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11, CONCORDAR COM O AUTOR OU DISCORDAR? A primeira coisa que o leitor tem de dizer é se entendeu ou nao. Na reali- dade, ele precisa dizer que entendeu para que possa dizer algo mais. Se nao tiver entendido, deve calar-se e concentrar-se no livro. Hé uma excegio a crueldade da segunda alternativa. Dizer “nao entendi” pode ser, em si, um comentério critico. Para que seja esse 0 caso, o leitor precisa saber se justificar. Se o problema € do livro, e nao dele, o leitor precisa localizar as fontes do problema. Deve ser capaz de mostrar que o livro tem uma estrutura mal ordenada, que suas partes ndo se encaixam como deveriam, que algumas de- las carecem de importdncia ou que 0 autor est equivocado ao empregar certas palavras importantes, o que pode dar margem a uma série de confusdes. Na me- dida em que o leitor consiga sustentar sua acusacio de que o livro € ininteligivel, nao lhe restaré nenhuma obrigacao em seu papel de critico. Suponhamos, porém, que vocé esteja lendo um bom livro, ou seja, um livro relativamente inteligivel. E suponhamos que, no final das contas, vocé seja capaz de dizer: “entendi”. Se, além de entender 0 livro, vocé concordar com 0 que 0 autor disse, o trabalho terminou por af. A leitura analitica estaré encer- rada. Vocé foi esclarecido, ou convencido, ou persuadido. Ou seja, s6 haveré passos adicionais caso tenha discordado do autor ou caso tenha suspendido o julgamento. O primeiro caso € 0 mais comum. Na medida em que os autores argumentam com seus leitores — e esperam que seus leitores contra-argumentem —, o bom leitor deve estar familiarizado com 0s principios da argumentacao, Ele precisa ser capaz de conduzir uma po- lémica de forma civilizada e inteligente. E exatamente para isso que serve este capitulo. O leitor pode chegar a concordar com o autor ou discordar dele de for- ma significativa, ndo apenas entendendo os argumentos, mas confrontando-os. Scanned with CamScanner Vamos fazer uma pausa para refletir sobre o significado da concérdia e da discérdia. O leitor que chega a um acordo com o autor, assimilando suas proposigdes € argumentos, compartilha com ele uma forma de pensar. Na realidade, todo o processo de interpretacao esta voltado para 0 encontro entre duas mentes mediante a linguagem. Compreender o livro é como se houvesse um acordo entre autor € leitor. Eles concordam sobre como a lin- guagem foi usada para expressar determinadas ideias. Em funcao desse acor- do, o leitor seré capaz de enxergar através da linguagem do autor as ideias que ele buscou expressar. Se o leitor entendeu o livro, como poderd discordar dele? A leitura cri- tica exige que o leitor forme suas préprias ideias, mas as mentes do autor e do leitor agora sio uma s6. Que mente sobrou ao leitor para que forme suas préprias ideias? HA pessoas que cometem o erro de nio diferenciar entre dois tipos de “acordo". Elas supdem, de maneira equivocada, que se ha acordo entre duas pessoas, entdo no hd nenhuma discérdia. Elas acham que toda discérdia é uma questo de incompreensio. O erro se torna patente quando lembramos que 0 autor esta emitindo julgamentos sobre o mundo em que vivemos. Ele transmite conhecimentos teéricos sobre como as coisas existem € se comportam, ou conhecimentos praticos sobre como as coisas devem ser feitas. Evidentemente, ele pode es- tar certo ou errado. Ele sé terd razao se tiver dito coisas verdadeiras, se tiver apresentado fatos que séo ao menos provaveis, a luz das evidéncias. Caso contrario, estara equivocado. Se vocé disser, por exemplo, que “todos os homens sao iguais”, enten- deremos que todos os homens ao nascerem sao igualmente dotados de inteli- géncia, forca etc. A luz dos