Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Copy
right da tradução © 2023 por Ca
sa dos Li
vros Edi
to
ra LT
DA. To
dos os direitos
re
ser
vados.
Tí
tu
lo ori
gi
nal: The Librarian of Bur
ned Bo
oks
To
dos os di
rei
tos des
ta publicação são re
ser
va
dos à Ca
sa dos Li
vros Editora LTDA.
Ne
nhu
ma par
te desta obra pode ser apro
pri
ada e es
to
ca
da em sis
tema de banco
de da
dos ou pro
ces
so similar, em qual
quer for
ma ou meio, se
ja ele
trônico, de foto-
có
pia, gra
va
ção etc., sem a permis
são do de
ten
tor do copy
right.
Pu
blisher: Sa
muel Co
to
Edi
tora exe
cu
ti
va: Alice Mello
Edi
tora: La
ra Berru
ezo
Edi
toras as
sis
tentes: Anna Clara Gon
çal
ves e Ca
mi
la Car
nei
ro
As
sistên
cia edi
torial: Yasmin Mon
te
bel
lo
Co
pi
des
que: Fernan
da Marão
Re
visão: Su
elen Lopes e Rayssa Gal
vão
De
sign de ca
pa: Kerry Rubenstein
Ima
gem de ca
pa: © Mark Owen/Tre
vil
lon Ima
ges / © Shutters
tock
Adap
ta
ção de capa: Renata Zucchi
ni
Di
agra
ma
ção: Abreu’s System
Con
versão de e-book: Guilherme Pe
res
Dados In
terna
cionais de Cata
lo
ga
ção na Pu
bli
ca
ção (CIP)
(Câma
ra Brasileira do Li
vro, SP, Bra
sil)
La
buskes, Bri
an
na
A bi
bli
otecária dos livros quei
ma
dos / Bri
an
na La
buskes ;
tra
du
ção Alda Lima. – 1. ed. – Rio de Ja
nei
ro : Har
per
Col
lins
Bra
sil, 2023.
Tí
tu
lo original: The Librari
an of Bur
ned Bo
oks
ISBN 978-65-6005-028-0
1. Fic
ção norte-americana I. Tí
tu
lo.
23-152780 CDD-813
Í
Índices para catálo
go sis
te
máti
co:
Eli
ane de Frei
tas Leite - Bi
bli
ote
cá
ria - CRB 8/8415
Os pontos de vis
ta desta obra são de res
pon
sa
bi
li
da
de de seu au
tor, não refletindo
ne
cessa
ri
amen
te a posição da Har
per
Col
lins Bra
sil, da Har
per
Col
lins Publishers
ou de sua equi
pe editorial.
Harper
Col
lins Brasil é uma marca li
cen
ci
ada à Ca
sa dos Li
vros Edi
tora LTDA. To-
dos os di
rei
tos reser
vados à Casa dos Li
vros Edi
to
ra LT
DA.
Rua da Qui
tan
da, 86, sala 218 – Cen
tro
Rio de Ja
nei
ro, RJ — CEP 20091-005
www.har
per
col
lins.com.br
Aos bibliote
cá
ri
os, guar
diões dos li
vros
Es
ta é uma obra de ficção. No
mes, per
so
na
gens, lu
ga
res e inciden-
tí
cia e não devem ser inter
pre
ta
dos co
mo re
ais. Qual
quer seme-
lhan
ça com eventos, locais, or
ga
ni
za
ções ou pes
so
as re
ais, vivas
ou mor
tas, é mera coincidên
cia.
Nova York
Novem
bro de 1943
O telegra
ma in
for
man
do com pesar a Vivian Childs que seu marido
ha
via mor
ri
do em ba
ta
lha chegou antes da última carta dele.
Quan
do Viv re
ce
beu um envelope com aquela caligrafia tão fa
mi-
da com um ba
ru
lho al
to, de um jeito que, mesmo sendo uma queda
Edward.
Por um se
gun
do de
ses
perado, Viv pensou que aquele telegrama
fantasma, con
ti
nha as pa
lavras de um homem morto que ainda não
tinham che
ga
do ao seu destino.
A pul
sa
ção de Viv mar
telava dolorosamente nas veias, inclusive
na gargan
ta, e o tem
po pas
sava, o tique-taque do relógio antigo em
a protege
ra nas du
as se
ma
nas anteriores se dissipara, e a dor da qual
tentava man
ter a dis
tân
cia invadiu o vazio de seu corpo.
Foi qua
se um alí
vio quando bateu o pulso na quina da mesa, tate-
ando pe
la car
ta. Aque
le ti
po de dor ela entendia.
A mu
lher olhou pa
ra o próprio nome no envelope e o tocou; de-
pois pas
sou os de
dos pe
lo nome de Edward e deslizou a unha pela
borda do pa
pel.
Minha Viv,
nue as man
dan
do — inclusive com atualizações sobre sua di-
ver
ti
da ri
va
li
da
de com a sra. Croft e o poodle presunçoso dela.
Todos os ho
mens aqui estão tão curiosos sobre o desfecho do in-
ciden
te do co
ran
te azul quanto eu.
Nin
guém pen
sa na guerra como algo maçante; no entanto,
não há na
da além de monotonia e areia e, depois, momentos de
abalo pas
sa e o que resta é, mais uma vez, a monotonia. Suas
histó
ri
as nos man
têm mais entretidos do que você imagina.
Fa
lan
do nis
so, é pos
sível que tenha mais socorro chegando,
pa
ra nos en
vi
ar pe
que
nos livros de bolso que nos mantêm entre-
tidos e dis
traí
dos em meio às bombas que caem a centímetros de
nossas ca
be
ças.
Per
doe mi
nha aci
dez. De verdade, esses livros são uma dádi-
va de Deus. Con
se
gui um exemplar de Oliver Twist, que me lem-
brou Ha
le. Meu ir
mão é orgulhoso demais para aceitar o que te-
ria vis
to co
mo ca
ri
da
de minha, mas eu adoraria ter descoberto
uma for
ma de aju
dá-lo mais, quando éramos crianças. A ideia
Bem, a cul
pa ti
ra o so
no, não é? A guerra é boa nisso — fazer vo-
cê se lem
brar de tu
do o que gostaria de ter feito diferente.
mados re
la
tos, mas, por favor, não me puna por minha falta de
histó
ri
as pri
van
do-me das suas. Mande lembranças à minha
mãe.
Com ca
rinho,
Edward
Viv fez o es
for
ço de ig
no
rar a menção de Edward ao irmão, Hale. Um
lampejo de noi
tes quen
tes de verão, lábios grudentos de algodão-do-
ce, um sor
ri
so pro
vo
ca
dor e mãos calejadas iam e vinham como um
raio, ilu
mi
nan
do a noi
te escura que era sua dor.
Em vez dis
so, re
leu a carta e, pela primeira vez em duas semanas,
se permi
tiu ima
gi
nar Edward. Toda vez que tentara, só conseguira
ver um cor
po ma
chu
ca
do, ossos quebrados, com a carne rasgada e
sangue es
cor
ren
do, a ter
ra em volta carbonizada e as chamas. Na-
quele mo
men
to, con
se
guiu vê-lo à noite, diante de uma fogueira de
chamas bran
das, cer
ca
do pelos companheiros de luta. Ele segurava
um livro nas mãos e lia em voz alta suas passagens favoritas para os
ou
tros, pa
ran
do pa
ra ou
vir quando os companheiros faziam o mes-
mo.
Viv se agar
rou àque
la imagem, desfrutando de seu calor reconfor-
tante.
Depois da quar
ta lei
tu
ra, ela levou a mão ao rosto e sentiu os can-
tos da bo
ca se er
gue
rem no primeiro sorriso que se permitia dar
Maio de 1944
V iv colou as cos
tas na pa
rede de tij
olos do beco enquanto dividia a
atenção en
tre a por
ta dos fundos da churrascaria mais chique de
Manhatt
an e um ra
to cu
ri
oso, que ficava mais valente a cada segun-
do.
Na sua ima
gi
na
ção, aquela escapada se desenrolara com menos li-
xo e mais in
tri
ga, ago
ra começava a se perguntar se seu plano tinha
alguma chan
ce de su
ces
so. Enquanto ponderava a possibilidade de
recuar, o la
va
dor de pra
tos que estava esperando para subornar fi-
nalmen
te apa
re
ceu. Sen
tiu a tensão se esvair, tanto pela emoção
quanto pe
lo me
do, quan
do deslizou para o garoto a nota que havia
do
brado me
ti
cu
lo
sa
men
te.
O fedor do re
po
lho es
tragado diminuiu quando ela entrou na co-
zinha do res
tau
ran
te. Sentindo a confiança voltar, Viv encarnou a
femme fa
ta
le que es
ti
ve
ra canalizando, em preparação para aquele
plano lou
co. Ela de
li
be
ra
damente até se vestiu a caráter, combinan-
do a saia pre
ta com li
gas da mesma cor e usando meias com costuras
requinta
das que en
vol
vi
am a batata da perna. Prendeu o cabelo em
um pen
te
ado es
ti
lo vic
tory rolls perfeito, que em geral não tinha
tempo de fa
zer, e, com to
do o cuidado, lambuzou os lábios com um
tom de ce
re
ja ca
paz de afrontar os reflexos avermelhados de seu ca-
Viv pas
sou por fo
gões expelindo fumaça e por homens que esbra-
vejavam blas
fê
mi
as. Es
ses vestígios a envolveram de tal modo que
ela po
de
ria mui
to bem estar andando pelas docas em uma manhã
ne
bulosa de
pois de ter acabado de matar um amante. A cadência de
seu qua
dril se afe
tou com o embalo da ideia, os ombros se endi
rei-
tando.
Aque
le sen
ti
men
to era importante. Reforçava sua de
terminação,
ajudava a com
pen
sar as mãos trêmulas.
O se
na
dor Ro
bert Taft voltaria para Washington pela manhã, e o
confron
to pre
ci
sa
va acon
tecer pessoalmente e naquele momento.
Quan
do Viv pi
sou no salão da churrascaria, encontrou Taft com
facilidade. An
tes de co
nhecê-lo, meses antes, ela o imaginara como
um homem pe
que
no, com uma estrutura frágil e corcunda. Imagi-
sonifica
ção da per
so
na
li
dade mesquinha dele.
Na vi
da re
al, Taft era muito mais alto que seus acompanhantes de
tendido so
bre as cos
tas do banco circular.
E sobre a per
so
na
li
da
de.
que sur
giu por en
tre as cortinas ao lado da mesa, uma sombra peri-
de não a dei
xar en
trar.
Nos úl
ti
mos seis me
ses, Viv havia sido uma grande pedra no sapa-
que acon
te
ces
se. Daí a co
zinha, o lavador de pratos e o su
borno.
— Se
na
dor, pos
so to
mar um momento do seu tempo? — pergun-
A con
ver
sa na me
sa morreu e todos ficaram tensos. Era um mo-
mento es
tra
nho na his
tó
ria para ser um político, envian
do os jovens
da nação pa
ra a mor
te en
quanto desfrutava de almoços regados a bi-
fe e uísque na con
ta dos contribuintes.
Taft tam
bo
ri
lou sem ritmo no sofisticado estofado de couro, na
certa ten
tan
do adi
vi
nhar a magnitude da cena que Viv faria. Ele não
era o úni
co cli
en
te do res
taurante, e estava sempre aten
to à própria
imagem.
De can
to de olho, Viv até notou um repórter do New York Post
Conselho de Li
vros em Tempos de Guerra, Viv fizera amizade com
um bom nú
me
ro de jor
na
listas na cidade. O repórter ergueu o copo
e as sobran
ce
lhas pa
ra sau
dá-la, parecendo entretido demais para
nas de fo
fo
cas anô
ni
mas.
O ges
to de
ve ter cha
mado a atenção de Taft, porque estreitou os
ticulou pa
ra Viv se sen
tar, fazendo os outros homens deslizarem pe-
lo ban
co até ela es
tar mui
to mais próxima do senador do que gosta-
ria.
na esco
la. — Co
mo pos
so ajudá-la?
Viv qua
se riu da per
gunta. Como se ele não soubesse por que ela
estava ali.
Sem res
pon
der, ela en
fiou a mão na bolsa e tirou os li
vros de bol-
so que ocu
pa
vam o âma
go de sua cruzada contra aquele homem, en-
— As aven
tu
ras de Huckleberry Finn — começou, mantendo os
Viv se per
gun
tou se o senador já tinha visto um exemplar da Edi-
serviço pos
tal, mas a se
cretária de Taft — a mesma que a informara
sobre aque
le al
mo
ço — avisara que as correspondências de Viv ou do
— As vi
nhas da ira.
— Sra. Childs, não sei o que acha que vai conseguir com esta arti-
— Cân
di
do. Yan
kee From Olympus. O grito da selva.
Ao enun
ci
ar ca
da tí
tu
lo, ela batia o livro verde no espaço entre os
dois.
dos do nos
so pro
gra
ma na Edições das Forças Armadas — disse Viv,
se recos
tan
do e cru
zan
do os braços para tentar conter a raiva quen-
te e pene
tran
te que a atra
vessava. — Devo continuar? São muitos.
— Só es
tou exi
gin
do que seu pequeno conselho não use o dinheiro
do contri
buin
te pa
ra en
vi
ar às tropas livros que são propaganda po-
lítica ve
la
da.
Ele co
lo
cou um pa
li
to de dente entre os lábios finos e o rolou de
canto a can
to.
— Não fal
tam li
vros bem-escritos e agradáveis que não tocam em
assuntos po
lí
ti
cos. Sin
ta-se à vontade para incluir quantos quiser
em seu pro
gra
ma na EFA. A linguagem é muito ampla.
Viv re
zou pa
ra que Taft não notasse o leve tremor em sua voz. Em
mo uma mu
lher des
con
trolada, como mais uma viúva de guerra em
um país re
ple
to de
las.
— Se o se
nhor de fa
to re
digiu a legislação de boa-fé, o texto deve-
tar a ini
ci
ati
va da EFA.
Ambos sa
bi
am que agir de boa-fé nunca fora prioridade para ele.
Seu prin
ci
pal ob
je
ti
vo sempre fora prejudicar o conselho sem pare-
— Es
ta ques
tão foi de
batida pelo Congresso dos Estados Unidos, e
a de
cisão es
tá to
ma
da. Agora é lei, menina — completou Taft, e Viv
ou
viu o vo
cê per
deu nas entrelinhas. — Acha que sabe mais do que o
Se
nado?
Viv que
ria apon
tar que ele ameaçara politicamente os legislado-
das.
— A lin
gua
gem é mui
to ampla — repetiu ela, tentando se lembrar
do rotei
ro que en
sai
ara tantas vezes na noite anterior, com medo de
não con
se
guir fa
lar bem naquele momento.
Ela apon
tou pa
ra os li
vros que levara.
— Olhe nos meus olhos e diga que algum destes livros realmente
se confi
gu
ra co
mo pro
pa
ganda.
Ele per
ma
ne
ceu em si
lêncio, então Viv insistiu:
— De acor
do com a sua política, o Exército terá que proibir o pró-
prio ma
nu
al de ins
tru
ções por conter uma imagem do presidente
Roose
velt. Co
mo is
so po
de ajudar?
— Quan
do a lin
gua
gem não é abrangente, as pessoas encontram
brechas — re
ba
teu Taft. — Alguns livros inofensivos podem não
passar pe
la tri
agem, mas é o preço a se pagar. Se soubesse alguma
coisa so
bre le
gis
la
ção ou elaboração de leis, saberia disso. Mas não
sabe. Ago
ra, se me der li
cen
ça…
da. — É a mai
or par
te da nossa lista.
— Bem, en
tão en
ten
de por que minha emenda era necessária —
as pesso
as de fa
to com
pra
vam aquela imagem. O homem continu
ou:
— Cla
ra
men
te, seu conselho precisava de mais orientação para
Viv pis
cou.
— Os sol
da
dos es
tão morrendo por nós. Eles precisam que al-
guém de
ci
da o que de
vem ler?
Pare
cen
do sen
tir que dera um passo em falso, Taft tentou ganhar
tempo pe
gan
do o guar
da
napo e esfregando o pano no queixo.
— Bom, in
de
pen
den
te
mente disso, estou protegendo os contri-
da por um di
ta
dor ten
tan
do garantir o quarto mandato.
fundo e du
ra
dou
ro, além de não exatamente secreto, pelo presiden-
te Roose
velt. Mas o pre
si
dente era popular o bastante para que Taft
precisas
se ser as
tu
to ao atacá-lo. E Roosevelt era um defensor aber-
to do Con
se
lho de Li
vros em Tempos de Guerra e da iniciativa ex
tre-
mamen
te bem-su
ce
di
da que todos os meses enviava milhões de li-
vros de bol
so pa
ra os ho
mens servindo no exterior. O programa EFA
um pon
to a fa
vor na cam
panha eleitoral, que começaria no outono.
Com aque
la po
lí
ti
ca de censura, que essencialmente proibia noventa
por cen
to dos li
vros que o conselho queria enviar aos soldados, Taft
estava atan
do as mãos da iniciativa, que acabaria irrelevante.
— Sim, es
tou ven
do to
da a sua preocupação com o dinheiro dos
contribuin
tes — dis
se Viv friamente, olhando para os restos de uma
Naque
le mo
men
to, Taft perdeu o controle e cravou as pontas dos
dedos no pul
so de Viv. O gesto a deixaria com hematomas no dia se-
guinte.
— Fui pa
ci
en
te com seu pequeno chilique, mocinha — disse ele,
Viv se re
cu
sa
va a re
cu
ar.
— En
tão vo
cê ne
ga? Ne
ga que isso nada mais é do que uma tenta-
tiva de des
truir o con
se
lho e atingir Roosevelt?
— Não pre
ci
so ne
gar nada a você — vociferou Taft, cuspindo a pa-
lavra vo
cê. Viv era me
nos do que uma mosca para ser es
magada, ela
E tal
vez Viv — uma mulher cuja experiência na vida até seis me-
der títu
los de guer
ra aos amigos ricos — não fosse nada no grande
Porém, na
que
le mo
mento, com Taft pairando sobre ela, acredi-
diu com
prar a bri
ga.
sim.
— Os ra
pa
zes le
vam es
ses livros para o campo de batalha — disse
projeto.
tisse as ba
ti
das cons
tan
tes em seu pulso, a certeza de sua convicção.
— Se
ma
na pas
sa
da, um homem me enviou um exemplar de As
aventuras de Tom Sawyer com manchas de sangue. Ele fez isso como
um agra
de
ci
men
to. Seu amigo dera boas risadas na noite antes de
morrer gra
ças àque
le li
vro.
Ela dei
xou que Taft ab
sorvesse a informação antes de continuar:
— Um li
vro que ele não teria lido se sua política de censura esti-
vesse em vi
gor ape
nas al
guns meses atrás.
o movimen
to no pes
co
ço de Taft, engolindo em seco; por um segun-
do angus
ti
an
te e do
lo
ro
so, pensou que conseguira afetá-lo. Então ele
recuou, en
fi
ou a mão no bolso do casaco e tirou algumas notas.
Taft jo
gou o di
nhei
ro em cima dos livros da EFA que Viv levara pa-
ra mostrar a ele.
— Com
pre al
gu
ma coi
sa bonita para você, meu bem. E deixe as
questões im
por
tan
tes pa
ra os homens.
Ele en
tão se le
van
tou, gesticulou para os comparsas, que observa-
Dezem
bro de 1932
A s luzes de
co
ra
ti
vas es
tendidas entre as barracas do mercado de in-
verno pare
ci
am es
tre
las, de tão embaçadas pelo frio que roçava nos
mais fun
do no ba
ru
lho e na agitação que tomava a praça normal-
mente tran
qui
la a pou
cos quarteirões da muito mais movimentada
Potsdamer Platz.
O mer
ca
do vi
bra
va com vida e celebração, apesar de tudo o que
Althea ou
vi
ra so
bre a in
certeza econômica incessante que atormen-
tava a Ale
ma
nha de
pois do fim da Grande Guerra. Avós corcun
das
pechincha
vam por bu
gi
gangas e por castanhas assadas com os ven-
trás de sem
blan
tes sé
ri
os, tentando evitar serem enganados. As cri-
anças ri
am e cor
ri
am pe
la multidão, casais caminhavam de braços
da
dos e, em al
gum lu
gar ali perto, uma banda tocava músicas anima-
das enquan
to as vo
zes de um coro itinerante se entrelaçavam no ar
enfeitiça
da. Co
mo tan
tas ve
zes na semana desde que chegara à cida-
de, esta
va com a ca
der
ne
ta na mão, desesperada para captar alguma
cena es
ma
ga
do
ra, mui
to maior do que qualquer coisa que já tivesse
experimen
ta
do na in
fân
cia reclusa na zona rural do Maine.
O pro
fes
sor Di
edri
ch Müller, seu elo com a Universidade Hum-
boldt, a ob
ser
va
va com afeto e um sorriso que a fez baixar a cabeça e
enfiar tu
do no bol
so do ca
saco de inverno que usava.
de das pes
so
as bo
as em li
dar com aquelas mais socialmente desajei-
tadas.
Na se
ma
na an
te
ri
or, quando Althea pisara nas docas de Rostock,
depois da lon
ga vi
agem ini
ciada em Nova York, ela quase tropeçou ao
vê-lo. Fo
ra in
for
ma
da de que um professor de literatura a estaria es-
perando ao de
sem
bar
car na Alemanha, mas imaginara um cavalhei-
ro mais ve
lho, com pro
pensão para casacos de tweed e poemas eso-
charme na
tu
ral que se der
ramava em ondas.
sões de cas
te
los gó
ti
cos altos se assomando entre pinheiros exube-
rantes e his
tó
ri
as de lo
bos grandes e maus que devoravam menini-
Se Althea o in
cluís
se em um romance, seu editor o consideraria
perfeito de
mais, fan
ta
si
oso demais.
— Não é im
por
tan
te — respondeu hesitante, ainda desacostuma-
da a ser vis
ta co
mo se ti
vesse algo interessante a dizer.
atenção do mun
do, a úni
ca pessoa com quem ela conversava com re-
gularida
de era seu ir
mão, Joe. E ele era um parente, então não tinha
escolha.
— Bem, es
pe
ro que pretenda incluir esses “rabiscos tolos” e ou-
tras des
cri
ções de nos
sa magnífica cidade em seu próximo livro.
— Cla
ro.
Althea su
pu
nha que aquele era o motivo mais importante pelo
histórias des
de que fo
ra arrancada da obscuridade por uma revira-
volta do des
ti
no. To
da vez que tentava começar um novo romance,
as páginas em bran
co zombavam dela. Como dar continuidade a al-
go tão ra
ro?
Até mes
mo os ca
der
nos que ela havia preenchido desde que che-
gara a Ber
lim es
ta
vam cheios de palavras vazias que não correspon-
— Não há na
da mais lindo do que esta cidade no inver
no — conti-
nuou Di
edri
ch, en
tre
gan
do-lhe uma xícara de vinho quente fume-
seu esplen
dor.
Althea ten
tou não co
rar e se perguntou se um dia se acostumaria
com os fler
tes da
que
le ho
mem.
— Só tal
vez?
O cla
rão dos den
tes brancos surgiu com o sorriso, divertido e ge-
peuzinho Ver
me
lho?
Die
dri
ch se apro
xi
mou e roçou os lábios em sua orelha.
— De
pen
de da da
ma.
Althea per
deu a ba
ta
lha contra o calor que subiu por seu pescoço.
achasse pou
co atra
en
te, mas sempre foi mais elogiada pelo intelecto
do que pe
la apa
rên
cia. Tudo nela era simples, do rosto com olhos
agradáveis e fá
ceis de es
que
cer até os respingos de sardas considera-
das boni
ti
nhas quan
do era mais jovem, mas que nos últimos tempos
lhe rendi
am con
se
lhos in
de
sejados para que usasse pó de arroz.
Naque
la noi
te, ela ha
via tentado fazer jus à imagem que Diedrich
de
via ter da au
to
ra so
fis
ti
cada e de renome mundial que ela era no
pa
pel. Não ha
via mui
to a fazer quanto à pesada cortina de cabelos
que nun
ca pa
re
cia que
rer parar onde Althea a colocava. Apesar dis-
so, visita
ra uma bou
ti
que no dia anterior — uma daquelas lojas que
a deixavam com me
do de tocar em qualquer coisa — para comprar
um vesti
do que não es
ti
vesse fora de moda havia duas décadas.
A sen
su
ali
da
de im
pressa no sorriso de Diedrich quando a viu,
doce.
— Pre
ci
sa pro
var tu
do o que a cultura tem a oferecer, querida.
— Vo
cê se in
clui nes
sa lista, professor Müller? — perguntou
Althea, sa
ben
do que su
as bochechas deviam estar de um tom rosado
fora do co
mum. Tor
cia pa
ra que ele culpasse o frio.
— Sr
ta. Ja
mes — mur
murou ele, com um tom satisfeito de repre-
passara en
co
lhi
da no can
to mais distante do pub do irmão. Era as-
Como fa
zia quan
do es
ta
va nervosa, Althea tentou imaginar que
estava es
cre
ven
do em vez de vivendo aquela cena. O que faria se fos-
se a per
so
na
gem prin
ci
pal e não a amiga deselegante, presente ape-
Charlotte Col
lins?
Reunin
do to
da a sua coragem, Althea deu meio passo à frente de
Diedrich, ape
nas o su
fi
ci
ente para olhar para trás com um sorriso
atrevido an
tes de dis
pa
rar em um ritmo muito mais veloz do que as
passadas si
nu
osas de an
tes, o desafio implícito.
Ao dei
xar Di
edri
ch, Althea receou ficar desorientada, assoberba-
da. Sepa
rar-se de uma companhia no meio da multidão podia deixar
a pessoa ton
ta e en
jo
ada, sobretudo em uma cidade desconhecida, e
com pou
co do
mí
nio da lín
gua.
Mas ha
via al
go na
que
le mercado — ombros esbarrando de leve
anças pu
xan
do a bai
nha de seu casaco. Em vez de ser pega em uma
avalanche des
con
tro
la
da e aterrorizante, Althea era ape
nas um úni-
co floco de ne
ve em uma tempestade muito maior do que si mesma.
Era as
sim que se sen
tia desde que descera do trem em Berlim.
Antes da vi
agem, só saí
ra de Owl’s Head uma vez na vida, e para en-
Qual é a pi
or coi
sa que po
de acontecer?, perguntava-se.
Você po
de mor
rer, sus
surrava o medo de volta.
Qual é a me
lhor?
Você po
de vi
ver.
penhas
cos.
Sempre se sen
ti
ra em segurança nos mundos que criava para
seus per
so
na
gens e um pouco deslocada no mundo real. Mas, em
Berlim, pa
re
cia se en
cai
xar.
Preci
sou de al
guns se
gundos para perceber que havia parado no
meio da mul
ti
dão, en
tão notou o que estava encarando.
Livros.
puxan
do-a até ela se ver na frente do comerciante, os dedos pairan-
do sobre os vo
lu
mes en
ca
der
nados em couro.
— A se
nho
ri
ta tem ex
celente gosto — disse o homem, em inglês,
embora hou
ves
se pau
sas su
ficientes entre as palavras para sinalizar
— Rein
mar von Ha
ge
nau. — Althea suspirou, recuando a mão pa-
ra não dei
xar im
pres
sões digitais naquele tesouro sem querer.
Von Ha
ge
nau era um amado Minnesänger — o equi
valente ale-
mão de um tro
va
dor. Vi
ve
ra no século XII e era respeita
do pelos pa-
de amor e hon
ra.
O co
mer
ci
an
te fi
tou o livro da forma que um pai e uma mãe
olham pa
ra os fi
lhos pre
coces. Quando ergueu os olhos, pareceu ler
— Mui
to ca
ro, en
ten
de?
Althea sor
riu, deu de om
bros e tentou em alemão:
— Sin
to mui
to.
— Não, não.
O co
mer
ci
an
te dis
pen
sou o pedido de desculpas com um gesto e
bora de ca
pa du
ra e re
sis
tente, estava claramente menos deteriora-
do do que o vo
lu
me ex
pos
to, e o ofereceu entre as mãos.
— Pa
ra vo
cê.
Althea acei
tou, var
ren
do com a palma da mão os poucos flocos
que havi
am caí
do na ca
pa, e quase arfou de felicidade quando viu o
— Quan
to? — per
gun
tou, procurando seu porta-moedas.
res, certa
men
te, mas ain
da assim não sabia se tinha o bastante. O di-
qualida
de es
pe
ra
da.
— Um pre
sen
te — dis
se o comerciante, curvando-se de leve. Ele
Die Bü
cher
freun
din.
— Um ami
go dos li
vros — murmurou Diedrich, atrás dela, com a
tocar as cos
tas de
la quan
do inspirava.
— Die Bü
cher
freun
din — repetiu Althea para si mesma.
A par
te edu
ca
da de
la queria insistir em pagar pelo volume, mas o
custo da apa
ren
te re
jei
ção à generosidade do homem seria muito
Ela en
tão er
gueu um dedo e procurou na bolsa o exemplar de Ali-
Os para
le
los en
tre ela e uma Alice desorientada e deslumbrada mer-
reconfor
tan
te.
— Um pre
sen
te — re
petiu de propósito, embora tenha tentado
em alemão, as
sim co
mo ele fizera em inglês.
O ho
mem o acei
tou com o leve tremor dos idosos nas mãos, sor-
riu quan
do per
ce
beu qual era o livro, então apertou-o contra o peito
quase em um abra
ço.
O ho
mem as
sen
tiu uma vez: um gesto de reconhecimento, um
adeus. Lo
go vol
tou a aten
ção para outro cliente.
Althea que
ria fi
car, que
ria continuar envolvida na experiên
cia,
mas Di
edri
ch já a es
ta
va puxando, e ela o seguiu até as laterais do
mercado ru
mo aos pla
nos que fizera para o jantar — e talvez para
depois do jan
tar, se con
ti
nu
asse a agir como a personagem principal
Embo
ra pen
sas
se que se saíra bem no mercado com seus flertes
desajeita
dos, as pou
cas tentativas na caminhada ao longo do rio
silêncio pen
sa
ti
vo que não era característico da afinidade natural
com con
ver
sas bri
lhan
tes que ela vinha observando. Então, como
Althea nun
ca do
mi
na
ra a arte da conversa fiada, o jantar foi silenci-
oso. Pas
sou o tem
po in
tei
ro preocupada, remoendo tudo o que havia
dito, ten
tan
do en
ten
der se fizera algo errado.
Embo
ra a co
mu
ni
da
de literária internacional parecesse vê-la co-
mo al
guém im
por
tan
te, Althea era apenas uma garota simples e
pouco so
fis
ti
ca
da. Mes
mo naquele momento, participando de um
programa cul
tu
ral cu
jo objetivo era levar “autores conhecidos e res-
peitados” de ori
gem ale
mã de volta ao país de origem para residênci-
as de seis me
ses, ela não conseguia deixar de se sentir uma imposto-
de verda
de, mas por
que nunca pensara em si como nada além de
america
na.
demais cri
an
do o ir
mão até a idade adulta para pensar em qualquer
na.
Ainda as
sim, mes
mo que Althea não se sentisse conectada a seus
an
tepas
sa
dos ale
mães, o convite para ir a Berlim foi tentador de-
mais pa
ra dei
xar pas
sar. Se ela concordasse em participar, receberia
uma pas
sa
gem de ida e volta, uma bolsa, um apartamento em um
bairro se
gu
ro e o con
ta
to de uma universidade local para ajudá-la a
conhecer a ci
da
de. Em troca, seria convidada a participar de algu-
mas reu
niões po
lí
ti
cas e sociais, além de apresentar uma ou outra
palestra so
bre A luz não fraturada, romance que a levara de amadora
para “co
nhe
ci
da e res
pei
tada”.
Ela mor
deu o lá
bio in
ferior, observando cuidadosamente o rosto
de Diedri
ch. Os vin
cos en
tre as sobrancelhas dele não eram profun-
plação.
Althea es
ta
va pres
tes a tentar melhorar o clima — embora não
soubesse co
mo — quan
do Diedrich pareceu espantar qualquer emo-
ção estra
nha que es
ti
ves
se pesando seus ombros.
— Vo
cê gos
ta de li
te
ra
tu
ra alemã? — indagou ele, com o mesmo
Ela se de
li
ci
ou com a cordialidade na pergunta, aliviada por ele
— Sim.
Die
dri
ch sor
riu.
— Pos
so dar uma su
ges
tão?
— Por fa
vor.
Die
dri
ch se me
xeu um pouco para tirar um livro de capa verme-
lha do bol
so in
ter
no da ja
queta.
A luz das ve
las que cin
tilava sobre a mesa refletiu nas letras dou-
radas gra
va
das na en
ca
dernação já gasta que ele acariciava com os
dedos. Se
ja lá que li
vro fosse, era claramente valioso, tanto que ele o
carregava con
si
go. A ca
pa era simples, nada muito elaborado.
— Ado
ra
ria ou
vir sua opi
nião sobre este livro.
— Cla
ro.
Tocan
do no li
vro, Althea abriu o melhor sorriso que pôde. Mein
Kampf. Sa
bia ler ale
mão melhor do que conversar ou escrever, então
— Mi
nha lu
ta.
Die
dri
ch as
sen
tiu em aprovação.
— Te
nho cer
te
za de que o achará fascinante.
Embo
ra não gos
tas
se muito de autobiografias, Althea era infor-
mada o su
fi
ci
en
te pa
ra re
co
nhecer o nome do autor como o chefe do
murou:
— Te
nho cer
te
za de que sim.
Nova York
Maio de 1944
O encan
to da rou
pa de femme fatale de Viv foi embora junto com
sua con
fi
an
ça, com
ple
ta
mente aniquilada naquela mesa de churras-
caria.
Quando mar
ca
ra o en
con
tro com Harrison Gardiner, uma das es
tre-
las edito
ri
ais em as
cen
são da William Morrow, Viv esperava que fos-
sem come
mo
rar. Na
que
le momento, só queria algo forte para apazi-
guar a es
tra
nha mis
tu
ra de raiva, tristeza e humilhação que se en-
Como a ta
ver
na on
de se encontrariam ficava a pou
cos quartei-
rões do res
tau
ran
te e ela precisava de ar, Viv foi a pé, com medo de
chorar no me
trô e bor
rar todo o rímel aplicado naquela manhã.
Além dis
so, quan
do co
me
çava a chorar, não conseguia parar. Era co-
mo se a dor es
ti
ves
se à es
preita, esperando o menor sinal de vulne-
rabilida
de. Na mai
or par
te do tempo conseguia manter o sentimen-
to aparta
do, mas, em mo
mentos como aquele, quando tudo o que
Viv avis
tou Har
ri
son pelas janelas sujas da White Horse Tavern.
Estava con
ver
san
do com uma jovem que parecia ter acabado de che-
gar de ôni
bus do Iowa.
Tentou lem
brar se, al
guma vez, nessas saídas para beber com
Quan
do aden
trou a ta
verna, ganhou um assovio baixo do sujeito
desgrenha
do com pin
ta de artista sentado perto da porta. O homem
de
via es
tar com a vi
são borrada, de tão bêbado, ou não a teria glorifi-
corpo es
bel
to que con
tras
tava com o ideal de Betty Boop que os ho-
mens co
la
vam nos pai
néis de controle dos aviões de combate, mas
tudo, ma
çãs do ros
to al
tas e pesados cabelos tinham um fascínio
próprio e a tor
na
vam in
teressante de olhar. Como uma raposa —
gar cria
ti
vos. Ain
da as
sim, não era comum para Viv receber assovios
de estra
nhos. Pe
lo me
nos não de estranhos sóbrios.
Ignorou o bê
ba
do e atravessou o salão para se sentar ao lado de
Harrison. A mo
ça de Iowa levou um susto, fixando os grandes olhos
— É is
so que acon
te
ce quando me atraso — brincou Viv, rouban-
do a azei
to
na do drin
que de Harrison. — Você encontra outra com-
panhia. Pe
lo me
nos es
pe
rou a cadeira esfriar?
piscou.
A jovem co
rou, se le
vantou do banco alto e disparou porta afora,
atrapalhan
do-se com as pernas e a saia.
Harri
son a ob
ser
vou partir e, em seguida, olhou de volta para Viv,
estreitan
do os olhos.
— Que mal
da
de.
Viv ocu
pou o lu
gar va
go pela moça.
me de
la.
— Há coi
sas mais im
portantes na vida do que nomes, boneca —
retrucou Har
ri
son, sem censura na voz, já sinalizando para que o
— Sei, co
mo as me
di
das de um corpo — alfinetou Viv, chutando a
canela de
le com a pon
ta do sapato.
Harri
son sor
riu e sur
rupiou a azeitona da taça dela antes que Viv
pudesse pro
tes
tar.
Quan
do se co
nhe
ce
ram, Harrison jogara charme para Viv. Magro
e de cabe
los es
cu
ros, ele era quase bonito, embora o rosto fosse um
pouco lon
go de
mais, e os olhos, muito juntos. Mas ele a fizera rir, e
Às ve
zes, em noi
tes so
li
tárias, Viv ansiava pelo frio na barriga que
que, quan
do en
con
tras
se um homem espirituoso e atraente, pudes-
se ter aque
la sen
sa
ção vertiginosa de possibilidade que tomava as
lhar bebi
das e fo
fo
cas ao fi
nal de um péssimo dia.
— Pa
ra
béns por Too Busy to Die — disse ela.
Harri
son po
dia ser um amigo, mas também era um jovem bri-
lhante pu
bli
ca
do por uma grande editora, o que significava que ficar
de olho ne
le era par
te do trabalho de Viv no conselho. Seu escopo de
responsa
bi
li
da
des in
cluía saber o que as editoras lança
riam a cada
tempora
da, quais se
ri
am os próximos best-sellers e no que todos os
principais edi
to
res es
ta
vam trabalhando. Esses detalhes a ajudavam
de relações pú
bli
cas e uma heroína corajosa que bebia bastante
bourbon e era óti
ma nos dados. Jamais admitiria isso para Harrison,
trução da
que
le pla
no de
sesperado para falar com Taft.
— Li tu
do de uma só vez.
— Vo
cê es
tá me ba
ju
lando. O que quer? — Harrison fez uma pau-
sa, olhan
do pa
ra o ves
ti
do preto dela. — E tem algo a ver com o moti-
vo de ter se ves
ti
do co
mo uma espiã?
— So
ci
ali
te com co
ra
ção de ouro vira espiã internacional. Já pos-
Harri
son riu, e Viv saiu do personagem com um sorriso travesso.
Aque
la le
ve
za foi em
bora com a mesma facilidade que chegou, e
— Ro
ose
velt san
ci
onou o projeto de lei que permite aos soldados
em servi
ço vo
ta
rem nas eleições, a Lei de Voto do Soldado, semana
passada.
— San
to Deus! — Har
rison suspirou, porque qualquer um que
prestas
se al
gu
ma aten
ção entendia o que aquilo significa
va.
Todos sa
bi
am que o no
vo projeto de lei, que permitia aos soldados
em ati
vi
da
de no ex
te
ri
or votarem, tinha que ser aprova
do. A escas-
sez de sol
da
dos elei
to
res na eleição anterior fora vergonhosa. Tecni-
camente, o pro
je
to de lei deveria resolver a questão, mas os repu
bli-
canos sa
bi
am que mais soldados votando significava a vi
tória de Ro-
osevelt, en
tão cri
aram o máximo de entraves possível no processo.
Quando per
ce
be
ram que o projeto ainda assim passaria no Congres-
so, come
ça
ram a adi
ci
onar todas as políticas que sempre quiseram
que ao pro
je
to fa
vo
ri
to de Roosevelt.
Harri
son pôs a mão dentro da jaqueta para pegar seu maço de ci-
garros. Ofe
re
ceu um a Viv e acendeu um fósforo. Ela mergulhou a
ponta na cha
ma en
quan
to pensava que fora Edward quem lhe ensi-
nara a fu
mar. Na épo
ca, tinha dezoito anos e era nova no mundo;
cheio de ale
gria nos olhos, Edward fazia desenhos com as baforadas.
te trancou de vol
ta.
— Qual o im
pac
to dis
so em sua pequena Edições das Forças Ar-
madas? — per
gun
tou Har
rison, após dar um trago.
mente mi
lhões de li
vros para soldados destacados no exterior de
“pequena” — re
ba
teu.
Ela sus
pi
rou e as
sen
tiu quando o barman gesticulou para uma
frustração ne
le. Apa
gou o ci
garro com violência depois de apenas al-
guns tra
gos.
— Con
ti
nu
are
mos fun
cionando — declarou Viv, conseguindo res-
ponder à per
gun
ta.
Mas es
se era o pro
ble
ma. O programa Edições das Forças Arma-
do de tu
do o que o tor
na
va tão eficaz.
— Ele é um ca
na
lha, não é?
— No mí
ni
mo. — Viv tomou um gole mais lento do segundo mar-
tíni. — É frus
tran
te ver ho
mens como ele vencerem o tempo todo.
— Po
lí
ti
cos? — per
guntou Harrison, com uma sobrancelha er-
guida.
— Va
len
tões — cor
ri
giu Viv. — Ele não é Hitler, claro. Mas, para
— Eu fui um mo
le
que magrelo, de óculos, pulmões ruins e fasci-
rison, so
pran
do a fu
ma
ça para longe dela. — O que você acha?
— Eu re
al
men
te achei que poderia detê-lo. — Ela balançou a ca-
beça, rin
do de si mes
ma. — Logo eu!
— Vo
cê fa
la co
mo se estivesse desistindo. Vamos lá, a Viv que eu
conheço lu
ta até o fim.
Ela mor
deu o lá
bio in
ferior, o olhar era um misto de orgulho e
vergonha.
— Aca
bei de em
bos
cá-lo durante um almoço em Midtown.
Um si
lên
cio sur
pre
so se seguiu à confissão, até que Harrison sol-
ma coisa! — jus
ti
fi
cou, en
quanto Harrison secava os olhos.
— Co
mo eu que
ria ter sido uma mosquinha ali — confessou Har-
rison. En
tão con
ti
nu
ou, sério: — Imagino que ele não tenha se retra-
tado pe
la proi
bi
ção.
— Eu nem ou
sei pe
dir isso. Só queria que ele reescrevesse a dire-
— E ago
ra?
Viv es
fre
gou o pul
so dolorido e pensou na respiração rançosa
com chei
ro de alho de Taft tão perto dela.
— Ago
ra? Que
ro aca
bar com ele.
Ela co
rou um pou
co com o tom de vilã maquiavélica que detectou
— Co
mo pre
ten
de aca
bar com ele? — perguntou ele, algum mo-
mento de
pois, ten
do re
to
mado sua compostura de homem moder-
no.
— Já ten
tei tu
do o que pude pensar e não obtive sucesso.
— Se is
to fos
se um li
vro, sabe em que ponto estaríamos?
— Acre
di
to que vo
cê es
tá prestes a me dizer.
para enfa
ti
zar seu pon
to. — É o momento do “tudo está perdido”.
ria, co
mo sa
be
mos. — Harrison parecia entusiasmado. — Ninguém
termina o li
vro no mo
mento em que tudo está perdido. Ainda tem
— Quan
tos des
ses drin
ques você já tomou, querido? Não estamos
em um li
vro — ob
ser
vou Viv.
— Não es
ta
mos? — perguntou Harrison, fingindo um grande
choque e olhan
do pa
ra os lados com os olhos arregalados.
Viv chu
tou a ca
ne
la de
le novamente.
— Olha — re
co
me
çou Harrison, com um suspiro, abandonando a
teatrali
da
de —, sei que a vida real é muito mais sombria e sem espe-
vezes os mo
ci
nhos da vi
da real também vencem. Por que esta não
po
de ser uma des
sas ve
zes?
— Por
que não pos
so ti
rar um final feliz do nada só porque quero
muito.
se Viv sim
ples
men
te não tivesse enxergado uma estratégia óbvia. Se
ela tives
se si
do me
lhor, mais inteligente ou mais astuta, poderia ter
abolido a emen
da de Taft as
sim que fora anexada ao projeto de lei.
— Mas e se vo
cê pu
des
se criar seu próprio final feliz? — insistiu
Harrison. — Vo
cê con
ta tantas histórias no seu trabalho quanto os
escritores, Viv.
— Pos
so con
tar his
tó
rias até cansar — retrucou ela, um pouco
arisca. — Is
so não eli
mi
na as multas e a sentença de pri
são asso
cia-
das à po
lí
ti
ca de Taft.
— Eu sei, mas…
Viv o in
ter
rom
peu, le
vantando a mão.
— O que exa
ta
men
te es
tá sugerindo que eu faça?
rogante do ami
go se dis
sol
vendo.
— Achei que meu ra
ci
ocí
nio estava nos levando a algum lugar im-
comple
tou ele.
— Bem-vin
do aos meus últimos seis meses.
— Só pen
se no as
sun
to — disse Harrison, pedindo mais uma ro-
da
da pa
ra am
bos. — E po
demos nos embebedar enquanto isso.
— Des
sa ideia eu gos
tei — aprovou Viv, batendo palmas animadas
e girando na di
re
ção da bancada do bar e de seu copo vazio.
Passa
ram o res
to da tarde elaborando estratégias ultrajantes pa-
ra passar do “tu
do es
tá perdido” ao “grande final feliz” — algumas
sem sen
ti
do, en
vol
ven
do animais de fazenda, outras mais sérias com
Viv fazen
do um dis
cur
so apaixonado no plenário do Senado para en-
se preo
cu
pa
ram em des
co
brir. Sabiam que a conversa se distanciara
da rea
li
da
de al
gu
mas ho
ras antes.
Quan
do a es
cu
ri
dão da noite começou a entrar pelas janelas, Viv
não sen
tia mais o va
zio no peito. Mas eles também não tinham che-
gado per
to de um bom plano para derrubar a política de censura de
Taft.
— Sa
be, ou
vi fa
lar de um lugar — revelou Harrison, as vogais já
arrasta
das pe
la be
bi
da. — Talvez valesse a pena uma visita, embora
Ele en
fi
ou a mão no bolso para pegar uma caneta e um bloco de
no
tas, on
de ano
tou um en
dereço.
cima do om
bro do ami
go.
Harri
son sor
riu, des
li
zando o papel para ela.
— Ins
pi
ra
ção.
Viv pas
sou a pon
ta do dedo sobre as palavras, e sopros fracos de
esperan
ça flo
res
ce
ram das cinzas de sua derrota.
BI
BLI
OTE
CA AMERICANA DOS LI
VROS PROI
BI
DOS PE
LOS NA
ZISTAS
Pa
ris
Outu
bro de 1936
H annah Bre
cht gos
ta
va mais de Paris com o inverno no horizonte.
Ela sa
bia que es
sa era uma opinião impopular, já que para a maio-
ria os pi
que
ni
ques nos ar
redores da Torre Eiffel em um belo dia de
verão co
mo o au
ge da vi
da parisiense. Mas, assim como acreditava
Hannah an
da
va de bi
ci
cleta nos arredores do décimo quarto ar-
rondis
se
ment, as pan
ta
lo
nas flertando perigosamente com os raios
com a bri
sa, os ca
chos es
cu
ros escapando do coque chignon aperta-
do e roçan
do nas bo
che
chas que ela sabia que estavam rosadas pelo
vento.
O tol
do lis
tra
do de sua confeitaria favorita estava logo à frente, o
brilho dou
ra
do das vi
tri
nes testando sua força de vontade para re-
sistir à ten
ta
ção. Han
nah tinha mais uma entrega para fazer, mas o
compro
mis
so po
dia es
pe
rar cinco minutos.
Deixou a bi
ci
cle
ta en
costada na parede do prédio ao lado e entrou
na confei
ta
ria.
Notas de açú
car quei
mado e levedura saturavam o ar, o chocolate
e os grãos de ca
fé adi
ci
onando camadas mais densas aos aromas
mais leves.
— Han
nah — cum
pri
mentou Marceline, do outro lado da vitrine
de vidro, o ros
to re
don
do avermelhado pelo calor do ambiente. —
En
tre. Um ca
fé noi
sette ?
— Por fa
vor — acei
tou Hannah, sem se dar ao trabalho de tirar a
echarpe. Ti
nha pou
co tempo. — E um ca
nelé, se tiver sobrado al-
gum.
Marce
li
ne sor
riu, sa
tis
feita como sempre por Hannah nunca dis-
cobrira a con
fei
ta
ria da mulher em seu primeiro dia em Paris, quase
O fato de Mar
ce
li
ne, ca
sada com um alemão, falar a língua na
tiva
de Han
nah aju
da
va. Co
mo a jovem ainda tinha dificuldade para fa-
zer o idi
oma na
ti
vo di
alo
gar com as líricas palavras francesas, Mar-
ria conver
sar sem re
ce
ber um olhar torto.
— Ocu
pa
da? — per
gun
tou, observando-a colocar o leite para
aquecer e ser
vir o do
ce em um prato.
Marce
li
ne pas
sou o pe
dido sobre a vitrine de vidro, e Hannah, sa-
A crosta ex
ter
na re
sis
tiu à mordida por um curto e perfeito instante,
então ce
deu, per
mi
tin
do que afundasse os dentes no recheio cremo-
so de bau
ni
lha.
— Bah, ou
ais. — Mar
ce
line deu de ombros como uma típica fran-
cesa. — Às ve
zes sim, às vezes não. Xavier agora se acha sofisticado
demais pa
ra tra
ba
lhar na confeitaria da mãe. Esses jovens…
Marce
li
ne es
ta
lou a lín
gua, compartilhando um olhar infeliz com
Hannah, em
bo
ra a ale
mã ainda não tivesse chegado aos trinta. Ela
tomou o cui
da
do de abo
canhar mais um pouco do doce, assentindo
como se en
ten
des
se. E tal
vez entendesse mesmo.
Hannah pen
sou nas reuniões da Resistência em Ber
lim, quando
Só mesmo sen
do jo
vens para acreditar que poderiam mudar o mun-
do.
— Bem, tal
vez ele te
nha razão — continuou Marceline, comple-
tando o ca
fé es
pres
so com o leite. — Quem sabe quanto tempo nos-
sos meni
nos têm an
tes de serem levados para mais uma guerra…
E ha
via ou
tra ra
zão pe
la qual a confeitaria se tornara um dos lu-
gares fa
vo
ri
tos de Han
nah em Paris: o marido de Marceline tinha
amigos su
fi
ci
en
tes em Berlim para que ambos soubessem tão bem
quanto Han
nah o que es
ta
va por vir.
— É por is
so que nun
ca dispenso um de seus ca
nelés — rebateu
que se apro
xi
ma
va. Cri
an
ças deixam as pessoas vulneráveis, seu co-
ração pas
sa a ha
bi
tar ou
tra pessoa.
— Mes
mo que mi
nhas saias fiquem apertadas se eu continuar me
renden
do a eles.
Marce
li
ne se vol
tou pa
ra Hannah, o olhar distante se esvaindo do
rosto.
— Co
mo se vo
cê pu
desse deixar de ser a mulher mais bonita de
têmporas. — E sai
ba que isso inclui minhas próprias filhas.
Hannah, ter
mi
nan
do o ca
fé noisette .
— Elo
gi
os va
lem do
ce grátis, e não deixe que ninguém lhe diga o
contrário — ga
ran
tiu Marceline, recusando o pagamento de Han-
das no bal
cão an
tes de sair.
O céu fi
ca
ra cin
za du
rante o tempo que passara na confeitaria, e
Hannah cor
reu até a bi
ci
cleta — a ameaça de um aguaceiro era in-
centivo o su
fi
ci
en
te pa
ra concluir suas tarefas da tarde. Os panfletos
da Deuts
ch Freiheits
bi
bli
othek , a Biblioteca Alemã da Liberdade, es-
voaçavam na ces
ta de vi
me frontal enquanto Hannah se dirigia para
a última pa
ra
da do dia. Como sempre, eram um lembrete de como
suas atri
bui
ções pa
ra a bi
blioteca poderiam destoar de um dia para
o outro.
O lugar era par
te edi
to
ra, parte biblioteca, parte ponto de encon-
de fugir do do
mí
nio na
zis
ta. Nascida dos fragmentos de outro proje-
to — uma ini
ci
ati
va de pes
quisa que coletara milhares de recortes de
jornais, en
sai
os e pan
fle
tos sobre os perigos do totalitarismo —, a bi-
bli
oteca pa
ri
si
en
se vi
via de um esforço diário para combater a cres-
cente on
da de fas
cis
mo na França.
distribuir os pan
fle
tos an
tifascistas da biblioteca a lojas e organiza-
ções da ci
da
de já co
nhe
cidas por apoiar a missão. Às vezes, ela se
pergun
ta
va o que lhe acon
teceria se entregasse aqueles pequenos fo-
lhetos a um sim
pa
ti
zan
te nazista. Hannah já aprendera a dolorosa
a isso.
Não pre
ci
sa
va de mui
to para encontrar provas disso. Seu irmão,
Adam, es
ta
va mor
ren
do aos poucos em um dos terríveis campos de
detenção de Hi
tler, pro
va
velmente espancado e torturado todos os
Althea.
O nome se en
ros
cou no vento que chicoteava o casaco de Hannah,
enquan
to ela des
cia di
an
te do último endereço do dia. Escondeu o
desespe
ro que sen
tia sem
pre que pensava em Althea, em Adam e na-
quele tem
po em Ber
lim que permanecia vívido como se tivesse sido
on
tem, co
mo se os pe
sa
delos permanecessem enquanto sonhos se
dissolvi
am no na
da.
Sua úl
ti
ma pa
ra
da era uma loja de violinos de propriedade judai-
ca. De pro
pó
si
to, dei
xa
ra aquela para o final. Adorava tanto o ho-
fundos da lo
ja.
Hannah ti
nha mui
ta experiência com aquele tipo de reunião;
atraíam pes
so
as que acre
ditavam que a violência era a única forma
de conter a ma
ré fas
cis
ta que se aproximava e que parecia destinada
a varrer a Eu
ro
pa. Não que discordasse, mas Hannah vira o rosto
machuca
do e que
bra
do de Adam depois da primeira noite em que os
nazistas o le
va
ram pa
ra a prisão. Vira amigos serem chicoteados e
espanca
dos nas ru
as pe
los Sturmabteilung, ou camisas-pardas.
nunca se
ria a res
pos
ta à qual Hannah recorreria.
O sini
nho dou
ra
do aci
ma da porta tilintou quando ela entrou.
Henri es
ta
va ocu
pa
do, curvado sobre um longo balcão que per-
corria to
da a ex
ten
são da loja, então apenas levantou os olhos por
— Bon
jour, ma
de
moi
selle — disse ele, sem interromper os movi-
mentos rá
pi
dos e ex
pe
ri
entes das mãos nodosas pelo braço do violi-
no que se
gu
ra
va.
— Bon
jour, grand-pè
re.
Quan
do se co
nhe
ce
ram, Henri dissera a Hannah que todos de
incluída en
tre es
sas pes
so
as a deixara muito feliz.
— Lu
ci
en?
Ele in
cli
nou a ca
be
ça na direção do corredor que levava aos fun-
dos.
— Dans le dos.
— Mer
ci — agra
de
ceu Hannah.
Henri es
tre
me
ceu de leve com o sotaque dela — uma piada in
ter-
na dos dois.
Hannah en
con
trou Lu
cien distribuindo algumas cadeiras na pe-
quena sa
la que ser
via de estoque, provavelmente para uma reunião
da Resis
tên
cia na
que
la noite. Sem esperar um pedido, ela o ajudou a
terminar de or
ga
ni
zar as fileiras de frente para um púlpito armado
no canto.
Quan
do ter
mi
na
ram, Lu
cien beij
ou as bochechas dela e pegou os
panfle
tos.
— Es
sa sua bi
bli
ote
ca está imprimindo panfletos mais depressa
do que con
se
gui
mos en
tre
gá-los.
— Es
tão chei
os de pen
samentos — disse Hannah.
— Co
mo to
dos nós, su
ponho. Chá?
— Por fa
vor — acei
tou Hannah, agradecida.
Apesar de o ca
fé de Marceline tê-la aquecido, ela ainda sentia um
calafrio per
sis
ten
te de
pois de andar por Paris o dia todo. A calça es-
tanto Han
nah quan
to a pe
ça de roupa estavam bem cientes das limi-
tações do te
ci
do.
fogo. Han
nah ob
ser
va
va os movimentos graciosos do rapaz de onde
se senta
ra, jun
to à pe
que
na mesa no canto. Ele era bonito, de cabe-
los gros
sos e es
cu
ros, sor
riso gentil e o corpo esbelto à moda parisi-
ense, do jei
to que to
das as meninas dali pareciam gostar. Se Hannah
desejas
se, po
de
ria ima
gi
nar a vida sendo: na aconchegante loja de
violinos, ofe
re
cen
do um ouvido atento para o amado que se prepara-
berta.
Mas nun
ca quis ser es
posa. Ou nunca quis ser esposa de um ho-
— O que vo
cê faz? — perguntou Hannah, ao aceitar a xícara. —
tente da Re
sis
tên
cia fan
ta
siada de bibliotecária, adquiriu um brilho
— Ve
nha ver pes
so
al
men
te, minha cara.
xícara.
— Já es
ti
ve em reu
niões o bastante na minha vida.
— Eu sa
bia! — dis
se Lu
cien, se apoiando nos antebraços, ansioso.
— Em Ber
lim? Co
mo eram?
— Inú
teis — de
cre
tou Hannah, amarga e cruel.
Mas Lu
ci
en ape
nas sorriu, paciente, e ela continuou, mais deva-
— Pa
re
cia que es
tá
va
mos brincando, algo assim. Hitler acabara
de ser no
me
ado chan
ce
ler, e as coisas ficaram muito ruins, muito
— Vo
cês nun
ca ima
gi
naram que ele duraria tanto tempo — con-
cluiu Lu
ci
en, se
guin
do o raciocínio.
— Ele des
per
tou uma chama dentro de tanta gente, detratores e
apoiado
res. E eu acha
va que esse tipo de chama queimava forte e lo-
go se apa
ga
va. — Han
nah fez uma pausa, tentando decidir se deveria
responder à per
gun
ta ini
cial. — As reuniões eram fúteis. Falávamos
sobre sis
te
mas econô
mi
cos e teorias políticas como se fôssemos de-
bater es
ses mons
tros no mercado de ideias. Devíamos, em vez disso,
ter fala
do so
bre pas
sa
gens de trem, contas bancárias no exterior e
planos de fu
ga.
Lucien mor
deu o lá
bio in
ferior, observando-a, contemplativo.
— Em nos
so úl
ti
mo en
contro, alguém fez uma leitura dramá
tica
de O capi
tal.
Ele dis
se is
so com au
todepreciação suficiente para que Hannah
sorrisse.
— Sim, eu já es
ti
ve em uma reunião assim — afirmou, querendo
acariciar o ros
to do ami
go como se faz com uma criança, mas se con-
teve. — Es
ta noi
te tal
vez seja mais interessante vocês discutirem
os alemães ine
vi
ta
vel
men
te cruzarem a Linha Maginot.
— Vo
cê acha que é ine
vitável — observou Lucien, e Hannah pon-
derou so
bre a dú
vi
da no tom de voz dele.
Aqui
lo con
fir
ma
va sua crença de que as reuniões da Resistência
todos os gran
des pen
sa
mentos que tinham. Não muito diferente da
Bibliote
ca Ale
mã da Li
ber
dade, em seus piores momentos.
— A guer
ra sem
pre é inevitável, não é mesmo? — disse Hannah,
com leve
za, e en
tão mu
dou completamente de assunto: — Diga-me,
querido, an
dou par
tin
do algum coração nos últimos tempos?
Lucien se en
di
rei
tou, le
vando a mão ao peito.
— Vo
cê me ma
goa.
Hannah re
vi
rou os olhos, e ele lhe lançou um olhar quase tímido,
uma ex
pres
são que nun
ca vira em seu rosto.
— Uma es
tu
dan
te uni
versitária — confessou Lucien, então se en-
colheu. — Ame
ri
ca
na. Ter
rível.
— Pe
lo me
nos não é na
zista.
— Humm. E vo
cê, Han
nah? — Ele piscou. — Andou partindo al-
gum co
ra
ção?
Hannah cer
ta
men
te desfrutara de alguma companhia amorosa
du
rante seu tem
po em Pa
ris. Mas…
— Não é um mo
men
to es
tranho para se apaixonar?
— Tal
vez se
ja o me
lhor momento para isso — rebateu Lucien, co-
mo o pa
ri
si
en
se que era, do tipo que amava Paris ainda mais nas noi-
tes de ve
rão, com ro
sas e chocolates. — Quer motivo melhor para lu-
— Tal
vez se
ja, pa
ra al
gumas pessoas. — Hannah deu de ombros
ra trás.
— Han
nah. — Lu
ci
en es
tendeu a mão para segurar a dela. — Do
— Se
rá? — de
sa
fi
ou Hannah, desviando o olhar, mas sem se afas-
tar.
Pare
cia que, por mais que tentasse, cada conversa retornava
àquele as
sun
to, co
mo um ímã.
— Às ve
zes, pa
re
ce que Paris quer estender o tapete vermelho pa-
ra os na
zis
tas.
o polegar.
— Vo
cê vai em
bo
ra?
— Com que vis
to?
— Mas e se pu
des
se? — insistiu Lucien.
— Não te
nho por que de
fender Paris. Não é minha terra natal —
declarou Han
nah. Uma conclusão dura, talvez, mas honesta. — A
— Co
mo se vo
cê pu
desse impedir, caso acontecesse — murmu-
rou Luci
en.
Aque
la ha
via si
do ou
tra lição que ela já aprendera.
— Que
ro sa
ber so
bre a menina.
Lucien a dis
traiu com uma agradável hora de falatório não ape-
nas so
bre a ga
ro
ta, mas tam
bém com fofocas lascivas de pessoas que
ambos co
nhe
ci
am e ou
tros assuntos leves. Mas, quando a acompa-
— Vo
cê não vem ho
je à noite?
— Lu
te pe
lo bem por mim, pode ser? — respondeu Hannah, fin-
dir.
Ela pa
rou à por
ta pa
ra acenar para Henri, perguntando-se por
um bre
ve e in
con
se
quen
te instante se deveria comparecer à reunião
da
quela noi
te. Mas afas
tou a ideia e contornou um homem que pas-
que dei
xa
ra en
cos
ta
da na grade do canal.
Hannah aca
ba
ra de pôr as mãos no guidão quando notou um ca-
sal olhan
do pa
ra a vi
tri
ne da loja, depois para ela. Quando passaram
ao seu la
do, o ho
mem cus
piu em sua bochecha. A gota de saliva es-
— Jui
ve — mur
mu
rou ele.
A du
pla con
ti
nu
ou ca
minhando como se nada tivesse acontecido.
limpou a sa
li
va, só fi
cou encarando as costas cada vez mais distantes
dos dois.
Para ca
da pes
soa co
mo Lucien, existiam mais duas como as que
tinham cus
pi
do ne
la em plena luz do dia, bem no meio de Paris.
Hannah sa
bia que o ata
que deveria ter fortalecido sua determina-
ção, gera
do ne
la o ím
pe
to de empunhar uma espada, mas, a cada dia
que pas
sa
va, ti
nha me
nos certeza de que valia a pena salvar o mun-
do.
Nova York
Maio de 1944
V iv con
fe
riu o en
de
re
ço no papel que recebera de Harrison no dia
an
terior, mas era di
fí
cil não ver o imponente Centro Judaico do Bro-
vros Proi
bi
dos pe
los Na
zis
tas.
— O que vo
cê es
tá fa
zen
do aqui? — perguntou-se, baixinho, em-
bora ain
da al
to o bas
tan
te para atrair o olhar torto de um passante.
Viv se ques
ti
onou se perdera de vez a cabeça. Uma coisa era o que
ela po
de
ria cha
mar de tentativa desesperada, porém razoável, mas
ha
viam tam
bém as bus
cas inúteis — e o limite entre as duas parecia
muito tê
nue na
que
le mo
mento.
— Vo
cê já veio até aqui, então é melhor entrar — instruiu a si
mesma, fa
zen
do uma ano
tação mental para manter a boca fechada
quando es
ti
ves
se so
zi
nha em público.
Viv en
trou no sa
guão, on
de um idoso piscou, confuso, por trás de
óculos fun
do de gar
ra
fa e a fez perguntar pela biblioteca três vezes
an
tes de pa
re
cer en
ten
der o que ela estava procurando.
— Ala oes
te.
Ele apon
tou pa
ra um longo corredor e voltou a atenção para o ro-
Quan
do Viv che
gou à porta correta, tocou com cuidado as letras
douradas no vi
dro, an
tes de entrar.
ras im
po
nen
tes e me
sas cobertas por pilhas de livros desarrumadas.
Raios de sol atra
ves
sa
vam as janelas, revelando a poeira que pairava
no ar. A xí
ca
ra de chá abandonada no peitoril e a música baixa to-
cando no rá
dio em
po
lei
ra
do no balcão de atendimento deixavam tu-
do tão acon
che
gan
te e ví
vido que ela precisou conter o desejo de pe-
gar um ro
man
ce ale
ató
rio e mergulhar nele em uma das poltronas.
— Bem-vin
da.
Uma mu
lher saiu de um escritório do tamanho de uma despensa
que fica
va atrás do bal
cão de atendimento, diminuiu o volume no rá-
— Pos
so aju
dá-la?
Viv es
trei
tou os lá
bi
os, evitando descarregar toda a sua história
triste na
que
la es
tra
nha desavisada. O que parecera uma ideia sensa-
do se ques
ti
ona
ri
am sua sanidade.
Estou ten
tan
do ti
rar um final feliz do nada.
— É… — co
me
çou Viv, olhando em volta, inalando o toque azedo
das pági
nas en
ve
lhe
ci
das e da cola. Tentava se recompor.
A bibli
ote
cá
ria a ob
ser
va
va com atenção.
— Per
doe-me pe
lo que vou dizer, mas parece que você precisa de
uma xíca
ra de chá.
— É tão ób
vio as
sim? — perguntou Viv, rindo e mexendo no colar
Era a úni
ca joia de sua mãe que usava. Viv se lembrava de brincar
com o co
lar da mes
ma ma
neira quando, ainda criança, se sentava no
bá bem-in
ten
ci
ona
da o colocara em volta do pescoço de Viv na ma-
nhã do fu
ne
ral de seus pais, e ela raramente o tirava.
estreitas
se os olhos.
— Sen
te-se — ori
en
tou, indicando com a cabeça a mesa do outro
lado da sa
la.
— Obri
ga
da — mur
mu
rou Viv, e afundou em uma poltrona perto
da janela.
Um li
vro à sua fren
te chamou-lhe a atenção. Esticou o braço para
— Al
bert Eins
tein — dis
se a bibliotecária, colocando uma xícara
Ela fo
lhe
ava as pá
gi
nas, entendendo uma em cada dez palavras.
— Foi? — per
gun
tou Viv, devidamente impressionada.
A bibli
ote
cá
ria as
sen
tiu.
— Is
so mes
mo. Ou
vi dizer que foi uma noite grandiosa, que os
convites fo
ram tão co
bi
ça
dos quanto o açúcar e o café são hoje.
— Vo
cê não es
ta
va aqui?
— Não.
Havia al
gu
ma he
si
ta
ção no rosto da mulher.
Viv ten
tou con
ter sua intromissão.
— Quan
do foi is
so? Anos atrás, correto?
— A fes
ta foi em de
zembro de 1934 — respondeu a bibliotecá
ria,
relaxan
do os om
bros.
Viv pen
sou se não se
ria por estar falando sobre a biblioteca, em
— Mas a aber
tu
ra ofi
ci
al só aconteceu meses depois, para marcar
o segun
do ani
ver
sá
rio da queima de livros em Berlim.
Viv ten
tou se lem
brar do mês correto.
— En
tão foi em maio? De 1935?
— Is
so.
A mu
lher apon
tou pa
ra a parede mais próxima, onde havia um
cartaz de pro
pa
gan
da. DA LUZ ÀS TREVAS, diziam as palavras sobre as
imagens. Se
me
lhan
te a ou
tros que Viv já vira, o cartaz era uma com-
pilação de vá
ri
os even
tos, o fogo dos livros subindo até o céu para
eta peque
na e rí
gi
da de Jo
seph Goebbels supervisionava tudo.
Viv vol
tou a aten
ção pa
ra a bibliotecária, que também examinava
rosto.
— Vo
cê es
ta
va lá. — Viv suspirou, incapaz de se deter.
Depois de um lon
go momento em que ela pensou que não teria
resposta, a bi
bli
ote
cá
ria abaixou a cabeça.
— Sim, eu es
ta
va em Berlim na noite da queima.
Viv en
go
liu as cen
te
nas de perguntas. Não podia se considerar es-
pecialis
ta em mui
tas coi
sas, mas sabia ler as pessoas. E havia muros
altos na
que
la mu
lher, mu
ralhas que seriam difíceis de derrubar. Ela
apontou pa
ra as pi
lhas de livros.
— E es
ses li
vros? Fo
ram queimados naquela noite?
— Mui
tos, sim. — A bi
bliotecária olhou em volta como se estives-
se lá, ven
do os li
vros pe
la primeira vez. — Foi difícil listar o catálogo
comple
to. Ha
via al
gu
mas listas, é claro. — Ela disparou um olhar
irônico pa
ra Viv. — Os na
zis
tas amam listas.
— De fa
to — con
cor
dou Viv, no mesmo tom de voz.
— Mas os in
cên
di
os não duraram apenas uma noite. A noite de 10
foram en
co
ra
ja
dos a quei
mar os próprios livros nas semanas seguin-
tes. Qual
quer coi
sa con
si
derada antialemã ou que pudesse minar o
Reich de
ve
ria ser ex
pur
ga
da.
Viv le
vou um ins
tan
te para absorver a informação.
— Ou se
ja, qual
quer coisa escrita por autores judeus.
— E co
mu
nis
tas e cor
rompidos e qualquer um que não defendes-
se a gran
de
za da ra
ça su
perior. Acho que nunca saberemos o núme-
ro real de li
vros per
di
dos naquelas semanas e nos anos seguintes.
— Mas vo
cês ten
tam. Rastrear, preservar os volumes.
— Ten
ta
mos. É um tra
balho difícil, mas… — Ela se afastou, fixan-
do o olhar no car
taz mais uma vez.
depois:
— Os li
vros são um jei
to de deixarmos uma marca no mundo, não
são? Mos
tram que es
ti
ve
mos aqui, que amamos e que sofremos, ri-
mos, co
me
te
mos er
ros e existimos. Podem ser queimados mundo
afora, mas, uma vez que palavras são lidas, não há volta, uma vez que
uma his
tó
ria é con
ta
da, não há volta. Estes livros vivem nesta biblio-
um que os te
nha li
do.
Um fo
go fe
roz co
mo as chamas que destruíram aque
les livros se
momen
to, te
ve uma vi
são encantadora por trás da fachada da biblio-
tecária.
Uma guar
diã. Era uma noção fantasiosa, talvez, retratar a mulher
como pro
te
to
ra dos li
vros, mas Viv gostou da ideia.
Inspi
ra
ção.
Era da
qui
lo que Viv precisava, daquela paixão, daquela intensida-
fazê-lo se re
tra
tar pe
la emenda.
Cla
ro que nem Viv nem a bibliotecária entrariam na câmara do
Se
nado, mas não pre
ci
sa
vam. Viv era diretora de publicidade de
uma im
por
tan
te or
ga
ni
za
ção de guerra. Quem precisava da câmara
do Sena
do quan
do se tem o contato dos principais repórteres da ci-
da
de?
te de ideia, a bi
bli
ote
cá
ria se inclinou na direção dela.
— Ago
ra, di
ga: o que co
lo
cou esse fervor nos seus olhos?
Fer
vor nos seus olhos. Viv pensou na frase e concluiu que gostava.
O silên
cio que se se
guiu pareceu confirmar suas sus
peitas: a bi-
bli
otecá
ria não es
ta
va dis
posta a revelar o próprio nome.
— Tra
ba
lho no Con
se
lho de Livros em Tempos de Guerra —
apressou-se em di
zer, após o silêncio constrangedor que se instalava
— Con
se
lho de Li
vros em Tempos de Guerra — repetiu a bibliote-
— Sim, vo
cê e mui
tas outras pessoas. Gosto de dizer que somos
peque
nos, mas po
de
ro
sos.
Ela er
gueu o bra
ço co
mo Rosie, do famoso cartaz We Can Do It!. A
bibliote
cá
ria sim
ples
men
te a encarou, sem dizer nada. Viv pigarre-
ou e assu
miu um com
portamento mais profissional, o mesmo que
jornalis
tas que es
cre
vi
am sobre as iniciativas do conselho.
— So
mos uma or
ga
ni
zação composta por voluntários de todo o
mundo edi
to
ri
al: li
vrei
ros, autores, bibliotecários, editoras de gran-
des cida
des, gru
pos co
merciais… O conselho faz parcerias com o go-
verno em di
ver
sos gran
des projetos. Mas, essencialmen
te, o que fa-
zemos é bus
car no
vas ma
neiras de usar livros para levantar o moral
dos solda
dos em com
ba
te no exterior e lembrar aos americanos por
que esta
mos nes
ta guer
ra.
— En
quan
to eles lu
tam as guerras pelos homens poderosos — co-
mentou a bi
bli
ote
cá
ria, exibindo uma pitada de personalidade sob a
fachada fria.
— Bom, sim.
levantar o mo
ral, ad
mi
tir essa opinião não seria visto com bons
olhos.
— E co
mo tu
do is
so a trouxe à nossa biblioteca?
Viv sus
pi
rou, pen
san
do por onde começar. Decidiu simplesmen-
te relatar to
da a his
tó
ria.
A bi
bli
ote
cá
ria ou
viu com atenção enquanto Viv narrava sua
gança mes
qui
nha con
tra os democratas, a política de censura que
po
deria mui
to bem cres
cer e se tornar algo ainda mais perigoso se
Taft entras
se na Ca
sa Branca, como desejava.
— Tu
do is
so soa co
mo uma vingança — constatou a mulher, de-
pois de um si
lên
cio pen
sa
tivo, quando Viv terminou de contar toda a
história.
Vin
gan
ça. Viv gos
tou da palavra, da imagem que invocava. Mais
zemos as pes
so
as se im
portarem. Todos gostavam de histórias de
ridade du
ra
dou
ra de Ro
meu e Julieta para comprovar.
— Eu ado
ra
ria ter al
go de útil para oferecer — disse a bibliotecá-
Viv, no en
tan
to, ba
lan
çou a cabeça, ainda perseguindo uma ideia
que ga
nha
va for
ma.
Nun
ca con
se
gui
ra cri
ar a narrativa certa para sua luta contra o
tão ago
ra tão her
mé
ti
ca que as pessoas simplesmente deixavam de
prestar aten
ção quan
do al
guém começava a discutir os detalhes.
Os ame
ri
ca
nos es
ta
vam exaustos de tanta preocupação. As difi-
culdades de um pro
gra
ma de livros gratuitos dificilmente causariam
comoção em um oce
ano de tristeza, perdas e dificuldades que repre-
sentava aque
la guer
ra in
findável. Ainda mais quando a luta maior
sempre fo
ra a ques
tão dos direitos dos soldados ao voto.
que o pú
bli
co se im
por
ta
ria se compreendesse o que esta
va em jogo.
Uma vin
gan
ça con
tra um programa que estava apenas tentando
— Na ver
da
de — re
ba
teu —, acho que você ajudou mais do que
imagina.
A bibli
ote
cá
ria sol
tou uma risada um pouco incrédula. Viv balan-
çou a ca
be
ça, se le
van
tou e pegou a bolsa com a mente três passos à
sa para co
lo
car a no
va ideia em curso. Mas, antes, fez uma pausa, en-
carando a mu
lher nos olhos.
— Acre
di
te em mim, você ajudou.
A bibli
ote
cá
ria fi
cou em silêncio, como se sentisse mais uma per-
gunta vin
do.
— Pos
so vol
tar?
— Cla
ro — afir
mou a mulher, com aquela contração dos lábios
Ja
nei
ro de 1933
P rimei
ro Althea viu a luz da tocha.
