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SANTO TOM Á S

D E AQU INO

COMENTÁRIO À
AVE-MARIA
Avenida Higienópolis, 174, Centro AUTOR IA
86020-908 — Londrina/PR Santo Tomás de Aquino
editorapadrepio.org
CAPA
Klaus Bento
DIAGRAMAÇÃO
COMENTÁR IO À AVE-MAR IA Eduardo de Oliveira
DIR EÇÃO DE CR IAÇÃO
© Todos os direitos desta edição Luciano Higuchi
pertencem e estão reservados à
Editora Padre Pio EDIÇÃO E R EVISÃO
Éverth Oliveira
Redempti ac vivificati Christi sanguine, nihil Christo TRADUÇÃO
præponere debemus, quia nec ille quidquam nobis præposuit. Douglas Abreu

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Aquino, Santo Tomás de, 1225?–1274


Comentário à Ave-Maria [livro eletrônico] /
Santo Tomás de Aquino ; tradução Douglas Abreu. –
Londrina : Editora Padre Pio, 2023.
PDF
Título original: Expositio Salutationis Angelicæ
ISBN: 978-85-52993-02-5
1. Ave-Maria (Oração) 2. Maria, Virgem, Santa -
Teologia 3. Oração - Cristianismo 4. Teologia cristã
I. Abreu, Douglas. II. Título.
23-162505 CDD-232.91

Índices para catálogo sistemático:


1. Mariologia : Teologia cristã 232.91
SUMÁRIO

NOTA PRÉVIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

COMENTÁRIO À AVE-MARIA .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

ESQUEMA DO COMENTÁRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

INDICAÇÕES PARA LEITURA .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23


NOTA PRÉVIA

A. Data e autenticidade
Com base no testemunho de Iohannes Blasii, consultado du-
rante o processo de canonização de Tomás,1 e no fato de o co-
mentário à Ave-Maria encontrar-se nos mesmos códices que
as colações sobre o Pai-nosso, o Símbolo apostólico e os dez
Mandamentos, pode-se concluir com razoável probabilidade
que este sermão tenha sido proferido em Nápoles, durante a
Quaresma de 1273, assim como as exposições da Oração do-
minical, do Credo e do Decálogo.2

O texto pertence aos Reportata, conjunto de obras que, não


tendo sido escritas de próprio punho pelo Angélico, foram pas-
sadas ao papel quer por ditado quer por transcrição de alguma
homilia. São escritos nem sempre revistos e corrigidos pelo
autor, mas recebidos, em todo caso, de sua boca. O reportator,
embora nada se diga nos catálogos nem o indiquem os códices
até hoje conhecidos, talvez seja o mesmo das demais colações
quaresmais de 1273: Pedro de Andria ou Reginaldo de Piper-
no, socius de Tomás.

1. Cf. M.-H. Laurent (ed.), Fontes vitæ…, fasc. 4 (Toulouse: Privat–Revue


Thomiste, 193), p. 361s.
2. Cf. P. Mandonnet; J. Destrez (edd.), Bibliographie Thomiste (Kain: Le Saul-
choir, 1921), p. XVII, n. 74bis; A. Bačic, “Introductio compendiosa…”, in: An-
gelicum, 2/III (Roma, nov.-dez. 1925), p. 231; J. F. Rossi, “S. Thomæ Aquinatis
Expositio…”, in: Divus Thomas, 34 (1931), p. 463s.

5
COMEN TÁRIO À AVE-MARIA

B. Estrutura
O Angélico expõe somente a primeira parte da Ave-Maria;
da segunda, “Santa Maria, Mãe de Deus” etc., não faz sequer
menção. É compreensível, visto que

a última parte da oração só começou a difundir-se no séc.


XVI, e não parece ser nada além de uma ampliação de Sancta
Maria, ora pro nobis, invocação litúrgica já em uso na ladainha
dos santos.

