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8117123, 5:25 PM PDF js viewer 100 ANOS DE C4RETA: O JECA A IDENTIDADE NACIONAL NAS CHARGES ‘Miircio Malta"* esse ano de 2008, em que se comemora o bicentenirio da imprensa no Brasil, co- ‘memoramos o centensrio de uma publicacio de elevada importancia: a revista Careta. Na dissertacao de mestrado, O Jeca na "Cateta” « Charges e Identidade Nacional, defendia na UFRJ em 2007, uflizamos a revista como preciosa fonte para a investigacio de nosso objeto de estudo, a apari¢do do personagem Jeca Tatu nas charges politicas. A ope#o em. trabalhar a revista Careta deu-se pelo fato de a mesia ter trazido o personagem Jeca em sua capa um semuiimero de vez2s, colaborando para eristalizar a imagem do caipira como um icone gréfico representante do Brasil, Breve historico da revista Careta A revista Careta foi bastante popular e teve longa duragao na historia da imprensa brasileira. Criada por Jorge Schmidt, o seu primeiro nimero circulou na data de 6 de jjunho de 1908. Sen criador j era dotado de experiéncia como empresério no ramo das artes arificas, pois, em 1903, langara, no Rio de Janeiro, a revista Kosmos, publicagao que tinha grande qualidade grifica, impressa em papel couché e dotada de teenologias recen- tes, como a tricomia e impeviveis rotogravuras. A redago da Kosmos contava, entre os seus colaboradores, com nomes bem expressivos da intelectualidade da entao capital da Reptiblica,tais como Olavo Billac, Coelho Neto, Gonzaga Duque e Emilio de Menezes. © prego da publicagao, de dois mil réis, pode ser considerado caro para a época, 0 que restringia 0 consumo da publicagdo a uma pequena elit. Em contrapartida a0 elitisimo de sua publicagao inicial, Jorge Schmidt langou outra revista, a Fon-Fon, tendo por prego 500 réis, o que atraiu significativo niamero de leitores. ‘Apés tentativa frustrada de langar mais uma publicagdo, a Endiabrada, nasceu por fim 1 Careta, revista que teve longa vida, 52 anos, consagrando o recurso da carieatura para fazer humor e especialmente a carga politica, Projeto Historia, Sao Palo, n36, p. 377-386, jun. 2005 37 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 am 8117123, 5:25 PM PDF js viewer Marcio Matta Em um de seus iltimos mimeros, localizamos um artigo (Careta. 29/10/1960, n° 2731) que funciona como um verdadciro memorial da publicagao. O texto ¢ significativo, pois existe o reconhecimento de que durante os anos 20 do século passado, a revista era ‘mais humoristica do que politica. Sua linha editorial foi transformada nos anos 30, pas- sando a ser mais politica do que humoristica, em fun¢ao da Revolucio de 1930, vista por seus editores como politica e morslmente degradante, Aspectos metodolégicos A nossa pesquisa voltou-se para a compreensdo de como 0 piblico leitor ganhou, com 0 nascimento da revista, o status de poder acompanhar a vida politica através do relato dos cronistas visuais que sto os chargistas. Defendemos metodologicamente que & charge é um instrumento privilegiado para a compreensio politica, pois se comporta qua- se sempre como oposicio e de maneira critica as estruturas do poder. Somado a isso esté 0 elemento de que a charge é um veiculo de ampla repercuss4o priblica, pois sua linguagem direta e lidiea alcanca setores no habituados a manusear formas outras de informacto, como textos jornalisticos e livros, por exemplo. ‘A pesquisa buscan interpretar no somente a politica oficial, mas também compre- ender os movimentos concretos da sociedade, manifestados cotidianamente nas charges publicadas na imprensa, A charge capta — de maneira dindmica e dialética — 0 som que ‘vem das ruas, pois, como afirmou o pesquisador Alvaro Cotrim: “a verdadeira psicologia de wn povo se reffere através do lapis de seus caricanwristas. (I. Carlos: época, vida e obra, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985), A opsao pela utlizacdo do termo charge nao se restringe ao campo semantico. Des. tacamos que o senso comum ¢ a maioria dos pesquisadores do tema costumam utilizar ‘9 termos change ¢ caricatura de forma indistinta, A