fatos, teriamos de discordar de vocé. Acharfamos que vocé esté errado. Mas suponha que tenhamos entendido vocé mal. Vamos supor que, na realidade, vocé quis dizer que todos os homens tém os direitos politicos iguais. Como nao entendemos 0 que vocé quis dizer, nossa discérdia torna-se irrelevante. Agora, vamos supor que o erro foi devidamente corrigido. Res- tam-nos duas alternativas. Podemos concordar ou discordar, mas, se discordarmos, 164 Como Ler Livros Scanned with CamScanner haverd uma discérdia real entre nds. Entendemos seu posicionamento politico, mas defendemos uma posicao contraria. Discérdias sobre questées factuais ou politicas — questées sobre como as coisas séo ou deveriam ser — so reais somente quando hd um entendimen- to comum a respeito daquilo que esté sendo dito. Estar de acordo sobre 0 uso das palavras € uma condigéo indispensdvel para a genuina concérdia ou discérdia sobre os fatos. E por causa do consentimento entre vocé ¢ 0 autor, € nao a despeito dele, que mediante uma interpretacao sélida vocé se torna capaz de formar sua prépria opiniao, defendendo ou atacando a posigao que ele tiver tomado. PRECONCEITO E JULGAMENTO Consideremos agora a situagao em que vocé discorda do autor mesmo que tenha entendido tudo o que ele disse. Se vocé se esforgou em seguir os preceitos apresentados no capitulo anterior, entéo discorda porque sabe onde o autor errou. Vocé nao esta simplesmente verbalizando preconceitos ou expressando emogoes. E'por isso que, de um ponto de vista ideal, ha trés condigées que devem ser satisfeitas para que a controvérsia seja conduzida a contento, A primeira é exatamente esta: como os seres humanos além de racionais so também animais, é indispensdvel que as emogdes que porventura despontem ao longo da discérdia sejam identificadas € reconhecidas como tal. Caso con- trdrio, vocé apenas daré vazao a sentimentos, ¢ nao vai declarar razdes. Vocé pode até achar que est4 coberto de razdo, mas na verdade estd coberto de fortes emogoes. Segunda: vocé precisa explicitar suas premissas e pressuposic6es. Precisa es- tar ciente dos seus preconceitos, isto é, de seus prejulgamentos. Caso contrério, nao conseguiré admitir que seu oponente também tem o direito de ter premissas € pressuposigGes diferentes. A boa discordia néo deve resumir-se a disputas sobre premissas. Por exemplo, se um autor explicitamente the pedir que aceite certas premissas 44, Concordar com @ autor ou discordar? - 16s Scanned with CamScanner como verdadeiras, 0 fato de que 0 contrério do que ele diz também possa ser verdadeiro nao é motivo suficiente para vocé contesté-lo. Se seus preconceitos situam-se no polo oposto € se vocé nao reconhece que sio preconceitos, sera incapaz de avaliar o autor com a devida justiga. Terceira e siltima: tentar ser imparcial € um bom antidoto para as cegueiras “partidérias”. E impossivel no haver controvérsias quando hi tomada de par- tido, mas para que as partes tenham certeza de que estao trilhando o caminho certo, isto é, que a razdo esteja predominando sobre as emogées, é desejavel que cada parte assuma 0 ponto de vista do oponente. Se vocé for incapaz de ler um livro de maneira, digamos, “simpética’, suas discérdias provavelmente serio fruto de disputas meramente pessoais € no intelectuais. Essas trés condigdes sao, idealmente, as condigées sine qua non da conversa inteligente e proveitosa. Elas obviamente se aplicam também a leitura, uma vez que a leitura também € um tipo de conversa. Cada uma dessas condigdes con- tém conselhos titeis para os leitores que estejam realmente buscando respeitar 0 ponto de vista do oponente. Porém, o ideal é algo do qual podemos nos aproximar, mas que nunca iremos atingir. Jamais devemos esperar o ideal