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Capitulo 6 Centros, reis e carisma: reflexdes sobre 0 simbolismo do poder Introdugao Como tantas outras idéias-chave na sociologia webe- riana, verstehen, legitimidade, ascetismo do mundo inter- no, racionalizacao, 0 conceito de carisma nao € explicito com relagao ao seu referente: 0 que denota, afinal? um fendémeno cultural ou um fendmeno psicolégico? Como 0 carisma ora € definido como “uma certa qualidade” que destaca um individuo, colocando-o em uma relagio privi- legiada com as origens do ser, e ora considerado um poder hipnotico que “certas personalidades” parecem possuir € que Ihes torna capazes de provocar paixdes ¢ dominar mentes, nao é possivel saber ao certo se ele é um status, um estimulo ou uma fusdo ambigua dos dois. A tentativa de escrever uma sociologia da cultura ¢ uma psicologia social em um tinico conjunto de frases € 0 que dé a obra de Weber sua complexidade orquestral ¢ sua profun- didade harménica. Mas é, também, o que dé origem a sua intan- gibilidade crénica, sobretudo para ouvidos pouco acostumados A polifonia. Em Weber, um exemplo classico de sua propria catego- ria, a comple contrabalangada por sua habilidade extraordin: ter unidas idéias conflitantes. Em tempos mais recentes € menos herdicos, no entanto, a tendéncia tem sido ade aliviar © peso que seu pensamento carrega, reduzindo-o a apenas uma de suas dimensées, mais comumente a psicoldgica. Em nenhum outro caso isso é tao verdadeiro como no conceito lade € bem administrada, e a indefinic ia em man- 182 de carisma.' Desde John Lindsay até Mick. Jagger, muita gente a foi chamada de carismatica, devido a sua capacidade de atrair um determinado nimero de pessoas com o brilho de sua personalidade: ¢ a interpretagao mais comum que se da a0 aparecimento — este um pouco mais genuino — de lideres carismaticos nos Estados Novos, € que esses seriam um produto da psicopatologia que a desordem social alimenta.? No psicologismo generalizado desta era, ta0 bem observado Por Phillip Rieff, 0 estudo da autoridade pessoal se estreita Para transformar-se em uma investigagao do exibicionismo ¢ da neurose coletiva; seu aspecto espiritual desaparece de vista’ Alguns estudiosos, ¢ entre estes Edward Shils é um dos mais proeminentes, procuraram evitar essa reducdo da va- liosa complexidade weberiana a clichés neofreudianos, ao admitir que existem temas mUltiplos no conceito weberiano de carisma, que quase todos eles foram afirmados mas nao desenvolvidos, ¢ que, para preservar a forca do conceito é preciso elabora-los ¢ descobrir qual é, precisamente, a dina- mica de sua interagao. Entre a falta de clareza que resulta quando se tenta dizer muita coisa a0 mesmo tempo, ¢ a banalidade que € fruto de um reptidio do desconhecido, existe a possibilidade de tentar definir a razio pela qual uma excelente revisio geral dessa questio, veja a introdu renstadt para sua coletinea dos trabalhos de Weber sobre carisma, Max Weber pn charisma and institution building, Chicago, 1968, p. ixlvi. Sobre a “psico. [oeizacio” da lepitimidade, veja U, Pickin, Wittgenstein and justice, Berkeley ¢ ps Angeles, 1972; sobre “ascetismo do mundo interno”, veja D. MeClelland, The achieving society, Princeton, 1961; sobre “racionalizacio", A. Mitzaman, The iron cage, Nova lorque, 1970. Toda essa ambigiidade ¢ até confusio, nas Imterpretagoes, cabe-nos dizer, niio deixam de ter alguma justificativa, devide 40s préprios erros de Weber, 2 Tara alguns exemplos, veja “Philosophers and kings: studies in leadership", Daedalus, verdo, 1968, 3. B Rieff, The triumph of the therapeutic, Nova torque, 1966. 183 alguns seres humanos véem transcendéncia em outros, € exatamente o que significa esta transcendéncia. No caso de Shils, as dimensées do carisma previamente negligenciadas s4o retomadas quando ele focaliza a conexao entre 0 valor simbélico de individuos € a relagao que estes mantém com os centros ativos da ordem social.’ Tais cen- tros, que “nao tém qualquer relagio com geometria ¢ muito pouco com geografia”, séo, em esséncia, locais onde se concentram atividades importantes; consistem em um pon- to ou pontos de uma sociedade, onde as idéias dominantes fundem-se com as instituigdes dominantes para dar lugar a uma arena onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos membros desta sociedade de uma maneira funda- mental. £ o envolvimento— mesmo quando este envolvimen- to € resultado de uma oposigao — com tais arenas € com os eventos ocasionais que nelas ocorrem, que confere 0 cari ma. O carismitico nao € necessariamente dono de algum atrativo especialmente popular, nem de alguma loucura inventiva; mas esta bem préximo ao centro das coisas. Esta proposi¢ao de que a origem do carisma relaciona-se a.um ponto central privilegiado tem uma série de implicag6es. A primeira delas é que figuras carismaticas podem surgir em qualquer parte da vida social — tanto na ciéncia ou na arte, como na religiao ou na politica -, desde que esta area esteja suficientemente em evidéncia, e, por esta razio, parega imprescindivel a sociedade. A segunda é que o carisma nao aparece apenas sob formas extravagantes ou em momentos passageiros, mas, ao contrario, é, ainda que inflamavel, um aspecto permanente da vida social, que, ocasionalmente, explode em chamas. Assim como nao existe um tinico sen- 4. B. Shils, “Charisma, Order, and Status”, American Sociological Review, abril, 1965; idem, “The Dispersion and Concentration of Charisma", in Independent Black Africa, org, WJ. Hanna, Nova lorque, 1964; idem, “Centre and Periphery”, in The Logic of Personal Knowledge: Essays Presented to Michael Polanyi, London, 1961. 184 timento moral, estético, ou cientifico, também nao ha uma unica forma de emogio carismatica; embora as paixdes, € muitas vezes paixdes distorcidas, sejam certamente parte integrante deste sentimento, essas variam radicalmente de uum caso para outro. No entanto, ndo é minha intencao Prosseguir aqui com esse tema, apesar de sua importincia Para uma teoria geral sobre 0 autoritarismo social, Meu objetivo € investigar uma nova luz que se acendeu com a abordagem de Shils: 0 contetido sagrado do poder do sobe- rano. O reconhecimento do simples fato de que governantes € deuses tém certas propriedades em comum é bastante antigo. “O desejo de um rei é profundamente espiritual”, escreveu um tedlogo politico do século XVII, que, alids, nao foi o primeiro a fazer tal afirmagao; “ele contém uma espécie de universalidade total.” © tema ja foi também objeto de Varios estudos: o livro extraordinario de Ernst Kantorowicz, The King’s Two Bodies — um debate magistral sobre o que o autor chamou de “teologia politica medieval” — esbocou as Vicissitudes do carisma de monarcas no mundo ocidental em um periodo de duzentos anos ¢ em uma meia diizia de paises, e, mais recentemente, houve uma pequena explosio de livros com uma certa sensibilidade para o que hoje tende @ ser chamado, de forma um tanto ou quanto vaga, de aspectos simbdlicos do poder.* No entanto, 0 contato entre ae 3. B, Kantorowiez, The king's two bodies: a study in medieval political theology, Princeton, 1957; RE. Giesey, The royal funeral ceremony in Renctissance France, Genebra, 1960; R. Strong, Splendor at court: Renaissance spetacle and ihe theater of power, Boston, 1973; M. Walzer, The Revolution of the Saints, Fambridge, Mass., 1965; M. Walzer, Regicide and Kevolution, Cambridge, Inglaterra, 1974; 8. Anglo, Spetacle, pageantry, and early Tudor policy, Oxford, 1969; DM. Bergeron, English civic pageantry, 1558-1642, London, 1971; FA Yates, The Valois Tapestries, London, 1959; E, Straub, Repraesentation Maiesta. us oder Churbayerische Freudenfeste, Munique, 1969; G-R. Kernodle, From art 40 theatre, Chicago, 1944. Para um livro popular recente sobre a presidéncia dos 185 esse trabalho essencialmente histérico © etnografico © os interesses analiticos da sociologia moderna é, no minimo, superficial; uma situacdo que o historiador de arte Panofsky, em outro contexto, comparou 4 de dois vizinhos que tém o direito de cagar na mesma 4rea, mas um deles é dono da espingarda e 0 outro de toda a municio. ‘As reformulacées de Shils, embora ainda em estagio inicial, ¢ algumas vezes apresentadas em um tom excessiva- mente apoditico, prometem ser de grande importancia na luta contra esta separacao tao pouco frutifera, principalmen- te porque clas nos estimulam a buscar a universalidade do desejo dos reis (ou presidentes, generais, fidbrers, e secreta- rios do partido) naquele mesmo lugar onde buscamos a dos deuses: isto é, nos ritos € nas imagens em que ela se exerce. Mais precisamente, se 0 carismaé sinal de envolvimento com 6s centros que dio vida a sociedade, € se tais centros sao fendmenos culturais ¢, portanto, historicamente construidos, a investigacao do simbolismo do poder ¢ a da natureza deste poder sao, na verdade, empreendimentos muito semelhantes. ‘A distincio que se faz levianamente entre a aparéncia externa deum governo, ¢ a propria substancia deste governo, torna-se, assim, menos aguda, ¢ até mesmo menos verdadeira; como acontece com a massa € a energia, o que importa é a maneira pela qual uma se transforma na outra. No centro politico de qualquer sociedade complexamen- te organizada (para reduzir, agora, 0 foco de nossa visao) sempre existem uma elite governante ¢ um conjunto de Estados Unidos sobre tema semelhante, veja M. Novak, Choosing our king, Nova lorque, 1974, Estudos antropol6gicos, especialmente aqueles cujo tema era Africa, vem sendo bastante sensiveis a esses assuntos,jé ha bastante tempo (como exemplo, cabe-nos mencionar, como obras essenciais: E.E chard, The divine kingship of the Shilluk of the Nitotic Sudan, Cambridge, Inglaterra, 1948, ¢ tanto Myth of the State, New Haven, 1946, de E, Cassires, ‘como Les rois thaumaturges, Paris, 1961, de M. Bloch ¢ também o préiprio Kantorowicz). A citagio no texto é de N. Ward, reproduzida no dicionario de inglés Oxford sob a palavra “numinous” [espiritual}. 