caricatura pode ser definida como sum desenho de lmmor onde se procura captar os principais aspectos da anatomia de uma figura humana ¢ elaborar a distore4o com o objetivo de se conquistar o riso do leitor. A charge enquadra-se em uma gama mais complexa, pois é, na verdade, um desenho de ‘humor que busca dar conta e retrataralgum aspecto conjuntural e politico de determinada sociedade. ‘Nas consideragdes finais de seu livro Jango e o golpe de 1964 na caricatura, Rodrigo Patto Sé Motta justfica que selecionara para o seu trabalho as imagens de tipo durével, ou seja, aquelas que resistiram ao tempo. A linha de argumento do autor ¢ sustentada pela classificagao de Charles Baudelaire, de que as caricaruras se dividem em dois tipos: as que desaparecem com o decorrer do tempo e as duriveis, eterna. Projeto Histéria, Sao Paulo, n.36, p. 377-386, jun. 2008 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 ant 8117123, 5:25 PM PDF js viewer 100 anos de careta A selegdo feita no presente trabalho tem por guia o crtétio de utilizacdo de charges que no tenham ficado datadas, presas a determinada conjuntura ou fatos cotidianos. A 4rdua tarefa de escolha das imagens que compdem o estudo deu prioridade as charges de conotagao mais estrutural, 0 que se pode observar na anilise dos recortes temticos ado- tados, a saber: 0 Jeca é o Brasil; © Jeca Opilado e O Jeca e o Comunismo, ‘A metodologia adotada foi a de pesquisar as capas da revista Careta desde a criagio do personagem Jeca Tati, no ano de 1914, até o ano em que a publicacdo se encerrou, no ano de 1960, ‘Aopsio por trabalhar com charges politcas como objeto de pesquisa deve-se & com- preensio do veiculo como um auxiliar na construgio da meméria politica e social das sociedades: As revistasilustradas cumpriram importante papel, no sentido em que hii mengo em folheto informativo acerca de uma exposigao sobre a presenca de criador do Zé Povinho neste tipo de publicacio jé no 2° Império: [. sabe-se que as revista istradas foram um dos mais importantes canis de constr 80 do imaginitio social. Pode-se aficmar que as representacées humoristias de Bor- allo Pinbcvo,algm de tradurirem o debate politico «social de seu tempo. partciparamt a construga0 do processo de invensao do imsaginério da nacto brasileira (Foleo in- formativo da exposigio 4s relacdes entre oimpério do Brasil ea Santa Sé (1875-1879) na obra do artista portugués Rafael Bordalio Pinheiro, 2005), O presente trabalho vale-se da imagem — no caso, a charge — como fonte primria de pesquisa no campo das ciéncias sociais. Assim, busca-se encontrar no documento visual contetido ¢ significado que amplifiquem 0 exclusiva uso do texto como documento, De certa forma, pode-se considerar que tem havide uma apropriagio incficaz da imagem por parte de pesquisadores no campo das ciéncias sociais, utilizando-a como algo secunditio ¢. de regra, apenas como ilustracio, abstraindo a potencialidade das charges como ele- mento explicativo. A pesquisa das fontes primirias deu-se por mcio do acesso ao acervo da Biblioteca Nacional, disponibilizado no sire da entidade. © periodo investigado & bem abrangente, vai de 1919 a 1960, ou seja, do ano em que Rui Barbosa celebrizou o Jeca em um de seus discursos ao ano em que a publicagdo parou de circular. O levantamento permitin a iden- tificagio de $34 capas como Jeca. Desse montante, foram selecionadas 43 charges que se ‘cuglobam em temas de maior ocorréncia ou que tenbiatn afinidade com a questio propos- ta, a saber: identidade nacional, « preguiga do Jeca, 0 povo opilado e o conunismo. Apso em trabalhar somente as capas deve-se a alguns fatores: a ampla divulgagio cdessas imagens entre um piblico ainda maior do que as contidas no interior da revista: 0 Projeto Historia, Sao Palo, n36, p. 377-386, jun. 2005 379 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 ant 8117123, 5:25 PM PDF js viewer Marcio Matta cesmero do artista, tanto em termos de contetido quanto de estilo — em trabalhar a charge aque seré veiculada na vitrine da publicacéo; tal como a policromia das artes ~ somente