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CASA DO SABER ste livro coloca em didlogo atualissimo dois pensadores fundamentais para a historia da filosofia. As influéncias perenes MERC ON CUTS eae oon ec Ro Reon CeCe TS een onevAaR Les UE Me Core Me Enc Ena Me ACEC cee em sociedade. ON CNC re TERN le MK Ty oN Oooo een LE) Farrer rere Oe Noao nent ETC n TERR [ees eCeonc son FEUER TR MCV onesaee CON es Comets Oe ROLs humano é verdadeiramente livre. Discute-se se direitos e deveres Fev ea ute Mert uric fear Mert ecar Veloce ete n en eLee DYere COMERS nett rod Coates DUN SVE Cla imposigao da democracia ¢ Toy pbertarery loetrareray ponte! autor Oswaldo G E ainda brinda 0 leitor com a essa altura, de que dos cla UENCE eer rath) da vida social e para uma exis} plano da mente do individuo. WT a TOMS. Ls) L SO CASA DO SABER (><) Uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever Oswaldo Giacoia Junior SBD-FFLCH-USP uM Casa da Palavra i | TBS451 (49.4 4% Nera Copyright © 2012 Oswaldo Giacoia Junior Copyright desta edicio © 2012 Casa da Palavea e Casa do Saber 9.610, de 19.2, 1998 Jéneia da editora v da autora, ‘Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei E proibida a reprodugdo total ou parcial sem a expressa anu CCoORDENAGRO DA COLEGAO Mario Vitor Santos Marina Bedran CASA DO SABER ~ Sao Paulo DinETOR -EXECUTIVO Mario Vitor Santos DineGAo EDITORIAL CONSELHO DIRETOR > Ana Maria Diniz ‘Ana Cecilia Impellizieri Martins Gelso Loducea Martha Ribas Sabriel Chalita Ja ibe da ‘coouDENAGAO DE PRODUGAO EDITORIAL E GRAFICA Jaic Ribeiro da Silva Neto Luiz Felipe D'Avila Maria Fernanda Candido Pierre Moreau Cristiane de Andrade Reis CAPA E PROJETO GRAFICO DE MIOLO Dupla Design CASA DO SABER ~ Rio de Janeiro DIRETOR -EXECUTIVO Rodrigo de Almeida conipesque Lucas Bandeira de Melo Garvalho REviskO. CONSELHO piRETOR Pedro Nébrega Alexandre Ribenboim Armando Strorenberg Elisabete Carneiro Floris Tana Strozenberg Jorge Carneiro Luiz Eduardo Vasconcelos DIAGRAMAGAO. Marcos P. Q. Faleso Filigrana Patricia Fainziliber Meyrele Torres Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortogréfico da Lingua Portuguesa CASA DO SABER ~ So Paulo CASA DA PALAVRA PRODUGAO EDITORIAL Rua Dr. Merio Ferraz, 414, Jardins Av. Calogeras, 6, 1.001, Centro Sao Paulo SP Rio de Janeito RJ 2030-070 11.3707 -8900 21,2222 -3167 21.2224 -7461 CASA DO SABER — Rio de Janeiro divulga@casadapalavra.com. br ‘Aw Epitécio Pessoa, 1.164, Lagoa swwwcasadapalavra.com.br Rio de Janeiro RI 241.2227 -2237 www.casadosaber.com.br CIP -BRASIL, CATALOGAGAO .NA -FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, Ry ie ane pin a aR de ded culo one / esl de Janeiro: Cas da Palavra; Sie Paulo Casa do saber, 2012. Me Greig Jamin Bn inc igo ISN J7m48 7754-2419 Mitac, reich Wien, 1684-19002, Kant, Immanuel, 1728-1804, 3 Fst. Tt,H,Sei wait cpp: 193 Cou. a3) YP SSS eee” SUMARIO 7 ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORANEO 29 INTRODUGAO PRIMEIRO MOVIMENTO 37 KANT: UMA ETICA NORMATIVA DO DEVER a) b) °) a) e) p 8) Liberdade e causalidade natural: A possibilidade da moral 0 conceito kantiano de imperative categérico da moralidade Doutrina do caréter: Cardter inteligivel e carater empitico Pessoa. Dignidade. Si-Préprio Gewissen: A consciéncia moral Subjetividade, ego e consciéncia de si A virtude em Kant Apéndice: Tradugses da Metafisica dos costumes 115 TRANSICAO = 129 INTERLUDIO SOBRE SCHOPENHAUER 265 267 279 SEGUNDO MOVIMENTO NIETZSCHE CRITICO DE KANT E SCHOPENHAUER: ETICA COMO ESTILISTICA DA EXISTENCIA a) Acrftica por Nietzsche a teoria do cardter inteligfvel b) Acconsciéncia moral em Nietzsche ©) Aresponsabilidade como invengdo itil: a metafisica de carrascos d) Individualidade e subjetividade: Como tornar-se 0 que se 6? e) Consciéneia, Ego, Si-Préprio. O corpo como devir sujeito f) Amor fati x Existéncia e culpabilidade g) A virtude em Nietzsche ‘APENDICE CONCLUSAD ALGUMAS INDICACOES DE LEITURA PARA INTERESSADOS BIBLIOGRAFIA DEDALUS - Acervo - FFLCH UN 6 0 ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORANEO Atarefa a ser realizada neste livro necessita de justifica- cao. Ela consiste em reconstituir, em pleno século XXI, um didlogo que tem a forma de uma confrontagao filos6- fica entre Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Immanuel Kant (1724-1804). A pergunta que naturalmente se im- poe €a seguinte: 0 que justificaria o esforco despendido nessa tarefa, sobretudo se considerarmos que os dois fi- I6sofos s4o extempordneos a nds e esto muito distantes de nossas presentes formas de vida, de nossos interesses mais prementes, assim como também sao completamen- te estranhos um ao outro do ponto de vista da cronolo- gia? Poderfamos recorrer a uma justificativa estética, ou histori a: a estilizagdo ficcional de uma conversagaio imaginaria. Nesse caso, estarfamos confrontados com uma literatura que forma um género bastante apreciado ae io clas ‘a — as Totengespriiche (conversas en- tre mortos). C. Rauer resume da seguinte maneira as Totengespriiche: Esse género literdrio recua até Luciano, como Nekrikoli didlogai (Didélogos dos mortos, de mais ou menos 166 d.C.),€ foi muito estimado, particularmente na época do Esclarecimento. A propria Modernidade foi anunciada pelos Nouveaux dialogues des morts (Novos didlogos dos mortos, 1683), seguidos pela tradugao de Fontenelle por Gottsched: Gespriich in Ehseum (Conversa no Eliseu, 1727), por uma tradugao de Luciano de 1749, assim como por uma contribuigdo de Gottsched: Gespriich im Reich der Toten (Conversa no reino dos mortos, 1727). Também Frederico I] e Voltaire, Wiesland, Schiller e Goethe compuseram conversas entre mortos, de modo que a disputa dos espiritos finalmente tornou-se também uma controvérsia dialégica do Esclarecimento.! Com 0 mesmo propésito desses autores, seria suges- tivo e curioso imaginar um didlogo e um confronto entre Nietzsche e Kant, tendo por objeto as respectivas concep- goes filosdficas acerca da moralidade e de seu fundamen- to. Talvez pudéssemos acrescentar esse didlogo ao legado espiritual que os dois pensadores conservam para nossos ' Rauer, C. Totengespriich zwischen Kant und Nietzsche zur Moralphilosphie, In: Himmelmann, B. (ed). Kant und Nietzsche im Widerstreit. Berlim: De Gruyter Verlag, 2005, s. 119. Nao havendo indicacoes em contrario, as tra dugdes sdo do autor. 8 Nietzsche x Kant atuais interesses tedricos € priticos. Afinal, poucos ousariam colocar em questdo a importancia e a influéncia tanto da ética de Kant quanto da genealogia da moral de Nietzsche sobre nossos modos atuais de pensar, sentir e agir. Ha, no entanto, outro elemento que nao apenas autoriza, mas também exige esse recurso a confrontagao entre os dois pensadores: aquele que diz respeito aos impasses, dilemas e desafios de nossa reflexao ética, juridica e politica, as agruras do pensamento a sombra do niilismo, em meio a crise de pa- radigmase referéncias vinculantes, que se mostra devastadora em todos os quadrantes da cultura mundial — da religido a ra- cionalidade légica, da estéticaa ética, da educagao &economia e politica. Essa crise permanente torna nao apenas atual, mas incontornavel uma revisitagao dos classicos, no caso, da he- ranga filos6fica de Kant e de Nietzsche, sobretudo no que diz respeito Aquilo que o confronto entre eles ainda pode conservar de seminal e fecundo para a orientacao do pensar e do agir. Essa fecundidade pode ser atestada pela caréncia de referenciais teGricos e axiol6gicos e de representagdes de valor, que sao tanto légico-cognitivas quanto ético-polt- ticas. Tendo em vista os objetivos deste livro, priorizamos os aspectos éticos, morais e juridico-politicos dessa urgéncia. Para ilustra-la, recorremos a documentos de importancia indisputada, que remetam a conceitos e valores que aten- dam a esse género de exigéncia normativa, tanto no plano moral quanto no do direito e da politica. Por razSes de proximidade espago-temporal, tomemos em primeiro lugar 0 exemplo da Constituigao da Republica ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFROKTO EXTEMPORANEO 9 Federativa do Brasil — cujo tftulo I é dedicado aos princi- pios fundamentais que alicergam a consolidagao institu- cional do Estado brasileiro, identificado, j4 nesse primeiro momento da origem de nosso ordenamento juridico, como Nos termos do Artigo 12 um Estado democratico de direito. da Constituigao Federal de 1988, a Reptiblica Federativa do Brasil, formada pela unido indissoltivel dos estados e municfpios e do Distrito Federal, constitui-se um Estado democritico de direito e tem como fundamentos: I —a soberania; II — a cidadania; III — a dignidade da pessoa humana; IV — 0s valores sociais do trabalho e da livre ini- ciativa; V—o pluralismo politico. Separemos, desse elenco de principios, aqueles dois que interessam de modo imediato a esta introdugdo: a dignidade da pessoa humana e o pluralismo politico. Isolemos também o pardgrafo tinico desse artigo inau- gural: “Todo o poder emana do povo, que 0 exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos ter- mos desta Gonstituigdo.” O conjunto dos enunciados constitucionais n4o deixa dtivida a respeito da estreita relagao, que af fica estabelecida, entre os princfpios da dignidade da pessoa humana e do pluralismo jurfdico e o Estado democratico de direito. Sobretudo se conside- ramos que, pelo termo “princfpios”, devemos entender os elementos que se colocam tanto como base légica de um sistema normativo, quanto como instancia inaugu- ral de uma série de inferéncias e dedugdes em acepgao polftica—como a estrutura basilar da modalidade de or- ie Nietzsche x Kant eT ganizagao definida, em nossa constitui¢40, como Estado democratico de direito. De acordo com isso, a autocompreensao constitucio- nal do Estado brasileiro, ainda que permanegamos nesse exemplo singular, tem um alcance cultural, ético e politico muito amplo, na medida em que sugere que a dignidade da pessoa humana eo pluralismo politico —além de outros princfpios que abrigam valores fundamentais acolhidos no