Num códice do séc. XIII (1249, B7, fol. 72), da Biblioteca Na-
cional de Florença, o qual pertencera aos servos de Maria do
convento da Santíssima Anunciada, lê-se a seguinte oração,
talvez em uso entre os servitas florentinos já naquela época:3
“Ave, dulcíssima e imaculada Virgem Maria, cheia de graça.
O Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres, e
bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de
Deus, mãe de graça e de misericórdia, rogai por nós, agora e na
hora da morte. Amém”. À fórmula, excetuada uma ou outra
redundância (talvez acréscimos do amanuense, por devoção
privada), faltam apenas duas palavras: “pecadores” e “morte”.
Remonta, pois, ao séc. XIV o primeiro exemplo e o mais com-
pleto da Ave-Maria até hoje conhecido.4

Seja como for, o fato é que a segunda parte da Ave-Maria per-


maneceu em fluxo até o ano 1568, quando Pio V enfim pro-
mulgou o novo Breviário romano, no qual a fórmula foi, por
assim dizer, sancionada e prescrita aos sacerdotes, que a partir

3. Cf. R. Taucci, “Biblioteche antiche…”, in: Studi Storici dell’Ordine dei Servi
di Maria, 2 (1935-1936), p. 178.
4. A fórmula definitiva, tal como a rezamos hoje em dia, aparece pela pri-
meira vez no final do séc. XV, num acróstico de autoria de Gasparino Barro,
OSM († 1498).

6
N O TA P R ÉV I A

de então deveriam recitá-la no início de cada hora do divino


Ofício logo após o Pai-nosso. Somente um século mais tarde,
a meados do séc. XVII, é que a fórmula prescrita pelo sumo
pontífice se universalizou de fato na Igreja latina.5

O opúsculo, como se diz já no prólogo, divide-se em três par-


tes. A articulação interna de cada uma delas pode ser vista no
esquema da página seguinte.

C. Sobre a presente tradução


O texto em que se baseia esta tradução é o estabelecido por Ros-
si (cf., infra, nt. 2). A divisão em parágrafos e subtítulos, assim
como a numeração marginal em negrito, é da edição de Turim.6
As palavras entre colchetes ([…]) são explicitações; as entre
divisas (<…>), inserções do tradutor para esclarecer o original
ou dar coesão ao português. As citações bíblicas foram extraí-
das da tradução do Pe. Matos Soares.

Equipe Christo Nihil Præponere

5. G. M. Roschini, Mariologia, 4 (Roma: Bellardetti, 21948), pp. 85.87s.


6. R. M. Spiazzi (ed.), Opuscula theologica, 2 (Turim: Marietti, 1954), p. 239ss.

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COMENTÁRIO
À AVE-MARIA
SANTO TOMÁS DE AQUINO
PRÓLOGO

1110. Ave, Maria, cheia de graça. O Senhor é contigo etc. Nesta


saudação estão contidas três coisas. Uma parte foi feita pelo
Anjo: “Ave, cheia de graça. O Senhor é contigo. Bendita és tu
entre as mulheres” [Lc 1, 28]. A outra parte, a fez Isabel, mãe
de João Batista: “Bendito é o fruto do teu ventre” [Lc 1, 42]. A
terceira parte, acrescentou-lhe a Igreja: Maria.7 Pois o anjo não
disse: Ave, Maria, mas: Ave, cheia de graça. E este nome, ou seja,
Maria, segundo a sua interpretação convém às palavras do anjo,
como se verá.8

