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ção Luis Reyes Gil. — 1. ed. —
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ISBN 85-89885-36-4
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01410-000-São Pau
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Un roman: c’est un miroir qu’on promène le long du chemin.
Saint-Réal
Su
mário
Prólogo
Primeira Parte
Bárbara
Tempestade de primavera
Abelhas e glicínias
Pai e filha
Lady Godiva
O pintor Masdéu
O casamento de Sofia
Nascimentos
As empregadas no verão
As crianças
Segunda parte
O tabelião Riera
Tempo passado
O professor de piano
Os brincos de Armanda
Sofia
Ramon e Mar ia
Mar ia
O loureiro
Adeus, Mar ia
A lápide
Sofia
Sonhos
Terceira Parte
Uma manhã
Juventude
Morte de Teresa
Os quartos fechados
O palacete
O tabelião, muito velho, sai para passear
Os homens da transportadora
O fantasma de Mar ia
Ramon
Armanda
A ratazana
Prólogo
luntár ia... toda uma alquimia. Se eu nunca senti nenhuma emoção diante
esplen
dor da primavera ou geado e esquelético no inverno, como a boa
nos por elas atraído e nunca mais veremos. Por isso deixam um remorso
difícil de explicar em palavras. Uma mão, numa pintura, pode dar todo
de uns olhos. Um sorr iso enigmático que às vezes pode ser apenas a
os para fora do gibão. Não cheguei a tanto. Escrever bem custa. Por es-
Quando me sai uma frase com um toque diferente, tenho uma pequena
por ex
emplo, sobreviver, se me impôs, poder ia dizer assim, Jardí vora el
ra pessoa, o monólogo inter ior. Ligada às flores, sem flores durante anos,
jardineiro. “Um jardineiro é uma pessoa diferente das outras e isso nos
vem de lidar com flores.” Jardí vora el mar, o último de meus romances
ainda sabia escrever um pouco, que podia ir mais longe, que meus ansei-
houvesse tudo isso. Agradava-me pensar que a família ser ia rica, com
em meu espír ito não se chamava Teresa nem se chamava Goday. Não ti-
nha nome. Uma beleza que ajudava a mãe a vender peixe, mas preparada
inter iormente para subir de nível com aquela facilidade que muitas vezes
tem uma pessoa, sobretudo uma mulher, arrancada de seu ambiente por
pas por estar interfer indo, um outro romance, de estrutura simples, com
um baile, com um casamento, com um terraço abarrotado de pombos.
porque fazia tempo que tinha vontade de escrever um conto com um per-
sonagem de corpo presente, nasceu, carregado de mistér io, “Eladi Farr i-
ols de corpo presente”, e, assim como Teresa ainda não se chamava Te-
resa, Eladi de corpo presente não se chamava Eladi Farr iols nem era ve-
lado por uma cozinheira que se chamava Armanda, nem por um pintor
mante. O romance de uma família tinha de ser mais amplo, tinha de ter
maior abertura. Não podia fazer o romance ser explicado por um só per-
concordavam com isso. Uma moça como tem de ser não devia dançar.
rasada. Uma noite, na quermesse de Gràcia, fui com meus pais passear
por ru
as enfeitadas e ver áreas cobertas de toldos: a praça do Sol e a pra-
va por ruas cheias de música como uma alma penada de tão triste que
estava. Devia ter doze ou treze anos. Da maneira mais insólita, anos de-
te, que eu não lembrava como era nem por que ruas se chegava até lá.
ticas minhas, mas não sou nenhum deles. Por outro lado, meu tempo his-
ce é, também, um ato mágico. Reflete o que o autor traz dentro sem que
ele saiba muito bem que anda carregado com tanto lastro. Se tivesse a
uma crônica. Existem algumas muito boas. Mas não nasci para me limi-
Quando quis escrever outro romance, não me sentia com força su-
te. Caí numa armadilha. Tinha entrado tão fundo na pele da minha per-
sonagem, tinha a Colometa tão perto que não podia fugir dela. Só sabia
suas criaturas. Eu não posso dizer sem que soe falso: “A Colometa esta-
posso fazê-la dizer diretamente: “Eu estava desesperada porque não da-
mais expressiva, mais detalhada; não tenho de dizer ao leitor que a Co-
lometa está desesperada, e sim tenho de fazer com que ele sinta que ela
gada a escrever: “E foi naquele dia que disse a mim mesma que tinha
de maçã, tudo fora!” Eu não posso dizer da Cecília que “a primeira vez
que su
biu no terraço viu uma estrela enorme para os lados da montanha”
porque não posso saber se viu uma estrela enorme quando subiu no ter-
raço. Mas com certeza posso fazê-la dizer: “A primeira vez que subi no
pode saber o que vê e o que acontece com ele, o autor não. Desta manei-
ra o leitor sente uma verdade ou, como se queira, mais verdade. Todo ro-
mante. Nada menos real, mais rebuscado. A sensação de coisa viva é da-
po, escrevia contos, gênero que não demanda tanto esforço. Ser ia a cole-
trabalhado. A infância de Cecília, não sei por quê, me inspirou outro ca-
sendo construído quase sem eu perceber. E com um estilo que não era o
meu.
uma família], Temps passat [Tempo passado], Tres generacions [Três ge-
cado, até que chegou ao último degrau, tropeçou e caiu, tão alta como
ainda estavam presos à moldura mas uns quantos haviam saltado fora.
Ela os catava e tentava colocá-los nos vazios onde achava que encaixa-
eram? E de repente em cada pedaço de espelho viu anos de sua vida vi-
Tudo passava, desaparecia. Seu mundo ganhava vida ali dentro com to-
viu tiros. Como toda noite. Tinha chegado a hora do champanhe.” O es-
nebrinos tomam o chá felizes por terem nascido na Suíça, paraíso da Eu-
ropa. Entre um gole de chá e outro vemos a água cortada por esquiado-
res náuticos, por lanchas a motor, por barquinhos a vela, pelos vaporzi-
lago e ficou tão imóvel que nem parecia de verdade. Vestia joias, coisa
olhava os barcos, a água com sol e céu misturados em cima dela, o va-
porzinho que passava tocando a sirene com alegria? Pensava nela? Revia
sua juventude? Via alguma coisa ou não via nada, de tão profundamente
perdida em suas lembranças? Mais tarde, quando, sem fazer nada para
morenos, não sei. Lembrava de seus olhos, que, uma hora, toparam com
os meus; uns olhos de cor indefinida onde se havia acumulado muita vi-
da dama do Leman.
Conta tudo.
criar aquele peso de nostalgia que tem todo aquele que viveu com inten-
sidade e se acaba. Não são nem bons nem maus: como as pessoas que
passam ao nosso lado todo dia da semana. E têm segredos. Espelho par-
tido é um romance onde todo mundo se apaixona por quem não tem de
se apaixonar e quem tem falta de amor procura obtê-lo seja como for: no
der ia ter se apaixonado por um pedreiro. Tem um filho com ele. O funci-
onár io é casado. Tinha de fazer com que Teresa saísse de uma situação
passar enquanto toma café no terraço do Liceu; e casa com ela. “O se-
nhor Nicolau perguntou a Teresa se quer ia casar com ele: tudo o que lhe
podia oferecer era sua fortuna, sabia de sobra que era velho e que nenhu-
com que o funcionár io fique com o filho. Ela será madrinha dele. Já te-
mos uma pessoa com um segredo para sempre. Rovira morre logo e faço
daura, antes de se apaixonar por Teresa, dou-lhe uns amores trágicos que
sempre. Teresa respira essa vida inter ior de seu mar ido, mas pode recu-
sar o amargor, apaixonando-se ela por sua vez. Já temos em cena Ama-
tinha sobre a mesa um jarr inho de cristal e prata com uma rosa vermelha
sítio. Era uma tarde de vento e chuva, cinza como o chumbo, animada
pelas luzinhas vermelhas dos carros que passavam descendo a rua. Indo
fazê-lo distinto, magro, com uma cabeça romântica. Iria fazê-lo tabelião.
Ter ia em cima da mesa um jarr inho de cristal e prata com uma rosa ver-
mulher velha, muito arr umada, muito limpa, carregando um cesto cheio
nho branco com manchas loiras. Nos olhos daquela mulher havia uma
espécie de tristeza, nela toda uma grande contenção. Ainda tinha ilu-
nheira dos Valldaura. Iria aproveitá-la ainda novinha. Fiel aos seus pa-
trões. A Teresa Valldaura dei uma filha que não se parecesse com ela.
tação faz a sua força, e aponta a arma das suas aceitações contra seus
inimigos. Contra um só inimigo: Eladi Farr iols, seu mar ido, filho e so-
perdia. Vi-me obrigada a montar um fichár io, o que me deixou contrar i-
interes
se.
tovias. Existe o espelho de cada dia que nos faz estranhos a nós mesmos.
Atrás do espelho existe o sonho; todos gostaríamos de alcançar o sonho,
que é nossa mais profunda realidade, sem quebrar o espelho. Sem so-
di, jeudi, vendredi, samedi sur le mème rythme...” Mas se o romance, va-
tempo.
palmente, Mar ia, filha natural de Eladi Farr iols e Pilar Segura, cançone-
tis complicados por ciúmes dos adultos) é uma das chaves — a chave —
fui seu destino. Por isso, tanto as vivas como as mortas, tenho-as perto
te familiares. O tabelião Riera vejo-o a toda hora; ele passeia pelos bos-
céu ou no inferno. O tabelião Riera, que agora está calado, irá me censu-
rar: “Por que me deu uma velhice ridícula?” E eu lhe responderei: “Por
tantos brilhantes e de tê-la feito, quando jovem, uma mulher tão bonita.
A Armanda sei que estará satisfeita com sua velhice tranquila, apenas
com um pouquinho de dor nos pés. Ramon Farr iols, amargo por dentro
até o final, nem irá olhar para mim porque muito dinheiro estraga as pes-
soas. Eladi Farr iols terá vergonha. Encontrarei eles todos. A Colometa
de muitos, algumas alegrias, mas no final do teu livro eu te dei uma li-
ção: ainda que tudo continue triste, sempre existe um pouco de alegria
dormir com esse e com aquele. Eu quer ia saber quem foi meu pai. Que-
ria saber como era quem me deu a vida, que você me tivesse deixado vê-
lo nem que fosse por um momento. Não quer ia nada com tanta ferocida-
de. Por quê? Por que você me negou meu pai?” E eu lhe direi: “Eu te fiz
com uns olhos tristes que são os olhos mais belos do mundo e te dei
uma vida, eu e somente eu, boa ou ruim, mas uma vida. E mais vale isso
enquanto passeia pelos caminhos do céu: “Na parede mais alta, o que a
“Não seja tão inocente... Não está vendo que na parede mais alta a única
contrar com o mar inheiro da minha Cristina sei que não me dirá nada.
Irá me voltar as costas, fur ioso porque o fiz viver por muitos anos acasa-
lado com uma baleia. A pobre Salamandra irá me olhar meio escondida
reclamará humildemente uma ponte mais de verdade para ele poder su-
bir, sem o desencanto final. Virão todos. Existem alguns novos que já se
aproximam e ainda não sei como serão. Sinto-me responsável por eles?
Fizeram o que eu quis ou alguma vez foram por onde quer iam? Não sei.
cristal que Teresa deixa para o pequeno Jaume beber vinho com ela, tra-
do, o senhor sem cabeça da casa de bonecas que Ramon Farr iols levou
lo, frondoso de árvores centenár ias. Cheio de rouxinóis nas noites de ve-
todos os jardins.
Transcreverei os fragmentos. Talvez no final das contas seja útil para al-
trand, de Nice, que faz uma tese sobre A Praça do Diamante, à senhor ita
Eva Bittner, de Hamburgo, que faz outra sobre minha obra, e a Carme
Aos três ou quatro anos meu avô me disse que eu tinha, meu, muito
visto nas estampas. Não tinha nenhum que usasse sapatos. Passeava de-
vagar com meu anjo do lado: não o sentia respirar, mas sentia que gosta-
e eu não podia vê-lo. Sabia como era mas não podia tocá-lo. O meu anjo
invisível não me largava nunca porque tinha que me guardar. Sem que
eu sen
tisse que ele me levava pela mão sabia que às vezes me trazia se-
gurando minha mão. Essa rajada de vento entre as folhas, pensava, são
ras: “Olha pra água”. Ligavam a torneira do esguicho: “Olha pra água”.
Amarela como um cír io, não comia e dormia pouco. Tinha me apaixona-
nha vontade de abraçá-lo, mas não estava em lugar nenhum. Talvez co-
que da
vam bronca nas pessoas e lhes explicavam que estavam diante das
sem para o mal que Deus fazia transbordar do altar; que Deus lhes mos-
trava o mal que havia sido feito, para que todos rezassem para acabar
com o mal.”
“Assoprei nas nar inas dele e lhe disse que era meu anjo.”