texto acima citado — constituem as bases fundacionais do Estado democritico de direito. Constituem, portanto, os pilares de sustenta¢ao do reconhecimento e da legitima¢ao de direitos e prerrogativas que todo Estado dessa natureza deve assegurar. Outro exemplo pertinente—e igualmente atual—pode ser ilustrado por um dos diplomas normativos mais impor- tantes do direito ptiblico internacional contemporaneo. Trata-se da Declaragao Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela assembleia geral das NagGes Unidas em 1948 como resposta as atrocidades praticadas durante a segunda metade do século passado, que puseram em confronto, em toda a tragicidade inimagindvel, a civilizagao e a barbarie que essa mesma civilizagao, por sua dindmica interna, foi capaz de promover. Leiamos, com tal propésito, 0 expres- sivo preambulo desse texto notavel: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da familia humana e de seus direitos iguais e inalienaveis é o fundamento da liberdade, da jus- [ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORANEO i BEE EEE tiga e da paz no mundo; Considerando que 0 desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos barbaros que ultrajaram a consciéncia da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crencae da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade, foi proclamado como a mais alta aspiragao do homem comum; Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem nao seja compelido, como tiltimo recurso, a rebeliao contra a tirania ea opres- so; Considerando essencial promover o desenvolvimento de relacdes amistosas entre as nagoes; Considerando que os povos das Nagdes Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, ¢ que decidiram promover o pro- gresso social e melhores condigées de vida em uma liber- dade mais ampla; Considerando que os Estados-membros se comprometeram a desenvolver, em coopera¢ao com as Nagées Unidas, o respeito universal aos direitos hamanos cliberdades fundamentais ea observancia desses direitos eliberdades; Considerando que uma compreensao comum destes direitos e liberdades é da mais alta importancia para 0 pleno cumprimento desse compromisso; a Assembleia Geral proclama a presente Declaragao Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum aatingir por todos os povos e todas as nagdes, com 0 objetivo de que cada individuo e cada érgio da sociedade, tendo sempre em mente esta 12 Nietzsche x Kant declaragao, se esforce, através do ensino e da educagio, por promover 0 respeito a esses direitos e liberdades, ¢, pela adogao de medidas progressivas de cardter nacional e internacional, por assegurar 0 seu reconhecimento e a sua observncia universais e efetivos, tanto entre os povos dos préprios Estados-membros, quanto entre os povos dos territérios sob a sua jurisdigao. Artigo 1*: Todas as pessoas nascem livres ¢ iguais em dig- nidade e em direitos. Sao dotadas de razdo e consciéncia e devem agir em relagdo umas as outras com espfrito de fraternidade. Artigo 2®: Toda pessoa tem capacidade para gozar os di- reitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaragao, sem distingao de qualquer espécie, seja de raga, cor, sexo, Iin- gua, religido, opiniao politica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra situagdo. Além disso, nao serd feita nenhuma distingao fundada no estatuto politico, jurfdico ou internacional do pats ou do territ6rio de naturalidade da pessoa, seja es € pats ou territério independente, sob tutela, auténomo ou sujeito a alguma limitagao de soberania.? Do enunciado desses preceitos gostarfamos de destacar a seguinte caracteristica: a dignidade é, de acordo coma Declaragao Universal dos Direitos Humanos, inerente ou insita a todos os membros da familia humana; assim como * Carta Internacional dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, através da resolug’o 217 A (IIL), de 10 de dezembro de 1948, ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORANEO B é reconhecida como fundamento da liberdade, da justiga e da paz no mundo. A dignidade humana esté, portanto, na base da igualdade de direitos inalienaveis, que um es- tado democratico de direito tem o dever de reconhecer e assegurar, sob pena de que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem possam reconduzir a atos de barbdrie, jé perpetrados outrora na histéria recente, e que repugnam a consciéncia da humanidade, impedindo que esta marche em direcao a sua realizago — de conformi- dade com seu conceito, a saber: como o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de palavra ede crenga e libertos de viverem 0 temor e a necessidade, ideal que foi proclamado como a mais alta inspiragdo e aspiragaio do homem. No mesmo sentido — e de modo ainda mais enfatico e incisivo -, perfila-se outro documento fundamental. Este nao se institui apenas com status jurfdico de declaragao, portanto como texto nao normativamente vi nculante, mas antes como pacto internacional — e portanto como docu- mento normativo de direito internacional publico, obri- gatério para os pafses signatarios. Fazemos referéncia ao Pacto Internacional sobre Direitos Econémicos, Sociais e Culturais (PIDESC), em cujo preambulo os Estados parti- cipes também recorrem aum conceito basilar de dignidade humana, cujo estatuto fundacional é destacado: Considerando que, em conformidade com os princfpios enunciados na Carta das Nagées Unidas, 0 reconhe- “ Nietasche x Kant cimento da dignidade inerente a todos os membros da familia humana e dos seus direitos iguais ¢ inaliendveis constitui o fundamento da liberdade, da justiga e da paz no mundo; reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente 4 pessoa humana; reconhecendo que, em conformidade com a Declaragao Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, liberto do medo e da necessidade, nao pode ser realizado a me- nos que sejam criadas condigdes que permitam a cada um desfrutar dos seus direitos econémicos, sociais € culturais, bem como dos seus direitos civis e politicos; considerando que a Carta das Nagoes Unidas impée aos Estados a obrigagdo de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e liberdades do homem; tomando em consideragao 0 fato de que o individuo tem deveres para com outrem e para com a coletividade a qual pertence e é chamado a se esforgar pela promocao e pelo respeito aos direitos reconhecidos no presente Pacto; acordam nos seguintes artigos: Artigo 1*: 1. Todos os povos tém o direito de dispor deles mesmos. Em virtude deste direito, eles determinam li- vremente o seu estatuto politico e asseguram livremente o seu desenvolvimento econémico, social e cultural. 2. Para atingir os seus fins, todos os povos podem dispor li- vremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuizo das obrigagdes que decorrem da cooperagao econdmica internacional, fundada sobre o principio do interesse mtituo e do direito internacional. Em nenhum [ESCLARECINENTOS PRELIMINARES SOBREUM CONFRONT EXTEMPORANEO 15 caso poder um povo ser privado dos seus meios de subsis- téncia. 3. Os Estados-Partes no presente Pacto, incluindo aqueles que tém responsabilidade pela administragao dos territérios nao-aut6nomos ¢ territérios sob tutela, devem promover a realizacao do direito dos povos a dispor deles mesmos e respeitar esse direito, em conformidade com as disposigdes da Carta das Nagdes Unidas.* Tais documentos expressam uma percep¢ao comu- mente partilhada. Sabemos que um dos ambitos nos quais © pensamento ético contemporaneo encontra hoje suas maiores dificuldades e urgéncias é 0 campo de questées aberto pela bioética e pelo biodireito. Eis um desafio em que nos defrontamos com a oposi¢4o — dificilmente conci- liével — entre duas correntes formadoras da modernidade cultural e politica: de um lado, a defesa da liberdade de consciéncia, de conviccao e de investigacao; do outro, a necessidade de proteger os elementos simbélicos e mate- riais que dao corpo & nossa autocompreensao ética como género humano, atualmente ameagados pela possibilidade de instrumentaliza¢ao da base somatica de nossa perso- nalidade, tal como se atesta pelos progressos da pesquisa cientifica, sobretudo nos campos da biologia molecular e da engenharia genética. Um documento de candente atualidade a esse respei- to € a Declaragao Universal sobre 0 Genoma Humano e Aprovado pela Assembleia Geral através da resolucao 2200 A (XXI), de J6 de dezembro de 1966, 16 Nivtasehe x Kant nn os Dircitos Humanos. Esse documento estabelece, j4 no proprio titulo, uma relagdo cerrada entre genomae direitos humanos, ao mesmo tempo em que recorre mais uma ve7, como conceito normativo cardinal, a dignidade humana. Recordando que o Preambulo da Constituigaoda UNESCO se refere aos “principio democriticos da dignidade, da igualdade e do respeito mtituo entre os homens’, rejeita “qualquer doutrina que estabelega a desigualdade entre homens e ragas”; estipula “que a ampla difusaoda culturae aeducagao da humanidade paraa justiga, para aliberdadee paraa paz.sdo indispensdveis 4 sua dignidade e constituem um dever sagradoa ser cumprido por todas as nagées, num espirito de miitua assisténcia € compreensao”; proclama “que a paz deve fundamentar-se na solidariedade intelec- tual e moral da humanidade”, e afirma que a organizagao busca atingir, “por intermédio das relagdes educacionais, cientfficas e culturais entre os povos da terra, os objetivos da paz internacional e do bem-estar comum da humani- dade, em razio dos quais foi estabelecida a Organizagio da Nagées Unidas e que sao proclamados em sua Carta’, Portanto, reconhecendo que a pesquisa sobre o genoma humano e as aplicacdes dela resultantes abrem amplas perspectivas para o progresso na melhoria da satide de individuos ¢ da humanidade como um todo, mas enfatizando que tal pesquisa deve respeitat ESCLARCCINENTOS PRELIMINARES SOBREUM CONFROMTO EXTEMPORANEO ” NZ inteiramenteadignidade, a liberdade eos direitos huma- nos bem como a proibigao de todas as formas de discri- minago baseadas em caracteristicas genéticas, proclama os seguintes princfpios e adota a presente Declaragao, Artigo 1*: O genoma humano constitui a base da unidade fundamental de todos os membros da familia humana, bem como de sua inerente dignidade e diversidade. Num sentido simbélico, é 0 patriménio da humanidade. Artigo 28: a) A todo individuo ¢ devido respeito a sua dig- nidade e aos seus direitos, independentemente de suas caracteristicas genéticas. b) Esta dignidade torna impe- rativa.a nao redugao dos individuos as suas caracterfsticas genéticas e 0 respeito a sua singularidade e diversidade.