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COLEGAO CULTURA CONTEMPORANEA A Filosofia da Arte Jean Lacoste Acupuntura Jean-Claude Tymmowski Mul, Guilaume, M. Figvettzard (Curso de Filosofia Antonio Rezende (ora) A lmeginagao Jeanne Berris A Arte do Ator Jean-Jacques Fioubine APersuaséo Lonel Bellenger ‘As Teorias Econdmicas Pierre Deltaud (O Movimento Psicanaltico Emest Geliner (0 Expressionismo Roger Cardinal 10 1" 2 13 4 5 6 7 A Postica Henry Suhamy A Republica de Weimar Rita Thalmann A Feitgaria Jean Palou O Impressionismo Maurice Serutlaz A Reevolugdo Francesa Frédéic Bluche, S. Fils, J.Tulard ‘A Fiigsofia Mecioval ‘Alin de Libera Darwitie 0 Darwinismo Denis Buican Histria do Anti-Semitismo Francois de Fontette Jorge Zahar Editor 15 Jorge Zahar Editor Colesao Cultura Contempordnea A FILOSOFIA MEDIEVAL ALAIN DE LIBERA Colegio Cultura Contemporinea Textos moderos sobre assuntos de interesse para o leitor de hoje. No conjunto, uma verdadeira enciclopédia ao dispor do estudante, do estudioso e do autodidata 1 A Filosofia da Arte Jean Lacoste 2A Acupuniura Jean-Claude Tymowski, M. J. Guillaume, M, Fiévet-Izard 3 Curso de Filosofia Antonio Rezende (org.) 4 A Imaginagao Jeanne Bemis 5 A Arte do Ator Jean-Jacques Roubine 6 A Persuasdo Lionel Bellenger 7 As Teorias Econdmicas Pierre Delfaud 8 O Movimento Psicanalitico Emest Gellner 9 0 ry 2 13 u 15 16 W ©. Expressionismo Roger Cardinal A Pottica Henry Subamy A Repiblica de Weimar Rita Thalmann A Feitigaria Jean Palou 0 Impressionismo Maurice Serullaz A Revolugéo Francesa Frédéric Bluche, S, Rials, J. Tulard A Filosofia Medieval Alain de Libera Darwin e 0 Danwinismo Denis Buican Hist6ria do Anti-Semitismo Frangois de Fontette Alain de Libera Ecole Pratique des Hautes Etudes A Filosofia Medieval Tradugdo: ‘Lucy Magalhaes Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro ‘Titulo original: La Philosophie Médiévale ‘Traducio autorizada da primeira edisio francesa publicada em 1989 por Presses Universitaires de France, dde Paris, Franga, na coleedo “Que Sais-Je?” Copyright @ 1989, Press Universitaires de France Copyright © 1990 da edigéo em lingua portugues Jorge Zahar Editor Ltda, Tur México 31 sobreloja 20031 Rio de Janeiro, RI ‘Todos os direitos reservados. ‘A reprodusio nfo-sutorizada desta publicagéo, no todo fou em parte, constitu: vilagdo do copyright. (Lei 5.988) [Péigio pera o Brasil] ISBN: 2:13-042162-8 (ed. orig.) ISBN: §5-7110-119-1. GZE, RJ) SUMARIO Preémbulo 7 1 A Literatura Filoséfiea da Idade Média 11 I. Textos ¢ tradugées, 1 TL. Géneros literirios e formas do saber, 27 u Légiea 31 I. Da lgica do corpus a ciéncia da l6gica, 31 IL. As grandes tapas da semantica medieval dos termos, 35 IIL. As principais inovagdes da I6gica medieval, 47 ut Fisiea 46 T. Da cosmogonia a fisiea, 46 IL. A idade do céleulo, 53 Vv Metafisica 59 I. O problema do ser, 59 Il. Os grandes temas da metafisica medieval do ser, 69 v Psicologia ¢ Ktica 82 1. O sujeito do pensamento, 83 II. © objeto do pensamensto, 94 II. 0 destino ético e 0 fim do pensamento, 101 Bibliografia 104 58 a filosojia medieval cialmente matemético” de andlises referentes ao “hiimus da topo- logia elementar formalizada no século XIX por Dedekind”. Nascido em Oxford, provavelmente ligado aos dados es- peeificos de seu curriculum de artes nos anos 1300 (EB. Sylla), “eéleulo” logo serd rejeitado pelo Continente, Denunciado em Paris como “sutileza inglesa”, ironizado na Itélia como “barbirie breta”, a fisica oxoniana naufragaré com a I6gica e a prética so- fismética que a tinham fundamentado. A influéncia do “céleulo” sobre a fisica de Galileu permanece ainda hoje um objeto de controvérsia (C. Wilson, A, Maier, J. Murdoch) capitulo IV METAFISICA ‘Muitos problemas “metafisicos” foram tratados pela Idade Média antes de qualquer difusfo efetiva da Metafisica aristotélica; reci- procamente, a questo da possibilidade da metafisica, a de sua acessibilidade a um espirito adulto, a questio, enfim, da definigao do projeto metafisico, a partir da determinagao de um objeto especifico, colaboraram para a recepgio ¢ a interpretagao de tés textos