destinada as capas. Por diltimo, encontra-se uum aspecto subordinado ao avanco tecnol6- gico. Com o advento do uso da fotografia nas revistas iInstradas, inclusive a Careta, a charge comecou a exercer tm papel de menor relevancia como fonte de documentacio ¢ informacio politica. Assim, as charges, nos dizeres de Luis Guilherme Teixeira Sodré, foram exiladas para as capas das revistas, conforme a publicacio 4 charge anticlerical nas revistasitustradas da Monarquia, 2006 (mimeo). Dentre as imagens levantadas, nfo foi feita a opsdo por elaborar uma anilise cro- nol6gica e linear das charges, © que constaria em resultado pouco produtivo e deveras xaustivo para o Icitor. © trabalho foi construido diante de guarda-chuvas temiticos, em «que as imagens de maior poder descritivo da realidade e estrutura social presentes no pe- iodo estucado foram sendo catalogadas ¢ descritas de forma mais minuciosa no interior de cada tema, como citado anteriormente: identidade nacional, a preguica do Jecs, sua pobreza e a relagdo do personagem com 0 communism, A origem do Jeca nas charges As primeiras charges nas quais Jeca Tatu aparece remontam ao ano de 1919. Quando no discurso de langamento de sua candidatura & presidéncia da Reptiblica, Rui Barbosa citou-o, algando-o a posigdo de vedete da imprensa brasileira, aio s6 dos cronistas como, dos chargistas. 0 episédio em questao deu-se no promunciamento do eélebre discurso “A Questo Social no Brasil”, aberto com uma breve digressio acerca do sotumo persona gem lobatiano: Senhores, conbeceis porventura © Jeca Tatu das Urupés, de Monteiro Lobato, 0 admi- rivel eseritor paulista? Tivestes,algum dia, ocasio de ver suit. debaixo desse pincel cde uma arte rara na sua rudeza, aquele tipo de uma raga que ‘enue as Formadoras de nossa nacionalidade’ se peepetua, ‘a vegetar de e6coras, incapaz de evolugto eimpene- {navel a0 progresso"? (BARBOSA, Rui. questdo Social Politica no Brasil Accitagdo do Jeca Tatu na abertura do discurso “A Questio Social e Politica no Bra- sil” foi estampada, no dia seguinte, na manchete de O Estado de S. Paulo, fato que ala- vancatia a vendagem do livro do autor paulista onde ha mengao ao Jeca. © proprio Lobato referiu-se ao fato da seguinte forma: “o discurso do Rui foi um pé de vente que deu nos “Urupés™. (Barea de Glevre, vol. I. Sto Paulo, Brasiliease, p. 194). 380 Projeto Histéria, Sao Paulo, n.36, p. 377-386, jun. 2008 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 ann 8117123, 5:25 PM PDF js viewer 100 anos de careta Os tipos de charges do Jeca No artigo“ figura do Jeca Tatu na irreveréncia das nossos caricaturistas”, de 1943, publicado na revista Vamos Ler (18/11/1943), Terra de Senna"® afirma que as charges sobre o Jeca sio basicamente de cinco tipos: 1)as que colocam em evidéncia a pobreza do Jeca: 2) as que fazem critica de costumes; 3) as de caréter politico: 4) as contendo piadas sobre o caipira e '5)as que, centradas no estereétipo da preguica, mostram 0 Jeca acocorado ou deita- do —de regra debaixo de uma arvore, insinuando “sombra e agua fresca”. Dente estas, as de maior recorréncia e de maior interesse para o entendimento da cultura politica brasileira sio as que descrevem a pobreza do Jeca; as de tipo politico & aquelas que manejam 0 mito do povo brasileiro como preguigoso. A representacio do Jeca como preguicoso é predominante nas primeiras charges com © personagem. Tal comportamento dos artistas nessa fase inicial explica-se pela proximi- dade da visto com 0 modelo original do personagem, constnuido nos artigos de Lobato Velha Praga e Urupés, ambos de 1914, onde uma caracteristica marcante do Teca é a preguica ‘No tocante a aparicao do Jeca Tatu nas charges, identificam-se varias transformagdes, on, ulizando a denominacao de Aluizio Alves Filho, varias metamorfases. Dente 03 fa- tores que contribuiram para a fixacio do Jeca no imaginzrio social brasileiro, Alves Filho cita justamente as charges como uma das responséveis pelas metamorfoses. Paralelo a0 sucesso do Jeca Tatu nas charges, estéo distanciamento do seu esteredtipo inicial, eriado