7. Rossi, p. 466, nt. 3: “É brevíssimo o comentário de Santo Tomás à terceira


parte. Ao expor as palavras do Arcanjo, diz que a Bem-aventurada Virgem
é convenientemente chamada Maria, que quer dizer: iluminada em si e ilu-
minadora de outros; senhora; estrela do mar. Mais detalhada é a exposição
das palavras do Arcanjo e de Isabel, ou seja, da primeira e da segunda parte”.
8. G. M. Roschini, La Madre de Dios según la fe y la teología, 2 (Madrid:
Apostolado de la Prensa, 21958), p. 552s: “A Ave-Maria é a forma mais subli-
me de a Igreja orante exaltar a grandeza e implorar a intercessão de Maria; é
o mais belo louvor e a súplica mais eficaz que as gerações cristãs lhe podem
dirigir; é o hino mais melodioso que podem repetir lábios fiéis e que podem
escutar os ouvidos da Virgem Mãe. No coração de Maria, apenas se ouve
a saudação angélica, renovam-se os mesmos sentimentos, divinos e trans-
cendentes, que ela teve a dita de experimentar no momento mais solene da
história, sublime aos olhos tanto do céu como da terra.
As duas partes da Ave-Maria obedecem às leis clássicas da oração: louvor
e súplica. No louvor, exalta a transcendente grandeza de Maria, expressa na
plenitude de graça, ou seja, em todas as perfeições que o Criador pode ou-
torgar à criatura. Por isso, o Senhor está com ela de um modo todo especial,
que a faz bendita entre todas as mulheres. Na súplica, implora à Virgem o
perdão dos pecados e a graça de uma vida santa e de uma piedosa morte. Im-

11
COMEN TÁRIO À AVE-MARIA

Art. 1
1111.Acerca do primeiro, deve-se considerar que antigamente
era coisa deveras grande que os anjos aparecessem aos homens;
e que os homens lhes fizessem reverência era tido pela máxima
honra. Eis por que está escrito, em louvor de Abraão, que aco-
lheu os anjos e lhes mostrou reverência (Gn 18, 2ss). Mas que
o anjo fizesse reverência ao homem, isso nunca se ouviu antes
que um saudasse a Bem-aventurada Virgem, dizendo-lhe com
reverência: Ave.

Ora, antigamente o anjo não reverenciava o homem, mas


1112.
o homem ao anjo, e a razão é que o anjo era maior do que o
homem; e isto quanto a três coisas.

Primeiro, quanto à dignidade da natureza. Pois o anjo é de na-


tureza espiritual, Sl 103, 4: “Dos espíritos fazes os teus mensa-
geiros”, ao passo que o homem é de natureza corruptível. Daí
dizer Abraão: “Falarei ao meu Senhor, ainda que eu seja pó e
cinza” [Gn 18, 27]. Não era, pois, adequado que uma criatura
espiritual e incorruptível mostrasse reverência a uma corruptí-
vel, isto é, ao homem.

possível conceber oração mais bela. Igualmente impossível imaginar oração


mais agradável a Maria.
Tão-logo — escreve Fr. H.-D. Lacordaire, OP — ouviu ela dos lábios de
Gabriel esta saudação pela primeira vez, concebeu em seu seio puríssimo ao
Verbo de Deus, e agora, sempre que lábios humanos lhe repetem as palavras
que foram como o sinal de sua maternidade, comovem-se-lhe as entranhas à
lembrança daquele momento, sem igual quer no céu quer na terra, e a eter-
nidade toda se enche do gozo por ela sentido. O racionalista, vendo passar
o povo em procissão a repetir as mesmas palavras, sorri com desdém; mas
o homem iluminado por melhores luzes sabe que o amor não tem mais que
uma palavra, e esta, ainda que a repitamos sempre, nunca a repetiremos o
bastante (cf. Vie de saint Dominique [Paris: Debécourt, 1841], p. 131ss)”.

12
P RÓ L O G O

Segundo, quanto à familiaridade com Deus. Pois o anjo é fami-


liar a Deus, enquanto o assiste, Dn 7, 10: “Milhares de milhares
o serviam, e miríades e miríades assistiam diante dele”; mas o
homem é como um estranho, afastado de Deus pelo pecado,
Sl 54, 8: “Fugiria para longe”. Por isso é conveniente que o
homem reverencie o anjo enquanto próximo e familiar do rei.