186 formas simbélicas que expressam 0 fato de que ela realmente governa. Nao importa o grau de democracia com que essas elites foram escolhidas (normalmente nao muito alto) nem a extensao do conflito que existe entre seus membros (normal- mente bem mais profundo do que imaginam aqueles que nao sao parte da elite); elas justificam sua existéncia e administram suas ages em termos de um conjunto de estérias, ceriménias, insignias, formalidades © pertences que herdaram, ou, em situagécs mais revoluciondrias, inventaram. S40 esses simbolos — coroas € coroagées, limusines e conferéncias — que dao a0 centro a marca de centro e ao que nele acontece uma aura nao 86 de importéncia, mas, algo assim como se, de alguma estra- nha maneira, ele estivesse relacionado com a prépria forma em que 0 mundo foi construido. A seriedade da alta politica e a solenidade dos altos cultos sao resultados de impulsos que sao, na realidade, bem mais semelhantes do que parecem ser a primeira vista. a semelhanca € mais visivel (embora, como irei argu- mentar eventualmente, nao seja nem um pouco mais verda- deira) em monarquias tradicionais que em regimes politicos, pois, nestes tiltimos, disfarga-se melhor a tendéncia natural dos seres humanos para antropomorfizar 0 poder. A inten- sidade com que se focaliza a figura do reic o estabelecimento Sbvio de um culto, as vezes até mesmo de uma religiio, ao seu redor, tornam 0 carater simbélico da dominagao dema- siado palpavel e, portanto, impossivel de ser ignorado mes- mo por seguidores de Hobbes ou pelos utilitarianistas, A visibilidade € tanta, que acaba deixando a descoberto aquela verdade que todo 0 misticismo do cerimonial da corte deveria supostamente esconder ~ ou seja, que a majestade nao é inata, € sim construida. “Uma mulher nao é uma duquesa se esté a cem jardas de uma carruagem.” Chefes transformam-se em rajas, pela aparéncia estética de seu governo. Tudo isso surge com maior clareza que em qualquer outra situacio nas formas cerimoniais onde os reis tomam. 187 posse simbélica de seu dominio. Em particular, os cortejos reais (entre os quais, onde existem, a coroagio é apenas 0 primeiro) identificam 0 centro da sociedade ¢ confirmam sua conexao com coisas transcendentes ao demarcar um territério com os sinais rituais de dominagio. Quando reis viajam pelo campo, mostrando-se a seus stiditos, presencian- do quermesses, conferindo honras, intercambiando presen- tes, ou desafiando seus adversarios, estio marcando seu territério, como o fazem Lobos € tigres com seus odores, como se esse fosse quase uma parte fisica deles proprios. Como veremos, este processo pode ser executado através de estruturas de expresso © de crenga tio variadas como 0 protestantismo anglicano do século XVI, hinduismo java- nés do século IV, ou 0 islamismo marroquino do século XIX; mas, seja onde for que ele acontega, é irreversivel: a ocupa- cao real passa a ser vista como se a sua volta tivesse sido construido algo ainda mais poderoso que uma cerca divina. A Inglaterra de Elizabete Tudor: virtude e alegoria No dia 14 de janeiro de 1559, véspera de sua coroacio, Elizabete Tudor - “uma filha cujo nascimento foi uma des lusio para seu pai, ao destruir suas expectativas de sucessao, © que por isso tornou-se, indiretamente, a causa da morte prematura de sua mae; uma princesa ilegitima, cujo direito ao trono era, entretanto, quase tio valido quanto o de seu meio-irmao ¢ 0 de sua meia-irma; um pomo de discérdia durante 0 reinado de Mary Tudor; ¢ uma sobrevivente do alvorogo constante que faziam os emissérios imperiais espanhois em seus esforcos para que fosse assassinada” — desfilava em um enorme cortejo (havia mil cavalos, enquan- to ela, coberta de jéias € tecidos de ouro, ia sentada em sua liteira descoberta) pelas ruas da cidade de Londres. Enquan- to passava, um espetaculo didatico gigantesco se desdobrava a sua frente, ato apés ato, estabelecendo-a como soberana na paisagem moral daquela alegre capital que cinco anos 188 antes tinha feito o mesmo, ou tentado fazer 0 mesmo, pelo rei Felipe da Espanha.° [Comegando na Torre de Londres (onde apropriadamente comparou sua visio do dia com o €pisddio em que Deus liberta Daniel dos ledes) cla seguiu para a Rua Fenchurch, onde uma criancinha lhe ofereceu, em nome da cidade, dois presentes — linguas bentas para clogié-la © coragSes sinceros para servi-la. Na Rua Grace- church, deparou com um tableau vivant chamado “A unio das dinastias de Lancaster ¢ York.” Tinha 0 formato de um arco que ia de um lado ao outro da rua, ¢ este estava coberto de rosas vermelhas e brancas ¢ dividia-se em trés niveis. Na parte mais baixa, havia duas criangas, cercadas por uma rosa feita de rosas vermelhas, representando Henrique VII e sua esposa Elizabete; na parte central, duas outras criangas, representavam Henrique VIII ¢ sua esposa Ana Bolena; nesse nivel, uniam-se sobre as criangas © banco de rosas vermelhas que se originava no nivel superior —o dos Lancaster — eo de rosas brancas que desciam do nivel inferior — 0 dos York. No nivel superior, entre rosas vermelhas ¢ brancas, empoleira- va-se uma s6 crianga, representando a propria homenageada (¢ legitima) Elizabete. Em Cornhill, havia um outro arco, também com uma crianca representando a nova rainha, mas, neste caso, a crianga estava sentada em um trono levado por quatro homens da cidade, vestidos para representar as qua- 6. Hl virias deserig6es da procissao de Elizabeth em Londres (ou sua“entrada” em Londres) das quais a mais completa é a de Bergeron, English civic pageantry, P, 11-25. Veja tambem R. Withington, English pageantry, an bistorical ouiline, Yo. 1, Cambridge, Mass., 1918, p. 199-202; e Anglo, Spetacle, pageantry, p. 344-59. O texto citado é de Anglo, Spetacle, pageantry, p. 345. Acidade também estava resplandecente; "pelo caminho, todas as casas estavam ornamentadas, de cada lado da rua, havia barricadas de madeira nas quais se debeucavam merca- ddores ¢ artistas de todos os ramos, vestidos com longas capas negras e cobertos com capuzes de tecido vermetho e negro... com todos seus simbolos, bandeiras € estandartes" (citagio, em Bergeron, English ctue pageantry, p. 4, da descr io feita pelo embaixador de Veneza em Londres), Para a entrada de Mary ¢ Felipe, em 1554, ver Anglo, Spetacte, pageantry, p. 324-43, and Withington, English pageantry, p. 189, 189 tro virtudes — religido pura, amor dos stiditos, sabedoria € justica. As quatro virtudes, por sua vez, pisavam os quatro yicios a elas opostos — superstigao € ignorancia, rebeliao € insoléncia, loucura ¢ vangl6ria, adulacao € chantagem (tam- bém personificacios por citadinos fantasiados). E se acaso a iconografia fosse demasiado complexa, a crianga enderegava a rainha que ela representava versos admonit6rios, que deixavam bem clara sua mensagem: A verdadcira religiio suprimira a ignorancia e, com seus pesados pés, quebraré a cabeca da supersticio © amor aos stiditos destruira a rebelido e, zelando pelo principe, pisard sobre a insoléncia Ajustiga pode desfazer as linguas bajuladoras ¢ a chantagem Enquanto que a loucura ¢ a vangl6ria cederao suas mios & sabedoria ‘Assim por muito tempo permanecera 0 governo que no se de: vie do curso correto, que deixe o mal apodrecer, que pratique a sabedoria. ee Assim instruida, a rainha seguiu para Sopers-Lane, onde estavam no menos que oito criangas, distribuidas em tés niveis. Como anunciavam as pequenas tabuletas penduradas sobre suas cabecas, seu papel era representar as oito bem- aventurangas de Sao Mateus, as quais, segundo um poema recitado pelas criangas, tinham-se cristalizado no carater da rainha, gracas a0 sofrimento € aos perigos por ela yencidos em seu caminho até ao trono (“Fostes ito vezes abengoada/ 6 ilustre rainha /com a humildade de vosso espirito/ quando tantas dificuldades vos assediaram”)." Dali, seguiu para Cheapside, e, chegando ao Standard, deparou-se com os retratos de todos os reis € rainhas do passado, organizados 7. Citado em Bergeron, English civic pageantry, p. 17. Dizsse que a rainha respon deu: “Ouvi com cuidado os bons sentimentos que me sio dirigidos, ¢ tenta responder as yossas muitas expectativas” (id, p. 18) 8. Anglo, Spetacle, pageantry, p. 349 190 em ordem cronoldgica, até chegar a seu prdprio retrato, no Upper End recebeu dois mil marcos em ouro dos dignitarios da cidade (“Fiquem certos”, ela Ihes disse em agradecimen- to, “que para a seguranga ¢€ trangililidade de todos vocés, nao economizarei, ¢, se for necessdrio, gastarei meu proprio sangue”);’ e chegando ao Little Conduit, deparou-se com a mais estranha das imagens — duas montanhas artificiais, uma “ingreme, nua e cheia de pedras”, representando “o bem-es- tar comum em decadéncia”; outra, clara, fresca, verdejante, € bela, “representando “o bem-estar comum em prosperida- de.” Na montanha sem vegetacao, havia uma Gnica arvore morta, ¢ um homem mal vestido, obviamente desconsolado, sentado sob ela; na montanha verde, uma drvore cheia de flores, e, a seu lado, de pé, um homem bem vestido € obviamente feliz. Nos ramos dessas Arvores haviam pendu- rado tabuletas que continham uma lista das razées morais que levaram aos dois estigios de saiide politica: em uma arvore, a auséncia de temor a Deus, a bajulagio dos princi- pes, a falta de compaixao dos governantes, ¢ a ingratidao dos stiditos; na outra, um principe sabio, governantes cultos, stiditos obedientes, temor de Deus. Entre as montanhas havia uma pequena caverna, de onde saa um homem que representava 0 Tempo, vestido a cardter € com sua foice, Acompanhava-o sua filha, a Verdade, que presenteou a nha com uma Biblia Inglesa (“O ilustre rainha... as palavras sempre yoam, mas a escrita sempre permanece”) que Eliza- bete aceitou, ¢ a seguir beijou, elevou sobre sua cabeca e, dramaticamente, apertou contra s Apés um discurso em latim pronunciado por um estu- lante no cemitério da igreja de S40 Paulo, a rainha prosse- guiu para Flect Street, onde encontrou nada menos que 9. Bergeron, English civic pageantry, p. 15. 