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Universidade de Brasília. ,/,rr!"/
Insütuto de Ciências Humanas.
DepartaÍn ento de Antropologia.
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Dissertação de Graduação.
Orientador: Stephen Grant Baines.
Aluna: Luciana Maria de Mowa Ramos.
Matrícula: 93/08997.

A CONSTRUÇÃO DA MULHER NA
SOCIEDADE KARAJÁ

Agosto/1996.
AGRÁDECIMENTOS

Foram mútas as pessoas importantes, sem as quais a realização deste


trabalho se tomaria uma impossibilidade.
Em primeiro lugar agradeço aos Karajá de Fontoura por terem me recebido
tão bem ao ponto de se tomarem mais do qup/q\eÍos informantes, mas amigos dos
quais jamaii poderei esquecer. AgradeçoJSlainila pela oportunidade que me
deram-de p.netrar .u- universo totalmente ãesconhecido e novo'
Agradeço ao professor Steúen pelo cariúo, paciência, dedicaçâo e
compreensão com que me acompanhou durante grande paÍe do curso de
graduação em anúopologia.
- À miúa mãe por ser tão sigrificativamente mãe, aos meus irmãos pelo
apóio e a Ricardo pelo seu companheiismo, zrmor e transcendência.
Aos professores do departamento de antropologia da UnB, que me
iniciaram na leitura anfopológica do mundo. Principalmente a Martin Noüõn e
Ellen Woorhnann, membros da miúa banca, que em outros momentos tivemos a
oportunidade de nos enconfar em disciplinas que müto Pçrescentaram na miúa
fármação. E ainda ao professor HêLYo Trindade'pelâ'âriirizade e pelas leituras
trabalho.
críticas deste J
Agradeço finalmente a todos os colegas que me acompanharam durante
essa jomada, principalmente a Lerr4 Telmiú4 Luís Fernando, Marcelinho,
Dênis. E a Deus.
INDICE

*Nota de apresentação 4

*Introdução 6

*Histórico da pesquisa 8

*Orientações teóricas lt
*A percepção de gênero das mulheres Karajá 15

*Capítulo um: Das diferenças dos homens e das mulheres 16


1.1- Nalinguagem 17
1.2- Naeconomia 18
sociais
1.3- Nas instituições 21
1.4- Xamanismo, morte e rjarus 22

*Capítulo dois: Algumas características da


socialização Karajá: 27
2. l- A socialização: infânci4
adolescência, iniciação 27
2.2- A mulher enquanto mãe e sua
ascendência no mundo familim 31

*Capítulo três: O público e o privado 34

*Capítulo quatro: Os Karajá por eles mesmo:


AruanãeAõni 39

*Conclusão 45

*Bibliografia 47

-).
NOTA DE APRESENTAÇAO

Fomos para a Ilha do Bananal eu e meu namorado Ricardo. Resolü não rr


e
soziúa conselho de alguns amigos parentes, que entendiam como
a
inconveniente eu, enquanto mulher, ir para uma sociedade onde, como eu já haüa
percebido, a diüsão sexual é múto significativa.
Ao chegm à Ilha, por determinação do chefe de posto, me instalei na "casa
de saúde" da FUNAI, e logo em seguida me dirigi à aldeia, no intuito de conhecer
algumas pessoas. Fui em várias casas üsitando um e outÍo Karajá Pretendia
assisti. a ágUns rituais de onde pudesse extrair elementos para pensaÍ as questões
de gênero nesta sociedade, e sempre perguntava, durante as üsitas, sobre o
"cas-amento", como se reúizava e se alguém (algum Karajá), durante minha
permanência na aTdeia se casaria, pois desejava assistir à "cerimônia".
Não sabia que isto geraria tanta con-firsão. Os Karajá acabaram entendendo
que quem pretendia se casar "em Karajá" éramos eu e Ricardo, pois para eles nâo
fazia o menor sentido pessoas quererem assisür a casamentos; o casamento é para
unir pessoas e não para ser assistido e analisado. Com isto os Karajá começâram a
orgarizx nosso casaÍnento e paralelamente, a pegar nossas coisas, pois seriam
nossos brotlre'. Ficamos assustados e só nos demos conta do que estava
acontecendo quando os Karajá jâ estavam com o nosso casamento preparado
Conseguimos explicar que nfo querÍamos nos casar e eles aceitaram, embora não
tivessem entendiào o porquê2.
Esta situaçâo teve repercussão, chegando até outras aldeias Karajá. Soube
disto através de Manoel F. Lima Filho, que assistia ao Hetoho§ em Santa Isabel,
outra aldeia Karajá mais ao sul da I1ha" As confusôes não se esgotaram aqui; em
conversa com Manoel, üm a saber o quanto as nossas presenças geraram fofocas
e entendimentos distorcidos das situações üvenciadas, de nossa pafie e da parte
dos Karajá.
Outro fato marcante na pesquisa de campo foram as várias investidas do
chefe de posto, no intuito de "atrapalhar" meu trabalho. Assim que chegamos em
são Félix - cidade no estado do Mato Grosso de onde o acesso até a Ilha é mais
- fácil e onde fica a Administração Regionat da FUNAI -, fomos apresentados a
José Lús (chefe de Posto), que nos conduziria até Fontoura. Já na üagem ele
começou a nos contar histórias terríveis das agressões praticadas pelos Karajá,
dizendo que estávamos múto expostos e que o mesmo poderia acontecer conosco.
As historias foram tantas e tão freqüentes que ficamos realmente amedrontados,
ao ponto, de.na primeira semana em campo dormirmos agarrados a três bordunas,

I O brotyre consiste em, quando algum Karajá passa por um ritual, seja ele qual for - ca§aÍnênto,
iniciaçãq etc -, os paÍentes que desejaÍem, podem seÍ seus brotyre. Ser brotyre ú ao parente o direito de
pedir o que quiser ao Karajá que pa§sa pelo rihral e, este passa a ter a obrigação de atendeÍ ao p€dido do
parente brotyre, seja o pedido qual foÍ.
2
Depois do episódio, em conversa com Lima Filho, üm a saber o quão problemático teria sido nos casar
em Karajá, em função do bÍotyre. Neste momento me senti aliviada em não teÍ toPado o 'Jogo", umâ vez
que por alguns momentos, quando ainda em círmpo, a idéia nos pareceu tentadolâ.
4
que haúamos ganl'lpdo dos Karajá, com medo que a qualquer momento um Karajá
ou vários Karajás despencassem do teto para nos matar.
Depois de algum tempo de conüvência com os Karajá, üemos a saber que
a maioria das histórias contadas pelo Sr. Chefe de Posto, nada mais era do que o
fruto de uma imaginação etnocêntrica. Alias esta idéia dos Karajá enquanto
pessoas agressivas, perigosas, preguiçosas é muito comum entre as pessoas em
São Félix e, vale ressaltar que José Lús é filho de São Félix, logo sua percepção
dos Karajá é totalmente permeada por estes conceitos.
Em uma outra situaçâo o chefe de posto também teve atuação significativa.
Era época de Hetoho§, e durante este ritual acontece outro ritual paÍalelamente,
o Aruanã. Durante o Hetoho§, Santa Isabel (que é uma aldeia Karajá) tem que
fazer quatro üsitas rituais a Fontoura, e Fontoura quatro à Santa Isabel, para
participarem do Aruanã, uma da outra- Pois bem, estava por acontecer uma destas
üsitas rituais de Santa Isúel a Fontoura, e eu estava na maior expectativa,
aguardando ansiosamente a chegada dos "aruanãs" de Santa Isabel. Para poder
captar os principais atos do ritual estava com gravador e máqüna fotográfica
apostos, e com cademo de campo nas mãos. Foi quando Adjurema - chefe ritual -
chegou até nós, e nos pediu pma que fossemos para cas4 dizendo que os Kmajá
não queriam nossa presença ali. Decepcionada, juntei meu material e sai sem
questionar. No dia segúnte Adjuremo§ nos procurou e nos contou o porquê do
pedido. E que o chefe de posto haüa exigido a Adjurema que não assistíssemos
ao ritual, com o argumento de que era perigoso, pois algum Karajá poderia ficar
bêbado e nos agredir e que se isto acontecesse a I'(INAI os puniria e nâo
fomeceria mais o tão sonhado óleo diesel para a voadeira. Adjurema expücou-nos
que ficou com medo da represália da "F[INAI" e por isso pediu para que nos
retirássemos. Ao saber do fato fiquei irada, mas nada podia fazer, o ritual já haüa
se processado.
Estas são apenas algumas das mútas situações vividas em campo. Inicio
esta dissertação por elas para explicitar um pouco das sensaçôes e situações
úüdas em campo, esclarecendo assim as circunstâncias em que a pesquisa se
desenvolveu, através de algumas considerações da dimensão social da pesqúsaí'
Inicio a dissertação desta forma, também para mostrar o quanto a'diferenças enhe
as percepções de mundo entre os Karajá e'hós" são marcantes. Ainda mais se
levarmos em consideração que o meu tempo de permanência enhe os Karajá foi
de aproúmadamente um mês, o que deixa claro os limites da miúa compreensâo
desta sociedade.
TNTRODAÇÃO

Neste trabalho pretendo mostr como as mulheres Karajá são construídas


socialmente. Tento perceber esta construção a paúir de alguns momentos da
socialização de meninos e meninas, dos papéis sociais desempeúados por
homens e mulheres e dos lugares sociais -se público ou privado - ocupados peQs
sexos na sociedade Karajá. Procuro, ainãa, na ultima parte deste trabalh\
perceber as leituras elaboradas, a pmtir do mitos e do ritos, a respeito daú^
mulheres e dos homens Kwajâ. A intenção aqú é perceber o que significa ser
múher ou homem numa sociedade onde as diferenças sexuais formam a base para
as percepções de mundo. Com a socialização, os papéis sociais, os lugares sociais
e as leituras que os Karajá constróem de si mesmos (principalmente das
múheres), acredito que possa dar conta, ainda que parcialmente, da construçâo
social das mulheres, na sociedade Karajá.
Antes de trabalhar alguns aspectos das diferencia$es entre os sexos na
sociedatle Karajá (assun{o do primeiro capítulo), procuro fazer uma breve
apreciação do que significa para as mulheres Karajá (ou como são percebidas) as
relações de gênero.
No segundo capítulo procuro identificarp reprodução a cada geração de
ceÍas diferenças vem â caractenzar a ' personàliilade" masculina e feminina dos
Karajá . Para esta etapa do trabalho conto com as orientações teóricas de Nancy
Chodorow (1979), que trabalha com o mesmo tipo de questão, levando em conta,
no entanto, não uma cútura específica como faço, mas procurando a
universalidade na formação das personalidades de gênero nas várias cútffas. A
perspectiva desta autora é amplamente psicanalítica, e a minha antropológica, mas
isto não impede que eu extraia de seus habalhos as formulãÇõês {üé possam
explicar a minha experiência entre os Karajá de Fontoura.
No terceiro capíttrlo procuro mostra.r como a construçâo da mulher se
dirige para o ambiente privado, enquanto a do homem vai de encontro ao
ambiente público, fazendo paralelamente, uma breve analise das conseqüências da
ocupação deste'1ugar" social pelas múheres. Uso para esta analise da oposição
público/privado e como orientação teórica um artigo de Mchelle Rosaldo (1979),
que analisa esta oposição enquanto lugares sociais que levam a desigualdades
universais nas avaliações culturais dos sexos.
No quarto capihrlo tento uma aproximação da leitura que a sociedade
KCI?jA faz principalmente das mulheres, para entender o posicionamento delas no
ambientã doméstico e seug/status diferenciado do do homem. Aqü utilizo-me, à
medida em que as teorizações vêem de encontro aos meus dados, da oposiçâo
naturezalcultura trabalhada por Sherry Orbrer (1979), no intuito de fazer uma
crítica à naturalização feminina dentro do campo acadêmico. Para me aproximar
da leitura que a "cútura" Karajâ faz das relações de gênero utilizo-me de dois
trabalhos sobre os Karajá, que têm por pretensão também a anáLlise das relações
entre os sexos;me refiro a Patrícia M. Rodrigues (1993) e Manoel F. Lima Filho
(no prelo). Nesta parte do trabalho utilizo-me menos de meus dados e mais das
analises e citações dos autores. Faço isto deúdo ao fato de que tanto um quanto o
outro tiveram uma permanência maior entre os Karajá, o que lhes possibilitou
percepções mais prêcisas da forma como os Karajá concebem o mundo e as
relações entre os homens e as mulheres.
HISTÓRICO DA PESQUISA

Meu primeiro contato com os Karajá se deu em setembro de 1995, durante


quatro dias, quando cursando a disciplina 'Excursão Didática de Pesquisa", fui até
uma aldeia dos Karajá em Aruanã, no estado de Goiás. Voltei novamente a esta
aldeia em outubro do mesmo ano, permanecendo entre os Karajá por mais quatro
dias.
A aldeia de Burdina, em Aruanã, é pequena, com 58 habitantes. Se localiza na
maÍgem esquerda do rio Araguaiu, o."punao um espaço de apenas 10.OOO m2, já
dentro da cidade de Aruanã. Nesta aldeia, começei a perceber que o universo das
mulheres e o dos homens Karajá são bern distintos. A aldeia era o espaço feminino,
nela as mulheres passavam a maior parte do dia e até mesmo da üda, enquanto o
resto da cidade de Aruanã era o espaço por onde os homens transitavam com maior
freqüência. Raramente se encontrava algum homem na aldeia. Os homens adotaram
a cidade de Aruanã como o lugar de sua atuação, sendo este o seu espaço social.
A partir do contato interétnico e da ocupação do território tradicional dos Karajá
por segmentos da sociedade nacional, os Karajá de Aruanã se üram sem espaços
fisico para manterem o modo produção tradicional do grupo. Com isto, os Karajá
de Aruanã tiveram que criar "arranjos" que os possibilitassem ao mesmo tempo
manter uma relação o mínimo conflituosa possível com os segmentos da sociedade
nacional e que os possibilitassem ainda uma "adaptação" ao novo modo de üda
que começava a se instaurar entre eles, mantendo até onde pudessem, os padrões
tradicionais do grupo. Os homens Karajá, então, passam a adotm uma relação de
"amizade" e apadriúamento com os membros da sociedade regional. Este tipo de
relação os poJsibilitou conseguir§S' trabalho na cidade, uma vez que as atiúdades
tradicionalmente desenvolüdas pelo grupo - agricultura, coleta, caça e pesca -
ficam sem espaço para serem realizadas, deste modo os homens tiveram que obter
ouhos meios paÍa sustentar a fanilia, trabalhando como barqueiros para turistas, .