Terceiro, ultrapassava-o pela plenitude do esplendor da graça


divina. Os anjos, com efeito, participam da própria luz divina
em suma plenitude, Jó 25, 3: “Porventura têm número as suas
milícias? E sobre quem é que não se levanta a sua luz?” E por
isso sempre aparece com luz. Mas os homens, ainda que algo
participem da luz da graça, <participam> pouco, e em certa
obscuridade.

1113. Não era adequado, por conseguinte, que o anjo mostrasse


reverência ao homem, até que se achasse alguém na natureza
humana que nestas três coisas sobrepujasse os anjos. E tal foi a
Bem-aventurada Virgem. Eis por que, para indicar que nestas
três coisas o superava, quis o anjo mostrar-lhe reverência; por
isso disse: Ave.

1114. a) Logo, a Bem-aventurada Virgem superou os anjos nes-


tas três coisas.

E primeiro na plenitude da graça, que é maior na Bem-aven-


turada Virgem do que em qualquer anjo; e por isso, para o dar
a entender, o anjo lhe fez reverência, dizendo: Cheia de graça,
como se dissesse: “Faço-lhe reverência, pois que me superas na
plenitude da graça”.

1115. Ora, diz-se que a Bem-aventurada Virgem é cheia de gra-


ça quanto a três coisas.

Primeiro, quanto à alma, na qual teve toda a plenitude da graça.


Pois a graça de Deus é dada para dois <fins>: para obrar o bem,

13
COMEN TÁRIO À AVE-MARIA

e para evitar o mal; e quanto a estes dois teve a Bem-aventu-


rada Virgem graça perfeitíssima. Pois evitou todo pecado mais
do que qualquer outro santo depois de Cristo. Ora, o pecado é
ou original, e dele foi purificada no útero,9 ou mortal ou venial,
e destes foi livre. Donde, em Ct 4, 7: “És toda bela, amiga mi-
nha, e em ti não há mancha”.

Agostinho, no livro Sobre a natureza e a graça: “Excetuada a


Virgem Maria, se a todos os santos e santas, enquanto aqui
viviam, se perguntasse se não tinham pecado, todos a uma
só voz clamariam: ‘Se dissermos que não temos pecado, en-
ganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós [1Jo
1, 8]; excetuada, repito, a santa Virgem, da qual, pela honra
devida ao Senhor, não quero levantar questão alguma quando
se trata de pecado. Sabemos, com efeito, que foi concedida
mais graça, para que de todo vencesse o pecado, àquela que

9. É verdade de fé divino-católica, definida por Pio IX em 8 dez. 1855 na Bula


Ineffabilis Deus, que “a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua
conceição, por singular graça e privilégio do Deus onipotente, em vista dos
méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune
de toda mancha da culpa original” (DH 2803).
Quer dizer então que a “doutrina tomista é completamente contrária ao
que se definiria no dogma da Imaculada Conceição de Maria? Não. A doutri-
na tomista não se opõe no essencial ao dogma, quanto à compreensão de que
só é possível a santificação quando da animação. Ao afirmar que a santifica-
ção da bem-aventurada Virgem só se realizou depois de receber a alma (cf.
STh III 27, 2c.), ele nem depõe nem se distancia do que se proclamou como
dogma na Bula, pois tanto sua doutrina quanto a definição da Bula supõem
que, para dar-se a santificação, é suposta a alma. Distanciam-se quanto ao
instante em que se dá tal santificação: a Bula defina simultaneidade de ins-
tante entre geração, animação e santificação, e o Aquinate não, embora ad-
mita a possibilidade metafísica de tal simultaneidade. [...] o Aquinate não se
opõe à doutrina da Imaculada Conceição, mas dela se distancia ao apresentar
a concepção da Virgem Maria segundo o modelo da biologia aristotélica, que
separava geração, animação e santificação” (P. Faitanin, “Imaculada Concei-
ção: Qual é a doutrina tomista?”, in: Aquinate, 5 [2007], p. 417).