das pessoas. Nés mesmos, ad- mitamos desde ja, estamos bastante conscientes de nossos proprios defeitos. Violamos nossas préprias regras de boas maneiras intelectuais. J4 nos percebe- mos atacando um livro em vez de criticé-lo, batendo em espantalhos, fazendo denincias sem poder justificd-las ou afirmando que nossos preconceitos eram melhores que os do autor. No entanto, continuamos firmes em nossa crenga de que conversas ¢ lei- turas criticas podem ser bem disciplinadas. Dessa maneira, vamos substituir essas trés condigdes ideais por um conjunto de prescrigdes que possam ser facilmen- te seguidas, Elas indicam os quatro caminhos para que um livro seja devida € justamente criticado, Nossa esperanca é que 0 leitor fique menos inclinado a expressar emogdes € preconceitos. Os quatro itens podem ser brevemente resumidos supondo-se que o leitor esteja conversando com 0 autor, ou seja, como se estivesse Ihe respondendo ou fazendo comentarios. Apés dizer “entendi, mas nao concordo”, o leitor poderé Scanned with CamScanner fazer estes comentarios ao autor: (1) “Vocé estd desinformado", (2) “Vocé estd mal infor- mado”; (3) "Voct ¢ilégico — sew racioctnio nao & coerente"; (4) "Sua andlise esta incompleta”. Talvez, mais tarde, vocé descubra que essas quatro observacées nao sio exaustivas, mas achamos que sio. De qualquer maneira, elas compdem as prin- cipais discérdias esperadas do leitor. Elas sio mais ou menos independentes. Se vocé fez uma dessas observagées no significa que nao pode fazer outra também. Vocé pode comentar todas a0 mesmo tempo, j4 que as falhas a que se referem nao sao mutuamente excludentes. Todavia, 0 leitor nao pode esquecer que cada uma das observagées deve ser complementada com uma explicagao definida e precisa sobre os pontos nos quais o autor esta desinformado ou mal informado, ou sobre os quais foi ilégico. Nao € possivel que o livro esteja desinformado ou mal informado sobre tudo, ou que seja totalmente ildgico. Além do mais, 0 leitor que fizer qualquer uma dessas consideragdes nao deverd apenas complementar a res- posta com uma explicagdo, mas teré de fornecer razGes que sustentem seu ponto de vista. COMO JULGAR A SOLIDEZ DE UM AUTOR As primeiras trés observagdes sio diferentes da quarta, conforme vocé provavelmente percebeu. Vejamos cada uma delas rapidamente e depois pas- saremos & quarta. 1, Dizer que 0 autor esté desinformado € 0 mesmo que dizer que nele estio ausentes conhecimentos relevantes sobre o problema que tenta resolver. Observe que essa critica 6 faz sentido se for relevante o conhecimento que falta ao autor. Para que a critica faga sentido, vocé deve ser capaz de declarar precisamente 0 conhecimento que falta ao autor, mostrando a sua relevancia para as conclusdes do problema e do raciocinio. Alguns exemplos serao titeis. Darwin nao possui o conhecimento sobre genética que a obra de Mendel mais tarde apresentaria. A ignorancia de Darwin sobre 0 mecanismo da hereditariedade é provavelmente uma 44, Concordar com 0 autor ou dscordar? - 167 Scanned with CamScanner das maiores falhas da Origem das Espécies. Gibbon nao conhecia alguns fatos relevantes sobre a queda de Roma que mais tarde seriam des- cobertos por historiadores. Em geral, nas ciéncias e na hist6ria, a fal- ta de informagio é evidenciada por pesquisas mais recentes. Técnicas mais apuradas de observacio ¢ investigagdes mais prolongadas so as responsaveis pelo tipo de desinformacao que se verifica nesses cam- pos. Quanto a filosofia, a coisa é diferente. A passagem do tempo pode trazer acréscimo de saber, mas também pode trazer decréscimo. Os pensadores da Antiguidade, por exemplo, distinguiam com clareza o que os seres humanos sentiam e imaginavam e 0 que podiam entender. No entanto, no século XVIII, David Hume deixou claro que ignorava a distingao entre imagens e ideias, apesar de ter sido tao bem delineada pelas obras dos filésofos da Antiguidade. 