final o evento, foi entregue a placa memorial e medalha da Feira Integra Campo para
os(as) estudantes expositores e seus(suas) professores(as) orientadores, conforme Figura 4.
Às 17h00, se encerrou esse grande
momento de intercâmbio de saberes científicos,
tradicionais, culturais e artísticos das equipes dos
4 territórios envolvidos, contudo, a votação para
escolha dos projetos mais votados se encerrou no
dia 18 de agosto. A divulgação dos projetos mais
votados foi em uma live do canal do YouTube da
TV Cacau no dia 25 de agosto, juntamente à
atividade da Feira Nacional de Ciências e
tecnologia do IFBAIANO.
Conforme a chamada pública foram
classificados 40 estudantes vinculados aos projetos mais avaliados pela comissão científica e
votação popular para as bolsas de ICJ e 4 professores orientadores para as bolsas de ATP-A.
Desse modo, durante o mês de setembro e outubro de 2023 já as ações de orientação,
acompanhamento das pesquisas e execução das bolsas já foram iniciadas. Cabe destacar que a
INTEGRA CAMPO durante todas as suas etapas realizou divulgações de suas ações em suas
redes sociais no Instagram por meio do link: https://www.instagram.com/integracampo23/ e
no canal do https://www.youtube.com/@FEIRADECIENCIAINTEGRACAMPO.

CONSIDERAÇÕES

Ao final do presente relato, embasada nas leituras realizadas durante todas as etapas
para a realização da INTEGRA CAMPO e das ações concretizadas no dia 17 de agosto de 2023,
percebe-se que já era tempo para essa modalidade de educação ter um evento específico para
sua realidade dentro da rede estadual de educação da Bahia.
Identificamos que foram (e está sendo) diversas ações realizadas durante A INTEGRA
CAMPO, desde encontros virtuais e presenciais de alinhamento com a equipe organizadora,
SEC-BA, NTEs, parceiros e equipes escolares e, principalmente, no dia presencial de realização
da Feira. Esse momento foi de uma riqueza imensurável, de um grande intercâmbio entre as
Janille da Costa Pinto 151

redes municipais, estaduais e federais, bem como de saberes e conhecimento científico, cultural
e artísticos dos povos do campo.
Percebe-se a necessidade de realização de novas edições da INTEGRA CAMPO (não
somente nos Territórios de Identidade localizados no Sul da Bahia) para motivar os estudantes
e equipes escolares que residem e/ou estudam no campo a pesquisarem e estudarem sobre
sua realidade locar e fortalecer suas práticas pedagógicas nas escolas do/no campo com sentido
e significado.
Ademais, as ações da INTEGRA CAMPO perpassaram a formação continuada dos(as)
profissionais e estudantes envolvidos, pois possibilitou mudanças na postura e pensamentos
sobre os objetos de conhecimentos pesquisados, bem como a luta que a educação do/no
campo trava há tempos para uma estrutura física e pedagógica condizente com as
especificidades do campo e a necessidade de ressignificação da prática e metodologia dos(as)
professores(as) e comunidade escolar.

REFERÊNCIAS

BAHIA. Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Perfil dos Territórios de


Identidade. v. 2. Salvador: SEI, 2016.
BAHIA. Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Perfil dos Territórios de
Identidade. v. 1. Salvador: SEI, 2015.
BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações – MCTI. Chamada CNPq/MCTI/FNDCT
Nº 06/2022. Feiras de Ciências e Mostras Científicas. Disponível em:
https://www.cnpq.br/web/guest/chamadaspublicas?p_p_id=resultadosportlet_WAR_resultad
oscnpqportlet_INSTANCE_0ZaM&filtro=abertas&detalha=chamadaDivulgada&desc=chamad
as&idDivulgacao=10686. Acesso: 17 set. 2023.
CALDART, R. S. Concepção de Educação do Campo. Síntese produzida para exposição sobre a
Licenciatura em Educação do Campo (texto-fala). POA: ENDIPE, 29 de Abril de 2008.
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
152
professor/mediador com jogos eletrônicos

“Mas é preciso ter manha


É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 79

79
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
Marlene Gonzaga Bitencourt 153

13 AULA MEDIADA NA CONSTRUÇÃO DO


CONHECIMENTO: CONTRIBUIÇÕES DE REUVEN
FEUERSTEIN NA ATUAÇÃO DO PROFESSOR/MEDIADOR
COM JOGOS ELETRÔNICOS
Marlene Gonzaga Bitencourt80

INTRODUÇÃO

O interesse pelo título “Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições


dos jogos eletrônicos na atuação do professor/mediador” surgiu no curso de formação de
professores/mediadores que ministrei na Escola Municipal Antônio Euzébio, situada na rua
Cristiano Buys, no bairro Cabula, em Salvador-Bahia. Esta escola funciona nos turnos matutino
e vespertino, do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. Estes mesmos professores atuam com
aulas mediadas nas suas práxis pedagógicas em conteúdos padronizados. Sentiram, então, a
necessidade de dar aulas mediadas com os jogos eletrônicos que estão disponíveis nos
computadores da sala de informática da escola.
A aula mediada está fundamentada na Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural
– TMCE e na Experiência de Aprendizagem Mediada – EAM, de Reuven Feuerstein,
possibilitando o desenvolvimento dos processos cognitivos de raciocínio, pretendendo
melhorar as funções cognitivas e as operações mentais que contribuirão para promover o
raciocínio lógico dos mediadores/mediados envolvidos com os jogos eletrônicos.
Os argumentos da sociedade cognitiva atual encerram, essencialmente, três tipos de
choques que invadem as infraestruturas das organizações do mundo moderno: o primeiro
confronta-se com a explosão da informática e das suas tecnologias modernas, cujos benefícios
são visíveis à luz da sua acessibilidade e mobilidade informacional, sem esquecer o perigo de
elas ficarem apenas à disposição de alguns que podem manipular e multiplicar, dada a
concentração seletiva de competências em alguns grupos sociais. O segundo choque está
associado à mundialização da economia, universo de discrepâncias tecnológicas e incertezas
multifacetadas de produção, distribuição e consumo. O terceiro choque vincula-se à
transformação da civilização científica, ela também decorre de estratégias de investimento de
recursos que demarcam as diferenças de pensamento e ação entre países e organizações.

80
Marlene Gonzaga Bitencourt é especialista em Novas Tecnologias Educacionais pela Universidade Federal da Bahia -
UFBA; em Educação Especial pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB; em Alfabetização pela UFBA; em Supervisão
Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas; e pedagoga pela Universidade Estadual de
Santa Cruz – UESC. É professora aposentada da Secretaria da Educação do Estado da Bahia – SEC-BA e coordenadora
pedagógica da Secretaria Municipal da Educação de Salvador - SMED. É formadora especializada no Programa de
Enriquecimento Instrumental – PEI (níveis I e II) pelo International Center for the Enhancement of Learning Potential – ICELP,
em Jerusalém/Israel, desde 1999. E-mail: marlenegbitencourt@yahoo.com.br
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
154
professor/mediador com jogos eletrônicos

Para enfrentar estes choques, a organização e a planificação de respostas adequadas


exigem um pensamento estratégico sobre recursos humanos – RH e uma opção deliberada
sobre o seu enriquecimento cognitivo prospectivo. Nessa linha estará a revalorização da cultura
geral, a validação das competências e de aprendizagem acelerada e a flexibilidade e mobilidade
do potencial de aprendizagem.
A orientação para a ação tenderá a vocacionar-se, sem hesitação, para o treino e o
desenvolvimento de novas aquisições para a adaptação à mudança, para o desenvolvimento da
capacidade de aprender a aprender, e não apenas aprender técnicas cuja eficácia se pode tornar
ultrapassada com o tempo, sem esquecer a busca de estratégias para o desenvolvimento intra
e interpessoal de processos de raciocínio lógico, analógico, inferencial e hipotético, básicas para
detecção e resolução de problemas, para a luta contra ações de formação segregativas e
questionáveis em termos de inovação e qualificação, visto basearem-se tradicionalmente na
reprodução pura e simples de conhecimentos ou técnicas.
A pesquisa e o encorajamento de modelos de formação para o aumento das capacidades
de comunicação são outras das medidas a implementar. Enfim, tomar uma decisão intencional
e forte no âmbito do investimento da inteligência, apoiando a investigação, a inovação e a
avaliação de projetos de excelência em formação de RH, vai ser uma das respostas nucleares
às exigências da sociedade cognitiva.
A adaptação à mudança só se pode alcançar com investimento na cognição das pessoas,
visto que a sua aprendizagem não ocorre por simples exposição direta à informação, nem por
simples repetição acrítica de competências. Aprender é sinônimo de modificabilidade nas
capacidades de captar, integrar, planificar e exprimir informação, isto é, envolve a propensão
do indivíduo para se modificar e adaptar a novas situações.
Para se operacionar o conjunto destas mudanças no organismo complexo do ser
humano, é fundamental proporcionar oportunidades mediatizadas de formação que permitam
adquirir e utilizar estruturas de pensamento, formas de aprendizagem, modalidades para
identificar, detectar e resolver problemas, numa palavra, processos cognitivos que abordem os
multicomponentes do ato mental que preside qualquer aprendizagem, treinar funções de
atenção, de processamento de dados, de inferência e educação, de mobilização de capacidades
adaptativas para situações inéditas e imprevisíveis de aperfeiçoamento para reagir de forma
autoplástica e automodificadora às novas exigências que se colocam em múltiplos e diversos
contextos.
As organizações do futuro terão que abandonar a segurança e a rotina estática de suas
atividades, o contexto familiar habitual do seu envolvimento organizativo. O ritmo da mudança
que ocorre nas organizações dita novos desafios que exigem novos raciocínio com os quais os
indivíduos nunca foram confrontados. A necessidade de adaptação ao novo, ao desconhecido
e ao complexo só se pode satisfazer com investimento no desenvolvimento da capacidade de
adaptação e, para tal, a cognição exerce um papel central nos processos íntimos da sua gênese.
As mudanças exigidas pela natureza descontínua e evolutiva do trabalho reclamam-no.
A necessidade de adaptação à novidade, ao desconhecido e à complexidade não emerge
do nada, nem de processos tradicionais de formação ou de ocupação, quando não de situações
traumáticas e opressoras de produção. Para responder à mudança é preciso dar oportunidades
Marlene Gonzaga Bitencourt 155