* Tendo em vistaa reflexao que acompanhamos até agora, uma pergunta se apresenta: como estabelecer, de maneira clara e inequivoca, o que devemos entender por “dignidade humana”, por “dignidade da pessoa humana”, ou do “ser humano’, ou ainda da “vida humana”? Tais perguntas tornam-se relevantes porque — nos quadros institucionais do moderno Estado democratico de direito, para o qual pluralismo das cosmovi ponto essencial - nao se deve recorrer, para respondé-las, anenhum contetido substantivo particular, metafisico ou religioso, 0 qual se mostra incapaz, por !sso mesmo, de sustentar sua pretensdo a validade e ao reconhecimento 4 Declaragao Universal sobre o Genoma Humano¢ os Direitos Humanos, adotada pela Conferéncia Geral da UNESCO na essdo (1997). Nietasche x Kant 18, ee Nn universal. E nesse sentido que a contribuigaio aportada pela filosofia moral de Kant demonstra toda a sua vitali- dade, sua plena pertinéncia as urgéncias e aos propési- tos de nossos tempos. Em sentido contrario, é também por foga dessa mesma razdo que a critica disruptiva que Nietzsche dirigiu a filosofia kantiana, sua impiedosa oposigao A moralizagdo do pensamento, até mesmo nas regiées mais rarefeitas da racionalidade cientifica e légi- ca, desafia nossa capacidade de reflexao e nos concita a levar a sério suas adverténcias. Kant torna-se nosso contemporaneo, entre outros fatores, porque desvincula o conceito de dignidade hu- mana de toda fundamentacao extrarracional. Para fazé- lo, 0 filésofo recorre, como veremos mais a frente, a um embasamento estritamente formal, transcendental; por isso, sua filosofia é capaz de dotar esse conceito de um al- cance e de uma validade objetiva—com uma consisténcia teérica de que carecem os projetos éticos contemporane- os. Nesse sentido, uma das propriedades mais relevantes da contribuigao de Kant para o pensamento filos6fico da modernidade consiste em ela ser perfeitamente compa- tivel — em todos os pontos cruciais — com o pluralismo politico inerente 4 concepgao de Estado democratico de direito. Por ser eminentemente formal, o universalismo moral kantiano prescinde de hipotecas substantivas me- tafisicas ou teologicas. E isso que podemos constatar em sua formulagao do conceito de fim em si, ao qual esta li- gado o de dignidade da pessoa humana: ‘ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORAMEO 19 SSS ——SSS Admitindo porém que haja alguma coisa cuja existéncia em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fimem si mesmo, possa ser a base de leis determinadas, nessa s6 nela € que estaré a base de um possivel impe- coisa € deuma lei pratica. Ora, digo rativo categérico, quer dizer, eu:—O homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, nao sé como meio para o uso arbitrario desta ou daquela vontade. Pelo contrério, em todas as suas acoes, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, cle tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. Todos 0s objetos das inclinag6es tém somente um va- lor condicional, pois, se nao existissem as inclinagdes e as necessidades que nelas se baseiam, 0 seu objeto seria sem valor. As proprias inclinages, porém, como fontes das necessidades, estao tao longe de ter um valor absoluto gue as torne desejaveis em si mesmas, que, muito pelo con- trario, o desejo universal de todos os seres racionais deve ser o de se libertar totalmente delas. Portanto 0 valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas agées € sempre condicional. Os seres cuja existéncia depende, nao em verdade da nossa vontade, mas da natureza, tem contudo, se 10 seres irracionais, apenas um valor relativo como meios € por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue j4 como fins em si mesmos, quer dizer como algo que nao pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo arbitrio 20 Nietasche x Kant (e € um objeto do respeito). Estes nao so portanto me- ros fins subjetivos cuja existéncia tenha para nds um valor como efeito da nossa ag4o, mas sim fins objetivos, quer dizer, coisas cuja existéncia € em si mesma um fim, eum fim tal que se nao pode pér nenhum outro no seu lugar.* Na ideia de lei moral, que assume para nds, seres huma- nos, ou seres racionais finitos (nos quais a razdo é limitada pela sensibilidade), a forma de imperativo categorico damo- ralidade, reconhecemos a propriedade inerente a todos os seres racionais de determinar — por meio de maximas de sua livre escolha subjetiva (racionalmente orientada) — a regra geral, ou 0 princfpio de unificagao de suas agées, de modo a se tornar capaz de reconhecer uma nog¢ao vincu- lante de dever, derivada da lei moral, principio objetivo e, portanto, valido para todo ser racional: nunca tratar qual- quer pessoa (nem permitir que a propria pessoa seja tratada) como coisa, Ou seja, apenas como meio para a consecugao de fins quaisquer; em outras palavras, a obrigag4o de reco- nhecer o valor absoluto da pessoa (sua dignidade) como um fim em si mesmo, 0 que vale para a pessoa dos outros, assim como para a prépria pessoa. Com base nessa argumentagao, atesta-se que, para Kant, os conceitos de dignidade, pessoa, autonomia e li- berdade sao conceitos em reciproca remissao. Ao fundar a dignidade e a personalidade moral na liberdade, iden- 5 Kant, I. Fundamentagéto da metaftsica dos costumes. BA 64/65. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edigdes 70, 2007, p. 67s. ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORANEO 21 tificando esta com a autonomia (compreendida, por sua vez, como propriedade da vontade de um ser racional de prescrever, para e por si mesma, 0s princfpios e as regras paraacao, de tal modo que essas passem pelo teste racional da universalidade), Kant enuncia paradigmaticamente a formula e a divisa do ideal moderno ético, cuja natureza € essencialmente iluminista. A dignidade da pessoa de- corre, para Kant, da liberdade e da autonomia, enquanto capacidade ou poder legislador, visando a autorrealizacgao da humanidade em todas as suas disposigGes naturais. Evidentemente podemos indicar justamente af uma li- mitagao ou escolha tedrica do pensamento de Kant: fundar a dignidade na liberdade e na autonomia, € nao 0 inverso, por exemplo. Por certo, trata-se de uma tese que decorre das premissas fundamentais da filosofia pratica de Kant, como explicaremos. De qualquer forma, fica também atestado ovinculo entre a filosofia pratica de Kant e 0 pensamento ético-politico moderno e contemporaneo, revelando até que ponto a modernidade cultural é devedora da filosofia kan- tiana, o que faz de Kant , como afirmard mais tarde Michel Foucault, 0 primeiro a enunciar 0 sentido filoséfico de seu proprio tempo. E, ao fazé-lo, deu voz também ao que seria uma linhagem de pensamento que conduz aos nossos dias. Nos termos de Kant, a dignidade de todo ser racional é um valor absoluto e privativo das pessoas, em oposiga0 as coisas, cujo valor é sempre relativo e se confunde com 0 prego, estabelecido no circuito das equivaléncias e das tro- cas. A dignidade, ao contrério, nao tem prego, mas funda- ae Nietzsche x Kant -se, para Kant, na autonomia da vontade, portanto num conceito positivo de liberdade, estatuido em sentido pratico comoa independéncia da vontade de determinar-se, em suas agoes, por qualquer regra ou principio que nao possa valer como lei universal — ou seja, a dignidade humana funda-se na raz4o pratica, enquanto vontade legisladora universal, cujas maximas sao providas de valor moral porque podem veis, na medida em que sao determinadas, ser universal, como condigao incondicionada, pela forma da lei pratica, que nos obriga a agir de acordo com uma regra valida para todo ser de razo. Portanto, a moralidade nos dota de um valor tinico, singular e insubstitufvel, que nenhuma coisa — simples meio para os fins do arbitrio — pode reivindicar ou almejar. Abstragao feita de todo contetido particular, de toda ma- téria do querer ou do agir —a saber, de toda particularidade inerente A experiéncia —, a moral kantiana pode conciliar o valor universal da dignidade humana com a exigéncia — com a qual se compromete todo Estado democratico de direito — do pluralismo politico das cosmovisées. O que se pretende sugerir com isso é que a filosofia pratica de Kant conserva hoje toda a sua atualidade e fecundidade porque di as nogées de dignidade e de pessoa um contetido axiolégico plenamente convergente com os requisitos da modernidade ético-jurfdico-politica, enquanto era do desencantamento do mundo Ou, em outras palavras, o sentido atual dos conceitos de dignidade, liberdade e personalidade esta profundamente ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORANEO 23 NS ooo, impregnado da filosofia critica de Kant. Por ai podemos perceber o lago sélido e 0 vinculo indissoltivel entre, por exemplo, Kant e a constituigdo brasileira, entre Kant e a bioética atual, entre Kant e a carta da ONU sobre os di- reitos humanos universais. E sobre a realidade objetiva da lei moral, cuja validade é universal, que Kant assenta seus conceitos de dever, boa vontade, imperativo catego. rico, liberdade, autonomia, assim como de consciéncia moral e respeito. Podemos tornar ainda mais plausfvel essa pertinéncia se considerarmos com Menke e Pollmann que aexigéncia normativa fundamental dos direitos humanos € conforme com a concepgao politica de participagao de todos os homens numa comunidade politica de livre au- todeterminagdo. Pois, em uma tal comunidade politica, cada membro € considerado em igual medida. Porém, ao mesmo tempo essa concep¢ao politica afirma que esse entendimento decorrente dos direitos humanos € 0 en- tendimento pura e simplesmente correto de politica. A ordem politica compreendida de tal modo que nao uma ordem de livre autodeterminagao, na qual — por cau- sa disso —todos os seus membros sejam tratados em igual medida, é, em decorréncia daquela concepgao pol falsa e injusta sob todas as circunstincias.