2. Dizer que o autor esta mal informado € 0 mesmo que dizer que ele afirma algo que nao corresponde & realidade. A falha pode resultar de alguma falta de conhecimento, mas nao se trata apenas disso. A despeito da causa, 0 erro consiste em afirmar coisas contrarias aos fatos. O autor afirma que algo é verdadeiro ou provavel quando, de fato, € algo falso ou improvavel. Ele afirma possuir um conhecimento que nao tem. Evidentemente, esse tipo de falha sé deve ser apon- tado quando a questao for relevante as conclusdes do autor. E nao se esqueca: a falha nio deve apenas ser apontada, deve ser refutada mostrando a verdade (ou a maior probabilidade) do seu ponto de vista em relagao ao do autor. Por exemplo, em um de seus tratados sobre politica, Espinosa parece ter dito que a democracia é um tipo mais primitivo de governo do que a monarquia. Trata-se de uma afirmagéo que vai de encontro a fatos bem conhecidos da histéria politica. O erro de Espinosa tem relagio direta com seu argumento. Aristételes estava mal informado sobre o papel que as fémeas desempenhavam na reproducao animal e, consequentemente, chegou a conclusées indefensaveis sobre 0 pro- cesso reprodutivo. Toms de Aquino supunha, equivocadamente, que Scanned with CamScanner a matéria dos corpos celestes era essencialmente diferente da matéria dos corpos terrestres, pois ele supunha que os corpos celestes apenas mudavam de posigéo enquanto sua composicao essencial permanecia a mesma. A astrofisica moderna corrigiu esse erro e, nesse respeito, representou um progresso em relacao a astronomia antiga e medieval. Mas trata-se de um erro cuja relevancia é limitada, pois nao afeta a explicagao metafisica que Tomas de Aquino dava para a natureza das coisas sensiveis compostas de matéria e forma. Essas duas primeiras respostas criticas estdo inter-relacionadas. Falta de informagao, conforme vimos, pode ser a causa de afirmagdes equi- vocadas. Além disso, sempre que alguém esté mal informado, ele também estar4, de certa maneira, desinformado. Mas faz diferenga observar a re- levancia do erro. A falta de conhecimento relevante torna impossivel solucionar certos problemas ou sustentar determinadas conclusdes. As suposicdes erréneas, contudo, levam a concludes errdneas ¢ a soluces insustentaveis. Tomados em conjunto, esses dois pontos levantam sus- peitas contras as premissas do autor. Ele precisa de mais conhecimento do que possui. Suas evidéncias nao sao suficientes, seja em quantidade, seja em qualidade. . Dizer que 0 autor € ilégico € 0 mesmo que dizer que ele foi falacioso ao raciocinar. Em geral, hd dois tipos de falécias. Ha os non sequitur, ou seja, a conclusdo nao guarda relagao necesséria com as razées oferecidas. E hd as inconsisténcias, isto é, quando o autor afirma duas coisas que sao in- compativeis entre si. Para fazer uma dessas duas criticas, 0 leitor precisa ser capaz de mostrar onde, precisamente, a argumentagao do autor care- ce de coeréncia. S6 devemos nos ocupar dessas falhas a medida que elas afetem as conclusées principais do autor. Afinal, o livro pode carecer de coeso em questées irrelevantes 4 conclusio. E mais dificil ilustrar esse tipo de falha porque os bons livros em geral no o cometem. Quando cometem, esto tao bem ocultos que somente um leitor experiente ¢ inteligente conseguird detecté-los. H4, por exem- plo, uma falicia patente no Principe de Maquiavel: 14, Concordar com o autor ou discordar? - 169 Scanned with CamScanner alquer Estado, seja Velho OU POVO, so 4 Ieis em Estados que haja um Estado bem armado