fundacores: a Philasophia prima de Avicena, a Metafisica de Aristételes, 0 Grande Comentério de Avertbis sobre a Metaji- sica. © problema da delimitagdo da esséncia da metafisica como tal, entendida como “teiologia” (Heidegger) isto €, como a entre- implicagdo origindria de uma ontologia de uma teologia, soli- citando a formulagio de um conceito goral do ser em termos de univocidade ou de analogia, supde a utiizagdo da integridade do corpus metafisico grego-drabe, Assim, a histéria da _metafisica ‘medieval se distribui, pelo menos, em duas fases: uma fase “greco- latina”, e outra “aristotélica”, ou mais exatamente “peripatética”. Em fins do século XIII ¢ no século XIV aparece uma corrente neoplatonizante que subordina a metafisica A henclogia. . © PROBLEMA DO SER Tal como a elaboram os estudiosos medicvais, a questio do ser no é logo apresentada como questo da “pluralidade dos sentidos ¥ 60 filosofia medieval do ser” nem como a de uma articulagao possivel da ontologia problemética ¢ da teologia do Primeiro Motor, respectivamente expostas no livro IV e no livro XII da Metafisica, A questio da Pluralidade dos sentidos do ser é historicamente precedida pela problemética do fundamento ontol6gico do discurso categorial, a da articulagao entre ontologia e teologia pelo problema da tansferéncia (‘anslatio, wranssumptio) da linguagem categorial da esfera da natureza para a esfera das realidades ndo-naturais ou “divinas” (in divinis). Essa primeira fase da metafisica & in- dissoluvelmente, ainda que contraditoriamente, grega — os ele: mentos de ontologia categorial sio, através de Boécio, tirados de Porlitio — e cristé — os “divinos” so 0 Deus Uno ¢ Trino da “teologia dos Padtes” (theologia sanctorum), © mio os deuses do neoplatonismo porfiriano, Até o século XIII, a Idade Média ‘nao conhece um “problema do ser”, mas um problema de deli- mitagio da validade do discurso categorial: nfo se trata de pensar as méltiplas maneiras pelas quais 0 ser se diz, mas de determinar alé que ponto a pluralidade das categorias diz algo a respeito de Deus. 1, Boécio e a metafisica “greco-latina” — A diferenga entre “sex” (esse) © “ente” (quod est), como a exprimem os Opuscula sacra de Boécio, é 0 ponto de partida da reflexio metafisica dos latinos. Seu desenrolar completo passa pela assimilagio da dou- trina da homonimia ¢ da sinonimia formulada no comentario sobre as Categorias © pela generalizagio da teoria da predicagio teolégica exposta no capitulo IV do De Trinifate. © De hebdomadibus distingue 0 ente e seu ser, nesse ser © fato de ser algo, absolutamente falando (tantum esse aliquid), ccaracteristico da substancia, e 0 fato de ser algo em um ente (ese aliquid in e0 od est), caracteristico do acidente. Essa dupa iferenga, que esttutura 0 conjunto do eriado — isto &, do com- posto —e solicita dois modos distintos de participagio, & unifi- cada no ser simples que € Deus: para a criatura, uma coisa é ser, outra coisa ¢ aquilo que é; Deus, ao contrério, é de modo unité- io (unum habet) tanto o que ele é quanto aquilo que 6. A dife- ‘metajsica 61 renga éntico-ontol6gica, que, atravessando © produzindo o criado, se perde em Deus € trabalhada conceitualmente numa ontologi ‘que ndo é a de Arist6teles, mas a que Boécio herda ¢ transpée de suas fontes gregas tardias: a distingo entre categorias substan- ciais (substincia, quantidade, qualidade) e acidentais (as sete ‘ltimas categorias) expostas no De Trinitate, constitui o funda- mento da primeira teoria Iatina das categorias — um modelo que sofre a concorréncia da apresentagao mais “aristotélica” das Categoriae Decem do pseudo-Agostinho (Paraphrasis Themistia- na), opondo a categoria de substincia as “nove categorias do aci- dente”, Do século IX (Jo%o Scot Erigena, Periphyseon, I, 465A) a0 século XII (Pedro Lombardo, Sent. I, 22) a problemética da “tcansferéncia” das categorias na predicagao “s, ele niio hes é inerente em vir- tude do que elas so por si mesmas” (Metaph., II); “toda coisa (res) pode ser pensada, sem por isso ser pensada como existente.. © ser (esse) & pois acidental a tudo 0 que é” (Logica, 3). Sio essas