à propensibilidade de o ser humano se adaptar a novas situações, visto ter sido esse o seu
triunfo evolutivo. Facilitar a adaptação às condições da sociedade cognitiva atual implica lançar
mão de programas de enriquecimento cognitivo, combatendo os índices de baixo rendimento,
de insucesso, de disfuncionamento mental e de privação cultural, que obstaculizam novas
oportunidades de potenciar a cognição do RH.
Para superar o perigo crescente de indivíduos excluídos de condições mínimas de
qualificação e empregabilidade, exige-se uma tomada de consciência sobre os novos desafios
de gestão dos postos e das competências de emprego, da organização do trabalho, da formação
profissional e do desenvolvimento de organizações de aprendizagem em todos os setores.
Em todos eles o investimento na cognição é fundamental, não só para responder as
mudanças abruptas de qualificação e desqualificação, como para promover formas adequadas
de motivação que travem a tendência redutora do subaproveitamento dos RH em muitas
organizações. Ultrapassar este problema envolve apostar em programas de intervenção
cognitiva que aceleram a modificabilidade das pessoas, que ampliem os seus processos mentais,
as suas funções cognitivas, o seu domínio tecnológico, bem como reduzam a resistência
psicológica e emocional às permanentes transformações.
Em síntese, é urgente assumir uma crença no potencial do indivíduo, na sua
disponibilidade estrutural para aprender e reaprender, para generalizar e transferir as suas
aquisições aprendidas para situações diversas e imprevisíveis, pois esta imprevisibilidade dos
RH é a única previsibilidade em que as organizações têm que se concentrar no futuro.
Aprender novas formas de raciocínio, desenvolver competências de comunicação,
redesenvolver funções cognitivas deteriorizadas, traumatizadas e diminuídas por formas de
trabalho puramente motoras, braçais ou gestuais, pobres intelectualmente, minimamente
reflexivas e simbólicas e cognitivamente desestruturadas, é certamente uma das respostas mais
necessárias para se observar a adaptação à sociedade cognitiva.
A adaptação a esta sociedade atual exige abandonar a segurança do conhecido, do
familiar e do habitual e voltar-se para uma aventura do inédito e do imprevisível; a hipótese da
mobilidade só se torna viável através da flexibilidade das funções cognitivas. Numa sociedade
supersimbólica, com uma economia global baseada numa revolução computacional, o poder do
conhecimento ganha novos contornos de poder, não só no mundo dos negócios como no
mundo da formação e da qualificação de RH.
Apostar na inteligência é hoje uma estratégia de sobrevivência de muitas organizações,
na medida em que dá a cognição um papel fundamental na gênese e no desenvolvimento da
adaptação e da aprendizagem, de onde podem emergir novos hábitos mentais, novas aquisições
tecnológicas, novos poderes criativos, novas estratégias de resolução de problemas, novos
conhecimentos e atitudes, novos desenvolvimento de teorias e de potenciais de transferência
para as mais diversas situações.
Os RH do futuro terão que ser, inevitavelmente, mais talentosos, triunfadores e mais
solucionadores das situações-problemas que surgirão nos seus locais de trabalho. A revolução
cognitiva, que se aproxima de todo o tipo de organizações, vai produzir indivíduos cada vez
mais inovadores, mais decisores inteligentes, mais aprendizes eternos, verdadeiros atores do
desenvolvimento nos seus locais de trabalho, e não meros espectadores desinteressados e
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
156
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alheios das organizações de onde depende a sua subsistência e inserção social.


Responder à inovação constante que emana da atividade atual, às novas ideias e
processos que a caracterizam, às novas tecnologias que transformam segundo a segundo as
novas modalidades de produção e responder às permanentes alterações competitivas com mais
eficácia subentende uma evolução contínua das competências cognitivas dos recursos
humanos, uma maior agilidade empresarial e uma maior operacionalidade de sua capacidade de
aprender a aprender.
Um dos fatores que certamente mais influenciam a qualificação dos RH é a cognição
que está subjacente à sua atividade produtiva, tecnológica e laboral. As situações de trabalho
devem ser analisadas à luz da modificabilidade cognitiva investida na organização dos
processos de produção e nas interações onde tais recursos evoluem. À lógica dos postos de
trabalho deve-se sobrepor à lógica das competências, onde é óbvia uma abordagem cognitiva
para tornar os esforços adaptativos mais rentáveis. O futuro das organizações na sociedade
cognitiva terá que se preocupar com o desenvolvimento cognitivo dos seus RH. A necessidade
de uma intervenção cognitiva para preparar as mudanças das estruturas mentais dos RH parece
irrecusável neste contexto. As organizações que sobreviveram no passado centradas numa só
técnica de produção estão hoje numa luta de renovação onde integram múltiplas tecnologias;
as do futuro não sabem definir qual a natureza das técnicas que vão utilizar.
A inovação só se pode atingir com investimento formativo e qualitativo, não se trata de
um recurso espontâneo das empresas, inovar é criar, é criar posicionamento dinâmico face a
uma organização centrada na aprendizagem (learning organizations), é adotar novas tecnologias
que promovem nos RH novas competências e novos processos de produção, que obviamente
se transformarão, no futuro, em vantagens competitivas. A resposta à competitividade e à
modernidade decorre claramente de um investimento formativo que implique mudanças
mentais estruturais nos RH, uma parceria estratégica com processos de qualificação que
exigem uma afetiva gestão da mudança emergida de uma reengenharia da aprendizagem.
Atingir níveis de desempenho excelente só é possível num contexto globalizante de
aprendizagem, e tal é tão válido para uma escola como para uma empresa.
Uma empresa, por definição, é o conjunto organizado de postos de trabalho que deve
ser adaptado e, neste pressuposto, é uma meta-organização que permite a emergência de
condições de desenvolvimento cognitivo que impliquem o surgimento de respostas às suas
necessidades. As organizações do futuro devem orientar-se para promover permanentemente
a qualificação dos seus RH, de forma que eles possam ser mobilizados e responsabilizados na
sua transformação. Nesta dinâmica de aprendizagem, quem aprender mais vai inovar mais e
mais rápido, o sucesso não será uma miragem, mas um objetivo possível de conquistar.
A requalificação cognitiva dos RH de uma organização pode ajudar a superar o caráter
dinâmico e evolutivo das mudanças abruptas que ocorrem no seu exterior e
concomitantemente no seu interior. A adaptabilidade das organizações repousa na capacidade
que os seus RH manifestam para se adaptar, e aqui a cognição tem algo a dizer, na medida em
que ela aumenta a capacidade dos RH para descodificar as evoluções organizacionais e,
consequentemente, fornecer os instrumentos metacognitivos que perpetuam a sua autonomia
e a sua aprendizagem permanente como organização. A intervenção cognitiva dos RH permite
Marlene Gonzaga Bitencourt 157

melhorar a organização do trabalho, torna os RH mais competentes e interativos e diversifica


e flexibiliza sua qualificação. Para tornar os RH mais inteligentes, teremos que apostar no
desenvolvimento das suas funções cognitivas e na flexibilidade e na plasticidade do seu
pensamento. A adaptação aos seus problemas do futuro só pode realizar-se através da
inteligência, eis uma das apostas mais claras das organizações do século XXI.
Aprender a ser mais inteligente não tem algo de extraordinário, basta que se equacione
a possibilidade de aplicação de programas de enriquecimento cognitivo, uma espécie de janela
de oportunidades que se abre a todos os indivíduos, sem exceção, independentemente de sua
idade, experiência ou condição sociocultural. É esta mensagem positiva que nos oferecem
muitos autores atuais da educação cognitiva, nomeadamente, o Prof. R. Feuerstein, com sua
TMCE consubstanciada em dois instrumentos de intervenção: o programa de enriquecimento
instrumental – PEI e o learning potential assessment device – LPAD (modelo de avaliação do
potencial de aprendizagem). Com base nesta teoria e nestes instrumentos de intervenção, a
capacidade intelectual pode ser incrementada em qualquer etapa do desenvolvimento do
indivíduo (Feuerstein, 1980, 1985; Fonseca, 1991b, 1994b, 1996b).
A inteligência como constructo mental não se esgota numa simples e única
quantificação e quocientização, nem pode ser tomada em consideração como instrumento
preditivo infalível, decorrente de uma hora de perguntas colocadas sem intenções interativas e
mediatizadas. Esta definição de inteligência considera, em síntese, que a inteligência não se
muda, daí que os modelos de avaliação que nela se baseiam equacionam a medida da
inteligência como algo que só existem em termos objetivos e numéricos.
As teorias atuais, nas quais podemos incluir as de Feuerstein (1980; 1985), Sternberg
(1986), Haywood (1992), Das, Kirby e Jarman (1975), Gardner (1985), etc., situam a inteligência
como uma qualidade própria do ser humano altamente modificável, como uma condição
característica de seu organismo complexo e do seu processo evolutivo multifacetado. A busca
de uma nova teoria sobre a competência cognitiva dos indivíduos é necessária para alterar a
visão clássica da inteligência dos RH em qualquer organização, ou mesmo para perspectivar
uma nova visão da civilização atual, que aposta definitivamente nos poderes da inteligência.
Atualizar continuamente a capacidade de usar a inteligência na sua capacidade máxima
disponível sempre atraiu filósofos e pensadores, desde Platão, Aristóteles e Sócrates até Santo
Agostinho, e, mais tarde, Dante e Bacon. Nossos dias, a civilização científica e a globalização da
economia só poderão ser um fenômeno histórico equilibrador se a democracia cognitiva for
uma realidade em todos os países e em todas as organizações. A estima, a admiração e o
respeito pela inteligência, na base da qual se construiu a civilização moderna, não podem vê-la
como fixa e imutável, ou apenas como convencionais classificações de pessoas por talentos e
inteligências inatas ou adquiridas.
A modificabilidade da inteligência ilustra uma característica única da espécie humana,
uma manifestação do percurso evolutivo de qualquer ser humano, uma energia necessária para
responder à variedade das situações-problemas que a vida na sua essência sempre colocou à
ascensão do gênero Homo, o tal “ser sapiente” por natureza, o “vertebrado pensante”, como
nos designamos (Fonseca, 1989b). A inteligência, certamente característica mais importante do
ser humano, mesmo a sua melhor ferramenta ao longo da evolução e emergida da sua interação
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
158
professor/mediador com jogos eletrônicos

com o meio, é um componente adaptativo altamente modificável, sem o qual não seria possível
a construção do mundo civilizado e a adaptabilidade à variedade de situações experienciais de
seu processo sócio-histórico. A inteligência fez o Homo sapiens e vice-versa, estruturou o seu
comportamento e a sua afetividade, por isso, tornou-se a condição vital da sua adaptação à
mudança e do seu desenvolvimento social e cultural. A sua plasticidade, surgida de estágios
integrados, permitiu novas formas de pensamento e de ação, implicando o acesso ao
pensamento científico. Numa concepção imutável da inteligência, o ser humano não evoluiria,
petrificar-se-ia mentalmente e a sua cultura estabilizar-se-ia inexoravelmente.
É, portanto, um erro considerar a inteligência como fixa e é também um erro categorizar
pessoas como débeis ou deficientes mentais, na medida em que elas, na sua essência, podem
se transformar por efeitos da educação e da formação. Conceber o indivíduo como fixo é
acientífico, mesmo à luz da psicologia científica, porque baseada em medições questionáveis.
Conceber a inteligência como calculável foi uma tragédia, pensá-la como reduzida a um
quociente mental – QI x ou y, explicitando qualquer atraso, é um reducionismo perigoso,
segregativo e tautológico.
A inteligência decorre efetivamente da aprendizagem, uma espécie de condenação a
que nenhum ser humano pode escapar em qualquer cultura que se posicione, pois só uma
dimensão expositiva à complexidade da experiência de aprendizagem mediada (Feuerstein,
1985), a modificabilidade da sua inteligência pode operar-se em certa medida explicar o
sucesso na vida de muitos indivíduos com QI baixo, mas que mostram potencial de
aprendizagem, e é esta que interessa potenciar e mediatizar em termos educativos ou
formativos. Por se ter adotado no passado, o QI fixo e imutável nos sistemas de educação e de
formação, a segregação da situação de aprendizagem instalou-se, originando, como
consequência, uma visão inútil e desumana sobre o potencial de muitos indivíduos
irremediavelmente perdidos para a vida.
Proporcionar ao indivíduo, pelo contrário, oportunidades de aprendizagem
mediatizadas, intencionais, significativas, transcendentes e centradas sobre as suas disfunções
cognitivas, modelando o seu comportamento e a sua reorganização mental (funções de input,
integração-elaboração e output), pode fazer a diferença na sua inteligência, e várias pesquisas
na educação cognitiva têm demonstrado isso (Feuerstein, 1980; Haywood et al., 1992;
Fonseca; Santos; Cruz, 1994a, 1994b).
Para pôr em prática esta concepção de formação e qualificação, teremos que destruir
os estereótipos de muitas gerações que definiram o potencial intelectual como inalterável, visto
que ela postula a modificabilidade das estruturas cognitivas e propõe um enriquecimento
cognitivo e um modelo dinâmico de avaliação. A necessidade de adaptação, exigida pela
sociedade cognitiva, é um desafio constante à inteligência dos RH para desenvolvermos
efetivamente. É preciso ter uma abordagem ativa e otimista sobre os RH, pois seu
autoaperfeiçoamento e sua automodificabilidade só podem ser alcançados por meio de
processos de aprendizagem baseados nas funções cognitivas. Aprender a aprender vai ser tão
possível, e devido a essa modificabilidade, os RH tornar-se-ão mais competentes, flexíveis e
tolerantes. O ser humano, um recurso inesgotável, não pode se desperdiçar, ele por si próprio
está aberto ao desenvolvimento de novas estruturas, de novos sistemas e de novos modelos
Marlene Gonzaga Bitencourt 159