haverg © fundamento principal de as boas leis. Como nao hé boas mados, conclui-se que onde quer q¥e io estejam bem ar. boas leis. forca policial adequada nlo que, ra, 0 fato de que boas leis dependam de ; Ora, 0 fato de que policial adequada as leis se dizer que onde haja forga bir s Ngo estamos interessados no caréteraltamente questionavel da primeira ase, tiva, mas queremos abordar especificamente 0 #0" sequitur. E mais verdadeirg ‘ idade depende de boa satide do que afirmar que boas leis de. mas isso nao quer dizer que todas as pessoas afirmar que a fei pendem de forca policial adequada, saudéveis sio felizes. Em seu Elementos da Lei, Hobbes argumenta em determinado trecho que os corpos no passam de quantidades de matéria em movimento. O mundo dos corpos, diz ele, néo possui qualidades. Em outro trecho, afirma que o homem é nada mais que um corpo, ou um conjunto de corpos atémicos em movimento, No entanto, ao admitir a existéncia de qualidades sensoriais — cores, odores, gostos etc. -, Hobbes conclui que elas nao passam de movimentos atémicos cerebrais. A conclusao € inconsistente com o posicionamento inicial, qual seja, de que 0 mundo dos corpos nao possuiria qualidades. Afinal, o que é dito de todos os corpos em movimento deve necessariamente ser aplicado a qualquer grupo em particular, incluindo os dtomos cerebrais. Esse terceiro aspecto critico relaciona-se com os outros dois. O autor pode, obviamente, ter sido malsucedido ao extrair as devidas conclusdes das evidencias ¢ princfpios. Por conseguinte, o raciocinio estaré incompleto. Aqui estamos preocupados sobretudo com o ca 5 sO em que ele raciocina equivocadanente com base em premissas corretas, E interessat inte, mas no tio importante, descobrit 170 Como Ler Lioros Scanned with CamScanner afirmagao errénea que decorre de outras falhas, sobretudo de conhecimento insuficiente dos detalhes relevantes. COMO JULGAR O GRAU DE COMPLETUDE DE UM AUTOR As trés observagées criticas j4 consideradas lidam com a solidez das afir- mages € dos raciocinios do autor. Vamos agora nos voltar a quarta observacio. Ela se refere ao esmero com que 0 autor executou seu plano. Antes de nos aprofundarmos na quarta observagio, é necessério fazer um comentario. Dado que vocé entendeu 0 livro, o fato de nao fazer uso de nenhu- ma das trés observagGes apontadas obriga-o a concordar com o autor. Nao hé livre escolha aqui. Concordar com o autor ou discordar dele nao é uma espécie de privilégio sagrado. Se vocé nao foi capaz de mostrar onde e como 0 autor estd desinformado, mal informado ou ilégico, entdo simplesmente nao pode discordar dele. Vocé tem de concordar. Vocé nao pode dizer, como muitos alunos dizem por af, que “no encontrei nada de errado nas premissas, nem no raciocinio, mas mesmo assim discordo das conclusées”. Do contrario, o que vocé estaria dizendo é que nao gosta das conclusdes. Vocé nao esté discordando, est4 expressando suas emogoes ou preconceitos. Ora, se vocé foi convencido, entéo tem de admitir isso. (Se, mesmo nao aderindo a nenhuma das trés respostas criticas, vocé ainda se sente honestamente incapaz de se deixar convencer, talvez nao devesse ter dito que entendeu 0 livro.) As primeiras trés observagdes tém a ver com os termos, proposigées € ar- gumentos do autor. Afinal, esses sao os elementos que ele utilizou para resolver 0s problemas que inspiraram seus esforcos, A quarta observagio — 0 livro esta incompleto — tem a ver com a estrutura do livro. 