A Cecília, apaixonada pelo Esteve, lhe diz que é seu anjo. Depois de um
tempo, quando já tem Martí como amigo, Cecília começa a comprar an-
jos. A lembrança do anjo que para ela tinha sido Esteve inconsciente-
(Capítulo XLVIII):
“Um dia num antiquár io da praça do Rei vi um anjo de madeira,
da altura de uma pessoa, que me agradou. Fui vê-lo umas quantas vezes
{ii}
e comprei-o para mim no dia do meu santo. Ao chegar com ele em ca-
sa coloquei-o aos pés da minha cama, bem perto, voltado para a cabecei-
ra. O anjo me olhava como uma pessoa que tivesse sofrido muito; vestia
mãos haviam sido cortadas. Era a primeira coisa que via assim que abria
os olhos e logo comprei outro, menorzinho. O que não tinha mãos eu le-
vei para a casa e disse para o Martí que o havia trocado por aquele me-
nor. Fui comprando anjos e levava todos para a casa. Tinha anjos altos e
baixos, com cachinhos, com cabelos lisos, com uma taça na mão, com
curo, com a luz das estrelas que vinha da janela, e me davam uma espé-
cie de medo que na verdade era mais uma companhia. Como se fossem
chão, bem engastada na pedra, uma coisa preta, comprida e fina como
uma faca de cortar pão, brilhava envernizada: era uma pena. Não ousava
tocá-la mesmo morrendo de vontade, porque achava cur ioso que fosse
tão grande. Que asa ou que rabo de passar inho ter ia sido capaz de
olhando até que não resisti mais e passei um dedo por cima dela umas
quantas vezes: parecia de seda. ‘Que linda que você vai ficar dentro de
uma jarra’, disse para ela. E na hora em que ia pegá-la para levá-la para
casa, um esbater de asas junto com uma grande ventania me fez rebater
contra a oliveira. E tudo mudou. O anjo estava ali, alto e preto em cima
mundo. O anjo, de tão quieto, não parecia de verdade; até que se incli-
com aquilo, com um gemido fugiu para cima, furando o ar para deixar-
se cair no chão vaporoso. Assim que o tive a uns três palmos, pernas pa-
que o anjo havia me perdido, parei com as mãos no coração para que
não me fugisse do peito. Jesus amado!, estava com ele na minha frente,
mais alto que a noite, todo ele feito de nuvem, com as asas tremendo,
te, oh!, que longo, olhando-nos encantados. Sem deixar de olhá-lo, esti-
quei um braço e com um golpe de asa me fez retirá-lo. ‘Vai embora’, ou-
vi que dizia uma voz que já não sabia se era a minha. E outra vez esti-
mecei a gritar: ‘Vai embora, vai embora, vai embora!’ Da terceira vez
{iii}
que estiquei o braço topei com uma atzavara. Depressa e sei lá como,
me agachei atrás, certa de que o anjo não me vira. O pedaço de lua, que
folhas que crepitavam, sem saber aonde iria parar nem se iria conseguir
sair do cemitér io. Depois de muitas voltas cheguei à alameda dos cipres-
tes; um cheiro amargo de flor de mexer iqueira quente de sol, de onde se-
preste mais próximo de mim. O braço dos golpes de asa me doía, estava
morto chorava longe porque não me lembrava mais dele, mas uma voz
que saía de detrás de um sol de cor de gesso dizia que meu morto era o
anjo, que dentro do túmulo não havia nada: nem ossos nem lembrança
de pessoa quieta. Não era preciso mais comprar nenhuma flor, nem pe-
quena nem grande, nem precisava mais engolir lágrimas; só tinha que rir
e rir até a hora em que eu também ser ia anjo... e eu tinha vontade de gri-
tar, para poder sentir a voz escondida, pois não gostava de asas, não gos-
tava de plumas, não quer ia ser anjo... e não podia gritar. A voz ordenou
que olhasse. Uma névoa baixa que ia se espalhando pelo cemitér io como
grama que só cresce ao clarão das estrelas... eu já não estava mais junto
as asas arrastando pelo chão, estava sentado num banco de madeira, co-
ficar arrastando as asas de qualquer jeito as plumas vão soltar e ele irá
perdê-las pelos cemitér ios’. A neblina, cada vez mais branca e mais es-
pessa, gelava minhas pernas e seguia em frente. Não a neblina, eu. Toca-
anjo, que não parava de me olhar e quando me teve perto ergueu-se todo
cheiro de terra preta e boa que ia me cobrindo, daquela que você pode
plantar o que quiser que tudo dá. Por entre túmulos e folhas mortas ou-
via-se o rumor de água e via-se brilhar um fio de não sei o quê, e o anjo
abria e abria as asas e quando me teve junto dele, quando senti a sua do-
çura que se misturava com a minha... nunca vou entender por que preci-
sei tan
to me sentir protegida. O anjo, que deve tê-lo adivinhado, me en-
volveu com suas asas, sem apertar, e eu, mais morta do que viva, toquei
fogo de estrela; cada estrela a casa de um anjo. Além do mar, de cada ca-
sa, bri
lhante, saía um anjo vermelho, uma tropa de anjos descia para
te tropas e tropas; com a ponta das asas esfregavam-lhe o rosto mais do-
ces do que o mel, mais frescos que um broto de salsinha. Ria... ria...
ria... tomada por uma rede de doçura infinita. Os anjos não tinham rosto,
não tinham pés, não tinham corpo. Eram asas com uma alma vaporosa
uma fumaça em forma de eu que era eu e que não era bem eu.” “A al-
ele chegava perto.” A senhora Teresa sabia e Armanda sabia que a se-
nhora Teresa sabia que o anjo de seus sonhos tinha a cabeça de Eladi
Farr iols. “Eu, alma, não tinha seios de tão pequeninos que eram... O an-
jo, com as penas das asas um pouco aloiradas nas pontas, tinha uma ca-
peu: “A senhora nunca tinha me contado que ele tinha cabeleira”. “Das
últimas vezes tinha. E me pegava pela cintura, com um braço só, como
para além do céu e sentávamos em cima da lua até que o anjo ia embora
dizendo para mim que voltar ia. Havia me deitado em cima de uma pilha
fazer os cachos do anjo, entrou uma senhora alta, muito magra, com na-
mar inheiro, que apertava contra o peito uma corneta brilhante e doura-
encomendar uma lápide de mármore cinza para o túmulo de seu mar ido;
acima do nome e das palavras que falavam de sua morte, ela quer ia três
um pouco mais alto e o terceiro mais curto que o do meio. Quer ia isso
logo. Quando foram embora, meu chefe, que lhe havia dito que deixar ia
anjo era urgente, que primeiro de tudo o anjo. E fui martelando seus ca-
chos. Toda noitinha, quando chegava em casa, dizia para a Balbina que
estava fazendo um anjo eu sozinho, porque meu chefe tinha dito a ela
uma vez que eu era mau marmor ista e que ele não podia me mandar fa-
ra crisálida, a crisálida borboleta, o gir ino vira rã. Não posso afirmar
que te
nha presenciado alguma vez a metamorfose de uma pessoa, da
parte mater ial de uma pessoa, mas sim que presenciei metamorfoses da
como uma mancha branca em cima do preto do luto... para cima, Colo-
meta, que atrás de ti está toda a dor do mundo, livra-te da dor do mundo,
do a escada, para o teu terraço, para o teu pombal, voa, Colometa. Voa,
voa, com os olhos redondinhos e o bico com os fur inhos em cima como
um nar iz.”
meus olhos estavam inchando e que não era capaz de fechá-los. Pus a
nho de ar, mas o ar tinha ficado espesso e minha boca rachava dos lados.
E quando não pude mais respirar nada e sentia que todo meu corpo se
asfixiava, dei uma sacudida e com os pés furei o barco que parecia ter
por dentro, depressa, como uma erva daninha. Uma espécie de vertigem
me inclinou para a frente e caí em cima da água plano como uma pena
nadar com os braços, mas não conseguia lembrar nem onde eu os tinha.
E então senti que de cima a baixo das costas, dolor idamente, erguia-se
era fresco e fácil. Divino. Tinha virado peixe. E fui peixe por muitos
anos.”
que uma vez eu tocara com o dedo, e, abaixo da cabeça, lá onde o pesco-
os braços e que outros corr iam e acabavam topando com os que ainda
SOBRE A IN
GE
NUIDA
DE DOS MEUS PER
SO
NA
GENS
meus personagens.
ante do sol, das nuvens e das estelas — como se refere Bernat Metge às
posso garantir que meus pais me fizeram ingênua”. Mas sou uma pessoa
me faz sentir bem no mundo em que me coube viver. Por desejo de es-
crever com uma certa idiossincrasia, cultivei, desde muitos anos — e is-
poder das flores que me trazem momentos inefáveis, pela lenta paciência
deste céu tão próximo e tão distante ao mesmo tempo, onde brilham e
tremulam todas as constelações. Isso fez com que passasse tempos rudes
e rudezas de todo tipo sem que no final isso tenha me marcado profun-
com ares de pretensão. Quer ia começar, nova como a luz do dia — e não
escrever. Se não parecesse exagero dir ia que escrevo para agradar a mim
mesma. Se ainda por cima o que escrevo agrada aos outros, melhor. Tal-
vez seja mais profundo. Talvez escreva para me afirmar. Para sentir que
M.R.
Primeira Parte
Sterne
I
senhor mandar.” Depois subiu a senhora Teresa. Sempre era assim, pri-
meiro ele, depois ela, porque na hora de descer eram os dois que tinham
de am
pará-lo. Era uma manobra difícil, e o senhor Nicolau precisava de
cia. O senhor Nicolau explicava a todos que Vicenç valia muito, que se
não pudesse contar com ele vender ia a berlinda porque não confiar ia em
as nuvens aparecia um raio de sol pálido que não durava muito. Todo
japonês de laca preta com incrustações de nácar e ouro, lindo, mas que
não a deixara entusiasmada. Ele teve uma decepção: “Estou vendo, não
com ele e para você eu vou comprar uma coisa que lhe agrade”. Em
lau a descer do coche — “do meu armár io”, como dizia ele. Parado no
olhou umas duas ou três vezes de um lado, do outro, sem mover a cabe-
ça, como se não soubesse o que fazer. Por fim, agarrou o braço da sua
Como eles quer iam ver pessoalmente o senhor Begú, um dos fun-
cionár ios acompanhou-os até o escritór io. O senhor Begú era um ho-
vantando-se, assim que entraram. Fazia tempo que não os via e achou
que o senhor Rovira tinha envelhecido muito: vai ver que não estava re-
ponto: “Quer ia que nos mostrasse uma joia, aquilo que as pessoas cha-
pé, que lhe descansava as costas, e pensou que ter ia de procurar duas
gante, com o terno escuro riscado e uma pérola cinza no meio da grava-
ta. Tinha pego um lápis pelas duas extremidades e olhava para eles sorr i-
dente: “Que tipo de joia querem?” O senhor Nicolau olhou para Teresa,
e Teresa disse que, talvez, um broche. Tinha brincos, tinha o anel, não
zer as caixas dos broches, todas. Seus olhos tinham ido pousar sobre Te-
resa; depois olhou para o senhor Nicolau com um olhar que o desmonta-
va. Co
nhecia a histór ia: que o senhor Rovira, na sua idade avançada, ca-
sara com uma moça de origem muito humilde, e vai lá saber o que havia
por trás daqueles olhos que pareciam tão inocentes e por trás de tanta
não tentar.” Não sabia o que dizer. O senhor Nicolau tossira um par de
vezes como se fosse morrer; devia ter uma bela bronquite, coitado. “Ta-
baco demais, e licores demais.” Quando viu entrar o funcionár io foi co-
que podia voltar a fechar a caixa. Quer ia uma joia de valor. O senhor
Begú abriu as outras caixas com um sorr iso de satisfação e olhou inten-
samente o senhor Nicolau e sua mulher. Teresa, que durante o tempo to-
deixou sobre a mesa. Então o senhor Begú foi até a caixa-forte e trouxe
para outro como se o que estivesse vendo fosse um sonho e quisesse des-
pertar. O senhor Nicolau havia tirado o broche do estojo e sentia seu pe-
so. “Você não acha que é demais?”, suspirou Teresa, sufocada de felici-
dade. Ele nem respondeu e com a voz um pouco roufenha disse ao joa-
notas que ia colocando bem arr umadas sobre a mesa. O senhor Begú os
acompanhou até a porta. “Como deve ter feito ele ganhar dinheiro, a
ceu e ele lhes deu os parabéns. Ao subir no coche, Teresa pensou que
Depois de umas duas ou três semanas, uma manhã Teresa saiu de casa
bem cedo. Seu mar ido fazia alguns dias que pegara um resfriado muito
forte. Ela disse que tinha de ir ver a costureira e que não ia de coche por-
que precisava andar, tomar ar: passara dois dias trancada, rodeada de mi-
costureira boquiaberta. Aquele fecho, como dizia o senhor Begú, era pa-
ra qualquer homem fazer boa figura. “As pessoas que olharem para mim
não vão pensar: que senhora!, e sim, que senhor!” Enfiado na cama, riu
sem muita convicção. Teresa era uma pérola. Ele a conhecera vendo-a
passar de braço com uma amiga, desde o terraço do Liceu. A mãe de Te-
resa tinha uma banca de peixe no mercado da Boquer ia. Ela tinha conta-
do isso logo, um dia que andava sozinha e que ele, depois de segui-la
de sobra que era velho e que nenhuma moça poder ia se apaixonar por
ele. Teresa disse que iria pensar. Tinha um grande problema: um filho de
quel Masdéu, era casado e ganhava a vida, entre outras coisas, acenden-
do e apagando luminár ias de rua; mas era de cair de costas. Assim que o
sa de uma tia e depois de alguns dias disse que sim. “E a banca de peixe,
que se dane!” Tudo aquilo parecia ter acontecido fazia muito tempo, mas
na ver
dade não fazia tanto tempo assim... O dia era doce e o sol, encan-
tador. Teresa andava como se tivesse asas nos pés. Depois de um tempo
que iria fazer lhe sair ia direito. E tinha de fazê-lo forçosamente. Seu ma-
rido, que era capaz de gastar uma fortuna para fazê-la brilhar, dava-lhe
dinheiro com conta-gotas: mais cedo ou mais tarde ele se dar ia conta de
que o dinheiro estava indo embora rápido. O que mais a preocupava, po-
rém, era que a tia Adela envelhecia, podia morrer de um dia para o outro
empur
rou a porta e entrou.
moço das caixas, que já a conhecia, sorr iu para ela. “Teve sorte, senhora
Rovira; o senhor Begú acabou de chegar.” O senhor Begú, que devia tê-
com uma aba verde que a deixava meio à sombra. Melhor assim, prote-
deixou do lado da luminár ia. “Ele vai achar que um dos brilhantes se
desprendeu e que eu vim reclamar.” Como Teresa não dizia nada, o se-
nhor Begú perguntou-lhe se havia alguma coisa que não andava bem.
“Algum problema com o fecho do ramo?” “Não; eu vim para que o se-
vantar, passou a mão no cabelo e por último se decidiu: “Seu mar ido sa-
melosos acrescentou: “Meu mar ido não sabe e não deverá saber nunca”.
O que ela quer ia é que ele, o senhor Begú, lhe comprasse o broche, por
to: tem de me prometer que não vai expor esta joia nem vendê-la até da-
qui, di
gamos, dois ou três meses, e que, antes de vendê-la, se for vender,
dois terços do que o meu mar ido lhe pagou? Não posso prometer, mas é
ra ser ia obrigado a pedir que a senhora voltasse outra hora”. Abriu o cai-
nhor.” Então o senhor Begú, que ao dar-lhe as notas havia lhe esfregado
mos a nos ver?” Enquanto atravessava a joalher ia, ela respondeu com a
Segurando a bolsa pelo fecho foi até a parada dos coches. Quando che-
gou à casa da sua tia Adela, a vizinha, que varr ia a entrada, disse que
não havia ninguém, mas que dona Adela voltar ia logo. Se quisesse espe-
rar... Tia Adela apareceu depois de um momento, esfalfada, com uma sa-
cinho e foram até a sala. Teresa lhe disse em quatro palavras o que tinha
tas da bolsa e pegou metade. “O Miquel vai ficar com a criança, já con-
versamos; a mulher dele concordou.” Ela não sabia, é claro, que era dele.
O Miquel lhe contara uma histór ia muito triste e muito complicada, e,
como eles não podiam ter filhos, ela se convencera. A outra metade do
dinheiro ela lhe dar ia quando o menino tivesse sido batizado. “Eu serei
sua madrinha, assim quando ele for maiorzinho poderá vir me ver e vou
poder ajudá-lo: não quero ter um filho perdido no mundo.” Tia Adela fa-
zia cara de quem não estava entendendo nada, mas ia concordando com
tudo. “Com esse dinheiro o Miquel e a mulher dele vão poder respirar
começaram a namorar ele não contara que era casado, mas ela não era
rancorosa e tinha se apaixonado por ele. Tia Adela disse-lhe para não se
preocupar, que ela far ia tudo o que fosse possível. “Quer ir ver como ele
do menino porque achava que ele tinha o nar iz um pouco arrebitado co-
nino o deixava feio. Acomodou-o bem. “Vou embora, tia, estou com
ra” e disse-lhe que ficasse tranquila que nunca iria lhe faltar nada.