de pensar e agir, que podem ampliar o seu repertório experimental para se adaptar a diversos
contextos, tornando possível a modificabilidade da sua qualificação para um mundo em
mudança acelerada.
O futuro exige que a adaptação dos RH se faça através da inteligência da sua
plasticidade e flexibilidade; só por esses meios lhe podemos ascender. Mais do que nunca, a
qualificação dos RH precisa investir na sua modificabilidade cognitiva.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O psicólogo israelita Reuven Feuerstein, que estudava na Universidade de Genebra, se


integrou as equipes assistenciais pela adaptação em Israel de judeus nômades, no pós segunda
guerra, principalmente vindos do norte da África. Ele se encarregou de esclarecer qual a
estrutura escolar que Israel deveria preparar para essas pessoas. Por este motivo realizou
avaliações com filhos destes emigrantes, verificando que, muitas crianças e adolescentes
apresentavam baixos índices de rendimento cognitivo-intelectual. Verificou também que os
testes aplicados não ajudavam a melhorar nada o nível cognitivo das referidas crianças, que
tiveram a sua performance avaliada em abaixo da média da normalidade. Por discordar do
resultado fornecido pelos testes psicológicos tradicionais, Feuerstein prosseguiu a sua
investigação e concluiu que aquelas crianças e adolescentes eram vítimas da síndrome de
privação cultural, por terem vivido alienados da sua própria cultura e não terem passado por
experiências de aprendizagem mediada. A partir daquele momento, começou a ser
desenvolvida a TMCE com seus sistemas aplicativos: o PEI, a LPAD e os Ambientes
Modificadores – AM.
Feuerstein nasceu na Romênia, em 1921. É filho de judeus. Em Bucareste, estudou
Psicologia Geral e Clínica e Pedagogia. Em 1970, completa seus estudos com o doutorado em
Psicologia do Desenvolvimento, na Universidade de Sorbonne, em Paris-França. Foi aluno
direto de Piaget. As ideias deste foram investigadas por Feuerstein com a população das
crianças judias emigrantes do norte africano para Israel, após a II Guerra Mundial. A partir daí,
Feuerstein propôs trabalhar com os espaços vazios no desenvolvimento, através do apoio de
um mediador e assim favorecer o desenvolvimento de todas as operações mentais.
Para Feuerstein (1980), o desenvolvimento cognitivo da criança não é somente
resultado do processo de amadurecimento do seu organismo, nem de seu processo de
interação independente com o mundo dos objetos, mas é o resultado combinado da exposição
direta ao mundo e de experiência de aprendizagem mediada, pela qual a cultura se transmite.
O mediador humano se interpõe entre o estímulo e o organismo e entre o organismo e a
resposta filtra, seleciona, transforma e organiza estes estímulos, criando condições para que o
mediado experimente níveis mais elevados de interação. A aprendizagem passa, então, de um
produto fortuito, casual, para uma ação intencional, voltada para um objetivo claramente
definido. Segundo Feuerstein, os seres humanos são vistos como indivíduos que tem a
propensa única para modificar-se ou para serem modificados nas estruturas de seu
funcionamento cognitivo, à medida que eles respondem às demandas nas transformações de
situações de vida.
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
160
professor/mediador com jogos eletrônicos

A aula mediada tem foco no desenvolvimento dos processos de raciocínio, pretendendo


melhorar as funções cognitivas e operações mentais. Observando as aulas mediadas dos
professores pesquisados com o intuito de ver os alunos transferindo essa aprendizagem de
modo geral no seu cotidiano. Através d observação das aulas mediadas e entrevistas aos
professores e alunos, coletei dados qualitativos para analisar o grau de modificabilidade dos
mesmos. Houve, também, um momento de reciprocidade das observações das aulas. Assim, a
pesquisa apresentou-se como uma proposta metodológica, oferecendo-me subsídios para a
organização das atividades pedagógicas com jogos eletrônicos.

A revolução cognitiva: Piaget, Vygotsky e Feuerstein


Piaget e Vygotsky nasceram no mesmo ano. Piaget viveu de 1896 a 1980, já Vygotsky,
de 1896 a 1934. Esses teóricos deixaram marcas muito fortes para as gerações futuras. Piaget
nasceu na Suíça, um país rico, e não houve revolução em época alguma. Vygotsky experimentou
a Revolução Russa, em 1917, e a guerra que se seguiu. Ele nasceu em uma família judia e passou
as privações da época. Piaget desenvolveu-se dentro de um país liberal e Vygotsky em um país
com problemas políticos. Piaget teve muito mais anos de vida e trabalho que Vygotsky, que
faleceu no início da sua carreira.
A visão que cada um dos teóricos tinha sobre a criança pode ser vista na Tabela 1.
Tabela 1. Visão de Piaget e Vygotsky sobre a criança
Piaget Vygotsky
• o menino é um poeta que aprende linguagens e depois cria a sua
• um pequeno científico que explora o mundo como qualquer científico da
própria;
vida;
• desenvolve a linguagem primária que recebeu e desenvolveu-se
• interessado em Biologia e Filosofia mas sobretudo na natureza biológica da
dentro da sociedade;
criança, foi com base nesse pensamento que deu início sua contribuição para
• interessado em todas as ciências humanísticas contribuindo para a
educação
educação
Fonte: elaboração da autora

Feuerstein foi discípulo de Piaget. Recebeu o prêmio de Educação em Israel, e é


fundador do International Center for the Enhancement of Learning Potential – ICELP (Centro
Internacional para Enriquecimento do Potencial de Aprendizagem). Desenvolveu a TMCE e
suas aplicações.
A EAM é uma teoria responsável pela formação e pelo desenvolvimento da
modificabilidade e se caracteriza, basicamente, pela utilização de três critérios de mediação: 1.
Intencionalidade/Reciprocidade; 2. Significado; 3. Transcendência. São qualidades universais,
presentes em todas as interações humanas mediadas. A EAM define o perfil do mediador como
aquela pessoa que organiza o processo de ensino/aprendizagem e intervém selecionando o
critério de mediação adequado às necessidades dos alunos e aos objetivos de cada aula.
Mediador, para Feuerstein, é somente o ser humano que seleciona e filtra a capacidade, a
necessidade e a organização do mediado para a construção do conhecimento eficiente e eficaz,
através da metacognição, que explica o pensar sobre o pensamento, possibilitando a
modificabilidade cognitiva estrutural do sujeito.
Em síntese, para Piaget, a mente se desenvolve por processos misteriosos de
Marlene Gonzaga Bitencourt 161

experiência biológica (construtivismo). Para Vygotsky e Feuerstein, a mente se desenvolve


através da modificabilidade cognitiva estrutural com a intervenção do mediador (S=HO H=R).
Em todos os casos, há formação de hábitos, há repetição, contudo, nas concepções dos três
teóricos, a grande diferença é o papel do mediador, saindo de um estado passivo de Piaget para
a interação no processo de mediação de Vygotsky e Feuerstein. Os objetivos de Vygotsky não
ficariam muito claros, não desenvolveu uma metodologia, e sim uma teoria interessada no
objetivo da mediação e não como mediar. Feuerstein criou a teoria TMCE, a metodologia EAM
e os projetos de intervenção psicopedagógicos PEI e LPAD.
Na Tabela 2, é possível verificar as semelhanças entre Piaget e Vygotsky.
Tabela 2. Semelhanças entre Piaget e Vygotsky
Piaget Vygotsky

1. Sua primeira publicação foi Filosofia da Biologia; 1. Sua primeira publicação foi sobre a Cultura Judia;
2. Psicologia centrada na criança, um adulto incompleto em pequenas 2. Psicologia centrada na criança um adulto incompleto em pequenas
quantidades, memórias de um adolescente e de uma criança consegue quantidades, adolescentes e adultos são iguais em retenção da
reter em pequenas quantidades; memória sendo que a criança em pequenas quantidades;
3. Desenvolve fenômenos linguísticos ao longo da sua infância. 3. Desenvolve fenômenos linguísticos ao longo da infância;
4. O desenvolvimento da criança é da ação, ou seja, no final do processo 4. O desenvolvimento da criança é da ação do pensamento, ou seja,
se converte em pensamento; no final do processo se converte em pensamento;
5. Do sensório motor para esquemas de pensamento 5. Do sensório motor para esquemas de pensamento.

Fonte: elaboração da autora

Já na Tabela 3, é possível verificar as diferenças entre Piaget, Vygotsky e Feuerstein.


Tabela 3. Diferenças entre Piaget, Vygotsky e Feuerstein
Piaget Vygotsky Feuerstein
Só no contexto sociocultural que a criança aprende.
Sempre mediada pelos adultos. A exploração pela
A criança faz uma exploração criança do mundo precisa de um adulto para filtrar e
independente do mundo. Como pequeno selecionar estímulos. A zona de desenvolvimento Para Feuerstein, somente um ser humano
cientista faz comparações e retém algum proximal é algo introduzido por Vygotsky para dizer pode ser o mediador, só ele é capaz de prover
conhecimento. Os educadores acreditam que quando a criança é testada sozinha ela mostra o a criança de ferramentas psicológicas e a
que basta uma série de estímulos e a real, quando mediada pelo adulto ela passa a qualidade psicológica é a qualidade dessa
criança aprende. Por isso, na década de desenvolver funções cognitivas ainda não mediação. O PEI é capaz de prover a criança de
1960, acreditava-se que a criança desenvolvida, essa zona entre trabalhar independente ferramentas psicológicas e a qualidade da EAM
aprendia de forma independente e e com auxílio é o que se chama de zona de do mediador.
espontânea desenvolvimento potencial. Muitos programas
escolares são fundamentados nesse potencial, nessa
zona próxima do potencial
Fonte: elaboração da autora

