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A LINGUAGEM COMO TRANSTORNO DO REAL! £ CONHECIDA NA ORIENTAGAO LACANIANA a fecundidade dos estudos sobre os transtornos da linguagem na clinica e na anilise das psicoses. Muitos de nés nos formamos no necessario estudo desses transtornos, considerando-os um critério diagnéstico da psicose, inclusive 0 critério diagndstico por exceléncia, de acordo com a maxima deduzida por Jacques Lacan em O Seminario, livro 3: as psicoses (1955-6): “Eu me recusei a dar o diagnéstico de psicose por uma razio decisiva: nao havia nenhum dos transtornos que sao 0 nosso objeto de estudo neste ano, os transtornos da ordem da linguagem. Devemos exigir a presenga desses transtornos para fazer tal diagndstico”. E, um pouco adiante: “Para que nds estejamos na psicose, € preciso que haja transtornos da linguagem. Isso é, de todo modo, uma convengao que lhes proponho adotar provisoriamente” (Lacan, 1955-6: 133). Tratava-se, com efeito, de uma conven¢ao, de carater provisério, mas que cumpriu a fun¢ao de buissola para nos orientarmos na clinica e no tratamento das psicoses, ¢ que continua @cumpri-la em muitos casos. Pipol 6, realizado Intervengao no Segundo Congreso Europeu de Psicanillise, €m Bruxclas nos dias 6 e 7 de jutho de 2013. 239 Pasicmos enumerar os transtornos da linguagem gragas a atenta se dos fendmenos na fungio da palavra e no campo daly ™ as psicoses. Eles sio, em primeiro lugar, os transtor- sno erro da sigmificagio que se deve 2 elisio do significante que wT 4 sua escansio, a sua pontuacdo, ou seja, d elisdo do signi- cumpre a funcio crucial de escandir a significagao lta desse significante e de sua escansao significativa, faz ou se desdobra em multiplos efeitos que distor- significacdo. Sio tambem os transtornos induzidos por um Geslocamento infinito da significagio no eixo metonimico: a fuga de pensamentos, o discurso tangencial, com a série de fendmenos de dizlogo interior isoladas por Jules Séglas. S40 ainda os fendmenos de frases interrompidas, de ruptura da cadeia significante, com os neologismos, as litanias ou a erotizacao do significante. Foi Lacan quem ordenou todas esses fendmenos em dois eixos — os fenomenos de codigo e os fendémenos de mensagem -, ao retomar a analise da metafora e da metonimia feita pelo linguista Roman. Jakobson. O ponto em comum entre esses fendmenos é 0 que Lacan isolara como sendo a irrup¢ao, “a presenga do significante no real”, com todos os novos desvios das significagdes da realidade para 0 sujeito. Lacan via neles uma condi¢ao da “situagao do homem mo- derno” (: 286), uma espécie de transtorno generalizado da lingua- gem, um transtorno que a ciéncia induz com seus novos objetos em nosso mundo simbolico. Ja nesse momento, Lacan entendia que esses efeitos eram parte da normalidade do mundo do ser falante. Os aparelhos que a tecnociéncia pde 4 nossa disposi¢ao sem divida tém um efeito cada vez maior, nessa mesma dire¢do, sobre a nossa relacao com a linguagem e com 0 real simbolizado por ela. Em nossa época, que este Congresso chamou de “a época Geek” - termo habitualmente utilizado para falar das pessoas mais ou menos hipnotizadas pela tecnologia ¢ pela informatica, ou seja, quase todos nos -, enfim, nessa época caracterizada pelos efeitos da técnica sobre © sujeito da ciéncia, pode-se dizer que passamos dos “transtornos da linguagem” para a linguagem entendida como um transtorno em si mesmo. A linguagem se converte inclusive num transtorno do qual a assim chamada humanidade teria de ser curada. 