14
P RÓ L O G O

mereceu conceber e dar à luz aquele de quem consta não ter


tido pecado algum”.10

1116.Mas Cristo superou a Bem-aventurada Virgem por ter


sido concebido e dado à luz sem o pecado original; a Bem-
-aventurada Virgem, por sua vez, foi concebida no original,
mas não nasceu <com ele>. Ela praticou ainda as obras de
todas as virtudes, ao passo que os outros santos <praticaram>
algumas em especial: porque um foi humilde, outro casto,
outro misericordioso: e por isso são propostos como exem-
plo de determinadas virtudes, como São Nicolau [de Mira],
exemplo de misericórdia, etc. Mas a Bem-aventurada Vir-
gem é exemplo de todas as virtudes, porque nela encontras
exemplo de humildade, Lc 1, 38: “Eis a escrava do Senhor”
[e depois, v. 48: “Olhou para a humildade de sua escrava”];
exemplo de virgindade: “Porque não conheço varão” [Lc 1,
34]; e de todas as virtudes, como é suficientemente claro.
Assim, foi cheia de graça a Bem-aventurada Virgem quanto
à pureza e quanto à virtude.

1117. Segundo, foi cheia de graça quanto à redundância da alma


na carne [ou no corpo]. Com efeito, é coisa grande haver nos
santos tanta graça, que lhes santifique a alma; mas a alma da
Bem-aventurada Virgem foi de tal modo plena, que dela re-
fugiu a graça sobre a carne, de modo que concebesse o Filho
de Deus. Eis por que diz Hugo de São Vítor: “Porque no co-
ração dela o amor do Espírito Santo ardia singularmente, por
isso em sua carne fazia maravilhas, de modo que dela nascesse
Deus e homem”,11 Mt 1, 20: “O que nela foi concebido vem do
Espírito Santo”.

10. De natura et gratia, 36.42 (ML 44,267; CSEL 60 [1913] 26323-2644).

11. De sacramentis, 1.7 (ML 176,393B).

15
COMEN TÁRIO À AVE-MARIA

1118. Terceiro, quanto à redundância em todos os homens.12


Com efeito, é grande coisa em qualquer santo haver tanta
graça, que baste para sua própria salvação; mas é ainda maior
que haja graça o bastante para a salvação de muitos. Mas se
houvesse tanto, que bastasse para a salvação de todos os ho-
mens do mundo, isto seria máximo, e isto se dá em Cristo e
na Bem-aventurada Virgem. Pois em todo perigo podes obter
salvação da Virgem gloriosa. Donde, Ct 4, 4: “Dela estão pen-
dentes mil escudos, todos os escudos dos heróis”. Igualmente,
em toda obra de virtude podes contar com o seu socorro. E por
isso diz ela, Eclo 24, 25: “Em mim toda a esperança da vida e
da virtude”.13

Assim, é cheia de graça, e supera os anjos em plenitude de


graça. E por este motivo é convenientemente chamada Maria,
que quer dizer iluminada em si; donde, Is 58, 11: “Encherá de
esplendores a tua alma”; e iluminadora de outros quanto a todo
o mundo, e por isso é comparada ao sol e à lua.14

1119. b) Segundo, supera os anjos em familiaridade divina, e


por isso o anjo, significando-o, disse: O Senhor é contigo, como
se dissesse: “Faço-lhe reverência por seres mais familiar de
Deus do que eu, pois o Senhor é contigo”.

12. Rossi, p. 470, nt. 2: “O Angélico desenvolve aqui”, em grandes linhas, “a


mediação universal da Bem-aventurada Virgem Maria”.
13. Roschini, Mariologia, 2 (Roma: Bellardetti, 21947), p. 61: “A interpretação
‘iluminadora’ ou ‘iluminada’ baseia-se no vocábulo ’ôr (= ‘brilhar’) ou em
râ’âh (= ‘ver’), do que viria mar’eh (= ‘que faz ver’ ou ‘que lhes dá visão’)... Mas
se pode observar que esta interpretação faz demasiada violência às palavras
em que se baseia”.
14. Rossi, p. 472, nt. 1 “Antífona ad Magn. in festo Præsentationis B. M. V. (21
nov.), e alibi, nos demais Ofícios da Virgem”.