Modificabilidade Cognitiva Estrutural


Em Feuerstein (1988, p. 231), “a modificabilidade cognitiva não está direcionada apenas
para o conserto de competências e habilidades específicas, mas para mudanças na natureza
estrutural que altera o curso e a direção do desenvolvimento cognitivo”. Para entender o que
se pretende com o conceito de modificabilidade cognitiva, é necessário observar a diferença
entre mudanças estruturais e outros tipos de mudanças que ocorrem durante o curso do
desenvolvimento e passa por uma série de mudanças. Pode ocorrer a maturação, mudanças
específicas como resultado da exposição a determinadas circunstâncias, tais como aprender
uma operação aritmética ou uma língua estrangeira. No entanto, mudanças estruturais não se
referem a eventos isolados, mas a como o organismo interage, isto é, agir e reagir a fontes de
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
162
professor/mediador com jogos eletrônicos

informação. Portanto, uma mudança estrutural, uma vez iniciada, irá determinar o curso futuro
do desenvolvimento individual. A “modificabilidade cognitiva” acontece através de intervenção
que facilitará a geração do crescimento contínuo tornando o organismo receptivo e sensível a
estímulos internos e esternos.
Modificabilidade, portanto, é uma saída significativa, substancial e durável de um traço
de desenvolvimento além do que se poderia predizer, com base na medida tradicional do nível
esperado de funcionamento do indivíduo. Só em casos muito raros é possível ocorrer
modificabilidade substancial a partir da própria iniciativa do indivíduo, pois é pressuposto que
tal modificabilidade usualmente requer uma intervenção intensiva e sistemática.
A TMCE postula que a modificabilidade pode ser conseguida apesar dos obstáculos
severos no indivíduo ou em suas condições de vida. Feuerstein insiste em dizer que a não ser
nas lesões genéticas e orgânicas mais graves, o organismo humano está aberto a
modificabilidade em todas as idades e estágios de desenvolvimento. A TMCE sublinha a
cognição por três razões: primeiro, cognição é de importância capital nas atividades humanas e
nos processos de adaptação do indivíduo. Pouquíssimas atividades humanas não têm um
componente cognitivo significativo. Segundo, na vida moderna, especialmente numa sociedade
tecnológica, há demandas fortes ao funcionamento cognitivo do indivíduo. O estatuto
educacional, ocupacional e socioeconômico do indivíduo se relaciona, fortemente, com suas
conquistas ou feitos cognitivos. Cognição é um dos determinantes mais potentes da adaptação.
Terceiro, cognição é uma avenida acessível para intervenção no meio ambiente.
Feuerstein (1980) fala de disfunções cognitivas ou de funções cognitivas deficientes
quando o ato mental não é efetuado adequadamente, definições cuja lista está apresentada
mais adiante, que afetam a performance e o rendimento cognitivo e se constituem raízes
etiológicas do insucesso na aprendizagem, quando elas ocorrem por carência ou insuficiente
da EAM.
O termo estrutural refere-se a estrutura mental como em um sistema total e integrado, que
é composto por elementos ou subsistemas interconectados e interdependentes, que se
influenciam, combinam, coíbem e afetam mutuamente uns aos outros, daí que uma
disfunção cognitiva quer no input, quer na integração – elaboração ou no output, possa
produzir mudanças no todo cognitivo que constituem as operações mentais da inteligência
necessárias a qualquer tipo de aprendizagem (Fonseca, 1998, p. 46).
A estrutura mental em Feuerstein possui três características principais, diferentemente
das estruturas físicas que são de natureza estática, as estruturas psicológicas contêm
componentes dinâmicos que são expressos através dessas características:
• primeiro, a estrutura é caracterizada por uma forte coesão entre o todo – isto é a
estrutura propriamente dita – e seus componentes. Consequentemente, experiências
que se referem a um ou mais componentes das estruturas e afetarão não só aquelas
diretamente envolvidas, mas também todos os outros componentes de estruturas. Por
exemplo: a memória que é uma das estruturas cognitivas de base, depende da atenção
e da concentração que, por sua vez, condicionam a percepção e esta a compreensão,
isto é, no ato mental inerente a qualquer aprendizagem, todas as funções se interligam
e influenciam e o produto final resulta de uma multiplicidade de processos cognitivos
Marlene Gonzaga Bitencourt 163

dinamicamente interiorizados;
• segundo, a estrutura é caracterizada pelo transformismo. Transformismo é a tendência
da estrutura de mudar seu modo de funcionamento. Essas mudanças podem, por
exemplo, ser refletidas no ritmo da atividade. Atividades que anteriormente requeriam
muito podem, através do aprendizado, ser resolvidas mais rapidamente. As crianças
podem também mostrar graus mais altos de intensidade e flexibilidade na solução de
atividades. Estas mudanças vão afetar, por último, o funcionamento da estrutura.
• a terceira característica da estrutura é possivelmente a mais importante no
desenvolvimento do ambiente adaptacional interno do indivíduo autopercepção,
autorregulação.
Como resultado destes componentes energéticos, a estrutura psicológica tende a atuar
regulando a si mesmo e perpetuar sua modificabilidade cognitiva. Isto se expressa no uso
repetido, quando o indivíduo considera a ativação de tal estrutura como importante na solução
de certos problemas ou enfrentamento de certas situações. O uso bem-sucedido de uma
estrutura, para sobrepor-se a uma dificuldade, reforça não só a própria estrutura em si, mas
também o indivíduo, ambos chegando ao mais alto grau de proficiência. Os aspectos de
autorregularão da estrutura psicológica são referidos especialmente à quantidade de energia
necessária para ativar a estrutura.
Toda obra de Feuerstein está fundamentada numa crença principal: Todo ser humano
é modificável. Ele acredita no desenvolvimento da inteligência e no trabalho dos mediadores
para atingir a modificabilidade cognitiva, que define como uma mudança estrutural no
repertório do indivíduo, que adota pré-requisitos cognitivos inexistentes até então,
expressando uma permeabilidade entre os diversos sistemas pessoais. A crença é fator
energético para compreensão da teoria e para a intervenção, através da EAM.
Dentro da teoria de Feuerstein, a modificabilidade está relacionada às mudanças que o
indivíduo pode produzir na sua personalidade, na sua maneira de pensar e no seu processo de
adaptação. Não são mudanças acidentais ou circunstanciais e sim modificabilidade da estrutura
de funcionamento do indivíduo, provocando um desenvolvimento cognitivo qualitativo. É uma
mudança sólida e durável.
A cognição está relacionada ao processo de coleta (input), processamento (elaboração)
e comunicação (output) das informações. Feuerstein (1955) define estrutura cognitiva como
sistemas organizados de informação armazenada, uma representação organizada de
experiências prévias e é resultado da união, de forma coerente, das operações mentais. Estas,
por sua vez, são definidas como um conjunto de ações interiorizadas, organizadas e
coordenadas, pelas quais se elabora a informação procedente das fontes internas e externas
de estimulação.
As funções cognitivas, componentes básicos do ato mental, são pré-requisitos da
inteligência são “estruturas psicológicas interiorizadas, que incluem um conjunto de
componentes interdependentes, os quais se expressam por meio de um determinado padrão
de comportamento” (Rand, 1994, p. 71). Cada função cognitiva possui três componentes
básicos: capacidade, necessidade e orientação.
A “capacidade é uma habilidade característica, inata ou adquirida de uma pessoa, que
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
164
professor/mediador com jogos eletrônicos

faz com que ela se saia bem numa determinada atividade ou realize uma ação num certo grau
de complexidade” (Rand, 1994, p. 72).
Já a
necessidade é um sistema psicológico energizado internalizadamente que é ligado à função.
Ela faz com que a pessoa realize uma ação e haja de uma forma específica sobre o ambiente
interno e externo. A intensidade e força da necessidade são determinantes importantes da
persistência com que a pessoa ativa uma função específica (Rand, 1994, p .72).
Ea
orientação é o componente direcional da função cognitiva. Ela determina a escolha que a
pessoa faz do conteúdo bem como do contexto para o qual se dirigem os esforços de
resolução de problema. Ela determina também o método e a estratégia de abordagem a ser
aplicada de uma determinada situação ou um determinado conjunto de estímulos” (Rand,
1994, p. 73).
As funções cognitivas podem funcionar deficientemente, no sentido de que não
aparecem espontaneamente, regularmente e previsivelmente no comportamento cognitivo do
indivíduo. Essa deficiência é um estado e se explica pela falta de capacidade. É a falta de
necessidade que origina o baixo nível de funcionamento. Essa necessidade poderá ser
despertada por meio da orientação para objetivos concretos. O despertar da necessidade por
meio da orientação, produz a modificação da capacidade e como resultado, o melhor
funcionamento das operações mentais. Rand (1994) sugere ainda que existe uma relação
interativa entre os três componentes da função cognitiva. “Quando esses três componentes
estão presentes, a função cognitiva – considerada uma atividade mental interiorizada –
manifesta-se externamente em uma operação mental” (Rand, 1994, p. 74).
Finalizo esta fundamentação com um trecho de Gomes (2002) quando afirma que “na
busca por novos caminhos, Feuerstein oferece ao navegante um novo mapa, nova carta para
os mistérios da mente, lembrando-nos que a origem de todo caminho é a crença em um destino
melhor” (Gomes, 2002, p. 288).

PERCEPÇÃO DO MEDIADOR E A AULA MEDIADA COM JOGOS


ELETRÔNICOS

As tendências da vida atual, num mundo cada vez mais mutável, não atravessam só a
economia global e os meios de informações; elas estão se projetando na educação e na
qualificação dos recursos humanos nela envolvidos. Este novo modo de pensar e agir está
exigindo que nos preparemos educacionalmente de forma dinâmica e eficaz. Nessa perspectiva,
o objetivo das aulas de hoje não é mais a transmissão de conhecimentos por parte do professor,
esta é a função dos livros. As aulas são para exercitar a capacidade de raciocínio dos alunos
ensinando-os a pensar, a ser objetivos, analisar, planificar, resolver conflitos de opinião e chegar
a um comum acordo, assim construindo o conhecimento.
O professor/mediador deve ensinar operações mentais, funções cognitivas e pré-
requisitos básicos para aprender a aprender. Assim sendo, a necessidade de mudança da prática
pedagógica, num sistema complexo como a organização escolar, requer do pesquisador a
Marlene Gonzaga Bitencourt 165

escolha de um modelo conceitual que mais atenda à realidade e englobe o maior número de
aspectos relevantes possível. Considerando-se que a TMCE concebe a inteligência humana
como um construto dinâmico e modificável, os processos de ensino e de aprendizagem são
possíveis pela ação de um mediador que se interpõe entre os estímulos e o organismo.
A EAM, definida como a qualidade de interação do organismo e o meio, produz-se pela
interposição de um ser humano iniciado e intencionado, que medeia o mundo e o organismo,
criando, no indivíduo, a propensão ou tendência à mudança pela interação direta com os
estímulos. A EAM promove a flexibilidade, a autoplasticidade na existência humana e, em última
instância, oferece-lhe a opção de modificabilidade, tal como temos descrito (Feuerstein, 1997,
p. 15).

Quanto à clareza do objetivo da aula mediada com jogos eletrônicos


Para os processos de ensino e de aprendizagem de forma significativa, o
professor/mediador deverá construir com os mediados os objetivos das aulas, ou seja,
estabelecer objetivos para os processos de ensino e de aprendizagem é de fundamental
importância para que as estratégias sejam adequadamente escolhidas e para que os processos
sejam sistematicamente reavaliados. Se o professor sabe o que deseja ensinar, certamente,
encontrará formas de fazê-lo. De acordo com Moretto (2003), um fator importante para a
eficácia de uma aula é o estabelecimento de objetivos com clareza e precisão. Diante desse
resultado, podemos inferir que, nas aulas expositivas, o professor transmite os conteúdos, ao
passo que, na aula mediada, a socialização do objetivo é condição necessária para que o
mediador comece a desenvolver o processo.
Avaliando os dados referentes à percepção dos professores quanto à clareza dos
objetivos das aulas medidas, verifiquei que o professor pesquisado respondeu que sempre
medeia para que o objetivo da aula mediada fique claro para seus alunos. Diante desse
resultado, inferi que, ao planejar as aulas mediadas, o professor constrói objetivos claros,
baseados nas operações mentais e funções cognitivas requeridas diante da necessidade dos
mediados. Estes objetivos são avaliados, no final da aula, através da construção das
generalizações pelos mediados. Esses dados já sinalizam as primeiras mudanças metodológicas
ocorrida nas transferências de habilidades adquiridas no PEI. Como foi dito anteriormente, um
dos fatores importantes para o sucesso dos processos de ensino e de aprendizagem é o
professor/mediador estabelecer com clareza e precisão os objetivos. Nem sempre isso
acontece.
Quanto à observação da aula mediada com o jogo eletrônico Super Mário, o objetivo
elaborado no planejamento do professor pesquisado estava relacionado com o conteúdo e a
competência e as funções cognitivas requeridas para serem trabalhados, além de ficar claro
para os mediados qual a intencionalidade/reciprocidade, significado e transcendência.