® * Menke, C. ¢ Pollmann, A. Philosophie der Menschenrechte. Hamburgo: Junius Verlag, 2007, 5.41. 24 Nietasche x Kant at Percebemos, entao, que essa ordem concebida como pura e simplesmente justa e correta—a verdadeira ordena- cao politica — tem sua figura estatal plasmada no Estado democratico de direito. E, nesse sentido, aferimos com ainda maior pregnancia a atualidade e a relevancia do pensamento de Kant. Considero que o mesmo diagnéstico pode ser feito a partir do vinculo interno, reconhecido por Jurgen Habermas, entre direitos humanos e democracia nas sociedades contemporaneas. Mas, se esse legado € formador da modernidade polf- tica, a crise permanente e sistematica do projeto politico moderno — 0 limiar para a pds-modernidade e a trave: a do Rubicao para 0 que poderfamos considerar como uma p6s-humanidade — coincide com 0 combate sem quartel movido por Nietzsche contra a filosofia critica de Kant, em particular a suas concepgées de lei moral, dever in- condicionado, imperativo categérico, consciéncia moral e virtude, e, com elas, a sua ética deontolégica (uma moral dos deveres), normativa, na medida em que reconhece obrigagdes e formula preceitos que sao regras de conduta, com pretensao de validade geral, mas legitimadas pelo livre consenso racional. Em Nietzsche, encontramos 0 adver- sdrio da deontologia e das éticas prescritivas, 0 antipoda de todo imperativo categérico: Eagora nao me fale de imperativo categérico, meu amigo! —esse termo faz cécegas em meus ouvidos, e tenho que rir, apesar de tua presenga tao grave: em face dele, eu penso ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM CONFRONTO EXTEMPORANEO a ‘ novelho Kant, que, como castigo por ter deixado escapar “acoisaem si”~também uma coisa muito ridicula! ~, fo colhido pelo “imperativo categérico”, e com cle retornou de novo, de coragiio e por engano, para “Deus”, “alma”, “liberdade” e “imortalidade’, igual a uma Taposa que re- tornou por engano a sua jaula:—e tinham sido sua forgae inteligéncia que haviam arrombado aquela aula! ~Como? Admiras 0 imperativo categorico em ti? Essa “solidez” do teu chamado juizo moral? Essa “incondicionalidade” do sentimento: “assim como eu, todos deveriam julgar as- sim a respeito disso"? Admira antes teu préprio egofsmo nissol E a cegueira, a pequenez.e falta de exigéncia de teu egofsmo! A saber, é egofsmo sentir seu juizo como lei universal; e, de novo, um egoismo cego, pequeno e nao exigente, pois ele denuncia que tu mesmo ainda nao te descobriste, ainda nao criaste, para ti mesmo, nenhum Si-Préprio, um ideal ipsissimo: — este, com efeito, ja- mais poderia ser 0 ideal de um outro, quanto mais entao de todos, de todos!? Do ponto de vista de Nietzsche — que, como veremos, orgulha-se de poder ser considerado o primeiro psicdlogo entre os filésofos —, uma lei que vale para todos, precisa- mente em razio de sua universalidade, nao pode valer —___ Nietzsche, F. Die frohliche Wissenschaft. Aforismo 335. In: Gesamelte Werke. Kritische Studienausgabe (abreviada como KSA). Ed. G. Collie M. Montinari. Berlim, Nova York, Munique: De Gruyter Verlag, 1980. Vol. 3, 26 Nietzsche x Kant para uma singularidade auténtica e genuinamente pes- soal. Nossas virtudes nao podem ser as virtudes de todo mundo, meu ideal nao pode ser o ideal de nenhum outro, menos ainda o ideal de todos, sob pena de suprimir a in- dividualidade irresgatavel de cada qual. Por causa disso, se a ética de Kant é compatfvel com uma nogao liberal de * dignidade, a ética de Nietzsche aparece — pelo menos & primeira vista — como elitista, uma defesa intransigente da individualidade e da singularidade, incapaz de fundar um pacto politico com pretensdes de validade universal. Por outro lado, como a crise dos valores afetou também a base das éticas deontolégicas e normativas, a genealo- gia nietzschiana da moral tem se demonstrado compativel com as propostas éticas nao normativas, nas quais éthos é entendido como forma de vida, como estilfstica da exis- téncia, tal como a encontramos em particular nos pensa- dores considerados pés-modernos. De todo modo, Kant e Nietzsche dialogam no limiar histérico, politico e filos6- fico inaugurado pelo Esclarecimento, e os pensamentos de ambos representam tentativas heroicas de emancipar a humanidade da superstigao e da ignorancia, um projeto radical de autodeterminagao. Se Kant nos abre um hori- zonte para a formulagao de projetos éticos e politicos que hoje em dia se colocam na esteira universalista dos direi- tos humanos, Nietzsche mantém, com a radicalidade de sua suspeita, uma atualidade inegdvel, na medida em que denuncia o que sempre pode subsistir, de maneira subter- rinea e subliminar, como tirdnicas pretensdes de poder ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES SOBRE UM COMFRONTO EXTEHPORANEO 27 e dominagio, mesmo na atmosfera das rarefeitas teorias que reivindicam, como principios e pretensamente universais. Aexplicitagao dos termos principais desse debate, que sem duivida nos concerne como pessoas de nosso tempo, constitui o objetivo principal deste livro. fundamentos, valores 28 INTRODUCAO A confrontagao entre Nietzsche e Kant que sera apre- sentada neste livro esta circunscrita ao dominio da razao pratica, portanto ao campo do éthos e da praxis. Isto é, se restringe as formas de vida e aos modos de agir qualifi- cados por valores, normas, leis, princfpios ou regras, para cuja instituigao e justificagdo € necessdrio 0 concurso de um dos usos ou faculdades da razo—a faculdade pratica, diferente da razdo aplicada produgao do conhecimento tedrico, ou, nos termos de Kant, da ciénc! E, portanto, tendo em vista essa diferenga que espe- icamos dois usos (empregos) ou faculdades da mesma cl racionalidade, a saber: a teérica (especulativa), cuja tarefa cognitiva recobre 0 campo do saber cientifico, e a pratica 10 que prescreve valores e normas (ética lato sensu), a raz que orientam e justificam o agir humano. Trata-se, pois, 29 da distingdo entre ]dgica do conhecimento cientifico e logica da agao. A critica de Nietzsche a filosofia de Kant de modo al- gum se limita ao campo da razao pritica— campo que in- clui religiao, moral, direito, politica, filosofia da hist6ria-, mas mira tambéma teoria kantiana do conhecimento e da ciéncia. No entanto, os objetivos deste livro limitam nosso recorte 4 oposic¢ao entre Nietzsche e Kant relativa a temas e conceitos cardinais da filosofia moral, como liberdade, valor, dever, necessidade, determinagado, autonomia, lei, arbitrio, carater, virtude, direito, personalidade, si-préprio, culpabilidade e inocéncia, imputagao, legitimidade e jus- tificagdo. As referéncias a problemas de filosofia teorica serao reduzidas ao minimo indispensavel. Os principios metodolégicos dos dois filésofos so mar- cadamente distintos e, de certa forma, até mesmo opostos. O programa critico de Kant constitui um empreendimen- to tedrico de filosofia transcendental. Seu objetivo maior é examinar, de forma sistematica, 0 alcance e os limites préprios a razao, em seus diferentes usos. Kant discrimina e analisa as condigées de possibilidade da experiéncia e cia, no Ambito cognitivo do conhecimento dessa exper préprio das ciéncias formais (matematicas, l6gica) e das ciéncias da natureza (mecanica racional, fisica), assim como as condigdes de possibilidade da experiéncia mo- ral. No fundamento tanto da ciéncia da natureza quanto da experiéncia moral — assim como na base do saber que delas se extrai — existem juizos sintéticos a priori. $0. Nietzsche x Kant Tais jufzos sao encontrados como fundamento das ma- temiaticas e da ffsica. Como exemplo, pode-se mencionar até mesmo uma proposigdo elementar de aritmética, ojuizo incondicionado de que 7 + 5 = 12 (para utilizar um exemplo do préprio Kant); e, quanto fisica, o jufzo que constituia condigao formal basica dessa disciplina cientifica: “Todo efeito deriva de uma causa, de acordo com uma regra in- varidvel” é o melhor exemplo de um juizo sintético a priori. Analisando tais jufzos, percebemos que conectam dois conceitos totalmente distintos um do outro—num caso, 0 conceito da soma de dois nimeros quaisquer e 0 con- ceito de outro ntimero; no outro, o evento denominado causa e 0 evento denominado efeito — que se encontram ligados entre si por meio de uma operagao sintética, na qual oconceito do predicado nao pode ser obtido pela andlise dos elementos ou notas constituti s da compreensao do conceito do sujeito. Trata-se, portanto, de uma ligagao para a qual nao basta, como fundamento, o principio de nao contradigao. No entanto, nos exemplos acima, a ligacgao é efetuada como uma propriedade dos objetos pensados por meio dos respectivos conceitos. E tais enunciados nao sao jufzos de percepgao, cuja validade é subjetiva e particular, mas sustentam uma pretensao a validade objetiva e universal que nenhum conhecimento extraido da experiéncia pode chancelar—uma vez que, por definigao, todo fato empfrico € contingente e particular. Portanto, tais jufzos sdo sinté- ticos, posto que configuram um conhecimento extensivo a todos os conceitos e no qual o predicado agrega ao con- ‘wrropugho 31 a ceito do sujeito notas nao compreendidas nesse conceito; e sido, todavia, apriorfst validade objetiva nao derivam da experiéncia. A filosofia critica de Kant se propée, pois, a examinar como sao possiveis juizos sintéticos a priori,em todos os do- em que tais juizos sa0 constataveis, principalmente plinas do saber humano: na matemiatica, icos, pois sua universalidade e sua m{nios como base de disci na metafisica, na Fisica. Também quanto ao Ambito pratico da razio, a pergunta critica kantiana é como sao