10. Acitacio encontra-se em Anglo, Spetacle, pageantry, p. 350. 191 Débora, “a juiza e restauradora da dinastia de Israel”, em um trono colocado em uma torre, sob a sombra de uma palmei- ra. Rodeavam-na seis pessoas, cada duas delas repre- sentando respectivamente a nobreza, 0 clérigo € 0 povo. A legenda inscrita na tabuleta a frente destas figuras dizia: “Débora com seus estados em consultas para o bom governo de Israel.” Tudo isso, escreve 0 criador da alegoria, tinha sido preparado para encorajar a rainha.a nao temer, “embora seja uma mulher; pois, com o espirito ¢ 0 poder do Deus Todo- Poderoso, mulheres governaram honradamente ¢ politica- mente, € durante muito tempo, como 0 fez Débora.”! Na Igreja de Saint Dunstan, outra crianga, esta do Hospital de Cristo, fez outro discurso. Finalmente, em Temple Bar dois gigantes ~ Gogmagog, o albiao [da Inglaterra] e Corineu, © bretao — levavam tabuletas onde versos faziam um sumério de todas as alegorias que tinham desfilado, ¢ ai terminava © cortejo. © mesmo cortejo vai, em 1565, para Coventry; em 1566 para Oxford; em 1572 a rainha faz uma longa viagem por todas as provincias, parando para “festas de méscaras € desfiles” em um grande ntimero de casas nobres, Ela “entra’ também em Wanwyck, no mesmo ano, € no ano seguinte vai a Sandwich, onde é recebida com dragoes dourados € lees, uma taca de ouro ¢ uma cépia do testamento grego. Em 1574, é a vez de Bristol (onde tem lugar uma batalha simu- lada na qual um pequeno forte chamado “Politicas frageis” € capturado por outro maior, chamado “Beleza perfeita’). Em 1575, visita 0 castelo do duque de Kenilworth, perto de Coventry, onde ha uma alegoria com Triton em uma sereia, Arion em um golfinho, a Dama do Lago, ¢ uma ninfa chama- da Zabeta que transforma seus amantes em arvores; ¢ mais tarde “entra” em Worcester, Em 1578, as rosas vermelhas € 11. Grafton, citado em fbid, p. 352. Sua previsio nao estava errada: Débora lizabete por quarenta € cinco. governou por guarenta anos, 192 brancas ¢ Débora reaparecem em Norwich, acompanhadas pela Castidade e pela Filosofia que pée Cupido em deban- dada. E clas continuam, “essas peregrinacées sem fim, que muitas vezes levavam seus ministeos ao desespero” — em 1591 vai a Sussex © Hampshire, em 1592 a Sudeley, ¢ uma vez mais a Oxford.” Em 1602, um ano antes de sua morte, haum Ultimo cortejo, em Harefield Place. O Tempo aparece, como naquele primeiro dia em Cheapside, mas desta feita com as asas aparadas ¢ uma ampulheta onde a areia nado se movia."* Seus cortejos reais, observa Strong sobre Elizabete ~ “os mais legendarios © bem-sucedidos de todos (seus) exponentes” ~ eram “os mcios através dos quais 0 culto da virgem imperial era sistematicamente promovido.’O caris- ma que © centro havia inventado (alias, de forma bastante deliberada) para ela, utilizando os simbolos populares da virtude, da fé, ¢ da autoridade, ela levava para o campo, com um talento para a arte de governar bem maior do que aquele de seus pragméticos ministros que a isto se opunbam, fazen- do de Londres nao s6 a capital da imaginacao politica brita- nica, mas também de seu governo. Essa imaginagdo era alegérica, protestante, diditica ¢ pictorica; alimentava-se de abstragdes morais transformadas €m emblemas. Elizabete era Castidade, Sabedoria, Paz, Bele- za Perfeita ¢ Religiao Pura, tanto quanto rainha (em uma 12. A citagio vem de Strong, Splendor at court, p. 84 13. Para as procissées de Elizabete fora de Londres, veja Bergero: Pageantry, p. 25s; e Withington, English pageantry, p, 204s English civic 14, Strong, Splendor at court, p, 84. Cortejos eram, é claro, um fendmeno comum em toda a Europa, O Imperador Carlos ¥, por exemplo, fez dez cortejos nos Palses Baixos, nove na Alemanha, sete na Itilia, quatro na Franca, dois na Inglaterra e dois na Africa, como ete mesmo lembrou a seu piblico quando abdicou (#bid,, p. 83). Nem eram unicamente um fendmeno do século XVI, Para os cortejos dos Tudor do século XV veja Anglo, Spetacte, pageantry, p. 21s: para 9s dos Stuarts, no século XVII, veja Bergeron, English civic pageautry, p. 65s, € Strong, Splendor at court, p. 213s. 193 propriedade de Hertford ela chegou a ser Seguranga no Mar); e, sendo rainha, ela era todas essas coisas. ‘Toda sua vida publica —ou, mais precisamente, a parte de sua vida que © publico via — foi transformada em uma espécie de mascara filosGfica na qual tudo representava alguma idéia ampla, € nada acontecia sem ser imediatamente associado a paribo- Jas. Até seu encontro com Anjou, provavelmente o homem com quem Elizabete chegou mais perto do casamento, tor- nou-se uma reflexio moral alegérica; ele chegou a sua presenga sentado em um rochedo, que foi levado até ela pelo Amor € pelo Destino, arrastando correntes douradas."’ Pou- co importa se chamamos a isso de romantismo ou de neo- platonismo: o que importa é que Elizabete governou um territério onde as crengas eram visiveis; e, entre essas, cla era apenas a mais visivel de todas O centro do centro, Elizabete nao sé aceitou essa meta- morfose de si mesma em uma idéia moral, como contribuiu para que isso acontecesse. E foi gracas a isso — a essa sua disposicao para ser representante, nao necessariamente de Deus, mas das virtudes que Ele ordenava, ¢ especialmente da versao protestante dessas virtudes — que seu carisma se ampliou. Foi a alegoria que Ihe deu uma aura magica, ¢ foi arepeticao da alegoria que manteve viva essa magica. “Como deve ter sido emocionante e importante para os espectado- res”, escreve Bergeron com referéncia ao presente de uma cépia da Biblia inglesa, entregue a Elizabete pela filha do ‘Tempo, “ver a Verdade em uma unio visivel com sua sobe- rana... Moralmente, a Verdade escolheu entre o bem ~ a montanha florida, o futuro, Elizabete — ¢ 0 mal—amontanha rida, 0 passado, falsas religides ¢ uma falsa rainha, Tal € 0 caminho da salvagio.”"* 15. Yates, The Valois Tapestries, p. 92. 16. Bergeron, English civic pageantry, p. 21. 194 A Java de Hayam Wuruk: esplendor e hierarquia Existem outros meios de relacionar a personalidade de um soberano com a de seu dominio, além daquele que 0 envolve em homilias ilustradas; assim como a imaginacao moral, a imaginagao politica também € varidvel, e nem todos 08 cortejos so como os dos puritanos ingleses. Nas culturas indicas da Indonésia classica, o mundo era um local um pouco menos improvavel, € o aparato real tinha um carater hierarquico € mistico em vez de religioso € didatico,"” Deu- ses, reis, nobres ¢ plebeus formavam uma corrente continua de status religioso que se estendia desde Siva-Buda ~ “o soberano dos soberanos do mundo... 6 espiritual dos espi rituais ... 0 inconcebivel dos inconcebiveis” até o mais hu- milde dos camponeses, que mal podia levantar seus olhos para a luz, ja que a relagao entre os niveis mais altos ¢ os mais baixos era a mesma que entre realidades mais e menos importantes." Se a Inglaterra de Elizabete era um turbilhao de paixdes idealizadas, a Java de Hayam Wuruk era um continuo de orgulho espiritualizado. “Camponeses reveren- ciam os chefes”, diz um texto clerical do século XIV, “os chefes reverenciam os senhores, os senhores reverenciam os ministros, os ministros reverenciam o rei, os reis reveren- ciam os sacerdotes, os sacerdotes reverenciam os deuses, 0s 17. Java foi hindu mais ou menos desele o século IV até o século XV, quando, pelo menos em nome, tornou-se iskimica, Bali permanece hindu até nossos dias. Muito do que se segue neste ensaio é baseado em meu proprio trabalho: veja ©. Geertz, Negara: The tbeatre state in ninetwenth-century Bali, Princeton, 1980. Para um estudo mais geral da Java hindu, veja NJ. Krom, HindoeJavaan: che Geschiedenis, segunda edigio (Haia, 1931] 18. T. Pigeaud, Java in the L4tb century: a study in cultural bistor 3 Gavanés); 3:3 (inglés). Na realidade a corrente continua descendo até ‘chegar aos animais ¢ deménios, 195 deuses reverenciam os poderes sagrados, ¢ os poderes sa- grados reverenciam o Nada Supremo.”” Mesmo neste cendrio tao pouco populista, o cortejo real era uma instituigio de peso, como pode-se deduzir pela leitura do texto politico mais importante de Java, um poema narrativo do século XIV o Negarakertagama, que no sé se baseia em um cortejo real, como também é parte dele.”” © principio basico da arte indonésia de governar — que a corte deve ser uma cépia fiel do cosmos € 0 reino uma cépia da corte, € 0 rei, liminarmente suspenso entre deuses € homens, a imagem mediadora de uns para os outros ~ pode ser representada de uma forma quase dia- gramatica. No centro ¢ apice, 0 rei; a seu redor ¢ a seus pés, 0 palicio; a0 redor do palicio, a capital, “confiavel ¢ submissa”; ao redor da capital, o reino, “indefeso, servil, condescendente, humilde”; ao redor do reino, “preparan- do-se para mostrar obediéncia” o resto do mundo ~ todos os elementos dispostos segundo os pontos cardeais, uma configuracao de circulos concéntricos que retrata nao sé a estrutura da sociedade mas também uma mandala poli- tica, a do universo como um todo: 19. Pbidl., 1:90 (avanés); 3:135 (inglés). Fiz algumas mudangas na traducio para formar o texto mais claro, Mesmo assim, "poderes sagrados" ¢ “o Nada Supremo’ (isto é, Siva-Buda) sao tradugdes pouco adequadas para conccitas religiosos bastante dificcis, um assunto que no podemos tratar com profundidade neste contexto, Para uma hierarquia ainda mais diferenciada, yeja o texto Nawanteiye, ibid, 3:119-28. 