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Ovídio. Metamorfoses.

Tradução, Introdução, notas e glossário de Rodrigo


Tadeu Gonçalves. VERSÃO DIGITAL (Kindle). Penguin-Companhia das Letras,
2023 (p.345 – 348)
LIVRO X

1-85: ORFEU E EURÍDICE

Vindo de lá, coberto com manto açafrão, pelo imenso


éter transita Himeneu até as orlas dos cícones trácios,
onde a voz de Orfeu, em vão, o havia chamado.
Certo é que ali esteve, mas nem palavras solenes,
rostos alegres e nem presságio feliz ele trouxe; a
tocha que trazia crepitava com fumo
lacrimogêneo e não produzia chama nenhuma.
O êxito foi mais grave que o augúrio: a noiva recente,
quando vagava na relva com a comitiva de ninfas,
10 morre ao ter o pé cravado do dente da serpe.
Logo que o vate de Ródope às auras de cima o bastante
lamentou, pra não deixar de tentar com as sombras,
ousa descer ao Estige, cruzar as portas tenárias
pelo povo leve passeia e imagens dos mortos.
Foi até Perséfone e ao dono dos reinos terríveis,
soberano da sombra, e pulsando as cordas num canto,
diz assim: “Ó numes do mundo debaixo da terra
para onde viremos nós todos criados mortais, se
for permitido, depostos rodeios de boca fingida
20 quero falar a verdade, não vim para cá para o umbroso
Tártaro ver, e nem pra amarrar o triplo pescoço
eriçado de cobras do monstro medúseo. A causa
desta vinda é a esposa, que a víbora, pisoteada,
envenenou e roubou-lhe, assim, os seus anos florentes.
Quis suportá-lo, e não negarei que o tivesse tentado:
vence Amor; este deus que é bem conhecido lá em cima,
cá embaixo, não sei. Imagino, contudo, que sim, e
caso a fama do rapto de outrora não seja mentira,
vos uniu também Amor. Por campos horrendos,
30 pelo caos infindável, silêncios dos vastos domínios,
oro, de Eurídice o fado apressado tecei novamente!
Tudo a vós é devido; e após alguma demora
avançamos à única sede mais cedo ou mais tarde.
Todos aqui chegamos, esta é a última casa, e
vós tereis até os mais longos dos reinos humanos.
Ela também, ao ter cumprido os anos devidos,
vossa será por direito: peço usufruto, não posse.
Mas se os destinos negarem à esposa a vênia, não quero, é
certo, voltar, podereis alegrar-vos com a morte de ambos!”.
40 Tais palavras dizendo e tocando as cordas da lira,
almas exangues choravam: nem Tântalo as ondas buscava
que lhe fugiam, também parou a roda de Ixíon,
nem os abutres comeram o fígado, as Dânaes as urnas
largam. Sísifo, e tu em tua pedra sentaste.
Diz-se que foi a primeira vez que, vencidas do canto, as
Fúrias molharam as faces com lágrimas. Nem a esposa
pôde negar o pedido e nem o regente de baixo:
chamam Eurídice. Ela estava entre sombras recentes
e avançava com passo lento por causa da chaga.
50 Nesse instante o herói rodopeu a recebe e o preceito
de não voltar os olhos pra trás até que os Avernos
vales deixasse, ou então os presentes seriam perdidos.
Tomam um curso em aclive em meio a longos silêncios,
árduo, obscuro, denso por conta de opaca neblina.
Nem estavam distantes das orlas do alto da terra:
lá, temendo que ela se perca, ansioso por vê-la,
volve o amante os olhos: e ela num átimo esvai-se;
estendendo os braços, lutando por tê-la consigo,
infeliz, nada alcança além dos ares que fogem.
60 Já de novo morrendo, não culpa o marido por nada
(pois, pra além de ter sido amada, que queixas teria?),
e seu último “adeus”, que mal lhe chega aos ouvidos,
diz, e retorna de novo ao mesmo local de onde vinha.
Arrebata-se Orfeu, pela morte dupla da esposa,
não diferente daquele que o triplo pescoço canino
viu (o do meio levava as correntes), a quem a natura
deixa antes que o medo, seu corpo tomado de pedras;
ou do que aquele que o crime assumiu, pois queria ser visto
como culpado, Óleno, e tu, da beleza arrogante,
70 triste Leteia, e seus peitos, que outrora juntíssimos iam
hoje tornados em pedra, que o úmido Ida sustenta.
Ao que pedia em vão e queria cruzar novamente
o barqueiro proíbe; por sete dias, ainda
esquálido, sem os dons de Ceres, senta-se à margem:
agonia, a dor e as lágrimas foram alimento.
Queixa-se da crueldade dos deuses do Érebo e parte
para a alta Ródope e o Hemo batido dos ventos.
Concluíra o terceiro Titã o fechamento do ano
nos aquóreos Peixes, e Orfeu se afastava de toda
80 Vênus feminina, por tudo de mau que se dera
ou por ter prometido. Contudo, o ardor impelia
muitas a unir-se com o vate e, rejeitadas, sofriam.
Ele ainda foi autor, para os povos da Trácia
do transferir o amor aos tenros rapazes e antes
de a primavera acabar, colher as flores primeiras.
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LIVRO XI