16
P RÓ L O G O

O Senhor, <quer dizer>, enquanto Pai no mesmo Filho, o que


nenhum anjo nem criatura alguma jamais teve, Lc 1, 35: “O
que nascerá de ti será santo e será chamado Filho de Deus”.

O Senhor <enquanto> Filho no útero, Is 12, 6: “Exultai e


louvai, casa de Sião, pois em teu meio está o grande santo de
Israel”. Logo, o Senhor está na Virgem de modo distinto de
como está com o anjo, porque com ela <está> como Filho, com
o anjo como Senhor.

O Senhor Espírito Santo, como num templo; daí ser chamada:


Templo do Senhor, sacrário do Espírito Santo,15 porque conce-
beu do Espírito Santo, Lc 1, 35: “O Espírito Santo virá sobre ti”.

Assim, é mais familiar com Deus a Bem-aventurada Virgem


do que o anjo, porque com ela [está] o Senhor Pai, o Senhor
Filho, o Senhor Espírito Santo, ou seja, toda a Trindade. Daí
que se cante sobre ela: “És de toda a Trindade nobre assento”.16

15. Rossi, p. 472, nt. 2: “Sequência da Assunção da Bem-aventurada Virgem:


Salve, Mater Salvatoris. Cf. Missale secundum Ordinem Fratrum Prædicato-
rum (Veneza, 1553), fol. 234v. Esta sequência foi composta por Santo Alberto
Magno, como é relatado em Martène–Ursini, Veterum Scriptorum… Collec-
tio (1729) VI, Brevis Historia Ordinis Prædicatorum, col. 360: ‘Muito devoto
da beatíssima Virgem, [Alberto] ditou, com canto, as sequências reservadas
para os sábados. Ora, como estivesse a compor a sequência para a Assunção
da Virgem beatíssima, que começa: Salve, Mãe do Salvador, quando chegou
ao verso: Salve, Mãe de piedade, estacou e, pensando como o concluiria, logo
escreveu: e de toda a Trindade nobre assento. E eis que a beatíssima Virgem
lhe apareceu e disse: ‘Sou-te grata, bom Alberto, porque me saudaste com
palavras que eu nunca tinha ouvido de ninguém’”.
16. Roschini, op. cit., loc. cit.: “É correto, sim, chamar a Bem-aventurada Vir-
gem de senhora, porque, sendo rainha do céu e da terra, tem domínio sobre
todas as coisas. Mas contra esta interpretação pode-se observar que: a) a for-
ma mais antiga do nome de Maria é Mirjam, e não Mariam (que derivaria
do vocábulo ‘mârê’); — b) além disso, o termo ‘mârê’, no qual se baseia esta
etimologia… é aramaico e significa ‘senhor’, não ‘senhora’, que em aramaico
se diz martha”.

17
COMEN TÁRIO À AVE-MARIA

Ora, estas palavras, o Senhor é contigo, são as mais nobres que se


lhe puderam dizer. Com razão, pois, o anjo reverencia a Bem-
-aventurada Virgem, porque Mãe do Senhor, por isso Senhora.
Daí que lhe convenha o nome Maria, que em aramaico quer
dizer senhora.

1120. c) Terceiro, supera os anjos quanto à pureza, porque a


Bem-aventurada Virgem foi pura não só em si mesma, senão
que tratou de fazer puros a outros. Foi puríssima quanto à culpa,
porque não incorreu em pecado, nem original, nem mortal, nem
venial. Igualmente quanto à pena.

1121. Com efeito, três maldições foram dadas aos homens por
causa do pecado.

A primeira foi dada à mulher, qual seja, conceber com corrup-


ção, gestar com dificuldade e parir com dor [cf. Gn 3, 16]. Mas
desta foi imune a Bem-aventurada Virgem, porque concebeu
sem corrupção, gestou em conforto e deu à luz com alegria
o Salvador, Is 35, 2: “Florescerá exuberantemente, rejubilará,
soltará gritos de alegria”.