teses que Averrdis rejeita em bloco: “Avicena se enganou completamente ao afirmar que um (unum) e ser (ens) significa- ‘vam disposigées superpostas & esséncia de uma coisa”; de fato, se uma res fosse um ente per aliquid additum, haveria regressio até 0 infinito (Metaph., IV, comm. 3); assim, é preferivel afirmar com Aristételes que “ens significa a esséncia (essentia) da coisa de que se fala": “homem” (homo) © “ser-homem"” (ens homo) Sio idénticos. A difusio latina da tese de Avercéis contra a de Avicena 6 documentada peles Quaestiones de divinis praedicamen- metafsica 11 fis (q. 1) de Jacques de Viterbo (t 1308), que nela ve a posigao ‘caracteristica dos “doutores modernos”, Entretanto, 0 ponto de ‘vista aviceniano prevalece, em geral, no século XII Em Tomés de Aquino, a tese aviceniana, retocada ¢ fundida com a distingdo boeciana do quod est ¢ do quo est da lugar a ‘uma teoria metafisica que pesar sobre todas as discusses da Idade Média tardia: a teoria da distinglio e da composigao reais de esséncia ¢ de existéncia no ente criado. ‘A tese fundamental de Toms € que “em todo ser ctiado, 0 esse € diferente da esséncia e nfo entra na sua definigao”. Tal ‘como 6, essa tese tem uma feigZo aviceniana; entretanto, Tom afasta-se de sua fonte, interpretando a relagao do esse para a essentia como uma relago do ato para a poténcia, desempenhando (© esse © papel do ato em relagao & poténcia que ele atualiza (Summa Theol, I? Pars, Q. 3, a. 4), ¢ cle modula a prépria dis- tingdo entre esséncia e ser segundo a natureza do ente eriado con- siderado, Nag substincias espirituais (como o Anjo), hi uma linica composigio de ato (esse ou quo est) e de poténcia (subs- tantia subsistens, forma ou quod est); nos compostos de matéria © de forma (isto é em todo 0 resto do ente eriado), hi duas com- posigdes: a da substincia composta de matéria ¢ de forma, a da ‘substncia j& composta de matéria e de forma com 0 ser; em ‘outras palavras, a forma quo est da substincia hilemérfica, faz dela, @ titulo de principium essendi, 0 sujcito proprio (substantia tora) de um set (esse) que entra com cla numa composi¢io se- gunda, e que, s6 esta, faz dela um “denominado ente” ou “ente por denominagic” extrinseca — 0 ser conferido & substincia vin- Uo-lhe do exterior, isto € de Deus (Swnma contra Gentiles, Wh, 54, Ver também In De Hebdomadibus Il, 4 32; In I Sent. d. 8, 4. 5, a. 1; Summa Theol,, I Pars p. 50, a. 2 Quodl., I q, 2. a. 1; Quodl., TH, q. 8 a. 15 Quodt, TX, . 4, a 1). Entre os primeiros tomistas ¢ seus adversérios, a teoria da composigéo real de esséncia e existncia € completada por ums istingéo entre “o ser de esstncia” (esse essentiae) © 0 “ser de existéncia” (esse existentiae). Se a origem da nogdo de esse essen- tiae 6 aviceniana, seu desenvolvimento se fez segundo diferentes 7% a filowofia medieval linhas, independentemente da problemética tomista (e anterior- mente a esta); a nogdo de esse existentiae, em contrapartida, & ‘mais diretamente ligada ao universo de doutrinas dos primeiros tomistas, Seus pontos de aplicagio so, aliés, miltiplos, e vio da questo da estrutura ontolégica do ente composto enquanto tal Aquela, mais especttica, da unidade formada pela substincia e 0 acidente. ‘A nogio de esse essentiae parece mostrar-se macigamente nos anes 1240, para tratar o problema do mado de existéncia das idcalidades mateméticas, Em suas Quaestiones supra libros 1V phyisicorum Aristotelis, Roger Bacon utiliza a distingio entre “ser atual” ¢ “set de esséncia” (definido como “o ser possuido por aquilo que existe na matéria, sem que por isso ele Ihe venha da matéria”) para caracterizar 0 procedimento abstrativo do mate- ‘mitico, que toma a forma non ut est in materia, ¢ opé-lo a atitude do fisico, que considera a forma na matéria “quanto ao ser que The ver da matéria”. A segunda ocorréncia do esse essentiae diz respeito teorin 6gica da predicagéo sobre as classes vazias, Em sua Quaestio trum haec sit vera "Homo est animal’, nullo homine existence, Siger de Brabant reporta que, segundo alguns, “mesmo se nenhum hhomem tem presentemente ser atual, 0 homem permanece em seu ser