240 A PSICANALISE, A CIENCIA, © REAL M COMO ESTORVO A LINGUAG Veiamos um exemplo, talvez limitrofe, dessa nova perspectiva, ex- traida da incidéncia cada vez maior das técnicas cibernéticas no campo das neurociéncias, € destas no ambito da satide mental. Tra- tase de um campo que se converteu numa referéncia fundamental do cognitivismo atual, inclusive em certa orientacao que chegou a designar a si mesma com 0 surpreendente neologismo de “neuro- psicandlise” No ambito da cibernética, alguém chamado Kevin Warnick, professor da Universidade de Reading, na Inglaterra, pés em funcionamento o Projeto Cyborg a partir desta pergunta, que desempenha a fungao de btissola em sua pesquisa: “O que acontece quando se mescla um homem com um computador?” Nao me de- terei nos aspectos mais ou menos frankensteinianos dessa pesquisa ede seus resultados, com as novas técnicas de implantes de chips e de outros dispositivos eletrénicos no corpo do sujeito. Tampouco me deterei nos fins benéficos que se podem obter com esses meios no tratamento de diversas lesdes do sistema nervoso. Privilegiarei © testemunho do proprio sujeito dessas pesquisas, porque estas me parecem indicar o horizonte do sujeito de nosso tempo, o sujeito das tecnociéncias. Em sua recente passagem por Barcelona, Kevin Warnick deu um testemunho de suas experiéncias nos seguintes termos: conse- guiu conectar seu cérebroa um computador que esté em Nova York, no intuito de enviar seus impulsos nervosos pela Internet para um braco robético situado em seu laboratério, localizado na Inglaterra. Assim, conseguiu mover esse braco e “senti-lo’, como se fosse 0 seu proprio braco. Em seguida, no decorrer da mesma experiéncia, que j4 implica certo grau de despersonalizacao € de corpo despeda¢a- do, conseguiu conectar, também pela Internet, seu proprio sistema nervoso, sua propria rede neuronal, a rede neuronal de sua mulher, com 0 objetivo de poder comunicar-se com ela sem precisar falar. Nosso corpo, sustenta o senhor Warnick, “nao passa de um estorvo Para 0 nosso cérebro” (Warnick, 2012). O paradoxo légico suposto Por essa afirmagao, quando se considera 0 cérebro uma parte se- Parada e inclusive diferente do proprio corpo, nao € um obsticulo au NGUAGEM COMO TRANSTORNO DO REAL at na tentativa de inscrever a relacdo entre os sexos no real. O corpo despedagado do sujeito da ciencia podera sempre sonhar com sua recomposi¢ao no espago virtual com 0 Outro, desde que ele, ou ela, possa encarnar ou fazer aparéncia, “semblante’, de Outro gozo sempre possivel. Apesar disso, alguns problemas entre 0 senhor Warnick e sua mu- Iher parecem nao se resolver, problemas de identidade sexual e de comunica¢ao que ele mesmo nao hesita em tornar conhecidos. Irena, sua mulher, costuma queixar-se de nao ser suficientemente escutada porele.Osenhor Warnick decidiu entao conectar seu sistema nervoso com a mao da senhora Warnick e, assim, quando ela move seu brago, ele recebe os impulsos correspondentes em seu proprio cérebro. Pensa que desse modo conseguiré realizar 0 sonho de Samuel Morse, do famoso codigo que leva 0 seu nome, 0 ideal de “enviar outro” de maneira direta, sem a necessidade ios dependentes de um hardware. culo que o senhor Warnick encontrou em causa final de seu inventor sinais de um cérebro a de recorrer a outros mé! Mas existe um obst sua experiéncia e que parece sé insurgir como a fracasso. Esse obstaculo instransponivel é a propria linguagem, tal como ele nos 0 mostra de maneira tao clara quanto ilustrativa. Sua experiéncia encontrou um grande beco sem saida no “mesmo obs- taculo encontrado por nés, a interface que existe entre os cérebros, ou seja, a linguagem, uma vez que os neurdnios estao conectados on line com os impulsos elétricos, mas eles, para chegarem de um sujeito a outro, devem passar necessariamente pela arcaica lingua- gem humana’. A linguagem, esse instrumento que deveria ser um meio de comunicacao, converte-se assim no