20. Ibid. {apesar do titulo, a obra é basicamente um texto, uma tradugdo € um comentirio do Negarakeriagama), Das 1.330 linhas do poema, nao menos que 570 sio dedicadas a descrigdes dos cortejos reais, ¢ a maior parte das linhas restantes so subordinadas as primeiras, Literalmente, “Negarakertagama” sig: nifica “manual para a ordenagio césmica do estado”, ¢ este € o seu verdadeiro tema © nao a historia do Majapahit, como freqtientemente se presume. Foi escrito em 1365 por um clérigo budista que residia na corte do rei Hayam Wuruk (que reinou de 1350 a 1389), 196 Acapital do reino em Majaphit é 0 Sol ¢ a Lua, sem nobres; Os dominios feudais com os bosques que as rodeiam séo auréolas em volta do sol ¢ da lua; As muitas outras cidades do reino... sao estrelas e planetas; Eas muitas outras ilhas do arquipélago so reinados de anel, estados dependentes, atraidos pela Presenga real.2! E essa estrutura, a profunda geometria do cosmos, que © poema celebra € na qual, parte como rito € parte como politica, cle se encaixa no cortejo real © poema se inicia com a glorificagio do rei. Este 6, simultaneamente, Siva em uma forma material — “O igual daquele que faz 0 dia", em cujo nascimento vulcdes entra- ram em erupgio © a terra tremeu —¢ um nobre vitorioso que conquistou toda a escuridao existente no mundo (“Extermi- nados estdo os inimigos... Recompensados os bons... Refor- mados os maus”).”” A seguir, descreve-se 0 paldcio: ao norte, as areas de recepgao; a leste, os templos religiosos; ao sul, 08 aposentos da familia; a oeste, os aposentos dos emprega- dos; no centro, “O Interior do Interior”, 0 pavilhio pessoal do rei. Depois, com 0 palacio ao centro, descreve-se 0 complexo que 0 cerca: leste, o clérigo xivaita; sul, 0 clérigo budista; oeste, os parentes do rei; norte, a praca publica. 21. Negarakertagama, canto 12, esteofe 6, Uma vez mais reconsteui o inglés de Pigeaud, desta vez com mais cuidado, para melhor expressar 0 que considera ser o sentido do trecho. Sobre 0 conceito de mandala na Indonésia, onde significa a0 mesmo tempo “circulo sagrado", “regiio sacra” e “comunidade Feligiosa’, sendo também um simbolo do universo propriamente dito, veja J Gonda, Sanskrit in Indonesia, Nagpur, 1952, p. 5, 131, 218, 227; Pigeaud, Java, 4485-86. Sobre este tipo de imaginario nos paises asidticos tradicionais de um modo geral, veja R Wheatley, The pivot of the four quarters, Chicago, 1971. 22. Cantos 1-7.A familia real, como o primeiro circulo a partir do rei, também recebe clogios, “Aquele que faz 0 dia", € obviamente uma metonimia para.o sol, que é © proprio Siva-Buda, "A nao entidade suprema” na Indonésia indica 197 Segue-se, com o complexo ao centro, a capital propriamente dita: a0 norte, os ministros mais importantes; a leste, o rei jovem; ao sul, os bispos xivaitas ¢ budistas; a oeste, prova- velmente as varias camadas do povo, embora isso nao seja mencionado.”* O préximo circulo, com a capital ao centro, contém as noventa € oito regides do reino, que se estende da Malasia ¢ Bornéu ao norte € ao leste até o Timur ¢ a Nova Guiné, no sul ¢ oeste; e, finalmente, 0 circulo mais externo, Sido, Cambodja, Campa e Annam ~ “Outros paises protegi- dos pelo Ilustre Principe.””* Praticamente todo o mundo conhecido (partes da China e da india também sao mencio- nadas mais tarde) ¢ representado como s¢ estivesse voltado para Java; Java inteira, como se estivesse voltada para Maja pahit; ¢ Majapahit inteira como se estivesse voltada para o rei Hayam Wuruk ~“O Sol € a Lua brilhando sobre 0 circulo da Terra.” Na fria realidade, apenas a regiio ao leste de Java estava voltada para o centro desta maneira, ¢, em grande parte, com uma atitude que nao poderia ser propriamente descrita como indefesa ou humilde.”® Era para essa regiéo, onde o 23. Cantos 8-12. Existe bastante controvérsia com respeito aos detalhes deste trecho. (Cf WE. Stutterheim, De Kraton van Majapabit, Uaia, 1948: HL. Kern, Het Oud-Javaansche Lofdicht Negarakertagama van Prapanca, Usia, 1919, ¢ rnem todos esses detalhes sio claros. O desenho foi obviamente simplificado neste texto (na realidad & um sistema de 16-8-4 pontos ao redor de um centro, calém disso 6 cosmoligico € no exatamente geogrifico). “As camadas do povo" 6 uma interpolagao minha, com base em conhecimento adquirido mais tarde, em outros exemplos. “O jovem rei" no indica o delfim, mas sim a linha da segunda ordem no reino, Este sistema de “ret dupto” € comum nos estados da Indonésia indica mas ¢ demasiado complexo para ser explicado aqui. Veja meu livro Negara para uma discusséo mais completa do assunto. 24, Cantos 13-16. 25. Canto 92 26, Sobre o exagero no tamanho de Majapahit, veja, com precaugio, C.C. Berg, “De Sadéng corlog en de mythe van Groot Majapahit’, ndonesie 5 (1951); 385-422, Veja também meu artigo “Polities past, politics present: some notes on the uses of anthropology in understanding the New States’, in C. Geertz, The Inter- (pretation of cultures, Nova lorque, 1973, p. 327-41 198 sentido do reino, por mais fraco que fosse, era pelo menos algo mais que mera presungio poética, que os cortejos reais eram enviados: oeste para Pajang, proxima a Surakarta de nossos dias, em 1353; norte para Lasem no Mar de Java em 1354; sul para Lodaya € 0 Oceano Indico, em 1357; leste para Lumajang, quase Bali, em 1359.7” S6 0 tiltimo destes cortejos, entretanto, provavelmente o maior de todos, foi descrito em detalhe ~ mais de quatro- centas linhas Ihe foram dedicadas. O rei deixou a capital no comego da estagio seca, visitou cerca de 210 localidades espalhadas em uma rea de entre dez a quinze mil milhas quadradas, € retornou pouco antes que a mongao do oeste trouxesse as chuvas. Eram cerca de quatrocentos carros, com rodas sdlidas, puxados por bois; mais para efeito do que para qualquer outra coisa, havia clefantes, cavalos, burros € até camelos (importados da india); € também bandos de pes soas a pé, algumas carregando fardos, outras exibindo as insignias reais, outras certamente dangando e cantando — 0 cortejo todo movimentando-se lentamente, a uma milha ou duas por hora, como um engarrafamento arcaico, pelas estradas estreitas € esburacadas em cujas margens alinha- vam-se multiddes de camponeses embevecidos. O setor mais importante da procissao, que vinha aparentemente no meio dela, tinha a sua frente o carro do ministco de maior catego- tia, o conhecido Gajah Mada. A este seguiam-se, em ordem hierarquica, as quatro princesas do reino ~ a irma, a prima, a tia ea mae do rei — com seus respectivos cénjuges. Depois delas, sentado em um palanquim € rodeado por dezenas de esposas, guarda-costas e empregados, vinha o rei “enfeitado com ouro e jéias, brilhando.” Como cada uma das princesas representava um dos pontos cardeais (assinalados com sim- bolos tradicionais em seu carro € nela propria através de seu 27. Canto 17, Outros cortejos menores € com objetivos especificos sio também mencionados nos anos 1360. Veja os cantos 61 e 70, 199 titulo que a associava com o quarto do pais que, em relagao. 4 capital, ficava naquela direcao), e o rei representava o centro no qual todas se resumiam, a propria ordem da marcha para o interior do reino representaya a estrutura do cosmos, estrutura que, alids, a organizagio da corte também, refletia.”* Para que esta aplicacao da simetria dos céus a confusao da terra estivesse completa, era preciso que o campo, seguindo o mesmo exemplo, ¢ 0 mesmo desenho, também adotasse essa estrutura. ‘As paradas desta caravana desajeitada — em ermidas na floresta, lagos sagrados, santuarios nas montanhas, acampa- mentos de sacerdotes, templos ancestrais ou estatais, ou nas praias da costa (onde o rei “acenando para o mar”, compu- nha alguns versos para aplacar os deménios maritimos — nao tinham outra fungio senao a de reforgar esta imagem de espeticulo ambulante metafisico.”” Aonde quer que Hayam Wuruk fosse, cobriam-no com presentes luxuosos ~ tecidos, especiarias, animais, flores, tambores, dispositivos para fazer fogo, virgens, A excegao das virgens, a maior parte destes objetos cle redistribuia, quanto mais nao fosse, porque seria invidvel transporté-los todos. Organizavam-se ceriménias em todos os lugares, € nestas eram numerosas as oblagées: em territério budista, ofertas budistas, em territ6rio xivaita, ofertas xivaitas, € em muitas areas, um pouco de ambas Eremitas, doutores, sacerdotes, abades, feiticeiros, sabios, 28. Cantos 13-18. 