1122. A segunda foi dada ao homem, qual seja, comer do pão


com o suor do rosto [cf. Gn 3, 19]. A esta foi imune a Bem-
-aventurada Virgem: porque, como diz o Apóstolo em 1Cor
7, 34, as virgens estão livres dos cuidados deste mundo e se
dedicam unicamente a Deus.

1122. A terceira foi comum a varões e mulheres, qual seja, tor-


nar ao pó [cf. Gn 3, 19]. E desta foi imune a Bem-aventura-
da Virgem, porque foi assunta em corpo ao céu. Cremos, com
efeito, que após a morte foi ressuscitada e levada ao céu, Sl 131,
8: “Levanta-te, Senhor, para o lugar do teu repouso, tu e a arca
da tua majestade”.

18
P RÓ L O G O

Art. 2
1124. Assim, foi imune a toda maldição e, por isso, bendita entre
as mulheres, porque só ela livrou-se da maldição, portou a bên-
ção e abriu a porta do paraíso. E por isso convém-lhe o nome
de Maria, que quer dizer estrela do mar;17 porque, assim como
pela estrela do mar os navegantes são dirigidos ao porto, assim
os cristãos são dirigidos por Maria à glória.

Art. 3
1125. Bendito é o fruto do teu ventre. O pecador às vezes busca
em algo o que não pode conseguir, mas consegue-o o justo,
Pr 13, 22: “A riqueza do pecador está reservada para o justo”.
Assim Eva buscou o fruto e nele não encontrou o que desejava;
mas a Bem-aventurada Virgem encontrou no seu fruto tudo o
que desejou Eva.

1126. Com efeito, Eva desejou três coisas no seu fruto. Primei-
ro, o que falsamente lhe prometera o diabo: a saber, que seriam
como deuses, conhecedores do bem e do mal. “Sereis”, disse o
mentiroso, “como deuses”, como é dito em Gn 3, 5. E mentiu,
porque é mentiroso e pai da mentira [cf. Jo 8, 44]. Pois Eva,
por comer do fruto, não se tornou semelhante a Deus, senão

17. O primeiro a propô-lo parece ter sido Jerônimo, seguido pela maioria dos
autores latinos até o séc. XVI. Mas há razões para pensar que o santo doutor
tivesse em mente ‘stilla’, em vez de ‘stella maris’. Entre elas, está o fato de não
ter o hebraico um nome para ‘estrela’ do qual o étimo ‘Maria’, nem mesmo
remotamente, possa ter-se originado, e Jerônimo, ao propor suas etimologias
em De nominibus hæbraicis (ML 23,842), conhecia bem línguas semíticas.
Além do que, o santo associa os étimos ‘stella maris’ e ‘mare amarum’ por
meio da partícula ‘sive’, como se fossem equivalentes, o que permite supor
que ‘stella’ seja simples variante gráfica de ‘stilla’. É possível, visto ser comum
entre os latinos a troca de ‘e’ por ‘i’, e vice-versa (cf., e.g., Quintiliano, Inst.
orat., 1.4.17).

19
COMEN TÁRIO À AVE-MARIA

mais dissemelhante, porque, ao pecar, afastou-se de Deus, seu


salvador, sendo por isso expulsa do paraíso. Mas isto [a seme-
lhança divina], encontrou-o a Virgem, como todos os cristãos,
no fruto do seu ventre; porque por Cristo nos unimos e asse-
melhamos a Deus, 1Jo 3, 2: “Quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele, porque o veremos como ele é”.

Segundo, no seu fruto Eva desejou prazer, porque era bom para
comer [cf. Gn 3, 6]; mas não o encontrou, porque logo conhe-
ceu que estava nua, donde teve dor [ou vergonha; cf. Gn 3, 7].
Mas no fruto da Virgem encontramos suavidade e salvação, Jo
6, 55: “Quem come da minha carne tem a vida eterna”.

