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sumário

Duna

Messias de Duna

Filhos de Duna
Sumário

Capa
Folha de rosto
Introdução
Dedicatória
Livro primeiro - DUNA
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Livro segundo - MUAD’DIB
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Livro Terceiro - O PROFETA
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Apêndices
Apêndice I
Apêndice II
Apêndice III
Apêndice IV
Terminologia do Imperium
Mapa
Notas cartográficas
Créditos
introdução
Publicado pela primeira vez em 1965, Duna é, em
retrospecto, o melhor dos grandes romances de ficção
científica, e o que mais se manteve relevante. Em parte, porque
a história se passa em um futuro distante, em um universo que
é radicalmente pós-computadores. Mas era também o livro
certo no momento certo – na verdade, ele estava bem à frente
de seu tempo. O escritor e jornalista Frank Herbert
compreendia a ecologia em uma escala planetária; enquanto as
pessoas começavam a pensar, falar e escrever sobre ecologia, e
sobre a vida de um planeta como um conjunto de sistemas
complexos e interconectados, Duna já estava lá, pronto para
elas.
O planeta Arrakis – a Duna do título – é um mundo onde a
água é o bem mais precioso. Nosso jovial protagonista Paul
Atreides é, a exemplo de Valentine Michael Smith, de Um
estranho numa terra estranha, um messias relutante. Ele vai
aprender sobre um planeta e sobre seus habitantes, e se
encontrará entre dois mundos.
Os pontos fortes de Duna são a profundidade da
ambientação do romance e o impacto da ecologia de Arrakis no
restante do espaço. A irmandade Bene Gesserit, os Dançarinos
Faciais Tleilaxu, a Guilda Espacial, todos têm seu lugar nesse
universo. Há bem e mal – sobretudo, na vilania de pantomima
dos Harkonnen. Aqui encontramos nobreza, tradição e
avanços conceituais, conforme o mundo fica de ponta-cabeça.
Herbert retornaria ao mundo e ao futuro de Duna em
muitos romances durante as décadas seguintes, mas sem o
foco na ecologia e no abuso de poder que havia nos primeiros
livros. (Quando eu era garoto, li a continuação Messias de Duna
– nós tínhamos um exemplar em casa. Consequentemente,
sempre considero Duna a primeira parte de um romance em
duas partes que se conclui com Messias de Duna; um romance
sobre a ascensão e queda de um salvador guerreiro, parte
Alexandre, o Grande, parte Lawrence da Arábia, parte
sacrifício místico.) E outros escreveriam mais histórias nesse
universo após a morte do autor, com rendimentos
decrescentes. Mas nenhum deles diminui as realizações e a
grandiosidade de Duna.

NEIL GAIMAN
Fevereiro de 2016
Às pessoas cuja labuta
ultrapassa as ideias e invade o
domínio do “real”: aos ecólogos
das terras áridas, onde quer
que estejam, não importa a
época, fica dedicada esta
tentativa de profecia, com
humildade e admiração.
livro primeiro
DUNA
É no início que se deve tomar, com
máxima delicadeza, o cuidado de dar às
coisas sua devida proporção. Disso toda
irmã Bene Gesserit sabe. Portanto, para
começar a estudar a vida de Muad’Dib,
tome o cuidado de primeiro situá-lo em
sua época: nascido no quinquagésimo
sétimo ano do imperador padixá
Shaddam IV. E tome o cuidado mais que
especial de colocar Muad’Dib em seu
devido lugar: o planeta Arrakis. Não se
deixe enganar pelo fato de que ele nasceu
em Caladan e ali viveu seus primeiros
quinze anos. Arrakis, o planeta conhecido
como Duna, será sempre o lugar dele.
- excerto do “Manual de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Na semana anterior à partida para Arrakis, quando a


agitação dos últimos preparativos chegara a um furor quase
insuportável, uma velha veio visitar a mãe do menino, Paul.
Era uma noite quente no Castelo Caladan, e as pedras
antigas que serviam de lar à família Atreides havia vinte e seis
gerações exalavam aquela sensação de suor resfriado que
costumavam adquirir pouco antes do tempo virar.
Fizeram a velha entrar pela porta lateral, que ficava no fim
da passagem abobadada perto do quarto de Paul, e deram-lhe
a oportunidade de espiar o jovem, deitado em sua cama.
À meia-luz de uma luminária suspensa que pairava perto
do chão, o menino, acordado, viu uma volumosa forma feminina
parada à porta, um passo à frente de sua mãe. A velha era a
sombra de uma bruxa: os cabelos eram um emaranhado de
teias de aranha a cobrir-lhe as feições obscuras, e os olhos
cintilavam feito joias.
– Ele não é pequeno para a idade, Jéssica? – perguntou a
velha. Sua voz chiava e arranhava como um baliset desafinado.
A mãe de Paul respondeu, com seu suave contralto:
– É fato conhecido que os Atreides começam a crescer
tarde, Vossa Reverência.
– Foi o que ouvi, foi o que ouvi – chiou a velha. – Mas ele já
tem 15 anos.
– Sim, Vossa Reverência.
– Está acordado e nos ouve – disse a velha. – O
tratantezinho dissimulado – ela riu disfarçadamente. – Mas a
realeza precisa ser dissimulada. E se ele for realmente o
Kwisatz Haderach... bem...
Nas sombras de sua cama, Paul tinha os olhos
semicerrados. Dois globos ovalados, pássaro-brilhantes – os
olhos da velha –, pareceram crescer e refulgir ao fitar os dele.
– Durma bem, seu tratantezinho dissimulado – disse a
velha. – Amanhã você precisará de todas as suas faculdades
para enfrentar meu gom jabbar.
E ela se foi, empurrando a mãe dele para fora do quarto e
fechando a porta com uma batida firme.
Paul ficou deitado, em vigília, perguntando-se: O que é um
gom jabbar?
Em meio a toda a confusão daquele período de mudança, a
velha foi a coisa mais estranha que ele já tinha visto.
Vossa Reverência.
E a maneira como a mulher se dirigira à mãe dele, Jéssica,
como se ela fosse uma criada comum, e não o que era de fato:
uma Bene Gesserit, a concubina de um duque e a mãe do
herdeiro ducal.
Será o gom jabbar alguma coisa de Arrakis que eu tenho de
conhecer antes de ir para lá?, ele se perguntou.
Com a boca, ele deu forma às estranhas palavras da
mulher: gom jabbar... Kwisatz Haderach...
Ele tivera de aprender tantas coisas. Arrakis era um lugar
tão diferente de Caladan que as novas informações deixaram
Paul tonto. Arrakis. Duna. Planeta Deserto.
Thufir Hawat, o Mestre dos Assassinos de seu pai,
explicara tudo: seus inimigos mortais, os Harkonnen, ficaram
em Arrakis oitenta anos, dominando o planeta em regime
semifeudal, contratados pela Companhia CHOAM para minerar
a especiaria geriátrica, o mélange. Agora os Harkonnen
estavam de partida e seriam substituídos pela Casa dos
Atreides, com poderes feudais plenos – uma aparente vitória
para o duque Leto. Contudo, dissera Hawat, sob as aparências
se escondia o mais mortal dos perigos, pois o duque Leto era
popular entre as Casas Maiores do Landsraad.
– O homem popular incita a inveja dos poderosos – dissera
Hawat.
Arrakis. Duna. Planeta Deserto.
Paul adormeceu e sonhou com uma caverna arrakina, onde
se viu completamente cercado por pessoas em silêncio, à luz
fraca dos luciglobos. Havia ali algo de solene, era como uma
catedral, e ele ouvia um som fraco: o pinga-pinga-pinga de
água. Ainda imerso no sonho, Paul sabia que se lembraria dele
ao acordar. Ele sempre se lembrava dos sonhos premonitórios.
O sonho desvaneceu.
Paul despertou e viu-se em sua cama quente, pensando...
pensando. O mundo do Castelo Caladan, sem brinquedos nem
companheiros da mesma idade, talvez não merecesse sua
tristeza quando chegasse a hora de se despedir. O dr. Yueh, seu
professor, dera a entender que o sistema de classes
faufreluches não era seguido à risca em Arrakis. O planeta
abrigava um povo que vivia na orla do deserto, sem caid nem
bashar que o governasse: um povo arisco chamado fremen,
sem registro nos censos da Régate Imperial.
Arrakis. Duna. Planeta Deserto.
Paul percebeu que estava tenso e decidiu praticar uma das
lições mentecorporais que sua mãe lhe ensinara. Acionou as
respostas com três inspirações rápidas: mergulhou na
percepção flutuante... focalizar a consciência... dilatação da
aorta... evitar o mecanismo desfocado da consciência... estar
consciente por escolha própria... o sangue enriquecido a
inundar as regiões de sobrecarga... não se obtém alimento-
segurança-liberdade somente por instinto... a consciência
animal não vai além do imediato nem penetra a ideia de que
suas vítimas podem ser extintas... o animal destrói e não
produz... os prazeres animalescos não se afastam dos níveis
sensuais e fogem aos perceptuais... o ser humano exige uma
rede de contextos para enxergar seu universo... a consciência
focalizada por escolha própria, é isso que dá forma à rede... a
integridade do corpo segue o fluxo de sangue-nervos de acordo
com a percepção mais profunda das necessidades da célula...
todas as coisas/células/criaturas são impermanentes... lutam
por uma permanência-fluência interior...
E a lição se repetiu vez após vez na percepção flutuante de
Paul.
Quando a luz amarelada da aurora tocou o parapeito da
janela de Paul, ele a sentiu através das pálpebras fechadas,
abriu-as, escutando o alvoroço reavivado do castelo, e viu as
familiares vigas decoradas do teto de seu quarto.
A porta que dava para o vestíbulo se abriu e sua mãe
espiou dentro do quarto, com os cabelos cor de bronze velho
presos no alto da cabeça por uma fita negra, a face oval
despojada de emoção e os olhos verdes fixos e solenes.
– Já está acordado – ela disse. – Dormiu bem?
– Sim.
Ele a estudou em toda a sua altura, viu um vestígio de
tensão nos ombros quando ela se pôs a escolher roupas para
ele, tirando-as das prateleiras do closet. Outra pessoa não teria
notado a tensão, mas ela o treinara na Doutrina Bene Gesserit,
nas minúcias da observação. Ela se virou, com um paletó quase
formal nas mãos. O traje ostentava o gavião vermelho, o timbre
dos Atreides, no bolso de cima.
– Vista-se rápido – ela disse. – A Reverenda Madre está
esperando.
– Sonhei com ela uma vez – comentou Paul. – Quem é ela?
– Ela foi minha professora na escola da ordem Bene
Gesserit. Agora ela é a Proclamadora da Verdade do
imperador. E Paul... – ela hesitou. – Fale-lhe de seus sonhos.
– Farei isso. Foi por causa dela que ganhamos Arrakis?
– Nós não ganhamos Arrakis – Jéssica sacudiu o pó de um
par de calças e pendurou-o com o paletó sobre o toucador ao
lado da cama. – Não faça a Reverenda Madre esperar.
Paul sentou-se sobre a cama e abraçou os joelhos.
– O que é um gom jabbar?
Mais uma vez, o treinamento que ela mesma lhe dera
expôs sua hesitação quase invisível, um ato falho que ele
interpretou como medo.
Jéssica foi até a janela, abriu as cortinas e olhou na direção
do monte Syubi, atrás dos pomares às margens do rio.
– Você saberá o que é o gom jabbar... muito em breve – ela
disse.
Ele ouviu o medo na voz dela e ficou admirado.
Jéssica falou, sem se virar:
– A Reverenda Madre está esperando em minha sala de
estar. Por favor, apresse-se.

A Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, sentada numa


cadeira atapetada, observou mãe e filho se aproximarem. De
um lado e de outro, as janelas se abriam para o rio – que fazia
uma curva acentuada para o sul – e para as terras cultivadas da
propriedade dos Atreides, mas a Reverenda Madre ignorava a
vista. A idade lhe pesava naquela manhã, e ela estava muito
mal-humorada. Culpava a viagem pelo espaço e a sociedade
com a abominável Guilda Espacial e seus métodos sigilosos.
Mas a missão exigia a atenção pessoal de uma Bene Gesserit
dotada de Visão. Nem mesmo a Proclamadora da Verdade do
imperador padixá poderia fugir à responsabilidade quando o
dever chamava.
Maldita Jéssica, pensou a Reverenda Madre. Se ao menos
tivesse nos dado uma menina, como lhe mandaram fazer.
Jéssica se deteve a três passos da cadeira e fez uma
pequena mesura, um gesto delicado da mão esquerda a mover
o vinco da saia. Paul a cumprimentou com a reverência breve
que seu instrutor de dança lhe ensinara – a mesma usada
“quando não se sabia ao certo a posição hierárquica da outra
pessoa”.
A Reverenda Madre não deixou de perceber as sutilezas
do cumprimento de Paul e disse:
– Ele é cauteloso, Jéssica.
Jéssica levou a mão ao ombro de Paul e a contraiu. Por um
instante, o medo se fez sentir na pulsação de sua palma.
Controlou-se logo em seguida.
– Assim lhe ensinaram, Vossa Reverência.
Do que ela tem medo?, Paul se perguntou.
A velha estudou Paul num relance gestáltico: o rosto oval,
como o de Jéssica, mas de ossatura forte... os cabelos: negro-
negríssimos como os do duque, mas as sobrancelhas eram as
do avô materno, que não se podia nomear, assim como o nariz
fino e desdenhoso; a forma dos olhos verdes e confrontadores:
igual à do antigo duque, o avô paterno que havia morrido.
Aquele homem, sim, sabia apreciar a força da bravura...
mesmo na morte, pensou a Reverenda Madre.
– Ensinar é uma coisa – ela disse –, o ingrediente
fundamental é outra. Veremos. – Os olhos cansados lançaram
um olhar duro para Jéssica. – Saia. Vá praticar a meditação da
paz.
Jéssica soltou o ombro de Paul.
– Vossa Reverência, eu...
– Jéssica, você sabe que tem de ser feito.
Paul ergueu os olhos e fitou a mãe, confuso.
Jéssica se empertigou.
– Sim... claro.
Paul voltou a olhar para a Reverenda Madre. A boa
educação e o óbvio temor que sua mãe nutria pela velha
pediam cautela. Mesmo assim, ele sentia uma apreensão
zangada diante do medo que sua mãe irradiava.
– Paul... – Jéssica inspirou profundamente. – O teste ao
qual você está prestes a se submeter... é importante para mim.
– Teste? – ele a encarou.
– Não se esqueça de que é filho de um duque – Jéssica
disse. Ela deu meia-volta e saiu pomposamente da sala, ao som
seco e rumorejante de sua saia. A porta se fechou com firmeza
tão logo ela saiu.
Contendo a raiva, Paul encarou a velha.
– É assim que se dispensa lady Jéssica, como se ela fosse
uma criada?
Um sorriso perturbou os cantos da boca velha e enrugada.
– Lady Jéssica foi minha criada na escola, rapaz, durante
catorze anos. – Inclinou a cabeça. – E era muito boa. Agora,
venha aqui!
A ordem o atingiu como uma chicotada. Paul se viu
obedecendo sem pensar. Está usando a Voz comigo, ele
pensou. Deteve-se a um gesto da mulher, bem perto de seus
joelhos.
– Está vendo isto? – ela perguntou.
Das pregas de suas vestes ela retirou um cubo de metal
verde com cerca de quinze centímetros de lado. Ela o girou, e
Paul viu que um dos lados do cubo estava aberto – era negro e
estranhamente assustador. A luz não penetrava aquele negror
escancarado.
– Insira a mão direita na caixa – ela disse.
O medo tomou Paul de assalto. Ele começou a recuar, mas
a velha disse:
– É assim que obedece a sua mãe?
Ele fitou os olhos pássaro-brilhantes.
Lentamente, sentindo a compulsão e incapaz de inibi-la,
Paul introduziu a mão na caixa. Sentiu primeiro uma frialdade,
como se o negror se fechasse em volta de sua mão, depois o
contato oleoso do metal em seus dedos e um formigamento,
como se sua mão estivesse dormente.
A fisionomia da velha foi tomada por uma expressão de
predador. Ela tirou sua mão direita da caixa e a deixou pairar
perto do pescoço de Paul. Ele viu um brilho metálico e começou
a se virar na direção...
– Pare! – ela gritou.
Está usando a Voz de novo! Ele voltou a fitar o rosto da
mulher.
– Seguro contra seu pescoço o gom jabbar – ela disse. – O
gom jabbar, o inimigo despótico. É uma agulha com uma gota
de veneno na ponta. A-ah! Não se afaste, ou então provará o
veneno.
Paul tentou engolir em seco. Não conseguia desviar os
olhos daquele rosto velho e enrugado, dos olhos cintilantes,
das gengivas lívidas em volta de dentes argênteos, que
refulgiam quando ela falava.
– O filho de um duque precisa conhecer os venenos – ela
disse. – Assim são os tempos em que vivemos, hein? Musky,
para envenenar a bebida. Aumas, para envenenar a comida. Os
de efeito rápido, os de efeito lento e os intermediários.
Apresento-lhe um novo: o gom jabbar. Só mata animais.
O orgulho venceu o medo de Paul.
– Ousa sugerir que o filho de um duque é um animal? – ele
indagou.
– Digamos que estou sugerindo que você talvez seja
humano – ela retrucou. – Calma! Um aviso: não tente se
desvencilhar. Sou velha, mas minha mão é capaz de enfiar esta
agulha em seu pescoço antes de você escapar.
– Quem é você? – ele sussurrou. – Como foi que convenceu
minha mãe a me deixar a sós com você? Foi enviada pelos
Harkonnen?
– Os Harkonnen? Valha-me, não! Agora, fique quieto. – Um
dedo seco tocou-lhe o pescoço e ele conteve o impulso
involuntário de saltar para longe.
– Ótimo – ela disse. – Você passou no primeiro teste.
Agora, eis como será o resto: se remover a mão da caixa, você
morrerá. Essa é a única regra. Mantenha a mão dentro da caixa
e você viverá. Retire-a e morrerá.
Paul inspirou fundo, para refrear o tremor.
– Se eu gritar, os criados cairão sobre você em questão de
segundos, e você morrerá.
– Os criados não conseguirão passar por sua mãe, que está
de guarda do outro lado daquela porta. Pode contar com isso.
Sua mãe sobreviveu ao teste. Agora é sua vez. Sinta-se
honrado. Raramente submetemos as crianças do sexo
masculino a esta prova.
A curiosidade reduziu o medo de Paul a um nível
controlável. Ele ouvira a verdade na voz da anciã, não havia
como negar. Se sua mãe estava de guarda lá fora... se era
realmente um teste... e o que quer que fosse, ele sabia que
estava enredado, era prisioneiro daquela mão em seu pescoço:
o gom jabbar. Ele se lembrou da resposta da Litania contra o
Medo, extraída do rito das Bene Gesserit, que sua mãe lhe
havia ensinado.
Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena
morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo.
Permitirei que passe por cima e através de mim. E, quando tiver
passado, voltarei o olho interior para ver seu rastro. Onde o
medo não estiver mais, nada haverá. Somente eu restarei.
Ele sentiu a calma voltar e disse:
– Vamos logo com isso, velha.
– Velha! – ela ralhou. – Você tem coragem, isso é inegável.
Bem, veremos, meu senhor. – Ela se inclinou na direção dele e
abaixou a voz, reduzindo-a quase a um sussurro. – Você sentirá
dor nessa mão dentro da caixa. Dor. Mas, se retirá-la, tocarei
seu pescoço com meu gom jabbar... e a morte será tão rápida
quanto o machado do carrasco. Se remover a mão, o gom
jabbar tomará sua vida. Entendeu?
– O que há na caixa?
– Dor.
Ele sentiu o formigamento na mão aumentar e apertou os
lábios. Como é que isto pode ser um teste?, ele se perguntou. O
formigamento se transformou em coceira.
A velha disse:
– Já ouviu falar de animais que roem a pata para escapar
de uma armadilha? É o tipo de truque que um animal usaria.
Um ser humano ficaria preso, resistiria à dor e fingiria estar
morto, para que pudesse matar o caçador e acabar com essa
ameaça a sua espécie.
A coceira transformou-se na mais leve ardência.
– Por que está fazendo isto? – ele indagou.
– Para determinar se você é humano. Fique quieto.
Paul cerrou o punho da mão esquerda quando a sensação
de ardência na outra mão aumentou. Ela crescia aos poucos:
calor, e mais calor... e mais calor. Sentiu as unhas da mão livre
perfurarem-lhe a palma. Tentou flexionar os dedos da mão que
queimava, mas não conseguiu movê-los.
– Está queimando – ele murmurou.
– Silêncio!
A dor latejante subiu-lhe pelo braço. O suor brotou de sua
testa. Cada fibra de seu corpo gritava para que ele removesse a
mão daquele fosso ardente... mas... o gom jabbar. Sem virar a
cabeça, ele tentou mover os olhos para ver aquela agulha
terrível que pairava perto de seu pescoço. Percebeu que
ofegava, tentou acalmar a respiração e não conseguiu.
Dor!
Seu mundo se esvaziou de todo, a não ser por aquela mão
imersa em agonia, e o rosto envelhecido, a poucos centímetros
de distância, perscrutando-o.
Seus lábios estavam tão secos que ele teve dificuldade
para separá-los.
Como queima! Como queima!
Em sua mente, sentiu a pele da mão torturada encaracolar
e enegrecer, e a carne crestada cair até restarem somente
ossos carbonizados.
E então cessou!
Como se tivessem desligado um interruptor, a dor cessou.
Paul sentiu o braço direito estremecer, sentiu o suor
banhar seu corpo.
– Já basta – murmurou a velha. – Kull wahad! Até hoje,
nenhuma criança do sexo feminino teve de aguentar tanto
tempo. Acho que eu queria ver você fracassar. – Ela se reclinou,
retirando o gom jabbar do pescoço dele. – Tire a mão da caixa,
jovem humano, e dê uma olhada nela.
Ele resistiu a um calafrio dolorido, fitou o vazio sem luz
onde sua mão parecia continuar por vontade própria. A
lembrança da dor inibia-lhe todos os movimentos. A razão lhe
dizia que veria sair daquela caixa um coto enegrecido.
– Vamos! – ela gritou.
Ele tirou a mão da caixa e a observou, atônito. Nenhuma
marca. Nenhum sinal de agonia na pele. Ergueu a mão, girou-a,
flexionou os dedos.
– Dor por indução nervosa – ela disse. – Não podemos sair
por aí mutilando possíveis seres humanos. Mas há quem daria
uma boa soma pelo segredo desta caixa. – Ela devolveu o cubo
às pregas de suas vestes.
– Mas a dor... – ele disse.
– Ora, a dor – ela desdenhou. – O ser humano é capaz de
dominar qualquer nervo do corpo.
Paul sentiu a mão esquerda dolorida, abriu-a, olhou para
as quatro marcas de sangue onde as unhas haviam perfurado
sua palma. Deixou a mão cair ao lado do corpo, olhou para a
velha.
– Você já fez isso com minha mãe?
– Já peneirou areia? – ela perguntou.
A cutilada tangencial da pergunta arremessou sua mente
num estado mais elevado de percepção. Peneirar areia. Ele
assentiu.
– Nós, Bene Gesserit, peneiramos as pessoas à procura de
seres humanos.
Ele ergueu a mão direita, tentando evocar a lembrança da
dor.
– E tudo se resume a isto: dor?
– Observei você enquanto sentia dor, rapaz. A dor é
somente o eixo do teste. Sua mãe lhe falou de nossos métodos
de observação. Vejo em você as marcas dos ensinamentos dela.
Nosso teste é feito de crise e observação.
Ele ouviu a confirmação na voz dela e disse:
– É verdade!
Ela o encarou. Ele pressente a verdade! Seria ele o tal? Seria
realmente ele? Conteve seu entusiasmo, lembrando a si mesma:
A esperança turva a observação.
– Você sabe quando as pessoas acreditam no que dizem –
ela disse.
– Sei.
Ele tinha na voz os harmônicos da habilidade confirmada
pela repetição. Ela os ouviu e disse:
– Talvez você seja o Kwisatz Haderach. Sente-se,
irmãozinho, aqui a meus pés.
– Prefiro ficar de pé.
– Sua mãe já se sentou a meus pés.
– Não sou minha mãe.
– Você nos odeia um pouco, não? – Ela olhou para a porta e
chamou: – Jéssica!
A porta se escancarou e ali estava Jéssica, olhando com
frieza para dentro do aposento. O gelo derreteu quando ela viu
Paul. Ela esboçou um sorriso tímido.
– Jéssica, você deixou alguma vez de me odiar? – a velha
perguntou.
– Eu a amo e odeio ao mesmo tempo – Jéssica respondeu. –
Ódio, pelas dores que nunca esquecerei. Amor, por...
– Atenha-se ao essencial – disse a velha, embora houvesse
cortesia em sua voz. – Pode entrar agora, mas fique em silêncio.
Feche a porta e cuide para que ninguém nos interrompa.
Jéssica entrou, fechou a porta e nela se recostou. Meu filho
vive, pensou. Meu filho vive e é... humano. Eu sabia que era...
mas... ele vive. Agora posso continuar vivendo. A porta contra
suas costas dava-lhe a sensação de solidez e realidade. Tudo no
recinto parecia, a seus sentidos, imediato e urgente.
Meu filho vive.
Paul olhou para a mãe. Ela disse a verdade. Ele queria ir
embora para refletir sobre aquela experiência, mas sabia que
só poderia sair quando fosse dispensado. A velha havia
adquirido uma espécie de poder sobre ele. Elas disseram a
verdade. Sua mãe tinha se submetido àquele teste. Devia haver
nisso um propósito terrível... a dor e o medo foram terríveis.
Paul entendia os propósitos terríveis. Eram irrefreáveis. Eram
uma necessidade em si mesmos. Paul sentiu-se infectado por
um propósito terrível. Não sabia ainda qual.
– Um dia, rapaz – disse a velha –, talvez você também tenha
de ficar atrás de uma porta como aquela. É uma questão de
hábito.
Paul baixou os olhos e fitou a mão que conhecera a dor,
depois voltou a erguê-los, dirigindo-os à Reverenda Madre. O
som da voz dela era diferente do de qualquer outra voz que ele
já tivesse ouvido na vida. As palavras lhe saíam luminosas.
Havia nelas uma agudeza. Sentiu que qualquer pergunta que
fizesse a ela produziria uma resposta capaz de alçá-lo de seu
mundo de carne e levá-lo a algo maior.
– Por que estão à procura de seres humanos? – ele
perguntou.
– Para libertar vocês.
– Libertar?
– Um dia os homens entregaram a própria razão às
máquinas, esperando que isso os libertasse. Mas só se
deixaram escravizar por outros homens com máquinas.
– “Não criarás uma máquina à semelhança da mente de um
homem” – citou Paul.
– É o que dizem o Jihad Butleriano e a Bíblia Católica de
Orange – ela disse. – Mas a Bíblia C. O. deveria ter dito: “Não
criarás uma máquina para imitar a mente humana”. Já estudou
o Mentat a seu serviço?
– Eu estudei com Thufir Hawat.
– A Grande Rebelião removeu uma muleta – ela continuou.
– Obrigou a mente humana a se desenvolver. As escolas foram
fundadas para treinar os talentos humanos.
– As escolas das Bene Gesserit?
Ela assentiu.
– Temos dois grandes remanescentes dessas escolas
antigas: as Bene Gesserit e a Guilda Espacial. A Guilda, ao que
nos parece, ressalta a matemática quase pura. As Bene
Gesserit exercem uma outra função.
– Política – ele disse.
– Kull wahad! – exclamou a velha, lançando um olhar duro
para Jéssica.
– Nunca contei isso a ele, Vossa Reverência – disse Jéssica.
A Reverenda Madre voltou sua atenção para Paul.
– Deduziu isso com pouquíssimas pistas – ela comentou. –
Sim, política. A escola original das Bene Gesserit era dirigida
por pessoas que julgaram necessário dar continuidade aos
interesses humanos. Viram que não poderia haver tal
continuidade sem que se separasse a linhagem humana da
linhagem animal, para fins reprodutivos.
De repente, as palavras da velha perderam sua agudeza
especial. Paul sentiu-se ofendido naquilo que sua mãe chamava
de instinto de honestidade. Não que a Reverenda Madre
estivesse mentindo. Ela obviamente acreditava no que dizia.
Era algo mais profundo, algo ligado ao propósito terrível de
Paul.
Ele disse:
– Mas minha mãe me contou que, nas escolas, muitas Bene
Gesserit desconhecem seus ancestrais.
– As linhagens genéticas estão em nossos arquivos – ela
explicou. – Sua mãe sabe que descende de uma Bene Gesserit
ou que sua estirpe era aceitável.
– Então por que ela não sabe quem são seus pais?
– Algumas sabem... Muitas, não. Poderíamos querer
procriá-la com um parente próximo, por exemplo, para fixar
uma característica genética dominante. Temos vários motivos.
Mais uma vez, Paul sentiu ali um crime contra a
honestidade e disse:
– Vocês têm grandes responsabilidades.
A Reverenda Madre o fitou, perguntando-se: Será que ouvi
uma crítica na voz dele?
– Nosso fardo é pesado – ela disse.
Paul percebeu que ia se livrando cada vez mais da
comoção do teste. Ele mediu a velha com o olhar e perguntou:
– Você disse que talvez eu seja o... Kwisatz Haderach. O
que é isso, um gom jabbar humano?
– Paul! – interveio Jéssica. – Não use esse tom com...
– Deixe que eu cuido disso, Jéssica – cortou a velha. – Ora,
meu rapaz, você conhece a droga da Proclamadora da
Verdade?
– Vocês a tomam para aprimorar o dom de detectar
mentiras – ele respondeu. – Minha mãe me contou.
– Você já viu o transe da verdade?
Ele chacoalhou a cabeça.
– Não.
– A droga é perigosa – ela disse –, mas nos concede a
intuição. Agraciada com a dádiva da droga, a Proclamadora da
Verdade enxerga muitos lugares de sua memória, a memória de
seu corpo. Estudamos inúmeras vias do passado... mas
somente as vias femininas. – A voz dela assumiu um tom
tristonho. – Mas há um lugar que nenhuma Proclamadora da
Verdade enxerga. Ele nos repele e aterroriza. Dizem que um dia
virá um homem que encontrará no dom da droga seu olho
interior. Ele verá o que não podemos ver: o passado feminino e
o masculino.
– Seu Kwisatz Haderach?
– Sim, aquele que é capaz de estar em muitos lugares ao
mesmo tempo: o Kwisatz Haderach. Muitos homens provaram
a droga... muitos mesmo, mas nenhum teve êxito.
– Eles tentaram e fracassaram, todos eles?
– Ah, não. – Ela meneou a cabeça. – Eles tentaram e
morreram.
Tentar entender Muad’Dib sem entender
seus inimigos mortais, os Harkonnen, é
tentar enxergar a Verdade sem conhecer
a Mentira. É tentar ver a Luz sem
conhecer a Escuridão. Não é possível.
- excerto do “Manual de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Era o globo em relevo de um planeta, parcialmente


escondido nas sombras, que girava, impelido por uma mão
gorda e cheia de anéis brilhantes. O globo descansava sobre
um pedestal assimétrico, junto a uma das paredes de uma sala
sem janelas em que as outras paredes apresentavam um
mosaico de pergaminhos, bibliofilmes, fitas e rolos de película
multicoloridos. A sala era iluminada por esferas douradas que
pairavam em campos suspensores portáteis.
Uma escrivaninha elipsoide, com tampo de madeira de
elacca petrificada, cor rosa-jade, erguia-se no centro da sala.
Ao redor havia cadeiras veriformes suspensas, e duas delas
estavam ocupadas. Na primeira, sentava-se um jovem de
cabelos escuros, por volta dos 16 anos, de face redonda e olhos
soturnos. A outra sustentava um homem esguio, baixo e de
rosto efeminado.
Tanto o jovem quanto o homem olhavam fixamente para o
globo e para o homem meio escondido nas sombras que o fazia
girar.
Uma risada soou ao lado do globo. E do riso saiu uma
retumbante voz de baixo:
– Aí está, Piter: a maior ratoeira da história. E o duque
segue direto para a armadilha. Não é magnífico o que estou
fazendo, eu, o barão Vladimir Harkonnen?
– Certamente, barão – disse o homem. Sua voz era a de um
tenor, com um timbre delicado e musical.
A mão gorda baixou sobre o globo e o deteve. Agora todos
os olhos presentes na sala poderiam se concentrar naquela
superfície imóvel e ver que era o tipo de globo feito para os
colecionadores ricos ou os governadores planetários do
Império. Tinha nele a marca característica do artesanato
imperial. As linhas de latitude e longitude foram assentadas
com finíssimos fios de platina. As calotas polares eram
incrustações dos mais belos diamantes leite-nebulosos.
A mão gorda se moveu, traçando os pormenores da
superfície.
– Convido vocês a observar – ribombou a voz de baixo. –
Observe de perto, Piter, e você também, Feyd-Rautha, meu
querido: de sessenta graus norte a setenta graus sul, estas
ondulações primorosas. A cor: não lembra deliciosos
caramelos? E em lugar nenhum se vê o azul de lagos, rios ou
mares. E estas calotas polares adoráveis: tão pequenas. Seria
possível confundir este lugar com algum outro? Arrakis!
Genuinamente singular. Um cenário soberbo para uma vitória
singular.
Um sorriso roçou os lábios de Piter.
– E pensar, barão, que o imperador padixá acredita ter
dado ao duque o planeta da especiaria, que pertence ao barão.
Que conveniente.
– Que declaração absurda – ribombou o barão. – Você diz
isso para confundir o jovem Feyd-Rautha, mas não é necessário
confundir meu sobrinho.
O jovem de rosto soturno se mexeu, alisou uma prega dos
trajes justos e pretos que vestia. Endireitou-se na cadeira
quando uma batida discreta à porta da parede atrás dele se fez
ouvir.
Piter desvencilhou-se de sua cadeira, foi até a porta,
entreabriu-a o suficiente para receber um cilindro de
mensagens. Fechou a porta, desenrolou o cilindro e correu os
olhos por ele. Ouviu-se sua risada breve. E mais uma.
– E então? – indagou o barão.
– O idiota nos respondeu, barão!
– E quando foi que um Atreides deixou passar a
oportunidade de se exibir? – perguntou o barão. – E então, o
que diz ele?
– Ele é muito descortês, barão. Trata-o por “Harkonnen”, e
não por “Sire et Cher Cousin”, sem títulos, nada.
– É um bom nome – o barão grunhiu, e sua voz denunciava
impaciência. – O que diz o caro Leto?
– Diz ele: “Declino seu convite para uma reunião. Já
enfrentei várias vezes sua deslealdade, e isso é fato conhecido”.
– E? – perguntou o barão.
– Diz ele: “A arte da kanly ainda tem admiradores no
Império”. E assina: “Duque Leto de Arrakis”. – Piter começou a
gargalhar. – De Arrakis! Que coisa! É engraçado demais para
ser verdade!
– Silêncio, Piter – disse o barão, e a gargalhada cessou
como se um interruptor a desligasse. – Kanly, é? – fez o barão. –
Vendeta, hein? E ele usa o bom e velho termo, tão impregnado
de tradição, para garantir que eu entenda que ele está falando
sério.
– O gesto de paz partiu do barão – disse Piter. – As
formalidades foram respeitadas.
– Para um Mentat, você fala demais, Piter – disse o barão. E
pensou: Tenho de me livrar logo desse aí. Quase já não tem mais
serventia. O barão fitou seu assassino Mentat, do outro lado da
sala, e viu nele a característica na qual a maioria das pessoas
reparava primeiro: os olhos, duas fendas escuras de azul sobre
azul, os olhos que de branco não tinham nada.
Um sorriso largo iluminou o rosto de Piter. Era como o
esgar de uma máscara sob aqueles olhos fundos.
– Mas, barão! A vingança nunca foi tão bela. Nunca se viu
um plano de tão refinada perfídia: fazer Leto trocar Caladan
por Duna, e sem outra alternativa, pois é o imperador que o
ordena. O barão é um pândego!
Com frieza na voz, o barão disse:
– Você sofre de diarreia verbal, Piter.
– Mas sou feliz, meu barão. Ao passo que o barão... o barão
tem é inveja.
– Piter!
– A-ah, barão! Não é lamentável que não tenha sido capaz
de arquitetar essa trama deliciosa sozinho?
– Um dia desses ainda mando estrangular você, Piter.
– Tenho certeza de que sim, barão. Enfim! Mas uma boa
ação sempre vale a pena, não é?
– Você andou mascando verité ou semuta, Piter?
– A verdade destemida surpreende o barão – disse Piter.
Seu rosto se reduziu à caricatura de uma máscara ranzinza. –
Ah-rá! Mas veja só, barão, sendo eu um Mentat, sei quando
mandará o executor. O barão irá se conter enquanto eu for útil.
Agir antes disso seria um desperdício, e ainda tenho muita
serventia. Sei o que aprendeu com aquele adorável planeta
Duna: nada de desperdício. Não é verdade, barão?
O barão continuou a encarar Piter.
Feyd-Rautha se contorceu em sua cadeira. Esses idiotas
brigões!, pensou. Meu tio não é capaz de conversar com seu
Mentat sem discutir. Será que acham que eu não tenho nada a
fazer, a não ser ouvir seus bate-bocas?
– Feyd – disse o barão. – Eu disse a você para escutar e
aprender quando o convidei para esta reunião. Está
aprendendo?
– Sim, tio – a voz lhe saiu cautelosamente submissa.
– Às vezes eu me espanto com Piter – disse o barão. –
Causo sofrimento por necessidade, mas ele... posso jurar que
ele se delicia com isso. Quanto a mim, tenho pena do pobre
duque Leto. O dr. Yueh logo irá traí-lo e será o fim dos Atreides.
Mas é certo que Leto saberá quem instruiu o dócil doutor... e
saber disso será uma coisa terrível.
– Então por que não instruiu o médico a enfiar um kindjal
entre as costelas de Leto, o que seria mais discreto e eficaz? –
Piter perguntou. – Você diz ter pena, mas...
– O duque precisa saber que fui eu o causador de sua ruína
– disse o barão. – E isso tem de chegar aos ouvidos das outras
Casas Maiores. Saber disso as fará pensar duas vezes.
Ganharei um pouco mais de espaço de manobra. A
necessidade é óbvia, mas não preciso gostar disso.
– Espaço de manobra – desdenhou Piter. – O imperador já
está de olho no barão. O barão age com demasiada audácia. Um
dia desses, o imperador mandará uma ou duas legiões de seus
Sardaukar descer aqui em Giedi Primo, e será o fim do barão
Vladimir Harkonnen.
– Você adoraria ver isso acontecer, não é, Piter? – o barão
perguntou. – Você teria prazer em ver o Corpo dos Sardaukar
pilhar minhas cidades e saquear meu castelo. Você realmente
adoraria isso.
– E o barão ainda pergunta? – murmurou Piter.
– Você deveria ser bashar da corporação – disse o barão. –
Gosta demais de sangue e dor. Talvez eu tenha me precipitado
ao prometer os despojos de Arrakis.
Piter deu cinco passos curiosamente afetados pela sala e
parou bem atrás de Feyd-Rautha. Havia uma atmosfera tensa
no recinto, e o jovem ergueu os olhos na direção de Piter, com o
cenho preocupado e franzido.
– Não brinque com Piter, barão – disse o Mentat. – Você me
prometeu lady Jéssica. Você a prometeu para mim.
– Para quê, Piter? – perguntou o barão. – Dor?
Piter o encarou, prolongando o silêncio.
Feyd-Rautha moveu sua cadeira suspensa de lado e disse:
– Tio, tenho mesmo de ficar? Disse que...
– Meu querido Feyd-Rautha está ficando impaciente – o
barão disse. Ele se mexeu nas sombras ao lado do globo. –
Paciência, Feyd. – Voltou sua atenção mais uma vez para o
Mentat. – E quanto ao duquezinho, o menino Paul, meu caro
Piter?
– A armadilha irá trazê-lo até o barão – Piter resmungou.
– Não foi isso que perguntei – disse o barão. – Você deve se
lembrar de ter predito que a bruxa Bene Gesserit daria uma
filha ao duque. Você errou, hein, Mentat?
– Eu não costumo errar, barão – Piter disse e, pela primeira
vez, havia medo em sua voz. – Admita: eu não costumo errar. E
o barão bem sabe que a maioria dessas Bene Gesserit tem
filhas. Até mesmo a consorte do imperador só gerou mulheres.
– Tio – disse Feyd-Rautha –, você falou que havia algo
importante aqui para eu...
– Ouça só o meu sobrinho – disse o barão. – Ele almeja
controlar meu baronato, mas não consegue controlar a si
mesmo. – O barão se mexeu ao lado do globo, uma sombra
entre sombras. – Muito bem, então, Feyd-Rautha Harkonnen,
eu o convoquei esperando ensinar-lhe alguma coisa. Observou
nosso bom Mentat? Deve ter aprendido algo com nossa
conversa.
– Mas, tio...
– Um Mentat eficientíssimo, o Piter, não acha, Feyd?
– Sim, mas...
– Ah! Mas, de fato! Mas ele consome muita especiaria,
devora-a feito doce. Veja os olhos dele! Poderia ter saído
diretamente do proletariado arrakino. Eficiente, o Piter, mas
ele ainda é emotivo e propenso a acessos passionais. Eficiente,
o Piter, mas ele ainda é capaz de errar.
Piter falou num tom grave e soturno:
– Chamou-me aqui para depreciar minha eficiência com
críticas, barão?
– Depreciar sua eficiência? Você sabe que eu não faria isso,
Piter. Desejo apenas que meu sobrinho entenda as limitações
de um Mentat.
– Já está treinando meu substituto? – Piter indagou.
– Substituir você? Ora, Piter, onde eu encontraria outro
Mentat com sua astúcia e seu veneno?
– No mesmo lugar onde me encontrou, barão.
– Talvez eu devesse tentar – o barão contemplou a ideia. –
Você parece mesmo um pouco instável ultimamente. E a
especiaria toda que come!
– Meus prazeres são caros demais, barão? Faz alguma
objeção a eles?
– Meu caro Piter, seus prazeres são o que o prendem a
mim. Como eu poderia fazer objeção a isso? Simplesmente
desejo que meu sobrinho observe essa característica em você.
– Então estou em exposição – Piter disse. – Querem que eu
dance? Que eu desempenhe minhas várias funções para o
ilustre Feyd-Rau...
– Exatamente – disse o barão. – Você está em exposição.
Agora, faça silêncio. – Ele olhou de relance para Feyd-Rautha,
reparando nos lábios do sobrinho, cheios e salientes, o
marcador genético dos Harkonnen, agora ligeiramente
retorcidos de graça. – Isto é um Mentat, Feyd. Foi treinado e
condicionado para desempenhar certos deveres. Contudo, não
se deve ignorar o fato de que está encerrado num corpo
humano. Um inconveniente grave, esse. Às vezes acho que os
antigos, com suas máquinas pensantes, é que estavam certos.
– Não passavam de brinquedos comparadas a mim – Piter
rosnou. – O barão mesmo conseguiria superar aquelas
máquinas.
– Talvez – disse o barão. – Ah, bem... – Inspirou
profundamente, arrotou. – Agora, Piter, resuma para meu
sobrinho os aspectos mais importantes de nossa campanha
contra a Casa dos Atreides. Seja nosso Mentat, por favor.
– Barão, eu avisei para não confiar essa informação a
alguém tão jovem. Minhas observações...
– Cabe a mim julgar isso – disse o barão. – Estou lhe dando
uma ordem, Mentat. Desempenhe uma de suas várias funções.
– Que seja – Piter disse. Ele se empertigou, assumindo uma
estranha postura de dignidade, como se fosse mais uma
máscara, dessa vez a cobrir-lhe o corpo todo. – Daqui a alguns
dias-padrão, toda a família do duque Leto irá embarcar numa
nave de carreira da Guilda Espacial rumo a Arrakis. A Guilda os
deixará na cidade de Arrakina, e não em nossa Cartago. O
Mentat do duque, Thufir Hawat, terá concluído corretamente
que Arrakina é mais fácil de defender.
– Preste atenção, Feyd – disse o barão. – Observe os planos
dentro de planos dentro de planos.
Feyd-Rautha assentiu com a cabeça, pensando: Agora,
sim. O monstrengo velho está finalmente me colocando a par de
alguns segredos. Deve ser porque realmente me quer como seu
herdeiro.
– São várias as possibilidades tangenciais – Piter disse. –
Eu prevejo que a Casa Atreides irá para Arrakis. No entanto,
não devemos ignorar a possibilidade de que o duque tenha
contratado a Guilda para levá-lo a um local seguro fora do
Sistema. Em circunstâncias semelhantes, outras Casas
desertaram, levando suas armas atômicas e seus escudos,
fugindo para longe do alcance do Imperium.
– O duque é um homem orgulhoso demais para isso – disse
o barão.
– É uma possibilidade – Piter disse. – Contudo, o resultado
final, para nós, seria o mesmo.
– Não seria, não! – grunhiu o barão. – Eu o quero morto e
sua estirpe extinta.
– Isso é mais provável – Piter disse. – Certos preparativos
indicam quando uma Casa vai desertar. O duque não parece
estar fazendo nada disso.
– Então – o barão suspirou. – Continue, Piter.
– Em Arrakina – Piter disse –, o duque e sua família irão
ocupar a Residência Oficial, que há pouco tempo era o lar do
conde Fenring e de sua esposa.
– O Embaixador dos Contrabandistas – riu o barão.
– Embaixador do quê? – perguntou Feyd-Rautha.
– Seu tio fez uma piada – Piter disse. – Ele chama o conde
Fenring de Embaixador dos Contrabandistas, indicando o
interesse do imperador no contrabando em Arrakis.
Feyd-Rautha dirigiu um olhar confuso para o tio.
– Por quê?
– Não seja estúpido, Feyd – retrucou o barão. – Enquanto,
para todos os efeitos, a Guilda continuar fora do controle
imperial, como poderia ser diferente? De que outra maneira os
espiões e assassinos conseguiriam andar por aí?
A boca de Feyd-Rautha fez um mudo “hããã”.
– Preparamos algumas distrações na Residência Oficial –
disse Piter. – Haverá um atentado contra a vida do herdeiro
Atreides, um atentado que pode muito bem ter êxito.
– Piter – o barão ribombou –, você previu...
– Eu previ que acidentes eram possíveis – Piter disse. – E o
atentado tem de parecer legítimo.
– Ah, mas o rapaz tem um corpo tão jovem e saboroso –
disse o barão. – Naturalmente, ele pode ser mais perigoso que o
pai... treinado como vem sendo por sua mãe bruxa. Mulher
maldita! Ah, bem, por favor, Piter, continue.
– Hawat acabará adivinhando que temos um agente
infiltrado – Piter disse. – O suspeito óbvio é o dr. Yueh, que é, de
fato, nosso agente. Mas Hawat já o investigou e descobriu que
nosso médico é formado pela Escola Suk e foi submetido ao
Condicionamento Imperial: é supostamente seguro o bastante
para atender até mesmo o imperador. Dá-se grande
importância ao Condicionamento Imperial. Supõe-se que não
seja possível remover o condicionamento definitivo sem matar
o indivíduo. Contudo, como alguém já disse, é possível mover
um planeta com a alavanca certa. Encontramos a alavanca para
mover o médico.
– Como? – Feyd-Rautha perguntou. Achou o assunto
fascinante. Todo mundo sabia ser impossível subverter o
Condicionamento Imperial!
– Fica para outra vez – disse o barão. – Continue, Piter.
– No lugar de Yueh – Piter disse –, colocaremos no caminho
de Hawat um suspeito interessantíssimo. A própria audácia
dessa mulher chamará a atenção de Hawat.
– Mulher? – Feyd-Rautha perguntou.
– Lady Jéssica em pessoa – disse o barão.
– Não é sublime? – Piter perguntou. – A mente de Hawat
estará tão às voltas com essa possibilidade, que isso
prejudicará suas funções como Mentat. Pode ser até que tente
matá-la. – Piter franziu o cenho e acrescentou: – Mas não pense
que ele terá êxito.
– Você não quer que ele faça isso, não é? – o barão
perguntou.
– Não me distraia – Piter disse. – Enquanto Hawat estiver
ocupado com lady Jéssica, desviaremos ainda mais sua
atenção com insurreições em algumas vilas fortificadas etc.
Elas serão debeladas. É preciso que o duque acredite obter um
certo grau de segurança. Então, quando chegar a hora,
mandaremos um sinal para Yueh e atacaremos com nossa
força principal... ah...
– Vá em frente, conte-lhe tudo – disse o barão.
– Atacaremos reforçados por duas legiões de Sardaukar
vestindo os uniformes da Casa Harkonnen.
– Sardaukar! – murmurou Feyd-Rautha. Sua mente se
concentrou nas temidas tropas imperiais, nos assassinos
impiedosos, nos fanáticos-soldados do imperador padixá.
– Veja como confio em você, Feyd – disse o barão. –
Nenhum sinal dessa trama jamais deverá chegar aos ouvidos
de uma outra Casa Maior, senão o Landsraad pode se unir
contra a Casa Imperial, e será o caos.
– O principal – disse Piter – é que, como a Casa Harkonnen
está sendo usada para fazer o serviço sujo do Império,
ganharemos uma vantagem de verdade. É uma vantagem
perigosa, claro, mas, se usada com cuidado, trará mais dinheiro
à Casa Harkonnen do que a qualquer outra Casa do Imperium.
– Você não faz ideia do montante envolvido, Feyd – disse o
barão. – Nem em seus sonhos mais absurdos. Para começar,
teremos um cargo irrevogável na diretoria da Companhia
CHOAM.
Feyd-Rautha concordou com a cabeça. Dinheiro era tudo.
A CHOAM era a chave para o dinheiro, pois todas as Casas
nobres tiravam o que podiam dos cofres da empresa, valendo-
se da autoridade de seus diretores. Esses cargos de diretoria
da CHOAM... eles eram a prova real de poder político no
Imperium e trocavam de mãos acompanhando a inconstância
da força dos votos no Landsraad, que tentava se equiparar ao
imperador e seus partidários.
– O duque Leto – Piter disse – talvez tente pedir asilo à
nova ralé fremen na orla do deserto. Ou pode ser que tente
mandar sua família para essa ilusão de segurança. Mas essa
rota será bloqueada por um dos agentes de Sua Majestade: o
ecólogo planetário. Você talvez se lembre dele: Kynes.
– Feyd se lembra dele – disse o barão. – Continue.
– Babar é muito feio, barão – disse Piter.
– Continue, estou mandando! – o barão berrou.
Piter deu de ombros.
– Se tudo sair como o planejado – ele disse –, a Casa
Harkonnen terá um subfeudo em Arrakis no prazo de um ano-
padrão. Seu tio terá o governo desse feudo. O agente pessoal
do barão mandará em Arrakis.
– Mais lucro – disse Feyd-Rautha.
– Verdade – disse o barão. E pensou: Nada mais justo.
Fomos nós quem domesticamos Arrakis... a não ser pelos poucos
fremen mestiços que se escondem às margens do deserto... e
alguns contrabandistas inofensivos, apegados ao planeta quase
tanto quanto os trabalhadores nativos.
– E as Casas Maiores irão saber que o barão destruiu os
Atreides – Piter disse. – Elas irão saber.
– Irão saber – murmurou o barão.
– E o melhor de tudo – disse Piter – é que o duque também
saberá. Ele já sabe. Já percebeu a armadilha.
– É verdade que o duque sabe – disse o barão, e sua voz
tinha um quê de tristeza. – Não haveria como não saber... o que
é ainda mais digno de pena.
O barão se afastou do globo de Arrakis. Ao sair das
sombras, sua pessoa ganhou dimensão: imensa e
excessivamente gorda. E com protuberâncias discretas sob as
pregas de suas vestes escuras, revelando que toda aquela
banha era parcialmente sustentada por suspensores portáteis
presos a sua pele. Ele talvez pesasse realmente duzentos
quilos-padrão, mas seus pés não carregavam mais do que
cinquenta.
– Tenho fome – ribombou o barão, esfregando os lábios
salientes com a mão cheia de anéis e olhando feio para Feyd-
Rautha, com seus olhos gordos. – Mande trazer a comida, meu
querido. Vamos comer antes de nos recolhermos.
Assim falou Santa Alia da Faca: “A
Reverenda Madre tem de combinar os
artifícios sedutores de uma cortesã com a
majestade intocável de uma deusa
virgem, mantendo esses atributos em
tensão enquanto durarem os poderes de
sua juventude. Pois, quando a juventude e
a beleza tiverem passado, ela descobrirá
que o entrelugar, antes ocupado pela
tensão, tornou-se uma fonte de astúcia e
habilidade”.
– excerto de “Muad’Dib: Memorial da Família”, da Princesa Irulan

– Bem, Jéssica, o que tem a dizer em sua defesa? –


perguntou a Reverenda Madre.
Era quase crepúsculo no Castelo Caladan, no dia do
ordálio de Paul. As duas mulheres encontravam-se a sós na
sala de estar de Jéssica, e Paul esperava no aposento contíguo,
a Câmara de Meditação à prova de som.
Jéssica estava de pé, de frente para as janelas da parede
sul. Ela via, sem enxergar, as cores do fim de tarde que se
amontoavam do outro lado do prado e do rio. Ela ouviu, sem
escutar, a pergunta da Reverenda Madre.
Tinha havido um outro ordálio um dia, tantos anos antes.
Uma menina magricela, de cabelos cor de bronze, com o corpo
torturado pelos ventos da puberdade, entrara no estúdio da
Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, censora superiora da
escola Bene Gesserit em Wallach IX. Jéssica olhou para sua
mão direita, flexionou os dedos, lembrando-se da agonia, do
terror, da raiva.
– Pobre Paul – ela murmurou.
– Eu fiz uma pergunta! – a voz da velha saiu áspera,
exigente.
– O quê? Ah... – Jéssica afastou à força sua atenção do
passado e encarou a Reverenda Madre, que estava sentada
com as costas voltadas para a parede de pedra entre as duas
janelas a oeste. – O que quer que eu diga?
– O que eu quero que diga? O que eu quero que diga? – a
voz envelhecida meio que fez uma imitação cruel.
– Sim, tive um filho homem! – Jéssica se irritou. E ela sabia
que era incitada deliberadamente a se enfurecer.
– Você foi instruída a dar apenas filhas ao Atreides.
– Significava tanto para ele – protestou Jéssica.
– E você, tomada pelo orgulho, imaginou-se capaz de gerar
o Kwisatz Haderach!
Jéssica ergueu o queixo.
– Pressenti essa possibilidade.
– Você pensou somente no desejo de seu duque de ter um
filho homem – a velha disse, ríspida. – E os desejos dele não
contam. Uma moça Atreides poderia ter se casado com um
herdeiro Harkonnen e acabado com a rixa. Você complicou
irremediavelmente as coisas. Podemos perder as duas
linhagens agora.
– Vocês não são infalíveis – Jéssica disse. Ela enfrentou
com bravura o olhar firme e penetrante daqueles olhos
envelhecidos.
Imediatamente, a velha resmungou:
– O mal já está feito.
– Jurei nunca me arrepender de minha decisão – Jéssica
disse.
– Quanta nobreza – desdenhou a Reverenda Madre. – Sem
arrependimentos. Veremos quando você for uma fugitiva com
a cabeça a prêmio e quando a mão de todo homem se voltar
contra você para tirar sua vida e a de seu filho.
Jéssica empalideceu.
– Não há alternativa?
– Alternativa? Isso é pergunta que uma Bene Gesserit
faça?
– Pergunto apenas o que você vê no futuro com suas
habilidades superiores.
– Vejo no futuro o que via no passado. Você conhece bem
os padrões daquilo que fazemos, Jéssica. A raça conhece a
própria mortalidade e teme a estagnação de sua
hereditariedade. Está no sangue: a necessidade de misturar as
linhagens genéticas sem planejamento. O Imperium, a
Companhia CHOAM, todas as Casas Maiores não passam de
minúsculos destroços na esteira do dilúvio.
– A CHOAM – Jéssica murmurou. – Suponho que já tenham
decidido como serão redivididos os despojos de Arrakis.
– O que é a CHOAM se não o barômetro de nossos tempos?
– a velha disse. – O imperador e seus amigos agora detêm
cinquenta e nove por cento dos votos na diretoria da CHOAM.
Certamente sentem o cheiro dos lucros e, tão provável quanto
os outros sentem o cheiro desses mesmos lucros, a força de
seus votos irá crescer. É o padrão da história, menina.
– Com certeza é o que preciso agora – Jéssica disse. – Uma
revisão da história.
– Não seja jocosa, menina! Você conhece tão bem quanto
eu as forças que nos cercam. Temos uma civilização tríplice: a
Família Imperial de um lado, a Federação das Casas Maiores do
Landsraad de outro, e, entre os dois, a Guilda, com seu maldito
monopólio do transporte interestelar. Na política, o tripé é a
mais instável de todas as estruturas. Já seria bem ruim sem a
complicação de uma cultura comercial feudal que dá as costas
para grande parte da ciência.
Jéssica falou com rancor:
– Lascas na esteira do dilúvio: e esta lasca aqui é o duque
Leto; e esta outra, seu filho; e esta...
– Ora, cale-se, menina. Você se meteu nisso sabendo muito
bem que andaria sobre o finíssimo fio de uma navalha.
– “Sou Bene Gesserit: existo apenas para servir” – citou
Jéssica.
– Verdade – disse a velha. – E por ora só nos resta torcer
para que consigamos evitar que isso irrompa numa
conflagração generalizada, para que salvemos o que for
possível das linhagens cruciais.
Jéssica fechou os olhos, sentindo as lágrimas
pressionarem suas pálpebras. Ela resistiu ao estremecimento
interior, ao estremecimento exterior, à respiração irregular, à
pulsação desigual, à transpiração das palmas. Sem hesitar,
disse:
– Pagarei por meu próprio erro.
– E seu filho pagará com você.
– Eu o protegerei como puder.
– Proteger – cortou a velha. – Você sabe muito bem que há
aí um ponto fraco! Se proteger demais seu filho, Jéssica, ele não
irá se fortalecer o suficiente para cumprir destino algum.
Jéssica se virou, olhou pela janela, para as trevas que se
reuniam.
– É assim tão terrível esse planeta Arrakis?
– É bem ruim, mas não de todo. A Missionaria Protectora
passou por lá e suavizou um pouco as coisas. – A Reverenda
Madre ficou de pé, com dificuldade, alisou uma prega em suas
vestes. – Peça ao garoto para entrar. Preciso partir em breve.
– Precisa?
A voz da velha se enterneceu.
– Jéssica, minha menina, eu queria poder tomar seu lugar
e suas dores. Mas cada uma de nós tem de trilhar o próprio
caminho.
– Eu sei.
– Você me é tão cara quanto qualquer uma de minhas
filhas, mas não posso deixar isso interferir no meu dever.
– Eu entendo... a necessidade.
– O que você fez, Jéssica, e por que o fez, nós duas já
sabemos. Mas a bondade me obriga a lhe dizer que são poucas
as chances de o seu rapazinho ser a Totalidade Bene Gesserit.
Não tenha muitas esperanças.
Jéssica chacoalhou a cabeça para se livrar das lágrimas
nos cantos dos olhos. Foi um gesto de raiva.
– Você me faz sentir uma menina novamente: recitando
minha primeira lição. – Ela obrigou as palavras a saírem: – “Os
seres humanos nunca devem se submeter aos animais.” – Um
soluço seco a fez estremecer. Em voz baixa, ela disse: – Ando
tão sozinha.
– É para ser um dos testes – a velha disse. – Os seres
humanos estão quase sempre sozinhos. Agora, chame o
menino. O dia foi longo e assustador para ele. Mas ele teve
tempo para pensar e relembrar, e tenho de fazer as outras
perguntas sobre os sonhos que ele vem tendo.
Jéssica assentiu com a cabeça, foi até a porta da Câmara
de Meditação, abriu-a.
– Paul, entre, por favor.
Paul apareceu com uma lentidão obstinada. Fitou a mãe
como a uma estranha. A desconfiança velava-lhe os olhos
quando ele encarou a Reverenda Madre, mas dessa vez ele a
saudou com um aceno de cabeça, o cumprimento que se
oferecia a um igual. Ele ouviu sua mãe fechar a porta atrás dele.
– Meu jovem – a velha disse –, vamos voltar à questão dos
sonhos.
– O que você quer?
– Você sonha todas as noites?
– Nada que valha a pena lembrar. Sou capaz de me lembrar
de todos os sonhos, mas alguns valem a pena; outros, não.
– Como sabe a diferença?
– Simplesmente sei.
A velha olhou para Jéssica, depois para Paul.
– Com o que sonhou ontem à noite? Algo que valesse a
pena lembrar?
– Sim – Paul fechou os olhos. – Sonhei com uma caverna... e
água... e havia uma moça lá, muito magra e de olhos grandes.
Seus olhos eram completamente azuis, sem o branco. Eu
converso com ela, falo sobre você, sobre ter visto a Reverenda
Madre em Caladan. – Paul abriu os olhos.
– E o que você contou a essa moça estranha, sobre ter me
visto, isso aconteceu hoje?
Paul pensou nisso, e então:
– Sim. Eu conto à moça que você veio e me marcou com um
sinal de estranheza.
– Sinal de estranheza – a velha murmurou, lançou mais um
olhar para Jéssica, então voltou sua atenção para Paul. – Diga-
me sinceramente, Paul, você costuma sonhar com coisas que
depois acontecem exatamente como você sonhou?
– Sim. E já sonhei com essa moça antes.
– É? Você a conhece?
– Eu ainda irei conhecê-la.
– Fale-me sobre ela.
Mais uma vez, Paul fechou os olhos.
– Estamos num lugarejo abrigado nas rochas. É quase
noite, mas está quente, e dá para ver trechos de areia por uma
abertura nas pedras. Estamos... esperando alguma coisa... que
eu vá encontrar umas pessoas. E ela está assustada, mas tenta
esconder isso de mim, e eu estou empolgado. E ela diz: “Fale-
me sobre as águas de seu planeta natal, Usul”. – Paul abriu os
olhos. – Não é estranho? Meu planeta natal é Caladan. Nunca
ouvi falar de um planeta chamado Usul.
– Esse sonho continua? – Jéssica deu a deixa.
– Sim. Mas talvez ela estivesse chamando a mim de Usul –
Paul disse. – Acabei de pensar nisso. – De novo, ele fechou os
olhos. – Ela me pede para falar das águas. E eu seguro sua mão.
E digo que vou declamar um poema. E o declamo, mas tenho de
explicar algumas palavras, como praia, arrebentação, algas e
gaivotas.
– Qual poema? – perguntou a Reverenda Madre.
Paul abriu os olhos.
– É só um dos poemas sinfônicos de Gurney Halleck para
momentos tristes.
Atrás de Paul, Jéssica começou a recitar:

“Lembro-me da fumaça salgada de uma fogueira na praia


E sombras sob os pinheiros –
Concretas, perfeitas... estáticas –
As gaivotas pousadas no cimo da terra
Branco sobre verde...
E chega o vento, através dos pinheiros,
Para agitar as sombras;
As gaivotas abrem as asas,
Alçam voo
E enchem o céu de gritos agudos.
E ouço o vento
Soprar por nossa praia,
E a arrebentação,
E vejo que nossa fogueira
Chamuscou as algas.”
– É esse mesmo – Paul disse.
A velha fitou Paul, e então:
– Meu jovem, como censora das Bene Gesserit, procuro o
Kwisatz Haderach, o homem realmente capaz de se tornar uma
de nós. Sua mãe vê em você essa possibilidade, mas ela vê com
olhos de mãe. Também vejo possibilidade, não mais que isso.
Ela fez silêncio, e Paul viu que a velha queria que ele
falasse. Ele a fez esperar.
Sem demora, ela disse:
– Como quiser, então. Seu íntimo é profundo, admito.
– Posso ir agora? – ele perguntou.
– Você não quer ouvir o que a Reverenda Madre tem a lhe
contar sobre o Kwisatz Haderach? – Jéssica perguntou.
– Ela disse que aqueles que tentaram morreram.
– Mas posso ajudar você, dar-lhe algumas dicas de por que
eles fracassaram – disse a Reverenda Madre.
Ela fala de dicas, Paul pensou. Ela não sabe nada na
verdade. E ele disse:
– Dê-me as dicas, então.
– E aí posso ir para o inferno? – ela sorriu, irônica, um
zigue-zague de rugas na face idosa. – Muito bem: “Aquilo que
se submete prevalece”.
Ele se espantou: ela falava de coisas tão elementares
quanto a tensão intrínseca ao significado. Será que pensava
que a mãe dele não lhe tinha ensinado nada?
– Isso é uma dica? – ele perguntou.
– Não estamos aqui para trocar palavras nem para
tergiversar sobre seus significados – a velha disse. – O
salgueiro se submete ao vento e prospera, até o dia em que
serão muitos salgueiros: uma barreira contra o vento. Esse é o
propósito do salgueiro.
Paul a encarou. Ela dissera propósito, e ele sentiu a palavra
esbofeteá-lo, reinfectando-o com um propósito terrível. Sentiu
uma raiva repentina da mulher: a bruxa velha e fátua, com a
boca cheia de chavões.
– Você acha que eu poderia ser esse Kwisatz Haderach –
ele disse. – Você fala de mim, mas não disse nada sobre o que
podemos fazer para ajudar meu pai. Eu a ouvi conversando
com minha mãe. Você fala como se meu pai estivesse morto.
Bem, ele não está!
– Se houvesse o que fazer por ele, já teríamos feito – a velha
resmungou. – Talvez consigamos salvar você. É duvidoso, mas
possível. Mas, por seu pai, nada. Quando aprender a aceitar
isso como fato, terá aprendido uma verdadeira lição Bene
Gesserit.
Paul notou como as palavras abalaram sua mãe. Ele olhou
ferozmente para a velha. Como ela podia dizer uma coisa
daquelas sobre seu pai? O que lhe dava tanta certeza? Sua
mente fervilhava de ressentimento.
A Reverenda Madre olhou para Jéssica.
– Você andou lhe ensinando a Doutrina: vi os sinais. Eu
teria feito a mesma coisa em seu lugar, e que se danem as
Regras.
Jéssica fez que sim.
– Agora, eu a aconselho – disse a velha – a ignorar a ordem
regular do treinamento. A segurança dele exige a Voz. Ele já
está bem avançado, mas nós duas sabemos de quanto mais ele
ainda precisa... e desesperadamente. – Ela se aproximou de
Paul, encarou-o de cima para baixo. – Adeus, jovem humano.
Espero que sobreviva. Mas, se não sobreviver... bem, nós ainda
teremos êxito.
Mais uma vez, ela olhou para Jéssica. As duas trocaram
um sinal fugaz de compreensão. Depois a velha precipitou-se
para fora da sala, ao som rumorejante de suas roupas, sem
olhar para trás nem uma vez. A sala e seus ocupantes já tinham
sido excluídos dos pensamentos dela.
Mas Jéssica tinha vislumbrado o rosto da Reverenda
Madre quando ela se virou. Havia lágrimas nas faces marcadas
por rugas. As lágrimas foram mais desalentadoras que
qualquer palavra ou sinal que as duas tivessem trocado
naquele dia.
Você leu que Muad’Dib não tinha ninguém
da mesma idade para brincar com ele em
Caladan. Os perigos eram imensos. Mas
Muad’Dib teve de fato maravilhosos
instrutores-companheiros. Havia Gurney
Halleck, o guerreiro-trovador. Você irá
cantar algumas canções de Gurney ao ler
este livro. Havia Thufir Hawat, o velho
Mentat e Mestre dos Assassinos, que
infundia o medo até mesmo no coração do
imperador padixá. Havia Duncan Idaho, o
Mestre-Espadachim dos Ginaz; dr.
Wellington Yueh, um nome de negra
traição, mas de conhecimento luminoso;
lady Jéssica, que orientou o filho na
Doutrina Bene Gesserit; e, naturalmente,
o duque Leto, cujas qualidades como pai
há tempos são menosprezadas.
– excerto de “A história de Muad’Dib para crianças”, da princesa
Irulan

Thufir Hawat entrou de mansinho na sala de treinamento


do Castelo Caladan, fechou a porta suavemente. Ficou parado
ali um momento, sentindo-se velho, cansado e surrado pelas
intempéries. Sua perna esquerda doía no ponto em que o
haviam ferido uma vez, a serviço do Velho Duque.
Três gerações deles agora, pensou.
Olhou para o outro lado do recinto iluminado pela luz do
meio-dia que, aos borbotões, atravessava as claraboias, e viu o
menino sentado de costas para a porta, absorto em
documentos e mapas espalhados sobre uma mesa em L.
Quantas vezes terei de dizer ao garoto para não se sentar
de costas para a porta? Hawat limpou a garganta.
Paul continuou debruçado sobre os estudos.
A sombra de uma nuvem passou sobre as claraboias. Mais
uma vez, Hawat limpou a garganta.
Paul se endireitou e falou, sem se virar:
– Eu sei. Estou sentado de costas para a porta.
Hawat reprimiu um sorriso e atravessou a sala com
passadas largas.
Paul ergueu os olhos para o velho de cabelos brancos que
se deteve a um dos cantos da mesa. Os olhos de Hawat eram
dois poços de prontidão num rosto escuro e profundamente
vincado de rugas.
– Ouvi você chegar pelo corredor – disse Paul. – E ouvi você
abrir a porta.
– Os sons que produzo podem ser imitados.
– Eu saberia a diferença.
É bem possível, Hawat pensou. A mãe-bruxa certamente
está ampliando o treinamento dele. Gostaria de saber o que sua
preciosa escola acha disso. Talvez por isto tenham mandado a
velha censora: para colocar nossa querida lady Jéssica na linha.
Hawat colocou uma cadeira diante de Paul e sentou-se de
frente para a porta. E o fez incisivamente, recostou-se e
examinou a sala. De repente, pareceu-lhe um lugar estranho,
um lugar-estrangeiro, agora que a maior parte do equipamento
tinha sido levada para Arrakis. Restavam uma mesa de
treinamento e um espelho de esgrima, com seus prismas de
cristal inativos, e o estafermo ao lado dele, todo acolchoado,
lembrando um antigo soldado de infantaria estropiado e
maltratado nas guerras.
Ali estou eu, pensou Hawat.
– Thufir, no que está pensando? – Paul perguntou.
Hawat olhou para o menino.
– Estava pensando que logo sairemos todos daqui e que
provavelmente nunca mais veremos este lugar.
– Isso o deixa triste?
– Triste? Bobagem! Separar-se dos amigos é uma tristeza.
Um lugar é só um lugar. – Olhou para os mapas sobre a mesa. –
E Arrakis é só mais um lugar.
– Foi meu pai quem mandou você aqui para me pôr à
prova?
Hawat franziu o cenho: o menino era tão observador. Ele
assentiu.
– Está pensando que teria sido melhor se ele tivesse vindo
pessoalmente, mas você sabe como ele anda ocupado. Ele virá
mais tarde.
– Andei estudando as tempestades de Arrakis.
– As tempestades. Sei.
– Parecem bem feias.
– Feias é pouco. Essas tempestades se formam numa
extensão de seis ou sete mil quilômetros de planícies,
alimentam-se de tudo o que possa lhes dar um empurrão: força
de Coriolis, outras tempestades, qualquer coisa que tenha um
tiquinho de energia. Os ventos podem chegar a setecentos
quilômetros por hora e carregam tudo o que estiver solto por
onde passam: areia, pó, tudo. São capazes de arrancar a carne
dos ossos e reduzir os ossos a lascas.
– Por que eles não têm controle meteorológico?
– Arrakis tem problemas especiais, os custos são maiores
e ainda é preciso contar a manutenção e outras coisas do
gênero. A Guilda cobra um preço terrível pelo monitoramento
por satélite, e a Casa de seu pai não é uma das mais ricas,
garoto. Você sabe.
– Você já viu os fremen?
A mente do garoto está atirando para todo lado hoje, Hawat
pensou.
– Provavelmente, sim – ele respondeu. – Pouco diferem da
gente, dos graben e das pias. Todos usam aqueles mantos
volumosos e esvoaçantes. E, em espaços fechados, fedem que é
um horror. São aquelas roupas que vestem, chamadas
“trajestiladores”, e que reaproveitam a água do próprio corpo.
Paul engoliu saliva, subitamente ciente da umidade em sua
boca, recordando ter passado sede num sonho. Que as pessoas
precisassem tanto assim de água a ponto de reciclar a umidade
do próprio corpo foi algo que o atingiu com um sentimento de
desolação.
– A água lá é preciosa – ele disse.
Hawat concordou, pensando: Talvez eu esteja fazendo isto,
transmitindo a ele a importância daquele planeta como inimigo.
É loucura ir para lá sem essa advertência em nossa mente.
Paul ergueu os olhos para a claraboia, ciente de que havia
começado a chover. Ele viu a umidade se espalhar no metavidro
cinzento.
– Água – ele disse.
– Você descobrirá uma grande preocupação com a água –
Hawat disse. – Por ser filho do duque, nunca a terá em falta,
mas verá a seu redor a pressão que a sede exerce.
Paul molhou os lábios com a língua, rememorando aquele
dia, uma semana antes, e o ordálio com a Reverenda Madre. Ela
também havia dito alguma coisa sobre privação de água.
– Você conhecerá as planícies fúnebres – ela dissera –, os
ermos desabitados, o deserto onde nada vive, exceto a
especiaria e os vermes da areia. Vai pintar as pálpebras para
reduzir o fulgor do sol. Por abrigo passará a entender um
buraco protegido do vento e longe da vista. Vai viajar a pé, sem
tóptero, nem carro terrestre, nem montaria.
E Paul se vira cativado mais pelo tom da voz dela –
monótona e vacilante – do que por suas palavras.
– Quando você for viver em Arrakis – ela dissera –, khala, a
terra será um vazio. As luas serão suas amigas; o sol, seu
inimigo.
Paul percebeu a aproximação de sua mãe, que tinha
deixado seu posto de vigia junto à porta. Ela olhou para a
Reverenda Madre e perguntou:
– Não vê nenhuma esperança, Vossa Reverência?
– Não para o pai – e a velha acenou para que Jéssica fizesse
silêncio, depois baixou o olhar até Paul. – Grave isto na
memória, rapaz: um mundo é sustentado por quatro coisas... –
ela ergueu quatro dedos nodosos – ... o conhecimento dos
sábios, a justiça dos poderosos, as preces dos justos e a
coragem dos bravos. Mas tudo isso de nada vale... – ela cerrou o
punho – ... sem um governante que conheça a arte de governar.
Faça disso a ciência de sua tradição!
Uma semana tinha se passado desde aquele dia com a
Reverenda Madre. Só agora ele começava a registrar
integralmente suas palavras. Sentado na sala de treinamento
com Thufir Hawat, Paul sentiu uma pontada aguda de medo.
Olhou para a carranca confusa do Mentat diante dele.
– O que foi que o distraiu agora? – Hawat perguntou.
– Você conhece a Reverenda Madre?
– A bruxa Proclamadora da Verdade do Imperium? – Os
olhos de Hawat se animaram, interessados. – Eu a conheço.
– Ela... – Paul hesitou; descobriu que não conseguiria
contar a Hawat sobre o ordálio. As inibições eram profundas.
– Sim? O que tem ela?
Paul inspirou fundo duas vezes.
– Ela disse uma coisa. – Fechou os olhos, recordando as
palavras, e, quando falou, sua voz assumiu inconscientemente
um pouco do tom da velha: – “Você, Paul Atreides, descendente
de reis, filho de um duque, você tem de aprender a governar.
Algo que nenhum de seus ancestrais aprendeu”. – Paul abriu os
olhos e disse: – Isso me enfureceu, e eu disse que meu pai
governava um planeta inteiro. E ela disse: “Ele o está
perdendo”. E eu disse que meu pai tinha ganho um planeta
ainda mais rico. E ela disse: “Ele o perderá também”. E eu quis
correr e alertar meu pai, mas ela disse que ele já tinha sido
alertado... por você, por minha mãe, por muitas pessoas.
– É bem verdade – Hawat murmurou.
– Então, por que estamos de partida? – indagou Paul.
– Porque o imperador assim ordenou. E porque há
esperança, apesar do que disse aquela espiã-bruxa. Que mais
brotou dessa antiga fonte de sabedoria?
Paul olhou para sua mão direita, apertada num punho
fechado debaixo da mesa. Lentamente, ele forçou os músculos
a relaxar. Ela me impôs alguma restrição, pensou. Como?
– Ela pediu que eu lhe dissesse o que era governar – Paul
disse. – E eu disse que era dar ordens. E ela disse que eu tinha
que desaprender algumas coisas.
Nisso ela foi certeira, não há dúvida, Hawat pensou. Ele fez
um gesto com a cabeça, para que Paul continuasse.
– Ela disse que um governante precisa aprender a
persuadir, e não a obrigar. Disse que ele tem de servir o melhor
café para atrair os melhores homens.
– Como ela acha que seu pai atraiu homens como Duncan e
Gurney? – Hawat perguntou.
Paul deu de ombros.
– Aí ela disse que o bom governante tem de aprender a
língua de seu mundo, que é diferente para cada planeta. E eu
achei que ela queria dizer que não se falava galach em Arrakis,
mas ela disse que não era nada disso. Disse que estava falando
da língua das pedras e das coisas vivas, a língua que não se
escuta apenas com os ouvidos. E eu disse que era isso que o dr.
Yueh chamava de Mistério da Vida.
Hawat deu uma risadinha.
– Qual foi a reação dela?
– Acho que ficou irritada. Disse que o mistério da vida não
era um problema a ser resolvido, e sim uma realidade a ser
vivida. Daí citei a Primeira Lei dos Mentats: “Não se pode
entender um processo interrompendo-o. O entendimento
precisa acompanhar o fluxo do processo, tem de se juntar a ele
e fluir com ele”. Isso parece tê-la deixado satisfeita.
Ele parece já estar superando, Hawat pensou, mas aquela
bruxa velha o assustou. Por que ela fez isso?
– Thufir – Paul disse –, será Arrakis tão ruim quanto
dizem?
– Nada pode ser tão ruim – Hawat respondeu, forçando um
sorriso. – Veja os fremen, por exemplo, o povo renegado do
deserto. Numa aproximação de primeira ordem, digo-lhe que
há muitos, muitos mais deles do que o Imperium desconfia. As
pessoas vivem lá, rapaz: um grande número de pessoas, e... –
Hawat levou um dedo magro e forte a um dos olhos. – ... elas
odeiam os Harkonnen com um fervor sanguinário. Não deixe
escapar nem uma palavra sobre esse assunto, rapaz. Só estou
lhe contando isso porque sou assistente de seu pai.
– Meu pai me falou de Salusa Secundus – Paul comentou. –
Sabe, Thufir, pelo que ouvi, é muito parecido com Arrakis...
talvez não tão ruim, mas bem parecido.
– Não sabemos de fato como está Salusa Secundus hoje em
dia – Hawat disse. – Só como era tempos atrás... em grande
parte. Mas, pelo que se sabe... você tem razão.
– Os fremen irão nos ajudar?
– É uma possibilidade – Hawat se levantou. – Parto hoje
para Arrakis. Por enquanto, trate de cuidar bem de si mesmo
para este velho que tem tanta afeição por você, hein? Dê a
volta, como o bom garoto que é, e sente-se de frente para a
porta. Não que eu acredite haver algum perigo no castelo: é só
um hábito que quero ver você desenvolver.
Paul ficou de pé, contornou a mesa.
– Você vai hoje?
– Hoje, e você seguirá amanhã. A próxima vez que nos
encontrarmos será sobre o solo de seu novo mundo. – Ele
agarrou o braço de Paul pelo bíceps. – Mantenha o braço do
punhal sempre livre, hein? E seu escudo com a carga completa.
– Ele soltou o braço, bateu de leve no ombro de Paul, deu meia-
volta e caminhou rapidamente até a porta.
– Thufir! – Paul chamou.
Hawat se virou, ocupando a porta aberta.
– Não se sente de costas para nenhuma porta – Paul disse.
Um sorriso se espalhou pelo rosto velho e enrugado.
– Nunca, rapaz. Pode contar com isso. – E ele saiu,
fechando suavemente a porta.
Paul sentou-se onde Hawat estivera, pôs os documentos
em ordem. Mais um dia aqui, ele pensou. Deu uma olhada ao
redor da sala. Estamos de partida. A ideia de partir, de repente,
era mais real para ele do que fora até então. Lembrou-se de
outra coisa que a velha havia dito sobre um mundo ser a soma
de muitas coisas – o povo, a terra, as coisas vivas, as luas, as
marés, os sóis –, a somatória desconhecida chamada natureza,
uma totalidade vaga, sem a menor noção do agora. E ele se
perguntou: O que é o agora?
A porta em frente a Paul abriu-se com estrondo, e um
homem feio e gordo a atravessou aos trancos, precedido por
um punhado de armas.
– Ora, Gurney Halleck – Paul chamou –, você é o novo
Mestre de Armas?
Halleck fechou a porta com um golpe de calcanhar.
– Você preferia que eu estivesse aqui para brincar, eu sei –
ele disse. Deu uma olhada na sala, notando que os homens de
Hawat já a tinham esquadrinhado, verificando tudo, tornando-
a segura para o herdeiro de um duque. Os discretos sinais
combinados estavam em toda parte.
Paul observou o homem feio e cambaleante colocar-se
novamente em movimento e virar na direção da mesa de
treinamento, com uma braçada de armas; viu o baliset de nove
cordas pendurado no ombro de Gurney, com a multipalheta
entretecida nas cordas, perto da ponta do braço do
instrumento.
Halleck largou as armas sobre a mesa de exercícios e as
enfileirou: as rapieiras, os punhais, os kindjais, os atordoadores
de carga lenta e os cinturões-escudos. A cicatriz de cipó-tinta
em sua mandíbula se contorceu quando ele se virou, lançando
um sorriso para o outro lado da sala.
– Nem me diz um bom-dia, seu diabinho – Halleck disse. –
E que bicho você mandou morder o velho Hawat? Ele passou
por mim, no corredor, como se fosse ao funeral do inimigo.
Paul sorriu. De todos os homens de seu pai, era de Gurney
Halleck que ele mais gostava; conhecia a rabugice e a malícia
do homem, seus humores, e pensava nele mais como amigo do
que como mercenário.
Halleck tirou o baliset do ombro e começou a afiná-lo.
– Se não quer falar, não fale – ele disse.
Paul se levantou e atravessou a sala, dizendo em voz alta:
– Ora, Gurney, você vem preparado para a música quando
é hora de lutar?
– Então hoje, para os mais velhos, nada de papas na língua?
– Halleck disse. Ele experimentou uma das cordas do
instrumento, aprovou com a cabeça.
– Onde está Duncan Idaho? – Paul perguntou. – Ele não
deveria estar me ensinando o uso das armas?
– Duncan foi conduzir a segunda leva a Arrakis – Halleck
disse. – Só restou a você o pobre Gurney, que saiu há pouco de
uma peleja e está louco por música. – Ele tocou outra corda,
escutou-a, sorriu. – E foi decidido em conselho que, sendo você
um combatente tão medíocre, era melhor lhe ensinar o ofício
da música, para que não desperdiçasse totalmente sua vida.
– Talvez seja melhor me cantar uma balada, então – Paul
disse. – Quero me certificar de como não fazer isso.
– Aaah, rá! – Gurney riu. Começou a tocar “Garotas
galacianas”, e sua multipalheta era um borrão sobre as cordas
enquanto ele cantava:

“Oooh, as garotas galacianas


Fazem amor por obsidianas,
Por um gole d’água, as arrakinas!
Mas se deseja as damas
Vorazes como chamas,
Tem de provar as caladaninas!”

– Nada mau para quem não sabe usar a palheta – Paul


disse –, mas, se o ouvisse cantar uma canção indecente como
essa dentro do castelo, minha mãe decoraria a muralha externa
com suas orelhas.
Gurney puxou a orelha esquerda.
– E não seriam a melhor decoração, tão machucadas já
foram pelos buracos das fechaduras, de tanto ouvir um certo
jovenzinho que conheço praticar umas modinhas estranhas em
seu baliset.
– Quer dizer que já esqueceu como é ter areia em sua
cama? – Paul disse. Ele puxou um dos cinturões-escudos de
cima da mesa e o prendeu bem firme na cintura. – Então vamos
lutar!
Os olhos de Halleck se arregalaram de fingida surpresa.
– Ora, vejam! Foi sua mão perversa a autora do feito! Fique
em guarda, hoje, jovem mestre, fique em guarda. – Ele apanhou
uma rapieira, fustigou o ar com ela. – Sou um demônio em
busca de vingança!
Paul ergueu a outra rapieira do par, vergou-a com as mãos,
assumiu a posição aguile, com um dos pés à frente. Fez-se
solene, numa imitação cômica do dr. Yueh.
– Que bobalhão meu pai mandou para me ensinar a lutar –
Paul cantarolou. – Este abobalhado Gurney Halleck esqueceu a
primeira lição de um homem de armas munido de espada e
escudo. – Paul apertou o botão do cinturão; sentiu em sua
testa, e depois descendo-lhe pelas costas, o formigamento
provocado pelo campo defensivo; ouviu os sons externos,
filtrados pelo escudo, assumirem sua característica
monotonia. – No combate com escudos, é preciso ser rápido na
defesa, lento no ataque – Paul disse. – A única finalidade do
ataque é fazer o oponente dar um passo em falso e abrir a
guarda para o golpe com a sinistra. O escudo rechaça o golpe
rápido, mas aceita o kindjal lento! – Paul ergueu a rapieira com
um movimento do pulso, fez uma finta rápida e voltou para
desferir uma estocada lenta, calculada para penetrar as
defesas de um escudo.
Halleck assistiu à ação, virou-se no último instante para
deixar a lâmina embotada roçar seu peito.
– Velocidade, excelente – disse. – Mas você se abriu para
um contra vindo de baixo com um aço-liso.
Paul recuou, envergonhado.
– Eu devia surrar seu traseiro por esse descuido – Halleck
disse. Ele apanhou um kindjal desembainhado de cima da mesa
e o ergueu. – Isto, na mão de um inimigo, pode tirar seu sangue!
Você é um aluno capaz, só isso, mas eu já o avisei que nem
mesmo de brincadeira deve deixar um homem penetrar sua
guarda com a morte numa das mãos.
– Acho que é porque hoje não estou com vontade – Paul
disse.
– Vontade? – a voz de Halleck denunciou seu ultraje
mesmo através do filtro do escudo. – O que a vontade tem a ver
com isso? Você luta quando surge a necessidade, não importa
se está ou não com vontade! As vontades são para o gado, ou
para fazer amor, ou tocar o baliset. Não para lutar.
– Sinto muito, Gurney.
– Ainda é pouco!
Halleck ativou o próprio escudo e dobrou os joelhos, com o
kindjal estendido na mão esquerda, a rapieira na direita, em
guarda alta.
– Agora pode ficar em guarda para valer! – Ele saltou alto
para um lado, depois para a frente, atacando com vigor e fúria.
Paul recuou, defendendo-se. Sentiu o campo crepitar
quando as margens dos escudos se tocaram e repeliram uma à
outra, percebeu na pele o formigamento elétrico do contato. O
que deu em Gurney?, ele se perguntou. Não está fingindo! Paul
moveu a mão esquerda, fazendo deslizar para sua palma o
punhal que trazia numa bainha junto ao pulso.
– Viu que precisa de mais uma arma, hein? – Halleck
grunhiu.
Será traição?, Paul imaginou. Não, não o Gurney!
Por toda a sala, eles lutaram: estocada e parada, finta e
contrafinta. O ar dentro das bolhas formadas pelos escudos, de
tão exigido, ficou viciado, pois a lenta troca gasosa que se dava
nas bordas das barreiras não o conseguia repor. A cada novo
contato dos escudos, o cheiro de ozônio ficava mais forte.
Paul continuou a recuar, mas agora dirigia-se para a mesa
de exercícios. Se conseguir contorná-lo perto da mesa, irei lhe
mostrar um truque, pensou Paul. Só mais um passo, Gurney.
Halleck deu o passo.
Paul aparou um golpe de cima para baixo, fez a volta, viu a
rapieira de Halleck se prender na beirada da mesa. Paul se
jogou para o lado, desferiu uma estocada alta com a rapieira e,
com o punhal, entrou por sobre a gola de Halleck. Deteve a
lâmina a poucos centímetros da jugular.
– É isso o que procura? – sussurrou Paul.
– Olhe para baixo, rapaz – Gurney disse, ofegante.
Paul obedeceu, viu o kindjal de Halleck estendido sob a
beirada da mesa, e a ponta quase tocava sua virilha.
– Teríamos nos unido na morte – Halleck disse. – Mas vou
admitir que você lutou um pouco melhor quando pressionado.
Pareceu estar com vontade. – Ele abriu um sorriso feroz e a
cicatriz de cipó-tinta ondulou em sua mandíbula.
– A maneira como veio para cima de mim – Paul disse. –
Você teria realmente derramado meu sangue?
Halleck recolheu o kindjal, empertigou-se.
– Se você tivesse lutado um tiquinho que fosse aquém do
que é capaz, eu teria lhe feito um belo arranhão, uma cicatriz a
ser lembrada. Não quero que meu aluno preferido tombe
diante do primeiro vagabundo Harkonnen que aparecer.
Paul desativou seu escudo; apoiou-se na mesa para
recuperar o fôlego.
– Eu teria merecido essa, Gurney. Mas meu pai ficaria
zangado se você me machucasse. Não quero que você seja
punido por minha deficiência.
– Quanto a isso – Halleck disse –, teria sido minha
deficiência também. E você não precisa se preocupar com uma
ou duas cicatrizes de treinamento. Você tem sorte por ter tão
poucas. Quanto a seu pai: o duque só me castigaria se eu não
conseguisse fazer de você um homem de armas de primeira
categoria. E eu teria falhado nisso se não tivesse esclarecido
essa falácia de não estar com vontade que você inventou de
uma hora para outra.
Paul se endireitou, devolveu o punhal à bainha em seu
pulso.
– O que fazemos aqui não é exatamente uma brincadeira –
Halleck disse.
Paul concordou. Admirou-se com a seriedade atípica da
conduta de Halleck, uma veemência que inspirava a
sobriedade. Ele olhou para a cicatriz cor de beterraba do cipó-
tinta na mandíbula do homem, lembrando-se da história de
como tinha sido colocada ali pelo Bruto Rabban num fosso de
escravos dos Harkonnen em Giedi Primo. E Paul sentiu uma
súbita vergonha por ter duvidado de Halleck, mesmo que por
um instante. Foi aí que ocorreu a Paul que a cicatriz de Halleck
fora acompanhada por dor – uma dor tão intensa, talvez,
quanto aquela infligida por uma Reverenda Madre. Ele afastou
esse pensamento que enregelava seu mundo.
– Acho que eu esperava brincar um pouco hoje – Paul
disse. – As coisas andam tão sérias por aqui ultimamente.
Halleck deu as costas a Paul para esconder suas emoções.
Algo ardia em seus olhos. Havia nele uma dor, como se fosse
uma bolha, tudo o que restava de um passado perdido que o
Tempo havia lhe tirado com uma tesoura de poda.
Este menino terá de se tornar um homem tão cedo, Halleck
pensou. Tão cedo terá de ler aquele formulário em sua mente,
aquele contrato com sua advertência brutal, e preencher a
lacuna necessária com os dados necessários: “Por favor,
enumere os parentes mais próximos”.
Halleck falou, sem se virar:
– Percebi que você queria brincar, rapaz, e como eu queria
me juntar a você. Mas isso não pode mais ser brincadeira.
Amanhã vamos para Arrakis. Arrakis é real. Os Harkonnen são
reais.
Paul tocou a testa com a lâmina ereta da rapieira.
Halleck se voltou, viu a saudação e devolveu o
cumprimento com um aceno de cabeça. Com um gesto,
apontou o estafermo.
– Agora vamos trabalhar sua sincronia. Quero ver você
pegar aquela coisa com a sinistra. Vou controlá-la daqui, onde
posso ter uma visão geral da ação. E já vou avisando que
tentarei novos contras hoje. É um aviso que nenhum inimigo de
verdade lhe dará.
Paul se espreguiçou, ficando nas pontas dos pés para
aliviar os músculos. Sentiu-se solene ao perceber, de repente,
que sua vida tinha sido tomada por mudanças rápidas. Foi até o
estafermo, moveu a chave no peito do boneco com a ponta de
sua rapieira e sentiu o campo defensivo repelir sua espada.
– En garde! – Halleck gritou, e o boneco atacou com vigor.
Paul ativou seu escudo, defendendo-se com paradas e
contras.
Halleck observava a cena e manipulava os controles. Sua
mente parecia dividida: uma parte, atenta às necessidades do
treino, e a outra, divagando, contrariada.
Sou a árvore frutífera bem dobrada, ele pensou. Cheio de
emoções e habilidades bem dobradas, todas enxertadas em
mim: todas frutificando para outra pessoa colher.
Por alguma razão, ele se lembrou da irmã caçula, de seu
rosto de fada, tão nítido na mente dele. Mas ela havia morrido,
numa casa de diversões para os soldados Harkonnen. Ela
adorava amores-perfeitos... ou seriam margaridas? Ele não
conseguia lembrar. Incomodava-o que não conseguisse
lembrar.
Paul aparou um golpe lento do boneco, ergueu a mão
esquerda em entretisser.
Diabinho esperto!, Halleck pensou, agora atento aos
movimentos de permeio das mãos de Paul. Ele anda praticando
e estudando por conta própria. Não é o estilo de Duncan, e
certamente não é nada que eu tenha lhe ensinado.
Esse pensamento só fez aumentar a tristeza de Halleck.
Estou melancólico, pensou. E começou a ficar curioso a respeito
de Paul, a imaginar se o menino alguma vez tinha ouvido
timidamente seu travesseiro palpitar à noite.
– Se os desejos fossem peixes, atiraríamos nossas redes ao
mar – ele murmurou.
Era algo que sua mãe costumava dizer e que ele sempre
repetia quando sentia se fechar sobre ele o negror do amanhã.
Aí pensou que era um ditado estranho para levar a um planeta
que nunca conhecera mares nem peixes.
Yueh (ju’i), Wellington (‘weliŋtən), 10.082
- 10.191 Pdr.; doutor em medicina pela
Escola Suk (formado em 10.112 pdr.);
casado com Wanna Marcus, B. G. (10.092 -
10.186? Pdr.); conhecido principalmente
como o traidor do duque Leto Atreides.
(Cf. Bibliografia, Apêndice VII
(Condicionamento Imperial) e Traição,
A.)
- excerto do “Dicionário de Muad’Dib, da princesa Irulan

Apesar de ter ouvido o dr. Yueh entrar na sala de


treinamento, notando a rígida deliberação dos passos do
homem, Paul continuou esticado, de bruços, sobre a mesa de
exercícios, onde a massagista o havia deixado. Sentia-se
deliciosamente relaxado depois do treino com Gurney Halleck.
– Você realmente parece confortável – disse Yueh, com sua
voz calma e aguda.
Paul ergueu a cabeça; viu o palito de homem parado a
vários passos de distância, assimilou de um relance as roupas
pretas e amarfanhadas, a cabeça quadrada, os lábios roxos e o
bigode pendente, a tatuagem em forma de diamante do
Condicionamento Imperial em sua testa, os cabelos longos e
negros presos no anel de prata da Escola Suk e jogados sobre o
ombro esquerdo.
– Você ficará feliz em saber que não temos tempo para as
aulas normais hoje – Yueh disse. – Seu pai logo virá.
Paul se sentou.
– Contudo, arranjei um leitor de bibliolivros e várias lições
para você levar na travessia até Arrakis.
– Ah.
Paul começou a vestir suas roupas. Entusiasmou-se
porque o pai viria. Tinham passado tão pouco tempo juntos
desde a ordem do imperador para tomar o feudo de Arrakis.
Yueh foi até a mesa em L, pensando: Como o garoto ganhou
corpo nos últimos meses. Que desperdício! Ah, que triste
desperdício. E lembrou a si mesmo: Não posso vacilar. Faço o
que faço para ter certeza de que aqueles animais dos
Harkonnen não irão mais fazer mal a Wanna.
Paul juntou-se a ele à mesa, abotoando seu paletó.
– O que vou estudar na viagem?
– Aaaah, as formas de vida terráqueas de Arrakis. O
planeta parece ter recebido de braços abertos certas formas
de vida da Terra. Não se sabe exatamente como. Quando
chegarmos, terei de procurar o ecólogo planetário, um tal dr.
Kynes, e oferecer minha ajuda nessa pesquisa.
E Yueh pensou: O que estou dizendo? Sou hipócrita até
comigo mesmo.
– Alguma coisa sobre os fremen? – Paul perguntou.
– Os fremen? – Yueh tamborilou os dedos na mesa, flagrou
Paul observando seu gesto nervoso e recolheu a mão.
– Talvez você tenha alguma coisa sobre toda a população
arrakina – Paul disse.
– Sim, com certeza – Yueh disse. – São duas divisões
genéricas da população: os fremen, eles são um grupo, e os
outros são a gente do graben, da pia e da caldeira. Ocorre
alguma miscigenação, segundo me disseram. As mulheres das
vilas nas pias e caldeiras preferem maridos fremen; seus
homens preferem esposas fremen. Eles têm um ditado: “O
lustro vem das cidades; a sabedoria, do deserto”.
– Você tem imagens deles?
– Verei o que posso conseguir. A característica mais
interessante, naturalmente, são os olhos: totalmente azuis,
nada de branco.
– Mutação?
– Não. Está relacionado à saturação do sangue com
mélange.
– Os fremen devem ser corajosos para viver na orla
daquele deserto.
– É o que todos dizem – Yueh falou. – Eles compõem
poemas para suas facas. Suas mulheres são tão ferozes quanto
os homens. Até mesmo as crianças fremen são violentas e
perigosas. Receio que não deixarão você se misturar com eles.
Paul encarou Yueh, encontrando naqueles poucos
vislumbres dos fremen uma força verbal que prendeu toda a
sua atenção. Um povo e tanto para ter como aliado!
– E os vermes? – Paul perguntou.
– O quê?
– Eu gostaria de estudar um pouco mais os vermes da
areia.
– Aaaah, mas é claro. Tenho um bibliofilme a respeito de
um espécime pequeno, só cento e dez metros de comprimento
e vinte e dois de diâmetro. Foi capturado nas latitudes
setentrionais. Testemunhas confiáveis já registraram vermes
de mais de quatrocentos metros de comprimento e há motivos
para se acreditar que existam alguns ainda maiores.
Paul olhou para um mapa de projeção cônica das latitudes
setentrionais de Arrakis que estava aberto sobre a mesa.
– O cinturão desértico e as regiões polares meridionais
foram designados inabitáveis. São os vermes?
– E as tempestades.
– Mas é possível tornar qualquer lugar habitável.
– Se for economicamente viável – Yueh disse. – Arrakis tem
muitos perigos de alto custo. – Ele alisou o bigode pendente. –
Seu pai estará aqui em breve. Antes que eu vá, tenho um
presente para você, algo que encontrei ao fazer as malas. –
Colocou sobre a mesa, entre eles: negro, oblongo, não muito
maior que a ponta do polegar de Paul.
Paul olhou para a coisa. Yueh notou que o rapaz não fez
menção de apanhá-la e pensou: Como é cauteloso.
– É uma Bíblia Católica de Orange muito antiga, feita para
os viajantes espaciais. Não é um bibliofilme, e sim uma
impressão de verdade em papel filamentar. Tem uma lupa e um
sistema de carga eletrostática próprios. – Ele a tomou e
demonstrou seu funcionamento. – O livro se mantém fechado
devido à carga, que pressiona as capas com fechadura de mola.
Você aperta a margem... assim... as páginas selecionadas se
repelem e o livro se abre.
– É tão pequena.
– Mas tem oitocentas páginas. Você aperta a margem...
assim... e então... a carga vai passando de uma página a outra
enquanto você lê. Nunca toque as páginas propriamente ditas
com os dedos. O papel filamentar é muito delicado. – Ele fechou
o livro, entregou-o a Paul. – Experimente.
Yueh observou Paul manejar o marcador de páginas e
pensou: Estou aliviando minha própria consciência. Dou-lhe o
descanso da religião antes de traí-lo. Assim posso dizer a mim
mesmo que ele foi aonde não posso ir.
– Deve ter sido feita antes dos bibliofilmes – Paul disse.
– É bem antiga. Que seja nosso segredo, hein? Pode ser que
seus pais julguem o presente valioso demais para alguém tão
jovem.
E Yueh pensou: A mãe dele certamente iria questionar
minhas razões.
– Bem... – Paul fechou o livro, segurou-o em sua mão. – Se é
valiosa...
– Faça a vontade de um velho – Yueh disse. – Eu a ganhei
quando era muito jovem. – E ele pensou: Tenho de cativar sua
mente, bem como sua cupidez. – Abra-a em Kalima, capítulo
quatro, versículo sessenta e sete, que diz: “Na água toda a vida
começou”. Há um leve chanfro na borda da capa que marca o
lugar.
Paul tateou a capa, detectou dois chanfros, um mais
profundo que o outro. Pressionou o mais raso, o livro se abriu
em sua mão e a lupa deslizou para o ponto certo.
– Leia em voz alta – Yueh disse.
Paul umedeceu os lábios com a língua e leu:
– “Pense no fato de que o surdo é incapaz de ouvir. Sendo
assim, será que não sofremos todos de algum tipo de surdez?
Que sentidos nos faltam para que não consigamos ver nem
ouvir um outro mundo a nossa volta? O que há a nosso redor
que não conseguimos...”
– Pare! – Yueh gritou.
Paul interrompeu a leitura e olhou para o médico.
Yueh fechou os olhos, esforçou-se para se recompor. Que
perversidade fez o livro se abrir na passagem preferida de
minha Wanna? Ele abriu os olhos; viu Paul, que o encarava.
– Algo errado? – Paul perguntou.
– Perdão – Yueh disse. – Era... a passagem preferida de...
minha... falecida esposa. Não era essa que eu queria que você
lesse. Ela traz à tona lembranças... dolorosas.
– São dois chanfros – Paul disse.
Claro, Yueh pensou. Wanna marcou seu trecho. Os dedos
dele são mais sensíveis que os meus e encontraram a marca. Foi
um acidente, só isso.
– Talvez você ache o livro interessante – Yueh disse. – Nele
encontrará muitos fatos históricos e uma boa filosofia da ética.
Paul olhou para o livro diminuto sobre a palma de sua mão:
uma coisinha tão pequena. No entanto, encerrava um
mistério... algo que tinha acontecido quando ele começara a ler.
Ele havia sentido algo despertar seu propósito terrível.
– Seu pai chegará a qualquer momento – Yueh disse. –
Guarde o livro e leia-o quando for oportuno.
Paul tocou a margem, como Yueh tinha lhe mostrado. O
livro se fechou. Ele o enfiou em sua túnica. Por um instante,
quando Yueh havia gritado com ele, Paul temera que o homem
quisesse o livro de volta.
– Agradeço o presente, dr. Yueh – Paul disse, falando
formalmente. – Será nosso segredo. Se houver alguma dádiva
que queira de mim, por favor, não hesite em pedir.
– Eu... não preciso de nada – Yueh disse.
E ele pensou: Por que fico aqui me torturando? E
torturando este pobre rapaz... embora ele não saiba. Ai!
Malditos sejam aqueles animais dos Harkonnen! Por que me
escolheram como instrumento de sua maldade?
Como começar a estudar o pai de
Muad’Dib? Um homem de simpatia
inigualável e frieza surpreendente era o
duque Leto Atreides. Contudo, muitos
fatos ajudam a desvendar esse duque: o
amor duradouro por sua mulher Bene
Gesserit; os sonhos que tinha para o filho;
a devoção com que os homens o serviam.
É aí que o vemos: um homem enredado
pelo Destino, um vulto solitário que teve
sua luz obscurecida pela glória do filho.
Ainda assim, há que se perguntar: o que é
o filho, se não uma extensão do pai?
– excerto de “Muad’Dib: Memorial da Família”, da princesa Irulan

Paul observou seu pai entrar na sala de treinamento, viu os


guardas se posicionarem do lado de fora. Um deles fechou a
porta. Como sempre, Paul sentiu a impressão de presença que
seu pai deixava: alguém que estava totalmente ali.
O duque era alto e de tez olivácea. O rosto magro era
anguloso, enternecido apenas pelos olhos profundamente
cinzentos. Vestia um uniforme de serviço preto, com o timbre
vermelho do gavião no peitilho. Um cinturão-escudo prateado,
ostentando a pátina do uso, cingia-lhe a cintura fina.
O duque disse:
– Trabalhando duro, filho?
Ele foi até a mesa em L, deu uma olhada nos documentos
sobre o tampo, percorreu a sala com o olhar e voltou-se para
Paul. Sentia-se cansado, tomado pela dor de não demonstrar
sua fadiga. Tenho de aproveitar todas as oportunidades de
descansar durante a travessia para Arrakis, ele pensou. Não
haverá descanso em Arrakis.
– Não muito – Paul disse. – Está tudo tão... – ele deu de
ombros.
– É. Bem, partimos amanhã. Será tão bom nos instalarmos
em nossa nova casa, deixar todo esse transtorno para trás.
Paul fez que sim, subitamente acabrunhado ao se lembrar
das palavras da Reverenda Madre: “... por seu pai, nada”.
– Pai – Paul disse –, Arrakis será tão perigoso quanto
dizem?
O duque obrigou-se a agir com despreocupação, sentou-se
a um dos cantos da mesa, sorriu. Todo um plano de
conversação surgiu em sua mente – o tipo de coisa que ele
poderia usar para animar seus homens antes de uma batalha.
O plano esmoreceu antes que pudesse ganhar voz,
confrontado por um único pensamento:
Este é meu filho.
– Será perigoso – ele admitiu.
– Hawat me contou que temos planos para os fremen –
Paul disse. E se perguntou: Por que não conto a ele o que a velha
disse? Como foi que ela lacrou minha boca?
O duque notou a aflição do filho e disse:
– Como sempre, Hawat vê a principal possibilidade. Mas
isso não é tudo. Eu também vejo o Consórcio Honnête Ober
Advancer Mercantiles: a Companhia CHOAM. Ao me dar
Arrakis, Sua Majestade será obrigada a nos dar um cargo na
diretoria da CHOAM... uma vantagem sutil.
– A CHOAM controla a especiaria – Paul disse.
– E Arrakis, com sua especiaria, é nossa via de acesso à
CHOAM – disse o duque. – A CHOAM não é só o mélange.
– A Reverenda Madre avisou você? – Paul falou
abruptamente. Ele cerrou os punhos, sentindo as palmas
escorregadias por causa do suor. O esforço necessário para
fazer aquela pergunta...
– Hawat me contou que ela assustou você com alertas
sobre Arrakis – o duque disse. – Não deixe os temores de uma
mulher obscurecerem sua mente. Nenhuma mulher quer ver as
pessoas que ama em perigo. Sua mãe está por trás desses
alertas. Tome isso como um sinal do amor que ela tem por nós.
– Ela sabe sobre os fremen?
– Sim, e sobre muitas outras coisas.
– Quais?
E o duque pensou: A verdade poderia ser pior do que ele
imagina, mas até mesmo os fatos perigosos são valiosos quando
se foi treinado para lidar com eles. E nisso meu filho não foi
poupado em nada: no lidar com fatos perigosos. Mas é preciso
estimulá-lo: ele é jovem.
– Poucos produtos não passam pelas mãos da CHOAM –
disse o duque. – Toras, jumentos, cavalos, vacas, tábuas,
esterco, tubarões, pele de baleia: os mais prosaicos e os mais
exóticos... até mesmo nosso humilde arroz-pundi caladanino.
Qualquer coisa, a Guilda transporta: as formas de arte de Ecaz,
as máquinas de Richese e Ix. Mas tudo empalidece diante do
mélange. Basta um punhado de especiaria para comprar uma
casa em Tupile. Não se pode manufaturá-la, é preciso minerá-
la em Arrakis. É única e tem propriedades geriátricas
autênticas.
– E agora nós a controlamos?
– Até certo ponto. Mas o importante é considerar todas as
Casas que dependem dos lucros da CHOAM. E pense na enorme
proporção desses lucros que depende de um único produto: a
especiaria. Imagine o que aconteceria se alguma coisa
reduzisse a produção da especiaria.
– Quem quer que tivesse estocado o mélange enriqueceria
da noite para o dia – Paul disse. – Os outros estariam ao deus-
dará.
O duque se permitiu um momento de satisfação sinistra,
olhando para o filho e pensando em como tinha sido perspicaz
e realmente fundamentada aquela observação. Ele assentiu
com a cabeça.
– Os Harkonnen andam estocando há mais de vinte anos.
– Eles querem ver a produção de especiaria cair e você
levar a culpa.
– Eles querem que o nome Atreides se torne impopular –
disse o duque. – Pense nas Casas do Landsraad que se voltam
para mim como uma espécie de líder, seu porta-voz
extraoficial. Imagine só como elas reagiriam se eu fosse
responsável por uma séria redução em sua renda. Afinal de
contas, os lucros vêm em primeiro lugar. Que se dane a Grande
Convenção! Não vamos permitir que alguém nos empobreça! –
Um sorriso cruel desfigurou a boca do duque. – Elas fariam
vista grossa, não importa o que fizessem comigo.
– Mesmo se nos atacassem com armas atômicas?
– Nada tão flagrante. Nenhuma desobediência ostensiva
da Convenção. Mas praticamente qualquer coisa fora isso...
talvez até mesmo pulverização e envenenamento do solo.
– Então por que estamos nos metendo nisso?
– Paul! – o duque olhou feio para o filho. – Saber onde está a
armadilha: esse é o primeiro passo para não cair nela. É como o
combate singular, filho, só que numa escala maior: uma finta
dentro de outra dentro de outra... aparentemente sem fim. A
tarefa é desenredar isso. Sabendo que os Harkonnen estocam
mélange, temos de fazer outra pergunta: quem mais anda
estocando? Essa será a lista de nossos inimigos.
– Quem?
– Certas Casas que sabíamos ser hostis e algumas que
pensávamos ser amigas. Precisamos pensar nelas por ora,
porque nisso tudo há alguém muito mais importante: nosso
amado imperador padixá.
Paul tentou engolir, com a garganta repentinamente seca.
– Você não poderia reunir o Landsraad, expor...
– E deixar nosso inimigo perceber que sabemos de quem é
a mão que segura o punhal? E, agora, Paul, nós vemos o punhal.
Quem sabe para onde o moveriam em seguida? Se
apresentássemos isso ao Landsraad, só faríamos criar uma
grande confusão. O imperador negaria seu envolvimento.
Quem iria contradizê-lo? Só ganharíamos um pouco de tempo,
mas nos arriscaríamos a mergulhar no caos. E de onde viria o
ataque seguinte?
– Todas as Casas poderiam começar a estocar a
especiaria.
– Nossos inimigos têm a dianteira: e a vantagem é muito
grande.
– O imperador – Paul disse. – Ou seja, os Sardaukar.
– Disfarçados com uniformes Harkonnen, sem dúvida –
disse o duque. – Mas os mesmos soldados fanáticos, sem tirar
nem pôr.
– Como é que os fremen podem nos ajudar contra os
Sardaukar?
– Hawat conversou com você sobre Salusa Secundus?
– O planeta-prisão do imperador? Não.
– E se fosse mais do que um planeta-prisão, Paul? Eis uma
pergunta que ninguém faz sobre o Corpo Imperial dos
Sardaukar: de onde eles vêm?
– Do planeta-prisão?
– Eles vêm de algum lugar.
– Mas os recrutamentos auxiliares convocados pelo
imperador...
– É o que nos levaram a acreditar: são apenas os recrutas
do imperador treinados desde muito jovens e de maneira
soberba. Ouve-se uma ou outra coisa sobre as academias
militares do imperador, mas o equilíbrio de nossa civilização
continua o mesmo: as forças armadas das Casas Maiores do
Landsraad de um lado, os Sardaukar e seus recrutas auxiliares
de outro. E seus recrutas auxiliares, Paul. Os Sardaukar
continuam sendo os Sardaukar.
– Mas todos os relatos sobre Salusa Secundus dizem que
se trata de um planeta infernal!
– Indubitavelmente. Mas, se fosse criar homens
resistentes, fortes e ferozes, que condições ambientais você
imporia a eles?
– Como se obtém a lealdade de homens assim?
– Existem métodos comprovados: explore a certeza de sua
superioridade, a mística do pacto secreto, o espírito do
sofrimento compartilhado. É factível. Já foi feito em vários
planetas e em várias épocas.
Paul assentiu com a cabeça, fixando sua atenção no rosto
do pai. Pressentiu uma revelação iminente.
– Pense em Arrakis – disse o duque. – Fora das cidades e
vilas fortificadas, é um lugar tão terrível quanto Salusa
Secundus.
Paul arregalou os olhos.
– Os fremen!
– Temos ali, potencialmente, um exército tão forte e
mortífero quanto os Sardaukar. Precisaremos de paciência
para nos valermos deles em segredo e de dinheiro para equipá-
los adequadamente. Mas os fremen estão lá... e o dinheiro da
especiaria também. Agora você entende por que entraremos
em Arrakis sabendo que é uma armadilha.
– Os Harkonnen não sabem sobre os fremen?
– Os Harkonnen desprezaram os fremen, caçaram-nos por
prazer, nunca sequer se deram ao trabalho de recenseá-los.
Conhecemos a política dos Harkonnen em relação às
populações planetárias: gastar o mínimo possível para mantê-
las.
Os fios metálicos do símbolo do gavião sobre o peito do
duque brilharam quando ele mudou de posição.
– Entendeu?
– Estamos negociando com os fremen neste exato
momento – Paul disse.
– Enviei uma missão liderada por Duncan Idaho – explicou
o duque. – Duncan é um homem orgulhoso e implacável, mas
amigo da verdade. Creio que os fremen irão admirá-lo. Se
tivermos sorte, talvez eles nos julguem em função dele:
Duncan, o honrado.
– Duncan, o honrado – Paul disse –, e Gurney, o corajoso.
– Disse bem – falou o duque.
E Paul pensou: Gurney é um daqueles que a Reverenda
Madre mencionou, um sustentador de mundos: “... a coragem
dos bravos”.
– Gurney me contou que você se saiu bem no combate
armado hoje – o duque disse.
– Não foi o que ele me disse.
O duque gargalhou alto.
– Já imaginava que Gurney economizasse nos elogios. Ele
disse que você tem uma boa ideia, nas palavras dele, da
diferença entre o fio e a ponta de uma espada.
– Gurney diz que não há arte em matar com a ponta, que
deve ser feito com o fio.
– Gurney é um romântico – o duque resmungou. Aquela
conversa sobre matar, partindo de seu filho, de repente o
transtornou. – Eu preferiria que você nunca tivesse de matar...
mas, se a necessidade surgir, faça o que tiver de fazer, com a
ponta ou com o fio. – Ele olhou para a claraboia, sobre a qual a
chuva tamborilava.
Vendo para onde se dirigia o olhar do pai, Paul pensou nos
céus chuvosos lá fora – uma coisa que, segundo todos diziam,
nunca se veria em Arrakis –, e esse pensamento sobre os céus o
levou ao espaço exterior.
– As naves da Guilda são muito grandes? – ele perguntou.
O duque olhou para ele.
– Esta será sua primeira vez fora do planeta – ele disse. –
Sim, elas são grandes. Estaremos num paquete, pois a viagem é
longa. O paquete é realmente grande. Em seu porão, todas as
nossas fragatas e todos os nossos transportes ficarão
aconchegados num cantinho: seremos apenas uma pequena
parte do manifesto da nave.
– E não poderemos sair de nossas fragatas?
– Faz parte do preço que se paga pela Segurança da
Guilda. Se houvesse naves Harkonnen ao lado das nossas, nada
teríamos a temer. Os Harkonnen sabem que não vale a pena
colocar em risco seus privilégios de embarque.
– Vou ficar de olho nos nossos monitores, para tentar ver
um membro da Guilda.
– Não vai, não. Nem mesmo os agentes da Guilda podem
ver um de seus membros. A Guilda é tão ciosa de sua
privacidade quanto de seu monopólio. Não faça nada que
coloque em risco nossos privilégios de embarque, Paul.
– Você acha que eles se escondem porque sofreram
mutações e não parecem mais... humanos?
– Quem sabe? – o duque deu de ombros. – É um mistério
que provavelmente nunca solucionaremos. Temos problemas
mais imediatos, e um deles é você.
– Eu?
– Sua mãe queria que eu lhe contasse, filho. Veja bem, pode
ser que você tenha os talentos de um Mentat.
Paul encarou o pai, incapaz de falar por um momento, e
então:
– Um Mentat? Eu? Mas eu...
– Hawat concorda, filho. É verdade.
– Mas eu pensei que o treinamento de um Mentat tivesse
de começar na infância e que o indivíduo não pudesse saber,
porque isso poderia inibir o início do... – ele se calou quando
todas as circunstâncias passadas se reuniram num único
cálculo-relâmpago. – Entendi – ele disse.
– Chega um dia – disse o duque – em que o Mentat em
potencial tem de saber o que está sendo feito. Talvez não seja
mais feito com ele. O Mentat tem de participar da decisão de
continuar ou abandonar o treinamento. Alguns conseguem
continuar, outros são incapazes disso. Somente o Mentat em
potencial sabe dizer com certeza o que será.
Paul esfregou o queixo. Todo o treinamento especial que
ele recebera de Hawat e sua mãe – memorização, concentração
da consciência, controle dos músculos e aguçamento dos
sentidos, o estudo das línguas e das nuances de voz –, tudo isso
se encaixou numa nova espécie de compreensão em sua mente.
– Você será o duque um dia, filho – continuou o pai dele. –
Um duque Mentat seria realmente formidável. Pode decidir
agora... ou precisa de mais tempo?
Não houve a menor hesitação em sua resposta.
– Continuarei com o treinamento.
– Realmente formidável – o duque murmurou, e Paul viu
um sorriso orgulhoso no rosto do pai. O sorriso abalou Paul:
dava um ar de caveira ao rosto magro do duque. Paul fechou os
olhos, sentindo o propósito terrível redespertar dentro dele.
Talvez ser um Mentat seja um propósito terrível, ele pensou.
Mas, ao mesmo tempo que ele se concentrava nessa ideia,
sua nova percepção a contestava.
Com lady Jéssica e Arrakis, o sistema
Bene Gesserit de semear lendas-
implantes por meio da Missionaria
Protectora chegou a sua realização plena.
Há tempos se reconhece a sensatez das
Bene Gesserit em semear o universo
conhecido com um padrão de profecias
para a proteção de seu pessoal, mas
nunca se viu uma condição ut extremis
com um casamento tão perfeito de
indivíduo e preparação. As lendas
proféticas tornaram-se tão populares em
Arrakis que até mesmo certos termos
foram adotados (entre eles, Reverenda
Madre, canto e respondu e boa parte da
panoplía propheticus da shariá). E hoje é
comum aceitar que as habilidades
latentes de lady Jéssica foram
grandemente subestimadas.
– excerto de “Análise: a crise arrakina”, da princesa Irulan
[circulação reservada: número do arquivo B. G. AR-81088587]

Em toda a volta de lady Jéssica, nas pilhas que se erguiam


nos cantos do Grande Átrio de Arrakina, nos montes que se
formavam nos espaços abertos, estava embalada toda a vida
deles: caixas de madeira e papelão, baús, valises, algumas
parcialmente abertas e desfeitas. Ela ouviu os carregadores da
nave auxiliar da Guilda depositarem mais uma leva na entrada.
Jéssica estava parada no centro do átrio. Ela girou
lentamente, olhando para cima e para os lados, para os
entalhes sombreados, as frestas e as janelas em seus nichos
profundos. Aquela sala gigantesca e anacrônica a fazia lembrar
do Salão das Irmãs de sua escola Bene Gesserit. Mas, na escola,
o efeito tinha sido acolhedor. Ali, tudo era pedra fria.
Algum arquiteto tinha se inspirado na história remota
para criar aquelas paredes apoiadas em arcobotantes e as
tapeçarias escuras, ela pensou. O teto abobadado erguia-se
dois andares acima dela, com imensas vigas transversais que
certamente tinham sido transportadas pelo espaço até Arrakis
a um custo monstruoso. Nenhum planeta daquele sistema
tinha árvores para fazer aquelas vigas, a menos que a madeira
das vigas fosse artificial.
Ela achava que não.
Aquele havia sido o palácio do governo na época do Antigo
Império. Os custos não tinham tanta importância então. Tinha
sido antes dos Harkonnen e de sua nova megalópole em
Cartago: um lugar ordinário e despudorado a uns duzentos
quilômetros a nordeste, do outro lado da Terra Partida. Leto
fizera bem ao escolher aquele lugar como a sede de seu
governo. O nome, Arrakina, soava bem, repleto de tradição. E
era uma cidade menor, mais fácil de esterilizar e defender.
Mais uma vez, ouviu-se o estrépito de caixas sendo
descarregadas na entrada. Jéssica suspirou.
Apoiado numa caixa de papelão à direita de Jéssica estava
um retrato pintado do pai do duque. O barbante do embrulho
pendia do quadro como um enfeite rasgado. Um pedaço do
barbante ainda estava na mão esquerda de Jéssica. Ao lado da
pintura descansava a cabeça de um touro negro, engastada
numa placa envernizada. A cabeça era uma ilha escura num
mar de papel acolchoado. A placa estava estendida no chão, e o
focinho brilhante do touro apontava o teto como se o animal
estivesse prestes a urrar desafiadoramente naquela sala cheia
de ecos.
Jéssica se perguntou o que a levara a desembrulhar
aquelas duas coisas primeiro: a cabeça e o quadro. Sabia que
havia algo de simbólico no ato. Não se sentia tão assustada e
insegura desde o dia em que os compradores do duque foram
buscá-la na escola.
A cabeça e o retrato.
Eles acentuavam sua sensação de confusão. Ela
estremeceu, olhou para as janelas estreitas lá no alto. Ainda
era o início da tarde e, naquelas latitudes, o céu parecia negro e
frio, muito mais escuro que o azul acolhedor de Caladan. Foi
tomada por uma saudade dolorosa e latejante de casa.
Tão longe, Caladan.
– Chegamos!
Era a voz do duque Leto.
Ela girou nos calcanhares e o viu sair da passagem em arco
que dava para o salão de jantar. Seu uniforme de serviço preto,
com o timbre vermelho do gavião no peitilho, parecia
amarrotado e coberto de pó.
– Pensei que você tivesse se perdido neste lugar horrível –
ele disse.
– É uma casa fria – ela comentou. Observou a altura dele, a
pele morena que a fazia pensar em bosques de oliveiras e num
sol dourado sobre águas azuis. Havia fumaça no cinza de seus
olhos, mas a face era a de um predador: magra, cheia de
ângulos e planos agudos.
Um medo repentino do duque oprimiu o peito de Jéssica.
Ele tinha se tornado uma pessoa bastante selvagem e
obcecada desde que tomara a decisão de obedecer à ordem do
imperador.
– A cidade inteira parece fria – ela disse.
– É uma cidadezinha fortificada, suja e poeirenta – ele
concordou. – Mas mudaremos isso. – Ele olhou ao redor do
átrio. – Esta é a área pública, para as ocasiões de gala. Acabei
de dar uma olhada em alguns dos aposentos íntimos na ala sul.
São muito mais agradáveis. – Ele se aproximou, tocou o braço
dela, admirando-lhe a imponência.
E, mais uma vez, ele ficou curioso quanto aos ancestrais
desconhecidos da mulher: uma Casa desertora, talvez?
Membros excluídos da realeza? Ela parecia mais régia que as
filhas do próprio imperador.
Pressionada pelo olhar penetrante dele, Jéssica se virou
um pouco, expondo seu perfil. E ele percebeu que não havia
nada singular e preciso que distinguisse a beleza dela. O rosto
era oval, sob uma touca de cabelos da cor do bronze polido. Os
olhos espaçados eram verdes e límpidos como o céu matutino
de Caladan. O nariz era pequeno; a boca, larga e generosa. Seu
talhe era agradável, mas escasso: era alta, e a elegância
roubara-lhe algumas curvas.
Ele se lembrou de que as irmãs leigas da escola a
chamavam de magrela, pelo que lhe disseram seus
compradores. Mas aquela descrição era excessivamente
simplista. Ela devolvera uma beleza régia à estirpe dos
Atreides. Ele estava feliz por Paul ter saído à mãe.
– Onde está Paul? – ele perguntou.
– Em algum lugar da casa, estudando com Yueh.
– Provavelmente na ala sul – ele disse. – Pensei ter ouvido a
voz de Yueh, mas não tive tempo de dar uma olhada. – Olhou
para ela, hesitante. – Vim aqui somente para pendurar a chave
do Castelo Caladan no salão de jantar.
Ela prendeu a respiração, deteve o impulso de abraçá-lo.
Pendurar a chave: havia finalidade naquele ato. Mas ali não era
a hora nem o lugar para consolá-lo.
– Vi nosso estandarte em cima da casa quando entramos –
ela disse.
Ele olhou para o quadro do pai.
– Onde é que você ia pendurar isso?
– Aqui, em algum lugar.
– Não – a palavra soou categórica e definitiva, fazendo-a
saber que poderia convencê-lo com um truque, mas uma
discussão franca seria inútil. Ainda assim, ela tinha de tentar,
mesmo se o gesto só servisse para não a deixar esquecer que
ela não o enganava.
– Milorde – ela disse –, se ao menos...
– A resposta ainda é não. Eu vergonhosamente faço sua
vontade em muitas coisas, mas não nisto. Acabei de vir do
salão de jantar e ali há...
– Milorde! Por favor.
– A escolha é sua digestão ou minha dignidade ancestral,
minha cara – ele disse. – Serão pendurados na sala de jantar.
Ela suspirou.
– Sim, milorde.
– Você pode retomar seu hábito de fazer as refeições em
seus aposentos sempre que possível. Espero vê-la em sua
devida posição somente nas ocasiões formais.
– Obrigada, milorde.
– E nada de frieza e formalidades comigo! Agradeça-me
por nunca ter me casado com você, minha cara. Senão seria sua
obrigação juntar-se a mim à mesa em todas as refeições.
Ela manteve a face imóvel e assentiu.
– Hawat já instalou nosso próprio farejador de venenos no
teto do salão de jantar – ele disse. – Há um modelo portátil em
seu quarto.
– Você previu esta... discordância – ela disse.
– Minha cara, também penso em seu conforto. Contratei
serviçais. São daqui, mas Hawat os aprovou: são todos fremen.
Darão para o gasto até podermos liberar nosso pessoal de seus
outros deveres.
– E será que alguém daqui está realmente seguro?
– Todos aqueles que odeiam os Harkonnen. Talvez você
queira até ficar com a governanta: a shadout Mapes.
– Shadout – Jéssica disse. – Um título fremen?
– Disseram-me que quer dizer “aquela que retira a água do
poço”, um significado com implicações muito importantes por
aqui. Você talvez não a ache lá muito servil, apesar de Hawat
falar muito bem dela, com base no relatório de Duncan. Estão
convencidos de que ela deseja servir... mais especificamente,
que ela deseja servir você.
– Eu?
– Os fremen ficaram sabendo que você é Bene Gesserit –
ele disse. – Existem lendas aqui sobre as Bene Gesserit.
A Missionaria Protectora, pensou Jéssica. Nenhum lugar
lhes escapa.
– Quer dizer que Duncan teve êxito? – ela perguntou. – Os
fremen serão nossos aliados?
– Não há nada definido ainda – ele respondeu. – Duncan
crê que eles querem nos observar por algum tempo. Mas eles
prometeram fazer uma trégua e parar de atacar nossas vilas
mais afastadas. É uma vitória mais importante do que pode
parecer. Hawat me contou que os fremen eram uma pedra bem
grande no sapato dos Harkonnen, que a dimensão dos estragos
causados por eles era um segredo guardado a sete chaves. Não
ajudaria muito se o imperador soubesse que o exército
Harkonnen é ineficaz.
– Uma governanta fremen – contemplou Jéssica, voltando
ao assunto da shadout Mapes. – Ela deve ter os olhos
totalmente azuis.
– Não deixe a aparência dessa gente enganar você – ele
disse. – No fundo, são fortes e vigorosos. Acho que serão tudo
de que precisamos.
– É uma jogada perigosa – ela disse.
– Não vamos recomeçar com isso – ele disse.
Ela se obrigou a sorrir.
– Estamos empenhados, não há dúvida quanto a isso. – Ela
se submeteu ao rápido regime de tranquilização, as duas
inspirações profundas, o pensamento ritualizado, e então
disse: – Quando eu distribuir os cômodos, devo reservar algo
especial para você?
– Um dia desses você vai ter de me ensinar como faz isto –
ele disse –, a maneira como você empurra as preocupações
para um lado e volta sua atenção para questões práticas. Deve
ser coisa das Bene Gesserit.
– É coisa de mulher – ela disse.
Ele sorriu.
– Muito bem, distribuição dos cômodos: certifique-se de
que eu tenha um escritório grande perto do meu quarto de
dormir. A papelada será maior aqui do que em Caladan. Uma
sala de guarda, claro. Acho que é tudo. Não se preocupe com a
segurança da casa. Os homens de Hawat foram minuciosos.
– Tenho certeza de que sim.
Ele deu uma olhadela no relógio de pulso.
– E cuide para que todos os nossos relógios sejam
ajustados de acordo com o horário de Arrakina. Designei um
técnico para isso. Ele logo aparecerá. – Removeu um fio de
cabelo da testa de Jéssica. – Preciso voltar ao campo de pouso
agora. A segunda nave auxiliar está para chegar a qualquer
momento, trazendo a força reserva de meu estado-maior.
– Hawat não pode recebê-los? Milorde parece tão cansado.
– O bom Thufir está ainda mais ocupado que eu. Você sabe
que este planeta está infestado de Harkonnen e suas intrigas.
Além disso, preciso tentar convencer alguns dos caçadores de
especiaria treinados a não irem embora. Eles têm essa opção,
sabe, com a mudança de suserania... e é impossível comprar o
tal planetólogo que o imperador e o Landsraad empossaram
como Juiz da Transição. Ele vai permitir a opção. Cerca de
oitocentos operários treinados esperam partir no transporte
de especiaria e há um cargueiro da Guilda a postos.
– Milorde... – ela não completou a frase, hesitante.
– Sim?
Ele não se deixará convencer a não tentar tornar este
planeta seguro para nós, ela pensou. E não posso usar meus
truques com ele.
– A que horas espera jantar? – ela perguntou.
Não era isso que ela ia dizer, ele pensou. Aaaah, minha
Jéssica, eu queria que estivéssemos em outro lugar, qualquer
lugar longe deste lugar horrível: sozinhos, nós dois, sem
preocupações.
– Vou comer no refeitório dos oficiais no campo – ele disse.
– Não me espere até muito tarde. E... ah, vou mandar um carro
da guarda pegar Paul. Quero que ele participe de nossa
conferência estratégica.
Ele limpou a garganta, como se fosse dizer mais alguma
coisa; então, sem aviso, deu meia-volta e se pôs a andar, a
caminho da entrada onde, pelo barulho, ela deduziu que mais
caixas eram depositadas. A voz dele soou uma vez, vinda de lá,
imperiosa e cheia de desdém, da maneira que ele sempre falava
com os serviçais quando estava com pressa:
– Lady Jéssica está no Grande Átrio. Vá ter com ela
imediatamente.
A porta externa foi batida com violência.
Jéssica se virou, encarou o quadro do pai de Leto. Tinha
sido pintado por um artista renomado, Albe, quando o Velho
Duque já estava na meia-idade. Estava retratado com o traje de
toureiro, com uma capa magenta atirada sobre o ombro
esquerdo. O rosto parecia jovem, dificilmente mais velho do
que Leto era agora, e com os mesmos traços aquilinos, o
mesmo olhar cinzento. Com os punhos fechados à altura dos
quadris, ela olhou furiosamente para a pintura.
– Maldito! Maldito! Maldito! – sussurrou.
– Quais são suas ordens, bem-nascida?
Era a voz de uma mulher, fraca e gutural.
Jéssica girou sobre os calcanhares e viu-se diante de uma
mulher baixa, ossuda, de cabelos grisalhos, enfiada num
vestido-saco deselegante, na cor parda dos escravos. A mulher
parecia tão enrugada e ressequida quanto qualquer membro
da turba que os recebera no caminho desde o campo de pouso
naquela manhã. Todo nativo que ela tinha visto naquele
planeta, Jéssica pensou, parecia seco como uma passa e
subnutrido. Ainda assim, Leto tinha dito que eram fortes e
vigorosos. E havia os olhos, claro – aquela tintura do mais
profundo e escuro azul, sem o branco –, sigilosos, misteriosos.
Jéssica fez força para não encará-la.
Sem mover o pescoço, a mulher acenou com a cabeça e
disse:
– Chamam-me shadout Mapes, bem-nascida. Quais são
suas ordens?
– Pode se dirigir a mim como “milady” – Jéssica disse. –
Não sou da nobreza. Sou a concubina comprometida do duque
Leto.
Mais uma vez, aquele estranho aceno, e a mulherzinha
examinou Jéssica com um olhar intrigado e malicioso.
– Há uma esposa, então?
– Não há e nunca houve. Sou a única... companheira do
duque, a mãe de seu herdeiro oficial.
Ainda enquanto falava, Jéssica riu internamente do
orgulho por trás de suas palavras. O que foi mesmo que Santo
Agostinho disse?, ela se perguntou. “A mente comanda o corpo,
e ele a obedece. A mente dá uma ordem a si mesma e encontra
resistência.” Sim: ando encontrando mais resistência
ultimamente. Preciso fazer um retiro.
Um grito esquisito veio da rua lá fora. E se repetiu: “Suu-
suu-Suuk! Suu-suu-Suuk!”. E depois: “Ikhut-eigh! Ikhut-eigh!”.
E de novo: “Suu-suu-Suuk!”.
– O que é isso? – Jéssica perguntou. – Ouvi várias vezes ao
passar de carro pelas ruas hoje de manhã.
– É só um vendedor de água, milady. Mas a senhora não
precisa se preocupar com esses tipos. A cisterna aqui tem
capacidade para cinquenta mil litros e está sempre cheia. – Ela
olhou para seu vestido. – Ora, sabe de uma coisa, milady? Não
preciso usar meu trajestilador aqui. – Ela gargalhou. – E ainda
não morri!
Jéssica hesitou, querendo interrogar aquela mulher
fremen, precisando de dados para orientá-la. Mas era mais
urgente pôr ordem na bagunça do castelo. Ainda assim, ela
achou perturbadora a ideia de que a água fosse um sinal tão
grande de riqueza ali.
– Meu marido falou-me de seu título, shadout – Jéssica
disse. – Reconheci a palavra. É muito antiga.
– Conhece as línguas antigas, então? – Mapes perguntou, e
esperou com uma estranha veemência.
– As línguas são as primeiras coisas que uma Bene
Gesserit aprende – Jéssica respondeu. – Conheço a bhotani jib
e a chakobsa, todas as línguas de caça.
Mapes assentiu.
– Exatamente como nas lendas.
E Jéssica se perguntou: Por que continuo com esta farsa?
Mas os métodos das Bene Gesserit eram tortuosos e
irresistíveis.
– Conheço as Coisas Misteriosas e a doutrina da Grande
Mãe – Jéssica disse. Identificou os sinais mais óbvios nas ações
e na aparência de Mapes, as pequenas inconfidências. –
Miseces prejia – ela disse, na língua chakobsa. – Andral t’re
pera! Trada cik buscakri miseces perakri...
Mapes deu um passo atrás, aparentemente prestes a sair
correndo.
– Sei muitas coisas – Jéssica disse. – Sei que você teve
filhos, que perdeu entes queridos, que se escondeu de medo,
que cometeu atos de violência e ainda cometerá outros. Sei
muitas coisas.
Em voz baixa, Mapes disse:
– Não quis ofendê-la, milady.
– Você fala da lenda e busca respostas – Jéssica disse. –
Cuidado com as respostas que encontrar. Sei que veio
preparada para agir com violência, trazendo uma arma em seu
corpete.
– Milady, eu...
– Há uma possibilidade remota de que você consiga
derramar meu sangue – Jéssica disse –, mas, ao fazê-lo,
acarretaria mais ruína do que seus temores mais absurdos
conseguiriam imaginar. Há coisas piores que a morte, sabe...
mesmo para um povo inteiro.
– Milady! – Mapes implorou. Parecia prestes a cair de
joelhos. – A arma foi enviada como um presente para a senhora,
caso milady se revelasse a Predestinada.
– E como o instrumento de minha morte, caso eu me
revelasse outra coisa – Jéssica disse. Ela aguardou com a
aparente tranquilidade que tornava as pessoas treinadas pelas
Bene Gesserit tão aterradoras em combate.
Agora veremos para que lado penderá a decisão, ela
pensou.
Lentamente, Mapes enfiou a mão no decote de seu vestido
e de lá tirou uma bainha escura. Dela se projetava uma
empunhadura negra, com sulcos profundos para os dedos. Ela
tomou a bainha numa das mãos e o cabo na outra, sacou uma
arma branca como o leite, ergueu-a. A lâmina parecia brilhar e
cintilar com luz própria. Apresentava dois gumes, como um
kindjal, e a lâmina tinha, talvez, uns vinte centímetros de
comprimento.
– Sabe o que é isto, milady? – Mapes perguntou.
Jéssica sabia que só poderia ser uma coisa: a lendária
dagacris de Arrakis, a arma branca que nunca saíra do planeta
e só era conhecida por meio de rumores e conversa fiada.
– É uma dagacris – ela disse.
– Cuidado com o que diz – Mapes disse. – Sabe o que
significa?
E Jéssica pensou: A pergunta teve algo de incisivo. Eis a
razão para esta fremen estar a meu serviço, para fazer essa
pergunta. Minha resposta pode levar à violência ou... o quê? Ela
quer uma resposta minha: o significado de uma faca. Ela é
chamada de shadout na língua chakobsa. A faca, a faca é
“Criador da Morte” em chakobsa. Ela está ficando impaciente.
Preciso responder agora. A demora é tão perigosa quanto a
resposta errada.
Jéssica disse:
– É um criador...
– Aiiiiii! – chorou Mapes. Era um som tanto de pesar
quanto de exultação. Ela estremeceu com tanta força que a
lâmina da faca disparou pequenos reflexos cintilantes por toda
a sala.
Jéssica esperou, aprumada. Sua intenção tinha sido dizer
que a faca era um criador da morte e depois acrescentar a
palavra antiga, mas todos os seus sentidos agora a alertavam,
todo o intenso treinamento para a prontidão que revelava
significados no mais casual dos espasmos musculares.
A palavra-chave era... criador.
Criador? Criador.
Ainda assim, Mapes segurava a faca como se estivesse
preparada para usá-la.
Jéssica disse:
– Você pensou que eu, conhecendo os mistérios da Grande
Mãe, não conheceria o Criador?
Mapes baixou a faca.
– Milady, quando se convive há tanto tempo com a
profecia, o momento de revelação é um choque.
Jéssica pensou na profecia – a Shariá e toda a panoplía
propheticus. Uma Bene Gesserit da Missionaria Protectora
descera ali séculos antes – morta havia tempos, sem dúvida,
mas depois de cumprido seu objetivo: as lendas protetoras
implantadas naquelas pessoas para o dia em que as Bene
Gesserit precisassem.
Bem, havia chegado o dia.
Mapes devolveu a faca à bainha e disse:
– Esta é uma arma instável, milady. Guarde-a perto da
senhora. Se passar mais de uma semana longe da pele, ela
começará a se desintegrar. Será sua, um dente de shai-hulud,
enquanto milady viver.
Jéssica estendeu a mão direita e arriscou:
– Mapes, você embainhou a lâmina sem tirar sangue.
Com um grito sufocado, Mapes deixou cair a faca
embainhada na mão de Jéssica e abriu violentamente o corpete
pardo, lamentando-se:
– Tome a água de minha vida!
Jéssica tirou a arma da bainha. Como brilhava! Dirigiu a
ponta para Mapes, viu um medo maior que o pânico da morte
tomar a mulher. Veneno na ponta?, Jéssica se perguntou. Ela
ergueu a ponta, desenhou um arranhão delicado com o fio da
lâmina acima do seio esquerdo de Mapes. O sangue brotou em
profusão, mas parou quase imediatamente. Coagulação
ultrarrápida, Jéssica pensou. Uma mutação para conservar
umidade?
Ela embainhou a arma e disse:
– Abotoe seu vestido, Mapes.
Mapes obedeceu, tremendo. Os olhos, sem nada de
branco, fitaram Jéssica.
– A senhora é nossa – ela murmurou. – A senhora é a
Predestinada.
Ouviu-se novo som de coisas que eram descarregadas na
entrada. Rapidamente, Mapes apanhou a faca embainhada e a
escondeu no corpete de Jéssica.
– Quem vir esta faca terá de ser purificado ou morto! – ela
disse, entre dentes. – A senhora sabe disso, milady!
Sei agora, Jéssica pensou.
Os carregadores foram embora sem entrar no Grande
Átrio.
Mapes se recompôs e disse:
– Os impuros que veem uma dagacris não podem deixar
Arrakis vivos. Nunca se esqueça disso, milady. À senhora foi
confiada uma dagacris. – Ela inspirou profundamente. – Agora
a coisa tem de seguir seu curso. Não se pode apressá-la. – Ela
olhou para as caixas e os bens empilhados que as cercavam. – E
aqui há bastante trabalho para nós enquanto isso.
Jéssica hesitou. “A coisa tem de seguir seu curso.” Era uma
frase de efeito específica do repertório de encantamentos da
Missionaria Protectora: a vinda da Reverenda Madre para
libertar vocês.
Mas eu não sou uma Reverenda Madre, Jéssica pensou. E
então: Grande Mãe! Introduziram essa profecia aqui! Deve ser
um lugar horrível!
Num tom de voz trivial, Mapes disse:
– O que a senhora quer que eu faça primeiro, milady?
O instinto alertou Jéssica para imitar aquele tom
despreocupado. Ela disse:
– O quadro do Velho Duque ali, ele tem de ser pendurado
numa das paredes laterais do salão de jantar. A cabeça do
touro deve ficar na parede oposta à do quadro.
Mapes foi até a cabeça do touro.
– Que animal enorme deve ter sido para carregar uma
cabeça como esta – ela disse. Abaixou-se. – Terei de limpá-la
primeiro, não, milady?
– Não.
– Mas há grumos de terra nos cornos.
– Não é terra, Mapes. É o sangue do pai de nosso duque. Os
cornos foram borrifados com um fixador transparente horas
depois de essa fera ter matado o Velho Duque.
Mapes ficou de pé.
– Ora essa! – falou.
– É só sangue – Jéssica disse. – E sangue velho, por falar
nisso. Peça a ajuda de alguém para pendurá-las. Essas coisas
descomunais são pesadas.
– A senhora achou que fiquei incomodada com o sangue? –
Mapes perguntou. – Sou do deserto e já vi bastante sangue.
– Eu... notei que sim – Jéssica disse.
– E uma parte dele era meu – continuou Mapes. – Mais do
que a senhora tirou com seu arranhãozinho.
– Preferia que eu tivesse cortado mais fundo?
– Ah, não! A água do corpo já é bem pouca, não precisamos
jogá-la fora. A senhora fez bem.
E Jéssica, reparando nas palavras e nos gestos,
compreendeu as implicações mais profundas da frase “a água
do corpo”. Mais uma vez, sentiu-se oprimida pela importância
da água em Arrakis.
– De que lado do salão de jantar devo pendurar cada uma
destas belezuras, milady? – Mapes perguntou.
Sempre prática, a tal Mapes, Jéssica pensou. E disse:
– Fica a seu critério, Mapes. Não faz realmente diferença.
– Como quiser, milady – Mapes se abaixou e começou a
tirar o papel de embrulho e o barbante da cabeça do touro. –
Matou um duque velho, não foi? – ela cantarolou em voz baixa.
– Quer que eu chame um carregador para ajudar você? –
Jéssica perguntou.
– Eu darei um jeito, milady.
Sim, ela dará um jeito, Jéssica pensou. Esta criatura
fremen tem isto: o impulso de dar um jeito.
Jéssica sentiu a bainha fria da dagacris sob seu corpete,
pensou na extensa corrente de maquinações das Bene Gesserit
que havia forjado mais um elo ali. Por causa dessas
maquinações, ela havia sobrevivido a uma crise fatal. “Não se
pode apressá-la”, Mapes dissera. Mas aquele lugar tinha um
ritmo impetuoso que enchia Jéssica de pressentimentos. E
nem todos os preparativos da Missionaria Protectora nem a
inspeção paranoica daquele monte acastelado de pedras por
parte de Hawat conseguiriam fazer aquela sensação
desaparecer.
– Quando acabar de pendurar isso aí, comece a desfazer as
caixas – Jéssica disse. – Um dos carregadores na entrada tem
todas as chaves e sabe onde as coisas devem ficar. Pegue as
chaves e a lista com ele. Se tiver alguma pergunta, estarei na
ala sul.
– Como quiser, milady – Mapes disse.
Jéssica deu-lhe as costas, pensando: Hawat pode ter
aprovado a segurança desta residência, mas há algo errado
neste lugar. Eu sinto que sim.
Uma necessidade urgente de ver o filho se apoderou de
Jéssica. Ela começou a andar na direção do arco que levava ao
salão de jantar e aos aposentos íntimos. Foi caminhando cada
vez mais rápido, até quase correr.
Atrás dela, Mapes parou de remover o papel da cabeça do
touro e olhou para a mulher que se afastava.
– Ela é a Predestinada, não há dúvida – murmurou. –
Coitada.
“Yueh! Yueh! Yueh!”, diz o refrão.
“Morrer um milhão de vezes ainda é
pouco para Yueh!”
– excerto de “A história de Muad’Dib para crianças”, da princesa
Irulan

A porta estava escancarada, e Jéssica a atravessou,


entrando numa sala de paredes amarelas. A sua esquerda
estendiam-se um canapé baixo, de couro preto, e duas estantes
vazias, além de um cantil pendurado, com pó sobre o bojo. A
sua direita, dos dois lados de uma outra porta, havia mais
estantes vazias, uma escrivaninha caladanina e três cadeiras.
Às janelas diretamente à frente dela estava o dr. Yueh, com as
costas voltadas para ela e a atenção concentrada no mundo lá
fora.
Jéssica deu mais um passo silencioso para dentro da sala.
Viu que o casaco de Yueh estava amassado, com uma
mancha branca perto do cotovelo esquerdo, como se ele
tivesse encostado em giz. Ele parecia, visto por trás, um palito
descarnado vestindo roupas pretas e grandes demais, uma
caricatura movida por cordas ao comando de um titereiro.
Somente a cabeça quadrada, com cabelos longos, cor de ébano,
presos sobre o ombro pelo anel de prata da Escola Suk, parecia
viva – virando-se ligeiramente para acompanhar algum
movimento lá fora.
Mais uma vez, ela relanceou o olhar pela sala, não vendo
nem sinal de seu filho, mas sabia que a porta fechada à direita
levava a um pequeno quarto de dormir pelo qual Paul havia
expressado uma certa predileção.
– Boa tarde, dr. Yueh – ela disse. – Onde está Paul?
Ele meneou a cabeça, como que para alguma coisa do
outro lado da janela, e falou distraidamente, sem se virar:
– Seu filho se cansou, Jéssica. Eu o mandei descansar no
quarto aí ao lado.
Abruptamente, ele se empertigou, girou nos calcanhares,
com o bigode balouçando acima dos lábios roxos.
– Perdoe-me, milady! Meus pensamentos andavam longe...
Eu... não quis abusar da familiaridade.
Ela sorriu e estendeu a mão direita. Por um momento,
receou que ele se ajoelhasse.
– Wellington, por favor.
– Usar o nome de milady como fiz... eu...
– Nós nos conhecemos há seis anos – ela disse. – Já passou
da hora de deixarmos de lado as formalidades entre nós...
quando sozinhos.
Yueh arriscou um sorriso débil, pensando: Creio que
funcionou. Agora ela irá pensar que qualquer coisa incomum na
minha conduta se deve ao constrangimento. Ela não irá
procurar razões mais profundas se acreditar já saber a
resposta.
– Receio que estivesse distraído – ele disse. – Toda vez que
eu... sinto pena de milady, receio que penso em milady como...
bem, Jéssica.
– Pena de mim? Por quê?
Yueh deu de ombros. Havia tempos ele percebera que
Jéssica não tinha sido abençoada com plenas habilidades de
Proclamar a Verdade como sua Wanna. Ainda assim, ele dizia a
verdade a Jéssica sempre que possível. Era mais seguro.
– Viu este lugar, mi... Jéssica. – Ele tropeçou no nome,
atirou-se: – Tão estéril perto de Caladan. E o povo! As mulheres
da cidade pelas quais passamos vindo para cá, gritando
debaixo dos véus. A maneira como olharam para nós.
Ela cruzou os braços sobre o peito, sentindo ali a dagacris,
uma arma entalhada a partir do dente de um verme da areia, se
os relatórios estivessem corretos.
– É só que somos estranhos para elas: pessoas diferentes,
costumes diferentes. Elas só conheciam os Harkonnen. –
Desviou o olhar para as janelas. – O que estava olhando lá fora?
Ele voltou a olhar para a janela.
– As pessoas.
Jéssica colocou-se ao lado dele, olhou para a esquerda, em
direção à frente da casa, onde a atenção de Yueh se
concentrava. Uma fileira de vinte palmeiras crescia ali, e o chão
abaixo delas estava limpo, estéril. Um tapume as separava da
rua, onde passavam pessoas vestindo mantos. Jéssica
detectou um leve bruxuleio no ar entre ela e as pessoas – um
escudo doméstico – e continuou estudando a turba que
passava, imaginando por que Yueh achava aquelas pessoas tão
cativantes.
O padrão apareceu, e ela levou a mão ao queixo. A maneira
como os transeuntes olhavam para as palmeiras! Ela viu inveja,
um pouco de ódio... até mesmo uma sensação de esperança.
Todas as pessoas esquadrinhavam aquelas árvores com uma
expressão rígida.
– Sabe o que estão pensando? – Yueh perguntou.
– Está dizendo que é capaz de ler mentes? – ela perguntou.
– Aquelas mentes, sim – ele respondeu. – Olham para
aquelas árvores e pensam: “Aí estão cem de nós”. É isso que
pensam.
Ela se voltou para ele com o cenho franzido.
– Por quê?
– São tamareiras – ele explicou. – Uma tamareira precisa
de quarenta litros de água por dia. Um homem precisa apenas
de oito litros. Uma palmeira, portanto, equivale a cinco
homens. São vinte palmeiras lá fora: cem homens.
– Mas algumas daquelas pessoas olham para as árvores
com esperança.
– Esperam apenas que caiam algumas tâmaras, mas não
estamos na estação certa.
– Enxergamos este lugar com olhos demasiadamente
críticos – ela disse. – Há esperança tanto quanto perigo aqui. A
especiaria pode nos enriquecer. Com o erário cheio, poderemos
transformar este mundo no que desejarmos.
E ela riu, em silêncio, de si mesma: Quem é que estou
tentando convencer? A risada transpôs suas coibições e saiu
seca, sem graça.
– Mas não se pode comprar a segurança – ela disse.
Yueh se virou para que ela não visse seu rosto. Se ao menos
fosse possível odiar estas pessoas, e não amá-las! À maneira
dela, de várias formas, Jéssica era como sua Wanna. Mas esse
pensamento também era de um rigor capaz de empederni-lo e
fazê-lo cumprir seu objetivo. A crueldade dos Harkonnen tinha
métodos ardilosos. Talvez Wanna não estivesse morta. Ele
precisava ter certeza.
– Não se preocupe conosco, Wellington – Jéssica disse. – O
problema é nosso, não seu.
Pensa que me preocupo com ela! Ele piscou os olhos para
não chorar. E me preocupo, claro. Mas tenho de me apresentar
diante daquele barão perverso depois de perpetrado o ato e
aproveitar a única oportunidade que terei de atingi-lo em seu
ponto mais fraco: em seu momento de vanglória!
Ele suspirou.
– Paul poderia acordar se eu desse uma olhada nele? – ela
perguntou.
– De jeito nenhum. Dei a ele um sedativo.
– Ele está se adaptando à mudança? – ela perguntou.
– A não ser pelo cansaço excessivo, sim. Está empolgado,
mas que rapaz de 15 anos não estaria, dadas as circunstâncias?
– Ele foi até a porta, abriu-a. – Ele está aí dentro.
Jéssica o imitou e olhou para dentro de um quarto escuro.
Paul estava deitado num catre estreito, com um dos
braços sob uma coberta leve, o outro atirado para trás, por
cima da cabeça. A persiana de uma janela ao lado da cama tecia
uma trama de sombras sobre o rosto e a coberta.
Jéssica olhou atentamente para o filho, vendo a forma oval
do rosto, tão parecido com o seu. Mas os cabelos eram os do
duque: cor de carvão e desgrenhados. Cílios longos escondiam
os olhos cor de limão. Jéssica sorriu, sentindo que seus
temores cediam. De repente, viu-se fascinada pela ideia de
traços genéticos na fisionomia do filho: eram as feições dela
nos olhos e no contorno do rosto, mas entreviam-se toques
marcantes do pai naquele perfil, como a maturidade a surgir da
infância.
Pensou nos traços do rapaz como uma destilação apurada
de padrões aleatórios: linhas intermináveis de acaso
encontrando-se num nexo. O pensamento a fez querer se
ajoelhar ao lado da cama e tomar o filho nos braços, mas ela foi
inibida pela presença de Yueh. Retrocedeu e fechou a porta de
mansinho.
Yueh tinha voltado para a janela, incapaz de suportar a
maneira como Jéssica olhava para o filho. Por que Wanna
nunca me deu filhos?, ele se perguntou. Sei, como médico, que
não havia nenhum motivo físico que nos impedisse. Será que as
Bene Gesserit tinham um motivo? Será, talvez, que ela tenha
sido instruída a desempenhar um outro papel? O que poderia
ter sido? Ela certamente me amava.
Pela primeira vez, ficou encantado com a ideia de que
talvez ele fosse parte de um padrão mais intricado e
complicado do que sua mente era capaz de entender.
Jéssica parou ao lado dele e disse:
– Que abandono delicioso é o sono de uma criança.
Ele falou mecanicamente:
– Ah, se os adultos conseguissem relaxar dessa maneira.
– Sim.
– Onde é que perdemos isso? – ele murmurou.
Ela olhou para ele, percebendo o estranho tom de voz, mas
sua mente ainda estava em Paul, pensando nos novos rigores
do treinamento que ele receberia ali, pensando em como a vida
dele seria diferente, tão distinta da vida que um dia tinham
planejado para ele.
– É mesmo, perdemos alguma coisa – ela disse.
Ela olhou para a direita, para uma escarpa carregada de
arbustos verdes-cinza e agitados pelo vento: folhas cobertas
de pó e galhos secos e retorcidos. O céu demasiadamente
escuro era como uma nódoa pairando sobre a escarpa, e a luz
leitosa do sol arrakino dava à cena um matiz prateado – luz
semelhante à da dagacris escondida em seu corpete.
– O céu é tão escuro – ela disse.
– Deve-se em parte à falta de umidade – ele explicou.
– Água! – ela falou, ríspida. – Para onde quer que olhemos,
estamos às voltas com a falta de água!
– É o precioso mistério de Arrakis – ele disse.
– Por que é tão escassa? Existem rochas vulcânicas aqui.
Posso enumerar dezenas de fontes de energia. Há o gelo polar.
Dizem ser impossível perfurar no deserto: as tempestades e
marés de areia destroem o equipamento antes que se consiga
instalá-lo, isso se os vermes da areia não fizerem o serviço
primeiro. De qualquer maneira, nunca encontraram sinais de
água por lá. Mas o mistério, Wellington, o verdadeiro mistério
são os poços que foram perfurados aqui nas pias e bacias. Já
leu a respeito deles?
– No início, um fiozinho d’água, depois nada – ele disse.
– Mas, Wellington, esse é o mistério. A água estava lá. Ela
seca. E nunca mais se encontra água. E, no entanto, outro
buraco perfurado ao lado do primeiro produzirá o mesmo
resultado: um fio d’água que para de brotar. Será que ninguém
achou isso curioso?
– É curioso – ele disse. – Você desconfia da ação de algum
ser vivo? Não teria aparecido nas amostras geológicas?
– O que teria aparecido? Matéria vegetal ou animal
alienígena? E quem a reconheceria? – Ela voltou a olhar para a
escarpa. – A água para de brotar. Alguma coisa a obstrui. É
disso que desconfio.
– Talvez se saiba a razão – ele disse. – Os Harkonnen
tornaram inacessíveis muitas fontes de informação sobre
Arrakis. Talvez houvesse um motivo para suprimi-las.
– Qual motivo? – ela perguntou. – E também temos a
umidade atmosférica. É bem pouca, certamente, mas existe. É
a principal fonte de água daqui, recolhida em captadores de
vento e condensadores. De onde isso vem?
– Das calotas polares?
– O ar frio retém pouca umidade, Wellington. Algumas
coisas aqui, atrás do véu dos Harkonnen, merecem uma
investigação minuciosa, e nem todas essas coisas estão
envolvidas diretamente com a especiaria.
– Estamos, de fato, atrás do véu dos Harkonnen – ele disse.
– Talvez nós... – Não concluiu, notando a maneira intensa e
repentina como ela olhava para ele. – Algo errado?
– A maneira como você diz “Harkonnen” – ela disse. – Nem
a voz de meu duque tem tanto veneno ao mencionar esse nome
abominável. Não sabia que você tinha motivos pessoais para
odiá-los, Wellington.
Grande Mãe!, ele pensou. Despertei sua desconfiança!
Agora tenho de usar todos os truques que minha Wanna me
ensinou. Só há uma solução: contar a verdade até onde eu
puder.
Ele disse:
– Você não sabia que minha esposa, minha Wanna... – Ele
encolheu os ombros, incapaz de falar, com um nó na garganta.
E depois: – Eles... – As palavras não saíam. Ele entrou em
pânico, fechou os olhos com força, sentindo praticamente só a
agonia em seu peito até uma mão tocar-lhe delicadamente o
braço.
– Perdoe-me – Jéssica disse. – Não era minha intenção
reabrir uma velha ferida. – E ela pensou: Aqueles animais! A
mulher dele era Bene Gesserit: os sinais estão estampados nele.
E é óbvio que os Harkonnen a mataram. Eis mais uma pobre
vítima que jurou lealdade aos Atreides por um cherem de ódio.
– Desculpe-me – ele disse. – Não consigo falar sobre isso. –
Ele abriu os olhos, entregando-se à consciência interior do
pesar. Aquilo, pelo menos, era verdade.
Jéssica o estudou, observando os malares oblíquos, as
lantejoulas escuras que eram os olhos amendoados, a cútis
amanteigada e o bigode comprido, que pendia feito uma
moldura arredondada de um lado e de outro dos lábios roxos e
do queixo fino. Ela viu que as rugas da face e da testa eram
marcas de tristeza tanto quanto da idade. Viu-se tomada por
uma profunda afeição por ele.
– Wellington, sinto muito por termos trazido você para
este lugar perigoso – ela disse.
– Vim por livre e espontânea vontade – ele falou. E aquilo
também era verdade.
– Mas este planeta inteiro é uma armadilha dos
Harkonnen. Você certamente sabe disso – ela disse.
– Será preciso mais que uma armadilha para apanhar o
duque Leto – ele retorquiu. E aquilo também era verdade.
– Talvez eu deva confiar um pouco mais nele – ela disse. – É
um estrategista brilhante.
– Fomos desarraigados – ele explicou. – É por isso que
estamos apreensivos.
– E como é fácil matar a planta desarraigada – ela disse. –
Especialmente quando a colocam em solo hostil.
– Temos certeza de que o solo é hostil?
– Houve tumultos por causa da água quando ficaram
sabendo quantas pessoas o duque acrescentaria à população –
ela comentou. – Só pararam quando souberam que
instalaríamos novos captadores de vento e condensadores
como compensação.
– Não há muita água aqui para manter a vida humana – ele
disse. – As pessoas sabem que, se houver mais gente para
beber uma quantidade limitada de água, o preço subirá e os
miseráveis morrerão. Mas o duque já resolveu isso. Não quer
dizer que os tumultos representem uma hostilidade
permanente em relação a ele.
– E os guardas – ela disse. – Guardas por toda parte. E
escudos. Para onde quer que se olhe, lá está a distorção
provocada por eles. Não vivíamos assim em Caladan.
– Dê uma chance a este planeta – ele pediu.
Mas Jéssica continuou a olhar friamente pela janela.
– Sinto o cheiro da morte neste lugar – ela disse. – Hawat
mandou batedores para cá aos montes. Os guardas lá fora são
homens dele. Os carregadores são homens dele. Houve saques
não explicados de grandes somas de dinheiro do erário. Os
montantes só podem significar uma coisa: subornos no alto
escalão. – Ela chacoalhou a cabeça. – A morte e a trapaça
seguem Thufir Hawat aonde quer que ele vá.
– Assim você o difama.
– Difamar? É um elogio. A morte e a trapaça são nossas
únicas esperanças agora. Eu só não me iludo quanto aos
métodos de Thufir.
– Você deveria... arranjar algo para fazer – ele disse. – Para
não ter tempo de pensar nessas coisas mórbid...
– Algo para fazer! E o que é que toma a maior parte de meu
tempo, Wellington? Sou a secretária do duque: ando tão
ocupada que a cada dia descubro coisas novas para temer...
coisas que ele nem desconfia que eu sei. – Ela apertou os lábios
e falou baixinho: – Às vezes, pergunto-me se minha formação
em administração pela escola Bene Gesserit não foi o que mais
pesou na decisão dele ao me escolher.
– Como assim? – Ele se viu surpreso com o tom cínico, com
a amargura que ele nunca a tinha visto demonstrar.
– Você não acha, Wellington – ela perguntou –, que uma
secretária apaixonada é muito mais segura?
– Não devia pensar assim, Jéssica.
A reprimenda havia chegado naturalmente a seus lábios.
Não havia dúvida quanto ao que o duque sentia por sua
concubina. Bastava observá-lo enquanto ele a seguia com os
olhos.
Ela suspirou.
– Tem razão. Não devia.
Novamente, ela se abraçou, pressionando a dagacris
embainhada contra sua pele e pensando nos assuntos não
resolvidos que a arma representava.
– Logo haverá muito sangue derramado – ela disse. – Os
Harkonnen só irão descansar quando estiverem mortos ou
destruírem meu duque. O barão não consegue esquecer que
Leto tem parentesco com a família real, por mais distante que
seja, ao passo que os títulos dos Harkonnen foram comprados
pela CHOAM. Mas aquilo que o envenena, bem no fundo de sua
mente, é saber que um Atreides baniu um Harkonnen por
covardia depois da Batalha de Corrin.
– A velha rixa – Yueh murmurou. E por um momento ele
sentiu o contato ácido do ódio. A antiga rixa o havia apanhado
em sua teia, matado Wanna ou, pior ainda, submetido-a à
tortura dos Harkonnen, até que o marido fizesse o que lhe fora
ordenado. A velha rixa o enredara, e aquelas pessoas eram
parte daquela coisa peçonhenta. A ironia era que tamanha
letalidade devesse desabrochar ali em Arrakis, a única fonte de
mélange do universo, a especiaria que prolongava a vida e
trazia a saúde.
– No que está pensando? – ela perguntou.
– Estou pensando que a especiaria é vendida a seiscentos e
vinte mil solaris o decagrama no mercado livre neste exato
momento. É dinheiro suficiente para comprar muitas coisas.
– A ganância afeta até mesmo você, Wellington.
– Não é ganância.
– O que é, então?
Ele deu de ombros.
– Futilidade. – Ele olhou para ela. – Você se lembra da
primeira vez que experimentou a especiaria?
– Tinha gosto de canela.
– Mas nunca se repete – ele disse. – É como a vida:
apresenta uma face diferente toda vez que a experimentamos.
Alguns afirmam que a especiaria produz uma reação de
paladar adquirido. O corpo, ao aprender que algo é bom para
ele, interpreta o sabor como agradável, ligeiramente eufórico.
E, assim como a vida, nunca será realmente sintetizada.
– Creio que teria sido mais ajuizado desertar, fugir para
longe do Império – ela disse.
Ele percebeu que ela não lhe dera atenção, concentrou-se
nas palavras dela e se perguntou: Sim... Por que ela não o
obrigou a fazer isso? Ela poderia obrigá-lo a fazer praticamente
qualquer coisa.
Ele falou rápido, porque roçava a verdade e mudava o
assunto:
– Seria audácia minha... Jéssica, se eu lhe fizesse uma
pergunta pessoal?
Ela se encostou no parapeito da janela, com uma pontada
inexplicável de inquietação.
– Claro que não. Você é... meu amigo.
– Por que não fez o duque se casar com você?
Ela se virou, de cabeça erguida e com um olhar ferino.
– Fazê-lo se casar comigo? Mas...
– Eu não deveria ter perguntado – ele se desculpou.
– Não. – Ela deu de ombros. – Há um bom motivo político:
enquanto meu duque continuar solteiro, algumas das Casas
Maiores ainda podem sonhar com uma aliança. E... – ela
suspirou – motivar as pessoas, submetê-las a nossa vontade,
leva-nos a perder a fé na humanidade. É um poder que avilta
tudo o que toca. Se eu o tivesse obrigado a fazer... isso, então
não teria sido ele a fazer.
– Está aí uma coisa que minha Wanna poderia ter dito – ele
murmurou. E aquilo também era verdade. Ele levou uma das
mãos à boca, engolindo em seco convulsivamente. Nunca havia
chegado tão perto de contar tudo, de confessar o papel secreto
que lhe cabia.
Jéssica falou, desfazendo o momento:
– Além do que, Wellington, o duque, na verdade, são dois
homens. Um deles, eu amo muito. É encantador, espirituoso,
atencioso... terno: tudo que uma mulher deseja. Mas o outro
homem é... frio, insensível, exigente, egoísta: impiedoso e cruel
como o vento do inverno. Esse é o homem moldado pelo pai. – A
face dela se contorceu. – Se ao menos aquele velho tivesse
morrido quando meu duque nasceu!
No silêncio que se fez entre eles, era possível ouvir a brisa
gerada por um ventilador dedilhar as persianas.
De imediato, ela inspirou profundamente e disse:
– Leto tem razão: estes aposentos são mais agradáveis que
os das outras partes da casa. – Ela se virou, varrendo a sala
com o olhar. – Se me der licença, Wellington, quero dar mais
uma olhada nesta ala antes de distribuir os cômodos.
Ele concordou.
– Claro. – E pensou: Se ao menos houvesse uma maneira de
não fazer o que tenho de fazer.
Jéssica deixou os braços caírem ao longo do corpo, foi para
a porta do corredor e ficou ali um momento, hesitante, depois
saiu. Durante toda a nossa conversa, ele escondeu alguma
coisa, não quis contá-la, ela pensou. Para não ferir meus
sentimentos, sem dúvida. Ele é um bom homem. Mais uma vez,
ela hesitou; quase deu meia-volta para confrontar Yueh e
arrancar dele aquilo que escondia. Mas isso só faria
envergonhá-lo, ficaria assustado, sabendo que é tão fácil
decifrá-lo. Eu deveria confiar mais nos amigos.
Muitos notaram a rapidez com que
Muad’Dib aprendeu as necessidades de
Arrakis. As Bene Gesserit, naturalmente,
sabem por quê. Para os demais, podemos
dizer que Muad’Dib aprendeu rápido
porque primeiro lhe ensinaram como
aprender. E a primeira lição de todas foi
desenvolver a confiança fundamental de
que ele era capaz de aprender. É
surpreendente saber quantas pessoas
não acreditam ser capazes de aprender e
quantas outras creem que aprender é
difícil. Muad’Dib sabia que toda
experiência era uma lição.
– excerto de “A humanidade de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Paul estava deitado na cama, fingindo dormir. Tinha sido


fácil escamotear o sonífero do dr. Yueh e fingir engoli-lo. Paul
reprimiu uma risada. Até mesmo sua mãe tinha acreditado que
ele dormia. Teve vontade de se levantar num salto e pedir-lhe
permissão para explorar a casa, mas percebera que ela não
aprovaria. As coisas ainda estavam desordenadas demais. Não.
Era melhor assim.
Se eu sair de fininho, sem pedir permissão, não terei
desobedecido ordens. E ficarei dentro da casa, onde é seguro.
Ouviu a mãe e Yueh conversando no outro cômodo. As
palavras eram indistintas: algo sobre a especiaria... os
Harkonnen. A conversa ora se fazia ouvir, ora não.
A atenção de Paul se dirigiu à cabeceira entalhada de sua
cama: uma cabeceira falsa, presa à parede, que escondia o
controle das funções do quarto. Um peixe saltador tinha sido
esculpido na madeira, com ondas espessas e castanhas logo
abaixo. Ele sabia que, se empurrasse o único olho visível do
peixe, as luminárias suspensas do quarto se acenderiam. Uma
das ondas, quando era virada, controlava a ventilação. Uma
outra mudava a temperatura.
Em silêncio, Paul se sentou na cama. Uma estante alta
estava apoiada na parede à esquerda dele. Ela se abria e
revelava um closet, com várias gavetas de um lado. A maçaneta
da porta que dava para o corredor imitava a barra de impulso
de um ornitóptero. Era como se o quarto tivesse sido criado
para seduzi-lo.
O quarto e o planeta.
Pensou no bibliofilme que Yueh havia lhe mostrado:
“Arrakis: Estação de Experimentação Botânica no Deserto de
Sua Majestade Imperial”. Era um bibliofilme antigo, anterior à
descoberta da especiaria. Nomes passaram pela mente de
Paul, cada qual com sua imagem impressa pelo pulso
mnemônico do livro: carnegíea, ambrósia, tamareira, abrônia,
enotera, equinocacto, incenso, fustete, arbusto de creosoto...
raposa-orelhuda, gavião-do-deserto, rato-canguru...
Nomes e imagens, nomes e imagens do passado do homem
na Terra – e muitos já não eram mais encontrados em nenhum
outro lugar do universo, exceto ali em Arrakis.
Tantas coisas novas para aprender: a especiaria.
E os vermes da areia.
Uma porta se fechou no outro cômodo. Paul ouviu os
passos da mãe no corredor, afastando-se. Ele sabia que o dr.
Yueh acharia alguma coisa para ler e ficaria na sala contígua.
Era a hora de sair para explorar.
Paul se esgueirou para fora da cama, foi até a porta-
estante que dava para o closet. Parou ao ouvir um ruído atrás
dele e virou-se.
A cabeceira entalhada da cama estava se dobrando e
baixando sobre o ponto onde ele estivera dormindo. Paul ficou
imóvel, e isso salvou sua vida.
De trás da cabeceira saiu furtivamente um diminuto
caçador-buscador, com não mais que cinco centímetros de
comprimento. Paul o reconheceu na hora: uma arma comum
dos assassinos que toda criança de sangue real aprendia a
identificar bem cedo. Era um pedacinho voraz de metal, guiado
pelas mãos e pelos olhos de alguém nas proximidades. Era
capaz de se enterrar na carne viva e abrir caminho pelas vias
nervosas até o órgão vital mais próximo.
O buscador subiu, fez um giro quase completo pelo quarto
e voltou.
Pela mente de Paul passaram em velocidade as
informações pertinentes, as limitações do caçador-buscador:
seu campo suspensor compacto distorcia a visão do olho
transmissor. Como só a luz fraca do quarto iluminava o alvo, o
operador tinha de contar com algum tipo de movimento,
qualquer coisa que se movesse. Um escudo conseguiria
retardar um caçador, ganhar tempo para que se pudesse
destruí-lo, mas Paul deixara seu escudo sobre a cama. Podiam
ser abatidos por armaleses, mas as armaleses eram caras e sua
manutenção tinha a má fama de ser volátil – e havia sempre o
perigo de pirotecnia explosiva se o raio laser interceptasse um
escudo ativo. Os Atreides contavam com seus escudos
pessoais e sua sagacidade.
Agora, Paul mantinha-se num estado de imobilidade
catatônica, sabendo que só poderia contar com sua sagacidade
para enfrentar aquela ameaça.
O caçador-buscador subiu mais meio metro. Atravessou as
faixas de sombra e luz criadas pelas palhetas da persiana, para
a frente e para trás, em todas as direções do quarto.
Tenho de tentar agarrá-lo, ele pensou. O campo suspensor
deixa a coisa escorregadia na base. Tenho de segurar com
força.
A coisa baixou meio metro, virou para a esquerda, fez a
volta, contornando a cama. Ouvia-se um zumbido baixo que
saía do dispositivo.
Quem está operando essa coisa?, Paul se perguntou. Tem
de ser alguém aqui perto. Eu poderia gritar e chamar Yueh, mas
a coisa o mataria no instante em que a porta se abrisse.
A porta do corredor atrás de Paul rangeu. Soou ali uma
batida. A porta se abriu.
O caçador-buscador passou rente à cabeça dele feito uma
flecha, na direção do movimento.
A mão direita de Paul se projetou para fora e para baixo e
agarrou o aparelho letal. Agora a coisa zumbia e se contorcia
na mão dele, mas os músculos do rapaz se fecharam
desesperadamente sobre ela. Com um giro e uma arremetida
violenta, ele bateu o nariz da coisa contra a placa de metal da
porta. Sentiu a coisa se esfacelar quando o olho da ponta foi
esmagado, e o buscador morreu em sua mão.
Mas ele continuou a segurar a coisa, só para ter certeza.
Os olhos de Paul se ergueram e encontraram o olhar
franco e totalmente azul da shadout Mapes.
– Seu pai mandou chamá-lo – ela disse. – Há alguns
homens no corredor para escoltá-lo.
Paul fez que sim, e seus olhos e sua percepção se
concentraram naquela mulher esquisita, metida num vestido-
saco na cor parda dos escravos. Ela agora olhava para a coisa
que ele segurava firme na mão.
– Já ouvi falar dessas coisas – ela disse. – Teria me matado,
não é?
Ele teve de engolir saliva antes de conseguir falar.
– Eu... era o alvo.
– Mas a coisa vinha em minha direção.
– Porque você estava em movimento. – E ele se perguntou:
Quem é esta criatura?
– Então você salvou minha vida.
– Salvei a sua e a minha.
– Parece-me que poderia tê-la deixado me pegar e fugido –
ela disse.
– Quem é você? – ele perguntou.
– A shadout Mapes, a governanta.
– Como sabia onde me encontrar?
– Sua mãe me contou. Eu a encontrei na escada que leva à
sala dos sortilégios no fim do corredor. – Ela apontou sua
direita. – Os homens de seu pai ainda estão esperando.
Devem ser os homens de Hawat, ele pensou. Temos de
encontrar o operador desta coisa.
– Vá até os homens de meu pai – ele disse. – Diga a eles que
peguei um caçador-buscador dentro da casa e que eles devem
se espalhar e procurar o operador. Diga-lhes para isolar a casa
e o resto da propriedade imediatamente. Eles saberão o que
fazer. O operador certamente é um estranho entre nós.
E ele se perguntou: Poderia ser esta criatura? Mas ele sabia
que não. O buscador ainda estava sob o controle de alguém
quando ela entrou.
– Antes de eu fazer o que me manda, homenzinho – Mapes
disse –, tenho de limpar o caminho entre nós. Você colocou um
fardo d'água sobre meus ombros que não sei bem se quero
levar. Mas nós, fremen, saldamos nossas dívidas, com o mal ou
com o bem. E sabemos que há um traidor entre vocês. Quem
seria, não sabemos dizer, mas temos certeza absoluta de que
ele existe. Quiçá seja dele a mão que guiou esse fatiador de
carne.
Paul absorveu aquilo em silêncio, um traidor. Antes que ele
conseguisse falar, a mulher esquisita deu meia-volta e correu
na direção da entrada.
Ele cogitou chamá-la de volta, mas algo nela lhe dizia que
ela se ressentiria disso. Ela contara o que sabia e agora ia fazer
o que ele mandara. A casa estaria fervilhando com os homens
de Hawat num minuto.
Sua mente passou a outras partes daquela estranha
conversa: sala dos sortilégios. Olhou para a esquerda, para
onde ela havia apontado. Nós, fremen. Então aquilo era um
fremen. Ele esperou o lampejo mnemônico que guardaria o
padrão do rosto dela em sua memória: feições encarquilhadas
e morenas, olhos de um azul sobre azul, sem nada de branco.
Ele anexou o rótulo: a shadout Mapes.
Ainda segurando o buscador em pedaços, Paul voltou para
seu quarto, apanhou seu cinturão-escudo sobre a cama com a
mão esquerda, cingiu-o à cintura e o afivelou enquanto voltava
a sair para o corredor e disparava pela esquerda.
Ela tinha dito que a mãe dele estava em algum lugar por ali:
uma escada... uma sala dos sortilégios.
O que sustentou lady Jéssica no momento
de sua provação? Pense com cuidado
neste provérbio das Bene Gesserit e talvez
você entenda: “Qualquer estrada, se
seguida exatamente até seu fim, leva
exatamente a lugar nenhum. Escale a
montanha só um pouquinho, para
verificar se é mesmo uma montanha. Do
topo, não se vê a montanha”.
– excerto de “Muad’Dib: Memorial da família”, da princesa Irulan

No fim da ala sul, Jéssica encontrou uma escada metálica


que subia em caracol até uma porta oval. Ela olhou
rapidamente para trás, para o corredor, e outra vez para a
porta.
Oval?, ela se admirou. Que formato estranho para a porta
de uma casa.
Pelas janelas sob a escada em caracol, ela via o grande sol
branco de Arrakis, que se movia na direção da noite. Sombras
compridas crivavam o corredor. Ela voltou sua atenção para a
escada. A dura iluminação indireta destacava torrõezinhos de
terra seca sobre o metal trabalhado e vazado dos degraus.
Jéssica pousou uma das mãos sobre o corrimão e começou
a subir. O corrimão era frio ao contato de sua palma em
movimento. Ela parou ao chegar à porta, viu que não havia
maçaneta, só uma leve depressão na superfície, bem onde a
maçaneta deveria estar.
Não pode ser uma fechadura palmar, ela disse consigo
mesma. Uma fechadura palmar é fechada ou aberta pela forma
da mão e pelas linhas da palma de um indivíduo. Mas parecia
ser uma fechadura palmar. E havia maneiras de abrir qualquer
fechadura palmar, como ela aprendera na escola.
Jéssica deu mais uma olhada para trás, para se certificar
de que ninguém a observava, colocou a mão sobre a depressão
na porta. A pressão mais delicada para distorcer as linhas: um
giro do pulso, mais uma volta, uma torção que fez a palma
deslizar pela superfície.
Ela sentiu o clique.
Mas ouviram-se passos apressados no corredor abaixo
dela. Jéssica tirou a mão da porta, virou-se, viu Mapes aparecer
ao pé da escada.
– Temos homens no Grande Átrio dizendo que foram
mandados pelo duque para levar o jovem mestre Paul – Mapes
disse. – Eles têm o sinete ducal e o guarda os identificou. – Ela
olhou de relance para a porta, depois para Jéssica.
É cautelosa essa Mapes, Jéssica pensou. Bom sinal.
– Ele está no quinto aposento a partir desta ponta do
corredor, no quartinho – Jéssica disse. – Se tiver dificuldade
para acordá-lo, chame o dr. Yueh na sala ao lado. Pode ser que
Paul precise tomar uma injeção estimulante para despertar.
Mais uma vez, Mapes lançou um olhar penetrante para a
porta oval, e Jéssica imaginou detectar asco naquela
expressão. Antes que Jéssica pudesse perguntar algo sobre a
porta e o que se escondia atrás dela, Mapes havia se virado e
corrido, voltando pelo corredor.
Hawat verificou o lugar, Jéssica pensou. Não pode haver
nada de muito terrível aí dentro.
Ela empurrou a porta, que se abriu para uma sala pequena,
com uma outra porta oval na parede oposta. Essa outra porta
tinha uma roda como maçaneta.
Uma câmara de compressão!, Jéssica pensou. Olhou para
baixo, viu uma escora de porta no chão da salinha. A escora
tinha o sinal pessoal de Hawat. A porta foi deixada aberta e
escorada, ela pensou. Alguém deve ter derrubado a escora
acidentalmente, sem perceber que a porta externa seria
trancada por uma fechadura palmar.
Ela passou por cima do rebordo e entrou na salinha.
Para que uma câmara de compressão numa casa?, ela se
perguntou. E, de repente, pensou em criaturas exóticas
isoladas em ambientes especiais.
Ambiente especial!
Faria sentido em Arrakis, onde mesmo as coisas mais
secas trazidas de outros planetas precisavam ser irrigadas.
A porta atrás dela começou a se fechar. Ela a segurou e
escorou com firmeza, usando a vareta que Hawat tinha deixado
ali. Voltou a encarar a porta interna, com a maçaneta de roda,
vendo agora uma inscrição quase apagada gravada no metal
acima da maçaneta. Ela reconheceu as palavras em galach e
leu:
– Ó, Homem! Eis aqui um pedaço adorável da Criação de
Deus: coloca-te, portanto, diante dela e aprende a amar a
perfeição de Teu Amigo Supremo.
Jéssica jogou todo seu peso na roda, que girou para a
esquerda, e a porta interna se abriu. Uma brisa suave roçou-lhe
a face, agitou-lhe os cabelos. Ela sentiu a mudança no ar, um
sabor mais penetrante. Escancarou a porta e viu-se diante de
um aglomerado de folhas, atravessado por uma abundante luz
solar amarela.
Sol amarelo?, ela se perguntou. E em seguida: Vidro
filtrador!
Jéssica passou pela soleira e a porta se fechou atrás dela.
– Uma estufa de ambiente úmido – murmurou.
Plantas envasadas e árvores de poda baixa estavam por
toda parte. Ela reconheceu uma mimosa, um marmeleiro
florido, a sondagi, a pleniscenta de flores verdes, o akarso
alviverde... rosas...
Até mesmo rosas!
Ela se inclinou para aspirar a fragrância de um gigantesco
botão rosado; endireitou-se para dar uma olhada na sala.
Seus sentidos foram invadidos por um ruído ritmado.
Ela apartou uma selva de folhas sobrepostas para ver o
centro da sala. Uma fonte baixa erguia-se ali, pequena e com
bordas estriadas. O ruído ritmado era a água de um pequeno
jato que surgia do chafariz, dividia-se no ar e chovia sobre a
bacia de metal com um galope de baques surdos.
Recorrendo ao rápido regime de desobstrução dos
sentidos, Jéssica começou a inspecionar metodicamente o
perímetro da sala. Parecia ter uns dez metros quadrados. Pela
localização, logo acima de uma das pontas do corredor, e
devido a diferenças sutis na construção, ela calculou que a
estufa teria sido acrescentada ao telhado daquela ala muito
depois de completado o edifício original.
Ela se deteve nos limites sul da sala, em frente à grande
extensão de vidro filtrador, e olhou ao redor. Todo o espaço
disponível na sala estava atulhado de plantas exóticas de clima
úmido. Alguma coisa farfalhou na folhagem. Ela ficou tensa,
depois entreviu um simples servógio programável, dotado de
braços em forma de canos e mangueiras. Um dos braços se
ergueu, emitiu um borrifo fino de água que umedeceu a face de
Jéssica. O braço se recolheu, e ela olhou para o que tinha sido
regado: um feto arborescente.
Água em toda parte naquela sala... num planeta em que a
água era o sumo mais precioso da vida. Água desperdiçada de
maneira tão conspícua que, escandalizada, ela encontrou sua
calma interior.
Ela olhou para fora, para o sol amarelo do filtro. Pairava
baixo no horizonte acidentado acima dos penhascos que
formavam parte do imenso afloramento de rocha conhecido
como a Muralha-Escudo.
Vidro filtrador, ela pensou. Para transformar um sol
branco em algo mais suave e familiar. Quem poderia ter
construído este lugar? Leto? Seria próprio dele surpreender-me
com um presente destes, mas não houve tempo suficiente. E ele
anda ocupado com problemas mais graves.
Lembrou-se do relatório que informava que muitas casas
arrakinas eram isoladas com portas e janelas pressurizadas,
para conservar e reaproveitar a umidade interna. Leto havia
dito que era uma declaração deliberada de poder e riqueza
aquela casa ignorar tais precauções, pois suas portas e janelas
barravam apenas o pó onipresente.
Mas aquela sala personificava uma declaração muito mais
significativa do que a ausência de hidrovedação nas portas
externas. Ela estimava que aquela sala de recreação deveria
usar água suficiente para sustentar mil pessoas em Arrakis,
talvez mais.
Jéssica percorreu a extensão da janela, ainda olhando para
a sala. Seu deslocamento descortinou uma superfície metálica,
da altura de uma mesa, ao lado da fonte, e ela vislumbrou um
bloco branco de apontamentos e um estilo, parcialmente
escondidos por uma folha pendente, em forma de abano. Ela foi
até a mesa, reparou nos sinais que Hawat havia deixado no
móvel e examinou uma mensagem escrita no bloco:

“A LADY JÉSSICA,

Que este lugar lhe dê tanto prazer quanto deu a mim. Por
favor, permita que esta sala transmita uma lição que
aprendemos com as mesmas professoras: a proximidade
de um objeto de desejo é uma tentação ao excesso. Nesse
caminho jaz o perigo.
Meus melhores votos,
MARGOT, LADY FENRING”

Jéssica meneou afirmativamente a cabeça, lembrando-se


de que Leto havia se referido ao ex-representante do
imperador como conde Fenring. Mas a mensagem oculta na
nota exigia atenção imediata, dissimulada como estava para
informá-la de que a autora era outra Bene Gesserit. Um
pensamento amargo tocou Jéssica de passagem: o conde
casou-se com sua lady.
Ainda enquanto esse pensamento lhe passava pela cabeça,
ela já estava inclinada sobre a mesa, à procura da mensagem
secreta. Tinha de estar ali. A parte visível da nota continha a
frase combinada que toda Bene Gesserit livre de uma Injunção
Escolar tinha de dar a outra Bene Gesserit quando a situação
assim exigia: “Nesse caminho jaz o perigo”.
Jéssica apalpou o verso da nota, esfregou a superfície, em
busca dos pontinhos cifrados. Nada. A borda do bloco passou
por seus dedos ávidos. Nada. Devolveu o bloco ao lugar onde
ela o havia encontrado, tomada pela sensação de urgência.
Teria algo a ver com a posição do bloco?, ela imaginou.
Mas Hawat havia examinado aquela sala e, sem dúvida,
teria movido o bloco. Ela olhou para a folha que pairava sobre o
bloco. A folha! Ela passou um dedo pela superfície inferior, pela
margem, pela haste. Estava ali! Seus dedos detectaram os
discretos pontos cifrados e começaram a lê-los de uma vez só:
“Seu filho e o duque correm perigo imediato. Prepararam
um quarto para atrair seu filho. Os H o encheram com
armadilhas mortais de fácil detecção, deixando uma que talvez
passe despercebida.” Jéssica conteve o impulso de correr para
Paul; era preciso ler a mensagem inteira. Seus dedos se
apressaram na leitura dos pontos: “Desconheço a natureza
exata da ameaça, mas tem algo a ver com uma cama. A ameaça
a seu duque envolve a traição de um companheiro ou lugar-
tenente de confiança. O plano dos H é dar você de presente a
um assecla. Até onde sei, esta estufa é segura. Perdoe-me por
não saber dizer mais. Minhas fontes são poucas, pois meu
conde não está na folha de pagamento dos H. Às pressas, MF”.
Jéssica largou a folha, virou-se e correu de volta para Paul.
Naquele instante, a porta pressurizada se abriu com estrondo.
Paul a atravessou de um salto, segurando alguma coisa em sua
mão direita, e bateu a porta atrás dele. Ele viu a mãe, abriu
caminho até ela pela folhagem, olhou de relance para a fonte,
enfiou a mão e a coisa que segurava na cascata de água.
– Paul! – Ela segurou o ombro dele, de olhos fixos na mão
do garoto. – O que é isso?
Ele falou despreocupadamente, mas ela percebeu o
esforço por trás daquele tom de voz:
– Um caçador-buscador. Eu o peguei em meu quarto e
esmaguei-lhe o nariz, mas quero ter certeza. A água provocará
um curto-circuito.
– Mergulhe-o! – ela ordenou.
Ele obedeceu.
Imediatamente, ela disse:
– Recolha sua mão. Deixe a coisa na água.
Ele removeu a mão, chacoalhando-a para se livrar da água,
e fitou o metal inerte dentro da fonte. Jéssica quebrou o talo de
uma planta e cutucou a coisinha letal.
Estava morta.
Jéssica soltou o talo dentro da água e olhou para Paul. Os
olhos dele examinavam a sala com uma intensidade inquisitiva
que ela não deixou de reconhecer: a Doutrina B. G.
– Este lugar poderia esconder qualquer coisa – ele disse.
– Tenho motivos para crer que é seguro – ela replicou.
– Meu quarto também deveria ser seguro. Hawat disse...
– Era um caçador-buscador – ela o fez lembrar. – Significa
que alguém dentro da casa o operava. Os raios de controle dos
buscadores têm alcance limitado. A coisa poderia ter sido
trazida para dentro da casa depois do exame de Hawat.
Mas ela pensou na mensagem da folha: “... traição de um
companheiro ou lugar-tenente de confiança”. Não o Hawat,
certamente. Não o Hawat.
– Os homens de Hawat estão vasculhando a casa neste
instante – ele disse. – Esse buscador quase pegou a velha que
foi me acordar.
– A shadout Mapes – Jéssica disse, lembrando-se do
encontro na escada. – A convocação de seu pai para...
– Pode esperar – Paul disse. – Por que acha que esta sala é
segura?
Ela apontou o bilhete e o explicou.
Ele relaxou um pouco.
Mas Jéssica continuou tensa por dentro, pensando: Um
caçador-buscador! Mãe de Misericórdia! Foi preciso todo o seu
treinamento para evitar um acesso de tremor histérico.
Paul falou com toda a tranquilidade:
– Foram os Harkonnen, naturalmente. Teremos de
destruí-los.
Ouviu-se uma batida à porta pressurizada: o código usado
por uma das unidades de Hawat.
– Entre – Paul gritou.
A porta se escancarou e um homem alto, com o uniforme
dos Atreides e a insígnia de Hawat na boina, inclinou-se e
entrou na sala.
– Aí está o senhor – ele disse. – Encontramos no porão uma
pilha de pedras que escondia um homem. Tinha com ele o
painel de controle de um buscador.
– Quero participar do interrogatório – Jéssica disse.
– Sinto muito, milady. Nós lhe demos uma surra tentando
capturá-lo. Ele morreu.
– Nada que possa identificá-lo? – ela perguntou.
– Ainda não encontramos nada, milady.
– Era natural de Arrakis? – Paul perguntou.
Jéssica acenou afirmativamente com a cabeça diante da
perspicácia da pergunta.
– Parece que sim – o homem disse. – Foi enfiado naquela
pilha de pedras há mais de um mês, pelo jeito, e deixado ali
para nos esperar. As pedras e a argamassa no ponto por onde
ele entrou no porão estavam intactas quando inspecionamos o
lugar ontem. Aposto minha reputação nisso.
– Ninguém está questionando sua meticulosidade –
Jéssica disse.
– Eu estou, milady. Devíamos ter usado sondas sônicas lá
embaixo.
– Presumo que estejam fazendo isso agora – Paul disse.
– Sim, senhor.
– Avise meu pai que vamos nos atrasar.
– Agora mesmo, senhor. – Ele olhou para Jéssica. – Hawat
ordenou que, nas atuais circunstâncias, o jovem mestre seja
mantido num lugar seguro. – Novamente, os olhos dele
varreram a sala. – Que tal aqui?
– Tenho motivos para crer que é seguro – ela disse. – Tanto
Hawat quanto eu examinamos esta sala.
– Então montarei guarda lá fora, milady, até termos
vasculhado a casa mais uma vez. – Ele fez uma reverência,
levou a mão à boina, cumprimentando Paul, saiu por onde
tinha entrado e fechou a porta.
Paul rompeu o silêncio repentino, dizendo:
– Não seria melhor examinarmos a casa nós mesmos mais
tarde? Seus olhos talvez vejam coisas que os outros deixaram
passar.
– Esta ala era o único lugar que eu não tinha examinado –
ela explicou. – Eu a deixei por último porque...
– Porque Hawat cuidou dela pessoalmente – completou
ele.
Ela lançou um olhar rápido e inquisitivo para o rosto dele.
– Você desconfia de Hawat? – ela perguntou.
– Não, mas ele está ficando velho... está sobrecarregado de
trabalho. Poderíamos aliviá-lo um pouco.
– Isso só o humilharia e prejudicaria sua eficiência – ela
disse. – Nem um inseto perdido conseguirá andar por esta ala
depois que lhe contarem o que aconteceu. Ficará
envergonhado pelo...
– Temos de tomar nossas próprias providências –
interrompeu ele.
– Hawat serve os Atreides há três gerações – ela disse. –
Ele merece todo o nosso respeito e confiança... vezes e vezes
sem conta.
Paul disse:
– Quando meu pai se irrita com algo que você tenha feito,
ele diz “Bene Gesserit!”, como se fosse uma ofensa.
– E o que eu faço para irritar seu pai?
– Discute com ele.
– Você não é seu pai, Paul.
E Paul pensou: Ela ficará preocupada, mas tenho de lhe
contar o que a tal Mapes disse sobre um traidor entre nós.
– O que você está escondendo? – Jéssica perguntou. – Não
é do seu feitio, Paul.
Ele deu de ombros e contou o que se passara entre ele e
Mapes.
E Jéssica pensou na mensagem da folha. Tomou uma
decisão repentina, mostrou a folha a Paul e contou-lhe o que a
mensagem dizia.
– Meu pai precisa saber disso agora mesmo – ele disse. –
Vou radiografar a mensagem em código e enviá-la.
– Não – ela mandou. – Vai esperar até poder falar com ele a
sós. Quanto menos pessoas souberem disso, melhor.
– E com isso você quer dizer que não devemos confiar em
ninguém?
– Há uma outra possibilidade – ela disse. – Pode ser que
fosse para esta mensagem chegar até nós. As pessoas que a
deixaram talvez acreditassem que era verdade, mas talvez o
único propósito fosse que esta mensagem chegasse até nós.
O rosto de Paul continuou sério e impassível.
– Para semear a desconfiança e a suspeita em nossas
fileiras e, dessa maneira, nos enfraquecer – ele concluiu.
– Você precisa falar com seu pai em particular e alertá-lo
quanto a essa possibilidade – ela disse.
– Entendi.
Ela se virou para a alta janela de vidro filtrador, olhou para
fora, para sudoeste, onde o sol de Arrakis afundava: uma esfera
amarelada acima dos penhascos.
Paul a imitou e disse:
– Também não acho que seja Hawat. Poderia ser Yueh?
– Ele não é um dos lugares-tenentes, nem um companheiro
– ela disse. – E posso garantir que ele odeia os Harkonnen tanto
quanto nós.
Paul dirigiu sua atenção para os penhascos, pensando: E
não poderia ser Gurney... nem Duncan. Seria um dos
suboficiais? Impossível. São todos de famílias leais a nós há
gerações... e por bons motivos.
Jéssica esfregou a testa, sentindo o próprio cansaço. É
tamanho o perigo aqui! Ela olhou para a paisagem amarelada
pelo filtro, estudando-a. Depois das terras ducais, estendia-se
um pátio de armazenagem delimitado por uma cerca alta e,
dentro dele, fileiras de silos da especiaria, com torres de vigia
sobre palafitas a contorná-lo, tal qual aranhas assustadas e
numerosas. Via dali pelo menos vinte pátios cheios de silos que
se estendiam até os penhascos da Muralha-Escudo – uma
repetição de silos que tartamudeava por toda a bacia.
Aos poucos, o sol modificado pelo filtro ia se enterrando
no horizonte. As estrelas surgiram do nada. Ela viu uma estrela
brilhante, tão baixa no horizonte que piscava com um ritmo
claro e preciso, um tremor de luz: pisca-pisca-pisca-pisca-
pisca...
Paul se mexeu ao lado dela na sala tomada pela penumbra.
Mas Jéssica se concentrou naquela estrela brilhante e
solitária, percebendo que estava baixa demais, que só poderia
vir dos penhascos da Muralha-Escudo.
Alguém mandando sinais!
Ela tentou ler a mensagem, mas o código não era nenhum
que ela conhecesse.
Outras luzes haviam se acendido lá embaixo, na planície
sob os penhascos: pontinhos amarelos e espaçados, em
contraste com a escuridão azul. E uma luz à esquerda deles
ficou mais brilhante, começou a piscar de volta para o
penhasco – muito rápido: pisquesguicha, tremeluz, pisca!
E sumiu.
A estrela falsa no penhasco se apagou imediatamente.
Sinais... e eles a enchiam de premonições.
Por que usaram luzes para mandar sinais através da
bacia?, ela se perguntou. Por que não usaram a redecom?
A resposta era óbvia: a redecom certamente já era
monitorada pelos agentes do duque Leto. Os sinais de luz só
poderiam significar que as mensagens eram trocadas pelos
inimigos dele: agentes dos Harkonnen.
Ouviu-se uma batida à porta atrás deles, e a voz do homem
de Hawat:
– Tudo limpo, senhor... milady. Hora de levar o jovem
mestre a seu pai.
Dizem que o duque Leto fechou os olhos
para os perigos de Arrakis, que ele entrou
imprudentemente na arapuca. Não seria
mais provável que tivesse convivido tanto
tempo com o perigo extremo que acabou
avaliando equivocadamente uma
mudança na magnitude do risco? Ou será
possível que ele tenha se sacrificado
deliberadamente para que seu filho
pudesse ter uma vida melhor? Tudo
indica que o duque não era um homem
fácil de ludibriar.
– excerto de “Muad’Dib: Memorial da família”, da princesa Irulan

O duque Leto Atreides estava debruçado sobre o


parapeito de uma torre de controle de aterrissagem à entrada
de Arrakina. A primeira lua da noite, uma moeda de prata
achatada nos polos, pairava bem acima do horizonte
meridional. Abaixo dela, os penhascos acidentados da
Muralha-Escudo brilhavam como açúcar queimado através de
um nevoeiro de pó. A sua esquerda, as luzes de Arrakina
cintilavam na cerração – amarelas... brancas... azuis.
Ele pensou nos anúncios recém-publicados, logo acima de
sua assinatura, em todos os lugares densamente povoados do
planeta: “Nosso sublime imperador padixá me encarregou de
tomar posse deste planeta e pôr um fim a todas as
desavenças”.
A formalidade cerimonial da notícia dava-lhe a sensação
de isolamento. Quem se deixou enganar por esse legalismo
ilusório? Não os fremen, com certeza. Nem as Casas Menores
que controlavam o comércio interno de Arrakis... e pertenciam
aos Harkonnen praticamente até o último homem.
Tentaram tirar a vida de meu filho!
Era difícil suprimir a raiva.
Ele viu as luzes de um veículo em movimento se dirigirem
para o campo de pouso, vindas de Arrakina. Torceu para que
fosse o transporte de tropas que trazia Paul. A demora era
exasperadora, apesar de ele saber que se devia à cautela do
lugar-tenente de Hawat.
Tentaram tirar a vida de meu filho!
Chacoalhou a cabeça para expulsar os pensamentos
zangados, voltou a olhar para o campo, onde cinco de suas
próprias fragatas estavam estacionadas ao longo do
perímetro, feito sentinelas monolíticas.
Melhor uma demora cautelosa do que...
O oficial era bom, ele se lembrou. Um homem indicado
para promoção, completamente leal.
“Nosso sublime imperador padixá...”
Ah, se o povo daquela cidade fortificada e decadente
pudesse ver a nota particular do imperador para seu “nobre
duque”, as alusões desdenhosas a homens e mulheres cobertos
por véus: “... mas que outra coisa se pode esperar de bárbaros
cujo sonho mais caro é viver fora da segurança organizada das
faufreluches?”.
Parecia ao duque que, naquele momento, seu sonho mais
caro era pôr fim a todas as distinções de classe e nunca mais
pensar na hierarquia fatal. Ergueu os olhos, afastando-os da
poeira, para contemplar as estrelas imóveis, e pensou: Ao redor
de uma daquelas luzinhas gira Caladan... mas eu nunca mais
verei minha pátria. A saudade de Caladan foi uma pontada
repentina em seu peito. Sentiu que não vinha de dentro dele, e
sim de Caladan. Não conseguia se obrigar a chamar de pátria
aquele deserto seco de Arrakis e duvidava que um dia o fizesse.
Tenho de disfarçar meus sentimentos, ele pensou. Pelo bem
do menino. Se é para ele ter uma pátria, será aqui. Posso pensar
em Arrakis como um inferno ao qual cheguei antes da morte,
mas ele terá de encontrar aqui sua inspiração. Tem de haver
alguma coisa.
Foi varrido por uma onda de autopiedade, imediatamente
desprezada e rejeitada, e, por alguma razão, ele se viu
relembrando dois versos de um poema que Gurney Halleck
repetia com frequência:

“Meus pulmões provam o ar do Tempo


Que já atravessou cascatas de areia...”.

Bem, Gurney encontraria bastantes cascatas de areia por


ali, o duque pensou. Os ermos centrais, para além daqueles
penhascos que o luar açucarava, eram desertos: rocha estéril,
dunas e poeira ao vento, uma imensidão seca e não mapeada,
com grupos de fremen aqui e ali, ao longo da orla, e talvez
espalhados por toda a área. Se havia algo capaz de comprar um
futuro para a linhagem dos Atreides, esse algo talvez fosse os
fremen.
Contanto que os Harkonnen não tivessem infectado até
mesmo os fremen com suas intrigas venenosas.
Tentaram tirar a vida de meu filho!
Um rangido metálico e alto fez a torre toda vibrar e
balançou o parapeito sob os braços dele. Os anteparos
blindados caíram diante dele, bloqueando a vista.
A nave auxiliar está chegando, ele pensou. Hora de descer e
trabalhar. Virou-se para a escada atrás dele, dirigiu-se para a
grande sala de reuniões, tentando se manter calmo na descida,
preparando seu rosto para o encontro que logo se daria.
Tentaram tirar a vida de meu filho!
Os homens já estavam entrando, vindos do campo, quando
ele chegou à sala de teto amarelo e abobadado. Carregavam
nos ombros suas mochilas espaciais, berravam e faziam
barulho, como estudantes de volta das férias.
– Ei! Sentiu isso embaixo dos pés? É gravidade, cara!
– Quantos g's tem este lugar? Parece forte.
– Exatos nove décimos de um g.
O fogo cruzado de palavras tomou a sala.
– Deu uma boa olhada neste buraco durante a descida?
Cadê todo o saque que devia estar aqui?
– Os Harkonnen levaram tudo!
– Eu quero é uma chuveirada quente e uma cama macia!
– Cê não tá sabendo, idiota? Não tem chuveiro aqui
embaixo. Tem que esfregar a bunda com areia!
– Ei! Calado! O duque!
O duque saiu da boca da escadaria e entrou numa sala
subitamente silenciosa.
Gurney Halleck caminhava à frente do grupo, com a
mochila num dos ombros e o braço de seu baliset de nove
cordas na outra mão. Eram mãos de dedos compridos e
polegares grandes, capazes de movimentos diminutos que
arrancavam uma música delicadíssima do instrumento.
O duque observou Halleck, admirando o homem feio e
gordo, reparando nos olhos como cacos de vidro, com seu
brilho de inteligência selvagem. Ali estava um homem que vivia
fora das faufreluches, apesar de obedecer a todos os seus
preceitos. Como é que Paul o tinha chamado? “Gurney, o
corajoso.”
Os cabelos finos e louros de Halleck pendiam de um lado e
outro de sua calva estéril. A boca grande se contorcia num
sorriso escarninho e divertido, e a cicatriz da chicotada de
cipó-tinta em sua mandíbula parecia ter vida própria. Todo o
seu aspecto indicava uma competência informal e resoluta. Ele
se aproximou do duque e fez uma reverência.
– Gurney – Leto disse.
– Milorde. – Com o baliset, ele fez um gesto na direção dos
homens na sala. – São os últimos. Preferia ter vindo na primeira
leva, mas...
– Ainda sobraram alguns Harkonnen para você – o duque
disse. – Venha comigo, Gurney, para podermos conversar.
– É só mandar, milorde.
Eles foram para um recesso, ao lado de uma máquina de
água automática, enquanto os homens se inquietavam na sala
grande. Halleck largou a mochila num canto e continuou
segurando o baliset.
– Quantos homens você pode ceder a Hawat? – o duque
perguntou.
– Thufir está com algum problema, sire?
– Ele só perdeu dois agentes, mas seus batedores nos
forneceram informações excelentes sobre toda a estrutura dos
Harkonnen aqui. Se agirmos rapidamente, talvez consigamos
um pouco de segurança, o respiro de que precisamos. Ele quer
todos os homens de que você puder dispor, homens que não
torçam o nariz para uma lâmina suja de sangue.
– Posso ceder trezentos de meus melhores homens –
Halleck disse. – Para onde devo mandá-los?
– Para o portão principal. Hawat tem um agente
posicionado lá, esperando para levá-los.
– Devo cuidar disso agora mesmo, sire?
– Daqui a pouco. Temos um outro problema. O
comandante do campo irá segurar a nave auxiliar aqui até o
amanhecer sob algum pretexto. O paquete da Guilda que nos
trouxe está para seguir viagem, e a nave auxiliar deve fazer
contato com um cargueiro que irá subir um carregamento de
especiaria.
– Nossa especiaria, milorde?
– Nossa especiaria. Mas a nave auxiliar também
transportará alguns caçadores de especiaria do antigo regime.
Eles decidiram partir com a mudança de suserania, e o Juiz da
Transição irá permitir. São trabalhadores valiosos, Gurney,
cerca de oitocentos deles. Antes de a nave auxiliar partir, você
tem de convencer esses homens a se juntarem a nós.
– Com que força devo convencê-los, sire?
– Quero cooperação voluntária, Gurney. Esses homens
têm a experiência e os talentos de que precisamos. O fato de
estarem de partida indica que não são parte da máquina dos
Harkonnen. Hawat acredita que pode haver algumas maçãs
podres no grupo, mas ele enxerga assassinos em qualquer
sombra.
– Thufir já descobriu sombras muito produtivas nesta
vida, milorde.
– E outras ele não encontrou. Mas acho que infiltrar
agentes nessa turma que está de partida seria criativo demais
para os Harkonnen.
– Talvez, sire. Onde estão esses homens?
– No nível mais baixo, numa sala de espera. Sugiro que
desça até lá e toque uma ou duas canções para amaciá-los,
depois aumente a pressão. Pode oferecer cargos de autoridade
àqueles que se qualificarem. Ofereça um aumento de vinte por
cento em relação aos salários que recebiam dos Harkonnen.
– Só isso, sire? Sei que os Harkonnen pagavam pouco. E,
para homens com o dinheiro da indenização nos bolsos e a
vontade de viajar... bem, sire, vinte por cento dificilmente
pareceria um incentivo apropriado para ficar.
Leto falou com impaciência:
– Então faça o que achar melhor em casos particulares. Só
não esqueça que o erário não é infinito. Fique nos vinte por
cento sempre que puder. Precisamos particularmente de
condutores de especiaria, monitores climáticos, duneiros:
qualquer um que tenha experiência no deserto aberto.
– Entendido, sire. “Eles todos vêm com violência: sua
vanguarda irrompe como o vento oriental, eles ajuntam cativos
como areia.”
– Uma citação muito comovente – disse o duque. – Deixe
seu pessoal nas mãos de um tenente. Faça-o dar um breve
treinamento de hidrodisciplina, depois acomode os homens
para passarem a noite no quartel ao lado do campo. Os
funcionários do campo irão orientá-los. E não esqueça os
homens para Hawat.
– Trezentos dos melhores, sire. – Ele apanhou sua mochila
espacial. – Onde poderei encontrá-lo para fazer meu relatório,
milorde, depois de completadas minhas tarefas?
– Eu tomei posse de uma sala de conferências aqui em
cima. Faremos aqui as reuniões do estado-maior. Quero
organizar uma nova sequência de retirada planetária, com a
saída dos esquadrões blindados em primeiro lugar.
Halleck se deteve no ato de virar, cruzou olhares com Leto.
– Está prevendo esse tipo de problema, sire? Pensei que
houvesse um Juiz da Transição aqui.
– Batalhas francas e secretas – o duque disse. – Haverá
muito sangue derramado antes de terminarmos.
– “E a água que tomares do rio tornar-se-á sangue sobre a
terra seca” – citou Halleck.
O duque suspirou.
– Volte logo, Gurney.
– Muito bem, milorde. – A cicatriz da chicotada se agitou
quando ele sorriu. – “Eis que, como um jumento montês no
deserto, saio eu ao meu trabalho.” – Virou-se, caminhou a
passos largos até o centro da sala, deteve-se para retransmitir
suas ordens e seguiu apressado por entre os homens.
Leto balançou a cabeça tão logo o outro homem deu-lhe as
costas. Halleck era um assombro constante: a cabeça cheia de
canções, citações e frases floreadas... e o coração de um
assassino ao lidar com os Harkonnen.
Sem demora, Leto traçou uma rota tranquila, em diagonal,
até o elevador, respondendo às continências com um aceno
despreocupado da mão. Ele reconheceu um homem do
departamento de propaganda e deteve-se para dar a ele uma
mensagem que poderia ser retransmitida aos homens pelos
canais devidos: aqueles que haviam trazido suas mulheres
gostariam de saber que elas estavam em segurança e onde
poderiam ser encontradas. Os outros iam querer saber que a
população ali parecia ter mais mulheres que homens.
O duque bateu no braço do propagandista, um sinal de que
a mensagem era de máxima prioridade e deveria ser divulgada
imediatamente, depois continuou a atravessar a sala. Ele
acenou com a cabeça para os homens, sorriu, trocou gracejos
com um subalterno.
O comandante sempre tem de parecer confiante, ele
pensou. Toda essa fé depositada em seus ombros, e você numa
posição crítica, sem demonstrar nada.
Deixou escapar um suspiro de alívio quando o elevador o
engoliu e ele pôde se virar e encarar as portas impessoais.
Tentaram tirar a vida de meu filho!
Acima da saída do campo de pouso de
Arrakina, como que entalhada
rudemente com um instrumento
ordinário, havia uma inscrição que
Muad’Dib repetiria muitas vezes. Ele a viu
naquela primeira noite em Arrakis,
quando foi levado ao posto de comando
ducal para participar da primeira
conferência de todo o estado-maior de
seu pai. As palavras da inscrição eram um
apelo àqueles que deixavam Arrakis, mas
incidiram com implicações sombrias
sobre os olhos de um menino que acabara
de escapar da morte por um triz. Diziam
elas: “Ó, vocês que sabem o que sofremos
aqui, não se esqueçam de nós em suas
preces”.
excerto do “Manual de Muad’Dib”, da princesa Irulan

– Toda a teoria da guerra é um risco calculado – o duque


disse –, mas, quando se trata de colocar em risco a própria
família, o elemento do cálculo se perde em... outras coisas.
Ele sabia que não estava refreando sua raiva tão bem
quanto deveria e virou-se, caminhou a passos largos por toda a
extensão da mesa comprida e voltou.
O duque e Paul estavam sozinhos na sala de conferências
do campo de pouso. Era uma sala cheia de ecos, mobiliada
apenas com a mesa comprida, circundada por antiquadas
cadeiras de três pernas, um mapa e um projetor numa das
pontas. Paul sentava-se à mesa, perto do mapa. Ele tinha
contado ao pai o episódio do caçador-buscador e relatado que
um traidor os ameaçava.
O duque se deteve na frente de Paul e esmurrou a mesa:
– Hawat me disse que a casa era segura!
Paul falou, hesitante:
– Também fiquei com raiva... no início. E culpei Hawat. Mas
a ameaça veio de fora da casa. Simples, inteligente e direta. E
teria tido êxito não fosse o treinamento que recebi do senhor e
de tantos outros, entre eles Hawat.
– Você o está defendendo? – o duque indagou.
– Sim.
– Ele está ficando velho. É isso. Deveria ser...
– Ele é muito experiente – Paul disse. – Quantas vezes o
senhor se lembra de ter visto Hawat errar?
– Eu é que deveria defendê-lo – o duque disse. – Não você.
Paul sorriu.
Leto sentou-se à cabeceira da mesa, pousou uma das mãos
sobre a do filho.
– Você... andou amadurecendo, filho. – Ele ergueu a mão. –
Isso me alegra. – Retribuiu o sorriso do menino. – Hawat
cuidará do próprio castigo. Ficará com mais raiva de si mesmo
por causa disso do que nós dois juntos conseguiríamos
despejar em cima dele.
Paul olhou rapidamente para as janelas escuras atrás do
mapa, para o negror da noite. As luzes da sala eram refletidas
pelo parapeito de uma sacada lá fora. Ele viu sinais de
movimentação e reconheceu a forma de um guarda que vestia
o uniforme dos Atreides. Paul voltou a olhar para a parede
branca atrás de seu pai, depois para baixo, para a superfície
brilhante da mesa, vendo nela seus próprios punhos cerrados.
A porta de frente para o duque se abriu com estrondo.
Thufir Hawat a atravessou, parecendo mais velho e curtido do
que nunca. Ele percorreu toda a extensão da mesa e deteve-se
em posição de sentido diante de Leto.
– Milorde – ele disse, falando para um ponto acima da
cabeça de Leto. – Acabei de saber que falhei com milorde. Sou
obrigado a entregar minha renún...
– Ora, sente-se e pare de fazer papel de idiota – disse o
duque. Ele acenou para a cadeira em frente a Paul, do outro
lado da mesa. – Se cometeu um erro, foi o de superestimar os
Harkonnen. Suas mentes simplórias pensaram num truque
simplório. Não contávamos com truques simplórios. E meu
filho fez questão de me apontar que escapou por causa do
treinamento que você deu a ele. Você não falhou! – Bateu de
leve no encosto de uma cadeira vazia. – Sente-se, já disse!
Hawat afundou-se na cadeira.
– Mas...
– Não quero saber – o duque disse. – O incidente é coisa do
passado. Temos assuntos mais urgentes. Onde estão os
outros?
– Pedi que esperassem lá fora enquanto eu...
– Chame-os.
Hawat olhou Leto nos olhos.
– Sire, eu...
– Sei quem são meus amigos de verdade, Thufir – o duque
disse. – Chame os homens.
Hawat engoliu em seco.
– É para já, milorde.
Ele girou na cadeira e gritou para a porta aberta:
– Gurney, faça-os entrar.
Halleck conduziu a fila de homens para dentro da sala: os
oficiais do estado-maior, de aparência assustadoramente séria,
seguidos pelos auxiliares e especialistas mais jovens, com ares
ansiosos. O som breve de pés que se arrastavam ecoou pela
sala quando os homens tomaram seus assentos. O cheiro suave
do estimulante rachag percorreu a mesa.
– Temos café para quem quiser – disse o duque.
Olhou para seus homens, pensando: Eles formam um bom
grupo. Minha situação nesta guerra poderia ser bem pior.
Esperou até trazerem o café da sala ao lado e servirem-no,
notando o cansaço em alguns rostos.
No mesmo instante, ele vestiu sua máscara de muda
eficiência, ficou de pé e chamou a atenção deles batendo os nós
dos dedos na mesa.
– Bem, cavalheiros – ele disse –, nossa civilização parece
ter se entregado de tal maneira ao hábito da invasão que não
podemos sequer obedecer a uma ordem simples do Imperium
sem que os costumes antigos sejam ressuscitados.
Risadas breves e secas fizeram-se ouvir ao redor da mesa,
e Paul percebeu que seu pai tinha dito a coisa certa e no tom de
voz certo para levantar os ânimos. Até mesmo o vestígio de
cansaço em sua voz estava correto.
– Acho que, primeiro, é melhor saber se Thufir tem algo a
acrescentar ao relatório que fez sobre os fremen – disse o
duque. – Thufir?
Hawat ergueu os olhos.
– Tenho algumas questões econômicas a discutir depois
de meu relatório geral, sire, mas já posso dizer que os fremen
parecem ser, cada vez mais, os aliados de que precisamos. Por
ora, estão esperando para ver se podem confiar em nós, mas
parecem se portar com transparência. Mandaram-nos um
presente: trajestiladores feitos por eles mesmos... mapas de
certas áreas desérticas em volta de fortalezas que os
Harkonnen deixaram para trás... – Olhou de relance para a
mesa. – As informações que nos forneceram mostraram-se
completamente confiáveis e nos ajudaram consideravelmente
em nossas negociações com o Juiz da Transição. Também
mandaram algumas quinquilharias: joias para Lady Jéssica,
aguardente de especiaria, doces, remédios. Meus homens
estão processando o pacote neste instante. Não parece haver
má-fé.
– Você gosta dessas pessoas, Thufir? – perguntou um
homem na outra ponta da mesa.
Hawat voltou-se para o indagador.
– Duncan Idaho diz que são admiráveis.
Paul olhou para o pai, depois voltou a olhar para Hawat e
arriscou uma pergunta:
– Você tem alguma informação nova sobre o tamanho da
população fremen?
Hawat olhou para Paul.
– Com base no beneficiamento de alimentos e em outros
indícios, Idaho estima que o complexo de cavernas que visitou
tinha por volta de dez mil pessoas no total. O líder deles disse
governar um sietch de duas mil famílias. Temos motivos para
acreditar que existam muitas dessas comunidades sietch.
Todas parecem leais a alguém de nome Liet.
– Isso é novidade – disse Leto.
– Pode ser um erro de minha parte, sire. Algumas coisas
indicam que esse Liet pode ser uma divindade daqui.
Um outro homem na outra ponta da mesa limpou a
garganta e perguntou:
– É certo que eles negociam com os contrabandistas?
– Uma caravana de contrabandistas deixou esse sietch
enquanto Idaho estava lá, levando consigo um grande
carregamento de especiaria. Usavam animais de carga e deram
a entender que enfrentariam uma viagem de dezoito dias.
– Parece – disse o duque – que os contrabandistas
redobraram suas operações durante este período tumultuado.
Isso merece consideração. Não devemos nos preocupar demais
com as fragatas clandestinas que operam ao largo de nosso
planeta: sempre foi assim. Mas deixá-las completamente sem
supervisão... isso não é nada bom.
– Tem um plano, sire? – Hawat perguntou.
O duque olhou para Halleck.
– Gurney, quero que você lidere uma delegação, ou uma
embaixada, se preferir, para contatar esses empresários
aventureiros. Diga-lhes que irei ignorar as operações deles
contanto que me paguem um tributo ducal. Hawat estima que
as propinas e a necessidade de mais homens de armas para
manter suas operações devem ter lhes custado quatro vezes
isso.
– E se o imperador ficar sabendo? – Halleck perguntou. –
Ele é muito cioso dos lucros que obtém com a CHOAM, milorde.
Leto sorriu.
– Vamos depositar todo o tributo em nome de Shaddam IV
e deduzi-lo legalmente de nossos custos de arrecadação. Quero
ver os Harkonnen se oporem a isso! E arruinaremos mais
alguns habitantes que enriqueceram à custa do sistema dos
Harkonnen. Chega de propinas!
Um sorriso desfigurou o rosto de Halleck.
– Ah, milorde, que beleza de golpe baixo. Como eu queria
ver a cara do barão quando ficar sabendo disso.
O duque virou-se para Hawat.
– Thufir, você conseguiu aqueles livros contábeis que disse
ser possível comprar?
– Sim, milorde. Estão sendo examinados minuciosamente
agora mesmo. Mas dei uma olhada neles e posso fazer uma
primeira aproximação.
– Faça, então.
– Os Harkonnen tiravam dez bilhões de solaris daqui a
cada cento e trinta dias-padrão.
Toda a mesa ficou boquiaberta. Até mesmo os assistentes
mais jovens, que tinham chegado a demonstrar um pouco de
tédio, endireitaram-se nas cadeiras e arregalaram os olhos.
Halleck murmurou:
– “Porque chuparão a abundância dos mares e os tesouros
escondidos da areia.”
– Estão vendo, cavalheiros – disse Leto. – Alguém aqui é
tão ingênuo a ponto de acreditar que os Harkonnen fizeram as
malas e, quietinhos, deixaram tudo isso para trás só porque o
imperador mandou?
Houve um menear generalizado de cabeças e murmúrios
de concordância.
– Teremos de tomar tudo a fio de espada – Leto disse. Ele
se voltou para Hawat. – Agora é um ótimo momento para um
inventário do equipamento. Quantas lagartas de areia,
colheitadeiras, usinas de especiaria e equipamento de apoio
eles nos deixaram?
– Uma lista completa, como informa o inventário imperial
auditado pelo Juiz da Transição, milorde – Hawat disse.
Indicou com um gesto que um dos auxiliares lhe entregasse
uma pasta, abriu-a sobre a mesa, à frente dele. – Esqueceram
de mencionar que menos da metade das lagartas está
operacional, que somente cerca de um terço tem caleches para
aerotransportá-las até as areias de especiaria; que tudo que os
Harkonnen nos deixaram está prestes a quebrar e a se
desfazer. Teremos sorte se conseguirmos fazer metade do
equipamento funcionar, e mais sorte ainda se um quarto dele
ainda estiver funcionando daqui a seis meses.
– Bem como esperávamos – Leto disse. – Qual é a
estimativa segura em relação ao equipamento básico?
Hawat olhou para sua pasta.
– Por volta de 930 usinas-colheitadeiras que poderão ser
despachadas em alguns dias. Cerca de seis mil, duzentos e
cinquenta ornitópteros para levantamento topográfico,
reconhecimento e observação meteorológica... caleches: pouco
menos de mil.
Halleck disse:
– Não seria mais barato reabrir as negociações com a
Guilda e obter permissão para manter uma fragata em órbita
como satélite meteorológico?
O duque olhou para Hawat.
– Nenhuma novidade nesse caso, não é, Thufir?
– Teremos de tentar outras vias por ora – Hawat disse. – O
agente da Guilda não estava realmente negociando conosco.
Estava apenas deixando claro, de um Mentat para outro, que o
valor estava muito acima de nossas possibilidades e
continuaria assim por mais possibilidades que criássemos.
Nossa tarefa é descobrir por quê, antes de o abordarmos de
novo.
Um dos assistentes de Halleck na outra ponta da mesa
girou em sua cadeira e disse com aspereza:
– Não é justo!
– Justo? – o duque olhou para o homem. – Quem é que
pede justiça? Fazemos nossa própria justiça. E a faremos aqui
em Arrakis, vencendo ou perdendo. Arrependeu-se de ter se
juntado a nós, senhor?
O homem fitou o duque e disse:
– Não, sire. Milorde não pôde se esquivar, e eu nada pude
fazer a não ser segui-lo. Perdoe-me o arroubo, mas... – ele deu
de ombros – ... todos nos sentimos um pouco amargos de vez
em quando.
– A amargura eu entendo – disse o duque. – Mas não vamos
clamar por justiça enquanto tivermos a força dos braços e a
liberdade para usá-los. Mais alguém anda alimentando a
amargura? Se anda, pode deixá-la extravasar. Estamos entre
amigos e todo homem pode dizer o que pensa.
Halleck se mexeu e falou:
– Penso, sire, que exasperador é o fato de as outras Casas
Maiores não oferecerem ajuda. Elas chamam milorde de “Leto,
o Justo” e juram amizade eterna, mas desde que isso não lhes
custe nada.
– Elas ainda não sabem quem vai ganhar esta briga – o
duque disse. – A maioria das Casas enriqueceu assumindo
poucos riscos. Não se pode, de fato, culpá-las por isso, só
desprezá-las. – Olhou para Hawat. – Estávamos discutindo o
equipamento. Você se importaria de projetar alguns exemplos
para que os homens comecem a conhecer esse maquinário?
Hawat fez que sim e gesticulou para um assistente
posicionado perto do projetor.
Uma projeção solidográfica tridimensional apareceu sobre
a mesa, mais ou menos a um terço de sua extensão desde onde
se encontrava o duque. Alguns dos homens mais afastados se
levantaram para enxergar melhor.
Paul se debruçou, olhando atentamente para a máquina.
De acordo com a escala proporcionada pelas minúsculas
figuras humanas que a circundavam, a coisa tinha cerca de
cento e vinte metros de comprimento e quarenta de largura.
Era essencialmente um corpo comprido e insetoide, movido
por conjuntos independentes de esteiras largas.
– Esta é uma usina-colheitadeira – Hawat disse. –
Escolhemos uma em boas condições para esta projeção.
Contudo, há uma draga que veio com a primeira equipe de
ecólogos imperiais e ainda está funcionando... mas não sei
dizer como... nem por quê.
– Se é aquela que chamam de “Velha Maria”, é uma peça de
museu – disse um assistente. – Acho que os Harkonnen ficaram
com ela só para usá-la como castigo, uma ameaça que pairava
sobre a cabeça de seus operários. Seja bonzinho ou vão
mandar você para a Velha Maria.
Ouviram-se risadas em volta da mesa.
Paul não tomou parte, com a atenção focada na projeção e
na pergunta que tomava sua mente. Ele apontou a imagem
sobre a mesa e disse:
– Thufir, existem vermes da areia grandes o suficiente para
engolir uma dessas inteira?
O silêncio se instalou rapidamente na mesa. O duque
praguejou baixinho, em seguida pensou: Não, eles têm de
encarar a realidade daqui.
– Existem vermes nas profundezas do deserto capazes de
engolir essa usina inteira de uma bocada só – Hawat disse. –
Aqui, mais perto da Muralha-Escudo, onde se dá a maior parte
da colheita, existem muitos vermes capazes de danificar essa
usina e devorá-la sem pressa.
– Por que não as guarnecemos com escudos? – perguntou
Paul.
– De acordo com o relatório de Idaho – Hawat disse –, os
escudos são perigosos no deserto. Um escudo de tamanho
humano atrai todos os vermes num raio de centenas de
metros. Parece levá-los a um furor assassino. É o que nos dizem
os fremen, e não há motivo para duvidarmos deles. Idaho não
viu o menor indício de equipamentos geradores de escudos no
sietch.
– Nada mesmo? – Paul perguntou.
– Seria muito difícil esconder esse tipo de coisa no meio de
vários milhares de pessoas – Hawat disse. – Idaho teve acesso
livre a todas as partes do sietch. Não viu escudos nem qualquer
indicação de seu uso.
– É um enigma – comentou o duque.
– Os Harkonnen certamente usavam muitos escudos aqui
– Hawat falou. – Tinham oficinas em todas as vilas fortificadas,
e suas contas mostram gastos elevados com a reposição de
escudos e peças sobressalentes.
– Será que os fremen têm como anular os escudos? – Paul
perguntou.
– Não parece provável – Hawat disse. – Claro que,
teoricamente, é possível: uma enorme contracarga estática
poderia fazer isso, mas ninguém até hoje conseguiu colocar a
ideia à prova.
– Já teríamos ouvido falar de algo assim a esta altura –
Halleck falou. – Os contrabandistas têm contato direto com os
fremen e teriam adquirido um aparelho como esse se estivesse
disponível. E não teriam o menor escrúpulo de comercializá-lo
fora do planeta.
– Não gosto da ideia de deixar uma pergunta tão
importante sem resposta – Leto disse. – Thufir, quero que dê
prioridade máxima à solução desse problema.
– Já estamos trabalhando nisso, milorde. – Limpou a
garganta. – Aah, Idaho disse uma coisa: ele disse que a atitude
dos fremen em relação aos escudos é inequívoca. Disse que eles
se divertem muito com a ideia.
O duque franziu o cenho e então:
– O assunto em pauta é o equipamento de extração da
especiaria.
Hawat acenou para seu assistente junto ao projetor.
A imagem solidográfica da usina-colheitadeira foi
substituída pela projeção de um aparelho alado que
apequenava as imagens das figuras humanas em volta dele.
– Isto é um caleche – Hawat disse. – É basicamente um
ornitóptero grande cuja única função é levar uma usina às
areias ricas em especiaria, e depois resgatar a usina quando
um verme da areia aparece. Eles sempre aparecem. Colher a
especiaria é uma questão de entrar e sair correndo, carregando
tudo o que puder.
– Admiravelmente adequado à moral dos Harkonnen –
disse o duque.
As gargalhadas foram abruptas e ruidosas.
Um ornitóptero substituiu o caleche no foco do projetor.
– Estes ornitópteros são bem convencionais – continuou
Hawat. – Com grandes modificações, podem ter um alcance
maior. Foi tomado o cuidado especial de vedar as áreas
essenciais à entrada de areia e pó. Somente um a cada trinta
deles apresenta escudos, talvez por terem se livrado do peso
do gerador de escudo para obter maior alcance.
– Não gosto dessa despreocupação com os escudos – o
duque murmurou. E pensou: Será esse o segredo dos
Harkonnen? Significa que sequer conseguiremos escapar em
fragatas protegidas por escudos se tudo der errado para nós?
Ele chacoalhou a cabeça, para afastar aqueles pensamentos, e
disse: – Passemos à estimativa preliminar. Qual será nosso
lucro aproximado?
Hawat virou duas páginas de seu caderno de notas.
– Depois de avaliar os consertos necessários e o
equipamento operacional, chegamos a uma primeira
estimativa dos custos operacionais. Baseia-se, naturalmente,
num valor pessimista, para termos uma nítida margem de
segurança. – Ele fechou os olhos, entregando-se ao quase-
transe dos Mentats, e disse: – Com os Harkonnen, a
manutenção e os salários ficavam em catorze por cento.
Teremos sorte se conseguirmos trinta por cento no início.
Considerados o reinvestimento e os fatores de crescimento,
entre eles a porcentagem da CHOAM e os custos militares,
nossa margem de lucro será reduzida a parcos seis ou sete por
cento até conseguirmos substituir o equipamento antigo. Aí
pode ser que consigamos aumentá-la para doze ou quinze por
cento, como deveria ser. – Ele abriu os olhos. – A menos que
milorde deseje adotar os métodos dos Harkonnen.
– Estamos tentando criar uma base planetária sólida e
permanente – o duque disse. – Temos de manter uma grande
porcentagem da população feliz, especialmente os fremen.
– Muito especialmente os fremen – Hawat concordou.
– Nossa supremacia em Caladan – o duque disse –
dependia de nossa força no mar e no ar. Aqui, temos de
desenvolver algo que prefiro chamar de força do deserto. Pode
ser que venha a incluir a força aérea, mas é possível que não.
Chamo a atenção de vocês para a ausência de escudos nos
ornitópteros. – Ele chacoalhou a cabeça. – Os Harkonnen
contavam com a rotatividade extraplanetária de parte de seu
pessoal estratégico. Não podemos correr esse risco. Todo
grupo novo teria sua quota de agitadores.
– Então teremos de nos contentar com um lucro muito
menor e uma safra reduzida – Hawat disse. – Nossa produção,
nas duas primeiras temporadas, deve ser um terço menor que
a média dos Harkonnen.
– Aí está – disse o duque –, exatamente como
esperávamos. Teremos de agir rápido com os fremen. Eu
gostaria de ter cinco batalhões completos de soldados fremen
antes da primeira auditoria da CHOAM.
– Não é muito tempo, sire – Hawat disse.
– Não temos muito tempo, como vocês bem sabem.
Estarão aqui com Sardaukar disfarçados de Harkonnen na
primeira oportunidade. Quantos você acha que eles mandarão,
Thufir?
– Quatro ou cinco batalhões no total, sire. Não mais que
isso, sendo tão altos os preços cobrados pela Guilda para
transportar tropas.
– Então cinco batalhões de fremen mais nossas próprias
forças terão de dar conta do recado. Se desfilarmos alguns
Sardaukar capturados diante do Conselho do Landsraad, a
história será muito diferente, com ou sem lucro.
– Faremos o possível, sire.
Paul olhou para o pai, depois para Hawat, repentinamente
consciente da idade avançada do Mentat, ciente de que o velho
tinha servido três gerações de Atreides. Velho. Era visível no
brilho remelento dos olhos castanhos, na face vincada e
queimada por climas exóticos, na curva arredondada dos
ombros e nos lábios finos e marcados pela mancha cor de
groselha do suco de sapho.
Tanta coisa depende de um velho, Paul pensou.
– Estamos, no momento, numa guerra de assassinos – o
duque disse –, mas que ainda não é total. Thufir, qual é a
condição da máquina Harkonnen aqui?
– Eliminamos 259 indivíduos do pessoal estratégico deles,
milorde. Não restam mais que três células dos Harkonnen,
talvez umas cem pessoas ao todo.
– Esses Harkonnen que você eliminou – disse o duque –,
eram gente de posses?
– A maioria tinha boa situação na classe empresarial,
milorde.
– Quero que falsifique certificados de vassalagem
assinados por cada um deles – o duque mandou. – Protocole
cópias com o Juiz da Transição. Nossa posição legal será a de
que eles ficaram aqui sob falsa alegação de lealdade. Confisque
os bens, tome tudo, despeje as famílias, despoje-as. E
certifique-se de que a Coroa receba seus dez por cento. Precisa
ser totalmente legal.
Thufir sorriu, revelando dentes manchados de vermelho
sob os lábios escarlates.
– Uma manobra digna de seu avô, milorde. Envergonho-me
de não ter pensado nisso primeiro.
Halleck franziu o cenho lá do outro lado da mesa e
surpreendeu a expressão carrancuda de Paul. Os demais
sorriam e assentiam com a cabeça.
Está errado, Paul pensou. Isso só fará os outros lutarem
com mais afinco. Não têm nada a ganhar com a rendição.
Ele sabia que, na convenção da kanly, valia tudo, mas
aquele era o tipo de manobra que poderia destruí-los mesmo
garantindo-lhes a vitória.
– “Peregrino sou em terra estrangeira” – citou Halleck.
Paul o encarou, reconhecendo a citação da Bíblia C. O., e
perguntou-se: Será que Gurney também deseja ver o fim das
tramas insidiosas?
O duque olhou de relance para a escuridão lá fora; voltou a
olhar para Halleck.
– Gurney, quantos desses areneiros você convenceu a ficar
conosco?
– Duzentos e oitenta e seis ao todo, sire. Acho que está de
bom tamanho. São todos de categorias úteis.
– Só isso? – O duque mordiscou os lábios, e então: – Bem,
mande avisar...
Um tumulto à porta o interrompeu. Duncan Idaho passou
pelos guardas posicionados ali, percorreu apressadamente a
extensão da mesa e inclinou-se para falar ao ouvido do duque.
Leto o deteve com um gesto e disse:
– Fale alto, Duncan. Como pode ver, é uma reunião
estratégica.
Paul estudou Idaho, reparando nos movimentos felinos, na
rapidez de reflexos que o tornava um instrutor de armas tão
difícil de superar. O rosto redondo e moreno de Idaho se voltou
para Paul, e os olhos de troglodita não deram sinal de tê-lo
reconhecido, mas Paul percebeu a emoção que se escondia sob
uma máscara de serenidade.
Idaho passou os olhos por toda a mesa e disse:
– Capturamos uma tropa de mercenários Harkonnen
disfarçados de fremen. Os próprios fremen nos enviaram um
mensageiro para nos avisar sobre o bando falso. No ataque,
porém, descobrimos que os Harkonnen emboscaram o
mensageiro fremen e o machucaram bastante. Nós o
estávamos trazendo para cá, para que fosse tratado por nossos
médicos, quando ele morreu. Eu tinha percebido que o homem
estava bem mal e parei para fazer o que fosse possível. Eu o
flagrei tentando jogar uma coisa fora – Idaho olhou
rapidamente para Leto. – Uma faca, milorde, uma faca que
milorde nunca viu igual.
– Dagacris? – alguém perguntou.
– Sem dúvida alguma – Idaho disse. – Branca feito leite,
com um brilho único. – Ele enfiou uma das mãos na túnica e
tirou dali uma bainha da qual se projetava uma empunhadura
com sulcos negros.
– Não tire a arma da bainha!
A voz veio da porta aberta na extremidade da sala, uma
voz vibrante e pungente que fez todos se levantarem e olharem
naquela direção.
Um vulto alto, coberto por um manto, estava à porta,
barrado pelas espadas cruzadas dos guardas. Um manto
castanho-claro envolvia completamente o homem, exceto por
uma abertura no capuz e no véu negro que expunha os olhos
totalmente azuis, nada de branco em nenhum dos dois.
– Deixe-o entrar – sussurrou Idaho.
– Liberem o homem – o duque disse.
Os guardas hesitaram, depois baixaram suas espadas.
O homem entrou impetuosamente na sala e colocou-se
diante do duque.
– Este é Stilgar, o chefe do sietch que visitei, líder daqueles
que nos avisaram sobre o bando falso – Idaho falou.
– Seja bem-vindo, senhor – Leto disse. – E por que não
devemos desembainhar esta arma?
Stilgar olhou para Idaho e disse:
– Você respeitou nossos costumes de asseio e honra. Eu
permitiria que você visse a arma do homem de quem se tornou
amigo. – O olhar dele passou pelos demais que estavam na sala.
– Mas não conheço esses aí. Você quer que eles profanem uma
arma venerável?
– Eu sou o duque Leto – interpôs o duque. – Você
permitiria que eu visse a arma?
– Permitirei que você conquiste o direito de desembainhá-
la – Stilgar disse, e, como soasse em toda a mesa um murmúrio
de protesto, ele ergueu uma das mãos magras e de veias
escuras. – Não se esqueça de que essa arma pertencia a alguém
que fez amizade com você.
No silêncio da espera, Paul estudou o homem, sentindo a
aura de poder que ele irradiava. Era um líder, um líder fremen.
Um homem perto do centro da mesa, à frente de Paul,
resmungou:
– Quem é ele para nos dizer que direitos temos em
Arrakis?
– Dizem que o duque Leto Atreides governa com o
consentimento dos governados – disse o fremen. – Portanto,
tenho de dizer a vocês como são as coisas conosco: recai uma
certa responsabilidade sobre aqueles que veem uma dagacris.
– Ele lançou um olhar sombrio para Idaho. – Eles são nossos.
Nunca podem deixar Arrakis sem nosso consentimento.
Halleck e vários outros começaram a se levantar, com uma
expressão de ira no rosto. Halleck disse:
– O duque Leto determina se...
– Um momento, por favor – falou Leto, e bastou a brandura
de sua voz para contê-los. Isso não pode fugir ao controle, ele
pensou. Dirigiu-se ao fremen: – Senhor, honro e respeito a
dignidade pessoal de qualquer homem que respeite minha
dignidade. Estou, de fato, em dívida com o senhor. E eu sempre
saldo minhas dívidas. Se é seu costume que esta faca deva
permanecer embainhada, então assim será ordenado por mim.
E se houver alguma outra maneira de homenagearmos o
homem que morreu a nosso serviço, basta dizer.
O fremen fitou o duque, depois afastou o véu do rosto,
revelando um nariz afilado e uma boca de lábios carnudos em
meio à barba negra e lustrosa. Ele se debruçou
deliberadamente sobre a ponta da mesa e cuspiu em sua
superfície polida.
Quando os homens em volta da mesa fizeram menção de
saltar das cadeiras, a voz de Idaho trovejou desde o outro lado
da sala:
– Esperem!
Na quietude repentina e tensa que se seguiu, Idaho disse:
– Nós lhe agradecemos, Stilgar, pela dádiva da umidade de
seu corpo. Nós a aceitamos no espírito em que foi oferecida. – E
Idaho cuspiu na mesa, diante do duque.
À parte para o Duque, ele disse:
– Lembre-se de como a água é preciosa aqui, sire. Foi um
sinal de respeito.
Leto voltou a afundar-se em sua cadeira, interceptou o
olhar de Paul – um sorriso triste no rosto do filho –, sentiu que a
tensão em volta da mesa ia relaxando aos poucos, à medida que
seus homens começavam a entender o que acontecera.
O fremen olhou para Idaho e disse:
– Você se portou bem em meu sietch, Duncan Idaho. Você é
escravo de sua lealdade ao duque?
– Está pedindo que eu me junte a ele, sire – disse Idaho.
– Ele aceitaria a dupla vassalagem? – Leto perguntou.
– Quer que eu vá com ele, sire?
– Quero que você decida por si mesmo – Leto disse, sem
conseguir afastar a urgência de sua voz.
Idaho estudou o fremen.
– Você me aceitaria nessas condições, Stilgar? Haverá
ocasiões em que terei de voltar para servir a meu duque.
– Você luta bem e fez o que pôde por nosso amigo – Stilgar
respondeu. Ele olhou para Leto. – Que seja assim: Idaho fica
com a dagacris que tem nas mãos como sinal de sua lealdade a
nós. Ele precisa ser purificado, naturalmente, e os ritos devem
ser observados, mas isso se pode arranjar. Ele será fremen e
soldado dos Atreides. Há um precedente: Liet serve a dois
senhores.
– Duncan? – Leto perguntou.
– Entendi, sire – Idaho disse.
– Então estamos de acordo – Leto disse.
– Sua água é nossa, Duncan Idaho – Stilgar disse. – O corpo
de nosso amigo fica com seu duque. A água dele é água dos
Atreides. É um compromisso entre nós.
Leto suspirou, olhou para Hawat e encontrou os olhos do
velho Mentat. Hawat assentiu, aparentemente satisfeito.
– Esperarei lá embaixo – disse Stilgar – enquanto Idaho se
despede dos amigos. Turok era o nome de nosso amigo morto.
Lembrem-se disso quando chegar a hora de libertar o espírito
dele. Vocês são amigos de Turok.
Stilgar começou a dar meia-volta.
– Poderia ficar mais um pouco? – perguntou Leto.
O fremen se virou, devolvendo o véu a seu lugar com um
gesto tranquilo e rápido, ajustando alguma coisa debaixo dele.
Paul viu de relance o que parecia ser um tubo fino antes de o
véu voltar ao lugar.
– E por que eu ficaria? – o fremen perguntou.
– Nós lhe faríamos as honras da casa – o duque disse.
– A honra exige que eu esteja em outro lugar muito em
breve – o fremen replicou. Lançou mais um olhar para Idaho,
virou-se e saiu, passando pelos guardas à porta.
– Se os outros fremen forem como ele, estaremos todos
muito bem servidos – Leto comentou.
Idaho falou, impassível:
– Ele é um bom exemplo, sire.
– Entendeu o que tem de fazer, Duncan?
– Sou seu embaixador junto aos fremen, sire.
– Muita coisa depende de você, Duncan. Vamos precisar de
pelo menos cinco batalhões dessas pessoas antes de os
Sardaukar caírem sobre nós.
– Isso dará um pouco de trabalho, sire. Os fremen são
muito independentes. – Idaho hesitou, e então: – E, sire, há
mais uma coisa. Um dos mercenários que derrubamos estava
tentando tirar esta arma de nosso amigo fremen que morreu. O
mercenário disse que os Harkonnen oferecem uma
recompensa de um milhão de solaris a quem lhes trouxer uma
dagacris.
Leto ergueu o queixo, nitidamente surpreso.
– Por que querem tanto uma dessas armas?
– A faca é entalhada a partir do dente de um verme da
areia; é a marca dos fremen, sire. Com ela, um homem de olhos
azuis poderia entrar em qualquer sietch desta terra. Eles me
questionariam, a não ser que me conhecessem. Não pareço um
fremen. Mas...
– Piter de Vries – disse o duque.
– Um homem de astúcia diabólica, milorde – Hawat disse.
Idaho enfiou a faca embainhada em sua túnica.
– Guarde essa faca – o duque disse.
– Entendido, milorde. – Bateu de leve no transmissor-
receptor de seu cinto de utilidades. – Mandarei notícias assim
que possível. Thufir tem o código para me contatar. Usem a
língua de batalha. – Ele bateu continência, deu meia-volta e
correu atrás do fremen.
Ouviram os passos dele retumbando pelo corredor.
Leto e Hawat trocaram um olhar cúmplice. Sorriram.
– Temos muito a fazer, sire – disse Halleck.
– E eu não os deixo trabalhar – Leto completou.
– Tenho o relatório sobre as bases avançadas – Hawat
disse. – Devo deixá-lo para uma outra ocasião, sire?
– Isso irá nos tomar muito tempo?
– Não, se forem só as informações essenciais. Os fremen
dizem que mais de duzentas dessas bases avançadas foram
construídas aqui em Arrakis na época da Estação de
Experimentação Botânica no Deserto. Todas teriam sido
abandonadas, mas existem relatos de que foram lacradas
antes disso.
– Algum equipamento dentro delas? – o duque perguntou.
– De acordo com os relatórios que Duncan me mandou,
sim.
– Onde estão localizadas? – Halleck perguntou.
– A resposta a essa pergunta – Hawat disse – é
invariavelmente: “só Liet sabe”.
– Só Deus sabe – Leto murmurou.
– Talvez não, sire – Hawat disse. – Milorde ouviu o tal
Stilgar mencionar o nome. Será que estava se referindo a uma
pessoa de verdade?
– Servir a dois senhores – Halleck disse. – Parece uma
citação religiosa.
– E você deve saber qual é – o duque disse.
Halleck sorriu.
– O Juiz da Transição – Leto disse –, o ecólogo imperial,
Kynes... Ele não saberia onde ficam as bases?
– Sire – advertiu Hawat –, esse Kynes é funcionário do
Império.
– E ele está bem longe do imperador – Leto disse. – Quero
essas bases. Devem estar repletas de materiais que podemos
reaproveitar para consertar nosso equipamento de trabalho.
– Sire! – Hawat disse. – Essas bases ainda são, legalmente,
propriedade de Sua Majestade.
– O clima daqui é bastante cruel para destruir qualquer
coisa – o duque disse. – Sempre podemos culpar o clima.
Encontre o tal Kynes e ao menos descubra se as bases existem.
– Seria perigoso confiscá-las – Hawat disse. – Duncan foi
claro numa coisa: essas bases, ou a ideia de que existem, têm
algum significado profundo para os fremen. Podemos nos
indispor com os fremen se tomarmos as bases.
Paul olhou para as faces dos homens a seu redor, viu com
que intensidade eles acompanhavam cada palavra. Pareciam
profundamente perturbados com a atitude de seu pai.
– Escute o que ele diz, pai – Paul disse baixinho. – Ele fala a
verdade.
– Sire – Hawat insistiu –, essas bases poderiam nos
fornecer os materiais para consertar todos os equipamentos
que nos deixaram, mas podem estar fora de nosso alcance por
motivos estratégicos. Seria precipitado agir sem mais
informações. Esse Kynes tem a autoridade de árbitro do
Imperium. Não nos esqueçamos disso. E os fremen acatam o
que ele diz.
– Seja gentil, então – disse o duque. – Desejo apenas saber
se as bases existem.
– Como quiser, sire. – Hawat se recostou na cadeira e
baixou os olhos.
– Muito bem, então – disse o duque. – Sabemos o que nos
aguarda: trabalho. Fomos treinados para isso. Temos alguma
experiência com isso. Sabemos claramente quais são as
recompensas e as alternativas. Vocês todos têm suas tarefas. –
Ele olhou para Halleck. – Gurney, cuide da situação com os
contrabandistas primeiro.
– “Hei de ir aos rebeldes que habitam em terra árida” –
salmodiou Halleck.
– Um dia desses ainda verei esse homem ser incapaz de
fazer uma citação, e ele parecerá estar nu – o duque disse.
As risadas ecoaram ao redor da mesa, mas Paul notou
como eram forçadas.
O duque se voltou para Hawat.
– Estabeleça mais um posto de comando para os serviços
de inteligência e comunicação neste andar, Thufir. Quando
estiverem prontos, vou querer falar com você.
Hawat se levantou, correu os olhos pela sala, como se
procurasse apoio. Ele se virou e liderou a procissão para fora
da sala. Os outros saíram com pressa, arrastando as cadeiras
pelo assoalho, embaralhando-se em pequenos nós de
confusão.
Acabou em confusão, Paul pensou, olhando para as costas
dos últimos homens a sair. Antes, as reuniões do estado-maior
sempre terminavam com vivacidade. Aquela reunião parecera
simplesmente se arrastar até o fim, esgotada por suas próprias
deficiências e, ainda por cima, culminando numa discussão.
Pela primeira vez, Paul se permitiu pensar na
possibilidade real de derrota – e não pensou nisso por medo
nem por causa de alertas como os da Reverenda Madre, e sim
por enfrentar aquela possibilidade com coragem, devido a sua
própria avaliação da situação.
Meu pai está desesperado, ele pensou. As coisas não vão
nada bem para nós.
E Hawat... Paul recordou como o velho Mentat tinha se
comportado durante a conferência: as hesitações sutis, os
sinais de desassossego.
Hawat estava profundamente transtornado com alguma
coisa.
– É melhor ficar aqui o resto da noite, filho – o duque disse.
– De qualquer maneira, logo amanhecerá. Vou avisar sua mãe. –
Ele se pôs de pé, devagar, rígido. – Por que você não junta
algumas dessas cadeiras e se estica em cima delas para
descansar um pouco?
– Não estou muito cansado, senhor.
– Como quiser.
O duque recolheu as mãos às costas e começou a andar de
um lado para outro, ao longo da mesa.
Como um animal enjaulado, pensou Paul.
– O senhor vai discutir a possibilidade de um traidor com
Hawat? – Paul perguntou.
O duque parou diante do filho, falou para as janelas
escuras.
– Discutimos a possibilidade muitas vezes.
– A velha parecia ter tanta certeza – Paul disse. – E a
mensagem que minha mãe...
– As precauções foram tomadas – o duque disse. Ele olhou
ao redor da sala, e Paul reparou na fera acuada que se escondia
nos olhos do pai. – Fique aqui. Tenho algumas coisas para
discutir com Thufir sobre os postos de comando. – Ele se virou
e saiu da sala, cumprimentando brevemente com a cabeça os
guardas da porta.
Paul ficou olhando para o lugar que seu pai ocupara. O
espaço havia ficado vago antes mesmo de o duque deixar a sala.
E ele se lembrou do alerta da velha: “... por seu pai, nada”.
Naquele primeiro dia, quando Muad’Dib
cruzou as ruas de Arrakina com sua
família, algumas pessoas no caminho
lembraram-se das lendas e da profecia e
arriscaram-se a gritar: “Mahdi!”. Mas seu
grito foi mais uma pergunta que uma
afirmação, pois então só podiam esperar
que ele fosse a Lisan al-Gaib das profecias,
a Voz do Mundo Exterior. Concentraram
sua atenção também na mãe, porque
tinham ouvido falar que ela era uma Bene
Gesserit, e era óbvio que ela era como as
outras Lisan al-gaib.
- excerto do “Manual de Muad’Dib”, da princesa Irulan

O duque encontrou Thufir Hawat sozinho na sala de canto


que um guarda havia lhe apontado. Ouvia-se o som de homens
instalando o equipamento de comunicações na sala ao lado,
mas o lugar estava razoavelmente tranquilo. O duque deu uma
rápida olhada ao redor quando Hawat se levantou atrás de uma
mesa atulhada de papéis. Era um recinto de paredes verdes
que exibia, além da mesa, três cadeiras suspensas, das quais o
H dos Harkonnen tinha sido removido às pressas, deixando
uma mancha de cor imperfeita.
– As cadeiras estão livres, mas são bastante seguras –
Hawat disse. – Onde está Paul, sire?
– Eu o deixei na sala de conferências. Espero que descanse
um pouco agora que não estou lá para distraí-lo.
Hawat concordou com a cabeça, foi até a porta que dava
para a sala contígua, fechou-a, isolando o barulho de estática e
descargas elétricas.
– Thufir – Leto disse –, estou interessado nas reservas de
especiaria dos Harkonnen e do Império.
– Milorde?
O duque mordeu os lábios.
– Os armazéns podem ser destruídos. – Levantou uma das
mãos quando Hawat fez menção de falar. – Ignore o estoque do
imperador. No fundo, ele adoraria ver os Harkonnen em
dificuldades financeiras. E o barão poderá objetar se algo que
ele não admite ter for destruído?
Hawat chacoalhou a cabeça.
– Temos poucos homens disponíveis, sire.
– Use alguns dos homens de Idaho. E talvez alguns fremen
gostem da ideia de sair um pouco do planeta. Um ataque de
surpresa a Giedi Primo: a distração tem suas vantagens
táticas, Thufir.
– Como quiser, milorde – Hawat se virou para sair, e o
duque viu indícios de nervosismo no velho. Pensou: Talvez ele
ache que desconfio dele. Deve saber que tenho informações
particulares sobre traidores. Bem... melhor aplacar seus
temores imediatamente.
– Thufir – ele disse –, como você é um dos poucos nos quais
posso confiar completamente, há um outro assunto que
precisa ser discutido. Nós dois sabemos que a vigilância deve
ser constante para impedir traidores de se infiltrarem em
nossas forças... mas tenho duas informações novas.
Hawat se virou e encarou o duque.
E Leto repetiu o que Paul havia lhe contado.
Em vez de acarretar a intensa concentração dos Mentats,
as informações só fizeram aumentar a agitação de Hawat.
Leto estudou o velho e, sem demora, disse:
– Você anda escondendo alguma coisa, amigo velho. Eu
deveria ter desconfiado quando o vi tão nervoso durante a
reunião do estado-maior. O que era tão perigoso que você não
poderia despejar diante de todos os presentes?
Hawat repuxou os lábios manchados de sapho, que se
reduziram a uma linha tensa e retilínea, contornada por rugas
minúsculas. Conservaram sua rigidez enrugada quando ele
falou:
– Milorde, não sei bem como tocar no assunto.
– Nós já ganhamos muitas cicatrizes um pelo outro, Thufir
– disse o duque. – Você sabe que pode tocar em qualquer
assunto comigo.
Hawat continuou a encará-lo, pensando: É disso que gosto
mais nele. Este é o homem honrado que merece toda a minha
lealdade e meus serviços. Por que tenho de magoá-lo?
– Bem? – Leto exigiu.
Hawat deu de ombros.
– É um fragmento de bilhete. Nós o tomamos de um
mensageiro Harkonnen. O bilhete deveria chegar às mãos de
um agente chamado Pardee. Temos bons motivos para
acreditar que Pardee era o cabeça da resistência Harkonnen
aqui. O bilhete... é algo que pode ter grandes consequências ou
consequência nenhuma. Está sujeito a várias interpretações.
– Qual é o conteúdo delicado desse bilhete?
– Fragmento de bilhete, milorde. Incompleto. Estava
impresso em filme minimicro, com a usual cápsula de
destruição anexa. Interrompemos a ação do ácido pouco antes
de se apagar tudo, deixando apenas um fragmento. O
fragmento, contudo, é extremamente sugestivo.
– É?
Hawat esfregou os lábios.
– Diz o seguinte: “... eto nunca irá desconfiar e, quando o
golpe partir de alguém que ele ama, o fato de saber quem foi já
bastará para destruí-lo”. O bilhete estava selado com o sinete
do próprio barão, que eu mesmo autentiquei.
– Sua suspeita é óbvia – o duque disse, e sua voz se tornou
subitamente gélida.
– Preferiria antes cortar meus braços a magoar milorde –
Hawat disse. – Milorde, e se...
– Lady Jéssica – Leto disse, e ele sentiu que a raiva o
consumia. – Você não conseguiria arrancar a verdade desse tal
Pardee?
– Infelizmente, Pardee não estava mais entre os vivos
quando interceptamos o mensageiro. Tenho certeza de que o
mensageiro não sabia o que portava.
– Entendi.
Leto chacoalhou a cabeça, pensando: Que vigarice. Não
deve ter fundamento. Conheço minha mulher.
– Milorde, se...
– Não! – o duque gritou. – Há aí um erro que...
– Não podemos ignorar, milorde.
– Ela está comigo há dezesseis anos! Houve inúmeras
oportunidades para... Você mesmo investigou a escola e a
mulher!
Hawat falou, com amargura:
– É bem sabido que algumas coisas me escapam.
– É impossível, estou dizendo! Os Harkonnen querem
destruir a linhagem Atreides: ou seja, Paul também. Já
tentaram uma vez. E uma mulher seria capaz de conspirar
contra o próprio filho?
– Talvez ela não esteja conspirando contra o filho. E o
atentado de ontem poderia ter sido uma farsa inteligente.
– Não poderia ter sido uma farsa.
– Sire, ela não deveria saber quem foram seus pais, mas e
se soubesse? E se fosse uma órfã? Uma menina que ficou órfã,
por exemplo, por causa de um Atreides?
– Ela já teria agido tempos atrás. Envenenado minha
bebida... um estilete no meio da noite. Quem teve oportunidade
melhor?
– Os Harkonnen querem destruí-lo, milorde. A intenção
deles não é simplesmente matá-lo. Há uma série de distinções
sutis na kanly. Poderia ser a obra-prima das vendetas.
O duque deixou cairem os ombros. Ele fechou os olhos,
parecendo velho e cansado. Não pode ser, ele pensou. A mulher
abriu seu coração para mim.
– Que melhor maneira de me destruir do que semear a
desconfiança em relação à mulher que amo? – ele perguntou.
– Uma interpretação que já cogitei – Hawat disse. – Ainda
assim...
O duque abriu os olhos, fitou Hawat, pensando: Deixe-o
desconfiar. A função dele é desconfiar, não a minha. Talvez, se
eu aparentar acreditar nisso, um outro homem possa ficar
descuidado.
– O que sugere? – sussurrou o duque.
– Por ora, monitoramento constante, milorde. Ela deve ser
vigiada o tempo todo. Providenciarei para que seja feito com
discrição. Idaho seria a escolha ideal para o serviço. Talvez
consigamos trazê-lo de volta em coisa de uma semana. Há um
jovem em treinamento na tropa de Idaho que pode ser o
substituto perfeito para enviarmos aos fremen. Ele é um
diplomata talentoso.
– Não coloque em risco nossa cabeça de ponte entre os
fremen.
– Claro que não, sire.
– E quanto a Paul?
– Talvez possamos alertar o dr. Yueh.
Leto deu as costas a Hawat.
– Deixo isso em suas mãos.
– Serei discreto, milorde.
Pelo menos posso contar com isso, Leto pensou. E disse:
– Vou caminhar um pouco. Se precisar de mim, estarei
dentro do perímetro. O guarda pode...
– Milorde, antes de ir, tenho um filmeclipe que Vossa
Alteza deveria ver. É uma análise aproximada de primeira
ordem da religião fremen. Deve estar lembrado que me pediu
um relatório a respeito.
O duque se deteve e falou, sem se virar:
– Não pode esperar?
– Claro, milorde. Mas milorde perguntou o que estavam
gritando. Era “Mahdi!”. E a palavra era dirigida ao jovem
mestre. Quando eles...
– A Paul?
– Sim, milorde. Eles têm uma lenda aqui, uma profecia, de
que um líder virá, filho de uma Bene Gesserit, para conduzi-los
à verdadeira liberdade. Segue o conhecido padrão messiânico.
– Eles pensam que Paul é esse... esse...
– É apenas a esperança deles, milorde – Hawat apresentou
uma cápsula de filmeclipe.
O duque a aceitou e enfiou num dos bolsos.
– Darei uma olhada mais tarde.
– Certamente, milorde.
– Neste exato momento, preciso de tempo para... pensar.
– Sim, milorde.
O duque inspirou profunda e ruidosamente e saiu da sala.
Pegou a direita no corredor, começou a andar, com as mãos às
costas, prestando pouca atenção a onde estava. Havia
corredores, escadas, sacadas e átrios... pessoas que o
cumprimentavam e lhe davam passagem.
Ele acabou voltando para a sala de conferências,
encontrou-a às escuras e Paul a dormir sobre a mesa, com o
manto de um dos guardas atirado sobre ele e uma mochila por
travesseiro. O duque foi de mansinho até a outra ponta da sala
e passou à sacada que sobranceava o campo de pouso. Um
guarda no canto da sacada, reconhecendo o duque sob as luzes
refletidas do campo, assumiu a posição de sentido.
– À vontade – o duque murmurou. Ele se debruçou sobre o
metal frio do parapeito da sacada.
A quietude que antecedia o amanhecer baixara sobre a
bacia desértica. Ele ergueu os olhos. Logo acima, as estrelas
eram um xale de lantejoulas sobre o negro-azulado. Bem baixa
no horizonte meridional, a segunda lua da noite aparecia
através de um fino nevoeiro de pó: uma lua inacreditável que
olhava para ele com uma luz cínica.
Observada pelo duque, a lua mergulhou sob os penhascos
da Muralha-Escudo, cobrindo-os de açúcar, e, na súbita
intensidade da escuridão, ele sentiu frio. Pôs-se a tremer.
Foi tomado pela raiva.
Os Harkonnen me prejudicaram, acossaram e caçaram
pela última vez, ele pensou. Não passam de montes de estrume
com a mentalidade de prebostes de aldeias! É aqui que vou lutar!
E ele pensou, com um quê de tristeza: Tenho de governar com
mão forte e olhar vigilante, como o gavião entre as aves
menores. Inconscientemente, a mão dele roçou o emblema do
gavião em sua túnica.
No leste, da noite brotou um feixe luminoso de penumbra,
seguido de uma opalescência nacarada que ofuscou as estrelas.
Aproximava-se a longa e tangente manobra da alvorada,
incendiando o horizonte acidentado.
Era uma cena de tamanha beleza que prendeu toda a
atenção dele.
Algumas coisas são inigualáveis, ele pensou.
Nunca tinha imaginado que algo ali poderia ser tão belo
quanto aquele horizonte vermelho e fragmentado, quanto os
penhascos purpúreos e ocres. Depois do campo de pouso, onde
o fino orvalho da noite havia insuflado vida nas sementes
breves de Arrakis, ele viu imensos aglomerados de flores
vermelhas e, atravessando-os, uma trilha clara de violeta...
como pegadas gigantescas.
– É uma linda manhã, sire – o guarda disse.
– É, sim.
O duque balançou afirmativamente a cabeça, pensando:
Talvez possamos vir a gostar deste planeta. Talvez ele possa se
tornar uma boa pátria para meu filho.
E então ele viu os vultos humanos que entravam nos
campos floridos, varrendo-os com estranhos utensílios
semelhantes a foices: colhedores de orvalho. A água era tão
preciosa ali que até o orvalho tinha de ser recolhido.
E talvez possa ser um lugar medonho, o duque pensou.
“Provavelmente não existe epifania mais
terrível do que o instante em que
descobrimos que nosso pai é um homem,
de carne e osso.”
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

O duque disse:
– Paul, vou fazer uma coisa abominável, mas necessária. –
Ele estava ao lado do farejador de venenos portátil que haviam
trazido para o café da manhã na sala de conferências. Os
apêndices sensores da coisa pendiam inertes sobre a mesa,
fazendo Paul se lembrar de um inseto estranho e recém-morto.
A atenção do duque se voltava para fora, para o campo de
pouso e seu turbilhão de pó, com o céu da manhã ao fundo.
Paul tinha diante dele um leitor carregado com um
filmeclipe curto sobre as práticas religiosas dos fremen. O clipe
tinha sido compilado por um dos especialistas de Hawat, e Paul
ficou transtornado com as referências a si próprio.
“Mahdi!”
“Lisan al-Gaib!”
Se fechasse os olhos, era possível recordar os gritos da
multidão. Então é essa a esperança deles, pensou. E lembrou-se
do que a velha Reverenda Madre tinha dito: Kwisatz Haderach.
As lembranças feriram sua sensação de propósito terrível,
matizando aquele mundo estranho com uma impressão de
familiaridade que ele não conseguia entender.
– Uma coisa abominável – o duque repetiu.
– Como assim, senhor?
Leto se virou, olhou para o filho de cima para baixo.
– É que os Harkonnen querem me levar a desconfiar de sua
mãe. Não sabem que seria mais fácil eu desconfiar de mim
mesmo.
– Não entendi, senhor.
Leto voltou a olhar para fora. O sol branco estava bem alto
em seu quadrante matutino. A luz leitosa realçava as nuvens de
poeira fervilhantes que transbordavam para os desfiladeiros
cegos entremeados na Muralha-Escudo.
Lentamente, falando com vagar para conter sua raiva, o
duque explicou a Paul o bilhete misterioso.
– O senhor poderia muito bem desconfiar de mim – Paul
disse.
– Eles precisam pensar que tiveram êxito – disse o duque. –
Precisam pensar que sou idiota a esse ponto. Tem de parecer
real. Nem sua mãe pode saber da farsa.
– Mas, senhor! Por quê?
– A reação de sua mãe não pode ser fingida. Ah, ela sabe
fingir muito bem... mas tanta coisa depende disso. Espero
desentocar um traidor. Precisa parecer que fui completamente
enganado. É preciso magoá-la dessa maneira para que sua
mágoa não seja maior mais tarde.
– Por que está me contando isso, pai? Eu poderia deixar
escapar alguma coisa.
– Não estarão vigiando você por conta disso – o duque
explicou. – Você irá guardar segredo. É preciso. – Ele andou até
as janelas e falou, sem se virar. – Dessa maneira, se algo me
acontecer, você poderá contar a verdade a ela: que nunca
duvidei dela, nem pelo mais breve instante. Quero que ela saiba
disso.
Paul reconheceu o pensamento fatalista nas palavras do
pai e disse rapidamente:
– Nada irá lhe acontecer, senhor. Os...
– Fique quieto, filho.
Paul olhou fixamente para as costas do pai, vendo o
cansaço na inclinação do pescoço, no alinhamento dos ombros,
nos movimentos vagarosos.
– O senhor está só cansado, pai.
– Eu estou cansado – o duque concordou. – Estou cansado
moralmente. A degeneração melancólica das Casas Maiores
talvez tenha finalmente me atingido. E fomos tão fortes um dia.
Paul se enfureceu e disse:
– Nossa Casa não degenerou!
– Não?
O duque se virou, encarou o filho, revelando círculos
escuros sob os olhos severos e um sorriso cínico na boca.
– Eu deveria me casar com sua mãe, fazê-la duquesa. Mas...
minha condição de solteiro dá a algumas Casas a esperança de
que possam se aliar a mim por meio de suas filhas casadouras.
– Ele deu de ombros. – Por isso, eu...
– Minha mãe já me explicou isso.
– Nada angariaria mais lealdade para um líder do que um
ar de bravura – disse o duque. – E, portanto, eu cultivo um ar de
bravura.
– O senhor é um bom líder – Paul protestou. – Governa
bem. Os homens o seguem de boa vontade e o amam.
– Meu departamento de propaganda é um dos melhores –
o duque disse. Voltou-se mais uma vez para fitar a bacia lá fora.
– As possibilidades para nós, aqui em Arrakis, são maiores do
que o Imperium conseguiria imaginar. Mas, às vezes, acho que
teria sido melhor se tivéssemos fugido, desertado. Às vezes,
gostaria que pudéssemos mergulhar novamente no anonimato
das massas, ficar menos expostos a...
– Pai!
– Sim, estou cansado – o duque disse. – Sabia que estamos
usando resíduos da especiaria como matéria-prima e já temos
nossa própria fábrica de filme?
– Como?
– Não podemos ficar sem filme – disse o duque. – Senão,
como poderíamos inundar as vilas e a cidade com nossas
informações? O povo precisa saber que somos bons
governantes. Como viria a saber se não o informássemos?
– O senhor deveria dormir um pouco – Paul sugeriu.
O duque voltou a olhar para o filho.
– Arrakis tem uma outra vantagem que quase esqueci de
mencionar. A especiaria está em tudo. Nós a respiramos e
comemos em quase tudo. E descobri que isso confere uma
certa imunidade natural a alguns dos venenos mais comuns do
Manual dos Assassinos. E a necessidade de vigiar cada gota de
água submete toda a produção de alimentos – a cultura de
levedo, a hidropônica, o chemavit, tudo – à mais rígida
fiscalização. Não podemos eliminar grandes segmentos de
nossa população com veneno, e tampouco podemos ser
atacados dessa maneira. Arrakis nos torna morais e éticos.
Paul começou a falar, mas o duque o interrompeu, dizendo:
– Preciso de alguém para quem contar essas coisas, filho. –
Ele suspirou, voltou a olhar para a paisagem ressequida onde
até mesmo as flores tinham desaparecido naquele momento,
pisoteadas pelos colhedores de orvalho, secas sob o sol da
manhã.
– Em Caladan, governávamos com a força do ar e do mar –
o duque disse. – Aqui, temos de descobrir a força do deserto.
Este é seu legado, Paul. O que será de você se algo me
acontecer? Não será uma Casa de desertores, e sim uma Casa
de guerrilheiros: em fuga, caçada.
Paul buscou as palavras em vão, não encontrou nada para
dizer. Nunca tinha visto o pai tão desanimado.
– Para manter Arrakis – o duque continuou –, nós nos
vemos confrontados por decisões que podem nos custar nosso
amor-próprio. – Ele apontou lá para fora, para o estandarte
verde e preto dos Atreides que pendia flacidamente de um
mastro no limite do campo de pouso. – Aquele nobre
estandarte poderia vir a representar muita maldade.
Paul engoliu em seco. As palavras de seu pai estavam
prenhes de futilidade, uma ideia fatalista que deixou o menino
com a sensação de vazio no peito.
O duque tirou uma pastilha antifadiga de um dos bolsos e
a engoliu a seco.
– Poder e medo – disse. – Os instrumentos da arte de
governar. Tenho de mandar reforçar seu treinamento como
guerrilheiro. Naquele filmeclipe ali... Chamam você de “Mahdi”,
“Lisan al-Gaib”... Como último recurso, você pode se aproveitar
disso.
Paul fitou o pai e observou os ombros se endireitarem com
a ação da pastilha, mas lembrou-se das palavras de medo e
dúvida.
– O que está atrasando o tal ecólogo? – o duque
resmungou. – Mandei Thufir trazê-lo aqui logo cedo.
“Meu pai, o imperador padixá, me pegou
pela mão um dia, e senti, usando os
métodos ensinados por minha mãe, que
ele estava transtornado. Ele me levou ao
Salão dos Retratos, até a egocópia do
duque Leto Atreides. Notei a forte
semelhança entre eles — meu pai e aquele
homem no retrato —, ambos com rostos
magros e elegantes, traços bem marcados
e dominados por olhos frios. “Filha-
princesa”, meu pai disse, “como eu queria
que você fosse mais velha quando chegou
a hora de este homem escolher uma
mulher”. Meu pai tinha 71 anos na época e
não parecia mais velho que o homem no
retrato, e eu tinha apenas 14, mas lembro-
me de ter deduzido, naquele instante, que
meu pai, no fundo, desejava que o duque
tivesse sido seu filho, e que não via com
bons olhos as necessidades políticas que
fizeram deles inimigos.
– “Na casa de meu pai”, da princesa Irulan

Seu primeiro encontro com as pessoas que ele recebera


ordens para matar deixou o dr. Kynes abalado. Ele se orgulhava
de ser um cientista para quem as lendas não passavam de
pistas interessantes a apontar raízes culturais. Mas o menino
se encaixava na antiga profecia de maneira tão precisa. Ele
tinha os “olhos do demandante” e o ar de “candura reservada”.
Naturalmente, a profecia não especificava se a Deusa Mãe
traria o Messias consigo ou se iria gerá-lo ali mesmo. Ainda
assim, havia aquela estranha correspondência entre a predição
e aquelas pessoas.
Eles se encontraram no meio da manhã, em frente ao
prédio da administração do campo de pouso de Arrakina. Um
ornitóptero sem marcas de identificação estava pousado ali
perto, zumbindo baixinho em modo de espera, tal qual um
inseto sonolento. Um guarda Atreides estava ao lado do
veículo, com a espada desembainhada e cercado pela ligeira
distorção do ar provocada por um escudo.
Kynes sorriu desdenhosamente ao ver o padrão do escudo
e pensou: Arrakis tem aí uma surpresa reservada para eles!
O planetólogo ergueu uma das mãos, fez sinal para seus
guardas fremen recuarem. Continuou avançando a passos
largos, em direção à entrada do prédio: o buraco negro na
rocha revestida de plástico. Tão exposto, aquele prédio
monolítico, ele pensou. Tão menos conveniente que uma
caverna.
O movimento na entrada chamou a atenção dele. Deteve-
se, aproveitando o momento para ajeitar o manto e o
posicionamento do trajestilador sobre o ombro esquerdo.
As portas da entrada se escancararam. Guardas Atreides
saíram rapidamente, todos eles armados até os dentes:
atordoadores de carga lenta, espadas e escudos. Atrás deles
vinha um homem alto, de rosto aquilino, pele e cabelos
morenos. Ele vestia um manto jubba, com o timbre dos
Atreides no peitilho, e o usava de uma maneira que denunciava
sua falta de familiaridade com a roupa. A veste aderia às
pernas do trajestilador de um dos lados. Faltava à roupa um
ritmo solto que acompanhasse a cadência dos passos.
Ao lado do homem caminhava um jovem com os mesmos
cabelos negros, mas de rosto mais arredondado. O garoto
parecia pequeno para os 15 anos que Kynes sabia ser sua idade.
Mas o corpo jovem dava uma impressão de autoridade, de
confiança impecável, como se o menino visse e conhecesse
coisas que os outros não conseguiam enxergar. E ele vestia o
mesmo manto elegante do pai, mas com uma naturalidade que
levaria qualquer um a pensar que o garoto sempre usara
aquelas roupas.
O Mahdi saberá de coisas que os outros não enxergam,
dizia a profecia.
Kynes chacoalhou a cabeça, dizendo a si mesmo: São
apenas pessoas.
Acompanhando os dois e, como eles, vestido para o
deserto, vinha um homem que Kynes reconheceu: Gurney
Halleck. Kynes inspirou profundamente para conter seu
ressentimento em relação a Halleck, que o havia instruído
quanto à maneira de se portar diante do duque e de seu
herdeiro.
– Você pode chamar o duque de “milorde” ou “sire”. “Bem-
nascido” também está correto, mas geralmente fica reservado
para ocasiões mais formais. Pode se dirigir ao filho como “jovem
mestre” ou “milorde”. O duque é um homem indulgente, mas não
tolera muita intimidade.
E Kynes pensou, ao ver o grupo se aproximar: Eles logo
aprenderão quem é o mestre em Arrakis. Mandaram aquele
Mentat me interrogar metade da noite, não foi? Esperam que eu
lhes sirva de guia numa inspeção das minas de especiaria, não
é?
O significado das perguntas de Hawat não escapara a
Kynes. Eles queriam as bases imperiais. E era óbvio que
ficaram sabendo das bases por meio de Idaho.
Farei Stilgar mandar a cabeça de Idaho a esse duque,
Kynes disse consigo mesmo.
A comitiva do duque estava agora apenas a alguns passos
de distância, e seus pés, enfiados nas botinas, trituravam a
areia.
Kynes fez uma reverência.
– Milorde duque.
Quando o ecólogo havia se aproximado do vulto solitário
ao lado do ornitóptero, Leto o tinha estudado: alto, magro,
vestido para o deserto, com manto folgado, trajestilador e
botas de cano baixo. O capuz do homem tinha sido atirado para
trás e o véu pendia de lado, revelando cabelos longos e ruivos e
uma barba esparsa. Os olhos eram daquele azul sobre azul sob
as sobrancelhas grossas. Vestígios de manchas escuras
sujavam-lhe a face ao redor dos olhos.
– Você é o ecólogo – disse o duque.
– Preferimos o título antigo por aqui, milorde – Kynes
disse. – Planetólogo.
– Como quiser – o duque disse. Olhou para Paul. – Filho,
este é o Juiz da Transição, o árbitro da disputa, o homem
incumbido de garantir que as formalidades sejam obedecidas
em nossa pretensão ao domínio deste feudo. – Olhou para
Kynes. – E este é meu filho.
– Milorde – Kynes disse.
– Você é fremen? – Paul perguntou.
Kynes sorriu.
– Sou aceito tanto no sietch quanto na aldeia, jovem
mestre. Mas estou a serviço de Sua Majestade, sou o
planetólogo imperial.
Paul assentiu, impressionado com a sensação de força que
o homem transmitia. Halleck havia apontado Kynes para Paul
desde uma das janelas superiores do prédio da administração:
– Aquele homem ali com a escolta fremen, o que está
andando na direção do ornitóptero agora.
Paul tinha inspecionado Kynes brevemente com o
binóculo, reparando na boca retílinea e rígida, na testa alta.
Halleck dissera ao pé do ouvido de Paul:
– Tipinho esquisito. Sua maneira de falar é precisa: breve,
bem definida, afiada.
E o duque, atrás deles, dissera:
– É um cientista.
Agora, a apenas alguns passos do homem, Paul sentia a
força de Kynes, o impacto daquela personalidade, como se o
homem tivesse sangue real, como se tivesse nascido para
comandar.
– Creio que temos de agradecer a você por nossos
trajestiladores e por estes mantos – disse o duque.
– Espero que tenham servido, milorde – Kynes disse. – São
de confecção fremen e foram feitos o mais próximo possível
das medidas que seu homem aqui, Halleck, me deu.
– Fiquei preocupado com o fato de você ter dito que não
poderia nos levar ao deserto a menos que usássemos estas
roupas – disse o duque. – Temos condições de carregar
bastante água. Não é nossa intenção ficar muito tempo fora e
teremos cobertura aérea: a escolta que se vê lá em cima agora
mesmo. É improvável que sejamos abatidos.
Kynes o encarou, vendo a pele rica em água. Falou com
frieza:
– Nunca discuta probabilidades em Arrakis. Fale apenas
de possibilidades.
– Dirija-se ao duque como milorde ou sire!
Leto fez um sinal com a mão, o código que dizia a Halleck
para desistir, e falou:
– Nossos costumes são novidade por aqui, Gurney.
Precisamos fazer concessões.
– Como quiser, sire.
– Estamos em dívida com o senhor, dr. Kynes – Leto disse.
– Estes trajes e a consideração por nosso bem-estar serão
lembrados.
Por impulso, Paul recordou uma citação da Bíblia C. O. e
disse:
– “O presente é a bênção do rio.”
As palavras soaram alto demais no ar parado. Os homens
da escolta fremen, que Kynes havia deixado na sombra do
prédio da administração e que descansavam de cócoras,
levantaram-se num salto e começaram a cochichar,
visivelmente agitados. Um deles gritou:
– Lisan al-Gaib!
Kynes deu meia-volta, fez um sinal breve e cortante com
uma das mãos, acenou para os guardas se afastarem. Eles
recuaram, resmungando entre si, e em fila contornaram o
prédio.
– Muito interessante – Leto disse.
Kynes olhou duramente para o duque e para Paul, depois
disse:
– Muitos nativos do deserto são supersticiosos. Não dê
atenção a eles. Não fazem por mal. – Mas ele pensou nas
palavras da lenda: “Eles irão vos saudar com as Sagradas
Escrituras, e vossos presentes serão uma bênção”.
A avaliação que Leto tinha feito de Kynes – baseada
parcialmente no breve relatório verbal de Hawat (precavido e
cheio de suspeitas) – cristalizou-se de repente: o homem era
fremen. Kynes viera acompanhado de uma escolta fremen, que
poderia significar simplesmente que os fremen estavam
colocando à prova sua liberdade recém-adquirida de entrar
nas áreas urbanas, mas parecia ser uma guarda de honra. E,
com sua atitude, Kynes demonstrava ser um homem
orgulhoso, acostumado à liberdade, e eram apenas suas
próprias suspeitas que continham sua língua e seus modos. A
pergunta de Paul tinha sido direta e pertinente.
Kynes havia se tornado um nativo.
– Não acha melhor irmos, sire? – Halleck perguntou.
O duque assentiu.
– Pilotarei meu próprio tóptero. Kynes pode se sentar na
frente comigo, para mostrar o caminho. Você e Paul ficam com
os bancos de trás.
– Um momento, por favor – Kynes disse. – Com sua
permissão, sire, tenho de verificar a segurança de seus trajes.
O duque começou a falar, mas Kynes insistiu:
– Preocupo-me com minha pele tanto quanto com a sua...
milorde. Sei muito bem quem terá a garganta cortada se algum
mal acontecer a vocês dois enquanto estiverem sob meus
cuidados.
O duque franziu o cenho, pensando: Que momento mais
delicado! Se eu me recusar, poderei ofendê-lo. E este homem
pode ter um valor incomensurável para mim. Contudo... deixá-
lo entrar em meu escudo, tocar minha pessoa, quando sei tão
pouco sobre ele?
Os pensamentos passaram rapidamente pela cabeça dele,
com a decisão logo em seu encalço.
– Estamos em suas mãos – disse o duque. Deu um passo à
frente e abriu seu manto; viu Halleck ficar nas pontas dos pés,
aprumado e alerta, mas sem sair do lugar. – E se pudesse nos
fazer a gentileza – disse o duque –, eu gostaria que alguém que
convive tão de perto com o traje o explicasse.
– Certamente – Kynes disse. Ele tateou por baixo do
manto, em busca dos lacres dos ombros, falando enquanto
examinava o traje. – É basicamente um microssanduíche: um
filtro de alto desempenho e um sistema de trocas de calor. – Ele
ajustou a vedação dos ombros. – A camada em contato com a
pele é porosa. A transpiração a atravessa, depois de ter
resfriado o corpo... é quase o processo de evaporação normal.
As duas camadas seguintes... – Kynes apertou o traje no peito –
... têm filamentos de troca de calor e precipitadores de sal. O
sal é reaproveitado.
O duque ergueu os braços a um gesto de Kynes e
comentou:
– Muito interessante.
– Respire fundo – Kynes disse.
O duque obedeceu.
Kynes examinou os lacres das axilas, ajustou um deles.
– Os movimentos do corpo, principalmente a respiração –
disse ele –, e um pouco de ação osmótica propiciam a força de
bombeamento. – Ele afrouxou ligeiramente o traje no peito. – A
água reaproveitada circula até bolsas coletoras, das quais você
a retira por meio deste tubo que fica preso ao pescoço.
O duque recolheu o queixo e abaixou a cabeça para ver a
ponta do tubo.
– Eficaz e conveniente – ele disse. – Boa engenharia.
Kynes se ajoelhou, examinou os lacres das pernas.
– A urina e as fezes são processadas nas almofadas das
coxas – ele disse e se levantou, apalpou a gola do traje, ergueu
ali uma aba divisória. – No alto deserto, você usa este filtro no
rosto, com este tubo nas narinas; estes obturadores garantem
um encaixe perfeito. Inspire pelo filtro da boca, expire pelo
tubo nasal. Com um traje fremen em boas condições, você não
perderá mais do que um dedal de umidade por dia, mesmo se
estiver no Grande Erg.
– Um dedal por dia – o duque disse.
Kynes apertou um dedo contra a almofada do traje sobre a
testa e disse:
– Isto pode friccionar um pouco. Se começar a incomodar,
por favor, avise-me. Posso apertá-la um pouco mais.
– Obrigado – disse o duque. Ele moveu os ombros quando
Kynes se afastou e percebeu que o traje realmente parecia
melhor agora: mais apertado e menos incômodo.
Kynes voltou-se para Paul.
– Agora vamos dar uma olhada em você, rapaz.
É um bom homem, mas terá de aprender a se dirigir a nós
da maneira correta, pensou o duque.
Paul esperou passivamente enquanto Kynes inspecionava
o traje. Tinha sido uma sensação esquisita vestir a roupa
escorregadia e cheia de pregas. Em sua pré-consciência, ele
sabia com absoluta certeza que nunca havia usado um
trajestilador antes. E, contudo, cada gesto de ajustar as
linguetas aderentes, sob a orientação desastrada de Gurney,
parecera natural, instintivo. Ao apertar o peito para obter
bombeamento máximo com o movimento da respiração, ele
sabia exatamente o que estava fazendo e por quê. Ao apertar
bem as linguetas do pescoço e da testa, ele sabia que era para
evitar as bolhas provocadas pelo atrito.
Kynes se empertigou e recuou um passo, com uma
expressão confusa.
– Você já tinha usado um trajestilador antes? – ele
perguntou.
– Esta é a primeira vez.
– Então alguém o ajustou para você?
– Não.
– Você deixou as botinas frouxas nos tornozelos. Quem lhe
disse para fazer isso?
– Parecia... o jeito certo.
– E é mesmo.
E Kynes coçou o queixo, pensando na lenda: “Ele conhecerá
vossos costumes como que desde o berço”.
– Estamos perdendo tempo – disse o duque. Ele apontou o
tóptero que os aguardava e seguiu na frente, respondendo à
continência do guarda com um aceno de cabeça. Subiu e
entrou, prendeu o cinto de segurança, verificou os controles e
os instrumentos. A nave estalou quando os demais subiram a
bordo.
Kynes colocou o cinto e concentrou-se no conforto
acolchoado da aeronave: o luxo delicado dos estofos verde-
acinzentados, o brilho dos instrumentos, a sensação de ar
filtrado e limpo em seus pulmões quando as portas se
fecharam e os exaustores foram ligados.
Tão cômodo!, ele pensou.
– Tudo em ordem, sire – Halleck disse.
Leto acionou as asas, sentiu-as bater uma vez, e então
duas. Estavam no ar dez metros depois, com as asas
totalmente recolhidas, impelidos pelos jatos posteriores numa
ascensão sibilante e quase vertical.
– Para sudeste, por cima da Muralha-Escudo – Kynes disse.
– Foi lá que mandei seu areneiro-mestre concentrar o
equipamento.
– Certo.
Inclinando lateralmente o tóptero, o duque entrou em
formação com sua cobertura aérea, e as outras naves
assumiram posições de guarda enquanto se dirigiam para
sudeste.
– O projeto e a manufatura destes trajestiladores indicam
um grau elevado de sofisticação – o duque comentou.
– Um dia desses, quem sabe eu mostre a vocês uma fábrica
do sietch – Kynes disse.
– Seria interessante – o duque disse. – Vi que os trajes
também são manufaturados em algumas cidades fortificadas.
– Cópias inferiores – Kynes disse. – Todo duneiro que
preza sua vida usa um traje fremen.
– E ele limitará a perda de água a um dedal por dia?
– Corretamente trajado, com o gorro bem justo na testa e
todos os lacres em ordem, você perderá água principalmente
pela palma das mãos – Kynes disse. – Você pode vestir as luvas
do traje se não estiver usando as mãos para fazer algo
importante, mas, no alto deserto, a maioria dos fremen passa
nas mãos o sumo das folhas do arbusto de creosoto. Isso inibe a
transpiração.
O duque olhou para baixo e para a esquerda, para a
paisagem acidentada da Muralha-Escudo: abismos de pedras
torturadas, trechos castanho-amarelados cortados pelas
linhas negras das falhas geológicas. Era como se alguém
tivesse deixado o chão despencar do espaço e o abandonado ali
onde caiu.
Atravessaram uma bacia rasa, com o contorno nítido de
areia cinzenta que se espalhava depressão adentro a partir de
um desfiladeiro que se abria ao sul. Os dedos de areia
deslizavam para dentro da bacia: um delta seco delineado
contra a rocha mais escura.
Kynes se recostou, pensando na pele rica em água que ele
havia tocado sob os trajestiladores. Eles usavam cinturões-
escudos sobre os mantos, atordoadores de carga lenta nas
cinturas, transmissores de emergência do tamanho de moedas
pendurados em cordões em volta do pescoço. Tanto o duque
quanto o filho carregavam punhais embainhados junto ao
pulso, e as bainhas pareciam bem usadas. Aquelas pessoas
pareciam a Kynes uma combinação estranha de delicadeza e
força militar. Havia nelas uma atitude totalmente diferente da
dos Harkonnen.
– Quando fizer seu relatório ao imperador sobre a
mudança de suserania, você dirá que seguimos as regras? –
Leto perguntou. Ele olhou para Kynes, depois de volta ao curso
que tomavam.
– Os Harkonnen partiram; vocês chegaram – Kynes disse.
– E tudo está como deveria ser? – Leto perguntou.
Uma tensão momentânea mostrou-se na contração de um
músculo da mandíbula de Kynes.
– Como planetólogo e Juiz da Transição, sou súdito direto
do Imperium... milorde.
O duque sorriu sinistramente.
– Mas nós dois conhecemos a realidade.
– Devo lembrá-lo que Sua Majestade apoia meu trabalho.
– Verdade? E qual é seu trabalho?
No breve silêncio que se fez, Paul pensou: Ele está
pressionando demais o tal Kynes. Paul olhou para Halleck, mas
o guerreiro-menestrel fitava a paisagem estéril lá fora.
Kynes falou com toda a formalidade:
– Você, naturalmente, se refere a meus deveres como
planetólogo.
– Naturalmente.
– Em grande parte, trata-se de biologia e botânica de
terras áridas... alguma pesquisa geológica: coleta e análise de
amostras de solo. As possibilidades de um planeta inteiro
nunca se esgotam.
– Você também pesquisa a especiaria?
Kynes se virou, e Paul reparou na tensão nos maxilares do
homem.
– Que pergunta curiosa, milorde.
– Não se esqueça de que este agora é meu feudo. Meus
métodos e os dos Harkonnen são diferentes. Não me importo
se você estuda a especiaria, desde que divida comigo o que
descobrir. – Ele olhou para o planetólogo. – Os Harkonnen
desencorajavam a pesquisa da especiaria, não é?
Kynes devolveu o olhar sem responder.
– Pode falar francamente – disse o duque –, sem temer por
sua vida.
– A Corte Imperial, de fato, está bem longe – Kynes
murmurou. E pensou: O que esse invasor aguado está
esperando? Acha que sou tão burro a ponto de abraçar a causa
dele?
O duque deu uma risadinha, sem desviar sua atenção do
curso.
– Percebo uma nota ácida em sua voz, senhor. Chegamos
sem fazer cerimônia, com nosso bando de assassinos
domesticados, não é? E esperamos que vocês percebam de
imediato que somos diferentes dos Harkonnen?
– Vi a propaganda com que vocês inundaram as
comunidades sietch e as vilas – Kynes disse. – “Adorem o duque
bonzinho.” Seu departamento de...
– Agora escute aqui! – gritou Halleck. Afastou
bruscamente sua atenção da janela e inclinou-se para a frente.
Paul pousou uma das mãos sobre o braço de Halleck.
– Gurney! – disse o duque. Olhou para trás. – Este homem
passou muito tempo sob o domínio dos Harkonnen.
Halleck se recostou.
– Sim, senhor.
– Aquele seu Hawat é muito sutil – Kynes disse –, mas o
objetivo dele é bem óbvio.
– Vai abrir aquelas bases para nós, então? – o duque
perguntou.
Kynes falou, lacônico:
– São propriedade de Sua Majestade.
– Não estão em uso.
– Poderiam estar.
– Sua Majestade concorda?
Kynes olhou duramente para o duque.
– Arrakis poderia ser o Éden se seus soberanos parassem
de procurar a especiaria e olhassem para a frente!
Não respondeu minha pergunta, o duque pensou. E ele
disse:
– Como é que um planeta vai se tornar o Éden sem
dinheiro?
– E de que serve o dinheiro – Kynes perguntou – se não
consegue comprar os serviços de que se precisa?
Ah, agora sim!, o duque pensou. E ele disse:
– Discutiremos isso uma outra hora. Neste exato
momento, creio que estejamos chegando ao limite da Muralha-
Escudo. Mantenho o mesmo curso?
– O mesmo curso – murmurou Kynes.
Paul olhou pela janela. Abaixo deles, o terreno acidentado
começava a formar pregas inclinadas, descendo na direção de
uma planície rochosa e desolada e de uma saliência de gume
afiado. Para além da saliência, dunas em meia-lua marchavam
rumo ao horizonte e, aqui e ali, ao longe, via-se uma nódoa
sombria, um borrão mais escuro que indicava algo que não era
areia. Afloramentos de rochas, talvez. No ar perturbado pelo
calor, não havia como Paul ter certeza.
– Há alguma planta lá embaixo? – Paul perguntou.
– Algumas – Kynes disse. – A zona de vida desta latitude
costuma apresentar o que chamamos de pequenos
surrupiadores de água, adaptados a roubar a umidade uns dos
outros e a consumir rapidamente os vestígios de orvalho.
Algumas partes do deserto pululam com formas de vida. Mas
todas elas aprenderam a sobreviver nestas condições
inclementes. Se vocês se virem presos lá embaixo, terão de
imitar essas formas de vida para não morrer.
– Quer dizer, roubar a água uns dos outros? – Paul
perguntou. A ideia lhe pareceu ultrajante e sua voz denunciava
essa emoção.
– Acontece – disse Kynes –, mas não foi bem isso que eu
quis dizer. Veja, meu clima exige uma atitude especial em
relação à água. Você pensa na água o tempo todo. Não
desperdiça nada que contenha umidade.
E o duque pensou: “... meu clima!”.
– Vire dois graus mais para o sul, milorde – Kynes disse. –
Há uma ventania vindo do oeste.
O duque assentiu. Tinha visto a massa ondulante de
poeira castanho-amarelada naquela direção. Ele inclinou o
tóptero e fez a volta, reparando na maneira como as naves da
escolta, ao virarem para acompanhá-lo, refletiam a cor laranja
e leitosa da luz refratada pela poeira.
– Isso deve nos fazer passar ao largo da tempestade –
Kynes disse.
– Aquela areia deve ser perigosa para quem entra nela
voando – Paul disse. – É verdade que é capaz de cortar os
metais mais resistentes?
– Nesta altitude, não é areia, e sim poeira – Kynes disse. – O
perigo é a falta de visibilidade, a turbulência e o entupimento
das entradas de ar dos motores.
– Veremos de fato a mineração da especiaria hoje? – Paul
perguntou.
– Muito provavelmente – Kynes disse.
Paul se recostou no assento. Tinha usado as perguntas e
sua hiperpercepção para fazer o que sua mãe chamava de
“registrar” a pessoa. Ele tinha Kynes agora: o tom de voz, cada
detalhe do rosto e do gestual. Uma prega nada natural na
manga esquerda da túnica do homem indicava a bainha de uma
arma. Na cintura havia uma protuberância estranha. Diziam
que os homens do deserto usavam uma faixa na cintura, na
qual enfiavam pequenos utensílios. Talvez as protuberâncias
se devessem a essa faixa – certamente não se tratava de um
cinturão-escudo secreto. Um broche de cobre, onde se via
gravada a imagem de uma lebre, fechava a gola do manto de
Kynes. Um outro broche menor, com uma imagem parecida,
pendia da ponta do capuz que ele trazia jogado para trás, sobre
os ombros.
Halleck se contorceu no assento ao lado de Paul, esticou o
braço até o compartimento traseiro e de lá tirou seu baliset.
Kynes se virou para olhar quando Halleck começou a afinar o
instrumento, depois voltou sua atenção para o curso que
seguiam.
– O que gostaria de ouvir, jovem mestre? – Halleck
perguntou.
– Escolha você, Gurney – Paul disse.
Halleck se inclinou, para deixar o ouvido bem perto da
caixa de ressonância, tocou uma corda e cantou baixinho:

“Nossos ancestrais comeram o maná do deserto,


Nos lugares ardentes onde nascem os ciclones.
Senhor, salvai-nos daquela terra horrível!
Salvai-nos... oooooh, salvai-nos
Da terra seca e sedenta.”

Kynes olhou para o duque e disse:


– Milorde realmente anda com um número reduzido de
guardas. Todos eles são homens de muitos talentos como este?
– Gurney? – riu o duque. – Gurney é único. Gosto de tê-lo
comigo por causa dos olhos. Os olhos dele deixam passar
pouca coisa.
O planetólogo franziu o cenho.
Sem perder um compasso da música, Halleck se
intrometeu:

“Pois sou como a coruja do deserto, ó!


Aiiah! Sou como a coruja do deseeerto!”

O duque estendeu a mão, tirou um microfone do painel de


instrumentos, ligou-o com o polegar e disse:
– Líder para Escolta Gema. Objeto voador às nove horas,
Setor B. Identificação?
– É só uma ave – Kynes disse. E acrescentou: – Tem olhos
aguçados.
O alto-falante do painel chiou, e então:
– Escolta Gema. Objeto examinado em amplificação
máxima. É uma ave de grande porte.
Paul olhou na direção indicada, viu o ponto distante, um
pingo de movimento intermitente, e percebeu como seu pai
deveria estar agitado. Todos os sentidos estavam em alerta
total.
– Não sabia que existiam aves desse porte tão dentro do
deserto – o duque disse.
– É provavelmente uma águia – Kynes disse. – Muitas
criaturas se adaptaram a este lugar.
O ornitóptero passou velozmente sobre uma planície
rochosa e árida. A dois mil metros de altitude, Paul olhou para
baixo e viu a sombra enrugada da nave e sua escolta. A terra lá
embaixo parecia plana, mas as ondas de sombra contavam
outra história.
– Alguém já escapou do deserto a pé? – o duque
perguntou.
A música de Halleck cessou. Ele se inclinou para a frente,
com o intuito de escutar a resposta.
– Não das profundezas do deserto – Kynes disse. –
Homens já escaparam da segunda zona várias vezes.
Sobreviveram porque cruzaram as áreas rochosas aonde os
vermes raramente vão.
O timbre da voz de Kynes prendeu a atenção de Paul.
Percebeu que seus sentidos entravam em alerta, como tinham
sido treinados para fazer.
– Aaah, os vermes – o duque disse. – Tenho de ver um deles
um dia desses.
– Pode ser que veja um hoje – Kynes disse. – Onde há
especiaria, há vermes.
– Sempre? – Halleck perguntou.
– Sempre.
– Há alguma relação entre o verme e a especiaria? –
perguntou o duque.
Kynes se virou, e Paul viu o homem morder os lábios ao
falar.
– Eles defendem as areias da especiaria. Cada verme tem
um... território. Quanto à especiaria... quem sabe? Os
espécimes de vermes que examinamos levam-nos a desconfiar
que ocorrem reações químicas complicadas em seus corpos.
Encontramos traços de ácido clorídrico nos dutos e formas
ácidas ainda mais complicadas em outros pontos. Vou dar a
você minha monografia sobre o assunto.
– E os escudos não servem como defesa? – perguntou o
duque.
– Escudos! – zombou Kynes. – Se ativar um escudo na zona
dos vermes, terá selado seu destino. Os vermes ignoram os
limites territoriais, vêm de muito longe para atacar um escudo.
Nenhum homem que usasse escudo sobreviveu a um desses
ataques.
– Como é que se abate um verme, então?
– A aplicação de choque elétrico de alta voltagem a cada
segmento anelar separadamente é a única maneira conhecida
de matar e preservar um verme inteiro – Kynes disse. – Podem
ser atordoados e feitos em pedaços por explosivos, mas cada
segmento anelar tem vida própria. Fora as armas atômicas,
não conheço um explosivo de poder suficiente para destruir
por completo um verme grande. São incrivelmente resistentes.
– Por que ninguém tentou exterminá-los? – perguntou
Paul.
– Muito caro – Kynes disse. – Muita área para cobrir.
Paul se recostou em seu cantinho. Seu sentido para a
verdade, a percepção das nuances de tom de voz, dizia que
Kynes estava mentindo e contando meias-verdades. E ele
pensou: Se houver uma relação entre os vermes e a especiaria,
matar os vermes destruiria a especiaria.
– Ninguém terá de escapar do deserto tão cedo – o duque
disse. – É só disparar este pequeno transmissor no pescoço e o
socorro estará a caminho. Todos os nossos operários usarão
um destes muito em breve. Vamos criar um serviço de resgate
especial.
– É muito louvável – Kynes disse.
– Você fala como se não concordasse – disse o duque.
– Concordar? Claro que concordo, mas isso não adiantará
muita coisa. A eletricidade estática das tempestades de areia
encobre muitos sinais. Os transmissores curto-circuitam. Já
tentaram isso antes, sabe? Arrakis é dura com os
equipamentos. E se você é caçado por um verme, não tem
muito tempo. Em geral, não mais que quinze ou vinte minutos.
– O que você aconselha? – o duque perguntou.
– Está pedindo meu conselho?
– Como planetólogo, sim.
– Você seguiria meu conselho?
– Se eu o achasse razoável...
– Muito bem, milorde. Nunca viaje sozinho.
O duque desviou sua atenção dos controles.
– Só isso?
– Só isso. Nunca viaje sozinho.
– E se uma tempestade separar você do grupo e obrigá-lo a
pousar? – Halleck perguntou. – Não há algo que se possa fazer?
– Algo é um campo muito vasto – Kynes disse.
– O que você faria? – Paul perguntou.
Kynes olhou duramente para o menino, depois voltou a dar
atenção ao duque.
– Eu me lembraria de garantir a integridade de meu
trajestilador. Se estivesse fora da zona dos vermes ou nas
pedras, ficaria com a nave. Se estivesse no alto deserto, me
afastaria da nave o mais rápido possível. Mil metros, mais ou
menos, já dariam. Depois eu me esconderia embaixo de meu
manto. Um verme acabaria pegando a nave, mas talvez não me
notasse.
– E depois? – Halleck perguntou.
Kynes deu de ombros.
– Esperaria o verme ir embora.
– Só isso? – Paul perguntou.
– Depois que o verme fosse embora, aí tentaria sair
andando – Kynes disse. – É preciso pisar leve, evitar as areias
de percussão, as bacias de maré-poeira, seguir na direção da
zona rochosa mais próxima. Existem muitas dessas zonas. É
possível sobreviver.
– Areias de percussão? – Halleck perguntou.
– Uma forma de compactação da areia – Kynes disse. –
Basta o passo mais leve para fazê-las rufar. Os vermes sempre
respondem a isso.
– E uma bacia de maré-poeira? – o duque perguntou.
– Certas depressões no deserto foram preenchidas com
terra com o passar dos séculos. Algumas são tão vastas que
apresentam correntes e marés. Todas engolem os incautos que
nelas pisam.
Halleck voltou a se recostar e recomeçou a tocar o baliset.
No mesmo instante, ele cantou:

“Feras selvagens do deserto ali caçam


Esperando os inocentes passarem.
Ooooh, não provoque os deuses do deserto,
A menos que queira um epitáfio solitário
Os perigos do...”
Ele se calou e inclinou-se para a frente.
– Nuvem de poeira à frente, sire.
– Já vi, Gurney.
– É o que estamos procurando – disse Kynes.
Paul se esticou todo no assento para dar uma olhada e viu
uma nuvem amarela e encapelada, bem perto da superfície do
deserto, uns trinta quilômetros à frente.
– É uma de suas lagartas-usinas – Kynes disse. – Está na
superfície, o que quer dizer que encontrou a especiaria. A
nuvem é a areia expelida pelos exaustores depois da remoção
da especiaria por centrifugação. Não há outra nuvem parecida
com essa.
– Aeronave acima dela – o duque disse.
– Estou vendo dois... três... quatro vigias – Kynes disse. –
Estão à espera de uma trilha de verme.
– Trilha de verme? – o duque perguntou.
– Uma onda de areia que se move na direção da lagarta.
Também devem ter sondas sísmicas na superfície. Os vermes,
às vezes, enterram-se muito fundo e a onda não aparece –
Kynes varreu o céu com o olhar. – Deve haver um caleche por
perto, mas não o estou vendo.
– O verme sempre vem, hein? – Halleck perguntou.
– Sempre.
Paul se inclinou e tocou o ombro de Kynes.
– Qual é o tamanho da área demarcada por um verme?
Kynes franziu o cenho. O garoto continuava a fazer
perguntas adultas.
– Depende do tamanho do verme.
– Qual é a variação? – o duque perguntou.
– Os grandes podem controlar trezentos ou quatrocentos
quilômetros quadrados. Os pequenos... – ele se calou quando o
duque acionou os jatos de frenagem. A nave deu um solavanco
e o sussurro dos propulsores da cauda se calou. As asas se
estenderam e começaram a bater. O veículo tornou-se um
tóptero perfeito quando o duque inclinou a nave, mantendo as
asas numa batida suave, e apontou o extremo leste, passada a
lagarta-usina, com sua mão esquerda.
– Aquilo é uma trilha de verme?
Kynes se inclinou na frente do duque para olhar ao longe.
Paul e Halleck se acotovelavam, olhando na mesma
direção, e Paul reparou que a escolta, surpresa com a manobra
repentina, tinha seguido em frente, mas agora fazia a volta. A
lagarta-usina estava a uns três quilômetros de distância.
No ponto indicado pelo duque, sequências de dunas em
meia-lua espalhavam ondas de sombra na direção do horizonte
e, atravessando-as feito uma linha de prumo que se estendia ao
longe, vinha um monte alongado em movimento, uma crista de
areia. Lembrava a Paul a turbulência causada por um peixe
grande nadando logo abaixo da superfície.
– É um verme – Kynes disse. – E dos grandes. – Ele se
recostou, agarrou o microfone do painel, digitou uma nova
frequência no seletor. Olhando para o mapa quadriculado
móvel acima de suas cabeças, ele disse ao microfone: –
Chamando lagarta em Delta Ájax Nove. Alerta de trilha de
verme. Lagarta em Delta Ájax Nove. Alerta de trilha de verme.
Responda, por favor.
Ele esperou.
O alto-falante do painel emitiu chiados de estática, depois
ouviu-se uma voz:
– Quem chama Delta Ájax Nove? Câmbio.
– Parecem bem tranquilos – Halleck disse.
Kynes falou ao microfone:
– Voo não registrado, uns três quilômetros ao norte e a
leste de vocês. Trilha de verme em curso de interceptação com
sua posição, contato estimado em vinte e cinco minutos.
Uma outra voz trovejou no alto-falante:
– Aqui é o Vigia Controle. Avistamento confirmado.
Aguardem definição de contato. – Houve uma pausa, e então: –
Contato em vinte e seis minutos e contando. Foi uma
estimativa precisa. Quem está nesse voo não registrado?
Câmbio.
Halleck livrou-se do cinto de segurança e se atirou entre
Kynes e o duque.
– É a frequência de trabalho normal, Kynes?
– Sim. Por quê?
– Quem está ouvindo?
– Só as equipes de trabalho nesta área. Reduz a
interferência.
Mais uma vez, o alto-falante crepitou, e então:
– Aqui é Delta Ájax Nove. Quem fica com a bonificação
desse avistamento? Câmbio.
Halleck olhou para o duque.
Kynes disse:
– Há uma bonificação proporcional ao carregamento de
especiaria para quem der o primeiro alerta de verme. Eles
querem saber...
– Diga-lhes quem viu aquele verme primeiro – Halleck
disse.
O duque concordou.
Kynes hesitou, depois ergueu o microfone:
– O crédito do avistamento vai para o duque Leto Atreides.
O duque Leto Atreides. Câmbio.
A voz no alto-falante saiu monótona e parcialmente
distorcida por uma explosão de estática:
– Entendido e obrigado.
– Agora, diga para dividirem a bonificação entre eles –
Halleck mandou. – Diga que é o desejo do duque.
Kynes inspirou fundo, e então:
– É o desejo do duque que vocês dividam a bonificação
entre os tripulantes. Entenderam? Câmbio.
– Entendido e obrigado – respondeu o alto-falante.
O duque falou:
– Esqueci de mencionar que Gurney também é muito
talentoso como relações-públicas.
Kynes virou-se para Halleck, com a confusão estampada
no cenho franzido.
– É para que os homens saibam que o duque se preocupa
com a segurança deles – Halleck disse. – A notícia vai se
espalhar. Foi numa frequência de trabalho da área: é
improvável que os agentes Harkonnen tenham ouvido. – Ele
olhou para fora, para a cobertura aérea. – E somos uma força
considerável. Valia a pena correr o risco.
O duque inclinou a nave na direção da nuvem de areia que
irrompia da lagarta-usina.
– O que vai acontecer agora?
– Há um caleche aqui perto em algum lugar – Kynes disse.
– Vai aparecer e içar a lagarta.
– E se o caleche tiver se acidentado? – perguntou Halleck.
– Sempre se perde algum equipamento – Kynes disse. –
Aproxime-se e sobrevoe a lagarta, milorde. Isto vai ser
interessante.
O duque fechou a cara e ocupou-se dos controles ao
entrarem numa zona de turbulência sobre a lagarta.
Paul olhou para baixo, viu que a areia ainda era expelida
pelo monstro de metal e plástico abaixo deles. Parecia um
grande besouro azul e castanho, com muitas esteiras que se
estendiam em apêndices ao redor dele. Viu a boca de um
gigantesco funil invertido enfiada na areia escura em frente ao
veículo.
– É um veio rico em especiaria, pela cor – Kynes disse. –
Vão continuar trabalhando até o último minuto.
O duque transferiu mais força para as asas, enrijeceu-as
para uma descida mais abrupta e baixou um pouco, planando
em círculos acima da lagarta. Uma olhadela para a esquerda e
para a direita mostrou-lhe que sua cobertura mantinha a
altitude e circulava acima deles.
Paul estudou a nuvem amarela que jorrava dos exaustores
da lagarta, olhou para o deserto, para o rastro do verme que se
aproximava.
– Não devíamos ouvi-los chamar o caleche? – Halleck
perguntou.
– Geralmente mantêm a aeronave numa frequência
diferente – Kynes disse.
– Não deveria haver dois caleches de prontidão para cada
lagarta? – o duque perguntou. – Deve haver vinte e seis homens
naquela máquina lá embaixo, para não mencionar o custo do
equipamento.
Kynes disse:
– Vocês não têm equi...
Ele foi interrompido quando o alto-falante explodiu com
uma voz zangada:
– Alguém aí está vendo a aeronave? Não está respondendo.
Um ruído distorcido crepitou no alto-falante, sufocado por
um repentino sinal de cancelamento, depois ouviram-se o
silêncio e a primeira voz:
– Apresentem-se, pela ordem! Câmbio.
– Aqui é o Vigia Controle. Da última vez que a vi, a
aeronave estava bem alto e seguindo em círculo para noroeste.
Não a estou vendo agora. Câmbio.
– Vigia um: negativo. Câmbio.
– Vigia dois: negativo. Câmbio.
– Vigia três: negativo. Câmbio.
Silêncio.
O duque olhou para baixo. A sombra de sua própria nave
estava justamente passando sobre a lagarta.
– Só quatro vigias, certo?
– Correto – Kynes disse.
– São cinco em nosso grupo – o duque disse. – Nossas
naves são maiores. Podemos fazer caber mais três em cada
uma. Os vigias devem ser capazes de levar dois cada.
Paul fez a conta mentalmente e disse:
– Sobram três.
– Por que não têm dois caleches para cada lagarta? – gritou
o duque.
– Vocês não têm equipamento extra suficiente – Kynes
disse.
– Mais razão para proteger o que temos!
– Aonde pode ter ido aquele caleche? – Halleck perguntou.
– Poderia ter sido obrigado a pousar em algum lugar fora
de vista – Kynes disse.
O duque agarrou o microfone, hesitou com o polegar
suspenso sobre a chave.
– Como podem ter perdido o caleche de vista?
– Eles ficam de olho no chão, procurando trilhas de verme
– Kynes disse.
O duque acionou a chave com o polegar e falou ao
microfone:
– Aqui é seu duque. Estamos descendo para evacuar a
tripulação da Delta Ájax Nove. Todos os vigias têm ordens para
fazer o mesmo. Os vigias pousarão no lado leste. Ficamos com
o oeste. Câmbio. – Esticou o braço, digitou sua frequência de
comando, repetiu a ordem para sua própria cobertura aérea e
entregou o microfone a Kynes.
Kynes voltou à frequência de trabalho e uma voz irrompeu
do alto-falante:
– ... quase carga completa de especiaria! Temos quase uma
carga completa! Não podemos deixar tudo para um maldito
verme! Câmbio.
– Dane-se a especiaria! – o duque gritou. Voltou a segurar o
microfone e disse: – Especiaria é o que não falta. Há lugar em
nossas naves para todos, exceto três de vocês. Tirem a sorte ou
decidam como quiserem quem vai e quem fica. Mas vocês vão, e
isso é uma ordem. – Voltou a enfiar o microfone nas mãos de
Kynes e murmurou um “perdão” quando o planetólogo sacudiu
um dedo machucado.
– Quanto tempo? – Paul perguntou.
– Nove minutos – Kynes disse.
O duque disse:
– Esta nave tem mais potência que as outras. Se
decolarmos usando os jatos e com as asas em três quartos,
poderemos acomodar mais um homem.
– A areia é fofa – Kynes disse.
– Com mais quatro homens a bordo numa decolagem a
jato, poderíamos quebrar as asas, sire – Halleck disse.
– Não nesta nave – disse o duque. Ele puxou os controles
para trás quando o tóptero passou planando ao lado da
lagarta. As asas se inclinaram para cima e frearam o tóptero,
que deslizou até parar a vinte metros da usina.
A lagarta agora estava silenciosa, e a areia não jorrava
mais de seus respiradouros. Emitia apenas um leve ronco
mecânico, que se tornou mais audível quando o duque abriu a
porta.
Imediatamente, suas narinas foram tomadas de assalto
pelo odor de canela, forte e pungente.
Com um sonoro bater de asas, a aeronave vigia pousou na
areia do outro lado da lagarta. A escolta do próprio duque
mergulhou para aterrissar alinhada com ele.
Paul, olhando para a usina, viu como todos os tópteros
ficavam pequenos perto dela: mosquitos ao lado de um
besouro-soldado.
– Gurney, você e Paul, joguem fora aquele banco lá atrás –
o duque disse. Usou uma manivela para reduzir as asas
manualmente a três quartos, ajustou-lhes o ângulo, verificou os
controles dos jatos. – Por que diabos não estão saindo daquela
máquina?
– Ainda têm esperança de que o caleche apareça – Kynes
disse. – Restam alguns minutos. – Ele olhou para o leste.
Todos se voltaram para olhar na mesma direção, sem que
vissem sinal do verme, mas havia uma sensação tensa e forte
de ansiedade no ar.
O duque tomou o microfone, digitou sua frequência de
comando e disse:
– Dois de vocês, joguem fora seus geradores de escudo.
Pela ordem. Assim conseguirão carregar mais um homem. Não
vamos deixar ninguém para aquele monstro. – Ele voltou à
frequência de trabalho e gritou: – Muito bem, vocês aí na Delta
Ájax Nove! Para fora! Já! É uma ordem de seu duque! A toda a
pressa, ou então vou fazer essa lagarta em pedaços com uma
armalês.
Uma escotilha se abriu perto da frente da usina, uma outra
atrás, e um terceira em cima. Os homens saíram aos
trambolhões, escorregando e descendo de quatro até a areia.
Um homem alto, vestindo uma túnica de trabalho remendada,
foi o último a aparecer. Ele pulou para uma esteira e dali para a
areia.
O duque devolveu o microfone ao painel, pendurou-se no
degrau da aeronave e gritou:
– Dois homens para cada um dos vigias.
O homem de túnica remendada começou a dividir sua
tripulação aos pares, empurrando-os na direção do veículo que
esperava do outro lado.
– Quatro aqui! – gritou o duque. – Quatro naquela nave lá
atrás! – Ele gesticulou com um dedo na direção de um dos
tópteros da escolta diretamente atrás dele. Os guardas
acabavam de empurrar o gerador de escudo para fora. – E
quatro naquela nave lá! – Ele apontou a outra nave da escolta,
que tinha se livrado do gerador de escudo. – Três em cada uma
das outras! Corram, seus lobos da areia!
O homem alto terminou de contar sua tripulação, veio
caminhando com dificuldade pela areia, seguido por três de
seus companheiros.
– Estou ouvindo o verme, mas não consigo vê-lo – Kynes
disse.
Os outros ouviram, então, um resvalar abrasivo, distante e
cada vez mais alto.
– Tamanho desleixo, maldição – o duque resmungou.
Ao redor deles, as aeronaves começaram a deixar a areia.
Fizeram o duque se lembrar de certa vez nas selvas de seu
planeta natal, da chegada repentina a uma clareira, e das aves
carniceiras alçando voo, deixando para trás a carcaça de um
gauro.
Os especieiros chegaram com dificuldade ao flanco do
tóptero, começaram a subir a bordo, passando por trás do
duque. Halleck ajudou, puxando-os para a traseira do veículo.
– Já para dentro, rapazes! – ele gritou. – A toda a pressa.
Paul, espremido num canto por homens suados, sentiu o
cheiro do medo na transpiração, viu que dois deles tinham
ajustado mal as golas de seus trajestiladores. Guardou a
informação na memória para agir no futuro. Seu pai teria de
impor uma disciplina mais rígida em relação aos
trajestiladores. Os homens tinham a tendência de ficar
desleixados se essas coisas não fossem observadas.
O último homem chegou ofegante à traseira do veículo e
disse:
– O verme! Está quase em cima da gente! Decole!
O duque, de cenho franzido, deslizou para seu assento e
disse:
– Ainda temos quase três minutos de acordo com a
primeira estimativa de contato. Certo, Kynes? – Ele fechou a
porta e verificou se estava bem fechada.
– É quase isso mesmo, milorde – Kynes disse, e pensou: É
senhor de si esse duque.
– Tudo em ordem, sire – Halleck disse.
O duque assentiu, viu a última nave da escolta decolar.
Ajustou a ignição, deu mais uma olhada nas asas e nos
instrumentos e acionou a sequência dos jatos.
A decolagem afundou o duque e Kynes em seus bancos,
comprimiu as pessoas na traseira. Kynes observou como o
duque manuseava os controles: com suavidade e segurança. O
tóptero estava totalmente no ar agora, e o duque estudava seus
instrumentos, olhava para as asas à esquerda e à direita.
– Está muito pesada, sire – Halleck disse.
– Dentro dos limites de tolerância desta nave – disse o
duque. – Não achou realmente que eu me arriscaria a perder
esta carga, não é, Gurney?
Halleck abriu um sorriso largo e disse:
– Nem um pouco, sire.
O duque inclinou a nave numa curva longa e suave,
ascendendo acima da lagarta. Paul, espremido num canto ao
lado de uma janela, olhou para baixo, para a máquina silenciosa
sobre a areia. A trilha de verme havia se interrompido a cerca
de quatrocentos metros da lagarta. E agora parecia haver
turbulência na areia em volta da usina.
– O verme agora está embaixo da lagarta – Kynes disse. –
Vocês estão prestes a presenciar uma coisa que pouca gente já
viu.
Partículas de terra escureciam a areia em volta da lagarta.
A máquina enorme começou a adernar para a direita. Um
gigantesco redemoinho de areia começou a se formar ali, à
direita da lagarta. Movia-se cada vez mais rápido. A areia e a
terra agora enchiam o ar num raio de centenas de metros.
E então eles o viram!
Um buraco amplo surgiu na areia. A luz do sol faiscou nos
raios brancos dentro dele. Paul estimou que o diâmetro do
buraco era, no mínimo, o dobro do comprimento da lagarta. Ele
viu a máquina deslizar para dentro daquela abertura, num
vagalhão de areia e terra. O buraco recuou.
– Deuses, que monstro! – murmurou um homem ao lado de
Paul.
– Ficou com toda a nossa suada especiaria – grunhiu um
outro.
– Alguém vai pagar por isso – disse o duque. – Prometo.
Pela ausência de inflexão na voz, Paul percebeu a
intensidade da ira de seu pai. Descobriu que sentia a mesma
coisa. Era um desperdício criminoso!
No silêncio que se seguiu, eles ouviram Kynes.
– Bendito seja o Criador e Sua água – Kynes murmurou. –
Benditas Suas idas e vindas. Que Sua passagem purifique o
mundo. Que Ele conserve o mundo para Seu povo.
– O que foi que disse? – perguntou o duque.
Mas Kynes ficou em silêncio.
Paul olhou para os homens amontoados ao redor dele.
Estavam olhando fixa e receosamente para a nuca de Kynes.
Um deles sussurrou:
– Liet.
Kynes se virou, carrancudo. O homem se encolheu em seu
assento, envergonhado.
Um outro resgatado começou a tossir, uma tosse seca e
áspera. No mesmo instante, ele deixou escapar um grito
sufocado:
– Maldito seja este inferno!
O duneiro alto que tinha sido o último a sair da lagarta
disse:
– Fica calmo aí, Coss. Senão só vai fazer a tosse piorar. –
Ele se mexeu no meio dos homens até que conseguisse
enxergar a nuca do duque. – O siô é o duque Leto, não é? – ele
disse. – É ao siô que a gente tem que agradecer por estar vivo.
A gente ia morrer ali mesmo se o siô não aparecesse.
– Quieto, homem, e deixe o duque pilotar a nave – Halleck
murmurou.
Paul olhou para Halleck. O menestrel também tinha visto
as rugas de tensão nos cantos da face de seu pai. Pisava-se em
ovos quando o duque estava zangado.
Leto, inclinando o tóptero, começou a abandonar o grande
círculo, parou a um novo sinal de movimento na areia. O verme
tinha se retirado para as profundezas, e agora, perto de onde a
lagarta estivera, viam-se dois vultos que se deslocavam para o
norte, afastando-se da depressão de areia. Pareciam deslizar
sobre a superfície e mal levantavam poeira para marcar sua
passagem.
– Quem são aqueles lá embaixo? – o duque gritou.
– Dois camaradas que pegaram uma carona com a gente,
siô – disse o duneiro alto.
– Por que não disseram nada sobre eles?
– Resolveram correr o risco, siô – respondeu o duneiro.
– Milorde – disse Kynes –, eles sabem que não adianta
tentar salvar homens apanhados no deserto em território de
verme.
– Mandaremos uma nave buscá-los quando chegarmos à
base! – o duque disse, ríspido.
– Como desejar, milorde – Kynes aquiesceu. – Mas o
provável é que, quando a nave chegar aqui, não haja nada para
salvar.
– Mandaremos uma nave mesmo assim – afirmou o duque.
– Estavam bem ao lado de onde o verme apareceu – Paul
disse. – Como escaparam?
– As paredes do buraco desmoronam e as distâncias
acabam enganando – Kynes disse.
– Está desperdiçando combustível aqui, sire – arriscou
Halleck.
– Certo, Gurney.
O duque fez a nave dar a volta e rumar para a Muralha-
Escudo. Sua escolta deixou de circular no alto e assumiu
posições acima e ao lado dele.
Paul pensou no que o duneiro e Kynes haviam dito. Ele
detectava meias-verdades e completas mentiras. Os homens
na areia deslizavam sobre a superfície com tamanha
segurança, movendo-se de uma maneira obviamente calculada
para não atrair novamente o verme desde as profundezas onde
se encontrava.
Fremen!, pensou Paul. Quem mais caminharia com tanta
segurança sobre a areia? Quem mais não seria motivo de
preocupação mais que natural... por não estar em perigo? Eles
sabem viver aqui! Eles sabem ser mais espertos que o verme!
– O que os fremen faziam naquela lagarta? – Paul
perguntou.
Kynes girou.
O duneiro alto arregalou os olhos para Paul: azul sobre
azul sobre azul.
– Quem é o moleque? – ele perguntou.
Halleck posicionou-se entre o homem e Paul, disse:
– Este é Paul Atreides, o herdeiro ducal.
– Por que ele tá dizendo que a gente tinha fremen na nossa
roncadeira? – o homem perguntou.
– A descrição bate – Paul disse.
Kynes riu alto.
– Não dá para identificar um fremen só de olhar! – ele se
voltou para o duneiro. – Você aí, quem eram aqueles homens?
– Amigos de um dos outros – o duneiro disse. – Só uns
amigos de uma vila aí que queriam ver as areias da especiaria.
Kynes se virou.
– Fremen!
Mas ele estava recordando as palavras da lenda: “Lisan al-
Gaib não se deixará enganar por nenhum ardil”.
– Já morreram, é quase certo, jovem siô – o duneiro disse. –
Não vamos falar mal deles.
Mas Paul ouviu a falsidade nas vozes de ambos, sentiu a
ameaça que colocara Halleck instintivamente na posição de
guarda.
Paul falou friamente:
– Um lugar terrível para morrer.
Sem se virar, Kynes disse:
– Quando Deus determina que uma criatura morra num
determinado lugar, Ele faz os desejos da criatura dirigirem-na
para aquele lugar.
Leto lançou um olhar duro para Kynes.
E Kynes, devolvendo o olhar, viu-se transtornado por um
fato que observara ali: Este duque estava mais preocupado com
os homens do que com a especiaria. Ele arriscou sua vida e a
vida de seu filho para salvar os homens. Deu pouca importância
à perda de uma lagarta cheia de especiaria. O risco que os
homens correram o deixou furioso. Um líder como esse poderia
inspirar uma lealdade fanática. Seria difícil derrotá-lo.
Contra sua própria vontade e contra todos os pareceres
anteriores, Kynes admitiu para si mesmo: Gosto deste duque.
A grandeza é uma experiência
transitória. Nunca é consistente. Depende
em parte da imaginação criadora de
mitos da humanidade. A pessoa que
experimenta a grandeza precisa perceber
o mito no qual está inserida. Precisa
refletir o que nela é projetado. E precisa
entender muito bem o sarcasmo. É isso
que a desatrela da crença em suas
próprias pretensões. O sarcasmo é tudo
que lhe permite se mover dentro de si
mesma. Sem essa qualidade, até mesmo a
grandeza ocasional destruirá um homem.
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

No salão de jantar da casa grande de Arrakina, as


luminárias suspensas se acenderam ao primeiro sinal de
escuridão. Emitiam sua luz amarela para o alto, derramando-a
sobre a cabeça do touro negro, com seus cornos
ensanguentados, e sobre a escura e cintilante pintura a óleo do
Velho Duque.
Abaixo daqueles talismãs, a roupa de mesa branca reluzia
ao redor dos reflexos da prataria polida dos Atreides, que tinha
sido arranjada de maneira precisa ao longo da mesa grande:
pequenos arquipélagos de talheres que esperavam ao lado de
copos de cristal, cada conjunto posicionado diante de uma
pesada cadeira de madeira. O candelabro central e clássico
continuava apagado, e sua corrente se enrolava em direção ao
teto e às sombras onde haviam escondido o mecanismo do
farejador de venenos.
Detendo-se à porta para inspecionar os arranjos, o duque
pensou no farejador de venenos e no que o aparelho significava
em sua sociedade.
Tudo faz parte de um padrão, ele pensou. É possível
compreender a nós mesmos pelo idioma: as descrições precisas
e delicadas das maneiras de administrar a morte à traição.
Alguém tentará o chaumurky esta noite, o veneno na bebida? Ou
será chaumas, o veneno na comida?
Balançou a cabeça.
Diante de cada prato sobre a mesa comprida havia um
cântaro de água. Pela estimativa do duque, havia água
suficiente ao longo da mesa para sustentar uma família
arrakina pobre durante mais de um ano.
De cada lado da porta onde ele se encontrava, havia
amplos lavatórios de azulejos decorados, verdes e amarelos.
Cada pia tinha seu cabide de toalhas. Era o costume, explicara
a governanta, que os convidados, ao entrar, mergulhassem
suas mãos na pia com toda a cerimônia, derramassem várias
taças de água no chão, secassem as mãos numa toalha e a
atirassem na poça que ia se formando e aumentando à porta.
Depois do jantar, os mendigos se reuniam lá fora para torcer as
toalhas e recolher a água.
Tão típico de um feudo dos Harkonnen, o duque pensou.
Todas as depravações concebíveis do espírito. Ele inspirou
profundamente, sentindo a fúria apertar seu estômago.
– O costume termina aqui! – ele murmurou.
Viu uma das criadas – uma das velhas encarquilhadas que
a governanta tinha recomendado – rondando a porta da
cozinha do outro lado do salão. O duque fez um sinal com a mão
erguida. Ela saiu das sombras, contornou a mesa rapidamente
e foi até ele, e o duque notou o rosto curtido, os olhos de azul
sobre azul.
– Milorde deseja alguma coisa? – Ela mantinha a cabeça
baixa, os olhos resguardados.
Ele apontou.
– Remova estas pias e toalhas.
– Mas... Bem-nascido... – Ela ergueu os olhos, boquiaberta.
– Conheço o costume! – ele gritou. – Leve estas pias para a
porta da frente. Enquanto estivermos comendo e até
terminarmos, todo mendigo que bater à porta poderá beber
uma taça cheia de água. Entendido?
O rosto curtido da mulher exibiu uma confusão de
emoções: consternação, raiva...
Com uma intuição repentina, Leto percebeu que ela devia
ter planejado vender a água retirada das toalhas pisoteadas e
arrancar alguns cobres dos coitados que batiam à porta.
Talvez aquilo também fosse um costume.
A face dele se anuviou e ele grunhiu:
– Vou postar um guarda para garantir que minhas ordens
sejam cumpridas ao pé da letra.
Ele deu meia-volta e tomou a passagem de volta ao Grande
Átrio. As lembranças rodavam em sua mente, como os
resmungos desdentados das velhas. Lembrou-se do mar
aberto e das ondas – dias de relva, e não de areia –, verões
deslumbrantes que haviam passado rapidamente por ele como
folhas num vendaval.
Tudo perdido.
Estou ficando velho, ele pensou. Senti a mão gélida de
minha mortalidade. E no quê? Na ganância de uma velha.
No Grande Átrio, lady Jéssica era o centro de um grupo
heterogêneo diante da lareira. Ali o fogo crepitava, lançando a
luz alaranjada e bruxuleante sobre joias, rendas e tecidos
caros. Ele reconheceu um fabricante de trajestiladores de
Cartago, um importador de equipamentos eletrônicos, um
fornecedor de água, cuja mansão de veraneio ficava perto de
sua usina na calota polar, um representante do Banco da
Guilda (esguio e distante, o sujeito); um negociante de peças de
reposição para o equipamento de mineração da especiaria,
uma mulher magra e de rosto austero, cujo serviço de
acompanhantes para os visitantes extraplanetários era
supostamente uma fachada para várias operações de
contrabando, espionagem e chantagem.
A maioria das mulheres ali no salão parecia ter como
molde um tipo específico: ornamental, trajado com apuro, uma
combinação estranha de sensualidade inatingível.
Mesmo que não fosse a anfitriã, Jéssica teria dominado o
grupo, ele pensou. Ela não usava joia alguma e tinha escolhido
cores quentes: um vestido longo, quase no mesmo tom das
chamas, e uma fita cor de terra que lhe prendia os cabelos cor
de bronze.
Percebeu que ela fizera aquilo para provocá-lo
discretamente, uma reprovação à recente afetação de frieza
por parte dele. Ela sabia muito bem que ele gostava mais dela
naqueles tons, que ele a via como um farfalhar de cores
quentes.
Ali perto, mas não parte integrante do grupo, estava
Duncan Idaho, com seu cintilante uniforme de gala, o rosto
encovado e indecifrável, os cabelos negros e encaracolados
bem penteados. Ele, que estivera com os fremen, havia sido
chamado de volta e tinha recebido ordens de Hawat: “Com o
pretexto de protegê-la, mantenha lady Jéssica sob vigilância
constante”.
O duque deu uma rápida olhada no recinto.
Lá estava Paul, no canto, cercado por um grupo adulador
da jovem richece arrakina, e, à parte entre eles, três oficiais da
Guarda. O duque reparou particularmente nas moças. Que
bom partido um herdeiro ducal daria. Mas Paul tratava todas
igualmente, com um ar de nobreza reservada.
O título lhe cairá bem, o duque pensou, e percebeu, com
um calafrio, que se tratava de mais um pensamento de morte.
Paul viu o pai à porta e evitou os olhos dele. Olhou ao redor,
para as aglomerações de convidados, com as mãos cheias de
joias a segurar drinques (e as inspeções discretas com
minúsculos farejadores de controle remoto). Vendo todos
aqueles rostos tagarelas, Paul sentiu uma aversão repentina.
Eram máscaras baratas presas a pensamentos supurados:
vozes que lutavam para afogar o silêncio clamoroso em cada
íntimo.
Estou de má vontade, ele pensou, e imaginou o que Gurney
teria a dizer sobre isso.
Ele sabia de onde vinha seu mau humor. Quisera não ter
ido à recepção, mas seu pai tinha sido firme:
– Você tem um lugar, uma posição a preservar. Já tem
idade suficiente para fazer isso. Já é quase um homem.
Paul viu o pai entrar pela porta, inspecionar a sala e depois
caminhar até o grupo que cercava lady Jéssica.
Quando Leto se aproximou do grupo de Jéssica, o
fornecedor de água estava perguntando:
– É verdade que o duque irá introduzir o controle
meteorológico?
Atrás do homem, o duque disse:
– Ainda não pensamos tão longe, senhor.
O homem se virou, revelando um rosto redondo e delicado,
intensamente bronzeado.
– Aah, o duque – ele disse. – Sentimos sua falta.
Leto olhou para Jéssica.
– Precisei fazer uma coisa. – Ele voltou sua atenção para o
fornecedor de água, explicou o que tinha mandado fazer com
os lavatórios e acrescentou: – No que me diz respeito, esse
velho costume acaba aqui.
– É uma ordem ducal, milorde? – o homem perguntou.
– Deixo isso a cargo de sua própria... ah... consciência – o
duque disse. Ele se virou, notando que Kynes havia se juntado
ao grupo.
Uma das mulheres comentou:
– Acho que se trata de um gesto muito generoso: dar a
água para os...
Alguém a calou com um psiu.
O duque olhou para Kynes, reparando que o planetólogo
vestia um uniforme castanho-escuro à moda antiga, com as
dragonas de Funcionário Público Imperial e uma minúscula
lágrima dourada no colarinho a indicar a patente.
O fornecedor de água perguntou, com voz zangada:
– O duque estaria criticando nosso costume?
– Esse costume mudou – Leto disse. Cumprimentou Kynes
com um aceno de cabeça, reparou na carranca de Jéssica e
pensou: A carranca não lhe cai bem, mas aumentará os boatos
de que estamos estremecidos.
– Com a licença do duque – o fornecedor de água disse –,
eu tenho mais algumas perguntas sobre costumes.
Leto ouviu o repentino tom untuoso na voz do homem,
notou o silêncio atento do grupo, a maneira como, por toda a
sala, as cabeças começavam a se virar na direção deles.
– Não está quase na hora do jantar? – Jéssica perguntou.
– Mas nosso convidado tem algumas perguntas a fazer –
Leto disse. E ele olhou para o fornecedor de água, vendo um
homem de rosto redondo, com olhos grandes e lábios grossos,
lembrando-se do memorando de Hawat: “... e o tal fornecedor
de água é um homem que precisamos vigiar: Lingar Bewt, não
esqueça o nome. Os Harkonnen o usavam, mas nunca o
controlaram completamente.
– Os costumes relacionados à água são interessantes –
Bewt disse, e havia um sorriso em seu rosto. – Estou curioso
para saber o que pretende fazer com a estufa anexa a esta casa.
Pretende continuar esfregando-a na cara das pessoas...
milorde?
Leto controlou a raiva e encarou o homem. Os
pensamentos passaram rápido por sua mente. Era preciso
coragem para desafiá-lo em seu próprio castelo ducal,
principalmente agora que tinham a assinatura de Bewt num
contrato de vassalagem. O ato também exigira uma medida de
conhecimento do próprio poder. A água, de fato, era poder ali.
Se, por exemplo, as instalações aquíferas fossem minadas,
prontas para serem destruídas a um mero sinal... O homem
parecia capaz de fazer algo assim. A destruição das instalações
aquíferas poderia muito bem destruir Arrakis. Poderia muito
bem ser a espada que o tal Bewt segurava sobre a cabeça dos
Harkonnen.
– Milorde o duque e eu temos outros planos para a estufa –
Jéssica disse. Sorriu para Leto. – Pretendemos mantê-la,
certamente, mas apenas para guardá-la em nome do povo de
Arrakis. É nosso sonho que, um dia, o clima de Arrakis possa
ser suficientemente alterado para que aquelas plantas sejam
cultivadas em qualquer lugar ao ar livre.
Bendita seja, Leto pensou. Quero ver nosso fornecedor de
água engolir essa.
– Seu interesse na água e no controle atmosférico é óbvio –
disse o duque. – Aconselho-o a diversificar seus negócios. Um
dia, a água não será um artigo de luxo em Arrakis.
E ele pensou: Hawat tem de redobrar seus esforços para se
infiltrar na organização do tal Bewt. E precisamos começar a
construir instalações aquíferas de reserva imediatamente.
Nenhum homem vai segurar uma espada sobre minha cabeça.
Bewt fez que sim, com o sorriso ainda estampado na cara.
– Um sonho louvável, milorde. – Ele deu um passo atrás.
A expressão no rosto de Kynes chamou a atenção de Leto.
O homem estava olhando fixamente para Jéssica. Parecia
transfigurado, como um homem apaixonado... ou tomado por
um transe religioso.
Os pensamentos de Kynes, por fim, foram sobrepujados
pelas palavras da profecia: “E eles também terão vosso sonho
mais precioso”. Falou diretamente a Jéssica:
– Você nos traz o encurtamento do caminho?
– Ah, dr. Kynes – disse o fornecedor de água. – Voltou de
suas perambulações com a gentalha fremen. Que bondade a
sua.
Kynes lançou um olhar inescrutável para Bewt e disse:
– Dizem, no deserto, que a posse de uma grande
quantidade de água pode acometer um homem com uma
imprudência fatal.
– Têm muitos ditados estranhos no deserto – Bewt
replicou, mas a voz dele denunciava inquietação.
Jéssica foi até Leto, passou a mão por baixo do braço dele,
para ganhar alguns instantes e se acalmar. Kynes tinha dito: “...
o encurtamento do caminho”. No idioma antigo, a expressão se
traduzia como “Kwisatz Haderach”. A estranha pergunta do
planetólogo parecia ter passado despercebida para os demais,
e agora Kynes se inclinava para ouvir melhor uma faceirice dita
em voz baixa por uma das consortes.
Kwisatz Haderach, pensou Jéssica. Será que nossa
Missionaria Protectora também plantou essa lenda aqui? O
pensamento reavivou a esperança secreta que ela nutria para
Paul. Ele poderia ser o Kwisatz Haderach. Poderia ser.
O representante do Banco da Guilda travara conversa com
o fornecedor de água, e a voz de Bewt se alçou sobre o
burburinho das conversas:
– Muitas pessoas tentaram mudar Arrakis.
O duque viu como as palavras pareceram transfixar Kynes,
fazendo o planetólogo se empertigar e afastar-se da coquete.
No silêncio repentino que se seguiu, um soldado da
guarda, com o uniforme da infantaria, pigarreou atrás de Leto
e disse:
– O jantar está servido, milorde.
O duque dirigiu um olhar intrigado para Jéssica.
– O costume aqui é o anfitrião e a anfitriã acompanharem
os convidados até a mesa – ela disse, e sorriu. – Mudaremos
esse também, milorde?
Ele falou com frieza:
– Parece ser um costume excelente. Vamos mantê-lo por
ora.
É preciso manter a ilusão de que a suspeita de traição recai
sobre ela, ele pensou. Olhou para os convidados que desfilavam
diante deles. Quem de vocês acredita nessa mentira?
Jéssica, sentindo o distanciamento do duque, ficou
admirada com aquilo, como fizera frequentemente na última
semana. Ele age como um homem em luta consigo mesmo, ela
pensou. Será que foi porque agi tão rápido para organizar este
jantar? Mas ele sabe como é importante começar a misturar
nossos homens e oficiais com os habitantes daqui no plano
social; somos pai e mãe substitutos para todos eles. Nada
reafirma tanto esse fato como este tipo de atividade social.
Leto, observando o desfile de convidados, lembrou-se do
que Thufir Hawat havia dito quando o informaram sobre o
jantar:
– Sire! Eu o proíbo.
Um sorriso soturno roçou os lábios do duque. Tinha sido
uma cena e tanto. E como o duque continuasse inflexível
quanto a comparecer ao jantar, Hawat sacudira a cabeça:
– Tenho um péssimo pressentimento a respeito disso,
milorde – ele havia dito. – As coisas acontecem rápido demais
em Arrakis. Não é o estilo dos Harkonnen. Não é mesmo.
Paul passou pelo pai de braços dados com uma moça meia
cabeça mais alta que ele. O rapaz lançou um olhar
impertinente para o pai, assentiu com a cabeça para algo que a
moça disse.
– O pai dela fabrica trajestiladores – Jéssica comentou.
– Disseram-me que só um idiota se deixaria apanhar nas
profundezas do deserto vestindo um dos trajes do homem.
– Quem é o homem de rosto marcado à frente de Paul? – o
duque perguntou. – Não o reconheço.
– Um acréscimo de última hora à lista de convidados – ela
sussurrou. – Gurney cuidou de tudo. Contrabandista.
– Gurney cuidou disso?
– A meu pedido. Foi liberado por Hawat, mas achei que
Thufir se fez de difícil. O contrabandista se chama Tuek,
Esmar Tuek. É uma autoridade entre sua gente. Todos o
conhecem aqui. Já jantou em várias casas.
– Por que está aqui?
– Todos os presentes farão essa pergunta – ela disse. –
Tuek irá semear a dúvida e a desconfiança só por estar aqui.
Ele também fará saber que você está preparado para validar
suas ordens quanto à proibição da propina, impondo-as
também do lado dos contrabandistas. Esse foi o ponto de que
Hawat pareceu gostar.
– Não tenho certeza se eu gosto. – Ele cumprimentou com
a cabeça um casal que passava, viu que restavam apenas
alguns convidados a precedê-los. – Por que não convidou
alguns fremen?
– E Kynes? – ela perguntou.
– Sim, Kynes – ele disse. – Preparou alguma outra
surpresinha para mim? – Ele a conduziu pelo braço atrás da
procissão.
– Todo o resto é extremamente convencional – ela disse.
E pensou: Meu querido, não vê que esse contrabandista
controla naves rápidas, que ele pode ser subornado?
Precisamos de uma saída livre, uma porta para escapar de
Arrakis se tudo o mais der errado.
Quando eles entraram no salão de jantar, ela soltou o
braço dele e deixou Leto acomodá-la na cadeira. Ele foi até sua
cabeceira da mesa. Um soldado de infantaria guardava o lugar
para ele. Os outros se acomodaram com um farfalhar de
tecidos, um arrastar de cadeiras, mas o duque continuou de pé.
Fez um sinal com a mão, e os guardas com os uniformes de
infantaria que cercavam a mesa recuaram um passo, em
posição de sentido.
Um silêncio apreensivo baixou sobre a sala.
Jéssica, correndo os olhos por toda a extensão da mesa,
viu um leve tremor nos cantos da boca de Leto, notou o
sombrio rubor de raiva em sua face. O que o deixou irritado?,
ela se perguntou. Certamente não o fato de eu ter convidado o
contrabandista.
– Há quem questione minha decisão de mudar o costume
dos lavatórios – Leto disse. – É minha maneira de dizer a vocês
que muitas coisas irão mudar.
Um silêncio constrangedor baixou sobre a mesa.
Acham que ele está bêbado, Jéssica pensou.
Leto ergueu seu cântaro de água, segurou-o bem alto,
onde os raios das luzes suspensas encontravam no recipiente
um reflexo.
– Como Chevalier do Imperium, portanto – ele disse –,
faço-lhes um brinde.
Os demais pegaram seus cântaros e todos os olhos se
concentraram no duque. Na súbita quietude, uma luz suspensa
flutuou ligeiramente, levada por um brisa errante proveniente
do corredor da cozinha. Sombras brincaram nos traços
aquilinos do duque.
– Aqui estou e aqui fico! – ele exclamou.
As pessoas abortaram o movimento de levar os cântaros
aos lábios. Detiveram-se, pois o duque continuou de braço
erguido.
– Meu brinde é uma daquelas máximas tão caras a nossos
corações: “Os negócios geram o progresso! A fortuna a tudo
toca!”.
Ele provou sua água.
Os outros se juntaram a ele. Trocaram olhares intrigados.
– Gurney! – chamou o duque.
De um recesso na extremidade da sala onde se encontrava
Leto veio a voz de Halleck:
– Aqui, milorde.
– Toque alguma coisa, Gurney.
Um acorde menor do baliset flutuou no ar, vindo do
recesso. Os criados, autorizados por um gesto do duque,
começaram a colocar os pratos sobre a mesa: assado de lebre
do deserto ao molho cepeda, aplomage siriano, chukka na
redoma, café com mélange (o odor fragrante de canela da
especiaria percorreu toda a mesa), um verdadeiro ganso de
panela, servido com um vinho frisante caladanino.
E, mesmo assim, o duque continuava de pé.
Enquanto os convidados aguardavam, dividindo sua
atenção entre os pratos diante deles e o duque ainda de pé,
Leto disse:
– Antigamente, era obrigação do anfitrião entreter os
convidados com seus próprios talentos. – Os nós de seus dedos
ficaram brancos, tamanha a força com que seguravam o
cântaro de água. – Não sei cantar, mas ofereço-lhes as palavras
da canção de Gurney. Pensem nela como mais um brinde, um
brinde a todos que morreram para nos trazer até aqui.
Movimentos de desconforto se fizeram ouvir na mesa.
Jéssica baixou rapidamente o olhar, para ver as pessoas
sentadas mais perto dela: havia o fornecedor de água de rosto
redondo e sua mulher, o pálido e austero representante do
Banco da Guilda (parecia um espantalho de boca miúda, com
os olhos fixos em Leto), o rude Tuek, de rosto marcado, com os
olhos de azul sobre azul voltados para baixo.
– Em revista, amigos: soldados que dispensam revista –
entoou o duque. – Para a sorte são fardo de dor e dinares. Sua
almas carcomem argênteos colares. Em revista, amigos:
soldados que dispensam revista. Cada qual um pontinho de
tempo inocente. Com eles passa o fascínio da fortuna. Em
revista, amigos: soldados que dispensam revista. Findo nosso
tempo em ricto sorridente. Passaremos nós o fascínio da
fortuna.
O duque deixou sua voz morrer no último verso, bebeu
longamente de seu cântaro de água, devolveu-o à mesa com
estrondo. A água transbordou e molhou a roupa branca.
Os demais beberam em constrangido silêncio.
O duque voltou a erguer sua água e, dessa vez, verteu no
chão o meio cântaro que lhe restava, sabendo que as outras
pessoas da mesa teriam de fazer a mesma coisa.
Jéssica foi a primeira a seguir o exemplo.
Houve um momento de paralisia antes de os demais
começarem a esvaziar seus cântaros. Jéssica viu como Paul,
sentado perto do pai, observava as reações a seu redor. Viu-se
também fascinada pelo que as ações dos convidados
revelavam, principalmente as das mulheres. Era água limpa e
potável, e não algo já descartado numa toalha ensopada. A
relutância em simplesmente jogá-la fora ficava patente nas
mãos trêmulas, nas reações retardadas, no riso nervoso... e na
obediência violenta à imposição. Uma mulher deixou cair seu
cântaro e desviou os olhos quando o homem que a
acompanhava o apanhou.
Kynes, porém, foi quem mais chamou a atenção dela. O
planetólogo hesitou, em seguida esvaziou seu cântaro num
recipiente que trazia sob o paletó. Ele sorriu para Jéssica ao
surpreendê-la a observá-lo, ergueu o cântaro vazio num brinde
silencioso. Seu ato em nada pareceu envergonhá-lo.
A música de Halleck ainda tomava a sala, mas tinha
deixado para trás o tom menor e agora era cadenciada e jovial,
como se ele tentasse levantar os ânimos.
– Que o jantar comece – o duque disse, e afundou em sua
cadeira.
Ele está zangado e inseguro, Jéssica pensou. A perda da
lagarta-usina o atingiu mais fundo do que deveria. Tem de ser
algo mais do que a perda. Ele age como um homem
desesperado. Ela ergueu seu garfo, esperando que o gesto
escondesse sua própria amargura. Por que não? Ele está
desesperado.
Lentamente, a princípio, depois com crescente animação,
o jantar seguiu seu curso. O fabricante de trajestiladores
elogiou a escolha de Jéssica quanto ao chef e ao vinho.
– Trouxemos ambos de Caladan – ela disse.
– Soberbo! – ele disse, provando o chukka. – Simplesmente
soberbo! E nem uma pitada de mélange na carne. A gente
acaba se cansando da especiaria em tudo.
O representante do Banco da Guilda olhou para Kynes, do
outro lado da mesa.
– Fiquei sabendo, dr. Kynes, que mais uma lagarta-usina
foi perdida por causa de um verme.
– As notícias voam – o duque disse.
– Então é verdade? – o banqueiro perguntou, voltando sua
atenção para Leto.
– Claro que é verdade! – o duque falou, ríspido. – O maldito
caleche desapareceu. Uma coisa daquele tamanho não poderia
desaparecer!
– Quando o verme chegou, não havia nada para recolher a
lagarta – Kynes disse.
– Não poderia! – repetiu o duque.
– Ninguém viu o caleche partir? – o banqueiro perguntou.
– Os vigias costumam ficar de olho na areia – Kynes disse. –
Sua principal preocupação é a trilha de verme. A tripulação de
um caleche geralmente é formada por quatro homens: dois
pilotos e dois atracadores assalariados. Se um... ou até mesmo
dois desses tripulantes estivessem a serviço dos inimigos do
duque...
– Aaah, entendi – falou o banqueiro. – E o senhor, como
Juiz da Transição, o senhor impugnará isso?
– Terei de avaliar com cuidado minha posição – Kynes
disse – e certamente não discutirei tal coisa à mesa. – E ele
pensou: Essa sombra esquelética! Ele sabe que esse é o tipo de
infração que fui instruído a ignorar.
O banqueiro sorriu, voltou sua atenção para a comida.
Jéssica lembrou-se de uma aula a que assistira na escola
Bene Gesserit. O assunto era espionagem e contraespionagem.
A professora era uma Reverenda Madre gorducha e de cara
feliz, e sua voz alegre contrastava estranhamente com o
assunto em pauta.
Uma coisa a se destacar a respeito de qualquer escola de
espionagem e/ou contraespionagem é a semelhança no padrão
de reações primárias de todas as pessoas formadas por ela.
Toda disciplina fechada deixa nos alunos sua marca, seu
padrão. Esse padrão é suscetível à análise e à predição.
Agora, os padrões motivacionais são semelhantes em todos
os espiões. Ou seja: certos tipos de motivações são semelhantes,
apesar das escolas diferentes e dos objetivos opostos. Primeiro,
vocês irão estudar como separar esse elemento para análise: no
início, por meio de padrões de interrogatório que revelam a
orientação interior dos interrogadores; segundo, pela
observação minuciosa da orientação de pensamento-linguagem
dos analisados. Verão, é claro, que é razoavelmente simples
determinar os idiomas maternos de seus alvos, tanto pela
inflexão da voz quanto pelo padrão da fala.
E agora, sentada à mesa com seu filho, seu duque e seus
convidados, ouvindo o representante do Banco da Guilda falar,
Jéssica sentiu um calafrio ao perceber uma coisa: o homem era
um agente dos Harkonnen. Ele exibia o padrão de fala de Giedi
Primo – disfarçado e discreto, mas exposto à percepção
treinada de Jéssica como se o homem tivesse se anunciado.
Isso significa que a própria Guilda está contra a Casa
Atreides?, ela se perguntou. O pensamento a deixou
consternada, e ela disfarçou sua emoção pedindo um novo
prato, sem deixar de ouvir as palavras do homem, esperando
que ele deixasse escapar seu intento. Agora ele desviará a
conversa para algo aparentemente inocente, mas com
implicações sinistras, ela disse consigo mesma. É o padrão dele.
O banqueiro engoliu a comida, bebericou o vinho, sorriu
para algo que a mulher a sua direita lhe disse. Pareceu escutar
por um momento um homem na outra ponta da mesa que
explicava ao duque que as plantas nativas de Arrakis não
tinham espinhos.
– Gosto de observar as aves de Arrakis – disse o banqueiro,
dirigindo suas palavras a Jéssica. – Todas as nossas aves, claro,
comem carniça, e muitas vivem sem água, pois se tornaram
consumidoras de sangue.
A filha do fabricante de trajestiladores, sentada entre Paul
e o pai do garoto na outra ponta da mesa, desfigurou seu belo
rosto franzindo o cenho e disse:
– Ah, Suu-Suu, você diz coisas tão desagradáveis.
O banqueiro sorriu.
– Chamam-me Suu-Suu porque sou o consultor financeiro
do Sindicato dos Vendedores Ambulantes de Água. – E, como
Jéssica continuasse a olhar para ele sem fazer qualquer
comentário, ele acrescentou: – Por causa do pregão dos
vendedores de água: “Suu-Suu Suuk!”. – E ele imitou o chamado
com tamanha exatidão que muita gente em volta da mesa se
pôs a rir.
Jéssica ouviu o tom jactancioso da voz, mas reparou
principalmente que a moça havia falado no momento certo: era
uma cena arranjada. A jovem tinha dado ao banqueiro o
pretexto para dizer o que disse. Jéssica olhou para Lingar
Bewt. O magnata da água estava de cara amarrada,
concentrado em seu jantar. Ocorreu a Jéssica que o banqueiro
tinha dito: “Eu também controlo a fonte suprema de poder em
Arrakis: a água”.
Paul percebera a mentira na voz de sua companheira de
jantar, viu que sua mãe seguia a conversa com a intensidade
típica das Bene Gesserit. Por impulso, ele decidiu entrar no
jogo e prolongar a conversa. Dirigiu-se ao banqueiro:
– Está querendo dizer, senhor, que essas aves são
canibais?
– Que pergunta mais estranha, jovem mestre – disse o
banqueiro. – Eu disse apenas que as aves bebem sangue. Não
precisa ser o sangue de sua própria espécie, não é mesmo?
– Não foi uma pergunta estranha – Paul disse, e Jéssica
notou, nítido na voz dele, o tom irascível de réplica
característico de seu treinamento. – Muitas pessoas cultas
sabem que a pior competição possível para um organismo
jovem vem de sua própria espécie. – Espetou o garfo
deliberadamente num pedaço de comida do prato de sua
companheira, comeu-o. – Estão comendo do mesmo prato.
Têm as mesmas necessidades básicas.
O banqueiro se empertigou e olhou feio para o duque.
– Não cometa o erro de achar que meu filho é uma criança –
disse o duque. E sorriu.
Jéssica olhou ao redor da mesa, viu que Bewt tinha se
animado e que Kynes e o contrabandista, Tuek, sorriam
largamente.
– É uma lei da ecologia – Kynes disse – que o jovem mestre
parece entender muito bem. A luta entre os elementos da vida
é a luta pela energia livre do sistema. O sangue é uma fonte de
energia eficiente.
O banqueiro baixou seu garfo e falou, com voz zangada:
– Dizem que a escória fremen bebe o sangue de seus
mortos.
Kynes balançou a cabeça e falou num tom professoral:
– Não é o sangue, senhor. Mas toda a água de um homem,
em última instância, pertence a sua gente, a sua tribo. É uma
necessidade quando se vive perto da Grande Chã. Toda a água
é preciosa ali, e o corpo humano tem aproximadamente
setenta por cento de seu peso composto por água. O morto,
certamente, não precisará mais da água.
O banqueiro apoiou as duas mãos na mesa, de um lado e do
outro de seu prato, e Jéssica pensou que ele estava prestes a se
levantar e sair, furioso.
Kynes olhou para Jéssica.
– Perdoe-me, milady, por tratar de um assunto tão
desagradável à mesa, mas o que se dizia era mentira e foi
necessário esclarecer as coisas.
– Você anda há tanto tempo com os fremen que perdeu
todo o tato – o banqueiro disse entre dentes.
Kynes olhou para ele com toda a calma, estudou o rosto
pálido e trêmulo.
– Está me desafiando, senhor?
O banqueiro ficou petrificado. Engoliu em seco e falou com
toda a formalidade:
– Claro que não. Não insultaria dessa maneira nossos
anfitriões.
Jéssica ouviu o medo na voz do homem, viu o pavor no
rosto dele, em sua respiração, na pulsação de uma veia em sua
têmpora. O homem tinha medo de Kynes!
– Nossos anfitriões são plenamente capazes de decidir por
si mesmos se foram ou não insultados – Kynes disse. – São
pessoas de coragem que sabem o que é a defesa da honra.
Somos todos testemunhas de sua coragem pelo fato de
estarem aqui... agora... em Arrakis.
Jéssica viu que Leto estava adorando aquilo. Ao contrário
da maioria dos convidados. As pessoas em volta da mesa
estavam preparadas para sair às pressas, com as mãos fora de
vista, sob a mesa. As duas exceções dignas de nota eram Bewt,
que sorria ostensivamente diante da derrota do banqueiro, e o
contrabandista, Tuek, que parecia esperar uma deixa de
Kynes. Jéssica viu que Paul olhava, admirado, para Kynes.
– E então? – Kynes disse.
– Não quis ofender ninguém – o banqueiro murmurou. – Se
alguém se ofendeu, que aceite então minhas desculpas.
– Desculpas aceitas – Kynes disse. Ele olhou para Jéssica e
voltou a comer, como se nada tivesse acontecido.
Jéssica viu que o contrabandista também relaxou.
Reparou numa coisa: o homem se mostrara, em todos os
aspectos, um assistente pronto para ajudar Kynes. Havia
algum tipo de acordo entre Kynes e Tuek.
Leto brincou com o garfo, olhou intrigado para Kynes. Os
modos do ecólogo indicavam uma mudança de atitude em
relação à Casa Atreides. Kynes parecera mais imparcial
durante a viagem pelo deserto.
Jéssica fez sinal para que trouxessem mais um prato e
bebida. Os serviçais apareceram com langues de lapins de
garenne, vinho tinto e um molho de levedo-cogumelos como
acompanhamento.
Aos poucos, a conversa do jantar foi retomada, mas
Jéssica ouvia a agitação nos diálogos, uma certa irritação, e viu
que o banqueiro comia num silêncio taciturno. Kynes o teria
matado sem hesitar, ela pensou. E percebeu que havia uma
atitude despreocupada em relação ao ato de matar nos modos
de Kynes. Ele matava com indiferença, e ela imaginou que se
tratava de uma característica dos fremen.
Jéssica virou-se para o fabricante de trajestiladores a sua
esquerda e disse:
– Não me canso de admirar a importância da água em
Arrakis.
– É muito importante – ele concordou. – Que prato é este?
É delicioso.
– Línguas de coelhos silvestres num molho especial – ela
disse. – Uma receita muito antiga.
– Quero a receita – o homem disse.
Ela assentiu.
– Vou providenciá-la.
Kynes olhou para Jéssica e disse:
– O recém-chegado a Arrakis geralmente subestima a
importância da água por aqui. Estamos lidando, veja bem, com
a Lei do Mínimo.
Ela percebeu, pelo timbre da voz dele, que Kynes a estava
colocando à prova e disse:
– O crescimento é limitado pelo recurso presente em
menor quantidade. E, naturalmente, a condição menos
favorável controla a taxa de crescimento.
– É raro encontrar membros de uma Casa Maior a par de
problemas planetológicos – Kynes disse. – A água é a condição
menos favorável à vida em Arrakis. E não vamos nos esquecer
de que o próprio crescimento pode produzir condições
desfavoráveis, a menos que seja tratado com extremo cuidado.
Jéssica pressentiu uma mensagem oculta nas palavras de
Kynes, mas não conseguiu decifrá-la.
– Crescimento – ela disse. – Está querendo dizer que
Arrakis pode ter um ciclo da água regular para sustentar a vida
humana em condições mais favoráveis?
– Impossível! – exclamou o magnata da água.
Jéssica voltou sua atenção para Bewt.
– Impossível?
– Impossível em Arrakis – ele disse. – Não deem ouvidos a
esse sonhador. Todas as provas obtidas em laboratório o
contradizem.
Kynes olhou para Bewt, e Jéssica notou que as outras
conversas em volta da mesa tinham cessado agora que as
pessoas se concentravam naquele novo diálogo.
– As provas laboratoriais costumam ignorar um fato muito
simples – Kynes disse. – E o fato é que estamos lidando com
questões que têm origem e existem lá fora, onde as plantas e os
animais levam uma vida normal.
– Normal! – Bewt desdenhou. – Nada em Arrakis é normal!
– Ao contrário – Kynes retrucou. – É possível estabelecer
aqui certos equilíbrios autossustentáveis. Basta entender os
limites do planeta e as pressões que agem sobre ele.
– Nunca acontecerá – Bewt disse.
O duque percebeu uma coisa de repente, o ponto exato em
que a atitude de Kynes tinha mudado: quando Jéssica falara
em guardar as plantas da estufa para Arrakis.
– O que seria preciso fazer para estabelecer o sistema
autossustentável, dr. Kynes? – Leto perguntou.
– Se conseguirmos envolver três por cento do elemento
vegetal de Arrakis na formação de compostos carbônicos
alimentares, teremos dado início ao sistema cíclico – Kynes
disse.
– A água é o único problema? – o duque perguntou. Ele
percebeu o entusiasmo de Kynes, viu-se contagiado.
– A água ofusca os outros problemas – Kynes disse. – Este
planeta tem muito oxigênio sem as costumeiras características
concomitantes: vida vegetal difundida e grandes fontes de
dióxido de carbono livre, criadas por certos fenômenos, como
os vulcões. Ocorrem reações químicas incomuns em áreas de
grande superfície por aqui.
– Você tem projetos-piloto? – perguntou o duque.
– Tivemos muito tempo para desenvolver o Efeito Tansley:
experimentos limitados a pequenas unidades e de base
amadorística dos quais minha ciência pode agora extrair seus
fatos empíricos – Kynes disse.
– Não há água suficiente – Bewt disse. – Simplesmente não
há água suficiente.
– Mestre Bewt é um especialista em água – Kynes disse. Ele
sorriu, voltou a se concentrar em seu jantar.
O duque fez um gesto incisivo e descendente com a mão
direita e gritou:
– Não! Quero uma resposta! Há água suficiente, dr. Kynes?
Kynes fitou o próprio prato.
Jéssica assistiu ao teatro de emoções no rosto dele. Ele
disfarça bem, ela pensou, mas ela o tinha registrado agora e
entendeu que ele se arrependia de ter falado.
– Há água suficiente? – o duque indagou.
– Pode ser... que sim – Kynes disse.
Está simulando a incerteza!, Jéssica pensou.
Com seu mais profundo sentido para a verdade, Paul
captou o motivo subjacente e teve de recorrer a todo o seu
treinamento para disfarçar sua empolgação. Há água
suficiente! Mas Kynes não quer que saibam disso.
– Nosso planetólogo tem muitos sonhos interessantes –
Bewt disse. – Ele sonha como os fremen, com profecias e
messias.
O riso soou em pontos estranhos da mesa. Jéssica os
assinalou: o contrabandista, a filha do fabricante de
trajestiladores, Duncan Idaho, a dona do misterioso serviço de
acompanhantes.
As tensões, aqui, estão distribuídas de maneira curiosa esta
noite, Jéssica pensou. Há muita coisa acontecendo sem que eu
saiba. Terei de arranjar novas fontes de informações.
O duque deixou seu olhar passar de Kynes a Bewt, e de
Bewt a Jéssica. Sentiu-se estranhamente abandonado, como se
alguma coisa importantíssima tivesse lhe escapado.
– Pode ser – ele murmurou.
Kynes falou rapidamente:
– Talvez devamos discutir isso em outra ocasião, milorde.
São tantas...
O planetólogo foi interrompido quando um soldado com o
uniforme Atreides entrou às pressas pela porta de serviço, foi
liberado pelos guardas e correu para o lado do duque. O
homem se inclinou e sussurrou ao pé do ouvido de Leto.
Jéssica reconheceu a insígnia da unidade de Hawat na
boina do soldado e resistiu à apreensão. Dirigiu-se à
companhia feminina do fabricante de trajestiladores: uma
mulher diminuta e de cabelos escuros, com cara de boneca e
um vestígio de prega epicântica nos olhos.
– Mal tocou seu jantar, minha cara – Jéssica disse. – Devo
pedir algo para você?
A mulher olhou para o fabricante de trajestiladores antes
de responder:
– Não estou com muita fome.
Abruptamente, o duque ficou de pé ao lado de seu soldado,
falou num tom ríspido de comando:
– Fiquem sentados, todos vocês. Terão de me perdoar, mas
surgiu uma questão que exige minha atenção pessoal. – Deu
um passo para o lado. – Paul, seja o anfitrião em meu lugar,
sim?
Paul ficou de pé, querendo perguntar por que o pai tinha
de partir, sabendo que tinha de desempenhar seu papel em
grande estilo. Deu a volta até a cadeira de seu pai e sentou-se.
O duque virou-se para o recesso onde Halleck estava
sentado e disse:
– Gurney, por favor, tome o lugar de Paul à mesa. Não
podemos ter um número ímpar de pessoas. Quando o jantar
acabar, pode ser que eu peça a você que leve Paul para o campo
do P. C. Aguarde meu contato.
Halleck deixou o recesso vestindo o uniforme de gala, e sua
feiura disforme parecia fora de lugar naqueles atavios
cintilantes. Ele encostou o baliset na parede, foi até a cadeira
que Paul até então ocupara e se sentou.
– Não há por que se alarmarem – o duque disse –, mas
tenho de pedir que ninguém saia até nossa guarda dizer que é
seguro. Vocês estarão em perfeita segurança desde que fiquem
aqui, e resolveremos esse pequeno problema muito em breve.
Paul reconheceu as palavras codificadas na mensagem de
seu pai: guarda-seguro-segurança-breve. O problema era de
segurança, e não violência. Viu que sua mãe decodificara a
mesma mensagem. Os dois relaxaram.
O duque acenou brevemente com a cabeça, girou nos
calcanhares e saiu pela porta de serviço, acompanhado de seu
soldado.
Paul disse:
– Por favor, continuemos o jantar. Creio que o dr. Kynes
estava falando sobre a água.
– Podemos discutir isso numa outra ocasião? – Kynes
perguntou.
– Mas é claro – Paul disse.
E Jéssica notou, com orgulho, a dignidade de seu filho, a
impressão madura de confiança.
O banqueiro pegou seu cântaro de água e gesticulou com
ele na direção de Bewt.
– Nenhum de nós consegue superar mestre Lingar Bewt no
floreado das frases. Pode-se quase supor que ele aspirava à
condição de Casa Maior. Vamos, mestre Bewt, faça um brinde.
Talvez você tenha um pouco de sabedoria a oferecer para o
menino que deve ser tratado como um homem.
Jéssica cerrou os dedos da mão direita por baixo da mesa.
Viu Halleck trocar com Idaho um sinal, viu os soldados da
guarda ao longo das paredes colocarem-se em posição de
máxima defesa.
Bewt lançou um olhar venenoso para o banqueiro.
Paul olhou de relance para Halleck, assimilou as posições
defensivas de seus guardas, olhou para o banqueiro até o
homem baixar seu cântaro de água. Disse:
– Certa vez, em Caladan, vi quando encontraram o corpo
de um pescador afogado. Ele...
– Afogado? – fez a filha do fabricante de trajestiladores.
Paul hesitou, e em seguida:
– Sim. Imerso em água até morrer. Afogado.
– Que maneira interessante de morrer – ela murmurou.
O sorriso de Paul esfriou, e ele voltou sua atenção para o
banqueiro.
– O interessante a respeito desse homem eram os
ferimentos em seus ombros, provocados pelos cravos das
botas de um outro pescador. Ele e outros pescadores estavam
num barco – um veículo que trafega sobre a água – que
naufragou... afundou sob a água. Um outro pescador que
ajudou a recuperar o corpo disse ter visto marcas como as
feridas daquele homem várias vezes. Indicavam que um outro
pescador que estava se afogando tinha tentado pisar nos
ombros do pobre coitado, na tentativa de alcançar a
superfície... de alcançar o ar.
– E por que isso é interessante? – o banqueiro perguntou.
– Por causa de uma observação feita por meu pai na época.
Ele disse que o homem que está se afogando e sobe nos nossos
ombros para se salvar é compreensível... exceto quando vemos
isso acontecer na sala de estar. – Paul hesitou o suficiente para
que o banqueiro visse o que estava por vir, e então: – E, devo
acrescentar, exceto quando o vemos acontecer à mesa de
jantar.
Um silêncio repentino tomou o aposento.
Isso foi temerário, Jéssica pensou. Esse banqueiro talvez
tenha posição social suficiente para desafiar meu filho. Ela viu
que Idaho estava pronto para agir imediatamente. Os soldados
da guarda estavam alertas. Gurney Halleck tinha seus olhos
fixos nos homens diante dele.
– Ro-ro-rooou! – fez o contrabandista, Tuek, com a cabeça
para trás, gargalhando com total espontaneidade.
Sorrisos nervosos apareceram por toda a mesa.
Bewt ostentava um sorriso largo.
O banqueiro tinha empurrado sua cadeira para trás e
olhava ferozmente para Paul.
Kynes disse:
– Quem diz a um Atreides o que quer, ouve o que não quer.
– É costume dos Atreides insultar seus convidados? –
indagou o banqueiro.
Antes que Paul pudesse responder, Jéssica se inclinou e
disse:
– Senhor! – E ela pensou: Temos de descobrir qual é o jogo
dessa criatura dos Harkonnen. Estaria aqui para atentar contra
a vida de Paul? Teria a ajuda de alguém? – Meu filho exibe um
traje qualquer e o senhor alega que lhe foi feito sob medida? –
Jéssica perguntou. – Que revelação fascinante. – Ela deslizou a
mão pela perna até a dagacris que trazia numa bainha presa à
panturrilha.
O banqueiro voltou seu olhar feroz para Jéssica. Os
olhares se desviaram de Paul, e ela o viu se desvencilhar da
mesa, preparando-se para agir. Ele tinha se concentrado na
palavra código: traje. “Prepare-se para a violência.”
Kynes dirigiu um olhar especulativo para Jéssica e, com a
mão, fez um sinal discreto para Tuek.
O contrabandista levantou-se de supetão e ergueu seu
cântaro.
– Farei um brinde – ele disse. – Ao jovem Paul Atreides,
ainda um rapazola na aparência, mas um homem no agir.
Por que estão interferindo?, Jéssica se perguntou.
O banqueiro agora encarava Kynes, e Jéssica viu o terror
voltar ao rosto do agente.
As pessoas em volta da mesa começaram a responder ao
brinde.
Kynes manda e as pessoas obedecem, Jéssica pensou.
Disse-nos que está do lado de Paul. Qual é o segredo de seu
poder? Não pode ser seu cargo de Juiz da Transição. Isso é
temporário. E certamente não por ser um funcionário público.
Ela removeu a mão do punho da dagacris, ergueu seu
cântaro para Kynes, que respondeu na mesma moeda.
Somente Paul e o banqueiro – (Suu-Suu! Que apelido
idiota!, Jéssica pensou.) – continuavam de mãos vazias. A
atenção do banqueiro ainda estava em Kynes. Paul fitava o
próprio prato.
Eu estava lidando com a situação da maneira correta, Paul
pensou. Por que eles interferiram? Olhou disfarçadamente para
os convidados homens mais próximos dele. Preparar-se para a
violência? Por parte de quem? Certamente não daquele
banqueiro.
Halleck se mexeu e falou como se para ninguém em
particular, lançando suas palavras acima da cabeça dos
convidados diante dele:
– Em nossa sociedade, as pessoas não deveriam se ofender
com tanta facilidade. Geralmente é um ato suicida. – Ele olhou
para a filha do fabricante de trajestiladores ao lado dele. – Não
acha, senhorita?
– Ah, sim. Sim. Acho, sim – ela disse. – É tanta violência.
Fico enojada. E, várias vezes, a intenção não é ofender, mas as
pessoas morrem do mesmo jeito. Não faz sentido.
– De fato, não faz – Halleck disse.
Jéssica viu a perfeição com que a moça representava e
percebeu: Essa jovenzinha cabeça-oca não é uma jovenzinha
cabeça-oca. Viu, então, o padrão da ameaça e entendeu que
Halleck também a detectara. Tinham planejado fisgar Paul
com o sexo. Jéssica relaxou. Seu filho provavelmente tinha sido
o primeiro a enxergar o plano: seu treinamento não teria
deixado passar aquela artimanha óbvia.
Kynes falou ao banqueiro:
– Um outro pedido de desculpas não seria apropriado?
Com um sorriso amarelo, o banqueiro virou-se para
Jéssica e disse:
– Milady, receio ter exagerado no vinho. Vocês servem
bebidas fortes à mesa e não estou acostumado.
Jéssica ouviu o veneno escondido no tom de voz dele e
falou suavemente:
– Quando estranhos se conhecem, é preciso fazer grandes
concessões às diferenças de costume e educação.
– Obrigado, milady – ele disse.
A companheira de cabelos escuros do fabricante de
trajestiladores inclinou-se na direção de Jéssica e disse:
– O duque disse que estaríamos seguros aqui. Espero que
isso não signifique mais combates.
Ela foi instruída a dar esse rumo à conversa, Jéssica
pensou.
– É provável que não seja nada de importante – Jéssica
disse. – Mas são tantos os pormenores que exigem a atenção
pessoal do duque neste momento. Enquanto perdurar a
inimizade entre os Atreides e os Harkonnen, todo cuidado é
pouco. O duque jurou a kanly. É claro que ele não deixará
nenhum agente dos Harkonnen vivo em Arrakis. – Ela olhou
para o representante do Banco da Guilda. – E as Convenções,
naturalmente, o respaldam. – Ela voltou sua atenção para
Kynes. – Não é, dr. Kynes?
– De fato – Kynes disse.
O fabricante de trajestiladores puxou delicadamente sua
companheira para trás. Ela olhou para ele e disse:
– Creio que agora eu vá comer alguma coisa. Gostaria de
experimentar aquela ave que serviram há pouco.
Jéssica fez sinal para um dos criados e se virou para o
banqueiro:
– E o senhor falava há pouco de aves e seus hábitos. São
tantas coisas interessantes sobre Arrakis. Diga-me, onde se
encontra a especiaria? Os caçadores se aprofundam no
deserto?
– Ah, não, milady – ele disse. – Sabe-se muito pouco sobre
as profundezas do deserto. E quase nada sobre as regiões
austrais.
– Contam que há um grande filão de especiaria nos confins
do sul – Kynes disse –, mas desconfio que seja uma invenção
fantasiosa, criada apenas para uma canção. Alguns caçadores
de especiaria mais ousados às vezes penetram a orla do
cinturão central, mas isso é extremamente perigoso: os pontos
de referência são incertos; as tempestades, frequentes. As
baixas aumentam dramaticamente quanto mais longe
operamos das bases na Muralha-Escudo. Pelo que
descobrimos, não é lucrativo se aventurar muito ao sul. Quem
sabe se tivéssemos um satélite meteorológico...
Bewt ergueu os olhos e falou de boca cheia:
– Dizem que os fremen andam por lá, que eles vão a
qualquer lugar e já encontraram esponjas e chupeiras nas
latitudes meridionais.
– Esponjas e chupeiras? – Jéssica perguntou.
Kynes falou rapidamente:
– Boatos absurdos, milady. São conhecidas em outros
planetas, mas não em Arrakis. A esponja é um lugar onde a
água infiltrada sobe até a superfície, ou perto o suficiente da
superfície, e pode ser encontrada por quem cavar um buraco
seguindo certos indícios. A chupeira é um tipo de esponja de
que a pessoa retira a água por meio de um canudo... assim se
diz.
Suas palavras enganam, Jéssica pensou.
Por que ele está mentindo?, Paul se perguntou.
– Que interessante – Jéssica disse. E pensou: “Assim se
diz...” . Que modo de falar curioso têm aqui. Ah, se soubessem o
que isso revela sobre sua dependência de superstições.
– Ouvi dizer que vocês têm um ditado – Paul disse –, que o
lustro vem das cidades e a sabedoria do deserto.
– Temos muitos ditados em Arrakis – Kynes disse.
Antes que Jéssica pudesse formular uma nova pergunta,
um criado se inclinou para entregar-lhe um bilhete. Ela o abriu,
viu a caligrafia e os sinais codificados do duque, passou os
olhos pela mensagem.
– Ficarão todos deliciados em saber – ela disse – que nosso
duque manda avisar para ficarmos tranquilos. A questão que
nos privou da companhia dele já foi resolvida. O caleche
perdido foi encontrado. Um agente dos Harkonnen na
tripulação dominou os demais e levou a máquina para uma
base de contrabandistas, esperando vendê-la ali. Tanto o
homem quanto a máquina foram entregues a nossas forças. –
Ela acenou com a cabeça para Tuek.
O contrabandista devolveu o aceno.
Jéssica voltou a dobrar o bilhete e o enfiou em sua manga.
– Fico feliz que não tenha se tornado uma batalha franca –
o banqueiro disse. – As pessoas esperam que os Atreides
tragam paz e prosperidade.
– Principalmente prosperidade – Bewt disse.
– Podemos passar à sobremesa agora? – Jéssica
perguntou. – Pedi a nosso chef para preparar um doce
caladanino: arroz-pongi em calda dolsa.
– Parece maravilhoso – disse o fabricante de
trajestiladores. – Seria possível conseguir-me a receita?
– Todas as receitas que desejar – Jéssica disse,
registrando o homem para passar as informações a Hawat
mais tarde. O fabricante de trajestiladores era um
arrivistazinho medroso e poderia ser comprado.
A conversa fiada recomeçou ao redor dela:
– Que tecido mais adorável...
– Ele mandou fazer um engaste perfeito para a joia...
– Podemos tentar aumentar a produção no próximo
bimestre...
Jéssica olhou para seu prato, pensando na parte cifrada da
mensagem de Leto: Os Harkonnen tentaram fazer passar um
carregamento de armaleses. Nós os capturamos. Pode ser que
tenham tido êxito com outros carregamentos. Sem dúvida,
significa que eles não estão muito preocupados com os escudos.
Tome as precauções necessárias.
Jéssica concentrou-se nas armaleses, cheia de dúvidas. Os
feixes incandescentes de luz destrutora eram capazes de
atravessar qualquer substância conhecida, contanto que não
tivesse a proteção de um escudo. O fato de que a realimentação
de um escudo poderia fazer explodir tanto a armalês quanto o
escudo não incomodava os Harkonnen. Por quê? Uma explosão
escudo-armalês era uma variável perigosa: podia ser mais
poderosa que a de uma arma atômica, podia matar apenas o
artilheiro e seu alvo protegido por escudo.
As incógnitas a enchiam de apreensão.
Paul disse:
– Nunca duvidei de que encontraríamos o caleche. Quando
meu pai se dispõe a resolver um problema, ele o resolve. Eis aí
um fato que os Harkonnen estão começando a descobrir.
Ele está se gabando, Jéssica pensou. Não deveria. Ninguém
que vai dormir no subsolo, como precaução contra armaleses,
tem o direito de se gabar.
Não há escapatória: pagamos pela
violência de nossos ancestrais.
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Jéssica ouviu o tumulto no Grande Átrio e acendeu a


luminária ao lado de sua cama. O relógio que ficava ali não tinha
sido ajustado de acordo com o horário local, e ela teve de
subtrair vinte e um minutos para determinar que deviam ser
duas horas da manhã.
O tumulto era ruidoso e incoerente.
Será o ataque dos Harkonnen?, ela se perguntou.
Saiu da cama, verificou os monitores para saber onde
estava sua família. A tela mostrou Paul dormindo no aposento
dos fundos do porão que haviam rapidamente transformado
num quarto de dormir. O barulho obviamente não chegava lá
embaixo. Não havia ninguém no quarto do duque, a cama dele
estava feita. Será que estaria ainda no campo do P. C.?
Ainda não havia um monitor que mostrasse a porta
principal da casa.
Jéssica ficou no meio do quarto, escutando.
Havia uma voz incoerente, aos berros. Ouviu alguém
chamar o dr. Yueh. Jéssica pegou um roupão, atirou-o por cima
dos ombros, enfiou os pés nos chinelos, prendeu a dagacris
junto à perna.
Mais uma vez, uma voz chamou o dr. Yueh.
Jéssica amarrou o cinto do roupão e foi para o corredor. Aí
ocorreu-lhe a ideia: E se Leto estivesse ferido?
O corredor parecia se estender para sempre sob seus pés
ligeiros. Ela virou ao atravessar o arco no final, passou
correndo pelo salão de jantar e pela abertura que dava para o
Grande Átrio, onde encontrou o lugar fortemente iluminado:
todas as luminárias suspensas acesas na intensidade máxima.
A sua direita, perto da entrada principal, ela viu dois
guardas segurando Duncan Idaho entre eles. A cabeça dele
pendia para a frente e havia um silêncio abrupto e ofegante na
cena.
Um dos guardas falou, acusando Idaho:
– Viu o que fez? Acordou lady Jéssica.
As cortinas imensas enfunavam-se atrás dos homens,
revelando que a porta da frente ainda estava aberta. Não havia
sinal do duque, nem de Yueh. De um lado estava Mapes,
olhando friamente para Idaho. Ela vestia um manto comprido e
castanho, com um desenho serpeante na bainha. Seus pés
estavam enfiados em botinas desamarradas.
– E daí que acordei lady Jéssica? – Idaho resmungou. Olhou
para o teto e berrou: – Minh’espada provou sangue primero em
Grumman!
Grande Mãe! Está bêbado!, Jéssica pensou.
A face redonda e morena de Idaho era uma carranca
fechada. Seus cabelos, encaracolados como a pelagem de um
cabrito negro, estavam cheios de terra. Um rasgão esfarrapado
em sua túnica deixava exposta a camisa social que ele vestira
no jantar horas antes.
Jéssica foi até ele.
Um dos guardas cumprimentou-a com a cabeça, sem
soltar Idaho.
– Não sabíamos o que fazer com ele, milady. Estava criando
um tumulto aí na frente, recusando-se a entrar. Ficamos com
medo que os habitantes aparecessem e o vissem. Não seria
nada bom. Ficaríamos com má fama por aqui.
– Por onde ele andou? – perguntou Jéssica.
– Ele acompanhou uma das moças até a casa depois do
jantar, milady. Ordens de Hawat.
– Qual moça?
– Uma das meninas do serviço de acompanhantes. Sabe
como é, milady? – Ele olhou para Mapes e baixou a voz. – Estão
sempre requisitando Idaho para vigiar as damas.
E Jéssica pensou: Claro que sim. Mas por que ele está
bêbado?
Ela franziu o cenho, virou-se para Mapes.
– Mapes, traga um estimulante. Sugiro cafeína. Talvez
tenha sobrado um pouco do café com especiaria.
Mapes deu de ombros e foi para a cozinha. As botinas
desamarradas chape-chapearam no assoalho de pedra.
Idaho girou a cabeça instável e olhou enviesado para
Jéssica.
– Matei mais de mil homens para o duque – ele murmurou.
– Só queria saber o que estou fazendo aqui. Não dá para viver
debaixo da terra. Não dá para viver em cima da terra. Que raio
de lugar é este, hein?
Um som proveniente da entrada do corredor lateral
chamou a atenção de Jéssica. Ela se virou, viu Yueh se
aproximar, com o estojo de primeiros socorros na mão
esquerda. Estava completamente vestido, parecia pálido,
exausto. A tatuagem em forma de diamante se destacava
nitidamente em sua testa.
– O bom doutor! – gritou Idaho. – O que é que você é,
doutor? Um mediquinho d’esquina? – Virou-se de olhos turvos
para Jéssica. – Estou fazendo papel de idiota, não estou?
Jéssica franziu o cenho, ficou em silêncio, perguntando-se:
Por que Idaho se embebedaria? Será que foi drogado?
– Muita cerveja d’especiaria – Idaho disse, tentando se
endireitar.
Mapes voltou com uma xícara fumegante nas mãos,
deteve-se atrás de Yueh, em dúvida. Olhou para Jéssica, que
sacudiu a cabeça.
Yueh depositou seu estojo no chão, cumprimentou Jéssica
e disse:
– Cerveja de especiaria, é?
– A melhor coisa que já tomei na vida – Idaho disse. Tentou
assumir a posição de sentido. – Minha espada provou sangue
primero em Grumman! Matei um Harkon... Harkon... matei ele
para o duque.
Yueh se virou, olhou para a xícara nas mãos de Mapes.
– O que é isso?
– Cafeína – Jéssica respondeu.
Yueh tomou a xícara, estendeu-a para Idaho.
– Beba isto, rapaz.
– Não quero beber mais.
– Mandei beber!
A cabeça de Idaho bamboleou na direção de Yueh e ele deu
um passo cambaleante à frente, arrastando os guardas
consigo.
– Já estou cheio de fazer o que o Universo Imperial quer,
doutor. Pelo menos uma vez vamos fazer a coisa do meu jeito.
– Depois de beber isto – Yueh disse. – É só cafeína.
– Deve ser igual ao resto todo deste lugar! O maldito sol é
forte demais. Nada tem a cor certa. Está tudo errado ou...
– Bem, é noite agora – Yueh disse. Falou com sensatez. –
Beba isto como o bom rapaz que é. Fará você se sentir melhor.
– Não quero me sentir melhor!
– Não podemos discutir com ele a noite toda – Jéssica
disse. E pensou: Isso pede tratamento de choque.
– Não há razão para ficar aqui, milady – Yueh disse. – Posso
cuidar disto.
Jéssica chacoalhou a cabeça. Deu um passo à frente,
esbofeteou Idaho com força.
Ele cambaleou para trás, junto com os guardas, e olhou
ferozmente para ela.
– Não são modos que se apresentem na casa de seu duque
– ela disse. Tomou a xícara das mãos de Yueh, derramando uma
parte do café, e empurrou-a na direção de Idaho. – Agora beba
isto! É uma ordem!
Idaho ficou ereto de repente, olhando feio para ela. Falou
devagar, com uma enunciação precisa e cuidadosa:
– Não recebo ordens de uma maldita espiã Harkonnen.
Yueh se empertigou e virou-se para encarar Jéssica.
O rosto dela perdera a cor, mas ela balançava
afirmativamente a cabeça. Tudo ficou claro: os ramos partidos
de significado que ela vira nas palavras e ações de todos que a
cercavam naqueles últimos dias agora poderiam ser
traduzidos. Viu-se dominada por uma raiva quase grande
demais para refrear. Foi preciso invocar seu treinamento mais
profundo como Bene Gesserit para acalmar-lhe a pulsação e
tranquilizar sua respiração. Mesmo então, ela sentia o fogo
tremular.
Estavam sempre requisitando Idaho para vigiar as damas!
Lançou um olhar para Yueh. O médico baixou os olhos.
– Você sabia disso? – ela indagou.
– Ouvi... boatos, milady. Mas não queria aumentar suas
preocupações.
– Hawat! – ela gritou. – Tragam-me Thufir Hawat
imediatamente!
– Mas, milady...
– Imediatamente!
Tem de ser Hawat, ela pensou. Uma suspeita como essa, se
tivesse qualquer outra fonte, teria sido descartada de imediato.
Idaho sacudiu a cabeça e resmungou:
– Pó jogar essa droga fora.
Jéssica olhou para a xícara em sua mão e, de repente,
atirou todo o conteúdo na cara de Idaho.
– Tranquem-no num dos quartos de hóspedes da ala leste
– ela mandou. – Deixemos o sono cuidar disso.
Os dois guardas olharam para ela, desgostosos. Um deles
arriscou:
– Talvez devêssemos levá-lo para outro lugar, milady.
Poderíamos...
– Ele deve ficar aqui! – Jéssica gritou. – Tem um trabalho a
fazer aqui. – Sua voz pingava amargura. – Ele é tão bom para
vigiar as damas.
Os guardas engoliram em seco.
– Sabem onde está o duque? – ela indagou.
– No posto de comando, milady.
– Hawat está com ele?
– Hawat está na cidade, milady.
– Tragam-me Hawat imediatamente – ordenou Jéssica. –
Estarei em minha sala de estar quando ele chegar.
– Mas, milady...
– Se for necessário, chamarei o duque – ela disse. – Espero
que não seja necessário. Não quero incomodá-lo com uma coisa
dessas.
– Sim, milady.
Jéssica empurrou a xícara vazia para as mãos de Mapes;
respondeu a pergunta muda dos olhos de azul sobre azul.
– Pode voltar para a cama, Mapes.
– Tem certeza de que não precisará de mim?
Jéssica sorriu sinistramente.
– Tenho certeza.
– Talvez possa esperar até amanhã – disse Yueh. – Posso
lhe dar um sedativo e...
– Volte para seus aposentos e deixe-me cuidar disto do
meu jeito – ela disse. Bateu de leve no braço dele, para
abrandar a ordem. – É o único jeito.
Abruptamente, de cabeça erguida, ela se virou e saiu
andando pela casa, na direção de seus aposentos. Paredes
frias... passagens... uma porta familiar... Ela abriu a porta com
violência e a bateu com força depois de entrar. Jéssica ficou ali,
olhando ferozmente para as janelas obstruídas por escudos de
sua sala de estar. Hawat! Foi ele que os Harkonnen compraram?
Veremos.
Jéssica foi até a poltrona fofa e antiquada, revestida com
couro de schlag bordado, e posicionou-a de modo a não perder
a porta de vista. De repente, tinha toda a consciência da
dagacris embainhada junto a sua perna. Ela pegou a bainha e a
prendeu no braço, testou com que rapidez poderia fazer a
arma escorregar até sua mão. Voltou a dar uma olhada na sala,
memorizando a localização exata de cada coisa em caso de
emergência: a espreguiçadeira perto do canto, as cadeiras de
espaldar reto junto da parede, as duas mesas baixas, sua cítara
no pedestal ao lado da porta que dava para seu quarto.
As luminárias suspensas emitiam uma luz rosada e pálida.
Ela reduziu sua intensidade, sentou-se na poltrona,
acariciando o estofo, apreciando o peso régio da poltrona para
aquela ocasião.
Agora, que venha ele, pensou. O que tiver de ser, será. E
preparou-se à maneira Bene Gesserit para a espera, reunindo
paciência, poupando suas forças.
Mais cedo do que esperava, uma batida soou à porta e
Hawat entrou a uma ordem dela.
Ela o observou sem se mexer na poltrona, reparando na
sensação crepitante de energia induzida por drogas nos
movimentos dele, enxergando o cansaço subjacente. Os olhos
cansados e remelentos de Hawat brilhavam. Sua pele curtida
parecia levemente amarelada à luz da sala, e havia uma mancha
grande e úmida na manga do braço que usava o punhal.
Ela sentiu ali o cheiro de sangue.
Jéssica apontou uma das cadeiras de espaldar reto e disse:
– Pegue aquela cadeira e sente-se aqui diante de mim.
Hawat fez uma reverência e obedeceu. Idaho, seu bêbado
idiota!, ele pensou. Estudou o rosto de Jéssica, imaginando
como poderia salvar a situação.
– Já passou da hora de esclarecer as coisas entre nós –
Jéssica disse.
– O que a preocupa, milady? – ele se sentou, apoiando as
mãos nos joelhos.
– Não banque o tímido comigo! – ela o cortou. – Se Yueh
não lhe contou por que eu o convoquei, então um de seus
espiões em minha casa o fez. Sejamos, ao menos, honestos um
com o outro?
– Como quiser, milady.
– Primeiro, responda-me uma coisa – ela disse. – Você é
agente dos Harkonnen agora?
Hawat quase pulou da cadeira, com o rosto carregado de
fúria, e indagou:
– Ousa me insultar tanto assim?
– Sente-se – ela disse. – Você me insultou primeiro.
Lentamente, ele voltou a afundar em sua cadeira.
E Jéssica, decifrando os sinais daquele rosto que conhecia
tão bem, permitiu-se respirar fundo. Não é Hawat.
– Agora sei que continua leal a meu duque – ela disse. –
Estou preparada, portanto, para perdoar a afronta.
– E o que há para perdoar?
Jéssica fechou a cara, perguntando-se: Devo usar meu
trunfo? Devo contar a ele que há poucas semanas carrego
dentro de mim a filha do duque? Não... O próprio Leto ainda não
sabe. Isso só complicaria a vida dele, iria distraí-lo num
momento em que precisa se concentrar em nossa sobrevivência.
Ainda não é hora de usar isso.
– Uma Proclamadora da Verdade resolveria isto – ela disse
–, mas não temos uma Proclamadora da Verdade certificada
pelo Alto Conselho.
– Exatamente. Não temos uma Proclamadora da Verdade.
– Há um traidor entre nós? – ela perguntou. – Estudei
nosso pessoal com grande cuidado. Quem poderia ser? Não é
Gurney. Certamente não é Duncan. Os lugares-tenentes deles
não detêm uma posição suficientemente estratégica que valha
a pena considerar. Não é você, Thufir. Não pode ser Paul. Sei
que não sou eu. Dr. Yueh, então? Devo chamá-lo e colocá-lo à
prova?
– Sabe que é um gesto inútil – Hawat disse. – Ele foi
condicionado pelo Alto Colegiado. Disso tenho certeza.
– Sem mencionar que a esposa dele era uma Bene Gesserit
e foi morta pelos Harkonnen – Jéssica disse.
– Então foi isso que aconteceu a ela – fez Hawat.
– Não reparou no ódio na voz dele quando pronuncia o
nome Harkonnen?
– Sabe que não sou bom de ouvido – Hawat disse.
– O que o fez suspeitar de mim? – ela perguntou.
Hawat franziu o cenho.
– Milady coloca este seu servo numa situação impossível.
Devo lealdade primeiro ao duque.
– Estou disposta a perdoar muita coisa por causa dessa
lealdade – ela disse.
– E, de novo, sou obrigado a perguntar: o que há para
perdoar?
– Um impasse? – ela indagou.
Ele deu de ombros.
– Então, vamos discutir uma outra coisa por enquanto – ela
disse. – Duncan Idaho, o admirável homem de armas cujas
habilidades de guarda-costas e vigia são tão valorizadas. Hoje à
noite, ele abusou de algo chamado cerveja de especiaria. Ouvi
falar que parte de nosso pessoal tem se entorpecido com essa
bebida. É verdade?
– Milady tem suas fontes.
– Tenho mesmo. Não vê essa embriaguez como um
sintoma, Thufir?
– Milady fala por enigmas.
– Aplique suas habilidades de Mentat! – ela gritou. – Qual é
o problema com Duncan e os demais? Posso responder com
três palavras: não têm pátria.
Ele apontou um dedo para o chão.
– Arrakis é a pátria deles.
– Arrakis é uma incógnita! Caladan era a pátria deles, mas
nós os desalojamos. Não têm pátria. E temem que o duque os
decepcione.
Ele se empertigou.
– Os homens que dissessem tal coisa dariam motivo para...
– Ora, pare com isso, Thufir. É derrotismo ou traição um
médico diagnosticar corretamente uma doença? Minha única
intenção é curar a doença.
– O duque me encarregou dessas questões.
– Mas você entende que tenho uma certa preocupação
natural com o progresso dessa doença – ela retorquiu. – E
quem sabe você admita que tenho certas habilidades úteis
nesse caso.
Será que terei de abalá-lo para valer?, ela se perguntou. Ele
precisa de uma sacudidela, algo que o arranque da mesmice.
– Eu poderia interpretar sua preocupação de várias
maneiras – Hawat disse, dando de ombros.
– Então já me condenou?
– Claro que não, milady. Mas não posso me dar ao luxo de
correr riscos na situação atual.
– Você deixou passar uma ameaça à vida de meu filho bem
aqui nesta casa – ela disse. – Quem correu esse risco?
O rosto dele se anuviou.
– Ofereci minha renúncia ao duque.
Agora ele estava sinceramente zangado e revelava sua
raiva na respiração acelerada, na dilatação das narinas, no
olhar fixo. Jéssica viu uma veia pulsar na têmpora dele.
– Sou leal ao duque – ele disse, mordendo as palavras.
– Não há traidor algum – ela disse. – A ameaça é outra
coisa. Talvez tenha a ver com as armaleses. Talvez eles corram
o risco de esconder algumas armaleses com temporizadores e
apontá-las para os escudos da casa. Talvez...
– E quem poderia dizer, depois da explosão, que não se
tratava de uma arma atômica? – ele perguntou. – Não, milady.
Eles não irão se arriscar a fazer algo tão ilegal. A radiação
persiste. Os indícios são difíceis de apagar. Não. Eles
cumprirão a maioria das formalidades. Tem de ser um traidor.
– Você é leal ao duque – ela escarneceu. – Você o destruiria
tentando salvá-lo?
Ele inspirou fundo, e em seguida:
– Se for inocente, milady terá minhas mais humildes
desculpas.
– Olhe só para você, Thufir – disse ela. – Os seres humanos
vivem melhor quando cada um deles tem seu próprio lugar,
quando cada um sabe onde se encaixa no plano das coisas.
Destrua esse lugar e destruirá a pessoa. Você e eu, Thufir,
dentre todos aqueles que amam o duque, estamos nas
melhores posições para destruir um o lugar do outro. Eu não
poderia fazer o duque desconfiar de você, sussurrando-lhe
suspeitas ao pé do ouvido durante a noite? Quando ele estaria
mais suscetível a essas insinuações, Thufir? Terei de pintar um
quadro mais claro ainda para você?
– Está me ameaçando? – ele grunhiu.
– Na verdade, não. Estou simplesmente mostrando a você
que alguém está nos atacando usando a disposição elementar
de nossas vidas. É inteligente, diabólico. Sugiro anular esse
ataque organizando nossas vidas de maneira a não deixarmos
frestas para essas farpas penetrarem.
– Está me acusando de levantar suspeitas infundadas?
– Infundadas, sim.
– Você as combateria com suas próprias insinuações?
– Sua vida é feita de insinuações, não a minha, Thufir.
– Então está questionando minha capacidade?
Ela suspirou.
– Thufir, quero que examine seu próprio envolvimento
emocional nisto tudo. O ser humano natural é um animal sem
lógica. Suas projeções da lógica sobre todas as questões é
antinatural, mas deixamos que continue com isso porque tem
lá sua serventia. Você é a personificação da lógica: um Mentat.
No entanto, suas soluções para os problemas são conceitos
que, num sentido muito concreto, são projetados para fora de
você mesmo, onde serão estudados e revolvidos, examinados
de todos os lados.
– Agora quer me ensinar a fazer meu trabalho? – ele
perguntou, sem tentar esconder o desdém em sua voz.
– Qualquer coisa fora de você é o que você enxerga e nisso
pode aplicar sua lógica – ela disse. – Mas é uma característica
humana que, ao confrontarmos problemas pessoais, as coisas
mais pessoais e profundas sejam as mais difíceis de submeter à
análise da lógica. Nossa tendência é andar às cegas por aí e
jogar a culpa em tudo e todos, menos na coisa profundamente
arraigada que de fato está nos roendo.
– Você está deliberadamente tentando minar a confiança
que deposito em minhas habilidades como Mentat – ele disse
entre dentes. – Se encontrasse um dos nossos tentando
sabotar dessa maneira qualquer outra arma de nosso arsenal,
não hesitaria em denunciá-lo e destruí-lo.
– Os melhores Mentats têm um respeito considerável pelo
fator erro em seus cálculos – ela disse.
– Nunca afirmei o contrário!
– Então concentre-se nestes sintomas que nós dois
observamos: a embriaguez dos homens; as desavenças; os
mexericos e os boatos absurdos que trocam sobre Arrakis;
ignoram o que há de mais simples nas...
– É só o ócio – ele disse. – Não tente desviar minha atenção
fazendo uma coisa simples parecer misteriosa.
Ela o encarou, pensando nos homens do duque
massageando as desgraças uns dos outros no quartel, até se
fazer sentir o cheiro eletrostático do atrito, como material
isolante queimado. Estão se tornando os homens da lenda
anterior à Guilda, ela pensou. Como os homens do explorador
estelar perdido, o Ampoliros – enjoados sobre os canhões –, em
demanda eterna, eternamente prontos e eternamente
despreparados.
– Por que nunca fez uso de minhas habilidades a serviço do
duque? – ela perguntou. – Teme que eu venha a competir com
você por sua posição?
Ele a transfixou com os olhos cansados em chamas.
– Conheço parte do treinamento que dão a vocês, suas... –
ele se calou e fechou a cara.
– Continue, pode dizer – ela provocou. – Suas bruxas Bene
Gesserit.
– Conheço uma parte do verdadeiro treinamento que dão a
vocês – ele disse. – Vi os resultados em Paul. Não me deixo
enganar pelo que suas escolas dizem ao público: que vocês
existem apenas para servir.
O abalo tem de ser forte, e ele está quase pronto para
recebê-lo, ela pensou.
– Você escuta respeitosamente o que digo no Conselho –
ela disse –, mas raramente ouve meus conselhos. Por quê?
– Não confio em seus motivos como Bene Gesserit – ele
respondeu. – Você pode se imaginar capaz de decifrar um
homem; pode pensar que é capaz de obrigar um homem a fazer
exatamente o que você...
– Thufir, seu pobre idiota! – ela exclamou, furiosa.
Ele fechou a cara, voltando a se recostar na cadeira.
– Seja o que for que ouviu falar a respeito de nossas escolas
– ela disse –, a verdade é muito mais terrível. Se eu quisesse
destruir o duque... ou você, ou qualquer outra pessoa a meu
alcance, você não conseguiria me impedir.
E ela pensou: Por que deixo o orgulho arrancar de mim
essas palavras? Não foi assim que me treinaram. Não é assim
que devo abalá-lo.
Hawat enfiou furtivamente uma das mãos em sua túnica,
onde ele guardava um minúsculo projetor de dardos
envenenados. Ela não usa escudo, pensou. Estaria só se
vangloriando? Eu poderia matá-la agora... mas, aaah, as
consequências de um erro meu...
Jéssica notou o gesto em direção ao bolso e disse:
– Rezemos para que a violência entre nós nunca seja
necessária.
– É uma prece válida – ele concordou.
– Enquanto isso, a doença se espalha entre nós – ela disse.
– Pergunto novamente: não é mais razoável supor que os
Harkonnen plantaram essa suspeita para nos lançar um contra
o outro?
– Parece que voltamos ao impasse – ele disse.
Ela suspirou, pensando: Ele está quase pronto.
– O duque e eu somos pai e mãe substitutos para nossa
gente – ela disse. – A posição...
– Ele não a tomou como esposa – disse Hawat.
Ela se obrigou a retomar a calma, pensando: Foi uma boa
réplica.
– Mas não tomará nenhuma outra – ela disse. – Não
enquanto eu viver. E somos substitutos, como eu dizia. Para
romper essa ordem natural em nossas relações, para nos
perturbar, transtornar e confundir, que alvo seria mais sedutor
para os Harkonnen?
Ele percebeu aonde ela queria chegar e seu cenho se
franziu numa carranca ameaçadora.
– O duque? – ela perguntou. – Um alvo atraente, sim, mas
ninguém, com a possível exceção de Paul, estaria mais
protegido. Eu? Sou uma tentação, mas eles certamente sabem
que as Bene Gesserit são alvos difíceis. E existe um alvo melhor,
alguém cujos deveres criam necessariamente um monstruoso
ponto cego. Alguém para quem a desconfiança é tão natural
quanto respirar. Alguém que erige toda a sua vida sobre
insinuações e mistérios. – Ela atirou a mão direita na direção
dele. – Você!
Hawat fez menção de pular da cadeira.
– Eu ainda não o dispensei, Thufir! – ela exclamou, furiosa.
O velho Mentat quase caiu na cadeira, tão rápido seus
músculos o traíram.
Ela sorriu sem alegria.
– Agora você conhece uma parte do verdadeiro
treinamento que recebemos – ela disse.
Hawat tentou engolir em seco. A ordem que partira dela
tinha sido régia, peremptória, emitida num tom e de um modo
que ele achara completamente irresistíveis. O corpo dele tinha
obedecido antes que ele pudesse pensar a respeito. Nada
poderia ter impedido sua reação – nem a lógica nem a ira
passional... nada. Para fazer o que ela tinha acabado de fazer,
era necessário um conhecimento íntimo e apurado da pessoa
comandada, um controle tão profundo que ele nunca
imaginara possível.
– Já disse que devemos nos entender – ela disse. – Quis
dizer que você deve me entender. Eu já entendo você. E digo-
lhe, neste instante, que sua lealdade ao duque é tudo o que
garante sua segurança comigo.
Ele a encarou e umedeceu os lábios com a língua.
– Se eu quisesse um fantoche, o duque teria se casado
comigo – ela disse. – Ele poderia até mesmo pensar que o
tivesse feito de livre e espontânea vontade.
Hawat baixou a cabeça e passou a olhar através de seus
cílios esparsos. Somente um controle dos mais rígidos o
impedia de chamar os guardas. O controle... e, agora, a
suspeita de que a mulher não permitiria tal coisa. Sua pele se
arrepiava ao lembrar como ela o havia controlado. No
momento de hesitação, ela poderia ter sacado uma arma para
matá-lo!
Será que todo ser humano tem esse ponto cego?, ele
imaginou. Todos podemos ser comandados a agir sem opor
resistência? A ideia o desconcertava. Quem conseguiria impedir
alguém com esse poder?
– Você vislumbrou o punho que a luva das Bene Gesserit
esconde – ela disse. – São poucos aqueles que o veem e
sobrevivem. E o que fiz é uma coisa relativamente simples para
nós. Você não viu todo o meu arsenal. Pense nisso.
– Por que não usa isso para destruir os inimigos do duque?
– ele perguntou.
– O que quer que eu destrua? – ela perguntou. – Quer que
eu transforme nosso duque num fraco, que o faça depender
eternamente de mim?
– Mas, com esse poder...
– O poder é uma faca de dois gumes, Thufir – ela disse. –
Você está pensando: “Com que facilidade ela poderia dar forma
a um instrumento humano e com ele atingir as entranhas do
inimigo”. Verdade, Thufir. Até mesmo as suas entranhas. Mas o
que eu ganharia com isso? Se algumas Bene Gesserit fizessem
tais coisas, isso não lançaria uma suspeita sobre todas as Bene
Gesserit? Não queremos isso, Thufir. Não queremos destruir a
nós mesmas. – Ela balançou afirmativamente a cabeça. –
Existimos realmente apenas para servir.
– Não sei o que responder – ele disse. – Sabe que não.
– Você não contará nada do que aconteceu aqui a ninguém
– ela disse. – Conheço você, Thufir.
– Milady...
Mais uma vez, o velho tentou engolir em seco. E pensou:
Ela tem grandes poderes, é fato. Mas isso não faria dela um
instrumento ainda mais formidável para os Harkonnen?
– O duque poderia ser destruído tão rapidamente por seus
amigos quanto por seus inimigos – ela disse. – Creio que agora
você irá investigar essa suspeita a fundo e livrar-se dela.
– No caso de se mostrar infundada – ele disse.
– No caso – ela escarneceu.
– No caso.
– Você é mesmo tenaz – ela disse.
– Cauteloso – ele disse – e ciente do fator erro.
– Então tenho outra pergunta para você: o que significa,
para você, estar diante de um outro ser humano, de mãos
amarradas e impotente, e esse outro ser humano segura uma
faca contra sua garganta... mas se recusa a matá-lo,
desamarra-o e dá-lhe a faca para usá-la como bem entender?
Ela se levantou da poltrona e deu as costas para ele.
– Pode ir agora, Thufir.
O velho Mentat se levantou, hesitou, e sua mão esgueirou-
se na direção da arma letal sob sua túnica. Lembrou-se da
praça de touros e do pai do duque (que tinha sido um homem
de coragem, apesar de todos os seus outros defeitos) e de certo
dia de corrida tempos atrás: o animal feroz e negro parado lá,
cabisbaixo, imobilizado e confuso. O Velho Duque dera às
costas aos cornos, a capa atirada com afetação sobre um dos
braços, enquanto os gritos de aplauso choviam das
arquibancadas.
Eu sou o touro, e ela, o toureiro, Hawat pensou. Afastou sua
mão da arma, olhou de relance para o suor que cintilava em sua
palma vazia.
E soube então que, independentemente de qual fosse a
verdade no fim das contas, ele nunca esqueceria aquele
momento, nem perderia sua admiração suprema por lady
Jéssica.
Em silêncio, ele deu meia-volta e saiu da sala.
Jéssica deixou de olhar para o reflexo nas janelas, virou-se
e fitou a porta fechada.
– Agora veremos alguma coisa ser feita – ela sussurrou.
Digladia-se com sonhos?
Peleja com sombras?
Move-se numa espécie de sono?
O tempo escapuliu.
Sua vida foi roubada.
Ocupou-se de ninharias,
Vítima de seu desatino.
– Nênia para Jamis na Planície Fúnebre, retirada de “Canções de
Muad’Dib”, da princesa Irulan