de esséncia, e que, na medida em que o ser de esséncia ¢ defini- ional propée 0 animal do homem, a proposicdo 0 homem existe falsa, pois o verbo ser €, nessa proposicao, segundo adjacente € predica o ser atual”, Essa tese, rejeitada por Siger, & atribuida por Alberto Magno a Avicena ¢ a al-GhazAili, em nome da “sem- piternidade da relagdo de incluso (habitudo) do predicado no sujeito”, caracteristica do primeiro modo da predicago por si (De praedicabilibus, VITI, 8). No De causis et processu univer- sitatis, I, 8, ele precisa que toda proposico verdadeira de aptituli- nne essentiae & verdadeira independentemente da existéncia ou da ndo-existéncia das realidades designadas pelo sujeito (mesma dou- trina no De intellectu e¢ intelligibili, I, 3). Essa afirmagio retoma 8 tese aviceniana da “indiferenca da esséncia” ao ser ¢ a0 nfo-ser (Logica, 3), formulada no interior da teoria dos universais. metofisica 78 Tomado no nivel da predicagdo, 0 ser de esséncia autoriza uma verificagdo “segundo a relagdo natural dos termos entre si (secundum habitudinem naturatem), precisando-se © ser atual” (Alberto, Liber I Prior, Anal., TV, 16). Muitos autores do século XIE (Richard Rufus de Cornuatha, Guilherme de Sherwood, cola de Cornualha) alegam nesse sentido um esse habitudinis, esse habituale ou esse consequentiae, definido pela relagio t6pica (habitudo localis) ow inferencial, fundando logicamente a val de © temporal das proposigdes categ6ricas (de inesse simpliciter) analiticamente verdadeiras — um tal ser, expresso no verbo ser, tertium adiacens, no afirmando a “existéncia da coisa”, mas apenas a ineréncia do predicado. J4 em suas Swnmulae Dialectices (por volta de 1250), Roger Bacon rejeita vigorosamente essa po- siglo e sustenta que até as proposigdes necessérias s6 so verifi- cadas sob a condigdo de ter uma denotagio. A oposigao entre 0 esse essentiae © 0 asse (actualis) exis- tentiae se 18 em Pedro de Auvergne (Quaestiones de universai- bus), mas é em Diettich de Friburgo (por volta de 1250-1320), Gilles de Roma (por volta de 1243-1316), Henrique de Gand (por volta do 1217-1293), Godefroid de Fontaines. (por volta de 1250-1309) e Duns Scot (por volta de 1265-1308) que ela toma seu verdadciro impulso metafisico, ligado as polémicas sobre a teoria tomista da distingao real. Para o tomista Gilles de Roma (Theoermata de esse et essen- tia, 16 © 19), esséncia (ou esse esxentiae) © existéncia (ou esse existentiae) sio duas coisas distintas (duae res), ea criagio do ente criatural em seu conjunto exige, como para o To- més do Contra gentiles, uma composicao real de esséncia e de fexisténcia acrescentada & composigio de matéria e de forma, ca- racteristica apenas dos entes materiais ou corporais (Theorem, 5). Em sua refutacio de Gilles, Godefroid de Fontaines (Quod, TTY, 4. 1) retoma a critica averroista da acidentalidade da exis- téncia segundo Avicena, sustenta a tese de uma identidade real da esséncia © da existéncia, as quais s6 sio separadas por uma diferenga de razio (secundum rationem) correspondent a uma diferenga semantica entre termos abstratos (essentia, lux) e termos TA filosofia medieval ceoncretos (esse, Iucen), e interpreta de acordo com Proclo a com- posigfo de ato ¢ de poténcia nas Inteligéncias separadas (Quod, VIL, q. 7). A mesma posigéo visivelmente influenciada pela se- mintica filosética dos modistas, & igualmente defendida pelo do- minicano alemao Dietrich de Friburgo (De esse et essentia). Hen- rique de Gand (Quodl,, I. q. 9; X, 4. 7) reformula a interpretagdo da distingdo entre esséncia ¢ existércia voltando & fonte avicenia- na: a distingdo real e a distingdo de razo dio lugar a uma distin- do “intermediéria” (distinctio media) ou “intencional”, expres- sando a relagio de dependéncia do ente criado com a causa de seu ser. Em Duns Scot, esséncia e existéncia sendo insepardveis. (Opus Oxin,, 2 d. 1, . 