possiveis juizos sintéticos a priori no dominio da praxis humana, ou seja, da moral e da ética. “y Que tais juizos existem fica provado pela f6rmula do imperativo categérico: “age sempre em conformidade com uma maxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que elavalha também como lei universal da natureza.” Tal im- perativo conforma um juizo peculiar, como examinaremos a seguir, no qual dois conceitos sao ligados sinteticamente e de modo apriorfstico; no entanto, o fundamento dessa sintese nao pode ser dado pela experiéncia (e, portanto, a posteriori), como ocorre com os demais juizos sintéticos, mas sé pode ser buscado na raz4o pura, uma vez que 0 im- perativo categérico vincula a vontade humana a lei moral por intermédio da universalidade necessaria das méximas dessa vontade, numa ligacao que reivindica validade ob- jetiva e universal, que nenhuma experiéncia pode prover. Aé mos na sequéncia. Ela é concebida e formulada como uma ica de Kant é uma ética do dever, como explicare- ética normativa, que prescreve regras para 0 agir tendo 32 / Nietzsche x Kant como referéncia valores que reivindicam para si validadee forga cogente universal. A filosofia moral de Kant 6, nesse sentido, deontolégica. Aética de Nietzsche, ao contrdrio, principia por colo- car em questao os pressupostos deontolégicos da moral kantiana, ou seja, denuncia a faldcia da pretensdo uni- versalista de valores e da validade incondicionada de de- veres e obrigagdes. Como a filosofia moral kantiana, a de Nietzsche é eminentemente critica, mas seu método nao é transcendental (no sentido de Kant). Por isso, em vez de se perguntar pelas condigées de pos- sibilidade dos jufzos sintéticos a priori no ambito da mora- lidade, Nietzsche parte da dentincia da propria pergunta transcendental kantiana. Para ele, jufzos sintéticos a priori sdo “erros fundamentais da raziio”. E, no que diz respeito a valores, deveres e obrigagoes, a pergunta de Nietzsche é essencialmente genealégica. Ela se volta paraum exame da génese dos valores morais, assim como do valor dessa génese, Sob quais condigdes o homem inventou para si aqueles juuizos de valor bom e mau? E que valor tém eles préprios? Fomentaram ou entravaram, até aqui, a prosperidade humana? Sao e! s um signo de pentiria, de empobreci- mento, de degeneragao da vida? Ou, inversamente, neles se denuncia a plenitude, a forga, a vontade de vida, sua coragem, sua confianga, seu futuro?® ee as Nietzsche, F. Zur Genealogie der Moral. Vorrede, 3. KSA, volume 5, p. 520s. wreonugho 33 NY oN A tarefa de Nietzsche pode ser formulada, resumida. mente, nos seguintes termos: necessitamos de uma Critica dos valores morais do bem e do mal, de bom e mau. Essa critica deve ser capaz.de colocar em questao o valor desses valores, e determinar ndo apenas a génese desses valores, a historia de sua proveniéncia — uma vez que, como tudo aquilo que importano mundo cultural, esses valores vieram aser, ao contrério dos valores eternos, subtraidos ao fluxo do tempo ea corrente da histéria humana, que sao idénti- cos a si mesmos, estdveis e permanentes e que, portanto, s6 podem ser aquilo que nao tem histdria —, mas também o valor dessa génese, j4 que 0 valor de tais valores jamais foi posto em questdo. Nessa exigéncia critica, Nietzsche discerne a especificidade de sua genealogia: Expressemos essa nova exigéncia: temos necessidade de uma critica dos valores morais, o proprio valor desses valores tem, pela primeira vez, que ser posto em questao ~ ¢ para tanto carecemos de um conhecimento das con- dig6es e das circunstancias a partir das quais eles cres- ceram, sob as quais se desenvolveram e deslocaram ... um conhecimento tal que até agora nao existiu, e também ainda nao foi desejado. O valor desses ‘valores’ era tomado como dado, como factual, como além de toda colocagao em questao; até agora, ndo se duvidava nem se hesitava, o mais remotamente que fosse, em colocar ‘o bom’ como de valor mais elevado que ‘o mau’, no sentido do fomen- to, da utilidade, da prosperidade, em vista do homem em “ Nietasche x Kant geral (incluindo-se o futuro do homem). Como seria se 0 contrario fosse a verdade?? Ao longo deste trabalho, tomaremos 0 termo “valor” em acep¢do que o remete ao conceito de “bem”. “Bem”, por sua vez, deve ser entendido como aquilo para o que um ente qualquer tende — isto €, o elemento que perfaz, completa e realiza integralmente sua esséncia ou natureza. Nesse sentido, o “bem” é 0 fim a que um ente determinado tende, como termo de sua realizacao (seu telos), proporcionando uma resposta a pergunta: para qué? O para qué? de uma coisa, aquilo a que ela se presta, a finalidade que ela real za, isso constitui o seu “bem”, seu ser-bom-para, sua referéncia ao “bem’”, isto é, seu “valor”, na acep¢ao restrita que aqui consideramos. A estreita vin- culagao entre bem, valor e finalidade produz muitas vezes um deslizamento seméntico que leva a uma confusao que consiste em identificar pura e simplesmente bem, valor, finalidade e utilidade. Desde a antiguidade classica, os fi- lésofos se preocuparam em desfazer essa confusdo entre o Bem e 0 titil. Esse esforgo ecoa também nas filosofias de Kant e de Nietzsche. Nesse confronto, é preciso considerar também previa- mente que as posigGes dos dois “contendores” é assimétri- ca, posto que Kant, como € 6bvio, jamais teve contato com as obras de Nietzsche e, portanto, nao péde considerar e sche, F. Zur Genealogie der Moral. Vorrede 6. KSA, volume 5, WwrRoougho 35 oo, responder as criticas que lhe foram enderegadas por este Nietzsche, ao contrério, conhecia a obra de Kant e meditoy profundamente sobre ele, considerando-se, num importan. te sentido, herdeiro do legado espiritual kantiano. Por essa razao, alguma desproporgao na exposi¢ao dos argumentos seré inevitavel na montagem da confrontagao. YS 36 Nietasche x Kant PRIMEIRO MOVIMENTO KANT: UMA ETICA NORMATIVA DO DEVER A) LIBERDADE E CAUSALIDADE NATURAL: A POSSIBILIDADE DA MORAL ‘Tomaremos como ponto de partida do confronto entre Kant e Nietzsche um nticleo de problemas comuns, aos quais os dois filésofos deram igual importanciae dispensaram igual atencao e exame critico. Uma apresentacao sucinta desses problemas poderia ser formulada por meio das seguintes questdes: sob quais condigdes podemos atribuir um ato a seu agente? Em que sentido pode-se considerar um indi- viduo 0 sujeito responsdvel Por suas agGes? Como pode ser racionalmente justificada a imputagao, que pressupde jus- tamente a consisténcia da atribuigdo acima mencionada? Essa iltima pergunta desdobra-se em outra, igualmente fundamental para a moralidade: que condigdes devem necessariamente ser pensadas para que fagam sentido e 37 como podem ser legitimados jufzos a respeito do valor mo. ral (bom ou mau) das ages humanas? ; Uma classica resposta a essas perguntas consiste em atribuir ao agente racional (aqui provisoriamente consi- derado “o homem’; logo adiante veremos como a extensao légica desse conceito nao se limita aos seres humanos, mas ao conceito de ser racional em geral, que pode incluir outras espécies possiveis ou pensaveis de seres racionais, como Deus, por exemplo) a propriedade da liberdade — num sentido mais restrito, a propriedade do livre-arbitrio, Desse modo, atribui-se ao homem um tipo muito especial de causalidade: a causalidade da vontade, de acordo coma qual o ser humano tem nela — na voluntas —o princfpio ou a causa produtora de seu agir. Essa causalidade se refere tanto a propria agdo quanto a escolha (determinagao) das regras de seu agir, entendendo-se por regras, nesse con- texto, as normas gerais de conduta ou 0 principio norma- tivo (valorativamente orientado) que dé sentido e diregao a conduta dos homens, seja em relacao a si préprios, seja em relagao aos outros homens. Nesse sentido, no conjunto da natureza, o homem parti- tha com os animais um tipo de causalidade interna, ligado a faculdade de apetigao (faculdade apetitiva), que consiste em produzir, recorrendo A Tepresentagao, o objeto dessa Tepresenta¢ao, ou seja, determinar-se voluntariamente ao movimento ou agao. Faculdade de desejar é a faculdade de realizar pelo pensamentoe Pelas agdes os objetos de nossas Fepresentacdes, sejam eles pensamentos ou voligdes. Para 38 Nietasehe x Kant a i) Kant, a propria vida, considerada como prine‘pio interno de animagao dos organismos, pode ser pensada como a fa- culdade, propria a certas classes de entes naturais, de agir em conformidade com suas representagGes. Se assumirmos, ao menos provisoriamente, essa defi- nigdo de vida—“faculdade que tem certas classes de entes naturais de agir em conformidade com suas representagdes” _, entéo compreendemos que, embora essa causalidade do agir seja interna (ou seja, derive das representagGes desses mesmos entes), isso ainda nao basta para que possa ser considerada uma causalidade livre. Pois ela pode obede- cer a uma legalidade que no comporta nenhum padrao alternativo de acao, ou seja, uma legalidade inflexivelmente invaridvel, como aquela que vigora na natureza, em geral,e que, por isso mesmo, é denominada necessidade natural. Nos termos de Kant, o problema é formulado da se- guinte maneira: E uma lei da natureza que tudo 0 que ocorre possui uma causa, e que a causalidade dessa causa (ou seja, oelemento que a torna capaz de produzir efeitos) também tem uma causa, ou seja constitui um fendmeno mediante o qual € determinada a primeira causa, e isto porque toda cau- salidade ocorre no tempo; considerando, entao, que um efeito qualquer tenha surgido, isso também significa que ele tem de ser pensado como nao podendb ter existido sempre, uma vez que ocorreu, mas tem que ter acontecl- do no tempo, como modificagao de um estado de coisas. ANT, uma ETCA MORMATIVA BO DEER 39 aN Segundo essa lei de causalidade, consequentemente, to. dos os eventos numa ordem natural sdo empiticamente determinados. Esta lei, através da qual os fendmenos po- dem primeiramente constituir uma natureza e fornecer objetos de uma experiéncia, é uma lei do entendimento, nao sendo permitido, sob hipstese alguma, afastar-se da mesma nem tampouco dela eximir qualquer fendmeno, Permitir isso implicaria p6-la fora de toda experiéncia possivel e, através disto, distingui-la de todos os objetos de uma experiéncia possivel, tornando-a um mero ente do pensamento, uma quimera.'