como obreiros na construção ciül, como pescadores para as empresas pesqueira,


etc.
Como pela regra cultural dos Karajá os homens são os responsáveis pelo
provimento do alimento, eles tiveram que conquistar novos espaços, e como
também pela regra cultural, as mulheres devem eütar o contato com estanhos, elas
ficaram presas aos espaços da aldeia e da casa familiar. Os homens passam a
ocupar os espaços fora da casa, mais especificamente os que extrapolam a aldeia,
ficando assim, ligados aos-- espaços da cidade de Aruanã. Vale ressaltar que apesar
do contato interéürico e dalmudanças adündas com o mesmo, os Karajá de Aruanã
se reproduzem culturalmentê através da língua própria, do formato da aldeia, do
paÍentesco e das formas de conceberem o mundo e da auto identificação como
Karajá.
Até então pretendia realizar um projeto de pesqúsa entre os Kar.ajá para enfocar
as conseqüências do contato interétnico, e esta foi a analise que fiz com os dados
coletados entre os de Aruanã. Esta aná'lise resultou em um trabalho de final de
curso em Excursão Didatica de Pesquisa, entitulado "O contato interétnico entre os
Karajá de Burdina". No entanto, uma nova etapa do trabalho estava sendo
8
planejada e, paÍa esta meu trabalho de campo seria na Ilha do Bananal, onde os
Karajá mantêm mais fortemente as tradições e os modos de üda do grupo. Neste
trabalho, meu interesse voltou-se para o gênero. Acreditava que ali conseguiria
perceber como as relações entre as mulheres e homens Karajá se processavam,
uma vez que as interferências da sociedade nacional/regional eram bem menores
que em Aruanã.
Meu projeto inicial de trabalho de campo na Ilha do Bananal tinha como temática
o contato interétnico, o gênero e a arte dos Karajá. Em campo percebi o quanto
miúa proposta de pesquisa era abrangente .e g quanto o tempo de que dispunha ,
paÍa tanto era curto. Assim deveria propor urÀ/novo corte na temática da pesqúsa. I
Meu interesse por contato interénrico reduzia'cada vez mais. Resolü então tirá-lo , "
--"'"'
da proposta de pesqúsa. Restava-me ainda a arte e o gênero. No entanto arFil"e
ir para campo pesqúsei exaustivamente toda a bibliografia e acervos de que
dispunha para trabalhar com as bonecas Litxokós, bonecas de barro que são a obra
prima do grupo, considerada assim pelos próprios Karajá e pelos membros da
sociedade nacional.
As aldeias escolhidas para realizu o trabalho foram Fontoura e Santa Isabel do
Morro, por serem as mais. populosas e por acontecerem ali os principais ritos
Karajá, que pretendia assistir. Passaria dois meses entre os Karajá destas aldeias.
Por atrasos no processo burocrático de ingresso à rírea indígena, acabei passando
apenas vinte e cinco dias e somente em Fontoura, deüdo ao de que em Santa
^fato
Isabel os Karajá não desejavam a presença de pesquisadores'. Em Fontoura quase
não se produz litxokós. Me senti despreparada para analisar a cestaria, principal
atiúdade aÍesanal dos de Fontoura, então decidi utilizar o artesanto em minha
pesqúsa apenas a medida em que este ünha de encontro com as atiüdades e
papéis ligados aos sexos. Assim, fechei minha pesqúsa em gênero, em detrimento
da arte e do contato interéürico.
Múa intenção era trabalhar tanto a percepção das mulheres quanto a dos
homens, no que tange as relações de gênero. Isto nem sempre foi possível. Os
Karajá têm percepções múto rígidas das diferenciações entre os mundos feminino
e masculino, e apesar de permitirem que eu entrasse na "Casa de Aruanã", lugar
onde neúuma mulher Karajá pode entrar, não mudava muito a minha situaçãq- O
fato de ser mulher e estar na "Casa de Aruanã" chegava mesmo a constrangêi os
homens, isto porque não era percebida como múher Kmajá mas como mulher
branca (tori).
O universo masculino de certa forma se fechava para mim. Sentia que com as
mulheres as conversas eram bem menos formais e despreocupadas, sempre se
davam em suas casas e enquanto uma relação amistosa. Elas se sentiam a vontade
diante de mim (mais do qúe os homens), e eu também me sentia mais a vontade
com elas.
Mas o que me fez decididamente priülegiar as mulheres em detrimento dos
homens, no tabalho de campo e conseqüentemente neste trabalho, foi que ao

t Embora pouco
tempo depois Manoel Lima Filho tenha conseguido autoÍização dos membros de Santa
Isabel, para assistir e dar continuidade à sua pesquisab-bre o ritual de iniciação masculino: o Hetohokjr.
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entreüstaÍ Zé Karujâ (Hariama) sobre.o que significava e como se processava o
Hetoho§, causei uma briga conjugalo. E isto apesar de estar acompaahada na
aldeia, o que não diminúu o ciúme de Matua, múher de ZéKarajá.
Este fato não se deu apenas comigo, Lima Filho cita em seu trabalho a
dificúdade que sentiu ao tentar manter uma comunicação maior com as mulheres.
"O acesso ao mundo das mulheres não foi facilitado. Isto é uma característica
cultural Karajá. Os homerx, desde os primeiros tempos de contato se
posicionavam na tanguarda e dominayam e manipulavam o português. E mesmo
hoje quando a maioria das mulheres sabe esta língua, não se expressam através
dela, de modo especial as casadas......Apesar dos claros sinais que os Karajá me
mostraram de que as casas familiares deyeriam ser eyitadas se as mulheres
estivessem sozinhos, sobre tudo se houvessem moças, eu acompanhei o dia a dia
dos afazeres das mulheres." (Lima Filho,L994:I2t -122).
Assim como no caso de Lima Filho, meu acesso ao mundo masculino nâo
foi facilitado, mas pude acompanhar as atiúdades cotidianas dos homens, o que
múto contribúu para que agora eu pudesse escrever esta dissertaçâo.
Finalmente devo levar em consideração que a predileção por gênero se deve
ao fato de eu ser mulher, que úvencia a condição de ser "mulher" diferentemente
de uma Karujâ. T alvez este "estranhaÍnento" ou 'ldentificação" com a situação da
múher Karajá teúa sido o principal fator que me levou a desejar penetrar neste
universo desconhecido. Na tentativa de perceber as Karajris, acabei percebendo a
mim mesma, questionando a condição feminina" Isto me lembra Dorinri:,Kondo
(1986), que üz ser a experiência do antropólogo em campo condicionada ao seu
modo de ver culturalmente e biogrúcamente). Então, nada de anormal nesta minha
escolha, múto pelo contrário, pois questiona o mito da 'heutralidade,,. para que
melhor possamos entender esta situação, devemos ter em mente que a neutralidade
no campo de trabalho das ciências sociais não existe sob este aspecto que estamos
discutindo; que as decisões que tomamos são o resútado de uma escolha entre
pontos de üsta, ou seja, o lado em que nos encontramos ao proceder nossas
aná{ises. A forma como analisamos os assuntos com os quais trabalhamos,
conseqüentemente, as decisões que tomaÍnos em relação aos mesmos, resultam da
maneira como vemos a sociedade, mesmo que não teúamos consciência disto.

a
Estávarnos Hariama e eu sentados em uma esteira dentro de sua casa, quando Matua chegou Els ficou tão
nervosa ao nos ver que começou a brigar, apontando para mim e para o/6lho do casal, semfrc gritândo muito.
Cooo nâo sabia o que fazer ou dizer. desüguei o gravador e saí ae,tninhd".
' "São mútas as implicaçôes epistemológicas deste tipo de crítica. Primeüo, o conhecimento dri-se sempre de uma
Peͧpectiva específica, pois as compreensôes estâo situadas d€ntlo dâ cultuÍa, da história e da biografia, Para
avaliatmos o íatus epistemológico de nossas interpráações, devernos levar em contâ Çertos parâmeúos crucigis
dessa nossa compreensâo. Um dos fatores é o grau de distância que se tem dos informantes, diíáncia pessoí; e
cultrual, emocional e cognitiva (a cisão e[tre os termos é, em si mesma, ran prodúo da nossa pró'pria linguagem e
das nossas categorias cult[Àis) de ser. Aqui, os etnógafos deveriam considerar seriamente ó fator se de dentro
veÍsus estar foÍa dâ cultura e como isso afeta a negociação da reaüdade no çampo e no que vem depois.....Todavia,
em nerlhum mom€rlto, esta distância ou posicionamento é um 'Tato" neúro que pode ser desçartado como qualquer
outro resíduo impoÍtrmo"(Koodo. 198 6: I 8, I 9)).
l0
ORIENTAÇOES TEORICAS

Uma das questões que vem peÍmeando os estudos de Gênero é o porquê da


múher ser culturalmente o "outro". Para Simone de Beauvoir (1953) as mulheres
são universalmente consideradas como o "segundo sexo". Mesmo dentro dos
parâmetros acadêmicos, como ressalta Ro saldo, "somos herdeiros de uma tradição
sociológica que trata a mulher como essencialmente desinteressante e iffelevante,
aceitando como necessário, natural e profundamente problemático o fato de que
em toda cultura humana, a mulher de alguma forma é subordinada ao homem"
(Rosaldo,1973:33).
Ao escolher trabalhar com a problem ítÍí.ca do gênero em sociedades
indígenas, me deparei com um primeiro problema: os principais trabalhos de
etnologia indígena analisam a sociedade de uma perspectiva mascúina, os autores
partem para uma descrição e aná'lise do que sâo, na maior parte, as atiüdades e
interesses dos homens. Podemos citar Daüd Maybury-Lewis sobre os Xavante,
Viveiros de Castro sobre os Araweté, Julio Cezar Melatti sobre os Krahó, dente
outros. Mas acredito que isto se deva ao fato dos etnólogos citados serem homens e
que portanto, só üveram acesso âo mundo masculino.
A primeira antropóloga a se interessar pelas questões relacionadas ao
gênero foi Margaret Mead em sua obra "Sexo e Temperamento" e depois em
"Macho e fêmea". Mead pretendia investigaro condicionamento das
personalidades sociais dos dois sexos, esperava com esta pesquisa lançar luz
e
sobre as diferenças entre os sexos. Em seus trabalhos percebe-se claramente que o
sexo é percebido enquanto diferenças sexuais biologicamente dadas, mas já há uma
percepção de gênero enquanto uma construção social, tal como o termo é usado
hoje.
"... enquanto não conseguirmos entender cabalmente como uma sociedade pode
moldar todas os hamens e mulheres nrscidos em selt âmbito de modo que se
aproximem de um comportamento ideal inerente apena.s a alguns poucos, ou
restringir a um sexo um ideal de comportamento que outra cultula logrou ao sexo
oposto, não podemos falar de forma muito compreerciva sobre as diferenças
s exuais " (Ivlead, I 988 : 9- 1 0).
Os estudos de gênero atuais postulam que as diferenças sexuais são antes
construções sociais que biológicas, que a biologia é apropriada, percebida e
interpretada diferentemente pelas culfuras, assim, os estudiosos do gênero passam a
se utilizar do termo "sexos sociais" para diferencia-lo de sexo enquanto algo
biologicamente dado6.

t Nesta citação de Lamphere e Rosaldo, encontÍamos elementos importantes nâ definição do termo


gênero: "CertaÍnente ninguém pode questionar que os sexos diferem na constituição biológica....Os sexos
diferem na organização Íeprodutor4 nos âspectos da constituição hoÍmonal e, provavelmente, no
tamanho, potência e resistência Íisica"... "Os homens não são como animais, pois tem a capâcidâde de
interpretar e até âlterâr suâ constituição biológica, regular seu compoÍtâmento através da utilização de
formas simbólicas, como a linguagem. . . As atividades e os sentimentos humanos oão são dfuetamente
orgpnizados pela biologia mas sim, pela interação das tendências biológicas com as várias expectativas
culturâis específicâs, esquemas simbólicos que coordenam nossas ações, permitindo assim flossa
sobreüvência. A implicação de tal argumento, para a compreensão dos pa6Éis sociais humanos, é que
l1
Ao procurar por orientações teóricas que pudessem explicar a miúa experiência
entre os Karajá, me deparei com algo sintomático: a maioria dos estudiosos das
relações de gênero são mulheres. Isto se deve ao fato dg,gu.e...3s principais
discussões sobre a mulher e sobre as relações de gênero- têni início com o
moümento feminista, no fim dos anos sessenta e início do sétênta, ou seja, a
particularidade nos estudos de gênero se situa no fato dele ter surgido no contexto
de um moümento social.
"A emergêncía de um " campo intelectual " em diferentes disciplinru das ciências
humanas, devido por privilegiar os estudos sobre mulheres, os estudos sobre os
relações sociais de sexo ott de gênero ("gender") é recente e devedora do
surgimento dos movimentos sociais feministas e de "liberaçdo da mulheres " dos
anos setenta. Se seus primórdios devem ser datados nos Estados Unidos em
sessenta é nos setenta que os " movimentos Íemininos " eclodem em vários países
europeus e latirn-americanos, mantendo-se com visibilidade decrescente nos dnos
oitenta" (Maclndo : I 994. 2).
A intenção do moümento feminista era subverter posições e interrogar
valores, por não aceitar a subordinação feminina. Surgem do seio deste moümento
correntes ideológicas que passzlm a priülegiar um ou outro aspecto da relação entre
os sexos. "Ao nível das teorizações e da disputa política, duas correntes tendem a
"
se definir: a das " diferencialistas que postulam o reconhecimento de uma
identidade centrada rn diferença quer biológica quer cultural, e a das
" igualitaristas ", que entendem que qualquer diferença é signo de inferioridade e

des igualdade " (Machado : I 994. 6).


Chodorow (1979) trabalha com r:m modelo que considera a reprodução,
em cada geração, de certas diferenças gerais que ela considera universais, que
caracteizam a personalidade e os papéis masculinos e femininos. A perspectiva
-.;usada pela autora é amplamente psicanalítica. Seu artigo sugere que umâ
experiência discriminativa decisiva no desenvolümento masculino e feminino
surge pelo fato das mulheres serem as grandes responsáveis pelos cuidados dos
filhos pequenos e (pelo menos) pela socialização feminina posterior. O fato de
homens e mulheres üvenciarem diferentemente a experiência de terem fllhos
(serem pais) e de, enquanto crianças, experimentarem socializações também
diferentes, surge p a a autoÍa como fonte eüdente de que é nesses contextos. q]5ila
formação das diferenças sexuais brísicas da personalidade surgem.
Como o que pretendo é perceber a construção sociat da múher Karajá, esta
a:otora tÍaz importantes formulações que explicam müto do que presenciei nesta
sociedade. As formulações de Chodorow me permitem pensar a forma como se úá
a socialização de meninos e meninas, qual o papel dos rituais na iniciação, quais os
parâmetros sociais que a cultura usa para construir a mulher, enfim, me fornece
:r .,J
sustentáculos para analisar a construção social das mulheres na sociedade Karajá.

diferengas biológicas entÍe os sexos necessariamente podem não ter implicações sociais e
compoÍamêntais. O que é ser homem ou o que é ser mulher dependerá das interpretações biológicas
associadas a cada modo cultural de vida" (Lamphere &P.osaldo,l9'19:21-22).
l2
. A perspectiva com que Mchelle Rosaldo (1979) trabalha é a de um
modelo estrutural que relaciona aspectos da psicologia e da organização cultural e
social, numa oposição entre as orientações "doméstica'' e os laços extra domésticos
ou 'públicos" da mrúher. Como ressalta a autora, os laços extra domésticos, sâo
primordi almente acessíveis aos homens.
Domésüco ou privado, paÍa a avtoÍa, se referem a instituições e modos
mínimos de atiüdade que são organizados imediatamente em tomo de uma ou mais
mães e seus filhos; público, se refere a atividades, instituições e formas de
associações que ligam, classificam, organizam ou incluem grupos mãe-filhos
particúares.
Esta oposiçâo público/privado não pretende determinar estereótipos
culturais ou desigualdades nas valorizações dos sexos, mas antes identificar as
mulheres com a üda doméstica e os homens com a pública. O fato da ligaçâo
feminina com a üda doméstica pode ser associado à graidez e, conseqüentemente,
à criação e à socialização dos filhos pequenos. Com isto, a autora sugere que as
desigualdades características nas experiências dos homens e das mulheres podem
ser entendidas, aparentemente, pelos caÍacteres biológicos, mas que só isto não
explicaria o fato universal da autoridade pública masculina. Isto se explicaria antes,
por uma estrutura social que dá relevância ao universo masculino, organizando suas
atiüdades e concepcões de mundo em tomo dos homens. A importância das
formulações de Rosaldo pâra este trabalho se fundamentam no fato de, na
sociedade Karajá, os mundos feminino e masculino serem diferenciados, sendo a
ocupação dos loci público e privado explicativos da própria concepção da mulher e
sua construção enquanto tal.
A analise que esta anton faz da ocupação destes espaços por homens
(público) e mulheres (privado) me fomece dados para pensar sobre mútas dúvidas
que trouxe de campo, tais como o porquê de, na sociedade Karajá, o espaço
privado ser primordialmente feminino e as conseqüências disto.
A questão principal elaborada por Orhrer gira em torno do porquê há uma
estrutura generalizada e comum a cada cultura (ou às culturas de um modo geral)
que as levou a colocar um valor inferior às mulheres. A explicação poderia vir do
determinismo biológico, onde um "algo" geneticamente inerente ao macho e
ausente na Íêmea explicaria a inferioridade feminina. No entanto, certos dados de
diferença - tal como a do sexo social - só adquirem significado de superior/inferior
dentro de uma estrutura de sistemas de valores culturalmente definidos.
A postura da autora é qu;e "...cada cultura reconhece e mantém implicitamente
uma distinção entre a atuação da natureza e a atuaçdo da cultura (a cotuciência
humana e seus produtos), e mais, que a diferença da culrura, se apoia
precisamente no fato de poder yn maioria das circunstáncias transcender às
condições naturais e ffansformá-las paru seus propósitos. Portanto, a cultura (isto
é, cada cultura) em um níyel de percepção demonstra não ser somente distinta dá
natureza mas superior a ela, e este sentido de diferenciação e superioridade se
apóia precisamente na capacidade de transformar - "socialização" e "culturação"
- a nahtleza" (Ortner: 1979.101).