Precisava achar uma farmácia que não fosse muito longe da casa
Assim que entrou na saleta disse às moças que terminassem logo porque
não es
tava se sentindo bem. Depois de meia hora, enquanto descia a es-
“Com um pouco de sorte, vai dar tudo certo”, pensou, e deixou-se cair
no chão, meio apoiada na parede. Logo foi rodeada por algumas pessoas
quena ampola; ela disse que sentira a cabeça zonza: fazia pouco tempo
me meia colher inha com água a cada duas horas”. O senhor que a ajuda-
chegar, era o que Teresa quer ia, e a ajudou a subir a escada. Felícia abriu
a porta. “Se o senhor perguntar por mim, diga que cheguei cansada, que
não es
tou me sentindo muito bem.” E se enfiou logo na cama. À noiti-
nha, Felícia lhe trouxe um copo de leite e explicou que o senhor estava
muito prostrado, mas que quando soube que ela tinha ido para a cama
bre.
“Que broche poder ia ser? O de brilhantes.” Felícia disse que não vira
nhora podia ter certeza de que na lapela não havia nada. Teresa cobriu
antes de mandar limpar os vestidos ela sempre dava uma repassada para
ver se não tinha ficado nada. “Devem ter pego quando eu caí”, disse Te-
resa com grande desespero; “prefer ia morrer.” Felícia contou para Vi-
cenç, Vicenç para a mulher da portar ia, a mulher da portar ia para o dono
nhor Nicolau, que estava melhor do resfriado, foi ver Teresa e encon-
trou-a com a cara branca como um defunto porque não tinha pregado o
olho a noite inteira e de tanto afirmar que estava doente já se sentia mal
lhe contara logo tudo; e Teresa, quase sem voz, disse que deviam tê-la
roubado quando ela desmaiou e que ele não podia imaginar o desgosto
que ela estava passando, como se a tivessem enfiado no inferno, não pe-
lo valor da joia, apesar de que valia muito, mas por que era um presente
que ele lhe havia feito, uma prova de estima. E desatou a chorar com o
rosto no travesseiro. O senhor Rovira pegou a mão dela e disse que sen-
tia muito, e claro, mas que não quer ia vê-la triste e que remediar ia isso o
quanto antes.
E quando ela já estava restabelecida e com um pouco de cor nas
faces, porque era verdade que tinha sofrido, uma manhã eles pegaram o
era ve
lho e estava meio encarquilhado e lhe custava mundos e fundos
entrar e sair do armár io. Depois subiu a senhora Teresa. O senhor Begú,
ela terminasse, perguntou se eles tintam outro igual. “Não; igual não te-
nho nenhum, porque era uma joia única, mas eu tenho o esboço e, se vo-
cês quiserem, posso mandar repetir. O mais difícil será encontrar bri-
lhantes tão perfeitos como os que estavam no centro das flores, mas vou
pouco crescidinho que não tinha mãe, coitadinho, morta no hospital du-
rante o parto. Explicou a seu mar ido que Miquel Masdéu era um operá-
rio, que ela conhecia desde pequena. Masdéu era primo-irmão da mãe
podia ter filhos com a mulher, decidira levá-lo para casa. Uma grande
confusão. “Que boa gente!”, disse o senhor Rovira, que não teve vontade
gado: seja feliz e que Deus lhe pague”. E olhou ofuscado, porque as cha-
mas dos cír ios faziam-no brilhar muito, para um ramo de pedrar ia que
peito.
II
Bár
ba
ra
nos, havia uma moça com um pedaço de renda que lhe pendia da parte
de baixo da saia. Aquela barra descosturada era tão insólita que ele se
va-o para a orquestra e o retomava com mais segurança. Mas já não ha-
via mais nada a fazer. “Por um dia que deixem uma moça tocar o violi-
no...” Como é que não tinha se dado conta logo? Antes de começar o
a orquestra atacara as primeiras notas, mal lhe tinha visto o braço e o ar-
barra do vestido descosturada era aquela violinista que havia uns cinco
rio. Magra, loira como um fio de ouro, com os olhos muito claros, os ca-
belos penteados para cima e dois ou três cachos que escapavam descen-
do a nuca. Não tirara os olhos dela durante toda a noite e, depois, lem-
brara dela de repente, meio esfumada e tão frágil que dava pena pensar
que a vida talvez fosse brincar de fazer-lhe mal. Falara dela para o
glês, que tinha fama de namoradeira, e mal ouviu o que disse. “Ah é?
jurou que nunca mais falar ia disso com ninguém. Devia ser vienense;
em nenhum outro lugar do mundo vira moças tão finas nem com um
perfil tão gracioso. Estava certo de que não a ver ia nunca mais e agora a
com toda a gente e andara muito tempo sem saber aonde ia. Fazia frio e
as poucas pessoas que iam pelas ruas passavam depressa. Tinha a im-
pressão de que as coisas haviam mudado e que nunca mais ser iam total-
mente como até então. E só a viu de novo depois de duas semanas, outro
cachos presos com uma laçada preta; não dava para ver-lhe os olhos,
mas a testa, branquíssima, tinha uma curva doce. Quando parava de to-
ra ele rindo: “Você está falando de uma moça que toca às vezes nos con-
meu. Ela se chama Bárbara não sei o quê. Algumas tardes vem tomar
diante de uma mesa de mármore preto. Tinha muita gente. Bárbara er-
gueu um braço assim que os viu: vestia um casaco com gola de pele, e
Valldaura teve a impressão que de perto ela era ainda mais bonita. Quim
por escassa meia hora. Bárbara praticamente não disse nada durante esse
ela que gostava muito de Viena. “É? Eu também gosto, mas deve ser
porque nasci lá”, exclamou sorr idente. Falava um francês que a ele lhe
Bárbara virou a cabeça e o olhou com aqueles olhos cinza um pouco fe-
chados. “Sim”, respondeu com uma voz fina. Ele teve a impressão de
que o dissera por educação. Quando ficou sozinho entrou numa flor icul-
Bárbara. Eram umas violetas pálidas, mais para lilás do que para roxo,
país frio.
barbear ia do hotel para que lhe aparassem a barba. Almoçou sem pressa.
Assim que desceu do coche diante da casa das sacadinhas, viu que Bár-
tada ao lado, Valldaura pensou que era um homem de sorte. Ela, que no
dia em que se conheceram mal havia aberto a boca, não parava de falar,
sem olhar para ele. “Um pouco excessiva”, pensou Valldaura. Quando
entraram no Práter já tinha explicado que morava com seus avós e que a
mãe dela, que era muito bonita, tivera o cabelo tão comprido que batia
quem ela gostava quando era moça e vivia na Itália. Do pai dela sabia
pouca coisa: viajava muito e praticamente nunca o via. Mas o seu avô...
No dia em que ela contou que quer ia aprender a tocar violino ele teve
tempo só se ouvia o pisar do cavalo. “O que será que acontece com ela
lateral saíram dois oficiais a cavalo com o uniforme azul-claro. O que es-
tava mais perto deles segurou o quepe com a mão e abaixou um pouco a
cabeça para olhar dentro do coche. O outro, que usava monóculo, lhe
de pegar na mão dela, mas pensou que era melhor não a assustar e lhe
falou sobre Salzburgo. Bárbara sorr iu: “Às vezes fico desanimada achan-
mandou parar o coche e foram para perto da Lusthaus. Ela não quis en-
trar. “Estou com vontade de andar um pouco; fazia tanto tempo que não
terra batida com grama alta dos lados, queimada pelo frio. Ouviu-se um
suste, são passar inhos.” Ela riu. Valldaura nunca vira um rosto que mu-
dasse tanto ao rir; parecia outra moça e se lhe via uma espécie de malda-
de nos olhos. “Vim umas quantas vezes aqui com meu avô. Está vendo
aquela pedra lá embaixo? Ele sempre me fazia subir nela. Depois íamos
até o rio. É logo ali... Mas vínhamos quando fazia tempo bom, com as
ter ia gostado de ser Deus. “Que todas as árvores tenham folhas e que
apareçam todas as flores”, pensou sorr indo. Não iria embora daquele
bosque sem dar-lhe um beijo. “Bárbara...”, murmurou. Ela pegou uma
mou-a de seus lábios. Por entre os galhos via-se o céu quase branco e
pelo lado do rio erguia-se um pouco de neblina. Bárbara pegou uma pe-
dra e a atirou longe com fúr ia. “Quando era pequena achava que podia
azulada da córnea... Sem dizer nada pegou o rosto dela com suas mãozo-
O maître abriu a porta e fez Valldaura passar para a saleta. O teto era
brancas. “Não tem outro lugar com o espelho limpo?” O maître se des-
par, era coisa de segundos. “Rápido, rápido”, disse ao voltar com o gar-
dem. Parou diante da mesa: redonda, com dois lustres de prata em cima,
com a toalha até o chão. As taças eram verdes e tinham o pedestal rosa-
velas sem pressa. Quando ainda não tinha terminado chegou Bárbara.
piada: “Por favor, esse espelho”. Seus olhos brilhavam como se tivesse
febre. Valldaura perguntou se ela se sentia bem. “Não, não é nada.” Mas
rada como aquele e não conseguia sair nunca mais. Valldaura não sabia
o que dizer. Ela olhou em volta, pegou o casaco e, subindo no divã, co-
cabelo mais loiro e mais comprido que você tem.” Bárbara desatou a rir
e passou-lhe um dedo pelo rosto, forte, como se quisesse deixar uma ris-
cendo, sabia?” Desabotoou a jaqueta e deixou-se cair para trás. Ele sen-
tiu como ela pegava uma mão dele e a punha em cima de um de seus
seios.
Viveu alguns meses sem querer acreditar que Bárbara estava morta; pen-
sava que voltar ia a vê-la, uma tarde num parque, uma noite num café.
Passeava meio à toa pelos lugares em que haviam estado juntos. Um dia,
te. O médico disse que se quisesse sair daquele poço em que caíra tinha
Salvador Vall
dau
ra e Te
re
sa Go
day
sa do irmão do Quim. Rafael lhe disse que convidara os dois para jantar,
junto com meia dúzia de amigos, porque tanto ele como ela andavam um
pouco perdidos: ela viúva há pouco mais de um ano e ele sem nenhum
sós, Valldaura perguntou de que Godays tinha saído aquela Teresa. “Não
gas e algumas vezes saíam juntas para olhar vitrines. Uma semana de-
pois daquele jantar, Valldaura, que andava sozinho pelo Passeig de Grà-
de que não está zombando de mim?” Teresa era muito bonita e todos os
homens viravam a cabeça para olhá-la. Ele ia pegá-la pelo braço, mas
pensou duas vezes: em Barcelona não dava para fazer esse tipo de coisa.
Andaram por um tempo juntos e antes de deixá-las disse que iria demo-
rar para se verem outra vez, pois recebera uma carta de Par is e tinha de
voltar antes de terminar a semana.
Dois dias depois Valldaura foi uma tarde até o Can Culleretes. Ti-
sa não conhecia. Depois ficaram um tempo sem saber o que dizer. Teresa
deu um suspiro: “Que bonito deve ser viajar...” Ele respondeu que já co-
receio de casar com uma estrangeira. “Às vezes dá certo, mas nunca tive
melho. Teresa mexeu a nata com a ponta da colher inha e enquanto olha-
rolos você não deve ter pelo mundo afora!” Quase não falaram mais.
que todo dia enviassem flores a Teresa. “Violetas; até que acabem.” Se-
“Devo
tadamente”.
que eram de Valldaura. Naqueles dois dias pensara nele com frequência.
Não podia dizer que não gostasse dele: bem-apessoado, loiro, elegante...
“O que você far ia, Felícia, se estivesse no meu lugar; casar ia de novo?”
A empregada olhou-a com os olhos alegres: “Acho que sim, senhor ita”.
Felícia foi embora, e Teresa sentiu aquela espécie de mal-estar que lhe
vinha sempre que pensava no tempo que estivera casada com Nicolau
Rovira. Nos primeiros meses sentira falta dele. Devia tudo a ele: fizera-a
refinada, tirara-a da misér ia; pouco antes de morrer como um passar i-
nho, ele lhe dissera: “Agora você já pode andar por toda parte”. Se al-
para a irmã dele, viúva e com dois filhos. A renda de Teresa não era ili-
ra em vender uma casa, mas a ideia não lhe parecia nada boa. Talvez pu-
desse jogar na Bolsa, tinha amigos que poder iam aconselhá-la; mas uma
vez Nicolau lhe dissera: “Se você não entende muito pode se ver na mi-
sér ia sem se dar conta”. Valldaura era muito agradável... mas no dia em
que o conheceu ficara surpresa com um olhar que a havia deixado inqui-
sabia que isso ainda o deixava perturbado. Não gostava que morasse no
exter ior. Diziam que era riquíssimo. Só que, primeiro um mar ido velho
e, depois, outro que não se sabia muito bem o que tinha acontecido com
ele... Voltou a fechar os olhos. Por que ficar pensando naquelas coisas?
cabeceira e se aconchegou.
pode ser, Eulàlia. Eu tirei o luto antes de terminar o ano porque você sa-
Eulàlia colocou uma mão sobre o joelho dela: “E o que é que tem deixar
passar um ano ou dois? Não se enterre, ouça o que eu digo. Todos os que
vêm são amigos... Você tem medo de ser criticada?” Não parou até con-
“Estou vendo que vamos ter casamento logo”. Teresa desatou a rir.
“Nossa, como você é rápida!” Eulàlia, que voltara a sentar e ficara muito
sér ia, de repente ergueu os braços e bateu as mãos: “Já sei! Vou fazer
com que ele venha. Ou não me conheço, ou vou fazer vocês dois dança-
rem juntos. Venha bem bonita”. No dia seguinte mesmo, bem cedo, Te-
resa entrava na loja de Terenci Farr iols para comprar tecido para o vesti-
do. Terenci Farr iols era um homem alto e magro, educadíssimo: “Senho-
ra Rovira, pode não acreditar, estava pensando justamente na senhora”.