° Uma lei natural é a expressao de uma relagao regular entre dois fendmenos da natureza (alteragao ou modificagao de estados da matéria), relacdo esta de acordo com a qual, sempre que um deles se produz, segue-se invariavelmente o outro, de acordo com uma regra fixa. Tais fendmenos sao sempre modificagées dos estados de repouso ou movimento dos corpos. Se dermos a uma dessas modificagées de es- tados de coisa o nome de causa, entdo a causalidade sera o poder (virtus) que tem essa modificagao de produzir a modificagao subsequente, de modo regular e sem exce¢ao, alteragdo a qual atribui-se o nome de efeito. Causalidade natural é 0 poder das causas naturais de produzir de modo invariavel seus efeitos, por exemplo, 0 © Kant, I. Critica da razao pura, B 570-72. Trad. Valério Rohden e Udo Moosburger. Colegio Os Pensadores. Sao Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 275s. 40 Nictasche x Kant om efeito de a Agua ferver a uma temperatura de 100°C. A causalidade vigora universal e integralmente na nature- za, de modo que o préprio conceito de natureza se define como o conjunto dos fenémenos observaveis, unificado, do ponto de vista da forma, por uma mesma lei ou regra: o principio da causalidade, ou 0 principio de razao sufi- ciente, de acordo com o qual toda mudanga fenoméni- ca (alteragdio de estado de uma coisa) esté ligada a uma mudanga anterior, e se verifica segundo uma regra que define uma relagdo invariavel. Desse modo, nenhuma modificagao na natureza (na citagdo acima enunciada Kant se refere a todo fendme- no, sem nenhuma excegao possivel) pode ser produzida sem que intervenha para tanto uma causa suficiente. Oo principio de razao suficiente € a lei universal da natu- reza, considerada do ponto de vista da forma, abstrafda de qualquer contetido fenoménico. Em sentido estrito, explicar significa relacionar um efeito @ sua causa, um fato a sua razao de ser, uma conclusao as suas premissas ou fundamentos, de acordo com a regra constante que determina a sucessio de um pelo outro —e conhecer im- plica tornar-se objeto de uma explicagao —; a saber, exibir a causa, o fundamento, a razdo de ser de um fendmeno qualquer; 0 “como” e o “por que” de sua existéncia. Portanto, do ponto de vista tedrico ou especulativo (isto 6, daquele uso que fazemos da razdo para produzir ciéncia, ou conhecimento dotado de valor objetivo), nado pode existir nenhum efeito que nao tenha sido necess ANT, UMA CTICANORMATIVA DD BEYER a \) e invariavelmente determinado por sua causa anterior, Nisso reside propriamente 0 conceito de determinagay, tendo como certo que, do ponto de vista daquilo ne nhecer ou determinar, nao temos acesso a podemos co nenhuma primeira causa — isto €é, um causa que nao seja efeito de nenhuma modificagao precedente e que totali- ze e complete toda a série das modificagdes conectadas de maneira causal. Dentre as causas no fendmeno, é certo que nada pode exis- tir que possibilite, absoluta e espontaneamente, o inicio de uma série. Na medida em que produz um evento, toda ago, enquanto fenémeno, também € propriamente um evento ou acontecimento que pressup6e um outro estado no qual se encontraa sua causa, desta forma, tudo o que ocorre 6 somente uma continuagao da série, sendo im- possivel, nesta tiltima, qualquer inicio que ocorra por si mesmo. Logo, todas as ages das causas naturais também so, por sua vez, efeitos na sucessao temporal, os quais da mesma forma pressup6em stias causas na série tem- poral. Uma agdo origindria, mediante a qual ocorra algo que antes nio existia, ndo pode ser esperada na conexdo causal dos fendmenos.'! Dadas essas cond| os fendmenos da natureza, inclusive as agdes humanas € © " Ibid. 2 Nictesche x Kant — Ses, e sob esse ponto de vista, todos comportamento animal, sao invariavelmente determinados de acordo com a atuagio regular de causas especificas. O que diferencia as agoes humanas das agGes animais é que elas sio especificadas por um modo particular de causali- dade, dependente de um principio interno, ou voluntario. Pois nesses entes a determinacao do movimento depende da atuacao de uma faculdade chamada vontade, cuja con- figuracao individual chama-se cardter, que € mobilizado aagir pela forga de motivos que Ihe sao apresentados pelo intelecto. Esse tipo de causalidade voluntaria esta, porém, submetido a lei da motivagao, ou seja, a atuagdo de uma dada constelagdo de motivos sobre a estrutura de um de- terminado cardter, que 0 inclina para um curso de agao em determinada diregao. No caso das agGes dos animais, a causalidade da vonta- de é menos problematica, pois o modo de atuagao da mo- tivagdio depende da legalidade prépria a um equipamento instintivo empirico (inerente a sensibilidade das diversas espécies animais), contingente, invaridvel em todos os in- divfduos da mesma espécie, que se reproduz como padrao de atuagao de tipo quase mecAnico — estimulo-resposta ~, sempre limitado a representacao presente. No caso das acdes humanas, a adogao do mesmo modelo explicativo equivaleria a negagao da possibilidade da liberdade, pos- to que as agdes humanas resultariam necessariamente da atuagao de motivos sobre a estrutura individual de um cardter empirico, ou seja, sobre a natureza. Isso porque a natureza é parte integrante da realidade empfrica e nao é KANT. UMA ETICA NORMATIVA DO DEVER 8 produto de deliberagses livres de uma faculdade apetitiva que, para tanto, deveria agir espontaneamente, por mejg de uma faculdade que, no ser humane, nao seria Natureza, mas espontaneidade — e esta s6 poderia ser a razao. Nessas condigées, e sob a ética da razao tedrica, naty. reza e liberdade sao conceitos antitéticos, pois, do ponto de vista do conhecimento cientifico da realidade objetiva, os efeitos se produzem necessariamente em virtude de suas causas—o que significa que nao poderiam ocorrer de forma diferente daquela em que ocorrem. Como as agoes huma- nas sao reputadas livres, cria-se a dificuldade de conciliar essa liberdade com o restante da natureza, uma vez que é inegavel que o homem e seu agir fazem parte do que deno- minamos realidade empirica, ou seja, da natureza entendida como 0 conjunto dos fendmenos unificados sob uma lei. A partir do que discutimos, liberdade s6 pode ser um conceito negativo, ou seja, entendida como um ambito ex- cepcional em relagao aquela necessidade causal vigente sem excegao na natureza. Todo o problema da liberdade consiste, pois, na possibilidade de compatibilizar a cau- salidade da vontade de determinados entes naturais (os homens) com a causalidade vigente na natureza em geral. Nas palavras de Kant: Apesar de que aqui parece haver simplesmente uma cadeia de causas que de modo algum admite uma totalidade ab- soluta no regresso as suas condigées, de maneira alguma somos detidos por esta incerteza; com eleito, ela ja foi su- 44 Nietasehe x Kant primida na avaliagao geral da antinomia dara na qual esta tiltima cai quando, na série dos fendmenos, procede em diregao ao incondicionado. Se pretendermos ceder & ilusao do realismo transcendental, entdo nao restam nem anatureza nem a liberdade.” Liberdade seria 0 poder de dar inicio espontaneamente, pela prépria vontade (a tanto determinada pela razio), a uma série de eventos que, no mundo empfrico, apareceriam como causalmente conectados, de conformidade, portan- to, com a lei formal da natureza, a saber, com 0 principio de causalidade; nesse caso, a conexao causal entre atos da vontade e suas exteriorizagées psicolégicas e fisicas em sentimentos e agdes, como fendmenos do mundo empiri- co, seria determinada segundo a causalidade natural e, no entanto, teria um infcio espontaneo, dependente da cau- salidade livre de um ato de vontade que inaugura a série. Esse ato inicial, portanto, seria a autodeterminagao da vontade — ou seja, um ato pelo qual a vontade de um agen- te dé a si propria regras com vistas sua agao; um sujeito prescreve a si mesmo a regra geral, ou o principio subje- tivo segundo qual sua vontade se determina para a agao (esse € 0 significado do termo “maxima”, como principio subjetivo do agir; seu modo regular de agao, seu carter, ou seja, aquilo que constitui a legalidade, 0 selo ou marca dis- tintiva invaridvel, impresso em todas e cada uma de suas ® Ibid. KANT: UMA ETICA NORMATIVA DO DEVER 6 0 o'/ agGes). Tal ato ndo poderia ser determinado por uma cay. sa diferente dele proprio, pois sendo permanecerfamos no plano da determinagao causal que vigora universalmente na natureza, tornando a determinagao inicial da vontade um efeito necessdrio, portanto nao livre. Por essa razdo, um conceito positivo de liberdade s6 pode existirno dominio pratico da razao pura, isto é, nao no Ambito das explicagGes tedricas, mas da praxis, ou seja, do agir voluntério determinado pela representacao de valores e regras. E é por isso que a liberdade pertence ao ambito da ética, isto é, nao ao dominio do ser, mas ao universo do dever-ser — seja ele moral ou juridico. Com a excegao do agir humano, na natureza em geral parece haver simplesmente uma cadeia de causas que de modo algum admite uma totalidade absoluta no regresso As suas condigdes ou a uma causa primeira, ela mesma independente de uma condigao anterior que atue como causa, de que ela seria efeito, como ocorre com os demais \ elementos de toda série causal. A totalizagao absoluta da série levaria a uma ago incondicionada, 0 que, do ponto de vista da razao teérica — do principio de causalidade na- tural -, implicaria contradigao. E, no entanto, o conceito de liberdade esta ligado, para Kant, precisamente a possibilidade de se pensar em uma ago incondicionada, do tipo acima referido. Se manti- vermos 0 ponto de vista da causalidade natural universal mente vigente, entao nao haveria possibilidade légica de liberdade. Se