l3
A paúir dai, a autora poshrla que a subordinaçâo feminina pode ser
explicada pela associação que as culturas fazem entre a atlação da natsreza e a da
cultura; as mulheres seriam consideradas como estando mais próximas da naitreza
do que os homens. Elas não seriam relacionadas totalment e à nattreza deúdo ao
fato eüdente de elas, assim como os homens, serem geradoras de signos e
participantes ativas em seus processos sociais. Mas ao mesmo tempo, as culturas
considerariam-nas como estando mais enraizadas ou tendo maior afnidade com a
Íat'xeza. Por sua consciência e dialogo social, a mulher é reconhecida como uma
participante da " cultura" mas, ao mesmo tempo, suas funções biológicas, sua
personalidade e o seu locus social - doméstico - a colocam como mais próxima da
lrat:.fÍeza. Assim, elas surgem como intermediárias entre a nafureza e a cultura,
numa escala de transcendência inferior à do homem.
A importância das formulações de Ortner neste trabalho se refere a uma
cítica que pretendo fazer às formúações a ceÍca das mulheres, que tendem a
encontrar explicações universais a partir de categorias ocidentalizadas, para dar
conta de particulmidades culturais, o que a meu ver só leva a um etnocentrismo
extremado dos antropólogos, que passam a entender as sociedades que estBdam a
partir de suas próprias categorias sociais ou de sua própria cultura.
O ponto principal onde meu interesse e o das autoras vêm não mais a
coincidir é que todas tratam de universalidades culturais. Procuram analisar as
relações de gênero tendo como base as variações possíveis; não se prendem a
particularidades culturais. Eu apenas procuÍo entender as relações de gênero
enquanto propiciadoras de condi@es para construçâo de "pessoas" sociais; pessoas
aqú se referem às mulheres Karajâ, ou seja, me prendo a um caso específico,
tentando entender a construção da mulher numa sociedade específica, a Karajá.
Outro ponto em que nossos interesses divergem é que estas autoras
participam de um eggajamento politico e pretendem com estes trabalhos fornecer
bases para uma rístruturação dos sistemas sociais para que haja uma maior
participação feminina; elas, de um certo modo, trabalham com as sociedades nas
quais üvem. Eu pretendo apenas analisar um aspecto da sociedade Karajá e não,
em momento algum, influenciar mudanças na percepção de gênero dos Karajá. Nâo
pretendo colaborar com nenhuma mudança. O que faço é apenas um exercício de
peflsar os Karajá e nada mais, mesmo que neste exercício de 'pensar o outro,' ainda
tenha muito de mim mesma (ou do que a miúa cultura imprimiu em mim)
enquanto mulher que interage politicamente e que pode até influenciar
politicamente, mesmo não sendo esta a intenção. Como úrma Soares: ,te os
textos etnogrártcos tentam descrever um "outro" ao mesmo tempo que procuram
construir um "nós", acredito que esta dificuldade deve ser aceita como uma
condição inerente ao modo como os antropólogos podem conhecer',
..olhos
,,r-- (Soares: 1 995. 9/. Sabendo que jamais poderei ver o mundo com os Karajrí,,,
' tento pensar da forma mais isenta possível, relatiüzando, as relações entre os
sexos sociais nesta sociedade.

t4
A percepção de Gênero das tmtlheres Karají

Para as mulheres Karajá as relações de gênero não são percebidas enquanto


algo anômalo, a ser concertado, como postulam as teóricas de gênero que uso
neste trabalho (Ortner, Chodorow e Rosaldo). Para elas o tipo de relação obtido é
o absolutamente normal e correto. Entendem-na enquanto uma relação de
oposição e complementariedade entre os mundos feminino e masculino.
O fato de os homens serem os "donos" do ritual do Hetoho§ e do Aruanã
não faz com que as múheres se percebam enquanto em "desvantagem" social;
múto pelo contrário. O gênero só era pensado pelas Karajá quando eu fazia
alguma colocação ou pergunta â este respeito. Fora do contexto da minha
pesqúsa este tipo de questão não fazia sentido para elas. Para a Karajá o mundo é
como é, "como prevê as leis Karajá" e não esperam mudanças, nem demonsfiarn
as desejar. Não esperam passar por um ritual tâo elaborado quanto o Hetoho§.
Este faz parte do universo masculino, e isto é ditado socialmente, logo,
etnocentricamente, as mulheres, assim como os homens acreditam que esta é a
forma correta de estar, pensaÍ e conceber o mundo.
Quando induzia algumas mulheres a pensarem a situação social das
mulheres Tori (brancas), elas achavam que o modo de üda destas não era o
correto. Porque para uma Karajá, uma múher que não se dedica exclusivaÍnente
às tarefas mais intimamente ligadas ao mundo feminino, ou seja, o cúdado com
os filhos, com o marido e com o conforto familiar, preüstas pelas "leis Kuajil,
(dizem elas), nâo pode ser üsta como correta. Para elas, as mulheres devem ser
assim como são as Karajá; foram ensinadas desde que nasceram que o mundo é
assim e não colocam em dúüda o que está socialmente estipulado, mesmo poÍque
o mundo é assim desde que os primeiros heróis míticos ensinaram como o mundo
deveria ser - se explicam elas. Aliás, na cútura Karajá hét mitos que explicam o
porque do mundo ser desta forma (trabalharemos com estes mitos na ultima parte
deste trabalho), logo não há o que ser questionado.
O Aruanã é um ritual em qne a máxima está no fato de eústir um segredo,
mas um "segredo" somente para as mulheres Karajá. Para os homens este é um
ritual de grande importância. As mulheres não estão preocupadas em saber o que
acontece em torno do Aruanã, nem sequer falam sobre isto - muito, é claro, por
haver punições rígidas para a mulher que ousar descobrir o segredo dos Aruanãs,
podendo mesmo chegar a morte da infratora. Mas não falam, também, porque isto
não é importante para elas.

15
Capítulo (Im: Das Diferenças enfie os Homens e as Mulheres

Na minha experiência com os Karajá, percebi as mulheres, aparentemente,


não chegavam a tei projeção no que tange a üda política, religiosa e ritual da
aldeia dã Fontoura. Ai diferenças entre homens e mulheres em termos de papéis e
comportamentos sociais eram facilmente percebidas Percebi também que, o
modã como os Karajá concebiam a diferenciação entre os sexos sociais estava
permeado pelo "valor". Era como se os papéis sociais dos homens ocupassem
uma posição
- hierarqúcamente superior ao das mulheres.
Quando digo que percebi as mulheres Karajá enquanto ocupantes de uma
posição hieraqúcamente inferior aos homens Karajá, me refiro essencialmente às
ãvaliações culturais dos próprios Karajá. Como adverte Dumont (1986), ao
falarmos em hierarqúa sempre causamos um "mal estar" nas pessoas que a
percebem como correspondente às desigualdades ineütáveis, no entanto "... o
homem não apenas pensa, ele age. Ele não tem só iüias, mas valor. Adotar um
valor é hierarquizar, e um certo con§enso sobre os valores, uma certa hierarquia
das idéias, das coísas, das pessoas é indispensável à vida social" @umont'
1986:66).
A partir de Loús Dumont (1986), a hierarqúa não mais é considerada
natural mas construída ideologicamente, sendo uma pré-condiçâo social às idéias
e valores que as sociedades produzem, idéias estas que vêm a incorporar e
englobar elementos diferenciados (tais como no gênero) dentro de um conjunto
social. Para elucidar tal afirmação, Dumont usa o mito do cri sti ani smo' (Adão
como o incorporador e englobador de Eva). Assim sendo, a cultura Karajá, de sua
própria maneira e em seus próprios termos, determina valores, tarefas, maneiras e
responsabilidades características, especialmente associadas com as múheres ou
coà os homens. Segúndo o pensamento de Dumont, proporia que na sociedade
Karajâ, assim como no mito de Adão e Eva, o homem vai estm 'tncorporando a
múher".
Se levarmos egl
i
mito de origem Karajá, segundo o qual os Karajá
conta o
saíram do mundo da)águas, mundo este onde os sexos eram indiferenciados, a
passagem do mundo'das águas para a úda em sociedade trás como condição de
êxistência a diüsão entre os sexos. No mundo da superficie, passa a eústir a

7
'Deus criou primeiro Adão, ou seja, o homem indiferenciado, protótipo da especie humanâ Depois,
num segundo iempo, extraiu de algum modo desse primeiro Adão um ser diferente. Eis face a face Adão
e Eva, prototipos dos dois sexos. Nessa curiosa operação, por um lado Adão mudou de identidade, porque
de indiferenciado que eÍa se toÍnou macho, por outÍo lado suÍgiu âo mesmo tempo um ser que é ao
mesmo tempo membro da esçÉcie humana e diferente do representante maior dessa esÉcie. Tudojunto,
Adilo, ou, na nossa língua, o homem, é duas coisas ao mesmo tempo: o Íepresentante dâ esfÉcie humana
e o protótipo dos indiüduos machos dessa espécie. Num primeiro nivel, homem e mulheÍ são idênticos;
num segundo nível, a mulher é o oposto ou o contrário do homem. Essas duas relações tomadas em
conjunto caracterizâm a relação hierárquica, que não pode ser mais bem simbolizada senão pelo
englobamento materiâl da futurâ Eva no corpo do primeiro Adão. Essa relação hierárquica é muito
geralmente âquela que existe entre um todo (ou um conjunto) e um elemento desse todo (ou desse
conjunto): o elemento fàz paÍte do conjunto, é-lhe nesse sentido consubstanciâl ou idêntico, e ao mesmo
tempo dele se distingue ou se opõe a ele. É isso o que designo com a expressão anglobamento do
contrário"@umonÍ"198ó:370).
16
diferenciação enhe os sexos, passam a assumir o controle da
e os homens
sociedade uma vez que através do mito eles tem a informação de que as mulheres
já controlararn o mundo, no entanto elas o deixaram tomar totalmente caótico,
fazendo com que os homens tivessem que tomar o poder. Daí o porque de hoje os
homens serem os responsáveis pela úda em sociedade, as mulheres já üveram o
poder, mas não tiveram a capacidade de exercê-lo corretamente'.
Por este mito podemos perceber que na üda em sociedade são os homens
que vão estar controlando as mulheres, através do domínio da úda em sociedade e
da vida pública - mais valorizada na ótica Kxajâ. E, estando o homem com a
responsabilidade da üda política e ritual -üda pública-, eles são por excelência os
representantes dos seres humanos e, sendo a múher também um ser humatro, os
homens, enquanto representantes da espécie vão estar englobando-as. Alem do
que, como admite Dumont, na hierarqúa vai haver elementos de gradação
inferior/superior. No decorrer do trabalho tentarei passaÍ esta idéia de
superior/inferior, com mais clareza, no contexto social Karajá.
Então, quando digo "valor inferior às mulheres", entendo que socialmente
e até inconscientemente a "cútura" Karajá dâ uma ênfase maior no que diz
respeito ao mundo masculino, suas atiüdades, funções, produtos, etc. Não quero
sugerir com isto que este "inferior" tenha uma conotação preconceituosa ou, do
ponto de üsta da sociedade ocidental, expÍesse uma postwa "machista". Gostaria
de deixar claro que este é apenas um caminho teórico, orientado por Dumont,
pelo qual resolvo "olhar" a sociedade Karajá.
Esclarecidos estes pontos, que acredito fundamentais, passo agoÍa paÍa as
diferenciações entre os mundos feminino e masculino.

1.I-NA LINGUAGEM

Em Fontoura, os Karajá falam a lingua Karajá, também falada pelos Javae,


Xambioá e pelos Karajá de outras aldeias. Esta língua faz parte do tronco
lingtústico Macro-Jê, tronco este que abrange uma série de outras línguas, bem
diferenciadas entre si. A própria língua Karajá se diferencia bastante quando
falada por Karujá, Xambioá ou Javaé, embora neste caso os gnrpos se entendam
mutuaÍnente.
É interessante notar que na sociedade Karajá há uma linguagem feminina e
uma masculina. Homens e mulheres usam um radical nas palauas que vem a
identificar o sexo do falante. Por exemplo: se uma mulher ao se retirar, se
despedisse dizendo Krak, um homem na mesma situação diria Arak.
Os costumes lingüsticos de homens e mulheres também se diferenciam. Os
homens têm uma forma mais "polida" ou "formal" de se expressarem, falam
sempre pausadaÍnente. Ao contrário as mulheres falam sem cessar, gesticulando
müto com as mãos, dando um certo tom de 'lrritaçâo" à fala, o que dáz

8
Este mito foi retirado do trabalho de Rodrigues (1993), aqui ele se encontra de forma Íesumida. Este é
um mito muito extenso e não ü necessidade de tÍazâlo na íntegrâ, üsto que apenas estâ idéia resumida
do mito já me dá sustenáculos paÍa manter minhas formulações.
t7
impressão de que estão em uma discussão actnada.Isto faz parte de todo um jogo
oral e gestual que tem lugar no espaço doméstico.

1.2- NA ECONOMIA

Na economia, encontramos também, algumas eüdências de que na


sociedade Karu1á hit uma diferenciação das atiüdades segundo o sexo. Das
atiüdades econômicas, segundo o sexo> a pesca e a caça (pouco praticada) são
exclusivamente masculina, a coleta, a agricultura e o artesanato tanto feminina
quanto masculina.
A pesca é a atiúdade econômica mais importante dos homens de Fontoura.
Ela se dá tanto de modo indiüdual quanto coletivo, aproveitando-se do farto
manancial que é o rio Araguaia. Sendo a pesca coletiva, não existe regra fixa que
ordene o trabalho dos participantes. Quando há pescarias que exigem a
participação de vários homens - do pirarucu, por exemplo -, os interessados se
reúnem apenas para combinar como se dará a diúsão do produto e qual a tarefa
de cada um.
O peixe tem dupla finalidade para o Karajá: é o principal alimento e uma
das principais fontes de renda. A carne do peixe é üda como o "alimento" por
natureza. RaÍamente o peixe é consumido soânho. Sempre vem acompanhado de
arroz, fairr,ha, batata-doce, enfim, algum produto da roça ou da coleta. O que
realmente os Karajá de Fontoura val oizarn é a carne de peixe. Sem ela eles têm a
sensação de não terem se alimentado, múto embora não seja o produto mais
consumido durante as refeições ou mesmo durante o dia. Então, o peixe é o
alimento o mais valorizado e um dos poucos produtos que é compartilhado
(troca/dádiva/reciprocidade). Além do quê, a pesca pode ser üsta como a
expressão da ürilidade, üsto que nela há exibição pública da masculinidade
Geralmente os Karajá comem bastante entre as refeições e os principais
alimentos são as frutas e castanhas coletados pelas mulheres. Existem dois üpos
de coleta: as "indiüduais", onde uma ou duas múheres saem e trazem bastante
cocos, murici, manga, goiabas etc; e as coletivas, das quais participam tanto
homens quanto múheres.
As expedições de coleta são bastante freqüentes. Nelas saem, geralmente,
grupos grandes de pessoas de ambos os sexos no barco da comunidade. Participei
de uma destas expedições que saiu em busca de madeir4 cocos, palhas e buriti.
Como era época de Hetoho§, esta expedição se tornou uma necessidade, uma
vez que perto da aldeia não se encontra o material necessário para a confecção da
indumentiíri a ritual.
Um outro tipo de expedição muito comum entre os Karajá são as
expedições para pescar tartaruga- Nestas vão apenas os homens, que geralmente
trazem grande quantidade de tartarugas paÍa o consumo próprio ou para a
comercialização. Este é um produto bastante apreciado pelos Karajá Há ainda as
expedições de caça e as de coleta de mel, da qual só os homens pa*icipam.
Geralmente estas acontecem com a finalidade de realizar as festas/rituais.