2), @ distingzo real ¢ eliminada seja em proveito de uma distingfo formal (Wolter), seja em proveito de tuma distingdo modal entre a “yesséncia e sew modo intrinseeo”, a existéncia (Gilson), Na omtologia nominalisia de Ockham, na qual se diz que s6 as res absoluiae (substincias primeiras © qualidades) existem, nenhuma espécie de diferenga pode ser feita entre 0 “ser existen- te” (esse existere) ¢ a coisa (rés) que ultrapasse 0 estrito Ambito da semfintica filoséfiea; as palavras “ser” ¢ “coisa” significam a mesma realidade, uma verbalmente, outta nominalmente. Exis- téncia (existentia) e esséncia (essentia) nfo so duas “coisas”; assim também, a esséncia nflo se distingue do ser (esse) © do no-set por sua “indiferenca”. Nessa versio reduzida da ontologia aviceniana, que, no fundo, retoma certos temas cléssicos da légica de Oxford (Ro- ‘ger Bacon) © das primeiras polémicas antitomistas, nfo ha Iu- ‘gar para o problema metafisico da distingdo entre esséncia © cexisténcia; também nfo existe a possibilidade de distinguir di- ferentes seres ou entes pela distingdo da esséncia e da existénci Deus nao se distingue da criatura porque 6 Ele seria a sue prépria existéncia ou sua propria esséncia, ou porque s6 Nele esséncia © existéncia seriam idénticas: tais proposicbes podem set formadas a propésito de qualquer ente real. Entretanto, 20 ‘mesmo tempo em que rompe com a teoria da distingo (real) entre esséncia e existéncia, oriunda da leitura tomista de Avi- metatiica 15 cena, Ockham retoma a distinglo boeciana do quod est ¢ do quo est, assim como a nogio aviceniana do ser ndo-necessério. A distingdo do quod est (esséncia oi existéncia) e do quo est do ente criado & uma distingdo real, que atinge o préprio coragdo de seu ser, De fato, se, contrariamente a0 que afirma 2 ontologia tomista da participacdo, toda criatura € 0 que é (id quod est), ela 0 € “por um outro” (ab alio), isto é, por Deus. A criatura € um ser que em seu ser € causado, isto é, em linguagem aviceniana, cujo ser nfo é necessério. Ao contrario, em Deus, que & “por si mesmo”, quod est € quo est so “o mes- mo”, isto é Deus. O Ser que & Deus é 0 ser cujo ser € neces- sirio, que existe nevessariamente. A originatidade de Orkhan & pois, dissociar os pares quod est / quo est ¢ essentia | esse, identificados por Tomas de Aquino, rejeitando ao mesmo tem- 10 a concepeio aviceniana do ser por si nio-neeessério, como also em si”: 0 ente criado, 0 quod est, 6 um ente verdadeiro cuja esséncia © cuja existéncia so insepardveis, mas que, como ser, & ser causado, A diferenga que atravessa 0 criado nao con- sidera pois o sere a esséncia, mas 0 ser causado e sua causa’ cxisténcia, esséncia, ente e qiiididade dizem o mesmo. Nenhu- ‘ma esséncia precede a existéncia ou o ente individual 2. A analogin do ser — Contrariamente as teses que prevalece- ram durante muito tempo, a teoria da analogia do ser nao é uma teoria aristotélica (P. Aubengue); & uma criagéo da Ida- de Média, Por sua vez, a teoria dita “aristotélico-tomista” da analogia é uma criagio da neo-escoléstica e do neotomismo, A formulagio medieval da analogia do ser 6 um fendmeno tardio, que foi preparado por uma longa seqiiéncia de media- ‘sOes e transferéncias. Seu ponto de partida é a teoria portiria- na da homonimia, transmitida por Boécio e as Decem Catego- rige do pseudo-Agostinho, Sua construgzo efetiva, que levou vtios séculos, desenrolou-se em duas grandes etapas: a utili- zagio, sob 0 nome de analoga, de um novo tipo de termos (ti- rado de Avicena e de al-Ghazali), 0s convenientia ou ambigua, no papel de intermedifsio entre “sindnimos” e “homénimos” 26 a filoofia medieval estritos, imperfeitamente desempenhado até entio pelos “paré- nimos” de Atistétcles; a interpretagdo dessa relagdo de “conve- nigncia” no sentido de uma “analogia de atribuigio extxfnseca”, forjada a partir de elementos tirados da leitura averroista do Ii- yro IV da Metafisica de Arist6teles. Uma vez conhecida a teo- ria averroista do “néo-ser do acidente”, essa teoria foi a oca- sifo de um confronto particular entre partiddérios e adversérios dda critica tomista da posigfo averroista. No curso dessa discus- siio, tipica do fim do século XIII e do inicio do XIV, operou-se ‘uma volta indireta, através do comentétio sobre as Categorias de Simplicio, as formulagdes porfirianas originais, mas transpos- tas ¢ retraduzidas nos termos da nova problemética. A teoria da analogia do ser & pois um produto da exegese filos6fica me- dieval, fundado sobre uma série de manipulagées do pensamen- to de Aristétcles, que seguiu o ritmo das traduges da obra aristotélica e de suas interpretagdes gregas © arabes. Essa “criagdo” no teria talvez tido a importancia que to- mou na hist6ria da filosofia da Idadé Média, se além da pro- blemética da unidade do objeto de estudo da metafisica, suas roprias origens no The tivessem feito cruzar também com 0 problema do estatuto ontolégico do acidente © o da predicagio dos termos acidentais concretos. Interpretada em termos de corpus, a teoria medieval da analogia se apresenta como a fusio de trés textos de Aristotel a distingio entre sindnimos, homénimos ¢ pardnimos do primei- 10 capitulo das Categorias; 2 distingio problematica dos trés ti- ‘pos de homénimos intencionais introduzida na Btica a Nicdma- co (I, 6, 1096b26-31): unidade de origem ou de proveniéncia (ipferds)» unidade de fim ou de tendéncia (mpés “éy), unidade de analogia uhoyiw) — na qual “analogia” tem o sen- tido aristotélico auténtico de proporco matemética a quatro termos (a: b: ¢: d); a teoria da unificagio da multiplicidade dos sentidos do ser, exposta no livro IV da Metajfsica, sobre a base da signi- ficagio dos termos “si” e “médico”, completada pela teoria do acidente como flexfio da substincia sugetida por certas passagens do livro VIT da Metafisica (1, 1028a, 15-25). metofisica 7 A histéria da teoria da analogia no Ocidente medieval no comega, cntrelanto, nem com a difusio efetiva da Metafisica nem com a da Etica, O essencial da problemética tardiamente assumida sob o titulo de “analogia do ser” foi conhecido pelos ‘estudiosos medievais bem antes que essas duas obras fossem traduzidas. Os primeiros mediadores do complexo formado pelos trés textos-fontes foram 0 comentétio de Boécio sobre as Ca- tegorias (In Categorias Arist,, 1, in PL 64, 166B2-C2) ¢ a Pa- raphrasis Themistiana (§ 17-18). Entretanto, com eles, era 2 concepsio porfiriana da homonimia, e mais amplamente a teo- ria das realidades homénimas, sindnimas € parénimas, como fundamento da reflexfo sobre as “palavras primeiras”, que pe- netrava entre os latinos. Nessa etapa, representada no perfodo carolingio pela Dialectica de Alcuino, ainda néo se tratava de tuma teoria da analogia do ser, pois, simplesmente, nfio havia “problema do ser”: a triade ig'évée (ab uno), pis ‘ey (ad unum), yer “inoykn (secundum proportionem) estava. posta fa servigo de uma andlise dos diferentes tipos de homonimia, ou seja, de um ensaio de classificagao sistemética dos diferentes tipos de realidades, que, compartilhando um mesmo nome, tém, todavia, dafinigées diferentes; paralelamente, a nogio de “paro- nimi” (denominatio) assumia sozinha, mais ou menos em Ii- gagio com a teoria do “fluxo” exposta pelos Opuscula sacra de Boécio, e no interior de um certo platonismo gramatical, 0 problema semintico e ontol6gico da relagio entre 0 abstrato € 0 conereto. ‘A primeira fase decisiva na constituigo do conceito me- ieval de analogia deve-se a Avicena (Metaphisica, 1, 5; IV, 1) © a al-Ghazili (Logica, 3), que, no ambito da distingdo por- firiana dos univoca (sindnimos), diversivoca (polidnimos), mul- tivoca (heterénimos) e eguivoca (homénimos), transposta para ‘© nivel (niio-aristotélico) das palavras, substituem a nogo aris- totélica de “‘pardnimos” (denominativa) por uma nogio nova de convenientia ou ambigua, Essa teoria, mencionada pela primei- ra vex por Alberto Magno (De praedicabilibus, I, 5), compor- ta 0 essencial da futura teoria da analogia; o estatuto interme- 18 a filosofia medieval Gidtio dos ambigua, a interpretagio da analogia ad unum em termos de “conveniéncia”, a aplicagdo dessa relagio orientada € nio-conversivel, como ja era a paronimia, na rélagio subs- tancia-acidente, doravante compreendida como relagio de de- pendéncia secundum prius et posterius. A enigmatica teoria da “univocidade de analogia”, apresentada em certos escritos de Alberto Magno (De divinis nominibus, 1, 1), € a simples reio- mada dessa