4. Dizer que a andlise estd incompleta € 0 mesmo que dizer que o autor ndo resolveu o problema que se propés a resolver, ou que nao usou adequadamente ‘© material de que dispunha, que nao observou todas as devidas implicagées € 14. Concordar com o autor ou discordara = 174 Scanned with CamScanner ramificagées, ou que falhou ao distinguir os aspectos relevantes de sua empreita- da. Nao basta dizer que o livro esté incompleto. Qualquer um conseguiria dizer isso. Os homens so finitos e, por conseguinte, suas obras também sao. Portanto, essa ressalva sé faz sentido se vocé for capaz de definir precisamente onde esta a inadequagao, seja por esforco préprio, seja com 0 auxilio de outros livros. Ilustremos rapidamente esse ponto. A anilise dos tipos de governo na Po- litica de Aristételes esta incompleta. Por causa das limitagées tipicas da épo- ca e do fato de erroneamente aceitar a escravidao, Aristételes nao considera, nem mesmo concebe, a constituigdo verdadeiramente democratica baseada no sufrigio universal, ele também nao imaginou um governo representativo ou a moderna republica federativa. Sua anilise deveria ter sido capaz de conceber tais realidades politicas. Os Elementos de Geometria de Euclides sao incompletos porque ignoram outros postulados sobre a relacdo entre as linhas paralelas. As obras modernas de geometria, a0 considerarem esses postulados, suprem as defi pensamento porque aborda somente o tipo de pensamento que ocorre duran- iéncias de Euclides. Como Pensamos, de Dewey, € uma anilise incompleta do te as investigacdes e descobertas, mas nao aborda o tipo de pensamento que ocorre durante as leituras ou durante as aprendizagens por instrucdo. Para um cristdo que cré na imortalidade da alma, as obras de Epiteto ou Marco Aurélio sio incompletas no que diz respeito & felicidade humana. Estritamente falando, esse quarto ponto nao deve servir de base para dis- cérdias. A tinica adversidade aqui € que os feitos do autor sao limitados. O leitor que concordar em parte com 0 livro — j4 que nao encontra razdes para tecer criticas adversas — pode, no entanto, suspender seu julgamento como um todo. por suspeitar de que o livro nao esté completo. O julgamento suspenso corres- ponde 4 falha do autor em resolver com perfeigao os problemas que se props. Livros correlatos — isto é, livros do mesmo assunto — podem ser critica- mente comparados & luz desses quatro critérios. Um livro sera melhor que ou- tro & medida que cometer menos erros € se expressar mais verdadeiramente. Se estivermos lendo para aumentar nosso conhecimento, o melhor livro serd, ‘obviamente, aquele que melhor abordar o assunto. Talvez um autor nado tenha as informagées que outro possui; talvez um autor estabelega premissas erréneas #72 - Como Ler Livros Scanned with CamScanner das quais outro esteja livre; talvez um autor seja menos coerente que outro em sua exposigio. Mas a comparacdo mais profunda que podemos fazer é entre o grau de completude de cada um. A medida dessa completude encontra-se no numero de distingées validas e significativas que cada exposigao contém. Talvez agora vocé perceba como € titil e importante apreender os termos do autor. ‘O ntimero de termos é diretamente proporcional ao ntimero de distingdes. Talvez vocé também esteja percebendo como a quarta observacio critica esta intimamente ligada aos trés estagios de leitura analitica de qualquer livro. iiltimo passo no delineamento estrutural é conhecer os problemas que 0 au- tor tenta resolver. O tiltimo passo da interpretagao € conhecer quais desses problemas o autor resolve quais ele nao resolve. O passo final é justamente © ponto sobre 0 grau de completude do autor, que se refere ao delineamento estrutural do livro, pois considera se o autor foi bem-sucedido ao declarar seus problemas. Refere-se também a interpretacio, na medida em que avalia se 0 autor resolveu tais problemas a contento. OTERCEIRO ESTAGIO DA LEITURA ANALITICA Finalmente completamos, de maneira geral, a enumeragao das regras de leitura analitica. Estamos em condigdes de expor sintaticamente todas as regras. Primeiro estdgio da leitura analitica: regras para descobrir 0 contetido 1. Classifique 0 livro de acordo com o tipo € 0 assunto. 