admitirmos que é possivel uma liberdade que “ Nietesche x Kant seja uma causalidade da vontade de determinados seres naturais, cuja atuagdo, no entanto, se daria no plano da natureza, ou seja, dos fenémenos que podem ser dados e verificados na experiéncia atual ou possivel, isso destrui- ria o proprio conceito de natureza, para cuja possibilidade temos forcosamente de admitir a vigéncia sem excegao da causalidade natural. Kant formula o dilema nos seguintes termos: ‘Trata-se aqui unicamente da seguinte questao: caso se reconhega uma pura necessidade natural em todaa série de todos os eventos, é possivel encarar exatamente esta série como um mero efeito natural sob um aspecto e como efeito da liberdade sob outro aspecto, ou se dé uma con- tradigdo direta entre esses dois tipos de causalidade?? B) O CONCEITO KANTIANO DE IMPERATIVO CATEGORICO DA MORALIDADE Esquematicamente, pode-se dizer que encontramos em Kant duas modalidades de explicagao da possibilidade de formular juizos sobre 0 valor moral das agdes humanas. Para tanto, eantes de tudo, é fundamental distinguir dois pontos devista, de acordo com os quais se pode considerar 0 homem e seu agir: 1) Como sujeito empirico ou fenoménico (tanto individual como genérico — nesse segundo caso, 0 sujeito '§ Ibid. ANT. UA ETICAKORMATIVA DO DEVER “ seria 0 género humano, em seu conjunto, € seu campo de atuagdo seria a historia universal), ou seja, como uma esp¢. cie de ente integrante da cadeia causal global a que damos o nome de natureza, ou realidade empfrica —a saber, nos termos da definicdo acima: o conjunto dos fendmenos conec- tados pelo principio de razao suficiente; 2) Mas, de acordo coma distingao que constitui a base da filosofia critica de Kant, também o homem, como qualquer outro fenémeno, pode ser considerado do ponto de vista nao fenoménico, ou seja, nouménico, como noumenon, a saber, como coisaemsi, Portanto, a distingao critica entre fendmeno e coisaem si permite consideraro homem como: a) submetido a necessida- de natural, enquanto é tomado como fenémeno; b) capazde uma causalidade sui generis, ou seja, de uma causalidade da vontade espontanea, na medida em que determinada pela razdo pura — independentemente da sensibilidade, que é herdada tanto da natureza quanto da histéria por cada individuo humano, e independentemente de sua vontade singular. Segundo essa segunda perspectiva, o homem pode ser pensado como noumenon, e, portanto, como su- jeito de suas agées (de seus atos de vontade), uma vez que dependem unicamente de suas escolhas. O sentido restrito desses atos espontaneos de vontade consiste na determinagao das regras ou normas gerais de conduta, que direcionam e informam o agir dos seres hu- manos, isto é, seus princfpios. Essa determinag (0 do prin- cipio subjetivo geral segundoo quala vontade se orientaem nas do suas ages externas, ou seja, a deliberacao das m 48 ex Kant oY agir, pode ser considerada um ato de vontade em sentido restritissimo, uma protoacao, da qual decorrem todas as agdes, na acepcao comum do termo. Sao caracterfsticas do homem nao somente sua condi- do ontolégica de animal racional mas também a estrutura de sua faculdade apetitiva. Kant a denomina, por vezes, Begehrungsvermigen, capacidade desiderativa, ou capaci- dade de desejar, e a divide em desejo (Wunsch), arbitrio (Willkiir) e vontade (Wille). Desejo é a modalidade de ape- tigdio — 0 modo de agir da faculdade apetitiva ou faculdade de desejar — que se caracteriza pelo simples anscio, pelo anelo, desacompanhado da consciéncia de poder alcangar 0 objeto desiderato, ou seja, nos termos de Kant, ha apenas a representagao do objeto desejado, sem estar acompanhada da consciéncia de poder “realizar o objeto da representa- ¢ao” — efetivamente transformar em realidade o desejado. Arbitrio, por sua vez, € 0 desejo acompanhado da cons- ciéncia ou da convic¢ao firme de poder realizar o objeto da representagdo. J4 vontade é a modalidade especffica assu- mida pela faculdade apetitiva humana que se diferencia por ser determinada (em sua forma e em seu contetido) pela razio, motivo pelo qual Kant identifica conceitualmente vontade e razdo pratica, considerando como tal a razo que determina os atos de vontade sob a forma de normas de conduta, principios e regras subjetivas para o agir. (Em apéndice a esta primeira parte do livro, o leitor encontra- r4 uma transcrigdo da Metafisica dos costumes que ilustra detalhadamente as diferenciagdes feitas acima.) ANT UNA EICA NORKATIVA BO DEVER ” De acordo com as definigoes acima, percebemos que, para Kant, yontade nada tem a ver, Sonesitualimente com inclinagao, propensao, desejo, paixdo ou qua quer moda. lidade de afecgao sensivel, isto é, suscetibil idade A apeticag em virtude de impressdes sensoriais recebidas de objetos, Vontade refere-se unicamente a faculdade de desejar con. siderada como arbitrio, este relacionado nao a ago, e sim ao fundamento de determinagao do arbitrio com vistas q acao; e arbitrio nao enquanto determinado por qualquer objeto, mas unicamente pela representa¢ao de regras de acdo, normas de conduta, que lhe so prescritas pela pré6- pria rao, que, nessa fungao de prescrever regras para o arbjtrio, é chamada pritica (ou seja, relativa a prdxis como agir orientado por normas e valores). Oarbitrio humano, portanto, pode ser considerado ten- do em vista seu objeto, um bem ou valor que se pretende alcangar—e esse bem pode ser um desejo, uma propensio, um apetite, uma paixdo, uma inclinacao ligado a coisas materiais ou imateriais que despertem nosso interesse. Em todos esses casos, aquilo que mobiliza o arbitrio (seu stimulum, ou mobil - Triebfeder, no léxico de Kant) so im- pulsos sensiveis. Ora, os impulsos sensiveis sao inerentes ao modo de configuragao da sensibilidade de cada pessoa, pertencendo, portanto, & natureza especial de seu modo de ser. Essa natureza, por sua vez, como tudo aquilo que pertence ao Ambito da experiéncia (ao dominio da realidade empfrica), é contingente, razdo pela qual nao pode servir de base ou fundamento para uma lei geral. Para Kant, 0 50 Nietasche x Kant que constitui a caracteristica essencial de toda lei —a le- galidade da lei—sao sua universalidade e sua nece dade, ou seja, a propriedade de valer sem excegdo para todos os casos ou instAncias a que se aplica. Portanto, se um determinado individuo extrai a norma geral — ou o principio subjetivo de determinagao de seu arbitrio com vistas 4 agao — de um mobil sensivel (de um desejo, de uma inclinagao, de um interesse egofsta qual- quer), a regra dai extraida sera sempre particular e con- tingente, dependendo do modo empfrico de configuragdo de sua sensibilidade, a qual, por seu turno, depende da natureza. Nesse caso, tanto 0 principio de determinacgao do arbitrio com vistas 4s agdes concretas no tempo e no espaco, como essas mesmas agées devem ser pensadas como nao livres, como coagidas, nao sendo referidas a um principio de espontaneidade, mz s inseridas na causalida- de geral da natureza. Livres, em determinado sentido que precisaremos a seguir, sdo apenas e unicamente aquelas ag6es cujo prin- cipio de determinagao consiste numa regra que 0 arbitrio acolhe espontaneamente, em outras palavras, numa regra que lhe é dada pela nica instancia que, no ser humano, é espontanea—e esta é a raz: (0. Livres sdo as ages derivadas de uma regra, norma ou princfpio que 0 arbitrio de deter- minado ser humano recebe da razao e acolhe em si como alei que totaliza e dé forma a seu querer e agir. Livres sao a s que podem ser atribufdas a um tal arbitrio — que as- sim pode ser chamado liberum arbitrium-, diferentemente ANT, UMA ETICA NORNATIVA D0 DEVER al daquelas que derivam de um principio que o arbitrio recebe eacolhe a partir de mobiles sensiveis. Sendo assim, poderiamos considerar livres unicamente aquelas agdes determinadas por uma regra que 0 arbitrio receba da razao, transformando-se, com isso, em vontade ~ nesse sentido restrito, livres seriam unicamente agdes determinadas em conformidade com uma maxima deriva- da da razio pratica, que o arbitrio acolhe como seu princi- pio de determinagao. Apenas tais agoes poderiam, nessas condigdes, serimputadas ou atribuidas a nés, na qualidade de sujeitos agentes. Todas as demais seriam derivadas de uma lei inerente a condi¢ao natural de nossa sensibilida- de particular, sobre a qual, em derradeira instancia, nao temos poder algum, sobretudo poder de escolha, uma vez que a recebemos passivamente da natureza. Em outros termos: nessa acepgao restrita, somos livres se e somente se agimos de acordo com regras que nos so prescritas pela razao pratica. Em todos os demais casos estamos submetidos a causalidade da natureza — somos agidos e nao agentes, nao somos, em sentido préprio, su- jeitos responsdveis por nossas agées. Essa é uma tendén- cia de interpretagdo que implica graves dificuldades, na medida em que restringe consideravelmente o Ambito de abrangéncia da imputabilidade moral. Se acdes pratica- das em razio de mobiles sensiveis devem ser reportadas, em titima instancia, a legalidade natural, entao elas nao poderiam, a rigor, ser imputadas a seus agentes, uma vez que decorreriam do que neles é natureza. Imputiiveis se- ” Nietaselw x Kat riam unicamente as agGes livres, posto que s6 agirfamos livremente quando 0 princfpio do agir fosse determinado de maneira espontanea por uma regra da razao. Esse entendimento seria compatfvel com 0 primeiro livro do Kant pés-eritico, dedicado a filosofia moral: A fundamentacao da metaftsica dos costumes, de 1785. Ja a Metafisica dos costumes e A religido nos limites da simples razdo dao base a um entendimento alargado da liberdade do agir, bem como dos conceitos correlatos de responsabilidade e imputagao. De acordo com essas obras, todas as nossas agées seriam livres, na medida em que essa propriedade — a liberdade — deve sempre ser referida a de- terminacao do arbitrio com vistas & agao, e ndo a propria aco, ou ao objeto por ela visado. No espectro formado por esses dois livros, 0 arbitrio pode ser considerado uma arena