convenientia in uno secundum ambiguitatem de Avi- cena, ‘A segunda fase “Arabe” da teoria da analogia é proporcio- nada pelo Grande Comentdrio de Averrbis sobre a Metafisica IY, com. 2). O termo “ente” se diz de miltiplas maneiras: nem equivoco nem univoco, “ele faz parte dos nomes predicados de realidades atribuidas a uma nica e mesma coisa”. Esse termo, que focaliza as predicagées pode funcionar de trés manciras: scja como fim, seja como agente, seja como sujeito. A atribuicéo “como a um sujeito” substitu: simultaneamente a nogo aristo- télica de predicagio yer’ ivihoylw © a nogio cléssica de deno~ ‘minatio (paronimia): Doravante interpretada além mesmo da ambigtidade aviceniana, ela assinala uma dependéncia ontol6- gica ainda mais radical dos acidentes em relagdo a seus sujei- tos: 0s acidentes no sio mais que “flexdes” (casus) da subs- tancia, © néo tém, por si mesmos, nem ser nem qiiididade, E essa teoria da focalizagdo ontolégica que, sob 0 nome de analogia entis, & retomada por todos os estudiosos medievais, que, como Alberto Magno ou Tomés de Aquino, se servem da analogia para fundar a possibilidade da metafisica como ciéncia una do ser enquanto ser, ou para explicitar a relagio de depen- déncia ontolégica da eriatura e do ser criado com 0 Criador — sem todavia endossar a teoria do acidente que a completa, % apenas no fim do século XIM © no séeulo XIV que a solidariedade entre a teoria da significacio focal da palavra “ser” © a teoria averrofsta do “ndo-ser do acidente” & reconhe- ida como tal © recebe um desenvolvimento particular na escola dominicana alema (Dietrich de Friburgo, De accidentibus, 10, 3; De quidditatibus entium, 10, 6), com a teoria da “analogia do metafisica 19 acidente”, que, em Mestre Eckhart (In exodum, § 54), prefix gura e justifica metafisicamente uma interpretagao analégica do nfo-ser criatural e da criatura como simples “ser-signo” do Scr divino. A. explicagao da relagdo do acidente com a substéncia ‘em termos de “analogia” € rejeitada pelos tomistes — Jean Pi- card de Lichtenberg (por volta de 1303-1313) ¢ principalmente Nicolau de Estrasburgo (por volta de 1325) — sobre o funds- mento de uma distingao entre analogia proportionis e analogia attributionis (pretensamente tirada do comentério sobre as Ca- tegorias de Simplicio) combinada com as teorias de Gilles de Roma sobre o esse essentiae e 0 esse existentiae, Na época da Contra Reforma, a teoria da analogia evoluiu para uma doutrina do “conceito analégico do ser” (Thomas de ‘Vio Cajétan, 1469-1534), destinada a opor-se xo “conceito uni ‘voeo do ser", pregado pela escola scotista, A neo-escoléstica do século XIX encerrard essa deriva peripatética do aristotelismo, tazendo da analogia “aristotélico-tomista” o fandamento englo~ ante de qualquer metafisica possfvel 3. Além do ser: metafisica e henologia — A auséncia de difu- sfo dos textos auténticos do platonismo e do neoplatonismo, a pr6pria constituicdo tardia de uma posigio peripatética explici- tamente assumida retardaram durante muito tempo o verdadei- ro confronto entre “Plato” e “Aristételes”. Os diversos plato nismos do século XII se desenvolveram enquanto 0 corpus aris- totélico ainda nfo estava constitufdo, © eles se libertaram de- sigualmente das contaminagées patristicas. Ainda que a Idade Média nfo tenha nunca ignorado totalmente a henologia neo- platOnica — como testemunham principalmente Joo Scot Exi- gena, Dominique Gundissalvi, Thierry de Chartres ou Alain do Lille —, ¢ ainda que a maioria dos intérpretes frabes (Avicena, Averr6is) ou bizantinos (Eustrato) conhecidos pelos latinos te- ham oferecido uma versio de Aristételes fortemente matizada de neoplatonismo plotiniano e porfiriano, é apenas no século XIV que se formou realmente, sob a influéncia dos escritos tar- dios de Alberto Magno, mas sobretudo & luz das tradug6es la~ 80 a filocofia medieval tinas de Proclo, uma alternativa neoplaténica para a metafisica Uc inspiragio aristotélica. A difusio da Elementaiio theologica © dos Tria opuscula dew ligar, entretanto, a produgses muito iversas. A Universidade no explorou as novidades proclusia- nas