18
('-
Das atividades de coleta, a mais valorizada socialmente é a do mel,
justainente a praticada pelos homens. Embora a coleta de frutos, raízes e cocos,
praticada pelas mulheres, seja mais constante, e as quantidades aí coletadas
maiores, a atiüdade de coleta de maior prestígio social é a do mel. Vale ainda
ressaltar que os Karajá não vêem os produtos da coleta feminina como "alimento"
em si, mas antes como um complemento alimentar. Já o mel é tido como
"a1imento".
As roças Karajá são trabalhadas por grupos domésticos. Há poucas roças
coletivas. Geralmente as fazem par:a a realização de rituais. As roças distam da
aldeia de 4 a 12 Km e são múto espalhadas. Cultivam arroz, mandioca, banana,
abacaxi, cana e milho; plantam unda batala-doce, cará, inhame, amendoim,
mamão, limão, dentre ouúos. Na roç4, trabâlhaÍn tanto homens quanto mulheres.
O trabalho de '1impa" do terreno a ser cultivado, os homens realizart. Desde que
a mulher não possua filhos pequenos para cuidar, elas também podem fazê-lo. O
plantio e a colheita são executados tanto por homens quanto por mulheres. Os
produtos da roça são para o consumo próprio do grupo, mas gerando excedente,
este é vendido.
De um modo geral todos os Karajá confeccionam artesanato, mas somente
as mulheres trabalham a aryqla. Os homens passam grande parte do tempo
trabalhando suas armas de pesca e fazendo suas "escúturas" em madeira (usam o
saram). As múheres fazem as esteiras de buriti e algumas das roupas que são
necess:árias para o Hetoho§, há peças que são confeccionadas apenas pelos
homens. Há poucas mulheres ceramistas. Dizem que " somente as mais velhas
conhecem as técnicas". A maioria das mulheres de FontouÍa trabalham com
artesanato de palha, mas há potes por toda a aldeia usados para armazenu ágra.
Mútas vezes tive a impressão de que quando se fala em artesanato de barro as
mulheres de Fontoura sempre o associam com as Karajá de Santa Isabel, famosas
por suas bonecas Litixokós. As de Fontoura sempre demonstram um certo
constrangimento ao falar da sua própria produçâo de Lifxokós.
Em Fontoura, do artesanato produádo pelas mulheres, há uma supremacia
dos confeccionados em buriti, em detrimento dos em barro. Qual não foi a minha
surpresa ao sabê-lo, pois os Karajá são conhecidos na bibliografia especializada e
também na literatura não especializada pelas bonecas lifxokós, que se tomaÍam
famosas deüdo às vá,rias coleções montadas com estas peças em museus.
O escoamento da produção artesanal se dá de várias formas. Há casos em
que os homens de determinado grupo doméstico se organizam e levam toda a
produção familiar. Há outros em que um único indiúduo se encarrega da venda
da produção de toda a aldeia. Há ainda casos em que algum comerciante da região
vai ate a aldeia e compra graÍrde número de peças. E finalmente há casos em que
um grupo de homens levam toda a produção da aldeia para as lojas da Arte India.
Os índios mencionaram para mim a existência de uma cota poÍ aldeia, estipúada
pela Arte India.
O artesanato produzido pelos Karajá, segundo o sexo do produtor e
material utilizado são :

19
PtoduÍo sexo do maÍerial produío sexo do matefial
produtor produíor
esteiras mulher palha bolsinha múher palha
cinto hom./mul palha maraca hom/mul cabaça
laretô homem pena pente hom/mú espiúo
decobutê mrÍheres mlssanga dexi múheres algodão
burduna homem madeira cordiúas mulher palha
arco homem madeira flecha homem madeira
lança homem madeira remo homem madeira
boneca hom/mul madeira boneca múher barro
esteirinha mulher palha canoinha homem madeira
cotitã/isi- hom/mul rmssanga noruTon hom./mul Íussanga
urá
manrâ- hom/mul nxssanga noÍronsa mulher rx ssanga
nim
mânaterê homem pedra deracuxi mulher algodão
lorilori homem pena runna homem pena
odi homem pena wocodeú múher algodão
durá mulheres pena dexiwera- mulher pena
ru
loú mulher algodão urubmú hom/mul palha
corr hom/mul palha latenira homem palha
buti mulher barro n-a mulher algodão
dororuê múher concha lXa mulher cabaça
bassê mulher barro watiuecu- múher barro
léL
uassarerâ múher palha tuú mulher casca de
madeira
idioranu- mulher palha esondecó mulher madeira
rá-te
coluó homem madeira rede de homem anzol
pesca

Notei durante o tempo em que estive entre os Karajá que a aÍe plumríria é
mais valorizada pelo grupo, sendo as peças mais caras e as que eles consideram as
mais bonitas. Olhando esta tabela de artesanato, nota-se que a arte plumária é, em
sua maioria, confeccionado pelos homens. Podemos então inferir que, novaÍnente,
a atiúdade praticada pelos homens é objeto de maior prestigio e valor.
Deste modo, podemos estabelecer uma relação: a atiüdade de maior
prestígio é a pesca, praticada pelos homens, logo em seguida vem o afiesanato -
deüdo ao fato de que este passou a ter grande importância, através da
comercialização, paÍa a aquisição dos produtos da sociedade nacional que a
sociedade indígena passou a consumir. Dos artesanatos produzidos, os mais

20
valorizadol são em plumária, confeccionados principalmente pelos homens. Logo
em seguida úria a agricútura, onde, ao que tudo indica, há um eqúlíbrio de
prestígio masculino/feminino, uma vez que em todas as etapas da produção
homens e múheres podem participar. E finalmente üria a coleta, onde de todas, a
mais valorizad a é a do mel, praticada exclusivamente por homens.
Então, as atiüdades masculinas, opostas às femininas, são reconhecidas
como predominantes e mais importantes e o sistema cultural Karajá concede mais
poder e valor aos papéis e atiüdades dos homens; ou seja, a diferença nas
ãvaliações culturais de homens e múheres no sistema Karajá reside no fato de
haver uma maior importância atribuída aos produtos dos homens, principalmente
pelos homens, mas também pelas mulheres, que reconhecem uma
complementariedade, mas nesta complementariedade dão um maior valor aos
produtos dos homens . Segundo Chico (Karajá de 60 anos) "Os homens fazem
tudo melhor e é ele que faz tudo, múher sabe pouca coisa. Homem faz casa, faz
canoa, faz remo, faz as festas, faz tludo o que é importante. E o que mulher faz?
Faz pouca coisa, homem é que sabe tudo". Vale ressaltar que quando Chico me
deu este depoimento Dinú (Karajá de 30 anos) estava do lado e não contestou
nada do que Chico falava.
Segundo Ortner (1979), uma ideologia cultural explícita desvalorizando a
mulher e com ela seus papéis, suas tarefas, seus produtos e meios sociais, já seria
uma eüdência suÍiciente de que nesta sociedade o status feminino é inferior ao
dos homens. Mas nós não pararemos aqui. Partiremos agora para outros ramos de
atividade onde encontramos mais eüdências da infeliorização hierarqúca da
múher.

1.3- NAS rNSTIrurÇÕnS SOCUTS

Nas instituições sociais Karajá encontramos mais destas eüdências. Nas


reuniões para trataÍ de assuntos da comunidade, as mulheres não podem
pmticipar. Quando o assunto também interessa a elas, "teoricamente" elas podem
participar, mas na prática não é o que acontece. As reuniões são realizadas na
"Casa de Aruanã" e as mulheres sequer podem olhar para a entrada da casa, que
dirá entrarem nela.
São duas as lideranças em Fontoura e arnbas mascrúinas. Uma das
lideranças trata dos assuntos relacionados aos "tori" (branco) - Paúinho - tori
wedu, e outra cúda dos assuntos rituais - Adjurema ' xandinodô. Esta ultima é,
em regra, herdada patrilinearmente. Não diria que eúste antagonismos entre os
chefes, pelo menos em Fontoura, entre o tradicional e o moderno. Há um
ajustamento satisfatório entre os dois chefes, cada um deles exercendo a ação em
esferas distintas; os próprios Karajá consideram como "chefe" o xandinodô.
Como dito, ambas as lideranças são homens e esta situação não poderia
ser diferente. A liderança externa, ou tori wedu, tem que saber se relacionar com
os "tori" e falaÍ o português múto bem. Ao contrário, as mulheres pouco falaÍn
português. Alias este foi um dos pontos que dificútou meu trabalho em campo,
pois com mútas das mulheres não consegu.ia me comunicar. "Os hometu, desde
21
os primeiros tempos de contato se posicionavam no vanguarda e domirnvam e
manipulavam o português. E mesmo hoje quando d maioria das mulheres sabe
esta língua, não se expressam através dela, de modo especial as casadas" (Lima
Filho:1994.121).
Isto se deve a uma maneira de ser Karajá que priülegia a proteção da
mulher do contato com os regionais ou com outros não Karajá. Assim as mulheres
Karajá são as mantenedoras da tradição, ficando presas ao que é "essencialmente"
ou mais intimamente ligado ao modo de ser Karajá, enquanto os homens se
aventuram pelo mundo dos tori. Isto vale também para a saida da aldeia" As
mulheres só saem se forem acompanhadas de parentes. Não é permitido à múher
lilre trânsito pelo mundo dos brancos. Ou seja, se não podem ter liwe acesso ao
mundo dos tori, taÍnbém não podem ser a liderança que "regula" a relação
torJ'lKarajá.
Quanto à liderança ritual, sua principal função é organizar e conduzir o
Hetoho§ e o Aruanã, duas festas de que as mulheres estão exclúdas. Logo,
função de líder não condiz com os papéis femininos. As mulheres estâo exclúdas
desta função, que socialmente é üsta como muito importante e valorizada.
Logicamente os homens também sâo exclúdos das atiüdades femininas, tais
como o cuidado da casa. No entanto, esta função na sociedade Karajá não chega a
ter 'projeção", ou seja, não é objeto de prestígio e valor.

1.4- NOXAMANISMO, MORTE E RITAAIS

Outro "locus" social no qual a mulher não tem müta projeção é nas
práücas Xamânicas. Um aspecto intimanente ligado aos hari (xamã) e a todos os
rituais masculinos (Aruanã/I{etoho§) é a morte. Lima Filho (1994) deixa clmo o
quanto para os Karajá a "morte", ou melhor, "os mortos" (worjisii) são
significativos. Os worlsjr são uma categoria que engloba todos os mortos. Tudo o
que se refere aos woqisj é manipúado pelos homens e, de modo especial pelo
hâri. Nem mesmo as múheres hàri têm acesso a este mundo.
A parte da "morte que cabe às mulheres é a memória indiüdual dos mortos
e também o sustento do defunto durante os 30 primeiros dias após a morte.
Assim que chega à aldeia a notícia da morte de algum dos seus, todos da
aldeia param de trabalhar e os paÍentes se põem a chorar, principalmente os mais
próúmos e as mulheres. Assim que o corpo chega, os familiares pegam na mão
do morto, abraçam-no, beijam e conveÍsam com ele, perguntando quem fez o
feitiço ou porque ele fez isto. Não há velório e logo em seguida seus pertences são
juntados. O corpo é envolüdo por uma esteira. Logo em segúda levam-no para o
cemitério em coÍejo. Lá chegando, depositam o corpo na sepultura que foi
preparada anteriormente pelos seus paÍentes - tarefa masculina. Joga-se terra por
cima do corpo e em cima de tudo coloca-se uma tora de madeira. Os pertences do
morto deverão ficar perto do tumulo e uma fogueira é acesa- Durante 30 dias
aproximadamente esta fogueira permanecerá acesa e a mãe, irmã ou esposa
depositará a comida do morto - função feminina: alimentar o morto. Quando a
parenta está levando a comida, assim que chega próximo ao cemitério inicia-se o
22
choro ritual - função feminina: choro ritualizado. A parenta, então, levanta uma
das toras e se põe a conversaÍ com o morto, o que dá a impressão de que ela está
realmente vendo-o. Terminado este período, cessarn as levas de comida e também
não se acende mais a fogueira. Acreditam que a partir daí o moÍo já encontrou o
seu caminho para a aldeia dos mortos. Vai para o mundos das águas ou paÍa o
mundo do céu. Isto vai estaÍ condicionado ao fato de ser ou nâo o morto um hàri.
É interessante notaÍ que o cemitério Karajâ é diúdido: em um dos lados enterra-
se os que morrerÍrm de velhice ou morte nafural, e do ouho enterra-se os que se
suicidaram ou foram assassinados.
" Entdo, a morte estabelece uma divisão nítida entre homens e
mulheres. É ,o*o se os homens fizessem do temd da morte e das
atividndes dos mortos a seiva simbólica para iustificar a diferença entre
os seus papéis sociais e os das mulheres. Daí o porquê de tal tema estat
presente e de forma tão elaborada no Hetoholcy, ritual que tem como
/irulidade justamente iniciar os meninos nos assuntos relacionados aos
wory)sji" (Lima Filho, I 994 : I 2 1).
"O tema da morte é a fonte ideológica de onde os karaj á se nutrem
para diferenciar alguns papéis sociais. Por ser um tema manipulado pelos
homens, d morte estabelece a princípio ações socialmente definidas para
homens e mulheres. É à *ortn e aos mortos que o ritual do Hetohobii está
relacionado. Os jyre, os meninos iniciados, são simbolicamente ariranhas
e representaçãa das mortos. Por ísso, posso dizer que num(t escala maior
a e
molte separa dois grupos: os homens as mulheres (Lima "
Filho,1994: 154).
Eu diria mais. Diria que o fato da morte ser manipúada pelos homens,
colocando-os como os "donos" dos rituais socialmente mais importantes - Aruanã
e Hetoho§ -, nâo vem simplesmente a diferenciar papéis sociais, mas antes
hierarqüzá-los. Como ressalta Ortner (1973), a exclusão feminina dos ritos mais
sagrados ou do maior poder político - caso da liderança - é uma eúdência
suficiente de que nesta sociedade há uma hierarquizaçâo dos papeis sociais,
ficando a mulher com uma posição inferior à do homem ou pelo menos
diferenciada e com menos valor e prestígio.
Há uma casa - Casa de Aruanâ ou Casa da rapaziada -, construída no
centro mas do lado de fora das duas fileiras pmalelas que formam a aldeia Karajá,
que é construída pelos homens e só é usada por eles. As mulheres Karajá não
podem sequer olhar para a entrada da casa - que é voltada para o cerrado e não
para a aldeia. Aruanã é segredo mas somente para as mulheres Karajá. Eu, por
exemplo, podia entraÍ e sair da casa mas com a condição de jamais contar o que
üa ali denko paÍa as mulheres.
A mulher que desrespeitar a proibição de entrar na casa ou descobrir o
segredo do Aruanã é punida, conforme dizem os Karajá, tendo que manter
relações sexuais com todos os homens da aldeia. Pelos mitos a seguir podemos ter
uma idéia das proibições e punições que cerczm a Casa de Aruanã.
"Era tempo de Hetoho@. Os homens haviam saído para caçar e pescal.
Só ficaram os velhas, as mulheres e os clianças. Na casa Grande dois
23
meninos jyre este am res guardados. À noite foram dormir nas casas de
suas mães. Próximo a uma das casa:, um yelho deitado se aquecia em uma
fogueira. A mãe de um dos meninos queria saber como os Worj;sj; comiam
no casa da Aruanã. O menino negou a informaçdo. Isto era segredo dos
homens. A mãe insistiu tanto que o menino acabou contando que os
homens comiam com os dedos sobrepostos. O velho ouyiu tudo e,
indignado, dirigiu-se até à beira do rio, com a ajuda de um pedaço de
pau. Os homens que regressayam avistaram o velho e presentiram algo
errado. Logo resolveram matáJo. Depois de hesitarem, sem saber quem
Íaria tal ação, um guerreiro de baixo, Iraru Mahãdu, desceu da canoa e
decepou a cabeça do velho. Com a cabeça na ponta de sua lança,
Harabõbõ correu pol todn a aldeia. Os homens viraram "bichos" e foram
para a casa de Aruanã. Outros foram bwcar lenha. Ao retornarem,
cqyaram três buracos. Um para os homens, outro para as mulheres e um
menor para as crianças. Em seguida os homens lutaram, jogaram as
pessoas em suas covas separadas, ateadas de pgo. Restaram apenas dois
irmãos. Cantaram à noite e ao amanhecer decidiram matdr um ao outro_
Munidos de Jlechas yenenosas atiraram-se. Ficaram dois meninos
escondidos dentro de uma grande panela de barro, na assoalho de uma
dqs casas. Andaram pela aldeia e, ao velem todos mortos, foram pescar.
Os peixes seriam misturados com o milho e o beiju. Hayia dois
piriquitinhos no casa. Após três dias, ficaram com peno dos jyre. Na volta
de uma das pescarias, os meninos encontraram as comidas já preparadas.
Surpresos eles simularam uma noya pescaria e, escondidos, acercaram-se
da casa. Viram os dois piriquitinhos transformados em moças que estdvam
a pilar o milho. Então os dois jyre casaram com duas moças, fazendo
sobreyiver os Karajá" (Lima Filho,l994:30)