Terceiro, o fruto de Eva era formoso aos olhos; mais belo, po-
rém, é o fruto da Virgem, a quem os anjos desejam contemplar,
Sl 44, 3: “Ultrapassas em formosura os filhos dos homens”. E
isto é assim porque ele é o esplendor da glória do Pai.

Logo, não pôde encontrar Eva em seu fruto o que tampouco o


pecador <pode encontrar> no pecado. E por isso o que deseja-
mos, busquemo-lo no fruto da Virgem.

1127. Ora, este fruto é bendito:

a) por Deus, porque de tal modo o cumulou de toda a gra-


ça, que <por meio dele> chegou <a graça> até nós: Ef
1, 3: “Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo” etc. [cf. Jo 1, 14.16s];
b) pelos anjos, em lhe mostrarem reverência, Ap 7, 12:
“Bênção, glória, sabedoria” etc.;
c) pelos homens, Fl 2, 11: “Que toda língua confesse” etc.,
Sl 117, 26: “Bendito o que vem no nome do Senhor”.

Assim, pois, é a Virgem bendita; mas o fruto dela é ainda mais


bendito etc.

20
ESQUEMA DO COMENTÁRIO

Parte do anjo:
Ave 1111-1113

A. superioridade do Anjo por 1112


a) dignidade de natureza,
b) familiaridade com Deus,
c) plenitude de esplendor e de graça;
B. superioridade de Maria por 1113
a) plenitude de graça: Cheia de graça 1114-1118
1) quanto à alma, 1114
α) em perfeição e pureza, 1115
i. positiva:
— entitative, pelos dons da graça;
— operative, pela excelência das virtudes;
ii. negativa:
— entitative, pela imunidade ao pecado;
— operative, pela ausência de vícios e
desordens;
β) mas inferior a Cristo; 1116
2) redundância própria, sobre o corpo; 1117
3) redundância universal, sobre todos os homens; 1118
b) familiaridade divina: O Senhor é contigo; 1119

21
COMEN TÁRIO À AVE-MARIA

c) pureza 1120-1124
1) da culpa, i.e. por ausência de pecado; 1120
2) da pena, i.e. das maldições do pecado
α) próprias da mulher: 1121
i. concebendo sem corrupção, i.e. virginalmente,
ii gestando com conforto e consolo,
iii. dando à luz sem dores, mas com gozo;
β) próprias do homem,
vivendo consagrada a Deus; 1122
γ) comuns a todos, sendo assunta ao céu; 1123
3) logo, bendita és tu entre as mulheres. 1124

Parte de Isabel:
Bendito é o fruto do teu ventre, 1125-1127

A. por contraposição ao de Eva 1125


1) segundo o efeito, 1126
2) segundo o deleite,
3) segundo a beleza;
B. pelo gênero de bênção: 1127
1) de Deus Pai,
2) dos anjos,
3) dos homens.

Parte da Igreja:
Maria 1110

22
INDICAÇÕES PARA LEITURA

A. Números de páginas, seções etc.


1/I; 2/II volumes divididos em tomos: e.g., t. 1 do vol. 1; t. 2
do vol. 2

1s(s) os referidos números mais o(s) seguinte(s): e.g., n. 1


e seguinte (2); ou p. 1 e seguintes (2 e 3)

10a; 10b paginação normal com colunas (a = esquerda, b =


direita): e.g., p. 10, col. esquerda; ou p. 10, col. direita

10A paginação por colunas e com subdivisão: e.g., col.


10, seção A

101-10 página com indicação de linha(s): e.g., p. 10, linhas


1 a 10

10r; 10v fólio(s) com indicação de reto ou verso: e.g., fólio 10


reto; fólio 10 verso

B. Abreviaturas
CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (Wien,
1866ss)

DH Compêndio dos símbolos, definições e declarações de


fé e moral (São Paulo, 402007), edd. Denzinger-
Hünermann

ML Patrologiæ cursus completus, series Latina, ed. J.-P.


Migne (Paris, 1844ss)

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