Você está na página 1de 7
MITRIAN, Sonera » dbo 2 OMKer s Scie Cule? EDVS Por outro lado, implicitamente, esta teoria mostra o papel da literatura comparada dentro do sistema de estudos literirios no con- texto do polissistema, 0 qual, como tivemos oportunidade de averi- guar, envolve todos os sistemas culturais. UMA DISCIPLINA INDISCIPLINADA Como foi anunciado desde o inicio, a literatura comparada, cujos contetidos ¢ objetivos mudam constantemente, situa-se entre as disciplinas dificeis de serem delimitadas. O comparatismo tradicio- nal existe ainda e, de certo, sera cultivado, & muito tem : mas acha- detectar leis comuns as literatura ou, pelo menos, aquelas cuja histéria apresenta analogias, para descobrir sob que linha de forca geral as literaturas evoluem. Tal procedimento necessita nao somente de uma terminologia isenta de qualquer conotacio nacio- nal, mas também de principios aplicaveis a um grupo de literaturas. Trata-se de um novo paradigma da literatura comparada, cuja prin- cipal caracteristica reside em sua fundamentacéo num sélido terr no metodolégico, permitindo-lhe irradiar “uma inesperada luz sobre novos aspectos da interagdo entre literaturas"™. Nesse sentido, as teorias de Marino, Durisin e de Even Zohar consistem em ilustracées desse paradigma, que se consolidou nos anos 80 e que poderia constituir uma das caracteristicas da literatura com- parada dessa década, embora ela ja venha se insinuando ha uns vin- te anos. Dentre as trés propostas ha pouco relatadas, encontraram maior receptividade as de Durisin e de Zohar, certamente pelas pos- sibilidades que oferecem para desdobramentos metodolégicos ¢, so- bretudo, por considerarem e sistematizarem questées relativas aos contatos literarios, que constituem, no fundo, o objeto medular da 189. Fokema, 1982, p. 26 (grifos do autor) 118 © Literatura Comparada literatura comparada. ‘Tais teorias giram em torno da tese de que@® Embora reconhecendo o valor das contribuicées da teoria do polissistema para os estudos comparatistas, sobretudo pela formula- cdo das leis de interferéncia, penso que a teoria literaria comparatista de Durisin é a que mais se destaca, nao s6 por suas contribuicées para as reflexdes sobre a literatura comparada, como também por oferecer possibilidades mais especificas para novas estratégias metodolégicas. Certamente a consisténcia da teoria de Durisin advém do fato de ele nao fazer tabula rasa da tradicao comparatista tradicional e de resgatar, por meio de uma revisao critica, conceitos genéticos e conta: tuais contemplando a hist6ria e 0 contexto, que se revelam passiveis de serem integrados numa teoria literdria voltada também para a ten- tativa de compreensio da esséncia tipolégica do fendmeno literario. Enfim, ele resolve a integracao, num todo coerente, de elemen- tos fundamentais com os quais se defronta a literatura comparada, desde a obra concreta até a teoria da esséncia tipolégica do fenéme- no literario, passando por problemas de relacdes intraliterarias, in- terliterarias, relacdes entre literatura e outras artes, assim como por mediacdes mais amplas, como grupos, movimentos € até concep¢io de literatura mundial. O surgimento, ou pelo menos a consolidacao, dos chamados novos paradigmas da literatura comparada da década de 80 nao foi suficiente, entretanto, para apagar a chama da eterna crise da litera- tura comparada, conforme Marino dera o alarme. Este comparatista romeno deu o seu grito ¢ procurou resolver o problema desta eter- na crise construindo uma teoria da literatura comparada com base nas colocagées de Etiemble. Em outras palavras, ele tentou buscar uma solucio, embora nao totalmente feliz, a partir da prépria histé- ria das teorias da literatura comparada, tendo como perspectiva a delimitacdo de seu objeto. Como ja foi visto, 0 cerne de sua propos- 190. Cf, Lambert, 1986, p. 53, Porcursos Historicos e Tebricos © 119 ta consiste em nao confundir a literatura comparada nem com a his- toria literaria e nem com a critica literaria, mas instaléla no terreno da teoria. Ora, enquanto sua voz se fazia ouvir, sem grandes ressonan- cias, no espaco comparatista internacional, outras também se mani- festavam, quer por meio de uma pratica concreta, quer por meio de reflexdes, reforcando a eterna crise da literatura comparada, que continuava ¢ continua a ser definida por muitos como uma espécie de disciplina mutante, na medida em que seu objeto vem variando de acordo com a nova ordem de relagées internacionais ¢ de rela- ¢ées entre comunidades internas de uma mesma na¢io. Mais uma vez, esta nova fase de questionamento quanto ao objeto da literatura comparada encontra seu terreno fértil nas universidades norte-ame- ricanas, muitas das quais aderiram aos (Qilhal sudia) mesclando-os com os programas de literatura comparada, de modo que esta disc plina passou a ter novas fronteiras nebulosas. Convém esclarecer que os estudos