Ela con
ge
lou, pa
ra
li
sa
da, sem saber se era uma multidão indisci-
Um jo
vem pas
sou com a jaqueta aberta, jogada por cima dos om-
Em vez dis
so, en
cos
tou na parede de pedra da ponte. Para sair do ca-
O ho
mem não es
ta
va só.
Atrás de
le mar
cha
va um grupo de jovens, as chamas trêmulas das
tochas er
gui
das com or
gu
lho em meio à escuridão. Homens ves
tin-
do as ca
mi
sas par
das e pretas que ela passara a associar ao Partido
Nacional-So
ci
alis
ta dos Trabalhadores Alemães flanqueavam a mul-
tidão, co
mo guar
das.
As vo
zes se pro
pa
ga
vam e misturavam, envolvendo Althea, que
sejo de se jun
tar às fi
lei
ras, à alegria, àquele claro triunfo.
Deci
diu ar
ris
car e es
ti
cou o braço para a passante mais próxima,
seguran
do seu pul
so.
— O que acon
te
ceu?
— Hi
tler ago
ra é o chanceler — arfou a mulher, com uma alegria
quase ma
nía
ca no ros
to. — Em breve estaremos livres.
Althea ofe
gou, em
bo
ra a mulher já tivesse se afastado havia al-
gum tem
po. Te
ria si
do por isso que Diedrich estava todo sorridente
apenas al
guns di
as an
tes? Ele sabia que isso ia acontecer?
Fora a pri
mei
ra vez em semanas que Diedrich parecera otimista
em relação à si
tu
ação de seu partido. Antes daquilo, ele parecia frus-
trado por
que o Na
ti
onal
sozialistische Deutsche Arbeiterpartei , ou
NSDAP, co
mo os ale
mães chamavam, ainda estava se recuperando
ção, ape
sar dos es
for
ços de campanha revolucionários e onerosos.
O en
tu
si
as
mo de
le pe
la causa com certeza não tinha diminuído.
Althea, al
guém que ra
ra
mente, ou mesmo nunca, prestava atenção à
po
lítica an
tes de che
gar a Berlim, achava a paixão de Diedrich insti-
gante.
— Chan
ce
ler? — per
gun
tou a um dos passantes, desta vez em in-
glês, pa
ra o ca
so de ter en
tendido mal.
— Chan
ce
ler — con
cordou o jovem, jogando a cabeça para trás
para gri
tar a pa
la
vra em al
to e bom som.
A con
fir
ma
ção pro
vo
cou um aplauso crescente que reverberou
pela mul
ti
dão, e mui
tos dos homens levantaram os braços para fazer
Confor
me os ma
ni
fes
tantes se dirigiam para a Alexanderplatz, as
chamas quei
ma
vam al
to e intensamente. Althea hesitou por um ins-
tante, de
pois mais um, en
tão por fim se permitiu levar pela enxurra-
da de cor
pos, to
dos ocu
pados em entoar coros que ela só entendia
metade.
da, asso
ber
ba
da. Em vez disso, se tornou parte da multidão frenéti-
ca, impul
si
ona
da pe
la eu
foria, pela animação.
— Co
mo is
so acon
te
ceu? — gritou para a jovem ao lado, mas não
ob
teve res
pos
ta. Que to
li
ce esperar uma.
A mul
ti
dão atra
ves
sou a cidade ao largo do rio Spree, dirigindo-se
para a Chan
ce
la
ria do Reich, as tochas iluminando o caminho. To-
dos can
ta
vam em ale
mão, gritavam, riam e dançavam, e Althea gri-
tou e riu e dan
çou ao la
do daquelas pessoas, o patriotismo pelo país
de seus an
ces
trais pul
san
do forte em seu sangue, inebriante, arden-
te e irre
sis
tí
vel, mui
to em
bora o sentimento de orgulho fosse tão no-
vo para ela.
ria co
mo Ali
ce, mer
gu
lhada no País das Maravilhas, tudo ligeira-
mente in
cli
na
do e de ca
be
ça para baixo, do avesso. Em vez disso,
que esta
va dis
tor
ci
da.
Althea ti
nha si
do uma criança estranha. E as outras meninas da
peque
na es
co
la em Owl’s Head faziam questão de apontar todos os
resposta pa
ra qual
quer pergunta — o que todos diziam que ela fazia
vezes de
mais.
Nas his
tó
ri
as, ela es
ca
pava das provocações impiedosas de suas
colegas. Quan
do os li
vros chatos da estante de sua mãe pararam de
As pri
mei
ras eram so
bre princesas, dragões e castelos, a fantasia
era um re
fú
gio pa
ra sua mente infantil. E, à medida que Althea cres-
cia, as his
tó
ri
as ama
du
re
ciam com ela. Logo se tornaram o prisma
as outras cri
an
ças, e mais tarde, os adultos, eram ao mesmo tempo
cruéis e be
los. O que ela demorou a perceber foi como essa forma de
agir cri
ava uma dis
tân
cia entre ela e as outras pessoas — ela era o
especta
dor, o cri
ador, o leitor; os outros eram os personagens, os su-
jeitos, os fan
to
ches.
Enquan
to se apai
xo
na
va por Berlim — o anonimato que nunca
experimen
ta
ra, as lu
zes brilhantes, as risadas, as ruas que pareciam
intermi
ná
veis, mas que sempre desembocavam em novos lugares
que ela ain
da não ti
nha vi
sitado —, Althea então percebeu como
aquele de
se
jo de bus
car pro
teção tinha se tornado sufocante.
Era um há
bi
to di
fí
cil de quebrar, sobretudo quando ficava des-
concerta
da, co
mo quan
do Diedrich flertou com ela no mercado de
se escon
der em uma his
tória para fugir da vida. Às vezes, a vida era
suficien
te.
Assim, co
mo não se en
cantar com a onda de nacionalismo alemão
varrendo a ci
da
de?
O frio já dei
xa
ra os de
dos de Althea dormentes quando a multi-
dão che
gou à pra
ça em fren
te à Chancelaria, mas algo tão mundano
quanto a tem
pe
ra
tu
ra, na
quele momento, não importava para ela.
— Lá! — ofe
gan
te, ela apontou para alguém ao seu lado.
Na ja
ne
la, se des
ta
ca
va uma silhueta sombria, a figura imponente
quela noi
te.
Quan
do Herr Hi
tler abriu as janelas para cumprimentar seus
apoiado
res fer
vo
ro
sos, a praça enchera ao ponto de Althea se ver
pressiona
da om
bro a om
bro com os estudantes em volta. Lágrimas
escorriam pe
lo ros
to da menina à esquerda, enquanto o menino à di-
rosto er
gui
do, vol
ta
do pa
ra Hitler.
O no
vo chan
ce
ler não falou, o que foi uma decepção — as habili-
da
des dis
cur
si
vas do ho
mem eram lendárias.
No en
tan
to, Hi
tler os observava, parecendo se deleitar com os gri-
multidão pa
ra ima
gi
nar que podia ver como sua boca se abria em
um sorri
so de sa
tis
fa
ção.
A mul
ti
dão es
ta
va bem instalada, contente com a festa improvisa-
da. A cer
ve
ja de al
gu
ma for
ma havia se materializado nas mãos dos
homens pró
xi
mos, can
ções inflando e crescendo. Uma briga ou duas
gras posi
ci
ona
dos aqui e ali em meio à multidão.
Althea avis
tou os ho
mens reunidos perto da porta do prédio e re-
dutório as
sim que che
gou à cidade. Althea fizera questão de cum
pri-
mentá-lo, o ho
mem que a convidara para visitar Berlim. Tecnica-
mente, a vi
agem ti
nha si
do financiada pelo Partido Nazis
ta, mas Die-
bels. Ao co
nhe
cê-lo, Althea ficou impressionada com o apreço do ho-
cinema, po
di
am de
sem
pe
nhar um papel na política.
Die
dri
ch dis
se
ra que Goebbels com certeza teria uma posição no
gabinete cul
tu
ral, ca
so Hi
tler se tornasse chanceler. O que na certa
explica
ria a ex
pres
são presunçosa no rosto do homem naquele mo-
mento.
Ao la
do de
le, a luz do poste refletiu em uma cabeça de cabelo loi-
Die
dri
ch.
Se ela fos
se um pou
co maior, talvez não tivesse conseguido abrir
caminho pa
ra se apro
xi
mar, mas sua baixa estatura a permitiu se es-
gueirar pe
los es
pa
ços va
zios até se libertar do emaranhado de cor-
pos.
Trope
çou, mas ape
nas por um segundo, porque no instante se-
guinte os bra
ços de Di
edrich estavam ao seu redor, quentes, recon-
to em seu pei
to en
quan
to ele a balançava, ambos rindo por absoluta-
mente ne
nhu
ma ra
zão além de estarem felizes.
— Vo
cê ve
rá — sus
sur
rou Diedrich, em seu ouvido, o rosto colado
ao dela, ao sol
tá-la de vol
ta no chão. — Verá como tudo será melhor
de ago
ra em di
an
te.
meras ve
zes co
mo era crucial que Hitler ocupasse uma posição de
po
der. Ele era vis
to co
mo a única esperança, o farol brilhante, o sal-
país estag
na
do na po
bre
za, apenas para encher os próprios bol
sos.
Homens que que
ri
am que a Alemanha se curvasse aos caprichos ar-
por to
da a Gran
de Guer
ra, um mundo que queria salgar a terra e dei-
xar os ale
mães mor
re
rem, em vez de oferecer compaixão. Os cri
mi-
nosos de no
vem
bro que acompanharam o armistício e assinaram o
atestado de óbi
to do país.
— Eu sei — sus
sur
rou Althea, levantando o rosto com um sorriso
para Di
edri
ch.
Ele he
si
tou por um se
gundo, então colou os lábios nos dela. Die-
drich ti
nha gos
to de uís
que e felicidade. Althea soltou um suspiro,
Um ar
re
pio de vo
lú
pia a percorreu quando pressionou seu corpo
ao dele, de
se
jo
sa e con
fu
sa, experimentando uma onda de prazer
nunca sen
ti
da.
Die
dri
ch re
cu
ou de
pois de um toque mais casto dos lábios no
canto da bo
ca de Althea. Algo insuportavelmente afetuoso se acen-
— Ve
nha, que
ri
da, va
mos tomar um pouco de champanhe.
Althea se dei
xou le
var.
Adolf Hi
tler che
gou ao poder. Era uma noite para comemorar.
Nova York
Maio de 1944
trô do Bro
oklyn, não con
seguia se lembrar da razão.
aparente
men
te in
ter
mi
nável tinham sido ensinados, por filmes e
propagan
das, a que
rer um final espetacular em que os mocinhos
triunfavam, o ho
mem bo
nito ficava com a garota e o vilão recebia
uma pu
ni
ção jus
ta.
Viv po
de
ria ofe
re
cer pe
lo menos dois daqueles três tipos de final.
Era só fa
zer as coi
sas di
reito.
O trem sa
cu
diu e pa
rou, e Viv cruzou as portas do vagão pouco
an
tes de se fe
cha
rem.
A para
da fi
ca
va a ape
nas alguns quarteirões da sede do conselho
fachadas bri
lhan
tes de seus vizinhos da Broadway.
— Viv, su
as car
tas — anunciou a srta. Bernice Westwood, assim
A sau
da
ção a pe
gou de surpresa, e ela deu meia-volta, deslizando
o salto do sa
pa
to pe
lo pi
so de madeira até a mesa de Bernice.
— Obri
ga
da — agra
de
ceu, um pouco ofegante pelo esforço.
Viv pe
gou a sa
co
la que sabia estar cheia de pacotes amarrados
com bar
ban
te que con
ti
nham inúmeros envelopes.
Pro
va
vel
men
te to
dos de soldados alocados no exterior que escre-
viam pa
ra agra
de
cer ao con
selho pela EFA, pedindo mais livros, per-
guntando se su
as car
tas poderiam ser enviadas diretamente aos au-
tores. Al
gu
mas po
di
am até ser de parentes dos soldados, imploran-
dos roman
ces mais po
pu
lares. Grande parte do trabalho de Viv era
para quan
do os jor
na
lis
tas ligavam, procurando citações sobre a ini-
ciativa.
— Dia cal
mo? — per
guntou Viv, olhando para ver se havia mais
pa
cotes atrás de Ber
ni
ce. Às vezes eram tantas sacolas que mal dava
para car
re
gar em uma só viagem.
— Sim — mur
mu
rou Bernice, distraída, antes de se debruçar pa-
ra a fren
te, de olhos ar
re
galados, a cabeleira cacheada e loira roçan-
do o quei
xo. — Ou
vi ru
mores de que você emboscou Taft em uma
churras
ca
ria on
tem. Foi por isso que entrou correndo como uma ga-
linha?
milhan
te es
pe
tá
cu
lo no restaurante não chegariam à sede do conse-
lho. Ain
da mais de
pois de ler menção ao episódio que previra encon-
ha
via bis
bi
lho
tei
ros de so
bra no conselho, e todos liam as páginas de
fofocas anô
ni
mas re
li
gi
osamente.
— Não — ne
gou, fran
zindo os lábios e decidindo que uma distra-
Taft.
— Con
te-me tu
do.
— Pre
ci
so con
sul
tar o sr. Stern antes de qualquer coisa.
Viv es
ten
deu a mão pa
ra apertar a de Bernice em um pedido de
desculpas.
— De
se
je-me sor
te.
Berni
ce fez um bei
ci
nho triste, mas logo abriu um sorriso anima-
do.
— Vo
cê es
tá fa
zen
do a coisa certa pelos meninos, sabe. Não de
sis-
tindo.
de quebrar a ca
ra, exa
ta
mente como nos últimos seis meses. Apren-
acredita
ri
am que vo
cê sa
bia o que estava fazendo.
O sr. Phi
lip Van Do
ren Stern, chefe do conselho, era um homem
gentil, al
to, ma
gro e de ros
to comprido. Os óculos de aros finos e ter-
nos con
ser
va
do
res da
vam uma aparência séria que Viv logo percebe-
sa.
Deu le
ves ba
ti
di
nhas na porta aberta, as cartas ainda debaixo do
braço.
O sor
ri
so que Phi
lip estava prestes a abrir se transformou em
uma car
ran
ca con
tem
pla
tiva quando viu quem estava batendo. Viv
de
veria ter ima
gi
na
do que, se os rumores de seu plano de confrontar
Taft ti
nham che
ga
do a Bernice, certamente teriam sido levados ao
conheci
men
to do pre
si
dente do conselho.
— Sra. Childs.
Viv se en
co
lheu com a repreensão intensa dele apenas dizendo
no escri
tó
rio. — Mas ago
ra tenho um plano muito melhor. Um plano
— Ah, Vi
vi
an.
— Tal
vez se
ja ho
ra de jogar a toalha.
— Mas o Con
gres
so mu
da as leis todos os dias — argumentou Viv.
Era a par
te mais im
por
tante de sua ideia. A Lei de Vo
to do Solda-
do tinha si
do ins
ti
tuí
da, mas isso não significava que a emenda com
a censu
ra de Taft não pu
des
se ser extirpada dela.
— Su
po
nho que sim.
— E nin
guém gos
tou da proibição de Taft. Só não queriam colo-
car em ris
co a apro
va
ção da lei.
— Não que
ri
am ir con
tra Taft — acrescentou Stern, com gentile-
za. — E con
ti
nu
am não querendo.
— Por is
so te
mos que convencê-los de que, politicamente, é mais
vantajo
so fi
car do nos
so lado — rebateu Viv, imprimindo à voz mais
o queriam co
mo ini
mi
go. — Meu erro foi focar em Taft. Precisamos
nos con
cen
trar em to
dos os outros e mostrar a eles que estão do lado
errado.
— Co
mo pro
põe que fa
çamos isso? — perguntou Stern, esfregan-
do o po
le
gar en
tre as so
brancelhas como se estivesse tentando evi-
Não se
ria a pri
mei
ra vez que Viv era comparada a uma enxaque-
ca.
— Con
ven
ce
re
mos seus eleitores a fazerem alarde sobre a ques-
tão — res
pon
deu Viv, an
si
osa. — E, para isso, faremos um show.
Stern ace
nou pa
ra in
centivá-la a prosseguir.
— Re
ali
za
re
mos um evento, convidaremos a mídia, o mundo edi-
torial, os bi
bli
ote
cá
ri
os, nossos melhores autores — explicou Viv,
deixando as pa
la
vras saí
rem apressadas. O conceito ainda estava
sendo for
mu
la
do, mas, quanto mais ela falava a respeito, mais se
conven
cia de que exis
tia uma chance de dar certo. — Vou ligar para
todos os gran
des jor
nais para que tomem conhecimento. Posso até
chamar al
gu
mas pes
so
as do rádio. — Viv fez uma pausa e recuperou
o fôlego. — Pou
cas pes
so
as estão cientes do que está em jogo com a
alteração. Pre
ci
sa
mos mostrar a elas por que isso é importante.
— E a vo
ta
ção não vai turvar as águas desta vez — comple-
po
derão ig
no
rar a ques
tão. Você sabe que eles só se importam de
eles per
ce
bam que is
so po
de prejudicar seus orçamentos de campa-
nha.
Viv con
ti
nu
ou:
— Taft in
ti
mi
dou mui
tos colegas para que a emenda fosse aprova-
suas ca
be
ças, eles rom
pe
rão a aliança em um piscar de olhos. — Ela
estalou os de
dos. — To
da boa história precisa de um vilão, e, para
nossa sor
te, Taft se ofe
re
ceu numa bandeja de prata.
Viv po
de
ria se sen
tir culpada se pensasse que estava pintando
— Eu pos
so fa
zer is
so — prometeu Viv, quase acreditando. Ou
acreditan
do ape
nas em parte, o que já bastava. — Vamos preparar o
çaremos a cha
mar a aten
ção não só de nossos apoiadores habituais,
mas tam
bém dos gran
des doadores políticos e do público em geral.
Tudo ga
nha
rá im
pul
so até o grande dia.
Stern es
ta
va ce
den
do, dava para ver, mas ainda não parecia con-
vencido. Co
mo a fa
ce pú
blica da iniciativa, ele precisava tomar cui-
da
do com os le
gis
la
do
res, mesmo que quisessem destruir o conse-
Stern que
ria ver a emen
da aniquilada tanto quanto Viv.
— Um even
to, a ser re
alizado aqui, com palestrantes que oferece-
o conse
lho.
Por ins
tin
to, Viv en
fi
ou a mão na sacola que Bernice lhe entrega-
ra. Sabia que o sr. Stern apreciava o quanto o programa da EFA co-
movia os sol
da
dos. Ain
da as
sim, havia uma diferença entre saber, na
A quem pos
sa in
te
res
sar,
Sou o sar
gen
to Bil
lie Flick. Estou com o 107º. Não sou escritor
nem na
da, não te
nho jeito com as palavras, mas queria tentar
agra
de
cer a to
dos vo
cês pelos livros que estão enviando. Perde-
mos um ga
ro
to há três di
as. Ele mentiu nos documentos de alis-
ta
men
to di
zen
do ser mais velho do que seus dezesseis anos. Nós
o cha
má
va
mos de Cis
co porque ele veio de São Francisco.
Nos úl
ti
mos di
as, ele não pa
rava de falar de um dos seus li-
vros. Ven
to, areia, es
trelas era o nome, e preciso admitir que os
ca
ras ri
ram do tí
tu
lo. Diziam a Cisco que ele deveria se inscre-
ver em um sa
lão li
te
rá
rio. Ele insistia que não, que tínhamos que
ler o li
vro, que fa
la
va sobre os “laços de amizade forjados no fo-
go”. Es
tas fo
ram as pa
la
vras que ele usou, dá para imaginar?
urina
va do la
do de fo
ra do acampamento. Não deu nem tempo
de ele no
tar, o que é sem
pre uma bênção.
Cis
co se
rá lem
bra
do por sua mãe e por sua família, provavel-
uma men
ti
ra pa
ra vir pa
ra cá. Ele não salvou ninguém, nem mu-
dou as ma
rés da guer
ra. Mas alguém além de nós devia saber da
existên
cia de
le.
E gos
to de pen
sar que ele ainda vive em qualquer homem que
carre
gue um exemp
lar desse livro no bolso. Então obrigado por
isso.
Respeitosa
mente,
escreve
ra o no
me do ra
paz. De qualquer maneira, o nome dele talvez
não impor
tas
se tan
to as
sim. Para aqueles homens, o garoto havia si-
na de mor
tes que os ho
mens vivenciassem.
A guer
ra era as
sim. To
do mundo tinha uma história comovente
para con
tar e, no en
tan
to, por causa disso, era quase como se não
existisse ne
nhu
ma.
— Sob a emen
da de Taft, esse livro teria sido banido.
Stern na
da dis
se, mas também não devolveu a carta. Em vez dis-
— Quan
do se
ria es
se grande show?
das de ca
be
ça.
Preci
sa
ria or
ga
ni
zar o evento, divulgar a notícia, convidar a im-
prensa, con
vi
dar os le
gis
ladores, convidar todos os voluntários do
conselho… Cri
ar uma lis
ta fatal de palestrantes.
Aque
la úl
ti
ma par
te era a mais difícil, a parte da qual o plano
mais de
pen
dia. Pa
ra seu gran finale, precisava de pessoas com dis-
— Final de ju
lho.
Pouco me
nos de três meses.
— De quan
ta mão de obra precisa?
— Fa
rei tu
do o que for possível eu mesma — prometeu Viv. —
Vou pre
ci
sar de aju
da no dia, mas grande parte envolverá coorde
nar
os conta
tos que já te
nho.
— Eu não de
ve
ria… — começou Stern, olhando para o copo va
zio.
En
tão ba
teu na ja
que
ta uma vez, no local exato onde a carta estava.
quecen
do o mai
or obs
tá
cu
lo de todos.
Viv he
si
tou, pen
san
do, procurando, classificando todos os prepa-
rativos.
— E qual se
ria?
— Ga
ran
tir a pre
sen
ça de Taft — esclareceu Stern, sua expressão
oscilando en
tre o hu
mor e a piedade. — E que ele não vá embora
quando per
ce
ber o que es
tá acontecendo.
Viv sen
tiu um aper
to no peito e tocou no espaço vazio onde antes
ficava a ali
an
ça.
A res
pos
ta àque
le pro
ble
ma era óbvia, mas aquilo não ajudava.
suspirou, acei
tan
do o que precisava ser feito.
— Dei
xe is
so co
mi
go.
Pa
ris
Outu
bro de 1936
–B om dia — dis
se Han
nah, em alemão, depois de atravessar a por-
ta da Bi
bli
ote
ca Ale
mã da Liberdade, no número 65 do Boulevard
A bibli
ote
ca fi
ca
va ani
nhada em um canto distante de Montpar-
nasse, um bair
ro na mar
gem esquerda do Sena. Apesar da localiza-
ção pou
co usu
al, o lu
gar recebia uma boa quantidade de visitas diá-
saudação.
Era re
con
for
tan
te vê-los, aquelas presenças eram um antídoto
pensado
res, es
tu
dan
tes e leitores atraídos para a biblioteca eram
exilados ju
deus, e ela sen
tia uma afinidade com eles que nunca sen-
tira de for
ma par
ti
cu
lar
mente forte em Berlim.
Os pais ti
nham si
do bastante seculares, inclinando-se para o mo-
vimento do ju
daís
mo re
formista que se originou em seu país. A fa-
mília ob
ser
va
ra o Sha
bat, frequentara os serviços no templo e defen-
dera os prin
cí
pi
os éti
cos da fé, mas colocava menos ênfase nas leis
ras do cre
do.
Aqui
lo sem
pre lhe pa
receu adequado; Hannah nunca conseguira
conciliar com
ple
ta
men
te quem ela era — quem ela amava — com
meçando a mu
dar seu ponto de vista. No mês anterior, na compa-
nhia de al
gu
mas pes
so
as de sua recém-descoberta comunidade, ce-
lembra
da da lon
ga his
tó
ria que os unia — a história de um povo for-
çado ao exí
lio, per
se
gui
do, e ainda assim sempre capaz de encontrar
a luz.
Alguns in
te
gran
tes da biblioteca eram praticantes mais estri
tos,
algumas fun
ci
oná
ri
as usa
vam a estrela de davi em um cordão sob a
blusa e, em
bo
ra Han
nah não quisesse se juntar a elas, achava bonito
fortaleci
do, não di
mi
nuí
do diante de tamanho ódio do resto do mun-
do.
acima da por
ta to
cou. Ott
o Koch entrou aos tropeços com um jornal
Tal
vez “ga
ro
to” fos
se uma descrição equivocada. Como ela, Otto já
maioria da so
ci
eda
de. Mas Hannah sempre pensava nele como o do-
ce colega de es
co
la que fa
lava rápido demais, com seriedade demais,
e esfola
va os jo
elhos a ca
da dois passos que dava.
Naque
le mes
mo mo
men
to, ele tropeçou duas vezes na travessia
pelo pe
que
no es
pa
ço até o balcão.
— Han
nah.
O no
me saiu qua
se em um sopro, o rosto dele corado. Ofegante,
Otto se apoi
ou qua
se to
do no balcão de madeira maciça.
— Pre
ci
sa de água? — perguntou ela, notando o suor que escorria
pela tes
ta do ami
go.
— Dei
xe-me adi
vi
nhar — disse Hannah, abrindo a ca
pa de Sidar-
ta, de Her
mann Hes
se.
Embo
ra Hes
se ti
ves
se sido bastante apolítico na época do grande
em Pa
ris.
— Quem me de
ra — confessou Otto, com os olhos grandes e re-
dondos.
— Ain
da vou fa
zer vo
cê ler alguns livros escritos por mulheres, aí
se debru
çan
do no bal
cão, aparentemente de volta ao controle dos
próprios pul
mões.
— O que dei
xou vo
cê neste estado? — perguntou Hannah, indo
até as pra
te
lei
ras, ci
en
te de que Otto a seguiria fielmente.
Deixou um pan
fle
to de um notável filósofo nazista ao lado de uma
edição de Mi
nha lu
ta, de Hitler. Quando começou a trabalhar na bi-
bli
oteca, Han
nah re
cu
ou ao ver a capa vermelha. Mas o fundador do
local, Al
fred Kan
to
rowicz, insistiu que quaisquer livros e documen-
cismo va
li
am seu lu
gar na estante. Conhecimento era poder. Ele ex-
— Es
tão or
ga
ni
zan
do uma exposição de livros — disse Ott
o, se-
guindo o ras
tro de Han
nah enquanto ia puxando os romances da
pratelei
ra en
quan
to avan
çava, como um gato incapaz de controlar o
impulso de co
lo
car as pa
tas em alguma coisa, de empurrar, mexer e
destruir. — Se
rá no Bou
levard Saint-Germain, e os nazistas estarão
lá, exibin
do o me
lhor de sua literatura.
A lem
bran
ça de um rosto doce e redondo, cheio de sardas e com
um sorri
so tí
mi
do se in
si
nuara por trás das defesas que Hannah er-
los inacre
di
ta
vel
men
te es
pessos que imploravam para que dedos se
enroscas
sem ne
les.
Althea.
insupor
tá
vel, mas si
len
ci
osa e insistente, um lembrete de que Han-
— Não exis
te boa li
te
ratura nazista — declarou Hannah, conse-
guindo man
ter a voz uni
for
me e ácida. Estava odiando o fato de ter
prática da
que
la du
pla de amigos, e ela não funcionava desse jeito. A
única coi
sa que quei
ma
va eternamente para ela eram rancores e
pontes.
— Não im
por
ta, eles vão fazer uma exposição — rebateu Otto. —
Precisamos re
vi
dar.
Hannah pa
rou em frente à seção de Ernest Hemingway, um ho-
amigos ín
ti
mos. Pe
la pri
meira vez desde que Otto atravessara a por-
— Do que es
tá fa
lan
do?
Otto en
cos
tou em uma prateleira, os olhos escuros e reprovado-
res.
— Vo
cê nun
ca me es
cu
ta.
O des
con
ten
ta
men
to petulante da declaração fez Hannah sorrir.
unidos à for
ça des
de o nas
cimento, primeiro como companheiros de
brincadei
ra, de
pois co
mo algo em potencial. Hannah nunca conse-
Mas se tor
na
ram in
se
paráveis, desafiando todas as suposições de
cularmen
te atraí
do por indivíduos do sexo oposto, mas não insistia
na ideia.
Bagun
çou os ca
be
los do amigo, mesmo sabendo que Ott
o ficava
horas ar
ru
man
do o pen
te
ado até ficar do jeito que queria. Ele tentou
Ela do
brou o cor
re
dor com um dos livros de Helen Keller na mão,
e Otto a in
ter
rom
peu, fe
chando os dedos em volta de seu pulso.
— Es
tou fa
lan
do sé
rio, Hannah.
Otto se apai
xo
na
va por todas as causas do mundo. Es
tava sem
pre
falando sé
rio so
bre al
gu
ma coisa. Naquele momento, os olhos dele
estavam fir
mes, e a bo
ca era uma linha reta e fina.
— Es
tá bem. O que vo
cê propõe?
— Pre
ci
sa
mos cri
ar plano brilhante para humilhá-los enquanto
Hannah ten
tou não re
virar os olhos novamente.
— Va
mos fa
lar dis
so enquanto tomamos um vinho? — Ela olhou
para o re
ló
gio an
ti
go no canto da sala. — Eu saio às cinco.
— No lu
gar de sem
pre? — perguntou Otto, dando um beij
o de
despedi
da no ros
to da ami
ga, depois que ela assentiu com a cabeça.
Hannah o ob
ser
vou sair e afastou os pensamentos sobre Althea,
sobre a pe
le ma
cia ao to
que e a cama aquecida pela luz do amanhe-
pensamen
tos.
Quan
do o tur
no na bi
blioteca terminou, Hannah saiu em meio ao
ar fresco do ou
to
no e se di
ri
giu ao café a alguns quarteirões dali. Co-
mo não es
ta
va com pres
sa, apreciou a luz que se desvanecia ao longo
do Sena. Han
nah não ama
va Paris da mesma forma que Otto. Embo-
ra gostas
se bas
tan
te da ci
dade, achava que o Sena não se comparava
Você es
tá ape
nas sen
do do contra, acusara Otto quando ela co-
mentou so
bre is
so. E tal
vez estivesse. Paris não era seu lar, nunca se-
Seu úni
co ar
re
pen
di
mento ao deixar Berlim foi que desejava ter
saído an
tes — an
tes de conhecer Althea James. Desejava ter conse-
guido con
ven
cer Adam a fazer as malas e fugir do país também. Tal-
olhos.
Otto es
ta
va lo
go à fren
te, em uma pequena mesa colocada na rua.
Ele pra
ti
ca
men
te vi
brava, demonstrando impaciência enquanto
Hannah pe
dia sua be
bi
da. Já tinha fumado um cigarro até o final, e o
deixara es
que
ci
do en
tre os dedos. Ela terminou de apagá-lo.
— En
tão os na
zis
tas estão vindo para Paris — iniciou ela, as
sim
que o gar
çom se afas
tou.
O gar
çom era som
brio e sensual e a observava por trás das pálpe-
bras pe
sa
das de olhos que ela tentara não encontrar diretamente.
suficien
te pa
ra acre
di
tar. Ouvira sobre os cabelo castanho-escuro e
os olhos cla
ros, as cur
vas nos lugares certos, a covinha que parecia
fazer os jo
elhos dos ho
mens fraquejarem, a pele lisa que muitas ve-
dia se im
por
tar me
nos.
— As
sus
ta
dor, não é?
Otto se apoi
ou na te
atralidade de tudo aquilo, como estava acos-
tumado a fa
zer.
Hannah pe
gou o pró
prio cigarro e deu um sorriso amarelo pa
ra o
— Mi
nha pe
le es
tá pra
ticamente arrepiada.
— Vo
cê é hi
lá
ria.
— E vo
cê es
tá per
den
do meu interesse — revidou ela, soprando a
fumaça pa
ra lon
ge do ami
go.
— Tu
do bem, sua cha
ta — disse Otto, brincando com o próprio
Não pode
mos dei
xar que se safem com isso.
— Uma ex
po
si
ção de livros? — perguntou ela, erguendo as so-
brancelhas.
— Não me ve
nha com esse tom. Não aja como se não entendesse a
impor
tân
cia dis
so.
Hannah des
vi
ou o olhar, sem querer encará-lo.
— Mui
to bem.
Otto sor
riu sa
tis
fei
to, recostando-se de volta em sua cadeira, qua-
se derru
ban
do o po
bre garçom.
— Des
cul
pe, des
cul
pe — murmurou, observando o homem, os cí-
lios exube
ran
tes.
Hannah cu
tu
cou o jo
elho dele com a perna por baixo da mesa e
— Vo
cê sem
pre fi
ca com os mais bonitos.
— Só os mais bo
ni
tos que eu não quero.
— E al
guns que vo
cê quer — rebateu Otto.
Nova
men
te, ela des
vi
ou o olhar.
— A ex
po
si
ção.
— No
vem
bro. No Bou
le
vard Saint-Germain.
— Sim, já fa
la
mos des
sa parte.
— Ati
rar ne
les? — per
guntou Hannah, fingindo inocência.
— Não se
ria má ideia — disse Otto, com um sorriso torto.
— Otto!
graçado e gen
til. Ott
o con
tinuava sendo todas essas coisas, mas, nos
anos des
de que am
bos deixaram Berlim, desenvolvera uma dureza
que assus
ta
va Han
nah.
Ele a lem
bra
va de Adam antes de ser arrastado pelos camisas-
pretas. O ir
mão sem
pre manteve um compromisso fir
me com as
próprias cren
ças, mas, naquela primavera, quando tudo virara um
de quan
do de
sa
fi
ado.
Ela não que
ria ver o mesmo acontecer com o amigo.
— O que su
ge
re em vez disso? — perguntou Otto, virando o resto
da bebi
da.
Hannah se per
gun
tou quantos drinques ele já tinha tomado, mas
se repre
en
deu pe
lo pen
samento. Nenhum deles estava no melhor
momen
to da vi
da.
Hannah re
fle
tiu um pouco, esfregando distraidamente os calos
em seus de
dos. Des
co
bri
ra que gostava deles, um sinal tangível do
seu traba
lho pa
ra com
ba
ter os fascistas. Mesmo que não concordas-
seus esfor
ços não eram menos importantes naquela batalha.
Os ho
mens que bus
ca
vam a violência não entendiam que, en-
quanto es
pa
das po
dem destruir corpos, mas uma caneta pode des-
Se os na
zis
tas es
ta
vam indo a Paris para divulgar sua suposta “li-
teratura”, só ha
via uma forma de responder a esse grito de guerra
em parti
cu
lar.
— O que eu sem
pre su
giro — declarou Hannah, com uma certeza
tranqui
la. — Um li
vro.
Nova York
Maio de 1944
V iv deci
diu en
cur
tar o dia de trabalho logo após o encontro com o
com a so
gra, Char
lotte.
Consi
de
ran
do que não conseguia pensar em nada além do que
po
deria fa
zer pa
ra ga
ran
tir a presença de Taft no grande evento, o
restante da tar
de te
ria passado em vão. Quando tudo aquilo come-
— e, prin
ci
pal
men
te, quem não procura
ria. Mas ela sabia, melhor
que a mai
oria das pes
so
as, que mesmo os planos mais bem elabora-
dos podi
am fra
cas
sar.
Esfre
gou com o po
le
gar o espaço vazio no dedo anelar enquanto
dava a vol
ta na Co
lum
bus Circle. Um idoso vendia livros nas proxi-
mi
dades, na es
qui
na da rua 60 com a Broadway, e Viv tentava com-
prar um exemp
lar sem
pre que passava por ali.
O ven
de
dor es
ta
va mastigando a extremidade de um cachimbo
apagado en
quan
to a ob
servava percorrer com os dedos as lombadas
de seus pre
ci
osos pro
du
tos.
— Pro
cu
ran
do al
gu
ma coisa em especial?
A voz do ho
mem era rouca e carregada de fumaça, com o sotaque
Qual
quer res
pos
ta que Viv estava prestes a dar morreu quando
avistou um vo
lu
me ver
de com o título gravado em dourado.
Oliver Twist.
Viv qua
se riu, ou cho
rou, ou uma mistura dos dois. Ela não era de
acreditar no des
ti
no e em coincidências, mas não havia como igno-
rar aque
le si
nal.
Que me lem
brou Ha
le, escrevera Edward. Os dois raramente con-
versavam so
bre o ir
mão dele, e às vezes Viv se perguntava se a men-
ção a Ha
le na úl
ti
ma car
ta de Edward tinha sido algum tipo de brin-
cadeira di
vi
na.
Viv ti
rou o ro
man
ce de seu repouso, aninhado entre irmãos, e o
levantou pa
ra mos
trar ao ve
lho.
Ele sor
riu, re
ve
lan
do a ausência de três dentes, e citou:
— “Em al
guns li
vros, a capa e a contracapa são, de longe, as me-
lhores par
tes.”
cabeça.
guardan
do-o de
bai
xo do chapéu de pescador que usa
va sobre os
grossos ca
be
los bran
cos.
Aper
tan
do o li
vro con
tra o peito, Viv continuou o ca
minho para
casa. Ima
gi
nou o que Edward pensaria se a visse naquele momento,
enfrentan
do um se
na
dor po
deroso de igual para igual.
Você po
de fa
zer tu
do o que quiser, meu bem, dissera ele, após um
da
queles even
tos da al
ta sociedade que sempre faziam Viv se sentir
inculta, des
de
nho
sa e re
voltada.
Ela ti
nha per
di
do as contas de quantas vezes os dois, muito antes
de se ca
sa
rem, ter
mi
na
ram a noite no escritório de Edward — ele
descansan
do em al
gum es
tado de nudez no sofá de couro que adora-
be
bidas pre
fe
ri
das en
quanto desconstruíam os dramas transcorri-
brandas e vul
ne
rá
veis en
tre a meia-noite e o amanhecer, quando os
dois po
di
am ser mes
qui
nhos, gentis, engraçados, desalentados e to-
da gama de emo
ções que um ser humano poderia expe
rimentar. O
afeto en
tre am
bos era tão profundo que muitas vezes nem precisa-
lêncio con
for
tá
vel.
Viv sa
bia o que as pá
gi
nas de fofocas diziam sobre aquelas noites
que pas
sa
va na ca
sa de Edward. Aquelas mesmas senhoras tinham
cacareja
do o anún
cio do casamento, felizes apenas pela prova de que
tinham acer
ta
do, co
mo se suas insinuações anteriores não transbor-
dassem mal
da
de.
Na épo
ca, Viv se sen
ti
ra satisfeita por nenhuma delas saber de fa-
sagrada, ma
ra
vi
lho
sa e inimaginável para quem pensava ape
nas
nem nin
guém pre
pa
ra uma pessoa para essa realidade: os deliciosos
segredos ou
tro
ra com
par
tilhados azedam quando se tornam o fardo
de uma pes
soa só.
Na noi
te em que Edward lhe dissera que poderia fazer qualquer
das de pre
ju
di
car o her
deiro de Vanderbilt, que a humilhara quando
Viv expres
sou uma opi
nião sobre assuntos da atualidade, política e
investimen
tos es
tran
gei
ros. Ela nem conseguia mais se lembrar o
quê.
Venha, cha
ma
ra Edward, estendendo o braço. Ela resmungou,
mas se le
van
tou, cam
ba
le
ando um pouco por causa do champanhe
ainda fer
vi
lhan
do em seu sangue. Edward pegara sua mão e a condu-
Dê um ru
gi
do.
Viv sol
ta
ra uma ri
sa
da, vacilando o corpo contra o dele.
O quê? Vo
cê es
tá lou
co. E bêbado.
Dê um ru
gi
do, exi
gi
ra Edward, inclinando a cabeça para trás e ru-
ra com um sor
ri
so atre
vi
do, as sobrancelhas levantadas, ela revirara
os olhos e ten
ta
ra imi
tá-lo.
Você po
de fa
zer me
lhor, afirmara Edward. Você é feroz, você é inte-
ligente, e vo
cê é tei
mo
sa, cora
josa e maravilhosa. Agora dê um rugido.
Viv ru
giu, li
ber
tan
do cada frustração e mágoa da noite, e também
de um mi
lhão de noi
tes se
melhantes, até os pulmões arderem e a
garganta do
er.
Um ho
mem na rua gri
tou para que os dois calassem a porca
ria da
boca, à ver
da
dei
ra mo
da de Nova York. Eles desabaram no tapete sob
a janela, rin
do, des
mo
ro
nando um em cima do outro.
Você po
de fa
zer tu
do o que quiser, meu bem, dissera Edward, antes
de inclinar a ca
be
ça pa
ra perto dela e sua respiração se acalmar até
dormir.
Viv se lem
bra
va de ter sussurrado:
O que eu fa
ria sem vo
cê?
Traçou o tí
tu
lo de Oli
ver Twist enquanto subia de elevador até o
apartamen
to, fa
zen
do uma promessa mental a Edward de que ven-
ceria Taft.
Edward tam
bém nun
ca gostara de valentões.
— É vo
cê, Viv? — per
guntou Charlotte, quando ela entrou.
Em vez de gri
tar uma res
posta, Viv seguiu a voz de Charlott
e até a
cozinha.
A so
gra es
ta
va co
ber
ta da porção de farinha para a semana com
uma ex
pres
são de cul
pa e rebeldia no rosto doce e redondo.
— Tu
do bem por aqui?
Viv des
li
zou pa
ra um dos bancos amarelos ao redor da ilha da co-
bancadas ver
me
lhas e os toques turquesa que Charlotte adiciona
ra à
pais, tu
do era im
pe
cá
vel, com combinações perfeitas, no auge da
— Bis
coi
tos? — per
gun
tou Viv.
Era di
fí
cil ar
ran
jar ovos, manteiga e açúcar, mas Charlotte tinha
seus mé
to
dos — e um bolso fundo, que abria sem hesitação para
manter o mer
ca
do clan
destino da rua 32 em operação.
— Um bo
lo! — pro
cla
mou Charlotte, avaliando a bagunça do pó
dris gene
ro
sos, ela olhou para cima, esperançosa.
— Meio bo
lo?
na tigela.
— Com
prou ou
tro li
vro?
A per
gun
ta veio car
re
gada de uma leve exasperação e divertimen-
to. As du
as es
ta
vam fi
cando sem espaço na estante para a cole
ção
crescen
te de Viv.
— Oli
ver Twist — mur
murou Viv, mostrando o roman
ce.
O ros
to de Char
lott
e se aplacou e seus olhos se encheram de lágri-
— Po
de guar
dar com as outras edições.
A risa
da de Viv saiu abalada. Não podia negar que adquirira o
mau há
bi
to de com
prar to
do volume que encontrava.
— Um dia te
rei uma prateleira inteira deles.
— E se
rá co
nhe
ci
da como a louca que não conseguia parar de
comprar Dic
kens — com
pletou Charlotte, a dor já ausente, substi-
tuí
da por um hu
mor afe
tu
oso.
Viv sem
pre se ad
mi
ra
va com a resiliência de Charlotte e provavel-
mente se apoi
ava ne
la mais do que deveria, considerando que a mu-
lher esta
va de lu
to pe
lo único filho tanto quanto Viv estava de luto
pelo me
lhor ami
go.
— E co
mo foi na bi
bli
oteca, querida?
Viv es
fre
gou as pal
mas das mãos suadas na saia ama
relo-vivo do
vestido e cru
zou os tor
no
zelos para evitar bater os pés de nervoso.
— Ha
le — re
pe
tiu Charlotte, com um tom de voz cheio de consi-
Emmett Ha
le, ir
mão ilegítimo de Edward, passara de garoto de-
sengonça
do a ama
do re
presentante do Brooklyn no Congresso. Era
jovem, ca
ris
má
ti
co e apai
xonado, e circulavam muitos rumores de
Tam
bém era a pes
soa que Viv um dia acreditou ser o amor de sua
vida.
EFA fos
se pa
ra ela, não conseguia esquecer como Hale partira seu
coração e a tra
ta
ra co
mo se ela fosse um brinquedo que ele descarta-
Ela to
cou no de
do ane
lar e fingiu não notar o olhar de Charlotte
acompa
nhan
do o ges
to.
Se a per
gun
ta ti
ves
se vindo de qualquer outra pessoa que não
vida de ex
ces
sos, ati
tu
de da qual aquela geração se orgulhava. Os ho-
mens se es
bal
da
vam com cantoras de ópera e atrizes antes de desvi-
ar para as ru
as de Alpha
bet City, onde as meninas de fato não ti-
nham es
co
lha.
Uma des
sas me
ni
nas era Mary Kathleen Sullivan, abandonada
Theo
do
re fin
gia que Emmett não existia, e a única razão pela qual
ficaram sa
ben
do da exis
tência do menino era porque Mary Kathleen
confron
ta
ra Char
lott
e em plena Quinta Avenida, na frente da Tif-
fany’s.
Se Char
lotte pu
des
se, teria dado a Mary Kathleen metade da vas-
ta fortu
na de The
odo
re na hora, mas esposas tinham re
cursos li
mi-
tados. En
tão ela en
tre
gou todo o dinheiro que tinha em mãos e, em
seguida, fez uma cam
pa
nha para obrigar Theodore a sustentar o fi-
lho.
Char
lotte te
ve um su
cesso mediano, mas não fez muita diferença
breno
me ao fi
lho e os le
vou para morar do outro lado do rio, no Bro-
oklyn.
Char
lotte, no en
tan
to, manteve contato com a mulher. Mesmo
depois do fa
le
ci
men
to de Mary Kathleen, Charlotte ainda almoçava
com Ha
le pe
lo me
nos uma vez por mês.
— Es
sa é a mi
nha ga
ro
ta.
Char
lotte deu um ta
pi
nha carinhoso nela e andou na direção do
bem-abas
te
ci
do car
ri
nho de bebidas.
— Is
to pe
de um vi
nho do porto.
Outras mu
lhe
res co
lo
cariam uma chaleira no fogo, mas Charlotte
serviu o li
cor cor de âm
bar queimado em copos sofisticados.
Viv a ob
ser
vou com o aperto da culpa crescente no peito. Por um
rápido se
gun
do, se res
sen
tiu de Edward por colocar a mãe naquela
situação.
Char
lotte não per
ce
bia que, quando pensavam no amor da vida
de Viv, es
ta
vam pen
san
do em irmãos diferentes. Charlotte acredita-
Edward ti
nham uma his
tória de amor digna dos grandes romances.
Charlotte acre
di
ta
va que as alturas vertiginosas do romance do filho
tinham si
do igua
la
das apenas — como tantas vezes acontecia em
histórias des
se ti
po — pe
las profundezas da sua tragédia.
O que Char
lotte não sa
bia, o que ela nunca poderia saber, era que
Edward dis
se
ra a Viv, nas docas, pouco antes de embarcar no navio
que o le
va
ra. Viv as re
pe
tiu para si mesma inúmeras vezes nos meses
desde a par
ti
da. Em al
guns momentos, ela quase cedeu e admitiu a
ram ao al
tar ape
nas uma se
mana antes de ele partir. Mas engolira a
confissão to
das as ve
zes, sabendo, com algum tipo de certeza, que
da
deiro amor an
tes de morrer na guerra.
Viv pe
gou o co
po de vi
nho do porto com um sorriso trêmulo e se
pergun
tou o quan
to Char
lotte sabia ou suspeitava sobre o verão em
enganan
do a so
gra ou se o romance de Viv e Edward era apenas uma
história bo
ni
ta que am
bas concordaram em fingir que era real.
Berlim
Feve
rei
ro de 1933
H elene Be
chs
tein sem
pre tivera cheiro de naftalina e uma tendên-
cia a se in
tro
me
ter em to
das as conversas de Althea.
— Pre
ci
sa me con
tar sobre a noite na Chancelaria — pediu Hele-
Althea.
que, em
bo
ra cus
pis
se quando ficava entusiasmado demais com um
assunto, era uma das poucas pessoas interessantes que ela encon-
trara na
que
la noi
te.
De to
dos os even
tos que Althea era quase obrigada a partici
par
como par
te do pro
gra
ma de Goebbels, eram aquelas festas que acha-
va mais te
di
osas. As de Helene talvez fossem as piores, e a mulher
realizava um bo
ca
do de
las.
Hele
ne era ca
sa
da com Edwin Bechstein, dono de um dos princi-
pais fabri
can
tes de pi
ano do país. Era uma mulher alta e elegante, de
sobrance
lhas es
cu
ras e rosto comprido. Na juventude, provavelmen-
te consi
de
ra
da mais jei
to
sa do que bonita.
De acor
do com Di
edri
ch, Helene adorava Hitler desde que o co-
mas a pas
to
reá-lo pe
la al
ta sociedade de Berlim nos primeiros dias
dele na ci
da
de.
E o cha
ma de “seu lo
bi
nho”.
Althea ten
tou não re
vi
rar os olhos quando ouviu aquele apelido.
a se apa
gar pa
ra ela, mas tal
vez tivesse sido quando Diedrich chama-
ra Hitler de lo
bi
nho com um semblante sério.
Helene, pe
gan
do al
guns petiscos de salmão defumado.
Se pre
ci
sa
ria se sen
tar com as matronas da sociedade a noite to-
— Ah, co
mo eu gos
ta
ria de ter estado lá — admitiu Helene, seu
olhar se
ve
ro ain
da vol
ta
do para a pista de dança, onde uma dúzia de
casais ro
do
pi
ava ao som de uma valsa estranhamente for
mal e desa-
tualizada.
Althea dei
xou a pró
pria atenção vagar pela bela sala. A mansão
dos Bechs
tein fi
ca
va na elegante área ao sul do Tiergarten, na Leipzi-
ger Stras
se, on
de mo
ra
vam muitos dos comerciantes ricos de Ber-
me. Ain
da mais no ca
so de uma festa em comemoração ao triunfo de
Hitler, co
mo na se
ma
na anterior.
— Não dei
xe que Di
edrich se esquive dos deveres para com você,
bels — acon
se
lhou He
le
ne. — Ele ainda deve reservar algum tempo
— Is
so não tem si
do um problema — tranquilizou Althea.
De fa
to, a pre
sen
ça cons
tante de Diedrich, que parecera tão ine-
var pa
ra a ar
ro
gân
cia des
de que Hitler fora nomeado chanceler.
NSDAP es
ta
vam sen
do anfi
triões acolhedores. Mas ela não gostava
de como tu
do se trans
for
mara de um jeito que a fazia se lembrar de
Owl’s He
ad, on
de não po
dia ir a lugar algum sem ser observada ou
abordada — es
ta
va sen
tin
do a asfixia familiar da vida em uma cida-
de peque
na. Só per
ce
be
ra que estava sem respirar quando chegou a
Berlim. Mas a li
ber
da
de da qual tanto desfrutara naquelas primeiras
semanas es
ta
va sen
do ti
ra
da dela.
Althea só con
se
guia concluir que a mudança tinha algo a ver com
a nova po
si
ção de Hi
tler no poder. Talvez tenha sido aquilo que en-
torpece
ra um pou
co do en
tusiasmo que sentira por seu sucesso.
— E ima
gi
no que Di
edrich esteja cuidando para que você só parti-
cipe do ti
po cer
to de cul
tura, não é? — sondou Helene, levantando
os tolos ócu
los de ópe
ra para espreitar do outro lado da sala, em bus-
ca de Di
edri
ch.
O tipo cer
to de cul
tu
ra. Althea ouvira a frase ser dita algumas ve-
zes em li
vra
ri
as du
ran
te leituras, nos cafés onde ela e Diedrich se
encontra
vam com ami
gos, mas, pela primeira vez, a frase lhe pare-
ceu estra
nha.
— Sin
to mui
to, eu não…
— Olá — ron
ro
nou al
guém atrás de Althea. — Acredito que não
tenhamos si
do apre
sen
ta
das.
recém-che
ga
da. Ela era mais alta que Althea, embora a maioria das
pessoas fos
se, e ti
nha ca
belos pretos curtos rentes ao rosto. Em vez
do cor
te fa
zê-la pa
re
cer um garoto, enfatizava seus traços delicados,
os gran
des olhos ver
des cercados por cílios grossos, as maçãs do ros-
to altas e a bo
ca car
nu
da. A pele estava coberta de pó e exibia uma
perfeição im
pe
cá
vel, à ex
ceção de um sinal desenhado acima do can-
to da bo
ca que era a úni
ca distração. O vestido sedoso e decotado se
agarrava a cur
vas su
aves, a cor quase combinando exatamente com
os olhos da do
na.
bios da mu
lher, que sua expressão era de divertimento, embora
Althea ti
ves
se a im
pres
são de que ela estava acostumada a reações
cheias de sur
pre
sa de es
tranhos.
Foi is
so que fez Althea perceber que reconhecia a mulher, da
mesma for
ma que le
tras de músicas esquecidas às vezes ficavam
presas na pon
ta da lín
gua.
— De
ve
raux Char
les — esclareceu a estranha, vendo claramente
a hesita
ção na ex
pres
são de Althea. — Tenho certeza de que já viu al-
nhece.
Althea te
ve von
ta
de de estalar os dedos e confirmar que sim, mas
tinha bo
as ma
nei
ras.
— Sr
ta. Char
les — cumprimentou Helene, calorosa, beijando as
boche
chas da mu
lher an
tes de se voltar para Althea. — Ela estava
em Mu
ni
que gra
van
do um filme para Herr Goebbels, então vocês
du
as ain
da não se co
nhe
ceram.
— O chan
ce
ler Hi
tler despreza Berlim, sabia? — disse a srta.
bli
citári
as.
Hele
ne es
ta
lou a lín
gua.
— Odeio quan
do vo
cê as chama assim.
A srta. Char
les sor
riu e deu de ombros.
— Eu cha
mo um por
co de porco.
Althea fi
tou as du
as se
nhoras e resolveu escolher uma pergunta
neutra.
— Vo
cê é ame
ri
ca
na?
arrasta
do lí
ri
co que evo
ca
va imagens das noites de Bayou. Nova Or-
leans ou al
go as
sim, adi
vi
nhou Althea, embora nunca tivesse ouvido
o sotaque pes
so
al
men
te.
— As
sim co
mo vo
cê — confirmou a srta. Charles. — E, por fa
vor,
ramente. — Po
de me cha
mar de Dev.
— De
ve
raux é um no
me interessante — opinou Althea.
Repa
rar em no
mes que poderia usar para futuros personagens
era um há
bi
to.
— Cul
pe mi
nha to
li
ce aos dezesseis anos por isso — disse Dev,
— A sr
ta. Char
les faz parte do mesmo programa cultural que vo-
cê, queri
da — in
for
mou Helene, como um aparte para Althea. — É
uma pe
na que te
nha saí
do da cidade.
— Mu
ni
que é tão mo
nótona — lamentou Dev. — Política demais,
diversão de me
nos.
entendes
se a ra
zão, Althea corou.
— Pen
sei que o pro
gra
ma era para escritores — comentou Althea
com cui
da
do, sem que
rer in
sultar ninguém, mas sem saber o que di-
zer.
Nun
ca sa
bia o que fa
lar perto de gente bonita, resumindo-se a fi-
car sem
pre em si
lên
cio.
— Eu tam
bém os es
cre
vo, embora ninguém se lembre dessa parte
— escla
re
ceu Dev, so
an
do amarga e resignada. — Quando você é o
rosto na fren
te das câ
me
ras, as pessoas tendem a esquecer todo o
resto.
Althea ar
fou e res
pon
deu:
— Que ma
ra
vi
lho
so.
imagina
ção. Co
mo de
via ser diferente do que ela fazia. Os romances
enciados pe
lo que Althea queria que eles compartilhassem ou escon-
dessem ou fos
sem vis
tos compartilhando ou escondendo.
— Não con
si
go me ima
ginar escrevendo um roteiro.
do diver
ti
do.
É
— É mui
to mais fá
cil do que um livro, minha cara, e não deixe
— Fi
ca
rá em Ber
lim por um tempo, srta. Charles? — perguntou
Helene, ace
nan
do pa
ra um garçom com uma bandeja de taças de
champa
nhe.
crever o pró
xi
mo fil
me — revelou Dev, pedindo ao garçom que ficas-
se.
Ela ter
mi
nou o lí
qui
do borbulhante em um longo gole, deposi
tou
a taça va
zia na ban
de
ja, pegou outra e depois acenou para o homem
se afastar.
— Pre
ten
do apro
vei
tar meu tempo aqui. Tenho certeza de que lo-
go me en
vi
arão pa
ra a Ba
viera ou algum outro lugar absurdo.
— A Ba
vi
era é mui
to bonita na primavera, querida — repreen
deu
Helene.
— Di
ga is
so aos meus peitinhos congelados — disse Dev, virando
metade da cham
pa
nhe.
Althea con
te
ve uma tosse, mas Helene não pareceu surpresa com
a lingua
gem.
Dev pis
cou pa
ra ela.
— Pre
ci
so dar a He
le
ne algo com que se preocupar.
— Sem ver
go
nha — murmurou Helene, mas ainda soando indul-
gente.
Assim co
mo Althea, Dev era uma convidada do Terceiro Reich,
po
sição que, Althea es
ta
va percebendo, concedia uma imunidade
quase ili
mi
ta
da den
tro dos círculos sociais.
— Sr
ta. Char
les, vo
cê esteve fora da cidade, mas me diga se ouviu
as amea
ças.
Algo pas
sou pe
los olhos de Dev antes que ela assentisse.
— Que ame
aças? — perguntou Althea, sem pensar du
as vezes.
As mu
lhe
res se vol
ta
ram para ela com surpresa. Foi Helene quem
se recupe
rou pri
mei
ro.
— Di
edri
ch não as men
ci
onou? Terei que conversar com ele.
peto de ga
gue
jar uma des
culpa qualquer.
— Es
ti
ve
mos bas
tan
te ocupados com outras coisas.
Dev jo
gou a ca
be
ça pa
ra trás, rindo, exibindo os contornos do
pescoço pá
li
do. Althea desviou o olhar.
— Te
nho cer
te
za de que sim — disse Dev, cheia de insinuações,
aprofun
dan
do ain
da mais a humilhação de Althea.
Ela e Di
edri
ch só ti
nham se beijado uma vez. Às vezes Althea pen-
sava nis
so, quan
do ele descia a mão por suas costas ou entrelaçava
como um per
fei
to ca
va
lheiro, ele não fora mais longe.
— Não, is
to é, bem, sa
be…
Hele
ne aca
ri
ci
ou o an
tebraço de Althea.
— Não se im
por
te com a srta. Charles, querida. Ela gosta de ar-
rancar re
ações das pes
so
as. Aposto que Diedrich manteve você ocu-
pa
da in
do a to
das aque
las leituras.
Tentar se de
fen
der mais certamente terminaria em desastre, en-
— Es
ta
vam fa
lan
do de ameaças?
nosso que
ri
do Fürher é chanceler, eles começaram a estocar armas e
fazer pla
nos pa
ra atin
gir os honrados cidadãos alemães.
— É mes
mo? — per
guntou Dev, sem emoção, não parecendo mui-
to assus
ta
da com a pers
pectiva.
Althea aper
tou a ta
ça com força. Podia admitir que levara uma vi-
da prote
gi
da. A coi
sa mais perigosa que já tivera que en
frentar fora
uma tem
pes
ta
de de ne
ve particularmente brutal. E, embora tivesse
ou
vido fa
lar so
bre um au
mento da violência nas ruas en
tre os cami-
sas-par
das e os ho
oli
gans, como Diedrich os chamava, não havia tes-
temunha
do na
da. A pers
pectiva de ser surpreendida por um tumul-
to a ater
ro
ri
za
va.
A cul
pa se in
si
nu
ou. Talvez tenha sido por isso que Diedrich não
tentando man
tê-la se
gu
ra. Ela deveria ter lhe dado mais crédito, em
vez de se ir
ri
tar com a vi
gi
lância.
— Nos
so lo
bi
nho emi
tiu decretos para fechar essas máquinas de
mentiras imun
das que eles chamam de jornais — continuou Helene,
fungando. — As
sim que lidarem com essa corja, tenho esperanças
colas.
— “Ari
ani
za
ção”?
A pa
la
vra dei
xou um gosto estranho na língua de Althea.
— Ga
ran
tir que os bons trabalhadores alemães não estejam sen-
do for
ça
dos a ir em
bo
ra por causa daquelas pessoas — explicou He-
— “Aque
las pes
so
as”? — perguntou Althea, parecendo um papa-
gaio par
ti
cu
lar
men
te len
to.
— Os ju
deus, que
ri
da — disse Helene, como se fosse óbvio. —
Eles sim
ples
men
te to
mam, tomam e tomam, e não resta nada para
os comer
ci
an
tes ale
mães esforçados. Precisamos corri
gir o equilí-
brio.
são de
sa
gra
dá
vel. — O que você…
Dev a in
ter
rom
peu:
— Que
ri
da, acho que vi Theo Carsters ali. Ele também é um artis-
ta residen
te que faz par
te do programa de Goebbels. Já o conheceu?
Confu
sa, Althea se le
vantou para dar uma olhada, mas o salão de
baile es
ta
va cheio de
mais.
— Não, acre
di
to que não.
— Per
mi
ta-me, en
tão — ofereceu Dev, antes de abrir um sorriso
de descul
pas pa
ra He
le
ne. — Não se importa se eu roubar Althea, se
impor
ta?
com um ace
no au
sen
te e indulgente, sua atenção já nos grupos vizi-
nhos, pro
cu
ran
do a pró
xi
ma figura importante para fisgar.
inclinou o bas
tan
te pa
ra que sua respiração soprasse quente no pes-
coço de Althea.
— A pri
mei
ra re
gra do Reich, querida, é não questionar o Reich.
Althea re
cu
ou um pou
co, desnorteada pelos últimos minutos.
— O quê?
Dev pa
rou e a ob
ser
vou.
— Há quan
to tem
po es
tá em Berlim?
— Seis se
ma
nas — res
pondeu Althea, não gostando do calor em
seu rosto.
O ca
lor não era agra
dável como antes, quando fica
ra presa de
uma for
ma mui
to di
fe
ren
te sob o olhar dessa mulher. Althea cruzou
os braços, na de
fen
si
va.
— E vo
cê ain
da é um bom soldadinho de infantaria para o Reich,
certo? — dis
se Dev, mais para si mesma do que para Althea. — Diga-
me, vo
cê odeia ju
deus? Co
munistas? Homossexuais?
compos
tu
ra. — Cla
ro que não.
— Sa
bia que nos
sos an
fitriões odeiam?
Althea ba
lan
çou a ca
beça, sem saber o que dizer. Aquilo não po-
Dev. Nun
ca ou
vi
ra Di
edri
ch dizer algo tão intolerante.
Dev a es
tu
dou por um longo minuto, depois pareceu ter tomado
uma deci
são.
— Va
mos fu
gir do seu vigia?
Ela já ti
nha en
con
tra
do Diedrich, que estava ao lado de oficiais
nazistas de uni
for
me.
— Meu vi
gia? — ques
ti
onou Althea.
Ela sem
pre pen
sa
ra em Diedrich como seu contato, mas a ideia
de vigia se es
ta
be
le
ceu em sua mente, parecendo apropriada.
Die
dri
ch se pre
ocu
pa
va demais com os detalhes de suas idas e
vindas, pa
ra on
de ia e com quem. Ela havia tolerado aquilo, achando
que ele o fa
zia por
que es
tava preocupado com ela, uma jovem mu-
lher e in
gê
nua em uma ci
dade grande e desconhecida. Mas será que
tinha se pre
ci
pi
ta
do?
— En
tão va
mos? — murmurou Dev, observando de perto o rosto
Maio de 1944
veria Ha
le ou
tra vez, bus
cando consolo na lembrança de onde co-
nhecera o ho
mem que se tornaria seu marido e o que havia despeda-
Não atra
sa
ria a vi
agem para falar com Hale com uma desculpa
Quan
do o con
du
tor do metrô anunciou a parada em Coney Is-
da
de, ha
via ape
nas al
guns outros passageiros no vagão, e ela foi a
única a des
cer.
que vo
as
sem ao re
dor do rosto. Viv estava de calça por aquela mesma
razão, lem
bran
do-se de uma ou duas vezes em que uma brisa mari-
nha par
ti
cu
lar
men
te atre
vida levantada sua saia e a forçara a tentar
abaixá-la fre
ne
ti
ca
men
te, envergonhada, aos risos, despreocupada,
jovem.
O cal
ça
dão era um fan
tasma do que havia sido nos dias em que
Viv e os ga
ro
tos o atra
ves
savam como se fossem donos do lugar. Ela
sempre ado
rou as lu
zes, a multidão, o passeio na montanha-russa de
madeira e os ca
chor
ros-quentes da barraca de Nathan, fugir para
beijar Ha
le sob o píer en
quanto Edward ria ao longe, cantarolando a
marcha nup
ci
al, por
que ele sempre fora um arruaceiro.
No ve
rão em que es
ta
va com dezesseis anos, Viv notou que seu tio
de conha
que pe
la me
ta
de.
Os sa
lões de dan
ça eram sempre divertidos, mas, pa
ra Viv, nada
superava Co
ney Is
land.
De al
gu
ma for
ma, ti
nha convencido uma amiga a acompanhá-la
em uma noi
te úmi
da de verão, e foi naquela noite que conhe
ceu
nos sapa
tos de Viv. Dot gritara, um som estridente semelhante a um
patos de sal
to.
Para se des
cul
par, os meninos ofereceram algodão-doce para as
du
as, e Viv aban
do
nou a fi
la na hora, encantada pelo rapaz mais alto
de cachos es
cu
ros cain
do com um descuido devastador sobre a tes-
ta, cativa
da pe
la co
vi
nha que surgia na bochecha de Ha
le — de um
lado só e ape
nas quan
do ele sorria o bastante, de forma que parecia
um segre
do.
Edward, por sua vez, encantara Dot. Com seu rosto de bebê, risa-
da fácil e ca
chos cor de bronze, ele sempre foi um encantador de
mulheres. Nun
ca se apai
xonava, mas era rápido em se entregar à lu-
xúria.
Hale, som
brio, mis
te
ri
oso e um pouco perigoso, sempre parecera
tempo pa
ra na
mo
rar, co
mo Viv percebeu naquele verão. O pai adoti-
econo
mi
zan
do pa
ra es
ca
par das incertezas do dia a dia.
Enquan
to Edward se ocu
pava conversando e tentando tirar a saia
de Dot do ca
mi
nho, Ha
le e Viv se abaixaram sob o píer, brincando de
gato e ra
to en
tre as es
ta
cas de madeira enquanto ele lhe contava
uma ver
são abre
vi
ada de sua história de vida.
Nem me lem
bro do meu último sábado à noite livre antes deste , re-
velara Ha
le, mas não co
mo se estivesse reclamando. Ele sorriu, a ca-
beça bai
xa co
mo se es
ti
vesse contando um segredo, algo que só ela
po
dia es
pi
ar. Tal
vez te
nha sido. Viv sabia o que era não ser desejada
pela famí
lia — co
mo sua vida seria diferente se algum estranho a ti-
vesse acei
ta
do e de
pois a amado incondicionalmente? Dado a ela um
nome, um em
pre
go e uma vida que ela talvez até não quisesse, mas
que pode
ria ao me
nos apreciar?
E está pas
san
do a noi
te com Edward?, perguntara ela. Viv cresce-
ra em meio à ri
que
za e podia detectar a diferença nas roupas dos
seu uni
ver
so, já Em
mett Hale, não. E, no entanto, os dois tinham o
casamen
to. Aqui
lo não era uma receita pronta para ressentimentos?
Somos ir
mãos, res
pon
de
ra Hale, como se fosse simples. E talvez
interessa
da ne
le?
Viv fi
ca
ra ver
me
lha, não estava acostumada com tamanha fran-
uma esco
la pa
ra me
ni
nas no Upper West Side. Mesmo nos salões de
dança pa
ra os quais fu
gia, só encontrara rapazes respeitáveis que fa-
lavam so
bre os fil
mes mais recentes e as músicas nas estações de rá-
dio.
Não, dis
se
ra ela, tão baixo que as ondas quase afogaram o som.
um sor
ri
so e, em se
gui
da, roçou os dedos nos dela. Um convite que
Viv acei
tou, en
tre
la
çan
do os dedos nos dele, tudo em seu peito aper-
tado e in
can
des
cen
te. Passaram o resto do verão em Coney Island,
ou pelo me
nos pa
re
cia ter sido assim. Viv também conseguiu ir a ou-
tras par
tes do Bro
oklyn em alguns dos finais de semana em que o tio
tinha com
pro
mis
sos em ou
tros lugares. Hale a arrastara para a rua
em um dia in
su
por
ta
vel
mente quente de agosto e lhe ensinara a jo-
gar beise
bol com os jo
vens do bairro. Os dois comemoraram quando
Viv che
gou à pri
mei
ra ba
se, e depois, sob o jato de um hidrante, Hale
Eles li
am um pa
ra o ou
tro em escadas de incêndio enquanto o sol
se punha a dis
tân
cia, re
petindo as falas favoritas; passavam horas à
deriva pe
lo Met, de
mo
ran
do-se na frente das pinturas de que gosta-
vam e pin
tu
ras que odi
avam. Às vezes, andavam de metrô, quase
sempre en
tre
la
ça
dos, al
vos de olhares atravessados de matronas e
olhares in
ve
jo
sos de me
ni
nas chegando à maioridade.
Então, no fi
nal do me
lhor verão da vida de Viv, seu tio Horace
morreu.
Aos de
zes
seis anos, Viv alegou aos funcionários do governo que
ra um in
ter
na
to em Con
necticut.
Nem te
ve a chan
ce de se despedir de Hale antes de ser colocada
em um trem pa
ra ou
tro es
tado.
Viv ain
da se en
co
lhia quando lembrava das cartas que enviara a
das a con
quis
tar me
ni
nos, não a se proteger deles.
Sin
to sua fal
ta to
dos os dias, a cada hora, a cada minuto.
Era as
sim que sem
pre terminava as cartas, mesmo quando enten-
A últi
ma fo
ra par
ti
cu
larmente humilhante. Se a carta estivesse
comple
ta
men
te apai
xo
na
da.
Eu er
rei em acre
di
tar que falávamos a mesma língua? Que as
pala
vras que usa
mos significavam o mesmo para nós dois? Que
a defi
ni
ção de amor é como um dia ensolarado, tacos de beise-
bol, as pon
tas dos seus dedos na minha pele; que a definição de
pa
ra sem
pre é in
fi
ni
to?
Vo
cê me fez sen
tir algo que eu nunca tinha sentido e eu dei
um no
me a is
so. Eu cha
mei de amor.
Su
po
nho que es
se te
nha sido um erro meu.
Sin
to sua fal
ta to
dos os dias, todas as horas, todos os minu-
Por
que a mi
nha de
fi
nição é a correta.
enfim per
ce
beu que fo
ra apenas um brinquedo, descartado ao pri-
meiro si
nal de in
con
ve
ni
ência.
Essas ale
gri
as vi
olen
tas têm fins violentos, pensara, afundando na
tragédia de Ro
meu e Ju
li
eta de uma forma que, depois de crescer um
pouco, con
si
de
ra
va um constrangimento de sua versão mais jovem.
Mesmo as
sim, de
ve ter sentido que, seja lá o que Hale provocara, era
único.
Viv nun
ca en
ten
de
ra o fascínio das outras meninas por meninos
— até Ha
le.
Edward es
cre
ve
ra pa
ra ela — coisa que, refletindo a respeito, de-
pois de al
gum tem
po, foi bastante surpreendente. Ele sempre esteve
condo
lên
ci
as é que Viv percebeu que se tornariam amigos, mesmo
quando am
bos es
ti
ves
sem ocupados flertando com outras pessoas.
Viv agra
de
ceu a so
li
da
riedade, ele respondeu, e então ela respon-
deu àque
la res
pos
ta, e as
sim por diante até que estava se escrevendo
toda sema
na.
Duran
te os dois anos em que foi forçada a ficar no internato,
Edward se tor
nou seu me
lhor amigo. Ele nunca mencionava Ha
le e
ignorava to
das as su
as tentativas sutis — e não tão sutis — dela de
ob
ter in
for
ma
ções so
bre o jovem, mas falava de todo o resto. Os dois
compar
ti
lha
vam me
dos e sonhos e histórias embaraçosas e tudo o
ambos só ti
ves
sem se co
nhecido poucos meses antes de começarem
a se corres
pon
der.
Aos de
zoi
to anos, Viv voltou à cidade e descobriu que a conversa
esperar na
da em tro
ca. Às vezes, entendia a necessidade de Char
lot-
a mesma coi
sa mais de uma vez.
Outras ve
zes, po
rém, queria gritar que Edward tinha sido amado,
e se per
gun
ta
va por que, para algumas pessoas, isso não era suficien-
te.
estreme
ci
men
to.
O que acon
te
ceu en
tre vocês dois?
Os ir
mãos ain
da con
versavam, Viv sabia, e Charlotte também ti-
nha um re
la
ci
ona
men
to com Hale. Mas Viv entendera o recado per-
feitamen
te aos de
zes
seis anos.
Uma aven
tu
ra de ve
rão, respondera dando de ombros com des-
dém. Co
mo se não ti
ves
se si
do nada, como se não a tivesse mudado e
despeda
ça
do, exa
ta
men
te do jeito que, supunha, o primeiro amor
de
via ser.
Viv ten
tou ima
gi
nar como Hale estaria depois de tanto tempo
da tinha al
gu
ma su
avi
da
de e traços infantis no maxilar, uma man-
cha ou du
as que ma
cu
la
vam a perfeição do rosto. Agora, já estava
com qua
se trin
ta anos, e aquelas falhas provavelmente tinham desa-
parecido. Tal
vez hou
ves
se algumas rugas no lugar.
O jovem Em
mett Ha
le, lojista e filho ilegítimo, não estaria mais lá.
Em seu lu
gar es
ta
ria o deputado Emmett Hale, político amado e
ardente de
fen
sor dos ci
da
dãos mais pobres de Nova York.
ca ter res
pon
di
do às car
tas, ou os dois fingiriam que tudo aquilo
nunca acon
te
ce
ra? Agi
ri
am como estranhos, mesmo que as mãos de
Viv co
nhe
ces
sem os con
tornos dele, mesmo que Hale soubesse como
era o gos
to da sua bo
ca?
Viv gos
ta
va de pen
sar em si como esperta, confiante e sofisticada.
Trabalha
va pa
ra uma or
ganização de guerra importante, andava
todos os clás
si
cos e ro
mances literários importantes. No entanto, só
de pensar ne
le, vol
tou a ser uma jovem de dezesseis anos desconcer-
Um gri
ti
nho ale
gre in
terrompeu seus pensamentos. Viv se virou e
no alto pis
can
do sem pa
rar.
Viv sor
riu pa
ra as du
as, para aquela alegria quase dolorosa de as-
liciosa ca
mi
nha
da pe
la ci
dade.
Então afas
tou as pró
prias lembranças e as guardou de volta na
lugar pa
ra sen
ti
men
ta
lis
mo.
Pa
ris
Outu
bro de 1936
pre frequen
tar o sa
lão se
manal na mansão de Natalie Clifford Bar-
ney, na mar
gem es
quer
da, em frente ao Louvre.
Ela ali
sou o car
di
gã la
vanda — uma referência para o público da-
quela fes
ta em par
ti
cu
lar. Nenhuma lésbica em Pa
ris deixava de hon-
rar aque
les por
tões, lhe in
formara uma das participantes na primei-
ra sexta-fei
ra à noi
te pa
ra a qual havia sido convidada.
O sué
ter era útil, mas Hannah torceu o nariz para a lama salpi-
cando a bai
nha de sua pantalona. Decidira ir direto do trabalho, de
remediá-lo.
po
sição de pres
tí
gio de Natalie na cena literária parisiense, ela não
maturga e po
eti
sa se ar
ru
mava, sim, todas as sextas-feiras, com con-
juntos de bro
ca
dos pe
sa
dos que pareciam mais adequados para o sé-
culo an
te
ri
or, mas ja
mais expulsara alguém de sua casa por não es-
— Han
nah — cha
mou al
guém, assim que ela entrou no corredor,
a porta sem
pre des
tran
ca
da em noites como aquelas.
Em se
gun
dos, Han
nah estava de braços dados com uma jovem ar-
boche
chas de Pa
tri
ce.