Quanto ao significado dos conteúdos trabalhados nas aulas mediadas


Como sabemos, compreendem-se conteúdos educacionais o conjunto de
conhecimentos de aspecto da cultura e da experiência humana que a escola se encarrega de
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
166
professor/mediador com jogos eletrônicos

formalizar. Assim, aprender através de conteúdos significativos é dar sentido à linguagem que
usamos, é estabelecer relações entre os vários elementos de um universo simbólico, é
relacionar o conhecimento elaborado com os fatos do dia a dia, vividos pelo mediado.
Nessa perspectiva, trabalhar mediando conteúdos significativos envolve a preservação
de valores, atitudes culturais e pessoais do mediador para com o mediado. Significado é o fator
de interação que mais mobiliza o aspecto afetivo, a troca de experiências e vivências. É a ponte
entre o plano cognitivo e o plano afetivo motivacional. Quando o mediador medeia o
significado aos mediados, não só dá a sua visão de mundo, mas também prepara o outro para
que ele igualmente possa ter a sua própria visão, a sua própria interpretação do mundo. Assim
uma interação humana somente ganha sentido em sua intenção quando é provida, qualificada
e enriquecida, a todo o momento, de significado.
Desse modo, o mediador, ao planejar uma aula mediada, escolhe conteúdos
significativos, onde ressalta o valor dos vários conteúdos para a vida do mediado, torna
explícitas as operações mentais e as funções cognitivas requeridas.

Quanto à necessidade de criar estratégias para solucionar problemas


Quando uma pessoa enfrenta uma situação-problema, precisa colocar em ação as
operações mentais e as funções cognitivas que poderão variar de acordo com o tipo e a
complexidade do mesmo. Assim sendo, a solução de um problema exige uma compreensão da
estratégia a ser executada, o estabelecimento de um ponto de partida, a concepção de uma
plano de ação para nos possibilitar aos objetivos traçados; a coleta precisa de dados relevantes
do problema, a execução do planejamento através das operações mentais necessárias e logo
após uma análise para verificação do alcance ou não dos objetivos. Entretanto, os problemas
mais complexos podem ser resolvidos por parte, seguindo os mesmos passos anteriores.
Existe uma grande variedade de estratégias que qualquer sujeito pode utilizar de um
problema determinado, e que abrangem desde a busca por meio de ensaio e erro (útil
somente em um pequeno número de tarefas, com algumas características muito
determinadas e que, por tanto, é pouco provável que apareça na solução de problemas
escolares) até estratégias muito mais sofisticadas (Pozzo, 1998, p. 25).
Segundo Pozzo (1998), existem alguns procedimentos heurísticos que ajudam na
solução de problemas como: dividir o problema em subproblemas, estabelecer submetas,
aplicar a análise meios-fins, procurar problemas análogos, ir do conhecido ao desconhecido.
São métodos gerais suscetíveis de serem usados em qualquer tarefa. Portanto, o processo de
solução de um problema termina quando o objetivo estabelecido foi alcançado e com a
observação da eficácia das estratégias na solução obtida.
Pude inferir que a falta de necessidade na criação de procedimentos estratégicos para
solucionar problemas deve-se ao tipo de educação a que estavam ou estão acostumados,
voltados para a aquisição de conhecimentos já elaborados, “empacotados” e fechados em si
mesmos. Por isso, é preciso transformar os educandos em pessoas capazes de enfrentar
contextos variados, que exijam deles a aprendizagem de novos conhecimentos.
Analisando os dados referentes à percepção do professor/mediador quanto à
Marlene Gonzaga Bitencourt 167

necessidade de mediar seus alunos, para que criem estratégias para solucionar os problemas
apresentados, durante as aulas mediadas, verifiquei que o mesmo respondeu que “sempre”
medeia seus alunos para o desenvolvimento de estratégias.
A partir dos dados coletados, pude inferir que o professor/mediador medeia seus alunos
para que contenham a impulsividade, desenvolvendo estratégias para solucionar os novos
problemas apresentados.

Quanto à capacidade de explicar o raciocínio construído para resolver um


problema
A capacidade de explicar o raciocínio construído ao resolver um problema, ou seja, a
metacognição, refere-se ao pensar sobre o pensar e, inclui o conhecimento das capacidades e
limitações dos processos do pensamento humano. A metacognição é útil para aquisição,
utilização e controle da impulsividade. Ajuda a planejar e possibilitar o emprego eficaz dos
recursos cognitivos próprios, permite tornar consciente o saber, assim como identificar as
possibilidades de cada um. Entre as habilidades metacognitivas importantes estão: o
planejamento e utilização de procedimentos eficazes, a previsão, a verificação, comprovação
da realidade, o controle e a avaliação do autoconhecimento e desempenho ao realizar
atividades, onde são necessários o esforço intelectual, e a de ampliação do campo mental.
Portanto, refletir sobre a própria aprendizagem, tomar consciência das estratégias e processos
individuais, identificar dificuldades encontradas possibilitam aprimorar-se.
A partir da percepção do professor/mediador quanto aos mediados para que expliquem
o raciocínio construído para resolver um problema, pude observar que ele respondeu que
medeia seus alunos para explicar o raciocínio.

Quanto ao estabelecimento de relações virtuais com jogos eletrônicos


O ato de estabelecer e projetar relações virtuais tem seu surgimento com a aquisição
do plano simbólico na criança. As relações virtuais dizem respeito ao movimento dinâmico e
não-estático das representações mentais que se projetam e se relacionam dinamicamente.
Além disso, esta projeção marca a condição mental da ação no plano virtual, o que evita ao
indivíduo ter de agir diretamente no plano concreto.
Em síntese, distanciar os processos de ensino e de aprendizagem do ambiente concreto
é condição necessária para construção do raciocínio lógico.

Quanto à apropriação do vocabulário e sua utilização ao comunicar-se


Segundo Moretto (2003, p. 61), a função fundamental da linguagem é ligar contexto, do
professor e do aluno. Quando um aluno chega à aula para aprender algo novo, ele traz consigo
um mundo de experiências vividas, o que lhe permitiu construir muitas representações e uma
linguagem própria para comunicar-se. É neste contexto que serão construídos novos
conhecimentos.
Na mediação, os contextos do mediador/mediado serão compartilhados pela linguagem
e terão que adquirir significados comuns para construção do conhecimento. Durante as aulas
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
168
professor/mediador com jogos eletrônicos

mediadas, o professor/mediador medeia a construção de conceitos, relações e operações


mentais necessárias para realizar as atividades propostas. Situações problemas apresentadas
requerem a utilização de novas palavras e categorizações que necessitam ser adquiridas na
utilização da linguagem formal.
É preciso, no entanto, para os processos de ensino e de aprendizagem serem eficazes,
formar “pontes” entre o que foi aprendido em aula e a aplicação em outros contextos. Esses
conhecimentos são sempre ressignificados num processo interativo. Assim, o
professor/mediador sempre deverá entender que o mediado observará e descreverá os atos
segundo suas experiências anteriores. A ressignificação de conceitos ocorrerá por intermédio
da linguagem.

Quanto à sequência das perguntas apresentadas pelo professor/mediador na condução


do raciocínio, de forma lógica, às generalizações

A mediação se realiza com base em perguntas especialmente selecionadas com o


objetivo de desenvolver funções cognitivas e operações mentais, viabilizando uma interação
transformadora que garanta o aumento do grau de modificabilidade e flexibilidade mental do
indivíduo envolvido no processo de aprender a pensar. Durante a etapa de planejamento, o
mediador deverá elaborar uma série de perguntas, numa sequência lógica, garantindo a seus
mediados a construção de generalizações, a partir das atividades dadas. Buscará aplicações
práticas do que foi aprendido para solucionar outros problemas em novos contextos como: vida
familiar, afetiva e profissional.
O equilíbrio nas respostas dos alunos deve-se ao fato que a crença dos
professor/mediador na sua própria modificabilidade e na modificabilidade de seus mediados
torna-se um poderoso determinante na mudança da prática pedagógica. Além disso, o
planejamento, com a elaboração prévia das perguntas de mediação, faz com que se sinta mais
seguro, ampliando seu repertório de estratégias para a mudança da aula expositiva em mediada.
Assim como nas respostas dos alunos, o mediador também apresenta um equilíbrio nas
suas respostas, pude inferir que o equilíbrio dessas respostas se deve ao fato de que fazer boas
perguntas não é um procedimento tão fácil. Embora dominar a arte de perguntar é talvez, uma
das competências mais importantes para um mediador. Uma boa pergunta possibilita uma boa
resposta. Como saber o que o outro pensa e quais são suas concepções prévias é o primeiro
passo para a apropriação do conhecimento. Portanto, a arte de perguntar com clareza e
precisão deve ser desenvolvida pelo professor/mediador para chegar à estrutura conceitual
dos mediados.

Quanto às aplicações das generalizações em outros contextos


A transferência dos conhecimentos adquiridos para um novo contexto constitui o
problema de aprendizagem de difícil superação. Muitas vezes, não é difícil fazer com que os
alunos aprendam a aplicar um determinado problema ou na vida diária; o que é realmente difícil
é que aprendam a usar funções cognitivas e operações mentais de forma relativamente
Marlene Gonzaga Bitencourt 169

autônoma em outros problemas semelhantes, ou mesmo num contexto informal.


Assim sendo, o principal motivo desta dificuldade de transferência é a diferença do
contexto em que o mediado aprende a resolver um problema e os novos contextos para os
quais deve fazer a transferência. Quanto maior for a semelhança entre o contexto do
ensino/aprendizagem e o contexto do cotidiano, mais fácil será a transferência. Portanto,
aprender a aprender é construir significados e ensino/aprendizagem é oportunizar essa
construção.

Quanto ao sentimento de maior aprendizagem quando participa das aulas


mediadas com o jogo eletrônico Super Mário
Uma aula mediada necessita da presença de um professor/mediador que cria no
mediado, disposições que modificam seu funcionamento de forma estrutural. O que influi é o
modo como se medeia. A mediação é o resultado de uma ação intencional; é a forma educativa
específica do ser humano (Feuerstein, 1979).
De acordo com o autor, uma das maiores contribuições do mediador é transformar a
situação de aprendizagem de incidental em intencional. É preciso, no entanto, o mediador
mudar a natureza do estímulo e mudar a si mesmo para produzir a EAM. Nessa perspectiva, tais
mudanças podem colocar o mediador num estado de alerta, interesse e prontidão. Sem essas
mudanças, a realidade é apreendida episodicamente e a aprendizagem acontece ao acaso.
A transcendência, na aprendizagem mediada, vai além da atividade imediata,
constituindo a verdadeira essência da interação, através da realização de pontes entre o que
foi aprendido no momento e outras áreas de experiência. Na observação da aula, pude inferir
que ao utilizar uma nova metodologia fundamentada na EAM, que tem como objetivo a
modificabilidade das estruturas cognitivas dos indivíduos, tornando estes mais disponíveis e
abertos aos estímulos e, consequentemente, mais adaptados às exigências escolares e sociais,
e onde há, também, um acompanhamento e uma sistematização do trabalho realizado, os
professores/mediadores sentem-se mais seguros e seus mediados e mais instrumentalizados.