"A aldeia havia-se mudado e a Casa de Aruand es tava dbandonada. Os


restos dos acessórios dos Aruanã, como palhas, penas, conchas, entre
outros, estayam espalhados. Alguns Karajá pegaram este mdterial e
levaram como brinquedos para sucts casas. Alguém viu e comentou que
havia duas índias pegando as coisas da Casa de Aruanã. Isto fazia mal,
era perigoso, pois era segredo dos homens. Os homens se reuniram e
discutiram o assanto. Decidiram btucar as mulheres, que tinham se
escondido tn mato. Os parentes fus mulheres subiram o rio em suas
canoas para procuráJcs. Quando as encontraram, perguntavam aonde
elas estavam indo. As mulheres responderam que se dirigiam para uma
das casas da aldeia. Mas os homens pediram que a mãe entregasse a filha,
que se chamata Wesi, para que eles tiyessem relações sexuais com ela. A
mãe apelou para o sentimento de parentesco que os unia. Os homens
retrucaram, lembrando que ela a lei. A moça deveria ficar no meio dos
homens ou seria morta. Destaíorma os homens forçaram relações sexuais
com a moça. Ela resistiu e acabou moftendo, apesar da mãe ter pedido
para se colocar no lugar da rtha. Os homens não aceitaram, alegando a
24
idade da mulher. Era velha. Mesmo depois de morta, os homers queriam
continuar a ter relações com a moça. Foi quando um homem interveio,
cortou uma tora de candirana, um pau que dá na beira do Araguaia, e,
assim, mãe e filhaforam jogadas no meio dn rio" (LimaFilho,l99442)

O Aruanã consiste em uma dança onde os homens, mascarados, colocam


em moümento os bichos e os Worjis!. Os Aruanãs geralmente dançam em pares.
Cada Aruanã possú a sua própria música, sua própria dança e seus próprios
enfeites. As mulheres também dançam no Aruanã mas sem chegar perto da Casa
de Aruanã.
A dança feminina no Aruanã se dá da seguinte forma. As mulheres se
posicionam próximas às casas da aldeia, todas ornamentadas, com seus corpos
pintados. Na cintura usam um tapa sexo de entrecasca de árvore, usam ainda
brincos de penachos de arara vermelha (kue), colares de miçanga, dexi e
decobuté, e aguardam os Aruanãs se aproúmarem. De cabeça baixa elas evitam
olhar para os Aruanãs. Quando os Aruanãs se aproximam, cantando e dançando,
elas começam a dançar com passos para tris - em direção a aldeia - e as mãos
fazendo um moümento para cima e para baixo, na regiâo do ventre. Um jyre
(menino que está sendo iniciado) segue os Aruanãs com uma cuia pequena; esta
cúa é entregue ârs múheres dançarinas, que a devolveram na dança posterior.
Estes gestos representam os Aruanãs pedindo e recebendo comida das mulheres-
Isto é signiÍicativo porque o ato de "alimentar" está intimanente ligado a mulher -
amamentação/preparo de alimentos/tarefa feminina.
Com esta pequena descrição do mito e da dança dos Aruanãs, gostaria de
sugerir que a prerrogaúva de üolaçâo imposta às mulheres, como a que os mitos
tÍazem, me serve como mais uma eüdência de que o "sagrado" está em mãos
masculinas; eles controlam inclusive a participação da mulher na dança dos
Aruanâs, se colocando como superiores, uma vez que sâo eles e nâo elas que
detém o poder de manipular o "sagrado". E interessante notar que a postura que a
mulher assume no ritual, ficando de cabeça baixo, só vem a demonsfuar o
profundo respeito que elas têm com relação ao mundo que é manipulado pelos
homens, pois socialmente elas não coúecem (ou não devem conhecer) o
"contexto" do Aruanã. Elas devem ignorar, pois é segredo masculino, e ainda
assim se sentem na'bbrigação" de se engajar em um ritual no qual elas têm que
demonstrm ignorância. Perguntei a uma das moças (Raquel, Karajá de 15 anos)
que estava dançando o Aruanã o porque de sua particip ação: 'E bonito, eu gosto
de dançar e também é lei Karajá mulher dançar com Aruanã".

***{<*

Com estes exemplos acredito ter deixado claro que na sociedade Karajá
realmente existem diferenças sexuais que permeam grande parte da üda social.
Como procurei mostraÍ, dentro dessa divisão sexual o "valor" vai estar sempre
relacionado às atiüdades e produtos masculinos, o que nos leva a crer que na
sociedade Karajá há uma hierarqúa tanto no sentido de gradação inferior
25
(mulher)/superior (homem), quanto no senüdo do homem estar englobando a
mulher, sendo o representante da sociedade Karajá e, conseqüentemente das
mulheres, englobando-as inferiormente no mundo social "deles". Por aqú já
começamos a perceber a construção da mulher. Podemos notar que ela é
construída socialmente enquanto um elemento da sociedade Karajá, no entanto
não como o elemento principal, que a sua importância do ponto de ústa
econômico e ritual é eüdente, embora a sua atuação não seja objeto de
reconhecimento social, prestígio ou valor.
Passaremos agora à aniíLlise de como estas diferenças que caÍacterizam os
papéis sociais vêm interferir na socialização/construção dos homens e,
principalmente, as mulheres, e como estas diferenciações são reproduádas de
geração a geração.

26
l
Capítulo Dois: Algumas CaructerísÍicas da Socialização Karuiá

Nesta parte do trabalho procurarei mostr de que forma os homens e as


mulheres sãoiocialmente construídos na sociedade Karajá. Tentarei perceber isto
a partir das leituras que esta sociedâde faz da função biológica, social e cultural
dá mdher, ou sejã, da maternidade enquanto condição "exclusivamente
feminina,'. Esclareçamos alguns pontos. Sabemos que a maternidade não é apenas
um fato biológico e que, antes, o que interessa a antropologia são as leituras ou
interpretações que as cúturas fazem do fato biológico.
- "... Ot sàres humanos vivemos no mundo da cultura, onde os Íatos não são
senão representações e onde o embasamento de toda a realidade é a
teoria, a cosmologia, a visão de mundo, teriam ainda qualquet dificuldade
em entender o corpo, intuindo os processos que o afetam, não é mais do
que um texto a ser Preenchido de sentido a partir da perspectiva cultural
ã, u*o sociedade, de um grupo dentro dela, de uma categoria social '
homens, mulheres, iovens, velhos, etc ' ou até das pessocts particulares;
mas que o corpo Per se rnda diz, fora destas leituras, fora destcs tradições
cultuVais cujas magnitudes vão, em verdade, da história universal da
filogênese até a história de vida individual. O corpo, então, se transforma
em texto e seus dtributos anatômicos em significantes, na passagem da
natureza a cultura" (Segato, 1993:3)
Algumas etapas da vida dos homens e das mulheres são decisivas para a
formação do indiüduo enquanto ser social, obüamente, estas etapas também são
decisivas na construção dos sexos sociais. Neste sentido, os rituais de iniciação
são momentos priülegiados para a antálise. Antes destes, os meninos e as
meninas Karajá não são ústos como seres sociais completos. Entendemos, então,
que é nesta fase da üda que a sociedade 'molda" os indiúduos segundo suas
expectativas.

2.1- A Socialização: a infância, a adolescência, a iniciação

Entre os Karajá, meninos e meninas até seis anos de idade são classificados
na mesma categoria de idade, ou seja, até esta idade a "cútura' Karujâ náo faz
diferenciações segundo o sexo e meninos e meninas levam uma úda bastante
parecida. Após os seis anos, o menino é levado a se tornar mais independente em
relação a mãe, sendo âos poucos retirado do conüúo constante cam ela e com
outras mulheres. Vi várias vezes grupos de meninos de 6 a l0 anos organizando
suas próprias pescarias, embreúando-se no mato atrás de frutas, brincando de
*Aruanã" ou se aventurando em pequenas caçadas. Neste momento de suas üdas
o mundo masculino passa a ter uÍna maior significação, e os meninos procuram
seguir a rotina dos homens da aldera, aprendendo-lhes os trejeitos e
comportamentos que caracterizam o 'homem Karaja'.

27
As meninas com a mesma idade são levadas a cúdar dos irmãos menores
,"""u rà""a" ã. .*rl i".uto--e de Lurdinha me cont que quando ..u p"qo"rá
nunca podia sair de casa; passava os dias ao lado da mãe, aprendendo as técnicas
artesanais. Segundo ela, um dos poucos momentos fora do lar era na escola, sob
os olhos atentos dos professores adventistas. Terminada a aula tiúa que ir direto
para casa Hoje, em função dos processos de mudanças üüdos pela sociedade
Karujâ, inclusive com o advento do contato interétrico, esta situação é mais
amena.
A múher Karajá é mais resistente que o homem à mudança, pois desde
inÍância é preservada do contato com estranhos. A menina Karajâ não goza de
múta liberdade, afastando-se menos que o menino do círcúo farniliar. Depois
que chega à pulberdade, há um acréscimo da ügilância que sobre ela exerçem os
paÍentes. Obsêrvamos em Fontoura que as meninas freqüentam bem menos as
casas e arredores do posto que os garotos, e quando o faziarn, dificilmente ünham
sós, mas sempre apareciam em grupo ou pelo menos em número de duas. Quase
todos os meninos acima de 6 anos de idade falam um pouco de português e os de
8 jâ o fanam com múta facilidade. O contrário ocorria com as moças e meninas
que geralmente compreendem o português mas não querem expressar-se em tâl
língua, o que chega a causar-lhes vergonha. Isto está relacionado a uma
expectativa da coletiüdade Karajá, confoÍme nos foi possível inferir pela
observação da conduta das jovens e múheres, e ainda através de informações dos
outros componentes do grupo: as mulheres são percebidas enquanto mantatedoras
da tradição, logo, devem manter-se o mais próximo possivel do que é original e
essencialmente Karaj á.
E no processo de socialização que há a formação 'lnconsciente" do
que é culturalmente esperado. As experiências masculinas e femininas desde a
primeira infância vêm a determinar a própria concepçâo Karajá de masculinidade
ou feminilidade, ou seja, o ideal de masculinidade e feminilidade. E este'1deal" é
atingido através do treino dos papéis sociais e das características inconscientes
ligadas a um ou outro sexo, que são passadas de geração a geração.
"De acordo com a teoria psicanalítica, a persoralidade é o resultado das
experiências de relação social de meninos e meninas desde a primeira
infância. O desenvolvimento da personalidade não é o resultada das
propósitos coltscientes dos pais. A natureza e a qualidnde das relações
sociais que a criança vivencia são particularizadas, interiorizadas e
organizadas por ele/ela e vem a construir a personalidade dele/dela"
(Chodorow,l973:67).
As mulheres Karajá são bastante úgiadas. Ao ir ao mato defecar, se
casadas, o marido deve acompanhá-las se não, deve ir com um grupo de mulheres
ou com a mãe. Com os homens o mesmo não se dá. Havia uma série de outras
sifuações em que as mulheres eram ügiadas ou "colocadas" em casa. Por
exemplo, uma moça não podia sair de casa nunca, deüa ficar sempre sob os olhos
maternos e jamais deveria olhar diretamente para um homem ou conversar com
ele. Hoje em dia esta situação também foi atenuada, mas irs moças ainda não
podem ser tocadas por homem algum, com exceção do pai e dos irmãos.
28
Chodorow propõe que a personalidade da múher se definir em relação e
conexão com outra pessoa, mais do que a personalidade do homem, tomando as
mulheres menos indiüdu alizadas, se comparadas ao homem. A explicação da
autora é que, a mulher cresce mantendo um contato permaneflte e assíduo com a
mãe e com outras mulheres, e nas sociedades onde a regra é a uxorilocalidade, a
mulher nunca chega a se distanciar da mãe. Assim no aprendizado de ser múher,
nâo há rupturas, mas continüdade. A menina e a moça acompanham os papéis da
mulheres, na sua sociedade, através da observação direta. Enquanto os homens,
através dos longos processos de iniciação, recebem um aprendizado formal, e de
certo modo impessoal, do que é o mundo masculino. Com isto a autora propõem
que a "cultura", ou as cúfuras, percebem a múher como ganhando naturalmente a
sua feminilidade; enquanto o homem, é percebido enquanto conquistando a sua
masculinidade. O que foi proposto pela autora se levado em conta para analisar o
caso Karajá, pode explicar, ao menos parcialmente, qual a ideologia implícita que
trata a mulher como hierarquicamente inferior ao homem.
Um outro ponto importante paÍa a Chodorow é o fato de a identidade de
gênero de um menino precisar surgir para substituir sua identificação primríria
com a mãe; o que não acontece com a menina, que tem que se separar da mãe
bem mais tarde. No caso Karajá, uma mulher mesmo depois de casada, não se
separa da mâe deüdo à regra de residência matrilocal. Sendo o pai uma figura
relativamente mais distante que a mãe - o pai raramente desempeúa um papel
maior na ciação, mesmo neste período da vida de seu filho -, mútas vezes ele é
inacessível ao seu filho e desempenha suas atiüdades masculinas longe de onde o
filho üve grande parte de sua üda. A identificação de gênero do menino, então,
freqüentemente se toÍta uma identificação "posicional", com os aspectos do papel
mascúino de seu pai claramente ou não tâo claramente definidos, ao invés de
uma identificação pessoal - como se daria com a identidade de gênero feminino,
onde vai haver uma continúdade na percepção dos valores e traços
comportamentais da mãe na fi1ha.
Em campo observei que os meninos Karajá são levados a se individualizar
com relação à mãe e outras mulheres paxa, a partir daí buscarem, através do
conúúo com outros meninos (ou seja, com membros do mesmo sexo), a sua
mascúinidade. Já as meninas, deüdo ao ambiente que vão freqüentar a üda
inteira - tendo inclusive poucas oportunidades de sair dele -, vão aprendendo a ser
mães e responsáveis pelo andaÍnento da üda familiar. Desde muito pequenas as
meninas são quase que mini mulheres, presenciando o mundo adulto de perto e
üvenciando a úda adulta feminina mesmo antes de alcançárla.
Embora os Karajá não digam isto, pode ser que esta idéia da .conqústa da
masculinidade" para os homens e do "ganho da feminilidade', para as mulheres
esteja por trás do que vem a determinar que a üda política, os grandes rituais,
enfim, a vida pública seja indicada para o homem. Talyez na percepção dos
Karajâ, o afastamento do lar "prepare" os homens parla a rirda pública. para se
tomar "rapaz" um menino tem que passm pelo Hetoho§. Hetohos é o ritual de
iniciação mascúino, altamente elaborado. Então, tomar-s e Íapaz na sociedade