2. Diga sobre 0 que € 0 livro como um todo, com a maxima brevidade possivel. 3. Enumere as partes principais em sua devida ordem e relacao, ¢ delineie essas partes assim como delineou o todo. 4, Defina o problema (ou os problemas) que o autor buscou solucionar. II - Segundo estégio da leitura analitica: regras para interpretar o contetido 5. Entre em acordo com 0 autor, interpretando as palavras-chave do livro. 14. Concordar com 0 autor ow discordar? - 473 Scanned with CamScanner 6. Apreenda as proposigées principais, estudando as frases mais importantes, 7. Identifique os argumentos, encontrando-os ou construindo-os com base em sequéncias de frases. 8. Determine os problemas que foram resolvidos e os que nao foram resol- vidos; quanto a estes tiltimos, verifique se 0 autor esta ciente de que nao conseguiu resolvé-los. IIL Terceiro estégio da leitura analitica: regras para criticar o contetido A. Preceitos da etiqueta intelectual 9, Nao critique até que tenha completado o delineamento e a interpretagao dolivro. (Nao diga que concorda, discorda ou que suspende o julgamen- to até que tenha dito “entendi”.) 10. Nao discorde de maneira competitiva. 11. Demonstre que reconhece a diferenca entre conhecimento e opiniio pessoal apresentando boas razes para qualquer julgamento critico que venha a fazer. B. Critérios especiais para o exercicio da critica 12. Mostre onde o autor est desinformado. 13, Mostre onde o autor esté mal informado. 14. Mostre onde 0 autor foi ilégico. 15, Mostre onde a andlise ou a explicagio do autor est4 incompleta. (Nota: dos quatro tiltimos critérios, os trés primeiros servem para os ca- sos em que hé discérdia, Se nio servirem, entio vocé tem de concordar com olivro, a0 menos em parte, embora possa suspender o julgamento do todo com base no iiltimo critério.) Observamos, 20 final do capitulo 7, que a aplicagéo das primeiras quatro regras da leitura analitica auxilia na resposta a primeira pergunta bésica sobre qualquer livro, qual seja, O livro, como um todo, é sobre o qué? De maneira similar, no. final do capitulo 9 dissemos que as quatro regras de interpretagio auxiliam na resposta a segunda pergunta bsica, qual seja, O que exatamenteestd sendo dito, e como? 474 Como Ler Livros Scanned with CamScanner Por fim, € claro que as sete tiltimas regras de leitura — os preceitos da etiqueta intelectual € os critérios para o exercicio da critica — auxiliam na resposta a ter- ceira e A quarta perguntas, quais sejam, O livro é verdadeiro? e E dai? A pergunta O livro é verdadeiror pode se prestar virtualmente a qualquer tipo de leitura. Ela se aplica a todo tipo de material escrito, a despeito da “verdade" em questao — matemitica, cientifica, filos6fica, histérica ou poética. O melhor elogio que alguém pode fazer a qualquer obra da mente humana é afirmar que ela expressou a verdade; porém, criticd-la por nao ter alcancado esse objetivo € sinal de que a respeitamos e a tratamos com seriedade. No entanto, causa-nos estranheza o fato de que recentemente, pela primeira vez na histéria ocidental, hd uma preocupagio cada vez menor com esse critério de exceléncia. Hé livros que arrancam aplausos da critica e ganham tremenda popularidade pelo simples fato de zombarem da verdade — quanto mais escandalosa a zombaria, tanto melhor. Hé muitos leitores, sobretudo 0s criticos das obras modernas, que empregam ‘outros padrées para julgar, elogiar e condenar os livros que leem — originalidade, sensacionalismo, poder de sedugio, forga, até