Reflexões dos professores e professoras a respeito da experiência com as aulas


mediadas
Segue abaixo alguns trechos, bastante expressivos, de suas concepções sobre a
percepção de sua própria mudança no processo de ensino/aprendizagem:
• “As aulas mediadas empolgam o aluno, fazendo-o participar mais”;
• “Nas aulas mediadas o aprendizado é mais facilitado”;
• “A aula mediada mexe muito com os costumes dos alunos, ficando muito mais
interessante”;
• “Há mais participação e os alunos sentem-se à vontade para tirar as dúvidas”;
• “Facilita mais as aulas e meu trabalho”;
• “Às vezes é difícil para o aluno entender de imediato e com as perguntas e a interação
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
170
professor/mediador com jogos eletrônicos

tira-se uma conclusão mais rápida e esclarece as ideias”;


• “Abre o entendimento e o raciocínio que construímos fica mais pleno e mais explicado”;
• “Há várias diferenças de ideias e assim vai debatendo mais os assuntos e aprofundando
mais”;
• “Desenvolve mais o raciocínio porque as perguntas são direcionadas”;
• “Nas aulas mediadas é possível tirar dúvidas que em exercícios, somente, não era
possível”;
• “Facilita, pois com um processo interrogatório faz com que trabalhemos mais a mente,
tendo assim um raciocínio lógico. O processo de ensino/aprendizagem aumenta,
facilitando a concorrência no mercado de trabalho”;
• “Com pouco tempo de aula, aprende-se estratégias para solucionar os problemas e
melhorar cada vez mais o vocabulário, ou seja, a nossa comunicação”;
• “Está estimulando sempre o raciocínio lógico, facilitando o ensino/aprendizagem e com
isso aprende-se mais fácil”.
Diante das reflexões do professores/as mediadores/as quanto às concepções sobre sua
própria mudança no processo ensino/aprendizagem, foi possível inferir que os mediados
participantes das aulas mediadas aprendem a pensar e transferir os raciocínios para outros
contextos, a desenvolver a autonomia cognitiva, mudando sua postura diante do mundo.
A eficácia da escola e o sucesso dos alunos são afetados pelas relações estabelecidas
no seu dia a dia; torna-se cada vez mais necessário perceber as organizações escolares como
entidades com personalidades próprias, daí a necessidade da construção de um projeto político
pedagógico que contemple uma metodologia fundamentada nas necessidades básicas da
sociedade atual.
Essa sociedade, cada vez mais voltada para as tecnologias de informação e para a
acelerada divulgação de conhecimentos científicos, não pode limitar-se a uma escola baseada
na transmissão direta de conteúdos e de soluções específicas, mas deverá orientar-se para o
desenvolvimento do indivíduo em todas as suas manifestações, para o acesso à cultura geral e
para o desenvolvimento das aptidões no mundo do trabalho. Neste sentido, a modificabilidade
cognitiva é fundamental para atingir estes objetivos de forma integrada, na medida em que
adquire os pré-requisitos, as ferramentas e as funções cognitivas básicas para o processamento
de informação e de interpretação da realidade, necessários. Através da pesquisa realizada, a
EAM, metodologia que faz parte da TMCE, utilizada nas aulas com jogos eletrônicos, possibilita
a ampliação do campo mental e modifica a prática pedagógica.
Algumas recomendações emergiram deste estudo, das quais gostaria de citar as
seguintes:
• A educação fundamentada na modificabilidade cognitiva deve fazer parte integrante do
currículo regular do ensino fundamental, de forma que todos os estudantes passem pela
EAM;
Marlene Gonzaga Bitencourt 171

• A formação de professores, em geral, não deve continuar alheia ao estudo aprofundado


da cognição e das dificuldades de aprendizagem nas suas dimensões psicoeducativas
de avaliação e intervenção;
• A prática pedagógica precisa ser modificada para atender às necessidades de quem vive
num mundo globalizado.
A educação tradicional é essencialmente retrospectiva porque ensina os alunos a
reproduzir respostas já conhecidas a perguntas previamente propostas e a empregar atitudes
que já demonstraram ser úteis no passado. Nas condições dinâmicas de modernidades, a
necessidade de uma educação prospectiva é evidente. A educação prospectiva implica que os
alunos precisam ser capazes de abordar problemas que não existem no momento da
aprendizagem. Para adquirir essa capacidade, os alunos precisam orientar-se em direção a um
conhecimento mais produtivo que reprodutor.
O conhecimento produtivo exige uma mudança radical: passar da aquisição da
informação a uma educação cognitiva. Nas etapas iniciais desse processo, a aquisição de
instrumentos psicológicos básicos e sua mediação adequada são fundamentais. Nas etapas
mais avançadas, a aquisição das “linguagens” mais complexas da ciência, da informática, a
filosofia e do discurso literário torna-se mais importante (Kozulin, 2000, p. 21).
Em síntese, a presente investigação possibilitou importantes e úteis resultados,
sugerindo que a aplicação da metodologia estudada pode ser ampliada a outras unidades de
ensino, beneficiando muitos alunos com dificuldades de aprendizagem e diminuindo os índices
de evasão e repetência nas escolas da rede municipal de educação.

REFERÊNCIAS
FEUERSTEIN, R. La teoria de la Modificabilidad Estructural Cognitiva. Zaragoza: Mira Editores,
1955.
______. Instrumental enrichment: an intervention program for the cognitive modificability.
Glenview: Universit Park Press, 1980.
KOZULIN, Alex. Instrumentos psicológicos: la educación desde una perspectiva sociocultural.
Barcelona: Paidós, 2000.
POZZO, J. I. (org.). A solução de problema: aprender a resolver, resolver para aprender. Porto
Alegre: Artmed, 1998.
RAND, Y. Deficient cognitive function and non-cognitive determinants - An integrated model:
assessment and learning implictions. London: Freund Publishing House, 1994.
Aula mediada na construção do conhecimento: contribuições de Reuven Feuerstein na atuação do
172
professor/mediador com jogos eletrônicos

“Quem traz na pele essa marca


Possui a estranha
Mania de ter fé na vida
[...]”
(Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant) 81

81
Trecho da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Os direitos autorais da letras de Maria Maria
pertencem à Três Pontas Edições Musicais Ltda e Nascimento Edições Musicais.
Márcia Lidiane Rodrigues Santana 173

14 GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS: AÇÃO DOS


MOVIMENTOS FEMINISTAS NA CIDADE DE SALVADOR
Márcia Lidiane Rodrigues Santana 82

INTRODUÇÃO

“Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela
sejam diferentes das minhas” (Audre Lorde).

Discutir a questão de gênero tornou-se uma causa importante para lutar, se engajar e
dar visibilidade ao nosso olhar sobre injustiças sociais, visto que, na atualidade, o índice de
violência contra a mulher tem aumentado significativamente. Segundo dados do 11º Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, 2017, que compila e analisa dados de registros policiais sobre
criminalidade, informações sobre o sistema prisional e gastos com segurança pública, entre
outros recortes introduzidos a cada edição apresenta novos dados.
Assim, o anuário informa que em 2016, no Brasil, 49.479 mulheres foram estupradas,
revelando um crescimento de 3,5% em relação ao ano de 2015. No que se refere aos homicídios
e feminicídios, em 2016,1 mulher foi assassinada a cada 2 horas, mas, apenas 621 casos foram
classificados como feminicídio, o que demonstra uma grande dificuldade da implementação da
Lei Maria da Penha. Na Bahia, a situação não difere muito da nacional, pois em 2015 foram 424
mulheres assassinadas e em 2016, 471 o que representa uma variação de 11% entre os anos.
Vale salientar ainda que dos 895 casos registrados apenas 18 foram classificados como
feminicídio.
Além dos dados fornecidos, podemos encontrar também no anuário vários textos
analíticos com reflexões acerca da conjuntura atual de Segurança Pública no país. Na edição
pesquisada foi encontrada, também, a publicação de alguns textos que nos ajudam a entender
como se desenrola a dinâmica das violências como, por exemplo, “combate à violência de
gênero e proteção dos direitos das mulheres”, de Marina Pinheiro (FBSP). Diante do contexto
apresentado torna-se fundante discutir sobre a relevância dos movimentos sociais feministas
como uma estratégia para o enfrentamento das situações de violências vivenciadas pelas
mulheres, bem como sobre quais foram os aspectos que fomentaram a participação das
mulheres nesses movimentos sociais.

82
Márcia Lidiane Rodrigues Santana é pedagoga pela Faculdade Visconde de Cairu; pesquisadora do Núcleo de Estudos
Africanos e Afro-brasileiros em Línguas e Cultura – NGEALC/UNEB e do Grupo de Estudos, Pesquisas e Experimentações
Educacionais, do Instituto Anísio Teixeira, da Secretaria da Educação do Estado da Bahia – GEPEE/IAT/ SEC-BA. Integrante
da Rede Um Grito Pela Vida – RUGPV/CRB, atuando na prevenção e erradicação do trabalho escravo, tráfico de pessoas e
exploração sexual. Integrante do Coletivo de Mulheres do Lemarx - Grupo de Estudos de Angela Davis – FACED/UFBA; e
do Grupo de Estudos ERÊ – Educação e Relações Étnicos Raciais na Educação Infantil. Possui experiência em Práticas
Formativas para Grupos Populares, Lideranças Jovens e Comunitárias. É ativista social dos Direitos Humanos e Direito das
Mulheres. E-mail: marcia.santana52@enova.educacao.ba.gov.br.
174 Gênero e movimentos sociais: ação dos movimentos feministas na cidade de Salvador

MOVIMENTOS FEMINISTAS EM AÇÃO

É pertinente comentar que ser feminista hoje é quase uma afronta aos “machos” que
sempre estiveram no comando. É como lembrá-los que as netas das “bruxas” que eles não
conseguiram queimar assumiram seus papéis de formadoras de opiniões, guardiãs da coragem
e defensoras das tantas “liberdades” necessárias à população. Diria ainda mais, que a educação
é, por excelência, feminina e que toda e qualquer revolução sem uma educação popular sólida
e eficaz não seria possível. As mulheres como ocupam a maioria dos espaços – por sermos
maioria na sociedade –, descobrem pouco a pouco as maneiras sutis de se fazer entender e
atender, só falta a muitas, o despertar desta consciência.
Sendo assim, podemos inferir que os grupos ou organizações não governamentais
alimentam em si a necessidade de reafirmar dia após dia a importância da manutenção de
políticas públicas que viabilizam o direito de cada cidadã e cada cidadão usufruírem de
benefícios que lhes proporcionem um mínimo de dignidade, pois, como afirma Paiva (2010)
a política de reconhecimento visa corrigir o reconhecimento incorreto de grupos sociais
marginalizados desconstruindo os significados de diferença social. Suas estratégias
específicas são planejadas para retratar sob uma luz mais positiva as características desses
grupos e para agir contra seu apagamento das narrativas da nação, da história e do
progresso (Paiva, 2010, p. 66).
Isso poderia nos ajudar a compreender de forma mais simples que trabalhar ou debater
sobre as questões de gênero vai mais além do que a dualidade simplista na qual vivemos ou
compreendemos, no que se refere a igualdade x diferença. Assim, Paiva (2012) nos faz perceber
que
os programas de estudos sobre as mulheres e o gênero ficaram presos nesse enigma, que
acompanha de perto as tensões inerentes aos debates ‘igualdade versus diferença’ dos anos
1960 e 1970. Por um lado, esses programas reivindicam um território intelectual específico
– o estudo de gênero – para o feminismo. Mas o objetivo essencial da pesquisa feminista
não é transformar os estudos sobre gênero num gueto dentro de programas acadêmicos
que são, eles mesmos, frequentemente marginalizados, mas difundir o estudo sobre gênero,
isto é, transformar todas as disciplinas acadêmicas de modo que o gênero seja uma variável
em todo paradigma teórico e em toda agenda de pesquisa (Paiva, 2012, p. 68).
Partindo dessas reflexões percebemos o esforço feito pelos movimentos sociais,
feministas e organizações não governamentais – ONGs para ressignificar as lutas travadas
contra todas as “forças” que vão contra ao trabalho desenvolvido por elas e as tentativas
contínuas em criminalizá-lo. Neste sentido, a autora afirma que
As diferenças culturais podem se tornar políticas e um dos maiores sucessos do movimento
tem sido transportar novos significados sobre diferenças de gênero para os sistemas
político, legal e econômico, abrindo espaços para mudanças em nível institucional. Ao
mesmo tempo, expor as bases culturais dos discursos, práticas e programas políticos é a
função central de qualquer política cultural (Paiva, 2012, p. 73).
Nesse sentido, a nossa entrevistada Ana Júlia, mulher negra, comenta que o movimento
social esteve sempre presente na sua vida como uma forma de reestruturação e ressignificação
política, social, cultural e acadêmica. Ela diz:
Márcia Lidiane Rodrigues Santana 175

Eu sempre fui militante de movimento social... Então assim ser mulher, ser preta já me faz
ser ativista todo dia, então, desde o período dos estudos secundaristas eu já fazia parte do
movimento social, já ia pra rua e fazia militância. Quando eu entrei na faculdade não deixa
de ser diferente né, então eu começo a fazer parte do diretório acadêmico o DCE e aí hoje
eu escolhi seguir, criar uma ONG e a partir dessa ONG acompanhar as mulheres em
situação de violência. [sic].
E complementa o seu pensando explicitando a sua compreensão sobre o sentido dos
Movimentos Sociais. “Eu acho que o movimento social na verdade ele é fundamental, porque
a gente não pauta nada de mudança social se não for a partir de um movimento de rua, de luta,
de questionamento enfim” [sic] (Ana Júlia, 2017).
Já Cristina Paz, mulher negra e representante do Programa Força Feminina, nos fala
sobre a importância das parcerias para desenvolver uma ação coletiva em prol do apoio as
mulheres, em especial as mulheres em situação de prostituição. “os projetos sociais têm muito
em si, um processo de parceria, hoje a gente não trabalha sozinha, não tem como existir projeto
social que faça esse trabalho sozinho, mas as parcerias são importantíssimas nesse processo”.
[sic] (Cristina Paz, 2017).