por Monteiro Lobato. De todas as transformagées, sem dhivida a mais nitida é a grafia do nome do personagem, que com o tempo tem 0 seu sobrenome suprimido, ficando a alcunha simplesmente de Jeca, No entanto, é necessério ressaltar que as metamorfoses do Jeca no rompem com pletamente com fases anteriores, nem possuem marcos de data claros, pois dependem de fatores outros, como as preferéncias de cada chargista em Lidar com o tema e aspectos conjunturais que moldam cads charge. Somente com o correr dos anos o Jeca passa a se comportar de maneira esperta, ma- treira e de forma critica em relagao aos seus interlocutores, sendo quase sempre alguma figura que ocupa momentaneamente posigZo de poder. O tipo de charge descrita acima pode ser enfeixada na descrigfo que Terra de Senna faz de anedotas sobre o caipira. A prética esta inserida em um contexto no qual —na dé- Projeto Historia, Sao Palo, n36, p. 377-386, jun. 2005 381 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 sit 8117123, 5:25 PM PDF js viewer Marcio Matta cada de 20 do século passado — foi lntente o estabelecimento de personagens nas charges, em detrimento do ataque frontal a personalidades piblicas, icando mais circunscritas as criticas politicas de um modo mais geral. ‘As primeiras charges em que o Jeca Tatu aparece na revista Carefa tém a politica como mote, mais precisamente a questio da corrupcao que envolve a classe politica. Em charge de J. Carlos de 1919, ainda no miolo da revista, o Jeca Tatu se espanta ao deparar ccom papagaios que invadem a sua roca atrés do milho: o timo da charge é “A abertura das camaras”.O substantivo “milho” em um linguajar popular é uflizado como sinénimo de “dinheiro” “milharal” tem o sentido de muito dinheiro, Dessa forma, a charge insi- ‘mua que no Parlamento corre muito “milho", ou seja, dinheiro (VIOTTI, Manuel. Novo Dicioncirio da Giria Brasileira, p. 289). Vale observar que esse tipo de representacdo do politico, como alguém que nao faz nada ¢, de maneira legal ou escusa, ganha muito dinheiro, quando encontrada em charge de 1919 & indicativa que se trata de uma forma de pensar tradicional do senso comum brasileiro, pois, nos dias atuais, nio ¢ raro escutar quem, em conversas triviais refirase a Parlamentos, comentando: “E se vocé estivesse lé? Também nao se arrumava?™ ‘A apatigdo do Jeca Tatu no estilo de immor descrito é ao mesmo tempo constante ¢ prenhe de signficados, pois, ao estudé-lo, percebemos uma enorme gama de compor- tamentos que representam a maneira e idiossinerasias de como o povo fama partido em auesides politcas ‘Uma das permanéncias na manifestagdo do Jeca Tatu nas charges é a passividade. Corriqueiramente, o Jeca aparece nas charges como figura de fundo, sem uma partici- pacio ativa no quadro. A postura disgnosticada analisada friamente € correlata que diversos estudiosos observam quanto a comportamente historicamente manifesto pelo ovo brasileiro relativo aos acontecimentos politicos, ou seja: 0 de mero espectador. Um ‘bom exemplo da postura do Jeca é 0 quadro de Pedro Américo, Independéncia ou Morte. Na pintura, em meio a significativa cena do Grito do Ipiranga, encontram-se caipiras xno canto inferior esquerdo a observar tudo de seus cavalos,allcios ao episédio da inde- pendéncia do pais. Ou seja, cerca de cem anos antes da criaeio do personagem Jeca, © caipira jé havia sido retratado de mancira passiva, como espectador diante dos principais acontecimentos nacionais. Também é ilustrativo da citada passividade o tltimo parigrafo de Oliveira Vianna: ‘86 neste ponto nesta reagto sileaciosa ¢ admirivel contra o mayginalismo das suas elites~& que o nosso povo seem revelado una verdadeira emoeracia, Neste pont ~e 6 neste ponto excusivamente ~& que ele se tem mastrado até agora realmente sobere zo. (VIANNA, Oliveira Insttuigdes Politicas Brasileras, vol. IL, Rio de Janeiro, José Olympic, 1955, p. 646) 482 Projeto Histéria, Sao Paulo, n.36, p. 377-386, jun. 2008 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 ont 8117123, 5:25 PM PDF js viewer 100 anos de careta ‘No entanto, em varias