Leto estava no vestíbulo de sua casa, estudando um


bilhete à luz de uma única luminária suspensa. Faltavam ainda
algumas horas para o amanhecer, e ele sentia o cansaço. Um
mensageiro fremen levara o bilhete aos guardas mais
avançados havia pouco, exatamente quando o duque chegara
de seu posto de comando.
Dizia o bilhete: “Uma coluna de fumaça de dia, um pilar de
fogo à noite”.
Não havia assinatura.
O que significa?, ele se perguntou.
O mensageiro havia partido sem esperar resposta e antes
que pudessem interpelá-lo. Sumira noite adentro feito uma
sombra.
Leto enfiou o papel num dos bolsos de sua túnica,
pensando em mostrá-lo a Hawat mais tarde. Afastou um cacho
de cabelos da testa, inspirou como quem suspirasse. O efeito
das pílulas antifadiga estava passando. Foram dois longos dias
desde o jantar, e bem mais tempo desde a última vez que ele
havia dormido. Fora os problemas militares, ele tivera, ainda
por cima, aquela reunião com Hawat, que relatou sua conversa
com Jéssica.
Devo acordar Jéssica?, ele se perguntou. Não há mais
motivo para esse joguinho de segredos entre nós. Ou há?
Maldito seja Duncan Idaho!
Sacudiu a cabeça. Não, não o Duncan. Errei ao não confiar
em Jéssica desde o início. Tenho de confiar agora, antes que a
situação fique ainda pior.
A decisão fez com que se sentisse melhor, e ele foi
rapidamente do vestíbulo para o Grande Átrio, pelas galerias,
em direção à ala da família.
Na curva onde as galerias se dividiam, levando a uma área
de serviço, ele se deteve. Um estranho vagido vinha de algum
lugar da galeria de serviço. Leto levou a mão esquerda à chave
de seu cinturão-escudo e deixou o kindjal deslizar para a mão
direita. A faca transmitia uma sensação de segurança. O som
estranho dava-lhe calafrios.
De mansinho, o duque percorreu a galeria de serviço,
amaldiçoando a iluminação inadequada. As menores
luminárias suspensas haviam sido instaladas ali a cada oito
metros e ajustadas para o nível mais fraco. As paredes de
pedra escura engoliam a luz.
Uma massa indistinta esticada no assoalho surgiu da
escuridão à frente dele.
Leto hesitou, quase ativou seu escudo, mas se conteve,
pois isso limitaria seus movimentos, sua audição... e porque o
carregamento de armaleses que haviam interceptado o
enchera de dúvidas.
Em silêncio, ele foi até a massa cinzenta, viu que se tratava
de uma figura humana, um homem de bruços. Leto usou um
dos pés para virá-lo, mantendo a faca em riste, e abaixou-se
para ver-lhe o rosto na luz fraca. Era o contrabandista, Tuek,
com uma mancha úmida no peito. Os olhos mortos fitavam o
nada em sua negra inanidade. Leto tocou a nódoa: estava
quente.
Como é que este homem foi morrer aqui?, Leto se
perguntou. Quem o matou?
Os vagidos ganhavam volume ali. Vinham de algum lugar
adiante, da galeria lateral que levava à sala central, onde
tinham instalado o principal gerador de escudo da casa.
Com a mão sobre a chave do cinturão e o kindjal em riste, o
duque contornou o corpo, esgueirou-se pela galeria e,
protegido por uma parede, deu uma olhada na direção da sala
do gerador de escudo.
Mais uma massa cinzenta jazia esticada no chão a alguns
passos de distância, e ele logo viu que aquela era a fonte do
ruído. A forma se arrastou na direção dele com uma lentidão
dolorosa, arquejando e balbuciando.
Leto livrou-se do medo repentino que apertava sua
garganta, disparou pela galeria, ajoelhou-se ao lado do vulto
que se arrastava. Era Mapes, a governanta fremen, com os
cabelos caídos sobre o rosto e as roupas em desalinho. Uma
nódoa escura e levemente cintilante se espalhava das costas
para o flanco da mulher. Ele a tocou no ombro, e ela ergueu o
torso, apoiando-se nos cotovelos e inclinando a cabeça para
fitá-lo, com os olhos de uma inanidade feita de sombras negras.
– É você – ela falou, ofegante. – Matou... guarda... mandou...
buscar... Tuek... fuja... milady... você... você... aqui... não... – Ela
tombou para a frente e sua cabeça bateu na pedra com um
baque surdo.
Leto tateou-lhe as têmporas, à procura de uma pulsação.
Nada encontrou. Olhou para a mancha: apunhalaram-na pelas
costas. Quem? Sua mente trabalhava em alta velocidade. Ela
teria querido dizer que alguém matara um guarda? E Tuek?
Jéssica o teria mandado chamar? Por quê?
Ele começou a se levantar. Um sexto sentido o alertou.
Levou rapidamente uma das mãos à chave que acionava o
escudo... tarde demais. Um impacto entorpecente jogou o
braço dele para um lado. Sentiu a dor, viu um dardo se projetar
da manga, sentiu a paralisia se espalhar a partir dali, subindo-
lhe pelo braço. Foi necessário um esforço doloroso para erguer
a cabeça e olhar para a galeria.
Yueh estava junto à porta aberta da sala do gerador. Seu
rosto parecia amarelo à luz de uma única luminária mais forte
acima da porta. A sala atrás dele era só quietude: nenhum som
de geradores.
Yueh!, Leto pensou. Ele sabotou os geradores da casa!
Estamos completamente expostos!
Yueh começou a andar na direção dele, guardando no
bolso uma pistola de dardos.
Leto descobriu-se ainda capaz de falar e disse, ofegante:
– Yueh! Como?
Aí a paralisia chegou a suas pernas, e ele deslizou até o
chão com as costas apoiadas na parede de pedra.
O rosto de Yueh demonstrava uma certa tristeza quando
ele se inclinou e tocou a testa de Leto. O duque descobriu-se
capaz de sentir o contato, mas era algo remoto... embotado.
– A droga do dardo é seletiva – Yueh disse. – Você
consegue falar, mas eu não faria isso. – Ele olhou para o
corredor e, mais uma vez, inclinou-se sobre Leto, arrancou o
dardo e o jogou fora. O som do dardo retinindo nas pedras
chegou fraco e distante aos ouvidos do duque.
Não pode ser Yueh, Leto pensou. Ele foi condicionado.
– Como? – Leto murmurou.
– Sinto muito, meu caro duque, mas existem coisas mais
fortes que isto. – Ele tocou a tatuagem em forma de diamante
em sua testa. – Eu mesmo acho tudo isso muito estranho, essa
supressão de minha consciência febril, mas quero matar um
homem. Sim, realmente desejo isso. Para conseguir o que
quero, não deixarei nada me deter.
Ele olhou para baixo, para o duque.
– Ah, não é você, meu caro duque. O barão Harkonnen.
Quero matar o barão.
– Ba... rão Har...
– Fique quieto, por favor, meu pobre duque. Você não tem
muito tempo. Aquele incisivo que implantei em sua boca
depois da queda em Narcal: aquele dente precisa ser
substituído. Em instantes, eu o deixarei inconsciente e trocarei
o dente. – Ele abriu a mão, contemplou alguma coisa ali. – Uma
duplicata exata, com o cerne esculpido primorosamente em
forma de nervo. Escapará aos detectores de praxe, até mesmo
a um exame rápido. Mas, se você o morder com força, a
cobertura irá se esfacelar. Então, se exalar com força, você
encherá o ar a seu redor com um gás venenoso, extremamente
letal.
Leto olhou para cima e encarou Yueh, vendo a loucura nos
olhos do homem, a transpiração na testa e no queixo.
– Você morrerá de um jeito ou de outro, meu pobre duque
– Yueh disse. – Mas chegará bem perto do barão antes de
morrer. Ele acreditará que você está tão entorpecido pelas
drogas que não fará nenhuma tentativa derradeira de atacá-lo.
E você estará drogado e amarrado. Mas o ataque pode assumir
formas estranhas. E você irá se lembrar do dente. O dente,
duque Leto Atreides. Você irá se lembrar do dente.
O velho médico aproximou-se mais e mais, até seu rosto e
seu bigode pendente dominarem o campo visual cada vez mais
estreito de Leto.
– O dente – Yueh murmurou.
– Por quê? – Leto sussurrou.
Yueh se abaixou ao lado do duque, apoiado num dos
joelhos.
– Fiz com o barão um pacto de shaitan. Tenho de me
certificar de que ele cumprirá sua parte. Quando eu o vir,
saberei. Quando olhar para o barão, eu saberei. Mas nunca me
verei diante dele sem pagar o preço. Você é o preço, meu pobre
duque. E eu saberei quando o vir. Minha pobre Wanna me
ensinou muitas coisas, e uma delas é enxergar a verdade
certeira quando a tensão é imensa. Nem sempre consigo fazer
isso, mas, quando vir o barão... então, eu saberei.
Leto tentou olhar para baixo, para o dente na mão de Yueh.
Sentia como se aquilo estivesse acontecendo num pesadelo:
não poderia ser.
Os lábios arroxeados de Yueh abriram-se num esgar.
– Não chegarei perto o bastante do barão, do contrário eu
mesmo o faria. Não. Serei detido a uma distância segura. Mas
você... ora, ora! Você, minha arma adorável! O barão vai querer
você perto dele, para tripudiar e vangloriar-se um pouco.
Leto viu-se quase hipnotizado por um músculo no lado
esquerdo da mandíbula de Yueh. O músculo se contorcia
quando o homem falava.
Yueh se aproximou ainda mais.
– E você, meu bom duque, meu precioso duque, tem de se
lembrar deste dente. – Ele apresentou o dente, segurando-o
entre o indicador e o polegar. – Será tudo que lhe restará.
A boca de Leto se moveu sem emitir qualquer som, e em
seguida:
– Recuso.
– Aah, não! Não pode recusar. Porque, em troca deste
pequeno favor, farei uma coisa por você. Salvarei seu filho e sua
mulher. Ninguém mais conseguirá fazer isso. Eles podem ser
removidos para um lugar onde nenhum Harkonnen os
alcançará.
– Como... salvar... eles? – Leto sussurrou.
– Fazendo parecer que estão mortos, escondendo-os entre
pessoas que sacam o punhal ao ouvir o nome dos Harkonnen,
que odeiam tanto os Harkonnen que queimariam uma cadeira
onde um Harkonnen tivesse se sentado, que salgariam a terra
onde um Harkonnen pisasse. – Ele tocou a mandíbula de Leto. –
Sente alguma coisa na mandíbula?
O duque descobriu que não conseguia responder. Sentiu
um puxão distante, viu a mão de Yueh aparecer segurando o
anel do sinete ducal.
– Para Paul – Yueh disse. – Você ficará inconsciente em
instantes. Adeus, meu pobre duque. Quando nos
encontrarmos de novo, não teremos tempo para conversar.
Um distanciamento frio se espalhou a partir da mandíbula
de Leto, subindo-lhe para a face. O corredor obscuro ficou
reduzido a um ponto, que tinha como centro os lábios
arroxeados de Yueh.
– Lembre-se do dente! – Yueh sussurrou. – O dente!
Deveria existir uma ciência do
descontentamento. As pessoas precisam
de dificuldade e opressão para
desenvolver músculos psíquicos.
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Jéssica acordou no escuro, sentindo a premonição na


quietude a seu redor. Não conseguia entender por que seu
corpo e sua mente pareciam tão apáticos. O medo bulia com
seus nervos. Cogitou se sentar na cama e acender a luz, mas
algo refreou a decisão. Sua boca parecia... estranha.
Tam, tam, tam, tam!
Era um som surdo que, no escuro, vinha não se sabia de
onde. De algum lugar.
A espera se encheu de tempo, estalidos e pontas de
agulhas em movimento.
Ela começou a sentir seu corpo, a perceber amarras nos
pulsos e tornozelos, uma mordaça na boca. Estava deitada de
lado, com as mãos atadas às costas. Experimentou as amarras
e percebeu que eram de fibra de krimskell e que só ficariam
mais apertadas se ela as puxasse.
E então, ela se lembrou.
Algo se movera na escuridão de seu quarto, algo úmido e
pungente atingira seu rosto, enchendo sua boca, e mãos
tentaram agarrá-la. Ela havia arquejado – uma única inspiração
– e sentira o narcótico na umidade. A consciência tinha
recuado, mergulhando-a numa arca negra de terror.
Aconteceu, ela pensou. Como era simples subjugar as Bene
Gesserit. Bastava apenas a traição. Hawat estava certo.
Ela se obrigou a não puxar as amarras.
Este não é meu quarto, ela pensou. Levaram-me para
algum outro lugar.
Aos poucos, ela foi reunindo a calma interior.
Percebeu o odor de seu próprio suor rançoso, misturado à
infusão química do medo.
Onde está Paul?, ela se perguntou. Meu filho: o que fizeram
com ele?
Calma.
Ela se obrigou a manter a calma, usando as antigas
fórmulas.
Mas o terror continuava tão próximo.
Leto? Onde está você, Leto?
Notou que a escuridão diminuía. Começou com as
sombras. As dimensões se separaram, tornaram-se novos
espinhos de percepção. Branco. Um risco sob uma porta.
Estou no chão.
Pessoas andando. Sentiu isso no assoalho.
Jéssica voltou a reprimir a lembrança do terror. Tenho de
me manter calma, alerta e preparada. Pode ser que eu tenha
apenas uma oportunidade. Mais uma vez, ela coagiu a calma
interior.
O latejar desajeitado das batidas de seu coração se
regularizou, dando forma ao tempo. Ela contou para trás.
Fiquei inconsciente quase uma hora. Fechou os olhos,
concentrou sua percepção nos passos que se aproximavam.
Quatro pessoas.
Contou as diferenças nos passos.
Tenho de fingir que ainda estou inconsciente. Ela relaxou no
chão gelado, experimentando a prontidão de seu corpo, ouviu
uma porta se abrir, sentiu a luz aumentar através das
pálpebras.
Dois pés se aproximaram: alguém parou ao lado dela.
– Está acordada – trovejou uma voz de baixo. – Não precisa
fingir.
Ela abriu os olhos.
O barão Vladimir Harkonnen estava de pé ao lado dela. À
sua volta, ela reconheceu o quarto do porão onde Paul dormira,
viu o catre dele num dos cantos, vazio. Os guardas trouxeram
luminárias suspensas e distribuíram-nas perto da porta
aberta. A luz intensa no corredor atrás da porta machucava-
lhe os olhos.
Ela olhou para cima, para o barão. Ele vestia uma capa
amarela que fazia volume por cima dos suspensores portáteis.
As bochechas gordas eram dois montes querubínicos sob os
olhinhos aracnonegros.
– O tempo de ação da droga foi calculado – ribombou ele. –
Sabíamos o exato minuto em que você recuperaria a
consciência.
Como?, ela se perguntou. Teriam de saber meu peso exato,
conhecer meu metabolismo, meu... Yueh!
– É uma pena que tenha de continuar amordaçada – disse
o barão. – Teríamos uma conversa tão interessante.
Só poderia ser Yueh, ela pensou. Mas como?
O barão olhou para a porta atrás dele.
– Entre, Piter.
Ela nunca antes tinha visto o homem que entrou e colocou-
se ao lado do barão, mas o rosto era conhecido, e também o
homem: Piter de Vries, o Assassino-Mentat. Ela o examinou:
traços aquilinos, olhos tingidos de azul que sugeriam ser ele
nativo de Arrakis, mas sutilezas de postura e movimentação
deixavam claro que não era o caso. E a pele dele era firme, rica
em água. Era alto, porém esguio, e havia nele algo de
efeminado.
– Pena que não possamos ter nossa conversa, minha cara
lady Jéssica – o barão disse. – No entanto, estou a par de suas
habilidades. – Ele olhou para o Mentat. – Não é verdade, Piter?
– Verdade, barão – disse o homem.
A voz era de tenor. Foi um banho gelado em sua espinha.
Ela nunca tinha ouvido uma voz tão enregelante. Para alguém
com o treinamento das Bene Gesserit, a voz gritava: matador!
– Tenho uma surpresa para o Piter – disse o barão. – Ele
pensa que veio aqui receber sua recompensa: você, lady
Jéssica. Mas quero demonstrar uma coisa: que ele não a deseja
realmente.
– Está brincando comigo, barão? – Piter perguntou, e
sorriu.
Vendo aquele sorriso, Jéssica se admirou que o barão não
tivesse saltado para se defender do tal Piter. E então ela se
corrigiu. O barão não sabia como decifrar aquele sorriso. Não
tinha o Treinamento.
– Em vários aspectos, Piter é tão ingênuo – o barão disse. –
Ele não admite que você é uma criatura mortífera, lady Jéssica.
Eu poderia mostrar a ele, mas seria correr um risco idiota. – O
barão sorriu para Piter, cujo rosto se transformara numa
máscara expectante. – Sei o que Piter quer de fato. Piter quer o
poder.
– O barão prometeu que eu poderia ficar com ela – Piter
disse. A voz de tenor perdera um pouco de sua circunspeção
gélida.
Jéssica ouviu os sinais na voz do homem e permitiu-se um
estremecimento interior. Como é que o barão conseguiu
transformar um Mentat num animal desses?
– Darei a você a oportunidade de escolher, Piter – disse o
barão.
– Escolher o quê?
O barão estalou os dedos gordos.
– Esta mulher e o exílio fora do Imperium, ou o Ducado de
Atreides em Arrakis para governar como bem entender em
meu nome.
Jéssica observou os olhos de aranha do barão examinarem
Piter.
– Você poderia ser o duque daqui, a não ser no título – o
barão disse.
Meu Leto está morto, então?, Jéssica se perguntou. Sentiu
um gemido mudo começar em algum ponto de sua mente.
O barão manteve sua atenção voltada para o Mentat.
– Entenda a si mesmo, Piter. Você a quer porque ela era a
mulher de um duque, um símbolo do poder dele: bela, útil,
treinada primorosamente para desempenhar seu papel. Mas
um ducado inteiro, Piter! É mais que um símbolo: é a realidade.
Com isso, você poderia ter muitas mulheres... e mais.
– Não está brincando com Piter?
O barão se virou com aquela leveza de dançarino que lhe
conferiam os suspensores.
– Brincando? Eu? Lembre-se: eu estou abrindo mão do
menino. Você ouviu o que o traidor disse a respeito do
treinamento do rapaz. São iguais, a mãe e o filho: mortíferos. –
O barão sorriu. – Tenho de ir. Mandarei o guarda que reservei
para este momento. É surdo como uma porta. As ordens dele
são transportar vocês na primeira etapa de sua viagem de
exílio. Ele subjugará a mulher se notar que ela tem você sob
controle. Não deixará você tirar a mordaça até terem saído de
Arrakis. Se você decidir não partir... ele tem outras ordens.
– Não precisa ir embora – Piter disse. – Já escolhi.
– Ah, rá! – fez o barão, com uma risadinha desdenhosa. –
Uma decisão tão rápida só pode significar uma coisa.
– Fico com o ducado – Piter disse.
E Jéssica pensou: Será que Piter não sabe que o barão está
mentindo? Mas... como poderia saber? Ele é um Mentat
deturpado.
O barão olhou para Jéssica.
– Não é prodigioso eu conhecer Piter tão bem? Apostei
com meu Mestre de Armas que essa seria a escolha de Piter.
Rá! Bem, já vou indo. Assim é muito melhor. Aaah, muito
melhor. Entendeu, lady Jéssica? Não tenho nada contra você. É
uma necessidade. Assim é muito melhor. Sim. E não cheguei
realmente a mandar que a destruíssem. Quando me
perguntarem o que aconteceu a você, poderei dar de ombros
sem fugir à verdade.
– Fica a meu critério, então? – Piter perguntou.
– O guarda que vou lhe mandar acatará suas ordens – disse
o barão. – Faça o que fizer, caberá a você decidir. – Ele encarou
Piter. – Sim. Neste caso, não haverá sangue em minhas mãos. A
decisão é sua. Sim. Não sei de nada. Espere até eu sair, então
faça o que tem de fazer. Sim. Bem... ah, sim. Sim. Ótimo.
Ele teme ser interrogado por uma Proclamadora da
Verdade, Jéssica pensou. Quem? Aaah, a Reverenda Madre
Gaius Helen, é claro! Se ele sabe que terá de ser interrogado por
ela, então o imperador certamente está envolvido nisto. Aaaah,
meu pobre Leto.
Com uma última olhadela para Jéssica, o barão se virou e
saiu pela porta. Ela o seguiu com os olhos, pensando: É como a
Reverenda Madre avisou: o adversário é forte demais.
Dois soldados Harkonnen entraram. Um terceiro, com a
cara tão marcada por cicatrizes que parecia uma máscara, veio
logo em seguida e ficou junto à porta, com uma armalês na
mão.
O surdo, Jéssica pensou, examinando o rosto marcado. O
barão sabe que eu poderia usar a Voz com qualquer outro
homem.
O de cara marcada olhou para Piter.
– O menino está numa liteira aí fora. Quais são suas
ordens?
Piter falou para Jéssica:
– Pensei em subjugar você ameaçando seu filho, mas estou
vendo que isso não funcionaria. Deixo a emoção anuviar a
razão. Não muito esperto para um Mentat. – Olhou para os dois
primeiros soldados, virando-se, para que o surdo pudesse ler
seus lábios: – Levem os dois para o deserto, como o traidor
sugeriu que fizéssemos com o menino. O plano dele é bom. Os
vermes irão destruir todas as provas. Seus corpos não poderão
ser encontrados.
– Não quer despachá-los pessoalmente? – perguntou Cara
Marcada.
Ele lê lábios, Jéssica pensou.
– Sigo o exemplo de meu barão – Piter disse. – Levem-nos
para onde o traidor mandou.
Jéssica ouviu o severo controle dos Mentats na voz de
Piter e pensou: Ele também teme a Proclamadora da Verdade.
Piter deu de ombros, virou-se e passou pelo vão da porta.
Ali hesitou, e Jéssica pensou que ele voltaria para dar uma
última olhada nela, mas ele saiu sem se virar.
– Eu é que não gosto nem de pensar em encarar a
Proclamadora da Verdade depois do servicinho desta noite –
disse Cara Marcada.
– Até parece que cê vai encontrar ela um dia – disse um dos
outros soldados. Ele deu a volta e se abaixou perto da cabeça
de Jéssica. – A gente fica aqui batendo papo e o serviço aí para
fazer. Segura os pés dela...
– Por que é que a gente não mata eles aqui mesmo? – Cara
Marcada perguntou.
– Muita sujeira – disse o primeiro. – A não ser que cê queira
estrangular eles. Eu já gosto de um serviço limpo e honesto. A
gente larga eles no deserto que nem o traidor disse, corta eles
um pouquinho e deixa as provas pros vermes. Depois não tem
que limpar nada.
– É... bem, acho que cê tem razão – disse Cara Marcada.
Jéssica os escutava com atenção, observando,
registrando. Mas a mordaça bloqueava sua Voz e havia que se
considerar o surdo.
Cara Marcada devolveu a armalês ao coldre, segurou os
pés dela. Ergueram-na como se ela fosse uma saca de grãos,
fizeram-na passar pela porta e a jogaram numa liteira
sustentada por suspensores que trazia um outro vulto
amarrado. Quando a viraram, para acomodá-la na liteira, ela
viu o rosto de sua companhia: Paul! Ele estava amarrado, mas
não amordaçado. O rosto dele não estava a mais de dez
centímetros do dela, olhos fechados, respiração regular.
Será que foi drogado?, ela se perguntou.
Os soldados ergueram a liteira, e os olhos de Paul se
abriram uma fração mínima: rasgos escuros olhando para ela.
Que ele não tente usar a Voz, ela rogou. O guarda surdo!
Os olhos de Paul se fecharam.
Ele vinha praticando a respiração da percepção,
tranquilizando sua mente, escutando seus captores. O surdo
era um problema, mas Paul conteve seu desespero. O regime
Bene Gesserit para acalmar a mente que sua mãe lhe ensinara
o mantinha a postos, pronto para aproveitar qualquer
oportunidade.
Paul se permitiu mais uma inspeção de olhos semicerrados
do rosto da mãe. Ela parecia ilesa. Mas amordaçada.
Ele se perguntou quem poderia tê-la capturado. Sua
própria captura era bem óbvia: foi dormir com uma cápsula
prescrita por Yueh, acordou e viu-se amarrado naquela liteira.
Talvez algo parecido tivesse acontecido com ela. A lógica dizia
que o traidor era Yueh, mas ele deixou a decisão final em
suspenso. Não havia como entender aquilo: um médico Suk,
traidor.
A liteira se inclinou de leve quando os soldados Harkonnen
a fizeram passar pelo vão de uma porta, noite estrelada
adentro. Um dos suspensores raspou no batente. E então
estavam sobre a areia que outros pés trituravam. Um tóptero
fazia vulto logo adiante, obliterando as estrelas. A liteira foi
depositada no chão.
Os olhos de Paul se adaptaram à luz fraca. Reconheceu o
soldado surdo como o homem que abria a porta do tóptero e
dava uma olhada lá para dentro, para a obscuridade verde
iluminada pelo painel de instrumentos.
– Este é o tóptero que a gente vai usar? – ele perguntou,
virando-se para observar os lábios do colega.
– Foi esse que o traidor disse que tinham adaptado pro
deserto – disse o outro.
Cara Marcada concordou com a cabeça.
– Mas é um daqueles veículos de ligação. Não tem espaço aí
dentro para mais do que dois de nós.
– Dois já tá bom – disse o que carregava a liteira,
aproximando-se e apresentando os lábios para leitura. –
Podemos cuidar disso de agora em diante, Kinet.
– O barão me falou para ter certeza do que vai acontecer
com esses dois – Cara Marcada objetou.
– Por que cê tá tão preocupado? – perguntou um outro
soldado, que vinha atrás daquele que carregava a liteira.
– Ela é uma bruxa Bene Gesserit – disse o surdo. – Elas têm
poderes.
– Aaah... – O da liteira fez o sinal da mão fechada junto à
orelha. – É uma delas, hein? Sei do que tá falando.
O soldado atrás dele grunhiu.
– Ela vai virar comida de verme daqui a pouco. Acho que
nem uma bruxa Bene Gesserit tem poder sobre um dos
grandes vermes. Hein, Czigo? – Ele cutucou o da liteira.
– É – disse o da liteira. Ele voltou à liteira e segurou Jéssica
pelos ombros. – Vamos, Kinet. Pode vir junto se quiser ter
certeza do que vai acontecer.
– Bondade sua me convidar, Czigo – Cara Marcada disse.
Jéssica sentiu-se erguida no ar, e a sombra da aeronave
girou... estrelas. Ela foi empurrada para a traseira do tóptero,
teve suas amarras de fibra de krimskell examinadas e
prenderam-na no banco com o cinto de segurança. Paul foi
espremido ao lado dela, preso com o cinto, e ela notou que ele
tinha sido amarrado apenas com corda.
Cara Marcada, o surdo que eles chamaram de Kinet,
sentou-se na frente. O da liteira, que chamaram de Czigo, deu a
volta e ficou com o outro assento da frente.
Kinet fechou sua porta e debruçou-se sobre os controles.
O tóptero decolou num salto de asas dobradas, dirigiu-se para
o sul, sobre a Muralha-Escudo. Czigo deu um tapinha no ombro
do colega e disse:
– Cê não quer virar e ficar de olho nos dois?
– Tem certeza que sabe o caminho? – Kinet observou os
lábios de Czigo.
– Ouvi o que o traidor disse tão bem quanto você.
Kinet girou seu assento. Jéssica viu o reflexo das estrelas
na armalês que ele trazia na mão. O interior do tóptero, uma
barreira à luz, parecia ficar mais iluminado à medida que os
olhos dela se adaptavam, mas a cara marcada do guarda
continuava obscura. Jéssica experimentou o cinto de seu
assento, viu que estava frouxo. Sentiu algo áspero na tira que
lhe tocava o braço esquerdo e percebeu que alguém tinha
praticamente cortado o cinto, que se romperia com um puxão
repentino.
Será que alguém esteve neste tóptero e o preparou para
nós?, ela se perguntou. Quem? Lentamente, ela desvencilhou os
pés amarrados dos de Paul.
– É mesmo uma vergonha desperdiçar uma mulher tão
bonita – Cara Marcada disse. – Cê já pegou uma dessas bem-
nascidas? – Ele se virou para o piloto.
– Nem todas as Bene Gesserit são bem-nascidas – disse o
piloto.
– Mas todas parecem ter nariz empinado.
Ele me enxerga muito bem, Jéssica pensou. Levou as
pernas amarradas ao assento, encolheu-se numa bola sinuosa,
sem tirar os olhos de Cara Marcada.
– É bem bonita, ela – Kinet disse. Umedeceu os lábios com
a língua. – É mesmo uma vergonha. – Olhou para Czigo.
– Cê tá pensando o que eu acho que tá pensando? – o piloto
perguntou.
– E quem ia saber? – o guarda perguntou. – E depois... – ele
deu de ombros. – Eu nunca peguei uma bem-nascida. Pode ser
que nunca mais tenha uma chance como esta.
– Se encostar um dedo na minha mãe... – disse Paul, entre
dentes. Ele olhou com ferocidade para Cara Marcada.
– Ei! – riu o piloto. – O cachorrinho sabe latir. Mas não
morde.
E Jéssica pensou: A voz de Paul saiu muito aguda. Mas
pode ser que funcione.
Continuaram voando em silêncio.
Pobres idiotas, Jéssica pensou, estudando os guardas e
rememorando as palavras do barão. Serão mortos tão logo
relatem o êxito de sua missão. O barão não quer testemunhas.
O tóptero fez uma curva sobre o limite sul da Muralha-
Escudo, e Jéssica viu um trecho de areia sombreado pelo luar
abaixo deles.
– Aqui já deve dar – o piloto disse. – O traidor disse para
deixá-los na areia em qualquer lugar perto da Muralha-Escudo.
– Ele fez a nave descer na direção das dunas num longo
mergulho em queda livre e nivelou-a bruscamente perto da
superfície do deserto.
Jéssica viu Paul começar a respirar no ritmo do exercício
de tranquilização. Ele fechou e abriu os olhos. Jéssica só fez
olhar, sem poder ajudá-lo. Ele ainda não domina a Voz, ela
pensou. Se ele falhar...
O tóptero tocou a areia com uma guinada suave, e Jéssica,
olhando para o norte, de volta à Muralha-Escudo, viu a sombra
de asas se esconder lá em cima.
Alguém está nos seguindo!, ela pensou. Quem? E depois: O
grupo que o barão designou para vigiar estes dois. E também
haverá vigias para os vigias.
Czigo desligou os rotores das asas. O silêncio inundou a
cabine.
Jéssica virou a cabeça. Via pela janela, atrás de Cara
Marcada, o brilho fraco de uma das luas que nascia, um aro
açucarado de rocha elevando-se do deserto. Elevações
erodidas pelas rajadas de areia raiavam-lhe os flancos.
Paul limpou a garganta.
O piloto disse:
– Agora, Kinet?
– Não sei, Czigo.
Czigo se virou e disse:
– Aaah, olha só. – Ele estendeu a mão na direção da saia de
Jéssica.
– Tire a mordaça dela – Paul ordenou.
Jéssica sentiu as palavras ressoarem no ar. O tom, o
timbre excelente: imperioso, muito feroz. Teria sido melhor se
tivesse saído um pouco mais grave, mas poderia ainda se
encaixar no espectro daquele homem.
Czigo desviou sua mão para a faixa na boca de Jéssica e
afrouxou o nó da mordaça.
– Pare com isso! – Kinet mandou.
– Ah, cala essa boca – Czigo disse. – As mãos dela tão
amarradas. – Ele soltou o nó e a faixa caiu. Seus olhos
brilharam quando ele examinou Jéssica.
Kinet pousou uma das mãos sobre o braço do piloto.
– Olha, Czigo, não precisa...
Jéssica torceu o pescoço, cuspiu a mordaça. Deu a sua voz
um tom grave e pessoal.
– Cavalheiros! Não precisam brigar por minha causa. – Ao
mesmo tempo, ela se contorceu sinuosamente para que Kinet
pudesse vê-la.
Ela viu que os dois ficaram tensos, sabendo que, naquele
instante, eles se convenceram de que era preciso brigar por
ela. Sua discordância não precisava de outro motivo. Em suas
mentes, eles já estavam brigando por ela.
Ela ergueu o rosto, iluminado pelos instrumentos, para
garantir que Kinet lesse seus lábios, e disse:
– Não se indisponham. – Eles se afastaram ainda mais e
trocaram olhares desconfiados. – Existe alguma mulher pela
qual valha a pena lutar? – ela perguntou.
Pelo simples fato de pronunciar as palavras, de estar ali,
ela fez valer a pena lutarem por ela.
Paul apertou os lábios, obrigou-se a ficar quieto. Ele tivera
sua oportunidade com a Voz. Agora... tudo dependia de sua
mãe, cuja experiência era muito maior que a sua.
– É – Cara Marcada disse. – A gente não precisa brigar por
causa...
A mão dele disparou na direção da garganta do piloto. O
golpe foi recebido por um brilho metálico que bloqueou o braço
e, no mesmo movimento, enterrou-se impetuosamente no
peito de Kinet.
Cara Marcada gemeu, arqueou-se para trás, de encontro à
porta.
– Achou que eu fosse um idiota pra não conhecer esse
truque – Czigo disse. Ele recolheu a mão, revelando a faca, que
cintilou à luz do luar.
– Agora o cachorrinho – ele disse, e inclinou-se na direção
de Paul.
– Não é necessário – Jéssica murmurou.
Czigo hesitou.
– Não prefere que eu coopere? – Jéssica perguntou. – Dê
uma chance ao menino. – Seus lábios se abriram num sorriso
escarninho. – Ele já tem tão poucas lá fora, na areia. Se lhe
concedesse isso... – Ela sorriu. – Você poderia se ver muito bem
recompensado.
Czigo olhou para a esquerda, para a direita, voltou sua
atenção para Jéssica.
– Já me contaram o que um homem pode passar nesse
deserto – ele disse. – A faca pode ser uma bênção pro garoto.
– Não estou pedindo muito – Jéssica implorou.
– Está tentando me enganar – Czigo disse.
– Não quero ver meu filho morrer – Jéssica disse. – Onde
está o truque?
Czigo recuou, acionou o trinco da porta com o cotovelo.
Agarrou Paul, arrancou-o do assento, colocou metade do corpo
do menino para fora do tóptero e segurou a faca no ar.
– Que é que cê vai fazer, cachorrinho, se eu cortar suas
cordas?
– Ele sairá daqui imediatamente e irá para aquelas rochas
– Jéssica disse.
– É isso que vai fazer, cachorrinho? – Czigo perguntou.
A voz de Paul saiu convenientemente rude.
– Sim.
A faca baixou, cortou as amarras das pernas dele. Paul
sentiu em suas costas a mão pronta para atirá-lo na areia,
fingiu cambalear de encontro ao umbral da porta em busca de
apoio, virou-se como quem tentasse se segurar e atacou com o
pé direito.
O dedo do pé foi dirigido com uma precisão que fazia jus a
seus longos anos de treinamento, como se todo aquele
treinamento se concentrasse naquele instante. Quase todos os
músculos de seu corpo cooperaram na colocação do golpe. A
ponta atingiu a parte mole do abdômen de Czigo, logo abaixo
do esterno, e subiu com toda a força, passando por cima do
fígado e atravessando o diafragma para esmagar o ventrículo
direito do coração do homem.
Com um grito gorgolejante, o guarda foi atirado para trás,
sobre os bancos. Paul, incapaz de usar as mãos, continuou a
cair até a areia, aterrissando com uma cambalhota que
absorveu o impacto e o recolocou em pé num só movimento.
Ele voltou a entrar na cabine, encontrou a faca e segurou-a
entre os dentes enquanto sua mãe serrava as amarras que a
prendiam. Ela pegou a arma e liberou as mãos dele.
– Eu poderia ter cuidado dele – ela disse. – Ele teria de
cortar minhas amarras. Foi um risco idiota.
– Vi a oportunidade e a aproveitei – ele disse.
Ela ouviu o controle severo da voz dele e disse:
– O sinal da casa de Yueh foi desenhado no teto desta
cabine.
Ele olhou para cima e viu o símbolo em caracol.
– Vamos sair e examinar este veículo – ela disse. – Há uma
mochila debaixo do banco do piloto. Eu a senti quando
entramos.
– Uma bomba?
– Duvido. Há algo peculiar aqui.
Paul saltou para a areia e Jéssica o seguiu. Ela se virou,
enfiou a mão sob o banco, à procura da estranha mochila,
vendo os pés de Czigo bem perto de seu rosto, sentindo a
umidade da mochila ao retirá-la, percebendo que era o sangue
do piloto.
Desperdício de umidade, ela pensou, sabendo que se
tratava de um pensamento arrakino.
Paul olhou ao redor, viu a escarpa rochosa que se erguia do
deserto, como uma praia que se elevava do mar, e as paliçadas
esculpidas pelo vento mais adiante. Ele deu meia-volta quando
sua mãe tirou a mochila do tóptero, viu-a olhar por sobre as
dunas, para a Muralha-Escudo. Ele olhou para ver o que tinha
chamado a atenção dela, viu um outro tóptero se precipitando
na direção deles, percebeu que não tinham tempo para tirar os
corpos de dentro do tóptero e fugir.
– Corra, Paul! – Jéssica gritou. – São os Harkonnen!
Arrakis ensina a mentalidade da faca:
cortar fora o que está incompleto e dizer
que “agora está completo, porque acabou
aqui”.
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Um homem vestindo o uniforme Harkonnen derrapou no


chão e deteve-se na ponta do corredor; olhou para Yueh,
assimilou num só relance o corpo de Mapes, a forma estatelada
do duque, Yueh ali de pé. O homem segurava uma armalês em
sua mão direita. Havia nele um ar despreocupado de
brutalidade, uma sensação de vigor e aplomb que fez Yueh
estremecer.
Sardaukar, Yueh pensou. Um bashar, pelo jeito.
Provavelmente um dos subordinados diretos do imperador,
mandado aqui para ficar de olho nas coisas. Não importa o
uniforme, não há como disfarçá-los.
– Você é Yueh – o homem disse. Ele olhou intrigado para o
anel da Escola Suk nos cabelos do médico, olhou uma vez só
para a tatuagem em forma de diamante e depois encontrou os
olhos de Yueh.
– Sou Yueh – disse o médico.
– Pode relaxar, Yueh – o homem disse. – Quando você
baixou os escudos da casa, nós entramos em seguida. Tudo
está sob controle. Esse é o duque?
– Este é o duque.
– Está morto?
– Apenas inconsciente. Sugiro que o amarre.
– Foi você que liquidou aqueles ali? – Ele olhou de relance
para trás, na direção do corredor, onde jazia o corpo de Mapes.
– Tanto pior – Yueh murmurou.
– Pior! – desdenhou o Sardaukar. Ele avançou, olhou para
Leto no chão. – Então este é o grande Duque Vermelho.
Se eu ainda tivesse alguma dúvida sobre a identidade deste
homem, não a teria mais agora, Yueh pensou. Somente o
imperador chama os Atreides de Duques Vermelhos.
O Sardaukar se abaixou, cortou a insígnia do gavião
vermelho que Leto trazia no uniforme.
– É só uma lembrancinha – ele disse. – Onde está o anel do
sinete ducal?
– Não está com ele – Yueh disse.
– Estou vendo! – o Sardaukar berrou.
Yueh se empertigou e engoliu em seco. Se me
pressionarem, se trouxerem uma Proclamadora da Verdade,
descobrirão sobre o anel, sobre o tóptero que preparei: será tudo
um fracasso.
– Às vezes, o duque mandava o anel por um mensageiro,
para garantir que a ordem vinha diretamente dele – Yueh disse.
– Devem ser uns mensageiros de total confiança –
resmungou o Sardaukar.
– Não vai amarrá-lo? – Yueh arriscou.
– Por quanto tempo ele ficará inconsciente?
– Mais ou menos duas horas. Não fui tão preciso na
dosagem dele como fiz com a mulher e o menino.
O Sardaukar cutucou o duque com o dedo do pé.
– Desse não precisamos ter medo nem mesmo acordado.
Quando é que a mulher e o menino irão acordar?
– Daqui a uns dez minutos.
– Tão cedo?
– Disseram-me que o barão chegaria logo depois de seus
homens.
– Assim será. Você espera lá fora, Yueh. – Olhou duro para
o médico. – Agora!
Yueh olhou para Leto.
– E quanto...
– Ele será entregue ao barão devidamente amarrado como
um assado que vai ao forno. – Mais uma vez, o Sardaukar olhou
para o diamante tatuado na testa de Yueh. – Você é conhecido;
estará bem seguro nos corredores. Não temos mais tempo
para jogar conversa fora, traidor. Já estou ouvindo os outros
que chegam.
Traidor, Yueh pensou. Baixou o olhar, passou pelo
Sardaukar, sabendo que era só um vislumbre de como a
história se lembraria dele: Yueh, o traidor.
Ele passou por outros cadáveres no caminho até a entrada
principal e olhou de relance para eles, temendo que um deles
pudesse ser Paul ou Jéssica. Eram todos soldados da guarda,
ou então usavam uniformes Harkonnen.
Alguns guardas Harkonnen ficaram alertas e o encararam
quando ele saiu pela porta da frente para a noite iluminada
pelas chamas. Haviam ateado fogo às palmeiras da rua para
iluminar a casa. A fumaça negra do combustível usado para
incendiar as árvores subia aos borbotões, atravessando as
chamas alaranjadas.
– É o traidor – alguém disse.
– O barão vai querer ver você em breve – disse um outro.
Tenho de chegar ao tóptero, Yueh pensou. Tenho de colocar
o anel ducal num lugar onde Paul possa encontrá-lo. E o medo o
atingiu: Se Idaho desconfiar de mim ou perder a paciência – se
não esperar e se não for exatamente aonde eu lhe disse para ir –,
Jéssica e Paul não serão poupados do massacre. E a mim será
negado até mesmo esse pequeno alívio para a consciência.
O guarda Harkonnen soltou o braço dele e disse:
– Espere ali e fique fora do caminho.
De repente, Yueh se viu como pária naquele cenário de
destruição, sem que nada lhe fosse poupado, sem que lhe
demonstrassem um pingo de pena. Idaho não pode falhar!
Um outro guarda trombou com ele e gritou:
– Fique fora do caminho!
Mesmo se aproveitando de mim, eles me desprezam, Yueh
pensou. Ele se empertigou depois de ser empurrado para um
lado e recuperou um pouco de sua dignidade.
– Espere o barão! – rosnou um oficial da guarda.
Yueh assentiu, caminhou com naturalidade controlada ao
longo da fachada da casa, dobrou a esquina e entrou nas
sombras, fora do alcance da luz das palmeiras em chamas.
Rapidamente, e cada passo denunciava sua ansiedade, ele foi
até o jardim dos fundos, sob a estufa, onde o tóptero esperava:
a nave que ele posicionara ali para levar Paul e sua mãe.
Havia um guarda diante da porta aberta nos fundos da
casa, com a atenção concentrada no corredor iluminado e no
estardalhaço que faziam os homens lá dentro, vasculhando
sala por sala.
Como estavam confiantes!
Yueh abraçou as sombras, contornou o tóptero, abriu
delicadamente a porta do lado oposto ao que se achava o
guarda. Tateou sob os assentos da frente, em busca do fremkit
que escondera ali, levantou uma aba e enfiou lá dentro o sinete
ducal. Sentiu que amassava o papel de especiaria, o bilhete que
escrevera, e enfiou o anel dentro dele. Recolheu a mão e voltou
a fechar a mochila.
Yueh fechou de mansinho a porta do tóptero, contornou a
esquina da casa e voltou às árvores em chamas.
Está feito, ele pensou.
Mais uma vez, ele apareceu à luz das palmeiras ardentes.
Envolveu-se mais em seu manto, olhou para as chamas. Logo
saberei. Logo verei o barão e saberei. E o barão... ele irá
confrontar um pequeno dente.
Reza a lenda que, no instante em que o
duque Leto Atreides morreu, um meteoro
cruzou os céus sobre o palácio de seus
ancestrais em Caladan.
– princesa Irulan, introdução à “História de Muad’Dib para
crianças”

O barão Vladimir Harkonnen estava diante de uma


escotilha do cargueiro, agora pousado, que ele vinha usando
como posto de comando. Pela escotilha, ele via a noite arrakina
iluminada pelas chamas. Sua atenção se concentrou na
distante Muralha-Escudo, onde a arma secreta do barão fazia
seu trabalho.
Artilharia explosiva.
As armas beliscavam as cavernas para onde os homens de
armas do duque haviam se retirado para uma resistência
desesperada. Mordidas cuidadosamente calculadas, clarões
alaranjados, saraivadas de pedra e terra iluminadas
momentaneamente – e os homens do duque eram enterrados
vivos, para morrer de fome, apanhados feito animais em suas
tocas.
O barão sentia aquela mastigação distante: um rufar de
tambor que chegava até ele através do metal da nave: bruum...
bruum. E então: BRUUM-bruum!
Quem pensaria em reviver a artilharia nesta era de
escudos? O pensamento era uma risadinha em sua mente. Mas
era previsível que os homens do duque corressem para aquelas
cavernas. E o imperador agradecerá minha inteligência em
preservar as vidas de nossa força conjunta.
Ele ajustou um dos pequenos suspensores que protegiam
seu corpo obeso da força da gravidade. Um sorriso vincou-lhe o
rosto, esticando as linhas de suas papadas.
É uma pena desperdiçar os homens de armas do duque, ele
pensou. Alargou o sorriso, rindo de si mesmo. Que crueldade
sentir pena! Balançou a cabeça. O fracasso era, por definição,
sacrificável. O universo inteiro estava ali, escancarado diante
do homem que conseguisse tomar as decisões corretas. Era
preciso expor os coelhos inseguros, fazê-los correr para suas
tocas. Senão, como fazer para controlá-los e procriá-los?
Imaginou seus homens de armas como abelhas desbaratando
os coelhos. E pensou: O dia é um único e delicioso zumbido
quando temos abelhas suficientes a nosso serviço.
Uma porta se abriu atrás dele. O barão examinou o reflexo
na escotilha negro-noite antes de se virar.
Piter de Vries avançou aposento adentro, seguido por
Umman Kudu, o capitão da guarda pessoal do barão. Havia
uma movimentação de homens à porta, as caras submissas de
seus guardas, as expressões cuidadosamente servis na
presença dele.
O barão se virou.
Piter levou um dedo ao topete, arremedando uma
continência.
– Boas-novas, milorde. Os Sardaukar trouxeram o duque.
– Claro que trouxeram – ribombou o barão.
Ele estudou a máscara lúgubre de maldade no rosto
efeminado de Piter. E os olhos: aqueles rasgos velados do mais
puro azul sobre azul.
Tenho de me livrar logo dele, o barão pensou. Quase já não
tem mais serventia, quase chega a representar uma ameaça
definitiva a minha pessoa. Primeiro, porém, ele tem de fazer o
povo de Arrakis odiá-lo. E então... meu querido Feyd-Rautha
será recebido como um salvador.
O barão desviou sua atenção para o capitão da guarda –
Umman Kudu, de rosto talhado à faca e queixo afilado –, um
homem de confiança, pois os vícios do capitão eram
conhecidos.
– Primeiro, onde está o traidor que me entregou o duque? –
o barão perguntou. – Tenho de dar ao traidor sua recompensa.
Piter girou nas pontas dos pés, fez sinal aos guardas lá
fora.
Uma coisa negra se moveu ali, e Yueh passou pela porta.
Seus movimentos eram rígidos e vigorosos. O bigode pendia,
flanqueando-lhe os lábios roxos. Somente os olhos cansados
pareciam vivos. Yueh se deteve depois de dar três passos sala
adentro, obedecendo a um sinal de Piter, e ali ficou, fitando o
barão, o espaço vazio entre eles.
– Aaah, dr. Yueh.
– Milorde Harkonnen.
– Entregou-nos o duque, pelo que me disseram.
– Minha parte no acordo, milorde.
O barão olhou para Piter.
Piter acenou com a cabeça.
O barão voltou a olhar para Yueh.
– Cumprida à risca, hein? E eu... – Ele cuspiu as palavras: –
O que eu tinha mesmo de fazer em troca?
– Lembra-se muito bem, milorde Harkonnen.
E Yueh permitiu-se pensar agora, ouvindo o silêncio
clamoroso de relógios em sua mente. Tinha visto os indícios
sutis nos modos do barão. Wanna estava mesmo morta – muito
além do alcance deles. Do contrário, ainda haveria como
controlar o médico fraco. A atitude do barão indicava que não
havia controle algum: terminara.
– Lembro? – o barão perguntou.
– Prometeu libertar minha Wanna de sua agonia.
O barão assentiu.
– Ah, sim. Agora me lembro. Foi isso. Essa foi minha
promessa. Foi assim que subvertemos o Condicionamento
Imperial. Não aguentou ver sua bruxa Bene Gesserit rastejar
nos amplificadores de dor de Piter. Bem, o barão Vladimir
Harkonnen sempre cumpre suas promessas. Eu disse que a
livraria da agonia e permitiria a você se juntar a ela. Que assim
seja. – Acenou com a mão para Piter.
Os olhos azuis de Piter assumiram uma aparência vítrea.
Seu movimento foi felino em sua repentina fluidez. A faca em
sua mão cintilou feito garra ao entrar como relâmpago nas
costas de Yueh.
O velho se empertigou, sem desviar sua atenção do barão.
– Junte-se a ela, então! – o barão disse, com veemência.
Yueh continuou de pé, vacilante. Seus lábios se moveram
com minuciosa precisão, e sua voz saiu numa cadência
estranhamente calculada:
– Vo... cê... pen... sa... que... me... der... ro... tou. Pen... sa...
que... não... sei... o ... que... com... prei... para... mi... nha...
Wanna.
Ele tombou. Não dobrou os joelhos nem amorteceu a
queda. Foi como se derrubassem uma árvore.
– Junte-se a ela, então – o barão repetiu. Mas suas palavras
foram como um eco fraco.
Yueh o enchera com uma sensação agourenta. Voltou
rapidamente sua atenção para Piter, viu o homem limpar a
lâmina num trapo qualquer, observou o olhar cremoso de
satisfação nos olhos azuis.
Então é assim que ele mata com as próprias mãos, o barão
pensou. É bom saber.
– Ele realmente nos entregou o duque? – o barão
perguntou.
– Com certeza, milorde – Piter disse.
– Então, traga-o aqui!
Piter olhou para o capitão da guarda, que deu meia-volta
para obedecer.
O barão olhou para Yueh no chão. Da maneira como o
homem havia tombado, era de se suspeitar que tivesse
carvalho em lugar dos ossos.
– Nunca consegui confiar num traidor – o barão disse. –
Nem mesmo num traidor que eu tenha criado.
Olhou para a escotilha amortalhada pela noite. O barão
sabia que aquela quietude negra lá fora era dele. Não havia
mais a explosão da artilharia contra as cavernas da Muralha-
Escudo; as armadilhas em forma de tocas estavam fechadas.
De repente, a mente do barão não conseguia conceber nada
mais belo do que aquela absoluta inanidade negra. A menos
que fosse o branco sobre o negro. Branco laminado sobre o
negro. Branco como porcelana.
Mas restava a sensação de dúvida.
O que teria querido dizer o médico velho e idiota? Claro
que provavelmente sabia o que o esperava. Mas aquela parte
sobre pensar que o tinha derrotado: “Você pensa que me
derrotou”.
O que ele teria querido dizer?
O duque Leto Atreides entrou pela porta. Seus braços
estavam acorrentados, o rosto aquilino riscado de terra. Seu
uniforme estava rasgado, pois lhe haviam arrancado a insígnia.
A cintura estava em farrapos, pois lhe tinham tirado o
cinturão-escudo sem antes desfazer os laços do uniforme. Os
olhos do duque tinham um aspecto vidrado e insano.
– Beeeem – o barão disse. Ele hesitou, inspirando
profundamente. Sabia que tinha falado alto demais. Aquele
momento, tão esperado, perdera um pouco de seu sabor.
Maldito seja aquele médico execrável por toda a eternidade!
– Creio que o bom duque esteja drogado – Piter disse. – Foi
assim que Yueh o capturou para nós. – Piter virou-se para o
duque. – Não está drogado, meu caro duque?
A voz vinha de muito longe. Leto sentia as correntes, a dor
nos músculos, os lábios rachados, a face em chamas, o gosto
seco da sede que rilhava em sua boca. Mas os sons eram
surdos, abafados por um cobertor felpudo. E ele via apenas
formas indistintas através do cobertor.
– E a mulher e o menino, Piter? – o barão perguntou. –
Alguma notícia?
Piter passou rapidamente a língua pelos lábios.
– Você sabe de alguma coisa! – o barão gritou. – O que é?
Piter olhou para o capitão da guarda, depois para o barão.
– Os homens enviados para fazer o serviço, milorde...
Eles... ah... foram... ah... encontrados.
– Bem, e o que disseram foi satisfatório?
– Estão mortos, milorde.
– Claro que estão! O que quero saber é...
– Estavam mortos quando foram encontrados, milorde.
O barão ficou lívido.
– E a mulher e o menino?
– Nenhum sinal, milorde, mas havia um verme. Chegou
enquanto o local era examinado. Talvez tudo tenha saído como
queríamos: um acidente. Possivelmente...
– Não vivemos de possibilidades, Piter. E quanto ao
tóptero desaparecido? Isso sugere alguma coisa a meu Mentat?
– Um dos homens do duque obviamente fugiu nele,
milorde. Matou nosso piloto e fugiu.
– Qual dos homens do duque?
– Foi uma morte limpa e discreta, milorde. Hawat, talvez,
ou aquele tal Halleck. Possivelmente Idaho. Ou qualquer lugar-
tenente do alto escalão.
– Possibilidades – o barão resmungou. Olhou para a figura
instável e drogada do duque.
– A situação está sob controle, milorde – Piter disse.
– Não está, não! Onde está aquele planetólogo estúpido?
Onde está o tal Kynes?
– Disseram-nos onde encontrá-lo e já o mandamos buscar,
milorde.
– Não estou gostando da maneira como o funcionário do
imperador está nos ajudando – o barão murmurou.
Eram palavras através de um cobertor felpudo, mas
algumas ficaram gravadas a fogo na mente de Leto. A mulher e
o menino: nenhum sinal. Paul e Jéssica tinham escapado. E a
sorte de Hawat, Halleck e Idaho era uma incógnita. Ainda havia
esperança.
– Onde está o anel do sinete ducal? – indagou o barão. –
Não há nada no dedo dele.
– Os Sardaukar disseram que não estava com ele quando o
pegaram, milorde – disse o capitão da guarda.
– Você matou o médico cedo demais – o barão disse. – Foi
um erro. Você deveria ter me avisado, Piter. Agiu de maneira
muito precipitada, e isso pode prejudicar nosso
empreendimento. – Ele franziu as sobrancelhas. –
Possibilidades!
O pensamento persistia como uma onda senoidal na
mente de Leto: Paul e Jéssica escaparam! E havia algo mais em
sua memória:
O dente!
Lembrava-se de uma parte agora: uma pílula de gás
venenoso na forma de um dente postiço.
Alguém lhe dissera para se lembrar do dente. O dente
estava em sua boca. Sentia-lhe a forma com a língua. Tudo o
que ele tinha a fazer era mordê-lo com força.
Ainda não!
A pessoa lhe dissera para esperar até estar perto do
barão. Quem lhe dissera aquilo? Não conseguia lembrar.
– Quanto tempo ele ficará assim, drogado? – o barão
perguntou.
– Talvez mais uma hora, milorde.
– Talvez – o barão resmungou. Virou-se mais uma vez para
a janela enegrecida pela noite. – Estou com fome.
Aquele é o barão, aquela forma vaga e cinzenta ali, Leto
pensou. A forma ia e vinha, oscilando com o movimento da sala.
E a sala aumentou e diminuiu. Ficou mais clara e mais escura.
Desmoronou nas trevas e desapareceu.
O tempo tornou-se uma sequência de camadas para o
duque. Ele se deixou levar de uma para outra. Tenho de esperar.
Havia uma mesa. Leto viu a mesa com bastante nitidez. E
um homem obscenamente gordo do outro lado da mesa, com
os restos de uma refeição diante dele. Leto sentiu que estava
sentado numa cadeira de frente para o homem gordo, sentiu as
correntes, as correias que mantinham seu corpo entorpecido
na cadeira. Sabia que algum tempo havia se passado, mas não
tinha ideia de quanto.
– Creio que ele está voltando a si, barão.
Uma voz sedosa, aquela. Era Piter.
– Estou vendo, Piter.
Um baixo retumbante: o barão.
Leto percebeu que os arredores começavam a ficar mais
nítidos. A cadeira na qual se sentava ganhou firmeza, as
amarras ficaram mais distintas.
E ele via o barão claramente agora. Leto observou os
movimentos das mãos do homem: toques compulsivos na
borda de um prato, no cabo de uma colher, o dedo que traçava
a prega de uma papada.
Leto observou a mão em movimento, fascinado por ela.
– Você está me ouvindo, duque Leto – o barão disse. – Sei
que está me ouvindo. Queremos saber de você onde encontrar
sua concubina e o filho que teve com ela.
Nenhum sinal escapou a Leto, mas as palavras foram um
banho de tranquilidade. É verdade, então: eles não têm Paul e
Jéssica.
– Isto não é uma brincadeira de criança – trovejou o barão.
– Deve saber disso. – Ele se inclinou na direção de Leto,
estudando-lhe o rosto. Afligia o barão não poder lidar com
aquilo em particular, só entre os dois. Que outras pessoas
vissem a realeza naquela situação... aquilo abria um péssimo
precedente.
Leto sentiu que suas forças retornavam. E, agora, a
lembrança do dente postiço se destacava em sua mente como a
torre de uma igreja numa paisagem plana. A cápsula em forma
de nervo dentro do dente – o gás venenoso –, ele se lembrou de
quem havia colocado a arma letal em sua boca.
Yueh.
A lembrança, nublada pelas drogas, de ver um cadáver
flácido ser arrastado diante dele, naquela sala suspensa como
vapor na mente de Leto. Sabia que tinha sido Yueh.
– Está ouvindo esse barulho, duque Leto? – o barão
perguntou.
Leto tomou ciência do gemido de uma rã, o choro gutural
de alguém em agonia.
– Pegamos um de seus homens disfarçado de fremen –
disse o barão. – Percebemos o disfarce com facilidade: foram os
olhos, sabe. Ele insiste em dizer que recebeu ordens para viver
entre os fremen e espioná-los. Vivi algum tempo neste planeta,
cher cousin. Não se espiona aquela ralé maltrapilha do deserto.
Diga-me, comprou o auxílio deles? Mandou sua mulher e filho
para eles?
Leto sentiu o medo apertar-lhe o peito. Se Yueh os mandou
para o povo do deserto... a busca só cessará quando forem
encontrados.
– Vamos, vamos – disse o barão. – Não temos muito tempo
e a dor não tarda. Por favor, não nos leve a isso, meu caro
duque. – O barão olhou para Piter, que estava de pé junto ao
ombro de Leto. – Piter não tem todos os seus instrumentos
aqui, mas tenho certeza de que ele é capaz de improvisar.
– O improviso, às vezes, é melhor, barão.
Essa voz sedosa e insinuante! Leto a escutou ao pé do
ouvido.
– Você tinha um plano de emergência – o barão disse. –
Para onde mandou sua mulher e o menino? – Ele olhou para a
mão de Leto. – Seu anel sumiu. O menino ficou com ele?
O barão ergueu os olhos e fitou os de Leto.
– Não responde – ele disse. – Vai me obrigar a fazer algo
que não quero fazer? Piter usará métodos simples e diretos.
Concordo que, às vezes, são os melhores, mas não é nada bom
que você tenha de ser submetido a essas coisas.
– Sebo quente aplicado às costas, talvez, ou nas pálpebras
– Piter disse. – Talvez em outras partes do corpo. É
particularmente eficaz quando a vítima não sabe onde o sebo a
atingirá em seguida. É um bom método, e há uma espécie de
beleza no padrão de bolhas brancas e pustulentas sobre a pele
nua, não é, barão?
– Um primor – disse o barão, e sua voz soou amarga.
Esses dedos irrequietos! Leto observava as mãos gordas, as
joias cintilantes naquelas mãos gordas como as de um bebê,
suas andanças compulsivas.
O choro agoniado que entrava pela porta atrás dele
exasperava o duque. Quem foi que pegaram?, ele se perguntou.
Teria sido Idaho?
– Acredite, cher cousin – disse o barão. – Não quero que
chegue a isso.
– Pense nos mensageiros nervosos, correndo para pedir
uma ajuda que não virá – Piter disse. – É uma arte, sabe.
– Você é um artista soberbo – grunhiu o barão. – Agora,
tenha a decência de ficar calado.
Leto lembrou-se de repente de uma coisa que Gurney
Halleck havia dito certa vez, ao ver um retrato do barão. “Então
vi subir do mar uma besta... e sobre suas cabeças nomes de
blasfêmia.”
– Estamos perdendo tempo, barão – Piter disse.
O barão concordou.
– Sabe, meu caro Leto, você acabará nos contando onde
eles estão. Existe um nível de dor que irá comprá-lo.
É bem provável que esteja certo, Leto pensou. Não fosse o
dente... e o fato de que realmente não sei onde eles estão.
O barão pegou uma fatia de carne, enfiou-a na boca,
mastigou devagar e engoliu. Precisamos tentar outra coisa, ele
pensou.
– Observe este indivíduo, oferecido como troféu, que nega
estar à venda – disse o barão. – Observe-o, Piter.
E o barão pensou: Sim! Veja-o, esse homem que acredita ser
impossível comprá-lo. Veja-o detido ali por um milhão de ações
de si mesmo, vendido aos pouquinhos a cada segundo de sua
vida! Se o pegasse agora e o sacudisse, ele iria retinir por dentro.
Esvaziado! Vendido por completo! Que diferença faz como irá
morrer?
O gemido de rã ao fundo cessou.
O barão viu Umman Kudu, o capitão da guarda, aparecer
no vão da porta do outro lado da sala e balançar a cabeça. O
prisioneiro não dera a informação desejada. Mais um fracasso.
Hora de parar de desperdiçar seu tempo com aquele duque
idiota, o idiota mole e estúpido que não percebia como o
inferno estava perto dele: a distância medida pela espessura de
um nervo.
Esse pensamento tranquilizou o barão, superando sua
relutância em submeter um membro da realeza a tortura. Viu-
se, de repente, como um cirurgião praticando intermináveis
dissecções com tesouras flexíveis: cortando e arrancando as
máscaras dos tolos, revelando o inferno que havia por baixo.
Coelhos, todos eles!
E como se encolhiam ao ver um carnívoro!
Leto, do outro lado da mesa, só fazia olhar, perguntando-
se por que esperava. O dente acabaria com tudo rapidamente.
Contudo... tinha sido boa sua vida, em grande parte. Viu-se
recordando uma pipa-antena e suas cabriolas no céu azul e
nacarado de Caladan, e Paul rindo de alegria ao vê-la. E
lembrou-se do nascer do sol ali em Arrakis: as camadas de cor
da Muralha-Escudo, suavizadas por uma névoa de pó.
– Que pena – o barão murmurou. Afastou-se da mesa com
um empurrão, levantou-se agilmente com a ajuda de seus
suspensores e hesitou, vendo uma mudança acometer o duque.
Viu o homem inspirar fundo, enrijecer o queixo, a ondulação de
um músculo da mandíbula quando o duque cerrou a boca.
Que medo ele tem de mim!, o barão pensou.
Transtornado pelo medo de que o barão pudesse lhe
escapar, Leto mordeu com força o dente-cápsula, sentiu-o
quebrar. Abriu a boca, expeliu o vapor cáustico cujo sabor
começava a sentir, o gás formando-se em sua língua. O barão
encolheu, uma figura no final de um túnel cada vez mais
apertado. Leto ouviu um grito sufocado ao pé do ouvido, o
homem da voz sedosa: Piter.
Pegou-o também!
– Piter! Qual é o problema?
A voz trovejou muito longe.
Leto percebeu que lembranças passavam por sua mente,
os resmungos desdentados das velhas. A sala, a mesa, o barão,
um par de olhos aterrorizados – de azul sobre azul, os olhos –,
tudo comprimido a seu redor em arruinada simetria.
Havia um homem de queixo afilado, um homem de
brinquedo que caía. O homem de brinquedo tinha o nariz
quebrado, inclinado para a esquerda: um metrônomo em
contratempo, congelado eternamente no início de uma batida.
Leto ouviu o som de cerâmica que se partia – tão longe –, um
rugido em seus ouvidos. Sua mente era uma arca sem fundo
que recebia tudo. Tudo que já tinha existido: cada grito, cada
sussurro, cada... silêncio.
Restava-lhe um pensamento. Leto o viu numa luz informe
sobre raios negros: O dia que a carne molda, e a carne que o dia
molda. O pensamento lhe deu uma sensação de plenitude que
ele sabia que nunca conseguiria explicar.
Silêncio.
O barão estava encostado em sua porta particular, seu
refúgio atrás da mesa. Ele a tinha fechado com estrondo,
deixando para trás uma sala cheia de mortos. Seus sentidos
captaram os guardas que se aglomeravam em volta dele. Será
que respirei aquilo?, ele se perguntou. O que quer que fosse, será
que também me pegou?
Sua audição voltou... e a razão também. Ouviu alguém
gritar ordens: máscaras de gás... manter uma porta fechada...
ligar os exaustores.
Os outros caíram rápido, pensou. Ainda estou de pé. Ainda
estou respirando. Inferno! Essa passou perto!
Agora era capaz de analisar o que acontecera. Seu escudo
estava ativado, em nível baixo, mas suficiente para desacelerar
a troca molecular de um lado a outro da barreira. E ele se
afastara da mesa... isso e o grito sufocado e surpreso de Piter,
que fizera o capitão da guarda correr para a morte.
O acaso e o alerta no último suspiro de um homem: foi o
que o salvou.
O barão não sentia a menor gratidão em relação a Piter. O
idiota provocara a própria morte. E o estúpido capitão da
guarda! Dissera ter examinado todos antes de levá-los à
presença do barão! Como foi que o duque...? Nenhum aviso.
Nem mesmo do farejador de venenos acima da mesa... não até
ser tarde demais. Como?
Bem, agora já não importa, o barão pensou, firmando sua
mente. O próximo capitão da guarda terá como primeira
missão encontrar respostas para essas perguntas.
Percebeu mais atividade no fim do corredor, depois da
curva, junto à outra porta que dava para aquela sala da morte.
O barão se afastou da porta, examinou os lacaios que o
cercavam. Estavam ali, de olhos fixos, em silêncio, à espera de
uma reação do barão.
Será que o barão está zangado?
E o barão percebeu que haviam se passado apenas alguns
segundos desde que fugira daquela sala terrível.
Alguns guardas tinham suas armas apontadas para a
porta. Outros dirigiam sua ferocidade para o corredor vazio
que se estendia ao longe, rumo aos ruídos depois da curva à
direita deles.
Um homem contornou aquela curva a passos largos, com a
máscara de gás pendurada no pescoço pela correia, os olhos
atentos aos farejadores de veneno que revestiam o teto do
corredor inteiro. Era louro, de cara amassada e olhos verdes.
Linhas bem definidas irradiavam de sua boca de lábios
grossos. Parecia ser uma criatura aquática, fora de lugar entre
aqueles que caminhavam pela terra.
O barão encarou o homem que se aproximava,
relembrando o nome: Nefud. Iakin Nefud. Cabo da guarda.
Nefud era viciado em semuta, a combinação de música e
entorpecente que se fazia tocar na consciência mais profunda.
Uma informação útil, essa.
O homem estacou em frente ao barão e bateu continência.
– O corredor está liberado, milorde. Eu estava do lado de
fora, observando, e vi que deve ser um gás venenoso. Os
ventiladores da sua sala estavam sugando o ar destes
corredores. – Ele olhou para o farejador sobre a cabeça do
barão. – Nada da substância escapou. Já limpamos a sala.
Quais são suas ordens?
O barão reconheceu a voz do homem: era ele que gritara as
ordens. Eficiente, este cabo, ele pensou.
– Estão todos mortos lá dentro? – o barão perguntou.
– Sim, milorde.
Bem, teremos de nos adaptar, o barão pensou.
– Primeiro – ele disse –, deixe-me parabenizá-lo, Nefud.
Você é o novo capitão da minha guarda. E espero que leve a
sério a lição que o fim de seu predecessor nos ensina.
O barão observou seu recém-promovido guarda entender
progressivamente o que aquilo implicava. Nefud sabia que
nunca mais ficaria sem semuta.
Nefud assentiu.
– Milorde sabe que eu me dedicarei inteiramente a sua
segurança.
– Sim. Bem, ao trabalho. Desconfio que o duque tinha
alguma coisa na boca. Descubra o que era essa coisa, como foi
usada, quem o ajudou a colocá-la ali. Tome todas as
precauções...
Ele se viu interrompido e sua linha de raciocínio partida
por um tumulto no corredor atrás dele: os guardas à porta do
elevador que vinha dos níveis inferiores da fragata tentavam
conter um bashar coronel alto que acabara de sair do elevador.
O barão não reconheceu o bashar coronel: o rosto magro, a
boca feito um talho no couro, pingos de tinta idênticos em
lugar dos olhos.
– Tirem suas mãos de mim, bando de abutres! – o homem
berrou e empurrou os guardas.
Aaah, um dos Sardaukar, o barão pensou.
O bashar coronel caminhou a passos largos até o barão,
cujos olhos quase se fecharam de apreensão. Os oficiais
Sardaukar o enchiam de receios. Pareciam todos parentes do
duque... do falecido duque. E a maneira como tratavam o barão!
O bashar coronel posicionou-se a meio passo do barão,
com as mãos nos quadris. Os guardas vinham logo atrás dele,
titubeantes e inquietos.
O barão notou a omissão da continência, o desdém nos
modos do Sardaukar, e sua apreensão aumentou. Havia ali
apenas uma legião deles – dez brigadas –, reforçando as legiões
Harkonnen, mas o barão não tinha ilusões. Aquela única legião
era perfeitamente capaz de se virar contra os Harkonnen e
vencê-los.
– Diga a seus homens para não me impedirem de ver você,
barão – o Sardaukar grunhiu. – Meus homens trouxeram-lhe o
duque Atreides antes que eu pudesse discutir com você o
destino dele. Vamos discutir isso agora.
Não posso ser humilhado diante de meus homens, o barão
pensou.
– E? – a palavra saiu controlada e fria, o que encheu o barão
de orgulho.
– Meu imperador me incumbiu de garantir que seu primo
real morra de maneira limpa e sem sofrimento – o bashar
coronel disse.
– Essas foram as ordens imperiais que recebi – o barão
mentiu. – Achou que eu desobedeceria?
– Devo relatar a meu imperador o que eu vir com meus
próprios olhos – disse o Sardaukar.
– O duque já está morto – o barão disse, ríspido, e acenou
com a mão, dispensando o sujeito.
O bashar coronel continuou parado diante do barão. Não
reconheceu ter sido dispensado, sequer com um movimento
involuntário dos olhos ou dos músculos.
– Como? – ele grunhiu.
O quê?!, o barão pensou. Já passou da conta.
– Por suas próprias mãos, se quiser mesmo saber – disse o
barão. – Tomou veneno.
– Quero ver o corpo agora – disse o bashar coronel.
O barão olhou para o teto, fingindo exasperação, enquanto
seus pensamentos se sucediam em velocidade. Maldição! Este
Sardaukar de olhos aguçados verá a sala antes que possamos
mudar algumas coisas!
– Agora – o Sardaukar grunhiu. – Quero vê-lo com meus
próprios olhos.
O barão percebeu que não havia como impedir. O
Sardaukar veria tudo. Saberia que o duque havia matado gente
dos Harkonnen... que o barão, muito provavelmente, havia
escapado por um triz. Havia o indício dos restos do jantar
sobre a mesa e o duque morto, na cadeira oposta, cercado por
destruição.
Não havia mesmo como impedir.
– Não adianta tentar me dissuadir – rosnou o bashar
coronel.
– Não estou tentando – o barão disse, e fitou os olhos de
obsidiana do Sardaukar. – Não escondo nada de meu
imperador. – Ele acenou com a cabeça para Nefud. – O bashar
coronel deve ver tudo, imediatamente. Faça-o entrar pela
porta que você guardava, Nefud.
– Por aqui, senhor – Nefud disse.
Lentamente, com insolência, o Sardaukar contornou o
barão e, usando os ombros, abriu caminho por entre os
guardas.
Insuportável, o barão pensou. Agora o imperador saberá
que eu cometi um deslize. Verá isso como um sinal de fraqueza.
E era uma agonia perceber que o imperador e seu
Sardaukar tinham o mesmo desprezo pela fraqueza. O barão
mordeu o lábio inferior, consolando-se com o fato de que o
imperador, pelo menos, não ficara sabendo do ataque dos
Atreides a Giedi Primo, nem da destruição dos estoques de
especiaria.
Maldito seja aquele duque ardiloso!
O barão observou as costas dos homens que se afastavam:
o Sardaukar arrogante e o atarracado e eficiente Nefud.
Teremos de nos adaptar, o barão pensou. Terei, outra vez,
de deixar Rabban governar este maldito planeta. Sem
restrições. Terei de sacrificar o sangue de minha própria casa
para deixar Arrakis em condições de aceitar Feyd-Rautha.
Maldito Piter! Ele acabaria provocando a própria morte antes
que eu acabasse com ele.
O barão suspirou.
E tenho de mandar vir um novo Mentat de Tleilax
imediatamente. Sem dúvida alguma, já devem ter um novo
pronto para mim a essa altura.
Um dos guardas ao lado dele tossiu.
O barão virou-se para o homem.
– Estou com fome.
– Sim, milorde.
– E quero um pouco de diversão enquanto vocês limpam
aquela sala e descobrem seus segredos para mim – o barão
ribombou.
O guarda baixou os olhos.
– Que diversão milorde deseja?
– Estarei em meus aposentos – o barão disse. – Traga-me o
rapazinho que compramos em Gamont, aquele de olhos
adoráveis. Drogue-o bem. Não estou com ânimo para lutar.
– Sim, milorde.
O barão se virou, começou a se mover, com seu passo
saltitante, sustentado pelos suspensores, em direção a seus
aposentos. Sim, ele pensou. Aquele de olhos adoráveis, aquele
que tanto se parece com o jovem Paul Atreides.
Ó mares de Caladan,
Ó súditos do duque Leto:
A Cidadela de Leto tombou,
Tombou para sempre...
– excerto de “Canções de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Paul sentia que todo o seu passado, toda experiência


anterior àquela noite, tinha se transformado na areia que
escorria dentro de uma ampulheta. Estava sentado ao lado de
sua mãe, abraçando os próprios joelhos no interior de uma
pequena cabana de tecido e plástico – uma tendestiladora –,
que saíra, assim como as roupas fremen que vestiam agora, da
mochila deixada no tóptero.
Não havia dúvida na mente de Paul quanto a quem tinha
colocado o fremkit lá, quem havia determinado o curso do
tóptero que os levara prisioneiros.
Yueh.
O médico traidor mandara-os diretamente para as mãos
de Duncan Idaho.
Paul olhou para fora, através do lado transparente da
tendestiladora, para as rochas sombreadas pela luz da lua que
contornavam o lugar onde Idaho os havia escondido.
Escondendo-me como uma criança, agora que eu sou o
duque, Paul pensou. O pensamento o mortificava, mas ele não
podia negar que o que fizeram tinha sido uma sábia decisão.
Algo tinha acontecido com sua percepção naquela noite:
ele via com clareza aguçada todas as circunstâncias e
ocorrências ao redor dele. Sentia-se incapaz de deter o influxo
de dados ou a precisão fria com a qual cada novo item era
acrescentado a seu conhecimento, com a qual a computação se
centrava em sua percepção. Era o poder de um Mentat e algo
mais.
Paul voltou a pensar no momento de fúria impotente
quando o estranho tóptero tinha se precipitado sobre eles na
escuridão, mergulhando como um gavião gigante que
sobrevoasse o deserto, com o vento a assoviar em suas asas.
Foi então que a coisa acontecera na mente de Paul. O tóptero
havia tocado a areia, sulcando uma duna, e derrapado na
direção dos vultos que corriam – sua mãe e ele mesmo. Paul se
lembrava do cheiro de enxofre provocado pela abrasão dos
esquis do tóptero contra a areia.
Ele sabia que sua mãe tinha se virado, esperando
encontrar uma armalês nas mãos de mercenários Harkonnen,
e reconhecera Duncan Idaho, debruçado no vão da porta
aberta do tóptero e gritando:
– Rápido! Há uma trilha de verme ao sul de vocês!
Mas Paul já sabia, ao se virar, quem pilotava o tóptero.
Uma série de pormenores na maneira como era pilotado, o
ímpeto da aterrissagem – pistas tão pequenas que nem mesmo
sua mãe as tinha detectado –, fizeram Paul saber exatamente
quem estava atrás dos controles.
Dentro da tendestiladora, de frente para Paul, Jéssica se
mexeu e disse:
– Só pode haver uma explicação. Os Harkonnen
capturaram a esposa de Yueh. Ele odiava os Harkonnen! Não
posso ter me enganado quanto a isso. Você leu o bilhete. Mas
por que ele nos salvou do massacre?
Só agora ela começa a ver e, mesmo assim, muito mal, Paul
pensou. O pensamento foi um choque. Ele havia entendido
aquilo como algo sem importância ao ler o bilhete que
acompanhava o sinete ducal dentro da mochila.
– Não tentem me perdoar – escrevera Yueh. – Não quero
seu perdão. A culpa que tenho de carregar já é suficiente. O que
fiz, fiz sem maldade nem esperança de que as outras pessoas
entendam. É meu próprio tahaddi al-burhan, minha provação
suprema. Entrego-lhes o sinete ducal dos Atreides como prova
de que escrevo a verdade. Quando lerem este bilhete, o duque
Leto estará morto. Consolem-se com minha garantia de que ele
não morreu sozinho, que alguém que odiamos acima de tudo
morreu com ele.
Não tinha sido endereçado a ninguém, nem assinado, mas
não havia como confundir os garranchos familiares: era a
caligrafia de Yueh.
Relembrando a carta, Paul voltou a experimentar o
sofrimento daquele momento, algo agudo e estranho que
parecia acontecer fora de sua nova acuidade mental. Tinha lido
que seu pai estava morto, entendera que era verdade, mas
interpretara aquilo simplesmente como mais um dado a ser
computado em sua mente e usado.
Eu amava meu pai, Paul pensou, sabendo que era verdade.
Eu deveria lamentar sua morte. Deveria sentir alguma coisa.
Mas não sentia nada, a não ser: Eis aí um fato importante.
Idêntico a todos os outros fatos.
Enquanto isso, sua mente adicionava impressões
sensoriais, extrapolando, computando.
As palavras de Halleck retornaram: “As vontades são para
o gado, ou para fazer amor. Você luta quando surge a
necessidade, não importa se está ou não com vontade”.
Talvez seja isso, Paul pensou. Lamentarei a morte de meu
pai mais tarde... quando houver tempo.
Mas não sentiu arrefecer a exatidão gélida de sua
existência. Sentia que sua nova percepção era apenas o
começo, que ela crescia. A sensação de propósito terrível, que
ele havia experimentado a primeira vez durante seu ordálio
com a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, o impregnava.
Sua mão direita – a mão da dor relembrada – ardia e latejava.
É isso que é ser o Kwisatz Haderach das Bene Gesserit?, ele
se perguntou.
– Durante algum tempo, pensei que Hawat tivesse falhado
conosco novamente – Jéssica disse. – Pensei que talvez Yueh
não fosse um médico Suk.
– Ele era tudo que pensávamos que era... e mais – Paul
disse. E pensou: Por que ela está demorando tanto para
enxergar essas coisas? Então continuou: – Se Idaho não
conseguir entrar em contato com Kynes, nós...
– Ele não é nossa única esperança – ela disse.
– Não foi o que quis sugerir.
Ela ouviu a dureza do aço na voz dele, a impressão de
autoridade, e percorreu com o olhar a escuridão cinzenta da
tendestiladora para chegar até ele. Paul era uma silhueta
contra as rochas açucaradas de luar e visíveis através da
transparência da tenda.
– Outros homens de seu pai devem ter escapado – disse
Jéssica. – Temos de reuni-los, encontrar...
– Temos de contar apenas conosco – interrompeu Paul. –
Nossa preocupação imediata é o arsenal atômico da família.
Temos de pegar essas armas antes que os Harkonnen tenham
a oportunidade de procurá-las.
– É improvável que sejam encontradas – ela falou –, da
maneira como foram escondidas.
– Não devemos deixar isso por conta do acaso.
E ela pensou: Chantagem com o arsenal atômico da família,
ameaçando destruir o planeta e sua especiaria: é isso que ele
tem em mente. Mas, se o fizer, só lhe restará a fuga, a deserção e
o anonimato.
As palavras de sua mãe tinham desencadeado uma outra
linha de raciocínio em Paul: a preocupação de um duque com
todas as pessoas que eles perderam naquela noite. As pessoas
são a verdadeira força de uma Casa Maior, Paul pensou. E ele
se lembrou das palavras de Hawat: “Separar-se das pessoas é
uma tristeza; um lugar é só um lugar”.
– Estão usando os Sardaukar – Jéssica disse. – Temos de
esperar até retirarem os Sardaukar.
– Eles pensam que nos têm entre o deserto e os Sardaukar
– Paul disse. – A intenção deles é não deixar sobreviventes
entre os Atreides: extermínio absoluto. Não conte com a fuga
de nenhum dos nossos.
– Eles não podem arriscar indefinidamente expor a
participação do imperador nisto.
– Não podem?
– Uma parte de nosso pessoal deve conseguir escapar.
– Deve?
Jéssica desviou os olhos, assustada com a força implacável
na voz de seu filho, ouvindo a estimativa precisa das chances.
Sentiu como se a mente dele tivesse saltado à frente e agora
enxergasse certas coisas melhor do que ela. Tinha ajudado a
treinar a inteligência que fazia aquilo, mas agora via-se
amedrontada por ela. Seus pensamentos divagaram,
procurando o santuário perdido de seu duque, e as lágrimas
arderam em seus olhos.
É assim que tinha de ser, Leto, ela pensou. “Um tempo para
o amor, um tempo para o pesar.” Ela levou uma das mãos ao
ventre e concentrou sua percepção no embrião que carregava
ali. Tenho a filha Atreides que me mandaram gerar, mas a
Reverenda Madre estava enganada: uma filha não teria sido a
salvação de meu duque. Esta criança é somente a vida, em meio
à morte, estendendo os braços para o futuro. Concebi por
instinto, e não por obediência.
– Tente o receptor da redecom mais uma vez – Paul disse.
A mente continua funcionando, não importa quanto
tentamos contê-la, ela pensou.
Jéssica procurou o pequeno receptor que Idaho havia
deixado com eles, acionou o interruptor. Uma luz verde brilhou
no mostrador do instrumento. Um guincho metálico saiu do
alto-falante. Ela abaixou o volume e correu as faixas. Uma voz,
falando a língua de batalha dos Atreides, invadiu a tenda.
– ... voltar e reagrupar na serra. Fédor diz não haver
sobreviventes em Cartago e o Banco da Guilda foi saqueado.
Cartago!, Jéssica pensou. Era um foco de Harkonnen.
– São Sardaukar – disse a voz. – Atenção aos Sardaukar
com uniformes Atreides. Eles...
Um rugido tomou o alto-falante, depois o silêncio.
– Tente as outras faixas – Paul disse.
– Percebe o que isso significa? – Jéssica perguntou.
– Eu já esperava. Querem que a Guilda nos culpe pela
destruição de seu banco. Com a Guilda contra nós, estamos
presos em Arrakis. Tente as outras faixas.
Ela ponderou as palavras: Eu já esperava. O que tinha
acontecido com ele? Lentamente, Jéssica voltou ao
instrumento. Ao passar de uma faixa à outra, captou
vislumbres de violência nas poucas vozes que gritavam na
língua de batalha dos Atreides: “... recuar...”, “... tentem se
reagrupar no...”, “... presos numa caverna na...” .
E não havia como confundir o júbilo vitorioso no
palavreado dos Harkonnen que jorrava das outras faixas.
Ordens vigorosas, relatórios de batalha. Não eram suficientes
para Jéssica registrá-los e decifrar o idioma, mas o tom era
óbvio.
Vitória dos Harkonnen.
Paul sacudiu a mochila ao lado dele, ouvindo o gorgolejar
dos dois litrofões de água. Inspirou fundo, olhou pela
transparência da tenda para a escarpa rochosa delineada
contra as estrelas. Sua mão esquerda apalpou o lacre-esfíncter
da entrada da tenda.
– Logo amanhecerá – ele disse. – Podemos esperar Idaho
mais um dia, mas não outra noite. No deserto, é preciso viajar à
noite e descansar à sombra durante o dia.
O saber armazenado na memória insinuou-se na mente de
Jéssica: No deserto, sem um trajestilador, um homem sentado à
sombra precisa de cinco litros diários de água para manter o
peso do corpo. Sentiu a película lisa e macia do trajestilador em
contato com seu corpo, pensando em como suas vidas
dependiam daquelas roupas.
– Se sairmos daqui, Idaho não conseguirá nos encontrar.
– Existem maneiras de fazer qualquer homem falar – ele
disse. – Se Idaho não tiver voltado ao amanhecer, teremos de
considerar a possibilidade de ter sido capturado. Quanto
tempo você acha que ele conseguiria resistir?
A pergunta não precisava de resposta, e ela continuou em
silêncio.
Paul ergueu o lacre da mochila, tirou lá de dentro um
diminuto micromanual dotado de lucibarra e lupa. Letras
verdes e alaranjadas saltaram das páginas: “litrofões,
tendestiladora, cápsulas energéticas, recatas, respirarenador,
binóculo, repakit do trajestilador, pistola de tingibara, mapa
das pias, filtrobs, parabússola, ganchos de criador,
marteladores, fremkit, pilar de fogo...”.
Tantas coisas para se sobreviver no deserto.
Logo em seguida, ele colocou o manual de lado sobre o
chão da tenda.
– Para onde podemos ir? – Jéssica perguntou.
– Meu pai falava da força do deserto – disse Paul. – Sem ela,
os Harkonnen não conseguirão governar este planeta. Nunca
governaram este planeta, e nunca o farão. Nem mesmo com
dez mil legiões de Sardaukar.
– Paul, você não está pensando em...
– Temos todos os indícios em nossas mãos – ele disse. –
Bem aqui, nesta tenda: a tenda propriamente dita, esta
mochila e o que há dentro dela, estes trajestiladores. Sabemos
que a Guilda pede um preço exorbitante pelos satélites
meteorológicos. Sabemos que...
– O que os satélites meteorológicos têm a ver com isso? –
ela perguntou. – Eles não poderiam... – Ela se calou.
Paul sentiu que a hiperacuidade de sua mente
interpretava as reações dela, computando minúcias.
– Entendeu agora – ele disse. – Os satélites vigiam a terra
lá de cima. Existem coisas nas profundezas do deserto que não
podem ser submetidas a inspeções frequentes.
– Está sugerindo que a própria Guilda controla este
planeta?
Ela era tão lenta.
– Não! – ele disse. – Os fremen! Estão pagando a Guilda
para garantir sua privacidade, e numa moeda disponível a
todos que detêm a força do deserto: a especiaria. Não é uma
simples resposta aproximada de segunda ordem: é a
computação direta. Pode contar com isso.
– Paul – Jéssica disse –, você ainda não é um Mentat. Não
pode saber com certeza...
– Nunca serei um Mentat – ele disse. – Sou outra coisa...
uma aberração.
– Paul! Como pode dizer uma coisa...
– Deixe-me em paz!
Ele deu as costas à mãe para olhar a noite lá fora. Por que
não consigo chorar?, ele se perguntou. Sentia que cada fibra de
seu ser desejava ardentemente aquela libertação, que lhe seria
negada para sempre.
Jéssica nunca tinha ouvido tamanho sofrimento na voz de
seu filho. Queria abrir-lhe os braços, abraçá-lo, consolá-lo,
ajudá-lo, mas sentia que não havia nada que ela pudesse fazer.
Ele tinha de resolver o problema sozinho.
A barra luminosa do manual do fremkit, jogado no chão
entre os dois, chamou a atenção de Jéssica. Ela o ergueu, deu
uma olhada na guarda e leu: “‘Manual do ‘Deserto Amigo’, o
lugar cheio de vida. Aqui se encontram os ayat e a burhan da
Vida. Creia, e al-Lat nunca o queimará”.
Lembra o Livro de Azhar, ela pensou, recordando seus
estudos dos Grandes Segredos. Será que uma Manipuladora
das Religiões passou por Arrakis?
Paul tirou a parabússola da mochila, devolveu-a e disse:
– Pense em todas essas máquinas de aplicação especial
dos fremen. Demonstram uma sofisticação inigualável.
Admita. A cultura que criou estas coisas denuncia uma
sagacidade de que ninguém desconfiava.
Hesitando, ainda preocupada com a dureza na voz dele,
Jéssica voltou ao livro, estudou a ilustração de uma
constelação do céu arrakino, “Muad’Dib: o Ratinho”, e notou
que a cauda apontava o norte.
Paul, na escuridão da tenda, observava os movimentos da
mãe, que ele mal distinguia à luz da lucibarra do manual.
Chegou a hora de cumprir o desejo de meu pai, ele pensou.
Tenho de dar a ela a mensagem dele, agora que ela ainda tem
tempo para sentir pesar. O pesar seria uma inconveniência mais
tarde. E ele se viu escandalizado pela exatidão de sua lógica.
– Mãe – ele disse.
– Sim?
Ela percebeu a alteração na voz dele, e o som a fez
congelar por dentro. Nunca tinha ouvido um controle tão
rígido.
– Meu pai está morto – ele disse.
Vasculhou seu íntimo, em busca do encadeamento de um
fato e outro, e outro – a maneira Bene Gesserit de avaliar os
dados –, e então lhe ocorreu: a sensação aterradora de perda.
Jéssica assentiu com a cabeça, incapaz de falar.
– Um dia meu pai me encarregou – disse Paul – de entregar
a você uma mensagem se algo acontecesse a ele. Receava que
você acreditasse que ele não confiava em você.
Aquela desconfiança inútil, ela pensou.
– Ele queria que soubesse que nunca suspeitou de você –
Paul disse, e explicou a farsa, acrescentando: – Ele queria que
soubesse que sempre confiou em você inteiramente, sempre a
amou e tratou com carinho. Disse que antes desconfiaria de si
mesmo e que só se arrependia de uma coisa: nunca ter feito de
você a duquesa.
Ela limpou as lágrimas que lhe corriam pela face e pensou:
Que desperdício estúpido da água do corpo! Mas sabia do que se
tratava realmente aquele pensamento: a tentativa de se
esconder do pesar na raiva. Leto, meu Leto, ela pensou. Que
coisas terríveis fazemos com aqueles que amamos! Com um
gesto violento, ela apagou a lucibarra do pequeno manual.
Os soluços a fizeram estremecer.
Paul ouviu o pesar de sua mãe e sentiu o vazio dentro de si.
Não sinto pesar, ele pensou. Por quê? Por quê? Achava a
incapacidade de sentir pesar um defeito terrível.
“Tempo de buscar, e tempo de perder”, Jéssica pensou,
citando a Bíblia C. O. “Tempo de guardar, e tempo de deitar
fora; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e
tempo de paz.”
A mente de Paul seguira em frente com sua precisão
enregelante. Enxergou as vias que se abriam diante deles
naquele planeta hostil. Sem a válvula de segurança do sonhar,
ele concentrou sua percepção presciente, vendo-a como uma
computação dos futuros mais prováveis, com algo mais, porém,
um quê de mistério, como se sua mente mergulhasse numa
camada intemporal e provasse os ventos do futuro.
Abruptamente, como se tivesse encontrado a chave
necessária, a mente de Paul galgou mais um degrau perceptivo.
Sentiu que se apegava a esse novo nível, agarrando-se a uma
posição precária e olhando ao redor. Era como se ele existisse
num globo, com vias que se irradiavam em todas as direções...
mas isso era só uma descrição aproximada da sensação.
Lembrou-se de um dia ter visto um lenço de gaze soprado
pelo vento, e agora sentia como se o futuro se contorcesse
numa superfície tão ondulante e impermanente quanto à
daquele lenço ao vento.
Viu pessoas.
Sentiu o calor e o frio de incontáveis probabilidades.
Conheceu nomes e lugares, experimentou emoções sem-
fim, repassou os dados de inúmeras frestas inexploradas.
Havia tempo para sondar, testar e provar, mas tempo nenhum
para moldar.
A coisa era um espectro de possibilidades, desde o
passado mais remoto ao futuro mais remoto, das mais
prováveis às mais improváveis. Viu sua própria morte de
incontáveis maneiras. Viu novos planetas, novas culturas.
Pessoas.
Pessoas.
Viu-as em multidões tão grandes que seria impossível
relacioná-las, mas sua mente catalogou todas elas.
Até mesmo os membros da Guilda.
E pensou: A Guilda – haveria uma alternativa para nós,
minha estranheza aceita como algo familiar e de grande valor,
com um suprimento garantido da hoje tão necessária
especiaria.
Mas a ideia de viver no seguir-tateando-mentalmente-
pelos-futuros-possíveis que conduzia as espaçonaves velozes o
estarrecia. Contudo, era uma alternativa. E, ao deparar com o
futuro possível que incluía os membros da Guilda, ele
reconheceu sua própria estranheza.
Minha visão é de outra espécie. Vejo outro tipo de terreno:
os caminhos disponíveis.
A percepção transmitia tanto confiança quanto alarme:
tantos lugares naquele outro tipo de terreno sumiam de sua
vista em curvas e depressões.
Tão rápido quanto viera, a sensação lhe escapou, e ele
percebeu que a experiência inteira tinha ocupado o espaço de
uma pulsação.
Contudo, sua própria percepção pessoal tinha sido
revirada, iluminada de uma maneira terrível. Olhou ao redor de
si.
A noite ainda cobria a tendestiladora em seu esconderijo
nas rochas. Ainda era possível ouvir o pesar de sua mãe.
E ainda era possível sentir a ausência de seu próprio
pesar... aquele lugar vazio, separado de sua mente, que seguia
adiante com seu passo inabalável, lidando com dados,
avaliando, computando, submetendo respostas, à semelhança
do que fazia um Mentat.
E agora ele via que tinha uma quantidade de dados que
poucas mentes como a dele chegaram um dia a englobar. Mas
isso não tornava o espaço vazio dentro dele mais fácil de
suportar. Sentiu que algo tinha de rebentar. Era como se
tivessem acionado o mecanismo de uma bomba-relógio dentro
dele. A coisa seguia fazendo o que tinha de fazer,
independentemente do que ele quisesse. Registrava
minúsculas diferenças ao redor dele, uma ligeira alteração na
umidade, uma fração de decréscimo na temperatura, o
progresso de um inseto no teto da tendestiladora, a
aproximação solene do amanhecer no trecho estrelado de céu
que ele enxergava pelo lado transparente da tenda.
O vazio era insuportável. Saber que o mecanismo tinha
sido acionado não fazia a menor diferença. Ele podia olhar para
seu próprio passado e ver o início: o treinamento, a definição
dos talentos, as pressões sutis das disciplinas sofisticadas, até
mesmo a exposição à Bíblia C. O. num momento crítico... e, por
último, o consumo intenso de especiaria. E podia olhar para a
frente – a direção mais aterrorizante – e ver aonde tudo levava.
Sou um monstro!, ele pensou. Uma aberração!
– Não – ele disse. E depois: – Não. Não! NÃO!
Viu-se esmurrando o chão da tenda. (A parte implacável
de si registrou isso como um dado emocional interessante e o
computou.)
– Paul!
A mãe estava ao lado dele, segurando-lhe as mãos, e o
rosto dela era uma massa cinzenta a olhar para ele.
– Paul, qual é o problema?
– Você! – ele disse.
– Estou aqui, Paul – ela disse. – Está tudo bem.
– O que fez comigo? – ele indagou.
Numa explosão de lucidez, ela percebeu uma parte da
razão da pergunta e disse:
– Eu o dei à luz.
Foi, segundo o instinto e o conhecimento impalpável que
ela possuía, exatamente a resposta correta para acalmá-lo.
Sentiu que as mãos dela o seguravam, concentrou-se no
contorno indistinto do rosto da mãe. (Certos traços genéticos
na estrutura facial foram anotados, da nova maneira, por sua
mente em fluxo constante, as pistas foram somadas a outros
dados e uma resposta definitiva emitida.)
– Solte-me – ele disse.
Ela ouviu a dureza na voz dele e obedeceu.
– Quer me dizer qual é o problema, Paul?
– Você sabia o que estava fazendo quando me treinou? –
ele perguntou.
Não há mais sinal da infância em sua voz, ela pensou. E
disse:
– Esperava aquilo que qualquer mãe ou pai esperaria: que
você fosse... superior, diferente.
– Diferente?
Ela ouviu o rancor no tom de voz dele e disse:
– Paul, eu...
– Você não queria um filho! – ele disse. – Queria um Kwisatz
Haderach! Queria um homem Bene Gesserit!
O rancor dele a fez recuar.
– Mas, Paul...
– Por acaso consultou meu pai quanto a isso?
Ela falou com ternura, motivada pelo frescor de seu pesar:
– O que quer que você seja, Paul, é algo que herdou de seu
pai tanto quanto de mim.
– Mas não o treinamento – ele disse. – Não as coisas que...
despertaram... o adormecido.
– Adormecido?
– Está aqui. – Ele levou uma das mãos à cabeça, depois ao
peito. – Dentro de mim. Não para, não para, não para, e...
– Paul!
Ela ouvira a histeria que margeava a voz dele.
– Escute – ele disse. – Você queria que eu contasse meus
sonhos à Reverenda Madre: agora você ouvirá no lugar dela.
Acabei de ter um sonho desperto. Sabe por quê?
– Você precisa se acalmar – ela disse. – Se houver...
– A especiaria – ele disse. – Está em tudo por aqui: no ar, no
solo, na comida. A especiaria geriátrica. É como a droga da
Proclamadora da Verdade. É um veneno!
Ela se empertigou.
Ele baixou a voz e repetiu:
– Um veneno... tão discreto, tão insidioso... tão irreversível.
Só mata quando a pessoa deixa de consumi-lo. Não podemos
deixar Arrakis sem levar uma parte de Arrakis conosco.
A presença aterradora de sua voz não admitia discussão.
– Você e a especiaria – Paul disse. – A especiaria muda
qualquer um que a consuma tanto assim, mas, graças a você,
pude levar a mudança à consciência. Não preciso deixá-la no
inconsciente, onde o distúrbio pode ser apagado. Eu a enxergo.
– Paul, você...
– Eu a enxergo! – ele repetiu.
Ela ouviu loucura na voz dele, não soube o que fazer.
Mas ele voltou a falar, e ela ouviu o controle férreo
retornar.
– Estamos presos aqui.
Estamos presos aqui, ela concordou.
E aceitou as palavras dele como verdadeiras. Nenhuma
pressão das Bene Gesserit, nenhum truque ou artifício
conseguiria libertá-los completamente de Arrakis: a especiaria
era viciante. Seu corpo já tinha percebido isso muito antes de
sua mente despertar e encarar o fato.
Então aqui viveremos nossas vidas, ela pensou, neste
planeta infernal. O lugar estará preparado para nós, se
conseguirmos escapar dos Harkonnen. E não há dúvida quanto
a meu destino: uma égua reprodutora que preservará uma
linhagem importante para o Plano das Bene Gesserit.
– Tenho de lhe contar meu devaneio, meu sonho desperto
– Paul disse. (Agora havia fúria em sua voz.) – Para me certificar
de que você aceitará o que vou dizer, primeiro direi que sei que
você terá uma filha, minha irmã, aqui em Arrakis.
Jéssica apoiou as mãos no chão da tenda, encostou-se na
parede abaulada de tecido para refrear uma pontada de medo.
Sabia que sua gravidez ainda não era visível. Somente seu
próprio treinamento como Bene Gesserit tinha lhe permitido
decifrar os primeiros sinais de seu corpo, saber da existência
do embrião com apenas algumas semanas de idade.
– Apenas para servir – Jéssica sussurrou, apegando-se ao
lema das Bene Gesserit. – Existimos apenas para servir.
– Encontraremos um lar entre os fremen – Paul disse –,
onde sua Missionaria Protectora nos preparou um refúgio.
Prepararam um caminho para nós no deserto, Jéssica
disse consigo mesma. Mas como é que ele sabe sobre a
Missionaria Protectora? Descobriu ser cada vez mais difícil
dominar seu pânico diante da estranheza assoberbante de
Paul.
Ele estudou a sombra escura que era sua mãe,
enxergando-lhe o medo e cada reação com sua nova percepção,
como se uma luz ofuscante a delineasse. Uma ponta de
compaixão por ela se insinuou nele.
– As coisas que podem acontecer aqui, nem consigo
começar a contá-las a você – ele disse. – Não consigo nem
sequer contá-las a mim mesmo, apesar de tê-las visto. Essa
consciência do futuro, parece que não sou capaz de controlá-la.
Simplesmente acontece. O futuro imediato – digamos, daqui a
um ano –, consigo ver uma parte dele... uma via tão larga
quanto nossa Avenida Central em Caladan. Outros lugares, não
consigo ver... lugares obscuros... como que escondidos atrás de
um morro – (e, mais uma vez, ele pensou na superfície de um
lenço ao vento) – ... e há ramificações...
Fez silêncio quando foi tomado pela lembrança daquela
visão. Nenhum sonho presciente, nenhuma experiência em sua
vida o tinha preparado para a totalidade com a qual os véus
tinham sido rasgados para revelar a nudez do tempo.
Recordando a experiência, ele reconheceu seu próprio
propósito terrível: a pressão de sua vida se espalhando para
fora, feito uma bolha em expansão... o tempo que se recolhia
diante da bolha...
Jéssica encontrou o controle da lucibarra da tenda e a
ativou.
Uma luz fraca e verde afastou as sombras, aliviando-lhe o
medo. Fitou o rosto de Paul, os olhos dele: o olhar que se
voltava para dentro. E lembrou onde tinha visto aquele olhar
antes: retratado em registros de desastres, nos rostos de
crianças que conheceram a fome ou sofreram ferimentos
terríveis. Os olhos eram como fossos, a boca uma linha reta, as
faces encovadas.
É o olhar da terrível conscientização, ela pensou, de alguém
obrigado a conhecer a própria mortalidade.
Ele, de fato, não era mais uma criança.
A importância subjacente às palavras dele começou a se
apoderar da mente dela, empurrando todo o resto para o lado.
Paul enxergava à frente uma rota de fuga para eles.
– Há uma maneira de escapar dos Harkonnen – ela disse.
– Os Harkonnen! – ele desdenhou. – Esqueça esses seres
humanos deturpados. – Fitou a mãe, estudando as feições dela
à luz da lucibarra. As feições a traíam.
Ela disse:
– Não devia chamar as pessoas de seres humanos sem...
– Não tenha tanta certeza de que sabe a diferença – ele
disse. – Trazemos nosso passado conosco. E, minha mãe, há
algo que você não sabe, mas deveria saber: nós somos
Harkonnen.
A mente dela fez uma coisa aterradora: apagou-se, como
se precisasse barrar todas as sensações. Mas a voz de Paul
seguiu naquele passo implacável, arrastando-a consigo.
– Quando encontrar um espelho, analise seu rosto, analise
o meu agora. Os traços estão aí para quem quiser ver. Veja
minhas mãos, minha ossatura. E, se nada disso convencê-la,
então acredite no que digo. Trilhei o futuro. Vi um registro. Vi
um lugar, tenho todos os dados. Somos Harkonnen.
– Um... ramo renegado da família – ela disse. – É isso, não
é? Algum primo dos Harkonnen que...
– Você é filha do próprio barão – ele disse e viu como ela
apertou a boca com as mãos. – O barão provou muitos prazeres
na juventude e, certa vez, deixou-se seduzir. Mas foi em prol
das metas genéticas das Bene Gesserit, foi uma de vocês.
A maneira como ele disse vocês atingiu-a feito bofetada.
Mas colocou sua mente para funcionar: não havia como
contestar as palavras dele. Tantas pontas soltas de significado
no passado dela agora se estendiam e se juntavam. A filha que
as Bene Gesserit queriam não era para pôr fim à velha rixa
entre os Atreides e os Harkonnen, e sim para fixar um fator
genético em suas linhagens. O quê? Procurou em vão uma
resposta.
Como se enxergasse a mente dela, Paul disse:
– Elas pensaram que seu empenho era para chegar a mim.
Mas não sou o que elas esperavam e cheguei antes da hora. E
elas não sabem disso.
Jéssica apertou a boca com as mãos.
Grande Mãe! Ele é o Kwisatz Haderach!
Sentiu-se exposta e nua diante dele, percebendo, então,
que ele a via com olhos que deixavam escapar pouca coisa. E
isso, ela sabia, era a razão de seu medo.
– Está pensando que eu sou o Kwisatz Haderach – ele
disse. – Tire isso da cabeça. Sou algo inesperado.
Preciso notificar uma das escolas, ela pensou. O catálogo
de cruzamentos pode mostrar o que aconteceu.
– Elas só ficarão sabendo sobre mim quando já for tarde
demais – ele disse.
Tentando distraí-lo, ela baixou as mãos e perguntou:
– Encontraremos um lugar entre os fremen?
– Os fremen têm um ditado que eles atribuem a Shai-
hulud, o Velho Pai Eternidade – ele disse. – Dizem eles: “Esteja
pronto para mostrar gratidão por aquilo que encontrar”.
E ele pensou: Sim, minha mãe, entre os fremen. Você ficará
com os olhos azuis e criará um calo em seu nariz adorável por
causa do tubo filtrador de seu trajestilador... e terá minha irmã,
Santa Alia da Faca.
– Se você não é o Kwisatz Haderach – Jéssica disse –, o
que...
– Você não tem como saber – ele disse. – Não irá acreditar
até ver com os próprios olhos.
E ele pensou: Sou uma semente.
De repente, ele viu como era fértil o solo no qual havia
caído e, com essa percepção, foi tomado por seu propósito
terrível, que rastejava pelo vazio interior, ameaçando sufocá-lo
de pesar.
Ele tinha visto duas grandes ramificações no caminho à
frente dele: numa delas, ele confrontava um barão idoso e
malvado e dizia: “Olá, avô”. Pensar naquela senda, e no que
jazia ao longo dela, o deixava enjoado.
A outra senda tinha longos trechos de obscuridade
cinzenta, exceto por picos de violência. Ali ele tinha visto uma
religião guerreira, um incêndio que se espalhava pelo universo,
com o estandarte verde e preto dos Atreides tremulando à
frente de legiões fanáticas, embriagadas com a aguardente de
especiaria. Gurney Halleck e alguns outros homens de seu pai –
em número lamentavelmente pequeno – estavam entre eles,
todos marcados com o símbolo do gavião encontrado no
santuário do crânio de seu pai.
– Não posso tomar esse caminho – ele murmurou. – É o que
as bruxas velhas das suas escolas realmente querem.
– Não entendo você, Paul – disse sua mãe.
Ele continuou em silêncio, pensando como a semente que
era, pensando com a consciência da raça que ele tinha provado
pela primeira vez como um propósito terrível. Descobriu que
não conseguia mais odiar as Bene Gesserit, nem o imperador,
nem mesmo os Harkonnen. Foram todos enredados pela
necessidade da raça de renovar sua herança dispersa, de
cruzar, misturar e infundir suas linhagens num imenso e novo
patrimônio genético comum. E a raça só conhecia uma maneira
segura de fazer isso, a maneira antiga, a maneira testada e
aprovada que atropelava tudo em seu caminho: o jihad.
Não posso mesmo tomar esse caminho, ele pensou.
Mas ele viu novamente, com os olhos do espírito, o
santuário do crânio de seu pai e a violência, em meio à qual
tremulava o estandarte verde e preto.
Jéssica limpou a garganta, preocupada com o silêncio dele.
– Então... os fremen nos darão asilo?
Ele ergueu os olhos e, sob a iluminação esverdeada da
tenda, fitou as feições nobres e endogâmicas do rosto dela.
– Sim – ele disse. – Esse é um dos caminhos. – Ele assentiu
com a cabeça. – Sim. Eles irão me chamar de... Muad’Dib,
“Aquele que Aponta o Caminho”. Sim... é como irão me chamar.
E ele fechou os olhos, pensando: Agora, meu pai, posso
lamentar sua morte. E sentiu as lágrimas correrem-lhe pelo
rosto.
livro segundo
MUAD’DIB
Quando meu pai, o imperador padixá,
soube da morte do duque Leto Atreides e
de como ele havia morrido, ficou furioso
como nunca o tínhamos visto ficar até
então. Culpou minha mãe e o acordo que
foi obrigado a fazer para colocar uma
Bene Gesserit no trono. Culpou a Guilda e
o barão velho e malvado. Culpou todos ao
alcance da visão, até mesmo a mim, pois
disse que eu era uma bruxa como as
outras. E, quando tentei consolá-lo,
dizendo que o fato se dera de acordo com
uma lei mais antiga de autopreservação, à
qual até mesmo os soberanos mais
antigos se submetiam, ele me ofereceu um
sorriso zombeteiro e perguntou se eu o
julgava um fraco. Foi aí que entendi que
tamanha paixão não se devia a uma
preocupação com o falecido duque, e sim
às implicações daquela morte para toda a
realeza. Vendo hoje, em retrospecto, acho
que meu pai também tinha uma certa
presciência, pois é certo que sua linhagem
e a de Muad’Dib tinham ancestrais
comuns.
– “Na casa de meu pai”, da princesa Irulan
– Agora Harkonnen matará Harkonnen – Paul murmurou.
Ele havia acordado pouco antes do anoitecer e se sentado
no interior da tendestiladora, vedada e às escuras. Ao falar, ele
ouviu os movimentos indistintos de sua mãe, que dormia
encostada à parede oposta da tenda.
Paul deu uma olhada no detector de proximidade que
estava no chão e examinou, no escuro, os mostradores
iluminados por tubos de fósforo.
– Logo será noite – disse sua mãe. – Por que você não
recolhe as palas da tenda?
Paul percebeu, então, que já fazia algum tempo que a
respiração dela estava diferente e que ela havia permanecido
deitada, no escuro e em silêncio, até ter certeza de que ele
estava acordado.
– Recolher as palas não adiantaria nada – ele disse. –
Houve uma tempestade. A tenda está coberta de areia. Vou nos
desenterrar daqui a pouco.
– Nem sinal de Duncan?
– Nada.
Paul esfregou distraidamente o sinete ducal em seu
polegar, e uma fúria repentina, dirigida à própria essência
daquele planeta que tinha ajudado a matar-lhe o pai, fez com
que ele começasse a tremer.
– Ouvi quando a tempestade começou – Jéssica disse.
O vazio complacente das palavras dela o ajudou a
recuperar um pouco a calma. Sua mente se concentrou na
tempestade, na maneira como ele a vira começar através da
transparência da tendestiladora: filetes gelados de areia
cruzando a bacia, depois riachos e canais a sulcar o céu. Ele
tinha dirigido seu olhar para uma ponta de rocha e visto a
forma mudar sob a rajada, tornando-se uma cunha baixa e
amarela. A areia apertada na bacia onde se encontravam havia
obscurecido o céu com tons escuros de caril e, em seguida,
obliterado toda a luz quando a tenda foi coberta.
Os arcos da tenda rangeram uma vez, aceitando a pressão,
e então o silêncio, rompido apenas pelo chiado fraco do fole do
respirarenador que bombeava o ar da superfície.
– Tente o receptor outra vez – Jéssica disse.
– Não vai adiantar – ele disse.
Ele pegou o hidrotubo de seu trajestilador, que ficava
preso junto ao pescoço, molhou a boca com um gole de água
morna e pensou que ali começava sua verdadeira vida arrakina:
sobrevivendo da umidade reaproveitada de seu corpo e de sua
respiração. A água era insípida e insossa, mas aliviou-lhe a
garganta.
Jéssica ouviu Paul beber a água, sentiu a oleosidade de seu
próprio trajestilador, que aderia a seu corpo, mas se recusou a
admitir a sede. Para admiti-la, seria preciso abrir totalmente os
olhos e enxergar as necessidades terríveis de Arrakis, onde era
forçoso conservar até mesmo pequenas frações de umidade,
guardar as poucas gotas nas bolsas coletoras da tenda, relutar
em desperdiçar uma exalação em campo aberto.
Era tão mais fácil voltar a dormir.
Mas a mera lembrança do sonho que a visitara durante o
sono naquele dia a fazia estremecer. Ela mantivera suas mãos
de sonho sob uma torrente de areia, onde haviam escrito um
nome: duque Leto Atreides. O nome se apagava por causa da
areia, e ela tentava refazê-lo, mas a primeira letra era
preenchida antes que se começasse a última.
A areia não parava.
Seu sonho se transformou num choro cada vez mais alto.
Aquele choro ridículo – parte de sua mente havia percebido
que o som era o de sua própria voz quando criança, pouco mais
que um bebê. Uma mulher que a memória não conseguia
enxergar direito estava de partida.
A mãe que nunca conheci, Jéssica pensou. A Bene Gesserit
que me deu à luz e me entregou às Irmãs, porque foi o que lhe
mandaram fazer. Será que ficou feliz por se livrar da filha de um
Harkonnen?
– É na especiaria que temos de atingi-los – disse Paul.
Como ele consegue pensar em atacar num momento como
este?, ela se perguntou.
– Um planeta inteiro, cheio de especiaria – ela disse. –
Como é que vai atingi-los assim?
Ela o ouviu se mexer, o som da mochila sendo arrastada
pelo chão da tenda.
– Em Caladan, era a força do mar e do ar – ele disse. – Aqui
é a força do deserto. Os fremen são a chave.
A voz dele vinha das proximidades do esfíncter da tenda.
Seu treinamento de Bene Gesserit detectou no tom dele uma
amargura mal resolvida e dirigida a ela.
A vida inteira, ele foi treinado para odiar os Harkonnen...
por minha causa. Como me conhece pouco! Fui a única mulher
de meu duque. Aceitei a vida e os valores dele, mesmo quando
desafiavam as ordens que recebi das Bene Gesserit.
A lucibarra da tenda se acendeu a um toque de Paul e
encheu o recinto abobadado com um brilho verde. Paul se
agachou diante do esfíncter, com o gorro do trajestilador
preparado para o deserto aberto: a testa coberta, o filtro bucal
em seu lugar, os obturadores nasais ajustados. Somente seus
olhos escuros eram visíveis: uma faixa estreita de rosto que se
virou uma vez para ela e depois para o outro lado.
– Proteja-se para sair – ele disse, e sua voz foi toldada pelo
filtro.
Jéssica puxou o filtro para a boca e começou a ajustar seu
gorro ao ver Paul romper o lacre da tenda.
A areia produziu um som irritante quando ele abriu o
esfíncter, e um chiado áspero de grãos invadiu a tenda antes
que ele conseguisse imobilizá-los com um compactador
estático. Formou-se um buraco na muralha de areia quando a
ferramenta realinhou os grãos. Ele se esgueirou para fora e os
ouvidos dela acompanharam o progresso do filho até a
superfície.
O que iremos encontrar lá fora?, ela se perguntou.
Soldados Harkonnen e Sardaukar, esses são os perigos que
podemos esperar. Mas e os perigos que desconhecemos?
Ela pensou no compactador e nos outros instrumentos
estranhos da mochila. De repente, cada um daqueles utensílios
destacou-se em sua mente como um sinal de perigos
misteriosos.
Aí ela sentiu uma brisa quente que veio da superfície e
tocou-lhe a face exposta acima do filtro.
– Passe a mochila. – Era a voz de Paul, baixa e abafada.
Ela obedeceu, ouviu o gorgolejar dos litrofões ao empurrar
a mochila pelo chão. Olhou para cima e viu Paul emoldurado
pelas estrelas.
– Peguei – ele disse, esticando-se para puxar a mochila até
a superfície.
Agora ela via apenas o círculo de estrelas. Eram como as
extremidades luminosas de armas apontadas para ela. Uma
chuva de meteoros cruzou seu pedacinho de noite. Os
meteoros pareceram-lhe um aviso, as listras de um tigre,
costelas nuas e luminosas que fizeram seu sangue gelar. E ela
sentiu um calafrio por estarem os dois com a cabeça a prêmio.
– Ande logo – Paul disse. – Quero desmontar a tenda.
Uma chuva de areia da superfície roçou a mão esquerda de
Jéssica. Quanta areia a mão é capaz de reter?, ela se
perguntou.
– Precisa de ajuda? – Paul perguntou.
– Não.
Ela engoliu em seco, enfiou-se no buraco, sentiu a areia
compactada pela estática lixar suas mãos. Paul se abaixou e a
tomou pelo braço. Ela se viu de pé ao lado dele, num trecho
uniforme de deserto iluminado pelas estrelas, e deu uma
olhada ao redor. A areia chegava quase a transbordar da bacia
onde eles estavam, deixando apenas uma borda indistinta de
pedras ao redor. Ela sondou as trevas que se estendiam diante
deles com seus sentidos treinados.
Ruídos de pequenos animais.
Aves.
Areia deslocada, caindo, e os sons fracos de criaturas
dentro dela.
Paul desmontando a tenda e puxando-a para fora do
buraco.
A luz das estrelas desalojava a noite o bastante para
impregnar cada sombra com ameaças. Ela olhava para
manchas de escuridão.
As trevas são uma recordação cega, ela pensou. Escutamos
atentamente, esperando ouvir os ruídos da alcateia, os gritos
daqueles que caçavam nossos ancestrais num passado tão
remoto que só nossas células mais primitivas ainda recordam.
Os ouvidos enxergam. As narinas enxergam.
No mesmo instante, Paul parou ao lado dela e disse:
– Duncan me contou que, se fosse capturado, ele
conseguiria resistir... até este momento. Temos de sair daqui
agora mesmo. – Levou a mochila ao ombro, foi até a borda rasa
da bacia, subiu para uma saliência que sobranceava o deserto
aberto.
Jéssica o seguiu automaticamente, notando como passara
a depender do filho.
Pois, por ora, a dor da perda é mais pesada que as areias ou
os mares, ela pensou. Este mundo me privou de tudo, exceto do
propósito mais antigo de todos: a vida de amanhã. Vivo hoje por
meu jovem duque e por minha filha que ainda não nasceu.
Sentiu a areia puxar seus pés ao escalar a borda e se
colocar ao lado de Paul.
Ele olhava para o norte, por sobre uma fileira de pedras,
estudando um escarpamento ao longe.
O contorno distante da rocha era como um antigo
couraçado dos mares, delineado pelas estrelas. O longo zunido
da escarpa se dispersava numa onda invisível, com sílabas de
antenas bumerangues, chaminés que arqueavam para trás, um
soerguimento na popa, em forma de π.
Um clarão laranja explodiu acima da silhueta, e um risco
púrpura e brilhante cortou o céu de cima para baixo, na direção
do clarão.
Mais um risco púrpura!
E mais um clarão laranja subindo!
Era como uma antiga batalha naval, a lembrança de
obuses de artilharia, e aquela visão os fascinou.
– Pilares de fogo – Paul murmurou.
Um círculo de olhos vermelhos ergueu-se sobre a rocha
distante. Riscos púrpura fustigaram o céu.
– Chamas de jatos e armaleses – disse Jéssica.
A primeira lua de Arrakis, avermelhada de poeira, ergueu-
se acima do horizonte à esquerda deles, e ali os dois viram o
rastro de uma tempestade: uma faixa de movimento acima do
deserto.
– Devem ser tópteros dos Harkonnen a nossa procura –
Paul disse. – Da maneira como estão retalhando o deserto... é
como se quisessem garantir o extermínio do que estiver por
lá... da maneira como se extermina um ninho de insetos.
– Ou um ninho de Atreides – Jéssica disse.
– Temos de encontrar abrigo – Paul disse. – Iremos para o
sul e não sairemos de perto das pedras. Se nos apanharem no
deserto aberto... – Ele se virou, acomodando a mochila nos
ombros. – Estão matando qualquer coisa que se mova.
Ele deu um passo sobre a saliência e, naquele instante,
ouviu o silvo baixo de aeronaves planando e viu as formas
escuras de ornitópteros logo acima deles.
Meu pai certa vez me disse que o respeito
pela verdade é praticamente o alicerce de
toda moral. “Não há como uma coisa
surgir do nada”, ele disse. É um
pensamento profundo para quem
entende como a “verdade” pode ser
volúvel.
– excerto de “Conversas com Muad’Dib”, da princesa Irulan

– Sempre me orgulhei de enxergar as coisas como elas


realmente são – disse Thufir Hawat. – Essa é a maldição de ser
um Mentat. Não se consegue parar de analisar os dados.
Ao falar, seu rosto velho e curtido pareceu sereno na
obscuridade que antecedia o amanhecer. Os lábios manchados
de sapho haviam se retraído numa linha reta, com rugas radiais
que se espalhavam para cima.
Um homem de manto estava agachado na areia, em
silêncio, de frente para Hawat, aparentemente indiferente ao
que ele dizia.
Os dois estavam abaixados sob uma projeção de rocha que
sobranceava uma pia ampla e rasa. O amanhecer se espalhava
sobre o perfil acidentado dos penhascos do outro lado da
bacia, pincelando tudo de rosa. Fazia frio debaixo da projeção,
uma frialdade seca e penetrante deixada pela noite. Hawat
ouvia o bater de dentes atrás dele, entre os poucos soldados
que restavam de sua força.
O homem agachado diante de Hawat era um fremen que
havia cruzado a pia ao primeiro sinal de luz do falso amanhecer,
roçando de leve a areia, misturando-se às dunas, com
movimentos mal e mal discerníveis.
O fremen estendeu um dedo e pôs-se a desenhar na areia
que separava os dois. Parecia um arco cuspindo uma flecha.
– São muitas as patrulhas dos Harkonnen – ele disse.
Ergueu o dedo, apontou para cima, por sobre os penhascos que
Hawat e seus homens haviam descido.
Hawat concordou com a cabeça.
Muitas patrulhas. Sim.
Mas ele ainda não sabia o que aquele fremen queria, e isso
era exasperante. O treinamento de Mentat deveria dar a um
homem o poder de enxergar motivações.
Tinha sido a pior noite da vida de Hawat. Ele estava em
Tsimpo, uma vila fortificada, posto-tampão avançado da antiga
capital, Cartago, quando os informes sobre o ataque
começaram a chegar. A princípio, ele pensou: É uma incursão.
Os Harkonnen estão nos testando.
Mas os informes se seguiram, cada vez mais rápido.
Duas legiões desembarcaram em Cartago.
Cinco legiões – cinquenta brigadas! – atacaram a base
principal do duque em Arrakina.
Uma legião em Arsunt.
Dois grupos-tarefa na Pedra Lascada.
Aí os informes passaram a ser mais minuciosos: havia
Sardaukar imperiais entre os agressores – talvez duas legiões
deles. E ficou claro que os invasores sabiam exatamente o
tamanho da força que deviam mandar para cada local.
Exatamente! Informações soberbas!
A fúria escandalizada de Hawat foi tamanha que chegou a
ameaçar o funcionamento normal de suas faculdades de
Mentat. A magnitude do ataque atingiu sua mente como se
fosse um golpe físico.
Agora, escondido sob uma pedra no deserto, ele acenava
com a cabeça, para ninguém, e envolvia-se em seu manto
rasgado, como se para afastar as sombras gélidas.
A magnitude do ataque.
Ele sempre havia esperado que o inimigo alugasse um ou
outro cargueiro da Guilda para incursões exploratórias. Era
uma jogada bastante comum naquele tipo de conflito armado
entre Casas. Os cargueiros aterrissavam em Arrakis e dali
decolavam regularmente, transportando a especiaria para a
Casa Atreides. Hawat tomara precauções para evitar incursões
fortuitas de falsos cargueiros de especiaria. No caso de um
ataque total, eles não esperavam mais que dez brigadas.
Contudo, segundo a última contagem, havia mais de duas
mil naves pousadas em Arrakis: não só cargueiros, mas
também fragatas, aeronaves de reconhecimento, monitores,
esmagadores, transportes de tropas, lixeiras...
Mais de cem brigadas: dez legiões!
Toda a renda que Arrakis obtivesse com a especiaria nos
cinquenta anos seguintes talvez chegasse a cobrir o custo
daquela empreitada.
Talvez.
Subestimei o que o barão estava disposto a gastar para nos
atacar, Hawat pensou. Falhei com meu duque.
E ainda havia a questão da traidora.
Viverei o suficiente para vê-la estrangulada!, ele pensou.
Eu deveria ter matado aquela bruxa Bene Gesserit quando tive a
oportunidade. Não restava dúvida em sua mente quanto a
quem os traíra: lady Jéssica. Ela se enquadrava em todos os
fatos disponíveis.
– O tal Gurney e parte da força dele estão a salvo com
nossos amigos contrabandistas – disse o fremen.
– Ótimo.
Quer dizer que Gurney sairá deste planeta infernal. Não
estamos todos perdidos.
Hawat voltou a olhar para seus homens ali amontoados.
Tinha começado a noite com pouco mais de trezentos dos
melhores. Desses, restavam exatos vinte, e metade deles
estava ferida. Alguns estavam dormindo naquele momento, de
pé, encostados na pedra, esparramados na areia debaixo da
rocha. Seu último tóptero, que eles vinham usando como
aerodeslizador para transportar os feridos, tinha enguiçado
pouco antes da madrugada. Eles o haviam retalhado com
armaleses e escondido os pedaços, depois desceram com
dificuldade até aquele esconderijo na orla da bacia.
Hawat tinha apenas uma vaga ideia de sua localização:
cerca de duzentos quilômetros a sudeste de Arrakina. Os
caminhos mais usados entre as comunidades sietch da
Muralha-Escudo ficavam em algum lugar ao sul de sua posição.
O fremen diante de Hawat atirou para trás o capuz e o
gorro do trajestilador, revelando cabelos e barba ruivos. Os
cabelos estavam penteados para trás, deixando livre a testa
alta e franzina. Ele tinha os olhos inescrutáveis e totalmente
azuis, resultado da dieta de especiaria. A barba e o bigode
estavam manchados num dos lados da boca, e os pelos
emaranhados naquele ponto, devido à pressão da alça do tubo
coletor dos obturadores nasais.
O homem removeu os obturadores, reajustou-os. Coçou
uma escara junto ao nariz.
– Se cruzarem a pia esta noite – disse o fremen –, não usem
os escudos. Há uma brecha no paredão... – Ele girou nos
calcanhares e apontou o sul. – ... lá, e é areia exposta daqui até o
erg. Os escudos vão atrair um... – ele hesitou – ... verme. Eles
não costumam entrar aqui, mas são sempre atraídos pelos
escudos.
Ele disse verme, pensou Hawat. Ia dizer alguma outra
coisa. O quê? E o que ele quer de nós?
Hawat suspirou.
Não conseguia se lembrar de ter se sentido tão exausto
antes. Era um cansaço muscular que as pílulas antifadiga não
eram capazes de aliviar.
Aqueles malditos Sardaukar!
Com uma amargura autoacusadora, ele confrontou a ideia
dos fanáticos-soldados e da traição imperial que eles
representavam. Sua própria avaliação dos dados, como
Mentat, dizia-lhe como eram diminutas suas chances de um dia
apresentar provas daquela traição diante do Alto Conselho do
Landsraad, onde talvez se fizesse justiça.
– Quer ir até os contrabandistas? – o fremen perguntou.
– É possível?
– O caminho é longo.
“Os fremen não gostam de dizer não”, Idaho havia
comentado certa vez.
Hawat falou:
– Você ainda não disse se sua gente pode nos ajudar com
os feridos.
– Estão feridos.
A mesma droga de resposta todas as vezes!
– Nós sabemos que estão feridos! – Hawat berrou. – Não é
essa a...
– Calma, amigo – advertiu o fremen. – O que os feridos têm
a dizer? Há entre eles quem entenda a necessidade de água de
sua tribo?
– Não conversamos sobre a água – disse Hawat. – Nós...
– Entendo sua relutância – disse o fremen. – São seus
amigos, seus irmãos de tribo. Vocês têm água?
– Não o bastante.
O fremen apontou a túnica de Hawat, a pele exposta
debaixo dela.
– Foram surpreendidos dentro do sietch, sem seus trajes.
Você tem de tomar uma decisão d’água, amigo.
– Podemos comprar a ajuda de vocês?
O fremen deu de ombros.
– Vocês não têm água. – Ele olhou para o grupo atrás de
Hawat. – Quantos feridos você estaria disposto a gastar?
Hawat ficou em silêncio, olhando fixamente para o homem.
Sendo um Mentat, ele via que a comunicação entre eles estava
em desacordo. Os sons das palavras não se concatenavam da
maneira normal.
– Sou Thufir Hawat – ele disse. – Posso falar em nome de
meu duque. Faço uma promessa em troca de sua ajuda. Quero
uma forma limitada de ajuda, para preservar minha força
tempo suficiente apenas para matar uma traidora que se julga
imune à vingança.
– Quer que tomemos seu partido numa vendeta?
– Da vendeta cuidarei eu mesmo. Quero me livrar da
responsabilidade pelos meus homens feridos para poder me
dedicar a isso.
O fremen franziu o cenho.
– Como é que você pode ser responsável pelos feridos? São
responsáveis por si mesmos. A água é que está em questão,
Thufir Hawat. Quer que eu tire essa decisão de suas mãos?
O homem levou a mão a uma arma escondida sob seu
manto.
Hawat ficou tenso, perguntando-se: Será traição?
– Do que tem medo? – o fremen indagou.
A franqueza desconcertante dessa gente! Hawat falou com
cautela:
– Minha cabeça está a prêmio.
– Aaah. – O fremen tirou a mão da arma. – Você pensa que
a corrupção e a intriga nos afligem. Não nos conhece. Os
Harkonnen não têm água suficiente para comprar nem a
menor de nossas crianças.
Mas pagaram o preço cobrado pela Guilda para
transportar mais de duas mil naves de combate, Hawat pensou.
E o montante ainda o transtornava.
– Eu e você lutamos com os Harkonnen – Hawat disse. –
Não é melhor dividirmos os problemas e as maneiras de
enfrentar o resultado da batalha?
– Já estamos dividindo – disse o fremen. – Vi você lutar
com os Harkonnen. Você é bom. Houve momentos em que eu
ficaria grato por ter você a meu lado.
– É só dizer em que posso ajudá-lo – Hawat disse.
– Quem sabe? – o fremen perguntou. – As forças dos
Harkonnen estão em toda parte. Mas você ainda não tomou a
decisão d’água nem a apresentou a seus feridos.
Preciso tomar cuidado, Hawat disse consigo mesmo. Há
alguma coisa aqui que não foi bem entendida.
Ele disse:
– Você poderia me mostrar como faz, como os arrakinos
fazem?
– Pensamento de estrangeiro – disse o fremen, e havia um
certo escárnio em seu tom de voz. Apontou o noroeste, por
sobre o topo do penhasco. – Vimos vocês atravessarem a areia
noite passada. – Ele abaixou o braço. – Você está mantendo sua
força na face de deslizamento das dunas. Não presta. Estão
sem trajestiladores, sem água. Não vão durar muito.
– Não é fácil adquirir os hábitos de Arrakis – disse Hawat.
– Verdade. Mas matamos Harkonnen.
– O que vocês fazem com seus próprios feridos? – Hawat
indagou.
– Então um homem não sabe quando vale a pena ser salvo?
– perguntou o fremen. – Seus feridos sabem que vocês não têm
água. – Ele inclinou a cabeça, olhando de lado para Hawat. –
Este é nitidamente o momento de tomar uma decisão d’água.
Os feridos e os ilesos têm de pensar no futuro da tribo.
O futuro da tribo, pensou Hawat. A tribo dos Atreides. Faz
sentido. Obrigou-se a fazer a pergunta que vinha evitando:
– Tem alguma notícia de meu duque ou do filho dele?
Olhos azuis e inescrutáveis se ergueram para fitar os de
Hawat.
– Notícia?
– A sorte deles! – Hawat gritou.
– A sorte é igual para todos – disse o fremen. – Dizem que
seu duque encontrou a dele. Quanto a Lisan al-Gaib, o filho, ele
está nas mãos de Liet. Liet ainda não se pronunciou.
Eu já sabia a resposta antes de perguntar, pensou Hawat.
Ele olhou para trás, para seus homens. Estavam todos
acordados agora. Tinham escutado a conversa. Olhavam
fixamente para o trecho de areia, com a compreensão
estampada em suas expressões: não havia como voltar para
Caladan, e agora Arrakis estava perdido.
Hawat virou-se para o fremen.
– Sabe o que aconteceu com Duncan Idaho?
– Ele estava na casa grande quando o escudo caiu – disse o
fremen. – Disso eu sei... nada mais.
Ela baixou o escudo e deixou os Harkonnen entrarem, ele
pensou. Eu é que me sentei com as costas para a porta. Como
ela pôde fazer isso sabendo que se voltaria contra o próprio
filho? Mas... sabe-se lá como uma bruxa Bene Gesserit pensa...
se é que se pode chamar aquilo de pensamento.
Hawat, com a garganta seca, tentou engolir saliva.
– Quando terá notícias do menino?
– Sabemos pouco sobre o que está acontecendo em
Arrakina – o fremen disse. Deu de ombros. – Quem sabe?
– Vocês têm como descobrir?
– Talvez. – O fremen coçou a escara junto ao nariz. – Diga-
me, Thufir Hawat, sabe alguma coisa a respeito das armas de
grande porte usadas pelos Harkonnen?
A artilharia, pensou Hawat, com amargura. Quem teria
adivinhado que eles usariam artilharia na era dos escudos?
– Você está se referindo à artilharia que eles usaram para
prender nossa gente nas cavernas – ele disse. – Eu... conheço
um pouco da teoria por trás dessas armas explosivas.
– O homem que foge para uma caverna que só tem uma
abertura merece morrer – disse o fremen.
– Por que pergunta sobre essas armas?
– É Liet quem quer saber.
Será isso que ele quer de nós?, Hawat se perguntou. E disse:
– Veio aqui em busca de informações sobre as armas de
grande porte?
– Liet queria ver uma delas com os próprios olhos.
– Então por que não pegam uma? – zombou Hawat.
– Pois é – disse o fremen. – Pegamos uma. Nós a
escondemos num lugar onde Stilgar poderá examiná-la para
Liet, e onde Liet poderá vê-la com seus próprios olhos se
quiser. Mas duvido que ele queira: a arma não é muito boa. Não
serve para Arrakis.
– Vocês... pegaram uma? – Hawat perguntou.
– Foi uma bela luta – disse o fremen. – Perdemos apenas
dois homens e derramamos a água de mais de cem deles.
Havia Sardaukar na equipagem de cada canhão, Hawat
pensou. Este louco do deserto fala com toda a naturalidade de
ter perdido apenas dois homens em combate com os Sardaukar!
– Não teríamos perdido aqueles dois não fossem os outros
sujeitos que lutavam ao lado dos Harkonnen – disse o fremen. –
Alguns deles são bons combatentes.
Um dos homens de Hawat se aproximou, mancando, e
olhou para o fremen agachado.
– Está falando dos Sardaukar?
– Ele está falando dos Sardaukar – confirmou Hawat.
– Sardaukar! – disse o fremen, e parecia haver júbilo em
sua voz. – Aaah, então era isso que eles eram! A noite foi
realmente boa. Sardaukar. De qual legião? Vocês sabem?
– Nós... não sabemos – Hawat disse.
– Sardaukar – contemplou o fremen. – Mas estavam
vestidos como Harkonnen. Não é estranho?
– O imperador não quer que saibam que ele está lutando
contra uma Casa Maior – disse Hawat.
– Mas você sabe que eles são Sardaukar.
– E quem sou eu? – perguntou Hawat, com amargura.
– Você é Thufir Hawat – o homem falou com franqueza. –
Bem, acabaríamos descobrindo cedo ou tarde. Mandamos três
deles prisioneiros para os homens de Liet interrogarem.
O assistente de Hawat falou devagar, com a incredulidade
em cada palavra:
– Vocês... capturaram Sardaukar?
– Só três – respondeu o fremen. – Eles lutaram bem.
Ah, se tivéssemos tido tempo para nos associarmos com
esses fremen, Hawat pensou. Era um lamento amargurado em
sua mente. Se tivéssemos conseguido armá-los e treiná-los.
Grande Mãe, que exército teríamos criado!
– Talvez sua hesitação se deva à preocupação com a Lisan
al-Gaib – disse o fremen. – Se ele for realmente a Lisan al-Gaib,
nada de mau lhe acontecerá. Não desperdice pensamentos
com uma coisa que ainda não foi provada.
– Eu sirvo a... Lisan al-Gaib – Hawat disse. – Seu bem-estar
me diz respeito. É minha devoção.
– Você foi devotado à água dele?
Hawat olhou de relance para seu assistente, que ainda
encarava o fremen, e voltou a dar atenção ao sujeito agachado.
– À água dele, sim.
– Você quer voltar para Arrakina, para o lugar da água
dele?
– Para... sim, o lugar da água dele.
– Por que não disse desde o começo que era uma questão
de água? – O fremen se levantou e prendeu com firmeza os
obturadores nasais.
Hawat fez, com a cabeça, um sinal para o assistente voltar
para onde estavam os outros. Com um encolher de ombros
cansado, o homem obedeceu. Hawat ouviu uma conversa em
voz baixa irromper entre os homens.
O fremen disse:
– Sempre há um caminho para se chegar à água.
Atrás de Hawat, um homem praguejou. O assistente de
Hawat gritou:
– Thufir! Arkie acabou de morrer.
O fremen levou o punho fechado ao ouvido.
– O laço da água! É um sinal! – Olhou para Hawat. – Temos
aqui perto um lugar para receber a água. Devo chamar meus
homens?
O fremen ainda mantinha o punho perto do ouvido.
– É o laço da água, Thufir Hawat? – ele indagou.
A mente de Hawat disparou. Começava a entender para
onde iam as palavras do fremen, mas temia a reação dos
homens cansados sob a projeção de rocha quando eles
entendessem do que se tratava.
– O laço da água – Hawat disse.
– Que nossas tribos se unam – disse o fremen, baixando a
mão fechada.
Como se aquele fosse o sinal combinado, quatro homens
escorregaram e saltaram da rocha acima deles. Lançaram-se
sob a projeção, enrolaram o morto num manto folgado,
ergueram-no e, levando-o, começaram a correr ao longo do
paredão, para a direita. Jatos de pó se elevavam em torno de
seus pés ligeiros.
Acabou antes que os homens cansados de Hawat
conseguissem entender alguma coisa. O grupo, com o corpo
envolto no manto e pendurado feito um saco, sumiu ao
contornar o penhasco.
Um dos homens de Hawat gritou:
– Para onde estão levando o Arkie? Ele estava...
– Eles o estão levando para... enterrá-lo – Hawat disse.
– Os fremen não enterram seus mortos! – o homem
vociferou. – Não tente nos enganar, Thufir. Sabemos o que eles
fazem. Arkie era um de...
– O paraíso é uma certeza para o homem que morre a
serviço da Lisan al-Gaib – disse o fremen. – Se é a Lisan al-Gaib
que vocês servem, como disseram, por que lançam gritos de
pesar? A memória de alguém que morreu dessa maneira viverá
enquanto a memória do homem durar.
Mas os homens de Hawat avançaram, com expressões
zangadas nos rostos. Um deles havia se apoderado de uma
armalês. Começou a sacá-la.
– Parem aí onde estão! – Hawat vociferou. Resistiu ao
cansaço mórbido que tomava seus músculos. – Essas pessoas
respeitam nossos mortos. Os costumes são diferentes, mas a
intenção é a mesma.
– Eles vão triturar o Arkie para fazer água – rosnou o
homem com a armalês.
– Seus homens querem assistir à cerimônia, é isso? – o
fremen perguntou.
Ele nem sequer enxerga o problema, Hawat pensou. A
ingenuidade do fremen era assustadora.
– Preocupam-se com um companheiro que era respeitado
– Hawat disse.
– Trataremos seu companheiro com a mesma reverência
com a qual tratamos os nossos – disse o fremen. – Esse é o laço
da água. Conhecemos os ritos. A carne pertence ao homem; a
água, à tribo.
Hawat falou rapidamente quando o homem com a armalês
deu mais um passo adiante.
– Agora vocês vão ajudar nossos feridos?
– O laço é incontestável – disse o fremen. – Faremos por
vocês o que a tribo faz pelos seus. Primeiro, temos de arranjar
trajes para todos vocês e cuidar de suas necessidades.
O homem com a armalês hesitou.
O assistente de Hawat disse:
– Estamos comprando a ajuda deles com... a água de
Arkie?
– Comprando, não – Hawat disse. – Nós nos unimos a essas
pessoas.
– Costumes diferentes – um dos homens dele resmungou.
Hawat começou a relaxar.
– E eles nos ajudarão a chegar a Arrakina?
– Mataremos Harkonnen – disse o fremen. Ele sorriu. – E
Sardaukar. – Recuou um passo, levou a mão em concha ao
ouvido e inclinou a cabeça para trás, pondo-se a escutar. No
mesmo instante, ele baixou as mãos e disse: – Uma aeronave se
aproxima. Escondam-se embaixo da pedra e não se mexam.
A um gesto de Hawat, seus homens obedeceram.
O fremen pegou Hawat pelo braço e o empurrou para trás,
com os outros.
– Lutaremos quando chegar a hora de lutar – o homem
disse. Enfiou uma das mãos sob o manto, tirou de lá uma gaiola
pequena, de onde removeu uma criatura.
Hawat reconheceu um morcego diminuto. O morcego
virou a cabeça e Hawat viu os olhos de azul sobre azul.
O fremen acariciou o morcego, acalmando-o, cantarolando
para o bichinho. Ele se inclinou sobre a cabeça do animal,
estendeu a língua e deixou pingar uma gota de saliva dentro da
boca do morcego, voltada para cima. O morcego esticou as
asas, mas continuou sobre a mão aberta do fremen. O homem
pegou um tubo minúsculo, segurou-o ao lado da cabeça do
morcego e emitiu sons inarticulados dentro dele; em seguida,
erguendo a criatura bem alto, arremessou-a para cima.
O morcego voou para longe, descrevendo um arco ao lado
do penhasco, e sumiu de vista.
O fremen dobrou a gaiola, enfiou-a sob o manto. Mais uma
vez, ele inclinou a cabeça e pôs-se a ouvir.
– Estão batendo as terras altas – ele disse. – É de se
perguntar quem estão procurando lá em cima.
– Eles sabem que fugimos nesta direção – Hawat disse.
– Nunca suponha que você é o único alvo de uma caçada –
disse o fremen. – Fique de olho no outro lado da bacia. Vai ver
uma coisa.
O tempo passou.
Alguns dos homens de Hawat se mexeram, murmurando.
– Fiquem quietos como animais assustados – silvou o
fremen.
Hawat percebeu uma certa movimentação perto do
penhasco do outro lado: borrões fugazes de bronze sobre
bronze.
– Meu amiguinho levou sua mensagem – disse o fremen. – É
um bom mensageiro, seja de dia ou de noite. Perdê-lo seria uma
infelicidade.
O movimento do outro lado da pia foi cessando aos
poucos. Em todo o trecho de quatro ou cinco quilômetros de
areia, nada restava a não ser a pressão cada vez maior do calor
do dia: colunas embaçadas de ar ascendente.
– Fiquem bem quietinhos agora – murmurou o fremen.
Uma fila de pessoas, caminhando com dificuldade, surgiu
de uma brecha no penhasco do outro lado e pôs-se a atravessar
a pia em linha reta. Para Hawat, pareciam ser fremen, mas
devia ser um bando curiosamente desajeitado. Contou seis
homens caminhando pesadamente sobre as dunas.
Um “tuok-tuok” de asas de ornitóptero soou alto à direita,
atrás do grupo de Hawat. A nave sobrevoou o paredão de rocha
acima deles: um tóptero Atreides pintado às pressas com as
cores de batalha dos Harkonnen. O tóptero mergulhou na
direção dos homens que cruzavam a pia.
O grupo se deteve sobre a crista de uma duna e acenou.
O tóptero passou sobre eles uma vez, descrevendo um
círculo em curva fechada, voltou e aterrissou, envolto em
poeira, na frente dos fremen. Cinco homens saíram do tóptero,
e Hawat viu, nos movimentos deles, o tremeluzir dos escudos,
repelindo o pó, e a competência implacável dos Sardaukar.
– Aiiii! Estão usando aqueles escudos estúpidos – sibilou o
fremen ao lado de Hawat. Olhou na direção do paredão que
delimitava a pia ao sul.
– São Sardaukar – Hawat sussurrou.
– Ótimo.
Os Sardaukar se aproximaram do grupo fremen num
semicírculo envolvente. O sol cintilava nas armas brancas de
prontidão. Os fremen formavam um grupo compacto,
aparentemente indiferentes.
Súbito, da areia ao redor dos dois grupos brotaram
fremen. Estavam diante do ornitóptero, em seguida dentro
dele. Onde os dois grupos haviam se encontrado na crista da
duna, uma nuvem de poeira obscureceu parcialmente a ação
violenta.
Em instantes, o pó baixou. Somente os fremen
continuavam de pé.
– Deixaram só três homens dentro do tóptero – disse o
fremen ao lado de Hawat. – Tivemos sorte. Não creio que
tenhamos danificado a nave ao tomá-la.
Atrás de Hawat, um de seus homens sussurrou:
– Eram Sardaukar!
– Reparou como lutaram bem? – o fremen perguntou.
Hawat inspirou profundamente. Farejou a poeira
queimada em volta dele, sentiu o calor, a secura. Numa voz
igualmente seca, ele disse:
– É, eles realmente lutaram bem.
O tóptero capturado decolou com um brusco bater de
asas, subiu obliquamente para o sul, numa ascensão íngreme e
de asas dobradas.
Então os fremen também sabem pilotar tópteros, Hawat
pensou.
Na duna ao longe, um fremen acenou com um retalho de
tecido verde: uma... duas vezes.
– Estão vindo mais! – gritou o fremen ao lado de Hawat. –
Preparem-se. Eu esperava partir sem mais inconvenientes.
Inconvenientes!, Hawat pensou.
Ele viu outros dois tópteros mergulharem lá do alto, a
oeste, rumo a um trecho de areia onde repentinamente não se
viam mais fremen. Só oito manchas azuis – os corpos dos
Sardaukar vestindo uniformes Harkonnen – permaneciam
naquele palco de violência.
Um outro tóptero apareceu, planando sobre o paredão
acima de Hawat. Ele inspirou fundo ao ver a nave: era um
grande transporte de tropas. Voava com a lentidão indolente e
as asas abertas de um veículo completamente lotado, qual ave
gigante chegando ao ninho.
Ao longe, o raio fino e púrpura de uma armalês saltou de
um dos tópteros descendentes. O feixe fustigou a areia,
levantando um rastro saibroso de pó.
– Os covardes! – disse o fremen ao lado de Hawat, entre
dentes.
O transporte de tropas seguiu na direção da mancha de
cadáveres vestidos de azul. Suas asas se estenderam por
completo e inclinaram-se ligeiramente para cima, preparando
uma parada rápida.
A atenção de Hawat foi atraída por um reflexo de sol no
metal, ao sul: era um tóptero em mergulho vertical, motor
ligado, asas dobradas e recolhidas às laterais, jatos feito
chamas douradas contra o cinza-escuro e prateado do céu.
Precipitou-se feito flecha na direção do transporte de tropas,
que vinha sem escudos por causa do uso de armaleses nas
proximidades. O tóptero em mergulho atingiu o transporte em
cheio.
Um rugido incandescente abalou a bacia. Em toda a volta,
pedras despencaram das faces do penhasco. A areia, onde
estiveram o transporte e os tópteros que o acompanhavam,
lançou um gêiser de laranja e vermelho em direção ao céu, e
tudo ali irrompeu em chamas.
Era o fremen que partiu no tóptero capturado, Hawat
pensou. Ele se sacrificou deliberadamente para abater aquele
transporte. Grande Mãe! Quem são esses fremen?
– Uma troca razoável – disse o fremen ao lado de Hawat. –
Devia haver trezentos homens naquele transporte. Agora,
temos de cuidar da água deles e planejar a captura de uma
outra aeronave. – Ele começou a sair do esconderijo à sombra
da rocha.
Uma chuva de uniformes azuis veio do alto do paredão
diante dele, caindo com a lentidão dos suspensores em baixa
intensidade. Naquele instante fugaz, Hawat teve tempo de ver
que eram Sardaukar, de semblantes cruéis e tomados pelo
frenesi da batalha, que eles não usavam escudos e que cada um
deles tinha uma faca numa das mãos e um atordoador na outra.
Uma faca foi arremessada e acertou a garganta do
companheiro fremen de Hawat, atirando-o para trás e
fazendo-o girar e cair com o rosto voltado para o chão. Hawat
só teve tempo de sacar sua própria faca antes de ser abatido
pelas trevas de um projétil atordoador.
Muad’Dib era realmente capaz de ver o
Futuro, mas é preciso entender os limites
desse poder. Pense na visão. Temos olhos,
mas não enxergamos sem luz. Se estamos
no leito de um vale, não enxergamos além
de nosso vale. Da mesma maneira,
Muad’Dib nem sempre tinha a opção de
ver o outro lado do terreno misterioso.
Conta-nos ele que uma única decisão
profética e obscura, talvez a escolha de
uma palavra, e não outra, poderia mudar
inteiramente o aspecto do futuro. Conta-
nos que “a visão do tempo é vasta, mas,
quando o atravessamos, o tempo se torna
uma porta estreita”. E ele sempre resistiu
à tentação de escolher um trajeto claro e
seguro, advertindo-nos: “Esse caminho
leva sempre à estagnação”.
– excerto de “Despertar de Arrakis”, da princesa Irulan

Quando os ornitópteros surgiram planando do seio da


noite, logo acima deles, Paul tomou a mãe pelo braço e disse,
ríspido:
– Não se mexa!
Aí ele viu a nave principal à luz da lua, a maneira como as
asas se inclinaram para frear e pousar, o vigor afoito das mãos
nos controles.
– É Idaho – ele sussurrou.
A nave e suas companheiras pousaram na bacia como um
bando de pássaros de volta ao ninho. Idaho já estava fora do
tóptero e correndo na direção deles antes de a poeira baixar.
Dois vultos vestindo mantos fremen o seguiam. Paul
reconheceu um deles: Kynes, alto e de barba ruiva.
– Por aqui! – Kynes gritou, desviando-se para a esquerda.
Atrás de Kynes, outros fremen jogavam capas de pano
sobre os ornitópteros. As naves tornaram-se uma fileira de
dunas baixas.
Idaho derrapou até parar na frente de Paul e bateu
continência.
– Milorde, os fremen têm um esconderijo provisório aqui
perto, onde nós...
– O que está acontecendo lá atrás?
Paul apontou a cena de violência acima do penhasco
distante: a luz dos jatos, os raios purpúreos das armaleses que
fustigavam o deserto.
Um raro sorriso roçou o rosto redondo e plácido de Idaho.
– Milorde... Sire, deixei-lhes uma sur...
Uma luz branca e fulgurante tomou o deserto: brilhante
como um sol, imprimiu as sombras deles no chão de pedra da
saliência. Com um movimento impetuoso, Idaho segurou o
braço de Paul numa das mãos e o ombro de Jéssica na outra,
jogando-os saliência abaixo até a bacia. Eles se estatelaram
todos juntos na areia, e o rugido de uma explosão atroou sobre
suas cabeças. A onda de choque arrancou lascas da saliência
rochosa que tinham acabado de deixar.
Idaho se sentou e limpou a areia que o cobria.
– Não me diga que são as armas atômicas da família! –
exclamou Jéssica. – Pensei...
– Você instalou um escudo lá atrás – disse Paul.
– Um dos grandes, em força total – disse Idaho. – O raio de
uma armalês fez contato e... – Deu de ombros.
– Fusão subatômica – disse Jéssica. – É uma arma
perigosa.
– Arma, não, milady: defesa. Aquela escória pensará duas
vezes antes de usar armaleses de novo.
Os fremen dos ornitópteros estacaram logo acima dos
três. Um deles falou, em voz baixa:
– É melhor nos abrigarmos, amigos.
Paul ficou de pé, e Idaho ajudou Jéssica a se levantar.
– A explosão vai chamar uma atenção considerável, sire –
disse Idaho.
Sire, pensou Paul.
A palavra soava tão estranha quando dirigida a ele. Sire
tinha sempre sido seu pai.
Sentiu-se brevemente em contato com seus poderes
prescientes, vendo-se infectado pela consciência racial
selvagem que impelia o universo humano rumo ao caos. A visão
o deixou abalado, e ele permitiu que Idaho o conduzisse pela
orla da bacia até uma projeção rochosa. Os fremen estavam
abrindo ali um buraco com seus compactadores.
– Quer que eu carregue a mochila, sire? – perguntou Idaho.
– Não está pesada, Duncan – disse Paul.
– Milorde está sem um escudo corporal – disse Idaho. –
Quer ficar com o meu? – Olhou para o penhasco ao longe. – É
improvável que voltem a usar as armaleses.
– Fique com seu escudo, Duncan. Seu braço direito já me
basta como escudo.
Jéssica viu o efeito do elogio, viu como Idaho se aproximou
de Paul, e pensou: Com que segurança meu filho trata sua gente.
Os fremen removeram um tampão de rocha, abrindo uma
passagem descendente para o interior do complexo
subterrâneo natural do deserto. Arranjaram uma coberta
camuflada para a abertura.
– Por aqui – disse um dos fremen, conduzindo-os pela
escada de pedra abaixo, escuridão adentro.
Atrás deles, a cobertura obliterou o luar. Um brilho fraco e
verde ganhou vida logo adiante, revelando os degraus e as
paredes de pedra, uma curva para a esquerda. Fremen
envoltos em mantos os cercavam e empurravam para baixo.
Contornaram a curva, encontraram mais uma passagem
descendente que se abriu numa câmara subterrânea e
acidentada.
Kynes estava diante deles, com o capuz de seu jubba
atirado para trás. A gola de seu trajestilador cintilava sob a luz
verde. Os cabelos compridos e a barba estavam em desalinho.
Os olhos azuis, sem nada de branco, eram uma escuridão só
sob o cenho carregado.
No momento do encontro, Kynes se perguntou: Por que
estou ajudando essa gente? É a coisa mais perigosa que já fiz.
Isso pode me destruir junto com eles.
E aí ele olhou diretamente para Paul, vendo o menino que
havia se tornado adulto, disfarçando o pesar, suprimindo tudo,
exceto a posição que agora era forçoso assumir: a de duque. E
Kynes percebeu naquele momento que o duque ainda existia, e
somente por causa daquele jovem, e não se podia tomar uma
coisa daquelas levianamente.
Jéssica deu só uma olhada ao redor da câmara,
registrando-a em seus sentidos, à maneira das Bene Gesserit:
um laboratório civil, cheio de cantos e linhas retas, à moda
antiga.
– É uma das Estações Ecológicas Experimentais do
Império que meu pai queria como bases avançadas – disse
Paul.
Que seu pai queria!, pensou Kynes.
E Kynes voltou a se perguntar: É idiotice minha ajudar
esses fugitivos? Por que estou fazendo isso? Seria tão fácil
capturá-los agora e usá-los para comprar a confiança dos
Harkonnen.
Paul seguiu o exemplo de sua mãe, assimilando a
totalidade do recinto, vendo a bancada de trabalho de um lado,
as paredes de rocha lisa. Alguns instrumentos cobriam a
bancada: mostradores iluminados, broquéis gradex de arame,
de onde saíam vidros acanelados. O cheiro de ozônio saturava
o lugar.
Alguns fremen seguiram adiante, contornaram um canto
dissimulador da câmara, e novos sons se fizeram ouvir ali: o
tossir de uma máquina, os gemidos de correias giratórias e
multitransmissões.
Paul olhou para o fundo do recinto, viu gaiolas contendo
pequenos animais empilhadas e encostadas na parede.
– Identificou corretamente o lugar – disse Kynes. – Para
que você usaria um lugar como este, Paul Atreides?
– Para tornar este planeta adequado aos seres humanos –
respondeu Paul.
Talvez seja por isso que eu os ajudo, pensou Kynes.
O ruído da máquina se reduziu a um zumbido e cessou de
repente. Preenchendo o silêncio, o guincho agudo de um dos
animais engaiolados se fez ouvir. Parou subitamente, como se
fosse algo constrangedor.
Paul voltou sua atenção para as gaiolas, viu que os animais
eram morcegos de asas marrons. Um alimentador automático
projetava-se da parede lateral, varando as gaiolas.
Um fremen saiu da área oculta da câmara e disse a Kynes:
– Liet, o equipamento gerador de campo não está
funcionando. Não posso ocultar nossa presença dos detectores
de proximidade.
– Consegue consertá-lo? – perguntou Kynes.
– Não tão rápido. As peças... – O homem deu de ombros.
– Sim – disse Kynes. – Então vamos nos virar sem as
máquinas. Leve uma bomba de ar manual para a superfície.
– É para já. – O homem saiu correndo.
Kynes virou-se para Paul.
– Você deu uma boa resposta.
Jéssica notou a melodia grave e despreocupada da voz do
homem. Era uma voz régia, acostumada a comandar. E não
deixou passar o fato de terem se referido a ele como Liet. Liet
era o alter-ego fremen, a outra face do planetólogo pacífico.
– Somos muitíssimo gratos por sua ajuda, dr. Kynes – ela
disse.
– Hmm, veremos – disse Kynes. Ele acenou com a cabeça
para um de seus homens. – Café de especiaria em meus
aposentos, Shamir.
– Agora mesmo, Liet – disse o homem.
Kynes indicou uma abertura em arco na parede lateral da
câmara.
– Se me fazem o favor...
Jéssica se permitiu um aceno régio antes de aceitar o
convite. Ela viu Paul fazer um sinal com a mão para Idaho,
dizendo-lhe para ficar de guarda ali.
A passagem, com dois passos de profundidade,
atravessava uma porta pesada e abria-se num gabinete
quadrangular, iluminado pelos luciglobos dourados. Jéssica
passou uma das mãos pela porta ao entrar e se sobressaltou ao
identificar o açoplás.
Paul deu três passos para dentro da sala; largou a mochila
no chão. Ouviu a porta se fechar atrás dele, estudou o lugar:
eram oito metros de um lado, paredes de rocha natural, cor de
caril, interrompidas por arquivos de metal à direita deles. Uma
escrivaninha baixa, com tampo de vidro leitoso e cheio de
bolhas amarelas, ocupava o centro da sala. Quatro cadeiras
suspensas rodeavam a mesa.
Kynes contornou Paul e puxou uma cadeira para Jéssica.
Ela se sentou, reparando na maneira como o filho examinava a
sala.
Paul continuou de pé durante mais um piscar de olhos.
Uma leve anomalia no ar da sala lhe revelou que havia uma
saída secreta à direita deles, atrás dos arquivos.
– Não quer se sentar, Paul Atreides? – perguntou Kynes.
O cuidado com que evita meu título, Paul pensou. Mas
aceitou a cadeira e continuou calado enquanto Kynes se
sentava.
– Você percebe que Arrakis poderia ser um paraíso – disse
Kynes. – Mas, como vê, o Imperium só manda para cá seus
jagunços treinados, exploradores ávidos pela especiaria!
Paul ergueu o polegar que trazia o sinete ducal.
– Vê este anel?
– Sim.
– Sabe o que significa?
Jéssica virou-se bruscamente para fitar o filho.
– Seu pai está morto nas ruínas de Arrakina – disse Kynes.
– Você é, tecnicamente, o duque.
– Sou um soldado do Imperium – disse Paul –, tecnicamente
um jagunço.
O rosto de Kynes se anuviou.
– Mesmo com o corpo de seu pai aos pés dos Sardaukar do
imperador?
– Os Sardaukar são uma coisa, a fonte legal de minha
autoridade é outra – disse Paul.
– Arrakis tem sua própria maneira de determinar quem
veste o manto da autoridade – Kynes disse.
E Jéssica, virando-se mais uma vez, agora para encarar
Kynes, pensou: Este homem tem dentro de si o aço do qual
ninguém ainda tirou a têmpera... e precisamos do aço. O que
Paul está fazendo é perigoso.
Paul disse:
– A presença dos Sardaukar em Arrakis é uma medida de
quanto nosso amado imperador temia meu pai. Agora, eu darei
ao imperador padixá motivos para temer o...
– Rapaz – disse Kynes –, existem coisas que você não...
– Dirija-se a mim como sire ou milorde – disse Paul.
Seja cortês, Jéssica pensou.
Kynes encarou Paul, e Jéssica notou o brilho de admiração
no rosto do planetólogo, e um quê de graça.
– Sire – disse Kynes.
– Sou um estorvo para o imperador – disse Paul. – Sou um
estorvo para todos aqueles que querem dividir Arrakis como
seu espólio. Enquanto eu viver, hei de continuar a ser esse
estorvo, até se engasgarem comigo e morrerem sufocados!
– Palavras – disse Kynes.
Paul olhou fixamente para ele. No mesmo instante, falou:
– Vocês têm aqui a lenda da Lisan al-Gaib, a Voz do Mundo
Exterior, que levará os fremen ao paraíso. Seus homens têm...
– Superstição! – disse Kynes.
– Talvez – concordou Paul. – Ou talvez não. As
superstições, às vezes, têm raízes estranhas e ramificações
mais estranhas ainda.
– Tem um plano – Kynes disse. – Isso é óbvio... sire.
– Seus fremen conseguiriam arranjar provas definitivas de
que os Sardaukar estão aqui disfarçados de Harkonnen?
– É bem provável que sim.
– O imperador recolocará um Harkonnen no poder aqui –
disse Paul. – Talvez até mesmo o Bruto Rabban. Que seja.
Depois de ter se envolvido tanto que não conseguirá mais se
esquivar da culpa, deixemos o imperador enfrentar a
possibilidade de uma denúncia perante o Landsraad. Que ele
responda a isso onde...
– Paul! – disse Jéssica.
– Presumindo que o Alto Conselho do Landsraad aceite
seu caso – disse Kynes –, só poderia haver um resultado: guerra
generalizada entre o Imperium e as Casas Maiores.
– Caos – disse Jéssica.
– Mas eu apresentaria meu caso ao imperador – disse Paul
– e daria a ele uma alternativa ao caos.
Jéssica falou, com secura na voz:
– Chantagem?
– Um dos instrumentos da arte de governar, como você
mesma já disse – Paul respondeu, e Jéssica ouviu a amargura
na voz dele. – O imperador não tem filhos homens, somente
filhas.
– Você almeja o trono? – Jéssica perguntou.
– O imperador não correrá o risco de ter o Imperium
fragmentado pela guerra total – disse Paul. – Planetas
destruídos, desordem por toda parte: ele não correrá esse
risco.
– Está propondo uma jogada perigosa – disse Kynes.
– O que as Casas Maiores do Landsraad mais temem? –
Paul perguntou. – O que elas mais temem é o que está
acontecendo aqui neste exato momento, em Arrakis: que os
Sardaukar venham a abatê-las uma por vez. É por isso que
existe um Landsraad. É a força que une a Grande Convenção.
Somente unidas elas serão páreo para as forças imperiais.
– Mas estão...
– Isso é o que temem – disse Paul. – Arrakis faria com que
cerrassem fileiras. Todos eles veriam a si mesmos no lugar de
meu pai: apartados do rebanho e mortos.
Kynes falou para Jéssica:
– Esse plano poderia funcionar?
– Não sou um Mentat – Jéssica respondeu.
– Mas é Bene Gesserit.
Ela o sondou com o olhar e disse:
– O plano dele tem qualidades e defeitos... como qualquer
plano teria neste estágio. Um plano depende tanto de sua
execução quanto de sua concepção.
– “A lei é a ciência suprema” – citou Paul. – É o que se lê
acima da porta do imperador. Proponho que mostremos a ele a
lei.
– Não tenho certeza se posso confiar na pessoa que
concebeu o plano – disse Kynes. – Arrakis tem seu próprio
plano, que nós...
– Sentado no trono – Paul disse –, eu poderia transformar
Arrakis num paraíso com um aceno de mão. É isso que ofereço
em troca de seu apoio.
Kynes se empertigou.
– Minha lealdade não está à venda, sire.
Paul o encarou por sobre a escrivaninha e enfrentou o gelo
daqueles olhos de azul sobre azul, estudando o rosto barbado,
a aparência imperiosa. Um sorriso sombrio roçou os lábios de
Paul, e ele falou:
– Disse bem. Peço desculpas.
Kynes retribuiu o olhar de Paul e, sem demora, disse:
– Nenhum Harkonnen jamais admitiu ter errado. Talvez
você não seja como eles, Atreides.
– Pode ser uma falha na educação deles – Paul disse. – Você
diz que não está à venda, mas creio ter a moeda que o fará
aceitar. Em troca de sua lealdade, ofereço-lhe minha lealdade...
total.
Meu filho tem a sinceridade dos Atreides, Jéssica pensou.
Tem aquela honra formidável, quase ingênua – e que força
poderosa é de fato.
Ela viu que as palavras de Paul abalaram Kynes.
– Que absurdo – disse Kynes. – Você é só um menino e...
– Sou o duque – disse Paul. – Sou um Atreides. Nenhum
Atreides até hoje faltou com a palavra em algo assim.
Kynes engoliu em seco.
– Quando digo total – Paul disse –, quero dizer sem
reservas. Eu daria minha vida por você.
– Sire! – exclamou Kynes, e a palavra foi arrancada de seus
lábios, mas Jéssica viu que ele já não estava falando com um
menino de 15 anos, e sim com um homem, um superior. Agora
Kynes usava a palavra com sinceridade.
Neste momento, ele daria sua vida por Paul, ela pensou.
Como é que os Atreides conseguem fazer isso com tanta rapidez
e facilidade?
– Sei que está falando sério – disse Kynes. – Mas os Harko...
A porta atrás de Paul se abriu com estrondo. Ele girou e
viu uma cena vertiginosa de violência: gritos, o entrechoque do
aço, rostos de figuras de cera contraindo-se na passagem.
Com a mãe a seu lado, Paul saltou para a porta, vendo que
Idaho bloqueava a passagem, com os olhos injetados de sangue
e embaçados pelo escudo, e, depois dele, mãos como garras e o
aço descrevendo arcos no ar, golpeando inutilmente o campo
protetor. Uma língua de fogo alaranjada cintilou quando um
atordoador foi repelido pelo escudo. E, em meio a tudo aquilo,
coriscavam a espada e a adaga de Idaho, pingando sangue.
E então Kynes estava ao lado de Paul, e os dois jogaram seu
peso contra a porta.
Paul teve um último vislumbre de Idaho enfrentando um
bando de uniformes Harkonnen: os zigue-zagues bruscos e
controlados, os cabelos negros e encaracolados ostentando
uma flor rubra de morte. Aí a porta se fechou e ouviu-se um
estalido quando Kynes acionou os ferrolhos.
– Parece que me decidi – Kynes disse.
– Alguém detectou suas máquinas antes que fossem
desligadas – Paul comentou. Puxou a mãe para longe da porta e
viu o desespero nos olhos dela.
– Eu deveria ter desconfiado de algum problema quando o
café não veio – disse Kynes.
– Você tem uma saída de emergência para fora daqui –
Paul disse. – Vamos usá-la?
Kynes inspirou fundo e disse:
– Esta porta deve aguentar, durante uns vinte minutos,
qualquer coisa com a exceção de armaleses.
– Eles não irão usar armaleses, pois receiam que tenhamos
escudos deste lado – Paul disse.
– Eram Sardaukar vestindo uniformes Harkonnen –
Jéssica sussurrou.
Agora ouviam pancadas na porta, golpes ritmados.
Kynes indicou os arquivos encostados na parede à direita e
disse:
– Por ali. – Ele foi até o primeiro arquivo, abriu uma gaveta
e acionou uma alavanca lá dentro. A parede inteira de arquivos
oscilou e expôs a boca negra de um túnel. – Esta porta também
é de açoplás – Kynes disse.
– Vocês estavam bem preparados – Jéssica disse.
– Vivemos oitenta anos sob o domínio dos Harkonnen –
Kynes disse. Ele os conduziu trevas adentro e fechou a porta.
Na escuridão repentina, Jéssica viu uma seta luminosa no
chão à frente dela.
A voz de Kynes soou atrás deles:
– Nós nos separamos aqui. Esta parede é mais resistente.
Deve aguentar pelo menos uma hora. Sigam as setas, como
aquela ali no chão. Irão se apagar quando vocês passarem. Elas
atravessam um labirinto e levam a uma outra saída, onde eu
escondi um tóptero. Há uma tempestade grassando pelo
deserto esta noite. A única esperança de vocês é correr para a
tempestade, mergulhar no topo do furacão e seguir com ele.
Minha gente faz isso ao roubar os tópteros. Se ficarem no alto
da tempestade, vocês irão sobreviver.
– E quanto a você? – Paul perguntou.
– Tentarei fugir de outro jeito. Se for capturado... bem,
ainda sou o Planetólogo Imperial. Posso dizer que era
prisioneiro de vocês.
Fugindo feito covardes, Paul pensou. Mas de que outra
maneira poderei viver para vingar meu pai? Ele se virou para
encarar a porta.
Jéssica o ouviu se mover e disse:
– Duncan está morto, Paul. Você viu a ferida. Não há nada
que possa fazer por ele.
– Ainda vão me pagar caro por isso um dia – disse Paul.
– Não vão, não, a menos que você se apresse agora – Kynes
disse.
Paul sentiu a mão do homem em seu ombro.
– Onde nos encontraremos, Kynes? – Paul perguntou.
– Mandarei alguns fremen procurar vocês. O trajeto da
tempestade é conhecido. Corram, e que a Grande Mãe lhes
conceda velocidade e sorte.
Eles o ouviram partir, uma escalada apressada na
escuridão.
Jéssica procurou a mão de Paul e o puxou delicadamente.
– Não vamos nos separar – ela disse.
– Não.
Ele a seguiu por cima da primeira seta, vendo a marca se
apagar tão logo a tocaram. Uma outra seta se acendeu mais à
frente.
Eles passaram por ela, viram-na se apagar, viram outra
flecha mais adiante.
Estavam correndo agora.
Planos dentro de planos dentro de planos, Jéssica pensou.
Será que nos tornamos parte do plano de alguém agora?
As setas os fizeram contornar curvas, passar por
aberturas laterais que eles mal conseguiam discernir na leve
luminescência. O caminho inclinou-se para baixo durante
algum tempo, depois para cima, sempre para cima. Chegaram
finalmente a uma escada, contornaram um canto e foram
detidos por uma parede brilhante, com uma maçaneta escura
no centro.
Paul apertou a maçaneta.
A parede oscilou, afastando-se deles. As luzes se
acenderam, revelando uma caverna talhada na rocha e um
ornitóptero pousado em seu centro. Uma parede lisa e
cinzenta, onde se via pregada uma placa indicando uma porta,
fazia vulto passada a aeronave.
– Para onde foi Kynes? – Jéssica perguntou.
– Ele fez o que qualquer bom líder de guerrilheiros faria –
Paul disse. – Ele nos dividiu em dois grupos e providenciou
para que ele mesmo não fosse capaz de revelar nosso
paradeiro caso o capturassem. E ele não saberia realmente.
Paul a trouxe para dentro da câmara, notando como os pés
deles levantavam a poeira do chão.
– Faz muito tempo que ninguém vem aqui – ele disse.
– Ele parecia certo de que os fremen conseguiriam nos
encontrar – ela disse.
– Divido com ele essa certeza.
Paul soltou a mão dela, foi até a porta esquerda do
ornitóptero, abriu-a e guardou a mochila na parte de trás do
veículo.
– Esta nave foi preparada para enganar os detectores de
proximidade – ele disse. – O painel de instrumentos tem o
controle remoto da porta e das luzes. Oitenta anos sob o
domínio dos Harkonnen e eles aprenderam a ser meticulosos.
Jéssica encostou-se no outro lado da nave para recuperar
o fôlego.
– Os Harkonnen irão mandar uma força de cobertura para
esta área – ela disse. – Não são estúpidos. – Ela consultou seu
senso de direção e apontou para a direita. – A tempestade que
vimos fica para lá.
Paul concordou com a cabeça, resistindo a uma súbita
relutância em se mover. Sabia o motivo, mas saber disso em
nada ajudava. Em algum momento daquela noite, ele tinha
ultrapassado um nexo decisivo e penetrado nas profundezas
do desconhecido. Ele conhecia a área-tempo que cercava os
dois, mas o aqui e agora era um lugar misterioso. Era como se
ele tivesse visto a si mesmo, de muito longe, sumir de vista ao
entrar num vale. Dentre os caminhos incontáveis que levavam
para fora do vale, alguns poderiam colocar um certo Paul
Atreides de volta ao alcance da visão, mas muitos, não.
– Quanto mais tempo esperarmos, mais preparados eles
estarão – Jéssica disse.
– Entre, sente-se e ponha o cinto – ele disse.
Ele se juntou à mãe dentro do ornitóptero, ainda se
digladiando com a ideia de que pisava em terreno obscuro,
nunca presenciado numa visão presciente. E ele percebeu, com
uma sensação repentina de choque, que andara confiando cada
vez mais na memória presciente, e isso o tinha enfraquecido
para lidar com aquela emergência em particular.
Se confiar em seus olhos, os outros sentidos sairão
enfraquecidos. Era um provérbio das Bene Gesserit.
Incorporou-o naquele momento, prometendo nunca mais cair
nessa armadilha... se sobrevivesse.
Paul prendeu seu cinto, viu que a mãe estava segura e
verificou a aeronave. As asas estavam em repouso total e
atingiam envergadura máxima, com seus delicados interfólios
de metal estendidos. Ele tocou a barra retratora, viu as asas
encurtarem para a decolagem com a ajuda dos jatos, da
maneira como Gurney Halleck havia lhe ensinado. A chave de
ignição moveu-se com facilidade. Os mostradores do painel de
instrumentos ganharam vida quando os jatopropulsores foram
acionados. As turbinas começaram a assoviar baixinho.
– Pronta? – ele perguntou.
– Sim.
Ele tocou o controle remoto das luzes.
A escuridão os encobriu.
Sua mão tornou-se uma sombra em contraste com os
mostradores luminosos quando ele disparou o controle remoto
da porta. Um rangido soou à frente deles. Ouviu-se o sussurro
de uma cascata de areia que logo se calou. Uma brisa poeirenta
roçou a face de Paul. Ele fechou sua porta e sentiu a
pressurização repentina.
Uma vasta extensão de estrelas toldadas pelo pó,
emoldurada por trevas angulosas, apareceu no lugar da
parede-porta. A luz estelar definia uma saliência mais adiante,
um indício de ondulações na areia.
Paul baixou a chave da sequência de acionamento que
brilhava sobre o painel. As asas se fecharam, movendo-se para
trás e para baixo, e arremessaram o tóptero fora do ninho. A
potência dos jatopropulsores aumentou de repente e as asas
travaram-se em posição para aproveitar a força ascencional.
Jéssica descansou as mãos no duplo comando, sentindo a
segurança dos movimentos do filho. Estava assustada e, ao
mesmo tempo, extasiada. Agora o treinamento de Paul é nossa
única esperança, ela pensou. Sua juventude e presteza.
Paul aumentou a potência dos jatos. O tóptero se inclinou,
afundando os dois em seus assentos, quando uma muralha
escura se ergueu diante deles, com as estrelas ao fundo. Ele
deu mais asa e mais força à aeronave. Depois de outra
sequência rápida e ascendente de batidas das asas, eles
evitaram e sobrevoaram as rochas, arestas açucaradas de
prata e afloramentos à luz das estrelas. A segunda lua,
avermelhada pelo pó, mostrava a cara acima do horizonte, à
direita deles, definindo a faixa que a tempestade deixava ao
passar.
As mãos de Paul dançaram sobre os controles. As asas se
reduziram a élitros de besouro.
A força G puxou-lhes a pele quando a nave fez a volta,
inclinando-se bastante.
– Chamas de jatos atrás de nós! – Jéssica disse.
– Eu vi.
Ele empurrou a alavanca de força para a frente.
O tóptero saltou feito um animal assustado, acelerou para
sudoeste, na direção da tempestade e da grande curva do
deserto. Ali perto, Paul viu sombras dispersas que indicavam o
fim da linha de rochas, o complexo subterrâneo que afundava
sob as dunas. Mais além, à luz da lua, estendiam-se sombras
em forma de crescente: dunas que iam se recolhendo umas
dentro das outras.
E acima do horizonte erguia-se a imensidão plana da
tempestade, feito uma muralha em contraste com as estrelas.
Alguma coisa fez o tóptero balançar.
– Fogo de artilharia! – foi o grito sufocado de Jéssica. –
Estão usando algum tipo de lança-projéteis.
Ela viu surgir de repente um sorriso animalesco no rosto
de Paul.
– Parece que estão evitando usar as armaleses – ele disse.
– Mas nós não temos escudos!
– E eles sabem disso?
O tóptero voltou a estremecer.
Paul se virou e olhou para trás.
– Só um deles parece rápido o suficiente para nos
acompanhar.
Ele voltou a se concentrar no curso que seguiam, vendo a
muralha da tempestade ganhar altura diante deles. Parecia
sólida e tangível.
– Lança-projéteis, foguetes, todo o armamento antigo: eis
aí uma coisa que deixaremos para os fremen – murmurou Paul.
– A tempestade – disse Jéssica. – Não é melhor voltar?
– E a nave atrás de nós?
– Está avançando.
– Agora!
Paul encurtou as asas, fez uma curva acentuada para a
esquerda e entrou na ebulição ilusoriamente lenta da muralha
tempestuosa, sentido a força G puxar as maçãs de seu rosto.
Pareceram planar para dentro de um nevoeiro gradual de
pó, que foi ficando cada vez mais denso até obliterar o deserto
e a lua. A aeronave tornou-se um sussurro longo e horizontal
de trevas, iluminada apenas pelo brilho verde do painel de
instrumentos.
Pela mente de Jéssica passaram rapidamente todos os
alertas sobre aquelas tempestades: que cortavam o metal
como se fosse manteiga, arrancavam a carne dos ossos e os
carcomiam. Sentiu o açoite do vento coberto de poeira, que os
fez girar, e Paul teve de lutar com os controles. Ela o viu cortar
a energia e sentiu a nave dar um solavanco. O metal à sua volta
assoviou e estremeceu.
– Areia! – Jéssica gritou.
Ela viu Paul balançar a cabeça negativamente à luz do
painel.
– Nesta altitude, não há muita areia.
Mas ela sentia que estavam afundando cada vez mais no
turbilhão.
Paul estendeu as asas até a envergadura máxima para o
voo planado, ouviu-as ranger com o esforço. Manteve os olhos
fixos nos instrumentos, planando por instinto, lutando para
ganhar altitude.
O ruído de sua passagem diminuiu.
O tóptero começou a derivar para a esquerda. Paul se
concentrou no globo luminoso dentro da curva de atitude de
voo e pelejou para nivelar a nave.
Jéssica tinha a estranha sensação de que estavam imóveis,
de que todo o movimento era externo. Uma torrente indistinta
e bronzeada de encontro às janelas, um silvo retumbante que
não a deixava esquecer as forças que os cercavam.
Ventos de setecentos ou oitocentos quilômetros por hora,
ela pensou. A ansiedade da adrenalina a atormentava. Não
terei medo, disse consigo mesma, dando forma às palavras da
litania Bene Gesserit. O medo mata a mente.
Aos poucos, seus longos anos de treinamento iam
prevalecendo.
A calma voltou.
– Temos um grande problema – Paul murmurou. – Não
podemos descer nem pousar... e não acho que eu conseguiria
nos tirar daqui. Teremos de seguir com a tempestade.
A calma se esvaiu. Jéssica sentiu seus dentes baterem e os
cerrou com força. Aí ouviu a voz de Paul, baixa e controlada,
recitando a litania.
– Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a
pequena morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu
medo. Permitirei que passe por cima e através de mim. E,
quando tiver passado, voltarei o olho interior para ver seu
rastro. Onde o medo não estiver mais, nada haverá. Somente
eu restarei.
O que você despreza? É com isso que se
fará realmente conhecer.
- excerto do “Manual de Muad’Dib, da princesa Irulan

– Estão mortos, barão – disse Iakin Nefud, o capitão da


guarda. – Tanto a mulher quanto o garoto estão certamente
mortos.
Em seus aposentos particulares, o barão Vladimir
Harkonnen sentou-se, ainda sustentado pelos suspensores de
dormir. Além daqueles aposentos, envolvendo-o como várias
cascas de ovo, estendia-se a fragata espacial que ele mandara
aterrissar em Arrakis. Ali em seus aposentos, porém, o metal
insensível da nave era disfarçado por cortinas, almofadas de
tecido e raros objetos de arte.
– É uma certeza – disse o capitão da guarda. – Estão
mortos.
O barão reacomodou seu corpo volumoso nos
suspensores, concentrou sua atenção numa estátua de ebalina
de um menino em pleno salto, instalada num nicho do outro
lado do quarto. Seu sono foi desaparecendo aos poucos. Ele
endireitou os suspensores acolchoados sob as pregas gordas
de seu pescoço e, à luz do único luciglobo do quarto, olhou para
o vão da porta onde estava o capitão Nefud, impedido de entrar
pelo pentaescudo.
– Estão certamente mortos, barão – o homem repetiu.
O barão reparou no vestígio de entorpecimento induzido
pela semuta nos olhos de Nefud. Era óbvio que o homem
estivera imerso no êxtase da droga ao receber o informe e
tinha se detido apenas para tomar o antídoto antes de correr
até ali.
– Tenho um relatório completo – disse Nefud.
Vamos deixá-lo suar um pouco, pensou o barão. A arte de
governar exige que seus instrumentos estejam sempre prontos e
afiados. Poder e medo – prontos e afiados.
– Você viu os corpos? – o barão trovejou.
Nefud hesitou.
– E então?
– Milorde... foram vistos mergulhando numa tempestade...
ventos de mais de oitocentos quilômetros por hora. Nada
sobrevive a uma tempestade dessas, milorde. Nada! Uma de
nossas próprias naves foi destruída na perseguição.
O barão encarou Nefud, notando o espasmo nervoso nos
músculos delineados da mandíbula do homem, a maneira como
o queixo se movia quando Nefud engolia saliva.
– Você viu os corpos? – perguntou o barão.
– Milorde...
– Para que veio aqui chocalhar essa sua armadura? – o
barão rugiu. – Para me dizer que uma coisa é certa quando não
é? Está pensando que vou elogiar sua estupidez, dar-lhe uma
outra promoção?
O rosto de Nefud ficou lívido.
Veja só o franguinho, pensou o barão. Estou cercado por
palermas inúteis. Se eu espalhasse areia diante desta criatura e
lhe dissesse que era milho, ela começaria a bicar.
– O tal Idaho nos levou até eles, então? – perguntou o
barão.
– Sim, milorde!
Veja só como ele responde sem pensar, pensou o barão. E
disse:
– Estavam tentando correr para os fremen, hein?
– Sim, milorde.
– Mais alguma coisa nesse... relatório?
– O planetólogo imperial, Kynes, está envolvido, milorde.
Idaho uniu-se a esse Kynes em circunstâncias misteriosas... Eu
diria até suspeitas.
– E daí?
– Eles... ah, fugiram juntos para um lugar no deserto onde
o menino e a mãe aparentemente estavam se escondendo. No
calor da perseguição, vários de nossos grupos foram
apanhados numa explosão escudo-armalês.
– Quantos perdemos?
– Eu... ah, ainda não sei ao certo, milorde.
Está mentindo, pensou o barão. Deve ter sido bem ruim.
– O lacaio do imperador, o tal Kynes – disse o barão –,
estava fazendo jogo duplo, hein?
– Aposto minha reputação nisso, milorde.
Sua reputação!
– Mandem matar o homem – disse o barão.
– Milorde! Kynes é o planetólogo imperial, a serviço de Sua
Majesta...
– Faça parecer um acidente, então!
– Milorde, haviam soldados Sardaukar acompanhando
nossas forças quando o tal ninho fremen foi tomado. Estão
mantendo Kynes sob custódia.
– Tire-o deles. Diga que quero interrogá-lo.
– E se fizerem objeção?
– Não vão, se você fizer a coisa direito.
Nefud engoliu em seco.
– Sim, milorde.
– O homem tem de morrer – ribombou o barão. – Ele
tentou ajudar meus inimigos.
Nefud trocou de pé.
– E então?
– Milorde, os Sardaukar têm... duas pessoas sob custódia
que podem lhe interessar. Capturaram o Mestre dos
Assassinos do duque.
– Hawat? Thufir Hawat?
– Vi o prisioneiro pessoalmente, milorde. É Hawat.
– Nunca pensei que fosse possível!
– Dizem que ele foi derrubado por um atordoador, milorde.
No deserto, onde não podia usar seu escudo. Está
praticamente ileso. Se conseguirmos botar as mãos nele,
teremos uma boa diversão.
– Está falando de um Mentat – grunhiu o barão. – Não se
desperdiça um Mentat. Ele falou alguma coisa? O que tem a
dizer sobre sua derrota? Saberia a extensão de... não, claro.
– Falou apenas o suficiente, milorde, para revelar que
acredita ter sido lady Jéssica a traidora.
– Aaaaah.
O barão voltou a se deitar, pensativo. Em seguida:
– Tem certeza? É lady Jéssica o alvo da ira dele?
– Foi o que ele disse na minha frente, milorde.
– Deixe-o pensar que ela está viva, então.
– Mas, milorde...
– Fique quieto. Quero que Hawat seja bem tratado. Estão
proibidos de contar a ele sobre o falecido doutor Yueh, o
verdadeiro traidor. Digam que o doutor Yueh morreu
defendendo seu duque. De certo modo, pode até ser verdade.
Em vez disso, vamos alimentar a desconfiança dele em relação
a lady Jéssica.
– Milorde, eu não...
– A maneira de controlar e dirigir um Mentat, Nefud, é por
meio das informações que ele recebe. Informações falsas,
resultados falsos.
– Sim, milorde, mas...
– Hawat está passando fome? Sede?
– Milorde, Hawat ainda está nas mãos dos Sardaukar!
– Sim. De fato, sim. Mas os Sardaukar estarão tão ansiosos
para arrancar informações de Hawat quanto eu. Reparei numa
coisa sobre nossos aliados, Nefud. Não são muito ardilosos...
politicamente falando. Acredito realmente que seja de
propósito: o imperador os quer dessa maneira. Sim. Acredito
mesmo. Lembre o comandante dos Sardaukar que sou
conhecido por obter informações de indivíduos relutantes.
Nefud parecia descontente.
– Sim, milorde.
– Diga ao comandante dos Sardaukar que quero interrogar
Hawat e Kynes ao mesmo tempo, jogando um contra o outro.
Ele deve ser capaz de entender isso.
– Sim, milorde.
– E quando os tivermos em nossas mãos... – o barão acenou
com a cabeça.
– Milorde, os Sardaukar vão querer que um observador
acompanhe o barão durante... os interrogatórios.
– Estou certo de que conseguiremos criar uma emergência
para afastar os observadores indesejados, Nefud.
– Entendo, milorde. É aí que Kynes pode sofrer seu
acidente.
– Tanto Kynes quanto Hawat irão sofrer acidentes, Nefud.
Mas somente Kynes sofrerá um acidente de verdade. É Hawat
que eu quero. Sim. Ah, sim.
Nefud piscou, engoliu em seco. Parecia prestes a fazer uma
pergunta, mas continuou calado.
– Hawat receberá tanto comida quanto água – disse o
barão. – Que seja tratado com cordialidade, com simpatia. À
água dele você irá administrar o veneno residual desenvolvido
pelo falecido Piter de Vries. E você cuidará para que o antídoto
se torne uma parte regular da dieta de Hawat daqui em
diante... a não ser que eu dê outra ordem.
– O antídoto, sim. – Nefud chacoalhou a cabeça. – Mas...
– Não seja estúpido, Nefud. O duque quase me matou com
o veneno daquele dente-cápsula. O gás que ele exalou diante de
mim privou-me de meu Mentat mais valioso, Piter. Preciso de
um substituto.
– Hawat?
– Hawat.
– Mas...
– Você vai dizer que Hawat é completamente leal aos
Atreides. É verdade, mas os Atreides estão mortos. Nós iremos
cortejá-lo. É preciso convencê-lo de que a culpa pela morte do
duque não é dele. Foi tudo obra daquela bruxa Bene Gesserit.
Ele servia a um mestre inferior, que deixava a emoção toldar a
razão. Os Mentats admiram a capacidade de calcular sem
emoção, Nefud. Vamos cortejar o formidável Thufir Hawat.
– Cortejá-lo, sim, milorde.
– Hawat, infelizmente, tinha um mestre de poucos
recursos, incapaz de elevar um Mentat aos ápices sublimes da
razão, que são direito dos Mentats. Hawat verá nisso um certo
quê de verdade. O duque não podia pagar os espiões mais
eficientes para fornecer a seu Mentat as informações
necessárias. – O barão encarou Nefud. – Não vamos nos
enganar, Nefud. A verdade é uma arma poderosa. Sabemos
como esmagamos os Atreides. Hawat também sabe. Nós o
fizemos com dinheiro.
– Com dinheiro. Sim, milorde.
– Vamos cortejar Hawat – disse o barão. – Vamos escondê-
lo dos Sardaukar. E guardaremos para uma emergência... a
retirada do antídoto para o veneno. Não há como remover o
veneno residual. E, Nefud, Hawat não terá do que desconfiar. O
antídoto não se deixará revelar por um farejador de venenos.
Hawat poderá examinar sua comida quanto quiser e não
detectará nenhum sinal de veneno.
A compreensão fez Nefud arregalar os olhos.
– A ausência de uma coisa – disse o barão – pode ser tão
letal quando a presença. A ausência de ar, hein? A ausência de
água? A ausência de qualquer outra coisa que nos cause
dependência. – O barão acenou afirmativamente com a cabeça.
– Está entendendo, Nefud?
Nefud engoliu em seco.
– Sim, milorde.
– Então, mãos à obra. Encontre o comandante dos
Sardaukar e coloque o plano em ação.
– É para já, milorde – Nefud fez uma reverência, virou-se e
saiu apressado.
Hawat a meu lado!, pensou o barão. Os Sardaukar irão
entregá-lo a mim. Se por acaso desconfiarem de alguma coisa,
será de que eu quero destruir o Mentat. E essa desconfiança eu
vou confirmar! Os idiotas! Um dos Mentats mais formidáveis de
toda a história, um Mentat treinado para matar, e eles o irão
atirar a meus pés, feito um brinquedo bobo para ser quebrado.
Mostrarei a eles que serventia é possível dar a um brinquedo
desses.
O barão se esticou para passar a mão por baixo de uma
cortina ao lado de sua cama suspensa e apertar um botão para
convocar seu sobrinho mais velho, Rabban. Voltou a se sentar,
sorrindo.
E todos os Atreides, mortos!
O estúpido capitão da guarda tinha razão, naturalmente.
Era certo que nada sobreviveria no caminho de uma
tempestade de jatos de areia em Arrakis. Não um ornitóptero...
nem seus ocupantes. A mulher e o menino estavam mortos. Os
subornos no alto escalão, os gastos inimagináveis para levar
uma força militar esmagadora a um único planeta... todos os
relatórios matreiros, feitos sob medida só para os ouvidos do
imperador, todo o planejamento cuidadoso, tudo isso estava
finalmente dando resultado.
Poder e medo, medo e poder!
O barão enxergava o caminho diante dele. Um dia, um
Harkonnen seria imperador. Não ele mesmo, e nenhuma cria
sua. Mas um Harkonnen. Não seria o tal Rabban a quem havia
acabado de chamar, claro. Mas o irmão caçula de Rabban, o
jovem Feyd-Rautha. O menino tinha uma perspicácia que o
barão apreciava... uma ferocidade.
Um garoto adorável, o barão pensou. Mais um ou dois
anos... digamos, quando ele tiver 17, saberei ao certo se ele é o
instrumento de que a Casa Harkonnen precisa para conquistar
o trono.
– Milorde barão.
O homem parado diante do campo protetor da porta do
quarto do barão era baixo, gordo de rosto e de corpo, tinha os
olhos muito juntos e os ombros salientes da linhagem paterna
dos Harkonnen. Havia ainda uma certa rigidez em sua gordura,
mas era óbvio para quem olhasse que ele recorreria um dia aos
suspensores portáteis para carregar seu peso excessivo.
Uma cabeça oca que só pensa em brutalidade, pensou o
barão. Não é nenhum Mentat o meu sobrinho... nenhum Piter de
Vries, mas talvez algo mais adequado para a tarefa em questão.
Se eu lhe der a liberdade necessária, ele passará por cima de
tudo que se colocar em seu caminho. Ah, como seremos odiados
aqui em Arrakis!
– Meu caro Rabban – disse o barão. Ele liberou o campo da
porta, mas manteve incisivamente seu escudo corporal em
força máxima, sabendo que o tremeluzir da proteção seria
visível acima do luciglobo ao lado da cama.
– Milorde me chamou? – disse Rabban. Ele entrou no
quarto, lançou um olhar rápido para a perturbação que o
escudo corporal provocava no ar, procurou uma cadeira
suspensa e não encontrou uma sequer.
– Chegue mais perto, para que eu possa vê-lo melhor –
disse o barão.
Rabban deu mais um passo, pensando que o maldito velho
tinha deliberadamente removido todas as cadeiras, obrigando
os visitantes a ficar em pé.
– Os Atreides estão mortos – disse o barão. – Os últimos
deles. Foi por isso que eu mandei você vir para cá, para Arrakis.
Este planeta volta a ser seu.
Rabban piscou.
– Mas eu pensei que milorde ia promover Piter de Vries
para o...
– Piter também está morto.
– Piter?
– Piter.
O barão reativou o campo da porta, impedindo a invasão
de toda forma de energia.
– Finalmente se cansou dele, hein? – perguntou Rabban.
A voz dele saiu monótona e sem vida no quarto à prova de
energia.
– Vou lhe dizer uma coisa somente desta vez – trovejou o
barão. – Você está insinuando que eu eliminei Piter como se
eliminasse algo insignificante. – Ele estalou os dedos gordos. –
Simples assim, hein? Não sou tão estúpido, sobrinho. Tomarei
como uma indelicadeza se você voltar a sugerir, com suas
palavras ou ações, que eu possa ser tão estúpido.
O medo transpareceu nos olhos apertados de Rabban. Ele
sabia, dentro de certos limites, até que ponto o barão era capaz
de se voltar contra a própria família. Raras vezes chegava a
matar, a menos que o motivo envolvesse lucros ou insultos
escandalosos. Mas esses castigos em família poderiam ser
dolorosos.
– Perdoe-me, milorde barão – disse Rabban. Ele baixou os
olhos, para esconder a raiva tanto quanto para mostrar
subserviência.
– Você não me engana, Rabban – disse o barão.
Rabban manteve os olhos baixos e engoliu em seco.
– Tenho uma tese – disse o barão. – Nunca elimine um
homem sem pensar, da maneira que um feudo inteiro talvez
faça por meio de um processo legal e justo. Faça-o sempre com
um objetivo maior, e saiba qual é seu objetivo.
A raiva falou por Rabban:
– Mas você eliminou o traidor, Yueh! Vi o corpo dele ser
arrastado lá para fora quando cheguei ontem à noite.
Rabban encarou o tio, subitamente assustado com o som
daquelas palavras.
Mas o barão sorriu.
– Tomo muito cuidado com as armas perigosas – ele disse.
– O doutor Yueh era um traidor. Ele me entregou o duque. – A
voz do barão ganhou força. – Eu subornei um médico da Escola
Suk! Da Escola Interna! Ouviu bem, rapaz? Mas é uma arma
imprevisível para se deixar por aí. Não o eliminei sem motivo.
– O imperador sabe que milorde subornou um médico
Suk?
Foi uma pergunta perspicaz, pensou o barão. Será que
julguei mal este meu sobrinho?
– O imperador ainda não sabe – disse o barão. – Mas seus
Sardaukar certamente irão informá-lo. Antes que isso
aconteça, porém, eu terei lhe enviado meu relatório, por meio
da Companhia CHOAM. Explicarei que, por sorte, descobri um
médico que fingia ter sido condicionado. Um falso médico,
entendeu? Como todos sabem ser impossível anular o
condicionamento de uma Escola Suk, a desculpa será aceita.
– Aaah, entendi – murmurou Rabban.
E o barão pensou: É, espero mesmo que sim. Espero que
entenda como é crucial que isso continue em segredo. O barão
ficou admirado consigo mesmo. Por que estou fazendo isso? Por
que estou me gabando diante deste meu sobrinho tolo, o
sobrinho que sou obrigado a usar e descartar? O barão teve
raiva de si mesmo. Sentiu-se traído.
– Precisa ficar em segredo – disse Rabban. – Entendi.
O barão suspirou.
– Desta vez tenho instruções diferentes para você quanto
a Arrakis, sobrinho. Da última vez que governou este lugar, eu
o mantive sob rédea curta. Desta vez, tenho apenas uma
exigência.
– Milorde?
– Renda.
– Renda?
– Tem ideia, Rabban, de quanto gastamos para atacar os
Atreides com tamanha força militar? Tem ao menos a mais
vaga noção de quanto a Guilda cobra pelo transporte de
tropas?
– Caro, hein?
– Caro!
O barão apontou um braço gordo na direção de Rabban.
– Se espremer Arrakis para tirar daqui cada centavo que o
planeta possa nos dar durante sessenta anos, você mal
conseguirá nos reembolsar!
Rabban abriu a boca e voltou a fechá-la sem dizer nada.
– Caro – desdenhou o barão. – O maldito monopólio da
Guilda sobre o espaço teria nos arruinado se eu não tivesse me
preparado para essa despesa tempos atrás. Deve saber,
Rabban, que nós arcamos com o grosso dos custos. Chegamos
a pagar pelo transporte dos Sardaukar.
E, não pela primeira vez, o barão se perguntou se um dia
seria possível se esquivar da Guilda. Eles eram insidiosos:
sugavam apenas o suficiente para impedir o hospedeiro de
objetar, até terem o sujeito nas mãos, quando então poderiam
obrigá-lo a pagar, pagar e pagar.
E, como sempre, as exigências exorbitantes recaíam sobre
os empreendimentos militares. “Taxas de risco”, explicavam os
lisos agentes da Guilda. E para cada agente que você conseguia
introduzir como fiscal na estrutura do Banco da Guilda, eles
colocavam dois agentes em seu sistema.
Insuportáveis!
– Renda, então – disse Rabban.
O barão baixou o braço e cerrou o punho.
– Esprema-os.
– E posso fazer o que quiser desde que eu os esprema?
– O que quiser.
– Os canhões que trouxe – disse Rabban. – Posso...
– Vou removê-los – disse o barão.
– Mas milor...
– Não vai precisar desses brinquedinhos. Foram uma
inovação especial e agora são inúteis. Precisamos do metal.
Não servem de nada contra os escudos, Rabban.
Representaram simplesmente o inesperado. Era previsível que
os homens do duque batessem em retirada e se escondessem
nas cavernas dos penhascos deste planeta abominável. Nosso
canhão só fez enterrá-los vivos.
– Os fremen não usam escudos.
– Pode ficar com umas armaleses, se quiser.
– Sim, milorde. E terei carta branca.
– Desde que você os esprema.
Rabban sorriu maldosamente.
– Entendi perfeitamente, milorde.
– Você não entende nada perfeitamente – grunhiu o barão.
– Vamos deixar isso claro desde o início. O que você realmente
entende é como cumprir ordens. Ocorreu a você, meu
sobrinho, que há pelo menos cinco milhões de pessoas neste
planeta?
– Esqueceu, milorde, que eu já fui seu regente-siridar aqui?
E, com o perdão de milorde, sua estimativa parece um pouco
baixa. É difícil contar uma população dispersa entre as pias e
caldeiras, como é o caso aqui. E, considerando-se os fremen
do...
– Os fremen não são dignos de consideração!
– Perdoe-me, milorde, mas os Sardaukar são de outra
opinião.
O barão hesitou e encarou o sobrinho.
– Está sabendo de alguma coisa?
– Milorde já havia se recolhido quando cheguei ontem à
noite. Eu... ah, tomei a liberdade de contatar alguns de meus
lugares-tenentes de... ah, de antes. Andaram servindo de guias
para os Sardaukar. Contam que um bando de fremen
emboscou e eliminou uma força inteira de Sardaukar em algum
lugar a sudeste daqui.
– Eliminaram uma força de Sardaukar?
– Sim, milorde.
– Impossível!
Rabban deu de ombros.
– Fremen derrotando Sardaukar – zombou o barão.
– Estou simplesmente repetindo o que me contaram –
disse Rabban. – Dizem que essa força fremen já tinha
capturado o temível Thufir Hawat do duque.
– Aaaaaah.
O barão acenou com a cabeça, sorrindo.
– Acredito no informe – disse Rabban. – Milorde não faz
ideia do problema que eram os fremen.
– Talvez, mas não foram fremen que seus lugares-tenentes
viram. Deviam ser homens dos Atreides treinados por Hawat e
disfarçados de fremen. É a única resposta possível.
Mais uma vez, Rabban encolheu os ombros.
– Bem, os Sardaukar acham que eram fremen. Os
Sardaukar já lançaram um pogrom para exterminar todos os
fremen.
– Ótimo!
– Mas...
– Isso manterá os Sardaukar ocupados. E logo teremos
Hawat. Sei disso! Posso sentir! Ah, foi um dia e tanto! Os
Sardaukar saem caçando uns bandos inúteis do deserto
enquanto nós ficamos com o verdadeiro prêmio!
– Milorde... – Rabban hesitou, franzindo o cenho. – Sempre
tive a impressão de que subestimamos os fremen, tanto no
tamanho de sua população quanto...
– Ignore-os, rapaz! São a ralé. São as cidades e vilas
populosas que nos interessam. Há um grande número de
pessoas nesses lugares, não?
– Um grande número, milorde.
– Elas me preocupam, Rabban.
– Preocupam?
– Ah... noventa por cento delas não me preocupam em
nada. Mas existem sempre algumas... as Casas Menores etc.,
pessoas ambiciosas que podem tentar algo perigoso. Se uma
delas saísse de Arrakis com histórias desagradáveis sobre o
que aconteceu aqui, eu ficaria muito aborrecido. Tem ideia de
como eu ficaria aborrecido?
Rabban engoliu em seco.
– Tome providências imediatas para manter um refém de
cada uma das Casas Menores – disse o barão. – Até onde
venham a saber fora de Arrakis, tratou-se de uma batalha leal
entre Casas. Os Sardaukar não tiveram nenhuma participação
nisso, entendeu? Ao duque foram oferecidos a mercê e o exílio
de praxe, mas ele morreu num acidente infeliz antes de poder
aceitar. Contudo, ele estava prestes a aceitar. Essa é a história
oficial. E qualquer boato de que havia Sardaukar aqui é para
ser algo risível.
– Como deseja o imperador – disse Rabban.
– Como deseja o imperador.
– E quanto aos contrabandistas?
– Ninguém acredita em contrabandistas, Rabban. As
pessoas os toleram, mas não acreditam neles. De qualquer
maneira, você irá subornar algumas pessoas aqui e ali.. e tomar
outras providências que estou certo de que lhe ocorrerão.
– Sim, milorde.
– Duas coisas eu quero de Arrakis, Rabban: renda e
autoridade implacável. Não demonstre misericórdia. Pense
nesses palermas como o que são: escravos que invejam seus
mestres e esperam somente uma oportunidade para se
rebelar. Não mostre a eles nenhum vestígio de pena ou
misericórdia.
– É possível exterminar um planeta inteiro? – perguntou
Rabban.
– Exterminar? – Havia surpresa no movimento rápido da
cabeça do barão. – Quem falou em extermínio?
– Bem, presumi que milorde fosse trazer novos colonos e...
– Eu disse espremer, sobrinho, não exterminar. Não
destrua a população, simplesmente a subjugue. Você precisa
ser um carnívoro, meu rapaz. – Ele sorriu, com a expressão de
um bebê no rosto gordo e cheio de covinhas. – Um carnívoro
nunca para. Não demonstre misericórdia. Nunca pare. A
misericórdia é uma quimera. Pode ser derrotada pelo
estômago que ronca de fome, pela garganta que grita de sede.
Esteja sempre faminto e sedento. – O barão acariciou as dobras
da barriga sob os suspensores. – Como eu.
– Entendi, milorde.
Rabban olhou para a direita, depois para a esquerda.
– Ficou tudo claro, então, sobrinho?
– Exceto uma coisa, tio: o planetólogo, Kynes.
– Ah, sim, Kynes.
– Ele é homem do imperador, milorde. Pode ir e vir como
bem entender. E é muito próximo dos fremen... casou-se com
uma.
– Kynes estará morto amanhã, ao cair da noite.
– Isso é perigoso, tio, matar um funcionário imperial.
– Como é que você acha que cheguei tão longe e tão
rápido? – indagou o barão. Sua voz saiu baixa, cheia de
adjetivos indizíveis. – Além disso, não precisa temer que Kynes
saia de Arrakis. Está esquecendo que ele é viciado na
especiaria.
– Claro!
– Aqueles que sabem nada farão para colocar seu
suprimento em risco – disse o barão. – Kynes certamente deve
saber.
– Tinha me esquecido – disse Rabban.
Os dois se fitaram em silêncio.
Imediatamente, o barão disse:
– Por falar nisso, faça de meu suprimento uma de suas
primeiras preocupações. Tenho um bom estoque particular,
mas aquele ataque suicida dos homens do duque acabou com
boa parte do que tínhamos armazenado para vender.
Rabban assentiu.
– Sim, milorde.
O barão se animou.
– Agora, amanhã de manhã, reúna o que restou da
organização aqui e diga-lhes: “Nosso sublime imperador
padixá me encarregou de tomar posse deste planeta e pôr um
fim a todas as desavenças”.
– Entendi, milorde.
– Desta vez, tenho certeza de que entendeu. Discutiremos
a questão com mais detalhes amanhã. Agora, deixe-me
terminar meu sono.
O barão desativou o campo da porta e viu o sobrinho sumir
de vista.
Uma cabeça oca, pensou o barão. Uma cabeça oca que só
pensa em brutalidade. Não sobrará muita coisa quando Rabban
terminar com eles. E aí, quando eu mandar Feyd-Rautha para
livrá-los desse fardo, eles o receberão como seu salvador. Feyd-
Rautha, o Bem-Amado. Feyd-Rautha, o Benigno, o piedoso que
virá salvá-los de um bruto. Feyd-Rautha, um homem a ser
seguido, um homem por quem morrer. O garoto saberá, então,
como oprimir com impunidade. Estou certo de que é dele que
precisamos. Ele aprenderá. E que corpo adorável. É realmente
um menino adorável.
Aos 15 anos, ele já conhecia o silêncio.
– excerto de “História de Muad’Dib para crianças”, da princesa
Irulan

Enquanto lutava com os controles do tóptero, Paul


começou a perceber que estava separando as forças
entretecidas da tempestade, e sua percepção superior à de um
Mentat computava com base em minúcias fracionais. Ele
sentia as frentes de poeira, os vagalhões, as misturas
turbulentas, um ou outro vórtice.
O interior da cabine era uma caixa enfurecida e iluminada
pelo brilho verde dos instrumentos. A torrente bronzeada de
pó do lado de fora parecia indistinta, mas os sentidos internos
de Paul começavam a enxergar através dessa cortina.
Tenho de encontrar o vórtice certo, ele pensou.
Já fazia um bom tempo que ele vinha sentindo a força da
tormenta diminuir, mas ela ainda os fazia estremecer. Ele
aguardou mais uma turbulência.
O vórtice começou como um vagalhão repentino que
sacudiu a nave inteira. Paul desafiou todo o medo que sentia
para virar o tóptero para a esquerda.
Jéssica viu a manobra no globo de atitude de voo.
– Paul! – ela gritou.
O vórtice os fez virar, rodopiar e adernar. Alçou o tóptero
como um gêiser levantaria uma lasca, vomitou-os para cima e
para fora – um pontinho alado dentro de um núcleo sinuoso de
poeira iluminado pela segunda lua.
Paul olhou para baixo, viu a coluna de vento quente
definida pelo pó que acabara de expeli-los, viu a tempestade
agonizante se dissipar, como um rio seco deserto adentro: um
movimento cinza-enluarado que ia ficando cada vez menor, lá
embaixo, à medida que eles subiam na corrente ascendente.
– Saímos – Jéssica sussurrou.
Paul afastou a nave da poeira num ritmo arrebatador e, ao
mesmo tempo, pôs-se a examinar o céu noturno.
– Nós os despistamos – ele disse.
Jéssica sentiu seu coração bater com força. Obrigou-se a
reencontrar sua calma e olhou para a tempestade que ia
diminuindo. Sua noção de tempo dizia-lhe que tinham seguido
naquela mistura de forças elementares durante quase quatro
horas, mas parte de sua mente calculava que a travessia levara
uma vida inteira. Sentiu-se renascida.
Foi como a litania, ela pensou. Nós a enfrentamos sem
resistir. A tempestade passou através de nós e a nossa volta.
Foi-se, mas nós ficamos.
– Não gosto do som que nossas asas estão fazendo – disse
Paul. – Alguma coisa foi danificada.
Sentia o voo áspero e prejudicado por meio das mãos que
descansavam sobre os controles. Eles tinham deixado a
tempestade, mas ainda não estavam totalmente expostos a sua
visão presciente. Contudo, tinham escapado, e Paul viu-se
trêmulo à beira de uma revelação.
Estremeceu.
A sensação era sedutora e apavorante, e ele se viu
enredado na pergunta do que teria provocado aquela
percepção trêmula. Sentia que parte daquilo se devia à dieta
saturada de especiaria de Arrakis. Mas pensou que uma outra
parte poderia ser a litania, como se as palavras tivessem um
poder todo seu.
Não terei medo...
Causa e efeito: ele estava vivo, a despeito de forças
malignas, e sentiu-se à beira de uma autoconsciência que não
poderia existir sem a magia da litania.
As palavras da Bíblia Católica de Orange ecoavam em sua
memória: “Que sentidos nos faltam para que não consigamos
ver nem ouvir um outro mundo a nossa volta?”.
– Pedras por toda parte – Jéssica disse.
Paul se concentrou no movimento do tóptero e chacoalhou
a cabeça para desanuviá-la. Olhou para onde a mãe apontava,
viu formas rochosas que se erguiam negras sobre a areia, mais
à frente e à direita. Sentiu o vento em seus tornozelos e o pó se
agitar dentro da cabine. Havia um buraco em algum lugar,
graças à tempestade.
– É melhor pousarmos na areia – Jéssica disse. – Pode ser
que as asas não aguentem uma frenagem total.
Com a cabeça, ele acenou na direção de um lugar mais
adiante, onde serras erodidas pela areia erguiam-se acima das
dunas à luz da lua.
– Vou pousar perto daquelas pedras. Verifique seu cinto de
segurança.
Ela obedeceu, pensando: Temos água e trajestiladores. Se
encontrarmos comida, conseguiremos sobreviver um bom
tempo neste deserto. Os fremen vivem aqui. Se eles conseguem,
nós também conseguiremos.
– Corra para aquelas pedras no instante em que pararmos
– disse Paul. – Eu levo a mochila.
– Correr para... – Ela se calou e assentiu. – Vermes.
– Nossos amigos, os vermes – ele a corrigiu. – Eles irão
pegar este tóptero. Não haverá sinal de onde aterrissamos.
Como é exato seu raciocínio, ela pensou.
Planaram mais baixo... e mais baixo...
E aí sua passagem provocou uma sensação violenta de
movimento: sombras indistintas de dunas, pedras que se
erguiam feito ilhas. O tóptero roçou o topo de uma duna com
um solavanco suave, pulou um vale de areia, tocou outra duna.
Ele está usando a areia para diminuir nossa velocidade,
Jéssica pensou, e permitiu-se admirar a competência do filho.
– Segure-se! – Paul avisou.
Ele puxou os freios das asas, suavemente no início, depois
com força progressiva. Sentiu-as bater em concha e seu
alongamento diminuir cada vez mais rápido. O vento uivava
nas coberteiras e rêmiges imbrincadas dos fólios das asas.
De repente, depois de uma única e levíssima sacudidela de
aviso, a asa esquerda, enfraquecida pela tempestade, dobrou-
se para cima e para dentro, chocando-se com o lado do tóptero.
A nave deslizou pelo topo de uma duna, virando para a
esquerda. Tombou e desceu a outra face do monte, enterrando
o nariz na duna seguinte, em meio a uma cascata de areia.
Caíram sobre o lado da asa quebrada, com a asa direita
apontada para as estrelas.
Paul livrou-se do cinto de segurança, lançou-se para cima,
por sobre sua mãe, e abriu a porta à força. A areia entrou na
cabine, envolvendo-os, trazendo consigo um odor seco de
pederneira queimada. Ele pegou a mochila que estava lá atrás e
viu que a mãe tinha se soltado do cinto. Ela subiu na lateral do
banco direito e saiu, pisando no casco metálico do tóptero.
Paul a seguiu, puxando a mochila pelas alças.
– Corra! – ele ordenou.
Ele apontou o topo da face da duna e além, onde era
possível ver uma torre de pedra carcomida pelas rajadas de
vento e areia.
Jéssica saltou do tóptero e correu, usando as mãos e os
pés para escalar a duna escorregadia. Ouvia o avanço ofegante
de Paul atrás dela. Chegaram a uma elevação na areia que fazia
uma curva e seguia na direção das pedras.
– Siga a elevação – Paul ordenou. – Assim será mais rápido.
Avançaram com dificuldade na direção das pedras, com a
areia aferrando-se a seus pés.
Um ruído novo chegou até eles: um sussurro abafado, um
silvo, um resvalar abrasivo.
– Verme – disse Paul.
O barulho ganhou volume.
– Mais rápido! – disse Paul, ofegante.
O primeiro seixal, como uma praia que se erguesse da
areia, não estava a mais de dez metros à frente quando eles
ouviram o metal ser esmagado e destroçado atrás deles.
Paul passou a mochila para o braço direito, segurando-a
pelas alças. Ela ia golpeando-lhe o lado do corpo durante a
corrida. Com a outra mão, ele segurou o braço da mãe. Os dois
subiram aos trambolhões para a encosta rochosa, escalaram
uma superfície coalhada de seixos e atravessaram um canal
sinuoso e escavado pelo vento. A respiração chegava seca e
ofegante a suas gargantas.
– Não consigo mais correr – Jéssica arquejou.
Paul se deteve, empurrou-a para dentro de uma passagem
estreita na rocha, virou-se e olhou para o deserto lá embaixo.
Um monte em movimento corria paralelamente à ilha de
pedras onde eles estavam: ondulações iluminadas pelo luar,
vagas de areia, um túnel encimado por uma crista, quase à
altura dos olhos de Paul, a aproximadamente um quilômetro de
distância. As dunas baixas na esteira do monte fizeram uma
curva, um laço curto que cruzou o trecho de deserto onde eles
haviam abandonado o ornitóptero avariado.
E onde o verme estivera, não havia sinal da aeronave.
A cúpula do túnel moveu-se na direção do deserto, fez a
volta e cruzou o caminho por onde viera, no encalço da presa.
– É maior que uma espaçonave da Guilda – murmurou
Paul. – Disseram-me que os vermes chegavam a grandes
dimensões nas profundezas do deserto, mas eu não fazia
ideia... de que eram tão grandes.
– Nem eu – sussurrou Jéssica.
Mais uma vez, a coisa se afastou das pedras, disparou
rumo ao horizonte, deixando um rastro sinuoso atrás de si. Os
dois prestaram atenção até o som da passagem da criatura se
dissipar nos suaves movimentos da areia ao redor deles.
Paul inspirou fundo, olhou para o escarpamento que o luar
açucarava e citou o Kitab al-Ibar:
– Viaje à noite e, durante o dia, descanse no negror das
sombras. – Olhou para a mãe. – Ainda temos algumas horas de
escuridão. Consegue continuar?
– Daqui a pouco.
Paul saiu para o seixal, colocou a mochila nos ombros e
ajustou as alças. Ficou ali um momento, com uma parabússola
nas mãos.
– Assim que você estiver pronta – ele disse.
Ela usou as mãos para se afastar da pedra, sentindo sua
força voltar.
– Que direção?
– Para onde esta serra nos levar. – Ele apontou.
– Para as profundezas do deserto – ela disse.
– O deserto dos fremen – Paul sussurrou.
E ele hesitou, abalado pela lembrança de imagens em alto-
relevo de uma visão presciente que ele tivera em Caladan.
Tinha visto aquele deserto. Mas o cenário da visão era
ligeiramente diferente, como se uma imagem óptica tivesse
desaparecido em sua consciência, absorvida pela memória, e
agora não conseguisse mais exibir o registro perfeito quando
projetada sobre a paisagem real. A visão parecia ter mudado,
apresentando-se de um ângulo diferente, ao passo que ele
permanecia imóvel.
Idaho estava conosco na visão, ele se lembrou. Mas agora
Idaho está morto.
– Está vendo algum caminho? – Jéssica perguntou,
tomando a hesitação dele por outra coisa.
– Não – ele disse. – Mas iremos mesmo assim.
Ele acomodou a mochila nos ombros, agora com mais
firmeza, e começou a subir um canal que a areia havia
esculpido na rocha. O canal se abria para um pavimento
rochoso ao luar, com saliências em degraus que se sucediam
em sua ascensão rumo ao sul.
Paul foi até a primeira saliência, galgou-a. Jéssica o seguiu.
Não demorou muito para que ela percebesse como sua
jornada havia se voltado para questões imediatas e específicas:
os bolsões de areia entre as pedras, onde seus passos ficavam
vagarosos; a serra entalhada pelo vento, que cortava suas
mãos; a obstrução que os obrigava a fazer uma escolha: passar
por cima ou contorná-la? O terreno impunha seus próprios
ritmos. Eles falavam apenas quando necessário e, mesmo
assim, com as vozes roucas de exaustão.
– Atenção aí: a areia deixou a saliência escorregadia.
– Cuidado para não bater a cabeça naquela projeção.
– Fique abaixo desta elevação; a lua está atrás de nós e
acabaria revelando nossos movimentos.
Paul se deteve numa angra rochosa e encostou a mochila
numa saliência estreita.
Jéssica recostou-se ao lado dele, grata por aquele
momento de descanso. Ouviu Paul sugar o tubo do
trajestilador e resolveu beber um pouco da água reaproveitada
de seu próprio corpo. O gosto era salobro, e ela se lembrou das
águas de Caladan: uma fonte alta encerrando uma curva de
céu, tamanha opulência de umidade que ninguém notava por
seu valor intrínseco... somente por sua forma, ou seu reflexo,
ou o barulho que produzia quando alguém parava a seu lado.
Parar, ela pensou. Descansar... descansar de verdade.
Ocorreu-lhe que a misericórdia era a capacidade de parar,
mesmo que apenas por um instante. Não havia misericórdia
onde não era possível parar.
Paul se afastou da saliência rochosa, virou-se e escalou
uma superfície íngreme. Jéssica o seguiu com um suspiro.
Escorregaram até uma prateleira ampla que contornava
um paredão escarpado. Voltaram a adotar o ritmo incoerente
de movimento naquele terreno acidentado.
Jéssica sentia a noite dominada pelos diversos graus de
pequenez das substâncias sob os pés e as mãos deles:
matacães, cascalho, pedrisco, areia grossa, areia propriamente
dita, saibro, poeira ou pó fino.
O pó entupia os filtros nasais e era preciso soprá-lo fora. A
areia grossa e o cascalho rolavam sobre as superfícies duras e
podiam derrubar os incautos. O pedrisco cortava.
E os trechos onipresentes de areia prendiam e puxavam os
pés deles.
Paul estacou de repente sobre uma prateleira rochosa e
segurou a mãe quando ela tropeçou nele.
Ele apontou para a esquerda, e ela acompanhou o braço
estendido do filho para ver que estavam no topo de um
penhasco, e o deserto se estendia como um oceano estático
cerca de duzentos metros abaixo deles. Jazia ali, cheio de
ondas prateadas pelo luar, sombras de ângulos que aos poucos
se desfaziam em curvas e, ao longe, erguiam-se no borrão
cinzento e nebuloso de mais um escarpamento.
– Deserto aberto – ela disse.
– Extenso demais para atravessarmos – disse Paul, e a voz
dele saiu abafada pelo filtro que lhe cobria o rosto.
Jéssica olhou para a esquerda e para a direita: nada além
de areia lá embaixo.
Paul olhou diretamente à frente, por sobre as dunas
expostas, observando o movimento de sombras à passagem da
lua.
– São cerca de três ou quatro quilômetros de travessia –
ele disse.
– Vermes – ela disse.
– Com certeza.
Ela se concentrou em seu cansaço, na dor muscular que
embotava seus sentidos.
– Vamos descansar e comer?
Paul tirou a mochila das costas, sentou-se e usou-a como
encosto. Jéssica apoiou-se no ombro do filho ao baixar o corpo
até a pedra ao lado dele. Ela sentiu Paul se virar quando ela se
acomodou, ouviu-o remexer o conteúdo da mochila.
– Tome – ele disse.
A mão dele parecia seca em contato com sua palma, onde
ele deixou duas cápsulas de energia.
Ela as engoliu com um gole relutante da água do tubo de
seu trajestilador.
– Beba toda a sua água – disse Paul. – Axioma: o melhor
lugar para conservar a água é dentro do corpo. Conserva sua
energia. Você se fortalece. Confie em seu trajestilador.
Ela obedeceu e esvaziou as bolsas coletoras, sentindo suas
forças retornarem. Pensou então como era tranquilo ali,
naquele momento de cansaço, e lembrou-se de ter ouvido,
certa vez, o guerreiro-menestrel Gurney Halleck dizer: “Melhor
é um bocado seco, e com ele a tranquilidade, do que a casa
cheia de festins, com rixas”.
Jéssica repetiu as palavras para Paul.
– Esse era o Gurney – ele disse.
Ela percebeu o tom da voz dele, como se falasse de um
morto, e pensou: E pode ser que o pobre Gurney esteja mesmo
morto. Os soldados Atreides estavam mortos, eram
prisioneiros ou haviam se perdido, assim como eles, naquele
vazio desprovido de água.
– Gurney sempre conhecia a citação certa para cada
ocasião – disse Paul. – Posso ouvi-lo agora: “E eu secarei os rios,
e venderei a terra, entregando-a na mão dos maus, e assolarei a
terra e a sua plenitude pela mão dos estranhos”.
Jéssica fechou os olhos, viu-se à beira das lágrimas,
comovida pelo páthos na voz do filho.
Sem demora, Paul disse:
– Como é que... está se sentindo?
Ela entendeu que a pergunta se referia a sua gravidez e
disse:
– Sua irmã só nascerá daqui a vários meses. Ainda me
sinto... fisicamente capaz.
E ela pensou: A formalidade rígida com que falo a meu
próprio filho! Em seguida, por ser o hábito das Bene Gesserit
buscar a resposta para tamanha singularidade no íntimo da
alma, ela procurou e encontrou a origem de sua formalidade:
Tenho medo de meu filho; temo sua estranheza; temo o que pode
ver em nosso futuro, o que pode me contar.
Paul cobriu os olhos com o capuz e pôs-se a escutar os
ruídos da noite e seus insetos atarefados. Os pulmões estavam
saturados com seu próprio silêncio. O nariz comichava. Ele o
coçou, removeu o filtro e percebeu o cheiro forte de canela.
– Há especiaria por perto, o mélange – ele disse.
Um vento macio afagou o rosto de Paul e agitou as pregas
de seu albornoz. Mas aquele vento não trazia a ameaça de uma
tempestade: ele já percebia a diferença.
– Logo amanhecerá – ele disse.
Jéssica assentiu.
– Há uma maneira de atravessar em segurança aquele
trecho desprotegido de areia – disse Paul. – É o que os fremen
fazem.
– E os vermes?
– Se instalássemos o martelador de nosso fremkit aqui
atrás, nas pedras – disse Paul –, isso manteria o verme ocupado
durante algum tempo.
Ela olhou para a extensão de deserto enluarado entre eles
e o outro escarpamento.
– O suficiente para percorrermos quatro quilômetros?
– Talvez. E se caminhássemos até lá produzindo apenas
sons naturais, do tipo que não atrai os vermes...
Paul examinou o deserto aberto, vasculhando sua
memória presciente, sondando as alusões misteriosas a
marteladores e ganchos de criador no manual do fremkit que
acompanhava a mochila com a qual tinham escapado. Achou
estranho que só sentisse um pavor penetrante ao pensar nos
vermes. Ele sabia, como se a informação estivesse justamente à
beira de sua percepção, que os vermes deviam ser respeitados,
e não temidos... se... se...
Chacoalhou a cabeça.
– Os sons não podem ter ritmo – disse Jéssica.
– O quê? Ah, sim. Se quebrarmos o ritmo de nossos
passos... a própria areia deve se deslocar às vezes. Os vermes
não conseguiriam investigar todo e qualquer barulhinho. Mas
precisamos estar totalmente descansados antes de tentar.
Ele olhou para o outro paredão de rocha, vendo a
passagem do tempo nas sombras verticais deixadas pelo luar.
– Vai amanhecer em menos de uma hora.
– Onde passaremos o dia? – ela perguntou.
Paul virou-se para a esquerda e apontou.
– O penhasco faz uma curva para o norte ali adiante. Vê-se
pela erosão que se trata da face exposta ao vento. Deve haver
fendas ali, e profundas.
– Então é melhor irmos andando? – ela perguntou.
Ele se levantou e a ajudou a ficar de pé.
– Já descansou o suficiente para a descida? Quero chegar o
mais perto possível do nível do deserto antes de acamparmos.
– O suficiente. – Ela acenou com a cabeça, indicando que
ele tomasse a frente.
Ele hesitou, depois ergueu a mochila, acomodou-a nos
ombros e começou a se afastar, seguindo o penhasco.
Se ao menos tivéssemos suspensores, pensou Jéssica. Seria
tão simples pular lá para baixo. Mas talvez os suspensores
sejam mais uma coisa a se evitar no deserto aberto. Pode ser que
atraiam os vermes da mesma maneira que os escudos.
Chegaram a uma série de prateleiras descendentes e, mais
adiante, viram uma fissura cuja borda delineada pela sombra
do luar apontava o caminho ao longo do vestíbulo.
Paul liderou a descida, movendo-se com cuidado e pressa,
porque era óbvio que o luar não duraria muito tempo. Eles
desceram pela trilha sinuosa e entraram num mundo de
sombras cada vez mais intensas. Ao redor deles, formas
vagamente rochosas elevavam-se rumo às estrelas. A fissura
estreitou, reduzindo-se a uns dez metros de largura à beira de
uma rampa de areia cinza-escuro que descia em declive e
sumia nas trevas.
– Dá para descer? – sussurrou Jéssica.
– Creio que sim.
Ele experimentou a superfície com um dos pés.
– Podemos escorregar até lá embaixo – ele disse. – Eu vou
primeiro. Espere até me ouvir parar.
– Cuidado – ela disse.
Ele passou à rampa, deslizou e escorregou, descendo a
superfície fofa até um piso quase plano de areia compactada. O
lugar ficava nas profundezas dos paredões de rocha.
Veio o som de areia deslizando atrás dele. Ele tentou
enxergar o alto da rampa no escuro e quase foi derrubado pela
cascata, que foi diminuindo até se calar.
– Mãe? – disse ele.
Não houve resposta.
– Mãe?
Ele largou a mochila e se atirou rampa acima, usando os
pés e as mãos para subir, cavando, jogando areia para todos os
lados feito um selvagem.
– Mãe! – foi seu grito sufocado. – Mãe, onde você está?
Uma outra cascata de areia o levou de roldão, enterrando-
o até os quadris. Ele se libertou com esforço.
Ela foi apanhada pelo deslizamento de areia, ele pensou.
Foi enterrada. Preciso ter calma e resolver isso com cuidado. Ela
não vai sufocar imediatamente. Vai se acalmar, entrar em
suspensão bindu para reduzir sua necessidade de oxigênio. Ela
sabe que vou desenterrá-la.
À maneira das Bene Gesserit, como ela o havia ensinado,
Paul controlou as batidas desenfreadas de seu coração, fez de
sua mente uma tábula rasa sobre a qual os últimos momentos
poderiam se inscrever. Todos os deslocamentos e desvios da
avalanche se repetiram em sua memória, movendo-se com uma
pompa interior que contrastava com a fração de segundo de
tempo real exigida pela recordação inteira.
No mesmo instante, Paul subiu a rampa na diagonal,
sondando com cautela até encontrar a parede da fissura, uma
curva saliente da rocha. Começou a cavar, deslocando a areia
com cuidado para não provocar outro deslizamento. Um
pedaço de tecido chegou a suas mãos. Ele o acompanhou e
encontrou um braço. Delicadamente, ele seguiu o curso do
braço e descobriu o rosto da mãe.
– Está me ouvindo? – ele sussurrou.
Sem resposta.
Cavou mais rápido e liberou os ombros de Jéssica. Ela não
reagiu ao contato das mãos dele, mas Paul detectou uma
pulsação fraca.
A suspensão bindu, ele disse consigo mesmo.
Ele removeu a areia até a cintura da mãe, passou os braços
dela sobre seus ombros e puxou-a rampa abaixo, devagar a
princípio, depois arrastando-a o mais rápido possível, sentindo
a areia ceder logo acima. Começou a puxá-la cada vez mais
rápido, ofegante com o esforço, pelejando para manter o
equilíbrio. Viu-se, então, de volta ao chão compacto da fissura,
jogou a mãe sobre o ombro e disparou numa carreira vacilante
quando a rampa inteira veio abaixo com um silvo ruidoso que
ecoou e foi ampliado pelas paredes de rocha.
Ele se deteve no fim da fissura, que sobranceava a
progressão de dunas do deserto, uns trinta metros abaixo.
Com toda a delicadeza, ele deitou a mãe sobre a areia e
pronunciou a palavra que a tiraria do estado cataléptico.
Ela foi acordando aos poucos, inspirando cada vez mais
fundo.
– Eu sabia que você me encontraria – ela murmurou.
Ele voltou a olhar para a fissura.
– Talvez tivesse sido melhor não encontrá-la.
– Paul!
– Perdi a mochila – ele disse. – Está enterrada debaixo de
centenas de toneladas de areia... no mínimo.
– Tudo?
– A água extra, a tendestiladora: tudo que importa. – Ele
tateou um bolso. – Ainda tenho a parabússola. – Remexeu o
conteúdo da faixa em sua cintura. – Faca e binóculo.
Poderemos dar uma boa olhada no lugar onde vamos morrer.
Naquele instante, o sol se ergueu acima do horizonte em
algum lugar à esquerda, além do fim da fissura. As cores
cintilaram na areia lá de fora, no deserto aberto. Um coro de
aves, escondido nas pedras, começou a cantar.
Mas Jéssica só tinha olhos para o desespero estampado no
rosto de Paul. Deu a sua voz um tom de desprezo e disse:
– Foi isso que lhe ensinaram?
– Não entende? – ele perguntou. – Tudo de que precisamos
para sobreviver neste lugar está debaixo daquela areia.
– Você me encontrou – ela disse, e dessa vez sua voz saiu
mansa, comedida.
Paul ficou de cócoras.
Não demorou a olhar para dentro da fissura, para a nova
rampa, estudando-a, notando como a areia estava solta.
– Se conseguirmos imobilizar uma pequena área daquela
rampa e da face superior de um buraco escavado na areia,
talvez consigamos abrir um fosso até a mochila. Água pode
funcionar, mas não temos água suficiente para... – Ele hesitou
e, em seguida: – Espuma.
Jéssica não se mexeu, para não perturbar o
hiperfuncionamento da mente dele.
Paul olhou lá para fora, para as dunas desprotegidas, e
procurou com o olfato tanto quanto com a visão, encontrando
a direção, e depois focalizou sua atenção num trecho escuro de
areia abaixo deles.
– Especiaria – ele disse. – Sua essência é extremamente
alcalina. E tenho a parabússola. A bateria é acidobásica.
Jéssica endireitou as costas, ainda sentada e apoiada na
rocha.
Paul a ignorou, ficou de pé num salto e começou a descer a
superfície compactada pelo vento que se derramava do fim da
fissura até o chão do deserto.
Ela observou a maneira como ele caminhava, quebrando o
ritmo das passadas: passo, pausa, passo-passo... resvalo...
pausa...
Não havia ritmo que pudesse informar um verme voraz
que por ali andava algo que não pertencia ao deserto.
Paul chegou à mancha de especiaria, encheu com ela uma
dobra do manto e voltou à fissura. Derramou a especiaria na
areia, diante de Jéssica, agachou-se e começou a desmontar a
parabússola, usando para isso a ponta de sua faca. O
mostrador da bússola saiu. Ele tirou a faixa da cintura,
espalhou as peças da bússola em cima do tecido, levantou e
removeu a bateria. O mecanismo do mostrador foi o próximo,
deixando um compartimento côncavo e vazio no instrumento.
– Vai precisar de água – disse Jéssica.
Paul pegou o tubo coletor em seu pescoço, sugou,
enchendo a boca, e cuspiu a água dentro do compartimento
côncavo.
Se não der certo, será um desperdício de água, Jéssica
pensou. Mas aí não fará a menor diferença.
Com sua faca, Paul abriu a bateria, derramou os cristais na
água. Fizeram um pouco de espuma e assentaram.
Os olhos de Jéssica captaram movimentação no alto. Ela
ergueu os olhos e viu uma fila de gaviões ao longo da beirada da
fissura. Estavam empoleirados ali, fitando a água exposta lá
embaixo.
Grande mãe!, ela pensou. Percebem a água mesmo de tão
longe!
Paul devolveu a tampa à parabússola, deixando de fora o
botão zerador, o que abriu um pequeno orifício até o líquido.
Com o instrumento reformulado numa das mãos e um
punhado de especiaria na outra, Paul voltou para a fissura,
estudando a disposição da rampa. Sua túnica, sem a faixa para
contê-la, dançava ao vento. Subiu parte da rampa com
dificuldade, desalojando com os pés riachos de areia, jatos de
poeira.
Não demorou a parar, enfiou uma pitada de especiaria na
parabússola e sacudiu o estojo do instrumento.
Uma espuma verde brotou do orifício deixado pelo botão
zerador. Paul a dirigiu para a rampa, formou ali um dique baixo
e, com os pés, começou a remover a areia abaixo daquele
ponto, imobilizando a face recém-exposta com mais espuma.
Jéssica posicionou-se abaixo dele e gritou:
– Posso ajudar?
– Suba e comece a cavar – ele disse. – Temos de abrir uns
três metros. Vai ser por pouco. – Enquanto ele falava, a espuma
parou de sair do instrumento.
– Rápido – Paul disse. – Não há como saber por quanto
tempo a espuma irá conter a areia.
Jéssica subiu e colocou-se ao lado de Paul, e ele enfiou
mais uma pitada de especiaria no orifício, agitando o estojo da
parabússola. A espuma voltou a brotar do instrumento.
Enquanto Paul ia dirigindo a barreira de espuma, Jéssica
cavava com as mãos, atirando a areia rampa abaixo.
– Qual é a profundidade? – ela perguntou, ofegante.
– Cerca de três metros – ele disse. – E só posso estimar a
localização. Talvez tenhamos que ampliar o buraco. – Deu um
passo para o lado, escorregando na areia solta. – Cave uma
rampa daí onde está para dentro do fosso. Não desça em linha
reta.
Jéssica obedeceu.
Aos poucos, o buraco foi se aprofundando e chegou ao
mesmo nível do piso da bacia, e nem sinal da mochila.
Será que calculei mal?, Paul se perguntou. Foi meu pânico
inicial que provocou este erro. Será que isso prejudicou minha
faculdade?
Olhou para a bússola. Restavam menos de duas onças de
infusão ácida.
Jéssica se aprumou dentro do buraco, passou a mão
manchada de espuma pelo rosto. Os olhos dela encontraram os
de Paul.
– A face superior – Paul disse. – Vá com cuidado agora. –
Ele acrescentou mais uma pitada de especiaria ao recipiente,
fez a espuma brotar em volta das mãos de Jéssica, que
começou a escavar uma face vertical no declive superior do
buraco. Na segunda passada, as mãos dela encontraram algo
resistente. Aos poucos, ela foi desenterrando um pedaço de
alça com uma fivela plástica.
– Não mexa mais nisso – Paul disse, e sua voz era quase um
sussurro.
– Acabou a espuma.
Jéssica segurou a alça numa das mãos e olhou para o filho.
Paul jogou a parabússola vazia no chão da bacia e disse:
– Dê-me a outra mão. Agora escute com atenção. Vou
puxar você para o lado e para baixo. Não solte a alça. Não
descerá muita areia do topo. Esta rampa acabou se
estabilizando. Só vou tentar manter sua cabeça fora da areia.
Quando o buraco estiver cheio, poderemos desenterrar você e
puxar a mochila.
– Entendi – ela disse.
– Pronta?
– Pronta. – Ela fechou os dedos com força em volta da alça.
Com um único impulso, Paul a puxou meio corpo para fora
do buraco, mantendo a cabeça da mãe alta enquanto a barreira
de espuma cedia e a areia deslizava para baixo. Quando tudo
acabou, Jéssica continuava enterrada obliquamente, até a
cintura, com o braço e o ombro esquerdos ainda debaixo da
areia e o queixo protegido por uma dobra do manto de Paul. O
ombro dela doía devido ao esforço.
– Ainda estou segurando a alça – ela disse.
Devagar, Paul enfiou uma das mãos na areia ao lado da mãe
e encontrou a alça.
– Juntos – ele disse. – Pressão contínua. Não podemos
rompê-la.
Um pouco mais de areia escorregou lá de cima enquanto
os dois puxavam a mochila. Quando a alça rompeu a superfície,
Paul parou e tirou a mãe da areia. Juntos, então, eles puxaram
a mochila rampa abaixo e para fora do local onde estivera
aprisionada.
Em poucos minutos, estavam os dois no chão da fissura,
segurando a mochila entre eles.
Paul olhou para a mãe. A espuma manchava-lhe o rosto e a
túnica. A areia havia emplastrado nos pontos onde a espuma
secara. Ela parecia ter sido o alvo de bolas de areia verde e
úmida.
– Você está horrível – ele disse.
– Você também não está nada bonito – ela disse.
Começaram a rir, depois voltaram a ficar sérios.
– Isso não deveria ter acontecido – Paul disse. – Fui
descuidado.
Ela encolheu os ombros, sentindo a areia emplastrada se
despregar de sua túnica e cair.
– Vou montar a tenda – ele disse. – É melhor tirar essa
túnica e dar-lhe uma boa sacudida. – Ele se virou, levando a
mochila.
Jéssica concordou com a cabeça, de repente cansada
demais para responder.
– Existem buracos na pedra para os espeques – disse Paul.
– Alguém já acampou aqui antes.
Por que não?, ela pensou enquanto limpava sua túnica. Era
um lugar provável para um acampamento – enfurnado entre
paredões de rocha, de frente para um outro penhasco a uns
quatro quilômetros de distância –, alto o bastante para evitar
os vermes, mas perto o suficiente do deserto para permitir
acesso fácil antes de uma travessia.
Ela se virou, vendo que Paul já tinha armado a tenda, cujo
hemisfério abobadado e estriado se misturava às paredes da
fissura. Paul passou por ela, erguendo o binóculo. Ele ajustou a
pressão interna do instrumento com uma torção rápida,
focalizando as lentes de óleo no outro penhasco, que se erguia
castanho e dourado à luz da manhã depois de toda aquela areia
desprotegida.
Jéssica ficou observando enquanto Paul examinava aquela
paisagem apocalíptica, sondando com os olhos rios de areia e
desfiladeiros.
– Existem plantas ali adiante – ele disse.
Jéssica pegou o binóculo extra na mochila ao lado da tenda
e colocou-se ao lado de Paul.
– Lá – ele disse, segurando o binóculo com uma das mãos e
apontando com a outra.
Ela olhou para onde ele apontava.
– Carnegíeas – ela disse. – E bem raquíticas.
– Pode haver pessoas por perto – Paul disse.
– Poderiam ser os restos de uma Estação de
Experimentação Botânica – ela advertiu.
– Estamos muito ao sul, deserto adentro – ele disse. Baixou
o binóculo, passou a mão sob o regulador do filtro, sentindo os
lábios secos e rachados, o gosto poeirento da sede na boca. –
Tenho a sensação de que o lugar pertence aos fremen – ele
disse.
– Tem certeza de que os fremen serão amistosos? – ela
perguntou.
– Kynes prometeu que eles ajudariam.
Mas a gente deste deserto conhece o desespero, ela pensou.
Eu mesma o senti hoje. Pessoas desesperadas podem nos matar
para ficar com nossa água.
Ela fechou os olhos e, para se proteger daqueles ermos,
conjurou em sua mente uma imagem de Caladan. Fizeram uma
viagem de férias certa vez, somente ela e o duque Leto, antes
de Paul nascer. Sobrevoaram as selvas do sul, a folhagem
silvestre aos berros e os arrozais dos deltas. E viram as fileiras
de formigas no verde: bandos de homens que levavam suas
cargas nos ombros, em varas sustentadas por suspensores. E
na imensidão do mar, as pétalas brancas dos trimarãs.
Tudo aquilo, perdido.
Jéssica abriu os olhos e viu o silêncio do deserto, o calor
crescente do dia. Redemoinhos inquietos de ar quente
começavam a tremular sobre a areia. O paredão de rocha do
outro lado era como algo que se visualizasse através de vidro
barato.
Um derramamento de areia abriu sua breve cortina de um
lado a outro da extremidade exposta da fissura. A areia desceu
assoviando, deslocada por lufadas de brisa matutina, pelos
gaviões que começavam a alçar voo, lançando-se do topo do
penhasco. Passado o deslizamento de areia, Jéssica continuou
a escutar o silvo. Foi ficando cada vez mais alto, um som que,
depois de ouvido, nunca se esquecia.
– Verme – sussurrou Paul.
Vinha da direita, com uma majestade indiferente que não
havia como ignorar. Um monte-túnel de areia serpeante
atravessou as dunas ao alcance da visão deles. O monte se
ergueu na frente, espalhando pó, como as ondas deixadas na
água pela proa de um barco. Depois sumiu, seguindo para a
esquerda.
O som diminuiu e morreu.
– Já vi fragatas espaciais menores – sussurrou Paul.
Jéssica concordou com a cabeça e continuou a fitar o
deserto. Por onde o verme tinha passado, restava aquela ravina
torturante. Corria cruel e interminavelmente diante deles, tão
convidativa sob seu horizonte desmoronado.
– Depois de descansarmos – Jéssica disse –, será melhor
continuarmos com suas aulas.
Ele reprimiu uma raiva repentina e disse:
– Mãe, não acha que podemos dispensar...
– Hoje você cedeu ao pânico – ela disse. – Você conhece sua
mente e sua inervação-bindu talvez melhor do que eu, mas tem
ainda muito a aprender sobre a musculatura-prana de seu
corpo. O corpo, às vezes, age por conta própria, Paul, e posso
lhe ensinar isso. Você tem de aprender a controlar cada
músculo, cada fibra de seu corpo. Está precisando de uma
revisão sobre as mãos. Começaremos com os músculos dos
dedos, os tendões da palma e a sensibilidade das pontas. – Ela
se virou. – Vamos, entre na tenda, já.
Ele flexionou os dedos da mão esquerda, observando a
mãe entrar engatinhando pelo esfíncter, sabendo que não
conseguiria demovê-la de sua determinação... com que ele era
obrigado a concordar.
O que quer que tenham feito comigo, eu tomei parte nisso,
ele pensou.
Revisão sobre as mãos!
Olhou para sua mão. Como parecia inadequada
comparada a criaturas como aquele verme.
Viemos de Caladan, um mundo
paradisíaco para nossa forma de vida.
Não havia em Caladan a necessidade de
criar um paraíso físico, nem um paraíso
mental: víamos a realidade ao nosso
redor. E o preço que pagamos foi o preço
que os homens sempre pagam ao
alcançar o paraíso nesta vida: ficamos
moles, perdemos nossa fibra.
– excerto de “Conversas com Muad’Dib”, da princesa Irulan

– Então você é o grande Gurney Halleck – disse o homem.


Halleck, ali de pé no gabinete circular da caverna, olhava
fixamente para o contrabandista sentado diante dele, atrás de
uma escrivaninha de metal. O homem usava vestes fremen e
tinha os olhos só parcialmente tingidos de azul, o que indicava
alimentos de fora do planeta em sua dieta. O gabinete
reproduzia o centro de controle principal de uma fragata
espacial: sistemas de comunicação e monitores de vídeo ao
longo de um arco de trinta graus da parede, consoles de
armamento e de disparo remotos adjacentes e a escrivaninha
que se projetava da parede na parte restante da curva.
– Sou Staban Tuek, filho de Esmar Tuek – disse o
contrabandista.
– Então é a você que devo agradecer pela ajuda que
recebemos – disse Halleck.
– Aaah, gratidão – disse o contrabandista. – Sente-se.
Um assento ergonômico, do tipo que se usava nas naves,
surgiu da parede ao lado dos monitores, e Halleck afundou-se
nele com um suspiro, sentindo o cansaço. Via agora seu
próprio reflexo numa superfície escura ao lado do
contrabandista, e fechou a cara ao ver as marcas de fadiga em
seu rosto bexiguento. A cicatriz de cipó-tinta ao longo de sua
mandíbula contorceu-se, acompanhando a carranca.
Halleck desviou os olhos de seu reflexo e fitou Tuek. Via
agora a semelhança do contrabandista com o pai: as
sobrancelhas espessas e inclinadas, os planos duros dos
malares e do nariz.
– Seus homens me disseram que seu pai morreu,
assassinado pelos Harkonnen – disse Halleck.
– Pelos Harkonnen ou por um traidor no meio de sua gente
– Tuek disse.
A raiva superou uma parte da fadiga de Halleck. Ele se
aprumou e disse:
– Sabe o nome do traidor?
– Não temos certeza.
– Thufir Hawat desconfiava de lady Jéssica.
– Aaah, a bruxa Bene Gesserit... talvez. Mas Hawat agora é
prisioneiro dos Harkonnen.
– Ouvi dizer. – Halleck inspirou fundo. – Parece que ainda
teremos de matar mais gente.
– Não vamos fazer nada que chame atenção para nós –
disse Tuek.
Halleck se empertigou.
– Mas...
– Você e os homens sob seu comando que salvamos podem
ficar à vontade para nos pedir asilo – disse Tuek. – Você fala de
gratidão. Muito bem: salde sua dívida conosco. Sempre
podemos usar bons homens. Mas destruiremos vocês sem
pestanejar se fizerem alguma coisa explícita, por menor que
seja, contra os Harkonnen.
– Mas eles mataram seu pai, homem!
– Talvez. Se for isso mesmo, darei a você a resposta de meu
pai para aqueles que agem sem pensar: “A pedra é pesada e a
areia é densa, mas a ira de um idiota pesa muito mais”.
– Sua intenção é não fazer nada a respeito disso, então? –
zombou Halleck.
– Não foi isso que me ouviu dizer. Eu disse apenas que vou
proteger nosso contrato com a Guilda. A Guilda exige de nós
cautela no jogo. Existem outras maneiras de destruir um
inimigo.
– Aaaaah.
– É, ah. Se quiser procurar a bruxa, vá. Mas aviso que
provavelmente já deve ser tarde demais... e, de qualquer
maneira, duvidamos que seja ela a pessoa que você quer.
– Hawat cometia poucos erros.
– Ele se deixou capturar pelos Harkonnen.
– Acha que ele é o traidor?
Tuek deu de ombros.
– A discussão é inútil. Achamos que a bruxa morreu. Pelo
menos é nisso que os Harkonnen acreditam.
– Parece que você sabe um bocado sobre os Harkonnen.
– Dicas e indícios... boatos e palpites.
– Somos setenta e quatro homens ao todo – disse Halleck.
– Se deseja realmente que nos juntemos a vocês, é porque
acredita que nosso duque está morto.
– Viram o corpo dele.
– E o menino também, o jovem mestre Paul? – Halleck
tentou engolir saliva, mas encontrou um nó em sua garganta.
– De acordo com as últimas notícias que chegaram até nós,
ele se perdeu, junto com a mãe, na tempestade do deserto. É
provável que nunca encontrem sequer os ossos dos dois.
– Então a bruxa está morta... todos mortos.
Tuek assentiu.
– E o Bruto Rabban, é o que dizem, irá se sentar mais uma
vez no trono de Duna.
– O conde Rabban de Lankiveil?
– Sim.
Halleck precisou de um momento para sufocar a onda de
fúria que ameaçou dominá-lo. Falou, com a respiração
entrecortada:
– Tenho contas pessoais a acertar com Rabban. Devo a ele
a morte de minha família... – esfregou a cicatriz em sua
mandíbula – ... e isto...
– Não se põe tudo a perder para acertar contas
prematuramente – disse Tuek. Ele franziu o cenho, vendo a
ação dos músculos na mandíbula de Halleck, o retraimento
repentino nos olhos entreabertos do homem.
– Eu sei... eu sei... – Halleck inspirou fundo.
– Você e seus homens podem conseguir passagem para
fora de Arrakis trabalhando conosco. Existem muitos lugares...
– Libero meus homens de qualquer compromisso que
tenham comigo: eles que façam sua escolha. Com Rabban aqui,
eu fico.
– Nesse estado de espírito, não sei se queremos que fique.
Halleck encarou o contrabandista.
– Está duvidando de minha palavra?
– Nããão...
– Você me salvou dos Harkonnen. Jurei lealdade ao duque
Leto pela mesma razão. Ficarei em Arrakis... com vocês... ou
com os fremen.
– Quer ganhe voz ou não, o pensamento é uma coisa real e
tem poder – Tuek disse. – Talvez você descubra que a linha que
separa a vida e a morte entre os fremen é muito fina e certeira.
Halleck fechou os olhos brevemente, sentindo o cansaço
inundá-lo por dentro.
– “Onde está o Senhor que nos enviou através do deserto,
por uma terra de charnecas e de covas?” – ele murmurou.
– Aja com vagar e chegará o dia de sua vingança – Tuek
disse. – A pressa é um artifício de Shaitan. Modere sua mágoa.
Temos as distrações certas para isso, as três coisas que aliviam
o coração: a água, o verde e a beleza das mulheres.
Halleck abriu os olhos.
– Preferiria o sangue de Rabban Harkonnen correndo a
meus pés. – Fitou Tuek. – Acha que esse dia virá?
– Pouco me interessa como você enfrentará o futuro,
Gurney Halleck. Só posso ajudá-lo a enfrentar o presente.
– Então aceitarei essa ajuda até o dia em que você me
mandar vingar seu pai e todos os outros que...
– Escute aqui, homem de armas – disse Tuek. Ele se
debruçou sobre a escrivaninha, com os ombros à altura das
orelhas e os olhos decididos. O rosto do contrabandista, de
repente, era como a pedra exposta à intempérie. – A água de
meu pai, eu mesmo a comprarei de volta, com minha própria
espada.
Halleck devolveu o olhar de Tuek. Naquele momento, o
contrabandista lembrou-lhe o duque Leto: um líder de homens,
corajoso, seguro de sua posição e de seu curso. Ele era como o
duque... antes de Arrakis.
– Quer minha espada a seu lado? – Halleck perguntou.
Tuek se recostou, relaxou, estudando Halleck em silêncio.
– Você me considera um homem de armas? – insistiu
Halleck.
– Você foi o único lugar-tenente do duque que conseguiu
escapar – disse Tuek. – A força inimiga era esmagadora, mas
você deu um jeito... Você a derrotou da maneira que
derrotamos Arrakis.
– Hein?
– Somos apenas tolerados aqui embaixo, Gurney Halleck –
disse Tuek. – Arrakis é nosso inimigo.
– Um inimigo por vez, é isso?
– É.
– É assim que os fremen se viram?
– Talvez.
– Você disse que eu posso achar a vida com os fremen
muito dura. Eles vivem no deserto, ao ar livre, é por isso?
– Quem sabe onde os fremen vivem? Para nós, o Platô
Central é terra de ninguém. Mas eu queria falar mais sobre...
– Disseram-me que os cargueiros de especiaria da Guilda
raramente sobrevoam o deserto – disse Halleck. – Mas correm
boatos de que é possível ver trechos de verde aqui e ali, desde
que se saiba onde procurar.
– Boatos! – Tuek escarneceu. – Quer escolher agora entre
nós e os fremen? Temos uma certa segurança, nosso próprio
sietch escavado na rocha, nossas próprias bacias escondidas.
Levamos vidas de homens civilizados. Os fremen não passam
de uns bandos maltrapilhos que usamos como caçadores de
especiaria.
– Mas eles sabem como matar os Harkonnen.
– E quer saber o resultado? Neste exato momento, estão
sendo caçados feito animais, com armaleses, porque não têm
escudos. Estão sendo exterminados. Por quê? Porque mataram
Harkonnen.
– Foram Harkonnen que eles mataram? – perguntou
Halleck.
– Como assim?
– Não ouviu dizer que pode haver Sardaukar com os
Harkonnen?
– Mais boatos.
– Mas um pogrom... não parece coisa dos Harkonnen. Um
pogrom seria um desperdício.
– Acredito no que vejo com meus próprios olhos – disse
Tuek. – Faça sua escolha, homem de armas. Eu ou os fremen.
Prometo-lhe asilo e a oportunidade de derramar o sangue que
ambos desejamos. Pode ter certeza disso. Os fremen só têm a
oferecer a vida de quem é caçado.
Halleck hesitou, percebendo que as palavras de Tuek
eram sábias e solidárias, mas algo que não conseguia explicar o
incomodava.
– Confie em suas próprias habilidades – disse Tuek. –
Quem tomou as decisões que fizeram seus homens sobreviver
à batalha? Você. Decida.
– Assim deve ser – disse Halleck. – O duque e o filho estão
mortos?
– Os Harkonnen acreditam que sim. Nesse tipo de coisa,
minha tendência é confiar nos Harkonnen. – Um sorriso
soturno se insinuou nos lábios de Tuek. – Mas essa é toda a
confiança que dou a eles.
– Então assim deve ser – repetiu Halleck. Estendeu a mão
direita, com a palma para cima e o polegar flexionado para
dentro, o gesto tradicional. – Ofereço-lhe minha espada.
– Eu a aceito.
– Quer que eu convença meus homens?
– Você deixaria que eles decidissem por si mesmos?
– Eles me seguiram até aqui, mas a maioria nasceu em
Caladan. Arrakis não é o que pensaram que seria. Aqui,
perderam tudo, exceto a vida. Prefiro que decidam por si
mesmos agora.
– Agora não é o momento de recuar – disse Tuek. – Eles o
seguiram até aqui.
– Precisa deles, é isso?
– Sempre temos serventia para homens de armas
experientes... nos tempos que vivemos, mais do que nunca.
– Aceitou minha espada. Quer que eu os convença?
– Acho que irão seguir você, Gurney Halleck.
– É minha esperança.
– De fato.
– Posso decidir isso por conta própria, então?
– Por conta própria.
Halleck se levantou do assento ergonômico, sentindo
quanto até mesmo aquele pequeno esforço exigia de sua
reserva de força.
– Por ora, cuidarei dos alojamentos e do bem-estar deles –
disse.
– Consulte meu contramestre – disse Tuek. – Drisq é o
nome dele. Diga-lhe que é meu desejo que vocês sejam tratados
com toda a cortesia. Eu me juntarei a vocês sem demora. Tenho
alguns carregamentos de especiaria para despachar primeiro.
– A fortuna a tudo toca – disse Halleck.
– Tudo – disse Tuek. – Os períodos de convulsão são
oportunidades raras para nosso negócio.
Halleck assentiu, ouviu o sussurro leve e sentiu o
deslocamento do ar quando uma portinhola hermética se abriu
ao lado dele. Virou-se, abaixou-se para passar por ela e saiu do
gabinete.
Viu-se na sala de reunião através da qual ele e seus
homens tinham sido conduzidos pelos assistentes de Tuek. Era
uma área comprida e razoavelmente estreita, escavada na
rocha natural, e sua superfície lisa revelava que haviam usado
maçaricos de radiofresagem para fazer o serviço. O teto se
estendia a uma altura suficiente para continuar a curva de
sustentação natural da rocha e permitir correntes internas de
convecção. Cabides de armas e armários revestiam as paredes.
Halleck notou, com uma ponta de orgulho, que os homens
de sua força que ainda conseguiam ficar de pé estavam de pé:
para eles, o cansaço e a derrota não traziam tranquilidade. Os
médicos dos contrabandistas circulavam entre eles, cuidando
dos feridos. Os homens que precisavam de macas foram
reunidos numa mesma área à esquerda, e cada ferido era
acompanhado por um Atreides.
O treinamento dos Atreides – “Cuidamos dos nossos!” –
resistia dentro deles feito um núcleo de rocha natural, pensou
Halleck.
Um de seus lugares-tenentes adiantou-se um passo,
trazendo o baliset de nove cordas de Halleck, já fora do estojo.
O homem bateu continência e disse:
– Senhor, os médicos daqui dizem que não há esperança
para Mattai. Não possuem bancos de ossos e órgãos por aqui, é
só um posto médico avançado. Estão dizendo que Mattai não
vai durar muito, e ele tem um pedido a fazer.
– O que é?
O lugar-tenente apresentou o baliset.
– Mattai quer ouvir uma canção para abrandar sua
partida, senhor. Diz ele que o senhor sabe qual é... que ele já a
pediu várias vezes. – O lugar-tenente engoliu em seco. – É
aquela chamada “Minha mulher”, senhor. Se o senhor...
– Eu sei.
Halleck pegou o baliset e, com um gesto rápido, sacou a
multipalheta do braço do instrumento. Arrancou-lhe um
acorde suave, descobriu que alguém já o havia afinado. Seus
olhos ardiam, mas ele expulsou a ardência de seus
pensamentos quando começou a tocar, dedilhando a canção,
obrigando-se a sorrir com naturalidade.
Vários de seus homens e um médico dos contrabandistas
estavam debruçados sobre uma das macas. Um dos homens
começou a cantar baixinho quando Halleck se aproximou,
entrando no contratempo com a facilidade de quem conhecia a
música havia muito:

“Minha mulher está à janela,


Curvas na moldura do vidro,
Braços erguidos... inclinada... debruçada
De encontro à noitinha vermelha e dourada...
Venham a mim...
Venham a mim, os braços cálidos de minha amada.
Para mim...
Para mim, os braços cálidos de minha amada.”

O cantor se calou, estendeu um braço enfaixado e fechou


os olhos do homem sobre a maca.
Halleck arrancou um último acorde suave do baliset,
pensando: Agora somos setenta e três.
A vida em família da Creche Real é difícil
de entender para muitas pessoas, mas
tentarei dar a vocês uma visão resumida.
Creio que meu pai só tinha um amigo de
verdade. Era o conde Hasimir Fenring,
eunuco genético e um dos combatentes
mais mortíferos do Imperium. O conde,
um homenzinho feio, mas elegante,
trouxe um dia uma nova concubina-
escrava para meu pai, e minha mãe me
mandou espionar os trâmites. Todas nós
espionávamos meu pai por uma questão
de autopreservação. Naturalmente, as
concubinas-escravas, pelos termos do
acordo com a guilda e as Bene Gesserit,
não podiam dar à luz um Sucessor Real,
mas as intrigas eram constantes e
opressivas em sua similaridade. Nós nos
especializamos — minha mãe, minhas
irmãs e eu — em escapar dos
instrumentos sutis da morte. Pode
parecer uma coisa terrível de se dizer,
mas não sei ao certo se meu pai estava
totalmente inocente em todos esses
atentados. A Família Real é diferente de
qualquer outra família. Ali estava uma
nova concubina-escrava, de cabelos
ruivos como os de meu pai, esbelta e
graciosa. Tinha a musculatura de uma
dançarina e, obviamente, havia sido
treinada na neurossedução. Meu pai a
observou durante um bom tempo,
enquanto ela posava nua diante dele. Por
fim, ele disse: “É linda demais. Vamos
guardá-la como presente”. Vocês não
fazem ideia da consternação que esse
comedimento gerou na Creche Real.
Discrição e autocontrole, afinal de contas,
eram as ameaças mais letais a todas nós.
– excerto de “Na casa de meu pai”, da princesa Irulan

Era fim de tarde e Paul estava do lado de fora da


tendestiladora. A fenda onde ele tinha montado o
acampamento era bastante sombreada. Ele olhava fixamente
para o penhasco distante, do outro lado da areia exposta,
imaginando se deveria acordar sua mãe, que dormia dentro da
tenda.
Rugas e mais rugas de dunas espalhavam-se além de seu
abrigo. Longe do sol que se punha, as dunas ostentavam
sombras lustrosas e tão negras que eram como pedacinhos de
noite.
E a planura.
Sua mente procurava qualquer coisa alta naquela
paisagem. Mas não havia nada de uma altura convincente no ar
embaçado pelo calor, nem no horizonte: nenhuma flor, nada
que se agitasse com delicadeza para marcar a passagem de
uma brisa... somente dunas e aquele penhasco distante sob um
céu azul-prateado e luzidio.
E se aquilo lá do outro lado não for uma das estações
experimentais abandonadas?, ele se perguntou. E se não
houver fremen tampouco, e se as plantas que vemos forem
apenas um acidente?
Dentro da tenda, Jéssica despertou, virou-se, apoiou as
costas no chão e olhou de lado para Paul, através da
transparência. Ele estava de costas para ela e havia alguma
coisa na postura dele que a fazia se lembrar do pai do menino.
Sentiu o pesar brotar dentro dela e virou-se para o outro lado.
Imediatamente, ela ajustou seu trajestilador, refrescou-se
com a água de uma das bolsas coletoras da tenda e se
esgueirou lá para fora, para ficar de pé e se espreguiçar,
livrando os músculos do sono.
Paul falou sem se virar:
– Descobri que gosto da tranquilidade deste lugar.
Como a mente se prepara para seu ambiente, ela pensou. E
lembrou-se de um provérbio das Bene Gesserit: “A mente, sob
tensão, pode seguir num ou noutro sentido, em direção ao
positivo ou ao negativo: ligada ou desligada. Pense nisso como
um espectro cujos extremos são a inconsciência no polo negativo
e a hiperconsciência no polo positivo. A maneira como a mente
irá se inclinar sob tensão é fortemente influenciada pelo
treinamento”.
– Poderíamos levar uma boa vida aqui – disse Paul.
Ela tentou ver o deserto pelos olhos dele, tentando
abranger todos os rigores que aquele planeta aceitava como
lugar-comum, imaginando quais seriam os futuros possíveis
que Paul havia vislumbrado. Aqui a solidão é possível, ela
pensou, sem temer alguém atrás de nós, sem temer o caçador.
Ela passou por Paul, ergueu seu binóculo, ajustou as lentes
de óleo e examinou o escarpamento lá do outro lado. Sim,
carnegíea nos barrancos e outras plantas espinhosas... e um
emaranhado de gramíneas baixas e verde-amareladas nas
sombras.
– Vou levantar o acampamento – disse Paul.
Jéssica assentiu, foi até a boca da fissura, onde poderia ter
uma visão ampla do deserto, e brandiu o binóculo para a
esquerda. Veio o fulgor branco de uma caldeira de sal, com uma
mistura de bronze sujo nas beiradas: um campo branco bem
ali, onde o branco era a morte. Mas a caldeira indicava outra
coisa: água. Em algum momento, a água correra por aquele
branco fulgurante. Ela baixou o binóculo, ajustou o albornoz,
pôs-se a escutar por alguns instantes o som dos movimentos
de Paul.
O sol afundou mais um pouco. As sombras se alongaram,
atravessando a caldeira de sal. Linhas de cores vibrantes
espalharam-se sobre o horizonte do poente. A cor foi se
transformando num dedo de trevas a experimentar a areia. As
sombras cor de carvão se alastraram, e o desmoronamento
compacto da noite obliterou o deserto.
Estrelas!
Ela olhou para os astros, sentindo os movimentos de Paul,
que se aproximava para ficar ao lado dela. A noite do deserto
convergia para cima, com uma sensação de elevação rumo às
estrelas. O peso do dia retirou-se. Um sopro fugaz de brisa
roçou o rosto de Jéssica.
– A primeira lua logo irá nascer – disse Paul. – A mochila
está pronta. Já instalei o martelador.
Poderíamos nos perder para sempre neste inferno, ela
pensou. E ninguém saberia.
O vento noturno espalhava riachos de areia que
arranhavam todo o rosto de Jéssica, trazendo o cheiro de
canela: uma chuva de odores no escuro.
– Sinta esse cheiro – disse Paul.
– Dá para senti-lo até mesmo com o filtro – ela disse. –
Riquezas. Mas conseguiremos comprar água com isso? – Ela
apontou o outro lado da bacia. – Não há luzes artificiais lá
adiante.
– Os fremen estariam escondidos num sietch atrás
daquelas pedras – ele disse.
Um peitoril de prata elevou-se acima do horizonte, à
direita deles: a primeira lua. Ergueu-se e colocou-se à vista,
com o desenho de uma mão evidente em sua face. Jéssica
estudou a prata esbranquiçada da areia exposta à luz.
– Instalei o martelador na parte mais profunda da fenda –
disse Paul. – Quando eu acender a vela do aparelho, teremos
cerca de trinta minutos.
– Trinta minutos?
– Antes que comece a chamar... um... verme.
– Ah. Estou pronta para ir.
Ele se esgueirou para longe da mãe, e ela o ouviu voltar
para a fissura.
A noite é um túnel, ela pensou, um buraco que leva ao
amanhã... se é que teremos um amanhã. Chacoalhou a cabeça.
Por que tenho de ser tão mórbida? Não foi assim que me
treinaram!
Paul voltou, pegou a mochila e desceu na frente até a
primeira duna espraiada, onde se deteve e pôs-se a ouvir,
enquanto sua mãe o alcançava. Ouviu o andar suave de Jéssica
e os sons esparsos, frios e monótonos: o código do deserto, que
deixava explícita sua medida de segurança.
– Temos de caminhar sem ritmo – disse Paul, evocando a
lembrança de homens andando na areia... tanto a da memória
presciente quanto a da memória real. – Observe como eu faço –
ele disse. – É como os fremen caminham pela areia.
Passou para a face de barlavento da duna, seguindo-lhe a
curvatura, e moveu-se com um passo arrastado.
Jéssica estudou o andar do filho por uns dez passos e o
seguiu, imitando-o. Viu sentido naquilo: deviam soar como o
deslocamento natural da areia... como o vento. Mas os
músculos protestavam contra aquele padrão artificial e
irregular: passo... arrasto... arrasto... passo... passo... espera...
arrasto... passo...
O tempo se esticou ao redor deles. O paredão de rocha
adiante não parecia estar mais próximo. Aquele que ficava para
trás continuava a se elevar a grande altura.
– Tum! Tum! Tum! Tum!
Era um rufar de tambor que vinha do penhasco lá atrás.
– O martelador – sussurrou Paul.
As marteladas continuaram, e eles acharam difícil não
reproduzir o ritmo daquele som em seus passos.
– Tum... tum... tum... tum...
Moviam-se numa depressão iluminada pelo luar e
trespassada por aquelas marteladas ocas. Subindo e descendo
dunas transbordantes: passo... arrasto... espera... passo...
Atravessando a areia grossa que escorria sob os pés: arrasto...
espera... passo...
E, o tempo todo, seus ouvidos procuravam um silvo
especial.
O som, quando surgiu, começou tão baixo que foi
disfarçado pelo próprio arrastar de pés dos dois. Mas foi
ficando... cada vez mais alto... e vinha do oeste.
– Tum... tum... tum... tum... – rufava o martelador.
O silvo, cada vez mais próximo, espalhou-se pela noite logo
atrás deles. Os dois viraram a cabeça, sem deixar de caminhar,
e viram o monte criado pelo verme em movimento.
– Continue andando – sussurrou Paul. – Não olhe para trás.
Um rangido furioso irrompeu das sombras das rochas que
haviam acabado de deixar. Era uma avalanche violenta de
barulho.
– Continue andando – Paul repetiu.
Ele viu que tinham chegado a um ponto indistinto no qual
os dois paredões de rocha – o da frente e o de trás – pareciam
igualmente remotos.
E, atrás deles, aquele dilacerar frenético e torturante das
pedras ainda dominava a noite.
Seguiram em frente, sem parar... Os músculos atingiram
um estágio de padecimento mecânico que parecia se estender
indefinidamente, mas Paul viu que o escarpamento convidativo
adiante parecia ter ficado mais alto.
Jéssica movia-se num vácuo de concentração, ciente de
que a pressão de sua vontade era a única coisa que não a
deixava parar de andar. A secura doía em sua boca, mas os
sons lá atrás afastavam toda esperança de parar e beber a
água de uma das bolsas coletoras de seu trajestilador.
– Tum... tum...
Novo furor irrompeu do penhasco distante, abafando o
martelador.
Silêncio!
– Mais rápido – Paul sussurrou.
Ela assentiu, sabendo que ele não veria o gesto, mas
precisou daquilo para dizer a si mesma que era necessário
exigir ainda mais dos músculos já levados ao limite... o
movimento nada natural...
O paredão diante deles, e a segurança que representava,
erguia-se rumo às estrelas, e Paul viu uma superfície plana de
areia lisa estendendo-se na base. Passou para ela, tropeçou de
cansaço e endireitou-se com a extensão involuntária de um dos
pés.
Um estrondo ressonante sacudiu a areia ao redor deles.
Paul cambaleou dois passos para o lado.
– Bum! Bum!
– Areia de percussão! – Jéssica silvou.
Paul recuperou o equilíbrio. Com um olhar abrangente, ele
assimilou a areia ao redor deles, o escarpamento rochoso que
estava, talvez, a duzentos metros de distância.
Atrás deles, ouviu-se um silvo, como se fosse o vento, como
uma contracorrente sem água.
– Corra! – Jéssica gritou. – Paul, corra!
Correram.
O som de tambores retumbou sob seus pés. Em seguida,
estavam fora da areia de percussão e tinham entrado no
cascalho. Durante algum tempo, a corrida foi um alívio para os
músculos, que doíam devido ao uso sem ritmo e nada familiar.
Aquele movimento era possível entender. Ali havia ritmo. Mas
a areia e o cascalho prendiam-lhes os pés. E o silvo do verme
cada vez mais próximo era como o som de uma tempestade que
crescesse em volta deles.
Jéssica tropeçou e caiu de joelhos. Só conseguia pensar no
cansaço, no som e no pavor.
Paul a colocou de pé.
Continuaram correndo, de mãos dadas.
Um poste fino brotava da areia mais adiante. Passaram
por ele, viram outro.
A mente de Jéssica só registrou a existência dos postes
depois de terem passado por eles.
Havia mais um, cuja superfície erodida pelo vento saía de
uma rachadura na rocha.
E mais um.
Rocha!
Foi com os pés que ela sentiu a pedra, o impacto da
superfície complacente, e o apoio mais firme renovou-lhe as
forças.
Uma fenda profunda estendia sua sombra vertical para
cima e para dentro do penhasco à frente deles. Dispararam
naquela direção e meteram-se na abertura estreita.
Atrás deles, o som da passagem do verme cessou.
Jéssica e Paul se viraram e olharam para o deserto lá fora.
Onde as dunas começavam, talvez a uns cinquenta metros
de distância, ao pé de uma praia rochosa, uma curva cinzenta e
prateada emergiu do deserto, lançando rios e cascatas de areia
e pó por toda parte. Ergueu-se mais alto, transformou-se numa
boca gigantesca e ávida. Era um buraco negro e redondo, cujas
bordas cintilavam à luz da lua.
A boca serpeou na direção da fenda estreita onde Paul e
Jéssica se acotovelavam. O cheiro de canela urrava em suas
narinas. O luar cintilava nos dentes cristalinos.
Para a frente e para trás moveu-se a boca imensa.
Paul prendeu a respiração.
Jéssica se agachou, sem tirar os olhos do monstro.
Foi necessário recorrer à concentração intensa de seu
treinamento de Bene Gesserit para reprimir o pavor primitivo,
abrandar na memória racial um medo que ameaçava tomar
toda a sua mente.
Paul sentiu uma espécie de entusiasmo. Em algum
instante ainda recente, ele tinha atravessado uma barreira
temporal e entrado em território desconhecido. Sentia as
trevas adiante, nada se revelava a seu olho interior. Era como
se um de seus passos o tivesse mergulhado num poço... ou no
cavado de uma onda, no qual o futuro era invisível. A paisagem
havia passado por uma mudança profunda.
Em vez de assustá-lo, a sensação de treva-tempo
estimulou a hiperaceleração de seus outros sentidos. Viu-se
registrando cada aspecto disponível da coisa que se erguia da
areia e o buscava. A boca da criatura devia ter uns oitenta
metros de diâmetro... dentes cristalinos, com a forma curva
das dagacrises, cintilavam ao longo de toda a borda... a
baforada de canela, aldeídos impalpáveis... ácidos...
O verme obliterou o luar ao roçar a rocha acima deles. Uma
chuva de pedrinhas e areia caiu em cascata dentro do
esconderijo estreito.
Paul usou o corpo para empurrar a mãe mais para trás.
Canela!
O cheiro o inundava.
O que o verme tem a ver com a especiaria, com o mélange?,
ele se perguntou. E lembrou-se de Liet-Kynes deixando
escapar uma referência velada a uma associação entre os
vermes e a especiaria.
– Barrrruuuum!
Era como uma trovoada seca vinda de muito longe, à
direita deles.
E de novo:
– Barrrruuuum!
O verme voltou para a areia, ficou ali momentaneamente,
com os dentes cristalinos a entretecer clarões enluarados.
– Tum! Tum! Tum! Tum!
Outro martelador!, pensou Paul.
Mais uma vez, a coisa soou ao longe, à direita deles.
Um estremecimento percorreu o verme. O monstro se
afastou ainda mais, areia adentro. Restava apenas a curva
superior, em forma de monte, semelhante a meia boca de sino,
a curva de um túnel que se elevava acima das dunas.
Areia raspando.
A criatura afundou mais ainda, retirando-se, fazendo a
volta. Tornou-se um monte encapelado de areia que se afastou,
descrevendo uma curva e atravessando uma depressão
oblonga nas dunas.
Paul saiu da fenda, observou a onda de areia retroceder
pelos ermos, em direção ao chamado do novo martelador.
Jéssica o seguiu e escutou:
– Tum... tum... tum... tum... tum...
O ruído cessou imediatamente.
Paul pegou o tubo de seu trajestilador e bebeu um pouco
de água reaproveitada.
Jéssica concentrou-se na ação dele, mas sua mente
parecia vazia por causa da fadiga e das sequelas do pavor.
– Foi mesmo embora? – ela sussurrou.
– Alguém o chamou – disse Paul. – Os fremen.
Ela sentiu que começava a se recuperar.
– Era tão grande!
– Não tão grande quanto aquele que pegou nosso tóptero.
– Tem certeza de que foram os fremen?
– Usaram um martelador.
– Por que eles nos ajudariam?
– Pode ser que não estivessem nos ajudando. Pode ser que
estivessem simplesmente chamando um verme.
– Por quê?
Uma resposta pairava à beira de sua consciência, mas
recusou-se a aparecer. Ele teve uma visão em sua mente: algo a
ver com os bastões farpados e extensíveis dentro da mochila,
os “ganchos de criador”.
– Por que chamariam um verme? – Jéssica perguntou.
Um sopro de medo roçou a mente dele, e Paul obrigou-se a
dar as costas à mãe, a olhar para o alto do penhasco.
– É melhor encontrarmos uma maneira de subir antes de
romper o dia. – Ele apontou. – Aqueles postes pelos quais
passamos... existem mais deles.
Ela olhou, seguindo a linha da mão dele, viu os postes –
marcos arranhados pelo vento –, divisou a sombra de uma
saliência estreita que ia serpenteando e entrando numa fenda
lá no alto, acima deles.
– Marcam um caminho para subir o penhasco – disse Paul.
Acomodou a mochila nos ombros, foi até a base da saliência e
começou a escalar.
Jéssica aguardou um momento, descansando,
recuperando as forças; depois seguiu o filho.
Para o alto os dois seguiram, acompanhando os postes de
referência até a saliência se reduzir a um rebordo estreito à
boca de uma fenda escura.
Paul inclinou a cabeça para perscrutar as sombras. Sentia
como era precário o equilíbrio de seus pés naquela saliência
delgada, mas obrigou-se a ser cauteloso. Viu apenas trevas
dentro da fenda, que se estendia ao longe e para cima e se abria
para as estrelas no topo. Procurou com a audição, encontrou
apenas os sons esperados: uma diminuta cascata de areia, o
brrr de um inseto, o tropel de uma criaturazinha em fuga.
Experimentou a escuridão dentro da fenda com um dos pés,
encontrou rocha abaixo de uma superfície coberta de areia.
Lentamente, ele foi contornando o canto e fez sinal para sua
mãe acompanhá-lo. Agarrou uma ponta solta da túnica de
Jéssica e a ajudou na travessia.
Olharam para cima, para a luz das estrelas emolduradas
por dois rebordos de rocha. Paul enxergava a mãe ao lado dele
como um borrão acinzentado de movimento.
– Se ao menos pudéssemos nos arriscar a acender uma luz
– ele sussurrou.
– Temos outros sentidos além da visão – ela disse.
Paul deslizou um dos pés para a frente, deslocou seu peso
para o novo ponto de apoio e, com o outro pé, sondou o chão e
encontrou uma obstrução. Ergueu o pé, encontrou um degrau e
subiu nele. Estendeu a mão para trás, sentiu o braço da mãe,
puxou-lhe a túnica para que ela o seguisse.
Mais um passo.
– Acho que continua assim até o topo – ele sussurrou.
Degraus rasos e regulares, Jéssica pensou. Feitos pelo
homem, sem dúvida alguma.
Ela seguiu os passos obscuros de Paul, sentindo os
degraus. As paredes de rocha estreitaram até quase roçar-lhe
os ombros. Os degraus terminavam numa garganta fendida,
com uns vinte metros de comprimento e piso nivelado, que se
abria para uma bacia rasa e enluarada.
Paul saiu da fenda e entrou na bacia, sussurrando:
– Que belo lugar.
Jéssica só fez olhar, em muda concordância, desde sua
posição um passo atrás dele.
Apesar do cansaço, da irritação dos recatas e obturadores
nasais e do confinamento do trajestilador, apesar do medo e do
desejo agonizante de descansar, a beleza daquela bacia
dominou-lhe os sentidos, obrigando-a a parar e admirá-la.
– É como a terra das fadas – Paul sussurrou.
Jéssica concordou com a cabeça.
Alastrando-se ao longe, diante dela, estendia-se a
vegetação do deserto: arbustos, cactos minúsculos, moitas de
folhagem, e tudo tremeluzia ao luar. As paredes circulares
eram escuras a sua esquerda, açucaradas pela lua à direita.
– Deve ser dos fremen – disse Paul.
– Tantas plantas assim não conseguiriam sobreviver sem
pessoas por perto – ela concordou. Destampou o tubo das
bolsas coletoras de seu trajestilador e sorveu. A água morna e
ligeiramente acre desceu-lhe pela garganta. Notou como aquilo
a revigorava. A tampa do tubo raspou de encontro a flocos de
areia quando Jéssica a devolveu a seu lugar.
Um movimento chamou a atenção de Paul: à direita dele,
no piso da bacia circular logo abaixo deles. Dirigiu seu olhar lá
para baixo, atravessando os fustetes e as ervas até uma
superfície arenosa de luar, grossa e em forma de cunha,
tomada por um upa-pula, salta, pula-pincha de movimentos
diminutos.
– Camundongos! – ele exclamou baixinho.
Pula-pincha-pincha!, faziam eles, entrando e saindo das
sombras.
Uma coisa caiu sem fazer ruído diante dos olhos deles e no
meio dos camundongos. Ouviu-se um grito agudo e fino, um
bater de asas, e uma ave cinzenta e espectral voou para longe,
cruzando a bacia, levando uma sombra escura e pequenina nas
garras.
Precisávamos desse lembrete, Jéssica pensou.
Paul continuou a olhar fixamente para o outro lado da
bacia. Inalou, sentiu o cheiro em contralto e levemente
pungente de sálvia que galgava a noite. A ave de rapina...
Pensou nela como a doutrina daquele deserto. A ave trouxera
uma quietude tão muda à bacia que era quase possível ouvir o
luar azul e leitoso passar pelas carnegíeas sentinelas e as
castillejas espinhosas. Havia ali um zumbido luminoso, de
harmonia mais básica que qualquer outra música do universo
de Paul.
– É melhor procurarmos um lugar para armar a tenda – ele
disse. – Amanhã podemos tentar encontrar os fremen que...
– Muitos invasores se arrependem de encontrar os
fremen!
Era uma voz masculina e encorpada que cortou as
palavras de Paul, desfazendo o momento. A voz veio do alto,
acima deles, e da direita.
– Por favor, não corram, invasores – disse a voz quando
Paul fez menção de recuar para a garganta. – Se correrem, só
farão desperdiçar a água de seus corpos.
Querem apenas a água de nossa carne!, Jéssica pensou.
Seus músculos ignoraram toda a fadiga, colocaram-se
naturalmente em estado de prontidão máxima, sem externar
nada. Ela determinou exatamente a localização da voz e
pensou: Que capacidade de dissimulação! Eu não o ouvi chegar.
E percebeu que o dono daquela voz se permitira produzir
apenas os pequenos sons, os ruídos naturais do deserto.
Uma outra voz chamou desde a borda da bacia, à esquerda
deles.
– Não demore, Stil. Pegue a água deles e vamos embora.
Temos pouco tempo antes do amanhecer.
Paul, não tão condicionado quanto a mãe à resposta de
emergência, envergonhou-se por ter ficado paralisado e
tentado recuar, por ter obliterado suas habilidades com o
pânico momentâneo. Obrigou-se, então, a obedecer aos
ensinamentos de Jéssica: relaxar, depois simular o
relaxamento, em seguida a tensão contida dos músculos, capaz
de se lançar em qualquer direção, como uma vergastada.
Ainda assim, ele sentia uma pontada de medo em seu
íntimo, e sabia qual era a origem. Aquele era um momento
cego, e não um futuro que ele já tivesse visto... E foram
surpreendidos por fremen selvagens, cujo único interesse era a
água contida na carne de dois corpos sem escudos que os
protegessem.
Essa adaptação religiosa dos fremen,
portanto, é a fonte do que hoje
reconhecemos como “os Pilares do
Universo”, cujos Qizara Tafwid estão
entre nós, portando sinais, provas e
profecias. Eles nos trazem a fusão mística
arrakina, cuja profunda beleza é
exemplificada pela música comovente e
fundamentada nas formas antigas, mas
carimbadas com o novo despertar. Quem
é que nunca ouviu nem se comoveu
profundamente com “O hino do velho”?
Impeli meus pés pelo deserto
Cuja miragem tremulava feito multidão.
Ávido de glória, sôfrego de perigos,
Vaguei pelos horizontes de al-Kulab,
Vendo o tempo arrasar as montanhas,
Em sua busca, sequioso de mim.
E vi os pardais chegarem rápido,
Mais audazes que um lobo no ataque.
Alastraram-se pela árvore de minha
juventude.
Ouvi o bando em meus galhos
E fui apanhado em seus bicos e garras!
– excerto de “Despertar de Arrakis”, da princesa Irulan
O homem se arrastava sobre o topo de uma duna. Era um
cisco apanhado no fulgor do sol do meio-dia. Vestia os restos
rasgados de um manto jubba, e os farrapos expunham sua pele
ao calor. O capuz tinha sido arrancado do manto, mas o homem
havia feito um turbante com uma tira de tecido. Mechas de
cabelos ruivos saíam do turbante e faziam par com a barba rala
e as sobrancelhas grossas. Abaixo dos olhos de azul sobre azul,
restos de uma mancha escura espalhavam-se até as maçãs do
rosto. Uma depressão emaranhada sobre a barba e o bigode
mostrava onde o tubo de um trajestilador havia marcado seu
trajeto do nariz às bolsas coletoras.
O homem se deteve, meio corpo sobre o topo da duna, com
os braços estendidos descendo pela face de deslizamento. O
sangue havia coagulado em suas costas, nos braços e pernas.
Manchas de areia cinza-amarelada aderiam aos ferimentos.
Lentamente, ele colocou as mãos sob o corpo, tomou impulso
para se levantar e ficou ali, cambaleando. E até mesmo naquele
ato quase aleatório restava um traço dos movimentos antes
tão precisos.
– Eu sou Liet-Kynes – disse, dirigindo-se ao horizonte
inane, e sua voz era uma caricatura rouca da força que antes
conhecera. – Sou o Planetólogo de Sua Majestade Imperial –
sussurrou –, o ecólogo planetário de Arrakis. Sou o
administrador desta terra.
Ele tropeçou, caiu de lado na superfície dura da face de
barlavento. Suas mãos se enterraram debilmente na areia.
Sou o administrador desta areia, ele pensou.
Percebeu que quase delirava, que devia se enterrar na
areia, encontrar a subcamada relativamente fresca e cobrir-se
com ela. Mas ainda sentia o mau cheiro, os ésteres quase doces
de um bolsão de pré-especiaria em algum lugar sob a areia.
Conhecia, melhor do que qualquer outro fremen, o perigo
inerente àquele fato. Se conseguia sentir o cheiro da massa
pré-especiaria, isso significava que os gases nas profundezas
da areia estavam prestes a atingir uma pressão explosiva. Ele
tinha de sair dali.
Suas mãos desenharam rabiscos fracos na face da duna.
Um pensamento se alastrou em sua mente, claro e
distinto: A verdadeira riqueza de um planeta está em sua
paisagem, na maneira como participamos dessa fonte
fundamental da civilização: a agricultura.
E pensou como era estranho que a mente, havia tanto
tempo fixa num único curso, não conseguisse sair dele. Os
soldados Harkonnen o deixaram ali, sem água nem
trajestilador, pensando que um verme o pegaria se o deserto
não o fizesse. Acharam divertido deixá-lo vivo para morrer aos
poucos nas mãos impessoais de seu planeta.
Os Harkonnen sempre acharam difícil matar os fremen, ele
pensou. Não morremos facilmente. Eu deveria estar morto...
Logo estarei morto... mas não consigo deixar de ser um ecólogo.
– A função mais elevada da ecologia é a compreensão das
consequências.
A voz o abalou, porque ele a reconheceu, porque sabia que
se tratava da voz de um morto. Era a voz de seu pai, o
planetólogo de Arrakis antes dele: seu pai, falecido havia tanto
tempo, morto no desmoronamento de uma caverna na Bacia de
Gesso.
– Meteu-se numa bela encrenca, filho – disse o pai. – Devia
saber quais seriam as consequências se tentasse ajudar o filho
daquele duque.
Estou delirando, pensou Kynes.
A voz parecia vir da direita. Kynes esfregou o rosto na
areia, virando-se para olhar naquela direção: nada, exceto um
trecho recurvo de duna que o calor fazia dançar no fulgor
absoluto do sol.
– Quanto maior o número de formas de vida num sistema,
mais nichos a vida terá – disse o pai. E a voz agora vinha da
esquerda e de trás dele.
Por que ele fica mudando de lugar?, Kynes se perguntou.
Ele não quer que eu o veja?
– A vida aprimora a capacidade do ambiente de sustentar
a vida – disse o pai. – A vida disponibiliza mais rapidamente os
nutrientes necessários. Introduz mais energia no sistema por
meio da formidável interação química entre os organismos.
Por que ele insiste nesse assunto?, Kynes se perguntou. Eu
já sabia disso antes de completar 10 anos.
Os gaviões do deserto – comedores de carniça, como a
maioria das criaturas silvestres daquela terra – começaram a
sobrevoá-lo em círculos. Kynes viu uma sombra passar perto
de sua mão, esforçou-se para virar ainda mais a cabeça e olhar
para cima. As aves eram um borrão contra o céu azul-prateado:
pontinhos distantes de fuligem que flutuavam acima dele.
– Somos generalistas – disse o pai. – Não é possível traçar
linhas definidas em torno de problemas planetários. A
planetologia é uma ciência que se faz sob medida.
O que está tentando me dizer?, Kynes imaginou. Alguma
consequência que eu deixei de ver?
Seu rosto voltou a afundar na areia quente, e ele sentiu o
odor de rocha queimada sob os gases da pré-especiaria. Em
algum recesso de lógica de sua mente, formou-se um
pensamento: As aves que me sobrevoam comem carniça. Talvez
alguns de meus fremen as avistem e venham investigar.
– Para o planetólogo prático, o instrumento mais
importante são os seres humanos – disse o pai. – É preciso
cultivar o conhecimento ecológico entre as pessoas. Por isso
criei essa forma inteiramente nova de notação ecológica.
Está repetindo coisas que me disse quando eu era criança,
Kynes pensou.
Começou a sentir frio, mas aquele recesso de lógica em sua
mente lhe disse: O sol está a pino. Você não tem trajestilador e
está quente; o sol está consumindo a umidade de seu corpo.
Seus dedos enterraram-se debilmente na areia.
Não podiam ao menos ter me deixado um trajestilador?!
– A presença de umidade no ar ajuda a evitar a evaporação
acelerada da água dos corpos vivos – disse o pai.
Por que ele continua a repetir o óbvio?, Kynes quis saber.
Tentou pensar na umidade do ar: relva cobrindo aquela
duna... água livre em algum lugar abaixo dele, um longo qanat
de água corrente a céu aberto, exceto nas iluminuras. Água
livre... água de irrigação... eram necessários cinco mil metros
cúbicos de água para irrigar um hectare de terra a cada
estação de cultivo, ele se lembrou.
– Nossa primeira meta em Arrakis – disse o pai – será a
província das pastagens. Começaremos com essas gramíneas
psamófitas mutantes. Quando tivermos a umidade presa nas
pastagens, passaremos a criar florestas de terras altas, depois
alguns corpos d’água a céu aberto – pequenos, no início – e
situados nos trajetos dos ventos predominantes, com
captadores e precipitadores de umidade distribuídos por esses
trajetos para recapturar o que for roubado pelo vento. Temos
de criar um verdadeiro siroco – um vento úmido –, mas nunca
nos livraremos da necessidade de captadores de vento.
Sempre me dando aulas, pensou Kynes. Por que não cala a
boca? Não vê que estou morrendo?
– Você também morrerá – disse o pai – se não sair de cima
dessa bolha que está se formando neste exato momento nas
profundezas. Ela está lá, e você sabe disso. Está sentindo o
cheiro dos gases pré-especiaria. Sabe que os criadorezinhos
estão começando a liberar um pouco de sua água dentro da
massa.
Pensar na água abaixo dele era enlouquecedor. Ele a
imaginava agora – aprisionada nos estratos de rocha porosa
pelos criadorezinhos coriáceos, parte vegetais, parte animais –
e a fina ruptura que vertia uma corrente da água mais pura,
límpida, líquida e refrescante dentro de...
Uma massa pré-especiaria!
Inalou, sentindo a doçura rançosa. O odor agora era muito
mais forte.
Kynes obrigou-se a ficar de joelhos, ouviu o grito de uma
ave, o bater apressado de asas.
Este é o deserto da especiaria, ele pensou. Deve haver
fremen por perto, mesmo ao sol. Certamente devem ter visto as
aves e virão investigar.
– Deslocar-se pela paisagem é uma necessidade da vida
animal – disse o pai. – Os povos nômades seguem a mesma
necessidade. Os padrões de deslocamento se adaptam às
necessidades físicas de água, alimento, minerais. Temos de
controlar esses padrões agora, alinhá-los a nossos objetivos.
– Cale a boca, velho – Kynes resmungou.
– Temos de fazer em Arrakis uma coisa que nunca se
tentou fazer com um planeta inteiro – disse o pai. – Temos de
usar o homem como uma força ecológica construtiva,
introduzindo formas de vida adaptadas a partir de similares da
Terra, um vegetal aqui, um animal ali, um homem acolá, para
transformar o ciclo da água, para criar um novo tipo de
paisagem.
– Cale-se! – Kynes crocitou.
– Foram os padrões de deslocamento que nos forneceram
os primeiros indícios da relação entre os vermes e a especiaria
– disse o pai.
Um verme, pensou Kynes, tomado por uma onda de
esperança. É certo que um criador aparecerá quando esta bolha
estourar. Mas não tenho ganchos. Como poderei montar um dos
grandes criadores sem os ganchos?
Dava para sentir a frustração minando a pouca força que
lhe restava. A água tão perto: coisa de cem metros abaixo dele;
um verme que certamente viria, e ele sem os recursos para
mantê-lo na superfície e usá-lo.
Kynes tombou para a frente, sobre a areia, voltando à
depressão rasa definida por seus movimentos. Sentiu a areia
quente contra a face esquerda, mas a sensação era remota.
– O ambiente arrakino incorporou-se ao padrão evolutivo
das formas de vida nativas – disse o pai. – É tão estranho que
pouquíssimas pessoas tenham deixado de se concentrar na
especiaria tempo suficiente para se admirar com o equilíbrio
quase ideal de nitrogênio, oxigênio e gás carbônico que se
mantém aqui, mesmo com a ausência de grandes áreas de
cobertura vegetal. A esfera de energia do planeta está aí para
quem quiser vê-la e compreendê-la: um processo implacável,
mas um processo mesmo assim. Há nele um espaço vazio?
Então alguma coisa ocupará esse vazio. A ciência é feita de
tantas coisas que parecem óbvias depois de explicadas. Eu
sabia que o criadorzinho estava lá, nas profundezas da areia,
muito antes de ter visto um.
– Por favor, pai, pare de me dar aulas – Kynes sussurrou.
Um gavião pousou na areia perto da mão estendida de
Kynes. Ele viu a ave fechar as asas e inclinar a cabeça para fitá-
lo. Reuniu energia suficiente para resmungar diante da ave,
que deu dois passos saltitantes para longe, mas continuou a
olhar para ele.
– Os homens e suas obras foram uma doença na superfície
de seus planetas até agora – disse o pai. – A natureza costuma
compensar as doenças, removê-las ou isolá-las, incorporá-las
ao sistema à sua própria maneira.
O gavião baixou a cabeça, estendeu as asas, voltou a fechá-
las. Transferiu sua atenção para a mão estendida de Kynes.
Ele descobriu que não tinha mais forças para resmungar
diante da ave.
– O sistema histórico de pilhagem e extorsão mútuas tem
um fim aqui em Arrakis – disse o pai. – Não se pode seguir
roubando aquilo de que se precisa sem pensar naqueles que
virão depois. As características físicas de um planeta estão
escritas em seu registro econômico e político. Temos o registro
diante de nós, e nosso curso é óbvio.
Ele não conseguia parar com as aulas, pensou Kynes.
Aulas, aulas, aulas: sempre dando aulas.
O gavião saltitou mais um passo para perto da mão
estendida de Kynes, virou a cabeça, primeiro para um lado,
depois para o outro, examinando a pele exposta.
– Arrakis é um planeta de uma cultura só – disse o pai. –
Uma cultura. Sustenta uma classe dominante que vive como
viveram as classes dominantes de todas as épocas, ao passo
que, abaixo delas, uma massa semi-humana em semiescravidão
subsiste de restos. São as massas e os restos que tomam nossa
atenção. São muito mais valiosos do que um dia se chegou a
suspeitar.
– Estou ignorando você, pai – Kynes sussurrou. – Vá
embora.
E ele pensou: Certamente deve haver alguns de meus
fremen por perto. Não há como não verem as aves que me
sobrevoam. Eles virão investigar, nem que seja apenas para ver
se há umidade disponível.
– As massas de Arrakis saberão que trabalhamos para
fazer a terra se encher de água – disse o pai. – A maioria,
naturalmente, só terá uma compreensão quase mística de
como planejamos fazer isso. Muitos, sem entender o problema
da razão de massa proibitiva, podem até pensar que vamos
trazer a água de algum outro planeta que a tem em
abundância. Que pensem o que quiserem, contanto que
acreditem em nós.
Daqui a um minuto eu vou me levantar e dizer o que penso
dele, Kynes pensou. Ficar aí me dando aulas em vez de me
ajudar.
A ave deu mais um salto para perto da mão estendida de
Kynes. Outros dois gaviões pousaram na areia atrás do
primeiro.
– A religião e a lei de nossas massas devem ser a mesma
coisa – disse o pai. – A desobediência tem de ser um pecado e
exigir castigos religiosos. Isso trará o duplo benefício de gerar
maior obediência e maior coragem. Entenda, não podemos
depender tanto da coragem dos indivíduos, e sim da coragem
de uma população inteira.
Onde está minha população agora que mais preciso dela?,
Kynes pensou. Reuniu toda a sua força e moveu a mão na
direção do gavião mais próximo, uma distância equivalente à
largura de um dedo. A ave saltitou para trás, colocando-se
entre os companheiros, e todos os três prepararam-se para
alçar voo.
– Nosso cronograma alcançará a estatura de um fenômeno
natural – disse o pai. – A vida de um planeta é um tecido vasto e
de trama firme. As alterações na vegetação e na vida animal
serão determinadas, a princípio, pelas forças físicas brutas que
manipulamos. Mas, à medida que se estabelecerem, nossas
mudanças irão se tornar influências controladoras por conta
própria, e teremos de lidar com isso também. Não se esqueça,
porém, de que precisamos controlar apenas três por cento da
energia da superfície – somente três por cento – para fazer a
estrutura inteira pender para nosso sistema autossustentado.
Por que não está me ajudando?, Kynes quis saber. Sempre a
mesma coisa: quando mais preciso, você me abandona. Ele quis
virar a cabeça, olhar na direção de onde vinha a voz do pai,
olhar feio para o velho. Os músculos se recusaram a obedecer.
Kynes viu o gavião se mover. A ave se aproximou da mão
dele, um passo cauteloso por vez, enquanto os companheiros
aguardavam, fingindo indiferença. O gavião se deteve à
distância de um salto da mão dele.
Uma lucidez profunda tomou a mente de Kynes. Ele viu,
mais do que de repente, um potencial que seu pai nunca tinha
vislumbrado para Arrakis. As possibilidades daquele caminho
diferente o inundaram.
– Não poderia acontecer um desastre mais terrível para
sua gente do que cair nas mãos de um Herói – disse o pai.
Está lendo minha mente!, Kynes pensou. Ora... que seja.
As mensagens já foram enviadas para minhas vilas sietch,
ele pensou. Nada será capaz de detê-los. Se o filho do duque
estiver vivo, eles irão encontrá-lo e protegê-lo como ordenei.
Podem se livrar da mulher, da mãe dele, mas salvarão o menino.
O gavião saltitou e chegou perto suficiente para bicar a
mão dele. Inclinou a cabeça para examinar a carne letárgica.
Abruptamente, a ave se empertigou, esticou a cabeça para
cima e, com um único grito agudo, saltou para o ar e se afastou,
descrevendo uma curva nas alturas, seguida de perto pelos
companheiros.
Eles vieram!, Kynes pensou. Meus fremen me encontraram!
Então ele ouviu o ribombar da areia.
Todos os fremen conheciam aquele som, eram capazes de
distingui-lo imediatamente dos ruídos produzidos pelos
vermes ou por outras criaturas do deserto. Em algum lugar
abaixo dele, a massa pré-especiaria tinha acumulado a água e a
matéria orgânica dos criadorezinhos em quantidade suficiente,
atingira o estágio crítico de crescimento desenfreado. Uma
bolha gigantesca de dióxido de carbono estava se formando
nas profundezas da areia, subindo num “sopro” enorme, com
um remoinho de pó no centro. Estava prestes a trocar o que
tinha se formado nas profundezas da areia por qualquer coisa
que estivesse na superfície.
Os gaviões circulavam no alto, externando sua frustração
aos gritos. Sabiam o que estava acontecendo. Todas as
criaturas do deserto sabiam.
E eu sou uma criatura do deserto, Kynes pensou. Está me
vendo, pai? Sou uma criatura do deserto.
Sentiu que a bolha o erguia, sentiu-a romper, que o
remoinho de pó o engolfava, arrastando-o para baixo, para a
frialdade das trevas. Por um momento, a sensação de frescor e
umidade foram um alívio e uma bênção. Em seguida, enquanto
seu planeta o matava, ocorreu a Kynes que seu pai e todos os
outros cientistas estavam enganados, que os princípios mais
persistentes do universo eram o acidente e o erro.
Até mesmo os gaviões sabiam que era verdade.
Profecia e presciência: como é possível
colocá-las à prova diante de perguntas
sem respostas? Pense nisto: quanto se
deve à verdadeira previsão da “forma de
onda” (nome que Muad’Dib dava a sua
imagem-visão) e quanto se deve ao
profeta que vai modelando o futuro para
se encaixar na profecia? E quanto aos
harmônicos inerentes ao ato profético?
Será que o profeta vê o futuro? Ou será
que enxerga uma linha de fraqueza, uma
falha ou rachadura que ele possa partir
com palavras ou decisões, da mesma
maneira que um cortador de diamantes
estilhaça sua pedra com o golpe de uma
faca?
– “Reflexões particulares a respeito de Muad’Dib”, da princesa
Irulan

“Pegue a água deles”, dissera o homem que havia gritado


no escuro. E Paul resistiu ao medo, olhou de relance para a
mãe. Seus olhos treinados viram que ela estava pronta para o
combate, notaram a tensão expectante dos músculos dela.
– Seria lamentável ter de destruir vocês de imediato –
disse a voz acima deles.
Esse é o que falou primeiro, pensou Jéssica. São pelo menos
dois: um a nossa direita, outro à esquerda.
– Cignoro hrobosa sukares hin mange la pchagavas doi me
kamavas na beslas lele pal hrobas!
Foi o homem à direita deles, que gritava desde o outro lado
da bacia.
Para Paul, as palavras eram incompreensíveis, mas, devido
a seu treinamento de Bene Gesserit, Jéssica reconheceu o
idioma. Era chakobsa, uma das antigas línguas de caça, e o
homem acima deles estava dizendo que talvez fossem os
estrangeiros que procuravam.
No silêncio repentino que se seguiu à voz que gritara, a
face em aro da segunda lua – levemente azul-marfim – surgiu
sobre as pedras do outro lado da bacia, brilhante e curiosa.
Sons de passos rápidos vieram das pedras – acima e de
ambos os lados... movimentos obscuros ao luar. Muitos vultos
correram pelas sombras.
Uma tropa inteira!, pensou Paul, com uma angústia
repentina.
Um homem alto e de albornoz mosqueado se apresentou
diante de Jéssica. Seu filtro bucal havia sido atirado para um
lado, para que pudesse falar com clareza, revelando uma barba
densa à luz indireta da lua, mas o rosto e os olhos continuavam
ocultos pela aba do capuz.
– O que temos aqui: djim ou seres humanos? – ele
perguntou.
E Jéssica ouviu a zombaria sincera na voz dele, permitiu-se
uma tênue esperança. Era a voz de comando, a voz que os havia
desconcertado com sua intromissão no meio da noite.
– Seres humanos, eu garanto – disse o homem.
Jéssica sentiu mais do que viu a faca escondida numa das
pregas da túnica do homem. Ela se permitiu um momento
amargo de arrependimento pelo fato de ela e Paul não terem
escudos.
– Vocês também sabem falar? – perguntou o homem.
Jéssica colocou em sua atitude e em sua voz toda a
arrogância majestosa à sua disposição. Era urgente responder,
mas ela não tinha ouvido o homem falar o suficiente para
garantir que tivesse registrado sua cultura e suas fraquezas.
– Quem nos surpreende feito criminosos no meio da noite?
– ela indagou.
A cabeça coberta pelo capuz do albornoz demonstrou
tensão ao se virar repentinamente, depois um relaxamento
vagaroso que revelava muita coisa. O homem tinha bom
autocontrole.
Paul se afastou da mãe para fazer deles alvos distintos e
dar a ambos um pouco mais de espaço para agir.
A cabeça encapuzada virou-se quando Paul se moveu,
expondo uma fatia de rosto ao luar. Jéssica viu um nariz
pronunciado, um olho cintilante – escuro, tão escuro aquele
olho, sem nada de branco –, um bigode castanho-escuro e
voltado para cima.
– Um filhote adorável – disse o homem. – Se estão fugindo
dos Harkonnen, talvez sejam bem-vindos entre nós. O que foi,
menino?
As possibilidades passaram rapidamente pela mente de
Paul: Mentira? Verdade? Era necessário tomar uma decisão
imediata.
– Por que vocês acolheriam fugitivos? – ele indagou.
– Um menino que pensa e fala feito homem – disse o
homem alto. – Bem, agora, respondendo a sua pergunta, meu
jovem wali, sou um daqueles que não pagam o fai, o tributo em
água, para os Harkonnen. É por isso que talvez eu acolha um
fugitivo.
Ele sabe quem somos nós, Paul pensou. Sua voz oculta
alguma coisa.
– Sou Stilgar, o fremen – disse o homem alto. – Isso vai
soltar sua língua, menino?
É a mesma voz, pensou Paul. E lembrou-se do Conselho e
daquele homem que viera buscar o corpo de um amigo morto
pelos Harkonnen.
– Conheço você, Stilgar – disse Paul. – Eu estava com meu
pai no Conselho quando você veio buscar a água de seu amigo.
Levou com você um dos homens de meu pai, Duncan Idaho:
uma troca de amigos.
– Idaho nos abandonou e voltou para seu duque – disse
Stilgar.
Jéssica ouviu o tom de desagrado na voz dele e continuou
preparada para atacar.
A voz que vinha das rochas acima deles gritou:
– Estamos perdendo tempo aqui, Stil.
– Este é o filho do duque – Stilgar vociferou. – Sem dúvida,
é ele quem Liet nos mandou procurar.
– Mas... um menino, Stil.
– O duque era um homem, e este rapaz usou um
martelador – disse Stilgar. – Foi corajosa a travessia que fez, no
caminho de shai-hulud.
E Jéssica ouviu que ele a excluía de seus pensamentos. Já
teria chegado ao veredito?
– Não há tempo para colocá-lo à prova – protestou a voz
acima deles.
– Mas ele poderia ser a Lisan al-Gaib – disse Stilgar.
Ele procura um presságio!, Jéssica pensou.
– Mas a mulher – disse a voz acima deles.
Jéssica voltou a se preparar. Havia morte naquela voz.
– Sim, a mulher – disse Stilgar. – E sua água.
– Conhece a lei – disse a voz que vinha das pedras. –
Aqueles que não conseguem conviver com o deserto...
– Fique quieto – disse Stilgar. – Os tempos mudam.
– Isso foi uma ordem de Liet? – perguntou a voz que vinha
das pedras.
– Você ouviu a voz do ciélago, Jamis – disse Stilgar. – Por
que está me pressionando?
E Jéssica pensou: Ciélago! A pista do idioma abriu
caminhos largos para a compreensão: era a língua da Ilm e
Fiqh, e ciélago significava morcego, um mamífero voador e de
pequeno porte. Voz do ciélago: tinham recebido uma
mensagem distrans para procurar Paul e ela mesma.
– Só não quero que esqueça seus deveres, Stilgar, meu
amigo – disse a voz acima deles.
– Meu dever é a força da tribo – disse Stilgar. – Esse é meu
único dever. Não preciso que ninguém me lembre disso. Este
menino-homem me interessa. Ele tem a pele firme. Foi criado
com muita água. Foi criado longe do pai sol. Não tem os olhos
dos Ibad. Mas não fala nem age como um fracote das caldeiras.
Nem seu pai agia assim. Como pode ser?
– Não podemos ficar aqui a noite inteira discutindo – disse
a voz que vinha das pedras. – Se uma patrulha...
– Não vou repetir para ficar quieto, Jamis – disse Stilgar.
O homem acima deles continuou em silêncio, mas Jéssica o
ouviu se mover, atravessando de um salto uma garganta e
descendo até o chão da bacia à esquerda deles.
– A voz do ciélago indicou que seria interessante para nós
salvar vocês dois – disse Stilgar. – Vejo possibilidade neste
menino-homem forte: ele é jovem e capaz de aprender. Mas e
você, mulher? – Ele fitou Jéssica.
Agora tenho sua voz e seu padrão registrados, pensou
Jéssica. Eu poderia controlá-lo com uma palavra, mas ele é um
homem forte... muito mais valioso para nós se permanecer
incisivo e com plena liberdade para agir. Vamos ver.
– Sou a mãe deste menino – Jéssica disse. – Em parte, a
força que você admira nele é resultado do treinamento que lhe
dei.
– A força de uma mulher pode ser infinita – disse Stilgar. –
Certamente é, no caso de uma Reverenda Madre. Você é uma
Reverenda Madre?
Por ora, Jéssica ignorou as implicações da pergunta e
respondeu honestamente:
– Não.
– Foi treinada na doutrina do deserto?
– Não, mas muitos consideram meu treinamento valioso.
– Fazemos nossos próprios juízos de valor – disse Stilgar.
– Todo homem tem o direito de julgar por si próprio – ela
disse.
– Que bom que você enxerga a razão – disse Stilgar. – Não
podemos nos demorar aqui para colocá-la à prova, mulher.
Entendeu? Não queremos que seu espectro nos atormente.
Levarei o menino-homem, seu filho; ele terá minha proteção,
asilo em minha tribo. Mas, quanto a você, mulher... entende que
não é nada pessoal? É a lei, Istislá, no interesse de todos. Não é
o bastante?
Paul deu meio passo à frente:
– Do que está falando?
Stilgar olhou de relance para Paul, mas manteve sua
atenção focada em Jéssica.
– A menos que tivesse sido treinada a fundo e desde a
infância para viver aqui, você poderia levar a destruição a uma
tribo inteira. É a lei, e não podemos levar inúteis...
O movimento de Jéssica começou como um falso desmaio,
uma queda lenta em direção ao chão. Era a coisa óbvia para
uma forasteira fraca fazer, e o óbvio retarda as reações do
oponente. Leva-se um instante para interpretar uma coisa
conhecida quando essa coisa se revela algo desconhecido. Ela
mudou sua trajetória ao ver que ele baixava o ombro direito
com o intuito de apontar uma arma, oculta nas pregas do
manto, para a nova posição dela. Um giro, uma vergastada do
braço, um remoinho de mantos misturados, e ela estava contra
as pedras, com o homem indefeso diante dela.
Ao primeiro movimento de sua mãe, Paul recuou dois
passos. Quando ela atacou, ele mergulhou nas sombras. Um
homem de barba apareceu em seu caminho, quase agachado, e
atirou-se à frente com uma arma numa das mãos. Paul acertou
o homem abaixo do esterno com a mão aberta e os dedos
estendidos, deu um passo para o lado e golpeou, de cima para
baixo, a base do pescoço do oponente, tomando-lhe a arma
enquanto ele caía.
Em seguida já estava nas sombras, escalando as pedras,
com a arma enfiada na faixa em sua cintura. Ele a reconhecera,
apesar da forma nada familiar: uma arma de projéteis, e isso
revelava muitas coisas sobre aquele lugar, mais uma dica de
que não se usavam escudos ali.
Eles irão se concentrar em minha mãe e no tal Stilgar. Ela é
páreo para ele. Tenho de chegar a um posição vantajosa e
segura, de onde eu possa ameaçá-los e ganhar tempo para que
ela consiga escapar.
Ouviu-se um coro nítido de molas acionadas na bacia. Com
um zunido, os projéteis ricochetearam nas pedras em volta
dele. Um deles agitou o manto de Paul. Ele se espremeu atrás
de um canto nas pedras, viu-se dentro de uma fenda vertical e
estreita e – com as costas apoiadas num dos lados e os pés no
outro – começou a escalá-la devagar e o mais silenciosamente
que podia.
O eco da voz forte de Stilgar chegou até ele:
– Para trás, seus piolhos cabeças-de-verme! Ela vai
quebrar meu pescoço se vocês chegarem mais perto!
Uma voz vinda da bacia disse:
– O menino fugiu, Stil. O que quer que a gente...
– Claro que ele fugiu, seu cérebro de areia... Uuugh! Calma,
mulher!
– Diga-lhes que parem de perseguir meu filho – disse
Jéssica.
– Já pararam, mulher. Ele fugiu, como você queria. Deuses
magníficos das profundezas! Por que não disse que era mulher
de sortilégios e de armas?
– Mande seus homens recuarem – Jéssica disse. – Diga-
lhes para sair e vir para a bacia, onde posso vê-los... e é melhor
acreditar que sei quantos eles são.
E ela pensou: Este é o momento delicado, mas, se este
homem é tão arguto quanto acho que é, temos uma chance.
Paul subiu devagar, encontrou uma saliência estreita
sobre a qual poderia ficar e olhou lá para baixo, para a bacia. A
voz de Stilgar chegou até ele.
– E se eu me recusar? Como é que você... uugh! Deixe estar,
mulher! Não vamos mais lhe fazer mal. Deuses magníficos! Se é
capaz de fazer isso com o mais forte de nós, você vale dez vezes
seu peso em água.
Agora, o teste da razão, Jéssica pensou, e disse:
– Você procura a Lisan al-Gaib.
– Vocês poderiam ser as pessoas da lenda – ele disse –, mas
só acreditarei nisso depois dos testes. Só sei que vocês vieram
para cá com aquele duque estúpido... Aiiiii! Mulher! Não me
importo se você me matar! Ele tinha honra e coragem, mas foi
estúpido ao se colocar no caminho do punho dos Harkonnen!
Silêncio.
Sem demora, Jéssica disse:
– Ele não teve escolha, mas não vamos discutir isso. Agora,
diga àquele seu homem atrás do arbusto lá adiante para não
tentar mais apontar a arma para mim, ou então vou livrar o
universo de vocês dois, um depois do outro.
– Você aí! – berrou Stilgar. – Faça o que ela disse!
– Mas, Stil...
– Faça o que ela disse, seu bostinha de lagarto rastejante,
cérebro de areia, cara de verme! Se não fizer, eu mesmo a
ajudarei a desmembrar você! Não vê o valor desta mulher?
O homem no arbusto ficou totalmente de pé,
abandonando seu abrigo parcial, e baixou a arma.
– Ele obedeceu – disse Stilgar.
– Agora – disse Jéssica –, explique claramente a sua gente
o que você quer de mim. Não quero que nenhum jovem de pavio
curto cometa um erro idiota.
– Quando nos insinuamos nas vilas e cidadezinhas, temos
de disfarçar nossa origem, temos de nos misturar com a gente
das caldeiras e dos graben – disse Stilgar. – Não portamos
armas, pois a dagacris é sagrada. Mas você, mulher, você tem a
habilidade sortílega da batalha. Só ouvimos falar dela, e muitos
duvidavam, mas não se pode duvidar daquilo que se vê com os
próprios olhos. Você dominou um fremen armado. Essa é uma
arma que nenhuma revista conseguiria encontrar.
Houve alvoroço na bacia quando as palavras de Stilgar
calaram na alma.
– E se eu concordar em ensinar a vocês a... doutrina dos
sortilégios?
– Minha proteção se estenderá a você e também a seu filho.
– Como podemos ter certeza de que cumprirá sua
promessa?
A voz de Stilgar perdeu um pouco de seu discreto tom
argumentativo e assumiu um quê de amargura.
– Aqui fora, mulher, não carregamos papel para redigir
contratos. Não fazemos promessas à noite para quebrá-las ao
amanhecer. Quando um homem diz uma coisa, esse é o
contrato. Sendo eu o líder de meu povo, eles se comprometem
a cumprir minha palavra. Ensine-nos essa doutrina dos
sortilégios e você terá asilo entre nós enquanto desejar. Sua
água irá se misturar com nossa água.
– Você fala em nome de todos os fremen? – perguntou
Jéssica.
– Daqui a algum tempo, pode ser que sim. Mas somente
meu irmão, Liet, fala por todos os fremen. Aqui, prometo
apenas sigilo. Meu povo não irá falar de vocês a nenhum outro
sietch. Os Harkonnen voltaram a Duna em grande número, e
seu duque está morto. Dizem por aí que vocês dois morreram
numa tempestade-mãe. O caçador não procura a caça que já
está morta.
Parece seguro, Jéssica pensou. Mas estas pessoas têm um
bom sistema de comunicação e alguém poderia mandar uma
mensagem.
– Imagino que tenham oferecido uma recompensa por nós
dois – ela disse.
Stilgar continuou em silêncio, e ela quase enxergava os
pensamentos que se reviravam na cabeça dele, sentindo os
deslocamentos dos músculos do homem sob suas mãos.
Sem demora, ele disse:
– Digo-lhe mais uma vez: dei-lhe a palavra-promessa da
tribo. Minha gente agora sabe quanto você vale para nós. O que
os Harkonnen poderiam nos dar? Nossa liberdade? Rá! Não,
você é o taqwa que nos comprará mais do que toda a especiaria
nos cofres dos Harkonnen.
– Então ensinarei a vocês minha doutrina de batalha –
Jéssica disse, sentindo a intensidade ritualizada e inconsciente
de suas próprias palavras.
– E agora, vai me soltar?
– Que seja – Jéssica disse. Ela o soltou, deu um passo para
o lado e colocou-se em plena vista da encosta que ficava na
bacia. Este é o teste-mashad, ela pensou. Mas Paul precisa
conhecê-los, mesmo se eu morrer, para que ele adquira esse
conhecimento.
No silêncio expectante que se seguiu, Paul avançou
devagar para ver melhor onde sua mãe estava. Ao se mover, ele
ouviu uma respiração pesada cessar de repente, acima dele, na
fenda vertical da rocha, e percebeu ali uma sombra fraca,
delineada de encontro às estrelas.
A voz de Stilgar veio da bacia:
– Você aí em cima! Pare de caçar o menino. Ele vai descer
logo, logo.
A voz de um garoto ou garota jovem saiu da escuridão
acima de Paul:
– Mas, Stil, ele não deve estar muito longe...
– Mandei deixá-lo em paz, Chani! Sua cria de lagarto!
Uma voz acima de Paul praguejou baixinho e, em seguida:
– Eu, cria de lagarto!
Mas a sombra recuou e sumiu de vista.
Paul voltou sua atenção para a bacia, distinguindo a
sombra cinzenta de Stilgar que se movia ao lado de sua mãe.
– Venham aqui, todos vocês – gritou Stilgar. Virou-se para
Jéssica. – E agora eu pergunto como nós podemos ter certeza
de que você irá cumprir sua parte no negócio? Você foi quem
viveu com papéis e contratos vazios e coisas desse...
– Nós, Bene Gesserit, não quebramos nossos votos, assim
como vocês – disse Jéssica.
Fez-se um silêncio prolongado, seguido por um silvo de
várias vozes:
– Uma bruxa Bene Gesserit!
Paul tirou da cintura a arma que havia apanhado, apontou-
a para o vulto obscuro de Stilgar, mas o homem e seus
companheiros continuaram imóveis, olhando para Jéssica.
– É mesmo a lenda – alguém falou.
– Disseram que a shadout Mapes informou isso a seu
respeito – disse Stilgar. – Mas é preciso colocar à prova algo tão
importante. Se você é a Bene Gesserit da lenda, cujo filho irá
nos levar ao paraíso... – Ele deu de ombros.
Jéssica suspirou, pensando: Então, nossa Missionaria
Protectora chegou a instalar válvulas de segurança religiosas
em todo este lugar infernal. Ah, bem... será uma ajuda, e foi
para isso mesmo que a criaram.
Ela disse:
– A vidente que trouxe a lenda para cá, ela a entregou a
vocês sob o penhor do karama e da ijaz, o milagre e a
inimitabilidade da profecia. Disso eu sei. Você quer um sinal?
Ele dilatou as narinas à luz do luar.
– Não podemos nos deter para celebrar os ritos – ele
sussurrou.
Jéssica lembrou-se de um mapa que Kynes havia mostrado
a ela enquanto preparava rotas de fuga emergenciais. Parecia
ter sido tanto tempo atrás. Havia um lugar chamado “Sietch
Tabr” no mapa e, ao lado do nome, a anotação: “Stilgar”.
– Talvez quando chegarmos a Sietch Tabr – ela disse.
A revelação o abalou e Jéssica pensou: Se ele soubesse os
truques que usamos! Devia ser boa essa Bene Gesserit da
Missionaria Protectora. Estes fremen foram lindamente
preparados para acreditar em nós.
Stilgar trocou de pé, apreensivo.
– Temos de ir agora.
Ela assentiu, para fazê-lo saber que partiam com a
permissão dela.
Ele olhou para o alto do penhasco, quase diretamente para
a saliência de rocha onde Paul estava agachado.
– Você aí, rapaz, pode descer agora. – Voltou sua atenção
para Jéssica e falou em tom de desculpa: – Seu filho fez uma
barulheira incrível ao escalar. Ele tem muito a aprender para
não colocar todos nós em risco, mas ainda é jovem.
– Não há dúvida de que temos muito a ensinar uns aos
outros – Jéssica disse. – Enquanto isso, é melhor cuidar
daquele seu companheiro ali adiante. Meu filho barulhento foi
um pouco rude ao desarmá-lo.
Stilgar virou-se, balançando o capuz.
– Onde?
– Depois daqueles arbustos – ela apontou.
Stilgar tocou dois de seus homens.
– Cuidem disso. – Olhou para os companheiros,
identificou-os. – Jamis não está aqui. – Voltou-se para Jéssica.
– Até mesmo seu filhote conhece a doutrina dos sortilégios.
– E você vai notar que meu filho não saiu lá de cima como
você ordenou – disse Jéssica.
Os dois homens que Stilgar havia mandado voltaram
ajudando um terceiro, que cambaleava e arquejava entre eles.
Stilgar olhou de relance para eles, voltou sua atenção para
Jéssica.
– O filho só acata ordens vindas de você, hein? Ótimo. Ele
tem disciplina.
– Paul, pode descer agora – disse Jéssica.
Paul ficou de pé, aparecendo à luz da lua acima da fenda
onde estivera escondido e devolveu a arma fremen à faixa que
trazia na cintura. Quando ele se virou, um outro vulto surgiu
das pedras para confrontá-lo.
À luz da lua, que se refletia na pedra cinzenta, Paul viu um
vulto pequeno, usando as vestes dos fremen, um rosto
obscurecido que o fitava por baixo do capuz, e o cano de uma
das armas de projéteis apontado para ele, saindo de uma dobra
do manto.
– Eu sou Chani, filha de Liet.
A voz era alegre e cadenciada, quase tomada pelo riso.
– Eu não teria deixado você ferir meus companheiros – ela
disse.
Paul engoliu em seco. O vulto diante dele virou-se para a
luz da lua, e ele viu um rosto de fada e fossos negros por olhos.
A familiaridade daquele rosto, os traços saídos de inúmeras
visões de suas primeiras experiências prescientes, abalaram
Paul de tal maneira que ele ficou paralisado. Lembrou-se da
bravata zangada com a qual havia, certa vez, descrito aquele
rosto saído de um sonho, dizendo à Reverenda Madre Gaius
Helen Mohiam: “Eu irei conhecê-la”.
E ali estava o rosto, mas ele nunca tinha sonhado com
aquele encontro.
– Você fez tanto barulho quanto um shai-hulud enfurecido
– ela disse. – E subiu pelo caminho mais difícil. Siga-me: vou lhe
mostrar um jeito mais fácil de descer.
Ele se arrastou para fora da fenda, seguiu o turbilhão do
manto da menina pela paisagem acidentada. Ela se movia feito
uma gazela, dançando sobre as pedras. Paul sentiu o sangue
quente no rosto e agradeceu por estar escuro.
Essa menina! Ela era como o contato do destino. Ele se
sentiu apanhado por uma onda, em sintonia com um
movimento que elevava seu espírito.
Não demoraram a se ver entre os fremen no chão da bacia.
Jéssica voltou-se para Paul com um sorriso irônico, mas
falou dirigindo-se a Stilgar:
– Será uma boa troca de ensinamentos. Espero que você e
seu povo não se ressintam da violência que usamos. Pareceu...
necessária. Vocês estavam prestes a... cometer um erro.
– Salvar alguém de um erro é uma dádiva do paraíso – disse
Stilgar. Tocou os lábios com a mão esquerda, tirou a arma da
cintura de Paul com a outra e a jogou para um companheiro. –
Você terá sua própria pistola maula, rapaz, quando merecer
uma.
Paul fez menção de falar, hesitou, lembrou-se do
ensinamento da mãe: “O início é sempre um momento delicado”.
– Meu filho já tem as armas de que precisa – disse Jéssica.
Encarou Stilgar, obrigando-o a imaginar como Paul tinha
conseguido a pistola.
Stilgar olhou para o homem que Paul havia subjugado,
Jamis. O homem afastado dos demais, cabisbaixo, respirando
pesadamente.
– Você é uma mulher difícil – disse Stilgar. Estendeu a mão
esquerda para um companheiro e estalou os dedos. – Kushti
bakka te.
Chakobsa outra vez, Jéssica pensou.
O companheiro enfiou dois retalhos de gaze na mão de
Stilgar, que os fez correr pelos dedos e colocou um deles em
volta do pescoço de Jéssica, sob o capuz, e o outro no pescoço
de Paul, da mesma maneira.
– Agora vocês usam o lenço dos bakka – ele disse. – Se nos
separarmos, vocês serão reconhecidos como membros do
sietch de Stilgar. Falaremos de armas uma outra hora.
Ele se pôs a percorrer seu bando, inspecionando sua
gente, entregando a mochila do fremkit de Paul para um de
seus homens carregar.
Bakka, pensou Jéssica, reconhecendo o termo religioso:
bakka, os pranteadores. Percebeu como o simbolismo dos
lenços unia aquele bando. Por que o pranto os uniria?, ela se
perguntou.
Stilgar foi até a menina que havia deixado Paul
envergonhado e disse:
– Chani, tome o menino-homem como seu protegido. Não o
deixe se meter em encrenca.
Chani tocou o braço de Paul.
– Venha, menino-homem.
Paul escondeu a raiva em sua voz e disse:
– Meu nome é Paul. Seria melhor você...
– Nós lhe daremos um nome, homenzinho – Stilgar disse –,
quando chegar o mihna, no teste da aql.
O teste da razão, Jéssica traduziu. A necessidade
repentina de deixar clara a superioridade de Paul passou por
cima de todas as outras considerações, e ela gritou:
– Meu filho foi testado com o gom jabbar!
No silêncio que se seguiu, ela percebeu que os deixara
comovidos.
– Há muita coisa que não conhecemos uns sobre os outros
– disse Stilgar. – Mas estamos nos demorando demais. O sol
não pode nos encontrar em campo aberto. – Ele foi até o
homem que Paul tinha derrubado e disse: – Jamis, está em
condições de viajar?
Um grunhido foi a resposta.
– Ele me pegou de surpresa, foi isso. Foi um acidente.
Estou em condições de viajar.
– Acidente coisa nenhuma – disse Stilgar. – Vou considerar
você e Chani responsáveis pela segurança do rapaz, Jamis.
Estas pessoas têm minha proteção.
Jéssica olhou para o homem, Jamis. Era dele a voz que
viera das pedras e discutira com Stilgar. Era dele a voz que
trazia a morte. E Stilgar vira a necessidade de reiterar sua
ordem para o tal Jamis.
Stilgar avaliou o grupo com um olhar e, a um gesto seu,
separou dois homens.
– Larus e Farrukh, vocês irão esconder nossos rastros.
Cuidem para que não deixemos nenhum sinal. Cautela
redobrada: temos entre nós duas pessoas sem treinamento. –
Ele se virou, com a mão erguida e apontada para o outro lado
da bacia. – Fila de pelotão, com flanqueadores, vamos. Temos
de chegar à Caverna do Espinhaço antes do amanhecer.
Jéssica seguiu ao lado de Stilgar, contando as cabeças.
Eram quarenta fremen – com ela e Paul, eram quarenta e dois.
E pensou: Viajam como companhia militar, até mesmo a
menina, Chani.
Paul entrou na fila atrás de Chani. Reprimira a mágoa de
ter sido surpreendido pela menina. Em sua mente agora estava
a recordação evocada pelas palavras ríspidas de sua mãe: “Meu
filho foi testado com o gom jabbar!”. Descobriu que sua mão
formigava com a lembrança da dor.
– Olhe por onde anda – Chani cochichou. – Não encoste
nos arbustos para não deixar fiapos e revelar que passamos
por aqui.
Paul engoliu em seco e concordou com a cabeça.
Jéssica pôs-se a escutar os sons da tropa, ouvindo seus
próprios passos e os de Paul, admirada com a maneira como os
fremen se moviam. Eram quarenta pessoas a atravessar a
bacia, produzindo apenas os sons naturais do lugar: falucas
fantasmagóricas, com os mantos esvoaçantes a singrar as
sombras. Seu destino era o Sietch Tabr, o sietch de Stilgar.
Ela revirou a palavra em sua mente: sietch. Era uma
palavra da língua chakobsa, inalterada através de incontáveis
séculos a partir do antigo idioma de caça. Sietch: um ponto de
encontro em momentos de perigo. As implicações profundas
da palavra e da língua só agora começavam a lhe dizer alguma
coisa, depois da tensão do encontro.
– Estamos progredindo bem – disse Stilgar. – Com a graça
de Shai-Hulud, chegaremos à Caverna do Espinhaço antes do
amanhecer.
Jéssica concordou com a cabeça, conservando sua
energia, sentindo a fadiga terrível que ela mantinha afastada
com a força de sua vontade... e, ela admitiu, com a força do
entusiasmo. Sua mente se concentrou no valor daquela tropa,
enxergando o que se revelava ali a respeito da cultura fremen.
Todos eles, ela pensou, uma cultura inteira treinada na
disciplina militar. Que coisa inestimável para um duque
desterrado!
Os fremen eram supremos naquela
qualidade que os antigos denominavam
spannungsbogen, que é a autoimposição
de um adiamento entre o desejar uma
coisa e o estender a mão para apanhá-la.
– excerto de “A sabedoria de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Aproximaram-se da Caverna do Espinhaço ao romper do


dia, atravessando uma fenda na muralha da bacia, tão estreita
que tiveram de virar de lado para passar por ela. Jéssica viu
Stilgar destacar guardas à luz tênue do amanhecer, viu-os por
um instante quando começaram a escalar rapidamente o
penhasco.
Paul vinha caminhando com a cabeça voltada para cima,
vendo a trama do planeta cortada em seção transversal onde a
fenda estreita se abria para o céu azul-acinzentado.
Chani puxou-o pelo manto para apressá-lo e disse:
– Rápido. Já é dia.
– Os homens que subiram, aonde estão indo? – Paul
sussurrou.
– É a primeira ronda – ela disse. – Apresse-se.
Guardas do lado de fora, Paul pensou. Inteligente. Mas
teria sido mais inteligente ainda se nos aproximássemos do
lugar em bandos distintos. Menos chance de perder a tropa
inteira. Deteve-se naquele pensamento, percebendo que era o
raciocínio de um guerrilheiro, e lembrou-se do receio de seu
pai, de que os Atreides se tornassem uma casa guerrilheira.
– Mais rápido – Chani sussurrou.
Paul acelerou os passos, ouvindo o roçar dos mantos atrás
dele. E pensou nas palavras da sirat, tiradas da minúscula
Bíblia C. O. de Yueh. “O paraíso à direita, o inferno à esquerda, e
o Anjo da Morte atrás de mim.” Repetiu a citação em sua mente.
Contornaram uma curva onde a passagem se alargava.
Stilgar pôs-se de lado, incentivando-os com gestos a entrar
num buraco baixo que se abria perpendicularmente.
– Rápido! – ele silvou. – Seremos coelhos engaiolados se
uma patrulha nos pegar aqui.
Paul inclinou-se para passar pela abertura, seguiu Chani e
entrou numa caverna iluminada por uma tênue luz cinzenta
que vinha de algum ponto mais adiante.
– Pode ficar ereto – ela disse.
Ele endireitou as costas e examinou o lugar: uma área
ampla e profunda, com teto abobadado que se colocava fora do
alcance da mão de um homem. A tropa se espalhou pelas
sombras. Paul viu sua mãe surgir de um lado, viu-a examinar os
companheiros. E notou como ela não se misturava aos fremen,
mesmo que suas vestes fossem idênticas. A maneira como ela
se movia: tamanha sensação de poder e graça.
– Procure um lugar para descansar e fique fora do
caminho, menino-homem – disse Chani. – Aqui tem comida. –
Enfiou na mão dele duas porções embrulhadas em folhas.
Fediam a especiaria.
Stilgar apareceu atrás de Jéssica, gritou uma ordem para
um grupo à esquerda.
– Instalem o veda-portas e cuidem da hidrossegurança. –
Ele se virou para um outro fremen. – Lemil, traga uns
luciglobos. – Tomou Jéssica pelo braço. – Quero lhe mostrar
uma coisa, mulher dos sortilégios. – Ele a conduziu e os dois
contornaram uma curva na rocha, em direção à fonte da luz.
Jéssica viu-se olhando lá para fora, por sobre o rebordo
amplo de uma outra abertura da caverna, uma abertura no alto
de um penhasco que sobranceava mais uma bacia, com cerca
de dez ou doze quilômetros de largura. A bacia era protegida
por paredões de rocha elevados. Moitas esparsas de vegetação
distribuíam-se pelo perímetro.
Enquanto ela olhava para a bacia acinzentada pelo
amanhecer, o sol ergueu-se sobre o escarpamento distante,
iluminando uma paisagem marrom-claro, feita de pedras e
areia. E ela reparou como o sol de Arrakis parecia saltar sobre
o horizonte.
É porque queremos contê-lo, ela pensou. A noite é mais
segura que o dia. Foi acometida, então, pela saudade de um
arco-íris, naquele lugar que nunca veria a chuva. Tenho de
reprimir essas saudades, ela pensou. São uma fraqueza. Não
posso mais me dar ao luxo de ter fraquezas.
Stilgar segurou o braço dela e apontou o outro lado da
bacia.
– Ali! Ali você verá drusos de verdade.
Ela olhou para onde ele apontava, viu movimento: pessoas
no chão da bacia, debandando, à luz do dia, para o interior das
sombras do outro penhasco. Apesar da distância, os
movimentos eram claros no ar límpido. Ela tirou o binóculo de
sob a túnica, focalizou as lentes de óleo naquelas pessoas ao
longe. Os lenços voejavam como um bando de borboletas
multicoloridas.
– Ali é minha casa – disse Stilgar. – Chegaremos lá hoje à
noite. – Ele olhou para o outro lado da bacia, puxando o bigode.
– Meu povo ficou fora até tarde, trabalhando. Quer dizer que
não há patrulhas por perto. Mandarei um sinal para eles mais
tarde, e eles cuidarão dos preparativos para nos receber.
– Seu povo demonstra ter boa disciplina – Jéssica disse.
Ela baixou o binóculo, viu que Stilgar olhava para eles.
– O povo obedece à lei da preservação da tribo – ele disse. –
É assim que escolhemos os líderes entre nós. O líder é o mais
forte, aquele que traz água e segurança. – Ele ergueu o olhar e
voltou sua atenção para o rosto dela.
Ela devolveu o olhar, reparou nos olhos sem branco, nas
pálpebras manchadas, a barba e o bigode contornados pelo pó,
a linha do tubo coletor que descia das narinas e entrava no
trajestilador.
– Comprometi sua liderança ao derrotar você, Stilgar? –
ela perguntou.
– Você não me desafiou – ele disse.
– É importante que o líder mantenha o respeito de sua
tropa – ela disse.
– Sou páreo para todos aqueles piolhos de areia, sem
exceção – disse Stilgar. – Ao me derrotar, você derrotou todos
nós. Agora a esperança deles é aprender com você... a doutrina
dos sortilégios... e alguns estão curiosos para ver se você
pretende me desafiar.
Ela ponderou as implicações.
– Derrotando você em combate formal?
Ele fez que sim.
– Não é algo que eu aconselhe, porque eles não seguiriam
você. Não nasceu da areia. Viram isso durante nossa
caminhada noturna.
– Pessoas práticas – ela disse.
– Verdade. – Ele olhou para a bacia. – Sabemos do que
precisamos. Mas não são muitos que pensam com essa
profundidade agora, tão perto de casa. Estivemos fora tempo
demais, cuidando de entregar nossa quota de especiaria aos
livre-cambistas, para a maldita Guilda... que seus rostos
fiquem negros para sempre.
Jéssica se deteve no ato de dar as costas para ele, voltou a
olhar para o rosto do homem.
– A Guilda? O que a Guilda tem a ver com sua especiaria?
– É a ordem de Liet – disse Stilgar. – Sabemos a razão, mas
isso nos deixa um travo amargo na boca. Subornamos a Guilda
com um montante monstruoso em especiaria para manter
nossos céus livres de satélites e para que ninguém possa
espionar o que estamos fazendo com a face de Arrakis.
Ela mediu suas palavras, lembrando que Paul havia dito
que aquele tinha de ser o motivo para que os céus de Arrakis
estivessem livres de satélites.
– E o que é que vocês estão fazendo com a face de Arrakis
que não pode ser visto?
– Nós a estamos mudando... devagar, mas com segurança...
para torná-la adequada à vida humana. Nossa geração não verá
isso, nem nossos filhos, nem os filhos de nossos filhos, nem os
netos deles... mas virá. – Olhou para fora, por sobre a bacia,
com olhos velados. – Água a céu aberto, plantas verdes e altas e
pessoas andando livremente por aí, sem os trajestiladores.
Então esse é o sonho do tal Liet-Kynes, ela pensou. E disse:
– Os subornos são perigosos: têm a tendência de ficar cada
vez maiores.
– E ficam – ele disse –, mas o jeito demorado é o jeito
seguro.
Jéssica virou-se, olhou para fora, por sobre a bacia,
tentando enxergá-la da maneira que Stilgar a via em sua
imaginação. Ela via apenas a mancha clara e cor de mostarda
das pedras distantes e um movimento indistinto e repentino
no céu, acima dos penhascos.
– Aaaah – disse Stilgar.
Ela pensou, a princípio, que fosse um veículo de patrulha,
depois percebeu que se tratava de uma miragem: uma outra
paisagem flutuando sobre a areia do deserto e um tremular
distante de vegetação, e, à meia distância, um verme comprido
que deslizava pela superfície, levando no dorso o que pareciam
ser mantos fremen esvoaçantes.
A miragem desapareceu.
– Seria melhor viajar montados – disse Stilgar –, mas não
podemos permitir a entrada de um criador nesta bacia. Por
isso, teremos de caminhar outra vez esta noite.
Criador: a palavra que usam para se referir a um verme, ela
pensou.
Ela avaliou a importância das palavras dele, a declaração
de que não podiam permitir um verme naquela bacia. Sabia o
que tinha visto na miragem: fremen montados no dorso de um
verme gigante. Foi preciso um autocontrole intenso para não
deixar transparecer o impacto daquelas implicações em sua
pessoa.
– Temos de voltar para junto dos outros – disse Stilgar. –
Para que minha gente não comece a desconfiar que estou
flertando com você. Alguns já invejam o fato de minhas mãos
terem provado seus encantos quando nos engalfinhamos
ontem à noite na Bacia Tuono.
– Agora basta! – Jéssica disse, ríspida.
– Não se ofenda – disse Stilgar, e sua voz saiu mansa. – Não
tomamos as mulheres contra a vontade delas... e, no seu caso...
– Ele deu de ombros. – ... nem sequer essa convenção é
necessária.
– Não se esqueça de que fui a mulher de um duque – ela
disse, mas sua voz estava mais calma.
– Como quiser – ele disse. – Já é hora de vedar esta
abertura, de permitir o relaxamento da disciplina do
trajestilador. Minha gente precisa descansar com conforto
hoje. Suas famílias não vão deixá-los descansar muito amanhã.
O silêncio se interpôs entre eles.
Jéssica olhou diretamente para a luz do sol. Tinha ouvido
exatamente o que pensara ter ouvido na voz de Stilgar: a oferta
muda de mais do que sua proteção. Será que ele precisava de
uma esposa? Ela percebeu que poderia desempenhar aquele
papel ao lado dele. Seria uma maneira de encerrar os conflitos
pela liderança tribal: a mulher devidamente aliada ao homem.
Mas e o que seria de Paul? Quem saberia dizer quais regras
de paternidade prevaleciam ali? E o que seria da filha ainda por
nascer que ela trazia em seu ventre havia poucas semanas? O
que seria da filha de um duque morto? Permitiu-se confrontar
inteiramente o significado daquela outra criança que crescia
dentro de si, enxergar os próprios motivos ao permitir a
concepção. Sabia o que era: tinha sucumbido àquele impulso
secreto, compartilhado por todas as criaturas que se viam
diante da morte, o impulso de buscar a imortalidade na prole.
Deixaram-se dominar pelo impulso de fertilidade da espécie.
Jéssica olhou para Stilgar, viu que ele a estudava, à espera
de alguma coisa. Uma filha nascida aqui, de uma mulher casada
com um homem como este: qual seria a sina dessa filha?, ela se
perguntou. Ele tentaria limitar os princípios que uma Bene
Gesserit é obrigada a seguir?
Stilgar limpou a garganta e revelou, naquele momento, que
compreendia algumas das perguntas que passavam pela
mente de Jéssica:
– O importante para um líder é aquilo que faz dele um
líder. São as necessidades de seu povo. Se você me ensinar seus
poderes, virá o dia em que um de nós terá de desafiar o outro.
Eu preferiria uma alternativa.
– E existem outras alternativas? – ela perguntou.
– A Sayyadina – ele disse. – Nossa Reverenda Madre é
idosa.
Eles têm uma Reverenda Madre!
Antes que ela pudesse sondá-lo a esse respeito, ele disse:
– Não estou necessariamente me oferecendo como
consorte. Não é nada pessoal, pois você é bela e desejável. Mas,
se você se tornar uma de minhas mulheres, isso talvez leve
alguns de meus rapazes a acreditar que estou preocupado
demais com os prazeres da carne e de menos com as
necessidades da tribo. Neste exato momento, eles nos ouvem e
observam.
Um homem que pondera suas decisões, que pensa nas
consequências, ela pensou.
– Há entre meus rapazes aqueles que chegaram à idade da
inquietação – ele disse. – É preciso acalmá-los nesse período.
Não posso lhes dar grandes motivos para me desafiar. Porque
aí eu teria de aleijar e matar alguns deles. Quando se pode
evitá-la, essa não é a maneira adequada de um líder proceder.
Veja bem, o líder é o que distingue a turba de um povo. Ele
mantém o nível de indivíduos. Quando são muito poucos os
indivíduos, o povo volta a ser uma turba.
As palavras dele, a profundidade perceptiva por trás
delas, o fato de ele ter falado tanto para ela quanto para
aqueles que os escutavam em segredo, obrigou-a a reavaliá-lo.
Ele tem estatura, ela pensou. Onde teria aprendido esse
equilíbrio interior?
– A lei que determina nossa maneira de escolher um líder é
só uma lei – disse Stilgar. – Mas não quer dizer que a justiça seja
sempre aquilo de que um povo precisa. O que realmente
precisamos agora é de tempo para crescer e prosperar,
espalhar nossa força por mais terras.
Qual é a ascendência dele?, ela se perguntou. De onde vem
essa civilidade? Ela disse:
– Stilgar, subestimei você.
– Eu bem que desconfiava – ele disse.
– Nós dois, aparentemente, subestimamos um ao outro –
ela disse.
– Gostaria de pôr um fim nisso – ele disse. – Gostaria de ter
sua amizade... e confiança. Gostaria que tivéssemos um pelo
outro aquele respeito que cresce no íntimo, sem a necessidade
física e vil do sexo.
– Entendo – ela disse.
– Confia em mim?
– Posso ouvir sua sinceridade.
– Entre nós – ele disse –, as Sayyadina, quando não são as
líderes formais, detêm uma posição de honra especial. Elas
ensinam. Mantêm a força de Deus aqui dentro – e ele tocou o
próprio peito.
Agora tenho de sondar esse mistério da Reverenda Madre,
ela pensou. E disse:
– Você mencionou sua Reverenda Madre... e ouvi falar de
lendas e profecias.
– Dizem que uma Bene Gesserit e seu filho detêm a chave
de nosso futuro – ele disse.
– Vocês acreditam que seja eu?
Ela observou o rosto dele, pensando: O junco novo morre
tão fácil. Os inícios são momentos tão perigosos.
– Não sabemos – ele disse.
Ela concordou com a cabeça, pensando: Ele é um homem
honrado. Quer que eu lhe dê um sinal, mas não fará pender a
balança do destino contando-me qual seria esse sinal.
Jéssica virou a cabeça, olhou para a bacia lá embaixo, para
as sombras douradas, as sombras purpúreas, as vibrações do
ar empoeirado que passavam pelo rebordo da caverna onde os
dois se encontravam. Súbito, sua mente foi tomada por uma
prudência felina. Ela conhecia a ladainha da Missionaria
Protectora, sabia como adaptar as técnicas da lenda, do temor
e da esperança a suas necessidades urgentes, mas sentia
mudanças drásticas ali... como se alguém tivesse se infiltrado
entre aqueles fremen e capitalizado a influência da Missionaria
Protectora.
Stilgar limpou a garganta.
Ela percebeu a impaciência dele, sabia que o dia seguia seu
curso e que os homens aguardavam para vedar aquela
abertura. Era o momento de ser ousada, e ela percebeu do que
precisava: de uma dar al-hikman, uma escola de tradução que
lhe fornecesse uma...
– Adab – ela murmurou.
Sua mente pareceu se revolver dentro dela. Jéssica
reconheceu a sensação com um acelerar do pulso. Nada, em
todo o treinamento das Bene Gesserit, produzia um sinal de
reconhecimento como aquele. Só podia ser a adab, a lembrança
exigente que se apossava da pessoa. Entregou-se à memória,
permitindo que as palavras saíssem de sua boca.
– Ibn qirtaiba – ela disse –, até onde a poeira termina. –
Estendeu um braço para fora do manto, viu Stilgar arregalar os
olhos. Ouviu o farfalhar de muitos mantos ao fundo. – Vejo
um... fremen, com o livro dos exemplos – ela entoou. – Ele está
lendo para al-Lat, o sol que ele desafiou e subjugou. Lê para os
Sadus do Julgamento, e eis o que lê:

“Meus inimigos são como a grama verde deitada por terra


Que se colocou no caminho da tempestade.
Não viste o que fez nosso Senhor?
Mandou-lhes a peste
A eles que tramaram contra nós.
São como as aves que o caçador espantou.
Suas intrigas são como pílulas de veneno
Que todas as bocas rejeitam.”

