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Lélia Gonzalez Por um feminismo afro-latino-americano Ensaios, intervengées e didlogos Onganizacio: Flavia Rios e Marcia Lima @QZAHAR construir conosco uma nacao, esse projeto de nacao nao é 0 nosso. O nosso projeto de nacao esta presente em nossas instituigdes negras, esta presente, por exemplo, em uma umbanda que recebe de bracos abertos catlicos, espiritas, budistas etc. O nosso projeto é efetivamente de democracia, de sociedade justa, com todos os segmentos que a acompanham e igualitaria com relagao a todos os segmentos. (palmas ) L.] Bom, companheira,:ndo me chama de professora nao, porque, na verdade, vamos perder este formalismo que, do ponto de vista proxémico, 0 espaco nos impée. Nés somos companheiras de luta e nds aprendemos umas com as outras e uns com os outros efetivamente. £ verdade que, em termos de uma mudanca em nivel educacional, isso é fundamental. Essa colocacéo que vocé faz ai, no sentido de acabarmos com o famoso mito da democracia racial, é que leva a sociedade brasileira a se alienar de uma realidade que lhe é cotidiana. Evidentemente que as transformacées, em termos das teorias e das praticas educacionais existentes em nosso pais, sao fundamentais. Porém, por outro lado, para além do sistema educacional, constatamos que a chamada educagao informal é mais terrivel ainda. £ aquela que passa pelos meios de comunicacio de massa e que repassa uma imagem distorcida do negro, uma imagem inferiorizada e que, efetivamente, se reflete nas nossas criangas pela internalizagao de uma inferioridade, inferioridade esta que é interiorizada através dos meios de comunicacao e através do que se aprende na escola e, inclusive, no seio da familia, porque a familia negra nao esta alijada da sociedade. Quer dizer, so anos e anos de repeticéio continua da famosa ideologia do branqueamento, que se articula com a ideologia e 0 comicio da democracia racial. Na verdade, o que se constata é que sdo dois aspectos de uma mesma questao. Entao nos parece fundamental que, por exemplo, em termos dos meios de comunicacio de massa, nds temos que nos aliar a todas as propostas mais avancadas no interior da Constituinte e fora dela para que esses meios de comunicacao de massa nao fiquem nas maos de determinadas pessoinhas, que determinam o que deverd ser passado. Cabe af uma critica até mesmo 4s televisdes, nao as particulares, de iniciativa privada, mas inclusive até mesmo as chamadas televisdes educativas, porque no Rio de Janeiro 0 que nés observamos 6 uma televisio educativa que deseduca o nosso povo, na medida em que tem elementos supostamente progressistas, elementos supostamente avancados, mas que produzem tranquilamente esse mito da democracia racial e reforcam a ideologia do branqueamento. Nés vimos agora que um dos poucos representantes da comunidade negra na w Educativa do Rio de Janeiro nao pode mais aparecer no video. E 0 que acontece quando as nossas criangas, as nossas familias so veem figuras como ado Mussum, que é um idiota, um débil mental, é o que “fala errado”? Quando nés vemos nas novelas, por exemplo, quando surge alguma coisa com relacéo ao negro de uma maneira mais avancada, como na novela Corpo a Corpo ,‘0 que a gente percebe é que o nosso discurso de movimento negro, na novela, estava na boca dos brancos. Quer dizer, os personagens negros da novela eram uns alienados; nao sabiam de nada; queriam mais era embranquecer. Agora, o discurso do movimento negro, que resulta de uma pratica doida e sofrida, que todos nds temos tido no decorrer desses anos todos, aparece tranquilamente na boca de personagens brancos, reafirmando de novo a superioridade cultural, intelectual etc. Ent&o, quando nés vemos na publicidade que a crianga negra s6 aparece para anunciar chocolate, quando aparece, e que o negro sé aparece como trabalhador bragal, ou entéo como mulata, e ai entra a questdo da exploragdo da mulher negra como objeto sexual, nds vamos constatar, entéo, que efetivamente nés temos que desenvolver um trabalho muito grande nessas duas areas, que parecem fundamentais, porque, de repente, a televisao forma muito mais do que a escola. Mas, dentro da escola, nds temos que lutar, e ja foi colocada, que é uma das nossas grandes reivindicacées, langada, inclusive, pelo sw [Movimento Negro Unificado] nesses anos todos de luta, a instauracao da historia da Africa num curriculo em todos os niveis e graus do ensino ptiblico e gratuito no Brasil, nao é verdade? Porque, de repente, esta af a nossa companheira [Helena Theodoro], que é doutora em Filosofia e que sabe perfeitamente que a famosa filosofia grega ndo passou de uma apropriacio muito grande dos mistérios egipcios, porque o Egito, na Antiguidade, era o grande centro de producao do saber e que houve uma apropriagao por parte dos Socrates, dos Aristoteles, dos Anaximandros, dos Empédocles, dos Pitégoras etc., e que de repente nés ficamos, assim, encantadas com esses senhores, quando