charges o Jeca esté com um sorriso enigmatico. Sua posicio & tipica de algném que comunica estar ciente — vigilante — das estripulias ¢ desmandos dos figures do poder, pouco comprometidos com a coisa piiblica. Instrativa dessa circuns- tincia é a charge de J. Carlos onde Getilio Vargas espalha cascas de banana em frente 0 Palécio das Aguias (Figura 1), na rua do Catete, para que seus opositores caiam. Bem no undo, encostado na parede do palicio, o Jeca observa tudo com o sorriso de canto de ‘boca, Como se sua presenca ali servisse para desnndar a malandragem. Assim também 0 6 na caricatura de Borges de Medeiros, também de J. Carlos (Figure 2). O politico-jurista — simbolo do regime republicano — aparece com a feido confiante, amparado em um enorme livro, cuja capa iraz.o titulo: Tratado de malandragem. No fando, lé esté 0 Jeca, a denunciar a malandragem. 1A. NO PALACIO DAS AGUIAS Gero = Para ie ceca de same Epa? Bantam as haba cans de bana Figura 1 Projeto Historia, Sao Palo, n36, p. 377-386, jun. 2005 383 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 mm 8117123, 5:25 PM PDF js viewer Marcio Matta Boroe se Medes Figura 2 Identidade Nacional: somos todos uns Jecas Tatus A farta utilizacao do Jeca nas charges, no principio contracenando com Rui Barbosa, ‘ganhiou novos contomos com o correr dos anos, dando asas 8 utilizacto do Jeca Tatu das ais diversas formas, Pocemos afirmar que existe uma ambigilidade de forma e contetido nas charges que retratam 0 Jeca. A nfo singularidade do Jeca atesta a teoria de que o personagem é uma casea vazia, conforme observado por Aluizio Alves Filho. O personagem é moldado de acordo com as conveniéncias de quem o utiliza; assim o mesmo é metamorfoseado de acordo com a conjuntura em questio, A abordagem dos chargistas adaptou © soto personagem a seu bel-prazer, criando uma pluralidade de identidades nacionais por meio de seus tracos: seguindo o Jeca das charges, um curso proprio, diverso das metamorfoses ue o famoso caipira seguin em Lobato, A metamorfose que queremas destacar é aquela em que o Jeca passa a representar todo o povo indo além, encarnando todo o brasileiro, como na passagem ja citada alliu- tes de Monteiro Lobato onde somos todos uns Jecas Tatus (Barca de Gleyre. Sao Paulo, Brasiliense, vol. Ip. 20). A figura do Jeca deixou assim de representar apenas 0 caipira ¢ transformou-se em simbolo da identidade brasileira. 38 Projeto Histéria, Sao Paulo, n.36, p. 377-386, jun. 2008 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 ant 8117123, 5:25 PM PDF js viewer 100 anos de careta Outras afirmagSes de Monteiro Lobato, na mesma obra, traduzem ainda melhor 0 percurso do Jeca Tatu, send também vilido para o campo das charges: ‘Com mais ou menos letras, mais ou menos soupas, na Presidéacia da Republica sob nome de Wenceslan ou na literatura com a Academia de Letras, no comércio ou ma inkistria, paulistas, mineiros ou cearenses, somos todos ns iedativeis Tecas..] 0 ‘Brasil & uma Tecatarusia de oito milhdes de quilémetros quadrados, Luiz Guilherme Sodré Teixeira fez proficna anélise sobre o tema: personagens como 09 Zé Povo ¢ 0 Jeca Tani, a Repiiblica © a Politica, simbolizam o permanente desencontro entre pov e nacdo, elite e povo, que marca a formacio historiea e cultural do pai que um nao se reconhece no outro. A anilise radical de Sodsé parte do principio que o Jeea Tatu, assim como 0 Zé Povi tho, seria fruta do olhar de parte da sociedad para outra, nae integrada,justificando a auséncia de uma identidade nacional brasileira, como as existentes em outros paises, como Fraga, EUAe Inglaterra, (SODRE, Luiz Gullherme Telxelra. 0 trago como fex- to: a histérin da charge no Rio de Janeiro de 1860 a 1930. Rio de Janeiro, Fundacio Casa de Rul Barbosa, 2001, p. 39) Por sua vez, 0 estudioso Herman Lima demonstrou nao ter nmito apreco em ver 0 Brasil representado pelo Jeca Tatu, pois tal condig8o significava uma “desvirilizagto da raga" [..Javerdade porém é que os anos comeram e até hoje no temos ainda o nosso simbolo e povo e nag, fo sendo demas lembrar-se que, em 1918, quando Monteiro Lobato Jangot o Uupés, cousagrado de tm dia pare o outro em todo o Brasil, mercé principal- ‘mente de uma apSstiofe de Rui Barbosa, passamos a ver-nos representados, por muito tempo, nada menos que pela figura do Jeea Tatu. Mas a moda passos ripido, com o alpsurdo de consagrar-se justamente a desviilizacao da rag [.]