Teresa sentou rindo. “Não acredito. Quer ia ver as sedas, por favor. E ce-
tim pa
ra um dominó.” Farr iols olhou-a um pouco surpreso: “Temos se-
das lindas, de uma qualidade que talvez a senhora ainda não tenha vis-
Teresa, depois de olhar e olhar de novo, ficou com a mais cara. Os cetins
mas pensando nas violetas ficou com um tecido roxo. “A senhora esco-
lheu a cor mais bonita, senhora Rovira; vai favorecê-la muito”, disse Te-
dor Valldaura. “Que surpresa... pensei que estivesse em Par is.” Estava
esplên
dida; com a cintura de vespa, o anteface na mão, luvas que iam
além dos cotovelos e as costas nuas: a seda branca contribuía para escu-
no alto do cabelo. Sem nenhuma joia. “Que mulher vai ficar quando ti-
gostava de violetas. Teresa mentiu: “São minhas flores favor itas”. A or-
questra, que quando Teresa entrou acabava de tocar uma dança, atacou
to. Valldaura tirou-a em todas as danças. Ela, com as faces acesas, aba-
nava-se com a mão: “Tem certeza de que vale a pena dançar só comi-
nhe e, com as taças na mão, foram sentar num canto. Atrás deles havia
um jarro com buquês de lilases brancos sobre uma coluna dourada. “As
ram as taças vazias para um criado que se aproximara deles com uma
bandeja e pegaram taças cheias. “Por que não vem a Par is?” Teresa fez
de con
ta que não ouvira e Valldaura, que estava a ponto de repetir a per-
nada. Dava gosto vê-lo: com o fraque bem cortado, o peito da camisa al-
çaram a dança dos lanceiros, Teresa, com os olhos que faiscavam atrás
a cabeça jogada para trás, ofegante, dizia a si mesma que nunca havia vi-
vido uma noite como aquela. Sentia calor. Tirou as luvas devagar, tão
deve ficar nada bem isso que estou fazendo...” Valldaura fazia que não
com a cabeça, rindo. “Um momento”, disse ela, “volto já.” Foi ao encon-
Eulàlia lhe deu o dela: “Pode ficar; é uma lembrança”. As varetas eram
de nácar e no tecido havia uma maçã pintada; da alça pendia uma borla
“Ufa!, Vamos tomar mais champanhe?” Trouxe uma taça aos lábios e a
talo cor de chocolate. “Posso tomar uma garrafa inteira e não acontece
vam a murchar, mas o brilho das luzes, dos vestidos, dos painéis de seda
rodeados de molduras douradas ficava cada vez mais vivo. “Já quer ir
junto à porta. Valldaura não tirava os olhos de cima dela: “Como durou
pouco esta noite!” Ela lhe deu um longo olhar e fez seu leque deslizar
pela lapela dele. Na clar idade cinza do dia que nascia, um pouco des-
penteada, entre drapeados violeta, Teresa, mais do que uma mulher, pa-
escrever?”
rio. Só ficara com o armár io japonês que, com o tempo, foi lhe agradan-
num canto, ao lado do sofá, ela mandara colocar uma ninfa de porcelana
branca, da altura dela, que com um gesto gracioso segurava um jarro re-
sa lhe oferecera uns chás deliciosos. Uma tarde ele se declarou. Passou
um tempo com a xícara nos dedos, sem dizer nada, preocupado. Ela pen-
sativa, olhando para baixo. Não disse sim nem não. Simplesmente: gos-
tava muito do mar ido e ainda pensava nele: “O que o senhor acaba de
não podiam se ajudar a viver? Saiu como tinha entrado: sem uma res-
que quer vê-la, senhora; já o fiz passar.” Teresa, que estava se vestindo
para sair, arrancou a roupa em dois tempos e, com a bata mais suntuosa
ra, mas estava descansando e não quer ia fazê-lo esperar. “Aconteceu al-
guma coisa com o senhor?”, perguntou com voz tranquila. “Ontem fica-
vai querer dizer que não há problema.” Teresa encostou um dedo nos lá-
bios e depois passou-o pelo rosto de Valldaura: “Aqui está”. Então, sem
para mandar preparar o chá?” Corredor abaixo, com uma mão no pesco-
ço, respirou profundamente umas quantas vezes.
deu os braços com suas mãos abertas e, olhando bem de perto uma flor
que ficara na palma de sua mão, disse baixinho: “Essa flor, tão pequeni-
na, é minha”. Valldaura abraçou-a: “Tudo é seu; essas vinhas, essa terra
e eu”. E lhe deu um beijo de olhos fechados para que nada pudesse dis-
Um pala
ce
te em Sant Ger
va
si
No iní
cio do outono, quando voltaram a Barcelona, Salvador Valldaura
notou que Teresa andava triste. “Deve estar agoniada de pensar que terá
de viver em Par is.” Sem refletir muito foi encontrar Josep Fontanills, seu
sacada via-se Sant Pere Mártir, e Valldaura ouvira dizer que de tarde, se
fazia tempo bom, Fontanills ficava uma hora sem receber ninguém para
poder olhar com toda a tranquilidade o sol se pondo por trás da monta-
nha. Valldaura disse: “Estou levando a mulher para Par is, mas como ela
é muito barcelonina tenho medo de que fique com saudade. Se ela não se
acostu
mar a viver no exter ior vou abandonar a carreira. Quer ia que o se-
nhor, com tempo, me procurasse uma casa, para que eu a pudesse ir ar-
sà, que malbaratou a fortuna de seus pais. Mas está muito abandonada.”
Naque
le mesmo dia foram vê-la, e Valldaura se apaixonou: na parte alta
de Sant Gervasi, numa rua ainda a meio fazer, do lado de um campo, ro-
deada por um grande jardim que, na parte de trás, para além de uma es-
planada, se convertia num bosque. Não contar ia nada a Teresa até que
uma rosa. “Que eu saiba”, disse Valldaura rindo, “você é o único que
tem flores no escritór io.” Ao fim de umas duas semanas foi assinada a
rio com a carteira cheia de notas, Amadeu Riera deu os parabéns a Vall-
daura: “Veja só que coisa, um palacete com mais de cem mil palmos de
senhor tem, senhor Valldaura, tampouco ter ia deixado escapar esta ca-
sa”.
Poucos dias antes de ir para Par is, Valldaura levou Teresa para ver o pa-
ficou tão perplexa que só conseguiu dizer: “Meu Deus, parece um caste-
nheiros dos dois lados; ao fundo, alto com três andares, com duas torr i-
susten
tada por quatro colunas de mármore rosa que protegia a entrada,
disse: “Vou mandá-la cobrir de vidro para podermos tomar sol no inver-
“Está tudo enferr ujado, senhor Valldaura; mas a gente vai arr umando”.
asfixiante. Chegava-se às torr inhas pelo terceiro andar por umas escadas
que dava para o telhado. Fontanills abriu-a: ‘‘Querem olhar lá fora?” Te-
sou Fontanills, que não sabia para onde olhar; “uma mulher assim vale
que passava rente à casa. À direita, com os galhos quase tocando a pare-
é?”, perguntou Teresa. “Sim senhora; e não verá muitos dessa altura.”
Para lá do loureiro havia um poço e dois bancos de pedra sob uma pér-
foi um bosque: quando fizeram a casa devia ser um parque.” “Acho que
daura, não seca nunca; lá no meio tem mais de sete palmos de profundi-
dade. No fim do terreno tem três cedros centenár ios. Dizem que trazem
lado para o outro. Saíram na esplanada, e Teresa viu que ainda não era
bem de noite. Fontanills, com o braço estendido, apontava para uma ca-
ras pa
ra que pudessem cobrir as paredes. “O velho que toma conta do
meu sítio de Premià sempre tem mudas de umas roseiras que dão rosas
Teresa não gostava nada de Par is; achava as casas escuras demais e o
tinha que lidar eram cer imoniosos demais e as senhoras eram cheias de
Não aguentava ficar nem cinco minutos sozinha, porque logo lembrava
de Barcelona e quando pensava que estava tão longe sentia uma espécie
seu mar ido sofria ainda mais. Quando ficou grávida piorou. Passava tar-
agora que você vai ter uma criança, ainda menos”. Tinha ficado muito
“Para sempre.” Ter ia o bebê em Barcelona, na casa dela. “Se for uma
for um rapaz, vamos pôr Esteve, porque nos conhecemos no dia de São
Estêvão.”
Teresa teve uma menina. Joaquim Bergadà, que ainda estava em Viena,
foi ao batizado: Valldaura quis de todo jeito que ele fosse o padrinho.
do peônias e begônias nos canteiros que haviam aberto dos lados do ca-
Tempes
ta
de de pri
ma
ve
ra
vontade de fazer nada. Se Valldaura estivesse em casa ter iam saído co-
mo todos os dias para passear pelo jardim e ver como Climent regava as
porque Vicenç, que servira durante tantos anos o primeiro mar ido de Te-
origem. Climent vivia com a mulher numa edícula que mandaram ajeitar
vezes com as flores para ajudar os dois jardineiros que iam umas duas
vezes por semana e que eram um pouco lerdos. Já fazia três dias que
Valldaura tinha ido com Fontanills ver uma propriedade perto de Mont-
seny. Desde que largara a carreira preocupava-se muito com suas terras.
Teresa viu passar a ama-de-leite com uma trouxinha. Devia ter tro-
cado a menina e com certeza levava a roupa suja para a casinha dos tan-
ques, para que Antònia a lavasse. Tinham tido muita sorte com a ama-
de-leite: chamava-se Evar ista e era muito bonita, de olhos verdes e tinha
a pele tão branca que mais de uma senhora a ter ia invejado. E limpa co-
um pouco demais: quando via Climent pelo jardim parecia ficar pertur-
bada. Sofia acabava de completar seis meses, era magrinha, nervosa e ti-
nha a car inha muito miúda. Não se desenvolvia muito bem. “Quando
dou peito para ela”, dizia a ama-de-leite, “em vez de mamar, brinca.” Se
Teresa alguma vez quer ia lhe fazer um agrado, virava de costas, grudava
no pes
coço da ama e desatava a chorar. “Não se incomode, senhora; ela
já a conhece, já, mas é rebelde que nem não sei o quê. Eu acho que os
ama tinha de tratar alguma coisa com Anselma, a cozinheira, que tinha a
gota de suor lhe escorr ia pelo rosto. Pensou na pérola que dera de pre-
sente a seu mar ido quando voltaram a Barcelona. Era uma pérola cinza e
fazia muito tempo que não saía da sua cabeça. Quantas coisas já haviam
prendedor. Sorr iu, mas se sentia desconfortável. Vai ver que a culpa era
ço. Abriu a sacada e, sem sair, olhou-se nos vidros, de lado. Não se via
aguentar três ou quatro dias esses lençóis, a barr iga vai ficar retinha co-
bem, rira: “Essas mulheres fazem cada descoberta...” Teresa não lhe deu
lençóis dobrados e ficou lisa como antes de ter a criança. Mas alguma
coisa mudara. O cabelo escurecera um pouco, não tinha mais aquele cas-
Deu uma olhada no quarto e voltou para baixo. Não conseguia pa-
uvas e de peras de alabastro. Fora sua ideia e cada dia gostava mais dela.
nunca que chegavam. Foi até a cozinha e saiu para fora. Antònia lavava
uma panela muito grande no chão e a enxaguava embaixo da torneira
que ficava junto à porta da cozinha; Anselma mandava lavá-la fora por-
que dizia que era muito pesada, riscava o mármore da pia e ela não po-
dia tirar os riscos nem com sapólio. “Parece que vamos ter chuva”, disse
sem ti
rar os olhos de cima da moça. “Que chova logo, senão, eu vou as-
entendia como podia fazer tanto calor no mês de maio. Anselma olhou
enquanto ela se afastava: “Se ela tivesse de ficar com o nar iz nos fogões
mara a viver nela. Passara o inverno indo de um quarto para o outro; de-
tavam acesos corr ia por todo lado no escuro e passava horas seguidas
ros, mas Teresa, que de vez em quando parava para olhar para cima, não
via nenhum. Onde havia muitos era no loureiro do poço. Conforme a ho-
ra, os pardais entravam e saíam dele sem parar, piando como uns deses-
perados. Foi caminhando até a gaiola dos faisões. Era uma gaiola muito
do galho, que não se mexera, e puxou uma pena de sua cauda. O pássaro
turva. Ter ia de avisar Mundeta, e repreendê-la; era a mais jovem das em-
pregadas e cuidava dos bichos. “Uns pássaros tão lindos, tendo de beber
vontade de deixar a gaiola aberta: aqueles bichos ser iam mais felizes se
pudessem correr embaixo das árvores. “Não é?”, disse-lhes saindo e fe-
chando a portinha. Mais adiante, a água do tanque era verde, quase pre-
ta, cheia de gir inos que nadavam para cima e para baixo. Recolhendo a
bata, foi até o muro do fundo. Antes de chegar lá havia uma clareira com
três cedros, muito juntos, muito velhos. Os cedros que traziam sorte. O
é meu.” E riu. De onde lhe vinha essa mania de tocar as coisas que eram
suas? Voltou atrás e passou em frente a gaiola na ponta dos pés. Os fai-
de olhos fechados. Ouviu acima dela o arr ulhar de rolinhas. Nem ela
cortar muitas árvores; parecia mentira que pudessem viver tão juntas
umas das outras. E a cada ano ser ia pior porque estavam cheias de bro-
co por toda parte estavam com os brotos a ponto de abrir. “Se os tivesse
mandado plantar ao sol já ter iam florescido há muito tempo.” Tudo era
muito verde, muito escuro... Uma lagartixa enorme passou rente aos pés
a água do jarro porque não estava bem gelada e que lhe trouxesse uns
pedaços de gelo, um raio clareou toda a esplanada até a linha das árvo-
grandes e espaçadas. Teresa afastou o prato, não tinha mais fome, trouxe
para perto o cestinho das nozes. Ouviu alguém subir a escada correndo;
Sofia devia ter acordado. “Passou a tarde inteira muito nervosa e não pa-
rou de vomitar leite; ela sente o tempo”, disse a ama ao entrar na sala
com a menina chorando. Outro raio voltou a acender toda aquela parte
voltara da cozinha, branca como um lençol, disse com uma voz que mal
Teresa nem ouviu: “Vá logo mandar fechar todas as persianas e veja se
não tem nenhuma sacada aberta”. Sem perceber o que fazia, quebrou
uma noz e deixou-a em cima da mesa. “Quer saber de uma coisa, ama?
canto. O loureiro batia na parede. “Parece que quer entrar”, disse a ama
do. Gertrudis abriu a janela e, meio agachada para que a chuva não lhe
molhasse o rosto, fechou a persiana, que lhe escapou duas vezes da mão.
Sofia ainda chorava. A ama, para tentar acalmá-la, tirou o peito para fo-
ra; o bebê mexia a cabeça de um lado para o outro. “Deixe ela sossega-
da, ama; não perca tempo.” Estava aflita e ficou com vontade de ir ver se
que tinha deixado a lavação de pratos pela metade, chorava. Teresa qua-
se nem olhou para ela: “Faça café bem forte para todos, Anselma”, disse
medo, venham todas”. Do pé da escada ouviu estalar uma porta e viu Fi-
lomena que descia correndo: “É a da torr inha, mas tive medo de subir lá
segundo andar e acenderam uma vela, mas assim que entraram na esca-
do. Na sala, a ama balançava Sofia, que estava mais tranquila mas chora-
também estou com medo.” E ficou com vontade de chorar. Sua mãe fica-
dos: “Se estivesse viva”, pensou, “far ia ela viver como uma rainha”.
Gertrudis e Mundeta, que tinham ido trancar a porta da torr inha quando
a porta com uma tábua de passar roupa. Estavam todas muito quietas,
sair para buscar uma cadeira. Gertrudis a cada trovão fazia o sinal-da-
a janela; por entre as frestas da persiana viu que a água descia como um
disse a ama, “já saiu o primeiro dentinho.” Teresa com um dedo ergueu
nha branca.
água que escorr ia pelas calhas. Filomena, meio deitada no chão, ador-
tras moças saiu para ver o que acontecera. O ar estava fresco e as nuvens
iam es
garçando. Do lado do poço havia um grande charco de água. Do
loureiro restara apenas metade. Climent, com o gorro enfiado até as ore-
que caíra. Quando ouviu Teresa e as moças ergueu a cabeça: “Estou ti-
rando ele daqui para não estorvar; é melhor que tenha sobrado para ele
tou que no domingo seguinte uma sobrinha dela, chamada Armanda, fa-
ria a primeira comunhão. “A senhora vai me dar folga para ir lá, senho-
Joaquim Ber
gadà em Bar
ce
lo
na
última carta e, sem terminar de lê-la, disse a Teresa: “O Quim diz que
vai chegar na próxima semana e vai passar uns quantos dias em Barcelo-
na; gostar ia que ele ficasse aqui em casa”. Teresa, que mandara levar o
ergueu a cabeça: “Ser ia mais natural que ele fosse para a casa do irmão
Quim chegou num sábado no meio da tarde. Pedira a eles que não
o fossem receber e passara bem uma meia hora dando voltas porque o
“Você não mudou nada”. “Você também não”, disse Quim abraçando-o.
cê está ainda mais linda do que quando eu vim para o batizado da meni-
na”. Ouviu-se uma corr idinha e entrou Sofia, que já tinha quatro anos.