de combate entre duas instancias de determinagao opostas: de um lado, impul- sos sensiveis, todos eles podendo ser reunidos no conceito de mobiles sensiveis ou motivagao egoista; de outro lado, a razdo pura como instancia determinante das regras de determinagao do arbitrio. Como a razao pode ser definida pelas propriedades de universalidade e necessidade, en- tao esse tipo de motivacao, contréria a particularidade do egoismo, pode ser denominada motivagao altrufstica, que € caracterfstica de uma boa vontade. A vontade, ou razo pratica, pode ser considerada boa unicamente mediante a exclusdo das motivagées egoistas (pois valor moral — bem e mal —e egofsmo sao termos an- KANT: UMA ETICA MORMATIVA 00 DEVER oa | titéticos), de modo que boa é a vontade sob a condigag de que aja por dever, ou mediante a representacio do dever Ora, dever, nos termos de Kant, define-se como aquelg ago a qual alguém esté obrigado. Dever € a matérig da obrigagao, e isso pode ser constituido por qualquer aCao que se pratica por dever (segundo a agao), ao qual pode. mos ser obrigados de diferentes maneiras. Se, pois, dever 6a ago a qual alguém se acha obrigado, entao dever e obrigacao s4o termos mutuamente substitut veis. Obrigagao, por sua vez, € um conceito em cujo sentido se encontra a nogao de necessidade. Pois obrigagao € justa- mente a necessidade de uma ago livre sob um imperatiyo da razao. Imperativo é um comando que prescreve deter- minado comportamento. Se a agao prescrita é necesséria, entao isso significa que ela tem forcosamente de ocorrer, no podendo deixar de ser executada. Um imperativo que comanda uma ago necessaria tem de comanda-la inde- pendentemente de qualquer condigéio, sendo, portanto, um mandamento incondicional, pois, de outro modo, a agao prescrita e seu comando jamais seriam necessarios, mas sempre contingentes em relacao a condigao de que depen- dem ~ seriam um meio para sua realizagao. O imperativo do dever tem de ser, pois, uma regra pré- tica, cuja forma é categérica, pela qual a agao prescrita, em si contingente, é tornada necessaria. Para Kant, a lei pritica da 0, que deve servir de principio de determi- nagdo do arbitrio para que uma vontade possa receber 0 predicado moral de boa, Precisa ser um imperativo que . Nietasche x Kant EE ES obrigue a uma agao necessaria, que s6 pode ser prescrita porum comando incondicional. Imperativos podem ser: a) Imperativos técnicos: aqueles que prescrevem agoes (quaisquer) que devem ser realizadas como meio adequa- do para consecugao de determinados fins (também eles quaisquer). Por exemplo, se quero me tornar um eximio motorista, devo conhecer as regras do trafego, os mo- dos de funcionamento de determinados vefculos, assim como praticar constantemente determinados exercicios de diregao. b) Imperativos pragmaticos: séo aqueles que prescre-. vem determinadas agées como meio de consecugao de certos fins, os quais sao considerados fins gerais dos seres humanos, como, por exemplo, a satide. Se quero ter uma vida saudavel, devo observar limitagées dietéticas, evitar o consumo de determinadas substancias e praticar certas espécies de exercicios fisicos. A conservagao da satide é uma finalidade que pode ser razoavelmente considerada um bem genérico para a espécie humana. c) Imperativos categéricos, ou leis praticas: sao regras que comandam acoes obrigatérias, ou seja, necessdrias em fungao do proprio imperativo. Imperativos categéricos sdo, portanto, comandos necessdrios, de validade ou cogén- cia universal, isto é, que valem para todos os agentes aos quais é destinado. Como um imperativo é uma regra, sua possibilidade é dependente da faculdade de representa- ¢40. S6 um ser racional pode agir mediante a representagao de regras ou principios. Logo, um imperativo categérico é KANT. UMA ETICA NORMATIVA DO DEVER a8 a uma regra valida para todos os agentes racionais, Como universalidade e necessidade s4o propriedades logicas das leis, entdo o imperativo categérico é a Propria lei dq razdo pratica. A motivacao egofsta — em qualquer de suas modalida- des, como desejo, interesse proprio, inclinagao, Propen. sao, paixao etc. — s6 pode fornecer regras Particulares ¢ contingentes, portanto, em sentido kantiano, nenhuma ej pratica, apenas imperativos técnicos ou pragmiaticos. Jéa razdo pode instituir para o arbitrio uma regra que tenha como propriedades a universalidade e a necessidade, que sao atributos inerentes a racionalidade. Mas, para poder fazé-lo, a re zo tem de desconsiderar toda matéria ou objeto do agir, para limitar-se 4 mera forma das ages, j4 que, de acordo com 05 resultados tedricos da Critica da razdo pura, nenhuma matéria, objeto ou conte- ido € capaz de servir de base a fixacdo de uma regra que pretenda valer objetiva ¢ universalmente como fundamen- to de uma obrigacao. Esta é uma propriedade privativa da forma, especialmente da forma da lei em geral. Assim, a regra que a razao pode dar ao arbitrio s6 pode contera pura forma da lei em geral, ou seja, a forma da universalidade, abstrafda de todo contetido ou matéria. Essa lei é 0 célebre imperativo categérico, que é apenas um, mas pode ser enunciado de varias formas. Uma de- las, quigé a mais conhecida, é a seguinte: “age apenas de acordo com aquela maxima, por meio da qual tuao mesmo tempo possas querer que ela se torne uma lei universal da 56 eS natureza”.'* Como se pode depreender de seu enunciado, alei tem: a) forma imperativa; b) consiste em um impera- tivo categérico, no sentido de nio ser ordenada em vista de nenhum objeto a que esteja voltada a agao, 0 qual se- ria posto como fim para cuja consecugao a agdo seria um meio e que, nesse sentido, estaria condicionada a ele; c) determina unicamente a forma que deve ter a maxima do agente, e essa forma € a universalidade prépria de toda lei. O imperativo categérico € a lei moral e, portanto, vali- da e obrigatoria, per se, para todo ser racional — indepen- dentemente de toda matéria ou finalidade da agao. Para Kant, um puro ser racional — Deus, por exemplo, ou uma vontade santa, em geral — nao necessitaria de nenhuma outra regra de agao ou norma de conduta senao aquela cujo contetido é idéntico a forma da lei em geral, ou seja, aquela regra que prescreve que toda maxima deve ter a mesma forma universal da lei, independentemente de qualquer outra consideragao. A vontade humana, no entanto, nao € perfeita, nao é uma vontade santa. Os seres humanos sao ontologicamente constitufdos de tal modo que, neles, a razdo pura é limita- da pela sensibilidade, limitagao em razdo da qual eles se caracterizam como seres racionais finitos. Neles, a lei moral da razo pratica concorre — como prinefpio de determina- cao do arbitrio com vistas a ago — com mobiles sensiveis 4 Kant, I. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. In: Werke. E. Wilhelm Weischedel. Wiesbaden: Im Insel Verlag, 1960, vol. 4, p. 51 KANT: UMA ETICA MORMATIVA DO DEVER 7 sisténcia de impulsos, desejos e encontra neles uma re s egoistas. inclinagdes, propensoes € interesse: O arbitrio humano, como de um ser racional finito, ¢ r uma ou outra das instancias concorren. livre para acolhe: de sua determinagao. As duas tes como razio suficiente forcas sempre disputarao, no ser humano, a primazia da razio suficiente de determinacao, de modo que nele am- bas estarao presentes € atuantes, € da hierarquia entre elas dependerd o resultado da avaliacdo moral das acdes humanas. Sob o aspecto moral, esse conflito permanente e inextirpavel constitui o drama existencial da conditio humana. Em fungdo desse conflito, o arbitrio humano é livre para: a) fazer da lei moral a condigao de cuja satisfagdo depende a satisfagdo de todo e qualquer interesse ligado a mobiles sensiveis; b) condicionar o cumprimento do dever e, com isso, da lei moral A satisfagao dos interesses egofstas a que nos impelem os mobiles provenientes da sensibilidade. A relagdo entre condigao e condicionado € a hierarquia mo- ral das forcas ou motivagées das quais 0 arbitrio extrai ou deriva sua regra ou prinefpio de determinagao: de um lado, a lei pratica da razao; de outro, a indefinida variedade dos desejos e inclinagoes sensiveis. Em conclusio, 0 arbitrio humano é livre para acolher, como princfpio de sua determinagao, ou uma maxima ‘des sensiveis e egofstas ou a forma extrafda das motiva universal da lei, que é promulgada pela razao pura, des considerada toda matéria, contetido ou finalidade da agao- * Nietasche x Kant Em todos os casos, 0 agente é livre, do ponto de vista da determinagao de seu arbitrio, ele € sujeito responsavel por suas agoes e pela norma a que estas obedecem. Em outras palavras, para uma vontade santa, a lei moral, de pleno direito, é razao necessdria e suficiente da determinagao da vontade. A vontade perfeita, propria dos seres racionais cuja constituigdo nao inclui a limitagao da razdo pela sensibilidade, age sempre naturalmente nao s6 em conformidade com a lei moral, mas unicamente em fungao da lei moral, que, para tais entes, nado assume a forma de imperativo, nem prescreve deveres. Ora, é evidente que o ser humano tem na razdio um dos princfpios de determinagao de sua faculdade apetitiva. Se é verdade que o homem €¢ inclinado para suas paixdes, seus desejos e interesses egoistas, nem por isso € menos verdade que 0 homem, mesmo para realizar paixdes, de- sejos‘e interesses egofstas, tem necessidade do concurso /4o tedrica e da razao pratica. Portanto, é certo que a razdo foi dada aos homens como princfpio de determi- nacdo da vontade, considerando-se esse ultimo termo em sua acepcao mais ampla. Se a razio foi dada aos homens como um princfpio de determinagao de sua vontade, ento esse concurso entre da ra razao e faculdade de desejar nao tem sua estrutura deter- minada objetivando a felicidade humana. Com efeito, se entendermos 0 conceito de felicidade como obtengao do maximo de bem-estar com 0 minimo de sofrimento, en- tao a felicidade, como finalidade do concurso entre razao KANT: UMA ETICA MORMATIVA 00 DEVER os

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