Um estremecimento percorreu-lhe o corpo. Ela deixou cair


o braço.
Até ela chegou, vinda das sombras do interior da caverna,
uma resposta murmurada por muitas vozes:
– Suas obras foram derrubadas.
– O fogo de Deus cresce em teu coração – ela disse. E
pensou: Agora o sinal chegou ao canal adequado.
– O fogo de Deus foi aceso – veio a resposta.
Ela assentiu.
– Teus inimigos hão de tombar – ela disse.
– Bi-la kaifa – eles responderam.
No silêncio repentino, Stilgar curvou-se diante dela.
– Sayyadina – ele disse. – Com a bênção de Shai-hulud,
você ainda poderá passar ao interior e se tornar Reverenda
Madre.
Passar ao interior, ela pensou. Uma maneira estranha de
expressar essa ideia. Mas o resto se encaixou perfeitamente na
ladainha. E ela sentiu uma amargura cínica pelo que fizera.
Nossa Missionaria Protectora raramente falha. Prepararam
para nós um lugar nestes ermos. A prece da salat arranjou-nos
um esconderijo. Agora... tenho de representar o papel de Auliya,
a Amiga de Deus... Sayyadina para povos renegados,
influenciados de tal maneira por nossas profecias Bene Gesserit
que chegam a chamar suas sumas sacerdotisas de Reverendas
Madres.
Paul estava ao lado de Chani nas sombras do interior da
caverna. Ainda sentia o gosto das porções que ela lhe dera para
comer: carne de ave e grãos, unidos com mel de especiaria e
embrulhados numa folha. Ao provar a comida, percebeu que
nunca tinha ingerido tamanha concentração da essência da
especiaria e, por um instante, teve medo. Sabia o que aquela
essência era capaz de fazer com ele: a transformação da
especiaria que levava sua mente à percepção presciente.
– Bi-la kaifa – Chani sussurrou.
Paul olhou para ela, vendo o espanto com que os fremen
pareciam aceitar as palavras de sua mãe. Somente o homem
chamado Jamis parecia alheio à cerimônia, mantendo-se à
parte do grupo, com os braços cruzados sobre o peito.
– Duy yakha hin mange – Chani murmurou. – Duy punra
hin mange. Tenho dois olhos. Tenho dois pés.
E ela encarou Paul, com uma expressão admirada.
Paul inspirou fundo, tentando acalmar a tempestade
dentro dele. As palavras de sua mãe tinham se unido à ação da
essência da especiaria, e ele sentira a voz dela subir e descer
dentro dele, como as sombras de uma fogueira ao ar livre.
Durante toda a prece, ele sentira nela o cinismo da mãe – ele a
conhecia tão bem! –, mas nada conseguiria deter aquilo que
havia se iniciado com uma simples porção de comida.
Propósito terrível!
Ele a sentia, a consciência racial da qual não conseguia
escapar. Estava ali, a lucidez aguçada, o influxo de dados, a
precisão gélida de sua percepção. Ele se deixou cair até o chão,
sentou-se com as costas apoiadas na pedra, entregando-se à
experiência. A percepção passou àquela camada intemporal
onde ele enxergava o tempo, detectava os caminhos
disponíveis, os ventos do futuro... os ventos do passado: a visão
monocular do passado, a visão monocular do presente e a visão
monocular do futuro – todas combinadas numa visão
trinocular, que lhe permitia enxergar o tempo feito espaço.
Sentiu que existia o perigo de derrubar a si mesmo, e ele
teve de se agarrar a sua percepção do presente, sentindo a
deflexão embaçada da experiência, o momento fluido, a
solidificação contínua daquilo que é no perpétuo foi.
Ao segurar o presente, ele sentiu, pela primeira vez, a
constância maciça do movimento do tempo, complicado em
toda parte pelas correntes, ondas, marés e contramarés
mutáveis, como a arrebentação contra as falésias. Isso o levou
a uma nova compreensão de sua presciência, e ele viu a fonte
do tempo cego, a fonte do erro, com uma sensação imediata de
medo.
A presciência, ele percebeu, era uma iluminação que
incorporava os limites daquilo que revelava: ao mesmo tempo
uma fonte de precisão e de erro significativo. Uma espécie de
incerteza heisenbergiana interveio: o gasto de energia que
revelava o que ele via também mudava o que era visto.
E o que ele viu foi um nexo temporal naquela caverna, uma
efervescência de possibilidades concentradas ali, onde a ação
mais insignificante – um piscar de olhos, uma palavra
imprudente, um grão de areia mal colocado – movia uma
alavanca gigantesca por todo o universo conhecido. Viu a
violência e seu resultado, sujeito a tantas variáveis que o menor
movimento dele criava vastas mudanças no padrão.
A visão o fez desejar a imobilidade, mas aquilo também era
uma ação que tinha suas consequências.
As incontáveis consequências, linhas que se desdobravam
em leque, partindo daquela caverna, e, na maioria dessas
consequências-linhas, ele via seu próprio cadáver, com o
sangue a escorrer da ferida escancarada de uma facada.
Meu pai, o imperador padixá, tinha 72
anos — embora não aparentasse ter mais
de 35 — no ano em que arranjou a morte
do duque Leto e devolveu Arrakis aos
Harkonnen. Ele raramente aparecia em
público vestindo outra coisa que não o
uniforme dos Sardaukar e o capacete
negro de burseg, que trazia sobre o
penacho o leão dourado imperial. O
uniforme era um lembrete ostensivo de
onde residia seu poder. Mas ele nem
sempre era tão espalhafatoso. Quando
queria, era capaz de irradiar charme e
sinceridade, mas tenho me perguntado
muitas vezes, nestes últimos tempos, se
algo nele era o que parecia ser. Hoje, creio
que ele era um homem em luta constante
para escapar das grades de uma gaiola
invisível. Lembrem-se de que era um
imperador, patriarca de uma dinastia que
remontava ao passado mais obscuro. Mas
nós lhe negamos um filho legítimo. Não foi
a derrota mais terrível que um soberano
já sofreu? minha mãe obedecia a suas
superioras da irmandade, as mesmas a
quem lady Jéssica desobedeceu. Qual
delas era a mais forte? A história já
respondeu.
– “Na casa de meu pai”, da princesa Irulan

Jéssica acordou na escuridão da caverna e percebeu a


agitação dos fremen a seu redor, sentiu o odor acre dos
trajestiladores. Sua noção de tempo informou-lhe que logo
anoiteceria lá fora, mas a caverna continuava às escuras,
protegida do deserto pelas coberturas plásticas que
aprisionavam a umidade de seus corpos ali dentro.
Percebeu que tinha se entregado ao sono absolutamente
relaxante do enorme cansaço, e isso sugeria que tipo de
avaliação inconsciente ela fazia de sua própria segurança na
tropa de Stilgar. Ela se virou na rede que tinham feito de seu
manto, baixou os pés até o chão de pedra e calçou as botinas.
Tenho de me lembrar de deixá-las frouxas para ajudar o
bombeamento do trajestilador, ela pensou. São tantas coisas
para lembrar.
Ela ainda sentia o gosto da refeição da manhã – a porção
de carne de ave e grãos embrulhados numa folha com mel de
especiaria –, e ocorreu-lhe que o uso do tempo era invertido ali:
a noite era o dia ativo, e o dia era a hora de descansar.
A noite esconde, a noite é mais segura.
Desenganchou o manto que lhe servia de rede dos pinos da
alcova de pedra, atrapalhou-se com o tecido no escuro, até
encontrar a parte de cima e enfiá-lo pela cabeça.
Como fazer para enviar uma mensagem para as Bene
Gesserit?, ela se perguntou. Era preciso contar a elas sobre os
dois deserdados asilados em Arrakis.
Luciglobos se acenderam mais além, caverna adentro. Ela
viu algumas pessoas se movimentando por lá, Paul entre elas,
já vestido e com o capuz atirado para trás, revelando o perfil
aquilino dos Atreides.
Ele tinha agido de maneira tão estranha antes de se
recolherem, ela pensou. Reservado. Era como se tivesse
voltado dos mortos, ainda não totalmente ciente de seu
retorno, com os olhos semicerrados e vidrados devido ao olhar
interior. Aquilo a fazia pensar no alerta que ele lhe dera sobre a
dieta impregnada de especiaria: viciante.
Haverá efeitos colaterais?, ela se perguntou. Ele disse que
tinha algo a ver com sua faculdade presciente, mas ele anda
estranhamente calado sobre as coisas que vê.
Stilgar saiu das sombras à direita dela e foi até o grupo sob
os luciglobos. Ela reparou em como ele cofiava a barba e em seu
olhar atento e de felino que espreitava a caça.
Um medo súbito percorreu Jéssica quando seus sentidos
despertaram e captaram as tensões visíveis nas pessoas
reunidas em volta de Paul: os movimentos rígidos, as posturas
cerimoniosas.
– Eles têm minha proteção! – trovejou Stilgar.
Jéssica reconheceu o homem que Stilgar confrontava:
Jamis! Viu, então, a fúria de Jamis, a rigidez dos ombros dele.
Jamis, o homem que Paul derrotou!, ela pensou.
– Conhece a lei, Stilgar – disse Jamis.
– E quem a conhece melhor? – perguntou Stilgar, e ela
ouviu o tom conciliador na voz dele, a tentativa de dar um jeito
em alguma coisa.
– Escolho o combate – grunhiu Jamis.
Jéssica atravessou a caverna correndo, agarrou o braço de
Stilgar.
– O que foi? – ela perguntou.
– É a lei de amtal – disse Stilgar. – Jamis está exigindo o
direito de colocar à prova o papel que você tem a desempenhar
na lenda.
– Ela precisa de um campeão – Jamis disse. – Se o campeão
vencer, será tudo verdade. Mas dizem... – ele passou os olhos
pela multidão – ... que ela não precisará de nenhum campeão
fremen, o que só pode significar que trará seu próprio
campeão.
Ele está falando de travar combate singular com Paul!,
Jéssica pensou.
Ela soltou o braço de Stilgar e deu meio passo à frente.
– Nunca precisei de outro campeão além de mim mesma –
ela disse. – O significado é bem simples...
– Não nos ensine nossos costumes! – Jamis a cortou. – Não
sem antes apresentar outras provas além daquelas que já vi.
Stilgar poderia ter lhe dito exatamente o que falar na manhã de
ontem. Poderia ter enchido sua mente com mimos, que você
repetiu para nós feito papagaio, esperando nos conquistar com
falsos pretextos.
Sou páreo para ele, Jéssica pensou, mas isso poderia
contradizer a maneira como interpretam a lenda. E, mais uma
vez, ela se admirou com a maneira como a obra da Missionaria
Protectora tinha sido deturpada naquele planeta.
Stilgar olhou para Jéssica e falou em voz baixa, mas
calculada para chegar às margens da multidão.
– Jamis costuma guardar ressentimentos, Sayyadina. Seu
filho o derrotou e...
– Foi um acidente! – Jamis bradou. – Usaram bruxaria na
Bacia Tuono e provarei isso agora!
– ... e eu também já o derrotei – continuou Stilgar. – Com
esse desafio tahaddi, ele quer se desforrar de mim também.
Jamis é violento demais para dar um bom líder: demasiada
ghafla, a distração. Ele entrega sua boca às leis e seu coração
ao sarfa, o afastamento. Não, ele nunca daria um bom líder. Eu
o preservei tanto tempo porque ele tem serventia em combate,
mas, quando ele se deixa tomar por essa raiva mordaz, ele é um
perigo para sua própria sociedade.
– Stilgarrrr! – trovejou Jamis.
E Jéssica viu o que Stilgar estava fazendo, tentando
enfurecer Jamis para afastar o desafio de Paul.
Stilgar encarou Jamis e, mais uma vez, Jéssica ouviu o tom
apaziguador na voz retumbante.
– Jamis, ele é só um menino. Ele...
– Você o designou como homem – disse Jamis. – A mãe
dele diz que ele passou pelo gom jabbar. Ele tem a pele firme e
água de sobra. Quem carregou a mochila deles diz que há
litrofões de água dentro dela. Litrofões! E nós aqui, sorvendo
nossas bolsas coletoras ao primeiro sinal de umidade.
Stilgar olhou para Jéssica.
– É verdade? Há água em sua mochila?
– Sim.
– Litrofões de água?
– Dois litrofões.
– O que pretendiam fazer com tanta riqueza?
Riqueza?, ela pensou. Chacoalhou a cabeça, sentindo a
frialdade na voz dele.
– Onde nasci, a água caía do céu e corria sobre a terra em
rios largos – ela disse. – Havia oceanos de água tão vastos que
não era possível ver o outro lado. Não fui treinada em sua
hidrodisciplina. Nunca tive de pensar na água dessa maneira.
Um suspiro entrecortado se elevou das pessoas ao redor:
– Água que caía do céu... e corria sobre a terra.
– Você sabia que há entre nós quem perdeu o conteúdo de
suas bolsas coletoras por acidente e que estará em sérios
apuros antes de chegarmos a Tabr esta noite?
– Como poderia saber? – Jéssica sacudiu a cabeça. – Se
estão necessitados, dê-lhes a água de nossa mochila.
– Era isso que pretendia fazer com essa riqueza?
– Eu pretendia salvar vidas – ela disse.
– Então aceitamos sua bênção, Sayyadina.
– Você não irá nos comprar com água – resmungou Jamis.
– Nem você, Stilgar, irá desviar minha raiva. Já vi que está
tentando me fazer desafiá-lo, antes que eu possa provar o que
digo.
Stilgar encarou Jamis.
– Está determinado a impor essa luta a uma criança,
Jamis? – A voz dele saiu grave, venenosa.
– Ela precisa de um campeão.
– Mesmo tendo minha proteção?
– Invoco a lei de amtal – disse Jamis. – É meu direito.
Stilgar assentiu.
– Então, se o menino não o fatiar, você responderá à minha
faca em seguida. E desta vez não vou conter minha arma, como
fiz antes.
– Não pode fazer isso – Jéssica disse. – Paul é só...
– Não interfira, Sayyadina – disse Stilgar. – Ah, sei que é
páreo para mim e, portanto, é páreo para qualquer um de nós,
mas não conseguirá derrotar todos nós juntos. Assim tem de
ser: é a lei de amtal.
Jéssica se calou, encarando-o à luz verde dos luciglobos,
vendo a rigidez demoníaca que se apossara da expressão dele.
Desviou sua atenção para Jamis, viu o ar meditabundo daquele
rosto e pensou: Eu devia ter visto isso antes. Ele remói
pensamentos. É do tipo calado, que guarda ressentimentos. Eu
devia ter me preparado.
– Se ferir meu filho – ela disse –, terá de se ver comigo. Eu o
desafio agora. Vou fazer picadinho de...
– Mãe – Paul deu um passo à frente e tocou-lhe a manga. –
Talvez se eu explicasse a Jamis como...
– Explicar! – desdenhou Jamis.
Paul se calou, fitando o homem. Não tinha medo dele.
Jamis parecia desajeitado ao se mover e tinha tombado com
tanta facilidade quando se confrontaram naquela noite sobre a
areia. Mas Paul ainda sentia a efervescência do nexo daquela
caverna, ainda se lembrava das visões prescientes que o
mostravam morto com uma facada. Tinham sido tão poucas as
rotas de fuga para ele naquela visão...
Stilgar disse:
– Sayyadina, recue agora para onde...
– Pare de chamá-la de Sayyadina! – disse Jamis. – Isso
ainda não foi provado. Então ela conhece a prece! E daí?
Qualquer uma de nossas crianças a conhece.
Ele já falou o suficiente, Jéssica pensou. Tenho a chave que
o decifra. Eu poderia imobilizá-lo com uma palavra. Ela hesitou.
Mas não posso deter todos eles.
– Responderá a mim, então – Jéssica disse, dando a sua
voz um tom trêmulo, com um ligeiro gemido, um pouco
embargado no final.
Jamis a encarou com o medo estampado no rosto.
– Ensinarei a você o que é a agonia – ela continuou, no
mesmo tom. – Lembre-se disso ao lutar. A dor será tamanha
que, comparado a ela, o gom jabbar irá parecer uma lembrança
feliz. Você irá se contorcer com todo o seu...
– Ela está tentando me enfeitiçar! – foi o grito sufocado de
Jamis. Levou a mão direita fechada ao ouvido. – Peço que seja
silenciada!
– Que assim seja – disse Stilgar. Ele lançou um olhar de
advertência para Jéssica. – Se voltar a falar, Sayyadina,
saberemos que é sua bruxaria, e você será castigada. – Com a
cabeça, ele fez sinal para que ela recuasse.
Jéssica sentiu que a puxavam, que a ajudavam a recuar, e
percebeu que aquelas mãos não eram indelicadas. Viu Paul ser
separado do grupo, e Chani, com seu rosto de fada, cochichar
no ouvido dele e acenar com a cabeça na direção de Jamis.
Formou-se um círculo dentro da tropa. Trouxeram mais
luciglobos, e todos eles foram regulados para a faixa do
amarelo.
Jamis entrou no círculo, tirou o manto e o atirou para
alguém na multidão. Ficou ali, vestindo apenas o trajestilador
cinzento, vago e lustroso, manchado e marcado por pregas e
franzidos. Por um instante, levou a boca ao ombro e bebeu a
água do tubo coletor. Imediatamente, empertigou-se,
desvencilhou-se do traje, entregou-o com cuidado a alguém na
multidão. Esperou, usando uma tanga e, nos pés, um tecido
apertado, com uma dagacris na mão direita.
Jéssica viu a menina Chani ajudar Paul, viu-a enfiar o cabo
de uma dagacris na mão dele, viu quando ele sopesou a arma,
testando-lhe o peso e o equilíbrio. E ocorreu a Jéssica que Paul
tinha sido treinado em prana e bindu, o nervo e a fibra, que
tinha aprendido uma escola mortífera, que seus professores
foram homens como Duncan Idaho e Gurney Halleck, homens
que se tornaram lendas ainda vivos. O menino conhecia as
técnicas ardilosas das Bene Gesserit e parecia ágil e confiante.
Mas ele só tem 15 anos, ela pensou. E não tem escudo.
Preciso impedi-los. De algum jeito, deve haver uma maneira de...
Ergueu os olhos e viu que Stilgar a observava.
– Não pode impedi-los – ele disse. – Está proibida de falar.
Ela levou uma das mãos à boca, pensando: Introduzi o
medo na mente de Jamis. Isso o deixará um pouco mais lento...
talvez. Se eu pudesse ao menos rezar, rezar de verdade.
Paul estava sozinho agora, quase dentro do círculo,
vestindo os calções de luta que costumava usar sob o
trajestilador. Trazia uma dagacris na mão direita; os pés
descalços pisavam a pedra coberta de areia. Idaho o advertira
várias vezes: “Quando não conhecer muito bem a superfície, a
melhor coisa são os pés descalços”. E havia as instruções de
Chani, ainda frescas em sua consciência: “Jamis vira sua faca
para a direita depois de aparar um golpe. É um hábito que todos
nós já observamos. Ele vai visar seus olhos, esperando uma
piscadela para cortar você. E ele luta com qualquer uma das
mãos: cuidado com a passagem da faca de uma mão para
outra”.
Mas a coisa mais forte dentro de Paul, tanto que a sentia
com todo o seu corpo, era o treinamento e o mecanismo de
reação instintiva que tinham inculcado nele dia após dia, a cada
hora passada na sala de treinamento.
As palavras de Gurney Halleck estavam lá para serem
lembradas: “O homem que luta bem com a faca pensa na ponta,
no fio e na guarda simultaneamente. A ponta também pode
cortar, o fio também pode perfurar, a guarda também pode
prender a arma do oponente”.
Paul olhou para a dagacris. Não havia guarda, somente o
aro delgado da empunhadura, com as bordas salientes, para
proteger a mão. E, mesmo assim, ele percebeu que
desconhecia a tensão de ruptura daquela lâmina, não sabia
sequer se era possível quebrá-la.
Jamis, andando de lado, foi para a direita, acompanhando
a orla do círculo, de frente para Paul.
Paul se agachou, percebendo naquele momento que não
tinha escudo, mas havia sido treinado para lutar com aquele
campo discreto ao redor dele, treinado para reagir na defesa
com máxima velocidade, ao passo que seu ataque estaria em
sincronia com a lentidão controlada necessária para penetrar
o escudo do inimigo. Apesar dos avisos constantes de seus
instrutores para não depender da neutralização irracional da
velocidade de ataque promovida pelo escudo, ele sabia que
fazia parte dele lutar pensando num escudo.
Jamis lançou o desafio ritualizado:
– Que sua faca lasque e quebre!
Estas facas se quebram, então, Paul pensou.
Lembrou a si mesmo que Jamis tampouco usava escudo,
mas o homem não havia sido treinado para usar um, não tinha
as inibições de um lutador acostumado ao escudo.
Paul olhou para Jamis, do outro lado do círculo. O corpo do
homem parecia cordel de chicote, cheio de nós, sobre um
esqueleto seco. Sua dagacris emitia um brilho amarelo e leitoso
à luz dos luciglobos.
Paul foi tomado pelo medo. Sentiu-se repentinamente
sozinho e nu, exposto à luz amarela e fraca naquele círculo de
pessoas. A presciência tinha alimentado seu conhecimento
com incontáveis experiências e sugerido as correntes mais
fortes do futuro e as cadeias de decisão que as conduziam, mas
ali era o verdadeiro agora. Era a morte que pendia de um
número infinito de minúsculos infortúnios.
Ele percebeu que qualquer coisa poderia mudar o futuro
ali. Alguém entre os espectadores que tossisse, uma distração.
Uma variação na luminosidade dos luciglobos, uma sombra
enganadora.
Estou com medo, Paul disse consigo mesmo.
E pôs-se a contornar o círculo com cautela, na direção
oposta à de Jamis, repetindo silenciosamente para si mesmo a
litania contra o medo das Bene Gesserit: “O medo mata a
mente...”. Foi um banho frio por todo o seu corpo. Sentiu os
músculos se desembaraçarem, se prepararem e ficarem
prontos.
– Vou embainhar minha faca em seu sangue – Jamis
rosnou. E, no meio da última palavra, saltou.
Jéssica viu o movimento e sufocou um grito.
O homem atingiu apenas o ar, e Paul agora estava atrás de
Jamis, com uma oportunidade clara de atacar as costas
expostas.
Agora, Paul! Agora!, Jéssica gritou em sua mente.
O movimento de Paul foi calculado devagar, lindamente
fluido, mas saiu tão lento que deu a Jamis o ensejo para girar,
afastar-se e virar para a direita.
Paul recuou e se agachou bem rente ao chão.
– Primeiro terá de encontrar meu sangue – ele disse.
Jéssica reconheceu no filho a sincronia do combatente
acostumado ao escudo e ocorreu-lhe que aquilo era uma
vantagem dúbia. O menino tinha as reações da juventude,
treinadas e elevadas a um patamar que aquelas pessoas
desconheciam. Mas o ataque também tinha sido treinado e
condicionado pelas necessidades de atravessar a barreira de
um escudo. O escudo repelia o golpe demasiado rápido,
admitia apenas o contra lento e enganador. Era preciso
controle e astúcia para penetrar um escudo.
Será que Paul viu isso?, ela se perguntou. Deve ter visto!
Jamis voltou a atacar, com um brilho feroz nos olhos
escuros, e seu corpo era um borrão amarelo à luz dos
luciglobos.
E, mais uma vez, Paul escapou e respondeu com um ataque
muito lento.
E de novo.
E de novo.
Todas as vezes, o contragolpe de Paul atrasou-se um
instante.
E Jéssica viu uma coisa que ela torceu para Jamis não ter
visto. As reações defensivas de Paul eram ofuscantes de tão
rápidas, mas, todas as vezes, traçavam o ângulo exato que
traçariam se houvesse ali um escudo para ajudar a desviar
parte do golpe de Jamis.
– Seu filho está brincando com aquele pobre idiota? –
Stilgar perguntou. Ele fez sinal para que ela continuasse em
silêncio antes que conseguisse responder. – Desculpe-me. Você
não pode falar.
Agora os dois vultos sobre o chão de pedra circulavam um
ao outro: Jamis com a mão que segurava a faca estendida à
frente e ligeiramente inclinada para cima; Paul agachado e com
a faca em guarda baixa.
De novo, Jamis saltou e, dessa vez, virou para a direita, a
direção na qual Paul vinha se esquivando.
Em vez de simular o recuo e a esquiva, Paul atingiu a mão
armada do homem com a ponta de sua própria faca. E depois
sumiu, afastando-se com um giro para a esquerda, grato pelo
aviso de Chani.
Jamis recuou para o centro do círculo, esfregando a mão
que segurava a faca. O sangue pingou da ferida por um
instante, depois parou. Os olhos dele – dois buracos negro-
azulados – estavam arregalados e fixos em Paul, estudando-o
agora com cautela à luz fraca dos luciglobos.
– Ah, essa doeu – murmurou Stilgar.
Paul se abaixou, colocando-se em posição, e, como tinha
sido treinado para fazer depois de tirar sangue, gritou:
– Rende-se?
– Rá! – Jamis berrou.
Um murmúrio zangado elevou-se da tropa.
– Esperem! – Stilgar bradou. – O rapaz não conhece nossa
lei. – Depois, para Paul: – Não há rendição no desafio tahaddi. A
morte é a prova.
Jéssica viu Paul engolir saliva com dificuldade. E pensou:
Ele nunca matou um homem assim... no calor de uma briga de
facas. Será que vai conseguir?
Paul pôs-se a contornar lentamente o círculo para a
direita, impelido pelo movimento de Jamis. O conhecimento
presciente das variáveis tempo-efervescentes naquela caverna
voltaram para afligi-lo. Sua nova compreensão lhe dizia que
havia naquela luta um excesso de decisões em rápida
compressão para que um canal futuro e claro se revelasse.
As variáveis se acumulavam, por isso aquela caverna era
um nexo indistinto no caminho dele. Era como uma pedra
gigantesca na inundação, criando turbilhões na corrente que a
contornava.
– Acabe logo com isso, rapaz – murmurou Stilgar. – Não
brinque com ele.
Paul avançou discretamente para dentro do círculo,
contando com sua vantagem na velocidade.
Jamis agora recuava, tomado por uma revelação: não
estava, ali no círculo do tahaddi, diante de um forasteiro fraco,
uma presa fácil para a dagacris de um fremen.
Jéssica viu a sombra do desespero no rosto do homem. É
agora que ele se torna mais perigoso, ela pensou. Agora está
desesperado e é capaz de fazer qualquer coisa. Está vendo que
Paul não é como as crianças de sua gente, e sim uma máquina
de combate nata, treinada desde a infância. Agora o medo que
plantei começa a florescer.
E descobriu que sentia pena de Jamis: uma emoção
mitigada pela consciência de que seu filho corria perigo.
Jamis é capaz de fazer qualquer coisa... qualquer coisa
imprevisível, ela disse consigo mesma. Imaginou se Paul teria
vislumbrado aquele futuro, se estaria revivendo a experiência.
Mas viu como o filho se movia, as gotas de suor no rosto e nos
ombros dele, a prudência cautelosa visível na fluência de seus
músculos. E pela primeira vez ela sentiu, sem entender, o fator
de incerteza no dom do filho.
Paul agora ditava o ritmo da luta, circulando sem atacar.
Tinha visto o medo do oponente. A lembrança da voz de
Duncan Idaho flutuava na percepção de Paul: “Quando o
oponente teme você, então é o momento de dar rédeas ao medo,
dar-lhe tempo para agir. Deixe que se transforme em pavor. O
homem apavorado luta consigo mesmo. Acabará atacando por
desespero. Esse é o momento mais perigoso, mas geralmente
pode-se confiar que o homem apavorado cometerá um erro
fatal. Você está sendo treinado aqui para detectar esses erros e
usá-los”.
A multidão na caverna começou a murmurar.
Acham que Paul está brincando com Jamis, pensou
Jéssica. Pensam que Paul está sendo desnecessariamente cruel.
Mas também sentiu o entusiasmo velado da multidão, a
apreciação do espetáculo. E viu a pressão aumentar dentro de
Jamis. O momento em que a coisa se tornou forte demais para
ser contida ficou tão aparente para ela quanto para Jamis... ou
para Paul.
Jamis saltou alto, fintando e golpeando de cima para baixo
com a mão direita, mas a mão estava vazia. Ele passara a
dagacris para a mão esquerda.
Jéssica sufocou um grito.
Mas Paul tinha sido alertado por Chani: “Jamis luta com
qualquer uma das mãos”. E a profundidade de seu treinamento
absorvera aquele truque en passant. “Concentre-se na faca, e
não na mão que a segura”, dissera-lhe Gurney repetidas vezes.
“A faca é mais perigosa que a mão, e a faca pode estar em
qualquer uma das mãos.”
E Paul tinha visto o erro de Jamis: o jogo de pernas havia
sido tão ruim que o homem levou um instante a mais para se
recobrar do salto, cuja intenção tinha sido confundir Paul e
ocultar a passagem da arma de uma mão para outra.
Exceto pela luz fraca e amarela dos luciglobos e dos olhos
tintos da tropa atenta, aquilo era semelhante a uma sessão na
sala de treinamento. Os escudos não faziam diferença quando
era possível usar o movimento do corpo contra ele próprio.
Paul passou a faca para a outra mão com um movimento
rápido, deslizou para o lado e desferiu uma estocada vertical,
encontrando o peito de Jamis, que descia. Depois se afastou
para ver o homem desabar.
Jamis caiu feito um trapo flácido, de cara no chão,
arquejou uma vez e virou o rosto para Paul, depois ficou imóvel
sobre o chão de pedra. Seus olhos mortos fitavam o vazio,
como contas de vidro escuro.
“Não há arte em matar com a ponta”, Idaho tinha dito a
Paul certa vez, “mas não deixe isso conter sua mão quando a
oportunidade se apresentar”.
A tropa avançou, tomando todo o círculo, empurrando
Paul para um lado. Amontoaram-se ali, escondendo o corpo de
Jamis, num furor de atividade. Sem demora, um grupo deles
correu de volta às profundezas da caverna carregando um
fardo embrulhado num manto.
E não havia corpo sobre o chão de pedra.
Jéssica abriu caminho até seu filho. Sentiu-se nadando
num mar de costas fedorentas e cobertas por mantos, uma
turba estranhamente silenciosa.
Agora é o momento terrível, ela pensou. Ele matou um
homem com a nítida superioridade da mente e dos músculos.
Não pode começar a gostar desse tipo de vitória.
Ela passou à força pelo último membro da tropa e entrou
numa pequena área livre onde dois fremen barbados estavam
ajudando Paul a vestir seu trajestilador.
Jéssica encarou o filho. Os olhos de Paul brilhavam. Ele
respirava forte, permitindo que as pessoas cuidassem de seu
corpo, em vez de ajudá-las.
– Lutou com Jamis e não há marca nenhuma nele – um dos
homens murmurou.
Chani estava de lado, com os olhos focados em Paul.
Jéssica viu o entusiasmo da menina, a admiração no rosto de
fada.
Tem de ser feito agora e rápido, Jéssica pensou.
Ela concentrou o desprezo supremo em sua voz e em seus
modos e disse:
– Beeem, que tal a sensação de matar um homem?
Paul se enrijeceu como se tivesse sido esbofeteado.
Enfrentou o olhar frio da mãe e seu rosto ficou escuro com o
afluxo de sangue. Involuntariamente, olhou de relance para o
ponto no chão da caverna onde Jamis estivera caído.
Stilgar abriu caminho e se colocou ao lado de Jéssica,
depois de voltar das profundezas da caverna para onde tinham
levado o corpo de Jamis. Falou a Paul num tom amargo e
controlado:
– Quando chegar a hora de você me desafiar e tentar tomar
meu burda, não pense que brincará comigo da maneira que
brincou com Jamis.
Jéssica percebeu como suas palavras e as de Stilgar
calaram fundo no espírito de Paul, mortificando o menino. O
erro cometido por aquelas pessoas agora tinha um propósito.
Ela examinou os rostos ao redor, como Paul estava fazendo,
vendo o que ele via. Admiração, sim, e medo... e em alguns:
asco. Ela olhou para Stilgar, viu seu fatalismo, compreendeu
como ele interpretara a luta.
Paul olhou para a mãe.
– Você sabe o que foi – ele disse.
Ela ouviu a volta à sanidade, o remorso na voz dele. Jéssica
varreu a tropa com o olhar e disse:
– Paul nunca tinha matado um homem com uma arma
branca.
Stilgar a encarou, com a incredulidade estampada no
rosto.
– Não estava brincando com ele – disse Paul. Colocou-se na
frente da mãe, ajeitando seu manto, olhou para a mancha
escura do sangue de Jamis no chão da caverna. – Não queria
matá-lo.
Jéssica viu que Stilgar ia passando a acreditar aos poucos,
viu o alívio dele ao cofiar a barba com a mão de veias salientes.
Viu os murmúrios de compreensão se espalharem pela tropa.
– Por isso pediu que ele se rendesse – disse Stilgar. –
Entendi. Nossos costumes são diferentes, mas você ainda verá
que fazem sentido. Pensei ter abrigado um escorpião entre
nós. – Ele hesitou, e então: – E não irei mais chamá-lo de rapaz.
Uma voz gritou no meio da tropa:
– Temos de dar um nome a ele, Stil.
Stilgar assentiu, cofiando a barba.
– Vejo a força em você... como a força na base de uma
coluna. – Fez nova pausa, e depois: – Será conhecido entre nós
como Usul, a base da coluna. Esse é seu nome secreto, seu
nome na tropa. Nós do Sietch Tabr podemos usá-lo, mas
ninguém mais poderá tomar essa liberdade... Usul.
Um burburinho percorreu a tropa:
– Boa escolha, essa...
– Forte...
– Trará boa sorte.
E Jéssica sentiu a aceitação, sabendo que isso a incluía,
assim como a seu campeão. Ela era, de fato, a Sayyadina.
– Agora, que nome adulto você escolherá para que usemos
em público? – perguntou Stilgar.
Paul olhou para a mãe, depois voltou a fitar Stilgar.
Pedacinhos daquele momento estavam registrados em sua
memória presciente, mas as diferenças pareciam físicas, uma
pressão que o obrigava a atravessar a passagem estreita do
presente.
– Que nome se dá entre vocês ao ratinho, o ratinho que
salta? – Paul perguntou, lembrando-se do upa-pula na Bacia
Tuono. Ilustrou o movimento com uma das mãos.
Um riso soou por toda a tropa.
– Chamamos esse aí de muad’dib – disse Stilgar.
Jéssica ficou boquiaberta. Era o nome de que Paul havia
lhe falado, dizendo que os fremen os aceitariam e o chamariam
daquela maneira. Sentiu um medo repentino de seu filho e por
ele.
Paul engoliu em seco. Sentiu que desempenhava um papel
representado inúmeras vezes em sua mente... Contudo... havia
diferenças. Via-se empoleirado num cume vertiginoso, depois
de passar por muita coisa e obter um repertório imenso de
conhecimentos, mas tudo a seu redor era abismo.
E voltou a se lembrar da visão de legiões fanáticas que
seguiam o estandarte verde e preto dos Atreides, pilhando e
queimando todo o universo em nome de seu profeta Muad’Dib.
Isso não pode acontecer, ele disse consigo mesmo.
– É o nome que deseja? Muad’Dib? – perguntou Stilgar.
– Sou um Atreides. – Paul murmurou, e então alteou a voz:
– Não é certo abrir mão inteiramente do nome que meu pai me
deu. Posso ser conhecido entre vocês como Paul Muad’Dib?
– Você é Paul Muad’Dib – disse Stilgar.
E Paul pensou: Isso não estava em nenhuma de minhas
visões. Fiz algo diferente.
Mas sentiu que o abismo continuava a cercá-lo.
E, de novo, uma resposta aos murmúrios percorreu a
tropa, de homem para homem:
– Sabedoria aliada à força...
– Não poderíamos pedir nada melhor...
– É a lenda, com certeza...
– Lisan al-Gaib...
– Lisan al-Gaib...
– Vou lhe contar uma coisa a respeito de seu novo nome –
disse Stilgar. – A escolha nos agrada. Muad’Dib conhece o
deserto. Muad’Dib faz sua própria água. Muad’Dib se esconde
do sol e viaja no frescor da noite. Muad’Dib é fértil e se
multiplica sobre a terra. A Muad’Dib chamamos de “instrutor
dos meninos”. É um alicerce forte sobre o qual erigir sua vida,
Paul Muad’Dib, que entre nós é Usul. Seja bem-vindo.
Stilgar tocou a testa de Paul com a palma de uma das
mãos, recolheu-a, abraçou Paul e murmurou:
– Usul.
Quando Stilgar o soltou, um outro membro da tropa
abraçou Paul, repetindo seu novo nome. E Paul passou de
abraço em abraço por toda a tropa, ouvindo as vozes, as
nuances de tom: “Usul... Usul... Usul”. Já sabia dizer o nome de
alguns deles. E ali estava Chani, que apertou sua face contra a
dele ao abraçá-lo e dizer-lhe o nome.
Sem demora, Paul viu-se novamente diante de Stilgar, que
disse:
– Agora você é um dos Ichuan Beduim, nosso irmão. – O
rosto dele se endureceu, e ele falou com voz imperiosa: – E
agora, Paul Muad’Dib, aperte esse trajestilador. – Olhou para
Chani. – Chani! Nunca vi obturadores nasais tão mal ajustados
como os de Paul Muad’Dib! Pensei que tivesse mandado você
cuidar dele!
– Eu não tinha o material, Stil – ela disse. – Temos os de
Jamis, claro, mas...
– Basta!
– Então vou dividir com ele um dos meus – ela disse. –
Posso me virar com um só até...
– Não vai, não – disse Stilgar. – Sei que temos
sobressalentes. Onde estão os sobressalentes? Somos uma
tropa unida ou um bando de selvagens?
Da tropa surgiram mãos estendidas, apresentando
objetos duros e fibrosos. Stilgar selecionou quatro e entregou-
os a Chani.
– Adapte-os para Usul e a Sayyadina.
Uma voz se ergueu na retaguarda da tropa:
– E quanto à água, Stil? E os litrofões na mochila deles?
– Sei que está precisando, Farok – disse Stilgar. –
Hidromestre... onde está o hidromestre? Ah, Shimoom, cuide
de medir o que for necessário. O necessário e nada mais. Essa
água é o dote da Sayyadina e será reembolsado no sietch de
acordo com as taxas de campanha, menos os honorários dos
carregadores.
– E de quanto será o reembolso de acordo com as taxas de
campanha? – perguntou Jéssica.
– Dez para um – disse Stilgar.
– Mas...
– É uma lei sensata, como você verá – disse Stilgar.
Um farfalhar de mantos marcou o movimento na
retaguarda da tropa quando os homens se viraram para pegar
a água.
Stilgar ergueu uma das mãos e fez-se silêncio.
– Quanto a Jamis – ele disse –, ordeno a cerimônia integral.
Jamis era nosso companheiro e irmão dos Ichuan Beduim. Não
nos afastaremos sem demonstrar o devido respeito a alguém
que comprovou nossa boa sorte com seu desafio tahaddi.
Invoco o rito... ao pôr do sol, quando a noite haverá de cobri-lo.
Paul, ouvindo aquelas palavras, percebeu que havia
mergulhado novamente no abismo... tempo cego. Não havia
passado que ocupasse o futuro em sua mente... exceto...
exceto... que ainda sentia o tremular do estandarte verde e
preto dos Atreides... em algum lugar adiante... ainda via as
espadas ensanguentadas e as legiões fanáticas do jihad.
Não acontecerá, ele disse consigo mesmo. Não posso
deixar acontecer.
Deus criou Arrakis para treinar os fiéis.
– excerto de “A sabedoria de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Na quietude da caverna, Jéssica ouviu o arranhar da areia


na pedra com a movimentação das pessoas, os piados
distantes que Stilgar dissera serem os sinais de seus vigias.
Os grandes lacres plásticos tinham sido removidos da
abertura da caverna. Ela via o avanço das sombras da noite
pelo rebordo de rocha à sua frente e, mais adiante, a bacia
exposta. Sentiu que a luz do dia os deixava, sentiu-a no calor
seco e também nas sombras. Sabia que sua percepção treinada
logo lhe daria o que aqueles fremen obviamente possuíam: a
capacidade de sentir até mesmo a menor alteração na umidade
do ar.
Como eles correram apertar seus trajestiladores quando a
caverna foi aberta!
No fundo da caverna, alguém começou a entoar:

“Ima trava okolo!


I korenja okolo!”

Jéssica traduziu em silêncio: Eis as cinzas! E eis as raízes!


A cerimônia fúnebre para Jamis estava começando.
Olhou lá para fora, para o pôr do sol arrakino, para os
tabuleiros de cor empilhados no céu. A noite estava
começando a lançar suas sombras pelas pedras e dunas
distantes.
Mas o calor persistia.
O calor impeliu os pensamentos dela para a água e o fato
observado de que todo aquele povo podia ser treinado para
sentir sede apenas em certos momentos.
Sede.
Ela se lembrava das ondas enluaradas de Caladan,
atirando mantos brancos sobre as rochas... e o vento denso de
umidade. Agora a brisa que dedilhava suas vestes crestava os
trechos de pele exposta na face e na testa. Os novos
obturadores nasais a irritavam, e ela se viu incomodada com o
tubo que lhe descia pelo rosto e traje adentro, recuperando a
umidade de seu hálito.
O próprio traje era um suadouro.
“Seu traje parecerá mais confortável quando você se
adaptar a uma quantidade menor de água corporal”, Stilgar
tinha lhe dito.
Ela sabia que ele tinha razão, mas saber disso não tornava
o momento mais confortável. A preocupação inconsciente com
a água ali pesava em sua mente. Não, ela se corrigiu: era a
preocupação com a umidade.
E isso era uma questão mais sutil e profunda.
Ela ouviu passos que se aproximavam, virou-se e viu Paul
sair das profundezas da caverna, seguido de perto pela menina
de rosto feérico, Chani.
E mais uma coisa, Jéssica pensou. É preciso alertar Paul
quanto às mulheres deles. Essas mulheres do deserto não
serviriam como esposa para um duque. Concubina, sim, mas
não esposa.
E então ela ficou admirada consigo mesma, pensando:
Será que fui infectada por essas intrigas? E viu como tinha sido
bem condicionada. Sou capaz de pensar nas necessidades
conjugais da realeza sem parar uma vez que seja para ponderar
minha própria condição de concubina. Contudo... fui mais que
uma concubina.
– Mãe.
Paul se deteve diante dela. Chani estava logo atrás dele.
– Mãe, sabe o que estão fazendo lá atrás?
Jéssica olhou para a mancha escura que eram os olhos
dele por baixo do capuz.
– Creio que sim.
– Chani me mostrou... porque esperam que eu participe e
dê minha... permissão para a pesagem da água.
Jéssica olhou para Chani.
– Estão reaproveitando a água de Jamis – disse Chani, e
sua voz fina saiu anasalada dos obturadores. – É a lei. A carne
pertence à pessoa, mas a água pertence à tribo... exceto em
combate.
– Estão dizendo que a água é minha – disse Paul.
Jéssica se perguntou por que aquilo devia deixá-la alerta e
precavida.
– A água do combate pertence ao vencedor – disse Chani. –
Porque é preciso lutar ao ar livre, sem os trajestiladores. O
vencedor tem de recuperar a água que perdeu lutando.
– Não quero a água dele – resmungou Paul. Sentia-se parte
de muitas imagens que se moviam simultaneamente,
fragmentando-se de maneira desconcertante para o olho
interior. Não havia como ter certeza do que fazer, mas de uma
coisa estava certo: ele não queria a água destilada a partir da
carne de Jamis.
– É... água – disse Chani.
Jéssica admirou-se com a maneira como a menina disse
aquilo. “Água.” Tanto significado num simples som. Um
provérbio das Bene Gesserit veio à mente de Jéssica: “A
sobrevivência é a capacidade de nadar em águas estranhas”. E
Jéssica pensou: Paul e eu, nós temos de encontrar as correntes e
os padrões nestas águas estranhas... se quisermos sobreviver.
– Você aceitará a água – disse Jéssica.
Ela reconheceu o tom em sua voz. Tinha usado o mesmo
tom com Leto certa vez, dizendo a seu falecido duque que ele
aceitaria uma grande soma que lhe ofereceram em troca de seu
apoio a um empreendimento questionável, porque o dinheiro
manteria o poder nas mãos dos Atreides.
Em Arrakis, a água era dinheiro. Ela via isso claramente.
Paul continuou em silêncio, sabendo que faria o que ela
tinha mandado, não por ser uma ordem, mas porque seu tom
de voz o obrigara a fazer uma reavaliação. Recusar a água seria
infringir a prática aceita entre os fremen.
No mesmo instante, Paul se lembrou das palavras de
Kalima 4:67, na Bíblia C. O. de Yueh. Ele disse:
– “Na água toda vida começa”.
Jéssica o encarou. Onde ele aprendeu essa citação?, ela se
perguntou. Ele não estudou os mistérios.
– Assim se diz – falou Chani. – Giudichar mantene: está
escrito no Shá-Nama que a água foi a primeira de todas as
coisas a ser criada.
Sem que soubesse explicar por quê (e isso a incomodava
mais que a sensação), Jéssica estremeceu de repente. Virou-se
para esconder sua confusão, e foi bem a tempo de ver o pôr do
sol. Uma calamidade violenta de cores transbordou do céu
quando o sol afundou no horizonte.
– Está na hora!
Era a voz de Stilgar ressoando na caverna.
– A arma de Jamis foi morta. Jamis foi chamado por Ele,
por Shai-hulud, que estabeleceu as fases das luas que minguam
diariamente e, no fim, aparecem como gravetos tortos e secos.
– Stilgar baixou a voz. – Assim se passou com Jamis.
O silêncio caiu feito um cobertor sobre a caverna.
Jéssica viu a sombra cinzenta de Stilgar se mover, como
um espectro nos recantos escuros. Ela olhou para trás, para a
bacia, sentindo o frescor.
– Que os amigos de Jamis se aproximem – disse Stilgar.
Alguns homens se moveram atrás de Jéssica, deixando
cair uma cortina diante da abertura. Um único luciglobo foi
aceso bem alto, nos fundos da caverna. Seu brilho amarelo
realçou um influxo de vultos humanos. Jéssica ouviu o farfalhar
dos mantos.
Chani afastou-se um passo, como se a luz a atraísse.
Jéssica inclinou-se para falar bem perto do ouvido de Paul,
usando o código da família:
– Siga o exemplo; faça o que eles fizerem. Será uma
cerimônia simples para aplacar o espectro de Jamis.
Será mais que isso, Paul pensou. Sentiu uma espécie de
puxão em sua percepção, como se estivesse tentando agarrar
algo em movimento e torná-lo imóvel.
Chani recuou até se colocar ao lado de Jéssica e a pegou
pela mão.
– Venha, Sayyadina. Temos de ficar à parte.
Paul viu quando as duas se afastaram e entraram nas
sombras, deixando-o sozinho. Sentiu-se abandonado.
Os homens que ajeitaram a cortina apareceram ao lado
dele.
– Venha, Usul.
Deixou-se conduzir adiante, deixou-se empurrar até um
círculo de pessoas que ia se formando ao redor de Stilgar, que
estava de pé sob o luciglobo e ao lado de um fardo, todo
ângulos e curvas, de coisas reunidas debaixo de um manto
sobre o chão de pedra.
A tropa se agachou a um gesto de Stilgar, e seus mantos
silvaram com o movimento. Paul acomodou-se com eles,
observando Stilgar, reparando na maneira como o globo lá no
alto transformava os olhos dele em buracos escuros e avivavam
o contato do tecido verde que ele trazia ao pescoço. Paul
desviou sua atenção para o monte coberto pelo manto aos pés
de Stilgar e reconheceu o braço de um baliset que se projetava
do tecido.
– O espírito deixa a água do corpo ao nascer da primeira
lua – entoou Stilgar. – Assim se diz. Quando virmos a primeira
lua nascer esta noite, a quem ela convocará?
– Jamis – respondeu a tropa.
Stilgar descreveu um círculo completo, girando sobre um
dos calcanhares, e percorreu com o olhar o anel de rostos.
– Eu fui amigo de Jamis – ele disse. – Quando o avião de
caça se lançou sobre nós em Buraco na Pedra, foi Jamis quem
me salvou.
Ele se inclinou sobre a pilha a seu lado, ergueu e afastou o
manto.
– Fico com este manto, por ser amigo de Jamis: é o direito
do líder. – Ele jogou o manto sobre um dos ombros e aprumou-
se.
Agora Paul via ali exposto o conteúdo do monte: o cinza
claro e cintilante de um trajestilador, um litrofão amassado, um
lenço que trazia um livrinho no meio, o cabo sem lâmina de uma
dagacris, uma bainha vazia, uma mochila dobrada, uma
parabússola, um distrans, um martelador, vários ganchos
metálicos do tamanho de um punho, uma série do que parecia
ser pequenas pedras dentro de um tecido dobrado, um feixe de
penas amarradas... e o baliset exposto ao lado da mochila
dobrada.
Então Jamis tocava o baliset, pensou Paul. O instrumento
fez com que se lembrasse de Gurney Halleck e de tudo que
havia se perdido. Paul sabia, com sua memória do futuro no
passado, que algumas linhas de contingência poderiam
produzir um encontro com Halleck, mas essas reuniões eram
poucas e obscuras. Elas o confundiam. O fator de incerteza o
deixou maravilhado. Significa que algo que eu venha a fazer...
que talvez eu faça... pode destruir Gurney... ou devolver-lhe a
vida... ou...
Paul engoliu em seco e chacoalhou a cabeça.
Stilgar voltou a se inclinar sobre a pilha.
– Para a mulher de Jamis e para os guardas – ele disse. As
pedrinhas e o livro foram recolhidos nas pregas de seu manto.
– Direito do líder – a tropa entoou.
– O marcador do aparelho de café de Jamis – disse Stilgar,
e ele ergueu um disco chato de metal verde. – Que seja
entregue a Usul, durante a cerimônia adequada, quando
voltarmos ao sietch.
– Direito do líder – a tropa entoou.
Por último, ele pegou o cabo da dagacris e ficou de pé.
– Para a planície fúnebre – ele disse.
– Para a planície fúnebre – a tropa respondeu.
Desde seu lugar no círculo, de frente para Paul, Jéssica
acenou com a cabeça, reconhecendo a origem antiga do rito, e
pensou: O encontro da ignorância e do conhecimento, da
brutalidade e da cultura, começa na dignidade com a qual
tratamos nossos mortos. Olhou para Paul e se perguntou: Será
que ele entende? Saberá o que fazer?
– Somos amigos de Jamis – disse Stilgar. – Não choramos
por nossos mortos feito um bando de garvarg.
Um homem de barba grisalha à esquerda de Paul ficou de
pé.
– Fui amigo de Jamis – ele disse. Foi até o monte, ergueu o
distrans. – Quando nossa água ficou abaixo do nível mínimo no
cerco de Dois Pássaros, Jamis dividiu a sua. – O homem voltou
a seu lugar no círculo.
Estão esperando que eu diga que fui amigo de Jamis?, Paul
se perguntou. Estão esperando que eu fique com alguma coisa
daquela pilha? Viu que os rostos se voltavam para ele, depois
para o outro lado. Estão esperando, sim!
Um outro homem à frente de Paul se levantou, foi até a
mochila e removeu a parabússola.
– Fui amigo de Jamis – ele disse. – Quando a patrulha nos
surpreendeu em Angra da Penha e eu fui ferido, Jamis a
distraiu, para que os feridos pudessem ser salvos. – Ele voltou a
seu lugar no círculo.
Mais uma vez, os rostos se voltaram para Paul, que viu
neles a expectativa e baixou os olhos. Levou uma cotovelada e
uma voz sibilou:
– Quer nos trazer a destruição?
Como posso dizer que fui amigo dele?, Paul se perguntou.
Um outro vulto se ergueu do círculo, de frente para Paul e,
quando o rosto encapuzado entrou na luz, ele reconheceu a
mãe. Ela retirou um lenço do monte.
– Fui amiga de Jamis – ela disse. – Quando o espírito dos
espíritos dentro dele viu a necessidade da verdade, esse
espírito se retirou e poupou meu filho. – Ela voltou a seu lugar.
E Paul relembrou o desdém na voz de sua mãe quando ela
o confrontara depois da luta. “Que tal a sensação de matar um
homem?”
Novamente, ele viu os rostos se voltarem para ele, sentiu a
raiva e o medo da tropa. Um trecho que, certa vez, a mãe tinha
bibliofilmado para ele sobre “O culto aos mortos” passou
rapidamente pela mente de Paul. Ele sabia o que tinha a fazer.
Devagar, Paul se pôs de pé.
Um suspiro percorreu o círculo.
Paul sentiu seu eu diminuir ao se aproximar do centro do
círculo. Era como se tivesse perdido um fragmento de si
mesmo e o buscasse ali. Ele se inclinou sobre o monte de
pertences, ergueu o baliset. Uma corda ressoou baixinho ao
bater em alguma coisa na pilha.
– Fui amigo de Jamis – Paul sussurrou.
Sentiu que as lágrimas ardiam em seus olhos, obrigou-se a
dar mais volume a sua voz.
– Jamis me ensinou... que... quando se mata... paga-se por
isso. Queria ter conhecido Jamis melhor.
Às cegas, ele voltou a seu lugar no círculo e deixou-se cair
no chão de pedra.
Uma voz sussurrou:
– Ele está derramando lágrimas!
A novidade deu a volta no círculo:
– Usul oferece umidade aos mortos!
Sentiu que dedos tocavam as maçãs úmidas de seu rosto,
ouviu os sussurros de admiração.
Jéssica, ouvindo as vozes, sentiu a intensidade da
experiência, percebeu as inibições terríveis que deviam existir
em relação a derramar lágrimas. Ela se concentrou nas
palavras: “Ele oferece umidade aos mortos”. Era um presente
para o mundo das sombras: lágrimas. Seriam, sem dúvida
alguma, sagradas.
Nada naquele planeta tinha incutido nela com tanta força
o valor supremo da água. Nem os vendedores de água, nem as
peles ressequidas dos nativos, nem os trajestiladores e as
regras da hidrodisciplina. Eis que ali se apresentava uma
substância mais preciosa que todas as outras: era a própria
vida e enredava tudo a seu redor com simbolismo e cerimônia.
Água.
– Toquei a face dele – alguém sussurrou. – Senti o
presente.
A princípio, os dedos que lhe tocavam a face assustaram
Paul. Ele apertou o braço frio do baliset, sentindo as cordas
machucarem sua palma. Depois viu os rostos por trás das mãos
ávidas, os olhos arregalados, cheios de assombro.
No mesmo instante, as mãos se recolheram. A cerimônia
fúnebre foi retomada. Mas agora havia um espaço sutil em
volta de Paul, um retraimento, pois a tropa o venerava com um
isolamento respeitoso.
A cerimônia terminou com um cântico em voz baixa:

“Chama por ti a lua cheia...


A Shai-hulud verás na areia;
Lusco-fusco e noite magenta,
Tiveste morte tão sangrenta.
À lua redonda oramos calados...
Com a sorte ditosa enfim premiados,
O que procuramos será encontrado
Na terra feroz onde o chão foi crestado.”

Um saco volumoso continuava aos pés de Stilgar. Ele se


agachou e tocou a coisa com as palmas das mãos. Alguém veio
de trás, agachou-se ao lado de Stilgar, e Paul reconheceu o
rosto de Chani na sombra do capuz.
– Jamis carregava trinta e três litros, sete dracmas e três
trinta e dois avos de dracma da água da tribo – disse Chani. –
Eu a abençoo agora, na presença de uma Sayyadina. Ekkeri-
akairi, eis a água, fillissin-follasy de Paul Muad’Dib! Kivi a-kavi,
nunca mais, nakalas! Nakelas! será medida e contada, ukair-an!
pelas pulsações jan-jan-jan de nosso amigo... Jamis.
Num silêncio abrupto e profundo, Chani se virou, olhou
para Paul. Sem hesitar, ela disse:
– Se sou a chama, sê o carvão. Se sou o orvalho, sê a água.
– Bi-la kaifa – entoou a tropa.
– Para Paul Muad’Dib vai esta parte – disse Chani. – Que
ele a guarde para a tribo, que não a deixe se perder por
descuido. Que ele seja generoso e a divida em tempo de
necessidade. Que ele a passe adiante quando chegar a hora,
pelo bem da tribo.
– Bi-la kaifa – entoou a tropa.
Tenho de aceitar essa água, pensou Paul. Vagarosamente,
ele se levantou, colocou-se ao lado de Chani. Stilgar deu um
passo atrás, abrindo espaço para o menino, e, com toda a
delicadeza, tirou o baliset da mão de Paul.
– Ajoelhe-se – disse Chani.
Paul se ajoelhou.
Ela conduziu as mãos dele até a bolsa d’água, segurou-as
contra a superfície resistente.
– Esta água a tribo entrega a teus cuidados – ela disse. –
Jamis a deixou. Recebe-a em paz. – Ela ficou de pé e trouxe
Paul consigo.
Stilgar devolveu o baliset e estendeu a palma da mão,
mostrando um montinho de anéis de metal. Paul olhou para
eles, vendo os tamanhos diferentes, a maneira como a luz do
luciglobo se refletia neles.
Chani pegou o anel maior, segurou-o num dos dedos.
– Trinta litros – ela disse. Um a um, ela foi pegando os
outros, mostrando cada um deles a Paul, contando-os. – Dois
litros; um litro; sete hidrofichas de uma dracma cada; uma
hidroficha de três trinta e dois avos de dracma. Ao todo: trinta
e três litros, sete dracmas e três trinta e dois avos de dracma.
Ergueu-os empilhados num dos dedos, para que Paul os
visse.
– Você os aceita? – Stilgar perguntou.
Paul engoliu em seco e assentiu.
– Sim.
– Mais tarde – disse Chani –, mostrarei a você como
amarrá-los num lenço, para que não chocalhem e entreguem
sua posição quando precisar fazer silêncio. – Ela estendeu a
mão.
– Você poderia... segurá-los para mim? – pediu Paul.
Chani lançou um olhar assustado para Stilgar.
Ele sorriu e disse:
– Paul Muad’Dib, que é Usul, ainda não conhece nossos
costumes, Chani. Segure as hidrofichas dele sem compromisso,
até chegar a hora de mostrar-lhe a maneira de carregá-las.
Ela assentiu, puxou uma fita de tecido de sob o manto,
uniu os anéis com ela, usando um trançado intricado, hesitou,
depois enfiou-os na faixa da cintura, sob o manto.
Perdi alguma coisa, pensou Paul. Percebia a sensação de
humor em volta dele, uma espécie de zombaria, e sua mente fez
a associação com uma lembrança presciente: hidrofichas
oferecidas a uma mulher, ritual de corte.
– Hidromestres – disse Stilgar.
A tropa se levantou num sussurro de mantos. Dois homens
se destacaram do grupo e ergueram a bolsa d’água. Stilgar fez
descer o luciglobo e, com ele, mostrou o caminho para as
profundezas da caverna.
Paul seguia espremido atrás de Chani. Reparou no brilho
amanteigado da luz nas paredes de pedra, a maneira como as
sombras dançavam, e sentiu o ânimo elevado da tropa contido
num ar reprimido de expectativa.
Jéssica, puxada para o fim da tropa por mãos ansiosas,
rodeada por corpos que se acotovelavam, refreou um instante
de pânico. Tinha reconhecido fragmentos do ritual,
identificado os cacos de chakobsa e bhotani-jib nas palavras, e
sabia que aqueles momentos aparentemente simples podiam
irromper em violência selvagem.
Jan-jan-jan, ela pensou. Vá, vá, vá.
Era como uma brincadeira de criança que tivesse perdido
toda a inibição nas mãos dos adultos.
Stilgar se deteve diante de um paredão de rocha amarelo.
Pressionou uma projeção e a parede oscilou em silêncio para
longe dele, abrindo-se ao longo de uma fissura irregular. Ele os
conduziu pela entrada e por uma gelosia escura, em forma de
favo, que mandou uma corrente de ar fresco na direção de Paul
quando o menino passou por ela.
Paul virou-se para Chani, com um olhar inquisitivo, e
puxou-lhe o braço.
– O ar ali parecia úmido – ele disse.
– Psiu – ela sussurrou.
Mas um homem atrás deles disse:
– Há bastante umidade no captador esta noite. É o jeito
que Jamis encontrou de nos dizer que está satisfeito.
Jéssica atravessou a porta secreta, ouviu-a se fechar. Ela
viu como os fremen reduziam o passo ao atravessar a gelosia,
sentiu a umidade do ar ao sair do outro lado.
Captador de vento!, ela pensou. Eles têm um captador de
vento escondido em algum lugar na superfície, que canaliza o ar
para as regiões mais frias, aqui embaixo, e condensa a umidade.
Passaram por uma outra porta de pedra, encimada por
gelosias, que se fechou tão logo a atravessaram. A corrente de
ar a suas costas trazia uma sensação de umidade claramente
perceptível tanto para Jéssica quanto para Paul.
À frente da tropa, o luciglobo nas mãos de Stilgar desceu
abaixo do nível das cabeças adiante de Paul. No mesmo
instante, ele sentiu degraus sob seus pés, que iam fazendo uma
curva para a esquerda e para baixo. Havia luz, refletida para
trás e para cima, passando pelas cabeças encapuzadas, e um
movimento sinuoso de pessoas que desciam a escadaria em
caracol.
Jéssica sentiu a tensão aumentar a seu redor, uma
opressão do silêncio que, de tão urgente, irritava seus nervos.
Os degraus terminaram e a tropa atravessou mais uma
porta baixa. A luz do luciglobo foi engolida por um grande
espaço aberto, de teto alto e abobadado.
Paul sentiu a mão de Chani em seu braço, ouviu um fraco
pinga-pinga de água no ar gelado, sentiu uma quietude
absoluta se apossar dos fremen na presença solene de água.
Vi este lugar num sonho, ele pensou.
O pensamento foi tanto animador quanto frustrante. Em
algum lugar adiante naquele caminho, as hordas fanáticas, em
nome dele, iam deixando um rastro sangrento pelo universo. O
estandarte verde e preto dos Atreides iria se tornar um
símbolo do terror. As legiões impetuosas investiriam em
batalha berrando seu grito de guerra:
– Muad’Dib!
Não pode acontecer, ele pensou. Não posso deixar isso
acontecer.
Mas ele sentia a exigente consciência racial dentro dele,
seu propósito terrível, e entendia que nada tão pequeno
desviaria o carro de Jaganath, que vinha ganhando peso e
impulso. Se ele morresse naquele instante, a coisa seguiria em
frente com sua mãe e sua irmã por nascer. Nada que não fosse
a morte de todos os integrantes da tropa reunida ali, naquele
momento – bem como de sua mãe e dele mesmo –, conseguiria
deter a coisa.
Paul olhou ao seu redor, viu a tropa se espalhar numa fila.
Foi empurrado para a frente, de encontro a uma barreira baixa
entalhada na pedra natural. Além da barreira, à luz do globo de
Stilgar, Paul viu uma superfície escura e serena de água, que se
estendia sombras adentro – profundas e negras –, e a parede
ao longe, mal visível, talvez a uns cem metros de distância.
Jéssica sentiu a tensão da secura da pele, na testa e nas
maçãs do rosto, relaxar um pouco na presença de umidade. O
lago era fundo; ela percebeu a profundidade e resistiu à
vontade de mergulhar as mãos nele.
Ouviu um chape-chape a sua esquerda. Olhou para a fila de
fremen na penumbra, viu Stilgar ao lado de Paul e os
hidromestres, que derramavam sua carga no lago, por meio de
um medidor de vazão. O medidor era um olho redondo e
cinzento acima da orla do lago. Ela viu o ponteiro brilhante se
mover à medida que a água corria pelo medidor, viu o ponteiro
parar em trinta e três litros, sete dracmas e três trinta e dois
avos de dracma.
Precisão soberba na mensuração da água, Jéssica pensou.
E notou que as paredes da calha do medidor não mostravam
vestígio de umidade depois da passagem da água. A água
escorrera por aquelas paredes sem aderência. Viu naquele
simples fato uma pista significativa para entender a tecnologia
dos fremen: eram perfeccionistas.
Jéssica desceu a barreira até se colocar ao lado de Stilgar.
Abriram caminho para ela com cortesia informal. Ela reparou
na expressão absorta dos olhos de Paul, mas o mistério
daquele grande lago dominava seus pensamentos.
Stilgar olhou para ela.
– Há entre nós quem precisa de água – ele disse –, mas
esses vêm aqui e não tocam nesta água. Sabia disso?
– Acredito – ela disse.
Ele olhou para o lago.
– Temos mais de trinta e oito milhões de decalitros aqui –
ele disse. – Isolados dos criadorezinhos, escondidos e
preservados.
– Um tesouro – ela disse.
Stilgar ergueu o globo para olhá-la nos olhos.
– É mais que um tesouro. Temos milhares desses
depósitos. Somente alguns de nós conhecem todos eles. – Ele
inclinou a cabeça de lado. O globo lançou uma luz de sombras
amareladas sobre seu rosto e sua barba. – Ouviu isso?
Puseram-se a escutar.
O pinga-pinga da água precipitada pelo captador de vento
encheu o recinto com sua presença. Jéssica viu que a tropa
inteira foi tomada pelo êxtase da audição. Somente Paul
parecia alheio a tudo aquilo.
Para Paul, o som era o dos momentos roubados pelo
relógio. Sentia que o tempo o atravessava, que os instantes
nunca seriam recuperados. Sentia a necessidade de decidir,
mas viu-se impotente para agir.
– Foi calculado com rigor – Stilgar sussurrou. – Sabemos,
com uma precisão de até um milhão de decalitros, de quanto
precisamos. Quando chegarmos lá, mudaremos a face de
Arrakis.
Um sussurro abafado foi a resposta da tropa:
– Bi-la kaifa.
– Prenderemos as dunas com o plantio de gramíneas –
disse Stilgar, e sua voz foi ficando mais forte. – Amarraremos a
água ao solo com árvores e arbustos.
– Bi-la kaifa – entoou a tropa.
– A cada ano o gelo polar recua – disse Stilgar.
– Bi-la kaifa – eles cantaram.
– Faremos de Arrakis um lar, com lentes degeladoras nos
polos, lagos nas zonas temperadas, e somente as profundezas
do deserto para o criador e sua especiaria.
– Bi-la kaifa.
– E nenhum homem jamais sofrerá com a falta d’água. Será
sua se a recolher de poços, lagoas, lagos ou canais. Correrá
pelos qanats para alimentar nossas plantas. Estará lá para o
homem que quiser tomá-la. Será sua se estender a mão.
– Bi-la kaifa.
Jéssica percebeu o ritual religioso nas palavras, notou sua
própria resposta instintiva e reverente. Aliaram-se ao futuro,
ela pensou. Têm sua montanha para escalar. É o sonho do
cientista... e estas pessoas simples, estes camponeses, o
abraçaram completamente.
Seus pensamentos voltaram-se para Liet-Kynes, o ecólogo
planetário do imperador, o homem que se tornara um nativo –
e ela passou a admirá-lo. Era um sonho digno de cativar as
almas dos homens, e ela enxergava naquilo a mão do ecólogo.
Era um sonho pelo qual os homens estariam dispostos a
morrer. Era mais um dos ingredientes essenciais que ela
julgava necessários a seu filho: um povo com um objetivo. Seria
fácil imbuir aquele povo com o fervor e o fanatismo. Poderia ser
a espada que reconquistaria para Paul seu lugar de direito.
– Sairemos agora – disse Stilgar – e esperaremos o nascer
da primeira lua. Quando Jamis estiver seguro em seu caminho,
iremos para casa.
Expressando sua relutância com murmúrios, a tropa o
seguiu, voltando pela barreira e subindo os degraus.
E Paul, caminhando atrás de Chani, sentiu que um
momento vital havia passado por ele, que ele deixara de tomar
uma decisão essencial e agora estava enredado em seu próprio
mito. Sabia que tinha visto aquele lugar antes, provado-o num
fragmento de sonho presciente no longínquo planeta Caladan,
mas os pormenores do lugar iam sendo preenchidos agora que
ele nada vira. Experimentou uma nova sensação de
deslumbramento diante dos limites de seu dom. Era como se
viajasse na onda do tempo, algumas vezes no cavado, outras na
crista, e, em toda a volta, as outras ondas subiam e desciam,
revelando e depois escondendo o que levavam em sua
superfície.
E, o tempo todo, o jihad desenfreado continuava a fazer
vulto mais adiante, a violência e a carnificina. Era como um
promontório acima da arrebentação.
A tropa passou em fila pela última porta e entrou na
caverna principal. A porta foi lacrada. As luzes foram
apagadas, as coberturas removidas das entradas da caverna,
revelando a noite e as estrelas que tinham se apoderado do
deserto.
Jéssica foi até o rebordo seco nos limites da caverna, olhou
para as estrelas. Estavam nítidas e próximas. Sentiu a agitação
da tropa ao seu redor, ouviu o som de um baliset que era
afinado em algum lugar lá atrás, e a voz de Paul cantarolando o
tom. Havia, na voz do filho, uma melancolia que a desagradou.
A voz de Chani se intrometeu, vinda da escuridão intensa
da caverna:
– Fale-me sobre as águas de seu planeta natal, Paul
Muad’Dib.
E Paul:
– Uma outra hora, Chani. Prometo.
Tamanha tristeza.
– É um bom baliset – disse Chani.
– Muito bom – disse Paul. – Acha que Jamis vai se importar
se eu o usar?
Ele fala do morto no tempo presente, pensou Jéssica. As
implicações a perturbaram.
A voz de um homem interferiu:
– Ele até que gostava de música, o Jamis.
– Então cante-me uma de suas canções – implorou Chani.
Tamanho encanto feminino na voz dessa menina, Jéssica
pensou. Tenho de alertar Paul a respeito dessas mulheres... e
logo.
– Eis uma canção de um amigo meu – disse Paul. – Imagino
que esteja morto agora, o Gurney. Ele dizia que era sua oração
da tarde.
A tropa ficou em silêncio, escutando, enquanto a voz de
Paul se alteava num doce tenor de menino, com o tanger do
baliset ao fundo:

“Este tempo claro de contemplar as brasas...


Um sol auribrilhante perde-se no crepúsculo.
Que frenesi de sentidos, desespero de almíscar
É consorte da memória?”
Jéssica sentiu a música verbalizada em seu peito: pagã,
cheia de sons que a deixaram, de repente, tão consciente de si
mesma, sentindo seu próprio corpo e suas carências.
Continuou ouvindo, em tensa imobilidade.

“O réquiem perolincensário da noite...


Feito para nós!
Que alegrias correm, então...
Brilhantes em seus olhos?
Que amores floridos
Movem nossos corações?
Que amores floridos
Saciam nossos desejos?”

E Jéssica ouviu a réplica do silêncio ressoar com a última


nota. Por que meu filho canta uma canção de amor para essa
menina?, ela se perguntou. Sentiu um medo repentino.
Percebia a vida que corria a seu redor, sem que as rédeas
estivessem em suas mãos. Por que escolheu essa canção?, ela se
indagou. Os instintos às vezes são verdadeiros. Por que ele fez
isso?
Paul ficou sentado, em silêncio, no escuro, e um único
pensamento persistente dominava sua consciência: Minha mãe
é meu inimigo. Ela não sabe disso, mas é. Ela trará o jihad. Ela
me deu à luz; ela me treinou. É meu inimigo.
O conceito de progresso age como um
mecanismo protetor para nos resguardar
dos horrores do futuro.
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Em seu 17° aniversário, Feyd-Rautha Harkonnen matou


seu centésimo gladiador-escravo nos jogos da família. Os
observadores visitantes da Corte Imperial – o conde e a lady
Fenring – estiveram no planeta natal dos Harkonnen, Giedi
Primo, para a ocasião, convidados a se sentar, naquela tarde,
com os parentes mais próximos do rapaz, no camarote
dourado acima da arena triangular.
Em homenagem à natividade do na-barão, e para lembrar
a todos os Harkonnen e seus súditos que Feyd-Rautha era o
herdeiro nomeado, era feriado em Giedi Primo. O velho barão
tinha decretado um dia de descanso de meridiano a meridiano,
fizera-se um esforço na cidade da família, Harko, para criar a
ilusão de alegria: flâmulas tremulavam nos prédios, os muros
ao longo da Via Cortês receberam nova pintura.
Mas, fora da via principal, o conde Fenring e sua esposa
notaram os montes de lixo, os muros ásperos e de cor marrom,
refletidos nas poças d’água escuras das ruas, e o passo rápido e
furtivo das pessoas.
Na fortaleza de muralhas azuis do barão, havia uma
perfeição temerosa, mas o conde e sua esposa viram o preço
que se pagava por aquilo: guardas em toda parte e armas com
aquele lustro especial que, para olhos treinados, indicavam o
uso constante. Havia postos de controle nas passagens de uma
área a outra, até mesmo dentro do forte. Os serviçais
revelavam seu treinamento militar na maneira como andavam,
no aprumo dos ombros... na maneira como seus olhos
vigiavam, vigiavam e vigiavam.
– Estão sob pressão – o conde murmurou para a esposa no
idioma secreto que usavam. – O barão está começando a ver
que preço pagou de fato para se livrar do duque Leto.
– Um dia desses tenho de contar a você a lenda da fênix –
ela disse.
Estavam na sala de recepção do forte, esperando a hora de
ir aos jogos da família. Não era um salão grande – talvez tivesse
quarenta metros de comprimento e metade disso na largura –,
mas as colunas falsas nas laterais terminavam em pontas
abruptas e o teto era discretamente abobadado, o que criava a
ilusão de um espaço muito maior.
– Aaah, aí vem o barão – disse o conde.
O barão percorreu todo o salão com aquele passo
deslizante, gingado e peculiar conferido pela necessária
condução do peso aliviado pelos suspensores. As papadas
subiam e desciam; os suspensores balançavam e se moviam
sob o manto alaranjado. As mãos cintilavam com anéis e o
manto brilhava com piropalas entretecidas.
Ao lado do barão vinha Feyd-Rautha. Os cabelos escuros
formavam cachos miúdos que pareciam incongruentemente
alegres acima dos olhos soturnos. Vestia uma túnica negra e
muito justa, e calças apertadas, com discretas bocas de sino.
Chinelos de sola macia cobriam seus pés pequeninos.
Lady Fenring, reparando no aprumo do jovem e na
segurança com que seus músculos se moviam sob a túnica,
pensou: Eis aí alguém que não pretende engordar.
O barão se deteve diante deles, tomou o braço de Feyd-
Rautha e disse:
– Meu sobrinho, o na-barão, Feyd-Rautha Harkonnen. – E,
virando sua cara gorda de bebê para Feyd-Rautha, disse: – O
conde e a lady Fenring, de quem lhe falei.
Feyd-Rautha baixou a cabeça com a devida cortesia. Olhou
para a lady Fenring. Ela tinha cabelos dourados e era esbelta, e
a perfeição de sua figura trajava um vestido esvoaçante de
linho cru e talhe simples, sem ornamentos. Os olhos verde-
acinzentados devolveram-lhe o olhar. Ela tinha aquela
serenidade das Bene Gesserit que o jovem achou sutilmente
perturbadora.
– Hummmm, ah, hãããã – disse o conde. Estudou Feyd-
Rautha. – O, hãããã, jovem meticuloso, ah, meu... hãããã... caro? –
O conde olhou para o barão. – Meu caro barão, está dizendo
que falou de nós para este jovem meticuloso? E o que foi que
disse?
– Comentei com meu sobrinho a grande estima que nosso
imperador tem pelo conde Fenring – disse o barão. E pensou:
Observe-o bem, Feyd! Um assassino com modos de coelho: esse é
o tipo mais perigoso.
– Claro – disse o conde, sorrindo para sua esposa.
Feyd-Rautha tomou as ações e as palavras do homem
quase como insultos. Chegavam bem perto de uma desfaçatez
que exigiria uma reparação. O rapaz concentrou sua atenção
no conde: um homem pequeno, de aparência frágil. Tinha cara
de fuinha, olhos escuros e excessivamente grandes. Os cabelos
eram grisalhos nas têmporas. E seus movimentos – ele mexia
uma das mãos ou virava a cabeça para um lado, mas falava para
o outro. Era difícil acompanhá-lo.
– Hummmmm, aaah, hããã, é tão raro encontrar, mmm,
tamanha meticulosidade – disse o conde, dirigindo-se ao
ombro do barão. – Eu... ah, quero lhe dar os parabéns pela,
hããã, perfeição de seu, aah, herdeiro. Tendo em mente o, hããã,
antecessor, por assim dizer.
– Quanta gentileza – disse o barão. Fez uma reverência,
mas Feyd-Rautha reparou que os olhos do tio não
correspondiam à sua cortesia.
– Quando se é, mmm, irônico, isso, aah, sugere que se tem,
hãããã, pensamentos profundos – disse o conde.
Ele fez de novo, pensou Feyd-Rautha. Soa como um insulto,
mas nada do que ele diz dá motivo para que exijamos
satisfações.
Ouvir aquele homem falar dava a Feyd-Rautha a sensação
de ter a cabeça enfiada no mingau... humm, aaah, hãããã! Feyd-
Rautha voltou a se concentrar em lady Fenring.
– Estamos, aah, tomando muito tempo do rapaz – ela disse.
– Se entendi bem, ele irá se apresentar na arena hoje.
Pelas huris do harém imperial, ela é adorável!, pensou
Feyd-Rautha, e disse:
– Matarei um por você hoje, milady. Farei a dedicatória na
arena, com sua permissão.
Ela devolveu serenamente o olhar dele, mas sua voz foi
como uma chicotada ao dizer:
– Você não tem minha permissão.
– Feyd! – disse o barão, e pensou: O diabinho! Quer que este
conde mortífero o desafie?
Mas o conde só fez sorrir e disse:
– Hãããã, humm.
– Você tem mesmo que se preparar para a arena, Feyd –
disse o barão. – Precisa estar descansado para não se arriscar
estupidamente.
Feyd-Rautha fez uma reverência, e o ressentimento corou-
lhe a face.
– Tenho certeza de que tudo estará a seu contento, tio. –
Ele cumprimentou o conde Fenring com a cabeça. – Senhor. – E
para a dama: – Milady. – Deu meia-volta, saiu do saguão a
passos largos, sem se dar ao trabalho de olhar para o grupo de
Famílias Menores perto das portas duplas.
– Ele é tão jovem – suspirou o barão.
– Hummm, ah, de fato, hããã – disse o conde.
E lady Fenring pensou: Será esse o rapaz que a Reverenda
Madre mencionou? Essa é uma das linhagens que temos de
preservar?
– Temos mais de uma hora antes de ir para a arena – disse
o barão. – Talvez possamos ter agora nossa conversinha, conde
Fenring. – Inclinou sua cabeça gorda para a direita. – São
muitas as novidades que temos a discutir.
E o barão pensou: Vejamos como o moleque de recados do
imperador entregará sua mensagem sem cometer a grosseria de
dizê-la com todas as letras.
O conde falou para sua esposa:
– Hummm, aah, hããã, pode, mmm, nos, aah, dar licença,
minha cara?
– A mudança chega a cada dia, às vezes a cada hora – ela
disse. – Mmmmm. – Lançou um sorriso agradável para o barão
antes de lhe dar as costas. As saias compridas farfalharam
quando ela foi, com passos régios e as costas eretas, em
direção às portas duplas no final do salão.
O barão notou como todas as conversas das Casas
Menores ali presentes cessaram quando ela se aproximou,
como os olhos a seguiram. Bene Gesserit!, pensou o barão. O
universo seria tão melhor sem elas!
– Há um cone do silêncio entre duas daquelas colunas, a
nossa esquerda – disse o barão. – Podemos conversar ali, sem
recear que alguém nos ouça. – Ele seguiu na frente, com seu
passo gingado, e entrou no campo sonossupressor, notando
que os ruídos do forte tornavam-se abafados e distantes.
O conde posicionou-se ao lado do barão, e os dois se
viraram para a parede, para que ninguém pudesse ler seus
lábios.
– Não ficamos satisfeitos com a maneira como o barão
dispensou os Sardaukar em Arrakis – disse o conde.
Direto ao assunto!, pensou o barão.
– Os Sardaukar não poderiam mais permanecer sem que
corrêssemos o risco de outros descobrirem como o imperador
me ajudou – disse o barão.
– Mas seu sobrinho Rabban não parece estar fazendo
pressão suficiente para encontrar uma solução para o
problema dos fremen.
– O que o imperador deseja? – perguntou o barão. – Não
deve ter sobrado mais que um punhado de fremen em Arrakis.
O deserto austral é inabitável. O deserto setentrional é
percorrido regularmente por nossas patrulhas.
– Quem disse que o deserto austral é inabitável?
– Seu próprio planetólogo, meu caro conde.
– Mas o dr. Kynes está morto.
– Ah, sim... uma infelicidade.
– Temos o relatório de uma nave que sobrevoou o extremo
Sul – disse o conde. – Há indícios de vida vegetal.
– Então a Guilda concordou com o monitoramento desde o
espaço?
– Sabe muito bem que não, barão. O imperador não pode,
legalmente, monitorar Arrakis.
– E eu não tenho como pagar por isso – disse o barão. –
Quem fez esse sobrevoo?
– Um... contrabandista.
– Alguém mentiu para o conde – disse o barão. – Os
contrabandistas, assim como os homens de Rabban, não
conseguem pilotar no Sul. Tempestades, estática arenosa e
tudo o mais, sabe. Os marcos de navegação caem em menos
tempo do que se leva para instalá-los.
– Discutiremos os diversos tipos de estática em outra
ocasião – disse o conde.
Aaah, pensou o barão.
– Encontrou algum erro em minhas contas então? – ele
indagou.
– Não há legítima defesa quando os erros são imaginários –
disse o conde.
Está tentando deliberadamente me enfurecer, pensou o
barão. Inspirou fundo duas vezes, para se acalmar. Sentia o
cheiro do próprio suor, e o arnês de suspensores sob seu manto
de repente pareceu-lhe incômodo e exasperante.
– O imperador não pode estar descontente com a morte da
concubina e do menino – disse o barão. – Eles fugiram para o
deserto. Veio uma tempestade.
– Sim, foram tantos acidentes convenientes – concordou o
conde.
– Não estou gostando de seu tom de voz, conde – disse o
barão.
– A raiva é uma coisa, a violência, outra – disse o conde. –
Permita-me alertá-lo: se eu sofresse um acidente infeliz aqui,
todas as Casas Maiores ficariam sabendo do que fez em
Arrakis. Há tempos elas desconfiam da maneira como você
conduz os negócios.
– O único negócio recente de que me recordo – disse o
barão – foi transportar várias legiões de Sardaukar para
Arrakis.
– Acha que conseguiria usar isso para chantagear o
imperador?
– Nem pensaria nisso!
O conde sorriu.
– É possível encontrar comandantes entre os Sardaukar
que confessariam ter agido sem receber ordens, porque
queriam combater a escória fremen.
– Muitos talvez duvidassem de uma confissão como essa –
disse o barão, mas a ameaça o desconcertou. Será que os
Sardaukar são tão disciplinados assim?, ele se perguntou.
– O imperador quer realmente fazer uma auditoria de seus
livros-caixa – disse o conde.
– Fique à vontade.
– O barão... ah... não fará objeção?
– Nenhuma. Meu cargo na diretoria da CHOAM passará até
por um pente-fino. – E ele pensou: Deixe-o levantar e
apresentar uma acusação falsa contra mim. Estarei lá, como
Prometeu, dizendo: “Contemplai-me, fui injustiçado”. Então, que
ele me acuse de qualquer outra coisa, mesmo que seja
verdadeira. As Casas Maiores não darão crédito a um segundo
ataque vindo de um acusador que já se mostrou enganado.
– Não há dúvida de que seus livros-caixa passarão por
qualquer pente-fino – murmurou o conde.
– Por que o imperador está tão interessado em exterminar
os fremen? – o barão perguntou.
– Quer mudar de assunto, hein? – O conde deu de ombros.
– O interesse é todo dos Sardaukar, e não do imperador.
Precisavam praticar a matança... e odeiam deixar uma tarefa
pela metade.
Ele acha que vai me assustar lembrando-me de que tem o
apoio de assassinos sedentos de sangue?, perguntou-se o barão.
– Um pouco de matança sempre foi uma das armas do
negócio – disse o barão –, mas é preciso impor um limite em
algum ponto. Tem de sobrar alguém para colher a especiaria.
O conde soltou uma risada breve, como um latido.
– Acha que é capaz de usar os fremen?
– Nunca foram suficientes para isso – disse o barão. – Mas
a matança deixou o resto de minha população apreensiva. Está
chegando a tal ponto que começo a cogitar uma outra solução
para o problema arrakino, meu caro Fenring. E tenho de
confessar que o mérito por essa inspiração cabe ao imperador.
– Aah?
– Veja bem, conde, tenho o planeta-prisão do imperador,
Salusa Secundus, como inspiração.
O conde o encarou com uma veemência cintilante.
– Que ligação pode haver entre Arrakis e Salusa Secundus?
O barão percebeu o estado de alerta nos olhos de Fenring
e disse:
– Nenhuma ligação, ainda.
– Ainda?
– Há que se admitir que seria uma maneira de desenvolver
uma força de trabalho substancial em Arrakis: usá-lo como
planeta-prisão.
– Prevê um aumento na população prisional?
– Houve tumultos – admitiu o barão. – Tive de espremê-los
com bastante severidade, Fenring. Afinal de contas, o conde
sabe o preço que paguei à maldita Guilda para transportar
nossas forças conjuntas até Arrakis. Esse dinheiro teve de sair
de algum lugar.
– Sugiro, barão, que não comece a usar Arrakis como
planeta-prisão sem a permissão do imperador.
– Claro que não – disse o barão, intrigado com a frieza
repentina na voz de Fenring.
– Um outro assunto – disse o conde. – Soubemos que o
Mentat do duque Leto, Thufir Hawat, não está morto, e sim a
seu serviço.
– Eu não podia desperdiçá-lo – disse o barão.
– Mentiu para nosso comandante Sardaukar quando disse
que Hawat estava morto.
– Foi só uma mentirinha inocente, meu caro conde. Eu não
suportaria uma discussão prolongada com aquele homem.
– Hawat era o verdadeiro traidor?
– Oh, deuses, não! Era o falso médico. – O barão enxugou o
suor do pescoço. – Precisa entender, Fenring, que acabei
ficando sem um Mentat. Sabe disso. Nunca tinha ficado sem
um Mentat. Foi muito aflitivo.
– Como conseguiu fazer Hawat mudar de lado?
– Seu duque estava morto. – O barão deu um sorriso
forçado. – Não há nada a temer no caso de Hawat, meu caro
conde. O corpo do Mentat foi impregnado com um veneno
latente. Damos a ele um antídoto nas refeições. Sem o antídoto,
o veneno seria ativado, e ele morreria em alguns dias.
– Remova o antídoto – disse o conde.
– Mas ele é útil!
– E sabe demais, sabe coisas que nenhum homem vivo
deveria saber.
– O conde disse que o imperador não receava ser
desmascarado.
– Não brinque comigo, barão!
– Quando eu vir essa ordem sancionada pelo sinete
imperial, aí sim obedecerei – disse o barão. – Mas não vou me
submeter a seus caprichos.
– Acha que é um capricho?
– O que mais pode ser? O imperador também tem
obrigações para comigo, Fenring. Eu o livrei do duque
impertinente.
– Com a ajuda de alguns Sardaukar.
– Onde mais o imperador teria encontrado uma Casa para
fornecer os uniformes que os disfarçaram e ocultar seu
envolvimento?
– Ele se tem feito a mesma pergunta, barão, mas com uma
ênfase um pouco diferente.
O barão estudou Fenring, reparando na rigidez dos
músculos da mandíbula, no autocontrole cuidadoso.
– Aah, sei – disse o barão. – Espero que o imperador não
acredite que conseguirá me atacar sem romper o sigilo.
– Ele espera que isso não seja necessário.
– Não é possível que o imperador creia que eu seja uma
ameaça! – O barão deixou a raiva e a mágoa alterarem sua voz,
pensando: Deixe que me calunie. Eu poderia me sentar no trono
enquanto ainda batesse no peito, dizendo como fui caluniado.
A voz do conde ganhou um timbre seco e remoto quando
ele disse:
– O imperador acredita naquilo que seus sentidos lhe
dizem.
– O imperador ousaria me acusar de traição diante de todo
o Conselho do Landsraad? – E o barão prendeu o fôlego por
antecipação.
– O imperador não precisa ousar nada.
O barão virou-se em seus suspensores, para esconder a
expressão em seu rosto. Poderia acontecer ainda durante
minha vida, ele pensou. Imperador! Deixe que me calunie! E
então, os subornos e a coerção, as Casas Maiores cerrando
fileiras: elas se uniriam sob minha bandeira como camponeses
em busca de abrigo. A coisa que mais temem é o imperador
soltar os Sardaukar em cima delas, uma Casa por vez.
– O imperador espera sinceramente nunca ter de acusar o
barão de traição – disse o conde.
O barão teve dificuldade para afastar a ironia de sua voz e
permitir somente a expressão de mágoa, mas conseguiu.
– Tenho sido um súdito dos mais leais. Essas palavras me
causam uma mágoa tão grande que não sou capaz de expressá-
la.
– Hummm, ah, hããã – disse o conde.
O barão continuou de costas para o conde, balançando
afirmativamente a cabeça. Sem demora, disse:
– É hora de ir para a arena.
– É mesmo – disse o conde.
Saíram do cone de silêncio e, lado a lado, caminharam na
direção dos ajuntamentos de Casas Menores na ponta do salão.
Um sino começou a dobrar lentamente em algum lugar da
fortaleza: o aviso de que faltavam vinte minutos para o evento
na arena.
– As Casas Menores esperam que você lhes aponte o
caminho – disse o conde, acenando com a cabeça na direção
das pessoas de quem os dois se aproximavam.
Duplo sentido... duplo sentido, pensou o barão.
Ergueu os olhos para os novos talismãs de um lado e de
outro da saída do salão: a cabeça de touro e o retrato a óleo do
Velho Duque Atreides, pai do falecido duque Leto. Ao vê-los, o
barão foi tomado por um pressentimento esquisito e imaginou
que pensamentos aqueles talismãs teriam inspirado ao duque
Leto quando enfeitavam as paredes dos palácios em Caladan e
Arrakis: a bravura do pai e a cabeça do touro que o matara.
– A humanidade só tem, ah, uma, mmm, ciência – disse o
conde, depois de reunirem seu séquito e passarem do salão à
sala de espera, um lugar apertado, de janelas altas e piso
ladrilhado, com padrões em branco e púrpura.
– E que ciência é essa? – perguntou o barão.
– É a, hummm, aah, ciência do, aah, descontentamento –
disse o conde.
Atrás deles, os membros das Casas Menores, submissos e
impressionáveis, riram no tom exato para demonstrar apreço,
mas o som produziu uma nota discordante ao colidir com a
explosão repentina de motores que chegou até eles quando os
pajens escancararam as portas externas, revelando uma fileira
de carros terrestres, com seus estandartes tremulando ao
vento.
O barão ergueu a voz para transpor o barulho repentino e
disse:
– Espero que não fique descontente com a apresentação
de meu sobrinho hoje, conde Fenring.
– Eu, aah, me encontro, hummm, tomado apenas pela,
hããã, expectativa, sim – disse o conde. – No, aah, procès-verbal,
é preciso sempre, humm, aah, considerar a, aah, repartição de
origem.
O barão disfarçou o súbito enrijecimento provocado pela
surpresa ao tropeçar no primeiro degrau da saída. Procès-
verbal! É uma denúncia de crime contra o Imperium!
Mas o conde deu uma risadinha, para fazer a coisa parecer
uma piada, e bateu de leve no braço do barão.
Contudo, ao longo de todo o caminho até a arena, o barão
ficou recostado nas almofadas blindadas de seu carro,
lançando olhares velados para o conde que ia a seu lado,
perguntando-se por que o moleque de recados do imperador
havia julgado necessário fazer justamente aquele tipo de piada
diante das Casas Menores. Era óbvio que Fenring raramente
fazia o que julgava ser desnecessário, nem empregava duas
palavras quando uma já bastava, nem se atinha a um só sentido
numa mesma frase.
Estavam acomodados no camarote dourado acima da
arena triangular – o clangor de cornetas, as arquibancadas
abarrotadas de gente barulhenta e flâmulas ao vento, acima e
ao redor deles – quando a resposta veio até o barão.
– Meu caro barão – disse o conde, inclinando-se bem perto
do ouvido do homem –, sabe, pois não, que o imperador ainda
não aprovou oficialmente a escolha de seu herdeiro?
O barão, de repente, sentiu-se dentro de um cone de
silêncio só seu, gerado por seu próprio espanto. Encarou
Fenring, mal vendo a esposa do conde passar pelos guardas
mais à frente para se juntar ao grupo no camarote dourado.
– Esse é o verdadeiro motivo para eu estar aqui hoje – disse
o conde. – O imperador quer que eu o informe se o barão
escolheu um sucessor digno. Nada como a arena para revelar a
pessoa de verdade por baixo da máscara, hein?
– O imperador me prometeu que eu teria liberdade para
escolher meu herdeiro! – protestou o barão, entre dentes.
– É o que veremos – disse Fenring, virando-se para
cumprimentar a esposa. Ela se sentou, sorrindo para o barão,
depois dirigiu sua atenção ao chão de areia abaixo deles, onde
Feyd-Rautha acabava de aparecer, vestindo roupas justas e
gilê, com a luva negra e a faca de lâmina longa na mão direita, a
luva branca e a faca curta na esquerda.
– O branco é o veneno e o negro, a pureza – disse lady
Fenring. – Um costume curioso, não é, meu amor?
– Hummm – disse o conde.
Gritos de aplauso soaram nas galerias da família para
saudar Feyd-Rautha, que se deteve para recebê-los, olhando
para cima e examinando aqueles rostos, vendo seus primos e
primanes, os hemi-irmãos, as concubinas e os parentes
forafreyn. Eram tantas boquinhas redondas e rosadas
berrando em meio a uma confusão de roupas e estandartes
coloridos.
Nesse momento, ocorreu a Feyd-Rautha que as fileiras
apinhadas de rostos olhariam para seu sangue na arena com a
mesma avidez com que veriam o do gladiador-escravo.
Naturalmente, não havia dúvida de qual seria o resultado
daquela luta. Encontrava-se ali somente a forma do perigo, e
não seu conteúdo, mas...
Feyd-Rautha ergueu suas facas, apresentando-as ao sol, e
cumprimentou os três cantos da arena, segundo o costume
antigo. A faca curta na mão enluvada e branca (branco, a marca
do veneno) foi a primeira a ser embainhada. Depois a faca
comprida na mão que trazia a luva negra, a arma pura que
agora era impura, sua arma secreta para transformar aquele
dia numa vitória puramente pessoal: veneno na lâmina negra.
Levou só um segundo para ajustar seu escudo corporal e
se deteve para sentir a pele da testa se retesar, garantia de que
estava adequadamente protegido.
O momento era de um suspense todo próprio, e Feyd-
Rautha o prolongou com total domínio de cena, fazendo sinal
com a cabeça para os treinadores e furta-capas, verificando-
lhes o equipamento com um olhar avaliador: os ferros em
posição, com puas afiadas e cintilantes, as farpas e os ganchos
que tremulavam com suas bandeirolas azuis.
Feyd-Rautha fez sinal para os músicos.
A marcha lenta teve início, sonora, com sua pompa
antiquada, e Feyd-Rautha seguiu à frente de sua trupe até o
outro lado da arena, para fazer uma mesura aos pés do
camarote de seu tio. Apanhou no ar a chave cerimonial que lhe
atiraram.
A música cessou.
No silêncio repentino que se seguiu, ele retrocedeu dois
passos, ergueu a chave e gritou:
– Dedico esta verdade a... – e fez uma pausa, sabendo que
seu tio pensaria: Esse idiotazinho vai dedicá-la a lady Fenring,
apesar de tudo, e armar uma confusão!
– … meu tio e patrono, o barão Vladimir Harkonnen –
gritou Feyd-Rautha.
E ficou deliciado ao ver o tio suspirar.
A música recomeçou com a marcha rápida, e Feyd-Rautha,
à frente de seus homens, correu de volta ao outro lado da
arena, para a porta dos prudentes, que só deixava passar
aqueles que usassem a faixa de identificação correta. Feyd-
Rautha se orgulhava de nunca usar a portapru e raramente
precisar dos furta-capas. Mas era bom saber que estavam
disponíveis naquele dia: planos especiais às vezes envolviam
riscos especiais.
Mais uma vez, o silêncio se instalou na arena.
Feyd-Rautha se virou e encarou a grande porta vermelha
do outro lado, de onde sairia o gladiador.
O gladiador especial.
O plano arquitetado por Thufir Hawat era admiravelmente
simples e direto, pensou Feyd-Rautha. O escravo não estaria
drogado – esse era o risco. Em vez disso, haviam incutido no
inconsciente do homem uma palavra-chave que paralisaria
seus músculos num instante crítico. Feyd-Rautha repetia a
palavra fatal em sua mente, dando-lhe forma com a boca, sem
emitir som: “Ralé!”. Para a plateia, pareceria que um escravo
não drogado fora introduzido na arena para matar o na-barão.
E todos os indícios, cuidadosamente preparados, apontariam
para o feitor de escravos.
Um zumbido baixo se elevou dos servomotores da porta
vermelha, que se preparavam para abri-la.
Feyd-Rautha concentrou todos os seus sentidos na porta.
Aquele primeiro instante era o momento crítico. A aparência
do gladiador ao entrar na arena fornecia ao olhar treinado boa
parte do que o combatente precisava saber. Esperava-se que
todos os gladiadores fossem injetados com a droga de elacca,
para que entrassem na arena em posição de luta e dispostos a
matar, mas era preciso observar como eles erguiam a faca,
para que lado se viravam na defesa, se estavam de fato cientes
da presença do público nas arquibancadas. A maneira como o
escravo inclinava a cabeça poderia dar a dica mais importante
para os contras e as fintas.
A porta vermelha se abriu com estrondo.
Lá de dentro arremeteu um homem alto e musculoso, com
a cabeça raspada e os olhos escuros e fundos. Sua pele tinha
cor de cenoura, como deveria ser, por causa da droga de elacca,
mas Feyd-Rautha sabia que a cor não passava de tinta. O
escravo vestia malha justa e verde e o cinturão vermelho de um
semiescudo – a seta do escudo, apontando a esquerda, indicava
que o lado esquerdo do escravo estava protegido. Segurava a
faca como se fosse uma espada, ligeiramente inclinada para
fora, adotando a postura de um lutador treinado. Devagar, ele
avançou arena adentro, virando o lado protegido pelo escudo
para Feyd-Rautha e o grupo diante da portapru.
– Não estou gostando da cara desse aí – disse um dos
bandarilheiros de Feyd-Rautha. – Tem certeza de que ele está
drogado, milorde?
– Veja a cor dele – disse Feyd-Rautha.
– Mas a postura é a de um lutador – disse um outro
ajudante.
Feyd-Rautha deu dois passos à frente, pisou na areia e
estudou aquele escravo.
– O que ele fez com o braço? – perguntou um dos furta-
capas.
A atenção de Feyd-Rautha foi desviada para uma
esfoladura ensanguentada no antebraço esquerdo do homem,
seguiu até a mão, que apontava um desenho traçado no quadril
esquerdo da malha verde: havia ali uma forma úmida, os
contornos formalizados de um gavião.
Um gavião!
Feyd-Rautha olhou para aqueles olhos fundos e escuros,
viu-os brilhar com uma prontidão incomum.
É um dos homens de armas do duque Leto que capturamos
em Arrakis!, pensou Feyd-Rautha. Não é um simples gladiador!
Um calafrio o percorreu, e ele imaginou se Hawat tinha um
outro plano para aquela arena – uma finta por dentro de outra
por dentro de outra. E somente o feitor de escravos para levar
a culpa!
O principal treinador de Feyd-Rautha falou-lhe ao pé do
ouvido:
– Não estou gostando da cara desse aí, milorde. Deixe-me
espetá-lo no braço que leva a faca com uma ou duas farpas, e aí
veremos.
– Eu mesmo vou enchê-lo de farpas – disse Feyd-Rautha.
Tomou das mãos do treinador um par de hastes compridas,
com ganchos nas pontas, sopesou-as, experimentando seu
equilíbrio. Aquelas farpas também deveriam estar drogadas,
mas não daquela vez, e o treinador poderia morrer por causa
disso. Mas era tudo parte do plano.
– Isso fará de você um herói – tinha lhe dito Hawat. – Terá
matado seu gladiador em combate singular, apesar da traição.
O feitor será executado e seu homem ocupará a posição.
Feyd-Rautha deu mais cinco passos para dentro da arena,
desfrutando o momento, estudando o escravo. Sabia que os
especialistas nas arquibancadas lá em cima já tinham
percebido que havia algo errado. O gladiador exibia a cor da
pele correta para um homem drogado, mas mantinha-se em
posição e não tremia. Os aficionados deviam estar cochichando
entre eles:
– Olhem a postura dele. Devia estar agitado, atacando ou
recuando. Vejam como ele poupa suas forças, como aguarda.
Não era para aguardar.
Feyd-Rautha sentiu seu entusiasmo se inflamar. Que seja
mesmo traiçoeira a intenção de Hawat, ele pensou. Eu sou
páreo para este escravo. E, desta vez, é minha faca longa que
traz o veneno, não a curta. Nem mesmo Hawat sabe disso.
– Ei, Harkonnen! – gritou o escravo. – Está preparado para
morrer?
Um silêncio de morte se apossou da arena. Os escravos não
lançam o desafio!
Agora, Feyd-Rautha teve uma visão clara dos olhos do
gladiador, viu neles a ferocidade gélida do desespero. Reparou
na maneira como o homem se portava, relaxado e pronto, com
os músculos preparados para a vitória. A rede de informações
dos escravos levara a mensagem de Hawat até aquele homem:
– Você terá uma oportunidade real de matar o na-barão. –
Aquela parte do plano, portanto, saíra como eles haviam
imaginado.
Um sorriso tenso passou pela boca de Feyd-Rautha. Ele
ergueu as farpas, vendo o êxito de seus planos na maneira
como o gladiador se portava.
– Ei! Ei! – o escravo lançou o desafio e deu dois passos
arrastados adiante.
Ninguém nas galerias terá dúvidas agora, Feyd-Rautha
pensou.
Aquele escravo deveria estar parcialmente incapacitado
pelo pavor que a droga induzia. Cada momento deveria revelar
que, por dentro, ele sabia que não havia esperança, que não
havia como vencer. Deveriam ter enchido seus ouvidos com
histórias sobre os venenos que o na-barão teria escolhido para
a arma que trazia na mão com a luva branca. O na-barão nunca
concedia a morte rápida: deliciava-se em demonstrar venenos
raros, às vezes ficava na arena, destacando efeitos colaterais
interessantes na vítima agonizante. Havia medo no escravo,
sem dúvida, mas não pavor.
Feyd-Rautha ergueu as farpas bem alto e acenou com a
cabeça, quase um cumprimento.
O gladiador atacou.
Sua finta e o contra defensivo foram os melhores que Feyd-
Rautha já tinha visto. Foi por um triz que um golpe lateral e
calculado não cortou os tendões da perna esquerda do na-
barão.
Feyd-Rautha se afastou com passos de dançarino,
deixando uma haste farpada no antebraço direito do escravo,
os ganchos enterrados completamente na carne, de um modo
que o homem não conseguiria removê-los sem rasgar os
tendões.
Um suspiro uníssono se elevou das galerias.
O som encheu Feyd-Rautha de júbilo.
Entendeu pelo que o tio estava passando, sentado lá com
os Fenring, os observadores da Corte Imperial, ao lado dele.
Não podia haver nenhuma interferência naquela luta. Era
preciso cumprir as formalidades diante de testemunhas. E o
barão interpretaria os acontecimentos da arena de um único
jeito: uma ameaça a sua própria pessoa.
O escravo recuou, segurando a faca nos dentes e
amarrando a haste farpada ao braço dele com a bandeirola.
– Nem senti sua agulha! – ele gritou. Mais uma vez, ele
avançou com seu passo arrastado, com a faca pronta,
apresentando o lado esquerdo do corpo, que ele inclinava para
trás, para obter a maior área de proteção possível do meio-
escudo.
A ação não passou despercebida nas galerias. Gritos
agudos brotaram dos camarotes da família. Os treinadores de
Feyd-Rautha o chamaram para perguntar se eram necessários.
Ele fez sinal para que voltassem à portapru.
Vou lhes dar um espetáculo como nunca viram, pensou
Feyd-Rautha. Nenhuma morte insípida que os faça admirar
apenas a técnica, sem se levantar. Será algo digno de lhes
revirar as tripas. Quando eu for o barão, eles irão se lembrar
deste dia e não haverá entre eles quem não sinta medo de mim
por causa de hoje.
Feyd-Rautha foi perdendo terreno bem devagar diante do
gladiador que avançava de lado. A areia rangia sob seus pés.
Ouviu o escravo ofegar, sentiu o cheiro de seu próprio suor e
um odor fraco de sangue no ar.
O na-barão continuou recuando, virando para a direita,
com a segunda farpa pronta. O escravo dançou de lado. Feyd-
Rautha pareceu tropeçar, ouviu o grito que partiu das galerias.
Mais uma vez, o escravo atacou.
Deuses, que homem de armas!, pensou Feyd-Rautha ao
saltar de lado. Foi só a rapidez da juventude que o salvou, mas
ele deixou a segunda farpa enterrada no músculo deltoide do
braço direito do escravo.
Gritos agudíssimos de aplauso choveram das galerias.
Agora estão me aplaudindo, pensou Feyd-Rautha. Ouviu o
ardor das vozes, exatamente como Hawat havia lhe dito que
seria. Nunca tinham aplaudido um lutador da família daquele
jeito. E ele pensou, com um quê de ferocidade, numa coisa que
Hawat havia lhe dito:
– É mais fácil se deixar apavorar por um inimigo a quem se
admira.
Ligeiro, Feyd-Rautha retirou-se para o centro da arena,
onde todos podiam ver claramente. Sacou a arma de lâmina
longa, agachou-se e esperou o escravo que avançava.
O homem só se deteve tempo suficiente para amarrar bem
apertado a segunda farpa a seu braço, depois correu atrás
dele.
Que a família me veja fazer isto, pensou Feyd-Rautha. Sou
o inimigo deles: que pensem em mim como estão me vendo
agora.
Sacou a faca curta.
– Não tenho medo de você, seu porco Harkonnen – disse o
gladiador. – Suas torturas não podem ferir um homem morto.
Sou capaz de morrer por minha própria arma antes de um dos
treinadores pôr as mãos em mim. E você estará morto a meu
lado!
Feyd-Rautha abriu um sorriso largo e apresentou a lâmina
longa, que estava envenenada.
– Experimente esta aqui – ele disse e fez uma finta com a
faca curta na outra mão.
O escravo passou a faca para a outra mão, dirigiu para
dentro tanto a parada quanto a finta e prendeu a arma curta do
na-barão, aquela que vinha na mão da luva branca, que,
segundo a tradição, devia estar envenenada.
– Vai morrer, Harkonnen – disse o gladiador, ofegante.
Cruzaram a arena engalfinhados, andando de lado. Um
brilho azul marcava o contato do escudo de Feyd-Rautha com o
meio-escudo do escravo. O ar foi tomado pelo ozônio liberado
pelos campos.
– Morra com seu próprio veneno! – gritou o escravo, entre
dentes.
Ele começou a forçar a mão da luva branca para dentro,
virando a lâmina que ele julgava estar envenenada.
Que eles vejam isto!, pensou Feyd-Rautha. Ele baixou a
arma longa, sentiu-a retinir inutilmente de encontro à haste
farpada amarrada ao braço do escravo.
Feyd-Rautha se desesperou por um momento. Não tinha
imaginado que as hastes farpadas dariam uma vantagem ao
escravo. Mas deram ao homem mais um escudo. E a força
daquele gladiador! A lâmina curta era forçada para dentro
inexoravelmente, e Feyd-Rautha se concentrou no fato de que
também era possível um homem morrer com uma arma sem
veneno.
– Ralé! – disse Feyd-Rautha, com a voz entrecortada.
Ao som da palavra-chave, os músculos do gladiador
obedeceram com uma indolência momentânea. Foi o suficiente
para Feyd-Rautha. Abriu um espaço grande o bastante entre
os dois para deixar passar a faca longa. A ponta envenenada
moveu-se rapidamente, traçou uma linha vermelha no peito do
escravo. O veneno provocou agonia instantânea. O homem se
desvencilhou e cambaleou para trás.
Agora, deixemos minha família querida assistir, pensou
Feyd-Rautha. Que pensem neste escravo que tentou virar e usar
contra mim a faca que julgou estar envenenada. Que se
perguntem como um gladiador pôde entrar nesta arena pronto
para tentar uma coisa dessas. E que sempre saibam que nunca
terão certeza quanto a qual das minhas mãos traz o veneno.
Feyd-Rautha ficou em silêncio, observando os movimentos
desacelerados do escravo. O homem se mexia com consciência-
hesitação. Havia no rosto dele algo ortográfico que todos os
espectadores reconheceriam. Era a morte inscrita ali. O
escravo sabia o que lhe fizeram e como o fizeram. A arma
errada continha o veneno.
– Seu! – gemeu o homem.
Feyd-Rautha se afastou para dar espaço à morte. A droga
paralisante no veneno ainda não fizera todo o efeito, mas a
lentidão do homem indicava seu progresso.
O escravo cambaleou para a frente, como se o puxassem
com uma corda, um passo arrastado por vez. Cada passo era o
único de seu universo. Ele ainda segurava a faca, mas a ponta
vacilava.
– Um dia... um... de nós... vai... pegar... você – ele disse, com
a voz entrecortada.
Um beicinho triste deformou a boca do homem. Ele se
sentou, curvou-se, ficou rígido e rolou para longe de Feyd-
Rautha, com a cara voltada para baixo.
Feyd-Rautha avançou pela arena em silêncio, passou o
dedo do pé por baixo do gladiador e o fez rolar, até ficar com as
costas no chão, para dar às galerias uma visão clara do rosto
quando o veneno começasse a agir sobre os músculos,
provocando espasmos. Mas o gladiador reapareceu com sua
própria faca enfiada no peito.
Apesar da frustração, Feyd-Rautha admirou-se um pouco
com o esforço que aquele escravo fizera para superar a
paralisia e apunhalar a si mesmo. Com a admiração veio a
consciência de que estava diante de algo realmente temível.
Aquilo que torna um homem super-humano é apavorante.
Enquanto se concentrava nesse pensamento, Feyd-Rautha
percebeu a erupção de barulho nas arquibancadas e galerias
ao seu redor. Aplaudiam com total abandono.
Feyd-Rautha virou-se, olhou para eles.
Todos estavam aplaudindo, exceto o barão, que
continuava sentado, com o queixo apoiado na mão, em
contemplação profunda; e o conde e sua esposa, ambos a fitá-
lo, com os rostos mascarados por sorrisos.
O conde Fenring virou-se para sua esposa e disse:
– Aah, humm, um rapaz hummm habilidoso. Hein, mmm,
ah, minha querida?
– Suas, aah, respostas sinápticas são muito rápidas – ela
disse.
O barão olhou para ela, para o conde, voltou sua atenção
para a arena, pensando: Se alguém conseguiu chegar tão perto
de um dos meus! A fúria começou a substituir o medo. Vou
assar o feitor em fogo lento esta noite... e se esse conde e sua
esposa tiveram algo a ver com isso...
A conversa no camarote do barão era algo remoto para
Feyd-Rautha, pois as vozes se afogavam no cântico
acompanhado pelo bater dos pés que agora vinha de toda
parte.
– Cabeça! Cabeça! Cabeça! Cabeça!
O barão fez uma careta, vendo a maneira como Feyd-
Rautha se voltou para ele. Languidamente, controlando sua
fúria com dificuldade, o barão acenou com a mão na direção do
rapaz de pé na arena ao lado do corpo escarrapachado do
escravo. Que o garoto fique com a cabeça. Ele a mereceu por
desmascarar o feitor.
Feyd-Rautha viu o sinal de concordância e pensou: Pensam
que assim me lisonjeiam. Que eles vejam agora o que eu penso!
Viu seus treinadores se aproximarem com uma faca
serrilhada para fazer as honras, fez sinal para que voltassem e
repetiu o gesto quando eles hesitaram. Pensam que me
lisonjeiam oferecendo-me só uma cabeça!, ele pensou. Inclinou-
se e cruzou as mãos do gladiador em volta do cabo da faca,
depois a removeu e colocou-a nas mãos sem vida.
Tudo se deu num instante e ele voltou a ficar ereto.
Chamou os treinadores.
– Enterrem este escravo intacto, com a faca nas mãos – ele
disse. – O homem fez por merecer.
No camarote dourado, o conde Fenring inclinou-se perto
do barão e disse:
– Um gesto nobre, esse; verdadeira bravura. Seu sobrinho
tem estilo e também coragem.
– Ele ofende a multidão ao recusar-lhes a cabeça –
resmungou o barão.
– De modo algum – disse lady Fenring. Ela se virou,
olhando para as arquibancadas em volta deles.
E o barão notou o perfil do pescoço da mulher, um fluir
realmente adorável de músculos, como os de um rapazinho.
– Gostaram do que seu sobrinho fez – ela disse.
À medida que a implicação do gesto de Feyd-Rautha
chegava aos assentos mais distantes, à medida que as pessoas
viam os treinadores carregarem o corpo intacto do gladiador
morto, o barão as observava e percebia que a mulher tinha
interpretado corretamente a reação. As pessoas estavam
enlouquecidas, davam tapas nas costas umas das outras,
gritavam e batiam os pés.
O barão falou, cansado:
– Terei de autorizar uma fête. Não se pode mandar as
pessoas para casa desse jeito, sem gastar as energias. É
preciso que vejam que divido com elas seu entusiasmo. – Com a
mão, fez sinal para seu guarda, e um serviçal acima deles
baixou a flâmula laranja dos Harkonnen por sobre o camarote,
uma, duas, três vezes, o sinal de uma fête.
Feyd-Rautha atravessou a arena para se colocar abaixo do
camarote dourado, com as armas embainhadas, os braços
caídos junto ao corpo. Acima do furor da multidão, que ainda
não havia arrefecido, ele gritou:
– Uma fête, tio?
O ruído começou a ceder, pois as pessoas presenciaram
aquela conversa e decidiram esperar.
– Em sua honra, Feyd! – o barão berrou lá de cima. E, mais
uma vez, ele fez baixar a flâmula como sinal.
Do outro lado da arena, as barreiras dos prudentes foram
baixadas e alguns rapazes saltaram para dentro da arena,
correndo na direção de Feyd-Rautha.
– Mandou baixar os escudos dos prudentes, barão? –
perguntou o conde.
– Ninguém irá ferir o rapaz – disse o barão. – Ele é um
herói.
Os primeiros integrantes da massa que investira
alcançaram Feyd-Rautha, ergueram-no nos ombros e
começaram a desfilar com ela pela arena.
– Ele poderia andar desarmado e sem escudo pelos bairros
mais pobres de Harko esta noite – disse o barão. – Dariam a ele
o último resto de comida e bebida só para desfrutar de sua
companhia.
O barão levantou-se da cadeira, acomodou o peso em seus
suspensores.
– Desculpem-me, por favor. Existem algumas questões que
exigem minha atenção imediata. O guarda levará vocês ao
forte.
O conde se levantou, fez uma reverência.
– Certamente, barão. Esperamos ansiosos pela fête. Eu,
aaah, mmm, nunca vi uma fête dos Harkonnen.
– Sim – disse o barão. – A fête. – Virou-se, foi envolvido
pelos guardas ao passar pela saída privativa do camarote.
Um capitão da guarda fez uma mesura para o conde
Fenring.
– Quais são suas ordens, milorde?
– Nós vamos, aah, esperar que o pior, mmm, do tumulto,
humm, passe – disse o conde.
– Sim, milorde. – O homem deu três passos para trás, ainda
recurvado.
O conde Fenring voltou-se para sua esposa, falou
novamente na língua codificada por hãããs e humms dos dois:
– Você viu o que aconteceu, não?
Na mesma língua murmurada, ela disse:
– O rapaz sabia que o gladiador não estava drogado. Houve
um instante de medo, mas não de surpresa.
– Foi planejada – ele disse. – A apresentação inteira.
– Sem dúvida.
– Cheira a coisa de Hawat, e cheira mal.
– Verdade – ela disse.
– Exigi há pouco que o barão eliminasse Hawat.
– Foi um erro, meu caro.
– Percebi.
– Os Harkonnen podem ter um novo barão logo, logo.
– Se for esse o plano de Hawat.
– Isso exige uma investigação, é verdade – ela disse.
– O jovem será mais suscetível ao controle.
– Por nós... depois desta noite – ela disse.
– Não prevê nenhuma dificuldade para seduzi-lo, minha
reprodutorazinha?
– Não, meu querido. Você viu como ele olhou para mim.
– Sim, e vejo agora por que precisamos ter essa linhagem.
– Verdade, e é óbvio que precisamos tê-lo sob controle.
Implantarei fundo, em sua identidade mais secreta, as frases
prana-bindu necessárias para submetê-lo.
– Partiremos tão logo seja possível, tão logo você tenha
certeza – ele disse.
Ela estremeceu.
– Sem dúvida. Não quero ter um filho neste lugar horrível.
– As coisas que fazemos em nome da humanidade – ele
disse.
– Sua parte é fácil – ela disse.
– Eu tive de superar alguns velhos preconceitos – ele disse.
– São bastante primitivos, sabe.
– Meu pobre querido – ela disse, e acariciou-lhe o queixo. –
Sabe que essa é a única maneira de garantir a sobrevivência
dessa linhagem.
Ele falou, com a voz seca:
– Entendo muito bem o que fazemos.
– Não fracassaremos – ela disse.
– A culpa começa com a sensação de fracasso – ele a fez
lembrar.
– Não haverá culpa – ela disse. – Hipnoligação da psique do
tal Feyd-Rautha e o filho dele em meu ventre... depois iremos
embora.
– Aquele tio dele – disse Fenring. – Já tinha visto tamanha
deturpação?
– É um bárbaro – ela disse –, mas o sobrinho pode muito
bem ficar pior.
– Graças ao tio. Sabe, quando penso no que esse rapaz
poderia ter sido com outro tipo de criação, com o código dos
Atreides para orientá-lo, por exemplo.
– É triste – ela disse.
– Queria ter podido salvar tanto o jovem Atreides quanto
este. Pelo que ouvi falar daquele jovem Paul, um rapaz dos mais
admiráveis, boa combinação de criação e treinamento. – Ele
chacoalhou a cabeça. – Mas não devíamos desperdiçar
lágrimas com a aristocracia dos desafortunados.
– As Bene Gesserit têm um ditado – ela disse.
– Vocês têm ditados para tudo – ele protestou.
– Vai gostar deste – ela continuou. – Diz: “Não dê um ser
humano como morto até ver-lhe o corpo. E, mesmo assim,
pode-se cometer um erro”.
Muad’Dib nos diz, em “Tempo de
reflexão”, que seu primeiro confronto
com as necessidades arrakinas foi o
verdadeiro início de sua educação. Ele
aprendeu, na época, a prever o tempo
posteando a areia, aprendeu a linguagem
das agulhadas do vento, aprendeu que a
coceira provocada pela areia irritava o
nariz e como fazer para recolher a
preciosa umidade de seu corpo, para
guardá-la e preservá-la. Quando seus
olhos assumiram a cor azul dos Ibad, ele
aprendeu a doutrina chakobsa.
– prefácio de Stilgar a “Muad’Dib, o homem”, da princesa Irulan

A tropa de Stilgar, retornando ao sietch com os dois


desgarrados do deserto, saiu da bacia à luz minguante da
primeira lua. Os vultos trajados com mantos se apressaram,
sentindo nas narinas o cheiro de casa. A linha cinzenta do
amanhecer atrás deles era mais brilhante no desfiladeiro de
seu calendário-horizonte que marcava o meio do outono, o mês
de rochacapa.
As folhas mortas revolvidas pelo vento juncavam a base do
penhasco, reunidas ali pelas crianças do sietch, mas os ruídos
da passagem da tropa (exceto as ocasionais trapalhadas de
Paul e sua mãe) não se distinguiam dos sons naturais da noite.
Paul limpou o pó grudado no suor da testa, sentiu que
alguém lhe puxava o braço e ouviu a voz sibilante de Chani:
– Faça como eu mandei: cubra bem a cabeça com o capuz!
Deixe só os olhos expostos. Está desperdiçando umidade.
Uma ordem em voz baixa atrás deles exigiu silêncio:
– O deserto está ouvindo!
Um pássaro cantou nas pedras lá no alto, acima deles.
A tropa estacou, e Paul sentiu a tensão repentina.
Ouviram-se batidas fracas nas pedras, um som baixo,
como o de ratinhos saltitando na areia.
O pássaro voltou a cantar.
Um estremecimento percorreu a tropa. E, de novo, os
passinhos de camundongo cruzaram cautelosamente a areia.
E, mais uma vez, o pássaro cantou.
A tropa retomou a escalada e entrou numa fenda nas
rochas, mas os fremen haviam abrandado a respiração de tal
maneira que isso encheu Paul de cautela, e ele notou olhares
velados que se dirigiam a Chani, a maneira como ela pareceu se
retrair, recolhendo-se consigo mesma.
Agora havia rocha sob seus pés, um sussurro leve e
cinzento de mantos ao redor, e Paul sentiu que a disciplina se
relaxava, mas persistia aquele retraimento silencioso em Chani
e nos demais. Ele seguiu uma forma feita de sombras, escada
acima, por uma curva, mais um lance de escada, um túnel,
passou por duas portas com hidrovedação e entrou numa
passagem estreita e iluminada por globos, com as paredes e o
teto de rocha amarela.
A seu redor, Paul viu os fremen atirarem os capuzes para
trás, removerem os obturadores nasais e inspirarem fundo.
Alguém suspirou. Paul procurou Chani, viu que ela não estava
mais ao lado dele. Foi prensado por corpos envoltos em
mantos. Alguém lhe deu uma cotovelada e disse:
– Com licença, Usul. Que aperto! É sempre assim.
À esquerda dele, o rosto estreito e barbado daquele a
quem chamavam Farok virou-se para Paul. As pálpebras
manchadas e as trevas azuis dos olhos pareciam ainda mais
escuras à luz dos globos amarelos.
– Tire o capuz, Usul – disse Farok. – Está em casa. – E ele
ajudou Paul, soltando a presilha do capuz e, com os cotovelos,
abrindo algum espaço ao redor deles.
Paul removeu os obturadores nasais, afastou o filtro da
boca. Foi acossado pelo odor do lugar: os corpos por lavar, os
ésteres destilados da água reaproveitada, os eflúvios rançosos
da humanidade por toda parte e, acima disso tudo, uma
mistura turbulenta de harmônicos provenientes da especiaria
ou de cheiros semelhantes.
– Por que estamos esperando, Farok? – Paul perguntou.
– Acho que estamos esperando a Reverenda Madre. Você
ouviu a mensagem: coitada da Chani.
Coitada da Chani?, Paul se perguntou. Olhou ao redor,
imaginando onde ela estaria, aonde sua mãe teria ido parar
naquele aperto.
Farok inspirou fundo.
– Os cheiros de casa – disse ele.
Paul viu que o homem gostava daquele ar fedorento, que
não havia ironia na voz dele. Foi aí que ouviu sua mãe tossir, e a
voz dela chegou até ele, atravessando a multidão.
– Como são variados os odores de seu sietch, Stilgar. Vejo
que vocês fazem muita coisa com a especiaria... fazem papel...
plásticos... e isso não é explosivo químico?
– Sabe disso pelo cheiro? – foi a voz de um outro homem.
E Paul percebeu que a fala da mãe se dirigia a ele, que ela
queria que ele se acostumasse rapidamente àquele assalto a
suas narinas.
Ouviu-se um burburinho na vanguarda da tropa e uma
inspiração profunda e prolongada que pareceu passar de um
fremen a outro, e Paul ouviu vozes abafadas no fim da fila:
– É verdade, então... Liet está morto.
Liet, pensou Paul. E então: Chani, filha de Liet. As peças se
encaixaram em sua mente. Liet era o nome fremen do
planetólogo.
Paul olhou para Farok e perguntou:
– É o mesmo Liet conhecido como Kynes?
– Só há um Liet – respondeu Farok.
Paul se virou, fitou as costas envoltas num manto de um
fremen diante dele. Então Liet-Kynes está morto, ele pensou.
– Foi traição dos Harkonnen – alguém disse baixinho. –
Fizeram parecer um acidente... perdido no deserto... acidente
de tóptero...
Paul sentiu uma explosão de raiva. O homem que fizera
amizade com eles, que ajudara a salvá-los dos caçadores
Harkonnen, o homem que mandara seus colegas fremen em
busca de duas pessoas perdidas no deserto... mais uma vítima
dos Harkonnen.
– Usul ainda tem sede de vingança? – perguntou Farok.
Antes que Paul conseguisse responder, ouviu-se um
chamado baixo, e a tropa avançou de sopetão, entrando numa
câmara maior e carregando Paul consigo. Ele se viu num
espaço aberto e confrontado por Stilgar e uma mulher
estranha que vestia um sári esvoaçante e de cores vivas, verde
e laranja. Trazia os braços nus até os ombros, e Paul viu que ela
não usava trajestilador. Sua pele era de um tom azeitonado e
claro. Os cabelos escuros partiam da testa alta, penteados
para trás, o que enfatizava os malares pronunciados e o nariz
aquilino entre as trevas densas de seus olhos.
Ela se virou na direção de Paul, e ele viu hidrocontas
enfiadas em aros dourados pendurados nas orelhas da mulher.
– Isso aí derrotou meu Jamis? – ela indagou.
– Silêncio, Harah – disse Stilgar. – Foi culpa de Jamis: ele
invocou o tahaddi al-burhan.
– Ele não passa de um menino! – ela disse. Chacoalhou a
cabeça vividamente, de um lado para outro, fazendo as
hidrocontas tilintarem. – Minhas crianças perderam o pai por
causa de uma outra criança? Sem dúvida foi um acidente!
– Usul, quantos anos tem? – perguntou Stilgar.
– Quinze anos-padrão – disse Paul.
Stilgar percorreu a tropa com os olhos.
– Há entre vocês quem queira me desafiar?
Silêncio.
Stilgar olhou para a mulher.
– Até aprender sua doutrina dos sortilégios, eu não o
desafiaria.
A mulher devolveu-lhe o olhar.
– Mas...
– Viu a estrangeira, a mulher que foi com Chani até a
Reverenda Madre? – Stilgar perguntou. – Ela é uma Sayyadina
forafreyn, mãe deste rapaz. A mãe e o filho são mestres da
doutrina de batalha dos sortilégios.
– Lisan al-Gaib – a mulher sussurrou. Seus olhos exibiam
admiração quando ela os dirigiu para Paul.
A lenda de novo, pensou Paul.
– Talvez – disse Stilgar. – Mas ainda não foi colocado à
prova. – Ele voltou sua atenção para Paul. – Usul, segundo
nosso costume, você agora é responsável pela mulher de Jamis
aqui e pelos dois filhos dele. A yali... a residência dele é sua. O
aparelho de café dele é seu... e ela, a mulher dele.
Paul estudou a mulher, perguntando-se: Por que ela não
chora por seu homem? Por que não demonstra ódio por mim? De
repente, viu que os fremen estavam olhando para ele,
esperando.
Alguém sussurrou:
– Temos mais o que fazer. Diga como é que vai aceitá-la.
Stilgar disse:
– Você aceita Harah como mulher ou como criada?
Harah ergueu os braços e começou a girar lentamente
num dos calcanhares.
– Ainda sou jovem, Usul. Dizem que ainda pareço jovem
como na época em que estava com Geoff... antes de Jamis
derrotá-lo.
Jamis matou outro homem para ganhá-la, pensou Paul.
Paul disse:
– Se eu a aceitar como criada, poderei mudar de ideia mais
tarde?
– Você tem um ano para mudar sua decisão – disse Stilgar.
– Depois disso, ela será uma mulher livre para escolher o que
quiser... ou então, você poderia dar a ela a liberdade de
escolher por si mesma a qualquer momento. Mas ela será sua
responsabilidade, não importa o que aconteça, durante um
ano... e você sempre terá alguma responsabilidade em relação
aos filhos de Jamis.
– Eu a aceito como criada – disse Paul.
Harah bateu um dos pés, sacudiu os ombros de raiva.
– Mas eu sou jovem!
Stilgar olhou para Paul e disse:
– A cautela é uma qualidade valiosa num homem que
deseja a liderança.
– Mas eu sou jovem! – repetiu Harah.
– Silêncio – ordenou Stilgar. – Se a coisa tem mérito, o que
tiver de ser, será. Leve Usul para a residência dele e cuide para
que receba roupas limpas e tenha um lugar para descansar.
– Oooh! – ela disse.
Paul a tinha registrado o suficiente para fazer uma
primeira aproximação. Sentiu a impaciência da tropa, sabia
que muitas coisas eram adiadas. Imaginou se teria a coragem
de perguntar sobre o paradeiro de sua mãe e Chani; viu, pela
postura nervosa de Stilgar, que poderia ser um erro.
Encarou Harah, deu a sua voz o tom e o vibrato
necessários para acentuar o medo e a admiração da mulher e
disse:
– Leve-me a minha residência, Harah! Discutiremos sua
juventude uma outra hora.
Ela recuou dois passos, lançou um olhar assustado para
Stilgar.
– Ele tem a voz dos sortilégios – ela disse, rouca.
– Stilgar – disse Paul. – Tenho uma grande obrigação para
com o pai de Chani. Se houver algo...
– Será decidido em conselho – disse Stilgar. – Você poderá
falar então. – Ele o dispensou com um aceno de cabeça, deu-lhe
as costas, e o resto da tropa o seguiu.
Paul pegou Harah pelo braço, notando como a pele da
mulher parecia fresca ao toque, e percebeu que ela tremia.
– Não vou machucar você, Harah – ele disse. – Leve-me a
nossa residência. – E ele abrandou a voz com sons relaxantes.
– E não vai me dispensar depois de um ano? – ela
perguntou. – Sei, com certeza, que não sou tão jovem quanto já
fui.
– Enquanto eu viver, você terá um lugar a meu lado – ele
disse. Soltou o braço dela. – Vamos, onde fica nossa residência?
Ela se virou e seguiu na frente pela passagem, virando à
direita e entrando num túnel transversal amplo e iluminado
por globos amarelos e espaçados lá no alto. O chão de pedra
era liso e a areia ali tinha sido varrida.
Paul a alcançou e pôs-se a estudar o perfil aquilino da
mulher enquanto caminhavam.
– Você não me odeia, Harah?
– Por que deveria odiá-lo?
Ela acenou com a cabeça para um grupo de crianças, em
cima da saliência elevada de uma passagem lateral, que
olhavam fixamente para eles. Paul vislumbrou formas adultas
atrás das crianças, parcialmente escondidas por cortinas
diáfanas.
– Eu... derrotei Jamis.
– Stilgar disse que a cerimônia foi realizada e que você era
amigo de Jamis. – Ela olhou obliquamente para ele. – Stilgar
disse que você ofereceu umidade aos mortos. É verdade?
– Sim.
– Eu não faria tanto... não conseguiria.
– Você não chora por ele?
– Quando chegar a hora, eu irei chorar por ele.
Passaram por uma abertura em arco. Paul viu, através do
arco, homens e mulheres trabalhando em máquinas instaladas
em plataformas numa câmara grande e iluminada. Seu ritmo
parecia algo urgente.
– O que estão fazendo ali? – Paul perguntou.
Ela olhou rapidamente para trás quando os dois
atravessaram o arco e disse:
– Estão correndo para terminar a quota da oficina de
plásticos antes de fugirmos. Precisamos de muitos coletores
de orvalho para o plantio.
– Fugirmos?
– Até os açougueiros deixarem de nos caçar ou serem
expulsos de nossa terra.
Paul perdeu momentaneamente o equilíbrio, pressentindo
um instante suspenso de tempo, lembrando-se de um
fragmento, uma projeção visual de presciência... mas estava
deslocada, como imagens sobrepostas em movimento. Os
pedaços de sua memória presciente não eram exatamente
como ele se lembrava deles.
– Os Sardaukar estão nos caçando – ele disse.
– Não irão encontrar muita coisa, a não ser um ou dois
sietch desocupados – ela disse. – E terão seu quinhão de morte
na areia.
– Eles encontrarão este lugar? – ele perguntou.
– Provavelmente.
– Mas nos damos ao trabalho de... – ele moveu a mão na
direção do arco, agora distante, bem atrás deles. – … fazer...
coletores de orvalho?
– O plantio continua.
– O que são coletores de orvalho? – ele perguntou.
O olhar que ela dirigiu a ele foi de pura surpresa.
– Não ensinam nada a vocês em... seja lá de onde veio?
– Não sobre coletores de orvalho.
– Ei! – ela disse, e um diálogo inteiro se concentrou numa
palavra.
– Muito bem, e o que são?
– Cada arbusto, cada erva que você vê lá fora no erg – ela
disse –, como acha que conseguem sobreviver quando os
abandonamos? Cada um deles é plantado com todo o amor em
seu próprio buraquinho. Os buracos são preenchidos com ovos
macios de cromoplástico. A luz faz com que fiquem brancos.
Dá para vê-los cintilar ao amanhecer, se olharmos de um lugar
alto. Reflexos brancos. Mas quando o Velho Pai Sol se vai, o
cromoplástico fica transparente no escuro. Esfria com extrema
rapidez. A superfície condensa a umidade do ar. Essa umidade
escorre e mantém nossas plantas vivas.
– Coletores de orvalho – ele murmurou, encantado com a
beleza simples do estratagema.
– Vou chorar por Jamis no momento apropriado – ela
disse, como se sua mente não tivesse abandonado a outra
pergunta dele. – Era um homem bom, o Jamis, mas tinha pavio
curto. Um bom provedor, o Jamis, e uma maravilha com as
crianças. Não fazia diferença entre o menino de Geoff, meu
primogênito, e seu próprio filho legítimo. Aos olhos dele, os
dois eram iguais. – Ela lançou um olhar inquisitivo para Paul. –
Será assim com você, Usul?
– Não temos esse problema.
– Mas, se...
– Harah!
Ela se encolheu diante da rispidez na voz dele.
Passaram por mais uma sala bem-iluminada e visível
através de um arco à esquerda deles.
– O que se faz ali? – ele perguntou.
– Consertam o equipamento de tecelagem – ela disse. –
Mas terá de ser desmantelado até a noite de hoje. – Ela fez um
gesto na direção de um outro túnel que começava à esquerda
deles. – Por ali e mais adiante, fica o beneficiamento de
alimentos e a manutenção de trajestiladores. – Ela olhou para
Paul. – Seu traje parece novo. Mas, se precisar de reparos, sou
boa com os trajes. Trabalho na fábrica quando é temporada.
Começaram a encontrar grupos de pessoas e um número
maior de aberturas nas laterais do túnel. Uma fila de homens e
mulheres passou por eles, carregando mochilas que
gorgolejavam ruidosamente, e o cheiro de especiaria era forte
em volta deles.
– Não vão pegar nossa água – disse Harah. – Nem nossa
especiaria. Pode ter certeza disso.
Paul olhou para as aberturas nas paredes do túnel, vendo
os tapetes pesados sobre a saliência elevada, vislumbres de
salas com tecidos de cores vivas nas paredes, almofadas
empilhadas. As pessoas dentro dessas aberturas faziam
silêncio quando eles se aproximavam e acompanhavam Paul
com olhares firmes e indômitos.
– As pessoas acham estranho você ter derrotado Jamis –
disse Harah. – Acho que terá de provar algumas coisas quando
nos instalarmos num novo sietch.
– Não gosto de matar – ele disse.
– Foi o que Stilgar disse – ela falou, mas sua voz indicava
incredulidade.
Um cântico agudo ia ganhando volume à frente deles.
Chegaram a uma outra abertura lateral, mais ampla que
qualquer uma das outras que Paul tinha visto. Ele diminuiu o
passo, olhando para dentro de uma sala cheia de crianças,
sentadas de pernas cruzadas no chão coberto de tapetes
marrons.
Junto a um quadro-negro na parede oposta estava uma
mulher de sári amarelo, com uma caneta projetora numa das
mãos. A lousa estava repleta de desenhos: círculos, cunhas e
curvas, meandros e quadrados, arcos flutuantes divididos por
linhas paralelas. A mulher apontava os desenhos, um depois do
outro, na mesma velocidade com que conseguia mover a
caneta, e as crianças salmodiavam no ritmo da mão que se
movia.
Paul continuou escutando, ouviu as vozes se apagarem
atrás dele ao se aprofundar no sietch com Harah.
– Árvore – entoavam as crianças. – Árvore, relva, duna,
vento, montanha, colina, fogo, raio, pedra, pedras, pó, areia,
calor, abrigo, calor, cheio, inverno, frio, vazio, erosão, verão,
caverna, dia, tensão, lua, noite, rochacapa, maré de areia,
encosta, plantio, coletor...
– Vocês dão aulas num momento como este? – perguntou
Paul.
Harah ficou séria e o pesar marcou sua voz:
– O que Liet nos ensinou, não podemos vacilar nisso nem
um instante. Liet, que está morto, não pode ser esquecido. É a
doutrina chakobsa.
Ela cruzou o túnel para a esquerda, subiu para uma
saliência, abriu as cortinas de gaze laranja e ficou de lado:
– Sua yali está pronta para você, Usul.
Paul hesitou antes de se juntar a ela sobre a saliência.
Sentiu uma relutância repentina em estar sozinho com aquela
mulher. Ocorreu-lhe que estava cercado por um modo de vida
que só podia ser entendido postulando-se uma ecologia de
ideias e valores. Sentiu que aquele mundo dos fremen tentava
fisgá-lo, enredá-lo em seus costumes. E ele sabia o que a
armadilha reservava: o jihad selvagem, a guerra religiosa que
ele pressentia que era preciso evitar a todo custo.
– Esta é sua yali – Harah disse. – Por que hesita?
Paul concordou com a cabeça, juntou-se a ela sobre a
saliência. Ergueu as cortinas diante dela, sentindo fibras
metálicas no tecido, seguiu-a por uma entrada baixa, até uma
sala maior, quadrada, com cerca de seis metros de lado:
tapetes azuis e espessos no chão, tecidos azuis e verdes
escondendo as paredes de pedra, luciglobos de luz amarela,
batendo de leve nos tecidos amarelos que pendiam do teto.
O efeito era o de uma tenda antiga.
Harah estava de pé diante dele, com a mão esquerda no
quadril, e seus olhos estudavam-lhe o rosto.
– As crianças estão com uma amiga – ela disse. – Elas
aparecerão mais tarde.
Paul disfarçou sua apreensão vasculhando rapidamente a
sala com os olhos. Viu que cortinas finas à direita escondiam
parcialmente uma sala maior, com almofadas empilhadas em
todas as paredes. Sentiu uma brisa suave vinda de um duto de
ar, viu o escape escondido astuciosamente num padrão de
cortinas diretamente acima dele.
– Quer que eu o ajude a remover o trajestilador? – Harah
perguntou.
– Não... obrigado.
– Devo lhe trazer comida?
– Sim.
– Há uma câmara de reaproveitamento na outra sala. – Ela
apontou. – Para seu conforto e conveniência, quando não
estiver usando o trajestilador.
– Você disse que temos de abandonar este sietch – disse
Paul. – Não devíamos fazer as malas ou algo assim?
– É o que faremos quando chegar a hora – ela disse. – Os
açougueiros não entraram em nossa região ainda.
Mesmo assim, ela hesitou, olhando fixamente para ele.
– O que foi? – ele indagou.
– Você não tem os olhos dos Ibad – ela disse. – É estranho,
mas não totalmente sem atrativos.
– Traga a comida – ele disse. – Estou com fome.
Ela sorriu para ele, um sorriso sagaz de mulher que ele
achou perturbador.
– Sou sua criada – ela disse, girando e afastando-se num
único movimento ágil, escondendo-se atrás de uma pesada
cortina divisória que revelou uma outra passagem antes de
voltar a seu lugar.
Zangado consigo mesmo, Paul passou pela cortina fina à
direita e entrou na sala maior. Ficou ali um momento, cativo da
incerteza. E perguntou-se onde estaria Chani... Chani que tinha
acabado de perder o pai.
Nisso somos iguais, ele pensou.
Um grito lamuriento veio dos corredores externos, mas o
volume foi abafado pelas cortinas intervenientes. Repetiu-se,
um pouco mais distante. E de novo. Paul percebeu que alguém
estava dando as horas. Concentrou-se no fato de que não tinha
visto nenhum relógio.
O cheiro tênue de arbusto de creosoto queimado chegou a
suas narinas, sobrepujando o fedor onipresente do sietch. Paul
percebeu que já tinha suprimido o ataque dos cheiros a seus
sentidos.
E imaginou mais uma vez o que seria de sua mãe, como a
sobreposição de imagens em movimento do futuro iria
incorporá-la... e a filha que ela carregava. A percepção
temporal mutável dançou em volta dele. Paul chacoalhou a
cabeça vividamente, concentrando sua atenção nos indícios
que denotavam grande profundidade e amplitude naquela
cultura fremen que os absorvera.
Com suas esquisitices sutis.
Ele tinha visto uma coisa sobre as cavernas e aquela sala,
algo que sugeria diferenças muito maiores que qualquer outra
coisa que ele já tivesse encontrado.
Não havia sinal de farejador de venenos ali, nenhuma
indicação de seu uso em nenhum lugar daquele labirinto
subterrâneo. No entanto, ele farejava os venenos no fedor do
sietch: fortes, comuns.
Ouviu o roçar das cortinas, pensou que era Harah de volta
com a comida e virou-se para observá-la. Em vez disso, debaixo
de uma série de cortinas desalojadas, ele viu dois menininhos –
talvez com 9 e 10 anos – olhando para ele com olhos ávidos. Os
dois traziam uma pequena dagacris, semelhante a um kindjal, e
tinham uma das mãos pousada no cabo.
E Paul recordou as histórias sobres os fremen, que suas
crianças lutavam com a mesma ferocidade dos adultos.
As mãos, os lábios se movem:
Ideias jorram de suas palavras,
E seus olhos devoram!
Ele é uma ilha de Individualidade.
– descrição extraída do “Manual de Muad’Dib”, da princesa
Irulan

Os fosfotubos nos confins superiores mais longínquos da


caverna lançavam uma luz fraca sobre o interior apinhado de
gente, sugerindo a enormidade daquele espaço cercado de
rocha... maior, viu Jéssica, até mesmo que o Salão de Reuniões
de sua escola Bene Gesserit. Estimou que houvesse mais de
cinco mil pessoas reunidas ali, sob a saliência onde ela se
encontrava de pé, ao lado de Stilgar.
E ainda chegavam mais.
O ar era um burburinho de gente.
– Seu filho, que estava descansando, foi convocado,
Sayyadina – disse Stilgar. – Deseja que ele tome parte em sua
decisão?
– E ele poderia mudar minha decisão?
– Certamente, o ar com que se fala vem dos próprios
pulmões, mas...
– A decisão ainda é a mesma – ela disse.
No entanto, tinha lá seus receios e imaginou se deveria
usar Paul como desculpa para abandonar um curso perigoso.
Também era preciso pensar na filha ainda por nascer. Aquilo
que ameaçava a carne da mãe ameaçava a carne da filha.
Chegaram homens carregando tapetes enrolados,
resmungando sob tamanho peso, levantando poeira ao largar
seu fardo sobre a saliência.
Stilgar a tomou pelo braço, voltou com ela para a concha
acústica que delimitava os fundos da saliência. Indicou um
banco de pedra dentro da concha.
– A Reverenda Madre irá se sentar aí, mas você pode
descansar até ela chegar.
– Prefiro ficar de pé – disse Jéssica.
Ela observou os homens desenrolarem os tapetes,
cobrindo a saliência, e olhou para a multidão. Agora havia pelo
menos dez mil pessoas naquele chão de pedra.
E ainda chegavam mais.
Ela sabia que, lá fora, no deserto, já chegara o cair da noite,
vermelho; mas ali, no salão da caverna, o crepúsculo era
perpétuo, uma vastidão cinzenta abarrotada de gente que
viera vê-la colocar sua vida em risco.
Abriu-se um caminho em meio à multidão, à direita de
Jéssica, e ela viu Paul se aproximar, flanqueado por dois
garotinhos. As crianças tinham um ar perturbador de
presunção. Traziam as mãos sobre as facas e olhavam feio para
a muralha humana de um lado e de outro.
– Os filhos de Jamis, que agora são filhos de Usul – disse
Stilgar. – Estão levando a sério sua função de escolta. –
Arriscou um sorriso para Jéssica.
Jéssica reconheceu a tentativa de animá-la e sentiu-se
grata, mas não conseguiu desviar sua mente do perigo que a
confrontava.
Não tive escolha, a não ser fazer isto, ela pensou. Temos de
agir com rapidez para garantir nosso lugar entre os fremen.
Paul subiu para a saliência, deixando as crianças lá
embaixo. Deteve-se diante da mãe, olhou de relance para
Stilgar, voltou a olhar para Jéssica.
– O que está acontecendo? Pensei que tinham me
convocado para o conselho.
Stilgar ergueu uma das mãos, pedindo silêncio, e fez um
gesto para sua esquerda, onde se abrira um outro caminho em
meio à turba. Chani chegou por essa alameda, com seu rosto de
fada marcado pelo pesar. Tinha removido o trajestilador e
vestia um sári azul e gracioso que deixava nus seus braços
magros. Perto do ombro, em seu braço esquerdo, havia
amarrado um lenço verde.
O verde do luto, pensou Paul.
Era um dos costumes que os dois filhos de Jamis tinham
lhe explicado indiretamente, dizendo-lhe que não usariam
verde porque o tinham aceitado como pai-guardião.
– Você é a Lisan al-Gaib? – eles perguntaram. E Paul, que
havia sentido o jihad nas palavras deles, livrara-se da pergunta
com outra pergunta; descobrira, então, que Kaleff, o mais velho
dos dois, tinha 10 anos e era o filho natural de Geoff. Orlop, o
mais novo, tinha 8 e era o filho natural de Jamis.
Tinha sido um dia estranho com aqueles dois servindo de
guardas a pedido dele, afastando os curiosos, dando-lhe o
tempo de que precisava para acalentar seus pensamentos e
lembranças prescientes, para planejar uma maneira de
impedir o jihad.
Agora, ao lado de sua mãe sobre a saliência da caverna,
olhando para a multidão, ele se perguntou se algum plano
conseguiria impedir a torrente feroz de legiões fanáticas.
Chani, aproximando-se da saliência, era seguida de longe
por quatro mulheres que carregavam uma outra sobre uma
liteira.
Jéssica ignorou a aproximação de Chani, concentrando
toda a sua atenção na mulher da liteira: uma velha, uma coisa
antiga, enrugada e encarquilhada, de vestido preto, com o
capuz atirado para trás, revelando o coque apertado de
cabelos grisalhos e o pescoço fibroso.
As carregadoras da liteira depositaram gentilmente seu
fardo sobre a saliência, mas permaneceram embaixo, e Chani
ajudou a velha a ficar de pé.
Então essa é a Reverenda Madre, pensou Jéssica.
A velha apoiou todo o seu peso em Chani ao mancar na
direção de Jéssica, parecendo um feixe de gravetos enrolado
no manto negro. Ela se deteve diante de Jéssica, olhou para
cima durante um bom tempo antes de falar num sussurro
rouco:
– Então, você é a tal. – A cabeça idosa fez um sinal
afirmativo, oscilando precariamente sobre o pescoço fino. – A
shadout Mapes tinha razão em ter pena de você.
Jéssica falou com rapidez e escárnio:
– Não preciso da pena de ninguém.
– Isso ainda veremos – rouquejou a velha. Ela se virou com
uma desenvoltura surpreendente e encarou a multidão. – Diga-
lhes, Stilgar.
– É preciso?
– Somos o povo de Misr – a velha falou, com voz irritante. –
Desde que nossos ancestrais sunitas fugiram de al-Ourouba, às
margens do Nilo, conhecemos a fuga e a morte. Os jovens
seguem em frente para que nosso povo não morra.
Stilgar inspirou fundo e deu dois passos adiante.
Jéssica sentiu o silêncio baixar sobre a caverna apinhada
de gente – cerca de vinte mil pessoas naquele momento, de pé,
quietas, quase imóveis. Fez com que ela se sentisse, de repente,
pequena e cautelosa.
– Esta noite teremos de deixar este sietch que nos abrigou
durante tanto tempo e ir para o sul, deserto adentro – disse
Stilgar. A voz dele retumbava por sobre os rostos erguidos,
reverberando com a força que a concha acústica atrás da
saliência lhe concedia.
A multidão continuou em silêncio.
– A Reverenda Madre me contou que não sobreviverá a
mais uma hajra – disse Stilgar. – Já vivemos antes sem uma
Reverenda Madre, mas não é nada bom um povo procurar um
novo lar nessa situação difícil.
Agora a multidão se inquietou, agitada por sussurros e
correntes de desassossego.
– Para que isso não aconteça – disse Stilgar –, nossa nova
Sayyadina, Jéssica dos Sortilégios, consentiu em se iniciar hoje
no rito. Ela tentará passar ao interior, para que não percamos a
força de nossa Reverenda Madre.
Jéssica dos Sortilégios, pensou Jéssica. Viu que Paul
olhava para ela, com os olhos cheios de perguntas, mas sua
boca guardou silêncio diante de toda a estranheza que os
cercava.
Se eu morrer nessa tentativa, o que será dele?, Jéssica se
perguntou. Mais uma vez, ela sentiu que sua mente era tomada
por receios.
Chani levou a idosa Reverenda Madre para um banco de
pedra no fundo da concha acústica e voltou a se colocar ao lado
de Stilgar.
– Para não perdermos tudo, se Jéssica dos Sortilégios
falhar – disse Stilgar –, Chani, filha de Liet, hoje será
consagrada Sayyadina. – Ele deu um passo para o lado.
Desde as profundezas da concha acústica, a voz da velha
chegou até eles, um sussurro amplificado, duro e penetrante:
– Chani voltou de sua hajra; Chani viu as águas.
Um murmúrio de resposta elevou-se da multidão:
– Ela viu as águas.
– Consagro a filha de Liet como Sayyadina – disse a voz
rouca da velha.
– Ela é aceita – respondeu a multidão.
Paul mal ouvia a cerimônia, com sua atenção ainda
concentrada no que haviam dito sobre sua mãe.
Se ela falhar?
Ele se virou e olhou para trás, para aquela que chamavam
de Reverenda Madre, estudando as feições ressequidas da
anciã, a fixidez insondável dos olhos azuis. Ela dava a
impressão de que uma brisa poderia carregá-la para longe, mas
também havia nela algo que sugeria que poderia permanecer
intacta no caminho de uma tempestade de Coriolis. Ela tinha a
mesma aura de poder que, em sua memória, ele atribuía à
Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, que o havia testado
com a agonia na tradição do gom jabbar.
– Eu, a Reverenda Madre Ramallo, cuja voz fala por muitas,
digo isto a vocês – disse a mulher. – É apropriado que Chani
entre para as Sayyadina.
– É apropriado – respondeu a multidão.
A velha assentiu e sussurrou:
– Dou a ela os céus prateados, o deserto dourado e suas
pedras reluzentes, os campos verdes que ainda virão. Isso dou
à Sayyadina Chani. E, para que não esqueça que serve a todos
nós, a ela caberá as tarefas servis nesta Cerimônia da Semente.
Seja feita a vontade de Shai-hulud. – Ela ergueu um braço fino e
moreno e o deixou cair.
Jéssica, sentindo a cerimônia se fechar sobre ela, numa
torrente que a arrastava para muito além do ponto de retorno,
olhou uma só vez para o rosto inquisitivo de Paul, depois
preparou-se para o ordálio.
– Que os hidromestres se apresentem – disse Chani,
apenas com um levíssimo tremor de incerteza em sua voz de
menina.
Agora Jéssica se sentiu no foco do perigo, reconhecendo a
presença do risco na cautela e no silêncio da multidão.
Um bando de homens avançou por um caminho cheio de
meandros que se abriu na multidão, vindos lá de trás, aos
pares. Cada par carregava um pequeno odre que tinha, talvez,
o dobro do tamanho de uma cabeça humana. Os odres
chapinhavam ruidosamente.
Os dois líderes depositaram sua carga aos pés de Chani
sobre a saliência e recuaram.
Jéssica olhou para o odre, depois para os homens. Traziam
os capuzes atirados para trás, expondo os cabelos longos e
recolhidos num rolo na base do pescoço. Os fossos escuros dos
olhos retribuíram o olhar dela sem vacilar.
Um vago aroma de canela elevou-se do odre e passou por
Jéssica. A especiaria?, ela se perguntou.
– Temos água? – Chani perguntou.
O hidromestre à esquerda, um homem com uma cicatriz
púrpura sobre a ponte do nariz, concordou uma vez com a
cabeça.
– Temos água, Sayyadina – ele disse –, mas dela não
podemos beber.
– Temos a semente? – Chani perguntou.
– Temos a semente – disse o homem.
Chani se ajoelhou e colocou as mãos sobre o odre cheio de
líquido.
– Abençoadas sejam a água e sua semente.
O rito era familiar, e Jéssica olhou para trás, para a
Reverenda Madre Ramallo. Os olhos da velha estavam
fechados e ela se sentava curvada, como se dormisse.
– Sayyadina Jéssica – disse Chani.
Jéssica se virou e viu que a menina olhava para ela.
– Já provou da água benta? – perguntou Chani.
Antes que Jéssica conseguisse responder, Chani disse:
– Não é possível que tenha experimentado a água benta.
Você vem de outro mundo e não teve esse privilégio.
A multidão suspirou, um sussurro de mantos que fez os
cabelos da nuca de Jéssica se arrepiarem.
– A safra foi grande e o criador, destruído – Chani disse.
Ela começou a desatarraxar uma biqueira fixada ao topo do
odre.
Agora Jéssica sentia o perigo fervilhando a seu redor.
Olhou para Paul, viu que ele tinha se deixado enredar pelo
mistério do rito e tinha olhos somente para Chani.
Será que ele viu este momento no tempo?, Jéssica se
perguntou. Descansou uma das mãos sobre o abdômen,
pensando na filha ainda por nascer, perguntando-se: Tenho o
direito de colocar a nós duas em risco?
Chani ergueu a biqueira na direção de Jéssica e disse:
– Esta é a Água da Vida, a água que é maior que a água:
Kan, a água que liberta a alma. Se você for uma Reverenda
Madre, ela irá lhe abrir o universo. Que Shai-hulud seja o juiz.
Jéssica viu-se dividida entre suas obrigações para com a
criança por nascer e suas obrigações para com Paul. Em nome
de Paul, ela sabia que deveria tomar aquela biqueira e beber o
conteúdo do odre, mas, ao se inclinar para a biqueira que lhe
era oferecida, seus sentidos a alertaram para o perigo.
A substância no odre tinha um cheiro acre, subitamente
semelhante a muitos venenos que ela conhecia, mas, ao mesmo
tempo, diferente de todos eles.
– Precisa tomá-la agora – Chani disse.
Não há mais volta, Jéssica lembrou a si mesma. Mas não
lhe ocorreu nada em todo o seu treinamento de Bene Gesserit
que pudesse ajudá-la a superar aquele momento.
O que é isto?, Jéssica se perguntou. Aguardente? Uma
droga?
Ela se inclinou sobre a biqueira, sentiu o cheiro dos ésteres
da canela, lembrando-se da embriaguez de Duncan Idaho.
Aguardente de especiaria?, ela se perguntou. Enfiou o tubo do
sifão na boca e sugou uma quantidade minúscula. Tinha gosto
de especiaria, uma leve picada acre na língua.
Chani apertou a bolsa de couro. Uma enorme golfada da
substância invadiu a boca de Jéssica e, antes que pudesse
evitar, ela já a tinha engolido, lutando para manter a calma e a
dignidade.
– Aceitar a pequena morte é pior que a morte
propriamente dita – Chani disse. Olhou fixamente para Jéssica
e esperou.
E Jéssica devolveu-lhe o olhar, ainda segurando a biqueira
em sua boca. Sentiu o conteúdo do odre em suas narinas, no
céu da boca, na face, nos olhos: uma doçura picante agora.
Fresca.
Mais uma vez, Chani fez o líquido jorrar dentro da boca de
Jéssica.
Delicada.
Jéssica estudou o rosto de Chani – os traços de fada –,
vendo ali as feições de Liet-Kynes, ainda não fixadas pelo
tempo.
É uma droga o que estão me fazendo beber, Jéssica disse
consigo mesma.
Mas era diferente de qualquer outra droga que já tivesse
experimentado, e o treinamento das Bene Gesserit envolvia
provar várias drogas.
As feições de Chani eram tão claras, como se delineadas
pela luz.
Uma droga.
Um silêncio vertiginoso se instalou em volta de Jéssica.
Cada fibra de seu corpo aceitou o fato de que algo profundo lhe
tinha acontecido. Sentiu que era um cisco consciente, menor
que qualquer partícula subatômica, mas capaz de se mover e
de perceber o ambiente circundante. Feito uma revelação
abrupta – cortinas que se escancaravam –, ela notou que
passara a perceber uma extensão psicocinestésica de si
mesma. Ela era o cisco, sem ser.
A caverna continuava a rodeá-la, as pessoas. Ela as sentia:
Paul, Chani, Stilgar, a Reverenda Madre Ramallo.
Reverenda Madre!
Na escola, circulavam boatos de que algumas mulheres
não sobreviviam ao ordálio de Reverenda Madre, que a droga
as matava.
Jéssica concentrou sua atenção na Reverenda Madre
Ramallo, ciente agora de que tudo aquilo estava acontecendo
num instante congelado de tempo – o tempo em suspensão, só
para ela.
Por que o tempo está em suspensão?, ela se perguntou.
Olhou para as expressões congeladas à sua volta, vendo um
cisco de poeira acima da cabeça de Chani, e ali se deteve.
Esperando.
A resposta àquele instante veio como uma explosão em
sua consciência: seu tempo pessoal tinha sido suspenso para
salvar-lhe a vida.
Concentrou-se na extensão psicocinestésica de si mesma,
olhando para dentro, e foi confrontada imediatamente com um
núcleo de células, um fosso de escuridão que a fez recuar.
Esse é o lugar que não nos é dado ver, ela pensou. Ali fica o
lugar que as Reverendas Madres relutam tanto em mencionar: o
lugar que só ao Kwisatz Haderach é dado ver.
Essa percepção devolveu-lhe uma pequena medida de
confiança e, mais uma vez, ela se arriscou a se concentrar na
extensão psicocinestésica, tornando-se um eu-cisco que
passou a procurar dentro dela o perigo.
Ela o encontrou na droga que tinha engolido.
A substância era uma série de partículas que dançavam
dentro dela, e seus movimentos eram tão rápidos que nem
mesmo o tempo congelado conseguia detê-las. Partículas que
dançavam. Ela começou a reconhecer estruturas familiares,
ligações atômicas: um átomo de carbono ali, uma forma
helicoidal fugaz... uma molécula de glicose. Uma cadeia inteira
de moléculas a confrontou, e ela reconheceu uma proteína...
uma configuração metilproteica.
Aah!
Foi um suspiro mental e mudo em seu íntimo, quando ela
viu a natureza do veneno.
Com sua sonda psicocinestésica, ela entrou no veneno,
deslocou um cisco de oxigênio, deixou um outro cisco de
carbono se ligar, refez uma ligação de oxigênio... hidrogênio.
A mudança se espalhou... cada vez mais rápido, à medida
que a reação catalítica ia abrindo sua superfície de contato.
A suspensão do tempo afrouxou o controle que exercia
sobre Jéssica, e ela detectou movimento. Tocaram-lhe
gentilmente a boca com a biqueira do odre, coletando uma
gota de umidade.
Chani está tirando o catalisador de minha boca para
transformar o veneno do odre, Jéssica pensou. Por quê?
Alguém a ajudou a se sentar. Viu que traziam a velha
Reverenda Madre Ramallo para se sentar ao lado dela na
saliência atapetada. Uma mão ressequida tocou-lhe o pescoço.
E havia mais um cisco psicocinestésico em sua percepção!
Jéssica tentou repudiá-lo, mas o cisco foi se aproximando...
cada vez mais.
E se tocaram!
Foi uma empatia absoluta, ser duas pessoas ao mesmo
tempo: não era telepatia, e sim uma percepção comum.
Com a velha Reverenda Madre!
Mas Jéssica viu que a Reverenda Madre não pensava em si
mesma como uma velha. Uma imagem se desdobrou na
imaginação conjunta: uma menina de espírito dançarino e
temperamento meigo.
No interior da percepção comum, a menina disse:
– Isso mesmo, é assim que eu sou.
Jéssica só conseguiu aceitar as palavras, mas não
respondê-las.
– Logo tudo será seu, Jéssica – explicou a imagem interior.
É uma alucinação, Jéssica disse consigo mesma.
– Sabe que não – disse a imagem interior. – Rápido, agora,
não resista. Não temos muito tempo. Nós... – Seguiu-se uma
pausa prolongada e então: – Você devia ter nos contado que
estava grávida!
Jéssica encontrou a voz que falava no interior da
percepção comum.
– Por quê?
– Isto mudará vocês duas! Santa Mãe, o que foi que
fizemos?
Jéssica sentiu uma alteração forçada na percepção
comum, viu uma outra presença-cisco com o olho interior. O
outro cisco corria desenfreadamente, aqui, ali, em círculos.
Irradiava o mais puro pavor.
– Você terá de ser forte – disse a presença-imagem da
velha Reverenda Madre. – Agradeça por estar esperando uma
menina. Isto teria matado um feto do sexo masculino. Agora...
com cuidado, com delicadeza... toque sua presença-filha. Seja
sua presença-filha. Absorva o medo... acalme... use sua força e
coragem... com delicadeza agora... com delicadeza...
O cisco rodopiante se aproximou, e Jéssica obrigou-se a
tocá-lo.
O pavor ameaçou sobrepujá-la.
Ela resistiu da única maneira que conhecia: “Não terei
medo. O medo mata a mente...” .
A litania trouxe uma calma aparente. O outro cisco
encostou-se nela e ali ficou, quiescente.
As palavras não funcionam, Jéssica disse consigo mesma.
Ela se restringiu a reações emocionais básicas, irradiou
amor, consolo, um aconchego cálido e protetor.
O pavor cedeu.
Mais uma vez, a presença da velha Reverenda Madre falou
no interior da percepção:
– Tenho muito para dar a você. E não sei se sua filha
conseguirá aceitar tudo isso sem perder a sanidade. Mas assim
tem de ser: as necessidades da tribo são prioritárias.
– O que...
– Fique quieta e aceite!
Experiências começaram a se desenrolar diante de
Jéssica. Era como uma aula-filme num projetor de treinamento
subliminar na escola Bene Gesserit... só que mais rápido...
numa velocidade estonteante.
E, no entanto... distinto.
Ia conhecendo cada experiência à medida que elas
aconteciam: havia um amante, viril, barbado, com os olhos dos
fremen, e Jéssica viu-lhe a força e a ternura, todo ele num único
momento fugaz, por meio da memória da Reverenda Madre.
Agora não havia tempo para pensar no que aquilo poderia
estar fazendo com sua filha em estado fetal, havia só o tempo
de aceitar e registrar. As experiências choviam sobre Jéssica –
nascimento, vida, morte –, questões importantes e
desimportantes, uma torrente de tempo segundo a
perspectiva de uma só pessoa.
Por que guardar na memória uma cascata de areia caindo
do alto de um penhasco?, ela se perguntou.
Tarde demais, Jéssica percebeu o que estava
acontecendo: a velha estava à beira da morte e, morrendo, ela
despejava suas experiências na percepção de Jéssica, como se
vertesse água numa taça. Jéssica observou o outro cisco voltar
a desaparecer na percepção pré-natal. E, morrendo em
concepção, a velha Reverenda Madre deixou sua vida na
memória de Jéssica com um derradeiro atropelo de palavras
sussurradas.
– Esperei você durante tanto tempo – ela disse. – Eis minha
vida.
E ali estava, em resumo, tudo.
Até mesmo o momento da morte.
Agora sou uma Reverenda Madre, Jéssica percebeu.
E entendeu, com uma percepção generalizada, que tinha
se tornado, em verdade, precisamente o que significava ser
uma Reverenda Madre das Bene Gesserit. A droga-veneno a
tinha transformado.
Ela sabia que não era exatamente daquela maneira que se
fazia na escola Bene Gesserit. Nunca a haviam iniciado
naqueles mistérios, mas ela sabia.
O resultado final era o mesmo.
Jéssica sentiu que o cisco-filha ainda estava em contato
com sua percepção interior e sondou-o, sem obter resposta.
Uma sensação terrível de solidão se espalhou por Jéssica
tão logo ela entendeu o que lhe tinha acontecido. Viu sua
própria vida como um padrão que reduzira o passo, enquanto
toda a vida a seu redor ganhara velocidade, para que a
interação dançante ficasse mais clara.
A sensação de ser um cisco se apagou ligeiramente, sua
intensidade foi aliviada quando o corpo de Jéssica relaxou,
afastada a ameaça do veneno, mas ela ainda sentia aquele
outro cisco, tocava-o com uma sensação de culpa pelo que
havia deixado acontecer a ele.
Fiz isso, minha pobre e querida filhinha ainda não formada,
eu a trouxe para cá e expus sua consciência a todas as
variedades deste universo, sem qualquer defesa.
Um filete de consolo-amor, como um reflexo daquilo que
ela havia despejado nele, partiu do outro cisco.
Antes que conseguisse responder, Jéssica sentiu a
presença da adab, a lembrança exigente. Havia algo que era
preciso fazer. Tateou em busca dessa coisa e percebeu que era
impedida pelo entorpecimento provocado pela droga
transformada que permeava seus sentidos.
Eu conseguiria alterá-la, ela pensou. Eu poderia anular a
ação da droga e torná-la inofensiva. Mas percebeu que aquilo
seria um erro. Faço parte de um rito de união.
Foi aí que ela entendeu o que tinha de fazer.
Jéssica abriu os olhos, apontou o odre de água que Chani
agora segurava acima de sua cabeça.
– Foi abençoada – Jéssica disse. – Misture as águas, deixe a
transformação atingir a todos, para que as pessoas
compartilhem essa bênção.
Que o catalisador faça seu trabalho, ela pensou. Que as
pessoas o bebam e tenham sua percepção umas das outras
aumentada durante algum tempo. A droga é segura agora...
agora que uma Reverenda Madre a transformou.
No entanto, a lembrança exigente continuava a afetá-la, a
impeli-la. Percebeu que havia outra coisa que ela precisava
fazer, mas a droga dificultava o foco.
Aaaah... a velha Reverenda Madre.
– Conheci a Reverenda Madre Ramallo – disse Jéssica. –
Ela se foi, mas continua aqui. Que sua memória seja celebrada
no rito.
De onde foi que tirei essas palavras?, Jéssica se perguntou.
E percebeu que tinham saído de uma outra memória, da
vida que tinham lhe dado e que agora fazia parte dela. Mas
alguma coisa em relação àquele presente parecia incompleta.
– Deixe-os com sua orgia – a outra memória disse dentro
dela. – A vida lhes proporciona tão poucos prazeres. Sim, e você
e eu precisamos desse pouco tempo para nos conhecermos antes
que eu me afaste para me espalhar em suas lembranças. Já me
sinto presa a pedacinhos seus. Aah, sua mente está cheia de
coisas interessantes. Tantas coisas que nunca imaginei.
E a mente-memória encerrada dentro dela abriu-se para
Jéssica, permitindo-lhe ver um corredor largo que levava a
outras Reverendas Madres, até que elas parecessem não ter
fim.
Jéssica se encolheu, temendo se perder num oceano de
unidade. Ainda assim, o corredor continuava ali, revelando a
Jéssica que a cultura fremen era muito mais antiga do que ela
suspeitava.
Viu que os fremen estiveram em Poritrin, onde se
deixaram amolecer por um planeta complacente, presa fácil
para os saqueadores imperiais capturarem e introduzirem nas
colônias humanas de Bela Tegeuse e Salusa Secundus.
Ah, o pesar que Jéssica sentiu naquela separação.
Bem mais adiante no corredor, uma voz-imagem gritou:
– Negaram-nos o Hajj!
Jéssica viu as senzalas de Bela Tegeuse no fim daquele
corredor interno, viu o extermínio e a seleção que levaram a
humanidade a Rossak e Harmonthep. Cenas de ferocidade
brutal se abriram para ela como as pétalas de uma flor terrível.
E ela viu a meada do passado carregada por uma Sayyadina
após a outra, a princípio de boca em boca, escondida no
cancioneiro da areia, depois aprimorada pelas próprias
Reverendas Madres, com a descoberta da droga-veneno em
Rossak... e agora discretamente fortalecida pelo
desenvolvimento obtido ali em Arrakis, com a descoberta da
Água da Vida.
Mais adiante, no corredor interno, uma outra voz gritou:
– Para nunca perdoar! Para nunca esquecer!
Mas a atenção de Jéssica estava concentrada na revelação
da Água da Vida, visualizando sua origem: a exalação líquida de
um verme da areia, um criador agonizante. E ao ver, em sua
memória, que o matavam, ela sufocou um grito.
A criatura era afogada!
– Mãe, você está bem?
A voz de Paul a invadiu, e Jéssica se debateu para sair da
percepção interior, erguer os olhos e ver o filho, consciente de
sua obrigação para com ele, mas ressentindo-se da presença
do menino.
Sou como uma pessoa cujas mãos foram mantidas
dormentes, nenhuma sensação desde o primeiro instante de
consciência... até que um dia a capacidade de sentir lhes foi
imposta.
O pensamento pendurado em sua mente, uma percepção
envolvente.
E eu digo: “Vejam! Tenho mãos!”. Mas todas as pessoas a
meu redor perguntam: “E o que são mãos?”.
– Você está bem? – Paul repetiu.
– Sim.
– Tudo bem se eu beber aquilo? – Apontou o odre nas
mãos de Chani. – Querem que eu beba.
Ela ouviu o significado oculto nas palavras dele, percebeu
que ele tinha detectado o veneno na substância original, ainda
não transformada, que ele estava preocupado com ela. Foi aí
que ocorreu a Jéssica questionar os limites da presciência de
Paul. A pergunta dele revelava muitas coisas.
– Pode beber – ela disse. – Foi transformada. – E olhou para
além do filho e viu que Stilgar a fitava, estudando-a com
aqueles olhos escuríssimos.
– Agora sabemos que você não pode ser falsa – ele disse.
Ela sentiu que ali também havia um significado oculto, mas
o torpor da droga sobrepujava-lhe os sentidos. Como era cálido
e tranquilizador. Quanta bondade dos fremen trazê-la para tão
boa companhia.
Paul viu a droga se apoderar de sua mãe.
Vasculhou sua memória: o passado fixo, as linhas de fluxo
dos futuros possíveis. Era como examinar instantes suspensos
de tempo, desconcertantes para as lentes do olho interior. Era
difícil compreender os fragmentos arrancados do fluxo.
Aquela droga, ele poderia reunir informações sobre ela,
entender como ela afetava sua mãe, mas a esse conhecimento
faltava um ritmo natural, um sistema de reflexão mútua.
Percebeu, de repente, que uma coisa era enxergar o
passado que ocupava o presente, mas a verdadeira prova da
presciência era enxergar o passado no futuro.
As coisas insistiam em não ser o que aparentavam ser.
– Beba – disse Chani. Ela balançou a biqueira de um odre
de água sob o nariz dele.
Paul aprumou-se e encarou Chani. Sentia uma excitação
carnavalesca no ar. Sabia o que aconteceria se bebesse aquela
droga feita de especiaria, que continha a quintessência da
substância que o havia transformado. Ele voltaria à visão do
tempo em estado puro, do tempo feito espaço. A droga o
acomodaria no cume vertiginoso e o desafiaria a compreender.
Atrás de Chani, Stilgar disse:
– Beba, rapaz. Está atrasando o rito.
Foi aí que Paul escutou a multidão, ouvindo o desvario em
suas vozes.
– Lisan al-Gaib – eles diziam. – Muad’Dib!
Baixou o olhar para ver a mãe. Ela parecia dormir em paz
ainda sentada, com a respiração regular e profunda. Uma frase
saída do futuro que era seu passado solitário entrou em sua
mente: “Ela dorme nas Águas da Vida”.
Chani puxou-lhe a manga.
Paul levou a biqueira à boca, ouvindo os gritos das
pessoas. Sentiu o líquido jorrar em sua garganta quando Chani
apertou o odre, sentiu a vertigem dos vapores. Chani retirou a
biqueira e entregou o odre a mãos que se estenderam desde o
chão da caverna para pegá-lo. Os olhos dele se concentraram
no braço dela, na faixa verde de luto que ela trazia ali.
Ao se levantar, Chani viu em que direção o olhar dele
seguia e disse:
– Posso chorar por ele mesmo na felicidade das águas. Foi
uma coisa que ele nos deu. – Tomou-lhe a mão e o puxou ao
longo da saliência. – Somos parecidos numa coisa, Usul: nós
dois perdemos nossos pais por causa dos Harkonnen.
Paul a acompanhou. Sentia como se tivessem separado
sua cabeça do resto do corpo e religado-a de maneira estranha.
Suas pernas pareciam moles e distantes.
Entraram numa passagem lateral estreita, com as paredes
fracamente iluminadas por luciglobos espaçados. Paul sentiu
que a droga começava a exercer sobre ele seu efeito singular,
abrindo o tempo como a uma flor. Julgou necessário se firmar
apoiando-se em Chani quando os dois entraram por mais um
túnel tomado pela penumbra. A combinação de rigidez e
maciez que ele sentia sob o manto da menina aqueceu-lhe o
sangue. A sensação se misturou com o efeito da droga,
dobrando o passado e o futuro dentro do presente, deixando-
lhe uma margem estreitíssima de foco trinocular.
– Conheço você, Chani – ele sussurrou. – Nós nos sentamos
sobre uma saliência acima da areia e eu aplaquei seus receios.
Trocamos carícias na escuridão do sietch. Nós... – Descobriu-se
perdendo o foco, tentou chacoalhar a cabeça, tropeçou.
Chani o amparou, fez com que atravessasse cortinas
espessas e entrasse no calor amarelado de um apartamento
particular: mesas baixas, almofadas, um colchão debaixo de
uma coberta laranja.
Paul tomou consciência de que tinham parado, de que
Chani o encarava, e de que os olhos dela revelavam um pavor
mudo.
– Você precisa me dizer – ela sussurrou.
– Você é Sihaya – ele disse –, a primavera do deserto.
– Quando a tribo partilha a Água – ela disse –, estamos
juntos... todos. Nós... partilhamos. Eu... sinto que os outros
estão comigo, mas tenho medo de partilhar com você.
– Por quê?
Ele tentou focalizá-la, mas o passado e o futuro se fundiam
ao presente, borrando a imagem dela. Ele a viu de incontáveis
maneiras, em inúmeras posições e cenários.
– Há algo assustador em você – ela disse. – Quando eu o
afastei dos outros... fiz isso porque senti o que eles queriam.
Você... constrange as pessoas. Você... nos faz ver coisas!
Ele se esforçou para falar articuladamente:
– O que você vê?
Ela olhou para os próprios braços.
– Vejo uma criança... em meus braços. É nosso filho, seu e
meu. – Levou a mão à boca. – Como é possível que eu conheça
cada traço seu?
Têm um pouco do talento, sua mente lhe disse. Mas eles o
reprimem porque é apavorante.
Num momento de lucidez, ele viu que Chani tremia.
– O que é que você quer me dizer? – ele perguntou.
– Usul – ela sussurrou, ainda tremendo.
– Você não pode entrar de costas no futuro – ele disse.
Foi tomado por uma profunda compaixão por ela. Trouxe-
a para si e afagou-lhe a cabeça.
– Chani, Chani, não tenha medo.
– Usul, ajude-me – ela choramingou.
Enquanto ela falava, ele sentiu que a droga completava sua
obra dentro dele, rasgando as cortinas para deixá-lo ver o
turbilhão cinzento e distante de seu futuro.
– Está tão calado – Chani disse.
Ele pairava em sua percepção, vendo o tempo se esticar
em sua dimensão fatídica, rodopiando em delicado equilíbrio,
estreita, mas aberta feito uma rede a recolher incontáveis
mundos e forças, um fio esticado que ele era obrigado a trilhar,
mas uma gangorra na qual ele se equilibrava.
De um lado ele enxergava o Imperium, um Harkonnen de
nome Feyd-Rautha que se atirava sobre ele tal qual espada
mortífera, os Sardaukar partindo enraivecidos de seu planeta
de origem para disseminar o pogrom em Arrakis, a Guilda
conspirando e tramando, as Bene Gesserit e seus planos de
reprodução seletiva. Concentravam-se todos como nuvens
tempestuosas no horizonte de Paul, contidos apenas pelos
fremen e por seu Muad’Dib, o gigante adormecido que eram os
fremen, a postos para sua cruzada feroz através do universo.
Paul sentia que estava no centro, no eixo que fazia toda a
estrutura girar, caminhando numa linha fina de paz com uma
certa medida de felicidade, e Chani ao lado dele. Via a linha se
estender diante dele, uma época de sossego relativo num
sietch secreto, um momento de paz entre períodos de
violência.
– Não há outro lugar para a paz – ele disse.
– Usul, você está chorando – Chani murmurou. – Usul,
minha força, você está oferecendo umidade aos mortos? Aos
mortos de quem?
– Àqueles que ainda não morreram – ele disse.
– Então deixe-os viver enquanto é tempo – ela disse.
Percebeu, em meio ao nevoeiro da droga, como ela tinha
razão e trouxe-a para junto de si com uma força selvagem.
– Sihaya! – ele disse.
Ela tocou-lhe a face com a palma da mão.
– Não estou mais com medo, Usul. Olhe para mim. Vejo o
que você vê quando me abraça assim.
– O que você vê? – ele indagou.
– Vejo nós dois oferecendo amor um ao outro na bonança
entre duas tempestades. É o que estamos destinados a fazer.
A droga voltou a se apoderar dele, e Paul pensou: Tantas
vezes você me trouxe consolo e esquecimento. Voltou a sentir a
hiperiluminação, com suas imagens em alto-relevo do tempo,
percebeu que seu futuro ia se transformando em lembranças:
as indignidades afetuosas do amor físico, a partilha e a
comunhão das individualidades, a suavidade e a violência.
– Você é que é forte, Chani – ele murmurou. – Fique
comigo.
– Sempre – ela disse, e beijou-lhe o rosto.
livro terceiro
O PROFETA
Nenhuma mulher, nenhum homem,
nenhuma criança teve um dia grande
intimidade com meu pai. O mais perto
que já se chegou de um companheirismo
informal com o imperador padixá foi o
relacionamento oferecido pelo conde
Hasimir Fenring, um colega de infância.
Nota-se a medida da amizade do conde
Fenring primeiro numa coisa positiva: ele
aplacou as suspeitas do Landsraad depois
do Caso Arrakis. Custou mais de um
bilhão de solaris em subornos com a
especiaria, foi o que minha mãe disse, e
também houve outros presentes:
escravas, honrarias régias e patentes. A
segunda maior prova da amizade do
conde foi negativa. Ele se recusou a matar
um homem, muito embora fosse capaz
disso e meu pai o tivesse ordenado. É o
que relatarei agora.
– “Conde Fenring: uma biografia”, da princesa Irulan

O barão Vladimir Harkonnen ia furioso pelo corredor,


recém-saído de seus aposentos particulares, atravessando
rapidamente os trechos iluminados pelo sol de fim de tarde,
que manava das janelas altas. Ele saltitava e se contorcia em
seus suspensores, com movimentos violentos.
Passou esbravejando pela cozinha particular, pela
biblioteca, a pequena sala de recepção, e entrou na antecâmara
dos criados, onde o relaxamento de fim de tarde já tinha se
instalado.
O capitão da guarda, Iakin Nefud, estava refestelado num
divã, do outro lado da câmara, com o estupor da semuta
estampado em sua cara achatada, cercado pelo lamento
sinistro da música entorpecente. Sua corte pessoal estava
sentada ali perto, pronta para fazer o que ele mandasse.
– Nefud! – rugiu o barão.
Homens correram.
Nefud se levantou, com o rosto tranquilo do efeito do
narcótico, mas revestido de uma palidez que revelava medo. A
música da semuta tinha cessado.
– Milorde barão – disse Nefud. Somente a droga evitou que
sua voz tremesse.
O barão correu os olhos pelos rostos a seu redor, vendo
neles as expressões de calma frenética. Voltou sua atenção
para Nefud e falou num tom sedoso:
– Há quanto tempo é meu capitão da guarda, Nefud?
Nefud engoliu em seco.
– Desde Arrakis, milorde. Quase dois anos.
– E sempre se antecipou às ameaças a minha pessoa?
– Esse foi sempre meu único desejo, milorde.
– Então, onde está Feyd-Rautha? – rugiu o barão.
Nefud se encolheu.
– Milorde?
– Você não considera Feyd-Rautha uma ameaça a minha
pessoa? – Mais uma vez, a voz saiu sedosa.
Nefud umedeceu os lábios com a língua. Um pouco do
entorpecimento da semuta deixou-lhe os olhos.
– Feyd-Rautha está no alojamento dos escravos, milorde.
– Com as mulheres, de novo, hein? – O barão estremeceu
com o esforço para suprimir a raiva.
– Sire, pode ser que ele...
– Silêncio!
O barão avançou mais um passo, antecâmara adentro,
notando como os homens se afastaram, abrindo um espaço
discreto em torno de Nefud, desassociando-se do objeto de sua
ira.
– Não mandei que você sempre soubesse exatamente o
paradeiro do na-barão? – perguntou o barão. Aproximou-se
mais um passo. – Não disse a você que era para saber
exatamente o que o na-barão dissesse e para quem? – Mais um
passo. – Não disse que você deveria me informar toda vez que
ele fosse ao alojamento das escravas?
Nefud engoliu em seco. A transpiração brotava de sua
testa.
O barão manteve uniforme seu tom de voz, quase
desprovido de ênfase:
– Não disse essas coisas a você?
Nefud assentiu.
– E não disse para verificar todos os meninos escravos que
mandasse para mim e que fizesse isso você mesmo...
pessoalmente?
De novo, Nefud assentiu.
– Por acaso não viu a mancha na coxa do garoto que me
mandou hoje? – o barão perguntou. – Será possível que você...
– Tio.
O barão girou e encarou Feyd-Rautha, parado no vão da
porta. A presença do sobrinho ali, naquele momento – a
aparência de pressa que o rapaz não disfarçava muito bem –,
tudo era muito revelador. Feyd-Rautha tinha seu próprio
sistema de espionagem de olho no barão.
– Há um cadáver em meus aposentos que quero ver
removido – disse o barão, e manteve a mão sobre a arma de
projéteis debaixo das vestes, agradecendo por seu escudo ser o
melhor que havia.
Feyd-Rautha olhou de relance para dois guardas
encostados na parede à direita e fez um sinal com a cabeça. Os
dois se destacaram, saíram apressados pela porta e seguiram
pelo corredor na direção dos aposentos do barão.
Aqueles dois, hein?, pensou o barão. Ah, este monstrinho
ainda tem muito a aprender a respeito de conspirações!
– Imagino que tenha deixado tudo em paz no alojamento
dos escravos, Feyd – disse o barão.
– Estava jogando quéops com o feitor – disse Feyd-Rautha,
e pensou: O que deu errado? O garoto que mandamos para meu
tio obviamente foi morto. Mas era perfeito para o serviço. Nem
mesmo Hawat teria escolhido melhor. O garoto era perfeito!
– Jogando xadrez piramidal – disse o barão. – Que bom.
Ganhou?
– Eu... ah, sim, tio. – E Feyd-Rautha se esforçou para conter
sua inquietação.
O barão estalou os dedos.
– Nefud, quer cair novamente em minhas boas graças?
– Sire, o que foi que fiz? – perguntou Nefud, com voz
trêmula.
– Isso não importa agora – disse o barão. – Feyd ganhou do
feitor de escravos no quéops. Ouviu isso?
– Sim... sire.
– Quero que pegue três homens e procure o feitor – disse o
barão. – E o garroteie. Traga o cadáver quando terminar, para
que eu possa ver que fez tudo direito. Não podemos ter
enxadristas tão ineptos a nosso serviço.
Feyd-Rautha ficou branco e deu um passo adiante.
– Mas, tio, eu...
– Mais tarde, Feyd – disse o barão, e acenou com a mão. –
Mais tarde.
Os dois guardas que tinham ido buscar o corpo do menino
nos aposentos do barão passaram aos trancos junto à porta da
antecâmara, carregando entre eles seu fardo lânguido, que
arrastava os braços. O barão ficou olhando até sumirem de
vista.
Nefud foi para perto do barão.
– Quer que eu mate o feitor agora, milorde?
– Já – disse o barão. – E, ao terminar, acrescente esses dois
que acabaram de passar a sua lista. Não gostei da maneira
como carregaram aquele corpo. Essas coisas se fazem sem
sujeira. Vou querer ver as carcaças dos dois também.
Nefud disse:
– Milorde, foi alguma coisa que eu...
– Faça o que seu mestre mandou – disse Feyd-Rautha, e
pensou: Só me resta esperar salvar minha pele.
Ótimo!, o barão pensou. Ele já sabe como reduzir o prejuízo.
E o barão sorriu consigo mesmo, pensando: O rapaz também
sabe o que me agrada e o que está mais propenso a impedir que
minha ira recaia sobre ele. Sabe que tenho de preservá-lo. Quem
mais me restou para tomar as rédeas do que terei de deixar um
dia? Não tenho ninguém tão qualificado. Mas ele precisa
aprender! E tenho de me preservar enquanto ele aprende.
Nefud apontou os homens que deveriam ajudá-lo e saiu
com eles pela porta.
– Acompanhe-me até meus aposentos, Feyd, por favor –
disse o barão.
– Estou a suas ordens – aquiesceu Feyd-Rautha. Fez uma
mesura, pensando: Fui apanhado.
– Depois de você – objetou o barão, fazendo um gesto para
a porta.
Feyd-Rautha deixou seu medo transparecer apenas com
uma hesitação mínima. Será que tudo está perdido?, ele se
perguntou. Será que ele vai enfiar um punhal envenenado em
minhas costas... devagar, através do escudo? Será que ele tem
outro sucessor?
Deixe-o viver este momento de pavor, pensou o barão,
caminhando ao lado do sobrinho. Ele irá me suceder, mas eu
escolherei a hora. Não deixarei que ele jogue fora o que construí.
Feyd-Rautha tentava não andar rápido demais. Sentiu um
calafrio na espinha, como se seu próprio corpo se perguntasse
quando viria o golpe. Seus músculos ora se contraíam, ora
relaxavam.
– Ouviu as últimas de Arrakis? – o barão perguntou.
– Não, tio.
Feyd-Rautha obrigou-se a não olhar para trás. Virou no fim
do corredor, saindo da ala dos criados.
– Os fremen têm um novo profeta ou uma espécie de líder
religioso – disse o barão. – Chamam-no Muad’Dib. Muito
engraçado, na verdade. Significa “o Ratinho”. Mandei Rabban
deixá-los com sua religião. Isso irá mantê-los ocupados.
– Isso é muito interessante, tio – comentou Feyd-Rautha.
Virou-se e entrou no corredor privativo dos aposentos do tio,
perguntando-se: Por que ele está falando de religião? Seria uma
indireta para mim?
– Não é mesmo? – perguntou o barão.
Entraram nos aposentos do barão, cruzaram o salão de
recepção e dirigiram-se para o quarto. Foram recebidos por
sinais discretos de luta: uma luminária suspensa fora de lugar,
uma almofada no chão, uma bobina tranquilizadora tombada e
aberta sobre o toucador.
– Foi um plano inteligente – disse o barão. Manteve seu
escudo corporal em potência máxima, deteve-se e encarou o
sobrinho. – Mas não inteligente o bastante. Diga-me, Feyd, por
que não me matou você mesmo? Não lhe faltaram
oportunidades.
Feyd-Rautha procurou uma cadeira suspensa e conseguiu
dar de ombros mentalmente ao se sentar nela, sem que o tio a
oferecesse.
Tenho de ser ousado agora, ele pensou.
– Você me ensinou a não sujar minhas próprias mãos –
respondeu.
– Ah, sim – disse o barão. – Diante do imperador,
precisamos ser capazes de declarar com sinceridade que não
perpetramos o ato. A bruxa ao lado do imperador ouvirá
nossas palavras e saberá se são verdadeiras ou falsas. Eu o
adverti a esse respeito.
– Por que nunca comprou uma Bene Gesserit, tio? –
perguntou Feyd-Rautha. – Com uma Proclamadora da Verdade
a seu lado...
– Você conhece meus gostos! – gritou o barão.
Feyd-Rautha estudou o tio e disse:
– Mesmo assim, seria valioso ter uma delas para...
– Não confio nelas! – o barão resmungou. – E pare de tentar
mudar de assunto!
Feyd-Rautha falou, com brandura:
– Como quiser, tio.
– Lembro-me de uma vez, na arena, há vários anos – disse
o barão. – Pareceu-me que naquele dia tinham preparado um
escravo para matar você. Foi isso mesmo que aconteceu?
– Foi há tanto tempo, tio. Afinal, eu...
– Sem evasivas, por favor – pediu o barão, e a severidade
de sua voz revelou-lhe a raiva controlada.
Feyd-Rautha olhou para o tio, pensando: Ele sabe; se não
soubesse, não perguntaria.
– Foi uma farsa, tio. Armei tudo para desacreditar seu
feitor.
– Muito inteligente – disse o barão. – E também corajoso.
Aquele gladiador-escravo quase pegou você, não foi?
– Foi.
– Se tivesse refinamento e sutileza equivalentes a essa
bravura, você seria realmente formidável.
O barão sacudiu a cabeça de um lado para outro. E, como
havia feito muitas vezes desde aquele dia terrível em Arrakis,
viu-se lamentando a perda de Piter, o Mentat. Aquele tinha
sido um homem de sutilezas delicadas e perversas. Contudo,
não lhe salvaram a vida. O barão voltou a sacudir a cabeça. O
destino, às vezes, era inescrutável.
Feyd-Rautha olhou ao redor do quarto, estudando os
sinais de luta, imaginando como seu tio havia sobrepujado o
escravo preparado com tamanho cuidado.
– Como foi que o derrotei? – o barão perguntou. – Aah, ora,
Feyd... permita-me guardar algumas armas para me preservar
na velhice. É melhor aproveitarmos a ocasião para fazermos
um pacto.
Feyd-Rautha encarou o tio. Um pacto! Então é certeza que
tem a intenção de me manter como herdeiro. Do contrário, por
que fazer um pacto? Pactua-se com iguais ou quase iguais.
– Que pacto, tio? – E Feyd-Rautha se orgulhou de ter
mantido a voz calma e racional, sem revelar seu entusiasmo.
O barão também notou o autocontrole do rapaz. Assentiu
com a cabeça.
– Você é material de boa qualidade, Feyd. Não desperdiço
material de qualidade. No entanto, você continua se recusando
a entender o verdadeiro valor que tenho para você. É teimoso.
Não vê por que é preciso me preservar como alguém do mais
absoluto valor para você. Isto... – Apontou os indícios de luta no
quarto. – Isto foi uma tolice. Eu não premio a tolice.
Vá direto ao assunto, velho idiota!, pensou Feyd-Rautha.
– Você pensa que sou um velho idiota – disse o barão. –
Tenho de dissuadi-lo dessa ideia.
– Está falando de um pacto.
– Ah, a impaciência da juventude – lamentou o barão. –
Bem, eis a essência da coisa, então: você vai parar de atentar
estupidamente contra minha vida. E eu, quando você estiver
pronto, irei me aposentar na posição de consultor, deixando
você no trono.
– Aposentar-se, tio?
– Você ainda pensa que sou idiota – disse o barão –, e isso
só faz confirmá-lo, hein? Você acha que estou implorando!
Cuidado, Feyd. Este velho idiota viu a agulha protegida que
você implantou na coxa daquele menino-escravo. Bem onde eu
teria colocado a mão, hein? A menor pressão que fosse e...
clique! Uma agulha envenenada na palma do velho idiota! Aaah,
Feyd...
O barão chacoalhou a cabeça, pensando: E teria
funcionado se Hawat não tivesse me alertado. Bem, deixemos o
rapaz acreditar que percebi a trama sozinho. De certo modo, foi
o que fiz. Fui eu quem recolheu Hawat dos destroços de Arrakis.
E este rapaz precisa ter mais respeito por minha habilidade.
Feyd-Rautha permaneceu calado, lutando consigo mesmo.
Será que está falando a verdade? Terá mesmo a intenção de se
aposentar? Por que não? Eu certamente irei sucedê-lo um dia, se
agir com cuidado. Ele não pode viver para sempre. Talvez tenha
sido uma tolice tentar acelerar o processo.
– Você fala de um pacto – disse Feyd-Rautha. – Com que
garantias nós o selaremos?
– Como é que podemos confiar um no outro, hein? –
perguntou o barão. – Bem, Feyd, quanto a você: designarei
Thufir Hawat para vigiá-lo. Para isso, confio nas habilidades de
Mentat de Hawat. Entendeu? E quanto a mim, você terá de
confiar. Mas não posso viver para sempre, não é, Feyd? E talvez
devesse começar a desconfiar de que sei coisas que você
deveria saber.
– Você fica com minha garantia. E eu, o que recebo de
você? – Feyd-Rautha perguntou.
– Deixarei que continue vivo – respondeu o barão.
Mais uma vez, Feyd-Rautha pôs-se a estudar o tio. Ele vai
colocar Hawat para me vigiar! O que ele diria se eu lhe contasse
que Hawat planejou a farsa com o gladiador que acabou
custando a meu tio seu feitor de escravos? Provavelmente diria
que eu menti para tentar desacreditar Hawat. Não, o bom
Thufir é um Mentat e previu este momento.
– Bem, o que me diz? – perguntou o barão.
– O que posso dizer? Aceito, claro.
E Feyd-Rautha pensou: Hawat! Está fazendo jogo duplo...
será isso? Será que passou para o lado de meu tio porque não o
consultei quanto ao atentado com o menino-escravo?
– Você não comentou o fato de eu designar Hawat para
vigiá-lo – disse o barão.
Feyd-Rautha revelou sua raiva ao dilatar as narinas. O
nome de Hawat tinha sido um sinal de perigo na família
Harkonnen durante tantos anos... e agora tinha um novo
significado: ainda perigoso.
– Hawat é um brinquedo perigoso – disse Feyd-Rautha.
– Brinquedo! Não seja estúpido. Sei o que Hawat é e como
controlá-lo. Hawat tem emoções intensas... ah, ora, que podem
se curvar às nossas necessidades.
– Tio, não entendo você.
– Sim, isso é bastante óbvio.
Somente um piscar fugaz dos olhos revelou o
ressentimento momentâneo de Feyd-Rautha.
– E você não entende Hawat – disse o barão.
Nem você!, pensou Feyd-Rautha.
– A quem Hawat culpa pelas atuais circunstâncias? – o
barão perguntou. – A mim? Certamente. Mas ele era um
instrumento dos Atreides e levou a melhor sobre mim durante
anos até o Imperium se envolver. É como ele vê a coisa. O ódio
dele por mim agora é algo natural. Ele acredita ser capaz de me
derrotar quando bem entender. Acreditando nisso, ele é
derrotado. Pois dirijo a atenção dele para onde quero: contra o
Imperium.
As contrações de uma nova compreensão desenharam
linhas de tensão na testa de Feyd-Rautha e afinaram seus
lábios.
– Contra o imperador?
Deixemos meu sobrinho querido saborear isso, o barão
pensou. Que ele diga consigo mesmo: “O imperador Feyd-
Rautha Harkonnen”. Que ele se pergunte quanto isso vale.
Certamente deve valer a vida de um tio idoso e capaz de realizar
esse sonho!
Devagar, Feyd-Rautha umedeceu os lábios com a língua.
Seria verdade o que o velho tolo dizia? Havia mais ali do que
transparecia.
– E o que Hawat tem a ver com isso? – perguntou Feyd-
Rautha.
– Ele pensa que está nos usando para se vingar do
imperador.
– E quando isso acontecer?
– Seu pensamento não vai além da vingança. Hawat é um
homem que precisa servir alguém e nem sequer sabe que é
assim.
– Aprendi muito com Hawat – concordou Feyd-Rautha,
sentindo a verdade em suas palavras ao pronunciá-las. – Mas,
quanto mais aprendo, mais acho que deveríamos nos livrar
dele... e logo.
– Não gosta da ideia de ser vigiado por ele?
– Hawat vigia todo mundo.
– E pode colocar você no trono. Hawat é discreto. Perigoso,
trapaceiro. Mas não é agora que vou tirar dele o antídoto. Uma
espada também é perigosa, Feyd. Mas temos a bainha certa
para essa aí. O veneno dentro dele. Quando retirarmos o
antídoto, a morte irá embainhá-lo.
– De certo modo, é como a arena – comentou Feyd-Rautha.
– Fintas dentro de fintas dentro de fintas. Observamos para
ver como o gladiador se inclina, para onde olha, como segura a
faca.
Meneou a cabeça, concordando consigo mesmo, vendo que
suas palavras agradavam o tio, mas pensou: Sim! Como a
arena! E o gume é a mente!
– Agora você entendeu como precisa de mim – disse o
barão. – Ainda tenho utilidade, Feyd.
Uma espada a ser empunhada até perder o fio e a serventia,
Feyd-Rautha pensou.
– Sim, tio – ele disse.
– E agora – disse o barão –, iremos, nós dois, ao alojamento
dos escravos. E verei você matar, com suas próprias mãos,
todas as mulheres da ala dos prazeres.
– Tio!
– Haverá outras mulheres, Feyd. Mas eu já disse que
ninguém erra comigo sem se preocupar com as consequências.
O rosto de Feyd-Rautha se anuviou.
– Tio, você...
– Vai aceitar seu castigo e aprender com ele – disse o
barão.
Feyd-Rautha enfrentou o olhar triunfante do tio. E terei de
me lembrar desta noite, ele pensou. E, ao relembrá-la, terei de
me lembrar de outras noites.
– Não irá me recusar isso – disse o barão.
O que você poderia fazer se eu recusasse, velho?, Feyd-
Rautha se perguntou. Mas sabia que poderia haver outro
castigo, talvez uma punição mais sutil, um instrumento mais
desumano para obrigá-lo a se submeter.
– Eu o conheço, Feyd – disse o barão. – Não irá recusar.
Muito bem, pensou Feyd-Rautha. Agora preciso de você. Já
entendi. O pacto está feito. Mas não precisarei de você para
sempre. E... um dia...
Nas profundezas do inconsciente
humano, encontra-se uma necessidade
difusa de um universo lógico e que faça
sentido. Mas o universo real está sempre
um passo adiante da lógica.
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Já estive diante de muitos soberanos das Casas Maiores,


mas nunca tinha visto um porco tão obeso e perigoso como este,
Thufir Hawat disse consigo mesmo.
– Pode falar francamente comigo, Hawat – trovejou o
barão. Recostou-se em sua cadeira suspensa, transfixando
Hawat com os olhos cingidos por pregas de gordura.
O Mentat idoso olhou para o resto da mesa que o separava
do barão Vladimir Harkonnen, reparando na opulência da fibra
da madeira. Até mesmo aquilo era um fator a se considerar na
avaliação que se fazia do barão, bem como as paredes
vermelhas daquela sala de conferências particular e a
fragrância suave e doce de ervas que pairava no ar, disfarçando
um cheiro almiscarado e mais recôndito.
– Você não me fez mandar aquele aviso para Rabban por
um capricho à toa – disse o barão.
O rosto idoso e curtido de Hawat continuou impassível,
sem revelar um pingo do asco que sentia.
– Suspeito de muitas coisas, milorde – ele confirmou.
– Sim. Bem, gostaria de saber como Arrakis se encaixa em
suas suspeitas a respeito de Salusa Secundus. Não adianta me
dizer que o imperador está transtornado com uma associação
qualquer entre Arrakis e seu misterioso planeta-prisão. Ora, eu
me apressei em alertar Rabban só porque o mensageiro tinha
de partir naquele paquete. Você disse que não podia esperar.
Muito bem. Mas agora quero uma explicação.
Ele fala demais, pensou Hawat. Não é como Leto, capaz de
me dizer uma coisa só com o erguer de uma sobrancelha ou um
aceno da mão. Nem como o Velho Duque, que conseguia
comunicar uma frase inteira na maneira como acentuava uma
única palavra. Isto é um palerma! Destruí-lo será um serviço à
humanidade.
– Não o deixarei sair daqui até ouvir uma explicação
completa – disse o barão.
– O barão fala tão despreocupadamente de Salusa
Secundus – comentou Hawat.
– É uma colônia penal – devolveu o barão. – A pior gentalha
da galáxia é mandada para Salusa Secundus. Que mais
precisamos saber?
– Que as condições no planeta-prisão são mais opressivas
que em qualquer outro lugar – respondeu Hawat. – Deve ter
ouvido falar que a taxa de mortalidade entre os novos
prisioneiros é superior a sessenta por cento. Que o imperador
pratica ali toda forma de opressão. Ouviu falar disso tudo e não
se dispôs a fazer nenhuma pergunta?
– O imperador não permite que as Casas Maiores
inspecionem sua prisão – grunhiu o barão. – Mas ele tampouco
deu uma olhada em minhas masmorras.
– E a curiosidade a respeito de Salusa Secundus é... ah... –
Hawat levou um dos dedos ossudos aos lábios – …
desencorajada.
– E daí? Ele não se orgulha de algumas das coisas que é
obrigado a fazer por lá!
Hawat deixou que um sorriso levíssimo roçasse seus lábios
escuros. Seus olhos cintilaram à luz do lucitubo quando ele
encarou o barão.
– E nunca se perguntou de onde o imperador tira seus
Sardaukar?
O barão mordeu os lábios grossos, o que deu a sua
fisionomia o ar de um bebê fazendo beicinho, e sua voz
transmitiu petulância quando ele disse:
– Ora... ele os recruta... ou seja, existem os alistamentos, e
ele recruta os...
– Fuaa! – cortou Hawat. – As histórias que se ouvem a
respeito das façanhas dos Sardaukar não são boatos, ou são?
São os relatos em primeira mão de um número limitado de
sobreviventes que combateram os Sardaukar, não são?
– Os Sardaukar são homens de armas excelentes, não há
dúvida – disse o barão. – Mas creio que minhas próprias
legiões...
– Em comparação com as tropas imperiais, não passam de
um bando de excursionistas em férias! – resmungou Hawat. –
Acha que não sei por que o imperador se voltou contra a Casa
Atreides?
– Essa não é uma esfera sujeita a especulações – advertiu o
barão.
Será possível que nem ele saiba o que levou o imperador a
fazer isso?, Hawat se perguntou.
– Qualquer área está sujeita a minhas especulações, se é
para fazer o que o barão me contratou para fazer – disse
Hawat. – Sou um Mentat. Não se nega informações nem linhas
de computação a um Mentat.
Durante um longo minuto, o barão olhou para ele, e então:
– Diga o que tem a dizer, Mentat.
– O imperador padixá se voltou contra a Casa Atreides
porque os belomestres do duque, Gurney Halleck e Duncan
Idaho, haviam treinado uma força combatente – uma pequena
força combatente – quase tão boa quanto os Sardaukar. Alguns
homens eram até mesmo melhores. E o duque estava na
posição certa para ampliar sua força, torná-la tão poderosa
quanto a do imperador.
O barão ponderou aquela revelação, e depois:
– O que Arrakis tem a ver com isso?
– Fornece um contingente de recrutas já condicionados ao
mais severo treinamento de sobrevivência.
O barão sacudiu a cabeça.
– Não vá me dizer que são os fremen?
– São os fremen.
– Rá! Então para que alertar Rabban? Não deve ter restado
mais que um punhado de fremen depois do pogrom dos
Sardaukar e da opressão de Rabban.
Hawat continuou a olhar para ele, em silêncio.
– Não mais que um punhado! – repetiu o barão. – Rabban
matou seis mil deles só no ano passado!
Hawat ainda o fitava.
– E, no ano anterior, foram nove mil – continuou o barão. –
E, antes de partirem, os Sardaukar devem ter matado pelo
menos vinte mil.
– Quantos soldados Rabban perdeu nos últimos dois anos?
– Hawat perguntou.
O barão esfregou as papadas.
– Bem, está certo que ele anda recrutando em demasia. Os
agentes dele fazem promessas bem extravagantes e...
– Digamos, uns trinta mil aproximadamente? – perguntou
Hawat.
– Parece um pouco alto – disse o barão.
– Ao contrário – refutou Hawat. – Leio as entrelinhas dos
relatórios de Rabban tão bem quanto milorde. E o barão
certamente entendeu os relatórios que compilei com nossos
agentes.
– Arrakis é um planeta feroz – disse o barão. – As baixas
por causa das tempestades...
– Nós dois sabemos quais são as perdas por causa das
tempestades – disse Hawat.
– E daí que ele perdeu trinta mil? – indagou o barão, e o
afluxo de sangue corou-lhe a face.
– Segundo sua própria contagem – disse Hawat –, ele
matou quinze mil em dois anos e perdeu o dobro disso. O barão
diz que os Sardaukar cuidaram de mais vinte mil, talvez um
pouco mais. E eu vi os manifestos dos transportes que os
trouxeram de Arrakis. Se mataram vinte mil, perderam quase
cinco vezes isso. Por que não encara esses números, barão? E
compreende o que significam?
O barão falou numa cadência fria e calculada:
– Essa é sua função, Mentat. O que significam?
– Apresento-lhe a contagem que Duncan Idaho fez no
sietch que visitou – disse Hawat. – Tudo se encaixa. Se tivessem
só duzentas e cinquenta dessas comunidades, sua população
seria de cerca de cinco milhões. Minha melhor estimativa é que
eles teriam pelo menos duas vezes mais sietch do que isso.
Num planeta como aquele, o melhor é dispersar a população.
– Dez milhões?
As papadas do barão estremeceram de espanto.
– No mínimo.
O barão mordeu os lábios grossos. Os olhos miúdos
fitaram Hawat sem vacilar. Seria realmente a computação de
um Mentat?, ele se perguntou. Como poderia ser isso, sem que
ninguém desconfiasse?
– Não chegamos nem sequer a reduzir o crescimento de
sua taxa de natalidade – disse Hawat. – Só eliminamos os
espécimes não tão bem-sucedidos, deixando que os fortes
ficassem ainda mais fortes, exatamente como em Salusa
Secundus.
– Salusa Secundus! – vociferou o barão. – O que isso tem a
ver com o planeta-prisão do imperador?
– O homem que sobrevive a Salusa Secundus já começa
mais resistente que a maioria – disse Hawat. – Acrescente-se a
isso o que há de melhor em treinamento militar...
– Bobagem! Seu argumento implica que eu poderia
recrutar os fremen depois da maneira como foram oprimidos
por meu sobrinho.
Hawat falou, com voz suave:
– O barão não oprime seus soldados?
– Bem... eu.. mas...
– A opressão é relativa – explicou Hawat. – Seus homens de
armas levam uma vida muito melhor que aqueles que os
cercam, não? Veem que há alternativas mais desagradáveis a
ser os soldados do barão, não é?
O barão ficou em silêncio, olhando o vazio. As
possibilidades: teria Rabban fornecido à Casa Harkonnen sua
arma suprema?
No mesmo instante, disse:
– Como garantir a lealdade desses recrutas?
– Eu os reuniria em pequenos grupos, nada maior que um
pelotão – disse Hawat. – Eu os removeria de sua situação
opressiva e os isolaria com um quadro de pessoas que
entendessem de onde eles vieram, de preferência pessoas que
tivessem passado pela mesma situação opressiva. Então eu os
encheria com a mística de que seu planeta, na verdade, era um
campo de treinamento para produzir exatamente seres
superiores como eles próprios. E, o tempo todo, mostraria o
que esses seres superiores poderiam ganhar: uma vida
suntuosa, belas mulheres, mansões requintadas... tudo o que
desejassem.
O barão começou a concordar com a cabeça.
– Que é como os Sardaukar vivem no planeta deles.
– Os recrutas, com o tempo, passam a acreditar que um
lugar como Salusa Secundus se justifica porque os produziu: a
elite. O mais ordinário soldado dos Sardaukar leva uma vida,
em muitos aspectos, tão digna quanto a de qualquer membro
de uma Casa Maior.
– Mas que ideia! – sussurrou o barão.
– Começa a suspeitar o mesmo que eu – disse Hawat.
– Onde foi que isso começou? – perguntou o barão.
– Ah, sim, de onde vem a Casa Corrino? Havia gente em
Salusa Secundus antes de o imperador mandar para lá os
primeiros contingentes de prisioneiros? Nem sequer o duque
Leto, um primo por parte de mãe, sabia ao certo. Essas
perguntas não são encorajadas.
Os pensamentos embaciaram os olhos do barão.
– Sim, um segredo guardado com todo o cuidado. Usariam
todos os estratagemas de...
– Além disso, o que há para esconder? – Hawat perguntou.
– Que o imperador padixá tem um planeta-prisão? Todo
mundo sabe disso. Que ele tem...
– Conde Fenring! – o barão falou de repente.
Hawat interrompeu o que dizia, estudou o barão com uma
carranca confusa.
– O que tem o conde Fenring?
– No aniversário de meu sobrinho, há alguns anos – disse o
barão. – Aquele janota imperial, o conde Fenring, veio como
observador oficial e para... ah, concluir um acordo de negócios
entre o imperador e eu.
– E daí?
– Eu... ah, durante uma de nossas conversas, creio que eu
disse algo sobre fazer de Arrakis um planeta-prisão. Fenring...
– O que disse exatamente? – Hawat perguntou.
– Exatamente? Já faz um bom tempo e...
– Milorde barão, se quer aproveitar meus serviços ao
máximo, terá de me fornecer informações adequadas. Essa
conversa não foi gravada?
A fúria corou o rosto do barão.
– Você é tão ruim quanto Piter! Não gosto desses...
– Piter não está mais aqui, milorde – disse Hawat. – Por
falar nisso, o que foi de fato que aconteceu com Piter?
– Ele ficou muito íntimo e muito exigente – disse o barão.
– O barão vive me garantindo que não costuma
desperdiçar um homem que ainda tem serventia – lembrou
Hawat. – Vai me desperdiçar com ameaças e sofismas?
Discutíamos o que o barão disse ao conde Fenring.
O barão foi recompondo aos poucos sua fisionomia.
Quando chegar a hora, ele pensou, vou me lembrar da maneira
como me tratou. Sim. Vou me lembrar.
– Um momento – disse o barão, e voltou em pensamento
àquele encontro no salão. Visualizar o cone de silêncio no qual
os dois estiveram era de alguma ajuda. – Disse algo como: “O
imperador sabe que um pouco de matança sempre foi uma das
armas do negócio”. Eu me referia às baixas na força de trabalho
que sofremos. Depois eu disse alguma coisa sobre levar em
consideração uma outra solução para o problema arrakino, e
disse que o planeta-prisão do imperador me inspirava a imitá-
lo.
– Sangue de bruxa! – exclamou Hawat. – O que disse
Fenring?
– Foi aí que ele começou a me perguntar sobre você.
Hawat recostou-se, fechou os olhos, pensando.
– Então foi por isso que começaram a investigar Arrakis –
concluiu. – Bem, já está feito. – Ele abriu os olhos. – Devem ter
espiões por todo o planeta a essa altura. Dois anos!
– Mas certamente minha sugestão inocente...
– Nada é inocente aos olhos de um imperador! Quais foram
suas instruções para Rabban?
– Simplesmente que ele deveria ensinar Arrakis a nos
temer.
Hawat sacudiu a cabeça.
– Tem agora duas alternativas, barão. Pode exterminar os
nativos, varrê-los completamente da face do planeta, ou...
– Desperdiçar uma força de trabalho inteira?
– Prefere que o imperador e as Casas Maiores que ele
ainda é capaz de aliciar venham aqui fazer uma curetagem,
raspar Giedi Primo como se raspa uma abóbora oca?
O barão estudou seu Mentat, e então:
– Ele não se atreveria!
– Não?
Os lábios do barão tremeram.
– Qual é sua alternativa?
– Abandonar seu querido sobrinho, Rabban.
– Abando... – o barão deixou a frase por dizer e encarou
Hawat.
– Não lhe envie mais tropas, nenhuma ajuda de nenhum
tipo. Não responda às mensagens dele, a não ser para dizer que
chegou a seus ouvidos a maneira horrível como ele lidou com as
coisas em Arrakis e que milorde pretende tomar medidas
corretivas tão logo seja possível. Vou providenciar para que
algumas de suas mensagens sejam interceptadas pelos espiões
imperiais.
– Mas e quanto à especiaria, à receita, o...
– Exija os lucros do baronato, mas tome cuidado ao cobrá-
los. Peça montantes fixos a Rabban. Podemos...
O barão virou as palmas das mãos para cima.
– Mas como posso ter certeza de que meu sobrinho
matreiro não...
– Ainda temos nossos espiões em Arrakis. Diga a Rabban
que, se não alcançar as quotas de especiaria estabelecidas por
milorde, ele será substituído.
– Conheço meu sobrinho – disse o barão. – Isso só fará com
que oprima ainda mais a população.
– Claro que sim! – Hawat retorquiu. – Não vai querer que
isso pare agora! Quer apenas lavar as mãos. Deixe Rabban criar
para milorde sua Salusa Secundus. Não há necessidade sequer
de mandar prisioneiros para lá. Ele tem toda a população
necessária. Se Rabban exaurir sua gente para cumprir as
quotas de especiaria, então o imperador não precisará
desconfiar de um outro motivo. Isso é razão suficiente para
extorquir o planeta. E o barão não demonstrará, nem com suas
palavras, nem com seus atos, haver qualquer outro motivo
para isso.
O barão não conseguiu evitar o tom zombeteiro de
admiração em sua voz.
– Ah, Hawat, você é ardiloso. Agora, como iremos entrar
em Arrakis e usar o que Rabban nos preparou?
– Essa é a coisa mais simples de todas, barão. Se a cada ano
milorde aumentar um pouco mais a quota, a situação logo
chegará a um ponto crítico. A produção cairá. O barão poderá
remover Rabban e assumir o comando pessoalmente... para
pôr ordem na bagunça.
– É justo – disse o barão. – Mas já vi que estou me cansando
disso tudo. Estou preparando outra pessoa para tomar conta
de Arrakis por mim.
Hawat estudou o rosto redondo e gordo diante dele. Sem
pressa, o velho espião-soldado começou a menear
afirmativamente a cabeça.
– Feyd-Rautha – ele disse. – Então esse é o motivo para a
opressão agora. O barão também é muito ardiloso. Talvez
possamos incorporar esses dois planos. Sim. Seu Feyd-Rautha
pode chegar a Arrakis como um salvador. Pode conquistar o
populacho. Sim.
O barão sorriu. E, por trás do sorriso, perguntou-se:
Agora, como é que isso se encaixa nos planos pessoais de
Hawat?
E Hawat, vendo que era dispensado, levantou-se e deixou a
sala de paredes vermelhas. Enquanto caminhava, não
conseguia reprimir as incógnitas perturbadoras que se
intrometiam em todas as suas computações a respeito de
Arrakis. Aquele novo líder religioso a quem Gurney Halleck,
escondido entre os contrabandistas, fizera menção, o tal
Muad’Dib.
Talvez eu não devesse ter aconselhado o barão a deixar
essa religião crescer onde bem entendesse, mesmo entre a gente
da caldeira e do graben, disse consigo mesmo. Mas é bem
sabido que a repressão faz uma religião crescer.
E pensou nos informes de Halleck a respeito das táticas de
batalha dos fremen. As táticas cheiravam a coisa do próprio
Halleck... de Idaho... e até mesmo de Hawat.
Será que Idaho sobreviveu?, ele se perguntou.
Mas era uma pergunta inútil. Ele ainda não indagara a si
mesmo se seria possível Paul ter sobrevivido. Sabia que o barão
estava convencido de que todos os Atreides haviam morrido. A
bruxa Bene Gesserit tinha sido sua arma, admitira o barão. E
isso só poderia significar o fim de todos eles, até mesmo do
próprio filho da mulher.
Que ódio venenoso ela devia ter pelos Atreides, ele pensou.
Semelhante ao ódio que tenho por esse barão. Meu golpe será
tão definitivo e completo quanto o dela?
Há em todas as coisas um padrão que faz
parte de nosso universo. Tem simetria,
elegância e graça: as qualidades que
sempre encontramos na obra de um
verdadeiro artista. É possível encontrá-lo
na mudança das estações, na maneira
como a areia escorre de uma colina, nos
emaranhados de galhos de um arbusto de
creosoto ou no padrão de suas folhas.
Tentamos reproduzir esses padrões em
nossas vidas e nossa sociedade, à procura
dos ritmos, das danças, das formas que
confortam. Mas pode-se ver perigo na
busca da perfeição definitiva. Está claro
que o padrão definitivo encerra sua
própria fixidez. Nessa perfeição, todas as
coisas seguem para a morte.
– excerto de “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

Paul Muad’Dib lembrava-se de uma refeição carregada de


essência de especiaria. Apegou-se a essa lembrança porque era
um esteio e, daquele ponto de observação privilegiado, ele
podia dizer a si mesmo que a experiência imediata devia ser um
sonho.
Sou um palco de processos, ele disse a si mesmo. Sou vítima
da visão imperfeita, da consciência da raça, de seu propósito
terrível.
Mesmo assim, não conseguia se furtar ao medo de que
tivesse se excedido de algum modo, perdido sua posição no
tempo; e, agora, passado, futuro e presente fundiam-se, sem
distinção. Era uma espécie de fadiga visual, que ele sabia advir
da necessidade constante de manter o futuro presciente como
uma espécie de memória que, por si só, era uma coisa que
pertencia intrinsecamente ao passado.
Chani preparou a refeição para mim, disse consigo mesmo.
Mas Chani estava nas entranhas do Sul – no país frio onde
o sol era quente –, escondida numa das novas fortalezas sietch,
a salvo com o filho deles, Leto II.
Ou isso ainda estaria por acontecer?
Não, ele se tranquilizou, pois Alia, a Estranha, sua irmã,
tinha ido para lá com sua mãe e Chani, uma viagem de vinte
marteladores para o sul, acomodadas no palanquim da
Reverenda Madre, preso no dorso de um criador selvagem.
Assustado, ele afastou a ideia de montar os vermes
gigantes, perguntando-se: Ou será que Alia ainda está para
nascer?
Eu estava numa razia, recordou Paul. Saímos em incursão
para recuperar a água dos nossos que morreram em Arrakina.
E encontrei os restos de meu pai na pira funerária. Fiz um
santuário para o crânio de meu pai num monte de pedras que os
fremen mantêm logo acima da Garganta de Harg.
Ou isso ainda estaria por acontecer?
Meus ferimentos são reais, Paul disse a si mesmo. Minhas
cicatrizes são reais. O santuário do crânio de meu pai é real.
Ainda em seu estado quase onírico, Paul lembrou que
Harah, a esposa de Jamis, tinha invadido sua privacidade certa
vez para contar que houvera uma briga no corredor do sietch.
Tinha sido no sietch interino, antes de mandarem as mulheres
e as crianças para o remoto Sul. Harah havia ficado lá, na
entrada para a câmara interna, com as asas negras que eram
seus cabelos amarradas para trás, presas por anéis numa
corrente. Recolhera as cortinas da câmara e dissera-lhe que
Chani tinha acabado de matar alguém.
Isso aconteceu, Paul disse consigo mesmo. Foi real, não
nasceu fora do devido tempo, não estava sujeito a mudanças.
Paul lembrava-se de ter saído às pressas e encontrado
Chani à luz dos globos amarelos do corredor, vestindo um sári
azul brilhante, com o capuz atirado para trás e o rubor do
esforço em suas feições de fada. Estava justamente
embainhando a dagacris. Um tropel de gente disparava pelo
corredor, carregando algo pesado.
E Paul lembrava-se de ter dito consigo mesmo: Sempre
sabemos quando estão carregando um corpo.
Os hidroanéis de Chani, usados em público no sietch, num
cordão em volta do pescoço, tilintaram quando ela se voltou
para ele.
– Chani, o que foi? – ele perguntou.
– Despachei um sujeito que veio desafiar você para um
combate singular, Usul.
– Você o matou?
– Sim. Mas talvez devesse tê-lo deixado para Harah.
(E Paul recordava como os rostos das pessoas ao redor
deles haviam demonstrado apreço por aquelas palavras. Até
mesmo Harah tinha gargalhado.)
– Mas ele veio desafiar a mim!
– Você me treinou pessoalmente na doutrina dos
sortilégios, Usul.
– Certo, mas você não deveria...
– Nasci no deserto, Usul. Sei usar uma dagacris.
Ele reprimiu a raiva, tentou dialogar de maneira racional.
– Pode ser verdade, Chani, mas...
– Não sou mais uma criança caçando escorpiões no sietch
com um globo portátil, Usul. Eu não brinco.
Paul lançou-lhe um olhar penetrante, surpreso com a
ferocidade ímpar por baixo daquela atitude despreocupada.
– Ele não era digno, Usul – disse Chani. – Eu não quis
interromper sua meditação com gente como ele. – Ela se
aproximou, fitando-o com os cantos dos olhos e baixando a voz
para que só ele a escutasse. – E, querido, quando souberem que
um desafiante talvez tenha de me enfrentar e morrer de
maneira vergonhosa pelas mãos da mulher de Muad’Dib,
haverá bem menos desafiantes.
Sim, Paul disse consigo mesmo, isso certamente tinha
acontecido. Era passado-legítimo. E o número de desafiantes a
colocar à prova a nova arma de Muad’Dib de fato diminuiu
dramaticamente.
Em algum lugar, num mundo alheio ao sonho, houve um
sinal de movimento, o grito de uma ave noturna.
Estou sonhando, Paul se tranquilizou. É a especiaria na
comida.
Ainda assim, havia nele uma sensação de abandono.
Imaginou se seria possível que seu espírito-ruh tivesse, de
algum modo, fugido para o mundo onde os fremen acreditavam
que ele levava sua verdadeira existência: o alam al-mithal, o
mundo das similitudes, o reino metafísico onde todas as
limitações físicas eram eliminadas. E conheceu o medo ao
pensar num lugar como aquele, porque remover todas as
limitações era remover todos os pontos de referência. Na
paisagem de um mito, ele não conseguiria se reorientar e dizer:
– Eu sou quem sou porque estou aqui.
Sua mãe tinha lhe dito certa vez:
– As pessoas, algumas pessoas, estão divididas quanto à
maneira como pensam em você.
Devo estar acordando do sonho, Paul disse a si mesmo.
Pois aquilo havia acontecido, aquelas palavras de sua mãe, lady
Jéssica, que agora era a Reverenda Madre dos fremen, aquelas
palavras tinham atravessado a realidade.
Paul sabia que Jéssica temia a relação religiosa entre ele e
os fremen. Não gostava do fato de as pessoas tanto do sietch
quanto do graben chamarem Muad’Dib de Ele. E ela andara
fazendo perguntas nas tribos, enviando suas Sayyadina espiãs,
coletando as respostas e remoendo-as em sua mente.
Ela citara um provérbio das Bene Gesserit:
– “Quando a religião e a política viajam no mesmo carro, os
condutores acreditam que nada é capaz de ficar em seu
caminho. Seu movimento torna-se impetuoso, cada vez mais
rápido. Deixam de pensar nos obstáculos e esquecem que o
precipício só se mostra ao homem em desabalada carreira
quando já é tarde demais.”
Paul lembrava-se de ter ficado lá, sentado, nos aposentos
de sua mãe, na câmara interna coberta de cortinas escuras,
repletas de desenhos entretecidos saídos da mitologia fremen.
Ficara ali, ouvindo-a falar, reparando em como ela estava
sempre observando, mesmo quando mantinha os olhos baixos.
Seu rosto ovalado apresentava novas rugas nos cantos da
boca, mas os cabelos ainda eram como bronze polido. Os olhos
verdes e espaçados, ocultos sob a escuridão azul, impregnada
de especiaria.
– Os fremen têm uma religião simples e prática – ele disse.
– Nada é simples na religião – ela o advertiu.
Mas Paul, visualizando o futuro nublado que ainda pairava
sobre eles, viu-se tomado pela raiva. Só conseguiu dizer:
– A religião unifica nossas forças. É nossa mística.
– Você cultiva deliberadamente esse ar, essa bravura – ela
investiu. – Nunca deixa de doutrinar.
– Foi assim que você me ensinou – ele retorquiu.
Mas ela tinha se resumido a brigas e altercações naquele
dia. Havia sido o dia da cerimônia de circuncisão do pequeno
Leto. Paul entendera parte das razões da irritação da mãe. Ela
nunca havia aceitado o relacionamento dele – o “casamento da
juventude” – com Chani. Mas Chani dera um filho varão aos
Atreides, e Jéssica vira-se incapaz de rejeitar o menino junto
com a mãe.
Jéssica, por fim, remexeu-se sob o olhar de Paul e disse:
– Você acha que sou uma mãe desnaturada.
– Claro que não.
– Vejo como você me observa quando estou com sua irmã.
Você não entende o que é sua irmã.
– Sei por que Alia é diferente – ele disse. – Ela ainda não
havia nascido, era parte de você, quando você alterou a Água
da Vida. Ela...
– Você não sabe nada a esse respeito!
E Paul, subitamente incapaz de expressar o que aprendera
fora do tempo, disse apenas:
– Não acho que seja desnaturada.
Ela notou a angústia dele e falou:
– Uma coisa, filho.
– Sim?
– Amo realmente sua Chani. Eu a aceito.
Isso foi real, Paul disse consigo mesmo. Não era a visão
imperfeita a ser alterada pelas distorções provenientes do
nascimento do próprio tempo.
Essa reafirmação renovou-lhe o domínio sobre seu mundo.
Pedacinhos de realidade concreta começaram a imergir no
estado onírico, atravessando-o, entrando em sua percepção.
De repente, sabia estar num hiereg, um acampamento no
deserto. Chani havia armado a tendestiladora sobre a areia
fina, por ser macia. Só podia significar que Chani estava por
perto; Chani, sua alma; Chani, sua sihaya, agradável como a
primavera no deserto. Chani, que viera dos palmares no
remoto Sul.
Aí lembrou-se de Chani cantando-lhe uma canção dos
areneiros na hora de dormir:

“Ó, minha alma


Não queira provar o Paraíso esta noite
E juro por Shai-hulud
Que chegará lá
Obediente a meu amor.”

E ela cantara a canção das andanças que os namorados


compartilhavam na areia, e seu ritmo era como o rocegar das
dunas de encontro aos pés:

“Fala-me de teus olhos


Que falarei de teu coração.
Fala-me de teus pés
Que falarei de tuas mãos.
Fala-me de teu sono
Que falarei de teu despertar.
Fala-me de teus desejos
Que falarei de tuas carências.”

Ele escutara alguém tocar o baliset numa outra tenda. E


havia, então, pensado em Gurney Halleck. À lembrança
evocada pelo instrumento familiar, ele pensara em Gurney,
cujo rosto tinha visto em meio a uns contrabandistas, mas que
não o vira – a ele, Paul –, que não podia vê-lo nem saber que ele
vivia, para não levar os Harkonnen inadvertidamente ao filho
do duque que haviam matado.
Mas o estilo do instrumentista naquela noite, a
peculiaridade dos dedos que tocavam as cordas do baliset,
devolveu o verdadeiro músico à memória de Paul. Tinha sido
Chatt, o Saltador, capitão dos Fedaykin, líder dos comandos
suicidas que protegiam Muad’Dib.
Estamos no deserto, Paul se lembrou. Estamos no erg
central, fora do alcance das patrulhas Harkonnen. Estou aqui
para trilharenar, chamar um verme e montá-lo com meus
próprios meios, para que eu possa ser fremen por inteiro.
Sentia agora a pistola maula em seu cinto, a dagacris.
Sentia que o silêncio o cercava.
Era aquela quietude especial que antecedia a manhã,
quando as aves noturnas já tinham partido e as criaturas do
dia ainda não haviam dado sinal de vida a seu inimigo, o sol.
– Você precisa viajar pela areia à luz do dia para que Shai-
hulud o veja e saiba que você não tem medo – dissera Stilgar. –
Por isso, inverteremos nossos horários e iremos dormir esta
noite.
Em silêncio, Paul levantou o torso, sentindo a frouxidão do
trajestilador, folgado em volta de seu corpo, e a tendestiladora
na penumbra mais adiante. Moveu-se com tamanha
delicadeza, mas Chani o escutou.
Ela falou, mais uma sombra nas trevas da tenda:
– Ainda não raiou totalmente o dia, querido.
– Sihaya – ele disse, quase rindo.
– Você me chama de sua primavera no deserto – ela disse –,
mas hoje sou teu tormento. Sou a Sayyadina que cuidará para
que os ritos sejam observados.
Ele começou a apertar seu trajestilador.
– Você me citou, certa vez, as palavras do Kitab al-Ibar –
ele comentou. – Disse: “A mulher é teu campo; vai então a teu
campo e lavra-o”.
– Sou a mãe de teu primogênito – ela concordou.
Ele a viu na penumbra, imitando-o em cada movimento,
ajustando o trajestilador para o deserto aberto.
– Descanse o quanto puder – ela disse.
Paul reconheceu que era o amor de Chani por ele falando, e
repreendeu-a delicadamente:
– A Sayyadina da Vigília não aconselha nem adverte o
candidato.
Ela deslizou para junto dele, tocou-lhe a face com a palma
da mão.
– Hoje sou tanto a observadora quanto a mulher.
– Devia ter deixado essa tarefa para outra pessoa – ele
disse.
– A espera já é tão ruim – ela protestou. – Prefiro estar a
teu lado.
Ele beijou a palma da mão dela antes de prender a aba
facial de seu traje, depois virou-se e abriu o lacre da tenda. O ar
que os saudou ao entrar tinha a secura inexata e gélida que
condensava o orvalho ínfimo da aurora. Com ele veio o cheiro
de uma massa pré-especiaria que haviam detectado a nordeste
dali, e isso lhes dizia que haveria um criador por perto.
Paul saiu engatinhando pela abertura, ficou de pé sobre a
areia e se espreguiçou, para livrar os músculos do sono. Uma
tênue luminescência verde-perolada delineava o horizonte
oriental. As tendas de sua tropa eram pequenas dunas falsas a
cercá-lo na escuridão. Viu alguma coisa se mexer à sua
esquerda, os guardas, e percebeu que eles também o viram.
Sabiam do perigo que ele enfrentaria naquele dia. Todos
os fremen já o haviam enfrentado. Proporcionavam-lhe agora
os últimos momentos sozinho, para que pudesse se preparar.
Tem de ser hoje, ele disse consigo mesmo.
Pensou no poder que detinha, a despeito do pogrom: os
anciões que lhe mandavam seus filhos, para que fossem
treinados na doutrina de batalha dos sortilégios; os anciões
que agora lhe davam ouvidos no conselho e seguiam seus
planos; os homens que voltavam para lhe oferecer o maior
elogio entre os fremen: “Seu plano funcionou, Muad’Dib”.
Contudo, o menor e mais insignificante guerreiro fremen
era capaz de fazer algo que ele nunca fizera. E Paul sabia que
sua liderança era prejudicada pelo conhecimento onipresente
dessa diferença entre eles.
Ele não havia montado o criador.
Ah, sim, ele subira com os outros, nas incursões de ataque
e treinamento, mas ainda não fizera sua própria viagem.
Até que o fizesse, seu mundo era limitado pelas
habilidades alheias. Nenhum fremen de verdade poderia
permitir algo assim. Até que o fizesse, até mesmo as vastas
terras do sul – a área a uns vinte marteladores depois do erg –
lhe eram negadas, a menos que mandasse vir um palanquim e
viajasse feito uma Reverenda Madre ou um dos doentes e
feridos.
Voltou-lhe à lembrança sua luta com a percepção interior
durante a noite. Viu ali um estranho paralelo: se dominasse o
criador, seu regime sairia fortalecido; se dominasse o olho
interior, isso traria a própria medida de autoridade. Mas, para
além dessas duas coisas, ficava a área nebulosa, o Grande
Tumulto no qual o universo inteiro parecia envolvido.
A diferença nas maneiras como ele compreendia o
universo o assombrava: a precisão combinada à imprecisão. Ele
o via in situ. Contudo, ao nascer, ao se unir às pressões da
realidade, o agora ganhava vida própria e crescia, com suas
próprias diferenças sutis. Restava o propósito terrível. Restava
a consciência da raça. E, acima de tudo isso, assomava o jihad,
sangrento e selvagem.
Chani juntou-se a ele fora da tenda, abraçando os próprios
cotovelos, olhando para ele com os cantos dos olhos, como
fazia quando estudava-lhe o estado de ânimo.
– Fala-me outra vez sobre as águas de teu planeta natal,
Usul – ela disse.
Paul viu que ela tentava distraí-lo, aliviar-lhe a mente das
tensões antes do teste fatal. Estava clareando, e ele notou que
alguns de seus Fedaykin já estavam desmontando as tendas.
– Prefiro que você me fale do sietch e de nosso filho – ele
disse. – Nosso Leto já conquistou minha mãe?
– E a Alia também – ela respondeu. – E está crescendo
rápido. Vai ser um homem grande.
– Como é lá no sul? – ele perguntou.
– Quando montar o criador, você verá pessoalmente – ela
disse.
– Mas quero ver primeiro com seus olhos.
– É de uma solidão intensa – ela disse.
Ele tocou o lenço nezhoni na testa de Chani, que escapava
do gorro do trajestilador.
– Por que não quer falar do sietch?
– Já falei. O sietch é um lugar solitário sem nossos homens.
É um lugar de trabalho. Lidamos nas fábricas e nas estufas.
Temos armas a fabricar; postes a fincar, para a previsão do
tempo; especiaria a recolher, para os subornos. Temos dunas a
plantar, para que cresçam e sejam ancoradas. Temos tecidos e
tapetes a fazer, células de combustível para carregar. Temos
crianças a educar, para que a força da tribo nunca se perca.
– Então nada lhes dá prazer no sietch? – ele perguntou.
– As crianças nos dão prazer. Observamos os ritos. Temos
comida suficiente. Às vezes, uma de nós vem aqui para o norte
ficar com seu homem. A vida precisa continuar.
– Minha irmã, Alia... as pessoas já a aceitaram?
Chani virou-se para ele à luz crescente do amanhecer. Seus
olhos o transfixaram.
– É algo a se discutir uma outra hora, querido.
– Vamos discuti-lo agora.
– Você devia guardar suas forças para o teste – ela disse.
Ele percebeu que havia tocado num ponto sensível ao
ouvir o retraimento na voz dela.
– O desconhecido traz suas próprias preocupações – ele
falou.
Sem demora, ela concordou com a cabeça e disse:
– Há ainda... uma certa incompreensão por causa da
estranheza de Alia. As mulheres têm medo porque ela é uma
criança, quase um bebê, e já fala... de coisas que só um adulto
deveria saber. Elas não entendem a... transformação no útero
que fez Alia ser... diferente.
– Algum problema? – ele perguntou. E pensou: Tive visões
de problemas por causa de Alia.
Chani olhou para a linha crescente do nascer do sol.
– Algumas mulheres se juntaram e foram apelar à
Reverenda Madre. Exigiram que ela exorcizasse o demônio que
vivia dentro de sua filha. Citaram a escritura: “Não permitirás
que viva uma feiticeira entre nós”.
– E o que minha mãe lhes disse?
– Ela recitou a lei e mandou as mulheres embora,
envergonhadas. Disse: “Se Alia cria um problema, a falha é da
autoridade que não previu nem impediu o problema”. E tentou
explicar como a alteração tinha afetado Alia no útero. Mas as
mulheres se zangaram por terem sido humilhadas. Foram
embora resmungando.
Haverá problemas por causa de Alia, ele pensou.
Um sopro cristalino de areia tocou as partes expostas do
rosto dele, trazendo consigo o aroma da massa pré-especiaria.
– El Sayal, a chuva de areia que traz a manhã – ele disse.
Seu olhar se perdeu na luz acinzentada da paisagem
desértica, a paisagem impiedosa, a areia que era a forma
absorta em si mesma. Um relâmpago seco cortou um canto
escuro ao sul, sinal de que uma tempestade ali tinha
acumulado sua carga estática. A trovoada ribombou muito
depois.
– A voz que embeleza a terra – disse Chani.
Outros homens de Paul saíram das tendas. Os guardas
voltavam do perímetro. Tudo a seu redor movia-se com
uniformidade na velha rotina que não exigia ordens.
– Dê o mínimo possível de ordens – dissera-lhe o pai...
certa vez... havia muito tempo. – Depois de dar ordens em
determinada matéria, terá sempre de dar ordens nessa
matéria.
Os fremen conheciam essa regra instintivamente.
O hidromestre da tropa deu início ao canto matutino,
acrescentando o chamado para o rito de iniciação do
montarenador.
– O mundo é uma carcaça – entoou o homem, e sua voz era
um lamento por sobre as dunas. – Quem é que pode afastar o
Anjo da Morte? O que Shai-hulud decretou, assim tem de ser.
Paul pôs-se a escutar, reconhecendo que eram as palavras
que também principiavam o cântico de morte de seus
Fedaykin, as palavras que os comandos declamavam ao se
atirar na batalha.
Será que hoje teremos aqui um santuário de pedras para
marcar a partida de mais uma alma?, Paul se perguntou. Será
que os fremen irão se deter aqui, no futuro, para acrescentar
mais uma pedra e pensar em Muad’Dib, que morreu neste
lugar?
Sabia que era uma das alternativas daquele dia, um fato
nas linhas do futuro que se irradiavam daquela posição no
espaço-tempo. A visão imperfeita o afligia. Quanto mais ele
resistia a seu propósito terrível e combatia a chegada do jihad,
maior era a confusão que se entremeava em sua presciência.
Todo o seu futuro ia se tornando um rio que corria para o
abismo: o nexo violento depois do qual tudo era névoa e
nuvens.
– Stilgar vem aí – disse Chani. – Não posso interferir agora,
querido. Agora tenho de ser a Sayyadina e observar o rito, para
que seja relatado fielmente nas Crônicas. – Ela ergueu os olhos
para fitá-lo e, por um momento, sua circunspeção vacilou,
depois ela recuperou o controle. – Quando tiveres terminado,
irei preparar teu desjejum com minhas próprias mãos – ela
completou. Virou-se e partiu.
Stilgar vinha na direção dele, atravessando a areia
finíssima, remexendo pequenas poças de poeira. Os nichos
escuros de seus olhos continuavam fixos em Paul, com seu
olhar indômito. O vestígio de barba negra acima da máscara do
trajestilador, as linhas marcadas das maçãs do rosto, de tão
imóveis poderiam ter sido gravadas pelo vento na rocha
natural.
O homem trazia o estandarte de Paul – o estandarte verde
e preto, com um hidrotubo no mastro – que já era uma lenda
naquela terra. Com uma certa medida de orgulho, Paul pensou:
Não posso fazer nem as coisas mais simples sem que se tornem
uma lenda. Eles irão registrar como me despedi de Chani, como
saudarei Stilgar, cada gesto meu neste dia. Vivendo ou
morrendo, é uma lenda. Não posso morrer. Aí seria apenas
lenda, e nada impediria o jihad.
Stilgar fincou o mastro na areia ao lado de Paul, deixou os
braços caírem ao longo do corpo. Os olhos de azul sobre azul
continuaram nivelados e atentos. E Paul pensou em como seus
próprios olhos começavam a assumir aquela máscara de cor
por causa da especiaria.
– Negaram-nos o Hajj – Stilgar disse, com a solenidade do
ritual.
Como Chani havia lhe ensinado, Paul respondeu:
– Quem pode negar a um fremen o direito de andar a pé ou
montado por onde desejar?
– Sou um Naib – disse Stilgar –, que nunca será capturado
vivo. Sou uma das pernas do tripé da morte que destruirá
nossos inimigos.
O silêncio baixou sobre eles.
Paul olhou para os outros fremen dispersos pela areia,
atrás de Stilgar, a maneira como permaneciam imóveis naquele
momento de oração pessoal. E pensou em como os fremen
eram um povo cujo modo de vida consistia em matar, um povo
inteiro que vivera todos os seus dias com raiva e tristeza, sem
considerar, uma vez que fosse, o que poderia substituir uma ou
outra, a não ser um sonho que Liet-Kynes havia lhes incutido
antes de morrer.
– Onde está o Senhor que nos enviou através do deserto,
por uma terra de covas? – Stilgar perguntou.
– Está sempre conosco – entoaram os fremen.
Stilgar aprumou os ombros, aproximou-se de Paul e baixou
a voz:
– Agora, lembre-se do que eu lhe disse. Seja simples e
direto, não faça nenhuma extravagância. Nossa gente monta o
criador pela primeira vez aos 12 anos. Você já passou dessa
idade faz mais de seis anos e não nasceu fremen. Não tem a
obrigação de impressionar ninguém com sua coragem.
Sabemos que é valente. Só precisa chamar o criador e montá-
lo.
– Eu vou me lembrar – disse Paul.
– É bom mesmo. Não vou deixar você me envergonhar
como professor.
Stilgar tirou de sob o manto um bastão plástico com cerca
de um metro de comprimento. A coisa era pontuda de um dos
lados e tinha uma matraca de mola na outra extremidade.
– Preparei este martelador pessoalmente. É dos bons.
Tome.
Paul sentiu a suavidade cálida do plástico ao aceitar o
martelador.
– Shishakli está com seus ganchos – disse Stilgar. – Ele os
entregará a você quando subir naquela duna ali adiante. –
Apontou para sua direita. – Chame um criador grande, Usul.
Mostre-nos o caminho.
Paul reparou no tom de voz de Stilgar: tinha em parte a
solenidade do ritual e, em parte, a preocupação de um amigo.
Naquele instante, o sol pareceu saltar acima do horizonte.
O céu assumiu a cor azul-cinza prateada que anunciava um dia
de calor e secura extremos, até mesmo para Arrakis.
– É a hora do dia escaldante – disse Stilgar, e agora sua voz
era toda formal. – Vá, Usul, e monte o criador, viaje pela areia
como líder de homens.
Paul bateu continência para seu estandarte, notando
como a bandeira verde e negra pendia flácida agora que o
vento da aurora morrera. Ele se virou para a duna indicada por
Stilgar, um aclive cor de bronze sujo, com o cimo em forma de S.
A maior parte da tropa já se deslocava na direção oposta,
escalando a outra duna que havia abrigado o acampamento.
Restava um vulto de manto no caminho de Paul: Shishakli,
um líder de esquadrão entre os Fedaykin, e somente seus olhos
de pálpebras oblíquas eram visíveis entre o gorro e a máscara
do trajestilador.
Shishakli apresentou duas hastes finas e flexíveis quando
Paul chegou mais perto. As hastes tinham cerca de um metro e
meio de comprimento, com ganchos cintilantes de açoplás
numa das pontas e rugas na outra extremidade, para dar
firmeza à mão que as segurasse.
Paul recebeu os dois com sua mão esquerda, como exigia o
ritual.
– São meus próprios ganchos – Shishakli disse, com voz
rouca. – Nunca falharam.
Paul assentiu, guardando o silêncio necessário, passou
pelo homem e subiu o aclive da duna. No topo, olhou para trás,
viu a tropa debandar como uma revoada de insetos, com os
mantos esvoaçando. Estava sozinho agora, sobre a elevação
arenosa, apenas o horizonte a sua frente, o horizonte plano e
imóvel. Era uma boa duna aquela que Stilgar havia escolhido,
mais alta que as demais, um bom ponto de observação.
Paul se abaixou e fincou o martelador bem fundo na face
de barlavento, onde a areia era compacta e amplificaria ao
máximo a transmissão das batidas rítmicas. Paul sabia que,
com as hastes-ganchos flexíveis, ele conseguiria subir para o
dorso alto e arredondado do criador. Enquanto um gancho
mantivesse aberta uma das bordas dianteiras do segmento
anelar de um verme, permitindo a entrada da areia abrasiva no
interior mais sensível, a criatura não iria se recolher sob o
deserto. Na verdade, faria girar seu corpo gigantesco para
afastar o segmento aberto o máximo possível da superfície
arenosa.
Sou um montarenador, Paul disse a si mesmo.
Olhou para os ganchos em sua mão esquerda, pensando
que só precisava mudar a posição daqueles ganchos na
curvatura do imenso flanco de um criador para fazer a criatura
girar e virar, conduzindo-a para onde ele bem entendesse. Já
tinha visto fazerem aquilo. Tinham-no ajudado a subir pelo
flanco de um verme para uma curta viagem de treinamento.
Podiam montar o verme capturado até ele ficar imóvel e
exausto na superfície do deserto, quando então era preciso
convocar um outro criador.
Paul sabia que, passando naquele teste, ele estaria
qualificado a empreender a jornada de vinte marteladores até
as terras do sul – para descansar e se recuperar –, até o Sul,
onde as mulheres e as famílias se escondiam do pogrom entre
os novos palmares e sietch populosos.
Ergueu a cabeça e olhou para o sul, lembrando a si mesmo
que o criador convocado ao acaso das imensidões do erg era
uma incógnita, e quem o invocava era igualmente uma
incógnita naquele teste.
– Estude com cuidado o criador que chega – explicara
Stilgar. – Aproxime-se o suficiente para conseguir montá-lo
quando ele passar, mas não perto demais para deixar que ele
engula você.
Com uma decisão repentina, Paul soltou o trinco do
martelador. A matraca começou a girar e o chamado retumbou
pela areia, um cadenciado “tum... tum... tum...”.
Ele se aprumou, vasculhando o horizonte, lembrando-se
das palavras de Stilgar:
– Avalie com cuidado o vetor de aproximação. Lembre-se:
os vermes raramente se aproximam de um martelador sem
serem vistos. Use a audição da mesma maneira. Muitas vezes,
nós o ouvimos antes de enxergá-lo.
E as palavras de aviso de Chani, murmuradas à noite,
quando ela se deixou vencer pelo medo que sentia por ele,
preencheram-lhe a mente:
– Ao se posicionar no caminho do criador, fique
absolutamente imóvel. Pense como se fosse um trecho de
areia. Esconda-se sob o manto e torne-se uma dunazinha em
sua própria essência.
Lentamente, ele vasculhou o horizonte, de ouvidos
atentos, à procura dos sinais que haviam lhe ensinado.
Veio do sudeste, um silvo distante, um sussurro arenoso.
No mesmo instante, ele viu o contorno longínquo da trilha da
criatura, de encontro à luz do amanhecer, e percebeu que
nunca antes tinha visto um criador tão grande, nunca tinha
ouvido falar de um verme daquele tamanho. Parecia ter mais de
meia légua de comprimento, e a elevação da onda de areia à
cabeça soberba do monstro era uma montanha que se
aproximava.
Não é nada que eu tenha visto numa visão ou na vida, Paul
advertiu a si mesmo. Atravessou correndo o caminho da coisa
para se posicionar, absolutamente envolvido pelas
necessidades prementes daquele momento.
“Controlem a moeda e os tribunais: e que
a ralé fique com o resto.” É o que
aconselha o imperador padixá. E ele lhes
diz: “Se quiserem lucro, governem”. Há
verdade nessas palavras, mas eu me
pergunto: “Quem é a ralé e quem são os
governados?”.
– Mensagem secreta de Muad’Dib ao Landsraad, excerto de
“Despertar de Arrakis”, da princesa Irulan

Um pensamento espontâneo chegou à mente de Jéssica:


Paul deve fazer seu teste de montarenador a qualquer momento.
Tentam esconder isso de mim, mas é óbvio.
E Chani partiu numa missão misteriosa.
Jéssica estava sentada em sua câmara de repouso,
aproveitando um momento de paz entre as aulas da noite. Era
uma câmara agradável, mas não tão grande quanto aquela de
que desfrutara no Sietch Tabr antes de fugirem do pogrom.
Ainda assim, o lugar tinha tapetes espessos no chão,
almofadas macias, uma mesa de centro baixa e bem à mão,
cortinas multicoloridas nas paredes e luciglobos suaves e
amarelos no alto. O aposento estava impregnado com o odor
acre, vago e característico de um sietch fremen que ela
começara a associar à sensação de segurança.
Mas ela sabia que nunca se livraria da impressão de estar
num lugar alienígena. Era a aridez que os tapetes e as cortinas
tentavam encobrir.
Um leve tilintar-tamborilar-bater-de-palmas chegou à
câmara. Jéssica reconheceu no som a celebração ao
nascimento, provavelmente o do filho de Subiay, cuja hora
estava próxima. E Jéssica sabia que logo veria o bebê: um
querubim de olhos azuis que apresentariam à Reverenda
Madre para tomar a bênção. Também sabia que sua filha, Alia,
estaria presente à celebração e lhe contaria como foi.
Ainda não era hora da prece noturna da separação. Não
teriam começado uma celebração ao nascimento perto do
horário da cerimônia que lamentava as incursões de
apresamento de Poritrin, Bela Tegeuse, Rossak e Harmonthep.
Jéssica suspirou. Sabia que estava tentando manter seus
pensamentos longe do filho e dos perigos que ele enfrentava,
os alçapões com suas farpas envenenadas, os ataques dos
Harkonnen (apesar de terem diminuído, pois os fremen
destruíram muitas aeronaves e mataram vários agressores
com as novas armas que Paul lhes dera) e os perigos naturais
do deserto: os criadores, a sede e os abismos de pó.
Pensou em pedir café e, com o pensamento, veio aquela
impressão onipresente de paradoxo no modo de vida dos
fremen: como viviam bem naquelas cavernas dos sietch, em
comparação com os peones do graben; quanta coisa, porém,
não suportavam no hajr desprotegido do deserto, mais do que
qualquer servo dos Harkonnen conseguiria aguentar.
Uma mão morena insinuou-se através das cortinas ao lado
dela, depositou uma xícara sobre a mesa e recolheu-se. Da
xícara elevou-se o aroma de café com especiaria.
Uma oferenda da celebração ao nascimento, Jéssica
pensou.
Tomou e bebericou o café, sorrindo consigo mesma. Em
qual outra sociedade de nosso universo, ela se perguntou, uma
pessoa de minha posição aceitaria e tomaria uma bebida
oferecida anonimamente, sem nada temer? Naturalmente,
agora sou capaz de alterar qualquer veneno antes que me faça
mal, mas quem o oferece não sabe disso.
Esvaziou a xícara, sentindo a energia e o efeito estimulante
de seu conteúdo: quente e delicioso.
E imaginou que outra sociedade teria uma consideração
tão natural por sua privacidade e seu conforto a ponto de a
pessoa responsável pela oferenda se intrometer o bastante
apenas para deixar ali o presente, sem incomodá-la? Era um
presente enviado pelo respeito e pelo carinho, com um leve
toque de temor.
Um outro elemento do episódio se impôs à percepção de
Jéssica: ela havia pensado em tomar café, e o café aparecera.
Sabia que não tinha nada a ver com telepatia. Era o tau, a
unidade da comunidade do sietch, uma compensação do
veneno sutil da dieta baseada em especiaria que todos
compartilhavam. O grosso da população jamais poderia
esperar obter o esclarecimento que a semente da especiaria
lhe trouxera; não foram treinados e preparados para isso. Suas
mentes rejeitavam o que não conseguiam entender nem
abarcar. Ainda assim, por vezes sentiam e reagiam como se
fossem um só organismo.
E a ideia de coincidência não entrava em suas mentes.
Será que Paul passou em seu teste na areia?, Jéssica se
perguntou. Ele é capaz, mas os acidentes podem abater até
mesmo os mais capazes.
A espera.
É a monotonia, ela pensou. Conseguimos esperar somente
durante algum tempo. E aí somos vencidos pela monotonia da
espera.
Havia todo tipo de espera em suas vidas.
Há mais de dois anos estamos aqui, ela pensou, e ainda
teremos de esperar duas vezes mais antes de podermos sonhar
em tentar arrancar Arrakis do governador Harkonnen, o Mudir
Nahya, o Bruto Rabban.
– Reverenda Madre?
A voz que vinha do lado de fora das cortinas à porta de
Jéssica era a de Harah, a outra mulher da família de Paul.
– Sim, Harah.
As cortinas se abriram e Harah pareceu atravessá-las sem
tocar o chão. Calçava as sandálias que se usavam no sietch,
vestia um sári vermelho e amarelo que deixava seus braços nus
quase até os ombros. Os cabelos negros estavam repartidos ao
meio e penteados para trás, como as asas de um inseto, oleosos
e colados à cabeça. As feições aquilinas e salientes davam
forma a uma carranca fechada.
Atrás de Harah vinha Alia, a menina de 2 anos.
Vendo sua filha, Jéssica se impressionou, como acontecia
muitas vezes, com a semelhança entre Alia e Paul naquela
mesma idade: a mesma solenidade deslumbrada no olhar
inquisitivo, os cabelos escuros e a firmeza da boca. Mas
também havia diferenças sutis, e era nisso que muitos adultos
achavam Alia inquietante. A criança – que havia pouco
começara a andar – portava-se com uma serenidade e uma
consciência incompatíveis com sua idade. Os adultos ficavam
chocados ao vê-la rir de um jogo sutil de palavras entre homens
e mulheres. Ou flagravam-se dando atenção a seus quase
ceceios, à voz ainda toldada pelo palato mole em formação, e
descobrindo nas palavras da menina comentários maliciosos
que só poderiam se basear em experiências que nenhuma
criança de 2 anos teria vivido.
Harah sentou-se numa almofada com um suspiro
exasperado e olhou feio para a criança.
– Alia – Jéssica fez um gesto para a filha.
A menina foi até uma almofada ao lado de Jéssica, sentou-
se e segurou a mão da mãe. O contato da pele restaurou aquela
percepção comum que as duas dividiam desde antes do
nascimento de Alia. Não era uma questão de compartilhar
pensamentos – apesar dos surtos telepáticos que ocorriam
quando as duas se tocavam durante uma cerimônia na qual
Jéssica transformava o veneno da especiaria. Era algo maior,
uma consciência imediata da presença de uma outra centelha
viva, uma coisa aguda e pungente, uma simpatia neural que as
tornava emocionalmente uma só.
Da maneira formal apropriada a uma integrante da família
de seu filho, Jéssica disse:
– Subakh ul kuhar, Harah. Como está na noite de hoje?
Com a mesma formalidade tradicional, a outra respondeu:
– Subakh un nar. Estou bem. – As palavras saíram quase
monótonas. Ela voltou a suspirar.
Jéssica sentiu que Alia achava graça de alguma coisa.
– A ghanima de meu irmão está aborrecida comigo – disse
Alia, com seu quase ceceio.
Jéssica notou o termo que Alia havia usado para se referir
a Harah: ghanima. Nas sutilezas da língua fremen, a palavra
significava “uma coisa adquirida em batalha”, com a implicação
extra de que a coisa não era mais usada para sua finalidade
original. Um ornamento, uma ponta de lança usada como peso
de cortina.
Harah olhou feio para a criança.
– Não tente me insultar, menina. Conheço meu lugar.
– O que foi que você fez desta vez, Alia? – perguntou
Jéssica.
Harah respondeu:
– Ela não só se recusou a brincar com as outras crianças
hoje, como também se meteu onde...
– Escondi-me atrás das cortinas e vi o bebê de Subiay
nascer – disse Alia. – É um menino. Ele chorou e chorou. Que
pulmões! Quando ele já tinha chorado o suficiente...
– Ela apareceu e o tocou – disse Harah –, e ele parou de
chorar. Todo mundo sabe que um bebê fremen precisa chorar
bastante ao nascer, quando o parto é no sietch, porque nunca
mais poderá chorar, para não entregar nossa posição num hajr.
– Ele já tinha chorado o suficiente – disse Alia. – Eu só
queria sentir sua centelha, sua vida. Foi isso. E quando me
sentiu, ele não quis mais chorar.
– Só fez o povo falar mais ainda – disse Harah.
– O menino de Subiay nasceu com saúde? – perguntou
Jéssica. Viu que alguma coisa incomodava Harah
profundamente e imaginou o que poderia ser.
– Toda a saúde que uma mãe poderia pedir – disse Harah. –
Sabem que Alia não o machucou. Não se importaram tanto
com o fato de Alia tocá-lo. Ele se acalmou na mesma hora e
ficou feliz. Foi... – Harah deu de ombros.
– É a estranheza de minha filha, não é? – Jéssica
perguntou. – É a maneira como ela fala de coisas com
maturidade, coisas que nenhuma criança dessa idade poderia
saber, coisas do passado.
– Como é que ela sabe qual era a aparência de um criança
em Bela Tegeuse? – indagou Harah.
– Mas ele parece! – disse Alia. – O menino de Subiay é
igualzinho ao filho de Mitha, que nasceu antes da separação.
– Alia! – Jéssica disse. – Eu lhe avisei.
– Mas, mãe, eu vi e era verdade, e...
Jéssica sacudiu a cabeça, vendo os sinais de inquietação
no rosto de Harah. O que foi que dei à luz?, Jéssica se
perguntou. Uma filha que, ao nascer, sabia tudo o que eu
sabia... e mais: tudo o que lhe revelaram os corredores do
passado, por meio das Reverendas Madres dentro de mim.
– Não são só as coisas que ela diz – falou Harah. – São os
exercícios também: a maneira como ela se senta e olha para
uma pedra, movendo apenas um músculo perto do nariz, ou
um músculo no dorso de um dedo, ou...
– Fazem parte do treinamentos das Bene Gesserit – disse
Jéssica. – Sabe disso, Harah. Quer negar a minha filha sua
herança?
– Reverenda Madre, sabe que não me importo com essas
coisas – disse Harah. – É o povo, e a maneira como resmungam.
Sinto que é perigoso. Estão dizendo que sua filha é um
demônio, que as outras crianças se recusam a brincar com ela,
que ela é...
– Ela tem tão pouca coisa em comum com as outras
crianças – Jéssica disse. – Ela não é um demônio. É só a...
– Claro que não é!
Jéssica viu-se surpresa diante da veemência no tom de voz
de Harah e olhou para Alia. A criança parecia perdida em
pensamentos, irradiando uma sensação de... espera. Jéssica
voltou sua atenção para Harah.
– Respeito o fato de que você faz parte da família de meu
filho – Jéssica disse. (Alia estremeceu em contato com a mão
dela.) – Pode falar francamente comigo, seja o que for que a
incomoda.
– Não farei parte da família de seu filho por muito mais
tempo – disse Harah. – Esperei todo esse tempo pelo bem de
meus filhos, por causa do treinamento especial que eles
recebem por serem filhos de Usul. É o pouco que pude lhes dar,
pois é bem sabido que não divido a cama com seu filho.
Alia voltou a se mexer ao lado dela, meio adormecida,
cálida.
– Mas você teria sido uma boa companheira para meu filho
– Jéssica a consolou. E acrescentou consigo mesma, pois
aqueles pensamentos nunca a abandonavam: Companheira...
não esposa. Os pensamentos de Jéssica dirigiram-se ao centro,
à mágoa provocada pelo falatório no sietch de que o
relacionamento de Chani e seu filho havia se tornado algo
permanente, um casamento.
Amo Chani, Jéssica pensou, mas lembrou a si mesma que o
amor tinha de dar lugar à necessidade da realeza. Os
casamentos reais tinham outros motivos além do amor.
– Acha que não sei o que está planejando para seu filho? –
perguntou Harah.
– O que está querendo dizer? – indagou Jéssica.
– Planeja unir as tribos sob o comando d’Ele – disse Harah.
– E isso é ruim?
– Vejo perigo para ele... e Alia é parte desse perigo.
Alia aconchegou-se mais perto da mãe, com os olhos agora
abertos, estudando Harah.
– Tenho observado vocês duas juntas – continuou Harah –,
a maneira como se tocam. E Alia é como se fosse meu sangue,
porque é irmã de alguém que tenho como irmão. Cuido dela
desde que era só um bebezinho, desde o tempo da razia,
quando fugimos para cá. Vi muitas coisas a respeito dela.
Jéssica concordou com a cabeça, sentindo a inquietação
crescer dentro de Alia, a seu lado.
– Sabe o que quero dizer – falou Harah. – A maneira como
ela sempre entendeu o que lhe dizíamos. Onde já se viu um
bebê conhecer a hidrodisciplina desde tão cedo? Que outro
neném, ao pronunciar as primeiras palavras para sua babá,
disse: “Amo você, Harah”?
Harah olhou para Alia.
– Por que acha que aceito os insultos que ela me lança? Sei
que ela não faz por mal.
Alia olhou para a mãe.
– Sim, tenho o poder da razão, Reverenda Madre – disse
Harah. – Poderia ter sido uma Sayyadina. Vi o que vi.
– Harah... – Jéssica deu de ombros. – Não sei o que dizer. –
E viu-se surpresa consigo mesma, porque era realmente a
verdade.
Alia se empertigou, aprumou os ombros. Jéssica percebeu
que a sensação de espera havia chegado ao fim, uma emoção
composta de decisão e tristeza.
– Cometemos um erro – disse Alia. – Agora precisamos de
Harah.
– Foi a cerimônia da semente – revelou Harah –, quando a
senhora transformou a Água da Vida, Reverenda Madre,
quando Alia ainda estava em seu ventre.
Precisamos de Harah?, Jéssica pensou.
– Quem mais poderia falar com as pessoas e fazê-las
começar a me entender? – Alia perguntou.
– O que você quer que ela faça? – indagou Jéssica.
– Ela já sabe o que fazer – respondeu Alia.
– Direi a eles a verdade – disse Harah. Seu rosto, de
repente, parecia velho e triste, com a pele cor de oliva e
enrugada, um sortilégio nas feições pronunciadas. – Direi a eles
que Alia só finge ser uma menininha, que ela nunca foi uma
menininha.
Alia sacudiu a cabeça. As lágrimas correram por sua face,
e Jéssica sentiu a onda de tristeza que vinha da filha, como se a
emoção partisse dela própria.
– Sei que sou uma aberração – murmurou Alia. Essa
constatação adulta, saída dos lábios da criança, foi como uma
amarga confirmação.
– Você não é uma aberração! – gritou Harah. – Quem se
atreveu a dizer que você é uma aberração?
Mais uma vez, Jéssica admirou-se com o tom impetuoso e
protetor na voz de Harah. Jéssica viu, então, que Alia avaliara
corretamente a situação: elas precisavam de Harah. A tribo
entenderia Harah – tanto suas palavras quanto suas emoções
–, pois era óbvio que ela amava Alia como se a menina fosse sua
própria filha.
– Quem foi que disse isso? – repetiu Harah.
– Ninguém.
Alia usou uma ponta da aba de Jéssica para enxugar as
lágrimas em seu rosto. Alisou o manto onde o havia molhado e
amassado.
– Então não fale assim – Harah ordenou.
– Está bem, Harah.
– Agora – disse Harah –, pode me contar como foi, para
que eu possa contar aos outros. Conte-me o que aconteceu
com você.
Alia engoliu em seco e olhou para a mãe.
Jéssica fez que sim.
– Um dia eu acordei – disse Alia. – Foi como acordar depois
do sono, só que eu não me lembrava de ter ido dormir. Eu
estava num lugar morno e escuro. E estava assustada.
Ao escutar os quase ceceios da voz de sua filha, Jéssica
lembrou-se daquele dia na grande caverna.
– Quando me assustei – Alia disse –, tentei fugir, mas não
havia como. Aí vi uma centelha... mas não era exatamente como
se eu a enxergasse. A centelha estava lá comigo, e eu senti as
emoções da centelha... me acalmando, me aconchegando e,
dessa maneira, me dizendo que tudo ia ficar bem. Era minha
mãe.
Harah esfregou os olhos, sorriu para tranquilizar Alia. Mas
havia um ar de desvario nos olhos da mulher fremen, uma
veemência, como se eles também tentassem ouvir as palavras
de Alia.
E Jéssica pensou: O que sabemos de fato sobre o modo
como alguém como ela pensa... com base em suas experiências
únicas, seu treinamento e sua ascendência?
– E justo quando me senti segura e tranquila – disse Alia –,
apareceu uma outra centelha a nosso lado... e tudo aconteceu
ao mesmo tempo. A outra centelha era a antiga Reverenda
Madre. Ela estava... trocando sua vida com a de minha mãe...
tudo... e eu estava ali com elas, vendo tudo... tudo. E aí acabou,
e eu era elas e todas as outras e eu mesma... só que levei um
bom tempo para me reencontrar. Havia tantas outras.
– Foi uma coisa cruel – disse Jéssica. – Nenhum ser deveria
despertar e ganhar consciência dessa maneira. É admirável
que você tenha conseguido aceitar tudo que lhe aconteceu.
– Eu não podia fazer mais nada! – disse Alia. – Não sabia
como rejeitar ou esconder minha consciência... ou isolá-la...
tudo simplesmente aconteceu... tudo...
– Nós não sabíamos – Harah murmurou. – Quando demos a
Água a sua mãe, para que ela a transformasse, não sabíamos
que você estava ali, dentro dela.
– Não fique triste por causa disso, Harah – disse Alia. – Eu
não devia sentir pena de mim mesma. Afinal, temos um motivo
de alegria: eu sou uma Reverenda Madre. A tribo tem duas
Reve...
Ela interrompeu o que dizia, inclinando a cabeça para
ouvir melhor.
Harah voltou a se apoiar nos calcanhares, encostada à
almofada; olhou para Alia, em seguida desviou sua atenção
para o rosto de Jéssica.
– Não desconfiava? – Jéssica perguntou.
– Psiu – fez Alia.
Um cântico ritmado e longínquo chegou até elas através
das cortinas que as separavam dos corredores do sietch.
Ganhou volume, e agora trazia sons distintos:
– Ya! Ya! Yawm! Ya! Ya! Yawm! Mu zein, wallá! Ya! Ya! Yawn!
Mu zein, wallá!
O coro passou diante da entrada, e suas vozes ressoaram,
fazendo-se ouvir nos aposentos internos. Aos poucos, o som
foi se afastando.
Quando o som já tinha se enfraquecido o suficiente,
Jéssica deu início ao ritual, com a voz carregada de tristeza:
– Era Ramadã e abril em Bela Tegeuse.
– Minha família sentava-se no pátio da alberca – disse
Harah –, no ar banhado pela umidade que se elevava do jorro
de uma fonte. Havia um pé de portogal, arredondado e de cores
vivas, bem ao alcance das mãos. Havia uma cesta com mish-
mish e baclavás, e canecas de liban: toda sorte de coisas boas
de comer. Em nossos jardins e em nossos rebanhos, havia paz...
paz em toda a terra.
– A vida era cheia de felicidade antes dos apresadores –
Alia disse.
– O sangue gelou em nossas veias com os gritos dos
amigos – Jéssica disse. E ela sentiu que as lembranças a
percorriam, saídas de todos aqueles passados de que ela
partilhava.
– La, la, la, gritaram as mulheres – disse Harah.
– Os apresadores atravessaram o mushtamal, correndo
em nossa direção, e suas facas pingavam sangue, as vidas de
nossos homens – Jéssica disse.
O silêncio se abateu sobre as três, como fez em todos os
aposentos do sietch, o silêncio da lembrança, do pesar que era
assim renovado.
Em seguida, Harah pronunciou o encerramento formal da
cerimônia, dando às palavras uma aspereza que Jéssica nunca
ouvira antes:
– Nunca perdoaremos e nunca esqueceremos.
Na quietude contemplativa que se seguiu àquelas
palavras, elas ouviram um burburinho de gente, o ruge-ruge de
inúmeros mantos. Jéssica percebeu que havia alguém de pé
atrás das cortinas que resguardavam sua câmara.
– Reverenda Madre?
Uma voz de mulher, e Jéssica a reconheceu: a voz de
Tharthar, uma das esposas de Stilgar.
– O que foi, Tharthar?
– Um problema, Reverenda Madre.
Jéssica sentiu seu coração se confranger, um medo
repentino por Paul.
– Paul... – ela disse, com a voz entrecortada.
Tharthar abriu as cortinas e entrou na câmara. Jéssica viu
de relance uma multidão na outra sala, antes de as cortinas
voltarem a seu lugar. Ela olhou para Tharthar, uma mulher
pequena e morena, metida num manto negro com estampas
vermelhas, o azul total de seus olhos, fixos em Jéssica, e as
aberturas de seu nariz diminuto que, dilatadas, revelavam as
escaras do obturador.
– O que foi? – indagou Jéssica.
– Chegaram notícias da areia – disse Tharthar. – Usul vai
enfrentar o criador em seu teste... será hoje. Os rapazes dizem
que não há como ele falhar, que ele será um montarenador ao
anoitecer. Os rapazes estão se reunindo para uma razia.
Querem atacar o Norte e encontrar Usul por lá. Estão dizendo
que vão conclamá-lo. Estão dizendo que vão obrigá-lo a
desafiar Stilgar e assumir a liderança das tribos.
Recolher a água, plantar as dunas, mudar seu mundo aos
poucos, mas com segurança: isso já não basta, Jéssica pensou.
As pequenas incursões, as incursões seguras: isso já não basta
agora que Paul e eu os treinamos. Eles sentem sua força.
Querem lutar.
Tharthar trocou de pé e pigarreou.
Sabemos que é necessário esperar com cautela, Jéssica
pensou, mas eis aí o âmago de nossa frustração. Também
conhecemos o mal que uma espera muito prolongada pode nos
causar. Perdemos nossa noção de propósito quando a espera se
alonga.
– Os rapazes estão dizendo que, se Usul não desafia
Stilgar, é porque tem medo – disse Tharthar.
Ela baixou o olhar.
– Então é assim – Jéssica murmurou. E pensou: Bem, eu já
sabia. E Stilgar também.
Mais uma vez, Tharthar pigarreou.
– Até mesmo meu irmão, Shoab, está dizendo isso – ela
falou. – Eles não deixarão escolha para Usul.
Então chegou a hora, Jéssica pensou. E Paul terá de lidar
com isso sozinho. A Reverenda Madre não se atreve a se
envolver na sucessão.
Alia soltou a mão da mãe e disse:
– Irei com Tharthar ouvir os rapazes. Talvez haja um jeito.
Jéssica trocou olhares com Tharthar, mas falou para Alia:
– Vá, então. E venha me contar o que ouviu tão logo puder.
– Não queremos que isso aconteça, Reverenda Madre –
disse Tharthar.
– Não queremos – Jéssica concordou. – A tribo precisa de
toda a sua força. – Olhou para Harah. – Você irá com elas?
Harah respondeu a parte implícita da pergunta:
– Tharthar não deixará que façam mal a Alia. Sabe que
logo seremos esposas do mesmo homem, ela e eu. Andamos
conversando, Tharthar e eu. – Harah olhou para Tharthar,
depois para Jéssica outra vez. – Chegamos a um acordo.
Tharthar deu a mão a Alia e disse:
– Temos de nos apressar. Os rapazes estão de partida.
Elas saíram pelas cortinas, a criança de mãos dadas com a
mulher pequenina, mas parecia que a criança liderava.
– Se Paul Muad’Dib matar Stilgar, isso não fará nenhum
bem à tribo – disse Harah. – Foi sempre assim, a tradição da
sucessão, mas os tempos mudaram.
– Os tempos também mudaram para você – constatou
Jéssica.
– Não pense que tenho alguma dúvida quanto ao resultado
de uma batalha como essa – disse Harah. – Não há como Usul
perder.
– Foi isso que quis dizer – falou Jéssica.
– E crê que meus sentimentos pessoais afetam meu
discernimento – disse Harah. Ela sacudiu a cabeça, e seus
hidroanéis tilintaram junto ao pescoço. – Como está enganada.
Talvez a senhora também pense que lamento não ser a
escolhida de Usul, que tenho ciúme de Chani?
– Fazemos nossas escolhas na medida do possível – disse
Jéssica.
– Tenho pena de Chani – falou Harah.
Jéssica se empertigou.
– O que quer dizer?
– Sei o que a senhora pensa de Chani – disse Harah. – Crê
que ela não é a esposa certa para seu filho.
Jéssica se recostou e relaxou sobre as almofadas. Deu de
ombros.
– Talvez.
– Pode ser que tenha razão – continuou Harah. – Se tiver,
pode ser que encontre uma aliada surpreendente: a própria
Chani. Ela quer o que for melhor para Ele.
Jéssica engoliu saliva para se livrar de um nó repentino na
garganta.
– Chani me é muito querida – disse. – Ela não poderia ser...
– Seus tapetes estão muito sujos – disse Harah. Correu os
olhos pelo chão, evitando o olhar de Jéssica. – É tanta gente
pisando aqui o tempo todo. A senhora devia realmente mandar
limpá-los com mais frequência.
É impossível evitar a ação da política
dentro de uma religião ortodoxa. Essa
luta pelo poder permeia o treinamento, a
educação e o disciplinamento da
comunidade ortodoxa. Por causa dessa
pressão, os líderes de uma comunidade
como essa inevitavelmente têm de
enfrentar a questão interior suprema:
sucumbir ao oportunismo absoluto para
se manter no poder ou correr o risco de
se sacrificar em nome da ética ortodoxa.
– excerto de “Muad’Dib: a questão religiosa”, da princesa Irulan

Paul esperava, de pé sobre a areia, fora do vetor de


aproximação do gigantesco criador. Não posso esperar feito um
contrabandista, impaciente e irrequieto, ele lembrou a si
mesmo. Tenho de ser parte do deserto.
A coisa estava só a alguns minutos dali, e seu
deslocamento preenchia a manhã com o silvo do atrito. Os
dentes imensos, dentro do círculo cavernoso da boca, abriram-
se como uma flor enorme. O odor de especiaria do verme
dominava o ar.
O trajestilador de Paul não o incomodava em nada, e ele
mal tinha consciência de que usava os obturadores nasais e a
máscara respiradora. As aulas de Stilgar, as horas metódicas
passadas na areia, obscureciam todo o resto.
– A que distância do raio do criador você tem de ficar na
areia grossa? – Stilgar havia lhe perguntado.
E ele tinha respondido corretamente:
– Meio metro a cada metro de diâmetro do criador.
– Por quê?
– Para evitar o vórtice de sua passagem e ainda ter tempo
de correr e montá-lo.
– Você já montou os pequeninos que criamos para a
semente e a Água da Vida – dissera-lhe Stilgar. – Mas, em seu
teste, você irá chamar um criador selvagem, um velho do
deserto. É preciso ter o devido respeito por ele.
Agora o tamborilar grave do martelador misturava-se ao
silvo do verme que se aproximava. Paul inspirou fundo,
sentindo o cheiro da aspereza mineral da areia, mesmo através
dos filtros. O criador selvagem, o velho do deserto, estava
quase sobre ele, imenso. Seus encrespados segmentos
dianteiros lançavam uma onda de areia que acabaria cobrindo
Paul até os joelhos.
Mais perto, monstro adorável, ele pensou. Mais. Ouviu meu
chamado. Mais perto. Mais perto.
A onda levantou os pés dele. A poeira superficial o cobriu.
Ele se firmou, e seu mundo foi dominado pela passagem
daquela muralha arredondada em meio a uma nuvem de areia,
aquele penhasco segmentado, com os sulcos dos anéis
claramente definidos.
Paul ergueu os ganchos, fez mira e inclinou-se para a
frente. Sentiu que se prendiam e puxavam. Saltou para cima,
plantando os pés naquela muralha e inclinando-se para trás,
apoiado nas farpas aderentes. Aquele era o verdadeiro teste:
se ele prendesse corretamente os ganchos na borda dianteira
do segmento anelar, abrindo-o, o verme não iria rolar e
esmagá-lo.
O verme diminuiu a velocidade. Passou por cima do
martelador, silenciando-o. Lentamente, a criatura começou a
rolar – para cima, para cima –, levando aquelas farpas
irritantes o mais alto possível, longe da areia que ameaçava a
imbricação interna e macia de seu segmento anelar.
Paul viu-se de pé no topo do verme. Estava exultante,
como um imperador a observar seu mundo. Reprimiu um
impulso repentino de brincar, de fazer o verme virar, de
mostrar como dominava a criatura.
De repente, entendeu por que Stilgar o tinha alertado,
certa vez, a respeito dos jovens impetuosos que dançavam e
brincavam com aqueles monstros, faziam acrobacias nos
dorsos das criaturas, removendo os dois ganchos e realojando-
os antes que os vermes os derrubassem.
Deixando um dos ganchos no lugar, Paul soltou o outro e o
prendeu mais abaixo, num dos flancos do animal. Depois de
fixar o segundo gancho e experimentá-lo, baixou o primeiro e,
desse modo, desceu pelo flanco do verme. O criador rolou e, ao
fazê-lo, também virou, voltando ao campo de areia fina onde os
demais aguardavam.
Paul os viu subir, usando os ganchos na escalada, mas
evitando as bordas sensíveis dos anéis até chegarem lá em
cima. Por fim, posicionaram-se em fila tripla atrás dele,
ancorados pelos ganchos.
Stilgar avançou pelas fileiras, verificou o posicionamento
dos ganchos de Paul, olhou para o rosto sorridente do rapaz.
– Conseguiu, hein? – perguntou Stilgar, elevando a voz
acima do silvo que produziam ao passar. – É isso que está
pensando? Que conseguiu? – Ele se aprumou. – Mas vou lhe
dizer uma coisa: foi um servicinho porco. Temos moleques de
12 anos que sabem fazer melhor. Havia areia de percussão à
esquerda de onde você ficou esperando. Não teria conseguido
recuar para lá se o verme virasse naquela direção.
O sorriso sumiu do rosto de Paul.
– Eu vi a areia de percussão.
– Então por que não fez sinal para que um de nós
assumisse posição como seu segundo? Era algo que poderia ter
feito mesmo durante o teste.
Paul engoliu em seco e voltou o rosto para o vento
produzido pelo deslocamento do verme.
– Acha que é maldade minha dizer isso agora – comentou
Stilgar. – É meu dever. Penso em seu valor para a tropa. Se
tivesse caído naquela areia de percussão, o criador teria se
virado em sua direção.
Apesar da onda de raiva, Paul sabia que Stilgar falava a
verdade. Foram necessários um longo minuto e todo o esforço
do treinamento que ele havia recebido de sua mãe para que
Paul recuperasse a sensação de calma.
– Peço desculpas – ele disse. – Não voltará a acontecer.
– Numa posição difícil, tenha sempre um segundo, alguém
para pegar o criador se você não conseguir – ensinou Stilgar. –
Lembre-se de que trabalhamos em conjunto. Dessa maneira,
estamos garantidos. Trabalhamos em conjunto, certo?
Ele bateu no ombro de Paul.
– Trabalhamos em conjunto – Paul concordou.
– Agora – disse Stilgar, e a voz dele saiu ríspida –, mostre-
me que sabe lidar com um criador. De que lado estamos?
Paul baixou os olhos e examinou a superfície de anéis
escamados sobre a qual se encontravam, reparou no caráter e
no tamanho das escamas, na maneira como ficavam maiores à
direita dele, e menores à esquerda. Sabia que era característica
de todo verme mover-se com mais frequência com um dos
lados para cima. À medida que o animal ia envelhecendo, o lado
de cima tornava-se uma coisa quase constante. As escamas de
baixo ficavam maiores, mais pesadas e lisas. Era possível
identificar as escamas de cima de um verme grande só pelo
tamanho.
Mudando os ganchos de lugar, Paul foi para a esquerda.
Fez sinal para os flanqueadores descerem e abrirem os
segmentos do flanco, para que o verme mantivesse o trajeto em
linha reta mesmo ao rolar. Depois de fazer a criatura virar, ele
fez sinal para que dois pilotos deixassem a fila e se
posicionassem à frente.
– Ach, haiiiii-yoh! – ele gritou o comando tradicional. O
piloto da esquerda abriu um segmento anelar daquele lado.
Num círculo majestoso, o criador virou-se para proteger o
segmento aberto. O verme fez uma volta completa e, quando
apontou para o sul, Paul gritou:
– Geyrat!
O piloto soltou o gancho. O criador alinhou-se em curso
retilíneo.
Stilgar disse:
– Muito bom, Paul Muad’Dib. Com bastante prática, pode
ser que ainda se torne um montarenador.
Paul franziu o cenho, pensando: Não fui o primeiro a subir?
Atrás dele irromperam as gargalhadas. A tropa começou a
cantar, atirando o nome dele ao céu.
– Muad’Dib! Muad’Dib! Muad’Dib! Muad’Dib!
E bem lá atrás, Paul ouviu a batida dos aguilhoadores,
golpeando os segmentos caudais. O verme começou a ganhar
velocidade. Os mantos da tropa tremulavam ruidosamente ao
vento. O som abrasivo do deslocamento do verme ganhou
volume.
Paul olhou para os integrantes da tropa lá atrás e, entre
eles, encontrou o rosto de Chani. Olhava para ela ao falar com
Stilgar:
– Então sou um montarenador, Stil?
– Hal yawm! Hoje você é um montarenador.
– Então posso decidir para onde vamos?
– É assim que se faz.
– E sou um fremen, nascido hoje no erg Habbanya. Não vivi
antes deste dia. Era uma criança até hoje.
– Não exatamente uma criança – disse Stilgar. Prendeu
uma das bordas do capuz, açoitado pelo vento.
– Mas havia uma rolha tampando meu mundo, e essa rolha
foi removida.
– Não há nenhuma rolha.
– Queria ir para o sul, Stilgar: vinte marteladores. Queria
ver essa terra que estamos criando, essa terra que só vi com os
olhos de outras pessoas.
E queria ver meu filho e minha família, pensou. Agora
preciso de tempo para pensar no futuro que é passado em minha
mente. O turbilhão está chegando e, se eu não estiver no lugar
certo para desenredá-la, a coisa escapará ao controle.
Stilgar o fitava com um olhar firme e avaliador. Paul
manteve sua atenção em Chani, viu o interesse dar sinais de
vida no rosto da companheira e reparou também na
empolgação que suas palavras haviam inflamado na tropa.
– Os homens estão ansiosos para sair em incursão com
você nas pias dos Harkonnen – disse Stilgar. – As pias ficam só
a um martelador de distância.
– Os Fedaykin já fizeram incursões comigo – disse Paul. – E
voltarão a fazê-las, comigo, até não restar um só Harkonnen
para respirar o ar de Arrakis.
Stilgar pôs-se a estudar Paul durante a viagem, e o rapaz
percebeu que o homem via aquele momento através das lentes
da lembrança de como tinha ascendido ao comando do Sietch
Tabr e à liderança do Conselho dos Líderes, agora que Liet-
Kynes estava morto.
Ele ouviu falar da agitação entre os fremen jovens, Paul
pensou.
– Quer convocar uma assembleia dos líderes? – perguntou
Stilgar.
Os olhos dos rapazes da tropa se acenderam. Seguiam no
balanço da montaria e observavam. E Paul viu a expressão de
desassossego no olhar de Chani, na maneira como ia de Stilgar,
que era seu tio, para Paul Muad’Dib, seu companheiro.
– Você nem imagina o que quero – respondeu Paul.
E pensou: Não posso recuar. Preciso ter esta gente sob meu
controle.
– Você é mudir da montarenada no dia de hoje – disse
Stilgar. Sua voz soava fria e formal. – Como fará uso desse
poder?
Precisamos de algum tempo para relaxar, tempo para
refletir com calma, Paul pensou.
– Iremos para o sul – Paul falou.
– Mesmo que eu diga que voltaremos para o norte ao fim
deste dia?
– Iremos para o sul – repetiu Paul.
Uma sensação de dignidade inevitável envolveu Stilgar
quando ele apertou as abas do manto junto ao corpo.
– Haverá uma Assembleia – ele disse. – Mandarei as
mensagens.
Acha que vou desafiá-lo, Paul pensou. E sabe que não
conseguirá me vencer.
Paul voltou-se para o sul, sentindo o vento nas maçãs do
rosto, pensando nas necessidades que entravam em suas
decisões.
Não sabem como é isso, ele pensou.
Mas sabia que não podia deixar nenhuma consideração
desviá-lo de seu curso. Tinha de ficar na linha central da
tempestade de tempo que ele antevia. Haveria um instante no
qual seria possível desenredá-la, mas só se ele estivesse no
ponto certo para cortar o nó central.
Não vou desafiá-lo se eu puder evitar, pensou. Se houver
outra maneira de impedir o jihad...
– Acamparemos para a refeição e a prece de fim de tarde
na Caverna dos Pássaros, sob a Colina de Habbanya – disse
Stilgar. Firmou-se num só gancho, resistindo ao balanço do
criador, e apontou adiante, para uma barreira rochosa e baixa
que surgia do deserto.
Paul estudou o paredão, os grandes veios de rocha que o
cruzavam feito ondas. Nenhuma vegetação, nenhuma flor
suavizava aquele horizonte rígido. E além estendia-se o
caminho para o deserto austral, uma viagem de pelo menos dez
dias e noites, por mais rápido que conseguissem açular os
criadores com os aguilhões.
Vinte marteladores.
O caminho levava para bem longe das patrulhas
Harkonnen. Sabia como seria. Os sonhos haviam lhe mostrado.
Um dia, durante a viagem, haveria uma ligeira mudança de cor
no horizonte distante – tão leve que talvez ele sentisse como se
a imaginasse, motivado pela esperança – e lá estaria o novo
sietch.
– Minha decisão convém a Muad’Dib? – perguntou Stilgar.
Havia só um levíssimo toque de sarcasmo na voz dele, mas os
ouvidos dos fremen que os cercavam, atentos a todas as
tonalidades no grito de uma ave ou na mensagem sibilante de
um ciélago, captaram o sarcasmo e puseram-se a observar Paul
para ver o que ele faria.
– Stilgar me ouviu jurar lealdade a ele quando
consagramos os Fedaykin – disse Paul. – Meus comandos
suicidas sabem que falo com honra. Stilgar duvida?
A voz de Paul revelava uma dor verdadeira. Stilgar a
percebeu e baixou o olhar.
– Usul, o camarada de meu sietch, dele eu nunca duvidaria
– disse Stilgar. – Mas você é Paul Muad’Dib, o duque Atreides, e
você é a Lisan al-Gaib, a Voz do Mundo Exterior. Esses homens,
eu sequer os conheço.
Paul desviou os olhos para ver a Colina de Habbanya se
elevar do deserto. O criador sob seus pés ainda parecia forte e
disposto. Era capaz de levá-los a uma distância duas vezes
superior a qualquer outra já percorrida por um fremen. Sabia
que sim. Nada nas histórias que se contavam às crianças se
comparava àquele velho do deserto. Paul percebeu que aquele
verme seria a matéria de uma nova lenda.
Uma mão segurou-lhe o ombro.
Paul olhou para aquela mão, seguiu o braço até o rosto
atrás dele: os olhos escuros de Stilgar expostos entre a
máscara filtradora e o gorro do trajestilador.
– O líder do Sietch Tabr antes de mim – disse Stilgar –, ele
era meu amigo. Passamos juntos por vários perigos. Ele me
devia sua vida, por mais de uma ocasião... e eu devia a minha a
ele.
– Sou seu amigo, Stilgar – disse Paul.
– Não há quem duvide disso – falou Stilgar. Removeu a
mão, deu de ombros. – É a tradição.
Paul viu que Stilgar estava demasiadamente imerso na
tradição fremen para considerar a possibilidade de fazer as
coisas de um outro jeito. Ali, o líder tomava as rédeas das mãos
de seu predecessor morto, ou então, se o líder morria no
deserto, os mais fortes da tribo lutavam até a morte. Stilgar
ascendera à posição de naib dessa maneira.
– Devíamos deixar este criador em areias profundas –
disse Paul.
– Sim – concordou Stilgar. – Poderíamos caminhar até a
caverna a partir daqui.
– Já o trouxemos tão longe que ele deve se enterrar e ficar
um ou dois dias amuado – disse Paul.
– Você é o mudir da montarenada – disse Stilgar. – Diga
quando nós... – Interrompeu o que ia dizendo e olhou para o
céu oriental.
Paul girou. A capa azul de especiaria sobre seus olhos fazia
o céu parecer escuro, um azul-celeste vivamente destilado,
contra o qual uma intermitência ritmada se destacava em
nítido contraste.
Ornitóptero!
– É um tóptero pequeno – disse Stilgar.
– Pode ser um batedor – disse Paul. – Acha que nos viram?
– A essa distância somos apenas um verme na superfície –
disse Stilgar. Ele fez um gesto com a mão esquerda. – Desçam.
Espalhem-se na areia.
A tropa começou a descer pelos flancos do verme, pulando
para o chão, misturando-se à areia, debaixo de seus mantos.
Paul marcou o ponto onde Chani desceu. No momento,
restavam apenas ele e Stilgar.
– Primeiro a subir, último a descer – disse Paul.
Stilgar concordou com a cabeça, usou os ganchos para
descer por um dos flancos, saltou para a areia. Paul esperou até
que o criador estivesse a uma distância segura da área de
dispersão, então soltou os ganchos. Aquele era o momento
complicado quando o verme ainda não estava completamente
exausto.
Livre dos aguilhões e dos ganchos, o grande verme
começou a se enterrar na areia. Paul correu ligeiro para trás,
percorrendo a ampla superfície do monstro, estimou
cuidadosamente o momento certo e saltou. Aterrissou e
continuou correndo, sem perder o passo, atirou-se de encontro
à face de deslizamento de uma duna, da maneira como o
haviam ensinado, e escondeu-se sob a cascata de areia que lhe
cobriu o manto.
E agora, a espera...
Virou-se com delicadeza, ergueu uma dobra do manto e
expôs uma nesga de céu. Imaginou os colegas, lá atrás, pelo
caminho, fazendo a mesma coisa.
Ele escutou o bater das asas do tóptero antes de ver a
aeronave. Ouviu-se o sussurro dos jatopropulsores, e o tóptero
sobrevoou aquele trecho do deserto, descreveu um arco amplo
e virou na direção da colina.
Paul reparou que era um tóptero sem identificação.
A aeronave sumiu de vista atrás da Colina de Habbanya.
Um piado soou no deserto. E mais outro.
Paul livrou-se da areia, subiu para o topo da duna. Outros
vultos se levantaram, formando uma fileira da colina até ali.
Reconheceu Chani e Stilgar entre eles.
Stilgar fez sinal, apontando a colina.
Eles se reuniram e deram início à trilharenada, deslizando
pela superfície num ritmo irregular, para não incomodar
nenhum criador. Stilgar alcançou Paul no cimo de uma duna,
compactado pelo vento.
– Era uma das naves dos contrabandistas – disse Stilgar.
– É o que parece – concordou Paul. – Mas estamos muito
dentro do deserto para encontrar contrabandistas.
– Eles também têm dificuldades com as patrulhas – disse
Stilgar.
– Se chegam até aqui, podem chegar ainda mais longe –
falou Paul.
– Verdade.
– Não seria bom que vissem o que poderiam ver caso se
aventurassem muito ao sul. Os contrabandistas também
vendem informações.
– Estavam atrás de especiaria, não acha? – perguntou
Stilgar.
– Haveria uma nave e uma lagarta em algum lugar, à espera
daquele tóptero – disse Paul. – Temos especiaria. Vamos lançar
uma isca na areia e pegar uns contrabandistas. Devem
aprender que esta é nossa terra, e nossos homens precisam
praticar com as novas armas.
– Agora é Usul quem fala – animou-se Stilgar. – Usul pensa
como fremen.
Mas Usul tem de ceder a decisões condizentes com um
propósito terrível, pensou Paul.
E a tempestade ia se formando.
Quando a lei e o dever, unidos na religião,
são a mesma coisa, a pessoa nunca chega
à consciência plena de si mesma. Será
sempre pouco menos que um indivíduo.
– excerto de “Muad’Dib: as noventa e nove maravilhas do
universo”, da princesa Irulan

A usina de especiaria dos contrabandistas, com seu


caleche matriz e o círculo de ornitópteros de controle remoto,
surgiu sobre umas dunas altas, feito um enxame de insetos na
esteira de sua rainha. À frente do enxame encontrava-se uma
das elevações rochosas mais baixas que se erguiam do piso do
deserto, tal qual pequenas imitações da Muralha-Escudo. As
praias secas do morro tinham sido varridas recentemente por
uma tempestade.
Na bolha do piloto da usina, Gurney Halleck debruçou-se,
ajustou as lentes oleosas de seu binóculo e examinou o terreno.
Passada a colina, ele viu um trecho escuro que poderia ser um
afloramento de especiaria e fez sinal para que um dos
ornitópteros em sobrevoo fosse investigar.
O tóptero bateu rapidamente as asas para indicar que
recebera o sinal, deixou o enxame, disparou na direção da areia
escura e contornou a área com seus detectores pendentes
quase tocando a superfície.
Quase no mesmo instante, mergulhou e descreveu o
círculo de asas recolhidas que informava a descoberta de
especiaria à usina em espera.
Gurney guardou o binóculo em seu estojo, sabendo que os
outros tinham visto o sinal. Gostava daquele local. O morro
oferecia um pouco de resguardo e proteção. Estavam nas
profundezas do deserto, um lugar improvável para uma
emboscada... mas, ainda assim... Gurney fez sinal para que uma
das tripulações sobrevoasse e esquadrinhasse o morro,
mandou os reservas se manterem em formação em volta da
área, não muito alto, para que não fossem avistados de longe
pelos detectores dos Harkonnen.
No entanto, duvidava que as patrulhas Harkonnen
viessem tão para o sul. Ainda era a terra dos fremen.
Gurney verificou suas armas, amaldiçoando a sorte que
tornara os escudos inúteis ali. Era preciso evitar a todo custo
qualquer coisa capaz de chamar um verme. Esfregou a cicatriz
de cipó-tinta em sua mandíbula, estudando o cenário, e decidiu
que seria mais seguro liderar uma equipe de terra e vasculhar o
morro. A inspeção a pé ainda era a mais garantida. Cuidado
nunca era demais quando fremen e Harkonnen estavam se
matando.
Ali eram os fremen que o preocupavam. Eles não se
importavam de vender toda a especiaria que se quisesse
comprar, mas viravam diabos em pé de guerra quando alguém
pisava em território proibido. E andavam tão diabolicamente
ardilosos nos últimos tempos.
Aquilo aborrecia Gurney, a astúcia e a perícia em batalha
daqueles nativos. Demonstravam uma sofisticação na guerra
como ele nunca havia visto antes, e ele tinha sido treinado
pelos melhores combatentes do universo, e depois
amadurecera em batalhas onde poucos, somente os melhores,
sobreviveram.
Gurney voltou a esquadrinhar o terreno, perguntando-se
por que estaria apreensivo. Talvez fosse o verme que viram...
mas tinha sido do outro lado do morro.
Uma cabeça apareceu ao lado de Gurney na bolha do
piloto: o comandante da usina, um pirata velho e caolho, de
barba cerrada, o olho azul e os dentes leitosos da dieta baseada
em especiaria.
– Parece um trecho rico, senhor – disse o comandante da
usina. – Entro com a lagarta?
– Desça até o pé daquele morro – ordenou Gurney. – Deixe-
me desembarcar com meus homens. Você pode ligar as
esteiras e chegar à especiaria a partir dali. Vamos dar uma
olhada naquelas pedras.
– Sim, senhor.
– Em caso de problemas – disse Gurney –, salve a usina.
Nós iremos nos tópteros.
O comandante da usina bateu continência.
– Sim, senhor. – Sumiu escotilha abaixo.
Gurney voltou mais uma vez a esquadrinhar o horizonte.
Tinha de respeitar a possibilidade de que houvesse fremen ali,
de que ele estava invadindo. Os fremen o preocupavam, sua
resistência e imprevisibilidade. Muitas coisas naquele negócio
o preocupavam, mas as recompensas eram enormes. O fato de
não poder mandar os vigias subirem muito alto também o
preocupava. E a necessidade de manter os rádios desligados só
fazia aumentar sua apreensão.
A lagarta-usina fez a volta e começou a descer. Planou
suavemente até a praia seca no sopé do morro. As esteiras
tocaram a areia.
Gurney abriu o domo da bolha e soltou os cintos de
segurança. No instante em que a usina parou, ele saiu,
fechando com estrondo a bolha atrás dele, passando por cima
dos anteparos das esteiras e pulando para a areia, livre da
malha de emergência. Os cinco homens de sua guarda pessoal
o acompanharam, saindo pela escotilha do nariz. Os outros
liberaram o caleche aéreo da usina. A nave se desprendeu,
subiu e pôs-se a voar baixo, num círculo estacionário.
Imediatamente, a grande lagarta-usina partiu com um
solavanco e, vibrando, afastou-se do morro, seguindo na
direção da mancha escura sobre a areia.
Um tóptero mergulhou ali por perto, derrapou na areia e
parou. Foi seguido por mais um, e ainda outro. Descarregaram
os homens do pelotão de Gurney e alçaram voo, pairando no ar.
Gurney se espreguiçou, experimentando os músculos
dentro do trajestilador. Deixou a máscara filtradora cair do
rosto, perdendo umidade em nome de uma necessidade maior:
o poder de projetar a voz, se tivesse de gritar ordens. Começou
a galgar as pedras, verificando o terreno: seixos e areia grossa
sob os pés, o cheiro de especiaria.
Bom lugar para uma base de emergência, ele pensou.
Talvez seja uma boa ideia enterrar aqui algumas provisões.
Olhou para trás, vendo seus homens se espalharem
enquanto o seguiam. Bons homens, até mesmo os novatos que
ele não tivera tempo de testar. Bons homens. Não era
necessário lhes dizer o que fazer a todo momento. Em nenhum
deles transpareciam as cintilações de um escudo. Naquele
bando não havia covardes que portassem escudos no deserto,
onde um verme poderia detectar o campo e aparecer para lhes
roubar a especiaria encontrada.
A partir daquela ligeira elevação nas rochas, Gurney
enxergava a mancha de especiaria a cerca de meio quilômetro
de distância, e a lagarta acabava de alcançar o limite mais
próximo. Ergueu os olhos para a aeronave de cobertura,
reparando na altitude: não muito alto. Aprovou com a cabeça,
virou-se para retomar a escalada morro acima.
Naquele instante, a montanha entrou em erupção.
Doze rastros de fogo ensurdecedores subiram feito raios,
na direção dos tópteros e do caleche. Ouviu-se um clangor
metálico vindo da lagarta-usina, e as pedras em volta de
Gurney foram tomadas por homens de armas encapuzados.
Gurney teve tempo de pensar: Pelos cornos da Grande
Mãe! Foguetes! Eles se atrevem a usar foguetes!
Então viu-se frente a frente com um vulto encapuzado, de
cócoras, com a dagacris em riste. Outros dois homens
esperavam nas pedras acima, à esquerda e à direita. Somente
os olhos do homem de armas diante dele eram visíveis, entre o
capuz e o véu de um albornoz cor de areia, mas a postura e a
prontidão o alertaram para o fato de que se tratava de um
homem de armas treinado. Os olhos eram de azul sobre azul,
como os dos fremen das profundezas do deserto.
Gurney moveu uma das mãos na direção de sua faca, de
olhos fixos na faca do outro homem. Se tiveram a audácia de
usar foguetes, deviam ter outras armas de projéteis. Aquele
momento pedia extrema cautela. Podia dizer, só pelo som, que
ao menos parte de sua cobertura aérea havia sido abatida.
Também se ouviam grunhidos, o barulho de vários combates
atrás dele.
Os olhos do homem de armas à frente de Gurney seguiram
o movimento da mão na direção da faca e voltaram a se fixar
nos olhos de Gurney.
– Deixe a faca na bainha, Gurney Halleck – disse o homem.
Gurney hesitou. Aquela voz parecia estranhamente
familiar, mesmo modificada pelo filtro do trajestilador.
– Sabe meu nome? – perguntou.
– Não precisa de uma faca comigo, Gurney – disse o
homem. Levantou-se, embainhou a dagacris sob o manto. –
Mande seus homens pararem com essa resistência inútil.
O homem atirou para trás o capuz e afastou o filtro para
um lado.
O choque de ver o que Gurney viu paralisou-lhe os
músculos. Pensou, a princípio, que olhava para uma imagem
espectral do duque Leto Atreides. O reconhecimento pleno
demorou a chegar.
– Paul – ele sussurrou. E depois, mais alto: – É você mesmo,
Paul?
– Não confia em seus próprios olhos? – Paul perguntou.
– Disseram que você estava morto – falou Gurney, com voz
áspera. Deu meio passo adiante.
– Diga a seus homens para se renderem – ordenou Paul.
Acenou na direção do pé do morro.
Gurney se virou, relutando em tirar seus olhos de Paul. Viu
luta apenas em alguns pontos. Parecia haver homens do
deserto encapuzados por toda parte. A lagarta-usina estava
em silêncio e havia fremen em cima dela. Não havia aeronaves
no céu.
– Cessem a luta – Gurney bradou. Inspirou fundo e levou as
mãos em concha à boca, fazendo as vezes de megafone. – É
Gurney Halleck quem fala! Cessem a luta!
Aos poucos, com desconfiança, os combatentes foram se
desvencilhando. Olhos intrigados voltaram-se para ele.
– São amigos – gritou Gurney.
– Mas que amigos! – alguém berrou de volta. – Mataram
metade dos nossos.
– Foi um equívoco – disse Gurney. – Não piore as coisas.
Virou-se novamente para Paul, fitou os olhos fremen de
azul sobre azul do rapaz.
Um sorriso roçou os lábios de Paul, mas havia na
expressão uma dureza que fez Gurney se lembrar do Velho
Duque, o avô de Paul. Foi aí que Gurney viu em Paul a aspereza
esguia e de músculos rijos que nunca antes se vira num
Atreides: a pele de aspecto curtido, as pálpebras semicerradas
e o olhar calculista que parecia ponderar tudo ao alcance da
visão.
– Disseram que você estava morto – repetiu Gurney.
– E parece que a melhor proteção foi deixá-los pensar que
sim – disse Paul.
Gurney percebeu que aquela era a única satisfação que
receberia por ter sido abandonado à própria sorte, por terem-
no deixado acreditar que seu jovem duque... seu amigo... estava
morto. Perguntou-se, então, se restara alguma coisa do menino
que ele havia conhecido e treinado na doutrina dos homens de
armas.
Paul deu um passo e aproximou-se de Gurney; descobriu
que seus olhos ardiam.
– Gurney...
Pareceu acontecer espontaneamente, e os dois estavam se
abraçando, batendo as mãos nas costas um do outro, sentindo
a segurança da carne firme.
– Moleque! Moleque! – Gurney não parava de dizer.
E Paul:
– Gurney, meu velho! Gurney, meu velho!
Em seguida, os dois se separaram e entreolharam-se.
Gurney inspirou fundo.
– Então você é a razão de os fremen terem ficado tão
versados em táticas de batalha. Eu já devia ter desconfiado.
Eles vivem fazendo coisas que eu mesmo poderia ter planejado.
Ah, se eu soubesse... – Sacudiu a cabeça. – Se você tivesse me
mandado notícias, rapaz... Nada teria me detido. Eu teria vindo
correndo e...
Uma expressão nos olhos de Paul o conteve... o olhar duro,
ponderador.
Gurney suspirou.
– Claro, e haveria quem se perguntasse por que Gurney
Halleck saiu correndo, e alguns teriam feito mais do que
perguntar. Teriam partido atrás de respostas.
Paul assentiu, olhou para os fremen que esperavam a seu
redor: as expressões de curiosidade e avaliação nos rostos dos
Fedaykin. Voltou a olhar para Gurney e deu as costas aos
comandos suicidas. Encontrar seu antigo mestre-espadachim
o encheu de entusiasmo. Viu aquilo como um bom agouro, um
sinal de que estava na rota do futuro em que tudo correria bem.
Com Gurney a meu lado...
Paul percorreu a encosta do morro com o olhar, passando
pelos Fedaykin, e examinou os contrabandistas que
acompanhavam Halleck.
– De que lado estão seus homens, Gurney? – ele perguntou.
– São todos contrabandistas – respondeu Gurney. – Estão
do lado dos lucros.
– Nossa empresa não é muito lucrativa – disse Paul, e
reparou no discreto sinal que Gurney lhe fez com um dedo da
mão direita: o antigo código das mãos, saído de seu passado
comum. Havia entre os contrabandistas homens a se temer e
indignos de confiança.
Paul beliscou o lábio para indicar que compreendera,
olhou para os homens que estavam de guarda nas pedras
acima deles. Viu Stilgar ali. A lembrança do problema não
resolvido com Stilgar esfriou um pouco o entusiasmo de Paul.
– Stilgar – ele disse –, este é Gurney Halleck, de quem você
já me ouviu falar. O Mestre de Armas de meu pai, um dos
mestres-espadachins que me instruíram, um velho amigo.
Pode confiar nele para qualquer coisa.
– Entendi – disse Stilgar. – Você é o duque dele.
Paul fitou o semblante sombrio lá em cima, imaginando as
razões que teriam levado Stilgar a dizer somente aquilo. O
duque dele. A voz de Stilgar saíra com uma entonação estranha
e sutil, como se tivesse preferido dizer outra coisa. E isso não
era do feitio de Stilgar, que era um dos líderes dos fremen, um
homem que falava o que pensava.
Meu duque!, Gurney pensou. Meu duque! Um lugar que
estivera morto dentro dele começou a reviver. Só uma parte de
sua consciência se concentrou na ordem de Paul para que os
contrabandistas fossem desarmados até que pudessem ser
interrogados.
A mente de Gurney voltou a esse comando quando ele
ouviu os protestos de alguns de seus homens. Chacoalhou a
cabeça e virou-se para eles.
– Vocês são surdos? – ele vociferou. – Este é o duque de
Arrakis por direito. Façam o que ele mandar.
Aos resmungos, os contrabandistas aquiesceram.
Paul colocou-se ao lado de Gurney e falou em voz baixa:
– Não esperava que você caísse numa armadilha como
esta, Gurney.
– Mereço a reprimenda – disse Gurney. – Aposto que
aquela mancha de especiaria ali deve ter a espessura de um
grão de areia, uma isca para nos fisgar.
– Uma aposta que você ganharia – disse Paul. Olhou para
os homens que eram desarmados lá embaixo. – Há entre seu
pessoal mais algum homem de meu pai?
– Nenhum. Somos pouquíssimos. Há alguns entre os livre-
cambistas. A maioria usou o que ganhou para deixar este lugar.
– Mas você ficou.
– Fiquei.
– Porque Rabban está aqui – disse Paul.
– Pensei que nada mais me restava além da vingança –
disse Gurney.
Um grito estranhamente truncado soou no alto do morro.
Gurney olhou para cima e viu um fremen que acenava com o
lenço.
– Vem aí um criador – disse Paul. Foi até um promontório
de pedra, com Gurney em seu encalço, e olhou para o sudoeste.
Era possível ver a cúpula do túnel de um verme a média
distância, uma trilha coroada de pó que cortava diretamente as
dunas e seguia na direção do morro.
– É bem grande – disse Paul.
Um ruído forte ergueu-se da lagarta-usina abaixo deles. A
coisa virou em suas esteiras, feito um inseto gigantesco, e
arrastou-se até as pedras.
– Pena que não conseguimos salvar o caleche – disse Paul.
Gurney olhou para ele, depois para as manchas de fumaça
e os destroços no deserto, onde o caleche e os ornitópteros
foram derrubados pelos foguetes dos fremen. Sentiu uma dor
forte e repentina pelos homens perdidos ali, seus homens, e
disse:
– Seu pai teria se preocupado mais com os homens que não
conseguiu salvar.
Paul lançou-lhe um olhar duro e baixou os olhos. Sem
demora, disse:
– Eram seus amigos, Gurney. Entendo. Para nós, porém,
eram invasores que poderiam ver coisas que não deveriam ver.
Precisa entender isso.
– Eu entendo muito bem – disse Gurney. – Agora, estou
curioso para ver o que não deveria ver.
Paul ergueu os olhos e viu o velho e bem lembrado sorriso
feroz no rosto de Halleck, a ondulação da cicatriz de cipó-tinta
na mandíbula do homem.
Gurney acenou com a cabeça, apontando o deserto abaixo
deles. Em toda parte, os fremen cuidavam de seus afazeres.
Ocorreu-lhe que nenhum deles parecia preocupado com a
aproximação do verme.
Soaram marteladas nas dunas do deserto aberto, depois
da mancha de especiaria usada como isca: um rufar grave que
parecia se ouvir com os pés. Gurney viu os fremen se
espalharem pela areia na trajetória do verme.
O verme apareceu feito um grande peixe da areia,
encapelando a superfície, cheio de ondulações e contorções
nos anéis. Num instante, desde seu ponto de observação
privilegiado acima do deserto, Gurney viu a captura de um
verme: o salto temerário do primeiro gancheiro, o desvio da
criatura, a maneira como um bando inteiro de homens subiu
pela curvatura escamosa e cintilante do flanco do verme.
– Essa é uma das coisas que você não deveria ter visto –
Paul disse.
– Havia histórias e boatos – disse Gurney. – Mas não é uma
coisa fácil de acreditar sem ver. – Sacudiu a cabeça. – A criatura
que todos os homens em Arrakis temem, e vocês a tratam
como animal de montaria.
– Você ouviu meu pai falar da força do deserto – lembrou
Paul. – Aí está. A superfície deste planeta é nossa. Não há
tempestade, criatura ou condição capaz de nos deter.
Nos deter, nós, pensou Gurney. Está falando dos fremen.
Fala de si mesmo como um deles. Mais uma vez, Gurney olhou
para o azul da especiaria nos olhos de Paul. Sabia que seus
próprios olhos tinham um pouco da cor, mas os
contrabandistas conseguiam comida de fora do planeta e havia
entre eles uma implicação sutil de que a cor dos olhos fazia
parte de um sistema de castas. Falavam em “pincelada de
especiaria” quando queriam dizer que um homem havia se
naturalizado demais. E havia sempre uma insinuação de
desconfiança nessa ideia.
– Houve um tempo em que não montávamos os criadores
durante o dia nestas latitudes – disse Paul. – Mas resta a
Rabban tão pouca cobertura aérea, que ele não pode
desperdiçá-la à procura de uns pontinhos na areia. – Olhou
para Gurney. – Sua aeronave foi um choque para nós.
Para nós... para nós...
Gurney balançou a cabeça para se livrar daqueles
pensamentos.
– Não fomos um choque tão grande para vocês quanto
vocês para nós – ele disse.
– O que se diz a respeito de Rabban nas pias e vilas? –
perguntou Paul.
– Dizem que fortificaram as vilas dos graben de tal
maneira que vocês não conseguirão lhes fazer mal. Dizem que
só precisam esperar sentados dentro de suas defesas,
enquanto vocês se desgastam num ataque inútil.
– Em suma – disse Paul –, estão imobilizados.
– Ao passo que vocês podem ir aonde quiserem – disse
Gurney.
– É uma tática que aprendi com você – disse Paul. –
Perderam a iniciativa, o que significa que perderam a guerra.
Gurney sorriu, uma expressão sagaz e sem pressa.
– Nosso inimigo está exatamente onde quero que fique –
continuou Paul. Olhou para Gurney. – Bem, Gurney, vai se
juntar a mim no final desta campanha?
– Juntar-me? – Gurney o encarou. – Milorde, nunca deixei
de estar a seu serviço. Era o único que me restava... pensar que
estava morto. E eu, abandonado e sem rumo, fiz o que pude,
esperando o momento de dar minha vida pelo que ela vale: a
morte de Rabban.
Um silêncio constrangido baixou sobre Paul.
Uma mulher escalou as pedras e veio até eles, com os olhos
entre o gorro do trajestilador e a máscara facial alternando-se
entre Paul e o homem que o acompanhava. Ela parou diante de
Paul. Gurney notou-lhe o ar possessivo, a maneira como ela se
colocava junto a Paul.
– Chani – disse Paul –, este é Gurney Halleck. Você já me
ouviu falar dele.
Ela olhou para Halleck, depois para Paul.
– Ouvi.
– Aonde foram os homens montados no criador? –
perguntou Paul.
– Só o estão distraindo para nos dar tempo de salvar o
equipamento.
– Bem, então... – Paul deixou a frase por dizer e farejou o ar.
– Vem aí uma ventania – comentou Chani.
Uma voz gritou do alto do morro acima deles:
– Ei, vocês aí: o vento!
Dessa vez Gurney viu os fremen se apressarem, uma
correria, uma sensação de urgência. Algo que o verme não
havia provocado, o medo do vento agora causava. A lagarta-
usina arrastou-se para a praia seca abaixo deles e as pedras se
abriram para lhe dar passagem... fechando-se em seguida com
tamanho esmero que a entrada escapou aos olhos de Gurney.
– Vocês têm muitos desses esconderijos? – ele perguntou.
– Ponha muitos nisso – disse Paul. Olhou para Chani. –
Encontre Korba. Diga-lhe que Gurney me avisou que há entre
os contrabandistas homens nos quais não se pode confiar.
Ela olhou uma vez para Gurney, depois para Paul, assentiu
com a cabeça e partiu, descendo as pedras, saltando com a
agilidade de uma gazela.
– Ela é sua mulher – deduziu Gurney.
– Mãe do meu primogênito – disse Paul. – Os Atreides têm
mais um Leto.
Gurney recebeu a notícia simplesmente arregalando os
olhos.
Paul observava a movimentação a seu redor com um olhar
crítico. A cor do caril agora tomava o céu meridional, e lufadas
intermitentes de vento começaram a levantar poeira em volta
de suas cabeças.
– Lacre o traje – disse Paul, cobrindo o rosto com a
máscara e o gorro.
Gurney obedeceu, agradecendo a existência dos filtros.
Paul falou, com a voz abafada pelo filtro:
– Quem são os homens nos quais você não confia, Gurney?
– Alguns dos novos recrutas – respondeu Gurney. –
Estrangeiros de fora do planeta... – Ele hesitou,
repentinamente admirado consigo mesmo. Estrangeiros. A
palavra chegara tão fácil a seus lábios.
– E daí? – fez Paul.
– Não são como os caçadores de fortuna que geralmente
pegamos – disse Gurney. – São mais robustos.
– Espiões dos Harkonnen? – perguntou Paul.
– Creio, milorde, que não respondem a nenhum
Harkonnen. Desconfio que sejam homens a serviço do
Imperium. Têm algo de Salusa Secundus.
Paul lançou-lhe um olhar penetrante.
– Sardaukar?
Gurney encolheu os ombros.
– Podem até ser, mas disfarçam bem.
Paul concordou, pensando na facilidade com que Gurney
voltara a agir como lacaio dos Atreides... mas, com reservas...
diferenças sutis. Arrakis também o havia mudado.
Dois fremen encapuzados surgiram da rocha fendida
abaixo deles e começaram a subir. Um deles carregava uma
trouxa grande e preta sobre um dos ombros.
– Onde está meu pessoal agora? – Gurney perguntou.
– Estão seguros, nas pedras abaixo de nós – disse Paul. –
Temos uma caverna ali, a Caverna dos Pássaros. Decidiremos o
que fazer com eles depois da tempestade.
Uma voz vinda de cima chamou:
– Muad’Dib!
Paul virou-se ao ouvi-la e viu um guarda fremen fazer-lhes
sinal para que descessem até a caverna. Paul indicou que tinha
ouvido.
Gurney o estudava, com uma nova expressão no rosto.
– Você é Muad’Dib? – perguntou. – Você é o fantasma
arisco?
– É meu nome fremen – disse Paul.
Gurney deu-lhe as costas, tomado por um pressentimento
opressivo. Metade de sua gente estava morta sobre a areia, os
outros eram prisioneiros. Não se importava com os novos
recrutas, com os suspeitos, mas entre os demais havia bons
homens, amigos, pessoas pelas quais se sentia responsável.
“Decidiremos o que fazer com eles depois da tempestade.” Era o
que Paul havia dito. O que Muad’Dib havia dito. E Gurney se
lembrou das histórias que contavam sobre Muad’Dib, a Lisan
al-Gaib: de como ele havia esfolado um oficial Harkonnen e
usado a pele para fazer seus tambores, de como vivia cercado
por comandos suicidas, Fedaykin que se atiravam na batalha
com cânticos de morte nos lábios.
Ele.
Os dois fremen que escalavam as pedras saltaram
agilmente para uma plataforma diante de Paul. O de rosto
moreno disse:
– Tudo em segurança, Muad’Dib. É melhor descermos
agora.
– Certo.
Gurney reparou no tom de voz do homem: era parte uma
ordem e parte um pedido. Aquele era o homem a quem
chamavam Stilgar, mais um personagem das novas lendas
fremen.
Paul olhou para a trouxa que o outro homem carregava e
disse:
– Korba, o que há na trouxa?
Stilgar respondeu:
– Estava na lagarta. Tinha a inicial de seu amigo aí e
contém um baliset. Ouvi muitas vezes você falar do talento de
Gurney Halleck com o baliset.
Gurney estudou aquele que falava, vendo o contorno da
barba negra acima da máscara do trajestilador, o olhar de
gavião, o nariz cinzelado.
– Tem um colega que pensa, milorde – disse Gurney. –
Obrigado, Stilgar.
Stilgar fez sinal para que seu colega entregasse a trouxa a
Gurney e disse:
– Agradeça ao senhor seu duque. É a proteção dele que dá
a você o direito de estar aqui.
Gurney recebeu a trouxa, intrigado com a aspereza
implícita naquela conversa. O fremen tinha um ar desafiador, e
Gurney imaginou se poderia ser ciúme. Ali estava alguém
chamado Gurney Halleck, que já conhecia Paul antes de
Arrakis, um homem que compartilhava com o rapaz uma
camaradagem que Stilgar nunca conseguiria invadir.
– Eu queria que vocês dois fossem amigos – disse Paul.
– Stilgar, o fremen, é um nome célebre – começou Gurney.
– Quem quer que mate os Harkonnen é alguém que eu ficaria
honrado de contar entre meus amigos.
– Você apertará a mão de meu amigo Gurney Halleck,
Stilgar? – Paul perguntou.
Vagarosamente, Stilgar estendeu a mão e apertou os calos
grossos da mão com que Gurney empunhava a espada.
– São poucos aqueles que nunca ouviram o nome de
Gurney Halleck – ele disse, soltando a mão. Virou-se para Paul:
– A tempestade chega depressa.
– Já vamos – disse Paul.
Stilgar se virou e seguiu na dianteira enquanto desciam as
pedras, um caminho cheio de curvas e voltas que levava a uma
fenda sombria que dava acesso à entrada baixa de uma
caverna. Alguns homens correram instalar um veda-portas
atrás deles. Os luciglobos mostravam um espaço amplo, de
teto abobadado, com uma saliência elevada, de um lado, e uma
passagem que dela partia.
Paul saltou para a saliência, com Gurney logo atrás dele, e
seguiu na frente até a passagem. Os demais se dirigiram a uma
outra passagem, diametralmente oposta à entrada. Paul levou
Gurney por uma antessala e para dentro de uma câmara com
cortinas escuras, cor de vinho, nas paredes.
– Aqui podemos ter um pouco de privacidade durante
algum tempo – disse Paul. – Os outros irão respeitar minha...
Um címbalo de alarme soou na câmara externa e foi
seguido por gritos e o entrechoque de armas. Paul girou nos
calcanhares e correu, retornando pela antessala e saindo no
rebordo de um átrio acima da câmara externa. Gurney vinha
logo atrás dele, com a arma desembainhada.
Abaixo deles, no chão da caverna, era uma confusão
rodopiante de vultos engalfinhados. Paul avaliou a cena
durante um momento, distinguindo os mantos e as burkas
fremen das roupas daqueles que os enfrentavam. Os sentidos
treinados por sua mãe para detectar as pistas mais sutis
perceberam um fato significativo: os fremen lutavam com
homens que se vestiam como contrabandistas, mas estes
encontravam-se abaixados, de três em três, e formavam
triângulos quando acuados.
Aquele hábito do combate próximo era uma marca
registrada dos Sardaukar imperiais.
Um Fedaykin na multidão viu Paul, e seu grito de guerra
repercutiu na câmara:
– Muad’Dib! Muad’Dib! Muad’Dib!
Outros olhos também tinham avistado Paul. Uma faca
negra foi arremessada em sua direção. Paul se esquivou, ouviu
a faca tilintar ao bater na pedra atrás dele, olhou e viu que
Gurney a recolhia.
Os triângulos agora eram acossados.
Gurney ergueu a faca diante dos olhos de Paul, apontou a
finíssima voluta amarela da insígnia imperial, o timbre do leão
dourado, os olhos multifacetados no pomo.
Sardaukar, com certeza.
Paul foi até a beirada da saliência. Restavam apenas três
Sardaukar. Montes ensanguentados e rotos de Sardaukar e
fremen espalhavam-se em zigue-zague por toda a câmara.
– Parem! – gritou Paul. – O duque Paul Atreides ordena que
parem!
A luta titubeou e esmoreceu.
– Vocês, Sardaukar! – Paul gritou para o grupo que restava.
– Por ordem de quem vocês ameaçam o duque vigente? – E,
rápido, quando seus homens começaram a fechar o cerco
sobre os Sardaukar: – Mandei parar!
Um dos três homens encurralados se levantou:
– Quem disse que somos Sardaukar? – ele quis saber.
Paul tomou a faca das mãos de Gurney e ergueu-a bem
alto.
– Isto diz que vocês são Sardaukar.
– Então quem disse que você é o duque vigente? – indagou
o homem.
Paul apontou os Fedaykin.
– Esses homens dizem que sou o duque vigente. Foi seu
imperador quem concedeu Arrakis à Casa Atreides. Eu sou a
Casa Atreides.
O Sardaukar ficou em silêncio, inquieto.
Paul estudou o homem: alto, cara achatada, com uma
cicatriz lívida que percorria metade de sua face esquerda. A
raiva e a confusão se revelavam em seus modos, mas, ainda
assim, havia nele um certo orgulho, sem o qual um Sardaukar
pareceria nu, e com o qual ele pareceria completamente
vestido mesmo se estivesse nu.
Paul olhou para um de seus lugares-tenentes entre os
Fedaykin e disse:
– Korba, como foi que eles conseguiram essas armas?
– Tinham facas escondidas em bolsos dissimulados em
seus trajestiladores – disse o tenente.
Paul inventariou os mortos e feridos por toda a câmara e
voltou a dar atenção ao tenente. As palavras já não eram
necessárias. O lugar-tenente baixou os olhos.
– Onde está Chani? – Paul perguntou e, segurando o
fôlego, esperou a resposta.
– Stilgar a tirou daqui. – Apontou com a cabeça a outra
passagem, olhou de relance para os mortos e feridos. – Assumo
a responsabilidade por este erro, Muad’Dib.
– Havia quantos desses Sardaukar, Gurney? – Paul
perguntou.
– Dez.
Paul saltou agilmente para o chão da câmara e a
atravessou a passos largos, colocando-se ao alcance da arma
do porta-voz dos Sardaukar.
A tensão tomou conta dos Fedaykin. Não gostavam que ele
se expusesse daquela maneira ao perigo. Era justamente o que
haviam jurado evitar, porque os fremen desejavam preservar a
sabedoria de Muad’Dib.
Sem se virar, Paul falou para seu lugar-tenente:
– Quantas baixas tivemos?
– Quatro feridos, dois mortos, Muad’Dib.
Paul percebeu uma certa movimentação atrás dos
Sardaukar: Chani e Stilgar apareceram na outra passagem.
Voltou sua atenção para os Sardaukar, fitando o branco
alienígena dos olhos do porta-voz.
– Você, qual é seu nome? – Paul indagou.
O homem se enrijeceu, olhou de um lado e de outro.
– Nem tente – disse Paul. – Para mim, é óbvio que vocês
receberam ordens para procurar e destruir Muad’Dib. Aposto
que foram vocês que deram a ideia de procurar especiaria nas
profundezas do deserto.
A respiração entrecortada de Gurney levou um sorriso
tênue aos lábios de Paul.
O sangue corou o rosto do Sardaukar.
– O que veem diante de vocês é mais do que Muad’Dib –
disse Paul. – Sete dos seus foram mortos, ao passo que nós
perdemos apenas dois. Três para um. Está ótimo,
considerando que lutamos com Sardaukar, hein?
O homem ficou nas pontas dos pés, mas voltou à posição
inicial quando os Fedaykin avançaram.
– Perguntei seu nome – insistiu Paul, invocando as
sutilezas da Voz. – Diga-me seu nome!
– Capitão Aramsham dos Sardaukar Imperiais! – o homem
gritou. Ficou boquiaberto. Encarou Paul, confuso.
Desapareceu a atitude que havia subestimado aquela caverna,
como se não passasse de um covil de bárbaros.
– Muito bem, capitão Aramsham – disse Paul –, os
Harkonnen pagariam muito dinheiro para saber o que vocês
sabem agora. E o imperador... o que ele não daria para saber
que um Atreides ainda vive, apesar de sua traição?
O capitão olhou de um lado e de outro, para os dois
homens que lhe restavam. Paul quase enxergava os
pensamentos que passavam pela cabeça do homem. Os
Sardaukar não se rendiam, mas o imperador precisava saber
que a ameaça existia.
Ainda usando a Voz, Paul disse:
– Renda-se, capitão.
O homem à esquerda do capitão saltou sem aviso na
direção de Paul e recebeu no peito o impacto veloz da faca de
seu próprio oficial superior. O agressor atingiu o solo já inerte e
empapado de sangue, com a faca ainda cravada nele.
O capitão encarou o companheiro que lhe restava.
– Eu decido o que é melhor para Sua Majestade – disse. –
Entendido?
O outro Sardaukar deixou cair os ombros.
– Largue a arma – mandou o capitão.
O Sardaukar obedeceu.
O capitão voltou sua atenção para Paul.
– Matei um amigo por você – ele falou. – Nunca nos
esqueçamos disso.
– Vocês são meus prisioneiros – disse Paul. – Vocês se
renderam a mim. Se irão viver ou morrer, não importa. – Fez
sinal para que sua guarda levasse os dois Sardaukar e chamou
o lugar-tenente que havia revistado os prisioneiros.
Os guardas se aproximaram e, aos empurrões, levaram os
Sardaukar embora.
Paul inclinou-se na direção de seu lugar-tenente.
– Muad’Dib – disse o homem. – Eu falhei...
– A falha foi minha, Korba – disse Paul. – Devia ter alertado
você quanto ao que procurar. No futuro, ao revistar os
Sardaukar, lembre-se disso. Lembre-se também de que cada
um deles tem uma ou duas unhas falsas nos dedos dos pés, que
podem ser combinadas com outros objetos escondidos em
seus corpos para produzir um transmissor eficaz. Têm mais de
um dente postiço. Levam rolos de shigafio nos cabelos, tão
finos que mal se consegue detectá-los, mas fortes o suficiente
para garrotear um homem e decapitá-lo. Quando se trata dos
Sardaukar, é preciso examiná-los, esquadrinhá-los – seja por
reflexão ou com raios duros –, arrancar-lhes cada fiapo de pelo
do corpo. E, ao acabar, pode ter certeza de que não descobriu
tudo.
Olhou para Gurney, que tinha se aproximado para ouvi-lo.
– Então é melhor matá-los – disse o lugar-tenente.
Paul sacudiu a cabeça, ainda olhando para Gurney.
– Não. Quero que eles escapem.
Gurney o fitou.
– Sire... – ele disse baixinho.
– Sim?
– Seu homem tem razão. Mate esses prisioneiros agora
mesmo. Destrua todas os indícios de sua existência. Vocês
humilharam os Sardaukar Imperiais! Quando ficar sabendo, o
imperador não descansará até assá-los em fogo lento.
– É improvável que o imperador tenha esse poder sobre
mim – disse Paul. Falou com vagar e frieza. Algo havia
acontecido dentro dele enquanto confrontava o Sardaukar.
Uma somatória de decisões havia se acumulado em sua
percepção. – Gurney – continuou ele –, existem muitos
membros da Guilda em volta de Rabban?
Gurney se empertigou e semicerrou os olhos.
– Sua pergunta não faz o menor...
– Existem? – vociferou Paul.
– Arrakis está fervilhando com agentes da Guilda. Estão
comprando a especiaria como se fosse a coisa mais preciosa do
universo. Por que acha que nos arriscamos tão longe no...
– É a coisa mais preciosa do universo – disse Paul. – Para
eles.
Olhou para Stilgar e Chani, que agora atravessavam a
câmara e vinham em sua direção.
– E nós a controlamos, Gurney.
– Os Harkonnen a controlam! – Gurney protestou.
– As pessoas capazes de destruir uma coisa, são elas que a
controlam – objetou Paul. Acenou com a mão para calar
futuros comentários de Gurney, acenou com a cabeça para
Stilgar, que se deteve diante de Paul, com Chani a seu lado.
Paul, com a mão esquerda, pegou a faca do Sardaukar,
apresentou-a a Stilgar.
– Você vive pelo bem da tribo – disse Paul. – Derramaria
meu sangue com esta faca?
– Pelo bem da tribo – grunhiu Stilgar.
– Então use a faca – ordenou Paul.
– Está me desafiando? – quis saber Stilgar.
– Se o fizer – disse Paul –, irei me apresentar desarmado e
deixarei você me matar.
Stilgar inspirou vigorosamente.
Chani disse “Usul!”, depois olhou para Gurney, e então
novamente para Paul.
Enquanto Stilgar ainda ponderava aquelas palavras, Paul
falou:
– Você é Stilgar, um homem de armas. Quando os
Sardaukar começaram a lutar aqui, você não estava na
vanguarda do combate. Seu primeiro pensamento foi proteger
Chani.
– Ela é minha sobrinha – disse Stilgar. – Se houvesse a
menor dúvida de que seus Fedaykin não seriam capazes de
lidar com essa ralé...
– Por que pensou primeiro em Chani? – indagou Paul.
– Não foi isso!
– Não?
– Pensei em você – admitiu Stilgar.
– Acha que seria capaz de erguer a mão contra mim? –
perguntou Paul.
Stilgar começou a tremer.
– É o costume – ele murmurou.
– O costume é matar os estrangeiros encontrados no
deserto e tomar sua água como uma oferenda para Shai-hulud
– lembrou Paul. – Mas você permitiu que dois deles
sobrevivessem mais uma noite: minha mãe e eu.
Como Stilgar continuasse em silêncio, encarando Paul, o
rapaz disse:
– Os costumes mudam, Stil. Você mesmo os alterou.
Stilgar olhou para o emblema amarelo na faca que
segurava.
– Quando eu for o duque em Arrakina, com Chani a meu
lado, acredita que terei tempo para me preocupar com todos
os pormenores da administração de Sietch Tabr? – Paul
perguntou. – Você se preocupa com os problemas internos de
todas as famílias.
Stilgar continuava fitando a faca.
– Acha que quero decepar meu braço direito? – indagou
Paul.
Lentamente, Stilgar foi erguendo os olhos para ele.
– Você! – exclamou Paul. – Acha que quero privar a mim
mesmo ou à tribo de sua força e sabedoria?
Em voz baixa, Stilgar disse:
– O rapaz de minha tribo cujo nome conheço bem, esse
rapaz eu poderia matar no solo do desafio, se fosse essa a
vontade de Shai-hulud. A Lisan al-Gaib, eu não conseguiria
fazer mal. Você sabia disso quando me entregou a faca.
– Sabia – concordou Paul.
Stilgar abriu a mão. A faca tilintou de encontro à pedra do
chão.
– Os costumes mudam – ele disse.
– Chani – chamou Paul –, vá até minha mãe, traga-a aqui,
para que possamos contar com os conselhos dela no...
– Mas você disse que iríamos para o sul! – ela protestou.
– Eu errei – ele disse. – Os Harkonnen não estão lá. A
guerra não está lá.
Ela inspirou fundo, aceitando o fato da mesma maneira
que as mulheres do deserto aceitavam todas as necessidades
em meio a uma vida entrelaçada à morte.
– Você levará uma mensagem só para os ouvidos de minha
mãe – explicou Paul. – Diga-lhe que Stilgar me reconhece como
duque de Arrakis, mas é preciso encontrar um jeito de fazer os
jovens aceitarem isso sem combate.
Chani olhou para Stilgar.
– Faça o que ele manda – grunhiu Stilgar. – Nós dois
sabemos que ele me venceria... e eu não conseguiria erguer
minha mão contra ele... pelo bem da tribo.
– Voltarei com sua mãe – disse Chani.
– Mande-a vir – corrigiu Paul. – O instinto de Stilgar estava
correto. Sou mais forte quando você está em segurança. Você
ficará no sietch.
Ela fez menção de protestar, mas engoliu as palavras.
– Sihaya – disse Paul, usando o nome que lhe dava na
intimidade. Girou nos calcanhares, para a direita, e encontrou
o olhar feroz de Gurney.
A troca de palavras entre Paul e o fremen mais velho
passara por Gurney feito uma nuvem desde que Paul fizera
referência à mãe.
– Sua mãe – disse Gurney.
– Idaho nos salvou na noite do ataque – contou Paul,
distraído com a partida de Chani. – Neste exato momento,
nós...
– E o que é de Duncan Idaho, milorde? – perguntou Gurney.
– Ele morreu... dando-nos um pouco mais de tempo para
escapar.
A bruxa está viva!, Gurney pensou. Aquela de quem jurei
me vingar, viva! E é óbvio que o duque Paul não sabe que tipo de
criatura o deu à luz. A malvada! Traiu e entregou o pai dele aos
Harkonnen!
Paul passou por ele e pulou para a saliência. Olhou para
trás, notou que os mortos e feridos tinham sido retirados e
pensou amargamente que ali se escrevia mais um capítulo da
lenda de Paul Muad’Dib. Eu sequer saquei minha faca, mas irão
falar deste dia como se eu tivesse matado vinte Sardaukar com
minhas próprias mãos.
Gurney acompanhou Stilgar, pisando em solo que nem
sequer sentia. A caverna, com a luz amarela dos luciglobos, foi
expulsa de seus pensamentos pela fúria. A bruxa vive, e aqueles
a quem ela traiu não passam de ossos em covas solitárias.
Tenho de dar um jeito para que Paul saiba quem ela realmente é
antes de matá-la.
É tão comum o homem zangado negar
furiosamente aquilo que seu eu interior
lhe diz.
– “Frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan

A multidão na câmara de reuniões da caverna irradiava


aquele sentimento coletivo que Jéssica havia captado no dia
em que Paul matara Jamis. Havia uma ansiedade
murmurejante nas vozes. Pequenos grupos se juntavam, feito
nós em meio aos mantos.
Jéssica guardou um cilindro de mensagens sob o manto ao
sair dos aposentos particulares de Paul para a saliência.
Sentia-se descansada depois da longa jornada desde o Sul, mas
ainda estava ressentida, porque Paul não permitia que
usassem os ornitópteros capturados.
– Não temos controle integral do ar – dissera ele. – E não
podemos ficar dependentes de combustível de fora do planeta.
É preciso recolher e guardar tanto o combustível quanto as
aeronaves para o dia do esforço máximo.
Paul acompanhava um grupo de homens mais jovens perto
da saliência. A luz fraca dos luciglobos dava à cena um quê de
irrealidade. Era como um quadro vivo, ao qual se somava a
dimensão formada pelos cheiros do sietch populoso, os
sussurros, o arrastar dos pés.
Ela estudou o filho, perguntando-se por que ele ainda não
lhe mostrara a surpresa: Gurney Halleck. Pensar em Gurney
trazia as lembranças perturbadoras de um passado mais
simples: dias de amor e beleza ao lado do pai de Paul.
Stilgar aguardava, acompanhado por um pequeno grupo
de seus próprios homens, na outra ponta da saliência. Tinha
um ar de dignidade inevitável, a maneira como se portava, sem
dizer palavra.
Não podemos perder esse homem, Jéssica pensou. O plano
de Paul tem de funcionar. Qualquer outra coisa seria
absolutamente trágica.
Ela desceu pomposamente pela saliência, passando por
Stilgar sem lhe dirigir um olhar, e misturou-se à multidão.
Abriram-lhe caminho quando ela se dirigiu até onde estava
Paul. E o silêncio a seguiu.
Sabia o que significava aquele silêncio: as perguntas
mudas do povo, a admiração pela Reverenda Madre.
Os rapazes se afastaram de Paul quando ela se aproximou,
e Jéssica viu-se momentaneamente consternada com o
respeito renovado que demonstravam por ele. “Todos os
homens abaixo de você cobiçam sua posição”, dizia o axioma
das Bene Gesserit. Mas não via cobiça naqueles rostos. Eram
afastados pela comoção religiosa que envolvia a liderança de
Paul. E ela recordou outro ditado das Bene Gesserit: “Os
profetas têm essa mania de morrer de maneira violenta”.
Paul olhou para ela.
– Chegou a hora – ela disse, entregando-lhe o cilindro de
mensagens.
Um dos companheiros de Paul, mais ousado que os outros,
olhou para o outro lado, para Stilgar, e perguntou:
– Você vai desafiá-lo, Muad’Dib? Agora é o momento certo.
Irão julgá-lo um covarde se não...
– Quem se atreve a me chamar de covarde? – quis saber
Paul. Sua mão disparou para o cabo da dagacris.
Com a respiração suspensa, o grupo foi acometido por um
silêncio que se propagou pela multidão.
– Temos trabalho a fazer – disse Paul, ao ver o homem
recuar. Paul se virou, usou os ombros para abrir caminho pela
multidão até a saliência, saltou agilmente para a plataforma e
confrontou o povo.
– Faça! – alguém gritou.
Elevaram-se murmúrios e sussurros atrás do grito agudo.
Paul esperou que se calassem. O silêncio demorou a
chegar, em meio a uma tosse aqui e um arrastar de pés ali.
Quando a caverna se aquietou, Paul ergueu o queixo e falou:
– Vocês estão cansados de esperar.
Mais uma vez, esperou até os gritos de resposta se
extinguirem.
É verdade, estão cansados de esperar, pensou Paul. Ergueu
o cilindro de mensagens e pensou no conteúdo que a mãe havia
lhe mostrado, explicando como fora tomado de um mensageiro
dos Harkonnen.
A mensagem era explícita: Rabban estava isolado ali em
Arrakis! Não poderia mais pedir ajuda nem reforços!
Paul voltou a erguer a voz:
– Estão pensando que já é hora de eu desafiar Stilgar e
mudar a liderança das tropas! – Antes que pudessem
responder, Paul lançou-lhes sua voz, cheia de fúria: – Acham
que eu, a Lisan al-Gaib, seria tão estúpido?
Fez-se um silêncio atônito.
Está aceitando o manto da religião, Jéssica pensou. Não
pode fazer isso!
– É o costume! – alguém berrou.
Paul falou com secura, sondando as tendências
emocionais secretas.
– Os costumes mudam.
Uma voz zangada ergueu-se de um dos cantos da caverna:
– Nós diremos o que vai mudar!
Ouviram-se gritos dispersos de concordância na multidão.
– Como quiserem – disse Paul.
E Jéssica ouviu as entonações sutis quando ele usou os
poderes da Voz que ela havia lhe ensinado.
– E dirão mesmo – ele concordou. – Mas, primeiro, vocês
vão ouvir o que eu tenho a dizer.
Stilgar percorreu a saliência, com o rosto barbado
impassível.
– Esse também é o costume – disse ele. – A voz de qualquer
fremen pode ser ouvida em conselho. Paul Muad’Dib é um
fremen.
– O bem da tribo, essa é a coisa mais importante, não? –
perguntou Paul.
Ainda com aquela mesma dignidade monótona, Stilgar
disse:
– É assim que guiamos nossos passos.
– Muito bem – disse Paul. – Então, quem é que governa esta
tropa de nossa tribo? E quem governa todas as tribos e tropas
por meio dos instrutores de combate que treinamos na
doutrina dos sortilégios?
Paul esperou, olhando por sobre as cabeças da multidão.
Não houve resposta.
Sem demora, ele continuou:
– É Stilgar quem governa tudo isso? Ele mesmo diz que
não. Sou eu, então? Até mesmo Stilgar às vezes faz o que eu
mando, e os sábios, os mais ajuizados de todos, escutam e
respeitam o que digo no conselho.
A multidão respondeu com um silêncio inquieto.
– Então – disse Paul –, é minha mãe quem governa? –
Apontou Jéssica ali entre eles, nos trajes negros de sua
posição. – Stilgar e todos os outros líderes de tropa pedem seu
conselho antes de tomar quase todas as decisões importantes.
Vocês sabem disso. Mas é a Reverenda Madre quem trilha a
areia ou lidera uma razia contra os Harkonnen?
Rugas franziram os cenhos que Paul enxergava dali, mas
ainda se ouviam murmúrios zangados.
É uma maneira perigosa de conduzir as coisas, Jéssica
pensou, mas lembrou-se do cilindro de mensagens e de suas
implicações. E viu qual era a intenção de Paul: chegar ao fundo
da incerteza, livrar-se dela, e todo o resto seria apenas uma
decorrência.
– Nenhum homem reconhece a liderança sem o desafio e o
combate, não é? – Paul perguntou.
– É o costume! – alguém berrou.
– Qual é nosso objetivo? – Paul perguntou. – Destronar
Rabban, a fera Harkonnen, e reinventar nosso mundo, fazer
dele um lugar onde possamos criar nossas famílias, com
felicidade e água em abundância. É esse nosso objetivo?
– Tarefas árduas exigem costumes severos – alguém
gritou.
– Vocês quebram suas facas antes da batalha? – indagou
Paul. – Digo isso como fato, e não como ostentação, nem
desafio: não há aqui um único homem, nem mesmo Stilgar,
capaz de me fazer frente em combate singular. O próprio
Stilgar admite isso. Ele sabe, e vocês todos também sabem.
Mais uma vez, os resmungos zangados elevaram-se da
multidão.
– Muitos de vocês praticaram comigo – disse Paul. – Sabem
que não estou me gabando à toa. Se digo isso, é porque é um
fato conhecido por todos nós, e seria tolice minha não enxergar
a verdade. Comecei a treinar nessa doutrina muito antes de
vocês, e meus professores eram mais duros do que qualquer
um que vocês já tenham visto. Como acham que venci Jamis
numa idade em que seus garotos ainda travam apenas
combates de mentirinha?
Está usando bem a Voz, Jéssica pensou, mas isso não basta
com essa gente. Têm boa imunidade ao controle vocal. Ele
também precisa cativá-los com a lógica.
– E então – continuou Paul –, chegamos a isto. – Ergueu o
cilindro de mensagens e removeu o pedaço de fita. – Isto foi
tirado de um mensageiro dos Harkonnen. Sua autenticidade é
inquestionável. Tem Rabban como destinatário. Informa-o de
que seu pedido de novas tropas foi negado, que a safra de
especiaria está muito abaixo da quota, que ele tem de arrancar
mais especiaria de Arrakis com o pessoal de que já dispõe.
Stilgar colocou-se ao lado de Paul.
– Quantos de vocês entendem o que isso significa? –
perguntou Paul. – Stilgar entendeu imediatamente.
– Estão isolados! – alguém gritou.
Paul enfiou a mensagem e o cilindro na faixa que levava à
cintura. Puxou um cordão de shigafio trançado que trazia ao
pescoço e tirou dali um anel, que ele ergueu bem alto.
– Este é o sinete ducal de meu pai – disse. – Jurei nunca
voltar a usá-lo até estar pronto para levar minhas tropas a todo
o planeta e reivindicar Arrakis como meu feudo por direito. –
Colocou o anel no dedo e cerrou o punho.
Um silêncio absoluto se apoderou da caverna.
– Quem governa aqui? – perguntou Paul. Ergueu o punho. –
Eu governo aqui! Eu governo cada centímetro quadrado de
Arrakis! Este é meu feudo ducal, quer o imperador diga sim ou
não! Ele o deu a meu pai, e eu o herdei de meu pai!
Paul ficou nas pontas dos pés, voltou a descansar sobre os
calcanhares. Estudou a multidão, sentindo-lhe o ânimo.
Quase, ele pensou.
– Alguns homens daqui terão posições importantes em
Arrakis quando eu reivindicar meus direitos imperiais – disse
Paul. – Stilgar é um desses homens. E não porque eu queira
suborná-lo! Nem por gratidão, embora eu esteja entre os
muitos que lhe devem a vida. Não! Mas porque ele é sábio e
forte. Porque governa sua tropa com inteligência, e não só
pelas regras. Acham que sou estúpido? Acham que eu cortaria
meu braço direito e o deixaria ensanguentado no chão só para
proporcionar a vocês um espetáculo?
Paul percorreu a multidão com um olhar duro.
– Quem entre vocês dirá que eu não sou o soberano de
Arrakis por direito? Terei de provar que sou deixando todas as
tribos fremen do erg sem um líder?
Ao lado de Paul, Stilgar se mexeu e, intrigado, olhou para
ele.
– Terei de nos enfraquecer quando mais precisamos de
nossa força? – Paul perguntou. – Sou seu soberano e digo que já
é hora de pararmos de matar nossos melhores homens e
começarmos a matar nossos verdadeiros inimigos: os
Harkonnen!
Num único movimento fugaz, Stilgar sacou sua dagacris e
a apontou sobre as cabeças da multidão.
– Longa vida ao duque Paul Muad’Dib! – gritou.
Um bramido ensurdecedor tomou a caverna, ecoou e
voltou a ecoar. Estavam aplaudindo e cantando:
– Ya hya chouhada! Muad’Dib! Muad’Dib! Muad’Dib! Ya hya
chouhada!
Jéssica traduziu consigo mesma: Longa vida aos
guerreiros de Muad’Dib! A cena que ela, Paul e Stilgar haviam
preparado entre eles saíra como fora planejada.
O tumulto foi esmorecendo aos poucos.
Quando o silêncio retornou, Paul encarou Stilgar e disse:
– Ajoelhe-se, Stilgar.
Stilgar caiu de joelhos sobre a saliência.
– Dê-me sua dagacris – disse Paul.
Stilgar obedeceu.
Não foi isso que planejamos, pensou Jéssica.
– Repita comigo, Stilgar – disse Paul, e recordou as
palavras da cerimônia de investidura, da maneira como tinha
ouvido seu pai usá-las. – Eu, Stilgar, recebo esta faca das mãos
de meu duque.
– Eu, Stilgar, recebo esta faca das mãos de meu duque –
disse Stilgar, aceitando a arma branca e leitosa que Paul lhe
oferecia.
– Onde meu duque mandar, ali colocarei esta arma – disse
Paul.
Stilgar repetiu as palavras, falando com vagar e
solenidade.
Relembrando a origem do rito, Jéssica piscou para conter
as lágrimas e sacudiu a cabeça. Sei qual é o motivo disto, ela
pensou. Não deveria deixar que me afetasse.
– Dedico esta arma à causa de meu duque e à morte de
seus inimigos enquanto nosso sangue correr – disse Paul.
Stilgar repetiu em seguida.
– Beije a lâmina – ordenou Paul.
Stilgar obedeceu; depois, à moda dos fremen, beijou o
braço com que Paul costumava empunhar a faca. Com o
consentimento de Paul, ele embainhou a arma e ficou de pé.
Um murmúrio de admiração percorreu a turba, e Jéssica
escutou as palavras:
– A profecia: uma Bene Gesserit mostrará o caminho e
uma Reverenda Madre o verá.
E, mais ao longe:
– Ela nos mostra por meio de seu filho!
– Stilgar lidera esta tribo – falou Paul. – Que nenhum
homem se engane. Ele comanda com minha voz. O que ele lhes
disser será como se eu o dissesse.
Sábio, Jéssica pensou. O comandante da tribo não pode
perder prestígio entre aqueles que devem lhe obedecer.
Paul baixou a voz e disse:
– Stilgar, quero trilharenadores no deserto hoje à noite, e
mande ciélagos para convocar uma Assembleia do Conselho.
Depois de despachá-los, traga com você Chatt, Korba, Otheym
e dois outros tenentes a sua escolha. Leve-os a meus aposentos
para planejarmos a batalha. Precisamos de uma vitória para
mostrar ao Conselho dos Líderes quando eles chegarem.
Com um aceno da cabeça, Paul fez sinal para que sua mãe
o acompanhasse e seguiu na frente, pelo caminho que descia
da saliência e atravessava a turba, rumo à passagem central e
aos alojamentos que haviam sido preparados ali. Ao ver Paul
passar, a multidão estendeu as mãos para tocá-lo. Vozes
gritaram seu nome.
– Minha faca está às ordens de Stilgar, Paul Muad’Dib!
Deixe-nos lutar logo, Paul Muad’Dib! Deixe-nos regar nosso
mundo com o sangue dos Harkonnen!
Sentindo as emoções da turba, Jéssica percebeu o
entusiasmo combativo daquela gente. Não poderiam estar
mais preparados. Vamos colhê-los em seu auge, ela pensou.
Na câmara interna, Paul indicou com um gesto que sua
mãe se sentasse e disse:
– Espere aqui.
Abaixou-se e saiu por entre as cortinas que davam para a
passagem lateral.
A câmara ficou silenciosa com a saída de Paul; tão
silenciosa, atrás das cortinas, que nem mesmo o zunido fraco
das bombas que faziam o ar circular dentro do sietch chegava
até ela, sentada ali.
Ele vai trazer Gurney Halleck para cá, pensou. E admirou-
se com a estranha mistura de emoções que a tomava. Gurney e
sua música tinham participado de tantos momentos
agradáveis em Caladan, antes de se mudarem para Arrakis.
Parecia-lhe que Caladan tinha acontecido a uma outra pessoa.
Nos quase três anos desde então, ela tinha se tornado outra
pessoa. Ter de confrontar Gurney Halleck a obrigava a
reavaliar as mudanças.
O aparelho de café de Paul, a liga acanelada de prata e
jásmio que ele herdara de Jamis, descansava sobre uma mesa
baixa a sua direita. Ela o fitava, pensando em quantas mãos já
haviam tocado aquele metal. Chani usara-o para servir Paul no
último mês.
O que essa mulher do deserto pode fazer por um duque, a
não ser lhe servir café?, ela se perguntou. Não lhe oferece nem
poder, nem família. Paul tem somente uma grande
oportunidade: aliar-se a uma Casa Maior poderosa, talvez até
mesmo à família imperial. Afinal, algumas princesas já estão em
idade de casar, e todas elas foram treinadas pelas Bene
Gesserit.
Jéssica imaginou-se trocando os rigores de Arrakis pela
vida de poder e segurança que talvez levasse como mãe de um
consorte real. Olhou para as cortinas espessas que
obscureciam a pedra daquele claustro cavernoso, pensando
em como havia chegado ali: viajando em meio a um exército de
vermes, os palanquins e os estrados de carga abarrotados com
os itens necessários para a campanha que viria.
Enquanto Chani viver, Paul não enxergará suas
obrigações, Jéssica pensou. Ela lhe deu um filho, e isso já basta.
Foi tomada por um desejo repentino de ver o neto, o
menino que, na aparência, tinha tanto do avô, era tão parecido
com Leto. Jéssica levou as mãos às maçãs do rosto e deu início
à respiração ritualizada que serenava as emoções e clareava a
mente; em seguida, inclinou-se para a frente, dobrando o corpo
à altura da cintura, como pedia o exercício religioso que
preparava o corpo para as exigências da mente.
Sabia que não havia como contestar a escolha da Caverna
dos Pássaros como posto de comando de Paul. Era ideal. E ao
norte ficava o Desfiladeiro do Vento, que se abria para uma vila
protegida, no interior de uma pia emparedada por penhascos.
Era uma vila estratégica, lar de artesãos e técnicos, o centro de
manutenção de todo um setor defensivo dos Harkonnen.
Ouviu-se uma tosse atrás das cortinas da câmara. Jéssica
se empertigou, inspirou fundo e exalou devagar.
– Entre – disse.
As cortinas foram atiradas para um lado e Gurney Halleck
saltou para dentro do aposento. Jéssica só teve tempo de
vislumbrar o estranho esgar no rosto do homem, e então ele já
estava atrás dela, erguendo-a, com um dos braços musculosos
sob seu queixo.
– Gurney, seu idiota, o que está fazendo? – ela indagou.
Sentiu a ponta da faca tocar-lhe as costas. Uma
constatação gélida emanava daquela ponta. Jéssica soube,
naquele instante, que Gurney pretendia matá-la. Por quê? Não
lhe ocorria nenhuma razão, pois a traição não era do feitio dele.
Mas ela estava certa quanto às intenções do homem. Sabendo
disso, sua mente se agitou. Ele não era um homem fácil de
dominar. Era um matador que conhecia a Voz, que conhecia
cada estratagema de combate, cada truque de morte e
violência. Era um instrumento que ela mesma havia ajudado a
treinar com palpites e sugestões sutis.
– Pensou que tinha escapado, hein, sua bruxa? – rosnou
Gurney.
Antes que ela conseguisse repassar a pergunta em sua
mente ou tentar respondê-la, as cortinas se abriram e Paul
entrou.
– Aí está ele, mã... – Paul interrompeu o que ia dizendo e
assimilou a tensão da cena.
– Fique onde está, milorde – disse Gurney.
– O que... – Paul sacudiu a cabeça.
Jéssica começou a falar, sentiu o braço apertar com mais
força sua garganta.
– Falará apenas com minha permissão, bruxa – disse
Gurney. – Eu só quero que diga uma coisa, para seu filho ouvir,
e estou preparado para enfiar esta faca em seu coração por
puro reflexo ao primeiro gesto que fizer contra mim. Mantenha
sua voz no mesmo tom. Não estique nem mova certos
músculos. Aja com extrema cautela para ganhar mais alguns
segundos de vida. E, garanto, é tudo o que terá.
Paul deu um passo adiante.
– Gurney, meu velho, o que é...
– Pare aí mesmo onde está! – gritou Gurney. – Mais um
passo e ela morre.
A mão de Paul esgueirou-se até o cabo de sua faca. Falou
com uma calma letal:
– É melhor se explicar, Gurney.
– Jurei matar a mulher que traiu seu pai – falou Gurney. –
Acha que posso esquecer o homem que me salvou de um fosso
de escravos dos Harkonnen, que me deu liberdade, vida e
honra... que me deu sua amizade, algo que eu prezava acima de
tudo? Tenho a traidora sob o fio de minha arma. Ninguém pode
me impedir de...
– Não poderia estar mais enganado, Gurney – disse Paul.
E Jéssica pensou: Então é isso! Que ironia!
– Enganado, eu? – Gurney indagou. – Vamos ouvir ela
mesma contar. E que ela não esqueça que eu subornei, espionei
e enganei para confirmar essa acusação. Cheguei a vender
semuta para um capitão da guarda Harkonnen me contar uma
parte da história.
Jéssica sentiu o braço em sua garganta afrouxar de leve,
mas, antes que ela pudesse falar, Paul disse:
– O traidor era Yueh. Vou lhe dizer isso só uma vez,
Gurney. As provas são cabais e incontestáveis. Foi Yueh. Não
quero saber como foi que chegou a essa sua suspeita, que outra
coisa não pode ser, mas, se ferir minha mãe... – Paul sacou a
dagacris da bainha e ergueu a arma diante dele –, seu sangue
será meu.
– Yueh era um médico condicionado, apto a servir uma
casa real – grunhiu Gurney. – Ele seria incapaz de trair!
– Conheço uma maneira de remover esse condicionamento
– disse Paul.
– Prove – insistiu Gurney.
– As provas não estão aqui – disse Paul. – Estão no Sietch
Tabr, bem ao sul, mas se...
– É um truque – rosnou Gurney, apertando a garganta de
Jéssica com o braço.
– Não é um truque, Gurney – disse Paul, e sua voz saiu com
uma nota de tristeza tão terrível que o som cortou o coração de
Jéssica.
– Vi a mensagem que tomaram do agente Harkonnen –
protestou Gurney. – O bilhete apontava diretamente para...
– Eu também a vi – disse Paul. – Meu pai me mostrou o
recado na noite em que me explicou por que tinha de ser um
truque dos Harkonnen para tentar fazê-lo desconfiar da
mulher que amava.
– Ora! – disse Gurney. – Não tem...
– Fique quieto – ordenou Paul, e a calma monótona de suas
palavras transmitia mais autoridade do que Jéssica já tinha
ouvido em qualquer outra voz.
Ele domina o Controle Maior, ela pensou.
O braço de Gurney em seu pescoço tremeu. A ponta da
faca em suas costas moveu-se com incerteza.
– O que você não fez – disse Paul – foi escutar minha mãe
soluçar à noite, chorando por seu duque. Não viu como os olhos
dela flamejam quando ela fala em matar os Harkonnen.
Então ele ouviu, ela pensou. As lágrimas turvaram-lhe os
olhos.
– O que você não fez – Paul continuou – foi se lembrar do
que aprendeu no fosso de escravos dos Harkonnen. Você diz
ter orgulho da amizade com meu pai! Não aprendeu a diferença
entre os Harkonnen e os Atreides para saber farejar um truque
dos Harkonnen só pelo fedor que deixam em tudo o que
tocam? Não aprendeu que a lealdade aos Atreides é comprada
com amor, ao passo que a moeda dos Harkonnen é o ódio? Não
enxergou a verdadeira natureza dessa traição?
– Mas Yueh? – resmungou Gurney.
– A prova que temos é o bilhete em que o próprio Yueh
admite a traição – disse Paul. – Juro pelo amor que tenho por
você, um amor que ainda terei depois de deixá-lo morto no
chão.
Ouvindo o filho, Jéssica admirou-se com a perceptividade
do rapaz, o discernimento penetrante de sua inteligência.
– Meu pai sabia escolher os amigos instintivamente – disse
Paul. – Era comedido ao oferecer seu amor, mas nunca errava.
Sua fraqueza era não entender o ódio. Pensava que qualquer
um que odiasse os Harkonnen seria incapaz de traí-lo. – Olhou
para a mãe. – Ela sabe disso. Entreguei-lhe a mensagem de meu
pai, na qual ele dizia nunca ter deixado de confiar nela.
Jéssica sentiu que começava a perder o controle e mordeu
o lábio inferior. Vendo a formalidade rígida de Paul, ela
percebeu quanto lhe custavam aquelas palavras. Queria correr
para ele, aconchegar a cabeça do filho junto ao peito como
nunca fizera antes. Mas o braço em sua garganta não tremia
mais; a ponta da faca em suas costas fazia pressão, firme e
afiada.
– Um dos momentos mais terríveis na vida de um menino –
disse Paul – é descobrir que seu pai e sua mãe são seres
humanos que dividem um amor que ele nunca conhecerá. É
uma perda, um despertar para o fato de que o mundo está ali e
aqui, e estamos nele, sozinhos. Esse momento traz sua própria
verdade: é impossível fugir dela. Ouvi meu pai falar de minha
mãe. Ela não é a traidora, Gurney.
Jéssica recuperou a voz e disse:
– Gurney, solte-me.
Não havia nenhuma ordem especial nas palavras, nenhum
truque que explorasse as fraquezas dele, mas a mão de Gurney
cedeu. Jéssica foi até Paul, colocou-se diante dele, sem tocá-lo.
– Paul – ela falou –, existem outros despertares neste
universo. De repente, vejo como usei, distorci e manipulei você
para colocá-lo num caminho escolhido por mim... um caminho
que fui obrigada a escolher, se isso servir de desculpa, em
virtude de meu próprio treinamento. – Com um nó na garganta,
ela se esforçou para engolir saliva, olhou o filho nos olhos. –
Paul... quero que faça uma coisa por mim: escolha o caminho de
sua felicidade. Sua mulher do deserto: case-se com ela, se for
essa sua vontade. Desafie tudo e todos para fazer isso. Mas
escolha seu próprio caminho. Eu...
Ela foi interrompida por um resmungo baixo atrás dela.
Gurney!
Viu que os olhos de Paul se dirigiam para um ponto atrás
dela e virou-se.
Gurney estava no mesmo lugar, mas havia embainhado sua
faca e removido o manto de cima do peito, expondo o cinza
lustroso de um trajestilador, o tipo que os contrabandistas
compravam nos sietch populosos.
– Crave sua faca bem aqui em meu peito – murmurou
Gurney. – Mate-me e acabe logo com isso. Manchei meu nome.
Traí meu próprio duque! O melhor...
– Quieto! – ordenou Paul.
Gurney o encarou.
– Feche o manto e pare de fazer papel de bobo – disse Paul.
– Já aguentei bobagens demais por um dia.
– Mate-me, estou mandando! – vociferou Gurney.
– Sabe que eu não faria isso – disse Paul. – De quantas
maneiras diferentes você me julga um idiota? Terei de passar
por isso com cada homem de quem precisar?
Gurney olhou para Jéssica, falou num tom desesperado e
súplice que não era de seu feitio.
– Então, milady, por favor... mate-me.
Jéssica foi até ele, colocou as mãos sobre os ombros do
homem.
– Gurney, por que insiste em pedir aos Atreides que
matem aqueles a quem amam? – Delicadamente, ela tirou-lhe o
manto desfraldado das mãos, fechou e abotoou o tecido sobre
o peito dele.
Gurney falou, com a voz entrecortada:
– Mas... eu...
– Você pensou estar fazendo algo por Leto – ela disse –, e
por isso eu o respeito.
– Milady – fez Gurney. Deixou o queixo bater no peito,
cerrou as pálpebras para conter as lágrimas.
– Pensemos nisto como um mal-entendido entre velhos
amigos – ela disse, e Paul percebeu os tranquilizadores, os tons
conciliadores na voz da mãe. – Já passou e podemos nos sentir
gratos, porque nunca mais haverá outro mal-entendido como
esse entre nós.
Gurney abriu os olhos brilhantes e úmidos, olhou para ela.
– O Gurney Halleck que conheci era um homem hábil tanto
com a faca quanto com o baliset – disse Jéssica. – Era o homem
do baliset quem eu mais admirava. Esse Gurney Halleck por
acaso não recorda como eu gostava de ouvi-lo tocar para mim,
durante horas e horas? Ainda tem um baliset, Gurney?
– Tenho um novo – respondeu Gurney. – Mandei trazer de
Chusuk, um instrumento mavioso. Toca como se fosse um
autêntico varota, apesar de não haver nele uma assinatura.
Creio ter sido feito por um aluno de Varota que... –
Interrompeu-se. – O que posso lhe dizer, milady? Estamos aqui,
jogando conversa fora...
– Fora, não, Gurney – disse Paul. Colocou-se ao lado da
mãe e olhou nos olhos de Gurney. – Não é jogar conversar fora,
e sim uma coisa que, entre amigos, traz alegria. Eu tomaria
como uma gentileza sua se tocasse para ela neste momento. Os
planos de batalha podem esperar um pouco. De qualquer
maneira, não entraremos em combate antes de amanhã.
– Eu... vou pegar meu baliset – cedeu Gurney. – Está ali no
corredor. – Passou por eles e saiu pelas cortinas.
Paul tocou o braço da mãe e descobriu que ela tremia.
– Acabou, mãe – disse.
Sem mexer a cabeça, ela olhou para ele com o canto dos
olhos.
– Acabou?
– Claro. Gurney está...
– Gurney? Ah... sim. – Ela baixou o olhar.
As cortinas farfalharam com o retorno de Gurney, munido
do baliset. Ele começou a afinar o instrumento, evitando os
olhos dos outros dois. As cortinas nas paredes abafavam os
ecos, fazendo o baliset soar fraco e íntimo.
Paul levou a mãe até uma almofada e a fez se sentar ali,
com as costas para as tapeçarias espessas da parede. Ocorreu-
lhe, de repente, como ela parecia envelhecida, com as
primeiras rugas ressecadas pelo deserto que começavam a
surgir em seu rosto, a pele esticada nos cantos dos olhos
velados de azul.
Está cansada, ele pensou. Temos de dar um jeito para
aliviar seu fardo.
Gurney dedilhou uma corda.
Paul olhou para ele e disse:
– Tenho... de cuidar de algumas coisas. Espere por mim
aqui.
Gurney assentiu. Sua mente parecia distante, como se,
naquele momento, estivesse sob o céu límpido de Caladan, com
flocos de nuvens no horizonte a prometer chuva.
Paul obrigou-se a dar as costas aos dois, saiu pelas
cortinas pesadas que encimavam a passagem lateral. Escutou
Gurney, lá atrás, dar início a uma canção, e deteve-se um
instante fora do aposento para ouvir a música em surdina.