29
Karajá é um feito, é orgulho para todo o grupo. lâ para a menin4 tomaÍ-se moça
não requer múta elaboraçâo, é quase como se isto se desse naturalmente.
O Hetoho§ vem a colocar o menino na üda adulta, elaborando bastante
esta passagem, paÍa que fique clmo socialmente o quanto tomaÍ-se homem é um
dado cultural/socialmente importante. A iniciação feminina parece reforçar que a
transformação de menina para moça, não é um dado cultural/socialmente
importante.
"Um menino, em sua tentativa de obter uma identificação masculina
ilusória, frequentemente define em termos amplamente negatiyos,
repelindo tudo o que é feminino ou, relacionado às mulheres. Há para isso
um aspecto intema e extemo. Intemamente, o menino tentd rejeit.ll sud
mãe e negar sua ligação com ela e a íorte dependência que ainda sente.
Ele também tenta negar a profunda identificação pessoal com ela
desenvolvidn durante a infincia. Faz isso repriminda tudo que seja
feminino dentro dele, e principalmente denegrindo e desyalorizando tudo o
que ele considera ser feminino no mundo externo" (Chodorow,l979:72).
Nesta citação, podemos identificar quatro componentes que surgem com a
obtenção da identidade de gênero do menino. Primeiro, a masculinidade se torna e
permanece uma questão problemática para o menino, pois ele se identifiça com
um papel masculino idealizado por ele mesmo (que pode ser diferente do papel
masculino idealizado pela sociedade), uma vez que a realidade não lhe permitiu
que houvesse uma influência contínua do pai. Segundo, sua identificação envolve
a negação do únculo ou do relacionaÍnento que mantinha até então com a mãe e,
por extensão com as mulheres, isto porquê a dependência ou necessidade de ouho
- no caso a mãe- leva o menino a discriminar este 'butro" como forma de
negação do úncúo/dependência. Terceiro, envolve a repressão e desvalorização
da feminilidade tanto no nível psicológico quanto cultural. Por último, a
identificação com seu pai não se desenvolve num contexto de relacionamento
afetivo sati sfatório.
Mas destes, o que acho mais explicativo, para o caso Karajá é o terceiro,
que vem a explicar as dinâmicas psicológicas da desvalorização social e cultural,
e da inferiorização hierarqúca feminina. Durante o Hetoho§ há um momento
em que as mulheres são insütadas:
"Os acontecimentos sucediam-se com rapidez. Depois da música, os wabe
uni chegaram até as esteiras dos meninos. Seguravam [homens] nas mãos
pedaços de pau e canos de borracha, que representdvam o pênis.
Encenando o phalus, os homens inyestiam contra as mulheres. os meninos
iniciantes e seus acompanhantes. Os wabe uni que se conta entrc os
aõniaõni da água, encenado pelos homens, insultavam a vagina" (Lima
Filho:1994.95) e "Eram mais ou menos 15 horas quando os primeiros
homens chegaram à Casa de Aruanã e encenayam o hurukuku. Insultayam
as mulheres. inferiorizando-lhes as vasinas " (Lima Filho,I994:89). (grifo
meu)
Nestas citações percebemos que em dois momentos distintos do Hetoho§
as mulheres são insútadas. Então percebemos que esta socialização pela qual o
30
menino passa, tem por objeüvo afirmar o únculo que estes passam a ter com o
mundo masculino, e já nesta entrada oficial para o mundo mascúino, os meninos
compactuam com os homens na inferiorização das múheres. Esta poderia ser
mais uma indicação da leitura que a sociedade Karajá tem das mulheres, para
hierarquizá-las numa gradação inferior aos homens.

2.2- A Mulher enquanto mãe e sua ascendência no mundo familiar


Na sociedade Karajâ, as mulheres gastam a maior parte do seu tempo com
as crianças pequenas. E dificil ver uma mãe que tenha filhos pequenos sem estes
no colo e se isto acontece é porque as avós ou tias da criança estão cuidando dela.
A qualquer momento uma mulher tira o peito para amaÍnentar seus filhos
pequenos, basta que eles manifestem vontade. O peito da mulher assim como o
seu colo sâo "propriedades" das crianças, o corpo da mulher/mãe, entâo, vai estar
totalmente voltado paÍa outro ser, o filho, e não para ele próprio.
As mulheres têm uma forte ligação com seus filhos, deles nunca se
separando. O papel da mulher na educação dos filhos é essencial. A mãe é
paúicularmente que inculca as norÍnas aprovadas pela sociedade, durante os anos
mais importantes para o condicionamento da conduta, já que os filhos ficam
sempre com ela ao separar-se um casal; e como as separações podem ser
frequentes, a ciança fica até 12 anos sujeita à influência materna e a partir desla
idade o menino entra paÍa a Casa dos Homens, onde começa seu aprendizado
forrnal. Entretanto, ainda durante os anos seguintes poderá dormir na casa da mãe
e nesta passar o tempo que qúser. Casa-se 4 a 6 anos depois e então muda-se para
a casa ou mesmo a aldeia da noiva (quando esta é de outro grupo local). Como o
homem é que deve adaptar-se a um novo ambiente, a jovem Karajá tem mais
segurança üvendo num ambiente conhecido onde é rodeada pela parentela. Com
as meninas a separação da mãe não se dá tão cedo. Na sua iniciação é a mãe a
principal figura envolúda, e depois desta, há uma continúdade no relacionamento
mãe/frlha, mesmo depois do casamento.
Podemos notar pelos dados acima que a mulher tem uma posição bastante
e
forte no que tange a família a üda doméstica" que sugere uma o
complementariedade entre os sexos.
As mulheres, devido a matemidade, são absorvidas pelas atiüdades ligadas
a esta função biológica. Ao que tudo indica, a fisiologia da mulher vem a colocá-
la como a responsável pela geração e cúdado dos filhos (ao menos durante a
gestação, amamentação e primeiros anos de üda). Uma mulher Karajá tem em
média de quatro a seis filhos. Com isto, grande parte de sua üda é dedicada à
criação deles.
Assim, ao que tudo indica, a maternidade enquanto condição
exclusivamente feminina - pelo próprio corpo da múher - permite ao homem um
"aproveitamento" desta situaçâo, uma vez que, enquanto a múher está envolüda
com a graüdez, amarÍteÍúação e socialização das crianças, os homens se
encontraÍn lirres, podendo construir uma üda indiüdual. E mQsÍno com a
couvade, pois os homens passam por um pequeno periodo de restições e, logo
\. 31
após este período, volta para suas atiüdades normais, ou seja, para a üda pública.
Ao contráLr:io da múher que após ter um filho passa a se dedicar assiduamente a
ele. Esta paÍece sff uma característica das mais importantes na consideração de
um status inferior da mulher ou de sua posição enquanto hierarqúcamente
inferior em relação ao homem. Pois enquanto os homens vâo estar construindo os
mais altos valores culturais (inclusive os mitos que explicam o porquê de os
homens terem o domínio do mundo social), como algo permanente e duradouro,
que hanscende às próprias condições indiüduais, as mulheres vão estar
produzindo seres perecíveis, ou seja, os seres humanos. Os homens tambem
constróem seres humanos através da cultura, ou seja, constróem homens através
do processo de iniciação. Mas ao nível da criação, no sentido de cúdado, são as
mulheres, segundo a percepção Karajá, as responsáveis pela reprodução da
"üda".
Segundo Chodorow (1973), os rituais de importância só são acessiveis às
mulheres quando estas já estão idosas e livres das responsabilidades de criação
dos filhos e da sexualidade. Apenas neste momento de sua üda individual elas
podem usufruir do respeito adündo com a autoridade da velhice. No caso Karajá,
a velhice pode trazer alguma autoridade mas esta não vem a permitir que as
mulheres possam participar dos rituais dos homens. Alguns rituais na sociedade
Karajá são definidos como masculinos e, a menos que se nasça homem, jamais se
poderá participar de um deles. Mas a velhice, ou o esgotamento das funções
reprodutivas femininas, permite à mulher adquirir um respeito muito grande no
que tange ao "conhecimento". Os velhos (tanto homens quanto mulheres) têm
grande valor para os Karajá, na medida em que são os grandes conhecedores dos
mitos, das regras sociais, enfim, da tradiçâo Karajá. Assim, percebemos que ao
fim das frrnções reprodutivas inerentes a cada sexo, homens e mulheres atingem
quase que uma igualdade de status, uma vez que a velhice para o homem também
sigrrifica 'lnaúüdade social" - eles pouco participam dos rituais e neste momento
de suas üdas é o genÍo quem sustenta economicamente o grupo familiar. Esta
igualdade também é percebida em se tratando de crianças com menos de seis
anos: segundo a concepçâo de tempo pendular, onde não há fim nem começo mas
um "etemo retorno", um repetir sempre, os velhos e as crianças se
corresponderiam em termos energéticos @odrigues,l993).

***

Destes dados podemos montaÍ uma relação para esclarecer alguns pontos.
Se as crianças e os velhos se correspondem em termos energéticos e, se até os seis
anos de idade as crianças são indiferenciadas, podemos pensar que os velhos,
mesmo com o prestígio que tem na sociedade Karajá, não são tidos como seres
exatamente sociais, pois conforme o mito, o social ou a üda em sociedade é
condicionada pela diüsão sexual. Então, a mulher e o homem a partir dos 6 e até
os 35 anos de idade são o centro das atenções, sejam quando estâo sendo
socializados, sejam quando estão socializando outras crianças. E neste ínterim que
devemos nos centrar para pensar a construção da mulher.
32
No processo de socialização os meninos são levados a se indiüdualizar da
mãe e das mulheres, para poderem entrar no "mundo masculino" e, isto eles
fazem reprimindo e negando todo o únculo com as múheres e tudo o que é tido
como feminino neles, então, a forma como a múher é construída no imaginário
masculino é negativa, ou seja: o que é feminino não pode ser valorizado por um
homem,/menino, mas negado e inferiorizado. Ao conhário a menina é levada a
reforçar seus laços com o mundo feminino, valorizando a forma como no universo
social Karajá elas estão inseridas. Sendo a matemidade uma condiçâo
exclusivamente feminina, a "cútura" Karajá passa às mãos das múheres toda a
responsabilidade pela criaçâo e socialização dos filhos. A mãe é a pessoa que
inculca as noÍnas sociais, pelo menos durante certo periodo da vida dos homens e
durante toda a üda das mulheres, assim sendo, de certa forma, são as mulheres as
que mais colaboram paÍa que na sociedade Karajá elas ocupem a posiçâo que
ocupam.
As mulheres Karajá são construídas socialmente enquanto mâes; enquanto
as que cüdam e que reproduzem a vida. Comparando o modo como aidiferenças
entre os sexos são "dramatizadas" na sociedade Karajá, percebemos que os
elementos são construções sociais, originalmente irrelevantes aos fatos biológicos
do sexo", assim, o fato de as mulheres serem construídas para serem mâes, não
significa a mãe biologicamente, mas antes a mãe determinada socialmente, dentro
de uma realidade cultural específica. A maternidade Karajá pode ser percebida
enquanto relacional, ou seja, a mãe e construída em relação ao filho, que em
sendo homem nega as características da mâe/mulher, ou em sendo mulher
apreende as caracterísúcas da mãe, enquanto mulher. Desta forma podemos
inferir que as múheres são construídas mantendo uma forte relação com outras
mulheres e com os filhos, o que a toma menos indiüduali zada quie o homem.
Passarei agoÍa ptra a anâise de outros momentos em que percebemos a
mulher como ocupante do ambiente doméstico. Tentarei mostrar evidências de
que este é realmente o seu /oczs principal paa, a partir daí, analisarmos as
conseqüências da ocupação deste espaço social pela mulheres.

e
Digo isto parafraseando MargaÍet Mead em "Sexo e Temperamento".
33
. Capítulo Três: o pírblico eo privado

Neste capíhrlo examinarei como os ambientes público e privado se


encontraÍn dirigidos paÍa um e outro sexo na sociedade Karajá. A paúir dai
teltarei perceber as conseqüências da ocupação destes espaços sociais pelos
homens e, principalmente, pelas múheres.
Essa abordagem público/privado (baseada nas formulações de
Rosaldo,l979) me permite compreender algumas características gerais dos papéis
sexuais, me permite ainda identificar o lugar do homem e o da mulher nos
aspectos culturais: em termos econômicos, políticos e rituais da üda Karajá.
Desde o princípio, tenho procurado mostÍar que na sociedade Karajá o
espaço privado ou doméstico é feminino, enquanto o público é masculino.
Encontramos esta assertiva em outros trabalhos sobre os Karajá. Lima Filho
afirma que "Se as mulheres se expõem no espaço doméstico, os homens
conduzem as principais atividades econômicas de subsistêncía como fazer as
roças, organizar pescarias, caçadas, vendem peçcr de artesanato e se ocupam do
poder político da aldeia" (,ima Fi1ho,1994:123). Já aqui percebemos que as
atiüdades econômicas do homem sâo desenvolüdas, em sua maioria, fora do lar.
Para os Karajá espaço público é todo aquele que extrapola a "casa", e
privado todo aquele ligado diretamente à família - por exemplo: a roça, dista da
aldeia, no entanto por ser espaço familiar é üsto como espaço privado/domesüco
-, usarei o mesmo critério para deÍinir os espaços público e privado dos Karajá.
As atiüdades econômicas femininas se dão, em sua maioria na própria casa
familiar ou nos arredores desta. A coleta é feita nos arredores da aldeia e a
atiüdade à qual as mulheres mais se dedicam, o artesanato, é confeccionado
dentro de casa. Todas as tarefas referentes ao confoÍo da família estâo ligadas à
mulher. É ela quem coziúa e cuida dos filhos e do marido, tarefas que ,ê.* ,
aproximá-la da "casa".
Durante o período de campo, tive a oportunidade de perceber que a maior
parte do tempo as mulheres estavam em suas casas, enquanto os homens, se nâo
estavaÍn em pescarias, caçadas, üajando ou,em expedições de coleta, estavam na
Casa de Aruanã ou Casa dos Homens. E ali onde acontecem as principais
discussões da üda pública, onde se realizam e discutem os rituais, onde se fala
dos mortos. E ali, enÍim, o lugar público da aldeia, que sintomaticamente é dos
homens e ao qual se proíbe qualquer aproximação das mulheres. Como afirma
Lima Filho (1993) nos rituais os homens são os principais condutores de
atiüdades. O mesmo não se dá no ambiente doméstico, onde as principais
condutoras são as múheres.
Nos perguntamos o sentido de nesta sociedade, o espaço doméstico ser
primordialmente feminino. Rosaldo explica que:
"Essa identificaçdo da mulher com o ambiente privado/doméstico pode
estar ligada ao papel de criar os filhos. As mulheres são absorvidas
principalmente em atividades domésticas devido ao seu papel de mde.
Suas atividades econômicas e políticas são restingidas pelas