maior obstaculo para uma comunicagao direta, na principal causa da incomunicagao ou da nao relacdo entre um sujeito e outro, € principalmente entre um sexo € outro. A experiéncia do senhor Warnick se choca contra a linguagem, que se rebela como um transtorno irredutivel do real, um transtorno que torna impossivel inscrever a relacao entre OS sexos no real ¢ malgasta um gozo imitil em relagao a0 que deveria i ee ee e efetiva. Ele pode entao dizer: “Com- 2 linguagem se oe instantanea e precisa da rede neuronal, la um codigo demasiadamente ambiguo € 1m- 242 A PSICANALISE, A CIENCIA, 0 REAL precisa... F falar, que maneira lenta e primitiva de emitir e receber ondas sonoras!” Ea linguagem, portanto, 0 que se converte num estorvo, numa especie de doenga, uma doenga inclusive um pouco arcaica, um virus invasor que se aloja no corpo, transformando-o, enfim, em mais um estorvo no real. UM NOVO REAL Na verdade, o senhor Warnick tem alguma razio. Essa também era a opiniao de Lacan na ultima fase de seu ensino, por exemplo, em O Seminario, livro 23: 0 sinthoma, duas décadas depois de O Semind- rio, livro 3, as psicoses, a0 qual me referi de inicio: “Trata-se antes de saber por que um homem chamado de normal nao percebe quea fala é um parasita, que a fala é um revestimento, que a falaéa forma de cancer de que o ser humano se aflige” (Lacan, 1975-6: 93). Eo sujeito psicdtico é aquele que estaria justamente mais bem situado para capta-lo, tal como um James Joyce deu testemunho desse real da linguagem que aflige o ser falante. A experiéncia da escrita de James Joyce mostrou a Lacan que nao ha transtornos de linguagem propriamente ditos; é a prépria linguagem que é 0 transtorno, um transtorno do qual se pode fazer, no melhor dos casos, um sinthoma, um modo de gozar singular para o sujeito. E porque a propria linguagem é um transtorno do real que se Pode sustentar que todo mundo delira, que todo mundo € afeta- do pelo transtorno da linguagem. E precisamente a existéncia da linguagem e do equivoco do significante que introduz um abismo no real e também essa dimensao do ser falante como um sujeito do gozo, um gozo tao irredutivel quanto a propria linguagem. E se, mesmo assim, determinada tecnociéncia pode sonhar com um real que se cure do transtorno da linguagem, a psicanilise esta ai para "Mostrar o incurdvel desse transtorno no ser falante. Na época Geek da tecnociéncia existe, pois, ao menos uma ob- Je¢ao a0 ideal da possivel desaparicao do transtorno da linguagem da superficie da terra. Trata-se da objecao do sujeito psicdtico, que A LiNeu, “SUAGEM COMO TRANSTORNO DO REAL 243 tenta fazer justamente com a linguagem um sinthoma para crer nele de maneira radical, tio radical como o indicou Eric Laurent na in- tervengdo que deu inicio a preparagao deste Congresso. Nossa investigagio, ao seguir o ensino de Lacan, € uma inves- tigagio em torno do abismo introduzido no real pelo fato da lin- guagem, pelo fato do ser falante. E um abismo no real que, ao ser considerado com os instrumentos da psicanilise, ao ser considera- do & luz do sinthoma, implica a existéncia de um novo real. Trata-se de um real que nao se pode conceber de maneira objetiva, uma vez que habitamos o abismo nele introduzido pela linguagem. Ha ai uma impossibilidade inerente a esse novo real de que a ciéncia nio pode dar conta porque alicergado justamente na foraclusio, no mais absoluto esquecimento de tal abismo. Mas € precisamente com esse novo real que estamos confronta- dos na perspectiva do préximo Congresso da Associagio Mundial de Psicanilise, cujo titulo, tao promissor para a nossa experiéncia, é este: “Um real para o século xx”. 244 A PSICANALISE, A CIENCIA, © REAE

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