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Pico e Canente

(Ovídio – Bocage)

Pico, de Ausônia rei, Satúrnia prole,


Nas graças corporais era estremado,
Do espírito nos dons não menos belo.
Quarta vez o espetáculo guerreiro,
Que em Élide se usou de lustro em lustro,
Não podendo o mancebo inda ter visto,
Já olhos, já suspiros atraía
Das Dríades gentis nos Lácios cumes.

Vós o amáveis também, vós o seguíeis,


Cândidas filhas das serenas fontes,
Ó Náiades do Tibre, e do Numício,
Deusas do Nar veloz, do Arno pequeno,
Do Fárfaro sombrio, e do Ânio puro,
Co’as outras, que da Cítica Diana
Moram nos bosques, nos vizinhos lagos.

Mas todas enjeitava, e quis só uma,


Só uma o cativou, penhor mimoso,
Que lá no monte Palatino a Jano
(Segundo a tradição) Venília dera.

Nos anos de himeneu floresce a ninfa;


Preferido entre mil competidores
Eis a Pico em Laurento Amor a entrega.
Rara na gentileza era Canente,
Raríssima porém na voz, no canto:
Com ele pedras, árvores movia,
Detinha os rios, amansava as feras,
Tirando às aves o temor, e o vôo.
Ela o seu doce amor cantava um dia,
Quando aos Laurentes campos contra os bravos,
Cerdosos javalis saiu o esposo.

De alentado ginete o dorso oprime,


Tem na desta e sinistra agudas lanças,
Preso o fenício manto em laço de ouro.
Fora a filha do Sol aos mesmos bosques
Para colher no monte as ervas novas,
Distante dos Circeus, a quem deu nome.
Duns ramos escondida o moço vendo,
Se assombra, caem-lhe as ervas que apanhara;
Já lhe lavra a paixão de veia em veia.
Apenas volve a si do vivo assalto
Tenta manifestar o ardor interno,
Mas do ginete a férvida presteza,
E os circunstantes guardas o estorvaram.
“Nem que te roube o vento hás de escapar-me,
Se inda eu sou a que fui, se inda há virtude
Nas plantas, e meus versos não me enganam.”

Diz: e eis um javali de aéreo corpo,


Finge-o, perante o rei correr o manda,
E mostrar que se acolhe aos densos matos
Em parte onde o cavalo entrar não possa.
De imaginária presa alucinado,
Salta o mancebo das fumantes costas,
Segue esperança vã, falaz objeto,
Discorre aqui e ali pela alta selva.

Já Circe principia as magas preces,


Em verso ignoto adora ignotos deuses,
Verso com que enegrece, esconde a Lua,
Com que o Sol, com que o pai de sombras mancha.
Assim que os sons do encanto o céu condensam,
Que um vapor tenebroso a terra exala,
E pelo bosque os mais vagueiam cegos,
No escuro as guardas já do rei perdidas,
Apto o lugar, e o tempo achando a amante:
“Ó tu entre os mortais o mais formoso,
(Suspirando lhe diz) por esse aspecto,
Por esses que os meus olhos encantaram,
E fazem com que eu deusa te suplique,
Premeia ativo amor, em que me inflamas;
O Sol, que tudo vê, por sogro aceita,
Duro não fujas da Titânia Circe.”

Disse, porém feroz ele a rejeita,


Ele rogos e afagos lhe repulsa,
Responde: “Não sou teu, quem quer que sejas:
Outra me tem cativo, e praza aos numes
Que dure longamente o cativeiro.
Os laços conjugais, os puros laços
Não hei de enxovalhar de amor externo
Enquanto amigos fados me guardarem
De Jano a filha, a singular Canente.”

Circe (enfadada de lhe instar sem fruto)


Diz: “Não, não hás de impunentemente amá-la,
Nem jamais tornarás a ver a esposa.
Mulher depois d’amante, e de ofendida
Conhecerás o que é: para teu dano
Sou mulher, ofendida, amante, e Circe.”

Ao ocaso, ao nascente então se volta,


Duas vezes àquele, a este duas;
Depois no corpo do gentil mancebo
Três toques dá co’a vara, e diz três versos.
Ele foge, e da própria ligeireza,
Da nímia rapidez vai admirado:
Eis que subitamente em si vê asas.
Afrontado, raivoso de sentir-se
Ave nova adejar nos lácios bosques,
Despede o fero bico aos duros troncos,
Com fúria aqui, e ali golpeia os ramos.
Cor do purpúreo manto as penas ficam,
Em penas o áureo nó também se torna,
Listra dourada lhe rodeia o colo,
E a Pico do que foi só resta o nome.
Entretanto, por ele os seus clamavam,
Sem podê-lo encontrar na longa selva.

Circe enfim lhe aparece (as auras tinha


Adelgaçado já, já permitido
Que o sol e o vento as névoas dissipassem)
Mil crimes exprobrando à vingativa,
Guardas, monteiros o seu rei lhe pedem,
E dispõem-se a cravar-lhe as férreas lanças.
Sucos de atro veneno a maga entorna,
A noite, os numes dela, o Caos, o Averno
Pelo forçoso encanto ali convoca,
E ora à terrível Hécate, ululando.
Eis salta do lugar (que espanto!) o bosque,
Amarelece a folha, e geme a terra,
Tingem-se as ervas de sanguíneas manchas,
Roucos bramidos saem das rotas penhas,
Ouvem-se cães latir, silvar serpentes,
Vê-se o chão delas negro, e tênues sombras
Nos ares em silêncio andar girando.
Atônitos de horror descoram todos;
Mas co’a vara tremenda e venenosa
Toca-lhes Circe as bocas assombradas.

Pelo tato fatal se tornam monstros


De improviso os mancebos lastimosos,
Em nenhum permanece a antiga forma.

Já no ocidente o sol fechara o dia,


E com olhos, com alma em vão Canente
Pelo perdido esposo inda esperava.
Pisam bosques e bosquem servos, povo
E com fachos nas mãos exploram tudo.
A ninfa de chorar não se contenta,
Aos ais, aos gritos, e arrancando as tranças,
Quantos extremos há, todos pratica;
Sai, corre, vaga, insana, os lácios campos.
Seis luas (infeliz!) seis sóis a viram
Em contínuo jejum, contínua vela
Por vales, por floresta, por montanhas,
Por onde o desacordo a foi levando.
Do pranto e do caminho enfim cansada,
O Tibre a viu cair na margem sua.
Ali ao desamparo, ali sozinha
A triste, modulando acerbas mágoas,
Soltava um tênue som, qual canta o cisne
O débil verso precursor da morte.
A amante deplorável manso, e manso
Em lágrimas saudosas se liquida,
Vai-se ali pouco a pouco atenuando,
E nas auras sutis se desvanece.

Pelo caso o lugar ficou famoso:


Vós, do nome da ninfa miseranda
Canente, ó priscas Musas, lhe pusestes.

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