— Pen
sei que vo
cê es
ta
va na Grécia.
— Aque
le lu
gar é mui
to chato — disse Patrice, afastando os lon-
gos cabe
los loi
ro-cla
ros do rosto.
Vestin
do cal
ça pre
ta e blusa branca, ela parecia a própria Paris:
elegante e mis
te
ri
osa de
mais para se associar a estrangeiros.
— Sol o tem
po to
do, mar azul, comida magnífica… Céus, tão mun-
da
no. Pre
fi
ro a in
fe
liz e mi
serável Paris. Tome.
Sem pen
sar, Han
nah pegou a taça que ela oferecia e olhou para as
bolhas.
— Es
ta
mos co
me
mo
rando alguma coisa?
— Te
nho uma exi
bi
ção na próxima semana — revelou Patrice,
passando o bra
ço pe
la cintura de Hannah e guiando-a pelo interior
da casa de Na
ta
lie. — Mas, Hannah, Hannah, Hannah… Você está
aqui há tem
po su
fi
ci
en
te para saber que não precisamos de uma
desculpa pa
ra to
mar champanhe.
Concor
dan
do em si
lên
cio, Hannah virou metade da taça, e Patri-
ce piscou pa
ra ela an
tes de fazer o mesmo. A mulher não era bonita,
câmera, tra
ços exa
ge
ra
dos que adquiriam um magnetismo impressi-
onante.
— Co
mo es
tá Ma
rie? — perguntou Hannah, examinando a sala.
Em qual
quer sex
ta-fei
ra, não seria incomum ver uma escritora ou
po
etisa fa
mo
sa à es
prei
ta nas sombras.
— Ah, Ma
rie. Ar
ran
jou uma amante.
Patri
ce se de
se
qui
li
brou de um jeito meio teatral, apoiando todo o
peso em Han
nah.
— Sin
to mui
to.
provinci
ana. E ter
ri
vel
mente boa de cama, fenomenal em obedecer
às ordens.
Hannah pe
gou du
as taças contendo um líquido cor-de-rosa da
mesinha la
te
ral, e, elas du
as se dirigiram à sala de estar principal.
— En
tão é um ca
so de tudo está bem quando acaba bem.
— Ve
re
mos.
Patri
ce pe
gou uma das bebidas rosadas e entregou a taça de
champa
nhe va
zia a uma pessoa que Hannah acreditava ser uma poe-
tisa em as
cen
são, de quem Ott
o sempre falava em êxtase. Patrice não
reparou na ex
cla
ma
ção descontente da moça, mas ela era assim
mesmo: vi
via em um uni
ver
so próprio.
— A me
ni
na é mui
to boba, depois que você a conhece melhor.
Hannah en
go
liu a pi
ada grosseira, provavelmente porque bebera
a cham
pa
nhe rá
pi
do de
mais e, em vez disso, falou:
— Tal
vez vo
cê ain
da se surpreenda com ela.
— Aí eu po
de
ria me apaixonar por ela, não seria terrível?
Patri
ce sus
pi
rou, ar
ras
tando Hannah para um sofá capitonê.
— Se
ria? — per
gun
tou Hannah, pensando em sua conversa com
Lucien. — Se
ria mes
mo tão terrível assim?
A pró
pria Na
ta
lie sal
vou Patrice de responder, afundando no as-
sento em fren
te a Han
nah com o pequeno buldogue preto acomoda-
do no co
lo, que ob
ser
va
va as três com seus olhos castanhos.
— Vo
cê car
re
ga um co
ração partido — declarou Natalie, à guisa
de sau
da
ção.
A ex
pa
tri
ada vi
era dos Estados Unidos para Paris e ainda não per-
america
nos. Em uma ci
da
de de piscar de olhos acanhados e tímidos,
Hannah acha
va Na
ta
lie re
vi
gorante. Não significava que Hannah era
uma estra
nha.
— É a me
lhor ma
nei
ra de viver Paris, não?
Patri
ce deu ri
sa
da e se levantou.
— Não be
bi o su
fi
ci
en
te para esta conversa. Boa sorte.
Nata
lie es
trei
tou os olhos para Hannah, ignorando a partida de
Patrice.
em tantas dis
cus
sões fi
lo
sóficas sobre um assunto que vinha evitan-
— Se a pes
soa for tu
ris
ta, talvez. Ou se for criança.
— Vo
cê não é cri
an
ça há algum tempo, imagino.
— Não — con
cor
dou Hannah, baixinho. — A gente só se apaixona
para sem
pre. Por mais cu
rado que esteja.
— Que hor
ror — pro
clamou Natalie, o cachorro choramingando
em seu co
lo en
quan
to ela gesticulava, afetada.
Nata
lie era tão che
ga
da a dramas quanto Otto.
— Ou re
alis
ta — re
bateu Hannah. — Você nunca sofreu por
amor?
— Tal
vez — in
si
nu
ou Natalie, voltando a acariciar a cabeça do ca-
chorro en
quan
to ob
ser
va
va Hannah, pensativa. — Já ouviu falar da
arte do kint
su
gi?
Hannah ba
lan
çou a ca
beça.
— No Ja
pão, quan
do um pedaço de cerâmica se quebra, as peças
são posi
ci
ona
das de vol
ta no lugar, e as rachaduras são preenchidas
com ou
ro. Des
sa for
ma, o objeto quebrado fica ainda mais bonito do
que o ori
gi
nal.
— Poé
ti
co — co
men
tou Hannah, falando devagar para esconder o
Havia al
go má
gi
co na ideia, mas não correspondia à sua realida-
de. Qual
quer ou
ro que usas
se nas fissuras de seu coração seria falso
e frágil e las
ca
ria com o menor dos problemas.
Mas Na
ta
lie não he
si
tou.
Hannah pen
sou no ros
to machucado de Adam sentado diante de-
la na sa
la de vi
si
tas do campo de concentração, depois nas lágrimas
de Althea e no pe
di
do de desculpas inútil.
— Não.
— Que jei
to tris
te de le
var a vida, minha querida — disse Natalie,
— Vo
cê não tra
ba
lha para aquela biblioteca em Montparnasse?
— Tra
ba
lho — con
cor
dou Hannah, hesitante, já antevendo a ar-
madilha.
— Não é poé
ti
co que ela exista só para salvar uma cultura da ani-
quilação to
tal? Sua pe
que
na biblioteca não é um ponto de luz simbó-
que as ar
mas?
— Pen
san
do as
sim… — ad
mitiu Hannah com um leve sorriso, se
retirando da dis
cus
são.
Nata
lie ti
nha ra
zão. Hannah sabia que só estava sendo teimosa.
— Te
nho sem
pre ra
zão, minha querida — concordou Natalie,
com um ace
no de ca
be
ça imperioso para mostrar que não guardava
rancor. — Ago
ra me con
te sobre esse seu grande amor, o que im-
plantou es
sa sa
be
do
ria em seus olhos.
Hannah ba
lan
çou a ca
beça.
país.
Nata
lie le
van
tou seu co
po de xerez em um brinde.
— É a mes
ma coi
sa, mi
nha cara. A mesma coisa.
chegou em ca
sa, qua
se en
gatinhou pelas escadas até seu apartamen-
to de um quar
to — um pequeno cômodo no último andar de um
imóvel em uma rua tran
quila no quinto arrondissement, não muito
distante do Jar
dim de Lu
xemburgo.
pela liber
da
de da vi
da na cidade e podia pagar o aluguel com a pe-
quena me
sa
da que o pai mandava todo mês.
Consi
de
ran
do o sa
lá
rio miserável da biblioteca, precisava daque-
le dinhei
ro. Era óti
mo que todos os funcionários do lugar encontras-
sem satis
fa
ção na
que
le trabalho, caso contrário a biblioteca teria sé-
rias difi
cul
da
des em man
tê-los.
Made
moi
sel
le Bri
gitte Blanchett parou Hannah no meio do ca
mi-
buço es
cu
ro e a de
ter
mi
nação de aço de alguém que já testemunhara
um boca
do de es
cân
da
los na vida. Pelas poucas pistas que Brigitte
dava, Han
nah sus
pei
ta
va que a mulher ganhara a vida trabalhando
em um bor
del e de
pois o ad
ministrando.
— Cor
res
pon
dên
cia — la
drou Brigitte, em francês.
Ao que tu
do in
di
ca
va, a proprietária presumia, ainda que correta-
as tenta
ti
vas de co
mu
ni
ca
ção a frases de poucas palavras.
— Mer
ci.
Hannah pe
gou os dois en
velopes fingindo não notar o olhar in
tro-
metido de Bri
gitt
e. A se
nhoria queria que ela abrisse as cartas diante
— Bon
ne nuit.
Ela to
cou na me
zu
zá pendurada ao lado da porta, uma adição re-
cente. Ape
sar da in
cli
na
ção mais secular, os pais também tinham
uma, os ver
sí
cu
los he
brai
cos da Torá cuidadosamente inseridos no
invólu
cro de ma
dei
ra. Sua família não dava muita atenção à própria
um amu
le
to de boa sor
te do que uma bênção sagrada.
É
É um ates
ta
do, não é?, dissera uma de suas amigas da biblioteca,
judaica. E é um sím
bo
lo que decidimos colocar em nós mes
mos.
Aque
la ideia de
sen
ca
deara alguma coisa nela. Hannah pensara
em to
das as ma
nei
ras pe
las quais a Alemanha marcava seus cida-
dãos ju
deus pa
ra que se sentissem menores. Os papéis, os registros,
os gra
fi
tes nas vi
tri
nes das lojas assinalando serem de propriedade
judaica.
Havia po
der em se apropriar — deliberada e alegremente — de
uma par
te sua que os ou
tros queriam que você odiasse. Hannah te-
mia che
gar um mo
men
to em que a mezuzá seria usada contra ela e
ou
tros ju
deus, mas, por enquanto, era mais uma forma de assumir a
própria hu
ma
ni
da
de.
Aque
la era uma ca
sa ju
daica.
Quan
do fi
nal
men
te en
trou, Hannah desabou na cama e no abraço
suave da col
cha ama
re
la da avó, o único toque de cor em um aparta-
mento um tan
to mo
nó
to
no. Ela se recostou na parede, sentada, e
abraçou os jo
elhos, se
gu
rando os dois envelopes.
Hannah mor
deu o lá
bio quando tocou no endereço do remetente
do primei
ro.
Owl’s He
ad, Mai
ne.
Ao ver a ca
li
gra
fia do
lorosamente familiar, seus olhos arderam,
Hannah odi
ava ter pen
sado tanto naquela mulher nos últimos di-
peque
na o su
fi
ci
en
te pa
ra carregar.
Tam
bém não era co
mo se conseguisse passar semanas sem se
mília — ain
da mais por
que as consequências foram tão dolorosas.
Mas, re
cen
te
men
te e com cada vez mais frequência, conseguia des-
cartar a lem
bran
ça de Althea, afastando-a para um canto escuro que
não pre
ci
sa
va olhar, não precisava sufocar sob o peso es
magador da
traição.
Hannah jo
gou a car
ta de lado sem abri-la. Mais tarde a guardaria
que con
ti
nha to
das as car
tas que recebera e nunca abrira. A que con-
tinha aque
la pre
ci
osa edi
ção de Alice no País das Ma
ravilhas com ga-
tos rabis
ca
dos na pri
mei
ra página.
Hannah vol
tou a aten
ção para o segundo envelope. Reconheceu a
Quan
do fi
nal
men
te se forçou a abrir a maldita missiva, Hannah
— Sua bo
ba — mur
murou para si mesma, enxugando as lá
gri-
mas.
A men
sa
gem era exa
ta
mente o que esperava e, por sorte, não o
que temia.
Tive no
tí
ci
as de Adam hoje. Mal, mas ainda vivo. Nenhum pro-
gresso no jul
ga
men
to.
Man
do atu
ali
za
ções se algo mudar.
que ten
ta
va es
cre
ver pa
ra ela e para os seus pais pelo menos uma vez
a cada pou
cas se
ma
nas com atualizações sobre o caso de Adam. Seu
irmão es
ta
va pre
so em um campo de concentração a norte de Berlim
ha
via três anos. Era um prisioneiro político e Hannah esperava pela
no
tícia da exe
cu
ção to
dos os dias desde sua prisão.
Sua úni
ca chan
ce era que Johann, um dos poucos amigos que
permane
ce
ram le
ais à fa
mília depois do que aconteceu com Adam,
mexesse os pou
cos pau
zi
nhos que ainda conseguia no governo. E ele
era o pri
mei
ro a ad
mi
tir que, como um advogado que fizera a maio-
ria de su
as co
ne
xões sob o regime anterior, não tinha muitos alia
dos
na cidade.
Johann pro
me
te
ra que ainda havia esperança. Os pais de Hannah
acredita
ram na men
ti
ra.
Entre
tan
to, na es
cu
ri
dão da noite, Hannah sabia que não havia
esperan
ça.
Sob o re
gi
me do Ter
cei
ro Reich, a esperança era só uma arma.
Berlim
Feve
rei
ro de 1933
U m car
ro par
ti
cu
lar es
pe
rava por Deveraux Charles na saída da ca-
sa de He
le
ne Be
chs
tein.
— Quan
do vo
cê é o ani
malzinho de estimação favorito, ganha
uma gai
ola dou
ra
da — co
mentou Dev, notando os olhos arregala
dos
de Althea.
— Vo
cê não gos
ta dos nazistas — constatou Althea, quando as du-
as se aco
mo
da
ram no ban
co de trás acolchoado do veículo.
— Eu es
tou brin
can
do, querida.
Althea en
ten
deu a dei
xa e se manteve calada pelo resto do trajeto.
Não sa
bia pa
ra on
de estavam indo, mas percebeu que não se im-
primeiras se
ma
nas com Diedrich, explorando uma nova cidade. Seu
ressenti
men
to pe
las res
trições adquiriu uma nova camada.
Seu vi
gia.
Quase em de
ses
pe
ro, Althea tentou analisar o que sabia sobre o
Partido Na
ci
onal-So
ci
alis
ta dos Trabalhadores Alemães. A maioria
das pes
so
as que en
con
tra
ra nos campi universitários falava do parti-
do com um ar
re
ba
ta
men
to fervoroso alinhado às estatísticas muito
mente pre
pa
ra
dos pa
ra re
correr a táticas terroristas?
Pelo vis
to, to
do mun
do tinha opiniões fortes sobre política.
Althea às ve
zes de
se
ja
va poder simplesmente ignorar tudo, mas es-
bem de
fi
ni
dos a es
co
lher, e por que não apoiaria seus anfitriões?
Gosta
va de Di
edri
ch, gostava sobretudo quando ele segurava sua
mão e sor
ria co
mo se ela fosse a pessoa mais encantadora que ele já
conhece
ra. Sim, o ho
mem às vezes podia ser arrogante, quase mili-
tante, quan
do se tra
ta
va de seu partido e de suas crenças, mas os co-
Não co
nhe
cia De
ve
raux, mas por algum motivo também gostava
se imedi
ata
men
te que a mu
lher não confiava no partido político que
a estava hos
pe
dan
do.
A cabe
ça de Althea disparava ao observar pela janela as luzes
néon bor
ra
das no dis
tri
to dos teatros. O problema não seria resolvi-
do naque
la noi
te. Por en
quanto, bastava desfrutar de tudo o que Dev
tivesse re
ser
va
do pa
ra ela.
O car
ro as dei
xou em frente a um clube na Marburger Strasse.
— “Mi
nha lin
da ir
mã” — traduziu Dev, apoiando o queixo sobre o
ombro de Althea.
— Fran
cês? — per
gun
tou Althea, nervosa, passando a mão no ca-
belo, um cas
ta
nho sem graça em comparação às madeixas elegantes
de Dev. Pe
lo me
nos não ti
nha tentado fazer um penteado muito ela-
borado, ape
nas pren
de
ra a frente e tentara domar o restante em on-
das su
aves.
Dev cor
reu pa
ra a en
trada, lançando uma piscadela por cima do
ombro.
— Co
mo to
do bom ca
baré.
“Deca
dên
cia” foi a úni
ca palavra em que Althea conse
guiu pensar
ao entrar na bo
ate. A de
coração tinha um toque de afrescos gregos,
mas era a at
mos
fe
ra, não a tinta nas paredes, que tornava o lugar so-
brenatu
ral.
Althea fi
ca
ra im
pres
si
onada com a beleza de Dev, mas a atriz e ro-
ao redor de me
sas e ca
bi
nes pelo salão. Os homens eram igualmente
deslum
bran
tes, e Althea nunca se sentira tão desinteressante.
Alguns es
ta
vam com a atenção fixa no palco do lado oposto, onde
mulheres em le
derho
sen curtas, as calças de couro alemãs, levanta-
vam as per
nas co
mo as Roc
kettes, mas muitos outros conversavam,
fumavam, ri
am, can
ta
vam as próprias versões do que a banda estava
tocando.
O ba
ru
lho, a mú
si
ca, a fumaça, as belas mulheres, os belos ho-
mens — tu
do im
pres
si
onou Althea, até a realidade ficar um pouco
embaça
da e ela se apoi
ar em Dev, que acariciou seu rosto e a equili-
brou.
— A ver
da
dei
ra Ber
lim — sussurrou Dev.
Então co
me
çou a apre
sentá-la grupo após grupo. Dev parecia co-
nhecer to
do mun
do, e to
dos a amavam. A estrela mais brilhante de
uma cons
te
la
ção de es
tre
las brilhantes.
No en
tan
to, al
gu
mas pessoas pareceram muito interessadas em
mada.
— Vo
cê é es
cri
to
ra! — diziam, arfando. — Conte para nós quem
você conhe
ce.
— Bom, vo
cês já de
vem ter ouvido falar dela — respondeu Althea
a uma mu
lher par
ti
cu
lar
mente intrometida. — Deveraux Charles,
uma dra
ma
tur
ga pro
mis
sora de talento monumental.
Todos ri
ram. Dev pis
cou para ela, e Althea se sentiu tonta e em-
briagada pe
la aten
ção.
— Sou
be do El
do
ra
do? — perguntou um homem a Dev, que sepa-
rou os lá
bi
os em uma ex
pressão de desalento.
— Não me di
ga — cho
ramingou ela.
— Ludwig o en
tre
gou aos brutos da Sturmabteilung.
O ho
mem, cu
jo no
me Althea pensou ser Peter, balançou a cabeça
com tris
te
za.
— Es
tão usan
do o lu
gar como sede agora.
— Que sa
cri
lé
gio! Po
bre Ludwig, ele não teve escolha.
Ele esta
va fa
da
do à pri
são.
Dev se vol
tou pa
ra Althea.
— El
do
ra
do era o ca
ba
ré para pessoas que gostam da companhia
de… — Pe
ter e Dev tro
ca
ram olhares quando ela hesitou, antes de
continu
ar: — Bom, era o melhor clube. Que triste.
— Que me
di
das re
pres
si
vas? — perguntou Althea, confusa como
uma cri
an
ça im
plo
ran
do por informações dos adultos.
— Eu ex
pli
co mais tar
de — prometeu Dev.
Em se
gui
da, fo
ram con
versar com outro grupo, lamen
tando os to-
ques de re
co
lher, o fe
cha
mento de clubes e a falta de ca
fé nas lojas.
Althea ab
sor
veu tu
do e pensou: SA.
Sturmab
tei
lung. O Des
tacamento Tempestade, as tropas de assal-
to.
Era o no
me mais for
mal para os camisas-pardas — onipresentes
como guar
da-cos
tas de Hitler e seus funcionários do alto escalão.
Corrom
pi
dos, lem
brou Althea enquanto examinava a multidão ao
redor. Ho
mens usan
do maquiagem, mulheres de cabelo curto e liso
usando ter
nos. Mu
lhe
res de mãos dadas com outras mulheres, ho-
mens fa
zen
do o mes
mo com outros homens. Tentou imaginar o que
Diedrich te
ria a di
zer so
bre as demonstrações de afeto. Ele não fala-
va muito so
bre o as
sun
to, mas Althea sabia, instintivamente, que era
Seu vi
gia.
A pri
mei
ra re
gra do Rei
ch é: não questione o Reich.
Corrom
pi
dos. Althea podia não saber muito sobre o mundo, mas
Per
deu a no
ção do tem
po observando as dançarinas no palco. Pa-
recia ha
ver um mes
tre de cerimônias que aparecia para contar pia-
— Heil… dro
ga, es
que
ci o nome — gritou o apresentador, em
levou pa
ra o pal
co fo
tos emolduradas de Hitler, Goebbels e alguns
ou
tros ho
mens que Althea não reconheceu. — Agora — disse a uma
plateia ex
ta
si
ada, que pa
recia desesperada pela piada que viria após
os retra
tos —, de
vo pen
du
rá-los ou enfileirá-los no paredão?
O ru
gi
do de apro
va
ção se espalhou em ondas e afetou até quem
não esta
va pres
tan
do aten
ção.
— Já ou
vi
ram fa
lar so
bre como deve ser a nova raça superior,
não? — in
da
gou o ho
mem à multidão encantada.
O pú
bli
co gri
ta
va, e ele assentiu como se na verdade tivessem dito
algo inte
li
gí
vel.
— Ma
gro co
mo Gö
ring, loiro como Hitler e alto como Goebbels.
O ho
mem que con
ver
sa
va com Dev balançou a cabeça.
uma visi
ta não mui
to amistosa de Göring.
— Os na
zis
tas ado
ram, não se deixe enganar — garantiu Dev, fa-
zendo um ges
to afir
ma
ti
vo diante da expressão cética do homem. —
— acres
cen
tou, dan
do de ombros.
— Vo
cê é quem de
ve sa
ber imagino — rebateu o homem, sombri-
Uma ho
ra de
pois, Dev deu um gritinho.
— Ah!
No ins
tan
te se
guin
te, se
gurou Althea pelo pulso e a puxou até
uma me
sa um pou
co pa
ra a lateral, longe da área principal do salão.
— Que
ri
da, há quan
to tempo — disse Dev, cumprimentando mu-
— É o que acon
te
ce quando te escondem em Munique — respon-
deu a mu
lher, beij
an
do Dev no rosto.
Como o res
to do pú
blico, ela era quase atraente demais para
olhar. Os ca
chos es
cu
ros es
tavam presos para trás, revelando traços
marcan
tes: ma
çãs do ros
to proeminentes, olhos grandes e lábios
macios en
vol
ven
do um ci
garro fino. Ela soltou a fumaça e observou
Com o pes
co
ço quen
te, Althea desviou o olhar, mas, sem poder se
conter, lo
go vol
tou a en
carar. Não havia nada de provocativo nas
roupas da mu
lher, que usava um vestido preto de cintura apertada e
um de
co
te mar
ca
do des
ta
cando clavículas bem definidas. No entan-
corpo.
Althea mu
dou o fo
co depressa para o acompanhante da desco-
um homem as
sim. Não ha
via, porém, palavra melhor pa
ra defini-lo.
Parecia o re
tra
to de um poema de Byron. Varrido pelo vento e ro-
Ele sor
riu pa
ra Dev.
— Gra
ças a Deus vo
cê voltou. Berlim estava terrivelmente chata
sem você.
— Vo
cê com cer
te
za en
controu com o que se entreter — dispa
rou
Dev, dan
do uma de su
as piscadelas maliciosas. Então se virou para
Althea co
rou com a apresentação, mas assentiu, murmurando
um tími
do “olá” pa
ra a du
pla.
— Es
te pa
ti
fe, que cla
ramente não tem boas maneiras nem para
se levan
tar ao cum
pri
men
tar uma dama…
me levan
to — in
ter
rom
peu o jovem com um sorriso atrevido.
— Bem… es
te é Otto Koch — continuou Dev, como se ele não ti-
vesse di
to na
da. — Um dos melhores atores que a Alemanha já viu.
— É um pra
zer.
Dev em
pur
rou o om
bro dele.
— E es
ta — con
ti
nu
ou, com um aceno em direção à mulher — é
Hannah Bre
cht.
Nova York
Maio de 1944
tório em ruí
nas do ama
do representante do Brooklyn, Emmett Hale,
meçara a cha
mar a aten
ção dos velhos jogando damas no final do
quartei
rão.
pida de aca
bar em apu
ros era dizer algo pejorativo sobre o legisla-
pareceu sur
tir o efei
to oposto. Um deles se levantou, de olhos se
mi-
cerrados, e aqui
lo foi o bastante para fazê-la subir o primeiro degrau
para a en
tra
da do pré
dio.
A por
ta do es
cri
tó
rio de Hale se abriu antes mesmo de Viv levan-
— Es
ta
va me per
gun
tando se você ficaria lá fora o dia todo.
se apoiou des
cui
da
da
men
te na porta. Usava uma camisa com o cole-
te cor de car
vão aber
to por cima e uma calça lisa do mesmo tom co-
brindo as co
xas mus
cu
lo
sas. Aquele cacho devastador e escuro pai-
às custas de
la.
— Eu es
ta
va me per
guntando se pegaria tuberculose só de entrar
no seu es
cri
tó
rio — re
vi
dou Viv, insegura, mas determinada a escon-
der qual
quer pi
ta
da de dú
vida. Era só fingir bem o bastante…
Embo
ra Viv fos
se uma mulher alta, Hale a superava em muito, o
reitava as cos
tas e os
ten
tava toda a sua altura, os ombros largos fa-
zendo-a se sen
tir in
cri
vel
mente pequena.
Hale des
ceu o olhar pa
ra a mão nua de Viv antes de encará-la nos
olhos. Os de
le eram uma mistura de verde, dourado e azul que nun-
ca se de
ci
di
am por uma única cor.
— Olá, ir
mã.
— Irmão que
ri
do — devolveu, com a mesma doçura. — Você me
parece mui
to vi
vo.
Devido a al
gu
mas menções veladas de Charlotte, Viv sabia que,
para Ha
le, ter per
di
do o irmão ainda jovem para uma morte tão trá-
ção.
Por al
guns ins
tan
tes, o sorriso de Hale quase se desfez, mas de-
pois se alar
gou ain
da mais. Ele apontou para o céu.
— É a fal
ta de bom
bas que faz isso.
— Sim, ima
gi
no que se
ja útil.
Viv res
pi
rou fun
do e expirou, cravando as unhas nas palmas das
mãos.
— Pre
ci
so de um fa
vor.
— Eu ima
gi
nei. Ao contrário do que pode acreditar, não sou um
idi
ota — dis
se Ha
le, em
bo
ra não houvesse raiva em sua voz.
Aque
la era uma das coisas que Viv mais gostava nele: o homem
era imper
tur
bá
vel. Con
tu
do, naquele momento, quando queria tirá-
lo do sério, es
sa qua
li
da
de era irritante.
— Não me di
ga, dei
xe-me adivinhar.
Hale in
cli
nou a ca
be
ça e a estudou de perto por um minuto des-
conforta
vel
men
te lon
go e, em seguida, estalou os dedos.
— Já sei. — Ele ges
ti
cu
lou como se fosse um daqueles videntes do
calçadão de Co
ney Is
land. — A Lei de Voto do Soldado e um certo se-
nador cu
jo no
me não de
ve
mos mencionar.
Viv sen
tiu um ca
lor in
vadir o peito só de pensar que Hale se man-
tinha in
for
ma
do so
bre ela, mas o ignorou, irritada. Aquilo já tinha
sido um jo
go en
tre os dois, quase uma dança. Naquele momento, o
vaivém só ir
ri
ta
va sua pe
le já em carne viva.
— Da
ne-se — dis
se Viv, dando meia-volta.
Deve
ria ha
ver ou
tra ma
neira.
Mas sen
tiu de
dos quen
tes envolvendo seu pulso, impedindo-a de
se afastar.
— E vo
cê sa
bia no
tar quando eu estava falando sério.
Ela o en
ca
rou nos olhos, e finalmente — meu Deus, finalmente —
a graça pa
re
ceu ter aca
ba
do para ele.
Childs. — Te
nho dez mi
nutos. Mas só isso.
— É tu
do o que eu pre
ciso — prometeu Viv, passando por ele para
entrar.
Apesar de im
pli
car com Hale pelo estado do lugar, o escritório es-
tava lim
po, or
ga
ni
za
do e arrumado, embora fosse pequeno. Ela difi-
cilmente po
de
ria cul
pá-lo por aquilo. Hale recusara todo o dinheiro
quando co
me
çou a con
cor
rer ao Congresso.
Hale ocu
pa
va uma me
sa robusta em um escritório sem frescuras.
Um dese
nho in
fan
til fi
ca
va pendurado na parede atrás dele, que pa-
ção pa
ra
va aí.
Viv sa
bia que era uma imagem que Hale cultivava — um homem
do povo.
Tam
bém sa
bia que era uma imagem real. Às vezes, talvez rara-
povo e um po
lí
ti
co.
— Vo
cê ti
nha ra
zão, é claro, sobre por que estou aqui.
Mas Ha
le não apro
vei
tou a deixa, como teria feito alguns minutos
an
tes, res
pon
den
do al
go como “Eu sempre tenho razão”.
— A Edi
ções das For
ças Armadas foi pega na Lei de Vo
to do Solda-
do — co
men
tou Ha
le, sé
rio e ponderado. — Tentei convencer alguns
Era ra
ro Viv se sur
pre
ender, mas aquela revelação foi suficiente.
— Vo
cê lu
tou por nós?
— Pe
lo pro
je
to — cor
rigiu Hale, com as rugas despontando no
mais livros.
— Bom, en
tão vo
cê sa
be a importância do projeto.
— Eu dis
se que ten
tei.
Viv mor
deu o lá
bio, ten
tando conter as palavras que sabia que ar-
deriam co
mo sal nas fe
ri
das dele. O mais perigoso em conhecer bem
uma pes
soa era sa
ber muito bem como machucá-la. E, mesmo de-
pois de oi
to anos de si
lêncio, Viv ainda acreditava que o conhecia
muito bem.
— En
tão vo
cê não se es
forçou o suficiente.
Um mús
cu
lo na man
dí
bula de Hale se contraiu.
— Não di
ga uma coi
sa dessas. Você não sabe de tudo, Viv.
po
de nem ima
gi
nar o que é estar lá com nada além de meias enchar-
cadas e a pro
mes
sa cons
tante de morte. Você não tem ideia do que é
ser respon
sá
vel pe
la vi
da de outros homens.
O co
men
tá
rio fez Ha
le respirar fundo, como se soubesse que um
sem en
san
guen
ta
dos e di
lacerados no chão. Ela quase podia ouvir o
“E você por aca
so sa
be?” no silêncio súbito que se seguiu, mas Hale
conseguiu guar
dar o co
mentário para si.
— Qual é o pla
no?
A voz de
le es
ta
va cal
ma outra vez; Hale parecia reconhecer que
ambos pre
ci
sa
vam dei
xar um pouco de veneno sair antes que pudes-
— Es
tou or
ga
ni
zan
do um grande evento para tentar fazer Taft
— En
ver
go
nhá-lo pu
bli
camente, quer dizer.
— Se for pre
ci
so — dis
se Viv, dando de ombros.
otecários.
Viv jo
gou os om
bros pa
ra trás e endireitou o corpo. Era magra, al-
ta e havia si
do cri
ada pa
ra saber como reagir bem a uma reprovação
só com a pos
tu
ra.
— En
ten
do.
Ela co
me
çou a se le
vantar. Hale bufou, frustrado, e esten
deu
a mão.
— Ah, é? — per
gun
tou ela, com a voz gélida. — De que outra for-
— Eu sou um idi
ota, me desculpe — disse ele, passando a mão no
cabelo. — Es
ta
va só ten
tando ser petulante para reforçar meu ponto
Surpre
sa, Viv se sen
tou de volta. Conhecia e trabalhava com mui-
tos ho
mens e só po
de
ria citar um punhado que se desculparia com
tanta fa
ci
li
da
de e sin
ce
ri
dade.
— Tu
do bem — res
pon
deu ela, hesitante.
— En
tão, o que exa
ta
mente você está me pedindo para fazer?
Era a ho
ra da par
te di
fí
cil.
— Pri
mei
ro pre
ci
so de pressão suficiente por parte dos colegas
do sena
dor pa
ra que ele par
ticipe do evento, e depois que não vá em-
bora quan
do per
ce
ber o que está acontecendo.
Hale sol
tou um as
so
vio baixo e demorado.
constran
gi
do até acei
tar anular a lei, ele dará um jeito de retaliar.
carrega
ria sua rai
va em alguém que apoiasse aquela ideia maluca.
Ambos sa
bi
am dis
so.
ar dan
do mur
ro em pon
ta de faca.
Viv nun
ca per
gun
ta
ra aquilo a Hale — já quisera muito pergun-
— E dá pa
ra es
co
lher um?
— Não se
ja po
lí
ti
co — repreendeu Viv, relaxando pela primeira
vez des
de que pi
sa
ra na calçada do lado de fora do escritório.
pescoço en
quan
to a ob
ser
va
va.
— De
vo res
pon
der en
tão o que respondo a todo mundo? Ou o
meu favo
ri
to de ver
da
de?
saber os dois.
— O que eu re
ce
bo em troca? — perguntou Hale.
Viv sen
tiu a res
pi
ra
ção presa na garganta e um ner
vosismo re-
pentino.
— O que vo
cê quer?
A aten
ção to
tal de Ha
le recaiu sobre ela como uma colcha pesada
— Que
ro uma res
pos
ta — disse Hale, por fim.
— A que per
gun
ta?
— Ain
da não de
ci
di.
Os olhos de
le es
ta
vam enevoados.
Por que vo
cê e Edward se ca
saram?
As pa
la
vras so
aram al
tas, como se ele de fato tivesse dado voz à
pergun
ta.
Viv sa
bia que era is
so que Hale queria perguntar, mesmo que
nunca o fi
zes
se. Ain
da as
sim, sempre poderia mentir quando pressi-
onada.
— Tu
do bem.
Hale es
ten
deu a pal
ma da mão para ela.
— Aper
te.
Viv zom
bou, mas in
cli
nou-se até encaixar a mão na dele. Quando
deram o aper
to de mão, não houve faíscas, nem eletricidade. Até os
fantasmas da
que
les fri
os na barriga tinham sido exorcizados. Viv re-
cuou o bra
ço, sem sa
ber se estava satisfeita ou desapontada, mas
— Eu di
go à mai
oria das pessoas que é Ratos e homens — revelou
Hale, as
sim que bai
xa
ram os braços.
— Stein
beck — ob
ser
vou Viv com um aceno de cabeça. — Ratos
nossos li
vros.
— Es
se eu não li — confessou Hale, mas não na defensiva, como
alguns ho
mens fi
ca
vam quando ela citava títulos de romance.
— Qua
se um Ca
me
lot na Califórnia, com um alegre bando de ca-
valeiros — ex
pli
cou. — Gostei bastante.
— Is
so des
cre
ve o que senti sobre Ratos.
— De fa
to, não é lá uma das histórias mais edificante — concor-
— Dom Qui
xo
te. Ou, mais precisamente, O engenho
so cavaleiro
Dom Qui
xo
te de La Man
cha.
A res
pos
ta a sur
pre
en
deu a ponto de ela quase sorrir.
— Uma al
ma ro
mân
ti
ca. Eu deveria ter adivinhado.
Hale can
ta
ro
lou, con
cordando com um sorriso à espreita sob a
expressão fran
ca. Sa
tis
feito por Viv ter se lembrado daquilo, ela
supôs.
Em vez de re
co
nhe
cer o passado compartilhado entre os dois, Viv
— Não con
cor
da com Cervantes, então?
Ele he
si
tou, ob
vi
amen
te para pensar, e citou:
— “Quan
do a pró
pria vida parece louca, quem sabe onde está a
loucura? Tal
vez o ex
ces
so de sanidade seja a loucura, e a maior lou-
cura de to
das: ver a vi
da como ela é, e não como deveria ser!”
— Bra
vo.
— E é por is
so que não digo às pessoas que é o meu favorito — ex-
plicou Ha
le, qua
se achan
do graça. — Seria usado descaradamente
contra mim. — Ele fez uma pausa, se debruçando mais uma vez para
retratar o con
gres
sis
ta sincero que era. — Eu nunca disse que não
lutando con
tra Taft quan
to Quixote teve investindo contra moinhos
de vento.
— En
tão de
ve
mos sim
plesmente desistir? — perguntou Viv, re-
de como ela é?
— Eu sou um po
lí
ti
co, não um cavaleiro errante.
do último e me
nos do pri
meiro.
Hale a ob
ser
vou por al
gum tempo.
— Vo
cê fi
cou bem es
perta, não?
Aqui
lo foi di
to co
mo um elogio.
— Is
so sig
ni
fi
ca que concorda em ajudar?
— Não pos
so ga
ran
tir nada. Eu estou na Câmara, ele está no Se-
nado.
apoiar vo
cê, elas sa
bem que você está crescendo. Garantirei que
também ha
ja pres
são pú
bli
ca sobre ele. Só estou pedindo que cutu-
— Quan
to mais le
gis
la
dores, melhor — ponderou Hale. — Como
ter pen
sa
do du
as ve
zes.
— O quê? — in
sis
tiu Viv, porque nunca conseguia se limitar a coi-
— Vo
cê sa
be que só fa
zer com que ele participe não é suficiente
— cedeu Ha
le, pa
re
cen
do cauteloso.
— Sim, obri
ga
da, eu já tinha reparado.
Hale le
van
tou as mãos.
— Só es
tou di
zen
do que Taft é teimoso como uma mula. Ele não
— Não me im
por
to com Taft — disse Viv, cada palavra vulnerável
Não que
ria a opi
nião ou o julgamento de Hale, e ainda assim ansi-
ava de
ses
pe
ra
da
men
te por sua aprovação para o plano. Não por
que
um dia ti
ves
se se im
por
ta
do com a opinião dele mais do que com to-
das as ou
tras, mas por
que Hale ganhara em seu distrito com setenta
por cen
to dos vo
tos. Ele entendia de política, e o plano dela era polí-
tico.
— Eu me im
por
to com os eleitores dele. Eu me importo com to-
dos os elei
to
res, na ver
da
de. No fim das contas, não estarei de fato
tentando fa
zer Taft mu
dar de ideia. Estarei tentando garantir que
ou
tros le
gis
la
do
res sai
bam como essa questão é venenosa e façam al-
guma coi
sa pa
ra mu
dá-la.
— E, pa
ra que fa
çam is
so, você vai atiçar os eleitores dele — resu-
miu Ha
le, as
sen
tin
do em aprovação. — Devo advertir, porém, que as
pessoas es
tão nas úl
ti
mas quando se trata de se preocuparem com…
— Eu sei — res
pon
deu Viv, porque também estava exausta.
Os úl
ti
mos anos ti
nham sido sombrios, e as mortes, o raciona-
mento e o de
ses
pe
ro ge
ral que acompanhavam a vida durante uma
guerra co
bra
ram um pre
ço de todos.
— Mas, Ha
le, vo
cê sa
be melhor do que ninguém que as pessoas
Feve
rei
ro de 1933
–E ntão vo
cê é es
cri
to
ra.
Althea de
te
ve o lá
pis so
bre o papel ao reconhecer a voz, apesar de
tê-la ouvi
do ape
nas uma vez.
Hannah Bre
cht.
Uma se
ma
na se pas
sa
ra desde o primeiro encontro naquele caba-
ré, embo
ra não ti
ves
se pas
sado de uma rápida saudação antes de
Dev arras
tar Althea pa
ra o próximo grupo. Conhecera tanta gente
naque
la noi
te que a mai
oria havia se misturado em uma lembrança
ne
bulosa. Mas, por al
gu
ma razão que ela desconhecia, não teve pro-
blemas em re
co
nhe
cer Hannah Brecht.
Elas es
ta
vam em ou
tro cabaré, menor, mas não menos animado.
Dev pare
cia ter as
su
mi
do a missão pessoal de mostrar a Althea todas
as casas no
tur
nas de Ber
lim. Aquela era a quarta que visitavam e,
embora es
ti
ves
se exaus
ta, Althea nunca se sentira tão livre.
Die
dri
ch vi
nha fa
zen
do perguntas cada vez mais incisivas sobre
le ao pen
sar na fe
li
ci
da
de que aquelas noitadas lhe traziam.
Hannah Bre
cht se sen
tou diante de Althea sem esperar resposta,
que dizer.
tos de
la, que se con
ven
ce
ra de que exagerara a beleza da mulher, de
que a at
mos
fe
ra e a ani
ma
ção a haviam levado a ver todos que conhe-
cera na
que
le dia por len
tes cor-de-rosa.
Mas, Han
nah pa
re
cia ainda mais cativante naquela noite. Usava
um vesti
do ama
re
lo jus
to com cavas profundas nas laterais, deixan-
do a mos
tra cai
xa to
rá
ci
ca e as costas, o vislumbre de pele ainda
mais in
te
res
san
te pe
lo jei
to como o vestido cobria completamen
te o
peito e as per
nas. Um es
tu
do sobre um fascínio sutil.
Algo quen
te dis
pa
rou pelo sangue de Althea, e a única explicação
que con
se
guia en
con
trar era de que se tratava de inveja. Nenhuma
ou
tra ra
zão ex
pli
ca
va por que não conseguia tirar os olhos do corpo
de Hannah se mo
ven
do sob a seda.
A me
sa era mi
nús
cu
la e ficava escondida em um canto escuro do
lugar. O tor
no
ze
lo de Hannah roçou o dela, e Althea re
cuou de re-
pente, ten
tan
do abrir es
paço. Seu nervosismo parecia divertir Han-
nah.
— Ou es
tá to
man
do notas para se reportar aos seus mestres na-
zis
tas? — con
ti
nu
ou a mulher, indicando com o queixo o caderni-
Althea co
rou e se atra
palhou, tentando enfiar tudo na bolsa pe-
— Eu não es
tou… Eles não são… — começou, até que Dev apoiou a
— Han
nah, vo
cê não está assustando nossa pombinha, não é? —
pergun
tou Dev, e Althea ao mesmo tempo gostou e se ressentiu des-
se cuida
do.
— respon
deu Han
nah, após estudar a expressão de Althea. Antes
que pudes
se per
gun
tar do que ela estava falando, Hannah olhou de
volta pa
ra Dev. — Es
sa tur
nê que você está fazendo com ela está bas-
tante agi
ta
da, não?
— Es
ta
mos re
cu
pe
ran
do o tempo perdido — alegou Dev, acarici-
ando os ca
be
los de Althea.
Otto Ko
ch apa
re
ceu atrás de Hannah, corado, feliz e bonito de-
mais.
— Aca
bei de apa
nhar na mesa de pôquer. Dance comigo, Dev, por
— Co
mo di
zer não a es
se rostinho — perguntou Dev, estendendo
a mão pa
ra aper
tar o quei
xo de Otto.
O ho
mem ape
nas riu, pegou a mão dela e a puxou até o pequeno
espaço to
ma
do por ca
sais dançando. Por cima do ombro, Dev adver-
tiu:
— Se
ja bo
azi
nha, Han
nah.
— Eu sem
pre sou — re
trucou a mulher, embora seus olhos enca-
rassem o ros
to de Althea e com certeza Dev não tinha escutado. —
Vo
cê é es
cri
to
ra.
— Eu te
nho um li
vro publicado — corrigiu Althea.
— O pró
xi
mo se
rá so
bre os nazistas, então? Uma história de
amor, tal
vez, en
tre uma jo
vem americana e um alemão corpulento a
serviço de Hi
tler?
Althea co
rou, pen
san
do naquele dia de inverno no mercado,
quando fin
gi
ra ser a per
so
nagem principal de um romance flertando
sunço
so, que mos
tra
va co
mo ela estava achando graça, se alargou.
— Vo
cê os odeia — disse Althea, em vez de se defen
der. — Eles
são mes
mo tão ter
rí
veis?
Hannah fran
ziu os lá
bios, e Althea não pôde evitar baixar os
olhos pa
ra ad
mi
rá-los. Ela piscou e se reorientou.
— Se eu dis
ses
se que sim, que eles são mesmo tão ter
ríveis, o que
você acha
ria?
lados ten
den
ci
osos da mesma moeda.
Ela es
ta
va cer
ta, é cla
ro. Althea estava pensando exatamente na-
quilo des
de que per
ce
be
ra que Dev não confiava nas pessoas que a
hospeda
vam.
Todo mun
do ti
nha his
tórias sobre como o outro lado estava cheio
de mons
tros, to
das as ane
dotas igualmente atrozes. No entanto, ne-
uma pes
soa, Althea sa
bia. Também era tratada com gentileza em
Owl’s He
ad, ain
da mais depois que se tornara uma escri
tora famosa
— pelas mes
mas pes
so
as que, no passado, a forçaram a encontrar
Para jul
gar os ou
tros, não adiantava observar como agiam em re-
lação às pes
so
as que que
ri
am impressionar; era preciso observar co-
mo trata
vam aque
les que nada podiam lhes oferecer.
Ainda as
sim, que exemplos deste último cenário Althea tinha?
Fora pas
to
re
ada por li
vra
ri
as e leituras, cabarés e cafés, e só teste-
munhara o com
por
ta
men
to civilizado de ambos os lados.
— En
tão por que eu deveria perder meu tempo? — pergun
tou
Hannah, co
mo se es
ti
ves
se lendo os pensamentos de Althea.
— Dev tam
bém não gosta deles — comentou, sem sa
ber por que
estava in
sis
tin
do de
pois que a mulher oferecera uma saída daquela
conversa es
pi
nho
sa.
Tal
vez por
que a re
sig
nação decepcionada no rosto dela doera
mesmo as
sim, Althea que
ria sua aprovação.
E vo
cê é ami
ga de
la, Althea queria dizer, mas não disse. Soaria
muito ca
ren
te e ima
tu
ro, a deixaria vulnerável, uma lembrança de
Hannah pa
re
cia ter ou
vido a última parte.
— Não se en
ga
ne pe
la propaganda, pombinha. O fervor por Hitler
pessoas tor
cem o na
riz, mas, a despeito disso, trabalham com ele.
Por al
gu
ma ra
zão, aqui
lo parecia pior do que escolher um lado.
— A vi
da não é um conto de fadas — continuou Hannah, clara-
mente len
do Althea mui
to melhor do que deveria depois de ape
nas
dois bre
ves en
con
tros. — Pessoas boas fazem coisas ruins, pessoas
Hannah apa
gou seu ci
gar
ro. — Agora conte-me sobre o que estava
escreven
do.
— São só de
ta
lhes — ad
mitiu Althea, percorrendo a sala com os
olhos.
Dois ho
mens de ves
ti
do, com os cabelos penteados como os de
Dev, os sal
tos dos sa
pa
tos estalando contra o piso enquanto dança-
Uma du
pla de tu
ris
tas francesas, senhoras na casa dos sessenta, que
claramen
te não sa
bi
am o que estava acontecendo, mas que sorriam
o tempo to
do, aco
mo
da
das em seus lugares.
jar enquan
to Han
nah se mexia, o drapeado na lateral do vestido insi-
nu
ando as for
mas de seu quadril. — Antes, sempre que eu escrevia,
precisava con
fia
r em re
vistas, livros e, se tivesse sorte, fotogra
fias
dos luga
res que es
ta
va des
crevendo.
— Nun
ca pen
sei nis
so — ad
mitiu Hannah, a parte ex
terna da co-
xa aper
tan
do o jo
elho de Althea.
Althea afas
tou a be
bi
da, a efervescência claramente a estava afe-
tando. Ou tal
vez fos
se só a atenção de Hannah, cheia de curiosidade,
em vez de des
dém.
— Exis
tem de
ta
lhes universais — disse Althea. Ela vi
rou a palma
da mão so
bre a me
sa. — Um pulso sempre será um pulso. Com veias
da mão, pa
ra de
pois vol
tar. A mente de Althea se esvaziou, sua boca
ficou se
ca, um zum
bi
do to
mou seus ouvidos.
— Se vo
cê to
car… — incentivou Hannah, com a voz rouca, pare-
— Po
de sen
tir o co
ra
ção de uma pessoa — finalizou Althea, com
dificulda
de.
Hannah sus
ten
tou o olhar de Althea.
— Mas, exis
tem coi
sas que dá só para imaginar.
— Sim.
Althea des
vi
ou o olhar, depois lamentou a falta do toque de Han-
nah quan
do ela se re
cos
tou de volta na cadeira.
perna de Han
nah to
ca
va a dela.
Se vo
cê to
car…
O su
or se acu
mu
la
va em sua lombar e ela sentia o corpo todo
quente, um ar
re
pio per
se
guindo o rastro das chamas.
— Al
gum pro
ble
ma? — perguntou Hannah, sua expressão indeci-
— Não. — Pi
gar
re
ou, forçando-se a eliminar a hesitação de sua
voz. — Es
tá tu
do bem.
— Vo
cê es
ta
va me ex
plicando sobre detalhes — disse Hannah, e
Althea ten
tou de
ses
pe
ra
damente se lembrar do que já tinha falado.
— É… al
guns de
ta
lhes você pode extrapolar. Um pulso é um pul-
mesmas em qual
quer lu
gar do mundo — elaborou Althea. — Um
carro é um car
ro, uma cai
xa de gelo é uma caixa de gelo.
“Pos
so cons
truir um mundo que pareça real para meus leito
res.
você che
gar a lu
ga
res de
pressa. Mas há limitações para isso. Eu sei
como é um res
tau
ran
te no Maine, mas não sei como é um restauran-
te na Ín
dia. O que o tor
na diferente de um restaurante na Austrália,
e o que tor
na es
se res
tau
rante diferente de um na Califór
nia?”
— Ou de um ca
ba
ré em Berlim? — completou Hannah, acompa-
nhando o ra
ci
ocí
nio.
— En
tão eu pes
qui
so e adivinho e espero. Mas sempre percebo,
pelos de
ta
lhes, quan
do um autor esteve em outro lugar que não os
três quilô
me
tros qua
dra
dos ao redor de onde nasceu. — Ela olhou
para os la
dos, ca
ta
lo
gan
do a cena como fazia antes. — Eu nunca po-
— E es
tá gos
tan
do? — perguntou Hannah, a voz mais gentil do
que no iní
cio da con
ver
sa.
Althea ima
gi
nou que par
te de seu espanto já estivesse evidente.
— É o re
tra
to do que é a vida, não é? — perguntou, corando com a
serieda
de de sua pró
pria voz. — É como se os cabarés usassem luzes
diferen
tes pa
ra tor
nar tu
do mais vibrante, mais intenso. A raiva, a
alegria, a pai
xão. Vi
da. Tu
do é mais aqui.
Uma apro
va
ção cin
ti
lou nos olhos de Hannah, e Althea desejou se
banhar ne
la.
— En
tão me di
ga, pom
binha, você dança?
Surpre
sa com a per
gunta, Althea só conseguiu piscar enquanto
imagina
va um ema
ra
nha
do de membros, coxas encaixadas, barrigas
pressionan
do uma à ou
tra enquanto a música rápida tocava ao fun-
do da ce
na. Ima
gi
nou seus dedos roçando a seda daque
le vestido, a
seda da pe
le de Han
nah.
Se vo
cê to
car…
— Não, eu nun
ca… Não — respondeu, desajeitada. — Não, eu não
sou de dan
çar.
Por um lon
go ins
tan
te, Hannah não reagiu. Então ficou de pé as-
— Pe
na — co
men
tou ela, sem tirar os olhos da outra garota.
Althea pô
de ape
nas ob
ser
var as duas se misturarem à multidão.
Dev de
sa
bou no as
sen
to vazio onde Hannah estivera, passou o
braço ao re
dor de Althea e plantou um beij
o molhado em sua têmpo-
ra.
— Ca
be
ça er
gui
da, que
rida. Não é uma noite no caba
ré de verda-
de se não ti
ver um pou
co de mágoa.
— Vo
cê sa
be que is
so não é nada reconfortante.
cadeira ru
mo à pis
ta de dança, ignorando seus protestos.
— E vo
cê não é tão sem graça quanto pensa.
— Na
da re
con
for
tan
te — repetiu Althea, sem conseguir conter o
riso quan
do Dev a gi
rou antes de puxá-la de volta para perto.
Bom, tal
vez al
guns te
nham olhado por causa de Dev, mas não por-
Althea aca
bou en
cos
ta
da ao corpo de Dev, apenas por um mo-
Dev, as pal
mas das mãos de Althea não suavam, seu coração não dis-
parava. Es
ta
va fe
liz, mas o tipo de felicidade decorrente de risa
das
compar
ti
lha
das com uma nova amiga.
ceira, fi
xan
do os olhos nos de Hannah do outro lado do espaço lota-
do. A mu
lher se en
tre
ga
ra aos braços dela, o balançar de seus cor
pos
sensual e hip
no
ti
zan
te.
A can
to
ra en
to
ava al
go com uma batida rápida e também melan-
cólica, os trom
pe
tes im
pe
tu
osos e os acordes do blues acompanhan-
o ritmo. A mul
ti
dão se juntou ao coro, as mesas e cadeiras arrastan-
do no pi
so e anun
ci
an
do mais pessoas chegando à pista de dança.
Duran
te tu
do aqui
lo, Hannah não desgrudou os olhos dos de
Althea. De
va
gar, sem ne
nhuma pressa, Hannah levou o pulso de sua
parceira de dan
ça até a bo
ca e deu um beijo na pele fina.
Althea qua
se sen
tiu o sussurro quente contra o próprio pulso.
Se vo
cê to
car… po
de sen
tir o coração de uma pessoa.
Nova York
Maio de 1944
dos Li
vros Proi
bi
dos pe
los Nazistas no Brooklyn, e, por algum moti-
vo estra
nho, es
ta
va ner
vo
sa em voltar.
Tal
vez por sa
ber que a bi
bliotecária seria a peça perfeita para seu
confron
to com Taft, tal
vez por saber que a mulher provavelmente
recusaria se fos
se con
vi
da
da a falar.
Havia mui
to a fa
zer em vez de ir até o Brooklyn. Tinha pouco
presença da im
pren
sa. No entanto, toda vez que duvidava de si mes-
ardor na voz.
Outra do
se da
qui
lo só poderia lhe fazer bem.
e sim aju
dan
do uma jo
vem à mesa, ambas de cabeça baixa olhando o
livro aber
to.
chão de ma
dei
ra, os olha
res de ambas dispararam até ela, um cheio
de pâni
co, o ou
tro, gé
li
do.
— É… — mur
mu
rou Viv, constrangida pela sensação desconfor-
tável de pa
re
cer uma po
li
cial que acabara de entrar em um bar clan-
destino.
Em se
gun
dos, a jo
vem passou correndo por Viv, esbarrando nela
em seu evi
den
te de
ses
pe
ro para escapar.
Viv a ob
ser
vou par
tir, consternada. Quando se virou de volta para
a bibliote
cá
ria, o ros
to da mulher era de pedra.
— Sin
to mui
to. Eu não…
A bi
bli
ote
cá
ria sus
pi
rou e fechou o livro em que estava imersa
com a jo
vem.
— Co
mo pos
so aju
dá-la, sra. Childs?
com o uni
ver
so por en
viá-la ali na hora errada.
A bibli
ote
cá
ria olhou para a porta por onde a visitante havia fugi-
do.
— Não adi
an
ta mais.
Viv se apro
xi
mou, ten
tando ter um vislumbre da capa, mas a bi-
bli
otecá
ria pu
xou o li
vro junto ao peito. Um gesto de proteção.
E mais uma vez, Viv a viu como mais do que uma bibliotecária.
Uma guar
diã.
Algo na
que
la ideia era tão convincente que Viv não conseguia dei-
xá-la de la
do, ape
sar de não ter direito de pedir um favor àquela mu-
lher um fa
vor.
— Tal
vez eu pos
sa aju
dá-la, então — sugeriu Viv, secando as pal-
carrinho ao la
do da bi
bli
ote
cária, sobre o qual havia uma pilha de li-
vros. — E po
de
mos fa
lar mais sobre a biblioteca.
— Tu
do bem — con
cordou a mulher, com uma cordialidade que
não esta
va lá an
tes e que se espalhou para os cantos dos olhos e da
boca. — Vo
cê em
pur
ra. Si
ga-me.
Viv cor
reu até o car
ri
nho, segurando ansiosamente as alças de
bronze e em
pur
rou.
Os livros ba
lan
ça
ram, mas não caíram.
— Sa
bia que não fo
ram somente os livros de ficção que foram
queima
dos na
que
la noi
te em Berlim? — começou a bibliotecá
ria,
conforme as du
as avan
ça
vam para as prateleiras dos fundos. — Pou-
cas pes
so
as sa
bem que, poucos dias antes das fogueiras, estudantes
invadiram o Ins
ti
tut für Se
xualwissenschaft .
Ao no
tar o si
lên
cio e a confusão de Viv, a bibliotecária olhou para
— O Ins
ti
tu
to de Es
tu
dos Sexuais.
Viv co
rou.
— Ah.
— Eles des
truí
ram o lo
cal, que estava conduzindo pesquisas ino-
vadoras so
bre mu
lhe
res, homossexuais e intermediários sexuais —
prosseguiu a bi
bli
ote
cá
ria, sem um só sinal de hesitação na voz.
Viv que
ria ser bla
sé da
quele jeito, queria ser sofisticada, mas, nos
cír
culos que fre
quen
ta
va, nunca ouvira duas daquelas palavras pro-
— In
te
res
san
te — con
seguiu dizer.
— Os vân
da
los rou
ba
ram o busto do fundador, Mag
nus Hirsch-
feld, do sa
guão do ins
ti
tu
to e, dias depois, o levaram como um troféu
de guer
ra pa
ra as fo
guei
ras na Opernplatz — continuou a mulher,
ram gran
de par
te de sua pesquisa, além das únicas cópias que existi-
am. O ata
que fez o mun
do retroceder décadas.
Viv su
pe
rou o pró
prio desconforto.
— Que hor
ror.
A bi
bli
ote
cá
ria pa
rou em frente às seções de livros e deslizou o
que ain
da se
gu
ra
va jun
to ao peito de volta no lugar. Viv captou o no-
me do au
tor.
Hirsch
feld.
Ah.
Mu
lhe
res, ho
mos
se
xu
ais e intermediários sexuais.
Viv pen
sou na jo
vem que se assustara tanto com sua chegada, en-
— Ah.
— Mas, co
mo eu dis
se, depois que palavras são escritas, não po-
dem dei
xar de exis
tir só porque alguém as queima. Ideias não po-
dem sim
ples
men
te ser apagadas. Pessoas não podem ser apagadas.
— A bibli
ote
cá
ria to
cou a lombada do livro com delicadeza e respei-
to antes de con
ti
nu
ar: — Queimar livros sobre coisas que você não
existir.
— Co
mo foi aque
la noi
te? — perguntou Viv em um tom abafado,
quase de
se
jan
do ter se contido.
A aten
ção da bi
bli
ote
cá
ria estava toda no rosto de Viv, que se per-
Uma cu
ri
osi
da
de de
se
legante, talvez?
ainda es
ta
va de
ses
pe
ra
da atrás de uma história, algo que comovesse
o público e o ti
ras
se da apatia generalizada em relação a qualquer as-
sunto po
lí
ti
co. Mas tam
bém não podia negar que simplesmente que-
ria conhe
cer a mu
lher, ou
vir suas experiências.
— Mo
lha
da — res
pon
deu a bibliotecária, com ironia, estendendo
a mão pa
ra que ela en
tre
gasse o próximo livro.
A risa
da de Viv pre
en
cheu o espaço.
— Foi?
— Os na
zis
tas não es
ta
vam conseguindo manter as fo
gueiras ace-
sas, na ver
da
de. Os can
tos de sua boca se curvaram de uma maneira
que denun
ci
ava es
tar achando alguma graça na questão, misturada
ao que po
de
ria ser ce
ti
cis
mo.
— Ti
ve
ram que fi
car o tempo todo jogando gasolina nas pilhas de
livros.
— Às ve
zes, o que me incomoda mais são os livros que eles não
queima
ram — re
fle
tiu a bibliotecária, arquivando um volume da
pesquisa de Freud.
— Co
mo as
sim?
A bibli
ote
cá
ria dis
pa
rou um daqueles olhares avaliati
vos de novo
— O que vo
cê acha que acontece com os livros do povo judeu en-
viado pa
ra os cam
pos de concentração?
— Eu acho… Nun
ca pensei nisso.
A bibli
ote
cá
ria in
cli
nou a cabeça.
— Pou
cos pen
sam. Os nazistas começaram a invadir as bibliote-
cas priva
das dos ju
deus alemães quando precisavam recolher livros
suficien
tes pa
ra quei
mar e fazer um espetáculo. E nunca pararam.
— In
va
sões. Co
mo fi
ze
ram com o… — Viv teve dificuldades com o
alemão. — Ins
ti
tut für Se
xualwissenschaft ?
Aqui
lo lhe ga
ran
tiu um quase sorriso.
— Che
gou per
to. E sim, as tropas de assalto confiscaram livros
“não ale
mães” de li
vra
ri
as comunistas, bibliotecas, casas… Havia um
prédio em Ber
lim que abrigava e protegia escritores que lutavam ati-
vamente con
tra a cen
su
ra. Todos os quinhentos apartamentos fo-
ram revis
ta
dos e van
da
li
zados antes das queimas.
— Eles ain
da es
tão in
cinerando livros esse tempo todo? — per-
nitos do car
ri
nho, uma dor no peito ao pensar naqueles livros como
— Acre
di
to que não. Pelo contrário. Acho que estão acumulando
livros. Os ca
na
lhas es
tu
dam.
— Co
nhe
ces teu ini
mi
go? — sugeriu Viv, baixinho.
A bibli
ote
cá
ria as
sen
tiu.
— Os na
zis
tas são re
tratados na propaganda como anti-intelectu-
ais igno
ran
tes, mas os lí
deres sabem como o conhecimento é pode-
tecária, o hu
mor áci
do mais uma vez marcando sua voz.
— Os na
zis
tas?
motivo, pa
re
cia uma vi
ola
ção.
— São mi
lha
res de as
sociados lendo Goethe, Schiller e qualquer
literatu
ra pró-ale
mã que quiserem. — A bibliotecária ba
lançou a ca-
beça. — Su
po
nho que se
ja como a sua EFA.
ses polí
ti
cos.
A bibli
ote
cá
ria a fi
tou com um olhar duvidoso.
— To
do mun
do tem in
teresses políticos. No entanto, peço descul-
Mas aqui
lo só ati
çou a cu
riosidade mórbida de Viv.
— Quem di
ri
ge o clu
be do livro?
— Ah, o Mi
nis
té
rio da Propaganda de Goebbels tem uma Câmara
Nacional de Li
te
ra
tu
ra.
De re
pen
te, qual
quer graça que a bibliotecária estivesse achando
do ergui
das no
va
men
te, e Viv ficou um pouco abalada com a mudan-
ça abrup
ta.
Às ce
gas, a mu
lher ar
quivou o último livro, então olhou para o
carrinho va
zio.
Com ca
da pe
da
ci
nho de sinceridade que possuía, Viv disse:
— Vo
cê já dis
se is
so an
tes, e eu continuo não acreditando — refle-
tiu a bibli
ote
cá
ria, vol
tan
do para a recepção.
E em vo
cê, pen
sou Viv, embora tenha guardado aquela parte para
si.
— A mis
são, a his
tó
ria… Sei que nossas batalhas são muito dife-
rentes, mas vir aqui me faz lembrar de por que estou lutando tanto.
— Os lou
cos po
dem ser barulhentos, mas nós também podemos
ser. À nos
sa ma
nei
ra.
Viv se es
for
çou pa
ra formular outra pergunta que não a levasse a
pedir à bi
bli
ote
cá
ria que revelasse todos os seus segredos em um
palco na fren
te de al
guns políticos e de toda a imprensa da cidade de
No
va York.
Talvez vo
cê pos
sa até ci
tar um, mas não significa que não haja uma
centena de ou
tros igual
men
te importantes.
Ela con
ti
nu
ou, an
tes que Viv pudesse se retratar pela pergunta:
— Tem um li
vro que me traz conforto e ao qual recorro quando
quero aque
la sen
sa
ção de um chá quente em um dia de neve.
— E qual se
ria? — per
guntou Viv, ansiosa pela resposta.
— O Par
na
so so
bre ro
das, de Ch
ristopher Morley — revelou a bi-
bli
otecá
ria, com um sor
ri
so suave, os olhos um pouco sonhadores,
um pou
co dis
tan
tes. — “Quando você vende um livro a um homem,
não ven
de a ele ape
nas do
ze onças de papel, tinta e cola; você vende
noite. To
do o céu e a ter
ra estão em um livro.”
Era co
mo se al
guém ti
vesse condensado a vida de Viv e a engarra-
— Pre
ci
so ler es
se.
— Acre
di
to que vo
cê vá achar interessante.
pedir pa
ra não ex
tra
po
lar as boas-vindas. No entanto, antes de se
afastar, ten
tou a sor
te:
— E pos
so sa
ber seu no
me?
Uma par
te de
la qua
se não queria desvendar aquele mistério fasci-
era carac
te
rís
ti
co.
— Tal
vez ou
tro dia.
Pa
ris
Novem
bro de 1936
A Bibli
ote
ca Ale
mã da Liberdade fora convertida em uma espécie
de oficina pa
ra a pró
xi
ma exposição contra os nazistas.
Os mem
bros do con
se
lho da biblioteca concordaram com Han-
nah e de
ci
di
ram im
pri
mir o romance que escreveram para repre-
sentar a ver
são da co
mu
ni
dade emigrante do ideal alemão. Na sema-
na ante
ri
or, no en
tan
to, o plano evoluíra para algo ainda maior.
O ob
je
ti
vo não era só combater os nazistas, mas também sensibi-
lizar os pa
ri
si
en
ses. Tal
vez não os que já torciam para que a agenda
de Hitler se es
pa
lhas
se pe
la França, mas os que não tinham certeza,
Estu
dan
tes e vo
lun
tá
rios tinham transformado a mesa cen
tral
em uma fá
bri
ca de pan
fle
tos. Membros do conselho da biblioteca se
amonto
avam em ca
dei
ras de ponta a ponta, ocupados em selecio
nar
os me
lho
res ma
te
ri
ais pa
ra exibir no espaço alugado para a exposi-
ção, e o res
tan
te da equi
pe estava mais ocupado com tarefas genéri-
combater a re
tó
ri
ca odi
osa que certamente seria manifestada era
emocio
nan
te. A úl
ti
ma vez que sentira uma esperança tão intensa e
iminen
te fo
ra na pri
ma
ve
ra antes da prisão de Adam.
Hein
ri
ch Mann, pre
si
dente da biblioteca, a encarregou Han
nah
de visitar li
vrei
ros lo
cais e pedir ajuda para mostrar o melhor da lite-
ratura ale
mã. Sua ta
re
fa era persuadir as lojas a fornecer alguns
exempla
res de gra
ça, de modo que estivessem disponíveis para os
curiosos fo
lhe
arem sem a pressão de ter que comprá-los.
Hannah es
ta
va ves
tin
do o casaco quando o sininho acima da por-
bolso.
Não es
ta
va com tem
po para cumprir o cronograma habitual de
distribui
ção de pan
fle
tos e sentia falta de algumas das pessoas que
visitava.
Os olhos de Lu
ci
en percorreram o lugar, os ombros se curvando
— Tem al
guns mi
nu
tos? — perguntou ele.
ria em bre
ve, e que
ria fa
lar com Sylvia Beach ainda naquele dia.
— Po
de
mos con
ver
sar no caminho?
Lucien fi
cou em si
lên
cio até estarem a quarteirões de distância
da bibli
ote
ca, e Han
nah também não o pressionou, ainda que a preo-
cupação de
le fos
se evi
den
te na testa franzida e na inclinação da bo-
ca.
— Vo
cê é ami
ga de Ott
o Koch, não é? — perguntou ele, ao dobra-
rem no Jar
dim de Lu
xem
burgo.
— Sim.
para tran
qui
li
zá-la, pro
va
velmente notando a angústia na voz dela.
das reu
niões da Re
sis
tência. Ele também havia sido próximo de
Adam.
— Vo
cê não es
ta
ria me dizendo isso se não tivesse acontecido al-
guma coi
sa — res
pon
deu ela, da forma mais calma possível.
Mais uma vez, Lu
ci
en ficou mudo. Eram em momentos como
te. Um ale
mão co
mo ela não teria se preocupado em chocá-la ou ma-
goá-la.
— Po
de di
zer.
— Vo
cê dis
se que seu irmão foi preso pelos nazistas — continuou
Lucien.
Hannah cra
vou as unhas na palma da mão para não estender o
braço e sa
cu
di-lo até ar
rancar a informação.
— Sim.
— Otto es
tá… ele es
tá falando como se estivesse prestes a se me-
ter no mes
mo ti
po de pro
blema. No início, quando ia às reuniões, ele
se senta
va no fun
do, sempre reservado. Ultimamente, tem falado
mais. En
tão, on
tem à noi
te, ele começou uma briga com um dos ho-
física, Han
nah.
Ela sol
tou uma res
pi
ra
ção, trêmula. Aquilo não era bom, mas po-
— Eu ti
ve que ex
pul
sá-lo — contou Lucien. — E mandei que não
voltasse.
Ambos sa
bi
am o que aquilo significava: Otto poderia buscar um
— Pre
ci
so pen
sar nos ou
tros — justificou Lucien, como se implo-
rasse a Han
nah que não fi
casse com raiva dele.
Ela en
tão per
ce
beu que estava em silêncio há vários minutos.
— Cla
ro, que
ri
do — respondeu, interrompendo a caminhada pa-
ra abraçá-lo.
Hannah pou
sou os lá
bios de leve na bochecha de Lucien, para
Lucien fi
ze
ra o que era ne
cessário para proteger seu grupo.
— Eu vou fa
lar com o Otto.
— Obri
ga
do — agra
de
ceu Lucien, parecendo ter tira
do um peso
dos om
bros. — Ele se vi
rou para ir embora, mas parou e olhou para
trás. — Pre
ci
sa
mos do ti
po de ardor que ele tem, mas, se queimar-
mos o mun
do pa
ra des
truir os nazistas…
Hannah con
cluiu o pen
samento:
— Não ha
ve
rá mais mundo onde viver depois que eles se forem.
do pesade
lo cheio de cor
pos espancados e ossos quebrados, mas gra-
Então no
tou uma ba
ti
da na porta, muito abaixo de seu pequeno
apartamen
to no ter
cei
ro andar.
Algo som
brio em
bru
lhou seu estômago, como uma premonição, e
ela chu
tou lon
ge os co
ber
to
res finos, saiu apressada da cama e atra-
vessou o quar
to até a ja
ne
la.
— Han
nah — cha
mou alguém, em um soluço. — Hannah.
Um co
ra
ção de
vas
ta
do, assolado. Desesperado.
— Otto, pa
re.
Ela fa
lou o mais bai
xo possível, mas ele a ouviu, levantou o rosto e
No ins
tan
te se
guin
te, a porta da casa se abriu. Brigitte segurou
Otto pe
lo co
la
ri
nho do ca
saco e o sacudiu. Hannah sabia que Brigitte
não se im
por
ta
va com a pro
priedade, mas não suportava ser acorda-
da no meio da noi
te. Otto teria sorte de escapar sem um olho roxo.
Hannah co
lo
cou um vestido e correu degraus abaixo.
— Ma
de
moi
sel
le, je suis désolée, désolée — balbuci
ou Hannah,
dir Ott
o pa
ra en
ca
rá-la. Então a mulher começou a praguejar o que
Hannah só po
dia ima
gi
nar ser a mais terrível das maldições enquan-
to ainda se
gu
ra
va Otto, que soluçava. Por fim, Brigitte o empur
rou
na direção de Han
nah e voltou para dentro.
Desde que na
da do que Brigitte dissera fosse sobre um possível
despejo, Han
nah de
ci
diu en
carar o ataque verbal como a melhor das
alterna
ti
vas pa
ra a si
tu
ação.
— Otto, que
ri
do, o que eu faço com você? — perguntou, princi-
palmente pa
ra si mes
ma, visto que Otto estava perdido na própria
turbulên
cia emo
ci
onal.
Ela pas
sou o bra
ço em volta da cintura dele e o arrastou pelos três
lances de es
ca
das, já sen
tindo dor nos braços ao chegar ao quarto.
Hannah o gui
ou pa
ra que, quando o soltasse, ele caísse na cama.
Otto a en
ca
rou com olhos intensos e vermelhos, seu queixo tre-
mendo en
quan
to ten
ta
va reunir algum autocontrole. Hannah se
sentou ao la
do de
le e aca
riciou seus cabelos. Tentou não se lembrar
do aviso de Lu
ci
en no iní
cio daquele dia, mas era impossí
vel.
Empre
gan
do o tom de voz que usaria com uma criança doente,
ela pergun
tou:
— O que acon
te
ceu, querido?
— Eu os odeio.
Lá es
ta
va aque
le ar
dor, tão belo, mas ainda assim tão mortal.
— Eu sei — mur
mu
rou Hannah, puxando um de seus cachos em
um gesto qua
se ma
ter
nal.
— Eles ti
ra
ram tu
do de nós — continuou Otto, não, com um ge-
mi
do, mas com um sus
sur
ro. — O que mais a assustou foi aquela no-
va deter
mi
na
ção na voz do amigo. — Tudo.
— Não ti
ra
ram nos
sa vi
da — lembrou Hannah.
— Só por
que ti
ve
mos sorte — rebateu Otto, com um suspiro. —
Somos os pou
cos sor
tu
dos.
Ela as
sen
tiu. Ne
nhum dos dois precisava mencionar Adam.
— O que acon
te
ceu, meu bem? — insistiu Hannah.
Aque
le era um ter
re
no bem trilhado, e, embora Otto estivesse
cheiran
do a uma des
ti
la
ria, não era só o álcool que o deixara tão sen-
timental ul
ti
ma
men
te.
Ele às ve
zes sen
tia o mundo com intensidade demais. Tanto as
alegrias co
mo as cru
el
da
des. Ainda assim, nos últimos meses, aquilo
parecia ter pi
ora
do, as for
tes emoções alimentadas pela bebida e pe-
queria es
sa ba
ta
lha. O simples ato de sobreviver já era exaustivo o
bastante.
Otto sor
riu, fi
tan
do-a nos olhos, então tirou a camisa de dentro
da calça, le
van
tan
do-a o suficiente para revelar os ossos estreitos do
quadril. E o pu
nho de me
tal de uma pistola.
Hannah pren
deu o ar, áspero e doloroso, que se alojou no fundo
da gar
gan
ta.
— Otto, não!
— Fiz ami
gos.
— Não os ami
gos cer
tos, se estão fornecendo armas — atestou
Hannah, ou
vin
do a he
si
ta
ção que tanto odiava na própria voz.
Mas, tu
do o que via era o rosto de Adam quando ele contou sobre
seus pla
nos de des
truir um prédio nazista em Berlim. Havia um fer-
vertênci
as. E via a mes
ma coisa nos olhos de Otto naquele momento,
mesmo la
cri
me
jan
tes co
mo estavam.
— Con
tei a eles so
bre a exposição — continuou Otto, como se ela
não tives
se di
to na
da. — Eles também acham que está chegando a
hora, Han
nah. A guer
ra. Eles sabem, assim como nós.
— Ser ba
le
ado por na
zis
tas não vai impedir a guerra — decretou
ne
trante den
tro de sua ca
be
ça.
Preci
sa
va pen
sar, pre
ci
sava fazer ele desistir.
— Tal
vez im
pe
ça — dis
cordou Otto. — Talvez isso faça Paris acor-
dar. E fa
ça Pa
ris ver os na
zistas como os bárbaros que são.
zer se vo
cê ma
tar um de
les. Eles vão descontar nos judeus na Alema-
nha. Vo
cê sa
be que vão. Farão da vítima um mártir da violência ju-
daica.
— Nós nun
ca va
mos con
vencer os nazistas de nada — disse Otto,
samos con
ven
cer o mun
do.
— Seus ami
gos es
tão usando você, Otto. Eles querem causar pro-
blemas. Is
so é anar
quia, não vai convencer ninguém.
— A anar
quia é tão ruim assim? — desafiou Otto. — Quando a ou-
Hannah cer
rou os lá
bi
os para encerrar a discussão. Otto não se
deixaria con
ven
cer; não no estado em que estava.
— Con
te mais so
bre es
ses seus amigos.
com Han
nah pa
ra se con
ter.