34
responsabilidades nos cuidados com os filhos e o enfoque de suas emoções
é particularista e dirigido para os filhas e o lar" @osaldo,1973:40).
Acredito que esta explicação se aplica ao caso Karajá, uma vez qne a
mulher Karajá está envolüda grande parte de sua üda na criação dos filhos, como
mostramos no capínrlo anterior.
A graüdez é um fato biológico universal. No entanto, o que nos interessa
para compreender o porquê de serem as mulheres as grandes responsáveis pelos
filhos é a interpretação ou leitura que os Karajá fazem deste fato biológico. Os
Karajá vêem a criança como fruto da participação (através do ato sexual) do
homem e da müher. Acreditam que é necessário várias cópulas para a formação
do feto. Como me aÍrmou Mariqúúa "um Waritxoré é feito com múto kabalho
(risadinha); uma veizinha só não adianta, precisa de múto". Entendem a criança
como "pertencendo" à mãe (tanto menina quanto menino). '?ertencer" aqui está
no sentido de uma maior responsabilidade para com. Mas os filhos também
pertencem 30 pai; pois, pela regra de descendência patrilinear, os filhos são ou
pertencem at linhagem patema.
Ter filhos paÍa os Karajâ, é algo múto desejado. Isto se deve ao fato de
que, tanto para o homem quanto para a múher, ter filhos significa maturidade e
somente depois de tê-los é que se pode mudar o nome. Entre os Karajá a regra de
nominação se processa da seguinte forma. Quando uma criança está prestes a
nascer, um dos avós ou então um tio ou uma tia da criança prepara uma série de
nomes pessoais, um para cada sexo, para o caso de nascer menina ou menino.
Com o nascimento - seja menina ou menino - os pais adotam tecnonímia, sendo, a
partir de então, chamados "pai do (a) X" e "mãe do (a) X". Mútas vezes eles sâo
mais conhecidos por esta denominação de tecnonímica do que por seus nomes
pessoais originais e a morte da criança não modifica em nada a nova
denominação. A partir do contato interétnico mútas pessoas passararn a ter três
nomes: o primeiro nome, o nome adquirido ahavés do primeiro filho e um
terceiro nome em "tori". Atualmente os Karajá vêm usando cada vez mais os
nomes de "tori" mais comuns na região. Isto se deve ao fato de que com o
conúüo constante com o mundo dos brancos e, consequentemente, com o
preconceito vivenciado pelo grupo, os Karajá sentem a necessidade de se
aproximarem mais do que seja um "padrão ciülizado" e urna des formas
encontrada foi através do uso de nomes dos regionais.
Se num primeiro momento os filhos pertencem a mãe, num segundo
momento só a menina vai pertencer, pois o menino, ao casaÍ, vai embora da casa
materna- A menina, ao contriírio, nunca sai do lado da mãe e a "casa" vai
passando damãe para a (s) filha (s) com a evolução do grupo doméstico. Por aqú
já percebemos que a "casa" é sempre da mulher (filha/mãe ou herança da filha).
Deüdo à própria ótica dos nossos trabalhos, Lima Filho (1994) e eu vemos de
forma diferente a evolução do grupo doméstico, embora uma visão nâo exclua a
outra. Na minha percepção, a casa é o lugar da mulher. Logo com a evoluçâo do
grupo doméstico, as filhas vão estar substituindo a mâe. Esta idéia que uso me foi
passada por uma Karajá, que me disse que a casa é sempre da múher, uma vez

35
que em havendo a separação de um casal, o homem é quem é substituído na casa,
e não a mulher. Já para Lima Filho, é o genro quem vai estar substituindo o sogro:
"Não quero, contudo, esquecer que a regra de uxorilocalidade favorece a
sucessdo do genro no lugar do sogro..., tal como Maybury'Lewis
(1994,143-148) fez com os Xavante, como um homem, devido à regra de
descendência uxorilocal, vai gradativamente deixando de ser um intruso
no cesa da mde de sua esposa e na idnde madura incorpora o papel de
chefe residencial, antes ocupado pelo pai de sua esposa. Esta observação
também se aplica aos Karajá" (Lima Filho,1994:133) //"Este fato tabez
queira dizer que as mulheres não se projetam na substituição da mãe,
porque a mãe, ao conffário do pai, aumenta a sua influência com a
velhice. Ela é o centro do grupo doméstico. Sua experiência e sua
habilidade oral mantêm as famílias das rthas unidas a ela" (Lima
Filho,1994:134).
O primeiro ato da mãe, após o nascimento do filho, é amamentá-lo
(alimento). Assim, as mulheres também podem ser percebidas enquaÍrto as que
"alimentam" tanto os filhos quanto a familia de um modo geral. O ato de
alimentar paÍa os Karajá é um momento "privado", pois só se come dentro de
casâ ou da Casa de Aruanã (somente os homens) - a não ser pequenos peüscos,
como frutas, côcos, castanhas e raízes que colhem no pé e comem ali mesmo.
Assim, o lugar da alimentação é a casa e como as mulheres podem estar
associadas à alimentação, de certo modo elas também estão relacionadas com a
casa.
Um outro âspecto que vem a reforçar o lugar social de homens e mulheres
são os rituais de iniciação. No Hetoho§, a pardcipação das mrúheres está
relacionada com os bastidores da festa (principalmente a mãe e as irmãs do
iniciando). "O grande tema do Hetohobl) é sem dúvida o jogo dos sexos. A
oposição e a complementariedade entre hnmens e mulheres compõem o grande
pano de fundo de toda a dramatização ritual" (LimaFilho,l994:l2l). Os homens
são os principais condutores e atores, o espetáculo é deles. Se pudéssemos montar
a oposição público /privado dentro deste contexto ritual, o "espetácúo" seria
público, enquanto os bastidores seriam o espaço privado, não esquecendo de levar
em conta que o espaço da casa de Aruanã é público mas somente para os homens,
o que não vem a anulá-lo enquanto espaço público.
Par.a a realização do Hetoho§ é necessário o envolümento das familias,
da comunidade e de todas as aldeias Karajá. Quando há Hetoho§, todas as
famílias que têm meninos iniciandos se envolvem, todos os homens da aldeia
participam. De um certo modo, toda a comunidade é envolüda, -uma vez que
todos vão oferecer alimentos, ajudar na confecção da indumentária e, com
certeza, vão assistir aos grandes atos do Hetoho§. A aldeia que patrocina a festa
recebe a visita de todas as outras aldeias Karajá.
A iniciação feminina se dá quando a menina fica menstruada pela primeira
vez. Quando isto acontece, a menina deve ficar em casa, num "quarto"
especialmente construído pma ela, onde nenhuma pessoa pode vê-la exceto a mãe.
Ela só come ao meio dia e à noite e só sai de dentro da casa pâra fazer as
JO
necessidades e tomar banho, e mesmo assim à noite e acompanhada pela mãe.
Quando termina o período de sangramento, toda a família é chamada para uma
festa; para esta, a menina deve estar deüdamente ornamentada. A comida é peixe.
Forma-se uma roda com toda a parentela e no meio desta a menina deve ficar.
Uma tia (não consegú identificar se irmã do pai ou irmã da mãe) coloca um
pouco de peixe na boca da menina e, terminada esta festa, termina-se a iniciação.
Comparando as iniciações feminina e masculina, podemos perceber que, enquanto
a masculina envolve a familiq a comunidade e as aldeias, a feminina envolve
apenas os parentes residentes na mesma aldeia. Enquanto a iniciação masculina
tem uma duração média de 3 a 6 meses, a feminina não dura mais que uma
semana. Então, os rituais masculinos, opostos aos femininos, distanciam os
homens por múto mais tempo do ambiente doméstico e do conüüo com as
múheres, enquanto a menina não se distancia do mundo doméstico em momento
algum e se distancia mais ainda do ambiente público. A conseqüência disto,
segundo Rosaldo é que:
"Tais rituais reforçam a distáncia entre os homens e suas famílias; par.t o
indivíduo proporcionam uma bateira parLt se tomarem envolvidos num
mundo de exigência e intimidade. A distáncia permite ao homem
manipular seu ambiente social, se colocar a parte da interaçdo íntima e,
portanto, controlá-la como desejam. Porque os homens podem ser
separados, eles podem ser "sagrados"; e para evitar certos tipos de
envol.vimento íntimo e espontâneo podem desemtolver uma imagem e um
manto de integridade e valor" (Rosaldo,1973:44). Coisa que jamais se
dará com as mulheres no mundo Karajá.
Assim, todos os rituais masculinos são públicos (Hetohokj,/Aruanã), o que
dá a impressão de que todos os rituais são masculinos. O que se percebe é que em
todos os momentos da úda Karajá, a construçâo da mulher se dirige paÍa o espaço
privado. No casamento, por exemplo, podemos perceber mais uma vez a
ocupação destes espaços.
O casamento dos Karajá se processa da seguinte forma. A mãe da moça vai
até a casa do moço e conversa com a mâe deste. Caso as famílias concordem com
a união, organiza-se o casamento. As famílias e os noivos se pintam. Na noite do
casamento, a "noiva" e o "noivo" devem dormir juntos, mas segundo Dinah "não
podem fazer nada". Na manhã seguinte, bem cedo, o moço é levado pelo tio, avô,
pai, enfim, por algum parente para pescar. O moço não pesca, apenas olha os
parentes pescando. A moça fica em casa sendo enfeitada pelas parentes. Quando o
"noivo" está chegando, a tia leva a moça até o porto e de 1á "noivo" e "noiva" vão
para a casa da mâe da "noiva". O noivo deve ser carregado por um tio no ombro.
Na porta da casa há uma esteira em pé e dois bancos de madeira postos
paralelamente um ao lado do outro. O unoivo' se senta em um e a "noiva" no
outro. Neste momento os rostos deles são limpos com algodão e água. Depois
disto, os dois passam a moraÍ na casa da mãe da "noiva" e são considerados
casados pela comunidade. O peixe que foi pescado é levado paxa a casa de algum
parente próximo e ali acontece uma festa entre os paÍentes do novo casal e a
comunidade. Desta festa os noivos não podem participar.
37
. Então, podemos perceber que no casamento a múher fica em casa, vai no
miiximo até o porto; enquanto o homem é quem sai, se embrenhando inclusive
pelo rio. Aregra de residência faz com que a mulher permaneça em casa, e que o
homem saia da casa materna. A moça é acompaÍhada pela tia (parente feminino)
e o moço pelo tio (não tenho dados que afirmem ser ele matrilateral ou
patrilateral), pai, avô (parente masculino), dando para perceber que mulher
interage com mulher e homem com homem.
Pelo exposto, poderíamos pensar que as múheres não estando em
momento algum na úda pública, não detêm qualquer poder. Pelo contriírio, do
ambiente doméstico elas conseguem manipular decisões segundo seus interesses.
Quando estava entre os Karajá de Aruanã, um turista queria comprar a canoa de
Raul, porém este não a vendeu até que obtivesse a aprovação da esposa. Em
Fontowa, estávamos realizando trocas com os Karajá (roupas por artesanato) e
em sua maioria eram os homens quem trocavam conosco. O interessante é que
geralmente eles escolhiam as roupas femininas. Quando perguntei o porquê, eles
me responderam que suas múheres thes pediam isto e que era importante que eles
atendessem aos pedidos da esposa.
"As mulheres dominam a oratória no espctço doméstico. IsÍo impressionou
os primeiros viajantes e etnógrafos do Araguaia. Balús chegou a afirmar
que entre os Karajá as mulheres mandayam e os hometu obedeciam
(Balúu,1960: 147). O fato causa impressão porque num primeiro
momento as mulheres são mais reservadas. Os homens são os
interlocutores. Mas no dia a dia da aldeia há uma inversão completa desta
situação. É muito comum os homens discutirem suas açõàs com as
mulheres, ou as consultarem antes de tomarem alguma decisão política
....5e as mulheres não participam diretamente nas reuniões da Casa de
Aruanã, por outro lado elas estabelecem um tipo de participação afetiva
viabilizada junto aos seus, no espaço familiar, pela eficácia da oratória" .
(Lima Filho, 1 9 93 :229 -23 0)

38
I
Capítulo Quafio: Os Karajás por eles mesmos: os Aruanãs e os Aõni

Neste capítulo tentarei perceber quais são as leituras e as associações que a


crilaxaKarajâ faz das mulheres para diferenciá-las dos homens. Faço isto levando
em conta que as diferenciações dos sexos sociais extrapola a biologia e o gênero
nada mais é do que uma construção simbólica, local e mutável. Tentarei perceber
qual é a lógica subjacente ao pensamento cultuÍal Karajá que assume consciente e
inconscientemente a inferioridade feminina no mundo social.
Ortner propõe que esta diferenciação entre os sexos e a sobreposição de
um pelo outro pode ser explicada através das categorias rraturÍeza e cultura.
Segundo a autora, até mesmo as sociedades primitivas - junto às quai s foi-se
questionado se nâo intuem nenhuma diferença entre o estado cultural humano e o
estado da natnÍeza -, percebem distintamente as atuâções desta categorias. Para
ela, a eústência dos ritos é prova de que esta diferenciação é percebida.
" Contudo eu sustentalia que a universalidade do rito exprime uma

afirmação entre todas as culturas, a respeito da habilidade específica


humana de agir sobre ela e de regulá-la, ao invés de passivamente mover-
se com, e ser movida pelos affiqubs da existência rwtural. No ritual, na
manipulação de formas atribiitivas com o fim de regular e manter a
ordem, cada cultura afirma (ue a relação adequada entre a existência
humana e as forças da natureza depende da utiluação dos poderes
especiais da cultura para regular, os processos do mundo e da vida"
(Orhrer, 1 973 : 1 00- 1 01 ).
Entre os Karajrá" os rituais possuem sigrrificaSes importantes. Sua
finalidade é manter um relacionamento adequado com os seres sobrenaturais e
trazer à tona as concepções cosmológicas do grupo (o rito pondo em moümento o
mito). Não há entre os Karajá quaisquer elementos que afirmem ou sustentem a
afirmação de Orhrer de que o rito é uma culturação da natureza
Poderíamos, então, questionar se os Karajá realmente fazem uma
diferenciação enhe a rraÍ;.rÍeza e a cultura tal como propõe Ormer (1979), ou seja,
uma "cultura" e uma "natureza" partindo da concepção ocidentalizada dos
mesmos. Lima Filho percebe qre "Parece que os Karajá estabelecem um nível de
igualdade entre homew e animais, e, uma vez mortos, uns e outros se
transformam em "almas". Desta forma, muitos são os animais que vão chegando
aos poucos para aíesta" Qima Filho,l994:55). Patncia M. Rodrigues (1993) ao
falar sobre os Javaé, um dos grupos de língua Karajá, diz que ao relatiüzar a
categoria de "natureza" pareceu-lhe que esta não existia. Outro ponto importante
paÍa este questionamento é que, no Hetoho§, os Worjisji (categoria generalizada
onde se incluem todos os mortos) só se individualizam através dos animais. E um
terceiro elemento é que para uma pessoa se tornar um hàri (xamâ), um Aruanâ
(peixe) tem que apareceÍ de uma forma "especial" para esta pessoa. Segundo
Adjurema, "Os Aruanã fica tudo debaixo da ágru;a, mas em algum pode ter aruanâ
pra hélrr. Que nem uma pessoa que entra no peixe. Aí sim, este é Aruanâ para
hàri".