“Agora me vem com essa; se ele não a vê desde que ela andava de fral-
das!” Sofia meio assustada perguntou: “Quem é esse senhor?” “Sou seu
japone
sa?” Teresa, incomodada, pegou a menina pela mão e levou-a em-
“Vou mandar subir suas malas”. A chegada de Quim não lhe despertara
o menor entusiasmo.
Fazia mais de três anos que fora destinado a Bogotá e sentia sau-
“Lembra da mulher do adido inglês? Eu fui apaixonado por ela, você sa-
be. Faz uns dois anos que ela ficou viúva e quando todo mundo achava
que ia voltar para Londres, se engraçou com o filho de dom Manuel, oito
anos mais novo do que ela. Abafaram o caso do jeito que deu”. Em Bo-
gotá morr ia de tristeza: “Como é que você quer que eu case? O duro é
achar lá uma moça que não use fita no cabelo e que não toque piano. Dá
para ver que você nunca andou por lá... Além disso, você já sabe o que
do corr ia às mil maravilhas, mas logo davam o fora nele. Quim falava
como se não se importasse, mas era evidente que aquilo o deprimia. “Se
instante, com a voz um pouco forçada, emendou: “Você não tem tempe-
bandeja dos licores. Quando ela saiu, Quim disse: “Está vendo? Se uma
moça como essa me quisesse, eu casar ia feliz da vida”. “Você não tem
mau gosto”, disse Valldaura sorr indo, “mas ela já tem noivo.” Quim le-
“Que flores lindas!”, exclamou em voz baixa. Valldaura chegou perto de-
le. “São jacintos.” Disse isso com um ar tão desmaiado que Quim, sur-
para o jardim. Sim, havia mudado, mas era difícil saber em que consistia
Quim notava que Valldaura estava muito triste. “Vai ver que ele lembra
dela ainda, pobre Bárbara. Vou ter de ir com muito tato; mas talvez ele
“Eu dever ia dizer-lhe alguma coisa, mas que diabo posso dizer?” Perce-
Começava a ficar escuro e mal dava para ver as árvores que esta-
estridente. “Que ideia a minha de arr umar esses bichos!” “Que bichos?”
“Os pavões; minha mulher não sossegou enquanto eu não comprei meia
dúzia.” Quim respirou fundo; quase abrira a porta das recordações ruins,
e gostava tão pouco disso! Mas quem ter ia podido imaginar... se no final
das contas durara apenas umas duas semanas? Os pavões não paravam
de gritar. “Que acontece com eles? Será que estão com fome?” “Não,
eles fa
zem assim todo dia. Deve ser a hora em que se dão conta de que
tos. “Você tem uma casa esplêndida e vive como merece. Sua mulher é
sensacional; mas tenho a impressão de que ela não pode me ver nem
be que você vinha ficou muito contente”. “Se você está dizendo...” Na-
quela hora Teresa abriu a porta: “O que vocês estão fazendo no escuro?”
sa que está com algum problema.” Teresa, que estava colocando o bro-
che de brilhantes, pensou que Quim era um idiota: “Melhor, assim não
boas, mas eu prefiro a Quintana; por causa dos pinheiros”. Quim escuta-
va-o com uma perna em cima da outra, distraído: “E o que você faz com
os pinheiros?” “Eu os vendo, é claro.” Sofia entrara sem que eles perce-
bessem e, muito quieta, se aproximara do pai para lhe dar boa-noite.
Quim pegou-lhe a mão: “Vem cá, eu já disse que você tem olhos de ja-
ponesa?” Teresa, desde a porta, chamou Sofia, que foi até ela correndo:
“Esse senhor falou de novo que eu tenho olhos de japonesa”. Antes que
fechas
sem a porta, Valldaura ouviu sua mulher falando com a voz um
dado a seu camarote para assistir La Traviata porque sabiam que gosta-
vam muito dessa ópera. Teresa pôs o vestido de cetim branco e o colar
que Valldaura lhe dera de presente quando Sofia nasceu. Tiveram de es-
perar quase meia hora, sentados no vestíbulo de sua casa, até que Quim
vez e quando, olhava para a escada. Quim desceu por ela com muita cal-
çara. Do palco chegava até eles, meio abafada, a voz do tenor: “Libiam
mais; não façam bar ulho”. Teresa, que deixara a capa em cima de um
tanto como antes porque a amizade esfriara um pouco. Eulàlia lhe disse
ta”, disse Teresa a Eulàlia, que estava com um vestido de seda azul-elé-
das no camarote, olhando a plateia que esvaziava aos poucos. “Não es-
tou muito certa disso, porque estou com os nervos à flor da pele; o
Quim, pra você eu posso contar, está acabando com a minha paciência.”
“A minha paciência com ele já acabou faz tempo. Se você visse as cartas
que ele nos escreve... É daquelas pessoas que passam a vida fazendo bo-
bagem e se queixando.”
Eulàlia a olhava como se quisesse lhe dizer mais alguma coisa mas não
tivesse coragem. “O que foi?” “Não é nada; não devia te contar... Soube-
mos que daquela histór ia de Viena o culpado foi ele.” Teresa olhou-a:
“O que você quer dizer? Que histór ia?” “Parece que ele não sossegou
enquanto não conseguiu apresentar os dois... Ela era uma pobre coitada
que ganhava a vida tocando violino. Dizem que foi horrível; que ele não
mim, minha filha”. Quis mudar de assunto, mas Eulàlia, excitada, emen-
dou: “O ruim é que ela se matou. E se deu confusão foi porque o Quim
espalhou isso por toda parte. Pode acreditar”. Teresa sentia uma espécie
de mal-estar mas sorr iu. “Tudo isso é coisa do passado e é melhor es-
quecer o assunto.” Não sabia que a moça tivesse se matado. “Ela se saiu
pior do que ele”, pensou; “e do que eu.” Meio à toa pegou a bolsinha de
“Eles não vão começar nunca?” “Espere; eles não devem demorar.”
tem vou lhe contar outra coisa, e essa talvez lhe interesse. Parece que a
Mar ina Riera, a irmã do tabelião, viu seu mar ido algumas vezes sozinho
cê. Eu disse que você não gostava muito de música; você quer ia que eu
mal-es
tar, mas conseguiu dizer com a voz tranquila: “Não é que eu não
goste de música, você sabe; é que às vezes, quando ele pede para eu
acompanhá-lo, não estou com vontade de sair. Suponho que eu não te-
do. Teresa viu que Eulàlia cumprimentava com um gesto de mão um se-
de uma mulher muito bonita. “Quem é?”, perguntou. “Você não conhe-
ce?”
tempo de lhe dizer que era o tabelião Riera. “Barcelona inteira o conhe-
ce; ela é sua irmã Mar ina; a que me contou aquilo dos concertos.”
nela. Já começo a ficar saturado de tudo”. Teresa não disse nada, mas
olhou feio para ele. Depois do jantar, Valldaura e Quim foram para o es-
ofereceu pela casa de campo? É fabuloso. Não sei o que fazer. Disse pra
ele, é claro, que ia pensar. Antes quero falar com o Riera, para que me
Valldaura que era naquela casa de campo que eles tinham passado a lua-
de-mel, que era uma propriedade boa demais para ir parar nas mãos da-
quele burro que achara que a menina tinha olhos de japonesa, que em
dois tempos ele ficar ia cheio daquilo e que os colonos acabar iam pondo
ele para correr a pedradas. De repente teve a impressão de que ainda ti-
cama: “Sabe o que eu acho? Que se o Quim quer viver longe da cidade,
em paz e sem senhoras para conquistar, o melhor que ele tem a fazer é
O me
ni
no Je
sús Mas
déu
lojas e todos sabiam que a porta pequena nunca ficava trancada. Gertru-
dis foi abrir: “Deve ser um presente para a patroa”, pensou enquanto ali-
sava o avental. Era um menino de uns dez anos, limpo e bem penteado,
castanheiros, Gertrudis pensou que nunca ouvira falar que a patroa tives-
guera a cabeça e a olhava: “Aquela coisa que a gente puxa pra tocar a
campainha sai da boca de um leão, não é?” Gertrudis disse que sim: “E
ele às vezes morde”. Ele riu. Antes de entrar na casa limpou os pés com
muito cuidado no capacho. “Espere um pouco que eu vou avisar que vo-
pazinho ficara muito quieto, mas logo se aproximou para olhar a água
que pareciam de cera. Flores como aquelas ele só vira no parque, uma
vez que fora passear lá com seu pai. Havia flores brancas e cor-de-rosa.
Deu uma olhada rápida atrás dele e, como se não se atrevesse, passou o
dedo com muito cuidado pelo meio da que estava mais perto. Olhava tão
absorto se a flor tinha deixado pólen na pele que não percebeu que tinha
alguém perto até sentir que lhe davam um empurrão. Girou a cabeça as-
sustado: era uma menina muito arr umada, com o cabelo longo e cachea-
do, que parecia uma boneca e não tirava os olhos de cima dele. “Não é
para mexer nessas flores”, gritou fur iosa; “se você mexer de novo eu vou
Jesus.” Ela o olhou muito empertigada: “Eu me chamo Sofia e sou a me-
nina desta casa”. Sem dizer mais nada foi embora subindo a escada e an-
nada”. Jesús Masdéu quase não lhe deu ouvidos e ficou em pé perto da
porta. Faltavam-lhe olhos para olhar: o teto, altíssimo, com madeiras fa-
pilha de ber injelas. Ao pé da entrada havia um jarro alto, com umas plu-
mas que tinham uma espécie de olho na ponta. Jesús assoprou-as algu-
mas vezes um pouco de longe e foi quase na ponta dos pés até o meio da
sala onde havia uma mesa com pernas de bicho e uma poltrona vermelha
rio preto que brilhava: em cada porta havia um soldado estranho, feito
zia já bastantes dias que tinha ido ver sua tia Adela, que praticamente
não saía mais de casa, para lhe dizer que tinha vontade de conhecer o
tia Adela não ficou muito entusiasmada com a ideia: “Você não acha que
valer ia mais a pena deixar as coisas como estão?” Ela não se deixou
guém o olhava e estava quieto como um morto, de cara para o armár io.
bonita, vestida de branco. “Sim, senhora” “Por que você não senta?” A
senhora sentara na poltrona e lhe indicava um banquinho em frente. Te-
resa não sabia o que dizer; procurava naquele rosto alguma coisa que
por último, enternecida. “Já, já, vou fazer onze e meio.” Onze anos! Um
sobrara aquele bichinho assustado. Teresa olhava seu filho: a pele escu-
ra, os lábios finos, o cabelo preto como um cesto de amoras, e o nar iz...
“Você quebrou o nar iz, não é?” Jesús tocou seu nar iz e riu: “Caí de uma
árvore e o osso partiu.” “Deve ter doído muito...” Sem dar-lhe tempo de
obriga
do; tomei café faz pouco.” “Não está com sede?” “Não, senhora,
obriga
do.” Ficaram um tempo sem dizer nada. Jesús pensava nos solda-
dos do armár io, mas não se atrevia a olhá-los. De repente Teresa apon-
tou pa
ra a parede: “Quer puxar aquele cordão?” Jesús chegou perto e
te, umas quantas vezes; se não ninguém vai ouvir.” Entrou Felícia e
olhou para o menino: Gertrudis já lhe contara que era o afilhado da pa-
quanto dizia isso, Teresa percebeu que o rapazinho ainda estava com o
buquê de flores na mão: meia dúzia de cravos amarelos e uns quantos ra-
minhos de flores miúdas que pareciam uma nuvem. Deviam ser para ela
e ele não se atrevia a dar-lhes. “Para quem você trouxe essas flores?” Je-
sús Masdéu estendeu-lhe o buquê e Teresa o pegou, sem saber o que fa-
zer com ele. “São para a senhora, para lhe desejar um feliz dia de seu
santo.”
mesa, olhou suas mãos, finas, tão diferentes de quando era pobre, verme-
“São muito bonitas, Jesús.” Fazia tempo que tinha vontade de lhe per-
guntar uma coisa: “Sua mãe gosta de você?” Jesús fora ensinado a não
mentir. “Não sei; ela diz que eu tenho de estudar para que mais tarde
possa ser alguém na vida. E meu pai também diz que eu tenho de ser al-
que havia um menino que quer ia vê-la, Teresa tivera de sentar porque tu-
do e que tinha se posto a falar como se recitasse uma lição... Não, não
havia nada naquele menino... O que ela esperava? Tinha-o à sua frente,
estranho, distante de sua vida de mulher rica, quase como se fosse algo
as aqui de volta.” Jesús, com o pacote em cima dos joelhos, olhou como
Demo
rou bastante. Quanto voltou, viu que Jesús estava diante do armá-
rio com a mão na cara de um soldado. “Deve gostar de pôr a mão nas
envelope. “Toma, e não vai perder: estou contente de você ter vindo me
ver. Mas agora já é tarde e você vai ter de ir.” Sentiu que se emocionava
ma, tá?”
escada; a menina olhava para ele lá de cima e ele virou rápido a cabeça
para que ela não tivesse tempo de lhe mostrar a língua. Perto da taça de
pedra parou de repente: à sua frente, de cada lado da porta, parecia haver
de cada uma, deixavam entrar torrentes de luz através dos vidros color i-
inteira, toda vez que fosse até aquela casa. Quando viu o pai, que o espe-
rava bem longe do portão, teve uma grande alegria. Desatou a correr e
sa. “Nada, por enquanto eu só ajudo o senhor Avellí; mas logo vou pintar
paredes como ele.” E acrescentou que dois dias por semana, quando saía
Abe
lhas e gli
cí
ni
as
Estavam sentadas perto do poço, à sombra das glicínias. “Você não acha
velhecem rápido.” Eulàlia tinha umas rugas finíssimas no rosto: com luz
artifici
al não eram muito visíveis, mas o sol não as perdoava. Felícia
chá sobre a mesinha. “Faz muito tempo que ela trabalha pra você, não
é”, disse Eulàlia quando a empregada saiu, “não sei como é que você
faz, eu não consigo segurar uma empregada mais de três anos.” Teresa
sorr iu um pouco forçado: “Das antigas é a única que ainda está comigo:
Gertrudis casou; a Mundeta, não sei se você lembra dela, teve de ir cui-
disse Eulàlia, afastando-o, “eu só tomo com leite, porque disfarça o gos-
to. Você já sabe que não sou muito amiga de chá.” Sofia saiu da casa,
branca como uma pomba, com a raquete encapada na mão, e foi cumpri-
que ela a beijasse. “Você está cada dia mais linda, menina; já, já vai ar-
rumar noivo.” Sofia disse-lhe que não gostava muito dos jovens: “Gosto
foi embora rindo. Eulàlia gritou: “E daqui a alguns anos...” Não sabia
bem o que ia dizer e calou de repente, mas Teresa percebeu que ela esti-
vera a ponto de dizer algo inconveniente: “Não fale mal dos homens de
cabelos brancos; meu mar ido já começa a ter alguns e está melhor do
que quando o conheci. O que acontece é que a sua afilhada está apaixo-
nada pelo pai, e é daí que vem o problema”. Havia pego a leiteira e en-
cheu as xícaras. “Ela fica brava se a gente toca no assunto; já faz tempo
que o Lluïset Roca a leva para jogar tênis. Gosta que os mocinhos fi-
quem atrás dela, mas você vai ver como vai acabar escolhendo um ho-
xícara em cima da mesa e espantou com a mão umas abelhas que rodea-
vam o pratinho dos doces. Teresa não conseguiu conter o riso: “Não se
assuste: elas são ensinadas... E se for preciso meu mar ido vem aqui de-
por Rafael. “Mal nos vemos; passa a vida na fábrica e tem muita dor de
que é certo que ele vai para Madri, para o Ministér io.” “Também nos
contaram isso, mas na semana passada ele mandou carta e não tocou no
“Um livro?” “É, um livro sobre o seu avô, o jur isconsulto; também esta-
grima.”
que eu mande trocar a xícara? Caiu uma flor dentro.” Eulàlia pegou a
precisa, obrigada.” Bebeu uns dois goles e cobriu a xícara com o guarda-
napo. “É muito gostoso ficar no sol, mas tanto o Rafael como eu somos
gente de apartamento.” “Por isso você tem o rosto tão branco. Esse pou-
co de sol vai lhe fazer bem; amanhã você vai estar mais bonita.” Ouvi-
tirou-as de cima: “Sabia que a Mar ina Riera casou com um dos filhos do
vezes”. Pegou um docinho e mordeu. “Ela teve sorte, porque já era gran-
conhece, não é?” “Não está ventando muito aí em você?”, perguntou Te-
resa, despejando mais chá. “Não. Está vendo. Esse sim que me far ia dar
um tropicão. É daqueles homens que quando olham você parece que es-
tão tirando sua roupa. Esse negócio de fazer testamentos deve excitá-lo.