— Eles já es
tão for
mando um grupo de Resistência. Querem ter
um gru
po es
ta
be
le
ci
do, com códigos e abrigos já estipulados antes
que os ale
mães che
guem.
te sen
do, das pes
so
as que conhecia, aquela que mais alertava os ou-
E esta
va tão acos
tu
ma
da que não a ouvissem que pare
cia suspeito
ou
tros re
co
nhe
ce
rem o que estava acontecendo.
— São to
dos dra
ma
tur
gos e atores de teatro, têm laços com pes-
soas na Ale
ma
nha. Eles vi
ram o que vimos. Eles sabem.
Otto re
pe
tiu aque
le úl
timo trecho várias vezes até sua fala ficar li-
geiramen
te ar
ras
ta
da.
Hannah ten
tou man
ter a voz equilibrada para perguntar:
— E eles que
rem que você leve essa pistola para a exposição de li-
vros?
— Eu que pe
di — afir
mou Otto, retomando o tom agressivo e tei-
De ma
nhã, ela fa
la
ria com ele e o faria ouvir a razão.
respira
ção se acal
man
do.
O céu já co
me
ça
ra a clarear, os raios de luz se esgueirando pelo
tapete puí
do, quan
do Hannah tomou sua decisão. Lentamente, co-
mo Otto fi
ze
ra ho
ras an
tes, ela levantou a camisa dele, com os olhos
ma em um xa
le ve
lho e se ajoelhou ao lado do closet, tateando em
busca do en
ta
lhe que pre
ci
sava empurrar para levantar a tábua do
piso. En
con
trou o pon
to que queria e, o mais silenciosamente possí-
Feve
rei
ro de 1933
D ev apres
sou Althea, com um olhar furtivo para a noite atrás de si.
parecia pre
ocu
pa
da por serem mulheres sozinhas enveredando pela
cidade.
Naque
la noi
te, po
rém, ela estava claramente tensa.
— Al
gu
ma coi
sa er
ra
da? — perguntou Althea, pulando a cada
poucos pas
sos pa
ra acom
panhar as longas passadas de Dev e seu rit-
mo aflito.
— Que
ro te mos
trar uma coisa — explicou a amiga, uma resposta
que já se tor
na
ra fa
mi
li
ar.
Althea já per
de
ra a con
ta de quantas vezes Dev apare
cera em sua
nas antes.
Quero te mos
trar uma coisa poderia ser qualquer coisa — desde
um espe
tá
cu
lo obs
ce
no em alguma boate até uma pintura de uma
das ga
le
ri
as da Ilha dos Museus, ou uma banda de músicos de rua es-
pecial
men
te ani
ma
da que se instalara no Tiergarten. Althea conhe-
du
rante to
da a re
si
dên
cia, se tivesse contado apenas com Diedrich.
Althea nun
ca ti
ve
ra uma amiga de verdade. Amava o irmão, que
largava qual
quer coi
sa quando ela precisava de ajuda, mas seus ami-
gos sem
pre es
ti
ve
ram nas páginas dos livros ou na escrita. Aquele ti-
po de pro
xi
mi
da
de ela até então só pudera imaginar e, claramente,
nunca en
ten
de
ra.
perdido.
Esbar
rou de le
ve na amiga, quando ela. Sem nenhum aviso, Dev
segurou o pul
so de Althea e a puxou para o beco mais próximo. De lá,
caminha
ram em um rit
mo ainda mais acelerado, saindo em uma rua
e depois vol
tan
do a se es
con
der nas sombras.
Cinco mi
nu
tos de
pois, Dev atravessou a porta de um café discre-
de uma xí
ca
ra de ca
fé. Ain
da assim, Dev nem hesitou.
res pró
xi
mos da ida
de de Althea ou mais jovens. Tinham reunido
cerca de qua
tro me
sas, as cadeiras apertadas, com canecas, xícaras e
até algu
mas ta
ças de vi
nho espalhadas por toda parte. Um dos jovens
de ator sha
kes
pe
ari
ano.
Quan
do avis
tou Dev, ele gritou uma saudação e cruzou a sala de-
pressa pa
ra abra
çá-la.
Dev es
ta
va rin
do quan
do ele a soltou e olhou para Althea, que re-
cuou um pas
so pa
ra não arriscar a mesma recepção. Já estava se
acostuman
do a co
nhe
cer novas pessoas o tempo todo, mas não tinha
interesse al
gum em ser le
vantada do chão por um estranho.
O su
jei
to en
ten
deu a deixa e apenas sorriu para ela.
— Olá.
O ho
mem ti
nha olhos de cachorrinho, de um marrom brilhante,
grandes o su
fi
ci
en
te pa
ra usar em prol de conseguir o que quisesse a
qualquer ho
ra. As bo
che
chas coradas e os cabelos castanhos desgre-
nhados in
ten
si
fi
ca
vam a sensação de ebulição ofegante que se derra-
mava de
le em on
das.
Althea se sur
pre
en
deu com a vontade de segui-lo onde quer que
ele a le
vas
se. Já ti
nha li
do sobre personalidades que inspiravam
aquele ti
po de de
vo
ção imediata, mas nunca conhecera uma pessoa
assim na vi
da re
al.
— Althea, vo
cê já co
nhece Hannah — disse Dev, talvez com insi-
nu
ações de
mais na voz, para o gosto de Althea. — E este é o sr. Bre-
cht.
Por um mo
men
to que pareceu mais um soco no estômago, Althea
ram pa
ra o gru
po, pro
cu
rando Hannah, e a encontrou observando-
— Ir
mão de Han
nah — esclareceu o homem, permitindo que
Althea vol
tas
se a res
pi
rar; ela notou que, Dev parecia satisfeita de-
vor, sou
be que é ami
ga de Dev e Hannah, e não gosto de formalida-
O gru
po en
to
ou bo
as-vin
das igualmente entusiasmadas para Dev
enquan
to to
dos se ajei
ta
vam, se remexiam e pegavam mais cadei
ras.
De algu
ma for
ma, quan
do toda a agitação se acalmou, Althea se viu
junto de Han
nah mais uma vez.
A mu
lher não es
ta
va tão sofisticada, o que fazia sentido, conside-
igualmen
te be
la, usan
do calça de cintura alta e suéter cor de amei-
xa, os ca
be
los pen
te
ados para trás em um coque torcido que realçava
Hannah chei
ra
va a la
ranja, linho recém-lavado e fumaça de cigar-
ro, um aro
ma in
con
fun
dí
vel que Althea estava começando a desco-
— Bem-vin
da ao nos
so grupo de estudo — murmurou Hannah,
enquan
to Adam cha
ma
va a atenção da plateia de volta.
— Gru
po de es
tu
do?
Hannah pis
cou.
— Ho
je es
tu
da
re
mos Os miseráveis.
Althea sa
bia que não es
tava entendendo alguma coisa, mas, no
mesmo ins
tan
te, Adam bateu com um dos pés na cadeira e abriu os
braços.
— “Há pes
so
as que ob
ser
vam as regras de honra como nós obser-
vamos as es
tre
las, de mui
to longe” — entoou, como se estivesse no
palco.
A ga
ro
ta no bal
cão da loja revirou os olhos, mas havia um sorriso
nos can
tos de sua bo
ca. Os poucos outros clientes no café ignoraram
o grupo, nin
guém pa
re
cia muito incomodado.
— “Mor
rer não é na
da. Assustador é não viver.”
— Ele es
tá só re
ci
tan
do trechos aleatórios? — pergun
tou Althea a
tória.
Hannah ar
re
ga
lou os olhos e apertou a boca com força. Althea
Hannah per
deu a lu
ta e gargalhou. Foi um som calmo e rouco que
combi
na
va com ela, e Althea imediatamente quis ouvi-lo mais uma
vez.
— Mi
nha nos
sa! — ex
clamou Hannah, secando o canto do olho
mulo da ins
pi
ra
ção.
— Pa
ra ser jus
ta, a pla
teia parece inspirada — ponderou Althea.
Todos no gru
po es
ta
vam inclinados para a frente como se quises-
sem se apro
xi
mar de Adam e de seu entusiasmo, seu magnetis
mo,
os irmãos, co
mo Adam era intenso em contraste com a frieza de
de fato le
ram o li
vro.
Hannah bu
fou, con
ten
do outra risada silenciosa, pronta para di-
zer algu
ma coi
sa, en
tão to
cou a coxa de Althea.
— Es
pe
re, es
pe
re, aí vem a melhor parte.
Adam es
ta
va em ci
ma da cadeira, as mãos estendidas para a fren-
te.
— “Até mes
mo a noi
te mais escura vai terminar.”
Althea co
nhe
cia a ci
ta
ção, mas ficou surpresa quando alguns dos
ou
tros ao re
dor da me
sa se levantaram, com os punhos no ar, en-
quanto en
to
avam de vol
ta em uníssono:
Os aplau
sos eclo
di
ram, e Adam pulou de volta para o chão para
dar tapi
nhas nos om
bros das pessoas mais próximas, aceitando
gri
mas de ale
gria nos olhos.
mas tam
bém…
va concor
dan
do com a cabeça. Geralmente, ela fugia de qualquer
Hitler de lo
bi
nho sem ne
nhum traço de ironia.
Mas a at
mos
fe
ra era di
ferente ali, naquele pequeno café abafado
onde to
dos pa
re
ci
am prontos para marchar até a barricada e lutar
pela liber
da
de. Era mes
mo adorável, mas também fazia Althea se
sentir ve
lha e cé
ti
ca.
No en
tan
to, não po
dia ignorar o calor que sentiu florescer ao ver
que Han
nah pa
re
cia sen
tir o mesmo.
— Is
to é mes
mo um grupo de estudo? — indagou Althea, mesmo
Hannah mor
deu o lá
bio, mirando Althea, depois Dev, depois
Adam, en
tão de vol
ta pa
ra Althea.
— Es
tá com me
do de que eu conte aos meus “mestres nazistas” —
— Dev pa
re
ce con
fi
ar em você, mas o quanto vale a confiança, sob
o nazismo?
Par
te de Althea que
ria ir embora só para escapar de mais conver-
sas po
lí
ti
cas. Era tu
do o que todos queriam debater, e ela não queria
decepci
onar Han
nah, ain
da mais se verbalizasse as ideias erradas.
Só queria sa
ber quais eram as ideias erradas.
Althea ti
rou os olhos de Hannah, examinando o grupo mais uma
vez, os ros
tos fe
li
zes, os corpos aconchegados como se não houvesse
necessi
da
de de es
pa
ço pessoal, a… talvez alegria não fosse bem a pa-
— Eu não gos
ta
ria que nenhum de vocês se machucasse.
Naqui
lo, Han
nah pa
re
ceu acreditar. Ela apagou o cigarro no cin-
zeiro dis
for
me lo
go em frente e suspirou.
— Os na
zis
tas co
me
ça
ram a invadir reuniões políticas organiza-
até der
ra
mar san
gue e pren
dem pelo menos metade.
— O quê? — exal
tou-se Althea.
— Is
so se os bru
tos não os matarem na hora — continuou Han-
— Herr Gö
ring tem o controle da aplicação da lei da Prússia —
disse Han
nah, e mais uma vez não parecia tentar convencer Althea,
apenas co
men
ta
va os fa
tos da vida. — Os assassinatos se
quer são re-
foram mor
tos, mas sa
be
mos que só vai piorar.
Hannah ace
nou pa
ra o grupo e, em seguida, alguns dos exempla-
res de Os mi
se
rá
veis sur
gi
ram sobre a mesa.
— Por
tan
to, so
mos um grupo de estudo de universitários locais.
— Por en
quan
to.
rão de brin
ca
dei
ra, no su
jeito ao lado de Hannah, tiran
do-o de sua
cadeira, e se aco
mo
dou de volta. Com os cabelos úmidos de suor e
aquele ar
dor nos olhos, ele poderia mesmo ter saído das páginas do
livro de Vic
tor Hu
go.
— Li seu ro
man
ce — começou ele, se debruçando sobre a mesa
para dedi
car to
da a sua aten
ção a Althea.
— Leu? — in
ter
rom
peu Hannah, imediatamente apertando os lá-
empres
tar, se vo
cê pe
dir com jeitinho.
— Pa
ti
fe.
— Achei fas
ci
nan
te — prosseguiu Adam, voltando-se para Althea,
que detec
tou a mais pu
ra sinceridade na declaração.
Alguns ami
gos de Di
edrich tinham menosprezado seu traba
lho,
sarcásti
cos so
bre per
der tempo em coisas tão frívolas como a ficção.
do. — Es
te só foi pri
mei
ro a ser publicado.
— Vo
cê nun
ca me fa
lou isso — disse Dev, atrás dela.
Envol
vi
da co
mo es
ta
va pelos irmãos Brecht, Althea quase esque-
— Es
sa par
te é ver
da
de — respondeu Althea, voltan
do a incluir
Dev na con
ver
sa.
Otto Ko
ch, que es
ta
va esparramado em uma cadeira do outro lado
de Dev, tam
bém se in
cli
nou, e Althea tentou não se encher com tan-
ta atenção.
— Foi um aca
so. O trem do meu atual editor quebrou perto da
nossa ci
da
de
zi
nha, e ele se hospedou no quarto que fica no pub do
meu irmão.
Althea sa
bia que era uma boa história. A editora inclusive a usara
para ven
der o li
vro, e o editor se gabava de ter encontrado um dia-
mante bru
to nas en
tra
nhas mais profundas de uma pequena cidade
de pesca
do
res.
— Eu pu
bli
ca
va uma série de mistério no jornal local, principal-
mente por
que não ha
via muito mais para preencher as páginas. Meu
irmão guar
da
va exemp
la
res no salão para os clientes terem algo pa-
seguinte, in
sis
tiu em sa
ber quem eu era e se eu tinha algum trabalho
— Cor
ta pa
ra vo
cê se tor
nando uma estrela literária — disse Dev,
anuncian
do a con
clu
são óbvia.
— Eu não me adap
tei totalmente — admitiu Althea, um eufemis-
mo.
Todos ri
ram, mes
mo que não tivesse sido uma piada.
que do li
vro em si, en
tão quis que o romance fosse bem-sucedido. Is-
so bastou.
— E en
tão o li
vro che
gou à mesa de Goebbels — disse Adam, ba-
lançando a ca
be
ça, ain
da com aquele sorriso fácil.
Althea es
ta
va per
ce
bendo as semelhanças físicas dele com Han-
nah, em
bo
ra a ex
pres
são da irmã raramente fosse tão amigável e
aberta.
tros a tro
car olha
res.
— Os na
zis
tas gos
tam de listas de ascendências — articulou
Adam, de
pois de um tem
po. — Ouvi dizer que você não sabe muita
coisa so
bre o es
ta
do atu
al de nossa política.
A son
da
gem foi mais delicada que a de Hannah, embora mais di-
— Con
fes
so que não sei se tenho cabeça para isso — disse Althea,
encaran
do a me
sa pa
ra evitar todos os olhares. — Nunca prestei
muita aten
ção em ca
sa.
— De
ve ser bom po
der escolher a ignorância — disse uma mu-
lher peque
na de ca
be
lo curto e cuidadosamente bagunçado, se jo-
gando no co
lo de Adam.
A expres
são de Han
nah se tornou ao mesmo tempo afetuosa e di-
vertida.
— Olá, Cl…
A sau
da
ção foi in
ter
rompida de repente pela mulher, que a chu-
tou na co
xa.
— Só usa
mos no
mes se necessário. Só porque vocês acreditam
— Eu não… — co
me
çou Althea, reconhecendo o nome dos ca
mi-
sas-pre
tas que agi
am co
mo segurança de Hitler.
Foi en
tão, po
rém, que Althea percebeu que a mulher tinha tinta
nas palmas das mãos, nos pulsos, na calça masculina que usava e no
colete aber
to.
— Vo
cê es
tá im
pri
min
do alguma coisa?
A mu
lher res
pon
deu com um olhar irritado.
— Não li
gue pa
ra ela — disse Adam, e Althea notou que ele não
usara o no
me da mu
lher. Respeitara o pedido. — Ela fica irritada
— Pra
zo?
— Os na
zis
tas fe
cha
ram quase todos os jornais da oposição — ex-
se para im
pe
di-lo fi
si
ca
mente de responder. — Se quisermos que to-
mir as no
tí
ci
as em se
gre
do.
— “Se
gre
do” é a pa
la
vra-chave. — A mulher bufou, se levantando
beijo na pal
ma, ape
sar da tinta.
O estô
ma
go de Althea se revirou com a lembrança do cabaré, de
como Han
nah le
va
ra o pulso daquela moça à boca em um gesto se-
melhan
te. To
do o tem
po sem tirar os olhos de Althea.
ela, achan
do gra
ça. A mu
lher sempre estava rindo dela, pelo visto,
ves e aco
lhe
do
ras.
lher, an
tes de sair, com um último olhar incisivo para Althea.
— Eu não pe
di pa
ra vir — murmurou Althea, tão baixo que só
Hannah con
se
guiu ou
vir.
— Dev é as
sim mes
mo — explicou Hannah. — Quando ela gosta
de uma pes
soa, acha que a conhece melhor do que a si mesma.
— Is
so não se
ria di
fí
cil — respondeu Althea, e Hannah deu um
sorriso irô
ni
co.
— Ela tam
bém achou que Adam…
Adam ti
nha uma per
so
na
lidade capaz de persuadir uma pessoa em
cima do mu
ro. Is
so acon
tecia, em parte, por causa da forma como
ele olha
va pa
ra a pes
soa, como se ela fosse a única na sala. No caso
deriam so
nhar em ter.
— Di
ga — dis
se Han
nah, desta vez em um volume normal —, ain-
tas?
De re
pen
te, Althea se tor
nara alvo da atenção de todos que ouvi-
ram a per
gun
ta. O que aca
bou por ser metade do público.
Cla
ro que, se o que eles alegavam fosse verdade, os nazistas eram
bárbaros abo
mi
ná
veis que assassinavam seus oponentes políticos
para tomar o po
der. Mas os nazistas diziam a mesma coisa sobre es-
sas pesso
as.
Nem to
das as in
for
ma
ções eram iguais, no entanto, tampouco a
res, a su
pe
ri
ori
da
de mes
quinha impregnada em tantas conversas.
Pensou em He
le
ne fa
lan
do sobre os supostos “alemães de verdade”,
nos comen
tá
ri
os des
de
nhosos de Diedrich sempre que Althea men-
cionava au
to
res es
pe
cí
fi
cos.
Então pen
sou em co
mo fora acolhida pelo grupo diante de si, a
curiosida
de e a men
te aberta com que encaravam o mun
do, a bonda-
de que de
mons
tra
vam pa
ra com pessoas diferentes e um pouco es-
tranhas e pro
va
vel
men
te excluídas por toda a vida, assim como
Althea ha
via si
do.
O silên
cio se ar
ras
ta
ra por tempo demais, as expressões mur-
chando, os ros
tos se fe
chando. Althea odiou aquilo. Não sabia por
Parte de
la ima
gi
na
va que era por não saber o que aquilo diria a seu
respeito. Afi
nal, fo
ram os nazistas que a encontraram e a convida-
pela via
gem.
explicação, um ape
lo, mas não sabia o quê.
Não im
por
ta
va.
A por
ta da lo
ja se abriu de repente, revelando um jovem ofegante,
de rosto ver
me
lho, apoi
an
do as mãos nas coxas.
O silên
cio se
pul
cral que recaiu sobre o café arrepiou a pele de
Althea.
Quan
do o ga
ro
to fi
nal
mente se endireitou, deu a notícia com uma
voz atra
ves
sa
do pe
lo me
do:
— O Rei
chs
tag es
tá em chamas.
Pa
ris
Novem
bro de 1936
H annah ar
qui
vou o úl
ti
mo livro do carrinho de devoluções — Nada
longo, e fal
ta
va pou
co mais de uma semana para a exposição no Bou-
levard Saint-Ger
main.
Ela vol
tou pa
ra a me
sa que ocupava e, por instinto, olhou para a
imagem pen
du
ra
da lo
go em frente: uma fotografia de Goebbels mo-
nitorando as fo
guei
ras em Berlim, três anos antes. Sempre que esta-
va ali, Han
nah se obri
ga
va a olhar para aquilo. Uma vez perguntou
assim co
mo per
gun
ta
ra por que mantinham aqueles homens cruéis
nas prate
lei
ras. A res
pos
ta foi de que havia sido uma decisão do pró-
prio fun
da
dor, Al
fred Kan
to
rowicz.
ca.
O tem
po e a dis
tân
cia, sempre presentes na história, podiam fa-
zer as pes
so
as es
que
ce
rem.
— De
via des
can
sar um pouco, srta. Brecht — sugeriu o sr. Mann,
atrás de
la.
Hannah se vi
rou e viu o rosto do homem, também exausto. Como
presiden
te da bi
bli
ote
ca, ele estava trabalhando mais do que todo
mundo. Han
nah não con
seguiu evitar a pergunta que lhe escapou:
— O se
nhor acha que faremos diferença?
O silên
cio de
le mos
trou que a indagação o deixara pensativo, não
ofendido.
— Su
po
nho que se
ja co
mo a própria biblioteca, não? É importan-
te que os na
zis
tas ve
jam que não têm o mundo inteiro ao lado deles
— respon
deu, por fim. — É importante que haja esforços da Re
sis-
çam na
da além de mos
trar a essas pessoas que não são a única voz
no mun
do.
— Na Ale
ma
nha, eles são a única voz que pode ser ouvida — cons-
tatou Han
nah, amar
gu
ra
da.
beça de
ci
si
vo, e Han
nah se apegou àquele otimismo durante todo o
caminho pa
ra ca
sa.
Brigitte a in
ter
rom
peu antes que chegasse às escadas de seu
apartamen
to.
— Cor
res
pon
dên
cia! — ladrou.
Desde a ce
na de Ott
o, a proprietária andava ainda mais concisa
do que o ha
bi
tu
al, em
bo
ra não tivesse expulsado Hannah, que só po-
Ela pe
gou o en
ve
lo
pe com um sorriso tímido e viu o carimbo de
priorida
de.
Seus jo
elhos ce
de
ram, e o grito assustado de Brigitte foi apenas
vagamen
te re
gis
tra
do sob o martelar em seus ouvidos.
Hannah ras
gou o pa
pel, com medo de destruí-lo, mas sem conse-
guir espe
rar o se
gun
do a mais que levaria para abrir com cuidado.
na par
te in
fe
ri
or, ela sou
be.
Hannah pres
si
onou os olhos com as palmas das mãos antes de
tentar en
con
trar sen
ti
do nas palavras.
O jul
ga
men
to de Adam foi uma farsa. Foi realizado em 2 de no-
deu um le
ve ta
pa em seu rosto é que Hannah percebeu que o som vi-
nha dela.
— Je suis dé
so
lée — disse Hannah, com dificuldade, limpando os
Suas pa
la
vras fo
ram in
terrompidas por um soluço tão atípico que
Hannah se as
sus
tou. Bri
gitte estalou a língua e a puxou para baixo
do braço, le
van
do-a pa
ra o pequeno apartamento no andar princi-
pal.
Brigitte en
ro
lou um cobertor em volta dos ombros de Hannah,
depois co
lo
cou uma xí
ca
ra de chá com uísque em suas mãos. O líqui-
do queimou ao des
cer pe
la garganta, fazendo o mundo recuperar os
contornos quan
do che
gou ao estômago.
Sua pul
sa
ção ain
da martelava em seus ouvidos, mas a náusea di-
minuí
ra pa
ra um ní
vel su
portável.
— Seu aman
te? — per
guntou Brigitte.
Pressi
onan
do a car
ta junto ao peito como se pudesse sentir os ba-
timentos car
día
cos de Adam na madeira morta e na cola, Hannah
balançou a ca
be
ça.
— Ir
mão.
— Ah. — Bri
gitt
e dei
xou a farsa do chá de lado e encheu a xícara
mória — con
ti
nu
ou a mu
lher, em um inglês quase perfeito.
Então ba
teu a bor
da de sua xícara na de Hannah.
— Te
nho aman
tes ju
deus. Tenho amantes ingleses.
As du
as fi
ca
ram sen
ta
das em um silêncio reconfortante. Hannah
Ela en
ten
de
ra o des
ti
no de Adam assim que ele foi preso e estive-
ra de lu
to pe
los úl
ti
mos três anos. Quase parecia cruel que o manti-
vessem vi
vo, tor
tu
ran
do-o. Na maioria das vezes, quando pensava no
irmão, Han
nah o ima
gi
na
va como naquele dia na sala de visitas do
centro de de
ten
ção, com os guardas nazistas se assomando sobre a
família.
de meias, um ba
ra
lho — que provavelmente fora confiscado —, mas
Mesmo ma
chu
ca
do, com o lábio rachado e o rosto encovado,
Adam ten
ta
ra sor
rir. Ten
tara tranquilizá-los. Nos anos que antece-
deram a pri
são, Han
nah o provocara impiedosamente — do jeito que
só irmãos sa
bem fa
zer — quanto ao seu otimismo. No entanto, nun-
ca conta
ra o quan
to ele a inspirava.
mo era di
fí
cil olhar pa
ra um mundo frio e estéril e ver não o ódio, a
morte e a des
trui
ção, mas a possibilidade.
Pela pri
mei
ra vez, Han
nah não o imaginou naquela sala, e sim an-
tes, na pri
mei
ra noi
te em que um ardor surgiu em seus olhos. Foi no
emergên
cia que lhe per
mitiam passar leis sem a aprovação do Rei-
to, ain
da que não mui
to estudioso. Mas ainda não encontrara a vál-
vula de es
ca
pe cer
ta pa
ra tudo aquilo até então.
O que po
de
mos fa
zer?, perguntara Hannah, certa de que a respos-
ta seria Na
da.
Algu
ma coi
sa, qual
quer coisa, respondera Adam. É a inação que
devemos te
mer, não o fra
casso.
Hannah de
ci
diu que era assim que o imaginaria a partir daquele
momen
to, con
ven
ci
da de que, se Adam quisesse viver em um mundo
melhor, pre
ci
sa
va aju
dar aquele mundo a se tornar o que ele acredi-
— Eu sa
bia que uma hora aconteceria — confessou para Brigitte.
— A exe
cu
ção.
— Is
so não sig
ni
fi
ca que não dói — respondeu a proprietária, be-
bendo di
re
to da gar
ra
fa. — Já vimos morte demais. E o mais triste?
É
É só o co
me
ço, eu acre
di
to.
— Um in
ter
va
lo.
Era is
so que to
dos es
tavam vivendo. A Grande Guerra podia ter
espetácu
lo con
ti
nu
aria ceifando a vida do público pelos próximos
anos.
— Va
mos re
zar pa
ra que não volte — resmungou Brigitte.
Ela per
ma
ne
ceu pa
ra
da diante da mezuzá por mais tempo que o ha-
bitual e, quan
do beijou as pontas dos dedos, pensou em Adam. Ben-
da
de do fa
le
ci
do.
Hannah es
ta
va en
ca
rando seu trabalho com a biblioteca como a
an
títese do que Adam fi
zera, mas talvez aquilo jamais tivesse sido
muito di
fe
ren
te do que ele fazia.
Era im
por
tan
te que os nazistas vissem que não tinham o mundo
inteiro ao la
do de
les.
No dia se
guin
te, dis
tri
buiria panfletos para a exposição, arruma-
balharia du
ro ao la
do das pessoas que os nazistas estavam ensinan-
do milha
res de pes
so
as a odiar.
Aque
la noi
te se
ria pa
ra o luto.
ria adian
te a bon
da
de de Adam.
Nova York
Maio de 1944
Edith Sto
ne, a bi
bli
ote
cá
ria que trabalhava no conselho de seleções
— Stran
ge Fruit foi aprovado para uma das séries do próximo
ano. Con
tan
to que vo
cê derrote Taft — anunciou. — O que vai acon-
tecer.
— Vo
cê é um pre
sen
te do céu, Edith. Sabia que eu precisava de
uma vitó
ria, não sa
bia?
Stran
ge Fruit, uma his
tória sobre um romance inter-racial no sul
dos Esta
dos Uni
dos, fo
ra pu
blicado em fevereiro e, desde então, cen-
surado em Bos
ton e De
troit. No início de maio, o Serviço Postal dos
Estados Uni
dos ten
tou se juntar ao movimento para bani-lo. A deci-
mas o li
vro ain
da era um assunto controverso.
que os sol
da
dos das tro
pas no exterior o adorariam. Além de históri-
as que os fa
zi
am lem
brar de casa, como Uma árvore cresce no Broo-
klyn e Chic
ken Every Sun
day, os livros mais populares tinham, bem,
bastante se
xo. Se
xo, es
cândalo e qualquer coisa que combinasse os
dois.
— Co
mo an
da o ba
fa
fá com Taft? — perguntou Edith, sentando-
se em fren
te a Viv.
— Ela
bo
rei uma lis
ta de afazeres muito extensa — começou Viv,
em tom brin
ca
lhão, mas sem perder a seriedade — e fico bastante
sobrecar
re
ga
da to
da vez que olho para ela.
— Dei
xe-me aju
dar — pediu Edith, inclinando-se para a frente
como se fos
se co
me
çar a pegar papéis aleatoriamente.
— Vo
cê já es
tá so
bre
carregada — protestou Viv.
Todos os vo
lun
tá
ri
os estavam, mas bibliotecárias como Edith,
que tam
bém ti
nham ou
tros empregos, estavam particularmente ata-
refadas.
— Pos
so dar con
ta de tudo, eu só…
— Qual é a me
ta? — perguntou Edith. Quando Viv a olhou, confu-
— Fa
zer as pes
so
as se importarem — declarou Viv, sem pestane-
jar.
— E co
mo vo
cê vai fa
zer isso?
— Bom, pri
mei
ro eles precisam conhecer o assunto. — Viv bateu
com o de
do nos pa
péis so
bre a mesa e continuou: — Vou entrar em
já escre
ve
ram ar
ti
gos so
bre o programa. Também tenho uma lista
dos jor
nais em dis
tri
tos de legisladores que Taft considera influen-
tuação a ca
da um e os con
videi para cobrir o evento.
— Pa
re
ce um bom co
meço. O que mais?
— Te
nho um ami
go no New York Times que pode ajudar a encon-
trar um es
pa
ço van
ta
jo
so para qualquer artigo no jornal.
— En
tão a co
ber
tu
ra de imprensa está resolvida. O que mais pre-
cisa fazer?
— De
fi
nir a lis
ta de convidados e organizar a programação de pa-
lestrantes.
res e ga
ran
tir ma
té
ri
as e artigos era da natureza de Viv, pois sem
pre
fez parte de su
as res
pon
sa
bilidades como diretora de publicidade do
conselho. Já ela
bo
rar o dia do evento era diferente. Importante.
— Eu pos
so aju
dar com os convites para os voluntários — sugeriu
Edith, ar
ran
can
do um sor
ri
so de agradecimento de Viv.
— Se
ria óti
mo — res
pondeu, tentando ignorar o aperto de culpa
em seu pei
to.
Aque
la cru
za
da era de
la, e Viv odiava envolver outras pessoas, sa-
bendo co
mo era im
pro
vá
vel vencer a luta.
— Que
ro dar o que fa
lar com a lista de convidados. Grandes no-
mes, do
ado
res po
lí
ti
cos e afins. Quero que todos os congressistas
— Cla
ro. E eu que
ro um milhão de dólares — brincou Edith. —
Como exa
ta
men
te vai fa
zer com que o clube dos milionários partici-
pe de um even
to em prol de um programa de livros gratuito?
— Char
lotte — re
ve
lou Viv, com um sorriso atrevido. — Ela é mi-
— Ah, a so
gra. — Edith assentiu, parecendo entender. — Uma ali-
— Char
lotte tem al
gu
ma influência sobre todos os moradores de
No
va York com bol
sos fun
dos o bastante para gastar em campanhas
po
líticas. — Viv pe
gou uma caneta e rabiscou uma anotação na lista
de tarefas. — Is
so me lem
bra que preciso enviar um convite aos co-
lunistas de fo
fo
cas. Se
rá o evento do verão.
— Quem di
ria que um evento sobre censura seria uma atração
para os fo
fo
quei
ros de plantão — comentou Edith, que não tinha pa-
ciência pa
ra coi
sas tão frívolas, mas ambas sabiam que aquelas se-
nhoras da so
ci
eda
de eram poderosas.
— Bom, is
so me le
va ao meu maior problema — admitiu Viv.
— Qual?
— Ain
da não te
nho um gancho. Algo que faça com que as pessoas
se preo
cu
pem com a cau
sa. Ter os mesmos velhos apoiadores de
sempre pre
gan
do pa
ra o coro não dá o que falar. Eu poderia convi-
dar o pró
prio Ro
ose
velt para o evento, mas, sem alguma grande ar-
— Nem os mui
tos ar
ti
gos e editoriais já escritos sobre nosso pro-
grama bas
ta
ram pa
ra que Taft cedesse.
— Exa
to. Pre
ci
so de al
go chocante e interessante, algo que as pes-
um biqui
nho re
fle
xi
vo e o olhar um pouco distante. — Algum deles
será um cha
ma
riz?
— Um be
lo gol
pe. — As
sim como Viv, Edith sabia que Uma árvore
cresce no Bro
oklyn era um romance tão popular que seria envi
ado
pela segun
da vez pe
la EFA. — Mas ela tem sido franca desde o início.
— Sim. E al
guns ou
tros, não tão grandes — continuou Viv. — Al-
guns ofi
ci
ais do Exér
ci
to também vão falar, talvez alguns soldados.
— Mas…
— As pes
so
as que comparecerão para ver Betty Smith e alguns
homens fe
ri
dos já são do tipo que escrevem aos congressistas em
Viv pen
sou na bi
bli
ote
cária, no jeito que ela disse: “Eu estava em
Berlim na noi
te da quei
ma”. Talvez aquilo fosse suficiente. As pesso-
as eram fas
ci
na
das pe
las circunstâncias da época em que os nazistas
assumiram o po
der. Se a bibliotecária falasse sobre seu tempo na
Alemanha, po
de
ria ga
ran
tir a cobertura que Viv planejava ter.
Edith in
ter
rom
peu aquele pensamento:
— Já ou
viu fa
lar de Althea James?
A mu
lher era len
dá
ria pelo isolamento. Escrevera dois dos ro-
única en
tre
vis
ta so
bre ne
nhum deles. O fato de ser uma eremita a
tornava ain
da mais atra
ente para seu público. Todos queriam sa
ber
exatamen
te quem era Althea James, mas ninguém jamais tivera
acesso a ela. Viv nem se
quer sabia como era a aparência da mulher, e
— Já leu os li
vros de
la?
— Ain
da não — ad
mi
tiu Viv, um pouco envergonhada. — Mas va-
mos ofe
re
cer o se
gun
do na lista da EFA no outono. Se eu conseguir
— Uma es
cu
ri
dão in
concebível. — Edith soltou o título do livro
distraida
men
te. — Tem tu
do a ver com censura.
— É mes
mo? — per
guntou Viv, girando na cadeira como se um
exemplar pu
des
se apa
re
cer milagrosamente em seu escritório.
— Sim, e a tor
nou mais famosa do que o primeiro.
— É so
bre a Guer
ra Ci
vil. Uma família com filhos e filhas em dife-
rentes la
dos da li
nha Ma
son-Dixon. É bastante…
— De
so
la
dor? — adi
vi
nhou Viv.
Edith ba
lan
çou a ca
be
ça, procurando a palavra certa.
— In
gê
nuo. Mas es
pe
rançoso.
— E vo
cê acha que eu vou gostar? — questionou Viv, tentando
não se ofen
der.
— Não fin
ja que no fun
do você não é uma manteiga derretida.
— Que ca
lú
nia! — acu
sou Viv. — E o segundo livro?
— Mais som
brio. Eu lembro que muitos críticos comentaram so-
bre a mu
dan
ça de tom. É bem marcante.
— Is
so foi an
tes da guerra?
Edith as
sen
tiu.
— En
tão não po
de
ria ter sido a guerra que influenciou o novo
tom.
— Quem sa
be te
nha si
do algo mais pessoal? — Edith deu de om-
livro es
can
da
lo
so es
cri
to por um ex-escravizado.
— O li
vro exis
te?
conto de fa
das, sem ca
va
leiro chegando em um cavalo branco para
sal
var o dia. É… — Ela fez uma pausa. — Brutal. Doloroso, até. Uma
lição so
bre ba
ta
lhas que valem a pena e como muitas vezes são per-
— Bem, is
so soa fa
mi
li
ar — murmurou Viv, mas logo em seguida
compre
en
deu o que aca
bara de dizer. Então se animou. — E perfei-
to.
— Ela cer
ta
men
te se
ria um grande atrativo, se conseguisse con-
vencê-la a par
ti
ci
par. Qualquer um se acotovelaria até a frente da fila
para po
der di
zer que viu Althea James pessoalmente.
O san
gue de Viv co
me
çou a correr mais rápido, despertando uma
sensação de ele
tri
ci
da
de sob sua pele. Era isso. Podia sentir. Uma re-
clusa fa
mo
sa que es
cre
ve
ra sobre o mesmo assunto que Viv estava
defenden
do.
— Ela nun
ca acei
ta
ria, não é? — perguntou, encarando o olhar
atordoa
dos pe
la pos
si
bi
li
dade.
no quei
xo, pen
sa
ti
va. — Estou começando a aprender a não apostar
contra vo
cê quan
do quer al
guma coisa. A editora dela é a Harper &
Brothers, a pro
pó
si
to.
Viv se le
van
tou, deu a volta na mesa e tascou um beij
o demorado
e barulhen
to na bo
che
cha de Edith.
— Vo
cê é a me
lhor!
— Nun
ca se es
que
ça disso.
Althea Ja
mes. Po
dia ser um tiro no escuro, mas toda aquela luta
Março de 1933
A lthea nun
ca ou
vi
ra o som muito distinto de um chicote esfolando
camadas de car
ne.
O cou
ro es
ta
lou no ar, abafando os gemidos e o baque de socos
atingindo o os
so.
No iní
cio, não en
ten
deu o que estava vendo.
Punhos e mo
vi
men
tos borrados, por um breve momento, lem-
Sua vi
são fi
cou tur
va pelas lágrimas antes mesmo de poder com-
preender com
ple
ta
men
te o horror da cena que tes
temunhava.
Althea se
cou os olhos im
piedosamente e tentou recuperar o fôlego.
Corpos de
mais pa
ra contabilizar jaziam inconscientes no chão,
com man
chas de san
gue es
palhadas por rostos, pernas e braços re-
torcidos em ân
gu
los es
tranhos, soltando gemidos que soavam mais
como ani
mais fe
ri
dos do que como humanos cedendo sob maldades
tão cruéis.
Alguns ho
mens ain
da es
tavam envolvidos na briga, gritando obs-
misas-par
das e ci
vis, ne
nhum dos homens no chão usava uniforme.
Althea con
te
ve um so
luço com a mão, engolindo-o de volta para
não cha
mar a aten
ção.
Uma cruz de San
to An
dré fora colocada no centro da praça, o ho-
mem amar
ra
do a ela pre
so de modo que apenas seus pulsos susten-
tassem o pe
so do cor
po. Suas costas, voltadas para a multidão, esta-
arma bár
ba
ra.
— Por fa
vor, che
ga! — implorou a mulher. — Chega! Chega!
Não ha
via um úni
co traço de misericórdia no rosto do camisa-
ponta pun
gen
te do chi
co
te na carne já exposta.
O res
pin
go de san
gue salpicou as botas do policial e o rosto
da mulher. O ho
mem na cruz não chorou, não gritou; estava incons-
ciente.
Ou mor
to.
— São bol
che
vi
ques, querida — sussurrou uma mulher de meia-
idade ao la
do de Althea. — Está desperdiçando as lágrimas com eles.
A indi
fe
ren
ça com que as palavras foram ditas fez Althea camba-
Ela ro
do
pi
ou e se de
pa
rou com o olhar gélido de um camisa-parda
com os lá
bi
os fi
nos fran
zi
dos, os olhos a avaliando. Althea baixou o
olhar de
pres
sa, os bra
ços dormentes com a ideia de ser arrastada
para aque
la vi
olên
cia.
No en
tan
to, o ho
mem não perdeu tempo com ela; simplesmente
olhou pa
ra al
gum pon
to atrás dela, então de volta para a pessoa que
estava ar
ras
tan
do. A ca
be
ça da mulher estava raspada e, ao redor do
pescoço, ha
via um car
taz pendurado: TRAIDORA DA RAÇA .
Quan
do a mu
lher pas
sou por Althea, a luz do sol reluziu no ouro
da alian
ça em seu de
do, seus olhos encontrando os de Althea com
ada do cor
po de
la.
Então o ca
mi
sa-par
da arrastou a mulher para mais longe, e
Althea se tor
nou ape
nas mais um rosto em uma multidão de espec-
tadores que não es
ta
vam fazendo absolutamente nada para impedir
aquilo tu
do.
A mu
lher foi jo
ga
da no chão, mas não se deitou, não se tornou
do, qua
se vi
bran
do de rai
va. A mulher ergueu a cabeça, em desafio, e
uma cus
pa
ra
da qua
se acertou as botas do camisa-parda.
Althea te
meu e amou aquela desconhecida, mas nem sequer con-
vergonha. Se aque
la ce
na fosse de um livro que estivesse escrevendo,
Althea te
ria ido a pas
sos largos até a praça, parado na frente da mu-
lher e en
fren
ta
do seu agres
sor, não importava as consequências. Na
No se
gun
do se
guin
te, o camisa-parda deu as costas para a mu-
lher.
A mu
lher mais ve
lha de antes se inclinou para perto, aparente-
— Ela se ca
sou com um judeu — respondeu, simplesmente.
Althea qua
se vo
mi
tou ali mesmo.
A mu
lher de ca
be
ça raspada estava ajoelhada, imensuravelmente
gracio
sa, uma fi
na li
nha de sangue escorrendo do canto da boca.
truída ou os os
sos que
brados que fizeram Althea se afastar. Foi o
olhar no ros
to da
que
la mu
lher.
dendo, qua
se le
van
do-a para a sarjeta, onde achava que deveria ser
seu lugar.
gando e es
fre
gan
do com água escaldante, nunca mais fosse ficar lim-
pa.
O co
ra
ção ba
tia tão for
te contra as costelas que Althea achou que
os ossos fos
sem ra
char; não conseguia recuperar o fôlego. Alguém a
parou, per
gun
tou co
mo ela estava, primeiro em alemão e depois em
Depois vi
eram mais mãos, segurando seus braços.
Arras
tan
do-a de vol
ta para a praça.
Onde a car
ne se
ria ar
rancada de suas costas com aquele chicote
maligno.
Preci
sa
va en
con
trar Di
edrich, precisava fazê-lo explicar, dar sen-
Althea pa
rou e se en
costou na parede.
Um fio fi
no de san
gue es
correndo por um queixo erguido em de-
safio.
Die
dri
ch. Ele es
ta
ria no café que visitava quase todas as tardes.
Althea avis
tou a ca
be
leira loira quando tropeçou no limiar.
Ele es
ta
va ao la
do de
la em segundos.
— Althea, que
ri
da — murmurou Diedrich, as mãos quentes nas
costas de
la, es
fre
gan
do cír
culos lentos e reconfortantes em sua pele.
Ela se afas
tou por ins
tinto.
Die
dri
ch pis
cou aque
les olhos glaciais como a neve, que ela acha-
ra tão en
can
ta
do
res nos primeiros dias em Berlim e que só recente-
mente pas
sa
ra a con
si
de
rar gélidos. Calculistas.
— Ba
te
ram em uma mulher — disse Althea, sem saber onde en-
controu for
ças pa
ra des
crever o que vira. — Por se casar com um ju-
deu.
Die
dri
ch fi
cou com
ple
tamente imóvel.
— Ah.
— Por quê?
— Es
ta
mos pas
san
do por uma guerra civil — disse Diedrich, bai-
xo e urgen
te, pro
te
gen
do a conversa do resto do café com o corpo. —
Depois do ata
que ao Rei
chstag, você sabe que não é seguro estar nas
ruas.
Althea as
sen
tiu; sa
bia mesmo. Na outra noite, o grupo de Adam
se disper
sa
ra qua
se an
tes de o rapaz sem fôlego terminar de falar.
Ainda as
sim, ela le
vou al
guns dias para perceber como aquele mo-
mento ti
nha si
do pe
ri
go
so.
Milha
res de co
mu
nis
tas haviam sido presos desde o incên
dio.
Dev con
ta
ra que um de
les era a moça que se sentara no colo de
Adam e, ape
sar de ser uma estranha sem nome, Althea quase cho
rou
com a no
tí
cia.
Die
dri
ch e os jor
nais nazistas justificaram as prisões, é claro.
Alertaram so
bre ban
dos itinerantes de comunistas que assassinari-
am crian
ças ino
cen
tes que olhassem para eles. Sobre monstros que
queriam des
truir a Ale
manha só porque podiam. E veja, diziam os
Os na
zis
tas es
ta
vam só tentando proteger os cidadãos alemães
cumpri
do
res da lei.
fazendo mui
to sen
ti
do.
A mu
lher na pra
ça es
tava tão magra, suas maçãs do rosto já ti-
nham si
do ma
chu
ca
das muito antes de ser forçada a se ajoelhar di-
an
te da
que
le car
ras
co.
— Althea, vo
cê sim
plesmente não entende — retrucou Diedrich,
visivelmen
te ten
tan
do pa
recer calmo. Com o polegar en
caixado sob
a mandí
bu
la de
la, o ho
mem levantou seu rosto para que Althea o en-
carasse e con
ti
nu
ou: — Vo
cê está assustada, eu sei. Mas tudo vai me-
lhorar em bre
ve. Eu pro
meto. É a guerra, querida. Não é bonito, mas
é necessá
rio. Pa
ra a se
gu
rança de todos nós.
Althea que
ria se apoi
ar nele. Seria muito mais fácil simplesmente
vergonha.
Ela re
cu
ou um pas
so. Se soltou dos braços dele. Deu meia-volta.
Saiu do ca
fé, pa
ra a rua.
Ninguém ten
tou im
pe
di-la.
No ca
fé com o gru
po de Adam, Althea não conseguira condenar
os nazis
tas por
que ad
mi
tir que eles eram monstros significava que
ela tam
bém era. Nin
guém se descrevia como o vilão na própria his-
tória.
Althea po
dia não ter es
tudado literatura em uma faculdade de re-
lão convin
cen
te. Ne
nhum personagem era completamente bom ou
Esses atri
bu
tos, so
ma
dos às escolhas que faziam, definiam o papel
que desem
pe
nha
vam na his
tória.
Um he
rói po
dia ser tei
moso e usar isso para defender sua terra
natal. Um vi
lão po
dia ser teimoso e, por causa disso, se recusar a
compre
en
der que seus pontos de vista eram imorais. Apenas alguns
atribu
tos eram ine
ren
te
mente ruins.
E a co
var
dia de
via ser um dos ruins.
Olhan
do ao re
dor, Althea foi tomada de remorso quando final-
de
veria tê-la hor
ro
ri
za
do o tempo todo. O que tantas pessoas lhe dis-
As vi
tri
nes das lo
jas es
tavam quebradas, a palavra J UDEN pintada
em um ama
re
lo ber
ran
te nas poucas vidraças intactas. Ninguém se
cumpri
men
ta
va na rua, todos caminhando de cabeça baixa a passos
apressa
dos e de
ci
di
dos. Car
tazes cobriam cada centímetro dos espa-
ços públi
cos, anun
ci
an
do em letras grossas e garrafais as atrocida-
des so
fri
das pe
los ari
anos nas mãos dos vermelhos, dos judeus, de
qualquer pes
soa além de
les mesmos.
De vol
ta à hos
pe
da
gem, sua alma parecia envolta em um arame
nho.
se forçou a sen
tar e ler.
Esta
va fi
can
do es
cu
ro quando terminou.
Não im
por
ta
va o que as pessoas em Berlim quisessem pensar,
à realida
de. Pa
ra o bem ou para o mal, histórias fictícias permitiam
que usas
se vi
sei
ras, per
mitiam que se aproximasse das pessoas, por
mais in
ven
ta
das que fos
sem, sem conhecer a vulnerabilidade ine-
rente do con
ta
to com os outros. Quando tinha seis, nove, treze anos,
os livros ofe
re
ce
ram um refúgio, um abraço reconfortan
te, uma me-
lhor ami
ga que nun
ca existira na vida real, às vezes até mesmo um
plano vin
ga
ti
vo que a própria Althea nunca realizaria contra seus
Quan
do re
ce
beu o con
vite de Goebbels, Althea foi à biblioteca e
pediu pa
ra que a ve
lha sra. Malikowski a ajudasse a procurar artigos
mencionan
do o NS
DAP. Nenhum lhe dera medo de ir para a Alema-
nha.
Althea ti
nha si
do cri
ada para confiar no governo, confiar nas pes-
Nun
ca apren
de
ra a en
carar o mundo com desconfiança.
No en
tan
to, ao ter
mi
nar a leitura de Mein Kampf, qualquer ino-
mediavel
men
te per
di
da.
Era o ti
po ra
ro de li
vro que não oferecia segurança, apenas uma
realidade as
sus
ta
do
ra e terrível.
Nova York
Maio de 1944
A gordu
ra im
preg
na
va o ambiente na pizzaria de Midtown, a con-
versa de fun
ci
oná
ri
os e famílias preenchendo o lugar. Os fornos na
ra do almo
ço ex
ce
dia a ca
pacidade do local.
Um dia ha
via se pas
sa
do desde que Viv decidira que Althea James
po
dia ser sua me
lhor ar
ma contra Taft, mas, quando começou a ela-
— É sá
ba
do, Viv, e vo
cê tem se matado de trabalhar. Vá descansar,
Ela sim
ples
men
te olhou para a amiga sem saber o que fazer com
o tempo li
vre. Char
lott
e re
virou os olhos.
— Vo
cê tem 24 anos e não sabe como passar um dia agradável em
tou o in
cen
ti
vo e ti
rou o dia de folga. Depois de atravessar a cidade;
Viv jura
va que era me
lhor em passar o tempo. Por fim, deu de cara
queij
o es
cor
ren
do pa
ra o prato enquanto tentava mano
brar a coisa
até a boca.
— Me
lhor do
brar a piz
za para comer — instruiu o garoto ao lado,
fazendo-a se vi
rar pa
ra en
cará-lo.
que os de
zoi
to anos ne
cessários para se alistar. O belo azul do uni-
for
me da Ma
ri
nha re
al
ça
va o verde de seus olhos grandes. O rapaz ti-
sejava nun
ca mais ver, de
pois que aquela guerra maldita acabasse.
— As
sim — mos
trou ele, seu sotaque gentil.
Geórgia, adi
vi
nhou Viv, e decidiu chamá-lo assim.
O ra
paz riu, mas não a corrigiu. Viv pensou em Cisco, o rapaz de
de
zesseis anos que ama
va Vento, areia, estrelas e fora baleado por
um ati
ra
dor de eli
te ale
mão entediado.
gua.
— Vou em
bo
ra ama
nhã — contou Geórgia, olhando para uma
queima
du
ra de ci
gar
ro na mesa que os dois tinham decidido com-
partilhar.
— Apos
to que diz is
so para todas — brincou Viv, apesar do nó na
garganta.
Os olhos de Geór
gia dis
pararam para os dela. Sérios. Jovens.
— Não, se
nho
ra, eu não digo.
— Bom, en
tão vou te mostrar um pouco da Big Apple.
Viv o le
vou a to
dos os pontos turísticos em que conseguiu pen
sar.
Pararam na en
tra
da do Empire State e debateram os méritos de King
fez um co
men
tá
rio ma
li
ci
oso sobre os quadris de Fay Wray.
Viv o ar
ras
tou pa
ra o Met, mas o tirou de lá assim que notou seu
uma tor
tu
ra. Ao des
cer a es
cadaria do museu, comprou um cachor-
ro-quen
te pa
ra ele e mos
trou como lambuzá-lo de mostarda e comê-
lo, espe
ran
do pa
ra atra
vessar a rua. Passearam pelo Central Park, e
Viv permi
tiu que ele en
tre
la
çasse os dedos nos seus.
— Não há na
da que vo
cê queira fazer? — perguntou, observando
o balão es
ca
par das mãos de uma garotinha, subir e atravessar a co-
pa das ár
vo
res.
Era fi
nal de tar
de, e o tecido de seu vestido azul-claro suado e
úmido gru
da
va na lom
bar. Viv o desgrudou com a mão livre, toman-
do cuida
do pa
ra não sol
tar a do rapaz.
Geór
gia a en
ca
rou com um olhar emoldurado pelos cílios cheios,
e Viv o aco
to
ve
lou de le
ve.
— En
gra
ça
di
nho — re
preendeu.
Ele riu, e Viv mais uma vez foi lembrada de como devia ser jovem.
— Eu es
ta
va pen
san
do em um bolo de chocolate.
— Cla
ro que es
ta
va.
Uma de su
as pa
da
ri
as favoritas ficava a apenas dez minutos a pé,
próxima ao la
do oes
te do parque. Escolheram uma mesinha perto da
janela, os jo
elhos es
bar
rando ao se sentarem. Uma das funcionárias
da loja var
ria o chão — era quase hora de fechar —, mas a propri
etá-
Por um se
gun
do, Viv se perguntou se quem a mulher perdera fora
um filho ou ma
ri
do, mas lo
go deixou aquilo de lado. Aquele não era
um dia pa
ra pen
sar.
que a per
gun
ta era um pouco próxima demais da lista de assuntos
quela ma
nhã.
Geór
gia mais uma vez as
sumiu um olhar travesso, que Viv já esta-
va come
çan
do a re
co
nhe
cer depois de tão poucas horas. O que o sal-
— Os blu
esi
es con
tam? — perguntou, se debruçando e franzindo
as sobran
ce
lhas.
Viv o sa
tis
fez com uma reação positiva, sem coragem de mencio-
menção àque
les qua
dri
nhos para maiores. Até já folheara alguns,
— Seu sem-ver
go
nha.
Ele ape
nas sor
riu e co
meu mais uma garfada de bolo. Então Viv
bateu o jo
elho no de
le, des
ta vez de propósito.
— Ago
ra que
ro a ver
da
deira resposta.
Geór
gia pa
re
ceu dei
xar de achar graça, e foi só quando ficou sem
parte da per
so
na
li
da
de de
le.
— Hum… Nun
ca fui muito de ler.
Não é co
mo se Viv não tivesse ouvido aquela resposta diversas ou-
— Por quê?
— As le
tras nun
ca fi
cam paradas.
— Ah — mur
mu
rou Viv, com uma pontada de culpa no peito. Cla-
— Eu acho… — co
me
çou Geórgia, engolindo em seco. — Acho que
não con
se
guir ler as car
tas da minha mãe. — Ele mordeu o lábio in-
ferior e acres
cen
tou, des
necessária, mas apressadamen
te: — Quan-
do eu es
ti
ver lá.
Viv que
ria abra
çá-lo, mas especulou que qualquer demonstra
ção
de solida
ri
eda
de po
de
ria ser entendida como pena.
— Vo
cê não é len
to. — Ela baixou o garfo e decidiu que valia a pe-
na quebrar as re
gras de Charlotte. — E alguém vai ler para você.
Ele fi
nal
men
te a olhou nos olhos.
— O quê?
— Re
ce
bo car
tas de sol
dados todos os dias. Faz parte do meu tra-
balho co
mo… Bem, não im
porta. O que importa é que muitos ho-
ajudar vo
cê. Só não te
nha medo de pedir.
— Vo
cê não acha que vão rir de mim?
— Po
de ser que is
so aconteça — admitiu Viv, resolvendo ser sin-
cera, afi
nal, es
ta
vam fa
lando de soldados. — Mas só para te provo-
car. Depois, le
rão as car
tas para você. E ajudarão a escrever uma res-
posta, te
nho cer
te
za.
Geór
gia fran
ziu os lá
bios, assentiu uma vez e reassumiu seu ar
travesso.
— Se
rá que tam
bém vão ler os quadrinhos obscenos para mim?
— Co
mo se vo
cê os comprasse pelo que está escrito — retrucou
surpresa e sa
tis
fei
ta.
Viv que
ria con
ge
lá-lo naquele instante, como uma fotografia. Co-
mo se pu
des
se man
tê-lo seguro em uma imagem e libertá-lo quando
a guer
ra ter
mi
nas
se. Vol
tar para a Geórgia, voltar para a mãe e para
sua vida.
Ela se for
çou a sor
rir também e o deixou mudar de assunto.
Depois da pa
da
ria veio o jantar, e depois um táxi rumo a um lugar
que Geór
gia afir
mou to
car um bom jazz.
Os dois se en
con
tra
ram um amigo dele em um clube na rua 115, e,
alguns mi
nu
tos de
pois, Viv se viu espremida em uma mesa com três
homens de uni
for
me e duas damas envoltas em seda e lantejoulas.
As mulhe
res eram lin
das de uma forma que Viv nunca seria, e teve
que resis
tir ao de
se
jo constrangido de se ajeitar quando elas a olha-
ram.
— Eu acho vo
cê mui
to bonita — confessou Geórgia, em seu ouvi-
desde a che
ga
da ao clu
be.
humor su
jo e uma cu
ri
osidade cativante. Em outra vida, teria sido
um bom ma
ri
do pa
ra uma boa moça da Geórgia.
Mas na
que
la vi
da pro
vavelmente acabaria como alvo de um ca-
nhão.
Viv fin
giu que sua res
pi
ração não fora interrompida ao pensar na-
quilo e ba
teu com o qua
dril no dele.
— Va
mos dan
çar.
Geór
gia não he
si
tou e simplesmente a puxou para perto, o gemi-
do impe
tu
oso dos trom
pe
tes, o toque do violoncelo levando ambos a
algo mui
to mais ín
ti
mo do que Viv teria permitido em qualquer ou-
tra situ
ação.
— Vou em
bo
ra ama
nhã — sussurrou Geórgia, com a boca colada
no maxi
lar de Viv.
Nenhum de
se
jo se acu
mulou no berço de seus quadris. Em vez
fazer na
da além de ver seus homens partirem.
— Apos
to que diz is
so a todas — respondeu.
E en
tão — por
que ele iria mesmo embora no dia seguinte — abriu
espaço pa
ra que ele co
las
se os lábios nos dela.
E não pen
sou em na
da.
Berlim
Março de 1933
–V ocê es
tá qui
eta — co
mentou Diedrich, a voz carregada de preo-
cupação.
larem as cos
tas de um ho
mem e espancarem o rosto de uma mulher,
e se o pi
or que Di
edri
ch podia dizer de seu estado era que ela estava
Quie
ta era me
lhor do que aterrorizada, confusa, enfurecida.
Esta
va agin
do nor
mal
mente desde então, sem saber o que mais
po
deria fa
zer. Quan
do lembrou que precisava participar daquela
calçou os sa
pa
tos e en
trou no elegante carro preto que Diedrich en-
viara pa
ra bus
cá-la.
No mo
men
to, fa
zer qualquer outra coisa parecia difícil demais.
Die
dri
ch le
vou a mão de Althea à própria boca, roçan
do os lábios
em seus de
dos. Ele a olhou nos olhos, criando um momento íntimo
como o beij
o tro
ca
do em frente à Chancelaria, em janeiro.
Ela as
sis
tiu à ce
na se desenrolar como se estivesse separada do
corpo e, a dis
tân
cia, en
tendeu a estratégia. Sempre que Althea ti
nha
dúvidas, sem
pre que co
meçava a questionar os nazistas, Diedrich
era ro
mân
ti
co. Um beij
o, um toque na lombar, um sussurro, uma
provoca
ção. Ele ti
nha seu charme, mas só agia como amante quando
queria con
tro
lá-la.
O áci
do quei
ma
va sua garganta e ela o engolia convulsivamente,
tava apai
xo
na
do, mas não percebera o quão indiferente Diedrich de-
— Pa
re
ce que viu um fantasma, querida — disse Lina Fischer ao
se aproxi
mar.
tura e his
tó
ria, e Althea nunca se sentira tão intimidada por alguém
na vida. As du
as se co
nheceram em uma das leituras de Althea, e,
quando Di
edri
ch ten
tou enfiar um exemplar do livro de Althea nas
mãos de Li
na, re
ce
beu como resposta um zombeteiro: “Não tenho
tempo pa
ra lei
tu
ras frí
vo
las”.
Ela e Di
edri
ch ti
nham sido amantes; talvez ainda tivessem. Pela
manei
ra co
mo mui
tas ve
zes se esqueciam de manter algum espaço
do discre
tos por cau
sa de
la.
uma espes
sa ca
ma
da de condescendência, mas, naquela noite, entre
ticularmen
te pe
sa
da.
Deve
ri
am es
tar co
me
morando. Os nazistas não haviam conquis-
tado as
sen
tos su
fi
ci
en
tes nas eleições na semana anterior para ga-
nhar a mai
oria no Rei
chs
tag, mas Hitler banira oficialmente os 81
comunis
tas elei
tos no dia seguinte. Afinal, segundo Diedrich, foram
os comu
nis
tas que cons
piraram para incendiar o Reichstag. Quem
agia fei
to trai
dor não ti
nha direito de chorar por ser tratado como
um.
eleição, quan
do os na
zis
tas mais precisavam do apoio do eleitorado.
tido intei
ro e es
pa
lhar pâ
nico entre as massas quanto à iminência de
uma guer
ra ci
vil?
A famí
lia que or
ga
ni
za
ra a festa era fabulosamente rica até para
vremen
te, as
sim co
mo a comida. Não havia sinais de dificulda
des
econô
mi
cas.
Os con
vi
da
dos can
ta
ram a canção de batalha nazista “Kampflied
der Nati
onal
so
zi
alis
te”, bem como a “Horst Wessel”, e dançaram,
sorriram e se abra
ça
ram como se tivessem certeza de que estavam
— Um fan
tas
ma — ex
plicou Lina, diante do silêncio de Althea. —
— É. — Di
edri
ch a tranquilizou, ainda segurando a mão de
Althea.
Quan
do ele a aper
tou, Althea percebeu que antes teria interpre-
tado a aten
ção co
mo uma preocupação afetuosa.
Ela o en
ca
rou nos olhos e se lembrou de quando ele lhe entregara
o exemp
lar de Mi
nha lu
ta. O exemplar que tinha era dele e estava
bem gas
to. Li
do com frequência — as páginas finas e os vincos na
encader
na
ção dei
xa
vam is
so claro.
— Com li
cen
ça.
Foi tu
do o que con
se
guiu dizer, se soltando do domínio dele.
Althea se for
çou a an
dar, em vez de correr como queria. Calma, sem
qualquer pres
sa. A mul
ti
dão eufórica a engoliu depois de poucos
passos, cor
pos a im
pren
sando, vinho respingando nos sapatos, e o
tempo to
do Althea lu
ta
va contra as lágrimas que pesavam suas pál-
da raça su
pe
ri
or.
E par
ti
ci
pa
ra de tu
do de bom grado, com um sorriso no rosto e
ra uma mu
lher que nun
ca fora convidada para sair por um único ra-
paz, aqui
lo era ine
bri
an
te, avassalador, vertiginoso. Diedrich não fo-
ra escolhi
do pe
los na
zis
tas para ser seu contato por ser um dos prin-
cipais pro
fes
so
res de li
te
ratura da universidade; tinha sido esco
lhi-
do pelos lin
dos olhos, lin
do cabelo, lindo sorriso... armas que pode-
Mais uma vez, Althea tropeçou pelas ruas, sem saber para onde
A escu
ri
dão já ti
nha se instalado quando chegou à casa de Dev.
Uma par
te sua sus
sur
rou que era perigoso estar na rua naquela
Outra par
te sus
sur
rou que ela talvez merecesse qualquer violên-
Althea to
cou a cam
pai
nha e esperou.
Quan
do Dev abriu a por
ta, seu rosto se iluminou e depois se fe-
chou.
— Ah, que
ri
da.
Ela pu
xou Althea pa
ra um abraço com cheiro de rosas, fumaça de
charuto e al
go pu
ra
men
te picante que Althea não conse
guiu identi-
— Ve
nha, es
ta
mos qua
se devidamente bêbados.
mento lu
xu
oso em com
pa
ração à sua hospedagem simples. Hannah
Brecht es
ta
va es
par
ra
ma
da no sofá de veludo, usava um vestido de
seda esme
ral
da que abra
çava cada curva do corpo como o toque de
um aman
te. Otto es
ta
va esparramado artisticamente no chão ao la-
do dela.
avaliador.
O últi
mo en
con
tro das duas tinha sido no café, na noi
te do incên-
dio. Quan
do ela per
gun
tou se Althea ainda achava que o grupo co-
Na noi
te em que Althea hesitou tempo demais para responder.
Dev en
fi
ou um co
po de algo forte nas mãos de Althea e disse a
Hannah:
— Ela es
tá ten
do um momento de revelação, como dizemos nos
Estados Uni
dos.
dém.
— Meio tar
de de
mais para isso.
— Nun
ca é tar
de de
mais — discordou Dev, atipicamente séria.
Althea pis
cou pa
ra conter as lágrimas e engoliu a bebida, então
tossiu quan
do o lí
qui
do des
ceu queimando pela sua garganta até se
estabele
cer, quen
te e pe
ca
minoso, na barriga.
— Eu não sa
bia — dis
se Althea, por fim, a voz embargada.
— Vo
cê não que
ria sa
ber — corrigiu Hannah, franzin
do os lábios
carnudos e ana
li
san
do Althea.
nah.
Althea se per
gun
tou sobre os dois. Parecia raro um estar sem o
ou
tro por per
to. Eram cla
ramente próximos, mas agiam mais como
— Nin
guém quer ser o vilão da história — respondeu Althea,
afundan
do no so
fá em frente a Hannah.
Dev se aco
mo
dou em uma bela poltrona wingback perto da jane-
la, emba
lan
do um co
po con
tendo uma bebida cor de âm
bar. Ela não
parecia in
cli
na
da a ali
vi
ar a tensão entre Hannah e Althea.
— O vi
lão. É is
so que vo
cê é? — perguntou Hannah.
Althea pro
cu
rou a res
posta certa em cada parte de seu ser.
Os can
tos dos olhos de Hannah se enrugaram.
— De ale
mão.
A pi
ada pai
rou en
tre elas por um segundo tenso e, em seguida,
Althea co
briu a bo
ca com a mão para conter as risadas eclodindo de
seu pâ
ni
co ago
ni
zan
te.
— Vo
cê de
via ser um daqueles mestres de cerimônia nos cabarés.
— Eles pa
re
cem se sa
far com tiradas vergonhosas, não? — obser-
vou Han
nah. — Acho que eu não teria tanta sorte.
O bom hu
mor de Althea não durou muito.
— Vo
cê de
ve me odi
ar.
— Por fa
vor, vo
cê não é pior do que todos os outros países do
co que che
gou ao po
der por pura sorte — declarou Hannah, levan-
do Ott
o a er
guer o co
po em um gesto indicando que concordava. —
O mal de
ve
ria ser ain
da mais aparente para eles, mas se recusam a
— Pois de
ve
ria — sus
sur
rou Althea, as palavras machucando sua
garganta. — Co
mo es
tá Adam?
Hannah es
trei
tou os olhos de desconfiança.
Althea pen
sou nos olhos de cachorrinho dele, no caloroso li seu
romance.
— Co
mo ele es
tá?
— Per
tur
ba
do — dis
se Hannah, e Otto emitiu um pigarro gutural,
indican
do que con
cor
da
va. — Sabe a mulher com as manchas de tin-
Althea ume
de
ceu os lá
bios e olhou de relance para Dev.
— Fiquei sa
ben
do.
— Pro
va
vel
men
te não vão matá-la — disse Hannah, sem rodeios.
— Mas me pre
ocu
po com o que Adam fará. Por raiva.
— Han
nah… — mur
murou Otto, com os olhos fixos em Althea.
Era pre
ci
so ter cui
da
do. Althea entendeu, mas se perguntou
quantas ve
zes te
ria que afirmar que não os trairia até acreditarem.
— Is
so é mui
to sé
rio — proferiu Hannah, afundando de volta no
canto do so
fá.
Ela ba
teu a unha no copo, então olhou para Dev por alguns ins-
tantes, an
tes de vol
tar pa
ra o rosto de Althea.
testos.
Hannah res
pi
rou fun
do e se inclinou para a frente, como se pres-
tes a con
tar um se
gre
do.
— No mo
men
to, es
tá agindo como se isso tudo tivesse alguma re-
lação di
re
ta com vo
cê. Mas não tem. Isso tudo diz respeito a um dita-
passará a ma
tar ari
anos de olhos castanhos e, em seguida, aqueles
com de
dos lon
gos de
mais ou dentes tortos. — Ela parou e suspirou.
— Não é so
bre vo
cê.
— Mas se eu…
— Se vo
cê se ma
ni
fes
tasse, se desobedecesse a um boicote, se
ria? — pro
vo
cou Han
nah, seus olhos penetrantes e sérios, mas não
maliciosos.
Eram pa
la
vras du
ras, mas não destinadas a eviscerar Althea.
— Hi
tler con
ti
nu
aria reu
nindo comunistas para pren
der em suas
peque
nas pri
sões. Ele con
tinuaria empenhado em sua guerra contra
os judeus, con
ti
nu
aria assassinando os oponentes políticos aos
montes. Ou se
ja: não é so
bre você.
Hannah dis
se aque
la última parte com ênfase suficiente para
Althea ab
sor
ver, de for
ma desconfortável. Ainda assim, a escritora
— Acho — dis
se Han
nah, sem pestanejar. — Só não acho que essa
pessoa se
ja vo
cê.
Althea es
ta
va acos
tu
mada demais a pensar em termos de prota-
gonistas e per
so
na
gens principais. Eles eram a razão pa
ra o mundo
em que exis
ti
am — eles sal
vavam o dia, ou salvavam a princesa, ou
sal
vavam a hu
ma
ni
da
de. Eram a razão de tudo.
Hannah sus
pi
rou, fa
zendo a seda de seu vestido descer um pouco
pelos be
los om
bros.
— Eu não es
ta
ria de
fendendo você de si mesma se na época sou-
besse ex
pli
ci
ta
men
te o que eles estavam fazendo e concordasse com
cisa supe
rar.
— En
tão o que eu fa
ço? Vou embora?
Ela ti
nha di
nhei
ro su
ficiente para comprar a própria passagem
de volta pa
ra os Es
ta
dos Unidos. Se o que Hannah estava dizendo era
Foi Han
nah, no en
tan
to, quem respondeu.
— Vo
cê po
de par
tir. Ou…
— Ou? — in
sis
tiu Althea.
du
as ten
do uma con
ver
sa silenciosa.
— Vo
cê quer fa
zer al
gu
ma coisa?
— Sim — de
sa
ba
fou Althea, aterrorizada, mas certa daquilo.
— En
tão fi
que — dis
se Hannah. — Conheça a verdadeira Berlim
pelos pró
xi
mos três me
ses. A nossa Berlim. Depois, quando voltar
para ca
sa, ga
ran
ta que as pessoas saibam exatamente o que está
acontecen
do na Ale
ma
nha. Não apenas a versão das man
chetes, mas
o que re
al
men
te es
tá acontecendo. Corrija suposições que ouvir, vo-
cê pode con
tar a uma pes
soa e a pessoa contar a outra pessoa e as-
nada, mes
mo que não se
ja o grande feito que suas emoções atuais
Althea ba
lan
çou a ca
be
ça.
— Is
so não vai… Eu não sou tão importante quanto todos aqui
pensam.
Um ca
lor cor
reu pa
ra seu rosto ao admitir aquilo, uma revelação
como es
ta
va fa
zen
do des
de que ela entrara. — Talvez você ainda seja
a heroína da his
tó
ria.
Nova York
Maio de 1944
N ão tinha co
mo Viv ne
gar que Charlotte tinha razão. O sábado de
fol
ga, a con
fis
são en
ver
gonhada de Geórgia e o tempo sem pensar
constan
te
men
te no se
na
dor Taft e na EFA foram revigorantes. Na se-
gunda-fei
ra, ela es
ta
va pronta para iniciar a campanha para trazer
Althea Ja
mes a bor
do de seu evento.
O pri
mei
ro pas
so foi pesquisar, e pesquisar significava um lugar.
Ela pa
rou um pou
co, ajustando a tira do calcanhar do sapato an-
tes de su
bir os de
graus da Biblioteca Pública de Nova York, saudan-
do carinho
sa
men
te um dos leões ao passar.
Embo
ra a bi
bli
ote
ca certamente fosse impressionante, Viv se viu
comparan
do os te
tos al
tos e ostensivos e os pisos de mármore com o
aconche
go da Bi
bli
ote
ca dos Livros Proibidos pelos Nazistas, no Bro-
oklyn, pre
fe
rin
do o se
gun
do lugar.
Per
to do sa
guão de en
trada, sentada à uma mesa, uma jovem de
cabelo es
cu
ro cor
ta
do em camadas elegantes, blusa bem-passada e
— Pos
so aju
dá-la?
— Es
tou pro
cu
ran
do jornais antigos, de cerca de uma década
atrás.
— Cla
ro — dis
se a mu
lher, se levantando e orientando Viv a se-
Viv qua
se sor
riu com a facilidade com que a bibliotecária se apre-
sentou.
— Viv.
Missy a aju
dou a lo
ca
li
zar os jornais próximos das datas de lança-
fundo do sa
lão de lei
tu
ra principal.
O sol se es
guei
ra
va pe
la sala, derramando-se sobre as mãos de
Viv, os bra
ços, os om
bros. Ela teve que mudar de posição quando os
olhos co
me
ça
ram a la
cri
mejar, mas, no geral, a passagem do tempo
parecia exis
tir ape
nas fo
ra daquela sala em particular.
Edith es
ta
va cer
ta so
bre as críticas. As primeiras menções a
Althea vi
eram al
guns di
as antes do lançamento de A luz não fratura-
da. Os crí
ti
cos elo
gi
aram o estilo, os temas, o uso eficiente do fluxo
de cons
ci
ên
cia na men
te da filha da personagem principal. Viv en-
controu so
men
te uma re
senha menos que excelente, mencionando
um final fe
liz que pa
re
cia fácil demais.
Apesar dis
so, Viv no
tou uma leve condescendência em todas as
nho espe
ci
al que sa
bia an
dar de bicicleta, assim como soltavam vári-
as farpas dis
si
mu
la
das so
bre sua habilidade, mesmo a despeito de
pricho do des
ti
no, tam
bém era muito citado, algo que Viv duvidava
que acon
te
ce
ria se Althea também fosse homem.
Viv fo
lhe
ou os jor
nais de anos mais recentes até encontrar a re-
an
terio
res ti
nham si
do boas, aquelas eram arrebatadoras. Elas fala-
persona
gens eram to
das moralmente cinzentas, em vez de ostenta-
rem a éti
ca tão trans
pa
rente do trabalho anterior. Além disso, a re-
jeição da es
tru
tu
ra de con
to de fadas claramente conquistara até os
O edi
tor li
te
rá
rio do New York Post ponderou que a mudança po-
como con
vi
da
da de Jo
seph Goebbels em seu programa de levar auto-
res para re
si
dên
ci
as na Alemanha, a fim de exibir os sucessos da ra-
ça supe
ri
or.
A fra
se es
ta
va sol
ta no final do artigo, mas os olhos de Viv se deti-
mente pas
san
do por to
das as possibilidades antes de chegar ao que
Althea Ja
mes apoi
ara os nazistas.
Viv ab
sor
veu aque
le so
co no estômago por um tempo antes de ba-
lançar a ca
be
ça.
vessem vis
to o flo
res
cer de um movimento fascista nos Estados Uni-
ticipar de um pro
gra
ma cultural.
No en
tan
to, de
pois de descobrir aquilo, Viv não podia ignorar o
tão con
ti
nu
ou a pes
qui
sar.
Encon
trou edi
ções do Portland Daily News de novembro e dezem-
As edi
ções de ju
nho juntaram-se às pilhas.
Demo
rou mais uma ho
ra para encontrar uma menção à proemi-
nente es
cri
to
ra lo
cal Althea James e o convite para Berlim, e mais
quarenta mi
nu
tos pa
ra en
contrar o artigo sobre seu retor
no.