nds sabemos que a fonte em que eles se abeberaram foi justamente a dos mistérios egipcios. E para quem tem um pouco de consciéncia histérica, para quem tem um pouco de saber histérico, sabe perfeitamente que os egipcios negros foram os civilizadores do mundo ocidental. S6 que isso é devidamente recalcado e tirado de cena. Nos sabemos que toda uma egiptologia foi criada no século passado justamente para tirar de cena, para recalcar a contribuigdéo negra no sentido da humanidade, da civilizaco humana. Nés sabemos da presenga de culturas negras importantissimas entre os sumerianos, os fenicios, na {india e mesmo na América, antes de Colombo. Mas nada disso nos é¢ trazido. Entao nés temos que lutar sim, companheiros, nesses dois niveis, sempre tendo em vista a questao da construgdo de um projeto de nagao, porque um povo que desconhece a sua propria histéria, a sua propria formacdo, é incapaz de construir o futuro para si mesmo. E o povo brasileiro, neste momento, se encontra nessa encruzilhada; o povo brasileiro aqui representado pelos constituintes. Foi 0 que nés colocamos: querem continuar com o apartheid sofisticado, sofisticadissimo, como é 0 racismo brasileiro; é o mais sofisticado do mundo inteiro. Se querem continuar com isso, vao fazé-lo sozinho, porque 0 povo brasileiro estara construindo a sua propria histéria com muita luta, com muito sangue, suor e lagrimas. E, como disse a Helena: “Por amor, a gente vai a luta, a gente vai a guerra”. L.] Bom, com relagao a questdio que o companheiro meu colocou diretamente, *vou tentar responder. [...] ‘Acabei de participar da Conferéncia Negritude, Etnicidade e Culturas na Afro-América, onde tivemos um encontro extraordindrio de cientistas, pensadores, fildsofos, poetas, artistas negros nos Estados Unidos agora, no final de fevereiro. E essa grande contribuicao, vejam vocés, essa grande estratégia, em nivel internacional, ela esta se desenvolvendo. Nés temos ai 0 Festac, o Festival Pan-Africano de Arte e Cultura, que no préximo ano vai reunir tanto o continente quanto as diferentes didsporas para discutirem uma série de aspectos. Na proxima conferéncia da negritude, que serd na Martinica, a questéo que ser colocada é justamente esta: quais as alternativas para uma nova sociedade? E essa a tarefa que nds temos. importante dizer o seguinte, companheiros aqui presentes, que a ignorancia que caracteriza, ignorancia muito bem estruturada e assumida em termos de Brasil, a respeito da contribuicéio do negro, nao ha diivida de que isso existe. O que nos percebemos 6 que, por exemplo, um tipo de encontro como esse nenhum jornal brasileiro deu, nao da, ele nao fala, nao interessa, porque estaria informando a maior parte do povo deste pais a respeito da sua propria historia, a respeito das suas préprias criagdes. Agora, no que diz respeito a realidade brasileira, com relagdo a essa contribuicdo me parece que nés nao podemos jogar tudo em cima da Constituigdo, evidentemente. Nos temos que estar atentos, temos que estar vigilantes, mas nés mesmos temos a nossa tarefa, temos a nossa tarefa de organizar, de mobilizar e de organizar a comunidade negra no sentido de que ela possa desenvolver, com suas prdprias caracteristicas, com suas caracteristicas especificas, uma estratégia em termos de transformacao, transformacio no sentido, inclusive, de sensibilizar — parece-me que um dos aspectos fundamentais da nossa estratégia passa por ai — e mobilizar os setores progressistas nao negros da sociedade brasileira para que, unidos, possamos construir uma nova sociedade. Nés temos duas responsabilidades: no nivel oficial da Lei Maior, que é a Constituicao, por isso estamos aqui, e no nivel da nossa propria organizacao e onde quer que estejamos, no nosso local de trabalho, na igreja, no partido politico, no clube, nés temos que estar tentando passar para os outros esta questéo, organizadamente, e nao esquecendo jamais, fundamentalmente, as nossas criangas. E parece que a grande questao passa por ai. L.] S6 complementando. ‘£ 0 seguinte, companheiro, vocé deve estar ciente de que uma série de encontros foi realizada pelo movimento negro, inclusive houve uma Convencao Nacional do Movimento Negro aqui em Brasilia. No Rio de Janeiro nés nos reunimos no wx; Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, , em casa, uns Com os outros etc. para apresentar uma série de contribuigées para entregarmos a companheira Benedita da Silva, na medida em que ela nos representa aqui e nos parece fundamental que a Bené, nossa Bené, essa forca, linda, maravilhosa aqui, que para nés 6 a mulher mais bonita da Constituinte, é a Benedita da Silva. Quer dizer, os crioulos todos acham isso. E sé olhar para ela. Olha a fora! Olha a beleza! LJ E, 0 axé, nao 6 verdade? Entdo, nds temos uma série de propostas, de sugestées para as mais diferentes comissées, ndo s6 para a Comissio da Ordem Social, 4 qual a Bené pertence, mas para todas as outras comissdes, como a Comissao de Educagao e