É claro que a mulher dele não vale nada.” Falava sem parar, levantando
escolhido e acaba casando com a mais feia.” “Tem muito homem as-
tinuou: “Mas é que, coitada dela, não tem nada de interessante; e dizem
que é um pouco idiota. Ele deve se aproveitar disso. Muito educado, vo-
cê vai dizer, muito sér io, mas tenho certeza de que ele tem alguém; al-
guém que vale a pena”. Calou-se um instante e emendou: “Bom, mas ela
também não pode se queixar: carrega uns brincos de brilhante nas ore-
lhas que parecem avelãs”. Teresa pegara a sineta e tocou-a. “Você me as-
sustou.” “Se não tocasse um pouco forte elas iam fazer que não tinham
ouvido.” Felícia apareceu logo, e Teresa pediu que trouxesse água quen-
te. “Não, não precisa limpar a mesa: essas flores acabam enfeitando.” E
Pode tirar, Felícia; com o cheiro de doce as abelhas ficam doidas.” Antes
que Felícia tivesse tempo de levar embora o pratinho, Eulàlia pegou uma
cereja cristalizada. “A última: acho que comi muitas, mas é que estão
tão gostosas...” E sem mudar de voz emendou: “Se eu fosse homem, não
de falar disso; você deve achar que eu sou uma fofoqueira. Em compen-
sação, você, não sei como é que faz; nunca fala mal de ninguém.” Teresa
havia pego uma flor: “Eu”, disse, “só gosto das coisas bonitas”. E comeu
a flor. “Você é doida... Tomara que não te faça mal. E, agora que eu lem-
brei, sabia que o Begú morreu? Oito dias de cama; e direto pro cemité-
çou a vender joias.” “Por que é que está me contando isso?”, pensou Te-
lhas de doces que haviam caído na saia. Teresa pensou: “Está com medo
das abelhas? Espere só”. E emendou em voz alta: “Antes de você ir em-
bora vou colher algumas rosas pra você”. Levou-a até a casinha dos tan-
aqui dentro deve ter alguma coisa para cortá-las.” Teresa entrou na casi-
nha e saiu com a tesoura de podar. “Essas roseiras são de umas mudas
abertas. Eulàlia deu um grito: “Anda logo, Teresa; não está vendo que
mãos; essas daí são muito bravas”. Eulàlia foi depressa para dentro da
dela devagar. Pela porta da cozinha, viu Armanda junto aos fogões:
“Quer mandar a Felícia amarrar essas flores?” Eulàlia, que fazia tempo
que es
tava aflita para ir embora, pediu a Teresa que a deixasse ir ao lava-
bo para empoar-se: “Depois de tanto tempo no sol, não sei o que devo
estar parecendo”.
IX
Lim
pe
za de ar
má
ri
os
Armanda deu uma olhada rápida na cozinha e, como tudo estava em or-
dem, pensou que o melhor a fazer ser ia subir para repousar. De passa-
gem, entrar ia para ver o que estavam fazendo as outras moças. Mesmo
saía de dois armár ios de parede que tinham as portas escancaradas. Na-
para lavar. “Vem, Armanda, vem ajudar a espantar as traças”, disse Si-
“Pode olhar, pode; é uma espécie de casaco muito esquisito. Não enten-
do por que têm de guardar tanta coisa velha, se fosse meu ia achar um
estorvo...” Armanda, que até então não dissera nada, exclamou: “Que
cor mais bonita!” Separou os papéis e com muito cuidado pegou a roupa
tum, tum-tum”. Simona saiu do armár io e, sem dizer nada, pegou o do-
minó e vestiu-o: era alta, esbelta. Feia. Teresa sempre dizia que era a
herdar isso é a senhor ita Sofia, com as outras velhar ias. Se o senhor Ela-
di a vir dentro desse saco cor de defunto, vai lhe dizer: ‘adeus, lindi-
branca. Acabara ficando de mau humor: “Vocês não podem deixar o se-
nhorzinho Eladi tranquilo? Todas vocês estão apaixonadas por ele, to-
das!” “Não fique zangada que não vale a pena. Qualquer dia desses eu
vou lá na loja dizer pra ele: sou a empregada dos Valldaura; quer me
pouco da loja; além dela, eles têm uma fábrica de tecidos e veludos; são
que acabara de escovar e pegou outro: “E a senhor ita Sofia, tão cheia de
pretensões que mal olha pra gente, vai atender atrás de um balcão?”
“Eu”, disse Lluïsa, “prefer ir ia mais o rapaz que a acompanha no tênis.”
que ela vai sozinha.” “Sozinha? Pode ser que ele não venha buscá-la,
mas apostar ia um dedo que eles se veem o quanto querem.” Simona en-
carou Armanda: “E você, quem escolher ia?” Armanda saiu: “Vão adian-
que estavam como no dia em que entrara na casa; não cresciam. Embai-
cara que poucos dias antes da sua primeira comunhão um raio o havia
cozinha. Sua tia lhe dissera muitas vezes: “Só se pode dizer que um ta-
lher de prata está limpo quando a gente esfrega forte com um pano e não
ra abrir, e Gertrudis se zangava muito porque era serviço dela. Mas não
podia fazer nada. Até que Teresa avisou: “Armanda, quando você ouvir a
que a senhora Teresa, que trata todas as empregadas por vós, trata a mim
por você? Deve ser porque eu sou novinha”. “E você acha que poder ia
ser por causa do quê, se não fosse por isso?” E desde a hora em que ela a
avisara nunca mais fora abrir o portão. Mas, assim que a campainha soa-
va, tinha de fazer um grande esforço para não sair do lugar: o coração se
lhe escapava e corr ia por debaixo dos castanheiros como uma lebre. A
cozinha, no inverno, parecia o céu: era o lugar mais quente da casa. Mas
no verão... “Não se pode ter tudo”, dizia sua tia enquanto mexia as pane-
las, e as gotas de suor lhe desciam pelo pescoço. Começava a sentir so-
je”, lhe dissera a tia, “é você que vai fazer os pombinhos; você já sabe
mentá-la e dar risadas: “O que você me diz, Anselma? Esse rapaz com
um cravo na lapela e eu com uma rosa no peito: a gente até que combi-
nava!” Teresa, quando punha uma rosa no peito, ia colhê-la ela mesma.
você ainda não está dormindo não é?” Tinham batido à sua porta e ela
quase não ouvira. Era Simona, toda cheia de risinhos: “Vem ver o que a
de todo aquele tempo de olhos fechados, a clar idade lhe doía. “Já estou
vendo que vou ficar sem dormir”, disse, enquanto Simona abria a porta
quinho queimou”, disse Simona, que perdia o fôlego de tanto rir. Era a
primeira vez que viam aquele anteface, que estava embaixo de tudo do
tada. “Qualquer dia”, disse Simona se abanando, “vou entrar na sala pa-
ra servir com esse casacão vestido e essa coisa preta no rosto.” “E por
causa disso vocês me fizeram vir até aqui?”, perguntou Armanda; estava
fur iosa porque lhe haviam interrompido o sono, mas ouviu passos no
corredor e ficou quieta. Cristina, que estava sentada num canto morren-
“Meu Deus, que cheiro de alfazema!” Deu uma olhada ao redor e dir i-
saco marrom de seda; vou precisar deles amanhã à tarde”. Ficara encan-
que existia.” Abriu-o e fechou-o vár ias vezes. A borla estava meio ca-
dos armár ios do jeito que estavam”. Simona disse-lhe para não se preo-
cupar: “Senhora, não é a primeira vez que a gente faz isso...” Teresa che-
gou mais perto para ver a roupa passada que estava no cesto e foi embo-
ra. “Ela podia ter batido na porta, já que veio ela mesma...”, disse Lluïsa
de mau humor. Simona respondeu: “Quis vir ver o que a gente estava fa-
zendo; tá ficando xereta... O que eu não entendo é por que levou o leque
embora”. Armanda passou a mão pelo cetim roxo: “Se ela flagrasse vo-
cês fazendo piada...” Foi até a porta e antes de sair disse: “E não vão me
acordar de novo”. Mas já não tinha sono.
era bastante grande: como o da sua tia. Os das moças ficavam do outro
baixinha, um pouco cheinha. A mãe dela sempre dizia: “Não dá pra di-
zer que a Armanda seja bonita, mas tem uma pele de seda. Parece que
não, mas não é pouca coisa”. Abriu o armár io e pegou uma caixinha de
lata que estava meio vazia; ter ia de colocar mais biscoitos. Mas ainda
ter ia tempo de dar um cochilo. Mas ter ia de fechar tudo para que ficasse
descalçar abriu a sacada dos dois lados para que o ar lhe desse sono e fe-
Ela
di Far
ri
ols
Seu problema era o tédio. Tentou duas ou três vezes pôr uma perna em
dar. E havia sido tão magro; mais que o pai dele. Pobre pai... Talvez por-
que na casa dele não tivessem conseguido pagar-lhe estudos, sempre ali-
dos outros o deprimiam. O pai entendeu, e uma noite em que saíam, ca-
com a voz velada de melancolia: “Não se preocupe, Eladi, que tudo vai
se ajeitar”. No dia seguinte foi encontrar seu irmão Terenci, que tinha
brica anda sozinha, mas na loja ele vai me ser muito útil”. O pai de Ela-
di não fazia nada. Sua fortuna provinha de um tio. Boa parte lhe escapa-
que era muito católica, deixou-o arrasado. E ele, que sempre rira do delí-
missa das oito na Mercè e, às tardes, ao rosár io. Com grande devoção
Era magro, encurvado e parecia mais velho que seu irmão. Tivera pedras
nos rins e quando pensava na dor que sentira para expeli-las se arrepia-
Par is, tanto para se atualizar com a moda como para manter um certo
prestígio. Nas tardes em que não tinha trabalho na fábrica, o tio descan-
Eladi, com a pose mais respeitosa e o sorr iso mais acolhedor, recebia os
conversa todo o tempo que fosse preciso. Quando saíam, tanto se havi-
enquanto dava uma risadinha, que a loja poder ia servir-lhe para ir mon-
tando um harém. Mas trabalho era trabalho e as faturas tinham sido in-
ventadas para ser cobradas. Além do mais, sua fraqueza não eram as se-
plumas e tules, ter ia entregue a alma ao diabo. Aos vinte anos teve velei-
dades políticas, mas sempre evitara entrar para algum partido: não sabia
por qual deles se decidir. Uma vez que o pai lhe fez ler uma biografia de
xou e, um belo dia, sem pena nem glór ia, inscreveu-se na Esquerda Ca-
talã. O partido que mais combinava com sua maneira de agir era a Liga,
mas ele ficava incomodado de tanto ouvir o pai e o tio falarem disso du-
rante anos, com o fato de Cambò ter ido receber o rei. Duas noites por
lhe custava. Agora, enquanto fazia o nó da gravata, sentia que a calça lhe
ja... Há uns dois anos, numa tarde de outubro, quando começava a escu-
de pre
sença, uma coisa inexplicável que emocionava. Sem que se pare-
cesse nem um pouco, o fizera lembrar da sua mãe que, quando era pe-
mentara com seu tio. “É a senhora Valldaura, uma das nossas melhores
clientes; você já ouviu falar dela.” Ia com frequência à loja, sempre sozi-
nha, um pouco para matar o tempo e um pouco para ver coisas bonitas.
Um domingo, Eladi, que encontrara seu endereço nos livros da casa, foi
ver onde morava, por pura cur iosidade. Assim que chegou diante da casa
tudo lhe veio à memór ia: quando era pequeno e sua mãe ainda era viva,
o pai o levava a passear pelos subúrbios e o deixava bater nas casas que
dois, sem precisar nem correr, sabe-se lá onde é que já estavam. Quantas
pensou, “não vou poder segurar a vontade de rir” Mas no dia em que ela
apareceu ficou desor ientado, porque não veio sozinha. “Eladi, eu acho
que você ainda não conhece minha filha; ela se chama Sofia.” Eladi nun-
ca imaginar ia que a senhora Valldaura pudesse ter uma filha magra, ar-
redia, com ares de super ior idade. No dia seguinte comentou com o tio.