Nenhum con
ti
nha fo
tos da autora. As resenhas também não. Se
mulher ve
emen
te
men
te reservada. Ou seja, não era um bom pressá-
Deixou o pen
sa
men
to de lado. A Viv do futuro lidaria com aqui
lo.
O que os ar
ti
gos ti
nham eram algumas declarações de Althea; o
primeiro con
ta
to de Viv com algo que a própria mulher dissera. Fi-
cou ima
gi
nan
do se se
ri
am as únicas existentes.
“Estou muito animada para expandir meus horizontes literários
com essa viagem”, diz a srta. James, de 25 anos. “Talvez seja o
início de um maravilhoso programa de intercâmbio entre a Alema‐
nha e os Estados Unidos.”
Ela pros
se
guiu pa
ra o ar
tigo sobre a volta de Althea para casa. A
maior par
te era ape
nas uma biografia rápida e um resumo do suces-
so literá
rio da au
to
ra até então. No final, entretanto, perguntaram a
Viv pe
gou os dois jor
nais e os colocou lado a lado, sublinhando ca-
tindo.
Embo
ra as ci
ta
ções fossem curtas, a mudança marcante de tom
livros de Althea.
Ingê
nuo, es
pe
ran
ço
so. Depois brutal e sombrio.
Mons
tros. Althea es
ta
va se referindo aos nazistas? Ou era disso
a realida
de, en
ca
rar com
portamentos preocupantes através de len-
tes cor-de-ro
sa.
Althea Ja
mes se
ria um es
petáculo. E Viv precisava de um evento lo-
tado e de aten
ção má
xi
ma para sua causa. Claro, se Althea fosse real-
Mas, na
que
le mo
men
to, não havia informação suficiente para saber
com cer
te
za, e Viv ti
nha uma alma cheia de otimismo.
Quan
do saiu da bi
bli
oteca, ela teve que admitir que estivera fin-
gindo um pou
co to
da aquela confiança. Não podia negar que, apesar
de todos os avan
ços que estava fazendo, em algumas noites se tran-
tudo aqui
lo da
ria er
ra
do.
Para se acal
mar, Viv começara a ler o exemplar de Oliver Twist
que com
pra
ra no ven
de
dor de rua e a pensar em Edward fazendo o
mesmo tan
tos me
ses atrás, em algum lugar da Itália.
Quan
do seus pais mor
reram e ela foi enviada para morar com tio
Horace, to
do o mun
do passou a se resumir à casa dele, à escola e à
igreja. Aque
les eram os únicos lugares aos quais Viv podia ir nos pri-
Foram os li
vros que lhe proporcionaram uma vida exuberante; os
livros a dei
xa
vam aden
trar mil mundos diferentes, onde era possível
ser mi
lha
res de pes
so
as diferentes. Por muito tempo, Viv andara pe-
lo mundo co
mo se guar
dasse um segredo que ninguém mais conhe-
cia.
Esta
va pen
san
do em tu
do da forma errada. O sucesso da EFA pro-
guardá-lo a se
te cha
ves. Com essa partilha, o fio da humanidade que
corria en
tre to
dos se en
cur
tava, se fortalecia, se tornava ainda mais
vibrante pa
ra o mun
do, assim como as emoções e jornadas que os
leitores ex
pe
ri
men
ta
vam juntos.
curar na es
cu
ri
dão e sa
ber que outra pessoa estava encontrando
mo os que es
ta
vam em casa — precisavam encontrar os próprios
motivos pa
ra con
ti
nu
ar.
O de
la era ga
ran
tir que aquela conexão não fosse tirada dos solda-
dos.
Althea Ja
mes com
pa
re
ce
ria ao evento, como faria um discurso infla-
mado, pon
do fim a quais
quer receios de que fosse uma simpatizante
nazista.
Embo
ra o oti
mis
mo ce
go pudesse ser um pouco imprudente de
sua par
te, per
mi
tiu que ela avançasse com os planos que traçara
após dei
xar a bi
bli
ote
ca.
Extra
ofi
ci
al
men
te, li
gou para uma jornalista do Columbus Dispat-
um arti
go so
bre a EFA.
— Se
ria com ex
clu
si
vi
da
de? — pressionou Marion Samuel quan-
do Viv su
ge
riu um per
fil sobre Althea James.
Ma
ri
on pa
re
cia in
te
res
sada, mas hesitante. Althea James se tor-
trigante pa
ra a mai
oria das pessoas.
Viv se res
guar
dou.
— Se eu con
se
guir que ela concorde.
A pró
xi
ma li
ga
ção foi para Leonard Aston, veterano da Grande
andar man
co per
ma
nen
te que o mantinha fora da confusão atual.
Ele tam
bém fo
ra um dos amantes mais duradouros de Charlotte,
sabia que os dois não eram exatamente próximos o bastante para is-
va.
ções de vi
da e es
ti
lo da re
vis
ta Time.
— Vo
cê abriu mão da exclusividade? — gritou Leonard, ao telefo-
ne, embo
ra seu la
ti
do fos
se notoriamente pior do que a mordida.
— Quan
tos dos elei
to
res de Taft são seus assinantes, Leo? — per-
— Se eu con
se
guir que ela concorde — preveniu-se Viv, mais uma
vez.
— Eu nun
ca apos
ta
ria contra você, garota — disse Leonard, o que
uma res
pos
ta.
Com aque
las ta
re
fas concluídas, Viv entrou em contato com a
for
mou que a edi
to
ra não dava nenhuma informação sobre seus au-
tores. Quan
do ela pe
diu pelo menos o nome do editor, a mulher des-
ligou.
No dia se
guin
te, abor
dou Harrison Gardiner na saída do escritó-
Avenida. Co
mo uma das jovens promessas do mercado editorial,
Harrison gos
ta
va de se manter bem-informado sobre o que os gran-
des esta
be
le
ci
men
tos co
merciais mantinham em esto
que e rara-
mente ne
ga
va uma opor
tu
nidade de sair do trabalho mais cedo.
Enquan
to es
pe
ra
va por Harrison do lado de fora da Biblo & Tan-
Havia um be
ne
fí
cio adi
cional em se manter ocupada naquela tar-
Não que
ria pen
sar em Edward como um soldado tombado; queria
pensar ne
le co
mo o ho
mem que adorava passar tardes preguiçosas
naque
la mes
ma rua, con
fe
rindo as novidades.
Edward não era um amante dos livros. Como muitos homens que
Viv co
nhe
cia, ele se for
ça
ra a ler na escola e nunca aprendera a fazê-
lo por pra
zer.
— ain
da mais se con
tra
dissesse quem o mundo devia pensar que a
Viv pis
cou pa
ra afas
tar a onda de emotividade, irritada consigo
nele lon
ge da pri
va
ci
da
de da própria casa, sem querer ser pega solu-
correr sol
ta e en
go
li-la por inteiro.
Preci
sa
va acre
di
tar que, em algum momento, seria mais fácil su-
mais ul
tra
jan
tes quan
to mais Viv ria. Ou como arrancava de suas
mãos os li
vros que ela aca
bara de comprar e começava a ler trechos
constran
ge
do
res em voz alta e teatral, ali mesmo no meio da rua.
Viv sa
bia que um dia pararia de olhar para o lado, pronta para
se depa
rar com o va
zio. Mas este dia ainda não tinha chegado.
— Vo
cê pa
re
ce tris
te demais para alguém que está en
frentando o
Capitólio e ven
cen
do — comentou Harrison, por trás de Viv.
Ela for
çou um sor
ri
so até torná-lo natural, a lembrança de
Edward guar
da
da de vol
ta em seu cofre.
— Tal
vez “ven
cen
do” seja um termo generoso demais — respon-
— Con
si
de
ran
do que já havia desistido há algumas semanas,
muito sa
tis
fei
to con
si
go mesmo.
— Vo
cê quer que eu agradeça, não é? — disse Viv, fingindo estar
chateada.
— Uma pi
ta
da de apre
ço ajuda muito a conseguir os favores que
se dese
ja — brin
cou Har
rison. — E presumo ser por isso que estou
— Se
gun
das in
ten
ções? Quem, eu? — perguntou Viv, fingindo
inocência pa
ra fa
zê-lo rir.
Ela ce
deu e o atu
ali
zou sobre todos os planos que estava traçando,
incluin
do a es
pe
ran
ça re
mota de contar com a presença de Althea
James.
— Te
nho um ami
go de faculdade na Harper — refletiu Harrison,
enquan
to pa
ra
vam di
an
te de uma das prateleiras de livros.
Viv es
ta
va con
tan
do com aquilo. A editora era pequena e o círculo
interno de es
tre
las, ain
da menor, mas teve que ignorar um lampejo
de irrita
ção por tu
do pa
ra ele ser tão fácil.
— Não pos
so pro
me
ter nada, mas vou defender sua ideia.
— É tu
do o que pe
ço — disse Viv, grata, apesar do rápido instante
de ressen
ti
men
to. — Obri
gada.
Enquan
to se des
lo
ca
vam para a próxima banca na calçada, um
cobertos de joi
as e um bi
gode quase tocando o colarinho.
Viv vi
rou pa
ra a es
quer
da, onde Edward tantas vezes estivera com
algum co
men
tá
rio áci
do na ponta da língua.
Mas o es
pa
ço es
ta
va va
zio. Como sempre estaria.
Pa
ris
Novem
bro de 1936
A notí
cia de que os pais de Hannah haviam recebido vistos para a
Inglater
ra che
gou no pri
meiro dia da exposição.
estavam a bor
do de um navio para Southampton sem dar adeus. Se
mo lugar.
Eles ha
vi
am di
to re
pe
ti
das vezes que não a culpavam pelo destino
de Adam, mes
mo que ela ti
vesse confessado a verdade aos dois não
muito tem
po de
pois de o ir
mão ser arrastado para o campo de con-
centração. Han
nah, no entanto, sabia que tinha sido enganada por
um rosti
nho bo
ni
to, e to
dos pagaram o preço por aquilo.
A car
ta di
zia que uma quantia generosa fora depositada em sua
conta ban
cá
ria, su
fi
ci
en
te para sustentá-la por anos — o único indí-
cio de de
ver fa
mi
li
ar que seus pais ainda sentiam em relação a ela.
Hannah re
leu a men
sa
gem, respirou fundo e disse adeus. Adeus
Adeus à ino
cên
cia de acreditar que o amor pode ser incondicio-
nal.
Após atra
ves
sar o cô
modo em três passos rápidos, Hannah jo
gou
o envelo
pe na la
rei
ra ace
sa. A tinta e o papel silvaram seu protesto
enquan
to eram de
vo
ra
dos pelo fogo, enquanto se transformavam
em cinzas.
beliscou as bo
che
chas pa
ra que ganhassem alguma cor, calçou os sa-
patos e se des
pe
diu de Brigitte, que se tornara mais gentil com ela
nos úl
ti
mos di
as. Não pen
sou em como sentia que Otto se distancia-
ra dela des
de que os dois se mudaram para Paris.
O ami
go a cum
pri
men
tou na rua com um sorriso contente e des-
preocupa
do que ela ten
tou imitar. Enquanto caminhavam rumo ao
Boulevard Saint-Ger
main e à exposição, Hannah conduziu a conver-
sa para fo
fo
cas to
las e despreocupadas, tentando iluminar a escuri-
dão da ma
nhã. A es
cu
ri
dão do que estava por vir.
No en
tan
to, à pri
mei
ra visão da suástica, Hannah não podia mais
participar de con
ver
sas su
pérfluas.
Esta
vam em Pa
ris.
Uma ter
ra li
vre.
Hannah re
pe
tiu aque
les fatos diversas vezes no caminho até as
Alemã da Li
ber
da
de se instalara na Société de Géographie, duas por-
tas à fren
te de na
zis
tas usando uniformes militares alemães parados
moso, Tho
mas Mann, es
tavam presentes, supervisionando a exibi-
gentis, to
dos es
ta
vam ale
gres, mas cada sorriso era um pouco frágil,
e os olha
res não pa
ra
vam de vaguear para as bandeiras, os unifor-
mes, os pa
ri
si
en
ses se
du
zi
dos pelo espetáculo nazista.
A bibli
ote
ca es
ta
va ser
vindo sidra de maçã e doces para os visi-
tantes. Han
nah se es
for
çou para abordar os que deixavam a vitrine
dos nazis
tas com uma sa
cola marrom enfiada debaixo do braço. Se
eles qui
ses
sem ven
cer aquela luta, não podiam guardar rancor das
quando to
dos per
ce
be
ram que o esforço não seria tão bem-sucedido
como es
pe
ra
do. As pes
so
as paravam, olhavam, às vezes até se envol-
de ideia.
“Os na
zis
tas não po
dem ser tão ruins assim”, ouviu.
“Eles es
tão mu
dan
do as coisas.”
“…mas os ju
deus pa
re
cem ter muito poder.”
A últi
ma fra
se foi sus
surrada em voz alta o suficiente para to
dos
ou
virem.
Hannah se afas
tou do ho
mem, forçou um sorriso e le
vou uma se-
nhora pa
ra mais per
to da exibição de livros de autoria judaica, que
seleciona
ra tão di
li
gen
te
mente.
Ela sa
bia, no en
tan
to, sabia que todos ali ouviram. Se aquela fosse
uma ba
ta
lha pe
la al
ma de Paris, a Biblioteca Alemã da Liberdade ti-
nha per
di
do.
Quan
do seu tur
no ter
minou, pegou Otto e saiu pelo bulevar.
Os ho
mens as
so
bi
avam enquanto ela passava, apesar de Otto es-
Hannah sen
tiu o bra
ço do amigo tenso, mas continuou andando,
puxan
do-o pa
ra jun
to de
la, implorando silenciosamente para que
sos, a di
fe
ren
ça era que Hannah conseguia ignorar e preferia ir para
Hannah fe
chou os olhos brevemente quando percebeu que dois
nazistas ha
vi
am se se
pa
rado do grupo para segui-los. Por favor, por
— Fräu
lein — cha
mou um deles, a voz arrogante, se divertindo.
Hannah con
ti
nu
ou an
dando.
O ami
go de
le cha
mou mais alto:
— Fräu
lein.
— Não ig
no
re nos
sas pobres almas, tão solitárias — continuaram
em alemão, atrain
do al
guns olhares de quem passava. Quando sen-
bem bai
xo:
— Ig
no
re, só ig
no
re.
É cla
ro que aque
les ho
mens eram grosseiros. Eram nazistas em
Paris, o ob
je
ti
vo de
les, em momentos como aquele, era ofender. Co-
mo mui
tos dos ca
mi
sas-par
das de Hitler, estavam claramente arma-
construí
dos em no
me da violência durante a Grande Guerra.
— Ve
ja só ela se afas
tan
do — cantarolou o primeiro.
— Es
tou ven
do — emendou o segundo. — Isso que é um belo ra-
bo.
Otto se vi
rou e acer
tou um soco na mandíbula do nazis
ta mais cor-
pulento.
Em um pis
car de olhos — ou dois —, tudo congelou, o tempo se
desdobrou e des
mo
ro
nou.
Então o ho
mem ui
vou, mais de surpresa do que de dor. Otto não
quando ho
mens co
mo aqueles provavam da violência, atacavam co-
mo um en
xa
me.
Articu
la
ções dos de
dos encontraram o rosto de Otto, cuja cabeça
estalou pa
ra trás em um estouro, como se tivesse quebrado a coluna.
Ele mor
reu.
A visão de Han
nah fi
cou branca com o pensamento.
Mas Ott
o não caiu, ape
nas tropeçou, os braços e as pernas ainda
funcionan
do.
Otto se fir
mou, com os punhos cerrados diante do corpo como
um bo
xe
ador se pre
pa
ran
do para uma luta.
Mexa-se.
Mas Han
nah não con
se
guia. Suas pernas não obedeciam. Não
obedeciam.
va em Pa
ris.
Se ela pu
des
se pen
sar… se pudesse… pensar…
A co
mo
ção atraí
ra uma plateia, e Hannah olhou de um rosto para
ou
tro, de
ses
pe
ra
da, pro
cu
rando.
Ninguém in
ter
veio.
O na
zis
ta que Otto atingira pulava, dando golpes rápidos em sua
mandíbu
la. Pro
vo
ca
ções zombeteiras, acima de tudo.
Otto tro
pe
ça
va, mas também conseguia desferir alguns socos.
tas esta
vam cir
cu
lan
do, mas não tinham atacado de verdade.
Apenas me
xa-se.
Contu
do, an
tes que pu
desse se colocar na frente de Otto, bloque-
uma ma
ri
one
te cu
jas cor
das haviam sido cortadas.
O san
gue man
cha
va um dos nós dos dedos do homem.
O san
gue sal
pi
ca
va a calçada. O sangue rugia em seus ouvidos.
Aju
da.
Eles pre
ci
sa
vam de aju
da.
Em se
gui
da, os dois na
zistas estavam no chão, em cima de Ott
o.
Ninguém saí
ra do lu
gar. Hannah não saíra do lugar. Ela não tinha
parado na fren
te de Ott
o. Ela não o protegeu.
Um ge
mi
do in
ter
rom
peu o barulho, tão baixo que provavelmente
da mais pe
da
ços.
Hannah ou
viu ca
da momento de sua vida naquele gemido, cada
momen
to da vi
da de Otto.
Faça al
gu
ma coi
sa.
Agora.
Hannah pas
sou por bai
xo de um braço erguido e pronto para ata-
car e se jo
gou so
bre a pi
lha de homens, tentando alcançar qualquer
pedaço de Otto — uma perna, o casaco, uma das mãos. Qualquer coi-
sa.
A dor, in
ci
si
va e dor
mente, atingiu em cheio a maçã de seu rosto,
descendo pe
la co
lu
na.
Uma bo
ta, per
ce
beu, quando a dor se instalou em um pulsar mas-
sacrante.
Enquan
to se
gu
ra
va o rosto com a mão trêmula, ela olhou nos
olhos do na
zis
ta que a chutara. Naquele momento, os olhos dele es-
tamparam um lam
pe
jo de remorso. Então um cotovelo errante acer-
tou a man
dí
bu
la do ho
mem, e tudo naquele homem endureceu.
O nazis
ta re
cu
ou o pu
nho e, em seguida, seus dedos encontraram
a boche
cha já ma
chu
ca
da dela.
Um som bai
xo eco
ou em seu ouvido quando ela caiu na calçada,
os dentes frou
xos na bo
ca, o corpo pesado e desajeitado. Uma náu-
sea a ame
aça
va, e se Han
nah pudesse apenas fechar os olhos, só por
um segun
do, só por um…
Otto gri
tou.
Hannah ofe
gou e co
me
çou a se levantar, sentindo ondas maçan-
Aqui
lo não era im
por
tante no momento. Sem hesitar, ela se ati-
rou de vol
ta na pi
lha, ten
tando, tentando, tentando alcançar alguma
— Pa
re! — gri
tou em alemão. — Por favor, socorro!
Da se
gun
da vez, ela fa
lou em francês, se dirigindo à plateia. Han-
nah se lem
brou da pis
to
la, pensou em encostar o cano na cabeça de
um dos ho
mens e pu
xar o gatilho. Foi a primeira vez em sua vida que
conside
rou ma
tar al
guém, mas, naquele momento, soube que, se ti-
vesse a ar
ma, te
ria pe
lo menos tentado.
— Por fa
vor, so
cor
ro!
Ninguém foi aju
dá-los. A maré a puxou para baixo, a puxou para
sob as on
das de gol
pes de punhos cerrados e de homens maus.
Otto , pen
sou, ten
tan
do abraçar o corpo quebrado e surrado do
amigo.
Hannah sus
pi
rou. Não.
E então chu
tou. Seu pé acertou alguma coisa. Um estalo inter-
rompeu a es
tra
nha qui
etu
de da noite.
Ela chu
tou de no
vo. Ui
vou. Arranhou. Ela se debateu até os bra-
ços encon
tra
rem ros
tos expostos, até as mãos desferirem golpes de
sorte.
A po
lí
cia che
gou.
Era tar
de de
mais.
Nova York
Maio de 1944
V iv anda
va de um la
do para o outro diante do escritório de campa-
nha de Ha
le, in
qui
eta após a tarde com Harrison na Booksellers’
noite de brid
ge de Char
lotte com as duas amigas mais antigas e que-
lado do rio.
Hale a sur
pre
en
deu no meio da calçada quando cruzou o pórtico,
enfiando os om
bros pa
ra dentro do casaco apesar do calor do dia.
— Ma
nhattan fi
ca pa
ra lá — alertou ele, apontando pa
ra a esquer-
da.
Viv se vi
rou de mo
do te
atral.
— Quer di
zer que não estou na Broadway? Eu poderia jurar que
virei na es
qui
na cer
ta da Times Square.
Hale cur
vou os lá
bi
os em um sorriso gentil.
— Olá, Childs.
— Olá, Ha
le — de
vol
veu ela, com a mesma irreverência, as mãos
na cintu
ra, o ven
to ba
lan
çando sua saia.
— Que ca
ra é es
sa? — perguntou Hale, após descer os três de-
graus.
Viv apoi
ou a mão na testa para bloquear o sol poente e olhar para
ele.
— Só pen
san
do na vi
da, acho.
— Faz sen
ti
do, pen
sar na vida durante uma guerra — disse ele,
mudando de po
si
ção pa
ra que Viv pudesse olhá-lo sem lacrimejar
por con
ta da luz. — Veio pedir mais um favor?
Balan
çan
do a ca
be
ça, Viv cutucou o cotovele dele com o próprio.
— Uma dis
tra
ção.
ra de pe
lo me
nos al
gu
mas homenagens ao Memorial Day e prova
vel-
mente acei
ta
ra inú
me
ras condolências de pessoas bem-intenciona-
das.
— Va
mos ca
mi
nhar um pouco? — pediu ela.
A sur
pre
sa de
le che
gou e se foi em um piscar de olhos. Apesar do
sorriso cau
te
lo
so, ele as
sentiu.
— Es
tá uma noi
te agra
dável. Para onde vamos?
— Pa
ra on
de o ven
to nos levar — sugeriu Viv.
Hale he
si
tou, cla
ra
mente inseguro quanto ao que ela queria. Viv
não o cul
pou. Na úl
ti
ma vez que conversaram, tinha sido extrema-
mente res
guar
da
da.
Mas, na
que
le dia, que
ria conversar com alguém que conhecera
sonalida
de, eram com
ple
tos opostos —, mas por ser… mais fácil. Sa-
ral de lu
to por to
dos os sol
dados mortos.
Por Edward.
DE REPENTE, os jo
elhos de Viv bambearam, as coxas enfraqueceram,
a respira
ção fi
cou ir
re
gu
lar. As pontas dos dedos encontraram o tij
o-
Ignoran
do a pre
ocu
pa
ção no rosto de Hale, que deu meia-vol
ta e
parou di
an
te de
la, Viv fe
chou os olhos e se concentrou na inspiração
seguinte, de
pois na ex
pi
ra
ção.
Edward es
ta
va mor
to.
Nun
ca mais ve
ria o hu
mor astuto nos olhos dele antes de contar
uma pi
ada, nun
ca mais buscaria conforto no calor de seu abraço,
arranca
dos em tro
ca.
Ela sen
tiu de
dos em volta de seu pulso, sem apertá-lo, ape
nas
confortan
do.
Hale es
ta
va a pro
te
gen
do da rua e do olhar curioso de qualquer
passante in
tro
me
ti
do, en
quanto, com o polegar, fazia um pequeno
cír
culo so
bre o pul
so dis
parado dela. Nenhum dos dois disse nada
até o co
ra
ção de Viv de
sa
celerar, mas também não suspenderam o
contato vi
su
al.
— Na mai
or par
te do tempo, eu me sinto bem — disse Viv, por
fim.
Hale pa
ra
li
sou o po
le
gar por um breve momento antes de conti-
nu
ar o mo
vi
men
to pa
ra acal
má-la.
— Na mai
or par
te do tempo, eu simplesmente não consigo pensar
no que acon
te
ceu.
rido um ver
de tem
pes
tu
oso, as manchinhas douradas parecendo pe-
quenos re
lâm
pa
gos ir
rom
pendo entre as nuvens.
— Is
so faz de mim uma pessoa terrível? — perguntou Viv, mais
que depres
sa. — Nem sem
pre pensar no que aconteceu?
Hale bu
fou uma es
pé
cie de suspiro, inclinando o corpo em dire-
ção ao de
la. Se fos
se qual
quer outra pessoa, Viv teria se sentido en-
currala
da, mas, em vez disso, mergulhou na sensação de proteção do
gesto.
— Se vo
cê se for
ças
se a pensar nele o tempo todo, passaria a vida
de joe
lhos, in
ca
paz de fa
zer qualquer coisa além de chorar — res-
pondeu Ha
le, em um tom brando. — Eu só consigo sair da cama todo
os dias por
que não me per
mito pensar nele.
Viv fun
gou e ana
li
sou o rosto de Hale. Talvez Edward e ele nunca
tivessem se apro
xi
ma
do tanto, mas se aproximaram. Dois homens
que deci
di
ram ser ir
mãos, em vez de inimigos.
Naque
le mo
men
to, ela amava os dois ferozmente, sem restrições,
condições ou ci
ca
tri
zes. Amava Hale por amar Edward, por lhe dar
uma famí
lia quan
do po
de
ria ter negado qualquer afeição.
Ela pôs uma das mãos no peito de Hale, na altura do coração. Ele
baixou a tes
ta e a en
cos
tou na dela, e os dois ficaram assim, mesmo
com a agi
ta
ção da rua ao redor, com os trabalhadores indo para casa,
as mães em
pur
ran
do car
rinhos de bebê, algumas jovens rindo en-
quanto ten
ta
vam não olhar.
Os dois só se se
pa
ra
ram quando algo bateu de leve no pé de Viv.
Surpre
sa, ela olhou pa
ra baixo e viu uma bola de beisebol. Não
era impe
ca
vel
men
te bran
ca, como se veria em um jogo dos Dodgers,
e sim de um bran
co su
jo e desgastado muito familiar, do verão em
Quan
do Viv le
van
tou o rosto, Hale sorriu para ela, travesso, o de-
Viv se abai
xou, pe
gou a bola e olhou para os lados, procurando os
donos. Um me
ni
no com uma luva surrada em uma das mãos estava
no meio-fio, a pou
cos me
tros de distância. Os olhos do garoto esta-
vam ar
re
ga
la
dos e chei
os de surpresa, nitidamente reconhecendo
Hale, o ama
do po
lí
ti
co do bairro.
Viv en
ca
rou Ha
le mais uma vez e curvou os lábios em um sorriso
questiona
dor.
e se virou pa
ra o me
ni
no.
— Tem lu
gar pa
ra mais dois?
— E se vo
cê su
jar seu terno, congressista Hale? — brincou Viv, ao
Hale su
biu e des
ceu o olhar pelo vestido sedutor de Viv, os saltos,
o peque
no cha
péu em
po
leirado na cabeça.
que a aten
ção de
mo
ra
da e atenta de Hale a deixara sem palavras —,
pois o me
ni
no com a lu
va já gritava na direção dos amigos.
Viv e Ha
le o se
gui
ram. Hale tirou o paletó bem-cortado e acomo-
dou-o so
bre um hi
dran
te. Viv mordeu o lábio. Não havia o que fazer
quanto ao ves
ti
do, mas os saltos teria que tirar.
sapatos, ar
ran
cou um sorrisinho de Hale. Os meninos tomaram o
gesto co
mo um con
vi
te para se aglomerar em volta de ambos, todos
falando ao mes
mo tem
po.
Se Viv ti
ves
se que adi
vinhar, diria que tinham cerca de dez anos.
Muitas ve
zes, quan
do via meninas e meninos daquela idade, tinham
o semblan
te sé
rio de cri
anças forçadas a amadurecer cedo demais.
Mas as cri
an
ças ali es
ta
vam inflamadas com o simples prazer do ve-
mais.
— Se
nho
ra — dis
se um deles a Viv, tocando a canela dela com o
— Ele dis
se, foi?
Viv lan
çou um olhar pa
ra Hale, que a observava com uma emoção
difícil de iden
ti
fi
car. Se
ja lá o que fosse, uma parte adormecida dela
acordou, ex
pon
do bro
tos de esperança verde-primavera atrás do ca-
— Pes
so
al! — cha
mou um dos rapazes mais velhos. — Aposto dez
Viv es
trei
tou os olhos.
Àque
la al
tu
ra, al
gu
mas meninas também já tinham começado a
se reu
nir na cal
ça
da pa
ra assistir. Dois adultos respeitá
veis partici-
mais pa
ra dei
xar pas
sar.
— Apos
ta acei
ta — gri
tou uma das meninas mais altas.
Era ma
gra, ti
nha lon
gos cabelos escuros e um maxi
lar definido
de apre
ço e ga
nhou um sorriso largo em resposta.
Atrás de
la, Ha
le ba
teu palmas e gritou incentivos quase tão fa
mi-
liares quan
to a bo
la de bei
sebol suja.
Viv se apro
xi
mou da placa de rua quebrada que servia como base
principal, se
gu
rou o ta
co com força, empinou o traseiro de um jeito
o arremes
sa
dor. Com a ar
rogância típica dos dez anos de idade e de
ser o cen
tro das aten
ções, o garoto cacarejou e jogou a bola para ci-
ma zom
be
tei
ro.
— Po
de man
dar — gri
tou Viv.
— Vai que
rer que eu arremesse como uma garota? — provocou
ele, arran
can
do mais pro
testos das meninas na calçada.
— Vo
cê não con
se
gue nem acertar o arremesso de uma garota,
Bobby.
— Quan
do foi a úl
ti
ma vez que você sequer conseguiu sair da
“primei
ra ba
se”?
Embo
ra qui
ses
se, Viv não sorriu. Franzindo ainda mais a testa,
declarou:
— Es
tou co
me
çan
do a achar que vocês só falam, falam e não fa-
A alfi
ne
ta
da te
ve o efei
to pretendido. O menino deixou de achar
graça da si
tu
ação e ar
re
messou o melhor que pôde — ou seja, a bola
dissimu
la
do.
Já que gos
ta
va de um drama, Viv agitou o taco para errar. Mas
também er
rou de pro
pó
sito porque a alegria que irradi
ava de cada
ser naque
le pe
que
no quarteirão do Brooklyn era inconfundível. Al-
gumas mu
lhe
res fo
ram pa
ra a porta de suas casas para assistir ao jo-
go, apoi
an
do-se nos ba
ten
tes, a atenção sempre voltando para Hale,
embora al
gu
mas ain
da no
tassem Viv para encorajá-la. Alguns mari-
nheiros ti
nham se re
cos
ta
do na fachada de uma mercearia, o propri-
etário se apro
xi
man
do da vitrine para assistir.
Com a sim
ples che
ga
da de dois adultos ao jogo, toda a atmosfera
se torna
ra a de uma fes
ta, um deleite, uma celebração de verão, da
vida e da fe
li
ci
da
de.
E Viv que
ria pro
lon
gar aquilo pelo máximo de tempo possível.
— Eu fa
lei — dis
se o mesmo rapaz que gritara de sua posição na
terceira ba
se.
A me
ni
na es
guia na cal
çada revirou os olhos.
Viv dei
xou o se
gun
do arremesso passar, e Hale, que parecia ter
assumido o pa
pel de ár
bi
tro, gritou strike como se estivesse no está-
— A pró
xi
ma vai le
var tudo — gritou alguém da plateia.
Os ga
ro
tos já es
ta
vam vibrando, eletrizados de tanta empolgação.
Viv ajei
tou a pres
são no taco. O drama só valeria a pena se fosse
encerra
do com um grand finale.
Aqui
lo a fez pen
sar na briga com o senador Taft, mas no instante
naque
la noi
te; pre
ci
sa
va estar ali, presente, pronta para acertar.
Quan
do a bo
la dei
xou os dedos do garoto, Viv levantou o cotovelo,
deslocan
do o pe
so. Ela soltou o ar, exatamente como Hale lhe ensi-
nara.
O taco en
con
trou a bo
la com um estalo satisfatório que reverbe-
deram a res
pi
ra
ção pa
ra ver a bola subir e passar por cima dos meni-
nos da li
nha mais dis
tan
te. Então, Viv largou o bastão e disparou, in-
centiva
da pe
lo ru
gi
do que se seguiu, mesmo com a saia subindo pe-
las pernas.
Os pe
dre
gu
lhos ar
ra
nhavam as solas de seus pés, o suor se acu-
dirigir pa
ra a ter
cei
ra. Os garotos não sabiam o que fazer, pois já ti-
nham man
da
do dois de
fensores de fora correr atrás da bola, que tal-
vez esti
ves
se sob al
gum carro distante. Gritos de encorajamento e
descren
ça a sau
da
ram na terceira base, então a jovem magra na cal-
os braços e apon
tou pa
ra a primeira base. As outras meninas tinham
se reuni
do atrás de
la, qua
se vibrando com mais gritos de incentivo.
Pelo can
to do olho, Viv quase se distraiu com uma agitação. Os
meninos ti
nham en
con
tra
do a bola e iniciado uma corrente para de-
volvê-la ao me
ni
no que protegia o ponto de chegada. Viv abaixou o
queixo, reu
niu ca
da go
ta de energia que lhe restava, pegou impulso
com os bra
ços e en
cur
tou o passo.
O arre
mes
sa
dor es
ta
va com a bola.
Ela es
ta
va a dois, tal
vez três passos de distância.
A bo
la na
ve
gou na di
reção dela — rumo à luva que o receptor
mantinha le
van
ta
da.
A bola pou
sou na lu
va menos de um segundo depois do pé de Viv
tocar o me
tal. Ela der
ra
pou um pouco com a mudança de superfí
cie,
mas con
se
guiu se man
ter de pé enquanto todos se voltavam pa-
ra Hale.
Ele dei
xou o sus
pen
se se estender, aumentar e crescer enquanto
a plateia o ob
ser
va
va aten
tamente, pronta para aceitar sua decisão.
Final
men
te, com a grandiosidade de um árbitro decidindo um jo-
go da World Se
ri
es, ele gri
tou:
— Sa
fe!
As me
ni
nas gri
ta
ram por uma vitória que assumiram como de
las,
e os me
ni
nos, in
con
for
ma
dos, começaram a discutir do jeito que pa-
tinham ti
ra
do uma pau
sa no dia sorriram com benevolência, o dono
da merce
aria riu, e os ma
rinheiros piscaram para Viv antes de segui-
não cho
rar — não de tris
teza, mas por conta de uma onda avassala-
dora de ale
gria que ame
açava arrebentar cada costura gasta e vulne-
Uma guer
ra tão lon
ga, tantos anos de dificuldades, de sacrifí
cio,
de medo, per
da, dor, além da monotonia maçante do desamparo.
Ainda as
sim, na
da da
qui
lo os destruíra completamente. Mesmo nos
as pesso
as en
con
tra
vam uma forma de cultivar momentos funda-
mentados na es
pe
ran
ça para incentivá-las a dar mais um passo. E
Hale se apro
xi
mou por trás dela e apoiou um dos braços em seu
ombro.
— Eu sa
bia que vo
cê conseguiria, Childs.
Sentin
do-se mag
nâ
ni
ma, Viv olhou para ele e devolveu:
— Apren
di com o me
lhor.
Ele aper
tou seu bra
ço, e Viv sentiu uma emoção tingida de pâni-
co, imagi
nan
do que Ha
le a puxaria para um beij
o. Mas ele se afastou,
batendo pal
mas pa
ra cha
mar a atenção dos garotos.
Assim co
mo Viv, Ha
le co
nhecia o poder de um bom final e não se
impor
ta
va de cum
prir seu papel. Ele parabenizou os meninos pela
partida, le
vou-os à mer
ce
aria e comprou todos os picolés da geladei-
ra.
Viv es
co
lheu um de uva e tentou não pensar na lembrança daque-
le sabor na lín
gua de Ha
le.
vem grá
vi
da que le
va
ra a cesta de costura para a rua a fim de partici-
par da di
ver
são.
Em ou
tros tem
pos, Viv teria perguntado sobre o mari
do, mas não
o fez. Ha
via tão pou
cos di
as como aquele, dias que não eram conta-
minados pe
la guer
ra. O crepúsculo estava tingido de ouro e rosa, e
eram jo
vens, so
bre o fi
lho da moça, que vinha jogando na primeira
O ama
nhã che
ga
ria; sempre chegava. E traria a tristeza que todos
tiveram o cui
da
do de ex
purgar naquela noite.
Tal
vez, da
da a enor
mi
dade do que todos estavam enfrentando, o
indulto pa
re
ces
se pe
que
no. Mas era semelhante à noção que Viv ti-
soldados. Um pe
que
no lembrete de que a vida não era apenas san-
gue, bom
bas e me
do.
Se to
dos pu
des
sem se apegar a esses lembretes, se pu
dessem aju-
aquela mal
di
ta guer
ra. Não necessariamente inteiros, mas huma-
nos.
Pa
ris
Novem
bro de 1936
C om o chei
ro amar
go de sabão de carvão entranhado nas narinas,
Hannah ob
ser
va
va o pei
to de Otto subir e descer na cama do hospi-
tal.
Ele vi
ve
ria, pro
me
te
ram os médicos.
Ela to
cou na co
ro
nha da pistola que passara a levar a qualquer lu-
só fora em ca
sa uma vez para se trocar e tirar a arma do esconderijo
te não vi
ria.
branças in
des
cri
tí
veis e, mesmo assim, viscerais e horripilantes.
ra a rua, vis
to que to
dos estavam lá. De pé, observando, sem fazer
nada.
Olhou pa
ra a ja
ne
la, pa
ra o sol se esgueirando acima do horizonte
parisien
se.
Possi
vel
men
te pe
la milésima vez, afirmou para si mesma que
seus ami
gos da bi
bli
ote
ca eram intelectuais, pensadores. Talvez
nunca ti
ves
sem da
do um soco na vida, muito menos lutado contra o
tipo de bár
ba
ros cu
jos corpos tinham sido moldados para a violên-
Otto ge
meu, se me
xeu sob os lençóis e depois se acomodou.
Os mé
di
cos dis
se
ram que Otto viveria, mas o que seria dele? O
— era ater
ro
ri
zan
te. Ela tinha sido feliz e alegre. Sempre fora cética
compara
da ao ide
alis
mo de Adam, mas nunca tivera um coração de
pedra.
Hannah pas
sa
ra tan
tas noites berlinenses dançando, rindo e
amando, noi
tes em que bebera champanhe demais, usara vesti
dos
de seda ca
ros e fi
ze
ra pas
seios de bicicleta no primeiro dia da prima-
das pes
so
as, acre
di
ta
va que a maioria estava apenas tentando seu
melhor em um mun
do que às vezes podia ser difícil. Fora aberta,
gentil e sar
cás
ti
ca, uma boa amiga e boa irmã. Não necessariamente
leia de la
ran
ja, noi
tes de tea
tro e tinha sonhos serenos que pareciam
possíveis.
A guer
ra — e Han
nah já tinha concluído que eles estavam em
guerra — sa
bia to
mar to
das aquelas pequenas coisas e, depois, am-
comemo
ra
ções. Era tu
do amor e ódio, medo e coragem, poesia e des-
truição, tu
do mais in
ten
so devido ao contraste, impossibilitando o
meio-ter
mo.
se sentia evis
ce
ra
da pe
la dor, pela traição, por uma lenta erosão de
sua fé na hu
ma
ni
da
de.
Porque a mu
lher que ela fo
ra em Berlim jamais sonharia em puxar
um gati
lho.
E lá es
ta
va ela, com uma pistola nas mãos, se retraindo de leve
com a sen
sa
ção do me
tal nos dedos. Um dos nazistas quebrara três
de seus de
dos. Na ho
ra, ela nem notou.
Ainda as
sim, as con
tu
sões verde-púrpura amareladas que surgi-
ram na ma
çã de seu ros
to eram as piores de suas lesões. No contorno
uma, du
as ve
zes. En
tão ele abriu os olhos.
Lágri
mas es
cor
re
ram pe
lo rosto de Hannah, descendo até o lábio
Althea, so
bre
vi
ve
ra to
dos os dias ciente de que tinha desempenhado
um papel na cap
tu
ra do próprio irmão.
Mas sa
bia que, se Ott
o tivesse morrido, ela teria finalmente — fi-
nalmente — su
cum
bi
do.
— disse o mé
di
co, co
mo se existisse dúvida quanto a quem seria.
Os dois se
gui
ram pa
ra o apartamento de Otto de carro, mas tive-
os cabe
los de
le, afas
tan
do-os da testa e acalmando-o até acabar.
Quan
do che
ga
ram, Hannah o enfiou debaixo de um cobertor
quente e atra
ves
sou a sa
la para colocar a chaleira no fogo. Tocou o
exemplar de Mac
beth que estava ao lado do fogão e se perguntou se
os ferimen
tos de Ott
o sig
nificavam a perda do papel que ele acabara
de conquis
tar na se
ma
na anterior.
— Vo
cê es
tá ma
chu
ca
da — murmurou Otto, quando Hannah se
voltou pa
ra ele.
O ho
mem le
van
tou um dedo delicado e trêmulo e traçou o contor-
no dos he
ma
to
mas.
— Não mui
to — re
tru
cou ela, tentando minimizar as coisas. —
Vo
cê não viu o es
ta
do dos outros caras.
do o len
ço bran
co ima
cu
lado que lembrava as articulações dos de-
— Des
can
se, que
ri
do — disse, passando um pano quente na testa
dele.
Nos di
as que se se
gui
ram, ele mais dormiu do que ficou acordado,
e, duran
te to
do o tem
po, Hannah ficou sentada na cadeira de balan-
ço ao la
do de sua ca
ma. Em dado momento, ela o ajudou a tomar ba-
nho, esfre
gan
do o su
or e o sangue seco de sua pele. Otto se encolheu
e suspi
rou, qua
se co
chi
lando enquanto ela passava o sabão pelos
ombros, pe
las co
xas, vi
ri
lha, barriga. A intimidade poderia ter sido
mais di
fí
cil, mas Han
nah mal conseguia pensar direito, muito me-
nhecia qua
se me
lhor do que o próprio.
Ela o en
ro
lou em uma toalha e o secou com cuidado. Depois que
Otto dor
miu, en
cheu a ba
nheira para si mesma.
Enquan
to se en
sa
bo
ava, tentou se agarrar ao ressentimento que
queima
ra for
te ne
la en
quanto se via imobilizada e impo
tente diante
da briga.
Eles es
ta
vam em uma das principais ruas de Paris. Hannah quase
po
dia per
do
ar os es
tra
nhos, que não tinham motivo para se envolver
em um tu
mul
to tão te
ne
broso. Entretanto, muitos na multidão que
os cerca
va eram ami
gos, pessoas que pensavam em si mesmas como
Hannah acre
di
ta
va sin
ceramente no poder das palavras para lu-
tar aque
la ba
ta
lha, tan
to que aquilo se tornou seu trabalho. A biblio-
um ba
lu
ar
te. A par
tir da
li, tornara-se um recurso prático. Quem tra-
balhava lá mu
da
va a opi
nião das pessoas com as informações que
oferecia.
Mas se um la
do da
que
la guerra era composto por homens brutos
vam dian
te da vi
olên
cia, Hannah não sabia mais se o segundo grupo
tinha al
gu
ma chan
ce.
A ca
ne
ta po
de
ria des
truir uma nação. Mas, quando o fizesse,
quantos cor
pos a es
pa
da já teria ceifado? O que aconteceria quando
os nazis
tas mar
chas
sem para Paris, quando a ocupassem, como
Hannah ti
nha cer
te
za de que aconteceria? Será que alguém revida-
ria?
Have
ria mes
mo al
gu
ma bravura na vida real ou a coragem era re-
servada ape
nas pa
ra os contos de fadas?
Berlim
Março de 1933
D ois di
as de
pois da noi
te na casa de Dev em que Althea teve sua re-
velação, Han
nah apa
re
ceu com duas bicicletas.
— Va
mos — dis
se Han
nah, montada na sela da bicicleta amarela
enquan
to se
gu
ra
va o gui
dão da outra, azul-celeste com pequenas ro-
sas pin
ta
das no me
tal e com uma cesta de vime na frente. Althea
pensou em com
prar li
vros ou flores para enchê-la.
no selim.
consegue.
— Vo
cê con
fia de
mais nas minhas habilidades atléticas — gri
tou
árvore.
Apesar de al
gu
ma ne
ve suja remanescentes de uma tempestade,
o dia es
ta
va lin
do e o sol quente batia no rosto de Althea conforme
pedalavam pe
las ru
as.
Hannah li
mi
tou o tra
je
to à ruas calmas, evitando avenidas e vias
que certa
men
te te
ri
am deixado Althea em pânico.
Passa
ram por vi
tri
nes pitorescas, casais caminhando e crianças
rindo. Fo
ram avan
çan
do ao longo do rio Spree, parando quando sen-
tiam von
ta
de, des
can
san
do, caminhando e compartilhando anedo-
çavam a de
sa
bro
char. Hannah foi atrás dela, com um sor
riso discre-
lice de Althea.
As du
as se es
par
ra
ma
ram sobre um trecho ensolarado da grama,
e Hannah se po
si
ci
onou de modo a fazer alguma sombra no rosto de
Althea.
— Vo
cê ama Ber
lim — comentou Althea, preguiçosamente ali-
sando a blu
sa so
bre a bar
riga.
— Sem
pre con
se
gui ser eu mesma aqui — explicou Hannah, e
Althea ten
tou ima
gi
nar.
— Co
mo nos ca
ba
rés?
— Exa
ta
men
te — afir
mou Hannah, com um sorriso. — Lá não
impor
ta co
mo vo
cê se ves
te, com quem dança, ou o que faz para ga-
nhar a vi
da. Não im
por
ta quem são seus pais ou em que bairro mora
peitar as pes
so
as ao re
dor, e ficará tudo certo.
para as suás
ti
cas pen
du
ra
das nos postes de luz nas proxi
midades.
— Além dis
so, Hi
tler odeia esta cidade, sabe.
— Já ou
vi fa
lar.
— Na mi
nha opi
nião, qualquer lugar que Hitler odeie é um bom
lugar — com
ple
tou Han
nah, sorrindo para Althea.
A mu
lher co
rou e des
vi
ou o olhar.
— Eu gos
ta
ria…
Não ter
mi
nou a fra
se, não sabia como terminá-la. Althea não po-
ta.
— Eu gos
ta
ria de ter um dia para fingir que isso tudo não está
acontecen
do.
Althea ana
li
sou o ros
to de Hannah, mas seu semblante estava
— O que fa
ria com es
se dia?
— Da
ria um pas
seio de bicicleta — respondeu Hannah, curvando
de vinho. Beij
aria uma lin
da…
Hannah tam
bém não terminou a frase, mas Althea viu as pala-
vras pron
tas pa
ra dei
xar seus lábios.
Mexer na bol
sa deu a ela uma desculpa para abaixar o rosto e es-
conder as emo
ções que po
diam alterar sua expressão.
— Bom, um li
vro eu te
nho.
Era um exemp
lar de Alice no País das Ma
ravilhas que comprara
poucos di
as após ter pre
senteado o livreiro no mercado de inverno
com o vo
lu
me que trou
xe
ra dos Estados Unidos. Passaram-se ape
nas
alguns me
ses des
de aquela noite, mas parecia ter acontecido há
anos.
— Va
mos ris
car os itens da minha lista, então? — perguntou
Tal
vez aque
le fos
se só o jeito de Hannah falar, e Althea estivesse
lendo de
mais nas en
tre
li
nhas, mas o suor na lombar e o leve tremor
to o sufi
ci
en
te pa
ra Han
nah ouvir, para que ambas pudessem se per-
der no pró
prio mun
di
nho.
— Quem é vo
cê? — perguntou a Lagarta.
ce res
pon
deu, um tan
to tímida:
— Eu… Eu não sei muito bem, senhor, mas no momento…
bom, pe
lo me
nos sei quem eu era quando me levantei hoje de
ma
nhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde en-
tão.
Ao ter
mi
nar o ca
pí
tu
lo, Althea deixou o livro aberto sobre o peito
e se per
mi
tiu fe
char os olhos e apreciar a sensação de estar simples-
mente dei
ta
da ao sol com outro coração batendo ao lado do seu.
Hannah ba
teu com o jo
elho no dela depois de alguns longos minu-
tos.
— Te
mos uma lis
ta, não temos? — sussurrou Hannah, como se
fosse um se
gre
do das du
as.
Então se le
van
tou e es
tendeu a mão para Althea.
As mãos se en
con
tra
ram, quentes, e Hannah a levantou com faci-
Enquan
to su
bi
am nas bicicletas, Althea não se conteve e olhou
para Han
nah, não con
se
guiu evitar que seus olhos se fixassem na si-
lhueta de
la, na cur
va de seu pescoço e na inclinação de seus ombros,
em suas pan
tur
ri
lhas se flexionando com os pedais.
Alguns quar
tei
rões de
pois, Hannah sinalizou para Althea encos-
tar em fren
te a um pe
que
no café.
Elas ocu
pa
ram uma mesa do lado de fora, amontoando-se no pe-
queno re
ta
lho de som
bra do toldo listrado. O garçom encheu suas
Hannah.
— Quan
do vo
cê sou
be que queria escrever? — indagou Hannah,
roçando de le
ve as jun
tas dos dedos de Althea com as pontas dos de-
— Sem
pre sou
be, eu acho — respondeu, lutando contra a timi-
éramos jo
vens, en
tão era só minha mãe e nós dois. Eu queria ajudar,
— His
tó
ri
as — dis
se Hannah.
— His
tó
ri
as. Quan
do ele ficou mais velho…
afastou, dei
xan
do a pan
turrilha encostada na dela, um ponto de
contato sen
sí
vel.
— Mi
nha ci
da
de era tão pequena — continuou, com um tremor
quase im
per
cep
tí
vel na voz. — Era um hábito, acho. Contar históri-
tá-las pa
ra mim mes
ma.
— Cla
ro.
Hannah con
cor
dou sem zombar, com carinho. Quase. Talvez.
— Co
me
çou por
que eu não tinha mais nada para fa
zer. Era um
passatem
po, eu fi
ca
va con
tando histórias na minha cabeça. Mas de-
pois…
Althea bu
fou, frus
tra
da. Sempre teve mais dificuldade em falar,
verbalizar qual
quer coi
sa, do que em escrever.
— Nun
ca me en
cai
xei de verdade. Eu era quieta, tími
da e gostava
para as coi
sas com as quais devia ter me importado. E, quando se es-
Não pre
ci
sa ser do
lo
ro
sa como a vida real.
— Mas tam
bém não pode trazer a alegria que a vida real traz —
rebateu Han
nah.
Althea in
cli
nou a ca
be
ça, concordando. Os altos nunca haviam
compen
sa
do os bai
xos.
Pelo me
nos an
tes de Berlim.
— O mun
do me as
sus
tava antes de eu vir para cá. Eu era uma cri-
ança sen
sí
vel, en
tão sen
tia que até o menor dos cortes sangraria pa-
ra sempre. Emo
ci
onal
mente falando.
— Cla
ro.
— Mer
gu
lhei no faz de conta para não deixar nada me alcan
çar.
Ela ba
lan
çou a ca
be
ça e fitou Hannah nos olhos.
— Que mo
ti
vo eu ti
nha para ter medo? Algumas provocações
cruéis? Na
da mais que is
so. Não é nada comparado a…
Hannah es
ten
deu a mão para apertar a dela.
— Ho
je não. — Ela des
lizou o polegar no pulso de Althea. — Por
favor.
— En
fim, en
tão con
tei para mim mesma histórias sobre um mun-
depois ba
lan
çar a ca
be
ça.
Não fo
ra bem aqui
lo. Ela se apressou em corrigir:
— Ou me
lhor, em cri
ar um mundo no qual não havia problema
em ser di
fe
ren
te. Em que era bom ser diferente.
— Pa
re
ce óti
mo — dis
se Hannah, e havia algo encora
jador sob as
camadas do co
men
tá
rio neutro.
— Per
ce
bi que tam
bém poderia contar outras histórias — dispa-
um há
bi
to.
Hannah sor
riu por ci
ma da borda da taça.
— Po
de me con
tar uma história agora?
Althea co
rou, mas se esforçou para encontrar palavras, visto que
Hannah pe
di
ra tão pou
co. Quando terminaram o vinho e passaram
para a se
gun
da ro
da
da, Althea fez o que sempre fizera pelo irmão e
tornou Han
nah a pro
ta
go
nista da história.
Althea en
vi
ou a jo
vem Hannah em uma aventura para enfrentar
tasse o dra
gão pa
ra que roubassem seu tesouro. Tinham abatido o
próprio ga
do e quei
ma
do as casas dos vizinhos para colocar a culpa
atura.
— Co
mo ter
mi
na? — per
guntou Hannah, os olhos arregalados.
Althea mor
dis
cou o lá
bio antes de perguntar:
— Quer um fi
nal fe
liz ou complexo?
Hannah pon
de
rou por tempo suficiente para que Althea soubesse
— Com
ple
xo.
— Han
nah ex
põe a traição dos anciãos para a aldeia. Todos deci-
em sacri
fí
cio pa
ra o dra
gão.
— Mas o dra
gão ja
mais os comeria — decidiu Hannah, ganhando
um sorri
so de Althea.
— Não, o dra
gão in
ter
veio e mandou banir os homens.
— Es
se não é o fim?
— Se
ria, se vo
cê gos
tas
se de finais felizes. Mas não. Por um tem-
ciãos. O ho
mem via Han
nah como uma rival. Sabia que ela era muito
corajosa, en
tão, em vez de ameaçar a vida dela, ameaçou a do dragão.
para pro
te
ger seu ama
do amigo.
— O dra
gão a acom
pa
nhou?
— Cla
ro — dis
se Althea, abaixando a cabeça. — Os dois caminha-
— Eles en
con
tra
ram um lar, juntos — disse Hannah, em um tom
mais dra
má
ti
co do que uma história boba sobre um dragão e uma
aventurei
ra me
re
cia.
— Cri
aram a pró
pria al
deia. A notícia se espalhou por toda parte:
qualquer pes
soa que não pertencesse a lugar algum, que sentisse
que não ti
nha um lar, en
con
traria um refúgio com eles.
Os can
tos da bo
ca de Hannah se ergueram em um sorriso ao ob-
servar o ros
to de Althea.
— Eu ti
nha ra
zão.
— So
bre o quê? — per
guntou a escritora, quente e um pouco ton-
ta pela aten
ção.
— O fi
nal com
ple
xo é melhor.
Nova York
Maio de 1944
–V ocê pre
ci
sa adi
an
tar a EFA de Althea — declarou Viv, sem rodei-
os, sentan
do-se di
an
te do sr. Stern no dia seguinte ao beisebol im-
provisa
do com Ha
le.
Ele le
van
tou a ca
be
ça, interrompendo o que estava fazendo, e deu
algumas pis
ca
de
las por trás dos óculos.
— O quê?
— Althea Ja
mes — dis
se Viv, como se fosse óbvio, mesmo que o
pedido fos
se a de
fi
ni
ção de um tiro no escuro. — Uma escuridão in-
concebí
vel es
tá pro
gra
ma
do para a série de agosto da Edições das
Forças Ar
ma
das. Pre
ci
sa
mos que seja transferido para ju
nho.
— Que é ama
nhã — dis
se Stern, afirmando o óbvio.
A logís
ti
ca de mu
dar o cronograma da EFA era, na melhor das hi-
póteses, as
sus
ta
do
ra. O sistema fora concebido para ser veloz e efici-
qualquer mo
men
to.
— Al
gu
ma chan
ce de fazermos uma remessa especial? Para um
nú
mero li
mi
ta
do de ba
ses, por exemplo? Eu sei que há alguma flexi-
bilidade no or
ça
men
to pa
ra distribuição.
O ser
vi
ço pos
tal era sempre uma incógnita naqueles tempos, mas
Viv entre
ga
ria pes
so
al
mente as cartas dos soldados à srta. James se
fosse pre
ci
so.
— O que vo
cê es
pe
ra com isso? — perguntou Stern, o que não so-
ava co
mo um não.
— Bom, o li
vro é po
lí
ti
co o bastante para eu achar que ficará pre-
so nas res
tri
ções da emen
da Taft se esperarmos até agosto. Se o lan-
foi assina
do tar
de de
mais para alterar a série.
— Is
so é ver
da
de.
— E aca
bei de fa
lar com o editor de Althea na Harper & Brothers.
ranjar um te
le
fo
ne
ma.
— Su
as pa
la
vras exa
tas foram que não pretende “trair a confiança
dela” mar
can
do uma reu
nião entre nós, mas prometeu apresentar
meu ca
so a Althea pa
ra que ela decida o que quer. Sabemos que toda
co cheio, pe
lo me
nos. Is
so pode ajudar a persuadi-la.
— Não há ga
ran
tia de que ela receberia as cartas a tempo, mesmo
se enviás
se
mos o li
vro aos homens hoje — ressaltou Stern. — Por
uma déca
da. Re
ceio que você esteja metendo os pés pelas mãos.
— Vo
cê sa
be quan
ta publicidade e atenção teríamos se Althea fa-
las
se no even
to. É só que… o editor disse que ela fica um pouco es
tra-
nha quan
do o as
sun
to é política. Imagino que seja por cautela com o
lado da le
gis
la
ção, de
vi
do a seja lá o que aconteceu entre ela e os na-
zis
tas.
— Po
de ser que re
ce
ber uma convidada do Reich para o evento
para inter
rom
per os pro
tes
tos de Viv. — Tudo bem, deixemos de la-
do a pos
si
bi
li
da
de de Althea ser uma simpatizante nazista. Você
acredita mes
mo que al
gu
mas cartas de soldados bastarão para con-
vencê-la a com
pa
re
cer? Se ela despreza a política e os holofotes tan-
to quanto vo
cê ima
gi
na?
Viv pro
cu
rou um bom ar
gumento, mas não conseguiu encontrar.
Ela levan
tou as mãos, se rendendo.
— Bom, tal
vez não, mas não custa tentar, não é?
Stern ti
rou os ócu
los e apertou a ponte do nariz. Viv não insis
tiu,
sabendo quan
do ca
lar a boca — mais uma de suas habilidades.
— Je
sus — res
mun
gou o sr. Stern.
A ma
nei
ra co
mo ele quase suspirou a palavra chamou a atenção
de Viv. O can
sa
ço no som tinha que ter origem em algo mais que o
— O que foi?
O che
fe olhou pa
ra trás dela e respirou fundo. Em vez de dizer
qualquer coi
sa, no en
tan
to, Stern se levantou, fechou a porta, voltou
— Is
so é con
fi
den
ci
al? — perguntou Viv, em voz baixa, se debru-
çando so
bre a me
sa.
Ele sus
pi
rou e pa
re
ceu assentir para si mesmo.
— Tem al
gu
ma coi
sa es
tranha acontecendo.
— Cer
to.
— Não pos
so di
zer qua
se nada a respeito…
Viv ges
ti
cu
lou, fa
zen
do o sinal universal de prossiga.
— Ro
ose
velt an
da par
ticularmente interessado, o que quer dizer
pessoalmen
te in
te
res
sa
do, na série de junho da EFA.
Cada pa
la
vra vi
nha car
regada de um significado que ela ainda não
entendia mui
to bem.
Viv ba
lan
çou a ca
be
ça.
Ele ape
nas a en
ca
rou, fazendo Viv desejar desesperadamente que
sua men
te acom
pa
nhas
se o raciocínio.
Roose
velt de
fen
de
ra o programa da EFA desde o início. Afirmara
que os li
vros fa
zi
am ma
ra
vilhas para o moral das tropas, para os sol-
da
dos que ar
ris
ca
vam a própria vida diariamente.
Viv ar
fou de re
pen
te. Tentou engolir, mas sua boca ficou seca.
Tratava-se de al
go im
por
tante demais para ela saber. O mais cuida-
dosamen
te pos
sí
vel, de
cla
rou:
— Es
tão pla
ne
jan
do uma invasão.
Stern sol
tou um gru
nhido, como se quisesse conter as palavras de
Viv.
— Eu não dis
se is
so.
ruídos in
du
zi
dos pe
lo pâ
nico haviam parado de ecoar nas pare
des
de seu crâ
nio. — Ele quer que os soldados tenham os livros quando
forem pa
ra o aba
te. Meu Deus.
— Pa
re, Vi
vi
an, es
tou falando sério. Nada disso sai desta sala. Vo-
cê preci
sa agir co
mo se não soubesse de nada.
— Por
que o ge
ne
ral Ei
senhower pediu que todo e qualquer ho-
que eu já mu
dei o cro
no
grama de publicação há três semanas.
— Pre
ci
sá
va
mos adi
ci
onar vários outros livros selecionados à sé-
rie de ju
nho.
— E um de
les é o li
vro de Althea? — perguntou Viv, mal se atre-
Alguma coi
sa na in
cli
nação travessa do sorriso de Stern foi o sufi-
ciente pa
ra ela sa
ber a res
posta.
— Vo
cê me dei
xou fa
zer todo esse discurso já sabendo…
Stern in
ter
rom
peu o que ela ia dizer antes que Viv ganhasse velo-
cidade:
— Co
mo de
ve ima
gi
nar, isso foi tratado como uma informação
que só de
ve ser com
par
ti
lhada se for estritamente necessário. Ape-
nas o con
se
lho e os con
tatos no Exército foram mantidos atualiza-
dos.
Viv achou pru
den
te não reclamar muito. Se o livro de Althea Ja-
mes saí
ra com a úl
ti
ma remessa, os soldados provavelmente o leri-
am na se
ma
na se
guin
te. Ainda deixava pouco tempo para as cartas
Stern pi
gar
re
ou e con
ti
nuou:
— Vo
cê pre
ci
sa sa
ber de mais uma coisa. Como eu já disse, acre-
direto
ria exe
cu
ti
va do con
selho se reuniu ontem, e os membros ver-
baliza
ram as pró
pri
as pre
ocupações.
— Eles men
ci
ona
ram especificamente a confusão em Boston por
causa de Stran
ge Fruit. Disseram que, entre aquilo e Taft, a questão
da censu
ra es
tá co
me
çan
do a ganhar alguma força. Estão preocupa-
— Por is
so es
tou or
ga
nizando este evento — disse Viv, sentindo-
se lenta ao apon
tar o ób
vio.
— O con
se
lho pe
diu ao sr. Marshal Best, da Viking Books, e ao sr.
Curtis Hit
ch
cock, da Rey
nal & Hitchcock, que elaborassem uma re-
solução ofi
ci
al con
tra a emenda.
Viv pis
cou pa
ra ele; só conseguiu ofegar.
— O quê?
— O con
se
lho exe
cu
ti
vo, é claro, aprecia seus esforços — conti-
lução ofi
ci
al se
ria um pas
so mais concreto para obrigar Taft a revo-
gar a emen
da.
Viv sa
bia que al
guns membros do conselho a viam como uma ton-
ta com um tí
tu
lo sem sen
tido concedido a uma mulher rica. Alguém
ava pa
ra a di
re
to
ria. Al
guém que papagueava para jornalistas as cita-
ções pré-apro
va
das por homens importantes. Que conduzia as visi-
tas guia
das de bi
bli
ote
cá
rios proeminentes repetindo um roteiro
elabora
do por ou
tra pes
soa.
parecia ver
da
de. Mas Stern nunca a fez sentir que concordava com
— Eles que
rem que eu cancele o evento?
Stern ar
re
ga
lou os olhos.
Viv res
pi
rou fun
do en
quanto imaginava todo aquele trabalho se
tornando des
ne
ces
sá
rio. Então soltou um suspiro. Aquilo só podia
— Co
mo pos
so aju
dar?
A ten
são na bo
ca de Stern relaxou.
— Pen
sei que vo
cê fi
ca
ria zangada.
— E fi
quei — ad
mi
tiu Viv, dando de ombros e encenando muito
mais in
di
fe
ren
ça do que sen
tia. — Mas sair daqui fazendo birra seria
dar um ti
ro no meu pró
prio pé só para me vingar de alguém.
Ele sor
riu, qua
se tris
te.
— A re
so
lu
ção te
rá pouco peso político, já que é mais um recado
do que qual
quer coi
sa. Mas queremos divulgá-la para jornais de todo
o país, pu
bli
cá-la em um anúncio de página inteira em quantas re
vis-
Viv se le
van
tou, mas lo
go hesitou.
Ela er
gueu as so
bran
celhas, aguardando o restante da resposta.
Stern sol
tou o ar e se re
costou na cadeira.
— Co
mo sa
be, o li
vro é sobre censura. Talvez eu… quisesse virar o
jogo a nos
so fa
vor. — Ele riu. — Não pareça tão surpresa. Quero ver a
persuasi
vos.
Viv aper
tou os lá
bi
os para esconder um sorriso satisfeito.
— Não es
ta
mos sen
do egoístas, estamos? Será que um livro dife-
rente te
ria si
do me
lhor pa
ra as tropas?
— É um bom li
vro; não escolhi só por causa da briga com Taft.
Talvez, quan
do a sr
ta. Ja
mes receber as cartas que inevitavelmente
— Ela ain
da se
ria um, é claro, mas… — Viv balançou a cabeça. —
Bem, tal
vez ela per
ce
ba que é mais do que isso.
Berlim
Abril de 1933
A s reu
niões da Re
sis
tên
cia aterrorizavam Althea, mas ela estava or-
Adam Bre
cht a abra
çou na primeira à qual ela comparecera de-
afastou. — Co
mo vo
cê dis
se, sou apenas uma pessoa. Não posso sig-
nificar tan
to as
sim.
As du
as se sen
ta
ram no fundo. Hannah ficou muda por tanto
ideia em re
la
ção aos na
zis
tas. É mais por essa mudança ter aconteci-
do quan
do vo
cê apren
deu mais sobre eles.
— Eu re
pre
sen
to es
pe
rança.
Althea re
pre
sen
ta
ra muitas coisas para muitas pessoas, mas
aquela po
de
ria ser a me
lhor de todas.
— É bom pa
ra ele ver.
mais de
la.
— Es
tá pre
ocu
pa
da com ele.
— Meu ir
mão fi
cou di
ferente depois do incêndio, desde que Clara
como o me
do com o qual estava tão familiarizada podia sufocar sua
coragem re
cém-des
co
ber
ta.
sitou tan
to quan
to an
tes.
— Al
go pa
ra cha
mar a atenção das pessoas.
— Co
mo o quê? — A voz de Althea subiu o suficiente para que al-
gumas pes
so
as ao re
dor a olhassem preocupadas. Ela se inclinou pa-
ra a fren
te e sus
sur
rou: — Como um assassinato?
tado em um cen
tro de de
tenção ao lado de Clara.
Nenhu
ma das du
as mencionou que Adam, como homem, teria
contra os na
zis
tas. Han
nah não precisava que Althea lhe dissesse
aquilo.
também. E Ott
o. Mas Adam insiste que não podemos mais pensar
peque
no.
Althea pro
cu
rou Adam com o olhar. Estava na frente, conversan-
grande con
cen
tra
ção. Adam sempre olhava para a pessoa com quem
estivesse fa
lan
do co
mo se fosse a única outra pessoa no mundo.
lhada pa
ra a re
vo
lu
ção. Althea soube daquilo depois de encontrar
que o ir
mão es
ti
ves
se tra
mando, qual seria seu futuro em um país
cheio de ho
mens co
mo Di
edrich, Goebbels e Hitler?
Qual se
ria o de Han
nah?
Althea sen
tiu a mão quente de alguém pousar em seu braço. A
mão de Han
nah. Com o polegar, ela acariciou a pele sensível do pul-
so de Althea, um ges
to re
confortante que se tornara uma mensagem
secreta en
tre am
bas.
Se vo
cê to
car… po
de sen
tir o coração de uma pessoa.
A reu
nião du
rou a noi
te toda. Alguns participantes falaram de es-
tratégias — coi
sas co
mo furar os pneus dos oficiais nazistas e sabo-
tar as li
nhas de trem. Ou
tros se concentraram na propaganda, ainda
acreditan
do que po
de
ri
am conquistar o público com folhetos e grafi-
tes enge
nho
sos. Ou
tros ainda falaram em patrulhar as ruas para aju-
dar os al
vos dos ca
mi
sas-pardas.
Adam en
cer
rou com um discurso que a mente de escritora de
chance de de
sen
vol
ver.
Ainda as
sim, quan
do ele encerrou mais uma vez com a mesma ci-
tação de Os mi
se
rá
veis, nem Hannah nem Althea riram.
Par
ti
ci
par das reu
niões tornara-se tão rotineiro quan
to ir aos ca-
barés ha
via si
do em fe
ve
reiro. Diedrich estava ficando cada vez mais
mas esta
va tão ocu
pa
do com o trabalho para Goebbels que ela sem-
pre con
se
guia se sa
far.
O gru
po de Adam se reunia com frequência, sobretudo nos dias
que se se
gui
ram ao pri
meiro boicote judaico oficial dos nazistas. O
rante o Sha
bat, quan
do mui
tos estabelecimentos judaicos já ficavam
fechados. Mes
mo as
sim, sinalizou o início do que todos podiam pre-
oraria a par
tir da
li.
A ca
da dia, Han
nah se mostrava mais preocupada com Adam. Ela
como o des
cre
veu fa
lan
do de seus planos deixou Althea igualmente
preocupa
da. Ela só po
dia imaginar que ele estava envolvido em uma
missão sui
ci
da.
Quan
do Althea men
ci
onou essa possibilidade, mesmo com toda a
delicade
za, Han
nah pa
re
ceu tensa, mas não discordou.
— Va
mos amar
rá-lo a uma cadeira, se for preciso — decretou
Dev.
Naque
les di
as, quan
do o assunto era Adam, surgiam sombras sob
os olhos de
la tam
bém.
Na mai
oria das noi
tes, depois que o grupo se dispersava, Hannah
du
as con
ver
sa
vam so
bre literatura, mas Hannah realmente ou
via,
em vez de só es
pe
rar pa
ra poder expressar a própria opinião.
— Es
tou com me
do de desapontar a todos — confessou Althea,
uma noi
te, en
quan
to pas
seavam ao longo do rio. — Com meu segun-
do roman
ce. E se o pri
mei
ro tiver sido apenas um acaso? E se as pes-
soas o com
pra
ram por
que gostaram da história de uma garota sem
instrução e do so
nho ame
ricano, ou algo assim?
— Vo
cê não po
de con
trolar como as pessoas vão reagir à sua arte.
Só pode con
tro
lar o que você produz. — Hannah olhou para ela e
continu
ou: — Já sa
be so
bre o que vai escrever?
— Me
do — res
pon
deu Althea, com uma certeza que não percebe-
ra que ti
nha até a pa
la
vra sair de sua boca. Não sabia em que contex-
to encai
xa
ria o ro
man
ce, mas sabia que o medo seria a premissa cen-
tral. — Mui
to do que es
tá acontecendo aqui é por causa do medo,
não é? Tu
do o que Hi
tler teve que fazer foi deixar as pessoas com
te prote
ger”.
Hannah com
ple
tou o raciocínio por ela:
— E, se es
sa “pro
te
ção” requer sacrificar algumas liberdades, é o
raízes, ema
ra
nha
da no próprio tecido de sua alma. Mudou de assun-
— O que vo
cê vai fa
zer?
— De
pois da fa
cul
da
de? — perguntou Hannah.
Althea as
sen
tiu, e a mu
lher inclinou a cabeça.
Althea ar
fou brus
ca e rui
dosamente em meio à noite silenciosa.
— Não di
ga is
so.
— É ver
da
de — re
tru
cou Hannah, os lábios apertados formando
ver.
— O que vo
cê fa
ria se pudesse escolher alguma coisa?
Hannah ba
lan
çou a ca
beça.
— Be
las fan
ta
si
as do
em mais.
— Vo
cê tra
ba
lha
ria com livros — considerou Althea, uma vonta-
de irresis
tí
vel den
tro de
la forçando-a a fantasiar.
Preci
sa
va ima
gi
nar Hannah feliz, livre, fazendo o que amava,
só amamos a noi
te de la
vanda, tão sedutora…”
Althea re
co
nhe
ceu a melodia, cujos trechos ouvira nos caba
rés.
dançar jun
to. Ela não en
tendia muito bem o que dizia, embora Han-
nah a can
tas
se co
mo se significasse algo mais do que apenas pala-
vras e me
lo
dia.
— É pa
ra pes
so
as co
mo… Pessoas como eu.
— Ju
deus?
— Não — ne
gou Han
nah, mas não elaborou mais. — Eu sempre
amei o tre
cho so
bre va
gar por mil maravilhas.
Althea ten
tou se lem
brar do verso exato.
So
mos ape
nas di
fe
rentes dos outros,
que, cu
ri
osa
men
te, a princípio vagam por mil maravilhas,
e, no en
tan
to, só ve
em o ba
nal no final.
an
tes que Althea pu
des
se refletir sobre o significado da letra. — E
escolhe
ria es
se no
me.
— Mil ma
ra
vi
lhas — de
clarou Althea, apreciando o sa
bor daquela
ideia na lín
gua.
— On
de gos
ta
ria que fi
casse? — perguntou Althea.
Hannah sor
riu com me
lancolia.
— Aqui.
Nenhum as
sun
to era privado, excessivo ou sensível demais, e as
du
as mui
tas ve
zes pe
ga
vam o caminho mais demorado para casa,
com os de
dos ro
çan
do, os ombros lado a lado.
Certa noi
te, Han
nah se prolongou diante da porta de Althea e
precisou se apro
xi
mar de
la para dar passagem para os pedestres que
caminha
vam pe
la cal
ça
da.
A res
pi
ra
ção de Althea falhou, seu corpo ficou muito quente e de-
pois gela
do, mas Han
nah apenas deslizou o polegar na parte interna
de seu pul
so, a ob
ser
vou por mais um minuto, e sussurrou um boa-
noite an
tes de dar meia-volta e descer a rua.
De al
gu
ma for
ma, Althea conseguiu entrar no apartamento antes
tempo ton
ta, con
fu
sa e um pouco excitada.
vibração es
tre
me
ce
ra seu peito, o mesmo calor se acumulara entre
suas per
nas na
que
les pri
meiros dias na Alemanha, quando pensava
que Diedri
ch era o ho
mem mais bonito que já conhecera.
aterro
ri
zan
te.
Althea era co
var
de, e a ideia daquilo, das duas juntas, a fazia que-
rer se es
con
der de
bai
xo das cobertas e nunca mais sair.
Só que aque
la era a ver
são de Berlim de Althea James. A versão de
lheres bo
ni
tas que sor
ri
am como se estivessem entregando algo de si
mesmas.
Junho de 1944
A inva
são ocor
reu em um dia quente de verão em Nova York. Char-
lotte acor
dou Viv pou
cos minutos depois das seis da manhã com o
— Edi
ção ma
ti
nal es
pecial — anunciou, com a voz angustiada,
oferecen
do a pu
bli
ca
ção.
Viv pis
cou pa
ra es
pan
tar o sono enquanto pegava o jornal. A man-
chete ocu
pa
va gran
de par
te do topo da página.
EXÉR
CI
TOS ALIADOS DESEM
BAR
CAM NA FRAN
ÇA, NA ÁREA DE HA-
VRE-CHERBOURG; GRAN
DE IN
VA
SÃO EM CUR
SO
Logo abai
xo ha
via um mapa do Canal da Mancha e do norte da
o olhar so
tur
no de Char
lotte.
— Co
me
çou.
Foi a úni
ca pa
la
vra di
ta antes de irem para a cozinha, ligarem o
rádio e ocu
pa
rem dois banquinhos pelas três horas seguintes, ouvin-
do todos os re
la
tos que conseguiam encontrar.
Em da
do mo
men
to, no entanto, Viv começou a se sentir presa,
sua pe
le co
çan
do, as per
nas inquietas.
— Não po
de
mos fi
car sentadas aqui o dia todo.
— Tem ra
zão. Mas pri
meiro vamos para a igreja.
Nova
men
te em si
lên
cio, as duas se separaram para se vestir. Viv
não demo
rou, ape
nas prendeu o cabelo para trás, vestiu uma camisa
branca sim
ples e uma saia cinza e passou batom — que aplicou um
pouco tam
bém nas bo
che
chas, para aplacar a palidez mortal.