“Pomares e vinhedos,
E huris de seios fartos,
E uma taça a transbordar diante de mim.
Por que falo de batalhas
E montes a pó reduzidos?
Por que as lágrimas não secam?

Eis que os céus se abrem


E sua fartura derramam;
Basta estender as mãos e recolher riquezas.
Por que só penso em ciladas,
Venenos em taças fundidas?
Por que tanto os anos me pesam?

Acenam-me os braços do amor


Com seus prazeres desnudos,
E as promessas edênicas de êxtase.
Por que relembro cicatrizes,
E sonho com velhos pecados?
Por que os medos meu sono velam?”

Um mensageiro Fedaykin envolto num manto surgiu num


canto da passagem à frente de Paul. O homem trazia o capuz
atirado para trás e as presilhas do trajestilador pendiam-lhe do
pescoço, prova de que acabara de chegar do deserto aberto.
Paul fez sinal para que ele parasse, afastou-se das cortinas
que serviam de porta e percorreu a passagem até o
mensageiro.
O homem se inclinou, com as mãos unidas diante dele,
como se cumprimentasse uma Reverenda Madre ou uma
Sayyadina dos ritos. Disse:
– Muad’Dib, os líderes estão começando a chegar para a
reunião do conselho.
– Tão rápido?
– São os que Stilgar mandou chamar antes, quando
pensávamos que... – Ele deu de ombros.
– Entendi. – Paul olhou para trás, na direção do som fraco
do baliset, pensando na velha canção, a preferida de sua mãe:
uma estranha tensão entre a melodia alegre e as palavras
tristes. – Stilgar logo estará aqui com os demais. Mostre-lhes
onde minha mãe os espera.
– Aguardarei aqui, Muad’Dib – disse o mensageiro.
– Sim... sim, faça isso.
Paul passou pelo homem e dirigiu-se às profundezas da
caverna, para aquele lugar presente em todas as cavernas, um
ponto perto do tanque de água. Haveria ali um pequeno shai-
hulud, uma criatura com não mais de nove metros de
comprimento, que era mantida ali, mirrada pelo crescimento
tolhido, aprisionada entre valas cheias de água. O criador,
depois de emergir de seu vetor, o criadorzinho, evitava a água
que, para ele, era um veneno. E o afogamento de um criador era
o maior segredo dos fremen, porque produzia a substância que
os unia: a Água da Vida, o veneno que somente uma Reverenda
Madre conseguiria transformar.
Paul tomara a decisão ao confrontar a situação tensa de
ver a mãe ameaçada. Nenhuma das linhas do futuro que ele já
tivesse visto transportava aquele momento de perigo
provocado por Gurney Halleck. O futuro – o futuro cinzento e
nublado – e a sensação concomitante de que o universo inteiro
corria em direção a um nexo efervescente pairavam ao redor
de Paul feito um mundo fantasmagórico.
Preciso ver isso, pensou.
Seu corpo havia adquirido, aos poucos, uma certa
tolerância à especiaria que tornara as visões prescientes cada
vez menos frequentes... e mais obscuras. A solução lhe parecia
óbvia.
Tenho de afogar o criador. Veremos agora se sou o Kwisatz
Haderach, capaz de sobreviver ao teste ao qual as Reverendas
Madres sobrevivem.
E aconteceu, no terceiro ano da Guerra
do Deserto, que Paul Muad’Dib estivesse
deitado, sozinho, na Caverna dos
Pássaros, sob as cortinas kiswa de uma
alcova. E estava como morto, enredado na
revelação da Água da Vida, e seu ser era
transportado para além das fronteiras do
tempo pelo veneno que concedia a vida. E
assim cumpriu-se a profecia de que a
Lisan al-Gaib poderia estar, ao mesmo
tempo, viva e morta.
– “Lendas reunidas de Arrakis”, da princesa Irulan

Chani emergiu do fundo da bacia de Habannya na


escuridão que antecedia o amanhecer, escutando o tóptero que
a trouxera do Sul partir zumbindo rumo a um esconderijo
naquela imensidão. À sua volta, a escolta mantinha distância,
dispersando-se por entre as pedras da colina em busca de
perigos, e para dar à companheira e mãe do primogênito de
Muad’Dib aquilo que ela havia pedido: um instante para
caminhar sozinha.
Por que ele me chamou?, ela se perguntou. Antes me
mandou ficar no Sul com o pequeno Leto e Alia.
Recolheu a barra do manto e saltou agilmente por cima de
um matacão, e dali para a trilha ascendente que só aqueles que
foram treinados para lidar com o deserto saberiam reconhecer
no escuro. Os seixos escorregavam sob seus pés, e ela passava
saltitando por eles, sem se deter para pensar na destreza que
aquilo exigia.
A subida foi estimulante e aplacou os temores que
cresciam dentro dela por causa do mudo retraimento de sua
escolta e do fato de que haviam mandado um precioso tóptero
buscá-la. Alegrou-se por estar tão próximo o momento de
reencontrar Paul Muad’Dib, seu Usul. O nome dele podia ser
um grito de guerra em todo o planeta: “Muad’Dib! Muad’Dib!
Muad’Dib!”. Mas ela conhecia um homem diferente por um
nome diferente: o pai de seu filho, o amante carinhoso.
Um vulto enorme assomou nas pedras acima de Chani,
fazendo sinal para que ela se apressasse. Ela apertou o passo.
Os pássaros da alvorada já estavam piando e alçando voo. Uma
luz fraca começava a se espalhar pelo horizonte oriental. O
vulto lá em cima não era ninguém que pertencesse a sua
escolta. Otheym?, ela se perguntou, notando uma certa
familiaridade nos modos e movimentos do homem. Foi até ele e
reconheceu, à luz incipiente, o rosto largo e achatado do
tenente dos Fedaykin, que trazia o gorro aberto e o filtro bucal
meio frouxo, como às vezes se fazia durante breves passeios
pelo deserto.
– Depressa – ele sussurrou, seguindo à frente dela pela
fenda secreta que levava à caverna oculta. – Logo será dia – ele
disse baixinho ao abrir um veda-portas para deixá-la passar. –
Os Harkonnen estão desesperados e cometeram a
imprudência de mandar patrulhar parte desta região. Não
queremos correr o risco de sermos descobertos agora.
Saíram na entrada do estreito corredor lateral que levava à
Caverna dos Pássaros. Os luciglobos se acenderam. Otheym
passou por Chani e disse:
– Siga-me. Rápido.
Correram pela passagem, atravessaram mais uma porta-
válvula, uma outra passagem e as cortinas que davam entrada
ao que antes havia sido a alcova da Sayyadina, quando a
caverna era apenas um lugar de descanso onde passar o dia.
Agora, tapetes e almofadas cobriam o chão. Tapeçarias com a
figura do gavião vermelho escondiam as paredes de pedra. De
um lado, uma mesa de campanha baixa estava abarrotada de
papéis que exalavam o aroma característico de sua matéria-
prima, a especiaria.
A Reverenda Madre estava sentada ali, sozinha, bem de
frente para a entrada. Ela ergueu os olhos e lançou aquele olhar
introspectivo que fazia estremecer os não iniciados.
Otheym uniu as mãos e disse:
– Trouxe-lhe Chani. – Fez uma reverência e saiu,
atravessando as cortinas.
E Jéssica pensou: Como contar isso a Chani?
– Como está meu neto? – perguntou Jéssica.
Então é para ser a saudação formal, pensou Chani, e seus
receios retornaram. Onde está Muad’Dib? Por que ele não veio
me receber?
– Tem saúde e é feliz, minha mãe – respondeu Chani. –
Deixei-o com Alia, sob os cuidados de Harah.
Minha mãe, Jéssica pensou. Sim, ela tem o direito de me
chamar assim na saudação formal. Ela me deu um neto.
– Ouvi dizer que o Sietch Coanua mandou uma peça de
tecido como presente – disse Jéssica.
– É um tecido adorável – confirmou Chani.
– Alia mandou algum recado?
– Nenhum. Mas o sietch anda mais tranquilo agora que as
pessoas estão começando a aceitar o milagre que é a condição
dela.
Por que ela está me enrolando?, perguntou-se Chani. A
urgência era tanta que mandaram um tóptero me buscar. E
agora nos arrastamos com as formalidades!
– Temos de mandar cortar uma parte do tecido para fazer
roupas para o pequeno Leto – disse Jéssica.
– Como quiser, minha mãe – aquiesceu Chani. Baixou o
olhar. – Alguma notícia das batalhas? – Manteve o rosto
impassível, para que Jéssica não percebesse que, na verdade, a
pergunta dizia respeito a Paul Muad’Dib.
– Novas vitórias – disse Jéssica. – Rabban nos enviou
ofertas cautelosas de trégua. Os mensageiros foram mandados
de volta sem sua água. Rabban chegou a aliviar os encargos de
algumas vilas nas pias. Mas é tarde demais. O povo sabe que ele
faz isso porque tem medo de nós.
– Então as coisas estão correndo como previu Muad’Dib –
falou Chani. Olhou para Jéssica, tentando guardar seus
temores para si. Mencionei o nome dele, mas ela não respondeu.
Não se vê nenhuma emoção nessa rocha envernizada que ela
chama de rosto... mas ela está rígida demais. Por que está tão
quieta? O que aconteceu a meu Usul?
– Queria que estivéssemos no Sul – disse Jéssica. – Os
oásis estavam tão lindos quando partimos. Você não anseia
pelo dia em que toda a terra irá se cobrir de flores, exatamente
assim?
– A terra é linda, verdade – concordou Chani. – Mas
encerra muita dor.
– A dor é o preço da vitória – disse Jéssica.
Será que ela está me preparando para a dor?, Chani se
perguntou. Disse:
– São tantas as mulheres sem homens. Ficaram
enciumadas ao saber que haviam mandado me chamar aqui no
Norte.
– Eu mandei que a chamassem – informou Jéssica.
Chani sentiu seu coração bater com força. Queria tapar os
ouvidos com as mãos, receosa do que poderiam escutar.
Mesmo assim, ela manteve a voz firme:
– A mensagem era assinada por Muad’Dib.
– Eu a assinei desse modo diante dos lugares-tenentes de
meu filho – explicou Jéssica. – Foi um ardil da necessidade. – E
Jéssica pensou: É valente a mulher do meu Paul. Ela se atém ao
protocolo, mesmo estando quase dominada pelo medo. Sim.
Talvez ela seja justamente de quem precisamos agora.
Apenas um levíssimo tom de resignação se insinuou na voz
de Chani quando ela disse:
– Agora pode me dizer o que precisa ser dito.
– Você era necessária aqui para me ajudar a reanimar Paul
– disse Jéssica. E pensou: Pronto! Falei da maneira correta.
Reanimar. Assim ela saberá que Paul está vivo, mas corre
perigo, tudo numa palavra só.
Chani precisou apenas de um momento para se acalmar, e
então:
– O que é que posso fazer? – Ela queria pular em cima de
Jéssica, sacudi-la e gritar: “Leve-me até ele!”. Mas esperou a
resposta, em silêncio.
– Desconfio – disse Jéssica – que os Harkonnen tenham
dado um jeito de infiltrar um agente entre nós para envenenar
Paul. É a única explicação que parece adequada. Um veneno
dos mais incomuns. Examinei-lhe o sangue com os métodos
mais sofisticados e não o detectei.
Chani atirou-se para a frente e caiu de joelhos.
– Veneno? Ele está sofrendo? Posso...
– Está inconsciente – explicou Jéssica. – As funções vitais
estão em níveis tão baixos que só podem ser detectadas com as
técnicas mais refinadas. Estremeço só de pensar no que
poderia ter acontecido se não tivesse sido eu a primeira a
encontrá-lo. Para o olhar não treinado, ele parece morto.
– Tem outros motivos, além da cortesia, para ter me
chamado – disse Chani. – Eu a conheço, Reverenda Madre. O
que acha que eu posso fazer que a senhora não tenha
conseguido?
Ela é corajosa, adorável e, aah, tão perceptiva, pensou
Jéssica. Teria dado uma ótima Bene Gesserit.
– Chani – disse Jéssica –, pode achar isso difícil de
acreditar, mas não sei exatamente por que mandei chamá-la.
Foi instinto... uma intuição básica. O pensamento me ocorreu
espontaneamente: “Mande chamar Chani...”.
Pela primeira vez, Chani viu a tristeza na expressão de
Jéssica, a dor desvelada que modificava seu olhar
introspectivo.
– Fiz tudo o que sabia fazer – contou Jéssica. – E esse
tudo... vai tão além do que geralmente se entende por tudo, que
você teria dificuldade para imaginá-lo. Mesmo assim...
fracassei.
– O velho companheiro, Halleck – perguntou Chani –, é
possível que seja um traidor?
– Não o Gurney – disse Jéssica.
As três palavras foram uma conversa inteira, e Chani viu a
busca, os exames... as lembranças de antigos fracassos que
faziam parte daquela negativa categórica.
Chani oscilou para trás, voltando a apoiar-se sobre os pés;
levantou-se, alisou o manto manchado pelo deserto.
– Leve-me até ele – disse.
Jéssica se ergueu, virou-se e atravessou as cortinas da
parede à esquerda.
Chani a seguiu, viu-se no que antes havia sido um depósito,
com as paredes de pedra agora escondidas sob cortinas
pesadas. Paul estava deitado sobre um coxim de campanha
encostado à parede mais distante. Acima dele, um único
luciglobo iluminava-lhe o rosto. Um manto negro o cobria até o
peito, deixando seus braços livres, esticados ao lado do corpo.
Parecia estar despido sob o manto. A pele exposta parecia
rígida, feita de cera. Não produzia nenhum movimento
discernível.
Chani reprimiu o desejo de se adiantar e atirar-se sobre
ele. Em vez disso, descobriu que seus pensamentos voltavam-
se para seu filho, Leto. E percebeu, naquele instante, que
Jéssica havia passado por aquilo um dia: seu homem ameaçado
pela morte, e ela obrigada, em sua própria mente, a considerar
o que se poderia fazer para salvar um filho jovem. Essa
consciência formou um laço repentino com a mulher mais
velha, e Chani estendeu a mão para segurar a de Jéssica. A
força com que a mãe de Paul retribuiu o gesto era dolorosa.
– Está vivo – disse Jéssica. – Asseguro-lhe que está vivo.
Mas o fio de sua vida é tão fino que facilmente deixaria de ser
detectado. Alguns líderes já estão cochichando que é a mãe
quem fala, e não a Reverenda Madre, que meu filho está de fato
morto e que não quero entregar sua água à tribo.
– Há quanto tempo ele está assim? – perguntou Chani.
Soltou a mão de Jéssica e avançou quarto adentro.
– Três semanas – respondeu Jéssica. – Passei quase uma
semana tentando reanimá-lo. Foram reuniões, discussões...
investigações. Então mandei chamar você. Os Fedaykin me
obedecem; não fosse isso, não teria conseguido adiar a… –
Umedeceu os lábios com a língua, observando Chani se
aproximar de Paul.
Chani agora estava de pé ao lado dele, olhando de cima
para a barba macia da juventude que lhe emoldurava o rosto,
traçando com os olhos a linha alta das sobrancelhas, o nariz
pronunciado, as pálpebras cerradas: o semblante tão tranquilo
na rigidez do repouso.
– Como ele vem se alimentando? – perguntou Chani.
– As necessidades de seu corpo são tão insignificantes que
ele ainda não precisa de comida – disse Jéssica.
– Quantas pessoas sabem o que aconteceu? – perguntou
Chani.
– Somente os conselheiros mais chegados, alguns líderes,
os Fedaykin e, claro, seja quem for que administrou o veneno.
– Nenhuma pista quanto ao envenenador?
– E não é por falta de investigação – disse Jéssica.
– O que dizem os Fedaykin? – perguntou Chani.
– Acreditam que Paul esteja num transe sagrado, reunindo
seus santos poderes antes das batalhas finais. É uma ideia que
venho estimulando.
Chani ajoelhou-se ao lado do coxim, inclinou-se, bem perto
do rosto de Paul. Sentiu imediatamente uma diferença no ar
perto da face dele... mas era só a especiaria, a ubiquidade cujo
odor impregnava toda a vida dos fremen. Ainda assim...
– Vocês não são filhos da especiaria, como nós – disse
Chani. – Chegou a investigar a possibilidade de que o corpo
dele tenha se rebelado contra o excesso de especiaria na dieta?
– Todas as reações alérgicas foram negativas – disse
Jéssica.
Ela fechou os olhos, tanto para apagar aquela cena quanto
por ter percebido, de repente, como estava cansada. Há quanto
tempo estou sem dormir?, ela se perguntou. Há tempo demais.
– Ao se transformar a Água da Vida – falou Chani –, faz-se
isso dentro do corpo, com a percepção interior. Usou essa
percepção para examinar o sangue dele?
– Sangue normal de fremen – confirmou Jéssica. –
Completamente adaptado à dieta e à vida daqui.
Chani sentou-se sobre os calcanhares, submergindo seus
temores na contemplação ao estudar o rosto de Paul. Era um
truque que tinha aprendido de tanto observar as Reverendas
Madres. Era possível obrigar o tempo a se submeter à mente.
Concentrava-se toda a atenção.
Sem demora, Chani disse:
– Temos um criador aqui?
– Temos vários – respondeu Jéssica, com um quê de
fadiga. – Nunca passamos sem eles nos dias de hoje. Cada
vitória exige uma bênção. Cada cerimônia antes de um ataque...
– Mas Paul Muad’Dib não participa dessas cerimônias –
disse Chani.
Jéssica fez que sim, lembrando-se dos sentimentos
ambivalentes do filho em relação à droga feita de especiaria e à
percepção presciente que ela provocava.
– Como sabe disso? – perguntou Jéssica.
– As pessoas falam.
– As pessoas falam demais – Jéssica completou, com
amargura.
– Traga-me a Água do criador em estado natural – disse
Chani.
Jéssica se empertigou ao ouvir o tom autoritário na voz de
Chani, depois observou a concentração intensa da mulher mais
jovem e disse:
– É para já.
Ela saiu pelas cortinas e mandou chamar um hidromestre.
Chani continuou sentada, fitando Paul. Se ele tiver tentado
isso..., ela pensou. E é o tipo de coisa que ele talvez tentasse...
Jéssica ajoelhou-se ao lado de Chani, segurando um
modesto jarro de campanha. O cheiro forte do veneno fez
arderem as narinas de Chani. Ela mergulhou um dedo no
líquido e levou-o para bem perto do nariz de Paul.
A pele do nariz sofreu um leve enrugamento. As narinas se
dilataram lentamente.
Jéssica sufocou um grito.
Chani, com o dedo molhado, tocou o lábio superior de Paul.
Ele inspirou demorada e entrecortadamente.
– O que significa isso? – quis saber Jéssica.
– Calma – pediu Chani. – Precisa converter uma pequena
quantidade da água sagrada. Rápido!
Sem questionar, pois havia reconhecido na voz de Chani o
tom de alguém que sabia o que estava fazendo, Jéssica levou o
jarro à boca e sorveu um pequeno gole.
Os olhos de Paul se abriram de repente. Ele fitou Chani.
– Ela não precisa transformar a Água – disse. Sua voz saiu
fraca, mas firme.
Jéssica, com um pouco do líquido sobre a língua, sentiu
seu corpo se mobilizar para converter o veneno quase
automaticamente. Na ligeira exaltação que a cerimônia sempre
proporcionava, ela percebeu o brilho vital que Paul emanava,
uma radiação que ficou registrada nos sentidos dela.
Naquele instante, ela compreendeu.
– Você bebeu a água sagrada! – ela deixou escapar.
– Só uma gota – disse Paul. – Tão pequena... uma gota.
– Como é que pôde fazer uma coisa tão idiota? – ela
indagou.
– Ele é seu filho – disse Chani.
Jéssica lançou-lhe um olhar feroz.
Um sorriso raro, afetuoso e compreensivo roçou os lábios
de Paul.
– Ouça a minha querida – ele falou. – Escute o que ela diz,
mãe. Ela sabe.
– Se outras pessoas são capazes de fazer uma coisa, ele
tem de fazer essa coisa – explicou Chani.
– Com a gota em minha boca, quando senti seu contato e
seu cheiro, quando entendi o que fazia comigo, entendi que era
capaz de fazer a mesma coisa que você fez – ele disse. – Suas
censoras Bene Gesserit falam do Kwisatz Haderach, mas
sequer imaginam os diversos lugares por onde andei. Nos
poucos minutos em que eu... – Não completou a frase, olhando
para Chani com uma carranca confusa. – Chani? Como foi que
chegou aqui? Você deveria estar... Por que está aqui?
Ele tentou se apoiar nos cotovelos. Chani o empurrou
delicadamente para trás.
– Por favor, meu Usul – ela pediu.
– Sinto-me tão fraco – ele disse. Seu olhar percorreu a sala.
– Há quanto tempo estou aqui?
– Você esteve três semanas num coma tão profundo que a
centelha da vida parecia ter partido – contou Jéssica.
– Mas foi... eu tomei a Água um segundo atrás e...
– Um segundo para você, três semanas de medo para mim
– disse Jéssica.
– Foi só uma gota, mas eu a converti – disse Paul. –
Transformei a Água da Vida.
E antes que Chani ou Jéssica conseguissem detê-lo, ele
enfiou a mão no jarro que haviam deixado no chão, ao lado dele;
levou a mão ensopada à boca e engoliu o líquido contido na
palma em concha.
– Paul! – gritou Jéssica.
Ele segurou a mão da mãe, encarou-a com um sorriso
descarnado e inundou-a com sua percepção.
A conexão não era tão terna, recíproca e abrangente como
havia sido com Alia e a velha Reverenda Madre na caverna...
mas era uma conexão: os sentidos compartilhados da
totalidade do ser. Isso a abalou e enfraqueceu, e ela se encolheu
em sua mente, com medo dele.
Em voz alta, ele disse:
– Vocês falam de um lugar onde não podem entrar? Esse
lugar que as Reverendas Madres não conseguem confrontar,
mostre-o para mim.
Ela sacudiu a cabeça, aterrorizada diante dessa ideia.
– Mostre-o! – ele mandou.
– Não!
Mas não havia como fugir dele. Intimidada pela força
terrível do filho, ela fechou os olhos e focalizou seu interior: a
direção-que-é-treva.
A consciência de Paul a atravessou e contornou, entrando
na escuridão. Ela vislumbrou vagamente o lugar, antes de sua
mente se apagar, fugindo do horror. Sem saber por quê, todo o
seu ser tremia diante do que tinha visto: uma região onde o
vento soprava e as centelhas fulguravam, onde anéis de luz se
expandiam e contraíam, onde fileiras de formas brancas e
túmidas passavam por cima, por baixo e em volta das luzes,
impelidas pela treva e por um vento vindo do nada.
No mesmo instante, ela abriu os olhos, viu que Paul a
observava. Ele ainda segurava a mão dela, mas a conexão
terrível havia desaparecido. Ela apaziguou seus tremores. Paul
soltou a mão dela. Foi como se removessem uma muleta. Ela
ficou de pé, sem muita firmeza, e cambaleou para trás. Teria
caído se Chani não tivesse se levantado num salto para
ampará-la.
– Reverenda Madre! – exclamou Chani. – O que há de
errado?
– Cansada – Jéssica sussurrou. – Tão... cansada.
– Aqui – disse Chani. – Sente-se aqui. – Ela ajudou Jéssica a
se sentar numa almofada encostada à parede.
O contato daqueles braços jovens e fortes pareceu tão
bom a Jéssica. Ela se agarrou a Chani.
– Ele realmente viu a Água da Vida? – Chani perguntou.
Desvencilhou-se de Jéssica.
– Viu – Jéssica sussurrou. Sua mente ainda estava em
turbilhão devido àquele contato. Era como pisar em terra firme
depois de semanas em mar agitado. Sentiu a velha Reverenda
Madre dentro de si... e todas as outras, despertas e intrigadas:
“O que foi isso? O que aconteceu? Onde ficava aquele lugar?”.
Entremeada àquilo tudo estava a percepção de que seu
filho era o Kwisatz Haderach, o homem capaz de estar em
muitos lugares ao mesmo tempo. Ele era o fato nascido do
sonho das Bene Gesserit. E o fato não a deixava tranquila.
– O que aconteceu? – quis saber Chani.
Jéssica chacoalhou a cabeça.
Paul disse:
– Há, em cada um de nós, uma força ancestral que tira e
uma força ancestral que dá. Um homem não vê dificuldade em
confrontar aquele lugar dentro de si mesmo onde vive a força
que tira, mas, para ele, é quase impossível enxergar a força que
dá sem se transformar em algo diferente de um homem. Para
uma mulher, é a situação contrária.
Jéssica ergueu os olhos, viu que Chani olhava para ela
enquanto ouvia Paul.
– Está me entendendo, mãe? – perguntou Paul.
Ela só conseguiu assentir com a cabeça.
– Essas coisas estão há tanto tempo dentro de nós – disse
Paul –, que se arraigaram a cada célula de nossos corpos.
Somos moldados por essas forças. Podemos dizer a nós
mesmos: “Sim, entendo como algo assim pode existir”. Mas,
quando olhamos para dentro e confrontamos a força bruta de
nossa própria vida, sem proteção, vemos o perigo que
corremos. Vemos que isso poderia nos esmagar. O maior
perigo para aquela que Dá é a força que tira. O maior perigo
para aquele que Tira é a força que dá. É tão fácil ser esmagado
tanto pelo dar quanto pelo tirar.
– E você, meu filho – perguntou Jéssica –, você dá ou tira?
– Eu sou o fulcro – ele disse. – Não posso dar sem tirar e
não posso tirar sem... – Interrompeu o que ia dizendo e olhou
para a parede a sua direita.
Chani sentiu uma corrente de ar; virou-se a tempo de ver
as cortinas se fecharem.
– Era Otheym – disse Paul. – Ele estava escutando.
Aceitando as palavras, Chani viu-se em contato com um
pouco da presciência que assombrava Paul e ficou sabendo de
algo que ainda viria a ser como se já tivesse acontecido.
Otheym contaria o que tinha visto e ouvido. Os outros
espalhariam a história, até que a terra se incendiasse. Paul
Muad’Dib não é como os outros homens, eles diriam. Não resta
dúvida. Ele é um homem, mas enxerga a Água da Vida, assim
como fazem as Reverendas Madres. Ele é, de fato, a Lisan al-
Gaib.
– Você viu o futuro, Paul – disse Jéssica. – Quer nos contar
o que viu?
– Não o futuro – ele disse. – Vi o Agora. – Fez força para se
sentar e, com um aceno da mão, afastou Chani, que fizera
menção de ajudá-lo. – O Espaço acima de Arrakis está tomado
pelas naves da Guilda.
Jéssica estremeceu diante da certeza na voz dele.
– O próprio imperador padixá está aqui – disse Paul. Olhou
para o teto de pedra de sua alcova. – Com sua Proclamadora da
Verdade favorita e cinco legiões de Sardaukar. Estão aqui o
velho barão Vladimir Harkonnen, com Thufir Hawat a seu lado,
e sete naves abarrotadas com todos os soldados que ele
conseguiu alistar. Todas as Casas Maiores estão com suas
tropas de assalto lá em cima... esperando.
Chani sacudiu a cabeça, incapaz de tirar os olhos de Paul.
A estranheza dele, a monotonia da voz, a maneira como ele
olhava através dela encheram-na de espanto.
Jéssica tentou engolir saliva, mas sua garganta estava
seca. Disse:
– O que estão esperando?
Paul olhou para a mãe.
– A permissão da Guilda para pousar. A Guilda
abandonará em Arrakis todas as forças que aterrissarem sem
permissão.
– A Guilda está nos protegendo? – perguntou Jéssica.
– Nos protegendo! A própria Guilda provocou isso,
espalhando histórias sobre o que fazemos aqui e reduzindo a
tal ponto as tarifas do transporte de tropas que até mesmo as
Casas mais pobres estão lá em cima agora, esperando para nos
saquear.
Jéssica notou a ausência de rancor na voz dele e ficou
admirada. Não havia por que duvidar de suas palavras: tinham
aquela mesma veemência que ela notara no filho na noite em
que ele havia revelado a senda futura que os levaria a viver
entre os fremen.
Paul inspirou fundo e disse:
– Mãe, você tem de transformar um pouco da Água para
nós. Precisamos do catalisador. Chani, mande uma equipe de
batedores lá para fora... para procurar uma massa pré-
especiaria. Se semearmos um pouco da Água da Vida acima de
uma massa pré-especiaria, sabem o que acontecerá?
Jéssica ponderou as palavras dele e, de repente, entendeu
o que ele queria dizer.
– Paul! – exclamou, com a voz entrecortada.
– A Água da Morte – ele disse. – Seria uma reação em
cadeia. – Apontou o chão. – Espalharia a morte entre os
criadorezinhos, matando um vetor do ciclo de vida que
abrange a especiaria e os criadores. Arrakis irá se tornar uma
verdadeira desolação: sem a especiaria, sem os criadores.
Chani levou a mão à boca, chocada, atônita e sem palavras
diante da blasfêmia que saía dos lábios de Paul.
– Aquele que tem como destruir uma coisa é quem
realmente a controla – disse Paul. – Nós temos como destruir a
especiaria.
– O que está segurando a Guilda? – sussurrou Jéssica.
– Estão a minha procura – respondeu Paul. – Pense nisso!
Os melhores navegadores da Guilda, homens capazes de
sondar o futuro e buscar o trajeto mais seguro para os
paquetes mais velozes, todos eles procurando por mim... e sem
conseguirem me encontrar. Como tremem! Sabem que tenho o
segredo deles aqui! – Paul ergueu a mão em concha. – Sem a
especiaria, estão cegos!
Chani encontrou sua voz.
– Você disse que vê o agora!
Paul voltou a se deitar, vasculhando o presente estendido,
cujos limites entravam pelo futuro e pelo passado, agarrando-
se à percepção com dificuldade, pois a iluminação da especiaria
começava a se apagar.
– Vá fazer o que mandei – ele disse. – O futuro está ficando
tão turvo para a Guilda quanto para mim. As linhas de visão
estão se estreitando. Tudo se concentra aqui, onde está a
especiaria... onde nunca ousaram intervir antes... porque
intervir seria perder o que precisavam ter. Mas agora estão
desesperados. Todas as sendas levam às trevas.
E chegou o dia em que Arrakis se viu no
eixo do universo, com a roda pronta para
girar.
– excerto de “Despertar de Arrakis”, da princesa Irulan

– Olhe só para aquela coisa! – sussurrou Stilgar.


Paul estava ao lado dele, dentro de uma fenda na rocha, no
alto da Muralha-Escudo, com um dos olhos fixo no coletor de
um telescópio fremen. A lente de óleo focalizava um cargueiro
estelar que o amanhecer deixava a descoberto na bacia abaixo
deles. A alta fachada oriental da nave cintilava à luz horizontal
do sol, mas o lado sombreado ainda exibia portinholas
amareladas pelos luciglobos noturnos. Para além da nave, a
cidade de Arrakina jazia fria e reluzente à luz do sol
setentrional.
Paul sabia que não era o cargueiro que despertava a
admiração de Stilgar, e sim a construção para a qual o
cargueiro fazia as vezes de coluna central. Um único bivaque de
metal, com vários andares, estendia-se num círculo de mil
metros em volta da base do cargueiro – uma tenda composta
de folhas metálicas imbricadas –, o alojamento temporário de
cinco legiões de Sardaukar e de Sua Majestade Imperial, o
imperador padixá Shaddam IV.
Desde sua posição, agachado à esquerda de Paul, Gurney
Halleck disse:
– Contei nove níveis. Deve haver um bocado de Sardaukar
lá dentro.
– Cinco legiões – disse Paul.
– Está clareando – sussurrou Stilgar. – Não gostamos,
Muad’Dib, que você se exponha desta maneira. Vamos voltar
para as pedras agora.
– Estou perfeitamente seguro aqui – disse Paul.
– Aquela nave está equipada com armas de projéteis –
disse Gurney.
– Eles acreditam que estamos protegidos por escudos –
disse Paul. – Não desperdiçariam um disparo contra três
pessoas não identificadas, mesmo se nos vissem.
Paul moveu o telescópio para esquadrinhar o paredão
mais distante da bacia, vendo os penhascos esburacados, os
deslizamentos que identificavam as tumbas de tantos soldados
de seu pai. E teve a sensação passageira de que era apropriado
que os espectros daqueles homens, lá de cima, assistissem
àquele momento. Os fortes e as cidadezinhas dos Harkonnen,
nas terras resguardadas pela Muralha-Escudo, encontravam-
se em poder dos fremen, ou então isolados da fonte, feito talos
cortados de uma planta e deixados a murchar. Ao inimigo
restavam apenas aquela bacia e aquela cidade.
– Pode ser que tentem uma surtida com os tópteros – disse
Stilgar. – Se nos virem.
– Deixe que tentem – disse Paul. – Teremos tópteros para
incendiar... e sabemos que vem chegando uma tempestade.
Apontou o telescópio para o lado oposto do campo de
pouso de Arrakina, para as fragatas Harkonnen enfileiradas
ali, com um estandarte da Companhia CHOAM tremulando
suavemente no mastro fincado no chão logo abaixo delas. Paul
imaginou o desespero que havia obrigado a Guilda a permitir o
pouso daqueles dois grupos e manter todos os demais na
reserva. A Guilda era como o homem que sondava a areia com o
dedo do pé, para medir a temperatura do solo antes de erguer
uma tenda.
– Há alguma novidade que possamos ver daqui? –
perguntou Gurney. – É melhor procurarmos abrigo. A
tempestade está chegando.
Paul voltou sua atenção para o gigantesco bivaque.
– Trouxeram até mesmo suas mulheres – disse. – E lacaios
e criados. Aaah, meu caro imperador, como é confiante.
– Alguns homens estão subindo pelo caminho secreto –
disse Stilgar. – Podem ser Otheym e Korba retornando.
– Certo, Stil – disse Paul. – Vamos voltar.
Mas ele deu uma última olhada ao redor com o telescópio,
estudando a planície, com suas naves altas, o bivaque de metal
reluzente, a cidade silenciosa, as fragatas dos mercenários
Harkonnen. Em seguida, deixou-se escorregar para trás,
contornando uma escarpa rochosa. Seu lugar junto ao
telescópio foi tomado por um guarda Fedaykin.
Paul foi dar numa depressão rasa na superfície da
Muralha-Escudo. O lugar tinha uns trinta metros de diâmetro e
outros três de profundidade, uma característica natural da
rocha que os fremen tinham escondido sob uma cobertura
translúcida de camuflagem. O equipamento de comunicação se
concentrava em volta de um buraco no paredão à direita. Os
guardas Fedaykin, distribuídos por toda a depressão,
esperavam a ordem de Muad’Dib para atacar.
Dois homens saíram do buraco junto ao equipamento de
comunicação e falaram com os guardas posicionados ali.
Paul olhou para Stilgar e acenou com a cabeça na direção
dos dois homens.
– Veja o que têm a relatar, Stil.
Stilgar obedeceu.
Paul se agachou, encostado à pedra, esticou os músculos e
voltou a ficar de pé. Viu Stilgar mandar os dois homens de volta
pelo buraco escuro na rocha, pensou na longa descida por
aquele túnel estreito, escavado à mão, até a base da bacia.
Stilgar foi até Paul.
– O que era tão importante que não podiam mandar a
mensagem por ciélago? – perguntou Paul.
– Estão poupando os animais para a batalha – disse Stilgar.
Olhou de relance para o equipamento de comunicação, depois
para Paul. – Mesmo com feixes concentrados, é errado usar
essas coisas, Muad’Dib. Podem encontrar você determinando a
posição das emissões.
– Daqui a pouco estarão ocupados demais para me
procurar – disse Paul. – O que os homens informaram?
– Nossos Sardaukar de estimação foram soltos perto da
Velha Ravina, no fundo da vertente, e estão a caminho para ver
seu mestre. Os lança-foguetes e outras armas de projéteis
estão em posição. As pessoas foram distribuídas como você
mandou. Era só rotina.
Paul olhou para o outro lado da concavidade rasa,
estudando seus homens à luz filtrada que a cobertura
camuflada deixava passar. Sentiu que o tempo se arrastava,
como um inseto que atravessasse penosamente a rocha
exposta.
– A pé, nossos Sardaukar levarão um tempinho até
conseguirem mandar um sinal para um transporte de tropas –
disse Paul. – Estão sendo vigiados?
– Estão sendo vigiados – disse Stilgar.
Ao lado de Paul, Gurney Halleck limpou a garganta.
– Não é melhor irmos para um lugar seguro?
– Isso não existe – disse Paul. – A previsão do tempo ainda
é favorável?
– Vem aí a bisavó de todas as tempestades – disse Stilgar. –
Não está sentindo, Muad’Dib?
– O ar realmente parece propício – concordou Paul. – Mas
gosto da certeza do posteio meteorológico.
– A tempestade chegará aqui em menos de uma hora –
disse Stilgar. Acenou com a cabeça na direção da brecha que se
abria para o bivaque do imperador e as fragatas Harkonnen. –
Eles também sabem disso. Não há um tóptero no céu. Todos
recolhidos e amarrados no chão. Receberam a previsão do
tempo de seus amigos no espaço.
– Alguma outra surtida exploratória? – perguntou Paul.
– Nada desde o pouso de ontem à noite – disse Stilgar. –
Sabem que estamos aqui. Acho que estão esperando para
escolher a hora certa.
– Nós escolheremos a hora – disse Paul.
Gurney olhou para cima e resmungou:
– Se eles permitirem.
– Aquela frota continuará no espaço – disse Paul.
Gurney sacudiu a cabeça.
– Não têm escolha – disse Paul. – Podemos destruir a
especiaria. A Guilda não se atreve a correr esse risco.
– As pessoas desesperadas são as mais perigosas – disse
Gurney.
– E nós não estamos desesperados? – perguntou Stilgar.
Gurney olhou feio para ele.
– Você não conviveu com o sonho dos fremen – advertiu
Paul. – Stil está pensando em toda a água que gastamos com
subornos, nos anos a mais que teremos de esperar para ver
Arrakis florescer. Ele não...
– Arrrgh – fez Gurney, mal-humorado.
– Por que ele está tão tristonho? – perguntou Stilgar.
– Ele sempre fica tristonho antes de uma batalha – disse
Paul. – É a única forma de bom humor que Gurney se permite.
Um sorriso feroz e sem pressa se espalhou pelo rosto de
Gurney, mostrando os dentes brancos por cima da gola de seu
trajestilador.
– Muito me entristece pensar em todas aquelas pobres
almas Harkonnen que despacharemos sem o sacramento da
confissão – ele disse.
Stilgar riu.
– Ele fala como um Fedaykin.
– Gurney já nasceu comando suicida – disse Paul. E
pensou: Sim, é melhor que ocupem suas mentes com conversa
fiada antes de nos medirmos com essa força na planície. Olhou
para a brecha no paredão de rocha e de volta para Gurney, viu
que o guerreiro -trovador havia reassumido sua carranca mal-
humorada.
– A preocupação mina a força – murmurou Paul. – Você me
disse isso uma vez, Gurney.
– Meu duque – disse Gurney –, minha principal
preocupação são as armas atômicas. Se usá-las para abrir um
buraco na Muralha-Escudo...
– Aquelas pessoas lá em cima não irão usar armas
atômicas contra nós – disse Paul. – Não se atreveriam... e pela
mesma razão que não podem correr o risco de destruirmos a
fonte da especiaria.
– Mas a injunção contra...
– A injunção! – vociferou Paul. – É o medo, e não a injunção,
que impede as Casas de lançarem armas atômicas umas contra
as outras. A linguagem da Grande Convenção é bem clara: “O
uso de armas atômicas contra seres humanos será causa para
obliteração planetária”. Vamos explodir a Muralha-Escudo, não
seres humanos.
– A diferença é muito sutil – disse Gurney.
– Os detalhistas lá em cima aceitarão qualquer argumento
de bom grado – disse Paul. – Não falemos mais nisso.
Ele se virou, desejando que se sentisse realmente tão
confiante. Sem demora, disse:
– E os citadinos? Já estão em posição?
– Sim – murmurou Stilgar.
Paul olhou para ele.
– O que o preocupa?
– Nunca conheci um citadino no qual se pudesse confiar
completamente – disse Stilgar.
– Eu já fui um citadino – disse Paul.
Stilgar ficou rígido. Seu rosto corou com o afluxo de
sangue.
– Muad’Dib sabe que eu não quis dizer...
– Sei o que você quis dizer, Stil. Mas a prova da fibra de um
homem não é o que você pensa que ele irá fazer. É o que ele de
fato fará. Esses citadinos têm sangue fremen. Só não
descobriram ainda como escapar da escravidão. Ensinaremos
a eles.
Stilgar assentiu e falou, em tom de arrependimento:
– Hábitos de uma vida inteira, Muad’Dib. Na Planície
Fúnebre, aprendemos a desprezar os homens das
comunidades.
Paul olhou para Gurney, viu que ele estudava Stilgar.
– Conte-nos, Gurney, por que o povo da cidade lá embaixo
foi expulso de suas casas pelos Sardaukar?
– Um truque velho, meu duque. Imaginaram que nos
sobrecarregariam com refugiados.
– Faz tanto tempo que as guerrilhas deixaram de ser
eficazes que os poderosos esqueceram como combatê-las –
disse Paul. – Os Sardaukar nos deram a vantagem. Pegaram
algumas mulheres da cidade para se divertirem, decoraram
seus estandartes de batalha com as cabeças dos homens que
fizeram objeção. E encheram de um ódio febril pessoas que,
não fosse isso, teriam considerado a batalha iminente não mais
que uma grande inconveniência... e a possibilidade de trocar de
dono. Os Sardaukar estão fazendo o recrutamento por nós,
Stilgar.
– O povo da cidade parece, de fato, ansioso – disse Stilgar.
– Seu ódio ainda é recente e puro – disse Paul. – É por isso
que vamos usá-los como tropa de choque.
– A mortandade entre eles será terrível – disse Gurney.
Stilgar concordou com a cabeça.
– Estão a par das dificuldades – disse Paul. – Sabem que
cada Sardaukar que matarem será um a menos para nós.
Vejam, cavalheiros, eles têm pelo que morrer. Descobriram que
são um povo. Estão acordando.
Uma exclamação abafada partiu do vigia junto ao
telescópio. Paul foi até a fenda na rocha e perguntou:
– O que foi aí fora?
– Uma grande comoção, Muad’Dib – sussurrou o vigia. –
Naquela tenda de metal monstruosa. Um carro de superfície
chegou da Platibanda Oeste, e foi como se um gavião invadisse
um ninho de perdizes.
– Nossos prisioneiros Sardaukar chegaram – disse Paul.
– Agora têm escudos em volta de todo o campo de pouso –
disse o vigia. – Dá para ver o ar tremular até mesmo na
periferia do pátio de armazenagem onde guardavam a
especiaria.
– Agora eles sabem com quem estão lutando – disse
Gurney. – Que os animais Harkonnen tremam e chorem de
medo ao saber que um Atreides ainda vive!
Paul falou para o Fedaykin junto ao telescópio:
– Fique de olho no mastro em cima da nave do imperador.
Se minha bandeira for hasteada ali...
– Não será – disse Gurney.
Paul viu a carranca confusa de Stilgar e disse:
– Se tiver reconhecido minha reivindicação, o imperador
mandará um sinal devolvendo a bandeira Atreides a Arrakis.
Usaremos, então, o segundo plano e atacaremos apenas os
Harkonnen. Os Sardaukar ficarão de fora e nos deixarão
resolver a questão entre nós mesmos.
– Não tenho experiência com essas coisas estrangeiras –
Stilgar disse. – Ouvi falar delas, mas parece improvável que...
– Não é preciso experiência para saber o que eles irão fazer
– disse Gurney.
– Estão hasteando uma nova bandeira na nave alta – disse
o vigia. – A bandeira é amarela... com um círculo preto e
vermelho no centro.
– Como é sutil – disse Paul. – A bandeira da Companhia
CHOAM.
– É a mesma bandeira das outras naves – disse o guarda
Fedaykin.
– Não entendi – disse Stilgar.
– Ponha sutil nisso – disse Gurney. – Se tivesse hasteado a
bandeira Atreides, ele teria de arcar com as consequências de
seu ato. Há muitos observadores por perto. Poderia ter
sinalizado com a bandeira Harkonnen em seu mastro, e isso
teria sido uma declaração inequívoca. Mas, não: ele hasteia o
trapo da CHOAM. Está dizendo às pessoas lá em cima... –
Gurney apontou o espaço – … onde está o lucro. Está dizendo
que não dá a mínima se temos ou não um Atreides.
– Quanto tempo falta para a tempestade atingir a
Muralha-Escudo? – perguntou Paul.
Stilgar se virou, consultou um dos Fedaykin que estavam
na concavidade. Sem demora, voltou e disse:
– Muito em breve, Muad’Dib. Mais cedo do que
esperávamos. É a trisavó de todas as tempestades... talvez até
mais do que você desejava.
– É minha tempestade – disse Paul, vendo a admiração
muda nos rostos dos Fedaykin que o ouviram. – Mesmo se
abalasse o mundo inteiro, não poderia ser mais do que eu
desejava. Ela atingirá a Muralha-Escudo em cheio?
– Ou tão perto disso que não fará diferença – disse Stilgar.
Um mensageiro saiu do buraco que descia até a bacia e
disse:
– As patrulhas dos Sardaukar e dos Harkonnen estão se
retirando, Muad’Dib.
– Esperam que a tempestade jogue tanta areia dentro da
bacia que a visibilidade ficará prejudicada – disse Stilgar. –
Acham que teremos o mesmo problema.
– Diga a nossos artilheiros para fazer pontaria antes de
perdermos a visibilidade – disse Paul. – Eles terão de arrancar o
nariz de cada uma daquelas naves tão logo a tempestade tiver
destruído os escudos.
Ele foi até o paredão da concavidade, recolheu uma dobra
da cobertura camuflada e olhou para o céu. Viam-se os rabos
de cavalo de areia rodopiarem ao vento contra o céu escuro.
Paul devolveu a cobertura a seu lugar e disse:
– Comece a mandar nossos homens lá para baixo, Stil.
– Você não vem com a gente? – perguntou Stilgar.
– Vou esperar um pouco aqui em cima com os Fedaykin –
disse Paul.
Stilgar deu de ombros, dirigindo o gesto de cumplicidade a
Gurney, foi até o buraco no paredão de rocha e desapareceu
nas sombras.
– O detonador da Muralha-Escudo, eu o deixo em suas
mãos, Gurney – disse Paul. – Aceita?
– Aceito.
Paul fez sinal para um tenente Fedaykin e disse:
– Otheym, comece a tirar as patrulhas de controle da área
da explosão. Precisam sair de lá antes de a tempestade chegar.
O homem fez uma reverência e seguiu Stilgar.
Gurney inclinou-se na direção da fenda e falou com o
homem ao telescópio:
– Fique atento ao paredão sul. Estará completamente sem
defesas até nós o mandarmos pelos ares.
– Despache um ciélago com o sinal horário – ordenou Paul.
– Alguns carros terrestres estão seguindo na direção do
paredão sul – disse o homem do telescópio. – Alguns deles
estão usando armas de projéteis, testando-as. Nossa gente
está usando escudos corporais como você mandou. Os carros
terrestres pararam.
No silêncio repentino, Paul ouviu a música dos ventos
endiabrados lá em cima: a frente da tempestade. A areia
começou a escorrer para dentro da concavidade, através das
brechas na cobertura, que acabou sendo arrancada por uma
rajada de vento.
Paul fez sinal para que seus Fedaykin se abrigassem, foi
até os homens junto ao equipamento de comunicação perto da
boca do túnel. Gurney permaneceu ao lado dele. Paul se
inclinou sobre os ombros dos sinaleiros.
Um deles disse:
– É a tataravó de todas as tempestades, Muad’Dib.
Paul olhou para o céu cada vez mais escuro e disse:
– Gurney, mande os observadores do paredão sul saírem
de lá. – Ele teve de repetir a ordem aos gritos, acima do barulho
cada vez mais alto da tempestade.
Gurney virou-se para obedecer.
Paul prendeu o filtro facial e ajustou o gorro do
trajestilador.
Gurney voltou.
Paul tocou-lhe o ombro e apontou para o detonador
instalado na boca do túnel, depois dos sinaleiros. Gurney
entrou no túnel, deteve-se ali, com uma das mãos no
disparador e os olhos fixos em Paul.
– Não estamos recebendo mensagens – disse o sinaleiro ao
lado de Paul. – Muita estática.
Paul assentiu, manteve os olhos no mostrador do horário-
padrão em frente ao sinaleiro. Em seguida, olhou para Gurney,
ergueu uma das mãos, voltou a olhar para o mostrador. O
cronômetro se arrastou em sua última volta.
– Agora! – Paul gritou, abaixando a mão.
Gurney pressionou o disparador.
Um segundo inteiro pareceu passar antes de sentirem o
chão sob seus pés ondular e tremer. Uma trovoada somou-se
ao rugido da tempestade.
O vigia Fedaykin do telescópio apareceu ao lado de Paul,
com o instrumento enfiado debaixo de um braço.
– A Muralha-Escudo foi rompida, Muad’Dib! – gritou. – A
tempestade está em cima deles, e nossos artilheiros já abriram
fogo.
Paul pensou na tempestade que varria toda a bacia, na
carga de eletricidade estática do paredão de areia que
destruiria todos os escudos no campo inimigo.
– A tempestade! – alguém berrou. – Temos de nos abrigar,
Muad’Dib!
Paul voltou a si, sentindo as agulhadas da areia na face
exposta. Não há mais volta, ele pensou. Passou um dos braços
pelo ombro do sinaleiro e disse:
– Deixe o equipamento aí! Temos mais no túnel.
Sentiu que era arrastado para longe, com os Fedaykin
amontoados a seu redor para protegê-lo. Espremeram-se na
boca do túnel, sentindo sua quietude relativa, fizeram uma
curva e entraram numa pequena câmara com luciglobos no
alto e, depois dela, outra abertura de túnel.
Um outro sinaleiro estava sentado ali junto a seu
equipamento.
– Muita estática – disse o homem.
Um redemoinho de areia tomou o ar.
– Lacrem este túnel! – Paul gritou. Um silêncio opressivo e
repentino foi a prova de que sua ordem tinha sido cumprida. –
O caminho para a bacia ainda está livre? – perguntou Paul.
Um Fedaykin foi olhar, voltou e disse:
– A explosão provocou um pequeno desmoronamento,
mas os engenheiros dizem que ainda está livre. Estão limpando
tudo com raileses.
– Mande-os usar as mãos! – vociferou Paul. – Há escudos
ativos lá embaixo.
– Estão tomando cuidado, Muad’Dib – disse o homem, mas
virou-se para obedecer.
Os sinaleiros lá de fora passaram por eles carregando seu
equipamento.
– Eu mandei deixar o equipamento para trás! – disse Paul.
– Os fremen não gostam de abandonar equipamentos,
Muad’Dib – ralhou um dos Fedaykin.
– Os homens são mais importantes que o equipamento
agora – disse Paul. – Logo teremos mais equipamento do que
poderemos usar, ou então não precisaremos mais de
equipamento.
Gurney Halleck apareceu ao lado dele e disse:
– Ouvi quando disseram que o caminho lá para baixo está
livre. Aqui estamos muito perto da superfície, milorde, se os
Harkonnen tentarem retaliar na mesma moeda.
– Não estão em condições de retaliar – disse Paul. – Estão
descobrindo só agora que não têm escudos nem como deixar
Arrakis.
– Mas o novo posto de comando está todo preparado,
milorde – disse Gurney.
– Eles ainda não precisam de mim no posto de comando –
disse Paul. – O plano seguirá em frente sem mim. Temos de
esperar pelo...
– Estou recebendo uma mensagem, Muad’Dib – disse o
sinaleiro junto ao equipamento de comunicação. O homem
chacoalhou a cabeça, pressionou o fone de um receptor contra
a orelha. – Muita estática! – Começou a rabiscar num bloco a
sua frente, balançando a cabeça, esperando, escrevendo...
esperando.
Paul foi até o sinaleiro e colocou-se ao lado dele. Os
Fedaykin recuaram um pouco para lhe dar espaço. Ele olhou
para o que o homem havia escrito e leu:
– Ataque... em Sietch Tabr... capturados... Alia (lacuna)
famílias de (lacuna) mortos estão... eles (lacuna) filho de
Muad’Dib...
O sinaleiro voltou a sacudir a cabeça.
Paul ergueu os olhos e viu que Gurney o fitava.
– A mensagem está truncada – disse Gurney. – A estática.
Você não sabe se...
– Meu filho está morto – disse Paul, e soube, ao dizê-lo, que
era verdade. – Meu filho está morto... e Alia foi capturada... é
refém. – Sentiu-se vazio, uma casca sem emoções. Tudo que ele
tocava trazia a morte e o pesar. E era como uma doença capaz
de se disseminar pelo universo.
Sentiu a sabedoria dos velhos, um acervo de experiências
de incontáveis vidas possíveis. Alguma coisa pareceu rir e
esfregar as mãos dentro dele.
E Paul pensou: Como o universo conhece pouco a natureza
da verdadeira crueldade!
E Muad’Dib se apresentou diante deles e
disse: “Apesar de darmos os prisioneiros
como mortos, ela ainda vive. Pois sua
semente é minha semente, e sua voz é
minha voz. E ela enxerga as regiões mais
longínquas da possibilidade. Sim, até o
vale do incognoscível ela enxerga, por
minha causa”.
– excerto de “Despertar de Arrakis”, da princesa Irulan

O barão Vladimir Harkonnen, de olhos baixos, estava na


câmara de audiências imperial, o selamlik oval no interior do
bivaque do imperador padixá. Com olhares velados, o barão
havia estudado a sala de paredes metálicas e seus ocupantes:
os noukkers, os pajens, os guardas, a tropa de Sardaukar da
Casa, em formação de uma parede a outra, todos em posição
de descansar, sob as bandeiras de batalha capturadas,
ensanguentadas e esfarrapadas que eram a única decoração da
sala.
Soaram vozes do lado direito da câmara, que ecoavam
vindas de uma passagem elevada:
– Abram caminho! Abram caminho para Sua Alteza Real!
O imperador padixá Shaddam IV saiu da passagem e
entrou na câmara de audiências seguido por seu séquito.
Esperou de pé, até lhe trazerem o trono, ignorando o barão e,
aparentemente, ignorando todas as pessoas na sala.
O barão descobriu que não conseguia ignorar Sua Alteza
Real e pôs-se a observar o imperador, em busca de um sinal,
qualquer pista do propósito daquela audiência. O imperador
esperava com aprumo, uma figura esguia e elegante, vestindo o
uniforme cinzento dos Sardaukar, com remates de ouro e
prata. O rosto magro e os olhos frios lembravam ao barão o
duque Leto, morto havia tanto tempo. Era aquele mesmo ar de
ave de rapina. Mas os cabelos do imperador eram ruivos, e não
negros, e boa parte da cabeleireira ficava escondida sob um
capacete ebâneo de burseg, com o timbre imperial sobre o
penacho.
Os pajens trouxeram o trono. Era uma cadeira maciça,
esculpida num único bloco de quartzo de Hagal: uma
translucidez verde-azulada, com veios de fogo amarelo.
Colocaram-na sobre o tablado, e o imperador ali subiu e se
sentou.
Uma velha de aba preta, com a testa coberta pelo capuz,
destacou-se do séquito do imperador e posicionou-se atrás do
trono, repousando uma das mãos esqueléticas sobre o
espaldar de quartzo. O rosto que se entrevia dentro do capuz
era como a caricatura de uma bruxa: olhos e faces encovadas,
um nariz muito comprido, a pele manchada e as veias salientes.
O barão controlou os tremores provocados pela aparição
da mulher. A presença da Reverenda Madre Gaius Helen
Mohiam, a Proclamadora da Verdade do imperador, revelava a
importância daquela audiência. O barão desviou o olhar e pôs-
se a observar o séquito, à procura de uma pista. Eram dois
agentes da Guilda, um alto e gordo, o outro baixo e gordo,
ambos com olhos cinzentos e insossos. E, cercada de lacaios,
estava uma das filhas do imperador, a princesa Irulan, uma
mulher que, segundo diziam, vinha sendo treinada nos maiores
segredos da Doutrina Bene Gesserit, destinada a ser uma
Reverenda Madre. Ela era alta e loira, tinha um rosto de beleza
cinzelada e olhos verdes que pareciam enxergar além e através
dele.
– Meu caro barão.
O imperador havia se dignado a reparar que ele estava ali.
A voz era um barítono de controle refinado. Conseguia
dispensá-lo ao mesmo tempo que o cumprimentava.
O barão fez uma profunda reverência, avançou até a
posição designada, a dez passos do tablado.
– Vim como me pediu, Vossa Majestade.
– Pediu! – casquinou a velha.
– Ora, Reverenda Madre – ralhou o imperador, mas sorriu
diante do embaraço do barão e disse: – Primeiro, diga-me
aonde foi que mandou seu assecla, Thufir Hawat.
O barão olhou rapidamente para a esquerda e a direita,
passou uma descompostura em si próprio por não ter trazido
seus guardas. Não que tivessem muita serventia contra os
Sardaukar. Ainda assim...
– E então? – insistiu o imperador.
– Faz cinco dias que ele está fora, majestade. – O barão deu
uma olhadela nos agentes da Guilda, depois voltou a se
concentrar no imperador. – Era para ele pousar numa base dos
contrabandistas e tentar se infiltrar no acampamento do
fanático fremen, o tal Muad’Dib.
– Incrível! – exclamou o imperador.
Uma das garras da bruxa bateu de leve no ombro do
imperador. Ela se inclinou e sussurrou-lhe ao ouvido.
O imperador fez que sim e falou:
– Cinco dias, barão. Diga-me, por que não está preocupado
com essa ausência?
– Mas eu estou preocupado, majestade!
O imperador continuou a encará-lo, aguardando. A
Reverenda Madre voltou a casquinar.
– O que estou querendo dizer, majestade – explicou o
barão –, é que Hawat, de qualquer maneira, estará morto
dentro de algumas horas. – E explicou o veneno latente e a
necessidade de um antídoto.
– Quanta esperteza, barão – disse o imperador. – E onde
estão seus sobrinhos, Rabban e o jovem Feyd-Rautha?
– A tempestade está chegando, majestade. Eu os mandei
inspecionar nosso perímetro, para que os fremen não ataquem
encobertos pela areia.
– Perímetro – disse o imperador. A palavra saiu como se
lhe azedasse a boca. – A tempestade não terá lá grandes
consequências dentro da bacia, e aquela escória fremen não vai
atacar enquanto eu estiver aqui com cinco legiões de
Sardaukar.
– Certamente não, majestade – falou o barão. – Mas não se
pode censurar alguém pelo excesso de zelo.
– Aaah – disse o imperador. – Censura. Então não devo
falar do tempo que essa bobagem aqui em Arrakis me fez
perder? Nem dos lucros da Companhia CHOAM que descem
pelo ralo que é este planeta? Nem das solenidades da corte e os
assuntos de estado que tive de adiar, e até mesmo cancelar, por
causa desta estupidez?
O barão baixou o olhar, assustado com a raiva do
imperador. Sua posição delicada, sozinho e dependente da
Convenção e do dictum familia das Casas Maiores, o deixava
apreensivo. Será que ele tem a intenção de me matar?, o barão
se perguntou. Não poderia! Não com as outras Casas Maiores
aguardando lá em cima, ansiosas pela menor desculpa para
lucrar alguma coisa com este transtorno em Arrakis.
– Fez algum refém? – perguntou o imperador.
– É inútil, majestade – disse o barão. – Esses fremen
malucos fazem uma cerimônia fúnebre para cada prisioneiro e
agem como se o sujeito já estivesse morto.
– E daí? – fez o imperador.
E o barão esperou, olhando de relance à esquerda e à
direita, para as paredes de metal do selamlik, pensando na
monstruosa tenda de metaleque a seu redor. Aquilo
representava uma riqueza tão ilimitada que espantava até
mesmo o barão. Ele trouxe pajens, pensou o barão, e os lacaios
inúteis da corte, suas mulheres e os acompanhantes –
cabeleireiros, estilistas, tudo... todos os parasitas periféricos da
Corte. Todos aqui, adulando, tramando em segredo, “comendo
da banda podre” com o imperador... para vê-lo pôr um fim a este
caso, para compor epigramas sobre as batalhas e idolatrar os
feridos.
– Talvez você nunca tenha procurado o tipo certo de refém
– disse o imperador.
Ele sabe de alguma coisa, pensou o barão. O medo afundou
feito uma pedra em seu estômago, tanto que ele mal conseguia
suportar a ideia de comer. Contudo, a sensação lembrava a da
fome, e ele pairou várias vezes em seus suspensores, prestes a
pedir que lhe trouxessem comida. Mas não havia ninguém ali
para atender seu pedido.
– Tem alguma ideia de quem poderia ser esse Muad’Dib? –
perguntou o imperador.
– Um umma, com certeza – respondeu o barão. – Um
fanático fremen, um aventureiro religioso. Aparece com
regularidade às margens da civilização. Vossa Majestade sabe
disso.
O imperador olhou para sua Proclamadora da Verdade,
depois virou-se para o barão, de cenho franzido.
– E não sabe mais nada a respeito desse Muad’Dib?
– Um louco – disse o barão. – Mas todos os fremen são um
tanto loucos.
– Um louco?
– Sua gente grita-lhe o nome ao se atirar nas batalhas. As
mulheres jogam seus filhos pequenos contra nós e se lançam
sobre nossas facas, para abrir uma brecha e seus homens
atacarem. Não têm a menor... a menor... decência!
– Tão ruim assim? – murmurou o imperador, e o barão não
deixou de notar o tom escarninho. – Diga-me, meu caro barão,
investigou as regiões polares austrais de Arrakis?
O barão ergueu os olhos e encarou o imperador, espantado
com a mudança de assunto.
– Mas... Bem, Vossa Majestade sabe que toda a região é
inabitável, exposta ao vento e aos vermes. Nem sequer há
especiaria naquelas latitudes.
– Não recebeu nenhum relatório dos cargueiros de
especiaria, informando que há manchas de vegetação por lá?
– Sempre recebemos esses informes. Alguns foram
investigados, tempos atrás. Algumas plantas foram avistadas.
Muitos tópteros foram perdidos. Custos excessivos, Vossa
Majestade. É um lugar onde um homem não consegue
sobreviver muito tempo.
– Certo – disse o imperador. Estalou os dedos e uma porta
se abriu à esquerda dele, atrás do trono. Pela porta entraram
dois Sardaukar conduzindo uma menininha que parecia ter
cerca de 4 anos de idade. Ela vestia uma aba preta, com o capuz
jogado para trás, revelando as presilhas de um trajestilador,
que pendiam de sua garganta. Os olhos eram azuis, como os
dos fremen, num rosto redondo e delicado. Não parecia
assustada e havia em seu olhar algo que deixou o barão
apreensivo, sem que ele conseguisse explicar o motivo.
Até mesmo a velha Bene Gesserit e Proclamadora da
Verdade recuou ao ver a criança passar e fazer-lhe o sinal de
proteção contra o mal. A bruxa velha obviamente ficou abalada
com a presença da menina.
O imperador limpou a garganta para falar, mas a menina
falou primeiro, com uma vozinha fina e vestígios de ceceio
palatino, mas, mesmo assim, clara:
– Então aí está ele. – Avançou até a beirada do tablado. –
Não parece grande coisa, não é? Um velho gordo e assustado,
fraco demais para aguentar o peso de seu próprio corpo sem o
auxílio de suspensores.
Foi uma declaração tão inesperada na boca de uma
criança, que o barão olhou para ela, sem palavras, apesar da
raiva. Será uma anãzinha?, ele se perguntou.
– Meu caro barão – disse o imperador –, quero que conheça
a irmã de Muad’Dib.
– A ir... – O barão desviou sua atenção para o imperador. –
Não estou entendendo.
– Eu também peco por excesso de zelo, às vezes – disse o
imperador. – Fui informado que suas inabitadas regiões
polares austrais exibem indícios de atividade humana.
– Mas isso é impossível! – protestou o barão. – Os vermes...
a areia fica desimpedida e...
– Parece que essas pessoas conseguem evitar os vermes –
disse o imperador.
A criança sentou-se no tablado, ao lado do trono, deixou os
pés penderem sobre a beirada e começou a balançá-los. Era
com tamanho ar de confiança que ela observava o ambiente.
O barão olhou para os pés a balançar, a maneira como
remexiam o manto negro, as sandálias que se entreviam sob o
tecido.
– Infelizmente – disse o imperador –, mandei apenas cinco
transportes com uma força de ataque ligeira apanhar
prisioneiros para interrogatório. Mal conseguimos sair com
três prisioneiros e um transporte. Imagine, barão, que meus
Sardaukar quase foram sobrepujados por uma força composta
principalmente de mulheres, crianças e velhos. Esta menina
aqui comandava um dos grupos de ataque.
– Está vendo, Vossa Majestade! – exclamou o barão. – Está
vendo como eles são!
– Deixei que me capturassem – disse a menina. – Não
queria enfrentar meu irmão e ter de lhe contar que seu filho foi
morto.
– Somente um punhado de nossos homens escapou – disse
o imperador. – Escapou! Ouviu bem?
– Nós teríamos acabado com eles também – falou a menina
–, não fossem as chamas.
– Meus Sardaukar usaram os jatos de altitude do
transporte como lança-chamas – disse o imperador. – Uma
manobra desesperada e a única coisa que lhes permitiu
escapar com os três prisioneiros. Repare bem, meu caro barão:
Sardaukar obrigados a bater em retirada, de maneira
desordenada, por causa de mulheres, crianças e velhos!
– Temos de atacar com força – chiou o barão. – Temos de
destruir até o último vestígio de...
– Silêncio! – berrou o imperador. Deslizou para a beirada
do trono. – Pare de ofender minha inteligência. Você vem aqui,
com essa sua inocência idiota e...
– Majestade – fez a velha Proclamadora da Verdade.
Ele fez sinal para que ela se calasse.
– Você diz não saber nada sobre a atividade que
descobrimos, nem sobre as qualidades marciais desse povo
soberbo! – O imperador quase se levantou do trono. – Por
quem me toma, barão?
O barão deu dois passos para trás, pensando: Foi Rabban.
Ele fez isso comigo. Rabban...
– E essa falsa desavença com o duque Leto – fez o
imperador, com aparente satisfação, voltando a afundar em
seu trono. – Que beleza de manobra.
– Majestade – implorou o barão. – O que está...
– Silêncio!
A velha Bene Gesserit pousou uma das mãos no ombro do
imperador, inclinou-se e sussurrou ao pé do ouvido dele.
A menina sentada no tablado parou de balançar os pés e
disse:
– Assuste-o um pouco mais, Shaddam. Eu não deveria me
divertir com isso, mas descobri que é impossível reprimir esse
prazer.
– Quieta, menina – disse o imperador. Ele se inclinou, pôs a
mão sobre a cabeça da criança e olhou para o barão. – Será
possível, barão? Será que é tão simplório quanto minha
Proclamadora da Verdade diz que é? Não reconhece esta
menina, filha de seu aliado, o duque Leto?
– Meu pai nunca foi aliado dele – a criança falou. – Meu pai
está morto, e essa mula velha Harkonnen nunca me viu antes.
O barão ficou reduzido a um olhar feroz e estupefato.
Quando recuperou a voz, foi só para dizer, entre dentes:
– Quem?
– Eu sou Alia, filha do duque Leto e de lady Jéssica, e irmã
do duque Paul Muad’Dib – disse a menina. Ela tomou impulso e
desceu do tablado para o chão da câmara de audiências. – Meu
irmão prometeu colocar sua cabeça no alto do mastro que leva
o estandarte de batalha dele, e acho que é o que fará.
– Silêncio, menina – ordenou o imperador, voltando a se
recostar. Com o queixo numa das mãos, pôs-se a estudar o
barão.
– Não recebo ordens do imperador – disse Alia. Ela se
virou, olhou para a Reverenda Madre. – Ela sabe.
O imperador olhou para sua Proclamadora da Verdade.
– O que ela quer dizer?
– Essa menina é uma abominação! – exclamou a velha. – A
mãe dela merece o maior castigo de toda a história. A morte!
Que não pode ser rápida para esta criança, nem para quem a
gerou! – A velha apontou um dedo para Alia. – Saia da minha
mente!
– T-P? – murmurou o imperador. Voltou rapidamente a
olhar para Alia. – Em nome da Grande Mãe!
– Vossa Majestade não entende – disse a velha. – Não é
telepatia. Ela está em minha mente. É como as outras que me
antecederam, que me deram suas lembranças. Ela se encontra
em minha mente! Não pode estar lá, mas está!
– Que outras? – quis saber o imperador. – Que absurdo é
esse?
A velha se empertigou e abaixou a mão que ainda trazia
um dedo esticado.
– Falei demais, mas resta o fato de que essa criança, que
não é uma criança, precisa ser destruída. Há tempos fomos
avisadas a respeito de alguém como ela, e o que fazer para
evitar seu nascimento, mas fomos traídas por uma de nós.
– Você fala demais, velha – ralhou Alia. – Não sabe como foi
e, mesmo assim, continua tagarelando feito uma total idiota. –
Alia fechou os olhos, inspirou fundo e segurou o fôlego.
A velha Reverenda Madre gemeu e cambaleou.
Alia abriu os olhos.
– Foi assim que aconteceu – ela disse. – Um acidente
cósmico... e você teve seu papel.
A Reverenda Madre estendeu as mãos, como se usasse as
palmas para empurrar o ar na direção de Alia.
– O que está acontecendo aqui? – quis saber o imperador. –
Menina, você é mesmo capaz de projetar seus pensamentos na
mente de outra pessoa?
– Não é nada disso – falou Alia. – Se não nasci como vocês,
não posso pensar como vocês.
– Mate-a – murmurou a velha, agarrando-se ao espaldar do
trono, em busca de apoio. – Mate-a! – Os olhos idosos e
encovados se fixaram em Alia.
– Silêncio – ordenou o imperador, e pôs-se a estudar Alia. –
Menina, você consegue se comunicar com seu irmão?
– Meu irmão sabe que estou aqui – disse Alia.
– Pode dizer a ele para se render em troca de sua vida?
Alia sorriu, com nítida inocência.
– Não vou fazer isso.
O barão avançou com passos incertos e se deteve ao lado
de Alia.
– Majestade – ele implorou –, eu não sabia de nada...
– Se me interromper de novo, barão – disse o imperador –,
perderá o poder de interromper... para sempre. – Manteve sua
atenção concentrada em Alia, observando-a com os olhos
semicerrados. – Não vai fazer, hein? Consegue ler minha mente
e ver o que farei com você se me desobedecer?
– Eu já disse que não leio mentes – ela explicou –, mas não é
preciso ser telepata para ler suas intenções.
O imperador fechou a cara.
– Menina, sua causa está perdida. Só preciso convocar
minhas forças e reduzir este planeta a...
– Não é tão simples – disse Alia. Olhou para os dois
membros da Guilda. – Pergunte a eles.
– Não é inteligente contrariar meus desejos – falou o
imperador. – Você não deveria me negar nem as coisas mais
insignificantes.
– Meu irmão está chegando – disse Alia. – Até mesmo um
imperador pode tremer diante de Muad’Dib, pois ele tem a
força dos justos e o céu lhe sorri.
O imperador saltou do trono.
– Esta brincadeira já foi longe demais. Vou pegar seu irmão
e este planeta e pulverizá-los...
Um estrondo abalou a sala. De repente, uma cascata de
areia apareceu atrás do trono, onde o bivaque se acoplava à
nave do imperador. O retesamento abrupto da pele sinalizou a
ativação de um escudo de grande alcance.
– Eu avisei – disse Alia. – Meu irmão está chegando.
O imperador estava de pé diante do trono, com a mão
direita colada ao ouvido, escutando o relatório da situação
cuspido pelo servorreceptor. O barão deu dois passos e
colocou-se atrás de Alia. Os Sardaukar correram para suas
posições junto às portas.
– Vamos nos retirar para o espaço e reagrupar – disse o
imperador. – Barão, minhas desculpas. Esses loucos estão
atacando encobertos pela tempestade. Mostraremos a eles,
então, a ira de um imperador. – Apontou para Alia. –
Entreguem o corpo da menina à tempestade.
Enquanto ele falava, Alia foi recuando, fingindo pavor.
– Que a tempestade fique com o que conseguir pegar! – ela
gritou. E caiu nos braços do barão.
– Eu a peguei, majestade! – gritou o barão. – Devo
despachá-la agoraaiiiiiiiiiiiiiiii! – Ele a jogou no chão e segurou
seu braço esquerdo.
– Sinto muito, avô – disse Alia. – Acabou de conhecer o
gom jabbar dos Atreides. – Ela ficou de pé, abriu a mão e soltou
uma agulha negra.
O barão caiu de costas. Seus olhos se esbugalharam ao
fitar o corte vermelho em sua palma esquerda.
– Você... você... – Rolou de lado em seus suspensores, uma
massa flácida de carne mantida a alguns centímetros do chão,
com a cabeça pendente e a boca escancarada.
– Essa gente é insana – resmungou o imperador. – Rápido!
Para a nave. Vamos expurgar este planeta de todos...
Alguma coisa faiscou a sua esquerda. Um relâmpago
globular saltou da parede, crepitou ao tocar o piso de metal. O
cheiro de isolamento queimado se apoderou do selamlik.
– O escudo! – gritou um dos oficiais Sardaukar. – O escudo
externo caiu! Eles...
Suas palavras se afogaram num rugido metálico quando o
casco da nave, atrás do imperador, tremeu e balançou.
– Estouraram o nariz da nave – alguém berrou.
A sala foi tomada por pó. Encoberta pela poeira, Alia ficou
de pé num salto e correu na direção da porta externa.
O imperador girou nos calcanhares, acenou para que seu
pessoal se dirigisse para uma porta de emergência que se abriu
na lateral da nave, atrás do trono. Fez um rápido sinal com as
mãos para um oficial dos Sardaukar que, com um salto,
atravessou a bruma de pó.
– Lutaremos aqui! – ordenou o imperador.
Mais um estrondo abalou o bivaque. As portas duplas se
abriram do outro lado da câmara, deixando entrar a areia
soprada pelo vento e o som de gritos. Viu-se
momentaneamente, contra a luz, um vulto pequeno e envolto
num manto negro: era Alia, que disparava em busca de uma
faca para, como convinha a seu treinamento fremen, matar os
Harkonnen e Sardaukar feridos. Os Sardaukar da Casa
avançaram pelo nevoeiro amarelo-esverdeado na direção da
abertura, de armas prontas, formando ali um arco para
proteger a retirada do imperador.
– Salve-se, sire! – gritou um oficial Sardaukar. – Entre na
nave!
Mas o imperador agora estava sozinho em seu tablado e
apontava para as portas. Uma secção de quarenta metros do
bivaque tinha sido arrancada com a explosão, e as portas do
selamlik agora se abriam para a areia ao vento. Uma nuvem
baixa de pó pairava sobre o mundo lá fora, soprada desde
rincões distantes em tons pastéis. A nuvem lançava raios
crepitantes de estática, e viam-se, através do nevoeiro, as
faíscas dos escudos que a carga elétrica da tempestade ia
colocando em curto-circuito. A planície pululava com vultos em
combate: Sardaukar e homens trajando mantos, que saltavam
e rodopiavam, como se saíssem da tempestade.
Tudo isso era uma moldura para aquilo que a mão do
imperador apontava.
Do nevoeiro de areia surgiu uma massa disciplinada de
formas fugazes: imensos aros ascendentes e seus raios de
cristal, que se transformaram nas bocas escancaradas de
vermes da areia, uma muralha maciça daquelas criaturas, cada
qual com tropas fremen no dorso, partindo para o ataque.
Chegavam formando uma cunha sibilante, com seus mantos a
tremular ao vento, atravessando a escaramuça na planície.
Na direção do bivaque imperial vinham eles, e os
Sardaukar da Casa ficaram perplexos, pela primeira vez em sua
história, com uma investida que suas mentes achavam difícil
aceitar.
Mas os vultos que saltavam do dorso dos vermes eram
homens, e as armas brancas que cintilavam naquela luz
amarela e agourenta eram algo que os Sardaukar tinham sido
treinados para enfrentar. Atiraram-se ao combate. E foi
homem contra homem na planície de Arrakina, enquanto um
seleto guarda-costas Sardaukar empurrava o imperador de
volta à nave, lacrava a porta depois de vê-lo entrar e preparava-
se para morrer ali mesmo, como parte do escudo de seu
soberano.
No choque do relativo silêncio dentro da nave, o imperador
olhou para os rostos espantados de seu séquito, vendo a filha
mais velha corada pelo esforço, a idosa Proclamadora da
Verdade feito uma sombra negra, com a cara enterrada no
capuz, e encontrando, por fim, os rostos que ele procurava: os
dois membros da Guilda. Vestiam a cor cinzenta da Guilda, sem
adornos, e aquilo parecia adequado à calma que mantinham,
apesar das grandes emoções que os cercavam.
O mais alto dos dois, porém, tapava o olho esquerdo com
uma das mãos. Enquanto o imperador o observava, alguém
esbarrou em seu braço, deslocando-lhe a mão e revelando o
olho escondido. O homem havia perdido uma das lentes de
contato de seu disfarce, e o olho exibia um azul total e tão
escuro que quase chegava a ser negro.
O menorzinho dos dois usou os cotovelos para abrir
caminho e chegar um passo mais perto do imperador. Disse:
– Não temos como saber o que acontecerá.
E o companheiro mais alto, com a mão já de volta ao olho,
acrescentou com frieza:
– Mas o tal Muad’Dib também não tem.
As palavras tiraram o imperador de seu estupor. Fez um
esforço visível para se controlar e não dar voz a seu desprezo,
pois não era necessário o foco exclusivo de um navegador da
Guilda na linha de maior probabilidade para prever qual seria o
futuro imediato lá fora, na planície. Imaginou se aqueles dois
não estariam tão dependentes de sua habilidade, que tinham
esquecido como usar os olhos e a razão.
– Reverenda Madre – ele disse –, temos de traçar um plano.
Ela afastou o capuz do rosto e o fitou, sem piscar. O olhar
que os dois trocaram foi de total entendimento. Restava-lhes
uma só arma, e os dois sabiam qual era: traição.
– Mande chamar o conde Fenring nos aposentos dele –
disse a Reverenda Madre.
O imperador padixá concordou com a cabeça e fez sinal
para que um de seus assistentes cumprisse a ordem.
Era guerreiro e místico, ogro e santo, a
raposa e o inocente, galante, cruel, menos
que um deus, mais que um homem. Não
há como medir as razões de Muad’Dib
com critérios comuns. No momento de
seu triunfo, viu a morte que lhe
prepararam, mas aceitou a traição. Pode-
se dizer que fez isso por ter senso de
justiça? A justiça de quem, então?
Lembre-se: falamos agora do Muad’Dib
que mandou fazer tambores de batalha
com a pele dos inimigos, o Muad’Dib que
rejeitou as convenções de seu passado
como duque com um aceno da mão,
dizendo simplesmente: “Sou o Kwisatz
Haderach. Essa razão já basta”.
– excerto de “Despertar de Arrakis”, da princesa Irulan

Foi para a mansão do governador arrakino, a antiga


Residência Oficial que os Atreides haviam ocupado ao chegar a
Duna, que eles escoltaram Paul Muad’Dib na noite de sua
vitória. O edifício estava como Rabban o havia deixado depois
da reforma, praticamente intocado pelos combates, embora o
povo da cidade o tivesse saqueado. Alguns móveis do saguão
principal tinham sido revirados ou quebrados.
Paul entrou pomposamente pela porta principal,
acompanhado de Gurney Halleck e Stilgar, que vinham um
passo atrás. Sua escolta se espalhou pelo Grande Átrio,
arrumando o lugar e limpando uma área para Muad’Dib. Um
esquadrão começou a procurar armadilhas, para garantir que
nenhuma tivesse restado.
– Lembro-me do dia em que chegamos aqui com seu pai –
disse Gurney. Olhou ao redor, para as vigas e as janelas altas e
estreitas. – Não gostei deste lugar na época e gosto dele menos
ainda agora. Uma de nossas cavernas seria mais segura.
– Falou como um verdadeiro fremen – disse Stilgar,
notando o sorriso gélido que suas palavras levaram aos lábios
de Muad’Dib. – Vai reconsiderar, Muad’Dib?
– Este lugar é um símbolo – disse Paul. – Rabban viveu
aqui. Ocupando este lugar, eu selo minha vitória de maneira
que todos entendam. Mande os homens vasculharem o prédio.
Que não toquem em nada. Certifiquem-se apenas de que não
sobraram nem gente nem brinquedos dos Harkonnen.
– A suas ordens – disse Stilgar, e era grande a relutância
em seu tom de voz quando ele se virou para obedecer.
Os homens encarregados das comunicações entraram
correndo na sala, trazendo seu equipamento, e começaram a
montá-lo perto da enorme lareira. Os guardas fremen que se
somaram aos Fedaykin sobreviventes assumiram posições em
volta da sala. Cochichavam entre si, lançando olhares
desconfiados para todos os lados. Ali havia sido a casa do
inimigo durante tanto tempo que eles não conseguiam aceitar
facilmente sua presença lá dentro.
– Gurney, mande uma escolta buscar minha mãe e Chani –
disse Paul. – Chani já sabe sobre nosso filho?
– O recado foi dado, milorde.
– Já estão retirando os criadores da bacia?
– Sim, milorde. A tempestade está quase passando.
– Qual é a extensão dos danos provocados pela
tempestade? – Paul perguntou.
– No rastro da tormenta, no campo de pouso e em todos os
pátios de armazenagem da especiaria, os danos foram vastos –
informou Gurney. – Causados tanto pela batalha quanto pela
tempestade.
– Nada que o dinheiro não conserte, eu presumo – disse
Paul.
– Exceto as vidas perdidas, milorde – comentou Gurney, e
havia um tom de reprovação em sua voz, como se dissesse:
“Quando é que um Atreides se preocupou primeiro com as coisas
havendo pessoas em jogo?”.
Mas Paul só conseguia focalizar sua atenção no olho
interior e nas brechas que enxergava na muralha-tempo que
ainda estava em seu caminho. Através de cada uma delas,
ainda se via o jihad grassando ao longe pelos corredores do
futuro.
Ele suspirou, atravessou o átrio, vendo uma cadeira
encostada à parede. A cadeira estivera um dia no salão de
jantar, e talvez seu próprio pai tivesse se sentado nela. Naquele
momento, porém, era apenas um objeto onde repousar seu
cansaço e escondê-lo dos homens. Sentou-se, fechando o
manto em volta das pernas e afrouxando o trajestilador no
pescoço.
– O imperador ainda está entocado no que sobrou de sua
nave – comentou Gurney.
– Por ora, deixe-o confinado lá – disse Paul. – Já
encontraram os Harkonnen?
– Ainda estão examinando os mortos.
– Alguma resposta das naves lá em cima? – Moveu o queixo
na direção do teto.
– Nenhuma ainda, milorde.
Paul suspirou, recostando-se no espaldar da cadeira. Sem
demora, disse:
– Traga-me um dos Sardaukar capturados. Temos de
mandar um recado a nosso imperador. Chegou a hora de
discutirmos os termos.
– Sim, milorde.
Gurney deu-lhe as costas, fez um sinal com a mão para um
dos Fedaykin, que se pôs de guarda ao lado de Paul.
– Gurney – Paul murmurou. – Desde que voltamos a nos
encontrar, estou esperando ouvi-lo apresentar a citação
apropriada ao momento. – Virou-se, viu Gurney engolir em
seco, viu o repentino e sinistro enrijecimento do queixo do
homem.
– Como quiser, milorde – aquiesceu Gurney. Limpou a
garganta e disse, entre dentes: – “Então a vitória se tornou
naquele dia em tristeza para todo o povo, porque nesse dia o
povo ouviu dizer: ‘O rei está muito triste por causa de seu
filho’”.
Paul fechou os olhos, expulsando o pesar de sua mente,
deixando que esperasse, como um dia ele havia esperado para
chorar por seu pai. Agora entregava seus pensamentos à série
de descobertas daquele dia: os futuros misturados e a presença
oculta de Alia em sua percepção.
De todos os usos da visão do tempo, aquele era o mais
estranho.
– Eu enfrentei o futuro para colocar minhas palavras onde
só você pudesse ouvi-las – dissera-lhe Alia. – Nem você
consegue fazer isso, meu irmão. É uma brincadeira
interessante. E... ah, sim: matei nosso avô, o barão velho e
demente. Sofreu muito pouco.
Silêncio. Sua percepção do tempo tinha visto o
retraimento da irmã.
– Muad’Dib.
Paul abriu os olhos e viu, acima dele, a barba negra de
Stilgar, e os olhos escuros nos quais ainda fulgurava a chama
da batalha.
– Vocês encontraram o corpo do velho barão – disse Paul.
Um silêncio pleno baixou sobre Stilgar.
– Como é que sabe? – ele murmurou. – Acabamos de
encontrar o corpo naquela grande pilha de metal que o
imperador construiu.
Paul ignorou a pergunta, vendo que Gurney estava de
volta, acompanhado por dois fremen que amparavam um
Sardaukar capturado.
– Aqui está um deles, milorde – disse Gurney. Fez sinal
para que os guardas segurassem o prisioneiro a cinco passos
de Paul.
Paul reparou que os olhos do Sardaukar tinham o aspecto
vidrado do choque. Um hematoma azul se estendia do cavalete
do nariz ao canto da boca. Era da casta loira e de traços
cinzelados que parecia sinônimo de posição elevada entre os
Sardaukar, mas seu uniforme rasgado não trazia nenhuma
insígnia, a não ser os botões dourados com o timbre imperial e
o debrum esfarrapado das calças.
– Creio que este é oficial, milorde – falou Gurney.
Paul concordou com a cabeça e disse:
– Sou o duque Paul Atreides. Entendeu, homem?
O Sardaukar o encarou, sem se mexer.
– Fale – disse Paul –, ou seu imperador pode morrer.
O homem piscou e engoliu em seco.
– Quem sou eu? – indagou Paul.
– O duque Paul Atreides – rouquejou o homem.
Pareceu submisso demais na opinião de Paul, mas, até aí,
os Sardaukar nunca tinham se preparado para o que
acontecera naquele dia. Nunca conheceram nada além da
vitória, e Paul percebeu que isso podia ser uma fraqueza por si
só. Guardou esse pensamento para usá-lo mais tarde em seu
próprio programa de treinamento.
– Tenho uma mensagem para você levar ao imperador –
disse Paul. E se expressou com as palavras da fórmula antiga: –
Eu, duque de uma Casa Maior e primo do imperador, dou
minha palavra de honra, de acordo com as leis da Convenção.
Se o imperador e sua gente depuserem as armas e se
apresentarem aqui, diante de mim, protegerei suas vidas com a
minha. – Paul ergueu a mão esquerda, que trazia o sinete ducal,
para que o Sardaukar o visse. – Juro por isto.
O homem umedeceu os lábios com a língua e olhou para
Gurney.
– Sim – confirmou Paul. – Quem mais, se não um Atreides,
teria a lealdade de Gurney Halleck?
– Levarei a mensagem – disse o Sardaukar.
– Levem-no a nosso posto de comando avançado e o
despachem – ordenou Paul.
– Sim, milorde. – Gurney fez sinal para que os guardas
obedecessem e conduziu-os para fora.
Paul voltou-se para Stilgar.
– Chani e sua mãe chegaram – disse Stilgar. – Chani pediu
que a deixássemos a sós com sua dor por algum tempo. A
Reverenda Madre quis ficar um pouco na sala dos sortilégios,
não sei por quê.
– Minha mãe morre de saudades de um planeta que talvez
nunca volte a ver – explicou Paul. – Onde a água cai do céu e a
vegetação é tão densa que não se consegue caminhar através
dela.
– Água caindo do céu – sussurrou Stilgar.
Naquele instante, Paul viu como Stilgar havia deixado de
ser o naib fremen para se tornar uma criatura da Lisan al-Gaib,
um receptáculo de admiração e obediência. Isso diminuía o
homem, e Paul sentiu ali o vento espectral do jihad.
Vi um amigo se transformar em adorador, ele pensou.
Sentindo-se repentinamente solitário, Paul olhou ao redor
da sala, notando como seus guardas, na presença dele, agora
pareciam dignos e perfilados para uma revista. Percebeu a
competição discreta e orgulhosa que se dava entre eles: todos
sonhavam em ganhar a atenção de Muad’Dib.
Muad’Dib, de quem manam todas as bênçãos, ele pensou, e
foi o pensamento mais amargo de sua vida. Sentem que tenho
de tomar o trono, pensou. Mas não têm como saber que o faço
para impedir o jihad.
Stilgar pigarreou e disse:
– Rabban também está morto.
Paul assentiu.
Os guardas a sua direita, de repente, deram um passo para
o lado, assumindo a posição de sentido e abrindo caminho para
Jéssica. Ela vestia a aba preta, e seu andar tinha resquícios do
caminhar na areia, mas Paul notou como a casa resgatara uma
parte do que a mãe havia sido um dia: a concubina de um duque
vigente. Sua presença ainda tinha um pouco da antiga
autoconfiança.
Jéssica se deteve diante de Paul e olhou para ele. Viu que
estava cansado e que escondia esse fato, mas não teve pena
dele. Era como se agora fosse incapaz de sentir qualquer
emoção por seu filho.
Jéssica havia entrado no Grande Átrio imaginando por
que o lugar se recusava a se encaixar perfeitamente em sua
memória. Ainda era uma sala estranha, como se ela nunca
tivesse pisado ali, andado por ali com seu querido Leto,
confrontado um Duncan Idaho bêbado; nunca, nunca, nunca...
Deveria haver uma tensão-palavra diametralmente oposta
à adab, a lembrança exigente, pensou. Deveria haver uma
palavra para as lembranças que negam a si mesmas.
– Onde está Alia? – ela perguntou.
– Lá fora, fazendo o que qualquer boa criança fremen deve
fazer em momentos como este – respondeu Paul. – Está
matando os inimigos feridos e marcando seus corpos para as
equipes de reaproveitamento da água.
– Paul!
– Entenda que ela o faz por bondade – ele disse. – Não é
curioso como entendemos mal a unidade secreta que há entre
a bondade e a crueldade?
Jéssica lançou um olhar feroz para o filho, chocada com a
mudança profunda que ele havia sofrido. Foi a morte do menino
a causa disso?, ela se perguntou. E disse:
– Os homens estão contando histórias estranhas a seu
respeito, Paul. Dizem que você tem todos os poderes da lenda,
que não é possível esconder nada de você, que você enxerga o
que ninguém mais vê.
– E uma Bene Gesserit me pergunta sobre lendas? – ele
indagou.
– Tive participação nisso que você é – ela admitiu –, mas
não espere que eu...
– Que tal viver bilhões e bilhões de vidas? – perguntou
Paul. – Eis aí sua trama de lendas! Pense em todas essas
experiências, na sabedoria que isso traz. Mas a sabedoria
tempera o amor, não é? E dá nova forma ao ódio. Como se pode
dizer o que é impiedoso quando não se explorou as
profundezas da crueldade e da bondade? É melhor ter medo de
mim, mãe. Sou o Kwisatz Haderach.
Jéssica tentou engolir saliva, mas sua garganta estava
seca. No mesmo instante, disse:
– Certa vez, você negou ser o Kwisatz Haderach.
Paul sacudiu a cabeça.
– Não posso mais negar nada. – Olhou-a nos olhos. – O
imperador e sua gente estão chegando. Serão anunciados a
qualquer momento. Fique a meu lado. Quero ter uma visão
clara de todos. Minha futura noiva estará entre eles.
– Paul! – Jéssica gritou. – Não cometa o mesmo erro de seu
pai!
– Ela é uma princesa – disse Paul. – É minha chave para o
trono, e é tudo o que sempre será. Erro? Acha que, só porque
sou o que você fez de mim, não tenho a necessidade de me
vingar?
– Mesmo dos inocentes? – ela perguntou, pensando: Ele
não pode cometer os mesmos erros que eu.
– Ninguém mais é inocente – disse Paul.
– Diga isso a Chani – Jéssica retrucou, apontando a
passagem nos fundos da Residência Oficial.
Chani entrou no Grande Átrio por ali, caminhando entre
os guardas fremen, como se estivesse alheia à presença deles.
Seu capuz e o gorro do trajestilador vinham atirados para trás,
a máscara facial de lado. Caminhava com uma incerteza frágil
ao atravessar a sala, para se colocar ao lado de Jéssica.
Paul viu as marcas das lágrimas no rosto de Chani. Ela
oferece água aos mortos. Sentiu uma pontada de pesar, mas era
como se só conseguisse sentir aquilo estando Chani ali
presente.
– Está morto, querido – disse Chani. – Nosso filho está
morto.
Mantendo-se sob rígido controle, Paul ficou de pé.
Estendeu a mão, tocou a face de Chani, sentindo a umidade das
lágrimas.
– Não há como substituí-lo – disse Paul –, mas teremos
outros filhos. É Usul quem faz essa promessa.
Ele a afastou delicadamente e fez um gesto para Stilgar.
– Muad’Dib – disse Stilgar.
– Estão chegando da nave, o imperador e sua gente – disse
Paul. – Ficarei aqui. Reúna os prisioneiros num espaço aberto,
no centro da sala. Mantenha-os a uma distância de dez metros
de mim, a não ser que eu dê outra ordem.
– A suas ordens, Muad’Dib.
Quando Stilgar se virou para obedecer, Paul ouviu os
murmúrios admirados dos guardas fremen:
– Viram? Ele sabia! Ninguém lhe contou, mas ele sabia!
Já se escutava o séquito do imperador se aproximando, e
seus Sardaukar cantarolavam uma marcha para elevar o moral.
Ouviu-se um burburinho de vozes, e Gurney Halleck passou
pelos guardas, foi falar com Stilgar, depois colocou-se ao lado
de Paul, com uma expressão estranha nos olhos.
Será que também vou perder Gurney?, Paul se perguntou.
Da maneira como perdi Stilgar: perder um amigo e ganhar uma
criatura?
– Não têm armas de arremesso – informou Gurney. – Eu
me certifiquei quanto a isso. – Olhou ao redor da sala, notando
os preparativos de Paul. – Feyd-Rautha Harkonnen está com
eles. Devo separá-lo?
– Deixe-o onde está.
– Também há gente da Guilda, e estão exigindo privilégios
especiais, ameaçando decretar um bloqueio econômico a
Arrakis. Disse a eles que eu lhe daria o recado.
– Deixe que ameacem.
– Paul! – Jéssica sussurrou atrás dele. – Ele está falando da
Guilda!
– Arrancarei suas presas dentro em pouco – disse Paul.
E então pensou na Guilda: a força que havia se
especializado durante tanto tempo que acabara se tornando
um parasita, incapaz de existir independentemente da vida da
qual se alimentava. Nunca tinham se atrevido a tomar a
espada... e agora não havia como tomá-la. Poderiam ter ficado
com Arrakis quando perceberam o erro que foi se especializar
no narcótico de espectro perceptivo extraído do mélange e
usado pelos navegadores. Poderiam ter feito isso, vivido seus
dias de glória e morrido. Mas não, tinham vivido de um
momento a outro, torcendo para que os mares onde nadavam
produzissem um novo hospedeiro quando o antigo morresse.
Os navegadores da Guilda, dotados de uma presciência
limitada, haviam tomado a decisão fatal: escolheram sempre o
curso claro e seguro que levava inevitavelmente à estagnação.
Deixemos que deem uma boa olhada em seu novo
hospedeiro, Paul pensou.
– Também têm entre eles uma Reverenda Madre das Bene
Gesserit que diz ser amiga de sua mãe – informou Gurney.
– Minha mãe não tem amigas Bene Gesserit.
Mais uma vez, Gurney olhou ao redor do Grande Átrio,
depois inclinou-se, bem perto do ouvido de Paul.
– Thufir Hawat está com eles, milorde. Não tive a
oportunidade de ter com ele a sós, mas Thufir usou nossos
antigos sinais manuais para dizer que vinha trabalhando com
os Harkonnen e que pensou que milorde estivesse morto.
Pediu para que o deixássemos com eles.
– Você deixou Thufir no meio daqueles...
– Foi ele quem quis... e achei melhor assim. Se... houver
algo errado, nós o teremos sob controle. Se não... teremos um
espião do outro lado.
Paul, então, pensou nos vislumbres prescientes que
mostravam as possibilidades daquele momento... e numa
sequência temporal em que Thufir carregava uma agulha
envenenada que o imperador o mandava usar contra “esse
duque oportunista”.
Os guardas da entrada deram um passo para o lado e
formaram um breve corredor de lanças. Ouviram-se vestes
farfalhando e pés triturando a areia que entrara na Residência
Oficial.
O imperador padixá Shaddam IV entrou no átrio à frente
de seu séquito. O capacete de burseg se perdera, e os cabelos
ruivos estavam em desalinho. A manga esquerda de seu
uniforme vinha rasgada na costura interna. Não trazia cinto e
estava desarmado, mas sua presença o acompanhava, como a
bolha de um escudo de força que mantivesse livre a área a seu
redor.
A lança de um fremen impediu-lhe a passagem, detendo-o
onde Paul havia ordenado. Os demais se aglomeraram atrás
dele, uma sobreposição de cores, nervosismo e olhares
espantados.
Paul percorreu o grupo com o olhar, viu mulheres que
escondiam sinais de pranto, viu os lacaios que vieram apreciar
de camarote uma vitória dos Sardaukar e agora se engasgavam
com o silêncio da derrota. Paul viu a ferocidade dos olhos
pássaro-brilhantes da Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam
sob o capuz negro e, ao lado dela, a dissimulação tacanha de
Feyd-Rautha Harkonnen.
Eis um rosto que o tempo me revelou, pensou Paul.
Em seguida, olhou para além de Feyd-Rautha, atraído por
um movimento, enxergando ali um rosto fino de fuinha que
nunca tinha visto antes: não no tempo, nem fora dele. Era um
rosto que sentia dever conhecer, e a sensação trazia consigo a
marca do medo.
Por que eu deveria temer esse homem?, ele se perguntou.
Inclinou-se na direção da mãe e sussurrou:
– O homem à esquerda da Reverenda Madre, aquele de
aparência maligna: quem é ele?
Jéssica olhou, reconheceu o rosto que vira nos dossiês do
duque.
– Conde Fenring – disse. – O morador desta casa antes de
nós. Um eunuco genético... e assassino.
O moleque de recados do imperador, pensou Paul. E esse
pensamento foi um choque que ressoou por toda a sua
consciência, pois já tinha visto o imperador em incontáveis
associações disseminadas pelos futuros possíveis, mas nem
uma vez o conde Fenring aparecera naquelas visões
prescientes.
Ocorreu a Paul, então, que já tinha visto seu próprio corpo
sem vida em inúmeros pontos da teia do tempo, mas nunca
havia presenciado o momento de sua morte.
Será que me foi negado um vislumbre desse homem porque
ele irá me matar?, Paul se perguntou.
O pensamento trouxe-lhe um mau presságio excruciante.
Forçou sua atenção a passar de Fenring para os homens e
oficiais remanescentes dos Sardaukar, com a amargura e o
desespero estampados nos rostos. Aqui e ali, alguns
semblantes chamaram brevemente a atenção de Paul: oficiais
Sardaukar avaliando os preparativos naquela sala, ainda
planejando e tramando uma maneira de transformar a derrota
em vitória.
A atenção de Paul recaiu, por fim, sobre uma mulher loira
de olhos verdes, um rosto de beleza patrícia, clássica em sua
altivez, imaculada pelas lágrimas, invicta. Sem que lhe
informassem, Paul sabia quem era ela: princesa real, treinada
pelas Bene Gesserit, um rosto que a visão do tempo havia lhe
mostrado em vários aspectos, Irulan.
Eis minha chave, ele pensou.
Foi aí que viu as pessoas amontoadas se mexerem e surgir
entre elas um rosto e um corpo: Thufir Hawat, as feições
envelhecidas e vincadas, os lábios manchados de negro, os
ombros encurvados, a aparência de idade avançada e frágil.
– Ali está Thufir Hawat – disse Paul. – Deixe-o passar,
Gurney.
– Milorde – protestou Gurney.
– Deixe-o passar – Paul repetiu.
Gurney assentiu.
Hawat avançou, trôpego, quando uma das lanças fremen
se ergueu momentaneamente para lhe dar passagem. Os olhos
remelentos examinaram Paul, avaliando, procurando.
Paul deu um passo à frente; percebeu a movimentação
tensa e expectante do imperador e sua gente.
O olhar penetrante de Hawat passou por Paul, e o velho
disse:
– Lady Jéssica, acabei de descobrir que pensei mal de
milady. Não precisa me perdoar.
Paul esperou, mas sua mãe permaneceu em silêncio.
– Thufir, meu velho amigo – disse Paul –, como pode ver,
não estou de costas para nenhuma porta.
– O universo está cheio de portas – retrucou Hawat.
– Sou filho de meu pai? – perguntou Paul.
– Parece-se mais com seu avô – Hawat respondeu, entre
dentes. – Tem o jeito dele e o mesmo olhar.
– Mesmo assim, sou filho de meu pai – disse Paul. – Pois
digo-lhe, Thufir, que, como paga por seus anos de serviço a
minha família, você pode agora pedir o que quiser de mim.
Qualquer coisa. Precisa tomar minha vida agora, Thufir? É sua.
Paul deu um passo adiante, com as mãos abaixadas e junto
ao corpo, vendo a compreensão surgir nos olhos de Hawat.
Ele entendeu que estou a par da traição, Paul pensou.
Modulando a voz para que um meio sussurro chegasse
somente aos ouvidos de Hawat, Paul disse:
– Estou falando sério, Thufir. Se vai me atacar, faça-o
agora.
– Eu só queria me ver mais uma vez diante de meu duque –
disse Hawat. E Paul percebeu, pela primeira vez, o esforço que
o velho fazia para não cair. Paul estendeu os braços, amparou
Hawat pelos ombros, sentindo os tremores musculares sob
suas mãos.
– Dói, amigo velho? – Paul perguntou.
– Dói, meu duque – confirmou Hawat –, mas o prazer é
maior. – Ele virou meio corpo nos braços de Paul, estendeu a
mão esquerda, com a palma para cima, na direção do
imperador, expondo a agulha diminuta encaixada nos dedos. –
Está vendo, majestade? – bradou. – Está vendo a agulha de seu
traidor? Pensou que eu, que dei minha vida a serviço dos
Atreides, agora lhes daria menos que isso?
Paul cambaleou quando o velho fraquejou em seus braços.
Sentiu nele a morte, a flacidez definitiva. Delicadamente, Paul
baixou Hawat até o chão, levantou-se e fez sinal para que os
guardas levassem o corpo.
O silêncio apoderou-se do átrio enquanto sua ordem era
cumprida.
Um ar de expectativa fatal havia se apoderado do rosto do
imperador. Olhos que nunca haviam admitido o medo
finalmente o aceitaram.
– Majestade – disse Paul, notando o espasmo de surpresa
que tirou a princesa alta de seu devaneio. A palavra fora
pronunciada com a atonalidade controlada das Bene Gesserit,
encerrando cada nuance de desprezo e desdém que Paul foi
capaz de colocar ali.
Foi realmente treinada pelas Bene Gesserit, Paul pensou.
O imperador limpou a garganta e disse:
– Talvez meu respeitado primo creia ter tudo a seu gosto
agora. Nada poderia estar mais longe da verdade. Você violou a
Convenção, usou armas atômicas contra...
– Usei armas atômicas contra um acidente geográfico do
deserto – disse Paul. – Estava em meu caminho, e eu tinha
pressa para chegar a você, majestade, e pedir uma explicação
para certas coisas estranhas que andou fazendo.
– Há uma armada conjunta das Casas Maiores no espaço
acima de Arrakis neste exato momento – lembrou o imperador.
– Basta uma palavra minha e eles...
– Ah, sim – disse Paul –, já ia me esquecendo deles. –
Esquadrinhou o séquito do imperador até ver os rostos dos
dois membros da Guilda e falou, à parte, para Gurney: –
Aqueles são os agentes da Guilda, Gurney, os dois gordinhos de
cinza ali?
– Sim, milorde.
– Vocês dois – chamou Paul, apontando-os. – Saiam daí
agora mesmo e mandem mensagens dizendo para a frota se
retirar. Depois disso, peçam-me licença antes de...
– A Guilda não está a suas ordens! – vociferou o mais alto
dos dois. Ele e o colega abriram caminho até as lanças que
barravam a passagem e foram erguidas a um aceno de cabeça
de Paul. Os dois homens se aproximaram, e o mais alto
levantou um braço, apontando-o para Paul, e disse: – Podemos
decretar um bloqueio econômico em resposta a suas...
– Se um de vocês dois voltar a falar alguma bobagem –
disse Paul –, darei a ordem que destruirá toda a produção de
especiaria em Arrakis... para todo o sempre.
– Você é louco? – indagou o membro da Guilda mais alto.
Recuou um passo.
– Reconhece, então, que tenho o poder de fazer isso? –
perguntou Paul.
O agente da Guilda pareceu fitar o vazio por um momento,
e então:
– Sim, você é capaz de fazê-lo, mas não deve.
– Aaah – disse Paul, concordando consigo mesmo. –
Navegadores da Guilda, os dois, não?
– Sim!
O mais baixo falou:
– Você também ficaria cego e condenaria todos nós a uma
morte lenta. Faz ideia do que significa ficar sem a aguardente
de especiaria depois de adquirido o vício?
– O olho que vê adiante e enxerga o curso seguro se fecha
para sempre – disse Paul. – A Guilda está inválida. Os seres
humanos passam a ser pequenos grupos isolados em planetas
isolados. Sabe, posso fazer isso por puro despeito... ou só para
acabar com o tédio.
– Vamos discutir isso em particular – disse o membro da
Guilda mais alto. – Tenho certeza de que podemos chegar a um
acordo que...
– Mande a mensagem para sua gente em órbita de Arrakis
– ordenou Paul. – Esta discussão está me cansando. Se a frota
lá em cima não partir logo, não precisaremos mais conversar. –
Apontou com a cabeça os homens das comunicações num dos
cantos do átrio. – Podem usar nosso equipamento.
– Primeiro temos de discutir isso – disse o mais alto. – Não
podemos simplesmente...
– Mande a mensagem! – Paul vociferou. – O poder de
destruir algo representa o controle absoluto sobre essa coisa.
Vocês concordaram que eu tenho esse poder. Não estamos
aqui para discutir, nem negociar, nem fazer acordos. Vocês
obedecerão a minhas ordens ou arcarão com as consequências
agora mesmo!
– Ele está falando sério – disse o membro da Guilda mais
baixo. E Paul viu o medo se apoderar dos dois.
Vagarosamente, os dois foram até o equipamento de
comunicação dos fremen.
– Será que vão obedecer? – perguntou Gurney.
– Sua visão do tempo é estreita – explicou Paul. –
Enxergam o futuro até uma parede lisa que representa as
consequências da desobediência. Todos os navegadores da
Guilda em todas as naves lá em cima enxergam o futuro e veem
essa mesma parede. Eles vão obedecer.
Paul virou-se, olhou para o imperador e disse:
– Quando permitiram que subisse ao trono de seu pai, foi
só com a garantia de que você manteria o influxo de especiaria.
Você os decepcionou, majestade. Sabe quais são as
consequências?
– Não precisei da permissão de ninguém para...
– Pare de bancar o idiota – Paul vociferou. – A Guilda é
como uma vila à beira de um rio. Precisam da água, mas só
podem retirar a quantidade de que precisam. Não podem
represar nem controlar o rio, porque isso chamaria a atenção
para suas necessidades, o que um dia acarretaria sua
destruição. O influxo de especiaria, esse é o rio da Guilda, e eu
construí uma represa. Mas minha represa não pode ser
destruída sem que o rio seja destruído com ela.
O imperador passou uma das mãos pelos cabelos ruivos,
olhou para as costas dos dois membros da Guilda.
– Até mesmo sua Bene Gesserit e Proclamadora da
Verdade está tremendo – disse Paul. – As Reverendas Madres
podem empregar outros venenos para fazer seus truques, mas,
depois de usar a aguardente de especiaria, os outros deixam de
funcionar.
A velha recolheu suas vestes negras e informes, forçou
passagem pela multidão para se apresentar diante da barreira
de lanças.
– Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam – disse Paul. –
Faz muito tempo desde Caladan, não?
Ela olhou para a mãe de Paul, atrás dele:
– Bem, Jéssica, estou vendo que seu filho é mesmo o tal.
Por causa disso, podemos perdoá-la até mesmo pela aberração
que é sua filha.
Paul aplacou uma raiva gélida e penetrante, e falou:
– Vocês nunca tiveram o direito nem a razão de perdoar
minha mãe por coisa alguma!
Os olhos da velha encontraram os dele.
– Pode tentar seus truques comigo, bruxa velha – disse
Paul. – Onde está seu gom jabbar? Tente olhar para o lugar que
vocês não se atrevem a ver! Irá me encontrar lá, olhando para
você!
A velha baixou o olhar.
– Não tem nada a dizer? – quis saber Paul.
– Eu o acolhi entre os seres humanos – ela resmungou. –
Não manche essa honra.
Paul ergueu a voz:
– Observem-na, camaradas! Esta é uma Reverenda Madre
das Bene Gesserit, paciente de uma causa paciente. Foi capaz
de esperar com suas irmãs por noventa gerações, até que a
combinação de genes e local corretos produzisse a pessoa que
seus planos exigiam. Observem-na! Agora ela sabe que as
noventa gerações produziram essa pessoa. Aqui estou eu...
mas... nunca... farei... o que... ela... mandar!
– Jéssica! – a velha gritou. – Faça-o calar!
– Faça você mesma – Jéssica disse.
Paul lançou um olhar penetrante para a velha.
– Por sua participação nisso tudo, eu poderia mandar
estrangulá-la de bom grado – ele disse. – Você não conseguiria
me impedir! – ele gritou, ao vê-la se empertigar de fúria. – Mas
creio que o melhor castigo é obrigá-la a viver o resto de seus
anos eternamente incapaz de me tocar, ou de me obrigar a
fazer qualquer coisa que se encaixe em seus planos.
– Jéssica, o que foi que você fez? – indagou a velha.
– Cederei só numa coisa – disse Paul. – Vocês viram parte
do que a raça precisa, mas viram muito mal. Imaginam
controlar a reprodução humana e miscigenar alguns indivíduos
seletos de acordo com seu grande plano! Como compreendem
pouco o que...
– Não fale dessas coisas! – a velha silvou.
– Silêncio! – Paul berrou. A palavra pareceu ganhar
substância ao se propagar pelo ar que os separava, sob o
controle de Paul.
A velha cambaleou e caiu nos braços das pessoas atrás
dela, com o rosto descorado pelo choque diante da força com
que ele havia dominado sua psique. – Jéssica – ela sussurrou –,
Jéssica.
– Lembro-me de seu gom jabbar – disse Paul. – Lembre-se
do meu. Posso matá-la com uma palavra.
Os fremen espalhados pelo átrio se entreolharam. Não
dizia a lenda: “E sua palavra levará a morte eterna àqueles que
se opõem à retidão”?
Paul voltou sua atenção para a princesa alta ao lado do pai,
o imperador. Mantendo seus olhos focados nela, disse:
– Majestade, nós dois sabemos como sair desta
dificuldade.
O imperador olhou rapidamente para a filha, depois para
Paul.
– E você se atreveria? Você! Um aventureiro sem família,
um ninguém de...
– Já reconheceu quem eu sou – lembrou Paul. – Primo real,
foi o que disse. Vamos parar com essa bobagem.
– Sou seu soberano – disse o imperador.
Paul olhou para os membros da Guilda, que agora estavam
de pé junto ao equipamento de comunicação, voltados para ele.
Um deles fez que sim.
– Eu poderia obrigá-lo – disse Paul.
– Você não se atreveria! – desafiou o imperador, entre
dentes.
Paul só fez encará-lo.
A princesa pousou uma das mãos sobre o braço do pai.
– Pai – ela disse, e sua voz era suave e sedosa,
tranquilizadora.
– Não tente seus truques comigo – disse o imperador.
Olhou para ela. – Não precisa fazer isso, filha. Temos outros
recursos que...
– Mas eis aí um homem digno de ser seu filho – ela objetou.
A velha Reverenda Madre, recuperada a compostura,
abriu caminho até o imperador, inclinou-se para lhe sussurrar
algo ao pé do ouvido.
– Está intervindo em seu favor – disse Jéssica.
Paul continuou olhando para a princesa de cabelos
dourados. À parte, para sua mãe, falou:
– Aquela é Irulan, a mais velha, não é?
– Sim.
Chani se aproximou pelo outro lado.
– Quer que eu saia, Muad’Dib?
Ele olhou para ela.
– Sair? Você nunca mais sairá do meu lado.
– Não há nenhum laço entre nós – disse Chani.
Paul olhou para ela em silêncio durante um momento.
– Fale-me somente a verdade, minha Sihaya. – Quando ela
fez menção de responder, ele a silenciou, tocando-lhe os lábios
com um dedo. – O laço que nos une não pode ser desfeito – ele
disse. – Agora, observe de perto o que acontece, pois mais
tarde quero ver esta sala à luz de sua sabedoria.
O imperador e sua Proclamadora da Verdade discutiam
acaloradamente em voz baixa.
Paul falou para sua mãe:
– Ela não o deixa esquecer que isso faz parte de seu acordo
para colocar uma Bene Gesserit no trono, e foi Irulan quem elas
prepararam para isso.
– Era esse o plano? – comentou Jéssica.
– Não é óbvio? – Paul perguntou.
– Eu vejo os sinais! – disse Jéssica, ríspida. – Fiz a pergunta
para você não esquecer que é melhor não tentar me ensinar as
coisas que eu ensinei a você.
Paul olhou de relance para ela e flagrou um sorriso frio nos
lábios da mãe.
Gurney Halleck inclinou-se, para se interpor entre eles, e
disse:
– Não esqueça, milorde, que há um Harkonnen naquele
bando. – Acenou com a cabeça na direção da cabeleira morena
de Feyd-Rautha, acuado de encontro à barreira de lanças à
esquerda. – Aquele de olhos dissimulados, do lado esquerdo. O
rosto mais maldoso que já vi. Milorde me prometeu certa vez
que...
– Obrigado, Gurney – disse Paul.
– É o na-barão... o barão, agora que o velho morreu – disse
Gurney. – Servirá muito bem para o que eu...
– E você pode com ele, Gurney?
– Milorde está brincando!
– Essa discussão entre o imperador e a bruxa já se
estendeu demais, não acha, mãe?
Ela concordou.
– Verdade.
Paul ergueu a voz e bradou para o imperador:
– Majestade, há um Harkonnen entre vocês?
O desdém da realeza se revelou na maneira como o
imperador se virou para encarar Paul.
– Creio que meu séquito foi colocado sob a proteção de sua
palavra de honra como duque – ele disse.
– Pergunto apenas para ter a informação – esclareceu
Paul. – Quero saber se um Harkonnen faz parte oficialmente de
seu séquito, ou se um Harkonnen está meramente se
escondendo atrás de uma tecnicalidade por pura covardia.
O sorriso do imperador foi calculado.
– Quem quer que seja aceito como acompanhante do
imperador faz parte de meu séquito.
– Tem a palavra de um duque – disse Paul –, mas Muad’Dib
é uma outra história. Pode ser que ele não reconheça sua
definição de séquito. Meu amigo Gurney Halleck deseja matar
um Harkonnen. Se ele...
– Kanly! – gritou Feyd-Rautha. Atirou-se contra a barreira
de lanças. – Seu pai disse que era uma vendeta, Atreides. Você
me chama de covarde, mas se esconde entre suas mulheres e
oferece um lacaio para lutar comigo!
A velha Proclamadora da Verdade sussurrou com
veemência alguma coisa ao ouvido do imperador, mas ele a
afastou e disse:
– Kanly, pois não? A kanly tem regras rígidas.
– Paul, dê um fim nisso – pediu Jéssica.
– Milorde prometeu que eu teria a chance de me vingar dos
Harkonnen – disse Gurney.
– E você a teve – replicou Paul, sentindo um abandono
absurdo tomar conta de suas emoções. Tirou o manto e o
capuz pelos ombros e entregou-os a sua mãe, com o cinto e a
dagacris. Começou a soltar as presilhas do trajestilador. Sentia
agora que o universo se concentrava naquele momento.
– Isso não é necessário – falou Jéssica. – Existem métodos
mais fáceis, Paul.
Paul despiu o trajestilador, sacou a dagacris da bainha que
a mãe segurava.
– Eu sei – ele disse. – Veneno, um assassino, todos os
velhos métodos que conhecemos bem.
– Milorde me prometeu um Harkonnen! – protestou
Gurney, e Paul notou a fúria no rosto do homem, a maneira
como a cicatriz de cipó-tinta se destacava, escura e saliente. –
Milorde me deve isso!
– Eles o fizeram sofrer mais do que a mim? – perguntou
Paul.
– Minha irmã – Gurney respondeu, entre dentes. – Os anos
que passei no fosso dos escravos...
– Meu pai – disse Paul. – Meus bons amigos e
companheiros, Thufir Hawat e Duncan Idaho, os anos que
passei como fugitivo, sem título nem auxílio... e mais uma coisa:
agora é kanly, e você conhece tão bem quanto eu as regras que
devem prevalecer.
Halleck deixou cair os ombros.
– Milorde, se aquele porco... ele não passa de um animal
que se expulsa a pontapés, e depois é bom jogar fora o sapato
contaminado. Chame um executor, se precisar, ou deixe-me
cuidar disso, mas não se preste a...
– Muad’Dib não precisa fazer isso – disse Chani.
Paul olhou para ela, vendo em seus olhos o medo que
sentia por ele.
– Mas o duque Paul precisa – ele disse.
– Aquilo é um animal Harkonnen! – chiou Gurney.
Paul hesitou, prestes a revelar que ele mesmo tinha
ancestrais Harkonnen, mas se conteve a um olhar penetrante
da mãe e disse simplesmente:
– Mas aquele ser tem forma humana, Gurney, e, na dúvida,
merece ser tratado como um possível ser humano.
Gurney disse:
– Se ele fizer menção de...
– Por favor, afaste-se – disse Paul. Ergueu a dagacris e
empurrou Gurney delicadamente para o lado.
– Gurney! – Jéssica disse, tocando-lhe o braço. – Nesse
estado de ânimo, ele é como o avô. Não o distraia. É só o que
pode fazer por ele agora. – E ela pensou: Grande Mãe! Que
ironia.
O imperador observava Feyd-Rautha, via os ombros
fortes, os músculos protuberantes. Virou-se para olhar Paul:
um jovem de musculatura delineada, mas magérrimo, talvez
não tão ressequido como os arrakinos nativos, mas suas
costelas eram tão aparentes que se podiam contar, e os flancos
tão encovados que era possível acompanhar o movimento dos
músculos sob a pele.
Jéssica inclinou-se bem perto de Paul e baixou a voz para
que só ele a ouvisse:
– Só uma coisa, filho. Às vezes, uma pessoa perigosa é
preparada pelas Bene Gesserit, uma palavra é implantada nos
recessos mais profundos da mente pelos antigos métodos de
dor e prazer. O som-palavra mais comumente usado é
Uroshnor. Se esse aí foi preparado, como desconfio bastante
que foi, essa palavra, pronunciada ao ouvido dele, deixará seus
músculos flácidos e...
– Não quero nenhuma vantagem especial com esse aí –
disse Paul. – Saia do meu caminho.
Gurney dirigiu-se a ela:
– Por que ele está fazendo isso? Está pensando em se
deixar matar e tornar-se um mártir? Essa conversa religiosa
dos fremen, é isso que está anuviando sua razão?
Jéssica escondeu o rosto entre as mãos, percebendo que
ela não entendia inteiramente por que Paul tomava aquele
caminho. Sentia a morte na sala e sabia que Paul, mudado
como estava, era capaz de fazer o que Gurney havia sugerido.
Todos os talentos que ela possuía se concentravam na
necessidade de proteger o filho, mas não havia nada que ela
pudesse fazer.
– É essa conversa religiosa? – Gurney insistiu.
– Fique quieto – Jéssica sussurrou. – E reze.
Um sorriso repentino roçou a face do imperador.
– Se Feyd-Rautha Harkonnen... do meu séquito... assim o
deseja – ele disse –, eu o libero de todas as restrições e
concedo-lhe a liberdade de escolher seu próprio destino. – O
imperador acenou com a mão na direção dos guardas Fedaykin
de Paul. – Alguém aí dessa sua ralé está com meu cinto e minha
faca. Se desejar, Feyd-Rautha poderá confrontar você com
minha arma nas mãos.
– É o que desejo – disse Feyd-Rautha, e Paul viu o
entusiasmo no rosto do homem.
Excesso de confiança, Paul pensou. Eis aí uma vantagem
natural que posso aceitar.
– Peguem a faca do imperador – disse Paul, observando
sua ordem ser executada. – Deixem-na ali no chão. – Indicou o
lugar com o pé. – Apertem a ralé imperial contra a parede e
deixem o Harkonnen passar.
Um confusão de mantos, um arrastar de pés, ordens e
protestos em voz baixa acompanharam o cumprimento da
ordem de Paul. Os membros da Guilda continuaram junto ao
equipamento de comunicação. Olhavam feio para Paul,
obviamente indecisos.
Estão acostumados a ver o futuro, Paul pensou. Neste
lugar, neste momento, estão cegos... assim como eu. E ele
experimentou os ventos do tempo, sentindo o turbilhão, o nexo
tempestuoso que agora se concentrava naquele lugar-
momento. Até mesmo as pequenas brechas agora estavam
fechadas. Ele sabia que ali estava o jihad ainda por nascer. Ali
estava a consciência da raça que ele havia conhecido um dia
como seu propósito terrível. Ali havia razão suficiente para um
Kwisatz Haderach, ou uma Lisan al-Gaib, ou até mesmo para os
planos defeituosos das Bene Gesserit. A raça humana havia
percebido sua própria dormência, sua própria estagnação, e
agora conhecia somente a necessidade de provar o turbilhão
que misturaria os genes e permitiria às combinações novas e
fortes sobreviver. Todos os seres humanos estavam vivos,
naquele momento, num único organismo inconsciente,
passando por uma espécie de cio capaz de superar qualquer
obstáculo.
E Paul viu como eram inúteis seus esforços para mudar
uma coisinha que fosse naquilo tudo. Tinha cogitado se opor ao
jihad dentro dele, mas o jihad viria. Suas legiões enfurecidas
partiriam de Arrakis até mesmo sem ele. Precisavam apenas
da lenda que ele já havia se tornado. Tinha mostrado a eles o
caminho, concedido-lhes o domínio até mesmo sobre a Guilda,
que precisava da especiaria para existir.
Foi tomado pela sensação de fracasso e, através dela, viu
que Feyd-Rautha Harkonnen havia tirado o uniforme rasgado e
vestia somente uma cinta de luta feita de malha.
Este é o clímax, Paul pensou. A partir daqui, o futuro se
abre, as nuvens dão lugar a uma espécie de glória. E, se eu
morrer aqui, dirão que me sacrifiquei para que meu espírito
pudesse liderá-los. E, se eu sobreviver, dirão que nada é capaz
de se opor a Muad’Dib.
– O Atreides está pronto? – Feyd-Rautha perguntou,
usando as palavras do antigo ritual da kanly.
Paul decidiu responder à moda dos fremen:
– Que sua faca lasque e quebre! – Apontou a arma do
imperador no chão, indicando que Feyd-Rautha devia avançar
e pegá-la.
Mantendo sua atenção em Paul, Feyd-Rautha pegou a faca,
sopesando-a por um momento em sua mão, para se acostumar
com a arma. Sua empolgação se inflamou. Era a luta com a qual
havia sonhado: homem contra homem, perícia contra perícia,
sem a interferência dos escudos. Via uma trilha para o poder
abrir-se diante dele, pois o imperador certamente
recompensaria quem quer que matasse aquele duque
incômodo. A recompensa poderia ser até mesmo aquela filha
orgulhosa e uma parte do trono. E aquele duque rústico, o
aventureiro de um mundo atrasado, não poderia ser páreo
para um Harkonnen treinado em todo tipo de ardil e traição
depois de mil combates na arena. E o campônio não tinha como
saber que enfrentava ali outras armas além de uma faca.
Vejamos se você é à prova de veneno!, pensou Feyd-Rautha.
Cumprimentou Paul com a arma do imperador e disse:
– Conheça a morte, idiota.
– Vamos lutar, primo? – Paul perguntou. Avançou nas
pontas dos pés, de olho na arma que o aguardava, com o corpo
abaixado e a dagacris branco-leite em riste, como se fosse uma
extensão de seu braço.
Circularam um ao outro, raspando o chão com os pés
descalços, observando com olhos atentos, à procura da menor
brecha.
– Você dança lindamente – disse Feyd-Rautha.
Gosta de falar, Paul pensou. Mais uma fraqueza. O silêncio
o incomoda.
– Já se confessou? – Feyd-Rautha perguntou.
Paul continuou a descrever seu círculo, em silêncio.
E a velha Reverenda Madre, assistindo à luta em meio ao
séquito apertado do imperador, pôs-se a tremer. O jovem
Atreides havia chamado o Harkonnen de primo. Só podia
significar que ele sabia que os dois tinham ancestrais comuns,
o que era compreensível, pois ele era o Kwisatz Haderach. Mas
as palavras a obrigaram a se concentrar na única coisa que
realmente importava ali.
Aquilo poderia ser uma grande catástrofe para o plano de
reprodução das Bene Gesserit.
Ela tinha visto uma parte do que Paul vira ali, que Feyd-
Rautha talvez chegasse a matar, sem sair vitorioso. Um outro
pensamento, porém, quase a subjugava. Dois produtos finais
daquele programa extenso e custoso enfrentavam um ao outro
numa luta até a morte que poderia facilmente tirar a vida de
ambos. Se os dois morressem ali, restariam apenas a filha
bastarda de Feyd-Rautha, ainda um bebê, uma incógnita, um
fator desconhecido, e Alia, a abominação.
– Talvez vocês só conheçam ritos pagãos por aqui – disse
Feyd-Rautha. – Quer que a Proclamadora da Verdade do
imperador prepare seu espírito para a jornada?
Paul sorriu, descrevendo um círculo para a direita, alerta,
os pensamentos lúgubres suprimidos pelas necessidades do
momento.
Feyd-Rautha saltou, fazendo uma finta com a mão direita,
mas só depois de passar rapidamente a faca para a esquerda.
Paul esquivou-se com facilidade, reparando na hesitação
condicionada pelo hábito do escudo no golpe de Feyd-Rautha.
Contudo, não era o condicionamento mais forte que Paul já
tinha visto, e ele percebeu que Feyd-Rautha já havia lutado
antes com oponentes não protegidos por escudos.
– Os Atreides costumam fugir ou ficar e lutar? – perguntou
Feyd-Rautha.
Paul retomou o movimento circular, em silêncio. As
palavras de Idaho vieram-lhe à mente, as palavras de seu
treinamento, havia tanto tempo, na sala onde costumava
praticar em Caladan: “Use os primeiros instantes para estudar o
oponente. Pode ser que, com isso, deixe passar a oportunidade
de obter uma vitória rápida, mas os momentos de estudo
garantem o êxito. É esperar e ter certeza”.
– Está pensando, talvez, que esta dança irá prolongar um
pouco sua vida – disse Feyd-Rautha. – Muito bem. – Ele parou
de circular e se aprumou.
Paul tinha visto o suficiente para fazer uma primeira
aproximação. Feyd-Rautha conduzia para o lado esquerdo,
apresentando o quadril direito, como se a cinta de malha fosse
capaz de proteger todo o seu flanco. Era a ação de um homem
treinado para lutar com um escudo ativado e uma faca em cada
mão.
Ou... E Paul hesitou... a cinta era mais do que parecia ser.
O Harkonnen parecia confiante demais ao lutar com um
homem que, naquele mesmo dia, havia liderado as forças que
venceram legiões de Sardaukar.
Feyd-Rautha notou a hesitação e disse:
– Para que adiar o inevitável? Está só me impedindo de
exercer meus direitos sobre esta bola de lixo.
Se for um dardo, pensou Paul, está bem escondido. A cinta
não parece ter sido adulterada.
– Por que você não fala? – Feyd-Rautha quis saber.
Paul retomou o círculo e a observação, permitindo-se um
sorriso frio diante do nervosismo na voz de Feyd-Rautha, um
indício de que a pressão do silêncio aumentava.
– Você ri, hein? – perguntou Feyd-Rautha. E saltou em
meio à frase.
Esperando a ligeira hesitação, Paul quase não conseguiu
se esquivar do mergulho veloz da arma e sentiu a ponta
arranhar-lhe o braço esquerdo. Calou a dor repentina naquele
ponto, e sua mente foi tomada pela constatação de que a
hesitação anterior não passara de um truque, uma finta dentro
de outra. O oponente era melhor do que ele havia imaginado.
Haveria truques dentro de truques dentro de truques.
– Foi seu Thufir Hawat quem me ensinou um pouco do que
sei – disse Feyd-Rautha. – Ele me iniciou como matador. Pena o
velho idiota não ter vivido para ver isto.
E Paul lembrou-se de Idaho ter dito certa vez: “Espere
apenas o que acontece na luta. Assim nunca ficará surpreso”.
Mais uma vez, os dois circularam um ao outro, abaixados,
cautelosos.
Paul viu o entusiasmo do oponente retornar, admirou-se
com isso. Um arranhão significava tanto assim para aquele
homem? A menos que a lâmina estivesse envenenada! Mas
como poderia ser? Seus próprios homens haviam manipulado a
arma e examinado-a com um farejador antes de entregá-la.
Eram muito bem-treinados para deixar passar uma coisa tão
óbvia.
– Aquela mulher com quem você estava conversando ali –
disse Feyd-Rautha. – A miudinha. Ela é especial para você? Um
bichinho de estimação, talvez? Por acaso merece minha
atenção especial?
Paul continuou calado, sondando com seus sentidos
interiores, examinando o sangue da ferida, encontrando um
vestígio de soporífero deixado pela arma do imperador.
Reconfigurou seu próprio metabolismo para enfrentar aquela
ameaça e transformar as moléculas do soporífero, mas sentiu
um arrepio de dúvida. Haviam preparado uma arma com
soporífero. Um soporífero. Nada que alertasse um farejador de
venenos, mas forte o bastante para deixar mais lentos os
músculos que tocasse. Seus inimigos tinham os próprios
planos dentro de planos, as próprias trapaças preparadas.
Mais uma vez, Feyd-Rautha saltou e golpeou.
Paul, com o sorriso congelado no rosto, fintou com
lentidão, como se a droga o tivesse inibido, e, no último
instante, esquivou-se e interceptou o braço que vinha de cima
com a ponta da dagacris.
Feyd-Rautha saltou de lado, desvencilhou-se e recuou, com
a arma já na mão esquerda, e tamanho foi seu autocontrole que
somente uma ligeira lividez no queixo denunciou a dor
lancinante do corte que Paul lhe fizera.
Que ele conheça agora seu momento de dúvida, Paul
pensou. Deixe-o desconfiar que usei veneno.
– Traição! – berrou Feyd-Rautha. – Ele me envenenou!
Sinto o veneno em meu braço!
Paul deixou cair seu manto de silêncio e disse:
– É só um pouco de ácido para compensar o soporífero na
arma do imperador.
Feyd-Rautha retribuiu o sorriso frio de Paul, ergueu a
arma na mão esquerda para cumprimentá-lo
zombeteiramente. Atrás da faca, seus olhos fulguravam de
ódio.
Paul passou a dagacris para a mão esquerda, imitando o
oponente. Voltaram a descrever círculos, estudando-se.
Feyd-Rautha começou a reduzir o espaço entre eles,
avançando aos poucos, com a faca em guarda alta, a raiva
patente nos olhos semicerrados e na disposição do queixo.
Fintou para a direita e por baixo, e os dois se atracaram,
travaram as facas e passaram a uma disputa de força.
Paul, atento ao quadril direito de Feyd-Rautha, onde
desconfiava haver um dardo envenenado, forçou o giro para a
direita. Quase não viu a ponta da agulha surgir abaixo da linha
do cinturão. Foi alertado pela abertura e a mudança de direção
no movimento de Feyd-Rautha. A ponta diminuta não atingiu a
pele de Paul por uma fração mínima.
No quadril esquerdo!
Uma traição dentro de outra dentro de outra, Paul lembrou.
Usando os músculos treinados pela Doutrina Bene Gesserit,
ele relaxou o corpo, tentando se aproveitar de um reflexo de
Feyd-Rautha, mas a necessidade de evitar a ponta minúscula
que se projetava do quadril do oponente tirou-lhe um pouco o
equilíbrio, o suficiente para fazê-lo perder o pé de apoio e cair
pesadamente ao chão, com Feyd-Rautha por cima.
– Está vendo, ali no meu quadril? – Feyd-Rautha sussurrou.
– Sua morte, idiota. – E começou a torcer o corpo, forçando a
agulha envenenada a se aproximar cada vez mais. – Vai
paralisar seus músculos, e minha faca acabará com você. Não
deixará nenhum vestígio detectável.
Paul pelejava, ouvindo em sua mente os gritos mudos de
ancestrais impressos em suas células, exigindo que ele usasse a
palavra secreta para retardar Feyd-Rautha e se salvar.
– Não vou usá-la! – exclamou Paul, com a voz entrecortada.
Feyd-Rautha se espantou; foi surpreendido numa fração
mínima de hesitação. Foi o suficiente para Paul descobrir o
equilíbrio precário num dos músculos da perna do oponente, e
suas posições se inverteram. Feyd-Rautha viu-se parcialmente
por baixo, com o quadril direito para cima, incapaz de se virar
por causa da minúscula ponta da agulha, presa ao chão sob seu
corpo.
Paul livrou a mão esquerda, lubrificada pelo sangue do
braço, e enfiou a faca com força sob o queixo de Feyd-Rautha. A
ponta chegou ao cérebro. O corpo de Feyd-Rautha se contraiu,
depois cedeu, ainda deitado de lado, preso pela agulha
enterrada no chão.
Inspirando fundo para recuperar a calma, Paul tomou
impulso, afastou-se do corpo e se levantou. De pé ao lado do
cadáver, com a faca numa das mãos, ele ergueu os olhos com
vagar deliberado para fitar o imperador, do outro lado da sala.
– Majestade – disse Paul –, sua força perdeu mais um
homem. Podemos agora deixar de hipocrisia e fingimento?
Podemos discutir o futuro? Sua filha casada comigo e o
caminho livre para um Atreides se sentar no trono.
O imperador se virou e olhou para o conde Fenring. O
conde devolveu-lhe o olhar: o cinza contra o verde. O
pensamento pairava claramente entre eles, pois sua amizade
era tão antiga que se faziam entender apenas com um rápido
olhar.
Mate esse oportunista para mim, dizia o imperador. Sim, o
Atreides é jovem e habilidoso, mas também está cansado depois
de tanto esforço e, de qualquer maneira, não seria páreo para
você. Desafie-o agora... você sabe como fazer. Mate-o.
Lentamente, Fenring moveu a cabeça, um giro demorado,
até encarar Paul.
– Faça o que mandei! – silvou o imperador.
O conde se concentrou em Paul, vendo-o com os olhos que
sua lady Margot haviam treinado na Doutrina Bene Gesserit,
ciente do mistério e da grandeza secreta que envolviam aquele
jovem Atreides.
Eu conseguiria matá-lo, Fenring pensou, e sabia que era
verdade.
Mas alguma coisa nas profundezas furtivas de seu ser
deteve o conde, e ele vislumbrou brevemente, e de maneira
inadequada, a vantagem que tinha sobre Paul: um jeito de se
esconder do jovem, uma dissimulação da pessoa e das
motivações que nenhum olhar conseguiria perceber.
Paul, parcialmente ciente disso pela maneira como o nexo
temporal se agitava, enfim entendeu por que nunca tinha visto
Fenring nas teias da presciência. Fenring era um daqueles que
poderiam ter sido quase um Kwisatz Haderach, inutilizado por
um defeito no padrão genético: um eunuco cujo talento se
concentrava na dissimulação e no isolamento interior. Paul foi
tomado por uma pena profunda pelo conde, a primeira
sensação de irmandade que ele já havia experimentado.
Fenring, interpretando a emoção de Paul, disse:
– Majestade, sou obrigado a recusar.
A fúria dominou Shaddam IV. Ele deu dois passos curtos
por entre seu séquito e esmurrou Fenring no queixo.
Um rubor escuro se espalhou pelo rosto do conde. Ele
olhou diretamente para o imperador e falou, com deliberada
falta de ênfase:
– Somos amigos há tempos, majestade. O que faço agora é
pela amizade. Esquecerei que me bateu.
Paul limpou a garganta e disse:
– Falávamos do trono, majestade.
O imperador girou nos calcanhares e olhou ferozmente
para Paul.
– Eu estou no trono! – ele vociferou.
– Você terá um trono em Salusa Secundus – disse Paul.
– Depus minhas armas e vim aqui mediante sua palavra de
honra! – berrou o imperador. – Ousa ameaçar...
– Sua pessoa está segura em minha presença – disse Paul.
– Foi um Atreides quem prometeu. Muad’Dib, porém, condena
você a seu planeta-prisão. Mas não tema, majestade. Aliviarei a
aridez do lugar com todos os poderes a minha disposição. Irá
se tornar um planeta ajardinado, cheio de amenidades.
À medida que o significado oculto nas palavras de Paul foi
ganhando vulto em sua mente, o imperador passou a olhar com
ferocidade para o jovem duque do outro lado da sala.
– Agora os verdadeiros motivos começam a aparecer – ele
desdenhou.
– Verdade – disse Paul.
– E quanto a Arrakis? – perguntou o imperador. – Mais um
planeta ajardinado e cheio de amenidades?
– Os fremen têm a palavra de Muad’Dib – disse Paul. –
Teremos água corrente, a céu aberto, e oásis verdejantes, uma
fartura de coisas boas. Mas também temos de pensar na
especiaria. Portanto, sempre haverá desertos em Arrakis... e
ventos violentos, e provações para fortalecer um homem. Nós,
fremen, temos um ditado: “Deus criou Arrakis para treinar os
fiéis”. Não se pode contradizer a palavra de Deus.
A velha Proclamadora da Verdade, a Reverenda Madre
Gaius Helen Mohiam, agora tinha sua própria interpretação
para os significados ocultos nas palavras de Paul. Vislumbrou o
jihad e disse:
– Não pode soltar essa gente no universo!
– Vocês terão saudade da gentileza dos Sardaukar! –
cortou Paul.
– Não pode – ela sussurrou.
– Você é uma Proclamadora da Verdade – disse Paul. –
Reconsidere suas palavras. – Olhou para a princesa. – É melhor
acabar com isso logo, majestade.
O imperador dirigiu um olhar angustiado a sua filha. Ela
tocou-lhe o braço e falou, num tom tranquilizador:
– Para isso fui treinada, pai.
Ele inspirou fundo.
– Não há como impedir isso – murmurou a velha
Proclamadora da Verdade.
O imperador se aprumou, todo empertigado, com um ar de
dignidade recuperada.
– Quem irá negociar em seu nome, primo? – ele perguntou.
Paul se virou; viu a mãe, de olhos cansados, esperando ao
lado de Chani em meio a um esquadrão de guardas Fedaykin.
Foi até elas, pôs-se a olhar para Chani.
– Sei quais são os motivos – Chani sussurrou. – Se tem de
ser... Usul.
Paul, ouvindo as lágrimas secretas na voz dela, tocou-lhe a
face.
– Minha Sihaya não precisa ter medo de nada, nunca – ele
sussurrou. Baixou o braço, encarou a mãe. – Você irá negociar
por mim, mãe, com Chani a seu lado. Ela tem sabedoria e olhos
aguçados. E é com razão que se diz que ninguém negocia tão
duro quanto um fremen. Ela verá as coisas com os olhos do
amor que tem por mim e com o pensamento nos filhos que
ainda virão e em suas necessidades. Escute-a.
Jéssica percebeu o calculismo insensível do filho e
reprimiu um estremecimento.
– Quais são suas instruções? – ela perguntou.
– Todas as ações da Companhia CHOAM nas mãos do
imperador como dote – ele disse.
– Todas? – Ficou tão espantada que quase perdeu a voz.
– É para despojá-lo de tudo o que tem. Vou querer um
título de conde e um cargo de diretor da CHOAM para Gurney
Halleck, e quero vê-lo no feudo de Caladan. Haverá títulos e o
poder concomitante para todos os homens leais aos Atreides
que sobreviveram, sem deixar de fora nem o mais reles soldado
de infantaria.
– E quanto aos fremen? – Jéssica perguntou.
– Os fremen são meus – disse Paul. – O que receberem será
concedido por Muad’Dib. Começará com a nomeação de Stilgar
como governador de Arrakis, mas isso pode esperar.
– E para mim? – Jéssica perguntou.
– Alguma coisa que você queira?
– Talvez Caladan – ela disse, olhando para Gurney. – Não
tenho certeza. Eu me tornei uma fremen... e uma Reverenda
Madre... até demais. Preciso de um pouco de paz e
tranquilidade para pensar.
– Isso você terá – disse Paul –, e mais alguma coisa que
Gurney ou eu possamos lhe dar.
Jéssica fez que sim, sentindo-se repentinamente idosa e
cansada. Olhou para Chani.
– E para a concubina real?
– Nenhum título para mim – Chani sussurrou. – Nada. Eu
imploro.
Paul a olhou nos olhos, lembrando-se dela, de repente,
com o pequeno Leto nos braços, o filho dos dois, morto naquela
violência.
– Prometo-lhe neste instante – ele sussurrou – que você
nunca precisará de um título. Aquela mulher será minha
esposa e você, a concubina, porque isto é política, e temos de
consolidar a paz agora, aliciar as Casas Maiores do Landsraad.
Temos de obedecer às formalidades. Mas aquela princesa
nunca terá nada de mim além de meu nome. Nenhum filho meu,
nenhum contato, nenhuma doçura no olhar, nenhum instante
de desejo.
– É o que diz agora – disse Chani. Olhou para o outro lado
da sala, para a princesa alta.
– Conhece meu filho tão pouco assim? – Jéssica sussurrou.
– Veja aquela princesa ali, tão orgulhosa e confiante. Dizem que
tem pretensões literárias. Esperemos que encontre consolo
nessas coisas, pois não terá muito mais que isso. – Jéssica
deixou escapar um riso amargo. – Pense só, Chani: aquela
princesa terá o nome, mas será menos que uma concubina,
nunca conhecerá um momento de ternura do homem com
quem estará comprometida. Ao passo que nós, Chani, nós que
levamos o nome de concubinas... a história irá nos chamar de
esposas.
Apêndices
Apêndice I:
A ecologia de Duna

Passado um ponto crítico no interior de


um espaço finito, a liberdade diminui à
proporção que os números aumentam.
Isso vale tanto para os seres humanos no
espaço finito de um ecossistema
planetário quanto para as moléculas de
um gás num recipiente hermeticamente
fechado. A pergunta, no caso dos seres
humanos, não é quantos conseguirão
sobreviver dentro do sistema, e sim que
tipo de vida levarão aqueles que
sobreviverem.
– Pardot Kynes, primeiro planetólogo de Arrakis

A impressão deixada por Arrakis na mente do recém-


chegado geralmente é a de uma aridez excessiva. Os
estrangeiros talvez pensem que nada conseguiria viver ou
crescer ali a céu aberto, que esse é o verdadeiro deserto que
nunca foi e nunca será fértil.
Para Pardot Kynes, o planeta era só uma forma de
expressão da energia, uma máquina acionada pelo sol.
Precisava ser remodelado para se adaptar às necessidades
humanas. Sua mente se voltou de imediato para a população
humana e nômade, os fremen. Que desafio! Que instrumento
eles poderiam ser! Os fremen: uma força ecológica e geológica
de potencial quase ilimitado.
Era um homem simples e direto em muitos aspectos, o tal
Pardot Kynes. Precisa contornar as restrições dos Harkonnen?
Excelente. Então case-se com uma mulher fremen. Quando ela
lhe der um filho fremen, comece com ele, com Liet-Kynes, e as
outras crianças, ensine-lhes ecologia, crie uma nova
linguagem, com símbolos que preparem a mente para
manipular uma paisagem inteira, seu clima, os limites das
estações, e para enfim transpor todas as ideias de força e
penetrar a consciência deslumbrante da ordem.
“Existe uma beleza de movimento e equilíbrio que é
reconhecida internamente em qualquer planeta salutar ao
homem”, dizia Kynes. “Vê-se nessa beleza um efeito
estabilizador e dinâmico essencial a toda a vida. Seu objetivo é
simples: manter e produzir padrões coordenados de
diversidade crescente. A vida melhora a capacidade de um
sistema fechado de sustentá-la. A vida – todas as formas de
vida – está a serviço da vida. Os nutrientes necessários a ela
são disponibilizados pelas formas de vida numa variedade cada
vez maior à medida que a diversidade da vida aumenta. A
paisagem inteira ganha vida, cheia de relações dentro de
relações dentro de relações.”
Esse era Pardot Kynes dando aulas para uma turma no
sietch.
Contudo, antes das aulas, ele teve de convencer os fremen.
Para entender como isso aconteceu, primeiro é preciso
entender a enorme obstinação, a inocência com a qual ele
abordava qualquer problema. Não era ingênuo: simplesmente
não se permitia nenhuma distração.
Numa tarde quente, ele estava explorando a paisagem de
Arrakis num carro terrestre de um só lugar quando deparou
com uma cena lamentavelmente comum. Seis mercenários
Harkonnen, munidos de escudos e armados até os dentes,
haviam apanhado três fremen jovens ao ar livre, atrás da
Muralha-Escudo, perto da vila do Fole. Pareceu a Kynes uma
luta renhida, uma pancadaria mais cômica que real, até ele
reparar que os Harkonnen pretendiam matar os fremen. A
essa altura, um dos jovens já estava no chão, com uma artéria
seccionada; dois mercenários também haviam tombado, mas
ainda eram quatro homens armados contra dois rapazolas.
Kynes não era valente: apenas obstinado e cauteloso. Os
Harkonnen estavam matando os fremen. Estavam destruindo
os instrumentos com os quais ele pretendia recriar um planeta!
Acionou seu próprio escudo, investiu e matou dois dos
Harkonnen com um aço-liso antes que percebessem que havia
alguém atrás deles. Esquivou-se de um golpe de espada
desferido por um dos outros dois, abriu a garganta do homem
com um rápido entretisser e deixou o único mercenário que
restava para os dois jovens fremen, voltando toda a sua
atenção para salvar o rapaz ferido. E o salvou mesmo...
enquanto o sexto Harkonnen era despachado.
Agora, mas que grande embrulho de areia aquele! Os
fremen não sabiam o que fazer com Kynes. Naturalmente,
sabiam quem ele era. Nenhum homem pisava em Arrakis sem
que um dossiê completo chegasse às fortalezas fremen. Eles o
conheciam: era um funcionário do Império.
Mas ele matou os Harkonnen!
Os adultos talvez tivessem dado de ombros e, com uma
certa tristeza, mandado seu espectro para junto dos seis
homens mortos ali no chão. Mas aqueles fremen eram jovens
inexperientes, e tudo o que viram foi que deviam àquele
funcionário imperial uma dívida de gratidão extrema.
Kynes acabou, dois dias depois, num sietch que
sobranceava o Desfiladeiro do Vento. Para ele, tudo era muito
natural. Falou aos fremen sobre água, dunas ancoradas por
gramíneas, palmares cheios de tamareiras, qanats a céu aberto
correndo pelo deserto. Falou, e falou, e falou.
A seu redor acontecia um debate acalorado que Kynes
nunca notou. O que fazer com aquele louco? Ele conhecia a
localização de um grande sietch. O que fazer? E as coisas que
dizia, aquela conversa maluca sobre um paraíso em Arrakis?
Era só conversa. Ele sabia demais. Mas matou os Harkonnen! E
o fardo d’água? Desde quando devemos alguma coisa ao
Imperium? Ele matou os Harkonnen. Qualquer um é capaz de
matar os Harkonnen. Eu mesmo já fiz isso.
Mas e aquela conversa sobre o desabrochar de Arrakis?
Muito simples: onde está a água para isso?
Ele diz que está aqui! E ele salvou três dos nossos.
Salvou três idiotas que ficaram na frente do punho dos
Harkonnen! E ele viu dagacrises!
Já se sabia a decisão a tomar horas antes de alguém lhe
dar voz. O tau de um sietch diz a seus membros o que precisam
fazer; conhece-se até mesmo a necessidade mais cruel.
Mandaram um guerreiro experiente com uma faca consagrada
para fazer o serviço. Dois hidromestres o acompanharam para
recolher a água do corpo. Uma necessidade cruel.
É duvidoso que Kynes tenha dado atenção a esse suposto
executor. Falava para um grupo que o cercava a uma distância
cautelosa. Caminhava ao falar, descrevendo um círculo breve, e
gesticulava. Água a céu aberto, dizia Kynes. Caminhar ao ar
livre sem os trajestiladores. Água a ser retirada de tanques!
Portogais!
O homem com a faca o confrontou.
– Retire-se – disse Kynes, e continuou a falar a respeito de
captadores de vento secretos. Esbarrou no homem ao passar
por ele. As costas de Kynes ficaram expostas ao golpe
cerimonial.
Não há mais como saber o que passou pela mente daquele
suposto executor. Teria finalmente escutado Kynes e
acreditado? Quem sabe? Mas o que ele fez ficou registrado.
Uliet era seu nome, Liet Sênior. Uliet deu três passos e caiu
deliberadamente sobre a própria faca: “retirou-se”. Suicídio?
Há quem diga que Shai-hulud o conduziu.
Tamanho presságio!
A partir daí, bastava a Kynes apontar e dizer: “vocês vão
para lá”. E tribos inteiras de fremen iam. Homens morriam,
mulheres morriam, crianças morriam. Mas eles iam.
Kynes voltou a suas tarefas imperiais, dirigindo as
Estações de Experimentação Botânica. E agora os fremen
começavam a aparecer entre os funcionários das estações. Os
fremen se entreolhavam. Estavam infiltrando o “sistema”, uma
possibilidade que nunca haviam considerado. As ferramentas
das estações começaram a entrar nos sietch, principalmente
as radiofresas, que eram usadas para escavar bacias coletoras
subterrâneas e captadores de vento secretos.
A água começou a acumular nas bacias.
Ficou evidente para os fremen que Kynes não era
totalmente louco, só o suficiente para ser considerado um
homem santo. Pertencia aos umma, a irmandade dos profetas.
O espectro de Uliet foi promovido ao sadus, o trono dos juízes
celestiais.
Kynes – direto e de uma determinação feroz – sabia que as
pesquisas extremamente sistemáticas não produziriam nada
novo. Montou experimentos limitados a pequenas unidades,
com o intercâmbio frequente de informações, para obter um
rápido efeito Tansley, e deixou cada grupo encontrar seu
próprio caminho. Tinham de reunir milhões de minúsculos
fatos. Sistematizou apenas esboços de testes isolados e
aproximados que pudessem colocar suas dificuldades em
perspectiva.
Colheram amostras geológicas por todo o bled.
Desenvolveram mapas das prolongadas variações de tempo
atmosférico a que se dava o nome de clima. Ele descobriu que,
no amplo cinturão delimitado pelos paralelos simétricos aos
setenta graus, tanto norte quanto sul, as temperaturas
durante milhares de anos não tinham saído da faixa de 254 a
332 (escala absoluta), e que esse cinturão tinha longas
estações de cultivo, nas quais as temperaturas variavam de
284 a 302 na escala absoluta: o intervalo de “bonança” para as
formas de vida terrenas... desde que resolvessem o problema
da água.
– Quando iremos resolvê-lo? – perguntaram os fremen. –
Quando veremos Arrakis tornar-se um paraíso?
À maneira de um professor respondendo a uma criança
que perguntasse quanto é dois mais dois, Kynes lhes disse:
– De trezentos a quinhentos anos.
Um povo de menos fibra talvez gemesse de desânimo. Mas
os fremen aprenderam a ser pacientes com homens munidos
de chicotes. Era um pouco mais de tempo do que esperavam,
mas todos viram que o dia abençoado chegaria. Apertaram as
faixas que traziam à cintura e voltaram ao trabalho. De algum
modo, a decepção tornava mais real a esperança de um
paraíso.
A preocupação em Arrakis não era a água, e sim a
umidade. Os animais de estimação eram praticamente
desconhecidos; os de criação, raros. Alguns contrabandistas
empregavam o jumento do deserto domesticado, o kulon, mas
o custo em água era alto, mesmo quando se equipavam os
bichos com trajestiladores modificados.
Kynes pensou em instalar usinas de redução para
recuperar a água a partir do hidrogênio e do oxigênio presos na
rocha natural, mas o custo energético era demasiado. As
calotas polares (desconsiderando-se a falsa sensação de
hidrossegurança que davam aos peones) continham uma
quantidade muito pequena para o projeto... e ele já desconfiava
de onde a água deveria estar. Havia aquele aumento
consistente da umidade em altitudes medianas e em certos
ventos. Havia aquela pista fundamental na composição do ar:
23 por cento de oxigênio, 75,4 por cento de nitrogênio e 0,025
por cento de dióxido de carbono, ficando os gases residuais
com o resto.
Havia uma raiz nativa e rara que crescia acima dos 2.500
metros na zona temperada setentrional. Um tubérculo de dois
metros de comprimento rendia meio litro d’água. E havia as
plantas desérticas de origem terrena: as mais resistentes
davam sinais de que poderiam vicejar quando plantadas em
depressões revestidas com condensadores de orvalho.
Foi aí que Kynes viu a caldeira de sal.
Seu tóptero, voando entre duas estações longínquas no
bled, foi tirado do curso por uma tempestade. Quando a
tormenta passou, lá estava a caldeira – uma depressão oval
gigantesca, com uns trezentos quilômetros em seu maior
comprimento –, uma surpresa de branco ofuscante no deserto
aberto. Kynes aterrissou, provou o gosto da superfície da
caldeira, varrida pela tempestade.
Sal.
Agora ele tinha certeza.
Existira... um dia... água a céu aberto em Arrakis. Ele
começou a reexaminar os indícios dos poços secos, onde os
filetes de água apareciam e desapareciam, e nunca mais
retornavam.
Kynes colocou seus recém-treinados limnólogos fremen
para trabalhar. Sua principal pista: fragmentos coriáceos de
matéria encontrados ocasionalmente na massa pré-especiaria
depois de uma explosão. Eram atribuídos a uma fictícia “truta
da areia” nas histórias folclóricas dos fremen. Quando os fatos
se tornaram provas, uma criatura surgiu para explicar aqueles
fragmentos coriáceos: um organismo que nadava na areia e
prendia a água em bolsões férteis no interior dos estratos
inferiores e porosos abaixo da faixa dos 280 (escala absoluta).
Esses “surrupiadores de água” morriam aos milhões em
cada explosão de especiaria. Uma alteração de cinco graus na
temperatura era capaz de matá-los. Os poucos sobreviventes
entravam numa hibernação cística semidormente, emergindo
depois de seis anos como vermes da areia de pequeno porte
(por volta de três metros de comprimento). Desses, somente
alguns escapavam dos irmãos maiores e dos bolsões de água
da pré-especiaria para chegar à maturidade como o gigantesco
shai-hulud. (A água é um veneno para shai-hulud, como os
fremen já sabiam havia tempos, pois afogavam o raro “verme
mirrado” do Erg Menor para produzir o narcótico de espectro
perceptivo que eles chamam de Água da Vida. O “verme
mirrado” é uma forma primitiva de shai-hulud que chega
apenas a nove metros de comprimento, aproximadamente.)
Agora eles conheciam todo o círculo de relações: do
criadorzinho para a massa pré-especiaria; do criadorzinho
para shai-hulud; shai-hulud, que disseminava a especiaria, da
qual se alimentavam criaturas microscópicas chamadas de
psamoplâncton; o psamoplâncton, o alimento de shai-hulud,
que crescia, enterrava-se e transformava-se em
criadorezinhos.
Kynes e sua gente desviaram sua atenção dessas grandes
relações para a microecologia. Primeiro, o clima: a superfície
da areia muitas vezes atingia temperaturas de 344 a 350 graus
(absolutos). Trinta centímetros abaixo, poderiam ser 55 graus
mais baixas; trinta centímetros acima, 25 graus mais baixas.
Folhas ou sombras escuras poderiam proporcionar novo
resfriamento de 18 graus. Em seguida, os nutrientes: a areia de
Arrakis é, em grande parte, um produto da digestão dos
vermes; o pó (o problema verdadeiramente onipresente) é
produzido pela movimentação constante da superfície, os
“saltos” da areia. Os grãos mais grossos são encontrados no
lado da duna que fica a barlavento. O lado exposto ao vento é
compacto, liso e duro. As dunas antigas são amarelas
(oxidadas), as dunas jovens são da cor da rocha que lhes deu
origem, geralmente cinzentas.
Os lados de barlavento das dunas antigas propiciaram as
primeiras áreas de plantio. Os fremen tentaram, em primeiro
lugar, formar um ciclo de gramíneas psamófitas, com cílios
capilares, semelhantes aos das trufas, que se entrelaçassem,
emaranhassem e fixassem as dunas, privando o vento de sua
grande arma: a mobilidade dos grãos.
Zonas adaptativas foram assentadas no extremo sul, longe
dos olhos dos Harkonnen. As gramíneas psamófitas mutantes
foram plantadas, em primeiro lugar, no lado a barlavento (face
de deslizamento) de dunas selecionadas que ficavam no
caminho dos ventos predominantes de oeste. Ancorada a face
a barlavento, a face exposta ao vento ficava cada vez mais alta e
as gramíneas eram deslocadas para acompanhar o ritmo.
Gigantescas sifs (dunas alongadas, com cimos sinuosos), com
mais de 1.500 metros de altura, foram produzidas dessa
maneira.
Quando as dunas-barreiras atingiram altura suficiente,
foram plantadas espadanas, mais resistentes, nas faces
expostas ao vento. Foram ancoradas... “fixadas”... todas as
estruturas sobre uma base de espessura quase seis vezes
maior que a altura.
Aí eles entraram com plantas mais profundas – as
efêmeras (quenopódios, fedegosas e amarantos, para
começar), depois giestas-das-vassouras, tremoceiros baixos,
trepadeiras do gênero eucalipto (adaptadas às regiões
setentrionais de Caladan), tamargueiras-anãs, pinheiros-da-
praia –, e então as verdadeiras espécies desérticas: candelillas,
carnegíeas, ferocactos e equinocactos. Onde conseguissem
fazê-las crescer, introduziram a salva-de-camelo, a romúlea,
estipa, alfafa, ambrósia, abrônia, enotera, incenso, fustete e
arbusto de creosoto.
Voltaram-se então para a necessária vida animal, criaturas
que construíam tocas, para abrir e arejar o solo: raposa-
orelhuda, rato-canguru, lebre-do-deserto, jabuti-da-areia... e
os predadores para controlar essas populações: gavião-do-
deserto, caboré, águia e coruja-do-deserto; e artrópodes para
preencher os nichos que os demais não alcançavam: escorpião,
centopeia, aranha-de-alçapão, vespa-mordedora e mosca-
varejeira... e o morcego-do-deserto para mantê-los sob
controle.
Aí veio o teste crucial: tamareiras, algodão, melões, café,
ervas medicinais – mais de duzentas espécies de plantas
comestíveis selecionadas para testar e adaptar.
“O que o analfabeto em ecologia não percebe em relação a
um ecossistema”, dizia Kynes, “é que se trata de um sistema.
Um sistema! Um sistema mantém uma certa estabilidade fluida
que pode ser destruída por um deslize em apenas um nicho.
Um sistema tem ordem, uma correnteza que flui de um ponto a
outro. Se algo represar a correnteza, a ordem desmoronará. Os
inexperientes talvez só percebam esse desmoronamento
quando já for tarde demais. É por isso que a função mais
elevada da ecologia é a compreensão das consequências.”
Tinham chegado a um sistema?
Kynes e sua gente observaram e esperaram. Os fremen
agora sabiam o que ele queria dizer com uma previsão
indefinida de até quinhentos anos.
Chegou um relatório dos palmares:
Na orla desértica das plantações, o psamoplâncton está
sendo envenenado pela interação com as novas formas de vida.
O motivo: incompatibilidade proteica. Formava-se ali uma água
envenenada que as formas de vida nativas de Arrakis não
tocavam. Uma zona estéril cercava as plantações, e nem sequer
shai-hulud a invadia.
Kynes foi pessoalmente aos palmares – uma viagem de
vinte marteladores (num palanquim, feito um homem ferido ou
uma Reverenda Madre, porque ele nunca se tornou um
montarenador). Ele testou a zona estéril (fedia que era um
horror) e ganhou um bônus, um presente de Arrakis.
A adição de enxofre e nitrogênio fixado converteu a zona
estéril num canteiro fértil para formas de vida terrenas. Eles
podiam avançar o plantio como bem entendessem!
– Isso muda o cronograma? – perguntaram os fremen.
Kynes voltou a suas fórmulas planetárias. A essa altura, os
números dos captadores de vento já eram razoavelmente
confiáveis. Foi generoso com seus descontos, sabendo que não
era possível delimitar com precisão os problemas ecológicos.
Era preciso separar uma certa quantidade de cobertura
vegetal para manter as dunas em seu lugar; uma certa
quantidade para víveres (para consumo tanto humano quanto
animal); uma certa quantidade para encerrar a umidade em
sistemas radiculares e fornecer água às áreas secas mais
próximas. A essa altura, já tinham mapeado os pontos frios e
móveis no bled aberto. Era preciso introduzi-los nas fórmulas.
Até mesmo shai-hulud tinha um lugar nas tabelas. Ele nunca
poderia ser destruído, do contrário a riqueza da especiaria
chegaria ao fim. Mas sua “fábrica” digestiva interna, com suas
enormes concentrações de aldeídos e ácidos, era uma fonte
gigantesca de oxigênio. Um verme de porte médio (por volta de
duzentos metros de comprimento) liberava na atmosfera tanto
oxigênio quanto dez quilômetros quadrados de superfície
verde viva e capaz de fotossíntese.
Ele tinha de pensar na Guilda. Os subornos em especiaria
para que a Guilda proibisse satélites meteorológicos e outros
espiões nos céus de Arrakis já haviam alcançado grandes
proporções.
Os fremen tampouco poderiam ser ignorados.
Principalmente os fremen, com seus captadores de vento e
suas propriedades irregulares, organizadas em torno do
suprimento de água; os fremen, com sua nova cultura ecológica
e seu sonho de fazer vastas extensões de Arrakis passarem da
fase das pradarias para uma cobertura florestal.
Das tabelas surgiu um número que Kynes deu aos fremen.
Três por cento. Se conseguissem envolver três por cento do
elemento vegetal da superfície de Arrakis na formação de
compostos de carbono, eles teriam seu ciclo autossustentável.
– Mas quanto tempo dá isso? – quiseram saber os fremen.
– Ah, sim: cerca de trezentos e cinquenta anos.
Então era verdade, como aquele umma dissera no início: a
coisa não aconteceria durante a vida de nenhum homem vivo,
nem durante as vidas de seus netos oito gerações depois, mas
viria.
O trabalho continuou: construção, plantio, escavação,
treinamento das crianças.
Aí Kynes, o Umma, morreu no desmoronamento da Bacia
de Gesso.
A essa altura, seu filho, Liet-Kynes, já tinha 19 anos, era um
fremen e montarenador consumado que já matara mais de cem
Harkonnen. A nomeação imperial, para a qual Kynes já havia
indicado o filho, veio naturalmente. A rígida estrutura de
classes das faufreluches acabou desempenhando seu papel. O
filho havia sido treinado para seguir os passos do pai.
O curso já tinha sido traçado a essa altura, os fremen
ecologistas tinham seu norte. Liet-Kynes só precisava
observar, cutucar e espionar os Harkonnen... até o dia em que
seu planeta fosse assolado por um Herói.
Apêndice II:
A religião de Duna

Antes de Muad’Dib, os fremen de Arrakis praticavam uma


religião cujas raízes no saari maometano estão aí para
qualquer estudioso ver. Muitos identificaram os vastos
empréstimos tomados de outras religiões. O exemplo mais
comum é o Hino à Água, copiado diretamente do Manual
Litúrgico Católico de Orange, que clama por nuvens de chuva
que Arrakis nunca viu. Mas existem pontos de concordância
mais profundos entre o Kitab al-Ibar dos fremen e os
ensinamentos da Bíblia, da Ilm e da Fiqh.
Qualquer comparação das crenças religiosas
predominantes no Imperium até o advento de Muad’Dib tem
de começar com as principais forças que deram forma a essas
crenças:
1. Os seguidores dos Catorze Sábios, cujo livro era a Bíblia
Católica de Orange, e cujos pontos de vista estão expressos nos
Comentários e em outros textos produzidos pela Comissão de
Tradutores Ecumênicos (CTE);
2. As Bene Gesserit, que, no âmbito particular, negavam
ser uma ordem religiosa, mas operavam protegidas por um
anteparo quase impenetrável de misticismo ritualístico, com
um treinamento, um simbolismo, uma organização e métodos
de ensino quase inteiramente religiosos;
3. A classe dominante agnóstica (incluída aí a Guilda), para
quem a religião era uma espécie de espetáculo de fantoches
para entreter o povo e mantê-lo dócil, e que acreditava
essencialmente que todos os fenômenos – até mesmo os
religiosos – poderiam ser reduzidos a explicações mecânicas;
4. Os chamados Ensinamentos Antigos, aí inclusos
aqueles que foram preservados pelos Peregrinos Zen-sunitas
do primeiro, segundo e terceiro movimentos islâmicos; o
navacristianismo de Chusuk; as variantes budislâmicas dos
tipos predominantes em Lankiveil e Sikun; os Livros Mistos do
Lankavatara maaiana; o Hekiganshu zen de Delta Pavonis III; a
Torá e o Zabur talmúdico que sobrevivem em Salusa Secundus;
o difundido Ritual obeah; o Corão de Muadh, com suas Ilm e
Fiqh puras, preservado entre os lavradores de arroz-pundi de
Caladan; os afloramentos hindus encontrados em todo o
universo, em pequenos bolsões isolados de peones; e, por
último, o Jihad Butleriano.
Entre as forças que deram forma às crenças religiosas,
existe uma quinta, mas seu efeito é tão universal e profundo
que merece destaque.
Naturalmente, trata-se da viagem espacial – e, em
qualquer discussão da religião, ela merece ser escrita assim:
VIAGEM ESPACIAL!
O deslocamento da humanidade pela imensidão do espaço
deu uma índole singular à religião nos cento e dez séculos que
precederam o Jihad Butleriano. Para começar, a viagem
espacial, apesar de difundida, era em grande parte não
regulamentada, vagarosa e incerta, e, antes do monopólio da
Guilda, dava-se por intermédio de uma miscelânea de
métodos. As primeiras experiências no espaço, mal divulgadas
e sujeitas a distorções extremas, foram um incentivo
desenfreado à especulação mística.
De pronto, o espaço deu um sabor e um sentido diferentes
às ideias a respeito da Criação. Nota-se essa diferença nas
maiores conquistas religiosas do período. Em toda a religião, a
percepção do sagrado foi contaminada pela anarquia das
trevas exteriores.
Foi como se Júpiter, em todas as suas formas
descendentes, se recolhesse à escuridão materna para ser
desbancado por uma imanência feminina cheia de
ambiguidades e um rosto de inúmeros terrores.
As fórmulas antigas se enredaram e emaranharam ao se
adaptarem às necessidades de novas conquistas e novos
símbolos heráldicos. Foi um tempo de conflito entre feras-
demônios, de um lado, e antigas preces e invocações, do outro.
Nunca houve uma decisão clara.
Durante esse período, dizem que o Gênesis foi
reinterpretado, permitindo a Deus declarar:
“Crescei e multiplicai-vos; enchei o universo e sujeitai-o; e
dominai sobre toda sorte de animais estranhos e criaturas
vivas nos infinitos ares e nas infinitas terras abaixo deles.”
Foi um tempo de feiticeiras com poderes de verdade.
Nota-se seu comedimento no fato de nunca terem alardeado
como foi que se apoderaram do facho.
Aí veio o Jihad Butleriano: duas gerações de caos. O deus
da lógica-máquina foi destronado no seio das massas e elevou-
se um novo conceito:
“Não se pode substituir o Homem.”
Essas duas gerações de violência foram uma pausa
talâmica para toda a humanidade. Os homens olharam para
seus deuses e rituais e viram que tanto uns quanto outros
haviam sido tomados pela mais terrível de todas as equações: o
medo sobre a ambição.
Hesitantes, os líderes das religiões cujos seguidores
haviam derramado o sangue de bilhões passaram a se
encontrar para trocar opiniões. Foi um gesto encorajado pela
Guilda Espacial, que começava a erigir seu monopólio sobre
todas as viagens interestelares, e pelas Bene Gesserit, que
estavam reunindo as feiticeiras.
Desses primeiros encontros ecumênicos resultaram dois
grandes desdobramentos:
1. A percepção de que todas as religiões tinham pelo
menos um mandamento comum: “Não desfigurarás a alma”.
2. A Comissão de Tradutores Ecumênicos.
A CTE se reuniu numa ilha neutra da Velha Terra, a
incubadora de onde saíram as religiões maternas.
Encontraram-se “na crença comum de que existe uma
Essência Divina no universo”. Toda religião com mais de um
milhão de seguidores viu-se representada, e eles chegaram a
um consenso surpreendentemente rápido quanto à declaração
de seu objetivo comum:
“Estamos aqui para remover uma arma importante das
mãos das religiões em disputa. E essa arma é a alegação de que
detêm a única e verdadeira revelação.”
O júbilo diante desse “sinal de profunda concordância” se
mostrou prematuro. Durante mais de um ano-padrão, essa
declaração foi o único anúncio da CTE. Os homens comentavam
com rancor a demora. Os trovadores compunham canções
espirituosas e mordazes a respeito dos cento e vinte um
“Velhos Cacetes”, como ficaram conhecidos os representantes
da CTE (o nome veio de uma piada vulgar que brincava com as
iniciais da CTE e chamava os representantes de “Cacetes
Tapados Enrolões”). Uma das canções, “Sossego moreno”, é
relembrada periodicamente e ainda hoje é popular:

“Pense em colares floridos.


Sossego moreno – e
A tragédia
De todos os
Cacetes! Todos os Cacetes!
Tanto ócio – tanto ócio
Todo santo dia.
Soou a hora para
Milorde Sandwich!”

Vazavam alguns boatos das sessões da CTE. Dizia-se que


estavam comparando textos e, de maneira irresponsável, os
textos foram nomeados. Naturalmente, era inevitável que
esses boatos provocassem revoltas antiecumênicas e
inspirassem novos chistes.
Passaram-se dois... três anos.
Os comissários, com a morte e a substituição de nove
deles, fizeram um recesso para formalizar a posse dos
substitutos e anunciaram que trabalhavam arduamente na
produção de um livro, extirpando “todos os sintomas
patológicos” do passado religioso.
“Vamos produzir um instrumento de Amor para ser
tocado de todas as maneiras”, disseram.
Muitos julgam estranho que essa declaração tenha
provocado os piores surtos de violência contra o ecumenismo.
Vinte representantes foram chamados de volta por suas
congregações. Um deles cometeu suicídio, roubando uma
fragata espacial e atirando-a no sol.
Os historiadores estimam que as revoltas tenham custado
oito milhões de vidas, o que deve dar umas seis mil para cada
planeta da Liga do Landsraad de então. Considerando-se a
agitação da época, talvez não seja uma estimativa exagerada,
embora qualquer pretensão de precisão, nesse caso, não passe
disto: pretensão. A comunicação entre os planetas estava num
de seus momentos de maior baixa.
Os trovadores, naturalmente, andaram ocupadíssimos.
Uma comédia musical popular na época apresentava um dos
representantes da CTE sentado sob uma palmeira, numa praia
branca, cantando:

“Em nome de Deus, da mulher e do esplendor do amor


Vadiamos sem temores nem cuidados.
Trovador! Trovador, cante mais uma ária
Em nome de Deus, da mulher e do esplendor do amor!”

Revoltas e comédias são meros sinais dos tempos,


profundamente reveladores. Expõem o tom psicológico, as
incertezas arraigadas... e a luta por algo melhor, além do medo
de que aquilo tudo desse em nada.
Os principais diques a conter a anarquia naqueles tempos
eram a Guilda incipiente, as Bene Gesserit e o Landsraad, que
manteve seu registro de dois mil anos de reuniões, apesar dos
obstáculos mais terríveis. A parte da Guilda parece clara: ela
fornecia transporte gratuito para todas as atividades do
Landsraad e da CTE. O papel das Bene Gesserit é mais obscuro.
Com certeza, foi nessa época que elas consolidaram seu
domínio sobre as feiticeiras, exploraram os narcóticos sutis,
desenvolveram o treinamento prana-bindu e conceberam a
Missionaria Protectora, o braço sinistro da superstição. Mas
também foi o período que assistiu à composição da Litania
contra o Medo e à compilação do Livro de Azhar, essa
maravilha bibliográfica que preserva os grandes segredos da
maioria das religiões antigas.
O comentário de Ingsley talvez seja o único cabível:
“Foram tempos profundamente paradoxais.”
Durante quase sete anos, portanto, a CTE trabalhou. E, às
vésperas de seu sétimo aniversário, eles prepararam o
universo humano para uma proclamação solene. Naquele
sétimo aniversário, eles revelaram a Bíblia Católica de Orange.
“Eis uma obra digna e significativa”, disseram eles. “Eis
uma maneira de fazer a humanidade perceber a si mesma
como uma criação total de Deus.”
Os homens da CTE foram comparados a arqueólogos de
ideias, inspirados por Deus na grandiosidade da redescoberta.
Dizia-se que eles deram à luz “a vitalidade de grandes ideais
cobertos pelo sedimento acumulado dos séculos”, que haviam
“aguçado os imperativos morais que surgem de uma
consciência religiosa”.
Com a Bíblia C. O., a CTE apresentou o Manual Litúrgico e
os Comentários – em muitos aspectos, uma obra mais digna de
nota, não só por sua brevidade (menos da metade do tamanho
da Bíblia C. O.), mas também por sua franqueza e pela mistura
de autocomiseração e hipocrisia.
A introdução é um apelo óbvio aos soberanos agnósticos:
“Os homens, sem encontrar respostas para as sunnan [as
dez mil questões religiosas extraídas da Shariá], agora aplicam
sua própria razão. Todos os homens buscam o esclarecimento.
A religião é só a maneira mais antiga e honrada de os homens
se esforçarem para entender o universo de Deus. Os cientistas
buscam a legitimidade dos fatos. É tarefa da religião encaixar o
homem nessa legitimidade”.
Em sua conclusão, porém, os Comentários davam um tom
mais duro, o que muito provavelmente vaticinou sua sina.
“Boa parte daquilo que chamávamos religião tinha uma
atitude hostil e inconsciente em relação à vida. A verdadeira
religião tem de ensinar que a vida está cheia de alegrias, que
Deus as vê com bons olhos, que o conhecimento sem a ação é
vazio. Todos os homens percebem que o ensino religioso pela
regra e pela repetição é, em grande parte, um embuste. O
ensinamento correto é reconhecido com facilidade. Sabe-se
reconhecê-lo sem erro, porque ele desperta na pessoa aquela
sensação de que é uma coisa que sempre se soube.”
Foi uma estranha sensação de calma quando as prensas e
os prelos de shigafio começaram a rodar e a Bíblia C. O. se
espalhou pelos planetas. Houve quem interpretasse isso como
um sinal de Deus, um presságio de unidade.
Mas até mesmo os representantes da CTE revelaram como
essa calma era fictícia ao voltar para suas respectivas
congregações. Dezoito deles foram linchados num intervalo de
dois meses. Cinquenta e três se retrataram antes de um ano.
A Bíblia C. O. foi acusada de ser uma obra produzida pela
“arrogância da razão”. Disseram que suas páginas estavam
cheias de um interesse sedutor pela lógica. Começaram a
aparecer versões corrigidas que davam vazão à intolerância
popular. Essas correções se apoiavam em símbolos aceitos (a
cruz, o crescente, o chocalho emplumado, os doze santos, o
Buda magro, e coisas do gênero), e logo ficou evidente que as
crenças e superstições antigas não tinham sido absorvidas
pelo novo ecumenismo.
O rótulo de Halloway para o esforço de sete anos da CTE –
“Determinismo Galactofásico” – foi imediatamente aceito por
bilhões de pessoas ansiosas, que interpretaram as iniciais D. G.
como “Divina Gaitada”.
O presidente da CTE, Toure Bomoko, ulemá dos zen-
sunitas e um dos catorze representantes que nunca se
retrataram (os “Catorze Sábios” da história popular),
aparentemente admitiu, por fim, que a CTE havia errado.
– Não deveríamos ter tentado criar símbolos novos – disse.
– Deveríamos ter percebido que não era para introduzirmos
incertezas na crença já aceita, que não era para estimularmos a
curiosidade em relação a Deus. Somos confrontados
diariamente pela instabilidade apavorante de tudo que é
humano, mas permitimos que nossas religiões fiquem mais
rígidas e controladas, mais conformistas e opressoras. O que é
essa sombra que atravessa a estrada do Mandamento Divino?
É um alerta de que as instituições persistem, que os símbolos
persistem quando seu sentido se perde, que não existe uma
suma de todo o conhecimento obtenível.
A ambiguidade dolorosa dessa “admissão” não passou
despercebida pelos críticos de Bomoko, que foi obrigado, logo
depois, a fugir para o exílio, e sua vida passou a depender da
promessa da Guilda de guardar sigilo. Dizem que morreu em
Tupile, venerado e querido, e suas últimas palavras foram:
“É preciso que a religião continue a ser uma válvula de
escape para as pessoas que dizem a si mesmas: ‘Não sou o tipo
de pessoa que quero ser’. Não pode jamais se degenerar num
ajuntamento de pessoas satisfeitas consigo mesmas.”
Faz bem pensar que Bomoko entendia o caráter profético
de suas palavras: “As instituições persistem”. Noventa
gerações mais tarde, a Bíblia C. O. e os Comentários estavam
difundidos por todo o universo religioso.
Quando Paul Muad’Dib estendeu sua mão direita sobre o
santuário de pedra que encerrava o crânio de seu pai (a mão
direita dos abençoados, e não a mão esquerda dos
condenados), ele citou “O legado de Bomoko” palavra por
palavra:
“Vocês que nos derrotaram dizem a si mesmos que a
Babilônia tombou e suas obras foram derrubadas. Eu lhes digo
que o homem ainda está em julgamento, cada homem em seu
próprio banco dos réus. Cada homem é uma pequena guerra.”
Os fremen diziam que Muad’Dib era como Abu Zide, cuja
fragata desafiou a Guilda e um dia foi lá e voltou. Lá, quando
empregado dessa maneira, traduz-se diretamente da mitologia
fremen como a terra do espírito-ruh, o alam al-mithal em que
todas as limitações são eliminadas.
É fácil ver o paralelo entre isso e o Kwisatz Haderach. O
Kwisatz Haderach que a Irmandade B. G. procurava com seu
programa de reprodução era interpretado como “o
encurtamento do caminho” ou “aquele capaz de estar em dois
lugares simultaneamente”.
Mas é possível mostrar que essas duas interpretações
derivam diretamente dos Comentários: “Quando a lei e o dever
religioso são a mesma coisa, sua individualidade encerra o
universo”.
A respeito de si mesmo, Muad’Dib dizia:
“Sou uma rede no mar do tempo, livre para dragar o
passado e o futuro. Sou uma membrana em movimento da qual
nenhuma possibilidade consegue escapar.”
Todos esses pensamentos são a mesma coisa e atentam
para Kalima 22 na Bíblia C. O., onde se lê: “Quer ganhe voz ou
não, o pensamento é uma coisa real e tem o poder da
realidade”.
É quando entramos nos comentários do próprio Muad’Dib
em “Os Pilares do Universo”, da maneira como são
interpretados por seus sacerdotes, os Qizara Tafwid, que
vemos quanto ele realmente devia à CTE e aos zen-sunitas
fremen.

Muad’Dib: “A lei e o dever são a mesma coisa; que seja. Mas


lembrem-se dessas limitações; assim nunca estarão totalmente
conscientes de si mesmos. Assim continuarão imersos no tau
coletivo. Assim serão sempre menos que um indivíduo”.
Bíblia C. O.: redação idêntica (Revelações 61).
Muad’Dib: “A religião muitas vezes tem algo do mito do
progresso que nos resguarda dos pavores de um futuro incerto”.
Comentários da CTE: redação idêntica. (O Livro de Azhar
atribui essa declaração ao autor religioso do século I, Neshou;
por meio de uma paráfrase.)
Muad’Dib: “Se uma criança, um não iniciado, um ignorante
ou um louco cria um problema, a falha é da autoridade que não
previu nem impediu o problema”.
Bíblia C. O.: “Todo pecado pode ser atribuído, ao menos
em parte, a uma tendência natural para a maldade, que é um
atenunante aceitável aos olhos de Deus”. (O Livro de Azhar
atribui isso à antiga Torá semítica.)
Muad’Dib: “Estende tua mão e come o que Deus te deu; e,
quando estiveres satisfeito, louva o Senhor”.
Bíblia C. O.: uma paráfrase de significado idêntico. (O Livro
de Azhar atribui isso ao Primeiro Islã, numa forma
ligeiramente diferente.)
Muad’Dib: “A bondade é o princípio da crueldade”.
O Kitab al-Ibar dos fremen: “A opressão de um Deus
bondoso é algo temível. Deus não nos deu o sol ardente (Al-
Lat)? Deus não nos deu as Mães da Umidade (Reverendas
Madres)? Deus não nos deu Shaitan (Íblis, Satã)? E não foi de
Shaitan que ganhamos a perniciosidade da pressa?”.
(Essa é a origem do ditado fremen: “A pressa vem de
Shaitan”. Pense: a cada cem unidades de calor geradas pelo
exercício físico [pressa], o corpo evapora aproximadamente
seis onças de suor. A palavra fremen para suor é bakka, ou
lágrimas, e, numa das maneiras como é pronunciada, traduz-se
como: “A essência da vida que Shaitan espreme de sua alma”.)

O advento de Muad’Dib foi chamado de “religiosamente


oportuno” por Koneywell, mas a oportunidade teve pouca
coisa a ver com isso. Como o próprio Muad’Dib dizia: “Estou
aqui; portanto...”.
Contudo, é crucial para a compreensão do impacto
religioso de Muad’Dib nunca perder de vista um fato: os
fremen eram um povo do deserto acostumado a ambientes
hostis durante toda a sua história. O misticismo não é difícil
quando se sobrevive cada segundo superando uma hostilidade
patente. “Você está ali; portanto...”.
Com uma tradição como essa, o sofrimento é aceito –
talvez como um castigo inconsciente, mas, ainda assim, aceito.
E é bom ressaltar que o ritual fremen concede liberdade quase
total em relação aos sentimentos de culpa. Não
necessariamente porque, para eles, lei e religião eram
idênticas, o que tornava a desobediência um pecado.
Provavelmente seria mais correto dizer que eles expurgavam
facilmente a culpa, porque sua existência cotidiana exigia
julgamentos cruéis (e, muitas vezes, letais) que, numa terra
mais branda, oprimiriam os homens com uma culpa
insuportável.
Essa é, provavelmente, uma das origens da ênfase dos
fremen na superstição (desconsiderando-se o auxílio da
Missionaria Protectora). E daí que o silvo da areia é um
presságio? E daí que é preciso fazer o sinal do punho quando se
avista a Primeira Lua? A carne de um homem a ele pertence,
mas sua água é da tribo – e o mistério da vida não é um
problema a ser resolvido, e sim uma realidade a ser vivida. Os
presságios ajudam a não esquecer isso. E, porque você está
aqui, porque tem a religião, a vitória não escapará de suas
mãos no final.
Como as Bene Gesserit já ensinavam havia séculos, muito
antes de baterem de frente com os fremen:
“Quando a religião e a política viajam no mesmo carro,
quando esse carro é conduzido por um homem santo vivo
(baraka), nada é capaz de ficar em seu caminho.”
Apêndice III:
Relatório acerca dos motivos e
propósitos das Bene Gesserit

Segue um excerto da suma preparada por


seus próprios agentes, a pedido de lady
Jéssica, logo após o Caso Arrakis. A
franqueza deste relatório aumenta seu
valor de maneira extraordinária.

Como as Bene Gesserit operaram durante séculos


protegidas pelo anteparo de uma escola quase mística e, ao
mesmo tempo, conduziram seu programa de reprodução
seletiva dos seres humanos, nossa tendência é lhes conferir
mais importância do que parecem merecer. A análise das
“provas de fato” de seu julgamento no Caso Arrakis revela a
profunda ignorância da escola no que concerne a seu próprio
papel.
Pode-se argumentar que as Bene Gesserit só conseguiam
examinar os fatos a sua disposição e que não tinham acesso
direto ao profeta Muad’Dib. Mas a escola já tinha superado
obstáculos maiores, e seu erro, neste caso, vai mais longe.
O programa das Bene Gesserit tinha como alvo o
nascimento de uma pessoa que elas chamavam de “Kwisatz
Haderach”, uma expressão que significa “aquele capaz de estar
em muitos lugares ao mesmo tempo”. Em termos mais simples,
o que procuravam era um ser humano com poderes mentais
que lhes permitisse entender e usar dimensões de ordem mais
elevada.
Estavam tentando gerar um super-Mentat, um
computador humano com um pouco das habilidades
prescientes encontradas nos navegadores da Guilda. Agora,
preste muita atenção a estes fatos:
Muad’Dib, nascido Paul Atreides, era o filho do duque
Leto, um homem cuja linhagem era observada cuidadosamente
havia mais de mil anos. A mãe do profeta, lady Jéssica, era filha
natural do barão Vladimir Harkonnen e portadora de
marcadores genéticos cuja importância suprema para o
programa de reprodução era conhecida havia quase dois mil
anos. Ela era uma Bene Gesserit por criação e treinamento e
deveria ter sido um instrumento voluntário do projeto.
Lady Jéssica recebeu ordens para produzir uma filha
Atreides. O plano era promover o endocruzamento dessa filha
com Feyd-Rautha Harkonnen, um sobrinho do barão Vladimir,
sendo alta a probabilidade de nascer um Kwisatz Haderach
dessa união. Em vez disso, por razões que ela confessa nunca
terem ficado completamente claras nem para ela mesma, a
concubina lady Jéssica desafiou as ordens que recebeu e deu à
luz um filho homem.
Só isso já deveria ter alertado as Bene Gesserit para a
possibilidade de uma variável imprevisível ter entrado no
plano. Mas havia outras indicações muito mais importantes
que elas praticamente ignoraram:
1. Ainda jovem, Paul Atreides demonstrou ser capaz de
prever o futuro. Sabe-se que teve visões prescientes precisas e
perspicazes, que desafiavam uma explicação
quadridimensional.
2. A Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, a censora das
Bene Gesserit que pôs à prova a humanidade de Paul quando
ele tinha 15 anos, afirmou em depoimento que ele havia
suportado, durante o teste, uma dor maior que qualquer outro
ser humano na história. Contudo, ela não fez menção especial a
esse fato em seu relatório!
3. Quando a família Atreides mudou-se para o planeta
Arrakis, a população fremen de lá saudou o jovem Paul como
profeta, “a voz do mundo exterior”. As Bene Gesserit sabiam
muito bem que os rigores de um planeta como Arrakis, com
sua paisagem totalmente desértica, sua absoluta falta de água
ao ar livre, sua ênfase nas necessidades mais primordiais para
a sobrevivência, produzem inevitavelmente uma proporção
elevada de sensitivos. E, no entanto, essa reação dos fremen e o
elemento óbvio que era a dieta arrakina rica em especiaria
foram minimizados pelas observadoras das Bene Gesserit.
4. Quando os Harkonnen e os fanáticos-soldados do
imperador padixá reocuparam Arrakis, matando o pai de Paul
e a maior parte dos soldados Atreides, Paul e sua mãe
desapareceram. Mas, quase de imediato, houve relatos a
respeito de um novo líder religioso entre os fremen, um homem
chamado Muad’Dib, a quem, mais uma vez, saudaram como “a
voz do mundo exterior”. Os relatórios afirmam, com toda a
clareza, que ele era acompanhado por uma nova Reverenda
Madre do Rito das Sayyadina, que também era “a mãe que o
dera à luz”. Os registros disponíveis às Bene Gesserit diziam
claramente que as lendas fremen sobre o profeta encerravam
estas palavras: “Ele nascerá de uma bruxa Bene Gesserit”.
(Neste ponto, pode-se argumentar que as Bene Gesserit
mandaram sua Missionaria Protectora a Arrakis séculos antes
para implantar algo semelhante a essa lenda como salvaguarda
caso integrantes da escola se vissem presas ali e precisassem
de asilo, e que era melhor ignorar essa lenda da “voz do mundo
exterior”, pois parecia ser o típico estratagema das Bene
Gesserit. Mas isso só seria verdade se admitíssemos que as
Bene Gesserit estavam certas ao ignorar as outras pistas a
respeito de Paul Muad’Dib.)
5. Quando o Caso Arrakis começou a ferver, a Guilda
Espacial fez algumas ofertas às Bene Gesserit. A Guilda deu a
entender que seus navegadores, que usam a droga feita com a
especiaria de Arrakis para produzir a presciência limitada
necessária para conduzir as espaçonaves através do vazio,
estavam “incomodados com o futuro” ou viram “problemas no
horizonte”. Isso só podia significar que viram um nexo, um
ponto de encontro de incontáveis decisões delicadas, para
além das quais o caminho se escondia do olho presciente. Era
uma indicação clara de que alguém estava interferindo com
dimensões de ordem superior!
(Algumas Bene Gesserit sabiam, havia tempos, que a
Guilda não era capaz de interferir diretamente na fonte vital da
especiaria, pois os navegadores da Guilda já estavam lidando, a
sua própria maneira inepta, com dimensões de ordem
superior, pelo menos a ponto de reconhecer que o menor passo
em falso em Arrakis poderia ser catastrófico. Era fato
conhecido que os navegadores da Guilda não conseguiam
prever uma maneira de controlar a especiaria sem produzir
exatamente esse nexo. A conclusão óbvia era a de que alguém
dotado de poderes de ordem superior passou a controlar a
fonte da especiaria e, mesmo assim, as Bene Gesserit
simplesmente não viram isso!)
Frente a esses fatos, chega-se à conclusão inescapável de
que a ineficiência das Bene Gesserit nesse caso foi produto de
um plano de ordem ainda mais elevada que elas desconheciam
por completo!
Apêndice IV:
O almanaque en-Ashraf
(Trechos seletos das Casas
Nobres)

SHADDAM IV (10.134-10.202)
O imperador padixá, o octogésimo primeiro de sua estirpe
(Casa Corrino) a ocupar o Trono do Leão Dourado, reinou de
10.156 (ano em que seu pai, Elrood IX, sucumbiu ao chaumurky)
até ser substituído pela Regência de 10.196, entregue a sua filha
mais velha, Irulan. Seu reinado se destaca principalmente pela
Revolta de Arrakis, que muitos historiadores atribuem à
licenciosidade de Shaddam IV com as festas da corte e a pompa
do cargo. O número de bursegs foi duplicado nos primeiros
dezesseis anos de seu reinado. A verba para o treinamento dos
Sardaukar foi reduzida constantemente nos últimos trinta
anos antes da Revolta de Arrakis. Teve cinco filhas (Irulan,
Chalice, Wensicia, Josifa e Rugi) e nenhum filho homem
legítimo. Quatro de suas filhas o acompanharam em sua
aposentadoria. Sua esposa, Anirul, uma Bene Gesserit de Grau
Secreto, morreu em 10.176.

LETO ATREIDES (10.140-10.191)


Primo por parte de mãe dos Corrino, ele costuma ser chamado
de o Duque Vermelho. A Casa Atreides governou Caladan como
seu feudo-siridar durante vinte gerações, até ser pressionada a
se mudar para Arrakis. É conhecido principalmente como o pai
do duque Paul Muad’Dib, o regente umma. Os restos mortais
do duque Leto ficam na “Tumba do Crânio” em Arrakis. Sua
morte é atribuída à traição de um médico Suk, a mando do
barão-siridar Vladimir Harkonnen.

LADY JÉSSICA (Atreides hon.) (10.154-10.256)


Filha natural (menção das Bene Gesserit) do barão-siridar
Vladimir Harkonnen. Mãe do duque Paul Muad’Dib. Formou-se
na Escola B. G. em Wallach IX.

LADY ALIA ATREIDES (10.191- )


Filha legítima do duque Leto Atreides e de sua concubina
formal, lady Jéssica. Lady Alia nasceu em Arrakis, cerca de oito
meses após a morte do duque Leto. A exposição pré-natal a um
narcótico de espectro perceptivo geralmente é a razão
apresentada para que as Bene Gesserit se refiram a ela como a
“Amaldiçoada”. Na história popular, é conhecida como Santa
Alia, ou Santa Alia da Faca (cf. história detalhada em “Santa
Alia: caçadora de um bilhão de mundos”, de Pander Oulson).

VLADIMIR HARKONNEN (10.110-10.193)


Comumente chamado de barão Harkonnen, seu título oficial é
barão-siridar (governador planetário). Vladimir Harkonnen é o
descendente masculino em linha direta do bashar Abulurd
Harkonnen, banido por covardia após a Batalha de Corrin. A
volta da Casa Harkonnen ao poder costuma ser atribuída à
manipulação sagaz do mercado de pele de baleia e,
posteriormente, à consolidação com a abundância de mélange
em Arrakis. O barão-siridar morreu em Arrakis durante a
Revolta. O título passou brevemente ao na-barão Feyd-Rautha
Harkonnen.

CONDE HASIMIR FENRING (10.133-10.225)


Um primo por parte de mãe da Casa Corrino, foi companheiro
de infância de Shaddam IV. (A História Pirata de Corrino,
muitas vezes desacreditada, traz o relato curioso de que
Fenring teria sido o responsável pelo chaumurky que deu fim a
Elrood IX.) Todas as narrativas concordam que Fenring era o
amigo mais próximo de Shaddam IV. Entre as tarefas imperiais
realizadas pelo conde Fenring estava a de Agente Imperial em
Arrakis durante o regime Harkonnen e, mais tarde, Siridar-
Absentia de Caladan. Juntou-se a Shaddam IV quando este se
recolheu a Salusa Secundus.

CONDE GLOSSU RABBAN (10.132-10.193)


Glossu Rabban, conde de Lankiveil, era o sobrinho mais velho
de Vladimir Harkonnen. Glossu Rabban e Feyd-Rautha Rabban
(que adotou o sobrenome Harkonnen ao ser escolhido para
integrar a casa do barão-siridar) eram filhos legítimos do hemi-
irmão caçula do barão-siridar, Abulurd, que renunciou ao nome
Harkonnen e a todos os direitos ao título ao receber o governo
do subdistrito de Rabban-Lankiveil. Rabban era o sobrenome
do lado materno.
Terminologia do Imperium
No estudo do Imperium, de Arrakis e de toda a cultura que
produziu Muad’Dib, ocorrem muitos termos incomuns.
Melhorar a compreensão é um objetivo louvável, daí as
definições e explicações fornecidas a seguir.

A
ABA: manto folgado usado pelas mulheres fremen;
geralmente na cor preta.
ABISMO DE PÓ: qualquer fenda ou depressão profunda no
deserto de Arrakis que foi preenchida com pó e não
aparenta ser diferente da superfície circundante;
uma armadilha mortal, pois seres humanos e animais
afundam no abismo e morrem sufocados (veja-se
bacia de maré-poeira).
ACH: virar à esquerda; comando para o piloto de verme.
AÇO-LISO: qualquer arma branca de lâmina curta e fina
(muitas vezes com a ponta envenenada) para ser
usada com a mão esquerda no combate com escudos.
AÇOPLÁS: aço estabilizado com fibras de estravídio
introduzidas em sua estrutura cristalina.
ADAB: a lembrança exigente que se manifesta por conta
própria.
A. G.: empregado ao lado de uma data, significa “antes da
Guilda” e identifica o sistema de datação imperial,
fundamentado na gênese do monopólio da Guilda
Espacial.
ÁGUA DA VIDA: um veneno “de iluminação” (veja-se
Reverenda Madre). Especificamente, a exalação
líquida de um verme da areia (veja-se Shai-hulud),
produzida no momento de sua morte por
afogamento, e que é transformada dentro do corpo
de uma Reverenda Madre para se tornar o narcótico
empregado na orgia tauística do sietch. Um narcótico
de “espectro perceptivo”.
AKARSO: planta natural de Sikun (de 70 Ophiuchi A),
caracterizada por folhas quase oblongas. Suas listas
verdes e brancas indicam a condição múltipla e
constante de regiões paralelas de clorofila ativa e
dormente.
AL-LAT: o sol original da humanidade; por extensão de
sentido: a estrela primária de qualquer planeta.
ALAM AL-MITHAL: o mundo místico das similitudes, onde
todas as limitações físicas são eliminadas.
ALTO CONSELHO: o círculo interno do Landsraad, que
tem o poder de agir como tribunal supremo nas
disputas entre as Casas.
AMPOLIROS: o lendário “Holandês Voador” do espaço.
AMTAL OU LEI DE AMTAL: uma lei comum em planetas
primitivos, segundo a qual coloca-se uma coisa à
prova para determinar seus limites e defeitos.
Comumente: testar até a destruição.
AQL: o teste da razão. Originariamente, as “Sete
Perguntas Místicas”, que começam com “Quem é que
pensa?”.
AREIA DE PERCUSSÃO: compactação da areia de tal
maneira que qualquer golpe repentino em sua
superfície produz um som percussivo distinto.
ARENEIRO-MESTRE: superintendente geral das
operações especieiras.
ARMALÊS: projetor laser de onda contínua. Seu emprego
como arma é limitado numa cultura de escudos
geradores de campos, por causa da pirotecnia
explosiva (tecnicamente, uma fusão subatômica)
criada quando seu raio encontra um escudo.
ARRAKINA: primeira povoação em Arrakis; sede de longa
data do governo planetário.
ARRAKIS: o planeta conhecido como Duna; terceiro
planeta de Canopus.
ARROZ-PUNDI: arroz modificado cujos grãos, ricos em
açúcar natural, chegam a quatro centímetros de
comprimento; principal produto de exportação de
Caladan.
ASSEMBLEIA: distinta de uma Assembleia do Conselho. É
uma convocação formal dos líderes fremen para
testemunhar um combate que irá determinar a
liderança da tribo. (A Assembleia do Conselho é uma
reunião para se chegar a decisões que envolvem
todas as tribos.)
ATORDOADOR: arma de projéteis de carga lenta que atira
um dardo drogado ou envenenado. A eficácia é
limitada pelas variações nas configurações dos
escudos e pelo movimento relativo entre o alvo e o
projétil.
AULIYA: na religião dos Peregrinos Zen-sunitas, a mulher
à esquerda de Deus; a criada de Deus.
AUMAS: veneno administrado à comida (especificamente,
veneno na comida sólida). Em alguns dialetos,
chaumas.
AYAT: os sinais da vida (veja-se burhan).

B
B. G.: expressão idiomática para Bene Gesserit.
BACIA DE MARÉ-POEIRA: qualquer uma das depressões de
grande extensão na superfície de Arrakis que foram
preenchidas com poeira no decorrer dos séculos e
nas quais foram mensuradas verdadeiras marés de
poeira (veja-se marés de areia).
BACLAVÁ: um pastel indigesto feito com xarope de
tâmaras.
BAKKA: nas lendas fremen, o pranteador que chora por
toda a humanidade.
BALISET: um instrumento musical de nove cordas, a ser
dedilhado, descendente direto da zithra e afinado na
escala chusuk. Instrumento preferido dos trovadores
imperiais.
BARAKA: homem santo vivo, dotado de poderes mágicos.
BASHAR (geralmente, bashar coronel): um oficial dos
Sardaukar, uma fração acima de coronel na
classificação militar padrão. Patente criada para o
governante militar de um subdistrito planetário
(bashar da corporação é um título de uso
estritamente militar).
BEDUIM: veja-se Ichuan Beduim.
BELA TEGEUSE: quinto planeta de Kuentsing; terceira
parada da migração forçada dos Zen-sunitas
(fremen).
BENE GESSERIT: antiga escola de treinamento físico e
mental para alunas do sexo feminino, fundada depois
que o Jihad Butleriano destruiu as chamadas
“máquinas pensantes” e os robôs.
BHOTANI JIB: veja-se chakobsa.
BI-LA KAIFA: amém (literalmente: “Nada mais precisa ser
explicado”).
BÍBLIA CATÓLICA DE ORANGE: o “Livro Reunido”, o texto
religioso produzido pela Comissão de Tradutores
Ecumênicos. Contém elementos de religiões
antiquíssimas, entre elas o saari maometano, o
cristianismo maaiana, o catolicismo zen-sunita e as
tradições budislâmicas. Considera-se como seu
mandamento supremo: “Não desfigurarás a alma”.
BIBLIOFILME: qualquer impressão de shigafio utilizada no
treinamento que encerre um pulso mnemônico.
BINDU: relacionada ao sistema nervoso humano, em
especial ao treinamento dos nervos. Muitas vezes
mencionada como inervação-bindu (veja-se prana).
BLED: deserto plano e aberto.
BOLSAS COLETORAS: qualquer uma das bolsas de um
trajestilador onde a água é recolhida e armazenada.
BROQUEL GRADEX: um separador eletrolítico usado para
remover a areia da massa pré-especiaria; um
aparelho do segundo estágio do refinamento da
especiaria.
BURHAN: a prova da vida (comumente, os ayat e a burhan
da vida; veja-se ayat).
BURKA: manto dotado de isolamento térmico, usado
pelos fremen no deserto aberto.
BURSEG: um general que comanda os Sardaukar.

C
CAÇADOR-BUSCADOR: um fragmento voraz de metal
sustentado por suspensores e teleguiado, tal qual
uma arma, por um console controlador situado nas
proximidades; dispositivo comum de assassínio.
CAID: patente de oficial Sardaukar concedida a um oficial
militar cujos deveres exigem principalmente o trato
com civis; governador militar de todo um distrito
planetário; acima da patente de bashar, mas não
idêntico a burseg.
CALADAN: terceiro planeta de Delta Pavonis; planeta
natal de Paul Muad’Dib.
CALDEIRA: em Arrakis, qualquer região baixa ou
depressão criada pelo afundamento do complexo
subterrâneo subjacente. (Nos planetas com água
suficiente, uma caldeira indica uma região antes
coberta por água ao ar livre. Acredita-se que Arrakis
tenha pelo menos uma dessas áreas, apesar de ainda
se discutir esse assunto.)
CALECHE: uma aeronave, o burro de carga aéreo de
Arrakis, utilizado para transportar equipamentos de
grande porte para a mineração, busca e refinamento
da especiaria.
CANTO E RESPONDU: um rito de invocação, parte da
panoplía propheticus da Missionaria Protectora.
CAPTADOR DE VENTO: um aparelho instalado na
trajetória dos ventos predominantes e capaz de
condensar a umidade do ar aprisionado em seu
interior, geralmente por meio de uma queda nítida e
brusca da temperatura dentro do captador.
CASA: expressão idiomática para o Clã Governante de um
planeta ou sistema planetário.
CASAS MAIORES: detentores de feudos planetários;
empresários interplanetários (veja-se Casa,
anteriormente).
CASAS MENORES: classe empresarial restrita a um
planeta (em galach: “richece”).
CATÁLOGO DE CRUZAMENTOS: o registro principal que as
Bene Gesserit mantêm de seu programa de
reprodução humana, voltado para a produção do
Kwisatz Haderach.
CENSORA SUPERIORA: uma Reverenda Madre Bene
Gesserit que também é a diretora regional de uma
Escola B. G. (comumente: Bene Gesserit dotada de
Visão).
CHAKOBSA: a chamada “língua ímã”, derivada em parte
do antigo bhotani (bhotani jib, sendo que jib significa
dialeto). Uma série de dialetos antigos modificados
pela necessidade de manter sigilo, mas sobretudo a
língua de caça dos bhotani, os matadores de aluguel
da primeira Guerra de Assassinos.
CHAUMAS (aumas em alguns dialetos): veneno no
alimento sólido, distinto dos venenos administrados
de outras maneiras.
CHAUMURKY (MUSKY OU MURKY EM ALGUNS DIALETOS):
veneno administrado à bebida.
CHEREM: uma irmandade unida pelo ódio (geralmente
para obter vingança).
CHOAM: acrônimo para Consórcio Honnête Ober
Advancer Mercantiles, a empresa de
desenvolvimento universal controlada pelo
imperador e pelas Casas Maiores, tendo a Guilda e as
Bene Gesserit como sócios comanditários.
CHUSUK: quarto planeta de Theta Shalish; o chamado
“Planeta da Música”, famoso pela qualidade de seus
instrumentos musicais (veja-se Varota).
CIÉLAGO: qualquer um dos quirópteros modificados de
Arrakis, adaptados para transportar mensagens
distrans.
CIPÓ-TINTA: uma trepadeira natural de Giedi Primo,
geralmente usada como chicote nos fossos de
escravos. As vítimas ficam marcadas por tatuagens
cor de beterraba que irão provocar dor residual
durante muitos anos.
COISAS MISTERIOSAS: expressão idiomática para
superstições infecciosas ensinadas pela Missionaria
Protectora a civilizações suscetíveis.
COLETORES DE ORVALHO OU CONDENSADORES DE
ORVALHO: não confundi-los com os colhedores de
orvalho. Os coletores ou condensadores são
aparelhos ovais com cerca de quatro centímetros em
seu eixo maior. São feitos de cromoplástico, que
assume uma cor branca e refletora quando
submetido à luz e volta a ficar transparente no
escuro. O coletor forma uma superfície distintamente
fria, sobre a qual o orvalho da manhã se condensa.
São usados pelos fremen para forrar depressões
côncavas de plantio, onde fornecem uma fonte
pequena, mas confiável, de água.
COLHEDORES DE ORVALHO: operários que ceifam o
orvalho das plantas de Arrakis, usando um ceifador
de orvalho semelhante a uma foice.
COLHEITADEIRA OU USINA-COLHEITADEIRA: uma
máquina de mineração de especiaria de grande porte
(geralmente, 120 por 40 metros), empregada
comumente em afloramentos ricos em mélange não
contaminado. (Geralmente chamada de “lagarta”,
devido ao corpo insetoide que se move sobre esteiras
independentes.)
CONDICIONAMENTO IMPERIAL: uma invenção das Escolas
de Medicina Suk; o condicionamento supremo para
não tirar a vida humana. Os iniciados são marcados
com uma tatuagem em forma de diamante na testa e
têm permissão para usar os cabelos compridos e
presos por um anel de prata Suk.
CONDUTOR DE ESPECIARIA: qualquer duneiro que
controla e dirige máquinas móveis pela superfície
desértica de Arrakis.
CONE DE SILÊNCIO: campo de um distorcedor que limita o
poder de projeção da voz ou de qualquer outro
vibrador, amortecendo as vibrações com uma
vibração especular, 180 graus fora de fase.
CONSCIÊNCIA PIRÉTICA: a chamada “consciência de
fogo”; o nível inibitório afetado pelo condicionamento
imperial (veja-se condicionamento imperial).
CORIOLIS, TEMPESTADE DE: qualquer grande tempestade
de areia em Arrakis, onde os ventos, nas planícies
desprotegidas, são amplificados pelo movimento de
rotação do próprio planeta e atingem velocidades de
até setecentos quilômetros por hora.
CORRIN, BATALHA DE: a batalha espacial que deu nome à
Casa Imperial Corrino. A batalha travada perto de
Sigma Draconis no ano 88 a. G. estabeleceu a
superioridade da Casa governante de Salusa
Secundus.
CRIADOR: veja-se Shai-hulud.
CRIADORZINHO: o vetor meio vegetal, meio animal do
verme da areia de Arrakis. Os excrementos do
criadorzinho formam a massa pré-especiaria.

D
DAGACRIS: a faca sagrada dos fremen de Arrakis. É
manufaturada em duas formas, a partir dos dentes
retirados de carcaças de vermes da areia. As duas
formas são a “estável” e a “instável”. Uma faca
instável precisa ser mantida perto do campo elétrico
de um corpo humano para não se desintegrar. As
facas estáveis são tratadas para que possam ser
armazenadas. Todas têm cerca de vinte centímetros
de comprimento.
DAR AL-HIKMAN: escola de tradução ou interpretação
religiosa.
DERCH: virar à direita; comando para o piloto de verme.
DESAFIO TAHADDI: desafio fremen para o combate até a
morte, geralmente para colocar à prova uma questão
primordial.
DICTUM FAMILIA: a lei da Grande Convenção que proíbe
que se mate uma pessoa da realeza ou membro de
uma Casa Maior por traição informal. A lei estabelece
o programa formal e limita os métodos dos
assassinos.
DISTRANS: um aparelho que produz uma impressão
neural temporária no sistema nervoso de quirópteros
ou aves. A voz normal da criatura passa a portar a
impressão da mensagem, que pode ser separada da
onda portadora por um outro distrans.
DOUTRINA BENE GESSERIT: emprego das minúcias da
observação.
DROGA DE ELACCA: narcótico formado com a queima da
madeira de veios sanguíneos da elacca de Ecaz. Seu
efeito é remover a maior parte do desejo de
autopreservação. A pele dos drogados apresenta
uma cor laranja característica, como a da cenoura.
Usada comumente com o intuito de preparar os
gladiadores escravos para a arena.
DUNEIROS: expressão idiomática para operários do
deserto aberto, caçadores de especiaria e outros do
gênero em Arrakis. Areneiros. Especieiros.

E
ECAZ: quarto planeta de Alpha Centauri B; o paraíso dos
escultores, chamado assim por ser o planeta natal do
pau-névoa, o vegetal que pode ser modelado in situ
exclusivamente com a força do pensamento humano.
EFEITO HOLTZMAN: o efeito repelente negativo de um
gerador de escudo.
EGOCÓPIA: retrato reproduzido por meio de um projetor
de shigafio, capaz de reproduzir movimentos
discretos que, segundo dizem, transmitem a essência
do ego.
EL-SAYAL: a “chuva de areia”. Uma precipitação de pó
carreado a altitudes médias (cerca de dois mil
metros) por uma tempestade de Coriolis. El-sayal
costuma trazer a umidade para o nível do solo.
ERG: uma área extensa de dunas, um mar de areia.
ESCUDO DEFENSIVO: o campo protetor produzido por um
gerador de Holtzman. Esse campo deriva da Primeira
Fase do efeito anulador-suspensor. O escudo permite
somente a entrada de objetos que se movem a baixas
velocidades (dependendo da configuração, essa
velocidade varia de seis a nove centímetros por
segundo) e só pode ser curto-circuitado por um
campo elétrico enorme (veja-se armalês).
ESMAGADORES: naus militares espaciais, compostas de
muitas naus menores engatadas, projetadas para cair
em cima de uma posição inimiga e esmagá-la.
ESPECIARIA: veja-se mélange.
ESPÍRITO-RUH: segundo a crença fremen, a parte do
indivíduo que está radicada no mundo metafísico e é
capaz de percebê-lo (veja-se alam al-mithal).

F
FAI: o tributo d’água, o principal tipo de imposto em
Arrakis.
FARDO D'ÁGUA: no idioma fremen, uma dívida de gratidão
extrema.
FAREJADOR DE VENENOS: analisador de radiações dentro
do espectro olfativo, ajustado para detectar
substâncias venenosas.
FAUFRELUCHES: a rígida lei de distinção de classes
imposta pelo Imperium. “Um lugar para todo homem,
e todo homem em seu lugar.”
FECHADURA PALMAR: qualquer fechadura ou lacre que se
pode abrir ao contato da palma da mão humana com
a qual foi fechada.
FEDAYKIN: os comandos suicidas dos fremen;
historicamente, um grupo formado com a intenção de
– e comprometido a – dar a vida para reparar uma
injustiça.
FIBRA DE KRIMSKELL ou CORDA DE KRIMSKELL: a “fibra
tenaz”, tecida com filamentos da trepadeira hufuf de
Ecaz. Quando as pontas da laçada são puxadas, os
nós de krims-kell apertam como tenazes, cada vez
mais, até atingir os limites preestabelecidos (um
estudo mais pormenorizado encontra-se em As
trepadeiras estranguladoras de Ecaz, de Holjance
Vohnbrook).
FILME MINIMICRO: shigafio com um mícron de diâmetro,
geralmente usado para transmitir dados de
espionagem e contraespionagem.
FILTROBS: uma unidade filtradora nasal usada em
conjunto com um trajestilador para capturar a
umidade exalada na respiração.
FIQH: conhecimento, lei religiosa; uma das origens quase
lendárias da religião dos Peregrinos Zen-sunitas.
FORAFREYN: palavra galach para “imediatamente de
fora”, ou seja, que não faz parte de sua comunidade
imediata, que não é um dos escolhidos.
FRAGATA: a maior espaçonave capaz de pousar num
planeta e dali decolar intacta.
FREMEN: as tribos livres de Arrakis, habitantes do
deserto, remanescentes dos Peregrinos Zen-sunitas
(“piratas da areia”, de acordo com o Dicionário
Imperial).
FREMKIT: kit de sobrevivência no deserto de fabricação
fremen.

G
GALACH: idioma oficial do Imperium. É um híbrido anglo
eslávico, com traços fortes de língua de cultura
especializada, adotados durante a longa sucessão de
migrações humanas.
GAMONT: terceiro planeta de Niushe; destaca-se por sua
cultura hedonista e práticas sexuais exóticas.
GANCHEIRO: um fremen munido de ganchos de criador,
preparados para apanhar um verme da areia.
GANCHOS DE CRIADOR: os ganchos usados para capturar,
montar e pilotar um verme da areia de Arrakis.
GARE: meseta.
GEYRAT: seguir em frente; comando para o piloto de
verme.
GHAFLA: entregar-se a distrações. Por conseguinte, uma
pessoa volúvel, indigna de confiança.
GHANIMA: uma coisa adquirida em batalha ou combate
singular. Comumente, um suvenir do combate,
guardado apenas para estimular a memória.
GIEDI PRIMO: o planeta de Ophiuchi B (36), terra natal da
Casa Harkonnen. Um planeta de viabilidade mediana,
com um espectro fotossinteticamente ativo reduzido.
GINAZ, CASA DOS: antigos aliados do duque Leto
Atreides. Foram derrotados na Guerra de Assassinos
travada com Grumman.
GIUDICHAR: uma verdade sagrada (comumente
encontrada na expressão “giudichar mantene”: uma
verdade original e sustentadora).
GOM JABBAR: o inimigo despótico; a agulha inoculadora
específica, envenenada com metacianureto e usada
pelas censoras Bene Gesserit no teste que coloca à
prova a percepção humana e tem, como alternativa, a
morte.
GRABEN: uma fossa geológica extensa, formada com o
afundamento do solo por causa de movimentos nas
camadas subjacentes da crosta do planeta.
GRANDE CONVENÇÃO: a trégua universal imposta pelo
equilíbrio de poder mantido pela Guilda, as Casas
Maiores e o Imperium. Sua principal lei proíbe o uso
de armas atômicas contra alvos humanos. Todas as
leis da Grande Convenção começam com: “As
formalidades precisam ser obedecidas...”.
GRANDE MÃE: a deusa de cornos, o princípio feminino do
espaço (comumente, Espaço Mãe), a face feminina da
trindade masculina-feminina-neutra, aceita como Ser
Supremo por muitas religiões do Imperium.
GRANDE REBELIÃO: termo comum para o Jihad
Butleriano (veja-se Jihad Butleriano).
GRUMMAN: segundo planeta de Niushe, famoso
principalmente pela rixa de sua Casa regente
(Moritani) com a Casa Ginaz.
GUERRA DE ASSASSINOS: a forma limitada de guerra
permitida pela Grande Convenção e pela Paz da
Guilda. O objetivo é reduzir o envolvimento de
espectadores inocentes. As regras prescrevem
declarações formais de intenção e restringem as
armas permissíveis.
GUILDA ESPACIAL (OU, SIMPLESMENTE, GUILDA): uma das
pernas do tripé político que sustenta a Grande
Convenção. A Guilda foi a segunda escola de
treinamento físico-mental (veja-se Bene Gesserit) a
surgir depois do Jihad Butleriano. O monopólio da
Guilda sobre o transporte e as viagens espaciais, bem
como sobre o sistema bancário internacional, é
considerado o marco zero do Calendário Imperial.

H
HAGAL: o “Planeta das Joias” (Theta Shaowei II),
minerado à época de Shaddam I.
HAIIIII-YOH!: ordem para agir; comando para o piloto de
verme.
HAJJ: jornada sagrada.
HAJR: jornada pelo deserto, migração.
HAJRA: jornada de busca.
HAL YAWM: “Agora! Enfim!”, uma exclamação fremen.
HARMONTHEP: é o nome que Ingsley dá ao planeta que
serviu como a sexta parada da migração zen-sunita.
Supõe-se que tenha sido um satélite de Delta Pavonis
que já não existe mais.
HEMI-IRMÃOS: filhos homens de concubinas da mesma
casa que têm seguramente o mesmo pai.
HIDRODISCIPLINA: o duro treinamento que prepara os
habitantes de Arrakis para a vida no planeta sem
desperdiçar a umidade do corpo.
HIDROFICHAS: anéis de metal de tamanhos variados,
cada qual designando uma quantidade específica de
água descontável das reservas dos fremen. As
hidrofichas têm uma importância profunda (que
ultrapassa a ideia de dinheiro), principalmente nos
rituais de nascimento, morte e corte.
HIDROMESTRE: um fremen encarregado de cuidar da
água e da Água da Vida, consagrado às obrigações
cerimoniais que as envolvem.
HIDROTUBO: qualquer tubo no interior de um
trajestilador ou de uma tendestiladora que
transporta a água reaproveitada para uma bolsa
coletora ou de uma bolsa coletora para o usuário.
HIEREG: acampamento temporário dos fremen no
deserto aberto.

I
IBAD, OLHOS DOS: efeito característico de uma dieta rica
em mélange; o branco dos olhos e as pupilas
assumem uma cor azul intensa (o que indica uma
forte dependência do mélange).
IBN QIRTAIBA: “Assim dizem as palavras sagradas...” .
Introdução formal dos encantamentos religiosos dos
fremen (derivada da panoplía propheticus).
ICHUAN BEDUIM: a irmandade que reúne todos os fremen
de Arrakis.
IJAZ: profecia que, por sua própria natureza, não pode
ser contestada; profecia inimitável.
IKHUT-EIGH!: pregão do vendedor de água em Arrakis
(etimologia incerta). Veja-se Suu-Suu Suuk!
ILM: teologia; ciência da tradição religiosa; uma das
origens quase lendárias da religião dos Peregrinos
Zen-sunitas.
ISTISLÁ: uma lei que promove o bem-estar de todos;
geralmente um prólogo para uma necessidade cruel.
IX: veja-se Richese.

J
JIHAD: uma cruzada religiosa; cruzada fanática.
JIHAD BUTLERIANO: (veja-se também Grande Rebelião) a
cruzada contra os computadores, máquinas
pensantes e robôs conscientes, iniciada em 201 a. G. e
concluída em 108 a. G. Seu principal mandamento
continua na Bíblia C. O.: “Não criarás uma máquina
para imitar a mente humana”.
JUIZ DA TRANSIÇÃO: um funcionário designado pelo Alto
Conselho do Landsraad e pelo Imperador para
supervisionar uma mudança de suserania, uma
negociação da kanly ou uma batalha formal numa
Guerra de Assassinos. A autoridade de árbitro do juiz
só pode ser contestada diante do Alto Conselho com
o imperador presente.

K
KANLY: rixa ou vendeta formal submetida às leis da
Grande Convenção e levada avante de acordo com as
mais severas restrições (veja-se Juiz da Transição).
Originariamente, as leis foram criadas para proteger
espectadores inocentes.
KARAMA: um milagre; uma ação iniciada pelo mundo
espiritual.
KHALA: invocação tradicional para aplacar os espíritos
zangados de um lugar cujo nome foi mencionado.
KINDJAL: espada curta (ou faca comprida) de fio duplo,
com cerca de vinte centímetros de lâmina
ligeiramente recurva.
KISWA: qualquer figura ou desenho extraído da mitologia
fremen.
KITAB AL-IBAR: um misto de guia de sobrevivência e
manual religioso desenvolvido pelos fremen em
Arrakis.
KULL WAHAD!: “Estou profundamente comovido!”. Uma
exclamação sincera de surpresa, comum no
Imperium. A interpretação exata depende do
contexto (dizem que Muad’Dib, certa vez, viu um
filhote de gavião-do-deserto sair do ovo e murmurou:
“Kull wahad!”).
KULON: jumento selvagem das estepes asiáticas da Terra,
adaptado a Arrakis.
KWISATZ HADERACH: “encurtamento do caminho”. É o
nome dado pelas Bene Gesserit à incógnita para a
qual elas procuram uma solução genética: a versão
masculina de uma Bene Gesserit, cujos poderes
mentais e orgânicos viriam a unir o espaço e o tempo.

L
LA, LA, LA: grito de pesar dos fremen (“la” pode ser
traduzido como a negação suprema, um “não” que
não permite recurso).
LAGARTA DE AREIA: termo genérico para as máquinas
projetadas para operar na superfície de Arrakis,
caçando e coletando o mélange.
LEGIÃO IMPERIAL: dez brigadas (cerca de trinta mil
homens).
LENÇO NEZHONI: o lenço almofadado usado na testa, sob
o gorro do trajestilador, pelas mulheres fremen
casadas, ou “associadas”, após o nascimento de um
filho homem.
LENTES DE ÓLEO: óleo de hufuf mantido em tensão
estática por um campo de força envolvente, dentro de
um tubo de observação, como parte de um sistema de
ampliação ou manipulação da luz. Como podem ser
ajustadas individualmente um mícron por vez, as
lentes de óleo são consideradas as mais precisas para
a manipulação da luz visível.
LIBAN: o liban dos fremen é uma infusão de água de
especiaria e farinha de iúca. Originariamente, uma
bebida feita de leite azedo.
LÍNGUA DE BATALHA: qualquer idioma especial de
etimologia restrita, desenvolvido para a comunicação
inequívoca na guerra.
LISAN AL-GAIB: “A Voz do Mundo Exterior”. Nas lendas
messiânicas dos fremen, um profeta de outro
planeta. Traduzido às vezes como “Doador da Água”
(veja-se Mahdi).
LITROFÃO: recipiente de um litro para o transporte de
água em Arrakis; feito de plástico de alta densidade e
inquebrável, dotado de lacre hermético.
LIVRE-CAMBISTAS: expressão idiomática para
contrabandistas.
LIXEIRAS: termo genérico para qualquer contêiner de
formato irregular, equipado com superfícies de
ablação e amortecedores baseados em suspensores.
São usadas para despejar materiais na superfície de
um planeta desde o espaço.
LUCIGLOBO: dispositivo de iluminação sustentado por
suspensores que tem fornecimento de energia
próprio (geralmente baterias orgânicas).

M
MAHDI: nas lendas messiânicas dos fremen, “Aquele que
Nos Levará ao Paraíso”.
MANTENE: sabedoria subjacente, argumento de
sustentação, princípio primeiro (veja-se Giudichar).
MANTO JUBBA: o manto multiuso (pode ser ajustado para
refletir ou absorver o calor radiante, converte-se
numa rede ou num abrigo), comumente usado por
cima de um trajestilador em Arrakis.
MANUAL DOS ASSASSINOS: compilação, do séc. III, de
venenos comumente usados numa Guerra de
Assassinos. Ampliada posteriormente para incluir os
dispositivos letais permitidos pela Paz da Guilda e a
Grande Convenção.
MAPA DAS PIAS: mapa da superfície de Arrakis que traça
as rotas mais confiáveis, determinadas por uma
parabússola, entre um refúgio e outro (veja-se
parabússola).
MARÉ DE AREIA: expressão idiomática que indica uma
maré de poeira: a variação no nível de certas bacias
preenchidas com poeira em Arrakis, graças a efeitos
gravitacionais do sol e dos satélites (veja-se bacia de
maré-poeira).
MARTELADOR: estaca curta com uma matraca de mola
numa das extremidades. Função: ser enterrado na
areia e começar a “martelar” para chamar shai-hulud
(veja-se ganchos de criador).
MASSA PRÉ-ESPECIARIA: o estágio de crescimento
fungoide desenfreado obtido quando os excrementos
dos criadorezinhos são encharcados com água. Nesse
estágio, a especiaria de Arrakis forma uma
“explosão” característica, trocando o material das
profundezas subterrâneas pela matéria da superfície
logo acima. Essa massa, depois de exposta ao sol e ao
ar, torna-se o mélange (veja-se também mélange e
Água da Vida).
MAULA: escravo.
MÉLANGE: a “especiaria das especiarias”, o produto que
tem em Arrakis sua única fonte. A especiaria, célebre
principalmente por suas características geriátricas,
causa dependência moderada quando ingerida em
pequenas quantidades, e dependência grave quando
sorvida em quantidades superiores a dois gramas
diárias a cada setenta quilos de peso corporal (veja-se
Ibad, Água da Vida e massa pré-especiaria).
Muad’Dib alegava que a especiaria era a chave de
seus poderes proféticos. Os navegadores da Guilda
faziam afirmações semelhantes. O preço do mélange
no mercado imperial chegou a seiscentos e vinte mil
solaris o decagrama.
MENTAT: a classe de cidadãos imperiais treinados para
realizar feitos supremos de lógica. “Computadores
humanos”.
METALEQUE: metal formado pelo crescimento de cristais
de jásmio no interior do duralumínio; destaca-se por
sua extrema força elástica em relação ao peso. O
nome é derivado de seu uso corriqueiro em
estruturas dobráveis que se abrem “em leque”.
METAVIDRO: vidro produzido como uma infusão gasosa
de alta temperatura dentro de folhas do quartzo de
jásmio. Famoso por sua extrema força elástica (por
volta de 450 mil quilogramas por centímetro
quadrado à espessura de dois centímetros) e
capacidade como filtro seletivo de radiação.
MIHNA: a época de colocar à prova os fremen jovens que
desejam ser aceitos como homens adultos.
MISH-MISH: damascos.
MISR: o termo que os Zen-sunitas (fremen) usam
historicamente para se referir a si mesmos: “o Povo”.
MISSIONARIA PROTECTORA: o braço da ordem Bene
Gesserit encarregado de semear superstições
contagiantes em mundos primitivos, expondo-os,
portanto, à exploração por parte das Bene Gesserit
(veja-se panoplía propheticus).
MONITOR: uma nau de guerra espacial em dez seções,
equipada com blindagem pesada e protegida por
escudos. Foi projetada para se separar em suas
seções componentes durante a decolagem, após uma
aterrissagem planetária.
MONITOR CLIMÁTICO: uma pessoa treinada nos métodos
especiais de se prever o tempo em Arrakis, entre eles
o posteamento da areia e a interpretação dos
padrões dos ventos.
MONTARENADOR: termo fremen para alguém capaz de
capturar e montar um verme da areia.
MU ZEIN WALLÁ!!: mu zein significa, literalmente, “nada
de bom”, e wallá é uma partícula exclamativa e
reflexiva de terminação. Nessa introdução tradicional
a uma maldição fremen, lançada sobre um inimigo,
wallá devolve a ênfase às palavras mu e zein,
produzindo o significado: “nada de bom, nunca é
bom, bom para nada”.
MUAD’DIB: o rato-canguru adaptado a Arrakis, uma
criatura associada, na mitologia fremen do espírito
da terra, a um desenho visível na face da segunda lua
do planeta. Essa criatura é admirada pelos fremen
por sua habilidade de sobreviver no deserto aberto.
MUDIR NAHYA: o nome fremen para o Bruto Rabban
(conde Rabban de Lankiveil), o primo Harkonnen que
foi governador-siridar de Arrakis durantes muitos
anos. O nome costuma ser traduzido como “Rei
Demônio”.
MURALHA-ESCUDO: um acidente geográfico montanhoso
nos confins setentrionais de Arrakis, que protege
uma pequena área da força total das tempestades de
Coriolis do planeta.
MUSHTAMAL: um pequeno anexo ou pátio ajardinado.
MUSKY: veneno na bebida (veja-se chaumurky).

N
NA-: um prefixo que significa “nomeado” ou “sucessor”.
Portanto: na-barão significa herdeiro legitimário de
um baronato.
NAIB: alguém que jurou nunca ser capturado vivo pelo
inimigo; juramento tradicional de um líder fremen.
NOUKKERS: oficiais do corpo de guarda-costas imperiais
que têm laços de parentesco com o imperador.
Patente tradicional dos filhos das concubinas reais.

O
ORNITÓPTERO (COMUMENTE, TÓPTERO): qualquer
aeronave capaz de voo sustentado por meio do bater
de asas, como fazem as aves.

P
PANOPLÍA PROPHETICUS: termo que abrange as
superstições contagiantes usadas pelas Bene
Gesserit para explorar regiões primitivas (veja-se
Missionaria Protectora).
PAQUETE: principal cargueiro do sistema de transporte
da Guilda Espacial.
PARABÚSSOLA: qualquer bússola que determina a
direção por meio de anomalias magnéticas
localizadas; utilizada onde existem mapas relevantes
à disposição e onde o campo magnético total de um
planeta é instável ou costuma ser mascarado por
fortes tempestades magnéticas.
PENTAESCUDO: um campo gerador de escudo em cinco
camadas, adequado para áreas pequenas, como vãos
de portas ou passagens (os escudos grandes de
reforço ficam mais instáveis a cada camada
adicional), e praticamente intransponível para quem
não estiver usando um dissimulador sintonizado aos
códigos do escudo (veja-se porta dos prudentes).
PEONES (SING. PEOM): camponeses ou trabalhadores
restritos a um planeta, uma das classes basais do
sistema das faufreluches. Legalmente: a guarda do
planeta.
PIA: uma área de terras baixas e habitáveis em Arrakis,
cercada por terras altas, que a protegem das
tempestades predominantes.
PILAR DE FOGO: um pirofoguete simples que serve de
sinalizador no deserto aberto.
PIROPALA: uma das raras joias opalinas de Hagal.
PISTOLA DE TINGIBARA: um pulverizador de carga
eletrostática desenvolvido em Arrakis para deixar
uma grande marca de tinta na areia.
PISTOLA MAULA: arma de ação por mola que dispara
dardos envenenados; alcance aproximado de
quarenta metros.
PLATIBANDA: segundo nível superior dos penhascos
protetores da Muralha-Escudo de Arrakis (veja-se
Muralha-Escudo).
PLENISCENTA: uma flor verde e exótica de Ecaz, célebre
por seu aroma doce.
PORITRIN: terceiro planeta de Épsilon Alangue,
considerado por muitos Peregrinos Zen-sunitas
como seu planeta de origem, apesar de certas pistas
em seu idioma e sua mitologia indicarem raízes
planetárias muito mais antigas.
PORTA DOS PRUDENTES OU BARREIRA DOS PRUDENTES
(NO VERNÁCULO: PORTAPRU OU BARRAPRU):
qualquer pentaescudo localizado de tal maneira a
deixar escaparem determinadas pessoas em
condições de perseguição (veja-se pentaescudo).
PORTOGAIS (SING. PORTOGAL): laranjas.
POSTEAR A AREIA: a arte de colocar postes de plástico e
fibra nos ermos do deserto aberto de Arrakis e
interpretar os padrões gravados nos postes pelas
tempestades de areia como pistas para a previsão do
tempo.
PRANA (MUSCULATURA-PRANA): os músculos do corpo
quando considerados como unidades para o
treinamento supremo (veja-se bindu).
PRIMANES: relações de parentesco para além de primos.
PRIMEIRA LUA: o principal satélite natural de Arrakis, a
primeira a nascer à noite; destaca-se por apresentar
o desenho distinto de um punho humano em sua
superfície.
PROCÈS-VERBAL: um relatório semiformal que denuncia
um crime contra o Imperium. Legalmente, uma ação
que se situa entre uma alegação verbal imprecisa e
uma acusação formal de crime.
PROCLAMADORA DA VERDADE: uma Reverenda Madre
qualificada a entrar no transe da verdade e detectar a
falta de sinceridade ou a mentira.

Q
QANAT: um canal a céu aberto para o transporte de água
de irrigação em condições controladas através de um
deserto.
QIRTAIBA: veja-se Ibn Qirtaiba.
QIZARA TAFWID: sacerdotes fremen (após Muad’Dib).
QUÉOPS: xadrez piramidal; xadrez em nove níveis, com o
duplo objetivo de colocar a rainha no ápice e o rei do
oponente em cheque.
R
RACHAG: um estimulante cafeínico extraído das bagas
amarelas do akarso (veja-se akarso).
RADIOFRESA: versão de curto alcance de uma armalês,
utilizada principalmente como ferramenta de corte e
bisturi cirúrgico.
RAMADÃ: período religioso antigo, marcado pelo jejum e
a oração; tradicionalmente, o nono mês do calendário
lunissolar. Os fremen fixam o costume de acordo com
a nona passagem da primeira lua pelo meridiano do
lugar.
RAZIA: um ataque guerrilheiro de caráter quase pirático.
RECATAS: tubos fisiológicos que ligam o sistema excretor
humano aos filtros recicladores de um trajestilador.
REPAKIT: artigos essenciais para reparar e repor um
trajestilador.
RESPIRARENADOR: aparelho respirador que bombeia o
ar da superfície para dentro de uma tendestiladora
coberta de areia.
REVERENDA MADRE: originariamente, uma censora das
Bene Gesserit, alguém que já transformou um
“veneno de iluminação” dentro de seu corpo,
elevando-se a um estado superior de percepção.
Título adotado pelos fremen para suas próprias
líderes religiosas que chegaram a uma “iluminação”
semelhante (veja-se também Bene Gesserit e Água da
Vida).
RICHESE: quarto planeta de Eridani A, classificado,
juntamente com Ix, como o suprassumo da cultura
das máquinas. Célebre pela miniaturização. (Pode-se
encontrar um estudo mais pormenorizado de como
Richese e Ix escaparam aos efeitos mais graves do
Jihad Butleriano em O último jihad, de Sumer e
Kautman.)

S
SADUS: juízes. O título fremen se refere a juízes sagrados,
equivalentes a santos.
SALUSA SECUNDUS: terceiro planeta de Gama Waiping;
designado como planeta-prisão do imperador após a
remoção da Corte Real para Kaitain. Salusa Secundus
é o planeta natal da Casa Corrino e a segunda parada
na migração dos Peregrinos Zen-sunitas. A tradição
fremen afirma que eles foram escravos em S. S.
durante nove gerações.
SAPHO: líquido energético extraído de raízes de taipa
provenientes de Ecaz. Usado comumente pelos
Mentats, que lhe atribuem a capacidade de ampliar
os poderes mentais. Os usuários desenvolvem
manchas de cor rubi na boca e nos lábios.
SARDAUKAR: os fanáticos-soldados do imperador padixá.
Eram homens criados num ambiente de tamanha
ferocidade que seis a cada treze pessoas morriam
antes de chegar aos treze anos de idade. Seu
treinamento militar enfatizava a desumanidade e
uma desconsideração quase suicida pela segurança
pessoal. Eram ensinados desde a infância a usar a
crueldade como arma-padrão, enfraquecendo os
oponentes com o terror. No auge de sua hegemonia
sobre o universo, dizia-se que sua habilidade com a
espada se equiparava à dos Ginaz de décimo nível e
que sua astúcia no combate corpo a corpo seria
quase equivalente à de uma iniciada Bene Gesserit.
Qualquer um deles era considerado páreo para os
recrutas normais das forças armadas do Landsraad.
À época de Shaddam IV, apesar de ainda serem
formidáveis, sua força tinha sido minada pelo excesso
de confiança, e a mística que nutria sua religião
guerreira havia sido profundamente solapada pelo
ceticismo.
SARFA: o ato de dar as costas a Deus.
SAYYADINA: acólito do sexo feminino na hierarquia
religiosa dos fremen.
SCHLAG: animal natural de Tupile que quase foi caçado
até a extinção por causa de seu couro resistente e
fino.
SEGUNDA LUA: o menor dos dois satélites naturais de
Arrakis, digno de nota pela figura do rato-canguru
que aparece em sua superfície.
SELAMLIK: sala de audiências imperial.
SEMUTA: o segundo derivado narcótico (por extração
cristalina) das cinzas da madeira de elacca. O efeito
(descrito como um êxtase intemporal e ininterrupto)
é evocado por certas vibrações atonais chamadas de
música da semuta.
SERVÓGIO: mecanismo dotado de temporizador para
realizar tarefas simples; um dos aparelhos de
“automação” limitada permitidos após o Jihad
Butleriano.
SHADOUT: “aquela que retira a água do poço”, um título
honorífico dos fremen.
SHÁ-NAMA: o quase lendário Livro Primeiro dos
Peregrinos Zen-sunitas.
SHAI-HULUD: o verme da areia de Arrakis, o “Velho do
Deserto”, o “Velho Pai Eternidade” e o “Avô do
Deserto”. É significativo que o nome, quando
pronunciado com uma certa entonação ou escrito
com iniciais maiúsculas, designe a divindade da terra
nas superstições domésticas dos fremen. Os vermes
da areia ficam enormes ( já foram avistados
espécimes com mais de quatrocentos metros de
comprimento nas profundezas do deserto) e chegam
a idades muito avançadas, a menos que sejam mortos
por outro verme ou afogados em água, que é um
veneno para eles. Atribui-se a existência da maior
parte da areia de Arrakis à ação dos vermes (veja-se
criadorzinho).
SHAITAN: Satã.
SHARIÁ: a parte da panoplía propheticus que descreve o
ritual supersticioso (veja-se Missionaria Protectora.)
SHIGAFIO: extrusão metálica de uma planta rastejante
(Narvi narviium) que só cresce em Salusa Secundus e
Delta Kaising III. Destaca-se por sua extrema força
elástica.
SIETCH: na língua fremen, “lugar de reunião em tempos
perigosos”. Como os fremen viveram tanto tempo em
perigo, o termo veio a designar, por extensão de
sentido, qualquer caverna labiríntica habitada por
uma de suas comunidades tribais.
SIHAYA: na língua fremen, a primavera do deserto, com
insinuações religiosas que implicam o tempo da
fertilidade e “o paraíso que ainda virá”.
SIRAT: o trecho da Bíblia C. O. que descreve a vida
humana como uma jornada através de uma ponte
estreita (a sirat), com “o paraíso à direita, o inferno à
esquerda, e o Anjo da Morte atrás”.
SOLARI: unidade monetária oficial do Imperium, seu
poder de compra foi estabelecido em negociações
quadricentenárias entre a Guilda, o Landsraad e o
imperador.
SOLIDOGRAFIA: a imagem tridimensional que sai de um
projetor solidográfico, que utiliza sinais de referência
em 360 graus impressos num rolo de shigafio. Os
projetores solidográficos ixianos costumam ser
considerados os melhores.
SONDAGI: a tulipa filicópsida de Tupali.
SORTILÉGIOS, DOS: expressão idomática; aquilo que tem
algo de misticismo ou bruxaria.
SUBAKH UL KUHAR: “Como está?”. Cumprimento fremen.
SUBAKH UN NAR: “Estou bem, e você?”. Resposta
tradicional a um cumprimento fremen.
SUSPENSÃO BINDU: uma forma especial de catalepsia
autoinduzida.
SUSPENSOR: fase secundária (baixo consumo) de um
gerador de campo de Holtzman. Anula a gravidade
dentro de certos limites prescritos pelo consumo
relativo de massa e energia.
SUU-SUU SUUK!: pregão dos vendedores de água em
Arrakis. Suuk é um mercado (veja-se ikhut-eigh!)

T
TAHADDI AL-BURHAN: um teste supremo para o qual não
cabe recurso (geralmente porque ele leva à morte ou
à destruição).
TAQWA: literalmente, “o preço da liberdade”. Uma coisa
de grande valor. Aquilo que uma divindade exige de
um mortal (e o medo provocado por essa exigência).
TAU, O: na terminologia fremen, a unidade da
comunidade sietch, ampliada pela dieta baseada em
especiaria e, principalmente, a orgia tau de unidade
evocada pela ingestão da Água da Vida.
TENDESTILADORA: recinto pequeno e lacrável de tecido
em microssanduíche, projetado para reaproveitar, na
forma de água potável, a umidade ambiente liberada
dentro dela pela respiração de seus ocupantes.
T-P: expressão idiomática para telepatia.
TESTE-MASHAD: qualquer teste no qual a honra (definida
como prestígio espiritual) está em jogo.
TLEILAX: planeta solitário de Thalim, célebre como
centro de treinamento renegado para Mentats;
origem dos Mentats deturpados.
TRAJESTILADOR: roupa que envolve o corpo todo,
inventada em Arrakis. Seu tecido é um
microssanduíche com as funções de dissipar o calor e
filtrar os dejetos do corpo. A umidade reaproveitada
torna-se disponível por meio de um tubo que vem de
bolsas coletoras.
TRANSE DA VERDADE: transe semi-hipnótico induzido
por um dentre vários narcóticos de “espectro
perceptivo”, no qual as pequenas inconfidências da
mentira deliberada ficam aparentes para a
observadora em transe. (Obs.: os narcóticos de
“espectro perceptivo” costumam ser fatais, exceto
para indivíduos insensibilizados, capazes de mudar a
configuração do veneno em seus próprios corpos.)
TRANSPORTE DE TROPAS: qualquer nave da Guilda
projetada especificamente para transportar tropas
de um planeta a outro.
TREINAMENTO: quando aplicado às Bene Gesserit, este
termo comum assume um significado especial,
referindo-se ao condicionamento de nervos e
músculos (vejam-se bindu e prana) elevado ao último
grau permitido pelas funções naturais.
TRILHARENADOR: qualquer fremen treinado para
sobreviver no deserto aberto.
TRIPÉ DA MORTE: originariamente, o tripé no qual os
executores do deserto enforcavam suas vítimas. Por
extensão de sentido: os três membros de um cherem
que juraram a mesma vingança.
TUPILE: o chamado “planeta santuário” (provavelmente
vários planetas) para as Casas derrotadas do
Imperium. Sua(s) localização(ões) é(são) conhecida(s)
apenas pela Guilda e guardada(s) como segredo
inviolável sob os termos da Paz da Guilda.

U
ULEMÁ: um doutor em teologia entre os Zen-sunitas.
UMMA: alguém que pertence à irmandade dos profetas
(no Imperium, termo desdenhoso que indica qualquer
pessoa “desvairada” e dada a fazer predições
fanáticas).
UROSHNOR: um dos diversos sons desprovidos de sentido
que as Bene Gesserit implantam nas psiques de
vítimas seletas a fim de controlá-las. A pessoa
sensibilizada, ao ouvir o som, fica temporariamente
imobilizada.
USINA DE ESPECIARIA: veja-se lagarta de areia.
USUL: no idioma fremen, “a base da coluna”.

V
VAROTA: famoso fabricante de balisets; natural de
Chusuk.
VEDA-PORTAS: um lacre plástico, hermético e portátil
usado para manter a hidrossegurança nas cavernas
em que os fremen acampam durante o dia.
VENENO RESIDUAL: uma inovação atribuída ao Mentat
Piter de Vries, por meio da qual o corpo é impregnado
com uma substância que exige a aplicação repetida
de antídotos. A remoção do antídoto a qualquer
momento causa a morte.
VERITÉ: um dos narcóticos de Ecaz que destroem a
vontade. Torna uma pessoa incapaz de mentir.
VERME DA AREIA: veja-se Shai-hulud.
VIGIA CONTROLE: o ornitóptero leve, num grupo de
caçadores de especiaria, encarregado de controlar a
vigilância e a proteção.
VOZ: o treinamento combinado, criado pelas Bene
Gesserit, que permite à iniciada controlar outras
pessoas usando apenas certas nuances de tom de
voz.

W
WALI: um fremen jovem ainda não colocado à prova.
WALLACH IX: nono planeta de Laoujin, sede da Escola
Mãe das Bene Gesserit.

Y
YA HYA CHOUHADA: “Longa vida aos guerreiros!”. Grito
de guerra dos Fedaykin. Ya (agora), nesse grito, é
amplificado pela forma hya (o agora que se prolonga
na eternidade). Chouhada (guerreiros) traz o sentido
adicional de lutar contra a injustiça. Há nessa palavra
uma distinção que especifica que os guerreiros não
lutam por qualquer coisa, e sim que foram
consagrados a lutar contra uma coisa específica e
exclusiva.
YA! YA! YAWM!: cadência dos cânticos fremen, usada em
momentos de profundo significado ritualístico. Ya
tem o significado original de “Agora preste atenção!”.
A forma yawm é um termo modificado que exige
proximidade urgente. O canto costuma ser traduzido
como “Agora, ouça isto!”.
YALI: os aposentos pessoais de um fremen no sietch.

Z
ZEN-SUNITAS: seguidores de uma seita cismática que se
desviou dos ensinamentos de Maomé (o chamado
“Terceiro Muhammad”) por volta de 1381 a. G. A
religião zen-sunita destaca-se principalmente por
sua ênfase no misticismo e por um retorno aos
“costumes dos antepassados”. A maioria dos
estudiosos nomeia Ali Ben Ohashi como o líder do
cisma original, mas há indícios de que Ohashi pode
ter sido meramente o porta-voz masculino de sua
segunda esposa, Nisai.
Notas cartográficas

BASE PARA A LATITUDE: meridiano que cruza a


Montanha do Observatório.
REFERÊNCIA PARA A DETERMINAÇÃO DA ALTITUDE: o
Grande Bled.
PIA POLAR: 500 metros abaixo do nível do bled.

CARTAGO: cerca de 200 quilômetros a nordeste de


Arrakina.
CAVERNA DOS PÁSSAROS: na Colina de Habbanya.
PLANÍCIE FÚNEBRE: erg aberto.
GRANDE BLED: deserto plano e aberto, diferente da área
de dunas e ergs. O deserto aberto vai de
aproximadamente 60° Norte a 70° Sul. Em grande
parte areia e pedra, com afloramentos ocasionais do
complexo subterrâneo.
GRANDE CHÃ: uma depressão rochosa e aberta que se
mistura ao erg. Fica cerca de 100 metros acima do
bled. Em algum ponto da chã fica a caldeira de sal
descoberta por Pardot Kynes (pai de Liet-Kynes).
Existem afloramentos rochosos que chegam a 200
metros de altura entre o Sietch Tabr e as
comunidades sietch indicadas, ao sul.
GARGANTA DE HARG: o santuário do crânio de Leto fica
acima dessa garganta.
VELHA RAVINA: uma fenda na Muralha-Escudo de
Arrakina que desce até os 2.240 metros; destruída
por Paul Muad’Dib.
PALMARES DO SUL: não aparecem neste mapa. Ficam
aproximadamente a 40° de latitude Sul.
ABISMO VERMELHO: 1.582 metros abaixo do nível do bled.
PLATIBANDA OESTE: um escarpamento elevado (4.600
metros) que se ergue da Muralha-Escudo de
Arrakina.
DESFILADEIRO DO VENTO: emparedado por penhascos,
abre-se para as vilas das pias.
LINHA DOS VERMES: indica os pontos mais ao norte onde
foram registrados vermes. (A umidade, e não o frio, é
o fator determinante.)
Sobre o autor

Franklin Patrick Herbert Jr. nasceu em Tacoma,


Washington. Trabalhou nas mais diversas áreas – operador de
câmera de TV, comentarista de rádio, pescador de ostras,
instrutor de sobrevivência na selva, psicólogo, professor de
escrita criativa, jornalista e editor de vários jornais – antes de
se tornar escritor em tempo integral. Em 1952, publicou seu
primeiro conto de ficção, “Looking For Something?”, na revista
Startling Stories, mas a consagração ocorreu apenas em 1965,
com a publicação de Duna. Herbert também escreveu mais de
vinte outros títulos, incluindo The Jesus Incident e Destination:
Void, antes de falecer em 1986.
DUNA

TÍTULO ORIGINAL: Dune


COPIDESQUE: Marcos Fernando de Barros Lima
REVISÃO: Entrelinhas Editorial | Carla Bitelli
CAPA E PROJETO GRÁFICO: Pedro Inoue
DIAGRAMAÇÃO: Desenho Editorial
VERSÃO ELETRÔNICA: Natalli Tami
ILUSTRAÇÃO: Marc Simonetti
EDITORIAL: Daniel Lameira | Mateus Duque Erthal | Katharina Cotrim | Bárbara Prince |
Andréa Bergamaschi | Renato Ritto

COPYRIGHT © FRANK HERBERT, 1965


COPYRIGHT © EDITORA ALEPH, 2015

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.


(EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA PARA O BRASIL)
PROIBIDA A REPRODUÇÃO, NO TODO OU EM PARTE, ATRAVÉS DE QUAISQUER MEIOS.
PUBLICADO MEDIANTE ACORDO COM HERBERT PROPERTIES, LLC., REPRESENTADO POR TRIDENT MEDIA
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Rua Tabapuã, 81 - cj. 134


04533-010 – São Paulo – SP – Brasil
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www.editoraaleph.com.br

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGACÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Herbert, Frank
Duna [livro eletrônico] / Frank Herbert ; tradução Maria do Carmo Zanini ; tradução Maria do Carmo
Zanini. -- São Paulo : Aleph, 2015.
2.45 Mb; ePUB

Título original: Dune


ISBN: 978-85-7657-237-4
1. Ficção científica norte-americana I. Título.
15-05756 CDD-813.0876

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção científica : Literatura norte-americana 813.0876
Sumário
Capa
Folha de rosto
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Epílogo
Terminologia do Imperium
Sobre o autor
Créditos
Excertos da entrevista com Bronso de Ix na cela
onde aguardava a morte.
P: O que levou você a essa abordagem tão particular da história
de Muad’Dib?
R: Por que eu deveria responder a suas perguntas?
P: Porque vou preservar suas palavras.
R: Aaah! A tentação suprema para um historiador!
P: Vai cooperar então?
R: Por que não? Mas você nunca entenderá o que inspirou
minha Análise da história. Nunca. Vocês, sacerdotes, têm muito a
perder para...
P: Por que não tenta?
R: Tentar? Bem, outra vez... por que não? Chamou-me a
atenção a superficialidade da visão que geralmente se tem deste
planeta, uma decorrência de seu nome popular: Duna. Não
Arrakis, veja bem, e sim Duna. A história tem obsessão por Duna
como deserto, como o berço dos fremen. Essa história se
concentra nos costumes que se desenvolveram em função da
escassez de água e do fato de que os fremen levavam uma vida
seminômade, vestindo trajestiladores que reaproveitavam a
maior parte da umidade do corpo.
P: E por acaso não é tudo verdade?
R: É uma verdade superficial. Ignora o que fica subjacente tanto
quanto... tanto quanto tentar entender meu planeta natal, Ix, sem
examinar como foi que tiramos nosso nome do fato de sermos o
nono planeta de nosso sistema solar. Não... não. Não basta ver
Duna como um lugar de tempestades violentas. Não basta falar
do perigo representado pelos gigantescos vermes da areia.
P: Mas essas coisas são cruciais para o caráter arrakino!
R: Cruciais? Claro que sim. Mas geram um planeta de visão
única, da mesma maneira que Duna é um planeta de um só
produto, pois é a fonte exclusivíssima da especiaria, o mélange.
P: Sim. Vejamos o que tem a dizer a respeito da especiaria
sagrada.
R: Sagrada! Assim como tudo que é sagrado, ela tira com uma
das mãos o que oferece com a outra. Prolonga a vida e permite ao
iniciado prever o futuro, mas o prende a um vício cruel e marca-
lhe os olhos como os seus foram marcados: um azul total, sem o
branco. Seus olhos, os órgãos da visão, tornam-se uma coisa só,
sem contraste, uma visão única.
P: Foi essa heresia que o trouxe a esta cela!
R: Foram seus sacerdotes que me trouxeram a esta cela. Como
todos os sacerdotes, vocês logo aprenderam a chamar a verdade
de heresia.
P: Você está aqui porque teve a audácia de dizer que Paul
Atreides perdeu algo essencial a sua humanidade para que
pudesse se tornar Muad’Dib.
R: Sem mencionar que ele perdeu o pai aqui, na guerra contra
os Harkonnen. Ou a morte de Duncan Idaho, que se sacrificou
para que Paul e lady Jéssica escapassem.
P: Seu cinismo foi devidamente registrado.
R: Cinismo! Sem dúvida alguma, deve ser um crime pior que a
heresia. Mas, veja você, eu não sou realmente um cínico. Sou
apenas um observador e comentarista. Vi a verdadeira nobreza
de Paul quando ele fugiu para o deserto com a mãe grávida.
Naturalmente, ela era tanto um grande trunfo quanto um fardo.
P: O defeito de vocês, historiadores, é não se dar por
satisfeitos. Enxergam a verdadeira nobreza do Sacrossanto
Muad’Dib, mas não deixam de acrescentar uma observação
cínica. Não é à toa que também são denunciados pelas Bene
Gesserit.
R: Vocês, sacerdotes, fazem muito bem em unir forças com a
Irmandade das Bene Gesserit. Elas também sobrevivem porque
escondem o que fazem. Mas não conseguem ocultar o fato de que
lady Jéssica era uma iniciada treinada pelas Bene Gesserit. Vocês
sabem que ela treinou o filho na doutrina da Irmandade. Meu
crime foi discutir isso como um fenômeno, explanar suas artes
mentais e seu programa genético. Vocês não querem chamar a
atenção para o fato de que Muad’Dib era o tão esperado messias
cativo da Irmandade, que ele foi o Kwisatz Haderach das Bene
Gesserit antes de ser seu profeta.
P: Se eu ainda tinha alguma dúvida quanto a sua sentença de
morte, você acabou de desfazê-la.
R: Só posso morrer uma vez.
P: Há jeitos e jeitos de morrer.
R: Cuidado para não transformar a mim num mártir. Não creio
que Muad’Dib... Diga-me, Muad’Dib sabe o que vocês fazem
nestes calabouços?
P: Não incomodamos a Sagrada Família com trivialidades.
R: (Riso.) E foi para isto que Paul Atreides lutou e conseguiu um
lugar entre os fremen! Foi para isto que ele aprendeu a controlar e
montar o verme da areia! Foi um erro responder às suas
perguntas.
P: Mas cumprirei minha promessa de preservar suas palavras.
R: Cumprirá mesmo? Então escute com atenção, seu
degenerado fremen, seu sacerdote que só tem a si mesmo como
deus! Vocês têm muito pelo que responder. Foi um ritual fremen
que deu a Paul a primeira dose cavalar de mélange, expondo-o,
assim, às visões de seus próprios futuros. Foi por meio de um
ritual fremen que esse mesmo mélange despertou Alia ainda no
ventre de lady Jéssica. Já pensou no que foi para Alia vir a este
universo completamente cognoscente, senhora de todas as
lembranças e de todo o conhecimento da mãe dela? Um estupro
não seria tão apavorante.
P: Sem o mélange sagrado, Muad’Dib não teria se tornado líder
de todos os fremen. Sem sua experiência sagrada, Alia não seria
Alia.
R: Sem essa sua crueldade irracional de fremen, você não seria
um sacerdote. Aaah, eu conheço vocês, fremen. Pensam que
Muad’Dib é seu porque ele se uniu a Chani, porque adotou os
costumes fremen. Mas ele era um Atreides antes disso, e foi
treinado por uma iniciada Bene Gesserit. Possuía disciplinas
totalmente desconhecidas por vocês. Pensaram que ele lhes
trazia uma nova ordem e uma nova missão. Ele prometeu
transformar seu planeta deserto num paraíso rico em água. E,
enquanto deslumbrava vocês com esses sonhos, ele os
desvirginou!
P: Essa heresia não muda o fato de que a Transformação
Ecológica de Duna avança em ritmo acelerado.
R: E eu cometi a heresia de localizar as origens dessa
transformação, de explorar as consequências. Aquela batalha lá
fora, nas Planícies de Arrakina, pode ter ensinado ao universo que
os fremen eram capazes de derrotar os Sardaukar Imperiais, mas
o que mais ensinou? Quando o império estelar da Família Corrino
tornou-se um império fremen sob o domínio de Muad’Dib, o que
mais o Império se tornou? Seu Jihad só durou doze anos, mas nos
ensinou uma lição e tanto. Agora o Império entende a impostura
que foi o casamento de Muad’Dib com a princesa Irulan!
P: Você tem a audácia de acusar Muad’Dib de impostura!
R: Pode me matar por isso, mas não é heresia. A princesa
tornou-se a consorte dele, não sua mulher. Chani, sua queridinha
fremen: ela é a mulher dele. Todo mundo sabe disso. Irulan foi a
chave para chegar ao trono, nada mais.
P: É fácil ver por que aqueles que conspiram contra Muad’Dib
usam sua Análise da história como argumento conclamador!
R: Não vou convencer você, sei disso. Mas o argumento da
conspiração antecede minha Análise. Os doze anos do Jihad de
Muad’Dib criaram o argumento. Foi isso que uniu os antigos
grupos hegemônicos e deflagrou a conspiração contra Muad’Dib.
É tão rico o repertório de mitos que envolve Paul
Muad’Dib, o Imperador Mentat, e sua irmã, Alia,
que fica difícil enxergar as pessoas de verdade
por trás de tantos véus. Mas, no fim das contas,
existiu um homem que nasceu Paul Atreides e
uma mulher que nasceu Alia. A carne de ambos
estava sujeita ao espaço e ao tempo. E, muito
embora seus poderes oraculares os situassem
fora dos limites usuais do tempo e do espaço, eles
eram de origem humana. Vivenciaram fatos reais
que deixaram marcas reais num universo real.
Para entendê-los, é preciso ver que sua catástrofe
foi a catástrofe da humanidade inteira. Esta obra,
portanto, é dedicada não a Muad’Dib, nem à irmã
dele, mas a seus herdeiros — a todos nós.
– Dedicatória da “Concordância de Muad’Dib”, tal como foi transcrita da Tabla
memorium do Culto ao Espírito do Mahdi

O reinado imperial de Muad’Dib produziu mais historiadores


que qualquer outra era da história humana. A maioria deles
defendia um ponto de vista particular, cioso e sectário; mas o fato
de esse homem ter incitado tamanho fervor em tantos planetas
diferentes já nos diz alguma coisa sobre seu impacto peculiar.
Naturalmente, ele detinha nas mãos os ingredientes da
história, a ideal e a idealizada. Esse homem, que nasceu Paul
Atreides numa antiga Família Maior, recebeu o profundo
treinamento prana-bindu de lady Jéssica, sua mãe Bene Gesserit,
e, portanto, possuía um controle soberbo dos músculos e dos
nervos. Contudo, mais do que isso, ele era um Mentat, um
intelecto cujas capacidades ultrapassavam as dos computadores
mecânicos usados pelos antigos e proscritos pela religião.
Acima de tudo, Muad’Dib era o Kwisatz Haderach que o
programa de reprodução da Irmandade buscava havia milhares
de gerações.
O Kwisatz Haderach, portanto, aquele capaz de estar “em
muitos lugares ao mesmo tempo”, esse profeta, esse homem por
meio de quem as Bene Gesserit esperavam controlar o destino da
humanidade – esse homem tornou-se o imperador Muad’Dib e
casou-se por conveniência com a filha do imperador padixá que
ele derrotou.
Imagine o paradoxo, o fracasso implícito, pois sem dúvida você
já leu outras crônicas e conhece superficialmente os fatos. Os
fremen bravios de Muad’Dib realmente sobrepujaram o padixá
Shaddam IV. Derrubaram as legiões dos Sardaukar, as forças
aliadas das Casas Maiores, os exércitos dos Harkonnen e os
mercenários comprados com a verba aprovada pelo Landsraad.
Ele deixou a Guilda Espacial de joelhos e colocou a própria irmã,
Alia, no trono religioso que as Bene Gesserit pensavam ser seu.
Ele fez tudo isso e muito mais.
Os missionários do Qizarate de Muad’Dib levaram sua guerra
religiosa a todo o espaço, num Jihad cujo grande ímpeto durou
apenas doze anos-padrão, mas, nesse período, o colonialismo
religioso reuniu quase todo o universo humano sob uma mesma
lei.
Ele o fez porque a captura de Arrakis, o planeta mais conhecido
como Duna, deu-lhe o monopólio da moeda definitiva do reino: a
especiaria geriátrica, o mélange, o veneno que concedia a vida.
Eis aí mais um ingrediente da história ideal: uma matéria-prima
cuja química psíquica desenredava o Tempo. Sem o mélange, as
Reverendas Madres da Irmandade não conseguiam realizar suas
façanhas de observação e controle da raça humana. Sem o
mélange, os Pilotos da Guilda não conseguiam se locomover no
espaço. Sem o mélange, bilhões e bilhões de cidadãos imperiais
viciados na especiaria morreriam de abstinência.
Sem o mélange, Paul Muad’Dib não era capaz de profetizar.
Sabemos que esse momento de poder supremo encerrava o
fracasso. Só pode haver uma resposta, a de que a predição total e
absolutamente precisa é letal.
Outras crônicas afirmam que Muad’Dib foi derrotado por
conspiradores óbvios: a Guilda, a Irmandade e os amoralistas
científicos dos Bene Tleilax, com os disfarces de seus Dançarinos
Faciais. Outras crônicas destacam os espiões infiltrados no lar de
Muad’Dib. Dão grande importância ao Tarô de Duna, que
obscureceu os poderes proféticos de Muad’Dib. Algumas
demonstram como Muad’Dib foi levado a aceitar os serviços de
um ghola, o corpo que trouxeram da morte e treinaram para
destruí-lo. Mas certamente devem saber que esse ghola era
Duncan Idaho, o lugar-tenente dos Atreides que pereceu para
salvar a vida do jovem Paul.
Ainda assim, elas descrevem a cabala do Qizarate liderada por
Korba, o Panegirista. Conduzem-nos passo a passo pelo plano de
Korba de transformar Muad’Dib num mártir e jogar a culpa em
Chani, a concubina fremen.
Como é que qualquer uma dessas coisas pode explicar os fatos
da maneira que a história os revelou? Não podem. Somente por
meio da natureza letal da profecia é que conseguimos entender o
fracasso desse poder imenso e previdente.
Tomara que outros historiadores aprendam alguma coisa com
essa revelação.

– Análise da história: Muad’Dib


escrita por Bronso de Ix
Não há a menor distinção entre deuses e homens:
as duas coisas se misturam sem cerimônia.
– Provérbios de Muad’Dib

Apesar da natureza homicida da trama que ele esperava


arquitetar, os pensamentos de Scytale, o Dançarino Facial
Tleilaxu, voltavam vez após vez a uma compaixão penitente.
Hei de me arrepender de levar a morte e a desgraça a Muad’Dib,
ele dizia consigo mesmo.
Escondia cuidadosamente essa bondade dos outros
conspiradores. Mas esses sentimentos lhe diziam que ele achava
mais fácil se identificar com a vítima do que com os agressores –
algo característico dos Tleilaxu.
Scytale permanecia em silêncio, pensativo, um tanto à parte
dos demais. A discussão a respeito de um veneno psíquico já se
prolongava havia algum tempo. Era vigorosa e veemente, mas
tinha aquela cortesia cega e compulsiva que os iniciados das
Grandes Escolas sempre adotavam ao defender as questões caras
a seus dogmas.
– É justamente quando pensarem que o trespassaram que
vocês irão encontrá-lo intacto!
Era a idosa Reverenda Madre das Bene Gesserit, Gaius Helen
Mohiam, sua anfitriã ali em Wallach IX. A mulher era um palito
vestido de preto, uma bruxa velha sentada numa cadeira
flutuante à esquerda de Scytale. O capuz de sua aba fora atirado
para trás e deixava exposto um rosto curtido sob os cabelos de
prata. Olhos encovados e fundos nas feições mascaresqueléticas
fitavam os presentes.
Usavam uma língua mirabhasa, consoantes falangiais afinadas
e vogais unidas. Era um instrumento para transmitir sutilezas
emocionais requintadas. Edric, o Piloto da Guilda, respondia
agora à Reverenda Madre com uma mesura vocal contida num
sorriso escarninho – um toque adorável de cortesia desdenhosa.
Scytale olhou para o emissário da Guilda. Edric nadava dentro
de um recipiente de gás laranja a apenas alguns passos de
distância. Seu recipiente estava no centro da cúpula transparente
que as Bene Gesserit haviam construído para aquela reunião. O
Piloto era uma figura alongada, vagamente humanoide, com pés
palmados e mãos enormes, membranosas, em forma de leque –
um peixe num estranho mar. Os respiradouros de seu tanque
emitiam uma nuvem clara e alaranjada, impregnada com o odor
da especiaria geriátrica, o mélange.
– Se seguirmos por esse caminho, morreremos de estupidez!
Essa era a quarta pessoa presente – o membro potencial da
conspiração –, a princesa Irulan, esposa (mas não mulher, Scytale
lembrou) de seu inimigo comum. Estava a um dos cantos do
tanque de Edric, uma beldade alta e loura, esplêndida em seu
manto de pele de baleia azul e chapéu combinando. Botões
dourados cintilavam em suas orelhas. Ela se portava com uma
altivez aristocrática, mas algo na suavidade absorta de sua
fisionomia denunciava os controles de sua criação Bene Gesserit.
A mente de Scytale passou das nuances da língua e das
expressões faciais para as nuances do local. Ao redor de toda a
cúpula repousavam colinas manchadas pelo degelo que refletiam
numa azulância úmida e matizada o sol branco-azulado que
pairava no zênite.
Por que este local em particular?, Scytale se perguntou. As Bene
Gesserit raramente faziam alguma coisa por acaso. A amplitude
da cúpula, por exemplo: um espaço mais convencional e restritivo
poderia ter afligido o membro da Guilda com uma ansiedade
claustrofóbica. As inibições de sua psique decorriam de ter
nascido e vivido no espaço aberto, e não na superfície de um
planeta.
Mas a construção daquele lugar especialmente para Edric...
que maneira mais lancinante de apontar um dedo para sua
fraqueza.
O que foi que prepararam para mim aqui?, imaginou Scytale.
– E você não tem nada a dizer, Scytale? – indagou a Reverenda
Madre.
– Você quer me arrastar para essa discussão tola? – Scytale
perguntou. – Muito bem. Estamos lidando com um possível
messias. Não se lança um ataque frontal contra alguém assim. Um
mártir seria nossa derrota.
Todos olharam fixamente para ele.
– Acha que esse é o único perigo? – indagou a Reverenda
Madre, com voz ofegante.
Scytale deu de ombros. Escolhera uma aparência insossa e de
rosto redondo para aquela reunião, feições joviais, lábios cheios e
insípidos, o corpo inflado de um homenzinho rechonchudo.
Ocorreu-lhe, então, ao examinar os outros conspiradores, que ele
fizera a escolha ideal – por instinto, talvez. Era o único naquele
grupo capaz de manipular a aparência física e assumir uma
grande variedade de formas e características corpóreas. Era o
camaleão humano, um Dançarino Facial, e a forma que assumia no
momento convidava os demais a julgá-lo com excessiva
leviandade.
– Bem? – insistiu a Reverenda Madre.
– Eu estava desfrutando o silêncio – disse Scytale. – É melhor
não dar voz a nossas hostilidades.
A Reverenda Madre recuou, e Scytale viu que ela o reavaliava.
Todos ali eram produtos do profundo treinamento prana-bindu,
capazes de um controle muscular e nervoso que poucos seres
humanos chegavam a alcançar. Mas Scytale, um Dançarino Facial,
tinha músculos e ligações nervosas que os demais não possuíam,
além de uma qualidade especial de simpatia, a intuição de um
mímico, que lhe permitia assumir a psique tanto quanto a
aparência de uma outra pessoa.
Scytale deu-lhe tempo suficiente para completar a reavaliação
e disse:
– Veneno!
Pronunciou a palavra com a atonalidade que dava a entender
que somente ele compreendia seu significado secreto.
O membro da Guilda se agitou e sua voz saiu retumbando do
globo-falante resplandecente que orbitava um dos cantos de seu
tanque, logo acima de Irulan.
– Estamos discutindo um veneno psíquico, e não físico.
Scytale riu. O riso, em mirabhasa, era capaz de esfolar um
oponente, e ele não foi nada comedido.
Irulan abriu um sorriso de apreço, mas os cantos dos olhos da
Reverenda Madre revelaram um tênue sinal de raiva.
– Pare com isso! – falou Mohiam, ríspida.
Scytale parou, mas agora tinha a atenção deles: Edric calado e
furioso; a Reverenda Madre alerta, mesmo com raiva; Irulan
entretida, mas intrigada.
– Nosso amigo Edric está sugerindo – disse Scytale – que as
duas bruxas Bene Gesserit, treinadas em todas as suas sutilezas,
ainda não aprenderam as verdadeiras utilidades do engodo.
Mohiam se virou para fitar as colinas geladas do planeta-sede
das Bene Gesserit. Ela começava a enxergar o que era
imprescindível ali, percebeu Scytale. Ótimo. Irulan, contudo, era
uma outra questão.
– É ou não é um de nós, Scytale? – Edric perguntou, fitando o
Tleilaxu com seus olhinhos de roedor.
– Minha lealdade não é o problema – disse Scytale. Manteve sua
atenção em Irulan. – Está se perguntando, princesa, se foi para
isto que se deslocaram tantos parsecs, que correu tantos riscos?
Ela concordou com a cabeça.
– Teria sido para trocar chavões com um peixe humanoide ou
discutir com um Dançarino Facial Tleilaxu gorducho? –
perguntou Scytale.
Ela se afastou um passo do tanque de Edric, sacudindo a
cabeça, incomodada com o odor copioso de mélange.
Edric aproveitou o momento e mandou uma pílula de mélange
para dentro da boca. Ele ingeria a especiaria, respirava-a e, sem
dúvida alguma, a bebia, observou Scytale. Compreensível, pois a
especiaria acentuava a presciência de um Piloto, concedia-lhe o
poder de dirigir um paquete da Guilda pelo espaço a velocidades
transluz. Com a percepção induzida pela especiaria, ele
encontrava a linha do futuro da nave que evitaria o perigo. Edric
farejava uma outra espécie de perigo no momento, mas talvez a
muleta que era sua presciência não o encontrasse.
– Acho que foi um erro ter vindo aqui – falou Irulan.
A Reverenda Madre se virou, abriu os olhos, fechou-os, um
gesto curiosamente reptiliano.
Scytale desviou o olhar, de Irulan para o tanque, convidando a
princesa a dividir com ele seu ponto de vista. Scytale sabia que ela
veria Edric como uma figura repulsiva: o olhar atrevido, as mãos e
os pés monstruosos movendo-se mansamente no gás, o
torvelinho fumarento de contracorrentes alaranjadas a seu redor.
Ela ficaria intrigada com os hábitos sexuais da criatura,
imaginaria como seria estranho acasalar-se com alguém assim.
Até mesmo o gerador de campo de força que recriava para Edric a
ausência de peso do espaço agora serviria para distanciá-los.
– Princesa – disse Scytale –, graças a Edric, a visão oracular de
seu marido não é capaz de descobrir por acaso certos
acontecimentos, como este... supostamente.
– Supostamente – repetiu Irulan.
De olhos fechados, a Reverenda Madre assentiu com a cabeça.
– O fenômeno da presciência é mal compreendido até mesmo
por seus iniciados – disse.
– Sou um Navegador pleno da Guilda e tenho o Poder – afirmou
Edric.
A Reverenda Madre voltou a abrir os olhos. Dessa vez, encarou
o Dançarino Facial, e seus olhos o examinaram com aquela
intensidade peculiar das Bene Gesserit. Ela ponderava minúcias.
– Não, Reverenda Madre – Scytale murmurou –, não sou tão
simples quanto eu aparentava ser.
– Não compreendemos esse Poder de vidência – disse Irulan. –
Isso é fato. Edric afirma que meu marido não consegue enxergar,
saber nem predizer o que acontece na esfera de influência de um
Navegador. Mas até onde chega essa influência?
– Existem pessoas e coisas em nosso universo que eu só
conheço pelos efeitos que provocam – contou Edric, mantendo
sua boca de peixe fina como uma linha. – Sei que estiveram aqui...
ali... em algum lugar. Da mesma maneira que as criaturas
aquáticas perturbam as correntes ao passar, o presciente
perturba o Tempo. Já vi onde seu marido esteve; nunca o vi, nem
as pessoas que de fato compartilham com ele os mesmos
objetivos e votos de lealdade. É a dissimulação que um iniciado
confere a quem lhe pertence.
– Irulan não pertence a você – disse Scytale, e olhou de lado
para a princesa.
– Todos nós sabemos por que a conspiração tem de ser
conduzida somente em minha presença – argumentou Edric.
Usando a modalidade vocal que descrevia uma máquina, Irulan
comentou:
– Você tem alguma serventia, pelo jeito.
Agora ela vê o que ele é de fato, pensou Scytale. Ótimo!
– O futuro é algo a ser modelado – disse Scytale. – Guarde essa
ideia, princesa.
Irulan olhou de relance para o Dançarino Facial.
– As pessoas que têm os mesmos objetivos e votos de lealdade
de Paul – ela disse. – Alguns de seus legionários fremen, portanto,
escondem-se sob seu manto. Eu o vi profetizar para eles, escutei
os gritos de adulação dessa gente para seu Mahdi, seu Muad’Dib.
Ocorreu-lhe, pensou Scytale, que aqui ela está em julgamento,
que nos resta emitir um veredicto que poderia preservá-la ou
destruí-la. Ela enxerga a armadilha que lhe preparamos.
Momentaneamente, o olhar de Scytale cruzou com o da
Reverenda Madre, e ele provou a sensação esquisita de que os
dois haviam pensado a mesma coisa a respeito de Irulan. Claro
que as Bene Gesserit haviam instruído sua princesa, a preparado
com a mentira destra. Mas sempre chegava o momento em que
uma Bene Gesserit tinha de confiar em seus próprios instintos e
treinamento.
– Princesa, sei o que mais deseja do imperador – disse Edric.
– E quem não o sabe? – perguntou Irulan.
– Deseja ser a mãe e fundadora da dinastia real – disse Edric,
como se não a tivesse ouvido. – A menos que se una a nós, isso
nunca acontecerá. Pode acreditar em minha palavra de oráculo. O
imperador casou-se por motivos políticos, mas você nunca
dividirá a cama com ele.
– Então o oráculo também é um voyeur – desdenhou Irulan.
– O imperador está muito mais casado com a concubina fremen
do que com você! – gritou Edric.
– E ela não lhe dá um herdeiro – disse Irulan.
– A razão é a primeira vítima das emoções fortes – murmurou
Scytale.
Ele sentiu a raiva de Irulan extravasar, viu sua reprimenda fazer
efeito.
– Ela não lhe dá um herdeiro – explicou Irulan, delineando com
a voz uma serenidade controlada –, porque, em segredo, eu venho
lhe ministrando um contraceptivo. Era isso que queria que eu
admitisse?
– Não seria nada bom se o imperador descobrisse – Edric falou,
sorrindo.
– Preparei mentiras para ele – disse Irulan. – Ele pode ter o
sentido para a verdade, mas é mais fácil acreditar em certas
mentiras do que na verdade.
– Terá de se decidir, princesa – disse Scytale –, mas entenda o
que é que a protege.
– Paul é justo comigo – ela falou. – Faço parte de seu Conselho.
– Nos doze anos em que foi sua princesa consorte, alguma vez
ele lhe demonstrou a menor simpatia? – perguntou Edric.
Irulan meneou a cabeça.
– Ele depôs seu pai com a famigerada horda fremen que o
servia, casou-se com você para consolidar sua pretensão ao
trono, mas nunca a coroou imperatriz – disse Edric.
– Edric está tentando afetá-la com a emoção, princesa – falou
Scytale. – Não é interessante?
Ela olhou para o Dançarino Facial, viu o sorriso atrevido no
rosto dele, respondeu com um levantar das sobrancelhas. Scytale
viu que agora ela estava completamente ciente de que, se
deixasse aquela conferência sob a proteção de Edric, o que era
parte da trama, aqueles momentos talvez passassem
despercebidos pela visão oracular de Paul. No entanto, se ela não
se comprometesse...
– Não lhe parece, princesa, que Edric exerce influência
desmedida em nossa conspiração? – perguntou Scytale.
– Já concordei em acatar o melhor juízo que alguém oferecer
em nossos concílios – disse Edric.
– E quem escolherá o melhor juízo? – perguntou Scytale.
– Quer que a princesa saia daqui sem se juntar a nós? – indagou
Edric.
– Ele quer que ela se comprometa de verdade – resmungou a
Reverenda Madre. – É bom não haver deslealdade entre nós.
Scytale viu que Irulan relaxara e assumira uma postura
meditativa, com as mãos ocultas nas mangas de seu manto.
Estaria pensando na isca que Edric havia lhe oferecido: fundar
uma dinastia real! Estaria imaginando que plano os
conspiradores teriam providenciado para se proteger dela.
Estaria ponderando muitas coisas.
– Scytale – falou Irulan, sem demora –, dizem que vocês,
Tleilaxu, têm um estranho sistema de honra: suas vítimas sempre
devem ter uma maneira de escapar.
– Se conseguirem encontrá-la – concordou Scytale.
– Sou uma vítima? – perguntou Irulan.
Scytale deixou escapar uma gargalhada.
A Reverenda Madre bufou desdenhosamente.
– Princesa – disse Edric, com uma suave persuasão na voz –, já é
uma de nós, não tenha receio disso. Não espiona a Família
Imperial para suas superioras na Irmandade Bene Gesserit?
– Paul sabe que eu mando relatórios para minhas professoras.
– Mas não lhes fornece o material para a forte propaganda
contra seu imperador? – perguntou Edric.
Não “nosso” imperador”, reparou Scytale. “Seu” imperador.
Irulan é Bene Gesserit o bastante para não deixar de perceber esse
deslize.
– A questão está nos poderes e em como fazer uso deles – falou
Scytale, aproximando-se do tanque do membro da Guilda. – Nós,
Tleilaxu, acreditamos que em todo o universo só existe o apetite
insaciável da matéria, que a energia é o único sólido de verdade. E
a energia aprende. Preste atenção no que digo, princesa: a energia
aprende. A isso chamamos poder.
– Vocês não me convenceram de que conseguiremos derrotar o
imperador – disse Irulan.
– Não convencemos nem sequer a nós mesmos – falou Scytale.
– Para onde quer que nos voltemos – continuou Irulan –, somos
confrontados pelo poder dele. É o Kwisatz Haderach, capaz de
estar em muitos lugares ao mesmo tempo. É o Mahdi cujo
capricho mais simples é uma ordem absoluta para seus
missionários do Qizarate. É o Mentat dotado de uma mente
computacional que supera os maiores computadores antigos. É
Muad’Dib, cujas ordens às legiões fremen acabam despovoando
planetas. Ele possui a visão oracular que enxerga o futuro. Tem a
configuração genética que nós, Bene Gesserit, tanto desejamos...
– Conhecemos seus atributos – interrompeu-a a Reverenda
Madre. – E sabemos que a abominação, sua irmã Alia, possui essa
configuração genética. Mas também são seres humanos, os dois.
Portanto, têm fraquezas.
– E onde estão essas fraquezas humanas? – perguntou o
Dançarino Facial. – Devemos procurá-las no braço religioso de
seu Jihad? É possível virar os Qizara do imperador contra ele? E
quanto à autoridade civil das Casas Maiores? O Congresso do
Landsraad conseguiria fazer mais do que lançar um protesto
verbal?
– Eu sugiro o Consórcio Honnête Ober Advancer Mercantiles –
disse Edric, virando-se em seu tanque. – A companhia CHOAM é
negócio, e o negócio segue o lucro.
– Ou talvez a mãe do imperador – completou Scytale. – Lady
Jéssica, se entendi bem, continua em Caladan, mas mantém
contato frequente com o filho.
– A cadela traiçoeira – disse Mohiam, sem alterar a voz. – Como
eu queria renegar estas minhas mãos que a treinaram.
– Nossa conspiração precisa de uma alavanca – propôs Scytale.
– Somos mais que conspiradores – contrapôs a Reverenda
Madre.
– Ah, sim – concordou Scytale. – Somos feitos de energia e
aprendemos rápido, o que faz de nós a única e verdadeira
esperança, a salvação certa da raça humana.
Falou na modalidade discursiva da convicção absoluta, o que
talvez fosse o sarcasmo supremo, partindo, como partia, de um
Tleilaxu.
Aparentemente, só a Reverenda Madre entendeu a sutileza.
– Por quê? – ela indagou, dirigindo a pergunta a Scytale.
Antes que o Dançarino Facial conseguisse responder, Edric
pigarreou e disse:
– Não vamos ficar aqui trocando bobagens filosóficas. Todas as
perguntas podem ser reduzidas a uma só: “Por que as coisas
existem?”. Todas as questões religiosas, comerciais e
governamentais têm um único corolário: “Quem exercerá o
poder?”. Alianças, consórcios e complexos, todos perseguirão
miragens, a menos que busquem o poder. O resto é bobagem,
como muitos seres pensantes acabam percebendo.
Scytale encolheu os ombros, um gesto destinado
exclusivamente à Reverenda Madre. Edric respondera por ele à
pergunta que ela fizera. O idiota metido a pontificar era a maior
fraqueza do grupo. Para garantir que a Reverenda Madre tinha
entendido, Scytale disse:
– Prestando muita atenção no professor é que se aprende
alguma coisa.
A Reverenda Madre concordou lentamente com a cabeça.
– Princesa, decida-se – continuou Edric. – Foi escolhida como
um instrumento do destino, o mais refinado...
– Guarde os elogios para quem se deixa seduzir por eles – disse
Irulan. – Ainda hoje você mencionou um fantasma, um espectro
que podemos usar para contaminar o imperador. Explique-se.
– O Atreides derrotará a si mesmo! – crocitou Edric.
– Chega de enigmas! – gritou Irulan. – O que é esse tal
fantasma?
– Um fantasma muito incomum – disse Edric. – Tem um corpo e
um nome. O corpo é o de um renomado mestre-espadachim
conhecido como Duncan Idaho. O nome...
– Idaho está morto – Irulan falou. – Paul lamentou muitas vezes
a perda desse homem em minha frente. Ele viu Idaho morrer nas
mãos dos Sardaukar de meu pai.
– Mesmo derrotados – disse Edric –, os Sardaukar de seu pai
não perderam o juízo. Vamos supor que um ajuizado comandante
dos Sardaukar tenha reconhecido o mestre-espadachim entre os
cadáveres trucidados por seus homens. O que fazer? Há serventia
para tal corpo e tal treinamento... desde que se aja com rapidez.
– Um ghola tleilaxu – sussurrou Irulan, olhando de lado para
Scytale.
Scytale, observando a atenção que ela lhe dedicava, exerceu
seus poderes de Dançarino Facial – uma forma passando a outra,
movimentos e reajustes da pele. No mesmo instante, havia um
homem mais esbelto diante dela. O rosto continuava
arredondado, só que mais moreno e com feições ligeiramente
achatadas. Os malares altos serviam de suporte para os olhos
que, decididamente, ostentavam pregas epicânticas. Os cabelos
eram negros e indisciplinados.
– Um ghola com esta aparência – disse Edric, apontando
Scytale.
– Ou simplesmente mais um Dançarino Facial? – perguntou
Irulan.
– Nada de Dançarinos Faciais – respondeu Edric. – Um
Dançarino Facial corre o risco de se expor sob monitoramento
prolongado. Não, vamos supor que nosso ajuizado comandante
dos Sardaukar tenha preservado o corpo de Idaho para os
tanques axolotles. Por que não? Esse cadáver encerrava os
músculos e os nervos de um dos melhores mestres-espadachins
da história, um conselheiro dos Atreides, um gênio militar. Que
desperdício perder todo esse treinamento e toda essa habilidade,
sendo possível revivê-los para instruir os Sardaukar.
– Não ouvi sequer rumores a respeito disso, e eu estava entre os
confidentes de meu pai – disse Irulan.
– Aah, mas seu pai era um homem derrotado e, daí a poucas
horas, você seria vendida para o novo imperador – argumentou
Edric.
– E o fizeram? – ela indagou.
Com um ar enfurecedor de complacência, Edric disse:
– Vamos supor que nosso ajuizado comandante dos Sardaukar,
sabendo que era necessário agir com rapidez, tenha enviado
imediatamente o corpo preservado de Idaho para os Bene Tleilax.
Vamos supor ainda que o comandante e seus homens tenham
morrido antes de passar essa informação a seu pai... De qualquer
maneira, ele não teria muito o que fazer com ela. Restaria,
portanto, uma evidência física, um pedaço de carne enviado aos
Tleilaxu. Obviamente, só havia uma maneira de enviá-lo, ou seja,
num paquete. Nós, da Guilda, naturalmente, estamos a par de
toda carga que transportamos. Ao saber dessa em particular, não
teríamos pensado ser ainda mais ajuizado adquirir o ghola como
um presente digno de um imperador?
– Então vocês o fizeram – disse Irulan.
Scytale, que retomara seu aspecto rechonchudo, disse:
– Como nosso prolixo amigo deu a entender, nós o fizemos.
– Como é que Idaho foi condicionado? – Irulan perguntou.
– Idaho? – perguntou Edric, olhando para o Tleilaxu. – Conhece
algum Idaho, Scytale?
– Vendemos a vocês uma criatura chamada Hayt – disse
Scytale.
– Ah, sim... Hayt – fez Edric. – Por que foi que vocês o venderam
a nós?
– Porque um dia criamos nosso próprio Kwisatz Haderach –
respondeu Scytale.
Com um movimento rápido de sua cabeça idosa, a Reverenda
Madre olhou para ele.
– Vocês não nos contaram! – acusou-o.
– Vocês não perguntaram – disse Scytale.
– Como foi que dominaram seu Kwisatz Haderach? – perguntou
Irulan.
– Uma criatura que passou a vida criando uma representação
particular de sua personalidade prefere morrer a se tornar a
antítese dessa representação – respondeu Scytale.
– Não entendi – especulou Edric.
– Ele se matou – resmungou a Reverenda Madre.
– Entendeu-me perfeitamente, Reverenda Madre –, avisou
Scytale, usando uma modalidade vocal que dizia: você não é um
objeto sexual, nunca foi um objeto sexual, não pode ser um objeto
sexual.
O Tleilaxu esperou a ênfase flagrante calar no espírito. Ela não
podia interpretar a intenção dele de outra maneira. A percepção
tinha de passar pela raiva e chegar à consciência de que o Tleilaxu
certamente não poderia fazer uma acusação como aquela,
conhecendo como devia conhecer os requisitos reprodutivos da
Irmandade. Suas palavras, porém, encerravam um insulto
sórdido, que divergia completamente do caráter de um Tleilaxu.
Prontamente, usando a modalidade conciliadora da mirabhasa,
Edric tentou amenizar a situação.
– Scytale, você nos disse que vendeu Hayt porque partilhava
conosco o desejo de usá-lo.
– Edric, fique calado até eu lhe dar permissão para falar –
advertiu Scytale.
E, quando o membro da Guilda começou a protestar, a
Reverenda Madre gritou:
– Cala a boca, Edric!
O membro da Guilda debateu-se, agitado, e recuou para o
fundo de seu tanque.
– Nossas próprias emoções transitórias não são pertinentes a
uma solução do problema comum – disse Scytale. – Elas anuviam
o raciocínio, porque a única emoção relevante é o medo
fundamental que nos trouxe a esta reunião.
– Entendemos – anuiu Irulan, olhando de relance para a
Reverenda Madre.
– É forçoso que enxerguem as perigosas limitações de nosso
escudo – insistiu Scytale. – O oráculo não encontra por acaso
aquilo que não é capaz de compreender.
– Você é ardiloso, Scytale – falou Irulan.
A extensão de meu ardil, ela não pode adivinhar, pensou
Scytale. Quando isto acabar, teremos um Kwisatz Haderach que
conseguiremos controlar. Esses aí não terão nada.
– De onde saiu seu Kwisatz Haderach? – a Reverenda Madre
perguntou.
– Trabalhamos com várias essências puras – explicou Scytale. –
A pureza do bem e a pureza do mal. Um vilão em estado puro que
se delicia apenas provocando a dor e o terror pode ser bastante
instrutivo.
– O velho barão Harkonnen, o avô de nosso imperador, ele era
uma criação dos Tleilaxu? – perguntou Irulan.
– Não era uma das nossas – respondeu Scytale. – Mas, até aí, a
natureza costuma produzir criações tão mortíferas quanto as
nossas. Nós só as produzimos em condições nas quais possamos
estudá-las.
– Não serei ignorado e tratado desta maneira! – Edric
protestou. – Quem é que esconde esta reunião da...
– Estão vendo? – perguntou Scytale. – De quem é o melhor juízo
que nos oculta? Qual juízo?
– Quero discutir a maneira como vamos entregar Hayt ao
imperador – insistiu Edric. – Se bem entendo, Hayt espelha o
antigo código moral que o Atreides aprendeu em seu planeta
natal. Hayt deve facilitar a ampliação da natureza moral do
imperador, a delimitação dos elementos positivos-negativos da
vida e da religião.
Scytale sorriu, lançando sobre os companheiros um olhar
benigno. Eram como ele havia sido levado a esperar. A idosa
Reverenda Madre usava suas emoções feito uma foice. Irulan
tinha sido bem treinada para uma tarefa na qual havia fracassado,
uma criação defeituosa das Bene Gesserit. Edric não era mais (e
nem menos) que a mão do mágico: capaz de ocultar e distrair. Por
ora, Edric voltara a cair num silêncio taciturno enquanto os
demais o ignoravam.
– Devo entender que esse Hayt foi criado para envenenar a
psique de Paul? – perguntou Irulan.
– Mais ou menos – respondeu Scytale.
– E quanto ao Qizarate? – perguntou Irulan.
– Basta um ligeiro deslocamento da ênfase, uma glissada das
emoções, para transformar a inveja em inimizade – falou Scytale.
– E a CHOAM? – Irulan perguntou.
– Ficará do lado onde estiver o lucro – disse Scytale.
– E os outros grupos hegemônicos?
– Invoca-se o nome do governo – respondeu Scytale. –
Anexaremos os menos poderosos em nome da moral e do
progresso. Nossa oposição morrerá graças a suas próprias
complicações.
– Alia também?
– Hayt é um ghola com mais de uma finalidade – falou Scytale. –
A irmã do imperador está numa idade tal que pode se deixar
distrair por um homem encantador, projetado com esse fim. Ela
se verá atraída por sua masculinidade e habilidades como Mentat.
Mohiam deixou que seus olhos idosos se arregalassem de
surpresa.
– O ghola é um Mentat? É uma manobra perigosa.
– Para ser preciso, um Mentat tem de receber dados precisos –
disse Irulan. – E se Paul pedir que ele defina o motivo de nosso
presente?
– Hayt dirá a verdade – explicou Scytale. – Não fará a menor
diferença.
– Assim vocês deixam uma escapatória para Paul – deduziu
Irulan.
– Um Mentat! – murmurou Mohiam.
Scytale olhou para a idosa Reverenda Madre e enxergou os
preconceitos antigos que matizavam suas reações. Desde a época
do Jihad Butleriano, quando as “máquinas pensantes” foram
varridas de boa parte do universo, os computadores inspiravam
desconfiança. Emoções antigas também matizavam o
computador humano.
– Não gosto da maneira como você sorri – Mohiam disse
repentinamente, falando com a modulação da verdade ao
fulminar Scytale com os olhos.
Usando a mesma modulação, Scytale falou:
– E eu não estou nem aí se você gosta ou não. Mas temos de
trabalhar juntos. Todos vemos essa necessidade. – Olhou para o
membro da Guilda. – Não é, Edric?
– Suas lições são dolorosas – disse Edric. – Suponho que você
queria deixar claro que eu não posso fazer valer minhas opiniões
sobre os juízos combinados de meus colegas conspiradores.
– Viram? É possível educá-lo – disse Scytale.
– Também vejo outras coisas – Edric resmungou. – O Atreides
detém o monopólio da especiaria. Sem ela, não consigo sondar o
futuro. As Bene Gesserit perdem seu sentido para a verdade.
Temos nossos estoques, mas eles não são infinitos. O mélange é
uma moeda de troca forte.
– Nossa civilização tem mais de uma moeda – Scytale falou. –
Portanto, a lei da oferta e da procura não funciona.
– Está pensando em roubar o segredo – Mohiam ofegou. – E ele
tem um planeta guardado por aqueles fremen malucos!
– Os fremen são civilizados, educados e ignorantes – disse
Scytale. – Não são malucos. São treinados para acreditar, não
para conhecer. A fé pode ser manipulada. Só o conhecimento é
perigoso.
– Mas me restará alguma coisa para fundar uma dinastia real? –
Irulan perguntou.
Todos ouviram o compromisso na voz dela, mas só Edric sorriu
diante dessa constatação.
– Alguma coisa – disse Scytale. – Alguma coisa.
– Será o fim desse Atreides como força dominante – comentou
Edric.
– Imagino que outras pessoas não tão dotadas de poderes
oraculares já tenham previsto isso – declarou Scytale. – Para elas,
mektub al melá, como dizem os fremen.
– A coisa foi escrita com sal – traduziu Irulan.
Quando ela falou, Scytale identificou o que as Bene Gesserit
haviam colocado ali para ele – uma mulher bela e inteligente que
nunca seria sua. Ah, bem, ele pensou, talvez eu a copie para outra
pessoa.
Toda civilização tem de pelejar com uma força
inconsciente capaz de bloquear, delatar ou
revogar praticamente qualquer intenção
consciente da coletividade.
– Teorema Tleilaxu (não demonstrado)

Paul sentou-se na beirada da cama e começou a tirar as


botinas. Cheiravam mal por causa do lubrificante que facilitava a
ação das bombas movidas pelos calcanhares que faziam seu
trajestilador funcionar. Era tarde. Ele prolongara sua caminhada
noturna e deixara preocupados aqueles que o amavam. Sim, as
caminhadas eram perigosas, mas era um tipo de perigo que ele
era capaz de reconhecer e enfrentar diretamente. Havia algo de
irresistível e sedutor nas caminhadas anônimas e noturnas pelas
ruas de Arrakina.
Jogou as botinas num canto, sob o solitário luciglobo do
quarto, e pôs-se a desatar as tiras que vedavam seu trajestilador.
Deuses das profundezas, como estava cansado! Mas o cansaço
cessava em seus músculos e deixava sua mente em ebulição.
Assistir às atividades corriqueiras da vida cotidiana o enchia de
profunda inveja. A maior parte daquela vida anônima que
circulava fora das muralhas de seu Forte não era para um
imperador – mas... percorrer a pé uma rua pública sem chamar a
atenção: que privilégio! Passar pelo clamor dos peregrinos
mendicantes, escutar um fremen xingar um lojista: “Você tem as
mãos úmidas!”...
Paul sorriu diante dessa lembrança, desvencilhou-se do
trajestilador.
Ficou ali, nu e estranhamente em sintonia com seu mundo.
Duna era agora um planeta paradoxal – um planeta assediado,
mas, ainda assim, o centro do poder. Ele tinha chegado à
conclusão de que o assédio era a sina inevitável do poder. Olhou
para baixo, para o tapete verde, sentiu a textura rude nas solas
dos pés.
Nas ruas, a areia ia pelos tornozelos, areia que o vento estrato
soprara por cima da Muralha-Escudo. O trânsito dos pedestres a
havia revirado e transformado numa poeira asfixiante que
entupia os filtros dos trajestiladores. Mesmo agora, ele ainda
sentia o cheiro do pó, apesar da turbolimpeza nos portais de seu
Forte. Era um odor carregado de lembranças do deserto.
Outros tempos... outros perigos.
Em comparação com aqueles outros tempos, o perigo de suas
caminhadas solitárias ainda era insignificante. Mas, ao vestir um
trajestilador, ele vestia o deserto. O traje, com todo o aparato
projetado para recuperar a umidade de seu corpo, conduzia seus
pensamentos com sutileza, ajustava seus movimentos a um
padrão do deserto. Ele se tornava um fremen bravio. Mais que um
disfarce, o traje fazia dele um estranho a sua identidade citadina.
Dentro do trajestilador, ele abandonava a segurança e revestia-se
com as antigas artes da violência. Nessas ocasiões, os peregrinos
e a gente da cidade passavam por ele de olhos baixos. Era por
prudência que eles deixavam os selvagens rigorosamente em paz.
Se, para as pessoas da cidade, o deserto tinha um rosto, era o
rosto de um fremen oculto pelos filtros nasobucais de um
trajestilador.
Na verdade, existia agora somente o risco menor de que
alguém dos velhos tempos de sietch o identificasse pelo andar,
pelo cheiro ou pelos olhos. Ainda assim, a probabilidade de
encontrar um inimigo ainda era pequena.
Um farfalhar das cortinas que serviam de porta e um rastro de
luz interromperam seu devaneio. Chani entrou, trazendo-lhe o
aparelho de café numa bandeja de platina. Dois luciglobos cativos
entraram atrás dela e dispararam para suas posições: um à
cabeceira da cama do casal, o outro pairando ao lado dela e
iluminando o que ela fazia.
Chani movia-se com um ar atemporal de força e fragilidade –
tão autossuficiente, tão vulnerável. Algo na maneira como ela se
debruçava sobre o aparelho de café o fez lembrar seus primeiros
dias juntos. As feições dela ainda eram de fada morena,
aparentemente intocadas pelos anos – a não ser que lhe
examinassem os cantos externos dos olhos sem nada de branco e
reparassem nas rugas: “rastros na areia”, eram chamadas pelos
fremen do deserto.
O vapor se elevou da cafeteira quando ela ergueu a tampa,
segurando-a pelo puxador de esmeralda hagaliana. Ele deduziu
que o café ainda não estava pronto pela maneira como ela
devolveu a tampa ao lugar. A cafeteira – uma forma feminina,
grávida, de prata canelada – chegara até ele como ghanima, um
espólio de batalha, obtido quando ele matara o proprietário
anterior em combate singular. Jamis, era o nome do homem...
Jamis. Que estranha imortalidade a morte havia conquistado
para Jamis. Sabendo que a morte era inevitável, teria Jamis
levado especificamente aquela em sua mão?
Chani arranjou as xícaras: todas de cerâmica azul, agachadas
feito criados sob a imensa cafeteira. Eram três as xícaras: uma
para cada pessoa que beberia o café e uma para todos os donos
anteriores.
– Só um instante – ela disse.
Foi então que ela olhou para ele, e Paul se perguntou como ele
pareceria aos olhos dela. Seria ainda o forasteiro exótico de um
outro mundo, esguio e musculoso, mas rico em água se
comparado aos fremen? Continuaria a ser o Usul de seu nome
tribal, que a havia tomado no “tau dos fremen” quando eram
fugitivos no deserto?
Paul baixou os olhos e fitou o próprio corpo: músculos rijos,
esbelto... algumas cicatrizes novas, mas basicamente o mesmo,
apesar dos doze anos passados como imperador. Erguendo o
olhar, viu de relance seu rosto num espelho da prateleira: os olhos
fremen, de azul sobre azul, um sinal de que dependia da
especiaria; o nariz pronunciado dos Atreides. Parecia ser o neto
perfeito de um Atreides que morrera na arena de touros para
brindar sua gente com um espetáculo.
Uma coisa que o velho dissera se insinuou na mente de Paul:
“Quem governa assume uma responsabilidade irrevogável pelos
governados. Você é um fazendeiro. Isso exige, em certos momentos,
um ato de amor altruísta que talvez pareça apenas divertido para
aqueles a quem você governa”.
As pessoas ainda se lembravam daquele velho com afeto.
E o que foi que fiz pelo nome dos Atreides?, Paul se perguntou.
Soltei o lobo entre as ovelhas.
Por um instante, ele contemplou toda morte e violência que
ocorriam em seu nome.
– Já para a cama! – disse Chani, num tom vigoroso de comando
que, como Paul sabia, teria chocado seus súditos imperiais.
Ele obedeceu, deitou-se com as mãos atrás da cabeça,
deixando-se embalar pela familiaridade agradável dos
movimentos de Chani.
O quarto onde estavam, de repente, pareceu-lhe tão
engraçado. Não era de modo algum como o populacho
certamente imaginava o quarto de dormir do imperador. A luz
amarela dos luciglobos inquietos deslocava as sombras de uma
série de jarros de vidro colorido sobre uma prateleira atrás de
Chani. Paul fez o inventário dos jarros, sem dizer palavra – os
ingredientes secos da farmacopeia do deserto, unguentos,
incenso, recordações... uma pitada da areia de Sietch Tabr, uma
mecha dos cabelos de seu primeiro filho... morto havia tempos...
havia doze anos... um inocente morto na batalha que fizera de
Paul o imperador.
O odor penetrante de café de especiaria tomou o quarto. Paul
inalou, e seu olhar recaiu sobre uma tigela amarela ao lado da
bandeja onde Chani preparava o café. A tigela continha
amendoins. O inevitável farejador de venenos instalado sob a
mesa passou seus braços de inseto por cima da comida. O
farejador o irritava. Nunca precisaram de farejadores quando
viveram no deserto!
– O café está pronto – falou Chani. – Está com fome?
A resposta negativa e zangada de Paul foi abafada pelo grito
sibilante de um cargueiro de especiaria que partiu do campo à
entrada de Arrakina e lançou-se na direção do espaço.
Mas Chani viu que ele estava zangado, serviu o café, colocou
uma xícara perto da mão dele. Ela se sentou ao pé da cama, expôs
as pernas dele, começou a massageá-las nos pontos onde os
músculos formavam nódulos de tanto andar com o trajestilador.
Baixinho, com um ar de casualidade que não o enganou, ela disse:
– Vamos discutir o desejo de Irulan de ter um filho.
Os olhos de Paul abriram-se de repente. Ele observou Chani
com cuidado.
– Não faz nem dois dias que Irulan voltou de Wallach. Ela já foi
azucrinar você?
– Não discutimos as frustrações dela – disse Chani.
Paul obrigou sua mente a ficar em estado de alerta, examinou
Chani à luz dura das minúcias da observação, a Doutrina Bene
Gesserit que a mãe lhe ensinara, violando seus votos. Era uma
coisa que ele não gostava de fazer com Chani. Parte do encanto
que ela exercia sobre ele residia no fato de ser tão raro Paul
precisar usar com ela seu poder de identificar a tensão crescente.
Chani, em geral, evitava as perguntas indiscretas. Era fiel ao
conceito fremen de boas maneiras. Suas perguntas costumavam
ser práticas. O que interessava a Chani eram os fatos
relacionados à posição de seu homem – a força dele no Conselho,
a lealdade de suas legiões, as habilidades e os talentos de seus
aliados. Ela guardava na memória catálogos de nomes,
pormenores e suas referências cruzadas. Era capaz de recitar
rapidamente as principais fraquezas de cada inimigo conhecido,
os possíveis preparativos das forças opositoras, os planos de
batalha de seus líderes militares, o instrumental e as capacidades
produtivas das indústrias de base.
Por que então, Paul se perguntou, ela indagava a respeito de
Irulan?
– Causei-lhe aborrecimento – disse Chani. – Não foi essa minha
intenção.
– E qual foi sua intenção?
Ela sorriu timidamente, enfrentando o olhar dele.
– Se está zangado, meu amor, por favor, não esconda.
Paul voltou a afundar na cabeceira da cama.
– Devo repudiar Irulan? – ele perguntou. – Sua serventia agora é
limitada e não gosto das coisas que estou captando a respeito
dessa viagem ao planeta-sede da Irmandade.
– Não a repudie – respondeu Chani. Continuou massageando as
pernas dele e falou prosaicamente: – Você já disse muitas vezes
que ela é seu contato com nossos inimigos, que você consegue
decifrar os planos deles nas ações dela.
– Então por que pergunta a respeito do desejo de Irulan de ter
um filho?
– Acho que nossos inimigos ficariam desconcertados e Irulan
estaria numa posição vulnerável se você a engravidasse.
Pelos movimentos das mãos dela em suas pernas, ele entendeu
o que aquela declaração custara a Chani. Formou-se um nó em
sua garganta. Baixinho, ele disse:
– Chani, querida, jurei nunca levar Irulan para a cama. Um filho
daria a ela poder em demasia. Quer que ela tome o lugar que é
seu?
– Eu não tenho lugar.
– Nada disso, Sihaya, minha primavera no deserto. Para que
essa preocupação repentina com Irulan?
– Preocupo-me com você, e não com ela! Se ela esperasse um
filho Atreides, os amigos dela questionariam sua lealdade. Quanto
menos nossos inimigos confiarem nela, menor será sua utilidade
para eles.
– Um filho de Irulan poderia ser a sua morte, Chani – disse Paul.
– Sabe como são as tramas neste lugar. – Abarcou o Forte com um
movimento do braço.
– Você precisa de um herdeiro! – ela crocitou.
– Aaah.
Então era isto: Chani não lhe dera um filho. Portanto, outra
pessoa tinha de fazê-lo. Por que não Irulan? Era assim que
funcionava a mente de Chani. E tinha de ser o fruto de um ato de
amor, pois todo o Império tinha, reconhecidamente, fortes tabus
contra os métodos artificiais. Chani chegara a uma decisão
fremen.
Paul examinou-lhe o rosto sob essa nova luz. Era um rosto que,
de certo modo, ele conhecia melhor que o seu próprio. Ele vira
aquele rosto enternecido de paixão, na suavidade do sono,
tomado por temores, zangas e tristezas.
Ele fechou os olhos, e Chani reapareceu em suas lembranças
como menina – coberta de primavera, cantando, despertando ao
lado dele –, tão perfeita que, só de vê-la, ele se deixava consumir.
Em sua memória, ela sorria... tímida, a princípio, depois
digladiando-se com a visão, como se ansiasse fugir.
A boca de Paul ficou seca. Por um instante, suas narinas
provaram a fumaça de um futuro devastado e a voz de uma outra
espécie de visão que o mandava se desvencilhar... desvencilhar...
desvencilhar. Suas visões proféticas bisbilhotavam a eternidade
havia tanto tempo, captando fragmentos de idiomas
estrangeiros, escutando pedras e corpos que não eram o seu.
Desde o dia em que confrontara pela primeira vez seu propósito
terrível, ele vinha perscrutando o futuro, esperando encontrar
paz.
Havia uma maneira, claro. Ele a conhecia de cor, sem conhecer-
lhe o coração – um futuro maquinal, rígido nas instruções que
dava a ele: desvencilhe-se, desvencilhe-se, desvencilhe-se...
Paul abriu os olhos, encarou a determinação no rosto de Chani.
Ela já não lhe massageava mais as pernas, estava imóvel, ali
sentada, fremen até a alma. Suas feições continuavam familiares
sob o lenço nezhoni azul que ela costumava usar nos cabelos na
privacidade dos aposentos do casal. Mas a máscara de
determinação se acomodara em seu rosto, um jeito antigo e, para
ele, alienígena de pensar. As mulheres fremen dividiam seus
homens havia milhares de anos – nem sempre pacificamente, mas
de maneira a não tornar o fato algo destrutivo. Alguma coisa
assim, misteriosamente fremen, dera-se dentro de Chani.
– Você irá me dar o único herdeiro que desejo – ele disse.
– Você viu isso? – ela perguntou, deixando evidente, pela ênfase
com que o disse, que se referia à presciência.
Como já fizera várias vezes, Paul se perguntou como explicar a
delicadeza do oráculo, as inúmeras linhas de Tempo que a visão
brandia diante dele num tecido ondulante. Suspirou, lembrou-se
da água de um rio recolhida no oco de suas mãos – trêmula, a
escoar. A memória encharcou o rosto dele nessa água. Como ele
poderia se encharcar em futuros cada vez mais obscuros graças à
pressão de um número excessivo de oráculos?
– Você não viu isso então – disse Chani.
Aquele futuro-visão ao qual ele mal tinha acesso agora, a não
ser que fizesse um esforço capaz de lhe exaurir a vida, o que
poderia lhes mostrar além de desgosto?, Paul se perguntou. Era
como se ocupasse uma zona intermediária inóspita, um lugar
devastado onde suas emoções estavam à deriva, oscilavam,
arrastadas para fora numa agitação desenfreada.
Chani cobriu as pernas dele e falou:
– Um herdeiro para a Casa Atreides não é algo para se deixar
por conta do acaso ou de uma única mulher.
Era algo que sua mãe poderia ter dito, Paul pensou. Imaginou
se lady Jéssica andara se comunicando secretamente com Chani.
Sua mãe pensaria na Casa Atreides. Era um padrão que as Bene
Gesserit haviam engendrado e inculcado nela pelo
condicionamento e que ainda valia mesmo então, com todas as
forças de Jéssica dirigidas contra a Irmandade.
– Você escutou tudo quando Irulan me procurou hoje – ele a
acusou.
– Escutei.
Ela falou sem olhar para ele.
Paul concentrou sua memória no encontro com Irulan. Ele
tinha entrado por acaso no salão da família, reparado num manto
ainda por terminar no tear de Chani. O lugar tinha um odor acre
de verme, um cheiro ruim que quase chegava a esconder o aroma
picante e subjacente de canela do mélange. Alguém havia
derramado a essência inalterada da especiaria e a deixado ali para
combinar com um tapete feito de especiaria. Não fora uma
combinação feliz. A essência da especiaria dissolvera o tapete.
Marcas oleosas haviam coagulado no assoalho de pedraplás, onde
antes estivera o tapete. Ele cogitou mandar chamar alguém para
limpar aquela bagunça, mas Harah, esposa de Stilgar e amiga
mais chegada de Chani, entrou para anunciar Irulan.
Foi obrigado a conduzir a entrevista com aquele cheiro ruim no
ar, incapaz de se esquivar da superstição fremen de que os
cheiros ruins pressagiavam catástrofes.
Harah retirou-se quando Irulan entrou.
– Seja bem-vinda – disse Paul.
Irulan vestia um manto de pele de baleia cinzenta. Envolveu-se
um pouco mais nele, levou uma das mãos aos cabelos. Era visível
que ela estava intrigada com seu tom de voz conciliatório. Era
possível sentir que as palavras zangadas que ela obviamente
tinha preparado para aquele encontro deixavam a mente de
Irulan num rebuliço de reconsiderações.
– Você veio me contar que a Irmandade perdeu os últimos
resquícios de moralidade – ele se antecipou.
– Não é perigoso ser tão ridículo? – ela perguntou.
– Ridículo e perigoso, uma aliança questionável.
Seu treinamento clandestino de Bene Gesserit detectou que ela
reprimia o impulso de se retirar. O esforço expôs um vislumbre
rápido de medo subjacente, e ele viu que ela fora incumbida com
uma tarefa que não a agradava.
– Esperam um pouco demais de uma princesa de sangue real –
ele disse.
Irulan ficou extremamente imóvel, e Paul percebeu que ela
havia se fechado numa espécie de morsa de autocontrole. Um
fardo realmente pesado, ele pensou. E perguntou-se por que as
visões prescientes não haviam lhe trazido nenhum vislumbre
daquele futuro possível.
Aos poucos, Irulan foi relaxando. Chegara à conclusão de que
não havia por que se entregar ao medo, não havia por que bater
em retirada.
– Você deixou o tempo atmosférico seguir um padrão muito
primitivo – ela comentou, esfregando os braços por baixo do
manto. – Estava seco e houve uma tempestade de areia hoje.
Nunca vai permitir que chova aqui?
– Você não veio aqui falar do tempo.
Paul viu-se imerso em duplos sentidos. Irulan estaria tentando
lhe contar alguma coisa que o treinamento dela não lhe permitia
dizer em público? Parecia que sim. Era como se o tivessem
repentinamente lançado ao sabor da corrente e ele agora tivesse
de nadar contra a maré e voltar a um lugar seguro.
– Eu preciso ter um filho.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Terei o que eu quero! – ela gritou. – Se for necessário,
encontrarei outro pai para meu filho. Vou botar chifres em sua
testa e quero ver você ter a audácia de me denunciar.
– Pode me botar os chifres que quiser, mas nada de filhos.
– Como é que você vai me impedir?
Com um sorriso de extrema gentileza, ele falou:
– Eu a mandaria estrangular, se chegasse a esse ponto.
Ela se viu presa de um silêncio escandalizado por um momento,
e Paul percebeu que Chani escutava atrás das cortinas pesadas
que levavam a seus aposentos particulares.
– Sou sua esposa – murmurou Irulan.
– Vamos parar com esses joguinhos idiotas. Você desempenha
um papel, só isso. Nós dois sabemos quem é minha esposa.
– E eu sou apenas uma conveniência, nada mais – ela falou, com
a voz cheia de rancor.
– Não tenho a menor vontade de ser cruel com você.
– Você me escolheu para ocupar esta posição.
– Eu, não – ele retrucou. – O destino a escolheu. Seu pai a
escolheu. As Bene Gesserit a escolheram. A Guilda a escolheu. E
eles a escolheram de novo. Para que a escolheram, Irulan?
– Por que não posso ter um filho seu?
– Porque eis aí um papel para o qual você não foi escolhida.
– É meu direito dar à luz o herdeiro real! Meu pai foi...
– Seu pai foi e é um animal. Nós dois sabemos que ele perdeu
praticamente todo o contato com a humanidade que deveria
governar e proteger.
– E por acaso o odiavam menos do que odeiam você? – ela
atacou.
– Boa pergunta – ele concordou, e um sorriso zombeteiro
resvalou os cantos de sua boca.
– Você diz não ter a menor vontade de ser cruel comigo, mas...
– E é por isso que aceito que você tenha quem quiser como
amante. Mas veja bem: arranje um amante, mas não traga para
minha casa nenhum filho espúrio. Eu renegaria a criança. Não me
recuso a permitir que você se una a outros homens, contanto que
mantenha a discrição... e não tenha filhos. Seria estupidez me
sentir de qualquer outra maneira nessas circunstâncias. Mas não
abuse dessa permissão que concedo com tanta generosidade. No
que diz respeito ao trono, eu decido quem o herdará. Não as Bene
Gesserit, nem a Guilda. É um dos privilégios que conquistei ao
esmagar as legiões de Sardaukar de seu pai lá fora, na Planície de
Arrakina.
– A culpa será sua, então – disse Irulan, girando nos
calcanhares e saindo majestosamente do aposento.
Rememorando o encontro naquele momento, Paul extraiu de lá
sua percepção e concentrou-se em Chani, sentada a seu lado na
cama. Ele entendia os próprios sentimentos ambivalentes em
relação a Irulan, entendia a decisão fremen de Chani. Em outras
circunstâncias, Chani e Irulan poderiam ter sido amigas.
– O que decidiu? – Chani perguntou.
– Nada de filhos – ele respondeu.
Chani fez o sinal fremen da dagacris com o indicador e o
polegar da mão direita.
– Poderia chegar a esse ponto – ele concordou.
– Não acha que um filho resolveria as coisas com Irulan? – ela
perguntou.
– Só um idiota pensaria assim.
– Não sou idiota, meu amor.
Ele foi tomado pela raiva.
– Nunca disse que era! Mas não estamos discutindo um maldito
romance água com açúcar. É uma princesa de verdade o que
temos ali no fim do corredor. Ela foi criada em meio a todas as
intrigas asquerosas de uma corte imperial. Para ela, tramar é algo
tão natural quanto escrever suas histórias imbecis!
– Não são imbecis, meu amor.
– Provavelmente não. – Controlou a raiva, tomou a mão dela na
sua. – Desculpe-me. Mas essa mulher é cheia de tramas: tramas
dentro de tramas. Se ceder a uma de suas ambições, talvez você
venha a fomentar uma outra.
Com voz conciliatória, Chani falou:
– Não é o que sempre digo?
– Sim, claro que sim. – Ele a fitou. – Então, o que está realmente
tentando me dizer?
Ela se deitou ao lado dele, levou a mão à garganta de Paul.
– Eles decidiram como vão combater você – ela disse. – Irulan
fede a decisões secretas.
Paul afagou-lhe os cabelos.
Chani havia removido as camadas de entulho.
Ele foi varrido por seu propósito terrível. Era uma ventania de
Coriolis em sua alma, que percorria aos silvos toda a estrutura de
seu ser. Naquele momento, seu corpo ficou sabendo de coisas
jamais conhecidas pela consciência.
– Chani, querida – ele sussurrou –, sabe o que eu daria para pôr
um fim ao Jihad, para me afastar da maldita divindade que o
Qizarate me impõe?
Ela estremeceu.
– Basta você dar a ordem – disse.
– Ah, não. Mesmo se eu morresse agora, meu nome ainda iria
comandá-los. Quando penso no nome Atreides atrelado a essa
carnificina religiosa...
– Mas você é o imperador! Tem...
– Sou um títere. Quando a divindade é concedida, eis aí a única
coisa que o suposto deus já não controla mais.
Foi sacudido por uma risada amarga. Sentiu que o futuro lhe
devolvia o olhar, partindo de dinastias nem sequer sonhadas.
Pareceu-lhe que seu ser era desterrado, em prantos, liberto das
argolas do destino: somente seu nome continuava.
– Fui escolhido. Talvez ao nascer... certamente antes de poder
decidir por mim mesmo. Fui escolhido.
– Então desfaça a escolha.
Ele abraçou com mais força o ombro dela.
– Em seu devido tempo, querida. Dê-me um pouco mais de
tempo.
Lágrimas não derramadas ardiam nos olhos de Paul.
– Devíamos voltar para Sietch Tabr – disse Chani. – Há muito
com o que pelejar nesta tenda de pedra.
Ele fez que sim, roçando o queixo no tecido macio do lenço que
cobria os cabelos dela. O cheiro reconfortante de especiaria que
ela exalava encheu-lhe as narinas.
Sietch. A antiga palavra chakobsa o absorveu: um lugar para
onde se retirar e ficar em segurança em momentos de perigo. A
sugestão de Chani o deixou com saudade da imensidão do deserto
aberto, das distâncias desimpedidas onde era possível ver o
inimigo chegar de muito longe.
– As tribos esperam o retorno de Muad’Dib – ela falou. Ergueu a
cabeça e olhou para ele. – Você pertence a nós.
– Eu pertenço a uma visão – ele murmurou.
Pensou, então, no Jihad, na mistura genética que varava
parsecs e na visão que lhe dizia o que fazer para acabar com
aquilo. Deveria pagar o preço? Toda a hostilidade iria evaporar,
extinguir-se como o fogo – brasa por brasa. Mas... ah! O preço
aterrador!
Nunca quis ser um deus, pensou. Eu só queria desaparecer feito
uma joia de orvalho ínfimo, surpreendida pela manhã. Queria
escapar dos anjos e dos malditos – sozinho... como que por
descuido.
– Vamos voltar ao sietch? – insistiu Chani.
– Sim – ele sussurrou.
E pensou: Tenho de pagar o preço.
Chani soltou um suspiro profundo, voltou a se acomodar junto
dele.
Perdi tempo, ele pensou. E viu como o haviam cercado os limites
do amor e o Jihad. E o que era uma vida, por mais querida que
fosse, em contraste com todas as vidas que o Jihad certamente
tomaria? Era possível comparar o infortúnio de um só com a
agonia das multidões?
– Amor? – disse Chani, inquisitivamente.
Ele cobriu os lábios dela com uma das mãos.
Vou me entregar, ele pensou. Sair correndo enquanto ainda
tenho forças, atravessar voando um espaço que uma ave não
poderia encontrar. Era um pensamento inútil, e ele sabia disso. O
Jihad seguiria seu espírito.
O que poderia responder?, ele se perguntou. Como explicar, se
as pessoas o acusavam com insensatez brutal? Quem entenderia?
Eu só queria olhar para trás e dizer: “Lá está! Lá está uma
existência incapaz de me conter. Vejam! Desapareço! Nenhuma
amarra, nenhuma rede de criação humana conseguirá me prender
outra vez. Renuncio à minha religião! Este instante glorioso é meu!
Estou livre!”.
Palavras ocas!
– Avistaram um verme grande logo abaixo da Muralha-Escudo
ontem – comentou Chani. – Mais de cem metros de comprimento,
estão dizendo. É raro um assim tão grande entrar nesta região
nos dias de hoje. Imagino que a água os repele. Dizem que esse
veio chamar Muad’Dib para voltar ao deserto que é seu lar. –
Beliscou o peito dele. – Não ria de mim!
– Não estou rindo.
Paul, admirado com a persistente mitologia fremen, sentiu o
coração apertado, algo que infligiam a sua linha da vida: adab, a
lembrança exigente. Lembrou-se, então, de seu quarto de menino
em Caladan... noite escura no aposento de pedra... uma visão!
Tinha sido um de seus primeiros momentos prescientes. Sentiu
sua mente mergulhar na visão, viu através de uma nuvem-
lembrança (uma visão dentro da outra) uma fila de fremen, os
mantos arrematados pelo pó. Desfilavam por uma abertura num
paredão de rocha alto. Carregavam um fardo comprido e envolto
em tecido.
E Paul se ouviu dizer na visão:
– Foi sobretudo uma delícia... mas você foi a maior de todas as
delícias...
A adab o soltou.
– Está tão quieto – murmurou Chani. – O que foi?
Paul estremeceu, sentou-se na cama, desviando o rosto.
– Está zangado porque eu fui à orla do deserto – disse Chani.
Ele chacoalhou a cabeça, sem dizer palavra.
– Só fui até lá porque queria um filho – explicou Chani.
Paul não conseguia falar. Sentiu que era consumido pela força
bruta daquela primeira visão. Propósito terrível! Naquele
momento, sua vida inteira era um galho abalado pela partida de
um pássaro... e o pássaro era o acaso. Livre-arbítrio.
Sucumbi ao fascínio do oráculo, pensou.
E percebeu que sucumbir a esse fascínio talvez fosse se
prender a uma vida de via única. Seria possível, ele se perguntou,
que o oráculo não predissesse o futuro? Seria possível que o
oráculo criasse o futuro? Teria exposto sua vida a uma teia de fios
subjacentes, se deixado capturar ali, naquele despertar, tempos
atrás, vítima de um futuro-aranha que mesmo então avançava
para cima dele com suas mandíbulas apavorantes?
Um provérbio das Bene Gesserit insinuou-se em sua mente:
Usar de força bruta é tornar-se infinitamente vulnerável a forças
maiores.
– Sei que isso o irrita – disse Chani, tocando-lhe o braço. – É
verdade que as tribos reviveram os ritos antigos e os sacrifícios,
mas não participei deles.
Paul inspirou fundo e estremecidamente. A torrente de sua
visão se desfez, tornou-se um lugar profundo e tranquilo, cujas
correntes se deslocavam com uma força cativante para fora de
seu alcance.
– Por favor – implorou Chani. – Eu quero um filho, nosso filho. É
uma coisa assim tão terrível?
Paul acariciou-lhe o braço, encostado ao seu. Deixou a cama,
apagou os luciglobos, foi até a janela da sacada e abriu as
cortinas. O deserto profundo ali só se intrometia com seus
odores. Uma parede sem janelas diante dele elevava-se em
direção ao céu noturno. O luar entrava obliquamente num jardim
fechado, árvores sentinelas e folhas largas, arbustos molhados.
Dava para ver um tanque de peixes a refletir as estrelas por entre
as folhas, bolsões de resplandecência floral e branca em meio às
sombras. Por um momento, enxergou o jardim com os olhos de
um fremen: alienígena, ameaçador, perigoso, porque
desperdiçava água.
Pensou nos vendedores de água que tiveram o modo de vida
deles destruído pela providência generosa de suas mãos.
Odiavam-no. Ele assassinara o passado. E havia outros, até
mesmo aqueles que lutavam pelos solaris para comprar a
preciosa água, que o odiavam por ter mudado os velhos costumes.
Na mesma medida em que o padrão ecológico imposto por
Muad’Dib recriava a paisagem do planeta, a resistência humana
aumentava. Ele se perguntou se não seria presunção pensar que
conseguiria refazer um planeta inteiro – todas as coisas
crescendo onde e como ele as mandasse crescer? Mesmo se
tivesse êxito, e quanto ao universo que aguardava lá fora? Será
que temia o mesmo tratamento?
Fechou as cortinas de repente, vedou os ventiladores. Voltou-
se para Chani no escuro, sentiu que ela esperava ali. Os
hidroanéis que ela usava tilintaram feito as sinetas de esmolar
dos peregrinos. Ele andou às cegas na direção do som, encontrou-
a de braços estendidos.
– Querido – ela sussurrou. – Eu o aborreci?
Os braços de Chani envolveram-lhe o futuro ao envolvê-lo.
– Você, não – ele disse. – Ah... você, não.
O advento do escudo gerador de campo e da
armalês, bem como da interação explosiva dos
dois, letal para quem ataca e para quem é
atacado, estabeleceu os fatores que atualmente
determinam a tecnologia armamentista. Não
precisamos discutir o papel especial das armas
atômicas. É verdade, o fato de qualquer Família de
meu Império poder usar suas armas atômicas de
maneira a destruir as bases planetárias de
cinquenta outras famílias ou mais causa um certo
nervosismo. Mas todos nós temos planos
preventivos para uma retaliação devastadora. A
Guilda e o Landsraad têm a chave para conter
essa força. Não, minha preocupação é o
desenvolvimento de seres humanos como armas
especiais. Eis aí um campo praticamente ilimitado
que algumas potências estão desenvolvendo.
– Muad’Dib: “Preleção à Escola Superior de Guerra”,
excerto da Crônica de Stilgar

O velho estava à entrada de sua casa, esquadrinhando a rua


com seus olhos de azul sobre azul. Olhos velados por aquela
desconfiança inata que toda a gente do deserto nutria pelos
estrangeiros. Rugas rancorosas torturavam-lhe os cantos da
boca, que se entrevia sob uma franja de barba branca. Não usava
trajestilador, e era significativo que ignorasse esse fato, sabendo
muito bem que uma torrente de umidade escapava-lhe pela porta
aberta.
Scytale fez uma reverência e deu o sinal de apresentação da
conspiração.
De algum lugar atrás do velho, veio o som de uma rabeca a
entremear seu lamento na dissonância atonal da música da
semuta. A conduta do velho não revelava o torpor da droga, uma
dica de que a semuta era a fraqueza de outra pessoa. Contudo,
Scytale estranhou encontrar um vício tão sofisticado naquele
lugar.
– Saudações que vêm de longe – disse Scytale, deixando seu
sorriso transparecer na cara achatada que decidira usar naquele
encontro. Ocorreu-lhe então que o velho poderia reconhecer o
rosto escolhido. Alguns dos fremen mais idosos ali em Duna
chegaram a conhecer Duncan Idaho.
A escolha da fisionomia, que ele imaginara divertida, talvez
tivesse sido um erro, concluiu Scytale. Mas não se atrevia a trocar
de rosto ali fora. Lançou olhares ansiosos de uma ponta à outra da
rua. O velho nunca iria convidá-lo a entrar?
– Conheceu meu filho? – perguntou o velho.
Aquela, pelo menos, era uma das contrassenhas. Scytale deu a
resposta apropriada, o tempo todo alerta a qualquer
circunstância suspeita nos arredores. Não gostava da posição na
qual se encontrava. A rua era um beco sem saída que terminava
naquela casa. Todas as casas da vizinhança foram construídas
para os veteranos do Jihad. Formavam um subúrbio de Arrakina
que se estendia Bacia Imperial adentro, logo depois de Tiemag.
Os muros que cercavam aquela rua apresentavam faces lisas de
ligaplás parda, interrompidas pelas sombras negras de portas
vedadas e, aqui e ali, rabiscos obscenos. Ao lado daquela
mesmíssima porta, alguém havia expressado com giz sua opinião
de que um tal Beris trouxera para Arrakis uma doença asquerosa
que havia lhe roubado a virilidade.
– Está acompanhado? – o velho perguntou.
– Sozinho – respondeu Scytale.
O velho limpou a garganta, ainda hesitando daquela maneira
exasperadora.
Scytale aconselhou-se paciência. Aquele tipo de contato tinha
seus próprios riscos. Talvez o velho tivesse algum motivo para
agir daquela maneira. Mas o momento era conveniente. O sol
pálido estava quase a pino. A gente do bairro permanecia vedada
dentro das casas, dormindo as horas quentes do dia.
Era o vizinho novo que incomodava o velho?, Scytale se
perguntou. Ele sabia que a casa ao lado fora designada a Otheym,
ex-integrante dos temidos Fedaykin, os comandos suicidas de
Muad’Dib. E Bijaz, o anão-catalisador, aguardava ao lado de
Otheym.
Scytale voltou a olhar para o velho, reparou na manga vazia que
pendia do ombro esquerdo e a ausência de um trajestilador. Um
ar de autoridade acompanhava aquele velho. Não tinha sido
nenhum soldado raso no Jihad.
– Posso saber o nome do visitante? – indagou o velho.
Scytale reprimiu um suspiro de alívio. Ele seria aceito, enfim.
– É Zaal – disse, dando o nome que haviam lhe designado para
aquela missão.
– Eu sou Farok – disse o velho –, ex-bashar da Nona Legião no
Jihad. Isso lhe diz alguma coisa?
Scytale reconheceu a ameaça naquelas palavras e falou:
– Você nasceu em Sietch Tabr e devia lealdade a Stilgar.
Farok relaxou, deu um passo para o lado.
– Você é bem-vindo em minha casa.
Scytale passou por ele e entrou num átrio sombreado –
assoalho de ladrilhos azuis, desenhos cintilantes trabalhados em
cristal nas paredes. Depois do átrio havia um pátio coberto. A luz
que os filtros translúcidos deixavam entrar espalhava uma
opalescência prateada como a noite branca da primeira lua. Atrás
dele, a porta da rua rangeu ao se encaixar nos lacres de umidade.
– Éramos um povo nobre – disse Farok, seguindo adiante na
direção do pátio. – Não éramos desterrados. Não morávamos
numa vila do graben... como esta! Tínhamos um sietch de verdade
na Muralha-Escudo, acima da colina de Habbanya. Um verme
podia nos levar para Kedem, o deserto interior.
– Não como agora – Scytale concordou, compreendendo o que
trouxera Farok para a conspiração. O fremen tinha saudade dos
velhos tempos e dos antigos costumes.
Entraram no pátio.
Farok digladiava-se com uma forte aversão por seu convidado,
notou Scytale. Os fremen desconfiavam dos olhos que não eram
totalmente azuis como os dos Ibad. Os forasteiros de outros
planetas, diziam os fremen, tinham olhos desfocados que
enxergavam coisas que não deveriam ver.
A música da semuta havia cessado quando os dois entraram.
Foi substituída pelo dedilhar de um baliset, primeiro um acorde
de nona, em seguida as notas distintas de uma canção popular
nos planetas de Naraj.
Quando seus olhos se acostumaram à luz, Scytale viu um jovem
sentado, de pernas cruzadas, num divã baixo sob alguns arcos a
sua direita. Os olhos do jovem eram órbitas vazias. Com aquela
facilidade extraordinária dos cegos, ele começou a cantar no
instante em que Scytale voltou sua atenção para ele. A voz era
aguda e melodiosa:

“Um vento varreu a terra


E varreu o céu
E todos os homens!
Quem é esse vento?
As árvores não se curvaram,
E bebem onde bebiam os homens.
Conheci tantos mundos,
Tantos homens,
Tantas árvores,
Tantos ventos.”