0 sistema direcional se integrava com o simbolismo das cores, j que as quatro cores primdrias ~ vermelho, branco, preto © amarelo ~ eram dispostas a0 redor de um centro matizado. Os cinco dias da semana, os cinco petiodos do dia, ¢ os cinco estigios do ciclo vital, bem assim como as plantas, (os deuses, € um ntimero de outras formas simbélicas naturais ou sociais, se fundiam nessa mesma estrutura, tornando, portanto, extremamente compl xa, Uma representacio pictérica da totalidade do cosmos, 29, Cantos 13-38, 55-60, Quatro ou cinco destas paradas sio descritas detalh damente; mas, certamenteo niimero total de paradas seria dedeza quinze vezes maior que isso. 200 vinham a sua Presenca, buscando contato com energias sagradas; € praticamente em todas as cidades, ¢ As vezes até em acampamentos, dava audiéncias ptiblicas, também cercadas de cerimonial, para autoridades locais, mercado- res © membros mais importantes da populagdo em geral. Quando no lhe era possivel chegar a certos lugares — tais, como Bali, Madura, Balmbangan — os chefes vinham ao seu encontro trazendo presentes, em sinal de deferéncia, ¢ “tentando superar uns aos outros.” Tudo fazia parte de um vasto ritual que buscava ordenar 0 mundo social confron- tando-o com a magnificéncia vinda de planos mais altos, com um rei que, ao imitar os deuses com tanta perfeigao, chegava a parecer, ele proprio, um deus, aos olhos de seus subordinados. Em suma, no lugar do moralismo cristao, a estética indica, Na Inglaterra do século XVI, 0 centro politico da sociedade era o ponto no qual a tensao entre as paixdes que o poder incitava e os ideais a que este poder deveria supostamente servir tinha chegado a seu limite maximo; portanto, 0 simbolismo dos cortejos era admonitério € convencional: os stiditos advertiam, ¢ a rainha prometia. Na Java do século XIV, 0 centro era 6 ponto no qual esta tensio tinha desaparecido no esplendor da simetria cés- por conseqiiéncia, o simbolismo era exemplar € mimético: 0 rei exibia, € os stiditos copiavam. O cortejo em Majapahit, da mesma forma que o cortejo elizabetano, propagava os temas dominantes no pensamento politico a corte reflete 0 mundo que o mundo deve imitar; a sociedade se desenvolve A medida que assimila este fato; ¢ € fungio do rei, que empunha o espelho, garantir que essa assimilagao se processe. Neste caso, € a analogia, n40 aalegoria, que produz a magia: mil Java inteira sera como a capital dos dominios do Rei; As milhares de cabanas de camponeses serio como as proprie- dades cortesas que cercam 0 palicio; 201 As outras ilhas serao como as terras cultivadas, felizes e tranquiilas; As florestas ¢ montanhas sero como os parques, ¢ Ele it das, com paz em seu espirito.*? a to- O Marrocos de Hasan: movimento e energia Nao € necessario que 0 poder seja disfargado de virtude ou cercado de cosmologia para ser visto como um poder a servigo de interesses especificos: sua espiritualidade pode ser simbolizada de uma forma direta. No Marrocos tradi- cional, “o Marrocos que existiu” como Walter Harris 0 cha- ma, 0 poder pessoal, a habilidade de fazer com que as coisas acontegam como queremos que acontecgam ~ prevalecer — era por si s6 0 sinal mais indisputavel de graca.! Em um mundo de yontades dominando vontades, ¢ a de Ala domi- nando todas as outras, 0 poder n4o precisava ser repre- sentado como outra coisa além de si mesmo para que se inundasse de significados transcendentes. Como Deus, os reis desejavam c exigiam, julgavam ¢ decretavam, castigavam € recompensavam. C'est son métier: Nao era preciso ter justificativas para reinar, E claro que era preciso ter capacidade, ¢ isso nao era tio facil de encontrar em um campo imenso e mutante de, literalmente, centenas de aventureiros politicos, todos inte- ressados em construir uma maior ou menor configuragio de 30. Canto 17, estrofe 3. Uma vez mais alterei a teadugdo; especificamente, traduzi negara como “capital” em vez de “cidade”, Sobre os varios sentidos dessa palavra, veja meu Negara, 31. WB. Hartis, Morocco that was, Boston, 1921. A discussio que se segue limitase 40 periodo da dinastia Alawita, isto 6, do século XVII ao século XX (ainda est: no poder), ¢ a maior parte do conteiido refere-se ao século XVIII e XIX. Uma vex mais, dependi fortemente de minha prdpria pesquisa (vejaC. Geert, Islam ‘observed: religious development in Morocco and Indonesia, New Haven, 1968; ©. Geertz, H. Geertz, and L, Rosen, Meaning and order in moroccan society, Cambridge, England and New York, 1979, 202 apoio pessoal a seu redor. Em Marrocos nao havia nem a hierarquia do hinduismo medieval nem o salvacionismo do cristianismo da Reforma para canonizar 0 soberano; havia somente um sentido agucado do poder de Deus ¢ a crenga de que, no mundo, este poder se manifestava através dos empreendimentos de homens poderosos, en- tre os quais os mais notaveis eram os reis. A vida politica € uma batalha de personalidades em qualquer parte do mundo, € mesmo nos estados onde 0 poder é mais cen- tralizado figuras secundarias resistem as imposicdes do centro; mas no Marrocos nao se considerava esta resistén- cia como algo que estivesse em conflito com a ordem das coisas, um clemento desintegrador da forma ou subversi- vo da virtude, mas sim como a expresso mais pura daque- la ordem, A sociedade era agonistica ~ um torneio de vontades; portanto, a prépria monarquia € o simbolismo que a exaltava também o eram. Neste contexto, nao era tao facil distinguir entre cortejos reais e ataques de sur- presa. Do ponto de vista politico, o Marrocos dos séculos XVIII ¢ XIX era uma monarquia de guerreiros, cujo centro se situava na planicie Atlantica, com um mimero de “tribos” pelo menos esporadicamente submissas, assentadas nas re gides férteis mais préximas, ¢ um niimero menor delas espalhadas pelas montanhas, estepes € oasis que cercam 0 pais.*” Do ponto de vista religioso, compreendia uma dinas- tia “xarifiana” , ou seja, que se diz descendente de Maomé, um ntimero de especialistas no Corio, juristas, professores, escribas (ulema) © os famosos marabus, um grupo de ho- mens que, mortos ou vivos, eram considerados sagrados, € 32. O melhor trabalho sobre 0 estado marroquino tradicional é 0 de B. Aubin, Morocco of Today; Londres, 1906, © termo “tribo" é de dificil aplicagio em Marrocos, onde os grupos sociais nao sio estiveis ¢ definidos. Veja J. Berque, "Qu'estee qu'une tribu nord-afrieaine?", in Eventail de Uhistoire vicante: bommage @ Lucien Febure, Paris, 1953. 203 com poderes milagrosos.* Em teoria, isto é, na teoria isla- mica, os reinos religioso ¢ politico cram um 86, € 0 rei, 0 califa, chefe de ambos; 0 estado, portanto, era uma teocracia. Esta teoria, no entanto, nem para o proprio rei poderia ser mais que um ideal perdido, em um contexto onde aventu- reiros carismaticos surgiam de todos os lados ¢ a qualquer momento. Se é que a sociedade marroquina tem algum principio geral que a orienta, este deve ser um que reza que as pessoas s6 possuem verdadeiramente aquilo que tém a capacidade de defender, seja essa propriedade terra, agua, mulheres, sécios comerciais, ou autoridade pessoal: qual- quer que fosse a magia do rei, ele era forgado a protegé-la arduamente. A visio dessa magia era relacionada com outro famoso conceito norte-alricano: o baraka.** O termo ja foi compa- rado a intimeros outros conceitos na tentativa de explicd-lo — mand, carisma, “eletricidade espiritual”; trata-se de algo assim como um dom de poder sobrenatural que pode ser utilizado por aqueles que o recebem aseu bel-prazer, de uma forma natural e pragmatica, com propdsitos mundanos ¢ de interesse proprio. Mas o que melhor define baraka, ¢ 0 diferencia de outros conceitos semelhantes, € que € radical- mente individualista, algo que um individuo simplesmente tem, como tem forca, coragem, energia ou agressividade, como 0 sao estes atributos, € também distribuido arbitraria- mente. Na verdade, ¢ em um certo sentido, baraka poderia ser considerado um resumo destes atributos, as virtudes que, ao serem ativadas, dio a alguns seres humanos 0 poder 33. Veja A. Bel, La religion musulmane en Berbérie, Paris, 1938, vol. 1 E. Gellner, Saints of the Atlas, Chicago, 1969; C. Geertz, Islam observed. Muitos dos ulemas € marabus eram também xarifes. Sobre os xarifes marroquinos de um modo sgeral, veja E, LéviProvencal, Les bistoriens des Chorfa, Pavis, 1922 34, Sobre 0 conceito de baraka veja B, Westermarck, Ritual and belief n Morocco, 2 vols, Londres, 1926; C. Geertz, Islam observed. 204 de prevalecer sobre outros. Para triunfar, fosse na corte ou em um acampamento na montanha, era necessério demonstrar que se tinhao baraka, que Deus nos tinha dado essa capacidade de dominar, esconder esse dom poderia literalmente signifi- car a morte. Nao era uma condicao, como a caridade, ou um traco do carater, como o orgulho, que transparecem por si mesmos, € sim um movimento, como a vontade, que existe através do impacto que provoca. Como tudo mais que o rei fazia, os cortejos reais tinham como fungao provocar esse impacto, principalmente para atingir aos que julgassem que seu proprio baraka era comparavel ao do rei. Em Marrocos, 0s cortejos aconteciam quase conti- nuamente, ¢ nao de forma esporadica ou periddica, deter- minada em qualquer programa preestabelecido. “O trono do rei é sua sela”, rezava um dito popular, “e 0 céu seu palio.” E outro: “As tendas reais nunca sao armazenadas.” Di Mulay Ismail, o famoso consolidador da dinastia, o homem que, no fim do século XVII ¢ comeco do século XVIII, tornou © seu baraka realidade, passando a maior parte do seu reinado “sob lona” (na primeira parte de seu reinado, obser- va um historiégrafo da época, 0 rei nao passou um s6 ano inteiro em seu palacio); e mesmo Mulay Hasan (d. 1894), 0 Uiltimo dos reis do antigo regime no Marrocos, normalmente passava seis meses do ano viajando, mostrando soberania aos céticos.