por si mesmas: Tomas de Aquino, Siger de Brabant, Gode- froid de Fontaines, Jacques de Viterbo, Gilles de Roma s6 re- correm a questdes de detalhe, sem tomar posigio de conjunto, © enciclopedista Henri Bate de Malines (Speculum Divinorum) Preceupa-se principalmente em reconstituir a filosofia de Platiio © procura em Proclo insirumentos para a interpretagdo da dou- trina platdnica das Idéias. Na realidade, € no meio cultural ‘muito particular dos dominicanos alemies do século XIV que se elabora uma verdadeira henologia negativa, conscientemente opesta & filosofia primeira como ciéncia do ser enquanto ser Preparada por Dietrich de Friburgo ¢ Mestre Eckhart, essa tica neoplaténica da metafisica encontra seu coroamento no co- mentétio sobre 0s Blemenios de teologia de Bertoldo de Moos- burg, Gnica obra da Idade Média tardia que anuncia o “plato- hismo” militante do Renascimento, Enguanto que, de acordo com 0 uso estabelecido, Alberto © Dietrich chamavam de theologia nostra ou scientia nostra a teologia dos Padres € a opunham A scientia divina philosopho- rum, Bertoldo introduz uma nova distinggo, que marcaré seu tempo. Para cle, nao sc trata mais de distinguir, ou até de opor, twiologia filosética © teologia cristd, mas tcologia ¢ metafisica, ciéncia divina e cigncia do ser enquanto ser, platonismo e peri- Patetismo. Tomando a Dietrich uma distingdo entre duas espé- cies de Providéncias, a Providéncia natural e a Providéncia vo- luatéria, Bertoldo desloca-lhe a significagao. Natureza e vonta- de nfo designam mais dois pontos de vista sobre 0 universe (universitas entium), organizados um a partir da ordem filos6- fica das causas essenciais, outro a partir da ordem teol6giea dos fins wltimos. Certamente, cada Providéncia tem sew porta-vor: Providéncia natural tem Proclo, a Providéncia voluntéria tem © pseudo-Dioniso, mas ambas falam a mesina linguagem, a do Supra-tssencial, do Bem Supremo, do Uno. O problema da dei- metajicica 81 ficaglio do homem (homo divinus) torna-se 0 tema central da teoria da Providéncia. A sapientia nosira toma desde entio um sentido novo, € a sabedoria dos platonici, os platénicos, Proclo Dionisio, que se opde a teoria do ser enquanto ser do peri- patetismo, A reflexio sobre 0 objeto da teologia tem, pois, como resultado Gltimo, acarretar uma reformulagio da propria con- cepgio da filosofia, que, no caso particular da metaphysica, ex- pulsa a ontologia da filosofia primeira, e, sob 0 nome de sa pientia nostra, reconcilia numa mesma corrida em dire¢o a0 Unico Uno o neoplatonismo cristio de um Dioniso e 0 neopia- tonismo auténtico de um Proclo. A clivagem tradicional da teiologia filos6fica ¢ da teologia cist & substituida por uma distingao mais sutil, historicamente decisiva, entre a sabedoria metafisica de Arist6teles ¢ a “hiper- sabedoria divina” dos platdnicos. Voltada para as realidades di- vvinas por esse principio cognitive que Dioniso chama unitio © Proclo wnium animae, a sapientia nostra de Bertoldo pretende-se superior a qualquer metafisica: “O principio cognitivo [dos platénicos], isto é, 0 uno da alma ou unigdo, € de uma tal eminéncia, que, segundo Dionisio € Proclo, estabelecendo-se inteiramente nele, a alma se torna semelhante a Deus. O habitus dessa hiper-sabedoria que € a nossa ultrapassa pois qualquer outro habitus ndo s6 os das ciéncias, ‘mas ainda 0 do intelecto, isto 6, a sabedoria, do qual Arist6te- les tira os principios de sua filosofia primeira, que trata somen- te dos seres, j4 que ela trata do ser enquanto ser.” Nao se trata mais, doravante, de saber se a teologia verda- cira 6 filoséfica ou cristd, trata-se de decidir entre uma sabedo- ria que “transcende a natureza do espitito”, um “conhecimento supra-intelectivo”, um “delirio divino” de um lado, ¢ uma sabe- doria “que nfo nos conduz mais alto nos princfpios cognitivos © nos conhecimentos da alma humana do que o intelecto”, Tal € a escolha proposta por Bertoldo nos anos 1350: Pla- tio — isto & Dioniso, isto 6, Proclo — ou Aristételes. Serd quase exatamente esta a escolha do Renascimento.

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