Só pa
rou pa
ra pen
sar quando foi calçar os sapatos, olhando para
as gavetas da cô
mo
da. Se aquela não era uma ocasião especial, qual
meias de se
da, res
ga
tou as ligas e, em seguida, metodicamente, exe-
cutou os mo
vi
men
tos fa
miliares para vesti-las. O silvo do nylon con-
tra a pe
le a acal
mou e também insinuou um futuro no qual ela não
ousara pen
sar des
de que lera a manchete do jornal.
Quan
do as du
as saí
ram, parecia um dia como outro qualquer.
O mes
mo es
tra
nho emaranhado de tristeza e euforia com o qual
estivera lu
tan
do du
ran
te toda a manhã se refletia no rosto de cada
passante. Al
gu
mas pes
so
as estavam reunidas em grupos diante das
lojas, e al
guns ho
mens su
biam em caixas para ler as notícias direta-
vagavam pe
las ru
as, sem rumo, ansiosas demais para ficarem em ca-
Quan
do che
ga
ram à igreja, um novo cartaz as recepcionou na en-
sou o bra
ço pe
los om
bros da mulher ao lado, cujo rímel escorrera
pelo ros
to, deu a mão que estava livre para Charlotte e fechou os
olhos.
O pa
dre não es
ta
va re
zando a missa, só dirigindo a congrega
ção
em oração, pro
fe
rin
do pa
lavras que eram um bálsamo para a ferida
massacra
dos na
que
le dia. Já tinham sido. Mesmo que os Alia
dos
saíssem vi
to
ri
osos, não havia como celebrar aquele tipo de morte.
Só se po
de
ria ce
le
brar o possível fim de tamanha violência.
As pes
so
as con
ti
nu
avam a apinhar a igreja, e Viv apertou a mão
de Char
lotte. Já es
ta
vam ali por tempo suficiente, era hora de abrir
espaço pa
ra os ou
tros. Charlotte assentiu depressa.
— Ti
mes Squa
re — murmurou a sogra, e as duas saíram.
Esta
va di
fí
cil an
dar na calçada do lado de fora da igreja de Saint
Vincent.
Alguns quar
tei
rões de
pois, ao passarem por uma sinagoga 24 ho-
ria rece
bi
do a no
tí
cia na
quela manhã. Imaginou se a mulher tinha
alguém pa
ra abra
çá-la e oferecer algum conforto.
Viv es
pe
ra
va que sim.
Não se
ria jus
to di
zer que a Times Square havia parado, mas quase
rosto le
van
ta
do pa
ra o pai
nel do New York Times anunciando pu
ra e
simples
men
te: EXÉRCITOS ALIADOS INVADEM A EUROPA. Os táxis buzi-
navam pa
ra as pes
so
as se mexerem, mas todos estavam presos em
uma espé
cie de le
tar
gia.
— Viv! — cha
mou al
guém na multidão.
Quan
do se vi
rou, lá es
tava Bernice Westwood, do conselho, abrin-
do cami
nho até ela e Char
lotte.
Quan
do Ber
ni
ce as al
cançou, Viv a abraçou com força.
— Es
tá so
zi
nha?
— Não. — A mu
lher suspirou, recuando apenas o suficiente para
brado, dá pa
ra ima
gi
nar?
Sua ri
sa
da saiu aquo
sa, e Viv sabia que ela devia se culpar pelo alí-
Aper
tan
do os bra
ços da moça com força, Viv afirmou:
— Que bom.
— O pre
fei
to vai re
ali
zar um evento na Madison Squa
re, se quise-
rem vir.
Sem pa
la
vras, Viv con
sultou Charlotte. A sogra desgrudara os
olhos do pai
nel pa
ra as
sis
tir à interação. As duas estavam andando
ha
via mui
to tem
po, e Viv, que mal sentia os próprios pés, não podia
nem ima
gi
nar co
mo Char
lotte devia estar exausta.
Mesmo as
sim, a so
gra simplesmente assentiu, e quem era Viv pa-
— Que
re
mos, cla
ro — disse Viv.
Carta
zes cla
man
do vi
tória e bandeiras dos Estados Unidos tre-
mulavam aci
ma da mul
ti
dão. Um homem carregando uma tuba e to-
cando o hi
no pas
sou por elas, batendo com o metal do instrumento
no cotove
lo de Viv. Cri
an
ças vestidas de trajes feitos para imitar uni-
for
mes mi
li
ta
res sen
ta
vam-se nos ombros dos pais, gritando de de-
leite, o en
tu
si
as
mo in
to
cado pela tensão que mantinha os adultos
contidos.
— Bo
as no
tí
ci
as pa
ra a EFA — comentou Bernice no ouvido de
Viv, quan
do se apro
xi
ma
ram da Madison Square.
À me
di
da que a mul
ti
dão atrás delas avançava, fica
va cada vez
mais di
fí
cil se mo
ver na
quele espaço que só podia acomodar deter-
minado nú
me
ro de pes
so
as.
Viv lu
tou con
tra o de
sejo de repreender Bernice por pensar em
no escri
tó
rio de Stern, quando se deu conta do que uma invasão sig-
nificaria pa
ra seus pla
nos.
— Sim, acho que po
de ser.
Char
lotte pa
re
ceu sen
tir sua angústia, então a puxou discreta-
correram pa
ra ocu
par o espaço que a distância havia criado.
Um pal
co im
pro
vi
sa
do tinha sido montado em uma extremidade
tados Uni
dos. Um ho
mem com uma câmera se empoleirara no capô
de um car
ro a pou
cos me
tros de Viv, imortalizando a cena.
Apenas al
guns mi
nu
tos depois, o prefeito Fiorello La Guardia su-
biu ao pal
co em fren
te a uma bancada com microfones ligados a al-
to-falan
tes, per
mi
tin
do que até mesmo a pessoa mais distante pu-
desse ou
vir sua voz ana
sa
lada. Depois que um guincho agudo no áu-
vam reu
ni
dos em ora
ção e pediu que se agarrassem firmemente à
sua fé.
— Nós, o po
vo da ci
da
de de Nova York, pedimos humildemen
te a
ção do mun
do da ti
ra
nia — clamou, com as tubas tocando aos seus
pés.
Viv e Char
lott
e se per
deram na euforia. Após o discurso de La
Guardia, su
bi
ram ao pal
co cantores e mais oradores. A multidão só
crescia, fluin
do co
mo um rio. Um homem começara a vender garra-
fas de Co
ca-Co
la na es
qui
na mais próxima, outro, a distribuir carta-
zes pro
cla
man
do apoio a Roosevelt e às tropas. A música irrompia
de vários pon
tos da pla
teia, os homens faziam continên
cia e, acima
de toda a ce
na, tre
mu
la
vam as bandeiras dos Estados Unidos.
À me
di
da que as du
as seguiam para o norte da cidade, as ruas co-
meçavam a pa
re
cer mais calmas. Depois de apenas alguns quartei-
rões, Char
lott
e co
me
çou a mancar. Viv guiou o caminho até o metrô
— trans
por
te que não sa
bia se Charlotte já usara na vida, mas os tá-
xis esta
vam con
ges
ti
onando as ruas, incapazes de manobrar por
conta da mul
ti
dão trans
bordando das calçadas.
No va
gão do me
trô que entraram, três homens com violinos toca-
junto de
les can
tou em gaélico. Ao lado de Viv, Charlotte chorou em
silêncio.
— Se
te me
ses — dis
se, com dificuldade.
Viv en
ten
deu que a so
gra estava falando de Edward, que estava se
pergun
tan
do por que Deus não poderia tê-lo poupado para chegar
ao fim da guer
ra.
Final
men
te em ca
sa, Viv percebeu que as duas não co
miam desde
o apres
sa
do ca
fé da ma
nhã. Acomodou a sogra em um banco da cozi-
nha e ar
ran
cou o aven
tal do gancho da despensa, amarrando a faixa
na cintu
ra.
— Pan
que
cas — de
ci
diu Viv.
— Pa
ra o jan
tar? — perguntou Charlotte, os olhos ainda verme-
Em vez dis
so, deu uma pis
cadela.
— So
mos mu
lhe
res aventureiras. Por que não?
— Pois es
ta aven
tu
rei
ra aqui precisa de um vinho do Porto para
acompa
nhar as pan
que
cas — disse Charlotte, se levantando com um
gemido de dor.
Ela se apro
xi
mou do carrinho de bebidas, serviu uma dose gene-
rosa pa
ra ca
da uma, en
tão deslizou o copo de Viv pela bancada en-
quanto se sen
ta
va de vol
ta no banquinho, soltando mais um gemido.
Quebran
do um pre
ci
oso ovo em uma tigela, Viv sorriu.
— Va
mos con
tra
tar ho
mens para carregar você como a Cleópatra.
— Gos
to mui
to de co
mo você pensa, minha querida.
Char
lotte er
gueu o co
po para Viv.
Conver
sa
ram en
quan
to Viv cozinhava, embora o assunto não fos-
se a inva
são nem aque
le dia. Havia muito com que se preocupar. Por
isso, em um acor
do tá
ci
to, fingiram ser uma noite normal.
E con
se
gui
ram, até Char
lotte ligar o rádio a tempo de pegar a in-
trodução pa
ra um pro
nunciamento do presidente. Era como se Viv
estivesse ou
vin
do o zum
bido de mil rádios sintonizados em uma só
mensagem.
A voz de Ro
ose
velt eco
ou, clara e segura, pela cozinha:
— Deus To
do-Po
de
ro
so: neste dia, nossos filhos, orgulho de nossa
nação, ini
ci
aram um es
for
ço poderoso, uma luta para preservar nos-
sa Repú
bli
ca, nos
sa re
li
gião e nossa civilização, e para libertar uma
humani
da
de so
fre
do
ra.
“Con
du
za-os pa
ra o cer
to e o verdadeiro; dê força aos seus braços,
Viv vi
rou de uma vez o que restava do vinho.
Os pró
xi
mos me
ses se
riam longos e sombrios.
Pa
ris
Dezem
bro de 1936
A última car
ta de Althea chegou no primeiro dia do inverno.
Porém, à me
di
da que as semanas foram passando sem que outra
chegasse, pen
sou na car
ta escondida sob seu Alice no País das Ma
ra-
vilhas, as
sim co
mo no res
tante da correspondência que Althea envi-
ara.
No ver
so do en
ve
lo
pe havia uma mensagem em uma caligrafia
cursiva de
li
ca
da: Im
por
tante! Não seja teimosa.
Hannah re
al
men
te co
gitou abri-lo. Era mais volumoso que a mai-
Tinha si
do o pri
mei
ro a chegar após a notícia da morte de Adam e,
de alguma for
ma, o fa
to tornava ainda mais difícil guardá-lo.
ceu a tei
mo
sia so
bre a qual Althea lhe alertara.
Então Han
nah pe
gou a caixa, guardou a carta junto das outras, e,
em segui
da, pe
gou o exemplar surrado de Alice.
conside
ran
do que Han
nah transitava nos círculos literá
rios, e a im-
prensa in
ter
na
ci
onal o elo
giara efusivamente. Althea era a atual me-
zis
tas ha
vi
am for
ça
do as li
vrarias a estocar o livro.
Hannah nun
ca co
gi
ta
ra aquela leitura. Ou melhor, até cogitara,
por um bre
ve mo
men
to, mas a dor de cabeça imediata que acompa-
nhara a ideia to
la pron
ta
mente a dissuadiu.
Ela se per
gun
tou por que Althea ainda lhe escrevia; se era por
culpa ou al
gu
ma ou
tra emoção. As duas tinham convivido por ape-
era ce
ga nem in
gê
nua e sabia que Althea estava interessada nela, já
que se de
mo
ra
va quan
do observava seus pontos suaves e íntimos. Os
lábios, os sei
os, os qua
dris.
Aqui
lo não sig
ni
fi
ca
va que Althea entendera o que estava se for-
mando en
tre as du
as até aquela noite, a noite que devia tê-la apavo-
rado.
Em seu ín
ti
mo mais profundo e sombrio, Hannah às vezes admi-
otimismo, o hu
mor que es
preitava nos momentos mais estranhos. A
manei
ra co
mo ela co
ra
va e andava pelos jardins de tulipas, como to-
a escrita co
mo se fos
se uma boa e velha amiga.
As du
as eram di
fe
ren
tes de todas as maneiras certas, e iguais nas
Ou is
so era o que Han
nah tinha pensado.
Se ti
ves
se que adi
vi
nhar, teria previsto nunca mais ter notícias de
Althea Ja
mes quan
do fu
giu de Berlim como uma covarde, após tudo
desmoro
nar.
Quan
do a pri
mei
ra car
ta chegou ao seu apartamento em Paris, a
reação ini
ci
al foi de pa
ra
noia. Hannah se perguntou se deveria fazer
as malas e se mu
dar na mesma noite, se os nazistas estariam espe-
rando ao pé da es
ca
da. Mas então ela se deu conta de que talvez
Althea ain
da con
ver
sas
se com Deveraux Charles, uma das poucas
Depois da
qui
lo, as cor
respondências chegavam uma vez a cada
poucas se
ma
nas ou mais.
lhor.
Mas ain
da não se
ria na
quele dia.
Escon
deu a cai
xa de volta sob a tábua do piso do closet e se arru-
mou pa
ra ir tra
ba
lhar.
Não ha
via o que ga
nhar vivendo no passado e desejan
do um futu-
ro diferen
te. O pre
sen
te era o que tinha e, por enquanto, era o sufici-
Junho de 1944
O efei
to da in
va
são foi o da ruptura de uma barragem. Por sema-
nas, me
ses, anos, os ame
ricanos se curvaram e tentaram dar o me-
nos cor
re
do
res em to
dos os momentos do dia, estranhos brigando
no me
trô, ho
mens nos ba
res nas primeiras horas da manhã, choran-
do e can
tan
do.
A guer
ra po
de
ria aca
bar em breve, mas o caminho para chegar lá
seria bru
tal e re
ple
to de per
das e tristezas inimagináveis.
No dia se
guin
te, a co
luna diária de Eleanor Roosevelt no jornal
abordou a in
va
são, e Viv não conseguia tirar da cabeça as palavras da
primeira-da
ma.
Curio
sa
men
te, não te
nho qualquer sentimento ou emoção, escreve-
ra a sra. Ro
ose
velt. Pa
re
ce que espera
mos este dia por se
manas, com
Toda a emo
ção foi dre
nada. Nas semanas que se seguiram ao fatí-
tas de sol
da
dos, tra
ba
lhou no planejamento do evento, foi para casa,
se moven
do atra
vés da névoa. Aquilo a fazia arrastando as pernas,
com os pen
sa
men
tos tur
vos, a deixava letárgica e ao mesmo tempo
ansiosa de
mais pa
ra dor
mir.
Onze di
as após a in
va
são, mais de três mil americanos haviam
morrido, e o nú
me
ro de fe
ridos chegava a quase treze mil.
Se era de
mais pa
ra uma nação suportar, imagina uma única pes-
soa.
Forças Ar
ma
das.
À me
di
da que os re
la
tos sobre o Dia D começaram a chegar, tudo
ta pesso
al pu
des
se pa
re
cer pequena quando vista de fora, o que esta-
va fazen
do era im
por
tan
te. Correspondentes de guerra escreviam
que os sol
da
dos ti
nham permissão para levar apenas os itens mais
essenci
ais pa
ra o de
sem
barque no litoral da Normandia. Para mui-
tos, os li
vros de bol
so era um desses itens.
Em 9 de ju
lho, pou
co mais de um mês após a invasão, Betty Smith,
falou de sol
da
dos que to
dos conheciam, aqueles que iam de porta em
porta pe
din
do pa
ra cor
tar a grama dos vizinhos a fim de ganhar al-
gum dinhei
ro e gas
tá-lo em doces; meninos que andavam de bicicle-
ta e en
tre
ga
vam jor
nais; meninos cujas mães os amavam mais do
que tu
do no mun
do. Betty terminou com um apelo à nação para que
impor
tan
do qual fos
se.
Viv re
cor
tou o en
saio do jornal e o enviou ao senador Taft, acom-
militares alo
ca
dos mun
do afora. Homens que acompanhavam a in-
vasão de lon
ge, hor
ro
ri
za
dos e esmorecidos por não estarem lutando
cape pa
ra sen
ti
men
tos com os quais, assim como o resto do mundo,
não sabi
am li
dar. Os li
vros lhes davam uma desculpa para chorar,
uma ra
zão pa
ra rir, um lugar para depositar o alívio de não serem
eles na ma
tan
ça e a cul
pa por não serem eles os que estavam em ba-
talha.
Viv tam
bém se ocu
pa
va acompanhando as cartas ao editor, arti-
gos de opi
nião e ma
té
ri
as que inundavam jornais de todo o país.
A reso
lu
ção for
mal do conselho contra a emenda de Taft significava
que Viv não es
ta
va mais tra
vando uma cruzada pessoal contra o se-
toras exal
ta
das ou bi
bli
otecas sobrecarregadas. Um exército havia se
levanta
do, ir
ri
ta
do com a emenda de longo alcance.
Vários jor
nais ha
vi
am obtido — de Viv, mas isso não era da conta
listas ana
li
sa
ram ca
da li
vro, procurando por qualquer coisa que pu-
desse re
me
ter à po
lí
ti
ca, e relataram não ter encontrado nada.
Sem dú
vi
da, o pú
bli
co estava ao lado do conselho. No entanto,
Taft ain
da se re
cu
sa
va a ce
der.
Uma ba
ti
da de
li
ca
da na porta do escritório de Viv interrom
peu
seus pen
sa
men
tos com um susto. Era Edith, com a bolsa na mão.
— Não se es
que
ça de dormir, boneca — disse Edith, apontando
com o quei
xo pa
ra o re
ló
gio.
— Só vou ter
mi
nar mais uma ou duas coisas por hoje.
preocupa
ção. — Vo
cê vai ter que caminhar até o metrô sozinha no
escuro.
Viv dis
pen
sou a ofer
ta com um aceno e afirmou:
— São só al
guns quar
teirões. Mas obrigada.
— Se tem cer
te
za… — disse Edith, hesitante, mas não era de agir
como ba
bá dos ami
gos. — Boa noite, então. Não fique até muito tar-
de.
— Es
tou sain
do já, já — prometeu Viv.
Ter
mi
nou de cor
tar du
as matérias de jornais locais do Texas, de-
pois os co
lo
cou no en
ve
lo
pe que planejava enviar para Taft pela ma-
A úni
ca coi
sa com que podia contar era que Hale parecia mesmo
acreditar que Taft iria ao evento, mesmo que só para parecer magnâ-
nimo.
Embo
ra es
ti
ves
se con
tando com aquilo, ela ainda queria ter
Althea Ja
mes na man
ga. Mas parecia cada vez mais provável ter que
encontrar ou
tra pes
soa pa
ra encerrar o evento.
Pensou na bi
bli
ote
cá
ria do Brooklyn. Estava convencida de que a
deixou o es
cri
tó
rio, mas as sombras não eram ameaçadoras. Viv co-
nhecia ca
da can
to e re
can
to do lugar, como uma segunda casa.
Mesmo as
sim, ao pi
sar na rua, imediatamente levantou a guarda.
Viv cres
ce
ra na ci
da
de, ca
minhava sozinha quase todo o tempo sem
rários. Na noi
te es
cu
ra das ruas, as sombras se alongavam em seu
rastro, ame
aça
do
ras e na
da amigáveis.
Aper
tou as mo
edas que já tinha separado para a passagem de me-
gurança de an
dar so
zi
nha era graças à sagacidade para os verdadei-
ros pe
ri
gos.
A pou
cos pas
sos da en
trada do metrô, um homem sur
giu da solei-
Viv sol
tou um gri
to agudo, constrangedor, alto e inútil. Com o co-
ração dis
pa
ra
do, pro
cu
rou o alfinete de chapéu que guardava no
fundo da bol
sa.
Mas o su
jei
to er
gueu os braços e recuou um passo, permitindo
que o pos
te de luz ilu
mi
nasse suas feições, revelando as maçãs do
rosto, o na
riz, o quei
xo. Es
tava bem-vestido, era baixo, e o cabelo cas-
tanho es
ta
vam co
me
çan
do a ficar grisalhos e finos nas têmporas. O
da
quilo eli
mi
na
va qual
quer perigo, mas Viv teve que se perguntar o
que o su
jei
to po
de
ria que
rer dela.
Por fim, en
con
trou o alfinete do chapéu; queria sondar a rua em
busca de so
cor
ro, mas não podia arriscar tirar os olhos do predador
em poten
ci
al.
— Quem é vo
cê? O que você quer? Como sabe meu nome?
O ho
mem er
gueu as so
brancelhas finas.
— Qual des
sas per
gun
tas prefere que eu responda?
— To
das — dis
se, mos
trando os dentes. — E rápido.
— Tu
do bem, tu
do bem, calma. Acho que eu devia ter imaginado
que have
ria al
gu
ma re
ação teatral, considerando onde estamos.
Ele sor
riu com a pró
pria piada, mas, quando Viv se aproximou, fi-
cou sério.
— Vo
cê tem dez se
gun
dos — ameaçou ela.
— Que gar
ri
nhas afi
adas. Eu vim conversar, só isso.
— Con
ver
sar so
bre o quê?
As so
bran
ce
lhas já le
vantadas do homem subiram mais, como se
— So
bre o que a tem deixado tão zangada e incomodada, sra.
Childs.
Viv fi
cou tão sur
pre
sa que quase deixou o alfinete cair.
— A emen
da? Vo
cê ar
mou essa arapuca por causa do meu even-
to?
— É vo
cê que es
tá “ar
mada” aqui, não eu — disse o homem, tos-
mo esta
va se di
ver
tin
do, o que a deixou indignada. — Refiro-me ao
alfinete es
con
di
do na bol
sa. Eu só estava esperando que saísse do
— O que vo
cê quer? — in
sistiu Viv, apertando a arma outra vez.
Por mais que o ho
mem zombasse, ela sabia que tipo de dano
aquele me
tal po
dia cau
sar.
— Que fal
ta de cor
te
sia da minha parte — disse o homem, lim-
Danes, às su
as or
dens.
— O que vo
cê quer? — repetiu Viv, cada palavra saindo forte e pe-
sada.
Howard sus
pi
rou co
mo se fosse um homem paciente e sofrido e
— Só con
ver
sar. Tal
vez possamos chegar a um acordo, você e eu.
— A me
nos que es
te
ja aqui para me dizer que Taft vai remover as
multas da emen
da, ou me
lhor, se livrar dela completamente, não te-
Ela re
al
men
te du
vi
da
va que o homem fosse portador de boas no-
vas, con
si
de
ran
do que de
cidira abordá-la, não ao sr. Stern, e tam-
nha e vul
ne
rá
vel. Is
to não representava Taft levantando uma bandei-
ra bran
ca.
— Vo
cê é uma mo
ça in
teligente — disse Howard, naquele sotaque
arrasta
do. — Sa
be que não vai conseguir nada com esse seu truque.
Ao ou
vir aqui
lo, Viv fi
nalmente relaxou.
— Sé
rio? Acha que não?
— O que es
tá ten
tan
do fazer é admirável, mas está se encrencan-
do, garo
ta — con
ti
nu
ou Howard, como se tivesse sentido alguma fra-
— Um acor
do?
Howard, pon
do a mão no lado esquerdo do peito e baixando a cabe-
ça. Ao fa
zer aqui
lo, ele não notou como Viv ficou tensa novamente.
Childs pa
ra um re
co
nhe
ci
mento oficial pela bravura em serviço.
Viv sen
tiu uma von
ta
de irresistível de tirar o nome de Edward da
boca da
que
le ho
mem des
prezível.
— Es
tá di
zen
do que vai dar ao meu marido uma Medalha de Hon-
ra pelo pre
ço ba
ra
to da mi
nha alma e da dele? — questio
nou Viv, por
mais ado
ci
ca
do que fos
se o tom de voz do sujeito. — Não estou à ven-
insinuan
te mais uma vez.
— Não. Acha que não vou conseguir nada com o meu pequeno…
truque, co
mo vo
cê cha
mou. Bom, já consegui mais nas últimas qua-
tro sema
nas do que nos seis meses anteriores. E quer saber como sei
disso?
O su
jei
to es
trei
tou os olhos, sentindo a armadilha. E Viv quase
sorriu quan
do, pe
lo can
to do olho, viu um breve movimento.
não esta
ria aqui se não estivéssemos progredindo. Então, obrigada
pela atu
ali
za
ção.
Ela se afas
tou e ace
nou para chamar o policial que avistara do-
brando a es
qui
na.
— Por fa
vor, se
nhor, me ajude.
Com um sor
ri
so triun
fante, Viv guardou o alfinete do chapéu na
Howard Da
nes ga
gue
ja
va suas desculpas para o guarda. Estava can-
sada, im
pac
ta
da pe
lo en
con
tro e triste por alguém pensar que aque-
le tipo de tro
ca re
al
men
te funcionaria. Mas, acima de tudo, pela pri-
do algo cer
to.
Berlim
Maio de 1933
–T rou
xe um pre
sen
te — disse Dev, entrando no quarto de Althea
no come
ço de maio, se
gu
rando um porta-terno.
Althea ba
teu pal
mas, exagerando a empolgação.
— É um po
odle?
— Vo
cê tem um sen
so de humor mais interessante do que deixa
as pesso
as acre
di
ta
rem.
Cora
da com o elo
gio — por mais sarcástico que fosse —, Althea
voltou a aten
ção pa
ra o vestido que Dev segurava. O tecido aveludado
da adici
ona
va pro
fun
di
da
de à cor, criando o efeito que se obtém ao
ad
mirar o céu no
tur
no.
Althea ar
fou, e seus olhos voaram para os de Dev.
— Não pos
so usar is
so.
— Pois fi
nal
men
te es
taria usando algo na moda? — perguntou
Dev, levan
tan
do a so
bran
celha. Em seguida, ela sacou um par de sal-
ombo no can
to do apar
ta
mento. — Não vou aceitar um não como
resposta, que
ri
da.
— Pa
ra on
de va
mos? — perguntou Althea, sem levar o vestido.
— Mo
ka Eft
i, uma bo
ate à qual ainda não te levei — respondeu
Dev, em
pur
ran
do o te
ci
do para os braços de Althea. — Estou cansa-
da de to
das es
sas reu
niões da Resistência, é hora de se divertir. Ago-
ra troque de rou
pa. Han
nah está esperando.
Hannah. Cla
ro que Dev sabia que essa era a palavra mágica para
tante, ima
gi
nan
do co
mo fi
caria no vestido. Sabia o sufici
ente de mo-
da para re
co
nhe
cer que a intensidade do azul transformaria sua pe-
le de fan
tas
ma
go
ri
ca
men
te pálida em uma porcelana lustrosa, que o
brilho do te
ci
do ilu
mi
na
ria seu rosto, que o corte destacaria as pan-
turrilhas fi
nas e a cla
ví
cu
la delicada, disfarçando a ausência de cur-
vas.
— O que de
vo fa
zer no cabelo? — perguntou, um pouco desespe-
rada, um pou
co im
po
ten
te.
Aque
la pe
sa
da cor
ti
na de cabelos sempre fora um fardo.
Dev a exa
mi
nou por um longo tempo, depois atravessou o cômo-
do em três pas
sos de
ci
si
vos.
— Gram
pos.
Althea pe
gou um pu
nhado deles e ficou imóvel enquanto Dev di-
neral, a ami
ga en
ro
lou os cabelos de Althea em um coque baixo, sol-
tando al
guns fi
os pa
ra que não parecesse sério demais. Quando a es-
do ela mes
ma ten
ta
va al
go parecido. Aquele penteado destacava o
A ami
ga aca
ri
ci
ou seu ombro enquanto ela se admirava com satis-
fação.
— Ago
ra o ves
ti
do.
Enquan
to Althea se vestia, tomando cuidado para não desarru-
mar o pen
te
ado, Dev re
mexia o apartamento, como estava acostu-
mada a fa
zer.
— Até me es
que
ci: sou
be das queimas de livros?
— O quê? — per
gun
tou Althea, certa de que não ouvira direito.
— É ver
go
nho
so, que
ri
da. Um grupo de estudantes organizou pa-
ra amanhã à noi
te. Han
nah quer ir protestar.
— Que hor
ror — dis
se Althea, saindo de trás do biom
bo. — Quais
livros que
rem quei
mar?
— Qual
quer coi
sa com opiniões antialemãs — declarou Dev, com
um revi
rar de olhos. — O que pode significar praticamente qualquer
choque.
Althea fi
xou os olhos no chão com o carinho no sor
riso de Dev,
A atmos
fe
ra na no
va boate era mais como uma festa do que um
show. As
sim que che
ga
ram, Dev pediu para Althea uma bebida com
gosto de açú
car e fo
go, boa demais para ser bebida lentamente.
Encon
tra
ram Han
nah e Otto dançando em um canto escuro, os
dois giran
do em cír
cu
los, cheios de alegria. Hannah usava um vesti-
do naque
le tom de amei
xa que Althea estava descobrindo gostar. Ti-
nha um de
co
te pro
fun
do nas costas, revelando a pele cremosa e os
leves con
tor
nos da co
lu
na. A saia era mais curta do que a alemã esta-
va acostu
ma
da a usar e, quando ela se afastou de Otto, deixou entre-
ver a cin
ta-li
ga.
— Ih, Han
nah an
dou bebendo — cantarolou Dev, com prazer. —
sando.
— Ami
gas — gri
tou Hannah, quando as viu, se soltando de Otto
para plan
tar beijos mo
lha
dos em suas bochechas. — Dancem co
mi-
go.
Dev em
pur
rou Althea para os braços de Hannah, tirando o copo
A ban
da to
ca
va al
go rá
pido e animado, e a mão de Hannah se aco-
modou na lom
bar de Althea, puxando-a para perto, de modo que
seus cor
pos fi
cas
sem ni
ve
lados.
A sa
la gi
ra
va — e não por causa dos movimentos das duas acom-
panhan
do a mú
si
ca.
— Vo
cê es
tá bo
ni
ta ho
je.
Hannah ro
çou com os lábios o contorno da mandíbula de Althea,
descendo os de
dos pe
ri
go
samente por suas costas.
— Na ver
da
de, vo
cê es
tá sempre tão bonita…
Era is
so que Althea queria, tinha sido por isso que colocara o ves-
ventre quan
do su
as per
nas roçaram as de Hannah, seus mamilos se
enrij
ecen
do ao se dar con
ta do suave volume dos mamilos dela sob a
seda do ves
ti
do.
Althea le
van
tou o ros
to e percebeu como estavam próximas. Res-
piravam o mes
mo ar de um jeito tão íntimo que a garganta de Althea
ficou se
ca de ex
pec
ta
ti
va. Seria tão fácil simplesmente deixar a gra-
vidade em
pur
rá-la pa
ra junto de Hannah e eliminar aquele centíme-
tro derra
dei
ro.
Sua vi
da mu
da
ria pa
ra sempre. Adeus tentativas de ignorar,
adeus ale
ga
ções de ig
no
rância.
Os de
dos de Han
nah em suas costas se flexionaram, o mindinho
percorren
do a cur
va su
til de seu traseiro.
Então, de re
pen
te, foi demais.
Althea que
ria ser co
ra
josa, mas não era. Queria ser a Althea Ja-
mes de Ber
lim, mas sa
bia que não era.
Era ape
nas uma ga
ro
ta boba e estúpida de Owl’s Head, no Maine,
e jamais se
ria al
go além disso.
Althea se afas
tou, ofe
gante, praticamente às lágrimas, e cambale-
ou pela mul
ti
dão. Cor
pos esbarraram nela, o riso muito alto, a fuma-
ça pesa
da de
mais pa
ra respirar direito, as luzes ofuscando seus
olhos.
De re
pen
te, ar — abençoado e um pouco quente demais para
acalmar com
ple
ta
men
te seus nervos. Althea se viu encostada na pa-
rede de tijo
los do be
co do cabaré, respirando tão fundo que até fi
cou
as suas de
fe
sas.
Ela pis
cou pa
ra a ami
ga, e lágrimas indesejáveis escaparam dos
— Ah, pom
bi
nha. — Dev suspirou, jogando um braço ao redor de
Quan
do a ami
ga a sen
tou no carro que as esperava, Althea pensou
tê-la ouvi
do di
zer:
— In
fe
liz
men
te, foi de
mais, rápido demais.
O tra
je
to pas
sou em um borrão de cores enquanto Althea tomava
o cuida
do de não pen
sar em nada. Não pensaria naquele momento,
naque
le can
to es
cu
ro, na sensação de estar cercada por corpos sua-
dos e pul
san
tes, o de
la própria respondendo na mesma moeda. Não
pensaria no chei
ro ado
ci
cado da pele de Hannah ou na pressão sua-
Não pen
sa
ria no olhar desolado de Hannah quando se soltou de
seus bra
ços. Althea ras
te
jou para a cama, registrando vagamente
da
ria de
pois da
que
la noi
te — porque não podiam simplesmente rir
do que acon
te
ceu co
mo algo inconsequente —, Althea ficou enca-
rando a ja
ne
la até o ama
nhecer chegar. Só então se permitiu dormir.
UM DOS mai
ores me
dos de Althea era que Hannah parasse de falar
saram no apar
ta
men
to, chamando-a para protestar contra a queima
ou
tra coi
sa.
Dev ou
sou que
brar o constrangimento tenso com sua tagarelice.
— Go
eb
bels es
tá pe
din
do que os alemães de todo o país queimem
suas co
le
ções par
ti
cu
la
res. E vão transmitir as queimas de Berlim
pela tele
vi
são. Pe
lo vis
to, estão esperando uma multidão.
— Não é pe
ri
go
so? — perguntou Althea, incapaz de conceber a
Na ca
be
ça de
la, so
men
te alguns estudantes radicais participari-
am daqui
lo. Não se
ria o grande evento que Dev parecia acreditar que
estavam pla
ne
jan
do.
Hannah er
gueu as mãos.
— Não en
ten
do por que eles acham isso uma boa estratégia. Não
faço a mí
ni
ma ideia. — Dev pegou a bolsa de Althea e começou a em-
purrá-la con
tra a jo
vem em direção à porta. — Não é como se, depois
de lido, o con
teú
do de um livro pudesse ser esquecido.
Althea sen
tiu um em
brulho no estômago ao pensar na tinta e no
pa
pel se de
sin
te
gran
do em cinzas.
Na ho
ra, lem
brou-se da predição de Heinrich Heine. Onde quei-
Somen
te quan
do Dev e Hannah se voltaram para Althea com os
olhos ar
re
ga
la
dos, ela per
cebeu que dissera aquilo em voz alta.
Dev tor
ceu o na
riz e co
mentou:
— Bom, po
etas são um tanto dramáticos, não?
cluindo a pró
pria Dev, riu.
As três ca
mi
nha
ram noite afora em um silêncio pesado com pen-
samentos ter
rí
veis. Quando se aproximaram da Opernplatz, em
frente ao edi
fí
cio es
ta
tal da ópera, a luz das tochas iluminava a mul-
tidão.
— Dei
xo vo
cês aqui.
um rosti
nho bo
ni
to nar
rando.
não enten
dia co
mo Han
nah conseguia não ligar para aquilo.
— Vo
cê não se im
por
ta?
— Eu ado
ra
ria que o mundo fosse diferente — disse Hannah, com
uma se
cu
ra na voz que fez Althea perceber como estava perto de ul-
trapassar al
gum li
mi
te.
Althea so
bre seus ami
gos.
Althea se lem
brou da noite em que Hitler fora nomeado chance-
ler e co
mo se jun
ta
ra aos manifestantes, contente e um pouco zonza
direito de fa
lar na
da so
bre Dev.
Aque
le pen
sa
men
to foi interrompido pelas chamas que se desen-
roscavam ru
mo às es
tre
las de um céu escuro e pelos gritos felizes e
se redu
zi
rem a pó.
Althea qua
se caiu de jo
elhos ao ver a pira. O fogo rugia para o céu
recido.
E a fe
ra es
ta
va sen
do bem alimentada.
Havia mon
ta
nhas de li
vros empilhadas no que parecia ser cada
centíme
tro da pra
ça. Os estudantes empurravam carrinhos de mão
repletos de li
vros, jo
vens chegavam carregando sacos quase estou-
lumes no in
te
ri
or se es
pa
lhassem pela calçada.
co.
Eram mi
lha
res e mi
lha
res e milhares de livros sendo jogados nas
chamas.
Milha
res e mi
lha
res e milhares de pessoas aplaudindo, uivando e
fazendo a sau
da
ção na
zis
ta, cantando:
— Nós so
mos o fo
go, nós somos a chama; ardendo diante dos alta-
res da Ale
ma
nha.
As cha
mas ali
men
ta
vam a agitação febril da multidão, que, por
sido pen
du
ra
das em to
dos os edifícios da praça. Especta
dores se de-
bruçavam pe
las ja
ne
las, esbravejando seu apoio. Uma banda tocava,
a música so
bre
pon
do uma trilha sonora sinistra para os foliões deli-
rantes.
Hannah pu
xou os bra
ços de Althea, que só então percebeu que es-
tava cho
ran
do. Não lá
gri
mas dignas, mas um choro barulhento e
confuso.
— É um sa
cri
lé
gio — sussurrou Althea.
Se ela ti
nha uma igre
ja, ficava dentro das capas dos livros; se ela
nas assen
tiu.
— Eu sei.
E Han
nah sa
bia. Da
qui
lo, Althea tinha certeza.
Uma chu
va le
ve co
me
çou a cair, como se o próprio Deus estivesse
chorando pe
la atro
ci
da
de.
Goeb
bels su
biu ao pal
co, as chamas tornando seu rosto fundo e
esquelé
ti
co. Althea se lem
brou de quando o conheceu, em uma festa,
agradável, in
te
res
sa
do em conversas intelectuais, curioso e pensati-
vo.
Ele se tor
na
ra o fan
tas
ma do pesadelo de Althea.
— Não à de
ca
dên
cia e à corrupção moral! — gritou Goebbels, do
púlpito.
Ele fa
lou da mor
te do intelectualismo judaico, da lama e do lixo
os estudan
tes es
pre
mi
dos contra o palco, hipnotizados por cada pa-
lavra.
— Es
te é um ato for
te, grandioso e simbólico, um ato que há de
documen
tar pa
ra o mun
do todo: aqui, a base intelectual da Repú
bli-
ca de No
vem
bro é en
go
li
da pelo chão, mas, dos destroços, ressurgirá
a fênix de um no
vo es
pí
ri
to para alçar um voo triunfante.
O pú
bli
co foi ao de
lí
rio, dançando na chuva, as chamas da pira
tornavam to
dos si
lhu
etas anônimas.
— Não con
si
go res
pi
rar. — Althea ofegou.
Hannah ten
tou es
fre
gar as costas dela e sussurrar palavras tran-
quilizado
ras, mas fo
ram encobertas pelo brado que subia em unísso-
no ao re
dor.
Aqui
lo não era ape
nas um comício sem sentido, não eram ape
nas
pessoas le
va
das por um rugido espumante decorrente das palavras
vazias de um ora
dor efi
caz. Aquilo era o júbilo pela destruição do co-
nhecimen
to, da ci
ên
cia, da poesia, do amor. Os estudantes, que de-
veriam apre
ci
ar tais coi
sas, estavam eufóricos ao ver tudo queimar.
E Althea des
mo
ro
nou.
Dispa
rou, em
pur
ran
do a multidão, sabendo que Diedrich estaria
perto da di
an
tei
ra do es
pe
táculo com seus amigos nazistas.
Hannah cha
mou por ela, mas Althea não parou. Não conseguia.
Ao mi
rar uma das ca
pas dos livros esperando sua vez de entrar na
pira, emi
tiu um som bai
xo ferido e o salvou sem pensar. Ela o segu-
rou per
to do pei
to co
mo se fosse uma criança e continuou contor-
nando a mas
sa de cor
pos.
Então, lá es
ta
va Di
edri
ch. Onde ela achou que estaria. Rindo.
na fren
te de
le. Apoi
ou a mão que estava livre no meio do peito dele e
tira ao pri
mei
ro li
vro ser lançado nas chamas.
— Seu bár
ba
ro! — Ela praticamente soluçou.
Die
dri
ch tro
pe
çou pa
ra trás, mas ela imaginou que fosse apenas
pelo cho
que, não pe
la for
ça do empurrão.
valentões in
cul
tos que a história julgará como bárbaros precon
cei-
tuosos e in
to
le
ran
tes.
Die
dri
ch avan
çou e se
gurou seu queixo com força suficiente para
deixar cla
ro que ha
ve
ria hematomas. Embora o alvoroço da multi-
silêncio mor
tal.
— Vo
cê es
tá es
que
cen
do qual é o seu lugar — rosnou Diedrich, na
cara dela.
A mão de Di
edri
ch a fez cair, deixando um calor pungente em seu
rastro.
Com o lá
bio san
gran
do, o cotovelo latejando, o corpo arranhado e
machuca
do, Althea en
fim percebeu que existiam coisas maiores no
Junho de 1944
P or sema
nas, Viv não teve tempo para participar das festas de
Charlotte. Os even
tos eram pensados para vender títulos de guerra,
da e en
ce
na
ções da al
ta sociedade. Viv perdera qualquer tolerância
que já ti
ve
ra pa
ra aque
le ti
po de evento desde que começara a passar
parte de su
as noi
tes na EFA.
Char
lotte pro
me
te
ra que aquela vez seria de particular interesse
para Viv.
— Se
rá na Bi
bli
ote
ca Morgan, querida. O lugar perfei
to para você
despertar in
te
res
se em seu grand finale.
Viv a en
ca
rou por al
guns segundos atordoados antes de correr
para abra
çar a so
gra.
— Vo
cê é um te
sou
ro!
bli
oteca Mor
gan com uma taça de vinho em uma das mãos e os olhos
mais vo
lu
mes de li
vros ines
timáveis protegidos em delicadas gaiolas
de ouro.
Conver
sa
ra com três fun
cionários públicos do alto escalão, edito-
do prefei
to de No
va York e quatro matronas da socieda
de, notórias
pelas do
ações ge
ne
ro
sas aos políticos que apoiavam.
Quase re
lu
zin
do com o burburinho de uma noite que prometia
ser um su
ces
so, Viv se permitiu tirar dez minutos para aproveitar o
espaço an
tes de co
me
çar a caçar outros convidados potencialmente
influen
tes.
Já fa
zia du
as se
ma
nas que abandonara a noção de que a presença
de Althea Ja
mes fa
ria do evento um sucesso ou fracasso, e desde en-
tão reali
za
ra mais do que nas três semanas anteriores. Talvez seus
aquele mo
men
to, não ha
via um convite recusado sequer, e Viv até
recebera de
ze
nas de car
tas de repórteres de fora da cidade pedindo
credenci
ais.
E, pa
ra co
ro
ar, Taft es
tava preocupado o bastante para enviar um
capan
ga atrás de
la.
O even
to es
ta
va mar
ca
do para dali a pouco mais de um mês, e Viv
ainda ti
nha mui
to o que fazer para assegurar o desfecho grandioso
que que
ria. Mas o zum
bi
do sob sua pele se acalmou um pouco quan-
do tudo co
me
çou a to
mar forma.
— De to
das as bi
bli
ote
cas do mundo — disse alguém atrás dela,
Viv se vi
rou, e lá es
ta
va Hale, oferecendo-lhe uma nova taça de vi-
percorre
ram o cor
po de
la, ad
mirado.
Viv co
rou, sa
tis
fei
ta por ter selecionado um de seus vestidos favo-
ritos pa
ra a oca
sião. O es
tilo era dos anos 1930, mas vestia tão bem
às protu
be
rân
ci
as de seus quadris e ao volume delicado do traseiro.
O decote, al
to na fren
te, mergulhava em V nas costas, e uma filei-
ra de pe
que
nos bo
tões se alinhava como pequenos soldados ao longo
de sua co
lu
na. A saia aca
riciava as coxas insinuantes, a luz das velas
revelando qua
se mais do que escondia.
Aque
le am
bi
en
te tam
bém favorecia Hale, em um terno azul e ca-
misa im
pe
ca
vel
men
te branca. O homem tinha tempo suficiente na
po
lítica pa
ra pa
re
cer tão confortável no ar rarefeito de um evento de
gala de ca
ri
da
de quan
to com as mangas da camisa dobradas jogando
beisebol na rua.
— Oi — dis
se ela, sem forças.
A ener
gia que um dia ti
vera para flertes e gracejos fora drenada, e
às vezes pre
ci
sa
va se es
for
çar para ter uma conversa comum.
— Oi — res
pon
deu ele, amável.
Porém, quan
do Ha
le a observou, não foi julgando sua aparência,
conseguia es
con
der. Ela percebeu que nem estava tentando. Não
no fundo da al
ma até um outro momento, quando pudesse pensar
no assun
to.
— Pos
so aju
dar?
Viv bu
fou.
— Pa
re de ser tão char
moso.
— Vo
cê tem bai
xas ex
pectativas para o charme — brincou Hale,
ostentan
do aque
la co
vi
nha.
Tudo ne
la se in
cli
na
va em direção a ele. Quando o reencontrou
pela pri
mei
ra vez no Bro
oklyn, ficou quase aliviada por não sentir
mais aque
la atra
ção mag
nética. A raiva, a humilhação e a dor haviam
apagado a co
ne
xão en
tre os dois. Mas, nas últimas semanas, à medi-
da que o co
nhe
cia co
mo adulto, estava ficando cada vez mais di
fícil
ra ser re
acen
di
da.
quando o as
sun
to era a história compartilhada que nunca consegui-
am enca
rar di
re
ta
men
te. A que ainda existia na periferia de cada
conversa, só es
pe
ran
do que as palavras de ambos se tornassem an-
tagônicas.
especialis
ta em es
con
der as próprias reações, mas ele endureceu,
apertan
do o vi
dro da ta
ça.
— Aqui não.
Viv es
ta
va pres
tes a protestar, mas Hale a guiou para a saída da
sala de lei
tu
ra lo
ta
da, o que a fez perceber que aqui não não equivalia
a agora não.
Ele en
con
trou um can
to que garantia alguma privacidade, e Viv
se recos
tou na pa
re
de de mármore, esperando.
— Mais fá
cil pa
ra o quê?
— Sua vi
da. — Ele so
ava muito prático. — Eu era um filho ilegíti-
mo do Bro
oklyn, Viv. A coisa nunca passaria de alguns beij
os rouba-
— Vo
cê não po
de
ria sa
ber disso. Eu te am…
— Não — in
ter
rom
peu ele. — Nós éramos apenas crianças, Viv.
Aqui
lo não era jus
to. Viv sabia o que sentira e ficara ainda mais
— Ida
de su
fi
ci
en
te pa
ra saber como as coisas funcionam — disse
com o tem
po. Eu só fiz aquilo para que você não precisasse fazer.
Viv pis
cou de
pres
sa, tentando entender. Aquele verão estava tin-
gido de ro
sa em sua me
mória, mas a felicidade daqueles dias não ti-
mesqui
nho um do ou
tro, o lado ciumento. Tinham se co
nhecido ha-
via pou
co tem
po, mas o que construíram parecia ter potencial para
du
rar.
Viv re
pe
tiu as pa
la
vras dele na cabeça. Você teria descoberto isso
com o tem
po.
— Vo
cê es
ta
va com me
do — disse Viv, com um aceno de cabeça,
de repen
te com
pre
en
den
do.
Hale ti
nha tan
to me
do de se machucar, tanto medo de que Viv o
rejeitas
se, que fi
ze
ra aquilo primeiro. Ele estava acostumado com
pessoas da po
si
ção e ri
queza dela sempre dizendo que ele não im-
portava, evi
tan
do o con
ta
to, afastando-se. Por que ela seria diferen-
te?
— Eu era um re
alis
ta — corrigiu Hale, sem tentar se defender. Pe-
lo jeito, ain
da acha
va que tinha feito a escolha certa. — Você pen
sou
que esta
va apai
xo
na
da por mim. E teria se casado comi
go. E en
tão,
mais tar
de, tal
vez um ano, talvez cinco, teria olhado para sua vida e
Viv en
ca
rou sua si
lhu
eta, decepcionada.
— As pes
so
as que nas
cem com dinheiro sempre dizem a si mes-
experien
te. — Mas a vi
da não é um conto de fadas.
acrescen
tou:
— De qual
quer for
ma, depois você começou a escrever para
Edward.
Viv qua
se ba
teu a ca
be
ça na parede de surpresa. Ela não sabia o
mas pre
su
mi
ra que, na maior parte do tempo, Edward a apresentava
exatamen
te do que ela ti
nha sido: uma amiga querida. Notando para
a tensão no ma
xi
lar de Ha
le, no entanto, ela repensou aquela suposi-
ção.
— Vo
cê acha que tro
quei um irmão pelo outro — concluiu Viv.
— Edward não…
O cho
que de Viv de
ve ter ficado claro, porque a certeza no sem-
blante de Ha
le va
ci
lou.
Por um mo
men
to, ela quis que Edward estivesse ali para explicar
tudo da for
ma que de
fi
ni
tivamente deveria ter feito quando estava
vivo. A ima
gem dos três amontoados naquele lugar, debatendo o ca-
samento de Viv e Edward, era tão ridícula que ela não conseguiu
conter a ri
sa
da ale
ató
ria que lhe escapou.
— Quer me con
tar o que é tão engraçado? — perguntou Hale, en-
dor.
cabeça pa
ra ten
tar aba
far a risada. Suas costelas doíam, e as coxas
Pro
va
vel
men
te ti
nha si
do com Edward.
Viv sen
tiu a che
ga
da de lágrimas desencadeadas pela tristeza em
vez da gra
ça, mas as afas
tou, se recostando de volta na parede e ofe-
gando um pou
co.
— Eu es
ta
va pen
san
do em meu marido ameaçando o próprio ir-
mão pa
ra que me tra
tas
se direito — admitiu Viv, por fim. Não fazia
sentido in
ven
tar des
cul
pas naquele momento.
A ten
são na bo
ca apertada de Hale se contorceu em um quase
sorriso.
— Pen
sei que Edward tinha conversado com você sobre nosso ca-
samento. Tal
vez não a ra
zão pela qual nos casamos, mas que não es-
távamos apai
xo
na
dos quando decidimos fazê-lo.
— Eu sa
bia que ele es
tava preocupado antes de partir, mas tudo
aconteceu mui
to rá
pi
do. Edward não me deixava perguntar so
bre
você.
— Vo
cê não po
de con
tar para Charlotte.
— Cla
ro.
— O tes
ta
men
to do seu pai… — disse Viv, hesitante.
Hale nun
ca agiu co
mo se a riqueza que havia perdido fosse im-
— The
odo
re Childs — corrigiu Hale. — Meu pai era William Hale.
Viv bai
xou a ca
be
ça em reconhecimento.
— The
odo
re dei
xou a maior parte de sua fortuna para Edward, é
claro. No en
tan
to, ha
via uma provisão no testamento de que, se
Edward mor
res
se an
tes de se casar, a propriedade passaria para as
mãos de vá
ri
as ins
ti
tui
ções de caridade, deixando Charlott
e sem na-
da.
— The
odo
re Childs não era homem de dar um centa
vo à carida-
de.
— Ele sa
bia que nun
ca chegaria a isso. Estava farto das farras do
que assen
tiu.
deixar Char
lotte de
sam
parada. E ela é orgulhosa demais para acei-
— Vo
cê tam
bém a ama — disse Hale depois de um minuto estu-
também. En
tão eu não po
dia ter certeza sobre nada.
— Eu o ama
va — afir
mou Viv, estendendo a mão para apertar o
an
tebra
ço de Ha
le. — Co
mo a um amigo querido.
— Eu ti
nha von
ta
de de dar um soco na cara de Edward sem
pre
te interpre
tei er
ra
do.
— Se ao me
nos ti
ves
se havido uma forma de me perguntar a res-
peito. Al
gum mé
to
do fá
cil de comunicação que esclarecesse tudo —
A vida pro
por
ci
ona al
guns momentos como esse, às vezes raros,
em que é pre
ci
so fa
zer uma escolha. Uma opção é se prender ao ran-
bretudo quan
do su
as es
co
lhas foram feitas na juventude, quando es-
Hale bai
xou a ca
be
ça, mas havia um sorriso discreto em seu ros-
— Sen
ti sua fal
ta. To
dos os dias, todas as horas, todos os minutos.
resquício de res
sen
ti
men
to ir embora.
bem o su
fi
ci
en
te pa
ra ci
tá-las tantos anos depois. Ela imaginou o Ha-
le de vin
te anos er
guen
do os escudos cada vez que lia uma das con-
fis
sões de
la, con
ven
ci
do de que o mundo o machucaria novamente
se ele dei
xas
se.
Viv es
ta
va mui
to per
to das lágrimas para fazer qualquer coisa
além de ar
ris
car uma pi
ada.
— É, bom, is
so me pre
parou para minha decepção atual.
Hale pa
re
cia igual
men
te ansioso para se afastar do te
ma emo
cio-
nal.
— Althea Ja
mes ain
da es
tá ignorando você?
Viv con
fir
mou com a cabeça, e ele deu de ombros.
— En
tão vo
cê pre
ci
sa ir até ela.
— O quê?
— Pre
ci
sa fa
lar com ela pessoalmente — declarou Hale, assentin-
do. — Ex
pli
car por que es
tá fazendo isso.
Viv ba
lan
çou a ca
be
ça.
— Eu de
ve
ria dei
xá-la em paz.
Hale a ob
ser
va
va com os olhos semicerrados.
— Eu li os mes
mos re
latórios que você tem da Normandia. Esses
— É co
mo se os pa
péis tivessem se invertido. — Viv o encarou e
continu
ou: — Vo
cê me convencendo a avançar com isso.
— Sa
be co
mo gos
to de causas perdidas — disse Hale, com um
sorrisinho ge
nuí
no que Viv pensou ter sido guardado só para ela. —
Sou um gran
de ro
mân
ti
co, no fim das contas.
— Ves
ti
do com o ter
no de um político sem coração — provo
cou
— Não de
ve
ria es
tar me agradecendo por me importar com nos-
sos solda
dos.
— En
tão obri
ga
da pe
lo conselho — agradeceu Viv, em vez de ar-
to, ain
da ten
tan
do aju
dá-la com sua causa.
— Tal
vez se
ja inú
til. Mesmo que Althea diga sim, Taft pode não
mudar de ideia.
— Mas?
— Mas vo
cê só vai dor
mir à noite se der tudo de si — disse Hale,
os olhos es
cu
ros ou
tra vez voltados para o alto. — A boa luta nem
que exis
tem pes
so
as por aí dispostas a tentar.
Pa
ris
Feve
rei
ro de 1937
U ma co
mi
chão se ins
ta
lou sob a pele de Hannah quando começou a
lho na bi
bli
ote
ca di
mi
nuí
ra, de modo que Hannah não tinha mais
aquela ta
re
fa pa
ra dis
traí-la. Ela pensou brevemente em passar na
loja de Lu
ci
en pa
ra ver se ele estava organizando alguma reunião da
Re
sistên
cia, mas, ape
sar de seu recém-descoberto apreço por socos
e balas, ain
da es
ta
va he
si
tante.
Tinha tan
ta rai
va den
tro de si que, se derramasse gasolina sobre
as chamas, po
de
ri
am con
sumi-la inteiramente.
novo, sal
pi
ca
da de tin
ta e recém-solteira. As duas compartilharam
uma gar
ra
fa de vi
nho per
to da lareira, parando a conversa de vez em
quando pa
ra ou
vir o mais novo poeta em cena recitar alguns versos e
uma be
la es
cri
to
ra ga
gue
jar ao ler um capítulo de seu trabalho.
— Vai fi
car na Fran
ça? — perguntou Hannah a Patrice, durante
uma pau
sa.
— Eu pa
re
ço fei
ta pa
ra a guerra?
Era ver
da
de. Pa
tri
ce era frágil, delicada. Hannah se perdoou pela
cruelda
de de pen
sar que a mulher morreria durante uma ocupação,
vis
to que ela dis
se
ra aqui
lo primeiro.
— Já vo
cê é fei
ta pa
ra a guerra — continuou Patrice, franzindo as
sobrance
lhas pa
ra fa
zer uma expressão cômica. — Sempre sombria,
sempre pron
ta pa
ra a ba
ta
lha.
tinha en
tra
do na bri
ga pa
ra salvar Otto?
— Ma
te al
guns na
zis
tas por mim, sim? — pediu Patrice, acarici-
ando sua mão. — Eu vou para a Califórnia. Hollywood, para ficar fa-
mosa.
Hannah riu e olhou nos olhos de Natalie Clifford Barney, que pas-
— Han
nah — cha
mou Natalie, se aproximando. — Quase ia me
esquecen
do. En
con
trei uma amiga sua.
— E quem se
ria?
— De
ve
raux Char
les.
— Dev?
A últi
ma vez que vi
ra Deveraux tinha sido anos atrás, em uma úl-
tima noi
ta
da em Ber
lim, antes de Hannah partir para Paris.
— A pró
pria. Se
gun
do ela, os nazistas estão fazendo algumas fil-
magens ter
rí
veis por aqui e queriam usar a Torre Eiffel e a Notre-Da-
me co
mo pa
no de fun
do. Ela vai ficar na cidade pelo resto da sema-
na.
— De
ve es
tar mui
to ocupada — comentou Hannah, embora se
pergun
tas
se por que Dev não a procurara. — Quando foi isso?
— Hum… tal
vez três di
as atrás. Ela ficou curiosa para saber como
você esta
va quan
do nos de
mos conta de que ambas a conhecíamos.
— Tal
vez ela pas
se na biblioteca — disse Hannah com um sorriso
incerto.
Dev sem
pre fo
ra vo
lú
vel, mas sabia onde Hannah estava traba-
— Uma ex-aman
te? — perguntou Patrice.
— Aos ve
lhos ami
gos — propôs Patrice, levantando o copo.
Quan
do ter
mi
na
ram a garrafa, abriram outra, o vinho e o flerte
finalmen
te ali
vi
an
do a co
ceira sob a pele de Hannah.
Nun
ca ti
ve
ra ex
pec
ta
ti
vas de que Althea escrevesse para ela. Não
rado de che
gar. Quan
do Patrice sugeriu ir ao Le Monocle — o me-
be
beram al
go do
ce e bor
bu
lhante e riram à toa enquanto se dirigi-
As du
as aca
ba
ram su
adas, ofegantes e emaranhadas nos lençóis.
Quando Pa
tri
ce per
gun
tou se deveria ir embora, Hannah passou um
po
legar em seu lá
bio in
fe
rior com uma carícia suave e lhe disse para
dormir.
ra o doce alí
vio do mun
do dos sonhos. Ficou ao lado da janela, enro-
lada ape
nas em um len
çol, observando o sol se esgueirar sobre os
edifícios.
E se per
gun
tou o que Deveraux Charles estava realmente fazendo
em Pa
ris.
Dev ti
nha se tor
na
do uma atriz mundialmente famosa, não era de
surpreen
der que es
ti
ves
se na cidade. As duas tinham trocado cartas
troca de cor
res
pon
dên
ci
as consistente não era exatamente viá
vel.
que mo
ram em paí
ses di
fe
rentes.
Tal
vez ti
ves
se si
do mais do que a distância. Dev ainda estava tra-
balhando pa
ra os na
zis
tas, fazendo seus filmes, escrevendo roteiros
quela pri
ma
ve
ra de 1933, no entanto, tinha sido diferente.
quieta e de
sa
pa
re
ci
do.
E a ver
da
de era que Hannah se importava sim por duas de suas
convida
das do Rei
ch.
A Han
nah atu
al nun
ca permitiria que esse fato fosse ignorado,
mas algu
mas coi
sas não pareciam completamente reais na época.
Hitler fo
ra ins
ti
tuí
do chanceler porque os moderados achavam que
po
deriam con
tro
lá-lo. A maioria das pessoas que dava alguma aten-
ção à po
lí
ti
ca na
que
la épo
ca acreditava que ele desapareceria na
obscuri
da
de, que sua lou
cura queimaria forte e se extinguiria de-
pressa.
Além dis
so, ha
via al
go deliciosamente subversivo em converter
aqueles con
vi
da
dos ame
ri
canos, que os nazistas esperavam que vol-
tassem pa
ra ca
sa e es
pa
lhassem sua mensagem de ódio e intolerân-
cia.
Depois do in
cên
dio do Reichstag, Althea parara de se encontrar,
pelo me
nos de bom gra
do, com qualquer nazista. Não fora difícil es-
Dev, no en
tan
to…
Não ti
nha pa
ra
do. Ape
sar de ter o dinheiro e a fama que permiti-
trabalhan
do pa
ra eles.
preocupa
da com ele — Otto estava bebendo demais, frequentando
tomas des
bo
ta
dos na man
díbula.
Hannah fa
zia per
gun
tas, querendo saber o que estava acontecen-
dias seguin
tes. En
tão ela parou de perguntar.
Foi pu
ra coin
ci
dên
cia, talvez uma piada do destino, quando os
dois se de
pa
ra
ram com Dev uma semana depois.
Ela e Otto es
ta
vam dan
do um passeio tranquilo à tarde pela mar-
gem esquer
da, olhan
do as vitrines, quando o tempo mudou. O sol es-
tava come
çan
do a fi
car um pouco quente demais, e Hannah estava
prestes a su
ge
rir que se sentassem em um café, quando Otto parou
de repen
te, os olhos fi
xos do outro lado da rua.
— Aque
la ali é a… — co
meçou Otto. — Meu Deus, é.
Hannah se
guiu seu olhar, e ali, é claro, estava Deveraux Charles
te, usan
do uma cal
ça so
fis
ticada e uma blusa preta que ondulava su-
gestivamen
te nos om
bros. A cor poderia tê-la deixado insossa, mas,
em vez dis
so, des
ta
ca
va a palidez extrema de sua pele. Ela usava
grandes ócu
los es
cu
ros pretos e os cabelos curtos estavam bem-pen-
teados, ren
te à ca
be
ça, ao estilo característico de Dev.
ros, e levan
tou Dev do chão em um abraço caloroso.
Dev gri
tou de sur
pre
sa e deixou Otto balançá-la antes de dar um
Hannah se
guiu em um ritmo mais calmo.
— E Han
nah. — Dev sorriu quando a viu e levantou os óculos pa-
ra o alto da ca
be
ça. — Eu deveria saber. Onde Otto está, está Han-
nah. E vi
ce-ver
sa.
Anti
ga
men
te, ela te
ria ri
do da provocação, mas havia algo duro e
— De
ve
raux — cum
pri
mentou Hannah. — O que a traz a Paris?
— Que for
mal — brin
cou Dev, cutucando o ombro dela. — O que
traz al
guém a Pa
ris? A pró
pria Paris, querida.
percebeu co
mo a atriz es
tava tensa, com parte do corpo voltado para
— Por quan
to tem
po fi
cará aqui? — perguntou Otto.
— Es
ta
mos par
tin
do hoje à noite, infelizmente — disse Dev, com
um biqui
nho nos lá
bi
os pintados de vermelho. — Da próxima vez,
vocês te
rão que me le
var para jantar e dançar como nos velhos tem-
pos.
— Nós? — per
gun
tou Hannah.
Dev va
ci
lou. Foi qua
se imperceptível, mas Hannah a observava
atentamen
te.
— Des
cul
pe, pre
ci
so correr, meus queridos — disse Dev, dando
adeus a am
bos, apres
sa
da.
Hannah le
vou a mão ao rosto para esfregar o batom da bochecha
enquan
to ob
ser
va
va um homem vestido com o uniforme de um ofi-
cial nazis
ta sair de uma lo
ja algumas portas à frente.
Dev pas
sou o bra
ço pe
lo dele e lançou a cabeça para trás, rindo de
Julho de 1944
V iv demo
rou um mês desde a invasão para reunir coragem e retor-
nar à bi
bli
ote
ca no Bro
oklyn.
A futu
ra vi
agem ao Maine para encontrar Althea James foi o em-
também que
ria ter um pla
no alternativo com a bibliotecária.
Ou se
ja, era ho
ra de im
plorar.
Apesar de es
tar tar
de, o sol ainda brilhava quando Viv saiu da es-
tação de me
trô mais pró
xima ao Centro Judaico do Brooklyn. Era
mais ou me
nos a ho
ra em que a bibliotecária saía do trabalho. Viv
queria en
con
trá-la, é cla
ro, mas uma pequena parte dela esperava
Se o des
ti
no es
ta
va a seu favor ou contra, ela não sa
beria dizer,
mas, as
sim que atra
ves
sou a rua, deu de cara com a bibliotecária es-
tava des
cen
do a es
ca
da
ria.
A mu
lher he
si
tou quando a viu, então continuou a descer para
que se cum
pri
men
tas
sem na calçada.
— En
tão is
to vai acon
te
cer com frequência?
— Es
tá fa
lan
do das mi
nhas visitas ao seu trabalho sem ser convi-
da
da? — per
gun
tou Viv, mantendo o tom leve. — É só me dizer para
não apa
re
cer que eu pa
ro.
— Eu não dis
se is
so. — A voz da bibliotecária, no entanto, estava
cheia de cau
te
la. — Sua curiosidade me deixa curiosa, é isso.
— Ten
ta ou
tra — de
volveu a bibliotecária, embora parecesse ter
achado di
ver
ti
do.
— Não é men
ti
ra, mas vo
cê tem razão. Não é toda a verdade.
— Eu sei. — Aqui
lo foi dito com tanta certeza que Viv quase de
sis-
tiu da em
prei
ta
da, pois sabia que podia se sentir intimidada pela
mulher. — En
tão eu per
gun
to: qual é toda a verdade?
Quan
to mais ce
do a bi
bliotecária ouvisse o pedido, mais cedo se
lher.
— Eu gos
ta
ria que vo
cê palestrasse no meu evento — confes
sou
A bibli
ote
cá
ria pis
cou algumas vezes.
— O quê?
— Enten
do is
so, mas acho que você seria uma excelente adição ao
programa.
— Se vo
cê diz… mas ainda não vejo a conexão entre o que eu faço
e suas edi
ções.
do não evi
tar is
so.
Viv ume
de
ceu os lá
bi
os, o peso de todo o evento em seus ombros.
— Quan
do vi
si
tei sua biblioteca pela primeira vez, não conseguia
ver um ca
mi
nho pa
ra se
guir com essa luta — admitiu Viv. — Então
você co
lo
cou em pa
la
vras por que tudo isso é tão importante. Nós…
Nós, hu
ma
nos, ado
ra
mos contar histórias uns aos outros, não é? Fi-
zemos exa
ta
men
te is
so em cavernas e em anfiteatros e no Globe
Theatre e em co
zi
nhas e em volta de fogueiras e nas trincheiras. Ca-
da cul
tu
ra, ca
da país, ca
da tipo de pessoa no mundo con
ta histórias.
As histó
ri
as fo
ram sus
surradas, cantadas e escritas em pedaços de
pa
pel e sem
pre fo
ram uma parte indelével da humanidade.
Viv co
rou e en
ca
rou seu chá, ciente de que passara noites demais
elaboran
do exa
ta
men
te qual seria seu discurso na frente de Taft.
— Quan
do en
trei na bi
blioteca e você estava lá como uma guardiã
dessas his
tó
ri
as, eu sim
plesmente… — Viv engoliu em seco. — Mi-
impor
to, eu sem
pre me importei, porque quero proteger essa ideia.
Porque es
sas his
tó
ri
as po
dem nos ajudar a entendermos uns aos ou-
sombrios po
dem ser mais do que simplesmente tentar sobreviver.
A manei
ra co
mo vo
cê fa
la sobre a biblioteca e os livros, essa é a men-
A bibli
ote
cá
ria es
pe
rou um segundo, parecendo sondar se Viv es-
tava pron
ta.
— Vo
cê mes
ma de
via dizer isso, não precisa me colo
car no meio
dessa bri
ga.
Viv ga
gue
jou um pou
co:
— Eu sou a au
to
ra desta história, não uma personagem. — Ela
soltou um sor
ri
so au
to
de
preciativo. — Além disso, estou repetindo
Era es
tra
nho co
mo a resposta era óbvia para Viv.
— Co
mo foi aque
la noi
te? — perguntou a publicitária, mais uma
vez que
ren
do pro
vo
car a mesma reação que obteve em sua última vi-
sita. — Quan
do quei
ma
ram os livros.
A bibli
ote
cá
ria in
cli
nou a cabeça, curiosa, mas disposta a partici-
par da brin
ca
dei
ra.
— Mo
lha
da.
O can
to da bo
ca de Viv se ergueu em um meio sorriso.
— Quan
tas pes
so
as me dariam essa resposta?
Viv ba
lan
çou a ca
be
ça.
— Não, não da
ri
am. Goebbels diria “bem-sucedida” ou “patrióti-
ca”. Um com
ba
ten
te da Re
sistência poderia dizer “trágica”. Um estu-
dante ale
mão di
ria “vi
brante”. Depende de quem está falando, de
quem es
tá con
tan
do a his
tória.
— E “mo
lha
da” é uma descrição mais precisa?
— Não — con
tes
tou Viv, frustrada. — Mas é o que faz dela a sua
história. E as pes
so
as re
co
nhecem a autenticidade.
A bibli
ote
cá
ria olhou para o nada por um bom tempo, então sus-
pirou, re
en
con
tran
do os olhos de Viv.
— O que is
so en
vol
ve
ria? — perguntou a bibliotecária, hesitante,
mas… ao me
nos a res
pos
ta não era um não.
— Um dis
cur
so em um evento que estou organizando para o final
mo tem
po. — Tam
bém tentei alinhar os oradores em uma espécie de
narrativa. Va
mos co
me
çar com bibliotecários que fala
rão sobre o
programa, de
pois sol
da
dos feridos, depois escritores, depois você.
E…
A bibli
ote
cá
ria er
gueu as sobrancelhas e incitou:
— E?
— Bom, que
ro en
cer
rar com você e, por último, com uma autora
foram quei
ma
dos.
A mu
lher pa
re
ceu se interessar, o que ficou claro em sua voz
quando per
gun
tou:
— E quem se
ria?
— Althea Ja
mes.
A bibli
ote
cá
ria se re
cos
tou na cadeira, os olhos arregalados.
— Co
mo é?
— Althea Ja
mes — re
petiu Viv, embora soubesse que ela ouvira
da primei
ra vez. — É uma escritora americana de algum renome,
mas nun
ca deu en
tre
vis
tas públicas ou esteve em um evento aqui
nos Esta
dos Uni
dos, en
tão seria bastante notável se o fizesse agora.
Viv não con
se
guiu en
tender a complicada agitação de emoções
que a res
pos
ta pro
vo
ca
ra, mas então a fachada da mulher pare
ceu
desmoro
nar. No iní
cio, Viv pensou que a bibliotecária estava cho-
troladas, de
si
ni
bi
das. Que a transformaram de friamente bela em
encanta
do
ra.
Vários se
gun
dos se pas
saram até a mulher conseguir controlar a
própria re
ação. E, mes
mo assim, ainda tentava conter umas risadi-
nhas en
quan
to en
xu
ga
va as lágrimas dos cantos dos olhos.
— Vo
cê es
tá…
— Pe
ço des
cul
pas — disse a mulher, antes de prontamente se
descontro
lar mais uma vez.
Quan
do a no
va on
da passou, ela pigarreou e se recompôs.
— É ex
tra
or
di
ná
rio e fascinante como o mundo é pequeno.
— Vo
cê co
nhe
ce Althea James? — adivinhou Viv, hesitando, pois
mesmo se fos
se o ca
so, aquela reação ainda não fazia sentido.
— Po
de-se di
zer que sim — murmurou a bibliotecária. Ela tomou
sua histó
ria.
Um sen
ti
men
to de vi
tó
ria irrompeu dentro de Viv, puro e fulgu-
rante, mes
mo que a cu
ri
osi
dade sobre o que acabara de ver não ti-
vesse si
do sa
ci
ada.
— Ma
ra
vi
lha!
Aqui
lo se
ria su
pe
ra
do, é claro, mas ela ainda sentiu uma pontada
de triste
za. A bi
bli
ote
cá
ria estendeu a mão, tornando a introdução
bastante for
mal. Quan
do Viv aceitou o aperto, a mulher continuou:
— É um pra
zer co
nhe
cê-la. Meu nome é Hannah Brecht.
Berlim
Maio de 1933
D iedrich le
van
tou a per
na — talvez para espremer a bo
ta no pesco-
vantou, pu
xan
do-a pa
ra a proteção e o anonimato da multidão.
— Sua to
la — res
mun
gou Hannah, parecendo irritada e ma
ter-
nal. — Va
mos.
Ambas es
ta
vam en
charcadas. A névoa se tornara uma chuva tor-
rencial, pro
te
gen
do os li
vros que ainda não tinham chegado ao fogo.
Elas saí
ram cor
ren
do em meio aos arruaceiros, que ainda estavam
entusias
ma
dos ape
sar da chuva, e foram correndo pelas ruas, rindo
Althea des
tran
cou a por
ta e puxou Hannah para den
tro, depres-
uma risa
da ale
gre, li
vre e fácil.
— Eu re
al
men
te fiz aquilo? — perguntou, atordoada.
Só en
tão ela per
ce
beu que ainda estava segurando o romance que
sal
vou.
— Vo
cê fez — con
fir
mou Hannah, parecendo igualmente surpre-
sa.
Althea lar
gou o li
vro.
— Vou pe
gar uma to
alha para você. — Ela fez um biquinho ao
analisar o es
ta
do do ves
tido de Hannah. — E algumas roupas, tal-
vez?
— Não sei se elas vão se servir — brincou Hannah.
— Po
de ser que não — concluiu Althea com um suspiro, olhando
para as pró
pri
as per
nas curtas. — Então acho melhor pelo me
nos
acender a la
rei
ra.
— Sim, mas vai ser do tipo que reduz às cinzas a velha república e
dá à luz a fê
nix do Ter
cei
ro Reich? — ironizou Hannah, seca.
Althea sor
riu e ba
lan
çou a cabeça.
— Deus, co
mo eles são pretensiosos, não?
— É a pi
or ca
rac
te
rís
ti
ca deles — concordou Hannah, solene, in-
do acen
der o fo
go.
Althea ob
ser
vou a ma
neira como ela se movia, como o vestido
molhado abra
ça
va a cur
va de seus quadris, os cabelos escuros emol-
du
ran
do o ros
to pá
li
do.
Então se vi
rou e foi bus
car toalhas e lençóis.
Elas se sen
ta
ram no chão, as coxas e os ombros se tocando, obser-
vando as cha
mas, be
ben
do um resto de vodca que Althea escondera
em um can
to atrás de um armário na cozinha. A bebida soltou a lín-
— Vo
cê o hu
mi
lhou. Ele não vai esquecer.
— Eu vou em
bo
ra — lembrou Althea.
Cons
ta
tar aqui
lo qua
se doía. Não que não estivesse ansiosa para
fugir da
que
las pes
so
as, da
quele país, mas ela não queria deixar…
— Vou to
mar. — Althea umedeceu os lábios. — Estou mais preo-
— Por cau
sa de Adam — concluiu Hannah, seguindo facilmente a
linha de ra
ci
ocí
nio.
— Fico re
ce
osa com o que ele tem dito — revelou a escritora.
Aqui
lo não era ne
nhu
ma novidade. As duas discuti
am o medo
com frequên
cia, ten
tan
do encontrar formas de apaziguar a raiva de-
le. No en
tan
to, Althea nunca confessara que também temia profun-
da
mente por Han
nah.
— Te
nho me
do de que ele arraste você junto para seja lá o que
Hannah ape
nas en
ca
rou o fogo.
Althea en
trou em es
ta
do de alerta. Àquela altura, podia entendê-
la muito me
lhor do que provavelmente imaginava.
— Han
nah.
— Han
nah — in
sis
tiu. Althea juntou as mãos da ami
ga nas dela.
— Não. Vo
cê pre
ci
sa fi
car longe disso. Convencê-lo a não se colocar
em peri
go é uma coi
sa, se envolver… Não, você não pode.
Hannah dis
se is
so com uma naturalidade que fez Althea querer
sacudi-la pe
los om
bros.
— O que vo
cê fez? — perguntou Althea, sentindo o peito apertar
e o ar do quar
to de
sa
pa
re
cer.
— Eu o se
gui.
agarrada a Han
nah, ten
tou relaxar o aperto. Seus dedos não obede-
ceram.