*” Os reis nem sequer mantinham uma capital unica: mudavam a corte incessantemente entre todas as idades imperiais — Fez, Marrakech, Mel Rabat — € nao se sentiam totalmente em casa em nenhuma delas, Viajar era a regra, nao a excegio; ¢ embora o rei no pudesse, como Deus, estar em todas as partes ao mesmo tempo, podia pelo menos tentar dar esta impressao: “Nin- e de 35. Sobre a mobilidade surpreendente de Mulay Ismail, veja OV Houdas, Le Maroc de 1631-1812 par Ezziani, Amsterdam, 1969, p. 24-55; a referéncia do texto na pagina 46. Sobre Mulay Hasan, veja S. Bonsal, Morocco as it is, Nova lorque € Londres, 1895, p. 475; of. Harris, Morocco that was, p. 1s, 205 guém podia estar seguro de que o sultéo nao chegaria & frente de suas tropas pela manha. Nestas ocasides, as pessoas mais inflexiveis se dispunham a negociar com [seus] repre- sentantes ¢ accitar condigdes que beneficiassem o sobera- no.” Como seus adversarios, 0 centro perambulava: “Cruze terras € mares © vocé destruira seus inimigos”, diz outro provérbio marroquino, “fique sentado ¢ eles o destruirao.” Referiam-se a essa corte ambulante como mehalla, cujo significado literal era “estacio intermediaria”, “acampamen- to”, “escala”, ou como harka, que literalmente significava “movimento”, “agitagio”, “ago”, dependendo do aspecto — governamental ou militar —a que se queria dar maior énfase, Normalmente 0 rei permanecia acampado em uma drea por um periodo que poderia durar varios dias ou varios meses, € depois mudava-se, pouco a pouco, para outra, onde per- maneceria por periodos semelhantes, recebendo os chefes locais ¢ outros notaveis, organizando festas, enviando expe- dig6es punitivas quando necessério, ¢ de alguma forma, marcando sua presenga. O que, aliés, nao deveria ser muito dificil, pois um acampamento real era um espeticulo impres sionante, um mar imenso de tendas, soldados, escravos, animais, prisioneiros, armas, € seguidores. Na estimativa de Harris, o acampamento de Mulay Hasan em Tafilalt, em 1893, teria cerca de 40.000 pessoas (“uma estranha mistura em que a confusao total ¢ a mais perfeita ordem se sucediam uma a 36.8, Schaar, Conflict and Change in Nineteenth-Century Morocco (disse! Doutorado, Universidade de Princeton, 1964), p. 72, A mobilidade constante também marcava, ¢ de forma semelhante, a natureza da corte: “O proprio tipo de vida que a maioria dos membros |da corte) sao forcados a levar os desarraiga, ¢ os inipede de ter contato com sua tribo ou sua aldeia nativa, vinculandoos d instituicdo da qual sao dependentes, d exctusdo de qualquer outros lacos. A maior parte [da corte} se concentra ao redor do sultdo, e se lorna némade como ele, Passam a vida sob lonas, ou entdo, em epécas variadas, em uma das cidades imperiais—mudancas constantes, na verdade, emenhuam laco ens lugar algum. Seus borizontes se estreitam, as coisas externas perdem importiincia, ¢ os membros da [corte] néo tém olhos para outra coisa ‘sendo este mecanismo poderoso, mestre de suas vidas ede seu destino” (Aubin, ‘Morocco of today, p. 183) 206 outra... rapida e constantemente”), € de cingiienta a sessenta tendas, 6 no complexo real. E mesmo j4 no final de 1898, quando toda essa movimentacao ia chegando ao fim, Weis- gerber fala de “milhares de homens € de animais” no acam- pamento de Mulay Abdul Aziz em Chaouia, que ele também descreve, mais realisticamente, como um imenso lago de lama contaminada.” A mobilidade do rei era, portanto, um fator essencial de seu poder; unificava-se o reino — na medida, bastante parcial, em que este pudesse ser unificado ou mesmo chamado de reino — através de uma busca constante de contatos, sobre- tudo contatos competitivos, com, literalmente, centenas de centros de poder menores que nele se encontravam. O conflito com os poderosos locais nao era necessariamente € nem freqitentemente violento (Schaar cita a maxima popular segundo a qual o rei usava noventa ¢ nove estratagemas, dos quais 0 uso de armas de fogo era sé 0 centésimo) mas era continuo — rixas, intrigas € negociagées, umas atras das outras ~ principalmente para um rei ambicioso que desejasse criar um estado.*® Era uma ocupagio exaustiva, a que s6 os 37. WB, Harris, Tafilet, Londres, 1895, p. 240-43; F. Weisgerber, Au Seuil du Maroc ‘modern, Rabat, 1947, p. 46-60 (onde também pode-se encontrar um mapa do campo), Em movimento, nao era menos impressionante; pari uma descricio vivida c completa, com encantadores de serpentes, acrobatas, leprosos € ho- mens abrindo suas cabegas com machadinhas, veja Harris, Morocco that was, p. 54-60, Os barkas cram empreendimentos multitribais, cuja parte mais importante era constitufda pelas chamadas tribos militares~jaysh ~que serviam a corte como soldados em troca de terra € outros privilégios. Nio podemos resistir a mais um provérbio aqui: f-harka, baraka: “Ha bengio na mobilidade.” 38. Schaar, Conflict and change in Morocco, p. 73. A violéncia consistia principal. mente em incendiar os acampamentos € cortar as cabegas de inimigos particu rmente recalcitrantes (as quais, salgadas pelos judcus, cram exibidas a entrada datenda ou do palicio do rei), Ameditagio, que era mais comum, era conduzida pelos funcionirios reais ou, freqtientemente, por virios tipos de figuras religio- sas especialmente treinadas para esta tarefa. Schaar (ihid., p. 75) observa que 05 reis, ou pelo menos os que fossem sibios, procuravam nao ser demasiado severos: “O ideal era atacar o inimigo de forma gil, recother os pagamentos de tributos, estabelecer uma administracdo rigorosa em seu meio, ¢ seguir adiante 1a direcio do proximo alvo.” 207 incansaveis podiam se dedicar. O que a castidade significava para Elizabete, ¢ a magnificéncia para Hayam Wuruk, a energia era para Mulay Ismail ou Mulay Hasan: enquanto estivesse em movimento, castigando um adversario aqui, obtendo um aliado acolé, o rei conseguia dar mais credibili- dade a assergio de que seu poder tinha-lhe sido concedido por Deus. Porém, s6 enquanto durasse esse movimento. O grito tradicional com que as multidées saudavam o rei que passava — Allah ybarak Famer Sidi — “Deus lhe dé baraka para sempre, meu Senhor”, era mais ambiguo do que parece: “para sempre” terminava quando o controle acabasse. Nao ha exemplo mais comovedor do quanto aconsciéncia dos governantes marroquinos era dominada por esta realida- de, nem testemunho mais cruel de sua veracidade, do que 0 terrivel € Ultimo cortejo de Mulay Hasan. Frustrado em suas tentativas de que reformas administrativas, militares e econé- micas produzissem resultados, ameacado de todos os lados pelos poderes curopeus que se introduziam no reino, e des- gastado pelo esforgo de tentar manter o pais unido durante vinte anos s6 com o poder de sua personalidade, Mulay Hasan decidiu comandar, em 1893, uma expedicdo gigantesca ao templo do fundador de sua dinastia, em Tafilalt, um oasis A margem do deserto a umas trezentas milhas ao sul de Fez. Uma viagem longa, ardua, perigosa ¢ cara, que foi realizada apesar das opinides quase que unanimemente contrarias, esta expe- dicdo foi provavelmente a maior maballa jamais organizada no Marrocos ~ um esforgo dramatico, desesperado, ¢, no final, desastroso, de auto-renovar-se. A expedicao, composta por trinta mil homens convoca- dos entre os membros das tribos leais ao rei da planicie Antica, montados principalmente em mulas, saiu de Fez em abril, atravessou o Atlas médio ¢ alto no verao € no comego do outono, e chegou a Tafilalt em novembro.”” 39. Material sobre a meballa a Tafilalt pode ser encontrado em Harris, Tafilet, p. 213s; R, Lebel, Les Voyageurs francais du Maroc, Paris, 1936, p. 215-20; 208 Como s6 um europeu, um médico francés, teve permissao de participar da expedigao, e ele era um observador indife- rente (parecem nio existir relatos nativos), nao sabemos muito sobre a viagem, a no ser que foi extenuante, Além dos obsticulos puramente fisicos (os desfiladciros mais altos tém uma altitude de quase oito mil pés, ea estrada era pouco ‘mais que uma trilha escavada nas rochas), o fardo de baga- gem, tendas ¢ armamentos (até canhdes foram arrastados) © a dificuldade logistica de alimentar tantas pessoas ¢ ani- mais, toda a regiao estava semeada com tribos berberes em conflito, que tinham que ser impedidas, meio com ameacas, meio com chantagem, ¢ algumas vezes a forca, de “comer a caravana”, Porém, embora houvesse alguns momentos difi- ceis, € a expedigio se atrasasse bastante, nada particu- larmente terrivel parece ter acontecido durante aviagem. Os sheiks vieram, acompanhados de dezenas de seus homens; a hospitalidade real foi oferecida a todos; ¢ entre um cavalgar primoroso, ¢ demonstragdes de tiro ao alvo, trocaram-se presentes, bebeu-se ch4, sacrificaram-se bois, recolheram-se impostos, € prometeu-se lealdade. Todo 0 problema come- sou realmente apés a chegada ao templo e ao término das preces. E provavel que o rei, ao perceber o atraso que a lenta trayessia do Atlas causara, € ao ver seus exércitos febris ¢ famintos, quisesse permanecer no oasis durante todo o inverno, Porém, um conjunto de fatores fez com que ali Permanecesse menos de um més. As tribos berberes ainda representavam um perigo, especialmente as do sul, que R. Cruchet, La conguéte pacifique du Maroc et du Tafilatet, seg. ed., Paris, 1934, p. 223-41; G. Maxwell, Lords of the Atlas, Nova lorque, 1966, p. 31-50; F. Linarés, “Voyage au Tafilalet”, Bulletin de l'Institut de la Hy n! 3-4, 1932. Cf. RE. Dunn, Resistance in the desert, Madison, Wisconsi 1977, que da énfase ao descjo do rei de estabilizar o Tafilalt contra a incursio