“É, e você quer ia o quê? Às vezes de uma mãe deslumbrante sai uma fi-
lha desbotada; mas não confie em águas calmas.” Eladi pensava bastante
em Sofia, não sabia o que ela tinha que o atraía, e isso que ele a achara
até um pouco antipática. Gostava das moças graciosas, sorr identes, ino-
meio e o cabelo puxado para trás. Vira mocinhas penteadas como ela
numa edição ilustrada das novelas de Balzac que seu tio guardava como
com mais frequência à loja com a filha, que era uma cliente difícil. Não
tremiam. Por que tinha de dar tanto trabalho se ela se vestia com tanta
simpli
cidade? De um jeito um pouco esportivo, com cores neutras; cinza
já tinha criado raízes no chão. Não usava joias berrantes como a mãe:
baixo, Eladi disse a Sofia: “Que anel mais bonito você está usando!” Ela
uma peça de seda, acar iciaram-se as mãos. Sofia estava impassível. Ela-
daura: vestia uma saia justa aberta de um lado, que deixava ver um peda-
ço de perna esplêndido, e uma blusa branca com gola alta e gravata. To-
da ela branca como o leite, sentada à sombra de umas acácias com a ra-
quete no colo. Fazia uns três meses que não a via mais na loja e se cum-
Roca, que parecia inglês e tinha um Hispano. Sofia e Eladi foram fazen-
Um dia que haviam ido juntos ver uma partida, a senhora Valldaura con-
vidou-o para almoçar: “Gostaríamos muito que viesse, não é Sofia? Que
tal um domingo para o senhor?” Ele foi dali a uns quinze dias. “Quem
o até uma sala que tinha as paredes cobertas de livros. Teresa Valldaura
foi buscá-lo logo: “Venha para a sala; lá bate sol e não precisamos ficar
com cer imônia”. Assim que o viu, o senhor Valldaura, que estava lendo
muita formalidade. Era um homem alto, bem postado, com uma grande
o veste; vai ficar contente.” Fazia tempo que não via uma pessoa que lhe
causas
se tanta impressão; mal sabia o que dizer. “É um grande senhor”,
lembrou de Sofia ela já estava diante dele; distraído com o pai dela não a
vira entrar e lamentou. Estava com um vestido de jérsei de seda que lhe
cordial. Parecia distraída e quase não abriu a boca. Teresa falou pratica-
com certa cur iosidade. Era um homem que tinha grande respeito por to-
dos, mas aquele jovem bem educado, simpático, que frequentara a uni-
versidade, que poder ia ter conquistado tantas coisas e que deixava mor-
rer sua juventude entre as quatro paredes de uma loja, não acabava de
Assim que se sentaram, entrou Simona com o café. Eladi não tinha olhos
recer um char uto a Eladi e tirando o anel do seu com calma, “foi dos
sastre. Quis mudar o escudo, porque o seu, que não sei como era, não
lhe agradava, e não sossegou enquanto não lhe fizeram um novo; campo
do. Meu administrador sempre dizia: não é de estranhar que tenham so-
brado tão poucas árvores.” Percebeu que Eladi quase não lhe dava aten-
Valldaura o olhava sem dizer nada. Não sabia do que falar; já co-
meçava a ficar com vontade de que Teresa ou Sofia fossem lá dizer algu-
bem de uma loja como a de vocês que havia em Viena perto do hotel em
que eu ficava. A dona tinha a fama de ser a mulher mais bonita de Vie-
na.” “E não deve ser nada fácil”, disse Eladi rindo; e pensou: “A conver-
guma vez lá?” “Onde?” “Em Viena.” “Não; já fiquei a ponto de ir umas
duas ou três vezes, por assuntos da fábrica. Meu tio tem a mania de
achar que poderíamos vender alguma coisa lá; eu não estou muito certo
que era uma cidade com um encanto único. Isso é uma banalidade, eu
sei, mas é absolutamente exato. Para mim, as cidades... O que gosto de-
sar de que isso que eu disse por último não chega a ser exatamente um
detalhe.”
graus, e Sofia até o portão. Ela, antes de lhe estender a mão, disse que ia
logo, ele e o pai, vestidos a rigor, foram pedir a mão de Sofia. O tio Te-
Naque
le inverno, Salvador Valldaura morreu de um ataque de apoplexia.
quis respeitar o luto: deixar iam passar dois anos antes de casar. E no iní-
cio daqueles dois anos Eladi Farr iols se apaixonou por uma cançonetista
do Paral·lel.
XI
Pai e fi
lha
Seu pai, quando ela era pequena, gostava que ela fosse lhe dar bom-dia,
ela estava doente, foi vê-lo escondida. Ele sentou-a no colo e, depois de
filha, tem gente para quem uma lembrança é suficiente para a vida intei-
ra”. Ela perguntou: “O que quer dizer uma lembrança?” “Logo você vai
descobrir; talvez esse momento seja uma lembrança para você, daqui a
muitos anos.” Na igreja, no dia dos funerais, Sofia sentiu como se algu-
pai, naquela manhã. “O que quer dizer uma lembrança?” Teve uma crise
de choro tão forte que precisaram levá-la até a sacristia. Armanda, que
também fora à igreja, ficou meio surpresa: “Tão dura e tão insensível
que ela parecia”. À noite ela já se acalmara, mas não conseguia parar de
pensar em coisas deles dois. Nos dias em que a mãe saía, ele a levava
para ver os faisões. Entravam por baixo das árvores; ela, pequena, tinha
de levantar o braço para segurar aquela mão tão grande. O mato roçava
vam olhando, sem dizer nada. Sofia tinha muito medo dos faisões: por
causa das cores. Mas logo descia da cadeira, ia até a portinha e, na ponta
dos pés, segurava a maçaneta: “Se eu entrar eles vão se assustar, não é?”
Assim que acabava de dizer isso, corr ia para perto do pai olhando para
trás para ter certeza de que os faisões não tinham saído e a perseguiam.
Ele a pegava rindo e a abraçava forte: era como se uma nuvem a abra-
çasse. A primeira vez que a levou para ver os pássaros explicou-lhe co-
mo se chamavam: “Os de penas avermelhadas, com o pescoço azul e
“Quais são os que gritam?” “Os que têm os círculos azuis no final da
cauda.” De repente, o pai, como de outras vezes, ficou sem dizer nada, e
ela teve a impressão de que nem a via. Bateu na coxa dele com o punho.
que da
va para o campo: “Sai e olha lá fora”. Ficou maravilhada: tinha a
impressão de que o céu esvaziara de folhas e que o sol era o dono de tu-
do. No dia das violetas ventava muito. Seu pai estava sentado diante da
para ver onde iam, até que se viu diante de uma árvore com o tronco
Devia ser errado colher aquelas flores e talvez ele ficasse bravo com ela.
bem quieta, até que percebeu a sombra do pai. “Estou aqui.” Quando o
viu sair por entre a grama alta, ergueu o braço e lhe mostrou as violetas.
Ele parou com os olhos fixos naquelas flores e a pegou no colo. Os ga-
embora de casa e não voltasse nunca mais. Um dia em que ela lhe dera
uma bronca e um safanão para fazê-la sair de um canteiro perto dos cas-
tanheiros, pensou que ter ia que matá-la. Como ia muitas vezes à cozi-
chos ficavam quietos. Muito tempo depois, talvez porque Felícia tivesse
espalhado, soube que a mãe já fora casada uma outra vez, e que apronta-
ra mil e uma para o mar ido. “Eu”, pensava, “nunca vou ser como os
meus pais, porque tenho o coração duro.” Ficara convencida disso a par-
tir do dia em que Armanda lhe contou que estavam procurando um pro-
mais que o outro: passou três dias sem dir igir a palavra a ninguém. De
onde haviam tirado que ela tinha um ombro mais alto que o outro? Gi-
nástica ela já vira fazer. Seu pai, às tardes, ia para ao Ateneu ter aula de
nava a aula mandava-o erguer pesos. Um dia o pai a levara junto. Ela se
distraíra olhando aquelas coisas novas e de repente lhe pareceu que o pai
estava morrendo: levantava e abaixava devagar uma barra com uma bola
das co
mo se fossem cobras; quando ficou com a barra perto do chão sol-
tou-a de vez e saiu de perto com um salto. “Pode sentir o peso, se qui-
ser.” Sofia não conseguiu nem fazê-lo rodar. Bea explicara ao senhor
Valldaura que aqueles pesos, desde que o Ateneu era Ateneu, só duas
quando era mais moço”. Sofia já quase nem lembrava do que Armanda
café e a mãe despejou mais leite na xícara dela: “Já arr umamos uma pro-
nhã”. Ficou branca como uma folha de papel. “O que foi?”, perguntou o
pai. Ela olhou-o um instante sem dizer nada, com os olhos cheios de rai-
do ele, que levantara, ia se aproximar dela, ela recuou três ou quatro pas-
sos: “Deixe-a sossegada”, disse a mãe; “se quer ficar corcunda, que fi-
que corcunda”. Não fez ginástica, mas aquele desgosto durou muito tem-
po.
Depois de dois anos, Sofia fez a primeira comunhão e seu pai caiu
doença de vez em quando ajuda a ter saúde”. No primeiro dia que saiu
falou-lhe da pérola na gravata, que quando ela era pequena ele deixava
que ela pusesse o dedo. “É a pérola cinza, e quando eu morrer quero que
você a coloque em mim; estou dizendo isso porque sei que você vai lem-
“Vou deixar você rica. Tudo o que eu tenho será seu. Mas você não tem
vras ditas em voz baixa, para que nem os passar inhos ouvissem. De noi-
te sonhou que já era rica: vestia um xale de pedrinhas e meias pretas
com costura. Talvez por isso, quando anos depois foi com a mãe à casa
viu que a casa ficava para a mãe. Mordeu os lábios e teve que passar o
da, ela, que se tornara uma das moças mais ricas de Barcelona, chorou
Lady Go
di
va
vez es
tivesse mal do fígado: comia demais, bebia demais e fumava sem
disse que a senhor ita estava no banho, ficou irr itado. Pilar sabia que ele
chegava sempre na hora: por que não podia ter tomado banho antes; ou
Lady fazia-o sentir-se amoroso. Com aquela pele tão acetinada e aqueles
olhos verdes tão exóticos lembrava-lhe uma orquídea. Nos dias de chuva
moi, ton coeur parfois s’envole-t’il, Agathe?” Uma madrugada ele a dei-
xara tão atarantada repetindo aquele verso naquela cama tão ampla, com
ennes, que ela lhe dera um soco no meio da cabeça. Doeu, mas ele riu e
t’il, s’envole-t’il...”
uma bolha. Não sabia como se fazia vidro; parecia-lhe que era à base de
mais; mesmo não gostando nada que o vissem desde as casas da frente,
para cima e, vendo que Eladi fazia um gesto com o braço para que fosse
embora, pegou as duas pesetas, voltou a olhar para cima, tirou o boné
cada aberta um tempo para renovar o ar, passou o dedo pelo defeito do
tinas verde-tília... Talvez naquela tarde as cores lhe dessem mais mal-es-
lado da porta devia ser uma nova aquisição: sobre um fundo de seda
bordado”. Ouviu passos e foi correndo sentar. Não entrou ninguém. Ti-
lhe fora dado de presente pelo seu tio quando começara a trabalhar na
ra cantar não valiam grande coisa. Mas quando viu Pilar no palco can-
lhado. Mal dava para ver o rosto dela, meio encoberto pela cabeleira
comprida até o final das costas, mas as pernas e as coxas, o ventre, aque-
gar até ela seu cartão, e Pilar o recebeu em seguida: vestia uma bata rosa
zaram até os ombros e Eladi ficou um momento sem fôlego. Nunca tive-
ra nenhuma amante. Quando quer ia dormir com uma moça ia à casa da
nem lembrava mais dela. Por Pilar Segura apaixonou-se logo, e perdida-
mente. Era doce, tinha um não sei quê de popular e de refinada que a
pectos, se parecesse, nem que fosse só um pouco, com a mãe dela!” Mas
Sofia era uma moça seca, secreta, cheia de coisas admiráveis que custa-
gura foram muito assíduas desde o início. Praticamente todo dia ele a le-
vava do Edèn até a casa dela, e o tio Terenci logo percebeu que tinha ga-
quanto der, mas lembre-se de que a sua noiva é uma moça muito rica e
em que a porta abriu, para fazer alguma coisa, pegou de cima da mesa
lina cor de laranja, com o cinto de pedrar ia, descalça. “Fiz você esperar
lhe a roupa do decote para olhar a pinta que tinha no seio. Ela usava uma
que ele lhe dera de presente. Pilar o olhava embasbacada. “Maeta et er-
rabunda", pensou Eladi desviando o olhar para fugir daqueles olhos que
o transtornavam. “Quer que eu traga alguma coisa para beber?” Foi até a
e quando está na outra ponta do apartamento não ouve nada; mas eu”,
disse rindo, “quando preciso dela puxo a cordinha e, como ela não vem,
sobre a mesa para acender as luminár ias. Por trás do vidro da sacada já
era de noite. Eladi fazia um tempo que não sabia bem o que estava acon-
tecendo com ele. Era uma espécie de mal-estar que não se parecia nem
coisa com Pilar, que ele, de um modo ou outro, estivesse captando. Ge-
ralmente, assim que o via, ela falava das coisas que estavam acontecen-
do com ela, contava todas as conversas e lhe dava os cartões que havia
recebido junto com os buquês de flores: “Toma. Pode rasgar todos!” Tal-
Talvez tivesse brigado com alguma outra moça, “quelque chose que je
ne peux pas saisir...” Mas não: viu que se aproximava sorr indo com a
tacinha na mão e sentava no seu colo. Que diabos de perfume ela colo-
cara que o asfixiava? Devia ter entornado o frasco em cima. O bom hu-
mor voltava. Não; não tinha nada no fígado. Iria fazê-la ficar com raiva:
“Você lembra, Pilar?” Baixou o tom de voz até convertê-lo num murmú-
da dele e disse, bem baixinho, umas palavras que ele não entendeu: “O
que você disse?” Ela repetiu cochichando. Mesmo com medo do ridícu-
lo, Eladi não conseguiu deixar de perguntar de novo o que ela dissera:
O pin
tor Mas
déu
de Moisés. Era um pouco difícil pintar sobre veludo, mesmo que fosse
elas, que emoldurava a cena bíblica. Jesús Masdéu pintava tapeçar ias
para as lojas Eudalt: eles encomendavam uma a cada dois meses. Mas A
travessia do mar Vermelho, até então não se dera conta, estava crispada
de dificuldades. A culpa era dele; quando o senhor Rodés lhe pedira para
fazer Adão e Eva, ele propusera em vez disso A travessia do mar Verme-
lho. “O senhor vai ver que tapeçar ia!” Pegou o pincel e o fez deslizar
pelo veludo enquanto pensava: “Aqui eu quer ia ver os mocinhos que fa-
zem exposições; quatro peras com uma garrafa vazia, e os críticos de bo-
ca aberta”. Nascera sem sorte. Seu pai costumava dizer: “Vai visitar a
ra-lhe os estudos; sempre que ia vê-la, ela lhe dava dinheiro. Atravessava
Um dia foi ver sua madrinha com uma tapeçar ia enrolada debaixo
muita estrada pela frente, Jesús; como diz meu mar ido, uma figur inha,
Deu mais umas quantas pinceladas com os olhos meio apertados. Não
ser iam poucas as horas que ter ia de passar diante daquele pedaço de ve-
ludo que talvez nunca ninguém comprasse! De repente sentiu uma laba-
reda de inspiração: a mulher que Moisés tinha à sua esquerda ele pinta-
colo ele pintar ia de azul-limão. Com o olhar fixo e duas rugas verticais
Jesús Masdéu não era nem muito alto nem muito baixo; tinha os
olhos pretos e bondosos. Para trabalhar ele colocava uma boina. Em ci-
vai matar todos”. Tinha certeza de que chamar ia a atenção. Havia feito
nunca lhe pagar ia as horas que iria gastar. A mulher adúltera, sim, tinha
sar saía para fora e olhava a extensão de terraços que chegava até o mar.
Era feliz por ter aquela oficina numa casa tão alta... Com uma espécie de
seus anos de criança: sua mãe gostava pouco dele, o pai saía todo dia de
der como é que ele fazia, com aquela vara tão comprida, para abrir a
portinhola de vidro e tacar fogo dentro. A casa em que viviam era deles.
Assim que começou a pintar a óleo sua mãe passou a reclamar do cheiro
de tinta e aguarrás e da sujeira que fazia quando limpava os pincéis.