. (LIMA, Herman. His- tra da caricatwra no Brasil, val. . Rio de Janeto, José Olymmpio, 1963, p. 27) ‘Nem muito a terra, nem muito ao mar, diriamos que a representagio brasileira exer cida pelo Jeca Tatu nas charges nfo chega a ganhar contornos negatives, mas sim de demincia, principalmente naquelas onde o Jeca é opilado. A utilizacdo de personagens para representar brasileiro € assim descrita pelo pesquisador Luiz Guilherme Sodré Teixeira © 2é Povo, posteriommente o Teea Tatu represeatam “toda” o povo e “toda ocaipica, *puros” e ingéamios” ~ “uaturais” como queria Rowsseat ~ diante do “opressor” e do ‘proprio sistema como wm todo, © Jeca Tatu, por sua vez crado em 1914 por Monteiro Lobsto, era a sua verso musa tendo em comum com ele a mestna postura submissa — {alsamente espesta e matreira ~ ¢ o mesmo esteredtipo negative. E significative que, entte 6s, 0 pove sea simbolizado par seu lado negaivo, pois ¢ neste momento e com esse personngem que a charge o descobre como alvo de seu humor e de sua eric, conforme aponta Sodré, em obra jé citada,& pagina 36. Projeto Historia, Sao Palo, n36, p. 377-386, jun. 2005 385 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 aint 8117123, 5:25 PM PDF js viewer Marcio Matta Consideracdes finais Podemos afirmar que a polémica sobre um personagem que nos defina enquanto na- glo munca foi resolvida. A indefinigto no persiste somente nas charges, ficando explicita também na literatura e outros campos, como no cinema, por exemplo. Durante alguns ‘anos, existem personagens que nos representam, como foi o caso do indio e do Jeca, mas depois que a febre passa, novamente o posto de representante brasileiro fica vazio. AA tilizacao do Jeca nas charges estendeu-se até o inicio dos anos 60, sendo larg mente difundida no periodo, principalmente pelo recorrente uso que © chargista Théo fez do personagem, configurando-se de longe como o artista que mais retratou 0 Jeca nas. charges. © marco temporal que restringe a presenca do caipira estd intimamente ligado 0 fim da revista Careta — mesmo 0 artista Théo ainda tendo utilizado o Jeca por algum, tempo no jomal O Globo, onde também colaborava, A.nmudanga do censtio politico brasileiro também contribuiu para o esquecimento do Jeca, pois os anos 60 foram marcados pelas sucessivas crises de poder, com a rentincia do presidente Janio Quadros (1961), a instabilidade de seu sucessor Jodo Goulart, que culminow no golpe que instaurou o regime militar (1964). Com isso, os ehargistas pas- saram a ter um papel cada vez mais ativo na oposi¢o ao regime, utilizando-se menos de personagens e centrando as suas criticas nos mandatarios do poder. Atmalmente, o caipira ainda ¢ utilizado nas charges de forma esporidica, para retratar episédios ligadas ao interior do Brasil ou como sindnimo de atraso e preguica, cabendo a personagens urbanos e mais gerais, como 0 mendigo, retratar 0 povo brasileiro nas char- es. Contudo, a posigao de identidade nacional brasileira esta vaga, nfo restando maiores esperancas de surgimento de um novo tipo, diante do cada vez maior enfraquecimento dos Estados nacionais e suas culturas no contexto de globalizago que atravessamos. Recebido em Abril/2008; aprovado em Mai Notas ~ emia fo por mie dssominnda a paris do sefetnea na obes de Mareos Annis d Sse, Praner€ Poder do Amigo da Onga, 1943-1052, Rio de Jane Paz e Tera, 1989, (autor, além do meste em Ciénca Polite, ¢cartunsta assiando pelo pseusinimo de Nico. E-wai ico @mundoerrabiseo com. 386 Projeto Histéria, Sao Paulo, n.36, p. 377-386, jun. 2008 hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 son 8117123, 5:25 PM PDF js viewer hilps:rovislas puesp briindex phplrevphvarticleviowi2367/1443 ait

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