Cultura etc. de que a Helena falou, a Comissao dos Direitos e Garantias do Individuo, na questao do preso, do preso comum, da tortura, uma série de sugestées que ja esto nas maos da companheira Bené, para que ela possa apresentar, em termos do nosso apoio, e da sua representatividade, em termos de comunidade negra. Lo] Mas eu fico me lembrando, ‘por exemplo, quando terminando o curso de filosofia na Universidade do Rio de Janeiro, eu me caso com um colega branco — dai o meu nome, Gonzalez — e, de repente, nao morava com a familia, mas habituada 4 minha familia negra, onde todo mundo briga mas faz as pazes e essas coisas todas, insisti para que ele retornasse ao seio de sua familia. E sabem como me aceitaram? Como um caso — como se costuma dizer — de concubinagem, até o momento em que verificaram que nos estavamos legalmente casados, Enquanto eu era a concubina negra de um jovem rapaz branco, que amanha vai se casar com uma moga de boa familia, no dia seguinte, quando souberam do casamento, dai em diante eu virei negra suja, prostituta, e coisas que tais. Também gostaria de indicar para esta comisso a leitura de um livro escrito por trés grandes companheiras brancas, chamado O lugar do negro na for¢a de trabalho — essas companheiras sao cientistas sociais do ie —, onde elas apontam que, por exemplo, em termos de relagées inter-raciais no nosso pais, a tendéncia é ao isolamento, sobretudo quando se trata da classe média para cima. Nés vamos verificar que, se uma pequena proporcéio de homens negros com dez ou mais anos de estudo se casa com mulheres brancas, a propor¢ao de homens brancos no existe. Afinal, quem j4 ndo amou uma mulher negra? Mas, afinal, quem j4 assumiu e se casou com essa mulher negra? Quem assumiu esse amor? (palmas ) Nés sabemos como a histéria da mae preta perpassa pela nossa sociedade. Gostaria de chamar a atencaio para um aspecto fundamental aqui, e que 6 uma proposta essencial nossa, de movimento negro: dizer que a questao do negro no Brasil nao é uma questdo de Constituicdio, mas de educagio — e que depois a cultura vem —, é desconhecer o que cultura, em primeiro lugar; em segundo lugar, é ter uma visio muito atrasada, muito de senso comum a respeito do que seja a cultura. Desde as Constituigdes de 1934 e 1946 estao dizendo que todos somos iguais perante a lei. Nés queremos, sim, mecanismos de resgate que possam colocar o negro efetivamente numa situacdo de igualdade porque, até o presente momento, somos iguais perante a lei, mas quem somos nds? Somos as grandes populacées dos presidios, da prostitui¢do, da marginalizacao no mercado de trabalho. Nés queremos, sim, que a Constituigao crie mecanismos que propiciem um efetivo “comegar” em condicées de igualdade da comunidade negra neste pais. Falar dessa Constituigéo formal, isso a gente conhece ha muito tempo; todos nés conhecemos os constituintes, todos dizem isso. Sem que isso constitua elemento de privilégio, nés queremos, sim, em termos de disposicées finais, que haja estimulo junto a empresa, junto a tudo, para que essa comunidade negra deixe de ser a grande discriminada, a grande defasada, em termos da realidade brasileira. No6s nao estamos aqui brincando de fazer Constituigéo. Nao queremos essa lei abstrata e geral que, de repente, reproduz aquela histéria de que no Brasil néo existe racismo porque o negro conhece o seu lugar. Nés queremos, efetivamente, que a lei crie estimulos fiscais para que a sociedade civil e o Estado tomem medidas concretas de significagdo compensatéria, a fim de implementar aos brasileiros de ascendéncia africana o direito a isonomia nos setores de trabalho, remuneracao, educacao, justica, moradia, satide e por ai afora. Gente, nés nao somos iguais perante essa lei, absolutamente, tanto que 0 sacrificio que fizemos para chegar aqui, nés que somos a maioria da populacao brasileira, por que no esta cheio de negros aqui? Por que esta Constituinte é to plena de brancos e tem apenas uns gatinhos-pingados de negro? Vamos refletir a respeito disso, e termos a seriedade de levar a fundo a questo de construir uma sociedade nova, uma Constituigo que garanta o principio da isonomia, senao, malandro, é a velha heteronomia que nos ja conhecemos desde 1500. L.] Pelo menos em termos de Rio de Janeiro nés apresentamos sugestées para as outras subcomissées. ' Seguindo mais ou menos o critério do documento que foi apresentado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que fez uma sintese das suas reivindicagdes a partir de uma perspectiva feminina, fizemos uma série de sugestdes a partir de uma perspectiva negra. Evidente que nao vamos tratar de poder no Brasil. Mas a gente chega 14. A Comissao da Ordem Econémica, de Direitos da Nacionalidade etc. Enfim, a todas as outras comissées n6s demos sugestées que trouxemos do Rio de Janeiro e pedimos, inclusive, 4 companheira Benedita que encaminhe a essas outras comissGes as nossas sugestdes. L.]

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