mesmo a capacidade de distrair ¢ confundir a mente do leitor, mas nao a verdade, a clareza oua capacidade de trans- mitir conhecimento. Arriscarfamos a sugerir que se dizer a verdade voltasse a ser um critério editorial importante, poucos livros seriam escritos, publicados e lidos. Se 0 que vocé leu nao foi verdadeiro em algum sentido, no precisa prosse- guir. Mas se foi verdadeiro, entao vocé tem de encarar a tiltima pergunta. Vocé nao pode ler inteligentemente para adquirir informagio sem determinar qual significancia deve ser atribuida aos fatos apresentados. Os fatos vém até nds sem a devida interpretagéo, implicita ou explicita. Isso vale especialmente se estivermos lendo compilagées de fatos que precisem ser selecionados de acordo com sua importancia, de acordo com algum principio interpretativo. Se estiver- mos lendo para adquirir conhecimento, a quarta pergunta nunca teré fim: E daf? As quatro perguntas, como jé dissemos, resumem todas as obrigagdes de um leitor. As primeiras trés, em especial, correspondem a algo que subsiste na prépria natureza do discurso humano. Se as comunicagdes nao fossem com- plexas, os delineamentos estruturais seriam desnecessérios. Se a linguagem fosse um meio perfeito de comunicacio, interpretagdes seriam totalmente 14. Concordar com 0 autor ou dscordard «475 Scanned with CamScanner desnecessarias. Se o erro e a ignorancia nao fossem uma ameaga 4 verdade & ao conhecimento, nao terfamos de ser criticos. A quarta pergunta se volta para a distingao entre informacao e entendimento. Se a leitura tiver sido predomi- nantemente informacional, sinta-se desafiado a ir além e procurar 0 conhe- cimento. Mesmo que o material lido tenha sido relativamente esclarecedor, vocé tem de continuar em busca de novos significados. Antes de entrarmos na Parte Trés, vale a pena reafirmar que as regras da leitura analitica descrevem um desempenho ideal. Poucas pessoas leem livros desse jeito, e aquelas que o fazem provavelmente nao o fazem com frequéncia. O ideal permanece, porém, como a medida da realizagéo. Vocé sera um bom leitor 4 medida que se aproximar desse ideal. Deveriamos dizer que alguém é “bem lido” com esse ideal em mente. Com frequéncia, encontramos essa expresso sendo usada para apontar leitores que leram muitos livros, a despeito da qualidade de sua leitura. O sujeito que leu muito, mas leu mal, deveria ser condenado, e nao elogiado. Como dizia Thomas Hobbes, “Se eu lesse tantos livros quanto as demais pessoas leem, seria tio estipido quanto elas”. Os grandes escritores também sio grandes leitores, mas isso nao quer di- zer que leram todos os livros que, na época deles, eram considerados indispen- sdveis. Em muitos casos, eles leram menos livros do que se exige na maioria das universidades modernas, mas 0 que leram, leram muito bem. Por causa do esmero com que leram, acabaram tomando-se pares dos grandes autores que estudaram. Eles se tornaram, literalmente, “autoridades”. No curso natural das coisas, um bom estudante frequentemente se torna um bom professor, e, de maneira similar, um bom leitor se torna um bom autor. Nossa intengao aqui nao é levd-lo da leitura para a escrita, mas lembrd-lo de que o ideal da boa leitura é aplicar as regras aqui descritas a leitura de um tinico livro, em vez de tomar contato superficial com muitos livros. Ha, obviamente, muitos livros cuja leitura vale a pena. Hé um nimero muito maior de livros cuja leitura deveria ser apenas inspecional. Para se tornar uma pessoa “bem lida", no melhor sentido da expressio, vocé deve saber usar a habilidade que possui com discernimento, isto é, lendo cada livro de acordo com seus méritos. Scanned with CamScanner

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