1-66: A MORTE DE ORFEU

Ia o poeta da Trácia com tal canto levando


selvas, almas de feras, pedras, que o iam seguindo,
quando as mulheres dos cícones, enlouquecidas, com peles
de animais cobrindo os peitos, do topo de um monte
viram Orfeu, que mesclava ao canto as cordas da lira.
Uma delas, cabelos fluindo na brisa suave,
“Eis”, diz, “eis o que nutre desprezo por nós!”, e um dardo
lança contra o vate de Apolo, enquanto cantava,
mas, coberto de folhas, fez-lhe uma marca, sem dano;
10 pedra é o que lança uma outra, que para no meio do voo,
pela harmonia do canto e da lira vencida, e tal como
se desculpando por feito tão furioso e ousado,
cai-lhe diante dos pés. Impiedosos, porém, os ataques,
desmedidos, escalam, e reina insana a Erínia.
Todos os dardos o canto venceria, mas grande
era o clamor das flautas berecíntias de chifre,
mais dos tímpanos, gritos, batidas das loucas bacantes,
tanto que abafavam a lira, e, por fim, enrubescem
com o sangue do vate, a quem não escutavam, as pedras.
20 Logo, as mênades arrasaram, ainda encantadas
pela voz do cantor, muitas aves, serpentes, fileiras
de inúmeras feras, de Orfeu gloriosa plateia;
elas tornaram a Orfeu as mãos banhadas de sangue
reunindo-se como as aves que veem, de dia,
uma coruja noturna vagando, ou como o veado
que, de manhã, no teatro adornado, está perto da morte,
presa dos cães. Então buscam o vate e lançam-lhe os tirsos
verdejantes, que foram criados não pra esse uso.
Umas lançam torrões, outras, galhos de árvore e troncos,
30 outras, rochas; e para que não faltassem mais armas
a essa loucura, uns bois, sob o jugo, que aravam a terra, e
perto dali, com muito suor, uns fortes colonos
que iam cavando os campos e preparando as colheitas,
vendo esse bando, fogem e largam as ferramentas
do trabalho: jazem dispersos nos campos desertos
muitos rastelos pesados, ancinhos, longas enxadas.
Logo que apanharam tais armas e dilaceraram
os bovinos de chifres minazes, ao fado do vate
correm, e ele, em súplica, sem efeito falava,
40 pela primeira vez, e a voz não mais comovia.
Matam-no as ímpias, e por aquela boca (por Jove!)
que era ouvida por pedras e pelos sentidos das feras
compreendida, dispersou-se nos ventos sua alma.
Tristes, as aves te choram, Orfeu, o bando das feras,
choram-te as rígidas pedras, as selvas que ouviam teu canto
tantas vezes, as árvores, já sem folhas, de luto,
choram-te, e, conta-se, os rios, também, por seu pranto enlutado
transbordaram, e, com negro linho cobertas,
Náiades, Dríades todas soltaram cabelo em lamento.
50 Jazem dispersos os membros; Hebro, a cabeça e a lira
tu recebeste, e (prodígio!), boiando no meio das águas,
chora em lamento plangente a lira, e a língua, plangente,
solta um murmúrio sem vida, e plangentes respondem as margens.
Deixam o rio da pátria, pro mar, arrastados, avançam,
chegam enfim a Metimna, nas costas da ilha de Lesbos.
Lá, perdida a cabeça em areia estrangeira, selvagem
serpe a atacou, os cabelos de salmoura orvalhados.
Febo, contudo, aparece, e aquela que o bote aprestava
trava, e converte em pedra os maxilares abertos,
60 congelando a ampla mordida, assim como estava.
Desce a sombra ao profundo da terra e os locais que antes vira
todos reconhece; buscando nos Campos dos Pios,
acha Eurídice e a acolhe nos braços que tanto a queriam.
Lá os dois passeiam agora, sempre juntinhos,
ora ela vai à frente e ele a segue, ora ele precede
sua Eurídice; Orfeu já olha pra trás sem temores.

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