Scytale reparou que não era a letra original da canção. Farok o


conduziu para longe do jovem, sob os arcos do outro lado, e
indicou as almofadas espalhadas pelo piso ladrilhado. Os
ladrilhos formavam desenhos de criaturas marinhas.
– Ali está uma almofada que um dia, no sietch, foi ocupada por
Muad’Dib – disse Farok, apontando um coxim preto e
arredondado. – Agora é sua.
– Sou-lhe grato – Scytale falou, deixando-se afundar até o
coxim preto. Sorriu. Farok demonstrava sabedoria. O sábio falava
de lealdade até mesmo ao escutar canções de significado oculto e
palavras com mensagens secretas. Quem haveria de negar os
poderes aterradores do imperador tirânico?
Atravessando a canção com suas palavras, sem romper a
métrica, Farok disse:
– A música de meu filho o incomoda?
Scytale apontou uma almofada diante dele, recostou-se numa
coluna fria.
– Gosto de música.
– Meu filho perdeu os olhos na conquista de Naraj – contou
Farok. – Foi tratado por lá e deveria ter ficado. Nenhuma mulher
do Povo vai querer ficar com ele desse jeito. Mas acho curioso
saber que tenho netos em Naraj que talvez eu nunca venha a ver.
Conhece os planetas de Naraj, Zaal?
– Na juventude, fiz uma turnê por lá com uma trupe de
Dançarinos Faciais como eu – disse Scytale.
– Então você é um Dançarino Facial. Sua fisionomia me deixou
intrigado. Lembra um homem que conheci certa vez.
– Duncan Idaho?
– Esse mesmo. Um mestre-espadachim a serviço do imperador.
– Foi morto, assim se diz.
– Assim se diz – concordou Farok. – Você é realmente um
homem, então? Ouvi umas histórias a respeito dos Dançarinos
Faciais que... – Ele deu de ombros.
– Somos hermafroditas jadacha, podemos mudar de sexo como
bem entendermos. No momento, sou um homem.
Farok mordiscou os lábios, pensativo, e em seguida:
– Mando trazer algo para comer e beber? Deseja um pouco de
água? Frutas geladas?
– A conversa já basta.
– A vontade do convidado é uma ordem – disse Farok,
acomodando-se na almofada diante de Scytale.
– Bendito seja Abu d’Dhur, Pai das Estradas Indefinidas do
Tempo – falou Scytale. E pensou: Pronto! Disse-lhe logo de saída
que fui enviado por um Piloto da Guilda e que tenho sua proteção
dissimuladora.
– Bendito seja três vezes – disse Farok, entrelaçando os dedos
das mãos em seu regaço, de acordo com o ritual. Eram mãos
velhas e de veias salientes.
– Um objeto que se vê de longe mostra apenas seu princípio –
Scytale falou, revelando que desejava discutir o Forte encastelado
do imperador.
– Aquilo que é escuro e maligno, vê-se que é maligno de longe
ou de perto – replicou Farok, aconselhando adiar a conversa.
Por quê?, Scytale se perguntou. Mas disse:
– Como foi que seu filho perdeu os olhos?
– Os defensores de Naraj usaram um queima-pedras. Meu filho
estava perto demais. Malditas armas atômicas! Até mesmo o
queima-pedras deveria ser declarado ilegal.
– Escapa à intenção da lei – Scytale concordou. E pensou: Um
queima-pedras em Naraj! Não nos contaram isso. Por que o velho
fala de queima-pedras aqui?
– Eu me ofereci para comprar de seus mestres olhos tleilaxu
para ele – disse Farok. – Mas corre nas legiões uma história de que
os olhos tleilaxu escravizam quem os usa. Meu filho me falou que
esses olhos são de metal, e ele é de carne, que uma união como
essa só pode ser pecado.
– O princípio de um objeto tem de se adequar a sua intenção
original – disse Scytale, tentando outra vez desviar o rumo da
conversa para as informações que ele procurava.
Os lábios de Farok se afinaram, mas ele assentiu.
– Diga abertamente o que deseja. Somos obrigados a confiar
em seu Piloto.
– Já entrou alguma vez no Forte Imperial? – Scytale perguntou.
– Estive lá no banquete em celebração à vitória em Molitor.
Fazia frio dentro daquela pedra toda, mesmo com os melhores
aquecedores ixianos. Dormimos no terraço do Templo de Alia na
noite anterior. Ele tem árvores lá dentro, sabe. Árvores de muitos
planetas. Nós, os bashar, vestíamos nossos melhores trajes
verdes, e nossas mesas ficavam à parte. Comemos e bebemos em
demasia. Fiquei enojado com algumas coisas que vi. Os feridos
que ainda conseguiam andar apareceram, arrastando-se com
suas muletas. Não creio que nosso Muad’Dib saiba quantos
homens aleijou.
– Você não gostou do banquete? – Scytale indagou, pois
conhecia as orgias fremen inflamadas pela cerveja de especiaria.
– Não foi como a união de nossas almas no sietch. Não havia o
tau. Como diversão, os soldados tomaram escravas jovens, e os
homens contaram histórias sobre suas batalhas e seus
ferimentos.
– Então você já entrou naquele grande monte de pedras.
– Muad’Dib saiu para o terraço e veio nos falar. “Boa sorte para
todos nós”, ele disse. A saudação tradicional do deserto naquele
lugar!
– Sabe onde ficam os aposentos particulares dele? – perguntou
Scytale.
– Bem lá dentro. Em algum lugar bem lá dentro. Disseram-me
que ele e Chani levam uma vida nômade, e tudo dentro das
muralhas de seu Forte. Ao Grande Átrio, ele vai para as
audiências públicas. Tem salões de recepção e salas de reunião
formais, uma ala inteira para sua guarda pessoal, locais para as
cerimônias e uma seção secreta para as comunicações. Disseram-
me que existe uma sala sob a fortaleza, onde ele mantém um
verme mirrado cercado por um fosso de água, com a qual ele
envenena a criatura. É ali que ele vê o futuro.
O mito completamente emaranhado na verdade, pensou
Scytale.
– A máquina do governo o acompanha por toda parte – Farok
resmungou. – Funcionários e assessores, e assessores para os
assessores. Ele só confia em gente antes muito chegada a ele,
como Stilgar.
– Mas não você.
– Acho que ele esqueceu que eu existo.
– Por onde ele passa ao sair do edifício? – Scytale perguntou.
– Ele tem um toptoporto minúsculo que se projeta de uma
parede interna. – contou Farok. – Disseram-me que Muad’Dib não
deixa mais ninguém manejar os controles para pousar lá. A
aterrissagem exige uma aproximação, assim se diz, em que o
menor erro de cálculo o faria despencar de um paredão íngreme e
cair num de seus malditos jardins.
Scytale concordou com a cabeça. Era muito provável que fosse
isso mesmo. Uma entrada como aquela para os aposentos do
imperador, pelo ar, daria uma certa medida de segurança. Todos
os Atreides eram pilotos soberbos.
– Ele usa homens para levar suas mensagens distrans – Farok
falou. – É uma humilhação implantar tradutores de ondas em
homens. A voz de um homem deve estar sob seu comando. Não
deve levar a mensagem de outro homem oculta nos sons que
produz.
Scytale deu de ombros. Todas as grandes potências
contemporâneas usavam o distrans. Nunca se sabia quais
obstáculos poderiam se interpor entre o remetente e o
destinatário. O distrans desafiava a criptologia política, pois
dependia de distorções sutis de padrões sonoros naturais, que
podiam ser misturados com uma complexidade enorme.
– Até mesmo os funcionários do fisco empregam esse método –
queixou-se Farok. – Em minha época, o distrans só era
implantado em animais inferiores.
Mas é preciso manter em segredo as informações da receita,
Scytale pensou. Mais de um governo já caiu porque as pessoas
descobriram a verdadeira extensão do patrimônio oficial.
– Como se sentem agora as coortes fremen em relação ao Jihad
de Muad’Dib? – perguntou Scytale. – São contrários a fazer de seu
imperador um deus?
– A maioria nem sequer se interessa por isso. Pensam no Jihad
como eu costumava pensar... a maioria. É um manancial de
experiências estranhas, aventura, dinheiro. Este casebre de
graben onde moro – Farok fez um gesto para mostrar o pátio –,
isto custou sessenta lidas de especiaria. Noventa kontars! Houve
uma época em que eu nem sequer conseguia imaginar tamanha
riqueza.
Ele chacoalhou a cabeça.
Do outro lado do pátio, o jovem cego começou a tocar as notas
de uma balada de amor em seu baliset.
Noventa kontars, Scytale pensou. Que estranho. Imensa
riqueza, certamente. O casebre de Farok seria um palácio em
muitos outros planetas, mas tudo é relativo: até mesmo o kontar.
Por exemplo, será que Farok sabe de onde vem sua medida para
esse peso em especiaria? Teria alguma vez pensado que,
antigamente, um kontar e meio correspondia à carga máxima de
um camelo? Improvável. Talvez Farok nem sequer tivesse ouvido
falar de camelos ou da Idade de Ouro da Terra.
Estranhamente no mesmo ritmo da música do baliset do filho,
foram estas as palavras de Farok:
– Eu tinha uma dagacris, hidroanéis no valor de dez litros,
minha própria lança, que antes foi de meu pai, um aparelho de
café, uma garrafa de vidro vermelho, mais antiga do que qualquer
pessoa de meu sietch era capaz de lembrar. Eu tinha meu próprio
quinhão da nossa especiaria, mas nenhum dinheiro. Era rico e não
sabia. Duas esposas, eu tinha: uma delas, comum e querida, a
outra, estúpida e obstinada, mas com as formas e a face de um
anjo. Eu era um naib fremen, eu montava os vermes, era mestre
do leviatã e da areia.
O jovem do outro lado do pátio acelerou a cadência de sua
música.
– Eu sabia muitas coisas, sem precisar pensar nelas –
continuou Farok. – Sabia que havia água bem abaixo de nossa
areia, mantida ali, cativa, pelos criadorezinhos. Sabia que meus
ancestrais sacrificavam virgens a Shai-hulud... antes de Liet-
Kynes nos fazer parar. Foi errado parar. Eu vi as joias na boca de
um verme. Minha alma tinha quatro portões, e eu conhecia todos
eles.
Calou-se, pensativo.
– Então chegou o Atreides, acompanhado de sua mãe bruxa –
disse Scytale.
– Chegou o Atreides – Farok concordou. – Aquele a quem
chamávamos Usul em nosso sietch, seu nome secreto entre nós.
Nosso Muad’Dib, nosso Mahdi! E, quando ele convocou o Jihad,
fui um dos que perguntaram: “Por que devo lutar lá? Não tenho
parentes lá”. Mas outros homens foram – rapazes, amigos,
companheiros de infância. Quando voltaram, falaram de magia,
do poder daquele salvador Atreides. Ele combateu nosso inimigo,
os Harkonnen. Liet-Kynes, que havia nos prometido um paraíso
em nosso planeta, o abençoou. Diziam que esse Atreides veio
mudar nosso mundo e nosso universo, que ele era o homem que
faria a flor dourada desabrochar à noite.
Farok ergueu as mãos, examinou as palmas.
– Os homens apontavam a primeira lua e diziam: “A alma dele
está lá”. Por isso, chamavam-no Muad’Dib. Eu não entendia tudo
aquilo.
Baixou as mãos e olhou fixamente para o filho, do outro lado do
pátio.
– Não pensei com a cabeça. Pensei apenas com o coração, a
barriga e a genitália.
Outra vez, o tempo da música de fundo aumentou.
– Sabe por que me alistei no Jihad? – Os olhos idosos fitaram
Scytale com dureza. – Ouvi dizer que havia uma coisa chamada
mar. É muito difícil acreditar num mar quando só se viveu aqui,
entre nossas dunas. Não temos mares. Os homens de Duna nunca
conheceram o mar. Tínhamos nossos captadores de vento.
Coletávamos a água para a grande mudança que Liet-Kynes nos
prometia... essa grande mudança que Muad’Dib nos traz com um
aceno da mão. Eu conseguia imaginar um qanat, a água a correr
pela terra num canal. A partir daí, minha mente era capaz de
visualizar um rio. Mas um mar?
Farok olhou para a cobertura translúcida de seu pátio, como se
tentasse sondar o universo que ficava além.
– Um mar – ele disse em voz baixa. – Era demais para a minha
mente visualizar. Mas alguns homens que eu conhecia disseram
ter visto essa maravilha. Achei que estivessem mentindo, mas eu
tinha de saber por conta própria. Foi por isso que me alistei.
O jovem arrancou um último acorde sonoro do baliset e
começou uma nova canção com um ritmo estranhamente
ondulante.
– Você encontrou seu mar? – Scytale perguntou.
Farok continuou calado e Scytale pensou que o velho não o
tivesse escutado. A música do baliset elevou-se ao redor deles e
caiu feito uma onda gigantesca. Farok respirava no mesmo ritmo.
– Houve um pôr do sol – não demorou a dizer. – Um dos artistas
mais antigos poderia ter pintado um pôr do sol como aquele.
Tinha o mesmo vermelho do vidro de minha garrafa. E havia o
dourado... e o azul. Foi no planeta que chamam Enfeil, onde
conduzi minha legião à vitória. Saímos de um desfiladeiro nas
montanhas, onde o ar estava saturado de água. Eu mal conseguia
respirar. E lá embaixo estava a coisa de que meus amigos haviam
falado: água até onde minha vista alcançava, e além. Marchamos
até lá. Entrei na água até o peito e a bebi. Era amarga e me fez mal.
Mas o deslumbramento nunca me abandonou.
Scytale flagrou-se sentindo a mesma admiração do velho
fremen.
– Mergulhei naquele mar – contou Farok, olhando para baixo,
para as criaturas aquáticas trabalhadas nos ladrilhos do
assoalho. – Um homem afundou sob a água... um outro surgiu de
dentro dela. Foi como se eu me lembrasse de um passado que
nunca tinha acontecido. Olhei ao redor com olhos capazes de
aceitar qualquer coisa... qualquer coisa mesmo. Vi um corpo na
água: um dos defensores que havíamos matado. Havia um tronco
ali perto, flutuando naquela água, um pedaço de uma grande
árvore. Sou capaz de fechar os olhos agora e ver aquele tronco.
Estava preto numa das pontas, por causa do fogo. E havia um
pedaço de tecido naquela água: não passava de um trapo
amarelo... rasgado, sujo. Olhei para todas essas coisas e entendi
por que estavam ali. Era para que eu as visse.
Farok virou-se devagar, fitou os olhos de Scytale.
– O universo ainda está por terminar, sabe.
Esse aí é prolixo, mas profundo, pensou Scytale. E falou:
– Nota-se que causou em você uma forte impressão.
– Você é um Tleilaxu. Já viu muitos mares. Eu só vi esse, mas sei
de uma coisa sobre os mares que você não sabe.
Scytale viu-se dominado por uma estranha sensação de
desassossego.
– A Mãe do Caos nasceu num mar – Farok contou. – Havia um
Qizara Tafwid por perto quando eu saí encharcado daquela água.
Ele não tinha entrado no mar. Estava de pé na areia... areia
molhada... com alguns de meus homens, que sentiram o mesmo
medo. Ele me observou com os olhos de alguém que sabia que eu
tinha aprendido uma coisa que a ele havia sido negada. Eu havia
me tornado uma criatura marinha, e eu o assustava. O mar me
curou do Jihad, e creio que ele viu isso.
Scytale percebeu que, em algum momento daquela récita, a
música havia cessado. Achou perturbador não ser capaz de dizer
com certeza quando o baliset havia se calado.
Como se tivesse alguma relevância para o relato que fizera,
Farok disse:
– Há guardas em todos os portões. Não há como entrar na
fortaleza do imperador.
– Eis aí seu ponto fraco.
Farok empertigou o pescoço, atento.
– Há uma maneira de entrar – Scytale explicou. – O fato de a
maioria dos homens, e tomara que entre eles esteja o imperador,
acreditar que não... é nossa vantagem.
Esfregou os lábios, sentindo a estranheza da aparência que
escolhera. O silêncio do músico o incomodava. Queria dizer que o
filho de Farok terminara a transmissão? Tinha sido assim,
naturalmente: a mensagem condensada e transmitida dentro da
música. Ficara impressa no próprio sistema nervoso de Scytale,
onde seria acionada no momento certo pelo distrans implantado
em seu córtex adrenal. Se já chegara ao fim, então ele havia se
tornado um recipiente de palavras desconhecidas. Era um
receptáculo a transbordar dados: todas as células da conspiração
ali em Arrakis, todos os nomes, todas as senhas de contato –
todas as informações vitais.
Com aquelas informações, ele conseguiria enfrentar Arrakis,
capturar um verme da areia, começar o cultivo do mélange em
algum lugar fora dos domínios de Muad’Dib. Poderiam destruir o
monopólio ao destruir Muad’Dib. Poderiam fazer muitas coisas
com aquelas informações.
– Temos a mulher aqui conosco – Farok disse. – Deseja vê-la
agora?
– Eu já a vi – falou Scytale. – Eu a estudei com cuidado. Onde ela
está?
Farok estalou os dedos.
O jovem apanhou a rabeca e puxou o arco. A música da semuta
emanou das cordas feito um lamento. Como se o som a atraísse,
uma moça de manto azul surgiu de uma passagem atrás do
músico. O torpor do narcótico tomava-lhe os olhos, que eram
totalmente azuis como os dos Ibad. Era uma fremen, dependente
da especiaria, e agora presa de um vício estrangeiro. Sua
consciência jazia nas profundezas da semuta, perdida em algum
lugar, levada pelo êxtase da música.
– A filha de Otheym – disse Farok. – Meu filho deu-lhe o
narcótico, esperando, com isso, conquistar uma mulher do Povo,
mesmo cego. Como pode ver, foi uma vitória oca. A semuta ficou
com o que ele esperava obter.
– O pai dela não sabe? – Scytale perguntou.
– Ela mesma não sabe. Meu filho fornece-lhe lembranças falsas
para explicar suas visitas. Ela crê estar apaixonada por ele. É
nisso que a família dela acredita. Estão enfurecidos porque ele
não é um homem completo, mas, naturalmente, não irão
interferir.
A música se arrastou até se calar.
A um gesto do músico, a moça se sentou ao lado dele, inclinou-
se para escutar mais de perto o que ele murmurava.
– O que fará com ela? – Farok perguntou.
Mais uma vez, Scytale observou o pátio.
– Há mais alguém na casa? – indagou.
– Só nós que estamos aqui agora – respondeu Farok. – Você não
me disse o que fará com a mulher. É meu filho quem quer saber.
Como se fosse responder, Scytale estendeu o braço direito. Da
manga de seu manto, uma agulha cintilante foi arremessada e
enterrou-se no pescoço de Farok. Nenhum grito, nenhuma
alteração de postura. Farok estaria morto em um minuto, mas
continuou sentado, imóvel, paralisado pelo veneno do dardo.
Lentamente, Scytale se pôs de pé e foi até o músico cego. O
jovem ainda murmurava para a moça quando o dardo penetrou-
lhe a pele.
Scytale pegou a moça pelo braço, instou-a gentilmente a se
levantar, trocou de aparência antes que ela olhasse para ele. Ela
ficou ereta e voltou sua atenção para o Dançarino Facial.
– O que foi, Farok? – ela perguntou.
– Meu filho está exausto e precisa descansar – disse Scytale. –
Venha. Vamos sair por trás.
– Tivemos uma conversa tão agradável – ela comentou. – Acho
que o convenci a arranjar aqueles olhos dos Tleilaxu. Faria dele
novamente um homem.
– Não foi o que eu disse tantas e tantas vezes? – Scytale
perguntou, exortando-a a entrar num aposento nos fundos.
Sua voz, ele notou, orgulhoso, condizia exatamente com sua
fisionomia. Era inequivocamente a voz do fremen idoso, que sem
dúvida estava morto àquela altura.
Scytale suspirou. Disse a si mesmo que agira com compaixão e
que as vítimas certamente conheciam os riscos. Agora era
necessário dar à moça a mesma oportunidade.
Os impérios não padecem de falta de propósito no
momento em que são criados. É quando já se
estabeleceram que os objetivos se perdem e são
substituídos por rituais vagos.
– Palavras de Muad’Dib, da princesa Irulan

Seria uma péssima sessão aquela reunião do Conselho


Imperial, percebeu Alia. Parecia-lhe que a discórdia reunia forças,
guardava energia: a maneira como Irulan se recusava a olhar para
Chani, Stilgar embaralhando nervosamente os papéis, os olhares
mal-humorados que Paul dirigia a Korba, o Qizara.
Ela se sentou à ponta da mesa dourada do conselho, para que
pudesse ver, através das janelas da sacada, a luz empoeirada da
tarde.
Korba, que fora interrompido pela entrada de Alia, deu
continuidade ao que vinha dizendo a Paul.
– O que estou querendo dizer, milorde, é que já não há tantos
deuses quanto antes.
Alia gargalhou, atirando a cabeça para trás. O movimento fez
cair o capuz preto de sua aba. Suas feições ficaram expostas: “os
olhos da especiaria”, azul sobre azul, o rosto oval da mãe sob uma
touca de cabelos cor de bronze, o nariz pequeno, a boca larga e
generosa.
As bochechas de Korba ficaram quase da cor de seu manto
alaranjado. Ele fulminou Alia com os olhos, um gnomo zangado,
calvo e furioso.
– Sabe o que andam falando de seu irmão? – indagou.
– Sei o que andam falando de seu Qizarate – Alia retrucou. –
Vocês não são clérigos, são os espiões de deus.
Korba voltou-se para Paul em busca de apoio e disse:
– Somos enviados por ordem de Muad’Dib, para que Ele saiba a
verdade sobre Seu povo, para que eles saibam a verdade sobre
Ele.
– Espiões – disse Alia.
Korba mordeu os lábios em seu silêncio ofendido.
Paul olhou para a irmã, perguntando-se por que ela provocava
Korba. De repente, viu que Alia já era mulher, linda, com a
primeira inocência fulgurante da juventude. Flagrou-se surpreso
por não ter reparado nisso até aquele instante. Ela tinha 15 anos,
quase 16, uma Reverenda Madre que não era mãe, a sacerdotisa
virgem, objeto de veneração temerosa das massas crédulas: Alia
da Faca.
– Não é hora nem lugar para a leviandade de sua irmã – falou
Irulan.
Paul a ignorou e acenou para Korba com a cabeça.
– A praça está cheia de peregrinos. Vá lá fora presidir a oração.
– Mas eles esperam milorde – disse Korba.
– Ponha o turbante – fez Paul. – A essa distância, não vão notar
a diferença.
Irulan ocultou sua irritação por ter sido ignorada, viu Korba se
levantar e obedecer. Ocorrera-lhe de repente que Edric talvez não
conseguisse esconder de Alia o que ela, Irulan, fazia. O que
sabemos de fato a respeito da irmã?, ela se perguntou.
Chani, com as mãos firmemente entrelaçadas em seu regaço,
olhou para Stilgar, seu tio e Ministro de Estado de Paul, do outro
lado da mesa. Será que o velho naib fremen sentia falta da vida
mais simples de seu sietch no deserto?, ela se perguntou. Notou
que os cabelos negros de Stilgar haviam começado a ficar
grisalhos nas beiradas, mas os olhos sob o cenho carregado ainda
enxergavam longe. Era o olhar aquilino da natureza, e sua barba
ainda trazia a reentrância do tubo coletor, fruto de uma vida
inteira dentro de um trajestilador.
A atenção de Chani deixou Stilgar nervoso, e ele olhou ao redor
da Câmara do Conselho. Seu olhar recaiu sobre a janela da sacada
e Korba de pé lá fora. Korba abriu e ergueu os braços para a
bênção, e um truque do sol da tarde projetou uma auréola
vermelha na janela atrás dele. Por um instante, Stilgar viu o
Qizara da Corte como um vulto crucificado numa roda de fogo.
Korba baixou os braços, desfez a ilusão, mas Stilgar continuou
abalado com aquilo. Seus pensamentos seguiram, em zangada
frustração, para os suplicantes aduladores que aguardavam no
Salão de Audiências e para a pompa detestável que cercava o
trono de Muad’Dib.
Convivendo com o imperador, esperava-se que ele tivesse
defeitos, que se descobrissem erros, pensou Stilgar. Pareceu-lhe,
talvez, um sacrilégio, mas ele o desejava mesmo assim.
O burburinho distante da multidão entrou na câmara quando
Korba retornou. Atrás dele, a porta da sacada encaixou-se com
um baque em seus lacres, barrando o som.
O olhar de Paul seguiu o Qizara. Korba tomou seu assento à
esquerda de Paul, com as feições morenas sossegadas, os olhos
vidrados de fanatismo. Havia desfrutado aquele momento de
poder religioso.
– A presença do espírito foi invocada – disse.
– Graças ao Senhor por isso – disse Alia.
Os lábios de Korba ficaram brancos.
Paul voltou a estudar a irmã, imaginando quais seriam seus
motivos. Sua inocência era a máscara da ilusão, comentou consigo
mesmo. Ela, assim como ele, era fruto do mesmo programa de
reprodução das Bene Gesserit. O que os genes do Kwisatz
Haderach teriam produzido nela? Havia sempre aquela diferença
misteriosa: ela era um embrião ainda no útero quando sua mãe
sobreviveu ao veneno em estado bruto do mélange. Mãe e filha,
esta ainda por nascer, tornaram-se Reverendas Madres
simultaneamente. Mas a simultaneidade não trazia a identidade.
A respeito daquela experiência, Alia dizia que, num instante de
pavor, ela despertara, consciente, e sua memória absorvera as
incontáveis outras vidas que sua mãe estava assimilando.
– Tornei-me minha mãe e todas as outras – ela dizia. – Ainda
não estava formada, não tinha nascido, mas me tornei uma velha
naquele mesmo instante.
Percebendo que ele pensava nela, Alia sorriu para Paul. A
expressão dele se suavizou. Como não reagir a Korba com
sarcasmo?, perguntou-se. O que seria mais ridículo que um
comando suicida transformado em sacerdote?
Stilgar bateu de leve em seus papéis:
– Com a permissão de meu suserano, o assunto é urgente e
inadiável.
– O Tratado de Tupile? – Paul perguntou.
– A Guilda sustenta que temos de assinar este tratado sem
conhecer a localização exata da Entente de Tupile – Stilgar falou.
– Eles têm um certo apoio dos representantes do Landsraad.
– Como foi que você os pressionou? – Irulan perguntou.
– Da maneira que meu imperador designou.
A formalidade rígida da resposta encerrava toda a sua
desaprovação à princesa consorte.
– Milorde e marido – Irulan disse, voltando-se para Paul e
obrigando-o a reconhecer sua presença.
Enfatizar a distinção de títulos diante de Chani é uma fraqueza,
Paul pensou. Em momentos como aquele, tinha por Irulan a
mesma aversão que Stilgar sentia, mas a compaixão refreou suas
emoções. O que era Irulan, se não um fantoche das Bene
Gesserit?
– Sim? – fez Paul.
Irulan o encarou.
– Se milorde lhes negasse o mélange...
Chani balançou a cabeça, discordando.
– Sejamos cautelosos – Paul falou. – Tupile ainda é um
santuário para as Casas Maiores derrotadas. Simboliza um último
recurso, um derradeiro porto seguro para todos os nossos
súditos. A exposição do santuário o deixa vulnerável.
– Se puderem esconder pessoas, poderão esconder outras
coisas – Stilgar resmungou. – Um exército, talvez, ou o princípio
do cultivo do mélange, que...
– Não devemos acuar as pessoas – disse Alia. – Não quando
queremos que continuem pacíficas. – Arrependida, viu que fora
arrastada para a discórdia que previra.
– Então desperdiçamos dez anos de negociação à toa –
comentou Irulan.
– Nada que meu irmão faça é à toa – redarguiu Alia.
Irulan apanhou um riscador, segurou-o com tamanha força que
os nós de seus dedos ficaram brancos. Paul a viu dominar o
controle emocional à maneira das Bene Gesserit: o olhar interior
penetrante, as inspirações profundas. Quase era capaz de ouvi-la
repetir a litania. No mesmo instante, ela disse:
– O que ganhamos com isso?
– Pegamos a Guilda de surpresa – respondeu Chani.
– Queremos evitar um confronto flagrante com nossos inimigos
– Alia falou. – Não temos nenhum desejo especial de matá-los. Já
basta toda a carnificina que tem lugar sob o estandarte dos
Atreides.
Ela também sente, pensou Paul. Que sensação estranha e
irresistível de responsabilidade os dois tinham por aquele
universo ruidoso e idólatra, com seus êxtases de tranquilidade e
movimento desvairado. Será que temos de protegê-los de si
mesmos?, ele se perguntou. Brincam o tempo todo com o nada –
vidas ocas, palavras ocas. Exigem muito de mim. Sentiu a
garganta cheia e apertada. Quantos momentos perderia?
Quantos filhos? Quantos sonhos? Valeria a pena pagar o preço
que sua visão havia revelado? Quem interpelaria os viventes de
um futuro distante, quem diria a eles: “Não fosse Muad’Dib, vocês
não estariam aqui”?
– Negar-lhes o mélange não resolveria nada – disse Chani. – Os
navegadores da Guilda perderiam a capacidade de enxergar o
espaço-tempo. Suas irmãs Bene Gesserit perderiam o sentido
para a verdade. Algumas pessoas morreriam antes da hora. As
comunicações ruiriam. Quem levaria a culpa?
– Eles não deixariam chegar a esse ponto – Irulan falou.
– Será que não? – perguntou Chani. – Por que não? Quem
poderia culpar a Guilda? Estariam impotentes, não há o que
discutir.
– Assinaremos o tratado do jeito que está – Paul disse.
– Milorde, uma pergunta não nos sai da cabeça – disse Stilgar,
concentrando-se nas próprias mãos.
– Sim?
Paul focou toda a sua atenção no velho fremen.
– Milorde tem certos... poderes. Não conseguiria localizar a
Entente, mesmo contra a vontade da Guilda?
Poderes!, pensou Paul. Stilgar não saberia simplesmente dizer:
“Você é presciente. Não consegue traçar um caminho pelo futuro
que leve a Tupile?”.
Paul olhou para a superfície dourada da mesa. Sempre o
mesmo problema: como exprimir os limites do inexprimível?
Deveria falar de fragmentação, o destino natural de todo poder?
Como é que alguém que nunca experimentara a transformação
presciente da especiaria poderia conceber uma percepção que
não continha um espaço-tempo localizado, nem um vetor-
imagem pessoal, nem os prisioneiros sensoriais decorrentes?
Olhou para Alia, encontrou a atenção da irmã focada em Irulan.
Alia percebeu o gesto, olhou para ele, apontou Irulan com a
cabeça. Aaah, sim: qualquer resposta que dessem acabaria num
dos relatórios especiais de Irulan para as Bene Gesserit. Elas
nunca desistiram de procurar uma resposta para seu Kwisatz
Haderach.
Stilgar, contudo, merecia algum tipo de resposta. E Irulan
também.
– O não iniciado tenta conceber a presciência como se ela
obedecesse a uma Lei Natural – Paul explicou. Juntou as mãos
diante dele, formando um campanário. – Mas seria igualmente
correto dizer que é o céu a falar conosco, que ser capaz de ler o
futuro é um ato harmonioso da condição humana. Em outras
palavras, a predição é uma consequência natural na onda do
presente. Disfarça-se como algo natural, entendem? Mas não há
como usar esses poderes com a intenção de assegurar metas e
propósitos. Uma lasquinha apanhada pela onda sabe dizer para
onde vai? Não há causa e efeito no oráculo. As causas tornam-se
episódios de convecção e convergência, locais onde as correntes
se encontram. Ao aceitar a presciência, você preenche seu ser
com conceitos que repelem o intelecto. Sua consciência
intelectual, portanto, os rejeita. Ao rejeitá-los, o intelecto torna-
se uma parte dos processos e é subjugado.
– Não é capaz de fazê-lo? – Stilgar perguntou.
– Se eu procurasse Tupile com a presciência – respondeu Paul,
falando diretamente para Irulan –, isso poderia esconder Tupile.
– Caos! – protestou Irulan. – Não tem a menor... a menor...
consistência.
– Eu disse que não obedecia a uma Lei Natural – lembrou Paul.
– Então existem limites para o que você é capaz de enxergar ou
fazer com seus poderes? – Irulan perguntou.
Antes que Paul conseguisse responder, Alia falou:
– Cara Irulan, a presciência não tem limites. Inconsistente? A
consistência não é um aspecto necessário do universo.
– Mas ele disse...
– Como é que meu irmão poderia lhe dar informações explícitas
a respeito dos limites de algo que não tem limites? As fronteiras
escapam ao intelecto.
Que maldade a de Alia, Paul pensou. Acabaria alarmando
Irulan, que tinha uma consciência tão meticulosa, tão dependente
de valores derivados de limites precisos. Seu olhar dirigiu-se a
Korba, que, sentado, parecia entregue a um delírio religioso –
escutava com a alma. Como é que o Qizarate poderia usar aquela
conversa? Mais mistérios religiosos? Algo que evocasse um temor
respeitoso? Sem dúvida alguma.
– Então milorde vai assinar o tratado do jeito que está? –
perguntou Stilgar.
Paul sorriu. A questão do oráculo, na opinião de Stilgar, estava
encerrada. O único objetivo de Stilgar era a vitória, e não
descobrir a verdade. Paz, justiça e uma moeda forte: era isso que
ancorava o universo de Stilgar. Ele queria algo visível e real: uma
assinatura num tratado.
– Vou assiná-lo – disse Paul.
Stilgar apanhou uma nova pasta.
– O comunicado mais recente de nossos comandantes de
campo no setor ixiano informa que se debate publicamente uma
constituição.
O velho fremen olhou para Chani, que encolheu os ombros.
Irulan, que fechara os olhos e levara as duas mãos à testa para
fazer a impressão mnemônica, abriu-os e estudou Paul
atentamente.
– A Confederação Ixiana oferece submissão – continuou Stilgar
–, mas seus negociadores questionam o valor do Imposto Imperial
que eles...
– Querem um limite legal para a minha vontade imperial – disse
Paul. – Quem me governaria, o Landsraad ou a CHOAM?
Stilgar tirou da pasta um bilhete escrito em papel inestrói.
– Um de nossos agentes enviou este memorando proveniente
de uma bancada minoritária da CHOAM. – Leu o criptograma, sem
entonação: – “É preciso impedir a tentativa do Trono de
monopolizar o poder. Temos de contar a verdade sobre o
Atreides, como ele manipula as coisas por trás da tripla
impostura que é a legislação do Landsraad, a sanção religiosa e a
eficiência burocrática.” – Voltou a enfiar o bilhete na pasta.
– Uma constituição – murmurou Chani.
Paul olhou para ela, voltou a olhar para Stilgar. E assim o Jihad
perde a força, Paul pensou, mas não a tempo de me salvar. O
pensamento produziu tensões emocionais. Lembrou-se de suas
primeiras visões do Jihad, então ainda por vir, o terror e a aversão
que ele havia sentido. Naturalmente, ele agora conhecia visões de
um terror ainda maior. Convivera com a autêntica violência.
Tinha visto os fremen, carregados de energia mística, assolar
tudo que estivesse em seu caminho na guerra religiosa. O Jihad
ganhava uma nova perspectiva. Era finito, obviamente, um
espasmo breve se comparado à eternidade, mas para além dele
havia horrores capazes de ofuscar qualquer coisa do passado.
Tudo em meu nome, pensou Paul.
– Talvez pudéssemos lhes dar o feitio de uma constituição –
Chani sugeriu. – Não precisa ser de verdade.
– A trapaça é um dos instrumentos da arte de governar – Irulan
concordou.
– O poder tem limites, como aqueles que depositam suas
esperanças numa constituição sempre acabam descobrindo –
Paul falou.
Korba empertigou-se e saiu de sua pose reverente.
– Milorde?
– Sim?
E Paul pensou: Aí está! Eis alguém que talvez nutra em segredo
certa simpatia por um imaginário domínio da Lei.
– Poderíamos começar com uma constituição religiosa –
propôs Korba –, algo para os fiéis que...
– Não! – Paul gritou. – Faremos disso uma Ordem Imperial. Está
registrando tudo, Irulan?
– Sim, milorde – Irulan respondeu, com uma formalidade na voz
que denunciava seu desagrado pela função subalterna que ele a
obrigava a desempenhar.
– As constituições transformam-se na tirania suprema – Paul
disse. – É o poder organizado em tamanha escala que chega a ser
avassalador. A constituição é a mobilização do poder social e não
tem consciência. É capaz de esmagar os maiores e os menores,
removendo toda a dignidade e individualidade. Tem um ponto de
equilíbrio precário e limite nenhum. Eu, no entanto, tenho limites.
Desejando proporcionar a meu povo a proteção suprema, proíbo
uma constituição. Ordem Imperial, na data de hoje etcetera,
etcetera.
– E quanto à preocupação dos ixianos com o imposto, milorde?
– Stilgar perguntou.
Paul obrigou-se a desviar sua atenção da expressão pensativa e
zangada no rosto de Korba e disse:
– Tem alguma proposta, Stil?
– Precisamos ter o controle dos impostos, sire.
– O preço que pediremos à Guilda em troca de minha
assinatura no Tratado de Tupile é a Confederação Ixiana se
sujeitar ao nosso imposto. A Confederação não conseguirá fazer
comércio sem o transporte da Guilda. Eles vão pagar.
– Muito bom, milorde – Stilgar pegou uma outra pasta e limpou
a garganta. – O relatório do Qizarate a respeito de Salusa
Secundus. O pai de Irulan anda praticando manobras de
aterrissagem com suas legiões.
Irulan achou alguma coisa interessante na palma da mão
esquerda. A pulsação latejava em seu pescoço.
– Irulan, ainda insiste no argumento de que a única legião de
seu pai não passa de um brinquedo? – Paul perguntou.
– O que ele poderia fazer só com uma legião? – ela perguntou,
fitando Paul com os olhos entrecerrados.
– Poderia acabar se matando – Chani disse.
Paul concordou com a cabeça.
– E eu levaria a culpa.
– Sei de alguns comandantes do Jihad que dariam pulos se
soubessem disso – Alia falou.
– Mas é apenas uma força policial! – protestou Irulan.
– Então não precisam praticar manobras de aterrissagem –
Paul disse. – Sugiro que o próximo bilhetinho que você mandar a
seu pai contenha uma discussão franca e direta de minhas
opiniões quanto à posição delicada na qual ele se encontra.
Ela baixou o olhar.
– Sim, milorde. Espero que a coisa pare por aí. Meu pai daria um
bom mártir.
– Hummmm – fez Paul. – Minha irmã não mandaria uma
mensagem para os tais comandantes que ela mencionou, a menos
que eu desse a ordem.
– Um ataque a meu pai traz outros riscos além, obviamente,
dos militares – Irulan disse. – As pessoas começam a ver o reinado
dele com uma certa nostalgia.
– Você ainda acabará indo longe demais um dia desses – falou
Chani, com a solenidade letal de sua voz fremen.
– Chega! – ordenou Paul.
Ele ponderou a revelação que Irulan fizera sobre a nostalgia do
público – ah, sim!, havia ali um quê de verdade. Irulan provara
mais uma vez seu valor.
– As Bene Gesserit enviam uma súplica formal – disse Stilgar,
apresentando uma outra pasta. – Desejam consultá-lo a respeito
da preservação de sua linhagem.
Chani olhou de soslaio para a pasta, como se a coisa encerrasse
um dispositivo mortífero.
– Envie à Irmandade as desculpas de sempre – Paul mandou.
– É preciso? – Irulan quis saber.
– Talvez... seja a hora de discutir isso – sugeriu Chani.
Paul sacudiu a cabeça vigorosamente. Não tinham como saber
que era uma parte do preço que ele ainda não havia se decidido a
pagar.
Mas Chani não se deixaria deter.
– Fui ao muro das orações de Sietch Tabr, onde nasci – contou.
– Submeti-me aos médicos. Ajoelhei-me no deserto e dirigi meus
pensamentos às profundezas habitadas por Shai-hulud. E, no
entanto – ela deu de ombros –, de nada me valeu.
Ciência e superstição, todos a decepcionaram, Paul pensou.
Será que eu a decepciono também, não lhe contando o que dar à
luz um herdeiro para a Casa Atreides acabará precipitando?
Levantou a cabeça e encontrou uma expressão de pena nos olhos
de Alia. A ideia de que a irmã tinha pena dele era algo que o
repugnava. Ela teria visto também aquele futuro apavorante?
– Milorde deve saber os riscos que seu reino corre enquanto
não tiver um herdeiro – Irulan falou, usando seus poderes vocais
de Bene Gesserit com uma persuasividade untuosa. – Essas
coisas são naturalmente difíceis de discutir, mas é preciso colocar
as cartas na mesa. Um imperador é mais que um homem. Sua
figura comanda o reino. Se ele morrer sem deixar herdeiro, o
resultado será a guerra civil. Se ama seu povo, como é que milorde
pode abandoná-lo assim?
Paul usou as mãos para se afastar da mesa e caminhou a passos
largos até as janelas da sacada. Uma ventania aplanava a fumaça
das fogueiras da cidade lá fora. O céu apresentava uma cor azul-
prateada cada vez mais escura, suavizada pela precipitação
vespertina da poeira da Muralha-Escudo. Olhou para o sul, para o
escarpamento que protegia suas terras setentrionais do vento de
Coriolis, e perguntou-se por que sua paz de espírito não
conseguia encontrar um escudo como aquele.
O Conselho permaneceu sentado e em silêncio atrás dele, à
espera, ciente de como ele estava às raias da fúria.
Pareceu a Paul que o tempo investia contra ele. Tentou se
impor um estado de tranquilidade baseado em inúmeros
equilíbrios, onde ele pudesse dar forma ao futuro.
Desvencilhe-se... desvencilhe-se... desvencilhe-se, pensou. O que
aconteceria se ele pegasse Chani, simplesmente recomeçasse e
partisse, buscasse asilo em Tupile? Seu nome ainda ficaria para
trás. O Jihad encontraria outros centros terríveis em volta dos
quais girar. Ele também levaria a culpa por isso. De repente, viu-
se receoso de que, ao tentar alcançar qualquer coisa nova, ele
deixasse cair o que era mais precioso, que até mesmo o mais leve
ruído que produzisse desalojasse o universo e o fizesse
desmoronar e retroceder, até ele não conseguir recuperar mais
nenhum pedaço.
Abaixo dele, a praça tornara-se palco para um bando de
peregrinos vestindo o verde e o branco do hajj. Prosseguiam feito
uma serpente desarticulada atrás de um guia arrakino que
caminhava a passos largos. Faziam Paul lembrar que seu salão de
recepção já estaria lotado de suplicantes àquela altura.
Peregrinos! Aquele exercício de nomadismo havia se tornado uma
fonte revoltante de riqueza para seu Imperium. O hajj enchia as
vias espaciais de vagabundos religiosos. Vinham, e vinham, não
paravam de vir.
Como foi que comecei isso?, ele se perguntou.
A coisa, naturalmente, começara por si própria. Estava nos
genes, que poderiam labutar durante séculos para chegar àquele
breve espasmo.
Impelidas por aquele instinto religioso dos mais profundos, as
pessoas vinham em busca de sua ressurreição. A peregrinação
terminava ali: Arrakis, o lugar onde se renascia, onde se morria.
Os fremen idosos e cheios de malícia diziam querer os
peregrinos por causa da água.
O que os peregrinos realmente buscavam?, Paul se perguntou.
Diziam vir para um lugar sagrado. Mas deviam saber que o
universo não tinha uma origem edênica, nenhum Tupile para a
alma. Tratavam Arrakis como a morada do desconhecido, onde os
mistérios eram explicados. Era um elo entre seu universo e o
próximo. E o mais assustador era que, aparentemente, iam
embora satisfeitos.
O que encontram aqui?, Paul se perguntou.
Era comum que, em seu êxtase religioso, eles enchessem as
ruas com seus guinchos, à semelhança de um estranho aviário. Na
verdade, os fremen os chamavam de “aves migratórias”. E os
poucos que morriam eram “almas aladas”.
Com um suspiro, Paul pensou em como cada novo planeta que
suas legiões subjugavam abria novos mananciais de peregrinos.
Vinham agradecidos pela “paz de Muad’Dib”.
Paz em toda parte, Paul pensou. Em toda parte... exceto no
coração de Muad’Dib.
Era como se um elemento seu estivesse imerso numa geada
glacial de trevas sem fim. Seu poder presciente havia adulterado a
imagem que a humanidade inteira fazia do universo. Ele abalara o
cosmos seguro e substituíra a segurança por seu Jihad. Ele havia
superado no combate, no raciocínio e na previsão o universo dos
homens, mas estava tomado pela certeza de que o universo ainda
o desconcertava.
Aquele planeta sob seus pés – que ele mandara refazer, de
deserto a paraíso rico em água – estava vivo. Tinha uma pulsação
tão dinâmica quanto a de qualquer ser humano. O planeta o
combatia, resistia, driblava suas ordens...
A mão de alguém insinuou-se na de Paul. Ele baixou o olhar e
viu que Chani o examinava, com preocupação nos olhos. Aqueles
olhos sorveram-no, e ela sussurrou:
– Por favor, amor, não peleje com seu eu-ruh.
Uma torrente de emoção chegou até ele através da mão dela e o
reanimou.
– Sihaya – ele sussurrou.
– Temos de ir logo ao deserto – ela disse em voz baixa.
Ele apertou a mão dela, soltou-a, voltou à mesa e ali se manteve
de pé.
Chani sentou-se em sua cadeira.
Irulan olhava fixamente para os papéis diante de Stilgar e sua
boca era uma linha esticada.
– Irulan propõe que seja ela a mãe do herdeiro imperial – Paul
falou. Olhou para Chani, depois para Irulan, que se recusou a
enfrentar-lhe o olhar. – Nós todos sabemos que ela não me ama.
Irulan ficou paralisada.
– Conheço os argumentos políticos – Paul disse. – São os
argumentos humanos que me preocupam. Creio que, se a
princesa consorte não estivesse sob as ordens das Bene Gesserit,
se não quisesse isso por desejar poder pessoal, minha reação
talvez fosse outra. Na atual situação, porém, eu rejeito a proposta.
Irulan inspirou profunda e estremecidamente.
Paul, voltando a se sentar, pensou que nunca a vira tão incapaz
de se controlar. Inclinando-se na direção dela, disse:
– Irulan, eu realmente sinto muito.
Ela ergueu o queixo, com uma expressão de fúria autêntica nos
olhos.
– Não quero sua pena! – sibilou. E, voltando-se para Stilgar: –
Há alguma outra coisa urgente e inadiável?
Mantendo seu olhar firme em Paul, Stilgar disse:
– Mais um assunto, milorde. A Guilda propõe outra vez uma
embaixada formal aqui em Arrakis.
– Um membro da raça do espaço profundo? – Korba perguntou,
a voz tomada por um asco fanático.
– Possivelmente – Stilgar respondeu.
– Uma questão a ser considerada com o máximo cuidado,
milorde – advertiu Korba. – O Conselho de Naibs não vai gostar
disso, um legítimo membro da Guilda aqui em Arrakis. Eles
contaminam o solo onde põem os pés.
– Eles vivem em tanques e não põem os pés no solo – Paul disse,
deixando sua voz revelar irritação.
– Pode ser que os naibs decidam agir por conta própria,
milorde – Korba falou.
Paul o fulminou com os olhos.
– São fremen, afinal de contas, milorde – Korba insistiu. –
Todos nos lembramos de que foi a Guilda que trouxe nossos
opressores. Não esquecemos a maneira como nos chantagearam
e nos fizeram pagar com a especiaria para que não revelassem
nossos segredos ao inimigo. Tiraram-nos até o último...
– Chega! – Paul gritou. – Acha que eu esqueci?
Como se tivesse acabado de entender a gravidade de suas
próprias palavras, Korba gaguejou ininteligivelmente e, em
seguida:
– Milorde, perdoe-me. Não tive a intenção de insinuar que
milorde não fosse fremen. Eu não...
– Eles mandarão um Piloto – Paul disse. – É improvável que um
Piloto viesse para cá se enxergasse algum perigo nisso.
Com a boca repentinamente seca de medo, Irulan falou:
– Você... viu um Piloto aqui?
– Claro que não vi um Piloto – Paul retrucou, imitando o tom de
voz dela. – Mas posso ver onde alguém esteve e para onde alguém
está indo. Que nos mandem um Piloto. Talvez eu encontre
serventia para um deles.
– Seu desejo é uma ordem – Stilgar disse.
E Irulan, cobrindo o sorriso com a mão, pensou: Então é
verdade. Nosso imperador não consegue ver um Piloto. São cegos
um para o outro. A conspiração está protegida.
“Eis que o drama recomeça outra vez.”
– O imperador Paul Muad’Dib, quando de sua ascensão
ao Trono do Leão

Alia espiava de seu postigo o grande salão de recepção lá


embaixo, para ver passar o séquito da Guilda.
A luz vivamente prateada do meio-dia entrava pelas janelas do
clerestório e derramava-se no piso trabalhado em ladrilhos
verdes, azuis e amarelo-claros, simulando um braço de rio com
plantas aquáticas e, aqui e ali, uma mancha de cores exóticas a
indicar uma ave ou um bicho.
Os membros da Guilda atravessavam o mosaico de ladrilhos
feito caçadores a espreitar a presa numa selva estranha.
Formavam um desenho em movimento de mantos cinzentos,
negros, alaranjados, todos dispostos de maneira enganosamente
aleatória ao redor do tanque transparente onde o embaixador
Piloto nadava em seu gás laranja. O tanque deslizava sobre seu
campo de sustentação, conduzido por dois criados de mantos
cinzentos, como se fosse uma nave retangular que rebocassem
para o cais.
Logo abaixo dela, Paul estava sentado no Trono do Leão sobre
a plataforma elevada. Usava a nova coroa formal, com os
emblemas do peixe e do punho. Os mantos de gala dourados e
ajaezados cobriam-lhe o corpo. O tremeluzir de um escudo
pessoal o cercava. Duas alas de guarda-costas abriam-se em leque
dos dois lados da plataforma inteira e desciam pelos degraus até
o chão. Stilgar estava dois degraus abaixo, à direita de Paul,
vestindo um manto branco, com um cordão amarelo por cinto.
A empatia fraterna dizia-lhe que Paul fervilhava com a mesma
agitação que ela sentia, mas ela duvidava de que mais alguém
conseguisse detectar aquele frêmito. A atenção dele continuava
voltada para um criado de manto alaranjado cujos olhos de metal,
que fitavam sem nada ver, não olhavam nem para a direita nem
para a esquerda. Esse criado vinha no canto direito da vanguarda
da trupe do embaixador, feito um batedor do exército. Um rosto
achatado sob os cabelos negros e encaracolados, tudo o que se
podia ver de sua figura por baixo do manto laranja, todos os
gestos alardeavam alguém conhecido.
Era Duncan Idaho.
Não podia ser Duncan Idaho, mas era.
Memórias cativas, assimiladas no útero no momento em que
sua mãe havia alterado a especiaria, identificaram aquele homem
para Alia, por arte de uma decifração rihani que enxergava
através de qualquer camuflagem. Ela sabia que Paul o via pelo
prisma de incontáveis experiências pessoais, momentos de
gratidão e companheirismo juvenil.
Era Duncan.
Alia estremeceu. Só poderia haver uma resposta: era um ghola
tleilaxu, um ser reconstruído a partir do cadáver do original. Esse
original havia perecido para salvar Paul. Aquele só podia ser um
produto dos tanques axolotles.
O ghola caminhava com a prontidão afetada de um mestre-
espadachim. Ele estacou quando o tanque do embaixador parou
de deslizar a dez passos dos degraus da plataforma.
À maneira inescapável das Bene Gesserit, Alia decifrou o
desassossego de Paul. Ele já não olhava mais para o personagem
saído de seu passado. Sem olhar, todo o seu ser fitava. Os
músculos digladiaram-se com as restrições quando ele
cumprimentou o embaixador da Guilda e falou:
– Disseram-me que seu nome é Edric. Nós o acolhemos em
nossa Corte com a esperança de que isso nos leve a compreender
melhor um ao outro.
O Piloto assumiu uma posição reclinada e sedutora em meio a
seu gás laranja, enfiou uma cápsula de mélange na boca antes de
confrontar o olhar de Paul. O diminuto transdutor que orbitava
um dos cantos do tanque do membro da Guilda reproduziu um
som de tosse, em seguida a voz áspera e distante:
– Eu me apresento humildemente diante de meu imperador e
peço licença para mostrar minhas credenciais e oferecer um
pequeno presente.
Um assistente entregou um volume a Stilgar, que o examinou
de cenho franzido e depois acenou afirmativamente na direção de
Paul. Tanto Stilgar quanto Paul voltaram-se, então, para o ghola
que esperava com toda a paciência logo abaixo da plataforma.
– Meu imperador deduziu o que seria o presente – Edric falou.
– É com prazer que aceitamos suas credenciais – disse Paul. –
Explique o presente.
Edric revirou-se no tanque, dirigindo sua atenção para o ghola.
– Este homem se chama Hayt – disse, soletrando o nome. – De
acordo com nossos investigadores, ele tem uma história das mais
curiosas. Foi morto aqui em Arrakis... um ferimento grave na
cabeça que exigiu muitos meses de regeneração. O corpo foi
vendido para os Bene Tleilax como sendo o de um mestre-
espadachim, um iniciado da Escola Ginaz. Ocorreu-nos que
deveria ser Duncan Idaho, o servidor de confiança de sua família.
Nós o compramos como um presente digno de um imperador. –
Edric ergueu o olhar para examinar Paul. – Não se trata de Idaho,
sire?
Comedimento e cautela dominaram a voz de Paul.
– Ele tem a fisionomia de Idaho.
Será que Paul enxerga algo que eu não vejo?, perguntou-se Alia.
Não! É Duncan!
O homem chamado Hayt manteve-se impassível, os olhos
metálicos fixos no espaço a sua frente e o corpo relaxado. Não
deixou escapar nenhum sinal de que soubesse ser ele o assunto
da conversa.
– Até onde sabemos, é Idaho – falou Edric.
– Ele se chama Hayt agora – disse Paul. – Um nome curioso.
– Sire, não há como saber como ou por que os Tleilaxu
escolhem seus nomes – disse Edric. – Mas nomes podem ser
trocados. O nome tleilaxu é de pouca importância.
Esta coisa é tleilaxu, Paul pensou. Esse é o problema. Os Bene
Tleilax pouco se prendiam à natureza fenomênica. O bem e o mal
tinham significados estranhos em sua filosofia. O que poderiam
ter incorporado na carne de Idaho, fosse por desígnio ou
capricho?
Paul olhou para Stilgar, percebeu o terror supersticioso do
fremen. Era uma emoção que repercutia em todos os seus
guardas fremen. A mente de Stilgar estaria especulando sobre os
hábitos detestáveis dos membros da Guilda, dos Tleilaxu e dos
gholas.
Virando-se para o ghola, Paul perguntou:
– Hayt, esse é seu único nome?
Um sorriso sereno espalhou-se pelas feições morenas do ghola.
Os olhos metálicos se ergueram, concentraram-se em Paul, mas
conservaram seu olhar fixo e mecânico.
– É assim que me chamam, milorde: Hayt.
Em seu postigo às escuras, Alia estremeceu. Era a voz de Idaho,
um timbre tão preciso que ela o sentiu impresso em suas células.
– Com sua licença, milorde – acrescentou o ghola –, gostaria de
dizer que sua voz me agrada. É um sinal, dizem os Bene Tleilax, de
que já ouvi sua voz... antes.
– Mas você não tem certeza – disse Paul.
– Nada sei ao certo de meu passado, milorde. Explicaram-me
que não há como eu me lembrar de minha antiga vida. De antes,
só o que resta é o padrão estabelecido pelos genes. Contudo,
existem nichos nos quais coisas que antes me eram familiares
podem se encaixar. Vozes, lugares, pratos, rostos, sons, atos...
uma espada em minha mão, os controles de um tóptero...
Reparando com que atenção os membros da Guilda
acompanhavam aquele diálogo, Paul perguntou:
– Você entende que é um presente?
– Foi o que me explicaram, milorde.
Paul recostou-se, com as mãos pousadas sobre os braços do
trono.
Que dívida tenho eu com o corpo de Duncan?, ele se perguntou.
O homem morreu salvando minha vida. Mas este não é Idaho, isto é
um ghola. Contudo, ali estavam o corpo e a mente que ensinaram
Paul a pilotar um tóptero como se as asas brotassem de suas
próprias espáduas. Paul sabia que não poderia segurar uma
espada sem confiar na educação rígida que Idaho lhe dera. Um
ghola. Era a carne repleta de impressões falsas, facilmente mal
interpretadas. As antigas associações persistiriam. Duncan
Idaho. Não era tanto uma máscara usada pelo ghola, e sim um
traje largo e dissimulador de personalidade que se movia de uma
maneira diferente de fosse lá o que os Tleilaxu haviam escondido
ali.
– Como é que você poderia nos servir? – perguntou Paul.
– De todas as maneiras que milorde desejar e minhas
habilidades permitirem.
Alia, assistindo a tudo de seu posto de observação privilegiado,
comoveu-se com aquele ar de modéstia do ghola. Não detectou
fingimento. O novo Duncan Idaho emitia um brilho
definitivamente inocente. O original tinha sido um homem
mundano, irresponsável. Mas haviam expurgado tudo isso
daquele corpo. Era uma superfície imaculada sobre a qual os
Tleilaxu haviam escrito... o quê?
Foi então que percebeu os perigos ocultos naquele presente. A
coisa era tleilaxu. Era perturbadora a desinibição que os Tleilaxu
demonstravam em suas criações. Era possível que a curiosidade
desenfreada orientasse seus atos. Vangloriavam-se de conseguir
fazer qualquer coisa com a matéria-prima humana adequada:
santos ou demônios. Vendiam Mentats assassinos. Haviam
produzido um médico assassino, sobrepujando, para tanto, as
inibições da Escola Suk contra tomar uma vida humana. Entre
seus artigos havia lacaios voluntários, brinquedos sexuais
adaptáveis a todos os caprichos, soldados, generais, filósofos, até
mesmo um ocasional moralista.
Paul se mexeu e olhou para Edric.
– Como este presente foi treinado? – perguntou.
– Com sua licença, milorde – respondeu Edric –, os Tleilaxu
acharam interessante treinar este ghola como Mentat e filósofo
zen-sunita. Tentaram, desse modo, ampliar suas habilidades com
a espada.
– Tiveram êxito?
– Não sei, milorde.
Paul ponderou a resposta. O sentido para a verdade lhe dizia
que Edric acreditava sinceramente que o ghola era Idaho. Mas
não era só isso. As águas do Tempo que aquele Piloto oracular
atravessava sugeriam riscos sem revelá-los. Hayt. O nome tleilaxu
denunciava o perigo. Paul viu-se tentado a rejeitar o presente. E,
mesmo ciente da tentação, ele sabia que não poderia escolher
aquele caminho. Aquele corpo cobrava certas dívidas da Casa
Atreides – um fato bem conhecido pelo inimigo.
– Filósofo zen-sunita – Paul refletiu, olhando mais uma vez para
o ghola. – Já examinou sua função e seus motivos?
– Encaro meus serviços com humildade, sire. Minha mente foi
purificada, está livre dos imperativos de meu passado humano.
– Prefere que o chamemos de Hayt ou Duncan Idaho?
– Milorde pode me chamar do que quiser, pois não sou um
nome.
– Mas você gosta do nome Duncan Idaho?
– Creio que era meu nome, sire. Encaixa-se dentro de mim.
Mas... traz à tona reações curiosas. O nome de alguém, penso eu,
deve trazer consigo muitas coisas agradáveis e outras tantas
desagradáveis.
– O que é que mais lhe agrada? – Paul perguntou.
Inesperadamente, o ghola gargalhou e disse:
– Procurar nas pessoas sinais que revelam meu antigo eu.
– Vê algum sinal aqui?
– Ah, sim, milorde. Seu homem ali, Stilgar, está entre
desconfiado e admirado. Ele era amigo de meu antigo eu, mas o
corpo deste ghola o repele. E milorde admirava o homem que fui...
e confiava nele.
– Mente purificada – disse Paul. – Como uma mente purificada
pode se sujeitar à servidão?
– Servidão, milorde? A mente purificada toma decisões diante
de incógnitas, sem causa e efeito. Isso é servidão?
Paul franziu o cenho. Era um ditado zen-sunita, enigmático,
apropriado – imerso num credo que negava a função objetiva de
toda a atividade mental. Sem causa e efeito! Esses raciocínios
escandalizavam a mente. Incógnitas? Havia incógnitas em todas
as decisões, até mesmo na visão oracular.
– Preferiria que o chamássemos Duncan Idaho? – Paul
perguntou.
– Temos nossas diferenças, milorde. Escolha um nome para
mim.
– Fique com seu nome tleilaxu – disse Paul. – Hayt: eis aí um
nome que inspira cautela.
Hayt fez uma reverência e deu um passo para trás.
Alia se perguntou: Como é que ele sabia que a entrevista havia
terminado? Eu sabia porque conheço meu irmão. Mas não havia
um sinal que um estranho pudesse interpretar. O Duncan Idaho
dentro dele sabia?
Paul virou-se para o embaixador e disse:
– Separamos aposentos para sua embaixada. É nosso desejo
consultá-lo em particular tão logo se apresente a oportunidade.
Mandaremos chamá-lo. Permita-nos dar-lhe mais uma notícia,
antes que a receba de uma fonte duvidosa, de que uma Reverenda
Madre da Irmandade, Gaius Helen Mohiam, foi removida do
paquete que o trouxe aqui. Nós demos a ordem. A presença dela
em sua nave será um dos assuntos de nossas conversas.
Paul dispensou o emissário com um aceno da mão esquerda.
– Hayt, fique aqui.
Os criados do embaixador recuaram, rebocando o tanque.
Edric tornou-se um movimento laranja no gás laranja – olhos, uma
boca, membros a acenar de mansinho.
Paul esperou o último membro da Guilda partir e as portas
enormes se fecharem atrás deles.
Está feito, Paul pensou. Aceitei o ghola. A criação dos Tleilaxu
era uma isca, sem dúvida alguma. Era muito provável que a bruxa
velha da Reverenda Madre desempenhasse o mesmo papel. Mas
era o momento do tarô que ele previra numa visão anterior. O
maldito tarô! Turvava as águas do Tempo de tal maneira que o
presciente acabava fazendo força para detectar momentos que
ocorreriam dali a uma hora. Muitos peixes mordiam a isca e
escapavam, ele lembrou a si mesmo. E o tarô trabalhava tanto a
seu favor quanto contra. O que ele não enxergava, talvez outras
pessoas tampouco detectassem.
O ghola permaneceu ali, com a cabeça inclinada para o lado, à
espera.
Stilgar cruzou os degraus, escondeu o ghola dos olhos de Paul.
Em chakobsa, a língua de caça de seus dias de sietch, Stilgar
disse:
– Aquela criatura dentro do tanque me dá arrepios, sire, mas
esse presente! Mande-o embora!
No mesmo idioma, Paul explicou:
– Não posso.
– Idaho está morto – argumentou Stilgar. – Esse aí não é Idaho.
Deixe-me tomar a água dele para a tribo.
– O ghola é problema meu, Stil. Seu problema é nossa
prisioneira. Quero a Reverenda Madre vigiada com todo o
cuidado pelos homens que treinei para resistir aos ardis da Voz.
– Não gosto disto, sire.
– Agirei com cautela, Stil. Cuide para que você também o faça.
– Muito bem, sire. – Stilgar desceu para o piso do salão, passou
perto de Hayt, farejou-o e saiu.
É possível detectar o mal pelo cheiro, pensou Paul. Stilgar
plantara o estandarte verde e preto dos Atreides em dezenas de
mundos, mas ainda era um fremen supersticioso, à prova de
qualquer sofisticação.
Paul examinou o presente.
– Duncan, Duncan – murmurou. – O que fizeram com você?
– Deram-me a vida, milorde – disse Hayt.
– Mas por que foi treinado e oferecido a nós? – Paul perguntou.
Hayt mordeu os lábios e, em seguida:
– Querem que eu o destrua.
A franqueza da declaração abalou Paul. Mas, até aí, de que
outra maneira um Mentat zen-sunita responderia? Mesmo sendo
um ghola, um Mentat não poderia dizer menos que a verdade,
principalmente se motivada pela serenidade interior zen-sunita.
Era um computador humano, a mente e o sistema nervoso
adaptados às tarefas relegadas tempos atrás a detestáveis
aparelhos mecânicos. Condicioná-lo também como zen-sunita
implicava uma dose dupla de honestidade... a menos que os
Tleilaxu tivessem embutido algo ainda mais estranho naquele
corpo.
Por exemplo, por que os olhos mecânicos? Os Tleilaxu
vangloriavam-se de que seus olhos metálicos eram melhores que
os originais. Estranho, portanto, que um número maior de
Tleilaxu não os usasse por vontade própria.
Paul olhou para o postigo de Alia lá em cima, desejou que ela
estivesse ali, que o aconselhasse, que lhe fizesse recomendações
imaculadas por sentimentos de responsabilidade e obrigação.
Mais uma vez, ele olhou para o ghola. Não era um presente
frívolo. Fornecia respostas honestas para perguntas perigosas.
Não faz diferença eu saber que se trata de uma arma a ser usada
contra mim, pensou Paul.
– O que devo fazer para me proteger de você? – Paul perguntou.
Falou diretamente, nada de plural majestático, e sim uma
pergunta que ele poderia ter feito ao velho Duncan Idaho.
– Mande-me embora, milorde.
Paul balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Como é que vai me destruir?
Hayt olhou para os guardas, que haviam se aproximado de Paul
depois que Stilgar partira. Ele se virou, percorreu o salão com o
olhar, voltou a fixar Paul com seus olhos metálicos e assentiu com
a cabeça.
– Neste lugar, um homem se afasta das pessoas – disse Hayt. –
Revela tamanho poder que só nos é possível contemplá-lo à
vontade se não esquecermos que todas as coisas têm fim. Os
poderes oraculares de milorde traçaram o curso que o trouxe a
este lugar?
Paul tamborilou os dedos nos braços do trono. O Mentat
buscava dados, mas a pergunta o transtornava.
– Cheguei a esta posição tomando decisões enérgicas... nem
sempre usando minhas outras... habilidades.
– Decisões enérgicas – disse Hayt. – Elas temperam a vida de
um homem. É possível tirar a têmpera de um metal fino
aquecendo-o e deixando-o esfriar sem banhá-lo em água.
– Está tentando me distrair com essa conversa fiada zen-
sunita? – Paul perguntou.
– O zen-sunita tem outras vias para explorar, sire, além de
distração e demonstração.
Paul umedeceu os lábios com a língua, inspirou fundo, colocou
seus próprios pensamentos na posição de contrapeso dos
Mentats. Respostas negativas surgiram ao redor dele. Ninguém
esperava que ele saísse correndo atrás do ghola a ponto de
abandonar outros deveres. Não, não era isso. Por que um Mentat
zen-sunita? Filosofia... palavras... contemplação... busca interior...
Percebeu o ponto fraco dos dados a sua disposição.
– Precisamos de mais dados – murmurou.
– Os fatos de que um Mentat precisa não grudam por acaso em
alguém, como o pólen que suas roupas recolhem quando você
atravessa um campo florido – disse Hayt. – Escolhe-se com
cuidado o pólen, que será examinado sob grande ampliação.
– Precisa me ensinar esse jeito zen-sunita com a retórica – disse
Paul.
Os olhos metálicos cintilaram na direção dele por um instante,
e então:
– Milorde, talvez fosse essa a intenção.
Enfraquecer minha determinação com palavras e ideias?, Paul
se perguntou.
– As ideias são mais temíveis quando se tornam atos – disse
Paul.
– Mande-me embora, sire – sugeriu Hayt, e foi com a voz de
Duncan Idaho, tomada de preocupação pelo “jovem mestre”.
Paul sentiu-se aprisionado por aquela voz. Não podia mandar
aquela voz embora, mesmo que partisse de um ghola.
– Você fica, e nós dois seremos cautelosos.
Hayt, submisso, fez uma reverência.
Paul olhou para o postigo lá em cima, implorando com os olhos
para que Alia tirasse aquele presente das mãos dele e deslindasse
seus segredos. Os gholas eram fantasmas para assustar crianças.
Nunca imaginara que conheceria um. Para conhecer aquele, ele
tinha de se colocar acima de toda a compaixão... e não sabia ao
certo se era capaz de fazê-lo. Duncan... Duncan... Onde estava
Idaho naquele corpo feito sob medida? Não era carne... era um
sudário em forma de carne! Idaho jazia morto para todo o sempre
no chão de uma caverna arrakina. Seu fantasma observava com
olhos de metal. Dois seres se apresentavam lado a lado naquele
corpo redivivo. Um deles era uma ameaça que escondia sua força
e sua natureza atrás de véus ímpares.
Fechando os olhos, Paul deixou visões antigas passar pela
peneira de sua percepção. Notou os espíritos do amor e do ódio
que ali jorravam num mar agitado onde nenhum rochedo se
erguia acima do caos. Nenhum lugar de onde se pudesse observar
o turbilhão.
Por que nenhuma visão até hoje me mostrou este novo Duncan
Idaho?, ele se perguntou. O que escondia o Tempo de um oráculo?
Outros oráculos, obviamente.
Paul abriu os olhos e perguntou:
– Hayt, você tem o poder da presciência?
– Não, milorde.
A sinceridade falava com aquela voz. Naturalmente, era
possível que o ghola desconhecesse ter a habilidade. Mas isso
atrapalharia seu funcionamento como Mentat. Qual era o
desígnio oculto?
Visões antigas se ergueram ao redor de Paul. Ele teria de
escolher o caminho terrível? O Tempo distorcido fazia alusão ao
ghola naquele futuro hediondo. Aquele caminho iria se fechar
sobre ele não importava o que fizesse?
Desvencilhe-se... desvencilhe-se... desvencilhe-se...
O pensamento repicava em sua mente.
Em seu lugar logo acima de Paul, Alia, sentada, segurava o
queixo na mão esquerda e olhava para o ghola lá embaixo. O tal
Hayt emanava uma atração magnética que chegava até ela. A
restauração tleilaxu dera-lhe juventude, uma veemência inocente
que a seduzia. Ela compreendera o pedido mudo de Paul. Quando
os oráculos falhavam, recorria-se a espiões de verdade e poderes
físicos. Mas ela questionava sua própria ânsia de aceitar aquele
desafio. Sentia um desejo inegável de se ver ao lado daquele novo
homem, talvez tocá-lo.
Ele é um perigo para nós dois, pensou.
O mal da verdade é o excesso de análise.
– Antigo ditado fremen

– Reverenda Madre, arrepia-me vê-la nestas circunstâncias –


disse Irulan.
Ela mal havia atravessado a porta da cela e já avaliava os
diversos atributos do recinto à moda das Bene Gesserit. Era um
cubo escavado por radiofresas na rocha de veios castanhos sob o
Forte de Paul. Tinha por mobília uma frágil cadeira de vime, ora
ocupada pela Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, um catre
com uma capa marrom, sobre a qual estavam espalhadas todas as
cartas do novo Tarô de Duna, uma torneira d’água dotada de
registro logo acima de uma pia recicladora, uma privada fremen
com vedação de umidade. Tudo era parco, primitivo. Uma luz
amarela vinha dos luciglobos fixos e gradeados nos quatro cantos
do teto.
– Mandou avisar lady Jéssica? – a Reverenda Madre perguntou.
– Sim, mas não espero que ela levante um dedo contra seu
primogênito – respondeu Irulan.
Olhou para as cartas. Falavam dos poderosos que davam as
costas aos suplicantes. A carta do Grande Verme jazia sob o Areal
Desolado. Aconselhava-se paciência. Era preciso o tarô para ver
aquilo?, ela se perguntou.
Um guarda do lado de fora vigiava as duas através de uma
janela de metavidro na porta. Irulan sabia que haveria outras
pessoas monitorando aquele encontro. Ela havia pensado e
planejado bastante antes de se atrever a aparecer ali. Mas
manter-se afastada também teria sido arriscado.
A Reverenda Madre andara se dedicando à meditação prajna
intercalada com consultas ao tarô. Apesar da sensação de que
nunca deixaria Arrakis viva, ela conseguira se acalmar um pouco
com aquilo. Por mais ínfimos que fossem os poderes oraculares de
alguém, a água turva ainda era água turva. E sempre havia a
Litania contra o Medo.
Ela ainda tinha de assimilar as implicações dos atos que a
haviam atirado naquela cela. Sua mente remoía suspeitas
tenebrosas (e o tarô sugeria confirmações). Seria possível a
Guilda ter planejado aquilo?
Um Qizara de manto amarelo, a cabeça raspada fazendo as
vezes de turbante, olhos miúdos e de um azul total cravados no
rosto afável e redondo, a pele curtida pelo vento e o sol de
Arrakis, havia se instalado na ponte de recepção do paquete à
espera dela. Havia tirado os olhos de um cálice de café de
especiaria servido por um comissário de bordo obsequioso, a
estudado por um momento e depois baixado o cálice.
– É a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam?
Repetir aquelas palavras em sua mente era reviver o momento
na memória. Sua garganta se fechara num espasmo incontrolável
de medo. Como é que um dos asseclas do imperador soubera que
ela estava no paquete?
– Chegou a nosso conhecimento que a senhora estava a bordo –
falou o Qizara. – Esqueceu que não tem permissão para pôr os pés
no planeta santo?
– Não estou na superfície de Arrakis. Sou passageira de um
paquete da Guilda em espaço franco.
– Não existe isso de espaço franco, senhora.
Ela detectou um misto de ódio e profunda desconfiança no tom
de voz dele.
– Muad’Dib a tudo governa – ele falou.
– Arrakis não é meu destino – ela insistiu.
– Arrakis é o destino de todos.
Por um instante, ela receou que ele desatasse a recitar o
itinerário místico que os peregrinos seguiam (aquela mesma nave
transportava milhares deles).
Mas o Qizara tirou um amuleto dourado de sob o manto, beijou-
o, tocou a testa com ele, levou-o à orelha direita e pôs-se a escutar.
Sem demora, devolveu o amuleto a seu esconderijo.
– Mandaram-na recolher sua bagagem e me acompanhar até
Arrakis.
– Mas tenho compromissos em outro lugar!
Naquele momento, ela desconfiou de alguma perfídia da
Guilda... ou de que algum poder transcendental do imperador ou
da irmã dele a tivesse descoberto. Talvez o Piloto não ocultasse a
conspiração no fim das contas. A abominação, Alia, certamente
possuía as habilidades de uma Reverenda Madre das Bene
Gesserit. O que acontecia quando esses poderes se aliavam às
forças que operavam no irmão?
– Agora mesmo! – o Qizara gritou.
Todo o seu íntimo clamou contra a ideia de voltar a pisar
naquele planeta deserto e amaldiçoado. Ali, lady Jéssica havia se
voltado contra a Irmandade. Ali, elas perderam Paul Atreides, o
Kwisatz Haderach que tanto procuraram, geração após geração
de cruzamentos meticulosos.
– Agora mesmo – ela concordou.
– Temos pouco tempo – disse o Qizara. – Quando o imperador
manda, todos os seus súditos obedecem.
Então a ordem partira de Paul!
Ela cogitou protestar ao Navegador que comandava o paquete,
mas a futilidade do gesto a impediu. O que a Guilda poderia fazer?
– O imperador disse que eu morreria se pusesse os pés em
Duna – ela falou, fazendo um desesperado e derradeiro esforço. –
Você mesmo o disse. Estará me condenando se me levar lá para
baixo.
– Chega – ordenou o Qizara. – Já foi disposto.
Ela sabia que era assim que sempre se referiam às ordens
imperiais. Disposto! O soberano sagrado que tinha olhos capazes
de penetrar o futuro havia se pronunciado. O que tinha de ser,
seria. Ele já o previra, pois não?
Com a sensação mórbida de que fora apanhada em sua própria
teia, ela se virou para obedecer.
E a teia transformara-se numa cela que Irulan podia visitar. Viu
que Irulan tinha envelhecido um pouco desde que se encontraram
em Wallach IX. Novas rugas de preocupação irradiavam dos
cantos de seus olhos. Bem... chegara a hora de ver se aquela irmã
das Bene Gesserit cumpriria seus votos.
– Já tive aposentos piores – disse a Reverenda Madre. – O
imperador a mandou aqui? – E ela deixou que seus dedos se
movessem, como se estivessem agitados.
Irulan fez a leitura dos dedos em movimento, e seus próprios
dedos sinalizaram uma resposta enquanto ela falava:
– Não... Vim assim que fiquei sabendo que a senhora estava
aqui.
– O imperador não irá se zangar? – a Reverenda Madre
perguntou. Outra vez, seus dedos se moveram: imperativos,
prementes, inquisitivos.
– Que se zangue. A senhora foi minha professora na Irmandade,
e também foi a professora da mãe dele. Ele acha que vou dar as
costas à senhora como ela fez? – E a linguagem digital de Irulan
apresentou desculpas, implorou.
A Reverenda Madre suspirou. Aparentemente, era o suspiro de
uma prisioneira lamentando sua sina, mas, por dentro, pareceu-
lhe que a reação fosse uma crítica a Irulan. Era inútil nutrir a
esperança de que o precioso padrão genético do imperador
Atreides pudesse ser preservado por meio daquele instrumento.
Por mais bela que fosse, a princesa não era perfeita. Sob aquela
fina camada de atratividade sexual vivia uma megera chorona que
se interessava mais por palavras do que por ações. Mas Irulan
ainda era uma Bene Gesserit, e a Irmandade reservava certas
técnicas para aplicar a seus veículos mais fracos, como garantia
de que instruções vitais seriam cumpridas.
Por baixo da conversa fiada a respeito de um catre mais macio e
comida melhor, a Reverenda Madre trouxe à baila seu arsenal
persuasivo e deu suas ordens: era forçoso explorar a
possibilidade de endocruzamento entre o irmão e a irmã (Irulan
quase sucumbiu ao receber a ordem).
– Vocês têm de me dar uma chance! – imploraram os dedos de
Irulan.
– Você teve sua chance – contrapôs a Reverenda Madre.
E foi explícita em suas instruções: o imperador nunca se
zangava com a concubina? Seus poderes singulares certamente
faziam dele um homem solitário. Com quem ele poderia falar,
esperando ser compreendido? Com a irmã, obviamente. Ela
conhecia a mesma solidão. Era preciso explorar as profundezas
dessa comunhão. Era preciso criar oportunidades para reunir os
dois em particular. Arranjar encontros íntimos. Explorar a
possibilidade de eliminar a concubina. O pesar destruía as
barreiras tradicionais.
Irulan protestou. Se matassem Chani, a suspeita recairia
imediatamente sobre a princesa consorte. Além disso, havia
outros problemas. Chani havia passado a seguir estritamente
uma antiga dieta fremen que, ao que se supunha, promoveria a
fertilidade, e essa dieta eliminava todas as oportunidades de
administrar as drogas contraceptivas. A remoção dos
supressores deixaria Chani ainda mais fértil.
A Reverenda Madre ficou furiosa, e foi com dificuldade que
escondeu o fato enquanto seus dedos sinalizavam suas
indagações. Por que a informação não tinha sido transmitida no
começo da conversa? Como é que Irulan podia ser tão estúpida?
Se Chani concebesse e desse à luz um filho, o imperador
declararia o menino seu herdeiro!
Irulan protestou que entendia os riscos, mas talvez não se
perdessem totalmente os genes.
Maldita estupidez!, vociferou a Reverenda Madre. Quem havia
de saber quais supressões e complicações genéticas a estirpe
fremen selvagem de Chani poderia introduzir? Era forçoso que a
Irmandade tivesse somente a linhagem pura! E um herdeiro
acabaria renovando as ambições de Paul, incitando-o a tentar
novamente consolidar seu Império. A conspiração não poderia
arcar com tamanho contratempo.
Defensivamente, Irulan quis saber como ela poderia ter
impedido Chani de tentar a tal dieta.
Mas a Reverenda Madre não queria ouvir desculpas. Irulan
acabara de receber instruções explícitas para enfrentar essa nova
ameaça. Se Chani concebesse, era preciso introduzir um abortivo
em sua comida ou bebida. Ou então seria necessário matá-la. Era
forçoso evitar a todo custo um herdeiro do trono com tal
proveniência.
Um abortivo seria tão perigoso quanto um ataque franco à
concubina, objetou Irulan. Ela estremecia só de cogitar a tentativa
de matar Chani.
Era o perigo que impedia Irulan?, quis saber a Reverenda
Madre, e sua linguagem digital transmitiu profundo desprezo.
Zangada, Irulan sinalizou que conhecia seu valor como agente
infiltrada na família real. A conspiração queria desperdiçar uma
agente tão valiosa? Deveriam jogá-la fora? De que outro modo
poderiam vigiar tão de perto o imperador? Ou teriam introduzido
um outro agente na família? Era isso? Ela deveria agora ser usada
como uma última medida desesperada?
Numa guerra, todos os valores adquiriam novas relações,
contrapôs a Reverenda Madre. Para elas, o maior perigo seria a
Casa Atreides se consolidar como linhagem imperial. A
Irmandade não podia correr tamanho risco. Ia muito além de
colocar em risco o padrão genético dos Atreides. Se Paul firmasse
sua família no trono, os programas das Bene Gesserit certamente
seriam interrompidos durante séculos.
Irulan entendia o argumento, mas não conseguia fugir da ideia
de que haviam tomado a decisão de sacrificar a princesa consorte
por algo de grande valor. Havia alguma coisa que ela devesse
saber a respeito do ghola?, arriscou-se Irulan.
A Reverenda Madre quis saber se Irulan pensava que a
Irmandade era formada por idiotas. Quando é que tinham
deixado de dizer a Irulan tudo que ela deveria saber?
Não era uma resposta, e sim uma admissão de que havia algo a
esconder, percebeu Irulan. Dizia-lhe que não lhe contariam mais
do que ela precisava saber.
Como poderiam ter certeza de que o ghola seria capaz de
destruir o imperador?, perguntou Irulan.
Ela poderia muito bem ter perguntado se o mélange era capaz
de destruir alguma coisa, a Reverenda Madre contrapôs.
Foi uma reprimenda com uma mensagem sutil, Irulan
percebeu. O “chicote que ensina” das Bene Gesserit a informava
de que ela deveria ter compreendido tempos antes aquela
semelhança entre a especiaria e o ghola. O mélange era valioso,
mas tinha um preço: o vício. Aumentava a vida em anos – décadas,
no caso de algumas pessoas –, mas ainda era só mais uma
maneira de morrer.
O ghola era uma coisa de valor mortífero.
A maneira óbvia de impedir um nascimento indesejado era
matar a provável mãe antes da concepção, sinalizou a Reverenda
Madre, voltando à carga.
Claro, Irulan pensou. Se decidir gastar uma certa quantia,
obtenha o máximo que puder com ela.
Os olhos da Reverenda Madre, obscurecidos pelo brilho azul do
vício do mélange, ergueram-se para fitar Irulan, calculando,
aguardando, observando minúcias.
Ela me decifra claramente, Irulan pensou, consternada. Ela me
treinou e me observou enquanto me treinava. Sabe que
compreendo a decisão que foi tomada aqui. Ela só observa agora
para ver como eu vou aceitar essa informação. Bem, vou aceitá-la
como Bene Gesserit e princesa.
Irulan deu um jeito de sorrir, empertigou-se, pensou no trecho
introdutório e evocativo da Litania contra o Medo:
“Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena
morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo...”
Retornada a calma, ela pensou: Que me sacrifiquem. Mostrarei
a eles quanto vale uma princesa. Talvez eu consiga mais do que
esperavam.
Depois de mais algumas vocalizações sem sentido para
arrematar a entrevista, Irulan partiu.
Quando ela se foi, a Reverenda Madre voltou a suas cartas de
tarô, dispondo-as no padrão do redemoinho de fogo.
Imediatamente, tirou o Kwisatz Haderach dos Arcanos Maiores, e
a carta veio acompanhada do Oito de Naves: a sibila ludibriada e
traída. Não eram cartas de bom agouro: falavam de recursos
secretos para seus inimigos.
Ela deu as costas às cartas e sentou-se, agitada, imaginando se
Irulan não viria ainda a destruí-las.
Os Fremen a veem como uma Personificação da
Terra, uma semideusa especialmente
encarregada de proteger as tribos com seus
poderes ligados à violência. É a Reverenda Madre
de suas Reverendas Madres. Para os peregrinos
que a procuram, pedindo que lhes devolva a
virilidade ou que faça frutificar os estéreis, ela é
uma espécie de Antimentat. Alimenta-se da prova
de que a “análise” tem limites. Ela representa a
tensão suprema. É a meretriz-virgem: espirituosa,
vulgar, cruel, de caprichos tão destrutivos quanto
uma tempestade de Coriolis.
– Santa Alia da Faca, como consta do “Relatório Irulan”

Alia era a personificação de uma sentinela de manto preto


sobre a plataforma sul de seu templo, o Fano do Oráculo que os
fremen de Paul haviam erigido para ela de encontro à muralha da
fortaleza de Muad’Dib.
Ela detestava essa parte de sua vida, mas não sabia como
escapar do templo sem causar a destruição de todos eles. Os
peregrinos (malditos!) tornavam-se mais numerosos a cada dia. O
pórtico inferior do templo estava repleto deles. Os vendedores
ambulantes andavam entre os peregrinos, e havia reles
feiticeiros, arúspices, adivinhos, todos exercendo suas profissões
numa imitação lamentável de Paul Muad’Dib e sua irmã.
Alia viu que as embalagens verdes e vermelhas do novo Tarô de
Duna se destacavam entre as mercadorias dos ambulantes. O
tarô a intrigava. Quem alimentava o mercado arrakino com aquele
expediente? Por que o tarô ganhara repentina importância
particularmente naquele momento e naquele lugar? Seria para
turvar o Tempo? O vício da especiaria sempre trazia consigo uma
certa sensibilidade ao vaticínio. Os fremen eram sabidamente
clarividentes. Seria acidental que tantos deles se dedicassem a
augúrios e presságios ali e naquele momento? Ela decidiu
procurar uma resposta na primeira oportunidade.
Entrava um vento de sudeste, um restinho de vento mitigado
pela escarpa da Muralha-Escudo que assomava bem alto
naqueles rincões setentrionais. A borda brilhava na cor laranja
através de uma fina névoa de poeira, iluminada por baixo pelo sol
de fim de tarde. Era um vento quente que lhe roçava a face e a
deixava com saudades da areia, da segurança dos espaços
abertos.
Os últimos remanescentes da turba daquele dia começaram a
descer os degraus largos de nefrita do pórtico inferior, sozinhos
ou em grupos, e alguns se detinham para olhar as lembrancinhas
e os amuletos sagrados nas araras dos ambulantes, outros para
consultar um último e reles feiticeiro. Peregrinos, suplicantes,
citadinos, fremen, vendedores que davam o dia por encerrado:
formavam uma fila irregular que se desfazia ao entrar na avenida
delimitada por palmeiras que levava ao centro da cidade.
Os olhos de Alia identificaram os fremen, reparando nas
expressões petrificadas de admiração supersticiosa em seus
rostos, a maneira meio selvagem com que guardavam distância
das outras pessoas. Eles eram sua força e seu risco. Ainda
capturavam os vermes gigantes para lhes servir de meio de
transporte, por lazer e para os sacrifícios. Ressentiam-se dos
peregrinos de fora do planeta, mal suportavam os citadinos dos
graben e das caldeiras, detestavam o cinismo que viam nos
ambulantes. Ninguém acotovelava os fremen bravios, nem
mesmo numa turba como aquela que apinhava o caminho para o
Fano de Alia. Nada de esfaqueamentos nos Recintos Sagrados,
mas já haviam encontrado cadáveres... posteriormente.
A chusma que partia levantara a poeira. O cheiro de pederneira
chegou às narinas de Alia, acendeu mais uma pontada de saudade
do bled aberto. Ela notou que sua percepção do passado tinha se
aguçado com a chegada do ghola. Haviam sido tão prazerosos
aqueles dias sem entraves, antes de seu irmão subir ao trono –
tempo para gracejar, tempo para as pequenas coisas, tempo para
desfrutar uma manhã fria ou um pôr do sol, tempo... tempo...
tempo... Até mesmo o perigo era bom naqueles dias – um perigo
honesto e de origem conhecida. Não havia então a necessidade de
forçar os limites da presciência, de bisbilhotar através de véus
tenebrosos vislumbres frustrantes do futuro.
Os fremen bravios diziam bem: “Quatro coisas impossíveis de
esconder: o amor, a fumaça, um pilar de fogo e um homem
andando pelo bled aberto”.
Com uma sensação repentina de asco, Alia retirou-se da
plataforma para as sombras do Fano, percorreu a passos largos a
sacada que, lá de cima, olhava para a opalescência cintilante de
seu Salão dos Oráculos. A areia nos ladrilhos rilhava sob seus pés.
Os suplicantes sempre arrastavam a areia para os Aposentos
Sagrados! Ela ignorou os criados, guardas, postulantes, os
onipresentes sacerdotes-bajuladores do Qizarate, atirou-se na
passagem em caracol que subia até seus aposentos particulares.
Ali, em meio a divãs, tapetes espessos, tapeçarias e lembranças
do deserto, ela dispensou as amazonas fremen que Stilgar havia
designado como suas guardiãs pessoais. Cães de guarda, isso sim!
Tão logo partiram, aos resmungos e protestos, com mais medo de
Alia que de Stilgar, ela se despiu, deixando apenas a bainha com a
dagacris na tira de couro que trazia ao pescoço, e foi largando as
roupas atrás de si ao se dirigir para o banho.
Sabia que ele estava por perto – aquele homem obscuro que ela
pressentia em seu futuro, mas não enxergava. Irritava-a o fato de
nenhum poder presciente conseguir detalhar aquele vulto. Era
possível pressenti-lo somente em momentos inesperados,
quando ela sondava a vida de outras pessoas. Ou deparava com
um contorno esfumaçado na solidão das trevas quando a
inocência se aliava ao desejo. Ele esperava logo depois de um
horizonte instável, e ela tinha a impressão de que, se obrigasse
seus talentos a atingir uma intensidade inusitada, talvez o
enxergasse. Ele estava lá, um assédio constante à percepção de
Alia: feroz, perigoso, imoral.
O ar morno e úmido a envolveu dentro da banheira. Ali estava
um hábito que ela aprendera com as entidades-lembranças das
incontáveis Reverendas Madres que foram engastadas em sua
consciência feito pérolas num colar fulgurante. A água – a água
morna de uma banheira funda – acolheu-lhe a pele quando Alia
entrou nela. Ladrilhos verdes com desenhos de peixes vermelhos,
arranjados num padrão marinho, circundavam a água. Tamanha
abundância de água ocupava aquele espaço que um fremen de
outrora teria se sentido ultrajado ao vê-la usada meramente para
lavar o corpo humano.
Ele estava por perto.
Era a luxúria em tensão com a castidade, ela pensou. Seu corpo
desejava um homem. O sexo não guardava nenhum mistério
fortuito para uma Reverenda Madre que havia presidido as orgias
do sietch. A consciência tau de seus eus-alheios poderia fornecer
todos os pormenores que sua curiosidade quisesse. Aquela
sensação de proximidade não poderia ser outra coisa que não a
carne a ansiar pela carne.
A necessidade de tomar uma atitude digladiou-se com a
letargia na água morna.
De repente, Alia saiu do banho, ainda pingando água, e andou,
molhada e nua, até a câmara de treinamento contígua a seu
quarto de dormir. A câmara oblonga e cheia de claraboias
encerrava os instrumentos grosseiros e sutis que ajustavam a
iniciada Bene Gesserit à percepção/preparação física e mental
suprema. Havia amplificadores mnemônicos, serrilhadores
digitais provenientes de Ix para fortalecer e sensibilizar os dedos
das mãos e dos pés, sintetizadores de odores, sensibilizadores
táteis, campos de gradiente de temperatura, reveladores de
padrões para não deixá-la cair em hábitos detectáveis,
treinadores de resposta das ondas alfa, sincropiscadores para
ajustar as habilidades em condições de
luz/trevas/espectroscopia...
Em letras de dez centímetros ao longo da parede, inscritas por
suas próprias mãos com tinta mnemônica, estava o lembrete
fundamental do Credo das Bene Gesserit:
“Antes de nós, todos os métodos de aprendizagem eram
maculados pelos instintos. Aprendemos a aprender. Antes de
nós, os pesquisadores dominados pelo instinto tinham uma
capacidade de concentração limitada, geralmente não mais que
uma vida. Nunca lhes ocorreu fazer projetos que se estendessem
a cinquenta vidas ou mais. O conceito de treinamento
muscular/neural completo não havia chegado a sua percepção.”
Ao entrar na sala de treinamento, Alia flagrou seu próprio
reflexo multiplicado milhares de vezes nos prismas de cristal de
um espelho de esgrima que pendia do coração de um estafermo.
Viu a espada longa que a aguardava no suporte, encostada ao
alvo, e pensou: Sim! Vou me exercitar até ficar exausta – exaurir o
corpo e esvaziar a mente.
A espada pareceu-lhe perfeita em sua mão. Ela tirou a dagacris
da bainha que trazia ao pescoço, segurou-a com a sinistra, bateu
no botão de ativação com a ponta da espada. A resistência
ganhou vida quando a aura do escudo-alvo se formou, repelindo
com vagar e firmeza sua arma.
Os prismas cintilaram. O alvo passou para a esquerda de Alia.
Ela o seguiu com a ponta da espada longa, pensando, como
fizera muitas vezes, que a coisa por pouco não parecia viva. Mas
eram só servomotores e circuitos refletores complexos,
projetados para atrair os olhos e desviá-los do perigo, para
confundir e ensinar. Era um instrumento equipado para reagir
como ela reagia, um antieu que se movia como ela se movia,
compensando a luz em seus prismas, mudando seu alvo,
oferecendo sua contra-arma.
Várias lâminas pareceram brotar dos prismas para atacá-la,
mas só uma era real. Ela se defendeu da verdadeira com um
contra, atravessou a resistência do escudo com a espada e tocou o
alvo. Um marcador se acendeu: uma luz vermelha e cintilante em
meio aos prismas... mais uma distração.
A coisa atacou outra vez, movendo-se agora à velocidade de
uma marca, só um pouco mais rápido que no início.
Ela aparou e, contrariando a cautela, pontuou com a dagacris.
Duas luzes brilharam nos prismas.
E, mais uma vez, a coisa ganhou velocidade, deslocando-se
sobre os rolamentos, deixando-se atrair feito ímã pelos
movimentos do corpo e pela ponta da espada de Alia.
Atacar – aparar – contra-atacar.
Atacar – aparar – contra-atacar...
Eram quatro as luzes acesas agora, e a coisa ia ficando mais
perigosa, movia-se mais rápido a cada luz, aumentava as áreas
confusas.
Cinco luzes.
O suor cintilava em sua pele nua. Ela agora existia num
universo de dimensões delineadas pela lâmina ameaçadora, o
alvo, os pés descalços contra o piso da sala de exercícios,
sentidos/nervos/músculos – um movimento em resposta a outro.
Atacar – aparar – contra-atacar.
Seis luzes... sete...
Oito!
Nunca tinha arriscado oito antes.
Num recesso de sua mente formou-se uma sensação de
urgência, um protesto contra tamanha insensatez. O instrumento
composto de alvo e prismas era incapaz de pensar, experimentar
a cautela ou o remorso. E portava uma espada de verdade.
Enfrentar menos que isso arruinaria o propósito do treinamento.
A espada que atacava era capaz de mutilar e matar. Mas os
melhores espadachins do Imperium nunca tinham enfrentado
mais de sete luzes.
Nove!
Alia experimentou uma sensação de exaltação suprema. A
arma que atacava e o alvo tornaram-se borrões em meio a outros
borrões. Pareceu-lhe que a espada em sua mão ganhara vida. Ela
era o antialvo. Não era ela quem movia a lâmina: a lâmina a movia.
Dez!
Onze!
Uma coisa passou feito raio perto de seu ombro, desacelerou
de encontro à aura do escudo que cercava o alvo, atravessou-o e
acionou o botão de desativação. As luzes se apagaram. Os
prismas e o alvo rodopiaram até parar.
Alia girou nos calcanhares, furiosa com a intromissão, mas sua
reação foi transformada em tensão ao reconhecer a habilidade
suprema de quem havia atirado aquela faca. O arremesso fora
calculado com uma precisão refinada: rápido o suficiente para
atravessar a zona do escudo, mas não rápido demais para ser
defletido.
E acertara um ponto milimétrico no interior de um alvo com
onze luzes acesas.
Alia viu suas próprias emoções e tensões perderem o ímpeto,
quase como ocorrera com o estafermo. Não ficou nem um pouco
surpresa ao ver quem havia arremessado a faca.
Paul estava ali, na sala de treinamento, parado junto à porta,
com Stilgar três passos atrás dele. Os olhos de seu irmão estavam
semicerrados de raiva.
Alia, ao lembrar que estava nua, pensou em se cobrir e achou a
ideia engraçada. Era impossível apagar o que os olhos já tinham
visto. Devagar, ela recolocou a dagacris na bainha que trazia ao
pescoço.
– Eu já devia saber – disse.
– Imagino que saiba muito bem o perigo que correu – falou Paul.
Ele se demorou, interpretando as reações do rosto e do corpo
da irmã: o rubor do exercício que corava sua pele, a fartura úmida
dos lábios. Havia nela uma feminilidade inquietante que ele nunca
havia cogitado em sua irmã. Achou estranho que fosse possível
olhar para uma pessoa tão próxima dele e não mais reconhecê-la
no quadro identitário que parecera tão estável e familiar.
– Isso foi loucura – Stilgar falou asperamente, colocando-se ao
lado de Paul.
As palavras saíram zangadas, mas Alia ouviu o espanto na voz
dele, viu-o em seus olhos.
– Onze luzes – disse Paul, balançando a cabeça.
– Eu teria chegado a doze se você não tivesse interferido. – Ela
começou a empalidecer sob o olhar firme e minucioso do irmão e
acrescentou: – E para que servem tantas luzes nessas malditas
coisas se não para tentarmos acendê-las?
– Cabe a uma Bene Gesserit indagar o motivo por trás de um
sistema aberto? – Paul perguntou.
– Imagino que você nunca tenha tentado mais de sete! – ela
disse, voltando a se zangar. A postura atenta do irmão a
incomodava.
– Só uma vez. Gurney Halleck me pegou na décima. O castigo
foi tão vergonhoso que nem vou contar o que ele fez. E, por falar
em vergonha...
– Da próxima vez, quem sabe vocês não peçam para ser
anunciados.
Ela passou por Paul e entrou no quarto, encontrou um manto
cinzento e folgado, enfiou-se dentro dele e começou a escovar os
cabelos diante de um espelho de parede. Sentia-se suada, triste,
uma espécie de tristeza pós-coito que a deixou com vontade de
tomar outro banho... e dormir.
– Por que estão aqui? – ela perguntou.
– Milorde – disse Stilgar. A estranha inflexão na voz dele fez
Alia se virar para encará-lo.
– Irulan sugeriu que viéssemos, por mais estranho que pareça –
Paul falou – Ela acredita, e as informações que Stil possui
parecem confirmar isso, que nossos inimigos estão prestes a
tentar seriamente se apo...
– Milorde! – disse Stilgar, com mais vigor na voz.
O irmão se virou, intrigado, mas Alia continuou a olhar para o
velho naib fremen. Havia algo nele que, naquele momento, não a
deixava esquecer que ele era um dos primitivos. Stilgar acreditava
num mundo sobrenatural e muito próximo, que lhe falava usando
uma língua simples e pagã, desfazendo todas as dúvidas. O
universo natural onde ele vivia era feroz, implacável e desprovido
da moralidade comum do Imperium.
– Sim, Stil – disse Paul. – Quer contar a ela por que estamos
aqui?
– Não é hora para discutir por que estamos aqui – Stilgar falou.
– Qual é o problema, Stil?
Stilgar continuava a fitar Alia.
– Sire, está cego?
Paul voltou a olhar para a irmã, e a inquietação começou a se
apoderar dele. Dentre todos os seus assistentes, somente Stilgar
se atrevia a falar com ele naquele tom, mas até mesmo Stilgar
escolhia a ocasião de acordo com a necessidade.
– Essa aí precisa de um homem! – Stilgar deixou escapar. –
Teremos problemas se ela não se casar, e logo.
Alia deu as costas aos dois, com o rosto repentinamente em
chamas. Como ele conseguiu me melindrar?, ela se perguntou. O
autocontrole das Bene Gesserit de nada servira para impedir sua
reação. Como Stilgar fizera aquilo? Ele não tinha o poder da Voz.
Ela se sentiu consternada e zangada.
– Escutem só o grande Stilgar! – Alia disse, ainda de costas para
eles, ciente do timbre rabugento em sua voz e incapaz de disfarçá-
lo. – Conselhos para as donzelas, de Stilgar, o fremen!
– É por amar vocês dois que tenho a obrigação de falar – Stilgar
continuou, com uma profunda dignidade em sua voz. – Não me
tornei chefe dos fremen fazendo vista grossa para o que motiva a
união de homens e mulheres. Não são necessários poderes
misteriosos para isso.
Paul ponderou o que Stilgar queria dizer, repassou o que
tinham visto ali e sua própria e incontestável reação masculina
diante da irmã. Sim, houvera um quê de lascívia em Alia, algo
impetuosamente devasso. O que a fizera entrar nua na sala de
exercícios? E colocar sua vida em risco daquela maneira estúpida!
Onze luzes nos prismas de esgrima! Aquele autômato
descerebrado surgiu enorme em sua mente, com todo o aspecto
de uma criatura horrenda e antiga. Possuir uma coisa como
aquela era lugar-comum em sua época, mas também trazia a
pecha da imoralidade dos antigos. No passado, haviam se deixado
guiar por uma inteligência artificial, cérebros computacionais. O
Jihad Butleriano acabara com aquilo, mas não com a aura de vício
aristocrático que cercava aquelas coisas.
Claro que Stilgar tinha razão. Era preciso encontrar um homem
para Alia.
– Cuidarei disso – falou Paul. – Alia e eu discutiremos esse
assunto mais tarde, em particular.
Alia deu meia-volta, concentrou-se em Paul. Sabendo como a
mente dele funcionava, ela percebeu que fora objeto de uma
decisão de Mentat, informaçõezinhas incontáveis juntando-se na
análise daquele computador humano. Havia nessa percepção um
quê de inexorável – um movimento igual ao dos planetas. Trazia
consigo uma parte da ordem do universo, inevitável e apavorante.
– Sire – disse Stilgar –, talvez nós...
– Agora não! – Paul gritou. – Temos outros problemas no
momento.
Ciente de que não se atrevia a tentar competir com o irmão em
questões de lógica, Alia pôs de lado os últimos instantes, à moda
das Bene Gesserit, e falou:
– Irulan os mandou?
Flagrou-se sentindo uma ameaça naquela ideia.
– Indiretamente – respondeu Paul. – As informações que ela
nos traz confirmam nossa suspeita de que a Guilda está prestes a
tentar se apoderar de um verme da areia.
– Vão tentar capturar um dos pequenos e começar o ciclo da
especiaria em algum outro planeta – disse Stilgar. – Significa que
encontraram um planeta que julgam adequado.
– Significa que tem cúmplices entre os fremen! – argumentou
Alia. – Nenhum estrangeiro conseguiria capturar um verme!
– Nem precisava mencionar – disse Stilgar.
– Precisava, sim – retrucou Alia. Ficou furiosa com tamanha
obtusidade. – Paul, sem dúvida você...
– A corrupção está começando – fez Paul. – Sabíamos disso já
há algum tempo. Mas eu nunca vi esse outro planeta, e isso me
incomoda. Se eles...
– Isso o incomoda? – Alia quis saber. – Quer dizer apenas que
estão usando Pilotos para obscurecer o lugar, da mesma maneira
que escondem seus santuários.
Stilgar abriu a boca e a fechou, sem dizer palavra. Tinha a
sensação avassaladora de que seus ídolos haviam admitido ter
uma fraqueza blasfema.
Paul, percebendo o desassossego de Stilgar, falou:
– Temos um problema imediato! Quero sua opinião, Alia. A
sugestão de Stilgar é ampliarmos as patrulhas no bled aberto e
reforçarmos a vigilância nas comunidades sietch. É bem possível
que avistemos um grupo de desembarque e evitemos a...
– Com um Piloto a conduzi-los? – indagou Alia.
– Estão mesmo desesperados, não? – Paul concordou. – É por
isso que estou aqui.
– O que eles viram e nós não? – Alia perguntou.
– Exatamente.
Alia concordou com a cabeça, lembrando-se do que havia
pensado a respeito do novo Tarô de Duna. Relatou rapidamente
seus receios.
– Estão nos cobrindo com uma manta – disse Paul.
– Com patrulhas adequadas – arriscou Stilgar –, pode ser que
impeçamos a...
– Não impediremos nada... para sempre – disse Alia.
Ela não gostava da impressão que lhe causava a maneira como a
mente de Stilgar funcionava agora. Ele havia reduzido seu
alcance, eliminado os fundamentos óbvios. Não era o Stilgar de
quem ela se lembrava.
– Temos de dar por certo que eles vão capturar um verme –
Paul falou. – Se vão conseguir começar o ciclo do mélange em
outro planeta é outra história. Vão precisar de mais do que um
verme.
Stilgar olhou para o irmão, depois para a irmã. Usando o
raciocínio ecológico que a vida no sietch havia enfiado em sua
cabeça, ele entendeu o que queriam dizer. Um verme capturado
só conseguiria sobreviver num pedacinho de Arrakis –
psamoplâncton, criadorezinhos e tudo mais. O problema da
Guilda era grande, mas não impossível de solucionar. Sua
incerteza crescente repousava numa outra área.
– Então suas visões não detectam o que a Guilda anda fazendo?
– perguntou.
– Maldição! – explodiu Paul.
Alia observou Stilgar, captando o espetáculo incidental e
selvagem de ideias que acontecia na mente dele. O homem estava
preso a um ecúleo de encantamento. Magia! Magia! Vislumbrar o
futuro era roubar o fogo aterrador de uma chama sagrada.
Encerrava o fascínio do perigo supremo, almas arriscadas e
perdidas. Trazia-se dos confins perigosos e informes uma coisa
que tinha forma e poder. Mas Stilgar começava a perceber outras
forças, talvez poderes superiores além daquele horizonte
desconhecido. Sua Bruxa Rainha e o Amigo Feiticeiro revelavam
fraquezas perigosas.
– Stilgar – Alia disse, lutando para segurá-lo –, você está num
vale entre duas dunas. Eu estou no topo. Minha vista alcança
aonde a sua não chega. E, entre outras coisas, vejo montanhas a
ocultar o que está ao longe.
– Existem coisas que se escondem de vocês – comentou Stilgar.
– Foi o que sempre disseram.
– Todo poder tem limites – disse Alia.
– E o perigo pode vir de trás das montanhas – disse Stilgar.
– Algo do gênero – Alia falou.
Stilgar fez que sim, com o olhar fixo no rosto de Paul.
– Mas seja o que for que sair de trás das montanhas terá de
atravessar as dunas.
O jogo mais perigoso do universo é governar
fundamentado em oráculos. Não nos
consideramos nem sábios nem valentes o
bastante para participar desse jogo. As medidas
pormenorizadas aqui para a regulamentação de
questões secundárias é o mais perto que nos
atrevemos a chegar das raias do governo. Para
nossos fins, tomamos emprestado uma definição
das Bene Gesserit e pensamos nos diversos
planetas como patrimônios genéticos, fontes de
ensinamento e de educadores, fontes de tudo que
é possível. Nosso objetivo não é governar, e sim
aproveitar esses patrimônios genéticos, aprender
e nos libertar de todas as restrições impostas pela
dependência e pelo governo.
– “A orgia como instrumento da arte de governar”, terceiro capítulo de A Guilda do
Piloto

– Foi ali que seu pai morreu? – Edric perguntou dentro de seu
tanque, usando um apontador laser para indicar um marcador em
forma de joia num dos mapas em relevo que adornavam uma das
paredes do salão de recepções de Paul.
– Ali fica o santuário onde repousa o crânio dele – disse Paul. –
Meu pai morreu prisioneiro numa fragata dos Harkonnen na pia
logo abaixo de nós.
– Ah, sim: lembro-me da história agora. Algo a ver com matar o
velho barão Harkonnen, seu inimigo mortal.
Torcendo para não revelar demais o pavor que recintos
pequenos como aquela sala lhe impingiam, Edric se revolveu no
gás laranja, dirigiu o olhar para Paul, que se sentava sozinho num
divã comprido, listado de cinza e preto.
– Minha irmã matou o barão pouco antes da Batalha de
Arrakina – disse Paul, com secura na voz e nos gestos.
E ele se perguntou por que o peixe-homem da Guilda reabria
antigas feridas naquele lugar e naquele momento.
O Piloto parecia travar uma batalha perdida para refrear sua
energia nervosa. Haviam desaparecido os movimentos lânguidos
de peixe do encontro anterior. Os olhinhos de Edric moviam-se
bruscamente daqui para ali, procurando e avaliando. O único
criado que o acompanhara estava deslocado, perto da fileira de
guardas que se alinhavam junto a uma das paredes menores, à
esquerda de Paul. O criado preocupava Paul: corpulento, de
pescoço largo, cara obtusa e sem expressão. O homem tinha
entrado no recinto empurrando o tanque de Edric sobre seu
campo de sustentação, com passos de estrangeiro e os braços
arqueados para fora.
Scytale, Edric o chamara. Scytale, um assistente.
A aparência do assistente alardeava estupidez, mas os olhos o
traíam. Riam de tudo o que viam.
– Sua concubina, pelo jeito, gostou da apresentação dos
Dançarinos Faciais – Edric comentou. – Agrada-me saber que
pude proporcionar essa pequena diversão. Gostei
particularmente da reação dela ao ver as próprias feições
reproduzidas simultaneamente pela trupe inteira.
– Não dizem que é bom tomar cuidado com os presentes dos
membros da Guilda? – Paul perguntou.
E pensou na apresentação lá fora, no Grande Átrio. Os
dançarinos haviam entrado fantasiados como as figuras do Tarô
de Duna, atirando-se de um lado e de outro em padrões
aparentemente aleatórios que passaram a formar redemoinhos
de fogo e antigos traçados proféticos. Daí vieram os soberanos:
um desfile de reis e imperadores, como as caras nas moedas,
formal e de contornos rígidos, mas curiosamente fluido. E os
gracejos: uma cópia do rosto e do corpo de Paul, Chani a se
repetir por todo o piso do Átrio, até mesmo Stilgar, que não parou
de resmungar nem de se arrepiar enquanto os demais davam
risada.
– Mas nossos presentes têm as melhores intenções – protestou
Edric.
– Até onde vai sua bondade? – Paul perguntou. – O ghola que
nos deu acredita que foi criado para nos destruir.
– Destruí-lo, sire? – Edric perguntou, todo meigo e atencioso. –
É possível destruir um deus?
Stilgar, que acabara de entrar e ouvir estas últimas palavras,
deteve-se, olhou ferozmente para os guardas. Estavam bem mais
distantes de Paul do que ele gostaria que estivessem. Irritado, fez
sinal para que se aproximassem.
– Está tudo bem, Stil – disse Paul, erguendo uma das mãos. – É
só uma discussão amigável. Por que não traz o tanque do
embaixador até aqui, para a ponta de meu divã?
Stilgar, ponderando a ordem, viu que isso colocaria o tanque do
Piloto entre Paul e o assistente corpulento, perto demais de Paul,
mas...
– Está tudo bem, Stil – Paul repetiu, fazendo com a mão o sinal
particular que transformava a ordem numa imposição.
Movendo-se com óbvia relutância, Stilgar empurrou o tanque
para mais perto de Paul. Não gostava do contato com o
recipiente, nem do aroma intenso de mélange que cercava a coisa.
Posicionou-se no canto do tanque, logo abaixo do dispositivo
orbital por onde o Piloto falava.
– Matar um deus – fez Paul. – Muito interessante. Mas quem
disse que sou um deus?
– Aqueles que o veneram – falou Edric, olhando incisivamente
para Stilgar.
– É nisso que acredita? – Paul perguntou.
– Aquilo no que acredito não tem importância, sire – respondeu
Edric. – No entanto, muitos observadores têm a impressão de que
milorde conspira para se tornar um deus. E pode-se perguntar se
isso é algo que um mortal consiga fazer... com segurança?
Paul estudou o membro da Guilda. Criatura repugnante, mas
perceptiva. Era uma pergunta que Paul se fizera várias vezes. Mas
ele tinha visto linhas alternativas de Tempo suficientes para
saber que havia possibilidades piores do que ele aceitar sua
própria divindade. Muito piores. Não eram, contudo, os caminhos
que um Piloto normalmente sondaria. Curioso. Por que fazer
aquela pergunta? O que Edric poderia esperar obter com
tamanha desfaçatez? Os pensamentos de Paul piscaram (a
sociedade dos Tleilaxu estaria por trás da manobra) – piscaram (a
recente vitória do Jihad em Sembou estaria relacionada à atitude
de Edric) – piscaram (vários princípios das Bene Gesserit se
revelavam ali) piscaram...
Um processo que envolvia milhares de informaçõezinhas
passou piscando por sua percepção computacional. Tomou-lhe,
talvez, três segundos.
– Um Piloto questiona as diretrizes da presciência? – Paul
perguntou, colocando Edric num terreno dos mais perigosos.
Aquilo transtornou o Piloto, mas ele disfarçou bem, saindo-se
com o que soou como um longo aforismo:
– Nenhum homem inteligente questiona a presciência como
fato, sire. A visão oracular é algo que os homens conhecem desde
os tempos mais remotos. Ela dá um jeito de nos enredar quando
menos esperamos. Por sorte, existem outras forças em nosso
universo.
– Superiores à presciência? – perguntou Paul, pressionando-o.
– Se a presciência fosse a única a existir e a fazer tudo, sire,
aniquilaria a si mesma. Nada além da presciência? Onde poderia
ser aplicada, a não ser em seus próprios movimentos em
degeneração?
– Existe sempre a condição humana – Paul concordou.
– Algo precário, na melhor das hipóteses, quando não é
confundida com alucinações.
– Minhas visões não passam de alucinações? – perguntou Paul,
com fingida tristeza em sua voz. – Ou você estaria insinuando que
meus adoradores alucinam?
Stilgar, percebendo que a tensão aumentava, chegou um passo
mais perto de Paul, concentrou sua atenção no membro da Guilda
reclinado dentro do tanque.
– Está distorcendo minhas palavras, sire – Edric protestou.
Pairava uma estranha sensação de violência nessas palavras.
Violência, aqui?, admirou-se Paul. Não se atreveriam! A menos
que (e olhou para seus guardas) as forças que o protegessem
fossem usadas para substituí-lo.
– Mas você me acusa de conspirar para a minha divinização –
disse Paul, modulando a voz para que somente Edric e Stilgar
ouvissem. – Conspirar?
– Talvez eu tenha escolhido mal as palavras, milorde.
– Mas são significativas – devolveu Paul. – Revelam que, de
mim, você espera o pior.
Edric arqueou o pescoço, olhou de lado para Stilgar, com um ar
de apreensão.
– As pessoas sempre esperam o pior dos ricos e poderosos,
sire. Dizem que sempre se sabe quando alguém é da aristocracia:
o nobre só revela os vícios que o tornarão popular.
Um tremor percorreu a face de Stilgar.
Paul atentou ao movimento, captando os pensamentos e as
zangas que cochichavam na mente de Stilgar. Como o membro da
Guilda se atrevia a falar daquele jeito com Muad’Dib?
– Não está brincando, naturalmente – disse Paul.
– Brincando, sire?
Paul começou a notar a secura em sua boca. Pareceu-lhe haver
gente demais na sala, que o ar que respirava tinha passado por
pulmões em demasia. O toque de mélange que vinha do tanque de
Edric parecia ameaçador.
– Quem seriam meus cúmplices nessa conspiração? – Paul
perguntou em seguida. – Diria ser o Qizarate?
O encolher de ombros de Edric agitou o gás laranja em volta de
sua cabeça. Já não parecia mais preocupado com Stilgar, embora
o fremen continuasse a olhar ferozmente para ele.
– Está sugerindo que meus missionários das Ordens Sagradas,
todos eles, andam pregando mentiras sutis? – insistiu Paul.
– Poderia ser uma questão de interesse pessoal e sinceridade –
disse Edric.
Stilgar levou uma das mãos à dagacris sob seu manto.
Paul balançou a cabeça e disse:
– Então está me acusando de insinceridade.
– Não sei se acusar seria a palavra adequada, sire.
O atrevimento desta criatura!, Paul pensou. E disse:
– Acusação ou não, está dizendo que meus bispos e eu não
somos melhores que bandoleiros sequiosos de poder.
– Sequiosos de poder, sire? – Edric voltou a olhar para Stilgar. –
O poder costuma isolar aqueles que o detêm em demasia. Por fim,
acabam perdendo o contato com a realidade... e tombam.
– Milorde, já mandou executar homens por muito menos! –
grunhiu Stilgar.
– Homens, sim – Paul concordou. – Mas esse aí é um
embaixador da Guilda.
– Ele o acusa de fraude e profanação! – disse Stilgar.
– O raciocínio dele me interessa, Stil. Contenha sua raiva e
continue alerta.
– Como Muad’Dib mandar.
– Diga-me, Piloto, como conseguiríamos manter essa fraude
hipotética através de distâncias tão imensas do espaço e do
tempo sem meios para vigiar cada missionário, examinar cada
nuance em cada priorado e templo do Qizarate?
– O que é o tempo para milorde? – Edric perguntou.
Stilgar franziu o cenho, obviamente confuso. E pensou:
Muad’Dib já afirmou várias vezes enxergar o que está atrás dos
véus do tempo. O que esse membro da Guilda de fato está dizendo?
– A estrutura de uma fraude como essa não começaria a
mostrar furos? – perguntou Paul. – Discordâncias importantes,
dissidências... dúvidas, confissões de culpa: uma fraude
certamente não conseguiria suprimir tudo isso.
– O que a religião e o interesse pessoal não são capazes de
esconder, os governos o fazem – afirmou Edric.
– Está testando os limites de minha tolerância? – Paul
perguntou.
– Meus argumentos não têm valor algum? – retorquiu Edric.
Ele quer que nós o matemos?, Paul se perguntou. Edric estaria
se oferecendo como sacrifício?
– Prefiro o ponto de vista dos céticos – ensaiou Paul. – Você
obviamente foi treinado para usar todos os truques mentirosos
da arte de governar, os duplos sentidos e as palavras de poder.
Para você, a linguagem não passa de uma arma, e assim você põe
minha armadura à prova.
– O ponto de vista dos céticos – disse Edric, e um sorriso
espichou-lhe a boca. – E os soberanos são sabidamente céticos no
que toca à religião. A religião também é uma arma. E que tipo de
arma seria a religião quando ela se torna o governo?
Paul sentiu-se serenar por dentro, uma profunda cautela se
apoderou dele. Para quem Edric falava? Malditas palavras
sagazes, cheias de expedientes manipuladores – aquele laivo de
humor despreocupado, o ar tácito de cumplicidade nos segredos:
seus modos indicavam que ele e Paul eram duas pessoas
sofisticadas, homens de um universo mais vasto que
compreendiam as coisas que não cabiam à gente comum
entender. Com um sobressalto, Paul percebeu que não era ele o
alvo principal de toda aquela retórica. Aquela desgraça que
assolava a corte se dirigia aos ouvidos de outras pessoas: aos
ouvidos de Stilgar, dos guardas reais... talvez até mesmo para o
assistente corpulento.
– Impuseram-me o mana religioso – disse Paul. – Não o
procurei. – E pensou: Pronto! Deixemos este peixe-homem pensar
que saiu vitorioso de nossa batalha de palavras!
– Então por que não o repudiou, sire? – Edric perguntou.
– Por causa de minha irmã, Alia – Paul respondeu, observando
Edric com cuidado. – Ela é uma deusa. Aconselho cautela ao tratar
de Alia, para que ela não o fulmine e mate com um olhar.
Um sorriso triunfante, que começara a se formar na boca de
Edric, foi substituído por uma expressão de susto.
– Falo sério – Paul disse, observando o susto se espalhar e
vendo Stilgar assentir com a cabeça.
Com tristeza na voz, Edric comentou:
– Abusou da confiança que eu depositava em milorde, sire. E
não há dúvida de que era essa sua intenção.
– Não esteja tão certo de que conhece minhas intenções – disse
Paul, sinalizando para Stilgar que a audiência terminara.
Ao gesto inquisitivo de Stilgar, que perguntava se era para
assassinar Edric, Paul respondeu com um sinal negativo da mão,
reforçando-o com uma ordem imperativa, para que Stilgar não
resolvesse agir por conta própria.
Scytale, o assistente de Edric, foi para um dos cantos atrás do
tanque e começou a empurrá-lo em direção à porta. Ao passar
diante de Paul, parou, dirigiu-lhe aquele olhar risonho e disse:
– Com sua licença, milorde?
– Sim, o que foi? – Paul perguntou, notando como Stilgar se
aproximara em resposta à ameaça implícita que o homem
emanava.
– Há quem diga que as pessoas se apegam à liderança do
imperador porque o espaço é infinito. Sentem-se solitárias sem
um símbolo para uni-las. Para um povo solitário, o imperador é
um lugar definido. Podem se voltar para ele e dizer: “Estão vendo
só? Lá está Ele. Ele nos une”. Talvez a religião tenha a mesma
finalidade, milorde.
Scytale acenou alegremente com a cabeça e voltou a empurrar
o tanque de Edric. Saíram do salão, Edric inerte em seu tanque, de
olhos fechados. O Piloto parecia exausto, esgotada toda a sua
energia nervosa.
Paul acompanhou com o olhar o vulto trôpego de Scytale,
admirado com as palavras do homem. Um sujeito peculiar, o tal
Scytale, pensou. Ao falar, irradiara a sensação de uma multidão,
como se toda a sua herança genética estivesse à flor da pele.
– Que esquisito – disse Stilgar, dirigindo-se a ninguém em
particular.
Paul levantou-se do divã quando um dos guardas fechou a
porta, logo depois de Edric e sua escolta sair.
– Esquisito – repetiu Stilgar. Uma veia latejava em sua têmpora.
Paul diminuiu a intensidade das luzes do salão, foi até uma
janela que se abria para um paredão inclinado de seu Forte. Luzes
brilhavam lá embaixo, ao longe – pigmeus em movimento. Uma
turma de trabalhadores se movia lá embaixo, trazendo
gigantescos blocos de ligaplás para consertar uma das fachadas
do templo de Alia, danificada por um raro e inesperado ciclone de
areia.
– Foi insensatez convidar aquela criatura a entrar nestes
aposentos, Usul – Stilgar disse.
Usul, Paul pensou. Meu nome de sietch. Stilgar não me deixa
esquecer que foi meu soberano um dia, que ele me salvou do
deserto.
– Por que fez isso? – Stilgar perguntou, falando bem perto de
Paul, logo atrás dele.
– Dados. Preciso de mais dados.
– Não é perigoso tentar enfrentar essa ameaça somente como
Mentat?
Perspicaz, Paul pensou.
A computação dos Mentats ainda era finita. Não era possível
exprimir algo ilimitado dentro dos limites de um idioma. Mas as
habilidades dos Mentats tinham lá sua serventia. Foi o que disse a
Stilgar, desafiando-o a refutar seu argumento.
– Sempre haverá algo lá fora – disse Stilgar. – Coisas que é
melhor deixar lá fora.
– Ou aqui dentro – Paul falou. E aceitou por um instante sua
própria conclusão de oráculo/Mentat. Lá fora, sim. E aqui dentro:
aqui jaz o verdadeiro horror. Como se proteger de si mesmo?
Estavam certamente armando para que ele destruísse a si
mesmo, mas era uma posição cercada de possibilidades ainda
mais apavorantes.
Seu devaneio foi interrompido pelo som de passos rápidos. A
figura de Korba, o Qizara, irrompeu pelo vão da porta, com a
iluminação intensa dos corredores como contraluz. Entrou como
se arremessado por uma força invisível e estacou quase
imediatamente ao deparar com a escuridão do salão. Parecia vir
com as mãos cheias de rolos de shigafio. Cintilaram sob a luz do
corredor, pequenas e estranhas joias redondas que se apagaram
quando a mão de um dos guardas apareceu para fechar a porta.
– Está aí, milorde? – Korba perguntou, perscrutando as
sombras.
– O que foi? – perguntou Stilgar.
– Stilgar?
– Estamos os dois aqui. O que foi?
– Estou transtornado com essa recepção para o membro da
Guilda.
– Transtornado? – Paul perguntou.
– O povo está dizendo que milorde homenageia nossos
inimigos.
– Só isso? – disse Paul. – São os rolos que pedi para você me
trazer? – Apontou os orbes de shigafio nas mãos de Korba.
– Rolos... Ah! Sim, milorde. São as crônicas. Deseja vê-las aqui?
– Já as vi. São para Stilgar.
– Para mim? – Stilgar perguntou.
Ele começou a se ressentir daquilo que interpretava como um
capricho da parte de Paul. Crônicas! Stilgar havia procurado Paul
pouco antes para discutir as computações logísticas destinadas à
conquista de Zabulon. A presença do embaixador da Guilda havia
interferido. E agora... Korba trazia crônicas!
– Até onde vão seus conhecimentos de história? – Paul cismou
em voz alta, estudando o vulto escuro a seu lado.
– Milorde, sou capaz de nomear todos os planetas em que
nossa gente pisou em suas migrações. Conheço os confins do
Imperium...
– A Idade de Ouro da Terra, já a estudou alguma vez?
– A Terra? A Idade de Ouro?
Stilgar estava irritado e confuso. Por que Paul iria querer
discutir mitos da aurora do tempo? A mente de Stilgar ainda lhe
parecia abarrotada de dados a respeito de Zabulon – as
computações dos Mentats do estado-maior: duzentas e cinco
fragatas de ataque com trinta legiões, batalhões de apoio, oficiais
de pacificação, missionários do Qizarate... as provisões
necessárias (tinha as cifras todas na cabeça) e o mélange...
armamento, uniformes, medalhas... urnas para as cinzas dos
mortos... o número de especialistas – homens para produzir as
matérias-primas da propaganda, escrivães, contadores...
espiões... e espiões dos espiões...
– Eu também trouxe o acessório de pulsossincronização,
milorde – arriscou Korba. Obviamente sentira a tensão cada vez
maior entre Paul e Stilgar, e isso o perturbava.
Stilgar balançou a cabeça de um lado para o outro.
Pulsossincronização? Por que Paul queria que ele usasse um
vibrossistema mnemônico com um projetor de shigafio? Para que
procurar dados específicos nas crônicas? Era trabalho para os
Mentats! Como de costume, Stilgar viu-se incapaz de se livrar da
forte desconfiança que sentia em relação a usar o projetor e seus
acessórios. A coisa sempre o fazia se perder em sensações
inquietantes, uma chuva avassaladora de dados que sua mente
organizaria mais tarde, surpreendendo-o com informações que
até então não sabia ter.
– Sire, tenho aqui as computações a respeito de Zabulon – disse
Stilgar.
– Que se desidratem as computações de Zabulon! – Paul gritou,
usando a expressão obscena dos fremen que dava a entender que,
àquela umidade, homem nenhum iria se rebaixar a tocar.
– Milorde!
– Stilgar, você precisa urgentemente de uma imparcialidade
que só se adquire com a compreensão dos efeitos de longo prazo.
As poucas informações que temos a respeito da antiguidade, a
ninharia de dados que os butlerianos nos deixaram, Korba a
trouxe para você. Comece com Gengis Khan.
– Gengis... Khan? Era um dos Sardaukar, milorde?
– Ah, de muito antes. Ele matou... talvez quatro milhões.
– Devia ter armas formidáveis para matar tantos, sire.
Feixeleses, talvez, ou...
– Ele não os matou pessoalmente, Stil. Matou como eu mato,
enviando suas legiões. Há um outro imperador que quero que
você marque de passagem: um tal Hitler. Ele matou mais de seis
milhões. Um bom número, para a época.
– Mortos... pelas legiões dele? – Stilgar perguntou.
– Sim.
– Os números não são muito impressionantes, milorde.
– Muito bem, Stil. – Paul olhou para os rolos nas mãos de Korba,
que os segurava como se quisesse deixá-los cair e sair correndo. –
Números: fazendo uma estimativa conservadora, matei sessenta
e um bilhões, esterilizei noventa planetas, desmoralizei
completamente outros quinhentos. Eliminei os seguidores de
quarenta religiões que existiam havia...
– Infiéis! – protestou Korba. – Infiéis, todos eles!
– Não. Fiéis.
– Meu suserano está brincando – disse Korba, com voz trêmula.
– O Jihad trouxe dez mil planetas para a luz resplandecente de...
– Para as trevas – disse Paul. – Levaremos uma centena de
gerações para nos recuperar do Jihad de Muad’Dib. Acho difícil
imaginar que alguém possa um dia superar tal coisa. – Um riso
entrecortado irrompeu de sua garganta.
– Qual é a graça, Muad’Dib? – Stilgar perguntou.
– Graça nenhuma. Simplesmente tive uma visão súbita do
imperador Hitler dizendo algo parecido. Sem dúvida o fez.
– Nenhum outro soberano teve seus poderes – Korba
argumentou. – Quem se atreveria a desafiá-lo? Suas legiões
controlam o universo conhecido e todos os...
– As legiões controlam. Será que sabem disso?
– Milorde controla suas legiões, sire – interveio Stilgar, e ficou
patente, pelo tom de sua voz, que ele se apercebera
repentinamente de sua própria posição naquela cadeia de
comando, de sua própria mão a dirigir todo aquele poder.
Depois de colocar os pensamentos de Stilgar nos trilhos que
desejava, Paul voltou toda a sua atenção para Korba e disse:
– Deixe os rolos ali sobre o divã. – Enquanto Korba cumpria
suas ordens, Paul perguntou: – Como anda a recepção, Korba?
Minha irmã tem tudo sob controle?
– Sim, milorde – o tom de Korba foi cauteloso. – E Chani a tudo
vê pelo postigo. Ela desconfia de que pode haver Sardaukar na
comitiva da Guilda.
– E ela deve estar certa, sem dúvida. Os chacais estão se
reunindo.
– Bannerjee estava preocupado com a possibilidade de alguns
deles tentarem entrar nas áreas privativas do Forte – falou
Stilgar, mencionando o chefe do destacamento da Segurança de
Paul.
– E tentaram?
– Ainda não.
– Mas houve uma certa confusão nos jardins cerimoniais – disse
Korba.
– Que tipo de confusão? – quis saber Stilgar.
Paul concordou com a cabeça.
– Pessoas estranhas andando de lá para cá, pisando nas
plantas, cochichando – contou Korba. – Ouvi relatos sobre
comentários inquietantes.
– Por exemplo? – perguntou Paul.
– É assim que gastam o dinheiro de nossos impostos? Disseram-
me que o próprio embaixador fez essa pergunta.
– Não me surpreende. Havia muitos estranhos nos jardins?
– Dezenas, milorde.
– Bannerjee posicionou soldados escolhidos a dedo nas portas
vulneráveis, milorde – disse Stilgar.
Virou-se ao falar, deixando a única luz que ainda restava no
salão iluminar metade de seu rosto. A iluminação peculiar, o
rosto, tudo isso roçou um nódulo de memória na mente de Paul:
alguma coisa do deserto. Paul não se deu o trabalho de trazê-la
totalmente à tona, concentrando sua atenção em como Stilgar
havia recuado mentalmente. O fremen tinha uma testa lisa
retesada que espelhava praticamente todo e qualquer
pensamento que passava por sua cabeça. Desconfiava agora,
desconfiava profundamente do estranho comportamento do
imperador.
– Não me agrada essa invasão dos jardins – Paul falou. – A
cortesia para com os convidados e as necessidades formais de
receber um embaixador são uma coisa, mas isso...
– Cuidarei para que sejam removidos – disse Korba. –
Imediatamente.
– Espere! – ordenou Paul quando Korba já começava a se virar
para sair.
Na repentina quietude do momento, Stilgar colocou-se numa
posição de onde pudesse estudar o rosto de Paul. Tamanha
destreza. Paul admirava aquilo, uma façanha destituída de toda
petulância. Era típico dos fremen: a astúcia temperada pelo
respeito à privacidade alheia, uma manobra da necessidade.
– Que horas são? – Paul perguntou.
– Quase meia-noite, sire – respondeu Korba.
– Korba, creio que você seja minha melhor criação.
– Sire!
Havia ofensa na voz de Korba.
– Tem admiração por mim? – Paul perguntou.
– Milorde é Paul Muad’Dib, que era Usul em nosso sietch – disse
Korba. – Conhece minha devoção a...
– Alguma vez chegou a se sentir como um apóstolo?
Korba obviamente entendeu mal as palavras, mas interpretou
corretamente o tom.
– Meu imperador sabe que tenho a consciência limpa!
– Que Shai-hulud nos salve – Paul murmurou.
O silêncio inquisitivo do momento foi rompido pelo som de
alguém que assoviava ao passar pelo corredor lá fora. Ao chegar
diante da porta, o assovio foi calado pela ordem ríspida de um
guarda.
– Korba, acho que você talvez sobreviva a tudo isso – Paul disse.
E percebeu que a compreensão começava a iluminar o rosto de
Stilgar.
– E quanto aos estranhos nos jardins, sire? – Stilgar perguntou.
– Aah, sim. Mande Bannerjee colocá-los para fora, Stil. Korba
vai ajudar.
– Eu, sire? – Korba revelava profunda inquietação.
– Alguns amigos meus esqueceram que um dia foram fremen –
disse Paul, dirigindo-se a Korba, mas destinando suas palavras a
Stilgar. – Marque aqueles que Chani identificar como Sardaukar e
mate-os. Cuide disso pessoalmente. Quero a coisa feita com
discrição, sem causar tumulto indevido. Não podemos nos
esquecer de que a religião e o governo não se resumem a sermões
e à aprovação de tratados.
– Obedeço às ordens de Muad’Dib – Korba sussurrou.
– E as computações de Zabulon? – Stilgar perguntou.
– Ficam para amanhã. E, removidos os forasteiros dos jardins,
anuncie o fim da recepção. A festa acabou, Stil.
– Entendido, milorde.
– Tenho certeza de que sim – disse Paul.
Aqui jaz um deus caído –
Pequena não foi a queda.
Só erigimos seu pedestal,
Alto e estreito ele era.
– Epigrama tleilaxu

Alia se agachou, com os cotovelos apoiados nos joelhos, o


queixo sobre os punhos, e fitou o corpo em cima da duna: alguns
ossos e restos de carne dilacerada que um dia foram uma moça.
As mãos, a cabeça, boa parte do torso superior haviam
desaparecido, devorados pelos ventos de Coriolis. Toda a areia ao
redor exibia as pegadas dos médicos e questores de seu irmão. Já
haviam partido, exceto os assistentes funerários que estavam de
lado, acompanhados por Hayt, o ghola, esperando que ela
terminasse sua leitura atenta e misteriosa do que estava escrito
ali.
Um céu cor de trigo envolvia o lugar na glauca luz tão comum
aos meados da tarde naquelas latitudes.
O corpo fora descoberto várias horas antes por uma aeronave
de correio em voo rasante, cujos instrumentos detectaram um
traço tênue de água onde não deveria haver nenhum. Seu alerta
trouxera os especialistas. E eles descobriram... o quê? Que aquela
tinha sido uma mulher de mais ou menos vinte anos, fremen,
viciada em semuta... e que morrera ali, na provação do deserto,
em decorrência de um veneno discreto de origem tleilaxu.
Morrer no deserto era uma ocorrência bastante comum. Mas
uma fremen viciada em semuta, isso era tão raro que Paul a
mandara examinar o local usando os métodos que sua mãe havia
lhes ensinado.
Alia tinha a impressão de que nada fizera a não ser lançar sua
própria aura de mistério sobre um local que já era bem
misterioso. Ouviu os pés do ghola remexer a areia, olhou para ele.
A atenção dele repousava momentaneamente nos tópteros da
escolta que circulavam lá no alto, feito uma revoada de corvos.
Cuidado com os presentes da Guilda, Alia pensou.
O tóptero funerário e a aeronave na qual ela viera estavam
pousados na areia perto de um afloramento de rocha logo atrás
do ghola. Olhar para os tópteros no chão deu-lhe ganas de alçar
voo e sumir dali.
Mas ocorrera a Paul que ela talvez visse ali algo que os demais
poderiam deixar escapar. Ela se contorceu dentro de seu
trajestilador. Parecia estranho e incômodo após todos aqueles
meses de vida citadina, sem o traje. Ela estudou o ghola,
perguntando-se se ele saberia alguma coisa a respeito daquela
morte peculiar. Viu que um cacho dos cabelos de cabrito negro
havia escapado do capuz do trajestilador dele. Percebeu que sua
mão ansiava enfiar aquele cacho de volta em seu lugar.
Como se atraídos por esse pensamento, os olhos metálicos e
cinzentos voltaram-se para ela. Os olhos a fizeram estremecer, e
ela desviou o olhar.
Uma mulher fremen morrera ali graças a um veneno chamado
“a garganta do inferno”.
Uma fremen viciada em semuta.
Ela dividia com Paul o desassossego diante daquela
combinação.
Os assistentes funerários esperavam pacientemente. O
cadáver não continha água suficiente para que a
reaproveitassem. Não havia pressa. E acreditariam que Alia, por
meio de alguma arte glíptica, estivesse decifrando aqueles restos
mortais para dali extrair uma estranha verdade.
Nenhuma verdade estranha lhe ocorreu.
Havia somente uma sensação remota de raiva bem em seu
íntimo, diante dos pensamentos óbvios na mente dos assistentes.
Era um produto do maldito mistério religioso. Ela e o irmão não
podiam ser gente. Tinham de ser algo mais. As Bene Gesserit
haviam cuidado disso ao manipular a genealogia dos Atreides. A
mãe deles contribuíra ao empurrá-los para o caminho da
bruxaria.
E Paul perpetuava a diferença.
As Reverendas Madres encerradas nas lembranças de Alia
despertaram, agitadas, provocando lampejos adab de
pensamento: “Calma, pequenina! Você é o que é. Existem
compensações”.
Compensações!
Chamou o ghola com um gesto.
Ele se deteve ao lado dela, atencioso, paciente.
– O que vê aqui? – ela perguntou.
– Talvez nunca venhamos a saber quem morreu aqui – ele disse.
– A cabeça, os dentes sumiram. As mãos... Improvável que alguém
como ela tivesse um registro genético em algum lugar com o qual
pudéssemos comparar suas células.
– Veneno tleilaxu – ela comentou. – O que acha disso?
– Muitas pessoas compram esses venenos.
– Verdade. E resta muito pouco deste corpo para que possa ser
regenerado, como fizeram com o seu.
– Mesmo que se pudesse contar com os Tleilaxu para fazer isso.
Ela concordou e se pôs de pé.
– Leve-me de volta à cidade.
Quando já estavam no ar, rumo norte, ela disse:
– Você pilota exatamente como Duncan Idaho.
Ele lhe lançou um olhar especulativo.
– Já me disseram isso antes.
– No que está pensando agora? – ela perguntou.
– Em muitas coisas.
– Não fuja da pergunta, maldito!
– Qual pergunta?
Ela o encarou com ferocidade.
Ele viu o olhar feroz e deu de ombros.
Tão Duncan Idaho, o gesto, ela pensou. Acusadoramente, com a
voz gutural e embargada, ela disse:
– Eu só queria ouvir suas respostas para confrontá-las com
meus próprios pensamentos. A morte daquela moça me
incomoda.
– Eu não estava pensando nisso.
– No que estava pensando?
– Nas emoções estranhas que sinto quando as pessoas falam
daquele que eu talvez tenha sido.
– Talvez tenha sido?
– Os Tleilaxu são muito espertos.
– Nem tanto. Você foi Duncan Idaho.
– Muito provavelmente. É a computação elementar.
– Quer dizer que você é emotivo?
– Até certo ponto. Sinto uma ânsia. Ando inquieto. Uma certa
tendência a me arrepiar, e tenho de me esforçar para controlá-la.
Tenho esses... lampejos de imagens.
– Que imagens?
– São velozes demais para que eu consiga reconhecê-las.
Lampejos. Espasmos... quase lembranças.
– E não fica curioso com essas lembranças?
– Claro que sim. A curiosidade me impele, mas enfrento forte
relutância. Penso: “E se eu não for quem eles acreditam que eu
seja?”. Não gosto dessa ideia.
– E era só nisso que estava pensando?
– Sabe que não, Alia.
Como ele se atreve a usar meu primeiro nome? Ela sentiu a raiva
subir e descer ao relembrar a maneira como ele havia falado: a
meia-voz mansa e vibrante, a despreocupada confiança
masculina. Um músculo se contraiu em sua mandíbula. Rilhou os
dentes.
– Não é El Kuds lá embaixo? – ele perguntou, baixando
brevemente uma das asas e provocando uma comoção repentina
em sua escolta.
Ela olhou para baixo, para as sombras que eles projetavam,
como ondas sobre o promontório logo acima da Garganta de
Harg, para o paredão e a pirâmide de rocha que encerrava o
crânio de seu pai. El Kuds – o Lugar Sagrado.
– É o Lugar Sagrado – ela disse.
– Tenho de visitá-lo um dia desses – ele comentou. – Pode ser
que me aproximar dos restos mortais de seu pai traga lembranças
que eu consiga apreender.
De repente, ela viu como devia ser forte aquela necessidade de
saber quem ele tinha sido. Era a compulsão que o definia. Voltou a
olhar para as rochas, o paredão e sua base, que descia até uma
praia seca e um mar de areia – rochas cor de canela que se
erguiam das dunas como um navio a arrostar as ondas.
– Dê a volta – ela disse.
– A escolta...
– Eles vão nos seguir. Faça a volta por baixo deles.
Ele obedeceu.
– Está realmente a serviço de meu irmão? – ela perguntou
quando ele já havia estabelecido o novo curso e a escolta os
seguia.
– Estou a serviço dos Atreides – ele disse, com formalidade na
voz.
E ela viu a mão direita dele se erguer e baixar: praticamente a
antiga continência de Caladan. Uma expressão acabrunhada se
apoderou do rosto dele. Ela o observou examinar a pirâmide de
rocha.
– O que o incomoda? – ela perguntou.
Os lábios dele se moveram. Uma voz saiu dali, fina, lacônica:
– Ele era... ele era...
Uma lágrima correu-lhe pelo rosto.
Alia viu-se paralisada pela estupefação dos fremen. Ele oferecia
água aos mortos! Compulsivamente, levou um dedo à face dele,
tocou a lágrima.
– Duncan – ela sussurrou.
Ele parecia algemado aos controles do tóptero, o olhar preso à
tumba lá embaixo.
Ela ergueu a voz:
– Duncan!
Ele engoliu em seco, sacudiu a cabeça, olhou para ela com um
brilho nos olhos metálicos.
– Eu... senti... um braço... nos meus ombros – ele murmurou. –
Eu senti! Um braço. – A garganta se moveu. – Era... um amigo.
Era... meu amigo.
– Quem?
– Não sei. Achei que fosse... Sei lá.
A luz do comunicador começou a piscar na frente de Alia; o
capitão da escolta queria saber por que voltavam para o deserto.
Ela pegou o microfone, explicou que haviam feito uma breve
homenagem à tumba de seu pai. O capitão a lembrou de que já era
tarde.
– Vamos para Arrakina agora – ela disse, devolvendo o
microfone ao lugar.
Hayt inspirou fundo, inclinou o tóptero e fez a volta, rumo
norte.
– Foi o braço de meu pai que você sentiu, não foi? – ela
perguntou.
– Talvez.
A voz dele era a do Mentat que computava as probabilidades, e
Alia viu que ele havia recuperado a compostura.
– Sabe como eu conheço meu pai? – ela perguntou.
– Faço ideia.
– Permita-me esclarecer as coisas.
Em poucas palavras, ela explicou como havia despertado e
adquirido a percepção das Reverendas Madres antes de nascer,
um feto apavorado com o conhecimento de inúmeras vidas
encerrado em suas células nervosas – e tudo isso após a morte de
seu pai.
– Conheço meu pai como minha mãe o conhecia. Até o último
detalhe de cada experiência que ela dividiu com ele. De certo
modo, eu sou minha mãe. Tenho todas as lembranças dela até o
instante em que bebeu a Água da Vida e sucumbiu ao transe de
transmigração.
– Seu irmão explicou uma parte dessa história.
– Foi? Por quê?
– Eu pedi.
– Por quê?
– Um Mentat precisa de dados.
– Ah.
Ela olhou para baixo, para a vastidão enfadonha da Muralha-
Escudo – rochas torturadas, fossos e fendas.
Ele viu para onde se dirigia o olhar dela e disse:
– Um lugar muito descoberto, aquele lá embaixo.
– Mas um lugar fácil de esconder. – Olhou para ele. – Lembra-
me a mente humana... com todos os seus segredos.
– Aaah – ele disse.
– Aaah? O que quer dizer com aaah?
Zangou-se com ele de uma hora para outra e não atinou com o
motivo.
– Você gostaria de saber o que minha mente esconde – ele
disse. Foi uma afirmação, não uma pergunta.
– Como sabe se eu já não descobri o que você realmente é com
meus poderes prescientes? – ela indagou.
– Já descobriu?
Ele parecia genuinamente curioso.
– Não!
– As sibilas têm limitações.
Ele tinha achado graça, pelo jeito, e isso diminuiu a raiva de
Alia.
– Achou graça? Não tem o menor respeito por meus poderes? –
ela indagou. A pergunta soou timidamente argumentativa até
mesmo aos ouvidos dela.
– Respeito seus augúrios e presságios talvez mais do que pensa
– ele disse. – Eu estava na plateia durante seu Ritual Matutino.
– E o que isso significa?
– Você é muito habilidosa com símbolos – ele falou, mantendo a
atenção nos controles do tóptero. – Típico das Bene Gesserit, eu
diria. Mas, como é o caso de muitas bruxas, você se descuidou de
seus poderes.
Ela sentiu um espasmo de medo e clamou:
– Como ousa?
– Ouso muito mais do que meus criadores previram. Graças a
esse fato raro, continuo com seu irmão.
Alia estudou as esferas de aço que eram os olhos dele: não
havia ali expressão humana. O capuz do trajestilador ocultava-lhe
o perfil do queixo. A boca, no entanto, continuava firme. Havia
nela uma força imensa... e determinação. As palavras dele
transmitiam uma veemência que infundia confiança. “Ouso muito
mais...” Era algo que Duncan Idaho poderia ter dito. Os Tleilaxu
teriam fabricado seu ghola melhor do que imaginavam? Ou seria
só uma impostura, parte de seu condicionamento?
– Explique-se, ghola – ela ordenou.
– Conhece a ti mesmo, é essa tua ordem? – ele perguntou.
E, outra vez, ela teve a impressão de que ele achava graça.
– Não discuta comigo, sua... sua coisa! – Levou uma das mãos à
dagacris que trazia embainhada ao pescoço. – Por que deram
você a meu irmão?
– Seu irmão me contou que você assistiu à apresentação. Você
me ouviu responder a essa pergunta quando ele a fez.
– Responda-a outra vez... para mim!
– Fui criado para destruí-lo.
– É o Mentat quem fala?
– Já sabe a resposta, não precisa perguntar – ralhou ele. – E
também sabe que o presente não era necessário. Seu irmão já
estava destruindo a si mesmo com toda a propriedade.
Ela ponderou as palavras, com a mão ainda sobre o cabo da
faca. Uma resposta astuciosa, mas havia sinceridade na voz dele.
– Então para que o presente? – ela ensaiou.
– Talvez para a diversão dos Tleilaxu. E é verdade que a Guilda
me requisitou como presente.
– Por quê?
– A resposta é a mesma.
– Como é que me descuidei de meus poderes?
– Como você os emprega? – ele contrapôs.
A pergunta cortante chegou às dúvidas que ela mesma
acalentava. Afastou a mão da faca e perguntou:
– Por que você diz que meu irmão estava se destruindo?
– Ora, que é isso, menina! Onde estão esses tão alardeados
poderes? Não sabe raciocinar?
Controlando a raiva, ela disse:
– Raciocine por mim, Mentat.
– Muito bem.
Ele deu uma olhada ao redor, à procura da escolta, depois
voltou sua atenção para o curso que seguiam. A planície de
Arrakina começava a aparecer, passado o perímetro setentrional
da Muralha-Escudo. O desenho das vilas de caldeira e graben
continuava indistinto sob uma nuvem de poeira, mas já era
possível discernir o brilho distante de Arrakina.
– Sintomas – ele disse. – Seu irmão mantém um Panegirista
oficial que...
– Que foi um presente dos naibs fremen!
– Um presente estranho vindo de amigos – ele disse. – Por que
queriam cercá-lo de lisonjas e servilismo? Já prestou realmente
atenção nesse Panegirista? “As pessoas são iluminadas por
Muad’Dib. O regente umma, nosso imperador, saiu das trevas
para brilhar, resplandecente, sobre todos os homens. Ele é nosso
Senhor. Ele é a água preciosa de uma fonte infinita. Ele derrama
alegria para que todo o universo a beba.” Ora!
Baixinho, Alia falou:
– Se eu simplesmente repetisse suas palavras para nossa
escolta fremen, eles transformariam você em alpiste.
– Pode contar a eles.
– Meu irmão governa segundo a lei natural do céu!
– Não acredita nisso, então por que o diz?
– Como sabe no que eu acredito?
Era tão grande o tremor que ela sentia que nenhum poder das
Bene Gesserit conseguiria controlar. Aquele ghola causava um
efeito que ela não previra.
– Você me mandou raciocinar como um Mentat – ele a fez
lembrar.
– Nenhum Mentat sabe no que eu acredito! – Ela inspirou fundo
duas vezes, trêmula. – Como se atreve a nos julgar?
– Julgar vocês? Não estou julgando.
– Não faz ideia de como fomos criados!
– Vocês dois foram criados para governar. Foram treinados
para ter uma sede de poder exagerada. Foram impregnados com
um domínio sagaz da política e uma compreensão profunda das
utilidades da guerra e do rito. Lei natural? Que lei natural? Esse
mito assombra a história humana. Assombra! É um fantasma. É
insubstancial, irreal. Seu Jihad é uma lei natural?
– Conversa mole de Mentat – ela escarneceu.
– Sou um servo dos Atreides e falo com franqueza.
– Servo? Não temos servos, apenas discípulos.
– E eu sou um discípulo da percepção – ele disse. – Entenda
isso, menina, e você...
– Não me chame de menina! – ela gritou. Fez metade da
dagacris deslizar para fora da bainha.
– Retiro o que disse.
Olhou para ela, sorriu, voltou sua atenção para a condução do
tóptero. Já era possível divisar a construção escarpada que era o
Forte dos Atreides, dominando os subúrbios ao norte de
Arrakina.
– Você é uma coisa antiga no corpo de alguém que é pouco mais
que uma menina – ele disse. – E o corpo está transtornado com
sua recém-adquirida condição de mulher.
– Não sei por que dou ouvidos a você – ela resmungou, mas
deixou a dagacris voltar a sua bainha, limpou a palma da mão no
manto. A palma, umedecida pela transpiração, incomodava sua
ideia fremen de frugalidade. Tamanho desperdício da umidade do
corpo!
– Você me dá ouvidos porque sabe que sou dedicado a seu
irmão. Minhas ações são claras e fáceis de entender.
– Nada a seu respeito é claro e fácil de entender. Você é a
criatura mais complexa que já vi. Como vou saber o que os
Tleilaxu incutiram em você?
– Acidental ou intencionalmente, eles me deram a liberdade de
me automodelar.
– Você se refugia nas parábolas zen-sunitas – ela o acusou. – O
sábio se automodela, o tolo só vive para morrer. – Sua voz era
pura paródia. – Discípulo da percepção!
– Os homens não distinguem método e esclarecimento.
– Você fala por enigmas!
– Falo à mente que se abre.
– Vou repetir tudo isso diante de Paul.
– Ele já ouviu boa parte.
Ela se viu oprimida pela curiosidade.
– Como é que você ainda está vivo... e solto? O que ele disse?
– Ele riu. E disse: “As pessoas não querem um contador como
imperador: querem um mestre, alguém para protegê-las da
mudança”. Mas concordou que a destruição de seu Império nasce
nele mesmo.
– Por que ele diria essas coisas?
– Porque eu o convenci de que entendo o problema dele e estou
aqui para ajudá-lo.
– O que você poderia ter dito para conseguir tal coisa?
Ele continuou calado, manobrando o tóptero para pegar a
perna do vento e pousar nas instalações da guarda sobre o
telhado do Forte.
– Exijo que me conte o que foi que você disse!
– Não sei se você aguentaria.
– Eu decido se aguento ou não! Ordeno que fale imediatamente!
– Permita-me pousar primeiro.
E, sem esperar a permissão dela, virou e pegou a perna de base,
deu sustentação máxima às asas, pousou delicadamente no
orniporto de um laranja intenso em cima do telhado.
– Agora – disse Alia. – Fale.
– Eu disse a ele que resistir a si mesmo talvez seja a tarefa mais
difícil do universo.
Ela balançou a cabeça.
– Isso... isso é...
– Um remédio amargo – ele falou, observando os guardas que
atravessaram correndo o telhado na direção deles e assumiram
suas posições de escolta.
– É uma bobagem amarga!
– O maior dos condes palatinados e o mais humilde servo
estipendiário têm o mesmo problema. Não há como contratar um
Mentat nem qualquer outro intelecto para resolvê-lo por você.
Não existe mandado de investigação nem intimação de
testemunhas que possam fornecer as respostas. Nenhum
serviçal, nenhum discípulo é capaz de tratar a ferida. Você mesma
terá de tratá-la ou continuará a sangrar à vista de todos.
Ela girou e deu-lhe as costas, percebendo no mesmo instante o
que o ato revelava em relação a seus próprios sentimentos. Sem
artifícios da Voz nem truques de bruxaria, ele havia chegado
outra vez a sua psique. Como ele fazia aquilo?
– O que disse para ele fazer? – ela sussurrou.
– Disse-lhe para julgar, impor a ordem.
Alia olhou para fora, para os guardas, e notou como eles
esperavam com toda a paciência, com toda a ordem.
– Fazer justiça – ela murmurou.
– Nada disso! – ele gritou. – Sugeri que ele julgasse, nada mais,
orientado por um princípio, talvez...
– Que seria?
– Manter os amigos e destruir os inimigos.
– Julgar com injustiça, então.
– O que é a justiça? Duas forças colidem. Pode ser que cada uma
delas tenha razão em sua própria esfera. E é aí que um imperador
impõe soluções ordeiras. As colisões que não é capaz de impedir,
ele as resolve.
– Como?
– Da maneira mais simples possível: ele decide.
– Mantendo os amigos e destruindo os inimigos.
– Isso não é estabilidade? As pessoas querem ordem, seja essa
ou qualquer outra. Estão sentadas dentro das celas de seus
anseios e veem que a guerra se tornou a diversão dos ricos. É uma
forma perigosa de sofisticação. É desordeiro.
– Vou sugerir a meu irmão que você é perigoso demais e precisa
ser destruído – ela disse, virando-se para encará-lo.
– Uma solução que eu já sugeri.
– E é por isso que é perigoso – ela completou, medindo as
palavras. – Você dominou suas paixões.
– Não é por isso que sou perigoso.
Antes que ela conseguisse se mexer, ele se debruçou, agarrou-
lhe o queixo com uma das mãos e impôs seus lábios aos dela.
Foi um beijo delicado, breve. Ele se afastou, e ela olhou para ele
com um ar escandalizado, estimulado por vislumbres dos sorrisos
espasmódicos no rosto dos guardas que ainda estavam do lado de
fora, em disciplinada posição de sentido.
Alia levou um dedo aos lábios. Fora tamanha a familiaridade
daquele beijo. Os lábios dele eram a concupiscência de um futuro
que ela vira em algum caminho presciente pouco usado. De peito
arfante, ela disse:
– Eu devia mandar esfolá-lo.
– Porque sou perigoso?
– Porque você toma liberdades demais!
– Liberdade nenhuma. Nada tomo que já não me tenham
oferecido antes. Fique feliz por eu não ter tomado tudo que me
ofereceram. – Ele abriu a porta e escorregou para fora. – Venha.
Já perdemos muito tempo à toa. – Caminhou a passos largos na
direção da cúpula de entrada, logo depois do orniporto.
Alia pulou para fora e correu para alcançá-lo.
– Contarei a ele tudo o que você disse e tudo o que você fez.
– Ótimo.
Ele abriu a porta para ela.
– Ele mandará executar você – ela disse, entrando na cúpula.
– Por quê? Por ter roubado o beijo que eu queria?
Ele a seguiu, e seu movimento a obrigou a recuar. A porta
fechou-se delicadamente atrás dele.
– O beijo que você queria!
Ela foi tomada pela fúria.
– Muito bem, Alia. O beijo que você queria, então.
Ele começou a contorná-la, seguindo em direção ao setor de
descarga.
Como se o movimento dele a tivesse lançado de encontro a uma
percepção mais elevada, ela percebeu a franqueza, a absoluta
sinceridade dele. O beijo que eu queria, ela disse consigo mesma.
Verdade.
– Sua sinceridade é que é perigosa – ela disse, seguindo-o.
– De volta ao caminho da sabedoria – ele comentou, sem perder
o ritmo. – Um Mentat não teria apresentado a questão de maneira
mais direta. Agora: o que foi que você viu no deserto?
Ela segurou o braço dele, obrigando-o a parar. Ele o fizera outra
vez: abalara a mente de Alia, levando-a a um estado de percepção
aguçada.
– Não consigo explicar, mas continuo pensando nos Dançarinos
Faciais. Por quê?
– Foi por isso que seu irmão a mandou para o deserto – ele
falou, com um aceno afirmativo da cabeça. – Conte-lhe que tem
essa ideia fixa.
– Mas por quê? – Ela sacudiu a cabeça. – Por que os Dançarinos
Faciais?
– Há uma moça morta lá fora – ele disse. – Talvez não tenham
dado falta de nenhuma moça fremen.
Penso na alegria que é estar vivo e me pergunto se
chegarei a dar o salto interior até a raiz deste
corpo e conhecer a mim mesmo como um dia fui.
A raiz está lá. Se algum ato meu conseguirá
encontrá-la, isso continua emaranhado no futuro.
Mas todas as coisas que um homem é capaz de
fazer a mim pertencem. Qualquer ato meu
poderia fazê-lo.
– “Com a palavra, o ghola”, O memorial de Alia

Deitado, imerso no odor berrante da especiaria, com o olhar


voltado para o interior, através do transe oracular, Paul viu a lua
se tornar uma esfera alongada. Girava e se contorcia, chiava – o
chiado terrível de um estrela que se extinguia num mar infinito –
caindo... caindo... caindo... como uma bola arremessada por uma
criança.
Sumiu.
Aquela lua não tinha se posto. Ele foi engolfado pela
constatação. Sumiu: nada de lua. A terra tremeu feito um animal a
sacudir a pelagem. Ele foi varrido pelo pavor.
Paul sentou-se em seu catre com um movimento brusco do
torso, de olhos bem abertos, fitando o vazio. Parte dele olhava
para fora; a outra parte, para dentro. Lá fora, ele via a gelosia de
ligaplás que arejava seu quarto particular e sabia que estava ao
lado de um dos abismos pétreos de seu Forte. Ali dentro, ele ainda
via a lua cair.
Fora! Fora!
Sua gelosia de ligaplás abria-se para a luz incandescente do
meio-dia que cobria Arrakina. Por dentro – ali repousava a noite
mais negra. Uma chuva de aromas deliciosos proveniente de um
jardim suspenso beliscava-lhe os sentidos, mas nenhum perfume
floral traria de volta aquela lua caída.
Paul girou e, com os pés, tocou a superfície fria do chão, espiou
através da gelosia. Enxergava diretamente o arco suave de uma
passarela feita de ouro e platina estabilizada com cristais. Joias
de fogo da longínqua Cedon decoravam a ponte, que levava às
galerias do centro velho da cidade, passando por cima de um lago
e de uma fonte repletos de flores aquáticas. Paul sabia que, se
ficasse de pé, veria pétalas tão puras e vermelhas como sangue
fresco a rodopiar, a girar lá embaixo – discos de cor ambiente ao
sabor de uma torrente esmeralda.
Seus olhos absorveram a cena sem libertá-lo da escravidão da
especiaria.
Aquela visão terrível de uma lua perdida.
A visão sugeria uma perda monstruosa de segurança
individual. Talvez tivesse presenciado a queda de sua civilização,
derrubada pelas próprias pretensões...
Uma lua... uma lua... uma lua que cai.
Precisara de uma dose maciça da essência da especiaria para
vencer a lama levantada pelo tarô. Mostrara-lhe apenas uma lua
em queda e o caminho detestável que ele já conhecia desde o
princípio. Para dar fim ao Jihad, para silenciar o vulcão de
carnificina, ele teria de desacreditar a si mesmo.
Desvencilhe-se... desvencilhe-se... desvencilhe-se...
O perfume floral do jardim suspenso fez com que se lembrasse
de Chani. Desejava ardentemente seus braços naquele momento,
os braços aderentes do amor e do esquecimento. Mas nem
mesmo Chani conseguiria exorcizar aquela visão. O que Chani
diria se ele a procurasse e contasse que tinha em mente uma
determinada morte? Sabendo que era inevitável, por que não
escolher a morte de um aristocrata e dar cabo da vida com uma
fanfarrice secreta, desperdiçando os anos que poderiam ter sido?
Morrer antes de chegar ao fim da determinação, não seria essa a
decisão de um aristocrata?
Levantou-se, foi até a abertura imbricada da gelosia, saiu para
uma sacada de onde se viam, lá em cima, as flores e trepadeiras
que pendiam do jardim. Sua boca continha a secura de uma
marcha pelo deserto.
Lua... lua... Onde está essa lua?
Pensou na descrição que Alia fizera, o corpo da moça
encontrado nas dunas. Uma fremen viciada em semuta! Tudo se
encaixava no padrão detestável.
Nada se tira deste universo, pensou. Ele dá o que quer.
Os restos de uma concha oriunda dos mares da Mãe Terra
repousavam sobre uma mesa baixa ao lado do parapeito da
sacada. Tomou nas mãos a lisura lustrosa da concha, tentou fazer
seus sentidos retrocederem no Tempo. A superfície perolada
refletia luas cintilantes de luz. Despregou o olhar da concha,
examinou, além do jardim, um céu transformado em
conflagração: rastros de poeira iridescente brilhando ao sol
argênteo.
Meus fremen se referem a si mesmos como “Filhos da Lua”,
pensou.
Largou a concha, pôs-se a andar ao longo da sacada. Aquela lua
apavorante oferecia a esperança de escapar? Procurou um
significado no campo da comunhão mística. Sentiu-se fraco,
abalado, ainda sob o domínio da especiaria.
Na extremidade norte de seu abismo de ligaplás, ele avistou os
edifícios mais baixos do aglomerado governamental. Os
pedestres abarrotavam as calçadas sobre os telhados. Parecia-lhe
que as pessoas se deslocavam como um friso em contraste com
um plano de fundo feito de portas, paredes, ladrilhos. As pessoas
eram ladrilhos! Ao piscar, ele as congelava em sua mente. Um
friso.
Uma lua cai e desaparece.
Sobreveio-lhe a sensação de que a cidade lá fora havia se
convertido num estranho símbolo de seu universo. Os edifícios
que ele enxergava foram erigidos na planície onde seus fremen
haviam destruído as legiões dos Sardaukar. O terreno que um dia
fora calcado pelas batalhas agora repercutia o clamor impetuoso
dos negócios.
Sem se afastar da beirada externa da sacada, Paul contornou o
canto. Agora, a vista era a de um subúrbio onde as construções da
cidade se perdiam nas pedras e na areia do deserto que o vento
carregava. O templo de Alia dominava o primeiro plano:
tapeçarias verdes e pretas nas paredes laterais de dois mil metros
exibiam o símbolo da lua de Muad’Dib.
Uma lua que cai.
Paul passou uma das mãos pela testa e os olhos. A metrópole-
símbolo o oprimia. Ele desdenhava os próprios pensamentos.
Tamanha hesitação em outra pessoa teria despertado sua raiva.
Ele detestava sua cidade!
A fúria radicada no tédio estremeceu e fervilhou em seu íntimo,
acalentada por decisões inevitáveis. Ele sabia qual caminho seus
pés tinham de seguir. Já o tinha visto tantas vezes, não? Visto!
Certa vez... tempos atrás, pensara em si mesmo como o inventor
do governo. Mas a invenção havia caído nos velhos padrões. Era
como uma engenhoca hedionda e de memória maleável. Era
possível dar-lhe a forma que se quisesse, mas bastava relaxar um
segundo para que ela voltasse a assumir formas antigas. Forças
que, fora de seu alcance, agiam nos corações humanos fugiam
dele e o desafiavam.
Paul olhou por cima dos telhados. Que tesouros da vida sem
entraves jaziam sob aqueles tetos? Vislumbrou lugares de verde-
folhagem, vegetação ao ar livre em meio ao vermelho-greda e ao
ouro dos telhados. O verde, o presente de Muad’Dib e sua água.
Pomares e bosques estavam ao alcance de sua visão – vegetação a
céu aberto a rivalizar com a do lendário Líbano.
– Muad’Dib desperdiça água feito um louco – diziam os fremen.
Paul cobriu os olhos com as mãos.
A lua caiu.
Deixou cair as mãos, olhou para sua metrópole com a visão
agora clara. Os edifícios assumiram uma aura de monstruosa
barbárie imperial. Erguiam-se enormes e brilhantes sob o sol
setentrional. Colossos! Todas as extravagâncias arquitetônicas
que uma história demente seria capaz de produzir mostravam-se
diante dele: terraços enormes como chapadas, praças tão
grandes quanto algumas cidades, parques, edifícios, pedacinhos
de natureza cultivada.
Um talento artístico soberbo se limitava com prodígios
inexplicáveis de um mau gosto desolador. Os detalhes gravavam-
se nele: um portal secreto da antiquíssima Bagdá... uma cúpula
sonhada na mítica Damasco... um arco proveniente da baixa
gravidade de Atar... elevações harmônicas e profundezas
extravagantes. Tudo isso produzia um efeito de magnificência
ímpar.
Uma lua! Uma lua! Uma lua!
A frustração o enredava. Sentia a pressão do inconsciente-
massa, aquele golpe veloz de humanidade que cortava seu
universo. Acometiam-no com uma força semelhante à de uma
gigantesca pororoca. Ele detectava as vastas migrações que
operavam nas relações humanas: torvelinhos, correntezas,
torrentes genéticas. Não havia barragem de abstinência, ataque
de impotência nem maldições capazes de detê-la.
O Jihad de Muad’Dib era menos que um piscar de olhos
naquele movimento maior. A Irmandade Bene Gesserit que
nadava naquela onda, essa entidade corporativa que tinha os
genes como ofício, estava aprisionada na torrente tanto quanto
ele. Visões de uma lua a cair tinham de ser comparadas com
outras lendas, outras visões num universo onde até mesmo as
estrelas aparentemente eternas empalideciam, tremelicavam,
morriam...
Que diferença fazia uma única lua num universo como aquele?
Bem no interior de sua cidadela e fortaleza, tão no âmago que o
som às vezes se perdia na correnteza de ruídos da cidade,
tilintava um rebabe de dez cordas com uma canção do Jihad, um
lamento por uma mulher que ficara em Arrakis:
Suas ancas são dunas que o vento arredondou,
Seus olhos brilham feito o calor do verão.
Os cabelos descem-lhe pelas costas em duas tranças –
Cheios de hidroanéis, seus cabelos!
Minhas mãos recordam sua pele,
Fragrante feito âmbar, com cheiro de flor.
As pálpebras estremecem com as lembranças...
Fui ferido pela chama branca do amor!

A canção o deixou enjoado. Uma cantiga para criaturas


estúpidas absortas em sentimentalismo! Melhor cantar para o
cadáver embebido nas dunas que Alia tinha visto.
Um vulto se mexeu nas sombras da gelosia da sacada. Paul
girou nos calcanhares.
O ghola veio para o fulgor total do sol. Seus olhos metálicos
cintilaram.
– Seria Duncan Idaho ou o homem chamado Hayt? – Paul
perguntou.
O ghola deteve-se a dois passos dele.
– Qual deles milorde prefere?
A voz comportava um leve tom de cautela.
– Banque o zen-sunita – Paul disse, com amargura.
Significados dentro de significados! O que um filósofo zen-
sunita poderia dizer ou fazer para mudar um tiquinho da
realidade que se desdobrava diante dele naquele instante?
– Milorde está incomodado.
Paul virou-se, olhou para a escarpa distante da Muralha-
Escudo, viu arcadas e arcobotantes esculpidas pelo vento, uma
paródia terrível de sua cidade. A natureza a pregar-lhe uma peça!
Veja o que sou capaz de construir! Ele reconheceu um talho no
maciço distante, um lugar onde a areia saía de uma fissura, e
pensou: Ali! Bem ali, lutamos com os Sardaukar!
– O que incomoda milorde? – perguntou o ghola.
– Uma visão – Paul sussurrou.
– Aaaaah, quando os Tleilaxu me acordaram, tive visões. Estava
inquieto, sozinho... sem saber de fato que estava sozinho. Não
naquele momento. Minhas visões nada revelaram! Os Tleilaxu me
disseram que era uma intromissão da carne a que ficam sujeitos
todos os homens e gholas, um mal-estar, nada mais.
Paul virou-se, estudou os olhos do ghola, aquelas esferas
encovadas de aço, inexpressivas. Que visões teriam presenciado
aqueles olhos?
– Duncan... Duncan... – Paul murmurou.
– Chamam-me Hayt.
– Vi uma lua cair – disse Paul. – Sumiu, foi destruída. Ouvi um
grande chiado. A terra tremeu.
– Embriagou-se no excesso de tempo – disse o ghola.
– Pergunto ao zen-sunita e responde-me o Mentat! Muito bem!
Submeta minha visão a sua lógica, Mentat. Analise-a e reduza-a a
meras palavras, prontas para o enterro.
– Enterro, sim. Milorde foge da morte. Digladia-se com o
instante seguinte, recusa-se a viver aqui e agora. Augúrios! Que
muleta para um imperador!
Paul viu-se fascinado por uma mancha no queixo do ghola da
qual se lembrava muito bem.
– Tentando viver nesse futuro – disse o ghola –, milorde lhe dá
substância? Torna-o real?
– Se seguir o caminho de meu futuro-visão, estarei vivo então –
Paul murmurou. – O que faz você pensar que eu quero viver lá?
O ghola encolheu os ombros.
– Você me pediu uma resposta substancial.
– Onde há substância num universo composto de
acontecimentos? – Paul perguntou. – Existe uma resposta final?
Cada solução não gera novas perguntas?
– Milorde digeriu uma quantidade tão grande de tempo que
agora delira com a imortalidade – disse o ghola. – Até mesmo seu
Império, milorde, tem de viver o tempo que lhe é devido e morrer.
– Não me venha com esse desfile de altares enegrecidos pela
fumaça – Paul resmungou. – Já ouvi histórias tristes suficientes a
respeito de deuses e messias. Por que eu precisaria de poderes
especiais para prever minhas próprias desgraças, como fazem
todos os outros? O servo mais humilde de minhas cozinhas
poderia fazê-lo. – Balançou a cabeça. – A lua caiu!
– A mente de milorde não se deteve em seu princípio.
– É assim que vai me destruir? – Paul quis saber. – Impedindo-
me de ordenar meus pensamentos?
– É possível ordenar o caos? – o ghola perguntou. – Nós, zen-
sunitas, temos um ditado: “Não ordenar, eis a coleção definitiva”.
O que se pode coligir sem antes coligir a si mesmo?
– Sou atormentado por uma visão e você aí vomitando
absurdos! – enfureceu-se Paul. – O que sabe sobre a presciência?
– Já vi o oráculo agir. Já vi aqueles que procuram sinais e
presságios de seus destinos pessoais. Eles temem aquilo que
buscam.
– Minha lua em queda é real – Paul sussurrou. Inspirou,
trêmulo. – Está em movimento. Em movimento.
– Os homens sempre temem as coisas que se movem por conta
própria – disse o ghola. – Milorde teme seus próprios poderes. As
coisas caem do nada e entram em sua cabeça. Quando caem fora,
para onde vão?
– Você me consola com espinhos – Paul grunhiu.
Uma iluminação interior transpareceu no rosto do ghola. Por
um instante, ele se tornou o genuíno Duncan Idaho.
– Ofereço-lhe o consolo que está a meu alcance – disse.
Paul admirou-se com aquele espasmo momentâneo. Teria o
ghola sentido o pesar que a mente dele rejeitava? Teria Hayt
reprimido uma visão toda sua?
– Minha lua tem um nome – Paul sussurrou.
Deixou a visão inundá-lo. Apesar de todo o seu ser gritar,
nenhum som lhe escapou. Tinha medo de falar, temia que sua voz
o traísse. O ar daquele futuro apavorante estava saturado com a
ausência de Chani. O corpo que gritara de êxtase, os olhos que,
com seu desejo, o fizeram arder, a voz que o encantara por não
usar nenhum truque de controle sutil – tudo desaparecera, de
volta à água e à areia.
Lentamente, Paul virou-se, olhou para fora, para o presente e a
praça diante do templo de Alia. Três peregrinos de cabeça
raspada entraram pela alameda processional. Vestiam mantos
amarelos e encardidos e andavam depressa, com a cabeça
abaixada para enfrentar o vento da tarde. Um deles mancava,
arrastando o pé esquerdo. Venceram o vento, contornaram um
canto e sumiram de vista.
Sumiram como sua lua sumiria. Ainda assim, a visão repousava
diante dele. O propósito terrível da visão não lhe deixava escolha.
A carne se rende, pensou. A eternidade toma aquilo que já foi
seu. Nossos corpos agitaram brevemente as águas, dançaram com
uma certa inebriação diante do amor da vida e do eu, lidaram com
algumas ideias estranhas, depois se submeteram aos instrumentos
do Tempo. O que podemos dizer a respeito? Eu aconteci. Não sou...
mas aconteci.
“Não se implora a misericórdia do sol.”
– “O sofrimento de Muad’Dib”, em O memorial de Stilgar

Um segundo de incompetência pode ser fatal, a Reverenda


Madre Gaius Helen Mohiam lembrou a si mesma.
Ela ia mancando, aparentemente despreocupada, no centro de
um círculo de guardas fremen. Sabia que um deles, o que vinha
logo atrás dela, era surdo-mudo, imune a todas as artimanhas da
Voz. Sem dúvida haviam-no encarregado de matá-la à menor
provocação.
Por que Paul mandara chamá-la?, ela se perguntou. Estava
prestes a dar sua sentença? Lembrou-se do dia, tempos atrás, em
que o colocara à prova... o menino Kwisatz Haderach. Ele era
profundo.
Maldita seja a mãe dele por toda a eternidade! Era culpa dela
que as Bene Gesserit tivessem perdido o controle sobre aquela
linhagem genética.
O silêncio fazia volume nas passagens abobadadas adiante de
seu séquito. Sentiu que a mensagem era transmitida. Paul
escutaria o silêncio. Saberia que ela estava a caminho antes
mesmo que fosse anunciada. Não se iludia com a ideia de que seus
poderes fossem maiores que os dele.
Maldito!
Ressentia-se dos fardos que a idade lhe impunha: as
articulações doloridas, as reações já não tão rápidas quanto
antes, os músculos não tão elásticos quanto os látegos da
juventude. Foram um longo dia e uma longa vida. Passara aquele
dia com o Tarô de Duna, procurando em vão uma pista sobre seu
destino. Mas as cartas se mostraram indolentes.
Os guardas fizeram-na contornar uma curva e entrar em mais
uma das passagens abobadadas e aparentemente intermináveis.
Janelas triangulares de metavidro a sua esquerda abriam-se para
o caramanchão de trepadeiras e as flores cor de anil lá em cima,
nas sombras intensas lançadas pelo sol da tarde. Ladrilhos no
chão: desenhos de criaturas aquáticas de planetas exóticos.
Lembranças da água por toda parte. Dinheiro... riquezas.
Vultos usando mantos cruzaram um outro corredor na frente
dela, lançaram olhares dissimulados para a Reverenda Madre.
Ficaram patentes em seus modos o reconhecimento... e a tensão.
Ela manteve sua atenção no contorno bem definido do couro
cabeludo do guarda que ia imediatamente a sua frente: corpo
jovem, vincos rosados no colarinho do uniforme.
A imensidão daquela cidadela ighir começava a impressioná-la.
Passagens... passagens... Passaram por uma porta aberta de onde
saía o som de tambura e flauta a tocar uma música suave e anciã.
Um olhar de relance mostrou-lhe olhos fremen de azul sobre azul,
fitando-a desde o interior do aposento. Detectou neles o fermento
de revoltas lendárias a despertar nos genes selvagens.
Sabia que ali estava a medida de seu fardo pessoal. Não havia
como uma Bene Gesserit escapar da consciência de que existiam
os genes e suas possibilidades. Comoveu-se com uma sensação de
perda: aquele Atreides tolo e teimoso! Como podia negar as joias
da posteridade que jaziam em sua virilha? Um Kwisatz Haderach!
Nascido fora de tempo, verdade, mas real – tão real quanto a
abominação que era sua irmã... e ali estava uma incógnita
perigosa. Uma Reverenda Madre selvagem, gerada sem as
inibições das Bene Gesserit e que não devia lealdade à evolução
ordenada dos genes. Ela tinha os mesmos poderes do irmão, não
havia dúvida – e não era só isso.
O tamanho da cidadela começou a oprimi-la. As passagens
nunca terminariam? O lugar fedia a uma força física aterradora.
Nenhum planeta, nenhuma civilização em toda a história humana
tinha visto antes tamanha imensidão construída pelo homem.
Seria possível esconder dezenas de cidades antigas dentro
daquelas paredes!
Passaram por portas ovais com luzes piscantes. Ela
reconheceu a arte ixiana: orifícios pneumáticos de transporte.
Por que a faziam marchar toda aquela distância, então? A
resposta começou a tomar forma em sua mente: para oprimi-la,
em preparação para aquela audiência com o imperador.
Uma pista ínfima, mas que se juntava a outros indícios sutis: a
supressão e a seleção relativas das palavras por parte de sua
escolta, os traços de timidez primitiva em seus olhos, quando a
chamavam de Reverenda Madre, a natureza fria, insípida e
essencialmente inodora daqueles corredores. Tudo se combinava
para revelar muitas coisas que uma Bene Gesserit poderia
interpretar.
Paul queria alguma coisa dela!
Disfarçou o entusiasmo. Havia uma alavanca de negociação.
Restava apenas descobrir a natureza dessa alavanca e colocar sua
força à prova. Certas alavancas já tinham movido coisas bem
maiores que aquela cidadela. Sabia-se de civilizações inteiras
derrubadas com um dedo.
A Reverenda Madre lembrou-se, então, da avaliação de Scytale:
Uma criatura, depois de se transformar numa coisa, irá preferir a
morte a se tornar o contrário do que é.
As passagens pelas quais a escoltavam iam ficando maiores em
pequenas medidas – truques no arranjo das abóbadas, ampliação
graduada dos arrimos colunados, substituição das janelas
triangulares por formas oblongas e maiores. Adiante, por fim,
assomaram as portas duplas no centro da parede mais distante
de uma antecâmara de pé-direito alto. Ela pressentiu que as
portas seriam muito grandes e foi obrigada a reprimir um
sobressalto quando sua percepção treinada mediu as verdadeiras
proporções. O vão tinha pelo menos oitenta metros de altura e
metade disso na largura.
Quando ela e sua escolta se aproximaram, as portas se abriram
para dentro – um movimento imenso e silencioso de mecanismos
ocultos. Reconheceu mais exemplos da arte ixiana. Por aquela
porta altaneira ela passou com seus guardas e entrou no Grande
Salão de Recepção do imperador Paul Atreides – “Muad’Dib,
diante de quem todos se apequenam”. Agora ela via o efeito
daquele ditado popular em ação.
Ao avançar na direção de Paul, sentado no trono distante, a
Reverenda Madre viu-se mais impressionada com as sutilezas
arquitetônicas do ambiente do que com sua imensidão. O espaço
era grande: poderia abrigar a cidadela inteira de qualquer
soberano da história humana. A amplidão do recinto dizia muita
coisa a respeito das forças estruturais ocultas e equilibradas com
esmero. As armações e vigas de sustentação atrás daquelas
paredes e a cúpula do teto longínquo deviam ultrapassar
qualquer coisa que já haviam tentado até então. Tudo aludia a
uma engenharia genial.
Sem parecer fazê-lo, o salão ficava menor na outra ponta,
recusando-se a apequenar Paul sobre o trono no centro de uma
plataforma. Uma percepção não treinada, abalada com as
proporções do ambiente, o veria a princípio muitas vezes maior
do que realmente era. As cores se aproveitavam da psique
desprotegida: o trono verde de Paul fora lapidado a partir de uma
única esmeralda de Hagal. Aludia a coisas vivas e, segundo a
mitologia fremen, refletia a cor do pesar. Segredava que ali estava
sentado o homem capaz de incitar o pesar – vida e morte num
mesmo símbolo, uma ênfase inteligente nos opostos. Atrás do
trono, cortinas formavam uma cascata de laranja queimado, do
ouro-caril da terra de Duna e salpicos da cor de canela do
mélange. Para o olhar treinado, o simbolismo era óbvio, mas
guardava marteladas que deitariam por terra os não iniciados.
O tempo tinha seu papel ali.
A Reverenda Madre contou os minutos que levou para se
aproximar da Presença Imperial com seus passos mancos. Havia
tempo suficiente para se deixar intimidar. A menor propensão ao
ressentimento seria arrancada pelo poder desenfreado que se
concentrava na pessoa. Era possível começar a longa marcha em
direção ao trono como um ser humano digno e terminá-la como
um mosquito.
Assistentes e assessores circundavam o imperador numa
sequência curiosa: os guardas reais perfilados em posição de
sentido ao longo da parede acortinada ao fundo; a abominação,
Alia, dois degraus abaixo de Paul e a sua esquerda; Stilgar, o lacaio
imperial, no degrau diretamente abaixo de Alia; e, à direita, um
degrau acima do piso do salão, uma figura solitária, o espectro
carnal de Duncan Idaho, o ghola. Ela reparou nos fremen mais
velhos entre os guardas, naibs barbados com as escaras dos
trajestiladores no nariz, as dagacrises embainhadas na cintura,
uma ou outra pistola maula, até mesmo algumas armaleses.
Deviam ser homens de confiança, ela pensou, para portar
armaleses diante de Paul, já que ele obviamente usava um gerador
de escudo. Ela enxergava o tremeluzir do campo que o envolvia.
Bastaria uma rajada de armalês naquele campo para a cidadela
inteira virar um buraco no chão.
Os guardas que a acompanhavam pararam a dez passos da
plataforma e separaram-se para dar-lhe visão desimpedida do
imperador. Ela percebeu, então, a ausência de Chani e Irulan, e
ficou curiosa. Diziam que ele não presidia nenhuma audiência
importante sem elas.
Paul acenou-lhe com a cabeça, calado, medindo-a.
Imediatamente, ela decidiu tomar a ofensiva e disse:
– Então, o grande Paul Atreides se digna a ver aquela a quem
baniu.
Paul sorriu com ironia, pensando: Ela sabe que quero alguma
coisa dela. Era inevitável que soubesse disso, sendo ela quem era.
Ele reconhecia os poderes da mulher. As Bene Gesserit não se
tornavam Reverendas Madres por acaso.
– Podemos dispensar os rodeios? – ele indagou.
Seria assim tão fácil?, ela se perguntou. E disse:
– Diga o que quer.
Stilgar se mexeu, lançou um olhar penetrante para Paul. O
lacaio imperial não gostava de seu tom de voz.
– Stilgar quer que eu a mande embora – Paul falou.
– E não que me mate? – ela perguntou. – Eu teria esperado algo
mais direto de um naib fremen.
Stilgar franziu o cenho e disse:
– Então vamos dispensar também a diplomacia – ela disse. –
Era necessário me fazer andar toda essa distância? Sou uma
velha.
– Era preciso demonstrar como posso ser insensível – Paul
explicou. – Assim você apreciará minha condescendência.
– Atreve-se a tratar uma Bene Gesserit com tamanha
indelicadeza?
– Atos torpes também mandam seu recado – disse Paul.
Ela hesitou, ponderando as palavras dele. Então... ele ainda
poderia se livrar dela... de maneira torpe, obviamente, se ela... se
ela o quê?
– Diga o que quer de mim – ela resmungou.
Alia olhou para o irmão, fez um sinal de cabeça na direção das
cortinas atrás do trono. Conhecia o raciocínio de Paul naquele
caso, mas nem por isso gostava da ideia. E daí que fosse uma
profecia aleatória? Sentia-se mais do que relutante em tomar
parte naquela negociação.
– Cuidado ao falar comigo, velha – Paul disse.
Ele me chamou de velha quando era um rapazola, a Reverenda
Madre pensou. Estaria me lembrando de que tive participação em
seu passado? A decisão que tomei na época, terei de tomá-la
novamente aqui? Sentiu o peso da decisão, algo físico que fez seus
joelhos tremer. Os músculos gritaram de cansaço.
– Foi uma longa caminhada e posso ver que está cansada – Paul
disse. – Passemos a meu aposento particular atrás do trono. Lá
poderá se sentar.
Ele fez um sinal com a mão para Stilgar e se levantou.
Stilgar e o ghola colocaram-se um de cada lado da Reverenda
Madre, ajudaram-na a subir os degraus e seguiram Paul por uma
passagem escondida pelas cortinas. Ela percebeu, então, por que
ele a havia recebido no salão: uma pantomima para os guardas e
naibs. Ele os temia, portanto. E agora – agora ele exibia uma
benevolência cortês, atrevendo-se a usar tais estratagemas com
uma Bene Gesserit. Seria mesmo atrevimento? Ela pressentiu
uma outra presença lá atrás, olhou por sobre o ombro e viu que
Alia os seguia. Os olhos da mulher mais jovem tinham um ar
pensativo e funesto. A Reverenda Madre estremeceu.
O aposento particular ao final da passagem era um cubo de
ligaplás de vinte metros, iluminado por luciglobos amarelos, com
as paredes cobertas por tapeçarias de um laranja carregado,
típicas de uma tendestiladora do deserto. Continha divãs,
almofadas macias, um odor tênue de mélange, cântaros de água
feitos de cristal sobre uma mesa baixa. Parecia apertado e
minúsculo depois do salão lá fora.
Paul a acomodou num divã e ficou de pé diante dela,
estudando-lhe o rosto idoso: dentes acerados, olhos que
escondiam mais do que revelavam, a pele profundamente
enrugada. Ele apontou um cântaro de água. Ela balançou a
cabeça, desalojando uma mecha de cabelo grisalho.
Em voz baixa, Paul disse:
– Quero negociar com você a vida da mulher que amo.
Stilgar pigarreou.
Alia tocou com os dedos o cabo da dagacris que trazia
embainhada ao pescoço.
O ghola continuava à porta, de rosto impassível, com os olhos
metálicos apontados para o vazio logo acima da cabeça da
Reverenda Madre.
– Teve uma visão na qual eu tivesse algo a ver com a morte
dela? – a Reverenda Madre perguntou. Manteve sua atenção no
ghola, estranhamente perturbada pela presença dele. Por que
deveria se sentir ameaçada pelo ghola? Ele era um instrumento
da conspiração.
– Sei o que você quer de mim – Paul disse, esquivando-se da
pergunta que ela fizera.
Então ele apenas desconfia, ela pensou. A Reverenda Madre
olhou para as pontas de seus sapatos, que uma prega do manto
havia exposto. Negros... negros... os sapatos e o manto
ostentavam as marcas de seu cárcere: manchas, pregas. Ela
ergueu o queixo e deparou com o olhar zangado de Paul. Encheu-
se de entusiasmo, mas escondeu a emoção atrás dos lábios
franzidos e das pálpebras entrecerradas.
– O que oferece em troca? – ela perguntou.
– Pode ficar com meu sêmen, mas não com minha pessoa –
disse Paul. – Irulan banida e inseminada artificial...
– Como ousa?! – a Reverenda Madre atacou, empertigando-se.
Stilgar deu meio passo à frente.
De maneira desconcertante, o ghola sorriu. E agora Alia o
estudava.
– Não vamos discutir as coisas que sua Irmandade proíbe –
disse Paul. – Não quero ouvir falar de pecados, abominações, nem
das crenças remanescentes dos últimos Jihads. Pode ficar com
meu sêmen para usá-lo em seus planos, mas nenhum filho de
Irulan irá se sentar em meu trono.
– Seu trono – ela desdenhou.
– Meu trono.
– Então quem dará à luz o herdeiro imperial?
– Chani.
– Ela é estéril.
– Ela espera um filho.
Uma inspiração involuntária expôs o susto da velha.
– Está mentindo! – gritou.
Paul ergueu a mão e conteve o avanço impetuoso de Stilgar.
– Sabemos há dois dias que ela espera um filho meu.
– Mas Irulan...
– Somente por métodos artificiais. Eis minha oferta.
A Reverenda Madre fechou os olhos para não ver o rosto dele.
Maldição! Lançar a sorte dos genes daquela maneira! O asco
fervilhava em seu íntimo. Os ensinamentos das Bene Gesserit, as
lições do Jihad Butleriano: todos condenavam o ato. Não se
aviltavam as aspirações mais elevadas da humanidade. Nenhuma
máquina podia funcionar da mesma maneira que a mente
humana. Palavras e ações não poderiam insinuar a possibilidade
de reproduzir os homens no mesmo patamar dos animais.
– A decisão é sua – Paul disse.
Ela balançou a cabeça. Os genes, os preciosos genes dos
Atreides: só isso importava. A necessidade tinha raízes mais
profundas que a interdição. Para a Irmandade, o acasalamento
misturava mais do que esperma e óvulo. O objetivo era capturar a
psique.
A Reverenda Madre agora entendia a sagacidade sutil da oferta
de Paul. Ele faria as Bene Gesserit cúmplices de um ato que
acarretaria a ira popular... se um dia fosse descoberto. Não
poderiam admitir a paternidade se o imperador a negasse. A
troca talvez preservasse os genes dos Atreides para a Irmandade,
mas nunca compraria um trono.
Percorreu o recinto com o olhar, estudando cada rosto: Stilgar,
passivo e à espera; o ghola, imobilizado em algum lugar em seu
íntimo; Alia a observar o ghola... e Paul, a ira sob uma fina camada
superficial.
– É sua única oferta? – ela perguntou.
– Minha única oferta.
Ela olhou para o ghola, presa de um movimento breve dos
músculos da face da criatura. Emoção?
– Você, ghola – ela disse. – É recomendável fazer uma oferta
como essa? E tendo sido feita, é recomendável aceitá-la? Seja
nosso Mentat.
Os olhos metálicos voltaram-se para Paul.
– Responda como bem entender – disse Paul.
O ghola voltou mais uma vez seus olhos reluzentes para a
Reverenda Madre, sobressaltou-a novamente ao sorrir.
– A oferta é tão boa quanto a coisa real que ela compra, e só –
ele disse. – A troca oferecida aqui é uma vida por outra, uma
negociação de ordem elevada.
Alia removeu uma mecha de cabelos acobreados da testa e
disse:
– E o que mais se esconde nessa barganha?
A Reverenda Madre recusou-se a olhar para Alia, mas as
palavras arderam em sua mente. Sim, havia ali implicações muito
mais profundas. Sim, a irmã era uma abominação, mas não havia
como negar sua posição de Reverenda Madre, com todas as
implicações do título. Gaius Helen Mohiam sentiu-se, naquele
instante, não uma única pessoa, mas todas as outras que se
juntavam em minúsculos congéries em sua memória. Estavam
alertas, todas as Reverendas Madres que ela absorvera ao se
tornar uma Sacerdotisa da Irmandade. Alia deveria estar na
mesma situação.
– O que mais? – o ghola indagou. – É de se perguntar por que as
bruxas Bene Gesserit não usaram os métodos dos Tleilaxu.
Gaius Helen Mohiam e todas as Reverendas Madres dentro
dela estremeceram. Sim, os Tleilaxu faziam coisas repugnantes.
Se baixassem as barreiras à inseminação artificial, o passo
seguinte seria o dos Tleilaxu: a mutação controlada?
Paul, observando o jogo de emoções a seu redor, sentiu de
repente como se não conhecesse mais aquelas pessoas. Só
enxergava estranhos. Até mesmo Alia era uma estranha.
Alia disse:
– Se lançássemos os genes Atreides ao sabor da corrente de um
rio Bene Gesserit, quem sabe o que sairia disso?
A cabeça de Gaius Helen Mohiam virou-se com presteza, e ela
confrontou o olhar de Alia. Na velocidade de um instante, uniram-
se como Reverendas Madres, dividindo um único pensamento: O
que está por trás de qualquer ação dos Tleilaxu? O ghola era uma
coisa tleilaxu. Teria implantado aquele plano na mente de Paul?
Paul tentaria negociar diretamente com os Bene Tleilax?
Ela interrompeu o contato com o olhar de Alia, sentindo suas
próprias ambiguidades e inadequações. Lembrou-se de que a
armadilha do treinamento das Bene Gesserit estava nos poderes
concedidos: esses poderes predispunham a pessoa à vaidade e ao
orgulho. Mas o poder enganava quem o usava. A tendência era
acreditar que o poder seria capaz de superar qualquer barreira...
até mesmo a ignorância da própria pessoa.
Só uma coisa ali era suprema para as Bene Gesserit, ela disse
consigo mesma. Era a pirâmide de gerações que chegara ao ápice
com Paul Atreides... e a abominação que era sua irmã. Uma
decisão errada naquele momento e a pirâmide teria de ser
reconstruída... gerações atrás nas linhagens paralelas e com
espécimes reprodutores a quem faltariam as melhores
características.
Mutação controlada, ela pensou. Os Tleilaxu realmente a
praticaram? Tentador! Ela sacudiu a cabeça, para se livrar melhor
desses pensamentos.
– Rejeita minha proposta? – Paul perguntou.
– Estou pensando – ela disse.
E, outra vez, ela olhou para a irmã. O cruzamento ideal para
aquela mulher Atreides se perdera... morto por Paul. No entanto,
restava uma outra possibilidade, que consolidaria a característica
desejada num descendente. Paul atrevia-se a oferecer a
reprodução dos animais às Bene Gesserit! Quanto ele estaria
realmente preparado para pagar pela vida de sua Chani?
Aceitaria um cruzamento com sua própria irmã?
Lutando para ganhar tempo, a Reverenda Madre disse:
– Diga-me, ó exemplo impecável de tudo que é sagrado, Irulan
tem algo a dizer a respeito dessa sua proposta?
– Irulan fará o que você lhe mandar fazer – Paul resmungou.
Verdade, Mohiam pensou. Firmou o queixo, ofereceu um novo
gambito:
– Existem dois Atreides.
Paul, pressentindo parte do que a velha tinha em mente, sentiu
o sangue corar seu rosto.
– Cuidado com o que vai sugerir – ele disse.
– Você simplesmente usaria Irulan para seus próprios fins,
hein? – ela perguntou.
– Ela não foi treinada para ser usada? – Paul perguntou.
E nós a treinamos, é o que está dizendo, Mohiam pensou. Bem...
Irulan é uma moeda dividida. Haveria outro jeito de usar uma
moeda como essa?
– Vai colocar o filho de Chani no trono? – a Reverenda Madre
perguntou.
– No meu trono – disse Paul.
Ele olhou para Alia, perguntando-se de repente se ela conhecia
as possibilidades divergentes naquele diálogo. Alia permanecia
de olhos fechados, estranhamente sossegada. Com que força
interior ela comungava? Vendo a irmã daquele jeito, Paul sentiu-
se à deriva. Alia estava numa praia que se afastava dele.
A Reverenda Madre tomou sua decisão e disse:
– É muita coisa para uma pessoa só decidir. Tenho de consultar
meu Conselho em Wallach. Permitirá uma mensagem?
Como se ela precisasse de minha permissão!, Paul pensou.
Disse:
– Concordo, então. Mas não se demore demais. Não vou esperar
sentado enquanto vocês discutem.
– Vai negociar com os Bene Tleilax? – o ghola perguntou, e sua
voz foi uma intromissão cortante.
Os olhos de Alia se abriram de repente, e ela fitou o ghola como
se um invasor perigoso a tivesse acordado.
– Não resolvi nada disso – Paul falou. – O que farei é ir para o
deserto tão logo isso possa ser arranjado. Nosso filho nascerá no
sietch.
– Sábia decisão – salmodiou Stilgar.
Alia recusou-se a olhar para Stilgar. Era a decisão errada. Era
capaz de sentir isso em cada uma de suas células. Paul devia
saber. Por que tinha se lançado por aquele caminho?
– Os Bene Tleilax ofereceram seus serviços? – Alia perguntou.
Ela viu que Mohiam aguardava a resposta.
Paul balançou a cabeça.
– Não. – Olhou para Stilgar. – Stil, cuide para que a mensagem
seja enviada a Wallach.
– É para já, milorde.
Paul virou-se, esperou até Stilgar chamar os guardas e sair com
a bruxa velha. Percebeu que Alia ponderava se deveria confrontá-
lo com mais perguntas. Em vez disso, ela se virou para o ghola.
– Mentat, os Tleilaxu tentarão cair nas boas graças de meu
irmão?
O ghola deu de ombros.
Paul percebeu que divagava. Os Tleilaxu? Não... não da
maneira que Alia está pensando. Mas a pergunta revelava que ela
não tinha visto as alternativas. Bem... a visão variava de uma sibila
para outra. Por que não uma variação de irmão para irmã?
Divagando... divagando... Ele voltava de cada pensamento com um
sobressalto para apanhar fragmentos da conversa que acontecia
a sua volta.
– ... deve saber o que os Tleilaxu...
– ... a completude dos dados é sempre...
– ... dúvidas consideráveis no que...
Paul virou-se, olhou para a irmã, chamou a atenção dela. Sabia
que ela veria lágrimas em seu rosto e se perguntaria por quê. Que
perguntasse. A conjectura agora era uma gentileza. Ele olhou
para o ghola, vendo apenas Duncan Idaho, apesar dos olhos
metálicos. A tristeza e a compaixão digladiavam-se dentro de
Paul. O que aqueles olhos de metal registrariam?
Existem vários graus de visão e vários graus de cegueira, Paul
pensou. Sua mente voltou-se para uma paráfrase de um trecho da
Bíblia Católica de Orange: “Que sentidos nos faltam para que não
consigamos ver um outro mundo a nossa volta?”.
Seriam aqueles olhos de metal um sentido diferente da visão?
Alia foi até o irmão, percebendo sua absoluta tristeza. Tocou
uma lágrima em sua face, num gesto fremen de espanto, e disse:
– Não devemos prantear aqueles que nos são caros antes de
sua partida.
– Antes de sua partida – Paul sussurrou. – Diga-me, irmãzinha,
o que seria antes?
“Já estou farto dessa história de deus e sacerdote!
Acha que não enxergo meu próprio mythos?
Verifique seus dados mais uma vez, Hayt.
Introduzi meus ritos nos atos humanos mais
elementares. As pessoas comem em nome de
Muad’Dib! Fazem amor em meu nome, nascem em
meu nome... atravessam a rua em meu nome. Não
se pode erguer uma viga de teto no casebre mais
humilde da longínqua Gangishree sem que se
invoque a bênção de Muad’Dib!”
– “Livro das diatribes”, em A crônica de Hayt

– Arrisca-se demais abandonando seu posto e vindo aqui a esta


hora – disse Edric, olhando ferozmente para o Dançarino Facial
através das paredes de seu tanque.
– Como seu raciocínio é fraco e estreito – disse Scytale. – Quem
é este que vem lhe fazer uma visita?
Edric hesitou, observando a forma corpulenta, as pálpebras
pesadas, a cara obtusa. Era muito cedo, e o metabolismo de Edric
não havia ainda passado do descanso noturno para o consumo
pleno de mélange.
– Essa não é a forma que circulou pelas ruas? – Edric
perguntou.
– Ninguém olharia duas vezes para alguns dos personagens
que fui hoje – respondeu Scytale.
O camaleão pensa que uma mudança de forma irá escondê-lo de
qualquer coisa, Edric pensou, com raro discernimento. E
imaginou se a presença dele na conspiração realmente os
escondia de todos os poderes oraculares. A irmã do imperador,
por exemplo...
Edric chacoalhou a cabeça, agitando o gás laranja de seu
tanque, e disse:
– Por que veio aqui?
– É preciso estimular o presente a agir mais depressa – disse
Scytale.
– Impossível.
– É preciso encontrar uma maneira – Scytale insistiu.
– Por quê?
– As coisas não estão a meu gosto. O imperador está tentando
nos dividir. Já fez sua oferta às Bene Gesserit.
– Ah, foi isso.
– É, isso! Você tem de estimular o ghola a...
– Você o criou, Tleilaxu. Sabe que não há como me pedir uma
coisa dessas. – Edric fez uma pausa, aproximou-se da parede
transparente de seu tanque. – Ou será que mentiu para nós a
respeito desse presente?
– Mentir?
– Disse-nos para apontar e soltar a arma, nada mais. Depois de
entregue o ghola, não teríamos como interferir.
– Pode-se transtornar qualquer ghola. Basta interrogá-lo a
respeito de sua identidade original.
– O que isso fará?
– Isso o induzirá a tomar atitudes que atenderão a nossos
propósitos.
– Ele é um Mentat dotado dos poderes da lógica e da razão –
objetou Edric. – Pode deduzir o que estou fazendo... ou a irmã. Se
a atenção dela estiver no...
– Você nos esconde ou não da sibila? – Scytale perguntou.
– Não tenho medo de oráculos. Preocupo-me com a lógica, com
espiões de verdade, com os poderes materiais do Imperium, com
o controle da especiaria, com...
– Podemos contemplar à vontade o imperador e seus poderes
contanto que não nos esqueçamos de que todas as coisas são
finitas – Scytale falou.
Estranhamente, o Piloto recuou, inquieto, agitando os
membros feito um tritão estapafúrdio. Scytale resistiu a uma
sensação de asco ao ver aquilo. O Navegador da Guilda vestia sua
costumeira malha escura, com o cinto bojudo e seus diversos
recipientes. Mas... dava a impressão de estar nu ao se mover.
Eram os gestos, o nadar, o estender dos braços, decidiu Scytale, e
mais uma vez ficou impressionado com os elos delicados de sua
conspiração. Não formavam um grupo compatível. Isso era uma
fraqueza.
A agitação de Edric cessou. Ele fitava Scytale, a visão tingida
pelo gás laranja que o sustentava. Que plano o Dançarino Facial
teria guardado para se salvar?, Edric se perguntou. O Tleilaxu
não agia de maneira previsível. Mau agouro.
Alguma coisa na voz e nas ações do Navegador dizia a Scytale
que o membro da Guilda temia mais a irmã que o imperador. Foi
um pensamento repentino projetado rapidamente na tela da
percepção. Perturbador. Teriam deixado passar algo importante
a respeito de Alia? O ghola seria armamento suficiente para
destruir os dois?
– Sabe o que dizem de Alia? – Scytale perguntou, sondando.
– O que quer dizer?
O peixe-homem voltou a ficar agitado.
– Que a filosofia e a cultura nunca tiveram uma benfeitora como
ela – disse Scytale. – Prazer e beleza se unem na...
– O que há de duradouro na beleza e no prazer? – Edric
indagou. – Destruiremos os dois Atreides. Cultura! Oferecem
cultura para governar melhor. Beleza! Promovem a beleza que
escraviza. Criam uma ignorância letrada: nada mais fácil que isso.
Não deixam nada ao acaso. Correntes! Tudo o que fazem cria
correntes, escraviza. Mas os escravos sempre se revoltam.
– A irmã pode se casar e produzir descendentes – disse Scytale.
– Por que está falando da irmã? – Edric perguntou.
– Pode ser que o imperador escolha um homem para ela.
– Deixe-o escolher. Já é tarde demais.
– Nem mesmo você é capaz de inventar o instante seguinte –
advertiu Scytale. – Você não é um criador... assim como os
Atreides não são. – Meneou a cabeça. – Não devemos ousar
demais.
– Não somos nós que saímos por aí boquejando a respeito da
criação – protestou Edric. – Não somos nós a ralé que tenta fazer
de Muad’Dib um messias. Que absurdo é esse? Por que levanta
essas questões?
– É este planeta. Ele levanta questões.
– Os planetas não falam!
– Este aqui fala.
– Ah, é?
– Fala da criação. A areia soprada pelo vento à noite, isso é a
criação.
– Areia soprada pelo vento...
– Quando acordamos, a primeira luz nos mostra o mundo novo:
completamente virgem e pronto para receber nossos rastros.
Areia sem rastros?, Edric pensou. Criação? Sentiu-se enredado
por uma ansiedade repentina. A prisão que era seu tanque, a sala
que o cercava, tudo se fechava em cima dele, apertava-o.
Rastros na areia.
– Você fala como um fremen – disse Edric.
– É uma ideia fremen, e instrutiva – Scytale concordou. – Falam
que o Jihad de Muad’Dib deixou rastros no universo da mesma
maneira que um fremen deixa pegadas na areia nova. Eles
abriram uma trilha na vida dos homens.
– E daí?
– Chega mais uma noite. O vento sopra.
– Sim, o Jihad é finito. Muad’Dib usou seu Jihad e...
– Ele não usou o Jihad – disse Scytale. – O Jihad o usou. Creio
que ele o teria detido se pudesse.
– Se pudesse? Ele só tinha de...
– Ora, fique quieto! – Scytale vociferou. – Não se pode deter
uma epidemia mental. Ela salta de uma pessoa para outra através
de parsecs. É irresistivelmente contagiosa. Ela ataca o lado
desprotegido, onde abrigamos os fragmentos de outras pestes
semelhantes. Quem é capaz de deter algo assim? Muad’Dib não
tem o antídoto. A coisa tem origem no caos. As ordens
conseguem chegar lá?
– Você foi infectado, então? – Edric perguntou. Girou
lentamente no gás laranja, imaginando por que as palavras de
Scytale continham tanto medo em seu tom. O Dançarino Facial
teria rompido com a conspiração? Não havia como perscrutar o
futuro e examinar a questão naquele momento. O futuro havia se
tornado uma torrente de lama, entupida de profetas.
– Estamos todos contaminados – disse Scytale, lembrando a si
mesmo que a inteligência de Edric era gravemente limitada.
Como poderia fazer o membro da Guilda entender?
– Mas quando nós o destruirmos – disse Edric –, o contá...
– Eu deveria abandoná-lo à própria ignorância. Mas meus
deveres não o permitem. Além do mais, é perigoso para todos
nós.
Edric recuou, firmou-se com um pontapé de um dos pés
palmados, o que fez o gás laranja tremular em volta de suas
pernas.
– Você diz coisas estranhas.
– A coisa toda é explosiva – disse Scytale, com uma voz mais
calma. – Está prestes a arrebentar. Quando o fizer, serão cacos
para todo lado, através dos séculos. Você não vê?
– Já lidamos com religiões antes – protestou Edric. – Se essa
nova...
– Não é só uma religião! – Scytale disse, perguntando-se o que a
Reverenda Madre teria a dizer sobre aquela dura lição imposta a
um colega conspirador. – O governo religioso é algo mais.
Muad’Dib enfiou seu Qizarate em toda parte, desalojou os antigos
cargos do governo. Mas ele não tem um funcionalismo público
permanente, nem embaixadas entrosadas. Tem prelazias, ilhas de
autoridade. No centro de cada ilha, um homem. Os homens
aprendem a obter e manter o poder pessoal. Os homens são
invejosos.
– Quando estiverem divididos, nós iremos absorvê-los um a um
– disse Edric, com um sorriso complacente. – É só cortar fora a
cabeça para o corpo tombar diante...
– Esse corpo tem duas cabeças – disse Scytale.
– A irmã... que pode se casar.
– Que certamente irá se casar.
– Não gosto de seu tom de voz, Scytale.
– E eu não gosto de sua ignorância.
– E daí se ela se casar? Isso irá abalar nossos planos?
– Irá abalar o universo.
– Mas eles não são singulares. Eu mesmo possuo poderes que...
– Você é uma criancinha. Está ensaiando os primeiros passos
por onde eles já andaram.
– Eles não são singulares!
– Está esquecendo, membro da Guilda, que um dia criamos um
Kwisatz Haderach. Trata-se de um ser farto do espetáculo do
Tempo. É uma forma de vida que não se pode ameaçar sem se
cercar de uma ameaça idêntica. Muad’Dib sabe que queríamos
atacar sua Chani. Temos de agir mais rápido do que vínhamos
fazendo. Você tem de chegar ao ghola, estimulá-lo como eu
ensinei.
– E se eu não o fizer?
– Sentiremos o raio na pele.
Ó, verme de muitos dentes,
Podes negar o que não tem cura?
A carne e o alento que te atraem
Para o campo de todos os princípios
Alimentam-se de monstros a se contorcer numa
porta de fogo!
Não tens em todo o teu figurino um manto
Que cubra a embriaguez da divindade
Nem que esconda as queimaduras do desejo!
– “Cantiga do verme”, retirada do Livro de Duna

Paul fizera um bocado de esforço na sala de exercícios, usando


a dagacris e a espada curta contra o ghola. No momento, estava
de pé junto a uma janela, olhando para a praça do templo lá
embaixo, e tentava imaginar o que estaria acontecendo com
Chani na clínica. Levaram-na para lá, passando mal, no meio da
manhã, sexta semana de gravidez. Os médicos eram os melhores.
Chamariam quando tivessem notícias.
As densas nuvens de areia da tarde escureciam o céu acima da
praça. Os fremen tinham um nome para aquelas condições
atmosféricas: “ar sujo”.
Será que os médicos nunca chamariam? Os segundos
pelejavam a passar, relutavam a entrar no universo dele.
A espera... a espera... As Bene Gesserit não mandavam
nenhuma resposta de Wallach. Postergavam deliberadamente,
claro.
A visão presciente tinha registrado aqueles momentos, mas ele
resguardava sua percepção do oráculo, preferindo ali o papel de
um Peixe-do-Tempo, a nadar não para onde ele queria ir, e sim
para onde as correntes o levavam. O destino não permitia mais
contendas.
Ouvia-se o ghola a guardar as armas, examinando o
equipamento. Paul suspirou, levou uma das mãos ao próprio
cinto, desativou seu escudo. O formigamento da extinção do
campo percorreu-lhe a pele.
Confrontaria os fatos quando Chani voltasse, Paul disse a si
mesmo. Teria tempo suficiente então para aceitar o fato de que
aquilo que escondera dela havia lhe prolongado a vida. Era
maldade, ele se perguntou, preferir Chani a um herdeiro? Com que
direito ele tomava a decisão no lugar dela? Que tolice pensar
aquilo! Quem poderia hesitar, dadas as alternativas: fossos de
escravos, tortura, sofrimento agonizante... e coisas piores?
Ouviu a porta se abrir, os passos de Chani.
Paul se virou.
A intenção de matar havia se instalado na expressão de Chani.
O largo cinto fremen que cingia a cintura de seu manto dourado,
os hidroanéis que ela usava como colar, uma das mãos nos
quadris (nunca longe da faca), o olhar incisivo com o qual ela
sempre inspecionava qualquer sala ao entrar: tudo nela era agora
só um pano de fundo para a violência.
Ele abriu os braços quando ela se aproximou, trouxe-a para
bem perto de si.
– Alguém andou colocando um contraceptivo em minha comida
durante um bom tempo... antes de eu começar a nova dieta – ela
rouquejou, falando de encontro ao peito dele. – A gravidez será
problemática por causa disso.
– Mas há algum remédio? – ele perguntou.
– Remédios perigosos. Sei de onde veio esse veneno! O sangue
dela é meu.
– Minha Sihaya – ele murmurou, apertando-a nos braços para
aplacar um tremor repentino. – Você terá o herdeiro que
queremos. Já não basta?
– Minha vida é consumida mais depressa – ela disse, colando-se
ao corpo dele. – A gravidez agora controla minha vida. Os médicos
me disseram que segue a uma velocidade terrível. Tenho de
comer e comer... e ingerir mais especiaria também... comê-la,
bebê-la. Vou matar aquela mulher por isso!
Paul beijou-lhe o rosto.
– Não, minha Sihaya. Não vai matar ninguém. – E pensou: Irulan
prolongou sua vida, querida. Para você, a hora do parto é a hora
da morte.
Sentiu que o pesar secreto sugava-lhe o tutano, despejava sua
vida num frasco negro.
Chani desvencilhou-se dele.
– Não podemos perdoá-la!
– Quem falou em perdoar?
– Então por que não devo matá-la?
Foi uma pergunta tão categórica e típica dos fremen que Paul
se viu quase sobrepujado por uma vontade histérica de rir. Ele a
disfarçou, dizendo:
– Não ajudaria em nada.
– Você viu isso?
Paul sentiu seu abdômen se contrair com a lembrança-visão.
– O que vi... o que vi... – ele murmurou.
Cada aspecto dos acontecimentos mais próximos encaixava-se
num presente que o paralisava. Sentia-se acorrentado a um
futuro que, exposto com demasiada frequência, aferrava-se a ele
feito um súcubo voraz. Uma secura tensa fechou-lhe a garganta.
Imaginou se teria seguido o feitiço de seu próprio oráculo até se
ver atirado num presente impiedoso.
– Conte-me o que viu – Chani disse.
– Não posso.
– Por que não posso matá-la?
– Porque estou pedindo.
Ele a viu aceitar o fato. Ela o fez da mesma maneira que a areia
aceitava a água: absorvendo-a e escondendo-a. Havia obediência
sob aquela superfície quente e zangada?, ele se perguntou. E
percebeu então que a vida no Forte real em nada mudara Chani.
Ela simplesmente ficara ali durante algum tempo, acomodara-se
numa escala da viagem ao lado de seu homem. Não haviam lhe
tirado nada que pertencesse ao deserto.
Chani se afastou dele, olhou para o ghola que esperava de pé
perto do círculo de losangos da sala de exercícios.
– Andou se batendo com ele? – ela perguntou.
– E foi bom para mim.
O olhar dela dirigiu-se ao círculo no chão, depois voltou aos
olhos metálicos do ghola.
– Não gosto dessa coisa – ela disse.
– Ele não foi criado para me atacar.
– Você viu isso?
– Não vi!
– Então como sabe?
– Porque ele é mais que um ghola: ele é Duncan Idaho.
– Os Bene Tleilax o fizeram.
– Fizeram mais do que tinham a intenção de fazer.
Ela sacudiu a cabeça. Uma ponta de seu lenço nezhoni roçou-
lhe o decote do manto.
– Como pode mudar o fato de que ele é um ghola?
– Hayt, é você o instrumento de minha ruína?
– Se a substância do aqui e do agora for alterada, o futuro será
alterado – disse o ghola.
– Isso não é resposta! – objetou Chani.
Paul ergueu a voz:
– Como vou morrer, Hayt?
A luz faiscava nos olhos artificiais.
– Dizem, milorde, que morrerá por causa do dinheiro e do
poder.
Chani se empertigou.
– Como ele se atreve a falar assim com você?
– O Mentat é sincero – explicou Paul.
– Duncan Idaho era um amigo de verdade? – ela perguntou.
– Ele deu sua vida por mim.
– É uma pena que não se possa restaurar a identidade original
de um ghola – Chani sussurrou.
– E você me converteria? – o ghola perguntou, dirigindo seu
olhar para Chani.
– O que ele quer dizer? – Chani perguntou.
– Ser convertido é dar meia-volta – disse Paul. – Mas não há
volta.
– Todo homem traz consigo seu próprio passado – Hayt falou.
– E todo ghola? – Paul perguntou.
– De certo modo, milorde.
– Então, e quanto a esse passado que se esconde em seu corpo
secreto? – perguntou Paul.
Chani viu como a pergunta transtornou o ghola. Os
movimentos dele ficaram mais rápidos, as mãos se fecharam. Ela
olhou para Paul, perguntando-se por que ele o interrogava
daquela maneira. Haveria um jeito de restaurar o homem que a
criatura tinha sido um dia?
– Algum ghola já se lembrou de seu verdadeiro passado? –
Chani perguntou.
– Foram muitas as tentativas – disse Hayt, o olhar fixo no chão
perto de seus pés. – Nenhum ghola até hoje recuperou sua antiga
identidade.
– Mas você deseja que isso aconteça – Paul falou.
As superfícies descoradas dos olhos do ghola ergueram-se
para se concentrar em Paul com uma intensidade premente.
– Sim!
Em voz baixa, Paul disse:
– Se houver uma maneira...
– Este corpo não é o corpo com que nasci – disse Hayt, tocando
a testa com a mão esquerda, numa curiosa saudação. – Ele...
renasceu. Somente a forma é familiar. Um Dançarino Facial se
sairia igualmente bem.
– Não tão bem – Paul falou. – E você não é um Dançarino Facial.
– É verdade, milorde.
– De onde vem sua forma?
– Da impressão genética das células originais.
– Em algum lugar, há uma coisa maleável que se lembra da
forma de Duncan Idaho. Dizem que os antigos esquadrinharam
essa região antes do Jihad Butleriano. Qual é a extensão dessa
lembrança, Hayt? O que ela aprendeu com o original?
O ghola encolheu os ombros.
– E se ele não foi Idaho? – Chani perguntou.
– Foi, sim.
– Dá para ter certeza?
– Ele é Duncan em todos os aspectos. Não consigo imaginar
uma força grande o suficiente para manter essa forma dessa
maneira, sem o menor lapso ou desvio.
– Milorde! – Hayt objetou. – Só porque não conseguimos
imaginar uma coisa, não significa que podemos excluí-la da
realidade. Existem coisas que tenho de fazer como ghola que eu
não faria como homem.
Mantendo sua atenção em Chani, Paul disse:
– Viu só?
Ela fez que sim.
Paul deu-lhe as costas, resistindo a uma tristeza profunda. Foi
até as janelas da sacada, fechou as cortinas. As luzes se
acenderam na repentina escuridão. Apertou a faixa do manto,
prestou atenção aos ruídos atrás dele.
Nada.
Virou-se. Chani parecia em transe, com o olhar concentrado no
ghola.
Paul viu que Hayt havia se retirado para algum aposento
interior de seu ser: voltara a sua posição de ghola.
Chani virou-se ao ouvir que Paul voltava. Ainda era escrava do
instante que Paul havia precipitado. Por um breve momento, o
ghola tinha sido um ser humano profundo e cheio de vida.
Naquele momento, ele tinha sido alguém que ela não temia – de
fato, alguém que ela apreciava e admirava. Agora ela entendia
aonde Paul quisera chegar com o interrogatório. Ele queria que
ela visse o homem no corpo do ghola.
Ela olhou para Paul.
– Aquele homem, aquele era Duncan Idaho?
– Aquele era Duncan Idaho. Ele ainda está ali.
– Ele teria permitido que Irulan continuasse viva? – Chani
perguntou.
A água não penetrou muito fundo, Paul pensou. E disse:
– Se eu tivesse ordenado, sim.
– Não entendo – ela disse. – Você não deveria estar zangado?
– Estou zangado.
– Não parece... zangado. Parece triste.
Ele fechou os olhos.
– É. Isso também.
– Você é meu homem. Sei disso, mas, de repente, não entendo
você.
Subitamente, Paul teve a impressão de que percorria uma
caverna comprida. Seu corpo se movia – um pé depois do outro –,
mas seus pensamentos estavam em outro lugar.
– Eu não me entendo – ele sussurrou.
Quando abriu os olhos, descobriu que havia se afastado de
Chani.
Ela falou de algum lugar atrás dele.
– Querido, não perguntarei de novo o que você viu. Só sei que
darei a você o herdeiro que queremos.
Ele assentiu, e então:
– Eu já sabia, desde o começo.
Ele se virou para estudá-la. Chani parecia muito distante.
Ela se empertigou, levou uma das mãos ao abdômen.
– Estou faminta. Os médicos me disseram para comer três ou
quatro vezes mais do que antes. Estou assustada, querido. Está
indo rápido demais.
Rápido demais, ele concordou. Esse feto sabe que a pressa é
uma necessidade.
Vê-se a natureza audaciosa das ações de Muad’Dib
no fato de que Ele sabia desde o início para onde
estava indo e, no entanto, nunca se desviou do
caminho. Deixou isso claro quando falou: “Digo-
lhes que chego, agora, a minha provação, quando
ficará demonstrado que eu sou o Servo Supremo”.
E assim Ele entretece todos em Um, para que
tanto amigos quanto inimigos possam adorá-Lo. É
por esse motivo, e só por esse motivo, que Seus
apóstolos rezavam: “Senhor, salve-nos dos outros
caminhos que Muad’Dib cobriu com as Águas de
Sua Vida”. Só é possível imaginar esses “outros
caminhos” com a mais profunda aversão.
– excerto d’O Yiam-el-Din (Livro do Julgamento)

Quem trazia a mensagem era uma moça – Chani conhecia-lhe o


rosto, o nome e a família –, e foi por isso que ela passou pela
Segurança Imperial.
Chani não fizera mais do que identificá-la para um oficial da
Segurança de nome Bannerjee, que depois arranjou a reunião com
Muad’Dib. Bannerjee agiu por instinto e motivado pela certeza de
que o pai da moça fizera parte dos Comandos Suicidas do
imperador, os temidos Fedaykin, nos tempos anteriores ao Jihad.
Não fosse isso, ele teria ignorado a alegação da moça de que sua
mensagem destinava-se somente aos ouvidos de Muad’Dib.
Naturalmente, ela foi examinada e revistada antes da reunião
no gabinete particular de Paul. Ainda assim, Bannerjee a
acompanhou, com uma das mãos sobre a faca e a outra no braço
da moça.
Era quase meio-dia quando a fizeram entrar na sala: um recinto
estranho que misturava o estilo fremen do deserto com o ar
aristocrático das Famílias. Ornamentos típicos dos hiereg
forravam três paredes: tapeçarias delicadas, adornadas com
figuras saídas da mitologia fremen. Um monitor de vídeo cobria a
quarta parede, uma superfície cinza-prateada atrás de uma
escrivaninha oval cujo tampo sustentava um único objeto, um
relógio de areia fremen embutido num planetário. O planetário,
um mecanismo suspensor de Ix, trazia as duas luas de Arrakis no
clássico Trígono do Verme alinhado com o sol.
Paul, de pé ao lado da escrivaninha, olhou para Bannerjee. O
oficial da Segurança era um daqueles que começaram na Guarda
Civil Fremen, e ele conquistara sua posição usando a cabeça e
provando sua lealdade, apesar dos ancestrais contrabandistas,
como seu nome atestava. Era uma figura compacta, quase gordo.
Mechas de cabelos pretos caíam-lhe sobre a pele escura e
aparentemente hidratada de sua testa feito a crista de uma ave
exótica. Seus olhos eram azul-azuis e fixavam-se naquele olhar
capaz de presenciar a felicidade ou a atrocidade sem mudar de
expressão. Tanto Chani quanto Stilgar confiavam nele. Paul sabia
que, se o mandasse esganar a moça imediatamente, Bannerjee o
faria.
– Sire, aqui está a moça com a mensagem – falou Bannerjee. –
Milady Chani disse que mandou avisá-lo.
– Sim – concordou Paul, com um breve aceno de cabeça.
Estranhamente, a moça não olhou para ele; sua atenção
continuava no planetário. Ela tinha pele escura, altura mediana,
as formas ocultas sob um manto de tecido cor de vinho suntuoso
e corte simples, algo que indicava gente de posses. Os cabelos
negro-azulados vinham presos numa faixa estreita de material
semelhante ao do traje. O manto escondia-lhe as mãos. Paul
desconfiava de que as mãos estivessem firmemente entrelaçadas.
Seria condizente com a personagem. Tudo nela seria condizente
com a personagem, até mesmo o manto: um último resquício de
elegância, guardado para um momento como aquele.
Paul fez sinal para que Bannerjee se colocasse de lado. Ele
hesitou antes de obedecer. E então a moça se moveu: um passo
adiante. Quando ela se movia, havia graça. Ainda assim, os olhos
dela o evitavam.
Paul limpou a garganta.
Então a moça ergueu o olhar, e os olhos sem nada de branco se
arregalaram de admiração na medida certa. Ela tinha um rostinho
peculiar, o queixo delicado, uma impressão de resguardo na
maneira como exibia a boca pequena. Os olhos pareciam
anormalmente grandes acima dos zigomas oblíquos. Havia nela
um certo desânimo a indicar que ela raramente sorria. Os cantos
dos olhos ostentavam um tênue deslustro amarelo que poderia
sinalizar a irritação provocada pelo pó ou o rastro da semuta.
Tudo condizia com a personagem.
– Você pediu para me ver – disse Paul.
O momento da provação suprema para aquela forma de moça
chegara. Scytale assumira a forma, os maneirismos, o sexo, a voz:
tudo que suas habilidades foram capazes de captar e presumir.
Mas era uma mulher que Muad’Dib conhecia desde os tempos do
sietch. Fora uma criança na época, mas ela e Muad’Dib tinham as
mesmas experiências. Certas áreas da memória tinham de ser
evitadas com delicadeza. Era o papel mais difícil que Scytale já
havia tentado interpretar.
– Sou Lichna de Berk al Dib, filha de Otheym.
A voz da moça saiu fraca, mas firme, fornecendo nome, filiação
e estirpe.
Paul assentiu. Entendeu como Chani se deixara enganar. O
timbre da voz, tudo reproduzido com exatidão. Não fossem o
treinamento Bene Gesserit que ele mesmo recebera para usar a
Voz e a teia de dao na qual a visão oracular o envolvia, aquele
disfarce de Dançarino Facial talvez tivesse enganado até mesmo
ele.
O treinamento expôs certas discrepâncias: a moça era mais
velha do que deveria ser; havia um excesso de controle nas cordas
vocais; a disposição do pescoço e dos ombros errava por muito
pouco a altivez do aprumo fremen. Mas também havia esmero: o
manto suntuoso fora remendado para denunciar a verdadeira
condição social... e os traços eram de uma exatidão belíssima.
Indicavam uma certa simpatia daquele Dançarino Facial pelo
papel que representava.
– Descanse em minha casa, filha de Otheym – Paul disse,
usando a saudação formal fremen. – É bem-vinda como a água
depois de uma travessia árida.
Um relaxamento dos mais sutis expôs a confiança transmitida
por aquela aparente aceitação.
– Trago uma mensagem – ela disse.
– O mensageiro de um homem é como se fosse ele mesmo –
Paul falou.
Scytale exalou de mansinho. Saíra-se bem, mas agora vinha a
tarefa decisiva: era preciso conduzir o Atreides para aquele
caminho especial. Ele tinha de perder sua concubina fremen em
circunstâncias nas quais ninguém mais poderia levar a culpa. O
fracasso devia caber apenas ao onipotente Muad’Dib. Era preciso
fazê-lo perceber seu fracasso supremo e então aceitar a
alternativa dos Tleilaxu.
– Sou a fumaça que bane o sono à noite – Scytale disse,
empregando o código dos Fedaykin: trago más notícias.
Paul lutou para manter a calma. Sentia-se nu, a alma
abandonada num tempo de cegueira que se escondia de todas as
visões. Oráculos poderosos ocultavam aquele Dançarino Facial.
Paul conhecia apenas os contornos daqueles momentos. Sabia
apenas o que não podia fazer. Não podia matar aquele Dançarino
Facial. Isso precipitaria o futuro que era preciso evitar a todo
custo. De alguma maneira, era preciso encontrar um jeito de
alcançar o coração das trevas e mudar aquele padrão aterrador.
– Entregue-me sua mensagem.
Bannerjee posicionou-se de tal maneira a observar o rosto da
moça. Ela pareceu reparar nele pela primeira vez, e o olhar dela se
dirigiu para o cabo da faca sob a mão do oficial da Segurança.
– Os inocentes não acreditam na maldade – ela comentou,
olhando diretamente para Bannerjee.
Aaah, muito bom, Paul pensou. Era o que a verdadeira Lichna
teria dito. Ele sentiu uma dor aguda e momentânea pela
verdadeira filha de Otheym – morta, um cadáver na areia. Mas não
havia tempo para aquelas emoções. Ele franziu o cenho.
Bannerjee manteve sua atenção na moça.
– Mandaram-me entregar a mensagem em segredo – ela disse.
– Por quê? – Bannerjee quis saber, a voz estridente, inquisitiva.
– Porque essa é a vontade de meu pai.
– Ele é meu amigo – Paul disse. – Não sou um fremen? Então
meu amigo poderá ouvir tudo que eu ouvir.
Scytale sossegou a forma de moça. Seria um verdadeiro
costume dos fremen... ou seria um teste?
– O imperador pode fazer suas próprias leis – disse Scytale. –
Eis a mensagem: meu pai deseja que vá até ele e que leve Chani.
– Por que tenho de levar Chani?
– Ela é sua mulher e uma Sayyadina. É uma questão de Água,
pelas regras de nossas tribos. Ela tem de atestar que meu pai fala
de acordo com a Tradição dos fremen.
Há realmente alguns fremen na conspiração, Paul pensou.
Aquele momento sem dúvida alguma estava de acordo com coisas
que ainda viriam a acontecer. E ele não tinha alternativa a não ser
se entregar àquele curso.
– De que seu pai quer falar? – Paul perguntou.
– Quer falar de uma trama contra Muad’Dib, uma trama dos
fremen.
– Por que ele não trouxe a mensagem pessoalmente? – indagou
Bannerjee.
Ela não tirava os olhos de Paul.
– Meu pai não pode vir aqui. Os conspiradores desconfiam dele.
Ele não sobreviveria à viagem.
– Ele não poderia ter revelado a trama a você? – Bannerjee
perguntou. – Por que arriscar a vida da filha nesta missão?
– Os pormenores estão seguros dentro de um portador
distrans que só Muad’Dib poderá abrir – ela disse. – Disso eu sei.
– Por que não mandar o distrans, então? – perguntou Paul.
– É um distrans humano – ela respondeu.
– Então eu irei. Mas irei sozinho.
– Chani precisa vir junto!
– Chani espera um filho.
– Quando é que uma mulher fremen se recusou a...
– Meus inimigos deram-lhe um veneno sutil – Paul explicou. –
Será uma gravidez difícil. Sua saúde não permitirá que ela me
acompanhe agora.
Antes que Scytale conseguisse detê-las, emoções estranhas
transpareceram na fisionomia da moça: frustração, raiva. Scytale
lembrou que toda vítima devia ter uma escapatória, até mesmo
alguém como Muad’Dib. Mas a conspiração não havia fracassado.
O Atreides ainda estava na rede. Era uma criatura que havia se
enfiado resolutamente dentro de um padrão. Destruiria a si
mesmo antes de se transformar no oposto daquele padrão. Tinha
sido assim com o Kwisatz Haderach dos Tleilaxu. Seria assim com
aquele ali. Além disso... o ghola.
– Deixe-me pedir que Chani decida – ela disse.
– Eu já decidi. Você me acompanhará no lugar de Chani.
– Precisamos de uma Sayyadina do Rito!
– Você não é amiga de Chani?
Encurralado!, Scytale pensou. Será que ele desconfia? Não. É a
cautela dos fremen. E o contraceptivo é um fato. Bem... existem
outras maneiras.
– Meu pai me falou para não voltar, que era para pedir asilo
aqui. Disse que Muad’Dib não me colocaria em perigo.
Paul concordou. Lindamente condizente com a personagem.
Ele não teria como negar o asilo. Ela usaria como argumento a
obediência fremen a uma ordem paterna.
– Levarei a esposa de Stilgar, Harah – Paul disse. – Diga-nos
como chegar a seu pai.
– Como sabe que pode confiar na esposa de Stilgar?
– Sabendo.
– Mas eu não sei.
Paul mordiscou os lábios, e então:
– Sua mãe ainda está viva?
– Minha mãe de verdade juntou-se a Shai-hulud. Minha
segunda mãe ainda está viva e cuida de meu pai. Por quê?
– Ela é de Sietch Tabr?
– Sim.
– Lembro-me dela. Ela tomará o lugar de Chani. – Paul fez um
sinal para Bannerjee. – Cuide para que os criados levem Lichna,
filha de Otheym, a aposentos adequados.
Bannerjee assentiu. Criados. A palavra-código que indicava que
era preciso colocar aquela mensageira sob vigilância especial. Ele
a tomou pelo braço. Ela resistiu.
– Como irá ter com meu pai? – ela indagou.
– Você descreverá o caminho para Bannerjee – Paul falou. – Ele
é meu amigo.
– Não! Meu pai mandou! Não posso!
– Bannerjee? – fez Paul.
Bannerjee estacou. Paul viu que o homem vasculhava a
memória enciclopédica que o ajudara a chegar àquela posição de
confiança.
– Conheço um guia capaz de levá-lo a Otheym – disse
Bannerjee.
– Então irei sozinho.
– Sire, se...
– Otheym quer assim – Paul disse, mal disfarçando o sarcasmo
que o consumia.
– Sire, é muito perigoso – protestou Bannerjee.
– Até mesmo um imperador tem de aceitar certos riscos. A
decisão foi tomada. Faça o que mandei.
Relutantemente, Bannerjee levou o Dançarino Facial para fora
da sala.
Paul virou-se para a tela em branco atrás de sua escrivaninha.
Teve a impressão de que esperava a chegada de uma pedra que
descia às cegas de um lugar alto.
Devia revelar a Bannerjee a verdadeira natureza da
mensageira?, ele se perguntou. Não! Aquele incidente fora
inscrito na tela de sua visão. O menor desvio acarretaria uma
violência precipitada. Era preciso encontrar um momento que
servisse de fulcro, um lugar onde ele conseguisse se desenredar
da visão por vontade própria.
Se é que existia esse momento...
Por mais exótica que a civilização humana se
torne, não importam os progressos da vida e da
sociedade, nem a complexidade da interface
máquina/ser humano, sempre aparecem
interlúdios de poder solitário em que o rumo da
humanidade, o próprio futuro da humanidade,
depende das ações relativamente simples de
indivíduos isolados.
– excerto d’O Livru de Deus dos Tleilaxu

Ao fazer a travessia pela alta passarela que ia de seu Forte ao


Ministério do Qizarate, Paul começou a mancar de propósito. O
sol estava quase para se pôr, e ele atravessava sombras
compridas que ajudavam a ocultá-lo, mas olhos aguçados ainda
poderiam detectar em seus modos alguma coisa que o
identificasse. Levava um escudo, mas não o ativara, pois seus
assistentes decidiram que o tremeluzir da coisa poderia levantar
suspeitas.
Paul olhou para a esquerda. Cordões de nuvens de areia se
estendiam sobre o pôr do sol feito uma persiana. O ar que
atravessava os filtros de seu trajestilador era seco como o de um
hiereg.
Não estava realmente sozinho ali fora, mas a rede de Segurança
que o cercava nunca fora tão frouxa desde que ele deixara de
andar sozinho pelas ruas à noite. Ornitópteros dotados de
radares noturnos seguiam ao sabor do vento lá no alto, num
padrão aparentemente aleatório, todos ligados aos movimentos
dele por meio de um transmissor escondido em suas roupas.
Homens selecionados percorriam as ruas lá embaixo. Outros
haviam se espalhado por toda a cidade depois de ver o imperador
disfarçado: figurino fremen completo, até o trajestilador e as
botinas temag, as feições pintadas de negro. Suas bochechas
foram distorcidas com implantes de plasteno. Um tubo coletor
percorria-lhe a mandíbula esquerda.
Ao chegar à outra extremidade da ponte, Paul olhou para trás e
viu algo se mover ao lado da gelosia de pedra que disfarçava a
sacada de seus aposentos particulares. Chani, sem dúvida
alguma. Ela havia comparado aquela aventura a “procurar areia
no deserto”.
Como ela entendia mal a decisão amarga. Escolher uma agonia
ou outra, ele pensou, tornava até mesmo as agonias mais
insignificantes quase insuportáveis.
Por um instante confuso e emocionalmente doloroso, ele
reviveu a despedida. No último segundo, Chani tivera um
vislumbre-tau do que ele sentia, mas entendera tudo errado.
Pensara que as emoções dele eram as da despedida de pessoas
queridas quando uma delas entrava no perigoso desconhecido.
Como eu queria desconhecer, ele pensou.
Ele já havia cruzado a ponte e entrado no corredor superior
que atravessava o ministério. Ali havia luciglobos fixos e pessoas
atarefadas, movidas pela pressa. O Qizarate nunca dormia.
Chamaram a atenção de Paul as placas acima das portas, como se
ele as visse pela primeira vez: Despachantes. Destilarias e
Retortas Eólicas. Folhetos Proféticos. Provas de Fé. Suprimentos
Religiosos. Armamento... Propagação da Fé...
Um letreiro mais honesto teria sido Propagação da Burocracia,
ele pensou.
Uma espécie de funcionário público religioso havia surgido em
todo o seu universo. Esse homem novo do Qizarate costumava ser
um convertido. Raramente desalojava um fremen de cargos-
chave, mas preenchia todos os interstícios. Usava o mélange mais
para mostrar que podia pagar por ele do que em troca dos
benefícios geriátricos. Distinguia-se de seus soberanos: o
imperador, a Guilda, as Bene Gesserit, o Landsraad, a Família ou o
Qizarate. Seus deuses eram a Rotina e os Registros. Era suprido
por Mentats e sistemas prodigiosos de arquivamento.
Conveniência era a primeira palavra de seu catequismo, apesar de
professar da boca para fora sua devoção aos preceitos
butlerianos. Afirmava que não se podiam criar máquinas à
imagem da mente de um homem, mas cada um de seus atos
revelava que ele preferia as máquinas aos homens, os números
aos indivíduos, a visão geral e remota ao contato íntimo e pessoal
que exigia imaginação e iniciativa.
Quando saiu na rampa do outro lado do edifício, Paul escutou
os sinos a anunciar o Rito Vespertino no Fano de Alia.
Havia uma estranha sensação de permanência naqueles sinos.
O templo do outro lado da praça apinhada de gente era novo; os
rituais, de criação recente. Mas havia algo naquele cenário numa
pia desértica nos limites de Arrakina – algo na maneira como a
areia carregada pelo vento começara a erodir as pedras e o
plasteno, algo na maneira fortuita como os prédios haviam se
elevado em volta do Fano. Tudo conspirava para produzir a
impressão de que se tratava de um lugar antigo, cheio de
tradições e mistérios.
Ele já estava bem no meio da turba: não havia mais volta. O
único guia que sua força de Segurança conseguira encontrar
havia insistido para que se fizesse a coisa daquela maneira. A
Segurança não gostara nada da rapidez com que Paul havia
concordado. Stilgar gostara menos ainda. E Chani objetara mais
que todos os outros.
A multidão a seu redor, mesmo quando as pessoas só o
resvalavam, olhava de relance para ele, sem vê-lo, e seguia em
frente, dando-lhe uma curiosa liberdade para se movimentar. Ele
sabia que era a maneira como foram condicionadas a tratar um
fremen. Ele se portava como um homem das profundezas do
deserto. Esses homens se enfureciam facilmente.
Quando ele entrou na torrente apressada que seguia na direção
da escadaria do templo, o aperto ficou ainda maior. Já não havia
mais como as pessoas não se espremerem contra ele, mas ele se
viu alvo de desculpas ritualizadas: “Perdoe-me, nobre senhor. Não
tenho como evitar esta descortesia”. “Perdão, senhor. Nunca vi
um aperto pior que este.” “Humildes desculpas, cidadão
abençoado. Um desajeitado me empurrou.”
Paul passou a ignorar as palavras depois das primeiras. Não
havia sentimento nelas, a não ser uma espécie de medo
ritualizado. Em vez disso, pegou-se pensando que fora um longo
percurso desde seu tempo de menino no castelo Caladan. Onde
foi que tomara o caminho que o levara àquela travessia de uma
praça apinhada de gente num planeta tão distante de Caladan?
Tinha realmente tomado um caminho? Não sabia dizer se, em
algum momento de sua vida, havia agido por uma razão
específica. As motivações e as forças opressoras foram
complexas, talvez mais complexas que qualquer outro conjunto
de estímulos na história humana. Ele tinha ali a sensação
inebriante de que poderia ainda evitar o destino que enxergava
tão nitidamente ao longo daquele caminho. Mas a multidão o
impelia, e ele teve a sensação vertiginosa de que havia se perdido,
de que perdera o comando de sua própria vida.
A multidão seguiu com ele escadaria acima e entrou no pórtico
do templo. As vozes tornaram-se sussurros. O cheiro do medo
ficou mais forte – acre, suarento.
Os acólitos já haviam começado o culto dentro do templo. Seu
cântico despretensioso dominava os outros sons – sussurros, o
ruge-ruge de roupas, o arrastar de pés, tosse –, contando a
história dos Lugares Distantes que a Sacerdotisa visitava em seu
transe sagrado.

“Ela monta o verme da areia espacial!


Ela atravessa todas as tempestades
E nos conduz ao país de ventos mansos.
Dormimos à entrada do ninho da serpente,
Mas ela guarda nossas almas a sonhar.
Afastando-se do calor do deserto,
Ela nos esconde num vale fresco.
O brilho de seus dentes brancos
Guia-nos à noite.
Pelas tranças de seus cabelos
Somos alçados ao céu!
Uma doce fragrância de flores
Nos envolve em sua presença.”

Balak!, Paul pensou na língua fremen. Cuidado! Ela também


pode se encher de paixão e fúria.
No pórtico do templo, havia fileiras de lucitubos altos e finos
que simulavam chamas de velas. Eles bruxulearam. O bruxuleio
revolveu lembranças ancestrais em Paul, muito embora ele
soubesse que era essa a intenção. Aquele cenário era um
atavismo, arquitetado com astúcia, eficaz. Ele detestava sua
própria participação naquilo tudo.
A multidão seguiu com ele através das portas de metal e entrou
na nave gigantesca, um lugar lúgubre, com luzes bruxuleantes lá
no alto, distantes, e um altar iluminadíssimo na outra ponta.
Atrás do altar – um móvel de madeira negra enganadoramente
simples, decorado com desenhos arenosos retirados da mitologia
fremen –, luzes ocultas dançavam no campo de uma portapru e
criavam uma aurora boreal iridescente. As sete fileiras de acólitos
cantores logo abaixo daquela cortina espectral ganhavam um quê
de sobrenatural: mantos negros, rostos brancos, bocas que se
moviam em uníssono.
Paul examinou os peregrinos a seu redor e, de repente, teve
inveja do desvelo que demonstravam, da maneira como pareciam
escutar verdades que ele não conseguia ouvir. Pareceu-lhe que
obtinham ali algo que a ele era negado, algo misteriosamente
capaz de curar.
Tentou se aproximar pouco a pouco do altar, mas foi detido por
uma mão que lhe segurou o braço. Paul virou a cabeça e
encontrou o olhar inquisitivo de um fremen ancião: olhos azul-
azuis sob o cenho ameaçador, a refletir que o haviam reconhecido.
Um nome surgiu na mente de Paul: Rasir, um companheiro dos
tempos de sietch.
No aperto da multidão, Paul sabia que estaria completamente
vulnerável se Rasir tivesse intenções violentas.
O velho chegou mais perto, com uma das mãos sob o manto
encardido de areia – segurando o cabo de uma dagacris, sem
dúvida. Paul preparou-se da melhor maneira possível para resistir
a um ataque. O velho aproximou a cabeça do ouvido de Paul e
sussurrou:
– Seguiremos com os outros.
Era o sinal que identificaria seu guia. Paul concordou com a
cabeça.
Rasir se afastou e virou-se para o altar.
– Ela vem do leste – cantavam os acólitos. – Com o sol a suas
costas. Todas as coisas ficam expostas. No fulgor pleno da luz,
seus olhos não deixam passar nada, seja claro ou escuro.
Um rebabe lamuriento desafinou no entrechoque com as vozes,
calou-as, retirou-se para o silêncio. Com uma precipitação
elétrica, a multidão avançou vários metros impetuosamente.
Viram-se espremidos numa massa compacta de carne, e o ar se
adensou com a respiração das pessoas e o cheiro da especiaria.
– Shai-hulud escreve sobre areia limpa! – clamaram os acólitos.
Paul sentiu sua própria respiração se unir à das pessoas a seu
redor. Um coro feminino começou a cantar baixinho nas sombras
atrás da portapru tremeluzente:
– Alia... Alia... Alia...
Foi ganhando cada vez mais volume, sucumbiu a um silêncio
repentino.
E, de novo, vozes começando a vesperar baixinho:

“Ela acalma todas as tempestades –


Seus olhos matam nossos inimigos,
E atormentam os descrentes.
Desde os minaretes de Tuono
Onde bate a luz da aurora
E corre a água límpida,
vê-se sua sombra.
No calor resplendente do verão
Ela nos serve pão e leite –
Frescos, fragrantes de especiarias.
Seus olhos derretem nossos inimigos,
Atormentam nossos opressores
E penetram todos os mistérios.
Ela é Alia... Alia... Alia...”

Lentamente, as vozes foram se calando.


Paul teve um mal-estar. O que estamos fazendo?, ele se
perguntou. Alia era uma bruxa-criança, mas estava
amadurecendo. E ele pensou: Amadurecer é ficar mais perverso.
A atmosfera mental coletiva do templo roía-lhe a psique. Sentia
a parte de si mesmo que se unira às pessoas a seu redor, mas as
diferenças formavam uma contradição fatal. Estava imerso,
isolado num pecado pessoal que nunca conseguiria expiar. A
imensidão do universo fora do templo inundava sua percepção.
Como poderia um homem, um ritual, esperar coser tamanha
imensidão num traje que servisse em todos os homens?
Paul estremeceu.
O universo fazia-lhe oposição a cada passo. Escapava-lhe das
mãos, concebia incontáveis disfarces para enganá-lo. Aquele
universo nunca concordaria com nenhuma forma que ele lhe
desse.
Um silêncio profundo espalhou-se por todo o templo.
Alia surgiu das trevas atrás da iridescência tremeluzente.
Vestia um manto amarelo, debruado com o verde dos Atreides: o
amarelo para representar a luz do sol; o verde, a morte que gerava
a vida. Paul experimentou a ideia repentina e surpreendente de
que Alia aparecera ali só para ele, tão somente para ele. Seu olhar
percorreu a turba dentro do templo para se fixar em sua irmã. Ela
era sua irmã. Conhecia o ritual dela e suas raízes, mas nunca
antes estivera ali com os peregrinos, vendo-a através dos olhos
deles. Ali, representando o mistério daquele lugar, ele percebeu
que ela era parte do universo que lhe fazia oposição.
Os acólitos trouxeram-lhe um cálice dourado.
Alia ergueu o cálice.
Usando parte de sua percepção, Paul entendeu que o cálice
continha o mélange inalterado, o veneno sutil, o sacramento do
oráculo de Alia.
De olhos fixos no cálice, Alia falou. Sua voz afagava os ouvidos,
o som floral, fluente e musical:
– No princípio, éramos vazios – ela disse.
– Ignorávamos todas as coisas – cantou o coro.
– Não conhecíamos o Poder que reside em todos os lugares –
disse Alia.
– E em todos os Tempos – cantou o coro.
– Eis o Poder – Alia disse, erguendo ligeiramente o cálice.
– Ele nos traz alegria – cantou o coro.
E nos traz sofrimento, Paul pensou.
– Ele desperta a alma – disse Alia.
– Desfaz todas as dúvidas – o coro cantou.
– Nos planetas, perecemos – Alia disse.
– No Poder, sobrevivemos – cantou o coro.
Alia levou o cálice aos lábios, bebeu.
Para seu assombro, Paul flagrou-se prendendo o fôlego tanto
quanto o peregrino mais humilde daquela turba. Apesar de
conhecer tão bem cada fragmento da experiência pela qual Alia
passava, ele fora apanhado na teia do tau. Percebeu que
relembrava como o veneno incandescente entrava no corpo e o
percorria. A memória desvelou a cessação do tempo, quando a
percepção tornava-se um cisco e alterava o veneno. Voltou a
provar como era despertar em meio à ausência de tempo onde
todas as coisas eram possíveis. Ele conhecia a experiência pela
qual Alia passava no momento, mas agora via que não a conhecia.
O mistério cegava os olhos.
Alia estremeceu, caiu de joelhos.
Paul exalou, acompanhando os peregrinos extasiados.
Assentiu com a cabeça. Parte do véu que o cobria começou a se
erguer. Absorto na bem-aventurança de uma visão, ele havia
esquecido que cada visão pertencia àqueles que ainda estavam a
caminho, ainda por devir. Na visão, atravessava-se a escuridão,
sem que se pudesse distinguir a realidade do acidente
insubstancial. Ansiava-se por absolutos que nunca poderiam
existir.
Nessa ânsia, perdia-se o presente.
Alia oscilava no êxtase da alteração da especiaria.
Pareceu a Paul que uma presença transcendental lhe falava,
dizendo:
– Veja! Bem ali! Está vendo o que você ignorava?
Naquele instante, pensou enxergar com outros olhos, ver uma
série de imagens e um ritmo naquele lugar que nenhum artista ou
poeta conseguiria reproduzir. Era vital e lindo, uma luz fulgurante
que expunha toda ânsia de poder... até mesmo a sua.
Alia falou. Sua voz amplificada retumbou por toda a nave.
– Noite luminosa – gritou.
Um gemido varreu a multidão de peregrinos feito uma onda.
– Nada se esconde numa noite como esta! – disse Alia. – Que luz
rara é esta escuridão? Não há como fixar nela o olhar! Os sentidos
não a registram. Não há palavras que a descrevam. – Baixou a voz.
– Resta o abismo. Prenhe de todas as coisas que ainda não
existem. Aaaaah, que violência delicada!
Paul sentiu que esperava um sinal particular de sua irmã.
Poderia ser qualquer gesto, qualquer palavra, algo relacionado à
magia e a processos místicos, uma corrente de dentro para fora
que o assentasse feito flecha num arco cósmico. O momento era
como o mercúrio a tremular em sua percepção.
– Haverá tristeza – entoou Alia. – Lembrem-se de que todas as
coisas não passam de um começo, estão sempre começando.
Mundos aguardam ser conquistados. Algumas pessoas ao
alcance de minha voz terão destinos gloriosos. Vocês irão zombar
do passado, esquecerão o que lhes digo agora: dentro de todas as
diferenças existe a unidade.
Paul reprimiu um grito de decepção quando Alia baixou a
cabeça. Ela não havia dito o que ele esperava ouvir. Seu corpo
pareceu-lhe uma crosta seca, uma casca abandonada por um
inseto do deserto.
Outras pessoas deviam estar sentindo algo parecido, pensou.
Percebeu a inquietação a seu redor. De repente, uma mulher da
turba, alguém bem mais adiante ali na nave, à esquerda de Paul,
elevou a voz, um som angustiado e sem palavras.
Alia ergueu a cabeça e Paul teve a sensação vertiginosa de que
a distância entre eles havia ruído, de que ele olhava diretamente
nos olhos vidrados da irmã, a poucos centímetros dela.
– Quem me chama? – Alia perguntou.
– Eu – gritou a mulher. – Eu, Alia. Ó, Alia, ajude-me. Dizem que
meu filho foi morto em Muritan. Ele se foi? Nunca mais voltarei a
ver meu filho...? Nunca?
– Você está tentando andar de costas na areia – entoou Alia. –
Nada se perde. Tudo volta mais tarde, mas pode ser que você não
reconheça a forma alterada que voltará.
– Alia, não entendo! – a mulher se queixou.
– Você vive cercada pelo ar, mas não o vê – Alia disse, com
mordacidade na voz. – Você é um lagarto? Sua voz tem o sotaque
fremen. Uma fremen tenta trazer os mortos de volta? De que mais
precisamos de nossos mortos, exceto a água?
Bem no centro da nave, um homem de capa vermelha e
suntuosa ergueu as duas mãos, e as mangas caíram, expondo os
braços cobertos de branco.
– Alia – bradou. – Fizeram-me uma proposta comercial. Devo
aceitar?
– Você vem aqui feito um pedinte – disse Alia. – Procura a tigela
dourada, mas só encontrará um punhal.
– Pediram-me para matar um homem! – bradou uma voz que
vinha da direita, uma voz grave, com a tonalidade do sietch. –
Devo aceitar? E, se aceitar, terei êxito?
– Início e fim são a mesma coisa – Alia falou, ríspida. – Já não lhe
disse isso antes? Você não veio aqui fazer essa pergunta. No que é
que não consegue acreditar para ter de vir aqui se queixar?
– Ela está num humor terrível hoje – resmungou uma mulher
perto de Paul. – Você já a tinha visto assim tão irritada?
Ela sabe que estou aqui, Paul pensou. Terá visto na visão
alguma coisa que a enfureceu? Estaria furiosa comigo?
– Alia – chamou um homem bem na frente de Paul. – Diga a este
bando de frouxos e negociantes quanto tempo seu irmão irá
governar!
– Tem minha permissão para procurar a resposta você mesmo
– Alia grunhiu. – Você traz o preconceito na boca! Se meu irmão
não montasse o verme do caos, você não teria casa nem água!
Com um gesto veemente, apertando o manto, Alia girou nos
calcanhares, atravessou as fitas bruxuleantes de luz, perdeu-se
nas trevas atrás delas.
Imediatamente, os acólitos enveredaram pelo cântico de
encerramento, mas perderam o ritmo. Obviamente, foram
surpreendidos pelo fim inesperado do rito. Um balbuciar
incoerente elevou-se da multidão de todos os lados. Paul sentiu a
agitação a seu redor, a inquietude, a insatisfação.
– Foi aquele idiota e sua pergunta estúpida sobre negócios –
uma mulher perto de Paul resmungou. – O hipócrita!
O que Alia tinha visto? Qual das trilhas que atravessavam o
futuro?
Alguma coisa acontecera ali naquela noite, estragando o rito do
oráculo. Geralmente, a multidão clamava para que Alia
respondesse suas perguntas desprezíveis. Sim, procuravam o
oráculo feito pedintes. Ele os ouvira fazer aquilo muitas vezes, ao
observá-los escondido nas trevas atrás do altar. O que saíra
diferente naquela noite?
O fremen idoso puxou a manga de Paul e, com a cabeça,
apontou a saída. A multidão já começava a empurrá-los naquela
direção. Paul deixou-se acotovelar junto com eles, a mão do guia
em sua manga. Tinha a sensação de que seu corpo havia se
tornado a manifestação de um poder que ele não mais controlava.
Havia se tornado uma não entidade, uma imobilidade móvel. No
centro da não entidade, lá estava ele, deixando-se levar pelas ruas
de sua cidade, seguindo uma trilha tão familiar a suas visões que
fez seu coração se enregelar de pesar.
Eu deveria saber o que Alia viu, pensou. Eu mesmo já o vi tantas
vezes. E ela não se queixou... ela também viu as alternativas.
O aumento da produção e o aumento da renda
não podem sair de sincronia em meu Império. Eis
a essência de minha ordem. Não pode haver
nenhuma dificuldade na balança comercial das
diversas esferas de influência. E a razão para
tanto é simplesmente porque assim o ordeno.
Quero enfatizar minha autoridade nessa área.
Sou o consumidor de energia supremo deste
domínio, e continuarei a sê-lo, vivo ou morto. Meu
Governo é a economia.
– Decreto-lei do imperador Paul Muad’Dib

– É aqui que nos despedimos – disse o velho, soltando a manga


de Paul. – Fica ali à direita, a segunda porta de lá para cá. Vá com
Shai-hulud, Muad’Dib... e lembre-se de quando era Usul.
O guia de Paul sumiu na escuridão.
Paul sabia que haveria homens da Segurança por ali,
preparados para apanhar o guia e levar o homem ao
interrogatório. Mas Paul flagrou-se torcendo para que o fremen
idoso escapasse.
Havia estrelas no céu e a luz distante da Primeira Lua, que
vinha de algum lugar além da Muralha-Escudo. Mas ali não era o
deserto aberto onde um homem podia contar com uma estrela
como guia. O velho o trouxera para um dos novos subúrbios, e
isso Paul era capaz de perceber.
A tal rua estava tomada pela areia que o vento trazia das dunas
invasoras. O brilho fraco de um solitário globo suspenso da
iluminação pública no fim da rua fornecia luz suficiente para
mostrar que se tratava de um beco sem saída.
O ar se adensou com o cheiro de um destilador de
reaproveitamento. A coisa devia estar mal tampada para deixar
escapar seus odores fétidos e liberar no ar noturno uma
quantidade de umidade que beirava perigosamente o
desperdício. Como sua gente andava descuidada, Paul pensou.
Eram os milionários da água: esqueciam-se daquele tempo em
que poderiam matar um homem em Arrakis por causa de uma
oitava parte da água de seu corpo.
Por que hesito?, Paul se perguntou. É a segunda porta de lá para
cá. Eu já sabia disso antes que me dissessem. Mas é preciso levar a
coisa até o fim e com precisão. Portanto... hesito.
Uma gritaria irrompeu de repente da casa de esquina à
esquerda de Paul. Uma mulher ralhava com alguém: a nova ala da
casa deixava entrar pó, ela se queixava. Por acaso ele achava que a
água caía do céu? Se o pó entrava, a umidade saía.
Alguns se lembram, Paul pensou.
Ele seguiu pela rua e a discussão foi ficando para trás.
Água do céu!, ele pensou.
Alguns fremen viram aquele prodígio em outros planetas. Ele
mesmo o tinha visto, havia mandado trazê-lo para Arrakis, mas a
lembrança parecia algo que tivesse ocorrido a uma outra pessoa.
Chuva, era chamada. De repente, ele recordou uma tormenta em
seu planeta natal: nuvens densas e cinzentas no céu de Caladan,
uma aparição elétrica e tempestuosa, o ar carregado de umidade,
as grandes gotas d’água tamborilando nas claraboias. A chuva
escorria feito riacho pelos beirais dos telhados. Bueiros levavam a
água até um rio que, embarreado e túrgido, passava pelos
pomares da Família... e ali os galhos estéreis das árvores
cintilavam molhados.
Paul prendeu o pé num montinho baixo de areia do outro lado
da rua. Por um segundo, sentiu o barro aderir a seus sapatos de
menino. E aí estava de volta à areia, na escuridão entupida de pó e
ensurdecida pelo vento, com o Futuro a pairar acima dele,
provocador. A aridez da vida a sua volta pareceu-lhe uma
acusação. Você fez isto! Tornaram-se uma civilização de espiões
de olhos secos e mexeriqueiros, pessoas que resolviam todos os
problemas com energia... e mais energia... e ainda mais energia.
Odiando cada erg.
Pisou em pedras irregulares. Sua visão lembrava-se delas. O
retângulo escuro de uma porta apareceu a sua direita, preto
sobre preto: a casa de Otheym. A casa do Destino, um lugar
diferente dos outros que o cercavam somente na função que o
Tempo havia escolhido lhe dar. Era um lugar estranho para ficar
marcado na história.
A porta se abriu em resposta a sua batida. O vão revelou a luz
verde e baça de um átrio. Um anão o examinou lá de dentro, uma
cara idosa num corpo de criança, uma aparição que a presciência
nunca vira.
– Não é que você veio? – disse a aparição.
O anão deu um passo para o lado, nenhum espanto em seus
modos, meramente a satisfação maldosa de um sorriso vagaroso.
– Entre! Entre!
Paul hesitou. Não havia nenhum anão na visão, mas tudo mais
continuava idêntico. As visões podiam ter essas disparidades e,
ainda assim, manter-se fiéis a seu mergulho original no infinito.
Mas a diferença o desafiava a ter esperança. Voltou a olhar para o
começo da rua, para a cintilação perolada e cremosa de sua lua
que emergia de sombras recortadas. A lua o assombrava. Como
foi que ela caiu?
– Entre – o anão insistiu.
Paul entrou, ouviu o baque surdo da porta que se encaixava nos
lacres de umidade. O anão passou por ele e foi mostrando o
caminho, açoitando o chão com os pés enormes. Abriu o delicado
portão de treliça que dava entrada ao pátio central e coberto e
acenou:
– Eles estão esperando, sire.
Sire, Paul pensou. Então ele me conhece.
Antes que Paul conseguisse investigar o que acabara de
descobrir, o anão escapuliu por uma passagem lateral. A
esperança era um vento dervixe a rodopiar, a dançar dentro de
Paul. Ele se dirigiu ao outro lado do pátio. Era um lugar escuro e
melancólico, havia ali um cheiro de doença e derrota. Sentiu-se
intimidado pela atmosfera. Seria derrota escolher um mal menor?,
ele se perguntou. A que distância havia chegado naquela trilha?
Um vão de porta estreito na parede oposta despejava luz. Ele
suprimiu os cheiros ruins e a sensação de ser observado, passou
pela porta e entrou numa sala pequena. Era um lugar árido para
os padrões fremen, com tapeçarias típicas dos hiereg somente em
duas paredes. De frente para a porta, um homem estava sentado
sobre almofadas carmesins logo abaixo da melhor tapeçaria. Um
vulto feminino deslizava nas sombras atrás de uma outra porta,
numa parede nua à esquerda.
Paul sentiu-se aprisionado na visão. Tinha sido assim. Onde
estava o anão? Onde estava a diferença?
Seus sentidos absorveram a sala numa única varredura
gestáltica. O lugar era mantido com esmero, apesar da pouca
mobília. Ganchos e varas pelas paredes nuas indicavam de onde
as tapeçarias tinham sido removidas. Os peregrinos pagavam
quantias exorbitantes por artefatos fremen autênticos, lembrou-
se Paul. Os peregrinos ricos consideravam tesouros as tapeçarias
do deserto, insígnias legítimas de um hajj.
Paul teve a impressão de que as paredes nuas o acusavam com
sua demão recente de gesso. O estado puído das duas tapeçarias
remanescentes ampliava a sensação de culpa.
Uma prateleira estreita ocupava a parede a sua direita.
Sustentava uma fileira de retratos, em sua maioria de fremen
barbados, alguns de trajestilador, com os tubos coletores
pendurados; outros de uniforme imperial, fazendo pose diante de
cenários exóticos de outros planetas. O mais comum era a
paisagem marítima.
O fremen sobre as almofadas pigarreou, obrigando Paul a olhar
para ele. Era Otheym da maneira exata como a visão o havia
mostrado: o pescoço agora esquelético, uma coisinha delicada
feito pássaro, aparentemente fraca demais para sustentar a
cabeça grande. A cara era um estrago assimétrico: redes de
cicatrizes ziguezagueavam pela face esquerda, logo abaixo de um
olho cheio d’água e de pálpebra caída, mas, do outro lado, a pele
lisa e o olhar franco de fremen, azul sobre azul. O nariz era um
ancorete comprido a bisseccionar o rosto.
A almofada de Otheym ficava no centro de um tapete puído em
castanho, grená e fios de ouro. O tecido da almofada exibia as
manchas do uso e remendos, mas tudo que era metálico em volta
da figura sentada brilhava de lustro: as molduras dos retratos, o
rebordo e os suportes da prateleira, o pedestal de uma mesa
baixa à direita.
Paul dirigiu um cumprimento de cabeça à metade lisa do rosto
de Otheym e disse:
– Boa sorte para você e sua morada.
Era a saudação de um velho amigo e companheiro de sietch.
– Então voltamos a nos ver, Usul.
A voz que pronunciou seu nome tribal saiu com o tremor
plangente dos velhos. O olho baço e de pálpebra caída no lado
arruinado da cara se mexeu acima da pele curtida e das cicatrizes.
Cerdas cinzentas da barba por fazer cobriam aquele lado, e ali
cascas escabrosas pendiam da mandíbula. Quando Otheym
falava, sua boca se retorcia, e a abertura deixava em exposição
dentes de metal prateados.
– Muad’Dib sempre atende ao chamado de um Fedaykin – disse
Paul.
A mulher nas sombras da porta se mexeu e falou:
– É o que Stilgar gosta de alardear.
Ela avançou e veio para a luz, uma versão mais velha da Lichna
que o Dançarino Facial havia copiado. Paul lembrou-se, então, de
que Otheym havia se casado com duas irmãs. Os cabelos dela
eram grisalhos, o nariz adunco como o de uma bruxa. Calos de
tecelã enfileiravam-se em seus indicadores e polegares. Uma
mulher fremen teria exibido aquelas marcas com orgulho na
época do sietch, mas, vendo que ele reparava em suas mãos, ela as
escondeu sob uma dobra do manto azul-claro.
Paul recordou-lhe o nome naquele instante: Dhuri. O choque foi
lembrar-se dela como criança, e não como ela havia aparecido na
visão que ele tivera daqueles momentos. Era o tom choroso na voz
da mulher, Paul disse consigo mesmo. Ela também choramingava
quando criança.
– Está me vendo aqui – disse Paul. – Eu estaria aqui sem a
aprovação de Stilgar? – Virou-se para Otheym. – Carrego seu
fardo d’água, Otheym. Disponha.
Era a conversa franca de fremen irmãos de sietch.
Otheym respondeu com um aceno trêmulo da cabeça, quase
um exagero para aquele pescoço fino. Ergueu a mão esquerda
coberta de manchas senis e apontou o estrago em sua cara.
– Peguei o mal lacerante em Tarahell, Usul – ele ofegou. – Logo
depois da vitória, quando todos tí...
Um acesso de tosse cortou-lhe a voz.
– A tribo logo recolherá a água dele – Dhuri falou.
Ela foi até Otheym, escorou-lhe as costas com travesseiros,
segurou-lhe o ombro para firmá-lo até a tosse passar. Paul viu que
ela não estava realmente muito velha, mas um ar de esperanças
perdidas circundava-lhe a boca, a amargura repousava em seus
olhos.
– Mandarei vir os médicos – disse Paul.
Dhuri virou-se, com uma das mãos no quadril.
– Já tivemos aqui os homens da medicina, e você não
conseguiria mandar melhores.
Ela lançou um olhar involuntário para a parede nua a sua
esquerda.
E os homens da medicina custaram caro, Paul pensou.
Ele se sentia irritadiço, limitado pela visão, mas ciente de que
diferenças insignificantes haviam se insinuado ali. Como poderia
se aproveitar das diferenças? O Tempo ia se desenovelando com
alterações sutis, mas o pano de fundo mostrava uma
uniformidade opressiva. Com uma certeza aterradora, ele sabia
que, se tentasse sair do padrão restritivo bem ali, a coisa ficaria
terrivelmente violenta. A força daquela correnteza falsamente
mansa do Tempo o oprimia.
– Digam o que querem de mim – ele grunhiu.
– Otheym não poderia precisar de um ombro amigo numa hora
como esta? – Dhuri perguntou. – Um Fedaykin tem de confiar seu
corpo a estranhos?
Nós dividimos Sietch Tabr, Paul lembrou a si mesmo. Ela tem o
direito de me repreender por minha aparente insensibilidade.
– O que eu puder fazer, farei – disse Paul.
Mais um acesso de tosse abalou Otheym. Quando a coisa
passou, ele falou, com voz entrecortada:
– Há traição no ar, Usul. Fremen tramando contra você.
Sua boca se mexeu então, sem emitir som. A saliva escapou-lhe
pelos lábios. Dhuri limpou-lhe a boca com uma ponta de seu
próprio manto, e Paul viu como o rosto da mulher demonstrava
irritação diante de tamanho desperdício de umidade.
Nesse momento, a fúria frustrada ameaçou esmagar Paul.
Triste fim o de Otheym! Um Fedaykin merecia coisa melhor. Mas
não restava escolha: não para um comando suicida, nem para seu
imperador. Naquela sala, andava-se no fio da navalha de Occam. O
menor passo em falso multiplicaria o horror, não só para eles
mesmos, como também para toda a humanidade, até mesmo para
aqueles que queriam destruí-los.
Paul obrigou sua mente a se acalmar, olhou na direção de
Dhuri. A expressão terrível de saudade com que ela olhava para
Otheym fortaleceu Paul. Que Chani nunca olhe para mim dessa
maneira, falou consigo mesmo.
– Lichna mencionou uma mensagem – disse Paul.
– Meu anão – chiou Otheym. – Eu o comprei em... em... num
planeta qualquer... esqueci qual. É um distrans humano, um
brinquedo que os Tleilaxu jogaram fora. Ele registrou todos os
nomes... os traidores...
Otheym calou-se, trêmulo.
– Você mencionou Lichna – Dhuri falou. – Quando você
apareceu, entendemos que ela o alcançou em segurança. Se está
pensando nesse novo fardo que Otheym coloca em suas costas,
Lichna o resume. Uma troca justa, Usul: pegue o anão e vá.
Paul conteve um calafrio, fechou os olhos. Lichna! A filha de
verdade havia perecido no deserto, um corpo devastado pela
semuta e abandonado à areia e ao vento.
Abrindo os olhos, Paul disse:
– Poderiam ter me procurado a qualquer momento para...
– Otheym se afastou para que o contassem entre aqueles que
odeiam você, Usul – explicou Dhuri. – A casa ao sul desta, no fim
da rua, é o ponto de encontro de seus inimigos. Foi por isso que
ficamos com este casebre.
– Então mande chamar o anão é nós todos iremos embora –
Paul falou.
– Não escutou direito – disse Dhuri.
– Você tem de levar o anão para um local seguro – falou
Otheym, com uma estranha força em sua voz. – Ele porta o único
registro dos traidores. Ninguém desconfia de que ele tem esse
talento. Acham que fiquei com ele por diversão.
– Não podemos partir – Dhuri falou. – Só você e o anão. Todo
mundo sabe... como somos pobres. Dissemos que íamos vender o
anão. Pensarão que você é o comprador. É sua única chance.
Paul consultou sua lembrança da visão: nela, ele saíra dali com
os nomes dos traidores, sem saber como os transportava. O anão
obviamente agia sob a proteção de um outro oráculo. Ocorreu a
Paul, então, que todas as criaturas deviam levar consigo algum
tipo de destino reprimido por propósitos de força variável, pela
fixação do treinamento e da disposição. A partir do momento em
que o Jihad o escolhera, ele tinha se sentido encurralado pelas
forças de uma multidão. Os propósitos fixos da turba
reivindicavam e controlavam seu curso. Qualquer ilusão de Livre-
Arbítrio que ele nutrisse no momento era só o prisioneiro
sacudindo as barras da cela. Sua maldição era enxergar a cela. Ele
a enxergava!
Passou então a escutar o vazio daquela casa. Só os quatro ali
dentro: Dhuri, Otheym, o anão e ele mesmo. Inalou o medo e a
tensão de seus companheiros, pressentiu os observadores: sua
própria força pairando nos tópteros lá no alto... e os outros... na
casa ao lado.
Eu me enganei em ter esperança, Paul pensou. Mas cogitar a
esperança trouxe-lhe uma sensação deturpada de esperança, e
ele teve a impressão de que ainda poderia aproveitar a
oportunidade.
– Mande vir o anão – ele disse.
– Bijaz! – Dhuri gritou.
– Chamou?
O anão entrou na sala, vindo do pátio, com uma expressão
alerta e preocupada no rosto.
– Você tem um novo mestre, Bijaz – disse Dhuri, olhando para
Paul em seguida. – Pode chamá-lo de... Usul.
– Usul, a base da coluna, seu ponto mais baixo – traduziu Bijaz.
– Como pode Usul ser o que há de mais baixo se eu sou a coisa viva
mais baixa que existe?
– Ele sempre fala assim – desculpou-se Otheym.
– Eu não falo. Opero uma máquina chamada linguagem. Ela
range e geme, mas é minha.
Um brinquedo tleilaxu, bem instruído e alerta, Paul pensou. Os
Bene Tleilax nunca jogaram fora algo tão valioso. Virou-se,
estudou o anão. Olhos redondos de mélange devolveram-lhe o
olhar.
– Que outros talentos você tem, Bijaz? – Paul perguntou.
– Sei quando devemos partir. É um talento que poucos homens
têm. O fim tem hora certa... e eis aí um bom começo. Vamos
começar a partir, Usul.
Paul examinou sua lembrança visionária: nenhum anão, mas as
palavras do homenzinho eram adequadas.
– À porta, você me chamou de sire. Conhece-me, então?
– É tão sério, sire – disse Bijaz, sorrindo. – É muito mais que o
baixo Usul. É o imperador Atreides, Paul Muad’Dib. E meu dedo.
Ele ergueu o indicador da mão direita.
– Bijaz! – Dhuri gritou. – Está abusando da sorte.
– Estou abusando do meu dedo – Bijaz protestou em sua voz
aguda. Apontou Usul. – Estou apontando para Usul. Meu dedo
não é o próprio Usul? Ou é um reflexo de algo mais baixo?
Aproximou o dedo dos olhos, examinou-o com um sorriso
escarninho, primeiro de um lado, depois do outro.
– Aaah, é só um dedo, no fim das contas.
– Ele costuma matraquear dessa maneira – Dhuri disse, com
preocupação na voz. – Creio que foi por isso que os Tleilaxu o
jogaram fora.
– Não preciso de patronagem – Bijaz falou –, mas tenho um
novo patrão. Como são estranhas as manobras do dedo.
Ele examinou Dhuri e Otheym com olhos estranhamente
brilhantes.
– A cola que nos unia era fraca, Otheym. Algumas lágrimas e
adeus.
Os pés grandes do anão rasparam o piso quando ele deu uma
volta completa sobre os calcanhares e deteve-se de frente para
Paul.
– Aaah, patrão! Dei a volta mais longa para encontrá-lo.
Paul assentiu.
– Será bondoso, Usul? – Bijaz perguntou. – Sou uma pessoa,
sabe. As pessoas têm muitas formas e tamanhos. Esta é só uma
delas. A musculatura é fraca, mas a boca é forte; não custa nada
me alimentar, mas sai caro me preencher. Esvazie-me como
quiser, ainda haverá mais dentro de mim do que os homens
colocaram ali.
– Não temos tempo para suas charadas idiotas – Dhuri
resmungou. – Já deviam ter partido.
– Sou só charadas e enigmas, mas nem todos são idiotas. Ter
partido, Usul, é ter passado. Sim? Vamos deixar o que passou
passar. Dhuri fala a verdade, e um de meus talentos é ouvi-la.
– Você tem o sentido para a verdade? – Paul perguntou.
Agora estava determinado a esperar o instante exato de sua
visão. Qualquer coisa era melhor que fragmentar aqueles
momentos e produzir as novas consequências. Otheym ainda
tinha coisas a dizer, para que não se desviasse o Tempo em canais
ainda mais horripilantes.
– Tenho o sentido para o agora – Bijaz disse.
Paul reparou que o anão estava mais apreensivo. O
homenzinho estaria a par de coisas prestes a acontecer? Seria
Bijaz seu próprio oráculo?
– Perguntou sobre Lichna? – Otheym indagou de repente,
perscrutando Dhuri com seu único olho bom.
– Lichna está a salvo – respondeu Dhuri.
Paul baixou a cabeça, para que sua expressão não revelasse a
mentira. A salvo! Lichna era só cinzas numa cova secreta.
– Que bom – falou Otheym, tomando a cabeça baixa de Paul
como um sinal de concordância. – Uma coisa boa no meio de tanta
maldade, Usul. Não gosto do mundo que estamos criando, sabe?
Era melhor quando estávamos quietos em nosso canto no deserto
e tínhamos só os Harkonnen como inimigos.
– Uma linha tênue separa muitos inimigos de muitos amigos –
Bijaz falou. – Onde a linha é interrompida, não há início nem fim.
Vamos dar um fim nisto, meus amigos.
Colocou-se ao lado de Paul, pulou de um pé para outro.
– O que é esse sentido para o agora? – Paul perguntou,
prolongando os segundos, açulando o anão.
– Agora! – Bijaz falou, trêmulo. – Agora! Agora! – Ele puxou o
manto de Paul. – Vamos agora!
– A boca é uma matraca, mas ele é inofensivo – disse Otheym,
com afeição na voz e o olho bom fixo em Bijaz.
– Até mesmo uma matraca pode dar o sinal de partida – Bijaz
falou. – Assim como as lágrimas. Vamos logo enquanto ainda há
tempo para começar.
– Bijaz, do que tem medo? – Paul perguntou.
– Tenho medo do espírito que agora me procura – Bijaz
murmurou. A transpiração brotava em sua testa. As bochechas se
contraíram. – Tenho medo daquele que não pensa e não quer
outro corpo além do meu... e esse voltou para dentro de si! Tenho
medo das coisas que vejo e das coisas que não vejo.
Este anão tem realmente o poder da presciência, pensou Paul.
Bijaz dividia com ele o oráculo aterrador. Dividiria também a sina
do oráculo? A que grau chegaria o poder do anão? Teria a
presciência menor daqueles que se dedicavam ao Tarô de Duna?
Ou seria algo maior? Quanto ele tinha visto?
– É melhor vocês irem – disse Dhuri. – Bijaz tem razão.
– Cada minuto que nos demoramos prolonga... prolonga o
presente! – falou Bijaz.
Cada minuto que me demoro adia minha culpa, pensou Paul.
Fora engolfado pelo hálito venenoso de um verme, com os dentes
a pingar pó. Acontecera havia tempos, mas só agora ele inalava a
lembrança: especiaria e amargura. Pressentiu seu próprio verme
a aguardá-lo: “a urna do deserto”.
– Vivemos tempos conturbados – ele disse, referindo-se à
avaliação que Otheym fizera de seu mundo.
– Os fremen sabem o que fazer em tempos conturbados – Dhuri
falou.
Otheym contribuiu com um aceno trêmulo da cabeça.
Paul olhou para Dhuri. Não esperava gratidão, o fardo do
agradecimento teria sido maior do que ele poderia suportar, mas
a amargura de Otheym e o ressentimento violento que via nos
olhos de Dhuri abalaram sua determinação. Alguma coisa valia
aquela pena?
– De nada adianta se demorar aqui – disse Dhuri.
– Faça o que tem de fazer, Usul – Otheym chiou.
Paul soltou um suspiro. As palavras da visão foram
pronunciadas.
– Haverá um acerto de contas – ele disse, para completá-la.
Virando-se, saiu da sala a passos largos e ouviu o açoite dos pés
de Bijaz logo atrás dele.
– O que passou, passou – Bijaz foi murmurando pelo caminho. –
Passou por onde queria. Foi sórdido hoje o dia.
O enunciado intricado dos legalismos
desenvolveu-se em torno da necessidade de
esconder de nós mesmos a violência que temos a
intenção de dirigir uns aos outros. Entre privar
um homem de uma hora de sua vida e privá-lo de
sua vida existe só uma diferença de grau. Foi
cometida uma violência contra ele, foi consumida
sua energia. Eufemismos elaborados podem
disfarçar a intenção de matar, mas, por trás de
todo e qualquer uso do poder para afetar outra
pessoa, resta o pressuposto supremo: “eu me
alimento de sua energia”.
– Apêndices aos decretos-lei do imperador Paul Muad’Dib

A Primeira Lua se elevava bem acima da cidade quando Paul,


com o escudo ativado e tremeluzindo a seu redor, deixou o beco
sem saída. Um vento oriundo do maciço fez a areia e o pó
remoinhar pela rua estreita, levando Bijaz a piscar e proteger os
olhos.
– Temos de nos apressar – murmurou o anão. – Depressa!
Depressa!
– Pressente o perigo? – Paul perguntou, sondando-o.
– Conheço o perigo!
Uma sensação repentina de perigo imediato foi seguida quase
no mesmo instante por um vulto que saiu de uma porta e se
juntou a eles.
Bijaz se agachou e pôs-se a choramingar.
Era só Stilgar, movendo-se feito máquina de guerra, a cabeça
projetada adiante, os pés tocando com firmeza a rua.
Sem demora, Paul explicou o valor do anão, entregou Bijaz a
Stilgar. O andamento da visão ali era de uma rapidez enorme.
Stilgar sumiu com Bijaz. Os guardas da Segurança cercaram Paul.
Ordens foram emitidas para que mandassem homens ao fim da
rua, para a casa que ficava depois da de Otheym. Os homens
correram obedecer, sombras em meio às sombras.
Mais sacrifícios, Paul pensou.
– Queremos prisioneiros vivos – sibilou um dos oficiais da
guarda.
O som foi um eco-visão nos ouvidos de Paul. Seguia ali com uma
precisão consistente: visão/realidade, momento a momento.
Ornitópteros cruzaram a lua.
A noite foi tomada de assalto por soldados imperiais.
Um silvo baixo brotou dos outros ruídos e ganhou volume,
elevou-se a um rugido enquanto eles ainda escutavam o sussurro.
Adquiriu um clarão castanho-avermelhado que ocultou as
estrelas, engoliu a lua.
Paul, conhecendo o som e o clarão dos primeiros vislumbres
pesadelares de sua visão, teve a estranha sensação de missão
cumprida. Tudo aconteceu como tinha de acontecer.
– Queima-pedra! – alguém gritou.
– Queima-pedra! – O grito vinha de todos os lados. – Queima-
pedra... queima-pedra...
E porque era o que ele tinha de fazer, Paul protegeu o rosto com
o braço e se jogou no chão, buscando o parapeito baixo de um
meio-fio. Já era tarde demais, naturalmente.
Onde antes estivera a casa de Otheym, agora havia um pilar de
fogo, um jato ofuscante a rugir para os céus. Emitia um brilho sujo
que destacava todos os passos de balé dos homens que lutavam e
fugiam, a retirada oblíqua dos ornitópteros.
Para todos os membros daquela turba frenética já era tarde
demais.
O solo logo abaixo de Paul ficou quente. Ele escutou a correria
cessar. Homens se atiraram no chão a seu redor, todos cientes de
que não adiantava correr. O primeiro mal já fora causado, e agora
tinham de aguardar toda a potência do queima-pedra seguir seu
curso. A radiação da coisa, algo de que nenhum homem
conseguiria escapar correndo, já havia penetrado sua carne. O
efeito peculiar da radiação do queima-pedra já agia dentro deles.
O que mais a arma poderia fazer agora dependeria dos planos dos
homens que a usaram, homens que desafiaram a Grande
Convenção para usá-la.
– Deus seja... um queima-pedra – alguém choramingou. – Eu...
não... quero... ficar... cego.
– E quem quer? – foi a voz dura de um soldado mais para o fim
da rua.
– Os Tleilaxu vão vender muitos olhos para nós – alguém
resmungou perto de Paul. – Agora calem a boca e esperem!
Eles esperaram.
Paul continuou calado, pensando nas implicações daquela
arma. Combustível em excesso faria a coisa chegar ao núcleo do
planeta. O manto de Duna era profundo, mas isso só aumentava o
perigo. Tamanhas pressões, uma vez liberadas e fora de controle,
poderiam rachar um planeta, espalhando fragmentos e pedaços
sem vida pelo espaço.
– Acho que já está passando – alguém falou.
– Só está se aprofundando – Paul avisou. – Fiquem onde estão,
todos vocês. Stilgar mandará socorro.
– Stilgar escapou?
– Stilgar escapou.
– O chão está quente – alguém se queixou.
– Atreveram-se a usar armas atômicas! – protestou um soldado
perto de Paul.
– O barulho está diminuindo – disse alguém mais para o fim da
rua.
Paul ignorou as palavras, concentrou-se nas pontas de seus
dedos em contato com a rua. Sentiu o estrondar-ribombar da
coisa: fundo... fundo...
– Meus olhos! – alguém gritou. – Não estou enxergando!
Alguém mais perto da coisa do que eu, Paul pensou. Ele ainda
enxergava até o final do beco quando ergueu a cabeça, embora a
cena estivesse tomada por uma certa nebulosidade. Uma luz
amarela-avermelhada preenchia a área onde um dia estiveram a
casa de Otheym e sua vizinha. Fragmentos das construções
adjacentes criavam desenhos escuros ao desmoronar dentro do
fosso brilhante.
Paul ficou de pé. Sentiu o queima-pedra se extinguir, o silêncio
abaixo dele. Seu corpo estava molhado de suor em contato com a
oleosidade do trajestilador: transpiração demais para o traje
processar. O ar que ganhou seus pulmões trouxe o calor e o fedor
de enxofre do queima-pedra.
Ao olhar para os soldados que começavam a se levantar em
volta dele, a névoa nos olhos de Paul se desfez em treva. Foi aí que
invocou sua visão oracular daqueles momentos, virou-se e pôs-se
a caminhar a passos largos pela trilha que o Tempo abrira para
ele, encaixando-se tão hermeticamente na visão que ela não
conseguiria mais escapar. Teve a impressão de que começava a
perceber aquele lugar como uma possessão multitudinária, a
realidade fundida à predição.
Gemidos e lamentos de seus soldados elevaram-se a toda a sua
volta quando os homens perceberam que estavam cegos.
– Não saiam do lugar! – Paul gritou. – O socorro está a caminho!
– E, como as queixas persistissem, ele disse: – Quem fala é
Muad’Dib! Ordeno que não saiam do lugar! O socorro já vem!
Silêncio.
E aí, fiel à visão de Paul, um guarda ali perto disse:
– É realmente o imperador? Algum de vocês está enxergando?
Digam-me.
– Nenhum de nós tem olhos – respondeu Paul. – Também
tiraram os meus, mas não minha visão. Vejo você aí de pé, um
muro sujo ao alcance de sua mão, a sua esquerda. Agora tenha
coragem e espere. Stilgar vem aí com nossos amigos.
O tuok-tuok de muitos tópteros ganhou volume em todas as
direções. Ouviu-se o som de passos apressados. Paul viu seus
amigos chegar, comparando os ruídos que produziam a sua visão
oracular.
– Stilgar! – Paul berrou, acenando com um braço. – Aqui!
– Graças a Shai-hulud – Stilgar gritou, correndo até Paul. –
Milorde não está...
No silêncio repentino, a visão de Paul mostrou-lhe Stilgar
fitando com uma expressão agoniada os olhos arruinados de seu
amigo e imperador.
– Ah, milorde – Stilgar gemeu. – Usul... Usul... Usul...
– E o queima-pedra? – berrou um dos recém-chegados.
– Acabou – Paul disse, elevando a voz. Apontou. – Subam lá
agora e resgatem os que estavam mais perto da coisa. Ergam
barreiras. Rápido!
Ele voltou a se virar para Stilgar.
– Está enxergando, milorde? – Stilgar perguntou, com
admiração em seu tom de voz. – Como é possível?
Em resposta, Paul esticou um dedo e tocou a face de Stilgar
logo acima do protetor bucal do trajestilador, sentiu as lágrimas.
– Não precisa me oferecer umidade, velho amigo – disse Paul. –
Não estou morto.
– Mas seus olhos!
– Cegaram meu corpo, não minha visão. Ah, Stil, vivo num
sonho apocalíptico. Meus passos se encaixam nele com tanta
precisão que meu medo maior é me entediar de tanto reviver a
coisa com tamanha exatidão.
– Usul, eu não, eu não...
– Não tente entender. Aceite. Estou no mundo que fica além
deste. Para mim, os dois são a mesma coisa. Não preciso de mãos
que me conduzam. Vejo cada movimento a meu redor. Vejo cada
expressão de seu rosto. Não tenho olhos, mas enxergo.
Stilgar balançou a cabeça vigorosamente.
– Sire, temos de esconder sua aflição dos...
– Não a esconderemos de ninguém.
– Mas a lei...
– Vivemos agora segundo a Lei Atreides, Stil. A Lei fremen, de
que os cegos devem ser abandonados no deserto, aplica-se
somente aos cegos. Não estou cego. Vivo no ciclo da existência
onde a guerra entre o bem e o mal tem sua arena. Estamos num
momento decisivo na sucessão das eras e temos nossos papéis a
desempenhar.
Na quietude repentina, Paul escutou um dos feridos que,
conduzido por outros, passava por ele.
– Foi terrível – o homem gemeu –, uma fúria imensa de fogo.
– Nenhum desses homens será levado ao deserto – Paul disse. –
Está ouvindo, Stil?
– Estou, milorde.
– Devem receber novos olhos, à minha custa.
– Assim será feito, milorde.
Paul, percebendo que a admiração na voz de Stilgar
aumentava, disse:
– Estarei no tóptero do Comando. Assuma por aqui.
– Sim, milorde.
Paul contornou Stilgar e saiu andando pela rua. Sua visão
mencionava cada movimento, cada irregularidade sob seus pés,
cada rosto que encontrava. Ia dando ordens pelo caminho,
apontando os homens de seu séquito pessoal, gritando nomes,
chamando para junto de si aqueles que representavam a máquina
interna do governo. Sentia o pavor aumentar atrás dele, os
sussurros temerosos.
– Os olhos dele!
– Mas ele olhou diretamente para você, chamou-o pelo nome!
Junto ao tóptero do Comando, ele desativou seu escudo
pessoal, enfiou o braço dentro do aparelho e tomou o microfone
da mão de um assustado oficial de comunicações, emitiu uma
sequência veloz de ordens, meteu o microfone de volta na mão do
oficial. Virando-se, Paul chamou um especialista em armamento,
um rapaz da nova geração ansiosa e brilhante que mal se
lembrava da vida no sietch.
– Usaram um queima-pedra – Paul disse.
Depois de uma pausa brevíssima, o homem falou:
– Foi o que me contaram, sire.
– Sabe o que isso significa, naturalmente.
– Que o combustível só pode ser atômico.
Paul assentiu, imaginando a velocidade na qual a mente do
homem devia estar trabalhando. Armas atômicas. Eram
proibidas pela Grande Convenção. A descoberta do perpetrador
acarretaria o ataque retaliatório combinado das Casas Maiores.
As velhas rixas seriam esquecidas, descartadas diante daquela
ameaça e dos medos antigos que ela despertava.
– Impossível manufaturá-lo sem deixar vestígios – Paul
completou. – Reúna o equipamento necessário e procure o lugar
onde fizeram o queima-pedra.
– É para já, sire.
Com um último olhar temeroso, o homem partiu a toda pressa.
– Milorde – arriscou-se o oficial de comunicações atrás dele. –
Seus olhos...
Paul virou-se, enfiou o braço dentro do tóptero, reconfigurou o
aparelho de rádio para sintonizar sua faixa pessoal.
– Entre em contato com Chani – ordenou. – Diga-lhe... diga-lhe
que estou vivo e estarei com ela em breve.
Agora as forças se reúnem, Paul pensou. E reparou como era
forte o cheiro de medo no suor de todos a seu redor.
Ele deixou Alia,
O ventre celestial!
Santo, santo, santo!
Léguas de areia-fogo
Confrontam nosso Senhor.
Ele enxerga
Sem olhos!
Um demônio o aflige!
Santa, santa, santa
Equação:
Ele chegou ao valor do
Martírio!
– “A lua cai”, Canções de Muad’Dib

Após sete dias de atividade febril e contagiante, o Forte


revestiu-se de uma quietude nada natural. Naquela manhã, havia
gente aqui e ali, mas falavam aos sussurros, com a cabeça pegada
uma à outra, e andavam de mansinho. Alguns quase corriam, com
passos estranhamente furtivos. O destacamento de guardas que
veio do adro atraiu olhares inquisitivos e cenhos franzidos, tal o
barulho que os recém-chegados trouxeram consigo, pisando forte
de um lado para o outro e empilhando armas. Mas os recém-
chegados deixaram-se infectar pelo humor ali dentro e
começaram a se mover daquela maneira furtiva.
A conversa a respeito do queima-pedra ainda pairava no ar:
– Ele disse que o fogo tinha algo de verde-azulado e um cheiro
infernal.
– Elpa é um idiota! Disse que prefere cometer suicídio a aceitar
os olhos tleilaxu.
– Não quero nem ouvir falar de olhos.
– Muad’Dib passou por mim e me chamou pelo nome!
– Como é que Ele enxerga sem olhos?
– As pessoas estão indo embora, ficou sabendo? O medo é
grande. Os naibs estão dizendo que terão um Conselho-Mor em
Sietch Makab.
– O que fizeram com o Panegirista?
– Vi quando o levaram para a câmara onde os naibs estão
reunidos. Imaginem só: Korba, prisioneiro!
Chani tinha se levantado cedo, acordada pelo silêncio no Forte.
Ao despertar, encontrara Paul sentado a seu lado, os buracos
vazios das órbitas apontados para um lugar informe além da
parede oposta do quarto. O que o queima-pedra fizera, com sua
afinidade peculiar pelo tecido ocular, toda aquela carne
arruinada, tinha sido removida. Injeções e unguentos salvaram a
carne mais resistente em volta dos buracos, mas ela tinha a
impressão de que a radiação chegara mais fundo.
Foi tomada por uma fome voraz ao se sentar. Ingeriu a comida
que ficava ao lado da cama: pão de especiaria e queijo gordo.
Paul apontou a comida.
– Querida, não houve como poupá-la disso. Pode acreditar.
Chani conteve um acesso de tremor quando ele lhe dirigiu
aqueles buracos vazios. Ela havia desistido de pedir que ele
explicasse. Ele dizia coisas tão estranhas: “Fui batizado na areia e
isso me custou o talento de acreditar. Quem é que ainda negocia a
fé? Quem compra? Quem vende?”.
O que ele queria dizer com aquelas palavras?
Ele havia se recusado até mesmo a cogitar os olhos tleilaxu,
apesar de tê-los comprado com prodigalidade para os homens
afligidos da mesma maneira.
Saciada a fome, Chani escorregou para fora da cama, olhou
para Paul atrás dela, viu como estava cansado. Linhas soturnas
emolduravam-lhe a boca. Os cabelos negros estavam de pé,
desgrenhados por um sono nada reparador. Ele parecia tão
saturnino e distante. A alternância do despertar e do adormecer
em nada mudara aquilo. Ela se obrigou a dar as costas para ele e
murmurou:
– Meu amor... meu amor...
Ele se inclinou, puxou-a de volta à cama, beijou-lhe a face, de
um lado e de outro.
– Logo voltaremos ao deserto – ele sussurrou. – Só faltam
algumas coisas para fazer por aqui.
Ela estremeceu diante do fatalismo na voz dele.
Ele a apertou nos braços e murmurou:
– Não tenha medo de mim, Sihaya. Esqueça o mistério e aceite o
amor. O amor não tem mistério. Vem da vida. Não está sentindo?
– Sim.
Ela tocou-lhe o peito com a palma da mão, contou-lhe as
batidas do coração. O amor dele clamava ao espírito fremen
dentro dela: torrencial, efusivo, selvagem. Uma força magnética a
envolveu.
– Prometo-lhe uma coisa, querida. Uma criança nascida de nós
dois regerá um império que fará o meu se apagar em comparação.
Triunfos tamanhos nos campos do viver, da arte e do sublime...
– Estamos aqui, agora! – ela protestou, resistindo a um soluço
seco. – E... sinto que temos tão pouco... tempo.
– Temos a eternidade, querida.
– Você pode ter a eternidade. Eu só tenho o agora.
– Mas isto é eternidade.
Ele acariciou-lhe a fronte.
Ela se espremeu contra o corpo dele, e seus lábios tocaram-lhe
o pescoço. A pressão alvoroçou a vida em seu ventre. Sentiu-a
mexer.
Paul também a sentiu. Colocou uma das mãos sobre o abdômen
dela e disse:
– Ah, criancinha que regerá o universo, espere sua vez. Este
momento é meu.
Ela se perguntou, então, por que ele sempre falava das vidas
dentro dela no singular. Os médicos não haviam lhe contado? Ela
vasculhou a própria memória, intrigada com o fato de o assunto
nunca ter vindo à baila nas conversas dos dois. Ele certamente
sabia que ela esperava gêmeos. Ela hesitou, prestes a levantar
essa questão. Ele tinha de saber. Ele sabia tudo. Conhecia todas
as coisas que a definiam. As mãos, a boca: ele todo a conhecia.
Sem demora, ela disse:
– Sim, meu amor. Isto é para sempre... isto é real.
E ela fechou os olhos, bem apertados, para que a visão dos
buracos negros no rosto dele não esticasse sua alma do paraíso ao
inferno. Apesar da magia rihani na qual ele havia codificado suas
vidas, a pele dele ainda era real, era impossível negar suas
carícias.
Quando se levantaram e foram se vestir para mais um dia, ela
disse:
– Se as pessoas conhecessem seu amor...
Mas o humor dele havia mudado:
– Não se pode fundamentar a política no amor. As pessoas não
se interessam pelo amor: é desordenado demais. Elas preferem o
despotismo. O excesso de liberdade engendra o caos. Não
podemos permitir isso, podemos? E como transformar o
despotismo em algo que se possa amar?
– Você não é um déspota! – ela protestou, amarrando o lenço. –
Suas leis são justas.
– Aah, as leis.
Ele foi até a janela, abriu as cortinas, como se pudesse olhar lá
para fora.
– O que é a lei? Controle? A lei filtra o caos e o que passa por
ela? A serenidade? A lei: nosso ideal mais elevado e nossa
natureza mais baixa. Não observe a lei muito de perto. Se o fizer,
encontrará as interpretações racionalizadas, o casuísmo legal, os
precedentes da conveniência. Encontrará a serenidade, que é só
mais um sinônimo de morte.
A boca de Chani se contraiu numa linha estreita. Não havia
como negar a sabedoria e a sagacidade dele, mas o mau humor a
assustava. Ele se virava contra si mesmo, e ela pressentia guerras
interiores. Era como se ele pegasse a máxima fremen – “nunca
perdoar, nunca esquecer” – e açoitasse o próprio corpo com ela.
Chani se colocou ao lado dele e olhou enviesado lá para fora. O
calor crescente do dia havia começado a arrancar o vento norte
daquelas latitudes protegidas. O vento pintava um céu falso,
cheio de penachos ocre e lâminas de cristal, desenhos estranhos
em ouro e vermelho impetuosos. Alto e frio, o vento rebentava na
Muralha-Escudo, formando fontes de poeira.
Paul sentiu o calor de Chani a seu lado. Baixou
momentaneamente sobre sua visão uma cortina de
esquecimento. Poderia muito bem estar ali de olhos fechados.
Mas o Tempo se recusou a parar para ele. Inalou a escuridão, sem
estrelas, sem lágrimas. Sua aflição foi dissolvendo a substância,
até restar apenas a estupefação diante da maneira como os sons
condensavam seu universo. Tudo a seu redor apoiava-se em seu
solitário sentido de audição, recuando somente quando ele tocava
os objetos: a cortina, a mão de Chani... Flagrou-se prestando
atenção à respiração de Chani.
Onde estava a insegurança das coisas que eram apenas
prováveis?, ele se perguntou. Sua mente carregava tamanho fardo
de lembranças mutiladas. Para cada instante de realidade havia
incontáveis projeções, coisas destinadas a nunca existir. Uma
identidade invisível dentro dele recordava falsos passados, e o
peso deles às vezes ameaçava esmagar o presente.
Chani apoiou-se no braço dele.
Ele sentiu o próprio corpo através do contato com ela: carne
morta levada pelos torvelinhos do tempo. Ele exalava lembranças
que vislumbraram a eternidade. Ver a eternidade era se expor aos
caprichos da eternidade, oprimido por dimensões intermináveis.
A falsa imortalidade do oráculo exigia represália: o Passado e o
Futuro tornavam-se simultâneos.
Mais uma vez, a visão emergiu de seu fosso negro, abraçou-o.
Ela era seus olhos. Ela movia seus músculos. Ela o conduzia ao
momento, à hora, ao dia seguinte... até ele se sentir sempre
presente!
– Já passou da hora de irmos – disse Chani. – O Conselho...
– Alia estará lá em meu lugar.
– Ela sabe o que fazer?
– Sabe.

O dia de Alia começou com um esquadrão da guarda invadindo


o pátio de revista logo abaixo de seus aposentos. Ela olhou para
baixo e viu uma confusão frenética, uma conversa clamorosa e
intimidadora. A cena só se tornou inteligível quando ela
reconheceu o prisioneiro que eles traziam: Korba, o Panegirista.
Pôs-se a cuidar de sua toalete matinal, deslocando-se
ocasionalmente até a janela, de olho na impaciência paulatina lá
embaixo. Seu olhar sempre divagava na direção de Korba. Tentou
se lembrar dele como o comandante rústico e barbado da terceira
onda na batalha de Arrakina. Impossível. Korba havia se tornado
um almofadinha impecável. Vestia agora um manto de seda
Parato de talhe refinado, aberto até a cintura, revelando um rufo
belamente engomado e uma cota bordada, cravejada de pedras
verdes. Um cinto púrpura cingia-lhe a cintura. As mangas que
saíam do manto pelas aberturas dos braços eram de veludo cotelê
preto e verde-escuro.
Haviam aparecido alguns naibs para ver como era tratado um
outro fremen. Eles tinham provocado a gritaria, estimulando
Korba a protestar inocência. Alia passou os olhos pelo rosto dos
fremen, tentando relembrar como eram os homens originais. O
presente borrava o passado. Haviam se tornado todos
hedonistas, provavam prazeres que a maioria dos homens não
conseguiria sequer imaginar.
Ela viu que os olhares inquietos daqueles homens desviavam-se
muitas vezes para a porta que dava para a câmara onde
aconteceria a reunião. Estavam pensando na visão cega de
Muad’Dib, nova manifestação de poderes misteriosos. Segundo a
lei daquela gente, o homem cego deveria ser abandonado no
deserto e sua água deixada para Shai-hulud. Mas, sem olhos,
Muad’Dib os enxergava. Tampouco gostavam de edificações e
sentiam-se vulneráveis em recintos erigidos acima do solo. Dê-
lhes uma caverna de verdade, escavada na rocha, aí sim
conseguiriam relaxar... mas não ali, não com aquele novo
Muad’Dib a esperá-los lá dentro.
Ao se virar para descer para a reunião, ela viu a carta que
deixara em cima de uma mesa perto da porta: a mensagem mais
recente enviada pela mãe dos dois. Apesar da reverência especial
que era dedicada a Caladan como o berço de Paul, lady Jéssica se
recusara veementemente a fazer de seu planeta uma parada do
hajj.
– Não há dúvida de que meu filho é uma personalidade que
marcou época – ela escrevera –, mas não consigo ver nisso uma
desculpa para me submeter à invasão da ralé.
Alia tocou a carta, experimentou uma estranha sensação de
contato mútuo. Aquele papel estivera nas mãos de sua mãe. Um
expediente tão arcaico, a carta... mas tão pessoal, de uma maneira
que não havia gravação que imitasse. Redigida na língua de
batalha dos Atreides, representava uma privacidade de
comunicação quase invulnerável.
Pensar na mãe afligiu Alia com a costumeira confusão interior.
A alteração da especiaria que tinha misturado as psiques de mãe
e filha às vezes a obrigava a pensar em Paul como um filho que ela
dera à luz. O complexo capsular de unidade podia lhe apresentar
seu próprio pai como amante. Sombras espectrais brincavam em
sua mente, pessoas do âmbito da possibilidade.
Alia foi relendo a carta ao descer a rampa que levava à
antecâmara onde sua guarda de amazonas a esperava.
– Vocês estão criando uma paradoxo letal – Jéssica escrevera. –
O governo não pode ser religioso e autoritário ao mesmo tempo.
A experiência religiosa precisa de uma espontaneidade que as leis
inevitavelmente suprimem. E não há como governar sem a lei.
Suas leis acabarão tendo de substituir a moralidade, substituir a
consciência, substituir até mesmo a religião por meio da qual
vocês imaginam governar. O ritual sagrado tem de brotar do
louvor e dos anseios virtuosos que elaboram com grande esforço
uma moralidade significativa. O governo, por outro lado, é um
organismo cultural particularmente sedutor para dúvidas,
questionamentos e controvérsias. Prevejo o dia em que a
cerimônia terá de tomar o lugar da fé e o simbolismo substituirá a
moralidade.
O cheiro de café de especiaria recebeu Alia na antecâmara.
Quatro amazonas da guarda, com seus mantos verdes de
sentinela, assumiram posição de sentido quando ela entrou.
Seguiram atrás dela, caminhando com os passos largos e firmes
da bravata juvenil, de olhos atentos a possíveis problemas.
Tinham o fanatismo nos rostos, intocados pela admiração.
Irradiavam aquela violência especial dos fremen: eram capazes de
matar despreocupadamente, sem o menor sentimento de culpa.
Nisso, sou diferente, Alia pensou. O nome dos Atreides já está
bem sujo sem isso.
Foi precedida pela notícia de sua chegada. Um pajem de
prontidão saiu em disparada quando ela entrou no corredor de
baixo e foi depressa convocar o destacamento completo de
guardas. O corredor era comprido, sem janelas e sombrio,
iluminado apenas por alguns luciglobos amortecidos. De repente,
as portas que davam para o pátio de revista se escancararam na
extremidade oposta para dar passagem a um raio fulgurante de
luz do dia. Os guardas, e Korba no meio deles, apareceram na
contraluz, vindos lá de fora.
– Onde está Stilgar? – Alia quis saber.
– Já está lá dentro – disse uma das amazonas.
Alia seguiu na frente e entrou na câmara. Era uma das salas de
reunião mais pretensiosas do Forte. Uma sacada alta com fileiras
de poltronas macias ocupava um dos lados. Do outro lado da
sacada, cortinas laranja haviam sido recolhidas e exibiam as
janelas altas. A luz brilhante do sol entrava aos borbotões,
proveniente de um espaço aberto com um jardim e uma fonte. Na
extremidade mais próxima da câmara, à direita de Alia, ficava
uma plataforma com uma cadeira enorme e solitária.
A caminho da cadeira, Alia olhou rapidamente para trás e para
cima, viu a galeria tomada por naibs.
Os guardas reais amontoavam-se no vão livre sob a galeria, e
Stilgar andava entre eles, falando em voz baixa aqui, emitindo
uma ordem ali. Ele não deu sinal de que tinha visto Alia entrar.
Trouxeram Korba para dentro e o fizeram sentar a uma mesa
baixa com almofadas de cada lado sobre o chão da câmara, logo
abaixo da plataforma. Apesar da elegância, o Panegirista dava a
impressão de ser um velho carrancudo e sonolento, encolhido
dentro das roupas, como se quisesse se proteger do frio exterior.
Dois guardas se posicionaram atrás dele.
Stilgar aproximou-se da plataforma quando Alia se sentou.
– Onde está Muad’Dib? – ele perguntou.
– Meu irmão me mandou em seu lugar para presidir a sessão
como Reverenda Madre.
Ouvindo isso, os naibs da galeria começaram a erguer a voz em
protesto.
– Silêncio! – ordenou Alia.
Na quietude repentina que se seguiu, ela disse:
– Não está de acordo com a lei fremen que uma Reverenda
Madre presida quando se trata de uma questão de vida e morte?
À medida que a solenidade de sua declaração se fazia entender,
o silêncio foi se abatendo sobre os naibs, mas Alia observou
olhares raivosos nos rostos perfilados. Tomou nota mentalmente
dos nomes para discuti-los no Conselho: Hobars, Rajifiri, Tasmin,
Saajid, Umbu, Legg... Os nomes traziam pedaços de Duna
consigo: Sietch Umbu, Pia Tasmin, Ravina Hobars...
Alia voltou-se para Korba.
Notando a atenção que ela lhe dedicava, Korba ergueu o queixo
e disse:
– Protesto inocência.
– Stilgar, leia as acusações – Alia disse.
Stilgar apresentou um rolo de papel de especiaria marrom e
deu um passo à frente. Começou a ler com um toque solene na
voz, como se visasse cadências secretas. Foi dando às palavras
um timbre incisivo, claro e repleto de probidade:
– ... que você conspirou com traidores para destruir nosso
senhor e imperador; que desprezivelmente se encontrou em
segredo com diversos inimigos do reino; que...
Korba não parava de balançar a cabeça, com uma expressão de
raiva dorida.
Alia escutava, taciturna, com o queixo apoiado no punho
esquerdo, a cabeça inclinada para aquele lado e o outro braço
esticado no da cadeira. Fragmentos das formalidades começaram
a escapar de sua percepção, filtrados por sua própria sensação de
desassossego.
– ... tradição venerável... o apoio das legiões e de todos os
fremen em toda parte... responder à violência com violência, de
acordo com a Lei... majestade da Pessoa Imperial... privado de
todos os direitos a...
Era absurdo, ela pensou. Absurdo! Tudo aquilo: absurdo...
absurdo... absurdo...
Stilgar terminou:
– E assim chega a questão a julgamento.
No silêncio que se seguiu, Korba oscilou para a frente, com as
mãos nos joelhos, e o pescoço cheio de veias se esticou, como se
ele se preparasse para saltar. A língua agitou-se entre os dentes
quando ele falou:
– Não traí meus votos como fremen nem com atos, nem com
palavras! Exijo confrontar meu acusador!
Um protesto bem simples, Alia pensou.
E ela viu que aquilo produzira um efeito considerável nos naibs.
Eles conheciam Korba. Era um deles. Para se tornar naib, ele
havia provado sua coragem e cautela de fremen. Não era
brilhante, Korba, mas confiável. Talvez não fosse talhado para
liderar o Jihad, mas era uma boa escolha como oficial de
suprimentos. Não era um cruzado, mas acalentava as antigas
virtudes fremen: a Tribo acima de tudo.
As palavras amargas de Otheym, da maneira como Paul as
repetira, passaram pela mente de Alia. Ela esquadrinhou a
galeria. Qualquer um daqueles homens poderia se ver no lugar de
Korba – alguns por bons motivos. Mas ali um naib inocente era
tão perigoso quanto um culpado.
Korba teve a mesma impressão.
– Quem me acusa? – indagou. – Tenho o direito de fremen de
confrontar meu acusador.
– Talvez você mesmo se acuse – Alia disse.
Antes que ele conseguisse disfarçar, o pavor místico se instalou
brevemente no rosto de Korba. Qualquer um poderia entender:
com seus poderes, bastaria a Alia acusá-lo pessoalmente,
afirmando ter provas recolhidas na região umbrática, o alam al-
mithal.
– Nossos inimigos têm aliados fremen – Alia insistiu. –
Destruíram captadores de água, explodiram qanats,
envenenaram plantações e saquearam bacias de
armazenamento...
– E agora... roubaram um verme do deserto e o levaram para
um outro planeta!
A voz do intruso era conhecida de todos eles: Muad’Dib. Paul
entrou pela porta, vindo do corredor, atravessou as fileiras de
guardas e foi se colocar ao lado de Alia. Chani, que o
acompanhava, permaneceu nas laterais.
– Milorde – disse Stilgar, recusando-se a olhar para o rosto de
Paul.
Paul dirigiu suas órbitas vazias para a galeria, depois baixou-as,
voltando-as para Korba.
– O que foi, Korba? Nenhum elogio?
Ouviu-se o burburinho na galeria. Foi ganhando volume, e
palavras e frases isoladas tornaram-se audíveis:
– ... a lei para os cegos... o costume fremen... no deserto... quem
o viola...
– Quem disse que estou cego? – Paul quis saber. Encarou a
galeria. – Você, Rajifiri? Vejo que veste dourado hoje, e aquela
camisa azul por baixo, que ainda tem nela o pó das ruas. Você
sempre foi desleixado.
Rajifiri fez o sinal de proteção, três dedos contra o mal.
– Aponte esses dedos para si mesmo! – Paul berrou. – Sabemos
onde está o mal! – Virou-se para Korba. – Você tem a culpa
estampada na cara, Korba.
– Não é minha! Posso ter me associado aos culpados, mas ne...
Deixou a coisa por dizer, lançou um olhar assustado para a
galeria.
A um sinal de Paul, Alia se levantou, desceu para o chão da
câmara e avançou até a quina da mesa de Korba. A menos de um
metro de distância, ela o fitou, calada e intimidadora.
Korba se encolheu sob o peso daqueles olhos. Estava
irrequieto, lançava olhares ansiosos para a galeria.
– De quem são os olhos que você procura lá em cima? – Paul
perguntou.
– Você não enxerga! – Korba deixou escapar.
Paul reprimiu um sentimento momentâneo de pena por Korba.
O homem estava preso na arapuca da visão tão firmemente
quanto qualquer um dos presentes. Ele desempenhava um papel,
nada mais.
– Não preciso de olhos para enxergar você.
E Paul começou a descrever Korba, cada movimento, cada
espasmo, cada olhar alarmado e suplicante que ele dirigia à
galeria.
O desespero de Korba aumentou.
Observando-o, Alia viu que ele poderia ceder a qualquer
momento. Alguém na galeria deveria ter percebido como ele
estava perto de ceder, ela pensou. Quem? Ela examinou as
expressões dos naibs, reparando em pequenas inconfidências nos
rostos dissimulados... raivas, medos, incertezas... culpas.
Paul fez silêncio.
Korba concentrou um ar deplorável de imponência para
perguntar:
– Quem me acusa?
– Otheym o acusa – disse Alia.
– Mas Otheym está morto! – Korba protestou.
– Como ficou sabendo? – Paul perguntou. – Por meio de seu
sistema de espionagem? Ah, sim! Já sabemos sobre seus espiões e
mensageiros. Sabemos quem trouxe o queima-pedra de Tarahell
para cá.
– Era para a defesa do Qizarate! – Korba deixou escapar.
– E assim a arma foi parar nas mãos dos traidores? – Paul
perguntou.
– Foi roubada, e nós... – Korba se calou, engoliu em seco. Seu
olhar dardejou de um lado para o outro. – Todo mundo sabe que
tenho sido a voz do amor por Muad’Dib. – Olhou para a galeria. –
Como é que um morto pode acusar um fremen?
– A voz de Otheym não morreu – Alia disse.
Ela se deteve quando Paul tocou-lhe o braço.
– Otheym mandou-nos sua voz – Paul disse. – Ela entrega os
nomes, os atos de traição, os locais e horários das reuniões. Sente
falta de alguns rostos no Conselho de Naibs, Korba? Onde estão
Merkur e Fash? Keke, o Manco, não está conosco hoje. E Takim,
onde está ele?
Korba balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Eles fugiram de Arrakis levando o verme roubado – Paul
continuou. – Mesmo se eu o libertasse agora, Korba, Shai-hulud
ficaria com sua água por você ter participado. Por que eu não o
liberto, Korba? Pense em todos aqueles homens que foram
privados de seus olhos, os homens que não enxergam como eu.
Eles têm famílias e amigos, Korba. Onde poderia se esconder
deles?
– Foi um acidente – Korba argumentou. – E, de qualquer
maneira, eles terão os olhos tlei...
E, outra vez, ele se calou.
– Quem sabe que tipo de escravidão acompanha os olhos de
metal? – Paul perguntou.
Os naibs em sua galeria começaram a trocar comentários em
voz baixa, falando por trás das mãos erguidas. Olhavam friamente
para Korba agora.
– Defesa do Qizarate – Paul murmurou, de volta à
argumentação de Korba. – Um dispositivo que destrói um planeta
ou produz raios J para cegar quem estiver perto demais. Qual dos
dois efeitos, Korba, você concebeu como defesa? O Qizarate
contava com a possibilidade de suprimir os olhos de todos os
observadores?
– Era uma curiosidade, milorde – Korba argumentou. –
Sabíamos que a Lei Antiga dizia que somente as Famílias
poderiam possuir armas atômicas, mas o Qizarate obedecia...
obedecia...
– Obedecia a você – Paul disse. – Uma curiosidade, de fato.
– Mesmo que seja só a voz de meu acusador, sua obrigação é me
confrontar com ela! – disse Korba. – Um fremen tem direitos.
– O que ele diz é verdade, sire – Stilgar falou.
Alia lançou um olhar penetrante para Stilgar.
– A lei é a lei – Stilgar disse, notando o protesto de Alia.
Ele começou a citar a Lei fremen, entremeando seus próprios
comentários sobre como ela se aplicava. Alia teve a estranha
sensação de que ouvia as palavras de Stilgar antes que ele as
pronunciasse. Como era possível que fosse tão crédulo? Stilgar
nunca parecera tão oficial e conservador, tão decidido a respeitar
o Código de Duna. O queixo se projetava para fora, agressivo. A
boca estalava. Não havia realmente nada nele além daquela
imponência ultrajante?
– Korba é um fremen e deve ser julgado pela Lei fremen –
Stilgar concluiu.
Alia virou-se, olhou para fora, para as sombras do dia que
escorriam pelo muro do outro lado do jardim. Sentiu-se exaurida
pela frustração. Haviam arrastado a coisa meia manhã adentro. E
agora? Korba havia relaxado. Os modos do Panegirista indicavam
que ele teria sofrido um ataque injusto, que tudo o que havia feito,
ele o fizera por amar Muad’Dib. Ela olhou para Korba,
surpreendeu um fugaz ar de empáfia maliciosa no rosto dele.
Era quase como se tivesse recebido uma mensagem, ela
pensou. Ele bancava o homem que ouvira os amigos gritar:
“Aguente firme! O socorro está a caminho!”.
Por um instante, eles tiveram a coisa toda em suas mãos: as
informações extraídas do anão, os indícios de que havia outras
pessoas na trama, os nomes dos informantes. Mas o momento
decisivo escapara. Stilgar? Certamente não. Ela se virou, fitou o
velho fremen.
Stilgar retribuiu-lhe o olhar sem pestanejar.
– Obrigado, Stil, por nos relembrar a Lei – disse Paul.
Stilgar inclinou a cabeça. Chegou bem perto, deu forma a
palavras silenciosas, de uma maneira que ele sabia que Paul e Alia
entenderiam. Vou espremê-lo até me contar tudo, depois cuidarei
do problema.
Paul assentiu, fez sinal para os guardas atrás de Korba.
– Levem Korba para uma cela de segurança máxima – disse
Paul. – Nada de visitas, a não ser o advogado. Como advogado,
nomeio Stilgar.
– Deixe-me escolher meu próprio advogado! – Korba berrou.
Paul girou nos calcanhares.
– Está contestando a imparcialidade e o discernimento de
Stilgar?
– Ah, não, milorde, mas...
– Levem-no daqui! – Paul vociferou.
Os guardas ergueram Korba das almofadas e o conduziram
para fora.
Voltando a cochichar, os naibs começaram a deixar a galeria.
Criados saíram de baixo da galeria, foram até as janelas e
fecharam as cortinas alaranjadas. Uma obscuridade laranja
tomou a câmara.
– Paul – falou Alia.
– Quando precipitarmos a violência – Paul explicou –, será
quando a tivermos sob nosso controle. Obrigado, Stil.
Desempenhou bem seu papel. Tenho certeza de que Alia
identificou os naibs que estavam com ele. Era inevitável que se
entregassem.
– Vocês dois combinaram tudo isso? – Alia quis saber.
– Se eu tivesse mandado matar Korba imediatamente, os naibs
teriam entendido. Mas esse procedimento formal, sem respeitar
rigorosamente a Lei fremen... Eles sentiram seus próprios
direitos ameaçados. Quem eram os naibs que estavam com ele,
Alia?
– Rajifiri com certeza – ela disse, em voz baixa. – E Saajid, mas...
– Dê a Stilgar a lista completa.
Alia engoliu em seco, sentindo o mesmo medo em relação a
Paul que todos sentiam naquele momento. Sabia como ele se
deslocava entre eles sem olhos, mas a delicadeza da coisa a
assustava. Enxergar as formas de todos eles no vazio da visão!
Pareceu-lhe que sua própria pessoa tremeluzia diante dele num
tempo sideral cuja conformidade com a realidade dependia
inteiramente das palavras e ações dele. Paul tinha todos eles na
palma de sua visão!
– Já passou da hora de ir para sua audiência matinal, sire –
Stilgar disse. – Muitas pessoas... curiosas... amedrontadas...
– Está com medo, Stil?
O que saiu mal foi um sussurro:
– Sim.
– Você é meu amigo e não tem nada a temer de mim – disse
Paul.
Stilgar engoliu saliva.
– Sim, milorde.
– Alia, cuide da audiência matinal. Stilgar, dê o sinal.
Stilgar obedeceu.
Uma grande agitação irrompeu junto às portas imensas. A
multidão foi empurrada para trás e para longe da sala
obscurecida, com o intuito de permitir a entrada dos
funcionários. Várias coisas começaram a acontecer ao mesmo
tempo: a guarda real empurrando com as mãos e os cotovelos a
massa de Suplicantes, os Requerentes com suas roupas
extravagantes tentando abrir caminho, gritos, imprecações. Os
Requerentes acenavam com suas petições nas mãos. O secretário
da assembleia tomou pomposamente a frente deles, através da
brecha aberta pela guarda. Trazia a Lista de Preferências,
aqueles que teriam permissão para se aproximar do Trono. O
secretário, um fremen magro e musculoso chamado Tecrube,
portava-se com um cinismo enfastiado, ostentando a cabeça
raspada e os grumos de barba.
Alia adiantou-se para interceptá-lo, dando a Paul o tempo de
que precisava para escapulir com Chani pela passagem particular
atrás da plataforma. Sentiu uma desconfiança momentânea em
relação a Tecrube diante da curiosidade intrometida no olhar que
ele lançou para Paul.
– Hoje falarei em nome de meu irmão – ela disse. – Faça os
Suplicantes se aproximarem um por vez.
– Sim, milady. – Ele se virou para organizar a turba.
– Lembro-me de uma época em que você não teria entendido
mal o propósito de seu irmão – disse Stilgar.
– Eu me distraí – ela disse. – Houve uma mudança dramática em
você, Stil. O que foi?
Stilgar se empertigou, chocado. As pessoas mudavam, claro.
Mas dramaticamente? Era uma visão particular de si mesmo que
ele nunca confrontara. O drama era questionável. Os artistas
importados, de lealdade duvidosa e virtude mais duvidosa ainda,
eram dramáticos. Os inimigos do Império recorriam ao drama
para tentar influenciar o populacho volúvel. Korba havia se
afastado das virtudes fremen para recorrer ao drama em nome do
Qizarate. E morreria por isso.
– É maldade sua – Stilgar disse. – Desconfia de mim?
A angústia na voz dele suavizou a expressão de Alia, mas não
seu tom de voz.
– Você sabe que não desconfio de você. Sempre concordei com
meu irmão que, se as coisas estivessem nas mãos de Stilgar, nós
poderíamos esquecê-las com toda a tranquilidade.
– Então por que disse que eu... mudei?
– Você está se preparando para desobedecer a meu irmão – ela
disse. – Vejo isso em você. Só espero que isso não destrua vocês
dois.
Os primeiros Requerentes e Suplicantes estavam se
aproximando. Ela se virou antes que Stilgar conseguisse
responder. Mas no rosto dele havia todas as coisas que ela
pressentira na carta da mãe: a substituição da moralidade e da
consciência pela lei.
“Vocês estão criando um paradoxo letal.”
Tibana foi um apologista do cristianismo
socrático, provavelmente natural de IV Anbus,
que viveu entre os séculos VIII e IX antes de
Corrino, com toda a probabilidade no segundo
reinado de Dalamak. De seus escritos, só uma
parte sobreviveu, de onde este fragmento foi
retirado: “Os corações de todos os homens
habitam os mesmos ermos”.
– excerto d’O Livru de Duna de Irulan

– Você é Bijaz – disse o ghola, entrando no pequeno aposento


onde o anão era mantido sob vigilância. – Chamam-me Hayt.
Um forte contingente da guarda real havia entrado com o ghola
para assumir a ronda noturna. A areia trazida pelo vento do
poente havia fustigado suas faces quando eles cruzaram o pátio
externo, fizera-os piscar e apertar o passo. Era possível ouvi-los
na passagem lá fora, trocando gracejos e frases feitas sobre o
serviço.
– Você não é Hayt – disse o anão. – Você é Duncan Idaho. Eu
estava lá quando colocaram seu corpo morto no tanque, e eu
estava lá quando eles o removeram, vivo e pronto para o
treinamento.
O ghola engoliu saliva, com a garganta repentinamente seca.
Os luciglobos brilhantes do aposento perdiam sua amarelidão nas
tapeçarias verdes da sala. A luz mostrava gotas de suor na testa
do anão. Bijaz parecia uma criatura de estranha integridade,
como se o propósito embutido nele pelos Tleilaxu se projetasse
através de sua pele. Havia força por baixo da máscara de covardia
e frivolidade do anão.
– Muad’Dib me encarregou de interrogá-lo, para determinar o
que os Tleilaxu querem que você faça aqui – disse Hayt.
– Tleilaxu, Tleilaxu – cantarolou o anão. – Eu sou os Tleilaxu,
seu bobalhão! Por falar nisso, você também é.
Hayt fitou o anão. Bijaz irradiava uma vivacidade carismática
que levava o observador a pensar em ídolos antigos.
– Está ouvindo os guardas lá fora? – Hayt perguntou. – Se eu
desse a ordem, eles o estrangulariam.
– Hai! Hai! – chorou Bijaz. – Que grosseirão insensível você se
tornou. E disse que veio aqui em busca da verdade.
Hayt descobriu que não gostava do ar de secreto sossego sob a
expressão do anão.
– Talvez eu só busque o futuro – disse.
– Falou bem. Agora conhecemos um ao outro. Quando dois
ladrões se encontram, não precisam de apresentações.
– Então somos ladrões. O que roubamos?
– Ladrões, não: dados. E você veio aqui ler meus pontinhos. Eu,
por minha vez, leio os seus. E vejam só! Você tem duas caras!
– Você realmente me viu entrar nos tanques tleilaxu? – Hayt
indagou, combatendo uma estranha relutância em fazer a
pergunta.
– Não foi o que acabei de dizer? – Bijaz perguntou. O anão ficou
de pé num salto. – Lutamos formidavelmente com você. A carne
não queria voltar.
Pareceu a Hayt, de repente, que ele vivia num sonho controlado
por um outro intelecto e que a qualquer momento poderia se
esquecer disso e se perder nas circunvoluções daquele intelecto.
Bijaz inclinou manhosamente a cabeça, fez uma volta completa
em torno do ghola, olhando para ele de baixo para cima.
– A emoção acende padrões antigos dentro de você – disse
Bijaz. – Você é aquele que procura e não quer encontrar o que
procura.
– Você é uma arma apontada para Muad’Dib – Hayt disse,
girando sem sair do lugar para acompanhar o anão. – O que foi
incumbido de fazer?
– Nada! – disse Bijaz, detendo-se. – Dou-lhe uma resposta
comum para uma pergunta comum.
– Então apontaram você para Alia. Ela é seu alvo?
– Eles a chamam de Hawt, o Monstro Peixe, nos planetas
exteriores. Por que chego a ouvir seu sangue ferver quando a
menciona?
– Então eles a chamam de Hawt.
O ghola pôs-se a estudar Bijaz em busca de qualquer pista
sobre seu propósito. O anão dava respostas muito esquisitas.
– Ela é a meretriz-virgem – disse Bijaz. – É vulgar, espirituosa,
seu conhecimento é tão profundo que chega a apavorar, é cruel
quando se mostra mais bondosa, irracional ao raciocinar e,
quando tenta construir, é tão destrutiva quanto uma tempestade
de Coriolis.
– Então você veio aqui criticar Alia.
– Criticá-la? – Bijaz afundou-se numa almofada encostada à
parede. – Vim aqui me prender no magnetismo de sua beleza
física.
Ele sorriu, uma expressão de sáurio naquele rosto de feições
proeminentes.
– Atacar Alia é atacar o irmão dela – Hayt falou.
– Isso é tão claro que chega a ser difícil de visualizar. Na
verdade, o imperador e sua irmã são uma pessoa só, de costas
unidas, um ser metade homem, metade mulher.
– É algo que ouvimos os fremen das profundezas do deserto
dizerem. E foram eles que reviveram as imolações a Shai-hulud.
Por que repete as bobagens dessa gente?
– Ousa dizer bobagens? – Bijaz quis saber. – Você, que é tanto
homem quanto máscara? Aah, mas os dados não conseguem ler
seus próprios pontinhos. Esqueci. E você fica duplamente
confuso, porque serve o duplo ser Atreides. Seus sentidos não se
acham tão perto da resposta quanto sua mente.
– Você prega esse ritual falso a respeito de Muad’Dib para seus
guardas? – Hayt perguntou, em voz baixa, com a impressão de
que sua mente era enredada pelas palavras do anão.
– Eles pregam para mim! E rezam. E por que não? Todos nós
deveríamos rezar. Não vivemos à sombra da criação mais
perigosa que o universo já viu?
– Criação perigosa...
– A própria mãe deles se recusa a viver no mesmo planeta que
os filhos!
– Por que não me dá uma resposta direta? – Hayt indagou. –
Sabe que temos outros meios para interrogá-lo. Teremos nossas
respostas... de um jeito ou de outro.
– Mas eu respondi! Não disse que o mito é real? Sou o vento que
traz a morte na barriga? Não! Eu sou as palavras! Palavras tais
quais o raio que sobe da areia quando o céu está escuro. Eu disse:
“Apague a lamparina! O dia chegou!”. E você continua dizendo:
“Dê-me uma lamparina para que eu possa procurar o dia”.
– Está fazendo um jogo perigoso comigo – disse Hayt. – Achou
que eu não entenderia as ideias zen-sunitas? Você deixa rastros
tão nítidos quanto os de uma ave na lama.
Bijaz passou a dar risadinhas.
– Por que está rindo? – Hayt quis saber.
– Porque tenho dentes e queria não ter – Bijaz conseguiu dizer
entre os risinhos. – Se não tivesse dentes, não poderia rilhá-los.
– E agora sei quem é seu alvo. Apontaram você para mim.
– E acertei bem na mosca! Você é um alvo tão grande, como eu
poderia errar? – Acenou afirmativamente com a cabeça, como se
para si mesmo. – Agora vou cantar para você.
Começou a cantarolar, um motivo musical pungente,
lamuriento e monótono que se repetia vez após vez.
Hayt se enrijeceu, sentindo dores esquisitas que lhe subiam e
desciam pela espinha. Fitou o rosto do anão, vendo olhos juvenis
numa face idosa. Os olhos eram o centro de uma rede de linhas
brancas e encaroçadas que corriam para as cavidades sob suas
têmporas. Que cabeça enorme! Todos os traços fisionômicos
convergiam na boca franzida de onde saía aquele ruído
monótono. O som fez Hayt pensar em rituais antigos, lembranças
folclóricas, palavras e costumes ultrapassados, significados
semiesquecidos em murmúrios extraviados. Algo vital estava
acontecendo ali: uma apresentação sangrenta de ideias a varar o
Tempo. Ideias ancestrais se enredavam na cantiga do anão. Era
como uma luz fulgurante ao longe, aproximando-se cada vez mais,
iluminando a vida num intervalo de séculos.
– O que está fazendo comigo? – perguntou Hayt, com voz
entrecortada.
– Você é o instrumento que me ensinaram a tocar. Eu o estou
tocando. Deixe-me dar a você os nomes dos outros traidores
entre os naibs. São eles Bikouros e Cahueit. E temos Djedida, que
era secretário de Korba. E temos Abumojandis, o assistente de
Bannerjee. Um deles poderia esfaquear seu Muad’Dib agora
mesmo.
Hayt balançou a cabeça de um lado para o outro. Achou muito
difícil falar.
– Somos como irmãos – Bijaz disse, interrompendo novamente
seu cantarolar monótono. – Crescemos no mesmo tanque.
Primeiro eu, depois você.
Os olhos metálicos de Hayt causaram-lhe uma dor causticante
e repentina. Uma névoa vermelha e bruxuleante cercava tudo que
ele via. Sentiu-se apartado de toda e qualquer sensação imediata,
a não ser a dor, e percebia os arredores através de uma fina
divisória, como gaze ao vento. Tudo havia se tornado acidental, o
envolvimento fortuito da matéria inanimada. Sua própria vontade
não passava de uma coisa sutil e inconstante. Vivia sem respirar e
só era inteligível como uma iluminação de fora para dentro.
Com a lucidez fruto do desespero, ele atravessou a cortina de
gaze levando consigo somente o sentido da visão. Sua atenção se
concentrou feito uma luz fulgurante abaixo de Bijaz. Pareceu a
Hayt que seus olhos iam penetrando as camadas do anão, vendo o
homenzinho como um intelecto de aluguel e, debaixo daquilo,
uma criatura aprisionada pelas ânsias e vontades que se
comprimiam nos olhos – uma camada após a outra, até que, por
fim, havia apenas um aspecto-entidade manipulado por símbolos.
– Estamos sobre um campo de batalha – disse Bijaz. – Tem
permissão para falar.
Com a voz liberada pelo comando, Hayt disse:
– Não pode me obrigar a matar Muad’Dib.
– Já ouvi as Bene Gesserit dizer que não há nada firme, nada
equilibrado, nada durável no universo: que nada permanece como
está, que cada dia, às vezes cada hora, traz a mudança.
Calado, Hayt sacudiu a cabeça de um lado para outro.
– Você acreditou que o tolo imperador era o troféu que
desejávamos – disse Bijaz. – Como você entende pouco nossos
mestres, os Tleilaxu. A Guilda e as Bene Gesserit acreditam que
produzimos artefatos. Na verdade, produzimos instrumentos e
serviços. Qualquer coisa pode ser um instrumento: a pobreza, a
guerra. A guerra é útil por ser eficaz em tantas áreas. Estimula o
metabolismo. Reforça o governo. Difunde as linhagens genéticas.
Tem uma vitalidade que não se compara a nada mais no universo.
Somente aqueles que reconhecem o valor da guerra e a praticam
têm uma certa medida de autodeterminação.
Com uma voz estranhamente plácida, Hayt disse:
– Pensamentos estranhos, vindos de você, quase suficientes
para me fazer crer numa Providência vingativa. Que espécie de
reparação foi exigida para criar você? Daria uma história
fascinante, e sem dúvida com um epílogo ainda mais
extraordinário.
– Magnífico! – Bijaz riu, desdenhoso. – Você ataca, portanto tem
força de vontade e pratica a autodeterminação.
– Está tentando despertar a violência dentro de mim – disse
Hayt ofegante.
Bijaz negou com um aceno da cabeça.
– Despertar, sim; violência, não. Foi treinado para ser um
discípulo da percepção, você mesmo o disse. Tenho uma
percepção para despertar em você, Duncan Idaho.
– Hayt!
– Duncan Idaho. Matador extraordinário. Amante de muitas
mulheres. Soldado e espadachim. Peão dos Atreides no campo de
batalha. Duncan Idaho.
– É impossível despertar o passado.
– Impossível?
– Nunca foi feito!
– Verdade, mas nossos mestres desafiam a ideia de que é
impossível fazer alguma coisa. Eles sempre procuram o
instrumento perfeito, a aplicação correta de esforço, os serviços
apropriados de...
– Está escondendo seu verdadeiro propósito! Você vomita um
anteparo de palavras, e elas não querem dizer nada!
– Há um Duncan Idaho dentro de você. Que irá se submeter à
emoção ou a um exame desapaixonado, mas submeter-se irá. Essa
percepção surgirá, através de um anteparo de supressão e
seleção, do passado negro que segue em seu encalço. Ela o
espicaça neste exato momento, ao mesmo tempo em que o
contém. Existe esse ser dentro de você no qual a percepção tem
de se concentrar e ao qual você obedecerá.
– Os Tleilaxu pensam que ainda sou escravo deles, mas eu...
– Quieto, escravo! – Bijaz disse com aquela voz lamurienta.
Hayt viu-se petrificado em silêncio.
– Agora chegamos ao fundo – continuou Bijaz. – Sei que você a
sente. E estas são as palavras de poder para manipular você...
Creio que darão uma boa alavanca.
Hayt sentiu o suor descer copiosamente por seu rosto, sentiu o
tremor do peito e dos braços, mas não teve forças para se mexer.
– Um dia o imperador irá até você. Ele dirá: “Ela se foi”. A
máscara do pesar ocupará o rosto dele. Ele oferecerá água aos
mortos, como se referem às lágrimas por estas bandas. E você
dirá, usando minha voz: “Mestre! Ó, mestre!”.
A mandíbula e a garganta de Hayt doíam com o travamento dos
músculos. Ele só conseguia descrever um arco curto com a
cabeça, de um lado para outro.
– Você dirá: “Trago uma mensagem de Bijaz”. – O anão fez uma
careta. – Pobre Bijaz, que não tem mente... pobre Bijaz, um
tambor cheio de mensagens, uma essência a ser usada por outras
pessoas... é só bater Bijaz e ele fará barulho...
Outra vez, a careta.
– Você me acha um hipócrita, Duncan Idaho! Não sou! Também
posso sentir pesar. Mas chegou a hora de trocar espadas por
palavras.
Um soluço abalou Hayt.
Bijaz deu uma risadinha, e então:
– Ah, obrigado, Duncan, obrigado. As exigências do corpo são
nossa salvação. Como o imperador tem o sangue dos Harkonnen
em suas veias, ele fará o que mandarmos. Ele irá se transformar
numa máquina que cospe, que morde as palavras e que soará
adorável para nossos mestres.
Hayt piscou, pensando em como o anão parecia um
animalzinho alerta, uma coisa feita de desdém e rara inteligência.
Sangue Harkonnen no Atreides?
– Você pensa no Bruto Rabban, o Harkonnen sórdido, e seus
olhos brilham – disse Bijaz. – Nisso você é como os fremen.
Quando faltam as palavras, a espada está sempre à mão, hein?
Você pensa nos Harkonnen que torturaram sua família. E, por
parte de mãe, seu precioso Paul é um Harkonnen! Não seria difícil
matar um Harkonnen, seria?
Uma frustração rancorosa percorreu o ghola. Seria raiva? Por
que aquilo o deixaria com raiva?
– Oooh. Aaaah, rá! Clique, clique. A mensagem não acaba aí. É
uma troca que os Tleilaxu oferecem a seu precioso Paul Atreides.
Nossos mestres irão restaurar a queridinha dele. Uma irmã para
você: outro ghola.
Pareceu a Hayt, de repente, que ele vivia num universo
ocupado apenas pelas batidas de seu próprio coração.
– Um ghola. Será o corpo da queridinha dele. Ela lhe dará filhos.
Ela amará somente a ele. Podemos até mesmo melhorar a
original, se ele quiser. Alguma vez um homem teve oportunidade
melhor de recuperar o que perdeu? É um negócio que ele não
hesitará em fechar.
Bijaz fez que sim, baixando as pálpebras, como se estivesse
ficando cansado. E então:
– Ele ficará tentado... e, com ele distraído, você irá se
aproximar. No mesmo instante, atacará! Dois gholas, e não um! É
isso que nossos mestres ordenam!
O anão limpou a garganta, assentiu mais uma vez e disse:
– Fale.
– Não farei isso – Hayt disse.
– Mas Duncan Idaho faria. Será o momento de vulnerabilidade
suprema desse descendente dos Harkonnen. Não se esqueça
disso. Você vai sugerir melhorias para a queridinha dele: talvez
um coração imortal, emoções mais dóceis. Oferecerá asilo ao se
aproximar: um planeta à escolha dele, em algum lugar fora do
alcance do Imperium. Pense nisso! Sua queridinha restaurada.
Não precisar mais derramar lágrimas, e um lugar idílico para
viver o resto de seus anos.
– Um pacote caro – Hayt disse, sondando-o. – Ele vai querer
saber o preço.
– Diga-lhe que terá de renunciar à divindade e desacreditar o
Qizarate. Ele terá de desacreditar a si mesmo e à irmã dele.
– Nada mais? – Hayt perguntou, sarcástico.
– Ele terá de abrir mão de suas ações da CHOAM, naturalmente.
– Naturalmente.
– E se ainda não estiver perto o suficiente para atacar,
mencione como os Tleilaxu admiram o que ele lhes ensinou sobre
as possibilidades da religião. Diga-lhe que os Tleilaxu têm um
departamento de engenharia religiosa, para adaptar as religiões a
necessidades particulares.
– Quanta esperteza.
– Você acha que tem a liberdade de zombar de mim e me
desobedecer. – Bijaz inclinou manhosamente a cabeça. – Não
negue...
– Eles o fizeram bem, animalzinho.
– Você também – disse o anão. – Dirá a ele para se apressar. A
carne se decompõe, e o corpo dela tem de ser preservado num
tanque criológico.
Hayt sentiu-se trôpego, apanhado numa matriz de objetos que
não conseguia reconhecer. O anão parecia tão seguro de si! Tinha
de haver um furo na lógica dos Tleilaxu. Ao criar o ghola, eles o
afinaram com a voz de Bijaz, mas... Mas o quê?
Lógica/matriz/objeto... Como era fácil confundir o raciocínio claro
com o raciocínio correto! A lógica dos Tleilaxu estaria distorcida?
Bijaz sorriu, atento como se ouvisse uma voz secreta.
– Agora você esquecerá – disse. – Quando chegar a hora, irá se
lembrar. Ele dirá: “Ela se foi”. Duncan Idaho despertará nesse
momento.
O anão bateu palmas uma única vez.
Hayt grunhiu, sob a impressão de que o haviam interrompido
no meio de um raciocínio... ou talvez no meio de uma frase. O que
era mesmo? Algo a respeito de... alvos?
– Está tentando me confundir e manipular – disse.
– Como assim? – Bijaz perguntou.
– Eu sou seu alvo e não há como você negar.
– Nem me passaria pela cabeça negá-lo.
– E o que você tentaria fazer comigo?
– Uma gentileza – disse Bijaz. – Uma simples gentileza.
A natureza sequencial dos fatos reais não é
iluminada com precisão exaustiva pelos poderes
da presciência, a não ser nas circunstâncias mais
extraordinárias. O oráculo apanha incidentes
retirados da cadeia histórica. A eternidade se
move. Impõe-se ao oráculo tanto quanto ao
suplicante. Que os súditos de Muad’Dib duvidem
de sua majestade e de suas visões oraculares. Que
neguem seus poderes. Que nunca duvidem da
Eternidade.
– Os Evangelhos de Duna

Hayt observou Alia sair de seu templo e atravessar a praça. Sua


guarda formava um grupo compacto, com uma expressão feroz
no rosto para disfarçar as feições modeladas pela boa vida e a
complacência.
A heliogravura das asas de um tóptero cintilou à luz brilhante
do sol da tarde acima do templo. Fazia parte da Guarda Real e
trazia a insígnia do punho de Muad’Dib na fuselagem.
Hayt voltou a olhar para Alia. Ela parecia fora de lugar ali na
cidade, pensou. O cenário adequado para ela era o deserto: o
espaço aberto e desimpedido. Voltou a ocorrer-lhe uma coisa
estranha a respeito dela ao vê-la se aproximar: Alia só parecia
pensativa quando sorria. Era um truque da vista, decidiu,
relembrando um retrato vívido da jovem quando ela aparecera na
recepção ao embaixador da Guilda: soberba em contraste com
um pano de fundo de música e conversas fugazes, em meio a
vestidos de gala e uniformes extravagantes. E Alia usara o branco,
deslumbrante, um traje resplandecente de castidade. Ele a tinha
visto de cima, de uma janela, quando ela atravessara um jardim de
inverno, com seu lago formal, as fontes caneladas, as frondes do
capim-dos-pampas e um belvedere branco.
Totalmente errado... tudo errado. O lugar dela era o deserto.
Hayt inspirou convulsivamente. Alia deixara seu campo visual
na ocasião da mesma maneira que fazia agora. Ele esperou,
cerrando e descerrando os punhos. A entrevista com Bijaz o
deixara apreensivo.
Ouviu o séquito de Alia passar do lado de fora da sala onde ele
esperava. Ela entrou nos aposentos da Família.
Agora ele tentava se concentrar naquilo que o incomodava a
respeito dela. A maneira como ela havia atravessado a praça? Sim.
Movera-se feito uma criatura acossada fugindo de um predador.
Ele saiu na sacada de ligação, percorreu-a, protegido pela
persiana de ligaplás, deteve-se sem deixar as sombras
dissimuladoras. Alia estava junto à balaustrada que dava vista
para seu templo.
Ele olhou para onde ela olhava: para fora, por cima da cidade.
Viu retângulos, blocos de cor, movimentos rastejantes de vida e
som. As construções brilhavam, tremeluziam. O calor brotava em
espirais dos telhados. Havia um menino do outro lado, quicando
uma bola num beco sem saída formado pelos contrafortes de um
maciço num dos cantos do templo. A bola ia e vinha.
Alia também observava a bola. Sentia uma identificação
irresistível com aquela bola – indo e vindo... indo e vindo. Teve a
impressão de que ela quicava pelos corredores do Tempo.
A poção de mélange que ela havia consumido pouco antes de
sair do templo era a maior que já tinha tentado até então: uma
overdose maciça. Mesmo antes de começar a fazer efeito, a coisa a
deixara apavorada.
Por que fiz isso?, ela se perguntou.
Escolheu-se um dentre dois perigos. Foi isso? Era assim que se
penetrava a névoa que o maldito Tarô de Duna espalhava sobre o
futuro. Havia uma barreira. Era preciso rompê-la. Ela tinha feito o
que fez porque precisava ver por onde o irmão caminhava com
seus passos cegos.
O familiar estado de fuga dissociativa do mélange começou a se
insinuar em sua percepção. Inspirou fundo, sentiu uma espécie
fria de calma, equilibrada e altruísta.
A possessão da vidência costuma fazer do indivíduo um fatalista
perigoso, ela pensou. Infelizmente, não havia uma alavanca
abstrata, nenhum cálculo de presciência. As visões do futuro não
podiam ser manipuladas como fórmulas. Era preciso adentrá-las,
arriscar a vida e a sanidade.
Um vulto saiu das sombras duras da sacada adjacente. O ghola!
Com sua percepção aguçada, Alia o viu com uma clareza intensa:
o rosto jovial e moreno, dominado por aqueles olhos cintilantes de
metal. Ele era a união de opostos aterradores, uma coisa formada
de uma maneira escandalosamente linear. Era sombra e luz
ofuscante, um produto do processo que revivera sua carne
morta... e de algo intensamente puro... inocente.
Ele era a inocência assediada!
– Estava aí o tempo todo, Duncan? – ela perguntou.
– Então estou fadado a ser Duncan. Por quê?
– Não me questione.
E ela pensou, olhando para ele, que os Tleilaxu não haviam
deixado nenhum canto de seu ghola por terminar.
– Somente os deuses podem arriscar com segurança a
perfeição – ela falou. – É uma coisa perigosa para um homem.
– Duncan morreu – ele disse, desejando que ela não o chamasse
assim. – Eu sou Hayt.
Ela estudou-lhe os olhos artificiais, imaginando o que eles viam.
Observados de perto, revelavam diminutas depressões negras,
pequenos mananciais de escuridão no metal cintilante. Facetas! O
universo tremeluziu e cambaleou a seu redor. Ela se segurou
apoiando uma das mãos na superfície aquecida pelo sol da
balaustrada. Aaah, o mélange agia com rapidez.
– Está se sentindo mal? – Hayt perguntou.
Ele se aproximou, com os olhos de aço fixos e arregalados.
Quem falou?, ela quis saber. Foi Duncan Idaho? Foi o ghola-
Mentat ou o filósofo zen-sunita? Ou foi um fantoche dos Tleilaxu,
mais perigoso que qualquer Piloto da Guilda? Seu irmão sabia.
Outra vez, ela olhou para o ghola. Havia nele agora uma certa
inatividade, algo latente. Ele estava saturado de espera e poderes
que ultrapassavam a vida comum dos dois.
– Por causa de minha mãe, sou como as Bene Gesserit. Sabia
disso?
– Sabia.
– Uso os mesmos poderes, penso como elas pensam. Parte de
mim conhece a sagrada urgência do programa de reprodução... e
seus produtos.
Ela piscou, sentindo que parte de sua percepção começava a
vagar livre pelo Tempo.
– Dizem que as Bene Gesserit nunca desistem – ele disse, e a
observou de perto, notando como estavam brancos os nós de
seus dedos, agarrados à borda da sacada.
– Eu tropecei? – ela perguntou.
Ele reparou como Alia respirava fundo, a tensão de cada
movimento, a aparência vidrada de seus olhos.
– Quando se tropeça – ele disse –, pode-se recobrar o equilíbrio
saltando por cima da coisa que causou o tropeço.
– As Bene Gesserit tropeçaram. Agora querem recobrar o
equilíbrio saltando por cima de meu irmão. Querem o bebê de
Chani... ou o meu.
– Está esperando um filho?
Ela pelejou para se localizar numa relação espaço-temporal
com a pergunta. Esperando um filho? Quando? Onde?
– Vejo... meu filho – ela sussurrou.
Ela se afastou da beira da sacada, virou a cabeça e olhou para o
ghola. Ele tinha graça no rosto, amargura nos olhos: dois círculos
de chumbo cintilante... e, quando ele se virou, afastando-se da luz
para acompanhar o movimento dela, sombras melancólicas.
– O que... você vê com esses olhos? – ela sussurrou.
– O que outros olhos veem.
As palavras dele retiniram em seus ouvidos, estirando sua
percepção. Foi como se ela se estendesse por todo o universo:
tamanho estiramento... longe... longe. Ela se entrelaçava à
totalidade do Tempo.
– Você tomou a especiaria, uma dose grande – ele disse.
– Por que não consigo vê-lo? – ela murmurou.
Era prisioneira do útero de toda a criação.
– Diga-me por que não consigo vê-lo, Duncan.
– Quem é que você não consegue ver?
– Não consigo ver o pai de meus filhos. Estou perdida na névoa
do Tarô. Ajude-me.
A lógica de Mentat produziu sua computação primária, e ele
disse:
– As Bene Gesserit querem um cruzamento entre você e seu
irmão. Isso fixaria o padrão gené...
Ela deixou escapar um gemido.
– O óvulo em carne e osso – disse, com a voz entrecortada.
Foi tomada por uma sensação de frialdade, seguida por calor
intenso. O consorte invisível de seus sonhos mais tenebrosos!
Carne de sua carne que o oráculo não conseguia revelar...
Chegaria a tanto?
– Você se arriscou a tomar uma dose perigosa da especiaria? –
ele perguntou.
Algo dentro dele lutou para expressar o mais absoluto pavor
diante da ideia de que uma mulher Atreides pudesse morrer, de
que Paul o confrontasse com a notícia de que uma mulher da
família real havia... partido.
– Você não sabe como é caçar o futuro – ela disse. – Às vezes
vislumbro a mim mesma... mas eu mesma me atrapalho. Não
enxergo através de mim.
Ela baixou a cabeça, balançando-a de um lado para outro.
– Quanta especiaria você tomou? – ele perguntou.
– A natureza abomina a presciência – ela disse, erguendo a
cabeça. – Sabia disso, Duncan?
Ele falou de mansinho, sensatamente, como se conversasse
com uma criança pequena:
– Diga-me quanta especiaria você tomou.
Ele segurou o ombro dela com a mão esquerda.
– As palavras são máquinas tão toscas, tão primitivas e
ambíguas – ela disse, desvencilhando-se da mão dele.
– Diga-me.
– Olhe para a Muralha-Escudo – ela ordenou, apontando.
Ela sentiu o próprio olhar percorrer a mão esticada,
estremeceu quando a paisagem se desintegrou numa visão
avassaladora: um castelo de areia destruído por ondas invisíveis.
Desviou os olhos, transfixada pela aparência do rosto do ghola. As
feições dele fervilharam, envelheceram, rejuvenesceram... velho...
jovem. Ele era a própria vida, peremptória, infinita... Ela se virou
para fugir, mas ele a agarrou pelo pulso esquerdo.
– Vou chamar um médico.
– Não! Deixe-me ter a visão! Tenho de saber!
– Você vai entrar agora.
Ela olhou para baixo, para a mão dele. No ponto de contato de
sua pele com a dele, Alia sentiu uma presença elétrica que a
fascinava e assustava ao mesmo tempo. Soltou-se com um gesto
brusco.
– É impossível conter o furacão!
– Você precisa de assistência médica! – ele gritou.
– Você não entende? – ela indagou. – Minha visão está
incompleta, é só fragmentos. Ela vacila e salta. Tenho de me
lembrar do futuro. Não vê?
– De que adiantará o futuro se você morrer? – ele perguntou,
forçando-a delicadamente a entrar nos aposentos da Família.
– Palavras... palavras – ela murmurou. – Não sei explicar. Uma
coisa é a ocasião de outra coisa, mas não existe causa... nem
efeito. Não podemos deixar o universo do jeito que estava. Por
mais que tentemos, existe um abismo.
– Deite-se aqui – ele ordenou.
Ele é tão bronco!, ela pensou.
Sombras frescas a envolveram. Sentiu os próprios músculos
rastejarem feito vermes: uma cama firme que ela sabia ser
insubstancial. Só o espaço era permanente. Nada mais tinha
substância. A cama transbordava corpos, e todos eram seus. O
Tempo tornou-se uma sensação múltipla, sobrecarregada. Não
lhe apresentava nenhuma reação que ela pudesse abstrair. Era o
Tempo. Movia-se. O universo inteiro deslizava para trás, para a
frente, de lado.
– Não tem um aspecto-coisa – ela explicou. – Não é possível
passar por baixo dele, nem contorná-lo. Não há como superá-lo.
Surgiu um alvoroço de gente ao redor dela. Muitos alguéns
seguraram-lhe a mão esquerda. Olhou para sua própria carne em
movimento, seguiu um braço que serpeava em direção a uma
máscara fluida à guisa de rosto: Duncan Idaho! Os olhos dele
estavam... errados, mas era Duncan: menino-homem-
adolescente-menino-homem-adolescente... Cada traço de suas
feições revelava preocupação por ela.
– Duncan, não tenha medo – ela sussurrou.
Ele apertou-lhe a mão, assentiu.
– Sossegue – ele disse.
E pensou: Ela não pode morrer! Não pode! Nenhuma mulher
Atreides pode morrer! Balançou a cabeça vigorosamente. Aqueles
pensamentos desafiavam a lógica dos Mentats. A morte era uma
necessidade para que a vida continuasse.
O ghola me ama, Alia pensou.
O pensamento tornou-se um alicerce no qual ela poderia se
segurar. Ele era um rosto familiar e havia um aposento concreto
atrás dele. Ela reconheceu um dos quartos da suíte de Paul.
Uma pessoa fixa e imutável fez alguma coisa com um tubo em
sua garganta. Ela resistiu à ânsia de vômito.
– Chegamos a tempo – disse uma voz, e ela reconheceu o timbre
de um médico da Família. – Deveria ter me chamado antes.
Havia suspeita na voz do médico. Ela sentiu o tubo deslizar
para fora de sua garganta: uma cobra, um fio tremeluzente.
– A lavagem estomacal vai fazê-la dormir – o médico disse. –
Mandarei uma de suas criadas...
– Ficarei com ela – disse o ghola.
– Não seria apropriado! – o médico gritou.
– Fique... Duncan – sussurrou Alia.
Ele acariciou a mão dela, para confirmar que a tinha ouvido.
– Milady – o médico disse –, seria melhor se...
– Não me diga o que seria melhor – ela rouquejou, com a
garganta doendo a cada sílaba.
– Milady conhece os riscos de consumir o mélange em excesso –
falou o médico, num tom acusador. – Só posso supor que alguém o
deu a milady sem...
– Você é um idiota – ela disse, ainda rouca. – Pretende me negar
minhas visões? Sei o que tomei e por quê. – Levou uma das mãos à
garganta. – Deixe-nos. Já!
O médico saiu de seu campo visual e disse:
– Mandarei avisar seu irmão.
Percebeu que o médico foi embora e voltou sua atenção para o
ghola. A visão aparecia nítida em sua percepção agora, um meio
de cultura no qual o presente se expandia. Pareceu-lhe que o
ghola se movia naquela apresentação do Tempo, não mais
misterioso, fixo contra um pano de fundo reconhecível.
Ele é a provação, pensou. Ele é o perigo e a salvação.
E ela estremeceu, sabendo que presenciava a visão que seu
irmão tivera. Lágrimas indesejadas arderam-lhe nos olhos.
Balançou a cabeça vigorosamente. Nada de lágrimas!
Desperdiçavam umidade e, pior ainda, desviavam a torrente rude
da visão. Era preciso deter Paul! Uma vez, e apenas uma vez, ela
havia transposto o Tempo para colocar sua voz no caminho por
onde ele passaria. Mas a tensão e a mutabilidade não permitiram
tal coisa ali. A teia do Tempo agora passava por seu irmão como
os raios de luz através de uma lente. Ele ficava no foco e sabia
disso. Tinha recolhido todas as linhas e não permitiria que elas
escapassem nem mudassem.
– Por quê? – ela murmurou. – Seria o ódio? Ele agride o próprio
Tempo porque o Tempo o magoou? É isso... ódio?
Imaginando tê-la ouvido pronunciar seu nome [1], o ghola disse:
– Milady?
– Se ao menos eu pudesse extirpar essa coisa de mim! – ela
gritou. – Eu não queria ser diferente.
– Por favor, Alia – ele murmurou. – Permita-se dormir.
– Eu queria ser capaz de rir – ela sussurrou. Lágrimas
desceram-lhe pelas maçãs do rosto. – Mas sou irmã de um
imperador que é adorado como um deus. As pessoas me temem.
Nunca quis ser temida.
Ele enxugou-lhe as lágrimas.
– Não quero ser parte da história – ela sussurrou. – Só quero ser
amada... e amar.
– Você é amada.
– Aaah, Duncan, tão leal, tão leal.
– Por favor, não me chame assim – ele implorou.
– Mas você é. E a lealdade é um artigo valioso. Pode ser
vendida... não comprada, mas vendida.
– Não gosto desse seu cinismo.
– Maldita seja sua lógica! É verdade!
– Durma.
– Você me ama, Duncan? – ela perguntou.
– Sim.
– É uma daquelas mentiras, uma das mentiras nas quais é mais
fácil acreditar do que na verdade? Por que tenho medo de
acreditar em você?
– Você teme minhas peculiaridades da mesma maneira que
teme as suas.
– Seja um homem, não um Mentat – ela rosnou.
– Sou um Mentat e um homem.
– Fará de mim sua mulher, então?
– Farei o que exige o amor.
– E a lealdade?
– E a lealdade.
– É por isso que você é perigoso.
As palavras dela o transtornaram. Nenhum sinal do transtorno
apareceu no rosto dele, nenhum músculo estremeceu... mas ela
sabia. A lembrança-visão expôs o transtorno. Mas pareceu-lhe ter
deixado passar parte da visão, que deveria se lembrar de algo
mais do futuro. Havia uma outra percepção que não passava
exatamente pelos sentidos, uma coisa que caía do nada dentro de
sua cabeça, como fazia a presciência. Ficava nas sombras do
Tempo, infinitamente dolorosa.
Emoção! Era isso: emoção! Havia aparecido na visão, não
diretamente, e sim como um produto a partir do qual ela
conseguiu inferir o que ficara para trás. Fora possuída pela
emoção: uma única contração feita de medo, pesar e amor.
Estavam na visão, todas essas emoções reunidas num único corpo
epidêmico, irresistíveis e primordiais.
– Duncan, não desista de mim – ela sussurrou.
– Durma – ele disse. – Não resista.
– Eu preciso... preciso. Ele é a isca de sua própria armadilha. Ele
é o servo do poder e do terror. Violência... a deificação é uma
prisão a encerrá-lo. Ele perderá... tudo. Isso irá despedaçá-lo.
– Está falando de Paul?
– Eles o estão levando a destruir a si mesmo – ela disse, com voz
entrecortada, arqueando as costas. – Peso excessivo, pesar
excessivo. Eles o seduzem, afastam-no do amor. – Ela voltou a
afundar na cama. – Estão criando um universo onde ele não irá se
permitir viver.
– Quem está fazendo isso?
– Ele mesmo! Aaah, você é tão bronco. Ele é parte do padrão. E
é tarde demais... tarde demais... tarde demais...
Ao dizer isso, sentiu sua percepção descer, camada por
camada. Veio pousar exatamente atrás de seu umbigo. Corpo e
mente se separaram e fundiram num armazém de visões-
relíquias, em movimento, em movimento... Escutou o bater de um
coração fetal, uma criança do futuro. O mélange ainda a possuía,
portanto, deixando-a à deriva no Tempo. Sabia ter provado a vida
de uma criança ainda por conceber. Uma coisa era certa a
respeito dessa criança: passaria pelo mesmo despertar pelo qual
ela havia passado. Seria uma entidade consciente e pensante
antes de nascer.
Há um limite para a força que até mesmo os mais
poderosos têm a possibilidade de aplicar sem
destruir a si mesmos. Calcular esse limite é a
verdadeira arte de governar. O uso indevido do
poder é o pecado fatal. A lei não pode ser um
instrumento de vingança, jamais um refém, nem
uma fortificação contra os mártires criados por
ela. Não se pode ameaçar um indivíduo e escapar
das consequências.
- Muad’Dib, a respeito da Lei, em O memorial de Stilgar

Chani fitava o deserto matutino emoldurado pela falha logo


abaixo de Sietch Tabr. Não vestia um trajestilador, e isso a fazia se
sentir desprotegida ali no deserto. A entrada cavernosa do sietch
se escondia nos contrafortes do penhasco acima e atrás dela.
O deserto... o deserto... Parecia-lhe que o deserto a
acompanhara aonde quer que tivesse ido. Voltar para o deserto
não era tanto um retorno ao lar, era dar meia-volta e ver o que
sempre estivera ali.
Uma contração dolorosa se espalhou por todo o seu abdômen.
O parto estava próximo. Combateu a dor, desejando aquele
momento a sós com seu deserto.
A quietude da alvorada dominava a terra. Por toda parte, as
sombras fugiam por entre as dunas e os terraços da Muralha-
Escudo. A luz do dia investiu por cima da escarpa elevada e
mergulhou-a até a altura dos olhos numa paisagem desolada que
se estendia sob um céu azul desbotado. A cena condizia com o
cinismo terrível que a atormentava desde o momento em que
ficara sabendo da cegueira de Paul.
Por que estamos aqui?, ela se perguntou.
Não era uma hajra, uma jornada de busca. Paul nada buscava
ali, a não ser, talvez, um lugar onde ela pudesse dar à luz. Ocorreu-
lhe que ele convocara estranhos companheiros para aquela
jornada: Bijaz, o anão tleilaxu; o ghola, Hayt, que poderia ser o
espectro de Duncan Idaho; Edric, o Piloto e embaixador da Guilda;
Gaius Helen Mohiam, a Reverenda Madre das Bene Gesserit que
ele obviamente odiava; Lichna, a estranha filha de Otheym, que
parecia incapaz de escapar do olhar atento dos guardas; Stilgar, o
tio de Chani e um dos naibs, e sua esposa predileta, Harah... e
Irulan... Alia...
O som do vento através das rochas acompanhava seus
pensamentos. O dia no deserto havia se tornado amarelo sobre
amarelo, bronze sobre bronze, cinza sobre cinza.
Por que essa estranha combinação de companheiros?
– Esquecemos que a palavra “companhia” originalmente queria
dizer companheiros de viagem – Paul havia respondido à
pergunta que ela fizera. – Somos uma companhia.
– Mas de que eles nos valem?
– Pronto! – ele dissera, voltando suas órbitas assustadoras para
ela. – Perdemos aquela nota clara e singular do viver. Se não é
possível engarrafar, vencer, apontar ou acumular uma coisa, nós
não lhe damos valor.
Magoada, ela dissera:
– Não foi isso que quis dizer.
– Aaah, queridíssima – ele a tranquilizara –, somos tão ricos em
dinheiro e pobres em vida. Sou mau, obstinado, estúpido...
– Não é!
– Isso também é verdade. Mas o tempo deixou minhas mãos
cianóticas. Acho... Acho que tentei inventar a vida, sem perceber
que já a tinham inventado.
E ele havia tocado o abdômen de Chani, para sentir a nova vida
ali dentro.
Relembrando, ela colocou as duas mãos sobre o abdômen e
estremeceu, arrependida de ter pedido a Paul que a trouxesse ali.
O vento do deserto havia trazido cheiros ruins das plantações
marginais que ancoravam as dunas na base do penhasco. Ela caiu
nas garras da superstição fremen: cheiros ruins, tempos ruins.
Encarou o vento, viu um verme aparecer fora da zona de plantio.
Ele surgiu das dunas feito a proa de um navio demoníaco,
espalhou areia, farejou a água letal a sua espécie e fugiu sob a
longa cúpula de um túnel.
E ela odiou a água naquele momento, inspirada pelo medo do
verme. A água, antes a alma-espírito de Arrakis, tornara-se um
veneno. A água trouxe a peste. Só o deserto era limpo.
Abaixo dela, surgiu uma turma de trabalhadores fremen.
Subiram para a entrada média do sietch, e ela viu que tinham os
pés embarreados.
Fremen com pés embarreados!
Acima dela, as crianças do sietch começaram a cantar para a
manhã, e suas vozes agudas vinham da entrada superior. As vozes
fizeram-na sentir como se o tempo fugisse dela, tal qual os
gaviões antes da ventania. Estremeceu.
Que tempestades Paul teria visto com sua visão sem olhos?
Percebia nele um louco violento, alguém cansado de canções e
polêmicas.
Ela notou que o céu agora era de um cinza cristalino com raios
de alabastro, desenhos bizarros delineados por todo o
firmamento pela areia carreada pelo vento. Uma linha de branco
fulgurante no sul chamou-lhe a atenção. Com os olhos
subitamente alertas, ela interpretou o sinal: céu branco no sul,
boca de Shai-hulud. Vinha uma tempestade, ventania grande. Ela
sentiu a brisa de aviso, um sopro cristalino de areia de encontro a
sua face. O incenso da morte veio com o vento: o cheiro da água
que corria nos qanats, areia suarenta, pederneira. A água: era por
isso que Shai-hulud mandava seu vento de Coriolis.
Apareceram gaviões na falha onde ela se encontrava, em busca
de proteção contra o vento. Eram castanhos como as rochas, com
um pouco de escarlate nas asas. Sentiu seu espírito ir até eles:
tinham onde se esconder; ela, não.
– Milady, aí vem o vento!
Ela se virou, viu o ghola que chamava por ela à entrada superior
do sietch. Temores típicos dos fremen se apoderaram dela. Uma
morte limpa e a água do corpo recuperada pela tribo, essas coisas
ela entendia. Mas... algo que trouxeram da morte...
A areia soprada pelo vento a fustigou, corando-lhe as maçãs do
rosto. Ela olhou por cima do ombro, para a faixa assustadora de
pó de um lado ao outro do céu. O deserto sob a tempestade
assumira uma aparência trigueira e agitada, como se ondas de
dunas rebentassem numa praia tempestuosa, da maneira como
um dia Paul havia descrito um mar. Ela hesitou, contagiada pela
sensação de transitoriedade do deserto. Comparado à
eternidade, aquilo não passava de um caldeirão. A arrebentação
das dunas retumbando de encontro aos penhascos.
A tempestade lá fora havia se tornado algo universal para ela.
Todos os animais se escondiam da tormenta... nada restava do
deserto, a não ser seus próprios sons particulares: a areia ao
vento raspando a pedra, o assovio de um pé de vento, o galope de
um matacão que de repente caía de sua montanha... E então!, em
algum lugar fora de vista, um verme emborcado retificando
estrondosamente seu curso peculiar e partindo para as
profundezas secas que eram suas.
Foi só um instante, segundo a contagem que sua vida fazia do
tempo, mas, nesse instante, pareceu-lhe que o planeta era levado
de roldão: poeira cósmica, parte de outras ondas.
– Temos de nos apressar – disse o ghola, bem ao lado dela.
Foi aí que ela percebeu o medo dele, a preocupação com sua
segurança.
– Vai arrancar a carne de seus ossos – ele falou, como se
precisasse explicar semelhante tempestade para ela.
Agora que a preocupação evidente do ghola havia dispersado o
medo que ela tinha dele, Chani deixou que ele a ajudasse a subir a
escadaria de pedra até o sietch. Entraram na chicana serpeante
que protegia a boca. Os criados abriram a vedação de umidade,
fecharam-na tão logo eles passaram.
Os cheiros do sietch tomaram de assalto suas narinas. O lugar
era uma fermentação de lembranças olfativas: a proximidade
confinada de corpos, os ésteres malcheirosos dos destiladores de
reaproveitamento, aromas familiares da culinária, a combustão
abrasiva de máquinas em funcionamento... e, em meio a tudo
aquilo, a onipresente especiaria: mélange por toda parte.
Ela inspirou fundo.
– Minha casa.
O ghola soltou-lhe o braço e colocou-se de lado, a paciência em
pessoa, quase como que desligado, fora de uso. Contudo... ele
observava.
Chani hesitou na câmara da entrada, intrigada com uma coisa
que não conseguia identificar. Era realmente sua casa. Quando
criança, ela caçara escorpiões ali, à luz dos luciglobos. Mas algo
estava diferente...
– Não deveria seguir para seus aposentos, milady? – o ghola
perguntou.
Como se desencadeada pelas palavras dele, uma contração se
espalhou em ondas por seu abdômen. Ela se esforçou para não
revelar a dor.
– Milady?
– Por que Paul teme por mim no parto de nossos filhos? – ela
perguntou.
– É natural temer por sua segurança – respondeu o ghola.
Ela levou uma das mãos à face avermelhada pela areia.
– E ele não teme por nossos filhos?
– Milady, não há como ele pensar numa criança sem se lembrar
de que seu primogênito foi morto pelos Sardaukar.
Ela estudou o ghola: o rosto achatado, os olhos mecânicos e
indecifráveis. Seria realmente Duncan Idaho aquela criatura?
Seria amigo de alguém? Teria falado a verdade naquele instante?
– Deveria estar com os médicos – disse o ghola.
Mais uma vez, ela ouviu o temor por sua segurança na voz dele.
Pareceu-lhe de uma hora para outra que sua mente estava
desprotegida, pronta para ser invadida por sentidos revoltantes.
– Hayt, tenho medo – ela sussurrou. – Onde está meu Usul?
– Assuntos de estado o detêm – disse o ghola.
Ela assentiu, pensando na máquina governamental que os
acompanhara numa enorme revoada de ornitópteros. De repente,
ela percebeu o que a intrigava no sietch: os odores estrangeiros.
Os funcionários e assistentes haviam trazido seus próprios
perfumes para aquele ambiente, aromas da alimentação e do
vestuário, de artigos exóticos de toucador. Formavam uma
subcorrente de odores ali.
Chani se sacudiu, disfarçando o impulso de rir com amargura.
Até mesmo os cheiros mudavam na presença de Muad’Dib!
– Havia questões urgentes e inadiáveis – disse o ghola,
interpretando erroneamente a hesitação dela.
– Sim... sim, eu entendo. Vim nesse mesmo enxame.
Rememorando o voo desde Arrakina, ela admitiu para si
mesma que não havia esperado sobreviver à viagem. Paul insistira
em pilotar seu próprio tóptero. Sem olhos, ele havia conduzido a
máquina até ali. Depois dessa experiência, ela sabia que nada que
ele fizesse seria capaz de surpreendê-la.
Outra pontada se irradiou por todo o seu abdômen.
O ghola notou a inspiração profunda, a tensão nas bochechas, e
disse:
– Está na hora?
– Eu... sim.
– Não protele.
Ele a segurou pelo braço, arrastou-a pelo corredor. Ela
percebeu que ele estava em pânico e disse:
– Temos tempo.
Ele pareceu não escutar.
– A maneira zen-sunita de encarar o parto é esperar sem outro
propósito no estado de mais elevada tensão – ele disse,
exortando-a a caminhar ainda mais rápido. – Não lute com o que
está acontecendo. Lutar é preparar-se para o fracasso. Não se
deixe prender pela necessidade de conseguir alguma coisa. Desse
modo, você conseguirá tudo.
Enquanto ele falava, os dois chegaram à entrada dos aposentos
de Chani. Ele a fez atravessar as cortinas e gritou:
– Harah! Harah! Chegou a hora de Chani. Chame os médicos!
O chamado fez os criados virem correndo. Houve um grande
alvoroço de gente, no meio do qual Chani sentiu-se uma ilha
isolada de calma... até a pontada seguinte.
Hayt, dispensado, voltou à passagem lá fora e parou para
pensar no que tinha feito. Sentiu-se preso num ponto do tempo
onde todas as verdades eram apenas temporárias. Percebeu que
havia pânico sob suas ações. Um pânico focado não na
possibilidade de Chani morrer, e sim na hipótese de Paul procurá-
lo depois do fato... pesaroso... sua amada... perdida... perdida...
Não há como uma coisa surgir do nada, o ghola disse a si
mesmo. De onde surge esse pânico?
Pareceu-lhe que suas faculdades de Mentat haviam se
embotado, deixou escapar uma exalação longa e estremecida.
Uma sombra psíquica passou por ele. Nas trevas emocionais da
sombra, ele teve a impressão de que aguardava um som absoluto:
um galho a se partir na selva.
Foi abalado por um suspiro. O perigo havia passado, sem
atacar.
Devagar, reunindo suas forças, livrando-se de pedacinhos de
inibição, ele imergiu na percepção dos Mentats. Ele a forçou: não
era a melhor maneira, mas pelo jeito tinha de ser assim. Sombras
espectrais moviam-se dentro dele no lugar das pessoas. Ele era
uma baldeação para todo e qualquer dado que já tivesse
encontrado. Seu ser era habitado por criaturas do âmbito da
possibilidade. Elas desfilavam em revista, para serem
comparadas, julgadas.
O suor brotou de sua testa.
Pensamentos de contornos vagos eram penas ao vento a
desaparecer nas trevas, desconhecidos. Sistemas infinitos! Não
havia como um Mentat funcionar sem perceber que operava em
sistemas infinitos. O conhecimento fixo não era capaz de
circunscrever o infinito. Não era possível colocar o toda-parte
numa perspectiva finita. Não, ele tinha de se tornar o infinito...
momentaneamente.
Num único espasmo gestáltico, ele entendeu tudo, vendo Bijaz
sentado a sua frente, iluminado por uma chama interior.
Bijaz!
O anão fizera alguma coisa com ele!
Hayt sentiu-se oscilar à beira de um abismo fatal. Projetou
adiante a linha de computação dos Mentats e viu quais poderiam
ser os resultados de seus próprios atos.
– Uma compulsão! – disse, com a voz entrecortada. –
Embutiram em mim uma compulsão!
Um mensageiro de manto azul, que passava naquele momento,
deteve-se.
– Disse alguma coisa, senhor?
Sem olhar para ele, o ghola concordou com a cabeça.
– Disse tudo.
Era uma vez um homem sabido
Que caiu do céu
Num vasto areal
E os olhos na chama viu perdidos!
E, sabendo não ter mais olhos,
Não se ouviu seu pranto.
Conjurou uma visão
E fez de si um santo.
– Parlenda infantil, excerto da Crônica de Muad’Dib

Paul estava no escuro, do lado de fora do sietch. A visão


oracular lhe dizia que era noite, que o luar desenhava a silhueta do
santuário no topo da Pedra do Queixo, bem lá no alto, a sua
esquerda. Era um lugar saturado de lembranças, seu primeiro
sietch, onde ele e Chani...
Não posso pensar em Chani, disse consigo mesmo.
O quinhão cada vez mais delgado de sua visão falava-lhe de
mudanças por toda parte: um aglomerado de palmeiras bem lá
embaixo, à direita, a linha negro-prateada de um qanat que fazia a
água atravessar as dunas formadas pela tempestade daquela
manhã.
Água correndo pelo deserto! Recordou um outro tipo de água,
correndo por um rio em seu planeta natal, Caladan. Na época, não
havia percebido que tesouro era a corrente, até mesmo o lodo
deslizante de um qanat a cortar a bacia desértica. Tesouro.
Tossindo delicadamente, um assistente surgiu atrás dele.
Paul estendeu as mãos e pegou uma prancheta magnética com
uma única folha de papel metálico em cima dela. Moveu-se com a
mesma lentidão da água do qanat. A visão fluía, mas ele se viu
cada vez mais relutante em acompanhá-la.
– Perdão, sire – disse o assistente. – O Tratado de Semboule...
sua assinatura?
– Eu sei ler! – Paul gritou.
Rabiscou “Imper. Atreides” no lugar apropriado, devolveu a
prancheta, metendo-a direitinho na mão estendida do assistente,
a par do temor que isso inspirava.
O homem saiu correndo.
Paul virou-se para o outro lado. Terra feia e estéril! Imaginou-a
encharcada de sol e monstruosa de calor, um lugar onde
imperavam os deslizamentos de areia e a escuridão submersa das
piscinas de poeira, os redemoinhos de vento que desenrolavam
dunas diminutas por cima das pedras, com seus bojos estreitos
cheios de cristais ocre. Mas também era uma terra rica: grande,
irrompia de lugares apertados trazendo panoramas de uma
inanidade massacrada por temporais, paredões fortificados e
morros prestes a desmoronar.
Só precisava de água... e amor.
A vida transmutava aqueles ermos irascíveis em formas
graciosas em movimento, ele pensou. Essa era a mensagem do
deserto. O contraste o levou a uma conclusão atônita. Queria se
virar para os assistentes aglomerados à entrada do sietch e gritar
para eles: se precisam de algo para adorar, então adorem a vida,
todas as formas de vida, até o último tiquinho rastejante!
Estamos todos juntos nesta beleza!
Eles não entenderiam. Naquela terra árida, a aridez daquela
gente não tinha fim. Para eles, os seres vivos não apresentavam
nenhum balé em verde.
Cerrou os punhos, tentando deter a visão. Queria fugir de sua
própria mente, uma fera que vinha devorá-lo! A percepção estava
dentro dele, encharcada, encorpada com todos os seres vivos que
absorvera, saturada com o excesso de experiências.
Desesperado, Paul fez força para expulsar seus pensamentos.
Estrelas!
A percepção girou diante da ideia de todas aquelas estrelas
acima dele: um volume infinito. Um homem tinha de ser meio
louco para se imaginar capaz de reger uma lágrima que fosse de
todo aquele volume. Ele não conseguia sequer começar a
imaginar o número de súditos de seu Imperium.
Súditos? Adoradores e inimigos, mais provavelmente. Será que
algum deles enxergava além da rigidez da crença? Onde
encontrar um homem que tivesse escapado ao destino limitado
de seus preconceitos? Nem mesmo um imperador escapava.
Levara a vida tomando tudo para si, tentara criar um universo a
sua própria imagem. Mas o universo exultante enfim rebentava
em suas costas com ondas silenciosas.
Cuspo em Duna!, ele pensou. Ofereço-lhe minha umidade!
O mito que ele havia criado com manobras intricadas e
imaginação, luar e amor, preces anteriores à criação do homem,
penhascos cinzentos e sombras carmesins, lamentos e rios de
mártires: no que dera afinal? Quando as ondas recuassem, as
praias do Tempo iriam se abrir, limpas, vazias, reluzindo em grãos
infinitos de memória e pouca coisa além disso. Era essa a gênese
dourada do homem?
Soube pela areia que raspava as pedras que o ghola havia se
juntado a ele.
– Você anda me evitando hoje, Duncan.
– É perigoso milorde me chamar assim.
– Eu sei.
– Eu... vim avisá-lo, milorde.
– Eu sei.
O ghola despejou, então, a história da compulsão que Bijaz
havia incutido nele.
– Sabe qual é a natureza da compulsão? – Paul perguntou.
– Violência.
Paul teve a impressão de que chegara a um lugar que o havia
reivindicado como seu desde o início. Estava suspenso. O Jihad o
tinha capturado, fixara-o numa trajetória de voo da qual a
gravidade terrível do futuro nunca o libertaria.
– Nenhuma violência partirá de Duncan – Paul murmurou.
– Mas, sire...
– Diga-me o que vê a nosso redor – disse Paul.
– Milorde?
– O deserto: como está na noite de hoje?
– Não está vendo?
– Não tenho olhos, Duncan.
– Mas...
– Tenho apenas minha visão, e queria não tê-la. Estou
morrendo de presciência, sabia, Duncan?
– Talvez... isso que milorde teme não venha a acontecer – disse
o ghola.
– O quê? E contestar meu próprio oráculo? Como poderia, se o
vi se cumprir milhares de vezes? As pessoas dizem que é um
poder, um dom. É uma doença! Não me permite deixar minha vida
onde a encontrei!
– Milorde – o ghola murmurou. – Eu... não é... jovem mestre,
milorde não... Eu...
Calou-se.
Paul percebeu a confusão do ghola e disse:
– Do que me chamou, Duncan?
– Do quê? Do que eu... por um momento...
– Você me chamou de jovem mestre.
– Chamei, sim.
– Era assim que Duncan me chamava. – Paul estendeu a mão,
tocou o rosto do ghola. – Isso fazia parte de seu treinamento
tleilaxu?
– Não.
Paul baixou a mão.
– O que foi, então?
– Veio de... mim.
– Você serve a dois mestres?
– Talvez.
– Liberte-se do ghola, Duncan.
– Como?
– Você é humano. Faça algo humano.
– Sou um ghola!
– Mas sua carne é humana. Duncan está aí dentro.
– Há uma coisa aqui dentro.
– Não me importa como vai fazê-lo, mas você vai fazê-lo.
– Soube disso pela presciência?
– A presciência que se dane!
Paul deu-lhe as costas. Sua visão agora se arremessava adiante,
deixava lacunas, mas não era algo que se pudesse deter.
– Milorde, se...
– Quieto! – Paul ergueu uma das mãos. – Ouviu isso?
– O quê, milorde?
Paul sacudiu a cabeça. Duncan não tinha ouvido. Teria apenas
imaginado o som? Era seu nome tribal que alguém chamava no
deserto... longe e baixo: Uuuussssuuuullll...
– O que foi, milorde?
Paul sacudiu a cabeça. Sentiu-se observado. Alguma coisa lá
fora nas sombras da noite sabia que ele estava ali. Alguma coisa?
Não... alguém.
– Foi sobretudo uma delícia... mas você foi a maior de todas as
delícias... – ele murmurou.
– O que disse, milorde?
– É o futuro.
O universo humano e sem forma lá fora havia passado por uma
breve explosão de movimento, dançando ao som de sua visão.
Emitira uma nota forte. Os ecos-fantasmas talvez perdurassem.
– Não entendo, milorde – disse o ghola.
– Um fremen morre quando passa tempo demais longe do
deserto – Paul falou. – Chamam isso de o “mal da água”. Não é
estranho?
– É muito estranho.
Paul digladiava-se com lembranças, tentava recordar o som da
respiração de Chani a seu lado, à noite. Onde encontrar consolo?,
ele se perguntou. Só conseguia se lembrar de Chani ao desjejum
no dia em que partiram para o deserto. Ela andara inquieta,
irritável.
– Para que vestir esse paletó velho? – ela quisera saber,
examinando o casaco preto do uniforme com o timbre do gavião
vermelho que ele levava sob os trajes fremen. – Você é um
imperador!
– Até mesmo um imperador tem suas roupas prediletas – ele
dissera.
Ele não soube explicar o motivo, mas aquilo levara lágrimas de
verdade aos olhos de Chani: a segunda vez na vida que suas
inibições fremen haviam cedido.
Ali, no escuro, Paul limpou as maçãs do próprio rosto e sentiu a
umidade. Quem oferece umidade aos mortos?, ele se perguntou.
Era e não era seu próprio rosto. O vento enregelava a pele
molhada. Um sonho frágil se formou, partiu-se. O que era aquele
intumescimento em seu peito? Seria algo que ele havia comido?
Como era amargo e tristonho aquele seu outro eu que oferecia
umidade aos mortos. O vento se encrespou com a areia. A pele,
agora seca, era a sua. Mas de quem era o tremor que restava?
Foi aí que escutaram o choro, distante, nas profundezas do
sietch. Ficou mais alto... mais alto...
O ghola girou nos calcanhares em resposta a um clarão
repentino, alguém que escancarava a vedação da entrada. Na luz,
ele viu um homem de sorriso vulgar... Não! Não um sorriso, e sim
um esgar de tristeza! Era um tenente dos Fedaykin de nome
Tandis. Atrás dele vinha uma multidão, todos calados agora que
viam Muad’Dib.
– Chani... – disse Tandis.
– Está morta – Paul murmurou. – Eu a ouvi chamar.
Ele se voltou para o sietch. Conhecia o lugar. Era um lugar onde
ele não poderia se esconder. A investida de sua visão iluminou
toda a turba fremen. Ele viu Tandis, sentiu o pesar, o medo e a
raiva do Fedaykin.
– Ela se foi – disse Paul.
O ghola ouviu as palavras saírem de uma corona fulgurante.
Queimaram-lhe o peito, a espinha, as órbitas de seus olhos
metálicos. Percebeu que sua mão direita se movia na direção da
faca que trazia no cinto. Seu próprio raciocínio tornou-se
estranho, desarticulado. Ele era uma marionete, presa por fios
que partiam daquela corona terrível. Ele se movia ao comando de
outra pessoa, de acordo com os desejos de outra pessoa. Os fios
puxaram-lhe violentamente os braços, as pernas, a mandíbula.
Sons saíram apertados de sua boca, um ruído repetitivo e
apavorante:
– Hrrak! Hraak! Hraak!
A faca se ergueu para atacar. Naquele instante, ele se apoderou
da própria voz, deu forma a palavras ásperas:
– Fuja! Jovem mestre, fuja!
– Não vamos fugir – Paul falou. – Vamos nos deslocar com
dignidade. Vamos fazer o que tem de ser feito.
Os músculos do ghola travaram. Ele estremeceu, vacilou.
“... o que tem de ser feito!” As palavras se revolveram em sua
mente, feito um grande peixe à flor da água. “... o que tem de ser
feito!” Aaah, aquilo poderia ter sido dito pelo velho duque, o avô
de Paul. O jovem mestre tinha em si um pouco do velho. “... o que
tem de ser feito!”
As palavras começaram a se desdobrar na consciência do
ghola. A sensação de levar duas vidas simultâneas espalhou-se
por sua percepção: Hayt/Idaho/Hayt/Idaho... Ele se tornou uma
cadeia imóvel de existência relativa, singular, solitária.
Lembranças antigas inundaram sua mente. Ele as identificou,
ajustou-as a novos discernimentos, criou um começo na
integração de uma nova consciência. Uma nova persona atingiu
uma forma temporária de tirania interna. A síntese virilizante
continuava carregada com o potencial da desordem, mas os fatos
o empurraram para o ajuste temporário. O jovem mestre
precisava dele.
Estava feito, então. Conheceu-se como Duncan Idaho,
relembrando tudo que era de Hayt como algo guardado
secretamente dentro dele e aceso por um catalisador inflamável.
A corona se dissolveu. Ele se livrou das compulsões tleilaxu.
– Fique perto de mim, Duncan – Paul disse. – Terei de depender
de você para muitas coisas.
E, como Idaho continuasse em transe:
– Duncan!
– Sim, sou Duncan.
– Claro que é! Esse foi o momento em que você voltou. Vamos
entrar agora.
Idaho seguiu ao lado de Paul. Era e não era como nos velhos
tempos. Agora que estava livre dos Tleilaxu, ele era capaz de
apreciar o que haviam lhe dado. O treinamento zen-sunita
permitiu-lhe superar o trauma. O talento de Mentat foi um
contrapeso. Ele se livrou de todo o medo, de pé sobre a fonte.
Toda a sua consciência olhava para fora, a partir de uma posição
de deslumbramento infinito: estivera morto; estava vivo.
– Sire, a mulher, Lichna, disse que precisa vê-lo – o Fedaykin
Tandis falou quando eles se aproximaram. – Eu disse a ela para
esperar.
– Obrigado – disse Paul. – O parto...
– Falei com os médicos – Tandis disse, seguindo-os. – Disseram
que milorde tem dois filhos, ambos vivos e sadios.
– Dois? – Paul tropeçou, segurou-se no braço de Idaho.
– Um menino e uma menina – Tandis falou. – Eu os vi. São
ótimos bebês fremen.
– Como... como ela morreu? – Paul sussurrou.
– Milorde?
Tandis se inclinou.
– Chani? – disse Paul.
– Foi a gravidez, milorde – Tandis crocitou. – Disseram que o
corpo de Chani foi consumido pela rapidez da coisa. Não entendi,
mas foi o que disseram.
– Leve-me até ela – Paul murmurou.
– Milorde?
– Leve-me até ela!
– É para onde estamos indo, milorde. – Outra vez, Tandis se
inclinou para ficar mais perto de Paul. – Por que seu ghola traz
uma faca desembainhada?
– Duncan, guarde a faca. Não é mais hora para violência.
Ao falar, Paul sentiu-se mais próximo do som de sua voz do que
do mecanismo que produzira o som. Dois bebês! A visão continha
só um. Mas aqueles instantes estavam de acordo com a visão.
Havia uma pessoa ali que sentia pesar e raiva. Alguém. Sua
própria percepção estava nas garras de uma esteira terrível,
reproduzindo de memória sua vida.
Dois bebês?
Voltou a tropeçar. Chani, Chani, pensou. Não havia outro jeito.
Chani, querida, acredite: essa morte foi mais rápida... e mais
caridosa. Eles teriam feito nossos filhos reféns, teriam exibido você
numa jaula e nos fossos de escravos, teriam insultado você,
culpando-a por minha morte. Deste jeito... deste jeito, nós os
destruímos e salvamos nossos filhos.
Filhos?
E, outra vez, ele tropeçou.
Eu permiti isto, pensou. Eu deveria me sentir culpado.
O som de uma confusão ruidosa tomava a caverna à frente
deles. Foi ganhando volume precisamente no momento em que
ele se lembrava de que isso aconteceria. Sim, era o mesmo padrão,
o padrão inexorável, mesmo sendo duas as crianças.
Chani está morta, ele disse a si mesmo.
Em algum instante longínquo no passado que ele
compartilhara com outras pessoas, aquele futuro chegara até ele.
E o acossara e conduzira para um abismo de paredes cada vez
mais próximas. Tinha a impressão de que se fechavam sobre ele.
Era assim que a visão prosseguia.
Chani está morta. É melhor me entregar ao pesar.
Mas não era assim que a visão prosseguia.
– Já mandaram chamar Alia? – ele perguntou.
– Ela está com as amigas de Chani – Tandis respondeu.
Paul percebeu que a turba recuava para deixá-lo passar. O
silêncio da massa seguia à frente dele feito uma onda. A confusão
ruidosa começou a arrefecer. Uma sensação de emoção
congestionada tomou o sietch. Quis retirar as pessoas de sua
visão, descobriu que era impossível. Cada rosto que se voltava
para acompanhá-lo tinha a própria marca especial. Enchiam-se
impiedosamente de curiosidade, aqueles rostos. Sentiam pesar,
sim, mas ele entendia a crueldade que os encharcava. Assistiam à
transformação do articulado em imbecil, do sábio em tolo. E o
palhaço não apelava sempre à crueldade?
Era mais que uma vigília, menos que um velório.
Pareceu a Paul que sua alma implorava descanso, mas, mesmo
assim, a visão o impelia. Só um pouco mais agora, disse consigo
mesmo. Uma escuridão negra e desprovida de visão o aguardava
logo adiante. Ali ficava o lugar arrancado da visão pelo pesar e
pela culpa, o lugar onde a lua caía.
Tropeçou ao entrar, teria caído se Idaho não o tivesse segurado
firme pelo braço, uma presença sólida que sabia dividir seu pesar
em silêncio.
– Eis o lugar – Tandis falou.
– Cuidado, sire – disse Idaho, ajudando-o a superar o rebordo
da entrada.
Cortinas roçaram o rosto de Paul. Idaho o deteve. Paul sentiu o
aposento então, um reflexo em seu rosto, em seus ouvidos. Era
um recinto de paredes de pedra, e a rocha se escondia atrás de
tapeçarias.
– Onde está Chani? – Paul sussurrou.
A voz de Harah respondeu:
– Ela está bem aqui, Usul.
Paul soltou um suspiro estremecido. Receara que o corpo de
Chani já tivesse sido levado para as destilarias onde os fremen
recuperavam a água da tribo. Era assim que a visão prosseguia?
Sentiu-se abandonado em sua cegueira.
– As crianças? – Paul perguntou.
– Também estão aqui, milorde – disse Idaho.
– Você tem dois gêmeos lindos, Usul, um menino e uma menina
– disse Harah. – Está vendo? Estão aqui num cercado.
Dois filhos, Paul pensou, abismado. A visão só mostrara uma
filha. Ele se soltou do braço de Idaho, dirigiu-se ao lugar de onde
vinha a voz de Harah e topou com uma superfície dura. Suas mãos
a exploraram: os contornos em metavidro de um cercado.
Alguém segurou-lhe o braço esquerdo.
– Usul?
Era Harah. Ela deixou a mão dele dentro do cercado. Ele sentiu
uma pele macia, macia. Tão quente! Sentiu costelas, respiração.
– Este é seu filho – Harah sussurrou. Moveu a mão dele. – E esta
é sua filha. – A mão de Harah apertou a dele. – Usul, está cego de
verdade agora?
Ele sabia no que ela estava pensando. Os cegos devem ser
abandonados no deserto. As tribos fremen não carregavam peso
morto.
– Leve-me até Chani – Paul disse, ignorando a pergunta.
Harah o virou, conduziu-o para a esquerda.
Paul sentiu que aceitava agora o fato de Chani estar morta. Ele
assumira seu lugar num universo que ele não queria, envergando
um corpo que não lhe cabia. Cada inspiração machucava suas
emoções. Dois filhos! Imaginou se havia se comprometido com
uma passagem onde sua visão nunca voltaria. Parecia
desimportante.
– Onde está meu irmão?
Era a voz de Alia atrás dele. Ouviu-lhe a pressa, a presença
avassaladora quando ela tomou o braço dele das mãos de Harah.
– Preciso falar com você! – Alia sussurrou
– Um minuto.
– Já! É a respeito de Lichna.
– Eu sei. Um minuto.
– Você não tem um minuto!
– Tenho muitos minutos.
– Mas Chani não!
– Quieta! – ele ordenou. – Chani está morta.
Cobriu a boca da irmã com a mão quando ela começou a
protestar.
– Estou mandando você ficar quieta!
Sentiu que ela aquiesceu e removeu a mão.
– Descreva o que está vendo – ele disse.
– Paul!
A frustração e as lágrimas guerreavam na voz dela.
– Não faz mal – ele falou.
Obrigou-se a encontrar a calma interior, abriu os olhos de sua
visão para aquele momento. Sim, ainda estava ali. O corpo de
Chani jazia sobre um catre dentro de um aro de luz. Alguém havia
esticado e alisado seu manto branco, tentando esconder o sangue
do parto. Não importava. Ele não conseguia desviar sua
percepção da visão do rosto de Chani: tamanho espelho de
eternidade em suas feições imóveis!
Ele se virou, mas a visão o acompanhou. Ela havia partido... e
nunca mais voltaria. O ar, o universo, tudo vazio... vazio por toda
parte. Seria essa a essência de sua pena?, ele se perguntou. Queria
as lágrimas, mas elas não vinham. Será que vivera tempo demais
como fremen? Aquela morte exigia sua umidade!
Ali perto, um bebê chorou e foi silenciado com psius. O som
baixou um pano sobre sua visão. Paul recebeu a escuridão de
braços abertos. Este é um outro mundo, ele pensou. Dois filhos.
O pensamento saiu de um transe oracular perdido. Tentou
recapturar a dilatação mental atemporal do mélange, mas a
percepção falhou. Nenhuma explosão do futuro entrou naquela
nova consciência. Sentiu-se rejeitando o futuro, qualquer futuro.
– Adeus, minha Sihaya – ele murmurou.
A voz de Alia, dura e exigente, veio de algum lugar atrás dele.
– Eu trouxe Lichna!
Paul se virou.
– Essa não é Lichna – disse. – É um Dançarino Facial. Lichna
está morta.
– Mas escute o que ela tem a dizer – falou Alia.
Devagar, Paul foi se deslocando na direção da voz da irmã.
– Não me surpreende encontrá-lo vivo, Atreides.
A voz era parecida com a de Lichna, mas com diferenças sutis,
como se quem falasse usasse as cordas vocais de Lichna, mas não
se desse mais o trabalho de controlá-las a contento. Paul viu-se
impressionado com um estranho timbre de honestidade naquela
voz.
– Não se surpreende? – Paul perguntou.
– Sou Scytale, Tleilaxu e Dançarino Facial, e queria saber uma
coisa antes de negociarmos. É um ghola o que vejo atrás de você
ou Duncan Idaho?
– É Duncan Idaho – Paul respondeu. – E não vou negociar com
você.
– Eu acho que vai – disse Scytale.
– Duncan, você mataria esse Tleilaxu se eu pedisse? – Paul falou
por cima do ombro.
– Sim, milorde.
Havia a fúria reprimida de um berserker na voz de Idaho.
– Espere! – disse Alia. – Não sabe o que está recusando.
– Mas eu sei, sim – disse Paul.
– Então trata-se realmente de Duncan Idaho dos Atreides –
falou Scytale. – Encontramos a alavanca! Um ghola é capaz de
recuperar seu passado.
Paul ouviu passos. Alguém passou por ele a sua esquerda. A
voz de Scytale agora vinha de trás dele:
– O que lembra de seu passado, Duncan?
– Tudo. De minha infância em diante. Lembro até mesmo de
você junto ao tanque, quando me tiraram de dentro dele – disse
Idaho.
– Maravilhoso – Scytale murmurou. – Maravilhoso.
Paul escutou a voz se deslocar. Preciso de uma visão, pensou.
As trevas o frustraram. O treinamento Bene Gesserit alertava-o
para uma ameaça aterradora em Scytale, mas a criatura ainda era
uma voz, uma sombra de movimento, totalmente fora de seu
alcance.
– Estes são os bebês Atreides? – Scytale perguntou.
– Harah! – Paul gritou. – Afaste-a daí!
– Fiquem onde estão! – Scytale berrou. – Todos vocês! Estou
avisando, um Dançarino Facial é capaz de se mover mais rápido
do que imaginam. Minha faca pode tomar a vida destes dois antes
que consigam me tocar.
Paul sentiu alguém tocar-lhe o braço direito e, em seguida,
deslocar-se para a direita.
– Aí já está bom, Alia – Scytale falou.
– Alia – Paul disse. – Não.
– É minha culpa – Alia gemeu. – Minha culpa!
– Atreides, podemos negociar agora?
Atrás dele, Paul ouviu uma imprecação rouca. Sua garganta
ficou apertada diante da violência reprimida na voz de Idaho.
Duncan não podia ceder! Scytale mataria os bebês!
– Para se fazer negócio, é preciso ter algo para vender – disse
Scytale. – Não é assim, Atreides? Quer sua Chani de volta?
Podemos devolvê-la a você. Um ghola, Atreides. Um ghola com a
memória intacta! Mas temos de nos apressar. Mande seus amigos
trazerem um tanque criológico para preservar o corpo.
Escutar mais uma vez a voz de Chani, Paul pensou. Sentir sua
presença a meu lado. Aaah, por isso me deram Idaho como ghola,
para que eu descobrisse até que ponto a recriação é semelhante ao
original. Mas agora... Restauração plena... pelo preço deles. Eu
seria um instrumento dos Tleilaxu para todo o sempre. E Chani...
presa à mesma sina por uma ameaça a nossos filhos, exposta mais
uma vez às tramas do Qizarate...
– Que pressões vocês usariam para devolver a Chani sua
memória? – Paul perguntou, esforçando-se para manter a voz
calma. – Vocês iriam condicioná-la para... matar um de seus
próprios filhos?
– Usaremos as pressões que forem necessárias – falou Scytale.
– O que diz, Atreides?
– Alia, negocie com essa coisa. Não posso negociar com o que
não enxergo.
– Sábia decisão – Scytale se vangloriou. – Bem, Alia, o que me
oferece na condição de procuradora de seu irmão?
Paul baixou a cabeça, obrigando-se a encontrar a calma dentro
da calma. Havia vislumbrado alguma coisa ainda agora:
semelhante a uma visão, sem sê-lo. Era uma faca bem perto dele.
Ali estava!
– Dê-me um instante para pensar – disse Alia.
– Minha faca é paciente, mas o corpo de Chani não – Scytale
comentou. – Que seu instante seja razoável.
Paul sentiu-se piscar. Não podia ser... mas era! Sentiu olhos! O
ponto de vista era esquisito e eles se moviam de maneira errática.
Ali! A faca flutuante entrou em seu campo visual. Com um
sobressalto de tirar o fôlego, Paul reconheceu o ponto de vista.
Era o de um de seus filhos! Ele enxergava a mão e a faca de Scytale
de dentro do cercado! Cintilava a alguns centímetros dele apenas.
Sim. E também podia ver a si mesmo do outro lado do aposento:
cabisbaixo, calado, uma figura que não emanava ameaça alguma,
ignorada pelas outras pessoas no recinto.
– Para começar, você poderia nos entregar todas as suas ações
da CHOAM – Scytale sugeriu.
– Todas? – Alia protestou.
– Todas.
Observando a si mesmo através dos olhos dentro do cercado,
Paul retirou delicadamente sua dagacris da bainha do cinto. O
movimento produziu uma estranha sensação de dualidade. Ele
mediu a distância, o ângulo. Não haveria uma segunda chance.
Preparou seu corpo então, à moda das Bene Gesserit, armou-se
feito mola para um único movimento concentrado, um recurso da
prana que exigia todos os seus músculos equilibrados numa
unidade primorosa.
A dagacris saltou de sua mão. O borrão branco da arma entrou
no olho direito de Scytale feito um raio e atirou a cabeça do
Dançarino Facial para trás. Scytale jogou as duas mãos para cima
e cambaleou de costas, chocando-se com a parede. Sua faca
retiniu de encontro ao teto e foi bater no piso. Scytale ricocheteou
na parede: caiu de bruços, morto antes mesmo de tocar o chão.
Ainda através dos olhos dentro do cercado, Paul viu os rostos
ali no aposento se voltarem para a figura de órbitas vazias e
reconheceu o susto coletivo. Então Alia correu até o cercado,
debruçou-se e tapou-lhe a visão.
– Ah, estão a salvo – Alia disse. – Estão a salvo.
– Milorde, isso fazia parte de sua visão? – Idaho sussurrou.
– Não. – Ele acenou com a mão na direção de Idaho. – Deixe
estar.
– Perdoe-me, Paul – pediu Alia. – Mas, quando aquela criatura
disse que eles poderiam... reviver...
– Existem preços que um Atreides não pode pagar – disse Paul.
– Sabe disso.
– Eu sei – ela suspirou. – Mas me vi tentada...
– E quem não se viu tentado? – Paul perguntou.
Deu as costas para eles, foi tateando até uma parede, recostou-
se e tentou entender o que havia feito. Como? Como? Os olhos no
cercado! Sentiu-se à beira de uma revelação aterradora.
– Meus olhos, pai.
As formas-palavras tremeluziram diante de sua visão cega.
– Meu filho! – Paul murmurou, baixinho demais para alguém
ouvir. – Você está... consciente.
– Sim, pai. Veja!
Paul bambeou e foi de encontro à parede num espasmo de
vertigem. Teve a impressão de que o haviam emborcado e
esvaziado. Sua própria vida passou velozmente por ele. Viu seu
pai. Ele era seu pai. E o avô, e outros antepassados antes disso.
Sua percepção rolava por um corredor alucinante que continha
toda a sua linhagem masculina.
– Como? – ele perguntou em silêncio.
Tênues formas-palavras apareceram, apagaram-se e sumiram,
como se o esforço fosse grande demais. Paul limpou a saliva do
canto da boca. Lembrou-se do despertar de Alia no útero de lady
Jéssica. Mas, dessa vez, não usaram a Água da Vida, nem uma
dose excessiva de mélange... ou teriam? Era disso que Chani tinha
fome? Ou seria de algum modo o produto genético de sua
linhagem, previsto pela Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam?
E então Paul viu-se dentro do cercado, e viu Alia que falava de
mansinho logo acima dele. As mãos dela o acariciavam. O rosto
dela fazia vulto, uma coisa gigantesca diretamente acima dele. Ela
o virou, e ele viu sua companheira de cercado: uma menina com
aquela aparência esquelética de força, herança do deserto. Tinha
uma cabeleira castanho-avermelhada. Enquanto ele a observava,
ela abriu os olhos. Aqueles olhos! Era Chani quem o fitava com
aqueles olhos... e lady Jéssica. Uma multidão o fitava com aqueles
olhos.
– Vejam só – Alia disse. – Estão olhando um para o outro.
– Os bebês não conseguem focalizar nessa idade – disse Harah.
– Eu conseguia – Alia falou.
Aos poucos, Paul sentiu que se desvencilhava daquela
percepção infinita. Estava, portanto, de volta a seu muro das
lamentações, encostado nele. Idaho sacudiu-lhe o ombro
delicadamente.
– Milorde?
– Que meu filho se chame Leto, como meu pai – disse Paul,
endireitando-se.
– Quando for a hora de nomeá-lo, estarei a seu lado como amiga
da mãe e darei esse nome – disse Harah.
– E minha filha, que se chame Ghanima.
– Usul! – protestou Harah. – Ghanima é um nome de mau
agouro.
– E salvou sua vida – Paul disse. – E daí que Alia usava esse
nome para zombar de você? Minha filha é Ghanima, um espólio de
guerra.
Paul ouviu o rangido de rodas atrás dele: o catre com o corpo de
Chani sendo retirado. O cântico do Rito da Água começou.
– Hal yawm! – Harah disse. – Tenho de ir agora para ser a
observadora da verdade sagrada e estar ao lado de minha amiga
uma última vez. Sua água pertence à tribo.
– Sua água pertence à tribo – Paul murmurou.
Escutou quando Harah saiu. Tateou na direção oposta e
encontrou a manga de Idaho.
– Leve-me a meus aposentos, Duncan.
Em seus aposentos, ele se desvencilhou delicadamente. Era
hora de ficar sozinho. Mas, antes que Idaho saísse, ouviu-se um
tumulto à porta.
– Mestre! – era Bijaz, chamando à entrada.
– Duncan, deixe-o dar dois passos adiante – disse Paul. – Mate-
o se avançar mais que isso.
– Ayyah – disse Idaho.
– Duncan? – Bijaz perguntou. – É realmente Duncan Idaho?
– É – Idaho respondeu. – Eu me lembro.
– Então o plano de Scytale teve êxito!
– Scytale está morto – disse Paul.
– Mas eu não, nem o plano – falou Bijaz. – Pelo tanque onde
cresci! É possível! Terei os meus passados: todos eles. Só precisa
do gatilho correto.
– Gatilho? – Paul perguntou.
– A compulsão para matar milorde – Idaho disse, a voz cheia de
fúria. – Computação de Mentat: descobriram que eu pensava em
milorde como o filho que nunca tive. Em vez de matá-lo, o
verdadeiro Duncan Idaho assumiria o controle do corpo do ghola.
Mas... poderia ter falhado. Diga-me, anão, se seu plano tivesse
falhado, se eu tivesse matado o imperador, o que aconteceria?
– Ora... teríamos negociado com a irmã para salvar o irmão.
Mas deste jeito o negócio é melhor.
Paul inspirou convulsivamente. Ouviam-se os pranteadores
descendo pela última passagem, em direção às salas mais
profundas e aos destiladores de água.
– Não é tarde demais, milorde – disse Bijaz. – Quer sua amada
de volta? Podemos devolvê-la. Uma ghola, sim. Mas agora...
oferecemos a restauração plena. Vamos chamar os criados, que
tragam um tanque criológico para preservar o corpo de sua
queridinha...
Paul descobriu que agora era mais difícil. Havia esgotado todas
as suas forças na primeira tentação dos Tleilaxu. E tudo em vão!
Sentir mais uma vez a presença de Chani...
– Silencie-o – Paul disse a Idaho, usando a língua de batalha dos
Atreides.
Ouviu quando Idaho foi em direção à porta.
– Mestre! – Bijaz guinchou.
– Pelo amor que tem por mim – Paul disse, ainda na língua de
batalha –, faça-me este favor: mate-o antes que eu sucumba!
– Nãããããão – Bijaz gritou.
O som cessou de repente com um grunhido assustado.
– Fiz-lhe a gentileza – Idaho falou.
Paul inclinou a cabeça, pôs-se a escutar. Não ouvia mais os
pranteadores. Pensou no antigo rito fremen que era celebrado
naquele momento nas profundezas do sietch, bem lá embaixo, na
sala da destilaria fúnebre, onde a tribo recuperava sua água.
– Não havia escolha – Paul disse. – Entende isso, Duncan?
– Entendo.
– Há certas coisas que ninguém consegue suportar. Eu interferi
em todos os futuros que pude criar até que, por fim, eles me
criaram.
– Milorde, não deveria...
– Existem problemas no universo para os quais não há
respostas – Paul falou. – Nada. Nada se pode fazer.
Ao falar, Paul sentiu o vínculo com a visão se romper. Sua
mente se encolheu de medo, assoberbada por possibilidades
infinitas. Sua visão perdida, à semelhança do vento, agora soprava
para onde lhe aprouvesse.
Dizemos que Muad’Dib partiu em jornada por
aquela terra onde caminhamos sem deixar
pegadas.
– Preâmbulo ao Credo do Qizarate

Havia um dique de água de encontro à areia, um limite


avançado para as plantações do sietch. Uma ponte de pedra vinha
em seguida, e depois o deserto aberto aos pés de Idaho. O
promontório de Sietch Tabr dominava o céu noturno atrás dele. A
luz das duas luas açucarava seus contornos elevados. Haviam
trazido um pomar até a beira d’água.
Idaho deteve-se no lado desértico e olhou para trás, para os
galhos floridos acima da água silenciosa – reflexos e realidade:
quatro luas. O trajestilador parecia oleoso em contato com a pele.
O cheiro de pederneira molhada invadia-lhe as narinas, passando
pelos filtros. Havia um riso afetado e maligno no vento que
cruzava o pomar. Ele se pôs a escutar os sons da noite. Ratos-
cangurus habitavam a relva à beira d’água; uma coruja-gavião
quicava seu piado monótono nas sombras do paredão; o silvo
asmático de uma cascata de areia vinha do bled aberto.
Idaho virou-se na direção do som.
Não se via movimento algum lá fora, nas dunas enluaradas.
Coubera a Tandis trazer Paul tão longe. E depois o homem
retornara para contar sua história. E Paul saíra andando pelo
deserto, como um fremen.
– Estava cego, cego de verdade – Tandis contara, como se isso
explicasse tudo. – Antes disso, ele tinha a visão de que nos falava...
mas...
Um dar de ombros. Os fremen cegos eram abandonados no
deserto. Muad’Dib podia ser imperador, mas também era um
fremen. Não tinha providenciado para que os fremen
protegessem e criassem seus filhos? Ele era fremen.
Idaho viu que se tratava de um deserto esquelético. Costelas de
rocha, prateadas de luar, apareciam por entre a areia; depois
começavam as dunas.
Não devia tê-lo deixado sozinho, nem sequer por um minuto,
Idaho pensou. Eu sabia o que ele tinha em mente.
– Ele me disse que o futuro não precisava mais de sua presença
física – Tandis havia relatado. – Depois de me deixar, ele ainda me
chamou. “Agora estou livre”, foram suas palavras.
Malditos!, Idaho pensou.
Os fremen haviam se recusado a mandar qualquer tipo de
tóptero ou equipe de busca. O resgate contrariava seus antigos
costumes.
– Haverá um verme para Muad’Dib – diziam. E começavam a
entoar o cântico para aqueles que eram entregues ao deserto,
aqueles cuja água ia para Shai-hulud: – Mãe da areia, pai do
Tempo, princípio da Vida, conceda-lhe passagem.
Idaho sentou-se numa pedra chata e fitou o deserto. A noite
estava repleta de camuflagens. Não havia como dizer para onde
Paul tinha ido.
– Agora estou livre.
Idaho pronunciou as palavras, surpreso com o som de sua
própria voz. Durante algum tempo, deixou a mente correr,
lembrando-se de um dia em que levara o menino Paul ao mercado
litorâneo em Caladan, o fulgor deslumbrante de um sol sobre a
água, as riquezas do mar mortas e estendidas ali, para serem
vendidas. Idaho lembrou-se de Gurney Halleck tocando a música
do baliset para eles: prazer, riso. Ritmos saracotearam em sua
percepção, levando sua mente feito escrava pelos canais do
deleite rememorado.
Gurney Halleck. Gurney iria culpá-lo por aquela tragédia.
A música da memória se apagou.
Recordou as palavras de Paul: “Existem problemas no universo
para os quais não há respostas”.
Idaho começou a se perguntar como Paul morreria lá fora no
deserto. Rápido, morto por um verme? Devagar, ao sol? Alguns
dos fremen lá no sietch haviam dito que Muad’Dib nunca
morreria, que ele havia entrado no mundo-ruh onde todos os
futuros possíveis existiam, que ele estaria presente dali em diante
no alam al-mithal, perambulando interminavelmente por lá,
mesmo depois que sua carne deixasse de existir.
Ele morrerá e nada posso fazer, não posso impedi-lo, Idaho
pensou.
Começou a perceber que talvez houvesse uma certa cortesia
meticulosa em morrer sem deixar vestígios: nenhum resto mortal,
nada, e um planeta inteiro como tumba.
Mentat, resolve a ti mesmo, pensou.
Palavras intrometeram-se em sua memória, as palavras
ritualizadas do tenente dos Fedaykin, nomeando os guardas que
cuidariam dos filhos de Muad’Dib: “Há de ser o dever solene do
oficial encarregado...”.
A linguagem laboriosa e cheia de presunção do governo o
enfurecia. Havia seduzido os fremen. Havia seduzido todo
mundo. Um homem, um grande homem, estava morrendo lá fora,
mas a linguagem continuava a se arrastar... sem parar... sem
parar...
Ele se perguntou o que tinha acontecido com todos os
significados puros que filtravam o absurdo. Em algum lugar, um
lugar perdido e criado pelo Imperium, eles foram emparedados,
selados, para que não fossem redescobertos por acaso. Sua
mente saiu à cata de soluções, à maneira dos Mentats. Padrões de
conhecimento faiscaram ali. Os cabelos de Lorelei talvez
tremeluzissem daquela maneira, convidando... convidando os
marinheiros encantados a entrar em cavernas esmeraldinas...
Com um sobressalto repentino, Idaho afastou-se do
esquecimento catatônico.
Então!, pensou. Em vez de confrontar meu fracasso, prefiro
desaparecer dentro de mim mesmo!
O instante daquele quase mergulho continuava em sua
memória. Examinando-o, pareceu-lhe que sua vida se esticava,
tão comprida quanto a existência do universo. Carne de verdade
jazia condensada e finita em sua própria caverna esmeraldina de
percepção, mas a vida infinita havia participado de seu ser.
Idaho se levantou, sentindo-se purificado pelo deserto. A areia
começava a estalar ao vento, beliscando as superfícies das folhas
no pomar atrás dele. Havia o cheiro seco e abrasivo de pó no ar da
noite. Seu manto foi fustigado pela pulsação de um pé de vento
repentino.
Idaho percebeu que em algum lugar distante do bled grassava
uma tempestade-mãe, que ia levantando vórtices espiralados de
pó com uma violência sibilante: um gigantesco verme de areia,
forte o bastante para arrancar a carne dos ossos.
Ele vai se unir ao deserto, Idaho pensou. O deserto será sua
completude.
Era um raciocínio zen-sunita que corria por sua mente feito
água cristalina. Ele sabia que Paul continuaria marchando lá fora.
Um Atreides não iria se entregar completamente ao destino, nem
mesmo tendo plena consciência do inevitável.
Um quê de presciência se apoderou de Idaho naquele
momento, e ele viu que as pessoas do futuro falariam de Paul em
termos de mares. Apesar de uma vida encharcada de pó, a água
iria segui-lo. “Seu corpo afundava”, diriam, “mas ele continuou a
nadar.”
Atrás de Idaho, um homem limpou a garganta.
Idaho virou-se e discerniu o vulto de Stilgar de pé na ponte
sobre o qanat.
– Ele não será encontrado – disse Stilgar. – Mas todos os
homens irão procurá-lo.
– O deserto o toma e o diviniza – falou Idaho. – Mas aqui ele era
um intruso. Trouxe uma química alienígena para este planeta: a
água.
– O deserto impõe seus próprios ritmos – disse Stilgar. – Nós o
acolhemos, nós o chamamos de nosso Mahdi, nosso Muad’Dib, e
lhe demos seu nome secreto. Base da Coluna: Usul.
– Ainda assim, ele não nasceu fremen.
– E isso não muda o fato de que o tomamos como nosso... e o
tomamos enfim. – Stilgar colocou uma das mãos sobre o ombro de
Idaho. – Todos os homens são intrusos, velho amigo.
– Você é profundo, não, Stilgar?
– O bastante. Vejo como atravancamos o universo com nossas
migrações. Muad’Dib nos deu algo desatravancado. Os homens,
ao menos, irão se lembrar de seu Jihad por isso.
– Ele não irá se entregar ao deserto – disse Idaho. – Está cego,
mas não irá se entregar. É um homem de honra e princípios. Foi
treinado pelos Atreides.
– E sua água será derramada sobre a areia – Stilgar falou. –
Venha. – Puxou delicadamente o braço de Idaho. – Alia voltou e
está perguntando por você.
– Ela estava com você em Sietch Makab?
– Sim. Ela ajudou a colocar aqueles naibs indolentes na linha.
Agora recebem ordens dela... assim como eu.
– Quais ordens?
– Ela mandou executar os traidores.
– Ah. – Idaho reprimiu a sensação de vertigem ao erguer os
olhos para o promontório. – Quais traidores?
– O membro da Guilda, a Reverenda Madre Mohiam, Korba...
alguns outros.
– Vocês mataram uma Reverenda Madre?
– Eu matei. Muad’Dib deixou a recomendação de que não o
fizéssemos. – Ele deu de ombros. – Mas eu desobedeci, como Alia
sabia que eu faria.
Idaho voltou a fitar o deserto, sentiu que agora era inteiro, uma
pessoa capaz de enxergar o padrão daquilo que Paul havia criado.
Estratégia de decisão, era como os Atreides chamavam aquilo em
seus manuais de treinamento. As pessoas se submetem ao
governo, mas os governados influenciam os governantes. Ele se
perguntou se os governados fariam ideia do que haviam ajudado a
criar.
– Alia... – disse Stilgar, limpando a garganta. Parecia
constrangido. – Ela precisa do conforto de sua presença.
– E ela é o governo – murmurou Idaho.
– Uma regência, só isso.
– A fortuna a tudo toca, como o pai dela costumava dizer –
resmungou Idaho.
– Estamos negociando com o futuro – disse Stilgar. – Você vem?
Precisamos de você por lá. – Mais uma vez, ele pareceu
constrangido. – Ela está... tresloucada. Reclama do irmão num
instante, no outro o lamenta.
– Já vou – prometeu Idaho.
Ouviu Stilgar partir. Ficou ali, de cara para o vento ascendente,
deixando os grãos de areia crepitar de encontro a seu
trajestilador.
A percepção de Mentat projetou os padrões transbordantes no
futuro. As possibilidades o deixavam tonto. Paul havia colocado
em ação um vórtice turbilhonante, e nada conseguiria ficar em
seu caminho.
Os Bene Tleilax e a Guilda haviam superestimado suas próprias
cartas e perdido o jogo, estavam desacreditados. O Qizarate foi
abalado pela traição de Korba e outros membros de seu alto
escalão. E o ato derradeiro e voluntário de Paul, sua aceitação
definitiva dos costumes fremen, havia garantido a lealdade
daquele povo a ele e a sua casa. Seria um deles para todo o
sempre.
– Paul se foi! – a voz de Alia saiu engasgada.
Ela havia subido quase em silêncio até onde Idaho se
encontrava e estava agora ao lado dele.
– Ele era um tolo, Duncan!
– Não diga isso! – ele gritou.
– O universo inteiro dirá a mesma coisa antes de eu terminar –
ela disse.
– Por quê, pelo amor de Deus?
– Pelo amor de meu irmão, e não de Deus.
O discernimento zen-sunita dilatou a percepção dele. Dava
para notar que não havia nela nenhuma visão, nada, desde a
morte de Chani.
– É uma maneira estranha de demonstrar amor.
– Amor? Duncan, ele só precisava sair da trilha! E daí que o
resto do universo se espatifasse logo atrás dele? Ele estaria a
salvo... e Chani com ele!
– Então... por que ele não o fez?
– Por amor a Deus – ela sussurrou. Em seguida, mais alto, ela
falou: – A vida inteira de Paul foi uma luta para escapar de seu
Jihad e da divinização que o Jihad traria. Pelo menos está livre
disso. Ele escolheu esse caminho!
– Ah, sim: o oráculo. – Idaho sacudiu a cabeça, admirado. – Até
mesmo a morte de Chani. A lua dele caiu.
– Ele era um tolo, não, Duncan?
O pesar reprimido apertou a garganta de Idaho.
– Que grande tolo! – Alia falou, a voz entrecortada, o
autocontrole falhando. – Ele viverá para sempre, e nós teremos de
morrer!
– Alia, não...
– É só o pesar – ela disse, em voz baixa. – Só o pesar. Sabe o que
tenho de fazer por ele? Tenho de salvar a vida da princesa Irulan.
Aquelazinha! Devia ver o pesar que ela sente. Anda se lastimando,
oferecendo umidade aos mortos: jura que o amava sem saber.
Xinga sua Irmandade, diz que passará a vida ensinando os filhos
de Paul.
– Confia nela?
– Ela fede a confiança!
– Aaah – Idaho murmurou.
O padrão final se desenrolou diante de sua percepção feito um
desenho sobre um tecido. A deserção da princesa Irulan era o
último passo. Não deixava às Bene Gesserit nenhuma alavanca
para usar contra os herdeiros Atreides.
Alia começou a soluçar, recostada nele, o rosto espremido
contra seu peito.
– Aaah, Duncan, Duncan! Ele se foi!
Idaho levou os lábios aos cabelos de Alia.
– Por favor – ele sussurrou.
Sentiu o pesar dela se misturar ao seu, como dois riachos a
desaguar no mesmo lago.
– Preciso de você, Duncan – ela soluçou. – Ame-me!
– Eu amo – ele sussurrou.
Ela ergueu a cabeça, examinou o contorno do rosto dele,
açucarado pela lua.
– Eu sei, Duncan. O amor conhece o amor.
As palavras dela o fizeram estremecer, uma sensação de
alienação proveniente de sua antiga identidade. Ele viera ali à
procura de uma coisa e encontrara outra. Era como se tivesse
entrado aos trambolhões numa sala cheia de pessoas familiares,
apenas para perceber, tarde demais, que não conhecia nenhuma
delas.
Ela se afastou, tomou-o pela mão.
– Você vem comigo, Duncan?
– Para onde você me levar – ele disse.
Ela o conduziu de volta, por sobre o qanat, para dentro das
trevas na base do maciço e seu Lugar Seguro.
Epílogo

Nada do fedor amargo da destilaria fúnebre para Muad’Dib.