39
Orbrer acredita que as mulheres são associadas com alguma coisa que cada
cultura determina como sendo de uma ordem inferior a si própria. Concebe que a
cultura (universalmente falando) recoúece e mantém, implicitamente, uma
distinção entre a atuação da nabxeza e a atuaçâo da cultura, e mais, que a
diferença entre ambas reside no fato do poder da cultura transcender as condições
naturais e transformálas segundo os seus propósitos. Então, postula que "as
mulheres são identificadas ou simbolicamente associadas com a notureza, em
oposição aos homens que sdo identificados com a cultura" (Ortner, 1973:101).
As mulheres seriaÍn então, intermediárias entre a natureza e a cultura; logo, em
relação aos homens, que seriam por excelência os ocupantes do espaço da cultura,
estariam mais próúmas à natweza.
A explicação para tal formulaçâo surge a partir das funções de homens e
mulheres ao nivel biológico. "O corpo feminino parece condená-la à mera
reprodução da vida; o homem, em contraste, não tendo funções naturais de
a
criação, desenyolve (ou tem oportunidade de basear) sua criatividade
extentamente, "artificialmente", por meios de símbolos e tecnologia"
(Orner,1973:104).
Esse poshrlado de Ortner se encaixa em uma corrente essencialista que
circula nos meios acadêmicos. Esta corrente pÍesume ou parte do princípio de que
a categoria "mulher" refere-se a uma condição essencial dada pela natureza, ou
então, tornada uma segunda na'nrÍeza em ürtude da pritrca da dominação
masculina. Esta percepção leva a uma "naturalízação" da mulher e a uma
"culturação" do homem. Segundo Soares:
"Sejam as mulheres entendidas como pertencendo a rwtureza ou como
intermedianda os dois campos, é bastante claro que: 1) o modelo
explicativo usado para entender as diferenças entre homens e
mulheres tem sido a dicotomia essencialista natureza/cultura, 2) as
concepções a respeito das relações entre homens e mulheres são
rcpiques metafóricos da estrutura de relacionnmento entle a cultura e
a natureza, e 3) esta estrutura pressupõe uma relação de
subordinação, dentro do qual o campo da cultura subordiyn o campo
da natureza" (Soares, I 992: 8-9).
Então, as formulações de Ortner só têm aplicabilidade (se é que as tem) em
sociedades onde os conceitos de natureza e cultura tem um significado marcante.
Além do que nesta percepção, o homem também é naturalizado, mas através de
uma inversão. O homem é naturalizado como sendo naturalmente cultura, como
sendo naturalmente dotado para exercer a cultura.
Nota-se que, com estas formulações, a autora pressupõe que.a humanidade
como um todo tem uma única forma de perceber as diferenças entre os sexos, com
o que eu, decididamente não concordo. Fazendo uso de uma percepção
essencialista, parte do princípio de que em todas as sociedades humanas a
categoria "múher" tem o mesmo significado e, como questionamos, os Karajá
não percebem a diferenciaçâo homem/mulher através da oposição
natureza./cultura. Eriãa, vejamos de que forma os Kmajá elaboram esta diferença
enüe os sexos sociais.
. Tentarei perceber a concepção de múher e das relações entre os sexos na
sociedade Karajá através dos mitos e das associações que o grupo faz entre os
Aõni e os Aruanã. Farei isto tendo como base as formulações de Rodrigues
(1993) e Lima Filho (no prelo). Uülizo-me destes autores basicamente; isto se
deve ao fato de que suas explicações são acerca do mesmo grupo sobre o qual
desenvolvo este trabalho e, principalmente, por perceber que suas formulações
partem das categorias nativas para pensarem o gênero e, finalmente, por seus
trabalhos de campo terem sido múto maior que o meu (eles passaram em média 7
meses e eu apenas um) o que com certeza possibilitou a ambos uma percepção
mais precisa do pensamento social Karajá.
Trarei agora um nttg{que pode nos esclarecer a üsão que os Karajá tem
das mulheres:
"Trata-se da história de uma moça, chamada Hatolnbà, que era filha de
Halà(k)oàni. uma mulher que tinha unhas muiÍo grandes. Hàlõkoàni
criava sua filha ainda pequena dentro de um balaio...Quando criança
Hatohobà era saudável, bonita e também tinha a unha grande, como a stta
mãe, que precisava. sempre ser cortada. Um dia, porém, o leite de sua mãe
acabou. A criança f.oi então entregue a uma mãe de criação. Hotohabà era
alimentada com calogi (iwenú). Ela falava para a mde de criação: "se
mamãe (flglQko!:n!) vier aqui, ela come tudo" . Certo dia Halõkoàni
apareceu e fcou olhando o calogi, com o qual a filha era alimentada pela
mãe de criação. Halõkoàni bebeu todo o calugi. Afilha, Hatohobà. pediu a
mãe que lhe desse de mamar, pois ela estava com fome. A mãe disse que
não, pois ela queria beber o calogi. Enquanto bebia, outros chegaram e a
mataram. Enquanto isso, Hatohobà olhava e dizia: - "pode matar, mamãe
não é gente não, é aõni". A rtha cresceu e rilou uma bela moça, cuias
unhas também precisavam ser constantemente aparadas"
(Rodrigues,1993:288)
Neste mito coletado por Rodrigues, as mulheres estão (segundo a üsão
Karajá) relacionadas aos aôni (não humanidade) por nâo "conseguirem" conffolaÍ
seus instintos, como a fome e o sexo. Essas leituras que se faz das mulheres são
facilmente percepüveis se levarmos em consideração o acervo mitológico Karajá,
onde as mulheres apaÍecem como as responsáveis pelas "desgraças" do mtmdo,
graças ao seu egoísmo e egocentrismo (ver mitos capihrlo 2). Segundo a visão
mítica, as múheres são menos humanas que os homens, deüdo aos seus atos anti-
sociais, em que os seus desejos individuais vâo ter preponderância sobre a ordem
coletiva. Os homens seriam as útimas natwais e explicam através do mito o fato
de concentrarem poderes em suas mãos, caso contráT :io, não haveria sociedade e
sim um universo totalmente caótico.
"Os mitos, então, íalam todos de uma perspectiva masculina, ou seja, a
perspectira daqueles que " tomaram o poder" e produziram a tsersão
oficial da história. E como se os homens estivessem contando às novas
gerações o porquê de serem eles agora os controladores da vida social:
eles foram agredidos pelas mulheres no pcssado e, Para continuar

41
. vivendo, têm de controlá-las, pois elas são intrinsicamente imorais e
perigos as " (Rodrigues, I 993 :286).
Durante o Hetoho§, os homens são os que vão preparar a came de alguma
caça, o que é cotidianamente, tarefa das mulheres (múher/alimento/preparo do
alimento). Aqú poderíamos pensar em duas hipóteses: primeiro que eles fazem
esta atiüdade para eütar uma "contaminação", ou então que nesta fase do ritual
haveria uma inversão dos papéis sexuais, ocupando os homens, neste momento,
uma posição feminina.
Eu sustentaria as duas possibilidades. Isto por que, segundo Rodrigues, os
Javaé/Karajâ acreditam que as pessoas adqúrem uma quartidade limitada de
energia útal, que é perdida com o correÍ dos anos, cada vez que substâncias
corporais, como o sangue, o espeÍma e o leite matemo saem do próprio corpo- O
sangue, assim como estas outras substâncias, é veículo de energia ütal e é üda,
desde que contidos no corpo em que foram originados. Fora do corpo eles são
altamente poluentes. " Através dn noção de "cheiro" (ver Seeger,l981:92-105),
os Javaé entendem que o sangue tem propriedades de contaminação e poluição
que transcendem a sua realidade material e visível. Alguém pode ser
contaminado pelo sangue, mesmo sem ter entrado em contato fuico com o
líquido" @odrigues,1993:49). Jit segundo Lima Filho "... o Jyre (iniciando no
Hetohobjt) representa exatamente essa passagem de um mundo feminino para um
devir masculino, ffazendo consigo signos de ambcu as esfercn. (Lima Filho, no
prelo:ll). Por aqui já começamos a "reconstruir" o mundo tal qual os Karajá o
formulam.
A percepção de mundo Karajá é que este está diüdido em três níveis
cosmológicos, a saber o mundo do fundo das águas (berúatixi mãhadu), o mundo
da superficie (ohana obira) e o mundo do céu (biu múâdu). Segundo Rodrigues,
os JavaélKarajá seriam o povo do meio, ou seja, sua eústência em sociedade se
dá no ohana obira. "As etnografias mostram que os Karajá saíram do fundo das
águas, habitaram o mundo de fora, se espalharam Araguaia acima e Araguaia a
baixo e, depois, alguns foram para o mundo do céu onde vivem muitos dos
heróis transformadores " (Lima Filho, no prelo:8).
Pelo que me disseram os Karajás, os xamãs ou hàri são "intermediários"
entre o mundo humano e a vasta população sobrenafural. Os hàri manipulam
preferencialmente a morte e sendo os hàri, em sua maioria, associados aos
homens, e ainda, sendo todos os homens Karajá potencialmente hàri, sugerimos
que o mundo do hàri e por extensão o dos homens é o biu múãdu (mundo do
céu). Vale ressaltar que há mulheres hári, mais suas potencialidades enquanto tal
não é admitida pelos homens e, elas mesmas não se assumem -enquanto tal,
embora pratiquem a cura, o que também caracterizam os hàri.
"Umfeiticeiro em suds viagens, conyersa com a pele velha dos Xamãs que
moram no céu ou com heróis transformadores, dos quais aprendem os
remédios e os feitiços. Somente os Xamds, já em avançado processo de
aprendizado, ejá adultos podem receber ou conversar cort a pele velha de
outros xamãs " (Rodrigues,l 993 : 148).

42
De acordo com Rodrigues, quando os Karajás úüam no mundo das águas
não haüa distinção entre os sexos e a reprodução se dava 'tnagicamente". Ao
saírem, os Karajá passam a conhecer a morte e a doença, e a relação de conflito
entre os homens e as mulheres pÍrssou a existir como condição de continüdade da
úda. A saída estabeleceu o que é feminino e masculino e assim se deu a
instauração da üda em sociedade. A partir daí a autora faz wa correlação do
ideal mascúino com os Aruanãs e do feminino com a existência de seres
perigosos e anti-sociais, os Aõni. Os Aõni seriam, para Lima Filho
"... seres cósmicos perigosos, representam o caos do moyimento, o
canibalismo e possuem uma língua diferenciada da língua social. Os
Aruanã - representados por dois dançarinos homens que possuem
máscaras idênticas, tamanhos simétricos e yozes harmoniosas entre si e
que dançam em um caminho específico entre espaço dos homens (espaço
ritual) e as residêncicrs taorilocais, perfazendo um movimento repetido de
vai e volta - foram interpretado pela autora (se refere a Rodrigues) cozo
uma yolta ao tempo mítico do íundo das águas. Ideal masculino que era
autônomo, isto é, sem a necessidade da mulher enquanto um outro" (Lima
Filho, no prelo:8-9).
'Os Aõni são, enfim, caracterizadas como agitados
movimentando-se sem um padrão definido, impulsivos, exÚemamente
ativos e diJíceis de controlar, ao contrário dos Aruanã, cuja performance é
sempre feita com moyimento mais lentos e ritmados repetidos e
controlados, contidos e acompanhados de musicas bonitas e inteligíveis,
contras tando com os grunhidos ininteligíveis dos Aõni. Apenns o poder
mágico dos xamãs e suas varinhas mágicas, auxiliadas pelos Antanãs,
pode controlá-los e impedir que fujam ou que realmente cryancem sobre os
Aruanãs, o que representaria o caos " (Rodrigues,l993:354-355).
Esta citação sugere que as mulheres sendo equiparadas aos Aõni são
representações dos humanos originais (primeiros seres da superficie, e nâo do
mundo das águas), imorais e perigosos. Assim sendo, os homens (Aruanã) são as
útimas das mulheres (Aõni) que originalmente possuem tendências anti-sociais,
por isso é que eles necessitam de poder político (üda pública) para controlá-las e
evitar que elas destruam a sociedade.
Como ümos, todos os Karajas saíram do mundo das águas, onde até então
nâo haüa sociedade/ordem e üúam anarqúcamente. Lima Filho (1995) sugere
que há uma ligação entre o mundo das águas e as mulheres:
"Assim eu poderia dizer que a volta ao mundo das águas após a morte, é
uma volta ao mundo das mulheres, da harmonia pedeita, do espaço
rcstrito, volta do útero, com a atuência da morte e da doença. A subida,
por sua yez seria, a constituiçdo de um espaço masculino de Xamanismo
poderoso, do mundo lüorj;s|; a que só os homens tem acesso" (Lima Filho,
no prelo:14).
Então, percebemos que a mulher passa a ser o "outro" e a feminilidade
associada aos Aõni. Os homens permanecem enquanto o "eu", o social, o que
controla, e por isso estão associados ao Aruanã. Mas vale ressaltaÍ que a mulher
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enquanto "outro" e o homem enquanto ..eu,, só passaram a eústir no nível
t:rre.sqel o qy9 leva a pensar que em outros níveis ambos os sexos estejam em
1os
nível de igualdade.
Concluo, então, com uma formúação de Lima Filho que me parece
explicativa do que foi exposto até agora:
"Então, a existência idealizada, mítica de um espaço cósmico masculino é
o resultado de uma posição hierárquica anterior, à yoro, das mulheres. A
s-ubida rompeu uma exclusividade mítica do círculi
feminirc, instaurou a
lei e a subida ao mundo de cima, constituiu o círcílo mascurino. Assim,
quando os Karajá dizem que ao molrerem voltam para o mundo de baixo
e llSyns (xamã) para a aldeia do céu, estão querendo mostar a§
trajetórics circulares do feminino e do mcrscuriio" (Lima Filho, no
prelo:14).

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CONCLUSÃO.

Montando um esquema de eqúvalências peÍceberíamos que:


mulheres homens
vida
ivado
imobilidade mobilidade
relacionada aos aõni relacionados ao Aruanã
fano
mundo da águas mundo da superficie/ mundo do céu

As mulheres se relacionmiam a üda, uma vez que são elas (na ótica
Karajá) que reproduzem a üda tanto fisíca, através da maternidade, quanto social,
através da socialização; e os homens estariam relacionados à morte, uma vez que
esta é tratada e manipulada primordialmente por eles.
Na sociedade Karajá as mulheres são construídas socialmente enquanto
mães e o mais próximo possível da família. Isto as leva a uma úda mais privada
que pública, o que não \rem a esgotar sua autoridade e poder, uma vez que do
espaço privado elas conseguem manipular a üda pública. Ao contrário os homens
manipulam a üda públic4 no próprio espaço público, sendo este o seu locus de
atuação social. Embora às múheres seja possível manipúar a üda pública, este
ramo de atiüdade não está relacionado a elas, pois sua autoridade nâo está
legitimada socialmente, e seu poder é üsto como manipulativo.
A mobilidade dos homens consiste na possibilidade de circulação por
amplos espaços (casa familiar, Casa de Aruanã, aldeia, Araguaia, cidades
próximas e distantes), enquanto a mulher seu espaço de atuação, em termos de
distância do lar é bastante restrito (casa familiar, roça, coleta próúma à aldeia).
No nível simbólico as mulheres são associadas aos Aõni, seres anti-sociais
e controlados pelos Aruanãs, que estariam associados aos homens e a ordem.
Antes da instauraçâo da sociedade não h3üa distinção entre homens e mulheres,
,,' na verdade não eústia nem homens litem mrlhãres. Com a instauração da
sociedade surgem os sexos e a distinçãci entre eles. As mulheres pÍrsszim a ser a
anti-ordem, em oposição ao seu mundo de origem, o mundo das águas, de onde
todos saíram e paÍa onde todos retomarão, exceto os hàri (mas estes não chegam a
ser propri amente humanos).
Estando o homem com o controle da üda social através da manipulação
dos símbolos Karajá nos rituais, no xamanismo e na morte; os homens estão
manipulando o mundo do sagrado, isto se toma eüdente uma vez que os homens
estão relacionados aos Aruanâ, seres superiores. Ao contrário, as mulheres estâo
relacionadas aos aõni, seres anü-sociais e, por definição dos próprios Karajá,
mundanos e profanos.
As mulheres, então, são construídas socialmente através destas associaçôes
que a própria sociedade Karajá elabora, ou seja, as múheres são construídas

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socialmente enquanto mães, com espaços restritos de atuação, com uma vida mais
mundana e privada, sendo associada a anti-sociedade através dos aôni.
Então, concluo que socialmente as mulheres estão hierarqücamente
inferiores aos homens, por serem controladas por eles. Mas esta inferiorização só
se úí no mundo da superficie (üãà em sociedade) esgotado este tempo, como
prevê a percepção de "tempo" Karajâ, voltaria o equilíbrio entre os sexos, ou
melhor, a distinção entre os sexos deixaria de exisír. Mas tudo retornaria
novamente, uma vez que a percepção de tempo Karajá se baseia no sempre
retorno e re-início (repetição do início e não um novo início) do "processo".

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