ONG TamoJuntas
A ONG TamoJuntas é uma instituição criada a partir de uma ação desenvolvida por
advogadas objetivando atender gratuitamente mulheres vítimas de violência, ação denominada
“Campanha #MaisAmorEntreNos”, que tinha como propósito uma corrente de ação autogerida
de solidariedade entre mulheres, além da assessoria jurídica. Neste âmbito, a TamoJuntas busca
o fortalecimento das mulheres a partir de conhecimento, com divulgação de conteúdos sobre
direitos da mulher através das redes sociais e em eventos. Vejamos o que diz Ana Júlia sobre o
surgimento dessa importante instituição: “a TamoJuntas hoje, quando eu fiz o post eu acho que
não tinha noção, a TamoJuntas nasce a partir de um post que eu fiz parte, que eu fiz que é da
campanha “Mais amor entre nós” e aí quando eu fiz este post eu não tinha noção que ia ganhar
essa repercussão que ganhou, enfim” [sic] (Júlia, 2017).
Na sua narrativa, Júlia revela como surgiu a ONG TamoJuntas, motivada pelo
lançamento de um post seu, essa ação lhe proporcionou conhecer outras advogadas com os
mesmos sonhos e vontade de ajudar as mulheres, então, elas se somaram para fortalecer a luta,
e, mais recentemente, após o surgimento da fanpage, mais uma advogada feminista se une à
luta para garantir mais efetividade da atuação da ONG, cujo objetivo é tirar dúvidas das
mulheres, orientá-las e atendê-las a partir da oferta dos seguintes serviços: articulação e apoio
com advogadas e redes para mulheres fora de Salvador e atendimento advocatício gratuito para
mulheres vítimas de violência em Salvador. No que se refere às mulheres residentes fora de
Salvador, a instituição busca articular advogadas e redes de forma a possibilitar uma assistência
para essas mulheres.
A grande demanda pelos serviços prestados e a gravidade dos casos atendidos
demonstrou a necessidade de oferecer uma atenção multidisciplinar. Foi assim que, a partir de
um convite para que novas voluntárias se unissem, psicólogas, assistentes sociais e outras
advogadas de todo o Brasil ofereceram serviços voluntários. Atualmente, há 70 (setenta)
voluntárias em todo o país, sendo 30 (trinta) em Salvador, onde o TamoJuntas surgiu, e
176 Gênero e movimentos sociais: ação dos movimentos feministas na cidade de Salvador

encontra-se presente nas cinco regiões brasileiras abrangendo cerca de 30 cidades. A fala de
Ana Júlia relata sobre a abrangência da instituição:
A gente se organiza nessa perspectiva de sermos equipes multidisciplinares. Aqui em
Salvador, mas, também em outros Estados a gente já está tendo isso, a gente já está em 18
Estados hoje atuando nessa perspectiva. Quem a gente atende, são mulheres e em alguns
casos, as crianças dentro das situações de violência, então a gente tem tentado fazer um
trabalho na perspectiva da pedagogia, da psicologia infantil, tentado trazer um pouco disso
[sic] (Ana Júlia).
Vale evidenciar que desde seu surgimento, a ONG já organizou várias ações com vistas
a divulgar a Lei Maria da Penha e atender as mulheres vítimas de violência tais como: Mutirões
de Atendimento da Lei Maria da Penha; Seminários sobre os 10 anos da Lei Maria da Penha,
Violência contra as Mulheres LBT, Saúde e Violência contra as Mulheres, Feminicídio das
Mulheres Negras e Direitos Humanos e Humanas Sem Direitos. Além de organizarem curso
EaD hospedado na plataforma Moodle com participação de cerca de 700 mulheres de todos os
estados brasileiros com a temática da Violência de Gênero: Aspectos Jurídicos, Psicológicos e
Sociais. Outras ações também foram desenvolvidas, como a Roda de Diálogo sobre Feminismo
e Religiosidade, a I Conferência Nacional de Voluntárias TamoJuntas e o curso Direito e
Gênero: Lei Maria da Penha na Prática, em parceria com a Escola Superior da Advocacia.
Em comemoração a um ano de existência na luta contra a violência que acomete muitas
mulheres, a TamoJuntas realizou um grande Ovulário, na Escola Superior da Advocacia, sobre
temas diversos relacionados ao Feminismo e aos Direitos das Mulheres. Além desses eventos,
a ONG desenvolve os seguintes projetos: a) Série: Nós, Mulheres Negras; b) Assistência
Multidisciplinar a Mulheres em Situação de Violência; c) Mutirão de Atendimento Lei Maria da
Penha; d) curso “Violência de Gênero: Aspectos Jurídicos, Sociais e Psicológicos”; e) rodas de
diálogo; f) curso “Direito e Gênero: Lei Maria da Penha na Prática”.
Esta ONG nos revela a verdadeira preocupação com o processo formativos das
mulheres além da proteção e apoio as mesmas. Veja o que nos diz Ana Júlia (2017):
E aí, hoje eu entendo que a TamoJuntas tem um diferencial absurdo, nesse processo tanto
educativo como num processo de fortalecimento de mulheres, que é entender a mulher
como sujeito de direito, e fazer com que essa mulher entenda que ela não está sozinha, e
que apesar dela talvez não ter uma rede de família, uma rede de amigas/os, elas têm
advogadas que vão acompanhar elas, elas têm uma assistente social que vai saber como ela
está, que vai tentar retomar a vida dela. Uma psicóloga que vai fazer com que ela entenda
que ela não é a culpada... enfim.
Hoje eu entendo o quanto a TamosJuntas é importante na vida dessas mulheres que são
vítimas de violência todos os dias [sic] (Ana Júlia, 2017).
Uma das bandeiras de luta a favor levantada pela ONG é a busca de uma equidade de
oportunidade e direitos para mulheres, o que só será possível a partir de um empoderamento
dessas mulheres, e esse processo de fortalecimento das mulheres vítimas das múltiplas
violência é evidenciando na fala de Ana Júlia quando fala sobre a equipe multidisciplinar que
desempenha uma relevante ação em apoio a essas mulheres.
Sobre a importância do trabalho educativo desenvolvido com as mulheres vítimas de
violência a nossa entrevistada comenta sobre a necessidade do conhecimento dos nossos
direitos, “a gente não pode fazer nada se a gente não conhece nossos direitos, porque se a
Márcia Lidiane Rodrigues Santana 177

gente não consegue a gente não vai reivindicar. Então pensar sempre nessa perspectiva” [sic].
Ana Júlia (2017).
Compreendendo ainda o processo formativo da ONG, Ana Júlia complementa com a
seguinte informação:
O aprendizado é diário. Eu gosto de dizer que na advocacia especialmente, lutar contra a
violência contra a mulher é um desafio diário, está certo. [...] Cada dia é uma coisa nova pra
gente estar dialogando, estar debatendo, pra gente fazer estudo de caso, a gente faz muito
estudos de casos pra poder entender e com essa perspectiva multidisciplinar. Ouvindo qual
é a opinião da assistente social, ouvindo qual é a opinião da psicóloga, para poder entender
que rumo à gente vai dar para aquele processo. Que às vezes a gente sabe que o processo
não vai dar em nada, mas que essa mulher pode sair fortalecida dessa situação [sic] (Ana
Júlia, 2017).
Para realização desse trabalho educativo desenvolvido pela instituição, faz-se
necessário que o mesmo esteja estruturado de forma a potencializar o trabalho proativo e
interligado que as participantes realizam. Neste sentido, Ana Júlia (2017) sinaliza que ONG
TamoJuntas é uma instituição que “esta organização em Estatuto é FEMINISTA, e que só pode
ter os cargos exercidos por mulheres e nós só temos voluntárias mulheres e assistidas mulheres.
Então esse compromisso perpassa pela bandeira do feminismo” [sic],
A nossa entrevistada complementa, ainda, sobre ação da ONG e o compromisso da rede
de mulheres em apoio a outras mulheres:
Enfim, eu acho que tem uma coisa que faz com que o laço e o vínculo que essas mulheres
estabelecem em ser voluntárias, ele se dá muito por uma razão pessoal assim, são mulheres
que normalmente sofreram violência, ou que já tiveram algum tipo de violência na família
ou entende que o feminismo é realmente necessário para a construção de uma nova
sociedade. [sic] (Ana Júlia, 2017).
Porque diante de tantas angústias, vamos entendendo o real significado de frases
repetidas tantas vezes por todas que de uma maneira ou outra abraçaram a causa, como por
exemplo; “Uma sobe e puxa a outra!”, “Nós por nós” e “Ajudem aquela”.

Projeto Força Feminina


O Projeto Força Feminina, também já explicado no início desse trabalho, é uma
instituição social, de caráter pastoral, iniciativa do Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo
Redentor que tem por missão a promoção integral das mulheres em situação de prostituição,
de maneira a colaborar no processo de conscientização e inserção cidadã. Percebe-se uma
verdadeira união de forças de diferentes áreas do conhecimento como: teologia, serviço social,
psicologia, etc.
O Instituto das Irmãs Oblatas desde sua fundação na Espanha, no final do século XIX,
tem como carisma: o seguimento a Jesus Redentor Libertador em compromisso solidário com
a causa das mulheres em situação de prostituição. A congregação foi fundada pelo Padre Serra
(beneditino) e Antônia Maria da Misericórdia que sendo leiga, na época da fundação, se tornou
religiosa83.

83
Informações retiradas do site da instituição, disponível em: http://projetoforcafeminina.blogspot.com.br/.
178 Gênero e movimentos sociais: ação dos movimentos feministas na cidade de Salvador

Conforme informação sobre a instituição e, em especial, sobre o Projeto Força


Feminina, a nossa entrevistada Cristina Paz comenta que sobre o compromisso da mesma:
O nosso compromisso sociopolítico não é simplesmente um assistencialismo, ele tem o viés
de você olhar a pessoa humana, vem de um fundamento e tem um fundamento evangélico
por detrás disso, que é o valor a vida que hoje está tão dessocializado. Hoje as pessoas são
tratadas como mercadorias, são vendidas como mercadoria, e o nosso víeis político é esse
de valorizar a vida desse ser humano que está aí e que está acostumado na invisibilidade e
para que esta vida venha à tona os parceiros e as parcerias são fundamentais para a gente.
[sic] (Cristina Paz, 2017).