culturais fazem parte de um: tendéncia interdisciplinar no Ambito das ciéncias humanas, das cién: cias sociais, das artes das letras, reunindo pesquisadores em torn’ de problemiticas ou tematicas comuns e, portanto, baseando-se numa pluralidade interna de fundamentes teéricos, que acabam se unifi- cando por determinagdo do centro de interesse comum. O perfil dos estudos literarios que se contaminaram pelos cul- tural studies, apropriando-se, portanto, de teorias alheias a literatura, apresenta as seguintes caracteristicas: andlise de aspectos extrinsecos e intrinsecos do texto, mas colocando énfase nas bases materiais ¢ institucionais da produgio ¢ recep¢ao cultural; reflexdo sobre o su- jeito humano com 0 objetivo de que ele venha a wanscender as difi- culdades de concepgio “humanista”, mais restritiva; redefini¢ao dos Jo cultural, inclu- objetos de pesquisa de qualquer forma de expr indo as formas populares, tais como telenovela, romance popular, li- teratura infantil, rock, es] = tes ete. minhos para andlises mais sociologicas das culturas de grupos margi 120 © Literatura Comparada nalizados ¢ de grupos oprimidos, como, por exemplo, o estudo de enfatizou-se a significagdo de tais praticas para a transformacao da consciéncia de sujeitos dentro das estrutu- ras de classe e poder. Finalmente, pode-se apontar como caracteristica da conjuga- co dos estudos literrios com os cultural studies 0 incentivo e a valo- rizacdo dos métodos estruturalistas € da “ideologia critica”, como ins- trumentos legitimos para a pesquisa textual. Ora, cada uma destas caracteristicas entra em conflito com a compreensio tradicional das disciplinas literarias, em particular" Se antes, e ainda hoje, para muitos a literatura comparada se confundia ~e continua se confundindo — com a hist6ria, a critica ea teoria literarias, mais recentemente ela passou a se confundir com dominios mais amplos, como nos mostra o Relatério de Bernheimer, realizado em 1998 e apresentado & Associacdo Americana de Litera- tura Comparada para uma ampla discussio. Ao fazerem um balanco sobre os caminhos da literatura comparada durante os tiltimos dez anos nas universidades americanas, os signatarios deste relatério, coordenado por Bernheimer, chegam a afirmar: . A nocdo de que a promulgacao de padrées poderia servir para definir uma dis- ciplina entrou em colapso diante de um aumento aparente de porosidade entre as praticas de uma disciplina € outra. Estudos valiosos usando modelos tradicionais de literatura comparada ainda estio sendo produzicos, naturalmente, mas estes modelos pertencem a uma disciplina que, por volta de 1975, ja se sentia cercada ¢ na defensiva, O espaco de comparagdes hoje envolve comparagdes entre producées isticas comumente estudadas por diferentes disciplinas; entre varias construcées culturais daquelas disciplinas; entre tradicées culturais ocidentais, tanto erudita quanto popular, ¢ aquelas das culturas nao ocidentais, entre produgées pré e pos- contato cultural dos povos colonizadlos; entre construgées de género definide como feminino e aqueles definidos como masculino, ou entre orientagées sexuais defini- das como normais e aquelas definidas como “gay”, entre modos de significacdo ra- cial ¢ étnico; entre articulages hermenéuticas de significagao ¢ andlises materiais de seus modos de produgio e de circulagio; e muito mais, Estes modos de contex- 191. Cf Morrow, 1995. Percursos Historicos ¢ Teéricos © tualizar a literatura em amplos campos do discurso, cultura, ideologia, raga e gene- ro sio tio diferentes los antigos modelos de estudlos literdirios, de acordo com auto- res, nacées, perfodos ¢ géneros, que o termo “literatura” pode nao clescrever mais adequadamente nosso objeto de estuda!®™, Aqui a questo da crise se agrava ainda mais porque ela nao atinge apenas objeto da literatura comparada, como um campo do saber, mas a prépria especificidade da literatura. Esta nova onda de crise da literatura comparada, que acaba se confundindo com o questionamento da especificidade da literatura, esta sendo ample mente debatida nos meios académicos norte-americanos, nos quais, felizmente, ha vozes que, atentas As variagées do contexto social, econémico, politico, cientifico e artistico, e abertas para wma expan- sio do campo da literatura comparada, nao abrem mao da especi- ficidade da literatura" Nesse sentido, o relatério Bernheimer também se mostra sen- sivel 4s manifestacdes que defendem o espaco da literatura propria- mente dita no campo da literatura comparada, embora num trecho extremamente marcado pela defesa de uma expansio de seu objeto e de sua contextualizagao: Nossa recomendacao para ampliar o campo de pesquisa ~ ja implemen- tado por alguns programas ¢ departamentos ~ nao significa que 0 estudo com- parativo abandonaria a andlise cuidadosa da retérica, prosédia e outros tragos formais, mas que leituras textuais precisas poderiam também levar em conside- rac&o contextos ideoldgico, cultural ¢ institucional, nos quais seus significados sao produzidos...!