— O Adlon, per
to do Portão de Brandemburgo — revelou Han-
Althea ou
vi
ra fa
lar so
bre o hotel, muitas vezes chamado de Pe-
quena Suí
ça por ser
vir de palco para eventos diplomáticos. Ela pra-
guejou bai
xi
nho.
— Não sei o que ele vai fazer — admitiu Hannah —, mas a locali-
zação me as
sus
ta.
Assus
tou Althea tam
bém. Líderes mundiais se reuniam no lo
cal.
Líderes na
zis
tas se reu
ni
am no local.
No en
tan
to, por mais que Althea gostasse de Adam, não era com
— Não pos
so sim
ples
mente deixá-lo morrer — protestou Han-
que fazer.
— Adam sa
be que vo
cê se importa com a sobrevivência dele.
Era tu
do o que Althea podia oferecer no momento. Hannah, seus
amigos e o res
to do gru
po da Resistência tentaram argumentar com
Adam, apa
ren
te
men
te sem sucesso. Precisavam confiar que ele to-
maria a de
ci
são cer
ta.
— É bom pa
ra ele sa
ber que você se preocupa. Isso pode impedi-
lo de co
me
ter al
gu
ma es
tu
pidez.
continu
aram ob
ser
van
do o fogo por um longo tempo.
Mas o mun
do já es
ta
va em chamas, que diferença faria?
— Vo
cê tam
bém de
ve saber. Que alguém se importa. Que eu… eu
me impor
to. Eu me im
por
taria se algo acontecesse com você.
Hannah pren
deu a res
piração de modo audível, depois pareceu
e plantou um beij
o ali, os olhos cravados nos dela.
— Es
ta
rei em se
gu
ran
ça. Prometo.
Por ra
zões que Althea não conseguia explicar, algo em seu peito
o sentimen
to, mas na
da encontrou além de uma animação agradável
e vibran
te.
Althea ti
ve
ra me
do a vida inteira. Mas, depois que ela marchara
até um va
len
tão, o en
fren
tara, empurrara, fora empurrada por ele e
sobrevive
ra, na
da pa
re
cia mais tão aterrorizante.
Quan
do che
gou à Ale
manha, tentara ser uma versão de si mesma
aprendi
do a li
ção. Não ha
via necessidade de ser ninguém além de si
mesma.
Ela se le
van
tou e ofe
re
ceu a mão.
Hannah res
pi
rou fun
do, os belos olhos dourados grandes e re-
dondos.
Surpre
sos.
O co
ra
ção de Althea martelava audivelmente e, por um segundo,
ela se per
gun
tou se en
ten
dera mal.
Então Han
nah des
li
zou a palma da mão para a de Althea e permi-
tiu-se fi
car de pé, per
mi
tiu-se ser conduzida para a cama.
Althea se sen
tou com os joelhos em volta das coxas de Hannah,
que se abai
xou, en
cai
xan
do na mão o queixo ainda machucado pela
violên
cia de Di
edri
ch, ro
çando com o polegar a maçã do rosto de
Althea, es
pe
ran
do, ques
ti
onando.
engolin
do a pa
la
vra an
tes que fosse assimilada pelas duas.
aprofun
dou, a lín
gua de Hannah escorregando para a sua, traçando
seus con
tor
nos, tu
do quente e liso. Parecendo estar em toda parte, o
aroma su
til e do
ce de chu
va e laranja de Hannah envolveu Althea en-
Althea se dei
xou le
var, satisfeita com o peso dos quadris da mu-
Hannah su
avi
zou o beijo e mordiscou o lábio inferior de Althea. A
peque
na pi
ca
da de dor a fez arquear as costas e esticar o pescoço.
— Por fa
vor.
der, arras
tan
do os lá
bi
os por seu pescoço, beijando delicadamente
seu om
bro, tra
çan
do o corpo de Althea com uma das mãos até acari-
xo gemi
do.
— Shhh, que
ri
da — murmurou Hannah, e Althea mergulhou no
calor da
que
la ter
nu
ra. Queria que Hannah a desmontasse, confian-
Então as sen
sa
ções se misturaram, ficaram quase excessivas e de-
pois insu
fi
ci
en
tes. Han
nah às vezes era gentil e tranquilizadora, em
ou
tros mo
men
tos era exi
gente e desafiadora; era como se Althea es-
tivesse apren
den
do uma dança em tempo real.
Quan
do tu
do se acal
mou, as duas ficaram deitadas na cama es-
Hannah, a par
tir da
quele momento, seria parte da história de
Althea, te
ci
da fir
me
men
te em sua tapeçaria. Mesmo depois que
Althea fos
se em
bo
ra da Alemanha, Hannah permaneceria.
Althea tra
çou o lá
bio in
ferior de Hannah.
— Pes
so
as co
mo nós têm finais felizes?
am em mun
dos di
fe
ren
tes, o que provavelmente não mudaria tão ce-
do.
Mas tu
do aqui
lo, a pró
pria existência de tudo aquilo, era novo pa-
ra Althea, de mo
do que deixara a pergunta escapar sem pensar.
— Sim — sus
sur
rou Hannah.
A res
pos
ta en
vol
veu Althea tão intensamente quanto o perfume
de Hannah.
— Po
dem ser com
pli
cados, mas isso não os torna menos felizes.
Na ver
da
de, acho que são até melhores por isso.
— Pro
me
te? — exi
giu Althea.
— Pro
me
to.
Ficaram da
que
le jei
to até o sol já estar alto e forte. Althea estava
começan
do a dor
mir quando ouviu a batida. Ela se sentou e olhou
para a por
ta an
tes de olhar de volta para Hannah, que já se enfiava
em uma ca
mi
sa de bo
tão que Althea deixara pendurada nas costas
da cadei
ra pró
xi
ma à ca
ma. Seus lábios estavam apertados em uma
linha, som
bria.
Althea se ves
tiu o mais rápido possível, verificando se Hannah es-
tava decen
te an
tes de atra
vessar o quarto.
Quan
do abriu a por
ta, lá estava Diedrich, com o punho erguido.
veria es
tar, e seu sem
blante se tornou pura fúria em um piscar de
olhos.
Só de
pois que Di
edri
ch recuou, Althea notou os camisas-par
das
Março de 1937
P aris po
de não ter si
do o lar de Hannah, mas ela ainda tinha seus
contatos.
Come
çou a per
gun
tar so
bre Deveraux Charles. O consenso pare-
Hannah ten
tou re
cor
dar aqueles meses no final de 1932, início de
1933, as lem
bran
ças do
ces e irreverentes. Das noites nos cabarés,
mas tam
bém das noi
tes nas reuniões da Resistência. Da emoção da
universi
da
de, mas tam
bém do desaparecimento do corpo estudan-
dício de re
cu
pe
ra
ção econô
mica no ar, mas também dos confrontos
discussão.
Uma ami
ga de um ami
go de uma amiga, talvez. A mulher era tão gla-
Em 1933, aqui
lo pa
re
cia uma troca compreensível.
Depois de tu
do o que acontecera, Hannah só conseguia pensar
que fo
ram pes
so
as co
mo a atriz que deixaram Hitler subir ao poder.
Os ter
rí
veis ho
mens de quem Hitler se cercava eram cúmplices do
que esta
va acon
te
cen
do, assim como pessoas outrora decentes pen-
sando que o êxi
to de
le po
deria beneficiá-las se apenas ignorassem as
— A úni
ca coi
sa que sei é que ela está hospedada no Hotel Majes-
tic — re
ve
lou Na
ta
lie quando questionada sobre o encontro ao acaso
va indo em
bo
ra, mas al
guém comentou que Dev foi vista no Le Chat
on
tem à noi
te.
— Vo
cê já ou
viu al
gu
ma coisa sobre ela? — sondou Hannah, ten-
atrás da ore
lha que a le
va
va àquele questionamento.
— Pu
tain na
zis
ta — res
pondeu Natalie, sem rodeios.
Hannah ain
da não fa
la
va francês fluentemente, mas “prostituta”
França.
que con
se
gue fis
gar, pu
la de um para o outro. Torna-se tema de ma-
térias glo
ri
osas na im
pren
sa.
— Faz os na
zis
tas pa
re
ce
rem mais palatáveis para os americanos.
Hannah ter
mi
nou a li
nha de pensamento, e Natalie inclinou a ca-
beça mos
tran
do con
cor
dar.
— Fiquei sur
pre
sa por você conhecê-la.
— De ou
tra vi
da, ao que parece — rebateu Hannah, voltando a se
lembrar do pas
sa
do.
Então ela viu o que mais havia lá: a imagem de Althea desmorona-
da em uma cal
ça
da, as lá
grimas nos olhos enquanto sussurrava não
fui eu.
Na ma
nhã de do
min
go, Hannah se viu em frente ao Hotel Ma
jes-
tic, vagan
do na es
qui
na do enorme edifício, sentindo o peso da pisto-
la de Otto en
fi
ada no bol
so da jaqueta, marcando presença na lateral
de seu cor
po.
O ho
tel se
guia o pa
drão da arquitetura parisiense, ostensivo em
nava a ci
da
de to
da um bor
rão inesquecível.
doso e es
cor
re
ga
dio com uma fenda até a coxa, claramente ainda da
noite an
te
ri
or.
Um ho
mem de uni
for
me nazista saiu em seguida, igualmente
cambale
an
te. Am
bos bê
ba
dos, pelo visto.
Os dois ri
ram, rui
do
sos e desagradáveis, atraindo olhares atraves-
sados e es
can
da
li
za
dos, as
sim como sorrisinhos impressionados dos
que entra
vam e saíam do saguão do hotel.
Hannah fe
chou os olhos, dizendo a si mesma que era tola, talvez
até incon
se
quen
te. Mas então, com um único aceno de cabeça, ela
decidiu.
maletas de tra
ba
lho co
mo cobertura.
Por sor
te, es
ta
va per
to o bastante para ouvir Deveraux dizer, a
voz ar
ras
ta
da, um nú
me
ro de quarto para o ascensorista. Quarto an-
dar.
Hannah vi
rou pa
ra o corredor dos fundos em busca das escadas,
tirando um ins
tan
te pa
ra agradecer por ter escolhido calças e sapa-
tos práti
cos.
Uma mu
lher que des
cia os degraus passou por ela, mas não a
olhou du
as ve
zes.
Ainda as
sim, Han
nah se perguntou o que aquela mulher estava
fazendo, en
tão ten
tou en
tender qual era o seu plano. Saber o núme-
ro do quar
to de Dev não mudava nada, exceto se quisesse surpreen-
der a mu
lher e o aman
te nazista, talvez durante o sexo.
No en
tan
to, a dú
vi
da nada fez para detê-la. Hannah continuou su-
Aper
tou a pis
to
la.
Aque
la pes
soa era mes
mo ela? O que pretendia fazer com a arma?
Do que sus
pei
ta
va, afi
nal? Não sabia muito bem, exceto que o poder
que sen
tia por es
tar com os dedos em volta daquele metal a centrava
de um jei
to que na
da mais a centrara desde a Berlim de 1933, quando
seu mun
do caí
ra.
Hannah avan
çou no corredor.
O par ti
nha de
sa
pa
re
cido de vista, mas o riso de Dev seguia seu
rastro co
mo um per
fu
me barato. Tudo o que Hannah precisava fazer
era segui-lo.
Quan
do do
brou o cor
re
dor, lá estavam os dois.
Dev en
cos
ta
da na pa
re
de ao lado da porta do quarto, o rosto do
amante na
zis
ta en
ter
ra
do em seu pescoço, a coxa enganchada na
cintura do ho
mem, a mão entrelaçada em seus cabelos, a cabeça in-
clinada pa
ra trás pa
ra dar a ele mais acesso.
Hannah sa
bia que não havia emitido um único som, mas os olhos
de Dev ime
di
ata
men
te a encontraram. Não estavam confusos pelo
álcool, co
mo Han
nah es
perava; estavam vigilantes e despertos. Seu
olhar des
ceu pa
ra a pis
tola, então voltou para o rosto de Hannah
Dev agar
rou o ho
mem pelos cabelos e, de alguma forma, o direci-
onou pa
ra den
tro do quar
to sem deixá-lo se virar de modo a ver Han-
va com fir
me
za e apon
ta
va para os dois.
a porta, on
de se re
cos
tou. Ela olhou para Hannah, estreitando os
olhos.
— Vo
cê des
co
briu.
seu jogo.
nah.
— Aqui não.
— On
de?
— No ter
ra
ço — dis
se Dev, olhando para o teto.
lado de Han
nah e se in
cli
nou para sussurrar em seu ouvi
do:
— Pen
se em co
mo se
rá muito mais fácil me matar lá em cima.
Hannah a se
guiu até o elevador.
Owl’s He
ad, Mai
ne
Julho de 1944
O pro
ble
ma era que a placa do trem mentira para Viv.
Cla
ra
men
te es
ta
va es
crito Owl’s Head, identificando a parada cer-
ta. Pare
cia, po
rém, que a definição de pa
rada da placa era bem dife-
rente da de
la.
Viv es
ta
va an
dan
do há quase uma hora por uma estrada de terra
que le
va
va a lu
gar ne
nhum e prestes a gritar. Já tinha bolhas não
uma bol
sa que ela te
ria arrumado com muito mais cuidado se sou-
se no chão e se sen
tou em cima, ignorando a nuvem de poeira que
Pelo me
nos era is
so que ficava repetindo para si mesma.
Quan
do Viv já co
me
ça
ra a ponderar voltar para a estação, pegar
um trem pa
ra No
va York e fingir que nada daquilo havia acontecido,
ou
viu o ron
ro
nar de um motor.
Ela jun
tou as mãos, fez uma oração de gratidão e se levantou,
pronta pa
ra ace
nar pa
ra quem quer que estivesse na pequena cami-
nhone
te ver
me
lha vin
do em sua direção.
Era me
lhor que mor
rer de sede e excesso de caminhada.
e o moto
ris
ta se de
bru
çou sobre o banco do carona para baixar a ja-
nela.
— Pos
so aju
dar?
O ho
mem ao vo
lan
te era exatamente o que Viv imaginara que o
Maine. Gran
de e cor
pu
len
to, de barba comprida e mãos que mais pa-
reciam pa
tas de ur
so. Viv tentou responder, mas estava com a gar-
ganta cheia de areia. Ela tossiu, percebendo como aquilo era pouco
atraente, e bai
xou a ca
be
ça para olhar pela janela, esperando que
pestane
jar com
pen
sas
se seu engasgo.
— Owl’s He
ad?
O su
jei
to pa
re
cia es
tar achando graça do estado dela.
— San
to Deus — de
sa
bafou, sem pensar.
O ho
mem sim
ples
men
te abriu a porta.
— En
tre.
Toma
da por uma gra
ti
dão imensurável, Viv deslizou para o banco
de couro ra
cha
do e co
lo
cou a valise no colo.
— Vo
cê te
ria con
se
gui
do.
— Po
de ser, mas meus pés certamente agradecem.
— Fi
ca mais lon
ge da estação do que parece. — O homem a olhou
meio tor
to e cons
ta
tou: — Você é de Nova York.
— É tão ób
vio as
sim? — perguntou Viv, embora soubesse que era.
Suas rou
pas eram fi
nas e elegantes, o penteado e a maquiagem, mais
ainda.
— Joe — dis
se o ho
mem, sem responder à pergunta.
Ele es
ten
deu a mão ca
lejada e Viv retribuiu o gesto.
— Vi
vi
an — res
pon
deu ela, já que ele optara pela informalidade.
Apesar da es
tra
da es
buracada, ele dirigia com uma segurança in-
vejável.
— Es
tou à pro
cu
ra de Althea James.
bisbilho
tei
ra. — Te
nho as
suntos sérios a tratar com ela.
— “As
sun
tos sé
ri
os” — repetiu Joe, zombeteiro, tentando imitar
um sota
que que não so
ava nada como o dela.
Viv tor
ceu o na
riz, ape
sar do homem não estar olhando para no-
tar.
— Que as
sun
tos sé
ri
os tem com ela, então?
— Co
mo se fos
se da sua conta.
— Co
mo ir
mão e em
presário dela, eu diria que é — devolveu Joe,
abrindo um sor
ri
so pre
sunçoso. — Também posso pegar um retorno
e levar vo
cê pa
ra a es
ta
ção de trem.
Viv dei
xou a ca
be
ça cair no encosto do assento.
— Ci
da
des pe
que
nas.
— Elas nun
ca dei
xam de surpreender.
— Pos
so ao me
nos al
moçar em algum lugar antes de você me ex-
pulsar?
Joe a le
vou pa
ra a pi
to
resca cidade com uma rua prin
cipal e algu-
mas trans
ver
sais que abri
gavam residências, nada mais. Viv até ou-
viu o ru
gi
do do mar quan
do saiu da caminhonete e teve que admitir
que esta
va en
can
ta
da.
— Mi
nha ca
sa — dis
se Joe, indicando o pub diante do qual estaci-
onara.
rante. Um be
lo bar atra
vessava o espaço, ladeado por cabines e me-
— Pei
xe e ba
ta
ta fri
ta? — ofereceu ele.
Viv acei
tou, sa
ben
do que não tinha escolha, mas também ansian-
Ficou fe
liz quan
do a co
mida chegou; as batatas estavam perfeitas
e gordu
ro
sas, o pei
xe era fresco e de sabor suave, apesar do óleo.
Viv só re
pa
rou que de
vorara a comida quando já estava lambendo
os dedos.
— Mui
to bem. — Joe se inclinou sobre a bancada do bar com um
pano jo
ga
do no om
bro. — Já te dei tempo suficiente. O que você quer
com a mi
nha ir
mã?
da de Taft, a ten
ta
ti
va de censura, até mesmo sobre o Dia D e tudo o
que des
co
bri
ra des
de en
tão.
— Sin
ce
ra
men
te, acho que ela poderia fazer a diferença — con-
to da his
tó
ria.
chope do su
por
te, o en
cheu até a borda com um líquido espumoso,
be
beu me
ta
de de uma só vez e olhou de volta para ela.
— Sa
be pe
lo que mi
nha irmã passou?
Pare
cia uma per
gun
ta sincera, então Viv tentou responder na
mesma mo
eda.
— Só pos
so ima
gi
nar.
— Eu não pos
so ir à guerra.
nhas na
que
les di
as, e do nada. Em vez disso, assentiu e fa
lou:
— Tu
do bem.
— Eu que
ria — con
ti
nuou Joe. — Mas tenho asma, acredite se
quiser.
— Is
so não de
ve ser fá
cil.
ra o exte
ri
or, é cla
ro, es
ta
vam em situação muito pior, é claro, mas
dos olha
res dos mais ve
lhos e de moças que tinham perdido demais.
Viv assis
ti
ra a um ra
paz ser esbofeteado por não estar nas trinchei-
ras, em
bo
ra sou
bes
se que ele era cego de um olho. Algumas pessoas
lia.
çando a per
ce
ber que era sua maneira de falar: um pensamento sem
— To
dos nós odi
amos, não?
— Não — dis
se Joe, brutal e honesto, de um jeito que não se podia
argumen
tar.
Viv ti
nha qua
se cer
te
za de que um bom número de americanos
concorda
va se
cre
ta
men
te com o discurso de ódio que os nazistas vo-
mitavam.
que eu fa
ça pa
ra mos
trar que estou sendo sincera?
— Não pre
ci
sa fa
zer nada; você já veio até aqui. Vou deixar você
tentar a sor
te.
Viv re
la
xou no ban
co al
to com alívio.
— Obri
ga
da.
— Não me agra
de
ça até conhecê-la.
Joe si
na
li
zou pa
ra um jovem cheio de espinhas comandando as
torneiras na ex
tre
mi
da
de do bar.
— Va
mos lá.
— Ago
ra? — per
gun
tou Viv, ainda que já estivesse se levantando e
pegando a bol
sa.
Joe man
dou o ga
ro
to cui
dar do bar, e os dois saíram. Ele apontou
para a ca
mi
nho
ne
te, Viv en
tendeu e entrou no veículo. A viagem foi
silencio
sa, mas não ten
sa, as janelas abertas. Viv nunca sen
tira
aquele chei
ro de mar an
tes, exceto quando ia a Coney Island, e o mar
Ali, qua
se da
va pa
ra sa
borear o sal no ar, as ondas chamando co-
mo o can
to da se
reia. A es
trada acompanhava os penhas
cos escu
ros,
e Viv ima
gi
nou que po
de
ria admirar a cena pela eternidade. Ela não
se lem
bra
va de um dia ter se sentido tão pequena.
Por fim che
ga
ram a uma cabana no que parecia ser o fim do mun-
cercavam a re
si
dên
cia, pa
recendo uma pintura que ganhou vida.
— Pe
ça pa
ra que ela me ligue, ou use a bicicleta para voltar.
Joe in
cli
nou a ca
be
ça para a cerca contra a qual uma bicicleta
descansa
va. Viv pen
sou no caminho de carro e torceu para que
Althea ao me
nos lhe con
cedesse um telefonema antes de expulsá-la,
se era aqui
lo que ela ia fa
zer.
— Obri
ga
da — agra
de
ceu Viv, antes de juntar coragem para sair
do carro.
Joe bu
zi
nou uma úl
ti
ma vez enquanto dava ré. Viv estremeceu.
Não ha
via co
mo es
con
der que estava ali, nem como hesitar ou se
preparar pa
ra o que di
ria. Enquanto pensava naquilo, notou um mo-
vimento na cor
ti
na atrás da janela.
Agora ou nun
ca. Viv ca
minhou até a porta, ergueu o punho e ba-
teu.
A por
ta se abriu qua
se que de modo imediato.
De pé na en
tra
da, es
ta
va uma mulher pequena de cabelos grossos
— Se
ja lá o que de
se
ja — começou Althea James, a voz rouca co-
mo se fos
se a pri
mei
ra vez em muito tempo que a usava —, a respos-
ta é não.
Maio de 1933
A sala pa
ra a qual le
va
ram Althea era pequena e sem janelas, o
cheiro de po
dri
dão qua
se insuportável. Ao ver as paredes nuas, sua
respira
ção co
me
çou a vir em inspirações rasas, e sua visão começou
a se com
pri
mir até che
gar ao diâmetro de um alfinete.
Os ho
mens que a ar
ras
taram do apartamento a jogaram na única
uma bo
ne
ca de pa
no in
ca
paz de resistir.
Deses
pe
ra
da pa
ra se ancorar à realidade, Althea contou seus de-
dos, fin
ca
dos nas co
xas. Um, dois, três… Isso era real, não um pesa-
delo hor
rí
vel.
De re
pen
te, viu aque
le homem amarrado a uma cruz de Santo
O ros
to do na
zis
ta era desprovido de misericórdia.
Althea des
can
sou a tes
ta no metal frio da mesa, sentindo dor em
cada par
te de seu ser.
Die
dri
ch ron
da
va a sa
la com um sorriso cruel que retorcia suas
feições e o tor
na
va feio de uma forma que ela nunca poderia ter pre-
vis
to.
xa e uni
for
me, ain
da mais assustadora por seu autocon
trole. — Vo-
realmen
te in
te
res
sa
do nela romanticamente, que era tudo uma
mentira pa
ra man
tê-la complacente. Ainda assim, o fantasma do
frio na bar
ri
ga da
que
les primeiros dias era um duro lembrete de sua
já que es
ta
va per
den
do o controle, rápido.
— Eu te mos
trei tu
do o que você poderia querer na vida, coisas
que só po
de
ria so
nhar em alcançar. — Ele fez uma pausa e apontou
para si mes
mo. — Pes
so
as que você só poderia sonhar em ter.
— Eu nun
ca de
se
ja
ria ter você — disse Althea, orgulhosa de si
As mãos tre
mi
am, mas ela conseguira.
Die
dri
ch avan
çou até ela em um piscar de olhos, beliscou seu
queixo en
tre o po
le
gar e indicador, e forçou Althea a encará-lo nos
olhos.
não é ver
da
de.
Tal
vez, se fos
se um dia antes, Althea teria se acovardado, mas al-
go nela ha
via flo
res
ci
do na noite anterior. Um poder que ela nunca
— Pos
so ter si
do confundida pela bela máscara — desafiou
Althea, ten
tan
do im
buir as palavras com o máximo de acidez —,
Die
dri
ch riu, co
mo se Althea fosse uma criança fazendo birra, e
continu
ou fa
lan
do co
mo se ela não tivesse dito nada:
— E co
mo vo
cê me re
tribui? Caindo na farra com aquela prostitu-
ta judia.
Althea ar
fou.
— Ela é cem ve
zes me
lhor do que você.
Die
dri
ch se
gu
rou o ros
to dela com mais força, e Althea viu a raiva
recuou o su
fi
ci
en
te até en
costar na parede.
Depois de um si
lên
cio insuportável, Althea olhou para a porta.
Se
rá que che
ga
ra a ho
ra de Diedrich chamar seus capangas para es-
imaginar o pró
prio cor
po destruído e ensanguentado no chão. Ou
A per
gun
ta pa
re
cia ser justamente o que Diedrich estava espe-
rando. Um sor
ri
so len
to e perturbador se espalhou por seu rosto es-
quelético, a mal
da
de mol
dando suas feições em uma máscara maca-
bra verten
do de
lei
te.
— Ab
so
lu
ta
men
te na
da.
A res
pos
ta de
ve
ria ter trazido alívio, mas Althea ficou tensa da
— Co
mo as
sim?
— Nós nun
ca ma
chu
caríamos um de nossos amigos dos Esta
dos
Unidos. Vo
cê sai
rá da
qui sem um único arranhão no corpo. E pode
dizer is
so à sua em
bai
xa
da, quando perguntarem.
Althea ba
lan
çou a ca
be
ça, a sensação de perigo à espreita se recu-
sava a de
sa
pa
re
cer.
— Não en
ten
do. Por que me trazer aqui, então?
Ela re
co
nhe
ceu o olhar no rosto de Diedrich ao notar Hannah
atrás de
la no apar
ta
men
to. Aquela raiva ia além da política. Homens
como Di
edri
ch não acei
ta
vam a humilhação. Ele não a deixaria sim-
plesmen
te ir em
bo
ra.
Aqui
lo não ti
nha si
do só um susto. Não era só um puxão de ore-
drich ti
nha pla
ne
ja
do.
— Con
si
de
rei jo
gá-la aos homens — confessou Diedrich, com um
desprezo ca
su
al em ca
da palavra. — Mas preciso admitir que isso se-
rá mais di
ver
ti
do.
— O que vo
cê quer di
zer? — indagou Althea, quando ele lhe lan-
çou um úl
ti
mo sor
ri
so e se dirigiu para a porta.
Ela in
sis
tiu, em
bo
ra soubesse que não seria ouvida.
— O que vo
cê quer di
zer?
Em res
pos
ta, ou
viu so
mente o eco da própria voz ricocheteando
nas pare
des de azu
le
jo da sala minúscula.
***
Ela re
ce
beu um pe
da
ço de pão e um copo d’água e foi escoltada
até o ba
nhei
ro du
as ve
zes.
As pa
re
des pul
sa
vam ao redor dela, fechando-se até quase roça-
momen
tos, fe
cha
va os olhos e pensava em Hannah: as duas dançan-
do no ca
ba
ré, os de
dos de
la traçando linhas tranquilizadoras nas su-
as costas nu
as, os olhos plácidos e sérios.
Althea se agar
rou àque
les momentos com todas as forças, tentou
inspirá-los, ex
pi
rá-los.
ram a por
ta da ce
la im
provisada e a puxaram para o corredor. A vi-
mente no pei
to. Uma si
re
ne aguda soava no interior de seu crâ
nio,
manchas sur
gi
am co
mo explosões de estrelas em seus olhos, e ela
não con
se
guia sen
tir os pés nem as mãos.
penhas
cos. As lu
zes no mercado de inverno, os livros. O dia, no iní-
cio da pri
ma
ve
ra, em que Hannah se sentou perto dela e a prote
geu
do sol. A noi
te an
te
ri
or, o fogo quente em sua pele.
Não que
ria mor
rer.
Althea os dei
xou car
re
garem todo o seu peso, forçando-os a arras-
tá-la en
quan
to olha
va pa
ra o teto e gritava, ao ponto de estar com a
garganta ar
ra
nha
da quan
do chegaram ao saguão do prédio. Então, a
da. Os ho
mens se vi
ra
ram e se afastaram sem dizer uma só palavra.
Althea se es
for
çou pa
ra ficar de pé, as pernas bambas, a cabeça
agarrar a ma
ça
ne
ta com dedos ainda trêmulos e, de alguma for
ma,
Então res
pi
rou o ar não contaminado de vestígios rançosos de
medo e tor
tu
ra.
De re
pen
te, ela sen
tiu que mãos a tocavam e se acovardou.
Althea ten
tou se con
cen
trar no rosto à sua frente.
Tudo ne
la re
la
xou. Ela soltou a respiração, deixando o corpo ce-
der na se
gu
ran
ça dos bra
ços de Hannah.
— Althea, me di
ga que está bem, por favor — disse Hannah, de-
sespera
da e apres
sa
da, mas ainda tranquilizadora. — O que fizeram
com você?
Balan
çan
do a ca
be
ça, Althea tentou forçar os lábios dormentes a
dizer al
go di
fe
ren
te de pa
lavras inúteis.
— Na
da — res
pon
deu, após muita dificuldade.
— O quê? — per
gun
tou Hannah, suas mãos ainda explorando,
procuran
do os
sos que
bra
dos, carne machucada, pele rasgada.
Althea ume
de
ceu os lá
bi
os subitamente secos, sem entender por
que esta
va ner
vo
sa e re
pe
tiu:
— Na
da.
— Is
so não…
do que a né
voa que se ins
talara em sua mente se dissipasse.
Havia al
go er
ra
do, e ela não conseguia descobrir o quê. Não quan-
do Han
nah a olha
va da
que
le jeito, com uma apreensão tão dolorosa.
— Vo
cê es
ta
va me es
pe
rando.
— Cla
ro.
Hannah fi
nal
men
te pu
xou Althea para si com força, seus braços
firmes for
ne
cen
do o con
solo que ela desejava desesperadamente
sem pre
ci
sar pe
dir.
— Quan
do eles te le
va
ram… Você não imagina como fiquei apavo-
rada.
Althea en
ter
rou o ros
to no pescoço macio e quente de Hannah,
querendo vi
ver ali pa
ra sempre e nunca mais lembrar daquele dia,
da
quele ter
ror hor
rí
vel e avassalador, do nada que se seguiu.
— Vo
cê me avi
sou que ele se vingaria.
capan
do do pei
to.
esfregan
do cír
cu
los len
tos nas costas de Althea.
— Não — afir
mou Althea, devagar. — Ele disse que assim era
mais di
ver
ti
do.
Um gri
to a in
ter
rom
peu. Otto, chamando o nome de Hannah.
Ele ain
da es
ta
va a meio quarteirão de distância, mas gritara alto o
suficien
te pa
ra cha
mar a atenção das duas. Althea deixou o abraço
O pes
co
ço e o ros
to de Otto estavam vermelhos. Seus cabe
los,
sempre ar
tis
ti
ca
men
te desgrenhados, estavam arrepiados como se
ele estives
se ar
ran
can
do os fios. Quando ele as alcançou, estava ofe-
estava cla
ra
men
te er
ra
do.
— Eles pren
de
ram Adam.
— Mas co
mo? — Han
nah arfou.
— Nin
guém sa
bia on
de ele estava — continuou Hannah, as pala-
vras sain
do às pres
sas, co
mo se afirmar aqueles fatos alterasse a rea-
lançando a ca
be
ça. — Foi por isso que eu soube. Eles o arrastaram
do quar
to on
de es
ta
va.
— Mas nin
guém sa
bia on
de…
Hannah pa
rou, vol
tan
do a atenção para Althea.
de volta pa
ra Althea, pro
vavelmente observando mais uma vez como
nah, de
ses
pe
ra
da e an
si
osa, sua mente funcionando devagar para
entender aque
la con
ver
sa.
— Não.
— Vo
cê sa
bia on
de ele estava — disse Hannah. — Eu te contei.
A res
pi
ra
ção ir
re
gu
lar de Otto pairava entre o grupo, mas ele não
interrom
peu.
— Não, de jei
to ne
nhum.
Althea es
ten
deu as mãos trêmulas na direção de Hannah, que se
retraiu e se afas
tou. Althea cerrou os punhos junto ao peito, com
cair na cal
ça
da.
— Di
edri
ch já sa
bia, ele já devia saber.
— Co
mo?
A per
gun
ta não veio co
mo se Hannah estivesse lhe dando o bene-
fício da dú
vi
da, e sim co
mo um tapa, um julgamento já proferido.
sar.
— Ele dis
se… — Seus olhos voaram para os de Hannah. — Ele dis-
se que is
so era mais di
ver
tido do que me machucar. Ele planejou is-
so, Hannah.
Mas já per
de
ra Han
nah. Soube disso ao ver como suas palavras
pareceram en
con
trar uma fachada de concreto. Não havia a entrega,
nem a su
avi
da
de, do ca
ri
nho que recebera desde o instante em que a
conhece
ra.
— Por fa
vor.
Althea cam
ba
le
ou pa
ra a frente, sem saber ao certo o que estava
cada tra
ço de seu ros
to.
— Não me to
que — vo
ciferou ela, quase cuspindo em Althea, que
Em vez dis
so, as pa
la
vras pousaram, cortaram sua pele, criaram
as cicatri
zes que ela não ti
nha para provar sua inocência.
Foi tu
do o que ela con
seguiu dizer, seus braços apertados prote-
gendo a cin
tu
ra, sua vi
são turva com as lágrimas que se recusava a
derramar. Se as der
ra
masse, Hannah poderia interpre
tá-las como
culpa.
Otto fi
nal
men
te deu um passo à frente, passando o braço pelo
ombro de Han
nah, pu
xan
do-a para perto, oferecendo o conforto que
Althea de
se
ja
va ofe
re
cer. Ele apontou o dedo comprido para Althea.
— Fique lon
ge de nós.
Depois a cha
mou por um nome que ela não conhecia, mas que se
Puta, trai
do
ra, ca
de
la. Uma combinação dos três? Não importava.
altura já ha
via em
pa
li
de
ci
do e estava encostada em Otto como se ele
fosse a úni
ca coi
sa que a mantinha de pé.
— Eles o pe
ga
ram — constatou Hannah, tão baixo que era quase
como se ti
ves
se me
xi
do os lábios e nada tivesse saído. Mas Althea a
ou
viu de qual
quer ma
nei
ra. — Eu contei para ela.
Althea res
pi
ra
va com dificuldade, querendo, querendo tanto fa-
nar. En
tão ou
viu a voz de Hannah na cabeça: Não é sobre você.
Cada par
te de
la an
si
ava segurar Hannah pelos braços, fazê-la
manei
ra.
— Sin
to mui
to.
Ambos to
ma
ram o pe
dido de desculpas como uma confissão, mas
da de ter co
nhe
ci
do Di
edrich, arrependida de ter acreditado nas
la cidade. Tal
vez não ti
ves
se revelado a localização de Adam sob tor-
Die
dri
ch or
ques
tra
ra aquilo como uma punição; não havia dúvi-
das. E tu
do co
me
çou e ter
minou com Althea.
A úni
ca coi
sa da qual não se arrependia era ter conhecido Han-
nah. Tal
vez o mun
do es
ti
vesse acabando, mas pelo menos uma vez
Althea com
pre
en
de
ra al
go que todos os outros pareciam compreen-
der intrin
se
ca
men
te. O amor não precisava ser difícil. Podia ser mo-
mentos de si
lên
cio en
quanto se toma um vinho sob o toldo de um ca-
dançar pe
los cor
re
do
res de uma livraria; um olhar compartilhado
de com
pre
en
são que não precisa de palavras para acompanhá-lo.
Hannah a en
ca
ra
va com uma expressão ferida que atraves
sou
Althea pro
fun
da e per
manentemente. Ela poderia viver até cem
anos e nun
ca es
que
ce
ria o olhar de Hannah naquele momento.
elhos ba
te
rem na cal
ça
da. Aquilo deixaria hematomas, e ela desejou
um an
jo des
truí
do.
— Guar
de su
as men
ti
ras para alguém que acredite nelas — disse
Otto, pu
xan
do Han
nah em seguida. — Vamos, ela não vale a pena.
— Não — eco
ou Han
nah, baixinho. — Não vale mesmo.
Owl’s He
ad, Mai
ne
Julho de 1944
V iv aca
bou vol
tan
do de bi
cicleta para a pequena cidade. Quando Joe
a viu che
gan
do, riu tan
to que precisou se apoiar no capô do ca
mi-
nhão.
Ela ima
gi
nou que es
ta
va dando um espetáculo, provavelmente co-
Joe a hos
pe
dou em um quarto no andar superior do pub, e Viv
usou a bi
ci
cle
ta na ma
nhã seguinte para ir até a casa de Althea. E na
manhã se
guin
te, e na se
guinte.
Viv sa
bia que ti
nha pou
co menos de duas semanas antes de preci-
po que ti
nha.
No quin
to dia, Althea levou uma xícara de café para Viv e seguiu o
ritual de sem
pre: ba
teu a porta na cara dela. Viv aceitou o gesto co-
mo uma pe
que
na vi
tó
ria.
Naque
la noi
te, no pub, quando se gabou daquela façanha, Joe ape-
nas balan
çou a ca
be
ça. Mas também sorriu um pouco, o que ela to-
mou co
mo mais um bom sinal.
No oi
ta
vo dia, Althea saiu de casa no comecinho da tarde. Viv se
levantou do pe
que
no banco do jardim, onde aguardava lendo, e
Althea apon
tou os pe
nhas
cos com a cabeça.
— Va
mos an
dar um pouco.
Viv con
se
guiu con
ter o sorriso, mas por pouco.
As du
as pas
se
aram ao longo dos penhascos em silêncio, Viv de al-
guma for
ma sa
ben
do que não devia pressionar.
Após vin
te mi
nu
tos, Althea apontou para o livro de bolso que Viv
esquece
ra de
bai
xo do bra
ço.
— O que es
tá len
do?
— A fei
ra das vai
da
des. — Ela se apressou em responder, emo
cio-
da EFA.
— Jun
to com o meu. É bom? Eu não li.
Viv pen
sou na per
gun
ta.
— Um elen
co de per
so
nagens desagradáveis?
— Ou pe
lo me
nos fa
lhos — retrucou Viv após um momento de re-
fle
xão. — Mas, pa
ra mim, personagens falhos são muito mais inte-
ressantes. Ima
gi
no que vo
cê concorde.
— Vo
cê leu meus li
vros.
— Li.
— Só is
so? Não vai fa
zer elogios intermináveis? — incitou Althea,
fechando a ca
ra.
da intei
ra.
Viv adi
vi
nha
ra aqui
lo, mas Althea ergueu as sobrancelhas.
— Quan
do se es
tá pe
dindo um favor, é uma boa ideia dar uma
amaciada na pes
soa pri
mei
ro — comentou Althea, embora, apesar
das pala
vras, pa
re
ces
se concordar.
— Ba
ju
la
ções não fun
ci
onam com você.
Mas cu
ri
osi
da
de sim. E Viv provou seu ponto quando Althea per-
guntou:
— E po
de me con
ce
der a graça de elucidar o que acha que sabe
sobre mim?
O co
ra
ção de Viv ace
le
rou. Uma resposta errada pode
ria eliminar
— Vo
cê não es
cre
ve em busca de bajulação, escreve por penitên-
cia.
Althea pa
rou de re
pen
te e se envolveu com os braços, os olhos
grandes e qua
se fe
ri
dos analisaram o rosto de Viv.
— As pes
so
as não que
rem elogios por suas penitências. Querem
ser perdo
adas.
lábios. En
tão deu meia-volta, de repente, deixando Viv nos penhas-
Viv des
cre
veu a con
versa para Joe naquela noite e perguntou se
de
veria de
sis
tir. Ele a ob
servou, pensativo.
— Ten
te mais um dia.
— Tem cer
te
za? — perguntou Viv, tentando parecer despreocu-
pa
da, mas sem sa
ber se acertara no tom. — Não quero acabar com
uma espin
gar
da apon
ta
da para mim.
— Faz mui
to tem
po que ela não se interessa por algo assim. Tente
mais um dia.
Na ma
nhã se
guin
te, Althea estava esperando por ela junto ao por-
de alívio.
— Vo
cê quer que eu vá para Nova York — começou Althea, meia
com um sus
to do tran
se em que caíra.
— Sim. Eu pa
go, se is
so for um problema — ofereceu Viv, e imedi-
atamen
te se en
co
lheu de vergonha.
Althea Ja
mes não pre
ci
sava que ninguém pagasse nada para ela.
A auto
ra pa
re
cia que
rer rir, mas não o fez.
— O que vo
cê quer que eu diga? A esse senador?
— O que qui
ser. Tal
vez algo sobre os perigos da censura por parte
do gover
no?
— Por que acha que sei o suficiente para falar sobre isso?
Viv se per
gun
tou se a pergunta era um teste.
— Por cau
sa de Uma es
curidão inconcebível.
— Não por
que eu es
ta
va em Berlim durante a queima de livros?
— Bom, is
so tam
bém — ad
mitiu Viv.
— Não é só is
so. Que
ro você lá porque acho que os americanos vão
se conec
tar com a sua his
tória. Mas, se não quiser, vou embora.
— Ba
ter a por
ta na sua cara tantas vezes não foi o suficiente? —
pergun
tou Althea, com certa provocação na voz.
— Já me dis
se
ram que sou… persistente. Eu queria que você sou-
Viv sen
tiu o olhar fi
xo de Althea e mais um teste a caminho.
— Es
sa per
gun
ta é mi
nha — disse Viv, mais para si mesma, em-
Sempre per
gun
to is
so às pessoas. É o meu barômetro.
— O que con
si
de
ra uma resposta ruim? — sondou Althea, pela
— Quan
do res
pon
dem que não gostam de ler — revelou Viv, com
um bre
ve sor
ri
so. — Mas a culpa não é das pessoas. Só acho que elas
Althea apon
tou pa
ra um banco de pedra com vista pa
ra as ondas,
e Viv se sen
tou de
pres
sa antes que a mulher retirasse o convite.
pletou Viv.
— Mui
to di
re
ta.
— Ape
nas per
sis
ten
te. Na verdade, foi em parte assim que conse-
guimos a ade
são das edi
toras. Estamos formando uma geração de
am real
men
te gos
tar além dos que são forçados a ler na escola.
— Es
tá ten
tan
do me con
vencer de que sua causa é justa. Mas não
com os de
dos na per
na. — Temo que os outros sejam.
— E, de
pois de ser des
taque em jornais de todo o país, as pessoas
Althea.
— Gos
to da mi
nha vi
da de reclusa nos penhascos — respon
deu
Althea, qua
se se des
cul
pando. — Isso me mantém longe de pro
ble-
mas.
— Mas tam
bém te man
tém longe das coisas boas, não?
— Tal
vez um dia eu te
nha me importado com isso — respondeu
Althea, olhan
do pa
ra o mar. — Agora acho que, às vezes, o melhor
que pode
mos fa
zer é pro
teger o mundo de nós mesmos.
Viv a es
tu
dou, ima
gi
nando como a mulher reagiria ao que ela es-
tava pres
tes a di
zer.
terrível se
gun
do, pen
sou tê-la perdido de vez. Então a mulher jo
gou
a cabeça pa
ra trás e riu, seu riso se sobrepondo às batidas rítmicas
— Sin
to mui
to. Vo
cê me lembrou alguém.
— Quem?
O sor
ri
so de Althea di
minuiu, embora não tenha desaparecido.
— Uma pes
soa que nunca poupava ninguém. Ela dizia que a as-
aquilo me tor
na
va in
cri
vel
mente autocentrada.
— Ah, eu não…
— Sim, vo
cê quis, e tu
do bem — interrompeu Althea, com delica-
de
za. — Acho que mais uma vez quis me tornar protagonista de uma
— Mas is
so não é co
mum a todos nós? — perguntou Viv, com um
rápido sus
pi
ro. — Es
tou aqui, às voltas com uma grande missão,
pensan
do que vou fa
zer toda a diferença no mundo se puder con-
vencer vo
cê a ir pa
ra No
va York.
Althea in
cli
nou a ca
be
ça, concordando, e depois a perfurou com
um olhar.
— Vo
cê não res
pon
deu. Qual é o seu livro favorito?
— Eu sem
pre res
pon
do Frankenstein — disse Viv, pesando as pa-
lavras. — E eu ado
ro Mary Shelley. Ela era tão à frente de seu tempo,
lhantes, e, mes
mo as
sim, aposto que o legado dela durará mais que o
deles.
Althea as
sen
tiu.
— Mas es
se não é seu verdadeiro favorito?
— Eu se
ria uma crí
ti
ca terrível — admitiu Viv, dando de ombros.
— Sempre sin
to que o li
vro que estou lendo é o meu favorito, mesmo
Ela sor
riu e con
ti
nu
ou: — Mas eu gosto da pergunta, mes
mo assim.
— En
tão vo
cê sa
be imediatamente se não vai gostar de alguém?
— per
gun
tou Althea, olhando para ela. — Deve saber que entre os
favoritos de Hi
tler es
tão Dante e Jonathan Swift. Gostar de ler não é
sinôni
mo de ser uma boa pessoa.
— Tem ra
zão — con
ce
deu Viv, com uma pequena reverência de
cabeça.
esnobis
mo no mun
do li
te
rário que impedia as pessoas de encon
tra-
em qua
dri
nhos, mis
té
ri
os sobre assassinatos ou romances com final
respostas es
ta
vam cer
tas.
— Qual é o seu fa
vo
ri
to?
— Meu li
vro fa
vo
ri
to? — perguntou Althea, embora parecesse re-
tórico, en
tão Viv ape
nas esperou. — Tenho livros diferentes para di-
ferentes fa
ses da vi
da. Mi
nha mãe tinha uma bela versão de Contos
foi Iva
nhoé, e en
tão Ali
ce no País das Ma
ravilhas. — Ela fez uma ca-
reta ao men
ci
onar o úl
ti
mo título. — Mas agora… Agora o favorito é
Suave é a noi
te.
— F. Scott Fitz
ge
rald — comentou Viv, distraidamente. — Não é o
mais po
pu
lar de
le.
— Fitz
ge
rald sem
pre parece melhor alguns anos depois. É um
pouco som
brio — co
men
tou Althea, seca, e voltou a atenção para o
mar. — Fa
la so
bre amar al
guém em um momento especí
fico da vida.
Não se tra
ta de amar es
se alguém para sempre, mas lembrar que
sempre hou
ve e sem
pre haverá algo que fez uma pessoa amar a ou-
tra.
— É ro
mân
ti
co — dis
se Viv, o comentário mais neutro possí
vel,
que o ge
lo sob seus pés era fino como papel.
— Ele o es
cre
veu quan
do Zelda estava passando por uma de suas
internações — dis
se Althea, novamente em um tom quase sarcásti-
Depois, am
bas ob
ser
va
ram as ondas por tempo suficiente para o
— Tu
do bem. Se
rei seu macaquinho de circo.
— Po
de acre
di
tar: vo
cê, no mínimo, se classifica como um tigre
atravessan
do aros fla
me
jantes — disse Viv, levianamente, embora
um ema
ra
nha
do de emo
ções tremulasse como as asas de um pássa-
ro em sua cai
xa to
rá
ci
ca.
— Pos
so me con
ten
tar em ser o hipopótamo de patins.
Então as du
as to
ma
ram o caminho de volta até a pe
quena casa.
— Pos
so não ser a he
roína da história de ninguém — revelou
Althea, se en
vol
ven
do com os braços. — Mas, desta vez, está ao meu
Março de 1937
O ar no ter
ra
ço do Ho
tel Majestic estava frio o bastante para Han-
garros en
quan
to se apoi
ava com indolência na balaustrada. Ela não
— De to
dos os aca
sos do mundo — refletiu Dev, enquanto obser-
vava a fu
ma
ça se dis
sol
ver e sumir —, você tinha que vir parar logo
em Pa
ris. Eu vim pa
rar em Paris.
se tives
se si
do sur
pre
en
di
da.
— É ver
da
de, eu sa
bia onde você estava — concordou Dev, como
se Hannah ti
ves
se pen
sa
do aquilo em voz alta. — Mas Paris é uma ci-
da
de tão gran
de…
— Não em nos
sos cír
culos — discordou Hannah, pensando que
po
deria so
ar im
per
tur
bá
vel, apesar de desajeitada.
— De na
zis
tas e dos que fogem deles.
— E a qual de
les vo
cê pertence? — perguntou Hannah.
— Vo
cê ain
da não ti
rou suas conclusões quanto a isso? — revidou
Dev, apon
tan
do pa
ra a pistola pela primeira vez desde que pisaram
no terra
ço. — Quan
to a de que lado eu estou?
Hannah ti
nha pa
ra
do de confiar nas pessoas havia muito tempo;
— É o que vo
cê vai me dizer.
der a sur
pre
sa no ros
to. A emoção surgiu e se foi, um relâmpago que
Hannah po
de
ria ter per
di
do se tivesse piscado. Dev apagou o cigarro
em um ges
to à pri
mei
ra vista descuidado, mas que também lhe per-
mitiu se afas
tar de Han
nah, permitiu que se escondesse.
Quan
do ela en
ca
rou Hannah de volta, a máscara estava presa fir-
memente de vol
ta no lu
gar.
— Eu re
ve
lei a lo
ca
li
za
ção de Adam para eles.
Não de
ve
ria ter pa
re
ci
do um soco, mas a força da confissão quase
arremes
sou Han
nah pa
ra trás. Até aquele exato momento, ela ainda
volvimen
to de Dev.
— Por quê?
tando aque
la ver
da
de en
tre as duas como uma granada.
Se Han
nah já não ti
vesse ouvido aquele exato tom tantas ve
zes,
anos an
tes, po
de
ria ter acreditado. Na época, Dev odiava os nazistas
quase tan
to quan
to Han
nah.
Seria mes
mo tu
do atu
ação?
Embo
ra Han
nah co
nhecesse muitas pessoas que desprezavam os
Ela po
de
ria ter ido pa
ra casa.
— Não — dis
se Han
nah, com o máximo de firmeza possível.
— Ele mor
reu, sa
bia? — contou Hannah. — Em novembro.
Dev con
traiu um mús
culo na mandíbula, mas não respondeu.
— Pro
va
vel
men
te foi torturado antes de morrer, cla
ro — conti-
nuou Han
nah, se sen
tin
do desapegada, como se estivesse assistindo
franzino no fi
nal.
— A cul
pa dis
so é sua — acusou Hannah, torcendo a faca. — Não
se impor
ta?
— Cla
ro que me im
por
to — vociferou Dev, então soltou um longo
suspiro, co
mo se não ti
vesse a intenção de admitir o fato. — Acha
— Vo
cê o en
tre
gou.
não se con
ven
cia a de
sis
tir, não ouvia a voz da razão — relembrou
Dev, per
den
do a com
pos
tura. — Ele teria morrido na mesma hora.
— Por fa
vor, não me di
ga que o entregou aos nazistas para salvar
a vida de
le. Nem vo
cê po
deria ser tão estúpida assim.
Dev apa
gou o ci
gar
ro, mas daquela vez Hannah notou que suas
mãos tre
mi
am.
A per
gun
ta pai
rou en
tre ambas, pesada e envolvente. O tempo pa-
recia sus
pen
so.
— Eu pre
ci
sa
va dar al
guma coisa a eles — explicou Dev, as pala-
vras he
si
tan
tes. — Já ti
nha passado muita informação errada.
E o tem
po vol
tou a pas
sar, despertando-a. Hannah voltou a ouvir
os barulhos, os pás
sa
ros, a conversa nas ruas lá embaixo, um motor
distante en
gas
gan
do. Abaixou o braço, apontando a pistola para o
chão, os bra
ços e as per
nas sem condições de obedecer a qualquer
comando.
— Vo
cê é uma es
piã — sussurrou.
— Uma ama
do
ra — corrigiu Dev, com um sorriso torto e autode-
precia
ti
vo.
Hannah re
co
nhe
ceu o desgosto.
— Pe
lo me
nos na
que
la época. Agora sou melhor. — Então olhou
la. — Pen
sei que fos
se.
— Eu te co
nhe
cia — mur
murou Hannah, levantando a arma mais
ta, direto
ra. Mas aca
ba
va aí.
— Vo
cê viu uma opor
tu
nidade — decifrou Hannah.
— Qua
se ime
di
ata
mente — concordou Dev. — Naquela época,
eram pou
cos em nos
so go
verno que viam os nazistas como um pro-
ser útil.
— Mes
mo que eles não se importassem com os nazistas, imagino
que se im
por
tas
sem com informações privilegiadas sobre nações
concorren
tes.
— Na mos
ca. Mas meu vigia era persuadível. Os chefes dele po-
começa
do a de
ta
lhar o que acontecia por trás das belas paredes que
os nazis
tas er
gui
am pa
ra o resto do mundo.
— En
tão Adam foi o quê? Uma vítima infeliz da sua necessidade
de se man
ter in
for
ma
da?
— Es
ta
mos em guer
ra, querida — disse Dev, mas parecia tão ten-
sa que Han
nah pen
sou que sua máscara poderia cair. — Mesmo que
no seu jo
go. Era uma pes
soa.
— Uma pes
soa que já tinha decidido que a própria vida significa-
va mais se usa
da pa
ra eli
mi
nar os nazistas — rebateu Dev, não mais
sa que Han
nah nun
ca vi
ra antes. — Entregar Adam antes que ele se
entregas
se de ban
de
ja sig
nificava que voltariam a confiar em mim.
Sabe quan
tas pes
so
as sal
vei por causa dessa confiança?
— En
tão es
ta
mos ape
nas trocando vidas agora? Isso não é melhor
do que os na
zis
tas. Quan
tas vidas vale um judeu?
Dev re
cu
ou co
mo se ti
vesse levado um tapa.
— Is
so foi bai
xo.
— As
sim co
mo su
as es
colhas — rebateu Hannah.
— Usei mi
nha po
si
ção com os nazistas para contrabandear cente-
nas de ju
deus ale
mães pa
ra fora do país. Não que eu precise me justi-
ficar pa
ra vo
cê.
Hannah ba
lan
çou li
gei
ramente a pistola.
— Na ver
da
de, vo
cê pre
cisa.
— De
ci
da se vai ati
rar em mim ou não — disse Dev, o queixo le-
vantado de
sa
fi
ado
ra
men
te. — Convivo com o peso das minhas deci-
pender.
— Vo
cê nem vai se des
culpar? — perguntou Hannah. — Com sua
— Quer pa
la
vras va
zi
as? Posso te oferecer algumas. Mas não sig-
nificam na
da. Adam se
ria capturado e morto se continuasse com o
plano. Sa
be dis
so tão bem quanto eu.
E Han
nah sa
bia. Pas
sa
ra incontáveis noites tentando convencer o
irmão da fu
ti
li
da
de da
que
la ideia. Mas ele nunca fracassara em nada
— todo aque
le char
me, toda aquela inteligência. Ele se convencera
de que es
ta
va cer
to o tem
po todo, e o mundo sempre pareceu confir-
mar. O pla
no era uma ba
gunça, mal pensado, fadado ao fracasso.
No en
tan
to, Adam ti
nha certeza de que faria a diferença.
Hannah nun
ca per
do
aria a decisão de Dev — sem contar que te-
ria pre
fe
ri
do mor
rer an
tes de fazer uma escolha semelhante —,
mas, no fun
do, ela ad
mi
tia que talvez, apenas talvez, entendesse.
Ainda as
sim…
— Vo
cê não sa
bia on
de Adam estava. Eu sei que ele não tinha con-
Hannah ba
lan
çou a ca
be
ça, algo retorcendo suas entranhas, em-
bora ain
da não en
ten
des
se por que doía tanto.
— Só três pes
so
as sa
bi
am. Adam, Althea e eu.
— Ah, que
ri
da — res
pondeu Dev, mais uma expiração do que
qualquer coi
sa.
— Não.
Os de
dos de Han
nah pro
curaram algum apoio enquanto seu cor-
po se en
tor
pe
cia.
vel.
Hannah re
cu
ou co
mo se pudesse escapar daquela verdade, mas
Dev esta
va cer
ta. Cla
ro que estava.
O mun
do se com
pri
miu e se tornou mínimo, tudo ficando escuro,
exceto o sem
blan
te de Dev. Arrependimento, compreensão. Pena.
— Vo
cê sa
be so
bre a be
bida — disse Dev. — Mas ele nunca te con-
tou so
bre o jo
go por
que ti
nha vergonha demais. Ele tinha dívidas pa-
ra pagar e in
for
ma
ções que eu precisava.
Hannah pis
ca
va com força, as lágrimas caindo livremente en-
quanto re
co
nhe
cia a ver
dade. Seu corpo doía, sua pele estava lacera-
da. Se pu
des
se es
co
lher, ela preferia ter levado uma facada em vez
Quan
do con
se
guiu sol
tar o ar, soltou o nome:
— Otto.
Nova York
Julho de 1944
avançaram ra
pi
da
men
te.
Viv mar
cou uma en
tre
vista para Althea com Marion Samuel, do
Colum
bus Dis
pat
ch, bem como com Leo Aston, da revista Time. A re-
portagem só se
ria pu
bli
cada em agosto, algumas semanas após o
abalado, as re
por
ta
gens sobre a autora best-seller reclusa, Althea Ja-
mes, seri
am o gol
pe fi
nal.
A inva
são da Eu
ro
pa Ocidental continuava se arrastando, mas o
nú
mero de car
tas que o conselho recebia não parava de cres
cer.
A insistên
cia de Ro
ose
velt para os soldados terem o que ler durante
a missão ci
men
tou, mais uma vez, a importância da EFA para levan-
tar o mo
ral. Viv ti
nha mais cartas para entregar a Althea do que sa-
Hospe
da
ram a au
to
ra no Hotel Plaza. Ou melhor, Viv usou o pró-
prio dinhei
ro pa
ra con
se
guir um quarto para ela.
— É um pe
que
no pre
ço a pagar para estar do lado certo da histó-
ria — jus
ti
fi
cou pa
ra Ha
le, no dia em que voltou para Nova York.
Ele ape
nas sor
riu e a cutucou com o cotovelo.
— Es
tou or
gu
lho
so de vo
cê.
Sema
nas an
tes, Viv po
de
ria ter se irritado com aquelas palavras e
procura
do al
gum sar
cas
mo no comentário. Mas apenas corou um
pouco, de
sa
cos
tu
ma
da, quase tímida com a sinceridade. Bateu a tes-
ta no om
bro de
le em re
co
nhecimento e, em seguida, se afastou para
senador Taft.
Em al
gum mo
men
to, te
ria que encarar as revelações confusas en-
tre Ha
le e ela, mas pou
cos dias antes de um evento sendo planejado
há tanto tem
po não era hora. De sua parte, Hale pare
cia infinita-
mente pa
ci
en
te e um pou
co bem-humorado, seguindo as deixas dela
Naque
la noi
te, quan
do ela levou as cartas para Althea, a mulher
As du
as se sen
ta
ram no chão do suntuoso quarto de hotel, beben-
do o cham
pa
nhe que o Pla
za fornecera, abriram as cartas, comparti-
lharam as men
sa
gens e choraram o mais estoicamente possível.
— “Há mui
to me es
queci por que lutava” — leu Viv. — “Sem
pre
que eu fe
cha
va os olhos à noite, só conseguia pensar na sensação dos
corpos de
bai
xo d’água, aqueles sobre os quais eu caminhei enquanto
Passava o tem
po dis
tri
buin
do socos e olhos roxos, fossem a oficiais
ou alista
dos. Fiz mais da
nos que os alemães, mas não conseguia me
conter.”
Althea mur
mu
rou pa
ra mostrar que estava ouvindo, mas não in-
— “En
tão, uma noi
te, um amigo pegou seu livro. Ele leu o primei-
ro capítu
lo, de
pois o se
gundo. Então disse que, se nós sobrevivêsse-
mos, le
ria mais na noi
te seguinte. E, pela primeira vez desde que
desci da
que
les bar
cos, eu re
almente queria sobreviver.
elogio va
go — “mas, aci
ma de tudo, acordei esta manhã esperando
que as ba
las não me acer
tassem, em vez de querer que me atingis-
sem pre
ci
sa
men
te no co
ração. E, se quiser tirar alguma conclusão
disso, sr
ta. Ja
mes, é que você ajudou pelo menos um soldado miserá-
vel a se le
van
tar e lu
tar mais um dia. Que Deus a abençoe. Sargento
Tommy D’An
nun
zio, Se
gunda Divisão de Infantaria.”
— Bom — dis
se Althea, pegando a garrafa de champanhe pela
metade, en
quan
to Viv co
gi
tava pedir mais uma.
Althea le
van
tou a ta
ça.
— Às pe
que
nas vi
tó
ri
as.
A noi
te con
ti
nu
ou as
sim até o nascer do sol se infiltrar no quarto,
surpreen
den
do as du
as.
Viv se le
van
tou, se alon
gou e gemeu.
— Ba
gels?
O ros
to de Althea se iluminou quase comicamente, confirmando
va trans
pa
re
cer. A mai
oria dos moradores de Nova York nem sabia o
1.500 de
les foi rou
ba
do pe
la máfia, a polícia ficou confusa quanto ao
que exa
ta
men
te ha
via si
do levado.
— Vo
cê con
se
gue al
guns? — perguntou Althea.
Viv pis
cou.
— Pou
cos de nós sa
bem como.
A pada
ria mais pró
xi
ma que vendia bagels ficava a quatro quar-
teirões de dis
tân
cia. Não era, de forma alguma, uma árdua caminha-
furnadas.
— O que acon
te
ceu lá? — perguntou Viv, cansada demais para
impedir as per
gun
tas.
Althea bo
ce
jou e er
gueu o rosto para o sol.
— Na
da de es
pe
ci
al.
Viv es
pe
cu
lou que não fosse verdade, mas também achou a pró-
pria per
gun
ta im
per
ti
nen
te, então fez o restante do trajeto de boca
fechada.
As du
as pa
ra
ram em uma esquina para comer bagels com salmão
defuma
do, sem sa
ber o que mais fazer. Viv não podia falar por
te a uma gran
de noi
ta
da na cidade. Dormir não era uma opção, tam-
pouco fal
tar ao tra
ba
lho. Olhar para uma parede em branco por no-
ve horas po
dia aju
dar, mas não parecia ideal, considerando que o
evento se
ria da
li a dois di
as.
Viv re
sol
veu ar
ris
car mais uma vez ao reiniciar a conversa com
Althea.
— Es
tá tra
ba
lhan
do em um novo livro?
— Sem
pre — con
fes
sou Althea, com um leve sorriso que Viv não
entendeu mui
to bem. — Em tese. Na prática? Não sei se tenho mais
algo a di
zer.
— Faz par
te de seu tra
balho sempre ter algo a dizer? — pergun-
na.
— Em vez de…?
reção do ho
tel co
mo se sig
nificasse alguma coisa. — Ele não ligou pa-
ra a men
sa
gem. Is
to é, não o suficiente para escrever sobre ela. Ele
ligou pa
ra a his
tó
ria.
— Vo
cê vê is
so co
mo coisas diferentes? — questionou Althea, em-
— Sua men
sa
gem é perfeitamente criada para inspirar homens a
irem à guer
ra pe
los va
lo
res deste país — disse Viv, se esforçando pa-
— Ele es
ta
va mais in
te
ressado no que aconteceria a seguir — dis-
se Althea, en
ten
den
do. — A questão era prender a atenção dele, em
vez de re
ve
lar al
gum ti
po de verdade.
— Não me in
ter
pre
te mal — acrescentou Viv, cuidadosa. — Seus
— Mas?
rário de um ro
man
ce — continuou Viv, com um leve dar de ombros
— e es
que
cem que ler de
ve ser divertido.
— Seu pro
je
to da EFA. Sempre muito direto.
— Meu pro
je
to da EFA.
— Es
pe
ro que es
ta guerra não dure o suficiente para que um novo
ço da es
cri
to
ra pa
ra mos
trar que concordava. A autora continuou: —
ne irrele
van
te da
qui a al
guns meses?
Viv ba
lan
çou a ca
be
ça.
— Mes
mo que a guer
ra termine amanhã, não acho que a necessi-
da
de vá de
sa
pa
re
cer. Es
ses soldados serão assombrados pelo que vi-
— Eles ain
da te
rão pe
sadelos — ressaltou Althea, em um tom que
deixava cla
ro que tam
bém tinha os dela.
Maio de 1933
D e algu
ma for
ma, Althea se levantou da calçada.
Suas per
nas não que
ri
am cooperar, tampouco os braços, então
tudo se equi
li
brou. Ela se co
locou no caminho de volta para o aparta-
expressão no ros
to de Hannah a assombrava. A cada passo, ela via os
olhos fe
ri
dos, os lá
bi
os machucados, o rosto fechado. Por uma única
noite glo
ri
osa, Althea atravessou aquelas muralhas. Mas, agora, ela
estava bar
ra
da pa
ra sem
pre.
As es
ca
das até o quar
to foram um desafio, mas ela se forçou a su-
bi-las, os bra
ços ain
da aper
tando o ventre, como se pudesse se pro-
teger da
que
le gol
pe.
Quan
do en
trou, ca
da parte sua tremia com o peso de tudo o que
acontece
ra.
Não ape
nas a no
tí
cia sobre Adam, não apenas a detenção pelos
sando os lá
bi
os nos de
la, explorando seu corpo como se pertencesse
a ela.
No ca
ba
ré, Althea se apavorara com sua reação quando Hannah
roçou os lá
bi
os em sua mandíbula. Mas, ali, naquele santuário, ela se
incendi
ara. Fo
ra con
su
mida, queimada até se resumir a cinzas.
E ressus
ci
ta
ra dos res
tos mortais como uma nova pessoa.
Althea nun
ca sou
be, nunca imaginou, que poderia ser assim.
Uma con
ver
sa en
tre dois corpos sem que uma única palavra fosse di-
ta. Sem
pre se acha
ra in
capaz quando tentava flertar com alguém.
Afoita de
mais, de
sin
te
res
sada demais, autoconsciente demais. En-
tão Han
nah apa
re
ceu, com aqueles olhos tão dourados e quentes, o
Althea só per
ce
beu que estava ajoelhada no chão de novo quando
dou de po
si
ção, sen
tan
do-se, e olhou pelo apartamento, os lençóis
ainda ba
gun
ça
dos, a xí
ca
ra de chá de duas noites antes, o exemplar
Sem pen
sar, ela o pe
gou. Alice no País das Ma
ravilhas.
Não fa
zia sen
ti
do os nazistas queimarem uma edição daquele li-
vro; a his
tó
ria não con
tra
dizia nenhuma de suas crenças. Althea se
pergun
tou se o tí
tu
lo es
ta
va junto dos outros por engano. Se ela ti-
perável de si.
Pensou na
que
la noi
te de inverno não muito distante, quando ain-
ela retri
buiu com seu exemplar de Alice.
Die Bücherfreundin.
O ter
mo ga
nha
ra um as
pecto sujo, contaminado.
Althea ti
nha mais três semanas em Berlim antes de poder partir.
no de pu
ni
ção. Althea o humilhara e, em troca, ele a destruíra. Não
impor
ta
va mais.
Hannah se
quer co
gi
ta
ra outra possibilidade. Aquilo era o que
Lágri
mas en
char
ca
vam o colarinho de sua camisa, e ela queria se
enterrar no te
ci
do. Ela se lembrou que a vestira naquela mesma ma-
nhã, en
quan
to Han
nah a observava com afeto. Ou pelo menos o que
Althea pen
sa
va ser afe
to.
Balan
çou a ca
be
ça. Tal
vez não soubesse muito sobre a vida, mas
Pelo me
nos, Han
nah lhe dera aquilo.
Althea se
cou o ros
to e se forçou a ficar de pé. Devia haver uma
for
ma de em
bar
car em um navio e retornar antes do tempo; não po-
dia ima
gi
nar uma ra
zão para qualquer nazista impedi-la de partir.
Tinham en
cer
ra
do de
fi
ni
tivamente seus assuntos com ela.
Althea atra
ves
sou o quar
to em direção ao armário, tirou a ma
la e
a jogou na ca
ma. Foi só então que percebeu que ainda estava segu-
rando Ali
ce.
Era um vo
lu
me fi
no, le
ve. Ela o olhou por um longo tempo, dividi-
que gra
ça, a ar
ru
mar o minúsculo apartamento que chamara de lar
nos últi
mos me
ses.
NO CAMINHO pa
ra a es
ta
ção de trem que a levaria ao porto de Ros-
Não se atre
veu a to
car a campainha. Sabia que não seria bem-vin-
da.
Em vez dis
so, ape
nas deixou o exemplar de Alice que havia em-
brulhado e en
de
re
ça
do a Hannah na pequena mesa na entrada. Tal-
Na pri
mei
ra pá
gi
na, Althea escrevera uma última mensagem nas
próprias pa
la
vras de Ali
ce.
que de
vo ter mu
da
do vá
rias vezes desde então.
Abai
xo da ci
ta
ção, Althea escrevera um Obrigada, esperando que
Hannah en
ten
des
se.
Nova York
Julho de 1944
V iv acor
dou na ma
nhã do evento com um estômago de aço e mãos
firmes. Es
ta
va es
bo
çan
do, planejando e elaborando aquele dia havia
tanto tem
po que qua
se parecia que tudo aquilo não estava aconte-
cendo de ver
da
de.
Mas es
ta
va. Viv era Wellington, e o evento — finalmente — era
seu Water
loo.
Vestiu-se me
ti
cu
lo
sa
mente com um terninho cinza impecá
vel,
sembol
sa
ra obs
ce
nos 22 dólares porque seu último e precioso par
rasgara e, em se
gui
da, pintou os lábios de um belo vermelho que só
po
dia in
ter
pre
tar co
mo uma armadura.
Viv es
ta
va pres
tes a sair do quarto, já com a mão na maçaneta,
mas se de
te
ve, deu meia-volta e fitou a janela com vista para a aveni-
da.
Em pou
cos pas
sos rá
pi
dos, atravessou o cômodo e abriu o vidro.
Dê um ru
gi
do, dis
se
ra Edward.
Com to
da a for
ça que ti
nha, Viv jogou a cabeça para trás e ber
rou
Cada dú
vi
da, ca
da me
do, cada dor e retalho de alegria dos últi-
por Han
nah Bre
cht per
di
da entre suas estantes. Por Charlotte em-
punhan
do sua es
pá
tu
la e por Charlotte chorando no metrô. Rugiu
por Geór
gia na
que
le clu
be no Harlem, por Bernice no Dia D e por
aqueles jo
vens do Bro
oklyn que só queriam jogar beisebol. Então ru-
nhum ob
je
ti
vo além de vender títulos de guerra para seus amigos ri-
cos.
Quan
do se ca
lou, um homem na rua gritou “Cale a boca”, por
que
trou o de
do do meio e fe
chou a janela. Poderia realizar qualquer coi-
sa que se pro
pu
ses
se a fa
zer. Aquilo tinha que ser verdade; ela ouvira
Char
lotte a en
xo
tou com um abraço depois de um farto café da
na viagem de me
trô. Não era dia para se distrair. Aproveitou a via-
ado algu
ma coi
sa.
Berni
ce e Edith a cum
primentaram no saguão do Times Hall, am-
para rece
ber or
dens. In
ca
paz de negar a onda de emoção advinda da
demons
tra
ção de apoio das duas, Viv as puxou para um abraço. De-
pois, por
que se
ria uma to
lice recusar ajuda naquele dia, ela lhes pas-
sou algu
mas ta
re
fas.
Os re
pór
te
res co
me
ça
riam a chegar dali a uma hora, mas Viv ti-
nha a sen
sa
ção de que o se
nador Robert Taft já havia chegado.
A sus
pei
ta foi con
fir
ma
da quando avistou Howard Danes encosta-
do na pa
re
de, na saí
da do escritório de Stern.
Quan
do ele a viu, er
gueu bem as mãos, em rendição, encenando
uma ino
cên
cia exa
ge
ra
da.
— Não pre
ci
sa cha
mar a polícia por minha causa, senhorita. Fui
convida
do, ju
ro.
— Não me fa
ça pe
gar meu alfinete de chapéu — ameaçou, pas-
A risa
da do su
jei
to a se
guiu até o escritório do sr. Stern.
Taft es
ta
va de pé ao la
do da mesa, os dedos grossos apoiados fir-
pendo al
gum dis
cur
so so
bre o pôster de propaganda pendurado na
parede. O car
taz que pro
clamava livros como armas naquela guerra.
Ambos olha
ram quan
do ela pigarreou. Taft a examinou da cabeça
— O meu ca
fé é com leite. — pediu Taft, com aquele sotaque bo-
recê-lo.
Viv mor
deu a lín
gua pa
ra não retrucar e arruinar o dia antes mes-
mo de co
me
çar. Com to
da a paciência que pôde reunir, respondeu
calmamen
te:
— Te
mos um ser
vi
ço de café montado no saguão. Com certeza al-
guém po
de
rá lhe mos
trar onde fica.
sentá-los.
— Se
na
dor, te
nho cer
teza de que se lembra da sra. Childs, nossa
direto
ra de pu
bli
ci
da
de. — Ninguém mencionou a emboscada no
restau
ran
te. — Ela foi fun
damental na organização do evento de ho-
je — con
ti
nu
ou o sr. Stern.
— Sra. Childs.
Taft re
pe
tiu o so
bre
no
me com o mesmo desdém com que teria di-
to Hitler.
— Se
na
dor Taft. Es
pe
ro que este programa seja… educativo… pa-
ra você — dis
se Viv, com sua voz mais doce. — Agradecemos muito
ra nossos sol
da
dos no ex
terior. — Viv fez uma pausa. — É com isso
que o se
nhor es
tá mais preo
cupado, é claro.
— Há mui
tas ma
nei
ras de ajudar os soldados — disse Taft, pu-
xando as la
pe
las do pa
le
tó. — Talvez a senhora já tenha ouvido falar
estudos de
pois que os trouxermos de volta para casa.
— Ou
vi — res
pon
deu Viv, entre dentes. — Não é lindo como as
iniciativas fun
ci
onam bem em conjunto?
Taft es
trei
tou os olhos como se estivesse prestes a entrar de vez
naque
le de
ba
te, mas Stern tossiu mais uma vez para quebrar a ten-
são e dis
se:
— To
dos sa
em ga
nhan
do.
— De fa
to — ad
mi
tiu Viv.
inimigo.
Sem se pre
ocu
par em concordar, Taft inclinou o corpo e chamou
pela por
ta aber
ta:
— Da
nes. Ca
fé.
Viv qua
se sor
riu pa
ra a imagem do homenzinho sarcástico tendo
que exe
cu
tar uma ta
re
fa que pensava ser destinada a uma mulher.
Viv en
ten
deu a men
sa
gem de que ele a estava deixando esca
par
da
li. Co
mo não ti
nha in
teresse em perder mais tempo com aquele
senador pre
sun
ço
so e ar
rogante, aproveitou a deixa e saiu.
Tiran
do aque
le ho
mem odioso da cabeça, pelo menos temporari-
amente, di
ri
giu-se pa
ra uma das laterais do teatro principal, onde a
impren
sa co
me
ça
va a se aglomerar.
Entre os ter
nos e ca
be
ças quase idênticos, estava Leo Aston. Viv
abriu ca
mi
nho pe
la pe
quena multidão, cumprimentando os repór-
lá.
— Taft é um po
lí
ti
co desprezível e egoísta, e hoje ele vai mostrar
as cartas — pro
me
teu Leo, assim que ela se aproximou. — Tem gen-
te demais de olho nes
te evento para ele não cometer nenhum desli-
ze. Se con
se
guir
mos uma frase comprometedora, você terá seu
apoio pú
bli
co em pou
co tempo.
manhã.
quisto fo
ra da gan
gue do Ca
pitólio. As pessoas vão procurar uma ra-
públicas no
tá
veis e, mais importante, os doadores políticos mais ri-
cos da ci
da
de. — Is
to é co
bertura política. Parabéns, garota.
Desa
mas
san
do a saia bem passada com a mão trêmula, Viv assen-
tiu.
— Sem
pre — pro
me
teu Leo, apertando o ombro de Viv para em
seguida se mis
tu
rar de vol
ta à multidão de jornalistas.