Com a chegada das Irmãs Oblatas à Bahia, em Juazeiro, a pedido do então Bispo Dom
José Rodrigues para desenvolver o trabalho na Pastoral da Mulher, em 1981 e em 1997, em
Salvador, especificamente no bairro do Lobato e se inseriram em um trabalho de Comunidades
Eclesiais de Base - Cebs; deu-se início a um processo de aproximação das mulheres em situação
de prostituição, com o propósito de conhecer a realidade dessas mulheres, a fim de desenvolver
um trabalho de apoio. Para tanto, as Irmãs Oblatas se articularam com um grupo de voluntárias
que já iniciavam um trabalho com essas mulheres de forma a potencializar essa ação.
Foi a partir dessa articulação que se originou o Projeto Força Feminina, que se inicia em
1998 com um grupo de religiosas do Instituto das Irmãs Oblatas do Saníssimo Redentor e
voluntárias que começaram a desenvolver atividades artesanais e socioeducativas nos espaços
concedidos pelas Igrejas São Francisco e Conceição da Praia.
Inicialmente foram desenvolvidas observações nos locais de prostituição, com o intuito
de realizar a sondagem, conhecer a realidade das mulheres no Centro Histórico, bem como,
suas aspirações, demandas e perspectivas. Em 2000, no Centro Histórico, foi inaugurada
oficialmente a sede do Projeto Força Feminina, local escolhido estrategicamente por ser espaço
onde se encontra um maior número de prostitutas que necessitam de um apoio, bem com
espaço integrado a rota do turismo sexual. Desde então, busca-se melhorar sua atuação e
intervenção junto ao público-alvo. Para operacionalização dessa ação a nossa interlocutora
comenta:
Nós temos parcerias com outros movimentos sociais, aqui em Salvador a gente está ligada
a Arquidiocese e a ASA, que seria a Ação Social Arquidiocesana que aí tem todas as
Pastorais Sociais juntas. E os outros movimentos a gente tem uma parceria, porque assim,
a mulher não tem só a especificidade da mulher, ela tem o filho que você pode encaminhar
para o Projeto Axé, ela tem outras demandas [sic] (Cristina Paz, 2017).
Sobre o processo educativo desenvolvido pelo projeto subsidiada em uma proposta
pedagógica organizada e planejada em processos, sendo concebida em quatro etapas:
Sensibilização, Formação/Capacitação integral, Organização e Seguimento. Vale salientar que
essas etapas não são desarticuladas, todo o processo se desenvolve de maneira gradual e
interligadas. As experiências cotidianas servem como elemento “provocador” que ajudam no
processo de crescimento da mulher, por isso a proposta pedagógica deve ser desenvolvida com
as mulheres e não para elas, colaborando dessa forma para o fortalecimento das suas opções e
autonomia.

Acesso em: 12 jan. 2018.


Márcia Lidiane Rodrigues Santana 179

Para potencializar o trabalho desenvolvido pelo Projeto Força Feminina, faz- se


necessário articulações com outras instituições, visto que, como comenta a nossa interlocutora:
“financeiramente, nos mantemos com algumas parcerias, não do Governo porque não temos
nada do Governo, mas de outros movimentos, outras Igrejas. Aqui em Salvador, por exemplo,
a Igreja São Pedro ela mensalmente ajuda financeiramente com o lanche das mulheres” [sic]
(Cristiana Paz, 2017).
A nossa entrevistada denomina ainda outras parcerias institucionais para apoiar as
mulheres em situação de prostituição:
ela tem a questão da saúde dela, ela tem a família, ela não é uma mulher sozinha. então,
esse estar ligada a outros movimentos vem com essa parceria, a questão se a mulher precisa
de ir para o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), você tem alguém no Cras
que é sensível a situação dela e você pode encaminhar, tem alguém no GAPA (Grupo de
Apoio à Prevenção à Aids da Bahia) que é sensível a situação dela e você pode encaminhar
e assim sucessivamente os outros movimentos sociais [sic]. (Cristina Paz, 2017).
Segundo informações do Projeto, o público atendido, caracteriza-se por ser em sua
maioria mulheres entre 26 e 35 anos, seguido de um número significativo de mulheres acima
dos 40 anos, originárias, em grande parte, do interior da Bahia e de outros estados. No que
tange a escolaridade 64,6%, tem o ensino fundamental incompleto, somente 5,2% completou
o ensino médio. 40,6 % são negras, 6,2% brancas, 5,2% pardas, 2,1% ameríndias. 67,7%, das
mulheres são solteiras, 18,7% vivem com companheiros ou companheiras. Possuem em média
de um a três filhos, e 55,2% sustentam a casa só. Mais de 60% das mulheres entraram na
prostituição com menos de 20 anos, sendo que a maioria destas entrou depois dos 15 anos
(38,5%)84.
Cristina Paz acrescenta ainda que:
As mulheres que são atendidas têm mulheres da Umbanda, do Candomblé, Espíritas,
mulheres evangélicas, ateias, temos diversidades assim, gnósticas que acreditam em tudo e
não acredita em nada ao mesmo tempo. Mas, isso é respeitado no processo de cada uma,
então necessariamente não é porque é uma instituição católica que todo mundo precisa
professar a fé católica. Respeitamos a individualidade, o processo de espiritualidade de cada
uma, temos dentro do projeto, tem uma linha transversal que é a gente trabalhar a
espiritualidade, então a gente trabalha justamente o sagrado, e não uma espiritualidade
como instituição, mas o sagrado que essa tem, o sagrado que essa traz [sic] (Cristina Paz,
2017).
O projeto apresenta as vertentes educacional e religiosa, assim apresenta os seguintes
objetivos: a) impulsionar uma proposta pedagógica de atenção integral às mulheres; b)
promover e fomentar a cidadania e a sensibilização em relação ao protagonismo das mulheres
acompanhadas; c) favorecer a capacitação e formação integral que contemple as dimensões
educativa, sócio política, espiritual e psicológica das mulheres e; d) impulsionar as expectativas
da mulher na perspectiva da sustentabilidade na linha da ECOSOL;
Para desenvolver o trabalho comenta Cristina Paz (2017),
contamos com o apoio de uma equipe com onze pessoas contando conosco irmãs, nós
somos quatro e apenas nós irmãs é que somos católicas e o resto todo mundo professa uma

84
Dados da pesquisa do Projeto Força Feminina – 2007, disponível em: http://projetoforcafeminina.blogspot.com.br/.
Acesso em: 12 jan. 2018.
180 Gênero e movimentos sociais: ação dos movimentos feministas na cidade de Salvador

fé diferente. Então pra gente essa questão de ser da Igreja católica está ligada muito mais
a que você respeite o credo do outro, respeite essa presença do sagrado que tem o outro,
do que naturalmente ser católica [sic] Cristina Paz (2017).

Sobre o reconhecimento do projeto na comunidade a nossa interlocutora comenta o


seguinte:
Olha, no Pelourinho, a gente tem o reconhecimento da comunidade, mas assim, a
comunidade não tem nenhum movimento, nada que esteja aberto para as mulheres. o que
a gente faz na verdade é um projeto chamado ciranda parceiras e aí é aberto, que a gente
sempre debate a questão das mulheres, debate abertamente a questão de gênero, questão
de saúde, de moradia, de drogas sabe?[sic] (Cristina Paz, 2017).
Nessa narrativa a Cristina nos revela o caráter educativo e empoderador desenvolvido
pelo projeto. Acrescenta ainda que a comunidade tem ciência da ação do projeto e por isso,
“eles encaminham as mulheres, mas dizer que nós temos uma parceria direto com a
comunidade, não, não existe, é a comunidade que vai até o projeto” [sic] (Cristina Paz, 2017).
Lamentavelmente muitas mulheres não só reproduzem o discurso ignorante feito por
um sistema completamente machista e preconceituoso, como também não se percebem
vítimas de um sistema que aliena exclui e mata. E é neste ponto que percebemos a grande
importância de trabalhos como estes desenvolvidos por ONGs, Projetos e Movimentos Sociais.
Não se pode permanecer inertes após “DESPERTAR” para realidades tão gritantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da conjuntura atual do Brasil e das diversas sociedades nas quais


“supervivemos”85, foi possível constatar durante esta pesquisa a triste condição de violências e
ataques aos quais, nós mulheres e a maioria dos movimentos sociais, somos submetidas/os
todos os dias. É sempre bom ressaltar que não podemos esquecer-nos de mencionar aqui, os
passos dados em direção a uma mudança de mentalidade e de comportamento, que é ao
mesmo tempo justa e necessária, e nos indica que alimentou e continua alimentando tantas
utopias, de que “outro mundo é possível”. Resistir e lutar pelos nossos direitos tornou-se
inevitável, pois é no agrupamento de pensamentos, no somar de forças, na unificação de ideias
e ideologias que poderemos reduzir (e espero que um dia seja realidade a eliminação) das muitas
ações machistas e discriminatórias no que diz respeito às questões de gênero e movimentos
sociais.
O ensaísta argentino Eduardo Galeano referia-se sempre nos escritos e palestras
ministradas que “Machismo é o medo dos homens das mulheres sem medo”. E para o desespero
de muitas pessoas, tantas mulheres em suas metamorfoses perceberam-se DESTEMIDAS,
capacitadas e fortes o suficiente para encarar tantos desafios. Nós, mulheres, não recuaremos
mais nenhum centímetro, o silêncio não será mais utilizado pelas nossas vergonhas, nossos
medos serão transformados em alimentos para nossos embates diários, e para quem despertar
haverá sempre um lugar ao nosso lado nas trincheiras da liberdade.

85
Supervivemos = Força usada para além do normal, que serve para enfrentar e superar
adversidades cotidianas sem desanimar (Márcia Rodrigues).
Márcia Lidiane Rodrigues Santana 181

Enquanto pedagoga, vejo neste trabalho a possibilidade de visibilizar as discussões


sobre um tema que é invisibilizado na formação inicial dos/das futuros/as docentes no que se
refere as questões de gênero. As tentativas de criminalização dos movimentos sociais são
esdrúxulas e sem fundamentos e a situação nos pede novas atitudes, porque urge a
necessidade de redirecionar nossas forças para que a promoção e aquisição dos direitos sejam
reais. Nunca é tarde para começar e nada é tão difícil que seja impossível. É preciso saber
valorizar o esforço feito por todas e por cada uma. E, assim, no observar destes movimentos
contínuos vão surgindo rostos, braços, corações (por vezes aos pedaços) que se identificam e
se familiarizam, fazendo com que suas vozes sejam escutadas cada vez mais fortes e que suas
demandas particulares sejam percebidas e de certa forma respondidas.
Lembrando do saudoso Carlos Drummond de Andrade, devemos ter a seguinte decisão:
“Não nos separemos, vamos todas/os de mãos dadas”. Sim é assim que gostaria de concluir
este trabalho, fazendo minha as palavras do eterno poeta e ativista dos direitos humanos que,
diante de situações de total fragilidade e desespero, demonstra que consciente da existência
de seus iguais se faz necessário abdicar de certos gostos pessoais para conquistar coisas
maiores que contemplem a comunidade.

“Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não
serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela. Não distribuirei entorpecentes ou cartas
de suicida. Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.”
(Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade)

Seria este poema o anúncio utópico do que seja realmente a solidariedade humana?
Creio que sim. Pois, buscamos insistentemente encontrar em meio ao nosso ativismo a
superação do individualismo que exclui e mata, através da coletividade, da solidariedade e da
perseverança.

REFERÊNCIAS
GEBARA. I. Disponível em: https://www.cese.org.br/plateia-lotada-recebe-ivone- gebara-em-
roda-de-dialogo-sobre-estado-laico-e-teologia-feminista/. Acesso em: 15 jan. 2018.
PAIVA, A. R. (org.). Direitos humanos em seus desafios contemporâneos. Rio de Janeiro, RJ:
Editora PUC RIO; Pallas, 2012.
Informações retiradas do site da instituição disponível em
<http://projetoforcafeminina.blogspot.com.br> acessado em 12 de jan de 2018.
Disponível em http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/10o-anuario-
brasileiro-de-seguranca-publica/
182 Gênero e movimentos sociais: ação dos movimentos feministas na cidade de Salvador
Márcia Lidiane Rodrigues Santana 183

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