Nenhum dobre de finados nem rito solene para libertar a mente
De sombras avaras.
Ele é o santo louco,
O estrangeiro dourado que vive para sempre
Às raias da razão.
Baixe a guarda e ele estará lá!
Sua paz carmesim e a palidez soberana
Invadem nosso universo em teias proféticas
Até a beirada de um olhar calado – ali!
Saído de ouriçadas selvas estelares:
Misterioso, letal, um oráculo sem olhos,
Joguete da profecia, cuja voz nunca morre!
Shai-hulud, ele te espera numa praia
Onde os casais caminham e cravam, olhos nos olhos,
O fastio delicioso do amor.
Ele atravessa a passos largos a longa caverna do tempo,
Espalhando o eu-louco de seu sonho.

– “O hino do ghola”
Terminologia do Imperium
A
ADAB: a lembrança exigente que se manifesta por conta própria.
ÁGUA DA VIDA: um veneno “de iluminação” (veja-se Reverenda
Madre). Especificamente, a exalação líquida de um verme da
areia (veja-se Shai-hulud), produzida no momento de sua morte
por afogamento, e que é transformada dentro do corpo de uma
Reverenda Madre para se tornar o narcótico empregado na
orgia tauística do sietch. Um narcótico de “espectro
perceptivo”.
ALAM AL-MITHAL: o mundo místico das similitudes, no qual todas
as limitações físicas são eliminadas.
AREIA-FOGO: uma arma poderosa que corrói os olhos da vítima.
ARMALÊS: projetor laser de onda contínua. Seu emprego como
arma é limitado numa cultura de escudos geradores de
campos, por causa da pirotecnia explosiva (tecnicamente, uma
fusão subatômica) criada quando seu raio encontra um escudo.
ARRAKINA: primeira povoação em Arrakis; sede de longa data do
governo planetário.
ARRAKIS: o planeta conhecido como Duna; terceiro planeta de
Canopus.
ASSEMBLEIA: distinta de uma Assembleia do Conselho. É uma
convocação formal dos líderes fremen para testemunhar um
combate que irá determinar a liderança da tribo. (A
Assembleia do Conselho é uma reunião para se chegar a
decisões que envolvem todas as tribos.)

B
BALISET: um instrumento musical de nove cordas, a ser
dedilhado, descendente direto da zithra e afinado na escala
chusuk. Instrumento preferido dos trovadores imperiais.
BASHAR (GERALMENTE, BASHAR CORONEL): um oficial dos
Sardaukar, uma fração acima de coronel na classificação militar
padrão. Patente criada para o governante militar de um
subdistrito planetário (bashar da corporação é um título de uso
estritamente militar).
BENE GESSERIT: antiga escola de treinamento físico e mental para
alunas do sexo feminino fundada depois que o Jihad Butleriano
destruiu as chamadas “máquinas pensantes” e os robôs.
BENE TLEILAX: grupo de seres humanos que habitavam Tleilax, o
único planeta da estrela Thalim.
BÍBLIA CATÓLICA DE ORANGE: o “Livro Reunido”, o texto religioso
produzido pela Comissão de Tradutores Ecumênicos. Contém
elementos de religiões antiquíssimas, entre elas o saari
maometano, o cristianismo maaiana, o catolicismo zen-sunita e
as tradições budislâmicas. Considera-se como seu
mandamento supremo: “Não desfigurarás a alma”.
BINDU: relacionada ao sistema nervoso humano, em especial ao
treinamento dos nervos. Muitas vezes mencionada como
inervação-bindu (veja-se prana).

C
CALADAN: terceiro planeta de Delta Pavonis; planeta natal de Paul
Muad’Dib.
CALDEIRA: em Arrakis, qualquer região baixa ou depressão criada
pelo afundamento do complexo subterrâneo subjacente. (Nos
planetas com água suficiente, uma caldeira indica uma região
antes coberta por água ao ar livre. Acredita-se que Arrakis
tenha pelo menos uma dessas áreas, apesar de ainda se
discutir esse assunto.)
CAPTADOR DE VENTO: um aparelho instalado na trajetória dos
ventos predominantes e capaz de condensar a umidade do ar
aprisionado em seu interior, geralmente por meio de uma
queda nítida e brusca da temperatura dentro do captador.
CASA: expressão idiomática para o Clã Governante de um planeta
ou sistema planetário.
CASAS MAIORES: detentores de feudos planetários; empresários
interplanetários (veja-se Casa).
CASAS MENORES: classe empresarial restrita a um planeta (em
galach: “richece”).
CHAKOBSA: a chamada “língua ímã”, derivada em parte do antigo
bhotani (bhotani jib, sendo que jib significa dialeto). Uma série
de dialetos antigos modificados pela necessidade de manter
sigilo, mas sobretudo a língua de caça dos bhotani, os
matadores de aluguel da primeira Guerra de Assassinos.
CHOAM: acrônimo para Consórcio Honnête Ober Advancer
Mercantiles, a empresa de desenvolvimento universal
controlada pelo imperador e pelas Casas Maiores, tendo a
Guilda e as Bene Gesserit como sócios comanditários.
CORIOLIS, TEMPESTADE DE: qualquer grande tempestade de areia
em Arrakis, onde os ventos, nas planícies desprotegidas, são
amplificados pelo movimento de rotação do próprio planeta e
atingem velocidades de até setecentos quilômetros por hora.
CORRIN, BATALHA DE: a batalha espacial que deu nome à Casa
Imperial Corrino. A batalha travada perto de Sigma Draconis
no ano 88 a. G. estabeleceu a superioridade da Casa
governante de Salusa Secundus.
CRIADOR: veja-se Shai-hulud.
CRIADORZINHO: o vetor meio vegetal, meio animal do verme da
areia de Arrakis. Os excrementos do criadorzinho formam a
massa pré-especiaria.

D
DAGACRIS: a faca sagrada dos fremen de Arrakis. É manufaturada
em duas formas, a partir dos dentes retirados de carcaças de
vermes da areia. As duas formas são a “estável” e a “instável”.
Uma faca instável precisa ser mantida perto do campo elétrico
de um corpo humano para não se desintegrar. As facas estáveis
são tratadas para que possam ser armazenadas. Todas têm
cerca de vinte centímetros de comprimento.
DANÇARINOS FACIAIS: membros de uma raça criada pelos Bene
Tleilax. A habilidade de imitar a aparência de outras pessoas os
fez desempenhar importantes funções na sociedade, como a de
espiões e assassinos. Podem assumir a forma sexual de homens
ou mulheres, mas não têm habilidade de procriação.
DISTRANS: um aparelho que produz uma impressão neural
temporária no sistema nervoso de quirópteros ou aves. A voz
normal da criatura passa a portar a impressão da mensagem,
que pode ser separada da onda portadora por um outro
distrans.
DOUTRINA BENE GESSERIT: emprego das minúcias da observação.

E
ERG: uma área extensa de dunas, um mar de areia.
ESPECIARIA: veja-se mélange.
ESPELHO DE ESGRIMA: Um boneco de treino feito para o jovem
Kwisatz-Haderach em formação.

F
FARDO D’ÁGUA: no idioma fremen, uma dívida de gratidão
extrema.
FAREJADOR DE VENENOS: analisador de radiações dentro do
espectro olfativo, ajustado para detectar substâncias
venenosas.
FEDAYKIN: Esquadrão suicida de proteção a Paul Atreides
FRAGATA: a maior espaçonave capaz de pousar num planeta e dali
decolar intacta.
FREMEN: as tribos livres de Arrakis, habitantes do deserto,
remanescentes dos Peregrinos Zen-sunitas (“piratas da areia”,
de acordo com o Dicionário Imperial).

G
GARGANTA DE HARG: formação geológica sobre a qual fica o
santuário do crânio de Leto.
GHOLA: humano criado artificialmente a partir de um indivíduo
morto.
GINAZ, CASA DOS: antigos aliados do duque Leto Atreides. Foram
derrotados na Guerra de Assassinos travada com Grumman.
GRABEN: uma fossa geológica extensa formada pelo afundamento
do solo por causa de movimentos nas camadas subjacentes da
crosta do planeta.
GRANDE CONVENÇÃO: a trégua universal imposta pelo equilíbrio
de poder mantido pela Guilda, as Casas Maiores e o Imperium.
Sua principal lei proíbe o uso de armas atômicas contra alvos
humanos. Todas as leis da Grande Convenção começam com:
“As formalidades precisam ser obedecidas...”.
GRANDES ESCOLAS: os cinco maiores centros de aprendizado e
treinamento avançado do Império Corrino, cada um com seu
próprio foco e área de especialização.
GUILDA ESPACIAL (OU, SIMPLESMENTE, GUILDA): uma das pernas
do tripé político que sustenta a Grande Convenção. A Guilda
foi a segunda escola de treinamento físico-mental (veja-se Bene
Gesserit) a surgir depois do Jihad Butleriano. O monopólio da
Guilda sobre o transporte e as viagens espaciais, bem como
sobre o sistema bancário internacional, é considerado o marco
zero do Calendário Imperial.

H
HAGAL: o “Planeta das Joias” (Theta Shaowei ii), minerado à
época de Shaddam i.
HAJJ: jornada sagrada.
HAJRA: jornada de busca.
HAL YAWM: “Agora! Enfim!”, uma exclamação fremen.
HARKONNEN: foram uma grande casa durante o tempo dos
Imperadores Padishah. Sua capital era Giedi Prime, um planeta
altamente industrializado e com pouca vegetação.
HIEREG: acampamento temporário dos fremen no deserto aberto.

I
IBAD, OLHOS DOS: efeito característico de uma dieta rica em
mélange; o branco dos olhos e as pupilas assumem uma cor
azul intensa (o que indica uma forte dependência do mélange).
IJAZ: profecia que, por sua própria natureza, não pode ser
contestada; profecia inimitável.
IX: veja-se Richese.

K
KWISATZ HADERACH: “encurtamento do caminho”. É o nome
dado pelas Bene Gesserit à incógnita para a qual elas procuram
uma solução genética: a versão masculina de uma Bene
Gesserit, cujos poderes mentais e orgânicos viriam a unir o
espaço e o tempo.

L
LANDSRAAD: uma das principais instituições do Imperium.
Mesmo dois milênios antes de CHOAM e a Guild se tornarem
relevantes, a Landsraad já existia e servia como um corpo
deliberativo para debates e disputas entre os governos
participantes. O Landsradd tem o poder de influenciar até em
uma discussão em que algum dos lados fere a disposição
fundamental da lei universal.
LENÇO NEZHONI: o lenço almofadado usado na testa, sob o gorro
do trajestilador, pelas mulheres fremen casadas, ou
“associadas”, após o nascimento de um filho homem.
LÍNGUA DE BATALHA: qualquer idioma especial de etimologia
restrita, desenvolvido para a comunicação inequívoca na
guerra.
LUCIGLOBO: dispositivo de iluminação sustentado por
suspensores que tem fornecimento de energia próprio
(geralmente baterias orgânicas).

M
MAHDI: nas lendas messiânicas dos fremen, “Aquele que Nos
Levará ao Paraíso”.
MASSA PRÉ-ESPECIARIA: o estágio de crescimento fungoide
desenfreado obtido quando os excrementos dos criadorzinhos
são encharcados com água. Nesse estágio, a especiaria de
Arrakis forma uma “explosão” característica, trocando o
material das profundezas subterrâneas pela matéria da
superfície logo acima. Essa massa, depois de exposta ao sol e ao
ar, torna-se o mélange (veja-se também mélange e Água da
Vida).
MAULA: escravo.
MEDITAÇÃO PRAJNA: técnica de meditação usada pelas irmãs
Bene Gesserit para atingir o estado especial da visão,
normalmente alcançado com o uso de substâncias químicas
como mélange.
MÉLANGE: a “especiaria das especiarias”, o produto que tem em
Arrakis sua única fonte. A especiaria, célebre principalmente
por suas características geriátricas, causa dependência
moderada quando ingerida em pequenas quantidades, e
dependência grave quando sorvida em quantidades superiores
a dois gramas diárias a cada setenta quilos de peso corporal
(veja-se Ibad, Água da Vida e massa pré-especiaria). Muad’Dib
alegava que a especiaria era a chave de seus poderes
proféticos. Os navegadores da Guilda faziam afirmações
semelhantes. O preço do mélange no mercado imperial chegou
a 620 mil solaris o decagrama.
MENTAT: a classe de cidadãos imperiais treinados para realizar
feitos supremos de lógica. “Computadores humanos”.
METAVIDRO: vidro produzido como uma infusão gasosa de alta
temperatura dentro de folhas do quartzo de jásmio. Famoso
por sua extrema força elástica (por volta de 450 mil
quilogramas por centímetro quadrado à espessura de 2
centímetros) e capacidade como filtro seletivo de radiação.
MUAD’DIB: o rato-canguru adaptado a Arrakis, uma criatura
associada, na mitologia fremen do espírito da terra, a um
desenho visível na face da segunda lua do planeta. Essa
criatura é admirada pelos fremen por sua habilidade de
sobreviver no deserto aberto.
MURALHA-ESCUDO: um acidente geográfico montanhoso nos
confins setentrionais de Arrakis, que protege uma pequena
área da força total das tempestades de Coriolis do planeta.

N
NAIB: alguém que jurou nunca ser capturado vivo pelo inimigo;
juramento tradicional de um líder fremen.
NAVEGADORES DA GUILDA: membros do alto escalão de humanos
artificialmente modificados da Guilda Espacial. Têm a
capacidade de presciência adquirida pelo consumo e da
exposição a quantidades maciças de mélange.

O
ORNITÓPTERO (COMUMENTE, TÓPTERO): qualquer aeronave
capaz de voo sustentado por meio do bater de asas, como
fazem as aves.

P
PANEGIRISTA: principal sacerdote do Qizarate de Paul Atreides
PENTAESCUDO: um campo gerador de escudo em cinco camadas,
adequado para áreas pequenas, como vãos de portas ou
passagens (os escudos grandes de reforço ficam mais instáveis
a cada camada adicional), e praticamente intransponível para
quem não estiver usando um dissimulador sintonizado aos
códigos do escudo (veja-se porta dos prudentes).
PIA: uma área de terras baixas e habitáveis em Arrakis, cercada
por terras altas, que a protegem das tempestades
predominantes.
PILAR DE FOGO: um pirofoguete simples que serve de sinalizador
no deserto aberto.
PISTOLA MAULA: arma de ação por mola que dispara dardos
envenenados; alcance aproximado de quarenta metros.
PORTA DOS PRUDENTES OU BARREIRA DOS PRUDENTES (NO
VERNÁCULO: PORTAPRU OU BARRAPRU): qualquer
pentaescudo localizado de tal maneira a deixar escapar
determinadas pessoas em condições de perseguição (veja-se
pentaescudo).
PRANA (MUSCULATURA-PRANA): os músculos do corpo quando
considerados como unidades para o treinamento supremo
(veja-se bindu).
PRIMEIRA LUA: o principal satélite natural de Arrakis, a primeira a
nascer à noite; destaca-se por apresentar o desenho distinto de
um punho humano em sua superfície.

Q
QANAT: um canal a céu aberto para o transporte de água de
irrigação em condições controladas através de um deserto.
QIZARA TAFWID: sacerdotes fremen (após Muad’Dib).
QIZARETE DE MUAD’DIB: sacerdotes religiosos da nova fé.
QUEIMA-PEDRA: uma arma com duas utilidades. A primeira
função é liberar quantidades maciças de raios-J, cegando
assim todas as criaturas próximas a explosão. A segunda é sua
explosão capaz de destruir tudo em um raio de quilômetros.

R
RADIOFRESA: versão de curto alcance de uma armalês, utilizada
principalmente como ferramenta de corte e bisturi cirúrgico.
RAIOS-J: tipo de radiação que queima os olhos e causa cegueira.
REVERENDA MADRE: originariamente, uma censora das Bene
Gesserit, alguém que já transformou um “veneno de
iluminação” dentro de seu corpo, elevando-se a um estado
superior de percepção. Título adotado pelos fremen para suas
próprias líderes religiosas que chegaram a uma “iluminação”
semelhante (veja-se também Bene Gesserit e Água da Vida).
RICHESE: quarto planeta de Eridani A, classificado, juntamente
com Ix, como o suprassumo da cultura das máquinas. Célebre
pela miniaturização. (Pode-se encontrar um estudo mais
pormenorizado de como Richese e Ix escaparam aos efeitos
mais graves do Jihad Butleriano em O último jihad, de Sumer e
Kautman.)

S
SALUSA SECUNDUS: terceiro planeta de Gama Waiping; designado
como planeta-prisão do imperador após a remoção da Corte
Real para Kaitain. Salusa Secundus é o planeta natal da Casa
Corrino e a segunda parada na migração dos Peregrinos Zen-
sunitas. A tradição fremen afirma que eles foram escravos em
S. S. durante nove gerações.
SARDAUKAR: os fanáticos-soldados do imperador padixá. Eram
homens criados num ambiente de tamanha ferocidade que seis
a cada treze pessoas morriam antes de chegar aos treze anos
de idade. Seu treinamento militar enfatizava a desumanidade e
uma desconsideração quase suicida pela segurança pessoal.
Eram ensinados desde a infância a usar a crueldade como
arma-padrão, enfraquecendo os oponentes com o terror. No
auge de sua hegemonia sobre o universo, dizia-se que sua
habilidade com a espada se equiparava à dos Ginaz de décimo
nível e que sua astúcia no combate corpo a corpo seria quase
equivalente à de uma iniciada Bene Gesserit. Qualquer um
deles era considerado páreo para os recrutas normais das
forças armadas do Landsraad. À época de Shaddam iv, apesar
de ainda serem formidáveis, sua força tinha sido minada pelo
excesso de confiança, e a mística que nutria sua religião
guerreira havia sido profundamente solapada pelo ceticismo.
SAYYADINA: acólito do sexo feminino na hierarquia religiosa dos
fremen.
SEMUTA: o segundo derivado narcótico (por extração cristalina)
das cinzas da madeira de elacca. O efeito (descrito como um
êxtase intemporal e ininterrupto) é evocado por certas
vibrações atonais chamadas de música da semuta.
SERRILHADOR DIGITAL: objeto utilizado para treinamento de
combate proveniente de Ix, a fim de fortalecer e sensibilizar os
dedos das mãos e dos pés,
SHAI-HULUD: o verme da areia de Arrakis, o “Velho do Deserto”, o
“Velho Pai Eternidade” e o “Avô do Deserto”. É significativo que
o nome, quando pronunciado com uma certa entonação ou
escrito com iniciais maiúsculas, designe a divindade da terra
nas superstições domésticas dos fremen. Os vermes da areia
ficam enormes ( já foram avistados espécimes com mais de
quatrocentos metros de comprimento nas profundezas do
deserto) e chegam a idades muito avançadas, a menos que
sejam mortos por outro verme ou afogados em água, que é um
veneno para eles. Atribui-se a existência da maior parte da
areia de Arrakis à ação dos vermes (veja-se criadorzinho).
SHIGAFIO: extrusão metálica de uma planta rastejante (Narvi
narviium) que só cresce em Salusa Secundus e Delta Kaising iii.
Destaca-se por sua extrema força elástica.
SIETCH: na língua fremen, “lugar de reunião em tempos
perigosos”. Como os fremen viveram tanto tempo em perigo, o
termo veio a designar, por extensão de sentido, qualquer
caverna labiríntica habitada por uma de suas comunidades
tribais.
SIHAYA: na língua fremen, a primavera do deserto, com
insinuações religiosas que implicam o tempo da fertilidade e “o
paraíso que ainda virá”.
SINCROPISCADOR: instrumento de treino para guerreiros que
simula e ajusta as habilidades em condições de
luz/trevas/espectroscopia
SOLARI: unidade monetária oficial do Imperium, seu poder de
compra foi estabelecido em negociações quadricentenárias
entre a Guilda, o Landsraad e o imperador.
SUSPENSOR: fase secundária (baixo consumo) de um gerador de
campo de Holtzman. Anula a gravidade dentro de certos
limites prescritos pelo consumo relativo de massa e energia.

T
TANQUE AXOLOTLE: são os meios pelos quais Bene Tleilax
produzem os gholas.
TARÔ DE DUNA: cartas cujo efeito consiste em evitar que um
oráculo capte o outro em suas visões.
TAU, O: na terminologia fremen, a unidade da comunidade sietch,
ampliada pela dieta baseada em especiaria e, principalmente, a
orgia tau de unidade evocada pela ingestão da Água da Vida.
TENDESTILADORA: recinto pequeno e lacrável de tecido em
microssanduíche, projetado para reaproveitar, na forma de
água potável, a umidade ambiente liberada dentro dela pela
respiração de seus ocupantes.
TLEILAX: planeta solitário de Thalim, célebre como centro de
treinamento renegado para Mentats; origem dos Mentats
deturpados.
TRAJESTILADOR: roupa que envolve o corpo todo, inventada em
Arrakis. Seu tecido é um microssanduíche com as funções de
dissipar o calor e filtrar os dejetos do corpo. A umidade
reaproveitada torna-se disponível por meio de um tubo que
vem de bolsas coletoras.
TREINAMENTO: quando aplicado às Bene Gesserit, este termo
comum assume um significado especial, referindo-se ao
condicionamento de nervos e músculos (vejam-se bindu e
prana) elevado ao último grau permitido pelas funções
naturais.
TRONO DO LEÃO: sede do poder da Casa Corrino
TUPILE: o chamado “planeta santuário” (provavelmente vários
planetas) para as Casas derrotadas do Imperium. Sua(s)
localização(ões) é (são) conhecida(s) apenas pela Guilda e
guardada(s) como segredo inviolável sob os termos da Paz da
Guilda.

U
UMMA: alguém que pertence à irmandade dos profetas (no
Imperium, termo desdenhoso que indica qualquer pessoa
“desvairada” e dada a fazer predições fanáticas).
USUL: no idioma fremen, “a base da coluna”.

V
VERME DA AREIA: veja-se Shai-hulud.
VOZ: o treinamento combinado, criado pelas Bene Gesserit, que
permite à iniciada controlar outras pessoas usando apenas
certas nuancesde tom de voz.

W
WALLACH IX: nono planeta de Laoujin, sede da Escola Mãe das
Bene Gesserit.

Z
ZEN-SUNITAS: seguidores de uma seita cismática que se desviou
dos ensinamentos de Maomé (o chamado “Terceiro
Muhammad”) por volta de 1381 a. G. A religião zen-sunita
destaca-se principalmente por sua ênfase no misticismo e por
um retorno aos “costumes dos antepassados”. A maioria dos
estudiosos nomeia Ali Ben Ohashi como o líder do cisma
original, mas há indícios de que Ohashi pode ter sido
meramente o porta-voz masculino de sua segunda esposa,
Nisai.
Sobre o autor
Franklin Patrick Herbert Jr. nasceu em Tacoma, Washington.
Trabalhou nas mais diversas áreas – operador de câmera de TV,
comentarista de rádio, pescador de ostras, instrutor de
sobrevivência na selva, psicólogo, professor de escrita criativa,
jornalista e editor de vários jornais – antes de se tornar escritor
em tempo integral. Em 1952, publicou seu primeiro conto de
ficção, “Looking For Something?”, na revista Startling Stories,
mas a consagração ocorreu apenas em 1965, com a publicação de
Duna. Herbert também escreveu mais de vinte outros títulos,
incluindo The Jesus Incident e Destination: Void, antes de falecer
em 1986.
MESSIAS DE DUNA

TÍTULO ORIGINAL: Dune Messiah

COPIDESQUE: Marcos Fernando de Barros Lima

REVISÃO: Hebe Ester Lucas | Entrelinhas Editorial

CAPA: Pedro Inoue

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Desenho Editorial

ILUSTRAÇÃO: Marc Simonetti

DIREÇÃO EXECUTIVA: Betty Fromer

VERSÃO ELETRÔNICA: S2 Books

DIREÇÃO EDITORIAL: Adriano Fromer Piazzi

EDITORIAL: Daniel Lameira | Bárbara Prince | Andrea Bergamaschi | Renato Ritto

Copyright © Frank Herbert, 1969


Copyright © Editora Aleph, 2017
(edição em língua portuguesa para o Brasil)

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.

Rua Tabapuã, 81 - cj. 134


04533-010 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: [55 11] 3743-3202
www.editoraaleph.com.br

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057

Herbert, Frank
Messias de Duna / Frank Herbert ;
tradução Maria do Carmo Zanini. - 2. ed. - São Paulo :
Aleph, 2017.
280 p.

ISBN 978-85-7657-312-8
Título original: Dune messiah

1. Ficção científica norte-americana 2. Literatura norte-americana I. Título II. Zanini, Maria do Carmo

16-0194 CDD 813.0876

ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:


1. Ficção científica norte-americana
[1] O nome Hayt é pronunciado exatamente como hate, que significa ódio, em

inglês. [N. de T.]


Para Bev: pelo maravilhoso comprometimento do
nosso amor e por compartilhar sua beleza e
sabedoria, pois ela verdadeiramente inspirou este
livro.
Sumário
Capa
Folha de rosto
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Terminologia do Imperium
Créditos
Os ensinamentos de Muad’Dib tornaram-se o
parque de diversões dos escolásticos, dos
supersticiosos e dos corruptos. Ele pregava um
modo de vida equilibrado, uma filosofia com a
qual o ser humano pode enfrentar os problemas
advindos de um universo em perpétua mudança.
Ele afirmou que a raça humana ainda está
evoluindo, num processo que nunca terminará.
Ele disse que essa evolução se desenrola de
acordo com princípios mutáveis que só são
conhecidos pela eternidade. Como um raciocínio
corrupto pode brincar com tal essência?
– Palavras do Mentat Duncan Idaho

Uma mancha de luz apareceu no tapete de vermelho intenso


que recobria a rocha nua do chão da caverna. A luz brilhou sem
uma fonte aparente, e só existia na superfície do tecido vermelho
cuja trama era de fibra de especiaria. Aquele círculo
esquadrinhador de mais ou menos dois centímetros de diâmetro
deslocava-se em movimentos erráticos, que ora se alongavam, ora
desenhavam um oval. Quando encontrou o verde-escuro de uma
cama saltou para cima, dobrando-se sobre a superfície do leito.
Debaixo da coberta verde estava deitada uma criança de
cabelos cor de ferrugem, o rosto ainda redondo com as
bochechas de bebê, uma boca generosa – uma figura que não
trazia a esguia frugalidade da tradição fremen, mas que não
continha tanta água quanto algum forasteiro. Quando a luz
passou pelas pálpebras fechadas, a pequena criatura se remexeu.
O círculo piscou e sumiu.
Então havia apenas o som da respiração compassada e,
debilmente atrás dele, o tranquilizador gotejar da água que ia se
acumulando numa pia coletora situada embaixo do peitoril da
janela, no alto da caverna.
A luz apareceu novamente no aposento, agora um pouco maior
e alguns lumens mais intensa. Desta vez havia indícios de sua
fonte e de sua movimentação: uma figura encapuzada preenchia a
soleira abaulada da entrada, na extremidade daquela câmara, e
era dali que vinha a luz. Mais uma vez a luz flutuou pelo quarto,
testando, buscando. Havia algo de ameaçador nela, uma
insatisfação desassossegada. Ela evitou a criança adormecida,
parou na entrada gradeada de ar que ficava no canto superior,
verificou uma saliência no revestimento verde e dourado que
suavizava as paredes de rocha por toda a volta.
Nesse momento, a luz piscou e sumiu. A figura de capuz se
deslocou com um ruído de tecido que denunciava seus passos e
assumiu posição num dos lados da passagem em arco. Qualquer
pessoa a par da rotina que se desenrolava aqui, em Sietch Tabr,
teria imediatamente desconfiado de que essa figura deveria ser
Stilgar, naib do Sietch, guardião dos gêmeos órfãos que um dia
iriam envergar o manto de seu pai, Paul Muad’Dib. Stilgar fazia
frequentes visitas noturnas de inspeção nos aposentos dos
gêmeos, sempre entrando primeiro naquele em que dormia
Ghanima e terminando a ronda no quarto adjacente, onde podia
se tranquilizar de que Leto não estava sob ameaça.
Sou um velho tolo, pensou Stilgar.
Tocou com um dedo a superfície fria do projetor de luz antes de
tornar a engatá-lo na alça correspondente da faixa que lhe cingia
a cintura. O projetor o deixava irritado, ainda que dependesse
dele. Essa coisa era um sutil instrumento do Imperium, um
dispositivo para detectar a presença de grandes corpos vivos. E
só tinha identificado as crianças adormecidas nos aposentos
reais.
Stilgar sabia que seus pensamentos e suas emoções eram como
a luz. Ele não era capaz de aquietar uma projeção interna
desassossegada. Algum poder maior controlava esse movimento
e o projetava neste momento em que captava o perigo acumulado.
Aqui está o ímã para os sonhos de grandeza difundidos por todo o
universo conhecido. Aqui se encontram riquezas temporais, a
autoridade secular e o mais poderoso de todos os talismãs
místicos: a divina autenticidade do legado religioso de Muad’Dib.
Neste par de gêmeos – Leto e sua irmã, Ghanima – estava
concentrado um poder extraordinário. Enquanto eles vivessem,
Muad’Dib, mesmo morto, viveria neles.
Os dois não eram somente crianças de 9 anos de idade: eram
também uma força natural, objetos de veneração e medo. Eram os
filhos de Paul Atreides, que havia se tornado Muad’Dib, o mahdi
de todos os fremen. Muad’Dib tinha desencadeado uma explosão
de humanidade. Num jihad, instigados por seu fervor, os fremen
haviam se espalhado desde este planeta por todo o universo
humano, provocando uma onda de governos religiosos cujo
alcance e autoridade onipresentes haviam deixado marcas em
todos os planetas.
Ainda assim, estes filhos de Muad’Dib são de carne e sangue,
refletiu Stilgar. Dois simples golpes de minha faca fariam o
coração deles parar. E sua água retornaria para a tribo.
Essa divagação provocou um tremendo tumulto em seus
pensamentos.
Matar os filhos de Muad’Dib!
Mas o passar dos anos o havia deixado mais sábio em suas
introspecções. Stilgar sabia a origem de uma ideia tão terrível. Ela
nascia da mão esquerda do amaldiçoado, não da mão direita do
abençoado. Os ayat e os burhan da Vida guardavam poucos
mistérios para ele. Houve um tempo em que ele se sentira
orgulhoso de si mesmo como fremen, quando pensava que o
deserto era seu amigo, em seus pensamentos chamando o planeta
de Duna e não de Arrakis, tal como estava assinalado em todos os
mapas estelares imperiais.
Como eram simples as coisas quando nosso messias era somente
um sonho, ele pensou. Quando encontramos nosso mahdi,
despejamos no universo uma incontável quantidade de sonhos
messiânicos. Cada povo subjugado pelo jihad hoje sonha com a
vinda de um líder.
Stilgar relanceou os olhos pelo quarto envolto na penumbra.
Se a minha faca libertasse todos esses povos, será que me
tornariam um messias?
Era possível ouvir Leto se mexendo inquieto em sua cama.
Stilgar suspirou. Ele nunca vira o avô Atreides, cujo nome fora
dado a essa criança; mas muitos diziam que a força moral do
Muad’Dib tinha vindo dessa fonte. Será que aquela aterrorizante
qualidade da correção pularia uma geração agora? Stilgar se
flagrou incapaz de responder a essa pergunta.
Ele pensou: Sietch Tabr é meu. Aqui, eu governo. Sou um naib
dos fremen. Sem mim, não teria existido o Muad’Dib. Agora, os
gêmeos... através de Chani, mãe deles e minha parente, meu
sangue corre nas veias dessas crianças. Estou ali, junto com o
Muad’Dib e Chani e todos os outros. O que foi que fizemos ao nosso
universo?
Stilgar não conseguia explicar por que tais pensamentos lhe
ocorriam à noite e por que provocavam tanto sentimento de
culpa. Agachou-se dentro de seu manto com capuz. A realidade
não era, de maneira nenhuma, como o sonho. O Deserto
Amistoso, que certa vez se estendia de polo a polo, fora reduzido
à metade de seu tamanho original. O mítico paraíso de uma
crescente área verde enchia-o de desânimo. Não era como o
sonho. E, assim como seu planeta tinha mudado, ele se percebia
mudado. Tinha se tornado uma pessoa muito mais sutil do que o
antigo chefe de sietch. Agora, estava consciente de muitas coisas:
da política e das profundas consequências das menores decisões.
Ainda assim, parecia-lhe que esse conhecimento e essa sutileza
eram uma fina camada recobrindo um núcleo férreo de uma
percepção mais simples e governada por determinismos. E esse
antigo núcleo estava clamando por atenção, instigando-o a
retomar valores mais limpos.
Os sons matutinos do sietch começaram a se imiscuir em seus
pensamentos. As pessoas estavam começando a se movimentar
dentro daquela caverna. Ele sentiu um sopro de brisa no rosto: as
pessoas estavam saindo pelos veda-portas, rumo à escuridão que
antecede a aurora. A brisa indicava tanto um descuido como o
tempo. Os numerosos habitantes atuais não mantinham mais a
rígida disciplina da água do passado. E por que deveriam mantê-
la, quando a chuva fora registrada neste planeta, quando nuvens
tinham sido vistas, quando oito fremen tinham sido vítimas de
uma inundação e morrido num transbordamento repentino de
um wadi? Até que esse acontecimento tivesse ocorrido, a palavra
afogado não existia no vocabulário de Duna. Mas esse lugar não
era mais Duna; agora era Arrakis... e esta era a manhã de um dia
memorável.
Ele pensou: Jéssica, mãe de Muad’Dib e avó destes gêmeos
reais, retorna ao nosso planeta hoje. Por que ela põe fim a seu exílio
autoimposto justamente agora? Por que ela deixa a amenidade e a
segurança de Caladan pelos perigos de Arrakis?
E ainda havia mais preocupações: será que ela perceberia as
dúvidas de Stilgar? Ela era uma feiticeira Bene Gesserit, graduada
no mais alto nível de treinamento da irmandade, e legítima
portadora do título de Reverenda Madre. Essas mulheres eram
incisivas e perigosas. Será que lhe ordenaria o suicídio com sua
própria faca, como o Protetor Umma de Liet-Kynes fora instruído
a fazer?
E será que eu obedeceria a ela?, ele ainda cogitou.
Incapaz de responder a essa questão, pensou então em Liet-
Kynes, o planetólogo que fora o primeiro a sonhar com a
transformação do deserto de Duna, que cobria todo o seu
território, na área verde e favorável à vida em que aquele planeta
estava enfim se tornando. Liet-Kynes fora o pai de Chani. Sem ele,
não teria existido nenhum sonho, nem Chani, nem os gêmeos
reais. Os elos dessa frágil cadeia abateram Stilgar.
Como foi que nos encontramos neste local?, ele se perguntou.
Como foi que combinamos? Com que finalidade? Seria meu dever
dar um fim a tudo isso, destruir essa grande combinação?
Stilgar reconhecia agora essa ânsia terrível em seu íntimo. Ele
podia optar por isso, negando o amor e a família para fazer o que
um naib deve fazer eventualmente: tomar uma decisão letal pelo
bem da tribo. De um ponto de vista, esse assassinato
representava a traição e a atrocidade mais extremas. Matar
meras crianças! Entretanto, aquelas não eram meras crianças.
Elas já tinham ingerido mélange, participado da orgia no sietch,
investigado o deserto atrás de trutas da areia e feito outras
brincadeiras com as crianças fremen... E haviam se sentado no
Conselho Real. Crianças ainda tão pequenas e, não obstante,
sábias o suficiente para tomar assento no Conselho. Podiam ter a
carne de crianças, mas possuíam a experiência dos anciãos, tendo
nascido com a totalidade da memória genética, uma consciência
aterrorizante que diferenciava sua tia Alia e elas mesmas do
restante dos humanos vivos.
Muitas vezes, em muitas noites, Stilgar percebera que sua
mente rodeava essa diferença compartilhada pelos gêmeos e a tia.
Com frequência ele tinha sido despertado de seu sono por esses
tormentos, e então se dirigia para o quarto dos gêmeos
carregando seus sonhos inconclusos. Agora suas dúvidas
entravam em foco. A incapacidade de tomar uma decisão era em
si uma decisão: ele sabia disso. Esses gêmeos e sua tia tinham se
tornado conscientes ainda dentro do útero, onde haviam tomado
ciência de todas as lembranças transmitidas a eles por seus
ancestrais. O vício na especiaria tinha feito isso, o vício na
especiaria de suas mães: lady Jéssica e Chani. Lady Jéssica tinha
dado à luz um varão – Muad’Dib – antes de se viciar. Alia tinha
nascido depois do vício instalado. Rememorando as situações,
isso ficava claro. As incontáveis gerações de fertilização seletiva
conduzidas pelas Bene Gesserit tinham produzido Muad’Dib,
mas em nenhuma parte dos planos da Irmandade elas haviam
consentido com o mélange. Ah, elas estavam a par dessa
possibilidade, mas a temiam e chamavam-na de Abominação.
Esse era o fato mais desanimador. Abominação. Elas devem ter
motivos para aplicar tal julgamento. E se diziam que Alia era uma
Abominação, então esse juízo certamente também seria aplicável
aos gêmeos porque Chani, ela também, tinha sido viciada, seu
corpo fora saturado com a especiaria, e seus genes de alguma
maneira haviam complementado os de Muad’Dib.
Os pensamentos de Stilgar fervilhavam. Não podia haver
dúvida de que os gêmeos iam além do pai. Mas em qual direção? O
menino falava da capacidade de ser seu pai – e tinha provado isso.
Quando ainda era apenas um bebê, Leto revelara lembranças de
que somente Muad’Dib poderia ter tido conhecimento. Haveria
outros ancestrais esperando naquele vasto espectro de
memórias, ancestrais cujas crenças e cujos hábitos criavam
perigos indizíveis para os humanos viventes?
Abominações – era o que diziam as feiticeiras sagradas das
Bene Gesserit. Entretanto, a Irmandade cobiçava a genofase
dessas crianças. As feiticeiras queriam o esperma e os óvulos sem
a carne perturbadora que os continha. Seria esse o motivo pelo
qual lady Jéssica estaria voltando agora? Ela havia rompido com a
Irmandade para prestar apoio a seu consorte ducal, mas havia
boatos de que ela retomara as doutrinas Bene Gesserit.
Eu podia dar cabo de todos esses sonhos, Stilgar pensou. Seria
muito simples.
E, todavia, mais uma vez ele se admirou de que ele mesmo era
capaz de contemplar a mera possibilidade dessa opção. Os
gêmeos de Muad’Dib eram responsáveis pela realidade que
obliterava os sonhos dos outros? Não. Eles eram simplesmente as
lentes por meio das quais a luz era vertida para revelar novas
formas no universo.
Atormentada, sua mente reverteu para as crenças fremen
primárias e ele pensou: A ordem de Deus vem; portanto, não tente
apressá-la. Cabe a Deus indicar o caminho, e alguns de fato se
desviam dele.
Era a religião de Muad’Dib que mais aborrecia Stilgar. Por que
tinham tornado Muad’Dib um deus? Por que deificar um homem
que se sabia ser de carne? O elixir dourado da vida de Muad’Dib
havia criado um monstro burocrático que encilhava os assuntos
humanos e ali se instalava. Com o governo e a religião ligados,
ferir a lei virava pecado. Um cheiro de blasfêmia invadia o ar como
fumaça sempre que havia algum questionamento de editos
governamentais. A culpa da rebelião invocava o fogo do inferno e
julgamentos moralistas.
Apesar disso, eram homens os que criavam esses editos
governamentais.
Entristecido, Stilgar balançou a cabeça de um lado para o
outro, sem ver os serviçais que tinham se dirigido à Antecâmara
Real para seus deveres matinais.
Dedilhou a dagacris em sua cintura, pensando no passado que
ela simbolizava, pensando que mais de uma vez ele havia
simpatizado com rebeldes cujos levantes abortivos tinham sido
esmagados por suas ordens diretas. A confusão inundou sua
mente e ele desejava saber como neutralizá-la, retornando às
simplicidades representadas pela faca. Mas o universo não
andaria para trás. Era um grande motor projetado sobre o vácuo
cinzento da inexistência. Sua faca, se causasse a morte dos
gêmeos, reverberaria somente contra esse vácuo, tecendo novas
complexidades que ecoariam através da história humana, criando
novas ondas de caos, convidando a humanidade a tentar outras
formas de ordem e desordem.
Stilgar suspirou, cada vez mais consciente dos movimentos ao
seu redor. Sim, esses serviçais representavam uma espécie de
ordem construída em torno dos gêmeos de Muad’Dib. Eles
passavam de um momento para o seguinte, atendendo a cada
necessidade que ocorresse ali. É melhor imitá-los, Stilgar disse
para si mesmo. É melhor enfrentar o que vem quando vier.
Ainda sou um serviçal, ele murmurou consigo mesmo. E meu
mestre é Deus, o misericordioso, o compassivo. Então, citou para si
mesmo: “Certamente, pusemos no pescoço deles grilhões que
chegam até o queixo para que suas cabeças se mantenham
erguidas. E pusemos diante deles uma barreira e atrás deles outra
barreira. E nós os cobrimos para que não enxerguem”.
Assim estava escrito na antiga religião fremen.
Stilgar concordou interiormente, com um movimento de
cabeça.
Ver, antecipar o momento seguinte como Muad’Dib tinha feito
com suas espantosas visões do futuro, injetava uma contraforça
nas questões humanas. Criava novos lugares para decisões. Não
ser atado por grilhões; sim, isso bem poderia indicar um capricho
de Deus. Outra complexidade além do alcance humano comum.
Stilgar afastou a mão da faca. Seus dedos formigavam com a
lembrança dela. Mas aquela lâmina, que um dia cintilara no oco da
boca escancarada de um verme da areia, agora seguia
embainhada. Stilgar sabia que agora não sacaria essa arma
branca para matar os gêmeos. Ele tinha chegado a uma decisão.
Melhor preservar aquela única virtude que ele ainda prezava: a
lealdade. Melhor ter as complexidades que se pensava conhecer
do que as complexidades que desafiavam o entendimento. Melhor
o presente do que o futuro de um sonho. O gosto amargo em sua
boca avisou Stilgar como alguns sonhos podem ser vazios e
revoltantes.
Não! Chega de sonhos!
DESAFIO: “Você viu O Pregador?”
RESPOSTA: “Vi um verme da areia.”
DESAFIO: “O que me diz desse verme da areia?”
RESPOSTA: “Ele nos dá o ar que respiramos.”
DESAFIO: “Então por que destruímos a terra
dele?”
RESPOSTA: “Porque Shai-hulud (o verme da areia
deificado)
ordena que o façamos.”
– Enigmas de Arrakis, por Harq al-Ada

Como era costume entre os fremen, os gêmeos Atreides se


levantaram uma hora antes do alvorecer. Bocejaram e se
espreguiçaram em secreta simultaneidade em seus quartos
adjacentes, percebendo a atividade da população da caverna à
volta deles. Podiam ouvir os serviçais na antecâmara, preparando
o desjejum, um mingau simples com tâmaras e nozes misturadas
num líquido extraído da especiaria parcialmente fermentada.
Havia luciglobos na antecâmara e uma suave luz ambarina
entrava pelos arcos abertos de acesso aos quartos. Os gêmeos se
vestiram sem demora, à luz mortiça, cada um ouvindo o outro ali
perto. Como tinham combinado, trajaram o trajestilador contra
os ventos abrasivos do deserto.
Foi então que o par real se reuniu na antecâmara, reparando na
repentina imobilidade dos serviçais. Observaram que Leto usava
uma sobrecapa castanha de borda preta recobrindo a esguia
silhueta desenhada pelo trajestilador cinzento. Sua irmã trajava
uma capa verde. A gola da capa de cada criança era fechada no
pescoço por uma fivela no formato do gavião dos Atreides, em
ouro com gemas vermelhas formando os olhos.
Reparando nessa elegância, Harah, uma das esposas de Stilgar,
comentou:
– Vejo que vocês se vestiram em honra de sua avó.
Leto pegou sua tigela de comida antes de olhar para o rosto de
Harah, escuro e vincado pelo vento. Balançando a cabeça, ele
respondeu:
– Como sabe que não é em nossa própria honra?
Harah enfrentou a mirada mordaz do menino sem recuar, e
então retrucou:
– Meus olhos são tão azuis quanto os seus!
Ghanima riu alto. Harah era sempre hábil no jogo de desafios
dos fremen. Em uma única sentença ela havia dito: “Não zombe de
mim, menino. Você pode ser da realeza, mas nós dois carregamos
o mesmo estigma do vício em mélange: olhos sem a parte branca.
Que fremen precisa de mais elegância ou mais honra do que
essa?”.
Leto sorriu, moveu a cabeça pesarosamente e falou:
– Harah, minha querida, se você fosse mais jovem e já não fosse
casada com Stilgar, eu a faria minha esposa.
Harah aceitou facilmente a pequena vitória, sinalizando para
os demais serviçais que prosseguissem preparando o aposento
para as importantes atividades daquele dia. Então disse:
– Tomem o café da manhã. Vocês vão precisar de energia hoje.
– Então, você concorda que não estamos elegantes demais para
nossa avó? – Ghanima indagou, falando com a boca cheia de
mingau.
– Não tenha medo dela, Ghani – disse Harah.
Leto engoliu uma boa colherada da papa e disparou um olhar
penetrante na direção de Harah. Aquela mulher era
infernalmente perspicaz, enxergando muito depressa através do
estratagema envolvendo seus vestuários.
– Ela vai acreditar que temos medo dela? – ele perguntou.
– Pouco provável – Harah respondeu. – Ela foi nossa Reverenda
Madre, lembre-se disso. Conheço o jeito dela.
– Como Alia está vestida? – Ghanima quis saber.
– Eu não a vi – Harah respondeu concisamente, deu as costas e
se afastou.
Leto e Ghanima trocaram um olhar de segredos
compartilhados e rapidamente se concentraram de volta em seu
desjejum. Depois, saíram na direção da grande passagem central.
Usando uma das línguas antigas que ambos partilhavam por
meio de sua memória genética, Ghanima disse:
– Então, hoje, temos uma avó.
– O que aborrece Alia imensamente – Leto observou.
– Quem gosta de abdicar de tanta autoridade? – indagou
Ghanima.
Leto riu baixinho, emitindo um som estranhamente adulto de
sua carne tão jovem.
– É mais do que isso.
– Será que os olhos de sua mãe irão reparar no que nós
observamos?
– E por que não? – Leto questionou.
– Sim... pode ser isso que Alia receie.
– Quem conhece melhor uma Abominação do que outra? – Leto
indagou.
– Podemos estar enganados, você sabe – lembrou Ghanima.
– Mas não estamos. – E, então, fez uma citação tirada do livro
de Azhar das Bene Gesserit – “É com razão e com base em
terríveis experiências que chamamos os pré-nascidos de uma
Abominação. Pois quem sabe qual persona perdida e amaldiçoada
saída de nosso passado maligno pode ocupar a carne viva?”.
– Eu conheço a origem disso – afirmou Ghanima. – Mas, se isso
for verdade, por que não padecemos desse ataque interior?
– Talvez nossos pais estejam montando guarda dentro de nós –
sugeriu Leto.
– Então, por que não haveria também guardiões para Alia?
– Não sei. Talvez porque um de seus progenitores ainda
continua entre os vivos. Poderia simplesmente ser porque ainda
somos jovens e fortes. Talvez, quando formos mais velhos e mais
cínicos...
– Temos de tomar grande cuidado com essa avó – interrompeu
Ghanima.
– E não discutir sobre esse Pregador que perambula por nosso
planeta falando de heresias?
– Você não pode estar realmente pensando que ele é o nosso
pai!
– Não faço julgamentos a respeito disso, mas Alia tem medo
dele.
Ghanima sacudiu a cabeça com vigor.
– Não acredito nesse absurdo de Abominação!
– Você tem tantas recordações quanto eu tenho – Leto
retrucou. – Você pode acreditar no que quiser acreditar.
– Você acha que é porque não ousamos experimentar o transe
da especiaria e Alia ousou – disse Ghanima.
– É exatamente isso que penso.
Ficaram então em silêncio, deslocando-se junto com as pessoas
em movimento pela passagem central. Fazia frio em Sietch Tabr,
mas os trajestiladores eram aquecidos e os gêmeos deixaram os
capuzes condensadores caídos para trás, expondo seus cabelos
ruivos. No rosto, estampavam a marca de seus genes comuns: a
boca generosa, os olhos afastados um do outro na tonalidade azul
sobre azul dos viciados na especiaria.
Leto foi quem primeiro percebeu a aproximação da tia Alia.
– Olha ela chegando – ele avisou, mudando para a língua de
batalha dos Atreides para dar o alerta.
Ghanima inclinou a cabeça para cumprimentar Alia quando a
tia parou diante deles, e disse:
– Um espólio de guerra saúda sua ilustre parente. – Usando a
mesma língua chakobsa, Ghanima enfatizou o significado de seu
próprio nome, Espólio de Guerra.
– Você pode ver, querida tia – comentou Leto –, que nos
preparamos para o encontro de hoje com sua mãe.
Alia, a única pessoa em toda a fervilhante casa real que não
experimentava a menor surpresa diante das atitudes adultas
dessas crianças, olhou uma e depois a outra. Então disse:
– Cuidado com a língua, vocês dois!
Os cabelos cor de bronze de Alia estavam puxados para trás e
unidos por dois anéis dourados de água. Seu rosto oval exibia a
testa franzida, e sua boca larga com a discreta contração para
baixo de quem contempla sempre os próprios desejos estava
então fechada firmemente, desenhando uma linha reta. Rugas de
preocupação se abriam nos cantos de seus olhos de azul sobre
azul.
– Já avisei os dois sobre como devem se comportar hoje – Alia
disse. – E sabem por que tanto quanto eu.
– Nós sabemos quais são seus motivos, mas talvez você não
saiba quais são os nossos – desafiou Ghanima.
– Ghani! – repreendeu Alia.
Leto olhou francamente para a tia e disse:
– Hoje, em especial, não iremos fingir que somos duas
criancinhas simplórias!
– Ninguém quer que vocês se façam de simplórias – Alia
concedeu. – Mas achamos que não é sensato provocar
pensamentos perigosos em minha mãe. Irulan concorda comigo.
Quem sabe que papel lady Jéssica escolherá desempenhar?
Afinal de contas, ela é Bene Gesserit.
Leto balançou a cabeça, pensando em silêncio: Por que Alia não
enxerga aquilo de que suspeitamos? Será que ela está
irremediavelmente perdida? E ele prestou uma atenção especial
aos sutis marcadores genéticos no rosto de Alia que traíam a
presença do avô paterno dela. O barão Vladimir Harkonnen não
tinha sido uma pessoa agradável. Com essa observação, Leto
identificou vagos indícios de seu próprio desassossego quando
lembrou: Meu ancestral também.
– Lady Jéssica foi treinada para comandar – ele lembrou.
Ghanima anuiu, dizendo:
– Por que teria ela escolhido este momento para voltar?
Alia fechou a cara, e então argumentou:
– Será possível que ela apenas queira ver os netos?
Ghanima pensou: Isso é o que você espera, tia querida. Mas este
dificilmente é o motivo.
– Aqui ela não pode governar – continuou Alia. – Ela tem
Caladan. Isso deveria bastar.
Ghanima falou então, em tom apaziguador:
– Quando nosso pai foi para o deserto a fim de morrer ele
deixou você como Regente. Ele...
– Você tem alguma queixa? – Alia quis saber.
– Foi uma escolha razoável – Leto interpôs, aproveitando a
deixa da irmã. – Você era a única pessoa que sabia o que é nascer
do jeito que nascemos.
– Há boatos de que minha mãe voltou para a Irmandade – Alia
comentou –, e vocês dois sabem muito bem o que as Bene
Gesserit pensam de uma...
– Abominação – Leto completou.
– Sim! – Alia concordou em voz cortante.
– Uma vez bruxa, sempre bruxa... é o que dizem – Ghanima
acrescentou.
Irmã, esse jogo que você está fazendo é perigoso, Leto pensou,
mas ainda assim seguiu a abertura da irmã:
– Nossa avó foi uma mulher de simplicidade maior do que a das
outras de sua espécie. Você compartilha as lembranças dela, Alia.
Sem dúvida, deve saber o que esperar.
– Simplicidade! – Alia exclamou, sacudindo a cabeça e olhando
à sua volta para a passagem atulhada de visitantes; depois tornou
a olhar para os gêmeos. – Se minha mãe fosse menos complexa,
nenhum de vocês estaria aqui agora, e nem eu. Eu teria sido a
primogênita dela e nada disto... – e um leve encolher de ombros
acentuou sua postura. – Um aviso para vocês dois: tenham muito
cuidado com o que forem fazer no dia de hoje. – E então ela olhou
para cima: – Eis a minha guarda.
– E você ainda acha que não é seguro que a acompanhemos até
o espaçoporto? – indagou Leto.
– Esperem aqui – determinou Alia. – Eu a trarei de volta.
Leto e a irmã trocaram um olhar e então o menino acrescentou:
– Muitas vezes você nos disse que as lembranças que
guardamos daqueles que passaram antes de nós não têm
utilidade certa antes de termos vivenciado o suficiente com nossa
própria carne para que elas ganhem realidade. Minha irmã e eu
acreditamos nisso. Prevemos mudanças perigosas com a chegada
de nossa avó.
– Não deixem de acreditar nisso – Alia murmurou. E, virando-
se, foi rodeada por seus guardas e o grupo se distanciou
rapidamente através da passagem, rumo à Entrada Oficial, onde
ornitópteros os aguardavam.
Ghanima limpou uma lágrima de seu olho direito.
– Água pelos mortos? – Leto sussurrou, tomando o braço da
irmã.
Ghanima inspirou profundamente e depois soltou um longo e
intenso suspiro, pensando em como tinha observado a tia usar o
método que conhecia muito bem por conta de seu próprio
acúmulo de experiências ancestrais.
– Foi por causa do transe da especiaria? – ela perguntou,
mesmo sabendo o que Leto iria dizer.
– Você tem uma sugestão melhor?
– Só para constar: por que nosso pai, ou mesmo nossa avó, não
sucumbiram?
Ele a estudou por um momento. Então respondeu:
– Você sabe o porquê tanto quanto eu. Eles tinham
personalidades bem definidas quando vieram para Arrakis. O
transe da especiaria... bom... – e deu de ombros. – Eles não
nasceram neste mundo já possuindo os ancestrais. Alia, todavia...
– Por que ela não acreditou nas advertências das Bene
Gesserit? – Ghanima mordeu o lábio inferior. – Alia tinha as
mesmas informações que nós às quais recorrer.
– Elas já estavam chamando Alia de Abominação – Leto
lembrou. – Você não acha tentador descobrir se é mais forte do
que todas aquelas...
– Não acho, não! – e Ghanima desviou os olhos do olhar
inquiridor do irmão, estremecendo. Bastava que consultasse suas
lembranças genéticas e as advertências da Irmandade assumiam
um formato vívido. Era notório que pré-nascidos tendiam a se
tornar adultos de hábitos deploráveis. E a causa provável para
isso era... e novamente Ghanima estremeceu.
– Pena que não tenhamos alguns pré-nascidos entre nossos
ancestrais – Leto assinalou.
– Talvez tenhamos.
– Mas nós... ah, é! A velha pergunta que não quer calar: será que
realmente temos acesso livre ao acervo total de experiências de
cada um de nossos ancestrais?
Considerando seu próprio tumulto interior, Leto sabia como
essa conversa deveria estar perturbando a irmã. Eles tinham
falado a respeito dessa questão muitas vezes, sempre sem
conseguir chegar a uma conclusão. Então ele disse:
– Devemos adiar e adiar mais um pouco todas as vezes que ela
insistir conosco para experimentarmos o transe. Extrema cautela
com uma dose excessiva da especiaria. Essa é a nossa melhor
estratégia.
– Uma overdose teria de ser mesmo muito grande – comentou
Ghanima.
– Nossa tolerância provavelmente é alta – ele concordou. – Veja
só de quanto Alia precisa.
– Tenho pena dela – Ghanima disse. – O fascínio disso deve ter
sido muito sutil e insidioso, insinuando-se dentro dela até...
– Ela é uma vítima, sim – disse Leto. – Abominação.
– Talvez estejamos errados.
– Verdade.
– Sempre me perguntei – contemplou Ghanima – se a próxima
lembrança ancestral que buscarei será aquela que...
– O passado está tão longe quanto seu travesseiro – Leto
relembrou.
– Temos de criar uma oportunidade de falar sobre isso com
nossa avó.
– É o que a recordação dela em mim pede com insistência –
Leto concordou.
Ghanima encontrou o olhar do irmão. E então observou:
– Conhecimento demais nunca facilita decisões simples.
O sietch na borda do deserto
Era de Liet, era de Kynes,
Era de Stilgar, era de Muad’Dib
E, mais uma vez, de Stilgar.
Os naibs dormem um a um na areia,
Mas o sietch resiste.
- De uma canção fremen

Alia sentia o coração martelando enquanto se afastava dos


gêmeos. Durante alguns segundos latejantes, ela se sentiu
fortemente compelida a ficar com eles e implorar que a
ajudassem. Que fraqueza tola! Lembrar-se dela disparava por
todo o ser de Alia uma imobilidade de advertência. Será que esses
gêmeos ousariam praticar a presciência? O caminho que havia
engolido o pai deles devia ser um verdadeiro chamariz para as
crianças: o transe da especiaria com suas visões de futuro
tremeluzindo como a névoa fina soprada por uma brisa débil.
Por que eu não consigo enxergar o futuro?, Alia se perguntava.
Por mais que eu tente, por que isso se esquiva de mim?
Ela disse para si mesma que os gêmeos deveriam ser levados a
experimentar o transe. Poderiam ser seduzidos a fazer isso.
Tinham a curiosidade das crianças e o transe estava associado a
recordações que atravessavam milênios.
Assim como eu fui, Alia pensou.
Os guardas que a acompanhavam abriram os veda-portas da
Entrada Oficial do sietch e se postaram ao lado do umbral quando
ela emergiu na plataforma de aterrissagem onde os ornitópteros
aguardavam. Um vento vindo do deserto soprava poeira para
todo lado no céu, mas o dia estava claro. Sair do halo dos
luciglobos do sietch para a luz do dia ali fora também fez seus
pensamentos se voltarem para assuntos externos.
Por que lady Jéssica estaria regressando nesse momento? Será
que teriam chegado a Caladan histórias sobre como a Regência
estava...
– Devemos nos apressar, milady – disse um de seus guardas,
elevando o tom de voz para ser ouvido acima do uivo do vento.
Alia deixou que a ajudassem a subir a bordo do ornitóptero e
atou o cinto de segurança, mas seus pensamentos saltavam à sua
frente.
Por que agora?
Conforme as asas do ornitóptero mergulhavam e a aeronave
seguia deslizando com as correntes aéreas, ela percebia a pompa
e o poder de sua posição como coisas físicas... mas frágeis, oh,
como eram frágeis!
Por que agora, quando seus planos não estavam concluídos?
A névoa de poeira flutuava, suspensa e subindo, e ela conseguia
enxergar a luz brilhante do sol caindo sobre a paisagem móvel do
planeta: amplas áreas de vegetação verde onde antes
predominavam apenas terrenos ressecados.
Sem uma visão do futuro, poderei fracassar. Oh, que magia eu
poderia realizar se pelo menos pudesse enxergar como Paul! Mas
não é para mim a amargura que resulta de visões da presciência.
Uma fome torturante atravessou-a de cima a baixo e ela
desejou ser capaz de deixar o poder de lado. Oh, ser como os
outros: cegos em meio à mais segura de todas as cegueiras,
vivendo apenas a meia-vida hipnótica na qual a maioria dos
humanos era lançada pelo choque do nascimento. Mas não! Ela
nascera uma Atreides, vítima de uma percepção consciente com
éons de idade, infligida a ela pelo vício de sua mãe em especiaria.
Por que minha mãe regressa hoje?
Gurney Halleck estaria com ela. Sempre o servo leal, esse
assassino contratado de semblante horrendo, dedicado e franco,
um músico capaz de executar mortes com o aço-liso com a mesma
facilidade com que entretinha ouvintes aos toques de seu baliset
de nove cordas. Havia quem dissesse que ele tinha se tornado
amante de sua mãe. Isso seria algo para se comprovar; poderia se
revelar um trunfo muito valioso.
O desejo de ser como os outros se esvaiu.
Leto tem de ser seduzido para provar o transe da especiaria.
Ela se lembrava de ter perguntado ao menino como ele lidaria
com Gurney Halleck, e Leto, pressentindo intenções ocultas
nessa indagação, disse que Halleck era leal “ao extremo”, e
acrescentou: “Ele adorava... o meu pai”.
Ela de fato percebera a discreta hesitação. Leto quase tinha
dito “a mim” em vez de “o meu pai”. Sim, havia momentos em que
era difícil separar a memória genética das disposições da carne
viva. Gurney Halleck tornaria ainda mais difícil essa separação
para Leto.
Um sorriso áspero roçou nos lábios de Alia.
Gurney decidira retornar a Caladan com lady Jéssica após a
morte de Paul. A volta dele agora emaranharia muitas coisas.
Regressando para Arrakis, ele acrescentaria sua própria cota de
complexidades às linhas existentes. Tinha servido ao pai de Paul
e, assim, havia uma sucessão: de Leto I para Paul e, deste, para
Leto II. E, proveniente da programação de linhagem das Bene
Gesserit, de Jéssica para Alia e, desta, para Ghanima, em um
ramo perpendicular. Injetando um pouco de confusão nas
identidades, Gurney poderia se mostrar inestimável.
O que ele faria se descobrisse que temos nas veias sangue dos
Harkonnen, esses mesmos Harkonnen que ele odeia com todas as
forças?
O sorriso no rosto de Alia ganhou um tom introspectivo. Afinal
de contas, os gêmeos eram apenas crianças. Eram como os filhos
de um sem-número de pais, cujas lembranças pertenciam tanto
aos outros quanto a eles mesmos. Os gêmeos estariam
aguardando na plataforma de Sietch Tabr e assistiriam ao pouso
da nave de sua avó, na Bacia de Arrakina. A marca fulgurante da
passagem da aeronave pelo céu seria visível; será que isso
tornaria a chegada de Jéssica mais real para seus netos?
Minha mãe irá me indagar a respeito do treinamento deles, Alia
refletiu. Será que incluo os exercícios de prana-bindu na medida
certa? Será que digo a ela que eles se treinam sozinhos, exatamente
como eu fazia? Citarei para ela as palavras de seu próprio neto:
“Entre as responsabilidades do comando está a necessidade de
punir... mas somente quando a vítima o exige”.
Ocorreu a Alia, então, que se pelo menos ela conseguisse fazer
a mãe prestar atenção somente nos gêmeos, os demais poderiam
escapar a um exame mais minucioso.
Isso era uma coisa que podia ser feita. Leto era muito parecido
com Paul. E por que não? Ele poderia ser Paul sempre que
quisesse. Até Ghanima possuía essa aterradora capacidade.
Da mesma maneira que eu posso ser minha mãe ou qualquer
outra pessoa que tenha compartilhado sua vida conosco.
Ela se desviou bruscamente dessa ideia, fixando os olhos no
panorama da Muralha-Escudo conforme passava. Então: Qual era
a sensação de deixar a acolhedora segurança de Caladan e toda a
sua água e voltar para Arrakis, esse planeta desértico em que seu
duque fora assassinado e seu filho morrera como mártir?
Por que lady Jéssica estaria voltando neste momento?
Alia não achava resposta; nenhuma resposta certeira. Era
capaz de compartilhar os mesmos conteúdos que existissem na
consciência do ego de outra pessoa, mas, quando as experiências
assumiam rumos diferentes, os motivos também divergiam. O
cerne das decisões estava nas ações particulares realizadas pelos
indivíduos. Para os pré-nascidos, os multinascidos Atreides, essa
era uma realidade incontornável, em si uma outra espécie de
nascimento: era a separação absoluta da carne viva, com sua
respiração, quando essa carne deixava o útero que a havia
infundido com a múltipla consciência.
Alia não via nada estranho em amar e odiar a mãe ao mesmo
tempo. Era uma necessidade, um equilíbrio exigido sem espaço
para culpa ou recriminações. Como se podia parar de amar e
odiar? Devia culpar as Bene Gesserit por terem levado lady
Jéssica por determinado caminho? A culpa e as recriminações se
tornavam mais difusas quando a memória cobria milênios. A
Irmandade só tinha buscado gerar um Kwisatz Haderach: a
contraparte masculina de uma Reverenda Madre plenamente
desenvolvida... e mais um pouco; um humano de sensibilidade e
consciência superiores, o Kwisatz Haderach que poderia estar em
muitos lugares ao mesmo tempo. E lady Jéssica, mero peão no
tabuleiro desse jogo de fertilizações, tivera o mau gosto de se
apaixonar pelo parceiro de cruzamento que lhe fora destinado.
Reagindo favoravelmente aos desejos de seu amado duque, ela
produzira um filho em vez da filha que a Irmandade lhe havia
ordenado que parisse como primogênita.
Ela me deixou nascer em segundo lugar, depois que já estava
viciada na especiaria! E agora elas não me querem. Agora elas têm
medo de mim! E por bons motivos...
Elas haviam obtido seu Kwisatz Haderach, Paul, uma
encarnação antes da hora, um pequeno erro de cálculo em um
plano tão extenso. E agora tinham de lidar com outro problema: a
Abominação, que continha os preciosos genes que vinham
buscando havia tantas gerações.
Alia sentiu uma sombra a recobri-la e então olhou para cima.
Sua escolta estava assumindo a posição de alta guarda,
preparando-se para a aterrissagem. Ela balançou a cabeça,
espantada com seus pensamentos fugidios. Que bem poderia se
obter convocando encarnações passadas e esfregando seus erros
uns nos outros? Esta era uma nova encarnação.
Duncan Idaho havia dirigido sua consciência Mentat para a
questão de por que Jéssica voltava nesse momento, avaliando o
problema com seu dom, que era ser um computador humano.
Disse então que ela estava ali para levar os gêmeos para a
Irmandade. Os gêmeos também carregavam os genes preciosos.
Duncan bem poderia estar com a razão. Esse seria um motivo
suficiente para tirar lady Jéssica de sua autoimposta reclusão em
Caladan. Se a Irmandade ordenasse... Bem, por que outro motivo
ela voltaria ao palco onde se haviam desenrolado fatos tão
terrivelmente dolorosos para ela?
– Veremos – murmurou Alia, entre dentes.
Ela sentiu o ornitóptero tocar o teto de seu Forte, uma
pontuação positiva e irritante que a preencheu de uma lúgubre
expectativa.
mélange (me’-lange; também ma-lanj) subst.
Origem incerta (possivelmente derivação do
antigo franzh terrano). 1. mistura de especiarias;
2. especiaria de Arrakis (Duna) com propriedades
geriátricas inicialmente percebidas por
Yanshuph Ashkoko, químico real no reinado de
Shakkad, o Sábio; mélange arrakino, encontrado
somente nas areias mais remotas do deserto em
Arrakis, associado com as visões proféticas de
Paul Muad’Dib (Atreides), o primeiro mahdi
fremen; também empregado pelos Navegadores
da Guilda Espacial e pelas Bene Gesserit.
– Dicionário Real, 5ª edição

Os dois grandes felinos chegaram à ponta do rochedo à luz do


amanhecer, movendo-se com toda a facilidade. Ainda não
estavam realmente entretidos com a paixão da caça, e somente
esquadrinhavam seu território. Eram chamados tigres laza, uma
raça especial introduzida no planeta Salusa Secundus há quase
oito mil anos. A manipulação genética da antiga espécie terrana
tinha apagado uma parte dos traços do tigre original e refinado
outros elementos. As presas continuavam longas. A face era larga
com olhos espertos e inteligentes. As patas, aumentadas,
ofereciam melhor sustentação num terreno irregular, e as garras,
recolhidas na carne das patas, chegavam a se estender até dez
centímetros, mas eram afiadas como navalhas devido à
compressão sofrida dentro de suas bainhas. A pelagem era de
uma só cor, com um tom acobreado claro que tornava os animais
praticamente invisíveis contra a areia.
Eram diferentes de seus ancestrais também em outro aspecto:
servoestimuladores tinham sido implantados no cérebro desses
felinos quando ainda eram filhotes pequenos. Esses
estimuladores tornavam os animais verdadeiros peões de quem
detivesse o controle dos transmissores.
Estava frio e, quando os animais pararam para esquadrinhar o
terreno, seu hálito criou uma mancha de neblina no ar. Ali em
volta encontrava-se uma região de Salusa Secundus que
permanecia estéril e inculta, uma zona que abrigava raríssimas
trutas da areia contrabandeadas desde Arrakis e mantidas
precariamente vivas no sonho de que o monopólio do mélange
poderia ser vencido. No local em que os felinos estavam parados,
a paisagem era caracterizada por rochas de tom ocre e alguns
poucos arbustos espalhados que as longas sombras criadas pelo
sol matutino tornavam cinza-prateados.
Usando somente movimentos mínimos, os animais de repente
entraram em alerta. Seus olhos giraram lentamente para a
esquerda e depois a cabeça deles também virou nessa direção.
Bem longe, lá embaixo no terreno erodido, duas crianças de mãos
dadas tentavam avançar pelo leito de um rio seco. Pareciam ser
da mesma idade, talvez 9 ou 10 anos-padrão. Tinham cabelos
ruivos e usavam trajestiladores cobertos em parte pelas ricas
burkas brancas que, ao longo de toda a borda assim como na
testa, exibiam o relevo do gavião da Casa Atreides, engastado em
fios de joias de cor flamejante. Enquanto seguiam andando, as
crianças conversavam com alegria e suas vozes chegavam
distintamente aos ouvidos dos felinos predadores. Os tigres laza
conheciam esse jogo, já o tinham jogado antes, mas
permaneceram impassíveis, aguardando que o servoestimulador
lhes enviasse o sinal de caça.
Nesse momento, apareceu um homem no alto do rochedo,
atrás dos felinos. Ele parou e averiguou o que se passava: os
animais, as crianças. Esse homem usava um uniforme de serviço
dos Sardaukar, em cinza e preto, com a insígnia dos levenbrech,
que eram auxiliares de um bashar. Um arnês passava por trás de
seu pescoço e sob o braço para transportar o servotransmissor
em um invólucro estreito preso ao peito, onde as chaves podiam
ser facilmente acionadas por qualquer uma das mãos.
Os animais não se viraram quando ele se aproximou.
Conheciam esse homem tanto pelo cheiro como pelos sons que
produzia. Ele desceu pelos sulcos do rochedo até parar a dois
passos dos felinos, e então enxugou a testa. O ar estava frio, mas
esse era um trabalho que esquentava bastante. Mais uma vez,
seus olhos pálidos esquadrinharam a cena: os animais, as
crianças. Ele enfiou uma mecha úmida de cabelo louro para
dentro de seu capacete preto de serviço e tocou o microfone
implantado em sua garganta.
– Os tigres estão com os dois em seu campo de visão.
A voz que respondeu chegou ao homem pelos receptores
implantados atrás de cada orelha:
– Nós estamos vendo.
– É agora? – indagou o levenbrech.
– Eles agiriam sem um comando de caça? – a voz quis saber.
– Eles estão prontos – o levenbrech confirmou.
– Muito bem. Vamos ver se nossas quatro sessões de
condicionamento serão suficientes.
– Diga quando você estiver pronto.
– Quando você quiser.
– Agora, então – disse o levenbrech.
Ele tocou uma chave vermelha do lado direito de seu
servotransmissor, liberando primeiro uma trava que envolvia a
chave. Finalmente os tigres se encontravam livres de todos os
limites transmitidos. Ele colocou a mão sobre uma chave preta
sob a vermelha, pronto para deter os animais caso se voltassem
contra ele. Mas os dois tigres não tomaram conhecimento dele;
agacharam-se, em vez disso, e começaram a descida da escarpa,
na direção das crianças. Suas patas enormes deslizavam em
suaves movimentos escorregadios.
O levenbrech ficou de cócoras para observar, sabendo que em
algum ponto à volta dele um transolho transmitia a cena toda
para um monitor secreto no interior da Torre, onde vivia seu
Príncipe.
Nesse momento, os tigres começaram a trotar e depois a
correr.
Atentas à escalada que lhes impunha aquele terreno rochoso,
as crianças ainda não tinham visto o perigo. Uma delas riu, e o
som alto e penetrante soou cristalino no ar. A outra tropeçou e, ao
recuperar o equilíbrio, virou-se e então viu os tigres. Ela apontou
e exclamou:
– Olhe!
As duas crianças interromperam a subida e olharam com
atenção para aquela interessante intromissão em suas vidas. Elas
ainda estavam em pé quando os tigres laza atacaram, um animal
sobre cada criança. Ambas morreram com uma rapidez
fulminante e informal, com o pescoço partido sem delongas. Os
tigres começaram a se alimentar.
– Devo chamar os animais de volta? – perguntou o levenbrech.
– Deixe que terminem. Eles se comportaram bem. Eu sabia que
seria assim. Essa dupla é espetacular.
– A melhor que já vi – concordou o levenbrech.
– Muito bem, então. Estamos enviando um transporte para
você. Desligando.
O levenbrech continuou parado e se alongou. Absteve-se de
olhar diretamente para a silhueta dos morros à sua esquerda
onde um lampejo denunciava a localização do transolho,
enquanto ele retransmitia o belo desempenho da operação ao seu
bashar, instalado a uma grande distância nas terras verdes do
Capitólio. O levenbrech sorriu. Ele receberia uma promoção pelo
trabalho executado naquele dia. Ele já podia sentir a insígnia de
bator no pescoço, e, no futuro, de um burseg... Até mesmo de um
bashar, futuramente. As pessoas que serviam corretamente nos
batalhões de Farad’n, neto do falecido Shaddam IV, conquistavam
generosas promoções. Um dia, quando o Príncipe estivesse
sentado em seu legítimo trono, haveria promoções ainda maiores.
O posto de bashar poderia não ser o fim de tudo. Havia baronatos
e condados nos muitos mundos deste reino... assim que os
gêmeos Atreides fossem removidos.
Os fremen devem retornar à sua fé original, ao seu
gênio na formação de comunidades humanas; eles
devem retornar ao passado no qual essa lição de
sobrevivência foi aprendida na luta com Arrakis.
A única questão dos fremen deveria ser a de abrir
sua alma aos ensinamentos interiores. Os mundos
do Imperium, o Landsraad e a Confederação CHOAM
não têm nenhuma mensagem para transmitir a
eles, apenas os destituirão de sua alma.
– O Pregador em Arrakina

Ao redor de lady Jéssica, alcançando longe na planura da pista


de pouso na qual seu transporte estava estacionado, rangendo e
estalando depois de seu mergulho desde o espaço, espalhava-se
um verdadeiro mar de gente. Ela estimou um público da ordem de
meio milhão de pessoas das quais possivelmente apenas um terço
era de peregrinos. Estavam todos em pé e imóveis, guardando um
silêncio assombrado, com a atenção colada na plataforma de
saída do transporte, cuja escotilha sombria ocultava lady Jéssica
e seu séquito.
Faltavam duas horas para o meio-dia, mas o ar que pairava
sobre o povaréu já estava refletindo uma empoeirada
luminosidade que prometia um dia quente.
Jéssica tocou seu cabelo ruivo riscado de prata no ponto em
que emoldurava seu rosto oval abaixo do capuz da aba de
Reverenda Madre. Ela sabia que não estava com sua melhor
aparência após uma viagem tão longa e que o negro da aba não
era a cor que mais a favorecia. Mas ela já havia usado esse traje
antes. O significado da aba não seria ignorado pelos fremen. Ela
suspirou. Viagens espaciais não lhe faziam bem, e tinha havido o
ônus adicional de suas lembranças – da outra viagem de Caladan
para Arrakis quando seu duque fora forçado a vir para esse feudo,
ainda que contra sua vontade.
Lentamente, sondando o ambiente com a habilidade de seu
treinamento Bene Gesserit para detectar minúcias significativas,
ela examinou aquele mar de pessoas. Havia trajestiladores com
capuzes cinza-chumbo, trajes dos fremen do deserto profundo;
peregrinos de mantos brancos com marcas de penitentes nos
ombros; bolsões esparsos de mercadores ricos, sem capuz, em
trajes leves para exibir seu desdém pela perda de água no ar
ressequido de Arrakina... e havia a delegação da Sociedade dos
Fiéis, de mantos verdes e capuzes pesados, num grupo à parte, e
protegidos pelo círculo da santidade de seu próprio grupo.
Somente quando ela ergueu os olhos que esquadrinhavam a
multidão foi que a cena retomou alguma semelhança com o que a
havia saudado na ocasião em que ali chegara com seu bem-amado
duque. Há quanto tempo tinha sido isso? Há mais de vinte anos.
Ela não gostava de pensar nos batimentos acelerados de seu
coração que se intrometiam naquele instante. Em seu íntimo, o
tempo se depositava como peso morto e a sensação era de que
todos os anos em que estivera distante daquele planeta não
tinham existido.
Mais uma vez, adentrando a boca do dragão, ela pensou.
Aqui, neste planalto, seu filho tinha arrancado o Imperium das
garras do finado Shaddam IV. Uma convulsão histórica havia
imprimido esse local nas mentes e nas crenças dos homens.
Ela ouviu o burburinho inquieto do séquito atrás de si e mais
uma vez suspirou. Eles deviam esperar por Alia, que estava
atrasada. Agora já se podia ver o cortejo de Alia aproximando-se
da borda externa da multidão, desencadeando uma onda humana
com a Guarda Real em formação de cunha que abria passagem.
Jéssica examinou o cenário todo mais uma vez. Muitas
diferenças se evidenciavam à sua mirada investigativa. Um
púlpito para orações fora acrescentado à torre de controle do
campo de pouso. E, visível na extremidade esquerda, do outro
lado do planalto, erguia-se a formidável pilha de açoplás que Paul
tinha erguido para ser sua fortaleza – seu “sietch sobre a areia”.
Era a maior de todas as construções individuais que jamais se vira
erguer pelas mãos do homem. Cidades inteiras poderiam ter sido
abrigadas dentro de seus muros, com espaço de sobra. Agora, era
a sede da mais poderosa força governante do Imperium, a
“Sociedade dos Fiéis” de Alia, que ela montara sobre o cadáver do
irmão.
Esse lugar deve desaparecer, Jéssica pensou.
A delegação de Alia tinha alcançado a base da rampa de saída e
se postara ali, aguardando. Jéssica reconheceu os traços
enrugados de Stilgar. E que Deus me ajude! Ali estava a princesa
Irulan mascarando sua selvageria com o corpo sedutor e o halo de
seus cabelos dourados esvoaçando ao sopro de uma brisa ligeira.
Irulan não parecia ter envelhecido um dia sequer. Uma afronta. E
lá, na ponta da cunha, vinha Alia com seus traços
imprudentemente juvenis, os olhos dirigidos para cima, para as
sombras que envolviam a escotilha. Os lábios de Jéssica se
apertaram e formaram uma linha reta, e ela examinou
intensamente o rosto da filha. Uma sensação de chumbo latejou,
atravessando o corpo de Jéssica, e ela ouviu o som da rebentação
de sua própria vida ondulando em seus ouvidos. Os rumores eram
verdadeiros! Que horror! Que horror! Alia tinha descambado para
o caminho proibido. Ali estavam as evidências que uma iniciada
saberia ler. Abominação!
Nos poucos minutos de que precisou para se recompor, Jéssica
se deu conta do quanto havia esperado que os boatos fossem
falsos.
E quanto aos gêmeos?, ela se indagou. Será que eles também
estão perdidos?
Lentamente, como corresponde à mãe de um deus, Jéssica se
afastou das sombras e alcançou a borda da rampa. Seu séquito
ficou para trás, como ela havia instruído. Os instantes seguintes
eram cruciais. Jéssica postou-se sozinha, perfeitamente à vista de
toda aquela multidão. Ouviu quando Gurney Halleck deu uma
pequena tossida nervosa atrás dela. Ele havia objetado: “Sem
nenhum tipo de escudo para protegê-la? Deuses das profundezas,
mulher! Você perdeu o juízo!”.
Mas entre os aspectos mais valiosos de Gurney estava seu
núcleo de obediência. Ele diria o que achava necessário e então
obedeceria. Agora era o momento de obedecer.
O mar humano emitiu um som, que lembrava o silvo de um
verme da areia gigante, assim que Jéssica saiu das sombras. Ela
ergueu os braços para realizar o gesto de abençoar com o qual a
casta dos sacerdotes tinha condicionado o Imperium.
Evidenciando significativos bolsões de relutância, mas ainda
como um único organismo gigantesco, o povo se pôs de joelhos.
Até mesmo o cortejo oficial aderiu à reverência.
Jéssica tinha registrado os grupos relutantes em meio à
multidão e sabia que outros olhos atrás dela e entre seus agentes
infiltrados no público tinham memorizado um mapa temporário
com base no qual identificar os tardios.
Enquanto Jéssica continuava com os braços levantados,
Gurney e seus homens saíram das sombras. Passaram por ela
rapidamente para descer a rampa, ignorando os olhares
surpresos dos integrantes do cortejo oficial e indo ao encontro
dos agentes que se identificavam por sinais de mão. Sem demora
se espalharam em meio ao mar humano, saltando montinhos de
gente ajoelhada, e se esgueirando em meio a trilhos estreitos.
Alguns indivíduos que eram seu alvo viram o perigo e tentaram
fugir. Esses foram os mais fáceis; uma faca lançada, um laço de
garrote, e os fugitivos caíam ao chão. Os outros foram apartados
do povo e tiveram as mãos atadas e os pés amarrados.
Durante todo esse procedimento, Jéssica continuou com os
braços estendidos e erguidos, abençoando com sua presença e
mantendo a turba toda submissa. Apesar disso, ela lera os sinais
de boatos que se espalhavam e sabia qual era o predominante
porque tinha sido plantado: “A Reverenda Madre retorna para
extirpar os indolentes. Abençoada seja a mãe de nosso Senhor!”.
Quando tudo havia terminado – e alguns corpos mortos
estavam estendidos na areia, com cativos já removidos para as
celas de detenção sob a torre de pouso –, Jéssica abaixou os
braços. Talvez tivessem decorrido três minutos. Ela sabia que
havia pouca chance de Gurney e seus homens terem de fato
removido os líderes da insubordinação, aqueles que
representavam a ameaça mais poderosa. Eles seriam mais
sensíveis e estariam mais alertas, mas entre os cativos também
havia presas interessantes junto com os usuais simplórios e paus-
mandados.
Jéssica baixou os braços e o povo, vibrando de exultação, se
colocou de novo em pé. Como se não tivesse acontecido nada de
mais, Jéssica desceu a rampa sozinha, evitando a filha e dirigindo
a Stilgar toda a sua mais concentrada atenção. A barba negra que
se espalhava pelo pescoço do capuz de seu trajestilador como um
delta ingovernável continha manchas cinzentas, mas seus olhos
transmitiam a mesma intensidade sem branco que tinham
apresentado a ela na primeira vez que se haviam visto no deserto.
Stilgar sabia o que tinha acabado de acontecer e aprovava. Ali
estava um verdadeiro naib fremen, um líder de homens, capaz de
tomar decisões sangrentas. Suas primeiras palavras foram
completamente apropriadas.
– Bem-vinda ao lar, milady. É sempre um prazer presenciar uma
ação direta e eficaz.
Jéssica se permitiu um minúsculo sorriso.
– Feche o porto, Stil. Ninguém sai até termos interrogado os
detidos.
– Isso já foi providenciado, milady – informou Stilgar. – Os
homens de Gurney e eu planejamos isso juntos.
– Então eram seus homens os que nos ajudaram.
– Alguns deles, milady.
Ela entendeu a reserva insinuada, e anuiu com um movimento
de cabeça.
– Você me estudou muito bem naqueles tempos, Stil.
– Como certa vez a senhora se deu o trabalho de me dizer,
observamos os sobreviventes e aprendemos com eles.
Alia se adiantou nesse momento e Stilgar deu um passo para o
lado, enquanto Jéssica confrontava a filha.
Sabendo que não havia como ocultar o que havia descoberto,
Jéssica não tentou nenhuma manobra de mascaramento. Alia era
capaz de ler nas entrelinhas quando isso era preciso e podia fazê-
lo tão bem quanto qualquer adepta da Irmandade. Ela já
percebera, pela conduta de Jéssica, o que tinha sido visto e
interpretado. Ambas eram inimigas para quem o termo mortal
apenas arranhava a superfície da questão.
Alia escolheu a raiva como a reação mais fácil e apropriada.
– Como ousa planejar uma ação como essa sem ao menos me
consultar? – ela questionou, aproximando o rosto do de Jéssica.
– Como você acaba de ouvir, nem Gurney me inteirou do plano
todo – Jéssica respondeu mansamente. – Foi concebido...
– E você, Stilgar! – Alia vociferou, caindo sobre ele. – A quem
você é leal?
– Minha palavra é para com os filhos de Muad’Dib – Stilgar
redarguiu, falando com dureza. – Removemos uma ameaça a eles.
– E por que isso não a enche de alegria... filha? – Jéssica
indagou.
Alia piscou, lançou os olhos para a mãe, abafou o tumulto
interior, e até conseguiu forjar um sorriso.
– Estou cheia de alegria... mãe – ela respondeu. E, para sua
própria surpresa, Alia percebeu que estava mesmo feliz,
vivenciando um terrível contentamento diante do fato de tudo ter
sido finalmente deixado às claras entre ela e a mãe. O momento
que tanto temera tinha passado e o equilíbrio de forças não havia
sido realmente modificado. – Discutiremos isso em maiores
detalhes em outro momento mais conveniente – Alia concluiu,
dirigindo-se tanto para a mãe como para Stilgar.
– Ora, claro que sim – disse Jéssica, girando com um aceno para
encerrar esse diálogo e voltar sua atenção para a princesa Irulan.
No intervalo de alguns batimentos de coração, Jéssica e a
princesa ficaram paradas em silêncio, estudando-se
reciprocamente. Elas eram duas Bene Gesserit que haviam
rompido com a Irmandade pelo mesmo motivo: amor... e as duas
por amor a homens que agora estavam mortos. A princesa tinha
amado Paul em vão. Fora sua esposa, mas não sua companheira. E
agora vivia somente para os filhos que Chani, a concubina fremen
de Paul, lhe havia dado.
Jéssica falou primeiro:
– Onde estão meus netos?
– Em Sietch Tabr.
– Aqui é perigoso demais para eles. Entendo.
Irulan permitiu-se um mínimo aceno de cabeça. Ela havia
acompanhado a interação entre Jéssica e Alia, mas cuidara da
cena com a interpretação que Alia lhe havia fornecido: “Jéssica
retornou para a Irmandade e nós duas sabemos que elas têm
planos para os filhos de Paul”. Irulan nunca fora a mais
competente das adeptas das Bene Gesserit, e era valiosa somente
pelo fato de ser a filha de Shaddam IV e não por nenhum outro
motivo; em geral, era orgulhosa demais para se dedicar ao
desenvolvimento de suas habilidades. Agora tomava partido com
uma brusquidão que não enaltecia seu treinamento.
– Realmente, Jéssica – argumentou Irulan –, o Conselho Real
deveria ter sido consultado. Foi errado de sua parte agir somente
através...
– Devo acreditar que nenhuma de vocês confia em Stilgar? –
Jéssica indagou.
Irulan era perspicaz o suficiente para perceber que não poderia
haver resposta para essa pergunta. Ficou feliz quando os
delegados religiosos, incapazes de conter por mais tempo sua
impaciência, se aproximaram com decisão. Enquanto trocava um
olhar com Alia, estava pensando: Como sempre, Jéssica é tão
altiva e convicta de si mesma! Todavia, um axioma Bene Gesserit
brotou espontaneamente em sua cabeça: “O altivo de fato
constrói muros de castelo atrás dos quais esconde suas dúvidas e
seus medos”. Será que isso se aplicava a Jéssica? Certamente não.
Então devia ser pose. Mas com que propósito? Essa pergunta
perturbava Irulan.
Os sacerdotes se alvoroçavam para tomar posse da mãe de
Muad’Dib. Alguns a tocavam nos braços, mas a maioria fazia
mesuras exageradas e externava suas boas-vindas. Finalmente,
os líderes da delegação tiveram sua vez com a Mais Santa
Reverenda Madre, aceitando o papel ordenado – “Os primeiros
serão os últimos” – com sorrisos treinados, dizendo a ela que a
cerimônia oficial de Lustração a aguardava no Forte, a antiga
cidadela-fortaleza de Paul.
Jéssica estudou os dois, e achou ambos repugnantes. O que se
chamava Javid era um rapaz de traços taciturnos e bochechas
redondas, olhos sombrios que não conseguiam encobrir as
suspeitas que espreitavam no fundo do seu ser. O outro era
Zebataleph, o segundo filho de um naib que ela havia conhecido
nos tempos com os fremen, como ele prontamente a lembrou. Ele
era fácil de se classificar: jovialidade associada com crueldade,
rosto fino com barba loura, exalava um ar de secreta empolgação
e conhecimentos poderosos. Javid lhe pareceu muito mais
perigoso que o outro; era alguém que abrigava convicções
secretas, sendo ao mesmo tempo magnético e – não lhe ocorria
nenhuma outra palavra – repulsivo. O sotaque dele lhe pareceu
estranho, cheio de pronúncia fremen antiga como se ele tivesse
vindo de alguma comunidade isolada de seu próprio povo.
Então ela lhe perguntou:
– Diga-me, Javid, de onde você vem?
– Sou apenas um simples fremen do deserto – ele respondeu,
permitindo que cada sílaba desmentisse essa afirmação.
Zebataleph se intrometeu com uma deferência ofensiva, quase
sarcástica:
– Temos muito que conversar sobre os velhos tempos, milady.
Como a senhora sabe, fui um dos primeiros a reconhecer a
sagrada natureza da missão de seu filho.
– Mas você não foi um dos Fedaykin dele – ela apontou.
– Não, milady. Estava possuído por uma propensão mais
filosófica. Estudei para me tornar sacerdote.
E com isso garantiu que sua pele ficasse bem salva, ela pensou.
– Estão esperando por nós no Forte, milady – Javid informou.
Novamente, ela achou estranho o sotaque do rapaz e essa era
uma questão em aberto que pedia uma resposta.
– Quem espera por nós? – ela quis saber.
– A Convocação da Fé, todos aqueles que mantêm acesa a
chama do nome e dos feitos de seu santo filho – Javid respondeu.
Jéssica olhou em torno e, quando viu Alia sorrindo para Javid,
indagou:
– Este homem é um de seus indicados, filha?
– Um homem destinado a grandes realizações – Alia assentiu.
Mas Jéssica notou que Javid não apreciava essa espécie de
atenção. O que o deixou marcado, em sua mente, para que Gurney
o estudasse com cuidado. E ali vinha Gurney com cinco homens
de confiança, sinalizando que tinha os suspeitos em processo de
interrogatório. Caminhou até ela com as passadas ritmadas de
um homem poderoso, os olhos perscrutando rapidamente o que
acontecia à direita e à esquerda, em todo o entorno, cada músculo
de seu corpo no estado de descontraída vigilância que ela lhe
havia ensinado com base em princípios do manual prana-bindu
das Bene Gesserit. Ele era feio e desajeitado com reflexos
treinados, um assassino, e totalmente aterrorizante para
algumas pessoas, enquanto Jéssica o amava e apreciava mais do
que qualquer outro homem vivo. A cicatriz da chicotada de cipó-
tinta circundava seu queixo, dando-lhe uma aparência sinistra,
mas um sorriso abrandou-lhe a expressão quando ele viu Stilgar.
– Parabéns, Stil – ele comentou. E trocaram um cumprimento
ao modo dos fremen.
– A Lustração – insistiu Javid, tocando o braço de Jéssica.
Jéssica recuou, escolhendo cuidadosamente as palavras que
diria com o poder controlado da Voz, num tom deliberadamente
calculado para surtir um efeito emocional preciso em Javid e
Zebataleph:
– Voltei a Duna para ver meus netos. Será preciso usar tempo
para esse absurdo sacerdotal?
Zebataleph reagiu com uma expressão de choque. A boca abriu
e o queixo caiu, os olhos demonstraram sinal de alarme e ele
relanceou a vista pelo grupo dos que tinham ouvido aquele
comentário. Seus olhos registraram cada um dos ouvintes.
Absurdo sacerdotal! Que efeito poderiam ter tais palavras, vindas
da mãe do messias de todos eles?
Entretanto, Javid confirmou a avaliação que Jéssica havia feito
anteriormente. A boca do jovem sacerdote endureceu e depois
sorriu. Os olhos não sorriram, nem se dirigiram aos ouvintes para
marcar a reação deles. Javid já conhecia cada membro de seu
grupo. Ele tinha um mapa no seu raio de audição de todos que
seriam observados com cuidados especiais deste momento em
diante. Somente alguns segundos depois, Javid parou de sorrir
com uma brusquidão que mostrava que ele sabia como havia se
traído. Ele não deixara de fazer sua lição de casa: ele conhecia os
poderes de observação que lady Jéssica possuía. Com um meneio
curto e contraído de sua cabeça reconheceu esses poderes.
Num instantâneo lampejo de mentação, Jéssica sopesou as
necessidades. Um sutil sinal com a mão para Gurney traria a
morte de Javid. Isso poderia ser feito ali, de imediato, para deixar
uma clara impressão, ou sigilosamente mais tarde e de maneira
que parecesse ter sido por acidente.
Ela pensou: Quando tentamos ocultar nossos motivos mais
profundos, o ser todo proclama a traição. O treinamento Bene
Gesserit orientava para essa revelação: elevando as adeptas
acima disso e ensinando-lhes a ler a carne dos outros como um
livro aberto. Ela viu a inteligência de Javid como algo valioso,
como um peso temporário na balança. Se ele pudesse ser
conquistado e se aliasse a ela, poderia ser o elo de que
necessitava, a linha até o clero arrakino. E era o homem de Alia.
– Meu cortejo oficial deve continuar pequeno – Jéssica
continuou. – Mas temos espaço para mais um. Javid, você virá
conosco. Zebataleph, desculpe-me. E Javid... compareço a essa...
a essa cerimônia, se você insiste.
Javid permitiu-se exalar um profundo suspiro e em voz baixa
respondeu:
– Como ordenar a mãe de Muad’Dib. – Olhou brevemente para
Alia, para Zebataleph e novamente para Jéssica. – Dói-me adiar o
encontro com seus netos, mas há... hmmm... razões de Estado...
Jéssica pensou: Bom. Acima de tudo ele é um homem de
negócios. Assim que estabelecermos a quantidade certa de
moedas, nós o compraremos. E ela se percebeu desfrutando o fato
de ele ter insistido em sua preciosa cerimônia. Essa pequena
vitória lhe daria poder perante os colegas e os dois sabiam disso.
Aceitar a Lustração poderia ser um adiantamento pelos futuros
serviços do jovem sacerdote.
– Imagino que tenha providenciado um transporte – ela disse.
Eu lhe dou o camaleão do deserto cuja habilidade
de se mesclar com o ambiente lhe diz tudo que
você precisa saber sobre as origens da ecologia e
as bases de uma identidade pessoal.
– Livro das Diatribes da Crônica de Hayt

Leto estava sentado tocando um pequeno baliset que lhe tinha


sido enviado em seu aniversário de 5 anos pelo mais exímio artista
nesse instrumento, Gurney Halleck. Depois de quatro anos
praticando, Leto tinha conseguido desenvolver certa fluência,
embora as duas cordas laterais graves ainda lhe dessem trabalho.
Para ele, porém, tocar o baliset era uma atividade
tranquilizadora, que acalmava determinadas inquietações, fato
que Ghanima não deixara de perceber. Agora, ele estava sentado
ao entardecer numa rocha plana, na extremidade mais ao sul do
afloramento de pedras fendidas que protegia Sietch Tabr. Ele
tocava o instrumento suavemente.
Ghanima estava atrás dele, e toda ela, mesmo pequenina,
irradiava seu protesto. Ela não quisera vir até aqui, ao ar livre,
depois de saber por Stilgar que sua avó tinha sido detida em
Arrakina. Ela objetava a esse passeio em especial porque já estava
quase de noite. Tentando apressar seu irmão, perguntou:
– Pois bem, o que foi?
Em resposta, ele deu início a outra melodia.
Pela primeira vez desde que aceitara o presente, Leto tomou
nítida consciência de que aquele instrumento tinha sido
produzido por um mestre artesão em Caladan. Ele tinha
lembranças herdadas que eram capazes de inundá-lo com uma
profunda saudade em relação àquele lindo planeta governado
pela Casa Atreides. Leto só precisava relaxar suas barreiras
internas em presença da música para ouvir as recordações
daqueles tempos em que Gurney usara o baliset para ludibriar
seu amigo e encargo, Paul Atreides. Com o instrumento soando
em suas próprias mãos, Leto se sentiu cada vez mais dominado
pela presença psíquica de seu pai. Ainda assim, ele continuava a
tocar, intensificando sua relação com o instrumento a cada
segundo que passava. Ele sentia a absoluta culminação idealizada
em seu íntimo de que sabia como tocar aquele baliset, embora
seus músculos de 9 anos de idade ainda não tivessem sido
condicionados no mesmo nível dessa percepção.
Ghanima bateu algumas vezes com o pé, impaciente, alheia ao
fato de que estava acompanhando o ritmo da melodia executada
pelo irmão.
Com a boca desenhada num ricto de concentração, Leto
interrompeu a música conhecida e tentou uma canção ainda mais
antiga do que qualquer outra que até Gurney tivesse tocado. Essa
peça já era antiga quando os fremen migraram para seu quinto
planeta. As palavras reproduziam um tema zen-sunita e ele as
ouviu em sua memória enquanto seus dedos executavam uma
versão irregular da melodia.

A bela forma da natureza


Contém uma essência amorosa
Que alguns chamam decadência.
Por sua adorável presença
A nova vida encontra um caminho.
Lágrimas que escorrem em silêncio
São somente águas da alma:
Trazem nova vida
À dor de ser...
Uma separação daquela visão
Que a morte torna completa.

Ghanima falou atrás dele quando ele dedilhou a última nota:


– Essa é uma canção velha e sórdida. Por que escolheu essa?
– Porque cai bem.
– Você vai tocá-la para Gurney?
– Talvez.
– Ele vai dizer que é um absurdo descabido.
– Eu sei.
Leto girou a cabeça para olhar por cima do ombro para a irmã.
Não era nenhuma surpresa para ele que Ghanima conhecesse a
música e a letra, mas ele sentiu uma onda repentina de admiração
pela singularidade de suas vidas gêmeas. Um deles poderia
morrer e ao mesmo tempo seguir vivendo na consciência do
outro, com todas as lembranças compartilhadas intactas. Eram
próximos nesse nível. Assustado com a sensação dessa teia
atemporal de proximidade, Leto desviou o olhar da irmã. Ele sabia
que essa teia tinha falhas. Seu medo vinha da falha mais recente.
Ele percebia que a vida deles estava começando a se distanciar e
questionou-se: Como dizer para ela isso que só aconteceu comigo?
Leto alongou o olhar sobre o deserto, reparando nas sombras
intensas por trás das barachans, aquelas dunas migratórias em
forma de lua crescente que se deslocam como ondas por Arrakis.
Ali era o kedem, o deserto interior, e agora raramente suas dunas
eram marcadas pelas irregularidades do avanço de um verme
gigante. O pôr do sol inscrevia laivos cor de sangue nas dunas,
recobrindo as beiradas das sombras com uma luminosidade
incandescente. Um gavião em voo descendente no céu carmesim
capturou sua atenção quando fisgou uma perdiz-das-rochas em
pleno ar.
Diretamente abaixo dele, no solo do deserto, as plantas
cresciam numa variada profusão de verdes, abastecidas de água
por um qanat que escoava um pouco a céu aberto e um pouco por
dentro de túneis cobertos. A água vinha de imensos coletores
movidos por moinhos dispostos atrás de Leto, no ponto mais alto
da rocha. O estandarte verde dos Atreides tremulava ali
explicitamente.
Água e verde.
Os novos símbolos de Arrakis: água e verde.
Um oásis de dunas plantadas em formato de diamante se
espalhava embaixo do afloramento elevado onde ele estava
encarapitado focalizando sua atenção na penetrante consciência
fremen. O pio metálico de uma ave noturna soou desde o
penhasco que se abria aos pés de Leto e amplificava sua sensação
de que estava vivendo esse momento como se num passado
selvagem.
Nous avons changé tout cela, ele pensou, retomando facilmente
uma das línguas antigas que ele e Ghanima usavam em particular.
“Nós mudamos tudo isso.” Ele suspirou. Oublier je ne puis. “Não
posso esquecer.”
Além do oásis, ele conseguia ver com o recurso dos últimos
vestígios de luz a terra que os fremen chamavam “O Vazio” – ali
onde nada cresce, a terra jamais é fértil. A água e o grande plano
ecológico estavam mudando isso. Havia locais em Arrakis agora
onde se podia admirar o luxuriante veludo verde dos morros
recobertos por florestas. Florestas em Arrakis! Alguns membros
da nova geração achavam difícil imaginar dunas por baixo desses
ondulantes relevos em verde. Para olhos assim tão jovens não
havia nenhum choque de valores em ver a folhagem lisa de
árvores tropicais. Mas Leto se flagrou pensando então conforme
o velho modo fremen, desconfiado de mudanças, temeroso diante
do novo.
– As crianças me dizem que agora elas raramente encontram
trutas da areia aqui, perto da superfície – ele comentou.
– E o que isso deve indicar? – Ghanima indagou, com petulância
na voz.
– As coisas estão começando a mudar muito depressa – ele
respondeu.
Novamente o pássaro trinou no penhasco e a noite caiu de vez
sobre o deserto, assim como o gavião tinha caído sobre a perdiz.
Frequentemente, a noite o sujeitava a um ataque insidioso de
lembranças – todas aquelas vidas interiores clamando por ter
cada uma seu momento. Ghanima não objetava a esse fenômeno
da mesma maneira que ele. Ela sabia, porém, que ele estava
inquieto e ele sentiu a mão dela tocá-lo no ombro em sinal de
solidariedade.
Então, arrancou um acorde raivoso do baliset.
Como dizer a ela o que estava acontecendo com ele?
Em sua cabeça havia guerras, vidas não computadas
processando em parcelas suas antigas lembranças: acidentes
violentos, a languidez do amor, as cores de muitos lugares e
muitas fisionomias... os padecimentos enterrados e as alegrias
esfuziantes de multidões. Ele ouviu elegias a primaveras em
planetas que não existiam mais, danças na mata à luz de
fogueiras, gemidos e saudações, toda uma colheita interminável
de conversas.
O momento mais difícil para fazer frente a essa investida era ao
ar livre, ao cair da noite.
– Será que não era melhor irmos andando? – Ghanima
perguntou.
Ele sacudiu a cabeça e ela sentiu o movimento, finalmente se
dando conta de que as aflições que o atormentavam eram mais
profundas do que ela havia inicialmente percebido.
Por que tantas vezes eu saúdo a noite aqui, ao relento?, Leto se
questionou. Ele não sentiu a irmã retirar a mão. Então ela disse:
– Você sabe por que se atormenta desse jeito.
Ele captou a delicada reprimenda na voz da irmã. Sim, ele sabia.
A resposta estava bem ali, no campo de sua consciência,
totalmente óbvia: Porque aquele grande conhecido-desconhecido
interior me transporta como uma onda. Ele sentia seu passado se
encrespando e avolumando como se estivesse numa prancha de
surfe. Tinha em si, distribuídas ao longo do tempo, as
recordações da presciência de seu pai superpostas a tudo o mais.
Todavia, ainda queria ter todos aqueles passados. Ele os queria. E
eram todos tão perigosos. Agora ele sabia completamente disso
com essa nova coisa que ele teria de contar a Ghanima.
O deserto estava começando a brilhar ao fulgor da primeira lua
que vinha surgindo no céu. Ele contemplou a falsa imobilidade
das dobras de areia, que se estendiam infinitamente. À sua
esquerda, a pequena distância, estava O Serviçal, um afloramento
de rochas que as tempestades de areia soprada pelo vento do
deserto tinham reduzido a uma silhueta baixa e sinuosa como um
verme escuro esgueirando-se pelas dunas. Algum dia, a rocha
debaixo dele seria lavrada até uma forma semelhante e Sietch
Tabr não existiria mais, exceto nas recordações de alguém como
ele. Ele não tinha dúvidas de que existiria alguém como ele.
– Por que você está olhando para O Serviçal? – perguntou
Ghanima.
Ele encolheu os ombros. Desafiando as ordens de seus
guardiões, ele e a irmã costumavam ir até O Serviçal. Tinham
descoberto ali um esconderijo secreto e Leto sabia agora por que
aquele lugar os atraía tanto.
Embaixo dele, a uma distância diminuída pela escuridão, um
trecho aberto do qanat cintilava à luz da lua. Sua superfície
enrugava com os movimentos dos peixes predadores que os
fremen sempre depositavam em sua água armazenada para inibir
a presença das trutas da areia.
– Estou entre os peixes e os vermes – ele murmurou.
– O quê?
Ele repetiu a declaração em voz mais alta.
Ela levou uma das mãos à boca, começando a desconfiar do que
é que estava se remexendo dentro do irmão. O pai dela tinha
agido do mesmo modo. Era preciso apenas que ela contemplasse
suas lembranças e comparasse.
Leto estremeceu. Recordações que o aprisionavam a lugares
que sua carne nunca conhecera propunham-lhe respostas para
perguntas que ele ainda não tinha formulado. Ele via
relacionamentos e eventos se desenrolando contra o pano de
fundo de uma gigantesca tela interior. O verme da areia de Duna
não cruzava a água, já que a água o envenenava. Contudo, desde
os tempos pré-históricos, a água já era conhecida por ali. Bolsões
de gipsita branca atestavam a presença de lagos e mares de
priscas eras. Poços profundos localizavam água que as trutas da
areia tinham lacrado. Com a mesma clareza de quem tivesse
testemunhado os acontecimentos, ele via o que havia se passado
nesse planeta, e isso o preenchia com a sensação premonitória
das mudanças cataclísmicas que a intervenção humana estava
desencadeando.
Com a voz somente um pouco mais elevada do que um
murmúrio, ele disse:
– Eu sei o que aconteceu, Ghanima.
Ela se curvou para ele.
– Sim?
– As trutas da areia...
Então calou-se e ela se perguntou por que ele continuava se
referindo à fase haploide do gigantesco verme da areia deste
planeta, mas não teve coragem de provocar o irmão. Então, ele
repetiu:
– A truta da areia foi introduzida aqui, trazida de outro lugar.
Antes este era um planeta úmido. Elas proliferaram além da
capacidade dos ecossistemas existentes de lidar com elas. As
trutas da areia enquistaram a água existente e desertificaram o
planeta... e fizeram isso para sobreviver. Num planeta
suficientemente seco, elas puderam evoluir para a fase de verme
da areia.
– A truta da areia? – Ghanima balançou a cabeça. Não que
duvidasse dele, mas não estava interessada em escarafunchar as
profundezas de onde ele havia extraído essa informação. Então
ela pensou: Truta da areia? Muitas vezes, nesta carne e em outra,
ela se divertira com esse jogo de crianças, remexer a areia em
busca de trutas da areia, cutucando a criatura que então se
revestia com um fino invólucro membranoso como uma luva antes
de levá-las à morte com a água. Era difícil imaginar que essa
criaturinha sem inteligência fosse responsável por eventos tão
enormes.
Leto assentiu com a cabeça à sua questão. Os fremen eram
conhecidos por sempre terem instalado peixes predadores em
suas cisternas de água. A truta da areia haploide resistia
ativamente a grandes acúmulos de água perto da superfície do
planeta. Os predadores nadavam no qanat debaixo deles. Seu
vetor de verme da areia era capaz de enfrentar pequenas
quantidades de água – quantidades guardadas em cativeiro
celular pela carne humana, por exemplo. Mas, diante de grandes
corpos aquáticos, suas fábricas químicas enlouqueciam e
explodiam na transformação mortal que produzia o perigoso
concentrado de mélange, a droga conscientizadora radical
empregada em frações diluídas nas orgias do sietch. O
concentrado puro tinha feito Paul Muad’Dib transpor as
muralhas do Tempo, afundando naquele poço da dissolução que
nenhum outro homem tinha sequer ousado vislumbrar.
Ghanima sentiu o irmão tremendo ali onde estava sentado, à
frente dela.
– O que você fez? – ela exigiu saber.
Mas ele não saía de seu próprio fio de revelações.
– Com menos trutas da areia, a transformação ecológica do
planeta...
– Claro que elas se oporiam a isso – ela disse, começando agora
a compreender o medo que havia na voz dele, atraída pela
voragem dessa coisa, ainda que contra sua vontade.
– Quando a truta da areia se for, também irão todos os vermes –
ele continuou. – As tribos devem ser avisadas.
– A especiaria acabaria – ela concluiu.
As palavras apenas roçavam pelos pontos altos do perigo
sistemático que ambos viam suspenso sobre a invasão humana
contra os relacionamentos ancestrais em Duna.
– É o que Alia sabe – ele disse. – É por isso que ela se vangloria.
– E como você pode ter certeza disso?
– Estou certo.
Agora ela sabia sem dúvida o que afligia o irmão, e ela sentiu
esse conhecimento percorrê-la como um calafrio.
– As tribos não vão acreditar em nós se ela negar – contrapôs
Leto.
Essa afirmação dizia respeito ao problema essencial da
existência deles dois: que fremen esperaria tamanha sabedoria de
uma criança de 9 anos? Alia, a cada dia distanciando-se mais e
mais de seus próprios compartilhamentos interiores, manipulava
esse fato.
– Temos de convencer Stilgar – sugeriu Ghanima.
Em uníssono, suas cabeças viraram para que contemplassem o
deserto banhado pelo luar. Era um lugar diferente agora,
modificado por apenas uns poucos instantes de percepção. A
interação humana com esse ambiente nunca tinha sido tão
aparente para eles quanto naquele momento. Eles se sentiam
parte integral de um sistema dinâmico mantido numa ordem
delicadamente equilibrada. A nova perspectiva envolvia uma
verdadeira mudança de orientação de consciência que os
inundava com observações. Como Liet-Kynes tinha dito, o
universo era um lugar de constante conversação entre
populações animais. As trutas da areia haploides tinham falado
com eles como animais humanos.
– As tribos compreenderiam uma ameaça à água – Leto propôs.
– Mas é uma ameaça que vai além da água. É uma... – mas ela se
calou, compreendendo o significado mais profundo de suas
palavras. A água era o símbolo final do poder em Arrakis. Em suas
origens, os fremen permaneciam animais de aplicação especial,
sobreviventes do deserto, especialistas em governança em
condições de estresse. E, quando a água se tornou abundante,
uma estranha transferência de símbolos lhes ocorreu ainda que
entendessem as antigas necessidades.
– Você quer dizer uma ameaça ao poder – ela o corrigiu.
– Claro.
– Mas será que eles irão acreditar em nós?
– Se virem acontecendo, perceberão o desequilíbrio.
– Equilíbrio – ela murmurou, e repetiu então as palavras ditas
por seu pai há muito tempo: – É o que distingue um povo de uma
turba.
As palavras de Ghanima despertaram o pai dentro de Leto e ele
recitou:
– Economia versus beleza, uma história mais antiga do que
Sheba. – Ele suspirou, e olhou por cima do ombro para ela. – Estou
começando a ter sonhos prescientes, Ghani.
Um som sufocado e breve escapou da garganta dela.
– Quando Stilgar nos disse que nossa avó estava atrasada – ele
disse –, eu já sabia sobre aquele momento. Agora, meus outros
sonhos são suspeitos.
– Leto... – e ela balançou a cabeça, com os olhos úmidos. – Para
o nosso pai aconteceu mais tarde. Você não acha que poderia
ser...
– Já sonhei comigo protegido por uma armadura e correndo
através das dunas – ele disse. – E estive em Jacurutu.
– Jacu... – e ela pigarreou um pouco. – Aquele mito antigo!
– Um lugar real, Ghani! Tenho de encontrar esse homem que
chamam O Pregador. Tenho de encontrá-lo e interrogá-lo.
– Você acha que ele é... nosso pai?
– Faça essa pergunta a si mesma.
– Seria bem uma coisa dele – ela concordou –, mas...
– Não gosto das coisas que sei que farei – ele confessou. – Pela
primeira vez na minha vida, entendo o nosso pai.
Ela se sentiu excluída dos pensamentos do irmão e comentou:
– Provavelmente, O Pregador é só um velho místico.
– Rezo para que sim – ele suspirou. – Oh, como rezo para que
seja isso! – Ele então se balançou para a frente um pouco e depois
ficou em pé. O baliset emitiu um som em sua mão, quando ele se
mexeu. – Gostaria que ele fosse apenas Gabriel sem uma
trombeta – e então contemplou em silêncio o deserto sob a luz da
lua.
Ela se virou para olhar na mesma direção que ele, viu o brilho
argênteo da vegetação apodrecendo na borda das plantações do
sietch, e então as limpas sinuosidades que iam até a linha das
dunas. Ali estava um lugar vivo. Ainda quando o deserto dormia,
alguma coisa nele permanecia desperta. Ela sentiu essa vigília,
ouvindo os animais num plano abaixo matando a sede no qanat. A
revelação de Leto tinha transformado a noite: aquele era um
momento vivo, um momento para descobrir regularidades dentro
das perpétuas mudanças, um instante no qual sentir aquele longo
movimento desde seu passado terrânico, todo ele encapsulado
em suas lembranças de menina.
– Por que Jacurutu? – ela quis saber, e a ausência de inflexão em
sua voz mudou seu estado de ânimo.
– Porque... não sei. Quando Stilgar nos falou disso a primeira
vez, contando como mataram as pessoas de lá e tornaram o lugar
um tabu, achei... o que você também achou, mas o perigo vem de
lá, agora... e d’O Pregador.
Ela não respondeu, não pediu que ele compartilhasse mais de
seus sonhos prescientes com ela, e ela sabia quanto isso indicava
para ele do terror que ela estava sentindo. Esse era um caminho
que levava à Abominação, e ambos sabiam disso. A palavra
permaneceu muda e em suspenso entre eles, quando se viraram
para tomar o caminho de volta, passando pelas pedras, até a
entrada do sietch. Abominação.
O universo é de Deus. É uma coisa só, uma
totalidade em contraste com a qual todas as
separações podem ser identificadas. A vida
transitória, inclusive aquela vida consciente de si
e dotada de raciocínio, que chamamos de
senciente, detém apenas uma frágil curatela de
qualquer porção da totalidade.
- Comentários da CTE (Comissão de Tradutores Ecumênicos)

Halleck usou sinais com as mãos para transmitir a verdadeira


mensagem ao mesmo tempo que falava em voz alta sobre outros
assuntos. Ele não gostara da pequena antecâmara que os
sacerdotes haviam destinado a esse relatório, sabendo que
estaria fervilhando de dispositivos de espionagem. Que eles
tentem decifrar os mínimos sinais com as mãos, então. Os
Atreides tinham usado esse meio de comunicação durante
séculos, sem que ninguém conseguisse compreendê-los.
Lá fora a noite havia caído, mas aquele aposento não tinha
janelas e dependia dos luciglobos instalados nos cantos
superiores.
“Muitos dos que pegamos eram gente de Alia”, Halleck
sinalizou, observando o rosto de Jéssica enquanto falava com ela
audivelmente para informar que o interrogatório ainda estava em
andamento.
“Foi como você previu, certo?”, os dedos de Jéssica piscaram
uma resposta. Ela assentiu com um movimento de cabeça e
enunciou uma resposta aberta:
– Vou esperar um relatório completo quando você estiver
satisfeito, Gurney.
– Naturalmente, milady – ele aquiesceu, e, com os dedos,
continuou: “Mas tem outra coisa, muito perturbadora. Sob o
efeito de drogas fortes, alguns cativos mencionaram Jacurutu e,
quando disseram esse nome, morreram”.
Com os dedos, Jéssica perguntou: “Um interruptor de
batimentos cardíacos condicionado?”. Enquanto isso, perguntou
em voz alta:
– Você já liberou algum dos cativos?
– Poucos, milady – os mais obviamente obtusos. – E os dedos
dele dispararam o restante da informação: “Desconfiamos de
uma compulsão cardíaca, mas ainda não temos certeza. As
autópsias não estão concluídas. Todavia, pensei que a senhora
deveria saber sobre essa questão de Jacurutu, e por isso vim de
imediato”.
A isso Jéssica sinalizou um comentário, esforçando-se para
ignorar o aperto da saudade no coração, falando de seu amor
morto há tanto tempo: “Meu duque e eu sempre pensamos que
Jacurutu fosse uma lenda interessante, provavelmente baseada
em fatos”.
– A senhora tem alguma ordem? – Halleck perguntou, em voz
alta.
E Jéssica respondeu da mesma maneira, instruindo-o a voltar
ao campo de pouso e relatar quando tivesse informações
consistentes; mas, com os dedos, a mensagem foi outra: “Retome
o contato com seus amigos entre os contrabandistas. Se Jacurutu
existe, eles se sustentam vendendo a especiaria. Não haveria
nenhum outro mercado para eles além dos contrabandistas”.
Halleck curvou brevemente a cabeça para saudá-la enquanto,
com os dedos, dizia: “Já dei início a esse curso de ação, milady”. E,
como ele não poderia ignorar o treinamento de uma vida inteira,
acrescentou: “Tome muito cuidado aqui, neste lugar. Alia é sua
inimiga e a maior parte do clero pertence a ela”.
Ao que Jéssica respondeu manualmente: “Javid, não. Ele
detesta os Atreides. Duvido que alguém que não seja adepto
possa detectar isso, mas tenho certeza. Ele conspira e Alia não
tem noção disso”.
– Estou destinando mais alguns guardas para sua proteção
pessoal – Halleck acrescentou em voz alta, evitando a discreta
faísca de desprazer que os olhos de Jéssica traíam. – Tenho
certeza de que há perigos rondando. A senhora passará a noite
aqui?
– Iremos para Sietch Tabr mais tarde – ela o informou e hesitou,
quase pedindo que ele não lhe mandasse mais guardas, mas
resolveu se calar. O instinto de Gurney devia ser respeitado. Mais
de um Atreides tinha aprendido essa lição, tanto para sua alegria
como para seu padecimento. Depois, ela acrescentou:
– Tenho mais uma reunião: com o Mestre dos Noviciados, desta
vez. Essa será a última e então serei felizmente despachada para
fora deste lugar.
E contemplei outra fera surgindo de dentro da
areia; e ela tinha dois chifres como um carneiro,
mas a boca era cheia de presas e soltava
labaredas como um dragão, e seu corpo cintilava
e incendiava com o forte calor, enquanto silvava
como uma serpente.
– Bíblia Católica Orange Revisada

Ele mesmo se chamava O Pregador, e tinha passado a existir


um medo assombroso em muitos habitantes de Arrakis de que ele
pudesse ser Muad’Dib de regresso do deserto, absolutamente
vivo. Muad’Dib poderia estar vivo, já que ninguém tinha
encontrado seu cadáver. A propósito, quem já tinha visto algum
dos corpos que o deserto tinha reclamado? Mesmo assim...
Muad’Dib? Poderiam ser delineados pontos de comparação,
embora ninguém dos tempos antigos tivesse se adiantado para
dizer: “Sim, vejo que este é Muad’Dib. Eu o conheço”.
Ainda assim... Como Muad’Dib, O Pregador era cego, com as
órbitas vazias e cicatrizadas de uma maneira que as marcas
poderiam ter sido causadas por um queima-pedra. E sua voz
transmitia aquela penetração crepitante, aquela mesma força
arrebatadora que exigia uma resposta do âmago da pessoa. Muita
gente comentava isso. Ele era seco de tão magro, esse Pregador, e
a pele de sua face grossa como couro, com cabelos muito
grisalhos. Mas o deserto profundo deixava muitas pessoas com
essa aparência. Era só olhar em volta para ter uma comprovação.
E ainda havia outro fato para se levar em conta: O Pregador era
conduzido por um jovem fremen, um rapaz sem sietch conhecido
que, quando indagado, respondia que trabalhava como
mercenário. Dizia-se que Muad’Dib, sabedor do futuro como era,
não tinha necessitado de tal guia exceto no fim de tudo, quando o
sofrimento se apoderou dele. Então, ele precisara de um guia;
todos sabiam disso.
O Pregador tinha aparecido numa determinada manhã de
inverno nas ruas de Arrakina, sua mão morena e de veias
salientes pousada no ombro de seu jovem guia. O rapaz, que se
apresentou como Assan Tariq, movia-se em meio ao pó com
cheiro de pederneira do enxame de gente no início da manhã,
conduzindo sua carga com a agilidade experiente dos nascidos
em setores superpovoados, sem perder o contato uma única vez.
Observaram que o cego usava uma burka tradicional sobre um
trajestilador ostentando as marcas daqueles que eram apenas
confeccionados nas cavernas do sietch do deserto profundo. Não
era como os trajes malfeitos que se viam atualmente. O tubo do
nariz que capturava a umidade de sua respiração para as
camadas de reciclagem sob a burka era envolto em sutache,
daquele tipo de debrum preto que era tão raro de se ver hoje em
dia. A máscara do traje sobre a metade inferior do rosto trazia
manchas verdes que haviam sido escavadas pelos sopros da areia.
Em tudo, esse Pregador era uma figura do passado de Duna.
Muitas pessoas dentre as primeiras aglomerações daquele
inverno tinham reparado na passagem desses dois forasteiros.
Afinal de contas, um fremen cego continuava sendo uma
raridade. A lei fremen ainda consignava os cegos a Shai-hulud. Os
termos da lei, embora fossem menos honrados nestes tempos
atuais modernos e amolecidos pela água, continuavam imutáveis
desde os primeiros dias. Os cegos eram um presente para Shai-
hulud. Deviam ser expostos no bled aberto para serem devorados
pelos grandes vermes. Quando isso era feito – e havia histórias
que voltavam para as cidades – era sempre na região em que os
maiores vermes ainda governassem, os chamados Velhos do
Deserto. Assim, um fremen cego era uma verdadeira curiosidade
e as pessoas se detinham para observar a passagem do insólito
par.
O rapaz parecia ter 14 anos-padrão, e era um indivíduo da nova
geração que usava trajestiladores modificados, em que o rosto
ficava ao ar livre, que roubava a umidade. Seus traços eram
esguios, seus olhos mostravam a tonalidade azul total provocada
pela especiaria, o nariz era incompleto e ele demonstrava aquela
expressão inócua da inocência que tantas vezes encobre o cínico
conhecimento dos jovens. Por outro lado, o cego era um lembrete
de tempos quase esquecidos; dava passadas largas e com uma
elasticidade que só se alcançava depois de muitos anos
palmilhando a areia com os próprios pés ou com um verme
capturado a transportá-lo. Mantinha a cabeça naquela posição
rígida imposta pelo pescoço imóvel que alguns cegos não
conseguem deixar de ter. A cabeça protegida pelo capuz só se
movia quando ele movimentava a orelha na direção de algum som
interessante.
Atravessando a multidão que se reunia para o dia, o estranho
par apareceu e chegou finalmente aos degraus que, como
hectares de terraços, levavam à escarpa que constituía o Templo
de Alia, uma companhia condizente para o Forte de Paul. O
Pregador foi subindo os degraus até que ele e seu jovem guia
chegaram ao terceiro patamar, onde os peregrinos do hajj
aguardavam a abertura matinal daqueles portões gigantescos
acima deles. Essas eram portas grandes o bastante para ter
franqueado a entrada de uma catedral inteira de uma das antigas
religiões. Diziam que passar por uma delas era reduzir a alma do
peregrino a um estado micropó, pequeno o suficiente para passar
pelo buraco de uma agulha e entrar no Céu.
Na beirada do terceiro patamar, O Pregador se voltou e era
como se estivesse olhando à sua volta, enxergando com suas
órbitas vazias os residentes afetados e vaidosos daquela cidade,
alguns dos quais inclusive eram fremen, com roupas que
imitavam trajestiladores, mas não passavam de tecidos
decorativos, vendo os ávidos peregrinos recém-desembarcados
dos transportes espaciais da Guilda e esperando pelo primeiro
passo em sua devoção que lhes garantiria um lugarzinho no
paraíso.
O patamar era um lugar barulhento. Havia membros do Culto
Espiritual do Mahdi em mantos verdes, com falcões vivos no
braço, treinados para emitir um agudo “chamado para o Céu”.
Vendedores ofereciam alimentos aos berros. Muitas coisas
estavam sendo postas à venda e as vozes que as apregoavam
competiam em estridência. Havia o Tarô de Duna com suas
brochuras de comentários impressas em shigafio. Um vendedor
exibia pedaços exóticos de um tecido “que podemos garantir foi
tocado pelo próprio Muad’Dib”. Outros tinham frascos com água
“com origem certificada em Sietch Tabr, onde viveu Muad’Dib”.
Em meio a tudo isso, ouviam-se conversas em mais de uma
centena de dialetos de galach, entremeados com os ásperos sons
guturais e ganidos das línguas outrinas, reunidas sob o manto do
Santo Imperium. Dançarinos Faciais e pessoas pequenas de
suspeitos planetas artesãos dos Tleilaxu saltitavam e rodopiavam
em meio à turba, com seus trajes coloridos. Havia rostos magros e
rostos gordos, cheios de água. O rumor de pés nervosos vinha do
açoplás arenoso que formava os largos degraus. E, de vez em
quando, destacava-se da cacofonia uma voz aguda e penetrante,
entoando uma oração: “Mua-a-a-ad’Dib! Mua-a-a-ad’Dib!
Conceda-me o que suplica minha alma! Você, que é ungido por
Deus, atenda à minha alma! Mua-a-a-ad’Dib!”.
Nas imediações da turba de peregrinos, dois profissionais de
pantomimas atuavam por alguns trocados, recitando os versos
do atualmente popular “Controvérsia de Armistead e
Leandgrah”.
O Pregador inclinou a cabeça para ouvir melhor.
Os pantomimeiros eram homens da cidade, de meia-idade, com
vozes entediadas. Obedecendo a uma instrução do Pregador, o
rapaz que o guiava descreveu os artistas para ele. Trajavam
mantos soltos, que nem tentavam imitar trajestiladores em seus
corpos cheios d’água. Assan Tariq achou isso engraçado, mas O
Pregador o repreendeu.
O artista que fazia o papel de Leandgrah estava quase
terminando esta oração: “Bah! O universo pode ser apreendido
somente pela mão senciente. Essa mão é o que dirige o seu
precioso cérebro e dirige tudo o mais que deriva do cérebro. Você
vê o que criou, você se torna senciente, somente depois que a mão
efetuou seu trabalho!”.
Alguns aplausos esparsos cumprimentaram sua performance.
O Pregador aspirou o ar e suas narinas registraram os ricos
odores desse lugar: ésteres livres de trajestiladores mal
ajustados, odores artificiais empregados para mascarar outros
odores de diversas procedências, o pó de pederneira comum, a
exalação de incontáveis regimes alimentares exóticos e os aromas
de incensos raros que já tinham sido acesos no interior do Templo
de Alia e que agora produziam novelos de fumaça que vinham
flutuando pelos degraus, em correntes descendentes que
rumavam para lados variados. Os pensamentos do Pregador
estavam estampados em seu rosto enquanto ele absorvia o que se
desenrolava ao seu redor: Nós, fremen, chegamos a isto!
Um súbito movimento de distração percorreu como uma onda
a multidão apinhada no patamar. Dançarinos das Areias tinham
chegado ali, na plaza, no início da escadaria, meia centena deles
unidos um ao outro por cordas de elacca. Era óbvio que já vinham
dançando assim havia vários dias, em busca do estado de êxtase.
A boca deles espumava e dela escorriam fios, conforme
estertoravam e batiam os pés inspirados por sua música secreta.
Pelo menos um terço deles pendia inconsciente entre as cordas,
puxados e arrastados para a frente e para trás pelos outros, como
se fossem marionetes. Uma dessas marionetes tinha recobrado a
consciência, todavia, e a multidão aparentemente sabia o que
estava por vir.
– Eu viiiii! – berrava o dançarino recém-despertado. – Eu viiii! –
Ele resistia aos puxões dos outros dançarinos, disparando seu
olhar enlouquecido à direita e à esquerda. – Onde está esta cidade
hoje, só haverá areia! Eu viiiii!
Uma grande risada se espalhou e cresceu em volume
envolvendo todos os circunstantes. Até os novos peregrinos
aderiram.
Isso foi demais para O Pregador. Ele ergueu os dois braços e
trovejou numa voz que seguramente havia comandado cavaleiros
de vermes:
– Silêncio!
No mesmo instante, a turba se calou diante daquele grito de
guerra.
O Pregador apontou sua mão delgada na direção dos
dançarinos e a ilusão de que ele efetivamente podia vê-los era
assombrosa.
– Vocês não ouviram esse homem? Blasfemos e idólatras!
Todos vocês! A religião de Muad’Dib não é Muad’Dib. Ele a
desdenha tanto quanto desdenha vocês! A areia cobrirá todo este
lugar. A areia cobrirá vocês.
Dizendo isso, desceu os braços, apoiou uma mão no ombro de
seu jovem guia e ordenou:
– Leve-me embora deste lugar.
Talvez tenha sido a escolha das palavras do Pregador: Ele a
desdenha, tanto quando desdenha vocês!. Talvez tenha sido seu
tom de voz, certamente mais do que humano, uma capacidade
vocal sem dúvida treinada nas artes da Voz das Bene Gesserit que
comandavam por meio de simples nuances de inflexões sutis.
Talvez tenha sido somente o misticismo inerente daquele lugar
em que Muad’Dib tinha vivido, por onde caminhara e que
governara. Alguém clamou do patamar, gritando para O Pregador
que ia se afastando de costas, usando um tom de voz que tremia
de fervor religioso:
– Esse é Muad’Dib que voltou para nós?
O Pregador parou, enfiou a mão numa bolsa dentro da burka e
retirou de lá um objeto que somente os que estavam perto
puderam reconhecer. Era uma mão humana mumificada pelo
deserto, uma das piadas desse planeta sobre a mortalidade que,
vez ou outra, brotavam da areia e eram universalmente
consideradas comunicados de Shai-hulud. Essa mão desidratara
a ponto de se tornar um punho fechado que terminava em ossos
brancos e esculpidos pelas ventanias sopradas no deserto.
– Eu trago a Mão de Deus, e isso é tudo que trago! – bradou O
Pregador. – Falo pela Mão de Deus. Eu sou O Pregador.
Alguns entenderam que ele queria dizer que aquela era a mão
de Muad’Dib, mas outros se prenderam à sua presença majestosa
e à sua voz terrível – e foi assim que Arrakis veio a saber o nome
dele. Mas aquela não seria a última vez que tal voz se faria ouvir.
É comumente mencionado, meu prezado Georad,
que existe uma grande virtude natural na
experiência proporcionada pelo mélange. Talvez
isso seja verdade. Todavia, persistem no meu
íntimo dúvidas profundas a respeito de cada uso
de mélange sempre redundar em virtudes. Para
mim, algumas pessoas corromperam o uso do
mélange numa atitude de desafio a Deus. Nas
palavras de Ecumenon, essas pessoas
desfiguraram a alma. Elas tão somente roçam a
superfície do mélange e acreditam que é dessa
maneira que alcançam a graça. Zombam de seus
semelhantes, causam grandes danos à divindade e
distorcem maliciosamente o significado dessa
dádiva abundante, sem dúvida efetuando uma
mutilação que está além do poder do homem
restaurar. Para a verdadeira união com a virtude
da especiaria, incorruptível em todos os sentidos,
repleta da honra sagrada, o homem deve fazer
com que seus feitos e suas palavras concordem.
Quando seus atos descrevem um sistema de
consequências funestas, você deverá ser julgado
por essas consequências e não por suas
explicações. É assim que devemos julgar
Muad’Dib.
- A Heresia Pedante
Era um aposento pequeno, marcado pelo odor de ozônio e
reduzido a um cinzento sombrio pelos luciglobos de claridade
amortecida e pela luz azul metálica da tela de monitoramento de
um único transolho. Essa tela teria um metro de largura e apenas
dois terços de metro de altura. Apresentava em detalhes remotos
um vale rochoso e estéril em que dois tigres laza se fartavam com
os despojos sangrentos de alguma presa recém-abatida. Na
encosta do morro, num plano acima dos tigres, podia-se ver um
homem magro usando o uniforme de serviço dos Sardaukar, com
a insígnia de levenbrech na gola. No peito, trazia um teclado de
servocontrole.
Uma cadeira vermiforme suspensa estava de frente para a tela,
ocupada por uma mulher de cabelos claros, de idade
indeterminada. Seu rosto lembrava o formato de um coração e
suas mãos, esguias, firmavam-se nos braços da cadeira enquanto
ela assistia à cena. Um amplo manto branco de bordas douradas
encobria sua silhueta. A um passo de distância, à direita, havia um
homem corpulento, vestido com o uniforme bronze e dourado de
um bashar assessor do antigo estilo dos Sardaukar imperiais.
Seus cabelos grisalhos tinham sido cortados bem rentes na
cabeça em que todos os outros traços não demonstravam
nenhuma emoção.
A mulher tossiu e disse:
– Aconteceu como previsto, Tyekanik.
– Certamente, princesa – confirmou o bashar assessor, com sua
voz áspera.
Ela sorriu ao perceber a tensão na voz dele e perguntou:
– Diga-me, Tyekanik, você acha que meu filho gostará do som
de Imperador Farad’n I?
– Esse título convém a ele, princesa.
– Não foi isso que perguntei.
– Talvez ele não aprove algumas das coisas que foram feitas
para que ele recebesse esse, digamos... título.
– Mesmo assim... – E ela se voltou para esquadrinhar o aspecto
sombrio do homem. – Você serviu bem ao meu pai. Não foi por sua
culpa que ele perdeu o trono para Atreides. Mas certamente o
ferrão dessa perda deve ter sido tão fortemente sentido por você
como por qualquer...
– Teria a princesa Wensicia alguma tarefa especial para mim? –
Tyekanik indagou. A voz dele continuava áspera, mas agora vinha
acrescida de um tom incisivo.
– Você tem o mau hábito de me interromper – ela o repreendeu.
Então ele sorriu, exibindo dentes grossos que brilharam à luz
emanada pelo monitor.
– Às vezes, você me faz lembrar seu pai – ele observou. –
Sempre esses circunlóquios antes de solicitar uma missão,
digamos... delicada.
Ela desviou bruscamente os olhos dele para encobrir sua raiva
e perguntou:
– Você realmente acha que os lazas colocarão meu filho no
trono?
– É notadamente possível, princesa. Você deve admitir que a
prole bastarda de Paul Atreides não seria mais do que um
banquete suculento para aqueles dois. E depois que os gêmeos se
forem... – ele encolheu os ombros.
– O neto de Shaddam IV se torna o sucessor lógico – ela
completou. – Quer dizer, se pudermos remover as objeções dos
fremen, do Landsraad e da choam, sem mencionar nenhum
Atreides remanescente que poderia...
– Javid me garantiu que seu pessoal pode dar conta de Alia com
muita facilidade. Não computo lady Jéssica como uma Atreides.
Resta mais alguém?
– O Landsraad e a choam vão aonde há promessa de lucros –
ela prosseguiu–, mas e quanto aos fremen?
– Nós os afogaremos na religião de seu Muad’Dib!
– É mais fácil falar do que fazer, meu caro Tyekanik.
– Entendo – ele respondeu. – Estamos de volta ao mesmo velho
argumento.
– A Casa Corrino fez coisas piores para conquistar o poder – ela
lembrou.
– Mas adotar a... religião desse Mahdi!
– Meu filho respeita você – ela comentou.
– Princesa, anseio pelo dia em que a Casa Corrino retornará ao
seu legítimo trono no poder, assim como todo Sardaukar
remanescente aqui, em Salusa. Mas se você...
– Tyekanik! Este é o planeta Salusa Secundus. Não adote o
maneirismo preguiçoso que se alastrou por nosso Imperium.
Nomes completos, títulos completos: atenção a cada detalhe.
Esses atributos lançarão o sangue dos Atreides nas areias de
Arrakis. Cada detalhe, Tyekanik!
Ele sabia o que ela estava fazendo com esse ataque. Fazia parte
da camaleônica astúcia que tinha aprendido com sua irmã, Irulan.
Mas ele sentia que estava perdendo terreno.
– Você me ouviu, Tyekanik?
– Ouvi, princesa.
– Quero que adote a religião desse Muad’Dib – ela declarou.
– Princesa, eu caminharia sobre o fogo por você, mas isto...
– É uma ordem, Tyekanik!
Ele engoliu em seco, e plantou os olhos na tela. Os tigres laza
tinham acabado de se alimentar e agora estavam estirados na
areia completando sua toalete, com as longas línguas limpando as
patas dianteiras.
– Uma ordem, Tyekanik, você me entendeu?
– Ouço e obedeço, princesa. – A voz dele não mudou de tom.
– Ah, se pelo menos meu pai estivesse vivo... – ela suspirou.
– Sim, princesa.
– Não zombe de mim, Tyekanik. Sei quanto isso para você é
desagradável. Mas se você der o exemplo...
– Talvez ele não o siga, princesa.
– Ele seguirá. – Ela apontou para o monitor. – Está me
ocorrendo que aquele levenbrech lá embaixo pode ser um
problema.
– Um problema? Como assim?
– Quantas pessoas estão a par dessa coisa com os tigres?
– Aquele levenbrech, que é o treinador dos animais... um piloto
de transporte, você, e naturalmente... – ele cutucou o próprio
peito.
– E os compradores?
– Não sabem de nada. O que está temendo, princesa?
– Meu filho, bem, ele é sensitivo.
– Os Sardaukar não revelam segredos – ele afirmou.
– Homens mortos também não. – Ela estendeu a mão para a
frente e apertou uma chave vermelha sob o monitor aceso.
Imediatamente, os tigres laza ergueram a cabeça. Ficaram em
pé e olharam na direção do morro onde estava o levenbrech.
Partindo juntos como um só organismo, viraram-se na direção da
encosta e começaram a subir em marcha acelerada.
Aparentando calma no início, o levenbrech apertou uma chave
em seu console. Seus movimentos eram seguros, mas, como os
felinos continuavam vindo em sua direção com clara intenção de
atacá-lo, ele começou a ficar agitado e apertava a chave com cada
vez mais força. Uma expressão de total aturdimento recobriu
seus traços e suas mãos buscaram aflitivamente a faca de serviço
que trazia na cinta. Esse movimento ocorreu tarde demais. Uma
pata talhou seu peito e o mandou rodopiando para o chão.
Enquanto caía, o outro tigre se ocupou de seu pescoço com uma
única mordida de suas imensas presas e depois o sacudiu. A
coluna do homem se partiu.
– Atenção aos detalhes – instruiu a princesa. Ela então se virou,
tensa quando Tyekanik desembainhou a faca. Mas ele entregou a
lâmina para ela, com o cabo voltado para a princesa.
– Talvez queira usar minha faca para cuidar de outro detalhe –
ele sugeriu.
– Ponha isso de volta na bainha e não se faça de tolo! – ela
ordenou, enfurecida. – Às vezes, Tyekanik, você me testa até o...
– Aquele ali era um bom homem, princesa. Um dos meus
melhores.
– Um dos meus melhores – ela o corrigiu.
Ele inspirou fundo, tremendo de leve, e guardou a faca na
bainha.
– E quanto ao meu piloto de transporte?
– Isso será resolvido com um acidente – ela murmurou. – Você o
aconselhará a usar de máxima cautela quando trouxer os tigres
de volta para nós. E, naturalmente, assim que ele tiver entregado
nossos bichinhos de estimação para o pessoal de Javid no
transporte... – e ela olhou para a faca dele.
– Isso é uma ordem, princesa?
– É.
– Então, devo me ocupar com a faca, ou você resolverá esse,
digamos... detalhe?
– Tyekanik – ela falou com uma falsa calma; sua voz estava
pesada –, se eu não estivesse absolutamente convencida de que
você se ocupará de sua faca quando eu lhe der essa ordem, você
nem estaria aqui, ao meu lado, armado.
Ele engoliu em seco, os olhos pregados na tela. Os tigres
estavam se banqueteando mais uma vez.
– Além disso – ela se recusou a olhar para a cena e continuou
encarando Tyekanik enquanto falava –, você dirá aos nossos
compradores que não nos tragam mais pares combinados de
crianças que correspondam à descrição necessária.
– Como desejar, princesa.
– Não use esse tom de voz comigo, Tyekanik.
– Sim, princesa.
Os lábios dela se tensionaram até formar uma única linha reta.
Depois, ela acrescentou:
– Quantos pares mais desses trajes nós ainda temos?
– Seis conjuntos de mantos completos, com trajestiladores e
calçados de areia, todos com as insígnias dos Atreides gravadas
neles.
– Em tecidos tão ricos quanto os que usavam aquelas duas? – e
ela inclinou a cabeça na direção da tela.
– Bons o bastante para a realeza, princesa.
– Atenção aos detalhes – ela insinuou. – As roupas serão
enviadas para Arrakis como presentes para nossos primos reais.
Serão presentes de meu filho, você está me entendendo,
Tyekanik?
– Completamente, princesa.
– Faça-o redigir um bilhete adequado, dizendo que ele envia
esses trajes singelos como símbolo de sua devoção à Casa
Atreides. Algo nesse sentido.
– E quando deveremos mandar o presente?
– Num aniversário ou dia santo, algo assim, Tyekanik. Deixo
isso por sua conta. Confio em você, meu amigo.
Ele olhou fixamente para ela, em silêncio.
O rosto dela endureceu.
– Claro que você deve saber disso, não é? Em quem mais posso
confiar desde a morte de meu marido?
Ele deu de ombros, pensando como ela emulava tão bem uma
aranha. Não seria nada bom manter uma relação de intimidade
com ela, como agora ele desconfiava que o seu levenbrech tinha
feito.
– E, Tyekanik – ela sussurrou –, só mais um detalhe.
– Sim, princesa.
– Meu filho está sendo treinado para governar. Chegará o
momento em que deverá empunhar a espada com suas próprias
mãos. Você saberá quando chegar esse momento. Desejo então
ser informada imediatamente.
– Às suas ordens, princesa.
Ela se reclinou e encostou, esquadrinhando o rosto de
Tyekanik com expressão perspicaz.
– Você não me aprova, eu sei disso. Mas, para mim, isso não
importa desde que você se lembre da lição do levenbrech.
– Sim, ele era ótimo com animais, princesa, mas descartável.
– Não é isso que quis dizer!
– Não é? Então... não estou entendendo.
– Um exército é constituído por partes descartáveis e
completamente substituíveis – ela explicou. – Essa é a lição do
levenbrech.
– Partes substituíveis – ele repetiu –, incluindo o comando
supremo?
– Sem o comando supremo, Tyekanik, raramente existe motivo
para haver um exército. É por isso que você irá adotar
imediatamente a religião desse Mahdi e, ao mesmo tempo,
começar uma campanha para converter meu filho.
– Imediatamente, princesa. Imagino que não quer que eu
cerceie a educação dele nas demais artes marciais por conta
dessa, digamos... religião?
Ela se levantou da cadeira, passou por ele e avançou firme,
parando à porta e falou, sem olhar para trás:
– Algum dia você ainda vai acabar mesmo com a minha
paciência, Tyekanik.
E então saiu do recinto.
Ou abandonamos a longamente respeitada Teoria
da Relatividade, ou deixamos de acreditar que
conseguimos nos dedicar a uma previsão acurada
do futuro. Aliás, saber o que o futuro nos reserva
suscita uma multiplicidade de perguntas que não
podem ser respondidas de acordo com as
suposições convencionais, a menos que, em
primeiro lugar, a pessoa projete um Observador
para fora do Tempo e, depois, que ela elimine
todos os movimentos. Se a pessoa aceita a Teoria
da Relatividade, pode ser demonstrado que o
Tempo e o Observador devem permanecer
imóveis um em relação ao outro, ou haverá a
interposição de inexatidões. Poderia parecer que
se está dizendo que é impossível realizar
predições acuradas do futuro. Mas, então, como
explicar a busca contínua dessa meta visionária
por cientistas tão respeitados? Como, então,
explicar Muad’Dib?
– Palestras sobre presciência
por Harq al-Ada

– Preciso lhe dizer uma coisa – Jéssica falou –, ainda que eu


saiba que minhas palavras farão com que se lembre de muitas
experiências de nosso passado comum, e que isso a colocará em
risco.
Ela parou para observar o efeito desse aviso em Ghanima.
Estavam as duas sozinhas, sentadas em almofadões numa
câmara em Sietch Tabr. Tinha sido preciso recorrer a uma
considerável dose de habilidade para providenciar aquele
encontro, e Jéssica não estava inteiramente certa de que
realizara todas as manobras necessárias sozinha. Ghanima tinha
dado a impressão de antecipar e amplificar cada passo.
Já se passavam quase duas horas desde o alvorecer e já havia
passado a excitação de todos os cumprimentos e de todas as
demonstrações de respeito. Jéssica se impôs uma desaceleração
dos batimentos cardíacos até seu pulso se mostrar regularizado,
e então prestou atenção a esse aposento de paredes de rocha com
suas tapeçarias penduradas em tons escuros e os almofadões
amarelos. Para fazer frente ao acúmulo de tensões, ela se
encontrou pela primeira vez em anos repetindo mentalmente a
Litania contra o Medo, aprendida nos ritos Bene Gesserit.
“Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena
morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo.
Permitirei que passe por cima e através de mim. E, quando tiver
passado, voltarei o olho interior para ver seu rastro. Onde o medo
não estiver mais, nada haverá. Somente eu restarei.”
Essa oração concluída em silêncio, Jéssica inspirou profunda e
calmamente.
– Às vezes, ajuda – Ghanima comentou. – A Litania, quero dizer.
Jéssica fechou os olhos para ocultar seu choque diante dessa
revelação. Já fazia muito tempo desde a última vez que alguém
conseguira ler o que se passava em seu íntimo. Essa constatação
foi desconcertante, especialmente por ter sido desencadeada por
um intelecto que se escondia por trás da máscara da infância.
Assim, tendo enfrentado seu temor, Jéssica abriu os olhos e
identificou a origem de seu tumulto interior: Temo por meus
netos. Nenhum dos dois denunciava os estigmas da Abominação
que Alia exibia, embora Leto transpirasse todos os indícios de
algo terrível que ele encobria. Fora esse o motivo de ele ter sido
habilmente excluído desse encontro.
Tomada por um impulso, Jéssica deixou de lado suas máscaras
emocionais tão entranhadas em seu ser, sabendo que ali teriam
pouca serventia, que não passariam de obstáculos à
comunicação. Nunca desde seus momentos de amor com seu
duque ela havia baixado essas barreiras, e sentiu ao mesmo
tempo alívio e dor ao fazer isso agora. Continuam havendo fatos
que nenhuma maldição, prece ou litania poderiam apagar. Fugir
não deixaria esses fatos para trás. Eles não poderiam ser
ignorados. Alguns elementos da visão de Paul tinham sido
reorganizados e o tempo tinha alcançado os filhos dele. Eles eram
como um ímã no vácuo: o mal e todos os lamentáveis abusos do
poder se aglutinavam em torno deles.
Observando o jogo de emoções que cruzava a fisionomia de sua
avó, Ghanima se maravilhava ao constatar que Jéssica havia
deixado de lado os controles que habitualmente usava.
Com movimentos de percepção da cabeça que se mostravam
notavelmente sincronizados, as duas se viraram, seus olhos se
encontraram e elas se olharam intensamente, esquadrinhando
uma à outra. Passavam entre elas pensamentos que não se
traduziam em palavras ditas em voz alta.
Jéssica: Quero que você veja meu temor.
Ghanima: Agora eu sei que você me ama.
Foi um breve momento de total confiança.
– Quando seu pai era menino – Jéssica contou –, levei uma
Reverenda Madre a Caladan para testá-lo.
Ghanima assentiu. A lembrança desse episódio era
extremamente vívida.
– Nós, Bene Gesserit, já éramos cautelosas e garantíamos que
as crianças fossem criadas como humanos e não como animais.
Nem sempre se pode distinguir só com base em sua aparência.
– É como você foi treinada – Ghanima concordou e a lembrança
inundou sua mente: a velha Bene Gesserit, Gaius Helen Mohiam.
Ela fora ao Castelo Caladan com seu gom jabbar envenenado e
sua caixa de dor ardente. A mão de Paul (a mão da própria
Ghanima na lembrança compartilhada) berrava com a agonia
daquela caixa enquanto a velha falava calmamente da morte
iminente se a mão fosse retirada da dor. E não tinha havido dúvida
quanto à morte naquela agulha mantida pronta para perfurar o
pescoço da criança enquanto a voz idosa descrevia suas razões
como numa ladainha:
“Já ouviu falar de animais que roem a pata para escapar de uma
armadilha? É o tipo de truque que um animal usaria. Um ser
humano ficaria preso, resistiria à dor e fingiria estar morto, para
que pudesse matar o caçador e acabar com essa ameaça a sua
espécie.”
Ghanima balançou a cabeça para dissipar a lembrança daquela
dor. A queimação! A ardência! Paul tinha imaginado sua pele
ficando negra e retorcida em sua mão agonizante dentro da caixa,
a carne ficando crestada e caindo até que restassem os ossos
carbonizados. E tinha sido um truque, pois a mão permanecera
incólume. A testa de Ghanima, contudo, estava lisa de suor.
– Claro que você se lembra disso de uma maneira que eu não
posso – Jéssica comentou.
Por um instante, possuída pela lembrança, Ghanima viu a avó
sob uma luz diferente: o que essa mulher poderia fazer em nome
das pungentes necessidades daquele início de condicionamento
nas escolas Bene Gesserit! Isso provocava novas indagações
sobre o retorno de Jéssica a Arrakis.
– Seria estupidez repetir um teste desses em você ou em seu
irmão – declarou Jéssica. – Vocês já sabem como é feito. Devo
supor que vocês são humanos e que não abusarão de seus
poderes herdados.
– Mas é certo que você não supõe isso de maneira nenhuma –
afirmou Ghanima.
Jéssica piscou. Constatou que as barreiras estavam se
esgueirando de volta para os antigos lugares, e então baixou-as
uma vez mais. Depois, perguntou:
– Você acreditará no meu amor por você?
– Sim. – E Ghanima ergueu uma mão quando Jéssica começou a
falar. – Mas esse amor não a impediria de nos destruir. Oh, eu
conheço o raciocínio: “Melhor que o animal-humano morra do que
se recrie”. E isso é especialmente verdadeiro se o animal-humano
vem com o nome Atreides.
– Pelo menos você é humana – respondeu Jéssica num
rompante. – Confio no meu instinto.
Ghanima viu verdade nisso e complementou:
– Mas quanto a Leto você não tem certeza.
– Não.
– Abominação?
Jéssica pôde simplesmente aquiescer.
– Ainda não, por ora – Ghanima concedeu. – Todavia, nós dois
sabemos o perigo que isso é. Podemos ver em Alia como isso
acontece.
Jéssica cobriu os olhos com as mãos e pensou: Nem mesmo o
amor pode nos proteger de fatos indesejáveis. E então ela soube
que ainda amava a filha, lamentando-se em silêncio contra o
destino: Alia! Oh, Alia! Sinto muito por minha parte em sua
destruição.
Ghanima pigarreou com força.
Jéssica baixou as mãos, e então pensou: Posso sofrer a perda da
minha filha, mas agora há outras necessidades. E disse:
– Quer dizer que você reconheceu o que aconteceu com Alia.
– Leto e eu vimos acontecer. Estávamos impotentes para
impedir, embora tenhamos discutido muitas possibilidades.
– Você está segura de que seu irmão está livre dessa maldição?
– Estou segura.
A calma confirmação daquela sentença não poderia ser
ignorada. Jéssica se percebeu aceitando a declaração. Em
seguida, ela questionou:
– Como foi que você escapou?
Ghanima explicou a teoria com a qual ela e Leto tinham enfim
se contentado, segundo a qual o fato de terem evitado o transe
com a especiaria, enquanto Alia se entregava a ele com
frequência, fazia toda a diferença. Depois ela revelou os sonhos
do irmão e os planos que tinham traçado – incluindo Jacurutu.
Jéssica concordou.
– Ainda assim, Alia é uma Atreides, e isso representa enormes
problemas.
Ghanima ficou calada antes de perceber subitamente que
Jéssica ainda estava de luto por seu duque, como se a morte dele
tivesse ocorrido apenas no dia anterior, que ela protegeria o nome
dele e sua lembrança contra todas as ameaças. Recordações
pessoais da existência do próprio duque atravessaram o campo
da consciência de Ghanima para reforçar essa avaliação e para
acalmá-la com uma dose de compreensão.
– Então – Jéssica prosseguiu, com um tom de voz mais ríspido
–, e esse tal de Pregador? Ontem ouvi alguns comentários
inquietantes depois daquela maldita Lustração.
– Ele poderia ser... – Ghanima encolheu os ombros.
– Paul?
– Sim, mas ainda não o vimos para poder examiná-lo.
– Javid ri desses boatos – Jéssica acrescentou.
Ghanima hesitou. Então perguntou:
– Você confia em Javid?
Um sorriso pesado roçou pelos lábios de Jéssica.
– Tanto quanto você.
– Leto diz que Javid ri das coisas erradas – Ghanima comentou.
– Deixemos para lá as risadas de Javid – Jéssica murmurou. –
Mas você realmente acredita na hipótese de que meu filho ainda
esteja vivo, que tenha retornado sob esse disfarce?
– Dizemos que isso é possível. E Leto... – Ghanima percebeu
que de repente sua boca tinha ficado seca, alguns temores
relembrados lhe apertavam o peito. Ela se forçou a superá-los e
narrou para a avó as outras revelações de Leto obtidas em seus
sonhos prescientes.
Jéssica mexia a cabeça de um lado para o outro como se
estivesse ferida.
– Leto diz que ele deve encontrar esse Pregador para ter
certeza – Ghanima acrescentou.
– Sim... naturalmente. Eu nunca deveria ter saído daqui. Foi
covardia da minha parte.
– Por que você se recrimina? Você tinha chegado a um limite.
Eu sei disso. Leto sabe disso. Até Alia deve saber disso.
Jéssica levou a mão até a garganta e esfregou-a por alguns
instantes. Então disse:
– Sim, o problema de Alia.
– Ela exerce uma estranha atração sobre Leto – Ghanima
revelou. – É por isso que a ajudei a ter este encontro só comigo.
Ele concorda que ela não tem mais salvação, mas ainda assim
acha meios e modos de estar com ela... de estudá-la. E... é muito
perturbador. Quando tento objetar a isso, ele cai no sono. Ele...
– Ela está drogando Leto?
– Nãããão! – E Ghanima sacudiu a cabeça. – Mas ele sente essa
estranha empatia por ela. E... quando ele dorme, muitas vezes
balbucia Jacurutu.
– Novamente isso! – Jéssica se flagrou compartilhando o relato
de Gurney sobre os conspiradores identificados no campo de
pouso.
– Às vezes, eu temo que Alia queira que Leto vá em busca de
Jacurutu – Ghanima confessou. – E eu sempre pensei que fosse só
uma lenda. Você sabe do que estou falando, claro.
– História terrível – Jéssica estremeceu. – Terrível.
– E o que devemos fazer? – Ghanima indagou. – Temo remexer
em todas as minhas lembranças, em todas as minhas vidas...
– Ghani! Recomendo que não o faça! Você não deve de jeito
nenhum arriscar...
– Isso pode acontecer mesmo que eu não me arrisque. Como
saber o que realmente aconteceu com Alia?
– Não! Você poderia ser poupada dessa... dessa possessão. – Ela
disse essa palavra como se a mordesse. – Bom... Jacurutu, é isso?
Despachei Gurney para encontrar esse lugar... se ele existir.
– Mas como ele poderia... Ora! Claro! Os contrabandistas.
Jéssica percebeu que se silenciara diante de mais esse exemplo
de como a mente de Ghanima funcionava em harmonia com o que
devia ser uma percepção consciente dos outros. De mim! Como
realmente era muito estranho, Jéssica pensou, que aquela carne
tão jovem pudesse conter todas as recordações de Paul, pelo
menos até o momento em que Paul tivera sua separação
espermática de seu próprio passado. Era uma invasão de
privacidade contra a qual algo muito primal em Jéssica se
indignava. Por um momento, ela se sentiu afundando no absoluto
e inabalável julgamento Bene Gesserit: Abominação! Mas havia
uma doçura nessa criança, uma disponibilidade para se sacrificar
pelo irmão que não podia ser negada.
Somos uma única vida indo em busca de um futuro sombrio,
pensou Jéssica. Somos um só sangue. E ela se preparou para
aceitar os eventos que ela e Gurney Halleck tinham posto em
movimento. Leto devia ser separado de sua irmã, devia ser
treinado do modo como a Irmandade insistia.
Ouço o vento soprando através do deserto e vejo
as luas de uma noite de inverno subindo como
grandes navios no vazio. A elas presto meu
juramento: serei resoluto e farei de governar uma
arte. Equilibrarei o passado que herdei e me
tornarei um armazém perfeito para minhas
preciosas recordações. E serei conhecido mais
por minha bondade do que por meu
conhecimento. Meu rosto brilhará nos corredores
do tempo enquanto existirem humanos.
– Juramento de Leto,
segundo Harq al-Ada

Quando era bem jovem, Alia Atreides tinha praticado durante


horas o transe prana-bindu, tentando fortalecer sua própria
personalidade e individualidade contra os ataques de todos
aqueles outros. Ela sabia qual era o problema: o mélange não
poderia ser evitado no superpovoamento de um sietch. O
mélange infestava tudo: a comida, a água, o ar, até mesmos os
tecidos nos quais se enterrava para chorar à noite. Desde bem
cedo ela havia reconhecido os usos das orgias no sietch, quando a
tribo bebia a água letal de um verme. Na orgia, os fremen
soltavam as tensões acumuladas de suas próprias recordações
genéticas, e eles negavam essas recordações. Ela viu seus
companheiros temporariamente possuídos durante as orgias.
Para ela, não havia essa liberação, essa negação. Muito antes de
nascer, ela já possuía plena consciência. Com essa consciência,
vinha uma cataclísmica percepção de suas circunstâncias: presa
dentro do útero, estava submetida a um intenso e inescapável
contato com as personas de todos os seus ancestrais e daquelas
identidades transmitidas a lady Jéssica, via morte, por meio do
tau da especiaria. Antes de nascer, Alia contivera cada fração do
conhecimento exigido de uma Reverenda Madre Bene Gesserit –
além de mais, muito mais, de todos aqueles outros.
Naquele conhecimento se imiscuía o reconhecimento de uma
realidade terrível: Abominação. A totalidade desse conhecimento
a enfraqueceu. Os pré-nascidos não escapavam. Ainda assim, ela
havia lutado contra o mais aterrorizante de seus ancestrais,
obtendo uma temporária vitória de Pirro que havia durado por
toda a sua infância. Ela havia provado de uma personalidade
particular, mas essa não tinha imunidade contra eventuais
invasões daqueles que viviam suas vidas refletidas por meio dela.
Assim como eu serei um dia, ela pensou. Essa ideia veio com um
calafrio que a percorreu de cima a baixo. Perambular e se
dissimular na vida de uma criança, nascida de seu ventre,
imiscuindo-se, apoderando-se de sua consciência para
acrescentar uma medida de experiência.
O medo rondava sua infância. Persistiu até a puberdade. Ela o
havia combatido sem jamais pedir ajuda. Quem iria entender a
ajuda que ela precisava receber? Não sua mãe, que jamais poderia
de fato dissipar o espectro do julgamento Bene Gesserit: os pré-
nascidos eram Abominações.
Chegara aquela noite em que seu irmão fora para o deserto e lá
chegara sozinho e pelos próprios pés em busca da morte,
entregando-se a Shai-hulud como se espera que façam os fremen
cegos. No mês seguinte, Alia se casara com o mestre de armas de
Paul, Duncan Idaho, um Mentat ressuscitado graças às artes dos
Tleilaxu. Sua mãe voltara para Caladan. Os gêmeos de Paul
estavam sob os cuidados legais de Alia.
E ela controlava a Regência.
As pressões da responsabilidade haviam afastado os temores e
ela se abrira amplamente às vidas interiores, exigindo que a
aconselhassem, mergulhando no transe da especiaria em busca
de visões norteadoras.
A crise se deu num dia como muitos outros, no mês de
primavera de Laab, uma manhã clara no Forte de Muad’Dib, que
recebia um vento frio soprado do polo. Alia ainda estava usando
amarelo do luto, a cor do sol estéril. Cada vez mais, nas últimas
semanas, ela vinha negando a voz interior de sua mãe, que tendia
a ser sarcástica a respeito dos preparativos para os próximos
Dias Santos, a serem celebrados basicamente no Templo.
A Jéssica que habitava sua percepção interior se desfazia, se
desfazia... afundando enfim na anônima exigência de que Alia
faria melhor se se ocupasse em melhorar a Lei Atreides. Novas
vidas começaram a clamar por seu próprio momento de
consciência. Alia sentiu que tinha rompido o lacre de um poço
sem fundo, e rostos brotavam dele como uma nuvem de
gafanhotos, até que por fim ela acabou focando a atenção em um
que era como um animal selvagem: o barão Harkonnen. Presa de
cólera e terror, ela explodira contra todo aquele clamor interno,
conquistando aos gritos um silêncio provisório.
Nessa manhã, Alia realizou sua caminhada antes do desjejum
através do jardim suspenso na Torre. Em nova tentativa de
vencer a batalha íntima, ela tentou centrar a totalidade de sua
consciência na advertência de Choda aos zen-sunitas:
“Abandonando a escada, pode-se cair para cima!”
Mas a luminosidade da manhã espalhando-se pelas escarpas
da Muralha-Escudo distraía continuamente sua atenção.
Plantações da resistente fibrograma recobriam os caminhos do
jardim. Quando desviou o olhar da Muralha-Escudo, ela viu
orvalho na grama, a colheita de toda a umidade que tinha passado
por lá durante a noite. Refletia sua própria passagem como se
fosse uma multidão.
Aquela multidão a deixava com vertigens. Cada reflexo trazia a
imagem de cada uma das faces da multidão que habitava o íntimo
de Alia.
Ela tentou concentrar seus pensamentos no que a grama
representava. A presença de orvalho em abundância mostrava
quanto a transformação ecológica havia progredido em Arrakis.
O clima nessas latitudes setentrionais estava se tornando mais
quente; o dióxido de carbono atmosférico estava aumentando. Ela
se lembrou de quantos novos hectares seriam destinados a novas
áreas verdes no ano vindouro – e eram necessários 37 mil pés
cúbicos de água para irrigar somente um hectare.
Apesar de todas as tentativas de se ocupar com ideias triviais,
ela não conseguia afastar o cerco que lhe faziam internamente
todos aqueles outros, rodeando-a como tubarões.
Alia colocou as mãos na testa e apertou.
No dia anterior, ao pôr do sol, seus guardas no templo lhe
haviam trazido um prisioneiro para que o julgasse. Era um tal
Essas Paymon, um homem pequeno e moreno ostensivamente a
serviço de uma casa menor, os Nebiros, que negociavam artefatos
sagrados e pequenos artigos manufaturados para decoração. Na
realidade, Paymon era reconhecidamente um espião da choam,
cuja tarefa consistia em avaliar a safra anual da especiaria. Alia
estivera a ponto de enviá-lo para os calabouços quando ele
protestou em alto e bom som contra “a injustiça dos Atreides”.
Isso poderia ter-lhe custado uma sentença de morte imediata no
tripé de enforcamento, mas Alia ficara surpresa com a audácia do
homem. Ela havia se pronunciado com severidade, instalada em
seu Trono do Julgamento, tentando intimidá-lo para que ele
revelasse mais do que já tinha dito aos seus inquisidores.
– Por que nossas safras de especiaria são tão interessantes
para o Consórcio Honnête? – ela quisera saber. – Diga-nos e talvez
poupemos sua vida.
– Apenas colho aquilo para o que já existe mercado –
respondera Paymon. – Não sei mais nada do que é feito com o que
colho.
– E você interfere em nossos planos reais em nome desse lucro
pífio? – Alia indagara.
– A realeza nunca leva em conta que também podemos ter
nossos planos – ele rebatera.
Cativada pela audácia e pelo desespero do homem, Alia
questionara:
– Essas Paymon, você quer trabalhar para mim?
Ouvindo isso, um sorriso branqueara seu rosto moreno e ele
retrucara:
– A senhora estava para me destruir totalmente sem nem
piscar. Qual é o novo valor que eu tenho e que de repente a faz
pensar em negociar em cima dele?
– Você tem um valor prático e simples – ela explicara. – Você é
audacioso e está disponível para compra pelo lance mais alto. Eu
posso pagar mais do que qualquer outro em todo o Império.
Diante dessas palavras, ele citara a soma admirável que exigia
por seus serviços, mas Alia rira e, como contraproposta,
apresentara uma cifra que lhe parecera mais razoável e que, sem
sombra de dúvida, era muito mais do que ele jamais teria recebido
na vida. E ela ainda acrescentara:
– E, naturalmente, vai no pacote a dádiva de você manter sua
vida... o que, posso imaginar, deve ser de um valor incalculável
para você.
– Uma barganha! – Paymon exclamara e, a um sinal de Alia, fora
conduzido para longe dali por Ziarenko Javid, seu sacerdotal
Mestre de Compromissos.
Menos de uma hora mais tarde, quando Alia estava se
preparando para sair do Salão de Julgamentos, Javid entrara às
pressas para reportar que Paymon fora ouvido recitando um
trecho fatídico da Bíblia Católica de Orange: “Maleficos non
patieris vivere”.
“Tu não sofrerás que uma bruxa viva”, Alia traduzira. Então era
assim que ele demonstrava gratidão! Ele era um daqueles que
tramava contra a vida dela mesma! Num acesso de fúria como
nunca tinha sentido antes, ela ordenara a imediata execução de
Paymon, despachando seu corpo para as destilarias fúnebres do
Templo onde pelo menos a água desse organismo poderia ter
algum valor para os cofres dos sacerdotes.
E, ao longo de toda aquela noite, a face escura de Paymon a
havia assombrado.
Ela tentou todos os truques que conhecia para apagar essa
imagem persistente, acusadora, recitando o Bu Ji, do Livro
Fremen de Kreos: “Nada ocorre! Nada ocorre!”. Mas Paymon a
havia acossado ao longo de toda uma noite cansativa e chegara
com ela ao novo e vertiginoso dia em que ela era capaz de ver que
o rosto dele tinha se unido aos dos reflexos do orvalho, faiscantes
como joias.
Uma guarda a chamou para o desjejum, aparecendo no vão da
porta do telhado atrás de uma sebe baixa de mimosas. Alia
suspirou, percebendo uma pequena escolha entre infernos: o
clamor de sua mente ou o clamor de quem a acompanhava – todas
aquelas vozes despropositadas, mas persistentes em suas
cobranças, ruídos de ampulheta que ela gostaria de silenciar a fio
de espada.
Ignorando essa guarda, Alia contemplou a área do jardim
suspenso até a linha da Muralha-Escudo. Uma bahada tinha
deixado uma larga faixa de detritos de areia, gelo e cascalho que
lembrava um leque cobrindo o solo abrigado daquele domínio. O
delta de areia se espalhava diante de seus olhos, delineado ao sol
da manhã. Ocorreu a Alia que um olho não iniciado poderia
enxergar aquele amplo leque como evidência do fluxo de um rio,
mas não era senão o lugar em que seu irmão tinha estilhaçado a
Muralha-Escudo com os recursos atômicos da Família Atreides,
rasgando um caminho desde o deserto para os vermes da areia
que tinham transportado suas tropas fremen para a obtenção da
chocante vitória sobre seu predecessor imperial, Shaddam IV.
Hoje, havia um largo qanat fluindo com água, no lado extremo da
Muralha-Escudo, para impedir o acesso de vermes da areia
pretendendo invadir o território. Vermes da areia não eram
capazes de atravessar a água a céu aberto: ficavam envenenados.
Se apenas eu tivesse uma barreira dessas dentro da minha
mente, ela pensou.
Essa ideia acentuou a sensação de vertigem de estar separada
da realidade.
Vermes da areia! Vermes da areia!
Sua memória lhe apresentou um desfile de imagens de vermes
da areia: o poderoso Shai-hulud, demiurgo dos fremen, animal
mortífero das profundezas do deserto cujas secreções incluíam a
inestimável especiaria. Como era estranho que esse verme da
areia se desenvolvesse a partir de uma truta da areia, tão
achatada e coriácea, ela pensou. Eram como a pululante multidão
no íntimo de sua consciência. Quando ligadas borda com borda ao
leito rochoso do planeta, as trutas da areia formavam cisternas
vivas que continham a água com a qual seu vetor, o verme da
areia, poderia viver. Alia era capaz de perceber a analogia: alguns
daqueles outros dentro de sua cabeça continham forças
perigosas, capazes de destruí-la.
Novamente, a mulher da guarda chamou-a para o café da
manhã, com um tom de aparente impaciência.
Irritada, Alia se virou e acenou para que ela se afastasse.
A guarda obedeceu, mas a porta do terraço bateu com força.
Ao som daquela pancada, Alia se sentiu aprisionada por tudo
que tinha tentado negar. As outras vidas se acumulavam dentro
dela como uma maré hedionda. Cada uma daquelas vidas
exigentes pressionava sua face contra seus centros de visão, uma
nuvem de fisionomias. Algumas tinham a pele manchada de
sarna, outras eram grossas e cheias de sombras fuliginosas;
algumas bocas pareciam losangos úmidos. A pressão da turba
levava Alia de arrasto em sua correnteza, obrigando-a a flutuar e
então mergulhar dentro dela.
– Não – ela sussurrou –, não, não, não...
Ela poderia ter despencado no chão se não fosse por um banco
que ficava na lateral do caminho e que aceitou o peso de seu corpo
vacilante. Ela tentou se sentar, não conseguiu, e então se
estendeu sobre o açoplás frio, continuando a entoar sua recusa.
A maré continuava crescendo dentro dela.
Ela se sentia sintonizada com a mais mínima mostra de
atenção, ciente dos riscos, mas alerta para cada exclamação
daquelas bocas protegidas que clamavam em seu íntimo. Havia
uma cacofonia de pedidos por sua atenção: “Eu! Eu!” e “Não! Eu!”.
Ela sabia que se prestasse atenção uma só vez que fosse, de
maneira completa, estaria perdida. Contemplar uma única face
dentre toda a multidão de faces e seguir a sua voz seria ficar presa
ao egocentrismo que compartilhava sua existência.
– A presciência faz isso com você – murmurou uma voz.
Ela tapou as orelhas com as mãos, pensando: Não sou
presciente! O transe não funciona comigo!
Mas a voz insistia:
– Poderia funcionar, se você tivesse ajuda.
E ela murmurava:
– Não, não.
Outras vozes se entrelaçavam em sua cabeça:
– Eu, Agamêmnon, seu ancestral, exijo uma audiência!
– Não... não...
E ela espremia as mãos contra as orelhas até que a carne reagiu
com dor.
Uma risadinha lunática em sua cabeça perguntou:
– E o que aconteceu com Ovídio? Simples. Ele é o mesmo que
John Bartlett!
Nesse estado extremo em que ela se encontrava, os nomes não
tinham sentido. Ela queria gritar contra eles e contra todas as
outras vozes, mas não conseguia encontrar sua própria voz.
Sua guarda, enviada de volta ao teto por auxiliares mais
graduadas, enfiou a cabeça mais uma vez no vão da porta, por
trás das mimosas, viu Alia estirada no banco e disse para sua
acompanhante:
– Ahhh, ela está descansando. Você reparou que ela não dormiu
bem na noite passada. É bom para ela fazer a zaha, a sesta da
manhã.
Alia não ouviu a guarda. Sua consciência foi capturada pelas
notas estridentes de um canto:
– Que pássaros contentes somos nós, viva! – e essas vozes
ecoavam dentro de seu crânio. Então ela pensou: Estou ficando
doida. Estou perdendo o juízo.
Seus pés fizeram débeis movimentos para tentar sair do banco.
Ela sentiu que, se pelo menos conseguisse ordenar ao seu corpo
que corresse, poderia escapar. Tinha de escapar, senão alguma
parte daquele tsunami interior iria varrê-la para dentro de um
mar de silêncio, contaminando sua alma para sempre. Mas seu
corpo não obedecia. As forças mais poderosas do universo
imperial obedeciam aos seus menores caprichos, mas seu corpo,
não.
Uma voz interior deu uma risadinha e então ela ouviu:
– De um dado ponto de vista, minha criança, cada incidente da
criação representa uma catástrofe. – O tom era de baixo e vinha
rolando e trombeteando de encontro aos seus olhos. Depois,
houve nova risadinha, como se a voz zombasse de sua própria
declaração. – Minha querida criança, eu vou ajudar você, mas você
tem de me ajudar também.
Contra o crescente clamor de fundo que se avolumava por trás
da voz de baixo, Alia respondeu com dentes que tremiam:
– Quem... quem...
Um rosto se formou no campo de sua consciência. Era
sorridente e tão gordo que poderia ter sido a face de um bebê,
exceto pela cintilante avidez de seus olhos. Ela tentou se
desvencilhar daquela fisionomia, mas só o que conseguiu foi
ampliar sua visão e identificar um corpo ligado àquele rosto. Era
um corpo atarracado, imensamente gordo, vestido num manto
que revelava sutis protuberâncias por baixo do tecido. Era tanta
gordura que tinha necessidade de ser guardada por suspensores
portáteis.
– Veja – trovejou a voz de barítono –, é somente seu avô
materno. Você me conhece. Eu era o barão Vladimir Harkonnen.
– Você... você está morto! – ela disse, engasgada.
– Ora, claro que sim, minha querida! A maioria de nós, dentro
de você, está morta. Mas nenhum dos outros está realmente
querendo ajudar você. Eles não a entendem.
– Vá embora – ela pediu. – Por favor, ah, por favor, vá embora.
– Mas você precisa de ajuda, minha neta – argumentou a voz do
barão.
Como ele parece admirável, ela pensou, assistindo à projeção
da figura do barão em suas pálpebras cerradas.
– Estou disposto a ajudar você – o barão tentou engambelar. –
Os outros aqui só se interessam em combater para capturar toda
a sua consciência. Qualquer um deles se esforçaria para expulsá-
la de seu juízo. Já eu... só quero ter um cantinho para mim.
Novamente, as outras vidas dentro dela ergueram suas vozes
em protesto. A maré começou mais uma vez a ameaçar engolfá-la
e ela ouviu a voz estridente de sua mãe. Então, Alia pensou: Ela
não está morta.
– Calem a boca! – ordenou o barão.
Alia sentiu seus próprios desejos reforçando essa ordem,
tornando-a perceptível através de toda a extensão de sua
consciência.
Um silêncio interior a encharcou como um banho frio e ela
sentiu seu coração martelando um pouco mais devagar, voltando
lentamente ao ritmo normal. Tranquilizadora, a voz do barão se
intrometeu:
– Viu? Juntos, somos invencíveis. Você me ajuda e eu ajudo
você.
– O que... o que você quer? – ela murmurou.
Uma expressão pensativa ocupou o rosto rechonchudo nas
pálpebras de Alia.
– Ahhh, minha neta querida – ele disse –, só quero alguns
prazeres simples. Permita-me de vez em quando um momento de
contato com seus sentidos. Ninguém mais precisa saber. Permita-
me sentir algum pequeno recesso de sua vida quando, por
exemplo, você estiver nos braços de seu amante. Não é um preço
pequeno de se cobrar?
– S-sim.
– Que bom, que bom! – o barão exultou. – Em troca, minha neta
querida, posso servi-la de várias maneiras. Posso aconselhá-la,
ajudá-la com meus conselhos. Você será invencível, dentro e fora.
Será capaz de derrotar todas as formas de oposição. A História
esquecerá seu irmão e cultuará você. O futuro será seu.
– Você... não... deixará... que... os outros tomem o poder?
– Eles não conseguem nos enfrentar! Isolados, nós podemos ser
vencidos, mas juntos nós comandamos. Vou demonstrar. Ouça.
E o barão ficou em silêncio, aboliu sua imagem, sua presença
interior. Nenhuma recordação, nenhuma voz de outras vidas se
intrometeu.
Alia se permitiu um suspiro trêmulo.
Acompanhando esse suspiro surgiu um pensamento que se
forçou a ser ouvido no campo de sua consciência, como se fosse
algo dela mesma, embora captasse vozes mudas por trás dele.
O velho barão era mau. Ele matou o seu pai. Ele teria matado
você e Paul. Ele tentou, mas fracassou.
A voz do barão se pronunciou, sem rosto:
– Claro que eu teria matado você. Você não se meteu no meu
caminho? Mas essa discussão está encerrada. Você venceu,
criança! Você é a nova verdade.
Ela se percebeu aquiescendo e seu rosto raspou contra a
superfície áspera do banco.
As palavras dele foram razoáveis, Alia pensou. Um preceito
Bene Gesserit reforçava o caráter razoável das palavras dele: “O
propósito de uma discussão é mudar a natureza da verdade”.
Sim... era desse jeito que as Bene Gesserit teriam feito.
– Exatamente – disse o barão. – E eu estou morto enquanto
você está viva. Tenho somente uma existência frágil. Sou apenas
um mero eu-recordação dentro de você. Estou às suas ordens. E
como é pouco o que peço em troca pela profundidade do
aconselhamento que estou em condições de proporcionar.
– E o que você me aconselha a fazer agora? – ela perguntou
como teste.
– Você está preocupada com o julgamento que proferiu ontem
à noite – ele disse. – Você está se perguntando se as palavras de
Paymon foram reproduzidas fielmente no relato que lhe foi feito.
Talvez Javid tenha visto uma ameaça em Paymon ao seu próprio
cargo de confiança. Não é essa a dúvida que a está atormentando?
– S-sim.
– E sua dúvida se baseia numa observação apurada, não é isso?
Javid se comporta com uma intimidade cada vez maior em
relação a você. Até mesmo Duncan já reparou, não foi?
– Você sabe que sim.
– Pois muito bem. Pegue Javid como seu amante e...
– Não!
– Você se preocupa com Duncan? Mas seu marido é um Mentat
místico. Ele não pode ser tocado nem prejudicado por atividades
relativas à carne. Você já não sentiu algumas vezes como ele é
distante de você?
– M-mas ele...
– A parte Mentat de Duncan irá compreender se algum dia ele
tiver necessidade de conhecer o dispositivo que você empregou
para destruir Javid.
– Destruir...
– Certamente! Instrumentos perigosos podem ser usados, mas
devem ser descartados assim que se tornam perigosos demais...
– Então... por que eu deveria... quer dizer...
– Ah... preciosa bobinha! Por causa do valor contido na lição.
– Não entendo.
– Os valores, querida netinha, dependem de serem aceitos para
terem sucesso. A obediência de Javid deve ser incondicional, a
aceitação de sua autoridade deve ser absoluta, e a...
– Continuo sem entender a moralidade dessa lição...
– Não seja obtusa, minha neta! A moralidade sempre deve se
basear no lado prático. “Dê a Cesar” e toda aquela bobagem. Uma
vitória é inútil a menos que reflita seus mais profundos desejos.
Não é verdade que você tem admirado a masculinidade de Javid?
Alia engoliu em seco, odiando ter de admiti-lo, mas forçada a
fazê-lo dada sua total nudez perante o observador interior.
– Sim.
– Bom! – e como soou jovial essa palavra em sua cabeça. –
Agora, estamos começando a compreender um ao outro. Quando
você estiver com ele em sua cama, e ele estiver completamente
desarmado, convencido de que você está nas garras dele, você irá
perguntar sobre Paymon. Faça-o rindo, como uma coisa muito
divertida entre vocês dois. E quando ele confessar que mentiu,
você enterrará uma dagacris entre as costelas dele. Ahhh, o fio de
sangue só fará acrescentar sua satis...
– Não – ela murmurou, com a boca seca de horror. – Não... não...
não...
– Então eu o farei por você – o barão sugeriu. – Isso deve ser
feito. Você admite isso. Se você apenas montar a situação, poderei
assumir um temporário domínio sobre...
– Não!
– Seu temor é tão transparente, minha neta. Meu domínio de
seus sentidos não pode ser senão temporário. Agora, há outros
que poderiam imitá-la com tamanha perfeição que... Mas você
sabe disso também. Comigo, ahhh, as pessoas iriam detectar a
minha presença imediatamente. Você conhece a lei fremen para
os que estão possuídos. Seria executada sem hesitação. Sim, até
você. E você sabe que eu não quero que isso aconteça. Eu cuido de
Javid por você e, assim que tudo estiver terminado, saio de cena.
Você só precisa...
– E como esse pode ser um bom conselho?
– Ele livra você de um instrumento perigoso. E, minha criança,
dá início a um relacionamento operacional entre nós dois, um
relacionamento que apenas lhe ensinará a arte dos próximos
julgamentos que...
– Ensinará?
– Naturalmente!
Alia cobriu os olhos com as mãos, tentando pensar, sabendo
que qualquer ideia poderia ser de conhecimento dessa presença
dentro dela, que uma ideia poderia se originar com essa presença
e ser considerada como produto dela.
– Você está preocupada sem necessidade – disse o barão
lisonjeiramente. – O camarada Paymon, bem, era...
– O que eu fiz foi errado! Eu estava cansada e agi
impulsivamente. Eu deveria ter buscado confirmação do...
– Você agiu certo! Seus julgamentos não podem ser baseados
em abstrações tão idiotas quanto a noção de igualdade daquele
Atreides. O que a manteve acordada foi isso, não a morte de
Paymon. Você tomou uma boa decisão! Ele era outro instrumento
perigoso. Você agiu a fim de manter a ordem em sua sociedade.
Agora existe um bom motivo para julgamentos, não essa
bobagem de justiça! Não existe isso de uma justiça igualitária, em
lugar nenhum. Perturba-se a ordem social quando se tenta
alcançar um equilíbrio tão falso.
Alia sentiu prazer com essa defesa de seu julgamento contra
Paymon, mas estava chocada com o conceito amoral por trás da
argumentação. “Justiça igualitária foi um Atreides... foi...” Ela
tirou as mãos de sobre os olhos, mas continuou com eles
fechados.
– Todos os seus juízes clericais deveriam ser advertidos a
respeito desse erro – afirmou o barão. – As decisões devem ser
avaliadas somente em termos de seu mérito para manter a
sociedade em ordem. Incontáveis civilizações passadas
naufragaram nos escolhos da justiça igualitária. Essa tolice
destrói as hierarquias naturais, que são muito mais importantes.
Qualquer indivíduo tem significado somente em sua relação com
a sociedade como um todo. A menos que essa sociedade seja
ordenada em passos lógicos, ninguém pode encontrar seu lugar
dentro dela, nem os mais baixos, nem os mais elevados. Ora, ora,
minha neta! Você deve ser a mãe severa de seu povo. É seu dever
manter a ordem.
– Tudo que Paul fez foi...
– Seu irmão está morto, um fracasso!
– Você também.
– É verdade... mas comigo foi um acidente além dos meus
desígnios. Muito bem; agora, vamos cuidar da questão desse
Javid do jeito como mostrei a você.
Ela sentiu o corpo ficar quente à ideia, e disse rapidamente:
– Preciso pensar a respeito. – E pensou: Se for feito desse jeito,
será somente para colocar Javid no lugar que lhe corresponde.
Não é preciso matá-lo para isso. E o bobo pode simplesmente se
entregar... na minha cama.
– Com quem está falando, milady? – uma voz indagou.
Durante um momento de confusão, Alia pensou que essa outra
invasão vinha das clamorosas multidões em seu íntimo, mas ao
reconhecer a voz abriu os olhos e viu Ziarenka Valefor, chefa de
sua guarda de amazonas, em pé ao lado do banco, com um vinco
de preocupação em sua testa enrugada de traços fremen
castigados pelo tempo.
– Falo com minhas vozes interiores – Alia respondeu,
endireitando-se no assento do banco. Sentia-se revigorada,
rejuvenescida com o silêncio daquele tumulto de vozes que a
inquietava e distraía.
– Suas vozes interiores, milady. Sim. – Os olhos de Ziarenka
faiscaram ao ouvir essa informação. Todos sabiam que a Sagrada
Alia contava com recursos interiores indisponíveis a qualquer
outra pessoa.
– Leve Javid aos meus aposentos – Alia disse. – Tenho um
assunto muito grave para discutir com ele.
– Aos seus aposentos, milady?
– Sim! Aos meus aposentos particulares.
– Como ordenar, milady. – A guarda voltou-se para obedecer.
– Um momento – Alia disse. – Mestre Idaho já foi para Sietch
Tabr?
– Sim, milady, ele partiu antes do amanhecer, como a senhora
havia instruído. Deseja que eu mande...
– Não, eu mesma cuidarei disso. E, Zia, ninguém deve saber que
Javid está sendo levado até onde estou. Você mesma cuida disso.
Trata-se de uma questão muito séria.
A guarda tocou a dagacris em sua cintura.
– Milady, alguma ameaça a...
– Sim, existe uma ameaça e Javid pode ser a peça-chave.
– Ohhh, milady, talvez eu não deva levá-lo...
– Zia! Você me acha incapaz de lidar com esse sujeito?
Um sorriso lupino raspou os lábios da guarda.
– Perdoe-me, milady. Eu o levarei aos seus aposentos privados
imediatamente, mas... com sua permissão, montarei guarda do
lado de fora de sua porta.
– Só você – Alia ordenou.
– Sim, milady. Irei agora mesmo.
Alia consentiu com seus atos enquanto observava Ziarenka
recuando. Javid não era benquisto entre as guardas, portanto.
Outra nódoa contra ele. Mas ainda era valioso, muito valioso. Ele
era a chave dela para Jacurutu e com esse lugar, bem...
– Talvez você estivesse certo, barão – ela murmurou.
– Viu?! – elogiou a voz interior. – Ahhh, este será um serviço
agradável de fazer por você, minha criança, e é só o começo...
Estas são as ilusões da História popular que uma
religião bem-sucedida deve promover: os homens
maus nunca prosperam; somente os corajosos
merecem o que é justo; a honestidade é a melhor
política; os atos falam mais alto do que as
palavras; a virtude sempre triunfa; uma boa ação
é sua própria recompensa; qualquer ser humano
ruim pode ser transformado; talismãs religiosos
protegem quem os usa da possessão pelo
demônio; somente as mulheres compreendem os
antigos mistérios; os ricos estão condenados a ser
infelizes...
– Do Manual de instruções: Missionaria Protectora

– Eu me chamo Muriz – disse o fremen idoso.


Ele estava sentado no interior de uma caverna na rocha, à luz
de uma lamparina de especiaria cuja luz irregular revelava
paredes úmidas e buracos escuros, que eram passagens saindo
desse lugar. O som de água gotejando podia ser ouvido dentro de
uma dessas passagens e, embora o som da água fosse essencial ao
paraíso fremen, os seis homens atados diante de Muriz não
sentiam prazer com aquele gotejar ritmado. O odor dentro
daquela câmara lembrava uma destilaria fúnebre.
Um rapazinho de seus 14 anos-padrão, talvez, surgiu de uma
das passagens e se colocou ao lado esquerdo de Muriz. Uma
dagacris desembainhada refletiu o âmbar pálido da lamparina de
especiaria quando o jovem ergueu a lâmina e a apontou
brevemente na direção de cada um dos prisioneiros.
Com um gesto na direção do jovem, Muriz disse:
– Este é meu filho, Assan Tariq, que está prestes a passar por
seu teste para ser aceito como adulto.
Muriz pigarreou e olhou uma vez para cada um dos seis cativos
que estavam sentados num semicírculo irregular à sua frente,
bem amarrados por cordas feitas de fibra de especiaria que
mantinham as pernas dos homens cruzadas e suas mãos, presas
às costas. O trabalho das cordas terminava num laço frouxo em
torno do pescoço de cada um dos homens. O trajestilador de cada
um tinha sido rasgado na altura da garganta.
Os homens amarrados devolveram o olhar a Muriz sem nem
piscar. Dois deles estavam usando trajes folgados, exclusivos, que
os distinguiam como ricos residentes de alguma cidade arrakina.
A pele desses dois era mais lisa e mais leve do que a de seus
companheiros, cujos traços ressequidos e estruturas ossudas
identificavam-nos como nativos do deserto.
Muriz lembrava os moradores do deserto, mas seus olhos eram
mais afundados, dando a impressão de serem buracos sem fundo
e sem branco, que nem mesmo o fulgor da lamparina de
especiaria era capaz de tocar. Seu filho parecia uma cópia
malformada do pai, com um rosto tão simples que não era capaz
de ocultar o tumulto que se desenrolava em seu interior.
– Entre os Excluídos temos um teste especial antes de ser
aceito como adulto – disse Muriz. – Um dia, meu filho será um juiz
em Shuloch. Devemos saber que ele é capaz de agir como se
espera que faça. Nossos juízes não podem se esquecer de
Jacurutu e de nosso dia de desespero. Kralizec, a Batalha do
Tufão, vive em nossos corações. – Tudo isso fora dito com a
monótona entonação de um ritual.
Um dos habitantes da cidade, com seus traços mais suaves,
bem diante de Muriz, mexeu-se um pouco em seu lugar e então
disse:
– Você está errado em nos ameaçar e amarrar, mantendo-nos
cativos. Viemos pacificamente em umma.
Muriz aquiesceu.
– Vocês vieram em busca de um despertar religioso pessoal?
Que bom. Terão esse despertar.
– Se nós... – começou o homem de rosto suave.
Ao lado, um fremen do deserto, de tez mais escura,
interrompeu com brusquidão:
– Cale a boca, seu idiota! Eles são os ladrões de água. Eles são
justamente aqueles que pensávamos ter liquidado.
– Aquela velha história – murmurou o cativo de rosto suave.
– Jacurutu é mais do que uma história – Muriz afirmou. Mais
uma vez, ele gesticulou para o filho. – Já lhes apresentei Assan
Tariq. Sou arifa neste lugar, seu único juiz. Meu filho também será
treinado para detectar demônios. O modo antigo é melhor.
– Foi por isso que nos embrenhamos tão fundo no deserto –
argumentou o homem de rosto suave, em protesto. – Escolhemos
o modo antigo, perambulando em...
– Com guias pagos – retrucou Muriz, gesticulando para os
cativos morenos. – Você compraria sua entrada no Céu? – Muriz
olhou de esguelha para o filho. – Assan, você está preparado?
– Refleti bastante sobre aquela noite em que os homens vieram
e mataram nosso povo – Assan respondeu. A voz dele emitia um
esforço vacilante. – Vocês nos devem água.
– Seu pai lhe dá seis deles – Muriz disse. – A água deles é nossa.
As sombras deles são suas, serão suas guardiãs para sempre. As
sombras deles irão adverti-lo da presença de demônios. Serão
suas escravas quando você cruzar para o alam al-mythal. O que
diz, meu filho?
– Agradeço ao meu pai – Assan disse. Então deu um curto
passo para a frente. – Aceito a passagem para a vida adulta entre
os Excluídos. Esta água é nossa água.
Quando terminou de falar, o jovem atravessou o espaço até
onde estavam os cativos. Começando pela esquerda, ele pegou o
homem pelo cabelo e enterrou sua dagacris de baixo para cima
pelo queixo, até o cérebro. O gesto foi realizado com habilidade,
de modo que derramou um mínimo de sangue. Somente o
morador da cidade de traços delicados protestou, berrando
quando o jovem o agarrou pelo cabelo. Os outros cuspiram em
Assan Tariq ao modo antigo, com o que diziam: “Veja o pouco
valor que dou à minha água quando é bebida por animais!”.
Quando estava tudo concluído, Muriz bateu palmas somente
uma vez. Vieram alguns assistentes que começaram a retirar os
corpos, levando-os para a destilaria fúnebre onde poderiam ser
espoliados de sua água.
Muriz se levantou, olhou para o filho que continuava em pé,
ofegando, observando os assistentes em sua faina de remover os
corpos.
– Agora você é um homem – Muriz sentenciou. – A água de
nossos inimigos irá alimentar escravos. E, meu filho...
Assan Tariq se virou para lançar um olhar vigilante e selvagem
sobre o pai. Os lábios do jovem estavam retesados em um sorriso
controlado.
– O Pregador não precisa saber disto – completou Muriz.
– Eu entendo, pai.
– Você agiu bem – declarou Muriz. – Os que acabam chegando a
Shuloch não devem sobreviver.
– Como queira, pai.
– Você foi incumbido de deveres importantes – Muriz
comentou. – Estou orgulhoso de você.
O humano sofisticado pode se tornar primitivo. O
que isso realmente quer dizer é que o modo de
vida humano muda. Os antigos valores mudam,
tornam-se ligados à paisagem com seus animais e
plantas. Essa nova existência requer um
conhecimento operacional desses eventos
multifacetados e entrecruzados aos quais
normalmente nos referimos como natureza. Ela
requer uma medida de respeito pelo poder
inercial no âmago desses sistemas naturais.
Quando um humano adquire esse conhecimento
operacional e respeito, isso se chama “ser
primitivo”. O inverso, naturalmente, é igualmente
verdadeiro: o primitivo pode se tornar
sofisticado, mas não sem aceitar danos
psicológicos apavorantes.
– Comentário de Leto, segundo Harq al-Ada

– E como podemos ter certeza? – indagou Ghanima. – Isso é


muito perigoso.
– Já testamos antes – Leto argumentou.
– Pode não ser a mesma coisa desta vez. E se...
– É o único caminho aberto para nós – disse Leto. – Você
concorda que não podemos seguir pelo caminho da especiaria.
Ghanima suspirou. Ela não gostava desse bate-rebate de
palavras, mas sabia da necessidade que pressionava seu irmão.
Ela também sabia da temível fonte de sua relutância. Bastava
olharem para Alia para saber dos perigos desse mundo interior.
– Bem? – perguntou Leto.
Ela suspirou de novo.
Estavam sentados no chão, de pernas cruzadas, em um de seus
lugares privados – uma estreita abertura que saía da caverna no
penhasco onde muitas vezes seu pai e sua mãe tinham
contemplado o pôr do sol no bled. Já haviam se passado duas
horas do horário de sua refeição noturna, um momento em que os
gêmeos deveriam exercitar seu corpo e sua mente. Eles tinham
preferido flexionar a mente.
– Vou tentar sozinho se você se recusar a ajudar – insistiu Leto.
Ghanima desviou o olhar para longe dele e mirou as cortinas
negras de vedar umidade que protegiam essa abertura na rocha.
Leto continuou com o olhar perdido sobre as areias do deserto.
Os dois vinham conversando em um idioma tão antigo que até
mesmo seu nome era desconhecido atualmente. Essa era uma
língua que conferia privacidade a seus pensamentos, assim
impenetráveis a qualquer outro humano. Até mesmo Alia, que
evitava as complexidades de seu próprio mundo interior, não
tinha os elos mentais que lhe permitiriam captar não mais do que
uma palavra ou outra.
Leto inspirou fundo, sentindo o inconfundível odor de pele de
animal que forrava aquela caverna-sietch dos fremen e persistia
nessa alcova sem vento. O débil burburinho do sietch e seu calor
úmido não chegavam ali, o que era um alívio para ambos.
– Concordo que precisamos de orientação – Ghanima
concedeu. – Mas se nós...
– Ghani! Precisamos de mais do que orientação. Precisamos de
proteção.
– Talvez não haja proteção. – Ela encarou o irmão, olhando
diretamente nos olhos dele com a paciente vigilância de um
predador. Os olhos dele desmentiam a placidez de seus traços.
– Devemos escapar à possessão – Leto afirmou
categoricamente. Ele usou o infinitivo especial da língua antiga,
uma forma estritamente neutra em termos de voz e tempo verbal,
mas profundamente ativa em suas implicações.
Ghanima interpretou corretamente o argumento dele.
– Mohw’pwium d’mi hish pash moh’m ka – ela entoou. A
captura da minha alma é a captura de mil almas.
– Muito mais do que isso – ele objetou.
– Mesmo sabendo dos perigos, você insiste. – Ela não estava
interrogando, estava afirmando.
– Wabun ‘k wabunat! – ele disse. Erguendo, tu ergues!
Ele achava que sua escolha era uma necessidade óbvia. Fazer
aquilo era melhor que fosse feito ativamente. Deviam entretecer o
passado no presente e permitir que isso se desenrolasse em seu
futuro.
– Muriyat – ela concordou, em voz baixa. Deve ser feito
amorosamente.
– É claro. – E, com um gesto de sua mão, demonstrou sua total
aceitação. – Então poderemos dar conselhos como nossos pais
faziam.
Ghanima guardou silêncio, tentando engolir e superar aquele
caroço incômodo em sua garganta. Instintivamente, desviou os
olhos para o lado sul, na direção do grande erg aberto que estava
mostrando um indistinto padrão cinzento de dunas nos últimos
resquícios da luz do dia. Naquela direção, o pai dela tinha seguido
em sua derradeira caminhada para os confins do deserto.
Leto desceu os olhos pela borda do penhasco até a zona verde
do oásis do sietch. Lá embaixo já tinha escurecido, mas ele
conhecia todas as formas e todas as cores: botões cor de cobre,
de ouro, vermelhos, amarelos, cor de ferrugem e castanho-
avermelhados se espalhavam até os limites de pedra que
identificavam a área coberta pelos plantios irrigados pelo qanat.
Além desses marcos de pedra, estendia-se uma faixa fedorenta de
vida morta arrakina, assassinada pelas plantas estrangeiras e
pelo excesso de água, formando agora uma barreira contra o
deserto.
Então, Ghanima disse:
– Estou pronta. Vamos começar.
– Sim, que se dane tudo! – Ele estendeu a mão, tocou o braço da
irmã para atenuar a explosão e então acrescentou: – Por favor,
Ghani... Cante aquela música. Fica mais fácil para mim.
Ghanima se aproximou dele, rodeando-lhe a cintura com o
braço esquerdo. Inspirando duas vezes profundamente,
pigarreou e começou a cantar com uma voz clara e límpida as
palavras que tantas vezes sua mãe havia entoado para seu pai:

Aqui eu redimo o juramento que tu fizeste;


Vertendo água fresca sobre ti.
A vida prevalecerá neste lugar sem vento,
Meu amor, tu viverás num palácio,
Teus inimigos tombarão no nada.
Andaremos juntos pelo caminho
Que o amor desenhou para ti.
Certamente faço bem em mostrar o caminho
Pois meu amor é o teu palácio...

E a voz dela se fundiu ao silêncio do deserto que um murmúrio


bastaria para despojar, e Leto se sentiu afundando, afundando...
tornando-se seu pai cujas lembranças se difundiam como uma
sobrecapa nos genes de seu passado imediato.
Por este breve momento, devo ser Paul, ele disse a si mesmo.
Esta não é Ghani ao meu lado, mas, sim, minha amada Chani,
cujos sábios conselhos nos salvaram muitas e muitas vezes.
Por seu lado, Ghanima tinha assumido a memória-persona de
sua mãe com uma assustadora facilidade, como sabia que
aconteceria. Como era mais fácil para a mulher! E muito mais
perigoso.
Num tom de voz que subitamente se tornou incisivo, Ghanima
exclamou:
– Olhe ali, meu amor! – A primeira lua tinha subido e, em
contraste com sua luz fria, viram o arco de um fogo de cor
alaranjada caindo no espaço. O transporte que tinha trazido lady
Jéssica, agora carregado com especiaria, estava voltando a seu
aglomerado-mãe em órbita.
As mais intensas lembranças invadiram Leto, então, com
recordações nítidas como o repicar de sinos. Por um fugaz
instante, ele se tornara outro Leto: o duque de Jéssica. A
necessidade empurrou essas lembranças para o lado, mas não
antes que ele pudesse sentir o aguilhão do amor e da dor.
Devo ser Paul, ele se lembrou.
A transformação se impôs a ele com uma assustadora
dualidade, como se Leto fosse uma tela escura na qual seu pai era
projetado. Ele sentia ao mesmo tempo sua própria carne e a de
seu pai, e as diferenças intermitentes ameaçavam dominá-lo.
– Ajude-me, pai – ele murmurou.
A perturbação intermitente passou e agora havia outra
impressão se impondo à sua consciência, enquanto sua outra
identidade como Leto se punha de lado no papel de observador.
– Minha última visão ainda não se realizou – ele proferiu, e a voz
era de Paul. Ele se voltou para Ghanima. – Você sabe o que eu vi.
Ela encostou a mão direita no rosto dele.
– Você foi caminhando para o deserto para morrer, meu amor?
Foi isso que você fez?
– Pode ser que eu tenha feito isso, mas aquela visão... Não seria
ela razão suficiente para continuar vivo?
– Mas cego? – ela indagou.
– Mesmo assim.
– Aonde você poderia ir?
Ele inspirou fundo, e seu corpo estremeceu.
– Jacurutu.
– Meu querido! – Lágrimas começaram a escorrer por seu
rosto.
– Muad’Dib, o herói, deve ser destruído completamente – ele
explicou. – Senão, esta criança não conseguirá nos retirar do caos.
– O Caminho Dourado – ela sussurrou. – Não é uma boa visão.
– É a única visão possível.
– Alia fracassou, então...
– Totalmente. Você viu o registro disso.
– Sua mãe voltou tarde demais. – Ela aquiesceu, e era a sábia
expressão de Chani no rosto infantil de Ghanima. – Não haveria
possibilidade de existir outra visão? Talvez se...
– Não, querida. Ainda não. Esta criança ainda não pode
perscrutar o futuro e retornar a salvo.
Mais uma vez uma respiração tremida atravessou o corpo de
Leto e o Leto observador sentiu o profundo anseio de seu pai por
viver mais uma vez numa carne viva, tomar decisões vitais e... Que
necessidade desesperada de desfazer erros passados!
– Pai! – Leto chamou, e era como se gritasse em eco dentro do
próprio crânio.
Foi um intenso ato de vontade que Leto registrou então. O
lento e apegado recuo da presença interna de seu pai, a libertação
de seus músculos e órgãos dos sentidos.
– Querido – murmurou a voz de Chani ao lado dele, e o recuo se
desacelerou. – O que está acontecendo?
– Não vá ainda – Leto disse e foi com sua própria voz, rouca e
incerta, mas, ainda assim, a sua própria voz. E acrescentou: –
Chani, você tem de nos dizer: como é que podemos evitar... o que
aconteceu com Alia?
Mas foi o Paul-interior que respondeu a ele, usando palavras
que lhe chegaram ao ouvido interior, entrecortadas e
distanciadas por longas pausas: “Não há certeza. Você... viu... o
que... quase... aconteceu... comigo.”
– Mas Alia...
– Ela está nas garras daquele maldito barão!
Leto sentiu sua garganta ardendo de tão seca:
– Será que ele... que eu...
– Ele está em você... mas... eu... nós não podemos... às vezes...
sentimos... um o outro... mas você...
– Você não consegue ler meus pensamentos? – Leto perguntou.
– Você saberia se ele...
– Às vezes eu consigo sentir seus pensamentos... mas eu... nós
só vivemos através... dos reflexos... de sua própria consciência. É a
sua memória que nos cria. O perigo... é uma memória precisa. E...
aqueles de nós... aqueles de nós que amaram o poder... e o
reuniram em... a qualquer preço... esses podem ser... mais
precisos.
– Mais fortes? – Leto murmurou.
– Mais fortes.
– Eu conheço sua visão – Leto revelou. – Em vez de deixar que
ele se apodere de mim, eu me torno você.
– Isso não!
Leto assentiu para si mesmo, sentindo a enorme força de
vontade que seu pai tinha adquirido para se afastar,
reconhecendo as consequências do fracasso. Qualquer forma de
possessão reduzia o possuído a uma Abominação. Essa
constatação lhe renovou a sensação de força e ele sentiu seu
próprio corpo com uma exatidão extraordinária e uma percepção
profundamente intensa de erros passados; tanto os seus como os
de seus ancestrais. Eram as incertezas que enfraqueciam, isso ele
enxergava agora. Por um momento, a tentação entrou em guerra
com o medo em seu íntimo. A carne possuía a capacidade de
transformar mélange numa visão do futuro. Com a especiaria, ele
era capaz de respirar o futuro, de rasgar os véus do Tempo. Ele
achou difícil se desvencilhar da tentação. Apertou as mãos e
afundou no transe de consciência prana-bindu. Sua carne negava
a tentação. Sua carne estava investida do profundo conhecimento
aprendido em seu sangue por meio de Paul. Aqueles que
buscavam o futuro esperavam vencer a aposta na corrida com o
amanhã. Em vez disso, eles se achavam presos na armadilha de
uma existência em que conheciam cada lamento angustiado, cada
batimento de coração aflito. A visão final de Paul tinha mostrado
a precária saída dessa armadilha e Leto sabia, agora, que não lhe
restava nenhuma outra escolha senão seguir por esse caminho.
– A alegria de viver, sua beleza, tudo está contido no fato de que
a vida pode nos surpreender – ele disse.
Uma voz suave sussurrou no ouvido dele:
– Sempre soube dessa beleza.
Leto virou a cabeça e fixou o olhar no rosto de Ghanima, cujos
olhos faiscavam à luz do luar. Ele viu Chani, que o contemplava,
por sua vez.
– Mãe, você deve se retirar – ele advertiu.
– Ahhh, a tentação – ela comentou, e lhe deu um beijo.
Ele a repeliu.
– Você tomaria a vida de sua filha? – ele indagou em tom
imperioso.
– É tão fácil... tão estupidamente fácil – ela retrucou.
Sentindo o pânico se apossando dele, Leto se lembrou do
esforço que a persona interior de seu pai tinha precisado fazer
para abandonar a carne. Estaria então Ghanima perdida naquele
mundo de observadores em que ele tanto tinha visto e ouvido,
aprendendo com seu pai o que era preciso?
– Eu a desprezarei, mãe – ele a repudiou.
– Outros não me desprezarão – ela argumentou. – Seja meu
bem-amado.
– Se eu for... você sabe o que vocês duas se tornarão – ele
rebateu. – Meu pai irá desprezar você.
– Nunca!
– Mas eu sim!
Aquele som saiu arrancado de sua garganta sem que ele
quisesse e vinha carregado com todas as nuances da Voz que Paul
tinha aprendido com sua própria mãe feiticeira.
– Não diga isso – ela disse, lamentosa.
– Eu desprezarei você!
– Por favor... por favor, não diga isso.
Leto esfregou a garganta, sentindo que os músculos voltavam a
ser novamente seus.
– Ele desprezará você. Ele lhe dará as costas. Ele partirá para o
deserto mais uma vez.
– Não... não...
Ela balançava a cabeça de um lado para o outro.
– Você deve partir, mãe – ele insistiu.
– Não... não... – Mas a voz já não tinha a mesma força do
começo.
Leto observou o rosto da irmã. Como os músculos repuxavam!
As emoções riscavam a carne em resposta ao tumulto que se
desenrolava em seu íntimo.
– Saia – ele murmurou. – Vá embora.
– Não...
Ele agarrou o braço dela, sentiu o tremor que agitava aqueles
músculos, as contrações nervosas. Ela se contorceu, tentando se
desvencilhar dele, mas ele a segurava com firmeza pelo braço,
murmurando o tempo todo:
– Vá embora, vá embora...
E o tempo todo Leto se condenava por ter incluído Ghani nesse
jogo de pais que um dia tinham jogado, e ao qual nos últimos
tempos ela vinha se opondo. Era verdade que as mulheres tinham
mais fraqueza perante esse assédio interior, como estava
constatando. Ali estava a origem do temor das Bene Gesserit.
Passaram-se horas e o corpo de Ghanima ainda tremia e se
convulsionava com a batalha travada em seu interior, mas agora a
voz de sua irmã já entrava na discussão. Ele a ouviu falando com
aquela imago interna, suplicando com ela.
– Mãe... por favor... – E depois: – Você viu Alia! Você vai se
tornar outra Alia?
Finalmente, Ghanima se reclinou no irmão, murmurando:
– Ela aceitou. Ela foi embora.
Ele lhe acariciou a cabeça.
– Ghani, me desculpe. Sinto muito. Nunca mais vou lhe pedir
que faça isso. Fui egoísta. Me perdoe.
– Não há nada a perdoar – ela disse, e sua voz veio ofegante,
como se ela tivesse realizado um imenso esforço físico. –
Aprendemos muitas coisas que precisávamos saber.
– Ela falou com você a respeito de muitas coisas – ele
comentou. – Falaremos disso mais tarde, quando...
– Não, não! Falaremos disso agora. Você tinha razão.
– Meu Caminho Dourado?
– Seu maldito Caminho Dourado!
– A lógica é inútil a menos que venha carregada com dados
essenciais – ele começou. – Mas eu...
– Nossa avó voltou para orientar nossa educação e para
verificar se tínhamos sido... contaminados.
– Isso é o que Duncan diz. Não há nenhuma novidade em...
– Computação elementar – ela concordou, sua voz estava
ficando mais firme. Ela se soltou dele, olhou ao longe no deserto,
suavizado pelo silêncio que antecede a aurora. Essa batalha... e
esse conhecimento tinham lhe custado uma noite toda. A Guarda
Real que ficava além dos lacres de umidade devia ter muito que
explicar. Leto havia determinado que nada os importunasse.
– As pessoas muitas vezes aprendem sutilezas quando crescem
– Leto retomou. – O que é que estamos aprendendo com todo esse
envelhecimento a que podemos recorrer?
– O universo que vemos nunca é bem o universo físico exato –
ela respondeu. – Não devemos perceber esta avó como
simplesmente uma avó.
– Isso seria perigoso – ele concordou. – Mas minha perg...
– Há algo além da sutileza – ela o interrompeu novamente. –
Devemos ter no campo de nossa consciência um lugar para
perceber o que não podemos preconceber. É por isso... que minha
mãe falou-me muitas vezes sobre Jéssica. Na última, quando
estávamos as duas reconciliadas com nossa troca interna, ela
disse muitas coisas – e Ghanima suspirou.
– Nós sabemos que ela é nossa avó – ele observou. – Ontem você
ficou com ela durante horas. Seria por isso que...
– Se deixarmos, nosso saber irá determinar como reagimos a
ela – disse Ghanima. – É disso que minha mãe sempre me avisava.
Ela citou nossa avó uma vez e... – Ghanima tocou o braço dele – e
eu ouvi o eco disso dentro de mim na voz de nossa avó.
– Avisando você – Leto concluiu. Ele achava essa ideia
perturbadora. Será que nada neste mundo era confiável?
– A maioria dos erros fatais decorre de suposições obsoletas –
Ghanima entoou. – É isso que minha mãe ficava repetindo.
– Isso é Bene Gesserit puro.
– Se... se Jéssica retornou para a Irmandade completamente...
– Seria algo muito perigoso para nós – ele disse, completando a
ideia. – Temos nas veias o sangue do Kwisatz Haderach delas, seu
Bene Gesserit masculino.
– Elas não irão abandonar a busca – Ghanima concordou –, mas
podem nos abandonar. Nossa avó poderia ser o instrumento.
– Há um outro jeito – ele disse.
– Sim, nós dois... acasalados. Mas eles sabem quais os
recessivos que podem complicar esse pareamento.
– É uma aposta que devem ter discutido.
– E com nossa avó, sem dúvida. Não gosto dessa solução.
– Nem eu.
– Ainda assim, não é a primeira vez que uma linhagem real
tentou...
– Isso me repugna – ele disse, estremecendo.
Ela captou o movimento do irmão e guardou silêncio.
– Poder – ele sussurrou.
E, naquela estranha alquimia de suas similaridades, ela sabia
quais tinham sido os pensamentos dele.
– O poder do Kwisatz Haderach deve fracassar – ela concordou.
– Usado do jeito delas – ele complementou.
Naquele instante, o dia desceu sobre o deserto mais além de
onde podiam ver. Eles sentiram o calor começando. As cores
saltitavam para fora das plantações no sopé da escarpa. Folhas
cinza-esverdeadas traçavam sombras pontiagudas no solo. A
baixa luz matutina do sol prateado de Duna revelava o oásis
verdejante, pleno de sombras douradas e cor de púrpura, nos
recessos dos penhascos protetores.
Leto se pôs em pé e espreguiçou.
– Então, que seja o Caminho Dourado – murmurou Ghanima, e
ela falou tanto para si mesma como para ele, sabendo que a
derradeira visão de seu pai correspondia aos sonhos de Leto e
neles se fundia.
Algo roçou os lacres de umidade atrás deles e algumas vozes
eram audíveis, murmurando ali atrás.
Leto tornou a usar a língua ancestral que empregavam quando
queriam se comunicar em particular:
– L’ii ani howr samis sm’kwi owr samit sut.
Era ali que a decisão se aninhava no campo da consciência dos
dois. Literalmente queria dizer: nós acompanharemos um ao
outro até os domínios da morte, embora somente um possa
retornar para reportar o acontecido.
Ghanima, então, se colocou em pé, e juntos regressaram,
passando pelos lacres de umidade rumo ao sietch, onde os
guardas despertaram e os seguiram, quando os gêmeos seguiram
em direção a seus aposentos particulares. A multidão abria
passagem diante deles nessa manhã de maneira diferente,
trocando olhares com os guardas. Passar a noite sozinho, num
plano elevado em relação ao deserto, era um antigo costume
fremen dos sábios sagrados. Todos os Umma tinham praticado
essa forma de vigília. Paul Muad’Dib tinha feito isso... assim como
Alia. E agora os gêmeos reais tinham começado a fazê-lo.
Leto notou a diferença e mencionou o fato a Ghanima.
– Eles não sabem o que decidimos por eles – ela confidenciou. –
Eles realmente não sabem.
Ainda recorrendo à sua língua particular, ele complementou:
– É preciso o início mais benfazejo.
Ghanima hesitou um momento para dar forma a suas ideias. E
então disse:
– No devido tempo, o luto pelo irmão deve ser exatamente real,
inclusive com a construção de um túmulo. O coração deve seguir o
sono, para que não haja um despertar.
Na língua ancestral, essa afirmação era extremamente
intrincada e empregava um objeto pronominal separado do
infinitivo. Nessa sintaxe, cada conjunto de frases internas podia
se voltar para si mesmo, assumindo diversos sentidos, todos
definidos e muito diferenciados entre si conquanto sutilmente
inter-relacionados. Em parte, o que ela havia dito era que eles se
arriscariam à morte seguindo o plano de Leto e que, fosse de
modo real ou simulado, não faria nenhuma diferença. A mudança
subsequente equivaleria literalmente à morte: “assassinato
funeral”. E havia outra camada de significado adicionada ao todo
que sinalizava, como uma acusação, a quem sobrevivesse para
relatar: atuando como a parte viva. Qualquer passo em falso no
caminho negaria o plano todo, e o Caminho Dourado de Leto se
tornaria um beco sem saída.
– Extremamente delicado – Leto concordou. Ele afastou os
pingentes para que passassem quando entraram em sua
antecâmara particular.
A atividade dos serviçais foi interrompida somente por uma
fração de segundo, quando os gêmeos atravessaram o umbral em
arco que dava acesso aos aposentos destinados a lady Jéssica.
– Você não é Osíris – Ghanima lembrou o irmão.
– Nem tentarei ser.
Ghanima tomou-o pelo braço para interrompê-lo.
– Alia darsatay haunus m’smow – ela advertiu.
Leto olhou diretamente nos olhos da irmã. Realmente, as
atitudes de Alia deixavam exalar um odor fétido que a avó deles
devia ter captado. Ele sorriu para a irmã de maneira a traduzir o
quanto a apreciava. Ela havia mesclado a língua ancestral com a
superstição fremen para conjurar o vaticínio tribal mais
fundamental. M’smow, o odor fétido de uma noite de verão, era o
arauto da morte nas mãos dos demônios. E Osíris tinha sido o
deus demoníaco da morte para o povo cuja língua eles falavam
agora.
– Nós, Atreides, temos a reputação de nossa audácia a manter –
ele retrucou.
– Então, pegaremos o que precisamos – ela afirmou.
– Ou isso ou nos tornamos suplicantes perante nossa própria
Regência – ele murmurou. – Alia gostaria disso.
– Mas nosso plano... – e ela deixou que a ideia escoasse.
Nosso plano, ele pensou. Ela agora compartilhava dele
plenamente. Ele disse:
– Penso que o nosso plano é a faina do shaduf.
Ghanima olhou rapidamente para a antecâmara pela qual
tinham passado, sentindo o cheiro dos odores de pelo animal da
manhã, com sua impressão de eterno início. Ela gostava de como
Leto tinha empregado o idioma particular deles dois. Faina do
shaduf. Era uma promessa. Ele tinha chamado o plano dos dois de
o trabalho de lavoura do tipo mais simples: adubar, irrigar,
arrancar as ervas daninhas, transplantar, podar – e, sim, com a
implicação fremen de que essa faina ocorria ao mesmo tempo em
Outro Mundo onde simbolizava cultivar a riqueza da alma.
Ghanima estudou seu irmão, enquanto hesitavam ali, no túnel
de rocha. Estava cada vez mais claro para ela que ele estava se
comprometendo em dois níveis: em um, com o Caminho Dourado
de sua visão e da visão de seu pai; e, no outro, que ela lhe daria
carta branca para levar adiante o mito de criação extremamente
perigoso que o plano geraria. Isso a assustava. Haveria mais
alguma coisa na visão particular que ele tivera e que não tinha
comentado com ela? Será que ele era capaz de se enxergar como a
figura potencialmente deificada que levaria a humanidade a um
renascimento – tal pai, tal filho? O culto a Muad’Dib tinha
azedado, fermentado no desgoverno de Alia e nas licenças
impunes de um sacerdócio militar que comandava as linhas de
poder entre os fremen. Leto queria a regeneração.
Ele está escondendo alguma coisa de mim, ela percebeu.
Ghanima passou em revista o que ele lhe havia dito sobre seu
sonho. Continha uma realidade tão iridescente que Leto poderia
ter andado a esmo por horas depois dele, imerso nessa névoa. Ele
dizia que o sonho nunca variava.
“Estou na areia, à brilhante luz do dia, mas não há sol. Então me
dou conta de que eu sou o sol. Minha luz emana como um Caminho
Dourado. Quando percebo isso, saio de mim. Volto-me, esperando
me ver como o sol, mas não sou o sol. Sou uma figura esquemática,
o desenho de uma criança com linhas luminosas em ziguezague
formando os olhos, e riscos no lugar das pernas e dos braços. Há
um cetro na minha mão esquerda e é um cetro de verdade, muito
mais detalhado em sua realidade do que a figura esquemática que
o está segurando. O cetro se mexe e isso me deixa apavorado.
Quando ele se mexe, eu me sinto acordar, mas sei que continuo
sonhando. Entendo então que a minha pele está revestida por
alguma coisa, uma armadura que se mexe conforme eu me
movimento. Não consigo ver essa armadura, mas posso senti-la.
Meu terror então sai de mim, pois essa armadura me dá a força de
dez mil homens.”
Quando Ghanima o encarou de frente, Leto tentou se
desvencilhar e continuar o percurso até os aposentos de Jéssica.
Ghanima resistiu.
– Esse Caminho Dourado talvez não seja melhor do que
qualquer outro – ela comentou.
Leto olhou para o chão de pedra entre os dois, sentindo a
intensidade dos receios de Ghanima voltando à tona.
– Eu tenho de fazer isso – ele insistiu.
– Alia está possuída – ela lembrou. – Isso poderia acontecer
conosco. Já poderia inclusive ter acontecido e a gente não
perceber.
– Não. – Ele sacudiu a cabeça e enfrentou o olhar dela. – Alia
resistiu. Isso deu força aos poderes dentro dela. Ela foi
sobrepujada por sua própria força. Nós ousamos buscar em nosso
interior, buscar as antigas línguas e o antigo conhecimento. Já
somos amálgamas dessas vidas em nosso íntimo. Nós não
resistimos; seguimos com elas. Foi isso que aprendi com nosso pai
na noite passada. Era o que eu tinha de aprender.
– Dentro de mim ele não disse nada disso.
– Você ouviu a nossa mãe. É o que nós...
– E quase me perdi.
– Ela ainda está forte dentro de você? – e o medo endureceu a
voz dele.
– Sim... mas agora eu acho que ela me protege com o amor que
tem por mim. Você foi muito bem quando discutiu com ela. – E
Ghanima pensou na mãe interna refletida e continuou: – Nossa
mãe agora existe para mim no alam al-mythal com os outros, mas
ela provou dos frutos do inferno. Agora eu posso ouvi-la sem
temor. Quanto aos outros...
– Sim – ele anuiu. – E eu ouvi meu pai, mas acho que realmente
estou seguindo o conselho do avô de quem tenho o nome. Talvez o
nome facilite isso.
– Você foi aconselhado a falar com nossa avó sobre o Caminho
Dourado?
Leto aguardou enquanto um serviçal passava apressado por
eles com uma bandeja-cesto contendo o desjejum de lady Jéssica.
Um forte aroma de especiaria se espalhou pelo ar quando o
assistente passou.
– Ela vive em nós e em sua própria carne – Leto observou. – O
conselho dela pode ser obtido duas vezes.
– Por mim, não – objetou Ghanima. – Não me arrisco a isso
outra vez.
– Então, por mim.
– Achei que tínhamos concordado que ela havia voltado para a
Irmandade.
– É verdade. Bene Gesserit no começo, ela mesma no meio,
Bene Gesserit no fim. Mas, lembre-se, ela também tem sangue
Harkonnen nas veias e é mais próxima dessa herança do que nós;
ela vivencia uma forma desse compartilhamento interior que
também é nosso.
– Uma forma muito rasa – objetou Ghanima. – E você não me
respondeu.
– Não acho que eu vá mencionar o Caminho Dourado.
– Mas eu sim.
– Ghani!
– Nós não precisamos de mais nenhum deus Atreides!
Precisamos de um espaço para mais humanidade!
– E alguma vez eu neguei isso?
– Não. – Ela respirou fundo e desviou o olhar até então fixado no
rosto do irmão. Dentro da antecâmara, os assistentes olhavam
para os gêmeos, ouvindo que debatiam pelo tom de suas vozes,
mas sem conseguir compreender o idioma milenar.
– Temos de fazê-lo – Leto concluiu. – Se não agirmos, seria
melhor que caíssemos sobre nossas próprias adagas. – Aqui ele
adotou o termo fremen que embutia o significado de “verter
nossa água na cisterna tribal”.
Mais uma vez, Ghanima olhou para ele. Era obrigada a
concordar, mas se sentia aprisionada dentro de uma construção
com muitos muros. Os dois sabiam que o dia do julgamento
ocorreria em seu caminho, cedo ou tarde, apesar do que fizessem.
Ghanima sabia disso com uma certeza que era reforçada pelos
dados colhidos das outras vidas-recordações, mas agora temia a
força infundida nessas outras psiques, usando as informações de
suas experiências. Essas vidas-recordações espreitavam em seu
íntimo como harpias, como sombras demoníacas aguardando, na
tocaia.
Exceto por sua mãe, que havia detido o poder carnal e
renunciara a ele. Ghanima ainda se sentia abalada por esse
combate interior, sabendo que teria perdido se não fosse a
capacidade de persuasão de Leto.
Leto disse que o Caminho Dourado dele levava à saída dessa
armadilha. Tirando a incômoda constatação de que ele ocultava
dela algum elemento da visão que tivera, ela só podia aceitar a
sinceridade do irmão. Ele precisava da fértil criatividade dela
para enriquecer o plano.
– Seremos testados – ele informou, sabendo aonde estavam
indo as dúvidas dela.
– Não na especiaria.
– Talvez inclusive aí. Seguramente no deserto e no Teste da
Possessão.
– Você nunca falou do Teste da Possessão! – ela acusou. – Isso
faz parte do seu sonho?
Ele tentou engolir apesar da garganta seca, amaldiçoando essa
traição.
– Sim.
– Então... seremos possuídos?
– Não.
Ela pensou sobre o Teste: era uma antiga forma de exame
fremen cujo final provocava uma morte terrível, na maior parte
das vezes. Então, esse plano continha outros níveis de
complexidade. Ele os levaria até a borda de onde o mergulho para
qualquer um dos lados poderia não ser contemplado por uma
mente humana que, depois, mantivesse a própria sanidade.
Sabendo por onde se esgueiravam os pensamentos da irmã,
Leto professou:
– O poder atrai os psicóticos. Sempre. É isso que devemos
evitar dentro de nós.
– Você tem certeza de que não seremos... possuídos?
– Não, se criarmos o Caminho Dourado.
Ainda em dúvida, ela afirmou:
– Eu não vou ter seus filhos, Leto.
Ele sacudiu a cabeça, suprimindo as traições internas, e
retomou o tom formal da língua antiga:
– Minha irmã, eu amo você mais profundamente do que amo a
mim mesmo, mas esse não é o mais caro dos meus desejos.
– Muito bem; então, voltemos ao outro assunto antes de irmos
ter com nossa avó. Uma faca enterrada em Alia poderia dar cabo
da maioria de nossos problemas.
– Se você acredita nisso, também acredita que podemos andar
na lama sem deixar rastros – ele retrucou. – Além do mais, quando
foi que Alia deu a qualquer um a menor chance?
– Falam desse Javid.
– Duncan estaria por acaso dando sinais de chifres na testa?
Ghanima encolheu os ombros.
– Veneno um, veneno dois. – Era esse o rótulo comum usado
pela realeza para catalogar os consortes pela ameaça que
representam à sua pessoa, uma marca dos regentes de toda
parte.
– Temos de fazê-lo do meu jeito – ele insistiu.
– O outro jeito poderia ser mais limpo.
Por meio dessa resposta, ele soube que ela finalmente havia
superado suas dúvidas e chegara ao ponto de concordar com o
plano dele. Essa constatação não o deixou feliz. Ele se viu olhando
para as próprias mãos, pensando se aquela sujeira sairia um dia.
Este foi o feito de Muad’Dib: ele entendeu que o
reservatório subliminar de cada pessoa era um
banco inconsciente de recordações que
remontavam até às células primais de nossa
gênese comum. Ele dizia que cada um de nós pode
medir sua distância em relação a essa origem
comum. Quando viu isso e relatou sua percepção,
ele realizou o audacioso passo de tomar uma
decisão. Muad’Dib se incumbiu de integrar a
memória genética à avaliação em andamento.
Com isso, ele de fato atravessou os véus do Tempo,
tornando o futuro e o passado uma coisa só. Essa
foi a criação de Muad’Dib corporificada em seu
filho e em sua filha.
– Testamento de Arrakis, por Harq al-Ada

Farad’n atravessou o complexo do jardim do palácio real de seu


pai observando como sua sombra ficava cada vez menor
conforme o sol de Salusa Secundus fazia seu arco rumo ao zênite.
Ele teve de esticar um pouco as passadas para se manter no
mesmo passo que o alto bashar que o acompanhava.
– Tenho minhas dúvidas, Tyekanik – ele confessou. – Bem, não
há como negar a sedução de um trono, mas... – e ele respirou
fundo – tenho muitos outros interesses.
Tyekanik, recém-chegado de um acirrado debate com a mãe de
Farad’n, olhou de esguelha para o príncipe, reparando em como a
carne do rapaz estava se firmando à medida que ele se
aproximava dos 18 anos. Havia nele cada vez menos Wensicia a
cada dia que se passava, e mais e mais de Shaddam, aquele que
tinha preferido seus interesses privados às responsabilidades da
realeza. Fora isso que, no fim, lhe havia custado o trono,
evidentemente. Ele tinha ficado muito mole para comandar.
– Você tem de escolher – Tyekanik afirmou. – Ora, sem dúvida
haverá tempo para alguns de seus interesses, mas...
Farad’n mordeu o lábio inferior. O dever o prendia ali, mas ele
se sentia frustrado. Ele teria preferido muito mais ir até o enclave
rochoso onde os experimentos com as trutas da areia estavam
sendo realizados. Este, sim, era um projeto de enorme potencial:
arranque o monopólio da especiaria das mãos dos Atreides e tudo
pode acontecer.
– Você está seguro de que os gêmeos serão... eliminados?
– Nada é absolutamente certo, meu príncipe, mas as
perspectivas são boas.
Farad’n encolheu os ombros. Assassinatos continuavam sendo
um fato da vida da realeza. A língua estava bem abastecida de
sutis substituições em referência à eliminação de personagens
importantes. Com uma simples palavra, era possível a pessoa
distinguir entre colocar veneno numa bebida ou numa comida.
Ele supunha que a eliminação dos gêmeos Atreides seria posta
em prática com o uso de um veneno. Não era uma ideia agradável.
Em todos os sentidos, os gêmeos eram um par de criaturas
altamente interessantes.
– Teremos de nos mudar para Arrakis? – Farad’n quis saber.
– É a melhor escolha, já que nos coloca no sítio da maior
pressão. – Farad’n parecia estar evitando uma pergunta e
Tyekanik se perguntou qual poderia ser.
– Estou aflito, Tyekanik – Farad’n disse, falando no momento
em que contornavam uma sebe e se aproximavam de uma fonte
rodeada por rosas negras enormes. Podiam ouvir os jardineiros
podando galhos na outra ponta da sebe.
– Sim? – Tyekanik indagou, convidativo.
– Esta, ah, religião que você professa...
– Não há nada de estranho nisso, meu príncipe – Tyekanik
disse, esperando que sua voz não perdesse a firmeza. – Essa
religião fala ao guerreiro que existe em mim. É uma religião que
combina com um Sardaukar. – Pelo menos essa parte era verdade.
– Sssim... mas minha mãe parece muito satisfeita com ela.
Maldita Wensicia!, pensou Tyekanik. Ela deixou o filho
desconfiado.
– Não me importo muito com o que sua mãe pensa – disse o
bashar. – Religião é uma questão muito pessoal. Talvez ela
enxergue nisso algo capaz de colocá-lo no trono.
– Foi o que pensei – murmurou Farad’n.
Ahhh, mas que jovem sagaz!, pensou Tyekanik. E então sugeriu:
– Analise por si mesmo essa religião e verá imediatamente por
que a escolhi.
– Ainda assim... pregações do Muad’Dib? Afinal de contas, ele
era um Atreides.
– A única coisa que posso dizer é que os caminhos de Deus são
misteriosos – Tyekanik acrescentou.
– Sei... mas, me diga, Tyek, por que me convidou para caminhar
com você exatamente agora? É quase meio-dia e normalmente
você está em alguma parte, nesse horário, cumprindo ordens de
minha mãe.
Tyekanik parou ao lado de um banco de pedra que dava para a
fonte e para o canteiro das rosas gigantescas. O rumor da água
caindo o acalmou e ele manteve sua atenção concentrada nesse
som quando falou:
– Meu príncipe, fiz uma coisa que talvez sua mãe desaprove. – E
então pensou: Se ele acreditar nisso, o maldito complô dela dará
certo. Tyekanik quase esperava que o esquema de Wensicia
fracassasse. Trazer aquele desgraçado do Pregador até ali. Ela
estava louca. E a que custo!
Como Tyekanik manteve silêncio, aguardando, Farad’n
perguntou:
– Muito bem, Tyek, e o que foi que você fez?
– Trouxe até aqui um praticante de oniromancia – ele explicou.
Farad’n lançou um olhar inquisitivo ao seu acompanhante.
Alguns dos Sardaukar mais antigos praticavam o jogo da
interpretação de sonhos e vinham fazendo isso cada vez mais
desde sua derrota pelo “Sonhador Supremo”, Muad’Dib. Eles
pensavam que em algum ponto em seus sonhos poderia existir
um caminho que os levaria de volta ao poder e à glória. Mas
Tyekanik sempre tinha se negado a esse jogo.
– Não parece muito coisa sua, Tyek – observou Farad’n.
– Então, só posso falar com base em minha nova religião – ele
argumentou, dirigindo-se à fonte. Evidentemente, era para falar
da religião que tinham se arriscado a trazer O Pregador até ali.
– Então faça isso – disse Farad’n.
– Como ordenar, meu príncipe. – Ele se voltou, olhando para
esse jovem detentor de todos os sonhos que agora eram
destilados no caminho que a Casa Corrino deveria seguir. – Igreja
e Estado, meu príncipe, até o pensamento científico e a fé, e mais
ainda: progresso e tradição. Tudo isso está reconciliado nos
ensinamentos de Muad’Dib. Ele dizia que não há opostos
intransigentes exceto nas crenças dos homens e, às vezes, em
seus sonhos. Descobrimos o futuro no passado e ambos fazem
parte de um todo.
Apesar das dúvidas que ele não conseguia dissipar, Farad’n
sentiu-se impressionado por essas palavras. Ele captou uma nota
de relutante sinceridade na voz de Tyekanik como se aquele
homem estivesse falando contra suas compulsões internas.
– E é por isso que você me traz esse... esse intérprete de
sonhos?
– Sim, meu príncipe. Talvez seu sonho penetre no Tempo. Você
retoma sua consciência de seu ser interior quando reconhece o
universo como um todo coerente. Seus sonhos... bem...
– Mas eu falo dos meus sonhos de maneira descompromissada
– Farad’n protestou. – Eles são mera curiosidade, nada mais.
Nunca eu desconfiei que você...
– Meu príncipe, nada que faça pode ser sem importância.
– Isso é muito lisonjeiro, Tyek. Você realmente acredita que
esse sujeito pode enxergar o que está no cerne dos grandes
mistérios?
– Acredito, meu príncipe.
– Então, que minha mãe desaprove.
– Você falará com ele?
– Claro que sim... já que você o trouxe aqui para amolar minha
mãe.
Será que está zombando de mim?, ponderou Tyekanik, e então
prosseguiu:
– Devo avisá-lo que o velho usa uma máscara. É um recurso
ixiano que permite aos cegos enxergarem com a pele.
– Ele é cego?
– Sim, meu príncipe.
– Ele sabe quem eu sou?
– Eu disse a ele, meu príncipe.
– Muito bem. Vamos a ele, então.
– Se meu príncipe quiser aguardar só um instante, eu trago o
homem até aqui.
Farad’n olhou em torno do jardim com fonte, sorrindo. Um
lugar tão bom quanto qualquer outro para essa tolice.
– Você disse a ele o que eu sonhei?
– Só em termos gerais, meu príncipe. Ele lhe pedirá que faça um
relato pessoal.
– Ah, muito bem. Espero aqui. Traga o homem.
Farad’n virou de costas e ouviu Tyekanik saindo apressado. Um
jardineiro estava à vista, trabalhando logo depois da sebe, de
onde o príncipe via o alto de sua cabeça envolta por um capuz
marrom em torno do qual esvoaçavam aparas de arbustos. Era
um movimento hipnótico.
Essa história do sonho é um absurdo completo, Farad’n pensou.
Foi errado da parte de Tyek fazer isso sem me consultar. Muito
estranho Tyek entrar nessa coisa de religião nessa idade. E agora
essa conversa de sonhos.
Nesse instante, ele ouviu o som de passos atrás dele. As
conhecidas passadas de Tyekanik com sua firmeza típica e então
um andar mais arrastado. Farad’n se voltou e encarou o
intérprete de sonhos que se aproximava. A máscara ixiana era
negra, feita de um tecido que lembrava gaze, e escondia o rosto
todo, da testa até embaixo do queixo. Não havia frestas para os
olhos nessa máscara. Se o que ixianos diziam era verdade, a
máscara toda era um olho só.
Tyekanik se deteve a dois passos de Farad’n, mas o mascarado
se aproximou até ficar a menos de um passo de distância.
– O intérprete de sonhos – Tyekanik anunciou.
Farad’n moveu a cabeça em assentimento.
O mascarado tossiu de uma maneira roufenha e distante, como
se estivesse tentando puxar alguma coisa desde o estômago.
Farad’n estava agudamente ciente de um acre aroma de
especiaria emanado pelo velho, especificamente por seu longo
manto cinzento que o recobria de cima a baixo.
– Essa máscara faz realmente parte de sua carne? – Farad’n
perguntou, consciente de que estava tentando adiar a questão do
sonho.
– Enquanto eu a uso – disse o velho, e sua voz continha um viés
de amargura e apenas vagos indícios do sotaque fremen. – Seu
sonho, conte-me – ele disse em seguida.
Farad’n encolheu os ombros. Ora, por que não? Era para isso
que Tyek tinha trazido o velho até ali. Era mesmo? Farad’n se
sentiu tomado por dúvidas e perguntou:
– Você é realmente um praticante de oniromancia?
– Vim para interpretar seu sonho, Pujante Senhor.
Mais uma vez, Farad’n deu de ombros. Essa figura mascarada o
estava deixando nervoso e ele olhou de lado para Tyekanik, ainda
no mesmo lugar em que tinha parado, os braços cruzados,
contemplando a fonte.
– Seu sonho, então – insistiu o velho.
Farad’n inspirou fundo e começou a contar o sonho. Foi ficando
mais fácil conforme ele foi se envolvendo com o relato. Ele falou
da água que escorria para cima, vinda da fonte, falou dos mundos
que eram átomos dançando em sua cabeça, da serpente que se
transformava num verme da areia e explodia numa nuvem de pó.
Falar da serpente, como percebia agora para sua própria
surpresa, era algo que exigia mais esforço. Uma terrível relutância
o inibia e isso o deixou zangado enquanto falava.
O velho se manteve impassível até que Farad’n finalmente se
calou. A máscara negra de gaze se mexia de leve, acompanhando
a respiração do homem. Farad’n aguardava. O silêncio se
estendia.
Até que Farad’n perguntou:
– Você não vai interpretar meu sonho?
– Já interpretei – ele respondeu, e sua voz parecia vir de uma
imensa distância.
– E então? – Farad’n ouviu sua própria voz esganiçada,
denunciando toda a tensão que o sonho havia induzido.
E o velho continuava impassível, em silêncio.
– Então me diga! – a raiva era evidente no tom de voz do rapaz.
– Eu disse que interpretaria o sonho – o velho falou –, mas não
concordei em revelar a minha interpretação.
Até mesmo Tyekanik ficou abalado com essa atitude, deixando
cair os braços e fechando as mãos em punho, ao lado do corpo.
– Como assim? – ele grunhiu.
– Eu não disse que revelaria minha interpretação – o velho
repetiu.
– Você quer mais dinheiro? – indagou Farad’n.
– Não pedi nenhum pagamento para vir aqui. – Um orgulho frio
vibrava na resposta do velho, e isso amenizou a raiva de Farad’n.
Ali estava um velho corajoso, diga-se de passagem. Ele devia
saber que desobedecer seria sua sentença de morte.
– Com licença, meu príncipe – Tyekanik interrompeu no
instante em que Farad’n se preparava para falar. – Você poderia
nos dizer por que não vai revelar sua interpretação?
– Sim, senhores. O sonho me diz que não teria nenhum
propósito explicar essas coisas.
Farad’n não conseguiu se controlar:
– Você está dizendo que eu já sei o sentido do meu sonho?
– Talvez sim, meu senhor, mas essa não é a questão.
Tyekanik se adiantou até ficar ao lado de Farad’n. Os dois
encaravam o velho.
– Explique-se – exigiu Tyekanik.
– Sim, explique-se – repetiu Farad’n.
– Se eu fosse falar desse sonho, analisar esses elementos da
água e do pó, das serpentes e dos vermes, esmiuçar os átomos
que dançam em sua cabeça como acontece na minha, ah, meu
Pujante Senhor, minhas palavras apenas o confundiriam e o
senhor insistiria no desentendimento.
– Você teme que suas palavras possam me zangar? – Farad’n
indagou.
– Meu senhor! O senhor já está zangado.
– Será porque não confia em nós? – perguntou Tyekanik.
– Isso chega bem perto do alvo, meu senhor. Não confio em
nenhum dos dois e pelo simples motivo de que vocês não confiam
em si mesmos.
– Você anda perigosamente no fio da navalha – Tyekanik
decretou. – Muitos homens já foram mortos por atitudes bem
menos abusadas que a sua.
Farad’n aquiesceu e completou:
– Não nos faça sentir raiva.
Ao que respondeu o velho:
– As consequências fatais da raiva Corrino são muito
conhecidas, meu senhor de Salusa Secundus.
Tyekanik conteve Farad’n pelo braço e então perguntou:
– Você está tentando nos induzir a matá-lo?
Farad’n não tinha pensado nisso e então sentiu um calafrio
percorrê-lo de alto a baixo ao ponderar o que uma conduta dessas
poderia representar. Será que esse velho que se dizia chamar O
Pregador... era mais do que parecia? Quais poderiam ser as
consequências de sua morte? Mártires podiam ser criações
perigosas.
– Duvido que me mate, independentemente do que eu diga –
afirmou O Pregador. – Acho que conhece o meu valor, bashar, e
agora seu príncipe também suspeita qual ele é.
– Você se recusa absolutamente a interpretar o sonho dele? –
Tyekanik perguntou.
– Eu já interpretei.
– E não vai dizer o que viu nele?
– O senhor me culpa?
– Como você pode ser valioso para mim? – indagou Farad’n.
O Pregador estendeu a mão direita.
– Se eu apenas acenar com esta mão, Duncan Idaho virá até
mim e me obedecerá.
– Mas que fanfarronice fútil é essa? – perguntou Farad’n.
Tyekanik, porém, balançou a cabeça, tendo se lembrado da
discussão com Wensicia. Então disse:
– Meu príncipe, isso talvez seja verdade. Este Pregador tem
muitos seguidores em Duna.
– Por que não me disse que ele era daquele lugar? – Farad’n
indagou.
Antes que Tyekanik pudesse responder, O Pregador se dirigiu
a Farad’n:
– Meu senhor, não se sinta culpado pelo ocorrido em Arrakis. O
senhor é somente um produto do seu tempo. Este é um pedido
especial que qualquer homem pode fazer quando suas culpas o
assediam.
– Culpas! – exclamou Farad’n, indignado.
O Pregador apenas deu de ombros.
Estranhamente, essa atitude fez Farad’n mudar de
encolerizado para divertido. Ele riu, jogou a cabeça para trás e
arrancou desse modo um olhar espantado de Tyekanik. Então ele
disse:
– Eu gosto de você, Pregador.
– Isso me gratifica, meu príncipe – aquiesceu o velho.
Engolindo uma risadinha, Farad’n continuou:
– Iremos providenciar acomodações para você aqui, no palácio.
Você será meu intérprete oficial de sonhos – ainda que nunca me
diga uma única palavra de suas interpretações. E poderá me
aconselhar quanto a Duna. Tenho muita curiosidade sobre esse
lugar.
– Isso não posso fazer, príncipe.
Uma ponta de ira ameaçava se manifestar. Farad’n encarou a
máscara negra.
– E por que não, poderia me dizer?
– Meu príncipe – murmurou Tyekanik, tocando o braço de
Farad’n outra vez.
– Que foi, Tyek?
– Nós o trouxemos mediante um acordo juramentado com a
Guilda. Ele deve ser levado de volta a Duna.
– Sou convocado a voltar para Arrakis – disse O Pregador.
– E quem o convoca? – exigiu saber Farad’n.
– Um poder maior do que o teu, príncipe.
Farad’n disparou um olhar inquisitivo na direção de Tyekanik.
– Por acaso ele é um espião dos Atreides?
– Pouco provável, meu príncipe. Alia colocou a cabeça dele a
prêmio.
– Se não é um Atreides, então quem o convoca? – Farad’n
insistiu, tornando a prestar atenção ao Pregador.
– Um poder maior do que os Atreides.
Uma risadinha escapuliu de Farad’n. Aquilo não passava de um
absurdo místico. Como é que Tyekanik pôde ser ludibriado por
uma coisa dessas? Esse Pregador tinha sido convocado, muito
provavelmente, por um sonho. E qual a importância de sonhos?
– Isso tudo foi uma grande perda de tempo, Tyek – reprovou
Farad’n. – Por que me sujeitou a esta... esta farsa?
– Aqui o preço é duplo, meu príncipe – disse Tyekanik. – Este
intérprete de sonhos prometeu-me entregar Duncan Idaho como
agente da Casa Corrino. Tudo que me pediu foi para vir conhecê-
lo e interpretar seu sonho. – E Tyekanik acrescentou para si
mesmo: Pelo menos foi o que ele dissera a Wensicia! Agora, novas
dúvidas minavam a confiança do bashar.
– Por que meu sonho é tão importante para você, velho? –
perguntou Farad’n.
– Seu sonho me diz que grandes eventos se desenrolam até sua
conclusão lógica – explicou O Pregador. – Devo apressar minha
volta.
Sarcástico, Farad’n redarguiu:
– E continuará inescrutável, sem dar nenhum conselho.
– Conselhos, meu príncipe, são uma mercadoria perigosa. Mas
posso arriscar algumas palavras que o senhor poderá considerar
um conselho ou qualquer outra coisa que lhe convier...
– Por favor – pediu Farad’n.
O Pregador manteve o rosto mascarado firmemente erguido na
altura do de Farad’n:
– Governos podem subir e cair por razões que parecem
insignificantes, príncipe. Eventos tão pequenos! Uma discussão
entre duas mulheres... o lado por onde sopra o vento num certo
dia... um espirro, um pigarro, o comprimento de um manto ou a
colisão imprevista de um grão de areia com o olho de um cortesão.
Nem sempre são as majestosas preocupações dos ministros
imperiais que ditam o curso da História, nem são
necessariamente as pontificações dos sacerdotes que movem as
mãos de Deus.
Farad’n se sentiu profundamente mobilizado por essas
palavras e não se sentiu capaz de explicar tais emoções.
Tyekanik, porém, havia se detido em uma frase em particular.
Por que esse Pregador falava de um manto? A mente de Tyekanik
se concentrou nos trajes imperiais despachados para os gêmeos
Atreides, nos tigres treinados para atacar. Será que esse velho
estaria dando voz a uma sutil advertência? Até onde ele sabia?
– Como isso pode ser um conselho? – Farad’n perguntou.
– Para ser bem-sucedido – prosseguiu O Pregador –, o senhor
deve reduzir sua estratégia ao ponto de sua aplicação. Onde é que
se aplica uma estratégia? Num lugar específico e com pessoas
específicas em mente. Mas mesmo tomando o máximo cuidado
com as minúcias, algum pequeno detalhe sem importância no
contexto poderia lhe escapar. Será, príncipe, que sua estratégia
pode ser reduzida às ambições da esposa de um governador
regional?
Com a voz gélida, Tyekanik interrompeu:
– Por que fica matraqueando sobre estratégia, Pregador? Qual
você acha que meu príncipe terá?
– Ele está sendo levado a desejar um trono – respondeu O
Pregador. – Eu desejo a ele boa sorte, mas ele necessitará de mais
do que sorte.
– Essas são palavras perigosas – observou Farad’n. – Como
ousa proferi-las?
– Ambições tendem a permanecer intactas diante da realidade
– esclareceu O Pregador. – Ouso proferir tais palavras porque o
senhor se encontra numa encruzilhada. O senhor poderia se
tornar admirável. Mas agora está rodeado por aqueles que não
buscam justificativas morais, por conselheiros que são orientados
por estratégias. O senhor é jovem e resistente, mas não tem
aquela espécie de treinamento avançado por meio do qual seu
caráter poderia evoluir. O que é uma pena, porque tem fraquezas
nessas dimensões que acabei de descrever.
– O que quer dizer? – Tyekanik inquiriu.
– Cuidado com o que for falar – avisou Farad’n. – Qual é essa
fraqueza?
– O senhor não pensou no tipo de sociedade que poderia
preferir – disse O Pregador. – O senhor não leva em consideração
as esperanças de seus súditos. Até mesmo a forma do Imperium
que busca tem pouca definição em seus pensamentos. – Ele voltou
o rosto mascarado para Tyekanik. – O senhor mira o poder e não
os usos sutis e os perigos desse poder. Seu futuro, portanto, está
cheio de pontos desconhecidos evidentes: na discussão com
mulheres, em tosses e dias de vento. Como poderá criar uma
época quando não consegue enxergar cada detalhe? Sua mente
resistente não lhe terá serventia. É aí que o senhor é fraco.
Farad’n estudou o velho por um longo intervalo, ponderando
sobre as camadas mais profundas que essas ideias insinuavam,
sobre a persistência de conceitos tão desacreditados.
Moralidade! Objetivos sociais! Esses eram mitos para serem
deixados de lado no movimento ascendente da evolução.
– Já ouvimos palavras suficientes – sentenciou Tyekanik. – E
quanto ao preço combinado, Pregador?
– Duncan Idaho é seu – afirmou O Pregador. – Tomem cuidado
com o modo como vão usá-lo. Ele é uma joia inestimável.
– Oh, nós temos uma missão apropriada para ele – Tyekanik
comentou, olhando rapidamente para Farad’n. – Com sua licença,
meu príncipe?
– Diga que ele se prepare para partir antes que eu mude de
ideia – resmungou Farad’n. Depois, olhando para Tyekanik,
acrescentou: – Não gosto do jeito como você me usou, Tyek!
– Perdoe-me, príncipe – O Pregador disse. – Seu fiel bashar
cumpre a vontade de Deus ainda que não saiba disso. – Fazendo
uma reverência, O Pregador partiu e Tyekanik se apressou em
acompanhá-lo até a saída.
Farad’n observou os dois de costas, afastando-se, e pensou:
Devo examinar essa religião que Tyek adotou. E então ele sorriu,
pesaroso: Que intérprete de sonhos! Mas que importância tem
isso? Meu sonho não foi uma coisa importante.
E ele teve a visão de uma armadura. A armadura
não era sua própria pele; era mais forte do que
açoplás. Nada penetrava nessa armadura: facas,
venenos ou areia, nem o pó do deserto ou seu
calor de desidratar. Na mão direita ele trazia o
poder de causar a tempestade de Coriolis, de
sacudir a terra e provocar uma erosão terminal.
Seus olhos estavam fincados no Caminho Dourado
e, na mão esquerda, ele portava o cetro da
maestria absoluta. Mais além do Caminho
Dourado, os olhos dele se estendiam para a
eternidade que ele sabia ser o alimento de sua
alma e de sua carne perpétua.
- Heighia, O sonho do meu irmão, do Livro de Ghanima

– Seria melhor que eu nunca me tornasse imperador – afirmou


Leto. – Oh, não estou insinuando que cometi o erro de meu pai e
espreitei o futuro com uma taça de especiaria. Digo isso por puro
egoísmo. Minha irmã e eu precisamos desesperadamente de um
período de liberdade durante o qual possamos aprender como
viver sendo quem somos.
Então ele ficou em silêncio, contemplando lady Jéssica com ar
interrogativo. Ele falara o que ele e Ghanima tinham combinado
que diria. E qual seria a resposta de sua avó?
Jéssica estudou a fisionomia do neto à luz dos luciglobos que
iluminavam seus aposentos em Sietch Tabr. Ainda era cedo
naquela manhã de seu segundo dia de visita e ela já havia recebido
relatórios perturbadores sobre os gêmeos, dizendo que tinham
passado a noite em vigília fora do sietch. O que tinham feito? Ela
não havia dormido bem e sentia os ácidos da fadiga exigindo que
descesse do hipernível que a havia sustentado durante todas as
desgastantes demandas desde aquele desempenho crucial no
espaçoporto. Aquele era o sietch de seus pesadelos, mas lá fora
não era o deserto de que ela se lembrava. De onde tinham vindo
todas aquelas flores? E o ar em volta dela parecia muito úmido. Os
jovens praticavam mal a disciplina dos trajestiladores.
– E o que você é, criança, que precisa ter tempo para saber mais
sobre si mesmo? – ela indagou.
Ele balançou a cabeça delicadamente, ciente de que era um
movimento adulto bizarro no corpo de uma criança, e se
lembrando de que devia manter aquela mulher em desequilíbrio.
– Em primeiro lugar, não sou uma criança. Oh... – ele tocou o
próprio peito. – Este é o corpo de uma criança, sem dúvida. Mas
eu não sou uma criança.
Jéssica mordeu o lábio superior, desconsiderando o que isso
denunciava. Seu amado duque, morto há tantos anos neste
planeta desgraçado, tinha rido dela quando ela fizera isso. “Sua
única resposta descontrolada”, ele tinha dito a respeito de ela
morder a própria boca. “Isso me mostra que você está perturbada
e preciso beijar esses lábios para acalmar o tremor neles.”
Agora, este neto, que tinha o mesmo nome do duque, a deixava
tão chocada que seu coração começava a martelar dentro do
peito só por ele dizer, sorrindo:
– Você ficou perturbada; posso ver isso pelo tremor de sua
boca.
Ela precisou adotar sua mais rigorosa disciplina Bene Gesserit
para recuperar um semblante que denotasse calma. Só então
conseguiu dizer:
– Você está me provocando?
– Provocando? Jamais. Mas devo deixar claro para você o
quanto somos diferentes. Deixe-me lembrá-la daquela orgia no
sietch, há tanto tempo, em que a Antiga Reverenda Madre lhe deu
as vidas e as recordações dela. Ela se entregou a você e lhe deu
essa... essa longa cadeia de salsichas, cada uma delas uma pessoa.
Você ainda as tem. Por isso, conhece um pouco do que Ghanima e
eu vivenciamos.
– E Alia? – indagou Jéssica para testá-lo.
– Você não falou sobre isso com Ghani?
– Queria conversar a esse respeito com você.
– Muito bem. Alia negou quem era e se tornou aquilo que mais
temia. O passado-interno não pode ser relegado ao inconsciente.
Esse é um rumo perigoso para qualquer humano, mas para nós,
que somos pré-nascidos, é pior do que a morte. E isso é tudo que
direi sobre Alia.
– Então você não é uma criança – Jéssica repetiu.
– Tenho um milhão de anos. Isso exige ajustes que os humanos
nunca antes foram convocados a fazer.
Jéssica aquiesceu, mais calma agora, e muito mais cautelosa do
que se havia conduzido com Ghanima. E onde estava Ghanima?
Por que Leto tinha vindo sozinho?
– Bem, avó – ele disse –, somos Abominações ou somos a
esperança dos Atreides?
Jéssica ignorou a pergunta.
– Onde está sua irmã?
– Ela foi distrair Alia para garantir que não sejamos
interrompidos. É necessário. Mas Ghani não lhe diria nada além
do que eu já disse. Você não reparou nisso ontem?
– No que reparei ontem é problema meu. Por que você fica
insistindo nessa questão da Abominação?
– Insistindo? Não me venha com essa arenga Bene Gesserit,
avó. Eu a rebaterei, palavra por palavra, diretamente de suas
próprias recordações. Eu quero mais do que sua boca tremendo.
Jéssica balançou a cabeça, sentindo a frieza dessa... pessoa que
tinha seu próprio sangue nas veias. Os recursos à disposição dele
assombravam-na. Ela tentou usar um tom equivalente ao dele e
perguntou:
– O que você sabe de minhas intenções?
– Não precisa investigar se eu cometi ou não o mesmo erro de
meu pai – Leto desdenhou. – Não xeretei além do nosso jardim do
tempo, pelo menos não deliberadamente. Que o conhecimento
absoluto do futuro fique a cargo dos momentos de déjà vu que
todo humano pode experimentar. Eu conheço a armadilha da
presciência. A vida de meu pai me diz o que eu preciso saber
sobre isso. Não, minha avó; conhecer o futuro absolutamente é
ficar absolutamente preso nesse futuro. Ele colapsa o tempo. O
presente se torna o futuro. Eu preciso de mais liberdade do que
essa.
Jéssica sentiu a língua se contrair com as palavras que engolia.
Como é que ela poderia responder a ele com algo que ele ainda
não soubesse? Isso era monstruoso! Ele sou eu! Ele é meu bem-
amado Leto! Esse pensamento deixou-a abalada. Por um
momento, ela cogitou se por acaso aquela máscara pueril não
poderia deslizar de volta no tempo até recuperar os traços
fisionômicos de seu amado e ressuscitar... Não!
Leto baixou sua cabeça, mas ergueu os olhos para examinar o
rosto da avó de baixo para cima. Sim, afinal de contas ela podia
ser manipulada. Então, prosseguiu:
– Quando você pensa em presciência, o que eu espero que só
aconteça raramente, é provável que você não seja diferente de
qualquer outra pessoa. A maioria imagina como seria bom saber a
cotação de amanhã para o preço da pele de baleia. Ou saber se um
Harkonnen voltará um dia a governar seu mundo natal de Giedi
Primo. Mas, naturalmente, nós conhecemos os Harkonnen sem
presciência, não é mesmo, minha avó?
Ela se recusou a morder a isca. É claro que ele estaria a par do
sangue Harkonnen amaldiçoado de seus ancestrais.
– Quem é um Harkonnen? – ele perguntou, bajulando. – Quem é
a Besta Rabban? Pode ser qualquer um de nós, certo? Mas estou
divagando. Falo do mito popular da presciência: conhecer
absolutamente o futuro! Tudo do futuro! Que fortunas poderiam
ser construídas – e perdidas – com um conhecimento absoluto
desse teor, não é? A ralé acredita nisso. Eles acreditam que, se um
pouco é bom, mais deve ser melhor. Que excelente! E se você
descrevesse a algum deles o cenário completo de sua vida, o
diálogo invariável até o momento de sua morte, que dádiva
infernal não seria isso! Que tédio monumental! Cada instante de
vida seria a repetição do que ele já sabia absolutamente. Sem
derivações. Ele poderia antecipar cada resposta, cada palavra
proferida, um número infinitivo de vezes...
Leto sacudiu a cabeça. E então concluiu:
– A ignorância tem suas vantagens. Um universo de surpresas é
tudo pelo que rezo!
Foi um discurso extenso e, enquanto ouvia, Jéssica se sentia
maravilhada ao ver como os maneirismos dele, as inflexões de sua
voz eram um eco do pai – o filho que ela havia perdido. Até mesmo
as ideias que expunha: eram coisas que Paul poderia realmente
ter dito.
– Você me lembra seu pai – ela murmurou.
– Isso é doloroso para você?
– De certo modo, mas é tranquilizador saber que ele está vivo
em você.
– Como é pouco o que você entende de como ele vive em mim.
Jéssica sentiu que esse tom aparentemente neutro exsudava
amargura. Ela ergueu um pouco o queixo para olhar direto nos
olhos do neto.
– Ou como seu duque vive em mim – Leto complementou. –
Minha avó, Ghanima é você! Ela é você em tal medida que a sua
vida não tem para ela nenhum segredo até o instante em que você
teve nosso pai. E eu! Que catálogo de recordações encarnadas eu
sou. Há momentos em que é demais para aguentar. Você veio aqui
para nos julgar? Você veio para julgar Alia? É melhor que nós
julguemos você!
Jéssica exigiu de si mesma uma resposta e não achou nenhuma.
O que ele estava fazendo? Por que essa ênfase na diferença que
ele representava? Será que ele cortejava a rejeição? Teria
alcançado a mesma condição de Alia, ser uma Abominação?
– Isso a deixa perturbada – ele observou.
– Sim, me perturba. – Ela se permitiu um fútil encolher de
ombros. – Sim, me perturba, e por razões que você conhece
perfeitamente bem. Estou certa de que você passou em revisão
meu treinamento Bene Gesserit. Ghanima confessou. Eu sei que
Alia... também o fez. Você sabe quais são as consequências da sua
diferença.
Ele olhou para ela erguendo os olhos com uma intensidade
inquietante.
– Quase, nós não enveredamos por aí com você – ele disse, e em
sua voz havia a percepção da fadiga que ela mesma sentia. –
Conhecemos o tremor de seus lábios da mesma maneira que seu
amado conhecia. Todas as palavras de ternura que seu duque
pronunciou ao pé de ouvido, em seu quarto nupcial, estão à nossa
disposição se assim o desejarmos. É claro que, intelectualmente,
você já aceitou isso. Mas quero adverti-la disto: sua aceitação
intelectual não é suficiente. Se um de nós se tornar uma
Abominação, poderia ser você dentro de nós quem criou isso! Ou
meu pai... ou minha mãe! O seu duque! Qualquer um de vocês
poderia se apossar de nós, e a condição seria a mesma.
Jéssica sentiu uma queimação no peito, umidade se
acumulando nos olhos.
– Leto... – ela conseguiu enunciar, permitindo-se enfim dizer o
nome dele. Para sua surpresa, a dor foi menor do que ela havia
imaginado e com isso ela se forçou a prosseguir. – O que é que
você quer de mim?
– Que eu ensine minha avó.
– Ensinar-me o quê?
– Na noite passada, Ghani e eu fizemos o jogo de desempenhar
os papéis de mãe e pai até quase nos destruirmos, mas
aprendemos muito. Há coisas que se podem saber, desde que se
tenha consciência das condições. As ações podem ser previstas.
Agora, Alia com toda certeza está arquitetando um plano para
sequestrar você.
Jéssica piscou, chocada com a rapidez da acusação. Ela
conhecia este truque muito bem, já o havia empregado inúmeras
vezes: levar a pessoa numa linha de raciocínio e então, de repente,
introduzir um dado chocante de outra linha. Mas ela se recompôs
com uma inspiração muito profunda.
– Eu sei o que Alia tem feito... o que ela é, mas...
– Minha avó, tenha piedade dela. Use seu coração tanto quando
sua inteligência. Você já fez isso antes. Você representa uma
ameaça e Alia quer o Imperium todo para si... pelo menos, a coisa
em que ela se transformou o quer.
– Como posso saber que não é outra Abominação falando?
Ele deu de ombros e respondeu:
– É aqui que entra seu coração. Ghani e eu sabemos como ela
sucumbiu. Não foi somente o clamor daquela multidão interior.
Suprima o ego deles e eles voltarão a se amontoar da próxima vez
que você despertar uma lembrança. Um dia... – e ele engoliu em
seco – um ego forte dessa matilha interna decide que chegou a
hora de compartilhar a carne.
– E não há nada que você possa fazer? – Ela formulou a
pergunta, mesmo temendo a resposta.
– Acreditamos que haja algo... sim. Não podemos sucumbir à
especiaria; isso é da máxima importância. E não devemos
suprimir inteiramente o passado. Devemos usá-lo, fazer um
amálgama com ele. Por fim, nós os mesclaremos em nós. Não
teremos mais nosso ser original, mas não seremos possuídos.
– Você falou de um complô para me sequestrar.
– É óbvio. Wensicia tem ambições para o filho. Alia tem
ambições para si mesma, e...
– Alia e Farad’n?
– Isso não está indicado – ele disse. – Mas Alia e Wensicia
seguem cursos paralelos neste exato momento. Wensicia tem
uma irmã na casa de Alia. Quer uma coisa mais simples do que
uma mensagem para...
– Você está a par de tal mensagem?
– Como se a tivesse visto e lido, palavra por palavra.
– Mas você não viu propriamente essa mensagem?
– Não preciso. Para mim, basta saber que os Atreides estão
todos juntos, aqui em Arrakis. A água toda em uma única
cisterna. – E ele gesticulou abrangendo o planeta.
– A Casa Corrino não teria a audácia de nos atacar aqui!
– Alia lucraria se eles fizessem isso. – Um tom sarcástico na voz
dele foi uma provocação para ela.
– Não vou ser tratada com essa arrogância por meu próprio
neto! – ela explodiu.
– Então, maldita seja, mulher, pare de pensar em mim como seu
neto! Pense em mim como o seu duque Leto! – O tom e a expressão
facial, o gesto abrupto da mão, tudo era tão exato que ela ficou
calada e confusa.
Com voz seca e distante, Leto murmurou:
– Tentei preparar você. Pelo menos, conceda-me isso.
– Por que Alia iria me raptar?
– Para colocar a culpa na Casa Corrino, é claro.
– Não acredito nisso. Até mesmo para ela, isso seria...
monstruoso! Perigoso demais! Como ela conseguiria fazer isso
sem... não posso acreditar!
– Quando acontecer, você acreditará. Ahh, minha avó, Ghani e
eu precisamos apenas ouvir “atrás da porta” dentro de nós
mesmos para saber. É uma simples questão de autopreservação.
De que outro modo podemos sequer suspeitar dos erros que são
cometidos perto de nós?
– Não aceito nem por um instante que um rapto faça parte dos
planos de Alia...
– Pelos deuses das profundezas! Como uma Bene Gesserit
como você pode ser tão obtusa? O Imperium inteiro desconfia de
seus motivos para estar aqui. Os arautos de Wensicia estão todos
preparados para desacreditar você. Alia mal pode esperar para
que isso aconteça. Se você cair, a Casa Atreides irá sofrer um
golpe mortal.
– Do que o Imperium inteiro desconfia?
Ela pronunciou meticulosamente cada uma dessas palavras,
com toda a frieza possível, sabendo que não conseguiria
desnortear essa não criança com qualquer um dos truques da
Voz.
– Que lady Jéssica planeja acasalar os gêmeos! – ele respondeu
asperamente. – É isso que a Irmandade deseja. Incesto!
Ela piscou.
– Boatos infundados. – Ela engoliu. – As Bene Gesserit não
permitirão que um boato desses tenha livre curso através do
Imperium. Ainda temos uma relativa influência. Lembre-se disso.
– Boato? Que boato? Você sem dúvida deixou suas escolhas em
aberto quanto a um acasalamento entre nós. – Ele balançou a
cabeça quando ela começou a falar: – Não negue. Deixe que
vivamos nossa puberdade ainda morando na mesma casa, com
você dentro dela, e sua influência não será mais do que um trapo
abanando perante um verme da areia.
– Você acredita que nós sejamos idiotas a tal ponto? – Jéssica
indagou.
– Certamente que sim. Sua Irmandade não passa de um bando
de velhas tolas que não pensam em nada além de seu precioso
programa de reprodução seletiva! Ghani e eu conhecemos o
trunfo delas. Você acha que nós somos idiotas?
– Trunfo?
– Elas sabem que você é uma Harkonnen! Isso estará nos
registros de reprodução delas: Jéssica, de Tanidia Nerus, pelo
barão Vladimir Harkonnen. Se esse registro fosse acidentalmente
levado a conhecimento público você ficaria bem exposta...
– E você acha que a Irmandade seria detida por uma
chantagem?
– Eu sei que sim. Bom, elas recobrem isso com toda a astúcia.
Dizem que você deve investigar os boatos a respeito de sua filha.
Instigam seus temores e sua curiosidade. Invocam seu senso de
responsabilidade fazendo você se sentir culpada porque fugiu de
volta para Caladan. E lhe ofereceram a perspectiva de salvar seus
netos.
Jéssica só pôde olhar para ele, em silêncio. Era como se ele
tivesse ouvido atrás da porta todos os emocionados encontros
com suas censoras na Irmandade. Sentia-se completamente
subjugada pelas palavras dele e agora começava a aceitar a
possibilidade de que ele havia dito a verdade quando mencionara
que Alia planejava raptá-la.
– Veja, minha avó. Tenho uma difícil decisão a tomar – ele
confidenciou. – Sigo a mística Atreides? Vivo por meus súditos... e
morro por eles? Ou escolho outro rumo, um rumo que me
permitirá viver milhares de anos?
Involuntariamente, Jéssica recuou, encolhida. Essas palavras,
ditas com tanta simplicidade, tocavam num tema que as Bene
Gesserit tinham tornado praticamente impensável. Muitas
Reverendas Madres poderiam escolher esse rumo... ou tentar
fazê-lo. A manipulação da química interna estava à disposição das
iniciadas da Irmandade. Mas se alguém fizesse isso, cedo ou tarde
todas iriam tentar a mesma coisa. Não haveria como ocultar um
tal acúmulo de mulheres sem idade. Elas sabiam, além de toda
dúvida, que esse curso de ação iria levá-las à destruição. A
humanidade, vivendo poucos anos, se voltaria contra elas. Não...
era impensável.
– Não gosto do rumo de seus pensamentos – ela resmungou.
– Você não entende meus pensamentos – ele afirmou. – Ghani e
eu... – e ele balançou a cabeça. – Alia teve isso ao seu alcance e
jogou tudo fora.
– Você tem certeza disso? Já mandei uma nota para a
Irmandade dizendo que as práticas de Alia são impensáveis. Olhe
para ela! Não envelheceu nenhum dia sequer desde a última vez
em que eu...
– Ah, isso! – e ele descartou o equilíbrio corporal Bene Gesserit
com um aceno de mão. – Estou falando de outra coisa: estou
falando de uma perfeição de ser muito além de qualquer coisa que
os humanos já alcançaram antes.
Jéssica tornou a ficar calada, atônita com a facilidade com que
ele extraíra dela aquela revelação de tanto impacto. Ele
seguramente saberia que essa mensagem representava a
sentença de morte para Alia. E, por mais que mudasse as
palavras, ele só podia estar falando de cometer a mesma espécie
de transgressão. Será que ele ignorava o perigo das palavras que
enunciava?
– Você deve explicar – ela demandou, enfim.
– Como? – ele indagou. – A menos que você entenda que o
Tempo não é o que parece, não posso nem começar a explicar.
Meu pai suspeitava disso. Ele chegou à beira da compreensão,
mas recuou. Agora, cabe a Ghani e a mim.
– Insisto que você explique – Jéssica disse, e tocou com os
dedos a agulha envenenada que guardava dentro das dobras de
seu manto. Era o gom jabbar, tão mortífero que o menor furinho
causado por ele provocava a morte em poucos segundos. E ela
pensou: Elas me alertaram que eu talvez tivesse de usá-lo. Esse
pensamento fez os músculos de seu braço tremerem em ondas
sucessivas e ela ficou grata pelo manto que ocultava essa reação.
– Muito bem – ele suspirou. – Em primeiro lugar, quanto ao
Tempo: não existe diferença entre dez mil anos e um ano;
nenhuma diferença entre cem mil anos e um batimento do
coração. Nenhuma diferença. Esse é o primeiro fato sobre o
Tempo. E o segundo é: o universo inteiro com todo o seu Tempo
está dentro de mim.
– Mas que absurdo é esse? – ela indagou.
– Está vendo? Você não entende. Tentarei explicar de outro
modo, então. – Ele ergueu a mão direita para ilustrar,
movimentando-a enquanto falava. – Vamos para a frente e
voltamos.
– Essas palavras não explicam nada!
– Correto – ele retrucou. – Existem coisas que as palavras não
podem explicar. Você tem de experimentá-las sem palavras. Mas
você não está preparada para essa aventura, assim como quando
olha para mim e não me vê.
– Mas... estou olhando diretamente para você. É claro que vejo
você! – e ela o encarou firmemente. As palavras dele refletiam o
conhecimento do Códice Zen-sunita, que ela havia estudado nas
escolas Bene Gesserit: eram jogos com palavras para confundir o
entendimento da filosofia.
– Algumas coisas acontecem além de seu controle – ele insistiu.
– E como isso explica essa... essa perfeição que está tão além
das outras experiências humanas?
Ele aquiesceu, respondendo:
– Se a pessoa adia a velhice ou a morte usando o mélange, ou
esse ajustamento aprendido do equilíbrio carnal que vocês, Bene
Gesserit, tanto temem, esse adiamento sugere apenas uma ilusão
de controle. A pessoa andar devagar ou depressa através do
sietch dá no mesmo: ela atravessa o sietch. E essa passagem do
tempo é sentida internamente.
– Por que você enfileira as palavras desse jeito? Eu já tinha
arrancado meus dentes do juízo para não mastigar essas
bobagens muito antes que seu pai nascesse.
– Mas somente os dentes nasceram – ele observou.
– Palavras! Palavras!
– Ahh! Você está tão perto!
– Ora!
– Minha avó?
– Sim?
Ele guardou silêncio por um longo intervalo. Então disse:
– Está vendo? Você ainda consegue responder como você
mesma. – Ele sorriu para ela. – Mas não consegue enxergar além
das sombras. Estou aqui. – Ele sorriu de novo. – Meu pai chegou
muito perto disso. Quando ele viveu, ele viveu, mas, quando ele
morreu, ele deixou de morrer.
– O que você está dizendo?
– Mostre-me o corpo dele!
– Você acha que esse Pregador...
– Talvez, mas ainda que sim, esse não é o corpo dele.
– Você não explicou nada – ela acusou-o.
– Tal qual avisei.
– Então por quê...
– Você pediu. Você tinha de ver. Agora, voltemos ao assunto
Alia e seu plano para raptar você.
– Você estaria planejando o impensável? – ela perguntou,
segurando o venenoso gom jabbar pronto para entrar em ação,
dentro do manto.
– Será você a carrasca de Alia? – ele perguntou, e a voz dele era
enganosamente suave. Ele apontou para a mão dela que estava
dentro do manto. – Você acha que ela irá permitir que você use
isso? Ou acha que eu permitirei que use?
Jéssica percebeu que não estava podendo engolir.
– Como resposta a sua indagação – ele continuou – não estou
planejando o impensável. Não sou tão imbecil. Mas estou chocado
com você. Você ousa julgar Alia. Claro que ela desobedeceu ao
precioso mandamento Bene Gesserit! O que você esperava? Você
a desamparou, deixou-a para trás, aqui, como uma rainha, mas
sem o título. Todo aquele poder! Então voltou correndo para
Caladan para lamber as próprias feridas nos braços de Gurney.
Muito bom. Mas quem é você para julgar Alia?
– Uma coisa lhe digo: eu não vou...
– Ora, cale a boca! – e ele desviou os olhos dela, enojado. Mas as
palavras dele tinham sido pronunciadas ao modo Bene Gesserit
especial: com a Voz controladora. Isso a silenciou como se uma
mão tivesse sido posta sobre sua boca, à força. Ela pensou, então:
Quem saberia me atingir com a Voz melhor do que esta criatura?
Era um argumento que mitigava e amenizava sua mágoa. Quantas
vezes ela mesma não havia usado essa Voz com outras pessoas,
mas não esperava ser tão suscetível a ela... não novamente...
desde aqueles tempos na escola...
Ele voltou a encarar a avó.
– Desculpe-me. É que por acaso eu sei como você é capaz de
reagir cegamente quando...
– Cegamente? Eu? – ela ficou mais encolerizada com essa
descrição do que tinha se sentido com o uso peculiar da Voz que
ele havia feito contra ela.
– Sim, você – ele repetiu. – Cegamente. Se você ainda tem algum
vestígio de honestidade em seu ser, irá reconhecer suas próprias
reações. Eu a chamo pelo nome e você responde “Sim?”. Eu calo a
sua boca. Invoco todos os seus mitos Bene Gesserit. Olhe para
dentro e veja de que maneira foi ensinada. Isso, pelo menos, é uma
coisa que você pode fazer por...
– Como ousa! Mas o que você pode saber de... – e a voz dela
fraquejou e sumiu. Mas é claro que ele sabia!
– Olhe aí dentro, agora! – e a voz dele era imperiosa.
Mais uma vez, a voz dele a dominou. Ela sentia seus órgãos dos
sentidos imobilizados e a respiração acelerada. Logo depois do
umbral da percepção consciente havia um coração martelando, o
hálito ofegante... De súbito, ela constatou que a respiração
acelerada e o coração martelando não eram latentes, não estavam
sob o controle de seu treino Bene Gesserit. Com os olhos
arregalados após o choque dessa constatação, ela sentia sua
própria carne obedecendo a outros comandos. Lentamente, ela
recuperou sua compostura, mas a constatação permanecia. Essa
não criança tinha manipulado a avó como um instrumento de
precisão durante toda aquela conversa.
– Agora você sabe com que profundidade você foi condicionada
por suas preciosas Bene Gesserit – ele declarou.
Ela não pôde senão aquiescer com um movimento de cabeça.
Sua crença nas palavras estava despedaçada. Leto a havia
forçado a olhar para seu universo físico diretamente, sem
subterfúgios, e ela retornara desse contato abalada, com a mente
fustigada por novas constatações. “Mostre-me o corpo dele!” Ele
lhe havia mostrado o corpo dela mesma como se fosse recém-
nascida. Não desde seus primeiros dias na escola em Wallach, não
desde aqueles dias terríveis antes que os compradores do duque
viessem atrás dela, ela não havia provado uma incerteza tão
radical a respeito de seus próximos momentos desde então.
– Você se permitirá ser raptada – Leto afirmou.
– Mas...
– Não estou pedindo para debatermos esse ponto – ele disse. –
Você deixará que aconteça. Pense que essa é uma ordem de seu
duque. Você entenderá o motivo disso assim que tiver acontecido.
Você terá de enfrentar um estudante muito interessante.
Leto se pôs em pé, e saiu depois de um cumprimento com a
cabeça. Mas antes ainda revelou:
– Alguns atos têm um fim, mas não um começo. Alguns
começam, mas não terminam. Tudo depende de onde o
observador está situado. – Então, deu as costas à avó e saiu do
aposento.
Na segunda antecâmara, Leto encontrou Ghanima indo
apressadamente para seus próprios aposentos. Ela parou quando
o viu e reportou:
– Alia está ocupada com a Convocação da Fé. – E ela olhou
interrogativamente na direção da passagem que conduzia ao
quarto de Jéssica.
– Funcionou – ele disse.
A atrocidade é reconhecida como tal tanto pela
vítima como pelo agressor, e também por todos os
que ficam a par dos fatos, seja qual for a distância
em que estiverem. A atrocidade não tem
desculpas, não tem uma razão mitigante. A
atrocidade nunca equilibra nem retifica o
passado. A atrocidade apenas arma o futuro para
mais atrocidades. Ela se autoperpetua a partir de
si mesma, como uma forma bárbara de incesto.
Quem comete uma atrocidade também comete as
futuras atrocidades que ela engendra.
– Textos apócrifos de Muad’Dib

Pouco depois do meio-dia, quando quase todos os peregrinos


tinham se dispersado para se refrescar sob qualquer sombra que
encontrassem e matar a sede com as bebidas que houvesse, O
Pregador entrou na grande praça sob o Templo de Alia. Veio de
braço dado com seus olhos condutores, o jovem Assan Tariq.
Num bolso interno de seu manto esvoaçante, O Pregador levava a
máscara negra de gaze que tinha usado em Salusa Secundus. Ele
se divertia pensando que a máscara e o garoto serviam ao mesmo
propósito: disfarçá-lo. Enquanto ele precisasse de olhos, as
dúvidas persistiriam.
Que o mito aumente, mas mantenha as dúvidas vivas, ele
pensou.
Ninguém deveria descobrir que a máscara era somente um
tecido, e não um artefato ixiano. Sua mão não devia escorregar do
ombro ossudo de Assan Tariq. Se O Pregador pudesse caminhar
como os dotados de visão apesar de suas órbitas vazias, todas as
dúvidas seriam imediatamente dissipadas. A pequena esperança
que ele nutria estaria morta. Todo dia ele rezava por uma
mudança, por algo diferente em que tropeçar, mas até mesmo
Salusa Secundus tinha sido mero pedrisco, conhecido em todos
os seus aspectos. Nada mudava, nada podia ser mudado... por
enquanto.
Muitas pessoas reparavam em sua passagem pelas lojas e áreas
de lazer, notando como ele virava a cabeça de um lado para outro,
mantendo-a centralizada diante de um umbral ou de uma pessoa.
Os movimentos de sua cabeça nem sempre eram os esperados de
um cego, o que fazia aumentar o mito em torno de sua pessoa.
Alia acompanhava essa movimentação, escondida dentro de
uma ameia bem no alto de sua torre. Ela esquadrinhava aquele
rosto com cicatrizes lá embaixo em busca de algum sinal, de um
claro indício de identidade. Cada boato era informado a ela.
Todos vinham com seu tempero de excitação ou medo.
Ela havia imaginado que sua ordem de capturar O Pregador
fosse permanecer secreta, mas agora até isso lhe era reportado
como um novo boato. Mesmo entre seus guardas houve alguém
que não aguentou ficar calado. Agora, ela esperava que eles
cumprissem suas novas ordens e não pegassem essa misteriosa
criatura de manto num local público onde tudo podia ser visto e
relatado.
Fazia um calor tremendo naquela praça empoeirada. O jovem
guia do Pregador tinha puxado o véu de seu manto para cobrir o
nariz, deixando de fora somente os olhos negros e uma estreita
faixa da testa. O véu se avolumava onde cobria o tubo coletor do
trajestilador. Com isso, Alia deduziu que tinham vindo do deserto.
E quando estavam lá, onde se escondiam?
O Pregador não usava nenhum véu de proteção contra o ar
dilacerante. Inclusive tinha aberto a aba do tubo coletor do seu
trajestilador. Expunha o rosto nu ao sol e às emanações inquietas
do calor que subia em ondas trêmulas do piso de pavimentação da
praça.
Nos degraus do Templo encontrava-se um grupo de nove
peregrinos ocupados com seus ritos de partida. A borda da praça
que permanecia à sombra abrigava em torno de outras cinquenta
pessoas, a maioria delas peregrinos dedicados às diversas
penitências que os sacerdotes lhes impunham. Entre os
circunstantes, podiam-se ver alguns mensageiros e uns poucos
mercadores que ainda não tinham vendido o suficiente para
fechar as portas durante as horas do pior calor do dia.

Observando a cena pela fresta aberta em sua torre, Alia sentia


o calor de derreter e se percebeu dividida entre pensar e sentir,
do modo como muitas vezes tinha visto acontecer com seu irmão.
A tentação de consultar sua mente soou dentro dela como um
murmúrio soturno. O barão estava ali: obsequioso, mas sempre
pronto para agir a partir dos terrores ocultos de Alia, quando seu
julgamento racional falhava e as coisas à sua volta perdiam seu
senso de passado, presente e futuro.
E se for Paul que está lá embaixo?, ela se perguntou.
– Absurdo! – disse a voz dentro dela.
Mas os relatos sobre o que dizia O Pregador não podiam ser
postos em dúvida. Heresia! Ela ficava aterrorizada ao pensar que
o próprio Paul poderia pôr abaixo a estrutura erguida em nome
dele.
Por que não?
Ela pensou no que havia dito no Conselho ainda naquela
manhã, voltando-se com decidida hostilidade contra Irulan, que
tinha insistido em aceitar o presente dos trajes enviado pela Casa
Corrino.
– Todos os presentes para os gêmeos serão examinados
minuciosamente, como sempre – Irulan afirmara.
– E quando acharmos que o presente é inócuo? – Alia tinha
exclamado.
De algum modo essa tinha sido sempre a coisa mais
assustadora de todas: achar que os presentes não representavam
nenhum perigo.
No fim, tinham aceitado as belas peças de roupa e depois
passado para o outro assunto: deveriam dar a lady Jéssica um
assento no Conselho? Alia havia conseguido adiar a votação.
Ela pensou nisso enquanto olhava para O Pregador, lá embaixo.
As coisas que tinham acontecido com sua Regência, agora,
eram como o avesso daquela transformação que havia infligido a
esse planeta. Duna havia, antes, simbolizado o poder do deserto
cabal. Esse poder tinha minguado fisicamente, mas o mito de seu
poder crescera no mesmo ritmo. Somente restara o deserto-
oceano, a grande Mãe Deserto do planeta interior, com sua borda
de arbustos espinhosos que os fremen ainda chamavam Rainha
da Noite. Atrás dos arbustos de espinhos cresciam suaves colinas
verdejantes que se curvavam perante as areias. Todos os morros
tinham sido feitos por homens. Até o último deles fora plantado
por homens que se haviam esfalfado como insetos rastejantes. O
verde desses morros era quase avassalador para aqueles que,
como Alia, haviam sido criados na tradição das dunas de areia
parda. Para ela, assim como na concepção de todos os fremen, o
deserto-oceano ainda mantinha Duna sob rédeas cujo controle
jamais seria perdido. Para ela bastava que fechasse os olhos e
enxergaria aquele deserto.
De olhos abertos para o deserto, agora ela via morros
verdejantes, o lodo dos charcos fabricando pseudópodos verdes
que alcançam até a areia, mas o outro deserto segue tão poderoso
como sempre.
Alia balançou a cabeça, fixando os olhos no Pregador.
Ele tinha subido o primeiro lance de degraus que formava um
patamar sob o Templo, e agora virava para se defrontar com a
praça praticamente deserta. Alia tocou o botão ao lado de sua
janela, por meio do qual eram amplificadas as vozes que vinham
de baixo. Sentiu uma onda de autocomiseração, percebendo-se
ali, presa em sua solidão. Em quem poderia confiar? Tinha achado
que Stilgar continuava confiável, mas Stilgar tinha sido infectado
por esse homem cego.
– Você sabe como ele conta? – Stilgar perguntara a ela. – Ouvi-o
contando moedas para pagar seu guia. É muito estranho para
meus ouvidos fremen, e é uma coisa terrível. Ele conta “shuc,
ishcai, qimsa, chuascu, picha, sucta” e assim por diante. Não tinha
ouvido mais ninguém contar desse jeito, desde os velhos tempos
no deserto.
Com base nisso, Alia soube que Stilgar não poderia ser enviado
para realizar o serviço que necessitava ser feito. Ela também teria
de ser circunspecta com seus guardas, entre os quais a mais
discreta ênfase por parte da Regente tendia a ser tomada como
uma ordem absoluta.
O que é que esse Pregador estava fazendo lá embaixo?
A área do mercado circundante, sob seus balcões de proteção e
serviços de lazer em arcadas, ainda mostrava um aspecto
espalhafatoso: mercadorias à mostra, com alguns meninos
tomando conta. Poucos mercadores continuavam acordados por
ali, farejando o dinheiro dos interessados em biscoitos de
especiarias vindos de regiões remotas, ou o tilintar das bolsas de
dinheiro de peregrinos.
Alia estudou as costas do Pregador. Ele parecia pronto para
discursar, mas algo segurava sua voz.
Por que fico aqui, em pé, vigiando essa carne velha em ruínas?,
ela se perguntou. Esse destroço de um mortal lá embaixo não pode
ser o “receptáculo da magnificência” que um dia foi meu irmão.
Alia estava tomada por uma frustração que beirava a raiva.
Como é que poderia descobrir mais sobre O Pregador, descobrir
ao certo sem descobrir? Estava presa numa armadilha. Não
ousava demonstrar mais do que uma curiosidade ligeira a
respeito desse herege.
Irulan tinha percebido. Tendo perdido sua famosa compostura
Bene Gesserit, gritara em pleno Conselho:
– Perdemos o poder de pensar bem a nosso respeito!
Até mesmo Stilgar tinha ficado chocado.
Javid os havia devolvido ao bom senso:
– Não temos tempo para tais absurdos!
Javid estava certo. O que importava o que pensassem de si
mesmos? Tudo que dizia respeito a eles era a manutenção do
poder imperial.
Irulan, porém, recuperando a pose, tinha se pronunciado de
maneira ainda mais devastadora:
– Digo a vocês que perdemos algo vital. Quando o perdemos,
perdemos junto a capacidade de tomar boas decisões. Hoje em
dia, caímos sobre as decisões do modo como caímos sobre um
inimigo, ou esperamos e esperamos, que é uma forma de desistir,
e então permitimos que as decisões de outros nos ponham em
movimento. Será que esquecemos que somos nós que disparamos
esse fluxo atual?
E novamente a questão de aceitar ou não um presente da Casa
Corrino.
Irulan terá de ser descartada, Alia decidiu.
E o que aquele velho lá embaixo estava esperando? Ele se
chamava Pregador. Por que não pregava, então?
Irulan estava errada a respeito do processo de tomada de
decisões, pensou Alia. Eu ainda posso tomar decisões apropriadas!
A pessoa que deve tomar decisões de vida ou morte deve tomar
decisões ou ficará presa no pêndulo. Paul sempre dissera que a
estase era a coisa mais perigosa dentre as coisas não naturais. A
única permanência era o fluir. A mudança era tudo que
importava.
Eu vou mostrar mudança para eles!, Alia resolveu.
Alguns poucos indivíduos que continuavam na praça se
aproximaram dele, e Alia notou a lentidão daquele deslocamento.
Sim, os boatos diziam que O Pregador tinha despertado o
desprazer de Alia. Ela se aproximou mais do alto-falante ixiano,
ao lado de sua vigia. O dispositivo lhe trouxe os murmúrios das
pessoas na praça, o som do vento e o arrastar de pés na areia.
– Eu trago quatro mensagens para vocês! – anunciou O
Pregador.
A voz dele explodiu no falante de Alia e ela teve de abaixar o
volume.
– Cada mensagem é destinada a uma certa pessoa – continuou
O Pregador. – A primeira é para Alia, a suserana deste lugar. – Ele
apontou para trás de si, na direção da vigia. – Para ela, trago uma
advertência: você, que guardou em seu ventre o segredo da
duração, vendeu seu futuro por uma bolsa vazia!
Mas como ele ousa?, pensou Alia. Entretanto, as palavras dele a
deixaram petrificada.
– Minha segunda mensagem – prosseguiu O Pregador – é para
Stilgar, o naib fremen, que acredita ser capaz de traduzir o poder
das tribos no poder do Imperium. Minha advertência para você,
Stilgar, é esta: a mais perigosa de todas as criações é um código
de ética rígido. Ele se voltará contra você e o mandará para o
exílio!
Ele foi longe demais!, Alia pensou. Devo mandar os guardas
prenderem-no, sejam quais forem as consequências. Mas as mãos
dela permaneceram ao lado do corpo.
O Pregador virou o rosto para encarar o Templo, subiu ao
segundo patamar e mais uma vez girou para ficar de frente para a
praça, o tempo todo com a mão esquerda sobre o ombro de seu
guia. Então, proclamou:
– Minha terceira mensagem é para a princesa Irulan. Princesa!
Humilhação é algo que ninguém consegue esquecer. Aconselho
que você fuja!
Mas o que ele está falando?, Alia se perguntou. Nós humilhamos
Irulan, mas... Por que ele a aconselha a fugir? Acabei de tomar
minha decisão!
– Minha quarta mensagem é para Duncan Idaho – ele gritou. –
Duncan! Você foi ensinado a acreditar que lealdade compra
lealdade. Oh, Duncan, não acredite nessa história porque a
história é movida por qualquer coisa que se passe por dinheiro.
Duncan! Pegue seus chifres e faça o que você sabe fazer de
melhor.
Alia mordeu com força a parte carnuda do lado da mão. Chifres!
Ela queria estender a mão e apertar o botão que convocaria os
guardas imediatamente, mas sua mão se recusava a se mexer.
– Agora, pregarei para vocês – bradou O Pregador. – Este é um
sermão do deserto. Eu o dirijo aos ouvidos dos sacerdotes de
Muad’Dib, aqueles que praticam o ecumenismo da espada. Oh,
vocês que creem no destino manifesto! Não sabem que o destino
manifesto tem um lado demoníaco? Vocês declaram que se
sentem exaltados apenas por terem vivido nas abençoadas
gerações de Muad’Dib. Eu lhes digo que vocês abandonaram
Muad’Dib. A santidade substituiu o amor na religião de vocês!
Vocês cortejam a vingança do deserto!
O Pregador abaixou a cabeça como se estivesse orando.
Alia sentiu-se tremendo com as constatações. Pelos deuses das
profundezas! Aquela voz! Tinha sido debilitada por todos os anos
passados nas areias escaldantes, mas podia bem ser o resquício
da voz de Paul.
Mais uma vez, O Pregador ergueu a cabeça. A voz dele trovejou
através da praça onde mais pessoas tinham começado a se reunir,
atraídas por aquela exótica figura saída do passado.
– Assim está escrito! – exclamou O Pregador. – Aqueles que
rezam pelo orvalho na borda do deserto causarão o dilúvio! Eles
não escaparão ao seu destino pelos poderes da razão! A razão
nasce do orgulho para que o homem, desta forma, não saiba
quando agiu mal. – Então, ele baixou a voz. – Dizem que Muad’Dib
morreu por causa de sua presciência, que o conhecimento do
futuro o matou e que ele passou do universo da realidade para o
alam al-mythal. Eu digo a vocês que essa é a ilusão de Maya. Tais
pensamentos não têm realidade independente. Eles não podem
sair de dentro de vocês e executar coisas reais. Muad’Dib disse
que ele mesmo não possuía a mágica rihani com a qual cifrar o
universo. Não duvidem dele.
Novamente, O Pregador ergueu os braços e elevou a voz em
brados estentóreos:
– Advirto os sacerdotes de Muad’Dib! O fogo no penhasco
queimará vocês! Aqueles que aprendem bem demais a lição do
autoengano perecerão por causa desse engano. O sangue de um
irmão não poderá ser purgado!
Ele agora tinha abaixado os braços, encontrado seu jovem guia
e saía da praça, antes que Alia pudesse se desembaraçar daquele
tremor que a imobilizava e a dominava por completo. Que heresia
destemida! Devia ser Paul. Ela precisava alertar os guardas. Eles
não ousavam agir abertamente contra esse Pregador. A evidência
na praça lá embaixo confirmava isso.
Apesar da heresia, ninguém mexeu um dedo para deter O
Pregador, que se afastava. Nenhum guarda do Templo saltou
adiante para persegui-lo. Nenhum peregrino tentou impedi-lo.
Que cego mais carismático! Todos aqueles que o viram ou
ouviram puderam sentir seu poder, reflexo de um talento divino.
Apesar do calor do dia, Alia sentiu frio, de repente. Percebeu
como era uma coisa física a fina borda de seu controle sobre o
Imperium. Ela se agarrou na beirada de sua ameia como se
estivesse se agarrando ao seu poder, pensando na fragilidade
disso tudo. O equilíbrio entre Landsraad, choam e as armas
fremen constituía o cerne do poder, enquanto a Guilda Espacial e
as Bene Gesserit atuavam silenciosamente, nas sombras. A
infiltração proibida de desenvolvimento tecnológico que
acontecia desde as fronteiras das mais remotas migrações da
humanidade mordiscava o poder central pelas beiradas.
Produtos permitidos das fábricas ixianas e tleilaxu não eram
capazes de aliviar a pressão. E sempre, nas asas, perfilava-se
Farad’n da Casa Corrino, herdeiro dos títulos e das prerrogativas
de Shaddam IV.
Sem os fremen, sem o monopólio da Casa Atreides sobre a
especiaria geriátrica, seu controle seria enfraquecido. Todo o
poder talvez fosse dissolvido. Ela era capaz de senti-lo
escorregando de seus dedos já nesse momento. As pessoas
davam atenção a esse Pregador. Seria perigoso silenciá-lo, assim
como seria igualmente perigoso deixar que ele continuasse
pregando mensagens como essas que tinha esbravejado na praça,
hoje. Ela conseguia vislumbrar os primeiros indícios de sua
própria derrota e o padrão do problema se delineava claramente
em sua mente. As Bene Gesserit haviam codificado esse
problema:
“Uma grande multidão imobilizada por uma pequena, mas
poderosa força é uma situação comum demais em nosso universo.
E nós sabemos quais são as principais condições nas quais essa
grande multidão pode se voltar contra seus guardiães...
Primeira: quando encontram um líder. Essa é a ameaça mais
volátil aos poderosos; eles devem conservar o controle dos
líderes.
Segunda: quando a multidão reconhece seus grilhões.
Mantenha a multidão cega e sem questionar.
Terceira: quando a multidão percebe uma esperança de fuga da
escravidão. Eles nunca devem sequer acreditar que é possível
escapar!”
Alia sacudiu a cabeça, sentindo as bochechas tremerem com o
impacto desse movimento. Os sinais estavam aqui, em sua
multidão. Cada relato que recebia de seus espiões infiltrados por
todo o Imperium reforçava a certeza de seu conhecimento. A
guerra incessante travada pelo Jihad fremen deixava suas marcas
por toda parte. Onde quer que “o ecumenismo da espada”
tocasse, as pessoas conservavam a atitude de uma população
subjugada: defensiva, dissimulada, evasiva. Todas as
manifestações de autoridade – e isso significava essencialmente
uma autoridade religiosa – se tornavam sujeitas a
ressentimentos. Oh, os peregrinos ainda compareciam aos
milhares, e sem dúvida alguns deles eram de fato devotos; mas,
em sua maioria, a peregrinação tinha outros motivos além do
devocional. No mais das vezes era uma engenhosa garantia para o
futuro que enfatizava a obediência e adquiria uma verdadeira
forma de poder que facilmente se traduzia em riqueza. Os hajji
que vinham a Arrakis voltavam para casa investidos de uma nova
autoridade, de um novo status social. Os hajji podiam tomar
lucrativas decisões econômicas que os circunscritos pelo planeta
em sua terra natal não ousavam desafiar.
Alia conhecia a adivinha popular: “O que se vê dentro da bolsa
vazia que foi trazida de Duna?”. E a resposta era: “Os olhos de
Muad’Dib (diamantes de fogo)”.
Os meios tradicionais de se combater a crescente inquietação
desfilavam na tela da consciência de Alia: o povo tinha de
aprender que a oposição sempre era punida e que a ajuda ao
regente sempre era recompensada. As forças imperiais deviam
ser trocadas de maneira aleatória. Os principais assessores do
poder imperial deviam ser ocultados. Cada movimento por meio
do qual a Regência combatia possíveis ataques exigia uma
sensível percepção do melhor momento, a fim de manter a
oposição desequilibrada.
Será que perdi minha noção de timing?, ela se indagou.
– Que conjectura mais sem cabimento é essa? – sussurrou uma
voz em sua cabeça. Ela se sentiu um pouco mais calma. Sim, o
plano do barão era bom. Eliminamos a ameaça representada por
lady Jéssica e, ao mesmo tempo, desacreditamos a Casa Corrino.
Sim.
Mais tarde haveria tempo para cuidar do Pregador. Ela
entendia a postura dele. O simbolismo era claro. Ele era o espírito
ancestral da especulação desgovernada, o espírito da heresia,
vivo e dinâmico, no deserto da ortodoxia. Essa era a força do
Pregador. Não importava se ele era ou não era Paul... desde que
isso pudesse continuar sendo posto em dúvida. Mas os
conhecimentos Bene Gesserit de Alia lhe diziam que a força dele
poderia conter a chave de sua fraqueza.
O Pregador tem um defeito que iremos encontrar. Colocarei
espiões atrás dele que o vigiarão a cada momento. E, havendo a
oportunidade, ele será desacreditado.
Não discutirei com as alegações dos fremen de
que são inspirados pela esfera divina a transmitir
uma revelação religiosa. É sua alegação
concomitante de serem portadores de uma
revelação ideológica que me inspira a cobri-los de
desdém. Naturalmente, eles apresentam sua
dupla reivindicação na esperança de assim
fortalecer seu mandarinato, ajudando-os a seguir
resistindo frente a um universo que cada vez mais
os considera opressores. É em nome de todos os
povos oprimidos que advirto os fremen:
expedientes imediatistas sempre falham no longo
prazo.
– O Pregador, em Arrakina

Junto com Stilgar, Leto tinha ido à noite até a estreita projeção
de pedras na crista do baixo afloramento rochoso que em Sietch
Tabr chamavam O Serviçal. Sob a luz pálida da segunda lua em
fase minguante, daquela projeção das pedras eles eram
brindados com uma visão panorâmica: a Muralha-Escudo com o
Monte Idaho ao norte, a Grande Chã ao sul e as dunas ondulantes
a leste, estendendo-se na direção da Colina de Habbanya.
Redemoinhos sinuosos de poeira, na esteira de uma tempestade,
ocultavam o horizonte ao sul. O luar aplicava um brilho de geada à
borda da Muralha-Escudo.
Stilgar havia ido a contragosto, mas afinal estava participando
daquela aventura sigilosa porque Leto provocara sua curiosidade.
Por que era necessário arriscar uma travessia das areias à noite?
O rapaz tinha ameaçado escapulir e fazer essa viagem sozinho
caso Stilgar se recusasse a acompanhá-lo. O modo como aquilo
estava acontecendo o deixava profundamente aborrecido, porém.
Dois alvos tão importantes, sozinhos e à noite!
Leto se agachou no pontal de pedra de frente para o sul e a
planície. De vez em quando dava um soco no joelho, como se
estivesse frustrado.
Stilgar esperava. Ele era bom para ficar esperando em silêncio
e se mantinha a dois passos de distância de sua incumbência, ao
lado dele e de braços cruzados, seu manto esvoaçando
suavemente com a brisa da noite.
Para Leto, a travessia das areias representava uma resposta à
sua agonia íntima, era uma necessidade de buscar novo
alinhamento para sua vida, em um silencioso conflito no qual
Ghanima não podia mais se arriscar. Ele havia manobrado Stilgar
para que este fosse com ele na viagem porque havia coisas que
Stilgar precisaria saber para se preparar para os tempos que
viriam.
Mais uma vez, Leto socou o joelho. Era difícil saber o começo!
Às vezes, ele se sentia como um prolongamento daquela
incontável série de outras vidas, todas tão reais e imediatas
quanto a sua. No fluxo dessas vidas não existia fim, não havia
conquistas: somente eternos começos. Elas também podiam ser
uma multidão, clamando para ele como se ele fosse a única janela
através da qual cada uma delas desejava espreitar. E ali estava o
perigo que havia destruído Alia.
Leto estendeu o olhar para abranger o luar que prateava os
resquícios da tempestade. Dobras e sobredobras de dunas
estendiam-se pela planície; sílica triturada alisada pelos ventos,
amontoada em ondas – areia fina, areia grossa, pedriscos. Ele se
sentiu preso em um desses momentos contemplativos, pouco
antes do amanhecer. O tempo o estava pressionando. Já estavam
no mês de Akkad e atrás dele jazia o último trecho de um
interminável tempo de espera: dias quentes e longos, ventos
secos e quentes, noites como essa, atormentadas por rajadas e
ventanias incessantes que vinham das terras escaldantes do bled
do Gavião. Ele olhou por cima do ombro na direção da Muralha-
Escudo, uma linha interrompida à luz das estrelas. Além da
muralha, na Bacia do Norte, jazia o foco de seus problemas.
Mais uma vez, Leto olhou o deserto. Enquanto esquadrinhava
as trevas tórridas, o dia rompeu e o sol se ergueu por entre faixas
e faixas de poeira, assentando um toque amarelo-esverdeado nas
bordas vermelhas da tempestade. Ele fechou os olhos, e em seu
íntimo decidiu ver como este dia nasceria em Arrakina, naquela
cidade que se abria à sua consciência, disposta como caixotes
espalhados entre a luz e as novas sombras. Deserto... caixas...
deserto... caixas...
Quando tornou a abrir os olhos, o deserto seguia ali,
imperturbável: uma mancha imensa, cor de curry, de areias
espicaçadas pelo vento. Sombras oleosas na base de cada duna se
estendiam adiante como raios da noite recém-encerrada, ligando
um tempo a outro. Ele pensou na noite, acocorado ali com o aflito
Stilgar ao lado, preocupado com seu silêncio e com a inexplicável
razão para terem vindo até aquele lugar. Com toda a sua idade,
Stilgar devia ter muitas recordações de passar momentos assim
com seu adorado Muad’Dib. Stilgar continuava se mexendo,
olhando atentamente para todos os lados, em alerta máximo para
eventuais perigos. Ele não gostava de estar ao ar livre durante o
dia. Quanto a isso, era fremen até a alma.
Em sua mente, Leto relutava em deixar a noite e o limpo
esforço de uma travessia das areias. Assim que chegara a esse
local entre as rochas, a noite havia assumido sua negra quietude.
Ele simpatizava com os receios de Stilgar quanto à luz do dia. O
negrume era uma coisa só ainda que contivesse terrores
fervilhantes. A luz podia ser muitas coisas. A noite guardava os
odores do medo e as coisas que se achegavam com sons
resvalantes. À noite, as dimensões se separavam, tudo era
amplificado: os espinhos eram mais pontiagudos; as lâminas,
mais cortantes. Mas os terrores do dia podiam ser ainda piores.
Stilgar pigarreou.
– Estou com um problema sério, Stil – Leto falou sem se virar.
– Foi o que suspeitei. – A voz ao lado de Leto veio baixa e tensa.
A criança tinha falado de um jeito perturbadoramente
semelhante ao de seu pai. Era coisa da magia proibida que fazia
soar um acorde de repulsa em Stilgar. Os fremen sabiam o que era
o terror da possessão. Os que eram encontrados em estado de
possessão eram legalmente mortos e sua água era lançada à areia
para que não contaminasse a cisterna tribal. Os mortos deviam
permanecer mortos. Era correto encontrar a própria
imortalidade nos filhos, mas as crianças não tinham o direito de
assumir de maneira exata demais uma forma de seu passado.
– Meu problema é que meu pai deixou muitas coisas por fazer –
Leto prosseguiu. – Especialmente o foco de nossas vidas. O
Império não pode prosseguir desse jeito, Stil, sem um foco
adequado para a vida humana. Estou falando da vida, entende?
Da vida, não da morte.
– Certa vez, quando seu pai ficou perturbado por uma visão, ele
falou comigo dessa maneira – Stilgar comentou.
Leto se sentiu tentado a ignorar aquele medo questionador
vibrando ao seu lado por meio de uma resposta superficial, talvez
mencionando que poderiam tomar o desjejum. Ele percebeu que
estava com muita fome. Tinham feito uma refeição ao meio-dia do
dia anterior e Leto insistira em jejuar a noite toda. Mas agora
havia outra fome a atraí-lo.
O problema com a minha vida é o problema deste lugar, Leto
estava pensando. Nenhuma criação preliminar. Eu apenas fico
voltando cada vez mais para trás, até que a distância se dissipe.
Não consigo enxergar o horizonte. Não consigo enxergar a Colina
de Habbanya. Não consigo encontrar o lugar original da prova.
– Realmente, não há substituto para a presciência – Leto disse.
– Talvez eu deva me arriscar com a especiaria...
– E ser destruído como foi seu pai?
– Que dilema – murmurou Leto.
– Uma vez seu pai me confidenciou que conhecer o futuro bem
demais era ficar trancado dentro dele, excluindo toda liberdade
de mudar.
– O paradoxo que é o nosso problema – Leto anuiu. – Coisa sutil
e poderosa, a presciência. O futuro se torna o agora. Ter olhos em
terra de cego acarreta seus perigos. Se você tenta interpretar
para o cego o que você está vendo, o mais provável é que se
esqueça de que o cego tem um movimento inerente condicionado
por sua cegueira. Os cegos são como máquinas monstruosas
seguindo adiante por um caminho todo seu. Eles têm seu próprio
impulso, suas próprias fixações. Tenho medo dos cegos, Stil.
Tenho medo deles. Eles conseguem esmagar facilmente qualquer
coisa que esteja em seu caminho.
Stilgar contemplou o deserto. A aurora amarelo-esverdeada
havia se transformado num dia claro como aço. Ele questionou:
– Por que foi que viemos para cá?
– Porque eu queria que você visse o lugar em que eu talvez
morra.
Stilgar ficou tenso. Subitamente, exclamou:
– Então você teve uma visão!
– Pode ter sido só um sonho.
– Por que você vem a lugares tão perigosos? – Stilgar olhou
intensamente para sua incumbência, agachada nos próprios
calcanhares. – Devemos regressar imediatamente.
– Não vou morrer hoje, Stil.
– Ah, não? O que foi sua visão?
– Vi três caminhos – revelou Leto. E a voz dele soou sonolenta,
como se saísse das brumas de remotas reminiscências. – Um
desses futuros exige que eu mate nossa avó.
Stilgar desferiu uma olhada penetrante na direção de Sietch
Tabr como se receasse que lady Jéssica conseguisse escutá-los ali
no deserto, atravessando toda essa distância.
– Por quê?
– Para impedir a perda do monopólio da especiaria.
– Não entendo.
– Nem eu. Mas esse é o pensamento no meu sonho, quando uso
a faca.
– Oh. – Stilgar entendia o uso de uma faca. Então, inspirou
fundo. – E qual é o segundo caminho?
– Ghani e eu nos casamos para garantir a descendência
Atreides.
– Nãããão! – Stilgar soltou o ar com uma violenta expressão de
nojo.
– Nos tempos antigos era comum que reis e rainhas fizessem
isso – Leto lembrou. – Ghani e eu decidimos que não
procriaremos.
– Aconselho que sigam fielmente essa decisão! – Havia o som da
morte na voz de Stilgar. Pela lei dos fremen, o incesto era passível
de punição pela morte no tripé de enforcamento. Ele pigarreou de
novo e perguntou: – E o terceiro caminho?
– Sou chamado a reduzir meu pai à sua estatura humana.
– Ele era meu amigo, Muad’Dib – Stilgar murmurou.
– Ele era o seu deus! Devo desdeificá-lo.
Stilgar deu as costas ao deserto e lançou um longo olhar na
direção do oásis de seu amado Sietch Tabr. Essa espécie de
conversa sempre o inquietava.
Leto captou o odor suarento do movimento de Stilgar. Era forte
a tentação de evitar as coisas propositais que tinham de ser ditas
nesse lugar. Eles poderiam facilmente ficar falando pela metade
do dia, pulando do específico para o abstrato como se fossem
arrancados da esfera das verdadeiras decisões, da esfera das
necessidades imediatas que os confrontavam. E não havia dúvida
de que a Casa Corrino representava uma ameaça real a vidas
reais: a sua e a de Ghani. Mas tudo o que ele fizesse agora teria de
ser avaliado e testado em contraste com suas necessidades
secretas. Houve um dia em que Stilgar tinha votado pelo
assassinato de Farad’n, defendendo o uso sutil de chaumurky, o
veneno que era administrado numa bebida. Sabia-se que Farad’n
tinha predileção por certos líquidos doces. Isso não se poderia
permitir.
Leto então retomou o assunto:
– Caso eu morra aqui, Stil, você deve tomar cuidado com Alia.
Ela não é mais sua amiga.
– Que conversa é essa de morte e sua tia? – Agora, Stilgar
estava realmente indignado. Matar lady Jéssica! Cuidado com
Alia! Morrer neste lugar!
– Os homens pequenos mudam de rosto a uma ordem dela –
elucidou Leto. – O governante não precisa ser profeta, Stil. Nem
mesmo precisa ser divino. O governante só precisa ser sensível.
Eu o trouxe até aqui para deixar claro do que o nosso Imperium
necessita. Ele necessita de um bom governo. Isso não depende de
leis ou precedente, mas das qualidades pessoais de quem
governa.
– A regente dá conta de seus deveres imperiais bastante bem –
Stilgar retrucou. – Quando você atingir a maioridade...
– Já sou maior! Sou a pessoa mais velha daqui! Você é um bebê
chorão perto de mim. Eu consigo me lembrar de coisas várias
vezes mais antigas do que cinquenta séculos! Ah! Consigo me
lembrar inclusive de quando nós, fremen, estávamos em
Thurgrod.
– Por que você brinca com tais fantasias? – Stilgar questionou
em tom peremptório.
Leto assentiu para si, pensando. Por que mesmo? Por que
mencionar essas recordações de tantos séculos passados? Os
fremen de hoje eram seu problema imediato, e a maioria deles
ainda era um bando de selvagens semidomesticados, propensos a
gargalhar diante da inocência desafortunada.
– A dagacris se dissolve quando da morte de seu dono – Leto
murmurou. – Muad’Dib se dissolveu. Por que os fremen ainda
estão vivos?
Essa era uma daquelas mudanças abruptas de raciocínio que
tanto confundiam Stilgar. Ele se percebeu momentaneamente
parvo. Essas palavras continham outro sentido que lhe escapava.
– Esperam de mim que eu me torne imperador, mas devo ser o
serviçal – Leto explicou. Então, olhou por cima do ombro para
Stilgar. – Meu avô, de quem tenho o nome, acrescentou algumas
palavras a seu brasão quando veio para cá, para Duna: “Aqui
estou; aqui fico”.
– Ele não tinha escolha – Stilgar apontou.
– Muito bem, Stil. Eu também não tenho escolha. Devo ser o
imperador por nascimento, pela aptidão de meu intelecto, por
tudo o que existe em mim. Até mesmo sei do que o Imperium
necessita: um bom governo.
– “Naib” tem um significado antigo – Stilgar lembrou. – É o
serviçal do Sietch.
– Eu me lembro de seu treinamento, Stil – Leto assentiu. – Para
um bom governo, a tribo deve ter meios para escolher homens
cujas vidas reflitam de que modo o governo deve se comportar.
Do mais fundo de sua alma fremen, Stilgar complementou:
– Você envergará o Manto Imperial se for apropriado. Primeiro,
você deve provar que pode se comportar como um regente!
Inesperadamente, Leto riu. Então perguntou:
– Você duvida de minha sinceridade, Stil?
– Claro que não.
– De meu direito por nascimento?
– Você é quem é.
– E, se eu fizer o que se espera de mim, essa é a medida da
minha sinceridade, então?
– É o costume fremen.
– Então não posso ter sentimentos íntimos ditando meu
comportamento?
– Não entendo o que...
– Se eu sempre me comportar com propriedade, não importa
quanto me custe suprimir meus desejos pessoais, então essa é a
minha medida.
– Essa é a essência do autocontrole, meu jovem.
– Meu jovem! – Leto abanou a cabeça. – Ah, Stil, você me
apresenta a chave de uma ética racional de governo. Devo ser
constante, e todos os atos devem se originar das tradições
passadas.
– Isso é apropriado.
– Mas o meu passado alcança mais longe do que o seu!
– Que diferença...
– Stil, eu não tenho uma primeira pessoa do singular. Eu sou
uma pessoa múltipla com recordações de tradições mais antigas
do que você possa imaginar. Esse é o meu fardo, Stil. Sou focado
no passado. Sou cheio até a borda de um conhecimento inato que
resiste a inovações e mudanças. Mas Muad’Dib mudou tudo isso.
– Ele acenou na direção do deserto, seu braço descrevendo um
movimento amplo que abrangia toda a Muralha-Escudo atrás
dele.
Stilgar se virou para olhar para a Muralha-Escudo. Um povoado
tinha sido construído sob a muralha desde a época de Muad’Dib,
com casas para abrigar uma equipe de planetólogos que estava
ajudando a espalhar vida vegetal pelo deserto. Stilgar olhava
fixamente para aquela invasão da paisagem imposta pelo homem.
Mudança? Sim; naquele povoado havia alinhamento, havia uma
verossimilhança que o ofendia. Ele permaneceu em pé, imóvel e
em silêncio, ignorando o comichão que as partículas de poeira
grossa provocavam em sua pele sob o trajestilador. Aquele
povoado era uma ofensa contra o que este planeta tinha sido. De
repente, Stilgar queria um vento circular que viesse uivando e
saltasse sobre as dunas para encobrir de areia aquela localidade.
Essa sensação o deixou tremendo.
– Stil, você já reparou que novos trajestiladores são malfeitos? –
Leto observou. – Nossa perda de água aumentou muito.
Stilgar se deteve por uma fração de segundo antes de indagar:
Mas eu já não disse isso? Em lugar dessa pergunta, ele comentou:
– Nosso povo ficou muito mais dependente das pílulas.
Leto aquiesceu. As pílulas mudavam a temperatura do corpo,
reduziam a perda de água. Eram mais baratas e mais fáceis do
que os trajestiladores. Mas acarretavam outros ônus a quem as
usasse, entre eles um tempo de reação mais lento e visão nublada
de tempos em tempos.
– É por isso que viemos até aqui? – Stilgar perguntou. – Para
falar da fabricação dos trajestiladores?
– Por que não? – Leto indagou. – Já que você não encara o que
tenho de conversar com você.
– Por que preciso tomar cuidado com sua tia? – e a raiva
despontou em sua voz.
– Porque ela manipula o antigo desejo fremen de resistir a
mudanças, para então provocar uma mudança muito mais terrível
do que você possa imaginar.
– Você faz uma tempestade em copo d’água! Ela é uma fremen
completa.
– Ah! Então o fremen completo pratica os costumes do passado
e eu tenho um passado ancestral. Stil, se eu fosse dar livre curso a
essa inclinação, eu exigiria que a sociedade fosse fechada e
completamente dependente dos sagrados caminhos antigos. Eu
controlaria a migração, explicando que isso estimula novas ideias
e que novas ideias são uma ameaça à estrutura inteira da vida.
Cada pequena pólis planetária seguiria seu próprio caminho,
tornando-se o que pudesse. Finalmente, o Império sucumbiria
sob o peso de suas diferenças.
Stilgar tentou engolir em seco. Essas palavras que o próprio
Muad’Dib poderia ter pronunciado. Tinham o mesmo timbre dele.
Eram paradoxais, ameaçadoras. Mas se as mudanças fossem
permitidas... ele sacudiu a cabeça de um lado a outro.
– O passado pode mostrar o jeito certo de se comportar se você
vive no passado, Stil. Mas as circunstâncias mudam.
Stilgar só podia concordar que as circunstâncias de fato
mudam. Então, como é que as pessoas deveriam se comportar?
Ele olhou além de Leto e viu o deserto, mas sem vê-lo. Muad’Dib
tinha andado por ali. A planície era um lugar de sombras
douradas, conforme o sol ascendia, sombras cor de púrpura,
riachos pedregosos encristados por vapores poeirentos. A névoa
de poeira que normalmente pairava sobre a Colina de Habbanya
agora estava visível bem ao longe, e o deserto entre eles oferecia
aos seus olhos dunas que iam diminuindo, uma curva cedendo à
outra. Em meio aos fulgores esfumaçados do calor, ele viu plantas
que se esgueiravam desde a borda do deserto. Muad’Dib tinha
provocado o surgimento da vida naquele lugar desolado. Flores
cor de cobre, douradas, vermelhas, amarelas, cor de ferrugem e
castanho-avermelhadas, folhas verde-acinzentadas, espinhos e
sombras ásperas sob os arbustos. O movimento do calor do dia
espalhava sombras trêmulas que vibravam no ar.
Nesse momento, Stilgar suspirou:
– Sou apenas um líder dos fremen. Você é o filho de um duque.
– Sem saber o que disse, você disse – Leto apontou.
Stilgar fechou o cenho. Certa feita, havia muito tempo,
Muad’Dib tinha sido sarcástico com ele, do mesmo jeito.
– Você se lembra, não é, Stil? – Leto perguntou. – Estávamos
sob a Colina de Habbanya e o capitão Sardaukar, você se lembra
dele? Era Aramsham? Ele matou o próprio amigo para se salvar. E,
naquele dia, você me alertou várias vezes a respeito de preservar
a vida dos Sardaukar que tivessem visto nossos ritos secretos. No
fim, você disse que eles seguramente iriam revelar o que tinham
visto e que deviam ser mortos. Então, meu pai retrucou: “Sem
saber o que disse, você disse”. E você ficou magoado. Você disse a
ele que era um simples líder dos fremen. Os duques devem saber
coisas mais importantes.
Stilgar encarou Leto, ainda agachado rente do chão. Estávamos
sob a Colina de Habbanya? Nós! Esta... esta criança, que ainda não
tinha nem sido concebida nesse dia, sabia exatamente o que havia
acontecido, em detalhes que só poderiam ser do conhecimento de
alguém que de fato tivesse estado lá. Essa era somente outra
prova de que essas crianças Atreides não podiam ser julgadas
segundo os padrões habituais.
– Agora, ouça o que vou lhe dizer – Leto insistiu. – Se eu morrer
ou desaparecer no deserto, você deve fugir de Sietch Tabr. Eu
ordeno que faça isso. Você vai pegar Ghani e...
– Você ainda não é meu duque! Você é uma... criança!
– Sou um adulto na carne de uma criança – explodiu Leto. Então
indicou uma pequena fenda nas rochas embaixo deles. – Se eu
morrer aqui, será exatamente naquele local. Você verá o sangue.
Então saberá. Pegue minha irmã e...
– Vou dobrar sua guarda – Stilgar afirmou. – Você não virá mais
aqui. Agora nós vamos embora e...
– Stil! Você não pode me deter. Retome em sua mente mais uma
vez aquele momento na Colina de Habbanya. Está se lembrando?
A lagarta-usina, com o operador, estava lá fora, na areia, e um
grande Criador estava vindo. Não havia meios de salvar a lagarta
do verme, e meu pai ficou aborrecido porque não conseguiu salvá-
la. Mas Gurney só foi capaz de pensar nos homens que tinha
perdido na areia. Você se lembra do que ele lamentara? “Seu pai
se preocupa mais com os homens que ele não conseguiu salvar.”
Stil, eu o incumbo de salvar o povo. Eles são mais importantes do
que as coisas. E Ghani é a mais preciosa de todos porque, sem
mim, ela é a única esperança para os Atreides.
– Não vou ouvir mais nada – Stilgar grunhiu. Ele se virou e
começou a descer a parede de pedras na direção do oásis, do
outro lado da areia. Ele ouviu Leto, que o seguia. Então, o menino
o ultrapassou e, olhando para trás, ainda comentou:
– Stil, você reparou em como as moças estão lindas este ano?
A vida de um único humano, assim como a vida de
uma família ou de um povo inteiro, persiste como
lembrança. Meu povo deve chegar a ver isso
como parte de seu processo de amadurecimento.
Eles são povo como um organismo e, nessa
lembrança persistente, eles armazenam mais e
mais experiências num reservatório subliminar. A
humanidade espera poder recorrer a esse
material, se for preciso, para manter o universo
em constante mudança. Mas muitas coisas que
estão armazenadas podem ser perdidas em meio
àquele jogo de azar de acidentes que chamamos
“destino”. Muitas coisas podem não estar
integradas nesse relacionamento evolutivo e, por
isso, não podem ser avaliadas nem acionadas
pelas mudanças ambientais em andamento, as
quais se impõem à carne. A espécie pode
esquecer! Esse é o valor especial do Kwisatz
Haderach que as Bene Gesserit nunca
suspeitaram: o Kwisatz Haderach não pode
esquecer.
– O livro de Leto, conforme Harq al-Ada

Stilgar não conseguia explicar, mas ficou profundamente


perturbado com a informal observação de Leto. Enquanto faziam
o caminho de volta através das areias até Sietch Tabr, o
comentário ficou repercutindo em sua consciência, tornando-se
mais importante do que tudo o mais que Leto havia dito enquanto
estavam no Serviçal.
Realmente, as moças de Arrakis estavam lindas aquele ano. E
os rapazes também. O rosto deles todos tinha um brilho sereno,
fruto de sua riqueza de água. Seus olhos miravam longe.
Expunham seus traços com frequência, sem nenhum
encobrimento das máscaras dos trajestiladores e das serpentinas
ondulantes dos tubos coletores. Muitas vezes, nem mesmo
usavam os trajestiladores ao ar livre, preferindo novos trajes que,
quando andavam, ofereciam rápidos vislumbres de seus corpos
jovens e ágeis.
Essa beleza humana se manifestava contra o pano de fundo da
nova beleza da paisagem. Em contraste com o antigo Arrakis,
agora os olhos podiam ser hipnotizados pela visão de um pequeno
montinho de ramos verdes que crescia entre as rochas marrom-
avermelhadas. E os antigos distritos aglomerados no velho sietch,
com sua cultura da metrópole de cavernas, todos os seus
elaborados lacres e coletores de umidades em cada ponto de
acesso, agora estavam dando lugar a povoados ao ar livre, muitos
deles construídos com tijolos de barro. Tijolos de barro!
Por que eu desejei ver aquele povoado ser destruído?, Stilgar se
indagou, e tropeçou nos próprios pés.
Ele sabia que era um exemplar de uma raça moribunda. Os
antigos fremen perdiam o fôlego, maravilhados diante da
prodigalidade de seu planeta, em que a água era desperdiçada no
ar apenas por sua capacidade de moldar tijolos para edificações.
A água para a habitação de uma única família seria capaz de
manter um sietch inteiro vivo durante um ano.
As novas construções tinham inclusive janelas transparentes
para deixar entrar o calor do sol e dessecar os corpos que
estivessem lá dentro. Essas janelas se abriam para fora.
Os novos fremen, dentro de seus lares de barro, podiam olhar
para fora e contemplar a paisagem. Não ficavam mais contidos e
amontoados no sietch. Por onde se deslocava a nova visão,
também a imaginação se movimentava. Stilgar era capaz de
sentir isso. A nova visão unia os fremen ao restante do universo
imperial; condicionava-os a um espaço ilimitado. Antes, eles eram
presos a um Arrakis pobre em água, escravizados pelas
necessidades desse planeta. Não eram capazes de compartilhar
essa amplitude de perspectivas as quais condicionam os
habitantes da maioria dos planetas do Imperium.
Stilgar podia enxergar as mudanças contrastando com suas
próprias dúvidas e aflições. Antigamente, era raro o fremen que
sequer cogitava a possibilidade de poder sair de Arrakis para
começar uma nova vida em um dos mundos com água em
abundância. Não teria sido permitido nem mesmo sonhar em
escapar dali.
Ele viu as costas de Leto se afastando enquanto seguia adiante.
Leto tinha falado de proibições contra movimentos
extraplanetários. Bem, essa sempre fora uma realidade para a
maioria dos cidadãos de outros mundos, mesmo nos lugares em
que o sonho era autorizado como válvula de escape. Mas a
servidão planetária tinha alcançado seu clímax ali, em Arrakis. Os
fremen tinham se voltado para si mesmos, erguendo barricadas
em torno de suas mentes à semelhança das barricadas em que
haviam transformado seus distritos dentro das cavernas.
O próprio significado do sietch – local de refúgio em épocas
perigosas – tinha sido pervertido ali no monstruoso
confinamento de uma população inteira.
Leto dissera a verdade: Muad’Dib tinha mudado aquilo tudo.
Stilgar se sentiu perdido. Ele podia ouvir suas antigas crenças
desmoronando. A nova visão exterior produzia uma vida que
desejava se distanciar do confinamento.
“Como estão lindas as moças este ano.”
Os costumes antigos (Os meus costumes!, ele reconheceu)
tinham forçado o povo a ignorar a totalidade da história, exceto
aquela que se voltava para dentro e para seus próprios esforços.
Os antigos fremen tinham lido a história nascida de suas próprias
e terríveis migrações, de suas fugas de uma série de perseguições.
O antigo governo planetário tinha acatado a política consagrada
do velho Imperium. Haviam sido suprimidas a criatividade e toda
noção de progresso, de evolução. A prosperidade fora algo
perigoso no antigo Imperium e para os detentores do poder.
Com um choque abrupto, Stilgar tomou consciência de que
essas coisas eram igualmente perigosas no curso de
acontecimentos que Alia estava traçando.
Novamente, Stilgar tropeçou e ficou ainda mais para trás de
Leto.
No âmbito delineado pelos velhos costumes e as antigas
religiões, não existia futuro, só um agora interminável. Antes de
Muad’Dib, como Stilgar fora testemunha, os fremen tinham sido
condicionados a crer no fracasso, nunca na possibilidade de
conquistar algo. Bem... tinham acreditado em Liet-Kynes, mas ele
estipulara uma escala de tempo de quarenta gerações. Não havia
conquistas ou realizações; isso era um sonho que, como ele
percebia agora, também tinha se voltado para dentro.
Muad’Dib mudou isso!
Durante o jihad, os fremen haviam aprendido muitas coisas
sobre o velho imperador padixá, Shaddam IV. O 81º padixá da
Casa Corrino a ocupar o Trono do Leão Dourado e reinar sobre
este Imperium e seu número incontável de mundos tinha usado
Arrakis como local de testes para as políticas que esperava
implantar no restante do império. Seus governadores planetários
em Arrakis haviam cultivado um pessimismo persistente a fim de
promover sua base de poder. Tinham feito o possível para
assegurar que todos em Arrakis, inclusive os fremen com sua
liberdade de ir e vir, se acostumassem com os numerosos casos
de injustiça e de problemas insolúveis. Todos tinham sido
ensinados a pensar em si mesmos como um povo impotente, para
o qual não havia socorro possível.
“Como estão lindas as moças este ano!”
Olhando Leto, que se afastava mais e mais, Stilgar começou a
ponderar sobre como o jovem tinha disparado esse fluxo de
pensamentos – e apenas fazendo um comentário aparentemente
tão despretensioso. Por causa desse comentário, Stilgar se viu
considerando Alia e seu próprio papel no Conselho de uma
maneira totalmente diferente.
Alia gostava de dizer que os costumes antigos cediam terreno
devagar. Stilgar admitia, em seu íntimo, que sempre se sentira
vagamente reconfortado por essa constatação. Mudanças eram
perigosas. As invenções deviam ser suprimidas. A força de
vontade individual devia ser negada. A que outra função o
sacerdócio servia senão negar a vontade individual?
Alia sempre dizia que as oportunidades para uma competição
escancarada tinham de ser reduzidas a limites administráveis.
Mas isso queria dizer que a recorrente ameaça da tecnologia só
poderia ser usada para confinar populações, assim como tinha
servido a seus antigos mestres. A tecnologia que tivesse
autorização para funcionar tinha de ser baseada em rituais.
Senão... senão...
Mais uma vez, Stilgar tropeçou. Agora, estava no qanat e viu
Leto esperando sob um pomar de pés de damascos que cresciam
acompanhando a margem do canal de água. Stilgar ouviu os pés
dele se movimentando através da relva alta.
Relva alta!
Em que posso acreditar?, Stilgar indagou a si mesmo.
Era adequado que um fremen de sua geração acreditasse que
as pessoas precisavam de uma intensa noção de suas próprias
limitações. As tradições eram, sem dúvida, o elemento mais
controlador de uma sociedade segura. As pessoas tinham de
saber quais eram os limites de seu tempo, de sua sociedade, de
seu território. O que havia de errado com o sietch como modelo
para todos os pensamentos? A sensação de contenção deveria
permear as escolhas de todas as pessoas; deveria incluir e cercear
a família, a comunidade e cada passo dado por um governo
apropriado.
Stilgar acabou parando e estendeu o olhar para alcançar Leto,
no pomar. O jovem estava ali, parado, olhando para ele e sorrindo.
Será que ele conhece o turbilhão dos meus pensamentos?,
perguntou-se Stilgar.
E o velho naib fremen tentou recorrer ao catecismo tradicional
de seu povo. Cada aspecto da vida exigia uma forma única, e sua
circularidade inerente devia se basear no conhecimento interior
secreto do que dará certo e do que não dará certo. O modelo de
vida, de comunidade, de cada elemento dentro da sociedade
geral, alcançando até os píncaros do governo e mais além, tinha
de ser o sietch e sua contraparte na areia: Shai-hulud. O
gigantesco verme de areia era, sem sombra de dúvida, uma
criatura formidável, mas quando se sentia ameaçada ela se
escondia nas mais impenetráveis profundezas.
Mudar é perigoso!, Stilgar repetiu para si mesmo. Manter tudo
sem mudanças e estável era o objetivo mais apropriado de um
governo.
Mas os rapazes e as moças estavam lindos.
E eles lembravam as palavras de Muad’Dib quando da
destituição de Shaddam IV: “Não é vida longa para o imperador o
que eu busco; é longa vida para o Imperium”.
E não é isso que eu venho dizendo para mim mesmo?, Stilgar
pensou.
Ele recomeçou a andar, na direção da entrada do sietch, que
ficava ligeiramente à direita de onde estava Leto. O jovem se
adiantou para interceptá-lo.
Muad’Dib tinha dito outra coisa, como Stilgar estava se
lembrando naquele instante: “Assim como os indivíduos nascem,
amadurecem, se reproduzem e morrem, também acontece com as
sociedades, as civilizações e os governos”.
Perigosa ou não, a mudança aconteceria. Os belos jovens
fremen sabiam disso. Eles eram capazes de olhar adiante,
enxergar isso e se preparar para tanto.
Stilgar foi forçado a parar. Ou fazia isso ou atropelava Leto.
O jovem olhou para ele com a expressão curiosa e intensa de
uma coruja e disse:
– Você percebe, Stil? A tradição não é o guia absoluto que você
achou que fosse.
O fremen morre quando fica longe demais do
deserto. A isso chamamos “mal da água”.
– Stilgar, os Comentários

– É difícil para mim pedir-lhe que faça isso – Alia murmurou. –


Mas... devo me certificar de que exista um império para os filhos
de Paul herdarem. Não existe outra razão para esta Regência.
Alia, que estava sentada diante de um espelho completando
sua toalete matinal, virou-se para olhar para o marido, avaliando
de que maneira ele teria assimilado essas suas palavras. Duncan
Idaho merecia um estudo cuidadoso em momentos assim. Não
havia nenhuma dúvida de que ele tinha se tornado uma criatura
muito mais sutil e perigosa do que o antigo mestre-espadachim
da Casa Atreides. Por fora, sua aparência continuava a mesma –
os cabelos negros e encaracolados caindo sobre traços escuros –,
mas, nos longos anos que haviam decorrido desde que despertara
de seu estado ghola, ele havia passado por uma verdadeira
metamorfose interior.
Tal como já lhe havia ocorrido muitas vezes antes, ela se
perguntava o que o renascimento ghola após a morte poderia ter
ocultado na sigilosa solidão que ele era. Antes que os Tleilaxu
tivessem trabalhado com ele, usando sua ciência sutil, as reações
de Duncan tinham sempre trazido claras identificações para os
Atreides: lealdade, adesão fanática ao código moral de seus
antepassados mercenários, rápido para sentir raiva e rápido para
se recobrar. Ele fora implacável em sua resolução de se vingar da
Casa Harkonnen. E tinha morrido salvando Paul. Mas os Tleilaxu
tinham comprado seu corpo dos Sardaukar e, em seus tanques de
regeneração, produziram um zumbi-katrundo: a carne de Duncan
Idaho, mas nenhuma de suas recordações conscientes. Ele fora
treinado como um Mentat e enviado como um presente, um
computador humano para Paul, um belo utensílio equipado com
uma compulsão hipnótica para matar seu dono. A carne de
Duncan Idaho tinha resistido a essa compulsão e, sob um estresse
intolerável, seu passado celular lhe havia voltado.
Há muito tempo, Alia tinha decidido que era perigoso pensar
nele como Duncan, na privacidade de seus pensamentos. Era
melhor pensar nele com seu nome ghola: Hayt. Muito melhor. E
era essencial que ele não tivesse nem a mais leve suspeita de que o
velho barão Harkonnen estivesse sentado bem ali, na mente de
Alia.
Duncan viu que Alia o estudava e deu-lhe as costas. O amor não
era capaz de esconder as mudanças que ocorriam nela, nem
ocultar dele a transparência dos motivos dela. Os olhos metálicos
multifacetados que os Tleilaxu lhe haviam implantado eram
cruéis em sua capacidade de enxergar nitidamente através de um
logro. Agora, eles a delineavam como uma figura inchada, quase
masculina, e ele não suportava enxergá-la assim.
– Por que se virou de costas? – Alia perguntou.
– Preciso refletir sobre uma coisa – ele respondeu. – Lady
Jéssica é uma... Atreides.
– E sua lealdade é com a Casa Atreides, não comigo – Alia
comentou, com um muxoxo.
– Não coloque em mim essas interpretações mesquinhas – ele a
admoestou.
Alia fez bico. Será que teria se movimentado depressa demais?
Duncan cruzou a passagem da alcova que se abria para um
canto da praça do Templo. Dali, podia ver os peregrinos que
começavam a se reunir lá embaixo, e os comerciantes de Arrakina
se aproximando para obter seus lucros com quem estivesse na
borda da multidão, como uma matilha de predadores caindo
sobre um bando de presas. Seus olhos focalizavam um grupo
específico de comerciantes, cujas cestas de fibra de especiaria
vinham penduradas em seus braços, enquanto mercenários
fremen se mantinham atrás, à distância de um passo. Todos
andavam como uma força compacta através da turba apinhada.
– Eles vendem peças de mármore entalhado – ele murmurou,
apontando. – Você sabia? Eles colocam as peças no deserto para
que sejam entalhadas pelas tempestades de areia. Às vezes,
encontram padrões interessantes na pedra. Chamam isso de uma
nova forma de arte, muito popular: mármore genuíno de Duna,
esculpido pelas tempestades. Comprei uma dessas peças na
semana passada: uma árvore dourada com cinco pendões, linda,
mas muito frágil.
– Não mude de assunto – Alia resmungou.
– Não mudei de assunto – ele respondeu. – É uma coisa linda,
mas não é arte. Os humanos criam arte com sua própria violência,
por vontade própria. – Ele colocou a mão direita no peitoril da
janela. – Os gêmeos detestam esta cidade e acho que entendo por
quê.
– Não estou entendendo a ligação – Alia admitiu. – O sequestro
de minha mãe não é um verdadeiro sequestro. Ela ficará a salvo
como sua refém.
– Esta cidade foi construída por cegos – ele disse. – Você sabia
que Leto e Stilgar saíram de Sietch Tabr e foram para o deserto,
na semana passada? Ficaram lá fora a noite toda.
– Recebi esse relatório – ela comentou. – Essas bugigangas da
areia... você quer que eu proíba a venda dessas coisas?
– Isso seria ruim para os negócios – ele advertiu, voltando-se
para ela. – Você sabe o que Stilgar disse quando eu perguntei por
que eles tinham ido para a areia daquele jeito? Ele disse que Leto
tinha desejado comungar com o espírito de Muad’Dib.
Alia sentiu o súbito gelo do pânico. Olhou-se então ao espelho
por um instante para se recuperar. Leto não sairia do sietch à
noite por uma razão tão despropositada. Seria uma conspiração?
Idaho colocou uma mão sobre os olhos para impedir-se de ver a
mulher e então continuou:
– Stilgar me disse que foi junto com Leto porque ele ainda
acredita em Muad’Dib.
– Claro que ele acredita!
Idaho deu uma risadinha para dentro, um som cavo.
– Ele disse que ainda acredita porque Muad’Dib sempre cuidou
das pessoas pequenas.
– E o que você respondeu a isso? – Alia indagou, e sua voz traiu
o medo que sentia.
Idaho tirou a mão que tapava os olhos.
– Eu disse: “Isso deve tornar você uma das pessoas pequenas”.
– Duncan! Esse é um jogo perigoso. Se você atiçar esse naib
fremen, pode acabar acordando uma fera que irá destruir a todos
nós.
– Ele ainda acredita em Muad’Dib – Idaho insistiu. – Essa é a
nossa proteção.
– E qual foi a resposta dele?
– Ele disse que conhecia seus próprios pensamentos.
– Entendo.
– Não... não acho que você entenda. Coisas que mordem têm
dentes maiores do que os de Stilgar.
– Não estou entendendo você hoje, Duncan. Peço que você faça
uma coisa muito importante, algo vital para... E o que é toda essa
ladainha?
Que petulante essa maneira de falar. Ele se voltou para a janela
larga.
– Quando fui treinado como Mentat... É muito difícil, Alia,
aprender como exercitar a própria mente. Primeiro, você aprende
que a mente deve ter condições de exercitar a si mesma, e isso é
muito estranho. Você pode exercitar seus músculos, trabalhar
para deixá-los fortes, mas a mente atua sozinha. Às vezes, quando
você já sabe isso sobre o funcionamento mental, a mente lhe
mostra coisas que você não quer enxergar.
– E foi por isso que você tentou insultar Stilgar?
– Stilgar não conhece sua mente; ele não deixa que ela aja com
liberdade.
– Exceto nas orgias com a especiaria.
– Nem assim. É isso que faz dele um naib. Para ser um líder de
homens, ele controla e limita as próprias reações. Faz o que é
esperado dele. Assim que você sabe como é isso, você conhece
Stilgar e pode medir o tamanho dos dentes dele.
– É assim que os fremen funcionam – ela concluiu. – Bem,
Duncan, você vai fazer o que pedi ou não? Ela deve ser raptada e
tem de parecer que foi obra da Casa Corrino.
Ele ficou em silêncio, avaliando o tom de voz dela e seus
argumentos conforme seu treino de Mentat. Esse plano de
sequestro mostrava uma frieza e uma crueldade cujas dimensões,
reveladas dessa maneira, deixaram-no chocado. Arriscar a vida
de sua própria mãe pelos motivos apresentados até agora? Alia
estava mentindo. Talvez os rumores sobre Alia e Javid fossem
verdadeiros. Esse pensamento causou uma tensão gélida em seu
estômago.
– Você é o único em quem posso confiar para executar essa
missão – ela murmurou.
– Eu sei.
Alia interpretou esse comentário como a aceitação dele, e
sorriu para si mesma ao espelho.
– Você sabe – comentou Idaho – que o Mentat aprende a olhar
cada humano como uma série de relacionamentos.
Alia não respondeu. Ela se sentou, capturada por uma
lembrança pessoal que lançava uma expressão vazia em seu
rosto. Olhando para ela por cima do ombro, Idaho viu essa
expressão e estremeceu. Era como se ela estivesse comungando
com vozes que só ela podia ouvir.
– Relacionamentos – ele sussurrou.
E pensou: A pessoa tem de se desvencilhar de velhas agonias, da
mesma maneira como as cobras se desvencilham da pele para
depois crescer outra, e aceitar todas essas limitações. É a mesma
coisa com os governos – inclusive com a Regência. Os velhos
governos podem ser rastreados como peles descartadas. Devo
executar esse plano, mas não do modo como Alia ordena.
Nesse instante, Alia sacudiu os ombros e disse:
– Leto não deveria sair ao ar livre desse jeito, nos tempos que
correm. Irei repreendê-lo.
– Nem mesmo com Stilgar?
– Nem com ele.
Ela se levantou e saiu da frente do espelho, foi até onde Idaho
estava em pé, ao lado da janela, e colocou a mão em seu braço.
Ele reprimiu um calafrio, reduzindo sua reação a um cálculo
Mentat. Algo nela era repulsivo a ele.
Algo nela.
Ele não conseguia olhar para ela. Sentia o aroma do mélange
nos cosméticos que ela usava. Idaho pigarreou.
– Hoje ficarei ocupada examinando os presentes enviados por
Farad’n – Alia avisou.
– As roupas?
– Sim. Nada do que ele faz é o que parece. E devemos lembrar
que esse bashar, Tyekanik, é adepto do chaumurky, do chaumas e
de todas as demais sutilezas dos assassinatos reais.
– O preço do poder – ele murmurou, afastando-se dela. – Mas
ainda temos espaço para nos movimentar e Farad’n, não.
Ela estudou aquele perfil de traços cinzelados. Às vezes, era
difícil perceber o sentido das ideias dele. Será que pensava
apenas que a liberdade de ação dava vida ao poder militar? Bem, a
vida em Arrakis já era segura havia muito, muito tempo. Os
sentidos que antes eram exercitados por perigos onipresentes
poderiam degenerar se não fossem usados.
– Sim – ela concordou –, ainda temos os fremen.
– Mobilidade – ele repetiu. – Não podemos degenerar numa
infantaria. Isso é tolo demais.
O tom de voz dele deixou-a aborrecida e ela argumentou:
– Farad’n fará uso de qualquer meio para nos destruir.
– Ah, é isso – ele sussurrou. – Essa é uma forma de iniciativa,
uma mobilidade que não tínhamos antigamente. Tínhamos um
código, o código da Casa Atreides. Sempre pagávamos por nossas
ações e deixávamos o inimigo ser o saqueador. Essas restrições
não se aplicam mais, evidentemente. Somos igualmente móveis, a
Casa Atreides e a Casa Corrino.
– Nós raptaremos a minha mãe para salvá-la de danos tanto
quanto por qualquer outro motivo – explodiu Alia. – Ainda
vivemos segundo o código!
Ele olhou para ela. Ela sabia o perigo de provocar um Mentat a
computar. Será que ela não se dava conta do que ele havia
computado? Não obstante... ele ainda a amava. Duncan passou a
mão nos olhos. Como ela parecia jovem. Lady Jéssica tinha razão:
Alia dava a impressão de não ter envelhecido um único dia após
todos esses anos juntos. Ainda exibia os traços suaves de sua mãe
Bene Gesserit, mas com olhos Atreides – medindo, exigindo,
agudos como os de um gavião. E agora havia algo dotado de uma
cruel capacidade de cálculo espreitando no fundo daqueles olhos.
Idaho tinha servido a Casa Atreides por um número de anos
grande demais para deixar de entender as forças e as fraquezas
daquela família. Mas essa coisa em Alia... isso era novidade. Os
Atreides podiam jogar pesado e de maneira desleal contra seus
inimigos, mas nunca contra amigos e aliados e em absoluto contra
a própria família. Isso era algo entranhado no modo Atreides de
ser: apoiar o próprio povo o melhor que pudesse; mostrar a todos
como viviam melhor sendo governados pelos Atreides.
Demonstre o amor pelos amigos com a cordialidade de sua
conduta em relação a eles. Mas o que Alia estava pedindo agora
não era algo Atreides. Ele sentia isso com cada fibra de sua nova
carne, com cada nova terminação nervosa de sua atual estrutura.
Ele era uma unidade, indivisível, que captava em Alia uma atitude
alheia.
De súbito, o aparato sensorial desse Mentat estalou e entrou
em total lucidez, e sua mente entrou naquele torpor congelado
em que o Tempo deixava de existir, em que apenas existia a
computação. Alia iria reconhecer o que tinha acontecido com ele,
mas isso era algo que não se podia evitar. Ele se rendeu à
computação.
Computação: uma lady Jéssica refletida levava uma pseudovida
na consciência de Alia. Ele enxergava isso assim como enxergava
o reflexo de Duncan Idaho pré-ghola, que permanecia uma
constante em sua própria consciência. Alia tinha essa consciência
sendo uma pré-nascida. Ele tinha essa consciência tendo sido
produzido nos tanques de regeneração dos Tleilaxu. Apesar
disso, Alia negava esse reflexo, colocando a vida de sua mãe em
risco. Portanto, Alia não estava em contato com essa pseudo-
Jéssica em seu interior. Portanto, Alia estava completamente
possuída por outra pseudovida, o que excluía todas as outras.
Possuída!
Força alheia!
Abominação!
Conforme o paradigma Mentat, ele aceitou isso e se voltou para
outras facetas deste problema. Todos os Atreides estavam neste
único planeta. Será que a Casa Corrino se arriscaria a desfechar
um ataque oriundo do espaço? A mente de Idaho, como um
relâmpago, passou em revista aquelas convenções que tinham
dado fim às formas primitivas de guerrear:
Primeira – Todos os planetas eram vulneráveis a ataques
vindos do espaço, portanto, instalações de retaliação/vingança
foram montadas fora do planeta por toda a Casa Maior. Farad’n
devia saber que os Atreides não teriam omitido uma precaução
tão elementar quanto essa.
Segunda – Escudos de força eram uma defesa completa contra
projéteis e explosivos de tipo não atômico, razão elementar pela
qual conflitos corporais tinham sido reintroduzidos no combate
entre humanos. Mas a infantaria tinha seus limites. A Casa
Corrino poderia ter trazido seus Sardaukar de volta a uma forma
pré-Arrakina, mas ainda não eram oponentes à altura da
desgarrada ferocidade dos fremen.
Terceira – O feudalismo planetário continuava em constante
perigo vindo de uma grande classe técnica, mas os efeitos do
Jihad Butleriano continuavam a conter os excessos tecnológicos.
Ixianos, Tleilaxu e uns poucos planetas dispersos eram a única
possível ameaça nesse sentido, e eram vulneráveis como planetas
diante da fúria combinada do resto do Imperium. O Jihad
Butleriano não seria desfeito. A guerra mecanizada exigia uma
grande classe de técnicos. O Imperium Atreides tinha canalizado
essa força para outras iniciativas. Não existia uma grande classe
técnica sem supervisão. E o Império permanecia protegidamente
feudalista, naturalmente, uma vez que esta era a melhor forma
social para se disseminar por fronteiras incultas e amplamente
espalhadas: novos planetas.
Duncan sentia sua consciência Mentat coruscando enquanto
disparava através de dados de memória autorreferenciados e
completamente blindados à passagem do tempo. A percepção de
que a Casa Corrino não se arriscaria a um ataque atômico ilegal se
deu através dos principais trajetos decisórios da computação
instantânea, mas ele estava perfeitamente ciente de quais
elementos constituíam sua convicção: o Imperium comandava
tantas armas nucleares e aliadas quanto todas as demais Grandes
Casas em conjunto. Pelo menos metade das Grandes Casas
reagiria sem pensar se a Casa Corrino rompesse com a
Convenção. O sistema Atreides de retaliação extraplanetária
contaria com o acréscimo de uma força avassaladora, sem
nenhuma necessidade de sequer convocá-la. O medo faria o
chamado. Salusa Secundus e seus aliados desapareceriam em
meio a nuvens fumegantes. A Casa Corrino não correria o risco de
um holocausto de tais dimensões. Eles sem dúvida estavam sendo
sinceros quando endossaram o argumento de que as armas
nucleares eram uma reserva para um único propósito: defender a
humanidade no caso de uma “outra inteligência” ameaçadora vir
a confrontá-la algum dia.
Os pensamentos computacionais tinham gumes nítidos,
tinham um perfil incisivo. Não havia meios tons indistintos. Alia
escolhia o sequestro e o terror porque havia se tornado uma força
alheia, deixara de ser Atreides. A Casa Corrino era uma ameaça,
mas não da maneira como Alia argumentara no Conselho. Alia
queria que lady Jéssica fosse removida porque aquela penetrante
inteligência Bene Gesserit tinha enxergado o que somente agora
tinha ficado claro para ele.
Idaho se desemaranhou do estado de transe Mentat e viu que
Alia estava em pé à sua frente com uma fria expressão de
mensuração em seu rosto.
– Você não acharia melhor se lady Jéssica fosse morta? – ele
indagou.
O lampejo alienígena do júbilo revelou-se aos olhos dele por um
súbito instante antes de ser mascarado por um falso movimento
de indignação:
– Duncan!
Sim, essa força alheia em Alia preferia o matricídio.
– Você teme sua mãe; não teme por ela – ele observou.
Ela falou sem mudar em nada sua mirada mensuradora:
– Claro que sim. Ela me denunciou para a Irmandade.
– O que você quer dizer?
– Você não sabe qual é a maior tentação para uma Bene
Gesserit? – Ela se aproximou dele, sedutora, olhando para cima,
buscando-o com o olhar por entre os cílios. – Só pensei em me
manter forte e alerta pelo bem dos gêmeos.
– Você falou de tentação – ele disse, e sua voz tinha o timbre
Mentat inflexível.
– É aquilo que a Irmandade esconde mais profundamente,
aquilo que elas mais temem. É por isso que me chamam de
Abominação. Elas sabem que as inibições que praticam não vão
me conter. Tentação, disso elas sempre falam com forte ênfase: a
Grande Tentação. Veja, nós que utilizamos os ensinamentos Bene
Gesserit podemos influenciar coisas tais como o ajuste interno do
equilíbrio enzimático em nosso corpo. Isso pode prolongar a
juventude, por muito mais tempo do que o mélange. Você percebe
as consequências, caso as Bene Gesserit façam isso? Seria
notório. Estou certa de que você computa a exatidão do que estou
dizendo. O mélange é o que nos torna alvos de tantos complôs.
Controlamos uma substância que prolonga a vida. E se viesse a
ser conhecido que as Bene Gesserit controlavam um segredo
ainda mais potente? Você entende! Nenhuma Reverenda Madre
estaria mais a salvo. Raptar e torturar Bene Gesserit se tornariam
atividades corriqueiras.
– Você conseguiu realizar esse equilíbrio enzimático. – Ele disse
isso como uma constatação, não como uma interrogação.
– Desafiei a Irmandade! Os relatos de minha mãe para a
Irmandade farão das Bene Gesserit aliadas inabaláveis da Casa
Corrino.
Tão plausível, pensou Duncan.
Ele testou:
– Mas, sem dúvida, sua própria mãe não se voltaria contra você!
– Ela era Bene Gesserit muito antes de ser minha mãe. Duncan,
ela permitiu que seu próprio filho, meu irmão, fosse submetido ao
teste do gom jabbar! Ela providenciou tudo! E ela sabia que ele
talvez não sobrevivesse! As Bene Gesserit sempre foram de pouca
fé e muito pragmatismo. Ela agirá contra mim se acreditar que
assim servirá melhor aos interesses da Irmandade.
Ele aquiesceu. Ela era de fato convincente. Triste constatação.
– Devemos manter a iniciativa – ela concluiu. – Essa é a nossa
arma mais afiada.
– Há o problema de Gurney Halleck – ele observou. – Terei de
matar meu velho amigo?
– Gurney partiu em alguma missão de espionagem no deserto –
ela comentou, sabendo que Idaho já estava perfeitamente
inteirado disso. – Ele está a salvo.
– Muito estranho – murmurou Duncan – que o governador
regente de Caladan esteja executando tarefas por aqui, em
Arrakis.
– Por que não? – Alia contrapôs. – Ele é o amante dela... nos
sonhos dele, se não de fato.
– Sim, claro. – E ele se perguntou se ela não teria captado a
insinceridade de sua voz.
– Quando é que você vai raptá-la? – Alia perguntou.
– É melhor que você não saiba.
– Sim... sim, entendo. Para onde irá levá-la?
– Para onde não possa ser achada. Pode confiar nisso. Ela não
ficará por aqui para ameaçá-la.
O contentamento nos olhos de Alia não podia ser ignorado.
– Mas para onde...
– Se você não souber, então, poderá responder a uma
Proclamadora da Verdade que não sabe onde ela está se for
necessário.
– Ah, Duncan, muito esperto.
Agora ela acredita que eu matarei lady Jéssica, ele pensou. E
então disse:
– Adeus, querida.
Ela não percebeu o tom de despedida na voz dele, e chegou até
a beijá-lo de leve quando ele estava de saída.
E ao longo de todo o trajeto em meio ao labirinto do Templo,
que lembrava os meandros do sietch, Idaho ficou limpando os
olhos. Olhos tleilaxu não eram imunes a lágrimas.
Você amou Caladan
E lamentou seu anfitrião desaparecido
Mas a dor descobre
Novos amores não podem apagar
Os fantasmas eternos.
– Refrão do Lamento de Habbanya

Stilgar quadruplicou a guarda do sietch dedicada aos gêmeos,


mas sabia que era inútil. O garoto era como seu parente Atreides
de mesmo nome, seu avô Leto. Todos os que tinham conhecido o
duque original comentavam isso. Leto tinha a atitude de quem
ponderava tudo, e cautela também, claro; mas tudo isso tinha de
ser cotejado com aquela selvageria latente, aquela propensão a
tomar decisões perigosas.
Já Ghanima era mais como sua mãe. Possuía os cabelos ruivos
de Chani, os olhos dela e uma maneira calculada de ser quando se
ajustava a dificuldades. Ela costumava dizer que só fazia o que
tinha de ser feito, mas seguia Leto aonde quer que ele a
conduzisse.
E Leto iria conduzi-los ao perigo.
Nem uma única vez Stilgar cogitou mencionar seu problema
com Alia. Isso eliminava Irulan, que corria a falar com Alia sobre
tudo e qualquer coisa. Quando chegou a essa decisão, Stilgar se
deu conta de que aceitara a possibilidade de Leto ter julgado Alia
corretamente.
Ela usa as pessoas de maneira descuidada e indiferente, ele
pensou. Ela trata até Duncan dessa maneira. O problema nem é o
fato de que ela se voltaria contra mim e me mataria. É que ela me
descartaria.
Enquanto isso, a guarda foi fortalecida e Stilgar vigiava o sietch
como um espectro de manto, espiando tudo o tempo todo. Sua
mente fervilhava incessantemente com as dúvidas que Leto tinha
semeado em suas ideias. Se a pessoa não podia depender das
tradições, então onde estava o alicerce em que erguer sua vida?
Na tarde da Convocação de Boas-Vindas a lady Jéssica, Stilgar
espionou Ghanima e a avó, as duas juntas em pé à plataforma de
entrada para a grande câmara da assembleia do sietch. Ainda era
cedo e Alia não tinha chegado, mas as pessoas já estavam
chegando em grandes números à câmara, olhando de esguelha
para aquela criança e aquela mulher conforme iam passando.
Stilgar parou numa alcova protegida pelas sombras, fora do
fluxo da multidão, e ficou contemplando as duas, incapaz de ouvir
o que diziam em meio ao burburinho do povo que ia se reunindo
no recinto da assembleia. Pessoas de muitas tribos estariam hoje
ali para dar as boas-vindas à sua velha Reverenda Madre. Mas ele
de fato olhava com atenção para Ghanima. Os olhos dela – como
dançavam quando ela falava! Esse movimento o deixava
fascinado. Eram olhos de um azul intenso, firmes, exigentes,
avaliadores. E aquele modo de sacudir a cabeça e assim tirar o
cabelo de um vermelho-dourado de cima dos ombros. Isso era
totalmente Chani. Uma ressurreição assombrosa, uma
semelhança sobrenatural.
Lentamente, Stilgar se aproximou e assumiu posição em outra
alcova.
Ele não conseguia associar os modos observadores de
Ghanima a nenhuma outra criança que tivesse conhecido, exceto
ao irmão dela. Onde estaria Leto? Stilgar olhou para trás, na
direção da passagem lotada de pessoas. Os guardas dele teriam
dado um aviso se alguma coisa tivesse acontecido. Ele balançou a
cabeça. Esses gêmeos eram um ataque à sua sanidade. Eram uma
fonte constante de desgaste para sua paz de espírito. Ele quase
conseguia detestar os dois. Os parentes não eram imunes ao ódio
de alguém, mas o sangue (e seu precioso teor de água) impunha
exigências de autocontrole que transcendiam a maioria das
demais preocupações. A existência desses gêmeos consistia em
sua maior responsabilidade.
Uma luz castanha e filtrada pela poeira entrava pela cavernosa
câmara da assembleia além de onde estavam Ghanima e Jéssica,
tocava os ombros da menina e o manto branco e novo que ela
estava usando, criando um fundo luminoso de contraste cada vez
que ela se virava para espiar o que acontecia no amplo corredor
de passagem para a multidão que ia ocupando totalmente o local.
Por que Leto me afligiu com essas dúvidas?, ele pensou. Não
havia dúvida de que ele fizera isso deliberadamente. Talvez Leto
quisesse que eu provasse uma pequena parcela de suas
experiências mentais. Stilgar sabia por que os gêmeos eram
diferentes, mas sempre tinha achado que seu processo de
raciocínio era incapaz de aceitar o que ele mesmo sabia. Ele nunca
havia vivenciado o útero como a prisão de uma consciência
desperta, de uma percepção lúcida a partir do segundo mês da
gestação, como diziam.
Uma vez Leto tinha dito que sua memória era como um
“holograma interno, cujo tamanho e detalhamento aumentavam
desde o chocante despertar primordial, mas sem mudar o esboço
ou o molde”.
Pela primeira vez, olhando para Ghanima e para lady Jéssica,
Stilgar começou a compreender como devia ser viver com uma
teia tão revirada de lembranças, incapaz de se furtar a ela e de
alcançar algum recanto isolado dentro da mente. Diante de uma
condição mental desse porte, era preciso integrar a loucura,
selecionar e rejeitar em meio a uma multidão de ofertas dentro de
um sistema cujas respostas mudavam tão depressa quanto as
perguntas.
Não poderia haver tradições fixas. Não poderiam existir
respostas absolutas para questões dupla-face. O que funciona? O
que não funciona. O que não funciona? O que funciona. Ele
reconhecia esse padrão. Era a velha brincadeira fremen das
adivinhações. Pergunta: “Traz a vida e a morte”. Resposta: “O
vento Coriolis”.
Por que Leto quis que eu entendesse isso?, Stilgar se perguntou.
Como resultado de suas cuidadosas indagações, Stilgar acabara
sabendo que os gêmeos tinham uma visão comum da sua própria
diferença: eles achavam que era uma deformação. O canal do
parto seria um local de escoamento para seres assim, ele pensou.
A ignorância reduz o choque de algumas experiências, mas eles
não tinham nenhuma ignorância acerca do nascimento. Que tal
seria levar uma vida em que a pessoa saberia tudo que poderia dar
errado? Ela ficaria em estado de combate constante com dúvidas.
Sentiria ressentimento por ser tão diferente de todos os outros.
Seria agradável infligir aos outros nem que fosse um mínimo
aperitivo dessa diferença. “Por que eu?” seria a primeira pergunta
sem resposta dessas criaturas.
E o que foi que fiquei perguntando a mim mesmo?, Stilgar
pensou. Um sorriso retorcido atravessou seus lábios. Por que eu?
Vendo os gêmeos por essa nova perspectiva, ele compreendeu
as chances arriscadas que tinham com aquele corpo incompleto
que os recebia. Ghanima lhe havia dito isso com extrema concisão
certa vez, depois que ele a havia repreendido por ela ter escalado
a face escarpada a oeste do penhasco sobre Sietch Tabr.
– Por que eu deveria temer a morte? Já estive lá antes, muitas
vezes.
Como posso presumir que tenho o que ensinar a estas crianças?,
Stilgar ponderou. Como alguém pode presumir?