Viv atra
ves
sou os cor
re
dores, examinando os participantes, o or-
gulho e o ca
ri
nho apla
can
do seus nervos em medidas iguais. Leo não
estava exa
ge
ran
do quan
do mencionou a multidão. Não era apenas a
mí
dia que com
pa
re
ce
ra em peso. Estavam entre os presentes: uma
dú
zia de mu
lhe
res que Viv reconheceu serem bibliotecárias voluntá-
rias; Har
ri
son Gar
di
ner e um grupo de outros escritores brilhantes
acompa
nha
dos por seus editores mais velhos; o idoso do Centro Ju-
daico on
de Han
nah Bre
cht trabalhava e diversas pessoas que Viv
adivinhou se
rem co
le
gas dela, além de Hale e pelo menos vinte ou-
sorriso agra
de
ci
do que ele logo retribuiu.
trás, pre
sos em um pen
te
ado sério. Viv já a encontrara algumas ve-
Betty as
sen
tiu uma vez ao olhar nos olhos de Viv, e a aprovação
em seu sem
blan
te fez al
go quente florescer em seu peito.
Viv lem
brou da
que
la tar
de embriagada em maio, quando Harri-
Se isto fos
se um li
vro, sabe em que ponto estaríamos agora? (…) É o
momento do “tu
do es
tá per
di
do”.
Agora, ti
nham seu es
pe
táculo. Tinham seu exército.
Viv só pre
ci
sa
va con
fi
ar que aquilo bastaria para invocar um final
feliz.
Pa
ris
Março de 1937
E ra co
mo se os pul
mões de Hannah tivessem se encolhido, o ar de-
saparecen
do em uma ex
pi
ração trêmula.
— Otto.
Dev ob
ser
vou Han
nah com as mãos erguidas, como se estivesse
se prepa
ran
do pa
ra se
gu
rá-la caso caísse, como se ela não tivesse si-
do a res
pon
sá
vel pe
lo em
purrão.
Por um mo
men
to as
sombroso, Hannah se viu usando a pistola.
Viu o san
gue que se es
pa
lha
ria de uma ferida aberta no peito de Dev,
os peda
ços de vol
ta. Aque
la compreensão final que passa
ria pelo ros-
to de Dev an
tes de cair, sem vida, no chão.
Hannah lar
gou a pis
to
la. A arma bateu no concreto, emitindo um
— Vo
cê fa
ria is
so de no
vo? — indagou Hannah, ouvindo a pergun-
ta por um tú
nel sem fim, suas palavras baixas e arrastadas. — Sa-
bendo as con
sequên
ci
as?
— Sem pen
sar du
as ve
zes.
A res
pos
ta não sur
pre
endeu, nem Hannah achava que ainda po-
Balan
çan
do a ca
be
ça, ela se levantou, forçando as próprias per-
nas a obe
de
ce
rem, e cam
baleou até a saída do terraço do hotel.
— Han
nah — cha
mou Dev, sua voz refletindo pena. — Não foi
Anos an
tes, quan
do Althea a fitou com olhos lacrime
jantes e cul-
pa
dos na
que
la cal
ça
da de Berlim, Hannah pensou ter perdido cada
No en
tan
to, co
mo Dev observara, Hannah confiava tanto em Otto,
uma con
fi
an
ça tão na
tu
ral, tão arraigada, que jamais cogitaria a hi-
Paris pa
re
cia se fe
char à sua volta, sufocante e barulhenta, mes-
mo sen
do uma ma
nhã tranquila de domingo. Hannah sabia que esta-
va avan
çan
do, do
bran
do as esquinas certas, evitando os carros e as
bicicletas no ca
mi
nho, mas não se sentia ancorada ao corpo.
Sem sa
ber quan
to tem
po depois, se viu diante da porta de Otto. A
madeira zom
ba
va de sua incapacidade de levantar o pu
nho e ba
ter.
O sol quei
ma
va sua nu
ca, de modo que o suor escorria pelas costas
até se acu
mu
lar na lom
bar. As pernas tremiam com o peso de ficar
parada tan
to tem
po.
os hema
to
mas sob os olhos, a magreza do rosto, as linhas de expres-
são pro
fun
das ao re
dor da boca fazendo muito mais sentido.
da, a dis
tân
cia, o cho
ro, a briga com os nazistas, a maldita arma. Co-
Ele ain
da ti
nha dí
vi
das que não conseguia pagar? Provavelmente.
Aquele ti
po de com
por
ta
mento não desaparecia da noite para o dia.
Otto a olha
va, aten
to. Então assentiu uma vez.
— Vo
cê sa
be.
Sem es
pe
rar res
pos
ta, ele se virou, deixando a porta aberta. Vaci-
no apar
ta
men
to. Ha
via um banquinho na janela onde Hannah sem-
pre ado
rou se re
co
lher para tomar um chá e observar os pássaros
entrarem e saí
rem do jar
dim pequeno, mas exuberante, que ficava
nos fun
dos.
Sobre a me
sa em fren
te ao assento da janela, estava uma garrafa
de bebi
da al
coó
li
ca pra
ti
camente vazia. Otto se atirou nas almofa-
das, o cor
po es
pa
lha
do e preguiçoso. Mas a posição casual de suas
pernas des
men
tia uma tensão que Hannah podia ver muito bem em
seu rosto.
Enquan
to se sen
ta
va, ele deu um jeito de pegar a bebida. Toman-
do um go
le di
re
ta
men
te da garrafa, Otto a fitou com a indiferença
indolen
te de um jo
vem cansado do mundo.
Era só fa
cha
da, é cla
ro, mas aumentou ainda mais sua vontade de
estapeá-lo. Quan
do Han
nah não aguentou mais olhar para ele, re
sol-
Hannah dei
xou o si
lên
cio se prolongar entre os dois, rememoran-
do cada lem
bran
ça que possuía com o melhor amigo. Correndo por
campos de flo
res quan
do crianças, pescando no riacho atrás da casa
de cam
po de seus pais, pra
ticando beij
os e depois percebendo que
quentes de ve
rão pa
ra de
vorar livros sob as árvores, com
partilhando
clubes no
tur
nos e uma li
berdade que ambos só sonhavam em ter
fazia com
pa
nhia nas lei
tu
ras em livrarias. Noites de bebedeira e ma-
nhãs de do
res de ca
be
ças.
Depois os na
zis
tas, Adam e Althea, e o mundo todo desmoronan-
do. Cons
truir uma vi
da no
va em uma cidade estrangeira que só pare-
Hannah que
ria per
guntar por que, mas não conseguiu obrigar
seus lábi
os a me
xe
rem.
De qual
quer for
ma, Otto falou primeiro. Ele sempre o fazia.
— Vai di
zer al
gu
ma coisa? — gritou, finalmente, levantando-se
da
quele jei
to dra
má
ti
co inerente a cada pedaço dele.
Seu olhar es
ta
va per
tur
bado, os dedos apertando com força a gar-
rafa en
fim va
zia. Han
nah se perguntou se Otto queria jogar o vidro
na parede ape
nas pa
ra ver algo além de ele mesmo quebrar.
— Quan
to? — per
gun
tou Hannah, sabendo que a delicadeza de
suas pa
la
vras re
sul
ta
ria em um corte ainda mais profundo. — Quan-
to valeu a vi
da do meu ir
mão?
Um som evis
ce
ra
do e brutal deixou o peito de Otto.
— Im
por
ta?
Hannah fe
chou os olhos ante as intermináveis ondas de dor.
— Sim.
— Ah, Otto.
an
te de
la na
que
la pri
são nazista, o rosto quebrado e inchado, quase
irreco
nhe
cí
vel.
garganta aper
ta
da de tris
teza — Por que não disse alguma coisa?
— O que te
ria mu
da
do? — questionou ele, o frenesi em seu rosto
reverbe
ran
do no tom de voz.
Ele es
ta
va no li
mi
te, quase trêmulo, tenso como a corda de um ar-
co pron
to pa
ra dis
pa
rar, bêbado e culpado, mas tentando fingir que
não esta
va ne
nhu
ma das duas coisas.
— Tal
vez na
da — con
cedeu Hannah.
Ela se vi
rou e se re
cos
tou na pia, cruzando os braços.
Otto des
vi
ou o olhar, sua mandíbula tensa.
— O que vo
cê quer que eu diga?
Hannah gar
ga
lhou. O que queria que ele dissesse? Desculpe seria
um co
me
ço, mas não pa
re
cia ser uma opção. Além disso, o que havia
para ofe
re
cer? Não pre
ci
sava das desculpas ou das explicações dele.
Hannah sa
bia por que Ott
o não contara que a traição viera dele em
Assim co
mo Han
nah, Otto vira a culpa no rosto de Althea. Talvez
ele tives
se con
ta
do a si mesmo uma bela história de que vendera
uma infor
ma
ção su
pér
flua.
E tal
vez ele acre
di
tas
se mesmo que não mudaria nada. Hannah
ela con
ti
nu
ou es
cre
ven
do por anos após o breve relacionamento. E
se Hannah ti
ves
se con
se
gui
do abrir pelo menos uma daquelas men-
sagens?
O que te
ria mu
da
do?
Só que na
da da
qui
lo im
portava. No fim das contas, Otto escolhera
a Alema
nha fa
zer a mes
ma escolha por muitas, infinitas, vezes. Tal-
vez hou
ves
se inú
me
ros outros que fariam a mesma coisa. Mas ela
Se Otto só es
ti
ves
se bê
bado e tivesse sido descuidado com o se-
gredo, tal
vez hou
ves
se uma forma de perdoá-lo. Mas ele tomara
aquela de
ci
são cru
el; cal
culara quanto valia a vida de Adam e fizera a
— Que
ro que vo
cê se des
peça — declarou Hannah, com a mesma
Visto co
mo Ott
o re
tor
ceu o rosto e, em seguida, o resto do corpo,
garrafa co
mo se lhe ofe
re
cesse algum tipo de consolo e chorou, as lá-
gri
mas fa
zen
do de
le um homem feio pela primeira vez na vida.
— Han
nah! — pran
te
ou. — Não faça isso.
Ela atra
ves
sou o cô
mo
do, se ajoelhou diante do antigo amigo, e
uma cri
an
ça em bus
ca de conforto. Hannah passou um polegar sob
os olhos de
le pa
ra se
car as lágrimas, se inclinou e beij
ou sua testa.
En
tão se sen
tou so
bre os cal
canhares e o fez olhá-la nos olhos.
— Vo
cê não pe
diu meu perdão. De qualquer forma, eu lhe darei.
Mas nun
ca mais que
ro ver você.
Otto só con
se
guiu sol
tar um lamento irregular. Hannah esperou,
se descul
pan
do por al
go que não fez. Pedindo desculpas por magoar
Hannah, mes
mo que fos
se inocente do crime. O contraste recolheu
os peda
ços da al
ma de Hannah e os costurou.
Nem to
dos se co
lo
ca
vam sempre em primeiro lugar.
e caminhou em di
re
ção ao corredor.
— Ele ia mor
rer de qualquer jeito! — lembrou Otto, no mesmo
vo.
Ela se vi
rou pa
ra ob
ser
var o caco que era aquele homem.
— Eu me cul
pei.
Ele cho
ra
min
gou, mas não disse nada.
nah, ca
so Otto não ti
ves
se entendido a implicação. — Nunca tive
tanta rai
va de
la co
mo de mim mesma. E você me deixou conviver
Ele mo
veu a bo
ca, mas nenhum som saiu.
— To
do dia em que vo
cê acordou e escolheu não me contar teria
dava e es
co
lhia a si mes
mo em vez de mim. A vida é feita dessas esco-
lhas, vo
cê é fei
to des
sas es
colhas.
Otto se en
co
lheu ain
da mais.
— Ago
ra vo
cê po
de me odiar, em vez de si mesma.
— Vo
cê já faz is
so o su
ficiente por nós dois — retrucou Hannah,
Daque
la vez, quan
do se virou para sair, foi definitivo.
Hannah não se per
mi
tiu pensar, não deixou a men
te vagar, se
preocupar ou fi
car ob
ce
cada; apenas seguiu o trajeto familiar para
casa, aque
le que per
cor
re
ra inúmeras vezes com e sem Ott
o.
Sem per
ce
ber, se viu de volta ao apartamento, sentada no chão e
encosta
da na pa
re
de, em
balando no colo a caixa de cartas que nunca
abrira, o exemp
lar de Ali
ce no País das Ma
ravilhas no topo de tudo.
Em mo
vi
men
tos me
tó
di
cos, Hannah abriu cada envelope e leu
cada car
ta. Es
pe
ra
va acu
sações, desculpas, talvez apelos. Em vez dis-
Quan
do che
gou ao úl
ti
mo envelope, o mais pesado, com uma ano-
tação di
zen
do Não se
ja tei
mosa do lado de fora, encontrou um visto
para os Es
ta
dos Uni
dos, uma passagem de navio sem data e um últi-
mo peda
ço de pa
pel.
Nele, ha
via uma de
di
catória, que Hannah sabia com certeza que
nunca che
ga
ria à ver
são fi
nal do livro.
Ela cho
rou en
quan
to a lia.
Pa
ra Han
nah, por ser a heroína que toda história gostaria de
ter.
Nova York
Julho de 1944
tava páli
da de
mais, com a boca cerrada, os dedos cruzados com tan-
— Res
pi
re — sus
sur
rou Viv, conduzindo a escritora para os basti-
dores, on
de os ato
res te
ri
am esperado por suas deixas quando o tea-
tro esta
va em fun
ci
ona
mento. O local ocultava de Althea o público
esmagador pa
ra o qual ela precisaria discursar. — Já me disseram
Quan
do os olhos de Althea foram direto para os dela, Viv só con-
seguiu se lem
brar de um cavalo assustado.
— Na ver
da
de, não, de forma alguma, não me dê ouvidos — pediu
Viv, avis
tan
do Ber
ni
ce Westwood no salão.
Quan
do cha
mou a se
cretária, Viv distinguiu o leve pânico na pró-
pria voz.
— Ber
ni
ce, po
de fi
car com a srta. James? Só por alguns minutos?
A pior coi
sa a fa
zer no momento seria fritar em silên
cio cheia de
preocupa
ção. Ber
ni
ce cui
da
ria daquilo.
— Cla
ro, meu bem.
Berni
ce se apoi
ou no braço do sofá azul onde Althea estava senta-
da e come
çou a de
sem
pe
nhar seu papel perfeitamente.
Weekly. Aca
ba
ram de des
cobrir que têm a mesma amante…
Viv sor
riu e saiu da sa
la para caçar Hannah Brecht, apagando vá-
rios peque
nos in
cên
di
os no caminho.
Enquan
to Althea pa
re
cia à beira de um colapso, Hannah estava
totalmen
te se
re
na. A bi
blio
tecária estava na lateral do palco, obser-
vando a agi
ta
ção com um semblante vagamente bem-humorado.
Hannah che
ga
ra tão ce
do que Viv a deixara em seu escritório e lhe
entregara um exemp
lar de O grande Gatsby, de Fitzge
rald — EFA
vendas inex
pres
si
vas.
Porém, quan
do o pú
bli
co começou a entrar, Hannah fora instiga-
da pelo bur
bu
ri
nho.
um vesti
do en
ve
lo
pe que lhe caía muito bem, em um tom de verde
catas na al
tu
ra dos om
bros. As luzes do palco a mantinham metade
na som
bra e me
ta
de ex
posta, e Viv pensou que talvez fosse as
sim
que Han
nah le
va
va a vi
da. À luz e à sombra, as duas coisas, se doan-
— Es
tá ner
vo
sa? — per
guntou Viv, ao se aproximar.
va quase bem-hu
mo
ra
do, embora não fosse.
— Humm — mur
mu
rou Viv.
sua manei
ra de as
sis
tir ao mundo como espectadora, não como joga-
dora. A pos
tu
ra de
ses
ta
bilizava Viv, que nunca aprendera a não se
impor
tar de
mais, e a dei
xava toda atrapalhada quando se tratava de
conversas fi
adas, coi
sa que a bibliotecária não parecia precisar.
— Vo
cê não dis
se que a srta. James estaria presente? — pergun-
tou Han
nah, en
fim olhan
do para ela.
para aque
le dia.
— Sim, na ver
da
de vou esperar para buscá-la até que a maioria
Os can
tos da bo
ca de Hannah se contraíram, mas ela simples-
mente cru
zou os bra
ços, observando Stern subir ao palco para apre-
sentar o pri
mei
ro con
vi
dado, um homem que perdera as pernas na
primave
ra e con
se
gui
ra se entreter no hospital graças aos livros da
EFA.
crutara bi
bli
ote
cá
ri
os que trabalhavam como leitores voluntários
para o con
se
lho, um pa
rente de um soldado cuja última carta fora
sobre um li
vro da EFA, o soldado que descobrira os livros em um
hospital na Itá
lia, um cor
respondente de guerra que tra
balhara alo-
Quan
do a vez de Han
nah falar estava chegando, Viv saiu em bus-
— Vou bus
car a sr
ta. James. Pode chamar a srta. Brecht na hora
dela?
— Cla
ro — ga
ran
tiu Edith, estendendo a mão para pu
xar Hannah
Hannah he
si
tou, olhan
do brevemente para Viv como se quisesse
dizer al
gu
ma coi
sa, en
tão abriu seu sorriso contido característico e
se voltou pa
ra Edith.
Viv pa
rou e pon
de
rou se Hannah precisava ser tranquilizada an-
tes de en
fren
tar a mul
ti
dão, mas, depois de um debate interno, deci-
diu acre
di
tar na pa
la
vra dela e ir até a sala de espera.
por medo.
— Pron
ta? — per
gun
tou a editora, depois que Bernice lhe lançou
uma bre
ve pis
ca
de
la.
Althea es
ta
va com uma blusa impecavelmente branca e uma saia
xadrez ver
me
lha que po
deria ter caído melhor em uma mulher mais
alta. Ape
sar dis
so, pro
je
ta
va uma aura séria da qual Viv sabia que o
público gos
ta
ria.
— Ain
da te
mos mais uma pessoa na sua frente, mas pensei que
gostaria de as
sis
tir — in
formou Viv, reprimindo o desejo de abraçar
Althea. No en
tan
to, mes
mo depois da proximidade dos últimos dias,
muito tem
po an
tes. Re
co
nhecer o nervosismo de Althea poderia não
ser bem-vin
do ou apre
ci
ado.
— Quem é? — per
gun
tou Althea, em um tom que dava a impres-
— Uma mu
lher que co
nheci aqui em Nova York — disse Viv, en-
Hannah es
ta
va es
pe
rando ao lado de Edith quando o sr. Stern a
apresen
tou:
— Ela tra
ba
lha no Cen
tro Judaico do Brooklyn, que tem uma bi-
bli
oteca de
di
ca
da aos li
vros proibidos pelos nazistas. Antes disso,
Ao la
do de Viv, Althea congelou, os olhos fixos na silhueta da bi-
bli
otecá
ria.
— Han
nah.
Foi ape
nas um sus
pi
ro, na verdade, engolido pelos aplausos da
multidão en
quan
to a mu
lher subia ao palco.
— Sim — dis
se Viv, olhando de uma para a outra.
Por in
crí
vel que pa
re
cesse, Althea empalideceu ainda mais e seu
queixo co
me
çou a tre
mer como se estivesse tentando não chorar.
— Ela men
ci
onou que co
nheceu você.
Althea fe
chou os olhos e deu uma risada.
— Is
so faz mui
to tem
po.
Nova York
Julho de 1944
E mbo
ra Althea não vis
se Hannah Brecht havia mais de uma déca-
da, reco
nhe
ceu a bi
bli
otecária apenas pela silhueta, pela postura,
por co
mo ela man
ti
nha a cabeça erguida, pelo caimento dos cabelos
e o balan
ço dos qua
dris ao caminhar.
Althea só que
ria ce
der às pernas bambas e desabar no chão. Han-
nah Bre
cht, nos Es
ta
dos Unidos. Não só nos Estados Unidos, mas na
cidade de No
va York, a poucos metros de distância dela.
Hannah Bre
cht vi
va, e não enterrada em alguma vala coletiva.
Nun
ca des
co
bri
ra se Hannah sobrevivera depois que os nazistas
marcha
ram pa
ra Pa
ris. Até aquele momento, mantivera a esperan-
ça, afir
ma
ra a si mes
ma que a alemã teimosa abrira sua última carta.
Mas a guer
ra era con
ce
bi
da para aniquilar qualquer resquício de es-
perigoso.
Sua au
di
ção re
tor
nou quando Hannah cumprimentou o público,
o micro
fo
ne cap
tan
do a aridez em sua voz, um tom que falava de
muitas vi
das vi
vi
das, de muitos horrores vistos e sobrevividos,
de pesso
as e dis
cur
sos muito mais importantes do que o que estava
prestes a dar.
tados de pre
ocu
pa
ção. A escritora piscou para ela algumas vezes,
— Ela sa
bia que eu es
ta
ria aqui?
— Sim — con
fir
mou Viv, baixinho, com um olhar gentil que não
brante e apai
xo
na
da de uma forma que Althea nunca se lembrava de
como po
de
ria ser mau.
Depois de ape
nas uma longa noite lendo as cartas dos soldados,
Althea se sen
tia evis
ce
ra
da, rasgada e ensanguentada. Mas Vivian
precisava fa
zer aqui
lo to
dos os dias e ainda se esforçava para tentar
consertar as in
jus
ti
ças que via.
Althea se sen
tia um tanto constrangida tendo que confrontar a
manei
ra co
mo Vi
vi
an en
carava a vida. O que Althea fizera senão se
esconder e lam
ber as fe
ri
das por mais de uma década? Se fosse qual-
quer ou
tra pes
soa ba
ten
do à sua porta, Althea a teria mantido fecha-
do quan
do era mais jo
vem.
Althea Ja
mes sem
pre quis ser uma versão diferente de si mesma.
Duvi
da
va que Vi
vi
an Childs já tivesse tido uma vontade desse ti-
po.
Estar per
to de Viv fa
zia Althea voltar a acreditar que poderia mu-
dar o mun
do só por
que queria.
ido? Ou te
ria fi
ca
do pa
ra
li
sada como nos últimos dez anos? Pelo me-
do e pela cul
pa, mas tam
bém pela raiva? Porque havia raiva, não po-
lembrá-la, a ca
da mo
men
to, de como Hannah se voltara para ela com
os olhos fe
ri
dos, tão pron
ta para culpá-la, tão pronta para acreditar
A guer
ra sa
bia tor
nar mágoas antigas em ressentimentos irrele-
Mas na
da da
qui
lo im
portava, porque Hannah estava falando.
— Pou
cas pes
so
as vi
ram seu país morrer — disse Hannah, sua
te para o res
to do pú
bli
co.
— Ti
ve es
se pri
vi
lé
gio duvidoso, e posso dizer que tudo começa
com um sus
sur
ro sor
ra
tei
ro, não com um grito rebelde. As racha
du-
ras se in
fil
tram, mais in
si
diosas do que qualquer coisa que eu já te-
nha vis
to. Po
dem co
me
çar com rumores de que a imprensa não é
confiável e ru
mo
res de que inimigos políticos ameaçarão sua fa
mí-
sobre ci
ên
cia, ar
te e li
te
ratura em um pub numa noite de sexta-fei-
como ar
ma
du
ra con
tra qual
quer crítica.
“Quan
do es
cu
to as pessoas falarem da Alemanha hoje em dia,
meu cora
ção fi
ca aos pe
da
ços. Muitos não se lembram de que alguns
dos mai
ores pen
sa
do
res e artistas do nosso tempo nasceram no meu
país. Eins
tein, Schrö
din
ger, Mann, Arendt, a lista é interminável.
ditar, es
ses exi
la
dos re
presentam a Alemanha que conheço muito
que reve
ren
ci
ava li
vros. Cresci na terra de Contos de fadas dos ir-
mais in
ci
pi
en
te que pu
desse ter sido, que abria espaço para ideias
radicais e dis
cus
sões des
confortáveis, que encorajava o pensamento
crítico e a li
ber
da
de de ex
pressão.
“Quan
do con
to so
bre as queimas de livros de 1933 em Berlim,
muitos fi
cam cho
ca
dos ao saber que foram estudantes que as lidera-
chamas.”
Althea fe
chou os olhos, lembrando da chuva leve, dos romances
empilha
dos até o al
to nos carrinhos de mão, do rosto distorcido de
Diedrich quan
do o con
frontou.
— Co
mo uma coi
sa dessas foi acontecer? Aqueles estudantes
aprecia
vam li
vros, as
sim como muitos alemães que queimaram as
próprias co
le
ções em to
do o país depois daquela noite apreciavam
seus li
vros. Mas eles ama
vam mais suas crenças. E esse tipo de amor
da plateia, co
mo se pu
des
se manipulá-la com fios invisíveis.
— Al
gu
mas noi
tes, fi
co acordada me perguntando quando foi que
perdemos a Ale
ma
nha que eu conhecia. Alguns podem apontar para
a invasão da Polô
nia, o ato oficial de guerra. Alguns podem olhar pa-
ra o Ans
ch
luss, a ane
xa
ção da Áustria, da mesma maneira. Há um
milhão des
ses mo
men
tos. A Noite dos Cristais, Kristallnacht, ou a
tanta amar
gu
ra. Às ve
zes, no entanto, penso que foi no breve instan-
te antes de en
char
ca
rem os livros de gasolina. O instante em que o
colheu vi
rar as cos
tas pa
ra o conhecimento.
se estives
se jun
tan
do for
ças.
— Fui con
vi
da
da pa
ra falar aqui, hoje, porque uma jovem brilhan-
te e apai
xo
na
da acre
di
tou que eu tinha algo importante a dizer sobre
os perigos da cen
su
ra go
vernamental. Talvez eu tenha. Posso lhes di-
pensam. De fa
to, mui
to antes de Hitler ter o poder para incitar a
queima de li
vros em to
do o país, ele escreveu em Minha luta que um
leitor in
te
li
gen
te de
ve
ria tirar dos livros apenas as ideias que susten-
Ela en
fa
ti
zou a úl
ti
ma frase de uma forma que fez parecer ser
uma cita
ção di
re
ta.
— Pos
so afir
mar que proibir livros, queimar livros, embargar li-
vros é um mé
to
do mui
to usado para apagar um povo, um sistema de
crenças, uma cul
tu
ra. De dizer que essas vozes não pertencem, mes-
mo quan
do es
ses au
to
res representam o melhor de um país.
“Pos
so lhes di
zer mui
tas coisas sobre homens que anseiam pelo
po
der e usam o me
do e o pânico incitado por certas idei
as para con-
de
veria fa
lar so
bre a mor
te que testemunhei. Da forma como a de-
mocracia ale
mã su
cum
biu em cinzas sob o peso de si mesma.
derrame nes
sas pá
gi
nas. Depois que a faísca pega, depois que o fogo
é aceso e as cha
mas co
me
çam a consumir tudo o que você preza, não
há nada no mun
do ca
paz de apagar o incêndio.
“Não po
de
mos con
ter os indivíduos que leem com o único propó-
sito de con
fir
mar as pró
prias crenças já arraigadas. — Ela enunciou
tentam im
por es
se mé
to
do aos outros. Isso pode parecer insignifi-
cante ago
ra, aqui, nes
ta sala, falando de uma única emenda a um
zer, no en
tan
to, que a história é construída a partir de momentos
que pare
cem in
sig
ni
fi
can
tes. Não sabíamos, na noite da queima de
louqueci
dos. Al
guns anos depois, tivemos que fugir da Alemanha
tes — re
for
çou Han
nah, e Althea ficou maravilhada com sua capaci-
da
de de pro
fe
rir ca
da pa
lavra como um soco. — Assim, a cada mo-
mento, vo
cês de
vem se perguntar: querem ser quem distribui as la-
tas de ga
so
li
na? Ou os que tentam apagar o fogo?”
— Is
so — sus
sur
rou Viv, o público irrompendo em aplausos.
doendo, a men
te de vol
ta àquela praça no único momento de toda a
da, sem
pre ha
ve
ria aque
la noite. Viv sorriu para ela com um leve si-
nal de fre
ne
si.
— Cer
to. É a sua vez.
Althea ape
nas pis
cou.
— Vo
cê quer que eu en
tre depois disso?
Nova York
Julho de 1944
V iv se mis
tu
rou de vol
ta às sombras quando Hannah Brecht saiu do
fixos em Althea.
A julgar pe
la re
ação de Althea, um pouco antes, Viv teve a impres-
um há mui
to tem
po. A in
tensidade com que se contemplavam confir-
mava es
sa im
pres
são. Viv ti
nha a suspeita sorrateira de que, se esti-
vessem so
zi
nhas, já es
ta
ri
am enroscadas nos braços uma da outra.
— Vo
cê es
tá aqui — sus
surrou Althea.
mão em vol
ta do pul
so de Althea, as duas mergulhadas em um mun-
do só de
las.
Viv odi
ava ter que in
terromper o reencontro, mas o fato era que
ha
via uma pla
teia es
pe
rando por Althea, e o show precisava conti-
nu
ar. Deu um pas
so à frente, para que percebessem sua presença, e
— Des
cul
pe, mas…
palco, on
de o sr. Stern es
perava em um silêncio cheio de expectati-
va.
— Althea?
A escri
to
ra ba
lan
çou a cabeça de leve, abriu a boca para dizer algo
ao ver Han
nah, pe
lo me
nos trouxera alguma cor ao seu rosto. Ela
não pare
cia mais po
der ser der
rubada por um vento forte.
Do ân
gu
lo em que es
ta
va, Viv notou a inspiração tensa de Althea
an
tes de co
me
çar, mas duvidava que o público tivesse notado. As
pessoas es
ta
vam de pé, aplaudindo efusivamente, quase desequili-
brando Viv.
Exata
men
te co
mo ela queria.
Demo
rou al
guns mi
nu
tos para que todos retomassem seus assen-
— Fi
quei sa
ben
do que meu livro estava nos bolsos dos solda
dos
quando in
va
di
ram as prai
as da Normandia — começou, dissipando
imediata
men
te o bur
bu
ri
nho que se seguira aos aplau
sos. — Já li
inúmeras car
tas dos ho
mens, de suas famílias, de seus líderes, que
me garan
tem que meu li
vro os salvou. E talvez eu devesse falar sobre
tém tro
pas agra
de
ci
das, essa coisa toda. — Ela fez uma pausa e res-
pirou fun
do. — Em vez disso, gostaria de lhes contar sobre os meses
em que eu te
ria me jun
ta
do de bom grado aos nazistas.
Um mur
mú
rio rui
do
so atravessou a plateia.
— Fui con
vi
da
da pa
ra visitar a Alemanha em 1932 por Joseph Go-
ebbels, o ho
mem que di
ri
ge a máquina de propaganda nazista, e de-
vo acres
cen
tar que de for
ma bastante eficaz. Na noite em que Hi
tler
foi no
me
ado chan
ce
ler, marchei em celebração. Eu era ingênua.
onais.
“Eu nun
ca me im
por
ta
ra com política — continuou Althea, dan-
do de om
bros. — Is
so não me afeta, eu dizia a mim mes
ma. E o que
eu pode
ria fa
zer? Eu po
dia votar, mas por que votar se o mundo con-
tinuaria gi
ran
do co
mo sempre? Política era algo que acontecia longe
da minha vi
da, um jo
go jogado por homens com tempo demais nas
mãos.”
Alguns ri
sos iso
la
dos en
cobriram o murmúrio ofendido que Viv
identifi
cou de al
guns dos congressistas nas primeiras filas.
— Quan
do che
guei a Ber
lim, os nazistas usaram essa apatia con-
econô
mi
ca, um re
tor
no a uma Alemanha maior do que nunca, um
movimen
to que nas
ceu do descontentamento dos jovens. Do outro
lado da
que
la mo
eda, eles me deram um bicho-papão para temer: os
comunis
tas. Di
zi
am que os comunistas saíam pelas ruas matando
gente. Na ver
da
de, eram os criminosos nazistas que não tinham es-
crúpu
los em fa
zer is
so.
Ao la
do de Viv, Han
nah assentiu.
— Vo
cês po
dem se per
guntar o que isso tem a ver com a EFA —
Comecei a pres
tar mais atenção à política na década em que meus
olhos fo
ram in
ten
sa
men
te abertos na Alemanha. E minha opinião
não mu
dou mui
to: ain
da parecem ser pessoas jogando pôquer, bei-
sebol ou fu
te
bol. Ca
da la
do conta suas vitórias e derrotas sem levar
em con
ta as vi
das en
vol
vi
das, e isso quase sempre é razoável. As coi-
sas balan
çam pa
ra a es
querda e para a direita, e no meio disso temos
um sem
blan
te de um go
verno.
O dis
cur
so es
ta
va um pouco mais afiado do que Viv esperava,
mas, co
mo era Althea Ja
mes falando, parecia que ninguém estava
disposto a ar
ris
car sair e deixar uma má impressão.
— Qua
se sem
pre é ra
zoável — repetiu Althea. — Mas isso tam-
bém po
de ce
gar al
guém para as ocasiões em que política não é só po-
lítica. Os lí
de
res mun
di
ais passaram quase todos os anos antes de
Hitler in
va
dir a Polô
nia subestimando suas ações. Eles o trataram
como se fos
se qual
quer ou
tro político que jogaria conforme as regras
do jogo, os acor
dos tá
ci
tos que impedem que milhões de cidadãos
desapare
çam em ple
na luz do dia. Acordos tácitos que impedem que
os com
ba
ten
tes de rua do partido assassinem seus oponentes na
praça da ci
da
de. Acor
dos que impedem que países brutalizem seus
vizinhos e mas
sa
crem seu próprio povo.
“A sr
ta. Bre
cht lhes dis
se que estão sentados aqui em um momen-
to que po
de ser mui
to mais significativo do que parece.”
Viv no
tou um sor
ri
so se esgueirar no rosto de Hannah.
— Co
mo al
guém que estava com ela naquela noite da queima de
Um bur
bu
ri
nho per
correu a plateia em cascata, a surpresa e o
cujas es
tre
las nos olhos a cegaram para as crueldades porque sim-
plesmen
te não eram im
portantes o suficiente. Mesmo que seja o ele-
fante na sa
la ho
je, eu sei por que essa emenda existe, eu conheço a
po
lítica por trás de
la. O quarto mandato de Roosevelt é seu bicho-
pa
pão, se
na
dor Taft.
Viv aper
tou sua pran
cheta e comentou:
— Não — dis
se Han
nah, parecendo estar se divertindo. — Apa-
rentemen
te não.
— E o se
nhor quer que os números do seu lado do placar se
jam
resolu
ta. — Mas, se o se
nhor virar as costas para hoje, para cada tes-
temunho so
bre quan
ta ale
gria e alívio a Edições das Forças Armadas
quadra fa
zen
do seu jo
go enquanto o resto de nós vive no mundo real.
“Há coi
sas mais im
por
tantes neste mundo do que a política. Há
melodra
má
ti
ca exa
ge
ra
da para alguns de vocês, e talvez vocês zom-
bem des
sa ideia de que de
veria haver tanto alvoroço por causa de li-
vros. Mui
tas pes
so
as tam
bém se sentiam assim em maio de 1933. E
eu lhes ga
ran
to, se apren
di alguma coisa no tempo que passei em
alerta.
“Há mo
men
tos na vi
da em que é preciso colocar o que está certo
acima do par
ti
do em que vota. E, se os senhores não conseguem re-
conhecer os mo
men
tos em que os riscos são baixos, podem ter cer-
— Mi
nha nos
sa — mur
murou Viv.
Quan
do ela se vi
rou procurando Hannah, encontrou o espaço ao
atirou os bra
ços em vol
ta da mulher.
— Es
tou or
gu
lho
sa de você! — sussurrou, sem se importar que
— Es
pe
ro não ter co
lo
cado você em apuros com o senador.
— Não im
por
ta — afir
mou Viv, recuando um pouco. — Mesmo
que os jor
nais pu
bli
quem apenas algumas de suas falas, ele parecerá
mesqui
nho se con
ti
nu
ar a insistir no assunto.
— E vai pa
re
cer um na
zista do lado errado da História se publica-
rem as de Han
nah — re
ba
teu Althea, com os olhos escapulindo para
um pon
to atrás de Viv.
Mas Han
nah não es
ta
va lá, nem em lugar algum dos bastido
res.
a se erguer. O sor
ri
so que ela disparou para Viv foi forçado, mas ela
— Pa
ra
béns. Eu acre
di
to que ele vá retirar a emenda depois disso.
— Con
cor
do — dis
se alguém das escadas que levavam ao corre-
dor.
Viv se vi
rou e viu que era Hale, com um terno impecável e um
penteado ela
bo
ra
do, pa
re
cendo o imponente congressista que era.
No entan
to, Viv no
tou o prazer em seus olhos enrugados, o sorriso
reprimi
do, a ma
nei
ra co
mo ele se inclinava para ela como se quises-
se puxá-la pa
ra um abra
ço, como ela havia feito com Althea.
lego.
Passa
ra me
ses pla
ne
jando o evento. Poder, naquele momento, di-
— Sim.
Hale atra
ves
sou a sa
la e deu um soquinho de leve em seu ombro, o
Hale es
ta
va cer
to.
A mí
dia já vi
nha apoi
ando a causa do conselho, mas, depois do
evento em No
va York, jor
nais de todo o país dobraram as apos
tas.
Havia edi
to
ri
ais em qua
se todas as publicações. A mensagem geral
era: os ho
mens que es
ta
vam colocando suas vidas em risco podiam
decidir so
zi
nhos o que de
sejavam ler.
O que Viv mais amou, no entanto, foi o consenso de que livros não
eram ape
nas li
vros. Eram histórias que ajudavam os homens exaus-
tos no ex
te
ri
or a se lem
brarem de por que estavam lutando — liber-
da
de de pen
sa
men
to, va
lo
res dos Estados Unidos, antifascismo. Para
da dos na
zis
tas, em
bo
ra essa tenha sido uma das edições mais ven-
didas da Ti
me.
Ele con
se
guiu ou
vir Taft quando saía do Times Hall dizendo a um
membro da equi
pe que, se tivessem a chance, 75 por cento dos mili-
tares vo
ta
ri
am em Ro
ose
velt, e era por isso que se opunha ao voto
dos solda
dos. De
pois que a citação começou a circular, até os alia
dos
começa
ram a se dis
tan
ci
ar de
le e de sua emenda excessiva.
E, em
bo
ra aque
la não fosse a história que Viv estava tentando
contas o even
to a aju
dou a conseguir o que queria.
Em me
ados de agos
to, os legisladores começaram a sair da toca
para apoi
ar a eli
mi
na
ção da emenda.
Avan
çan
do rá
pi
do co
mo nunca, a emenda de Taft foi anulada por
uma mai
oria es
ma
ga
do
ra. O presidente não demorou a assinar a le-
gis
lação, e, as
sim, o con
selho ficou livre para incluir os livros que
quisesse na pro
gra
ma
ção da Edições das Forças Armadas.
tinto e um bi
fe su
cu
len
to, à verdadeira moda dos políticos. Ela não
se impor
tou, apre
ci
an
do a experiência como os legislado
res faziam.
— O que acon
te
ce ago
ra? — perguntou Hale, contemplando o me-
nu de so
bre
me
sas.
— O mun
do des
per
ta — disse Viv, suspirando e afundando na ca-
deira.
Ela es
ta
va en
char
ca
da com o suor do dia quente, mas, no restau-
rante fres
co e es
cu
ro, en
controu um alívio delicioso, nada ansiosa
para enfren
tar as al
tas temperaturas mais uma vez.
— Con
ti
nu
amos a lu
tar a boa luta quando podemos, suponho.
Hale a ob
ser
va
va com os olhos semicerrados — pecaminosos,
misteri
osos e pen
sa
ti
vos.
— Quan
do? — re
tru
cou ela, e deu risada.
— Vo
cê sa
be tão bem quanto eu que isso está por vir — repreen-
um pou
co sur
pre
sa.
Viv sor
riu.
— Se eu apren
di uma coisa com essa história toda é que pre
firo
quase tu
do à po
lí
ti
ca.
sorrindo pa
ra o gar
çom que se aproximava.
O sena
dor pe
diu um bo
lo de chocolate e dois espressos.
— Mas, fa
lan
do sé
rio, o que vai fazer?
— En
con
trar mais al
gumas boas lutas para lutar — respondeu
Viv, cutu
can
do o pé de Ha
le com o dela.
Ele en
la
çou os tor
no
ze
los dos dois e Viv aceitou o toque.
— Is
so soa co
mo po
lí
ti
ca — falou, abrindo um meio sorriso.
— Ha
le, tu
do soa co
mo política para você.
res no ex
te
ri
or. As edi
to
ras estarão ocupadas quando eles voltarem
para ca
sa.
— Con
tar his
tó
ri
as — re
sumiu Hale, assentindo, um comentário
que pode
ria ter pa
re
ci
do condescendente, mas não pareceu. — As
pessoas con
fi
am su
as his
tórias a você.
Viv apoi
ou o quei
xo nas mãos.
— Es
pe
ro que sim.
Ele en
tre
la
çou os de
dos nos dela.
— Eu con
fi
aria a mi
nha.
— Seu jul
ga
men
to é tendencioso — retrucou Viv, abrindo um
sorriso pro
vo
ca
dor.
— Tal
vez — ad
mi
tiu Hale, esfregando o polegar no dedo dela.
Viv não se afas
tou; tal
vez o tivesse feito poucas semanas antes. O
senador a es
tu
dou com uma expressão divertida.
— Es
tá fe
liz?
— Tem al
guém fe
liz? — indagou ela, com uma despreocupa
ção
forçada.
O sem
blan
te sé
rio de
le não se alterou, Viv resistiu ao desejo de re-
cuar ain
da mais, en
tão ad
mitiu:
— É di
fí
cil es
tar.
— Pe
la guer
ra?
— Sim, sem
pre. Mas também acho que fui indevidamente influ-
— Co
mo as
sim?
Se is
to fos
se um li
vro…
— Pri
mei
ro te
mos uma narrativa que se constrói e constrói e
constrói ru
mo a uma re
solução — disse Viv, tentando organizar os
pensamen
tos dis
per
sos em algo razoável. — Depois, há um desenla-
ce, e, de
pois, um fim.
— Vo
cê te
ve sua re
so
lução — deduziu Hale. — Mas agora a vida
continua.
— Fi
nais fe
li
zes são pa
ra romances, não para a vida real — retru-
caria cha
te
ada se ho
je fos
se o meu final.
Hale as
sen
tiu co
mo se aquilo de fato fizesse sentido e ofereceu:
— Mas é es
tra
nho ir trabalhar e pagar suas contas e tomar seu ca-
fé como qual
quer ou
tro dia.
— Althea Ja
mes dis
se ser culpada por muitas vezes pensar em si
como a pro
ta
go
nis
ta de to
das as histórias — disse Viv. — Entendo o
— Vo
cê foi a pro
ta
go
nista desta — disse Hale, passando o polegar
— Mas, na pró
xi
ma, posso ser uma coadjuvante — apontou Viv.
Hale riu, o que caía bem nele. Viv percebeu que queria ser a pes-
— Uma coi
sa eu pos
so te dizer — começou Hale, levando a mão
dela à bo
ca. En
tão ro
çou os lábios nos dedos dela, sua respiração
uma coad
ju
van
te pa
ra mim.
— Que me
lo
so.
Mas ha
via aque
le ca
lor em sua barriga, dourado como champa-
nhe efer
ves
cen
te, que a fez acreditar que, se tivesse coragem para
ad
mitir, aqui
lo re
al
men
te poderia ser um começo feliz.
— Tal
vez — con
ce
deu Hale, levantando a sobrancelha. — Mas vo-
— Eu amo — sus
sur
rou Viv, e, quando o senador sorriu para ela,
cavaleiro er
ran
te.
Nova York
Julho de 1944
A lthea dis
pen
sou a ofer
ta de Vivian Childs para acompanhá-la em
um pas
seio por to
dos os pontos turísticos de Nova York.
Prefe
ria que Viv apro
vei
tasse a vitória e o namorado, que clara-
mente só ti
nha olhos pa
ra ela. A mulher fizera algo notável, e, depois
de tudo, mes
mo que fa
lhasse em seu objetivo, saberia que havia ten-
tado.
va espe
ran
do o gol
pe de se expor e ainda ver Hannah se afastar.
Hannah fo
ra mag
ní
fi
ca, inspiradora, corajosa como sempre.
Pela pri
mei
ra vez, Althea pensou que se igualara a ela naquele es-
pa
ço tão dig
no de ad
mi
ra
ção.
Mas, quan
do dei
xou o palco, descobriu que Hannah havia ido em-
bora. Se
rá que ela fi
ca
ra para ouvir pelo menos parte do discurso de
Althea?
E im
por
ta
ria se ti
ves
se?
Esta
va fe
liz por ter fei
to o discurso, feliz por fazer algo real em
vez de se es
con
der em ca
sa. Por muito tempo, permitiu que uma de-
cisão er
ra
da re
sul
tan
te de seu mau julgamento ditasse suas ações. E
legítimo no iní
cio dos anos 1930? Acontecera o mesmo com a maio-
seu com
por
ta
men
to.
Althea odi
ava o fa
to de que Hannah se machucara, mas tinha se
da
do con
ta de que não fo
ra a causa de tudo o que aconteceu. Adam
tinha si
do pre
so pa
ra pu
nir Althea por suas ações, sim, mas os nazis-
tas nun
ca pre
ci
sa
ri
am de uma desculpa para aprisioná-lo. Se sou-
do inde
pen
den
te
men
te disso. A punição foi apenas um bônus pesso-
al para Di
edri
ch.
Duran
te anos, Han
nah fora a juíza, o júri e o carrasco sobre cada
No fi
nal das con
tas, sa
bia que não era bem a voz de Hannah que a
assombra
ra a ca
da mo
mento do dia, mas sua própria voz.
Ela fi
cou do la
do dos nazistas por três meses e pagou por aquela
escolha du
ran
te dez anos.
Esta
va na ho
ra.
Esta
va na ho
ra de se
guir em frente. De se perdoar. De perdoar
Hannah.
Althea vi
ve
ra à es
pe
ra de um momento em que pode
ria ser a he-
roína da his
tó
ria, mas por fim entendera que não precisava disso.
Aceitara os ho
lo
fo
tes, ma
tara os monstros — ou pelo me
nos ajuda
ra
a matar os mons
tros —, e nenhum de seus problemas desapareceu.
Real
men
te pen
sou que, se fizesse a coisa certa, se lutasse a boa
luta, po
de
ria se re
di
mir. Mas a redenção não se resume a um só mo-
A reden
ção es
ta
va em todas as vezes em que escreveu sobre into-
e se re
cu
sa
va a sol
tar.
Nas ve
zes em que le
vou mantimentos para um vizinho que, na
Alemanha na
zis
ta, te
ria sido enviado para um campo de concentra-
ção pela in
ca
pa
ci
da
de de andar; nas vezes em que desafi
ou as injúri-
as descui
da
das de al
gum amigo; nas vezes em que expôs os próprios
erros na es
pe
ran
ça de que seus interlocutores aprendessem algo.
Althea nun
ca mais de
sejaria ser a heroína, mas talvez provasse, a
pessoa ten
tan
do vi
ver da melhor forma possível, tentando garantir
que nin
guém mais se ma
chucasse por sua causa.
Vivian he
si
ta
ra em re
velar o endereço residencial de Hannah pa-
bibliote
cá
ria.
Já tinham se pas
sa
do três dias do grande evento no Times Hall, e
Althea ain
da não reu
ni
ra co
ragem para bater à porta de Hannah.
A ques
tão era que a mulher não tinha respondido suas cartas.
cialmen
te com um vis
to que exigira que Althea mexesse todos os
seus pau
zi
nhos.
Tal
vez Han
nah ain
da a culpasse pela captura de Adam.
palco?
Althea an
dou de um lado para o outro no pequeno parque em
frente ao apar
ta
men
to de Hannah. Ficava em um bairro promissor
do Broo
klyn, do ti
po que Althea podia se imaginar morando. As cri-
anças jo
ga
vam bo
la nas ruas, as mulheres fofocavam na porta de ca-
sa, os ve
lhos jo
ga
vam da
mas na calçada. Aquilo a fez pensar no que
A fez pen
sar que lar po
deria não ser um lugar, e sim uma pessoa.
Olhou pa
ra o en
de
re
ço e se lembrou da noite que as duas passa-
ram jun
tas.
Pesso
as co
mo nós têm fi
nais felizes?, perguntara ela a Hannah.
Althea pren
deu a res
pi
ra
ção, reunindo coragem.
Depois atra
ves
sou a rua, subiu as escadas e bateu à porta.
Nova York
Julho de 1944
H annah fu
gi
ra.
vez se per
mi
tiu ser.
de Hannah es
tre
me
cia.
A bibli
ote
cá
ria se apai
xonara pela garota de grandes olhos e gran-
des emo
ções, a ga
ro
ta que tinha um coração aberto e corava tão fa-
cilmente quan
to res
pi
ra
va. Aquela menina a arruinara, fincara gar-
A mu
lher à sua fren
te, aquela que falava com tanta convicção, po-
usara o vis
to de Althea pa
ra fugir de Paris e tudo o que sabia que es-
Quan
do che
gou a No
va York, chegou a um país que a lembrou de-
mais de tu
do de que es
ta
va escapando. Tinha visto as fo
tos, aquelas
que retra
ta
vam os ame
ri
canos negros usando bebedouros separa
dos
dos ame
ri
ca
nos bran
cos; visto pessoas que brandiam cartazes pro-
lembrou tan
to da Ale
ma
nha nazista que ela quase vomitou.
A ter
ra da li
ber
da
de e da igualdade pouco fez para lhe estender o
tapete de bo
as-vin
das. Em sua terceira semana no Brooklyn, acor-
frequên
cia pre
ci
sa
va substituir as janelas devido aos tijolos que
eram ati
ra
dos.
Hannah se for
ta
le
ce
ra e descobrira que existiam pessoas boas,
mas tam
bém o me
do e o ódio. A maioria faria qualquer coisa para
sobreviver.
Vira pou
co em sua no
va terra para mudar de ideia se valia a pena
ou não lu
tar pe
la hu
ma
nidade. Então se escondeu, viveu sua vida,
fez ami
za
de com as pes
soas verdadeiramente gentis que conheceu
em seu bair
ro e ten
tou se perder nos livros quando tudo se tornava
demais.
Mas re
ver Althea mu
dou alguma coisa.
vo da for
ma que aca
ba
ra de fazer com aquele discurso. Seu livro já ti-
mí
dia quan
to da crí
ti
ca li
terária. Ela não tinha necessidade de cen-
surar ex
pli
ci
ta
men
te os membros do Congresso por serem egoístas
e insensí
veis di
an
te das necessidades dos soldados.
E, no en
tan
to, era o que fizera.
Nem sem
pre a pes
soa nasce com uma força de caráter latente. Às
vezes es
sa for
ça é for
ja
da por conflitos, lutas e fracassos. Às vezes,
Althea po
de
ria ter se tornado amarga. Falsamente acusada por
uma aman
te e usa
da por um partido político inescrupuloso, poderia
ter se des
vi
ado, po
de
ria ter se tornado uma pessoa má. Ninguém a
teria cul
pa
do.
Em vez dis
so, ela usou o pouco poder que tinha para tentar tornar
o mun
do me
lhor pa
ra ho
mens prestes a morrer nas trincheiras.
Ainda as
sim, era di
fí
cil.
Era di
fí
cil ver al
guém que desprezara por tanto tempo, uma pes-
pessoa cu
ja al
ma vo
cê des
truiu e pedir perdão.
Aque
le fa
to vi
veu no peito de Hannah por anos, não sumiu após
receber a no
tí
cia da mor
te dele — suicídio por ópio. Ela chorou, en-
controu um la
go e dei
xou um anel de lírios nele. Fez suas orações e
enciado as ma
rés.
Ainda as
sim, nun
ca es
queceria que ele não pedira per
dão.
Tal
vez Han
nah de
ves
se ter ficado, depois do discurso de Althea.
que am
bas car
re
ga
vam ha
via anos.
Pela pri
mei
ra vez, sen
tiu compaixão por Otto. Admitir que estava
Ainda as
sim, Han
nah planejava fazê-lo, planejava obter o endere-
para res
pi
rar an
tes dis
so.
Então al
guém ba
teu à porta.
Ninguém a vi
si
ta
va. Nem em casa, nem em seu santuário.
Hannah avan
çou bem devagar com um pano nas mãos enquanto
sua ima
gi
na
ção evo
ca
va um milhão de possibilidades. Todas termi-
nando em Althea.
Chegou à por
ta e olhou pelo olho mágico. Então apoiou a testa na
madeira.
Hannah pen
sou nas cartas, pensou na noite em que Althea a en-
desmoro
na
do na cal
ça
da. Pensou em Alice no País das Ma
ravilhas e
em dias de pri
ma
ve
ra ex
plorando Berlim. Pensou na cama com len-
çóis quen
tes e em de
dos que gostavam de explorar a pele ardente.
Berlim
Maio de 1995
P oucas pes
so
as no
ta
ram as duas senhoras sentadas no banco ob-
servando de lon
ge en
quanto o Memorial dos Livros Queimados, na
ço da ce
rimô
nia. A mu
lher segurou o cotovelo da mãe e inclinou a
cabeça na di
re
ção das mu
lheres.
Vivian Ha
le se
guiu o movimento com o olhar e amoleceu ao ver as
du
as.
chão. No iní
cio do dia, Martha dera um jeito de abrir caminho até a
borda pa
ra ver as fi
lei
ras de estantes brancas vazias sob seus pés
com espa
ço su
fi
ci
en
te pa
ra guardar os vinte mil livros queima
dos
naque
la noi
te em maio de 1933.
Para sem
pre me
mo
ri
za
do como um vazio.
volta da cin
tu
ra da fi
lha.
Aos 75 anos, Viv ain
da era forte o suficiente para puxar Martha
para per
to e al
ta o bas
tan
te para beijá-la no topo da cabeça.
Aque
le ges
to era tão fa
miliar que Martha se permitiu aproveitar.
qualquer pes
soa, na ver
dade — sempre que podia. Martha sentia
que vive
ra gran
de par
te de seus 49 anos de vida mais agarrada à mãe
do que lon
ge de
la.
O pai de Martha não era muito diferente, e ela passara boa parte
da adoles
cên
cia pro
fun
damente envergonhada e secre
tamente sa-
do outro.
— Vo
cê acha que elas não queriam vir?
Martha sa
bia que po
dia ser extremamente determinada, assim
a Berlim des
de que leu so
bre a Biblioteca Vazia. Suas tias nunca con-
seguiam di
zer não a ela, que aproveitara o fato uma ou duas ou vinte
vezes.
— Não é is
so, que
ri
da — tranquilizou Viv, acariciando seu braço.
— Elas que
ri
am es
tar aqui, só já ouviram discursos demais na vida.
Não pre
ci
sam ou
vir mais um.
da mul
ti
dão pa
ra ir até as duas enquanto se esquivava de turistas
com cal
ções es
tam
pa
dos com a bandeira dos Estados Unidos e chi-
nelos.
Hannah sor
riu quan
do Martha parou à sua frente, tampando o
do que sem
pre fo
ra. Seus olhos quentes e dourados estavam nubla-
— Es
tá per
den
do as ati
vi
dades, querida — disse Hannah.
— Es
sa fa
la é mi
nha — brincou Martha, cutucando o pé de Han-
co des
gas
ta
das, mes
mo que devessem estar exaustas da viagem.
— Já pas
sa
mos por atividades suficientes na vida — esclareceu
Viv expli
ca
ra.
Martha que
ria ar
gu
mentar, mencionando as semanas que ela e a
mãe pas
sa
ram pla
ne
jan
do a viagem para as quatro. Salientar como
mundo.
Mas pa
rou um mo
men
to para estudar seus rostos. Embora ambas
pareces
sem se
re
nas, Martha reconheceu a tensão nas posturas. Es-
tavam con
su
mi
das por al
guma lembrança, as duas, e Martha não ti-
nha direi
to de ti
rá-las da
li só por querer o momento comovente que
imaginou quan
do pla
ne
ja
ra a coisa toda.
Mas de
via ter ima
gi
na
do. Embora ambas pudessem ser chama
das
de ativis
tas, nun
ca gos
ta
ram de falar sobre seus dias em Berlim. As
du
as fa
zi
am ques
tão de que os jovens que faziam parte de suas vi
das
— incluin
do Martha e seus dois irmãos — soubessem bem com que
facilidade atro
ci
da
des po
di
am acontecer quando pessoas boas des-
de se apro
fun
dar no tem
po livre.
Ambas já ti
nham de
di
cado o suficiente das vidas profissionais ao
assunto, de qual
quer for
ma.
Althea pas
sou a es
cre
ver livros de não ficção cujo tema central se ba-
seava em co
mo de
mo
cra
cias saudáveis poderiam facilmente morrer
para abra
çar o fas
cis
mo. Ela fizera turnês de palestras e até fora en-
trevista
da pa
ra um do
cu
mentário da PBS, e todos se arrumaram pa-
ra assis
ti-lo, co
mo se fos
se uma ocasião especial. Quando completou
os mesmos tó
pi
cos, mas de uma forma adequada para crianças, re-
pleta de dra
gões e prin
ce
sas, mas com finais complicados que nunca
eram tão le
ves quan
to os livros do gênero. A série ficou muito po
pu-
Hannah tra
va
ra uma guerra mais silenciosa, trabalhando na Bi-
bli
oteca dos Li
vros Proi
bi
dos pelos Nazistas do Centro Judaico, no
sob o pe
so e a ame
aça da Guerra Fria. Com a ajuda de Althea e Viv,
panfle
tos edu
ca
ci
onais cruciais sobre a epidemia da aids.
As du
as ad
mi
nis
tra
vam a editora de uma pequena loja no Broo-
klyn, a ape
nas uma rua do primeiro escritório de campanha do pai
de Martha. O sa
guão da entrada que Althea e Hannah montaram se
transfor
mou em um pon
to de encontro para intelectuais, estudan-
tes, poe
tas e fi
ló
so
fos que raramente ficava vazio. A única regra: ne-
nhum te
ma era proi
bi
do.
Martha pas
sa
ra boa parte da infância entre a loja e as campanhas
do pai. An
tes de com
ple
tar sete anos, já aprendera sobre os diferen-
tes siste
mas de go
ver
nos e como transformar um projeto em lei.
No en
tan
to, mais do que tudo, aprendera que livros eram sagra-
dos, mes
mo aque
les com os quais não se concordava ou dos quais
não se gos
ta
va.
for
mular uma res
pos
ta in
te
ligente a partir de uma reação instintiva.
Martha afir
ma
va que a in
sistência de suas tias em ensiná-la sobre o
pensamen
to crí
ti
co era responsável por ter sido uma das integran-
Pensan
do em tu
do aquilo, Martha compreendeu por que Hannah
Elas mes
mas eram me
moriais dos ideais celebrados ali, simples-
mente pe
la ma
nei
ra co
mo viveram suas vidas.
sentou ao la
do da mu
lher que sempre chamara de tia e se aconche-
gou nela, exa
ta
men
te co
mo fazia desde criança.
— En
tão me con
te uma história.
Althea aca
ri
ci
ou os ca
be
los de Martha e riu. Depois, como sem-
pre, aqui
es
ceu:
É´ pre
ci
so mui
tas pes
soas para publicar um livro, e sou infinita-
mente gra
ta pe
las mi
nhas.
Primei
ro, um enor
me agradecimento à minha agente, Abby Saul.
Em primei
ro lu
gar por en
corajar com tanto entusiasmo meu desejo
de escre
ver fic
ção his
tó
ri
ca, pela paciência em me ajudar a encon-
trar o cer
ne des
te li
vro com seu incrível olho para edição, por pular
de penhas
cos de mãos dadas comigo esperando que pousássemos
em almo
fa
das, por brin
des de champanhe e celebrações em biblio-
tecas e tu
do o mais — serei eternamente feliz por ter você nesta
grande aven
tu
ra.
Muito obri
ga
da a Tes
sa Woodward, que conseguiu ver este livro
muito cla
ra
men
te an
tes mesmo de ser lapidado. Desde a primeira
uma au
to
ra me
lhor ao lon
go do processo.
Para to
da a equi
pe da William Morrow, muito obriga
da. São tan-
tas pesso
as nos bas
ti
do
res dedicando seu amor e talento para colo-
car um li
vro nas mãos dos leitores. Sinto-me honrada por trabalhar
Agra
de
ço ao gru
po #TeamLark, vocês são o melhor exemplo de
Todo mun
do diz que, quando você começa a escrever, não deve
foi o opos
to. Al
guns até começaram a recrutar famílias e amigos da
ais pa
ra Abby McInty
re, Katie Smith, Marissa e Jesus Carl-Acosta,
Julie Vol
ner, Te
re
sa Gon
cal
ves, Tonya Austin, Jessie Silko, Kathleen
e Kendra Hay
den, e Kathe
rine Kline, entre tantos outros.
Nada dis
so se
ria pos
sí
vel sem o apoio da minha família incrí
vel:
Deb, Ber
nie, Da
na, Brant, Raegan e Grace. Vocês são minhas pessoas
Quan
do di
go que é preciso muita gente, isso inclui vocês, caros
leitores. Mui
to obri
ga
da por darem uma chance a este livro, por gas-
dia sem
pre pa
re
ce tão es
casso. Como Viv, acho que é o trabalho de
um escri
tor aju
dar vo
cês a escapar por algumas horas, aplacar seus
corações e fa
zer vo
cês sentirem. Obrigada por confiarem em mim
ravilhosos e co
ra
jo
sos que ajudaram a proteger os livros dos na
zis-
tas. O mun
do tem uma dí
vida de gratidão com vocês.
Nota da autora
horas do tem
po li
vre per
cor
rendo a Barnes & Noble e depois a mu-
Os li
vros sem
pre fo
ram uma parte fundamental na minha vida, e
eles. En
tão me de
pa
rei com o excelente Quando os livros foram à
por His
tó
ria e leio so
bre guerras sempre que posso.)
Apesar da abun
dân
cia de conteúdo sobre a Segunda Guerra Mun-
for
ma de hon
rar o po
der dos livros do que por uma inici
ativa que le-
vava his
tó
ri
as pa
ra os sol
da
dos nos momentos de neces
sidade mais
sombrios? As
sim nas
ceu A bibliotecá
ria dos livros perdidos .
Todo mun
do que lê fic
ção histórica quer saber o que é verdade, o
que é in
ven
ta
do e o que é um pouco de cada. Em A bibli
otecá
ria dos
livros per
di
dos, to
dos os personagens principais são criações mi-
A ini
ci
ati
va da Edi
ções das Forças Armadas foi, de fato, um em-
preendi
men
to ex
tra
or
di
nário do Conselho de Livros em Tempos de
Guerra. As pes
so
as in
crí
veis envolvidas no projeto revolucionaram
os livros — po
pu
la
ri
zan
do o livro de bolso e criando uma geração de
de 1.300 tí
tu
los fo
ram pu
blicados e enviados para soldados destaca-
dos no ex
te
ri
or. (E O gran
de Gatsby foi mesmo resgatado da obscuri-
da
de em par
te pe
lo pro
grama da EFA.) Todo livro da EFA menciona-
do neste ro
man
ce fez par
te da iniciativa, mas ajustei algumas datas
para ser
vir me
lhor na mi
nha linha do tempo. Também gostaria de
neral Ei
se
nhower de que cada participante da invasão do Dia D ti-
e destinou cer
ca de um milhão de livros para distribuir aos homens
mandia.
O se
na
dor Ro
bert Taft, de Ohio, tentou restringir o programa
do Solda
do de 1944. Ele não desistiu mesmo diante de inúmeros edi-
toriais em to
do o país pe
dindo sua remoção, só cedeu de
pois de uma
reunião, em ju
lho de 1944, com o conselho. Foi nesse ponto que to-
nemato
grá
fi
co en
tre Taft e Viv. O conselho lançou uma cruzada con-
tra a emen
da do se
na
dor — contando com a ajuda de páginas de opi-
nião de jor
nais e re
vis
tas país afora —, mas a reunião fi
nal entre os
rando do la
do de fo
ra, não um grande evento com oradores emo
cio-
nados. Quan
do Taft dei
xou o almoço, os jornalistas o ouviram fazen-
do comen
tá
ri
os po
lí
ti
cos comprometedores sobre o presidente Roo-
sevelt e os di
rei
tos de vo
to dos soldados. O passo em falso permitiu
que seus co
le
gas do Con
gresso se distanciassem dele depressa, e a
Se qui
ser ler mais so
bre o conselho, a EFA e sua an
tecessora, a
que os sol
da
dos es
cre
vi
am aos autores, recomendo a obra de Man-
pleta de co
mo os li
vros de
sempenharam o papel de armas na batalha
contra Hi
tler e os na
zis
tas.
Quan
do se pen
sa na Segunda Guerra Mundial e nos livros, tam-
bém é ine
vi
tá
vel que uma imagem surpreendente venha à mente: as
chamas con
tra o céu es
cu
ro, os estudantes jogando mon
tes de livros
nas foguei
ras, o pú
bli
co aplaudindo tudo alegremente.
se coloco al
go a meu res
pei
to em meus personagens, e a respos
ta é
quase sem
pre não. A ex
ceção é a reação de Althea ao ver as foguei-
ras:
— É um sa
cri
lé
gio — sussurrou Althea.
Se ela ti
nha uma igre
ja, ficava dentro das capas dos livros; se ela ti-
Come
cei a es
cre
ver es
te livro em 2020, quando o atual fervor rela-
cionado à proi
bi
ção de li
vros nos Estados Unidos era mais uma vi-
não se re
pe
te, cer
ta
men
te rima. Os paralelos com o período que eu
ha
via aca
ba
do de pes
qui
sar eram fáceis de ver, de modo que eu sabia
onde pro
va
vel
men
te aca
baríamos.
contrar a luz.
Não há mui
to so
bre elas que tenha sobrevivido à passagem do tem-
du
as na Wi
ki
pé
dia e al
guns artigos acadêmicos para os quais eu pro-
vavelmen
te con
tri
buí com cerca de metade dos acessos. Na verdade,
as bibli
ote
cas mui
tas ve
zes eram apenas menções descartáveis no
patronos e apoi
ado
res fa
mosos — H. G. Wells e os irmãos Mann em
Paris e Eins
tein e Up
ton Sinclair no Brooklyn, entre muitos, muitos
ou
tros —, mas fo
ram es
quecidas pela história. Ainda assim, fiquei
imediata
men
te en
can
ta
da com a ideia daquelas bibliotecas, que re-
presentam o me
lhor do que podemos ser quando vemos o mundo
com em
pa
tia, cu
ri
osi
da
de e admiração, em vez de medo, ódio e into-
lerância.
mo pro
fun
da
men
te hu
mano e inevitável, assim como nosso desejo
de prote
gê-los.
Em 2022, tan
to a Bi
bli
oteca Pública de Nova York quanto a Biblio-
teca Pú
bli
ca do Bro
oklyn lançaram programas disponibilizando li-
vros em ge
ral proi
bi
dos para pessoas em todo o país que, de outra
for
ma, não te
ri
am aces
so a esse conhecimento.
Uma pe
que
na bi
bli
ote
ca no Maine fez de sua missão completar as
pratelei
ras com os tí
tu
los que figuraram em todas essas listas proi-
bidas. Um gru
po de mães em Ohio criou um site com mapas para
rastrear li
vros en
fren
tan
do desafios em todo o país.
Sempre é pos
sí
vel en
contrar a luz.
É difí
cil ig
no
rar que muitos dos desafios que estamos vendo são
direciona
dos pa
ra li
vros e autores queer. Eu não tinha a intenção de
mas, as
sim que Han
nah surgiu nas páginas — andando de bicicleta
pelas ru
as de Pa
ris com o coração partido e endurecido —, eu soube
que aque
la mu
lher ti
nha se apaixonado por Althea.
Em Ber
lim, em par
ti
cu
lar, havia os cabarés e boates, é claro, mas
também fil
mes po
pu
la
res, músicas de sucesso e revistas que apre-
sentavam a ex
pe
ri
ên
cia queer. Magnus Hirschfeld, cujo instituto foi
invadi
do pe
los fas
cis
tas antes da queima dos livros, estava décadas à
pessoas vi
vi
am aber
ta
mente de uma forma que não foi vista de novo
por déca
das. Pa
ra ler mais sobre esse período na cidade, sugiro Gay
Berlin, de Ro
bert Be
achy.
Enquan
to a Pa
ris dos anos 1930 não estava exatamente nos níveis
de Berlim, ha
via uma co
mu
nidade vibrante acessível aos residentes
queer.
O Le Mo
no
cle, em Montmartre, foi uma das primeiras e mais fa-
mosas ca
sas no
tur
nas sá
ficas de Paris, e a lésbica Natalie Clifford
Barney, de fa
to, aco
mo
da
va um salão literário semanal em sua casa
na mar
gem es
quer
da do Sena, atraindo pessoas como Gertrude
Stein.
Muitas ve
zes nos di
zem que o trauma e a dor são partes indelé-
veis de qual
quer his
tó
ria LGBTQIAPN+ histórica, tanto que roman-
ces que
er ale
gres am
bi
en
tados no passado às vezes são considera
dos
utópicos ou fan
ta
si
osos. Embora nossas cicatrizes não possam ser
ne
gadas, não de
vem apa
gar o fato de que também havia felicidade e
amor. As pes
so
as que
er sempre foram capazes de “curiosamente va-
final.
de todo o tex
to. Qua
se to
dos os eventos e figuras históricas são, até
mana, te
nho cer
te
za de que inseri alguns erros por engano. Peço
desculpas de an
te
mão.
Escolhi de
fi
nir o pon
to de vista de Althea no primeiro semestre
coisa acon
te
ceu tão de
pressa naquele espaço específico de tempo
que sem
pre fui fas
ci
na
da por aqueles meses. Se eu tivesse incluído
Great Cour
ses que in
cluí na seção Mergulhe mais fundo .
Embo
ra gran
de par
te do foco da história tenda a ser sobre os via-
bilizado
res mas
cu
li
nos de Hitler, eu queria incluir He
lene Bechs-
tein, famo
sa pe
lo pi
ano Bechstein. Helene e outras mulheres ricas e
po
derosas en
si
na
ram seu “lobinho” sobre modos à mesa e outras eti-
quetas e o aju
da
ram a na
ve
gar pelo alto escalão de Berlim — parte
riam a che
gar ao po
der. As mulheres são tão frequentemente elimi-
nadas do con
tex
to his
tó
ri
co que é fácil esquecer os papéis que po-
dem de
sem
pe
nhar nos momentos cruciais que moldam a humani-
da
de — pa
ra me
lhor, sim, mas também para pior. Não devemos es-
quecer.
Tam
bém pre
ci
so men
cionar que os medos de Hannah quanto às
ideias as
sas
si
nas de Ott
o foram baseados em eventos reais que ocor-
reram de
pois de Han
nah fugir de Paris. Em 1938, Herschel Feibel
Grynszpan ati
rou em um diplomata alemão, incidente que os na
zis-
Cristais.
Enquan
to gran
de par
te do pano de fundo histórico deste livro se
aproxima de even
tos da vida real, uma das maiores alterações que
de Go
eb
bels. Por mais que ele estivesse encarregado de definir a
agenda cul
tu
ral pa
ra o Rei
ch de Hitler, criei essa iniciativa especí
fica
Espe
ro que a par
te his
tórica tenha despertado seu interesse, mas,
movido vo
cê, cri
ado al
gu
ma identificação, feito você rir ou chorar ou
sentir aque
le aper
to no peito que só pode ser descrito como um mi-
lhão de sen
ti
men
tos di
fe
rentes ao mesmo tempo.
verdade emo
ci
onal”.
Meu ob
je
ti
vo fi
nal era fazer isso para você.
Muito obri
ga
da pe
la lei
tura.
Livros do livro
A baixo es
tá uma lis
ta de to
dos os livros mencionados em A bibli
ote-
cá
ria dos li
vros quei
ma
dos, fora os dois romances fictícios de Althea
James.
Oli
ver Twist, Char
les Dickens
As aventu
ras de Huckleberry Finn, Mark Twain
As aventu
ras de Tom Sawyer, Mark Twain
As vi
nhas da ira, John Steinbeck
Cân
di
do, ou o oti
mismo, Voltaire
Yan
kee from Olympus, Catherine Drin
ker Bowen
O gri
to da sel
va, Jack London
Boê
mios er
ran
tes, John Steinbeck
Fru
ta es
tra
nha, Lil
lian Smith
Uma árvo
re cresce no Brooklyn, Betty Smith
Chic
ken Every Sun
day, Rosemary Tay
lor
A fei
ra das vai
dades, William Make
pe
ace Thac
ke
ray
Co
letâ
nea de poesi
as de Reinmar von Ha
ge
nau
As aventu
ras de Alice no País das Ma
ra
vi
lhas, Lewis Car
roll
Ro
meu e Ju
li
eta, Wil
li
am Shakespe
are
Si
dar
ta, Her
man Hesse
Ra
tos e ho
mens, John Steinbeck
O engenho
so fi
dalgo Dom Quixote de La Man
cha, Mi
guel de Cer
van
tes
O Parna
so so
bre rodas, Christopher Mor
ley
Os mi
se
rá
veis, Victor Hugo
Na
da de no
vo no front, Erich Maria Re
mar
que
Con
tos de fa
das dos irmãos Grimm, Ja
cob e Wi
lhelm Grimm
Iva
nhoé, Wal
ter Scott
Su
ave é a noi
te, F. Scott Fitz
gerald
A biblio
te
cá
ria dos li
vros queimados, consulte abaixo algumas das
Livros
Adeus a Ber
lim , Christopher Isherwo
od
As
censão e que
da do Terceiro Reich , Wil
li
am L. Shi
rer
Bo
oks as We
apons, John B. Hench
La
drões de Li
vros. A história real de co
mo os na
zis
tas rou
ba
ram mi
lhões de livros
du
ran
te a Se
gunda Guerra, Anders Ry
dell
No jar
dim das fe
ras, Erik Larson
Quan
do os li
vros foram à guerra, Molly Gup
till Man
ning
The De
ath of De
mocracy, Benjamin Car
ter Hett
Artigos
Dis
po
ní
vel em: https://www.npr.org/2014/12/17/371424790/between-world-
wars-gay-cul
ture-flourished-in-ber
lin#:~:text=Mo
re%20spe
ci
fi-
cally%2C%20it’s%20about%20gay,that%20we
re%20sold%20at%20kiosks.
“Paris Opens Li
brary of Books Bu
rent by Na
zis.” The Guar
di
an Ar
chives . Disponí-
brary-burnt-books-1934.
Ap
pel
baum, Yo
ni. “Publishers Ga
ve Away 122,951,031 Bo
oks Du
ring World War II.”
The Atlan
tic, 2004. Disponível em: https://www.the
atlan
tic.com/business/ar-
chi
ve/2014/09/pu
blishers-gave-away-122951031-bo
oks-du
ring-world-war-
ii/379893/
Le
ary, Wil
li
am M. “Books, Soldi
ers and Cen
sorship du
ring the Second World
War.” Ame
ri
can Quarterly, v. 20, n.2., The Johns Hop
kins Uni
ver
sity Press, 1968.
Dis
po
ní
vel em: https://www.jstor.org/sta
ble/2711034.
Von Mer
veldt, Nikola. “Books Can
not Be Kil
led by Fi
re: The Ger
man Freedom Li-
Me
mory.” John Hopkins Uni
ver
sity Press. Dis
po
ní
vel em: https://mu-
se.jhu.edu/ar
ticle/213118.
Whisnant, Clay
ton J. “A Peek Insi
de Ber
lin’s Que
er Club Sce
ne Be
fore Hitler Des-
oks/2016/7/19/pe
ek-inside-berlins-que
er-club-sce
ne-hi
tler-des
troyed-it.
Mais
“Hi
tler: YA Fic
ti
on Fan Girl”, Robert Evans, Behind the Bas
tards (pod
cast)
Mag
nus Hirs
ch
feld, Leigh Pfeff
er e Gret
chen Jo
nes, His
tory Is Gay (podcast)
“Das Li
la Li
ed”, composta por Mis
cha Spo
li
ansky, le
tra de Kurt Schwabach (músi-
ca)