°* O cruzamento da literatura comparada com os cultural studies abre um espaco acolhedor para o multiculturalismo que, segundo 0 Relatério Bernheimer, poderia ser “abordado no como um meio politicamente correto de se adquirir informagao mais ou menos pi- toresca sobre outros que nfo desejamos realmente conhecer, mas 192, Bernheimer, 1995, p. 42. 193. Para seguir de perto este debate, com a manifestacio de eminentes comparatistas das universidades americanas, consultar Bernheimer, op. cit, 1995; ¢ World, 1995, 194, Bernheimer, op. cit, p. 43. 121 122 © Literature Comparada como um instrumento para promover uma reflexao significativa so- bre as relages culturais, traducées, didlogo ¢ debate". Sio ssas questdes cle ordem mais geral (relacionadas com pro- blemas politicos), colocadas no referido relatério, que nos interes- sam mais de perto, pois esto vinculadas ao objeto da literatura com- parada, como disciplina, acentuando sua angustiante indefini¢ao, para muitos, bem como sua saudavel renovacdo constante, para outros ‘azendo uma espécie de mapeamento da contribuicao de al- guns grandes centros académicos para a literatura comparada, a par tir do corpus deste capitulo, chegase A conclusio de que sio possi- veis trés posicdes fundamentais A literatura comparada francesa, berco da institucionalizacio deste campo de saber como disciplina especifica, ca cteriza-se por uma perspectiva metodolégica definida, ao longo de sua histéria, embora se mostre disponivel para absorver contribuicées de novas teorias € novos campos de saber. Mas de qualquer modo, seu objeto de estudo ¢ seu arcabouco metodolégico praticamente permanecem os mesmos. Nao houve nenhuma voz que viesse questionar os cami- nhos da literatura comparada praticaca na Franca, a no ser ade René Etiemble que, como vimos, ja na longinqua década de 1970, propés uma posicao conciliatéria entre as entio chamadas “escolas francesa e americana”. Um marco na producao, nao propriamente teérica, mas com perspectivas tedricas da tendéncia francesa é, sem diivida, La littérature comparée de Paul Van Tieghem, no por acaso, 0 ponto de partida deste livro. Todas as outras manifestacées constituem descobramen- tos de aspectos ja levantados por este autor, e que vieram a ditar modelos de literatura comparada, que foram cultivados em muitos outros paises, incluindo os Estados Unidos. Com uma extensa producio académica comparatista ¢ com os nas universidades norte-ame- uma considerdvel ramificacio de curs ricanas, a caracteristica principal do comparatismo americanio consis- te num questionamento constante do objeto da literatura comparada € num continuo clamor pela ampliagao de seu campo de estudos. 195. Idem, p. 45. Percuersos Histéricas ¢ Teéricos © 123 Disso decorre 0 seu acentuado cardter interdisciplinar, sublinhado na famosa definicio proposta por Henry Remak, na década de 60, ¢ que foi corroborado com maior forca no relatério apresentado a Associa- cao Americana de Literatura Comparada, em 1993. Enfim, 0 compa- ratismo americano caracteriza-se por um movimento de expansao para sew objeto de estudo & por uma nao menos expansiva apropria- Gao de fundamentos teéricos de outros campos do saber. As maiores e melhores contribuigdes para a literatura compa- rada, em termos de teorias literdrias construsdas mais ou menos nos {iltimos 25 cinco anos, nado provém destes dois pélos, que, a partir da década de 1950, passaram a ser pontos de referéncia tanto para a reflexdio sobre os caminhos da literatura comparada como paradig- mas a serem seguidos em estudos criticos, quanto por propostas de renovacio. Excluindo-se Marino, que levou as tiltimas conseqiténcias a teoria dos invariantes de Etiemble, num sistema sélido e coerente de pensamento, as valorosas contribuigdes tedricas com perspectivas metodol6gicas para a literatura comparada inserem-se na tradicao dos tedricos ¢ formalistas russos, como tivemos oportunidade de yerifi- car pelas propostas de Even Zohar e, principalmente, de Durisin. Chegamos ao ponto final de nosso percurso por alguns dos fios da histéria da discussio ¢ busca da definicdo do objeto ¢ método da literatura comparada. As paradas selecionadas, embora nao cubram toda a extenséo nem todos os meandros da trajetéria da literatura iste comparada, parecem ser suficientes para conferirmos que nao es uma tinica teoria literaria comparatista. “Polimorfa por sua natureza e seu desenvolvimento”, a literatura comparada acena para um cru- zamento de metodologias ¢ de sua negagao, mas nem por isso deixa de ocupar um espaco préprio dentro dos estudos literdrios, seja como objeto de discussio, seja como perspectiva de aproximacio da litera- tura como tal € de sua relacio com outras artes ¢ com outros domi- nios do saber. 196. Pageaux, 1994, p. 23.

Você também pode gostar