Era estranho, mas os pensamentos de Jéssica estavam


seguindo num rumo parecido enquanto ela conversava com a
neta. Ela estivera pensando sobre como deveria ser difícil conter
uma mente tão madura num corpo imaturo. O corpo teria de
aprender o que a mente já sabia fazer: alinhar respostas e
reflexos. A antiga disciplina prana-bindu das Bene Gesserit
estaria à disposição dos gêmeos, mas mesmo assim a mente
poderia correr por onde o corpo não conseguia. Gurney tinha
uma tarefa sumamente difícil de cumprir na execução de suas
ordens.
– Stilgar está nos observando daquela alcova lá atrás –
Ghanima informou.
Jéssica não se virou. Mas se sentiu confundida pelo que ouviu
na voz de Ghanima. A menina adorava o velho fremen como se
ama um parente. Ainda que falasse dele de maneira zombeteira e
que o provocasse, ela o amava. Essa constatação forçou Jéssica a
ver o velho naib por outro ângulo, compreendendo numa
revelação todo-abrangente o que os gêmeos e Stilgar
compartilhavam. Esse novo Arrakis não comportava bem Stilgar,
foi o que Jéssica compreendeu. Tanto quanto esse novo universo
não comportava seus netos.
Indesejada e não requisitada, uma máxima Bene Gesserit
flutuou entre as ideias de Jéssica: “Desconfiar da própria
mortalidade é conhecer o começo do terror; saber irrefutavelmente
que você é mortal é conhecer o fim do terror”.
Sim, a morte não seria um jugo pesado demais para suportar,
mas a vida era um fogo baixo para Stilgar e para os gêmeos. Cada
um deles encontrara um mundo sem bom encaixe para si e
ansiava por outros caminhos, onde pudessem conhecer variações
que não contivessem ameaças. Eles eram filhos de Abraão, e
aprendiam mais com o gavião pairando sobre o deserto do que
lendo qualquer livro que já tenha sido escrito.
Leto tinha confundido Jéssica apenas naquela manhã em que
haviam conversado ao lado do qanat que corria abaixo do sietch.
Ele dissera, naquela ocasião: “A água nos aprisiona como uma
armadilha, minha avó. Seria melhor se vivêssemos como o pó,
porque então o vento nos ergueria ainda mais alto do que os mais
elevados penhascos da Muralha-Escudo”.
Embora já estivesse acostumada com as insólitas mostras de
maturidade que saíam da boca dessas crianças, Jéssica tinha
ficado mesmerizada com esse comentário, mas ainda assim
conseguira reagir e dissera: “Seu pai poderia ter dito isso”.
E Leto, atirando um punhado de areia no ar para vê-la cair,
respondera: “Sim, ele poderia. Mas meu pai não levava em conta,
em seu próprio tempo, com que rapidez a água faz tudo voltar ao
chão de onde ela brotou”.
Agora, ao lado de Ghanima no sietch, Jéssica sentia de novo o
choque dessas palavras. Olhando de novo para a multidão que
continuava chegando e lotando o lugar, ela se virou e deixou que
seus olhos alcançassem o nublado perfil de Stilgar, ainda dentro
da alcova. Stilgar não era um fremen domado, treinado para
somente levar gravetos ao ninho. Ele ainda era um gavião. Quando
ele pensava em algo vermelho, não via flores, mas sangue.
– De repente você ficou tão calada – Ghanima reparou. –
Alguma coisa errada?
Jéssica sacudiu a cabeça.
– Foi uma coisa que Leto disse hoje de manhã, só isso.
– Quando vocês foram até a plantação? O que ele disse?
Jéssica lembrou a curiosa expressão de sabedoria adulta que
tinha se manifestado nos traços de Leto durante aquela conversa
pela manhã. Era a mesma expressão que ela via no rosto de
Ghanima nesse mesmo momento.
– Ele estava se lembrando daquele tempo em que Gurney
voltou dos contrabandistas e se reintegrou ao estandarte
Atreides – Jéssica respondeu.
– Então vocês conversaram sobre Stilgar – Ghanima observou.
Jéssica não questionou como essa dedução poderia ter
ocorrido. Os gêmeos pareciam capazes de reproduzir o fio de
pensamento um do outro sempre que quisessem.
– Sim, conversamos – Jéssica confessou. – Stilgar não gostou
de ouvir Gurney chamando... Paul como o duque dele, mas a
presença de Gurney impôs isso a todos os fremen. Gurney ficava
repetindo “meu duque”.
– Entendo – anuiu Ghanima. – E, naturalmente, Leto observou
que ele ainda não era o duque de Stilgar.
– Exatamente.
– Você sabe o que ele estava fazendo com você, é claro –
Ghanima afirmou.
– Estou certa de que sim – Jéssica admitiu, e sentiu nessa
confissão algo especialmente perturbador porque nem lhe havia
ocorrido que Leto estivesse fazendo alguma coisa com ela.
– Ele estava tentando despertar suas lembranças de nosso pai
– Ghanima revelou. – Leto sempre tem vontade de saber como era
nosso pai do ponto de vista dos que o conheceram.
– Mas... não é verdade que Leto tem...
– Ah, ele pode ouvir a vida interior. Sem dúvida. Mas não é a
mesma coisa. Você falou sobre ele, claro. Sobre nosso pai, quero
dizer. Você falou dele como seu filho.
– Sim – e Jéssica se fechou como uma ostra. Ela não gostava da
sensação de que esses gêmeos pudessem ligá-la e desligá-la a seu
bel-prazer, destampando suas recordações para observá-las,
cutucando qualquer emoção que atraísse sua curiosidade.
Ghanima até poderia estar fazendo a mesma coisa nesse justo
momento!
– Leto disse algo que a perturbou – Ghanima apontou.
Jéssica se sentiu chocada com sua própria necessidade de
suprimir a raiva.
– Sim... disse.
– E você não gosta do fato de ele conhecer nosso pai como
nossa mãe o conheceu, e de conhecer nossa mãe como nosso pai a
conheceu – Ghanima continuou. – Você não gosta das implicações
disso, do que podemos saber de você.
– Na realidade, eu nunca tinha pensando nisso por esse lado até
agora – Jéssica respondeu, sentindo a voz mais dura.
– É o conhecimento das coisas sensuais que normalmente
incomoda – Ghanima observou. – É o seu condicionamento. Você
acha extremamente difícil pensar em nós como qualquer coisa
além de crianças, mas não há nada que nossos pais tenham feito
juntos, em público ou em particular, que nós não saibamos.
Por um breve instante, Jéssica se viu retornando à reação que a
havia tomado naquele momento, ao lado do qanat, mas agora
focou a reação em Ghanima.
– Provavelmente, ele falou da “sensualidade animalesca” do
duque – Ghanima insistiu. – Às vezes, Leto precisa pôr um freio na
boca!
Será que não existe nada que esses gêmeos não consigam
profanar?, Jéssica se perguntou, passando do estado de choque
para a indignação e para a repulsa. Como é que ousavam falar da
sensualidade do seu Leto? Claro que um homem e uma mulher
que se amavam iriam compartilhar o prazer do corpo um do
outro! Era uma coisa linda e íntima, e não para ser desfilada em
conversas ligeiras entre uma criança e uma adulta.
Criança e adulta!
De súbito, Jéssica se deu conta de que nem Leto, nem Ghanima
tinham feito aquilo por acaso.
Como Jéssica continuasse calada, Ghanima prosseguiu:
– Nós deixamos você chocada. Peço desculpas por nós dois.
Conhecendo Leto, sei que ele nem pensa em se desculpar. Às
vezes, quando está perseguindo um cheiro qualquer, ele se
esquece de como somos diferentes... de você, por exemplo.
Jéssica pensou: E é por isso que vocês dois fazem isso,
naturalmente. Vocês estão me ensinando! E então ela se indagou:
Quem mais vocês estão ensinando? Stilgar? Duncan?
– Leto tenta ver as coisas como você as vê – Ghanima
acrescentou. – As recordações não são suficientes. Quando você
se esforça muito, justamente então é que na maioria das vezes
você fracassa.
Jéssica suspirou.
Ghanima tocou o braço de sua avó.
– Seu filho deixou muitas coisas sem serem ditas, mas que
ainda devem sê-lo, inclusive para você. Perdoe-nos, mas ele
amava você. Você não sabe disso?
Jéssica se virou um pouco para ocultar as lágrimas que
cintilavam em seus olhos.
– Ele conhecia os temores que você sente – Ghanima revelou. –
Do mesmo modo como sabia dos temores de Stilgar. Querido Stil.
Nosso pai era o “médico dos animais selvagens” para ele, e Stil
não era mais do que um caramujo verde escondido dentro da
própria casca. – Ela cantarolou a canção de onde tinha tirado
essas palavras. A melodia lançou a letra no campo de consciência
de Jéssica, sem concessões:
Ó, médico dos animais selvagens,
Para um caramujo verde em sua casca,
Com seu tímido milagre
Escondido, esperando a morte,
Você aparece como uma divindade!
Até os caramujos sabem
Que os deuses obliteram
E as curas causam dor,
Que o céu é visto
Através de uma porta de chamas.
Ó, médico dos animais selvagens,
Eu sou o homem-caramujo
Que enxerga seu único olho
A espreitar dentro da minha casca!
Por que Muad’Dib? Por quê?

Ghanima, então, concluiu:


– Infelizmente, nosso pai deixou muitos homens-caramujos em
nosso universo.
A suposição de que os humanos existem dentro de
um universo essencialmente impermanente,
considerado um preceito operacional, exige que o
intelecto se torne um instrumento de equilíbrio
totalmente alerta. Mas o intelecto não pode reagir
dessa maneira sem envolver o organismo inteiro.
Esse organismo pode ser reconhecido por seu
comportamento incandescente, impetuoso.
Acontece a mesma coisa com a sociedade que
tratamos como organismo. Nela, porém,
encontramos uma antiga inércia. As sociedades se
movem estimuladas por impulsos reativos
ancestrais. Elas exigem permanência. Qualquer
tentativa de exibir um universo de
impermanência desencadeia padrões de rejeição,
medo, raiva e desespero. Então, como explicamos
a aceitação da presciência? É simples: aquele que
fornece visões prescientes, porque fala de uma
constatação absoluta (permanente), pode ser
saudado com alegria pela humanidade ainda que
sua previsão revele os mais funestos
acontecimentos.
– O livro de Leto, segundo Harq al-Ada

– É como lutar no escuro – Alia explodiu.


Ela atravessou a Câmara do Conselho com passadas raivosas,
afastando-se das longas cortinas prateadas que atenuavam o
fulgor do sol da manhã entrando pelas janelas a leste, e se
aproximou dos divãs agrupados perto dos painéis de parede
decorados, na outra extremidade do recinto. Suas sandálias
pisavam em tapetes de fibra de especiaria, cruzavam trechos de
soalho de madeira, depois grandes lajotas de granada e,
novamente, outra área coberta por tapetes. Por fim, chegou ao
lado de Irulan e Idaho, que estavam sentados, um de frente para o
outro, em divãs de pele de baleia cinzenta.
Idaho tinha resistido a voltar de Tabr, mas ela havia
despachado ordens peremptórias. O sequestro de Jéssica era
mais importante do que nunca, agora, mas tinha de aguardar. As
percepções Mentat de Idaho eram indispensáveis.
– Essas coisas são recortadas de um mesmo molde – Alia disse.
– Fedem a um complô que vai longe.
– Talvez não – Irulan sugeriu, mas olhando para Idaho, incerta.
O rosto de Alia descuidou-se e evidenciou um desdém
indisfarçável. Como Irulan podia ser tão inocente? A menos... e
Alia disparou um olhar agudo e questionador na direção da
princesa. Irulan estava usando um simples manto aba negro que
combinava com as sombras de seus olhos índigo-especiaria. O
cabelo loiro da princesa estava preso num coque apertado, na
nuca, o que salientava seu rosto endurecido e que tanto tinha
emagrecido após anos e anos em Arrakis. Ela ainda conservava a
altivez que havia aprendido na corte de seu pai, Shaddam IV, e
Alia muitas vezes sentia que essa atitude orgulhosa poderia
encobrir os pensamentos de uma conspiradora.
Idaho estava recostado, em seu uniforme verde e preto da
Guarda Real da Casa Atreides, sem insígnias. Essa era uma
afetação que secretamente era objeto de ressentimento entre
muitos dos verdadeiros guardas de Alia, especialmente as
amazonas, que glorificavam as insígnias de seu ofício. Elas não
gostavam da presença pura e simples do ghola-Mentat-mestre-
espadachim, ainda mais porque ele era o marido de sua regente.
– Então, as tribos querem lady Jéssica reempossada no
Conselho da Regência – Idaho murmurou. – Como isso pode...
– Elas apresentaram uma exigência unânime! – Alia esbravejou,
apontando para uma folha timbrada de papel de especiaria, sobre
o divã ao lado de Irulan. – Farad’n é uma coisa, mas isto... isto tem
o ranço de outro tipo de alinhamento!
– Qual é a opinião de Stilgar? – Irulan indagou.
– A assinatura dele está no papel! – Alia respondeu.
– Mas, se ele...
– Como ele poderia negar a mãe de seu deus? – Alia indagou,
sarcástica.
Idaho ergueu os olhos para ela, pensando: Isso está se
aproximando perigosamente do limite com Irulan! Mais uma vez,
ele se perguntou por que Alia mandara que ele viesse de volta
quando ela sabia que ele era necessário em Sietch Tabr para que o
plano de rapto pudesse ser posto em ação. Seria possível que ela
tivesse ouvido falar da mensagem que O Pregador havia enviado a
ele? Essa ideia encheu seu peito de um sentimento atribulado.
Como é que aquele místico mendicante podia conhecer o sinal
secreto por meio do qual Paul Atreides sempre havia convocado a
presença de seu mestre-espadachim? Idaho ansiava por deixar
aquela reunião sem cabimento e voltar para a busca de uma
resposta para essa questão.
– Não há dúvida de que O Pregador tenha saído do planeta –
Alia disse. – A Guilda não ousaria nos enganar com uma coisa
dessas. Eu farei com que ele...
– Cuidado! – Irulan interpôs.
– De fato, tome cuidado – Idaho disse. – Metade do planeta
acredita que ele é... – e, dando de ombros, continuou – seu irmão. –
E Idaho esperou ter insinuado a informação com a leveza
adequada. Mas como é que aquele homem sabia do sinal?
– Mas, se ele é um mensageiro, ou um espião...
– Ele não fez contato com ninguém da choam ou da Casa
Corrino – Irulan afirmou. – Podemos ter certeza de...
– Não podemos ter certeza de nada! – Alia nem tentou
mascarar seu escárnio. Deu as costas a Irulan, encarando Idaho.
Ele sabia por que estava ali! Por que ele não se havia comportado
da maneira esperada? Ele estava no Conselho porque Irulan
estava lá. A história de que tinha trazido uma princesa da Casa
Corrino para o seio dos Atreides nunca poderia ser esquecida.
Uma aliança, uma vez traída, poderia perfeitamente ser traída de
novo. Os poderes Mentat de Duncan deveriam estar rastreando
falhas e sutis desvios na conduta de Irulan.
Idaho se mexeu no assento, olhando francamente para Irulan.
Havia momentos em que ele se ressentia das necessidades
objetivamente impostas ao seu desempenho de Mentat. Ele sabia
o que Alia estava pensando. Irulan sabia também, mas essa
princesa-esposa de Paul Muad’Dib tinha sobrepujado as decisões
que a haviam tornado menos do que a concubina real, Chani. Não
podia haver dúvida da devoção de Irulan aos gêmeos reais. Ela
havia renunciado à família e às Bene Gesserit em nome de sua
dedicação aos Atreides.
– Minha mãe faz parte desse complô! – Alia insistia. – Por qual
outro motivo a Irmandade iria mandá-la de volta para cá, num
momento destes?
– Histeria não vai nos ajudar – Idaho comentou.
Alia girou rapidamente e se afastou dele, como ele sabia que ela
faria. Para ele era melhor não ter mais de olhar para aquele rosto,
antes tão amado, e que agora se mostrava distorcido e retorcido
por uma força alheia.
– Bem – Irulan apontou –, a Guilda não pode ser objeto de total
confiança...
– A Guilda! – Alia zombou.
– Não podemos descartar a inimizade da Guilda ou das Bene
Gesserit – Idaho concordou. – Mas devemos atribuir-lhes
categorias especiais como combatentes essencialmente passivos.
A Guilda corresponderá à sua regra fundamental: Jamais
Governar. Eles são uma excrescência parasita e sabem disso. Não
farão nada para matar o organismo que os mantém vivos.
– A ideia deles de qual é o organismo que os mantém vivos pode
ser diferente da nossa – Irulan observou com sarcasmo. Aquilo
era o mais próximo que ela já havia chegado de falar algo com
desdém, usando um tom de voz preguiçoso que apontava: “Você
não viu esse lado, Mentat”.
Alia parecia atônita. Não tinha esperado de Irulan uma conduta
dessa ordem. Não era o tipo de perspectiva que uma
conspiradora iria querer que fosse examinado.
– Sem dúvida – anuiu Idaho. – Mas a Guilda não se manifestará
abertamente contra a Casa Atreides. Por outro lado, a Irmandade
poderia se arriscar a algum tipo de ruptura política que...
– Se elas fizerem isso – Irulan interrompeu –, será por
intermédio de algum testa-de-ferro, alguém ou algum grupo que
possam renegar. As Bene Gesserit não existiram por todos esses
séculos sem conhecer o valor da discrição. Elas preferem ficar por
trás do trono, não instaladas nele.
Discrição?, Alia se perguntou. Seria essa a escolha de Irulan?
– Exatamente o que digo sobre a Guilda – Idaho acrescentou.
Ele achava útil a necessidade de argumentar e explicar. Isso
mantinha sua mente alheia a outros problemas.
Alia caminhou de volta na direção da janela iluminada pelo sol.
Ela conhecia o ponto cego de Idaho; todo Mentat tinha isso: eles
tinham de fazer pronunciamentos. Com isso acionavam a
tendência a depender de absolutos, de enxergar limites finitos.
Eles sabiam disso a respeito de si próprios. Fazia parte de seu
treinamento. Não obstante, continuavam a agir além dos
parâmetros de autolimitação. Eu devia tê-lo deixado em Sietch
Tabr, Alia considerou. Teria sido melhor apenas despachar Irulan
para ser interrogada por Javid.
Dentro do crânio, Alia ouviu a voz rumorejante:
– Exatamente!
Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!, ela pensou. Um erro
perigoso acenava para ela nesses momentos e ela não podia
reconhecer o contorno dessa manobra. Ela só conseguia perceber
o perigo. Idaho tinha de ajudá-la a sair desse apuro. Ele era um
Mentat. Os Mentat eram necessários. O humano-computador
substituía os dispositivos mecânicos destruídos pelo Jihad
Butleriano. Não construirás uma máquina à semelhança da mente
humana! Mas Alia agora queria muito uma máquina obediente.
Eles não poderiam padecer por conta das limitações de Idaho.
Nunca se podia desconfiar de uma máquina.
Alia ouviu a voz arrastada de Irulan.
– Uma finta dentro de uma finta dentro de uma finta dentro de
uma finta – ela dizia. – Todos sabemos qual é o padrão aceito de
ataque ao poder. Não culpo Alia por ser desconfiada.
Naturalmente que ela suspeita de todo mundo... até de nós. Mas
ignore isso por um instante. O que resta como arena principal de
motivos, como a fonte mais fértil de perigos para a Regência?
– A choam – Idaho respondeu, com a voz inexpressiva do
Mentat.
Alia permitiu-se um sorriso amargo. O Consórcio Honnête
Ober Advancer Mercantiles! Mas a Casa Atreides dominava a
choam com 51% de suas ações. O Sacerdócio de Muad’Dib tinha
mais 5%, e a pragmática aceitação pelas Casas Maiores de Duna
controlava o inestimável mélange. Não por acaso a especiaria era
às vezes chamada “a moeda secreta”. Sem o mélange, os paquetes
não podiam se movimentar. O mélange desencadeava o “transe
de navegação” por meio do qual uma rota transluz podia ser
“visualizada” antes de ser percorrida. Sem o mélange e sua
amplificação do sistema imunogenético humano, a expectativa de
vida para os muitos ricos degenerava em pelo menos quatro
vezes. Até a vasta classe média do Imperium consumia mélange
diluído na alimentação em pequenos borrifos, pelo menos em
uma refeição por dia.
Mas Alia tinha ouvido a sinceridade Mentat na voz de Idaho, um
som que estivera aguardando com terrível ansiedade.
choam. O Consórcio Honnête era muito mais do que a Casa
Atreides, muito mais do que Duna, muito mais do que o
Sacerdócio ou o mélange. Era o cipó-tinta, a pele de baleia, o
shigafio, os artefatos ixianos e seus artistas, o comércio entre
povos e lugares, o hajj, os produtos que chegavam por intermédio
da legalidade fronteiriça da tecnologia tleilaxu. Era as drogas
viciantes e as técnicas medicinais; era transporte (a Guilda) e a
totalidade do comércio supercomplexo de um império que
abrangia milhares de planetas conhecidos, mais alguns que se
abasteciam secretamente nas bordas, ali autorizados pelos
serviços prestados. Quando Idaho disse “choam” ele falou de um
fermento constante, de intrigas dentro de intrigas, de um jogo de
poderes em que a mudança em um ponto duodecimal no
pagamento de juros poderia mudar a posse de um planeta inteiro.
Alia tornou a se postar em pé ao lado dos outros dois, sentados
nos divãs. Então perguntou:
– Alguma coisa específica sobre a choam incomoda vocês?
– Sempre existe a intensa estocagem para fins de especulação
da especiaria que algumas Casas praticam – argumentou Irulan.
Alia bateu as mãos nas suas coxas e depois gesticulou na
direção do papel de especiaria, timbrado, que estava ao lado da
princesa.
– Essa demanda não deixa você intrigada, vindo como vem...
– Muito bem! – trovejou Idaho. – Chega disso. O que você está
escondendo? Você sabe que não adianta negar os dados e ainda
assim esperar que eu funcione como...
– Recentemente, houve um aumento muito significativo da
atividade comercial envolvendo pessoas de quatro especialidades
específicas – Alia revelou. Mas então pensou se essa realmente
seria uma informação nova para aqueles dois.
– Quais especialidades? – Irulan perguntou.
– Mestres-espadachins, Mentat deturpados dos Tleilaxu,
médicos condicionados da escola Suk e contadores financistas.
Mais especialmente estes últimos. Por que justamente guarda-
livros questionáveis estariam sendo tão requisitados bem agora?
– e ela dirigia essa indagação a Idaho.
Funcione como um Mentat, ele disse a si mesmo. Bem, isso era
melhor do que ficar ruminando sobre o que Alia havia se tornado.
Ele se concentrou nas palavras que ela havia dito, repetindo-as
em sua mente, conforme o gabarito Mentat. Mestres-
espadachins? Essa tinha sido sua própria ocupação em outros
tempos. Naturalmente, mestres-espadachins eram mais do que
lutadores pessoais. Eles eram capazes de consertar campos de
força, planejar campanhas militares, projetar instalações
militares de apoio, improvisar armas. Mentat deturpados? Os
Tleilaxu insistiam nesse tipo de logro, evidentemente. Sendo ele
mesmo um Mentat, Idaho conhecia a frágil insegurança da
deturpação tleilaxu. As Casas Maiores que compravam Mentat
desse tipo esperavam exercer um controle absoluto sobre eles.
Impossível! Até mesmo Piter de Vries, que tinha servido aos
Harkonnen em seu ataque à Casa Atreides, tinha mantido sua
própria dignidade essencial, aceitando a morte em vez da
rendição de sua individualidade fundamental, no fim de tudo.
Médicos Suk? O condicionamento deles supostamente garantia
que fossem imunes à deslealdade em relação a seus pacientes-
proprietários. Os médicos Suk eram muito caros. Um aumento na
aquisição de Suk implicaria uma substancial movimentação de
recursos financeiros.
Idaho pesou todos esses fatos em comparação com o aumento
na demanda por contadores fraudulentos.
– Computação elementar – ele começou, indicando uma
certeza solidamente alcançada após uma análise indutiva. –
Houve um recente aumento de riqueza entre as Casas Menores.
Algumas têm de estar passando discretamente para o status de
Casa Maior. Uma riqueza assim só pode advir de algumas
mudanças específicas nos alinhamentos políticos.
– Finalmente chegamos ao Landsraad – Alia murmurou, dando
voz à sua própria opinião.
– A próxima sessão do Landsraad está a quase dois anos-
padrão de distância – Irulan relembrou-a.
– Mas as barganhas políticas nunca param – Alia rebateu. – E
aposto como alguns desses signatários tribais – e ela gesticulou
indicando o papel ao lado de Irulan – estão entre as Casas
Menores que acabaram de mudar seu alinhamento.
– Pode ser – Irulan concedeu.
– O Landsraad – Alia insistiu. – Que fachada melhor para as
Bene Gesserit? E que melhor agente para a Irmandade do que
minha própria mãe? – Alia se plantou diretamente à frente de
Idaho. – E então, Duncan?
Por que não funcionar como um Mentat?, Idaho perguntou a si
mesmo. Agora ele via o teor das suspeitas de Alia. Afinal de
contas, Duncan Idaho tinha sido guarda pessoal de lady Jéssica,
em sua residência, durante muitos anos.
– Duncan? – Alia insistiu.
– Você deveria investigar de perto toda legislação consultiva
que possa estar sendo preparada para a próxima sessão do
Landsraad – Idaho sugeriu. – Eles podem assumir como posição
legal que uma Regência não pode vetar determinados tipos de
legislação, especificamente ajustes tributários e o policiamento
de cartéis. Há outros, mas...
– Essa não seria uma boa aposta pragmática da parte deles se
assumirem uma posição assim – Irulan comentou.
– Concordo – anuiu Alia. – Os Sardaukar não têm dentes e nós
temos as nossas legiões fremen.
– Cuidado, Alia – avisou Idaho. – Nossos inimigos gostariam
mais do que tudo de nos fazer parecer monstruosos. Por mais
legiões que você comande, em última análise o poder se estriba no
sufrágio popular num império tão espalhado quanto este.
– Sufrágio popular? – Irulan indagou.
– Você quer dizer sufrágio das Grandes Casas – Alia arriscou.
– E quantas Grandes Casas iremos enfrentar com essa nova
aliança? – Idaho indagou. – O dinheiro está sendo acumulado em
lugares estranhos!
– Nas bordas? – Irulan perguntou.
Idaho encolheu os ombros. Essa era uma pergunta sem
resposta. Todos eles suspeitavam que um dia os Tleilaxu ou os
atravessadores de tecnologia nas bordas do Imperium iriam
anular o Efeito Holtzmann. Nesse dia, os escudos serão inúteis.
Todo o precário equilíbrio que manteve os feudos planetários
entrará em colapso.
Alia se recusou a considerar essa possibilidade.
– Seguiremos em frente com o que temos – ela disse. – E o que
temos é um certo conhecimento de todas as esferas da diretoria
da choam de que podemos destruir a especiaria se nos forçarem a
isso. Eles não vão correr esse risco.
– De volta à choam – murmurou Irulan.
– A menos que alguém tenha conseguido duplicar o ciclo da
truta de areia e do verme de areia em outro planeta – Idaho
sugeriu. Olhando com ar especulativo para Irulan, mostrou-se
excitado com a pergunta: – Salusa Secundus?
– Meus contatos ali continuam confiáveis – Irulan retrucou. –
Salusa, não.
– Então, minha resposta ainda serve – Alia insistiu, encarando
Idaho. – Seguimos em frente com o que temos.
Agora é a minha vez. Ele perguntou:
– Por que você me tirou de uma tarefa importante? Você
poderia ter entendido isso tudo sozinha.
– Não fale nesse tom comigo! – Alia rebateu, rápida.
Os olhos de Idaho se arregalaram. Por um instante, ele tinha
captado o alienígena no rosto de Alia, e tinha sido uma visão
desconcertante. Ele voltou a atenção para Irulan, mas ela não
havia visto nada, ou pelo menos aparentava que não.
– Não preciso de uma educação elementar – Alia rosnou, e em
sua voz ainda se distinguia uma raiva alheia.
Idaho conseguiu montar um sorriso brincalhão, mas seu peito
doía.
– Nunca nos afastamos muito da riqueza e de todas as suas
máscaras quando lidamos com o poder – Irulan comentou,
mastigando as palavras. – Paul era uma mutação social e, sendo
assim, temos de nos lembrar que ele mudou o antigo equilíbrio
das riquezas.
– Essas mutações não são irreversíveis – Alia disse enquanto se
afastava deles, como se não tivesse exposto sua terrível diferença.
– Onde quer que exista riqueza neste império eles sabem.
– Eles também sabem que existem três pessoas capazes de
perpetuar essa mutação: os gêmeos e... – e Irulan apontou para
Alia.
Mas estão as duas loucas?, Idaho cogitou.
– Eles tentarão me assassinar! – Alia grasnou.
E Idaho permaneceu sentado, em silêncio, chocado, com sua
consciência Mentat rodopiando. Assassinar Alia? Por quê? Eles
podiam desacreditá-la com extrema facilidade. Podiam eliminá-la
do coletivo fremen e então caçá-la à vontade. Mas os gêmeos,
agora... Ele sabia que não estava num estado mental calmo o
suficiente para uma avaliação Mentat, mas tinha de tentar. Tinha
de ser tão preciso quanto possível. Ao mesmo tempo, ele sabia
que um pensamento preciso continha absolutos não digeridos. A
natureza não era precisa. O universo não era preciso quando
reduzido à escala dele, Idaho. Era vago e indistinto, cheio de
movimentos e mudanças inesperadas. Como um todo, a
humanidade tinha de ser introduzida nesta computação como um
fenômeno natural. E o processo todo de análise com precisão
representava amputações, implicava uma retirada de algo da
corrente em fluxo no universo. Ele tinha de acessar essa corrente,
enxergá-la em movimento.
– Estávamos certos ao focar nossa atenção na choam e no
Landsraad – comentou Irulan sem pressa. – E a sugestão de
Duncan oferece uma primeira linha de raciocínio para...
– O dinheiro, como tradução de energia, não pode ser separado
da energia que expressa – Alia pontificou. – Todos sabemos disso.
Mas temos de responder a três perguntas específicas: Quando?
Usando que armas? Onde?
Os gêmeos... os gêmeos, Idaho pensou. São os gêmeos que
correm perigo; não Alia.
– Você não tem interesse em quem ou como? – Irulan
questionou.
– Se a Casa Corrino ou a choam, ou qualquer outro grupo,
empregar instrumentos humanos neste planeta – Alia explicou –,
temos mais de 60% de chance de encontrá-los antes que eles
entrem em ação. Saber quando eles agirão e onde nos dá uma
vantagem muito maior. Como? Isso é o mesmo que perguntar
somente com que armas.
Por que elas não conseguem ver do jeito que eu vejo?, Idaho
matutou.
– Muito bem – concedeu Irulan. – Quando?
– Quando a atenção estiver dirigida para outra pessoa – Alia
respondeu.
– Na Convocação, a atenção estava voltada para sua mãe –
Irulan apontou. – Não houve tentativa.
– Lugar errado – Alia argumentou.
O que ela está fazendo?, Idaho se perguntou.
– Onde, então? – Irulan insistiu.
– Bem aqui, no Forte – Alia sugeriu. – É o lugar onde eu me sinto
mais segura e onde fico menos em guarda.
– E com que armas? – continuou Irulan.
– Convencionais, algo que um fremen poderia levar escondido:
uma dagacris envenenada, uma pistola maula...
– Já faz muito tempo que eles não empregam um caçador-
buscador – Irulan lembrou.
– Não iria funcionar no meio da multidão – Alia contrapôs. – Vai
ser preciso uma multidão.
– Arma biológica? – Irulan perguntou.
– Um agente infeccioso? – Alia questionou, sem esconder sua
incredulidade. Como é que Irulan podia pensar que um agente
infeccioso teria êxito contra as barreiras imunológicas que
protegiam um Atreides?
– Eu estava pensando mais em termos de algum animal – Irulan
explicou. – Um animal doméstico de pequeno porte, por exemplo,
treinado para morder uma vítima específica, injetando veneno
com as presas.
– As doninhas da Casa impediriam isso – Alia retrucou.
– E uma delas, então? – Irulan indagou.
– Não poderia dar certo. As doninhas da Casa rejeitarão algo de
fora, matarão a criatura. Você sabe disso.
– Estava apenas aventando possibilidades, na esperança de
que...
– Vou alertar a minha guarda – disse Alia.
Quando Alia disse guarda, Idaho cobriu seus olhos tleilaxu com
a mão, tentando bloquear o exigente envolvimento que o
inundava. Era rhajia, o movimento do Infinito expresso pela Vida,
a taça latente de imersão total na consciência Mentat que estava à
espera de todo Mentat. Ela lançaria sua consciência sobre o
universo como uma rede, que cairia e definiria as formas embaixo
dela. Ele viu os gêmeos agachados na escuridão enquanto garras
gigantescas rastelavam o ar em torno deles.
– Não – ele sussurrou.
– O quê? – Alia olhou para ele como se estivesse surpresa por
ele ainda continuar ali.
Ele tirou a mão de cima dos olhos.
– Onde estão as roupas que a Casa Corrino mandou? – ele
perguntou. – Já foram enviadas para os gêmeos?
– Claro – informou Irulan. – São perfeitamente seguras.
– Ninguém está atrás dos gêmeos em Sietch Tabr – Alia
resmungou. – Não com todos aqueles guardas treinados por
Stilgar em volta deles.
Idaho encarou Alia firmemente. Ele não tinha dados específicos
para sustentar um debate baseado em computações Mentat, mas
ele sabia. Ele sabia. Aquela coisa que ele havia vivenciado tinha
chegado muito perto do poder visionário que Paul tinha
conhecido. Nem Irulan, nem Alia iriam acreditar nisso, vindo dele.
– Gostaria de alertar as autoridades portuárias para que não
autorizem a importação de animais de fora – ele pediu.
– Você não está levando a ideia de Irulan a sério – Alia
protestou.
– E por que correr riscos? – ele perguntou.
– Diga isso para os contrabandistas – Alia falou – e eu vou
colocar minha confiança nas doninhas da Casa.
Idaho sacudiu a cabeça. O que as doninhas da Casa poderiam
fazer contra garras do tamanho daquelas que ele tinha
visualizado? Mas Alia estava certa. Suborno nos lugares certos,
um navegador da Guilda que topasse o jogo, e qualquer lugar no
Quadrante Vazio se tornaria um porto de aterrissagem. A Guilda
não resistiria a uma posição frontal na eventualidade de algum
ataque à Casa Atreides, mas se o preço fosse alto o suficiente...
Bem, a Guilda só poderia ser vista como uma espécie de barreira
geológica que dificultava os ataques, mas não os tornava
impossíveis. Eles sempre poderiam protestar que eram somente
“uma agência de transporte”. Como poderiam saber a utilidade
específica de qualquer carga que chegasse?
Alia rompeu o silêncio com um gesto puramente fremen, o
punho erguido com o polegar na horizontal. Ela acompanhou esse
gesto com um expletivo tradicional que queria dizer “eu
presenteio com o Conflito Tufão”. Evidentemente, ela se via como
o único alvo lógico de assassinos, e esse gesto anunciava um
universo repleto de ameaças indigestas. Ela estava dizendo que
desencadearia o vento da morte contra qualquer um que a
atacasse.
Idaho sentiu a inutilidade de qualquer objeção. Ele viu que ela
não desconfiava mais dele. Ele iria de volta para Tabr e ela
esperava um rapto perfeitamente executado de lady Jéssica. Ele
se levantou do divã movido por uma onda de adrenalina raivosa,
pensando: Ah, se pelo menos o alvo fosse Alia! Se pelo menos os
assassinos pusessem as mãos nela! Por um instante, ele descansou
a mão em sua própria faca, mas não estava nele fazer isso. Muito
melhor seria, ele pensou, que ela morresse como mártir do que
viver para ser desacreditada e caçada até encontrar seu túmulo
na areia.
– Sim – Alia comentou, interpretando errado a expressão no
rosto dele como preocupação por ela –, é melhor que volte
rapidamente para Tabr. – E pensava: Que idiotice a minha
desconfiar de Duncan! Ele é meu, não de Jéssica! Tinha sido a
exigência das tribos que a havia afligido, pensou Alia. Ela fez um
aceno de despedida para Idaho quando ele saiu.
Idaho deixou a Câmara do Conselho se sentindo impotente.
Não apenas Alia estava cega para sua possessão por uma
entidade alheia, como se tornava mais insana a cada crise. Ela já
havia ultrapassado o ponto do perigo e estava condenada. Mas o
que podia ser feito pelos gêmeos? A quem ele poderia convencer?
Stilgar? E o que Stilgar poderia fazer que já não estaria fazendo?
Lady Jéssica, então?
Sim, ele iria explorar essa possibilidade, mas ela também já
poderia estar muito intensamente envolvida em suas articulações
com a Irmandade. Ele alimentava poucas ilusões a respeito
daquela concubina Atreides. Ela poderia fazer qualquer coisa que
as Bene Gesserit ordenassem, inclusive se voltar contra os
próprios netos.
O bom governo nunca depende de leis, mas das
qualidades pessoais dos que governam. A
máquina do governo sempre está subordinada à
vontade daqueles que administram essa máquina.
Portanto, o elemento mais importante do governo
é o método de escolha dos líderes.
– Lei e governança, Manual da Guilda Espacial

Por que Alia quis que eu participasse da audiência desta


manhã?, Jéssica se perguntou. Não votaram a favor do meu
retorno ao Conselho.
Jéssica estava na antessala do Grande Salão do Forte. Essa
antessala teria sido, ela mesma, um grande recinto em qualquer
outro lugar além de Arrakis. Seguindo a tendência dos Atreides,
as construções em Arrakina tinham se tornado cada vez mais
gigantescas acompanhando a concentração de riqueza e poder, e
esse salão era o exemplo perfeito de sua desconfiança. Ela não
gostava dessa antessala com seu chão de piso frio, retratando a
vitória de seu filho sobre Shaddam IV.
Jéssica viu um reflexo de seu rosto na porta lustrosa de açoplás
que dava acesso ao Grande Salão. O retorno a Duna impunha a ela
essas espécies de comparação, e Jéssica reparou apenas nos
sinais de envelhecimento em seus próprios traços: o rosto oval
tinha criado rugas leves e os olhos emitiam um tom mais frágil de
índigo. Ela conseguia se lembrar de um tempo em que havia uma
região branca em torno do azul de seus olhos. Somente os
cuidados especializados de um cabeleireiro profissional é que
mantinham o bronze luzidio de seus cabelos. Seu nariz
continuava pequeno; a boca, generosa, e seu corpo se mantinha
esguio, mas até mesmo músculos treinados na disciplina Bene
Gesserit eram propensos a reagir com lentidão com a passagem
do tempo. Alguns podiam não notar isso e até dizer: “Você não
mudou nada!”, mas o treinamento da Irmandade era uma faca de
dois gumes. As pequenas mudanças raramente escapavam à
percepção de pessoas submetidas a tal treinamento.
E a ausência de pequenas mudanças em Alia não havia
escapado à atenção de Jéssica.
Javid, chefe de cerimonial de Alia, estava parado sob a soleira
da enorme porta, muito zeloso de seu cargo oficial naquela
manhã. Ele era um gênio de manto, com um sorriso cínico em seu
rosto redondo. Jéssica achava Javid um verdadeiro paradoxo: ele
era um fremen bem alimentado. Notando a atenção que ela lhe
dava, Javid sorriu em reconhecimento e encolheu os ombros. Sua
participação como parte do séquito de Jéssica tinha sido breve,
como já sabia que seria. Ele odiava os Atreides, mas era o homem
de Alia em mais de um sentido, se os boatos fossem verdadeiros.
Jéssica percebeu o movimento de ombros dele e pensou: Esta é
a era do dar de ombros. Ele sabe que já ouvi todas as histórias a
seu respeito e não se importa. Nossa civilização poderia muito bem
falecer de sua própria indiferença bem antes de sucumbir a algum
ataque externo.
Os guardas que Gurney tinha destacado para protegê-la antes
de partir ao encontro dos contrabandistas e do deserto não
tinham apreciado o fato de ela ter vindo para Arrakis sem a
companhia deles. Mas Jéssica se sentia estranhamente a salvo.
Que alguém a tornasse uma mártir nesse lugar: a isso Alia não
conseguiria sobreviver. E Alia devia saber disso muito bem.
Quando Jéssica não respondeu ao movimento de ombros dele,
e nem ao seu sorriso, Javid tossiu, uma eructação perturbadora
em sua laringe que só podia ter sido alcançada com muita prática.
Era como uma língua secreta. Significava: “Nós entendemos o
absurdo de toda esta pompa, milady. Não é mesmo maravilhoso
em que os humanos são levados a acreditar?!”.
Maravilhoso!, Jéssica concordou, mas seu rosto não dava
nenhum indício de seus pensamentos.
Agora, aquela antessala estava cheia. Todos os suplicantes
autorizados da manhã tinham recebido do pessoal de Javid o
direito de entrar no recinto. As portas externas tinham sido
fechadas. Os suplicantes e os visitantes mantinham-se a uma
distância educada de Jéssica, mas observaram que ela usava o
manto aba negro formal de uma Reverenda Madre fremen. Isso
provocaria muitas questões. Nenhuma marca do sacerdócio de
Muad’Dib podia ser vista em sua pessoa. As conversas seguiam
em tom baixo enquanto as pessoas dividiam sua atenção entre
Jéssica e a pequena porta lateral por onde Alia entraria para
conduzi-los para o Grande Salão. Estava evidente para Jéssica
que o antigo padrão que definia onde se situavam os poderes da
Regência tinha sido abalado.
Fiz isso simplesmente vindo até aqui, ela pensou. Mas vim
porque Alia me convidou.
Ao ler os sinais da perturbação, Jéssica se deu conta de que
Alia estava deliberadamente prolongando esse momento,
deixando que as correntes sutis seguissem seu curso ali. Alia
estaria certamente espiando por trás de uma fresta. Poucas eram
as sutilezas da conduta de Alia que escapavam a Jéssica, e ela
sentia, a cada minuto que passava, como tinha sido acertado
aceitar a missão que a Irmandade lhe havia destinado.
– A situação não pode continuar do jeito que está – a líder da
delegação Bene Gesserit tinha afirmado. – Sem dúvida, os sinais
da decadência não escaparam à sua atenção, principalmente a
você! Sabemos por que você nos deixou, mas também sabemos
como você foi treinada. Nada em sua educação foi limitado. Você é
uma adepta da panóplia propheticus e deve saber quando a
debilidade de uma religião poderosa coloca todos sob ameaça.
Jéssica tinha enrugado os lábios enquanto pensava, com o
olhar lançado através da janela, percebendo os leves sinais da
primavera que chegava ao Castelo Caladan. Ela não gostava de
encaminhar seu pensamento de uma maneira tão lógica. Uma das
primeiras lições da Irmandade tinha sido resguardar uma atitude
de desconfiança e questionamento com relação a qualquer coisa
que surgisse com aparência lógica. Mas as integrantes da
delegação também sabiam disso.
Olhando em torno da antessala de Alia, Jéssica se lembrou de
como o ar tinha estado úmido naquela outra manhã. Fresco e
úmido. Aqui, predominava uma umidade pegajosa no ar que
despertava em Jéssica uma sensação de inquietação. Então ela
pensou: Voltei ao modo fremen. O ar naquele sietch acima do solo
era úmido demais. O que havia de errado com o Mestre das
Destilarias? Paul jamais teria permitido tal desatenção.
Ela notou que Javid, com o rosto brilhante e alerta e uma
fisionomia adequada, parecia não ter percebido a falta de
umidade no ar da antessala. Para alguém nascido em Arrakis isso
era um mau treinamento.
As integrantes da delegação Bene Gesserit tinham querido
saber se ela exigiria provas do que estava sendo alegado. Ela lhes
dera uma resposta irritada, extraída dos próprios manuais que
acatavam: “Todas as provas inevitavelmente levam a proposições
que não têm provas! Todas as coisas são sabidas porque
queremos acreditar nelas”.
– Mas submetemos essas perguntas aos Mentat – a líder da
delegação retrucara, em protesto.
Jéssica ficara olhando para aquela mulher, atônita.
– Fico extasiada com o fato de você ter alcançado sua atual
posição e ainda não estar a par dos limites dos Mentat – Jéssica
dissera.
Diante disso, a delegação relaxara. Aparentemente, tinha sido
tudo um teste, e ela havia passado. Naturalmente, as Bene
Gesserit tinham receado que ela houvesse perdido o contato com
aquelas capacidades equilibradoras que eram o próprio eixo do
seu treinamento.
Agora, Jéssica entrara suavemente em estado de alerta porque
Javid saíra de sua posição à porta e se aproximara dela. Ele se
inclinou numa mesura e disse:
– Milady, ocorreu-me que você talvez não tenha ouvido a mais
recente performance do Pregador.
– Recebo informes diários de tudo que acontece aqui – Jéssica
devolveu. Que ele leve isso até os ouvidos de Alia!
Javid sorriu.
– Então, sabe que ele faz discursos contra sua família. Na noite
passada, inclusive, ele pregou no subúrbio ao sul e ninguém ousou
encostar a mão nele. Naturalmente, você sabe por quê.
– Porque eles acham que ele é o meu filho que voltou para eles –
Jéssica respondeu com a voz entediada.
– Esta questão ainda não foi levada ao conhecimento do Mentat
Idaho – Javid comentou. – Talvez isso deva ser feito para que essa
questão seja resolvida.
Jéssica pensou: Aqui está uma criatura que realmente não sabe
quais são os limites de um Mentat, embora ouse colocar chifres na
testa de um deles... pelo menos em seus sonhos, senão de fato.
– Os Mentat compartilham as mesmas deficiências daqueles
que os usam – ela murmurou. – A mente humana, como é o caso
da mente de qualquer animal, é uma câmara de ressonância. Ela
reage a ressonâncias do ambiente. O Mentat aprendeu a ampliar
sua percepção consciente através de muitos elos paralelos de
causalidade e a acompanhar o trajeto desses elos ao longo de
extensos encadeamentos de consequências. – Deixe-o digerir isso.
– Então, esse Pregador não a incomoda? – Javid indagou, e sua
voz de repente tinha se mostrado formal e portentosa.
– Para mim ele é um sinal saudável – ela respondeu. – Não quero
que ele seja incomodado.
Javid evidentemente não tinha antecipado uma resposta tão
acintosa. Tentou sorrir, mas não pôde.
– O Conselho regente da igreja que deifica seu filho irá sem
dúvida concordar com seu desejo, se você insistir. Mas
certamente alguma explicação...
– Talvez seja melhor você explicar como é que eu me encaixo
nos esquemas que você articula – ela o cortou.
Javid encarou-a de olhos duros, bem de perto.
– Milady, não vejo motivo lógico pelo qual vos recusais a
denunciar esse Pregador. Ele não pode ser vosso filho. Apresento
uma solicitação razoável: denunciai-o.
Isso tudo foi bem ensaiado, Jéssica pensou. Alia o obrigou a
tanto.
E Jéssica disse:
– Não.
– Mas ele desonra o nome de vosso filho! Ele prega coisas
abomináveis contra vossa santa filha. Incita a população contra
nós. Quando o interrogaram, ele disse que até vós possuis a
natureza do mal e que vossa...
– Basta de tanta asneira! – Jéssica exclamou. – Diga a Alia que
me recuso. Desde que voltei não ouvi nada além de boatos a
respeito desse Pregador. Ele me cansa.
– Será que vos cansa, madame, saber que, no último sermão
desabonador que ele fez, ele disse que a senhora não se voltaria
contra ele? E aqui, claramente, a senhora...
– Mesmo eu sendo tão má, ainda assim não irei denunciá-lo –
ela insistiu.
– Esta não é uma questão trivial, senhora!
Jéssica fez um aceno irritado com a mão.
– Vá embora! – e ela falou com suficiente poder e autoridade
para os outros ouvirem, o que o forçou a obedecer.
Os olhos de Javid faiscavam enfurecidos, mas ele conseguiu
fazer uma mesura rígida e voltar ao seu posto junto à porta.
Essa discussão se encaixava perfeitamente nas observações
que Jéssica já tinha feito. Quando falava de Alia, a voz de Javid
vinha embalada num timbre rouco como o de um amante; não
havia como se enganar quanto a isso. Os boatos eram sem dúvida
verdadeiros. Alia permitira que sua vida degenerasse de um modo
terrível. Percebendo isso, Jéssica começou a alimentar a suspeita
de que Alia pudesse ser uma participante voluntária na
Abominação. Seria esse um caso de perversa vontade de
autodestruição? Porque sem dúvida Alia estava trabalhando para
se destruir e destruir toda a base de poder que se sustentava nos
ensinamentos de seu irmão.
Tênues sensações de desassossego começaram a se tornar
aparentes na antessala. Os apaixonados por esse lugar sabiam
quando Alia estava demorando demais e, a essa altura, já teriam
ouvido que Jéssica se desvencilhara de modo peremptório do
favorito de sua filha.
Jéssica suspirou. Ela sentia que seu corpo tinha andado até
chegar a essa sala e sua alma viera se arrastando atrás. Os
movimentos dos membros da corte eram tão transparentes! A
busca das pessoas importantes era uma dança como o vento que
varre um campo de talos de cereal. Os habitantes mais
sofisticados desse lugar franziam a testa e aplicavam números
classificatórios de acordo com a importância de cada um de seus
pares. Obviamente ela ter descartado Javid fora um estrago para
ele; eram poucos os que lhe dirigiam a palavra, agora. Mas, e os
outros! O olho treinado de Jéssica podia ler a classificação de
cada um dos satélites ao redor dos poderosos.
Essas pessoas não ficam ao meu redor porque sou perigosa, ela
pensou. Tenho o cheiro ruim de alguém que Alia teme.
Jéssica lançou o olhar em torno, percebendo como os outros
desviavam os olhos. Eram todas pessoas tão seriamente fúteis
que ela mesma se percebeu com vontade de denunciar suas
justificativas bem alinhavadas para vidas sem sentido. Oh, se pelo
menos O Pregador pudesse ver como estava aquela sala agora!
Um fragmento de uma conversa ali perto chamou-lhe a
atenção. Um sacerdote alto e magro estava se dirigindo a seus
acompanhantes, sem dúvida um grupo de suplicantes reunido
sob seus auspícios:
– Muitas vezes devo falar de um modo diverso de como penso –
ele dizia. – Isso se chama diplomacia.
A risada resultante foi um pouco alta demais, e se calou
depressa. As pessoas desse grupo perceberam que Jéssica tinha
ouvido.
Meu duque teria transportado essa criatura para o buraco dos
infernos mais remoto que existe!, Jéssica pensou. Voltei bem a
tempo.
Agora ela estava vendo como tinha vivido na longínqua
Caladan, dentro de uma cápsula de isolamento que só lhe havia
permitido a intrusão dos mais notórios excessos de Alia.
Contribuí para a minha própria existência onírica, ela pensou.
Caladan tinha sido algo como um isolamento fornecido por uma
fragata que navegasse em total segurança sob a proteção de um
paquete da Guilda. Somente as manobras mais violentas podiam
ser percebidas e, ainda assim, como se tivessem sido os
movimentos mais delicados.
Como é sedutor viver em paz, ela pensou.
Quanto mais ela via a corte de Alia, mais simpatia Jéssica
sentia pelas palavras que lhe diziam ter sido proferidas por esse
Pregador cego. Sim, Paul poderia ter dito essas mesmas palavras
se visse o que tinha sido feito com seu reino. E Jéssica se
perguntava o que Gurney poderia ter descoberto entre os
contrabandistas.
A primeira reação dela a Arrakina tinha sido a correta – agora
Jéssica se dava conta disso. Naquela sua primeira incursão pela
cidade com Javid, ela havia prestado atenção nas telas de
proteção como armaduras em torno das casas, nos caminhos e
vielas fortemente guarnecidos de guardas, nos pacientes
observadores a cada esquina, nas paredes altas e nos indícios de
fundos recintos subterrâneos que fundações grossas revelavam.
Arrakina tinha se transformado num lugar sem generosidade,
num lugar contido, nada razoável e arrogante em suas certezas e
contornos inamistosos.
A pequena porta lateral da antessala foi aberta abruptamente.
Uma vanguarda de amazonas sacerdotisas irrompeu pela sala
com Alia escudada atrás delas, altiva e se movimentando com a
confinada consciência de um poder real e terrível. O rosto de Alia
estava controlado, sem o menor vestígio de emoção, nem quando
sua mirada fixou a de sua mãe e a capturou. As duas, porém,
sabiam que a batalha tinha tido início.
Ao comando de Javid, as portas gigantescas que davam para o
Grande Salão foram abertas de par em par, movendo-se com a
sensação silenciosa e inevitável de energias ocultas.
Alia chegou perto da mãe e as guardas as rodearam.
– Entramos agora, mãe? – Alia perguntou.
– Está mais do que na hora – Jéssica respondeu. E ela pensou,
vendo uma expressão triunfante nos olhos de Alia: Ela acha que
pode me destruir e continuar intacta! Está louca!
E Jéssica ponderou se isso talvez não seria o que Idaho tinha
querido. Ele havia mandado um recado, mas ela não tivera
condições de responder. Uma mensagem muito enigmática:
“Perigo. Preciso ver você”. Tinha sido escrita numa variação do
antigo chakobsa, idioma em que o termo especificamente
escolhido para denotar perigo significava complô.
Irei vê-lo imediatamente, assim que retornar a Tabr, ela pensou.
Esta é a falácia do poder: em última análise, o
poder só é efetivo num universo absoluto e
limitado. Mas a lição básica de nosso universo
relativo é que as coisas mudam. Todo poder deve
sempre encontrar um poder maior. Paul
Muad’Dib ensinou essa lição aos Sardaukar nas
planícies de Arrakina. Seus descendentes ainda
têm de aprender essa lição por si mesmos.
– O Pregador, em Arrakina

O primeiro suplicante da audiência da manhã era um trovador


kadeshiano, um peregrino do hajj cuja bolsa tinha sido esvaziada
pelos mercenários de Arrakina. Ele estava em pé sobre as pedras
verde-água do piso daquele recinto sem dar a menor impressão
de que estava esmolando.
Instalada no alto de uma plataforma de sete degraus, ao lado de
Alia, Jéssica admirou a audácia do sujeito. Tronos idênticos
tinham sido instalados ali para a mãe e a filha, e Jéssica notou em
particular o fato de que Alia se sentara à direita, na posição
masculina.
Quanto ao trovador kadeshiano, era óbvio que o pessoal de
Javid o havia admitido justamente pela qualidade que ele agora
transmitia, sua audácia. Esperava-se do trovador que oferecesse
um pouco de entretenimento aos cortesãos no Grande Salão; era
o pagamento que receberia em vez do dinheiro que não tinha
mais.
Com base no relato do Sacerdote-Advogado que agora fazia a
defesa do caso do trovador, o kadeshiano tinha conservado
somente a roupa do corpo e o baliset atravessado ao ombro,
preso por uma tira de couro.
– Ele disse que lhe deram uma bebida escura – contou o
Advogado, mal e mal disfarçando o sorriso que tentava subir-lhe à
boca. – Se lhe apraz, Sua Santidade, a bebida deixou-o paralisado
mas acordado, enquanto sua bolsa era cortada.
Jéssica estudou o trovador enquanto o Advogado arengava e se
repetia, com falsa subserviência e a voz cheia de um moralismo
sórdido. O kadeshiano era alto, teria facilmente dois metros. Seus
olhos eram rápidos, demonstrando inteligência, estado de alerta
e bom humor. Seus cabelos dourados chegavam aos ombros,
como era o estilo naquele planeta, e havia uma sensação de força
viril no peito largo e no corpo finamente trabalhado que o manto
cinza do hajj não podia disfarçar. Chamava-se Tagir Mohandis, e
descendia de engenheiros mercantis. Era um homem orgulhoso
de seus ancestrais e de si mesmo.
Alia finalmente atalhou a interminável súplica com um aceno
de mão e falou sem se virar para a mãe:
– Lady Jéssica pronunciará o primeiro julgamento em honra de
seu regresso para nós.
– Obrigada, filha – Jéssica disse, reafirmando a ordem de
ascendência para quem quisesse ouvir. Filha! Então, esse Tagir
Mohandis fazia parte do plano deles. Ou seria uma marionete
inocente? Esse julgamento se destinava a abrir o ataque contra si
mesmo, Jéssica percebeu. Isso era óbvio pela atitude de Alia.
– Você toca bem esse instrumento? – Jéssica indagou,
mostrando o baliset de nove cordas no ombro do trovador.
– Tão bem quanto o grande Gurney Halleck em pessoa! – Tagir
Mohandis falava alto para que todos ali pudessem ouvir, e suas
palavras despertaram o interesse dos cortesãos, que se agitaram
um pouco.
– Você pede a doação do dinheiro do transporte – Jéssica
observou. – Aonde esse dinheiro o levaria?
– Para Salusa Secundus e a corte de Farad’n – Mohandis
respondeu. – Ouvi dizer que ele está procurando trovadores e
menestréis, que ele apoia as artes e que constrói uma grande
renascença de vida instruída ao seu redor.
Jéssica refreou sua vontade de olhar rapidamente para Alia.
Elas sabiam o que Mohandis ia pedir, é claro. Ela sentiu que se
divertia com esse subterfúgio. Será que pensavam que ela não era
capaz de enfrentar essa estocada?
– Você pode tocar em troca de sua passagem? – Jéssica
perguntou. – Meus termos são os termos fremen. Se eu gostar de
sua música, posso mantê-lo por aqui para amenizar minhas
preocupações. Se sua música me ofender, posso mandá-lo labutar
no deserto para obter o dinheiro de sua passagem. Se achar que
seu desempenho é justamente o que serve para Farad’n, que
dizem ser inimigo dos Atreides, então vou mandá-lo para ele com
a minha bênção. Você vai tocar nessas condições, Tagir
Mohandis?
Ele jogou a cabeça para trás e soltou uma estrondosa
gargalhada. O cabelo loiro dele dançou quando ele tirou o
instrumento do ombro e o afinou com habilidade, indicando que
aceitava o desafio.
A multidão ali dentro começou a se aproximar, mas as pessoas
foram contidas em seus lugares pelos cortesãos e pelos guardas.
Então, Mohandis dedilhou um acorde, segurando a corda
lateral do baixo numa nota longa, dando uma refinada atenção à
sua sedutora vibração. Então, erguendo a voz melodiosa de um
tenor, cantou um evidente improviso, mas com uma execução tão
primorosa que Jéssica ficou fascinada antes que pudesse prestar
mais atenção à letra:

Você diz que anseia pelos mares de Caladan,


Onde um dia foi regente, Atreides,
Ininterruptamente...
Mas exilados habitam em terras de estranhos!

Você diz que eram amargos, homens rudes


Vendendo seus sonhos de Shai-hulud
Por comida sem gosto...
E, exilados, habitam terras de estranhos.

Você faz Arrakis adoecer


Silencia a passagem do verme
E, termina seu prazo...
Como exilados, habitando terras de estranhos.

Alia! Eles a chamam de Jovem Coan


Aquele espírito que nunca é visto
Até...

– Basta! – Alia gritou. Ela se ergueu do trono, quase saindo dele.


– Vou te mandar...
– Alia! – Jéssica exclamou em voz alta, num timbre preciso o
suficiente para evitar um confronto e, ao mesmo tempo, chamar a
atenção de todos os presentes. Era um uso exímio da Voz e todos
que a ouviram reconheceram o domínio do poder que havia em tal
demonstração. Alia despencou novamente em seu assento e
Jéssica reparou que ela não aparentava nenhum desconforto.
Isso também já era esperado, Jéssica pensou. Que coisa mais
interessante.
– O julgamento deste primeiro caso é meu – ela lembrou à filha.
– Muito bem – as palavras de Alia eram praticamente
inaudíveis.
– Acho que este é um presente muito adequado para Farad’n –
Jéssica sentenciou. – Tem uma língua que corta como dagacris. A
sangria que uma língua tão afiada pode administrar seria bem
saudável para nossa própria corte, mas prefiro que seja
ministrada à Casa Corrino.
Uma leve ondulação de risadinhas se disseminou pelo salão.
Alia se permitiu expirar e bufar ao mesmo tempo.
– Você sabe do que ele me chamou?
– Ele não a chamou de nada, filha. Ele apenas relatou o que ele
ou qualquer outra pessoa poderia ouvir nas ruas. Lá eles a
chamam de Jovem Coan...
– O espírito feminino da morte que caminha sem pés – Alia
retrucou com desdém.
– Se você descartar os que relatam as coisas com exatidão, só
conservará aqueles que sabem o que você deseja ouvir – Jéssica
assinalou com voz doce. – Não consigo imaginar nada mais
venenoso do que apodrecer na bacia de seu próprio reflexo.
Sons audíveis de pessoas perdendo o fôlego e engasgando
vinham de quem estava imediatamente aos pés do trono.
Jéssica focalizou a atenção em Mohandis, que continuava
calado e em pé, totalmente não acovardado. Ele esperava fosse
qual fosse o julgamento que lhe dessem como se isso não
importasse. Era exatamente o tipo de homem que seu duque teria
escolhido para manter a seu lado em momentos de inquietação –
alguém que agia com confiança em seu próprio discernimento,
mas que aceitava o que lhe viesse pela frente, inclusive a morte,
sem amaldiçoar seu destino. Então por que ele havia escolhido
esse caminho?
– Por que você cantou essa letra em especial? – Jéssica
perguntou a ele.
Ele levantou a cabeça para falar mais claramente:
– Eu tinha ouvido dizer que os Atreides eram honrados e
tinham mentalidade aberta. Pensei em testar essa informação e
talvez permanecer aqui, a serviço de vocês, e com isso ter tempo
de ir em busca daqueles que me furtaram e dar-lhes o tratamento
que acho adequado.
– Ele ousa nos testar! – Alia resmungou.
– E por que não? – Jéssica perguntou.
Ela dirigiu um sorriso até lá embaixo onde estava o trovador
para sinalizar sua boa vontade. Ele tinha entrado naquele recinto
somente porque lhe oferecia a chance de ter outra aventura,
outra passagem através do universo dele. Jéssica sentiu-se
tentada a integrá-lo ao seu séquito pessoal, mas a reação de Alia
sinalizava maus ventos para o bravo Mohandis. Havia também
aqueles sinais que diziam que essa era a atitude esperada de lady
Jéssica: integrar um belo e bravo trovador à sua equipe de
serviços, assim como havia feito com Gurney Halleck. Era melhor
que Mohandis fosse despachado para seguir seu caminho,
embora fosse uma pena perder um espécime tão raro para
Farad’n.
– Ele deve ir para Farad’n – Jéssica decidiu. – Que ele receba o
dinheiro para essa passagem. Que a língua desse trovador
arranque sangue da Casa Corrino e vejamos como ele sobrevive a
isso.
Alia mirou o chão e então produziu um sorriso atrasado.
– A sabedoria de lady Jéssica prevalece – ela anuiu e, com um
aceno, dispensou Mohandis.
Isso não saiu do jeito que ela queria, Jéssica pensou, mas havia
indícios nos modos de Alia de que haveria um teste mais potente.
Trouxeram outro suplicante até o trono.
Reparando na reação de sua filha, Jéssica sentiu a dúvida
mordendo-a por dentro. A lição aprendida com os gêmeos era
necessária agora. Mesmo se Alia fosse a Abominação, ainda assim
ela era uma pré-nascida. Ela podia conhecer sua mãe na mesma
medida em que Jéssica se conhecia. Não importava que Alia
pudesse se enganar na avaliação da reação de sua mãe ao
trovador. Por que Alia encenava esse confronto? Para me desviar a
atenção?
Não havia mais tempo para refletir. O segundo suplicante tinha
sido trazido até o lugar reservado para eles, ao pé do par de
tronos, com seu Advogado ao lado.
Era um fremen desta vez, um velho com as marcas de areia dos
nascidos no deserto em seu rosto. Não era um suplicante alto,
mas tinha um corpo atlético, e a longa dishdasha normalmente
usada sobre o trajestilador lhe conferia uma aparência majestosa.
O manto condizia com seu rosto afilado e o nariz adunco e com os
olhos totalmente azuis, que encaravam a cena sem piscar. Não
estava usando o trajestilador e parecia desconfortável sem ele. O
espaço gigantesco do Salão de Audiências devia parecer-lhe o ar
livre perigoso que privava sua carne da inestimável umidade. Sob
o capuz, parcialmente caído para trás, ele usava o keffiya
trançado na cabeça, o adorno clássico dos naibs.
– Sou Ghadhean al-Fali – ele se apresentou, apoiando um pé nos
degraus que levavam ao trono, indicando desse modo que seu
status era superior ao da multidão. – Fui um membro dos
comandos suicidas de Muad’Dib e estou aqui por causa de uma
questão do deserto.
Alia ficou apenas levemente tensa: era uma pequena traição, já
que o nome de Al-Fali tinha integrado a solicitação para reinstalar
Jéssica no Conselho.
Uma questão do deserto!, Jéssica pensou.
Ghadhean al-Fali tinha falado antes que seu Advogado pudesse
dar início à petição. Com essa frase formal dos fremen, ele as
havia notificado de que estava trazendo um assunto que era de
interesse de Duna inteiro – e, além disso, tinha falado com a
autoridade de um Fedaykin que tinha oferecido a própria vida ao
lado da de Paul Muad’Dib. Jéssica duvidava de que fora isso que
Ghadhean al-Fali tinha dito a Javid ou ao Advogado-geral para
conseguir essa audiência. Sua suposição se confirmou quando ela
viu um oficial do Sacerdócio correr para a frente, vindo do fundo
do salão, abanando no ar a flâmula preta da interrupção.
– Senhoras! – o oficial exclamou. – Não deem ouvidos a este
homem! Ele veio com uma falsa alegação...
Vendo como aquele sacerdote havia corrido na direção do
trono, Jéssica também tinha captado um movimento com sua
visão periférica, quando Alia usara um gesto de mão da velha
língua de batalha dos Atreides, que queria dizer Agora!. Jéssica
não conseguiu identificar para quem o sinal tinha sido
endereçado, mas agiu instintivamente dando uma guinada para a
esquerda, derrubando o trono e tudo. Enquanto caía, rolou para
fora do assento, colocou-se em pé e nesse instante ouviu o spat
seco e agudo do tiro de uma pistola maula... e mais outro. Mas
desde o primeiro disparo ela estava se mexendo, só que agora
sentia um puxão em sua manga direita. Lançou-se em meio ao
enxame de suplicantes e cortesãos reunidos sob o púlpito. Ela viu
que Alia não tinha se mexido.
Rodeada pelas pessoas, Jéssica parou.
Ghadhean al-Fali, como ela notou, tinha ido rapidamente para o
outro lado do púlpito, mas o Advogado permanecia em sua
posição original.
Tudo tinha acontecido com a rapidez de uma emboscada, mas
todos no Salão sabiam aonde os reflexos treinados teriam levado
qualquer um que fosse pego de surpresa. Alia e o Advogado
continuavam imóveis em suas posições.
Uma agitação mais ou menos no meio do recinto chamou a
atenção de Jéssica e ela abriu caminho à força em meio à
multidão. Então viu quatro suplicantes contendo o oficial
sacerdote. A flâmula preta da interrupção que ele segurava
estava no chão, perto de seus pés, e uma pistola maula aparecia
nas dobras de suas vestes.
Al-Fali veio rasgando uma brecha, passou por Jéssica e seu
olhar foi da pistola para o sacerdote. O fremen explodiu num
berro de fúria; de seu cinto os dedos rígidos de sua mão esquerda
desferiram um golpe achag, pegando o sacerdote pela garganta, e
ele desfaleceu, estrangulado. Sem um único olhar para trás na
direção do homem que tinha acabado de matar, o velho naib
virou-se para o púlpito com uma expressão feroz nos olhos.
– Dalal-il ‘an-nubuwwa! – Al-Fali exclamou, colocando as duas
palmas das mãos contra a testa, e então as baixou. – O Qadis as-
Salaf não me fará silenciar! Se eu não liquidar aqueles que
interferem, outros darão cabo deles!
Ele acha que era o alvo, Jéssica entendeu. Ela olhou para baixo,
para a manga de seu manto, e enfiou um dedo no buraco
redondinho feito pela bala da maula. Envenenada, sem dúvida.
Os suplicantes tinham deixado o sacerdote cair ao chão. Ele se
estirou, contorcendo-se e morrendo de asfixia com a laringe
esmagada. Jéssica empurrou de lado uns dois cortesãos chocados
que se mantinham petrificados à sua esquerda, e sentenciou:
– Quero que esse homem seja tratado para ser interrogado. Se
ele morrer, vocês morrem! – Como eles hesitassem, olhando de
lado para o púlpito, ela usou a Voz para tirá-los do torpor: – Vão!
Os dois saíram dali.
Jéssica chegou bem perto de Al-Fali e deu-lhe um cutucão:
– Você é um tolo, naib! Estavam atrás de mim, não de você.
Várias pessoas ali perto ouviram as palavras de Jéssica. Em
meio ao silêncio chocado que se instalou, Al-Fali relanceou os
olhos pelo púlpito, com um dos tronos de lado, e Alia acomodada
no outro. A expressão de compreensão que cobriu seus traços
não poderia ter sido interpretada por um novato.
– Fedaykin – Jéssica clamou, lembrando-se dos antigos
serviços daquele homem à sua família –, nós que fomos
escorraçados sabemos como nos proteger ficando de costas um
para o outro.
– Confie em mim, milady – ele concordou, entendendo
imediatamente o que ela lhe havia dito.
Um som de voz engasgada atrás de Jéssica a fez rodopiar no
mesmo instante e ela sentiu Al-Fali se movimentando para ficar
de costas, rente a ela. Uma mulher usando o traje espalhafatoso
de uma fremen urbana estava se endireitando depois de ter
ficado ao lado do sacerdote, no chão.
Os dois cortesãos tinham sumido de vista. A mulher nem olhou
para Jéssica, mas soltou a voz no chamado ancestral de seu povo,
chamado que era destinado àqueles que lidavam com
trajestiladores para que viessem e coletassem a água de um corpo
e a destinassem à cisterna tribal. Era um som curiosamente
incongruente por vir de uma mulher vestida daquele modo.
Jéssica sentia a persistência dos velhos costumes ainda que
enxergasse claramente a falsidade daquela mulher citadina. A
criatura que usava aquela roupa tão vistosa evidentemente tinha
acabado de sacrificar o sacerdote para garantir que ele manteria
silêncio.
Por que ela se deu a esse trabalho?, Jéssica se perguntou. Ela só
precisava esperar que o homem morresse asfixiado. Esse era um
ato desesperado, um sinal de um medo intenso.
Alia sentou-se na beirada do trono com os olhos faiscando em
intensa vigília. Uma mulher esguia, usando o cabelo trançado em
nós que identificava a guarda pessoal de Alia, passou ao lado dela
com movimentos decididos, debruçou-se sobre o sacerdote,
depois se endireitou e olhou para o púlpito:
– Está morto.
– Mande tirá-lo daí – Alia ordenou. Então, moveu a mão para os
guardas que estavam ao pé do púlpito. – Endireitem o trono de
lady Jéssica.
Então você vai tentar fingir que não aconteceu nada e seguir em
frente com toda essa desfaçatez!, Jéssica pensou. Será que Alia
pensava que alguém ali teria sido enganado? Al-Fali tinha
mencionado o Qadis as-Salaf, invocando os santos pais da
mitologia fremen como seus protetores. Mas nenhuma entidade
sobrenatural tinha entrado com uma pistola maula naquele salão
onde armas não eram permitidas. Uma conspiração envolvendo o
pessoal de Javid era a única resposta e a despreocupação de Alia
com sua própria pessoa indicou a todos os presentes que ela fazia
parte dessa conspiração.
O velho naib falou para Jéssica, por cima do ombro:
– Aceite minhas desculpas, milady. Nós, do deserto, viemos em
sua procura como nossa última esperança, e agora vemos que
você ainda precisa de nós.
– O matricídio não combina muito bem com minha filha –
Jéssica acusou.
– As tribos saberão disso – Al-Fali prometeu.
– Se vocês têm uma necessidade tão desesperada de mim –
Jéssica perguntou –, por que não me procuraram na cerimônia de
Convocação em Sietch Tabr?
– Stilgar não permitiu.
Ah, Jéssica pensou, a regra dos naibs! Em Tabr, a palavra de
Stilgar é lei.
O trono caído tinha sido devidamente reposicionado. Alia
gesticulou para que sua mãe retomasse o lugar e disse:
– Todos vocês, por favor, queiram tomar nota da morte daquele
sacerdote traidor. Os que me ameaçam morrem. – Ela olhou
brevemente para Al-Fali. – Meus agradecimentos a você, naib.
– Agradeça por meu erro – Al-Fali resmungou. Então, olhou
para Jéssica. – Você tinha razão. Minha raiva tirou de cena alguém
que deveria ter sido interrogado.
– Pegue aqueles dois cortesãos e a mulher de vestido colorido,
Fedaykin – Jéssica sussurrou. – Quero todos presos e
interrogados.
– Será feito – ele assentiu.
– Se sairmos vivos daqui – Jéssica lembrou. – Venha, vamos
voltar e desempenhar nossos papéis.
– Como queira, milady.
Juntos, os dois voltaram até o púlpito e Jéssica subiu os
degraus para retomar sua posição ao lado de Alia. Al-Fali
continuou embaixo, no lugar dos suplicantes.
– Bem – disse Alia.
– Um instante, minha filha – Jéssica disse. Ela ergueu a manga
de seu manto, exibiu o buraco passando o dedo através dele e
então continuou: – O ataque foi dirigido a mim. A bala quase me
acertou, mesmo que eu tivesse me esquivado. Vocês verão que a
pistola maula não está mais lá. – E ela apontava o dedo. – Quem
está com ela?
Ninguém respondeu.
– Talvez ela possa ser rastreada – Jéssica sugeriu.
– Que absurdo! – exclamou Alia. – Eu era o...
Jéssica virou meio corpo na direção da filha e levantou a mão
esquerda.
– Alguém aqui dentro está com a pistola. Não tenha medo de
que...
– Uma das minhas guardas está com ela – Alia falou.
– Então essa guarda trará a arma para mim – ditou Jéssica.
– Ela já a levou embora.
– Que conveniente – Jéssica respondeu.
– O que você está dizendo? – Alia questionou.
Jéssica se permitiu um sorriso amargo.
– Estou dizendo que duas pessoas da sua equipe foram
encarregadas de salvar aquele sacerdote traidor. Eu as adverti
que queria o homem e que, se ele morresse, elas também
morreriam. Elas morrerão.
– Eu proíbo!
Jéssica apenas encolheu os ombros.
– Temos aqui um Fedaykin corajoso – Alia falou, acenando na
direção de Al-Fali. – Esta discussão pode esperar.
– Pode esperar para sempre – Jéssica arrematou, falando em
chakobsa, com palavras de duplo sentido que transmitiam para
Alia o fato de que nenhuma discussão poderia deter a ordem de
matar já emitida.
– Veremos! – Alia exclamou. Então, voltou-se para Al-Fali: – Por
que está aqui, Ghadhean al-Fali?
– Para ver a mãe de Muad’Dib – o naib explicou. – O que restou
dos Fedaykin, aquele bando de irmãos que serviu ao filho dela,
reuniu seus escassos recursos para me pagar a viagem até aqui e
passar pelos guardas avarentos que protegem os Atreides da
realidade de Arrakis.
Alia começou:
– Qualquer coisa que os Fedaykin peçam, eles só precisam...
– Ele veio me ver – Jéssica interrompeu. – Qual é sua
desesperada necessidade, Fedaykin?
Alia insistiu:
– Aqui eu falo pelos Atreides! Qual é...
– Calada, ó Abominação assassina! – Jéssica explodiu. – Você
tentou me matar, minha filha! Digo isto para que todos aqui
saibam. Você não vai conseguir matar todos neste recinto para
calar a boca deles, como aquele sacerdote foi silenciado. Sim, o
golpe do naib poderia ter matado o homem, mas ele poderia ter
sido salvo. Ele poderia ter sido interrogado! Você não se
incomoda em nada que ele tenha sido silenciado. Pode borrifar
seus protestos sobre nós quanto quiser, mas sua culpa está
tatuada em seus atos!
Alia ficou petrificada em silêncio, com o rosto lívido. E Jéssica,
observando o jogo de emoções que cruzava o rosto da filha,
percebeu um movimento aterrorizantemente conhecido nas
mãos de Alia, uma resposta inconsciente que uma vez havia
identificado um inimigo mortal dos Atreides. Os dedos de Alia
tamborilaram de maneira rítmica – o dedo mínimo duas vezes; o
indicador, três vezes; o anular, duas vezes; o mínimo, uma vez; o
anular, duas... e novamente o tamborilar repetiu o padrão.
O velho barão!
O foco dos olhos de Jéssica chamou a atenção de Alia e ela
olhou rapidamente para sua mão, imobilizou-a, olhou de volta
para sua mãe e constatou o terrível olhar de reconhecimento. Um
sorriso de regozijo travou a boca de Alia.
– Então, você vai ter a sua vingança contra nós – Jéssica
sussurrou.
– Você enlouqueceu, mãe? – Alia perguntou.
– Quisera ter enlouquecido – Jéssica respondeu e pensou: Ela
sabe que irei confirmar isso com a Irmandade. Ela sabe. Ela até
pode desconfiar de que direi aos fremen e que a forçarei a passar
pelo Teste da Possessão. Ela não pode me deixar sair viva daqui.
– Nosso bravo Fedaykin espera, enquanto estamos discutindo –
Alia falou.
Jéssica forçou-se a prestar novamente atenção no velho naib.
Controlando sua resposta, ela retomou:
– Você veio me ver, Ghadhean.
– Sim, milady. Nós, do deserto, vemos coisas terríveis
acontecendo. Os criadorezinhos saíram da areia como foi previsto
pelas antigas profecias. Shai-hulud não pode mais ser encontrado
exceto nos recessos do Setor Vazio. Abandonamos nosso amigo, o
deserto!
Jéssica olhou de soslaio para Alia, que simplesmente mandou
com um aceno que Jéssica prosseguisse. Ela lançou o olhar sobre
a multidão que se apinhava na Câmara, e em como cada rosto
estava chocado e alerta. O significado da briga entre mãe e filha
não tinha passado despercebido pela multidão e eles deviam
estar se perguntando por que a audiência tinha continuidade.
Jéssica tornou a prestar atenção em Al-Fali.
– Ghadhean, qual é esse assunto dos criadorezinhos e a
escassez de vermes de areia?
– Mãe da Umidade – ele respondeu, usando o antigo título
fremen –, fomos alertados a esse respeito no Kitab al-Ibar. Nós
vos suplicamos! Que ninguém esqueça que, no dia em que
Muad’Dib morreu, Arrakis se voltou contra si mesmo! Não
podemos abandonar o deserto.
– Ah! – Alia interrompeu, com menosprezo. – A ralé
supersticiosa do Deserto Profundo receia as transformações
ecológicas. Eles...
– Entendo você, Ghadhean – Jéssica atalhou. – Se os vermes
sumirem, a especiaria também desaparece. Se a especiaria
desaparece, que moeda temos para fazer negócios?
Sons de surpresa percorreram o Salão: vozes engasgadas e
sussurros podiam ser ouvidos em toda a sua extensão. A Câmara
ecoava com esses sons.
Alia encolheu os ombros:
– Superstição sem sentido!
Al-Fali levantou a mão direita para apontar para Alia.
– Falo com a Mãe da Umidade, não com a Jovem Coan!
As mãos de Alia agarraram firmemente os braços do trono,
mas ela permaneceu sentada.
Al-Fali olhou para Jéssica.
– Antes, ali era a terra onde nada crescia. Agora há plantas.
Elas se espalham como piolhos numa ferida. Temos nuvens e
chuva por todo lugar em Duna! Chuva, milady! Oh, preciosa mãe
de Muad’Dib, assim como o sono é o irmão da morte, é a chuva no
Cinturão de Duna. Ela é a morte para todos nós.
– Fazemos apenas o que Liet-Kynes e o próprio Muad’Dib
projetaram para nós – Alia protestou. – O que é toda essa lenga-
lenga supersticiosa? Reverenciamos as palavras de Liet-Kynes,
que nos disse: “Desejo ver este planeta inteiro coberto por uma
rede de plantas verdes”. Que assim seja.
– E quanto aos vermes e à especiaria?
– Sempre restará um pouco de deserto – Alia pontificou. – Os
vermes sobreviverão.
Ela está mentindo, Jéssica pensou. Por que ela mente?
– Ajudai-nos, Mãe da Umidade – Al-Fali suplicou.
Com uma abrupta sensação de visão dupla, Jéssica sentiu sua
consciência cambalear, desequilibrada pelas palavras do velho
naib. Era a inconfundível adab, a lembrança exigente que se
impunha por si mesma à pessoa. Veio sem nenhum motivo e
manteve seus sentidos imobilizados enquanto a lição do passado
se imprimia no campo de sua consciência. Ela ficou
completamente aprisionada nesse cerco, como um peixe na rede.
No entanto, sentiu esse imperativo como um momento
humaníssimo, em que cada pequena parte era uma recordação da
criação. Cada elemento da recordação-lição era real, mas
insubstancial em sua constante mudança, e ela sabia que isso era
o mais perto que jamais conseguiria chegar de vivenciar a rotina
de apreensões prescientes que havia sido infligida a seu filho.
Alia mentiu porque estava possuída por alguém que quer
destruir os Atreides. Em si mesma, ela foi a primeira destruição.
Então Al-Fali falou a verdade: os vermes de areia estão
condenados, a menos que o curso da transformação ecológica seja
modificado.
Sob a pressão dessa revelação, Jéssica viu o povo presente à
audiência reduzido a lentos movimentos, seus papéis
identificados para ela. Ela era capaz de pinçar aqueles
incumbidos de garantir que ela não saísse dali com vida! E o
caminho entre eles se abria ali, em sua consciência, como se
tivesse sido traçado com uma luz incandescente. Haveria
confusão entre eles, um seria bloqueado e cairia tropeçando em
cima de outro, grupos inteiros ficariam emaranhados entre si. Ela
também viu que poderia sair desse Grande Salão, mas acabaria
caindo em outras mãos. Alia não se importava minimamente em
criar uma mártir. Não... aquilo que a possuía não se importava.
Agora, nessa janela de tempo congelado, Jéssica escolheu uma
saída para salvar o velho naib e mandá-lo embora como
mensageiro. O caminho atravessando o público permanecia
indelevelmente claro. Como era simples! Eram bobos da corte de
olhos vendados, ombro a ombro, imóveis em sua posição de
defesa. Cada posição no imenso piso podia ser visualizada como
uma colisão atrópica da qual a carne morta poderia ser removida
em retalhos até desnudar os esqueletos. Seus corpos, suas roupas
e fisionomias descreviam infernos individuais – o seio ressequido
de terrores camuflados, o ganho faiscante de uma joia se
tornando uma armadura substituta; as bocas eram julgamentos
repletos de absolutos assustados, prismas de catedrais de
sobrancelhas denunciando elevados sentimentos religiosos
negados em suas próprias virilhas.
Jéssica sentiu dissolução nas forças modeladoras que haviam
sido desfechadas sobre Arrakis. A voz de Al-Fali tinha sido como
um distrans em sua alma, despertando uma criatura selvagem na
mais recuada dimensão de seu ser.
Num piscar de olhos, Jéssica saiu do adab para entrar no
universo do movimento, mas esse era um universo diferente
daquele que havia comandado sua atenção um segundo antes.
Alia estava começando a dizer alguma coisa, mas Jéssica
ordenou-lhe que se calasse e, então, falou:
– Há aqueles que temem que eu tenha retornado sem reservas
para a Irmandade. Mas, desde aquele dia no deserto quando os
fremen deram a mim e ao meu filho a dádiva da vida, tenho sido
fremen! – E então prosseguiu falando, mas no antigo idioma que
somente aqueles naquela sala que eram capazes de se beneficiar
dele podiam entender: – Onsar akhaka zeliman aw maslumen! –
Apoie seu irmão neste momento de dificuldade, seja ele justo ou
injusto!
Suas palavras surtiram o efeito desejado, uma sutil mudança
nas posições no interior da Câmara.
Mas Jéssica continuou proclamando:
– Este Ghadhean al-Fali, um fremen honesto, vem aqui para me
dizer o que outros deveriam ter-me revelado. Que ninguém negue
isso! A transformação ecológica tornou-se uma tempestade fora
de controle.
Mudas confirmações podiam ser constatadas através da sala.
– E minha filha se compraz com isso! – Jéssica seguia dizendo. –
Mektub al-mellah! Você cava feridas na minha carne e ali escreve
com sal! Por que os Atreides encontraram um lar aqui? Porque a
Mohalata era natural a nós. Para os Atreides, o governo sempre
foi uma parceria protetora: Mohalata, como os fremen sempre
souberam. Agora, olhem para ela! – Jéssica apontava para Alia. –
Ela ri sozinha à noite quando contempla seu próprio mal em ação!
A produção de especiaria se reduzirá a nada ou, na melhor das
hipóteses, a uma fração de seu nível anterior! E quando essa
notícia se espalhar...
– Teremos um recanto com o mais inestimável produto do
universo! – Alia bradou.
– Teremos um recanto no inferno! – Jéssica trovejou.
E Alia começou a falar no mais antigo chakobsa possível, a
língua particular dos Atreides com todas as suas difíceis pausas
de glote e estalidos:
– Agora você sabe, mãe! Você achou mesmo que uma neta do
barão Harkonnen não saberia valorizar todas as vidas que você
esmagou e comprimiu no campo da minha consciência antes
mesmo que eu tivesse nascido? Quando me revoltei contra o que
você tinha feito comigo, eu só precisei perguntar a mim mesma o
que o barão teria feito. E ele respondeu! Entenda-me de uma vez
por todas, maldita Atreides! Ele respondeu para mim!
Jéssica captou o veneno e a confirmação de suas suspeitas.
Abominação! Alia tinha sido dominada por dentro, possuída por
aquele cahueit do mal, o barão Vladimir Harkonnen. O próprio
barão falara pela boca de Alia naquele instante, pouco se
importando com o que fosse revelado. Ele queria que Jéssica
testemunhasse a vingança dele, queria que ela soubesse que ele
não podia ser simplesmente descartado.
Então eu devo ficar aqui, impotente, com tudo que sei, Jéssica
pensou. Assim que lhe ocorreu essa ideia, ela se lançou no
caminho revelado pela adab, gritando:
– Fedaykin, siga-me!
Ocorreu que havia seis Fedaykin na sala, e cinco deles se
postaram atrás dela.
Quando estou mais fraco do que você, peço que
me conceda liberdade porque isso está de acordo
com seus princípios; quando eu estou mais forte
do que você, eu tiro a sua liberdade porque isso
está de acordo com os meus princípios.
– Palavras de um antigo filósofo
(atribuídas por Harq al-Ada a Louis Veuillot)

Leto se inclinou para fora da saída camuflada do sietch, e viu a


curva do penhasco elevando-se sobre seu limitado alcance de
visão. Os raios do sol quase poente lançavam longas sombras a
escorrer pelas estrias verticais da íngreme encosta. Uma
borboleta translúcida voejava entrando e saindo das zonas de
sombra e a teia de suas asas projetava uma renda transparente
contra a luz. E Leto pensou como era delicado que uma borboleta
dessas pudesse existir ali.
Em linha reta à sua frente, estendia-se o pomar de damascos
onde as crianças se empenhavam em recolher os frutos caídos.
Depois do pomar estava o qanat. Ele e Ghanima tinham
escapulido à vigilância de sua guarda infiltrando-se num
repentino ajuntamento de trabalhadores que tinham vindo para a
lida diária. Tinha sido relativamente fácil se esgueirar rente ao
chão pelo duto de ar até onde ele se ligava aos degraus que davam
na saída camuflada. Agora, eles só precisavam se misturar com as
demais crianças, chegar ao qanat e entrar no túnel. Ali, poderiam
se deslocar ao lado dos peixes predadores que impediam as
trutas de areia de enquistar a água de irrigação da tribo. Nenhum
fremen tinha pensado ainda que um humano se arriscaria a uma
imersão acidental na água.
Ele deu alguns passos para fora da passagem protegida. O
penhasco que se estendia dos dois lados dele tornara-se
horizontal apenas com esse seu movimento.
Ghanima o seguia bem de perto. Os dois levavam pequenas
cestas de frutas feitas de fibra de especiaria, mas cada cesta
abrigava um pacote fechado contendo fremkit, uma pistola
maula, dagracis... e os novos mantos que Farad’n tinha enviado.
Ghanima ia atrás do irmão pelo pomar, no meio das crianças
trabalhadoras. As máscaras do trajestilador escondiam-lhes o
rosto. Ali, eles dois eram apenas outros trabalhadores do grupo,
mas ela sentia que aquela atitude colocava sua vida fora dos
limites protetores e dos usos e costumes conhecidos. Que passo
simples era aquele, e que passo de um perigo ao próximo!
Nas cestas, os novos trajes enviados por Farad’n carregavam
um propósito que ambos entendiam claramente qual era.
Ghanima tinha acentuado esse conhecimento costurando seu
lema pessoal – Nós compartilhamos – em chakobsa, na crista do
gavião em cada peitilho.
Logo cairia a noitinha e, além do qanat que delimitava a área de
cultivo do sietch, se instalaria uma qualidade especial de
entardecer a que poucos lugares no universo conseguiriam se
equiparar. O local se transformaria num mundo desértico e
suavemente iluminado, com sua solidão persistente e uma
sensação saturada de que cada criatura que nele existia estava só,
num universo novo.
– Fomos vistos – Ghanima murmurou, curvando-se para
prosseguir ao lado do irmão.
– Guardas?
– Não... os outros.
– Bom.
– Devemos ir depressa – ela disse.
Leto concordou com isso e se afastou prontamente do
penhasco através do pomar. Ele pensava com os pensamentos de
seu pai: Tudo permanece em movimento no deserto ou perece. Bem
adiante, lá longe na areia, ele conseguia enxergar o perfil do
Serviçal se erguendo contra o céu, um lembrete da necessidade
de que era preciso seguir andando. As pedras permaneciam
estáticas e rígidas em seu vigilante enigma, ano a ano se
desfazendo sob a ação inclemente da areia açoitada pelos ventos
do deserto. Um dia, O Serviçal seria areia.
Ao se aproximarem do qanat, ouviram a música que vinha do
alto umbral de entrada do sietch. Era um grupo de músicos
fremen ao estilo antigo: flautas de dois furos, pandeiros, tímpanos
feitos de plástico de especiaria em tambores com peles bem
esticadas sobre uma das bordas. Ninguém perguntava qual era o
animal naquele planeta que fornecia tanta pele.
Stilgar se lembrará do que eu disse a ele a respeito da fenda no
Serviçal, Leto pensou. Ele virá quando estiver escuro e for tarde
demais... e, então, ele saberá.
Nesse momento, tinham chegado ao qanat. Deslizaram para
dentro de um tubo aberto e desceram pela escada de inspeção até
a plataforma de serviço. Ali, no qanat, era sombrio, úmido e frio, e
eles conseguiam ouvir os peixes predadores espadanando.
Qualquer truta de areia que tentasse roubar aquela água teria sua
superfície interna amolecida pela água lançada pelos peixes. Os
humanos também deviam tomar cuidado com aqueles peixes.
– Cuidado – Leto acautelou, deslocando-se para baixo pela
plataforma escorregadia. Ele então atrelou sua memória a
tempos e lugares que nunca havia conhecido. Ghanima o seguia.
No final do qanat, despiram os trajestiladores e colocaram os
novos mantos. Deixaram as antigas vestimentas fremen para
trás, para então subir por outro tubo de inspeção e escalaram
agachados uma duna pela qual deslizaram pela face mais
distante. Ali se sentaram, ocultos do sietch, afivelaram as pistolas
maula e as dagacris, e em seguida atravessaram os pacotes
fremkit pelo ombro. Ali não conseguiam mais ouvir a música.
Leto se pôs em pé e começou a andar pelo vale entre as dunas.
Ghanima partiu atrás dele, deslocando-se com o silêncio de
passos irregulares e sem ritmo sobre a areia aberta, num
movimento em que era hábil.
Abaixo da crista de cada duna eles se agachavam rente ao chão
e seguiam adiante até um ponto onde pudessem se esconder.
Faziam ali uma breve pausa e olhavam para trás tentando
enxergar se alguém os perseguia. Até o momento em que
alcançaram as primeiras pedras, nenhum caçador tinha
aparecido no deserto.
À sombra das rochas, eles contornaram O Serviçal e escalaram
uma parte que se projetava e de onde poderiam divisar o deserto
ao longe. As cores faiscavam bem distantes no bled. O ar que ia
escurecendo era da fragilidade do mais fino cristal. A paisagem
que vinha ao encontro de seus olhares estava além da piedade, e
em ponto nenhum parava; ali não havia a menor hesitação que
fosse. Eles não fixavam o olhar em nenhum lugar específico,
enquanto escaneavam aquela imensidão.
É o horizonte da eternidade, Leto pensou.
Ghanima se acocorou ao lado do irmão, pensando: O ataque
virá logo. Ela abria os ouvidos à captura do mais leve som e seu
corpo todo tinha se transformado num único órgão sensorial de
refinada e impecável percepção.
Ali sentado, Leto também estava em alerta. Ele conhecia agora
o ápice de todo o treinamento que tinha ocorrido nas vidas que
ele compartilhava tão intimamente. Naqueles ermos, a pessoa
desenvolvia uma firme confiança em seus sentidos, em todos os
sentidos. A vida se tornara um acervo de percepções
armazenadas, cada uma delas associada somente à sobrevivência
momentânea.
Nesse momento, Ghanima subiu nas pedras e espiou através de
uma fenda para avaliar o caminho por onde tinham vindo. A
segurança do sietch parecia a uma vida de distância, um maciço
de penhascos verticais que se projetava ao alto contra o fundo
castanho-púrpura do horizonte. Suas bordas apresentavam-se
indistintas pelas nuvens de poeira quando os últimos raios de sol
desferiam filamentos prateados. Ainda não se via nenhum sinal
de perseguição em toda a extensão que tinham vencido para
chegar até ali. Ela voltou para ficar ao lado de Leto.
– Será um animal predador – Leto observou. – Essa é a minha
computação terciária.
– Acho que você parou de computar cedo demais – Ghanima
resmungou. – Será mais de um animal. A Casa Corrino aprendeu a
não depositar todas as suas esperanças numa única opção.
Leto aquiesceu com um movimento de cabeça.
Em sua cabeça havia agora o peso da multidão de vidas que sua
diferença fornecia a ele – todas aquelas vidas, e a dele mesmo
antes do nascimento. Ele estava impregnado de vida e queria
fugir do campo de sua própria consciência. O mundo interior era
um animal corpulento, capaz de devorá-lo.
Com movimentos desassossegados ele se pôs em pé, escalou
até a fenda entre as rochas por onde Ghanima tinha olhado para
trás e ali conseguiu enxergar como o qanat traçava uma linha
entre a vida e a morte. Na ponta do oásis, ele era capaz de ver
arbustos de sálvia, talos de cebola, gramíneas do tipo estipa,
alfafa selvagem. Com a última claridade, ele ainda divisou os
negros movimentos de aves que bicavam e ciscavam os trechos
com alfafa. As tramas de grãos ao longe eram açoitadas de leve
pelo vento, lançando sombras vindas da direita e que se
estendiam sobre o pomar. Esse movimento insistiu em se impor à
sua percepção e ele então viu que as sombras encobriam em suas
formas fluidas uma mudança de porte maior, e essa mudança
maior ofereceu resgate aos arco-íris de um céu de poeira
prateada.
O que é que vai acontecer lá?, ele se perguntou.
E Leto soube que seria ou a morte ou um jogo de morte, em que
ele era o alvo. Ghanima seria a única a regressar, acreditando na
realidade de uma morte que ela havia visto ou relatado
sinceramente, num estado de profunda compulsão hipnótica: que
seu irmão tinha efetivamente sido morto.
Os elementos desconhecidos desse lugar assustavam-no. Ele
pensou como seria fácil sucumbir à demanda da presciência,
arriscando lançar sua percepção consciente num futuro absoluto
e imutável. A pequena visão de seu sonho, todavia, já fora ruim o
suficiente. Ele sabia que não se arriscaria a uma visão mais ampla.
Nesse instante, ele voltou para onde Ghanima estava.
– Ninguém nos persegue ainda – ele informou.
– Os animais que mandaram atrás de nós serão grandes –
Ghanima murmurou. – Talvez tenhamos tempo de ver quando
estiverem perto.
– Não se vierem à noite.
– Logo vai ficar escuro – ela rebateu.
– Sim. Está na hora de irmos para o nosso lugar. – Ele indicava
as rochas à esquerda e abaixo de onde estavam, onde a areia
soprada pelo vento tinha escavado uma pequena fenda no
basalto. Era grande o bastante para abrigar os dois, mas pequena
o suficiente para impedir o acesso a criaturas de porte
avantajado. O próprio Leto relutou um pouco a entrar, mas sabia
que precisava fazer isso. Esse era o lugar que ele tinha indicado a
Stilgar.
– É possível que eles realmente nos matem – ele comentou.
– Esse é o risco que devemos correr – ela anuiu. – Devemos isso
ao nosso pai.
– Não estou discutindo.
E ele pensou: Esse é o caminho certo. Fizemos a coisa certa. Mas
ele sabia como era perigoso estar certo nesse universo. A
sobrevivência deles, agora, exigia vigor e preparo físico e a
compreensão das limitações, a cada segundo. As práticas fremen
eram seu melhor escudo e o conhecimento Bene Gesserit era uma
força de reserva. Agora, os dois estavam pensando como Atreides
veteranos de guerra, sem mais defesas que não a resiliência
fremen, algo que nem poderia ser insinuado pelo corpo infantil
que os identificava nem pelos trajes formais que estavam usando.
Leto tocou com o dedo a bainha de sua dagacris de ponta
envenenada, atada à sua cintura. Inconscientemente, Ghanima
repetiu o gesto do irmão.
– Descemos agora? – Ghanima perguntou. Ao falar, ela viu o
movimento bem abaixo deles, movimentos que a distância
tornava menos ameaçadores. A imobilidade da irmã alertou Leto
antes que ela precisasse dar qualquer aviso.
– Tigres – ele observou.
– Tigres laza – ela o corrigiu.
– Eles nos veem – ele apontou.
– Melhor irmos logo – ela falou. – Uma maula nunca conseguiria
deter essas feras. Eles terão sido treinados para isso.
– Em algum lugar, um humano está dirigindo esses animais –
ele explicou, indo à frente em passo acelerado, descendo as
rochas à esquerda.
Ghanima concordou, mas não disse nada, economizando suas
forças. Haveria um humano em alguma parte. Aqueles tigres não
poderiam ter licença para correr em liberdade senão no momento
exato.
Os tigres se deslocavam ligeiros aos últimos clarões de luz,
saltando de rocha em rocha. Eram criaturas comandadas pela
visão e logo que caísse a noite seria a vez de se tornarem
comandados pela audição. O trinado metálico de uma ave noturna
vindo do Serviçal enfatizou essa mudança. As criaturas do escuro
já estavam se agitando nas sombras de fendas esculpidas nas
pedras.
Os tigres continuavam visíveis aos gêmeos em fuga. Os animais
transbordavam força, emanando uma sensação ondulante de
impecável segurança a cada movimento.
Leto sentiu que tinha ido parar nesse lugar para se libertar de
sua alma. Ele corria com a certeza do conhecimento de que ele e
Ghanima poderiam alcançar seu esconderijo apertado a tempo,
mas a todo instante seu olhar buscava com fascinação as feras
que se aproximavam.
Um tropeção só e estamos perdidos, ele pensou.
Esse pensamento diminuiu a segurança que tinha em seu
conhecimento e com isso ele acelerou a corrida.
Vocês, Bene Gesserit, chamam sua atividade da
panóplia propheticus de “Ciência da Religião”.
Muito bem. Eu, buscador de outra espécie de
cientista, considero essa definição apropriada. De
fato, vocês constroem seus próprios mitos, mas
todas as sociedades fazem o mesmo. Contudo,
devo alertá-las. Vocês estão se comportando tal
qual muitos outros cientistas desorientados se
comportaram no passado. Suas ações revelam
que vocês desejam tirar proveito de algo (ou
remover algo) da vida. Está na hora de se lembrar
de algo que professam tão frequentemente: não se
pode ter nada sem seu oposto.
– O Pregador, em Arrakina:
Mensagem à Irmandade

Na hora que antecedia o alvorecer, Jéssica sentava-se imóvel


num tapete gasto, de trama de especiaria. À sua volta estavam as
rochas nuas de um sietch antigo e pobre, um dos assentamentos
originais. Situava-se abaixo da borda do Abismo Vermelho, ao
abrigo dos ocidentais do deserto. Al-Fali e seus irmãos tinham-na
levado até ali. Agora, aguardavam ordens de Stilgar. Os Fedaykin,
porém, tinham agido com cautela quanto à comunicação. Stilgar
não deveria estar a par de sua localização.
Os Fedaykin já sabiam que estavam sob um procès-verbal, um
relato oficial de crimes contra o Imperium. Alia estava adotando a
tática de alegar que sua mãe tinha sido subornada pelos inimigos
do reino, embora a Irmandade ainda não tivesse sido
nominalmente citada. A natureza autoritária e tirânica do poder
de Alia, no entanto, estava exposta para todos verem e sua crença
de que, porque controlava o Sacerdócio, controlava os fremen
estava a ponto de ser submetida a teste.
A mensagem de Jéssica para Stilgar tinha sido direta e simples:
“Minha filha está possuída e deve ser submetida ao teste”.
Os medos destruíam os valores, todavia, e já era sabido que
alguns fremen iriam preferir não acreditar nessa acusação. A
tentativa de usarem a acusação como passaporte tinha
desencadeado duas batalhas durante a noite, mas os ornitópteros
que o pessoal de Al-Fali tinha furtado trouxeram os fugitivos a
esse local precariamente seguro: o sietch do Abismo Vermelho. A
partir dali outros Fedaykin estavam sendo avisados, mas menos
de duzentos deles permaneciam em Arrakis. Os demais
sustentavam seus postos em locais espalhados do Império.
Refletindo sobre esses fatos, Jéssica se perguntou se por acaso
não teria vindo para o lugar de sua morte. Alguns Fedaykin
achavam que sim, mas os comandos suicidas aceitavam esse fato
com facilidade. Al-Fali tinha apenas arreganhado os dentes
quando alguns de seus rapazes resolveram falar de seus receios.
– Quando Deus deseja que uma criatura morra num
determinado lugar, ele faz a vontade dessa criatura levá-la
diretamente para lá – tinha dito o velho naib.
As cortinas de retalhos que vedavam sua alcova fizeram
barulho e Al-Fali entrou. O rosto miúdo e crestado pelo vento
daquele velho parecia abatido e seus olhos, febris.
Evidentemente, ele não tinha descansado nada.
– Vem vindo alguém – ele informou.
– A mando de Stilgar?
– Talvez. – Ele baixou os olhos e girou o olhar para a esquerda
como faziam os antigos fremen quando tinham uma notícia ruim
para dar.
– O que é? – Jéssica quis saber.
– Recebemos notícias de Tabr de que seus netos não estão lá. –
E ele falou sem olhar para ela.
– Alia...
– Ela ordenou que os gêmeos lhe fossem entregues em
custódia, mas Sietch Tabr afirma que as crianças não estão lá. É
tudo que sabemos.
– Stilgar mandou os dois para o deserto – Jéssica supôs.
– Pode ser, mas sabemos que ele esteve procurando por eles a
noite toda. Talvez tenha sido um ardil da parte dele...
– Stilgar não age assim – ela murmurou, e pensou: A menos que
os gêmeos o tenham enganado. Mas isso também não dava a
sensação de ser a verdade. Ela se avaliou com alguma surpresa:
não sentia necessidade de suprimir nenhum pânico, e os receios
que pudesse ter pelo bem-estar dos gêmeos eram amenizados
pelo que Ghanima havia revelado. Ela apertou um pouco os olhos
para encarar Al-Fali, e viu que ele estudava sua fisionomia com
piedade no olhar. Então Jéssica continuou: – Eles foram para o
deserto por conta própria.
– Sozinhas? Essas duas crianças!
Ela não se deu ao trabalho de explicar que “essas duas
crianças” provavelmente sabiam mais sobre como sobreviver no
deserto do que a maioria dos fremen vivos. Em vez disso, seus
pensamentos se fixaram no peculiar comportamento de Leto
quando ele insistira que ela se permitisse ser sequestrada. Ela
deixara essa recordação de lado, mas esse momento a exigia de
volta. Ele tinha dito que ela saberia o momento em que iria
obedecê-lo.
– O mensageiro deve estar no sietch agora – comunicou Al-Fali.
– Vou trazê-lo aqui para que fale com você. – Ele então saiu,
movendo um pouco a cortina de retalhos para o lado.
Jéssica contemplou aquela cortina. Era feita de pedaços de
fibra vermelha da especiaria, mas os retalhos eram azuis. A
história dizia que esse sietch tinha se recusado a lucrar com a
religião de Muad’Dib, conquistando a inimizade do Sacerdócio de
Alia. As pessoas ali tinham sido famosas por investirem seu
capital na criação de cães grandes como pôneis, cães que eram
treinados para serem inteligentes e guardiães de crianças. Todos
os cães tinham morrido. Houve quem dissesse que tinham sido
envenenados e que os sacerdotes eram responsáveis por isso.
Ela balançou a cabeça para afastar essas reflexões,
reconhecendo sua verdadeira natureza: eram ghafla, a distração
dos moscardos.
Mas para onde teriam ido as crianças? Para Jacurutu? Elas
tinham um plano. Elas tentaram me dizer o que estava
acontecendo até o ponto em que pensaram que eu aceitaria, ela se
lembrou então. E quando atingissem aquilo que lhes pareceria o
limite, Leto tinha decidido que ela obedeceria.
Ele tinha ordenado que ela obedecesse!
Leto tinha reconhecido o que Alia estava fazendo; isso era
óbvio. Os dois gêmeos tinham mencionado o “transtorno” da tia,
ainda quando a defendiam. Alia estava apostando no direito de
sua posição na Regência. Ter exigido a custódia das crianças
confirmava isso. Jéssica sentiu o solavanco de uma áspera risada
sacudindo seu peito. A Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam
tivera a satisfação de explicar esse erro específico a sua aluna,
Jéssica: “Se você só enfoca em sua consciência o seu próprio direito
a algo, então você convida as forças da oposição a derrubarem-na
dali. Esse é um erro comum. Até mesmo eu, sua professora, o
cometi”.
– E até mesmo eu, sua aluna, o cometi – Jéssica sussurrou
baixinho, para si mesma.
Ela ouviu o rumorejar de tecidos no corredor, atrás da cortina.
Entraram dois jovens fremen que faziam parte do séquito reunido
durante a noite. Ambos estavam evidentemente assombrados de
se verem na presença da mãe de Muad’Dib. Jéssica já os havia lido
completamente: eram do tipo que não pensava, apegados a
qualquer poder que imaginassem para ter uma identidade. Sem
reflexões da parte dela, eles eram vazios. Sendo assim, eram
perigosos.
– Fomos enviados na frente por Al-Fali para prepará-la –
sentenciou um dos jovens fremen.
Jéssica sentiu um aperto repentino no peito, mas sua voz
permaneceu calma.
– Preparar-me para o quê?
– Stilgar enviou Duncan Idaho como mensageiro dele.
Jéssica trouxe o capuz do manto aba para lhe cobrir o cabelo,
num gesto inconsciente. Duncan? Mas ele era instrumento de
Alia.
O fremen que tinha falado deu meio passo para a frente.
– Idaho diz que ele veio para levá-la em segurança, mas Al-Fali
não acha isso possível.
– De fato, parece algo estranho – Jéssica comentou. – Mas há
coisas mais estranhas no universo. Tragam-no aqui.
Um olhou para o outro, mas obedeceram, e saíram tão
alvoroçados que abriram outra fenda na cortina gasta.
Nesse instante, Idaho atravessou o limite da cortina, seguido
pelos dois fremen e por Al-Fali fechando o grupo, com a mão firme
em sua dagacris. Idaho parecia controlado. Usava o traje informal
da guarda da Casa Atreides, aquele uniforme que pouco tinha
mudado ao longo de catorze séculos. Arrakis tinha substituído a
espada de açoplás de punho de ouro pela dagacris, mas isso era
mero detalhe.
– Disseram-me que você deseja me ajudar – Jéssica começou.
– Por mais estranho que isso possa parecer – ele rebateu.
– Mas não é verdade que Alia o mandou vir me sequestrar? – ela
indagou.
Um leve erguer das sobrancelhas negras foi seu único sinal de
surpresa. Os olhos tleilaxu multifacetados continuavam a encarar
Jéssica com a mesma cintilante intensidade.
– Essa foi a ordem dela – ele anuiu.
Os nós dos dedos de Al-Fali ficaram brancos em torno da
dagacris, mas ele não desembainhou a arma.
– Passei boa parte desta noite revendo os erros que cometi com
minha filha – ela suspirou.
– Foram muitos – Idaho concordou – e estou a par da maior
parte deles.
Agora ela via que os músculos do queixo dele estavam
tremendo.
– É fácil dar ouvidos a argumentos que nos desorientam –
Jéssica continuou. – Eu queria sair deste lugar... Você... você
queria uma moça que viu como uma versão mais jovem de mim.
Ele aceitou essa constatação em silêncio.
– Onde estão meus netos? – ela inquiriu, e sua voz estava seca.
Ele piscou. Então revelou:
– Stilgar acredita que eles foram para o deserto, se esconder.
Talvez tenham previsto esta crise.
Jéssica relanceou os olhos por Al-Fali, que aquiesceu com o
reconhecimento de que ela havia antecipado tudo isso.
– O que Alia está fazendo? – Jéssica perguntou.
– Ela corre o risco de uma guerra civil – ele argumentou.
– Você acredita que chegará a isso?
Idaho encolheu os ombros.
– Provavelmente não. Os tempos estão mais amenos. Há mais
pessoas dispostas a ouvir propostas agradáveis.
– Concordo – ela disse. – Bom, muito bom, mas e os meus
netos?
– Stilgar irá encontrá-los, se...
– Sim, entendo. – Então, agora realmente era a vez de Gurney
Halleck. Ela se virou para olhar as rochas à sua esquerda. – Alia
agora detém o poder com firmeza. – E olhou para Idaho. – Você
entende? Pode-se usar o poder segurando-o com leveza. Segurá-
lo com firmeza demais é o mesmo que ser dominado pelo poder e,
assim, tornar-se sua vítima.
– Como meu duque sempre me disse – Idaho comentou.
De algum modo, Jéssica sabia que ele estava se referindo ao
velho Leto, não a Paul. E ela perguntou:
– Para onde serei levada neste... sequestro?
Idaho desceu os olhos sobre ela, com concentração, como se
tentasse desvendar o que se escondia na sombra do capuz que
cobria a cabeça dela.
Al-Fali se adiantou.
– Milady, a senhora não está pensando seriamente em...
– Não tenho o direito de decidir o meu próprio destino? – ela
indagou.
– Mas este... – e a cabeça de Al-Fali indicava Idaho.
– Este foi meu leal guardião antes que Alia nascesse – Jéssica
explicou. – Antes que ele morresse salvando a minha vida e a vida
do meu filho. Nós, Atreides, sempre honramos certas obrigações.
– Então você virá comigo? – Idaho perguntou.
– Para onde você irá levá-la? – Al-Fali quis saber.
– É melhor que você não saiba – Jéssica interrompeu.
Al-Fali resmungou, mas ficou calado. O rosto dele denunciava
sua indecisão e a percepção da sabedoria contida nas palavras
dela, mas ele continuava incerto quanto a confiar ou não em
Idaho.
– E os Fedaykin que me ajudaram? – Jéssica perguntou.
– Eles têm a palavra de Stilgar se conseguirem chegar a Tabr –
Idaho informou.
Jéssica encarou Al-Fali:
– Ordeno que vá para lá, meu amigo. Stilgar pode usar os
Fedaykin para procurar meus netos.
O velho naib baixou os olhos.
– Como desejar a mãe de Muad’Dib.
Ele ainda está obedecendo a Paul, ela pensou.
– Devemos sair daqui rapidamente – Idaho disse. – A busca
certamente incluirá este lugar e isso não vai demorar.
Jéssica se inclinou para a frente e se levantou com aquela
elegância fluida que nunca abandonava inteiramente a Bene
Gesserit, ainda que já fosse de idade avançada. E agora ela sentia
o peso dos anos, após uma noite de fuga. Enquanto andava, sua
mente se mantinha na cena daquela conversa peculiar que tivera
com seu neto. O que é que ele tinha feito, realmente? Ela balançou
a cabeça e, ajustando o capuz, recompôs seu movimento. Era fácil
demais cair na armadilha de subestimar Leto. A vida com
crianças comuns condicionava a pessoa a construir uma falsa
imagem da herança que os gêmeos compartilhavam.
A atenção de Jéssica foi capturada pela postura de Idaho. Ele
se colocara no estado de descontraída preparação para a
violência, com um pé à frente do outro, uma postura que ela
mesma lhe havia ensinado. Jéssica disparou um rápido olhar na
direção dos dois jovens fremen e de Al-Fali. O velho naib fremen
continuava acossado pela dúvida e os dois rapazes captavam isso.
– Confio minha vida a este homem – ela declarou, dirigindo-se a
Al-Fali. – E não pela primeira vez.
– Milady – Al-Fali explodiu, em voz de protesto. – É só que... – e
ele fitou Idaho – ele é o marido da Jovem Coan!
– E ele foi treinado por meu duque e por mim – ela insistiu.
– Mas ele é um ghola! – e as palavras saíram torturadas da
garganta de Al-Fali.
– O ghola do meu filho – ela o lembrou.
Isso era demais para um antigo Fedaykin que um dia tinha
jurado solenemente ficar ao lado de Muad’Dib até a morte. Ele
suspirou, abriu passagem e indicou aos dois jovens que abrissem
as cortinas.
Jéssica saiu pela abertura dos tecidos e Idaho veio atrás. Ela se
voltou então e falou para Al-Fali, sob o umbral:
– Você deve ir ter com Stilgar. Ele é de confiança.
– Sim... – mas ela continuava ouvindo o timbre da dúvida na voz
do homem.
Idaho tocou-lhe o braço.
– Devemos partir imediatamente. Você gostaria de levar
alguma coisa?
– Somente meu bom senso – ela respondeu.
– Por quê? Tem medo de estar cometendo um erro?
Ela olhou rapidamente para ele.
– Você sempre foi o melhor piloto de tóptero a nosso serviço,
Duncan.
Isso não soou engraçado para ele, que partiu na frente,
andando ligeiro, refazendo o caminho por onde viera. Al-Fali
avançou até onde Jéssica estava e seguia no mesmo ritmo que ela.
– Como foi que soube que ele veio de tóptero?
– Ele não está usando um trajestilador – ela respondeu.
Al-Fali pareceu constrangido com essa óbvia percepção. Mas
nem assim ficou quieto.
– Nosso mensageiro o trouxe até aqui diretamente de onde
Stilgar está. Eles podem ter sido vistos.
– Vocês foram avistados, Duncan? – Jéssica indagou às costas
de Idaho.
– Você sabe como tudo se passou – ele resmungou em resposta.
– Voamos abaixo do topo das dunas.
Viraram para pegar um corredor lateral que descia até degraus
numa escada espiral e desembocava no fim numa câmara aberta e
bem iluminada por luciglobos instalados no alto da rocha
castanha. Um único ornitóptero estava voltado de frente para a
parede de fora, agachado como um inseto esperando para saltar
no ar. Aquela parede era, de fato, rocha falsa: uma porta que dava
para o deserto. Por mais precário que fosse aquele sietch, ainda
mantinha os recursos do sigilo e da mobilidade.
Idaho abriu a porta do ornitóptero para ela, ajudando-a a se
acomodar no assento da direita. Quando ela passou à frente dele,
reparou no suor da testa onde um cacho do cabelo negro pendia
oleoso. Sem nenhum aviso, Jéssica se viu lembrando daquela
cabeça vertendo sangue numa caverna ruidosa. Os globos gélidos
dos olhos tleilaxu trouxeram-na de volta daquela recordação.
Nada mais era o que parecia. Ela se apressou a afivelar o cinto de
segurança.
– Faz muito tempo desde a última vez em que você me levou a
bordo de uma nave, Duncan – ela comentou.
– Muito mesmo – ele concordou. Ele já estava verificando os
controles.
Al-Fali e os dois fremen mais moços estavam esperando ao lado
dos controles que acionavam a porta falsa, preparando-se para
abri-la.
– Você acha que tenho alguma dúvida a seu respeito? – Jéssica
perguntou, falando em voz baixa com Idaho.
Idaho prestava total atenção num instrumento do motor.
Acionando os propulsores, observou uma agulha se mover. Um
sorriso roçou-lhe os lábios, traço rápido e duro em sua fisionomia
severa, desaparecendo em seguida com a mesma rapidez com que
tinha surgido.
– Ainda sou Atreides – Jéssica declarou. – Alia, não.
– Não tema – ele grunhiu. – Eu ainda sirvo os Atreides.
– Alia não é mais Atreides – Jéssica repetiu.
– Não precisa ficar me lembrando! – ele rosnou. – Agora cale a
boca e me deixe pilotar esta coisa.
O desespero na voz dele foi algo inesperado, totalmente fora do
comum no Idaho que ela conhecia. Deixando de lado uma
renovada onda de temor, Jéssica indagou:
– Para onde estamos indo, Duncan? Agora você pode me dizer.
Mas ele indicou com a cabeça a Al-Fali que era o momento de
acionar a falsa rocha e ela se abriu para fora, para um espaço
prateado e encharcado com a luz do sol. O ornitóptero saltou para
a frente e para cima, e suas asas pululavam com o esforço. Os
jatos trovejavam e eles alçaram voo pelo céu vazio. Idaho traçou
um curso a sudoeste, na direção da Serra da Sihaya, que podia ser
vista com uma linha escura desenhada sobre a areia.
Então, ele falou:
– Você faz má ideia de mim, milady.
– Tenho feito má ideia de você desde aquela noite em que você
entrou em nosso salão em Arrakina bêbado a mais não poder,
fazendo arruaça depois de ter bebido mais cerveja de especiaria
do que devia – ela retrucou. Mas as palavras dele tinham
despertado dúvidas nela de novo e ela entrou na descontraída
postura interior de preparo para usar uma completa defesa
prana-bindu.
– Eu me lembro daquela noite muito bem – ele comentou. – Eu
era muito jovem... inexperiente.
– Mas o melhor mestre-espadachim do séquito do meu duque.
– Nem tanto, milady. Gurney era capaz de me derrotar seis
vezes em dez. – Então ele olhou para ela de lado. – Onde está
Gurney?
– Fazendo o que mandei.
Ele balançou a cabeça.
– Você sabe aonde estamos indo? – ela indagou.
– Sim, milady.
– Então me diga.
– Muito bem. Prometi que armaria um complô em que
acreditassem contra a Casa Atreides. Na realidade, só há um
modo de fazer isso. – E ele apertou um botão no manche de
controle e alças para amarrar saltaram do assento de Jéssica,
envolvendo-a como um casulo em sua inviolável maciez, tomando-
lhe todo o corpo e deixando somente sua cabeça de fora. – Vou
levá-la para Salusa Secundus – ele revelou. – Para Farad’n.
Num espasmo raro e descontrolado, Jéssica fez força para
tentar se desvencilhar das tiras que a atavam e sentiu que elas a
apertavam mais ainda. Então relaxou e as tiras também, mas não
antes de sentir a presença letal do shigafio escondido no
revestimento de proteção.
– A liberação do shigafio foi desligada – ele explicou, sem olhar
para ela. – Ah, sim, e não tente usar a Voz comigo. Já vivi muita
coisa desde aquele tempo em que você podia me manobrar desse
jeito. – Ele olhou para ela. – Os Tleilaxu me protegeram de
artifícios desse tipo.
– Você está obedecendo a Alia – ela acusou – e ela...
– Alia, não – ele disse. – Nós seguimos a instrução do Pregador.
Ele quer que você treine Farad’n como no passado você treinou...
Paul.
Jéssica se recostou num silêncio gélido, lembrando-se das
palavras de Leto, quando ele disse que ela acharia um aluno
interessante. Nesse momento ela questionou:
– Esse Pregador... é o meu filho?
E a voz de Idaho parecia vir de muito, muito longe:
– Como eu queria saber...
O universo está simplesmente lá; essa é a única
maneira de um Fedaykin poder considerá-lo e
continuar no comando de seus sentidos. O
universo não ameaça, nem promete. O universo
mantém tudo além de nosso controle: a queda de
um meteoro, o afloramento de especiaria,
envelhecer, morrer. Essas são as realidades deste
universo e devem ser encaradas, não importa
como se sinta a respeito. Você não pode repelir
essas realidades com palavras. Elas alcançam
você ao seu próprio modo, sem palavras, e então,
então você entenderá o que quer dizer “vida e
morte”. Quando compreender isso, você se
sentirá inundado de alegria.
– Muad’Dib, para seus Fedaykin

– E essas foram as coisas que pusemos em movimento –


Wensicia concluiu. – Essas coisas foram feitas por você.
Farad’n permaneceu estático, sentado em frente à mãe, na sala
de estar que era reservada a ela. A luz dourada do sol entrava por
trás dele, desenhando sua sombra no chão forrado com um
tapete branco. A luz refletida pela parede atrás de sua mãe
formava um halo em torno do cabelo dela. Como de hábito, ela
usava um manto branco com bordas douradas, lembrete de seus
dias de glória. Seu rosto, em formato de coração, parecia
controlado, mas ele sabia que ela observava cada mínima reação
da parte dele. O estômago dele dava a sensação de estar vazio,
embora tivesse acabado de vir do café da manhã.
– Você não aprova? – Wensicia perguntou.
– O que há para desaprovar? – ele rebateu.
– Bem... o fato de termos mantido segredo disso para você até
agora...
– Ah, isso... – Ele estudou a expressão da mãe, tentando refletir
sobre sua própria complexa situação nessa questão. Ele só
conseguia pensar numa coisa que tinha percebido recentemente:
que Tyekanik não chamava mais sua mãe de “minha princesa”.
Como ele se dirigia a ela? Rainha Mãe?
Por que sinto essa sensação de perda?, ele se perguntou. O que
estou perdendo? E a resposta era óbvia. Ele estava perdendo seus
dias despreocupados, perdia o tempo que tinha para cultivar
aqueles interesses mentais que tanto o atraíam. Se o complô
arquitetado por sua mãe fosse bem-sucedido, essas coisas
ficariam perdidas para sempre. Novas responsabilidades iriam
exigir sua atenção. Ele percebeu que se ressentia disso
profundamente. Como é que ousavam tomar tais liberdades com
o seu tempo? E sem sequer consultá-lo!
– Fale o que está pensando – sua mãe pediu. – Tem alguma
coisa errada.
– E se esse plano fracassar? – ele indagou, falando a primeira
coisa que lhe passou pela cabeça.
– E como pode fracassar?
– Não sei... Todo plano pode fracassar. Como você está usando
Idaho em tudo isso?
– Idaho? Que interesse é esse em... Ah, sim... aquele camarada
místico que Tyek trouxe até aqui sem me consultar. Isso foi
errado da parte dele. O místico falou de Idaho, não foi?
Foi uma mentira desajeitada da parte dela e Farad’n se
percebeu encarando a mãe com expressão espantada. Ela
estivera inteirada da presença do Pregador todo esse tempo!
– É que eu nunca tinha visto um ghola – ele confessou.
Ela aceitou a explicação e disse:
– Estamos poupando Idaho para algo importante.
Farad’n mordeu o lábio superior, e não falou nada.
Wensicia se percebeu lembrando do falecido pai de seu filho.
Dalak tinha agido daquele jeito algumas vezes, muito introvertido
e complexo, difícil de interpretar. Ela se lembrou de que Dalak
tinha sido aparentado do conde Hasimir Fenring, e que esses dois
haviam sido um tanto dândis e tanto fanáticos. Será que Farad’n
seguiria pelo mesmo caminho? Ela começou a lamentar ter feito
Tyek introduzir o jovem na religião arrakina. Quem poderia saber
o caminho que isso o faria tomar?
– Como é que Tyek a chama agora? – Farad’n perguntou.
– O que é isso? – ela se assustou com a mudança de assunto.
– Reparei que ele não a chama mais “minha princesa”.
Como ele é observador, ela pensou, surpresa ao constatar que
isso a deixava muito inquieta. Será que acha que agora Tyek é meu
amante? Isso é absurdo, não faria nenhuma diferença de um jeito
ou de outro. Então por que essa pergunta?
– Ele me chama “milady” – ela revelou.
– Por quê?
– Porque esse é o costume em todas as Grandes Casas.
Incluindo a Atreides, ele pensou.
– É menos sugestivo se alguém ouve – ela explicou. – Alguém
poderá pensar que desistimos de nossas aspirações legítimas.
– Quem seria tão estúpido? – ele perguntou.
Ela franziu a boca, decidida a deixar passar esse comentário.
Uma coisa pequena, mas as grandes campanhas eram
constituídas por muitas pequenas coisas.
– Lady Jéssica não deveria ter saído de Caladan – ele comentou.
Ela sacudiu a cabeça com firmeza. Mas o que era isso? A cabeça
dele estava disparando para todo lado como se tivesse
enlouquecido!
– O que você quer dizer? – ela perguntou.
– Ela não deveria ter voltado para Arrakis – ele respondeu. –
Essa é uma má estratégia. Faz as pessoas pensarem. Teria sido
melhor fazer seus netos irem visitá-la em Caladan.
Ele tem razão, ela pensou, descorçoada por perceber que essa
ideia nunca lhe havia ocorrido. Tyek teria de explorar isso
imediatamente. Mais uma vez ela sacudiu a cabeça. Não! O que
Farad’n estava fazendo? Ele deve saber que o Sacerdócio jamais
colocaria os dois gêmeos em risco no espaço.
E ela manifestou isso.
– O Sacerdócio ou lady Alia? – ele perguntou, reparando que os
pensamentos dela tinha ido na direção que ele desejara. Sentia-se
exultante com sua nova importância, com os jogos mentais à
disposição de conspirações políticas. Fazia muito tempo desde a
última vez em que a mente de sua mãe despertara seu interesse.
Ela era fácil demais de ser manobrada.
– Você acha que Alia quer o poder para si mesma? – Wensicia
indagou.
Ele desviou os olhos dela. Claro que Alia queria o poder para si
mesma! Todos os relatos que vinham daquele planeta
amaldiçoado diziam isso. Os pensamentos dele seguiram por um
novo curso.
– Li alguma coisa a respeito do planetólogo deles – ele falou. –
Tem de haver alguma pista para os vermes de areia e os haploides
lá, se pelo menos...
– Deixe isso para os outros, por ora! – ela explodiu, começando
a perder a paciência com ele. – Isso é tudo que você tem a dizer
sobre as coisas que fizemos por você?
– Vocês não fizeram nada por mim – ele pontuou.
– Como é?
– Vocês fizeram pela Casa Corrino – ele argumentou –, e a Casa
Corrino é você, neste momento. Eu não fui investido.
– Você tem responsabilidades! – ela exclamou. – E todas essas
pessoas que dependem de você?
Como se as palavras de sua mãe o tivessem onerado, Farad’n
sentiu o peso de todas as esperanças e de todos os sonhos que
acompanhavam a Casa Corrino.
– Sim – ele concordou –, entendo tudo isso, mas acho que
algumas feitas em meu nome foram de muito mau gosto.
– Mau... Mas como você pode falar uma coisa assim? Fazemos o
que qualquer outra Grande Casa faria para promover seu próprio
destino e seu êxito!
– É mesmo? Acho que você foi um pouco grosseira. Não! Não
me interrompa. Se é para eu ser imperador, então é melhor que
você aprenda a me ouvir. Você acha que não consigo ler nas
entrelinhas? Como é que os tigres foram treinados?
Ela ficou muda diante dessa cortante demonstração da
habilidade perceptiva de seu filho.
– Entendo – ele murmurou. – Bem, vou manter Tyek porque sei
que foi você que o obrigou a isso. Ele é um bom oficial na maior
parte das circunstâncias, mas só lutará em defesa de seus
próprios princípios num ambiente amistoso.
– Os princípios dele?
– A diferença entre um bom oficial e um mau oficial é a força de
caráter... e mais ou menos cinco batidas do coração – ele
pontificou. – Ele deve se guiar por seus princípios onde quer que
seja desafiado.
– Os tigres eram necessários – ela salientou.
– Vou acreditar nisso se eles tiverem sucesso – ele retrucou. –
Mas não concordarei com o que teve de ser feito para que fossem
treinados. Não proteste. É óbvio. Eles foram condicionados. Você
mesma disse.
– E o que você vai fazer? – ela indagou.
– Vou esperar para ver – ele respondeu. – Talvez eu me torne
imperador.
Ela pôs a mão no peito e suspirou. Por alguns momentos ele a
havia deixado aterrorizada. Ela quase acreditara que ele iria
denunciá-la. Princípios! Mas, agora, ele estava comprometido. Ela
podia constatar isso.
Farad’n se levantou, foi até a porta e tocou a sineta chamando
as damas de sua mãe. Então, olhou para trás:
– A conversa terminou, certo?
– Sim. – Ela ergueu a mão quando ele se virou para sair. – Aonde
está indo?
– À biblioteca. Ultimamente fiquei fascinado pela história dos
Corrino. – Então ele a deixou, sentindo como levava no íntimo seu
novo compromisso.
Maldita!
Mas ele sabia que estava comprometido. E reconhecia que
havia uma profunda diferença emocional entre a história
registrada em shigafio e lida por prazer, uma profunda diferença
entre essa espécie de história e aquela que se vivia. Essa nova
história viva, que ele sentia se construindo à sua volta, possuía
uma qualidade de imersão em um futuro irreversível. Farad’n
podia se sentir arrastado agora pelos desejos de todos aqueles
cuja sorte caminhava junto com a dele. Ele achava estranho não
conseguir identificar exatamente seus desejos pessoais em meio a
isso.
Dizem que uma vez Muad’Dib viu um matinho que
tentava crescer entre duas pedras. Ele então
moveu uma das pedras. Depois de um tempo,
quando o matinho pareceu que ia dar flores, ele o
cobriu com a outra pedra. “Era o destino dele”,
explicou.
– Os comentários

– Agora! – Ghanima gritou.


Dois passos à frente dela, Leto não hesitou em alcançar a fenda
estreita nas rochas. Mergulhou naquele intervalo e seguiu em
frente rastejando, até que a escuridão o envolveu de todo. Ele
ouviu quando Ghanima caiu atrás dele; depois, uma repentina
imobilidade, então a voz dela, sem medo nem pressa:
– Estou presa.
Ele ficou em pé, sabendo que assim sua cabeça ficaria ao
alcance das garras que avançariam contra ele pelo ar, e refez o
curto trajeto dentro daquela passagem estreita, agora rente ao
chão, até sentir a mão estendida da irmã.
– É o manto – ela explicou. – Ficou enroscado.
Ele ouviu pedras que caíam bem abaixo de onde eles estavam,
pipocando no chão. Ele a puxou pela mão, mas só sentiu um
pequeno avanço.
Abaixo deles sons de animais que arfavam e então um rosnado.
Leto se tensionou e colocou os quadris como alavanca contra
as rochas. Pegando agora o braço de Ghanima, ele deu um puxão
mais firme e sentiu o tecido se rasgando e ela vindo para cima dele
com um sobressalto. Ela soltou um som sibilante e ele sabia que
era de dor, mas ainda assim puxou-a de novo, e com mais força.
Ela entrou mais no buraco e então caiu junto dele, ali dentro.
Porém, os dois estavam ainda muito próximos da abertura
daquela passagem. Ele se virou, caiu de quatro e começou a
engatinhar para longe dali. Ghanima se posicionou ao lado dele. A
intensidade da respiração ofegante que acompanhava seus
movimentos indicavam que ela estava ferida. Ele alcançou o fim
da cavidade, rolou de barriga para cima e então espreitou o que
havia na estreita abertura de seu santuário. Ela estava a mais ou
menos dois metros sobre sua cabeça, e cheia de estrelas. Havia
algo grande obscurecendo os astros.
Um rosnado trovejante encheu o ar que envolvia os gêmeos.
Era um som grave, intenso, ameaçador e antigo: o caçador
conversando com sua presa.
– Você está muito machucada? – Leto perguntou, mantendo a
voz calma.
Ela respondeu do mesmo modo:
– Um deles me deu uma patada. Isso rasgou o trajestilador na
perna esquerda. Estou sangrando.
– Muito?
– Foi uma veia. Posso estancar.
– Faça pressão – ele ordenou. – Não se mexa. Vou cuidar dos
nossos amigos.
– Tome cuidado – ela disse. – Eles são maiores do que eu
esperava.
Leto desembainhou sua dagacris e estendeu com firmeza o
braço que a empunhava. Ele sabia que o tigre estava buscando
suas presas ali embaixo, com suas garras que raspavam as
laterais da fenda estreita onde não cabia seu corpo.
Lentamente, bem lentamente, ele estendeu a faca. De súbito,
algo atingiu a ponta da lâmina. Ele sentiu o golpe vibrando ao
longo de todo o seu braço, a ponto de quase deixar a arma cair.
Sangue jorrava sobre sua mão e salpicava seu rosto. Um berro
logo em seguida praticamente deixou-o surdo. As estrelas se
tornaram visíveis. Alguma coisa se contorcia e saltava para longe
das rochas, indo na direção da areia, urrando violentamente.
Mais uma vez, as estrelas foram toldadas e ele ouviu o rugido
do predador. O segundo tigre tinha ocupado a posição do outro,
desatento para o destino do companheiro.
– São persistentes – Leto murmurou.
– Um deles você liquidou, com certeza – Ghanima declarou. –
Ouça!
Os berros e convulsões espasmódicas vinham da parte inferior
de onde eles estavam, cada vez menos audíveis. Todavia, o
segundo tigre era uma verdadeira cortina tapando as estrelas.
Leto guardou a lâmina na bainha e tocou o braço de Ghanima.
– Quero a sua faca. Quero uma ponta nova, para ter certeza
com esse outro.
– Você acha que eles terão um terceiro de reserva? – ela
perguntou.
– Pouco provável. Os tigres laza caçam aos pares.
– Assim como nós – ela acrescentou.
– Assim como nós – ele concordou. Quando sentiu o cabo da
dagacris da irmã na palma de sua mão, ele o apertou com firmeza.
Mais uma vez, começou a estender para cima com todo o cuidado
sua mão, buscando contato com a pata do animal. A lâmina só
topou com ar, mais nada, ainda quando ergueu o corpo um pouco
mais, numa altura inclusive perigosa. Então, recuou e começou a
pensar sobre isso.
– Você não conseguiu encontrar o tigre?
– Ele não está se comportando como o outro.
– Mas continua ali. Sente o cheiro?
Ele engoliu em seco. Um hálito fétido, úmido e com o odor
almiscarado do felino tomou suas narinas de assalto. As estrelas
continuavam encobertas. Nada mais se ouvia vindo do primeiro
tigre. O veneno da dagacris tinha concluído seu serviço.
– Acho que vou ter de ficar em pé – ele informou.
– Não!
– Ele precisa ser provocado para chegar ao alcance da adaga.
– Sim, mas concordamos que se um de nós pudesse evitar ser
ferido...
– E você está ferida, de modo que você é quem vai recuar – ele
insistiu.
– Mas se você ficar muito ferido eu não conseguirei deixar você
sozinho – ela rebateu.
– Você tem uma ideia melhor?
– Dê aqui minha faca de volta.
– Mas e a sua perna!
– Eu posso ficar em pé em cima da outra, que está boa.
– Essa criatura é capaz de arrancar a sua cabeça com uma só
patada. Talvez a maula...
– E se houver alguém por perto escutando, saberão que viemos
preparados para...
– Não gosto de você correndo esse risco! – ele confessou.
– Quem quer que esteja lá não deve saber que temos maulas...
ainda não. – Ela tocou o braço do irmão. – Vou tomar cuidado,
ficarei de cabeça abaixada.
Como ele permaneceu calado, ela acrescentou:
– Você sabe que sou eu que tenho de fazer isso. Me dê a faca de
volta.
Relutando, ele tateou no escuro com a mão desocupada,
encontrou a da irmã e lhe devolveu a arma. Era a coisa lógica a ser
feita, mas a lógica brigava com todas as emoções que o
inundavam.
Ele sentiu Ghanima se afastar, ouvindo o som arenoso do
manto dela raspando nas pedras. Ela respirou mais pesado,
arfando, e ele soube que ela devia estar em pé. Tome muito
cuidado!, ele pensou. E ele quase a puxou de volta para insistir
que ela usasse a pistola maula. Mas, com isso, qualquer um que
estivesse lá fora ficaria sabendo que eles estavam com essas
armas. Pior ainda, poderia afugentar o tigre e ele se poria fora do
alcance deles, deixando-os então ali dentro, presos entre as
pedras e com um tigre ferido esperando pelos dois em algum
lugar desconhecido no meio das rochas.
Ghanima inspirou fundo e firmou as costas contra um paredão
da fenda. Devo ser rápida, ela pensou. Com a ponta da faca
voltada para cima, ela estendeu o braço. A perna esquerda
latejava nos lugares em que as garras tinham cortado a carne. Ela
sentia o sangue coagulando sobre a pele e também o calor de um
novo sangramento. Muito rápida! Então nivelou seus sentidos na
calma preparação para enfrentar crises que o treinamento Bene
Gesserit proporcionava, empurrando a dor e outros fatores de
distração para fora de sua consciência. O felino tem de enfiar a
pata ali dentro! Lentamente ela deslizou a lâmina através da
abertura. Onde estava aquele desgraçado daquele animal? Mais
uma vez ela atiçou o ar em estocadas curtas. Nada. O tigre teria
de ser atraído para que atacasse.
Cuidadosamente, ela usou seu olfato para farejar. Um hálito
quente veio da esquerda. Ela se posicionou, inspirou fundo e
gritou Taqwa!, o antigo grito de guerra fremen. Seu significado,
encontrado nas legendas mais antigas, era O preço da liberdade!
Com esse grito, ela apontou a extremidade da faca e atacou pelo
lado esquerdo da fresta. As garras encontraram seu cotovelo
antes que a faca achasse a carne e ela teve tempo apenas de virar
seu punho na direção da dor antes que a agonia cobrisse seu
braço do cotovelo ao punho. Através da dor, ela sentiu a ponta
envenenada da faca afundar no tigre. A lâmina foi arrancada de
seus dedos entorpecidos, mas novamente a estreita abertura da
fenda entre as pedras estava desobstruída e cheia de estrelas, e a
voz lamurienta de um felino moribundo ocupava a noite. Eles
seguiram a voz até seus últimos estertores de morte, enquanto a
fera cambaleava sobre os rochedos de fora. Então, instalou-se o
silêncio final.
– Ele pegou o meu braço – Ghanima ofegou, tentando atar uma
ponta solta do manto em torno da ferida.
– Cortou muito?
– Acho que sim. Não consigo sentir a mão.
– Vou pegar uma luz e...
– Só depois que voltarmos ao abrigo!
– Serei rápido.
Ela o ouviu se virar para alcançar o fremkit, sentiu a escura
maciez de um escudo noturno deslizando sobre sua cabeça e
sendo acomodado atrás dela. Ele não se deu ao trabalho de cuidar
que a umidade não escapasse.
– Minha faca está deste lado – ela comentou. – Consigo sentir o
cabo com o joelho.
– Deixe isso para lá, por enquanto.
Ele acendeu um pequeno globo. O clarão que emitia ofuscou
Ghanima. Leto colocou o globo no chão arenoso da caverna, e
então perdeu o fôlego quando olhou para o braço da irmã. Uma
pata tinha aberto uma ferida longa e funda que contornava o
cotovelo, pegava a parte de trás do braço e chegava praticamente
até o punho. Essa ferida descrevia de que maneira ela havia girado
o braço para direcionar a ponta da faca contra a pata do tigre.
Ghanima olhou uma vez para o ferimento, fechou os olhos e
começou a recitar a litania contra o medo.
Leto se sentiu compartilhando essa mesma necessidade, mas
deixou de lado o clamor de suas próprias emoções enquanto se
preparava para cuidar dos cortes. Era preciso agir com cuidado
para deter o sangramento e ao mesmo tempo dar a impressão de
um serviço desajeitado que a própria Ghanima teria feito por si
mesma. Ele a fez amarrar sozinha o nó com a mão livre, segurando
uma ponta da bandagem com os dentes.
– Agora, vamos dar uma olhada na perna – ele prosseguiu.
Ela girou para expor a outra ferida. Não era tão feia: dois cortes
rasos feitos com as garras, ao longo da panturrilha. No entanto,
tinham sangrado abundantemente dentro do trajestilador. Ele
limpou tudo o melhor que pôde, atando a ferida por dentro do
traje.
Então, fechou o tecido sobre a bandagem.
– Deixei entrar areia aí – ele informou. – Você precisa tratar
disso assim que voltar.
– Areia em nossas feridas – ela disse. – Essa história é velha
para os fremen.
Ele conseguiu sorrir e se recostou.
Ghanima inspirou fundo.
– Nós conseguimos.
– Ainda não.
Ela engoliu em seco, lutando para se recompor após o choque
do embate. Seu rosto estava pálido à luz do luciglobo. E ela
pensou: Sim, temos de nos deslocar muito depressa, agora. Quem
controlava os tigres pode estar aí fora neste exato momento.
Encarando a irmã, Leto sentiu o aperto repentino e intenso da
perda. Era uma dor funda, que lhe atravessou o peito. Ele e
Ghanima deviam se separar agora. Durante todos os anos, desde
seu nascimento, tinham sido como uma só pessoa. Mas seu plano
agora exigia que passassem por uma metamorfose, indo em
rumos separados e singulares, num distanciamento em que
dividir as experiências diárias nunca mais poderia uni-los da
maneira como tinham sido unidos até então.
Ele se voltou para o que era necessariamente mundano.
– Aqui está meu fremkit. Tirei as bandagens. Alguém pode
olhar.
– Sim. – Ela trocou de kit com ele.
– Alguém, em algum lugar, opera um transmissor ligado aos
tigres – ele continuou. – O mais provável é que estejam esperando
perto do qanat para se certificar a nosso respeito.
Ela tocou a pistola maula na posição que ocupava em cima do
fremkit, pegou-a e a enfiou na faixa de cintura que ficava sob seu
manto.
– Meu manto está rasgado.
– Está... Rastreadores devem chegar aqui em pouco tempo – ele
insistiu. – Pode ser que haja um traidor entre eles. É melhor que
você retorne sozinha. Faça Harrah esconder você.
– Eu vou... eu vou começar a buscar o traidor assim que chegar
de volta – ela prometeu. Ela olhou fundo no rosto do irmão,
compartilhando com ele o doloroso conhecimento de que, a partir
desse momento, eles iriam acumular vastas diferenças. Nunca
mais seriam como uma só pessoa, compartilhando
conhecimentos que mais ninguém seria capaz de compreender.
– Irei para Jacurutu – ele declarou.
– Fondak – ela respondeu.
Ele aquiesceu. Jacurutu/Fondak – tinham de ser o mesmo
lugar. Era a única maneira de o lendário lugar poder ter
permanecido oculto. Naturalmente, isso era obra dos
contrabandistas. Como era fácil para eles trocar um rótulo por
outro, atuando sob o disfarce da convenção tácita por meio da
qual tinham licença para existir. A família que governasse um
planeta sempre deveria ter uma porta dos fundos para escapar in
extremis. E uma pequena parcela dos lucros do contrabando
mantinha os canais abertos. Em Fondak/Jacurutu, os
contrabandistas tinham dominado um sietch completamente
operacional sem a menor oposição da população residente. E
tinham escondido Jacurutu à plena vista de todos, garantida pelo
tabu que mantinha os fremen distantes.
– Nenhum fremen irá pensar em procurar por mim em tal lugar
– ele disse. – Eles perguntarão aos contrabandistas,
naturalmente, mas...
– Faremos como combinamos – ela completou. – É só...
– Eu sei. – Ao ouvir a própria voz, Leto se deu conta de que
estavam estendendo esses últimos momentos de identificação.
Um sorriso contorcido resvalou pelos lábios do menino,
adicionando vários anos à sua fisionomia. Ghanima entendeu que
ela o estava enxergando através dos véus do tempo, vendo um
Leto mais velho. Lágrimas ardiam em seus olhos.
– Você ainda não precisa dar água aos mortos – ele falou,
limpando com um dedo a umidade no rosto da irmã. – Irei para
longe o bastante, tão longe que ninguém ficará sabendo, e
chamarei um verme. – Ele indicou os ganchos do Criador atados
do lado de fora do seu fremkit. – Chegarei a Jacurutu antes do
amanhecer do segundo dia, a partir de agora.
– Que a viagem lhe seja leve, velho amigo – ela murmurou.
– Voltarei para você, minha única amiga – ele prometeu. –
Lembre-se de tomar cuidado no qanat.
– Escolha um bom verme – ela disse, pronunciando as palavras
fremen de despedida. Sua mão esquerda apagou o luciglobo e o
lacre noturno farfalhou quando ela o puxou para o lado, dobrou e
guardou dentro do kit. Ela sentiu o irmão indo embora, ouvindo
somente o mais suave dos sons que rapidamente se desfaziam em
silêncio conforme ele ia escalando as rochas que o levariam
deserto adentro.
Ghanima se preparou então para o que lhe cabia fazer. Leto
tinha de estar morto para ela. Ela precisava chegar a acreditar
nisso. Não poderia existir Jacurutu em sua mente, não poderia
existir um irmão em algum lugar buscando um lugar perdido da
mitologia fremen. Desse momento em diante, ela não podia
pensar em Leto como alguém vivo. Ela precisava se condicionar a
reagir como se acreditasse piamente que seu irmão estava morto,
e que fora abatido pelos tigres laza. Poucos eram os humanos
capazes de ludibriar uma Proclamadora da Verdade, mas ela
sabia que era capaz disso... que deveria ser capaz disso. As vidas
múltiplas que ela e Leto compartilhavam lhes haviam ensinado
como realizar tal façanha: era um processo hipnótico, antigo já
nos tempos de Sheba, embora ela talvez fosse a única humana
viva capaz de se lembrar de Sheba como realidade. As
compulsões profundas tinham sido projetadas com cuidado e,
por muito tempo depois de Leto ter partido, Ghanima
retrabalhou sua consciência de si mesma, construindo a
identidade da irmã solitária, a gêmea sobrevivente, até ter-se
tornado uma totalidade crível. Enquanto fazia isso, comprovou
que seu mundo interior se tornava silente, impedido de invadir o
território de sua consciência. Esse era um efeito colateral que ela
não havia antecipado.
Se pelo menos Leto pudesse ter vivido para aprender a fazer
isso, ela pensou, e não lhe pareceu que essa ideia fosse um
paradoxo. Colocando-se em pé, ela espreitou o deserto onde o
tigre tinha acabado com a vida de Leto. Lá de longe subia um som
que vinha das areias e aumentava, um som que era conhecido dos
fremen: a passagem de um verme. Por mais raros que tivessem se
tornado nessas paragens, um verme ainda vinha. Talvez a agonia
da morte do primeiro tigre... Sim, Leto tinha matado um dos
felinos antes de o outro ter dado conta dele. Era incrivelmente
simbólico que um verme aparecesse naquelas circunstâncias. A
compulsão dela era tão intensa que ela enxergou três pontos
escuros bem distantes, no horizonte de areia: os dois tigres e
Leto. Então o verme veio e só foi areia cuja superfície fendida
criava novas ondas com a passagem de Shai-hulud. Não tinha sido
um verme muito grande... mas grande o bastante. E a compulsão
de Ghanima não lhe permitia enxergar a pequena figura que
montava o dorso anelado daquela criatura.
Combatendo seu sentimento de perda, Ghanima fechou seu
fremkit e saiu rastejando cautelosamente de dentro do
esconderijo. Com a mão na pistola maula, ela esquadrinhou os
arredores. Nenhum sinal de humano usando transmissor. Ela
escalou as rochas até em cima e cruzou para o lado extremo,
movendo-se abaixada quando nuvens encobriam a lua,
esperando, esperando, até ter certeza de que nenhum assassino
estava à espreita mais adiante no caminho.
Através do espaço aberto, ela pôde enxergar as tochas de Tabr,
na atividade oscilante da busca. Uma mancha escura se
movimentou pela areia na direção do Serviçal. Ela preferiu traçar
um percurso que a levasse bem ao norte da equipe que se
aproximava, desceu para a areia e foi indo na direção das sombras
das dunas. Cuidando para que seus passos não tivessem ritmo
regular, e assim não atraíssem um verme, ela partiu através da
solitária distância que separava Tabr do lugar em que Leto tinha
sido morto. Ela precisava tomar cuidado perto do qanat, isso
estava claro. Nada devia impedi-la de dizer como seu irmão tinha
perecido, salvando-a dos tigres.
Os governos, se perduram, sempre tendem cada
vez mais na direção de modelos aristocráticos.
Não se sabe de nenhum governo, na História, que
tenha se furtado a esse padrão. E, à medida que a
aristocracia se desenvolve, o governo tende mais e
mais a agir exclusivamente no interesse da classe
dominante, quer essa classe seja a realeza
hereditária, oligarquias de impérios financeiros
ou a burocracia mais cristalizada.
– A Política como Fenômeno Repetitivo:
Manual de Treinamento Bene Gesserit

– Por que ele nos apresenta essa proposta? – Farad’n


perguntou. – Isso é o mais importante.
Ele e o bashar Tyekanik estavam em pé, conversando no salão
de descanso dos aposentos privados de Farad’n. Wensicia estava
sentada num divã baixo, azul-claro, mais como ouvinte do que
como interlocutora. Ela estava ciente de sua posição e se
ressentia disso, mas Farad’n tinha passado por uma mudança
aterrorizante desde aquela manhã em que ela lhe havia revelado
os planos que estavam sendo elaborados.
Era o final da tarde no castelo Corrino, e a luz esmaecida do
poente acentuava o discreto conforto daquele recinto – um
aposento forrado de livros de verdade reproduzidos em plastino,
com prateleiras revelando uma horda de aparelhos de
reprodução, blocos de dados, carretéis de shigafio,
amplificadores mnemônicos. Por toda parte havia sinais de que
esse cômodo era muito utilizado: os livros tinham lugares
desgastados, os amplificadores exibiam seu metal lustroso, as
beiradas dos blocos de dados estavam amassadas. Havia apenas
um divã, mas muitas cadeiras, todas elas flutuadores sensiformes
projetados para oferecer conforto absoluto.
Farad’n estava de costas para uma janela. Usava um uniforme
básico dos Sardaukar, em cinza e preto, ostentando somente os
símbolos das garras douradas do leão nas abas do colarinho, a
título de adorno. Ele tinha resolvido receber o bashar e sua mãe
nesta sala, na expectativa de criar uma atmosfera de
comunicação mais descontraída do que a que prevaleceria se
estivessem num ambiente mais formal. Mas os constantes modos
de tratamento dispensados por Tyekanik – “Milorde...”,
“Milady...” – instalavam uma distância entre eles.
– Milorde, não acho que ele teria feito essa oferta se não fosse
capaz de honrá-la – respondeu Tyekanik.
– Claro que não! – intrometeu-se Wensicia.
Farad’n apenas olhou para a mãe a fim de calá-la, e então
indagou:
– Não fizemos pressão em Idaho, nenhuma tentativa de forçar a
realização da promessa do Pregador?
– Nenhuma pressão – informou Tyekanik.
– Então, por que Duncan Idaho, famoso sua vida inteira pela
fanática lealdade aos Atreides, está se oferecendo agora para
entregar lady Jéssica em nossas mãos?
– Há boatos de uma crise em Arrakis... – Wensicia arriscou.
– Não confirmados – Farad’n rebateu. – Seria possível que O
Pregador tivesse precipitado isso?
– É possível – Tyekanik conjeturou –, mas não consigo perceber
com que motivo.
– Ele diz que está buscando asilo para ela – Farad’n lembrou. –
Isso poderia proceder, se os boatos...
– Justamente – completou a mãe.
– Ou poderia ser algum tipo de armadilha – sugeriu Tyekanik.
– Podemos fazer diversas conjecturas e examinar cada uma –
Farad’n afirmou. – E se Idaho caiu em desgraça diante de lady
Alia?
– Isso explicaria a situação – anuiu Wensicia –, mas ele...
– Nenhuma notícia dos contrabandistas ainda? – Farad’n
interrompeu. – Por que não podemos...
– Nesta estação, as transmissões são sempre mais demoradas –
Tyekanik explicou – e os protocolos de segurança...
– Sim, naturalmente, mas mesmo assim... – Farad’n balançou a
cabeça. – Não gosto das nossas suposições.
– Não se apresse em abandoná-las – recomendou Wensicia. –
Todas essas histórias sobre Alia e aquele sacerdote, seja qual for
seu nome...
– Javid – lembrou Farad’n. – Mas esse homem, evidentemente...
– Ele tem sido uma fonte valiosa de informação para nós –
apontou Wensicia.
– Eu ia dizer que ele, evidentemente, é um agente duplo –
concluiu Farad’n. – Como é que ele poderia se incriminar nisso
tudo? Ele não merece confiança. Há sinais demais de que...
– Que não consigo enxergar – interrompeu a mãe.
Repentinamente, ele perdeu a paciência com a obtusidade
dela.
– Acredite no que lhe digo, mãe! Os sinais estão aí; mais tarde
eu lhe explico.
– Quanto a mim, concordo – Tyekanik admitiu.
Wensicia se calou com ar magoado. Como é que eles ousavam
expulsá-la do Conselho dessa maneira? Como se ela fosse uma
garotinha fútil sem...
– Não devemos nos esquecer de que Idaho já foi um ghola –
Farad’n considerou. – Os Tleilaxu... – E ele olhou de lado para
Tyekanik.
– Essa possibilidade será investigada – ele argumentou.
Tyekanik sentiu-se admirado com o modo como funcionava a
cabeça de Farad’n: era uma mente alerta, inquisitiva, penetrante.
Sim, quando haviam devolvido a vida a Idaho, os Tleilaxu podiam
ter implantado uma poderosa farpa em seu organismo para
usarem em proveito próprio.
– Mas não consigo perceber o motivo dos Tleilaxu para isso –
Farad’n confessou.
– Um investimento em nossas fortunas – Tyekanik sugeriu. –
Uma pequena garantia por favores futuros?
– Eu diria um grande investimento – comentou Farad’n.
– Perigoso – murmurou Wensicia.
Farad’n teve de concordar com ela. As habilidades de lady
Jéssica eram famosas no Império. Afinal de contas, Muad’Dib
tinha sido treinado por ela.
– Se ficassem sabendo que estamos com ela... – Farad’n
começou.
– Sim, seria uma faca de dois gumes – Tyekanik concluiu. – Mas
não é necessário que se divulgue isso.
– Vamos supor – disse Farad’n – que aceitamos essa oferta.
Qual o valor de lady Jéssica? Podemos usá-la como moeda de
troca por algo de maior importância?
– Abertamente, não – contrapôs Wensicia.
– Óbvio que não! – e o filho olhou com expectativa para
Tyekanik.
– É o que veremos depois – disse ele.
– Sim – Farad’n aquiesceu –; acho que, se aceitarmos, devemos
considerar lady Jéssica como fundos creditados para uso
indeterminado. Afinal de contas, a fortuna não precisa
obrigatoriamente ser gasta com algo específico. É só algo...
potencialmente útil.
– Ela seria uma cativa muito perigosa – Tyekanik lembrou.
– De fato, temos que levar isso em conta – Farad’n concordou. –
Disseram-me que seus conhecimentos Bene Gesserit lhe
permitem manipular uma pessoa apenas com o uso sutil de sua
voz.
– Ou de seu corpo – acrescentou Wensicia. – Irulan certa vez me
apresentou algumas coisas que ela havia aprendido. Nessa época
ela estava se exibindo e eu não me dispus a assistir a essas
demonstrações. Ainda assim, há evidências bem conclusivas de
que as Bene Gesserit têm métodos próprios para alcançar seus
objetivos.
– Você está sugerindo que ela possa me seduzir? – Farad’n
perguntou.
Wensicia apenas deu de ombros.
– Eu diria que ela é um pouco idosa para isso, não é mesmo? –
Farad’n perguntou.
– Quando se trata de uma Bene Gesserit, nada é certo – afirmou
Tyekanik.
Farad’n registrou um arrepio de excitação mesclado com medo.
Jogar esse tipo de jogo para devolver a Casa Corrino ao nível mais
alto do poder era algo que tanto o atraía como o repelia. Por mais
que fosse sempre uma perspectiva atraente, ele sentia uma
intensa necessidade de se retirar desse jogo e retomar seus
interesses pessoais prediletos: a pesquisa histórica e se inteirar
dos deveres manifestos da regência ali, em Salusa Secundus.
Restaurar as forças Sardaukar à sua disposição já era uma tarefa
e tanto... e, para dar conta dessa incumbência, Tyek ainda era um
bom recurso. Afinal de contas, um planeta era uma
responsabilidade enorme, mas o Império era uma
responsabilidade ainda maior, e muito mais atraente como
instrumento de poder. Quanto mais ele lia sobre Muad’Dib/Paul
Atreides, mais fascinado Farad’n se tornava com os usos do
poder. Como líder titular da Casa Corrino e herdeiro de Shaddam
IV, que grande realização seria devolver sua linhagem ao Trono do
Leão. Ele queria isso! Farad’n tinha percebido que, repetindo essa
litania motivacional para si mesmo, várias vezes seguidas, ele
conseguia superar suas dúvidas momentâneas.
– ... e, é claro – Tyekanik estava falando –, as Bene Gesserit
ensinam que a paz promove agressões e, assim, deflagram
guerras. O paradoxo da...
– Como foi que chegamos a esse assunto? – Farad’n perguntou,
retomando sua atenção e tirando-a da esfera das especulações.
– Ora – Wensicia respondeu suavemente, tendo notado que o
rosto de seu filho tinha ficado anuviado –, eu apenas perguntei se
Tyekanik estava a par da filosofia que norteia a Irmandade.
– A filosofia deve ser tratada com irreverência – pontificou
Farad’n, virando-se para ficar de frente para Tyekanik. – Quanto
à oferta de Idaho, acho que devemos pesquisar melhor. Quando
achamos que sabemos de alguma coisa, esse é exatamente o
momento em que devemos olhar aquilo bem mais a fundo.
– Assim será feito – anuiu Tyekanik. Ele apreciava esse traço
cauteloso no caráter de Farad’n, mas esperava que não chegasse
a atingir a esfera das decisões militares que exigissem rapidez e
precisão.
Com aparente frivolidade, Farad’n perguntou:
– Sabe o que acho mais interessante na história de Arrakis? O
costume dos tempos primitivos em que os fremen matavam à
queima-roupa qualquer um que não estivesse usando um
trajestilador, com seu capuz característico e facilmente visível.
– E o que fascina no trajestilador? – perguntou Tyekanik.
– Você reparou, foi?
– E como não reparar? – indagou Wensicia.
Farad’n desferiu um olhar irritado na direção da mãe. Por que
ela interrompia daquele jeito? Ele voltou sua atenção para
Tyekanik.
– O trajestilador é a chave do caráter daquele planeta, Tyek. É a
marca registrada de Duna. As pessoas tendem a focalizar as
características físicas: o trajestilador conserva a umidade do
corpo, recicla-a e torna possível a existência num planeta como
aquele. Você sabe, o costume fremen era ter um trajestilador para
cada membro da família, exceto os coletores de comida que
tinham outro, de reserva. Mas, por favor, vejam bem, vocês dois...
– e ele se movimentou para incluir a mãe – que trajes que parecem
ser trajestiladores, e na realidade não são, se tornaram alta moda
através de todo o Império. É um traço tão típico dos humanos
copiar os conquistadores!
– Você realmente acha que essa é uma informação valiosa? –
Tyekanik perguntou, com um tom de voz aturdido.
– Tyek, Tyek, sem uma informação dessas não se pode
governar. Eu disse que o trajestilador é a chave para o caráter
deles e é! É uma coisa conservadora. Os erros que cometerão
serão erros conservadores.
Tyekanik relanceou os olhos para Wensicia, que estava
encarando o filho com a testa franzida de preocupação. Essa
característica de Farad’n ao mesmo tempo que atraía o bashar
deixava-o preocupado. Era muito diferente de Shaddam. Ali sim
tinha havido o Sardaukar essencial: o matador militar com poucas
inibições. Mas Shaddam tinha caído perante os Atreides
comandados por aquele maldito Paul. De fato, o que ele sabia de
Paul Atreides revelava características muito semelhantes às que
Farad’n demonstrava agora. Era possível que Farad’n pudesse
hesitar menos do que os Atreides diante de necessidades brutais,
mas isso era devido a seu treinamento Sardaukar.
– Muitos governaram sem utilizar essa espécie de informação –
Tyekanik retrucou.
Farad’n apenas olhou fixamente para ele por um momento,
antes de dizer:
– Governaram e falharam.
A boca de Tyekanik se fechou numa linha estreita e reta, diante
dessa contundente alusão ao fracasso de Shaddam. Esse tinha
sido um fracasso Sardaukar também, e nenhum Sardaukar iria
querer se lembrar disso.
Tendo deixado claro esse ponto, Farad’n acrescentou:
– Veja, Tyek, a influência de um planeta sobre o inconsciente de
sua massa de habitantes nunca foi devidamente avaliada. Para
derrotar os Atreides, devemos entender não somente Caladan,
mas Arrakis: um plano suave e o outro, um campo de treinamento
para decisões difíceis. Aquele foi um evento singular, o casamento
dos Atreides com os fremen. Devemos saber como foi que deu
certo ou não seremos capazes de nos equiparar a eles, quanto
mais derrotá-los!
– E o que isso tem a ver com a oferta de Idaho? – Wensicia
indagou.
De pé, Farad’n olhou com dó para sua mãe, sentada no divã:
– Damos início à derrota deles com os tipos de estresse que
introduzimos em sua sociedade. Esse é um recurso poderoso: o
estresse. E a falta dele é importante, também. Você notou como
os Atreides ajudaram as coisas a se tornar suaves e fáceis aqui?
Tyekanik deixou transparecer um seco e breve movimento de
anuência com a cabeça. Esse era um bom argumento. Não se
podia permitir que os Sardaukar se tornassem suaves demais.
Todavia, essa oferta de Idaho continuava a incomodá-lo. Ele
sugeriu:
– Talvez seja melhor recusar a oferta.
– Ainda não – discordou Wensicia. – Temos um leque de opções
aberto à nossa frente. Nossa tarefa consiste em identificar o
máximo de elementos desse leque. Meu filho está certo:
precisamos de mais informações.
Farad’n olhou fixamente para ela, pesando a intenção de sua
mãe tanto quanto o significado superficial de suas palavras.
– Mas será que saberemos se tivermos passado o ponto de não
nos restar alternativa? – ele perguntou.
Uma risadinha amarga brotou de Tyekanik.
– Se está perguntando para mim, já passamos há muito tempo
do ponto em que não há mais volta.
Farad’n inclinou a cabeça e riu alto:
– Mas ainda temos alternativas de escolha, Tyek! É muito
importante saber quando se chegou ao fim da linha!
Nesta era, em que os meios de transporte
humanos incluem dispositivos capazes de vencer
imensas extensões de espaço em transtempo, e
em que outros engenhos são capazes de
transportar rapidamente pessoas através de
quase qualquer superfície planetária
intransponível, parece exótico pensar em
empreender uma longa viagem a pé. Contudo,
esse continua sendo um meio elementar de viajar
em Arrakis, fato que é atribuído em parte à
preferência e, em parte, ao brutal tratamento que
esse planeta dispensa a tudo aquilo que é
mecânico. Nas agrestes condições vigentes em
Arrakis, a carne humana continua sendo o
recurso mais durável e confiável para o hajj.
Talvez seja a clara e implícita percepção desse
fato que faz de Arrakis o derradeiro espelho da
alma.
– Manual do hajj

Lenta e cautelosamente, Ghanima percorreu todo o caminho


de volta a Tabr, sempre se mantendo sob o abrigo das mais
escuras sombras das dunas, acocorada e imóvel, quando a equipe
de busca passou ao sul de sua posição. Uma terrível percepção se
apoderara de sua consciência: o verme que tinha se apoderado
dos tigres e do corpo de Leto, os perigos que tinha pela frente. Ele
tinha morrido; seu irmão gêmeo estava morto. Ela deixou de lado
todas as lágrimas e alimentou sua ira. Nisso, era fremen da
cabeça aos pés. Sabedora dessa verdade, regozijou-se com ela.
Ela entendia o que diziam sobre os fremen. Não era de se
esperar que tivessem consciência, depois de tê-la perdido numa
fúria de vingança contra aqueles que os haviam expulsado de um
planeta atrás do outro, numa peregrinação interminável. Claro
que isso era bobagem. Somente os mais broncos dos primitivos
não tinham consciência. Os fremen eram dotados de uma
consciência altamente evoluída, centrada em seu próprio bem-
estar como povo. Era apenas aos estrangeiros que eles pareciam
brutais, assim como os estrangeiros pareciam brutais aos fremen.
Todo fremen sabia muito bem que era capaz de cometer um ato
brutal sem sentir a menor culpa. Os fremen não sentiam culpa
diante das mesmas coisas que despertavam esse sentimento nos
outros. Seus rituais proporcionavam a isenção de culpas que, se
não fosse assim, poderiam tê-los destruído. Eles sabiam, no fundo
da consciência, que toda transgressão poderia ser atribuída, pelo
menos em parte, a bem conhecidas circunstâncias atenuantes: “o
fracasso da autoridade”, “uma má tendência natural”
compartilhada por todos os humanos, ou “má sorte”, que
qualquer criatura senciente seria capaz de identificar como uma
colisão entre a carne mortal e o caos externo do universo.
Nesse contexto, Ghanima se sentia uma fremen pura, uma
extensão cuidadosamente preparada da brutalidade tribal. Ela só
carecia de um alvo – que, obviamente, era a Casa Corrino. Ela
ansiava por ver o sangue de Farad’n esguichando no chão aos
seus pés.
Nenhum inimigo estava à espreita no qanat. Até mesmo a
equipe de busca tinha ido em outra direção. Ela atravessou a água
por uma ponte de terra, passando agachada pelo meio do mato
alto que levava até a saída escondida do sietch. Subitamente, uma
luz brilhou acima dela e Ghanima se lançou de comprido no chão.
Entre os talos esguios da alfafa gigante ela tentou ver o que
estava acontecendo. Uma mulher tinha entrado naquela
passagem escondida, tendo vindo do lado de fora, e alguém havia
se lembrado de preparar aquela passagem do modo como toda
entrada de sietch deveria ser preparada. Em tempos
conturbados, qualquer um que entrasse no sietch era saudado
com um facho de luz forte que deixava o recém-chegado com a
visão ofuscada por alguns instantes, o que dava aos guardas
tempo de decidir como proceder. Mas essa forma de recepção
nunca teve a intenção de ser transmitida deserto afora. A luz
visível ali significava que os lacres externos tinham sido
abandonados.
Ghanima sentiu um baque amargo com essa traição da
segurança do sietch: essa luz flutuante. As atitudes dos fremen de
roupas de renda podiam ser vistas em toda parte!
A luz continuava disseminando seu leque de claridade sobre o
chão, na base do penhasco. Uma moça saiu correndo de dentro da
escuridão do pomar na direção do facho de luz, seus movimentos
traindo um evidente receio. Ghanima pôde ver o círculo brilhante
de um luciglobo dentro da passagem com um halo de insetos
turbilhonando em volta dele. Aquele foco de luz iluminava duas
sombras escuras na passagem: um homem e a jovem. Estavam de
mãos dadas e olhavam um nos olhos do outro.
Ghanima sentiu que havia algo de errado ali com o homem e a
moça. Eles não eram somente um casal de enamorados furtando
para si um momento do processo de busca. A luz estava suspensa
sobre eles e à sua frente, na passagem. Os dois conversavam
contra o pano de fundo de um arco iluminado, lançando suas
sombras sobre a noite lá fora, onde ninguém poderia estar
observando o que estivessem fazendo. De vez em quando o
homem soltava uma das mãos, que aparecia gesticulando na luz
ao realizar um movimento furtivo e incisivo que, tão logo se
completava, voltava para as sombras.
Sons solitários de criaturas da noite enchiam as trevas em
torno de Ghanima, mas ela filtrou e ignorou essas distrações.
O que aqueles dois estavam fazendo?
Os gestos do homem eram muito estáticos, muito cautelosos.
Ele se virou. Um reflexo do manto da mulher o iluminou,
expondo um rosto vermelho e em carne viva e um grande nariz
inchado. Ghanima engoliu em seco, inspirando atônita, ao
reconhecer o homem. Palimbasha! Ele era neto de um naib cujos
filhos tinham tombado a serviço dos Atreides. O rosto e mais uma
coisa revelada pelo adejar de seu manto aberto quando ele se
virou compuseram uma imagem completa para Ghanima: ele
estava com um cinto sob o manto ao qual estava presa uma caixa
reluzente com chaves e diais. Era um instrumento tleilaxu ou
ixiano, com certeza. E tinha de ser o transmissor que havia
liberado os tigres. Palimbasha. Isso queria dizer que outra família
de naibs tinha se bandeado para a Casa Corrino.
Quem era a mulher, então? Não importa. Era alguém que
Palimbasha estava usando.
Por si próprio, um pensamento Bene Gesserit se apresentou à
mente de Ghanima: Cada planeta tem seu próprio período, assim
como cada vida.
Ela se lembrava bem de Palimbasha, enquanto o observava ali
adiante com a moça, enxergando o transmissor e os movimentos
furtivos. Palimbasha lecionava na escola do sietch. Matemática.
Ele era um matemático e ignorante. Tinha inclusive tentado
explicar Muad’Dib por meio da matemática até ser explicitamente
censurado pelo Clero. Era um escravizador de mentes e seu
processo de escravização podia ser entendido com extrema
simplicidade: ele transferia conhecimentos técnicos sem
transferir valores.
Eu devia ter suspeitado dele antes, ela pensou. Os sinais
estavam todos bem ali.
Então, com uma acre contração na boca do estômago, ela
pensou: Ele matou meu irmão!
Ela se obrigou a recuperar a calma. Palimbasha a mataria
também se ela tentasse passar por ele ali, na passagem
escondida. Agora ela entendia a razão dessa exibição nada
fremen de luz, dessa traição da entrada secreta. Eles estavam
vasculhando com aquela luz em busca de sinais de alguma das
vítimas ter escapado. Devia ser um momento dificílimo de espera
para eles, sem saber o que tinha acontecido. E, agora que
Ghanima tinha visto o transmissor, ela podia explicar alguns dos
gestos de mão do homem. Palimbasha estava apertando várias
vezes uma das teclas do transmissor, com um gesto irritado.
A presença deles dois dizia muito para Ghanima.
Provavelmente, cada via de acesso ao sietch estava com um vigia
similar, vasculhando ao longe.
Ela coçou o nariz, onde a poeira tinha se depositado e causava o
comichão. A perna ferida estava latejando e o braço que
empunhara a faca doía quando não ardia. Seus dedos
continuavam dormentes. Se viesse a ser preciso usar a faca de
novo, ela teria de fazê-lo com a mão esquerda.
Ghanima pensou em usar a pistola maula, mas seu som típico
com certeza atrairia uma atenção indesejada. Teria de haver
algum outro modo.
Mais uma vez, Palimbasha se afastou da entrada. Ele era uma
massa escura contra a luz. A mulher tornou a prestar atenção à
noite lá fora, enquanto seguia falando. Ela transmitia um nível de
alerta resultante de treinamento, dando a sensação de que sabia
como esquadrinhar as trevas, usando a visão periférica. Ela não
passava de um instrumento útil, portanto. Fazia parte de uma
conspiração mais ampla.
Ghanima se lembrou então de que Palimbasha aspirava a ser
um kaymakan, um governador político no regime da Regência. Ele
certamente faria parte de um plano maior, não havia dúvida.
Haveria mais pessoas envolvidas. Mesmo aqui, em Tabr. Ghanima
examinou as bordas do problema que assim se manifestava, e o
sondou. Se conseguisse dominar um desses guardiões e mantê-lo
vivo, muitos outros seriam igualmente depostos.
O som sibilante mas abafado de um animal de pequeno porte
bebendo no qanat chamou a atenção de Ghanima. Sons naturais,
coisas naturais. Sua memória vasculhou através de uma estranha
barreira de silêncio em sua mente e encontrou uma sacerdotisa
de Jowf capturada na Assíria por Senaquerib. As recordações
dessa sacerdotisa disseram a Ghanima o que teria de ser feito ali.
Palimbasha e a mulher que ali estavam não passavam de crianças,
perigosas e rebeldes. Nada sabiam de Jowf, nada sabiam sequer
do nome do planeta em que Senaquerib e a sacerdotisa tinham
desaparecido no pó. O que estava prestes a acontecer com aquele
par de conspiradores, se lhes fosse explicado, só poderia sê-lo nos
termos de um início imediato.
E de seu término igualmente imediato.
Rolando sobre um lado, Ghanima soltou seu fremkit e
desvencilhou o respirarenador de suas tiras de fixação.
Destampou o dispositivo e retirou o longo filtro que continha.
Agora estava com um tubo aberto nas mãos. Ela escolheu uma
agulha do pacote de remendos, desembainhou sua dagacris e
inseriu a agulha no oco venenoso que ficava na ponta da arma, o
ponto que antes o nervo de um verme de areia ocupara. Por causa
do ferimento no braço, era difícil realizar todas essas operações.
Ela se mexia devagar e com cuidado, manipulando a agulha
envenenada com cautela enquanto retirava do estojo uma
compressa de fibra de especiaria. A haste da agulha se encaixava
perfeitamente na compressa de fibra, formando um míssil que
entrou com exatidão no tubo do respirarenador.
Segurando a arma na horizontal, Ghanima rastejou como um
réptil para se aproximar da luz, avançando lentamente a fim de
causar a mínima ondulação possível nos talos de alfafa. Conforme
seguia adiante, estudava os insetos que rodopiavam na luz. Sim,
havia mariposas de asas claras em meio ao enxame alvoroçado,
famosas por picarem a carne humana. O dardo venenoso poderia
passar despercebido, confundido com uma mordida do inseto.
Restava uma só decisão: qual daqueles dois abater, o homem ou a
mulher?
Muriz. Esse nome brotou do nada na mente de Ghanima. Era o
nome da mulher. Trazia à memória coisas ditas a respeito dela.
Ela era uma das que ficavam esvoaçando em torno de Palimbasha
como os insetos em torno da luz. Era fácil de derrubar, era muito
fraca.
Pois bem. Palimbasha tinha escolhido a companhia errada para
aquela noite.
Ghanima ajeitou o tubo em sua boca e, com a lembrança da
sacerdotisa de Jowf nitidamente desenhada no campo de sua
consciência, ela mirou com muito cuidado e expeliu todo o ar em
um único e poderoso sopro.
Palimbasha tocou a bochecha com a mão espalmada e, quando
a retirou, viu que trazia uma mancha de sangue. A agulha não
estava ali, tendo sido atirada para algum lugar pelo movimento de
sua própria mão.
A mulher disse algo tranquilizador e Palimbasha riu. Enquanto
ria, as pernas lhe faltaram e começaram a ceder sob seu peso. Ele
despencou como um saco vazio sobre a mulher, que tentou apoiá-
lo. Ela ainda estava cambaleando sob o peso morto quando
Ghanima surgiu ao lado dela e apertou a ponta de sua dagacris
desembainhada contra a cintura da moça.
Em tom normal de conversa, Ghanima disse:
– Não faça nenhum movimento brusco, Muriz. Minha faca está
envenenada. Você pode soltar Palimbasha agora. Ele está morto.
Em todas as principais forças de socialização,
encontramos um movimento latente para ganhar
e manter o poder por meio do uso de palavras.
Curandeiros, sacerdotes e burocratas, todos eles
fazem a mesma coisa. A população governada
deve ser condicionada a aceitar palavras de poder
como coisas reais, confundindo o sistema
simbolizado com o universo tangível. Na
manutenção dessa estrutura de poder, alguns
símbolos são mantidos fora do alcance do
entendimento comum, símbolos como os que
dizem respeito, por exemplo, à manipulação
econômica ou aqueles que definem a
interpretação local da sanidade. O sigilo em torno
de símbolos desse teor leva ao desenvolvimento
de subidiomas fragmentados, cada um dos quais é
um sinal de que seus usuários estão acumulando
alguma forma de poder. Tendo esse entendimento
do processo de poder, nossas Forças Imperiais de
Segurança devem estar permanentemente em
alerta para detectar a formação de subidiomas.
– Palestra para o Ministério da Guerra Arrakino, pela princesa Irulan

– Talvez não seja necessário lhe dizer – começou Farad’n –,


mas, para evitar erros, vou anunciar que um mudo foi posicionado
com ordens de matar vocês dois, caso eu demonstre indícios de
ser vítima de alguma bruxaria.
Ele não esperava que essas palavras surtissem qualquer efeito,
e tanto lady Jéssica como Idaho corresponderam a suas
expectativas.
Farad’n tinha escolhido com cuidado o ambiente para o
primeiro exame daquele par: a antiga Câmara de Audiências de
Estado de Shaddam. O que lhe faltava em grandiosidade o recinto
compensava com ocupações exóticas. Lá fora, seguia a tarde de
inverno, mas a iluminação da câmara sem janelas simulava um dia
de verão eterno, banhado pela luz dourada de luciglobos do mais
puro cristal ixiano, artisticamente espalhados pelo recinto.
As notícias de Arrakis encheram Farad’n de uma tranquila
satisfação. Leto, o irmão gêmeo de Ghanima, estava morto, tendo
sido abatido pelo tigre assassino. A menina, que sobrevivera ao
ataque dos felinos, estava sob a custódia de sua tia e diziam que
era sua refém. O relatório completo explicava e muito a presença
de Idaho e de lady Jéssica. O que eles queriam era serem aceitos
como refugiados. Os espiões da Casa Corrino falavam de uma
trégua temporária e inquieta em Arrakis. Alia concordara em se
submeter a um teste chamado “Teste da Possessão”, cujo
propósito ainda não havia sido plenamente explicado. Todavia,
não tinha sido marcada a data de tal teste e dois espiões dos
Corrino acreditavam que isso talvez nunca viesse a acontecer.
Existia uma certeza, porém: tinham havido combates entre os
fremen do deserto e os fremen militares do Império, uma guerra
civil abortiva que tinha levado o governo a um impasse
temporário. Os domínios de Stilgar agora eram território neutro,
tendo sido designados após uma troca de reféns. Evidentemente,
Ghanima tinha sido considerada uma dessas reféns, embora não
estivesse claro como isso fora processado.
Jéssica e Idaho foram levados até a audiência com Farad’n
seguramente contidos em cadeiras suspensas. Ambos eram
mantidos sentados por conjuntos finos e letais de shigafio com
poder de cortar a carne ao menor sinal de luta. Dois soldados
Sardaukar os haviam trazido até a sala, verificado a condição dos
elementos que os mantinham presos e depois se retirado
silenciosamente.
Na realidade, o aviso fora desnecessário. Jéssica tinha visto o
mudo armado em pé perto da parede à sua direita, tendo na mão
uma arma disparadora de projéteis, antiga mas eficiente. Ela
deixou seus olhos vagarem pela sala, apreciando os exóticos
adornos entalhados. As largas folhas do raro arbusto de ferro
tinham sido forjadas com olhos de pérolas e entrelaçadas de
modo a formar o centro crescente do teto cônico. O piso era feito
de blocos alternados de ossos de passaquet, dispostos ponta com
ponta, cortados a laser e polidos. Materiais consistentes e
exclusivos decoravam as paredes em padrões intrincados de
tecido que desenhavam as quatro posições do símbolo do Leão,
reivindicado pelos descendentes do falecido Shaddam IV. Os
leões tinham sido executados em ouro bruto.
Farad’n escolhera permanecer em pé para receber os cativos.
Estava usando calças curtas de uniforme e uma jaqueta leve
dourada, de finíssima seda, de gola aberta. Seu único ornamento
era a insígnia de príncipe de sua família real, no lado esquerdo do
peito. Fazia-se acompanhar pelo bashar Tyekanik, usando os
trajes Sardaukar de tom castanho e as botas pesadas, com uma
armalês decorada e presa num coldre pendendo na frente, pela
fivela do cinto. Tyekanik, cujo rosto pesado Jéssica conhecia dos
relatos Bene Gesserit, estava postado três passos à esquerda e
ligeiramente atrás de Farad’n. Um único trono esculpido em
madeira escura destacava-se no piso, perto da parede bem atrás
dos dois.
– Agora – prosseguiu Farad’n, dirigindo-se a Jéssica –, você tem
algo a dizer?
– Gostaria de saber por que estamos amarrados desse jeito –
Jéssica questionou, indicando o shigafio.
– Acabamos de receber relatos recentes de Arrakis que
explicam sua presença aqui – respondeu Farad’n. – Talvez eu os
liberte em breve. – Ele sorriu. – Se você... – mas se calou quando
viu sua mãe atravessando a porta do salão, chegando atrás dos
cativos.
Wensicia passou rapidamente por Jéssica e Idaho sem lançar
nem o mais rápido olhar para eles e apresentou a Farad’n um
pequeno cubo de mensagem depois de tê-lo acionado. Ele
estudou a face brilhante, lançando olhares ocasionais para
Jéssica e voltando a ver o cubo. A face luminosa ficou escura e ele
devolveu o cubo à mãe, indicando que ela deveria mostrá-lo a
Tyekanik. Enquanto ela fazia isso, ele olhou com ar carrancudo
para Jéssica.
Então Wensicia se postou ao lado direito de Farad’n, com o
cubo escurecido na mão, semioculto por uma dobra de seu manto
branco.
Jéssica olhou rapidamente à direita para Idaho, mas ele se
recusou a olhá-la de volta.
– As Bene Gesserit estão aborrecidas comigo – murmurou
Farad’n. – Elas acreditam que fui responsável pela morte de seu
neto.
Jéssica sustentou uma fisionomia inexpressiva enquanto
pensava: Então a história de Ghanima deve ser verídica, a menos...
Ela não gostava de incógnitas suspeitas.
Idaho fechou os olhos e os abriu de novo para olhar para
Jéssica de relance. Ela continuava encarando Farad’n. Idaho tinha
contado para ela a visão rhajia, mas ela não parecia ter ficado
preocupada. Ele não sabia como classificar a falta de emoções
nela. Mas era evidente que ela sabia de alguma coisa que não
estava demonstrando.
– Esta é a situação – Farad’n continuou, e então começou a
explicar tudo que sabia a respeito dos acontecimentos em
Arrakis, sem omitir nada. Em conclusão, ele pontuou: – Sua neta
sobreviveu, mas ao que parece está sob custódia de lady Alia. Isso
deve ser gratificante para você.
– Você matou meu neto? – Jéssica perguntou.
Farad’n respondeu honestamente:
– Não. Recentemente fiquei sabendo de um complô, mas não fui
eu quem o arquitetou.
Jéssica olhou então para Wensicia, viu a expressão de orgulho
naquele rosto em formato de coração e pensou: Coisa dela! A leoa
arma complôs para seu filhote. Esse era um jogo que talvez a leoa
vivesse o suficiente para lamentar ter iniciado.
Voltando novamente sua atenção para Farad’n, Jéssica disse:
– Mas a Irmandade acredita que você o matou.
Farad’n voltou-se para a mãe:
– Mostre a mensagem para ela.
Como Wensicia hesitasse, ele falou com uma ponta de raiva que
Jéssica anotou para uso futuro:
– Eu disse para mostrar a ela!
Com o rosto pálido, Wensicia apresentou para Jéssica a face do
cubo com a mensagem e o ativou. As palavras fluíam pela face do
objeto, respondendo aos movimentos dos olhos de Jéssica:
Conselho Bene Gesserit em Wallach IX protocola protesto formal
contra a Casa Corrino pelo assassinato de Leto Atreides II. Os
argumentos e a apresentação de evidências foram designados à
Comissão de Segurança Interna do Landsraad. Será escolhido um
território neutro e os nomes dos juízes serão submetidos à
aprovação de todos os envolvidos. Solicita-se sua resposta
imediata. Sabit Rekush, pelo Landsraad.
Wensicia voltou a ficar ao lado do filho.
– Como você pretende responder? – Jéssica indagou.
– Como meu filho ainda não foi formalmente empossado como
líder da Casa Corrino – Wensicia informou –, eu responderei... e
aonde você está indo? – perguntou a mãe a Farad’n que, enquanto
ela falava, tinha se virado e se encaminhava para uma porta
lateral perto de onde estava o mudo de vigia.
Farad’n parou e se virou um pouco:
– Vou voltar aos meus livros e a outros projetos que são muito
mais interessantes para mim.
– Como ousa? – Wensicia exigiu saber. Uma mancha escura de
sangue se espalhou por seu pescoço e cobriu-lhe as bochechas.
– Vou ousar algumas coisas em meu próprio nome – rebateu
Farad’n. – Você tomou decisões em meu nome, as quais considero
extremamente repugnantes. Ou eu tomo as decisões por mim
mesmo daqui por diante, ou você pode achar outro herdeiro para
a Casa Corrino!
Jéssica resvalou seu olhar rapidamente entre os participantes
dessa discussão, reparando que Farad’n estava realmente
sentindo raiva. O bashar auxiliar permanecia rigidamente imóvel
e atento, tentando parecer que não tinha ouvido absolutamente
nada. Wensicia hesitou à beira de um ataque de nervos. Farad’n
parecia perfeitamente disposto a aceitar qualquer resultado que
adviesse desse embate. Jéssica de fato admirou a postura do
rapaz, detectando nesse confronto muitas coisas que poderiam
ser valiosas para ela. Parecia que a decisão de enviar os tigres
assassinos contra seus netos tinha sido tomada sem o
conhecimento de Farad’n. Praticamente não se podia duvidar de
que ele fora informado do complô depois de ter sido arquitetado.
Não havia como entender de outro modo a verdadeira raiva que
fuzilava em seus olhos, enquanto ele permanecia em pé ali, pronto
a acatar qualquer decisão que a mãe tomasse.
Wensicia inspirou fundo e revelou um forte tremor. E então
disse:
– Muito bem. A investidura formal terá lugar amanhã. Você
pode tomar atitudes desde já. – Ela olhou para Tyekanik, que se
recusou a lhe devolver o olhar.
Vai haver uma briga com muita gritaria assim que a mãe e o
filho saírem daqui, Jéssica pensou. Mas acredito que ele ganhou.
Ela então permitiu que seus pensamentos se voltassem para a
mensagem vinda do Landsraad. A Irmandade tinha julgado seus
mensageiros com um requinte que fazia jus ao planejamento Bene
Gesserit. Imiscuída na nota formal de protesto estava uma
mensagem para Jéssica enxergar. O fato da mensagem dizia que
as espiãs da Irmandade sabiam da situação em que Jéssica se
encontrava e que tinham avaliado Farad’n com uma sutileza
inexcedível a ponto de saber que ele mostraria a mensagem à sua
prisioneira.
– Gostaria de obter uma resposta à minha pergunta – insistiu
Jéssica, dirigindo-se a Farad’n quando ele se voltou para olhá-la
de frente.
– Direi ao Landsraad que não tive nada a ver com o assassinato
– afirmou Farad’n. – Direi ainda que compartilho o desprazer que
a Irmandade expressa pela maneira como isso se deu, embora não
possa dizer que estou inteiramente descontente com o resultado
do plano. Minhas desculpas pela dor que isso possa ter-lhe
causado. O destino passa por todos os lugares.
O destino passa por todos os lugares!, Jéssica pensou. Esse
tinha sido um ditado favorito de seu duque, e havia algo nos
modos de Farad’n que indicavam que ele sabia disso. Ela se forçou
a ignorar a possibilidade de que eles realmente tivessem matado
Leto. Ela precisava supor que os temores de Ghanima por Leto
tinham motivado a exposição completa do plano dos gêmeos. Os
contrabandistas colocariam Gurney em condições de encontrar
Leto, então, e os desígnios da Irmandade seriam levados a cabo.
Leto deveria ser testado. Tinha de sê-lo. Sem o teste, ele estava
tão condenado quanto Alia. E Ghanima... bem, essa questão teria
de ser enfrentada mais tarde. Não havia como enviar uma pré-
nascida perante a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam.
Jéssica se permitiu um suspiro profundo.
– Cedo ou tarde – ela observou –, ocorrerá a alguém que você e
minha neta poderão unir nossas duas Casas e sanar velhas
feridas.
– Isso já me foi mencionado como possibilidade – Farad’n anuiu,
olhando brevemente na direção da mãe. – Minha resposta foi que
eu preferia esperar o desfecho dos mais recentes acontecimentos
em Arrakis. Não há necessidade de decisões afobadas.
– Sempre existe a possibilidade de você já ter sido manipulado
para desposar a minha neta – Jéssica apontou.
Farad’n se empertigou.
– Explique-se!
– As coisas em Arrakis não são o que podem parecer a você –
ela apontou. – Alia faz seu próprio jogo, o jogo da Abominação.
Minha neta está em perigo, a menos que Alia possa arquitetar um
modo de usá-la.
– E você espera que eu acredite que você e sua filha se opõem
uma à outra, que uma Atreides combate outra?
Jéssica olhou para Wensicia, e depois novamente para Farad’n.
– Um Corrino briga com outro.
Um sorriso astuto movimentou os lábios de Farad’n.
– Bem apontado. E como eu poderia ter sido empurrado para
sua neta?
– Tornando-se participante da morte de meu neto, raptando-
me.
– Raptando...
– Não acredite nessa bruxa – Wensicia alertou.
– Eu escolho em quem confiar, mãe – Farad’n redarguiu. –
Perdoe-me, lady Jéssica, mas não entendo essa história de rapto.
Eu tinha entendido que você e seu fiel escudeiro...
– Que é marido de Alia – Jéssica completou.
Farad’n endereçou um olhar de avaliação para Idaho e então
para o bashar.
– O que lhe parece, Tyek?
O bashar aparentemente estava pensando de maneira
parecida com a de Jéssica. Ele disse:
– Gosto de como ela raciocina. Cuidado!
– Ele é um ghola-Mentat – comentou Farad’n. – Poderíamos
testá-lo até a morte e ainda assim não encontraríamos uma
resposta certa.
– Mas podemos trabalhar com a suposição segura de termos
sido ludibriados – Tyekanik teimou.
Jéssica soube que tinha chegado o momento de fazer sua
jogada. Bastava que o luto de Idaho o mantivesse preso dentro do
papel que ele tinha escolhido desempenhar. Ela não apreciava
usá-lo dessa maneira, mas havia interesses maiores em jogo.
– Para início de conversa – Jéssica interrompeu –, eu poderia
anunciar publicamente que vim até aqui de minha livre e
espontânea vontade.
– Interessante – murmurou Farad’n.
– Você teria de confiar em mim e me assegurar a completa
liberdade em Salusa Secundus – prosseguiu Jéssica. – Não se
poderia dar a impressão de que falei movida por alguma
compulsão.
– Não! – protestou Wensicia.
Farad’n a ignorou.
– E que razão poderia alegar?
– Que sou a plenipotenciária da Irmandade enviada para cá a
fim de me incumbir de sua educação.
– Mas a Irmandade me acusa...
– Isso iria exigir uma ação decisiva de sua parte – respondeu
Jéssica.
– Não confie nela! – Wensicia insistiu.
Com extrema polidez, Farad’n lançou o olhar para ela e falou:
– Se você me interromper mais uma única vez, farei Tyek
retirá-la deste recinto. Ele a ouviu consentir com a investidura
formal. Isso o torna leal a mim, agora.
– Digo a você que ela é uma bruxa! – Wensicia estava olhando
para o mudo plantado junto à parede lateral.
Farad’n hesitou. Então questionou:
– Tyek, o que você acha? Fui enfeitiçado?
– No meu entender, não. Ela...
– Vocês dois foram enfeitiçados!
– Mãe – e o tom dele era final e desprovido de inflexão.
Wensicia fechou os punhos, tentou falar, girou sobre os
próprios pés e saiu intempestivamente da sala.
Novamente dirigindo-se a Jéssica, Farad’n perguntou:
– As Bene Gesserit concordariam com isso?
– Concordariam.
Farad’n absorveu as implicações desse comentário, sorrindo de
maneira contida.
– E o que a Irmandade quer com tudo isso?
– Seu casamento com a minha neta.
Idaho lançou um olhar indagador a Jéssica, pareceu que ia falar
alguma coisa, mas continuou calado.
– Você ia falar alguma coisa, Duncan? – Jéssica indagou.
– Eu ia dizer que as Bene Gesserit querem o que elas sempre
quiseram: um universo que não interfira na vida delas.
– Uma suposição óbvia – resmungou Farad’n –, mas não
consigo ver por que você interferiria nisso.
As sobrancelhas de Idaho conseguiram se encolher do modo
como o shigafio não permitia que seu corpo fizesse. De modo
desconcertante, ele sorriu.
Farad’n viu esse sorriso e virou-se para ficar cara a cara com
Idaho.
– Eu sou divertido para você?
– Toda esta situação me diverte. Alguém em sua família
comprometeu a Guilda Espacial usando-a para transportar até
Arrakis instrumentos para assassinar; instrumentos cujo
propósito não poderia ser ocultado. Vocês ofenderam as Bene
Gesserit matando um ser humano do sexo masculino que elas
queriam para seu plano de procriação...
– Está me chamando de mentiroso, ghola?
– Não. Eu acredito que você não sabia da conspiração. Mas
pensei que essa situação precisaria ser enfocada com mais
nitidez.
– Não se esqueça de que ele é um Mentat – lembrou Jéssica.
– Justamente o que eu estava pensando – Farad’n concordou.
Novamente, ele olhou direto para Jéssica. – Digamos que eu a
liberte e que você faça seu pronunciamento. Isso ainda deixa em
aberto a questão da morte do seu neto. O Mentat tem razão.
– Foi sua mãe? – Jéssica indagou.
– Milorde! – Tyekanik advertiu.
– Tudo bem, Tyek – Farad’n disse, acenando com a mão. – E se
eu disser que foi minha mãe?
Arriscando tudo no teste dessa ruptura interna entre os
Corrino, Jéssica afirmou:
– Você deve denunciá-la e bani-la.
– Milorde – Tyekanik protestou –, pode haver truques dentro
de truques, aqui.
– E lady Jéssica e eu somos os que foram logrados – murmurou
Idaho.
Farad’n endureceu o queixo.
E Jéssica pensou: Não interfira, Duncan! Agora, não! Mas as
palavras de Idaho tinham posto em movimento suas próprias
habilidades lógicas de Bene Gesserit em ação. Ele a deixou
chocada. Ela começou a ponderar se haveria a possibilidade de
ela mesma estar sendo usada de uma maneira que não entendia.
Ghanima e Leto... Os pré-nascidos se valiam de incontáveis
experiências interiores, um acervo de conselhos muito mais
extenso do que o disponível às Bene Gesserit vivas. E ainda havia
aquela outra questão: será que sua Irmandade tinha mesmo sido
inteiramente honesta com ela? Elas ainda talvez não confiassem
nela. Afinal de contas, ela as havia traído uma vez... com seu
duque.
Farad’n olhou para Idaho com uma expressão intrigada de
testa franzida.
– Mentat, preciso saber o que esse Pregador representa para
você.
– Ele providenciou a passagem até aqui. Eu... nós não trocamos
nem dez palavras. Outros agiram por ele. Ele poderia ser... ele
poderia ser Paul Atreides, mas não tenho dados suficientes para
garantir isso. Tudo que sei ao certo é que estava na hora de eu
partir e ele tinha os meios para isso.
– Você fala de ter sido logrado – Farad’n o lembrou.
– Alia espera que você nos mate sigilosamente e oculte as
evidências disso – Idaho informou. – Depois de tê-la livrado de
lady Jéssica, não tenho mais utilidade para Alia. E lady Jéssica,
tendo servido aos propósitos de sua Irmandade, não é mais útil a
elas. Alia irá convocar as Bene Gesserit para que se expliquem,
mas elas vencerão.
Jéssica fechou os olhos para se concentrar melhor. Ele tinha
razão! Ela era capaz de detectar a firmeza Mentat na voz dele,
aquela profunda sinceridade de seu pronunciamento. O padrão se
encaixou tão bem que nem fez barulho. Ela inspirou fundo duas
vezes e desencadeou seu transe mnemônico, repassando os
dados através de sua mente. Então saiu do transe e abriu os olhos.
Tudo isso tinha acontecido enquanto Farad’n saía de sua frente
para assumir posição a meio passo de Idaho – uma distância de
não mais de três passos.
– Não diga mais nada, Duncan – Jéssica ordenou, e então ela
pensou pesarosa em como Leto a havia advertido contra o
condicionamento Bene Gesserit.
Prestes a falar, Idaho fechou a boca.
– Eu mando aqui – Farad’n exclamou. – Continue, Mentat.
Idaho permaneceu calado.
Farad’n fez meia-volta na direção de Jéssica a fim de estudá-la.
Ela estava com o olhar fixo num ponto da parede mais distante,
revisando o que Idaho e o transe tinham construído. As Bene
Gesserit não tinham abandonado a linhagem Atreides,
naturalmente. Mas queriam controlar um Kwisatz Haderach e
haviam feito um enorme investimento no prolongado programa
de reprodução. Elas queriam um confronto explícito entre os
Atreides e os Corrino, uma situação em que enfim pudessem agir
como árbitros. E Duncan tinha razão. Elas acabariam no fim
saindo com o controle tanto de Ghanima como de Farad’n. Era o
único consenso possível. O estranho era que Alia não tivesse
percebido isso. Jéssica engoliu, apesar da tensa secura em sua
garganta. Alia... Abominação! Ghanima tinha razão em sentir
pena dela. Mas quem sobraria para ter pena de Ghanima?
– A Irmandade prometeu colocar você no trono com Ghanima
como sua consorte – Jéssica afirmou.
Farad’n deu um passo para trás. Será que essa bruxa lê a mente
das pessoas?
– Elas agiram em sigilo, não através de sua mãe – Jéssica
prosseguiu. – Elas lhe disseram que eu não estava informada do
plano que tinham elaborado.
Jéssica viu a revelação no rosto de Farad’n. Como ele era
aberto. Mas era verdade, a estrutura inteira. Idaho tinha
demonstrado uma habilidade excepcional como Mentat ao
perceber através do véu dos dados limitados que lhe estavam
disponíveis.
– Então elas fizeram jogo duplo e lhe disseram – Farad’n
continuou.
– Elas não me disseram nada disso – Jéssica argumentou. –
Duncan estava certo: elas me enganaram. – Ela balançou de leve a
cabeça, confirmando para si mesma o que havia dito. Tinha sido
uma clássica manobra de adiamento dentro do padrão clássico da
Irmandade: uma história razoável, fácil de aceitar porque era
compatível com o que alguém acreditaria acerca dos motivos que
elas teriam. Mas elas queriam Jéssica fora do caminho, sendo ela
uma irmã maculada que já lhes havia sido infiel uma vez.
Tyekanik se aproximou de Farad’n e ficou ao seu lado:
– Milorde, esses dois são perigosos para...
– Espere um pouco, Tyek – Farad’n interrompeu. – Temos
coisas dentro de coisas aqui. – Encarando Jéssica, ele prosseguiu:
– Tivemos motivos para crer que Alia poderia ela mesma se
oferecer para ser minha noiva.
Idaho teve um sobressalto involuntário, mas se controlou.
Começou a gotejar sangue de seu punho esquerdo onde o shigafio
cortara sua carne.
Jéssica se permitiu uma breve resposta, arregalando os olhos.
Ela, que tinha conhecido o Leto original como amante, o pai de
seus filhos, seu confidente e amigo, enxergou esse traço do
raciocínio frio filtrado agora entre os meandros da Abominação.
– E você aceitará? – Idaho indagou.
– Está sendo cogitado.
– Duncan, eu lhe disse que calasse a boca – Jéssica ordenou. Ela
então se dirigiu a Farad’n: – O preço dela foram duas mortes sem
consequência... nós dois.
– Suspeitamos de traição – Farad’n confessou. – Não foi seu
filho quem disse “traição gera traição”?
– A Irmandade está decidida a controlar tanto os Atreides
como os Corrino – apontou Jéssica. – Isso não está óbvio?
– Agora, estamos brincando com a ideia de aceitar sua oferta,
lady Jéssica, mas Duncan Idaho deve ser devolvido à sua adorada
esposa.
A dor é uma função dos nervos, Idaho lembrou a si mesmo. A
dor vem como a luz chega aos olhos. O esforço vem dos músculos,
não dos nervos. Esse era um antigo exercício Mentat e ele o
completou no intervalo de uma respiração, flexionou o punho
direito e seccionou uma artéria contra o shigafio.
Tyekanik deu um salto até a cadeira de Idaho, acionou o fecho
que soltava as amarras e gritou pedindo ajuda. Foi revelador
verificar o enxame de assistentes que imediatamente invadiu a
sala pelas portas disfarçadas em painéis nas paredes.
Sempre houve um pouco de tolice em Duncan, Jéssica pensou.
Farad’n estudou Jéssica por um momento, enquanto os
enfermeiros cuidavam de Idaho.
– Eu não disse que ia aceitar Alia.
– Não foi por isso que ele cortou o pulso – Jéssica explicou.
– É? Achei que ele simplesmente estava se retirando de cena.
– Você não é tão burro assim – Jéssica repreendeu. – Pare de
fingir comigo.
Ele sorriu.
– Estou perfeitamente ciente de que Alia iria me destruir. Nem
mesmo as Bene Gesserit poderiam esperar que eu a aceitasse.
Jéssica dirigiu um olhar intenso para Farad’n. O que era esse
jovem rebento da Casa Corrino? Ele não fazia muito bem o papel
de idiota. Mais uma vez, ela recordou as palavras de Leto, que lhe
havia dito que ela conheceria um aluno interessante. E O
Pregador queria isso também, dissera Idaho. Ela queria tanto ter
conhecido O Pregador.
– Você vai banir Wensicia? – indagou Jéssica.
– Parece uma troca razoável – comentou Farad’n.
Jéssica olhou rapidamente para Idaho. Os enfermeiros tinham
concluído o atendimento e agora ele estava atado à cadeira por
amarras menos perigosas.
– Os Mentat deveriam tomar cuidado com os absolutos – ela
observou.
– Estou cansado – Idaho informou. – Você não tem ideia do
cansaço que estou sentindo.
– Quando é explorada além da conta, até mesmo a lealdade
finalmente se exaure – Farad’n pontificou.
Mais uma vez, Jéssica o olhou com intenção avaliativa.
Vendo isso, Farad’n pensou: Com o tempo ela me conhecerá com
certeza e isso pode ser valioso. Uma Bene Gesserit renegada só
para mim! É a única coisa que seu filho teve que eu não tenho. Que
agora ela tenha apenas um vislumbre de quem sou. O resto ela
poderá ver mais tarde.
– Uma troca justa – falou Farad’n. – Aceito sua oferta, nos seus
termos. – Ele sinalizou para o mudo que estava rente à parede,
usando um completo conjunto de movimentos com os dedos. O
mudo aquiesceu. Farad’n se aproximou dos controles da cadeira e
libertou Jéssica.
Tyekanik perguntou então:
– Milorde, tem certeza?
– Não foi isso que conversamos? – Farad’n indagou.
– Sim, mas...
Com uma risadinha contida, Farad’n se voltou para Jéssica:
– Tyek desconfia de minhas fontes. Mas com os livros e os
carretéis só se aprende que algumas coisas podem ser feitas. O
aprendizado de verdade exige que você faça essas coisas.
Jéssica ficou matutando sobre isso enquanto se punha em pé.
Sua mente voltou aos sinais de mão usados por Farad’n. Ele tinha
a língua de batalha do mesmo estilo que os Atreides! Isso
apontava para uma análise cuidadosa. Alguém ali estava
copiando conscientemente os Atreides.
– Naturalmente – Jéssica concluiu –, você vai querer que eu
ensine você como as Bene Gesserit são ensinadas.
Farad’n mirou-a com olhos cintilantes:
– Essa é a única oferta a que não posso resistir – ele murmurou.
A senha me foi dada por um homem que morreu
nos calabouços de Arrakina. Veja bem, foi lá que
consegui este anel com forma de tartaruga. Foi no
Suk fora da cidade, onde estava escondido com os
rebeldes. A senha? Ah, mudou muitas vezes,
desde então. Era “persistência”. E a contrassenha
era “tartaruga”. Ela me permitiu sair de lá com
vida. Foi por isso que comprei este anel: como
lembrança.
– Tagir Mohandis: Conversas com um Amigo

Leto já estava bastante embrenhado no deserto quando ouviu


um verme cruzando a areia atrás dele, vindo atrás de seu
martelador e do pó de especiaria que ele tinha espalhado em volta
dos tigres mortos. Aquele era um bom augúrio para a fase inicial
do plano dos gêmeos: os vermes eram raros o suficiente por
aqueles lados, quase o tempo todo. O verme não era essencial,
mas ajudava. Não haveria necessidade de Ghanima explicar a
ausência do corpo.
A essa altura, ele já estava sabendo que Ghanima tinha se
condicionado a acreditar que ele de fato estava morto. Restaria
nela somente uma minúscula cápsula isolada de percepção, uma
recordação segregada e que só poderia ser reativada por meio de
palavras que fossem pronunciadas na língua ancestral que
somente eles dois conheciam em todo este universo. Secher Nbiw.
Se ela ouvisse essas palavras: caminho dourado... então, e
somente então, ela se lembraria dele. Até então, ele estava morto.
Agora, Leto se sentia verdadeiramente só.
Ele se deslocava com passadas a esmo que produziam somente
sons naturais no deserto. Nada, em sua passagem, diria àquele
verme que vinha vindo que carne humana estava em movimento
por ali. Era um modo de andar tão profundamente condicionado
em seu ser que ele nem precisava pensar para executá-lo. Os pés
se mexiam por si mesmos, sem nenhum ritmo mensurável
ditando as passadas. Quaisquer sons provocados por seus passos
poderiam ser atribuídos ao vento ou à gravidade. Nenhum
humano tinha passado por ali.
Quando o verme concluiu seu trabalho, atrás de Leto, ele se
abaixou atrás da face deslizante de uma duna e olhou na direção
do Serviçal. Sim, já estava longe o bastante. Ele plantou um
martelador e chamou seu transporte. O verme veio rapidamente,
mal lhe dando tempo para se posicionar corretamente antes que
a criatura engolfasse o dispositivo. Quando o verme passou, ele
montou pelo lado com os ganchos de criador, abriu a beirada
sensível de um anel e direcionou a besta acéfala na direção do
sudeste. Era um verme pequeno, mas forte. Ele conseguia sentir a
força do animal em suas viradas conforme atravessava sibilando
duna após duna. Uma brisa os acompanhava e ele sentia o calor
de sua travessia, causado pela fricção que o verme convertia no
início da especiaria em seu interior.
A mente de Leto se movia no compasso do deslocamento do
verme. Stilgar fora quem o levara em sua primeira jornada no
dorso de um verme. Leto só precisava deixar que sua memória
escoasse para conseguir ouvir a voz de Stilgar, calma e precisa,
com toda a educação de uma era passada. Não eram próprios de
Stilgar os ameaçadores cambaleios de um fremen bêbado de
tanta aguardente de especiaria. Também não eram típicos nele o
tom de voz alto e as fanfarronices daqueles tempos. Não. Stilgar
tinha seus deveres. Ele era instrutor da realeza:
– Nos tempos antigos, as aves eram chamadas por seu canto.
Cada vento tinha um nome. Um vento de seis tempos era
chamado Pastaza; o de vinte, era Cueshma, e o de cem era Heinali,
o que empurrava homens. Depois também havia o vento do
demônio no deserto ilimitado: Hulasikali Wala, o vento que come
carne.
E Leto, que já sabia dessas coisas, tinha demonstrado sua
gratidão pela sabedoria dessas instruções.
A voz de Stilgar, porém, podia ficar cheia de muitas coisas
valiosas.
– Nos tempos antigos, havia algumas tribos que eram
conhecidas como caçadoras de água. Eram chamadas iduali, que
significa “insetos da água”, porque aquelas pessoas não
hesitavam em roubar a água de outros fremen. Se topassem com
alguém sozinho no deserto, não lhe deixavam nem a água de sua
própria carne. Eles moravam num lugar chamado Sietch
Jacurutu. Foi lá que as outras tribos se uniram e exterminaram os
iduali. Isso tudo se passou há muito, muito tempo atrás, antes
mesmo de Kynes, na época em que vivia meu bisavô. E desde
então nenhum outro fremen voltou a Jacurutu. É tabu.
Desse modo Leto tinha sido relembrado de um conhecimento
que já se encontrava em sua memória. Tinha sido uma aula
importante sobre o funcionamento da memória. A memória não
era suficiente, mesmo para alguém cujo passado era tão
multiforme como o dele, a menos que seu uso fosse conhecido e
seu valor, revelado ao discernimento. Jacurutu teria água, um
captador de vento e todos os atributos de um sietch fremen, além
do valor incomparável de ser um local aonde nenhum fremen se
arriscaria a ir. Muitos jovens nem mesmo sabiam que um local
como Jacurutu teria existido um dia. Ah, eles teriam ouvido falar
de Fondak, claro, mas lá era o lugar dos contrabandistas.
Era o local perfeito para um morto se esconder: entre
contrabandistas e os mortos de outros tempos.
Obrigado, Stilgar.
O verme ficou cansado antes do amanhecer. Leto deslizou de
cima dele e observou quando ele cavoucou e se enterrou nas
dunas, movimentando-se devagar conforme o padrão típico
daquelas criaturas. Ele afundaria bastante e repousaria.
Devo aguardar o dia passar, Leto pensou.
Subindo na crista de uma duna, esquadrinhou o horizonte em
torno dele: vazio, vazio e mais vazio. Somente o rastro ondulante
traçado pelo verme que se enterrara interrompia esse padrão.
O pio lento de uma ave noturna desafiou a primeira linha verde
de claridade ao longo do horizonte a leste. Leto se enfiou no
esconderijo das areias, encheu uma tendestiladora em volta do
corpo e deixou a ponta de um respirarenador para fora, para
capturar ar.
Durante muito tempo antes que o sono o vencesse, ele
permaneceu acordado em meio às trevas que haviam enchido o
espaço, refletindo sobre a decisão que ele e Ghanima tinham
tomado. Não fora nada fácil, especialmente para sua irmã. Ele não
lhe havia contado sua visão por inteiro, nem todo o encadeamento
de ideias que decorrera disso. Para sua maneira de pensar agora,
tinha sido uma visão, não um sonho. Mas a peculiaridade disso era
que ele a entendia como uma visão de uma visão. Se havia algum
argumento capaz de convencê-lo de que seu pai continuava vivo,
estava nessa visão-visão.
A vida do profeta nos prende na visão dele, Leto pensou. E um
profeta só poderia se livrar dessa visão criando sua morte de modo
discordante em relação a essa visão. Era assim que isso aparecia
na dupla visão de Leto e ele ponderou sobre esse fator em relação
à escolha que tinha feito. Pobre João Batista, ele pensou. Se pelo
menos ele tivesse tido coragem de morrer de algum outro modo...
Mas talvez sua escolha tenha sido a mais corajosa. Como poderia
eu saber quais as alternativas que se apresentaram a ele? Eu sei,
porém, as alternativas que meu pai tinha.
Leto suspirou. Dar as costas a seu pai era como trair um deus.
Mas o Império Atreides precisava de um chacoalhão. Tinha
descambado para o pior da visão de Paul. Como obliterava tão
casualmente os homens. Isso era feito sem nem pensar duas
vezes. O fio condutor de uma insanidade religiosa tinha sido
tramado e tecido com muita firmeza e seguia pulsando.
E estamos presos dentro da visão do meu pai.
Leto sabia que uma saída daquela insanidade estava no
Caminho Dourado. Seu pai tinha visto isso. Mas a humanidade
poderia se desviar daquele Caminho Dourado e poderia recordar
o passado dos tempos de Muad’Dib com nostalgia, entendendo-o
como uma época melhor. A humanidade, porém, tinha de
experimentar a alternativa a Muad’Dib, senão nunca entenderia
seus próprios mitos.
Segurança... paz... prosperidade...
Diante dessa escolha, havia pouca dúvida do que a maioria dos
cidadãos desse Império iria escolher.
Embora eles me detestem, ele pensou. Embora Ghani me
deteste.
Sua mão direita coçou e ele pensou na luva terrível que havia
em sua visão-visão. Será, ele pensou. Sim, será.
Arrakis, me dê forças, ele implorou. Seu planeta continuava
forte e vivo embaixo dele e à sua volta. Suas areias apertavam-no
em sua tendestiladora. Duna era um gigante, contando suas
riquezas acumuladas. Era uma entidade enganadora, ao mesmo
tempo linda e grosseiramente feia. A única moeda que seus
mercadores realmente conheciam era a pulsação do sangue de
seu próprio poder, fosse qual fosse o modo como esse poder
tivesse sido alcançado. Eles possuíam o planeta da mesma
maneira como um homem possui uma amante prisioneira ou
como as Bene Gesserit possuíam as irmãs filiadas.
Não admira que Stilgar odiasse os sacerdotes-mercadores.
Obrigado, Stilgar.
Leto se lembrou então da beleza dos antigos costumes do
sietch, da vida que viviam antes do advento da tecnocracia do
Imperium, e sua mente deslizou como ele sabia que os sonhos de
Stilgar deslizavam. Antes dos luciglobos e dos lasers, antes dos
ornitópteros e das lagartas de especiaria, tinha havido outro tipo
de existência: mães de pele morena com bebês nos quadris,
lâmpadas queimando óleo de especiaria em meio ao acentuado
aroma da canela, naibs que persuadiam seu povo embora
soubessem que ninguém podia ser forçado. Tinha sido uma vida
fervilhante à sombra dos sulcos rochosos...
Uma luva terrível recuperará o equilíbrio, Leto pensou.
Então, ele caiu no sono.
Vi o sangue dele e um pedaço do manto que ele
usava, rasgado por garras afiadas. A irmã dele faz
um vívido relato dos tigres, atestando com
certeza o ataque deles. Interrogamos um dos
conspiradores e outros estão mortos ou em
custódia. Tudo aponta para um complô da Casa
Corrino. Uma Proclamadora da Verdade
confirmou esse testemunho.
– Relatório de Stilgar à Comissão do Landsraad

Farad’n estudou Duncan Idaho através do circuito interno de


vigia, em busca de alguma pista do estranho comportamento
daquele homem. Isso era logo depois do meio-dia e Idaho
esperava do lado de fora dos aposentos reservados para lady
Jéssica, tentando uma audiência com ela. Será que ela o
receberia? Ela sabia que estavam sendo vigiados, é claro. Mas
será que ela o receberia?
Em volta de Farad’n abria-se o recinto em que Tyekanik tinha
conduzido o treinamento dos tigres laza – era um aposento ilegal,
na realidade, repleto de instrumentos proibidos obtidos dos
Tleilaxu e dos ixianos. Com um movimento dos interruptores à
sua direita, Farad’n podia visualizar Idaho de seis ângulos
diferentes ou mudar a conexão para o interior dos aposentos de
lady Jéssica, onde os dispositivos de espionagem eram
igualmente sofisticados.
Os olhos de Idaho incomodavam Farad’n. Aquelas esferas
metálicas encaixadas nas órbitas, que os Tleilaxu haviam
proporcionado ao seu ghola quando o fizeram renascer em seus
tanques, distinguiam acentuadamente quem os possuísse de
todos os outros humanos. Farad’n tocou suas pálpebras, sentindo
a superfície dura das lentes de contato permanentes que
ocultavam o azul total de seu vício na especiaria. Os olhos de
Idaho devem registrar um universo diferente. Nem poderia ser de
outro jeito. Farad’n quase se sentiu tentado a ir em busca de
cirurgiões tleilaxu para lhes perguntar e obter pessoalmente uma
resposta sobre isso.
Por que Idaho tentou se matar?
Será que ele realmente tinha tentado isso? Ele devia saber que
nós não o permitiríamos.
Idaho continua sendo uma perigosa interrogação.
Tyekanik queria mantê-lo em Salusa ou então matá-lo. Talvez
isso fosse mesmo o melhor.
Farad’n mudou de câmera para a de ângulo frontal. Idaho
estava sentado num banco duro junto à porta da suíte de lady
Jéssica. Era um saguão sem janelas forrado de lambris de
madeira clara decorados com flâmulas de lanças. Idaho estava
sentado naquele banco havia mais de uma hora e parecia disposto
a aguardar ali pelo resto da vida. Farad’n se inclinou mais perto da
tela. O leal mestre-espadachim dos Atreides, instrutor de Paul
Muad’Dib, tinha sido tratado generosamente ao longo dos anos
em Arrakis. Ele havia chegado ali com a elasticidade dos passos
de um jovem. Uma dieta constante à base da especiaria deve tê-lo
ajudado, sem dúvida. E aquele maravilhoso equilíbrio metabólico
que os tanques tleilaxu sempre propiciavam. Será que Idaho
realmente se lembrava de seu passado antes dos tanques?
Nenhum outro dos que tinham sido revividos pelos Tleilaxu
podiam afirmar isso. Que enigma era esse Idaho!
Os relatos de sua morte estavam na biblioteca. O Sardaukar
que o havia abatido descrevera sua proeza: Idaho tinha
despachado dezenove dos seus antes de ter sido morto. Dezenove
Sardaukar! A carne de Idaho valia muito a pena de ter sido
enviada para os tanques de renascimento. Mas os Tleilaxu
tinham-no tornado um Mentat. Que estranha criatura vivia agora
naquela carne renascida... Qual seria a sensação de ser um
computador humano junto com os seus demais talentos?
Por que ele tinha tentado se matar?
Farad’n conhecia seus próprios talentos e tinha poucas ilusões
a respeito deles. Ele era historiador e arqueólogo, além de juiz de
homens. A necessidade o havia forçado a se tornar um
especialista em localizar aqueles que poderiam servi-lo – a
necessidade e um cuidadoso estudo dos Atreides. Ele entendia
que esse era o preço que a aristocracia sempre tinha de pagar.
Governar exigia julgamentos precisos e incisivos acerca daqueles
que exerciam o poder em seu nome. Mais de um regente tinha
sido derrubado por conta de erros e excessos de seus
subordinados.
Um cuidadoso estudo dos Atreides revelara um talento
excepcional para a escolha de auxiliares. Eles tinham sabido como
manter a lealdade e como manter um sutil controle sobre o ardor
de seus guerreiros.
Idaho não estava agindo de acordo.
Por quê?
Farad’n apertou os olhos, tentando enxergar o que se passava
sob a pele daquele homem. Idaho transmitia uma sensação de
duração, uma sensação de que ele não podia ser desgastado. Ele
dava a impressão de ser autocontido, de ser um todo organizado e
firmemente integrado. Os tanques tleilaxu tinham posto em
movimento algo mais do que humano. Farad’n captava isso.
Aquele homem exalava um movimento de autorrenovação, como
se agisse em obediência a leis imutáveis, começando de novo após
cada término. Ele se movimentava dentro de uma órbita fixa com
um poder de resistência semelhante ao de um planeta em torno
de uma estrela. Ele respondia à pressão sem quebrar; apenas
transferia sua órbita ligeiramente para outro trajeto, mas na
realidade não mudava nada básico.
Por que ele cortou os pulsos?
Seja qual tenha sido o motivo, ele o havia feito pelos Atreides,
em prol de sua Casa regente. Os Atreides eram a estrela de sua
órbita.
De algum modo, ele acredita que o fato de eu manter lady
Jéssica aqui fortalece os Atreides.
E então Farad’n lembrou a si mesmo: Um Mentat pensa isso.
Isso conferiu ao pensamento uma profundidade a mais. Os
Mentat cometiam erros, mas não com frequência.
Tendo chegado a essa conclusão, Farad’n quase convocou seus
auxiliares para que mandassem lady Jéssica embora junto com
Idaho. Posicionado na situação de praticamente emitir a ordem,
ele então recuou.
Aquelas duas pessoas – o ghola-Mentat e a bruxa Bene Gesserit
– continuavam sendo peças de denominação desconhecida nesse
jogo de poder. Idaho devia ser mandado de volta porque isso
certamente desencadearia problemas em Arrakis. Jéssica
deveria ser mantida aqui e seus estranhos conhecimentos teriam
de ser extraídos dela a fim de beneficiar a Casa Corrino.
Farad’n sabia que era sutil e letal o jogo que estava jogando.
Mas ele se havia preparado para essa possibilidade ao longo dos
anos, desde o momento em que percebera que era mais
inteligente e mais sensível do que aqueles que o rodeavam. Tinha
sido uma descoberta assustadora para uma criança e ele sabia
que a biblioteca fora seu refúgio tanto quanto seu mestre.
Agora, porém, as dúvidas o consumiam e ele se questionava se
realmente estava à altura do jogo. Havia alienado sua mãe,
perdido seus conselhos, mas as decisões dela sempre tinham sido
perigosas para ele. Tigres! Tê-los treinado tinha sido uma
atrocidade e usá-los não passara de estupidez. Como eram fáceis
de rastrear! Ela devia ser grata por estar sofrendo apenas o
castigo de ser banida. O conselho de lady Jéssica servira às suas
necessidades no caso com exatidão adorável. Ela deve ser levada
a divulgar o modo de pensar dos Atreides.
As dúvidas de Farad’n começaram a se dissipar. Ele pensou em
seus Sardaukar se tornando mais uma vez duros e resistentes por
meio de um rigoroso treinamento e da evitação do luxo que ele
comandava. Suas legiões Sardaukar continuavam pequenas, mas
novamente eram páreo, homem a homem, para os fremen. Isso
tinha uma serventia limitada enquanto os limites impostos pelo
Tratado de Arrakina estipulassem o tamanho relativo das forças.
Os fremen podiam dominá-lo pelo número, a menos que
estivessem aprisionados e enfraquecidos por uma guerra civil.
Era cedo demais para uma batalha dos Sardaukar contra os
fremen. Ele precisava de mais tempo. Ele precisava de novos
aliados oriundos das Casas Maiores descontentes e das recém-
fortalecidas Casas Menores. Ele precisava ter acesso ao
financiamento da choam. Precisava de tempo para que seus
Sardaukar ficassem mais fortes e os fremen, mais fracos.
Novamente, Farad’n olhou para a tela, que revelava o ghola
paciente. Por que Idaho queria ver lady Jéssica neste momento?
Ele sem dúvida sabia que estavam sendo vigiados, que cada
palavra e cada gesto seriam gravados e analisados.
Por quê?
Farad’n desviou os olhos da tela para uma bancada ao lado do
console de controle. À pálida claridade do dispositivo eletrônico,
ele conseguia discernir os carretéis que continham os últimos
relatos procedentes de Arrakis. Seus espiões eram meticulosos.
Esse crédito eles mereciam. Havia muitas informações ali que lhe
davam esperanças e prazer. Ele fechou os olhos e os pontos altos
dos relatórios desfilaram em sua mente seguindo a peculiar
sequência editorial a qual ele havia reduzido os carretéis, para seu
próprio uso:
Conforme o planeta se torna fértil, os fremen se veem livres da
pressão da terra e suas novas comunidades perdem o caráter
tradicional do sietch-fortaleza. Desde o início da vida, na antiga
cultura sietch, os fremen eram instruídos por um princípio: “Assim
como o conhecimento do seu próprio ser, o sietch forma uma base
firme de onde você parte para o mundo e para o universo”.
O fremen tradicional diz: “Olhe o Maciço”, significando que a
ciência-mestre é a Lei. Mas a nova estrutura social está
afrouxando essas antigas restrições legais. A disciplina está
desleixada. Os novos líderes fremen só conhecem o Baixo
Catecismo de seus ancestrais, em conjunto com a história que está
camuflada na estrutura mítica de suas canções. As pessoas das
novas comunidades são mais voláteis, mais abertas; discutem com
mais frequência e respondem com menor respeito à autoridade. Os
antigos habitantes do sietch eram mais disciplinados, mais
propensos a ações em grupo, e tendiam a trabalhar com mais
empenho. Eram mais cuidadosos em relação aos seus recursos. Os
antigos ainda acreditam que a sociedade organizada é a
realização do indivíduo. Os jovens crescem sem contato com essa
crença. Os remanescentes da antiga cultura que permanecem
olham para os jovens e dizem: “O vento da morte desfez a trama de
seu passado”.
Farad’n apreciou a objetividade de seu próprio resumo. A nova
diversidade vigente em Arrakis só poderia engendrar violência.
Ele tinha os conceitos essenciais firmemente gravados nos
carretéis:
A religião de Muad’Dib é firmemente baseada na antiga
tradição cultural do sietch fremen, ao passo que a nova cultura se
afasta cada vez mais dessas disciplinas.
Não pela primeira vez, Farad’n se perguntou por que Tyekanik
tinha abraçado essa religião. Tyekanik se comportava
estranhamente, segundo sua nova moralidade. Ele parecia
radicalmente sincero, mas fazia as coisas como se estivesse
contrariando sua própria vontade. Tyekanik era como o sujeito
que entra no rodamoinho para testá-lo e é capturado por forças
que estão além de seu controle. A conversão de Tyekanik tinha
aborrecido Farad’n por ser uma atitude completamente
descaracterizada. Era uma volta aos costumes Sardaukar mais
antigos. Ele avisou que os jovens fremen ainda poderiam reverter
sua posição de maneira parecida, e que as tradições mais
entranhadas e inatas poderiam prevalecer.
Mais uma vez, Farad’n pensou nos relatórios daqueles
carretéis. Eles falavam de algo inquietante: a persistência de um
remanescente cultural dos tempos fremen mais antigos: a “Água
da Concepção”. O fluido amniótico do recém-nascido era coletado
no parto e destilado para ser a primeira água dada à criança. Na
forma tradicional, era preciso que uma madrinha servisse a água
e dissesse: “Aqui está a água da tua concepção”. Inclusive os
jovens fremen ainda seguiam essa tradição com seus próprios
recém-nascidos.
A água da tua concepção.
Farad’n se sentiu revoltado com a ideia de beber água destilada
do fluido amniótico que tinha vazado ao nascer. E pensou então
em Ghanima, a gêmea que sobrevivera, cuja mãe morrera quando
ela, bebê, tinha bebido aquela estranha água. Teria ela refletido
depois sobre aquele peculiar elo com seu passado?
Provavelmente não. Ela fora criada como fremen. O que era
natural e aceitável aos fremen tinha sido natural e aceitável para
ela.
Por um momento, Farad’n lastimou a morte de Leto II. Teria
sido muito interessante discutir com ele esse aspecto. Talvez
surgisse uma oportunidade de falar a respeito com Ghanima.
Por que Idaho tinha cortado os pulsos?
Essa indagação retornava toda vez que ele espiava a imagem na
tela. Novas dúvidas afligiram Farad’n. Ele ansiava por ter a
habilidade de mergulhar no misterioso transe da especiaria,
como Paul Muad’Dib tinha feito, para ir em busca do futuro e
saber as respostas a suas perguntas. Por mais que ingerisse a
especiaria, porém, o campo de sua consciência persistia com seu
fluxo singular no agora, refletindo um universo de incertezas.
A tela de vigilância mostrou um serviçal abrindo a porta de lady
Jéssica. A mulher chamou Idaho com um aceno, ele se ergueu do
banco e atravessou a soleira. O serviçal faria um relato completo
mais tarde, mas Farad’n – cuja curiosidade tinha sido novamente
espicaçada – tocou outro interruptor em seu console e observou
Idaho entrando na saleta de visitas de lady Jéssica.
Como parecia calmo e contido esse Mentat. E como eram
insondáveis seus olhos de ghola.
Acima de tudo o mais, o Mentat deve ser um
generalista, não um especialista. É sensato que as
decisões de grande impacto sejam monitoradas
por generalistas. Os especialistas e os experts
conduzem rapidamente ao caos. Eles são a fonte
da busca de pelos em casca de ovos, de ferozes
contendas por causa de uma vírgula. O Mentat-
generalista, por outro lado, deve conduzir o
processo de tomada de decisão a um acordo
saudável, obtido pelo bom senso. Ele não deve se
furtar ao amplo movimento do que está
acontecendo no universo. Deve permanecer capaz
de dizer: “Não existe um verdadeiro mistério a
respeito disto, no momento. É isto que queremos
agora. Mais tarde, pode se mostrar errado, mas
então corrigiremos o que for preciso, quando
chegar o momento”. O Mentat-generalista deve
compreender que tudo que podemos identificar
como nosso universo é somente parte de
fenômenos maiores. Mas o expert olha para trás,
para os estreitos padrões de sua própria
especialidade. O generalista olha para fora, para
frente; ele busca os princípios vivos, sabendo
perfeitamente bem que esses princípios mudam,
que eles se desenvolvem. É às características da
mudança em si que o Mentat-generalista deve
atentar. Não pode existir um catálogo
permanente dessas mudanças, nenhum manual
ou guia prático. É preciso ver as mudanças com
tão menos preconcepções quanto possível,
perguntando-se: “E agora, o que isso está
fazendo?”.
– Guia Prático do Mentat

Era o dia do Kwisatz Haderach, o primeiro Dia Santo dos


seguidores de Muad’Dib. Esse dia celebrava o reconhecimento de
Paul Atreides deificado como a pessoa que estava em toda parte
simultaneamente, o Bene Gesserit masculino que mesclava sua
hereditariedade masculina com a feminina num poder
inseparável, que lhe permitira tornar-se Uno Com Todos. Os fiéis
chamavam esse dia Ayil, o Sacrifício, para comemorar a morte
que havia tornado a presença dele “real em todos os lugares”.
O Pregador escolheu o início da manhã desse dia para aparecer
mais uma vez na praça diante do templo de Alia, desafiando a
ordem para sua captura que todo mundo sabia que tinha sido
dada. Prevalecia uma trégua tênue entre o Clero de Alia e as
tribos do deserto que se haviam rebelado, mas a presença dessa
trégua poderia ser sentida como algo tangível que instigava a
inquietação em todas as pessoas em Arrakina. O Pregador não
dissipava esse estado de ânimo.
Estavam no vigésimo oitavo dia do luto oficial pelo filho de
Muad’Dib, seis dias após o rito memorial na Velha Ravina, adiado
por causa da rebelião. Todavia, nem mesmo os combates tinham
interrompido o hajj. O Pregador sabia que, nesse dia, a praça
estaria lotada. A maioria dos peregrinos tentava ajustar sua
estada em Arrakis para coincidir com o Ayil, “para então sentir a
Sagrada Presença do Kwisatz Haderach em Seu dia”.
O Pregador adentrou a praça aos primeiros raios do sol,
encontrando o lugar já tomado pela multidão de fiéis. Mantinha a
mão pousada de leve no ombro de seu jovem guia, sentindo o
orgulho cínico do jovem, transmitido a suas passadas. Agora,
quando O Pregador se aproximava, as pessoas reparavam em
cada nuance de seu comportamento. Essa atenção não era
inteiramente desagradável ao jovem guia. O Pregador apenas a
aceitava como uma necessidade.
Assumindo posição no terceiro patamar do Templo, O
Pregador esperava a quietude pairar sobre todos. Quando o
silêncio se espalhou, como uma onda engolfando o povaréu, e os
passos apressados de outros que tinham vindo para ouvir-lhe a
pregação podiam ser ouvidos nos limites mais distantes da praça,
ele pigarreou para limpar a garganta. À sua volta ainda prevalecia
o frio ar do começo da manhã e as luzes ainda não tinham descido
até ali embaixo, vindas do alto dos edifícios que delimitavam
aquela praça. Ele sentiu o som cinzento que pedia silêncio
ecoando pela grande praça, quando começou a falar.
– Vim prestar homenagem e pregar em memória de Leto
Atreides II – ele iniciou, falando com a voz potente que tanto
parecia a do homem-verme do deserto. – Faço-o com compaixão
por todos aqueles que sofrem. Falo para vocês o que o falecido
Leto aprendeu: o amanhã ainda não aconteceu e pode ser que
nunca aconteça. Este momento, aqui, é o único tempo-lugar
observável a nós em nosso universo. Digo-lhes que saboreiem
este momento e entendam o que ele ensina. Digo-lhes que
aprendam que o crescimento e a morte de um governo são
aparentes no crescimento e na morte de seus cidadãos.
Um murmúrio de perturbação atravessou a praça. Será que ele
estava zombando da morte de Leto II? Alguns pensaram que
talvez a Guarda Sacerdotal aparecesse de repente para prender
O Pregador.
Alia sabia que não haveria essa espécie de interrupção à fala do
Pregador. Ela havia ordenado que ele não fosse molestado nesse
dia. Ela mesma estava disfarçada dentro de um bom trajestilador
com máscara de umidade para encobrir-lhe o nariz e a boca, e um
manto comum com capuz para esconder o cabelo. Estava
instalada na segunda fileira abaixo do Pregador, observando-o
cuidadosamente. Seria Paul? Os anos poderiam tê-lo mudado
para chegar nisso. E ele sempre tinha sido excepcional com a Voz,
um fato que dificultava identificá-lo pela fala. Mesmo assim, esse
Pregador usava a voz para que ela fizesse o que ele queria. Paul
não teria feito melhor. Ela achou que tinha de conhecer a
identidade dele antes que pudesse agir contra O Pregador. Como
as palavras dele a assombravam!
Ela não captou nenhuma ironia nas declarações do Pregador.
Ele estava usando a sedutora atração de sentenças definitivas,
enunciadas com uma sinceridade cativante. As pessoas talvez
ficassem momentaneamente aturdidas com o significado do que
ele dizia, ao perceber que ele tinha pretendido aturdi-las para
ensinar-lhes algo justamente dessa maneira. Aliás, ele captou a
reação da multidão e prosseguiu:
– A ironia geralmente disfarça a incapacidade de pensar além
dos próprios preconceitos. Não estou sendo irônico. Ghanima
disse a vocês que o sangue de seu irmão não pode ser lavado.
Concordo...
... Será dito que Leto foi para onde seu pai também foi, que fez o
que seu pai fez. A Igreja de Muad’Dib diz que ele escolheu pelo
bem de sua própria humanidade um curso de ação que pode
parecer absurdo e sem sentido, mas que será validado pela
história. Essa história está sendo reescrita neste exato
momento...
– ... Digo a vocês que existe outra lição a ser aprendida com
essas vidas e com o modo como chegaram ao fim.
Alia, alerta para cada nuance, perguntou a si mesma por que O
Pregador tinha dito “chegaram ao fim” em vez de “mortes”.
Estaria ele dizendo que um dos gêmeos ou os dois não estavam
realmente mortos? Mas como isso podia ser? Uma Proclamadora
da Verdade tinha confirmado o relato de Ghanima. O que é que
esse Pregador estava fazendo então? Estava dizendo algo de
natureza mítica, ou falava de uma realidade?
– Prestem bem atenção a esta lição! – trovejava O Pregador,
elevando os braços. – Para possuírem sua humanidade, abram
mão do universo!
Ele abaixou os braços, direcionando as órbitas vazias
diretamente para Alia. Ele parecia estar falando particularmente
para ela, numa atitude tão óbvia que várias pessoas em volta se
viraram para ela com uma expressão interrogativa no rosto. Alia
estremeceu diante do poder que emanava dele. Podia ser Paul!
Podia, sim!
– Vejo, porém, que os humanos não conseguem suportar muita
realidade – ele disse. – A maior parte das vidas é uma fuga da
essência de cada um. A maioria prefere verdades do estábulo.
Vocês enfiam a cabeça na manjedoura e ruminam, contentes, até
o dia de sua morte. Outros usam vocês para seus propósitos
privados. Nem uma única vez vocês saem dos estábulos para
erguer a cabeça e assumir sua individualidade. Muad’Dib veio
para lhes falar disso. Sem compreender a mensagem dele, vocês
não podem reverenciá-lo!
Alguém na audiência, possivelmente um sacerdote disfarçado,
não conseguiu aguentar mais. Sua rouca voz masculina tinha se
elevado aos gritos:
– Você não vive a vida de Muad’Dib! Como tem a coragem de
dizer aos outros como eles devem reverenciá-lo?
– Porque ele está morto! – bradou O Pregador.
Alia se voltou para ver quem tinha desafiado O Pregador. O
homem continuava fora do alcance da visão dela, mas a voz dele
atravessou a massa de cabeças que se interpunha entre ele e O
Pregador e gritou de novo:
– Se você acredita que ele está morto de verdade, então você
está sozinho deste momento em diante!
Seguramente era um sacerdote, Alia pensou. Mas não
conseguiu reconhecer a voz dele.
– Eu vim apenas para fazer uma simples pergunta – rebateu O
Pregador. – A morte de Muad’Dib deverá ser seguida pelo suicídio
moral de todos os homens? Será essa a decorrência inevitável de
um Messias?
– Então, você admite que ele foi um Messias! – gritou a voz
dentro da multidão.
– Por que não, já que sou o profeta da era dele? – indagou O
Pregador.
Havia uma certeza tão tranquila em seu tom de voz e em seus
modos que até mesmo aquele que o desafiava ficou quieto. A
multidão respondeu emitindo um murmúrio alterado, como um
som animal de timbre grave.
– Sim – repetiu O Pregador –, eu sou o profeta destes tempos.
Concentrada como estava no Pregador, Alia detectou sutis
inflexões da Voz na fala dele. Ele sem dúvida tinha controlado
aquele povo todo. Será que teria sido treinado pelas Bene
Gesserit? Seria este outro plano da Missionaria Protectora? Nada
de Paul, não; somente outro segmento do interminável jogo pelo
poder?
– Eu articulo o mito e o sonho! – gritou O Pregador. – Sou o
médico que ajuda a criança a nascer e anuncia que ela nasceu.
Ainda assim, venho até vocês num momento de morte. Isso não
perturba vocês? Deveria fazer estremecer sua alma!
Ainda que sentisse raiva ao ouvir essas palavras, Alia entendeu
o estilo pontiagudo daquela fala. Assim como outros, ela se
percebeu em movimento de aproximação dos degraus,
acercando-se daquele homem alto, usando roupas de deserto. O
jovem guia que o conduzia chamou a atenção de Alia: como
parecia intenso e insolente aquele rapaz! Será que Muad’Dib
empregaria um jovem tão cínico?
– Perturbá-los é o que quero! – berrou O Pregador. – Essa é a
minha intenção! Venho aqui para combater a fraude e a ilusão de
sua religião convencional e institucionalizada. Como sempre
acontece com essas religiões, suas instituições se movimentam
na direção da covardia, da mediocridade, da inércia, da
autocomplacência.
Murmúrios irados começaram a se formar no meio do povo.
Alia sentiu as tensões e, com uma maligna satisfação, pensou
na possibilidade de explodir um tumulto generalizado. Será que O
Pregador conseguiria controlar essas tensões? Se não
conseguisse, ele poderia morrer bem ali!
– Aquele sacerdote que me desafiou! – clamou O Pregador,
apontando para a multidão.
Ele sabe!, Alia pensou. Um arrepio lhe percorreu o corpo, quase
uma excitação sexual. Esse Pregador jogava um jogo perigoso,
mas era um jogador de habilidade consumada.
– Você, sacerdote em seu mufti – O Pregador acusou –, você é o
capelão dos autocomplacentes. Eu vim não para desafiar
Muad’Dib, mas para desafiar você! A sua religião é de verdade,
quando não lhe custa nada e não acarreta nenhum risco? A sua é
uma religião de verdade quando você engorda à custa dela? A sua
é uma religião de verdade quando você comete atrocidades em
nome dela? De onde vem essa degeneração deteriorada da
revelação original? Responda-me, sacerdote!
Mas o desafiante permaneceu calado. E Alia notou que, mais
uma vez, a multidão estava ouvindo cada palavra do Pregador
com ávida submissão. Ao atacar o Clero, ele tinha conquistado os
favores da massa! E, se os espiões dela estivessem certos, a
maioria dos peregrinos e dos fremen em Arrakis acreditava que
aquele homem era de fato Muad’Dib.
– O filho de Muad’Dib se arriscou! – berrou O Pregador, e Alia
ouviu as lágrimas na voz dele. – Muad’Dib se arriscou! Eles
pagaram o preço! E o que Muad’Dib realizou? Uma religião que
está pondo fim a ele!
Como essas palavras seriam diferentes se viessem de Paul
mesmo, Alia pensou. Tenho de descobrir! Ela se aproximou mais
um pouco dos degraus e outras pessoas se movimentaram junto
com ela. Ela foi abrindo caminho em meio às filas cerradas à sua
frente até quase conseguir estender a mão e tocar esse
misterioso profeta. Ela sentia o cheiro do deserto nele, uma
mistura de pederneira e especiaria. Tanto o Profeta como esse
jovem guia estavam empoeirados, como se tivessem acabado de
vir do bled. Ela podia ver as mãos do Pregador intensamente
marcadas por veias salientes na pele que ficavam depois dos
lacres de punho do trajestilador que ele usava. Ela pôde ver que
ele tinha usado um anel em um dedo da mão esquerda, pois a
marca afundada ainda era visível. Paul tinha usado um anel nesse
mesmo dedo: o Gavião dos Atreides, que agora repousava em
Sietch Tabr. Leto o teria usado se tivesse vivido até lá... ou se ela
lhe desse permissão para subir ao trono.
Novamente, O Pregador dirigiu suas órbitas vazias para Alia,
falando com intimidade, mas numa voz que podia alcançar até as
últimas fileiras de pessoas daquela multidão:
– Muad’Dib mostrou duas coisas para vocês: um futuro certo e
um futuro incerto. Com plena consciência do que fazia, ele
enfrentou a derradeira incerteza do universo maior. Ele se retirou
cegamente de sua posição neste mundo e nos mostrou que os
homens sempre devem fazer isso, escolhendo o incerto em vez do
certo. – Alia notou que a voz dele tinha assumido um tom de
súplica no final da afirmação.
Alia olhou em torno e deslizou a mão para que ficasse apoiada
sobre o cabo de sua dagacris. Se eu o matasse neste exato
momento, o que eles fariam? Mais uma vez, ela sentiu a onda da
excitação tomando-a de cima a baixo. E se eu o matasse e me
revelasse, denunciando O Pregador como impostor e herege?
Mas, e se eles provassem que ele era Paul?
Alguém empurrou Alia para ainda mais perto dele. Ela se sentia
enfeitiçada pela presença dele enquanto combatia sua raiva para
acalmá-la. Ele era Paul? Deuses das profundezas! O que devia
fazer?
– Por que outro Leto foi tirado de nós? – perguntou com voz
exigente O Pregador. Havia uma dor verdadeira em sua voz. –
Respondam-me se puderem. Ah, a mensagem deles é bem clara:
abandonem a certeza. – Ele repetia essas últimas palavras em
tom estentóreo e cadenciado: – Abandonem a certeza! Esse é o
comando mais profundo que a vida nos dá. É o que constitui a
vida, no fim das contas. Somos uma sonda perscrutando o
desconhecido, investigando a incerteza. Por que vocês não
conseguem ouvir Muad’Dib? Se a certeza é conhecer
absolutamente um futuro absoluto, então isso é apenas a morte
disfarçada! O futuro começa agora! Ele mostrou isso a vocês!
Com uma aterrorizante objetividade, O Pregador estendeu sua
mão e agarrou o braço de Alia. O movimento foi realizado sem
hesitação, sem tatear. Ela tentou se desvencilhar, mas ele a
mantinha presa com uma força insuspeita, falando diretamente
para o rosto dela, enquanto todos que a rodeavam se afastavam,
completamente perdidos.
– O que foi que Paul Atreides lhe disse, mulher? – ele indagou,
autoritário.
Como é que ele sabe que eu sou mulher?, ela se perguntou.
Desejava afundar em suas vidas interiores, pedir-lhes proteção,
mas o mundo interno de Alia permaneceu assustadoramente
calado e hipnotizado por essa figura de seu passado.
– Ele lhe disse que a completude equivale à morte! – gritou O
Pregador. – A predição absoluta é o completamento... é a morte!
Ela tentou despregar os dedos dele. Queria agarrar sua
dagacris e feri-lo para que ele a largasse, mas não teve coragem.
Nunca se sentira tão acuada em toda a sua vida.
O Pregador elevou o queixo para falar por cima da cabeça dela
para a multidão, e então trovejou:
– Eu lhes dou as palavras de Muad’Dib! Vou esfregar na cara de
vocês aquelas coisas que vocês querem evitar. Não acho nada
estranho que vocês queiram crer que é só isso que lhes traz
consolo. De que outro modo os humanos inventam as armadilhas
que nos traem e arrastam para a mediocridade? De que outro
modo definimos a covardia? Foi isso que Muad’Dib lhes disse!
Abruptamente, ele soltou o braço de Alia e a empurrou de volta
à multidão. Ela teria caído de costas se não fosse a pressão dos
corpos que a sustentaram.
– Existir é se destacar, é sair do plano de fundo – concluiu O
Pregador. – Vocês não estão pensando nem existindo de verdade
a menos que se disponham a arriscar até mesmo sua sanidade no
julgamento de sua existência.
Enquanto descia os degraus, O Pregador tornou a pegar o
braço de Alia – e mais uma vez sem hesitar nem tatear. Desta vez,
porém, usou de mais delicadeza. Inclinando-se para ela, dosou a
voz para que somente ela o ouvisse e murmurou:
– Pare de tentar me empurrar de novo para o plano de fundo,
irmã.
Então, com a mão no ombro de seu jovem guia, ele se
embrenhou na multidão. Abriram caminho para que o insólito par
pudesse passar. Algumas mãos se estendiam na tentativa de
tocar no Pregador, mas essas pessoas demonstravam ternura e
admiração, embora receosas do que pudessem sentir por baixo
daquele empoeirado manto fremen.
Alia permaneceu sozinha, em estado de choque, enquanto o
povo seguia atrás do Pregador.
A certeza a tomava por completo. Era Paul. Não restava
nenhuma dúvida. Era seu irmão. Ela sentia o que o povo sentia.
Ela havia estado diante da presença sagrada e agora seu mundo
todo despencava à sua volta. Ela queria correr atrás dele,
pedindo-lhe que ele a salvasse de si mesma, mas não conseguia se
mexer. Enquanto os outros se empurravam para seguir O
Pregador e seu guia, ela continuava imóvel, intoxicada por um
desespero absoluto, por uma agonia tão intensa que só conseguia
tremer e se via incapaz de dominar os próprios músculos.
O que faço agora? O que faço agora?, ela se perguntava.
Agora não tinha nem Duncan para se apoiar, nem sua mãe.
Suas vidas interiores continuavam mudas. Havia Ghanima,
seguramente vigiada pelos guardas dentro do Forte, mas Alia não
podia se permitir expressar essa tormenta para a gêmea
sobrevivente.
Todos se voltaram contra mim. O que posso fazer?
A visão monocular do nosso universo diz que você
não deve buscar muito longe os seus problemas.
Esses problemas talvez nunca cheguem. Em vez
disso, cuide do lobo que está dentro do seu
território. As alcateias que vagam lá fora talvez
nem sequer existam.
– O Livro de Azhar; Shamra I:4

Jéssica recebeu Idaho à janela de sua sala de visitas. Era um


aposento confortável com divãs macios e cadeiras antiquadas.
Não havia suspensor em nenhum de seus aposentos, e os
luciglobos eram de cristal de outros tempos. Aquela janela se
abria para um jardim dentro de um pátio, um andar abaixo.
Ela ouviu o serviçal abrir a porta e depois o som dos passos de
Idaho no piso de tacos, e finalmente sobre o tapete. Ela ouviu tudo
isso sem se voltar, mantendo o olhar sobre a luz que salpicava o
chão verde do pátio. A silenciosa e temerosa batalha de suas
emoções devia ser suprimida agora. Ela fez as inspirações
profundas de seu treinamento prana-bindu, sentindo o jorro da
calma deliberadamente alcançada.
O sol, no alto, lançava seus raios como lanternas que escorriam
por um feixe de pó até o pátio, salientando a roda prateada de
uma teia de aranha estendida nos galhos de um pé de tília que
quase chegava à sua janela. Estava fresco no interior de seus
aposentos, mas do lado de fora da janela lacrada o ar tremia com
o calor petrificado. O castelo Corrino estava situado num lugar
estagnado que desmentia todo o verde do pátio.
Ela ouviu Idaho parar diretamente atrás dela.
Sem se virar, ela começou:
– A dádiva das palavras é a dádiva do engano e da ilusão,
Duncan. Por que você quer trocar palavras comigo?
– Pode ser que apenas um de nós sobreviva – ele rebateu.
– E você quer que eu apresente um relatório favorável de seus
esforços?
Ela se virou, viu como ele mantinha a calma ali parado,
observando-a com aqueles olhos metálicos cinzentos que não
tinham um foco central. Como pareciam vazios!
– Duncan, será possível que você tenha ciúmes de seu lugar na
História?
Ela falou em tom de acusação e, enquanto dizia essas palavras,
se lembrou de outra vez em que havia afrontado esse homem.
Naquela ocasião ele estava bêbado, tinha sido obrigado a espioná-
la, e estava dividido por obrigações conflitantes. Mas esse tinha
sido um Duncan pré-ghola. Este aqui não era mais o mesmo
homem, de jeito nenhum. Este não se sentia dividido em seus
atos, nem agoniado com nada.
Ele comprovou a imagem que ela havia feito quando sorriu.
– A História tem seu próprio tribunal e emite seus próprios
julgamentos – ele respondeu. – Duvido que ficarei preocupado
quando meu julgamento for apresentado.
– Por que você veio aqui? – ela perguntou.
– Pela mesma razão que a mantém aqui, milady.
Nenhum sinal externo traía o chocante poder daquelas simples
palavras, mas ela se pôs a raciocinar num ritmo furioso: Será que
ele realmente sabe por que estou aqui? E como poderia sabê-lo?
Ghanima era a única que estava informada. Será que, então, ele
tinha dados suficientes para uma computação Mentat? Isso era
possível. E se ele dissesse algo que a denunciasse? Será que ele
faria isso, se tivesse a mesma razão que ela para estar ali? Ele
devia saber que cada um de seus movimentos, que cada uma de
suas palavras, estavam sendo monitorados por Farad’n ou por
seus assistentes.
– A Casa Atreides chegou a uma árdua encruzilhada – ela disse.
– A família se voltou contra si mesma. Você foi um dos homens
mais leais ao meu duque, Duncan. Quando o barão Harkonnen...
– Não falemos dos Harkonnen – ele interrompeu. – Isso foi em
outra era e o seu duque está morto. – E ele pensou: Será que ela
não desconfia que Paul revelou o sangue Harkonnen que corre nas
veias Atreides? Que risco Paul tinha corrido, mas isso havia
vinculado Duncan Idaho ainda mais fortemente a ele. A confiança
daquela revelação tinha sido uma moeda quase grande demais de
se imaginar. Paul estava a par do que o povo do barão havia feito a
Idaho.
– A Casa Atreides não está morta – Jéssica afirmou.
– O que é a Casa Atreides? – ele indagou. – Você é a Casa
Atreides? Alia é? Ghanima? É o povo que serve essa Casa? Olho
para todas essas pessoas e elas ouvem a marca de uma labuta que
vai além das palavras! Como é que podem ser Atreides? Seu filho
disse com precisão: “A labuta e a perseguição são o fardo de todos
os que me seguirem”. Eu me libertaria disso, milady.
– Você realmente se bandeou para o lado de Farad’n?
– Não foi justamente isso que a senhora fez, milady? A senhora
não veio até aqui para convencer Farad’n a se casar com Ghanima
para assim solucionar todos os nossos problemas?
Será que ele realmente pensa isso?, ela duvidou. Ou está só
falando para que os espiões o escutem?
– A Casa Atreides sempre foi essencialmente uma ideia – ela
murmurou. – Você sabe disso, Duncan. Nós compramos lealdade
com lealdade.
– Serviço prestado ao povo – Idaho zombou. – Ah, muitas foram
as vezes em que ouvi o seu duque dizendo isso. Ele deve estar se
remexendo no túmulo, milady.
– Você realmente acredita que caímos tão baixo assim?
– Milady, não era de seu conhecimento a existência de rebeldes
fremen que se chamam de “Marqueses do Deserto Interior” e que
amaldiçoam a Casa Atreides e até mesmo Muad’Dib?
– Ouvi o relatório de Farad’n – ela afirmou, interrogando-se
aonde ele estava querendo chegar com aquela conversa e com que
finalidade.
– Mais do que isso, milady. Mais do que o relatório de Farad’n;
eu mesmo ouvi a maldição deles. É esta: “Que todos vocês ardam
no fogo, Atreides! Vocês não terão alma, nem espírito, nem corpo,
nem sombra, nem magia, nem ossos, nem cabelos, nem
pronunciamentos, nem palavras. Não terão túmulos, casas,
buracos ou tumbas. Não terão jardim, árvore ou moita. Não terão
água, pão, luz ou fogo. Não terão filhos, família, herdeiros ou tribo.
Não terão cabeça, braços, pernas, passos ou sementes. Não terão
assento em nenhum planeta. A alma de vocês não terá permissão
para vir das profundezas, e essas almas nunca estarão com os que
têm autorização para viver na terra. Em dia nenhum vocês verão
Shai-hulud, mas ficarão amarrados e algemados na mais profunda
abominação e suas almas jamais entrarão na gloriosa luz, para
todo o sempre”. É essa a maldição, milady. A senhora pode
imaginar tal ódio vindo dos fremen? Eles consignam todos os
Atreides à mão esquerda do amaldiçoado, à Mulher-Sol repleta de
fogo que queima.
Jéssica se permitiu estremecer. Idaho tinha, sem nenhuma
dúvida, pronunciado cada uma daquelas palavras com a mesma
voz que as dissera no momento em que as ouviu na praga original.
Por que estava expondo isso à Casa Corrino? Ela podia imaginar
um fremen indignado, terrível em sua ira, diante de sua tribo,
despejando aquela maldição ancestral. Por que é que Idaho queria
que Farad’n ouvisse aquilo tudo?
– Você apresenta um poderoso argumento a favor do
casamento de Ghanima com Farad’n – ela observou.
– A senhora sempre preferiu uma abordagem simplista dos
problemas – ele argumentou. – Ghanima é fremen. Ela só pode se
casar com quem não pague fai, a taxa de proteção. A Casa Corrino
desistiu de todas as suas participações na choam por seu filho e
pelos herdeiros dele. Farad’n existe pelo sofrimento Atreides. E
lembre-se de quando seu duque fincou o estandarte do Gavião em
Arrakis, lembre-se do que ele disse: “Aqui estou e aqui fico!” Os
ossos dele ainda estão lá. E Farad’n teria de viver em Arrakis, com
seus Sardaukar ao lado.
Idaho sacudiu a cabeça à mera menção de uma tal aliança.
– Existe um velho ditado que diz que a gente deve descascar um
problema como se fosse uma cebola – ela sussurrou, com a voz
gélida. Como é que ele ousa me dar lições de moral? A menos que
esteja representando um papel para os olhos vigilantes de
Farad’n...
– Seja como for, não consigo ver como os fremen e os Sardaukar
conseguiriam compartilhar um planeta – Idaho redarguiu. – Essa
é uma camada que não descola da cebola.
Ela não gostou das ideias que as palavras de Idaho poderiam
despertar em Farad’n e seus conselheiros, então afirmou com tom
de voz incisivo:
– A Casa Atreides ainda é a lei neste Império! – e, enquanto
pronunciava essas palavras, pensava: Será que Idaho quer que
Farad’n pense que ele pode recuperar o trono sem os Atreides?
– Ah, sim – Idaho concedeu. – Quase me esqueci. A Lei Atreides!
Claro que na tradução dos sacerdotes do Elixir Dourado. A mim
basta que eu feche os olhos para ouvir seu duque me dizendo que
imóveis e propriedades sempre são conquistados e mantidos pela
violência ou pela ameaça da violência. A fortuna a tudo toca, como
Gurney costumava cantar. O fim justifica os meios? Ou será que
misturei os provérbios? Bom, não importa se os punhos cerrados
são abertamente exibidos pelas legiões fremen ou pelos
Sardaukar, ou se estão escondidos dentro das mangas da Lei
Atreides... os punhos continuam lá. E essa é a camada da cebola
que não descola, milady. Sabe de uma coisa? Qual será o punho
que Farad’n vai exigir?
Mas o que ele está fazendo?, Jéssica se perguntava. A Casa
Corrino iria se refestelar com esse argumento e tripudiar com ele!
– Então, você pensa que os sacerdotes não deixarão Ghanima
se casar com Farad’n? – sugeriu ela, averiguando até onde
poderiam chegar as palavras de Idaho.
– Deixar? Pelo amor de Deus! Os sacerdotes deixarão Alia fazer
qualquer coisa que ela decrete. Ela mesma seria capaz de se casar
com Farad’n!
Então é isso que ele está sondando?, Jéssica se perguntou.
– Não, milady – ele prosseguiu. – A questão não é essa. O povo
deste Império não consegue distinguir entre o governo Atreides e
o governo do Bruto Rabban. Todo dia tem pessoas morrendo nos
calabouços de Arrakina. Eu fui embora porque não podia mais
oferecer minha espada aos Atreides, nem por uma hora! A
senhora não entende o que estou dizendo, por que vim para cá
consigo, na qualidade de o mais próximo representante dos
Atreides? O Império Atreides traiu seu duque e seu filho. Eu amei
sua filha, mas ela seguiu por um caminho e eu fui por outro. Se as
coisas chegarem a esse ponto, aconselharei Farad’n a aceitar a
mão de Ghanima... ou a de Alia... mas somente nos termos dele
mesmo!
Ah, ele está montando o palco para uma saída formal e honrosa
do serviço aos Atreides, ela pensou. Mas essas outras questões
das quais ele falou, seria realmente possível que ele soubesse
quão bem elas haviam feito em seu lugar o trabalho que cabia a
ela mesma? Jéssica o advertiu:
– Você sabe que há espiões ouvindo cada palavra, não é?
– Espiões? – e ele deu uma risadinha. – Eles escutam, do mesmo
jeito que eu escutaria no lugar deles. A senhora não sabe como a
minha lealdade se processa de modo diferente? Foram muitas as
noites que passei sozinho no deserto, e os fremen têm razão a
respeito daquele lugar. No deserto, especialmente à noite, você
topa com os perigos de pensar muito.
– Foi lá que você ouviu os fremen nos amaldiçoando?
– Sim. Entre os Al-Ourouba. A pedido do Pregador, me juntei a
essa tribo, milady. Nós nos chamamos Zarr Sadus, aqueles que se
recusam a se sujeitar aos sacerdotes. Estou aqui para fazer um
pronunciamento formal para um Atreides: estou me retirando
para o território inimigo.
Jéssica o estudou, buscando sinais de traição nas minúcias,
mas Idaho não dava nenhum indício de que tivesse falado com
falsidade ou para encobrir outros planos. Seria realmente
possível que ele tivesse passado para o lado de Farad’n? Ela se
lembrou de uma máxima da Irmandade: Nas questões humanas,
nada permanece duradouro; todos os assuntos humanos giram
como uma hélice, movimentando-se em torno de algo e para fora.
Se Idaho realmente estava se apartando da comunidade Atreides,
isso seria uma explicação para sua conduta presente. Ele estava
girando em torno de algo e para fora. Ela precisava considerar
isso uma possibilidade.
Mas por que ele tinha enfatizado ter atendido a um pedido do
Pregador?
As ideias de Jéssica atropelavam-se em sua cabeça e, tendo
considerado as alternativas, ela percebeu que teria de matar
Idaho. O plano no qual tinha apostado suas fichas permanecia tão
delicado que nada podia ter espaço para interferir e atrapalhar.
Nada. E as palavras de Idaho sinalizavam que ele sabia qual era o
plano dela. Ela avaliou a posição relativa de ambos naquele
recinto, e então andou e se colocou de modo a poder desferir um
golpe letal.
– Sempre considerei que o efeito normalizador da faufreluches
era um dos pilares da nossa força – ela comentou. Que ele ficasse
matutando sobre o motivo que a teria levado a derivar a conversa
entre ambos para o sistema de distinção de classes. – O Conselho
do Landsraad das Casas Maiores, os Sysselraads, todos merecem
nosso...
– A senhora não me distrai – ele acusou.
E Idaho percebeu como as ações dela tinham se tornado
transparentes. Seria por que ela se tornara desleixada quanto a
encobrir as coisas, ou ele finalmente tinha conseguido derrubar
os muros do treinamento Bene Gesserit? Ele resolveu que era a
segunda opção, mas uma parte disso era devida a algo nela
mesma, como uma mudança que tivesse acontecido com o
avançar da idade. Deixava-o triste perceber como eram pequenas
as diferenças entre os novos fremen e os antigos. A passagem do
deserto era a passagem de algo precioso aos humanos, e ele não
conseguia descrever essa coisa, assim como também não
conseguia descrever o que tinha ocorrido com lady Jéssica.
Jéssica encarou Idaho, expressamente atônita, sem nenhuma
tentativa de ocultar sua reação. Será que ele podia lê-la assim,
com tanta facilidade?
– A senhora não me matará – ele afirmou. Ele usou as palavras
fremen de advertência: – Não jogue seu sangue sobre a minha
faca. – E Idaho pensou: Tornei-me bastante um fremen. Ao
constatar isso, ele sentiu um acre senso de continuidade
captando a profundidade com que aceitara os costumes do
planeta que havia abrigado sua segunda vida.
– Acho que seria melhor você sair – ela disse.
– Não enquanto a senhora não aceitar que eu me retire do
serviço aos Atreides.
– Aceito! – ela esbravejou, com voz cortante. E somente depois
de pronunciada essa palavra foi que ela percebeu o quanto esse
diálogo tinha sido fruto de puro reflexo. Ela precisava de mais
tempo para pensar e reconsiderar. Como Idaho sabia o que ela
pretendia fazer? Ela não acreditava que ele fosse capaz de saltos
no tempo como os induzidos pela especiaria.
Idaho retrocedeu diante dela até sentir a porta às suas costas.
Então fez uma mesura.
– Mais uma vez eu a chamo de milady, e esta será a última vez.
Meu conselho para Farad’n será que a envie de volta a Wallach,
sigilosa e rapidamente, na primeira oportunidade que se mostrar
mais prática. A senhora é um brinquedo perigoso demais para se
ter por perto. Embora eu não acredite que ele a considere um
brinquedo. A senhora está trabalhando para a Irmandade, não
para os Atreides. Agora me pergunto se alguma vez a senhora
serviu aos Atreides. Vocês, bruxas, fazem tudo muito no fundo e
nas trevas para que os meros mortais possam chegar a confiar.
– Um ghola que se considera um mero mortal – ela escarneceu.
– Comparado à senhora – ele rebateu.
– Saia! – ela mandou.
– Justamente a minha intenção. – E ele passou pela porta,
cruzando com a expressão curiosa do serviçal, que
evidentemente tinha ouvido tudo.
Está acabado, ele pensou. E eles só poderão entender isso de um
único jeito.
Somente no domínio da matemática é que vocês
podem compreender a visão precisa de futuro
apresentada por Muad’Dib, nos seguintes termos:
em primeiro lugar, postulamos um número
qualquer de dimensões-ponto no espaço. (Este é o
clássico agregado estendido n vezes de n
dimensões.) Nesse contexto, o Tempo, como é
normalmente compreendido, se torna um
agregado de propriedades unidimensionais.
Aplicando essa noção ao fenômeno Muad’Dib,
temos que ou somos confrontados por novas
propriedades do Tempo ou (pela redução por
meio do cálculo do infinito) estamos lidando com
sistemas separados que contêm n propriedades
corporais. No caso de Muad’Dib, supomos a
segunda possibilidade. Como ficou demonstrado
por redução, as dimensões-ponto de n vezes só
podem ter uma existência separada dentro de
referências diferentes do Tempo. Dimensões
separadas do Tempo portanto, como se
demonstrou, podem coexistir. Sendo esse o caso
inescapável, as previsões de Muad’Dib exigiam
que ele percebesse as n vezes não como um
agregado estendido, mas como uma operação
dentro de um único contexto. De fato, ele
congelou o universo dele naquele único contexto
que era a sua visão do Tempo.
– Palimbasha: Palestras em Sietch Tabr

Leto estava deitado na crista de uma duna, esquadrinhando as


areias que se abriam num sinuoso afloramento rochoso. Essas
pedras se apresentavam como um verme imenso esparramado na
areia, achatado e ameaçador à luz do sol da manhã. Nada se
movimentava por ali. Nenhuma ave sobrevoava em círculos
aquela região, nenhum animal fuçava o chão perto das pedras. Ele
podia ver as frestas de um captador de vento quase no centro das
costas do “verme”. Ali deveria haver água. O verme rochoso
guardava uma aparência semelhante à do abrigo dos sietch,
exceto pela ausência de criaturas vivas. Ele permanecia imóvel,
fundido com a areia, espreitando.
Uma das canções de Gurney Halleck insistia em sua mente,
com monótona persistência:

Debaixo do morro onde a raposa corre lépida,


Um sol salpicado brilha com força
Onde meu amor está quieto.

Debaixo do morro nas moitas de erva-doce


Espio meu amor que não pode despertar.
Ele se esconde num túmulo
Debaixo do morro.

Onde ficava a entrada daquele lugar?, Leto se perguntou.


Ele tinha a certeza de que ali devia ser Jacurutu/Fondak, mas
havia algo errado ali, além da ausência do movimento de animais.
Alguma coisa saltitou nas bordas de sua percepção consciente,
alertando-o.
O que se escondia debaixo do morro?
A ausência de animais era preocupante. Era o suficiente para
despertar seu senso fremen de cautela: A ausência diz mais do
que a presença quando se trata da sobrevivência no deserto. Mas
havia um captador de vento. Teria de haver água para uso de
humanos. Esse era o lugar tabu, disfarçado sob o nome de
Fondak, e sua outra identidade já estava perdida até mesmo na
memória da maioria dos fremen. E nenhuma ave ou outro animal
podia ser avistado por ali.
Nem humanos. Apesar disso, era ali que começava o Caminho
Dourado.
Seu pai tinha dito um dia:
– Existe o desconhecido em toda parte, a todo momento. É aí
que você busca o conhecimento.
Leto lançou o olhar à direita, acompanhando o perfil da crista
das dunas. Tinha havido uma tempestade-mãe há pouco tempo.
O lago Azrak, aquela planície de gipsita, tinha sido exposto,
perdendo sua capa de areia. A superstição fremen dizia que
aquele que visse Biyan, as Terras Brancas, podia fazer um pedido
de dois gumes, um pedido que poderia destruí-lo. Leto só viu uma
planície de gipsita, que lhe dizia que antigamente, em Arrakis, ali
houvera um corpo d’água.
Como se fosse existir de novo.
Ele olhou para cima, focando vários quadrantes do céu, em
busca de algum sinal de movimento. O céu parecia poroso depois
da tempestade. A luz que o atravessava causava a sensação de
uma presença leitosa, de um sol prateado e perdido em alguma
parte acima do véu empoeirado que persistia nas altitudes mais
elevadas.
Novamente, Leto focalizou sua atenção de volta nas rochas
sinuosas. Tirou cuidadosamente os binóculos de seu fremkit,
acertando o foco de suas lentes ajustáveis, e investigou a cinzenta
paisagem nua e aquele afloramento onde antigamente os homens
de Jacurutu tinham vivido. O fator de amplificação dos binóculos
revelou uma moita espinhosa, aquela que chamavam Rainha da
Noite. O arbusto vicejava nas sombras de uma fenda que poderia
ser a entrada para o velho sietch. Ele esquadrinhou toda a
extensão do afloramento. O sol prateado tornava os vermelhos
silhuetas cinzentas, lançando um achatamento difuso sobre a
longa extensão rochosa.
Rolando lateralmente, ele ficou de lado para Jacurutu para
analisar o círculo dos arredores com o uso dos binóculos. Nada
em toda aquela erma vastidão preservava as marcas da passagem
de humanos. O vento já tinha apagado as pegadas, deixando
apenas uma vaga silhueta arredondada no local onde ele tinha
caído de seu verme, à noite.
Mais uma vez, ele olhou para Jacurutu. Exceto pelo captador de
vento, não havia nenhum sinal de que pessoas tivessem passado
por ali. E, sem aquela sinuosa extensão das rochas, não havia mais
nada que pudesse ser tirado da areia calcinada, uma superfície
erma de um horizonte a outro.
Subitamente, Leto sentiu que estava naquele lugar porque
tinha se recusado a permanecer confinado no sistema que seus
ancestrais lhe haviam legado. Ele pensou no modo como as
pessoas o viam, o mesmo erro universal em todos os olhares,
exceto no de Ghanima.
Exceto por aquela turba maltrapilha de outras lembranças, esta
criança nunca foi uma criança.
Devo aceitar a responsabilidade pela decisão que tomamos, ele
pensou.
Mais uma vez, ele olhou com atenção o perfil da rocha em toda
a sua extensão. De acordo com todas as descrições, ali tinha de
ser Fondak e nenhum outro lugar poderia ser Jacurutu. Ele sentia
um estranho relacionamento de ressonância com o tabu daquele
lugar. Na Doutrina Bene Gesserit, ele abriu sua mente para
Jacurutu, buscando nada saber a respeito. Saber era uma
barreira que impedia aprender. Por alguns instantes, ele se
permitiu simplesmente ecoar, sem fazer pedido nenhum, sem
perguntar nada.
O problema estava na falta de vida animal, mas foi uma coisa
em especial que o alertou. Ele então percebeu o que era: não havia
aves que se alimentam de carniça; águias, urubus, gaviões. Mesmo
quando outras formas de vida ficavam escondidas, essas
continuavam visíveis. Cada ponto de água neste deserto tinha sua
própria cadeia alimentar. E no topo dela, os onipresentes
comedores de carniça. Nenhuma dessas criaturas tinha vindo
para investigar sua presença. Ele conhecia muitíssimo bem os
“vigias do sietch”, aquela linha de aves empoleiradas na borda do
penhasco em Tabr, os mais primitivos coveiros de todos, à espera
de carne. Como diziam os fremen: “Nossos concorrentes”. Mas
diziam isso sem nenhum sentimento de ciúme porque aves de
rapina geralmente indicavam a aproximação de forasteiros.
E se este Fondak tiver sido abandonado até mesmo pelos
contrabandistas?
Leto parou para beber de um dos seus tubos coletores.
E se realmente não houver água?
Ele reviu sua posição. Tinha montado e esgotado dois vermes
para chegar até ali, espicaçando-os sem misericórdia a noite
inteira, e os deixara quase mortos, afundados na areia. Ali era o
deserto interior, onde o esconderijo dos contrabandistas podia
ser encontrado. Se ali existia vida, se ali pudesse existir vida teria
de ser em presença de água.
E se não houvesse água? E se ali não fosse Fondak/Jacurutu?
Mais uma vez ele mirou o binóculo para visualizar o captador
de vento. As bordas externas do dispositivo estavam recobertas
de areia, precisando de manutenção, mas de resto ele parecia
estar funcionando. Tinha de haver água.
E se não houvesse?
Um sietch abandonado pode perder sua água para o ar, ou para
qualquer tipo de catástrofe. Por que não havia nenhuma ave de
carniça? Será que tinham sido mortas por causa de sua água? Por
quem? Como todas elas poderiam ter sido eliminadas? Veneno?
Água envenenada.
A lenda de Jacurutu não continha nenhum relato de uma
cisterna envenenada, mas uma dessas poderia existir. Se os
bandos originais de aves tivessem sido mortos, já não teriam sido
renovados nesta altura dos acontecimentos? Os iduali tinham
sido extintos havia várias gerações e as histórias todas nunca
tinham mencionado veneno. Mais uma vez ele examinou a rocha,
usando o binóculo. Como é que um sietch inteiro poderia ter sido
destruído? Certamente alguém devia ter escapado. Os habitantes
de um sietch raramente ficavam todos em casa. Formavam
grupos para perambular pelo deserto, saíam em viagens para as
cidades.
Com um suspiro de resignação, Leto deixou o binóculo de lado.
Escorregou então pela encosta oculta da duna, tomando um
cuidado extra para enterrar sua tendestiladora e encobrir todos
os sinais de sua presença, enquanto se preparava para passar as
horas de maior calor. O peso da fadiga invadia seus membros,
cujos movimentos se tornavam lentos e pesados. Era o preço que
vinha para ser cobrado, agora que Leto providenciava um modo
de se esconder no escuro. Dentro dos suarentos limites da tenda,
ele passou a maior parte do dia cochilando, imaginando os erros
que poderia ter cometido. Teve sonhos defensivos, mas não podia
haver autodefesa neste julgamento que ele e Ghanima tinham
escolhido. O fracasso escaldaria a alma de cada um deles. Depois
de comer biscoitos de especiaria, adormeceu; acordou e comeu
mais um pouco, bebeu e voltou a dormir. Tinha sido uma longa
jornada até ali, um teste exigente para os músculos de uma
criança.
Ao cair da tarde, ele acordou com as forças refeitas, e buscou
ouvir sinais de vida. Saiu rastejando de dentro de seu sudário de
areia. Havia poeira no alto do céu, soprando numa direção só, mas
ele conseguia sentir areia pinicando em sua bochecha e vindo de
outro lado; um sinal seguro de que haveria uma mudança brusca
no clima. Ele percebia os sinais de uma tempestade se formando.
Com extrema cautela ele se esgueirou até o topo da duna, e
mais uma vez tentou enxergar alguma coisa naquelas rochas
enigmáticas. O ar que os separava era de cor amarela. Os sinais
indicavam uma Coriolis se aproximando, a ventania que carregava
a morte em seu bojo. Cairia ali um imenso lençol contorcido de
areia soprada pelo vento com capacidade de se estender por até
quatro graus de latitude. O desolado vazio da superfície de gipsita
era agora um caldeirão amarelo que refletia as nuvens de poeira.
A falsa paz do final da tarde o envolvia. Então o dia terminou e
ficou noite, a rápida noite que cai no deserto interior. As rochas se
transformaram em picos angulosos refletindo a luz da primeira
lua. Ele sentia espinhos arenosos picando sua pele. Um ribombar
seco de trovoada pareceu o eco de tambores ao longe e, no espaço
entre o luar e a escuridão, ele viu um movimento repentino:
morcegos. Ele podia ouvir a agitação das asas que batiam e seus
guinchos miúdos.
Morcegos.
De propósito ou por acaso, esse lugar transmitia a sensação de
desolação e abandono. Estava onde deveria se situar a
semilendária fortaleza dos contrabandistas: Fondak. Mas e se não
fosse Fondak? E se o tabu ainda imperasse e aqui só fosse a casca
de um Jacurutu fantasma?
Leto se acocorou no abrigo de sua duna e esperou que a noite
descesse em seu ritmo natural. Paciência e cuidado, cuidado e
paciência. Por algum tempo, ele se entreteve imaginando a rota
percorrida por Chaucer, de Londres a Canterbury, fazendo a lista
dos lugares desde Southwark: quase quatro quilômetros até o
bebedouro de St. Thomas, nove quilômetros até Deptford, menos
de dez quilômetros até Greenwich, 50 quilômetros até Rochester,
seis quilômetros e meio até Harbledown, e quase 100 até
Canterbury. Ele se sentia como se estivesse flutuando num tempo
sem tempo, sabendo que havia poucas pessoas em todo o vasto
universo que eram capazes de se lembrar de Chaucer, ou sequer
conhecer alguma coisa de Londres, exceto o povoado de
Gansireed. St. Thomas estava preservado na Bíblia Católica
Laranja e no Livro de Azhar, mas Canterbury já tinha
desaparecido da memória dos homens, assim como o planeta que
havia conhecido esse lugar. Ali estava o fardo de todas as suas
lembranças, de todas aquelas vidas que ameaçavam engoli-lo. Ele
tinha percorrido esse trajeto até Canterbury, uma vez.
Todavia, sua viagem presente era mais longa e mais perigosa.
Então, ele chegou até a crista da duna e seguiu adiante na
direção das rochas iluminadas pelo luar. Ele se fundia com as
sombras, deslizando através do topo das dunas sem fazer barulho
nenhum que pudesse indicar sua presença.
A poeira tinha sumido, como tantas vezes acontecia pouco
antes de uma tempestade, e a noite estava límpida, brilhante. O
dia não havia revelado nenhum movimento, mas ele ouvia agora
pequenas criaturas se movimentando no escuro, conforme
chegava mais perto das pedras.
Num vale entre duas dunas, ele topou com uma família de
roedores do tipo dos gerbos, que se espalharam por ali ao
perceberem a aproximação de Leto. Ele não se apressou em
seguir pela crista seguinte, com emoções atribuladas pela
ansiedade. Ele tinha visto aquela fenda: será que dava acesso a
alguma entrada? E ainda havia outros focos de preocupação: o
sietch tão antigo sempre tinha sido protegido por armadilhas:
dardos envenenados em buracos, espinhos envenenados em
plantas. Ele mesmo se sentiu preso num aforismo fremen
ancestral: A noite que é toda ouvidos. Ele estava com os ouvidos
abertos, à espera do menor som.
As pedras cinzentas se elevavam diante dele agora,
agigantadas por sua proximidade. Enquanto prestava atenção
para captar algum som, ele ouviu aves invisíveis naquele
penhasco, emitindo o brando chamado das presas aladas. Eram
os sons de aves diurnas, que a noite amplificava. O que teria
virado o mundo dessas criaturas do avesso? Humanos
predadores?
Subitamente, Leto se imobilizou rente à areia. Havia fogo no
penhasco, um balé de gemas faiscantes e misteriosas contra o
negro tule da noite, aquela espécie de sinal que um sietch
dispararia na direção de peregrinos cruzando o bled. Quem eram
os ocupantes deste lugar? Ele engatinhou adiante mais um pouco,
buscando as sombras mais densas da base do penhasco, sentindo
a superfície das rochas com uma mão e deixando seu corpo seguir
atrás da mão enquanto buscava a fissura que tinha visto à luz do
dia. Ele a localizou quando deu o oitavo passo, tirou suavemente o
respirarenador de seu kit e com ele sondou a escuridão. Quando
ele se mexeu, alguma coisa apertada que o amarrava caiu sobre
seus ombros e braços e o imobilizou.
Cipó-armadilha!
Ele resistiu ao impulso de se debater, o que só levaria a planta a
puxar com mais força. Leto abaixou o respirarenador e, dobrando
os dedos da mão direita, buscou a faca que estava em sua cintura.
Sentia-se o maior dos ingênuos por não ter jogado de longe
alguma coisa dentro daquela fissura para testar a presença de um
eventual perigo. Sua mente estivera toda ocupada com a fogueira
no alto do penhasco.
Cada movimento que fazia aumentava o aperto do cipó-
armadilha, mas seus dedos finalmente alcançaram o cabo da faca.
Sorrateiramente, ele fechou a mão em volta do cabo e começou a
tirar a arma da bainha.
Um facho de luz o envolveu e o imobilizou por completo.
– Ah, que bela presa pegamos com nossa rede. – Era uma voz
masculina grave, que vinha de trás de Leto, com um tom
vagamente familiar. Leto tentou girar a cabeça, ciente da
perigosa propensão do cipó de esmagar o corpo que tentasse
muito se soltar.
Uma mão apanhou a faca de Leto antes que ele pudesse ver seu
captor. Essa mão se movimentou com habilidade pelo corpo de
Leto, retirando todos os pequenos dispositivos que ele e Ghanima
levavam para garantir sua sobrevivência. Nada escapou à
investigação do sujeito, nem mesmo o garrote de shigafio que
escondia no cabelo.
Leto ainda não tinha visto o homem.
Os dedos dele fizeram alguma coisa com o cipó-armadilha e,
depois disso, Leto sentiu que podia respirar melhor, mas o
homem avisou:
– Não resista, Leto Atreides. Sua água está na minha caneca.
Com um esforço supremo, Leto permaneceu calmo e
perguntou:
– Você sabe meu nome?
– Claro que sim! Quando se monta uma armadilha é com um
propósito. Tem-se em vista uma presa específica, não é mesmo?
Leto permaneceu calado, mas seus pensamentos eram
vertiginosos.
– Você se sente traído! – exclamou a voz pesada. Um par de
mãos o virou para a frente, com delicadeza e também uma
evidente demonstração de força. Um homem adulto estava
mostrando para a criança quais eram as chances que ela teria.
Leto ergueu os olhos para encarar o clarão de dois
sinalizadores flutuantes e viu a escura silhueta de um rosto
encoberto pelo capuz do trajestilador. Quando seus olhos se
adaptaram, ele divisou uma faixa escura de pele e os olhos
intensamente sombrios do vício em mélange.
– Você se pergunta por que nos demos a todo esse trabalho –
sugeriu o homem. A voz dele vinha de dentro da parte protegida
da metade inferior de seu rosto, e tinha uma curiosa qualidade
abafada como se ele estivesse tentando disfarçar um sotaque.
– Há muito tempo deixei de me espantar com o número de
pessoas que querem ver os gêmeos Atreides mortos – Leto
rebateu. – As razões delas são óbvias.
Enquanto falava, a mente de Leto se atirou contra as paredes
do conhecido como se fosse uma jaula, buscando selvagemente
por respostas. Uma armadilha com isca? Mas quem mais sabia,
além de Ghanima? Impossível! Ghanima não trairia o próprio
irmão. Então haveria alguém que o conhecia tão bem que era
capaz de prever suas ações? Quem? Sua avó? Mas como ela
poderia?
– Não poderíamos permitir que você seguisse da maneira como
estava indo – o homem argumentou. – Muito mau. Antes de subir
ao trono, você precisa ser educado. – Os olhos sem branco
nenhum olharam-no; o menino era bem mais baixo. – Você se
pergunta como alguém poderia se imaginar educando alguém
como você? Você, que tem o conhecimento de uma multidão
guardado em sua memória? Mas é justamente isso, entende? Você
acha que já está educado, mas a única coisa que você é, neste
momento, é um depósito de vidas mortas. Você ainda não tem
vida própria. Você é apenas uma réplica cambaleante de outros,
todos com um único objetivo: buscar a morte. Não é bom para um
regente ser um buscador da morte. Você apenas espalharia
cadáveres à sua volta. Seu pai, por exemplo, nunca entendeu
que...
– E você ousa falar dele desse jeito?
– Muitas foram as vezes em que ousei. Ele era somente Paul
Atreides, afinal de contas. Bem, meu menino, bem-vindo à escola.
O homem estendeu uma mão que saiu de dentro do manto e
então tocou de leve o rosto de Leto. Leto sentiu o choque de um
golpe e se sentiu rodopiando para baixo, por dentro de uma
escuridão em que um estandarte verde acenava. Era o estandarte
verde dos Atreides com seus símbolos do dia e da noite, e seu
cajado de Duna escondendo um tubo de água. Ele escutou o
rumor da água gorgolejando enquanto a inconsciência o possuía.
Ou seria a risada de alguém?
Ainda podemos nos lembrar dos anos dourados
antes de Heisenberg, que mostrou aos humanos
os muros que cercam nossos argumentos
predestinados. As vidas dentro de mim acham
isso muito divertido. Vejam, o conhecimento não
tem serventia sem um propósito, mas o propósito
é aquilo que constrói os muros que nos encerram.
– Leto Atreides II, Sua Voz

Alia se percebeu falando asperamente com os guardas que


encontrou no saguão do Templo. Eram nove, todos usando o
empoeirado uniforme verde das patrulhas suburbanas, e ainda
estavam arfando e suando depois de todo o esforço que haviam
feito. A luz do fim da tarde entrava pela porta aberta, às costas
deles. Todos os peregrinos tinham sido evacuados da área.
– Então quer dizer que as minhas ordens não significam nada
para vocês? – ela pressionou.
E Alia se espantou com a própria raiva, não tentando contê-la,
mas deixando-a correr solta. O corpo dela tremia com as tensões
acumuladas. Idaho, que tinha ido embora... e lady Jéssica...
nenhuma notícia... somente boatos de que os dois estariam em
Salusa. Por que Idaho não tinha enviado nenhuma mensagem? O
que tinha feito? Será que finalmente ficara sabendo de Javid?
Alia estava usando o amarelo do luto em Arrakina, a cor do sol
escaldante da história dos fremen. Em poucos minutos, ela
estaria conduzindo o segundo e último cortejo fúnebre até a
Velha Ravina, onde iria concluir o marco de pedra em honra do
sobrinho desaparecido. Esse trabalho seria completado à noite,
numa justa homenagem a alguém que havia sido destinado a
liderar os fremen.
A guarda dos sacerdotes pareceu petulante diante de sua
raiva, sem a menor indicação de vergonha. Estavam à frente de
Alia, suas silhuetas recortadas contra a luz do entardecer. O odor
do suor daqueles homens era facilmente perceptível através dos
leves e ineficazes trajestiladores dos habitantes das cidades. O
líder do grupo, um kaza loiro e alto, cuja burka trazia os símbolos
da família Cadelam, tirou bruscamente a máscara de seu
trajestilador para falar com mais clareza. Sua voz vinha cheia da
orgulhosa entonação que se esperaria de um descendente da
família que em outros tempos havia governado o Sietch Abbir.
– Certamente que tentamos capturá-lo!
O homem estava evidentemente indignado com a acusação
dela.
– O que ele diz é blasfêmia! Nós sabemos quais são suas ordens,
mas nós o ouvimos com os nossos próprios ouvidos!
– E não conseguiram apanhá-lo – Alia retrucou com a voz baixa,
mas acusadora.
Uma de suas guardas, uma mulher jovem e de baixa estatura,
tentou defender os soldados.
– A multidão ali era compacta! Juro que as pessoas nos
atrapalharam!
– Continuaremos a buscá-lo – insistiu o Cadelam. – Não
falharemos sempre.
Alia foi sarcástica:
– Por que não me entendem e não me obedecem?
– Milady, nós...
– E o que você fará, herdeiro de uma cadela, se capturá-lo e
acabar descobrindo que, de fato, ele é meu irmão?
Ele evidentemente não escutou a brincadeira que ela fez com
seu nome, embora não pudesse ter-se tornado um guarda do
Templo sem um determinado nível de instrução e de inteligência
para fazer uso dela. Será que queria se sacrificar pessoalmente?
O guarda engoliu em seco e então disse:
– Devemos nós mesmos matá-lo, pois ele provoca desordem.
Os outros ficaram horrorizados diante disso, mas ainda assim
petulantes. Eles sabiam o que tinham ouvido.
– Ele conclama as tribos para se unirem contra a senhora –
continuou o Cadelam.
Agora Alia percebeu como lidar com ele. E então falou, usando
um tom de voz baixo e prático:
– Entendo. Então, se você precisa se sacrificar dessa maneira,
prendendo-o abertamente para que todos vejam quem você é e o
que faz, acho que deve fazer isso mesmo.
– Sacrificar a mim... – e ele engasgou, olhando então para os
companheiros. Como o kaza do grupo, o líder nomeado, ele tinha
o direito de falar em nome deles, mas dava sinais de que queria ter
ficado calado. Os outros guardas se remexiam, desconfortáveis.
No calor da perseguição, tinham desafiado Alia. Agora, só lhes
restava refletir sobre como tinham desafiado o “Ventre Celestial”.
Com evidente constrangimento, os guardas abriram um pequeno
espaço entre eles e seu kaza.
– Pelo bem da Igreja, nossa reação oficial deverá ser severa –
Alia observou. – Você entende isso, não é?
– Mas ele...
– Eu o ouvi diretamente – ela interrompeu. – Mas este é um
caso especial.
– Ele não pode ser Muad’Dib, milady!
Quão pouco você sabe!, ela pensou. E então ela falou:
– Não podemos nos arriscar a prendê-lo ao ar livre, ferindo-o de
maneira que isso possa ser testemunhado. Se surgir outra
oportunidade, é óbvio.
– Ele sempre está rodeado por uma multidão, ultimamente!
– Então, acredito que você deve ser paciente. Claro que se
insistir em me desafiar... – e ela deixou as consequências no ar,
implícitas, mas ainda assim bem compreendidas. O Cadelam era
ambicioso e tinha uma carreira brilhante pela frente.
– Nossa intenção não era desafiá-la, milady. – O homem estava
novamente senhor de si. – Agimos impulsivamente. Posso ver
isso. Perdoe-nos, mas ele...
– Nada aconteceu; não há o que perdoar – ela contrapôs,
usando a fórmula fremen costumeira. Essa era uma das muitas
maneiras usadas por uma tribo para manter a paz em suas
fileiras, e este Cadelam ainda era tradicionalmente fremen o
suficiente para se lembrar disso. Sua família registrava uma longa
tradição de liderança. A culpa era a chibata do naib, para ser
usada com parcimônia. Os fremen serviam melhor quando não se
sentiam culpados nem ressentidos.
Ele demonstrou que entendia o julgamento dela inclinando a
cabeça à frente e dizendo:
– Pelo bem da tribo, eu entendo.
– Vão se limpar, rapazes – ela ordenou. – O cortejo terá início
em poucos minutos.
– Sim, milady... – e eles se apressaram em sair dali, com
movimentos que nitidamente traduziam seu alívio por terem se
safado.
Uma voz de baixo ribombava dentro da cabeça de Alia.
– Ah, você lidou com a questão com muita habilidade. Um ou
dois deles ainda acham que você queria O Pregador morto. Eles
darão um jeito nisso.
– Cale a boca! – ela silvou. – Cale a boca! Eu nunca deveria ter
dado ouvidos a você! Olhe só o que você fez...
– Coloquei você no caminho da imortalidade – murmurou a voz
grave.
Ela sentiu um pensamento ecoando em seu cérebro como uma
dor distante: Onde posso me esconder? Não há nenhum lugar
aonde eu possa ir!
– A faca de Ghanima é afiada – o barão apontou. – Lembre-se
disso.
Alia piscou. Sim, isso era algo a ser lembrado. A faca de
Ghanima era afiada. Essa faca ainda poderia livrá-los desse atual
apuro.
Se você acredita em determinadas palavras,
acredita nos argumentos ocultos que carregam.
Quando você acredita que alguma coisa é certa ou
errada, verdadeira ou falsa, você acredita nos
pressupostos por trás das palavras que
expressam tais argumentos. Esses pressupostos
geralmente são cheios de buracos, mas
continuam muito preciosos para os que estão
convencidos de sua veracidade.
– A Prova em Aberto, extraída da Panóplia Propheticus

A mente de Leto boiava num caldo de odores pungentes. Ele


conseguia identificar o aroma pesado de canela do mélange, o
suor confinado de corpos que trabalhavam, o acre odor
inconfundível de uma destilaria fúnebre destampada, muitos
tipos de poeira em que predominava a pederneira. Esses cheiros
compunham um rastro que atravessava a areia onírica, criavam
formas de névoa numa terra de mortos. Ele sabia que esses
aromas todos deviam estar lhe dizendo alguma coisa, mas uma
parte dele ainda não conseguia ouvir.
Pensamentos que pareciam espectros flutuavam através de
sua mente: Neste tempo, não tenho traços acabados; sou todos os
meus ancestrais. O sol que se põe na areia é o sol que se põe em
minha alma. Antigamente, essa multidão dentro de mim foi
grande, mas agora isso acabou. Sou fremen e terei um fim fremen.
O Caminho Dourado acabou antes mesmo de ter começado. Não é
mais do que uma trilha soprada pelo vento. Nós, fremen,
conhecemos todos os truques para nos disfarçar: não deixamos
fezes, ou água ou marcas... Agora, observe minha trilha se
desfazer.
Uma voz masculina falou, perto de seu ouvido:
– Eu poderia matá-lo, Atreides. Eu poderia matá-lo, Atreides. –
Isso ficou se repetindo tanto que acabou perdendo o sentido, e se
tornou um som sem palavras que escoava no meio do sonho de
Leto, como uma espécie de litania: – Eu poderia matá-lo, Atreides.
Leto pigarreou para limpar a garganta e sentiu a realidade
desse simples ato dar uma chacoalhada em seus sentidos. Sua
garganta seca conseguiu produzir:
– Quem...
A voz ao lado dele o interrompeu:
– Sou um fremen instruído e matei meu homem. Você levou
seus deuses, Atreides. Que importância tem para nós esse seu
fétido Muad’Dib? O seu deus está morto!
Seria essa voz de um ouraba de verdade, ou outra parte de seu
sonho? Leto abriu os olhos e se percebeu desamarrado, sobre um
sofá duro. Olhando para o alto, viu um teto de rocha, luciglobos
emitindo uma claridade tênue e um rosto, sem máscara, olhando
para ele tão de perto que ele conseguia sentir o cheiro do hálito
em que era perceptível o conhecido odor da dieta de um sietch.
Aquele era um rosto fremen; não havia como confundir a pele
morena, os traços angulares e a carne desidratada. Aquele não
era um gordo habitante de cidades. Era um fremen do deserto.
– Sou Namri, pai de Javid – o fremen explicou. – Você me
reconhece agora, Atreides?
– Conheço Javid – Leto respondeu em voz áspera e ressecada.
– Sim, a sua família conhece bem o meu filho. Tenho orgulho
dele. Vocês, Atreides, ainda irão conhecê-lo melhor em breve.
– O que...
– Sou um de seus professores, Atreides. Tenho uma única
função: sou aquele que poderia matar você. Eu o faria com
satisfação. Nesta escola, chegar à formatura é viver; fracassar é
ser entregue às minhas mãos.
Leto constatou o timbre de uma implacável sinceridade na voz
de Namri. Forte calafrio. Ele era um gom jabbar humano, um
inimigo despótico que testaria seu direito de entrar na esplanada
dos humanos. Leto sentiu ali a mão de sua avó e, por trás, a massa
informe de todas as Bene Gesserit. Ao pensar isso, contorceu-se
de agonia.
– Sua educação começa comigo – continuou Namri. – Isso é
justo. É adequado. Porque pode acabar comigo. Agora, ouça-me
com cuidado. Cada palavra minha leva consigo a sua vida. Tudo
em mim contém sua morte.
Leto lançou um olhar pela sala: paredes de pedra, nuas.
Somente esse divã, os luciglobos de luz esmaecida e um túnel
escuro atrás de Namri.
– Você não passará por mim – Namri afirmou e Leto acreditou
nele.
– Por que você está fazendo isso? – Leto indagou.
– Isso já foi explicado. Pense nos planos que estão em sua
cabeça! Você está aqui e não consegue construir um futuro com
base em sua situação presente. Esses dois não andam juntos:
agora e o futuro. Mas, se você realmente conhece seu passado, se
olhar para trás e vir onde já esteve, talvez haja uma razão, mais
uma vez. Se não houver, haverá a sua morte.
Leto reparou que o tom de Namri não era maldoso, mas firme, e
não havia como negar que representava a sua morte.
Namri se colocou novamente em pé e olhou para o teto
rochoso.
– Antigamente, os fremen miravam o leste, ao amanhecer. Eos,
entende? Essa é a palavra para a aurora, em uma das línguas
antigas.
Com amargo orgulho na voz, Leto retrucou:
– Eu falo essa língua.
– Então você não me escutou – Namri redarguiu, e havia um
timbre cortante em sua voz. – A noite era o momento do caos. O
dia era o da ordem. Era assim que acontecia no tempo dessa
língua que você diz que fala: escuro-desordem, claro-ordem. Nós,
fremen, mudamos isso. Eos era a luz de que desconfiávamos.
Preferíamos a luz da lua, das estrelas. A claridade era ordem
demais e isso pode ser fatal. Entende o que vocês, Eos-Atreides,
fizeram? O homem é uma criatura somente daquela luz que o
protege. O sol era nosso inimigo em Duna. – Namri tornou a
baixar os olhos para mirar o rosto de Leto. – Qual luz você prefere,
Atreides?
Dada a postura empertigada de Namri, Leto intuiu que aquela
era uma pergunta de peso decisivo. Será que aquele homem vai me
matar se eu não der a resposta certa? Pode ser. Leto viu a mão de
Namri pousada calmamente perto do cabo lustroso de uma
dagacris. Um anel, no formato de uma tartaruga mágica, faiscava
na mão que aquele fremen usava para manejar a faca.
Leto se endireitou até ficar apoiado nos cotovelos e, com sua
mente, sondou o repertório das crenças fremen. Os fremen
antigos confiavam na Lei e adoravam receber suas lições expostas
no formato de analogias. A luz da lua?
– Eu prefiro... a luz de Lisanu L’haqq – Leto respondeu,
observando atentamente Namri para captar algum sutil indício
revelador. O homem pareceu desapontado, mas sua mão se
afastou da faca. – É a luz da verdade, a luz do homem perfeito, em
que pode ser claramente vista a influência de al-Mutakallim –
Leto prosseguiu. – Que outra luz um humano poderia preferir?
– Você fala como alguém que repete, não como alguém que
acredita – acusou Namri.
E Leto pensou: Eu realmente repeti. Mas ele começou a sentir a
oscilação dos pensamentos de Namri, a perceber a maneira como
as palavras dele eram filtradas pelos primeiros exercícios de
treinamento naquele antigo jogo de adivinhações. O treinamento
fremen incluía milhares desses enigmas, e Leto precisava apenas
dirigir sua atenção para esse costume para encontrar uma
torrente de exemplos inundando sua cabeça. Desafio: silêncio?
Resposta: o amigo do caçado.
Namri, com um movimento de cabeça como se concordasse
com essa ideia, retomou:
– Há uma caverna que é a caverna da vida pra os fremen. É uma
caverna de verdade, que o deserto escondeu. Shai-hulud, o bisavô
de todos os fremen, lacrou essa caverna. Meu tio, Ziamad, me
falou dela e ele nunca mentiu para mim. Essa caverna existe.
Leto ouviu o silêncio desafiador quando Namri parou de falar.
Caverna da vida?
– Meu tio, Stilgar, me falou dessa caverna – Leto disse. – Foi
lacrada para que os covardes não pudessem entrar ali.
Um reflexo de luciglobo cintilou nos olhos sombrios de Namri.
Ele perguntou:
– Você, Atreides, abriria essa caverna? Você tenta controlar a
vida por meio de um ministério: seu Ministério Central da
Informação, Auqaf e Hajj. O maulana responsável se chama
Kausar. Ele percorreu um longo caminho, desde os primórdios de
sua família nas minas de sal de Niazi. Diga-me, Atreides, o que há
de errado com seu Ministério?
Leto se sentou, perfeitamente ciente agora de que estava até o
pescoço envolvido no jogo de adivinhações com Namri e que
qualquer fracasso seria sua morte. Aquele homem dava todos os
sinais de que usaria sua dagacris à primeira resposta errada do
menino.
Reconhecendo que Leto estava ciente do que acontecia, Namri
confirmou:
– Creia em mim, Atreides. Eu sou aquele que esmaga, eu sou o
Martelo de Ferro.
Agora, Leto entendia. Namri se considerava o mirzabah, o
Martelo de Ferro com que são espancados os mortos que não
conseguem dar respostas satisfatórias às perguntas que devem
responder antes de entrar no paraíso.
O que havia de errado no Ministério Central que Alia e seus
sacerdotes criaram?
Leto pensou por que ele tinha ido para o deserto, e uma
pequena esperança brilhou novamente em seu íntimo de que o
Caminho Dourado talvez ainda pudesse reaparecer em seu
universo. O que estava implícito na pergunta de Namri era tão
somente o motivo que havia levado o filho do próprio Muad’Dib a
se embrenhar no deserto.
– Cabe a Deus indicar o caminho – Leto murmurou.
O queixo de Namri tremeu e caiu e ele olhou acintosamente
para Leto:
– Será verdade mesmo que você acredita nisso? – ele
perguntou.
– É por isso que estou aqui – Leto respondeu.
– Para encontrar o caminho?
– Para encontrá-lo por mim mesmo. – E Leto passou os pés pela
beirada do divã e sentiu o chão de pedra, frio, sem tapete. – Os
sacerdotes criaram um Ministério para esconder o caminho.
– Você fala como um rebelde de verdade – Namri disse, e
esfregou o anel de tartaruga no dedo. – Veremos. Mais uma vez,
ouça com cuidado. Você conhece a Muralha-Escudo em Jalalud-
Din? Essa Muralha guarda as marcas da minha família entalhadas
nela desde os primeiros tempos. Javid, meu filho, viu essas
marcas. Abedi Jalal, meu sobrinho, viu as marcas. Mujahid
Shafqat, dos Outros, também viu as nossas marcas. Na época das
tempestades perto de Sukkar, fui com meu amigo Yakup Abad até
perto daquele local. Os ventos eram torridamente quentes, como
os rodamoinhos que nos ensinaram as nossas danças. Não
perdemos tempo vendo as marcas porque uma tempestade
fechou o caminho. Mas quando a tempestade passou, tivemos a
visão de Thatta na areia soprada. A face de Shakir Ali esteve ali
por um momento, contemplando do alto sua cidade de
sepulturas. A imagem se desfez num segundo, mas todos
pudemos vê-la. Diga-me, Atreides, onde posso encontrar essa
cidade de sepulturas?
Os rodamoinhos que nos ensinaram nossas danças, Leto
refletiu. A visão de Thatta e de Shakir Ali. Essas eram palavras
usadas pelos peregrinos zen-sunitas, aqueles que se
consideravam os únicos verdadeiros homens do deserto.
E os fremen são proibidos de ter sepulturas.
– A cidade das sepulturas fica no fim do caminho que todos os
homens percorrem – Leto recitou. E ele então arrastou como
numa rede as declarações sagradas dos zen-sunitas: – Está num
jardim com 1.000 passos quadrados de tamanho. Há um belo
corredor de entrada com 230 passos de comprimento e 100
passos de largura, todo forrado de mármore vindo da antiga
Jaipur. Ali habita Ar-Razzaq, aquele que fornece alimento a todos
que pedem. E, no Dia do Julgamento, todos que se erguerem e
buscarem a cidade das sepulturas não a encontrarão. Pois está
escrito: “Aquilo que você conhece em um mundo, não encontrará
no outro”.
– Mais uma vez você repete, sem acreditar – Namri debochou. –
Mas por ora vou aceitar suas palavras porque acho que sei que
você sabe por que está aqui. – Um sorriso frio movimentou-lhe os
lábios. – Concedo-lhe um futuro provisório, Atreides.
Leto estudou a fisionomia do homem, desconfiado. Seria essa
outra pergunta disfarçada?
– Bom! – Namri comentou. – Sua percepção consciente foi
preparada. Plantei os ganchos onde devia. Só mais uma coisa.
Você ouviu dizer que usam trajestiladores de imitação nas
cidades do distante Kadrish?
Enquanto Namri aguardava, Leto vasculhou a mente em busca
de algum significado oculto: trajestiladores de imitação? Eles eram
usados em muitos planetas. Leto disse:
– Os afetados costumes de Kadrish são uma velha história,
muitas vezes repetida. Os animais espertos se fundem com o
ambiente.
Namri aquiesceu devagar. Então informou:
– Aquele que o prendeu na armadilha e o trouxe até aqui virá
vê-lo agora. Não tente sair daqui. Será a sua morte. – Pondo-se em
pé enquanto falava, em seguida Namri entrou no túnel escuro.
Muito tempo depois de ele ter saído, Leto olhou na direção do
túnel. Podia ouvir sons que vinham lá de dentro; eram as vozes
baixas dos guardas daquele turno. A narrativa de Namri sobre a
miragem-visão ficou pairando na mente de Leto. Ela suscitava a
longa travessia do deserto até aquele lugar. Não importava mais
se ali era ou não Jacurutu/Fondak. Namri não era um
contrabandista. Ele era algo muito mais potente. E o jogo que ele
fazia tinha a mão de lady Jéssica por trás: fedia a Bene Gesserit.
Leto sentiu um perigo que se avizinhava ao compreender isso.
Mas aquele corredor escuro por onde Namri tinha saído era a
única saída desse aposento. Ali adiante, estava um sietch
desconhecido e, além dele, o deserto. A áspera severidade do
deserto, seu caos ordenado com miragens e dunas intermináveis,
tomou Leto por inteiro, configurada como a armadilha que o havia
capturado. Ele poderia tornar a cruzar as areias, mas aonde essa
fuga o levaria? Essa ideia era como água estagnada. Não mataria
sua sede.
Por causa da percepção consciente do tempo
unidirecional em que a mente convencional
continua imersa, os humanos são propensos a
pensar em tudo conforme um contexto sequencial
e orientado pelas palavras. Essa armadilha
mental produz conceitos muito imediatistas de
eficácia e consequências, ou seja, uma condição de
resposta constante e não planejada a crises.
– Liet-Kynes, Caderno de Exercícios de Arrakis

Palavras e movimentos simultâneos, Jéssica se lembrou, e


comandou seus pensamentos para que se voltassem aos
necessários preparativos mentais para o encontro iminente.
Ocorreria logo após o desjejum, quando o sol dourado de
Salusa Secundus estaria começando a tocar a parede mais
distante do jardim murado que lhe era visível através de sua
janela. Ela havia se vestido com cuidado: o manto preto, de capuz,
das Reverendas Madres, mas contendo o timbre dos Atreides em
ouro bordado em formato de anel em torno da bainha e na
beirada de ambas as mangas. Jéssica ajeitou as dobras de seu
traje com esmero, ao dar as costas à janela, mantendo o braço
esquerdo sobre a cintura, à frente do corpo, para exibir o
emblema do gavião no timbre.
Farad’n reparou nos símbolos Atreides e comentou a esse
respeito assim que entrou, mas não demonstrou nem raiva, nem
surpresa. Ela detectou um sutil bom humor na voz dele e se
surpreendeu com isso. Jéssica notou que ele havia escolhido o
traje cinzento e justo que ela havia recomendado. Ele se instalou
no divã verde e baixo que ela havia indicado, relaxando com o
braço direito no encosto do móvel.
Por que confio nela?, ele se perguntou. Esta é uma bruxa Bene
Gesserit!
Lendo o pensamento que cruzava a mente dele no contraste
entre o corpo relaxado e sua expressão facial, Jéssica sorriu e
explicou:
– Você confia em mim porque sabe que nosso trato é bom e
você quer aquilo que eu posso lhe ensinar.
Ela viu um leve indício de uma cara feia raspando pela testa
dele, e acenou sua mão esquerda para acalmá-lo:
– Não, eu não leio a mente de ninguém. Leio o rosto, o corpo, os
maneirismos, o tom de voz, a posição dos braços. Qualquer um
pode fazer isso assim que aprende a Doutrina Bene Gesserit.
– E você vai ensiná-la a mim?
– Estou certa de que você leu os relatórios a nosso respeito –
ela comentou. – Existe, em algum deles, uma ocorrência sequer
sobre não cumprirmos uma promessa explícita?
– Não, nenhuma, mas...
– Em parte, devemos nossa sobrevivência à total confiança que
as pessoas depositam em nossa veracidade. Isso não mudou.
– Parece-me razoável – ele murmurou. – Estou ansioso para
começar.
– Estou surpresa que você nunca tenha pedido por uma
instrutora Bene Gesserit – ela afirmou. – Elas teriam agarrado
com unhas e dentes a oportunidade de incluí-lo em sua lista de
credores.
– Minha mãe nunca me deu ouvidos quando eu insisti com ela
que fizesse isso – ele confessou. – Mas agora... – ele deu de
ombros, fazendo assim um eloquente comentário sobre Wensicia
ter sido banida. – Vamos começar?
– Teria sido melhor ter começado o treinamento quando você
era bem menor – Jéssica comentou. – Agora, será mais difícil para
você e levará muito mais tempo. Você terá de começar
aprendendo a paciência, uma extrema paciência. Espero que não
ache esse preço alto demais.
– Não, tendo em vista a recompensa que você oferece.
Ela detectou o timbre da sinceridade, a pressão de
expectativas e um toque de assombro na voz dele. Esses
sentimentos compunham um bom ponto de partida. Ela
prosseguiu:
– Sendo assim, vamos à arte da paciência. Começaremos com
alguns exercícios elementares de prana-bindu para braços e
pernas e para sua respiração. Deixaremos as mãos e os dedos
para uma segunda etapa. Está pronto?
Ela se sentou numa banqueta diante dele.
Farad’n aquiesceu, mantendo uma expressão de expectativa no
rosto para mascarar uma súbita sensação de medo. Tyekanik o
advertira quanto a um possível truque escondido na oferta de
lady Jéssica, algo que a Irmandade teria arquitetado.
– Você não deve acreditar que ela tenha abandonado as Irmãs
de novo, e nem que elas a tenham abandonado. – Farad’n tinha
interrompido a discussão com uma explosão de raiva, pela qual se
desculpara imediatamente. A reação emocional dele o fizera
concordar mais rapidamente com as precauções de Tyekanik.
Farad’n olhou para os cantos do aposento, para o brilho sutil de
jems na abóbada. Tudo que cintilava não eram jems: tudo naquela
sala estava sendo gravado e boas mentes iriam rever cada nuance,
cada palavra, cada movimento.
Jéssica sorriu, notando a direção do olhar dele, mas não
revelou que sabia para onde a atenção dele tinha sido desviada.
Ela continuou, então:
– Para aprender a ter paciência pela Doutrina Bene Gesserit,
você deve começar reconhecendo o essencial, que é a
instabilidade essencial do nosso universo. Chamamos a natureza,
representando essa totalidade em todas as suas manifestações,
de Não Absoluto Final. Para libertar sua visão e permitir-lhe
reconhecer a essência mutável da natureza condicional, você vai
manter as duas mãos à sua frente, com os braços estendidos.
Focalize os olhos em suas mãos estendidas, primeiro as palmas e
depois o dorso das mãos. Examine seus dedos, na frente e atrás.
Faça isso.
Farad’n obedeceu, mas se sentiu um bobo. Essas eram suas
mãos. Ele as conhecia.
– Imagine suas mãos envelhecendo – Jéssica prosseguiu. – Elas
devem ficar muito velhas aos seus olhos. Muito, muito velhas.
Observe como está seca a pele...
– Minhas mãos não mudam – ele a interrompeu. Ele já podia
sentir os músculos do braço tremendo.
– Continue olhando fixamente para suas mãos. Faça com que
fiquem velhas, o mais velhas que conseguir imaginar. Isso pode
levar algum tempo. Mas, quando vir que envelheceram, inverta o
processo. Torne suas mãos jovens de novo, tão jovens quanto lhe
for possível. Trabalhe até conseguir levá-las da primeira infância
até a idade mais avançada, apenas com sua força de vontade, e
depois ao contrário, várias vezes.
– Elas não mudam! – ele protestou. Seus ombros ardiam.
– Se você exigir essa imagem de seus sentidos, suas mãos
mudarão – ela insistiu. – Concentre-se em visualizar o fluxo do
tempo que você deseja: da infância à velhice, da velhice à infância.
Isso pode levar horas, dias, meses. Mas pode ser feito. Inverter o
fluxo das mudanças irá ensiná-lo a ver todo e qualquer sistema
como algo que gira segundo uma estabilidade relativa... apenas
relativa.
– Achei que iria aprender paciência. – Ela ouviu um tom de raiva
na voz dele, uma pitada de frustração.
– E estabilidade relativa – ela explicou. – Essa é a perspectiva
que você cria com suas próprias crenças e as crenças podem ser
manipuladas pela imaginação. Você só aprendeu uma maneira
limitada de olhar para o universo. Agora, você deve tornar o
universo a sua própria criação. Isso lhe permitirá controlar e
conduzir toda estabilidade relativa para fins que sejam de seu
interesse, para quaisquer usos que você seja capaz de imaginar.
– Quanto tempo você disse que podia demorar?
– Paciência – ela o recordou.
Um sorriso espontâneo brotou nos lábios de Farad’n. Os olhos
dele se desviaram instantaneamente para ela.
– Olhe para suas mãos! – ela exclamou, cortante.
O sorriso morreu. O olhar dele voltou bruscamente para aquela
concentração hipnótica em suas mãos estendidas para a frente.
– E o que eu faço quando meus braços ficarem cansados? – ele
perguntou.
– Pare de falar e se concentre – ela repreendeu. – Se ficar
cansado demais, pare. Retome o exercício após alguns minutos de
relaxamento e pratique. Você deve insistir até conseguir. No
estágio em que você se encontra, isso é mais importante do que
lhe é possível perceber. Aprenda esta lição para que as outras
possam se seguir.
Farad’n inspirou fundo, mordeu a boca, olhou fixamente para
as mãos. Virava-as devagar: palmas, dorso; dorso, palmas... Seus
ombros tremiam com a fadiga. Dorso, palmas... Nada mudava.
Jéssica se levantou e atravessou a única porta.
Ele falou sem desviar a atenção das mãos:
– Aonde você está indo?
– Você irá trabalhar melhor se ficar sozinho. Voltarei daqui a
uma hora. Paciência.
– Eu sei!
Ela o olhou detidamente por um momento. Como parecia
determinado. Ele a lembrava de seu próprio filho perdido, o que
lhe deu um severo e abrupto aperto no coração. Jéssica se
permitiu um suspiro. Então disse:
– Quando eu voltar lhe darei alguns exercícios para aliviar os
músculos. Dê tempo ao tempo. Você ficará espantado com o que
pode fazer seu corpo e seus órgãos dos sentidos realizar.
Então, ela saiu da sala.
Os guardas onipresentes saíram atrás dela, mantendo uma
distância constante de três passos, enquanto ela percorria o
saguão. O assombro e o medo deles eram óbvios. Eles eram
Sardaukar, triplamente alertados para as proezas de que ela era
capaz, soldados que tinham crescido ouvindo histórias de como
tinham sido derrotados pelos fremen de Arrakis. Essa bruxa era
uma Reverenda Madre fremen, uma Bene Gesserit e uma
Atreides.
Olhando para trás, Jéssica viu a expressão rígida dos guardas
como marcos na evolução de seu projeto. Quando chegou às
escadas, ela enveredou para os degraus e, depois de descer,
entrou por um corredor curto que dava no jardim situado debaixo
de sua janela.
Agora, basta que Duncan e Gurney façam cada qual a sua parte,
ela pensou enquanto sentia o cascalho do caminho sob seus pés e
aproveitava a luz dourada coada pelas plantas daquele lugar.
Vocês aprenderão os métodos de comunicação
integrados conforme completarem o próximo
passo em sua educação mental. Esta é uma função
gestáltica que imprimirá cumulativamente em
sua percepção consciente trajetos de dados,
complexos de resolução e massas de informações,
oriundos todos do catálogo indexado de técnicas
Mentat que vocês já dominaram. Seu problema
inicial será neutralizar as tensões advindas da
assembleia divergente de minúcias/dados sobre
assuntos especializados. Fiquem atentos. Sem a
integração Mentat das camadas sobrepostas,
vocês podem se ver imersos no Problema de
Babel, que é o rótulo que damos ao onipresente
perigo de obter combinações erradas a partir de
informações exatas.
– Manual dos Mentat

O som de tecidos roçando uns nos outros disparou faíscas de


atenção na mente de Leto. Ele ficou surpreso de ter transformado
sua sensibilidade a ponto de ser capaz de identificar
automaticamente os tecidos a partir do som que produziam.
Aquela combinação vinha de um manto fremen esfregado contra
os grosseiros tecidos pendentes de uma cortina para a porta. Ele
se virou na direção do som. Estava vindo do túnel por onde Namri
tinha saído alguns minutos antes. Quando Leto se voltou, ele viu
seu captor entrar. Era o mesmo homem que o havia feito
prisioneiro: a mesma faixa escura de pele acima da máscara do
trajestilador, os mesmos olhos penetrantes. O homem levantou a
mão até a máscara, deslizou o tubo coletor que estava ajustado a
suas narinas, abaixou a máscara e, no mesmo movimento, atirou
para trás o capuz. Antes mesmo de ter identificado a cicatriz do
chicote de cipó-tinta ao longo do queixo daquele homem, Leto o
havia reconhecido. O reconhecimento foi uma totalidade
imagética em sua consciência e a busca por detalhes de
confirmação só ocorreu depois. Não havia como se enganar a esse
respeito, aquela figura bexiguenta e roliça, aquele guerreiro-
trovador, era sem dúvida Gurney Halleck!
Leto fechou as mãos em punho, momentaneamente tomado
pelo choque do reconhecimento. Nenhum fiel seguidor dos
Atreides tinha sido mais leal do que ele. Ninguém o excedia nos
combates com escudo. Ele fora o leal confidente e instrutor de
Paul.
E era o serviçal de lady Jéssica.
Essas constatações, entre outras, irromperam na mente de
Leto. Gurney o havia capturado. Gurney e Namri estavam juntos
nessa conspiração. E a mão de Jéssica estava nisso, junto com as
deles.
– Parece que você conheceu o nosso Namri – começou Halleck.
– Peço que acredite nele, jovem senhor. Ele tem uma única função:
é capaz de matá-lo, se houver necessidade.
Leto respondeu automaticamente, usando um tom de voz
como o de seu pai:
– Então, você se uniu aos meus inimigos, Gurney! Nunca
pensei...
– Nem tente nenhum de seus truques maldosos comigo, rapaz –
Halleck advertiu. – Sou uma prova contra todos eles. Sigo as
ordens de sua avó. Sua educação foi planejada até os mais
mínimos detalhes. Foi ela quem aprovou a minha escolha de
Namri. O que vai acontecer em seguida, por mais doloroso que
possa ser, é por ordem dela.
– E o que ela ordena?
Halleck ergueu uma mão que estivera dentro das dobras de seu
manto e mostrou um injetor fremen, primitivo mas eficiente. Seu
tubo transparente estava carregado com um líquido azul.
Leto se contorceu para se afastar e recuar em sua maca, mas
foi detido pela parede de pedra. Quando ele se movimentou,
Namri entrou e ficou ao lado de Halleck com a mão sobre sua
dagacris. Juntos, os dois bloqueavam a única saída.
– Vejo que reconhece a essência de especiaria – Halleck
afirmou. – Você vai fazer a viagem do verme, meu jovem. Você
deve fazê-la. Caso contrário, o que seu pai ousou, e você não,
permanecerá pairando sobre você pelo resto de seus dias.
Emudecido, Leto sacudiu a cabeça. Era isso que tanto ele como
Ghanima sabiam que poderia dominá-los. Gurney era um idiota
ignorante! Como é que Jéssica pôde... Leto sentiu a presença-pai
em suas lembranças. Ela irrompeu em sua mente, tentando
dissolver suas defesas. Leto queria berrar “infâmia” e não
conseguiu abrir a boca. Mas essa era a coisa sem palavras que sua
consciência de pré-nascido mais temia. Esse era o transe da
presciência, a leitura do futuro imutável com toda a sua fixidez e
seus terrores. Seguramente, Jéssica não poderia ter ordenado
uma provação de tal magnitude para seu próprio neto. Mas a
presença dela era uma sombra agourenta em sua mente a enchê-
lo de argumentos de aceitação. Até mesmo a litania contra o
medo lhe estava vindo com a monotonia de sua repetição: “Não
terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que
leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que
passe por cima e através de mim. E, quando tiver passado...”.
Com uma imprecação que já era antiga quando a Caldeia era
jovem, Leto tentou se mexer, tentou saltar na direção dos dois
homens posicionados em pé à sua frente, mas seus músculos se
recusaram a obedecer. Como se ele já estivesse existindo em meio
ao transe, Leto viu a mão de Halleck se mover e o injetor se
aproximar. A luz de um luciglobo se refletiu dentro do fluido azul.
O injetor encostou no braço esquerdo de Leto. A dor o aguilhoou e
subiu para os músculos de sua cabeça.
Abruptamente, Leto viu uma moça sentada do lado de fora de
uma cabana precária, à luz do amanhecer. Ela estava sentada bem
à frente dele, torrando grãos de café até que atingiam um tom
castanho-rosado, e então acrescentava cardamomo e mélange. A
voz de uma rabeca ecoava em algum lugar atrás dele. A música
ecoava repetidamente até entrar em sua cabeça, e continuava
ecoando. Ela lhe inundou o corpo e ele se sentiu grande, muito
grande, e de jeito nenhum uma criança. E a pele dele não era mais
sua pele. Ele conhecia aquela sensação! Sua pele não era a sua
pele! Um calor se difundiu por seu corpo. Tão abruptamente
quanto a primeira visão, ele se viu em pé na escuridão. Estava de
noite. Estrelas como uma chuva de cinzas fumegantes caíam em
jorros através do cosmos luminoso.
Uma parte dele sabia que não havia meio de escapar, mas
mesmo assim ele tentou combater aquilo até que a presença-pai
se intrometeu: “Vou protegê-lo durante o transe. Os outros, aí
dentro, não se apossarão de você”.
O vento derrubou Leto, ele tropeçou e rolou, sob o silvo da
areia e do pó que eram despejados sobre ele, retalhando seus
braços e seu rosto, abrasando suas roupas, fustigando as pontas
soltas e mastigadas de um tecido agora inútil. Mas ele não sentia
dor e via os cortes sarando tão rapidamente quanto tinham sido
feitos. Ainda assim, ele continua rodopiando com a força do
vento. E a pele não era sua.
Vai acontecer!, ele pensou.
Mas esse era um pensamento distante, que lhe veio como se
não fosse seu, não fosse realmente seu. Não mais do que a sua
pele.
Essa visão o absorveu. Então se tornou uma lembrança
estereológica que separava o passado do presente, o futuro do
presente, o futuro do passado. Cada separação se mesclava num
foco triocular que ele sentia como o mapa multidimensional em
relevo de sua própria existência futura.
Ele pensou: Tempo é uma medida do espaço, assim como um
distanciômetro é uma medida de espaço, mas medir nos prende ao
local da medida.
Ele sentia o transe se aprofundando. Ele vinha como uma
amplificação da consciência interna que sua identidade-eu
absorvia e por meio da qual ele se sentia mudando. Era estar
vivendo o Tempo e Leto não podia deter um instante dele que
fosse. Fragmentos de lembranças, passadas e futuras, o
engolfavam. Mas eles ocorriam como uma montagem em
movimento. A relação entre eles estava sujeita a uma dança
constante. A memória dele era como uma lente, um holofote que
iluminava uma busca, captando os fragmentos, isolando-os, mas
sempre incapaz de interromper o movimento e a modificação
incessantes que surgiam em sua visão interior.
Aquilo que ele e Ghanima tinham planejado apareceu em tela
pela claridade do holofote, dominando tudo o mais, mas agora o
deixava aterrorizado. A visão realmente doía dentro dele. A
inevitabilidade isenta de crítica fazia seu ego se encolher de
medo.
E sua pele não era sua pele! O passado e o presente se
atropelavam em cambalhotas em seu íntimo, investindo contra as
barreiras do seu terror. Ele não conseguia separá-los. Num
momento ele se sentia partindo junto com o Jihad Butleriano,
ávido por destruir qualquer máquina que simulasse a percepção
humana. Isso tinha de estar no passado – findo e acabado. Não
obstante, seus sentidos percorriam a experiência de fio a pavio,
absorvendo até os mínimos detalhes. Ele ouvia um companheiro-
ministro falando do alto de um púlpito: “Devemos negar as
máquinas-que-pensam. Os humanos devem estipular as suas
próprias diretrizes. Isso não é algo que as máquinas possam fazer.
O raciocínio depende de programação, não de hardware, e nós
somos o programa por excelência!”.
Ele ouviu claramente essa voz, reconhecendo o lugar: um
amplo salão revestido de madeira, com janelas escuras. A luz
vinha de chamas bruxuleantes. E o companheiro-ministro dizia:
“Nosso jihad é um ‘programa de descarte’. Descartamos aquelas
coisas que nos destroem como seres humanos!”.
E estava na mente de Leto que o orador tinha sido um servo
dos computadores, um sujeito que os conhecia e os havia
consertado. Mas essa cena desapareceu e Ghanima se apresentou
à frente do irmão, dizendo: “Gurney sabe. Ele me disse. São as
palavras de Duncan e Duncan estava falando como Mentat: ‘Ao
fazer o bem evite a notoriedade; ao fazer o mal, evite a
autopercepção’”.
Isso tinha de estar no futuro – num futuro distante. Mas ele
sentia a realidade. Era tão intensa quanto qualquer um dos
passados de sua multidão de vidas. E ele sussurrou:
– Não é verdade, pai?
Mas a presença-pai dentro dele falou em tom de advertência:
– Não provoque desastres! Você está aprendendo a percepção
estroboscópica, agora. Sem ela, você poderia ultrapassar a si
mesmo e perder seu marco-lugar no tempo.
E a imagem em baixo-relevo persistia. Invasores martelavam
dentro dele. Passado-presente-agora. Não havia uma verdadeira
separação. Ele sabia que tinha de fluir junto com essa coisa, mas
esse fluxo o aterrorizava. Como seria possível retornar a algum
lugar reconhecível? Ainda assim, ele sentia que estava sendo
forçado a cessar toda tentativa de resistência. Ele não podia
captar seu novo universo em pedacinhos imóveis e etiquetados.
Nenhum pedacinho ficava quieto. As coisas não podiam ser
ordenadas e formuladas para sempre. Ele tinha de descobrir o
ritmo da mudança e enxergar entre as mudanças até encontrar o
próprio ato de mudar. Sem saber onde tinha começado, ele se
percebeu em movimento dentro de um gigantesco momento
bienheureux, capaz de ver o passado no futuro, o presente no
passado, o agora tanto no passado como no futuro. Era a
somatória de séculos, vivenciados entre um batimento do coração
e o seguinte.
A percepção de Leto flutuou sem impedimento, sem uma
psique objetiva que compensasse a consciência, sem barreiras. O
“futuro provisório” de Namri continuava levemente ativo em sua
memória, mas compartilhava sua percepção com muitos outros
futuros. E, nessa estilhaçante percepção, todo o seu passado,
cada uma de suas vidas interiores, tornou-se sua vida. Com a
ajuda do maior em seu íntimo, ele as dominou. Elas eram dele.
E Leto pensou: Quando você estuda um objeto a certa distância,
somente seu princípio pode ser visto. Ele tinha conseguido impor a
distância e agora era capaz de enxergar sua própria vida: o
multipassado e as lembranças dele eram seu fardo, sua alegria e
sua necessidade. Mas a viagem do verme tinha acrescentado mais
uma dimensão, e seu pai não estava mais montando guarda em
seu interior porque não havia mais essa necessidade. Leto
enxergava claramente através das distâncias: o passado e o
presente. E o passado lhe apresentava o primeiro dos ancestrais,
aquele que fora chamado Harum e sem o qual o futuro distante
não poderia existir. Essas nítidas distâncias propiciavam novos
princípios, novas dimensões de compartilhamento. Qualquer que
fosse a vida que ele escolhesse agora, ele a viveria numa esfera
autônoma da experiência de massa, uma fileira de existências tão
emaranhada que nenhuma vida isoladamente poderia enumerar
todas as suas gerações. Instigada, essa experiência de massa
tinha o poder de subjugar sua individualidade. Ela podia se tornar
presente a um indivíduo, a uma nação, a uma sociedade, a uma
civilização inteira. Naturalmente, era por isso que Gurney tinha
sido ensinado a temê-lo e o motivo pelo qual a faca de Namri
estava à espera. Eles não podiam ter autorização para perceber
esse poder dentro dele. Ninguém jamais poderia vê-lo em sua
plenitude... nem mesmo Ghanima.
Nesse momento, então, Leto se sentou e viu que somente
Namri continuava ali, observando-o.
Com uma voz idosa, Leto afirmou:
– Não existe um único conjunto de limites para todos os
homens. A presciência universal é um mito vazio. Somente as
mais poderosas correntes locais do Tempo podem ser previstas.
Mas em um universo infinito, local pode ser algo tão gigantesco
que sua mente se encolhe e se afasta dele.
Namri balançou a cabeça sem entender nada.
– Onde está Gurney? – Leto perguntou.
– Ele saiu para não me ver matando você.
– Você vai me matar, Namri? – e era quase uma súplica para que
aquele homem o fizesse.
Namri retirou a mão de cima da faca.
– Como você me pediu que eu o fizesse, não o farei. Mas, se você
não se importasse...
– A moléstia da indiferença é o que destrói muitas coisas –
concordou Leto, reforçando as palavras com um movimento de
cabeça. – Sim... até mesmo civilizações morrem por causa disso. É
como se houvesse um preço a ser pago por se atingir novos níveis
de complexidade ou de consciência... – Ele levantou os olhos para
encarar Namri, que continuava em pé. – Então lhe disseram que
buscasse a indiferença em mim? – E ele percebeu que Namri era
mais do que um matador: ele era traiçoeiro.
– Como um sinal do poder sem limites – Namri disse, mas era
mentira.
– Poder indiferente, sim. – Leto se aprumou e então suspirou
fundo. – Não houve grandiosidade moral na vida do meu pai,
Namri. Apenas uma armadilha local que ele armou para si
próprio.
Oh, Paul, tu, Muad’Dib,
Mahdi de todos os homens,
Teu hálito exalado
Desencadeou o furacão.
– Canções de Muad’Dib

– Nunca! – exclamou Ghanima. – Eu o mato na nossa noite de


núpcias. – E ela falava com uma obstinação cheia de rebarbas que,
até esse momento, havia resistido a todas as lisonjas. Alia e seus
conselheiros vinham insistindo naquilo a metade da noite,
mantendo os aposentos reais em estado de tumulto, mandando
trazer novos conselheiros, mais alimentos e mais bebidas. O
Templo inteiro e o Forte adjacente fervilhavam com a frustração
de decisões que não eram tomadas.
Ghanima estava sentada com muita compostura numa cadeira
flutuante verde, em seu próprio quarto, um aposento amplo com
paredes ásperas de tom castanho para imitar a face rochosa do
sietch. O teto, no entanto, era de cristal emoldurado que emitia
lampejos à luz azul, e o chão era de lajotas pretas. Havia poucos
objetos naquele recinto: uma pequena mesa onde escrever, cinco
cadeiras flutuantes e um pequeno conjunto para dormir, ao estilo
fremen, instalado numa alcova. Ghanima estava usando o manto
amarelo dos enlutados.
– Você não é uma pessoa livre que pode decidir cada aspecto de
sua própria vida – Alia repetiu, talvez pela centésima vez. Essa
tolinha deve entender isso, cedo ou tarde! Ela tem de aprovar seu
noivado com Farad’n. É preciso! Que ela o mate depois, se for o
caso, mas o noivado requer o sentimento expresso da fremen
comprometida.
– Ele matou meu irmão – Ghanima teimou, agarrada à única
nota que a sustentava. – Todo mundo sabe disso. Os fremen
cuspiriam à menção do meu nome se eu consentisse com esse
noivado.
E essa é exatamente uma das razões pelas quais você deve
consentir, Alia pensou. Então, argumentou:
– Foi a mãe dele quem ordenou. Ele a baniu por causa disso. O
que mais você quer dele?
– O sangue! – Ghanima respondeu. – Ele é Corrino.
– Ele denunciou a própria mãe – Alia insistiu. – E por que você
se preocupa com a reação dos fremen? Eles aceitarão qualquer
coisa que nós digamos que devem aceitar. Ghani, a paz do Império
exige que...
– Não vou concordar – repetiu Ghanima. – Você não pode
anunciar o noivado sem mim.
Irulan, que entrava no aposento no momento em que Ghanima
proferia essas palavras, olhou inquisitivamente para Alia e para
as duas conselheiras que estavam ao lado dela, parecendo
completamente desanimadas. Irulan viu Alia levantar os braços
em sinal de repúdio e em seguida despencar numa cadeira diante
de Ghanima.
– Você fala com ela, Irulan – Alia murmurou.
Irulan puxou um flutuador para perto e se sentou ao lado de
Alia.
– Você é Corrino, Irulan – Ghanima observou. – Não abuse de
sua sorte comigo. – Ghanima se levantou, cruzou o espaço até sua
cama, onde se sentou de pernas cruzadas, encarando duramente
as duas mulheres. Ela notou que Irulan estava usando um aba
preto, para combinar com o traje de Alia, com o capuz jogado para
trás para deixar sua cabeleira loura à vista. Era um cabelo de luto
à luz amarela dos luciglobos flutuantes que iluminavam o
aposento.
Irulan olhou rapidamente para Alia, ficou em pé e foi até onde
Ghanima estava sentada para ficar em pé diante dela:
– Ghani, eu mesma o mataria se esse fosse o jeito de resolver as
coisas. E Farad’n é do meu sangue, como você salientou tão
gentilmente. Mas você tem deveres muito superiores ao seu
compromisso com os fremen...
– Isso não parece nem um pouco melhor de se ouvir do que o
dito por minha preciosa tia – Ghanima enfatizou. – O sangue de
um irmão não pode ser lavado. E isso é mais do que algum
pequeno aforisma fremen.
Irulan apertou os lábios, mas depois informou:
– Farad’n está mantendo sua avó como refém. Ele prendeu
Duncan e se nós não...
– Não estou convencida com a sua história de como tudo isso
aconteceu – Ghanima interrompeu, olhando mais além de Irulan e
Alia. – Uma vez Duncan morreu para não deixar que os inimigos
capturassem meu pai. Talvez esse novo ghola de carne não seja
mais o mesmo...
– Duncan foi incumbido de proteger a vida de sua avó! – Alia
exclamou, girando em sua cadeira. – Tenho certeza de que ele
escolheu o único meio de fazer isso. – Enquanto isso, pensava:
Duncan! Duncan! Não era para você estar fazendo as coisas desse
jeito!
Captando as insinuações de uma mentira no tom de voz de
Alia, Ghanima olhou através da sala em direção à tia:
– Você está mentindo, ó Ventre Celestial. Fiquei sabendo de sua
briga com a minha avó. O que é que você tanto teme nos contar
sobre ela e seu precioso Duncan?
– Você ouviu tudo – Alia respondeu, mas sentiu uma pontada
de medo diante dessa acusação frontal e do que ela implicava. O
cansaço a havia deixado descuidada, ela percebeu naquele
momento. Levantando-se, continuou: – Tudo que eu sei você
também sabe. – Virando-se para Irulan, completou: – Você a
convença. Ela deve ser levada a...
Ghanima interrompeu com um palavrão fremen que foi um
choque quando saiu de seus lábios tão imaturos. No imediato
silêncio que se seguiu, ela explodiu:
– Vocês acham que eu sou apenas uma criança, que vocês têm
alguns anos para me manipular e que acabarei aceitando. Pense
de novo, ó Celestial Regente. Mais do que ninguém, você sabe
quantos anos guardo dentro de mim. A eles darei ouvidos, não a
você.
Alia a custo engoliu uma resposta atravessada, e olhou
duramente de volta para Ghanima. Abominação? Quem era essa
criança? Um novo medo de Ghanima começou a se esgueirar pelo
íntimo de Alia. Teria ela aceitado seu próprio consenso com as
vidas que vinham a essa pré-nascida? Alia disse:
– Ainda há tempo para que você enxergue a razão.
– Pode ainda haver tempo para eu ver o sangue de Farad’n
manchando a minha faca – Ghanima redarguiu. – Confie nisso. Se
alguma vez eu ficar sozinha com ele, um de nós seguramente irá
morrer.
– Você acha que amava seu irmão mais do que eu? – Irulan
perguntou. – Você está fazendo papel de boba! Eu era tanto mãe
dele quanto sou sua mãe. Eu era...
– Você nunca o conheceu – Ghanima afirmou. – Todas vocês,
exceto, às vezes, minha amada tia, insistem em pensar que somos
crianças. Vocês é que são tolas! Alia sabe! Veja como ela foge de...
– Não fujo de nada – Alia rebateu, mas então deu as costas a
Irulan e Ghanima e encarou as duas amazonas que estavam
fingindo não ouvir a discussão. Evidentemente, tinham desistido
de Ghanima. Talvez simpatizassem com ela. Irada, Alia as
mandou embora dali. Era óbvio o alívio na fisionomia das duas ao
obedecer.
– Você foge – Ghanima insistiu.
– Escolhi um tipo de vida que me convém – Alia explicou,
virando-se de volta para olhar Ghanima de frente, ainda sentada
de pernas cruzadas em sua cama. Seria possível ela ter realizado
aquela terrível concessão interior? Alia tentou divisar os sinais
dessa aliança em Ghanima, mas foi incapaz de identificar uma
única traição. E ela então se perguntou: Será que ela viu isso em
mim? Mas como poderia?
– Você teve medo de ser a janela de uma multidão – Ghanima
acusou. – Mas nós somos pré-nascidos e nós sabemos. Você será a
janela deles todos, consciente ou inconsciente. Você não pode
negá-los. – E então pensou: Sim, eu conheço você, Abominação. E
talvez venha a acontecer comigo como aconteceu com você, mas
por enquanto só posso sentir pena de você e desprezá-la.
O silêncio pesou entre Ghanima e Alia, algo quase palpável, que
acionou o treinamento Bene Gesserit em Irulan. Ela olhou de uma
para outra e então perguntou:
– Por que vocês ficaram tão caladas de repente?
– Acabei de ter um pensamento que requer uma considerável
reflexão – murmurou Alia.
– Reflita o quanto quiser, querida tia – Ghanima disse,
sarcástica.
Deixando de lado a raiva provocada pelo cansaço, Alia
exclamou:
– Basta, por enquanto! Deixe-a pensar. Talvez ela recupere o
bom senso.
Irulan se pôs em pé e emendou:
– Já está quase de manhã, de todo jeito. Ghani, antes de irmos,
você se importaria de ouvir a última mensagem enviada por
Farad’n? Ele...
– Não – Ghanima interrompeu. – E, daqui por diante, pare de
me chamar por esse apelido ridículo. Ghani! Isso apenas endossa
a equivocada noção de que sou uma criança que vocês podem...
– Por que você e Alia de repente ficaram tão caladas? – Irulan
indagou, retomando sua pergunta anterior, mas agora usando
uma modulação delicada da Voz para formulá-la.
Ghanima jogou a cabeça para trás para rir alto.
– Irulan! Você está tentando usar a Voz comigo?
– O quê? – Irulan ficou desconcertada.
– Você podia ensinar sua avó a chupar ovo – Ghanima retrucou.
– Eu o quê?
– O fato de que eu me lembro dessa expressão e você nunca tê-
la ouvido antes devia fazê-la parar – Ghanima respondeu. – Essa
era uma antiga expressão de zombaria usada quando vocês, Bene
Gesserit, eram jovens. Mas se isso não a põe no devido lugar,
pergunte a si mesma o que seus pais da realeza poderiam estar
pensando quando escolheram chamá-la pelo nome de Irulan. Não
seria Ruinal?
Apesar de todo o seu treinamento, ela corou.
– Você está tentando me confundir, Ghanima.
– E você tentou usar a Voz comigo. Comigo! Eu me lembro das
primeiras tentativas dos humanos nesse sentido. Eu me lembro
desse tempo, Ruinosa Irulan. Agora, saiam daqui, todas vocês.
Mas Alia agora estava intrigada, capturada por uma sugestão
interior que empurrava de lado todo o cansaço que sentia. Ela
começou:
– Talvez eu tenha uma sugestão que poderia mudar sua
opinião, Ghani.
– Ghani, de novo! – Uma risadinha malvada escapuliu de
Ghanima e então ela prosseguiu: – Pense bem só por um
momento. Se eu quiser matar Farad’n basta concordar com o
plano de vocês. Presumo que vocês também pensaram nisso.
Tomem cuidado com Ghani de bom humor. Vejam, estou sendo
completamente franca com vocês.
– Era o que eu esperava – observou Alia. – Se você...
– O sangue de um irmão não pode ser lavado – Ghanima
repetiu. – Não me apresentarei diante de meus entes queridos
fremen como uma traidora. Nunca perdoe, nunca esqueça. Não é
esse o nosso catecismo? Estou avisando vocês, e repetirei a
mesma coisa em público: vocês não podem me comprometer em
um noivado com Farad’n. Quem que me conhece acreditaria
nisso? O próprio Farad’n não conseguiria acreditar numa coisa
dessas. Os fremen, quando soubessem de um noivado desses,
iriam rir até cair no chão e dizer “Vejam! Ela o atraiu para uma
armadilha”. Se vocês...
– Eu entendo isso – Alia cortou, caminhando até ficar ao lado de
Irulan. Ela reparou que Irulan estava em pé, plantada e calada em
estado de choque, e já ciente do rumo que essa conversa estava
tomando.
– E então eu o estaria atraindo para uma cilada – concluiu
Ghanima. – Se é isso que vocês querem, concordo, mas talvez ele
não caia na armadilha. Se vocês querem este falso noivado como a
moeda vazia que precisam usar para comprar o regresso de
minha avó e do seu precioso Duncan, que assim seja. Mas é com
vocês. Comprem a soltura dos dois. Só que Farad’n é meu. E ele eu
vou matar.
Irulan rodopiou para encarar Alia antes que esta pudesse falar.
– Alia! Se não cumprirmos nossa palavra... – e ela deixou a
sentença pairando em aberto no ar, enquanto Alia refletia,
sorridente, sobre a possível ira entre as Grandes Casas na
Reunião das Faufreluches, as destrutivas consequências de
acreditar na honra Atreides, a perda da confiança na religião,
todos os pequenos e grandes tijolos que agora desmoronariam.
– Isso seria contrário aos nossos interesses – Irulan protestou.
– Toda a crença na condição de Paul como profeta seria destruída.
O Império... ele...
– Quem teria coragem de questionar nosso direito de decidir o
que é certo e o que é errado? – Alia indagou, com voz mansa. – Nós
somos os mediadores entre o bem e o mal. Eu apenas preciso
proclamar...
– Você não pode fazer isso! – Irulan objetou. – A memória de
Paul...
– É somente outro instrumento da Igreja e do Estado –
Ghanima interveio. – Não fale asneiras, Irulan. – Ghanima tocou a
dagacris em sua cintura, e olhou para Alia. – Enganei-me no
julgamento de minha astuciosa tia, Regente de tudo que é
sagrado no Império de Muad’Dib. De fato, julguei-a de modo
indevido. Atraia Farad’n para a nossa sala de estar, se quiser.
– Isso é imprudência – suplicou Irulan.
– Você concorda com esse noivado, Ghanima? – Alia ignorava
Irulan.
– Nos meus termos – murmurou Ghanima, com a mão ainda
apoiada no cabo de sua dagacris.
– Lavo minhas mãos em relação a isso – afirmou Irulan,
literalmente torcendo os dedos como se os lavasse. – Minha
intenção era propor um noivado de verdade para curar...
– Alia e eu vamos lhe dar uma ferida muito mais difícil de curar
– Ghanima disse. – Traga-o depressa, se ele quiser vir. E talvez ele
venha. Seria ele capaz de desconfiar de uma garotinha de tão
pouca idade como eu? Vamos planejar a cerimônia formal do
noivado para que ela exija a presença dele. Então, deverá haver
uma oportunidade em que ficarei a sós com ele... só um minuto ou
dois...
Irulan estremeceu diante da evidência de que Ghanima, afinal
de contas, era fremen do começo ao fim, uma criança em nada
diferente de um adulto quanto a essa terrível sede sanguinária.
Afinal de contas, as crianças fremen eram acostumadas a liquidar
os feridos nos campos de batalha, livrando as mulheres dessa
tarefa a fim de que elas pudessem recolher os corpos e então
transportá-los até as destilarias fúnebres. E Ghanima, falando
com a voz de uma criança, lançava horror sobre horror com a
estudada maturidade de suas palavras, com a noção ancestral da
vendeta que a rodeava como uma aura.
– Combinado – anuiu Alia, se esforçando para manter a voz e o
rosto impassíveis, longe de denunciar seu contentamento. –
Vamos preparar o documento formal de noivado. Faremos com
que a assinatura de vocês seja testemunhada por uma assembleia
devidamente reunida com representantes das Grandes Casas.
Farad’n não poderá alimentar nenhuma dúvida...
– Ele terá dúvidas, mas virá – Ghanima afirmou. – E virá com
guardas, mas será que estes pensarão que devem protegê-lo de
mim?
– Em nome do amor por tudo que Paul tentou fazer – Irulan
objetou –, façamos pelo menos com que a morte de Farad’n
pareça um acidente, ou o resultado de alguma malevolência
externa...
– Ficarei exultante em exibir minha faca sangrenta aos meus
irmãos – Ghanima anunciou.
– Alia, eu lhe suplico – Irulan insistia. – Deixe essa insanidade
elementar de lado. Declare kanly contra Farad’n, qualquer coisa
para...
– Não precisamos de uma declaração formal de vingança
contra ele – Ghanima repudiou. – O Império inteiro sabe como
devemos estar nos sentindo. – Ela apontou para a manga de seu
manto. – Usamos o amarelo do luto. Quando eu trocar essa cor
pelo preto de uma noiva fremen, será que isso conseguirá enganar
alguém?
– Reze para que engane Farad’n – respondeu Alia – e os
delegados das Grandes Casas que convidarmos para
testemunhar o...
– Um a um, esses delegados irão se voltar contra você – afirmou
Irulan. – Você sabe disso!
– Muito bem lembrado – consentiu Ghanima. – Escolha com
cuidado esses delegados, Alia. Eles devem ser aqueles que não
nos importaremos em eliminar depois.
Irulan lançou os braços para cima, desesperada, virou-se e saiu
correndo.
– Que ela seja vigiada o tempo todo para que nem tente avisar o
sobrinho – exigiu Ghanima.
– Não precisa me ensinar como levar um complô adiante – Alia
comentou. Ela se virou e seguiu atrás de Irulan, mas mais devagar.
As guardas do lado de fora e as assistentes que a aguardavam
foram sugadas em seu rastro como partículas de areia atraídas
para o vórtice de um verme em movimento ascendente.
Ghanima balançou a cabeça com tristeza, de um lado a outro,
quando a porta se fechou e pensou: É como o pobre Leto e eu
pensávamos. Queria que tivesse sido eu a ser morta pelo tigre em
vez dele.
Muitas forças buscavam controlar os gêmeos
Atreides e, com o anúncio da morte de Leto, esses
movimentos de complôs e contracomplôs se
amplificaram. Observe as motivações relativas: a
Irmandade temia Alia, uma Abominação adulta,
mas ainda queria aquelas características
genéticas presentes na linhagem Atreides. A
hierarquia da Igreja de Auqaf e Hajj só enxergava
o poder implícito a quem obtivesse o controle da
herdeira de Muad’Dib. A CHOAM queria uma via de
acesso à riqueza de Duna. Farad’n e seus
Sardaukar desejavam recuperar a glória para a
Casa Corrino. A Guilda Espacial temia a equação
Arrakis = mélange; sem a especiaria, ela não
conseguia navegar. Jéssica almejava reparar o
estrago causado por sua desobediência às Bene
Gesserit. Poucos pensaram em perguntar aos
gêmeos quais eram os planos deles, antes que
fosse tarde demais.
– O Livro de Kreos

Pouco depois da refeição da noite, Leto viu um homem que


passou pela soleira em arco na entrada de seus aposentos e, em
sua mente, começou a caminhar junto com ele. Como a passagem
tinha ficado aberta, Leto tinha visto uma parte das atividades que
se desenvolviam ali perto: caçambas de especiaria que eram
empurradas, a passagem de três mulheres vestidas com a
evidente sofisticação ultraplanetária que as identificava como
contrabandistas. O homem que tinha instigado a mente de Leto a
acompanhá-lo talvez não fosse diferente exceto pelo fato de que
parecia Stilgar se movimentando, só que um Stilgar bem mais
jovem.
Ele andava de um jeito peculiar. O Tempo ocupou a percepção
de Leto como um globo estelar. Ele conseguia enxergar infinitos
espaçotempos, mas tinha de se situar em seu próprio futuro
antes de saber em que momento jazia sua carne. Suas
multifacetadas vidas-recordações surgiam e recuavam, mas
agora eram dele. Pareciam ondas chegando à praia, mas se
subiam muito ele podia controlá-las e mandá-las descer, deixando
a realeza de Harum para trás.
De vez em quando ele ouvia essas vidas-recordações. Uma
delas parecia o ponto numa peça de teatro, esticando a cabeça e
sussurrando as dicas para o que fazer. Seu pai entrou em cena
durante esse passeio mental e disse: “Você é uma criança
querendo ser homem. Quando for homem, buscará inutilmente a
criança que foi um dia”.
Enquanto isso, deixava seu corpo ser atacado pelas pulgas e os
piolhos do velho sietch, muito malcuidado. Nenhum dos serviçais
que lhe traziam os alimentos fortemente temperados pareciam se
incomodar com essas criaturas. Será que essas pessoas tinham
imunidade contra essas pragas, ou só porque conviviam com elas
há tanto tempo já sabiam como ignorar o desconforto?
Quem eram essas pessoas reunidas em torno de Gurney?
Como tinham chegado a esse lugar? Ali era Jacurutu? Sua
multimemória gerava respostas de que ele não gostava. Eram
pessoas feias e Gurney era o mais feio de todos. Não obstante, a
perfeição flutuava por ali, adormecida, latente, aguardando
debaixo da espessa superfície da feiura.
Uma parte dele sabia que ele continuava sob o impacto da
especiaria, refém das altas doses de mélange misturadas a todas
as suas refeições. Seu corpo de criança queria se rebelar,
enquanto sua persona delirava com a presença imediata de
lembranças que lhe chegavam, vindas de milhares de éons atrás.
A mente de Leto retornou de sua caminhada e ele se perguntou
se seu corpo teria realmente ficado para trás. A especiaria
confundia os sentidos. Ele sentia a pressão das autolimitações se
acumulando contra ele como as longas dunas arqueadas do bled
que iam adquirindo o formato de rampas ao encontro de
penhascos no deserto. Um dia, um pouquinho de areia soprava
contra o penhasco, e no outro dia mais um pouco, e assim por
muito tempo, até que finalmente apenas a areia continuaria
visível e exposta ao céu.
Mas o penhasco ainda permanecia ali, encoberto.
Ainda estou dentro do transe, ele pensou.
Ele sabia que logo toparia com uma bifurcação entre vida e
morte. Seus captores ficavam devolvendo o refém seguidamente à
escravidão do transe da especiaria, insatisfeitos com as respostas
que ele trazia a cada vez. Inevitavelmente, o traiçoeiro Namri
estava aguardando sua volta, com a mão na faca. Leto conhecia
um incontável número de passados e de futuros, mas ainda não
tinha aprendido a contentar Namri... nem Gurney Halleck. Eles
queriam algo que ficava fora das visões que podia ter. A
bifurcação entre a vida e a morte atraía Leto. Ele sabia que a vida
teria de possuir algum significado intrínseco que a elevava mais
acima das circunstâncias da visão. Pensando nessa exigência, ele
sentia que sua percepção interna era seu ser verdadeiro e que sua
existência externa era o transe. Isso o deixou aterrorizado. Ele
não queria voltar ao sietch com as pulgas, Namri e Gurney
Halleck.
Sou um covarde, ele pensou.
Mas um covarde, mesmo um covarde, pode morrer com
bravura simplesmente com um gesto. Onde estava aquele gesto
que poderia deixá-lo inteiro mais uma vez? Como é que ele
poderia despertar do transe e da visão e estar no universo que
Gurney exigia? Sem essa virada, sem despertar de visões
destituídas de propósito, ele sabia que poderia morrer numa
prisão de sua própria escolha. Quanto a isso ele havia enfim
colaborado com seus captores. Em alguma parte ele precisava
encontrar a sabedoria, o equilíbrio interior que se refletiria no
universo e lhe retornaria com uma imagem de calma e força.
Somente então ele poderia buscar seu Caminho Dourado e
sobreviver a essa pele que não era propriamente sua.
Alguém estava tocando o baliset em algum canto do sietch.
Leto sentiu que seu corpo provavelmente ouvia a música no
presente. Ele sentiu o catre sob as costas. Estava conseguindo
escutar a música. Era Gurney tocando. Não havia outros dedos
capazes de se comparar a este mestre de um instrumento tão
difícil. Ele executava uma antiga canção fremen, chamada hadith
por causa de sua estrutura narrativa e da voz que invocava os
padrões necessários a sobreviver em Arrakis. A canção era sobre
a história das ocupações humanas dentro de um sietch.
Leto sentiu a música se movimentar dentro dele através de
uma maravilhosa e antiga caverna. Ele viu mulheres usando
resíduos da especiaria como combustível, fervendo a especiaria
para que fermentasse, produzindo tecidos a partir da especiaria.
O mélange estava por toda parte no sietch.
Esses momentos ocorriam quando Leto não conseguia
distinguir entre a música e as pessoas, na visão da caverna. Os
lamentos e as batidas de um tear movido a energia eram os
lamentos e as batidas do baliset. Mas, com o olho interior, ele
enxergava tramas de cabelos humanos, a longa pelagem de ratos
mutantes, fios de algodão do deserto, faixas cacheadas extraídas
da pele de aves. Ele viu uma escola de sietch. A eco-linguagem de
Duna ribombava através de sua mente, transportada nas asas da
música. Ele viu a cozinha movida a energia solar, a longa câmara
onde os trajestiladores eram confeccionados e consertados. Viu
os encarregados da previsão do tempo lendo as varinhas que
tinham trazido de sua ida à areia.
Em algum ponto de sua jornada, trouxeram-lhe comida e
serviram-no às colheradas, dando-lhe de comer na boca, com
alguém sustentando sua cabeça para cima com um braço firme.
Ele sabia que essa era uma sensação em tempo real, mas o
maravilhoso jogo de movimento prosseguia em seu interior.
Como se tivesse vindo no instante seguinte após ter comido o
alimento encharcado de especiaria, ele viu a agitação de uma
tempestade de areia se formando. As imagens que se moviam
dentro do sopro da areia se tornavam reflexos dourados dos olhos
de uma mariposa e sua própria vida estava reduzida ao rastro
viscoso de um inseto rastejador.
Palavras da panóplia propheticus disparavam dentro dele:
“Dizem que não há nada firme, nada equilibrado, nada durável no
universo inteiro, que nada permanece em seu estado, que todo
dia, um momento ou outro, traz mudanças”.
A velha Missionária Protectora sabia o que estava fazendo, ele
pensou. Elas sabiam da existência dos Propósitos Terríveis. Elas
sabiam como manipular as pessoas e as religiões. Nem meu pai
escapou deles, nem no fim.
Ali estava a pista que ele vinha buscando. Leto a estudou. Ele
sentiu que a força estava voltando à sua carne. Todo o seu ser
multifacetado se voltou para olhar para o universo. Após se
sentar, percebeu-se sozinho na alcova inóspita cuja única
claridade vinha da luz no corredor de fora por onde o homem
tinha passado andando e levado junto sua mente, um éon atrás.
– Boa sorte para todos nós! – ele exclamou, segundo o
tradicional costume fremen.
Gurney Halleck apareceu no umbral arqueado e sua cabeça
formava uma silhueta escura contra a luz emanada pelo corredor
de fora.
– Traga luz – Leto ordenou.
– Você quer continuar sendo testado?
Leto riu.
– Não. É a minha vez de testar você.
– Veremos. – Halleck virou-se para sair e voltou um instante
depois trazendo um luciglobo de luz azul forte na dobra do braço
esquerdo. Ele o libertou para que subisse ao teto da alcova e ele
foi boiando até um plano acima da cabeça deles dois.
– Onde está Namri? – Leto perguntou.
– Logo ali, esperando que o chame.
– Ah, o Velho Pai Eternidade sempre espera com paciência –
Leto pontificou. Ele se sentia curiosamente livre, como se
posicionado à beira de uma descoberta.
– Você chamou Namri pelo nome que é reservado a Shai-hulud?
– Halleck indagou.
– A faca dele é um dente de verme – Leto explicou. – Portanto,
ele é o Velho Pai Eternidade.
Halleck sorriu contrafeito, mas permaneceu calado.
– Você continua esperando para me julgar – Leto afirmou. – E,
vou reconhecer, não há meios de trocarmos informações sem
fazer julgamentos. Mas não se pode pedir ao universo que seja
exato.
Um som farfalhante atrás de Halleck alertou Leto para a
chegada iminente de Namri, que parou a meio passo de Halleck, à
esquerda dele.
– Ah, a mão esquerda dos condenados – Leto observou.
– Não é sensato brincar com o Infinito e o Absoluto – Namri
grunhiu. Ele olhou de lado para Halleck.
– Namri, seria você Deus para poder invocar absolutos? – Leto
perguntou. Mas continuava atento a Halleck. O julgamento viria
dele.
Os dois homens encararam o menino sem lhe dar resposta.
– Todo julgamento se equilibra à beira do erro – Leto explicou. –
Afirmar que se detém o conhecimento absoluto é se tornar
monstruoso. O conhecimento é uma aventura interminável na
borda da incerteza.
– Que espécie de jogo de palavras é esse? – Halleck se
impacientou.
– Deixe-o falar – Namri contrapôs.
– É o jogo em que Namri me iniciou – prosseguiu Leto, vendo
que o velho fremen aquiescia com um movimento de cabeça. Ele
certamente tinha reconhecido o jogo das adivinhas. – Nossos
sentidos sempre têm pelo menos dois níveis – Leto lembrou.
– Trivialidades e mensagem – forneceu Namri.
– Excelente! – anuiu Leto. – Você me deu as trivialidades; eu lhe
dou as mensagens. Eu vejo, ouço, detecto odores, toco. Sinto
mudanças de temperatura, de sabores. Sinto a passagem do
tempo. Posso obter amostras de emoções. Ahhhhhh! Estou feliz.
Vocês entendem? Gurney? Namri? Não há mistério sobre a vida
humana. Não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a
ser experimentada.
– Você está testando a nossa paciência, mocinho – advertiu
Namri. – É este o lugar em que você quer morrer?
Mas Halleck ergueu uma mão dominadora para conter o outro.
– Em primeiro lugar, não sou “mocinho” – Leto argumentou. E
fez o primeiro sinal para sua orelha direita. – Você não vai me
matar: atribuí um fardo d’água a você.
Namri tirou a dagacris da bainha, até a metade.
– Não lhe devo nada!
– Mas Deus criou Arrakis para treinar os fiéis – Leto rebateu. –
Eu não só lhe mostrei minha fé como o tornei consciente de sua
própria existência. A vida exige disputa. Você foi feito para saber,
por mim!, que a sua realidade difere de todas as outras e,
portanto, você sabe que está vivo.
– É perigoso fazer o jogo da irreverência comigo – preveniu
Namri, enquanto a dagacris continuava metade para fora da
bainha.
– A irreverência é um ingrediente muito necessário da religião –
confrontou Leto. – Para nem mencionar sua importância para a
filosofia. A irreverência é a única maneira que nos resta de testar
nosso universo.
– Então, você acha que entende o nosso universo? – Halleck
perguntou, abrindo um espaço entre ele e Namri.
– Si-immm – Namri sibilou, e sua voz transmitia morte.
– O universo pode ser entendido somente pelo vento – Leto
respondeu. – Não há nenhum trono de poder para a razão no
recinto do cérebro. A criação é uma descoberta. Deus nos
descobriu no Vazio porque nos movíamos contra um contexto
que Ele já conhecia. A parede estava nua. Então houve
movimento.
– Você está brincando de esconde-esconde com a morte –
Halleck advertiu.
– Vocês dois são meus amigos – Leto disse. Ele olhou
diretamente para Namri. – Quando você propõe um candidato
como Amigo do seu Sietch, você não mata um gavião ou uma
águia como oferenda? E a resposta não é “Deus manda cada
homem ao seu fim, como este gavião, esta águia, e este amigo”?
A mão de Namri soltou a faca. A lâmina deslizou de novo para
dentro da bainha. Ele olhava para Leto de olhos arregalados.
Todo sietch mantinha segredo sobre seu ritual de amizade, e
mesmo assim ali tinha acabado de ouvir uma parte do rito.
Halleck, porém, perguntou:
– Este lugar é o seu fim?
– Eu sei o que você precisa ouvir de mim, Gurney – Leto
murmurou, acompanhando a variação entre a esperança e a
desconfiança manifesta naquele rosto feio. Leto tocou o próprio
peito. – Esta criança nunca foi criança. Meu pai vive dentro de
mim, mas ele não sou eu. Você o amava e ele foi um humano
galante cujas questões alcançaram elevados lugares. A intenção
dele era encerrar o ciclo de guerras, mas ele não havia
considerado o movimento do infinito expressado pela vida em
suas computações. Isso é Rhajia! Namri sabe. Esse movimento
pode ser visto por qualquer mortal. Cuidado com os caminhos
que estreitam possibilidades futuras. Esses caminhos afastam-no
do infinito e o empurram para armadilhas mortais.
– O que é que preciso ouvir de você? – Halleck perguntou.
– Ele está brincando com as palavras – Namri acusou, mas a voz
dele traía suas dúvidas e uma forte hesitação.
– Torno-me aliado de Namri contra meu pai – Leto admitiu. – E
meu pai interior se alia conosco contra aquilo que foi feito dele.
– Por quê? – Halleck quis entender.
– Porque é o amor fati que eu trago para a humanidade, o gesto
do mais radical autoexame. Neste universo, escolho me aliar
contra qualquer força que signifique humilhar a humanidade.
Gurney! Gurney! Você não nasceu nem foi criado no deserto. Sua
carne não conhece a verdade do que estou falando. Mas Namri,
sim. Na terra ilimitada, uma direção é tão boa quanto qualquer
outra.
– Ainda não ouvi o que devo ouvir – Halleck rosnou.
– Ele fala a favor da guerra e contra a paz – Namri explicou.
– Não – Leto contradisse. – E nem meu pai falou contra a
guerra. Mas veja o que aconteceu com ele. A paz tem um só
significado neste Imperium. É a manutenção de um único modo
de vida. Vocês são ordenados a ficarem contentes. A vida deve ser
uniforme em todos os planetas, assim como no Governo Imperial.
O principal objeto de estudo dos sacerdotes é achar as formas
corretas de comportamento humano. Para isso, recorrem às
palavras de Muad’Dib! Diga-me, Namri, você está contente?
– Não. – Essa palavra saiu como uma flecha, disparada por uma
rejeição espontânea.
– Então você blasfema?
– Claro que não!
– Mas não está contente. Você está vendo, Gurney? Namri
prova tudo para nós. Cada pergunta, cada problema não tem uma
única resposta certa. Devemos permitir a diversidade. O monolito
é instável. Então, por que você exige uma única declaração
correta de mim? Será essa a medida de seu monstruoso
julgamento?
– Você vai me forçar a mandar matá-lo? – Halleck perguntou
com um claro timbre de agonia em sua voz.
– Não, serei piedoso com você – Leto murmurou. – Mande dizer
à minha avó que irei cooperar. A Irmandade pode vir futuramente
a se arrepender de eu ter cooperado, mas um Atreides dá sua
palavra.
– Uma Proclamadora da Verdade irá testar isso – Namri disse. –
Esses Atreides...
– Ele terá a oportunidade de dizer diante de sua avó aquilo que
deve ser dito – Halleck afirmou. E então sinalizou com um
movimento de cabeça a direção do corredor.
Namri parou um instante antes de sair e olhou brevemente
para Leto.
– Espero termos feito a coisa certa deixando que ele viva.
– Vão, meus amigos – Leto finalizou. – Vão e reflitam.
Quando os dois homens tinham ido embora, Leto caiu de
costas em seu catre, com um intenso frio na espinha. Esse
movimento fez sua cabeça rodopiar na borda de sua consciência
intoxicada pela especiaria. Nesse instante, ele viu o planeta
inteiro, cada povoado, cada cidade pequena ou grande, os lugares
desertos, os lugares plantados. Todas as formas que vinham se
esborrachar contra sua visão tinham íntima relação com uma
mistura de elementos dentro e fora de si mesmas. Ele viu as
estruturas da sociedade imperial refletidas nas estruturas físicas
de seus planetas e em suas comunidades. Como um
desdobramento gigantesco dentro dele mesmo, Leto viu a
revelação do que devia existir: uma janela que se abria para as
partes invisíveis da sociedade. Quando enxergou isso, Leto se deu
conta de que cada sistema tinha uma janela dessas. Inclusive o
sistema dele mesmo e de seu universo. Ele começou a espiar
através dessas janelas, como um voyeur cósmico.
Era isso que sua avó e a Irmandade buscavam! Agora ele sabia.
Sua percepção se abria num nível novo e mais elevado. Ele sentia
o passado transmitido em suas células, em suas recordações, nos
arquétipos que assombravam seus pressupostos, nos mitos que o
cerceavam, nas linguagens que conhecia e em seus detritos pré-
históricos. Eram todas as formas surgidas de seu passado
humano e não humano, todas as vidas que ele agora comandava,
todas enfim integradas dentro dele. E ele se sentia uma coisa
presa no fluxo-refluxo de nucleotídeos. Contra o pano de fundo do
infinito, ele era um protozoário em que nascimento e morte eram
processos virtualmente simultâneos, e ele era ao mesmo tempo
infinito e protozoário, uma criatura com recordações
moleculares.
Nós, humanos, somos uma forma de organismo em colônia!, ele
pensou.
Queriam que ele cooperasse. Prometer sua cooperação lhe
havia garantido outra moratória em relação à faca de Namri.
Convocando sua cooperação, eles tentavam identificar um
curador.
E ele pensou: Mas não lhes trarei a ordem social do jeito que
estão esperando!
Um sorriso amargo contorceu a boca de Leto. Ele sabia que não
seria tão inconscientemente malévolo quanto seu pai tinha sido –
com o despotismo num prato da balança e a escravidão no outro
–, mas este universo acabaria chorando de saudade pelos “bons
velhos tempos”.
Seu pai dentro de si então falou com ele, sondando-o
cautelosamente, incapaz de exigir atenção, mas pedindo que ele o
escutasse.
E Leto respondeu:
– Não. Vamos dar-lhes complexidades com que ocupar a
cabeça. Há muitos modos de fugir do perigo. Como saberão que
sou perigoso, a menos que me vivenciem por milhares de anos?
Sim, pai-interior, nós lhes daremos indagações.
Não há inocência nem culpa em você. Tudo isso
ficou no passado. A culpa ridiculariza os mortos e
eu não sou o Martelo de Ferro. Vocês, multidão de
mortos, são somente pessoas que fizeram
algumas coisas, e a lembrança dessas coisas
ilumina o meu caminho.
– Leto II para suas vidas-recordações, segundo Harq al-Ada

– Ela se mexe sozinha! – Farad’n murmurou, e a voz dele mal se


podia ouvir.
Ele estava debruçado sobre a cama de lady Jéssica, com um
corpo de guardas atrás dele, muito próximos. Lady Jéssica se
recostara no leito. Estava usando uma bata de parasseda de um
branco cintilante, com uma faixa combinando, envolvendo seu
cabelo cor de cobre. Farad’n tinha entrado repentinamente nos
aposentos dela, poucos instantes antes. Ele estava usando o
uniforme justo de malha cinzenta e seu rosto suado demonstrava
a excitação e o resultado de seu esforço em percorrer
apressadamente os corredores do palácio.
– Que horas são? – Jéssica perguntou.
– Horas? – Farad’n parecia desconcertado.
Um dos guardas informou:
– É a terceira hora depois da meia-noite, milady. – Receoso, o
guarda olhou brevemente para Farad’n. O jovem príncipe tinha
vindo afobado através dos corredores iluminados para a noite,
arrebanhando guardas assustados em sua passagem.
– Mas se mexe – Farad’n insistiu. Ele estendeu a mão esquerda
e depois a direita. – Eu vi as minhas mãos encolherem até se
tornarem punhos gorduchos e então me lembrei! Eram as minhas
mãos quando bebê. Eu me lembrava de ter sido um bebê, mas
essa foi uma lembrança mais clara. Eu estava reorganizando as
minhas recordações!
– Muito bem – Jéssica exclamou. A empolgação dele era
contagiosa. – E o que aconteceu quando suas mãos ficaram
velhas?
– Minha... mente ficou... lenta – ele hesitou. – Senti uma dor nas
costas. Bem aqui. – E ele tocou um lugar acima do rim esquerdo.
– Você aprendeu uma lição muito importante – Jéssica
professou. – Você sabe que lição foi?
Ele deixou as mãos caírem ao lado do corpo, olhando para elas.
Então respondeu:
– Minha mente controla minha realidade. – Os olhos dele
cintilaram e ele repetiu, desta vez em tom de voz mais alto: –
Minha mente controla minha realidade!
– Esse é o começo do equilíbrio prana-bindu – Jéssica explicou.
– Mas é só o começo.
– E o que eu faço agora? – ele perguntou.
– Milady – aventurava-se agora a interromper o mesmo guarda
que tinha dito que horas eram –, a hora...
Os espiões deles não estão a postos neste horário?, Jéssica se
perguntou. E ordenou:
– Retire-se. Temos trabalho a fazer.
– Mas, milady – objetou o guarda, que olhava temerosamente
de Farad’n para Jéssica e de volta para o príncipe.
– Você acha que eu vou seduzir o rapaz? – ela perguntou.
O homem se empertigou.
Farad’n riu, numa explosão de alegria. Ele acenou com a mão,
dispensando o guarda.
– Você ouviu o que ela disse. Retire-se.
Os guardas se entreolharam, mas obedeceram.
Farad’n se sentou na beirada da cama.
– E agora? – ele balançou a cabeça. – Eu queria acreditar em
você, mas não acreditava. Então... foi como se a minha mente
tivesse se dissolvido. Eu estava cansado. Ela desistiu de lutar
contra você. Simplesmente aconteceu. Assim, do nada! – e ele
estalou os dedos.
– Sua mente não estava lutando contra mim – Jéssica
argumentou.
– Claro que não – ele concordou. – Eu estava lutando contra
mim mesmo, contra todos os absurdos que já aprendi. E o que
temos agora?
Jéssica sorriu.
– Confesso que não esperava que você conseguisse êxito assim
tão depressa. Faz somente oito dias e...
– Fui paciente – ele interrompeu, sorridente.
– E você também começou a aprender paciência – ela retrucou.
– “Começou”?
– Você apenas acaba de alcançar, engatinhando, a pontinha
desse aprendizado – ela continuou. – Agora, você é realmente um
bebê. Antes... era apenas um potencial, que nem tinha nascido
ainda.
Os cantos da boca de Farad’n caíram.
– Não fique tão desanimado – ela disse. – Você conseguiu. Isso é
que importa. Quantos podem dizer que nasceram de novo?
– E agora? – ele insistia.
– Você vai praticar isso que aprendeu – ela respondeu. – Quero
que você seja capaz de fazer isso à vontade, facilmente. Mais
tarde, você preencherá um novo lugar em sua percepção com isso
que se abriu a você. Esse espaço será ocupado pela capacidade de
testar toda e qualquer realidade contra suas necessidades.
– Isso é tudo que eu faço agora... praticar o...
– Não. Agora, você vai começar o treinamento muscular. Diga-
me uma coisa: você consegue mexer o dedinho do pé esquerdo
sem mexer mais nenhum outro músculo do seu corpo?
– Meu... – ela viu uma expressão distante se apoderar dos
traços do rosto dele enquanto ele tentava movimentar o dedinho.
Agora, ele olhava para o pé, fincando os olhos em seus dedos. A
testa de Farad’n cobriu-se de gotas de suor. Uma forte exalação
escapou de sua boca e ele explodiu: – Não consigo.
– Consegue, sim – ela argumentou. – Você vai aprender a fazer
isso. Aprenderá a lidar com cada um dos músculos do seu corpo.
Você vai conhecer esses músculos do mesmo jeito que conhece
suas mãos.
Ele engoliu em seco diante da magnitude dessa perspectiva.
Então indagou:
– O que você está fazendo comigo? Qual é o seu plano para
mim?
– Pretendo te soltar no universo – ela respondeu. – Você se
tornará aquilo que deseja no mais profundo de seu ser.
Ele refletiu um pouco sobre essas palavras.
– Qualquer coisa que eu queira?
– Sim.
– Isso é impossível!
– A menos que aprenda a controlar seus desejos do modo como
controla sua realidade – ela observou, e pensou: Pronto! Que os
analistas dele examinem isso. Eles vão aconselhar uma aprovação
cautelosa, mas Farad’n se aproximará mais um pouco de entender
o que estou realmente fazendo.
Ele apresentou suas conjecturas dizendo:
– Uma coisa é você dizer a uma pessoa que ela realizará o
desejo de seu coração. Outra coisa é efetivamente concretizar tal
promessa.
– Você foi mais longe do que eu pensava – Jéssica confessou. –
Muito bom. Isto eu prometo a você: se você completar este
programa de aprendizagem, será aquele que quiser. Tudo que
fizer será feito porque é isso que você quer fazer.
E que uma Proclamadora da Verdade tente investigar o que está
por baixo disso, ela pensou.
Ele se pôs em pé, mas a expressão com que ele a olhou era
amistosa, com um sentimento de camaradagem.
– Sabe de uma coisa? Acredito em você. Não tenho nenhuma
ideia de por que sinto isso, mas sinto. E não vou dizer nada a
respeito de todas as outras coisas em que estou pensando.
Jéssica acompanhou-o com o olhar enquanto ele saía daquele
aposento. Ela desligou os luciglobos e se deitou de novo. Este
Farad’n era um sujeito profundo. Ele praticamente tinha dito a ela
que estava começando a enxergar o que ela pretendia, mas estava
entrando na conspiração dela de livre e espontânea vontade.
Esperem até ele começar a aprender sobre suas próprias
emoções, ela pensou. Com isso, ela se preparou para voltar a
dormir. Ela sabia que a manhã seguinte seria repleta de encontros
casuais com pessoas do palácio, fazendo-lhe perguntas
aparentemente inócuas.
Periodicamente, a humanidade passa por uma
aceleração de seus problemas, e com isso conhece
uma corrida entre a renovável vitalidade dos vivos
e a iminente corrosão da decadência. Nessa
corrida periódica, qualquer pausa representa um
luxo. Somente então é que se torna possível
refletir que tudo é permitido, que tudo é possível.
– Os Apócrifos de Muad’Dib

O toque da areia é importante, Leto disse a si mesmo.