francesa como motivo para a viagem. Dez mulheres do harém real também acompanharam o rei, ¢ Cruchet acredita que também faziam parte da expedi- io cerca de dez mil seguidores, mercadores “et autres parasites qui sont la rangon d'une troupe, n'est pas une sinécure” (La Conquéte pacifique, p. 223) 209 eram as mais beligerantes; temia-se que agentes franceses, enviados do sul da Argélia, pudessem assassinar o rei; € sur- giam relatos de combates acirrados entre marroquinos ¢ espa- nhdis na regio oposta do pais, banhada pelo Mediterraneo. No entanto, o fator que mais deve ter influenciado o rei em sua decisio de tentar retornar & planicie em um momento tio pouco adequado talvez tenha sido 0 fato de que as forgas comecavam a Ihe faltar, Harris, que o viu em Tafilalt, notou que havia envelhecido muito desde a tiltima vez que o vira, dois anos antes (acredita-se que estivesse com quarenta ¢ poucos anos), € achou-o cansado, abatido, prematuramente grisalho; € omesmo sentimento de perda de energia que 0 tina levado para o sul empurrou-o para o norte uma vez mais, quando a yolta a suas origens nao conseguiu fazer ressurgir essa energia. De qualquer forma, a expedigio, agora com apenas dez mil homens, partiu em dezembro para Marrakech — uma marcha de trés semanas através do Alto Atlas na direcdo leste, atraves- sando uma regio ainda mais geografica € politicamente proi- bitiva que aquela que tinha sido atravessada anteriormente. ‘Além disso, 0 inverno tinha chegado, ¢ o empreendimento Jogo transformou-se em uma retirada de Moscou: Assim que seu exército atingiu 0 sopé das montanhas, as neves do inverno comegaram a cair; a medida em que iam subindo © macigo principal, camelos, mulas ¢ cavalos, enfra- quecidos pela fome, tropecavam e caiam na neve acumulada pelo vento, ¢ morriam, Pouco mais que suas carcagas era 0 que separava 0 restante da harka da morte por inanigao, € 0 animais sobreviventes continuavam a subir, cambaleantes sob 0 fardo da pouca carne que podia ser retirada dos corpos de seus companheiros, O exército era acompanhado por nuvens de corvos, milhafres ¢ urubus. Centenas de homens morriam diariamente, ¢ seus corpos eram abandonados na neve, depois de despidos de quaisquer farrapos que ainda tivessem.*° 40. Maxwell, Lords of the Atlas, p. 39-40. 210 Quando finalmente chegaram a Marrakech, mais que um terco de um exército ja bastante reduzido tinha-se perdido; € Harris, ele proprio bastante mobilizével (era 0 corres- pondente do Times de Londres), que ja estava A espera, descobriu que 0 rei nao sé estava envelhecendo, mas que estava morrendo: Aquilo que era apenas perceptivel em Tafilet, era duplamente visivel agora. O sultdo tinha se tornado um anciio. Sujo da viagem € exausto, ele chegou em seu enorme cavalo branco Cujos ornamentos em verde © ouro eram agora apenas um escdrnio, enquanto que, sobre um rosto que cra a imagem do sofrimento, flutuava a sombrinha de veludo vermelho do Império. Atras dele, entrou na cidade um bando de homens € animais semimortos de fome, tentando alegrarse, pois finalmente, sua longa e terrivel viagem havia terminado, mas demasiado enfermos ¢ demasiado famintos para logré-lo,*! O rei ficou em Marrakech até a primavera, tentando recuperar suas forcas; mas a ansicdade renovada a respeito da situagao no norte, que se deteriorava, ¢ a necessidade de sua presenca naquela regiao, fizeram com que partisse uma vez mais. Tinha chegado a Tadla, a umas cem milhas de Marrakech, quando sofreu um colapso ¢ morreu. Seus mi nistros, porém, nao revelaram sua morte, pois temiam que, uma vez morto o rei, a caravana se dissolveria, tribos inimigas aatacariam € conspiradores que apoiavam outros candidatos Conseguiriam impedir que o sucessor escothido por Mulay Hasan, seu filho de doze anos, Mulay Abdul Aziz, subisse ao trono. Por esta razéo anunciaram que o rei estava apenas indisposto € descansando em seus aposentos particulares Colocaram o corpo em um palanquim com cortinas e orde- naram que a expedigdo prosseguisse sua marcha, uma mar- cha brutal sob 0 calor do verao, na diregao de Rabat. Levavam 41. Harris, Tafilet, p. 333, 211 comida a tenda do rei € retiravam 0 prato vazio como se ele a tivesse comido. Os poucos ministros que conheciam 0 segredo entravam ¢ saiam rapidamente dos aposentos reai como se estivessem gerindo negécios de estado. Permissao para olhar rapidamente o rei foi concedida a uns poucos sheiks locais, avisados de que 0 rei dormia. Dois dias depois, quando finalmente 0 cortejo se aproximava de Rabat, 0 cadaver do rei cheirava tao mal que anunciou sua motte por si mesmo; porém, a essa altura, as tribos perigosas ja tinham sido deixadas para tras, « Abdul Aziz, cujos seguidores ti- nham sido avisados do evento por um mensageiro, tinha sido proclamado rei na cidade. Em mais dois dias, a caravana, que se reduzira praticamente aos ministros € guarda-costas do antigo rei, pois os demais se haviam dispersado ou perambulavam mais atrés, arrastou-se até Rabat, envolvida no mau cheiro da morte real. s, Escreveu Walter Harris: Pela descrigéo que me fez, seu filho Mulai Abdul Aziz, deve ter sido uma ccna horripilante: a chegada as pressas do instavel palanquim carregando seu fardo terrivel, morto ha cinco dias, no calor insuportavel do verao; os que o escoltavam tinham scus rostos cobertos por lencos amarrados, mas mesmo esta precaucio nao impedia que vomitassem constantemente ~ € até as mulas que levavam o palanquim em seu dorso pare- ciam ter sido afetadas pelo horror do ambiente, ¢ volta e meia tentavam safarse ¢ fugir.’? Eassim, tendo perdido seu impulso inicial, o cortejo que tinha comecado mais de um ano antes teve seu fim, € com cle terminaram também duas décadas de corridas de um canto do pais ao outro, para defender a idéia de uma monarquia religiosa. Pois este foi mais ou menos 0 fim desta tradigao; os dois reis que se seguiram — um dos quais reinou 42. Harris, Morocco that was, p. 13-14; para uma descrigio mais detalhada, veja Harris, Tafilet, p. 345-51 212 Por quatorze anos, € o outro por quatro — sé tentaram organizar umas poucas harkas, bastante desconexas, em um contexto que se desintegrava; os franceses, que tomaram 0 Poder depois deles, fizeram prisioneiros em seus proprios Palacios os dois reis que se seguiram. Sem movimentar-se, 08 reis marroquinos estavam tio mortos como Hasan, ¢ sua baraka impotente ¢ teérica, Para terem legitimidade ante os Stiditos nao precisavam ser nem a personificacio de uma virtude salvadora, nem reflexos da ordem césmica, mas sim explosoes da energia divina; ¢ até a menor das explosées necesita um certo espaco para que possa acontecer, Conclusao A primeira reacao que se tem a toda essa discussio sobre monarcas, sua pompae suas peregrinagdes, é que sao coisas de um passado remoto, de uma época em que, como diz a conhecida frase de Huizinga, o mundo era uns quinhentos anos mais jovem e tudo era mais simples. Todos os grilos e abelhas douradas se foram; a monarquia, no verdadeiro sentido da palavra, foi destruida ritualmente em uma forca em Whitehall em 1649 ¢ em outra na Praca da Revolugao em 1793; os poucos fragmentos dela que restam no Terceiro Mundo sao s6 isso: fragmentos, reliquias de reis cuja proba- bilidade de ter sucessores diminui a cada hora que passa. ra © afgUMENIO com respeito A destruigio ritual da monarquia, veja Waker, Kegicide and Revolution. Concordo com o argumento de Walzer de que 6 Julgamento € a execugio de Charles ¢ de Luis foram atos simblicos eujo objetivo era niio somente matar reis, mas matar a monarquia, Com relagio a seu outro angumento, de que essas execugSes modificaram de forma permanente c total todo © Panorama da vid politica inglesa e francesa, no estou tio convencido. A outre Parte deste tipo de argumento é, sem davida, que a democracia impossibilta a antropomorfizagio do poder: “Die Reprisentation, isto é, da “majestade” verlangt cine Hierarchie, dic der Gleichheit des demokratischen Staates widerspricht, in der jeder Burger Soverain ist und Majestas hat. So aber alle KOnige sind, da kann keiner mel als Konig auftreten, und die Reprisentation wird unméglich” (Straub, Repricsentatio Maiestatis, p. 10). No entanto, na companhia de Tocqueville e de Talmon, também no estou muito convencido disto, 43. 