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Outras vezes, quando nao dangévamos, conversivamos em. equenos grupos, sentados nos compridos sofas forrados de verde encostados ao longo da parede. Havia um leve rumor de amores adolescentes. Era como 0 rumor da brisa. Pois era 0 princfpio da vida e nada ainda nos tinha acontecido. Ainda nada era grave, trdgico, nu e sangrento, E a noite Id fora, com os seus perfumes misturados, com os seus murmtirios e siléncios e as suas sombras e brilhos, parecia 0 rosto de uma promessa. Mas néio creio que ninguém, ali, nesse tempo, pensasse realmente no futuro. 6 talvez. dois ou trés, cuja vida, mais tarde, to eficiente © bem administrada, teve sempre um ar de coisa previamente fabricada. Mas s6 esses. Os outros todos nao faziam nenhum célculo sobre o futuro. Para eles o presente era um prazo ilimitado de disponibilidade, suspensio e escolha. Nao calculavam o futuro — apenas, vagamente, o esperavam. E to vagamente que muitas vezes era como se esperassem no o futuro, mas sim o pasado. Pois ali se falava muito no passado. Constantemente nas conversas se contavam histérias das geracdes anteriores, histérias dum tempo em que o existir era mais definido e mais visivel, um tempo em que os sentimentos se tomavam actos e os destinos se cumpriam inteiramente. As vezes, de repente, no fundo dos espelhos havia um brilho que era o brilho de uma hora antiga. E entio era como se as antigas noites de Agosto e as abolidas tardes de Setembro pudessem, como D. Sebastio, voltar. Nas avenidas, nas tflias, nas varandas, no barulho dos passos sobre as ruas de saibro e areia, fazendo rolar as pequenas pedras soltas, no mar, igual a um bizio repetindo o ressoar de passados temporais, ¢ até no cho, nas mesas, nas cadeiras, parecia estar suspensa a espera dum regresso. EA medida que a noite ia avangando, & medida que quase toda a gente ia saindo, a medida que se ia fazendo tarde, a espera ia-se tornando quase consciente, quase visivel. Dit-se-ia que o tempo perdido ia surgir e ser tocado. ‘As pessoas iam-se embora, as salas iam ficando vazias ¢ assavam no ar interrogagao ¢ siléncio, como se qualquer coisa, qualquer coisa obscuramente desejada ¢ prometida, nao tivesse acontecido. Os misicos guardavam os instrumentos fechavam 0 piano. Escuros e magros, desciam as escadas do paleo e depois desapareciam, suponho que por um algapo, pois nunca os vi sair por nenhuma porta. Ou talvez se dilufssem no ar. Ou talvez fossem deuses da Pérsia e viessem de noite num tapete mégico, para contemplarem, disfargados de miisicos, 0 fim da sensibilidade do Ocidente. Porque a espera, a espera das coisas fantésticas, visiveis reais, a espera das coisas destinadas, prometidas, pressentidas, ia- se tomnando quase lucidamente alucinada. Encostado & ombreira de uma porta, um homem solitétio, alto € magro como uma érvore no Inverno, tirou o rel6gio do bolso € viu as horas. Depois guardou o rel6gio depressa como se tivesse vergonha do tempo. Estvamos & espera. E j6 éramos poucos e apagava-se a luz da sala de baile, 0

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