Ele conseguia sentir a aspereza debaixo dele, onde estava
sentado sob um céu fulgurante. Eles o haviam alimentado à força
com outra dose maciça de mélange e a mente de Leto tinha
mergulhado em si mesma, como num rodamoinho. Uma questão
não respondida pulsava no fundo daquele funil em turbilhão: Por
que insistem que eu o diga? Gurney era obstinado, quanto a isso
não havia dúvida. E ele tinha recebido suas ordens de lady
Jéssica.
Tinham-no tirado do sietch para levá-lo à luz do dia para essa
“lição”. Leto estava com a estranha sensação de que tinha deixado
seu corpo realizar a curta travessia desde o sietch até ali,
enquanto seu ser interior mediava uma batalha entre o duque
Leto I e o velho barão Harkonnen. Eles combatiam em seu íntimo,
por meio dele, porque ele não lhes permitira que se
comunicassem diretamente. Essa luta lhe havia ensinado o que
tinha acontecido com Alia. Pobre Alia.
Eu tinha razão de temer a viagem da especiaria, ele pensou.
Uma crescente amargura envolvendo lady Jéssica subia dentro
dele. Ela e seu maldito gom jabbar! Lute e vença ou morra
tentando. Ela não poderia espetar uma agulha envenenada no
pescoço do neto, mas podia mandá-lo ao vale do perigo que tinha
clamado posse de sua própria filha.
Sons fanhosos se intrometeram em sua percepção. Oscilaram e
então se tornaram mais altos, depois mais suaves, e mais altos... e
mais suaves. Não havia meios de ele discernir se eram dotados de
uma realidade imediata ou se procediam da especiaria.
O corpo de Leto afundou sobre seus braços cruzados. Ele
sentiu a areia quente sob as nádegas. Havia um tapete bem à sua
frente, mas ele estava sentado diretamente na areia. Uma sombra
se estendia através do tapete: Namri. Leto contemplou o padrão
enlameado do tapete, sentindo bolhas que formavam ondas
estreitas ali. Sua percepção flutuou ao sabor de sua própria
corrente e atravessou um panorama que se estendia até um
horizonte encimado de verde.
Em seu cérebro percutiam os sons de um tambor. Ele se sentiu
quente, febril. A febre era uma pressão da temperatura
escaldante que ocupava seus sentidos, abarrotando a percepção
de sua carne até que só conseguia sentir as sombras móveis de
seu perigo. Namri e a faca. Pressão... pressão... Leto finalmente se
sentiu suspenso entre o céu e a areia, e sua mente não conseguia
registrar mais do que a febre. Ele estava esperando que
acontecesse alguma coisa, sentindo que qualquer coisa que
ocorresse seria algo inédito e uma experiência única.
O sol inclemente caía sobre ele e ao seu redor com uma
intensidade e um brilho fulminantes, sem tranquilidade, sem
remédio. Onde está o meu Caminho Dourado? Os insetos
rastejavam por toda parte. Toda parte. Minha pele não é minha.
Ele mandou mensagens ao longo de seus neurônios e esperou a
lenta reação das outras pessoas.
Cabeça, para cima, ele disse aos seus nervos.
Uma cabeça que poderia ter sido a sua se levantou, olhando
para manchas de vazio contra a luz intensa.
– Agora ele está bem fundo – alguém murmurou.
Nenhuma resposta.
O sol, como um fogo ardente, ficava cada vez mais quente.
Lentamente, curvando-se para fora, a corrente de sua
percepção consciente levou-o flutuando através de uma última
tela de vazio verdejante e ali, sobre as dunas baixas que se
desdobravam incontáveis, a não mais de um quilômetro da linha
de calcário estendida do penhasco, ali ficava o verde e próspero
futuro, exuberante, fluindo para dentro do verde interminável,
inchando-se de mais verde, verde-verde, seguindo infinitamente
para fora.
Em todo aquele verde não existia um único grande verme.
Abundante vida vegetal nativa, mas nada de Shai-hulud, em
parte nenhuma.
Leto sentiu que tinha se aventurado e cruzado antigos limites e
entrado numa terra nova que só a imaginação tinha
testemunhado e que, agora, ele via diretamente através do
próximo véu que uma humanidade recém-desperta chamava
Desconhecido.
Era a realidade sedenta de sangue.
Ele sentiu o fruto vermelho de sua vida balouçando num
membro, um fluido escapando-lhe por entre os dedos, e o fluido
era a essência da especiaria correndo em suas veias.
Sem Shai-hulud, não haveria mais especiaria.
Ele tinha visto um futuro sem o grande verme-serpente
cinzento de Duna. Ele sabia disso, mas não conseguia se
desvencilhar do transe para se insurgir com essa passagem.
Abruptamente, sua percepção mergulhou de volta, e voltou,
voltou, afastando-se muito de um futuro tão letal. Seus
pensamentos desceram até suas vísceras e se tornaram
primitivos, instigados apenas por emoções intensas. Ele se
percebeu incapaz de focalizar qualquer aspecto específico de sua
visão ou do que o rodeava, mas havia uma voz em seu interior. Ela
falava numa língua muito antiga que ele, porém, entendia
perfeitamente. A voz era musical e cadenciada, mas as palavras
como que o martelavam.
– Não é o presente que influencia o futuro, seu tolo. É o futuro
que forma o presente. Percebeste tudo às avessas. Como o futuro
está determinado, o desenrolar de eventos que assegure esse
futuro é algo fixo e inevitável.
Essas palavras o trespassaram. Ele sentiu o terror enraizado
na matéria densa de seu corpo. Com isso, soube que seu corpo
ainda existia, mas que a natureza inconsequente e o imenso
poder de sua visão deixavam-no sentindo-se contaminado,
indefeso, incapaz de sinalizar um só músculo e obter sua
obediência. Ele sabia que estava se submetendo cada vez mais ao
ataque daquelas vidas coletivas cujas recordações novamente
haviam-no levado a crer que ele era real. O medo tomou conta
dele. Ele pensou que poderia estar perdendo o controle interior,
tornando-se finalmente uma Abominação.
Leto sentiu seu corpo convulsionado de terror.
Ele tinha se tornado dependente de sua vitória e da recém-
conquistada benévola cooperação daquelas lembranças. Elas se
haviam voltado contra ele, todas elas... inclusive a Harum, com
sua realeza, em quem ele havia confiado. Ele estava estirado,
trêmulo, sobre uma superfície desprovida de raízes, incapaz de
dar alguma expressão à sua própria vida. Tentou se concentrar
numa imagem mental de si mesmo e se viu confrontado por
quadros que se sobrepunham, cada um de uma época diferente,
de bebê a um ancião cambaleante. Leto se lembrou de um dos
primeiros ensinamentos recebidos de seu pai: Deixe suas mãos
ficarem jovens, e depois velhas. Só que agora seu corpo todo
estava mergulhado nessa realidade perdida e a totalidade da
progressão de imagens se derretia em outras faces, nos traços
daqueles que lhe haviam cedido suas lembranças.
Um relâmpago de diamante o estilhaçou.
Leto sentiu fragmentos de sua percepção saírem flutuando a
esmo, mas mesmo assim ele conservou uma noção de si mesmo,
em algum ponto entre ser e não ser. Com uma esperança
acelerada, ele sentiu seu corpo respirando. Inspirando...
expirando. Ele inspirou fundo: yin. Exalou: yang.
Em algum ponto imediatamente além de seu alcance estava um
lugar de suma independência, da vitória sobre todas as confusões
inerentes a essa multidão de vidas; não se tratava de um falso
senso de comando, mas de uma verdadeira vitória. Ele agora
entendia seu erro anterior: tinha buscado poder na realidade de
seu transe, escolhendo isso em vez de encarar os temores que ele
e Ghanima tinham incutido um no outro.
O medo derrotara Alia!
Mas a busca pelo poder armou outra armadilha que o fizera
derivar para a fantasia. Ele enxergou a ilusão. Todo o processo
ilusório girou meia-volta e agora ele via um centro a partir do qual
ele podia observar sem nenhum propósito a fuga de suas visões,
de suas vidas interiores.
Um sentimento de elação o inundou. Ele sentiu vontade de rir,
mas negou-se esse luxo, sabendo que com isso travaria as portas
da memória.
Ah, minhas recordações, ele pensou. Vi sua ilusão. Vocês não
inventam mais o momento seguinte para mim. Vocês somente me
mostram como criar novos momentos. Não ficarei trancado dentro
de velhos trilhos.
Esse pensamento cruzou sua percepção como se limpasse
escrupulosamente uma superfície e, em seu rastro, ele sentiu seu
corpo, uma einfalle que relatava com os mais mínimos detalhes
cada célula, cada neurônio. Leto entrou num estado de intensa
quietude. Nessa condição, ouviu vozes, sabendo que vinham de
muito longe, mas ele as ouvia nitidamente como se ecoassem num
precipício.
Uma dessas vozes era a de Halleck:
– Talvez tenhamos dado demais para ele.
– Nós demos a ele exatamente o que ela nos disse para dar –
Namri respondeu.
– Acho que devemos ir até lá e dar outra espiada nele, ver como
ele está.
– Sabiha é boa nessas coisas. Se alguma coisa começar a dar
errado, ela vai nos chamar.
– Não gosto dessa história de Sabiha.
– Ela é um ingrediente necessário.
Leto sentia uma luz intensa fora dele e escuridão dentro, mas
essa escuridão era sigilosa, protetora e cálida. A luz começou a se
incendiar e ele sentiu que vinha da escuridão interior, rodopiando
para fora como uma nuvem luminosa. O seu corpo se tornou
transparente, puxando-o para cima, mas ele mantinha intacto o
contato einfalle com cada célula e cada nervo. A multidão de vidas
interiores entrou em alinhamento, e nada ali estava misturado ou
emaranhado. Elas se tornaram muito quietas, repetindo seu
próprio silêncio interior, cada uma das vidas-recordações
discretas, uma entidade incorpórea e indivisível.
Leto então falou com elas:
– Sou o espírito de vocês. Sou a única vida que vocês podem
realizar. Sou a casa do seu espírito na terra que não está em parte
nenhuma, a terra que é o único lar que lhes resta. Sem mim, o
universo inteligível retorna ao caos. O criativo e o abissal estão
inextricavelmente ligados em mim. Somente eu posso mediar
entre eles. Sem mim, a humanidade afundará no atoleiro e na
vaidade do saber. Por meu intermédio, vocês e ela acharão o único
caminho que sai do caos: compreender vivendo.
Com isso, ele se entregou e se tornou si mesmo, a pessoa que
era de fato, abrangendo a totalidade de seu passado. Não era
vitória, não era derrota, era algo novo a ser compartilhado com
qualquer uma das vidas interiores que ele escolhesse. Leto
saboreou essa novidade, deixando que ela encharcasse cada
célula, cada nervo, abrindo mão do que a einfalle lhe havia
apresentado e recuperando a totalidade no mesmo instante.
Depois de um tempo ele acordou no escuro. Com um lampejo
de percepção, soube onde sua carne estava: sentado na areia a
mais ou menos um quilômetro do paredão do penhasco que
demarcava a fronteira norte do sietch. Ele agora sabia qual era o
sietch: Jacurutu, sem dúvida... e Fondak. Mas era muito diferente
de todos os mitos, lendas e boatos que os contrabandistas
permitiam que circulassem.
Uma moça estava sentada num tapete diretamente à sua
frente, com um brilhante luciglobo ancorado em sua manga
esquerda, flutuando um pouco acima de sua cabeça. Quando Leto
desviou os olhos do luciglobo, havia estrelas. Ele conhecia essa
moça; era a que estava em sua visão anterior, a que torrava os
grãos de café. Era a sobrinha de Namri, tão ágil com a faca quanto
o tio. A faca estava em seu colo. Ela vestia um manto verde
simples sobre o trajestilador cinzento. O nome dela era Sabiha. E
Namri tinha planos específicos para ela.
Sabiha viu o despertar de Leto nos olhos dele e informou:
– Já é quase de manhã. Você passou a noite toda aqui.
– E a maior parte de um dia – ele completou. – Você faz um bom
café.
Essa declaração a surpreendeu, mas ela a ignorou com a
simplicidade que resultava de um árduo treinamento e de
instruções explícitas a respeito de como se comportar naquela
circunstância.
– É a hora dos assassinos – Leto murmurou. – Mas a sua faca
não é mais necessária. – Ele olhou brevemente para a dagacris no
colo dela.
– Cabe a Namri julgar isso – ela rebateu.
Não a Halleck, então. Ela apenas confirmava o conhecimento
interior dele.
– Shai-hulud é um grande coletor de lixo e apagador de
evidências indesejadas – Leto comentou. – Eu mesmo o usei desse
jeito.
Ela descansou levemente a mão no cabo da faca.
– Quanta coisa é revelada pelo lugar onde nos sentamos e pelo
modo como nos sentamos – ele continuou. – Você está no tapete e
eu, na areia.
A mão dela se fechou sobre o cabo da faca.
Leto bocejou, e com tanto entusiasmo e alongamento que seu
maxilar chegou a doer.
– Tive uma visão que incluía você – ele revelou.
Os ombros dela se soltaram minimamente.
– Temos sido muito parciais a respeito de Arrakis – ele
prosseguiu. – Muito bárbaro da nossa parte. Existe um certo
ímpeto no que estivemos fazendo, mas agora devemos desfazer
uma parte do nosso trabalho. Os pratos da balança devem
encontrar um melhor ponto de equilíbrio.
Um ar aturdido franziu a testa de Sabiha.
– Na minha visão – Leto seguiu adiante –, a menos que
recuperemos a dança da vida aqui, em Duna, o dragão do chão do
deserto não existirá mais.
Como ele tinha usado o antigo nome fremen para o grande
verme, ela levou um momento até compreender o que ele estava
dizendo. Depois indagou:
– Os vermes?
– Estamos numa passagem escura – Leto explicou. – Sem a
especiaria, o Império se desfaz. A Guilda não se movimentará. Os
planetas irão aos poucos perdendo a clara lembrança uns dos
outros. Irão se voltar para dentro de si mesmos. O espaço se
tornará um limite quando os navegadores da Guilda perderem
sua maestria. Eles ficarão colados no cume das dunas e se
tornarão ignorantes de tudo que está acima e abaixo de nós.
– Você fala de um jeito muito estranho – ela comentou. – Como
foi que você me viu na sua visão?
Confie na superstição fremen!, ele pensou. E respondeu:
– Tornei-me pasigráfico. Sou um hieróglifo vivo com que se
anotam as mudanças que devem ainda transcorrer. Se eu não as
anotar, você experimentará uma dor em seu coração de tal
magnitude que nenhum humano deveria sentir.
– E que palavras são essas? – ela perguntou, mas sua mão
continuava levemente sobre a dagacris.
Leto girou a cabeça na direção dos penhascos de Jacurutu,
vendo o início da claridade que seria a segunda lua em sua
passagem por trás das rochas, antes do alvorecer. O grito de
morte de uma lebre do deserto chegou a ele como um choque
sonoro. Ele viu que Sabiha estremeceu. Houve o rufar de asas,
uma ave predadora, uma criatura da noite, ali. Ele viu o brilho
ambarino de muitos olhos que varriam o ar acima dele, indo na
direção de gretas no penhasco.
– Devo seguir o ditame do meu novo coração – respondeu Leto.
– Você olha para mim, Sabiha, como se eu fosse somente uma
criança, mas eu...
– Eles me avisaram sobre você – interrompeu Sabiha, e agora os
ombros dela estavam rígidos e em prontidão.
Ele ouviu o medo na voz dela e acrescentou:
– Não tenha medo de mim, Sabiha. Você já viveu oito anos a
mais do que esta minha carne. Por isso, eu a respeito. Mas tenho
muitos mais incontáveis milhares de anos de outras vidas, muitos
mais do que você já conheceu. Não me vigie como se eu fosse uma
criança. Já transitei os muitos futuros e, em um deles, vi nós dois
entrelaçados no amor. Você e eu, Sabiha.
– O que... Isso não pode... – e ela não conseguiu formular o
pensamento, engasgada com a própria confusão.
– Essa ideia pode florescer em você – ele insistiu. – Agora, me
ajude a voltar ao sietch, pois estive em lugares distantes e estou
fraco com o cansaço de tantas viagens. Namri deve ficar sabendo
onde estive. – Ele viu a indecisão nela e acrescentou: – Eu não sou,
por acaso, o Convidado da Caverna? Namri deve se inteirar do que
eu aprendi. Temos muito a fazer para impedir que o nosso
universo degenere.
– Não acredito nisso... sobre os vermes – ela balbuciou.
– Nem sobre nós, entrelaçados no amor?
Ela sacudiu a cabeça. Mas ele enxergava os pensamentos que
flutuavam na mente dela, como penas sopradas pelo vento. As
palavras dele ao mesmo tempo que a atraíam a repeliam. Ser a
consorte do poder: essa era realmente uma proposta de alta
sedução. Porém, havia as ordens dadas por seu tio. Mas um dia
este filho do Muad’Dib seria o regente em Duna e nos mais
remotos rincões de seu universo. Então ela deparou com uma
aversão a esse futuro; uma aversão extremamente fremen,
comum àqueles acostumados a se esconderem em cavernas. A
consorte de Leto seria vista por todos, seria alvo de fofocas e
especulações. Todavia, teria uma grande fortuna e...
– Eu sou o filho do Muad’Dib, capaz de ver o futuro – ele
declarou.
Lentamente, ela recolocou a faca na bainha, levantou-se
facilmente do tapete, cruzou o espaço para ficar ao lado dele e
ajudou-o a ficar em pé. Leto se sentiu agradavelmente surpreso
com a atitude ela. Sabiha dobrou o tapete com capricho e o
colocou sobre o ombro direito. Ele viu que ela avaliava a diferença
de tamanho entre os dois enquanto ponderava as palavras que ele
tinha dito: Entrelaçados no amor?
O tamanho é outra coisa que muda, ele pensou.
Ela colocou uma mão no braço dele para ajudá-lo e controlá-lo.
Ele tropeçou e ela falou asperamente:
– Estamos longe demais do sietch para isso! – querendo dizer
que aquele som indesejado poderia atrair um verme.
Leto sentiu que seu corpo tinha se tornado uma casca seca
como o exoesqueleto abandonado por um inseto. Ele conhecia
essa casca: era aquela com a qual a sociedade tinha sido
constituída à base de negócios com o mélange e sua Religião do
Elixir Dourado. Estava vazia por conta de seus excessos. Os altos
propósitos do Muad’Dib tinham se deteriorado em mera magia,
imposta à força pelo braço militar da Auqaf. A religião do
Muad’Dib agora tinha outro nome: era Shien-san-Shao, um rótulo
ixiano que designava a intensidade e a insanidade daqueles que
achavam que podiam levar o universo a se tornar o paraíso pela
ponta das dagacris. Mas, assim como Ix tinha mudado, aquilo
também mudaria, pois eles eram somente o nono planeta de seu
sol e inclusive já haviam esquecido a língua que lhes havia dado
seu nome.
– O jihad foi uma espécie de insanidade de massa – ele
resmungou.
– O quê? – Sabiha estivera concentrada na tarefa de fazê-lo
andar sem ritmo, ocultando a presença deles dois ali, na areia
aberta. Por um momento, ela prestou atenção às palavras dele, e
depois as interpretou como outro produto do óbvio cansaço que
ele estava sentindo. Ela sentia toda a fraqueza dele, a maneira
como o transe o havia exaurido. Aquilo, para ela, parecia algo
cruel e sem cabimento. Se era para matá-lo, como Namri dissera,
então que isso fosse feito prontamente, sem todos aqueles
rodeios. Todavia, Leto tinha falado de uma revelação maravilhosa.
Talvez Namri estivesse atrás daquilo. Com certeza esse devia ser
o motivo por trás do comportamento da avó desta criança. Por
que outro motivo Nossa Senhora de Duna daria sua bênção a atos
tão arriscados contra uma criança?
Criança?
Mais uma vez, ela refletiu sobre as palavras dele. Estavam na
base do penhasco, agora, e ela deteve sua carga, ajudando-o a
relaxar um pouco ali, que era mais seguro. À fraca claridade das
estrelas, ela desceu os olhos para ele, ali no chão, e perguntou:
– Como é que os vermes deixariam de existir?
– Somente eu posso mudar isso – ele assegurou. – Não tema. Eu
posso mudar qualquer coisa.
– Mas é...
– Algumas perguntas não têm resposta – ele murmurou. – Eu vi
esse futuro, mas as contradições apenas a deixariam confusa.
Este é um universo em mudança e nós somos a mais estranha de
todas as mudanças. Nós ressoamos ao impacto de muitas
influências. Nossos futuros necessitam de atualizações
constantes. Agora, existe uma barreira que devemos remover.
Isso exige que façamos coisas brutais, que contrariam nossos
mais elementares e preciosos desejos... Mas deve ser feito.
– O que deve ser feito?
– Alguma vez você matou um amigo? – ele indagou e, virando-
se, seguiu adiante, na direção de uma fenda que subia e se tornava
a entrada oculta do sietch. Ele andava com a rapidez que a fadiga
pelo transe lhe permitia, mas ela estava nos calcanhares dele, e
pôde agarrar a barra do manto dele e fazê-lo parar.
– Que história é essa de matar um amigo?
– De todo modo, ele vai morrer – Leto a ignorou. – Eu não tenho
de fazê-lo, mas poderia impedir que acontecesse. Se eu não
impeço, isso não é o mesmo que matá-lo?
– Quem é esse... que vai morrer?
– A alternativa me mantém calado – ele concluiu. – Talvez eu
deva entregar minha irmã a um monstro.
Mais uma vez ele se virou e se afastou dela e dessa vez, quando
ela puxou o manto dele, ele resistiu e se recusou a responder às
perguntas dela. É melhor que ela não saiba até que chegue o
momento, ele pensou.
A seleção natural tem sido descrita como um
processo de filtragem por parte do ambiente para
escolher aqueles que terão descendentes. No que
diz respeito a humanos, porém, essa é uma
perspectiva extremamente limitada. A
reprodução via sexo tende à experimentação e à
inovação. Ela suscita muitas questões, inclusive
uma muito antiga sobre se o ambiente é um
agente de seleção depois que ocorre a variação,
ou se o ambiente desempenha um papel de pré-
seleção para determinar as variações que filtra.
Duna não respondeu de fato a essas questões;
Duna apenas suscitou novas indagações que Leto
e a Irmandade podem tentar responder nas
próximas quinhentas gerações.
– A catástrofe de Duna, segundo Harq al-Ada

As nuas rochas de tom castanho da Muralha-Escudo se


desenhavam escuras ao longe e, para Ghanima, eram visíveis
como a concretização daquilo que ameaçava seu futuro. Ela
estava na beirada do jardim suspenso no alto do Forte, com o sol
se pondo às suas costas. O sol emitia um intenso tom laranja
brilhante que escapulia por entre nuvens de poeira, uma cor tão
rica quanto a borda da boca de um verme. Ela suspirou,
pensando: Alia... Alia... Será que seu destino será também o meu?
Ultimamente, as vidas em seu interior vinham se manifestando
em tom progressivamente mais estridente. Havia algo no
condicionamento das mulheres na sociedade fremen – talvez
fosse uma legítima diferença sexual, mas de todo modo... – que as
tornava mais suscetíveis a essa maré interna. Sua avó a havia
alertado quanto a isso, enquanto planejavam as coisas,
recorrendo à sabedoria acumulada das Bene Gesserit, mas
despertando as ameaças desse saber em Ghanima.
– Abominação – tinha dito lady Jéssica –, que é o nosso termo
para os pré-nascidos, tem uma longa história de amargas
experiências por trás dela. Seu teor parece ser aquilo que divide
as vidas interiores. Elas se repartem em benignas e malignas. As
benignas se mantêm tratáveis, úteis. As malignas parecem se unir
numa só psique poderosa que tenta obter o domínio da carne viva
e sua consciência. Sabe-se que esse processo leva um tempo
considerável, mas seus sinais são bem conhecidos.
– Por que você abandonou Alia? – Ghanima perguntou.
– Fugi aterrorizada por causa do que tinha criado – Jéssica
confessara, em voz baixa. – Desisti. E agora meu fardo é que...
talvez eu tenha desistido cedo demais.
– O que você quer dizer?
– Não consigo explicar ainda, mas... pode ser... não! Não lhe
darei falsas esperanças. Ghafla, a distração abominável, tem uma
longa história na mitologia humana. Foi chamada de muitas
coisas, mas principalmente era a possessão. É isso que parece ser.
Você perde a noção em meio à malignidade, e ela se apossa de
você.
– Leto... tinha medo da especiaria – Ghanima dissera,
descobrindo que podia falar dele, em voz baixa. O preço terrível
que custaria aos dois!
– E com razão – Jéssica concordara, e não conseguiu falar mais
nada.
Mas Ghanima tinha arriscado uma explosão de suas
lembranças interiores, espreitando através de um insólito véu
enevoado e futilmente ampliando os temores Bene Gesserit.
Explicar o que havia acometido Alia não o tornava nem um pouco
mais leve. O acúmulo Bene Gesserit de experiências, porém, tinha
sinalizado a existência de uma possível saída de tal armadilha e
quando Ghanima se arriscou ao compartilhamento interior, ela
convocou primeiramente a mohalata, a parceria com o benigno
que talvez pudesse protegê-la.
Ela se lembrava desse compartilhamento agora, em pé à
claridade do ocaso, naquela borda do jardim suspenso do Forte.
Imediatamente, ela sentiu a presença-recordação de sua mãe.
Chani estava ali com ela, como uma aparição entre Ghanima e os
penhascos a distância.
– Entre aqui e você provará do fruto do Zaqquum, o alimento
do inferno! – Chani advertiu. – Tranque essa porta, minha filha; é
sua única chance de estar a salvo.
O clamor interno irrompeu em torno dessa visão e Ghanima
fugiu, afundando sua consciência no Credo da Irmandade,
reagindo movida mais pelo desespero do que pela confiança.
Rapidamente ela recitou o Credo, movendo os lábios, deixando
sua voz se tornar um murmúrio:
– A religião é a imitação do adulto pela criança. A religião é o
enquistamento de crenças passadas: a mitologia, que é um sistema
de adivinhações, as suposições ocultas da confiança no universo,
aqueles pronunciamentos que os homens vêm fazendo em busca de
obter poder pessoal, tudo isso misturado com fragmentos de
iluminação. E sempre o mandamento final e nunca explicitado é
“Não questionarás!”. Mas nós questionamos. Nós rompemos esse
mandamento como algo dado. O trabalho ao qual nos entregamos
é a libertação da imaginação, é o uso construtivo do poder da
imaginação em favor do mais profundo senso de criatividade da
humanidade.
Lentamente, uma sensação de ordem se instalou nos
pensamentos de Ghanima. Ela sentia seu corpo tremendo, porém,
e sabia como era frágil essa paz que havia alcançado – enquanto o
véu enevoado continuava estendido em sua mente.
– Leb Kamai – ela sussurrou. – Coração do meu inimigo, tu não
serás o meu coração.
E ela convocou a lembrança dos traços de Farad’n, o jovem
rosto saturnino com suas sobrancelhas espessas e a boca firme.
O ódio me tornará forte, ela pensou. No ódio, posso resistir ao
destino de Alia.
Mas persistia a trêmula fragilidade de sua posição e a única
coisa em que ela podia pensar era quanto Farad’n se parecia com
o avô, o finado Shaddam IV.
– Você está aqui!
Era Irulan, chegando pelo lado direito de Ghanima,
caminhando pelo parapeito com movimentos que lembravam os
de um homem. Quando se virava, Ghanima pensou: E ela é filha de
Shaddam.
– Por que você insiste em escapulir sozinha? – Irulan
perguntou, parando na frente de Ghanima e se impondo a ela com
uma expressão de recriminação.
Ghanima se absteve de afirmar que não estava sozinha, que a
guarda a havia visto vir até o telhado. A raiva de Irulan se voltou
para o fato de estarem expostas ali e para a possibilidade de uma
arma distante poder atingi-las.
– Você não está usando um trajestilador – Ghanima apontou. –
Você sabia que, antigamente, alguém flagrado do lado de fora do
sietch, sem um trajestilador, era automaticamente morto?
Desperdiçar água era colocar a tribo em risco.
– Água! Água! – Irulan retrucou. – Quero saber por que você se
expõe ao perigo dessa maneira. Volte para dentro. Você está
criando problemas para todos nós.
– E que perigo existe agora? – Ghanima indagou. – Stilgar já
eliminou os traidores. As guardas de Alia estão por toda parte.
Irulan ergueu os olhos para cima, para o céu que escurecia. As
estrelas já se tornavam visíveis contra o cinza-azulado do fundo.
Ela voltou sua atenção para Ghanima:
– Não vou discutir. Fui mandada até aqui para lhe dizer que
recebemos notícias de Farad’n. Ele aceita, mas, por algum motivo,
deseja adiar a cerimônia.
– Por quanto tempo?
– Ainda não sabemos. Está sendo negociado. Mas Duncan está
sendo mandado de volta.
– E minha avó?
– Ela prefere permanecer em Salusa por ora.
– Quem pode culpá-la? – Ghanima perguntou.
– Aquela briga idiota com Alia!
– Não tente me enrolar, Irulan! Aquela briga não foi idiota de
jeito nenhum. Eu ouvi as histórias.
– Os receios da Irmandade...
– São reais – Ghanima afirmou. – Bom, você já deu o recado.
Você pensa em aproveitar esta oportunidade e tentar mais uma
vez me dissuadir?
– Já desisti.
– Você deveria saber que não adianta tentar mentir para mim –
Ghanima a repreendeu.
– Muito bem! Continuarei tentando dissuadir você. Esta tática
é uma loucura. – E Irulan se perguntou por que deixava que
Ghanima se tornasse tão irritante. Uma Bene Gesserit não
precisava se irritar com nada. Ela continuou: – Estou preocupada
com o extremo perigo que isso representa para você. Você sabe
disso. Ghani, Ghani... você é filha de Paul. Como pode...
– Porque sou a filha dele – Ghanima interrompeu. – Nós,
Atreides, descendemos de Agamêmnon e sabemos o que existe
no nosso sangue. Nunca se esqueça disso, esposa estéril do meu
pai. Nós, Atreides, temos uma história sangrenta e ainda não
acabamos com o derramamento de sangue.
Distraída, Irulan perguntou:
– Quem é Agamêmnon?
– Que rasa se mostra a tão elogiada educação Bene Gesserit –
apontou Ghanima. – Sempre me esqueço de que vocês abreviam a
história. Mas minhas lembranças recuam no tempo até... – mas
ela se calou. Era melhor não atiçar aquelas sombras que seguiam
embaladas em frágil sono.
– Seja o que for que você lembre – Irulan prosseguiu –, deve
saber como é perigoso esse curso de ação...
– Eu vou matá-lo – Ghanima reafirmou. – Ele me deve uma vida.
– E eu irei impedir isso se puder.
– Já sabemos disso. Você não terá chance para tanto. Alia está
mandando você para o Sul, para uma das novas cidades, até que
tudo esteja acabado.
Irulan balançou a cabeça, incrédula.
– Ghani, jurei que a protegeria de todo e qualquer perigo. Eu
darei minha própria vida para isso, se necessário. Se acha que vou
ficar descansando em alguma djedida murada enquanto você...
– Mas os huanui sempre estarão a postos – Ghanima ameaçou,
falando suavemente. – Temos a destilaria fúnebre como opção.
Estou certa de que você não conseguirá interferir estando lá.
Irulan empalideceu, colocou a mão sobre a boca e por um
momento se esqueceu de todo o seu treinamento. Esse gesto era
uma medida do tanto de cuidado que havia investido em
Ghanima, esse quase que completo abandono de tudo exceto o
medo animal. Ela falou, intensamente abalada por essa emoção,
permitindo que seus lábios inclusive tremessem:
– Ghani, eu não temo por mim. Eu me jogaria na boca do verme
por você. Sim, eu sou isso que você me chamou, a esposa estéril
do seu pai, mas você é a filha que eu nunca tive. Eu lhe imploro... –
e lágrimas brilharam no canto de seus olhos.
Ghanima lutou contra o aperto que sentia na garganta e disse:
– Existe outra diferença entre nós. Você nunca foi fremen. Eu
nunca fui nada além disso. Um abismo nos separa. Alia sabe. Seja
lá o que ela for, disso ela sabe.
– Você não pode afirmar o que Alia sabe – Irulan apontou, com
amargura na voz. – Se eu não soubesse que ela é Atreides, poderia
jurar que ela se determinou a destruir sua própria família.
E como você sabe que ela ainda é Atreides?, pensou Ghanima,
pasma com esse ponto cego em Irulan. Ali estava uma Bene
Gesserit, e quem poderia saber melhor do que elas a história da
Abominação? Ela não se permitia sequer pensar a respeito,
quanto mais acreditar nisso. Alia devia ter feito alguma bruxaria
naquela pobre mulher.
– Eu tenho um débito de água com você – Ghanima admitiu. –
Por isso vou lhe poupar a vida, mas seu primo está condenado.
Não se fala mais nisso.
Irulan acalmou o tremor dos lábios e enxugou os olhos.
– Eu realmente amei seu pai – ela sussurrou. – Nem soube disso,
até ele estar morto.
– Talvez ele não tenha morrido – Ghanima cogitou. – Esse
Pregador...
– Ghani! Às vezes eu não te entendo! Será que Paul atacaria sua
própria família?
Ghanima deu de ombros e olhou para o céu que escurecia.
– Ele poderia achar divertida uma coisa assim...
– Como você pode falar tão levianamente de...
– Para manter longe as trevas mais profundas – Ghanima
rebateu. – Não estou escarnecendo de você. Os deuses sabem que
não faço isso. Mas sou somente a filha de meu pai. Sou cada uma
das pessoas que contribuiu com sua essência para o sangue
Atreides. Você não quer pensar em Abominação, mas eu não
consigo pensar em outra coisa. Eu sou pré-nascida. Eu sei o que
existe dentro de mim.
– Essa superstição antiga e idiota sobre...
– Pare! – e Ghanima estendeu a mão para alcançar a boca de
Irulan. – Eu sou cada uma das Bene Gesserit e aquele desgraçado
programa de procriação delas até minha avó, inclusive. E sou
muito mais. – Ela arranhou a palma da mão esquerda, tirando
sangue com uma unha. – Este corpo é jovem, mas suas
experiências... Oh, pelos deuses, Irulan! Minhas experiências! Não!
– Ela estendeu sua mão de novo, quando Irulan se aproximou mais
um pouco. – Eu conheço todos os futuros que meu pai explorou.
Tenho os conhecimentos de muitas vidas e toda a ignorância,
também... todas as fragilidades. Se você quer me ajudar, Irulan,
primeiro precisa saber quem eu sou.
Instintivamente, Irulan se curvou e acolheu Ghanima em seus
braços, mantendo-a próxima, o rosto das duas se tocando.
Não me faça ter de matar esta mulher, Ghanima pensou. Não
permita que isso aconteça.
E, enquanto esse pensamento a invadia, o deserto inteiro era
envolvido pela noite.
Uma pequena ave te chamou
Com um bico raiado de carmim.
Ela piou uma vez em Sietch Tabr
E tu foste adiante até a Planície Fúnebre.
– Lamento por Leto II

Leto acordou com o retinir dos anéis de água no cabelo de uma


mulher. Ele olhou para o túnel aberto que era a saída de sua
alcova e viu Sabiha sentada ali. Com sua percepção parcialmente
imersa no transe da especiaria, ele a viu esboçada por tudo aquilo
que sua visão lhe havia revelado sobre ela. Ela já estava dois anos
mais velha do que a maioria das mulheres fremen em idade de se
casar ou pelo menos estar prometida. Portanto, sua família a
estava reservando para alguma outra coisa... ou para alguém. Ela
era evidentemente núbil. Os olhos dele, enevoados pela visão,
viam-na como uma criatura saída do passado terrânico: cabelos
escuros e pele pálida, órbitas fundas que davam a seus olhos
completamente azuis um verniz esverdeado. Seu nariz era
pequeno e a boca era larga, sobre um queixo pontudo. E, para ele,
ela era o sinal vivo de que o plano das Bene Gesserit era conhecido
– ou alvo de suspeitas – aqui, em Jacurutu. Então, elas esperavam
reviver o imperialismo faraônico por meio dele, não é? Qual o
propósito delas em forçá-lo a casar com sua própria irmã?
Seguramente, Sabiha não poderia impedir isso.
Entretanto, os que o capturaram sabiam desse plano. E como
tinham ficado sabendo? Eles não tinham compartilhado a visão
dele. Eles não tinham vindo com ele até ali onde a vida se tornava
uma membrana móvel entre outras dimensões. A subjetividade
reflexa e circular das visões haviam revelado que Sabiha era única
e exclusivamente sua.
Novamente, os anéis de água tilintaram no cabelo de Sabiha e o
som atiçou em Leto suas visões. Ele sabia onde tinha estado e o
que tinha aprendido. Nada podia apagar isso. Ele não estava
instalado no palanquim de um grande Criador, agora, em que o
tilintar dos anéis de água dos passageiros criasse um ritmo para
ditar o andamento de sua passagem. Não... ele estava ali, numa
cela em Jacurutu, tendo embarcado naquela que era a mais
perigosa de todas as viagens: para longe de e de volta a Ahl as-
sunna wal-jamas, saindo do mundo real dos sentidos e voltando
para esse mundo.
E o que ela estava fazendo ali, com os anéis de água tilintando
no cabelo? Ah, é mesmo. Ela estava preparando mais doses da
mistura que eles achavam capaz de mantê-lo cativo: aquele
cozido encharcado de essência de especiaria que o manteria meio
dentro e meio fora do universo real até que ele morresse ou bem o
plano de sua avó tivesse êxito. E toda vez que pensava que tinha
vencido, eles o mandavam de volta. Lady Jéssica tinha razão,
naturalmente – aquela bruxa velha! Mas que coisa para se fazer...
A plena recordação de todas aquelas vidas dentro dele não tinha
a menor serventia enquanto ele não conseguisse organizar os
dados e se lembrar deles quando quisesse. Aquelas vidas tinham
sido a matéria-prima crua da anarquia. Uma delas, ou todas elas,
poderia tê-lo dominado inteiramente. A especiaria e sua peculiar
localização, ali em Jacurutu, tinham sido uma aposta
desesperada.
Agora, Gurney espera pelo sinal e eu me recuso a dá-lo a ele.
Quanto tempo será que a paciência dele aguentará?
Ele olhou para Sabiha. Ela empurrara o capuz para trás e assim
mostrava as tatuagens tribais em suas têmporas. De início, Leto
não reconheceu as tatuagens, mas depois se lembrou de onde
estava. Sim, Jacurutu ainda existia.
Leto não sabia se sentia gratidão pela avó ou se a odiava. Ela
queria que ele tivesse instintos no nível consciente, mas instintos
eram apenas reminiscências raciais de como enfrentar crises.
Suas memórias diretas daquelas outras vidas lhe diziam muito
mais do que isso. Agora, ele tinha esse conteúdo todo organizado,
e podia ver claramente o perigo de se expor a Gurney. Já com
Namri não havia como esconder essa revelação e ele era outro
problema.
Sabiha entrou na cela com uma vasilha nas mãos. Ele admirou a
maneira como a luz que vinha de fora produzia círculos irisados
nas pontas do cabelo dela. Delicadamente, ela ergueu a cabeça de
Leto e começou a dar-lhe de comer o que trouxera na tigela. Foi
somente então que ele se deu conta de como estava fraco. Ele
deixou que ela o alimentasse enquanto sua mente divagava,
rememorando a reunião com Gurney e Namri. Os dois tinham
acreditado nele! Namri mais do que Gurney, inclusive, mas
Gurney não pôde negar o que seus sentidos já lhe haviam
informado a respeito do planeta.
Sabiha usou uma ponta do seu manto para limpar a boca do
menino.
Ah, Sabiha, ele pensou, lembrando da outra visão que enchera
seu coração de dor, muitas foram as noites em que sonhei ao lado
da água corrente, ouvindo o vento que passava no alto. Muitas
foram as noites em que minha carne esteve estendida ao lado do
covil da serpente e em que sonhei com Sabiha ao calor do verão. Eu
a vi guardando pães de especiaria assados sobre lâminas
incandescentes de açoplás. Eu vi a água límpida no qanat, suave e
cintilante, mas um tufão atravessou-me o coração. Ela bebe café e
come. Os dentes dela brilham à sombra. Eu a vejo trançando meus
anéis de água no seu cabelo. A fragrância de âmbar de seu peito
penetra até o mais fundo dos meus sentidos. Ela me atormenta e
me oprime simplesmente por existir.
A pressão de suas multimemórias explodiu o encasulamento
congelado no tempo no qual ele tinha tentado resistir. Ele sentiu
corpos entrelaçados, os sons do sexo, ritmos entremeados a cada
impressão sensorial: lábios, respiração, hálitos úmidos, línguas.
Em algum ponto de sua visão, havia formas em hélice, da cor do
carvão, e ele sentiu a pulsação dessas formas quando elas giravam
dentro dele. Uma voz suplicava dentro do seu crânio: “Por favor,
por favor, por favor, por favor...”. Havia um inchaço taurino adulto
em suas virilhas e ele sentia sua boca aberta, fixa, presa ao
formato-escora do êxtase. Então, um suspiro, uma onda doce e
prolongada, o colapso.
Oh, que delícia permitir que isso exista!
– Sabiha – ele sussurrou. – Oh, minha Sabiha.
Quando seu encargo tinha evidentemente mergulhado até o
fundo no transe induzido pela comida, Sabiha pegou a tigela e
saiu, parando na entrada da cela para falar com Namri:
– Ele disse o meu nome de novo.
– Volte e fique com ele – Namri ordenou. – Preciso encontrar
Halleck e falar com ele sobre isso.
Sabiha deixou a vasilha no chão, ao lado da porta, e voltou para
dentro da cela. Sentou-se na beirada do catre e fixou os olhos no
rosto de Leto, dentro das sombras.
Naquele instante, ele abriu os olhos e estendeu a mão, tocando
o rosto dela. Ele começou a falar com ela, então, contando-lhe a
visão que tivera e na qual ela vivia.
Ela cobriu a mão dele com a sua, enquanto ele falava. Ele era tão
doce... tão doce... e ela afundou no catre, amortecida pela cálida
maciez da mão dele, inconsciente, antes que ele tirasse a mão.
Leto se sentou, sentindo a extensão de sua fraqueza. A especiaria
e as visões que ela induzia o haviam exaurido. Esquadrinhando
suas células, buscou alguma rara centelha de energia, e então saiu
do leito, sem perturbar Sabiha. Ele tinha de ir, mas sabia que não
conseguiria ir longe. Devagar, fechou seu trajestilador, enrolou-se
em seu manto, deslizou pelo túnel e chegou à câmara externa,
onde estavam poucas pessoas, todas entretidas com seus
próprios afazeres. Elas o conheciam, mas ele não era
responsabilidade de nenhuma delas. Namri e Halleck saberiam o
que ele estava fazendo; Sabiha não podia estar longe.
Ele encontrou o tipo de corredor lateral que precisava
percorrer e seguiu corajosamente por ele.
Lá atrás, Sabiha dormia pacificamente até ser despertada por
Halleck.
Ela se sentou, esfregou os olhos, viu o catre vazio, viu o tio em
pé, atrás de Halleck, viu a fúria no rosto dos dois.
Namri respondeu à expressão do rosto da sobrinha:
– Sim, ele fugiu.
– Como você pôde deixar que ele escapasse? – Halleck trovejou.
– Como isso é possível?
– Ele foi visto indo na direção da saída inferior – Namri
informou, com a voz estranhamente calma.
Sabiha se encolheu diante deles, recordando-se.
– Como? – Halleck insistiu.
– Não sei, não sei.
– É de noite e ele está fraco – Namri murmurou. – Ele não irá
longe.
Halleck rodopiou e o olhou de frente:
– Você quer que o menino morra!
– Isso não me desagradaria.
Novamente, Halleck pressionou Sabiha:
– Conte-me o que aconteceu.
– Ele me tocou na bochecha, e ficou falando da visão que tinha
tido... com nós dois juntos. – Então, baixou os olhos para o catre
vazio. – Ele me fez dormir. Ele fez alguma mágica comigo.
Halleck olhou rapidamente para Namri.
– Ele poderia estar escondido dentro de alguma coisa?
– Dentro de nada. Ele seria encontrado, visto. Ele estava indo
para a saída. Está lá fora.
– Mágica – Sabiha murmurou.
– Não foi mágica – Namri explicou. – Ele a hipnotizou. Quase
conseguiu comigo, lembra? Ele disse que eu era amigo dele.
– Ele está muito fraco – Halleck repetiu.
– Apenas o corpo está – Namri insistiu. – Mas ele não irá longe.
Desmontei as bombas movidas pelos calcanhares do trajestilador
dele. Ele vai morrer desidratado se não o encontrarmos.
Halleck quase se virou para socar Namri, mas se segurou
graças a um rígido autocontrole. Jéssica o alertara, dizendo que
Namri talvez tivesse de matar o garoto. Deuses das profundezas!
A que encruzilhada tinham chegado: Atreides contra Atreides.
Ele disse então:
– Seria possível ele só ter saído andando, levado pelo transe da
especiaria?
– E que diferença isso faz? – Namri indagou. – Se ele escapar de
nós, deve morrer.
– Começaremos a busca na primeira hora do amanhecer –
Halleck falou. – Ele levou algum fremkit?
– Sempre tem alguns perto do veda-portas – Namri anuiu. – Ele
teria feito grossa bobagem não levando um fremkit. Por alguma
razão, ele nunca me deu a impressão de ser um tonto.
– Então, mande uma mensagem aos nossos amigos – Halleck
ordenou. – Conte a eles o que aconteceu.
– Hoje à noite não mandaremos nenhuma mensagem – Namri
rebateu. – Vem vindo uma tempestade. As tribos já estão
acompanhando isso há três dias. Ela chegará por aqui à meia-
noite. As comunicações já estão interrompidas. O sinal dos
satélites caiu, neste setor, duas horas atrás.
Halleck inspirou fundo, com um estremecimento. O menino
morreria ao relento, com certeza, se a tempestade de areia o
apanhasse. Ela acabaria com a carne de seus ossos e estilhaçaria
os ossos em fragmentos invisíveis. A falsa morte tão planejada
iria se tornar real. Uma mão cerrada bateu duro na palma da
outra. Essa tempestade os deixaria presos dentro do sietch. Não
poderiam nem montar uma equipe de busca. E a estática da
tempestade já tinha isolado o sietch.
– Distrans – ele aventou, pensando que poderiam impregnar a
voz de um morcego com uma mensagem e despachá-lo para dar o
alarme.
Namri balançou a cabeça, repelindo a sugestão:
– Os morcegos não voam em tempestades. Ora, meu camarada.
Eles são mais sensíveis do que nós. Ficarão entocados no
penhasco até que a tempestade passe. É melhor esperar que os
satélites voltem a funcionar. Então podemos tentar encontrar os
restos mortais dele.
– Não se ele levou um fremkit e se enfiou na areia – Sabiha
balbuciou.
Xingando em voz baixíssima, Halleck saiu apressadamente dali
e entrou no sietch a passos largos.
A paz exige soluções, mas nunca alcançamos
soluções vivas. Apenas trabalhamos para chegar
a elas. Uma solução fixa, por definição, é uma
solução morta. O problema com a paz é que ela
tende a punir os erros em vez de recompensar a
lucidez.
– As palavras de meu pai: relato de Muad’Dib,
reconstituído por Harq al-Ada

– Ela o está treinando? Ela está treinando Farad’n?


Alia encarou Duncan Idaho com uma mescla proposital de raiva
e incredulidade. O paquete da Guilda tinha entrado em órbita em
Arrakis ao meio-dia, hora local. Uma hora depois, um cargueiro
havia descido Idaho no solo de Arrakina, sem aviso, de modo
informal e aberto. Em poucos minutos, um tóptero o havia
deixado no topo do Forte. Alertada a respeito de sua chegada
iminente, Alia o havia recebido lá no alto, friamente formal diante
de sua guarda, mas agora estavam os dois nos aposentos dela, na
borda norte do edifício. Ele tinha acabado de apresentar seu
relatório fidedigno, com precisão, enfatizando cada trecho de
informação conforme o padrão Mentat.
– Ela perdeu o juízo – Alia explodiu.
Ele considerou essa declaração como uma questão Mentat.
– Todos os indicadores mostram que ela continua bem
equilibrada e sã. Eu diria que seu índice de sanidade estava em...
– Pare com isso! – Alia interrompeu, incisiva. – No que ela pode
estar pensando?
Idaho, que sabia que seu próprio equilíbrio emocional agora
dependia de ele se refugiar na frieza Mentat, declarou:
– Calculo que ela esteja pensando no noivado da neta. – Os
traços dele permaneciam cuidadosamente inexpressivos, uma
verdadeira máscara sobre a agonia dilacerante de uma perda,
agonia que ameaçava dominá-lo. Ali não havia nem sombra de
Alia. Alia estava morta. Por algum tempo ele tinha sustentado
uma Alia-mito para os seus sentidos, alguém que ele tinha
fabricado a partir de suas próprias necessidades, mas um Mentat
não poderia continuar alimentando esse autoengano senão por
um breve período. Essa criatura que parecia humana estava
possuída; uma psique demoníaca a governava. Os olhos de aço de
Duncan, com sua miríade de facetas à disposição do Mentat,
reproduziam em seus centros de visão uma multiplicidade de
Alias-mitos. Mas quando ele as combinava numa única imagem,
não restava Alia nenhuma. Os traços dela mudavam para atender
a outras demandas. Ela era apenas uma casca dentro da qual
haviam sido cometidos ultrajes.
– Onde está Ghanima? – ele perguntou.
Com um aceno de mão, ela encerrou a pergunta.
– Mandei que fosse com Irulan ficar sob a custódia de Stilgar.
Território neutro, ele pensou. Houve outra negociação com
tribos rebeldes. Ela está perdendo terreno e não sabe... ou será que
sabe? Haveria outro motivo? Será que Stilgar passou para o lado
dela?
– O noivado – Alia repetiu, pensativa. – Quais são as condições
na Casa Corrino?
– Salusa ferve de parentes distantes, todos empenhados em
trabalhar Farad’n na esperança de ter alguma participação
depois, quando ele reassumir o poder.
– E ela o está treinando segundo a Doutrina Bene...
– Não é o adequado para o marido de Ghanima?
Alia sorriu consigo mesma, pensando na ira irredutível de
Ghanima. Que Farad’n seja treinado. Jéssica estava treinando um
cadáver. Tudo daria certo.
– Devo refletir sobre isso mais extensamente – ela murmurou. –
Você está muito calado, Duncan.
– Esperando suas perguntas.
– Entendo. Sabe, eu estava muito zangada com você. Levá-la a
Farad’n!
– Você mandou que isso fosse real.
– Fui obrigada a divulgar o relatório de que vocês dois tinham
sido feitos prisioneiros – ela redarguiu.
– Eu cumpri suas ordens.
– Você é tão literal às vezes, Duncan. Você quase me apavora.
Mas se não tivesse agido assim, bem...
– Lady Jéssica está fora de perigo – ele informou. – E, pelo bem
de Ghanima, devemos ser gratos...
– Sumamente gratos – ela concordou. Mas pensou: Ele não é
mais confiável. Tem aquela maldita lealdade Atreides. Preciso
achar uma desculpa para afastá-lo... e então mandar eliminá-lo.
Um acidente, claro.
Ela o tocou no rosto.
Idaho forçou-se a corresponder à carícia tomando a mão de
Alia e beijando-a.
– Duncan, Duncan, como tudo isso é triste – ela suspirou. – Mas
não posso mantê-lo aqui comigo. Estão acontecendo muitas
coisas e tenho pouquíssimas pessoas em quem confiar
completamente.
Ele soltou a mão dela e esperou.
– Fui forçada a mandar Ghanima para Tabr – ela explicou. – Por
aqui, as coisas estavam muito agitadas. Invasores da Terra
Partida romperam os qanats na Bacia Kagga e espalharam toda a
água na areia. Arrakina ficou com seu suprimento limitado. A
Bacia ainda está cheia de trutas de areia, no entanto, coletando a
água. Estão sendo vigiadas, é claro, mas nosso suprimento é
muito pequeno.
Ele já tinha reparado como era pequeno o número de amazonas
na guarda que vigiava o Forte. E pensou: Os maquis do deserto
interior continuarão sondando as defesas de Alia. Será que ela não
sabe disso?
– Tabr ainda é território neutro – ela prosseguiu. – Neste exato
momento, estão acontecendo negociações por lá. Javid está lá
com uma delegação do Clero. Mas eu queria que você fosse para
Tabr para vigiá-los, especialmente vigiar Irulan.
– Ela é Corrino – ele concordou, mas viu nos olhos de Alia que
ela o estava rejeitando. Como tinha se tornado transparente essa
criatura-Alia!
Ela acenou com a mão.
– Vá agora, Duncan, antes que eu amoleça e fique com você
aqui, ao meu lado. Senti tanto a sua falta...
– E eu senti a sua – ele confessou, permitindo que toda a dor
pela perda dela fluísse em sua voz.
Ela olhou para ele, atônita com a tristeza dele. Então
acrescentou:
– Por mim, Duncan. – E pensou: Que pena, Duncan. Mas
concluiu: – Zia o levará a Tabr. Precisamos do tóptero aqui, de
volta.
A amazona de estimação dela, Duncan pensou. Com essa,
preciso tomar cuidado.
– Entendo – ele murmurou, tomando a mão dela mais uma vez
para beijá-la. Ele olhou para aquela carne querida que um dia
tinha sido a de sua Alia. Ele não conseguiu olhá-la nos olhos
quando saiu. Era outra pessoa acompanhando-o por dentro
daqueles olhos.
Quando ele chegou à plataforma no topo do Forte, Idaho
percebeu a crescente sensação de perguntas sem resposta. O
encontro com Alia tinha sido extremamente exigente para a parte
Mentat dele que incessantemente ficava lendo os sinais. Ele
aguardou ao lado do tóptero com uma das amazonas do Forte, e
lançou um olhar severo na direção sul. A imaginação se apossou
de sua mirada e a levou mais além da Muralha-Escudo até Sietch
Tabr. Por que Zia está me levando a Tabr? Voltar com o tóptero é
um serviço pífio. Por que a demora? Será que Zia está recebendo
instruções especiais?
Idaho observou a guarda no turno de vigia, subiu ao assento do
piloto dentro do tóptero, inclinou-se para fora e falou:
– Diga a Alia que mandarei o tóptero imediatamente de volta
com um dos homens de Stilgar.
E antes que a guarda pudesse protestar, ele fechou a porta e
deu partida no aparelho. Ele pôde ver como ela ficara ali, indecisa.
Quem poderia questionar o consorte de Alia? Ele estava no ar
antes que ela tivesse conseguido decidir o que fazer.
Agora que estava sozinho no tóptero, ele permitiu que o
sentimento de luto o invadisse por inteiro e pôde enfim se
entregar a uma grande crise de choro convulsivo. Alia tinha
morrido. Eles tinham se separado para sempre. Lágrimas
escorriam de seus olhos tleilaxu e ele murmurou:
– Que todas as águas de Duna escorram para a areia. Elas não
serão maiores do que minhas lágrimas.
Esse, porém, era um excesso não Mentat e ele o reconhecia
como excesso mesmo, e se forçou a recobrar a capacidade de um
julgamento mais sóbrio sobre suas necessidades imediatas. O
tóptero demandava sua atenção. As reações de manter o
aparelho voando lhe proporcionaram um certo alívio e, mais uma
vez, ele estava no controle de si mesmo.
Ghanima com Stilgar de novo. E Irulan.
Por que Zia tinha sido incumbida de acompanhá-lo? Ele se
propôs essa questão dentro dos moldes Mentat e a resposta o
deixou gelado: Eu iria sofrer um acidente fatal.
Esse santuário de pedra dedicado ao crânio de
um governante não permite orações. Ele se
tornou um túmulo para lamentações. Somente o
vento ouve a voz deste lugar. Os gritos das
criaturas da noite e os passantes se espantam
com as duas luas e todos dizem que os dias dele
chegaram ao fim. Nenhum suplicante mais vem.
Os visitantes deixaram a festa. Como é desolado o
caminho que vem até esta montanha.
– Frases no santuário de um duque Atreides. Anônimo.

Para Leto, a coisa tinha a enganadora aparência da


simplicidade: evitar a visão, fazer aquilo que não tinha sido visto.
Ele conhecia a armadilha em seu pensamento, vira como os fios
informais de um futuro aprisionado se retorciam juntos uns sobre
os outros até prenderem a pessoa firmemente, mas agora ele
estava com os fios presos de modo diferente em sua mão. Ele não
tinha se visto fugindo de Jacurutu em nenhum deles. O fio para
Sabiha era o primeiro que devia ser cortado.
Agora, aos últimos raios da luz do dia, ele se acocorava na
borda oriental da rocha que protegia Jacurutu. Seu fremkit
continha tabletes de energia e alimento. Por ora, aguardava que
suas forças voltassem. A oeste estendia-se o lago Azrak, a
planície de gipsita que antigamente fora um corpo d’água, nos
tempos de antes dos vermes. Invisível, a leste, estava Bene Sherk,
uma área larga com novos assentamentos espalhados que se
avizinhavam do bled ilimitado. Ao sul ficava Tanzerouft, a Terra
do Terror: eram 38 mil quilômetros de terras estéreis,
interrompidos somente por pequenos bolsões de dunas contidas
por mato rasteiro e captadores de ventos para garantir a água –
resultado da transformação ecológica que estava remodelando a
paisagem de Arrakis. Eram mantidos por equipes enviadas por
aeronaves e ninguém ficava ali por muito tempo.
Irei para o sul, ele disse a si mesmo. Gurney esperará que eu
faça isso. Aquele não era um momento para fazer algo
completamente inesperado.
Logo ficaria escuro e ele poderia deixar seu esconderijo
temporário. Ele contemplou a linha do horizonte ao sul. Havia o
resquício sibilante de um céu ameaçador ao longo do horizonte,
formando lá longe rolos que lembravam fumaça, uma linha
ardente de poeira ondulante: uma tempestade. Ele prestou
atenção no centro elevado da tempestade que se erguia desde a
Grande Chã como um verme em busca de algo. Durante um
minuto inteiro ele prestou atenção nesse centro e viu que ele não
se movia, nem para a direita, nem para a esquerda. O antigo
ditado fremen saltitou na tela da sua mente: Quando o centro não
se mexe, você está no caminho dele.
Aquela tempestade mudava tudo.
Por um instante, ele olhou para trás, na direção de Tabr, a
oeste, sentindo a ilusória paz marrom-acinzentada do entardecer
no deserto, percebendo a grande frigideira de gipsita rodeada
por seixos arredondados pela erosão do vento, o desolado vazio
com sua superfície irreal de um branco ofuscante que refletia as
nuvens de poeira. Em nenhuma de suas visões ele se havia visto
sobrevivendo à serpente cinzenta de uma tempestade-mãe, nem
enterrado bem fundo na areia para sobreviver. Havia apenas a
visão em que rolava com o vento... mas que isso seria mais tarde.
E uma tempestade estava ali adiante, serpenteando e
ocupando muitos graus de latitude, fustigando o mundo até
subjugá-lo. Podia ser arriscado. Havia histórias antigas, sempre
ouvidas do amigo de um amigo, nas quais se podia prender um
verme exausto, na superfície, enfiando um gancho de criador
debaixo de um de seus amplos anéis e, depois de tê-lo imobilizado
desse modo, enfrentar a tempestade à sua sombra, a sotavento.
Era fina a distância entre a audácia e o completo abandono,
descuidado e radical, que o tentava. Essa tempestade não
chegaria ali antes da meia-noite, no mínimo. Havia tempo.
Quantos fios podiam ser cortados ali? Todos, inclusive o
derradeiro?
Gurney espera que eu vá para o sul, mas não em meio a uma
tempestade.
Ele olhou em direção ao sul, buscando identificar algum
caminho, e viu a pincelada de ébano traçada por uma garganta
profunda que fluía adiante e se curvava através das rochas de
Jacurutu. Ele enxergou cachos de areia no fundo da garganta,
areia quimérica. Essa areia desembocava seus córregos altivos na
planície como se fossem de água. O sabor saibroso da sede se
pronunciou em sua boca quando ele colocou nos ombros o
fremkit e se embrenhou no caminho que conduzia ao desfiladeiro.
Ainda havia luz suficiente para que ele o enxergasse, mas ele sabia
que era uma corrida contra o tempo.
Quando alcançou a boca do desfiladeiro, a rápida noite do
deserto central se abateu sobre ele. Restou-lhe o amarelado
glissando do luar para iluminar seu trajeto até Tanzerouft. Ele
sentia seu coração batendo em ritmo acelerado, com todos os
receios que lhe forneciam o rico acervo de suas reminiscências.
Ele sentia que poderia estar entrando em huanui-naa, como o
medo fremen costumava chamar a maior das tempestades: a
Destilaria Fúnebre da Terra. Mas, fosse o que fosse que estava
por vir, seria fora das visões. Cada passo dado o afastava mais e
mais do dhyana induzido pela especiaria, aquela percepção
expansiva de sua natureza intuitiva-criativa, com seu
desdobramento na imóvel cadeia da causalidade. Para cada cem
passos que ele dava agora, devia haver pelo menos um passo fora
do caminho, além das palavras, mas forjando a comunhão com
sua realidade interna recém-apreendida.
De um jeito ou de outro, meu pai, estou indo ao seu encontro.
Havia aves invisíveis nas rochas em torno dele, aves que se
davam a conhecer pelos leves sons que emitiam. Ao estilo fremen,
ele atentou para o eco que faziam para achar o caminho ali onde
não enxergava nada. Muitas vezes, passando ao lado de recessos,
ele identificava os malévolos olhos verdes de criaturas entocadas
porque sabiam que uma tempestade se acercava.
Ele saiu do outro lado da garganta e entrou no deserto. A areia
viva se movimentava e respirava embaixo dele, apontando a ação
profunda e latente de fumarolas. Olhando para trás e para cima,
viu os picos de lava de Jacurutu banhados pela lua. A estrutura
toda era metamórfica e basicamente formada pela pressão de
forças gigantescas. Arrakis ainda tinha algo a dizer quanto ao seu
próprio futuro. Ele plantou seu martelador para chamar um
verme e, quando o dispositivo começou a golpear a areia, Leto se
posicionou para vigiar e ouvir. Inconscientemente, sua mão
direita foi parar no anel Atreides com o gavião, escondido numa
dobra amarrada por um nó de sua dishdasha. Gurney o havia
encontrado, mas o deixara para trás. O que teria pensado, ao ver
o anel de Paul?
Pai, espere por mim em breve.
O verme veio do sul. Fez um ângulo para evitar as rochas. Não
era o verme tão grande que ele tinha desejado, mas isso não podia
ser alterado. Ele dimensionou a passagem da criatura, plantou
seus ganchos e escalou a lateral escamosa do bicho com uma
apressada e rápida pisada em falso sobre o martelador, criando
um borrifo sibilante de areia. O verme se contorceu facilmente
sob a pressão de seus ganchos. O vento da passagem dele por ali
começou a chicotear seu manto. Ele baixou o olhar na direção das
estrelas ao sul, esmaecidas pela nuvem de poeira, e direcionou o
verme naquele sentido.
Direto para a tempestade.
Quando a primeira lua subiu, Leto avaliou a altura da
tempestade e alongou a previsão de sua chegada. Só com o nascer
do dia. Estava se espalhando, acumulando mais energia para o
grande salto. Haveria bastante trabalho para as equipes da
transformação ecológica. Era como se por ali o planeta lutasse
contra eles com sua fúria consciente, fúria que aumentava
conforme a transformação ia ocupando mais terras.
A noite toda ele impeliu o verme para o sul, sentindo a reserva
de suas energias nos movimentos que lhe eram transmitidos por
seus pés. De vez em quando ele deixava o animal pender para
oeste, que era o que tentava fazer incessantemente, levado pelos
invisíveis limites de seu território, ou por uma profunda
percepção da tempestade que se aproximava. Os vermes se
enterravam para escapar aos ventos que fustigavam tudo com
areia, mas este não iria afundar embaixo do deserto enquanto os
ganchos de criador segurassem seus anéis bem abertos.
Por volta da meia-noite, o verme estava dando sinais de
exaustão. Leto voltou um pouco para seguir rente às grandes
serras e conduzia-o sem piedade, deixando que ele seguisse mais
devagar, embora sempre rumo ao sul.
A tempestade chegou pouco depois de nascer o dia. Primeiro,
houve a extensa e nacarada imobilidade da aurora no deserto,
empurrando as dunas umas contra as outras. Depois, a poeira
que avançava obrigou-o a lacrar as abas do rosto. Na poeira cada
vez mais grossa, o deserto se tornou um quadro pardacento e sem
traços. Então as agulhadas de areia começaram a cortar-lhe as
bochechas e a pinicar suas pálpebras. Ele sentiu a aspereza dos
grãos em sua língua e soube que tinha chegado o momento da
decisão. Deveria se arriscar, inspirado pelas antigas histórias, e
imobilizar o verme praticamente esgotado? Foi preciso menos do
que um batimento do seu coração para ele deixar essa opção de
lado, e chegar até o rabo do animal, de onde extraiu seus ganchos.
Mal se movimentando agora, o verme começou a cavar. Mas o
excesso de batidas rítmicas do sistema de transferência de calor
da criatura ainda chegaram a produzir um ciclone tórrido atrás
dele, em meio à tempestade. Desde as primeiras histórias que
lhes contavam, as crianças fremen aprendiam como era perigoso
ficar perto da cauda de um verme. Os vermes eram fábricas de
oxigênio. O fogo ardia descontroladamente quando eles
passavam, alimentado pelas exuberantes exalações de suas
adaptações químicas à fricção no interior de seu organismo.
A areia começou a fustigar os pés de Leto. Ele soltou seus
ganchos e deu um salto amplo a fim de evitar a fornalha da cauda
em movimento. Tudo agora dependia de afundar sob a areia no
local em que o verme a havia deixado solta.
Agarrando a ferramenta de compactação estática com a mão
esquerda, ele cavou um sulco na face móvel da duna, sabendo que
o verme estaria exausto demais para se virar e engoli-lo com sua
imensa boca branca e cor de laranja. Enquanto cavava com a mão
esquerda, a direita lidava para tirar a tendestiladora de dentro do
fremkit, deixando-a preparada para ser inflada. Tudo ficou
pronto em menos de um minuto. A tenda estava montada num
bolsão de areia compactada como uma parede, na face a
sotavento da duna. Ele encheu a tenda e rastejou para dentro
dela. Antes de lacrar a estreita abertura, ele estendeu a mão com
a ferramenta de compactação e inverteu seu funcionamento. A
face móvel da duna veio escorregando e cobriu a tenda. Somente
uns poucos grãos de areia entraram quando ele lacrou o lacre-
esfíncter.
Agora, ele tinha de agir ainda mais depressa. Nenhum
respirarenador poderia chegar a subir o suficiente para
assegurar-lhe o suprimento de ar respirável. Aquela era uma
tempestade monstruosa, da espécie que deixava poucos
sobreviventes. Cobriria aquele lugar com muitas toneladas de
areia. Somente a macia bolha da tendestiladora com seu invólucro
externo compactado poderia protegê-lo.
Leto se estendeu de costas em todo o seu comprimento com as
mãos cruzadas sobre o peito e se induziu um transe para dormir
em que seus pulmões só se movimentariam uma vez a cada hora.
Com isso ele se rendeu ao desconhecido. A tempestade passaria
e, se não expusesse esse frágil bolsão, talvez pudesse emergir... ou
talvez entrasse em Madinat assalam, a Morada da Paz. O que
quer que acontecesse, ele sabia que devia romper os fios, um a
um, até que ao final só lhe restasse o Caminho Dourado. Era isso
ou ele não conseguiria retornar ao califado dos herdeiros de seu
pai. Ele não viveria mais a mentira daquele Desposyni, aquele
califado terrível, adorando o demiurgo de seu pai. Ele não mais se
calaria quando um sacerdote pronunciasse absurdos ofensivos: A
dagacris dele dissolverá os demônios!
Tendo firmado esse compromisso, a percepção de Leto se
fundiu com a teia atemporal do dao.
Existem óbvias influências de nível superior em
todo sistema planetário. Isso em geral é
demonstrado introduzindo-se a vida
terraformada em planetas recém-descobertos.
Em todos os casos desse tipo, a vida em zonas
similares desenvolve semelhanças notáveis entre
as formas adaptadas. Essas formas significam
muito mais do que matéria configurada; elas
conotam uma organização para a sobrevivência e
um relacionamento entre essas organizações. A
busca humana por essa ordem interdependente e
nosso nicho dentro dela representam uma
profunda necessidade. No entanto, essa busca
pode ser pervertida e se tornar um apego
conservador à mesmice. Isso sempre se provou
fatal para o sistema inteiro.
– A catástrofe de Duna,
segundo Harq al-Ada

– Meu filho não viu realmente o futuro; ele viu o processo de


criação e sua relação com os mitos em cujo seio os homens
dormem – Jéssica explicou. Ela falava rapidamente, mas sem dar
a impressão de que estava apressando a questão. Ela sabia que os
observadores escondidos dariam um jeito de interromper assim
que identificassem o que ela estava fazendo.
Farad’n estava sentado num retângulo de luz no chão,
recortado pela luz da tarde que coava em ângulo inclinado
através da janela atrás dele. Jéssica só podia enxergar a copa de
uma árvore no jardim de trás, quando olhou para a parede oposta
à posição que ocupava, em pé, naquele momento. Ela via à sua
frente um novo Farad’n; mais magro, mais forte. Os meses de
treinamento tinham operado sua inevitável magia nele. Os olhos
dele cintilaram quando ele olhou para ela.
– Ele viu as configurações de matéria que as forças existentes
iriam criar a menos que fossem desviadas – Jéssica continuou. –
Em vez de se voltar contra seus semelhantes, ele se voltou contra
si mesmo e se recusou a aceitar somente aquilo que o confortava
porque isso seria covardia moral.
Farad’n tinha aprendido a ouvir em silêncio, testando,
sondando, contendo as perguntas até as ter aperfeiçoado e
tornado um gume afiado. Ela falara sobre a visão Bene Gesserit da
memória molecular, expressa como ritual e, muito naturalmente,
tinha se desviado para a descrição da maneira usada pela
Irmandade para analisar Paul Muad’Dib. Farad’n, todavia,
percebeu um jogo de luz e sombras em suas palavras e atitudes,
uma espécie de projeção de formas inconscientes que destoavam
da intenção manifesta de seus comentários.
– De todas as nossas observações, essa é a mais importante –
ela havia dito. – A vida é uma máscara através da qual o universo
se manifesta. Supomos que a humanidade inteira e suas formas
de sustentação da vida representam uma comunidade natural e
que o destino de toda a vida está em jogo no destino do indivíduo.
Assim, quando se trata daquele autoexame absoluto, o amor fati,
paramos de brincar de deus e voltamos a ensinar. Sob pressão,
escolhemos indivíduos e os tornamos tão livres quanto nos é
possível.
Agora ele percebia aonde ela teria de estar indo, sabendo o
efeito que esse encaminhamento da situação teria naqueles que
observavam escondidos. Farad’n absteve-se de dar uma rápida
olhada de apreensão à porta. Somente um olhar treinado poderia
ter detectado esse seu momentâneo desequilíbrio, mas Jéssica o
captou e sorriu. Afinal de contas, um sorriso podia significar
muitas coisas.
– Esta é uma espécie de cerimônia de graduação – ela
comunicou. – Estou muito satisfeita com você, Farad’n. Queira
ficar em pé, por favor.
Ele obedeceu e, com isso, tapou a visão da copa da árvore que
tivera através da janela atrás dele.
Jéssica manteve os braços rigidamente colados ao corpo
enquanto pronunciou:
– Estou incumbida de dizer isto a você. “Estou diante da
presença humana sagrada. Assim como eu faço agora, um dia
você também o fará. Rezo para a sua presença para que assim
seja. O futuro continua incerto e assim deve ser, pois é a tela na
qual pintamos os nossos desejos. Desse modo, a condição
humana sempre tem à frente uma tela maravilhosamente vazia.
De nosso, temos somente este momento no qual nos dedicamos
continuamente à presença sagrada que compartilhamos e
criamos”.
Quando Jéssica terminou de falar, Tyekanik entrou pela porta
à esquerda, andando com uma falsa informalidade que o desdém
em sua fisionomia contradizia.
– Meu senhor – ele interrompeu.
Mas já era tarde demais. As palavras de Jéssica e todos os
preparativos que tinham sido feitos antes haviam surtido o efeito.
Farad’n não era mais Corrino. Agora, ele era Bene Gesserit.
O que vocês, do diretório da CHOAM , parecem
incapazes de entender é que raramente vocês
encontram lealdades reais no comércio. Quando
foi a última vez que vocês ouviram falar de um
funcionário dando a vida por sua empresa?
Talvez sua deficiência esteja no falso pressuposto
de que vocês podem mandar os homens pensarem
e cooperarem. Esse tem sido o fracasso de tudo,
de religiões aos estados maiores, ao largo de toda
a história. Os estados maiores exibem um longo
histórico de destruir suas próprias nações.
Quanto às religiões, recomendo que releiam
Santo Tomás de Aquino. Quanto a vocês da CHOAM ,
em quantos absurdos acreditam! Os homens
precisam querer fazer as coisas, movidos por seus
mais profundos interesses. As pessoas, e não as
organizações comerciais ou cadeias de comando,
são o que fazem funcionar as grandes civilizações.
Toda civilização depende da qualidade dos
indivíduos que ela produz. Se você superorganiza
os homens, se você os superlegaliza, estará assim
suprimindo sua ânsia de construir a própria
grandeza: então, os homens não conseguem
trabalhar e sua civilização entra em colapso.
– Carta à CHOAM , atribuída ao Pregador
Leto saiu do transe numa transição tranquila que não definiu
limites entre um estado e outro. Um nível de sua percepção
simplesmente migrou para o outro.
Ele sabia onde estava. A recuperação da energia o inundou de
cima a baixo, mas ele percebeu que havia outra mensagem
proveniente da atmosfera quase cadavérica dentro da
tendestiladora cujo ar agora já não tinha oxigênio. Se ele se
recusasse a se mexer, sabia que permaneceria preso numa teia
atemporal, no agora eterno em que todos os eventos coexistiam.
Essa perspectiva o deixou interessado. Ele entendia o Tempo
como uma convenção moldada pela mente coletiva de todos os
sencientes. Tempo e Espaço eram categorias impostas ao
universo por sua Mente. Ele tinha apenas de se desvencilhar da
multiplicidade para a qual as visões da presciência o atraíam.
Uma seleção audaciosa poderia mudar os futuros provisórios.
E que audácia era exigida nesse momento?
O estado de transe o seduzia. Leto sentiu que tinha vindo do
alam al-mythal para o universo da realidade, e então percebera
que ambos são idênticos. Ele queria manter a magia rihani dessa
revelação, mas a sobrevivência impunha que ele tomasse
decisões. Seu implacável apetite pela vida disparou sinais através
de sua malha neural.
Abruptamente, ele estendeu a mão direita para o lugar em que
tinha deixado o instrumento de compactação de areia. Ele o
segurou, rolou-o sobre seu estômago e abriu uma fenda no
esfíncter da tenda. Um bolsão de areia escorreu sobre sua mão.
Trabalhando no escuro, instigado pelo ar viciado, ele agia com
rapidez e cavava um túnel para cima, em ângulo muito inclinado.
Ele percorreu uma distância equivalente a seis vezes a sua
própria altura antes de emergir no escuro e ao ar fresco. Quando
saiu de uma vez de seu casulo, viu-se ao luar e na face de frente
para o vento de uma duna longa e sinuosa, mais ou menos a um
terço da crista dessa elevação.
Era a segunda lua lá no alto. Ela passou depressa no arco do céu
acima dele, sumindo atrás da duna, com as estrelas que estavam
espalhadas sobre ele como pedras fulgurantes ao lado de um
caminho. Leto tentou localizar a constelação do Peregrino,
encontrou e deixou que seus olhos seguissem o braço estendido
até o brilho cintilante de Foum al-Hout, a estrela polar do sul.
Aí está o seu maldito universo para você!, ele pensou. Visto de
perto, era um lugar opressivo como a areia por toda parte à sua
volta, um lugar de mudanças, de singularidades sobrepondo mais
singularidades. Visto de longe, somente os padrões se tornavam
revelados e esses padrões tentavam a pessoa a crer em absolutos.
Nos absolutos podemos perder nosso rumo. Isso o fez pensar no
familiar aviso de uma máxima fremen: “Aquele que perde seu
caminho no Tanzerouft perde sua vida”. Os padrões podiam guiar
e podiam aprisionar. Era preciso lembrar que os padrões mudam.
Ele respirou fundo e se mexeu para entrar em ação. Deslizando
de volta por dentro da passagem, ele desmontou a tenda, trouxe-
a para fora e tornou a fechar o fremkit.
Um clarão cor de vinho começou a despontar no horizonte a
leste. Ele colocou a mochila às costas, escalou a duna até o topo e
ficou em pé ali, sentindo a friagem do ar de antes do amanhecer
até que o sol em ascensão lhe trouxe uma sensação de calor no
lado direito do rosto. Para reduzir o reflexo do sol Leto tingiu as
pálpebras, sabendo que devia seduzir o deserto agora, e não lutar
contra ele. Depois de recolocar o pigmento de volta na mochila,
ele bebericou algumas gotas de seus tubos coletores, engoliu-as e
então inspirou.
Caindo de volta na areia, ele começou a investigar seu
trajestilador, até chegar às bombas movidas pelo calcanhar. Elas
tinham sido caprichosamente cortadas com uma faca muito fina.
Ele despiu o traje e o consertou, mas o estrago já tinha sido feito.
Pelo menos metade da água do seu corpo estava perdida. Se não
fosse pela captura do trajestilador... Ele refletiu um pouco sobre
isso ao colocar o traje, pensando como era estranho que ele não
tivesse previsto essa possibilidade. Este era um óbvio perigo de
um futuro desprovido de visões.
Leto se agachou na crista da duna e então colou seu corpo à
solidão extrema daquele lugar. Deixou que seus olhos vagassem a
esmo, olhando para detalhes na areia em busca de alguma
abertura sibilante, de alguma irregularidade na superfície que
pudesse indicar a atividade de um verme. Mas a tempestade tinha
imprimido sua uniformidade à areia. Nesse momento, ele tirou um
martelador de dentro do kit, armou o instrumento e o disparou
girando para chamar Shai-hulud para que subisse das
profundezas. Então se preparou para esperar.
O verme demorou bastante para aparecer. Ele ouviu a criatura
antes de a ver, virou para o leste de onde procedia o sussurrante
tremor de terra que fazia o ar vibrar e esperou pelo primeiro
vislumbre de laranja da boca que emergia de dentro da areia. O
verme se levantou desde lá debaixo emitindo um silvo gigantesco
de poeira que obscureceu seus flancos. A parede cinzenta
recurvada passou rastejando por Leto e ele então firmou seus
ganchos, subindo pelo lado do verme com passos ágeis. Girou-o
para o sul, traçando uma grande curva na areia.
Instigado pelos ganchos de montaria, o verme aumentou a
velocidade de seu deslocamento. O vento chicoteava o manto de
Leto contra seu corpo. Ele mesmo se sentia tão espicaçado
quanto o verme, percebendo uma intensa corrente de criação em
suas virilhas. Cada planeta tinha seu próprio período e cada vida
também, foi o que pensou.
Aquele verme era do tipo que os fremen chamavam de
“resmungão”. Várias vezes ele enterrava os segmentos dianteiros
da carapaça enquanto a cauda estava dando a direção. Isso gerava
sons retumbantes e fazia com que parte de seu corpo se erguesse
totalmente da areia formando uma corcova móvel. Apesar disso,
esse era um verme rápido, e quando seguiam a favor do vento a
exalação escaldante de sua cauda emitia uma brisa quente que o
envolvia, repleta de odores acres levados pelo frescor do oxigênio.
Enquanto o verme disparava rumo ao sul, Leto deixou sua
mente correr solta. Tentou pensar que essa passagem era uma
nova cerimônia para sua vida, cerimônia que não lhe pedia que
pensasse no custo que teria de arcar se seguisse o Caminho
Dourado. Como os antigos fremen, ele sabia que teria de adotar
muitas novas cerimônias para impedir que sua personalidade se
dividisse em suas partes de memória, para manter sob custódia
permanente os caçadores carniceiros de sua própria alma.
Imagens contraditórias, que nunca poderiam ser unificadas,
devem agora ser enquistadas numa tensão vibrante, criando
forças polarizantes que o mobilizariam internamente.
Sempre uma novidade, ele pensou. Devo sempre buscar os
novos fios a partir de minha visão.
No início da tarde, sua atenção foi capturada por uma
protuberância à frente e um pouco à direita do rumo em que
seguia. Lentamente, a protuberância se tornou um ressalto
estreito, um afloramento de rocha precisamente onde ele tinha
esperado.
Agora, Namri... agora, Sabiha, vejamos como seus irmãos
recebem a minha presença, ele pensou. Esse era um dos fios mais
delicados que tinha pela frente, perigoso mais por seus atrativos
do que por suas ameaças ostensivas.
O ressalto ficou mudando suas dimensões por um longo tempo
e, por alguns momentos, parecia estar se aproximando de Leto,
em vez de ele estar chegando mais perto.
Demonstrando cansaço, agora, o verme começou a se desviar
para a esquerda. Leto desceu pelas laterais imensas para
reajustar seus ganchos e manter o gigante no rumo certo. A doce
pungência do mélange lhe chegou às narinas, um sinal de um veio
rico. Passaram pelas manchas leprosas de areia cor de violeta
onde um afloramento de especiaria tinha irrompido, e ele segurou
as rédeas do verme com firmeza até terem ultrapassado o veio. A
brisa, recendendo ao aroma acentuado da canela, perseguiu-o
por algum tempo até que Leto encaminhou o verme num novo
curso, em rumo direto ao ressalto que emergia na paisagem.
Repentinamente, faiscaram cores distantes no bled ao sul: o
relampejar imprevidente tal arco-íris, emitido por um artefato
feito pelo homem, naquela imensidão. Ele pegou o binóculo,
focalizou as lentes a óleo e, ao longe, divisou as asas desfraldadas
de um batedor de especiaria faiscando à luz do dia. Embaixo dele,
uma grande colheitadeira descartava suas asas como uma
crisálida antes de se desmontar e despencar. Quando Leto baixou
o binóculo, a colheitadeira tinha se tornado um cisquinho e ele se
viu tomado pela hadhdhab, a onipresente imensidão do deserto.
Ela lhe disse como aqueles coletores de especiaria o estariam
vendo – um objeto escuro entre o céu e o deserto, ou seja, o
símbolo fremen para homem. Naturalmente eles o veriam e
tomariam cuidado. Esperariam. Os fremen sempre desconfiavam
uns dos outros no deserto, até que reconhecessem o recém-
chegado ou vissem com certeza que ele não representava
nenhuma ameaça. Mesmo no âmbito da requintada pátina da
civilização imperial com suas regras sofisticadas, eles
continuavam sendo selvagens semidomesticados,
perpetuamente cientes de que a dagacris se dissolvia com a
morte de seu dono.
É isso que pode nos salvar, Leto pensou. Essa selvageria.
Ao longe, o rastreador de especiaria enveredou para a direita e
depois para a esquerda, o que era um sinal para o chão. Ele
imaginou que os ocupantes do aparelho que esquadrinhava o
deserto atrás dele esperavam um sinal de que ele seria mais do
que um cavaleiro solitário montado num único verme.
Leto conduziu o verme para a esquerda e assim o manteve até
ter invertido seu rumo. Então desceu pela lateral da criatura e
saltou, afastando-se dela. O verme, livre do atiçador, ficou
arfando rente à superfície por alguns instantes e depois afundou
a terça parte anterior do seu corpo e ficou ali prostrado, se
recuperando, num claro indício de que tinha sido usado em
demasia.
Leto se afastou do verme; por ora, ele permaneceria onde
estava. O batedor estava voando em círculos sobre o rastejador,
ainda emitindo sinais com as asas. Aqueles certamente eram
renegados pagos pelos contrabandistas, cuidadosos quando se
tratava de comunicações eletrônicas. Os caçadores estariam lá
buscando especiaria. Essa era a mensagem que vinha da presença
do rastejador.
O batedor deu mais uma volta, mergulhou as asas e saiu do
círculo para entrar num curso que vinha diretamente na direção
de Leto. Ele reconheceu que o aparelho era do tipo dos tópteros
leves que seu avô tinha introduzido em Arrakis. O aparelho o
sobrevoou uma vez, seguiu na direção da duna onde ele tinha
parado e se posicionou para aterrissar contra a brisa. Desceu a
dez metros dele, atiçando uma nuvem de pó. A porta lateral
rangeu e abriu o suficiente para dar passagem a uma única pessoa
usando um pesado manto fremen com o símbolo de uma lança no
peito direito.
O fremen se acercou devagar, dando a ambos tempo suficiente
para se estudarem mutuamente. O homem era alto e tinha olhos
totalmente em índigo dos usuários da especiaria. Sua máscara no
trajestilador ocultava a parte inferior de seu rosto e o capuz tinha
sido puxado bem para a frente a fim de proteger sua testa. O
movimento do manto revelou uma mão que segurava uma pistola
maula, sob uma dobra.
O homem se deteve a dois passos de Leto, desceu o olhar para
vê-lo e expressou sua surpresa nas rugas que se formaram em
torno dos próprios olhos.
– Boa sorte para todos nós – disse Leto.
O homem olhou em torno, em cada quadrante, esquadrinhando
o vazio, e então tornou a prestar atenção em Leto:
– O que faz aqui, criança? – ele perguntou. A voz dele vinha
abafada por causa da máscara do trajestilador. – Está tentando
ser uma rolha no buraco de um verme?
Mais uma vez, Leto usou a fórmula fremen tradicional:
– O deserto é a minha casa.
– Wenn? – o homem quis saber. Para que lado vai?
– Venho de Jacurutu e vou para o sul.
Uma risada abrupta explodiu do homem.
– Ora, Batigh! Você é a coisa mais esquisita que já vi no
Tanzerouft.
– Não sou seu Pequeno Melão – Leto objetou, respondendo a
Batigh. Esse era um rótulo com terríveis insinuações. O Pequeno
Melão nos confins do deserto oferecia sua água a quem o
encontrasse.
– Não vamos beber você, Batigh – o homem assegurou. – Sou
Muriz. Sou o arifa deste taif. – Com um aceno da cabeça, ele
indicou o movimento do rastejador de especiaria ao longe.
Leto notou que o homem tinha se referido como o juiz de seu
grupo e chamara os outros de taif, que era o bando ou uma
companhia. Eles não eram ichwan, não eram um grupo de irmãos.
Renegados mercenários, sem dúvida. Ali estava o fio de que ele
precisava.
Quando Leto continuou calado, Muriz perguntou:
– Você tem nome?
– “Batigh” serve.
Muriz se sacudiu com uma risadinha contida.
– Você não me disse o que faz por aqui.
– Estou procurando as pegadas de um verme – Leto respondeu,
usando a frase religiosa que significava que ele estava num hajj
em busca do próprio umma, quer dizer, sua revelação pessoal.
– Alguém tão jovem? – Muriz questionou. Ele balançou a
cabeça. – Não sei o que fazer com você. Você nos viu.
– O que eu vi? – Leto perguntou. – Falei de Jacurutu e você não
me deu resposta.
– Jogo de adivinhas – Muriz resmungou. – O que é isso, então? –
e ele moveu a cabeça na direção do ressalto distante.
Leto falou com base em sua visão:
– Somente Shuloch.
Muriz se empertigou e Leto sentiu sua pulsação acelerando.
Seguiu-se um demorado silêncio e Leto pôde ver que o homem
debatia e descartava diversas respostas. Shuloch! Nos calmos
momentos de contação de histórias após uma refeição no sietch,
as que versavam sobre Shuloch e seu caravançará eram repetidas
muitas vezes. Os ouvintes sempre imaginavam que Shuloch era
somente um mito, um lugar para coisas interessantes
acontecerem e só para manter a história cativante. Leto se
lembrou de uma dessas: um menino extraviado tinha sido
encontrado na beira do deserto e levado para um sietch. No início,
ele se recusava a responder aos seus salvadores, mas depois,
quando ele começou a falar, ninguém conseguiu entender o que
ele dizia. Os dias iam passando e ele continuava distante,
recusando-se a se vestir ou a cooperar de qualquer modo que
fosse. Toda vez que o deixavam sozinho, ele fazia estranhos
movimentos com as mãos. Todos os especialistas no sietch foram
convocados para estudar aquele menino perdido, mas não
chegavam a nada. Então, uma mulher muito velha passou pela
porta, viu os movimentos das mãos da criança, e riu. “Ele apenas
está imitando o pai que enrola as fibras da especiaria para fazer
uma corda”, ela explicou. “É assim que eles ainda fazem em
Shuloch. Ele só está tentando se sentir menos sozinho.” Moral da
história: Nos antigos costumes de Shuloch há segurança e a
sensação de pertencer à trama dourada da vida.
Como Muriz continuava calado, Leto prosseguiu:
– Eu sou o menino extraviado de Shuloch que só sabe mexer as
mãos.
No rápido movimento que o homem fez com a cabeça, Leto
depreendeu que Muriz conhecia essa história. Ele respondeu
lentamente, com a voz baixa e cheia de ameaça:
– Você é humano?
– Tão humano quanto você – Leto rebateu.
– Você fala de um jeito muito esquisito para uma criança.
Lembro a você que sou juiz e que posso corresponder ao taqwa.
Ah, sim, Leto pensou. Na boca de um juiz daqueles, taqwa
representava uma ameaça imediata. Taqwa era o medo invocado
pela presença de um demônio, uma crença muito real entre os
fremen mais velhos. O arifa conhecia como abater um demônio e
sempre era escolhido “porque tem o conhecimento para ser
impiedoso sem ser cruel, para saber quando a bondade é,
inclusive, a maneira de praticar a maior crueldade”.
Mas aquela situação tinha chegado ao ponto que Leto queria e
ele disse:
– Posso me submeter ao Mashhad.
– Eu serei o juiz de qualquer prova espiritual – declarou Muriz. –
Você aceita isso?
– Bi-la kaifa – disse Leto. Sem ressalvas.
Uma expressão astuciosa revestiu o rosto de Muriz. Ele
murmurou:
– Não sei por que permito isso. Seria melhor acabar com você
de imediato, mas você é um pequeno Batigh e tive um filho que
morreu. Venha, vamos até Shuloch e vou me reunir com o Isnad
para tomar uma decisão a respeito do que fazer com você.
Leto, percebendo como cada trejeito daquele homem
denunciava uma decisão letal, perguntou-se se alguém se deixaria
enganar quanto a isso. E então disse:
– Eu sei que Shuloch é Ahl as-sunna wal-jamas.
– O que uma criança sabe do mundo real? – perguntou Muriz,
indicando que Leto deveria entrar primeiro no tóptero.
Leto obedeceu, mas ouviu cuidadosamente o ruído dos passos
do fremen.
– O jeito mais seguro de guardar um segredo é fazer as pessoas
acreditarem que elas já sabem a resposta – redarguiu Leto. – As
pessoas não fazem perguntas nesse caso. Foi inteligente da parte
de vocês, banidos de Jacurutu. Quem iria acreditar que Shuloch, o
mítico lugar das histórias, é real? E também muito conveniente
para os contrabandistas ou qualquer outro que queira entrar em
Duna.
Os passos de Muriz cessaram. Leto virou de costas para a
lateral do tóptero, com a asa à sua esquerda.
Muriz estava a meio passo de distância, com a mão na pistola
maula estendida apontando diretamente para Leto.
– Então você não é uma criança – ele acusou. – Um maldito anão
veio para nos espionar! Achei que você falava com sabedoria
excessiva para uma criança, mas você falou demais e muito antes
da hora.
– Mas não o suficiente – Leto respondeu. – Sou Leto, filho de
Paul Muad’Dib. Se você me matar, você e o seu povo afundarão
nas areias. Se me poupar a vida, eu o conduzirei à grandeza.
– Não faça seus joguinhos comigo, anão – Muriz desdenhou. –
Leto está no Jacurutu real de onde você disse... – e ele engasgou.
A arma tinha abaixado um pouco quando sua testa franziu,
demonstrando como estava aturdido. Ele contraiu os olhos.
Era justamente a hesitação que Leto esperava. Ele deu todas as
indicações musculares de que faria um movimento para a
esquerda, mas, desviando seu corpo somente um milímetro, levou
a pistola do fremen a balançar freneticamente na direção da
beirada da asa. A maula voou da mão dele e, antes que ele pudesse
se recuperar, Leto estava ao lado dele com a dagacris do próprio
Muriz espetando-lhe as costas.
– A ponta está envenenada – Leto avisou. – Diga ao seu amigo
dentro do tóptero que fique exatamente onde está, sem se mexer
por nada, caso contrário, serei obrigado a matar você.
Muriz, protegendo a mão machucada, balançou a cabeça para o
camarada que estava dentro do aparelho e disse:
– Meu companheiro, Behaleth, ouviu você e ficará tão imóvel
quanto uma rocha.
Sabendo que tinha pouquíssimo tempo antes que os dois
bolassem um plano de ação ou que os amigos deles aparecessem
para saber o que estava acontecendo, Leto prosseguiu sem perda
de tempo:
– Muriz, você precisa de mim. Sem mim, os vermes e a
especiaria deles desaparecerão de Duna. – Ele podia sentir o
fremen endurecer.
– Mas como você sabe de Shuloch? – Muriz indagou. – Eu sei
que em Jacurutu eles não falaram nada a esse respeito.
– Então você reconhece que sou Leto Atreides?
– E quem mais você poderia ser? Mas como é que...
– Porque você está aqui – Leto explicou. – Shuloch existe,
portanto o resto é mera simplicidade. Vocês são os Banidos que
escaparam quando Jacurutu foi destruído. Vi o sinal em suas
asas, portanto você não usa nenhum dispositivo cujo som possa
ser captado a distância. Você colhe especiaria, portanto negocia.
Você só poderia negociar com os contrabandistas. Você é um
contrabandista, mas também é fremen. Você deve ser de Shuloch.
– Por que você me provocou a tentação de matá-lo de imediato?
– Porque você teria me matado de todo modo quando
estivéssemos de volta em Shuloch.
Uma violenta rigidez tomou conta do corpo de Muriz.
– Cuidado, Muriz – Leto aconselhou. – Eu conheço você. Foi em
sua história que você ficou com a água de viajantes desavisados.
Atualmente, esse se tornou um ritual comum entre vocês. De que
outro modo poderiam calar aqueles que tivessem topado com
vocês por acaso? De que outro modo manter o segredo? Batigh!
Você me seduz com apelidos gentis e palavras cordiais. Por que
desperdiçar a minha água na areia? E se eu fosse dado como
perdido, assim como tantos outros, bom, o Tanzerouft me
engoliu.
Muriz fez o sinal dos Cornos-do-Verme com a mão direita para
se proteger da rihani que as palavras de Leto convocavam. E Leto,
sabendo como os fremen mais velhos desconfiavam dos Mentat e
de qualquer coisa que lhes parecesse uma exibição de lógica
levada às últimas consequências, disfarçou um sorriso.
– Namri nos falou de Jacurutu – Muriz concluiu. – Vou pegar a
água dele quando...
– A única coisa que você vai pegar é areia vazia se continuar
bancando o idiota – Leto disse. – Muriz, o que você vai fazer
quando Duna inteiro tiver se tornado uma massa de grama verde,
árvores e água corrente?
– Isso jamais acontecerá!
– Já está acontecendo bem debaixo do seu nariz.
Leto ouviu Muriz ranger os dentes de ira e frustração. Então o
homem grunhiu:
– E como você impediria que isso acontecesse?
– Eu conheço o plano inteiro da transformação – Leto
argumentou. – Conheço cada fraqueza dele e cada ponto forte.
Sem mim, Shai-hulud desaparecerá para sempre.
Com um tom de esperteza na voz, Muriz perguntou:
– Bem, por que discutir isso aqui? Estamos num impasse. Você
tem sua faca. Poderia me matar, mas Behaleth atiraria em você.
– Não antes que eu pegasse a sua pistola, Muriz – Leto apontou.
– Então eu tomaria o tóptero. Sim, eu sei pilotar.
Uma careta desdenhosa vincou a testa do fremen sob o capuz.
– E se você não é quem diz ser?
– Será que meu pai não me reconhecerá?
– Ah – suspirou Muriz. – Então foi assim que você aprendeu, é?
Mas... – ele se interrompeu e balançou a cabeça. – Meu próprio
filho é o guia dele. Ele diz que vocês dois nunca... como seria
possível...
– Então vocês não acreditam que Muad’Dib lê o futuro – Leto
acusou.
– Claro que acreditamos! Mas ele fala que ele mesmo... – e
novamente Muriz se calou.
– E você pensou que ele não tinha percebido sua desconfiança –
Leto sugeriu. – Cheguei a este lugar no momento exato para
conhecê-lo, Muriz. Sei tudo a seu respeito porque vi você... e seu
filho. Eu sei como vocês se acham seguros e como escarnecem de
Muad’Dib, como conspiraram para proteger seu pequeno nicho
no deserto. Mas, sem mim, Muriz, esse seu pequeno nicho no
deserto está condenado. Perdido de maneira irrecuperável. As
coisas foram longe demais aqui, em Duna. Meu pai quase esgotou
a visão e agora vocês só podem recorrer a mim.
– Aquele cego... – Muriz parou e engoliu em seco.
– Em breve ele voltará de Arrakina – Leto afirmou – e então
veremos se ele é cego mesmo e quanto. Quando foi que vocês se
afastaram dos costumes fremen, Muriz?
– O quê?
– Ele está wadquiyas com vocês. Seu povo o encontrou sozinho
no deserto e o trouxe a Shuloch. Que rica descoberta ele foi! Mais
rica do que um veio de especiaria. Wadquiyas! Ele viveu entre
vocês. A água dele se misturou à água da sua tribo. Ele faz parte
do seu Rio Espiritual. – Leto empurrou a dagacris contra o manto
de Muriz. – Cuidado, Muriz. – Leto ergueu a mão esquerda, soltou
a aba do rosto do fremen e a deixou cair.
Sabendo o que Leto planejava, Muriz perguntou:
– Aonde iria se matasse nós dois?
– De volta a Jacurutu.
Leto pressionou a parte carnuda do seu polegar contra a boca
de Muriz.
– Morda e beba, Muriz. Isso, ou morra.
Muriz hesitou e então mordeu com crueldade o dedo de Leto.
Leto acompanhou a movimentação da garganta do homem, viu-
a convulsionar e engolir, afastou a faca e devolveu-a.
– Wadquiyas – Leto declarou. – Devo ofender a tribo antes de
vocês poderem pegar a minha água.
Muriz aquiesceu.
– Sua pistola está ali – Leto apontou com o queixo.
– Você confia em mim, agora? – Muriz perguntou.
– De que outro modo posso viver com os Banidos?
Mais uma vez, Leto reconheceu a expressão astuciosa nos
olhos de Muriz, mas dessa vez tinha a qualidade de uma
mensuração, de uma avaliação pesando o equilíbrio de forças. O
homem se afastou com uma brusquidão que comunicava a
vibração de decisões sigilosas, e recuperou sua pistola. Então,
voltou para o degrau de acesso à asa.
– Venha, já nos demoramos demais no covil do verme.
O futuro da presciência não pode ficar sempre
trancado nas regras do passado. Os fios da
existência se emaranham segundo muitas leis
desconhecidas. O futuro presciente insiste em
suas próprias regras. Ele não se resignará a
ordenações ditadas pelos zen-sunitas nem pela
ciência. A presciência constrói uma integridade
relativa. Ela exige o trabalho deste instante,
sempre alertando que não se pode entremear
cada fio na trama do passado.
– Kalima: Palavras de Muad’Dib
Comentário de Shuloch

Muriz levou o ornitóptero até sobrevoar Shuloch com a


facilidade ditada pela experiência. Sentado ao lado dele, Leto
sentia a presença armada de Behaleth atrás de si. Tudo agora era
uma questão de confiança e do delgado fio de sua visão ao qual se
apegava. Se isso desse errado, Allahu akbahr. Às vezes, era o caso
de se submeter a uma ordem mais elevada.
O ressalto de Shuloch era impressionante nesse deserto. Sua
presença não identificada ali sinalizava a ação de muitos
subornos e muitas mortes, de muitos amigos nos altos escalões.
Leto pôde enxergar que o centro de Shuloch era uma caldeira
murada por paredões com desfiladeiros que se entrecruzavam e
avançavam lá para dentro. Densas moitas de ervas e vegetação
rasteira ladeavam as bordas inferiores desses desfiladeiros com
um anel interior de palmeiras-de-leques, indicando a abundância
de água que havia por ali. Construções precárias de fibra de
especiaria e plantas variadas tinham sido erguidas em torno das
palmeiras. Essas edificações eram como botões verdes
espalhados pela areia. Ali viviam os banidos pelos Banidos, os que
não podiam descer mais, exceto para a morte.
Muriz aterrissou na caldeira perto da base de um dos
desfiladeiros. Uma única estrutura se erguia na areia diretamente
à frente do tóptero: uma cobertura de cipó-do-deserto e folhas de
bejato, todas alinhadas com trama de especiaria fundida ao calor.
Era a réplica viva das primeiras tendestiladoras provisórias e
denunciava a degradação em que viviam alguns moradores de
Shuloch. Leto sabia que aquele lugar vazaria umidade e estaria
cheio de predadores noturnos vindos das moitas próximas.
Então, era assim que seu pai tinha vivido. E pobre Sabiha. Aqui
seria seu castigo.
Por ordem de Muriz, Leto saltou do tóptero e caiu na areia,
andando em seguida na direção da cabana. Pôde ver muitas
pessoas trabalhando mais ao longe, na direção do desfiladeiro
entre as palmeiras. Pareciam maltratadas, pobres, e o fato de mal
lançarem um olhar para ele ou para o tóptero dizia muito a
respeito da opressão que imperava por ali. Leto pôde perceber a
borda rochosa de um qanat além de onde estavam os
trabalhadores, e não havia como se enganar a respeito da
sensação de umidade no ar: era água corrente. Passando pela
cabana, Leto viu que era tão tosca quanto tinha esperado. Ele
seguiu direto rumo ao qanat e, olhando para baixo, viu o rodopiar
dos peixes predadores na correnteza escura. Evitando os olhos de
Leto, os trabalhadores prosseguiram na tarefa de limpar as
aberturas da rocha removendo a areia que se acumulasse ali.
Muriz chegou por trás de Leto e indicou:
– Você está no limite entre os peixes e os vermes. Cada um
desses desfiladeiros tem seu verme. Este qanat foi aberto e
iremos agora retirar os peixes para atrair as trutas de areia.
– Claro – Leto compreendeu. – Cativeiros. Vocês vendem trutas
de areia e vermes fora do planeta.
– Por sugestão de Muad’Dib!
– Eu sei. Mas nenhum dos vermes ou das trutas de areia de
vocês sobrevivem muito tempo fora de Duna.
– Ainda não – murmurou Muriz. – Mas algum dia...
– Nem em dez mil anos – Leto objetou, virando para observar a
perturbação no rosto de Muriz. Ali se atropelavam perguntas
num torvelinho que lembrava a água do qanat. Será que este filho
do Muad’Dib realmente conseguia prever o futuro? Alguns ainda
acreditavam que Muad’Dib tinha feito isso, mas... Como se
poderia julgar uma coisa dessas?
Nesse instante, Muriz se afastou para levá-los de volta à
cabana. Ele abriu o tosco veda-portas e fez um movimento com a
mão para que Leto entrasse. Havia uma lamparina de óleo de
especiaria ardendo numa parede e uma pessoa pequena
agachada embaixo dela, de costas para a porta. O óleo que
queimava soltava uma intensa fragrância de canela.
– Mandaram uma nova cativa para cuidar do sietch de
Muad’Dib – Muriz observou com desdém. – Se ela servir, poderá
conservar sua água por algum tempo. – Ele então encarou Leto. –
Alguns acham que é maldade pegar esse tipo de água. Aqueles
fremen de roupa rendada agora amontoam lixo em suas novas
cidades! Montes de lixo! Quando foi que Duna alguma vez teve
montes de lixo? Quando pegamos alguém como essa aí – e ele
gesticulou na direção da figura sob a lamparina – em geral eles
estão quase dementes de tanto medo, apartados dos seus e nunca
são aceitos pelos verdadeiros fremen. Você entende o que estou
dizendo, Leto-Batigh?
– Eu entendo você. – A figura acocorada não tinha se mexido.
– Você fala de nos liderar – Muriz retomou. – Os fremen são
liderados por homens que foram sangrados. No que você poderia
nos liderar?
– Kralizec – respondeu Leto, mantendo sua atenção fixa na
pessoa abaixada.
Muriz encarou o menino com as sobrancelhas contraídas sobre
seus olhos índigo. Kralizec? Aquela não era somente uma guerra
ou uma revolução, aquela era a Batalha do Tufão. Essa palavra
pertencia às mais sagradas das lendas fremen: a batalha a ser
travada no ocaso do universo. Kralizec?
O fremen alto engoliu com dificuldade. Aquele moleque era tão
imprevisível quanto um janota da cidade! Muriz se virou para a
figura acocorada.
– Mulher! Liban wahid! – ele ordenou. Traga-nos bebida de
especiaria!
Ela hesitou.
– Faça o que ele ordenou, Sabiha – Leto insistiu.
Ela deu um salto e ficou em pé, girando nos calcanhares. Olhou
para ele com olhos arregalados, incapaz de desviar o olhar do
rosto de Leto.
– Você conhece essa aí? – Muriz perguntou.
– É a sobrinha de Namri. Ela ofendeu Jacurutu e eles a
mandaram para você.
– Namri? Mas...
– Liban wahid – Leto repetiu.
Ela passou rapidamente por eles, atravessou impetuosamente
o veda-portas e eles ouviram o som de seus pés correndo.
– Ela não irá muito longe – balbuciou Muriz. Ele levou um dedo
ao lado do nariz. – Uma parente de Namri. Interessante. O que foi
que ela fez de ofensivo?
– Ela me deixou escapar. – Leto então se virou e seguiu atrás de
Sabiha. Encontrou-a em pé, na borda do qanat. Leto se aproximou
para ficar ao lado dela e olhou para a água. Havia aves nas
palmeiras-de-leques ali perto e ele ouviu o chamado, viu suas
asas. Os trabalhadores produziam sons de raspagem quando
removiam a areia. Ele continuou fazendo o mesmo que Sabiha,
olhando para baixo, para o fundo da água com seus reflexos. Com
o canto do olho ele viu periquitos azuis nas folhas das palmeiras.
Um voou através do qanat e ele o viu refletido num redemoinho
prateado de peixes, todos juntos, como se as aves e os predadores
nadassem no mesmo firmamento.
Sabiha pigarreou para limpar a garganta.
– Você me odeia – Leto suspirou.
– Você me envergonhou. Você me envergonhou perante meu
povo. Eles realizaram um Isnad e me mandaram aqui para que eu
perdesse a minha água. Tudo por sua causa!
Muriz riu a pouca distância atrás deles dois.
– E agora, veja você, Leto-Batigh, como nosso Rio Espiritual
tem muitos tributários.
– Mas minha água flui em suas veias – lembrou Leto, virando-se
para ele. – Este não é nenhum tributário. Sabiha é o destino da
minha visão e eu a sigo. Fugi através do deserto para encontrar
meu futuro aqui, em Shuloch.
– Você e... – e Muriz apontou Sabiha. Então jogou a cabeça para
trás e explodiu numa gargalhada.
– Não será como nenhum de vocês dois poderia pensar – Leto o
ignorou. – Lembre-se disso, Muriz. Eu encontrei as pegadas do
meu verme. – Nesse instante, ele sentia as lágrimas tomando seus
olhos.
– Ele dá água para os mortos – Sabiha murmurou.
Até mesmo Muriz olhou para ele, admirado. Os fremen jamais
choravam a menos que fosse a mais profunda dádiva da alma.
Quase constrangido, Muriz fechou seu lacre bucal e puxou o
capuz de sua djeballa sobre a testa.
Leto firmou os olhos sobre o homem e pontificou:
– Aqui, em Shuloch, eles ainda rezam pelo orvalho na borda do
deserto. Vá, Muriz, e reze por Kralizec. Eu lhe prometo que ela
virá.
O discurso fremen implica grande concisão e um
senso preciso de expressão. Ele está imerso na
ilusão dos absolutos. Suas suposições são solo
fértil para as religiões absolutistas. Sobretudo, os
fremen apreciam moralizar. Eles enfrentam a
aterrorizante instabilidade de todas as coisas
com afirmações institucionalizadas. Eles dizem:
“Sabemos que não há summa de todo o
conhecimento que se pode obter; isso é privilégio
de Deus. Mas tudo aquilo que os homens podem
aprender eles podem conter”. Com base nessa
abordagem ao universo equilibrada sobre o fio da
navalha, eles esculpem uma crença fantástica em
sinais e presságios e em seu próprio destino. Esta
é uma das origens de sua lenda sobre o Kralizec: a
guerra ao final do universo.
– Bene Gesserit: Relatórios Privados/Fólio 800881

– Eles o aprisionaram num local seguro – disse Namri, sorrindo


do outro lado da câmara quadrada de pedras para Gurney
Halleck. – Você pode relatar o fato aos seus amigos.
– E onde é esse local seguro? – Halleck quis saber. Ele não
gostava do tom de Namri e se sentia restringido pelas ordens de
Jéssica. Bruxa maldita! As explicações que ela dava não faziam
nenhum sentido, exceto a advertência sobre o que poderia
ocorrer caso Leto deixasse de manter o domínio sobre suas
terríveis reminiscências.
– É um local seguro – insistiu Namri. – Isso é tudo que tenho
permissão para lhe dizer.
– Como você sabe disso?
– Recebi um distrans. Sabiha está com ele.
– Sabiha! Ela simplesmente deixará que ele...
– Desta vez, não.
– Você vai matá-lo?
– Isso não me cabe mais.
Halleck contorceu o rosto numa careta. Distrans. Qual seria o
alcance daqueles morcegos desgraçados? Muitas vezes ele os
havia visto em disparada através do deserto, com mensagens
sigilosas impressas sobre seus guinchos estridentes. Mas até
onde eles conseguiriam chegar nesse planeta dos infernos?
– Preciso vê-lo com meus próprios olhos – teimou Halleck.
– Isso não é permitido.
Halleck respirou fundo para se acalmar. Ele tinha passado dois
dias e duas noites esperando pelos relatórios da equipe de busca.
Agora já era outro dia de manhã e ele sentia que seu papel se
desmanchava à sua volta, deixando-o nu. De todo modo, nunca
tinha gostado de comandar. O comando sempre ficava à espera
enquanto os outros faziam as coisas interessantes e perigosas.
– E por que não é permitido? – ele indagou. Os contrabandistas
que tinham providenciado esse sietch de segurança tinham
deixado muitas perguntas sem resposta, e ele queria que Namri
parasse de repetir sempre a mesma ladainha.
– Há quem pense que você viu demais quando viu esse sietch –
comentou Namri.
Halleck registrou a ameaça, relaxou na postura descontraída
do lutador treinado, com a mão perto da dagacris, mas não sobre
ela. Ele queria ter um escudo, mas esses tinham sido banidos
dado o efeito que surtiam nos vermes e por ter sua vida útil
abreviada devido à exposição às descargas de eletricidade
estática geradas pelas tempestades.
– Esse sigilo não faz parte de nosso acordo – Halleck insistiu.
– Se eu o tivesse matado, isso teria sido parte de nosso acordo?
Mais uma vez, Halleck sentiu a presença insidiosa de forças
invisíveis a respeito das quais lady Jéssica não o havia alertado.
Ela e seu maldito plano! Talvez fosse mesmo o caso de não confiar
nas Bene Gesserit. Imediatamente ele se sentiu desleal. Ela havia
explicado o problema e ele tinha entrado no plano dela com a
expectativa de que, como todos os planos, aquele viesse a
precisar de ajustes futuros. Aquela não era uma Bene Gesserit
qualquer. Era Jéssica dos Atreides, que nunca tinha sido senão
sua amiga e protetora. Sem ela, ele sabia que teria permanecido à
deriva num universo mais perigoso do que aquele em que
habitava agora.
– Você não consegue dar uma resposta à minha pergunta –
Namri salientou.
– Você deveria matá-lo somente se ele demonstrasse estar...
possuído – comentou Halleck. – Abominação.
Namri colocou sua mão fechada em punho ao lado da orelha
direita.
– Sua senhora sabia que tínhamos testes para averiguar isso.
Muito sensato da parte dela deixar esse julgamento nas minhas
mãos.
Halleck apertou os lábios para conter sua frustração.
– Você ouviu as palavras que a Reverenda Madre me dirigiu –
Namri continuou. – Nós, fremen, compreendemos essas
mulheres, mas vocês, de outro mundo, nunca as entendem. As
mulheres fremen muitas vezes mandam os filhos para a morte.
Halleck falou entredentes:
– Você está me dizendo que o matou?
– Ele está vivo. Está num local seguro. E continuará a receber a
especiaria.
– Mas eu devo levá-lo de volta para a avó, caso ele sobreviva –
apontou Halleck.
Namri se limitou a dar de ombros.
Halleck entendeu que essa seria a única resposta que ele
obteria. Maldição! Ele não poderia voltar a Jéssica com tantas
perguntas sem resposta! Balançando a cabeça, ele ouviu outra
pergunta de Namri:
– Por que questionar aquilo que você não pode mudar? Você
está sendo bem pago.
Halleck torceu o nariz para aquele homem. Fremen! Eles
acreditavam que todos os forasteiros eram basicamente movidos
a dinheiro. Mas Namri estava falando de mais do que de
preconceito. Havia outras forças em jogo ali e isso era evidente
para quem tivesse sido treinado a observar por uma Bene
Gesserit. Aquilo tudo cheirava a uma finta dentro de outra dentro
de outra...
Mudando para a forma insultuosamente familiar, Halleck
retrucou:
– Lady Jéssica ficará enfurecida. Ela poderia despachar
verdadeiras coortes contra...
– Zanadiq! – amaldiçoou Namri. – Seu garoto de recados! Você
está fora da Mohalata! Para mim é um grande prazer me apossar
de sua água em nome do Nobre Povo!
Halleck pousou a mão em sua faca e preparou a manga
esquerda de seu manto, em que havia instalado uma pequena
surpresa para quem o atacasse.
– Não vejo nenhuma água sendo vertida aqui – ele murmurou. –
Talvez seu orgulho o tenha deixado cego.
– Você está vivo porque eu queria que soubesse, antes de
morrer, que sua lady Jéssica não mandará coortes contra
ninguém. Você não deverá ser calmamente atraído até o huanui,
escória do outro mundo. Eu sou do Nobre Povo e você...
– E eu sou apenas um serviçal dos Atreides – interrompeu
Halleck, com a voz serena. – Nós somos a escória que tirou o jugo
Harkonnen de cima de seus cangotes fedorentos.
Namri exibiu dentes alvos num sorriso que era uma careta.
– Sua senhora é prisioneira em Salusa Secundus. Os bilhetes
que você pensou terem sido enviados por ela vieram da filha dela!
Com um esforço extremo, Halleck conseguiu manter a voz
inalterada.
– Não importa. Alia irá...
Namri desembainhou sua dagacris.
– O que você sabe sobre o Ventre Celestial? Eu sou um serviçal
dela, seu prostituto. Cumpro ordens dela quando pego a sua água!
– e com isso avançou impetuosamente através do aposento com
um insensato movimento à frente.
Halleck, que não se permitiu ser enganado por uma tal falta de
destreza tão óbvia, puxou o braço esquerdo de seu manto e
liberou o pedaço extra de tecido pesado que tinha costurado ali
dentro, deixando que essa parte acolchoada recebesse a faca de
Namri. No mesmo movimento, Halleck usou as dobras de tecido
para cobrir a cabeça de Namri, entrou por baixo do pano e através
dele, com sua faca, mirou diretamente contra o rosto do
oponente. Ele sentiu a ponta de sua dagacris atingir o alvo
quando o corpo de Namri o atingiu com a superfície dura da
armadura metálica que ele usava por baixo do manto. O fremen
soltou um ganido de cólera, teve uma reação convulsiva que o fez
ir para trás e depois despencou no chão. Ali ele ficou, esguichando
sangue pela boca aberta enquanto seus olhos arregalados
fixaram-se em Halleck e, em seguida, ficaram baços.
Halleck exalou entre dentes. Como é que aquele ingênuo do
Namri poderia ter esperado que alguém não percebesse a
existência de uma armadura debaixo de um manto? Halleck se
aproximou do cadáver enquanto tornava a dobrar a manga oculta
para dentro, pegou sua dagacris, limpou-a e tornou a guardá-la na
bainha.
– Como é que você acha que nós, os serviçais Atreides, fomos
treinados, seu tolo?
Respirando fundo mais uma vez, Halleck pensou: Muito bem.
De quem sou a finta? As palavras de Namri tinham sido embaladas
por um clima de verdade. Jéssica era prisioneira dos Corrino e
Alia estava arquitetando seus próprios complôs. Jéssica inclusive
o havia alertado para as muitas contingências de ter Alia como
inimiga, mas não havia previsto que iria se tornar prisioneira. Ele
tinha ordens a cumprir, apesar de tudo. Em primeiro lugar, havia a
necessidade de sair daquele lugar. Felizmente, um fremen de
manto parecia muito com qualquer outro fremen de manto. Ele
rolou o corpo de Namri para um canto, jogou algumas almofadas
em cima dele e puxou um tapete para cobrir o sangue. Depois de
ter deixado aquilo em ordem, Halleck ajustou os tubos coletores
para o nariz e para a boca de seu trajestilador, subiu a máscara
para o rosto como faria qualquer um que estivesse se preparando
para partir para o deserto, trouxe o capuz de seu manto para a
frente e enveredou pelo longo corredor.
Os inocentes se movem sem preocupação, ele pensou,
determinando um ritmo tranquilo para suas passadas. Ele se
sentia curiosamente livre, como se tivesse saído da esfera do
perigo e não mergulhado dentro dela.
Na realidade, eu nunca apreciei muito o plano dela para o
menino, ele pensou. E vou dizer isso a ela se a vir. Se. Porque, se
Namri tinha falado a verdade, o mais perigoso plano alternativo
tinha acabado de ser posto em ação. Alia não o deixaria viver
muito tempo se o capturasse, mas sempre havia Stilgar – um bom
fremen, com um bom conjunto de superstições fremen.
Jéssica já lhe havia explicado: “Existe uma camada muito fina
de verniz comportamental civilizado sobre a natureza original de
Stilgar. E é desse jeito que você remove essa camada dele...”.
O espírito de Muad’Dib é mais do que palavras,
mais do que a letra da Lei que se pronuncia em
seu nome. Muad’Dib deve ser sempre aquela
indignação interior contra os poderosos e
complacentes, contra os charlatões e os fanáticos
dogmáticos. É aquela indignação interior que
deve ter voz porque Muad’Dib nos ensinou uma
coisa acima de todas as outras: que os humanos só
conseguem prevalecer numa fraternidade de
justiça social.
– O Compacto Fedaykin

Leto se sentou com as costas na parede da cabana, prestando


atenção em Sabiha e assistindo aos fios de sua visão se
desenrolarem. Ela havia preparado o café e pusera o bule de lado.
Agora, estava acocorada à frente dele, preparando a refeição
noturna de Leto. Era um mingau repleto de mélange. As mãos
dela moviam rapidamente a concha e o líquido de tom índigo
manchou as beiradas de sua tigela. Ela inclinou seu rosto fino
sobre a tigela, misturando o concentrado. A membrana crua que
constituía a tendestiladora da cabana tinha sido remendada com
um material mais fino bem atrás dela e formava um halo cinzento
em torno de Sabiha, sobre o qual sua sombra dançava à luz
bruxuleante das labaredas acesas no fogo e da lamparina
solitária.
Essa lamparina deixava Leto intrigado. Aquele povo de Shuloch
esbanjava o óleo de especiaria a torto e a direito: uma lamparina,
não um luciglobo. Sustentavam escravos proscritos dentro de
seus muros, do modo como era narrado nas mais antigas
tradições fremen. Ainda assim, utilizavam ornitópteros e as mais
avançadas colheitadeiras de especiaria. Eles eram uma mistura
acintosa do antigo com o moderno.
Sabiha empurrou a tigela com a gororoba na direção dele e
apagou a chama de cozinhar.
Leto ignorou a vasilha.
– Serei castigada se você não comer isso – ela se queixou.
Ele olhou para ela, pensando: Se eu matá-la, isso romperá uma
visão. Se eu lhe disser quais são os planos de Muriz, romperá
outra. Se eu esperar aqui por meu pai, esse fio-visão se
transformará numa corda poderosa.
A mente dele escolheu entre os fios. Alguns eram de uma
doçura que o torturava. Um futuro com Sabiha tinha uma
realidade sedutora no âmbito de sua consciência presciente e
ameaçou impedir todos os outros enquanto ele não o seguiu até
sua agonia final.
– Por que você me olha dessa maneira? – ela perguntou.
Ele ainda não disse nada.
Ela empurrou a vasilha para mais perto dele.
Leto tentou engolir, embora sua garganta estivesse seca. O
impulso de matar Sabiha se avolumou dentro dele. Ele sentiu que
tremia com a força desse desejo. Como era fácil estilhaçar uma
visão e deixar que a selvageria tivesse livre curso!
– Muriz ordena isso – ela insistiu, tocando a vasilha.
Sim, Muriz ordena. A superstição conquistava tudo. Muriz
queria que uma visão lhe fosse oferecida para que ele a
interpretasse. Ele era um antigo selvagem pedindo ao curandeiro
que lançasse os ossos de um boi e interpretasse o desenho que
formava no chão. Muriz tinha se apoderado do trajestilador de
seu prisioneiro “por simples precaução”. Tinha havido a
insinuação de um ardiloso golpe em Namri e Sabiha nesse
comentário. Somente idiotas deixam um prisioneiro escapar.
Muriz tinha um problema emocional profundo, no entanto: o
Rio Espiritual. A água do cativo corria nas veias de Muriz. Ele
buscava um indício que lhe permitisse emitir uma ameaça de
morte contra Leto.
Tal pai, tal filho, Leto pensou.
– A especiaria o fará ter visões – Sabiha explicou. Os longos
intervalos de silêncio a deixavam inquieta. – Muitas vezes, tive
visões nas orgias. Elas não querem dizer nada.
Então é isso!, ele pensou, com o corpo se fechando numa
imobilidade que fazia sua pele se tornar fria e pegajosa. O
treinamento Bene Gesserit se apossou de sua consciência como
uma iluminação extremamente pontual que se espalhava para
fora e além dele até lançar a luz abrasadora de uma visão sobre
Sabiha e todos os seus pares Banidos. A antiga lição Bene
Gesserit era explícita:
“As línguas foram formadas para refletir especializações num
modo de vida. Cada especialização pode ser reconhecida por suas
palavras, suas suposições e as estruturas de suas sentenças.
Procure pontos de interrupção. Especializações representam
aqueles lugares em que a vida está sendo interrompida, onde o
movimento é represado e imobilizado.” Então, ele viu Sabiha como
uma visionária independente e viu que todos os outros humanos
tinham o mesmo poder. Ainda assim, ela desdenhava as visões
que tivera em orgias com a especiaria. Elas causavam inquietação
e, por isso, deviam ser descartadas, deliberadamente esquecidas.
O povo dela rezava para Shai-hulud porque o verme dominava a
maioria das visões que ele tinha. Esse povo rezava pelo orvalho na
borda do deserto porque a umidade limitava a vida que levavam.
Contudo, chafurdavam na riqueza da especiaria e atraíam trutas
de areia até o qanats de água corrente. Sabiha o alimentava com
visões prescientes com uma indiferença trivial, mas dentro de
suas palavras ele percebeu os sinais iluminados: ela dependia de
absolutos, buscava limites finitos e tudo isso porque não
conseguia lidar com os rigores de decisões terríveis que atingiam
sua própria carne. Ela se apegava à sua visão monocular do
universo, englobando e paralisando o tempo do jeito que fosse
possível porque as demais opções a deixavam aterrorizada.
Por outro lado, Leto sentia o movimento puro em si mesmo. Ele
era uma membrana coletando infinitas dimensões e, porque via
essas dimensões, era capaz de tomar decisões terríveis.
Assim como aconteceu com o meu pai.
Com voz petulante, Sabiha exclamou:
– Você tem de comer isso!
Leto agora enxergava o padrão inteiro das visões e sabia que fio
devia seguir. Minha pele não é minha. Ficou em pé, arrumando o
manto à sua volta. Dava uma sensação estranha, ao tocar sua
carne, sem o trajestilador para proteger-lhe o corpo. Seus pés
estavam descalços sobre o tecido feito de especiaria que recobria
o piso, e sentiam a areia que tinha entrado naquele lugar.
– O que você está fazendo? – Sabiha quis saber.
– O ar está ruim aqui. Vou ali fora.
– Você não pode escapar – ela disse. – Todo desfiladeiro tem
seu verme. Se você for além do qanat, os vermes perceberão sua
presença por causa de sua umidade. Esses vermes aprisionados
são muito perspicazes; não são de jeito nenhum como os do
deserto. Além disso... – e como a voz dela soou arrogante! – você
não tem trajestilador.
– Então, por que você se preocupa? – ele perguntou, curioso
para saber se ainda deveria provocar uma reação verdadeira em
Sabiha.
– Porque você não comeu.
– E você será castigada.
– Sim!
– Mas já estou saturado de especiaria – ele comentou. – Cada
momento é uma visão. – Ele moveu um dos pés descalços na
direção da tigela. – Derrame isso na areia. Quem pode ficar
sabendo?
– Eles espionam – ela murmurou.
Ele sacudiu a cabeça, expurgando-a das próprias visões que o
inundavam, sentindo uma nova espécie de liberdade envolvendo-
o. Não havia necessidade de matar aquele pobre peão. Ela
dançava ao som de outra música ainda que nem soubesse os
passos, acreditando que ainda poderia compartilhar do poder
que seduzia os famintos piratas de Shuloch e Jacurutu. Leto se
encaminhou para o veda-portas e colocou a mão sobre o
dispositivo.
– Quando Muriz chegar – ela balbuciou – ele vai ficar muito
zangado com...
– Muriz é um comerciante de vazios – Leto interrompeu. –
Minha tia o esvaziou.
Ela se pôs em pé.
– Vou com você.
E ele pensou: Ela se lembra de como fugi dela. Agora enxerga a
fragilidade do cerco que mantém sobre mim. As visões que ela tem
estão se movimentando dentro dela. Só que ela não queria escutar
essas visões. Bastava apenas que ela ponderasse: como ele
poderia ser mais astuto do que um verme preso em seu
desfiladeiro estreito? Como ele poderia viver no Tanzerouft sem
um trajestilador ou um fremkit?
– Devo ficar sozinho para consultar minhas visões – ele objetou.
– Você ficará aqui.
– Aonde você irá?
– Ao qanat.
– As trutas de areia chegam aos milhares, à noite.
– Elas não vão me devorar.
– Às vezes, o verme aparece num lugar logo depois da água – ela
alertou. – Se você cruzar o qanat... – e ela se calou, tentando
incutir ameaças em suas palavras.
– Como é que eu poderia montar um verme sem ganchos? – ele
questionou, perguntando-se se ela ainda seria capaz de salvar
pelo menos uma parte das próprias visões.
– Você vai comer quando voltar? – ela indagou, acocorando-se
mais uma vez perto da tigela, pegando de novo a concha e
mexendo o caldo índigo.
– Cada coisa a seu tempo – ele pontificou, sabendo que ela seria
incapaz de detectar o delicado uso da Voz que ele estava fazendo,
a fim de insinuar seus desejos pessoais no processo de tomada de
decisões dela.
– Muriz chegará e verificará se você teve uma visão – ela avisou.
– Deixe que eu dou conta de Muriz do meu próprio jeito – ele
murmurou, notando como os movimentos dela tinham se tornado
pesados e lentos. O padrão de todos os fremen se imiscuíra
naturalmente na maneira como agora ele a conduzia. Os fremen
eram pessoas de uma extraordinária energia no começo do dia,
mas uma profunda e letárgica melancolia geralmente os acometia
ao cair da noite. Ela já queria afundar no sono e nos sonhos.
Leto saiu sozinho para a noite.
O céu cintilava de estrelas e ele conseguiu discernir o contorno
volumoso do ressalto rochoso ali perto, contra o pano de fundo
das constelações. Então, seguiu na direção das palmeiras que
margeavam o qanat.
Por um longo tempo, Leto ficou agachado na borda do qanat,
ouvindo o silvo inquieto da areia fustigada através do desfiladeiro
lá adiante. Um verme pequeno, a julgar pelo som e escolhido
exatamente por esse motivo, sem dúvida. Um verme pequeno
seria mais fácil de transportar. Ele pensou na captura do verme:
os caçadores o deteriam com uma névoa úmida, usando o
tradicional método fremen de pegar um verme para o rito de
orgia/transformação. Mas esse verme não seria morto por
imersão. Este seria levado num paquete da Guilda até algum
esperançoso comprador cujo deserto provavelmente era úmido
demais. Poucos indivíduos extraplanetários percebiam a
desidratação básica que as trutas de areia tinham imposto a
Arrakis e sustentado. Tinham imposto e sustentado. Porque
inclusive aqui, no Tanzerouft, existiria muito mais vezes umidade
no ar do que algum verme já teria experimentado, exceto no
momento de sua morte em alguma cisterna fremen.
Ele ouviu Sabiha se movimentando na cabana atrás dele. Ela
estava desassossegada, incomodada pela autossupressão de suas
próprias visões. Ele se perguntou como seria viver fora de uma
visão, com ela, compartilhando cada momento do jeito como eles
viessem, espontaneamente. Esse pensamento o atraiu com muito
mais força do que qualquer visão induzida pela especiaria. Havia
uma espécie de limpeza e candura na ideia de encarar um futuro
desconhecido.
“Um beijo no sietch vale dois na cidade.”
Essa velha máxima fremen dizia tudo. O sietch tradicional tinha
sustentado um reconhecível estado selvagem mesclado de
timidez. Havia vestígios dessa timidez no povo de
Jacurutu/Shuloch, mas somente vestígios. Isso o entristeceu, pois
revelava o que tinha sido perdido.
Devagar, tão devagar que essa constatação o havia tomado por
completo antes de ele ter identificado seu início, Leto tomou
consciência do macio farfalhar de muitas criaturas à sua volta.
Trutas de areia.
Em breve chegaria o momento de mudar de uma visão para
outra. Ele sentiu o movimento das trutas de areia como um
movimento em seu interior. Os fremen tinham convivido com
essas estranhas criaturas durante gerações, sabendo que
arriscando mostrar um pouco de água à guisa de isca seria
possível atraí-las ao alcance da mão. Muitos fremen morrendo de
sede tinham arriscado suas últimas e preciosas gotas de água
nessa aposta, sabendo que o extrato verde e doce obtido de uma
truta de areia poderia render um pequeno ganho de energia. Mas
as trutas de areia eram principalmente brinquedos para as
crianças que as apanhavam para o huanui. E para brincar.
Leto estremeceu ao pensar no que brincar agora significava
para ele.
Ele sentiu uma das criaturas deslizando sobre seu pé descalço.
Ela hesitou e depois continuou seu trajeto, atraída pelo volume
maior de água do qanat.
Por um momento, porém, ele tinha sentido a realidade de sua
terrível decisão. A luva de truta de areia. Era a brincadeira das
crianças. Se uma segurava uma truta de areia na mão, alisando-
lhe a pele, ela formava uma espécie de luva viva. Traços de sangue
nos capilares da pele podiam ser percebidos por essas criaturas,
mas alguma coisa misturada com a água do sangue as repelia.
Cedo ou tarde, a luva deslizava de volta para a areia e ali seria
recolhida num cesto de fibra de especiaria. A especiaria acalmava
as criaturas até serem despejadas na destilaria fúnebre.
Ele podia ouvir as trutas de areia caindo dentro do qanat e o
rodamoinho dos predadores ao comê-las. A água amolecia as
trutas de areia e as tornava maleáveis. As crianças logo
aprendiam isso. Um pouco de saliva provocava o extrato doce.
Leto ouvia os barulhos de água espadanada. Era uma verdadeira
migração de trutas de areia vindo para a água corrente, mas elas
não podiam conter um qanat com água corrente patrulhado por
peixes predadores.
Ainda assim, continuavam vindo e ainda assim saltavam na
água com estrépito.
Leto remexeu a areia com a mão direita até seus dedos
encontrarem a pele coriácea de uma truta de areia. Era o
exemplar grande que ele tinha desejado. A criatura não tentou se
esquivar dele, mas se adiantou avidamente na direção da carne
dele. Ele tateou a silhueta do animal com sua mão livre, e
percebeu que tinha um formato que lembrava os diamantes. Não
tinha cabeça, nem extremidades, nem olhos, e mesmo assim era
capaz de achar água sem cometer erros. Com outras criaturas
como ela, juntavam o corpo umas às outras e se prendiam
mutuamente por meio dos grosseiros entrelaçamentos de cílios
projetados para isso até que o conjunto todo se tornava um
grande organismo-recipiente que capturava água e continha o
“veneno”, mantendo-o longe do gigante que as trutas de areia
acabariam se tornando: Shai-hulud.
Aquele exemplar se revirava e contorcia em sua mão,
alongando-se, esticando-se. Quando se movia, Leto sentia um
alongamento e estiramento correspondentes na visão que tinha
escolhido. Este fio, não aquele. Ele sentia a truta de areia se
tornando fina e recobrindo mais e mais porções de sua mão.
Nenhuma truta de areia tinha encontrado uma mão como essa em
que cada célula estava supersaturada de especiaria. Nenhum
outro humano já tinha sobrevivido e raciocinado, numa situação
dessas. Delicadamente, Leto ajustou seu equilíbrio enzimático,
recorrendo à certeza iluminada que havia alcançado no transe da
especiaria. O conhecimento daquelas incontáveis existências que
se mesclavam dentro dele fornecia-lhe a certeza com a qual ele
escolhia os ajustamentos exatos, prevenindo que sofresse uma
morte causada pela overdose que se apoderaria dele se ele
fraquejasse em sua vigilância por um batimento cardíaco que
fosse. Ao mesmo tempo, ele se fundia com a truta de areia,
alimentando-se dela, alimentando-a, apreendendo-a. Sua visão no
transe servia de gabarito e ele o seguia minuciosamente.
Leto sentiu a truta de areia se adelgaçando, se espalhando e
recobrindo mais e mais sua mão e subindo pelo braço. Ele
localizou outra e a colocou sobre a primeira. O contato entre as
duas deu início a frenéticos sacolejos nas criaturas. Seus cílios se
entrelaçaram e as duas se tornaram uma membrana só que lhe
recobria o braço até o cotovelo. As trutas de areia se ajustavam à
luva viva da brincadeira de criança, mas cada vez mais finas e
sensíveis conforme ele as provocava a assumir o papel de uma
pele simbiótica. Com a luva viva, ele estendeu o braço, tateou a
areia, e percebeu cada grão separadamente. Aquilo não era mais
a truta de areia; era algo mais duro, mais forte. E se tornaria cada
vez mais forte. Sua mão que tateava encontrou mais outra truta
de areia que veio chicoteando na direção das outras duas para se
unir a elas e se adaptar ao seu novo papel. A maciez coriácea se
propagava braço acima, e lhe alcançava o ombro agora.
Com uma tremenda concentração da atenção num único
ponto, ele conseguiu unir sua nova pele com seu corpo,
prevenindo uma rejeição. Nenhum resquício de sua atenção ficou
livre para matutar sobre as tenebrosas consequências do que ele
estava fazendo ali. Somente as necessidades ditadas pela visão do
transe é que importavam. Somente o Caminho Dourado poderia
resultar dessa provação.
Leto retirou o manto e se deitou nu sobre a areia com o braço
enluvado estendido no caminho de migração das trutas de areia.
Ele se lembrava de uma vez em que ele e Ghanima tinham
capturado uma dessas criaturas e raspado seu corpo na areia até
que se contraísse e virasse o verme-criança, um tubo rígido com o
interior prenhe do xarope verde. Um deles deu uma leve mordida
na extremidade e rapidamente sugou pela abertura antes que o
corte se fechasse, recolhendo as poucas gotas daquela doçura.
Agora as trutas de areia estavam cobrindo todo o corpo de
Leto. Ele conseguia sentir a pulsação de seu sangue contra a
membrana viva. Uma delas tentou cobrir seu rosto, mas ele a
retirou prontamente até que ela se alongou e formou um rolo fino,
que cresceu muito mais do que o verme-criança, mantendo-se
flexível. Leto mordeu-lhe uma ponta e provou um escoamento
doce que se manteve durante muito mais tempo do que qualquer
outro fremen já tinha experimentado. Ele conseguia sentir a
energia que lhe era proporcionada pela doçura se espalhando por
seu ser. Uma peculiar excitação inundou seu corpo. Por algum
tempo, manteve-se ocupado enrolando a membrana para longe
de seu rosto até ter formado uma borda dura que o contornava do
queixo à testa e deixava as orelhas de fora.
Agora, era o momento de testar a visão.
Ele ficou em pé, virou-se para regressar à cabana e, ao se
movimentar, sentiu que seus pés iam muito mais depressa do que
lhe era possível para manter o equilíbrio. Ele mergulhou na areia,
rolou e ficou em pé de um salto. Esse salto o levou dois metros
acima da areia e, quando ele caiu de volta no chão, tentando
andar, novamente estava indo depressa demais.
Pare!, ele ordenou a si mesmo. Então, impôs-se o relaxamento
forçado que treinara com os exercícios prana-bindu e reuniu seus
sentidos sob o comando da consciência. Isso trouxe foco para as
ondulações interiores do agora-constante por meio do qual ele
experienciava o tempo e então permitiu-se ser alertado pelo
êxtase da visão. A membrana funcionava precisamente como a
visão tinha previsto.
Minha pele não é minha pele.
Mas seus músculos precisaram de um pouco de treino para
conviver com essa movimentação ampliada. Quando ele andava,
caía e rolava. Nesse momento, Leto se sentou. Na quietude, a
borda sob seu queixo tentou se tornar uma membrana que lhe
cobriria a boca. Ele cuspiu nela e a mordeu, provando o xarope
doce. A membrana rolou para baixo sob a pressão de sua mão.
Já havia transcorrido tempo suficiente para que se formasse
uma união com seu corpo. Leto se estendeu de comprido, de
barriga para baixo. Começou a rastejar, raspando a membrana
contra a areia. Ele poderia sentir nitidamente a areia, mas não
escoriava sua própria carne. Com poucos movimentos de
natação, ele atravessou 50 metros de areia. A reação física foi
uma sensação de aquecimento induzida pela fricção.
A membrana tinha parado de tentar cobrir sua boca e o nariz,
mas agora ele estava diante de um segundo grande passo em seu
Caminho Dourado. Seus esforços o haviam levado mais além do
qanat, até o desfiladeiro onde estava preso o verme. Ele o ouvia
sibilando em sua direção, atraído por seus movimentos.
Leto se pôs em pé de um salto, pretendendo aguardar, mas o
movimento amplificado o fez avançar disparando mais 20 metros
desfiladeiro adentro. Controlando suas reações com um
tremendo esforço, ele se sentou sobre as nádegas e endireitou as
costas. Agora, a areia começava a inchar diretamente à sua
frente, elevando-se numa monstruosa curva iluminada pelas
estrelas. A areia se abriu a apenas dois corpos de distância dele.
Dentes de cristal faiscaram naquela pouca claridade. Ele viu a
caverna-boca escancarada e, lá no fundo, a movimentação
contida de uma labareda indistinta. A impregnação do aroma da
especiaria era tão avassaladora que se apoderou dele, mas o
verme tinha parado. Ele ficou na frente de Leto enquanto a
primeira lua se erguia sobre o ressalto de Shuloch. A luz era
refletida pelas presas do verme contornando o fulgor feérico dos
fogos químicos no fundo daquela criatura.
Era tão profundo o temor ancestral dos fremen que Leto se
sentiu tomado por um desejo impetuoso de fugir, mas sua visão o
manteve imóvel e fascinado por aquele momento que se
prolongava. Nunca ninguém tinha ficado assim tão perto da
bocarra de um verme vivo e sobrevivera. Suavemente, Leto mexeu
o pé direito, topou com um montinho de areia e, reagindo com
excessiva rapidez, foi impelido na direção da boca do verme.
Caindo de joelhos, ele se deteve.
O verme ainda não tinha se mexido.
Ele captava somente as trutas de areia e não atacaria o vetor
que vivia no fundo das areias e era da sua própria espécie. O
verme atacaria outro verme em território que se aproximasse da
especiaria exposta. Somente uma barreira de água o deteria: e as
trutas de areia, encapsulando água, eram essa barreira.
A título de experiência, Leto estendeu uma mão na direção
daquela boca monstruosa. O verme recuou pelo menos um metro.
Com a confiança renovada, Leto se afastou do verme e
começou a ensinar seus músculos a conviver com seu novo poder.
Cautelosamente, ele caminhou de volta até o qanat. O verme
permaneceu parado atrás dele. Quando Leto estava além da
barreira de água, ele saltou de alegria e saiu deslizando 10 metros
através da areia, dando piruetas, rolando e rindo.
Uma luz criou um facho definido sobre a areia quando o veda-
portas da cabana foi rompido. A silhueta de Sabiha estava
recortada contra o fundo amarelo e púrpura da claridade emitida
pela lamparina, olhando para ele fixamente.
Rindo, Leto correu de volta através do qanat, parou diante do
verme, virou-se e olhou para ela com os braços abertos.
– Veja! – ele gritou. – O verme faz o que eu comando!
Enquanto Sabiha se mantinha paralisada em estado de choque,
ele rodopiou e saiu correndo em volta do verme e desfiladeiro
adentro. Já mais acostumado com sua nova pele, ele descobriu
que podia correr flexionando somente muito pouco os seus
músculos. Ele quase não fazia esforço para isso. Quando fazia
força para correr, conseguia ir tão depressa que o vento do
deslocamento queimava a parte exposta do seu rosto. No final do
desfiladeiro, um beco sem saída, em vez de parar ele saltou bem
uns 15 metros, agarrou-se ao paredão do penhasco e começou a se
arrastar para cima como os insetos com todas as suas patas, e
surgiu no alto, na crista sobre Tanzerouft.
O deserto se abria à sua frente, aquela vasta ondulação
prateada à luz do luar.
A excitação descontrolada de Leto então se acalmou.
Ele se acocorou, sentindo como seu corpo lhe parecia leve.
Toda aquela movimentação havia desencadeado uma película
pegajosa de suor que um trajestilador teria absorvido e
canalizado para o tecido de transferência que filtrava os sais.
Enquanto ele relaxava, a película desapareceu, tendo sido
absorvida pela membrana com mais velocidade do que um
trajestilador teria podido fazer. Calculadamente, Leto enrolou
uma faixa da membrana que vinha de baixo de seus lábios, levou-a
até a boca e sorveu a doçura.
Todavia, sua boca não estava protegida. Como fremen, ele
sentiu que a umidade de seu corpo estava sendo desperdiçada a
cada respiração e, com isso, Leto trouxe uma parte da membrana
para cobrir a boca, mas a enrolou de volta para baixo quando ela
tentou tapar suas narinas e manteve-se assim ocupado até que a
barreira enrolada ficou no mesmo lugar. Fiel aos padrões da vida
no deserto, ele começou a respirar conforme um padrão
automático, inspirando pelo nariz e expirando pela boca. A
membrana sobre sua boca inchou com uma pequena bolha, mas
ficou no lugar. Nenhuma umidade coletada em seus lábios e em
suas narinas permanecia exposta. Então, a adaptação prosseguia.
Um tóptero voou entre Leto e a lua, deu um bordo de
aproximação e aterrissou de asas abertas sobre o ressalto a
talvez 100 metros à esquerda de Leto. Ele olhou rapidamente
para o aparelho, virou-se e olhou de volta para o caminho que
tinha percorrido desde o desfiladeiro. Muitas luzes podiam ser
vistas lá embaixo, além do qanat, a agitação de uma multidão. Ele
ouvia gritos esparsos que a distância diluía e percebia o timbre da
histeria naqueles sons. Dois homens chegaram perto dele, saídos
do tóptero. A luz da lua cintilou sobre as armas que portavam.
O Mashhad, Leto pensou. Esse foi um pensamento triste. Ali
estava o grande salto para dentro do Caminho Dourado. Ele tinha
vestido o trajestilador vivo e autorreparador de uma membrana
feita de trutas de areia, uma coisa de valor incomensurável em
Arrakis... até que você compreendia o preço que pagava por isso.
Não sou mais humano. As lendas sobre esta noite crescerão e a
ampliarão muito além de qualquer coisa reconhecível por seus
participantes. Mas essa lenda se tornará verdade.
Do topo do ressalto, ele olhou para baixo e estimou que o solo
do deserto estaria a 200 metros. O luar salientava lapas e fendas
na face íngreme, mas nenhuma trilha de interligação. Leto ficou
em pé, respirou fundo e olhou por cima do ombro para os homens
que se aproximavam. Então, posicionou-se na beirada do
penhasco e se arremessou no espaço. A mais ou menos 30 metros
em direção ao chão, suas pernas flexionadas encontraram um
estreito beiral. Os músculos amplificados absorveram o impacto e
ricochetearam em outro salto que ele deu para uma plataforma
lateral onde se agarrou a uma saliência com as mãos. Caiu mais 20
metros, saltou na direção de outro ponto onde podia se agarrar e
mais uma vez desceu, quicando, saltando e se segurando em
pequenos trechos rochosos que ofereciam encaixe para os dedos.
Os últimos 40 metros ele venceu de um salto só, aterrissando com
um rolamento com os joelhos dobrados que o fez mergulhar
deslizando até a face móvel de uma duna, criando um borrifo
gigante de areia e pó. Quando bateu no fundo, ele se levantou e se
atirou para a crista da duna mais próxima num único salto. Leto
conseguia ouvir os gritos roucos que vinham do alto do penhasco,
mas os ignorou para se concentrar nas passadas ou saltos que lhe
permitiam ir de uma crista de duna para a seguinte.
Conforme se acostumava com a amplificação de seus músculos,
descobria um prazer sensual que não havia previsto na execução
desses movimentos que engoliam distâncias. Era como um balé
no deserto, desafiando o Tanzerouft de um modo que nunca havia
sido vivido por ninguém.
Quando julgou que os ocupantes do ornitóptero tinham
vencido seu estado de choque o suficiente para se pôr novamente
em seu encalço, Leto mergulhou rumo à encosta de uma duna cuja
face estava encoberta por sombras e ali se enterrou. A areia era
como um líquido pesado para sua nova força, mas a temperatura
subia perigosamente quando ele se deslocava com muita
velocidade. Ele se desvencilhou do esconderijo saindo pela
encosta mais distante da duna e descobriu que a membrana tinha
recoberto suas narinas. Ele a removeu e sentiu a nova pele
pulsando sobre seu corpo em seu afã de absorver sua
transpiração.
Leto moldou um tubo em sua boca, bebeu o xarope e, enquanto
isso, levou os olhos para o alto, para o céu forrado de estrelas.
Imaginava que teria percorrido cerca de 15 quilômetros desde
Shuloch. Nesse instante, um tóptero traçou seu rumo através das
estrelas como uma grande ave seguida por outra e mais outra. Ele
ouvia o silvo macio das asas dos aparelhos e o murmúrio de seus
jatos abafados.
Bebericando do tubo vivo, ele esperou. A primeira lua passou,
cumprindo seu percurso, e depois passou a segunda lua.
Uma hora antes do amanhecer, Leto subiu rastejando até o
topo da duna e examinou o céu. Nenhum caçador. Agora ele sabia
que tinha embarcado numa viagem da qual não haveria retorno. À
sua frente, abria-se a armadilha do Tempo e do Espaço que tinha
sido montada como uma lição inesquecível para ele e para toda a
humanidade.
Leto se virou para noroeste e percorreu outros 50 quilômetros
antes de se enterrar na areia e dar o dia por encerrado, deixando
somente um mínimo orifício aberto na direção da superfície, que
um tubo de trutas de areia mantinha desobstruído. A membrana
estava aprendendo como conviver com ele, assim como ele estava
aprendendo a conviver com ela. Ele tentou não pensar nas outras
coisas que estariam acontecendo com a sua carne.
Amanhã avançarei contra Gara Rulen, ele pensou. Vou destruir
o qanat deles e deixar sua água escorrer e sumir na areia. Depois,
vou para Fole, Velha Ravina e Harg. No intervalo de um mês a
transformação ecológica terá recuado ao ponto de uma geração
completa para trás. Isso nos dará espaço para desenvolver um
novo cronograma.
E a selvageria das tribos rebeldes seria culpada, sem dúvida.
Alguns iriam reviver memórias de Jacurutu. Alia estaria
muitíssimo ocupada. Quanto a Ghanima... Silenciosamente, em
seu íntimo, Leto enunciou as palavras que iriam restaurar a
memória dela. Mas isso ficaria para mais tarde... se eles
sobrevivessem a esse terrível emaranhamento dos fios.
O Caminho Dourado acenava para ele ali adiante, no deserto,
como uma coisa quase física que ele podia ver de olhos abertos. E
ele pensou como seria: assim como os animais devem se deslocar
através da terra, a existência deles dependia do movimento da
alma da humanidade, bloqueada há éons, e precisava de uma
trilha que pudesse percorrer.
Ele pensou em seu pai e então disse para si mesmo: Logo
iremos lutar de igual para igual e somente uma visão irá emergir.
Os limites da sobrevivência são determinados
pelo clima, aquelas longas vagas de mudança em
que uma geração pode não reparar. E são os
extremos climáticos que ditam o padrão. Os
humanos finitos e solitários podem observar
províncias climáticas, flutuações das condições
atmosféricas ao longo do ano, e, de vez em
quando, comentar coisas como “Este é o ano que
eu me lembre que mais fez frio”. Essas são coisas
perceptíveis. Mas os humanos raramente estão
alertas para a média mutável através de um
intervalo mais extenso, que abrigue um grande
número de anos. E é precisamente nesse estado
de alerta que os humanos aprendem como
sobreviver em qualquer planeta. Eles precisam
aprender como é o clima.
– Arrakis, a transformação,
Segundo Harq al-Ada

Alia estava sentada de pernas cruzadas em sua cama, tentando


se recompor recitando a Litania contra o Medo, mas uma
risadinha de escárnio ficava ecoando em seu crânio e impedia seu
esforço. Ela podia ouvir essa voz, que controlava seus ouvidos e
sua mente.
– Que absurdo é esse? O que você tem a temer?
Os músculos de suas panturrilhas estremeceram quando os
pés de Alia tentaram fazer o movimento de correr. Não havia para
onde correr.
Ela estava usando só uma bata dourada da seda paliana mais
requintada e transparente, que revelava os inchaços que tinham
começado a deixar seu corpo mais arredondado. A Hora dos
Assassinos tinha acabado de passar; a aurora se aproximava.
Relatórios cobrindo os últimos três meses estavam abertos à
sua frente, sobre a colcha vermelha. Ela conseguia ouvir o zunido
do ar-condicionado e uma brisa ligeira levantava as etiquetas dos
rolos de shigafio.
Duas horas atrás, suas amedrontadas assistentes a haviam
acordado para lhe dar notícias da mais recente insubordinação, e
Alia tinha pedido que lhe trouxessem os carretéis com os
relatórios, para tentar encontrar um padrão inteligível.
Então desistiu da Litania.
Esses ataques tinham de ser coisa dos rebeldes.
Evidentemente. Um número cada vez maior deles se insurgia
contra a religião de Muad’Dib.
– E qual é o problema? – indagou a voz sardônica em seu
interior.
Alia sacudiu a cabeça selvagemente. Namri tinha falhado com
ela. Ela havia sido uma tola em confiar num duplo instrumento tão
perigoso. Suas auxiliares tinham insinuado que a culpa era de
Stilgar, que ele era um rebelde disfarçado. E o que tinha
acontecido com Halleck? Resolveu sumir do mapa entre seus
contrabandistas? Era possível.
Ela pegou um dos carretéis de relatório. E Muriz! O sujeito
estava histérico. Aquela era a única explicação possível. Caso
contrário, ela teria de acreditar em milagres. Nenhum humano,
muito menos uma criança (ainda que essa criança fosse Leto)
poderia saltar do ressalto de Shuloch e sobreviver a uma fuga
através do deserto dando saltos que o levavam de uma crista de
duna para a seguinte.
Alia sentiu a frieza gélida do shigafio em sua mão.
Onde estava Leto, portanto? Ghanima se recusava a acreditar
que ele não estivesse morto. Um Que Diz a Verdade tinha
confirmado a história dela: Leto fora morto por um tigre laza.
Então, quem seria a criança que constava nos relatórios de Namri
e Muriz?
Ela estremeceu.
Quarenta qanats tinham sido rompidos e suas águas tinham
sido entregues à sede da areia. Os fremen leais e até mesmo os
rebeldes, aqueles palermas supersticiosos, todos eles! Os
relatórios que havia recebido estavam forrados de narrativas
sobre ocorrências misteriosas. Trutas de areia saltando para
dentro de qanats e despedaçadas até se tornarem exércitos de
pequenas réplicas. Vermes que se afogavam deliberadamente.
Sangue pingando da segunda lua e caindo sobre Arrakis, onde
provocava grandes tempestades. E a frequência das tempestades
estava aumentando!
Ela pensou em Duncan, mantido incomunicável em Tabr,
sapateando de frustração sob o jugo das restrições que ela
obrigara Stilgar a cumprir. Ele e Irulan não falaram de quase mais
nada além do verdadeiro sentido embutido nesses presságios.
Tolos! Até mesmo os espiões que a serviam traíam a influência
dessas histórias repugnantes!
Por que Ghanima insistia em sua história do tigre laza?
Alia suspirou. Somente um dos relatórios nos rolos de shigafio
a tranquilizava. Farad’n tinha enviado um contingente de sua
guarda pessoal “para ajudá-la em seus apuros e preparar o
caminho para o Rito Oficial de Noivado”. Alia sorriu consigo
mesma e compartilhou a risadinha sardônica que ecoava em seu
crânio. Aquele plano, pelo menos, permanecia intacto. As devidas
explicações lógicas seriam encontradas para dissipar todos esses
outros disparates supersticiosos.
Enquanto isso, ela usaria os homens de Farad’n para ajudar a
cercar Shuloch e prender os dissidentes conhecidos,
especialmente entre os naibs. Ela ponderou sobre a possibilidade
de uma investida contra Stilgar, mas sua voz interior aconselhou
que não o fizesse.
– Ainda não.
– Minha mãe e a Irmandade ainda têm algum plano próprio –
Alia sussurrou. – Por que ela está treinando Farad’n?
– Talvez ele a deixe excitada – comentou o velho barão.
– Aquela frígida? Duvido.
– Você não está pensando em pedir a Farad’n que a mande de
volta, está?
– Eu sei o perigo que isso representa!
– Bom. No ínterim, aquele jovem auxiliar que Zia trouxe há
pouco tempo. Acredito que o nome dele é Agarves, Buer Agarves.
Se você o convidar para vir aqui hoje à noite...
– Não!
– Alia...
– Já é quase de manhã, seu velho bobalhão e insaciável! Hoje
pela manhã vai haver uma reunião do Conselho Militar e os
sacerdotes terão...
– Não confie neles, Alia querida.
– Claro que não!
– Muito bem. Quanto a esse Buer Agarves...
– Eu disse que não!
O velho barão permaneceu calado dentro dela, mas ela
começou a sentir dor de cabeça. Uma dor lenta veio subindo pelo
lado direito do rosto e penetrou-lhe no crânio. Houve uma vez em
que conseguira que ela saísse pelos corredores uivando de dor,
usando esse truque. Só que agora ela estava resolvida a resistir a
ele.
– Se insistir, tomarei um sedativo – ela ameaçou.
Ele pôde sentir que ela falava a sério. A dor de cabeça começou
a diminuir.
– Muito bem. – Voz petulante. – Uma outra hora, quem sabe.
– Uma outra hora – ela concordou.
Dividiste a areia com a tua força: tu quebras as
cabeças dos dragões no deserto. Sim, eu te
contemplei como uma besta emergindo das
dunas: tu tens os dois chifres do carneiro, mas
falas como o dragão.
– Bíblia Católica de Orange Revisada
Arran II:4

Era a profecia imutável, os fios tornando-se uma corda, aquilo


que agora Leto parecia ter sabido sua vida inteira. Ele olhou
adiante, através das sombras da noite que cobriam o Tanzerouft.
A uma distância de 170 quilômetros ao norte abria-se a Velha
Ravina, a funda e sinuosa fenda através da Muralha-Escudo por
onde os primeiros fremen tinham atravessado em sua migração
rumo ao deserto.
Em Leto não restava mais nenhuma dúvida. Ele sabia por que
estava ali sozinho, no deserto, embora repleto da sensação de que
possuía aquela terra toda e que ela deveria cumprir suas ordens.
Ele sentiu o cordão que o conectava com toda a humanidade e
aquela profunda necessidade de um universo de experiências que
tinha um sentido lógico, um universo de regularidades
reconhecíveis em meio a suas mudanças perpétuas.
Eu conheço este universo.
O verme que o havia levado até ali havia correspondido às
batidas de seu pé e, ao se erguer à sua frente, tinha parado na
atitude de um animal obediente. Ele saltara sobre o dorso da
criatura e, usando apenas suas mãos ampliadas pela membrana,
tinha exposto o lábio principal dos anéis do verme para mantê-lo
na superfície. O verme tinha se exaurido com a corrida rumo ao
norte, que havia durado a noite inteira. Sua “fábrica” interna de
enxofre e silicone tinha esgotado sua capacidade operacional,
soltando jatos volumosos de oxigênio que o vento favorável tinha
enviado em ondas envolventes à volta de Leto. Às vezes, esses
jatos quentes o deixavam tonto e enchiam sua mente de
estranhas percepções. A subjetividade circular e reflexa de suas
visões tinha se voltado para dentro, sobre seus ancestrais,
forçando-o a reviver partes de seu passado terrânico, para então
comparar essas porções com as mudanças no seu ser.
Ele já podia perceber a grande distância que se havia criado em
relação a algo que se pudesse reconhecer como humano.
Seduzido pela especiaria que engolira em cada vestígio que ele
havia encontrado, a membrana que o recobria não era mais truta
de areia, assim como ele não era mais humano. Os cílios tinham
penetrado em sua pele formando uma nova criatura que iria em
busca de sua própria metamorfose nos éons que viriam.
Você viu isso, meu pai, e o rejeitou, ele pensou. Era uma coisa
terrível demais para encarar.
Leto sabia o que acreditavam acerca de seu pai e por quê.
Muad’Dib morreu por causa da presciência.
Mas Paul Atreides tinha migrado do universo da realidade para
o alam al-mythal onde ele ainda vivia, fugindo disso que seu filho
tinha ousado enfrentar.
Agora, só existia O Pregador.
Leto se agachou na areia e manteve sua atenção voltada para o
norte. O verme viria daquela direção e traria no lombo duas
pessoas: um jovem fremen e um cego.
Um bando de morcegos pálidos sobrevoou a cabeça de Leto e
se dirigiu para sudeste. Eram como manchas aleatórias contra o
céu que escurecia, e um olho fremen experiente poderia reparar
em seu curso de retorno para ficar sabendo onde haveria algum
abrigo naquela direção. O Pregador, contudo, evitaria esse abrigo.
Ele estava indo para Shuloch, onde não se permitiam morcegos
selvagens a fim de que não guiassem forasteiros àquele lugar
secreto.
O verme apareceu primeiro como um movimento escuro entre
o deserto e o céu a noroeste. Matar, a chuva de areia que caía de
altitudes elevadas quando uma ventania de tempestade estava
arrefecendo, obscureceu a imagem para Leto por alguns minutos,
mas, depois, ela ficou cada vez mais nítida e próxima.
A linha fria na base da duna onde Leto se havia abaixado
começou a produzir sua umidade noturna. Ele absorveu o frágil
orvalho pelas narinas, ajustando o tampão-revestimento em
formato de bolha da membrana sobre a boca. Ele não tinha mais
nenhuma necessidade de encontrar algo encharcado ou fontes de
onde bebericar. Graças aos genes de sua mãe, tinha aqueles
intestinos fremen maiores e mais longos, grandes o suficiente
para armazenar água de todas as fontes que pudesse contatar. O
trajestilador vivo capturava e retinha cada mínima parcela de
umidade que encontrasse. E inclusive agora, sentado ali naquela
crista de duna, a membrana que tocava a areia expelia cílios
pseudópodes que saíam à captura de quaisquer itens
fornecedores de energia que ela pudesse acumular.
Leto estudou o verme que se aproximava. Ele sabia que o jovem
guia já o teria visto nesse momento, já teria reparado que ele
estava sentado no topo da duna. O cavaleiro que conduzia o
verme não podia discernir nenhum princípio naquele objeto visto
a distância, mas esse era um problema que os fremen tinham
aprendido como enfrentar. Todo objeto desconhecido era
perigoso. As reações do jovem condutor seriam bem previsíveis,
inclusive sem a visão.
Fiel a essa previsão, o curso do verme mudou ligeiramente e
agora ele estava vindo direto na direção de Leto. Vermes gigantes
eram uma arma que os fremen tinham empregado muitas vezes.
Os vermes haviam ajudado a derrotar Shaddam em Arrakina.
Esse verme, contudo, não estava obedecendo ao comando do
guia. Quando faltavam 10 metros para tocar Leto, ele estancou e
não havia o que o instigasse a avançar mais um grão de areia que
fosse.
Leto se ergueu, sentindo os cílios se fecharem rapidamente de
volta sobre a membrana atrás dele. Ele destampou a boca e
gritou:
– Aschlan, waschlan! – Bem-vindo, duas vezes bem-vindo!
O cego se levantou atrás do guia, equilibrado sobre o dorso do
verme, com uma das mãos apoiada no ombro do jovem. O homem
estava com o rosto voltado para cima e o nariz apontado sobre a
cabeça de Leto como se tentasse farejar essa interrupção. A testa
do velho estava cor de laranja, pintada com a cor do ocaso.
– Quem é? – ele perguntou, sacudindo o ombro do guia. – Por
que paramos? – A voz dele era anasalada por causa dos coletores
do seu trajestilador.
O jovem mirava amedrontado a figura de Leto e respondeu:
– É somente alguém sozinho no deserto. Uma criança, ao que
parece. Tentei fazer o verme avançar sobre ele, mas o verme se
recusa.
– Por que não disse? – indagou o velho cego.
– Pensei que fosse apenas alguém sozinho no deserto! –
protestou o jovem. – Mas é um demônio.
– Dito como um verdadeiro filho de Jacurutu – aparteou Leto. –
E você, sire, é O Pregador.
– Sou ele, sim. – E havia medo na voz do Pregador porque,
finalmente, tinha encontrado o seu próprio passado.
– Aqui não é nenhum jardim – Leto concedeu –, mas você é
bem-vindo a compartilhar este lugar comigo hoje à noite.
– Quem é você? – O Pregador quis saber. – Como deteve o nosso
verme? – Havia um tom fatídico de reconhecimento na voz do
Pregador. Agora ele estava convocando as reminiscências de sua
outra visão... sabendo que poderia encontrar um fim aqui.
– É um demônio! – interrompeu o jovem guia, protestando. –
Devemos fugir deste lugar ou nossas almas...
– Silêncio! – trovejou O Pregador.
– Sou Leto Atreides – anunciou Leto. – Seu verme parou porque
eu assim ordenei.
O Pregador ficou imóvel, paralisado e em silêncio.
– Venha, meu pai – Leto insistiu. – Desmonte e passe esta noite
comigo. Vou lhe dar xarope doce para beber. Vejo que tem o
fremkit com comida e água. Vamos dividir nossas riquezas aqui,
na areia.
– Leto ainda é uma criança – contrapôs O Pregador. – E dizem
que ele morreu vítima de uma conspiração dos Corrino. Não há
infância em sua voz.
– O senhor me conhece, sire – Leto murmurou. – Sou pequeno
para a minha idade, tal como você foi, mas minha experiência é
antiga e minha voz aprendeu com ela.
– O que está fazendo aqui, no fundo do deserto? – O Pregador
perguntou.
– Bu ji – Leto respondeu. Nada a partir de nada. Essa era a
resposta de um andarilho zen-sunita, de alguém que só agia
partindo de uma posição de repouso sem esforço e em harmonia
com o ambiente em torno.
O Pregador sacudiu o ombro de seu jovem guia.
– É realmente uma criança, uma criança de verdade?
– Aiya – balbuciou o jovem, mantendo uma receosa atenção
voltada para Leto.
Um grande calafrio de choque abalou O Pregador.
– Não – ele suspirou.
– É um demônio na forma de uma criança – insistiu o guia.
– Vocês passam a noite aqui – sentenciou Leto.
– Faremos o que ele diz – anuiu O Pregador. Ele tirou a mão do
ombro de seu guia, deslizou do lombo do verme e de um anel da
criatura e atingiu a areia, dando um salto lépido assim que seus
pés tocaram a areia. Voltando-se, disse: – Leve o verme embora e
devolva-o para a areia. Ele está cansado e não nos incomodará.
– O verme não irá – protestou o jovem.
– Irá – Leto confirmou. – Mas, se tentar fugir montado nele,
deixarei que ele coma você. – Ele se dirigiu para uma lateral do
espectro sensorial do verme e apontou na direção de onde eles
tinham vindo: – Siga nessa direção.
O jovem deu um leve tapinha com um aguilhão no anel atrás
dele e encaixou um gancho onde ele mantinha um anel aberto.
Lentamente, o verme começou a deslizar pela areia, virando
quando o jovem mudou a posição do gancho para mais baixo.
Guiando-se pelo som da voz de Leto, O Pregador tinha subido a
encosta da duna apesar da dificuldade e agora se postava à
distância de dois passos do menino. Seu deslocamento fora
realizado com tal segurança que Leto soube no mesmo momento
que aquela não seria uma contenda fácil.
Aqui, as visões divergiam.
– Tire a máscara do seu traje, pai – Leto pediu.
O Pregador obedeceu, deixando cair a dobra do capuz e
removendo a cobertura que tapava sua boca.
Conhecendo sua própria aparência, Leto estudou aquele rosto,
vendo as linhas de semelhança como se elas tivessem sido
esboçadas à luz. As linhas formavam uma reconciliação
indefinível, um percurso genético sem limites bem demarcados e
não havia como se confundir a respeito delas. Essas linhas vinham
desde o Leto dos tempos das caçadas, dos tempos em que a água
pingava, desde os mares milagrosos de Caladan. Mas, agora,
configuravam uma encruzilhada em Arrakis, enquanto a noite
esperava para se desdobrar sobre as dunas.
– Então, pai – começou Leto, olhando para o lado esquerdo
onde podia ver o jovem guia vindo de volta através da areia até
onde eles estavam, tendo abandonado o verme.
– Mu zein! – exclamou O Pregador, acenando com a mão direita
num gesto cortante. Isto não é bom!
– Koolish zein – Leto respondeu com a voz baixa. Este é todo o
bom que poderemos ter. E acrescentou em chakobsa, a língua de
batalhas dos Atreides: – Aqui estou e aqui fico! Não podemos
esquecer isso, pai.
Os ombros do Pregador afundaram. Ele colocou as duas mãos
sobre as órbitas vazias, num gesto que não usava há muito tempo.
– Certa vez, eu lhe dei a capacidade de ver a partir dos meus
olhos e peguei suas memórias – lembrou Leto. – Sei das suas
decisões e estive no lugar em que você se escondeu.
– Eu sei. – O Pregador baixou as mãos. – Você vai ficar?
– Você me deu o nome daquele homem que inscreveu essas
palavras em seu brasão – insistiu Leto. – J’y suis, j’y reste!
O Pregador suspirou profundamente.
– A que ponto isso chegou, isso que você fez consigo mesmo?
– Minha pele não é mais minha, pai.
O Pregador estremeceu.
– Então entendo como foi que você me encontrou aqui.
– Sim, eu atei minha memória a um lugar que minha carne
nunca tinha visto – Leto contou. – Preciso atravessar uma noite
com meu pai.
– Não sou seu pai. Sou somente uma cópia fajuta, uma relíquia.
– Ele girou a cabeça na direção do som do guia que vinha
chegando. – Não sigo mais na direção das visões para o meu
futuro.
A escuridão desceu sobre o deserto enquanto ele falava. As
estrelas pipocaram no alto, sobre eles, e Leto também se voltou
na direção do guia que se aproximava.
– Wubakh ul kuhar! – Leto exclamou para o jovem. – Saudações!
E veio a resposta:
– Subakh un nar!
Falando num murmúrio rouco, O Pregador alertou:
– Esse jovem Assan Tariq é perigoso.
– Todos os Banidos são perigosos – Leto acrescentou. – Mas
não para mim. – E ele falou em voz baixa, normalmente.
– Se essa é a sua visão, não irei compartilhá-la – O Pregador
afirmou.
– Talvez você não tenha escolha – murmurou Leto. – Você é fil-
haquiqa, A Realidade. Você é Abu Dhur, o Pai das Indefinidas
Estradas do Tempo.
– Não passo da isca numa armadilha – rebateu O Pregador, e
sua voz soou amarga.
– E Alia já mordeu essa isca – concluiu Leto. – Mas não gosto do
sabor dela.
– Você não pode fazer isso! – silvou O Pregador.
– Já fiz. Minha pele não é a minha pele.
– Talvez não seja tarde demais para você...
– É tarde demais. – Leto inclinou a cabeça de lado. Ele podia
ouvir Assan Tariq trabalhosamente escalando a duna pelo lado
mais fácil de chegar a eles, guiado pelo som de suas vozes. –
Saudações, Assan Tariq de Shuloch – Leto cumprimentou.
O jovem parou logo abaixo de Leto na encosta de areia, uma
sombra escura perfilada à luz das estrelas. Havia indecisão no
modo como seus ombros estavam postos e na inclinação de sua
cabeça.
– Sim – confirmou Leto. – Eu sou aquele que escapou de
Shuloch.
– Quando ouvi... – O Pregador começou. E de novo: – Você não
pode fazer isso!
– Estou fazendo. O que importa se você ficar cego mais uma
vez?
– Você acha que tenho medo disso? – perguntou O Pregador. –
Não está vendo o belo guia que me forneceram?
– Eu o vejo. – Mais uma vez, Leto encarou Tariq. – Você não me
ouviu, Assan? Eu sou aquele que escapou de Shuloch.
– Você é um demônio – o jovem acusou, vacilante.
– O seu demônio – Leto concordou. – Mas você é o meu
demônio. – E Leto sentiu crescer a tensão entre ele e seu pai. Era
um jogo de sombras em volta deles, uma projeção de formas
inconscientes. E Leto sentiu as reminiscências de seu pai, uma
forma de profecia retroativa que distinguia entre as visões e a
realidade familiar desse momento.
Tariq sentiu isso, essa batalha das visões. E desceu vários
passos pela encosta da duna.
– Você não pode controlar o futuro – O Pregador murmurou, e o
som de sua voz estava cheio de esforço, como se ele tivesse
levantado um grande peso.
Leto sentiu então a dissonância entre eles dois. Era um
elemento do universo ao qual sua vida inteira se agarrava. Ele ou
seu pai logo seriam forçados a agir, a tomar uma decisão em
função desse ato, a escolher uma visão. E seu pai estava certo: na
busca do controle do universo, só se pode construir as armas com
as quais o universo acabará derrotando você no final. Escolher e
administrar uma visão exigia que você se equilibrasse num único
fio, muito fino, brincando de Deus numa corda bamba lá no alto
com a solidão cósmica de ambos os lados. Nenhum dos
competidores poderia recuar para a morte-como-cessação-do-
paradoxo. Ambos conheciam as visões e as regras. Todas as
antigas ilusões estavam morrendo. E quando um dos
competidores se mexia, o outro podia fazer um contramovimento.
A única verdade real que importava a eles agora era aquela que os
separava do pano de fundo da visão. Não havia lugar de
segurança, somente uma troca transitória de relacionamentos,
aprisionada dentro dos limites que agora eles traçavam e
impunham para as mudanças inevitáveis. Cada um deles possuía
apenas uma coragem desesperada e solitária na qual confiar, mas
Leto contava com duas vantagens: ele se havia comprometido
com um caminho do qual não havia retorno, e havia aceitado para
si as terríveis consequências. Seu pai ainda esperava que existisse
um caminho de volta e não tinha se comprometido de maneira
cabal.
– Você não deve! Não deve! – O Pregador esganiçava com voz
que raspava incomodamente os ouvidos.
Ele percebe a minha vantagem, Leto pensou.
E, usando uma voz normal de conversa, encobrindo sua própria
tensão, no esforço exigido para equilibrar essa competição de
outro nível, Leto comentou:
– Não acredito apaixonadamente na verdade, não tenho fé em
nada além do que naquilo que eu crio. – E então sentiu um
movimento entre ele e seu pai, algo com as características
granulares que tocavam apenas a crença pessoal e
apaixonadamente subjetiva de Leto em si mesmo. Por meio dessa
crença, ele sabia que tinha assentado os marcadores do Caminho
Dourado. Algum dia, esses marcadores poderiam dizer aos outros
como serem humanos. Um estranho presente vindo de uma
criatura que não seria mais humana quando esse dia chegasse.
Mas esses marcadores sempre tinham sido assentados por
aqueles que apostavam alto. Leto os percebeu espalhados pela
paisagem das vidas interiores existentes nele e, sentindo isso,
preparou-se para a aposta final.
Delicadamente ele farejou o ar, buscando o sinal que tanto ele
como o pai sabiam que viria. Restava uma pergunta: será que seu
pai avisaria o aterrorizado jovem guia que esperava ali embaixo?
Nesse instante, Leto sentiu o cheiro de ozônio, o odor que traía
a presença de um escudo. Fiel às ordens dadas pelos Banidos, o
jovem Tariq estava tentando matar aqueles dois Atreides
perigosos, sem saber os horrores que isso poderia precipitar.
– Não – O Pregador murmurou.
Mas Leto sabia que aquele era o sinal verdadeiro. Ele percebera
o ozônio, mas não havia comichão no ar em torno deles. Tariq
usava um pseudoescudo no deserto, uma arma criada
exclusivamente para Arrakis. O efeito Holtzmann convocaria um
verme e ao mesmo tempo o enlouqueceria. Nada seria capaz de
deter esse verme – nem água, nem a presença de trutas de areia...
nada. Sim, o jovem tinha armado o dispositivo na encosta da duna
e estava começando a se afastar da zona de perigo.
Leto se atirou do alto da duna, ouvindo o grito de protesto de
seu pai. Mas o ímpeto terrível dos músculos amplificados de Leto
lançou-o no ar como se ele fosse um míssil. Uma de suas mãos
estendidas fechou-se na gola do trajestilador de Tariq, enquanto
a outra o estapeava do outro lado para agarrar o manto do jovem
pela cintura. Ouviu-se um simples estalar de ossos quando o
pescoço de Tariq foi quebrado. Leto rolou e levantou seu corpo
como um instrumento minuciosamente calibrado, capaz de
entrar na areia no local preciso em que o pseudoescudo tinha sido
camuflado. Seus dedos encontraram o dispositivo e ele o
arrancou da areia, atirando-o para o alto num movimento que
descreveu um arco, cujo final ficava longe, ao sul de onde estavam.
Nesse momento, um ruidoso misto de silvos e estrépitos no
chão atravessou o deserto desde onde o pseudoescudo tinha
caído. Então o som cessou e o silêncio tornou a imperar.
Leto olhou para o alto da duna onde seu pai continuava parado,
ainda desafiador, mas derrotado. Ali estava Paul Muad’Dib,
imóvel, cego, furioso, quase desesperado por ter fugido antes da
visão que agora Leto tinha aceitado. Agora, a mente de Paul
deveria estar refletindo sobre o longo koan zen-sunita: “No ato
específico de predizer um futuro exato, Muad’Dib introduziu um
elemento de desenvolvimento e crescimento na própria faculdade
da presciência por meio do qual ele enxergou a existência humana.
Com isso, ele acarretou a incerteza para si mesmo. Buscando o
absoluto da previsão ordenada, ele amplificou a desordem e a
previsão distorcida”.
Voltando ao topo da duna em um único salto, Leto observou:
– Agora sou o seu guia.
– Nunca!
– Você prefere voltar para Shuloch? Mesmo que o acolhessem
de bom grado se chegasse lá sem Tariq, aonde Shuloch terá ido
agora? Seus olhos enxergam isso?
Paul então enfrentou seu filho, direcionando suas órbitas
vazias para o rosto dele:
– Você realmente conhece o universo que criou aqui?
Leto ouviu a ênfase especial. A visão terrível que ambos sabiam
ter sido posta em movimento ali tinha exigido o ato de criação de
um determinado ponto no tempo. Por esse momento, o universo
senciente inteiro compartilhava uma visão linear do tempo
dotada das características de uma progressão ordenada. Eles
embarcaram nesse tempo como poderiam ter embarcado num
veículo em movimento, e só poderiam sair dele do mesmo jeito.
Contra isso, Leto segurava as rédeas de múltiplos fios,
equilibrado em sua própria capacidade de ver iluminada pela
visão do tempo como algo multilinear e multientrelaçado. Ele era
o homem capaz de ver no universo de cegos. Somente ele podia
disseminar o raciocínio ordenador porque seu pai não mais
segurava as rédeas. Na opinião de Leto, um filho tinha mudado o
passado. E um pensamento ainda não cogitado no mais remoto
dos futuros poderia se refletir sobre o agora e movimentar sua
mão.
Somente a sua mão.
Paul sabia disso porque não podia mais perceber como Leto
era capaz de manipular as rédeas; ele só podia reconhecer as
consequências inumanas que Leto havia aceitado. E pensou: Aqui
está a mudança pela qual eu tinha rezado. Por que tenho medo
dela? Porque é o Caminho Dourado!
– Estou aqui para dar propósito à evolução e, portanto, dar
propósito a nossas vidas – Leto afirmou.
– Você deseja viver milhares de anos, mudando como sabe
agora que mudará?
Leto entendeu que seu pai não estava falando de mudanças
físicas. Eles dois sabiam das consequências físicas: Leto iria se
adaptar seguidamente. A pele que não era a sua pele iria se
adaptar incessantemente. O ímpeto evolutivo de cada parte se
fundiria na outra e emergiria uma única transformação. Quando
ocorresse a metamorfose, se ocorresse, emergiria nesse universo
uma criatura pensante de dimensões assombrosas e esse
universo iria adorá-la.
Não... Paul estava se referindo às mudanças interiores, aos
pensamentos e às decisões que se abateriam sobre os
adoradores.
– Esses que pensam que você morreu – Leto apontou –, você
sabe o que dizem a respeito de suas palavras finais.
– Claro que sim.
– “Agora eu faço o que toda a vida deve fazer a serviço da vida”
– Leto recitou. – Você nunca disse disso, mas um sacerdote que
achou que você nunca poderia retornar e chamá-lo de mentiroso
colocou essas palavras em sua boca.
– Eu não o chamaria de mentiroso. – Paul respirou fundo. –
Essas são boas palavras finais.
– Você prefere ficar aqui ou voltar para aquela cabana na bacia
de Shuloch? – Leto perguntou.
– Este é o seu universo agora – Paul respondeu.
Essas palavras repletas de derrota percutiram em Leto. Paul
tinha tentado direcionar os derradeiros fiapos de uma visão
pessoal, de uma escolha que ele tinha feito antes, em Sietch Tabr.
Por causa disso, ele tinha aceitado seu papel como instrumento
de vingança para os Banidos, os remanescentes de Jacurutu.
Esses o haviam contaminado, mas ele aceitara isso e não a visão
do universo que tivera e que Leto havia escolhido.
Era tão grande a tristeza dentro de Leto que ele não conseguiu
falar nada durante muitos minutos. Quando enfim pôde achar sua
voz, prosseguiu:
– Então você fisgou Alia, tentou-a e confundiu-a até que ela
ficasse imóvel e tomasse as decisões erradas. E agora ela sabe
quem você é.
– Ela sabe... Sim, ela sabe.
A voz de Paul estava velha então e refletia protestos ocultos.
Mas ainda havia nele uma reserva de desafio. E ele atacou:
– Tirarei de você a visão se eu puder.
– Milhares de anos pacíficos – rebateu Leto. – É isso que darei a
eles.
– Hibernação! Estagnação!
– Naturalmente. E as formas de violência que eu permitir. Será
uma lição que a humanidade nunca esquecerá.
– Cuspo em sua lição! – Paul exclamou. – Você acha que eu não
vi uma coisa parecida com essa que você escolheu?
– Você viu – Leto concordou.
– E a sua visão é melhor do que a minha em algum sentido?
– Nem um milímetro melhor. Pior, possivelmente – Leto
considerou.
– Então, o que posso fazer senão resistir a você? – Paul indagou.
– Me matar, talvez?
– Não sou tão inocente. Eu sei o que você desencadeou. Estou a
par dos qanats destruídos e de todos os tumultos.
– E agora Assan Tariq nunca mais regressará a Shuloch. Você
tem de voltar comigo ou não voltar de jeito nenhum porque essa é
a minha visão, agora.
– Prefiro não voltar.
Como a voz dele parece velha, Leto pensou, e esse pensamento
doeu como uma pancada. Ele disse:
– Estou com o anel do gavião dos Atreides escondido na minha
dishdasha. Quer que eu o devolva a você?
– Se eu ao menos tivesse morrido – Paul murmurou. – Eu
realmente quis morrer quando fui para o deserto naquela noite,
mas sabia que não poderia partir deste mundo. Eu tinha de voltar
e...
– Resgatar a lenda – completou Leto. – Eu sei. E os chacais de
Jacurutu estavam esperando por você naquela noite, como você
sabia que eles estariam. Eles queriam as suas visões! Você sabia
disso.
– Eu me recusei. Nunca dei a eles nenhuma visão.
– Mas eles o contaminaram. Eles lhe deram de comer a essência
da especiaria e o manipularam com mulheres e sonhos. E você
efetivamente teve visões.
– Às vezes. – E a voz dele soou muito ardilosa.
– Você vai querer de volta seu anel do gavião? – Leto insistiu.
De repente, Paul se sentou na areia e criou uma mancha escura
à luz da estrelas.
– Não!
Então ele sabe da futilidade desse caminho, Leto pensou. Isso
revelava bastante, mas não o suficiente. A disputa de visões tinha
se deslocado de seu delicado contexto de escolhas para uma
grosseira eliminação de alternativas. Paul sabia que não poderia
vencer, mas ainda esperava anular aquela única visão à qual Leto
se apegava.
Nesse instante, Paul pronunciou:
– Sim, fui contaminado por Jacurutu. Mas você se contamina a
si próprio.
– É verdade – Leto reconheceu. – Sou seu filho.
– E é um bom fremen?
– Sim.
– Você permitiria que um cego finalmente fosse para o deserto?
Você me deixará encontrar a paz do jeito que eu quero? – e ele deu
um soco na areia ao seu lado.
– Não – respondeu Leto –, não permitirei isso. Mas é seu direito
cair sobre sua própria faca se insistir nisso.
– E você ficaria com o meu corpo!
– É verdade.
– Não!
Então, ele conhece esse caminho, Leto pensou. O filho de
Muad’Dib criando um santuário com o corpo do pai seria
interpretado como uma forma de cimentar a visão de Leto.
– Você nunca lhes disse, não é mesmo, pai? – Leto perguntou.
– Nunca.
– Mas eu disse – Leto falou. – Contei para Muriz. Kralizec, a
Batalha do Tufão.
Os ombros de Paul afundaram.
– Você não pode – ele sussurrou. – Não pode.
– Agora, eu sou uma criatura deste deserto, meu pai – Leto
afirmou. – Você falaria desse jeito de uma tempestade de Coriolis?
– Você acha que sou um covarde por ter recusado seguir por
esse caminho – balbuciou Paul com a voz rouca e trêmula. – Ah, eu
entendo bem você, filho. Presságios e predições sempre foram o
tormento deles. Mas nunca me perdi entre os possíveis futuros
porque este é inominável.
– O seu jihad será um piquenique de verão em Caladan, em
comparação – Leto concordou. – Vou levá-lo para Gurney Halleck,
agora.
– Gurney! Ele serve à Irmandade por meio de minha mãe.
E agora Leto compreendia a extensão da visão de seu pai.
– Não, pai. Gurney não serve mais a ninguém. Eu conheço o
lugar onde posso encontrá-lo e levarei você até lá. Está na hora de
uma nova lenda ser criada.
– Percebo que não consigo fazer você mudar de ideia. Deixe-me
tocá-lo, então, pois você é meu filho.
Leto estendeu a mão direita para encontrar os dedos que
tateavam, sentiu a força deles, avaliou-a e resistiu a todos os sutis
movimentos de mudança que vinham do braço de Paul.
– Nem mesmo uma faca envenenada pode me ferir agora –
afirmou Leto. – Já sou uma química diferente.
Lágrimas deslizaram dos olhos sem vida de Paul e ele soltou a
mão, que caiu ao seu lado.
– Se eu tivesse escolhido o seu caminho, teria me transformado
no bicouros de shaitan. E você, o que se tornará?
– Por algum tempo irão me chamar de missionário de shaitan
também – Leto anuiu. – Depois, começarão a matutar sobre isso e,
por fim, irão entender. Você não levou sua visão longe o suficiente,
meu pai. Suas mãos fizeram coisas boas e outras más.
– Mas o mal foi conhecido depois do acontecido!
– Que é como se dá com muitos grandes males – Leto assentiu.
– Você só se aventurou a uma parte da minha visão. A sua força
não foi bastante?
– Você sabe que eu não podia ficar lá. Eu nunca poderia
cometer uma maldade que fosse conhecida antes do ato. Não sou
Jacurutu. – Ele ficou em pé. – Você acha que sou desses que dá
gargalhadas sozinho, à noite?
– É uma pena que você nunca tenha sido realmente um fremen
– Leto disse. – Nós, fremen, sabemos como comissionar um arifa.
Nossos juízos podem escolher entre males. Sempre foi assim para
nós.
– Fremen, é? Escravos de um destino que você ajudou a
construir? – Paul deu alguns passos na direção de Leto, estendeu
uma mão com um movimento curiosamente tímido, tocou no
braço encouraçado dele, tateando até onde a membrana deixava
de fora a orelha daquele lado, então a bochecha e, por fim, a boca.
– Ah, essa ainda é a sua própria carne – ele disse. – Para onde é
que essa carne irá levá-lo? – e ele deixou a mão cair.
– Até um lugar onde os humanos possam construir seu futuro
de instante a instante.
– Veremos. Uma Abominação poderia dizer o mesmo.
– Eu não sou Abominação, embora pudesse ter sido – concedeu
Leto. – Vi o que pode acontecer, com Alia. Um demônio vive
dentro dela, meu pai. Ghani e eu conhecemos esse demônio: é o
barão, o seu avô.
Paul enterrou o rosto nas mãos. Seus ombros se sacudiram por
um minuto e então ele baixou as mãos; sua boca desenhava uma
linha rígida.
– Existe uma maldição sobre a nossa Casa. Suplico que você
jogue esse anel na areia, que me renegue e fuja, para construir...
uma vida diferente. Você tinha essa opção.
– A que preço?
Depois de um prolongado silêncio, Paul respondeu:
– O final ajusta o caminho que veio atrás dele. Somente uma
única vez deixei de lutar por meus princípios. Uma só. Aceitei o
mahdinato. Fiz isso por Chani, mas desse modo me tornei um
mau líder.
Leto percebeu que não podia dar uma resposta a isso. A
lembrança dessa decisão estava ali, dentro dele.
– Não posso mentir para você mais do que pude mentir para
mim mesmo – Paul confessou. – Eu sei. Todo homem deveria ter
um auditor desses. A única coisa que vou perguntar é esta: a
Batalha do Tufão é uma necessidade?
– É isso ou os humanos serão extintos.
Paul ouviu a verdade nas palavras de Leto, ditas com uma voz
moderada que reconhecia a maior amplitude da visão de seu filho.
– Não tinha visto isso dentre as escolhas.
– Acredito que a Irmandade desconfie disso – confidenciou
Leto. – Não posso aceitar nenhuma outra explicação para a
decisão de minha avó.
O vento da noite soprou gelado em volta deles e fustigou o
manto de Paul sobre suas pernas. Ele tremeu. Quando viu isso,
Leto disse:
– Você tem um kit, meu pai. Vou armar a tenda e podemos
passar uma noite confortável.
Mas Paul só conseguiu negar com a cabeça, sabendo que ele
não provaria de conforto nesta noite, e tampouco em nenhuma
outra. Muad’Dib, o Herói, devia ser destruído. Ele mesmo tinha
dito isso. Somente O Pregador seguiria em frente agora.
Os fremen foram os primeiros humanos a
desenvolver uma simbologia
consciente/inconsciente por meio da qual
vivenciar os movimentos e os relacionamentos de
seu sistema planetário. Foram o primeiro dentre
todos os povos a expressar o clima em termos de
uma linguagem semimatemática cujos símbolos
escritos encarnam (e internalizam) os
relacionamentos exteriores. A linguagem em si
fazia parte do sistema que descrevia. Sua forma
escrita continha a forma do que descrevia. O
íntimo conhecimento local do que estava
disponível para sustentar a vida estava implícito
nesse desenvolvimento. Pode-se medir a extensão
dessa interação entre linguagem e sistema pelo
fato de os fremen se aceitarem como animais
forrageiros e coletores.
– A história de Liet-Kynes,
por Harq al-Ada

– Kaveh Wahid – disse Stilgar. – Traga café. Ele fez um sinal


com a mão levantada para um auxiliar, que permanecia parado
em pé, perto da única porta que dava acesso a uma austera sala
de paredes de pedra, onde ele tinha passado aquela noite de
vigília. Aquele era o lugar em que o antigo naib fremen costumava
tomar seu espartano desjejum, e já estava quase na hora dessa
refeição, mas depois de uma noite daquelas ele não sentia fome.
Stilgar se levantou e alongou os músculos.
Duncan Idaho estava sentado numa almofada no chão, perto da
porta, tentando conter um bocejo. Ele tinha acabado de
constatar, enquanto falavam, que ele e Stilgar tinham
atravessado uma noite inteira.
– Perdoe-me, Stil – ele murmurou. – Eu o mantive acordado a
noite toda.
– Ficar acordado a noite toda aumenta um dia à sua vida –
comentou Stilgar, aceitando a bandeja com café que lhe era
passada através da porta. Ele empurrou um banco baixo para a
frente de Idaho, colocou ali a bandeja e sentou do outro lado, à
frente de seu convidado.
Os dois usavam o manto de cor amarela dos enlutados, mas o
de Idaho tinha sido emprestado porque o pessoal de Tabr não
apreciava o verde Atreides de seu uniforme de trabalho. Stilgar
verteu o líquido escuro de uma bojuda jarra de cobre, deu um gole
primeiro e levantou a xícara como um sinal para Idaho, fiel ao
antigo costume dos fremen: “É seguro; provei um pouco”.
O café tinha sido feito por Harah, exatamente do jeito como
Stilgar preferia: os grãos eram torrados até adquirirem uma
tonalidade castanho-rosada, depois moídos até se tornarem um
pó dentro de um almofariz de pedra enquanto ainda estavam
quentes e então imediatamente fervidos; em seguida se
acrescentava uma pitada de mélange.
Idaho inalou o aroma rico da especiaria e bebericou com
cuidado, embora ruidosamente. Ele ainda não sabia se havia
convencido Stilgar. Suas faculdades como Mentat tinham
começado a funcionar lentamente nas primeiras horas da manhã,
e todas as suas computações tinham sido finalmente
confrontadas pelos dados inescapáveis fornecidos na mensagem
de Gurney Halleck.
Alia estava a par de Leto! Ela fora informada.
E Javid tinha de ser parte desse conhecimento.
– Eu devo ser libertado de suas restrições – Idaho disse por fim,
retomando novamente os debates.
Stilgar não arredou pé.
– O acordo de neutralidade exige que eu faça julgamentos
severos. Ghani está a salvo aqui. Você e Irulan estão a salvo aqui.
Mas você não pode enviar mensagens. Receber mensagens, sim,
mas não pode enviar nenhuma. Dei a minha palavra.
– Esse não é o tratamento que se costuma dar a um convidado e
a um velho amigo que compartilhou seus perigos – Idaho lembrou,
sabendo que já tinha usado esse argumento antes.
Stilgar depositou a xícara, colocando-a cuidadosamente no
devido lugar na bandeja e mantendo sua atenção nela enquanto
falava.
– Nós, fremen, não sentimos culpa pelas mesmas coisas que
despertam esse tipo de sentimento nos outros – ele explicou,
levando então sua atenção ao rosto de Idaho.
Ele precisa ser levado a pegar Ghani e fugir deste lugar, Idaho
pensou, e então disse:
– Não era minha intenção despertar uma tempestade de culpa.
– Eu entendo – falou Stilgar. – Levantei essa questão para
inculcar em você nossa atitude fremen porque é isso que estamos
enfrentando aqui: os fremen. Até mesmo Alia pensa como
fremen.
– E os sacerdotes?
– Eles são outra questão – Stilgar respondeu. – Eles querem que
as pessoas engulam o grande vento do pecado, levando isso para a
esfera perene. Essa é a grande pústula por meio da qual eles
buscam conhecer a própria piedade. – Stilgar falava com uma voz
neutra, mas Idaho ouvia o amargor e se perguntava por que esse
amargor não era capaz de abalar Stilgar.
– Esse é um truque muito, muito antigo do regime autocrático –
apontou Idaho. – Alia o conhece bem. Bons súditos devem sentir
culpa. A culpa começa como uma sensação de fracasso. O bom
autocrata fornece muitas oportunidades de fracasso para o seu
povo.
– Reparei nisso – Stilgar comentou, seco. – Mas você deve me
perdoar se menciono isso uma vez mais a você, mas você está se
referindo à sua esposa. Ela é a irmã de Muad’Dib.
– Ela está possuída, acredite no que lhe digo!
– Muitos estão dizendo isso. Um dia ela terá de passar pelo
teste. Enquanto isso, há outras considerações mais importantes.
Idaho sacudiu a cabeça, entristecido.
– Tudo que eu lhe disse pode ser comprovado. A comunicação
com Jacurutu sempre ocorreu por meio do Templo de Alia. O
complô contra os gêmeos teve cúmplices lá dentro. O dinheiro da
venda de vermes em locais extraplanetários vai para lá. Todos os
fios levam ao gabinete de Alia, levam à Regência.
Stilgar sacudiu a cabeça e inspirou fundo.
– Este é um território neutro. Dei minha palavra.
– As coisas não podem continuar do jeito que estão – protestou
Idaho.
– Concordo – Stilgar aquiesceu. – Alia está presa dentro do
círculo e todo dia o círculo fica menor. É como o nosso antigo
costume de ter muitas esposas. Isso sinaliza especificamente a
esterilidade masculina. – Ele endereçou um olhar inquisitivo para
Idaho. – Você disse que ela o traiu com outros homens... “usando o
sexo como arma” acredito que foram as palavras que você usou.
Então, você tem um modo perfeitamente legal à sua disposição.
Javid está aqui, em Tabr, com mensagens enviadas por Alia. Você
só precisa...
– Em seu território neutro?
– Não, mas lá fora, no deserto...
– E se eu usar essa oportunidade para fugir?
– Você não terá esse tipo de oportunidade.
– Mesmo assim, juro para você, Alia está possuída. O que tenho
de fazer para convencê-lo de que...
– Isso é difícil de provar – interrompeu Stilgar. Era o mesmo
argumento que ele tinha usado muitas vezes durante a noite.
Idaho se lembrou das palavras de Jéssica e rebateu:
– Mas você tem meios de provar.
– Um meio, sim – Stilgar reconheceu. Novamente, ele sacudiu a
cabeça. – Doloroso, irrevogável. É por isso que eu assinalei para
você nossa atitude com respeito à culpa. Podemos nos eximir de
culpas que poderiam nos destruir em tudo exceto no Teste da
Possessão. Para esse julgamento, o tribunal composto pelo povo
todo assume a total responsabilidade.
– Vocês já fizeram isso antes, não foi?
– Estou certo de que a Reverenda Madre não omitiu nossa
história no recital que realizou – disse Stilgar. – Você sabe muito
bem que já fizemos isso antes.
Idaho respondeu ao tom de irritação na voz de Stilgar:
– Eu não estava tentando atraí-lo a cometer falsidades. Era só...
– Foi uma longa noite, com perguntas sem resposta – Stilgar
afirmou. – E agora já amanheceu.
– Devo ter autorização para enviar uma mensagem para
Jéssica – insistiu Idaho.
– Isso seria uma mensagem para Salusa – concluiu Stilgar. – Eu
não faço promessas levianas. Minha palavra será mantida. É por
isso que Tabr se mantém um território neutro. Eu o manterei em
silêncio. Jurei isso envolvendo todos que estão em minha casa.
– Alia deve ser trazida perante o seu Tribunal!
– Talvez. Antes, devemos descobrir se há circunstâncias
atenuantes. Uma falha de autoridade, possivelmente. Até mesmo
azar. Poderia ser um caso daquela má tendência natural que
todos os humanos compartilham e não uma possessão.
– Você quer ter certeza de que não sou somente o marido
traído, buscando que outros executem sua vingança por ele –
acusou Idaho.
– Esse pensamento ocorreu a outras pessoas, mas não a mim –
murmurou Stilgar. Ele sorriu para anular o veneno de suas
palavras. – Nós, fremen, temos nossa ciência da tradição, nosso
hadith. Quando temos medo de um Mentat ou de uma Reverenda
Madre, retomamos o hadith. Dizem que o único medo que não
podemos retificar é o medo dos nossos próprios erros.
– Lady Jéssica deve ser informada – teimou Idaho. – Gurney
afirma...
– Essa mensagem pode não ser de Gurney Halleck.
– Não é de mais ninguém. Nós, Atreides, temos nossos métodos
para comprovar a origem das mensagens. Stil, será que você não
poderia ao menos investigar...
– Não há mais Jacurutu – Stilgar interrompeu. – Foi destruído
há muitas gerações. – Ele tocou na manga de Idaho. – De todo
modo, não posso abrir mão de nenhum guerreiro. Estes são
tempos tumultuados e a ameaça aos qanat... você entende? – ele
se sentou de novo. – Agora, quando Alia...
– Não existe mais Alia – Idaho cortou.
– É o que você diz – e Stilgar deu mais um gole no café,
recolocando a xícara na bandeja, depois. – Deixemos a conversa
por aqui, amigo Idaho. Em geral, não há necessidade de arrancar o
braço para retirar a farpa.
– Então, falemos sobre Ghanima.
– Não há necessidade. Ela tem meu semblante, minha
linhagem. Ninguém pode atacá-la aqui.
Ele não pode ser assim tão ingênuo, Idaho pensou.
Mas Stilgar estava se erguendo, o que indicava que a entrevista
estava encerrada.
Idaho também se colocou em pé, sentindo os joelhos travados.
Suas pernas estavam dormentes. Quando Idaho ficou em pé, um
assistente entrou e se postou de lado. Javid entrou no aposento
atrás dele. Idaho se virou. Stilgar estava a quatro passos de
distância. Sem hesitar, Idaho desembainhou a faca com um único
movimento rápido e investiu a ponta contra o peito do surpreso
Javid. Ele cambaleou para trás, afastando-se da faca. Então girou
e caiu de cara no chão. Suas pernas convulsionaram. Ele estava
morto.
– Isso foi para calar as intrigas – murmurou Idaho.
O assistente estava com sua faca na mão, indeciso quanto a
como reagir. Idaho já tinha guardado sua própria lâmina na
bainha, deixando um fio de sangue na beirada de seu manto
amarelo.
– Você me desonrou – gritou Stilgar. – Aqui é neutro...
– Calado! – Idaho fuzilou, para o choque do atônito naib. –
Colocaram uma coleira em você, Stilgar!
Esse era um dos três mais mortíferos insultos que se poderiam
lançar contra um fremen. O rosto de Stilgar ficou lívido.
– Você é um servo – Idaho acusou. – Você vendeu gente fremen
pela água deles.
Esse era o segundo pior insulto possível, aquele que havia
destruído o Jacurutu original.
Stilgar rangeu os dentes e colocou a mão sobre sua dagacris. O
auxiliar se afastou do cadáver, estirado perto do umbral de saída.
Dando as costas ao naib, Idaho se aproximou da porta,
ocupando a estreita abertura ao lado do corpo de Javid e, falando
sem se voltar, desfechou o terceiro insulto fatal:
– Você não tem imortalidade, Stilgar. Nenhum dos seus
descendentes tem o seu sangue!
– E aonde está indo agora, Mentat? – Stilgar chamou, quando
Idaho seguiu em frente e saiu do aposento. A voz de Stilgar estava
tão gelada quanto um vento polar.
– Descobrir onde fica Jacurutu – respondeu Idaho, ainda sem
virar.
Stilgar desembainhou sua própria faca.
– Talvez eu possa ajudá-lo.
Idaho estava agora na borda externa do corredor. Sem se deter,
ele exclamou:
– Se vai me ajudar com a sua faca, seu ladrão de água, então
faça isso nas minhas costas. É assim que agem aqueles que usam
a coleira do demônio.
Em dois pulos, Stilgar atravessou o aposento, pisou sobre o
corpo de Javid e alcançou Idaho no corredor externo. Uma mão
crispada agarrou Idaho e o fez girar e parar. Stilgar encarou Idaho
com os dentes arreganhados como uma fera e a faca no ar. Stilgar
estava a tal ponto enfurecido que nem reparou no curioso sorriso
de Idaho.
– Saque sua faca, maldita escória Mentat! – Stilgar rosnou.
Idaho riu. Então, golpeou Stilgar prontamente, a mão esquerda,
a mão direita e dois tapas estalados na cabeça.
Com um grito incoerente, que mais lembrava um guincho,
Stilgar enterrou sua faca no abdome de Idaho, golpeando para
cima através do diafragma para chegar ao coração.
Idaho afundou mais sobre a lâmina, sorrindo de orelha a orelha
para Stilgar, cuja ira então se dissolveu num estado de choque
gélido.
– Duas mortes para os Atreides – sibilou Idaho. – A segunda por
nenhum motivo melhor do que a primeira. – Ele se inclinou para o
lado e despencou no chão de pedra, de barriga para baixo. O
sangue esguichava de sua ferida.
Stilgar olhou para sua faca de onde gotejava sangue e então
para o corpo de Idaho. Ele respirou fundo, tremendo. Javid estava
morto atrás dele, e o consorte de Alia, o Ventre Celestial, estava
morto por obra do próprio Stilgar. Poderiam dizer que o naib
tinha apenas protegido a honra de seu nome, vingando a ameaça
à sua jurada neutralidade. Mas esse morto era Duncan Idaho.
Quaisquer que fossem os argumentos que ele pudesse lançar,
quaisquer que fossem as “circunstâncias atenuantes”, nada
poderia apagar esse ato. Ainda que Alia o aprovasse
confidencialmente, em público ela seria forçada a responder com
um ato de vingança. Afinal de contas, ela era fremen. Para
governar os fremen, ela não poderia ser menos do que fremen,
nem mesmo no menor dos aspectos.
Somente então foi que ocorreu a Stilgar que essa era
precisamente a situação que Idaho tinha tencionado comprar
com a sua “segunda morte”.
Stilgar levantou os olhos, viu o rosto chocado de Harah, sua
segunda esposa, que espiava a cena de dentro de uma alcova
lateral. Para onde quer que Stilgar se virasse havia rostos com a
mesma expressão: choque e a compreensão das consequências
daquele ato.
Devagar, Stilgar se endireitou, limpou a lâmina na manga do
seu manto e tornou a colocá-la na bainha. Dirigindo-se a todos os
rostos, em tom de voz informal, ele ordenou:
– Aqueles que vão partir comigo devem se preparar
imediatamente. Mandem homens chamarem vermes.
– Para onde você irá, Stilgar? – Harah perguntou.
– Para o deserto.
– Vou com você – ela declarou.
– Claro que você irá comigo. Assim como todas as minhas
esposas. E Ghanima. Vá buscá-la, Harah. Agora.
– Sim, Stilgar... agora mesmo. – Ela hesitou. – E Irulan?
– Se ela assim quiser.
– Sim, marido. – Ela continuava hesitando. – Você está levando
Ghanima como refém?
– Refém? – ele ficou genuinamente surpreso com essa ideia. –
Mulher... – Ele tocou o corpo de Idaho delicadamente com um
dedo do pé. – Se este Mentat estava certo, eu sou a única
esperança de Ghani. – E ele se lembrou então do aviso de Leto:
“Cuidado com Alia. Você tem de pegar Ghani e fugir”.
Assim como os fremen, todos os planetologistas
enxergam a vida como expressões de energia e
buscam os relacionamentos predominantes. Em
pedacinhos, partes e elementos que acabam se
tornando uma referência de entendimento geral,
a sabedoria racial dos fremen é traduzida numa
nova certeza. Aquilo que os fremen têm como
povo, qualquer povo pode ter. Só é preciso
desenvolver a percepção dos relacionamentos
energéticos. É preciso apenas observar que a
energia absorve os padrões das coisas e se
remodela com base nesses padrões.
– A catástrofe arrakina,
Segundo Harq al-Ada

Era o Sietch de Tuek na borda interna da Falsa Muralha.


Halleck permaneceu à sombra do contraforte de pedra que se
salientava e protegia a alta entrada do sietch, esperando pelos
que estavam ali dentro até que decidissem se iriam ou não lhe dar
abrigo. Ele voltou os olhos para a região norte do deserto e depois
mirou o céu cinza-azulado da manhã. Os contrabandistas que ali
estavam tinham ficado muito surpresos ao saber que ele, um
sujeito extraplanetário, tinha capturado um verme e o montara.
Mas Halleck ficara igualmente pasmo com a reação deles. Aquilo
era uma coisa fácil de fazer para um homem ágil e que vira o
mesmo ser feito muitas vezes.
Halleck voltou a atenção para o deserto, o deserto prateado de
rochas cintilantes e campos cinza-esverdeados nos quais a água
tinha efetuado sua mágica. Tudo aquilo de repente lhe pareceu
um aprisionamento enormemente frágil de energia, de vida, em
que tudo estava ameaçado se ocorresse uma mudança no padrão
de mudanças.
Ele sabia qual era a fonte dessa reação. Era a cena fervilhante
que se desenrolava na areia do deserto lá embaixo. Contêineres
com trutas de areia mortas estavam sendo transportados para o
sietch, encaminhados à destilaria para então capturar a água
delas. Havia milhares dessas criaturas. Elas tinham vindo com o
transbordamento da água, e fora esse transbordamento que
fizera a mente de Halleck disparar.
Halleck olhou mais além, lá embaixo, onde ficavam os campos
do sietch e os limites do qanat que não mais escoava sua preciosa
água. Ele tinha visto as fendas nas paredes de pedra do qanat, o
desmoronamento das paredes de pedra que tinha espirrado água
na areia. O que havia provocado essas aberturas? Algumas se
estendiam por até 20 metros nas partes mais vulneráveis do
qanat, em pontos nos quais a areia macia escoava em bacias que
absorviam a água. Eram essas depressões no terreno que tinham
ficado forradas de trutas de areia. As crianças do sietch as
estavam matando e capturando.
Equipes de manutenção trabalhavam no conserto das paredes
destruídas do qanat. Outras transportavam doses mínimas de
irrigação para as plantas mais necessitadas. A fonte de água da
cisterna monumental sob os captadores de vento de Tuek tinha
sido lacrada para impedir que escoasse no qanat danificado. As
bombas movidas a energia solar tinham sido desligadas. A água
da irrigação vinha de bolsões já quase esgotados, no fundo do
qanat, e, a muito custo, da cisterna sob o sietch.
A esquadria metálica do veda-portas atrás de Halleck estalou
sob o efeito da temperatura em ascensão. Como se o som tivesse
feito seus olhos se moverem, Halleck se percebeu atentando para
a curva mais distante do qanat, no lugar onde a água tinha sido
vertida mais descaradamente nas areias do deserto. Os
esperançosos urbanistas do sietch, almejando um jardim, tinham
plantado um tipo especial de árvore ali e ela estava condenada, a
menos que o fluxo de água pudesse ser restabelecido logo.
Halleck contemplou a tola e esfiapada plumagem de um
salgueiro-chorão que ali tinha sido destruída quase totalmente
pela areia e pelo vento. Para ele, aquele chorão simbolizava a nova
realidade para si e para Arrakis.
Nós dois somos alienígenas aqui.
Estavam levando muito tempo para decidir, ali dentro, no
sietch, mas a verdade é que estavam precisando de bons
combatentes. Os contrabandistas sempre precisavam de bons
homens. Halleck, porém, não tinha ilusões a respeito deles. Os
contrabandistas dessa época não eram os mesmos que o haviam
abrigado há muitos anos, quando ele fugira da dissolução do
regime de seu duque. Não, essa era uma nova leva, imediatista, em
busca de lucros rápidos.
Novamente, ele prestou atenção naquele salgueiro bobo.
Ocorreu a Halleck, então, que as ventanias dessa nova realidade
poderiam dizimar os contrabandistas e todos os seus amigos.
Poderia destruir Stilgar com sua frágil neutralidade e levar com
ele todas as tribos que continuavam leais a Alia. Todos eles se
tornariam povos coloniais. Halleck tinha visto aquilo acontecer
antes, tendo provado seu sabor amargo em seu próprio mundo de
origem. Ele via tudo claramente, lembrando os maneirismos dos
fremen da cidade, o padrão dos subúrbios e os inconfundíveis
modos do sietch rural que impregnavam até mesmo aquele
esconderijo dos contrabandistas. Os distritos rurais eram
colônias dos centros urbanos. Eles tinham aprendido a usar um
jugo acolchoado, e tinham sido levados a isso por sua ganância,
quando não por suas superstições. Até mesmo ali, e
especialmente ali, as pessoas tinham a atitude de uma população
subjugada, não a de pessoas livres. Tinham atitudes defensivas,
evasivas, acobertavam suas verdades. Toda manifestação de
autoridade era recebida com ressentimento, fosse a autoridade
que fosse: a da Regência, a de Stilgar, a de seu próprio Conselho...
Não posso confiar neles, Halleck pensou. Ele só podia usá-los e
alimentar sua desconfiança dos outros. Era uma pena. Não havia
mais nada que lembrasse o velho dar e receber dos homens livres.
Os costumes antigos tinham sido reduzidos a palavras rituais, e
suas origens se perdiam na memória.
Alia tinha feito bem o seu trabalho, punindo a oposição e
recompensando a ajuda, deslocando as forças imperiais de
maneira aleatória, ocultando os principais elementos de seu
poder imperial. Os espiões! Pelos deuses das profundezas, que
espiões ela devia ter!
Halleck quase conseguia enxergar o ritmo letal do movimento e
do contramovimento por meio dos quais Alia esperava manter
sua oposição em desequilíbrio.
Se os fremen continuarem dormindo, ela vai vencer, ele pensou.
O veda-portas atrás dele rangeu quando a porta foi aberta. Um
auxiliar do sietch chamado Melides apareceu. Era um homem
baixo com um corpo bojudo que ia afinando até um par de pernas
magricelas cuja deselegância só era ainda mais acentuada pelo
trajestilador.
– Você foi aceito – informou Melides.
E Halleck ouviu a astuciosa dissimulação na voz daquele
homem. O que transparecia nessa voz informava a Halleck que ali
ele teria refúgio, mas somente por pouco tempo.
Só até que eu possa roubar um dos tópteros deles, ele pensou.
– Sou grato ao seu Conselho – ele aquiesceu. E pensou em
Esmar Tuek, que dera o nome a esse sietch. Esmar, morto há
muito tempo, tendo sido vitimado pela traição de alguém, teria
cortado a garganta daquele Melides assim que pusesse os olhos
nele.
Qualquer caminho que estreite as possibilidades
futuras pode se tornar uma armadilha letal. Os
humanos não estão percorrendo um caminho
através de um labirinto: eles esquadrinham um
vasto horizonte, repleto de oportunidades únicas.
A perspectiva limitadora do labirinto deveria ser
atraente apenas para criaturas cujos narizes
permanecem enterrados na areia. Singularidades
e diferenças que são fruto da sexualidade são a
proteção à vida das especiarias.
– Manual da Guilda Espacial

– Por que não sinto nenhum pesar? – Alia dirigiu a pergunta ao


teto de sua pequena câmara de audiências, um aposento que ela
era capaz de atravessar em apenas dez passos num sentido e
quinze, no outro. O recinto ainda tinha duas janelas altas e
estreitas que davam vista para a Muralha-Escudo, depois da
sequência de telhados de Arrakina.
Era quase meio-dia. O sol ardia sobre a caldeira em cima da
qual a cidade havia sido construída.
Alia baixou os olhos para fitar Buer Agarves, o antigo tabrita e
agora auxiliar de Zia, que por sua vez era incumbida de dirigir a
guarda do Templo. Agarves tinha sido o portador da notícia de
que Javid e Idaho estavam ambos mortos. Uma turba de
sicofantas, assistentes e guardas tinha vindo com ele, e outros
mais lotavam toda a área externa adjacente, revelando que já
estavam a par da mensagem de Agarves.
Notícias funestas trafegavam depressa em Arrakis.
Homem pequenino, esse Agarves, dotado de uma cara redonda
para um fremen, quase infantil em seu formato. Ele era um
indivíduo da nova espécie que tinha descambado para o acúmulo
exagerado de água em sua pele. Alia o via como se ele tivesse sido
repartido em duas imagens: uma com uma expressão séria e olhos
índigo opacos, uma contração de preocupação em torno da boca;
a outra imagem sensual e vulnerável, excitantemente vulnerável.
Ela apreciou em particular a grossura de seus lábios.
Embora ainda não fosse meio-dia, Alia sentiu algo no silêncio
chocado que se instalara ao seu redor e que lembrava o
entardecer.
Idaho deveria ter morrido ao entardecer, ela disse a si mesma.
– E como você, Buer, se tornou o portador dessa notícia? – ela
perguntou, reparando na rápida atitude vigilante que a fisionomia
dele assumiu.
Agarves tentou engolir e falou numa voz rouca que era quase
um murmúrio:
– Fui com Javid, a senhora se lembra? E quando... Stilgar me
mandou vir falar com a senhora, ele me disse que lhe informasse
que eu transmitia a obediência final dele.
– Obediência final – ela repetiu, como um eco. – E o que ele
queria dizer com isso?
– Não sei, lady Alia – ele se lamentou.
– Explique-me de novo o que você viu – ela ordenou, perplexa
com a frialdade que sentia em sua pele.
– Vi... – e a cabeça dele balançou de nervoso, enquanto ele
baixava os olhos até o chão, diante de Alia. – Eu vi o Sagrado
Consorte morto no chão do corredor central e Javid estava
morto, estirado no chão, num corredor lateral ali perto. As
mulheres já estavam preparando os dois para o huanui.
– E Stilgar o convocou a presenciar essa cena?
– É verdade, milady. Stilgar me convocou. Ele mandou Modibo,
o Curvado, que era seu mensageiro no sietch. Modibo não me deu
nenhum aviso. Ele apenas disse que Stilgar queria que eu fosse
até ele.
– E você viu o corpo do meu marido estendido no chão?
Ele a olhou nos olhos de maneira furtiva e mais uma vez voltou
a prestar atenção no chão à frente dela, para então aquiescer.
– Sim, milady. E Javid morto ali do lado. Stilgar me disse... me
disse que o Sagrado Consorte tinha assassinado Javid.
– E o meu marido, você diz que Stilgar...
– Ele me disse com suas próprias palavras, milady. Stilgar disse
que tinha feito aquilo. Ele disse que o Sagrado Consorte havia
provocado sua ira.
– Ira – Alia repetiu. – Como foi que isso aconteceu?
– Ele não disse. Ninguém disse. Eu perguntei, mas ninguém
disse.
– E foi então que você foi enviado para me trazer essas
notícias?
– Sim, milady.
– Não havia nada que você pudesse fazer?
Agarves umedeceu os lábios com a língua e então respondeu:
– Stilgar mandou, milady. Era o sietch dele.
– Entendo. E você sempre obedeceu Stilgar.
– Sempre, milady, até ele me libertar de minha servidão.
– Quando foi mandado para me servir, é isso?
– Agora, só obedeço à senhora, milady.
– É mesmo? Diga-me, Buer, se eu mandasse que você fosse
matar Stilgar, seu antigo naib, você o faria?
O olhar dele enfrentou o dela com crescente firmeza:
– Se a senhora o ordenasse, milady.
– De fato, ordeno. Você tem alguma ideia de para onde ele foi?
– Para o deserto. É tudo que sei, milady.
– Quantos homens ele levou?
– Talvez metade do efetivo.
– E Ghanima e Irulan com ele!
– Sim, milady. Os que partem têm a obrigação de levar suas
mulheres, seus filhos e todos os seus pertences. Stilgar deu uma
escolha a todos: ir com ele ou ficar livres de suas obrigações.
Muitos escolheram a soltura. Eles escolherão um novo naib.
– Eu escolherei o novo naib para eles! E será você, Buer
Agarves, no dia em que me trouxer a cabeça de Stilgar.
Agarves podia aceitar uma escolha feita após uma batalha. Era
um costume fremen. Ele assentiu:
– Às suas ordens, milady. Que forças posso...
– Fale com Zia. Não posso lhe conceder muitos tópteros para a
busca. Eles são necessários em outra tarefa. Mas terá um número
suficiente de guerreiros. Stilgar difamou sua honra. Muitos
servirão ao seu lado com alegria.
– Vou tomar as providências, então, milady.
– Espere! – Ela o estudou por um momento, revendo quem
poderia despachar para vigiar esse bebezão vulnerável. Ele
precisaria ser monitorado de perto até ter provado seu valor. Zia
saberia quem despachar com essa incumbência.
– Não estou dispensado, milady?
– Você não está dispensado. Devo consultá-lo em particular e
detalhadamente para saber quais são seus planos para capturar
Stilgar. – Ela pôs a mão no próprio rosto. – Não sentirei o pesar
dessa perda até que você tenha realizado minha vingança. Dê-me
alguns minutos para eu me recompor. – Ela baixou a mão. – Uma
de minhas assistentes o acompanhará até a saída. – Ela fez um
sutil gesto de mão para uma de suas assistentes, e cochichou para
Shallus, sua nova camareira-mor: – Faça com que ele tome um
banho e seja perfumado antes de trazê-lo de volta. Ele fede a
vermes.
– Sim, senhora.
Alia se voltou, fingindo o luto que não sentia, e fugiu para seus
aposentos privados. Ali, em seu quarto, bateu com força a porta,
que ficou firme em seus caixilhos, xingou, amaldiçoou e bateu os
pés.
Duncan maldito! Por quê? Por quê? Por quê?
Ela percebia a provocação proposital de Idaho. Ele havia
assassinado Javid e provocado Stilgar. Afirmara que sabia de
Javid. A coisa toda devia ser entendida como uma mensagem de
Duncan Idaho, seu gesto final. Maldito! Maldito! Maldito!
Stilgar agora entre os rebeldes e Ghanima com ele. Além de
Irulan.
Malditos, todos eles!
De tanto sapatear de raiva, ela acabou topando com um
obstáculo doloroso quando enfiou o pé em um objeto metálico. A
dor a fez gritar e ela olhou para baixo, localizando o que a tinha
machucado: uma fivela de metal. Ela a agarrou com um
movimento brusco e ficou imóvel e rígida ao ver o que tinha na
mão. Era uma antiga fivela, uma das fivelas originais de prata e
platina de Caladan, oferecida como prêmio pelo duque Leto
Atreides I ao seu mestre-espadachim, Duncan Idaho. Ela vira
Duncan usando-a inúmeras vezes. E ele a havia largado ali.
Os dedos de Alia se apertaram firmemente em volta da fivela.
Idaho tinha deixado aquilo ali quando... quando...
Lágrimas saltaram de seus olhos, vencendo à força seu
tremendo condicionamento fremen. Sua boca descaiu e formou
uma contração imobilizada, e ela sentiu a velha batalha
recomeçar em seu crânio, descendo até a ponta de seus dedos,
até a ponta dos pés. Ela sentiu que havia se tornado duas pessoas.
Uma olhava para essas contorções corpóreas em completo
aturdimento. A outra buscava se submeter à enorme dor que se
espalhava pelo seu peito. As lágrimas escorriam livremente de
seus olhos, agora. Dentro dela, o Atônito perguntou, petulante:
– Quem chora? Quem é essa que chora? Quem está chorando
agora?
Mas nada detinha as lágrimas e ela sentiu a pungência da dor
que inflamava seu peito e moveu a sua carne até fazê-la desabar
na sua cama.
Apesar de tudo, alguma voz ainda persistia em indagar,
instigada por um profundo sentimento de espanto:
– Quem chora? Quem é essa?...
Por meio desses atos, Leto II se retirou da
sucessão evolutiva. E o fez com uma ação
deliberada e cortante, dizendo: “Ser
independente é estar removido”. Ambos os
gêmeos enxergaram além das necessidades da
memória como processo de medição, ou seja, a
maneira de determinar a distância a que estavam
de suas origens humanas. Mas coube a Leto II
tomar a atitude audaciosa, reconhecendo que a
criação real é independente de seu criador. Ele se
recusou a repetir a sequência evolutiva, dizendo:
“Isso também me leva cada vez mais para longe da
humanidade”. Ele percebeu as implicações
contidas nisso: não podem existir sistemas de vida
verdadeiramente fechados.
– A Sagrada Metamorfose,
por Harq al-Ada

Havia aves – papagaios, pegas, gaios – se fartando dos insetos


que infestavam a areia úmida espalhada além do qanat. Aquela
tinha sido uma djedida, a última das cidades novas, construída
sobre uma base de basalto exposto. Agora estava abandonada.
Usando as primeiras horas da manhã para estudar a região mais
além das plantações originais do sietch abandonado, Ghanima
detectou movimentos e viu uma lagartixa listrada. Mais cedo,
avistara um pica-pau que fizera seu ninho num muro de lama da
djedida.
Para ela, aquele era um sietch, mas na realidade se tratava de
um agrupamento de paredes baixas construídas de tijolos de
lama estabilizados, rodeados por plantações que serviam para
conter as dunas. Estava dentro dos limites do Tanzerouft, 600
quilômetros ao sul da Serra da Sihaya. Sem mãos humanas que se
incumbissem de sua manutenção, o sietch já estava começando a
se desfazer e voltar a ser deserto. Suas paredes iam sendo
corroídas por rajadas de areia soprada pelo vento, e as plantas
estavam morrendo. A área plantada mostrava a erosão provocada
pelo sol inclemente.
Não obstante, a areia mais além do qanat destruído continuava
úmida, o que atestava o fato de que o atarracado sistema do
captador de vento continuava funcionando.
Nos meses que se seguiram à sua saída de Tabr, os fugitivos
tinham experimentado a proteção de vários lugares assim,
tornados inabitáveis pelo Demônio do Deserto. Ghanima não
acreditava no Demônio do Deserto, embora não houvesse como
negar as ostensivas evidências da destruição do qanat.
De vez em quando recebiam notícias de assentamentos no
norte durante os encontros com rebeldes caçadores de
especiaria. Alguns tópteros – diziam que não mais de seis –
executavam voos de busca atrás de Stilgar, mas Arrakis era
grande e seu deserto era amistoso para com os fugitivos. Diziam
que tinha sido montada uma força-tarefa para localizar e destruir
o bando liderado por Stilgar, mas essa força-tarefa, liderada por
Buer Agarves, ex-tabrita, tinha outras missões e geralmente
voltava a Arrakina.
Os rebeldes diziam que havia poucos combates entre seus
homens e as tropas de Alia. As depredações aleatórias do
Demônio do Deserto tornavam os deveres da Guarda Palaciana a
principal preocupação de Alia e dos naibs. Até os
contrabandistas tinham sido atingidos, mas dizia-se que estavam
vasculhando o deserto atrás de Stilgar, querendo receber o
prêmio por sua cabeça.
Stilgar tinha conduzido seu grupo até a djedida pouco antes do
escurecer no dia anterior, confiando no certeiro faro de seu olfato
fremen para perceber umidade. Ele tinha prometido que em
breve seguiriam rumo ao sul, onde estavam os palmares, mas se
recusava a explicitar a data para essa jornada. Embora estivesse a
prêmio aquela sua cabeça que antes teria podido comprar um
planeta, Stilgar parecia o mais feliz e despreocupado dos homens.
– Este é um bom lugar para nós – ele havia dito, indicando que o
captador de vento ainda funcionava. – Nossos amigos nos
deixaram um pouco de água.
Seu grupo agora era pequeno, totalizando sessenta
integrantes. Os velhos, os doentes e os muitos jovens tinham sido
dispersados nas regiões dos palmares ao sul, tendo sido acolhidos
por famílias de confiança. Apenas os mais resistentes
permaneciam, e eles tinham muitos amigos ao norte e ao sul.
Ghanima se perguntava por que Stilgar se recusava a discutir o
que estava acontecendo com o planeta. Será que ele não
conseguia ver? Estando os qanats destruídos, os fremen
retrocederam para as linhas ao norte e ao sul que antigamente
tinham demarcado a extensão de seus territórios. Esse
movimento só poderia sinalizar o que devia estar acontecendo
com o Império. Uma situação era o reflexo da outra.
Ghanima deslizou a mão sob o colarinho de seu trajestilador e o
lacrou novamente. Apesar de suas preocupações, sentia-se
nitidamente feliz ali. As vidas interiores não a assediavam mais,
embora de vez em quando ela sentisse as reminiscências delas
inseridas em sua consciência. Ela sabia, por conta dessas
memórias, o que esse deserto tinha sido antigamente, antes do
trabalho da transformação ecológica. Antes de mais nada, fora
muito mais seco. Aquele captador de vento sem reparos
continuava funcionando porque processava ar úmido.
Muitas criaturas que antes haviam fugido daquele deserto
agora se aventuravam a viver ali. Várias pessoas do bando de
Stilgar comentavam como proliferavam as corujas diurnas.
Inclusive agora Ghanima tinha visualizado alguns passarinhos.
Eles saltitavam e dançavam ao longo das fileiras de insetos que
abundavam na areia úmida, na extremidade do qanat destruído.
Poucos texugos podiam ser avistados por ali, mas havia um
número incontável de ratos-cangurus.
O medo supersticioso dominava os novos fremen e Stilgar não
era em nada melhor do que o resto. Aquela djedida tinha sido
devolvida ao deserto depois que seu qanat tinha sido destroçado
pela quinta vez no intervalo de onze meses. Por quatro vezes
haviam consertado os danos causados pelo Demônio do Deserto,
mas depois deixaram de contar com o excedente de água e com
isso não quiseram arriscar outra perda.
Acontecia o mesmo em todas as outras djedidas e em muitos
dos antigos sietches. De nove assentamentos, oito haviam sido
abandonados. Muitas das antigas comunidades sietch estavam
agora mais abarrotadas do que em qualquer outra época. E,
enquanto o deserto entrava nessa nova fase, os fremen
retomavam seus antigos costumes. Viam presságios por toda
parte. Será que os vermes estavam cada vez mais escassos,
exceto no Tanzerouft? Era o julgamento de Shai-hulud! E tinham
sido vistos vermes mortos sem nenhum indício do que causara
isso. Rapidamente eles voltavam a ser poeira do deserto, mas
aquelas carcaças esfaceladas que os fremen iam encontrando ao
acaso enchiam os observadores de terror.
O grupo liderado por Stilgar tinha encontrado uma carcaça no
mês anterior e levado quatro dias para se livrar da sensação de
algo ruim. Aquilo fedia a azedo e à sua venenosa putrefação. Os
restos mortais despedaçados haviam sido encontrados num
enorme afloramento de especiaria, em sua maior parte estragada.
Ghanima deixou de observar o qanat e voltou seus olhos para a
djedida. Diretamente à sua frente, estava uma parede partida que
antes servira para proteger um mushtamal, um pequeno jardim
anexo. Ela havia explorado o lugar com uma firme confiança em
sua própria curiosidade e achou um estoque de pão chato de
especiaria, não fermentado, dentro de uma caixa de pedra.
Stilgar o havia destruído, dizendo:
– Os fremen nunca deixariam comida boa para trás.
Ghanima desconfiara de que ele estava enganado, mas não
valeria a pena discutir por causa disso, nem correr riscos. Os
fremen estavam mudando. Antes, eles se deslocavam livremente
através do bled, levados por suas necessidades naturais: água,
especiaria, comércio. As atividades animais tinham sido seus
despertadores, mas os animais agora se moviam conforme ritmos
novos e estranhos, ao passo que a maioria dos fremen se
amontoava em suas velhas cavernas-currais, à sombra da
Muralha-Escudo ao norte. Caçadores de especiaria no Tanzerouft
eram raros, e somente o grupo de Stilgar se deslocava conforme
os velhos moldes.
Ela confiava em Stilgar e em seu medo de Alia. Irulan reforçava
os argumentos dele agora, retomando as peculiares divagações
Bene Gesserit. Mas, no remoto Salusa, Farad’n continuava vivo e
algum dia teria de acontecer o ajuste de contas.
Ghanima olhou o céu cinza-prateado do dia nascendo,
perguntando, no fundo de sua cabeça, onde poderia encontrar
ajuda. Onde é que haveria alguém para ouvir quando ela revelasse
o que via acontecer por toda parte? Se ela pudesse confiar nos
relatos, lady Jéssica seguia em Salusa. E Alia era uma criatura no
pedestal, cujo único interesse era se tornar colossal enquanto se
afastava cada vez mais da realidade. Gurney Halleck não estava
em lugar nenhum que pudesse ser encontrado, embora dissessem
tê-lo visto em toda parte. O Pregador tinha sumido para se
esconder e suas arengas hereges não passavam de uma
recordação distante agora.
E Stilgar.
Ela olhou pela parede desmoronada para onde Stilgar estava
ajudando a consertar a cisterna. Ele estava adorando seu papel
arisco, e o preço por sua cabeça subia todo mês.
Nada mais fazia sentido. Nada.
Quem era esse Demônio do Deserto, essa criatura capaz de
destruir qanats como se eles fossem falsos ídolos a serem
derrubados na areia? Seria um verme selvagem? Seria uma
terceira força na rebelião – muitas pessoas? Ninguém acreditava
que fosse um verme. A água mataria qualquer verme que se
arriscasse a investir contra um qanat. Muitos fremen pensavam
que o Demônio do Deserto fosse, na realidade, um grupo
revolucionário decidido a destruir o mahdinato de Alia e a
restaurar os antigos costumes em Arrakis. Os que acreditavam
nisso diziam que seria uma boa coisa. Livrar-se daquela
gananciosa sucessão apostólica que pouco mais fazia do que
cultivar a própria mediocridade. Recuperar a verdadeira religião
que Muad’Dib tinha divulgado.
Um profundo suspiro sacudiu Ghanima. Oh, Leto, ela pensou.
Estou quase feliz por você não estar vivo para enxergar o que está
acontecendo agora. Eu me juntaria a você, mas tenho uma faca que
ainda não verteu sangue. Alia e Farad’n. Farad’n e Alia. O velho
barão é o demônio dela, e isso não pode ser consentido.
Harah saiu da djedida, aproximou-se de Ghanima com passos
firmes, que sabiam vencer a areia, e parou diante dela,
perguntando:
– O que está fazendo aqui, sozinha?
– Este lugar é esquisito, Harah. Devíamos partir.
– Stilgar está esperando para encontrar alguém aqui.
– É mesmo? Ele não me disse isso.
– E por que ele deveria lhe contar tudo? Maku? – Harah deu um
tapa na bolsa de água que se projetava na parte da frente do
manto de Ghanima. – Você é uma adulta que ficou grávida?
– Já estive grávida tantas vezes que nem sei contar – Ghanima
grunhiu. – Não fique fazendo brincadeirinhas de criança comigo!
Harah deu um passo para trás ao ouvir o veneno na voz de
Ghanima.
– Vocês são um bando de estúpidos – Ghanima afirmou,
abanando a mão para abranger a djedida e as atividades de
Stilgar e seu povo. – Eu nunca deveria ter vindo com vocês.
– Você já estaria morta agora, se não tivesse vindo.
– Talvez. Mas vocês não percebem o que está bem diante do
seu nariz! Quem é que Stilgar está esperando para encontrar
aqui?
– Buer Agarves.
Ghanima encarou a mulher.
– Ele está sendo escoltado até aqui em segredo, por amigos do
sietch do Abismo Vermelho – Harah explicou.
– Aquele brinquedinho de Alia?
– Ele está vindo com os olhos vendados.
– E Stilgar acredita nisso?
– Buer solicitou a entrevista. Ele concordou com todos os
nossos termos.
– E por que não fui informada disso?
– Stilgar sabia que você fazia oposição.
– Oposição... Isso é loucura!
Harah foi zombeteira:
– Não se esqueça de que Buer é...
– Ele é Família! – Ghanima retrucou. – Ele é o neto do primo de
Stilgar. Eu sei. E Farad’n, cujo sangue derramarei um dia, é um
parente meu, igualmente próximo. Você acha que isso deterá
minha faca?
– Temos um distrans. Ninguém está seguindo o grupo dele.
Ghanima falou em voz baixa:
– Harah, isso não vai trazer nada de bom. Devíamos partir
imediatamente.
– Você teve algum presságio? – Harah perguntou. – Aquele
verme morto que vimos! Será que...
– Guarde isso no seu útero e vá pari-lo em outra parte! –
Ghanima bradou. – Não gosto dessa reunião e nem deste lugar.
Não é o suficiente?
– Vou dizer a Stilgar que você...
– Eu mesma digo a ele! – Ghanima saiu, passando por Harah,
que fez o sinal dos cornos do verme às costas dela, para se
proteger do mal.
Mas Stilgar apenas riu dos temores de Ghanima e ordenou que
ela fosse em busca de trutas de areia, como se ela fosse mais uma
das crianças. Ela se refugiou então dentro de uma das casas
abandonadas da djedida e se acocorou num canto para alimentar
sua ira. Essa emoção se dissipou brevemente, porém. Ela sentia a
movimentação de suas vidas interiores e se lembrava de alguém
dizendo: “Se pudermos imobilizá-los, então as coisas seguirão
como planejamos”.
Que pensamento estranho.
No entanto, ela não conseguia se recordar de quem tinha dito
isso.
Muad’Dib era um deserdado e falava em nome dos
deserdados de todos os tempos. Ele se
pronunciou incisivamente contra aquela injustiça
profunda que aliena o indivíduo daquilo em que
ele foi ensinado a acreditar, daquilo que lhe
parecia vir como direito adquirido.
– O mahdinato, uma análise
por Harq al-Ada

Gurney Halleck sentou-se no cume do ressalto em Shuloch com


seu baliset ao lado, sobre um tapete de fibra de especiaria. Logo
abaixo, na bacia cercada, um número incontável de trabalhadores
cuidava do plantio. A rampa de areia para onde os Banidos
tinham atraído os vermes numa trilha de especiaria fora
interditada por um novo qanat. Plantas tinham sido introduzidas
na encosta para contê-la.
Já era quase a hora da refeição do meio-dia e Halleck já estava
ali naquela crista havia mais de uma hora, em busca de um pouco
de privacidade para pensar. Os humanos se atarefavam lá
embaixo, mas tudo que se via era produto do mélange. A previsão
pessoal de Leto era que a produção de especiaria em breve
decairia e se estabilizaria em um décimo de seu auge na época dos
Harkonnen. Os estoques em todo o império dobravam de valor a
cada nova postagem. Diziam que trezentos e vinte e um litros
haviam sido destinados à compra de metade do planeta
Novebruns, antes sob o domínio da Família Metulli.
Os Banidos trabalhavam como criaturas espicaçadas por um
demônio, e talvez o fossem mesmo. Antes de cada refeição,
voltavam-se na direção do Tanzerouft e rezavam para o Shai-
hulud personificado. Era assim que viam Leto e, por meio dos
olhos deles, Halleck enxergava um futuro em que a maior parte da
humanidade iria compartilhar essa visão. Halleck não estava
certo sobre se ele mesmo gostava dessa perspectiva.
Leto tinha estabelecido o padrão quando trouxera Halleck e O
Pregador até ali, no tóptero roubado de Halleck. Apenas com
suas próprias mãos, Leto rompera as margens do qanat de
Shuloch, arremessando grandes pedras contra ele, a distâncias
superiores a 50 metros. Quando os Banidos tentaram intervir,
Leto decapitara os primeiros que o alcançaram, usando tão
somente um movimento do braço em um arco indistinto. Outros
ele atirou de volta sobre seus companheiros e rira das armas que
haviam empunhado contra ele. Com uma voz demoníaca, rugira:
– O fogo não me atinge! Suas facas não me ferem! Eu uso a pele
de Shai-hulud!
Os Banidos o haviam reconhecido, então, e se lembravam de
sua fuga saltando do alto do morro e indo “diretamente para o
deserto”. Eles se haviam prostrado perante Leto, que então
proclamou suas ordens:
– Estou lhes trazendo dois convidados. Vocês irão abrigá-los e
honrá-los. Irão reconstruir o qanat e começar a plantar um oásis
aqui. Um dia, voltarei e aqui construirei o meu lar. Vocês irão
preparar a minha casa. Não irão mais vender especiaria e
armazenarão cada colheita que fizerem.
Ele seguiu dando várias outras instruções que os Banidos
tinham ouvido cuidadosamente, palavra a palavra, sentindo um
assombro aterrorizado, evidente em seus olhares vidrados pelo
medo.
Ali estava Shai-hulud encarnado, finalmente surgido das
areias!
Não haviam existido indícios dessa metamorfose quando Leto
encontrara Halleck com Ghadhean al-Fali em um dos pequenos
sietches rebeldes em Gare Ruden. Com seu companheiro cego,
Leto chegara do deserto após percorrer a velha rota da
especiaria, viajando no dorso de vermes através de uma área em
que vermes eram agora uma verdadeira raridade. Ele tinha falado
sobre ter tomado vários desvios aos quais se vira forçado pela
presença de umidade na areia, de água suficiente para envenenar
o verme. Chegaram pouco depois do meio-dia e foram levados
pela guarda até a sala comum de paredes de pedra.
Essa lembrança agora atormentava Halleck.
– Então esse é O Pregador – ele dissera.
Dando alguns passos em volta do homem cego, estudando-o,
Halleck se lembrava de histórias a respeito dele. Nenhuma
máscara de trajestilador ocultava o rosto envelhecido ali no
sietch, e seus traços estavam ali para que a memória traçasse
suas comparações. Sim, aquele homem de fato lembrava o velho
duque cujo nome fora dado a Leto. Seria uma semelhança
fortuita?
– Você sabe das histórias que contam sobre ele? – Halleck
perguntara, falando com Leto de lado. – Que ele é o seu pai que
voltou do deserto?
– Eu ouvi essas histórias.
Halleck virava-se para examinar o menino. Leto usava um
trajestilador estranho com bordas enroladas em volta do rosto e
das orelhas. Um manto preto o recobria e botas de areia
envolviam-lhe os pés. A presença dele ali exigia muitas
explicações; como ele tinha conseguido escapar, mais uma vez?
– Por que trouxe O Pregador para cá? – Halleck perguntou. –
Em Jacurutu disseram que ele trabalha para eles.
– Não mais. Eu o trouxe porque Alia o quer morto.
– E daí? Você acha que aqui é um refúgio?
– Você é o refúgio dele.
Esse tempo todo, O Pregador havia ficado parado perto deles,
ouvindo mas sem dar nenhum sinal de que se importasse com o
rumo que a conversa pudesse tomar.
– Ele me serviu bem, Gurney – explicou Leto. – A Casa Atreides
não perdeu todo o seu senso de obrigação em relação aos que nos
servem.
– A Casa Atreides?
– Eu sou a Casa Atreides.
– Você fugiu de Jacurutu antes que eu pudesse completar o
teste que sua avó ordenou – Halleck acusou, com voz fria. – Como
você pode supor...
– A vida deste homem deverá ser protegida como se fosse a sua
– declarou Leto como se não houvesse dúvida, e ele encarou o
olhar de Halleck sem fraquejar.
Jéssica havia treinado Halleck em muitos dos refinamentos
Bene Gesserit do poder de observação, e ele não havia detectado
nada em Leto que transmitisse outro sentimento que não uma
calma certeza. Não obstante, as ordens de Jéssica continuavam
válidas.
– Sua avó me incumbiu de completar a sua educação e me
certificar de que você não está possuído.
– Não estou possuído. – E essa foi uma declaração simples e
direta.
– Por que você fugiu?
– Namri tinha ordens de me matar, independentemente do que
eu fizesse. Ele tinha recebido essa ordem de Alia.
– Então, você é um Proclamador da Verdade?
– Sou. – Outra declaração direta e simples, repleta de
autoconfiança.
– Ghanima também?
– Não.
Então, O Pregador rompeu seu silêncio e girou seu rosto de
órbitas vazias para Halleck, mas apontando para Leto.
– Você acha que você pode testá-lo?
– Não interfira quando não sabe nada do problema nem de suas
consequências – ordenou Halleck, sem olhar para o homem.
– Ah, mas eu sei muito bem quais são as consequências –
rebateu O Pregador. – Uma vez eu fui testado por uma mulher
velha que achou que sabia o que estava fazendo. Como se viu
depois, ela não sabia.
Agora, Halleck estava olhando para ele.
– Você também é um Proclamador da Verdade?
– Qualquer um pode ser, até mesmo você – respondeu O
Pregador. – Trata-se de uma questão de honestidade para
consigo mesmo a respeito da natureza dos próprios sentimentos.
Isso exige que você tenha feito um pacto interior com a verdade,
por meio do qual se processa o rápido reconhecimento do que é.
– Por que você está interferindo? – perguntou Halleck,
colocando a mão no cabo da sua dagacris. Quem era aquele
Pregador?
– Eu respondo a esses acontecimentos – retrucou O Pregador. –
Minha mãe seria capaz de colocar seu próprio sangue no altar,
mas eu tenho outros motivos. E realmente enxergo seu problema.
– É mesmo? – e Halleck agora realmente se sentia curioso.
– Lady Jéssica mandou que você diferenciasse entre o lobo e o
cachorro, entre ze’eb e ke’leb. Segundo a definição dela, lobo é
alguém com poder que faz mau uso desse poder. No entanto,
entre o lobo e o cachorro existe um período de alvorecer durante
o qual não se pode discernir um do outro.
– Isso está bem perto do xis da questão – disse Halleck,
reparando que mais e mais pessoas do sietch tinham entrado na
sala comum para ouvir. – E como você sabe disso?
– Porque conheço este planeta. Você não entende? Pense em
como ele é. Abaixo da superfície, há rochas, terra, sedimento,
areia. Essa é a memória do planeta, a imagem de sua história. É a
mesma coisa com os humanos. O cão se lembra do lobo. Cada
universo gira em torno de um cerne de ser, e a partir desse cerne
seguem todas as reminiscências, até chegar à superfície.
– Muito interessante – murmurou Halleck. – E como isso me
ajuda a executar as minhas ordens?
– Reveja a imagem da sua história que está aí dentro de você.
Comunique-se como os animais se comunicariam.
Halleck sacudiu a cabeça. Desse Pregador emanava algo direto,
muito poderoso e envolvente, uma qualidade que ele várias vezes
tinha reconhecido nos Atreides, e naquele homem havia mais do
que leves indícios de que ele estava usando os poderes da Voz.
Halleck sentiu o coração começando a martelar. Seria possível?
– Jéssica queria um teste final, cabal, uma pressão por meio da
qual a trama subjacente da constituição de seu neto se expusesse
– prosseguiu O Pregador. – Mas essa trama sempre esteve aí,
exposta e aberta ao seu olhar.
Halleck se virou para olhar bem para Leto. Esse movimento
aconteceu por si, determinado por forças irresistíveis.
O Pregador continuou como se estivesse ministrando uma lição
a um aluno obstinado.
– Este jovem o confunde porque ele não é um ser singular. Ele é
uma comunidade. Assim como se dá com qualquer comunidade
sob pressão, qualquer membro dela pode assumir o comando.
Esse comando nem sempre é benigno, e temos nossas histórias
de Abominação. Mas você já feriu essa comunidade o suficiente,
Gurney Halleck. Será que não consegue enxergar que a
transformação já aconteceu? Este jovem atingiu uma cooperação
interior que é enormemente poderosa, que não pode ser
subvertida. Eu não tenho olhos e posso ver isso. Antes eu me opus
a ele, mas agora faço o que ele determina. Ele é o Curador.
– Quem é você? – Halleck exigiu saber.
– Nada mais do que você pode ver. Não olhe para mim; olhe
para essa pessoa que lhe ordenaram que ensinasse e testasse. Ele
foi formado pela crise. Ele sobreviveu a um ambiente letal. Ele
está aqui.
– Quem é você? – insistiu Halleck.
– Eu lhe digo que apenas olhe para este jovem Atreides! Ele é o
feedback derradeiro do qual depende a tua espécie. Ele irá
reinserir no sistema os resultados de desempenhos passados.
Nenhum outro humano poderia conhecer os desempenhos
passados como ele conhece. E você está cogitando destruir uma
criatura destas!
– Recebi ordens para testá-lo e não testei...
– Testou, sim!
– Ele é Abominação?
Uma risada cansada sacudiu O Pregador.
– Você continua insistindo nesse absurdo Bene Gesserit. Como
elas sabem forjar mitos para deixar os homens dormindo!
– Você é Paul Atreides? – Halleck perguntou.
– Não existe mais Paul Atreides. Ele tentou se posicionar como
o símbolo moral supremo enquanto renunciava a todas as
pretensões morais. Ele se tornou um santo sem um deus e cada
palavra dele foi uma blasfêmia. Como é que você poderia pensar...
– Porque você fala com a voz dele.
– Você gostaria de testar a mim, agora? Cuidado, Gurney
Halleck.
Halleck engoliu em seco, e forçou-se a prestar novamente
atenção no impassível Leto, que permanecia em silêncio,
observando calmamente a cena.
– Quem está sendo testado? – perguntou O Pregador. – Seria
possível, talvez, que lady Jéssica estivesse testando você, Gurney
Halleck?
Halleck achou essa ideia profundamente perturbadora e se
perguntou por que deixava que as palavras daquele Pregador
mexessem tanto com ele. Mas era profundo nos servos dos
Atreides o costume de obedecer àquela mística autocrática.
Quando explicara isso, Jéssica tinha tornado o assunto ainda
mais misterioso. Agora, Halleck sentia que algo estava mudando
dentro dele, algo cujas pontas tinham sido meramente tocadas
pelo treinamento Bene Gesserit que Jéssica lhe havia ministrado
e inculcado. Uma fúria emudecida se avolumou em seu íntimo. Ele
não queria mudar!
– Qual de vocês está se fazendo de Deus, e com que finalidade?
– perguntou O Pregador. – Você não pode usar somente a razão
para responder a essa pergunta.
Lenta e deliberadamente, Halleck desviou a atenção de Leto
para o homem cego. Jéssica vivia repetindo que ele devia alcançar
o equilíbrio de kairits: “tu deves/tu não deves”. Ela a chamava de a
disciplina sem palavras ou frases, regras ou argumentos. Era o
gume afiado de sua própria verdade interior, que englobava tudo.
Mas algo na voz daquele cego, em seu tom e seus modos
disparava uma fúria que, dentro de Halleck, acabava se
autoincinerando numa calma que lhe tapava a vista.
– Responda à minha pergunta – insistiu O Pregador.
Halleck sentiu essas palavras aprofundarem sua concentração
sobre esse local, sobre esse momento singular e suas exigências
específicas. Sua posição no universo era definida somente por sua
concentração. Não restava dúvida dentro dele. Aquele era Paul
Atreides, que não estava morto e tinha retornado. E Leto, essa
não criança. Halleck olhou para Leto mais uma vez e realmente o
viu. Halleck enxergou sinais de estresse em volta dos olhos dele, a
sensação de equilíbrio em sua postura, a boca passiva com seu
senso de humor ardiloso. Leto se destacava contra o fundo como
se fosse o foco de uma luz que cegasse. Ele havia chegado à
harmonia simplesmente por aceitá-la.
– Diga-me, Paul – Halleck falou. – Sua mãe está sabendo?
O Pregador suspirou.
– Para a Irmandade, todos alcançam a harmonia simplesmente
ao aceitá-la.
– Diga-me, Paul – Halleck falou. – Sua mãe está sabendo?
O Pregador suspirou.
– Para a Irmandade, para toda ela, estou morto. Não tente me
ressuscitar.
Ainda sem olhar para ele, Halleck prosseguiu:
– Mas por que ela...
– Ela faz o que deve. Ela constrói a própria vida pensando que
governa muitas vidas. Assim, todos brincamos de deus.
– Mas você está vivo – Halleck murmurou, tomado agora pela
constatação e enfim se voltando para encarar aquele homem,
mais novo do que ele mesmo e tão envelhecido pelo deserto que
parecia ter duas vezes a idade de Halleck.
– O que é isso? – Paul interrogou. – Estar vivo?
Halleck espiou à sua volta para observar os fremen que
vigiavam a cena e viu que estavam entre a dúvida e o assombro.
– Minha mãe nunca teve de aprender minhas lições. – Era a voz
de Paul! – Ser um deus pode acabar se tornando muito tedioso e
degradante no fim. Haveria motivos suficientes para a invenção
do livre-arbítrio! Um deus poderia sentir vontade de se refugiar
no sono e só permanecer vivo nas projeções inconscientes de
suas criaturas-sonho.
– Mas você está vivo! – agora, Halleck falara mais alto.
Paul ignorou a excitação na voz de seu velho companheiro e
perguntou:
– Você realmente teria colocado este rapaz contra a própria
irmã no teste Mashhad? Que absurdo letal! Cada um deles teria
dito: “Não! Mate a mim! Deixe o outro viver!”. E o que esse teste
apresentaria? Então, Gurney, o que é estar vivo?
– O teste não era esse – Halleck protestou. Ele não gostava do
modo como os fremen se aproximavam deles, fechando-se em
volta de Paul para estudá-lo e ignorando Leto.
Mas Leto interferiu então.
– Observe a trama, pai.
– Sim... sim... – Paul levantou bem alto a cabeça, como se
estivesse farejando o ar. – Então é Farad’n!
– É tão mais fácil seguir nossos pensamentos em vez de nossos
sentidos – murmurou Leto.
Halleck não tinha conseguido acompanhar esse pensamento e
estava prestes a indagar quando foi interrompido por Leto, que
apoiou a mão no braço de Gurney.
– Não pergunte. Você pode voltar a suspeitar que sou
Abominação. Não! Deixe que aconteça, Gurney. Se tentar forçar, a
única coisa que conseguirá será se destruir.
Mas Halleck se sentia tomado por fortes dúvidas. Jéssica o
havia advertido. “Eles podem ser muito sorrateiros, esses pré-
nascidos. Eles têm truques com que você nunca nem sonhou.”
Halleck balançou lentamente a cabeça. E Paul! Pelos infernos!
Paul, vivo, e aliado desse ponto de interrogação de quem era pai!
Os fremen que estavam por ali não puderam mais se conter.
Empurraram Halleck e Paul cada qual para um lado e afastaram
Leto e Paul um do outro, empurrando os dois para o fundo da sala.
O ar foi fustigado por uma ventania de perguntas:
– Você é Muad’Dib? Você é realmente Muad’Dib? É verdade o
que ele está dizendo? Fale!
– Vocês devem pensar em mim somente como O Pregador –
bradou Paul, empurrando-os de volta. – Não posso mais ser Paul
Atreides, nem Muad’Dib, nunca mais. Não sou o consorte de
Chani, nem o imperador.
Halleck, temendo o que poderia acontecer se essas perguntas
frustradas não encontrassem uma resposta lógica, estava a ponto
de interferir quando Leto se adiantou e agiu antes. Foi então que
Halleck teve um primeiro vislumbre da terrível mudança que
havia acontecido com Leto. Uma voz tonitruante rugiu “Para
trás!” e Leto avançou, arremessando fremen adultos à direita e à
esquerda, deitando-os por terra, golpeando-os com as próprias
mãos e arrancando-lhes as facas empunhadas puxando-as pelas
lâminas.
Em menos de um minuto, os fremen que ainda estavam em pé
tinham recuado e se colavam à parede, calados e consternados.
Leto estava ao lado do pai.
– Quando Shai-hulud fala, vocês obedecem – ele disse.
E quando alguns daqueles fremen tinham começado a discutir,
Leto arrancou um pedaço de rocha da parede do corredor ao lado
da saída daquele aposento e o esmagou entre as mãos sem deixar
de sorrir enquanto fazia isso.
– Eu acabo com esse sietch de vocês, bem diante do nariz de
cada um – ele pontuou.
– O Demônio do Deserto – alguém sussurrou.
– E os qanats de vocês – Leto concordou. – Destruo um por um.
Nós não estivemos aqui, entenderam?
As cabeças se moveram aquiescendo, suas fisionomias
expressando uma submissão aterrorizada.
– Ninguém aqui nos viu – Leto insistiu. – Um só murmúrio de
vocês e eu volto e mando todos para o deserto, sem água.
Halleck viu mãos se levantando no gesto de proteção, o sinal do
verme.
– Nós iremos embora, agora, meu pai e eu, acompanhados por
nosso velho amigo – continuou Leto. – Prepare o nosso tóptero.
E Leto os guiara então até Shuloch, explicando durante a
travessia que deviam se deslocar rapidamente:
– Farad’n chegará aqui em Arrakis muito em breve. E, como
disse meu pai, então você verá o teste de verdade, Gurney.
Olhando do alto do morro de Shuloch, Halleck se perguntou
mais uma vez, como fazia diariamente:
– Que teste? O que ele quis dizer?
Mas Leto não estava mais em Shuloch e Paul se recusava a
responder.
A Igreja e o Estado, a razão científica e a fé, o
indivíduo e sua comunidade, até mesmo o
progresso e a tradição – tudo isso pode ser
reconciliado nos ensinamentos de Muad’Dib. Ele
nos ensinou que não existem opostos
intransigentes nas crenças dos homens. Qualquer
um pode rasgar o véu do Tempo e se desvencilhar
dele. Você pode descobrir o futuro no passado ou
em sua imaginação. Ao fazer isso, você
reconquista a consciência em seu ser interior.
Então, saberá que o universo é um todo coerente e
que você é indivisível dele.
– O Pregador em Arrakina,
segundo Harq al-Ada

Ghanima estava sentada fora do círculo da luz projetada pelas


lamparinas de especiaria e observava Buer Agarves. Ela não
gostava da cara redonda dele e nem de suas sobrancelhas
agitadas, ou do modo como mexia os pés quando falava, como se
suas palavras fossem uma música escondida cujo ritmo seus pés
acompanhavam.
Ele não está aqui para negociar com Stil, Ghanima pensou.
Cada palavra que o homem dizia, cada movimento que fazia
confirmavam para ela essa percepção. Ela se afastou mais um
pouco do círculo do Conselho.
Todo sietch tinha um recinto desse tipo, mas o salão de
reuniões da djedida abandonada chamou a atenção de Ghanima
como um local apertado porque era muito baixo. As sessenta
pessoas do grupo de Stilgar, mais os nove que tinham vindo com
Agarves, enchiam apenas uma ponta do salão. As lamparinas de
especiaria se refletiam em vigas baixas que davam sustentação ao
teto. A luz lançava sombras oscilantes que bailavam nas paredes,
e a fumaça de odor pungente enchia o aposento com o aroma de
canela.
A reunião tivera início ao entardecer, após as preces pela
umidade e a refeição do final da tarde. Já durava mais de uma
hora, agora, e Ghanima não conseguia discernir as forças latentes
na performance de Agarves. Embora suas palavras parecessem
claras, seus movimentos em geral, e dos olhos em especial, não
combinavam entre si.
Agarves estava falando nesse momento, respondendo a uma
pergunta de uma das tenentes de Stilgar, uma sobrinha de Harah
chamada Rajia. Esta era uma moça ascética, de tez morena, cujos
cantos da boca se curvavam para baixo, dando-lhe um ar de
perpétua desconfiança. Ghanima considerou que, dadas as
circunstâncias, essa expressão era satisfatória.
– Certamente acredito que Alia concederá pleno e irrestrito
perdão a todos vocês – proclamou Agarves. – Eu não estaria aqui
com esta mensagem se não fosse assim.
Stilgar interveio no momento em que Rajia ia falar de novo.
– Não estou tão preocupado em confiar nela ou não. Minha
preocupação é se ela confia em você. – A voz de Stilgar continha
sutis grunhidos: ele estava muito incomodado com a sugestão de
que retornaria a seu antigo status.
– Não importa se ela confia em mim ou não – respondeu
Agarves. – Para ser sincero, acho que ela não confia. Levei tempo
demais procurando vocês antes de encontrá-los. Mas sempre
senti que ela realmente não queria que vocês fossem capturados.
Ela estava...
– Ela era esposa do homem que eu matei – Stilgar interrompeu.
– Afirmo a você que ele pediu isso. Ele poderia simplesmente ter
caído sobre a própria faca. Mas esta nova atitude parece...
Agarves movimentou os pés e sua fisionomia era um esgar de
raiva.
– Ela o perdoa! Quantas vezes preciso repetir isso? Ela obrigou
os sacerdotes a fazerem uma grande exibição pedindo orientação
divina...
– Você apenas levantou outra questão. – Era Irulan que se
inclinava à frente e passava adiante de Rajia, sua cabeleira loira
contrastando com a pele escura de Rajia. – Ela convenceu você,
mas pode ter outros planos.
– O Clero...
– Mas existem todas essas histórias – insistiu Irulan. – Que você
é mais do que apenas um consultor militar, que você é...
– Basta! – Agarves estava fora de si de tanta raiva. Sua mão
pairou sobre o cabo da faca. Emoções conflitantes se atropelavam
sob sua pele e contorciam seus traços faciais. – Acreditem no que
quiserem, mas não posso continuar debatendo com essa mulher!
Ela me enoja! Ela macula tudo aquilo que toca! Estou usado. Estou
sujo. Mas não levantei minha faca contra os meus. Agora, basta!
Observando tudo isso, Ghanima pensou: Pelo menos isso foi
uma verdade, vinda dele.
Para a surpresa de todos, Stilgar explodiu numa gargalhada.
– Ah, meu primo, me perdoe – ele disse. – Mas na raiva há
verdade.
– Então você concorda?
– Eu não disse isso – e ele ergueu a mão quando Agarves
ameaçou ter outra explosão. – Não é por mim, Buer, mas há estes
outros – e ele fez um gesto abarcando o grupo. – Eles são minha
responsabilidade. Vamos considerar por um instante as
reparações que Alia oferece.
– Reparações? Não houve nenhuma menção a reparações.
Perdão, mas não...
– Então o que ela oferece como garantia de sua palavra?
– Sietch Tabr e você como naib, total autonomia como
elemento neutro. Ela agora entende como...
– Não voltarei a fazer parte do séquito dela e nem fornecerei
guerreiros – declarou Stilgar, avisando. – Isso está claro?
Ghanima podia ouvir Stilgar começando a fraquejar e pensou:
Não, Stil! Não!
– Não há necessidade de nada disso – Agarves murmurou. – A
única coisa que Alia quer é que Ghanima volte para lá e dê
prosseguimento ao compromisso de noivado que ela...
– Então, agora veio à tona! – exclamou Stilgar com a expressão
abatida. – Ghanima é o preço do meu perdão. Será que ela acha
que eu...
– Ela acha que você é sensato – argumentou Agarves,
retomando seu assento.
Esperançosa, Ghanima pensou: Ele não fará isso. Economize a
saliva. Ele não fará isso.
Enquanto pensava nisso, Ghanima ouviu um farfalhar macio
atrás de si, vindo da esquerda. Ela começou a se virar quando
percebeu mãos fortes que a agarravam. Um pedaço de pano
fedendo a drogas para dormir cobriu-lhe o rosto antes que ela
pudesse gritar. Com a consciência por um fio, sentiu-se sendo
carregada na direção de uma porta que ficava na extremidade
mais distante daquela sala. E ela pensou: Eu devia ter imaginado!
Eu devia ter me preparado! Mas as mãos que a seguravam eram de
adulto e fortes. Ela não conseguiria se debater e se livrar delas.
As últimas impressões sensoriais de Ghanima foram do ar frio,
um vislumbre rápido de estrelas e um rosto encapuzado que
olhava para ela e, então, perguntou:
– Ela não está machucada, certo?
A resposta lhe escapou, enquanto as estrelas rodopiavam e
zuniam diante de seus olhos, e se perdiam depois num clarão só,
que era o núcleo central de sua essência.
Muad’Dib nos propiciou um tipo particular de
conhecimento a respeito do insight profético, a
respeito do comportamento que gira em torno
desse insight e de sua influência nos eventos que
podem ser considerados “alinhados” (quer dizer,
os eventos que se espera que ocorram num
sistema relacionado que o profeta revela e
interpreta). Como já foi mencionado em outro
contexto, esse insight funciona como uma
armadilha peculiar para o próprio profeta. Ele
pode se tornar vítima daquilo que sabe – o que é
uma falha humana relativamente comum. O
perigo é que aqueles que fazem previsões de
eventos reais podem desconsiderar o efeito
polarizador desencadeado pelo crédito excessivo
que eles mesmos concedem às suas verdades. Eles
tendem a esquecer que nada, num universo
polarizado, pode existir sem a presença de seu
oposto.
– A visão presciente,
por Harq al-Ada

Fumos de areia suspensa pairavam como névoa no horizonte,


obscurecendo o sol nascente. A areia estava fria na sombra da
duna. Leto foi para fora do anel dos palmares para olhar para o
deserto. Ele sentiu o cheiro da poeira e o aroma de plantas
espinhentas, ouviu os sons matinais das pessoas e dos animais.
Nesse lugar os fremen não tinham um qanat. Eles tinham
somente um escasso mínimo de plantações manuais irrigadas
pelas mulheres que transportavam água em bolsas de pele. O
captador de vento deles era uma coisa frágil, facilmente destruída
pelas ventanias, mas também facilmente reconstruída. Agruras,
os rigores do comércio da especiaria e aventuras ali eram o modo
de vida. Esses fremen ainda acreditavam que paraíso era o som de
água corrente, mas cultivavam um antigo conceito de liberdade
que Leto também respeitava.
A liberdade é um estado solitário, ele pensou.
Leto ajustou as dobras do manto branco que cobria seu
trajestilador vivo. Ele podia sentir como a membrana de trutas de
areia o havia modificado e, como sempre ocorria quando lhe vinha
essa sensação, ele era forçado a superar um profundo sentimento
de perda. Ele não era mais completamente humano. Coisas
estranhas fluíam em seu sangue. Cílios das trutas de areia tinham
penetrado em cada um de seus órgãos, que se ajustavam e se
modificavam. As próprias trutas de areia estavam mudando e se
adaptando. Mas Leto, sabendo disso, se sentia dividido pelos
antigos fios de sua humanidade perdida. Sua vida agora era
prisioneira de uma angústia primal depois de perdida a conexão
com sua continuidade ancestral. Ele conhecia o ardil que era se
permitir essa espécie de emoção. Ele a conhecia muito bem.
Que o futuro aconteça por si, ele pensou. A única regra que
governa a criatividade é o próprio ato da criação.
Era difícil afastar os olhos da areia, das dunas – daquela
vastidão grandiosa. Ali, na fronteira das areias, havia algumas
rochas, mas elas levavam a imaginação mais além, para os ventos,
a poeira, as escassas e solitárias plantas e animais, dunas se
mesclando a outras dunas, o deserto afundando no deserto.
Por trás dele veio o som de uma flauta que tocava a prece da
manhã, o cântico pela umidade que agora era uma serenata
sutilmente modificada em honra a Shai-hulud. Esse
conhecimento na mente de Leto dotava a música de um senso de
eterna solidão.
Eu podia apenas sair andando e afundar no deserto, ele pensou.
Tudo então se modificaria. Uma direção seria tão boa quanto
qualquer outra. Ele já tinha aprendido a levar a vida livre de
posses. Tinha refinado a mística fremen até uma borda terrível:
tudo que ele pegava era necessário, e era somente isso que ele
pegava. Mas ele não carregava nada além do manto em suas
costas, o anel de gavião dos Atreides que mantinha escondido nas
dobras do tecido e aquela pele que não era a sua.
Seria fácil ir embora, saindo dali.
Um movimento no céu, lá no alto, prendeu sua atenção: as
pontas das asas abertas com falhas entre as penas identificava
um abutre. Essa visão encheu seu peito de dor. Como os fremen
selvagens, os abutres viviam nessa terra porque era ali que
tinham nascido. Eles não conheciam outras coisas. O deserto
fizera deles o que eram.
Outra raça de fremen estava despontando na esteira de
Muad’Dib e de Alia, no entanto. Eles eram a razão pela qual ele
não poderia se permitir sair andando e ir embora deserto afora,
como seu pai tinha feito. Leto se lembrou das palavras de Idaho,
no início de tudo: “Esses fremen! São criaturas magnificamente
vivas! Nunca conheci um fremen ganancioso”.
Agora, fremen gananciosos eram abundantes.
Uma onda de tristeza perpassou Leto. Ele estava
comprometido com um curso de ação que poderia mudar aquilo
tudo, mas a um preço terrível. E os cuidados com esse curso se
tornavam cada vez mais difíceis, conforme eles se aproximavam
do vórtice.
Kralizec, a Batalha do Tufão, estava adiante... mas Kralizec ou
pior seria o preço de um só passo em falso.
Vozes ribombavam atrás de Leto, e então o nítido som
cristalino de uma voz de criança:
– Olha ele ali.
Leto se virou.
O Pregador tinha saído da área dos palmares, e vinha trazido
por uma criança.
Por que ainda penso nele como O Pregador?, Leto se
questionou.
A resposta se manifestou na lousa limpa da mente de Leto:
Porque ele não é mais Muad’Dib, nem Paul Atreides. O deserto o
havia tornado o que era. O deserto e os chacais de Jacurutu com
suas overdoses de mélange e suas traições constantes. O
Pregador ficara velho antes do tempo, velho por causa da
especiaria, não apesar dela.
– Disseram que você queria falar comigo agora – murmurou O
Pregador, falando quando seu guia-criança parou.
Leto olhou para a criança dos palmares, uma pessoa quase da
sua altura, cujo assombro era aliviado por uma avara curiosidade.
Os olhos jovens faiscaram sombriamente sobre a máscara do
trajestilador de tamanho infantil.
– Pode ir – Leto acenou com a mão.
Por um momento, os ombros da criança denotaram rebeldia,
mas depois o respeito e o assombro naturais dos fremen diante
da necessidade de privacidade levaram a melhor e a criança
partiu.
– Você sabe que Farad’n está aqui, em Arrakis? – Leto indagou.
– Gurney me informou quando me trouxe de avião na noite
passada.
E O Pregador pensou: Como suas palavras são friamente
calculadas. Ele é como eu era antigamente.
– Estou diante de uma escolha difícil – confessou Leto.
– Pensei que você já tinha feito todas as escolhas.
– Nós conhecemos essa armadilha, pai.
O Pregador limpou a garganta. As tensões lhe disseram quão
perto eles estavam da crise definitiva, que poria tudo abaixo.
Agora, Leto não estava mais se baseando somente na visão, mas
em como aplicar a visão.
– Você precisa da minha ajuda? – perguntou O Pregador.
– Sim. Estou voltando para Arrakina e quero ir como o seu guia.
– Com que propósito?
– Você faria novamente sermões em Arrakina?
– Talvez. Há coisas que eu não disse a eles.
– Você não vai voltar para o deserto, pai.
– Se eu for com você?
– Sim.
– Farei o que você quiser.
– Já pensou bem nisso? Se Farad’n está lá, sua mãe estará com
ele.
– Seguramente.
Mais uma vez, O Pregador pigarreou. Era a denúncia de um
nervosismo que Muad’Dib nunca teria se permitido. Essa carne
tinha sido mantida muito tempo afastada das antigas práticas da
autodisciplina, e sua mente fora vezes demais traída e atraída
para a loucura por Jacurutu. E O Pregador pensou que talvez não
fosse sensato voltar a Arrakina.
– Você não é obrigado a voltar para lá comigo – afirmou Leto. –
Mas minha irmã está lá e eu devo regressar. Você poderia seguir
com Gurney.
– E você iria para Arrakina sozinho?
– Sim, eu tenho de encontrar Farad’n.
– Irei com você. – E O Pregador suspirou.
Leto sentiu um toque da antiga loucura da visão nos modos do
Pregador, e então se perguntou: Será que ele esteve jogando o jogo
da presciência? Não. Ele nunca mais seguiria por esse caminho.
Ele conhecia a armadilha de um compromisso parcial. Cada
palavra pronunciada pelo Pregador confirmava que ele tinha
transmitido as visões ao seu filho, sabendo que tudo neste
universo havia sido antecipado.
Eram as velhas polaridades que atormentavam O Pregador
agora. Ele fugira de um paradoxo para cair em outro.
– Então, partiremos em poucos minutos – disse Leto. – Você
avisa Gurney?
– Gurney não irá conosco?
– Quero que Gurney sobreviva.
O Pregador então se abriu para as tensões. Estavam no ar em
volta dele por toda parte, no chão sob seus pés, como algo móvel
que focava a não criança que era seu filho. O grito surdo de suas
antigas visões aguardava na garganta do Pregador.
Esta maldita santidade!
O caldo arenoso de seus temores não poderia ser evitado. Ele
sabia o que os aguardava em Arrakina. Mais uma vez, eles
jogariam o jogo com forças mortais e aterrorizantes que nunca
lhes poderiam trazer paz.
O filho que se recusa a seguir jornada sob a tutela
do pai constitui o símbolo da mais peculiar
capacidade humana. “Não tenho de ser o que meu
pai foi. Não tenho de obedecer às regras do meu
pai e nem acreditar em tudo que ele acreditou. É
minha força como humano poder fazer minhas
próprias escolhas a respeito daquilo em que
acreditar ou não, a respeito do que ser e do que
não ser.”
– Leto Atreides II,
a biografia de Harq al-Ada

As peregrinas estavam dançando ao som de tambores e flautas


na praça do Templo, com a cabeça descoberta, usando colares e
vestes finas e reveladoras. O cabelo escuro de todas elas estava
solto, escorrido nas costas, e quando elas rodopiavam mechas
listravam seu rosto.
Do terraço do Templo, Alia olhava para a cena que se
desenrolava lá embaixo, ao mesmo tempo repugnada e atraída.
Era o meio da manhã, o horário em que o aroma do café de
especiaria começava a flutuar e invadir a praça, vindo das
barracas dos vendedores alojados à sombra dos arcos. Logo ela
teria de sair e ir saudar Farad’n, oferecer os presentes formais e
supervisionar seu primeiro encontro com Ghanima.
Tudo estava saindo conforme planejado. Ghani iria matá-lo e,
na destrutiva confusão que se instalaria em seguida, uma única
pessoa estaria preparada para recolher os cacos. As marionetes
dançavam quando os cordões eram puxados. Stilgar tinha
matado Agarves tal como ela esperava. E Agarves tinha levado os
sequestradores até a djedida sem saber, com um transmissor de
sinais escondido nas botas novas que ela havia dado a ele. Agora,
Stilgar e Irulan esperavam nos calabouços do Templo. Esperar
não prejudicava ninguém.
Ela notou que os fremen urbanos estavam espiando as
dançarinas peregrinas no pátio da praça, e que seus olhares eram
intensos e concentrados na movimentação delas. Uma igualdade
de gênero básica tinha emergido do deserto para persistir nas
cidades fremen menores e maiores, mas as diferenças sociais
entre homens e mulheres já estavam se tornando perceptíveis.
Também isso estava acontecendo de acordo com os planos.
Dividir e enfraquecer. Alia podia registrar a mudança sutil na
maneira como os dois fremen assistiam às mulheres
extraplanetárias em sua dança exótica.
Que eles olhem. Que eles entupam a cabeça com ghafla.
As frestas laterais da janela de Alia tinham sido abertas e ela
pôde sentir o acentuado aumento do calor que começava com o
nascer do dia, nessa época do ano, e atingiria sua temperatura
máxima no meio da tarde. No piso de pedras da praça a
temperatura estaria muito mais elevada. Devia estar
desconfortável para aquelas dançarinas, mas elas continuavam
girando e se dobrando, abanando os braços e o cabelo no frenesi
de sua entrega. Tinham dedicado sua dança a Alia, o Ventre
Celestial. Uma auxiliar viera cochichar isso para Alia, zombando
das mulheres extraplanetárias e seus costumes peculiares. A
auxiliar havia explicado que aquelas mulheres vinham de Ix, onde
persistiam resquícios da ciência e da tecnologia proibidas.
Alia fungou. Aquelas mulheres eram tão ignorantes, tão
supersticiosas e atrasadas quanto os fremen do deserto... tal
como a auxiliar desdenhosa tinha dito, tentando conquistar os
favores dela com aquela notícia sobre a dança ter-lhe sido
dedicada. E nem a auxiliar, nem as ixianas, sabiam que Ix era tão
somente um número numa língua esquecida.
Rindo de leve consigo mesma, Alia pensou: Que dancem.
Dançar consumia energia que, se não fosse por isso, talvez fosse
canalizada para usos mais destrutivos. E a música era agradável,
um lamento sutil tocado junto com tímpanos graves feitos de
tambores de cabaça, acompanhado por palmas ritmadas.
De súbito, a música foi abafada pelo vozerio levantado por
muitos indivíduos que estavam na ponta extrema da praça. As
dançarinas erraram o passo e se recompuseram após uma ligeira
confusão, mas tinham perdido sua sensual peculiaridade e até
mesmo elas estavam agora prestando atenção no portão mais
distante na praça, onde se podia ver a multidão se esparramando
pelas pedras como se fosse água escoando da válvula aberta de
um qanat.
Alia fixou os olhos na onda que estava vindo.
Agora estava ouvindo algumas palavras, uma mais do que
todas as outras:
– Pregador! Pregador!
Então, ela o viu, vindo no embalo da primeira ondulação da
onda, com uma das mãos no ombro de seu jovem guia.
As dançarinas peregrinas desistiram de girar e se dirigiram
para os degraus da entrada do Templo. O público foi com elas, e
Alia sentiu que os espectadores demonstravam assombro. A
emoção que ela mesma estava sentindo era medo.
Como ele ousa?!
Ela havia se virado em parte para chamar a guarda, mas parou
após pensar melhor. A multidão agora já lotava a praça. Eles
podiam se amotinar se seu óbvio desejo de ouvir aquele cego
visionário fosse reprimido.
Alia cerrou os punhos.
O Pregador! Por que Paul estava fazendo aquilo? Para metade
da população ele era o “louco do deserto” e, portanto, sagrado.
Outros diziam em voz baixa, nos bazares e nas lojas, que ele devia
ser Muad’Dib. Por que o mahdinato permitia que ele falasse
heresias tão iradas?
Alia podia ver alguns refugiados no meio da multidão,
remanescentes de sietches abandonados, usando mantos em
farrapos. Ali embaixo tinha se tornado um lugar perigoso, um
lugar em que podiam ocorrer erros.
– Senhora?
A voz vinha de trás de Alia. Ela se virou e viu Zia parada no
umbral em arco da porta de acesso da câmara externa. As
guardas de sua Tropa Armada Pessoal estavam próximas, atrás
dela.
– Sim, Zia?
– Milady, Farad’n está aqui fora solicitando uma audiência.
– Aqui? Nos meus aposentos?
– Sim, milady.
– Ele está sozinho?
– Está com dois guarda-costas e com lady Jéssica.
Alia levou a mão à garganta, lembrando-se de seu último
encontro com a mãe. Os tempos tinham mudado desde então.
Novas condições regiam a relação entre elas, agora.
– Como ele é impetuoso – Alia observou. – Que motivo ele
alegou?
– Ele ouviu sobre... – e Zia apontou para a janela que dava para a
praça. – Ele diz que ouviu dizer que a senhora tem mais vantagem.
Alia franziu a testa.
– Você acredita nisso, Zia?
– Não, milady. Acho que ele ouviu os boatos. Ele quer ver sua
reação.
– Minha mãe foi quem enfiou isso na cabeça dele!
– É bem possível, milady.
– Zia, minha cara, quero que você execute um conjunto
específico de ordens muito importantes para mim. Venha cá.
Zia se adiantou até ficar a um passo de Alia.
– Milady?
– Deixe que Farad’n, os guarda-costas dele e minha mãe
também entrem. Então se prepare para trazer Ghanima. Ela deve
estar arrumada como uma noiva fremen em todos os detalhes... o
traje completo.
– Com a faca, milady?
– Com a faca.
– Milady, isso é...
– Ghanima não é ameaça para mim.
– Milady, há motivos para crer que ela fugiu com Stilgar mais
para protegê-lo do que por qualquer outra...
– Zia!
– Milady?
– Ghanima já apresentou sua solicitação para que eu poupe a
vida de Stilgar, e ele continua vivo.
– Mas ela é a herdeira presuntiva!
– Apenas cumpra minhas ordens. Mande Ghanima ser
preparada. Enquanto você está cuidando disso, mande cinco
assistentes do Clero do Templo saírem para a praça. Eles deverão
convidar O Pregador a vir aqui. Faça com que esperem pela
oportunidade de falar com ele, apenas isso. Não devem recorrer à
força. Quero que o convite seja feito com cortesia. Absolutamente
sem nenhum uso de força. E, Zia...
– Sim, milady? – como ela soava mal-humorada.
– O Pregador e Ghanima devem vir à minha presença
simultaneamente. Eles deverão entrar juntos quando eu der o
sinal. Você entendeu?
– Sei qual é o plano, milady, mas...
– Então faça e pronto! Juntos. – E Alia dispensou a amazona e
sua auxiliar com um movimento de cabeça. Quando Zia se virou
para sair, Alia ordenou: – Ao sair, mande que entrem Farad’n e seu
grupo, mas primeiro faça com que sejam precedidos por dez de
suas mais confiáveis guerreiras.
Zia olhou rapidamente para trás mas continuou rumo à saída.
– Será feito conforme ordena, milady.
Alia se virou para a janela a fim de ver o que se passava lá
embaixo. Em mais poucos minutos, o plano daria seus sangrentos
frutos. E Paul estaria aqui quando sua filha desferisse o golpe de
misericórdia contra as sagradas pretensões que ele pudesse estar
alimentando. Alia ouviu o destacamento montado por Zia
adentrar o recinto. Logo tudo estaria acabado. Tudo acabado. Ela
olhou para a praça com uma sensação crescente de triunfo
quando O Pregador se posicionou para falar, ocupando o primeiro
degrau. Seu jovem guia se abaixou ao lado dele. Alia viu os mantos
amarelos dos sacerdotes do Templo aguardando à esquerda,
contidos pela pressão da multidão. Mas eram sujeitos
acostumados a lidar com a massa. Eles achariam um jeito de se
aproximar do alvo. A voz do Pregador trovejava através da praça e
o povo embevecido atentava com sede às palavras que ele dizia.
Que ouçam! Logo, as palavras dele seriam levadas a adquirir
outro significado que não o pretendido por ele. E não existiria
mais nenhum Pregador por ali para objetar.
Ela ouviu o grupo com Farad’n entrando e então a voz de
Jéssica:
– Alia?
Sem se voltar, Alia respondeu:
– Bem-vindos, príncipe Farad’n, mãe. Venham e assistam ao
espetáculo. – Ela olhou brevemente por cima do ombro, agora; viu
o grande Sardaukar, Tyekanik, franzindo o cenho para as guardas
de Alia que estavam atrapalhando a passagem. – Assim não é
hospitaleiro – Alia repreendeu. – Deixem que se aproximem! –
Duas guardas, evidentemente agindo conforme instruções de Zia,
foram até Alia e se postaram entre ela e os outros. As demais
amazonas abriram ala. Alia recuou para o lado direito da janela e
fez um movimento de mão em direção a ela. – Esta é sem dúvida a
melhor perspectiva.
Usando seu tradicional manto aba negro, Jéssica olhou
fixamente para Alia e escoltou Farad’n até a janela, mantendo-se
todavia entre ele e as guardas de Alia.
– Isso é muito gentil de sua parte, lady Alia – murmurou
Farad’n. – Ouvi falar muito desse Pregador.
– E aí está ele em carne e osso – Alia apontou. Ela viu que
Farad’n estava usando o cinza habitual dos comandantes
Sardaukar, sem nenhum atavio. Ele se movia com aquela
elegância esguia que Alia admirava. Talvez houvesse mais do que
um ocioso divertimento com esse príncipe Corrino.
A voz do Pregador ribombava dentro da sala, reproduzida
pelos amplificadores instalados ao lado da janela. Alia sentia os
tremores dessa voz em seus ossos e começou a ouvir as palavras
do homem com crescente fascinação.
– Eu estava no deserto de Zan – gritava O Pregador –, naqueles
ermos da mais desolada vastidão. E Deus me ordenou que eu
deixasse aquele lugar limpo. Pois fomos provocados no deserto e
lamentamos nossas perdas no deserto, e fomos tentados naquela
solidão a esquecer os nossos costumes.
O deserto de Zan, pensou Alia. Aquele era o nome que tinha
sido dado ao lugar do primeiro ordálio dos andarilhos zen-sunitas
dos quais surgiram os fremen. Mas as palavras dele! Será que
estava assumindo o crédito pela destruição imposta às fortalezas
do sietch das tribos leais?
– Animais selvagens ocupam as suas terras – dizia O Pregador
com a voz que trovejava através da praça. – Criaturas tristonhas
enchem as casas de vocês. Vocês, que fugiram de seus lares, não
multiplicam mais seus dias passados na areia. Sim, vocês, que se
esqueceram de nossos costumes, morrerão num ninho fétido, se
continuarem nesse caminho. Mas se ouvirem o meu aviso, o
Senhor os conduzirá através de uma terra de poços até as
Montanhas de Deus. Sim, Shai-hulud os guiará.
Lamúrias suaves brotaram dos ouvintes. O Pregador fez uma
pausa, lançando suas órbitas vazias de lado a lado, ao ritmo
daqueles lamentos. Então ergueu os braços e os abriu largamente
para dizer:
– Oh, Deus, minha carne anseia por Teu caminho, nesta terra
seca e sedenta!
Uma mulher idosa que estava de frente para O Pregador,
evidentemente uma refugiada, a julgar pelo estado puído e
remendado de seus trajes, estendeu as mãos na direção dele e
implorou:
– Ajude-nos, Muad’Dib. Ajude-nos!
Com uma repentina sensação de aperto e temor no peito, Alia
se perguntou se aquela velha realmente saberia qual era a
verdade. Ela olhou de relance para a mãe, mas Jéssica se
mantinha impassível, dividindo sua atenção entre as guardas de
Alia, Farad’n e o que se podia ver pela janela. Farad’n permanecia
plantado e imóvel, atento e fascinado.
Alia olhou através da janela na tentativa de ver onde estavam
os sacerdotes do Templo. Não estavam em lugar nenhum que ela
pudesse enxergar e ela desconfiou que tivessem dado a volta pela
parte que ficava fora de vista, perto das portas do Templo,
tentando achar um caminho que levasse diretamente até os
degraus.
O Pregador apontou com a mão direita sobre a cabeça da
mulher idosa e bradou:
– Vocês são a única ajuda que resta! Vocês foram rebeldes,
vocês trouxeram o vento seco que não limpa e que não refresca.
Vocês carregam o fardo do nosso deserto, e o torvelinho virá
desse lugar, dessa terra terrível. Eu estive naqueles ermos. A água
escorre sobre a areia quando sai dos qanats destruídos. Riachos
cruzam o chão. A água caiu do céu no Cinturão de Duna! Oh, meus
amigos, Deus me ordenou. Construa no deserto um caminho reto
para o nosso Senhor, pois eu sou a voz que vem a vocês desde o
deserto.
Ele apontou para os degraus sob seus pés com um dedo duro e
trêmulo:
– Esta não é uma djedida perdida que não é mais habitada para
sempre! Aqui comemos o pão do paraíso. E aqui o ruído de
estranhos nos expulsa de nossas casas! Eles criam para nós a
desolação, a terra em que ninguém habita, que nenhum homem
atravessa.
A multidão se remexia incomodada; refugiados e fremen
citadinos olhavam para os lados, deparando com os peregrinos do
hajj que se encontravam entre eles.
Ele poderia começar um confronto sangrento!, Alia pensou.
Bom, então que seja. Meus sacerdotes podem capturá-lo no meio
da confusão.
Ela viu então os cinco sacerdotes formando um nó apertado de
mantos amarelos a se esgueirar para descer os degraus atrás do
Profeta.
– As águas que espalhamos nas areias do deserto viraram
sangue – O Pregador prosseguiu, abanando os braços em amplos
movimentos. – Sangue sobre a nossa terra! Vejam o nosso deserto
que poderia ser festivo e próspero; ele atraiu o forasteiro e o
seduziu a se misturar entre nós. Mas eles vieram pela violência! O
rosto deles está lacrado como se fora para o vento derradeiro de
Kralizec! Eles armazenam o cativeiro da areia. Eles sugam a
abundância da areia, o tesouro escondido em suas profundezas.
Vejam como eles se entregam a seus maléficos feitos. Está escrito:
“E eu fiquei de pé na areia, e vi uma besta surgir dessa areia e
sobre a cabeça dessa besta estava o nome de Deus”!
Resmungos de raiva subiram da multidão e punhos cerrados se
erguiam e agitavam no ar.
– O que ele está fazendo? – Farad’n sussurrou.
– Bem que eu queria saber – Alia balbuciou. Ela levou a mão ao
peito, sentindo a temerosa excitação do momento. A multidão iria
se voltar contra os peregrinos se ele continuasse com aquilo!
Mas O Pregador tinha se virado um pouco, direcionando suas
órbitas vazias na direção do Templo. Então levantou uma mão
para apontar para a janela alta do terraço de Alia.
– Ainda resta uma blasfêmia! – ele trovejou. – Blasfêmia! E o
nome dessa blasfêmia é Alia!
Um silêncio chocado desceu sobre a praça.
Alia parou, imobilizada pela consternação. Ela sabia que o povo
não podia vê-la, mas se sentiu tomada pela sensação de estar
exposta, pelo sentimento da vulnerabilidade. Ecos de palavras
tranquilizadoras dentro de seu crânio competiam com as
marteladas de seu coração. Ela só conseguia fitar aquela cena
inacreditável que se desenrolava lá embaixo. O Pregador
continuava com a mão apontada para sua janela.
Para os sacerdotes, porém, as palavras dele tinham sido
excessivas. Eles quebraram o silêncio com gritos encolerizados,
desceram os degraus como uma avalanche, atirando pessoas para
os lados. Quando entraram em cena, a multidão reagiu e quebrou
como onda sobre os degraus, arrastando as primeiras fileiras de
espectadores e carregando O Pregador diante deles. O velho
tropeçou às cegas e se separou de seu jovem guia. Então um braço
revestido de amarelo se levantou em meio à pressão da multidão e
uma dagacris balançava nessa mão. Ela viu a faca descer num
golpe reto que encontrou o peito do Pregador e nele se enterrou.
O som metálico e trovejante das gigantescas portas do Templo
sendo cerradas tirou Alia de seu estupor. Evidentemente, as
guardas tinham fechado as portas para impedir o acesso da
multidão. Mas as pessoas já estavam recuando e abrindo espaço
em torno de uma figura despencada num monte disforme no
chão. Um silêncio sepulcral se estendeu sobre a praça. Alia viu
muitos corpos, mas somente aquele jazia ali, solitário.
Então uma voz estridente gritou em meio à multidão:
– Muad’Dib! Eles mataram Muad’Dib!
– Pelos deuses das profundezas! Pelos deuses das profundezas
– Alia repetiu, em choque.
– Um pouco tarde demais para isso, não é mesmo? – indagou
Jéssica.
Alia girou nos calcanhares, notando a súbita reação de susto de
Farad’n quando ele reparou na cólera que lhe distorcia o rosto.
– Foi Paul que eles mataram! – Alia bradou. – Aquele era o seu
filho! Quando confirmarem isso, você sabe o que vai acontecer?
Jéssica permaneceu imóvel por um longo momento, pensando
que tinha acabado de ouvir algo que ela já sabia. A mão de Farad’n
sobre o braço dela quebrou o clima.
– Milady – e havia tanta compaixão na voz dele que Jéssica
pensou que talvez ela morresse por isso, bem ali, naquele
momento. Ela desviou o olhar da raiva fria e colérica do rosto de
Alia para a empática infelicidade nos traços de Farad’n e pensou:
Talvez eu tenha feito o meu trabalho bem demais.
As palavras de Alia não davam margem a dúvidas. Jéssica se
lembrava de cada entonação da voz do Pregador, ouvindo nela os
truques que ela mesma praticava, os longos anos de treinamento
que ela gastara instruindo um jovem rapaz destinado a ser
imperador, mas que agora se resumia a um amontoado disforme
de trapos e sangue nos degraus do Templo.
Ghafla me deixou cega, Jéssica pensou.
Alia gesticulou para chamar a atenção de uma de suas
auxiliares e ordenou:
– Traga Ghanima agora.
Jéssica se forçou a reconhecer essas palavras. Ghanima? Por
que Ghanima agora?
A auxiliar se virou na direção da porta externa e fez um gesto
para que a destravassem, mas antes que uma única palavra
pudesse ser pronunciada a porta se entortou. As dobradiças
saltaram dos encaixes. A trava estalou e partiu e a porta,
fabricada de açoplás grosso e destinada a aguentar o impacto de
energias monumentais, caiu ao chão ricocheteando dentro da
sala. As guardas saltaram de lado para evitar serem atingidas e
ficaram de armas em punho.
Os guarda-costas de Jéssica e Farad’n se fecharam em volta do
príncipe Corrino.
Mas no vão que fora aberto apenas duas crianças eram visíveis:
Ghanima, à esquerda, usando seu manto negro de noivado, e Leto
à direita, com a cinzenta finura de um trajestilador aparecendo
em parte por baixo de um manto branco, manchado pela
travessia do deserto.
Alia olhava da porta derrubada para as duas crianças e se
sentiu tremendo de maneira incontrolável.
– A família está aqui para nos receber – observou Leto. – Minha
avó – ele saudou com um movimento de cabeça na direção de
Jéssica. Então, desviou a atenção para o príncipe Corrino. – E este
deve ser o príncipe Farad’n. Bem-vindo a Arrakis, príncipe.
Os olhos de Ghanima pareciam vazios. Ela mantinha a mão
direita sobre uma dagacris cerimonial à sua cintura, e parecia que
tentava escapar de Leto, que a continha pelo braço. Leto sacudiu
o braço da irmã e todo o corpo dela repercutiu o chacoalhão.
– Olhem para mim, família – Leto prosseguiu. – Sou Ari, o Leão
dos Atreides. E aqui... – novamente, ele sacudiu o braço de
Ghanima com aquela poderosa facilidade que fazia o corpo inteiro
da irmã sacolejar – aqui está Aryeh, a Leoa dos Atreides. Viemos
para levá-los até Secher Nbiw, o Caminho Dourado.
Absorvendo as palavras-gatilho – Secher Nbiw –, Ghanima
sentiu a consciência trancafiada voltar a fluir dentro de sua
mente. Ela vinha com uma suavidade linear, com a percepção
interior de sua mãe pairando ali, atrás de sua própria consciência,
como um guardião de um portal. E, nesse instante, Ghanima
soube que tinha conquistado o clamoroso passado. Ela possuía
um portal através do qual poderia espiar sempre que precisasse
daquele passado. Os meses de supressão auto-hipnótica tinham
construído para ela um lugar seguro de dentro do qual ela podia
cuidar de sua própria carne. Ela começou a se virar na direção de
Leto com a necessidade de explicar isso, quando se tornou ciente
de onde estava, e com quem.
Leto soltou-lhe o braço.
– Seu plano deu certo? – Ghanima sussurrou.
– Bem o suficiente – Leto respondeu.
Recuperando-se do estado de choque, Alia gritou para o
amontoado de guardas que se formara à sua esquerda:
– Prendam-nos!
Mas Leto se abaixou, pegou a porta derrubada com uma mão e
a atirou através da sala sobre as guardas. Duas ficaram pregadas
na parede e as outras recuaram horrorizadas. A porta pesava
meia tonelada métrica e aquela criança a tinha levantado e
atirado.
Percebendo que o corredor atrás da porta estava cheio de
guardas pelo chão, Alia entendeu que Leto devia ter cuidado
delas e que aquela criança era a força que tinha destroçado sua
porta impenetrável.
Jéssica também vira os corpos, o poder inacreditável de Leto, e
chegara a conclusões similares, mas as palavras de Ghanima
tocaram o cerne da disciplina Bene Gesserit que forçava Jéssica a
manter a compostura. Sua neta mencionara um “plano”.
– Que plano? – perguntou Jéssica.
– O Caminho Dourado, nosso plano imperial para nosso
Império – explicou Leto. Ele fez um movimento com a cabeça para
Farad’n: – Não faça mau juízo de mim, primo. Ajo pelo seu bem,
inclusive. Alia esperava que Ghanima o matasse. Eu prefiro que
você viva com alguma medida de felicidade.
Alia gritou para sua guarda, acuada no corredor:
– Estou mandando que vocês prendam esses dois!
Mas as guardas se recusaram a entrar na sala.
– Espere por mim aqui, irmã – Leto ordenou. – Tenho uma
tarefa desagradável a cumprir. – Então, atravessou o espaço na
direção de Alia.
Ela recuou para se distanciar dele e foi para um canto,
acocorou-se e tomou a faca nas mãos. As joias verdes do cabo
faiscaram à luz que entrava pela janela.
Leto apenas continuou avançando, de mãos vazias, mas alerta
e pronto.
Alia avançou com a faca em punho.
Leto saltou quase até o teto e desferiu um golpe com seu pé
esquerdo, atingindo a cabeça de Alia com um golpe oblíquo que a
fez rodopiar e cair estatelada com uma marca sangrenta na testa.
Ela soltou a faca, que saiu deslizando pelo chão. Alia se arrastou
de qualquer jeito atrás da arma, mas topou com Leto em pé à sua
frente.
Alia hesitou, tentando convocar tudo que sabia do treinamento
Bene Gesserit. Levantou-se do chão e mostrou um corpo solto e
posicionado.
Mais uma vez, Leto avançou contra ela.
Alia fintou com um movimento para a esquerda enquanto o
ombro direito subia e o pé direito se estendia para dar um chute
com os dedos em ponta, potente o bastante para rasgar o ventre
de um homem se o atingisse no ponto exato.
Leto aparou o golpe com o braço, agarrou o pé e a suspendeu
por ali, fazendo um movimento circular com ela em volta de sua
própria cabeça. A velocidade com que ele a girava criava um som
sibilante de algo que adejava pela sala, conforme o manto ia
rebatendo contra seu corpo.
Os outros se afastaram, acuados.
Alia berrava sem parar, mas continuava girando no ar,
traçando voltas e mais voltas. Então, ela se calou.
Lentamente, Leto reduziu a velocidade do giro até deixar que
ela caísse delicadamente no chão. Alia agora não passava de um
feixe de carne arfante.
Leto se debruçou sobre ela:
– Eu poderia ter atirado você através da parede. Talvez eu
devesse ter feito isso, mas agora estamos no meio da luta. Você
merece a sua chance – ele murmurou.
Os olhos de Alia fuzilavam de cólera, indo de um lado para
outro.
– Eu conquistei as vidas interiores – ele explicou. – Olhe para
Ghani. Ela também pode...
Ghanima interrompeu, dizendo:
– Eu posso te mostrar, Alia...
– Não! – explodiu Alia. O peito dela arfava e as vozes
começaram a brotar de sua boca. Eram comunicações
desconexas, maldições, súplicas. – Está vendo? Por que não me
ouviu? – e depois: – Por que você está fazendo isso? O que está
acontecendo? – E outra voz ainda: – Pare esses dois! Faça com que
parem!
Jéssica cobriu os olhos e sentiu a mão de Farad’n
estabilizando-a.
E Alia continuava falando descontrolada:
– Eu te mato! – e maldições hediondas irrompiam de dentro
dela. – Vou beber o teu sangue! – Os sons de muitas línguas
começaram a ser despejados por ela, confusos e embaralhados.
As guardas, amontoadas no corredor externo, fizeram o sinal
do verme e então cerraram os punhos atrás de suas orelhas. Alia
estava possuída!
Leto seguia de pé, balançando a cabeça. Ele se aproximou da
janela e com três golpes rápidos estilhaçou o vidro supostamente
inquebrável de cristal reforçado.
Uma expressão ardilosa se espalhou pela fisionomia de Alia.
Jéssica ouviu algo que parecia ser sua própria voz, vindo daquela
boca retorcida como uma paródia do controle Bene Gesserit.
– Todos vocês! Fiquem onde estão!
Jéssica, baixando as mãos, sentiu que elas estavam molhadas
com suas lágrimas.
– Vocês não sabem quem eu sou? – ela perguntou. Era sua
antiga voz, a doce voz saltitante da jovem Alia que não existia
mais. – Por que estão todos olhando para mim desse jeito? – Ela
dirigiu à mãe um olhar suplicante: – Mãe, faça com que parem.
Jéssica só conseguia balançar a cabeça de um lado para outro,
consumida pelo horror absoluto. Todos os antigos avisos Bene
Gesserit eram verdadeiros. Ela olhou para Leto e Ghani lado a
lado, parados perto de Alia. O que aqueles avisos queriam dizer
aos pobres gêmeos?
– Minha avó – disse Leto, e sua voz trazia um tom de súplica –,
deveremos instaurar um Teste da Possessão?
– Quem é você para falar de julgamento? – indagou Alia, e sua
voz era a de um homem queixoso, despótico e sensual,
profundamente dedicado à autoindulgência.
Tanto Leto como Ghanima reconheceram aquela voz. Era o
velho barão Harkonnen. Ghanima ouviu a mesma voz começando
a ecoar dentro de sua cabeça, mas o portão interno se fechou e ela
sentiu que sua mãe estava plantada à frente dele.
Jéssica se manteve calada.
– Então, a decisão é minha – concluiu Leto. – E a escolha cabe a
você, Alia. O Teste da Possessão ou... – e ele indicou a janela
aberta com um movimento da cabeça.
– Quem é você para me dar escolhas? – Alia interrogou, e ainda
era a voz do velho barão.
– Demônio! – Ghanima berrou. – Deixe que ela faça a própria
escolha!
– Mãe – Alia pediu, com a voz de uma menininha –, mãe, o que
eles estão fazendo? O que você quer que eu faça? Me ajude.
– Ajude-se você mesma – Leto ordenou e, por um breve
instante, ele viu a presença estilhaçada de sua tia nos olhos dela,
uma flagrante impotência que o espiou brevemente e então
desapareceu. Mas o corpo dela se mexeu, com um movimento
empertigado, avançando a passadas duras. Ela cambaleou,
tropeçou, saiu um pouco do trajeto que tinha traçado, mas voltou
logo a ele e se aproximou um pouco mais da janela aberta.
Agora a voz do velho barão bradava em sua boca:
– Pare! Pare, estou dizendo! Eu ordeno que pare! Pare! Então,
sinta isto! – e Alia agarrou a cabeça dos dois lados, cambaleando
para mais perto da janela. Estava agora com as coxas encostadas
no parapeito, mas a voz continuava esbravejando no auge da
cólera: – Não faça isso! Pare e eu ajudarei você. Eu tenho um
plano. Ouça o que lhe digo. Pare, estou dizendo. Espere! – Mas
Alia tirou as mãos da cabeça e segurou os caixilhos quebrados.
Com um impulso, ergueu-se sobre o parapeito e saltou. Nem um
único som ela emitiu enquanto caía.
Da sala pôde-se ouvir quando o povo lá embaixo gritou, diante
do impacto surdo de Alia nos degraus da escadaria.
Leto olhou para Jéssica:
– Dissemos a você que se apiedasse dela.
Jéssica se virou e enterrou o rosto na túnica de Farad’n.
A suposição de que um sistema inteiro pode ser
levado a funcionar melhor com um ataque a seus
elementos conscientes denuncia a atuação de uma
perigosa ignorância. Essa tem sido em geral a
abordagem ignorante daqueles que se dizem
cientistas e tecnólogos.
– O Jihad Butleriano,
segundo Harq al-Ada

– Ele corre à noite, primo – Ghanima explicou. – Ele corre. Você


o viu correr?
– Não – Farad’n respondeu.
Ele esperava com Ghanima do lado de fora do pequeno salão de
audiências do Forte onde Leto os havia chamado para uma
audiência. Tyekanik estava num dos lados, desconfortavelmente
em pé com lady Jéssica, que parecia absorta, como se sua mente
vivesse em outro lugar. Mal havia se passado uma hora após a
refeição da manhã, mas muitas coisas já tinham sido postas em
movimento: uma convocação para a Guilda, além de mensagens
para a choam e o Landsraad.
Farad’n achava difícil entender esses Atreides. Lady Jéssica o
advertira, mas a realidade deles ainda o deixava atônito. Eles
ainda falavam sobre o noivado, embora a maior parte das razões
políticas para ele parecesse agora dissolvida. Leto assumiria o
trono; parecia haver poucas dúvidas quanto a isso. Sua estranha
pele viva teria de ser removida, naturalmente, mas com o tempo...
– Ele corre para se cansar – disse Ghanima. – Ele é a encarnação
de Kralizec. Vento nenhum alguma vez correu como ele. Ele é um
borrão no topo das dunas. Eu o vi. Ele corre sem parar. E, quando
enfim está exausto, ele volta e descansa a cabeça no meu colo. E
então pede: “Peça à nossa mãe-interior que encontre um jeito de
eu morrer”.
Farad’n fitou-a demoradamente. Naquela semana, desde os
confrontos na praça, o Forte tinha funcionado segundo ritmos
estranhos, com misteriosas idas e vindas. Relatos sobre batalhas
ferozes além da Muralha-Escudo eram transmitidos a ele por
Tyekanik, cuja assessoria militar tinha sido solicitada.
– Eu não entendo vocês – Farad’n confessou. – Achar um jeito
de ele morrer?
– Ele me pediu que preparasse você – Ghanima respondeu. Não
pela primeira vez, ela se surpreendia com a curiosa inocência
desse príncipe Corrino. Seria fruto do trabalho de Jéssica ou algo
natural dele?
– Para o quê?
– Ele não é mais humano – Ghanima disse. – Ontem você
perguntou quando ele iria remover a pele viva. Nunca. Agora, ela
faz parte dele e ele é parte ela. Leto estima que mais ou menos
quatro mil anos passarão antes que a metamorfose o destrua.
Farad’n tentou engolir, mas sua garganta estava seca.
– Você entende agora por que ele corre? – Ghanima perguntou.
– Mas se ele vai viver durante tanto tempo e ser tão...
– Porque a memória de ser humano é muito intensa nele. Pense
em todas aquelas vidas, primo. Não. Você não consegue imaginar
o que é isso porque não tem a vivência do que estou falando. Mas
eu sei. Eu posso imaginar a dor dele. Ele dá mais do que qualquer
um já deu antes. Nosso pai foi para o deserto tentando escapar
disso. Alia se tornou Abominação pelo temor disso. Nossa avó
tem apenas uma infância indistinta dessa condição, e ainda assim
precisa recorrer a todas as artimanhas Bene Gesserit para
conviver com isso... que é aquilo em que, no fundo, consiste o
treinamento de uma Reverenda Madre. Mas Leto! Ele está
inteiramente sozinho e jamais será duplicado.
Farad’n sentia-se estupefato com as palavras dela. Imperador
durante quatro mil anos?
– Jéssica sabe – Ghanima acrescentou, olhando para sua avó,
do outro lado. – Ele contou a ela, na noite passada. Ele se chamou
de o primeiro planejador verdadeiramente de longo prazo da
história humana.
– E o que ele... planeja?
– O Caminho Dourado. Ele explicará isso a você mais tarde.
– E ele tem algum papel para mim nesse... plano?
– O de meu consorte – Ghanima respondeu. – Ele está
assumindo o programa de procriação da Irmandade. Estou certa
de que minha avó lhe contou sobre o sonho Bene Gesserit de um
Reverendo com poderes extraordinários. Ele...
– Você quer dizer que nós apenas seremos...
– Não é apenas. – Ela pegou o braço dele e o apertou com uma
cálida familiaridade. – Ele terá muitas tarefas de grande
responsabilidade para nós dois. Quer dizer, quando não
estivermos produzindo filhos.
– Bom, você ainda é um pouco jovem – Farad’n comentou,
soltando o braço.
– Jamais cometa esse erro novamente – ela repreendeu. E havia
gelo em sua voz.
Jéssica se aproximou deles, com Tyekanik.
– Tyek está me dizendo que os combates se espalharam para
fora do planeta – informou Jéssica. – O Templo Central de Biarek
está em estado de sítio.
Farad’n achou que ela estava estranhamente calma ao dar essa
notícia. Ele tinha repassado os relatórios com Tyekanik, durante
a noite. Um incêndio de rebeliões estava se propagando
descontroladamente através do Império. Naturalmente seria
extinto, mas Leto teria um Império lamentável para recuperar.
– Agora vem Stilgar – apontou Ghanima. – Estávamos
esperando por ele. – E mais uma vez ela tomou o braço de Farad’n.
O velho naib fremen tinha entrado pela porta mais distante,
escoltado por dois antigos companheiros dos Comandos
Suicidas, dos tempos do deserto. Todos usavam o manto preto
formal com bordas brancas e bandanas amarelas, em sinal de
luto. O grupo se aproximou com passadas firmes, mas Stilgar
mantinha-se fixamente atento a Jéssica. Parou diante dela e
cumprimentou-a secamente com uma inclinação sumária de
cabeça.
– Você ainda está preocupado com a morte de Duncan Idaho –
observou Jéssica. Ela não apreciava tanta cautela em seu velho
amigo.
– Reverenda Madre – ele cumprimentou.
Então, é assim que vai ser!, Jéssica pensou. Todo formal e fiel ao
código fremen, com o sangue difícil de expurgar.
E ela continuou:
– Em nosso ponto de vista, você apenas desempenhou o papel
que Duncan mesmo lhe atribuiu. Não é a primeira vez que um
homem dá a vida pelos Atreides. Por que eles fazem isso, Stil?
Você mesmo já esteve pronto para tanto mais de uma vez. Por
quê? Seria porque sabem quanto os Atreides dão em troca?
– Estou feliz por você não buscar uma desculpa para se vingar –
ele rebateu. – Mas há alguns assuntos que preciso discutir com
seu neto. Esses assuntos podem nos separar para sempre.
– Você quer dizer que Tabr não lhe renderá sua homenagem? –
Ghanima indagou.
– Quer dizer que reservo meu julgamento. – Ele olhou friamente
para a menina. – Não gosto do que meus fremen se tornaram – ele
grunhiu. – Nós retornaremos aos velhos costumes. Sem vocês, se
necessário.
– Por algum tempo, pode ser – retrucou Ghanima. – Mas o
deserto está morrendo, Stil. O que vocês farão quando não houver
mais vermes, quando não houver mais deserto?
– Não acredito nisso!
– No intervalo de cem anos – Ghanima continuou –, existirão
menos de cinquenta vermes e esses estarão doentes, mantidos
numa reserva cuidadosamente administrada. A especiaria deles
servirá apenas à Guilda espacial, e o preço... – Ela balançou a
cabeça. – Eu vi as estatísticas de Leto. Ele percorreu o planeta
inteiro. Ele sabe.
– Esse é mais um truque para manter os fremen como seus
vassalos?
– E quando foi que você alguma vez serviu como meu vassalo? –
Ghanima perguntou.
Stilgar resmungou. Apesar do que ele dissesse, ou fizesse,
aqueles gêmeos sempre davam um jeito de ser culpa dele!
– Na noite passada, ele me falou desse Caminho Dourado –
Stilgar despejou. – Não gosto nada disso!
– Isso é estranho – Ghanima comentou, olhando de relance
para sua avó. – A maior parte do Império dará as boas-vindas a
ele.
– A destruição de todos nós – Stilgar murmurou.
– Mas todos esperam pela Era de Ouro – insistiu Ghanima. –
Não é verdade, minha avó?
– Todo mundo – concordou Jéssica.
– Eles esperam pelo Império Faraônico que Leto lhes
proporcionará – Ghanima explicou. – Todos anseiam por uma paz
na riqueza, com safras abundantes, comércio vigoroso, a
igualdade social, exceto para o Regente Dourado.
– Será a morte dos fremen! – Stilgar protestou.
– Como você pode dizer uma coisa dessas? Será que não
necessitaremos de soldados e homens de coragem para remover
as eventuais insatisfações? Ora, Stil, você e os bravos
companheiros de Tyek terão muitos e prementes afazeres de que
cuidar.
Stilgar olhou para o oficial Sardaukar e uma estranha luz de
entendimento fulgurou entre eles.
– E Leto controlará a especiaria – Jéssica lembrou a eles.
– Ele a controlará de maneira absoluta – confirmou Ghanima.
Ouvindo o que era dito com a nova percepção que Jéssica lhe
havia ensinado, Farad’n captou a cena, a interpretação ensaiada e
combinada entre Ghanima e a avó.
– A paz irá durar, e durar e durar – reafirmou Ghanima. – A
lembrança das guerras irá desaparecer. Leto conduzirá a
humanidade através desse jardim durante, pelo menos, quatro
mil anos.
Tyekanik olhou com expressão dubitativa para Farad’n e então
pigarreou.
– Sim, Tyek? – perguntou Farad’n.
– Gostaria de lhe falar a sós, meu príncipe.
Farad’n sorriu, sabendo qual seria a indagação naquela mente
militar de Tyekanik e que pelo menos duas outras das pessoas ali
presentes também identificavam a pergunta dele.
– Não venderei os Sardaukar – afirmou Farad’n.
– Não é preciso – argumentou Ghanima.
– Você dá ouvidos a essa criança? – Tyekanik indagou. Ele
estava indignado. O velho naib ali entendia os problemas de ser
criado em meio a tantos complôs, mas ninguém mais sabia
alguma coisa sobre essa situação!
Ghanima sorriu amargamente e disse:
– Conte para ele, Farad’n.
Farad’n suspirou. Era fácil esquecer a estranheza dessa criança
que não era criança. Ele era capaz de imaginar uma vida inteira
casado com ela, as reservas ocultas em cada intimidade. Não era
uma perspectiva totalmente agradável, mas ele estava
começando a admitir sua inevitabilidade. O controle absoluto de
estoques cada vez menores da especiaria! Nada aconteceria no
universo sem a especiaria.
– Mais tarde, Tyek – murmurou Farad’n.
– Mas...
– Eu disse mais tarde! – Pela primeira vez, ele usava a Voz com
Tyekanik, e viu o homem piscar de surpresa e então se calar.
Um sorriso tenso perpassou os lábios de Jéssica.
– Ele fala de paz e morte numa mesma sentença – Stilgar
interpôs. – Era de Ouro!
– Ele conduzirá os humanos através do culto à morte ao ar livre
da vida exuberante! – Ghanima reassegurou – Ele fala da morte
porque isso é necessário, Stil. É a tensão por meio da qual os vivos
sabem que estão vivos. Quando o Império cair... Sim, ele cairá.
Você acha que isto é Kralizec, agora, mas Kralizec ainda está por
vir. E, quando vier, os humanos terão renovadas suas
reminiscências do que é estar vivo. Essa lembrança persistirá
enquanto houver um só humano vivo. Atravessaremos a pior das
provas mais uma vez, Stil. E sairemos do outro lado. Nós sempre
renascemos das nossas cinzas. Sempre.
Ouvindo as palavras de Ghanima, Farad’n entendia agora o que
ela quisera dizer quando lhe contara que Leto corria. Ele não será
humano.
Stilgar ainda não estava convencido.
– Sem os vermes – ele resmungou.
– Oh, os vermes retornarão – Ghanima garantiu. – Em duzentos
anos todos estarão mortos, mas eles retornarão.
– Como... – mas Stilgar se calou.
Farad’n sentiu sua mente varrida pela revelação. Ele sabia o
que Ghanima iria dizer antes que ela abrisse a boca.
– A Guilda mal conseguirá operar durante os anos de escassez
e mesmo então só à custa de seus estoques e dos nossos –
Ghanima prosseguiu. – Mas depois de Kralizec haverá
abundância. Os vermes retornarão depois que meu irmão afundar
na areia.
Assim como sucedeu com muitas outras religiões,
o Elixir Dourado da Vida, de Muad’Dib, degenerou
em mera magia externa. Seus signos místicos se
tornaram pouco mais do que símbolos de
processos psicológicos mais profundos, e estes
processos, naturalmente, perderam o rumo. O
que eles precisavam era de um deus vivo e eles não
o tinham, situação essa corrigida pelo filho de
Muad’Dib.
– Comentário atribuído a Lu Tung-pin
(Lu, o convidado da caverna)

Leto se sentou no Trono do Leão para aceitar as homenagens


das tribos. Ghanima estava em pé ao lado dele, um degrau abaixo.
A cerimônia no Grande Salão demorou horas. Inúmeras tribos
fremen desfilaram diante dele, com seus representantes e naibs.
Cada grupo oferecia seus presentes, dignos de um deus com
poderes tremendos, um deus de vingança que lhes prometia paz.
Ele os havia subjugado e forçado à submissão na semana
precedente, apresentando-se para os arifa reunidos de todas as
tribos. Os juízes haviam-no visto caminhar sobre uma vala em
fogo, emergindo incólume do outro lado a fim de demonstrar que
sua pele não exibia marcas e pedindo-lhes que o examinassem de
perto. Ele lhes havia ordenado que o golpeassem com facas e sua
pele impenetrável tinha recoberto seu rosto enquanto era
inutilmente golpeado. Verteram líquidos ácidos sobre ele e tudo
que produziram foi uma tênue névoa. Depois de ingerir os
venenos que lhe apresentaram, rira de todos eles.
Ao final da demonstração, ele convocara um verme e ficara de
pé, diante dos arifa, ao alcance da boca da criatura. De lá, ele
chegou à pista de pouso em Arrakina, onde provara sua audácia
ao tombar uma fragata da Guilda apenas erguendo uma de suas
barbatanas de pouso.
Os arifa haviam relatado todos esses feitos com assombro e
temor, e agora os delegados tribais tinham vindo para sancionar
sua submissão.
O amplo e abobadado recinto do Grande Salão, com seus
sistemas acústicos de abafamento do som, tendia a absorver
ruídos estridentes, mas o contínuo farfalhar de pés em
movimento se insinuava aos sentidos, raspando a poeira e
despertando o aroma da pederneira que vinham de fora.
Jéssica, que se recusara a estar presente, assistia a tudo de
uma espia no alto, por trás do trono. Sua atenção se fixava em
Farad’n e na constatação de que tanto ela como ele tinham sido
manipulados. Claro que Leto e Ghanima haviam previsto a
Irmandade! Os gêmeos podiam consultar, entre os dois, toda uma
coorte de Bene Gesserit, muito maior do que as que agora
estavam vivas no Império.
Jéssica estava se sentindo especialmente amarga com o modo
como a mitologia da Irmandade tinha capturado Alia. Medo sobre
medo! Os hábitos de gerações haviam impregnado nela o destino
da Abominação. Alia não conhecera nenhuma esperança. Claro
que ela sucumbiria. O destino de Alia tornava os feitos de Leto e
Ghanima ainda mais difíceis de neutralizar. Não havia somente
uma maneira de sair da armadilha, mas duas. A vitória de
Ghanima sobre as vidas interiores e sua insistência em que Alia só
merecia piedade eram as coisas mais amargas de todas. A
supressão hipnótica sob pressão, ligada à proteção de um
ancestral benigno, tinham salvado Ghanima. Eles poderiam ter
salvado Alia. Mas, sem esperança, nada havia sido tentado até
que fosse tarde demais. A água de Alia fora vertida na areia.
Jéssica suspirou e voltou a prestar atenção a Leto no trono.
Uma gigantesca ânfora canópica, contendo a água de Muad’Dib,
ocupava um lugar de honra perto do cotovelo direito de Leto. Ele
tinha se gabado a Jéssica de ter ouvido seu pai interior rir daquele
gesto, ainda que o admirasse.
A ânfora e aquele comentário arrogante haviam-na levado a
decidir que não participaria do ritual. Enquanto vivesse, Jéssica
sabia que nunca poderia aceitar que Paul falasse pela boca de
Leto. Ela se regozijava pelo fato de a Casa Atreides ter
sobrevivido, mas as coisas que poderiam ter acontecido estavam
além do suportável para ela.
Farad’n estava sentado de pernas cruzadas ao lado da ânfora
com a água de Muad’Dib. Essa era a posição do Escriba Real, uma
honraria recentemente conferida e recentemente aceita.
Farad’n sentia que estava se adaptando muito bem a essas
novas realidades, embora Tyekanik ainda vociferasse e
prometesse terríveis consequências. Tyekanik e Stilgar tinham
formado uma parceria de desconfiança que parecia divertir muito
Leto.
Nas horas em que durou a cerimônia das homenagens, Farad’n
passara do assombro ao tédio e de novo ao assombro. Havia um
fluxo interminável de humanos, de combatentes e guerreiros sem
igual. A renovada lealdade desses visitantes ao Atreides que
agora ocupava o trono não poderia ser questionada. Estavam
todos perfilados diante dele, em um estado de terror submisso,
completamente estarrecidos pelo que os arifa haviam relatado.
Finalmente, a procissão chegou ao fim. O último naib se postou
diante de Leto, com Stilgar na “posição de honra à retaguarda”.
Em vez de cestos de vime cheios de especiaria, joias de fogo ou
qualquer outro dos dispendiosos presentes que se acumulavam
em pilhas em volta do trono, Stilgar trazia uma coroa de fibras de
especiaria trançadas. O Gavião dos Atreides tinha sido
desenhado em ouro e verde.
Ghanima o reconheceu e disparou uma olhada de lado para
Leto.
Stilgar depositou a coroa no segundo degrau abaixo do trono e
se curvou numa reverência profunda.
– Entrego-lhe a coroa usada por sua irmã quando a levei para o
deserto a fim de protegê-la – ele explicou.
Leto suprimiu um sorriso.
– Eu sei que você atravessou períodos difíceis, Stilgar –
respondeu Leto. – Há aqui alguma coisa que você pediria em
troca? – ele abarcou com um gesto as pilhas de presentes de alto
valor.
– Não, milorde.
– Então, aceito seu presente – Leto declarou. Ele se dobrou
para a frente, pegou a bainha do manto de Ghanima, rasgou uma
tira fina e disse: – Em troca, dou-lhe este pedacinho do manto de
Ghanima, o manto que ela usava quando foi sequestrada do teu
acampamento, forçando-me a ir salvá-la.
Stilgar aceitou o tecido com mãos trêmulas.
– O senhor está zombando de mim, milorde?
– Zombar de você? Por meu nome, Stilgar, eu jamais zombaria
de você. Eu lhe fiz um presente inestimável. Ordeno que o leve
sempre perto do coração, como recordação de que todos os
humanos podem errar e de que todos os líderes são humanos.
Uma risadinha leve escapou de Stilgar.
– Que naib você teria dado!
– Que naib eu sou! Eu sou o naib de todos os naibs! Jamais se
esqueça disso!
– Como quiser, milorde. – Stilgar engoliu, lembrando-se dos
relatos de seu arifa. E então pensou: Houve um dia em que pensei
que poderia matá-lo. Agora, é tarde demais. Seu olhar caiu sobre a
ânfora, um recipiente elegante de ouro fosco recoberto de verde.
– Essa é a água da minha tribo.
– E da minha – Leto completou. – Ordeno que leia a inscrição na
lateral. Leia em voz alta para que todos possam ouvir.
Stilgar lançou um olhar questionador para Ghanima, mas ela
reagiu elevando o queixo, numa fria resposta que fez Stilgar
sentir um calafrio. Será que esses molequinhos Atreides estavam
pensando em fazê-lo responder por sua própria impetuosidade e
por seus erros?
– Leia – Leto insistiu, apontando.
Lentamente, Stilgar subiu os degraus e se inclinou na direção
da ânfora. Então, leu em voz alta:
– “Esta água é a essência final, a fonte da criatividade que flui
para fora. Embora imóvel, esta água é o meio de todo movimento”.
O que significa, milorde? – Stilgar sussurrou. Ele se sentia
abismado com aquelas palavras, atingido num lugar dentro de si
mesmo que não conseguia entender.
– O corpo de Muad’Dib é uma casca seca que jaz abandonada
como um inseto – pontificou Leto. – Ele dominou seu mundo
interior ao mesmo tempo que sentia desprezo pelo exterior, e isso
o levou à ruína. Ele dominou o mundo exterior ao preço de excluir
o mundo interior e isso deixou seus descendentes entregues aos
demônios. O Elixir Dourado desaparecerá de Duna, mas a
semente de Muad’Dib persiste e essa água movimenta o nosso
universo.
Stilgar inclinou a cabeça para a frente. Coisas místicas sempre
o deixavam abalado.
– O princípio e o fim são um só – continuou Leto. – Você vive no
ar e não o vê. Uma fase se encerrou. Desse final brota o começo de
seu oposto. Assim, teremos Kralizec. Tudo retorna depois, em
forma alterada. Você sente os pensamentos na cabeça; seus
descendentes os sentirão na barriga. Volte a Sietch Tabr, Stilgar.
Gurney Halleck irá ao seu encontro lá, como meu conselheiro em
teu Conselho.
– Não confia em mim, meu senhor? – a voz de Stilgar soou
grave.
– Completamente, senão não enviaria Gurney para você. Ele
começará a recrutar as novas forças que logo necessitaremos
acionar. Aceito seu voto de fidelidade, Stilgar. Você está
dispensado.
Stilgar fez uma reverência profunda, recuou descendo os
degraus, virou-se e deixou o salão. Os outros naibs seguiram nos
passos dele, fiéis ao princípio fremen de que “o último será o
primeiro”. Mas algumas de suas indagações podiam ainda ser
ouvidas desde a área do trono, enquanto iam embora.
– Do que vocês estavam falando lá em cima, Stil? O que querem
dizer aquelas palavras sobre a água de Muad’Dib?
Leto falou com Farad’n:
– Você absorveu tudo, escriba?
– Sim, milorde.
– Minha avó me disse que o treinou muito bem nos processos
mnemônicos das Bene Gesserit. Isso é bom. Não quero ver você
tomando notas ao meu lado.
– Como queira, meu senhor.
– Venha e fique em pé à minha frente – ordenou Leto.
Farad’n obedeceu, mais do que nunca grato ao treinamento de
Jéssica. Quando você aceitava o fato de que Leto não era mais
humano, de que não podia mais pensar como os humanos
pensavam, o curso do Caminho Dourado traçado por ele se
tornava ainda mais assustador.
Leto levantou os olhos para fitar Farad’n. Os guardas estavam
distantes o suficiente para não conseguirem ouvi-lo. Somente os
conselheiros da Presença Interior permaneciam no recinto do
Grande Salão, formando grupos subservientes posicionados bem
além do primeiro degrau. Ghanima movera-se e aproximara-se do
trono, onde pousara um braço.
– Você ainda não concordou em me dar seus Sardaukar – Leto
observou. – Mas o fará.
– Eu lhe devo muito, mas não isso – Farad’n objetou.
– Você acha que eles não se misturarão bem com os meus
fremen?
– Tão bem quanto os novos amigos, Stilgar e Tyekanik.
– E ainda assim você recusa?
– Aguardo sua proposta.
– Então devo apresentar a proposta, sabendo que você nunca a
repetirá. Rezo para que minha avó tenha feito bem a parte dela, e
que você por isso esteja preparado para entender.
– O que é que devo entender?
– Sempre existe uma mística predominante em qualquer
civilização – começou Leto. – Ela se ergue como uma barreira
contra mudanças, e isso sempre deixa as gerações futuras
despreparadas para os ardis do universo. Todas as místicas são
iguais na construção dessas barreiras: a mística religiosa, a
mística do herói-líder, a mística messiânica, a mística da
ciência/tecnologia e a mística da natureza em si. Vivemos em um
Imperium moldado por uma dessas místicas, e agora o Imperium
está ruindo porque a maioria das pessoas não distingue entre a
mística e o universo delas. Veja bem, a mística é como a possessão
demoníaca; tende a se apoderar da consciência e a se tornar
todas as coisas ao observador.
– Reconheço a sabedoria de sua avó nessas palavras – anuiu
Farad’n.
– Que bom, primo, muito bem. Ela me perguntou se eu era
Abominação e eu respondi que não. Esse foi o meu primeiro ardil.
Entenda, Ghanima escapou disso, mas eu não. Fui forçado a
equilibrar as vidas interiores sob a pressão de uma quantidade
excessiva de mélange. Tive de buscar a cooperação ativa daquelas
vidas despertas dentro de mim. Ao fazer isso, evitei as mais
malignas e escolhi um ajudante predominante que me foi trazido
impetuosamente pela percepção interior, a saber, meu pai. Na
verdade, não sou meu pai, nem esse ajudante. Mas, de todo modo,
não sou também o Segundo Leto.
– Explique-se.
– Você é dono de uma admirável objetividade – aprovou Leto. –
Sou uma comunidade dominada por um que era antigo e
extraordinariamente poderoso. Ele foi a origem de uma dinastia
que durou três mil anos, tal como os contamos. Seu nome era
Harum e, até que sua linhagem tivesse desaparecido em meio à
fraqueza congênita e às superstições de um descendente, seus
súditos levavam uma sublime existência rítmica. Todos se
movimentavam inconscientemente conforme as mudanças das
estações. Geraram indivíduos que tinham em geral vidas curtas,
eram supersticiosos e facilmente comandados por um deus-rei.
Tomados em seu conjunto, eram um povo poderoso e sua
sobrevivência como espécie se tornou um hábito.
– Não gosto de como isso soa – murmurou Farad’n.
– Na realidade, eu também não – Leto acrescentou. – Mas é o
universo que irei criar.
– Por quê?
– É uma lição que aprendi em Duna. Mantemos a presença da
morte como um espectro dominante entre os que vivem ali. Por
meio dessa presença, os mortos mudavam os vivos. As pessoas
dessa sociedade afundam para dentro das próprias barrigas, mas
quando chega o momento do oposto, quando elas se levantam,
são grandes e maravilhosas.
– Isso não me responde à pergunta – protestou Farad’n.
– Você não confia em mim, primo.
– Sua própria avó também não.
– E com razão – concedeu Leto. – Mas ela aquiesce porque é o
que deve fazer. As Bene Gesserit são pragmáticas, no fim das
contas. Sabe, eu também tenho a mesma visão de universo delas.
Você usa as marcas desse universo. Você conserva os hábitos da
regra, catalogando tudo à sua volta em termos de seus possíveis
valor ou ameaça.
– Concordei em ser seu escriba.
– Isso o divertiu e lisonjeou seu verdadeiro talento, que é o de
ser historiador. Você tem um talento indiscutível para ler o
presente em termos do passado. Você se antecipou a mim em
diversas ocasiões.
– Não gosto de suas insinuações veladas – recriminou Farad’n.
– Ótimo. Você vem de uma ambição infinita até o seu estado
atual de subordinado. Será que minha avó não o alertou a respeito
do infinito? Ele nos atrai como um holofote à noite, deixando-nos
cegos para os excessos que é capaz de infligir ao que é finito.
– Aforismos Bene Gesserit! – protestou Farad’n.
– Mas muito mais precisos – atalhou Leto. – As Bene Gesserit
acreditaram que podiam prever o curso da evolução, mas
ignoraram suas próprias mudanças no decurso dessa evolução.
Elas acreditaram que podiam permanecer imóveis enquanto seu
plano de procriação evoluía. Eu não sofro de tal cegueira reflexiva.
Olhe cuidadosamente para mim, Farad’n, pois eu não sou mais
humano.
– Foi o que a sua irmã me garantiu. – Farad’n hesitou e então
acrescentou: – Abominação?
– Segundo a definição da Irmandade, talvez. Harum é cruel e
autocrático. Eu compartilho a crueldade dele. Entenda bem o que
eu digo: eu tenho a crueldade do camponês, e este universo
humano é a minha lavoura. Os fremen antigamente tinham águias
como animais de estimação, mas para mim terei um Farad’n
domado.
O rosto de Farad’n ficou sombrio.
– Cuidado com as minhas garras, primo. Sei bem que meus
Sardaukar cairiam, após certo tempo, diante de seus fremen, mas
nós os feriríamos dolorosamente e haveria chacais à espreita,
prontos para exterminar os fracos.
– Eu usarei vocês bem, isso posso prometer – argumentou Leto.
Ele se inclinou adiante. – Eu já disse que não sou mais humano?
Acredite em mim, primo. Filho nenhum nascerá de minhas
virilhas, pois já não tenho mais virilhas. E isso impõe o meu
segundo ardil.
Farad’n manteve silêncio enquanto aguardava, percebendo
finalmente o rumo que tomava a argumentação de Leto.
– Irei contra todos os preceitos fremen – ele prosseguiu. – E
eles aceitarão isso porque não podem fazer outra coisa. Eu
mantive você aqui com a isca de um noivado, mas não haverá
noivado nenhum entre você e Ghanima. Minha irmã se casará
comigo!
– Mas você...
– Casar, foi o que eu disse. Ghanima deve dar continuidade à
linhagem Atreides. Há ainda a questão do programa de
procriação das Bene Gesserit, que agora é o meu programa de
procriação.
– Eu me recuso – exclamou Farad’n.
– Você se recusa a procriar para a dinastia Atreides?
– Qual dinastia? Você ocupará o trono durante milhares de
anos.
– Moldando seus descendentes à minha imagem. Será o mais
intenso e abrangente programa de treinamento de toda a
história. Será um ecossistema em miniatura. Veja bem, seja qual
for o sistema de sobrevivência escolhido pelos animais, ele deve
estar baseado no padrão de comunidades entrelaçadas, de
interdependência, agindo juntas dentro do projeto comum que é
o sistema. E esse sistema produzirá os governantes mais
esclarecidos de todos os tempos.
– Você usa palavras sedutoras para falar do mais repugnante...
– Quem sobreviverá a Kralizec? – Leto indagou. – Eu lhe
prometo: Kralizec virá.
– Você é um homem louco! Você vai liquidar com o Império.
– Claro que sim... e não sou homem. Mas criarei uma nova
consciência em todos os homens. Eu lhe digo que, sob o deserto
de Duna, existe um local secreto com o maior tesouro de todos os
tempos. Não estou mentindo. Quando o último verme morrer e o
último mélange for colhido de nossas areias, esses tesouros
enterrados brotarão por toda parte, através do universo.
Conforme for minguando o poder do monopólio da especiaria e os
estoques escondidos se fizerem presentes, novos poderes irão
aparecer em todas as partes do reino. Está na hora de os
humanos aprenderem mais uma vez a viver com seus instintos.
Ghanima tirou o braço que estivera apoiado na parte de trás do
trono, foi até onde estava Farad’n e tomou-lhe a mão.
– Assim como minha mãe não foi esposa, você não será marido
– Leto confidenciou. – Mas talvez haja amor, e isso será o
bastante.
– Cada dia, cada momento, contém sua mudança – Ghanima
sussurrou. – Aprende-se isso reconhecendo os momentos.
Farad’n sentiu a cálida maciez da pequena mão de Ghanima
como uma presença insistente. Ele reconhecia o fluxo e o refluxo
dos argumentos de Leto, mas ele não havia usado a Voz nenhuma
vez. O apelo fora às suas vísceras, não à sua mente.
– Essa é sua proposta para os meus Sardaukar? – ele indagou.
– Mais, primo, muito mais. Ofereço aos seus descendentes o
Imperium. Eu lhe ofereço a paz.
– E qual será o desfecho de sua paz?
– O oposto – respondeu Leto, com uma voz calmamente
zombeteira.
Farad’n sacudiu a cabeça.
– Acho muito alto o preço pelos meus Sardaukar. Devo seguir
sendo o escriba, o pai secreto de sua linhagem real?
– Deve.
– Você irá me forçar a adotar seu hábito de paz?
– Irei.
– Resistirei a você todos os dias da minha vida.
– Mas essa é a função que espero que você cumpra, primo. É
por isso que escolhi você. Eu tornarei isso oficial. Irei dar-lhe
outro nome. Daqui em diante, você se chamará Quebra-do-Hábito
que, em nossa língua, se diz Harq al-Ada. Ora, primo, não seja
obtuso. Minha mãe o treinou bem. Dê-me seus Sardaukar.
– Dê a ele – Ghanima repetiu. – Ele ficará com eles, de um jeito
ou de outro.
Farad’n ouviu medo por ele na voz dela. Amor, então? Leto não
estava pedindo razão, mas um salto intuitivo.
– Fique com eles – concedeu Farad’n.
– De fato – respondeu Leto. Ele então se levantou do trono com
um movimento curiosamente fluido, como se mantivesse seus
tremendos poderes sob o mais delicado controle. Leto desceu
então alguns degraus até chegar ao nível em que Ghanima estava,
girou-a suavemente até que ela estivesse voltada para o lado
oposto a ele, voltou-se e colou suas costas às dela. – Observe isto,
primo Harq al-Ada. É deste jeito que sempre será conosco.
Ficaremos assim, quando estivermos casados. Costas com costas,
cada um olhando para longe do outro a fim de proteger a única
coisa que nós sempre fomos. – Ele então se virou, olhando com
jeito espirituoso para Farad’n e baixando a voz: – Lembre-se
disto, primo, quando estiver frente a frente com minha Ghanima.
Lembre-se disso quando falar baixinho de amor e murmurar
coisas doces, quando mais se sentir tentado pelos hábitos da
minha paz e do meu contentamento. Suas costas estarão
expostas.
Afastando-se deles, Leto desceu os últimos degraus na direção
dos cortesãos que aguardavam, recolheu-os como se fossem
satélites ao passar diante deles e, então, saiu do salão.
Mais uma vez, Ghanima tomou a mão de Farad’n, mas seu olhar
ia na direção da extremidade do salão e por lá permaneceu muito
tempo depois de Leto ter passado pela porta.
– Um de nós tinha de aceitar a agonia– ela explicou –, e ele
sempre foi o mais forte.
Terminologia do Imperium
A
ABA: manto folgado usado pelas mulheres fremen; geralmente na
cor preta.
ABOMINAÇÃO: termo usado pelas irmãs Bene Gesserit para
descrever indivíduos que não podem controlar as memórias
surgidas ou após o consumo da Água da Vida, ou através da
herança genética direta em crianças pré-nascidas.
AÇO-LISO: qualquer arma branca de lâmina curta e fina (muitas
vezes com a ponta envenenada) para ser usada com a mão
esquerda no combate com escudos.
AÇOPLÁS: aço estabilizado com fibras de estravídio introduzidas
em sua estrutura cristalina.
ADAB: lembrança exigente que se manifesta por conta própria.
A.G.: empregado ao lado de uma data, significa “antes da Guilda” e
identifica o sistema de datação imperial, fundamentado na
gênese do monopólio da Guilda Espacial.
AL-MUTAKALLIM: outro termo para “O Pregador”.
ALAM AL-MYTHAL: lugar mítico onde moram as mentes de
algumas pessoas mortas.
ARIFA: terminologia fremen para Juiz.
ARMALÊS: projetor laser de onda contínua. Seu emprego como
arma é limitado numa cultura de escudos geradores de
campos, por causa da pirotecnia explosiva (tecnicamente, uma
fusão subatômica) criada quando seu raio encontra um escudo.
AYAT: os sinais da vida (veja-se burhan).

B
BALISET: um instrumento musical de nove cordas, a ser dedilhado
e afinado na escala chusuk. Descendente direto da zithra, é
comumente o instrumento preferido dos trovadores imperiais.
BASHAR (GERALMENTE BASHAR CORONEL): um oficial dos
Sardaukar, uma fração acima de coronel na classificação militar
padrão. Patente criada para o governante militar de um
subdistrito planetário (bashar da corporação é um título de uso
estritamente militar).
BATIGH: terminologia fremen para “Pequeno Melão”. Segundo
uma lenda, o Pequeno Melão, nos confins do deserto, oferecia
sua água a quem o encontrasse.
BATOR: comandante de uma pequena tropa, uma patente militar
abaixo de Bashar.
BI-LA KAIFA: amém (literalmente: “Nada mais precisa ser
explicado”).
BÍBLIA CATÓLICA DE ORANGE: o “Livro Reunido”, o texto religioso
produzido pela Comissão de Tradutores Ecumênicos. Contém
elementos de religiões antiquíssimas, entre elas o saari
maometano, o cristianismo maaiana, o catolicismo zen-sunita e
as tradições budislâmicas. Considera-se como seu
mandamento supremo: “Não desfigurarás a alma”.
BINDU: relacionada ao sistema nervoso humano, em especial ao
treinamento dos nervos. Muitas vezes mencionada como
inervação-bindu (veja-se prana).
BLED: deserto plano e aberto.
BURHAN: a prova da vida (comumente, os ayat e a burhan da vida;
veja-se ayat).
BURSEG: general que comanda os Sardaukar.
C
CAÇADOR-BUSCADOR: fragmento voraz de metal sustentado por
suspensores e teleguiado, tal qual uma arma, por um console
controlador situado nas proximidades; dispositivo comum de
assassínio.
CAHUEIT: termo fremen utilizado para determinar uma presença
ruim ou um traidor.
CALDEIRA: em Arrakis, qualquer região baixa ou depressão criada
pelo afundamento do complexo subterrâneo subjacente. (Nos
planetas com água suficiente, uma caldeira indica uma região
antes coberta por água ao ar livre. Acredita-se que Arrakis
tenha pelo menos uma dessas áreas, apesar de ainda se
discutir esse assunto.)
CAPTADOR DE VENTO: aparelho instalado na trajetória dos ventos
predominantes e capaz de condensar a umidade do ar
aprisionado em seu interior, geralmente por meio de uma
queda nítida e brusca da temperatura dentro do captador.
CHAKOBSA: a chamada “língua ímã”, derivada em parte do antigo
bhotani (bhotani jib, sendo que jib significa dialeto). Uma série
de dialetos antigos modificados pela necessidade de manter
sigilo, mas sobretudo a língua de caça dos bhotani, os
matadores de aluguel da primeira Guerra de Assassinos.
CHAUMAS (AUMAS EM ALGUNS DIALETOS): veneno no alimento
sólido, distinto dos venenos administrados de outras maneiras.
CHAUMURKY (MUSKY OU MORKY EM ALGUNS DIALETOS): veneno
administrado à bebida.
CHOAM: acrônimo para Consórcio Honnête Ober Advancer
Mercantiles, a empresa de desenvolvimento universal
controlada pelo imperador e pelas Casas Maiores, tendo a
Guilda e as Bene Gesserit como sócios comanditários.
CIPÓ-TINTA: trepadeira natural de Giedi Primo, geralmente usada
como chicote nos fossos de escravos. As vítimas ficam
marcadas por tatuagens cor de beterraba que provocam dor
residual durante muitos anos.
CORIOLIS, TEMPESTADE DE: qualquer grande tempestade de areia
em Arrakis, onde os ventos, nas planícies desprotegidas, são
amplificados pelo movimento de rotação do próprio planeta e
atingem velocidades de até setecentos quilômetros por hora.

D
DAO: meditação que leva o corpo humano a um transe, reduzindo
as atividades fisiológicas apenas para a manutenção da vida.
DISTRANS: um aparelho que produz uma impressão neural
temporária no sistema nervoso de quirópteros ou aves. A voz
normal da criatura passa a portar a impressão da mensagem,
que pode ser separada da onda portadora por um outro
distrans.

E
EFEITO HOLTZMANN: o efeito repelente negativo de um gerador
de escudo.
ERG: área extensa de dunas, um mar de areia.

F
FAI: tributo de água, o principal tipo de imposto em Arrakis.
FAUFRELUCHES: rígida lei de distinção de classes imposta pelo
Imperium. “Um lugar para todo homem, e todo homem em seu
lugar.”
FARDO D’ÁGUA: no idioma fremen, uma dívida de gratidão
extrema.
FREMKIT: kit de sobrevivência no deserto de fabricação fremen.

G
GALACH: idioma oficial do Imperium.
GHAFLA: entregar-se a distrações. Por conseguinte, uma pessoa
volúvel, indigna de confiança.
GOM JABBAR: inimigo despótico; a agulha inoculadora específica,
envenenada com metacianureto e usada pelas censoras Bene
Gesserit no teste que coloca à prova a percepção humana e
tem, como alternativa, a morte.
GHOLA: humano criado artificialmente a partir de um indivíduo
morto.

H
HAJJ: jornada sagrada.
HARKONNEN: foram uma grande casa durante o tempo dos
Imperadores Padishah. Sua capital era Giedi Prime, um planeta
altamente industrializado e com pouca vegetação.
HUANUI: dispositivo capaz de obter água a partir de qualquer
material, especialmente de origem animal.

J
JACURUTU: sietch lendário localizado no deserto profundo de
Arrakis.
JIHAD BUTLERIANO: a cruzada contra os computadores,
máquinas pensantes e robôs conscientes iniciada em 201 a. G. e
concluída em 108 a. G. Seu principal mandamento continua na
Bíblia C. O.: “Não criarás uma máquina para imitar a mente
humana”.

K
KAIRITS: conceito de treinamento das Bene Gesserit.
KANLY: rixa ou vendeta formal submetida às leis da Grande
Convenção e levada avante de acordo com as mais severas
restrições.
KEDEM: termo utilizado para se referir ao deserto interior.
KITAB AL-IBAR: misto de guia de sobrevivência e manual religioso
desenvolvido pelos Fremen em Arrakis.
KOAN ZEN-SUNITA: Afirmação da religião dos Zen-sunitas (veja-se
Zen-sunitas).
KRALIZEC, A BATALHA DO TUFÃO: na religião Fremen, é uma longa
batalha que causaria o final do universo.
KWISATZ HADERACH: “encurtamento do caminho”. É o nome
dado pelas Bene Gesserit à incógnita para a qual elas procuram
uma solução genética: a versão masculina de uma Bene
Gesserit, cujos poderes mentais e orgânicos viriam a unir o
espaço e o tempo.

L
LANDSRAAD: uma das principais instituições do Imperium.
Mesmo dois milênios antes de choam e a Guilda se tornarem
relevantes, a Landsraad já existia e servia como um corpo
deliberativo para debates e disputas entre os governos
participantes. O Landsraad tem o poder de influenciar até em
uma discussão em que algum dos lados fere a disposição
fundamental da lei universal.
LEVENBRECH: título militar dado ao assessor de um Bashar
correspondente aos capitães Fremen ou Sardurkar.
LÍNGUA DE BATALHA: qualquer idioma especial de etimologia
restrita, desenvolvido para a comunicação inequívoca na
guerra.
LUCIGLOBO: dispositivo de iluminação sustentado por
suspensores e que tem fornecimento de energia próprio
(geralmente baterias orgânicas).

M
MAKU: palavra fremen para gravidez.
MAHDI: nas lendas messiânicas dos Fremen, “aquele que nos
levará ao paraíso”.
MARTELADOR: estaca curta com uma matraca de mola numa das
extremidades. Função: ser enterrado na areia e começar a
“martelar” para chamar Shai-hulud.
MOHALATA: união realizada quando um indivíduo é possuído por
uma personalidade benigna.
MUFTI: aquele que interpreta e representa uma religião.
MURALHA-ESCUDO: um acidente geográfico montanhoso nos
confins setentrionais de Arrakis, que protege uma pequena
área da força total das tempestades de Coriolis do planeta.
MUSHTAMAL: um pequeno anexo ou pátio ajardinado.

N
NAIB: alguém que jurou nunca ser capturado vivo pelo inimigo;
juramento tradicional de um líder fremen.

O
O SERVIÇAL: afloramento de rochas que foram reduzidas a uma
silhueta baixa e sinuosa, como um verme escuro, esgueirando-
se através das dunas.
ORNITÓPTERO (COMUMENTE, TÓPTERO): qualquer aeronave
capaz de voo sustentado por meio do bater de asas, como
fazem as aves.

P
PANOPLÍA PROPHETICUS: termo que abrange as superstições
contagiantes usadas pelas Bene Gesserit para explorar regiões
primitivas.
PERIGRINOS DO HAJJ: grupo de seres humanos que realizam a
peregrinação até a capital de Arrakis.
PRANA (MUSCULATURA-PRANA): os músculos do corpo quando
considerados como unidades para o treinamento supremo
(veja-se bindu).
PRIMEIRA LUA: o principal satélite natural de Arrakis, a primeira a
nascer à noite; destaca-se por apresentar o desenho distinto de
um punho humano em sua superfície.
PROCÈS-VERBAL: relatório semiformal que denuncia um crime
contra o Imperium. Legalmente, uma ação que se situa entre
uma alegação verbal imprecisa e uma acusação formal de
crime.
PROCLAMADORA DA VERDADE: Reverenda Madre qualificada a
entrar no transe da verdade e detectar a falta de sinceridade ou
a mentira.

Q
QANAT: canal a céu aberto para o transporte de água de irrigação
em condições controladas através de um deserto.

R
RESPIRARENADOR: aparelho respirador que bombeia o ar da
superfície para dentro de uma tendestiladora coberta de areia.

S
SARDAUKAR: os fanáticos-soldados do imperador padixá. Eram
homens criados num ambiente de tamanha ferocidade que 6 a
cada 13 pessoas morriam antes de chegar aos 13 anos de idade.
Seu treinamento militar enfatizava a desumanidade e uma
desconsideração quase suicida pela segurança pessoal. Eram
ensinados desde a infância a usar a crueldade como arma-
padrão, enfraquecendo os oponentes com o terror. No auge de
sua hegemonia sobre o universo, dizia-se que sua habilidade
com a espada se equiparava à dos Ginaz de décimo nível e que
sua astúcia no combate corpo a corpo seria quase equivalente à
de uma iniciada Bene Gesserit. Qualquer um deles era
considerado páreo para os recrutas normais das forças
armadas do Landsraad. À época de Shaddam iv, apesar de
ainda serem formidáveis, sua força tinha sido minada pelo
excesso de confiança, e a mística que nutria sua religião
guerreira havia sido profundamente solapada pelo ceticismo.
SECHER NBIW: tradução direta para Caminho Dourado.
SHIEN-SAN-SHAO: durante o reinado de Alia, nome usado para
designá-la, por alguns Ixianos que aceitaram a religião de
Muad’dib.
SHIGAFIO: extrusão metálica de uma planta rastejante (Narvi
narviium) que só cresce em Salusa Secundus e Delta Kaising iii.
Destaca-se por sua extrema força elástica.
SIETCH: na língua fremen, “lugar de reunião em tempos
perigosos”.
SUBAKH UN NAR: “Estou bem, e você?”. Resposta tradicional a um
cumprimento fremen.
SUSPENSOR: fase secundária (baixo consumo) de um gerador de
campo de Holtzman. Anula a gravidade dentro de certos
limites prescritos pelo consumo relativo de massa e energia.
SYSSELRAADS: conselho regional responsável por representar as
Casas Menores. Normalmente é presidido por um
representante da Casa Maior que controla a região.

T
TANZEROUFT: o deserto profundo de Arrakis.
TAQWA: literalmente, “o preço da liberdade”. Uma coisa de grande
valor. Aquilo que uma divindade exige de um mortal (e o medo
provocado por essa exigência).
TAU, O: na terminologia fremen, a unidade da comunidade sietch,
ampliada pela dieta baseada em especiaria e, principalmente, a
orgia tau de unidade evocada pela ingestão da Água da Vida.
TENDESTILADORA: recinto pequeno e lacrável de tecido em
microssanduíche, projetado para reaproveitar, na forma de
água potável, a umidade ambiente liberada dentro dela pela
respiração de seus ocupantes.
TESTE DE POSSESSÃO: ritual fremen que atesta a possessão em
crianças ou adultos pré-nascidos.
TIGRES LAZA: poderoso predador felino capaz de sobreviver em
ambientes hostis.
TRAJESTILADOR: roupa que envolve o corpo todo inventada em
Arrakis. Seu tecido é um microssanduíche com as funções de
dissipar o calor e filtrar os dejetos do corpo. A umidade
reaproveitada torna-se disponível por meio de um tubo que
vem de bolsas coletoras.
TRUTAS DA AREIA: forma larval dos vermes de areia. Nessa fase,
as trutas são parecidas com grandes sanguessugas, bolhas
amorfas ou lesmas.

U
UMMA: alguém que pertence à irmandade dos profetas (no
Imperium, termo desdenhoso que indica qualquer pessoa
“desvairada” e dada a fazer predições fanáticas).

V
VEDA-PORTAS: lacre plástico, hermético e portátil usado para
manter a hidrossegurança nas cavernas onde os Fremen
acampam durante o dia.
VENTO CORIOLIS: grande tempestade de areia em Arrakis.

W
WADQUIYAS: termo fremen utilizado para denominar uma pessoa
que faz um pacto de sangue com outra. Ela automaticamente
tem uma ligação com a tribo com a qual fez o pacto, que deve a
ela proteção. A proteção só se encerra caso o indivíduo ofenda
a tribo.

Z
ZEN-SUNITAS: Seguidores de uma seita cismática que se desviou
dos ensinamentos de Maomé (o chamado “Terceiro
Muhammad”) por volta de 1381 a. G. A religião zen-sunita
destaca-se principalmente por sua ênfase no misticismo e por
um retorno aos “costumes dos antepassados”. A maioria dos
estudiosos nomeia Ali Ben Ohashi como o líder do cisma
original, mas há indícios de que Ohashi possa ter sido
meramente o porta-voz masculino de sua segunda esposa,
Nisai.
FILHOS DE DUNA

TÍTULO ORIGINAL: Children of Dune

COPIDESQUE: Opus Editorial

REVISÃO: Isabela Talarico | Tággidi Mar Ribeiro

CAPA: Luiza Poli Franco

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ORIGINAL: Sergio Rossi

ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Libra Design

DIREÇÃO EXECUTIVA: Betty Fromer

VERSÃO ELETRÔNICA: S2 Books

COORDENAÇÃO EDITORIAL: Débora Dutra Vieira | Marcos Fernando de Barros Lima

DIREÇÃO EDITORIAL: Adriano Fromer Piazzi

EDITORIAL: Daniel Lameira | Mateus Duque Erthal | Katharina Cotrim | Bárbara Prince | Júlia Mendonça

COPYRIGHT © FRANK HERBERT, 1976


COPYRIGHT © EDITORA ALEPH, 2015
(edição em língua portuguesa para o Brasil)

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.


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PUBLICADO MEDIANTE ACORDO COM HERBERT PROPERTIES, LLC., REPRESENTADO POR TRIDENT MEDIA GROUP LLC.

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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Herbert, Frank
Filhos de Duna [livro eletrônico] / Frank Herbert ; tradução Maria Silvia Mourão Netto. -- São Paulo : Aleph, 2015.
2.061 Kb; ePUB

ISBN 978-85-7657-314-2
Título original: Children of Dune.

1. Ficção científica norte-americana I. Título.

16-0193 CDD 813.0876

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção científica : Literatura norte-americana 813.0876

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