213 A Inglaterra tem uma segunda Elizabete, que talvez seja tao casta — ou provavelmente mais casta — que a primeira, € que recebe louvores apropriados cm ocasides publicas, mas a semelhanca termina aqui; 0 Marrocos tem um segundo Hasan, mas este € mais um coronel francés que um principe frabe; € 0 tiltimo rei da longa descendéncia de reis da Java indica, Hamengku Buwono IX, teve seu cargo legalmente abolido (1977) € € 0 vice-presidente da Republica Indonésia, um vice-presidente timido, bastante ineficaz, ligeiramente socialista, ao redor do qual nfo giram nem mesmo os meno- res planetas. Entretanto, embora tudo isso seja bastante verdadeiro, uma visio superficial. A relevancia do fato hist6rico para a andlise sociolégica nao depende da proposicao de que nao ha nada no presente a nao ser o passado, o que nao é verdade, nem de analogias faceis entre instituigdes extintas camancira como vivemos hoje. Depende, sim, da percepgao de que embora mudem tanto a estrutura como as expressdes da vida social, nao mudam as necessidades internas que Ihes dio vida, Os tronos podem estar fora de moda, bem assim como 6s cortejos ¢ a pompa; mas a autoridade politica —¢ a propria oposicdo a esta autoridade — ainda exigem uma estrutura cultural em que se definir € fazer suas assercdes. Um mundo totalmente desmistificado € um mundo total- mente despolitizado; ¢ embora Weber nos tenha prometido ambos — especialistas sem alma em uma jaula de ferro burocratica — 0 curso dos eventos desde entéo, com seus Sukarnos, Churchills, Nkrumahs, Hitlers, Maos, Roosevelts, Stalins, Nassers ¢ De Gaulles, sugere que 0 que morreu em 1793 (até o ponto em que morreu) foi uma certa visio da afinidade entre 0 tipo de poder que move os homens ¢ 0 que move montanhas, € no o sentimento de que esta afinidade existe ‘A“teologia politica” (para retornar ao termo de Kanto- rowicz) do século XX ainda nio foi escrita, embora tenham havido, aqui ali, algumas tentativas nesta direcio. No 214 entanto, ela existe — ou, mais precisamente, existem varias formas dela — ¢ enquanto nao a compreendermos, pelo menos tio bem como compreendemos a dos Tudor, dos Majapahits ou dos Alawites, uma grande parte da vida publi- ca de nosso tempo vai permanecer obscura. O extraor- dinario nao deixou a politica moderna, por mais que a banalidade nela tenha entrado; © poder ainda inebria, mas também ainda dignifica. E por esse motivo, que mesmo que © tipo de figura carismitica que nos interessa seja periférico, efémero, ou sem base s6lida — 0 mais extremado dos profetas, ou o mais radical dos revoluciondrios — devemos primeiramente exa- minar 0 centro € os simbolos ¢ concepgdes que nele existem, Para que possamos entendé-los € saber exatamente o que cles significam. Nao é por acidente que os Stuarts tiveram seus Cromwells © os Médicis seus Savonarolas — ou até mesmo os Hindenburg seus Hitlers. Todas as ameacas ca- icas sérias que surgiram no Marrocos dos Alawite, tiveram como autor algum personagem do poder local, que nao s6 afirmava que sua baraka era poderosissima, como também 0 demonstrava, através de iniciativas — siba, literal- mente, “insoléncia” ~ cujo objetivo era expor a fragilidade do rei, mostrando que este era ineapaz de fazé-lo parar; € Java sempre foi assediada por misticos locais, que saiam de Seus transes meditativos para se apresentarem ao mundo como seu “soberano exemplar” (Ratu Adil), figuras que fariam retornar a ordem perdida ¢ criariam formas de gover- nar mais transparentes."’ £ esse 0 paradoxo do carisma: embora suas raizes se encontrem naquele desejo de estar perto do centro onde as coisas acontecem, ou de estar envolvido em assuntos sérios ¢ importantes, um desejo que € mais caracteristico daqueles que, realmente, tém 0 contro- 44, Para uma desericdo de algumas das atividades siba no final do Protetorado, veja E. Burke, Prelude to protectorate in Morocco, Chicago, 1976, Sobre o rat adil Yeja Sartono Kartodirdjo, Protest movements in rural Java, Cingapura, 1973. 215 le da sociedade, viajam em cortejos € concedem audiéncias, as express6es carismaticas mais fulgurantes aparecem, nor- malmente, entre pessoas que se encontram a alguma distin- cia do centro, ¢ com alguma freqiiéncia a uma enorme distancia do centro, mas que desejam desesperadamente aproximar-se deste. A heresia € fruto da ortodoxia também na politica, ¢ nao s6 na religiio. E tanto a ortodoxia como a heresia sao fendmenos univer- sais, por mais eficaz que seja a policia secreta, como nos certificamos quando trabalhadores se rebelam na Alemanha Oriental, romanticos tolstoianos reaparecem na Russia, ou, ainda mais estranho, militares populistas surgem em Portugal. © desdobramento da vida politica em conceitos gerais sobre como a realidade social deve ser construida nao desapareceu com o fim da continuidade dindstica ou do direito divino. Quem recebe 0 qué, quando, onde e como, é uma visio da politica tio culturalmente diferente ~ € @ sua maneira, tao transcendental — como a defesa da “sabedoria e da honestida- de”, a exaltagio daquele que é “Igual ao que fez 0 dia”, ou 0 fluxo inconstante do baraka. Nem é ela menos capaz de produzir espetéculos que exaltem ou desafiem 0 cent Acompanhei 0 grupo de jornalistas que fazia a cobertura de Humphrey até o local de uma das visitas do candidato, uma escola para criancas com deficiéneias fisicas ou mentais. Ele trocou apertos de mio com cada uma das Irmas. Todas elas. E com todas as criancas que ele conseguia agarrar. A duracio da visita deveria ser de vinte minutos. ‘Ireze destes foram utilizados para apertar mios. A palestra leva vinte minutos vai se prolongando para vinte ¢ cinco, depois para trint mos do pobre padre que tentava traduzir 0 discurso linguagem para surdos ja estio cansadas... trinta € cinco minutos — uma outra pessoa assume a posigao de tradutor. alguns dos homens mais importantes da historia eram deficientes” ~ tenta lembrar de algum, seus olhos brilham, as bochechas adquirem aquele lustro familiar, aquele ar de “eu sei tudo” ~ “Thomas Edison. ‘Todos nés temos deficiéncias...” “Qual € a palavra mais importante da lingua inglesa? Servi- cos!” “E a segunda palavra mais importante € ‘amor”! “E 216 quais sao as Ultimas quatro letras na palavra ‘American’? [ CAN. Vamos olhi-las. Vamos soletré-las, Eu posso. Voces podem. Vocés so fantasticos. Vocés sio maravilhosos. Deus abengoe.” As lagrimas estio no canto dos olhos, Lagrimas que the causam tanto sofrimento na televisio. Sua cabeca abaixa levanta enquanto ele avanca com dificuldade por entre a multidao de criangas distraidas que no sabem bem © que fazer nem entenderam coisa alguma. os Entéo, dia 14 de julho, no Madison Square Gardem, teve lugara comemoracio da pureza moral, ‘Ao lado de MeGovern no Garden” era o titulo do evento, O objetivo era conseguir dinheiro. Mike Nichols ¢ Blaine May juntaram-se outra vez, s6 para o evento. E também Peter, Paul e Mary; ¢ Simon ¢ Garfunkel. O contraste entre um comicio como esse e um do Wallace ~ ou até mesmo uma reuniaio de Bob Hope ¢ Billy Graham em beneficio de Richard Nixon ~ explode os circuitos ‘¢rebro. Liturgia comparativa! 14 de julho € o Dia da Bandeira. Mas nao ha bandeiras no paleo. Nenhuma bandeira em yolta do Garden. A noite comemora a ressurreigao da cultura da juventude. A liturgia de uma nova classe € execu- tada, Peter, Paul e Mary, Dionne Warwick, Simon e Garfunkel em todas suas cangoes celebram a vida insegura, solitdria € vulneravel da classe média. Dionne Warwick gorjeia em um longo de algodao branco com flores azuis ¢ inocente: “Ima- gine! Nem céu ~ nem inferno ~ nem paises — nem religioes! Quando 0 mundo viverd unido.” Simon e Garfunkel ofere- cem “Jesus the ama, Mrs. Robinson!” ¢ uma das frases mais reveladoras “Preferia ser um martelo que um prego.” Lawren- ce Welk nao veio. Nem Johnny Cash. Nem Benny Goodman. A miisica € radicalmente sectiria, As 1105, todos os artistas se congregam no palco, exibindo simbolos da paz. Ai, ouve-se © refrao em unissono: “QUEREMOS MCGOVERN!” “£ uma noite maravilhosa de uniéo", diz McGovern. Ele lhes diz qu ‘ama este pais o bastante para manté-lo em nivel elevado, longe das matangas, da morte € da destruigao que esta ocorrendo no Sudeste Asiitico.” ‘Amo esta terra e penso com carinho em seu futuro." “Quero comecar a fazer deste pais um lugar maravilhoso, decente, bom... ser uma ponte que leva da guerra A paz... uma ponte que une as geracées... uma Ponte que atravessa as lacunas da justica neste pais... Como do 217 social.” “E agora eles vém dizer que o Vietnam foi um erro, Um erro que custou ao cidadao médio 50 mil vidas, 300 mil feridos, € 120 bilhées de dlares pelo ralo do esgoto. Ah! Nio chamem isso de erro. 6 uma tragédia.” Como David Halbers- tam, ele poe a culpa nos melhores ¢ mais inteligentes — “eles” Assim € que eles regem nossas vidas.> E assim seguem os cortejos. Se a matéria fosse sobre a Alemanha ou a Franga, india ou Tanzénia (para nao falar da Russia ou da China), a linguagem, bem assim como as premissas ideolégicas que orientam o contetido, seriam diferentes. Mas certamente haveria uma linguagem especifi- ca, € esta refletiria 0 fato de que o carisma das figuras dominantes na sociedade ¢ daqueles que se jogam contra este dominio tem uma mesma origem: o poder sagrado que € inerente a autoridade central. £ possivel que a soberania agora dependa mais do estado, ou até das populagdes dos estados, como tanto Humphrey, quanto McGovern ¢ Wallace presumem; porém, a “ampla universalidade” que essa sobe- rania contém permanece, seja 14 qual for o destino que deram aos reis. Nem o nacionalismo, nem 0 populismo fizeram com que isso mudasse. O que faz um lider politico ser “espiritual” nao €, afinal, sua posigao fora da ordem social, em algum transe de auto-admiracao, ¢ sim um envok vimento intimo ¢ profundo ~ que confirme ou deteste, que seja defensivo ou destrutivo — com as fiegdes mais importan- tes que tornam possivel a sobrevivéncia desta ordem. 45. Novak, Choosing our king, p. 211, 224-28, ¢ 205-8. Para que a pagina niio fieasse demasiado cheia de clipses, omiti, sem qualquer indicagio, alguns segmentos destes trechos, ¢ fiz modificagdes na pontuagio, e na ordem dos parigeafos, em alguns casos até juntando algumas frases, para abreviar o texto © também para climinar, tanto quanto possivel, os comentirios pessoais de Novak, alguns extremamente inteligentes, outros meros clichés alternativos. Portanto, embora todas as palavras sejam suas (ou as que cita) ¢ nada foi feito que possa alterae 0 sentido, estes textos devem ser considerados um resumo mais que propriamen- te citagdes, Para uma impressio igualmente vivida das encenages da campanha Presidencial em outras partes da floresta, veja H, Thompson, Fear and loathing on the campaign trail, "72, Sic Francisco, 1973, 219

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