“Não posso ter a pia limpa, nunca.” E ele, para não incomodá-la, alugara
aquele quarto no alto de um terraço, com uma despensa que fazia servir
de cozinha, e por fim acabou morando lá. A cada quinze dias, à noitinha,
Para não ter de perder tempo na manhã seguinte, antes de subir pa-
va-se Laieta; era rigorosa no peso, mas vendia uma carne que parecia
que você está pintando agora, Jesús?” Não se queixava nunca da vida
ria lhe dar a não ser seu trabalho. Lá do seu pombal, olhando a extensão
O ca
sa
men
to de So
fia
até o lavabo. “Você não poder ia estar mais bonita”, disse-lhe abraçando-
pra ver de longe que Eladi está apaixonadíssimo”. Sofia ficou de frente
para o espelho e sorr iu: “E eu, não?” “Ah, você... Você já esteve apaixo-
nada alguma vez?” Sofia não respondeu. Ao sair da igreja vira o carro de
quantas cartas que Lluís lhe escrevera quando já estava noiva. Não eram
cartas de amor, mas ela sabia ler nas entrelinhas. “Amiga Sofia...” “Mi-
nha amiga.” “Amiga.” Não tinha mais que ficar pensando nisso! Ajeitou
lábios. “Quer saber de uma coisa?” Eulàlia pegara a barr inha de carmim
para casar e mais de uma vez eu tive medo que o Eladi cansasse de espe-
rar. Foi mais arr iscado do que você imagina.” Sofia, meio de costas para
sua madrinha, puxava as meias para cima. “Está com vergonha de mos-
trar essas pernas que eu vi desde quando você nasceu?” Sofia virou a ca-
beça e piscou o olho. “São do meu mar ido.” Não quer ia que Eulàlia lhe
criticasse as meias, claras demais. Fazia uns dois meses que Eladi, como
disse em voz alta: “Quem me dera ser o noivo... Não agora. De noite”.
Eulàlia apertou-lhe o braço: “Está vendo, os homens...”
rir. Por que convidara Masdéu sem consultá-la? Ela não o pusera na lis-
ta. Ele viera de preto e colocara gravata, mas estava com o cabelo com-
que valiam uma fortuna, olhava seu mar ido a toda hora: percebia-se que
não estava tranquila. Uma hora, Sofia teve medo; Masdéu falava com a
senhora que estava do lado dele, e sua mãe e Riera contemplavam-se en-
tio Terenci teve de pedir silêncio por favor, depois de dar uma olhada na
gardênia que trazia na lapela e que ele já devia ter mexido porque tinha
um par de folhas meio pretas. No final do discurso ergueu a taça bem al-
do aqui”, disse Eladi enquanto o garçom lhe servia o café. Sofia deu-lhe
ninguém. Quase toparam com Rafael Bergadà, que ajeitava o cabelo di-
mão. O pai de Eladi, de longe, viu quando entravam no carro. “Num dia
como esse”, pensou Teodor Farr iols com amargura, “um homem dever ia
ter sua mulher viva. Se pelo menos tivessem me feito sentar ao lado de
Levan
tou as pontas do fraque e, antes de sentar, deu uma olhada em Te-
Sofia ter ia prefer ido que os dois fossem morar sozinhos; pelo me-
nos nos primeiros anos. Não falara a respeito disso abertamente com
Eladi, mas ficou surpresa com o entusiasmo que ele demonstrara quando
sua mãe lhes disse que ter ia medo de viver sozinha numa casa tão gran-
de. “E onde é que vocês poder iam estar melhor? Vocês me farão compa-
contrar iada. Do que ela não gostou nada foi de sua mãe insistir para que,
antes da viagem de lua-de-mel, eles passassem uns dias na casa: “Assim
a lembrança da primeira noite vai ficar entre essas paredes...” Para não
inibi-los ela ficar ia aqueles dias na casa dos Fontanills, que gostavam
junto aos degraus. Eladi fez questão de entrar carregando Sofia nos bra-
ços, e ela achou grotesco. Como dever iam ter rido aquelas moças... Só
gostou que Armanda a visse, porque uma vez a flagrara olhando Eladi
nis, bem mais velha do que ela e invejosa, um dia lhe dissera: “Será que
você vai chegar a casar? Eladi é mais requisitado do que você imagina”.
pos do véu. Estava muito pálida. Desfez o cabelo, comprido até a meta-
de das costas; não dera a menor bola para a moda e nunca deixara que
Eladi se aproximara dela e sem dizer nada acar iciava-lhe o cabelo. Eulà-
lia, Er
nestina, era como uma mania... Por que tinham de achar estranho
que al
guém quisesse casar com ela? Achavam-na tão insignificante as-
sim? Tão pouca coisa ao lado do Eladi, sempre como se tivesse saído da
Fazia dois anos que seu pai morrera e nunca se sentira tão só. Uma vez
ele lhe dissera: “Você é tudo pra mim: filha e filho”. A única pessoa que
quem está calculando uma boa jogada. Tinha certeza de que estava louco
para casar com ela... E ali a tinha, oferecida para sempre... “Sim, madri-
cia, não há dúvida, e que pensa que eu vou ter de lhe agradecer a vida
inteira. Isso mesmo: a vida inteira.” Eladi a fez virar de frente e come-
çou a beijá-la. “Parece que você não tem controle. Aquele medo de pare-
cada, brilhava. “Me dá um beijo, mas no pé. Ouviu? O que você achar
pouco mais a saia; tinha as pernas bonitas, bem torneadas, o joelho re-
dondo, liso e o tornozelo fino. Eladi passou um dedo por dentro do cola-
rinho da camisa e murmurou: “Sofia...” Ela apontou para o pé. “Não es-
tou pedindo nada do outro mundo; se a meia atrapalha, pode tirar...” Ele,
ficasse mais à vontade? Como se estivesse na sua casa.” Eladi lhe deu
um olhar fur ioso; pôs o paletó em cima da cama e desfez o laço da gra-
vata. Ela o olhava divertida. “Você acha chato que eu não deixe você fi-
pelo rosto e pelos lábios. Depois cuspiu. Quando voltou ao quarto, Sofia
na madeira, Eladi disse com a voz um pouco afogada por uma espécie de
ira contida: “Eu ter ia demorado para lhe contar uma coisa; talvez nunca
Ela ficou quieta um tempo e pensou que ainda não entendera direi-
to; mas logo percebeu que o que Eladi tinha a lhe dizer era importante e
se assustou. “É melhor fingir que não ouvi.” Levantou e, sorr indo, arran-
cou uma florzinha do sutiã: ‘‘Está vendo? Uma coisa azul”. Depois tirou
a outra cinta-liga e atirando-a na cara dele disse: “Está vendo? Uma coi-
vendo? Uma coisa velha; os ingleses dizem que, tudo junto, é para dar
sorte”. Eladi, que não se movera do pé da cama, a olhava como se ela es-
tivesse muito longe. “O que você acha? Vai dar sorte ou não? Decida-
susten
tou o olhar por um tempo e de repente, da maneira mais estúpida,
murmurou: “Eu tenho uma filha”. Viu Sofia ficar de boca aberta como se
não tivesse entendido: “Você não ouviu? Eu disse que tenho uma filha”.
Sofia sentou diante do toucador, com um tapa jogou o buquê no chão, re-
colocou um frasco no lugar e pegou a escova. As mãos lhe tremiam. Per-
“Se é verdade o que você acabou de me contar, acho que você escolheu a
melhor hora, não é mesmo? Mas se você quis estragar alguma coisa...
que ela conhecia de cor. A gaiola dos faisões estava vazia. Todos os bi-
morr iam porque eram velhos; mas a mãe dizia que não eram nem um
pouco velhos. No tempo do seu mar ido, se um pássaro morr ia eles logo
compravam outro. A verdade, e a mãe devia ter razão, era que as empre-
gadas não trocavam a água dos bebedouros com a frequência necessár ia,
e eles morr iam intoxicados... Muito perto da gaiola ficava a árvore que
tinha as violetas em volta. Era a sua árvore. No dia em que ficara noiva
Eliza, for keeping secret some things”. Voltou a andar, mas teve de parar
porque sua cabeça rodava. Ela iria fazer como ter ia feito aquela avó que
não chegara a conhecer. Iria querer aquela filha de Eladi em casa mesmo
que não conseguisse gostar dela nunca. Ainda usava fraldas e se chama-
va Ma
r ia. Se Eladi imaginava que algum dia ser ia dele... Já ter ia tempo
para pensar no que dir iam aos amigos. Quando chegou perto das glicíni-
as, olhou para cima: começava a escolher o quarto em que iria acomodar
aquela criança.
mais altas. Tinha rodas e seu pai a fazia subir nela e a empurrava de um
lado para o outro da parede: “Estou ensinando você a viajar...”, dizia rin-
corr imão, olhou os escudos que a clar idade das estrelas iluminava. Não
tinha vontade de entrar, mas por fim abriu a porta; o cheiro de char uto
quase a fez recuar. Eladi estava sentado na cama, com um copo na mão,
que lo
go deixou em cima da mesinha-de-cabeceira. Sofia escancarou a
pela esplanada clareada pela lua, com uma clar idade um pouco enevoa-
da, como se cada grão de areia respirasse. Devagar tirou a bata e depois
de apagar a luz sentou na beirada da cama. Sem dizer nada, Eladi pegou-
a pelo braço e a obrigou a deitar a seu lado. “Você está com cheiro de
árvores...”, disse com a voz triste. De repente Sofia montou em cima de-
Nas
ci
men
tos
encontrava Pilar Segura, logo lhe ofereceu seu sítio para que fosse ter o
grande coração, sempre rindo, mas que por qualquer coisa se descontro-
lava e saía gritando. “O negócio é não responder nada até que a poeira
ouve bar ulho de chuva. Tinha bom olho para escolher as artistas e as tra-
tava melhor que às suas filhas; acabara de nascer a quinta. Ursula, sua
faxineira, que era de Hospitalet e feia como o demônio, mas fiel e traba-
lhadora, um dia lhe pediu que arr umasse um emprego para o filho. Ele
perguntou o que ele sabia fazer. “Nunca trabalhou, sabia? Não presta pra
mão no ombro, disse: “Não se preocupe. Vou ver se consigo arr umar al-
corpo, que contratava de vez em quando; mesmo sem ter voz muito boa,
Uma tarde, no seu escritór io, enquanto papeava com os irmãos Tullido,
mengol, que parecia um cigano, e Pilar Segura. Fez os dois sentarem, fi-
contente, ao ver que Pilar aceitava: “Você não vai ter medo de cantar de
uma altura dessas?” Pilar riu e disse que não. O senhor Sànchez pediu
uma cançãozinha a um músico, “que tivesse uma levada de marcha”; en-
minuto sozinha e pode-se dizer que viu nascer a criança: uma menina
linda, gordinha, que logo começou a olhar tudo em volta. A parteira dis-
se para Pilar: “Nunca vi uma menina com tanta vontade de viver, nem
que na hora de nascer abrisse uns olhos tão limpos e tão bonitos”. Pilar
estava triste. Eladi já lhe dissera que não assumir ia a paternidade da cri-
ança. “Por razões difíceis de explicar. Sinto muito, como você deve en-
tender, mas não posso fazê-lo. Mas vou achar uma solução ou outra...”
Pilar se abriu com o senhor Sànchez e acabou dizendo: “Não tenho re-
médio a não ser encarar a vida do jeito que ela se me apresenta”. O se-
nhor Sànchez, que tinha pena de Pilar porque sabia que se ela estava do
jeito que estava era porque se apaixonara, consolou-a como pôde: “Uma
a Pilar: “Dá ela pra mim?” Ela, que estava sentada junto à lareira, olhou-
o sem dizer nada. “Já vi que não. Que nome você vai dar pra ela?” Pilar,
branca como um lençol, com a pele das mãos transparente, disse: “Ma-
ninguém. Você sabia que meu nome é Armengol? O que você acha se
Depois de uns quantos dias, Sebastià foi ver Pilar carregado com
Fazia pouco que ela levantara e levou-a para passear por um caminhozi-
nho entre trigais. Pilar estava com um lenço de lã nos ombros e cami-
nhava devagar. De repente ele parou e segurou-lhe o braço: “Vim lhe dar
sem filhos, estar iam dispostos a ficar com a menina..., com a condição
de que você não a visse nunca mais; você ter ia de assinar um termo de
afogar. Ficou um tempo calada: “Não sei o que dizer..., eu nunca pensei
decidir. Por último, cansada de tudo, disse que sim; e, mais morta do que
viva, deu a criança a seu empresár io: deu-lhe também um estojo azul-
claro. Dentro havia um bracelete de prata com sininhos: “Foi meu. Diga
aos senhores que fiquem com a menina e que coloquem o bracelete nela
Sofia Valldaura ficou grávida quando fazia um mês de casada. Teve uma
gravidez ruim, sempre vomitando e com uma dor nos rins que a enlou-
quecia. Enjoou de Eladi, que não podia nem encostar nela. Uma noite,
Armanda, que pusera para macerar carne com vinagre e ervas para ela e
as moças, viu que não tinha a quem perguntar o que quer iam que ela fi-
zesse para o almoço do dia seguinte: a senhor ita estava doente, a senho-
ra tinha ido jantar na casa dos Fontanills e ainda não voltara. Só restava
dele quando eu perguntar que comida quer que eu lhe faça”. Com o nó
dos dedos bateu na porta da biblioteca. Saía uma luz pela fresta do chão
mas ninguém respondeu: “Vai ver que está lá em cima e esqueceu a luz
incomodar, mas o que é que o senhor quer que eu faça amanhã para al-
ta. “Chegue mais perto que eu não estou ouvindo.” Quando a teve do la-
do enfiou a mão por baixo da saia dela, agarrou a cinta liga, esticou-a
tiu uma fisgada nos rins que a fez dobrar. Já fazia alguns dias que a par-
teira dormia no palacete e Eladi foi avisá-la. Dona Sílvia tomou o pulso
manhã, voltando da cozinha onde fora pedir que esquentassem água, to-
pou com a senhora Valldaura que subia para ver Sofia. “A sua filha me
daqueles partos que não acabam nunca.” Teresa disse-lhe um pouco pre-
Falguera disse para Teresa que talvez tivesse de tirar a criança; mas que
não far ia nada enquanto não fosse absolutamente necessár io. Sofia teve
teira; “tive de ir apertando para que saísse sem rasgá-la demais.” No dia
do batizado Eladi quis que todas as luminár ias da casa fossem acesas e
dor, como seu pai, mas Eladi tirou-lhe isso da cabeça: “Nunca gostei que
pusessem numa criança o nome de uma pessoa morta. Acho triste de-
mais. É claro que todo nome é nome de alguma pessoa morta... Mas vo-
cê entendeu”.
Três ou quatro meses depois que Ramon nasceu, a filha de Mar ina
Riera, irmã do tabelião, teve uma menina. Puseram-lhe Mar ina, como a
mãe dela e a avó. Teresa leu isso no jornal e lembrou vagamente de Ma-
rina Riera; vira-a fazia muitos anos, numa noite em que fora com o ma-
rido e os Bergadà ao Liceu para ver La Traviata. Foi a primeira vez que
apaixo
nar ia por Ramon Farr iols i Valldaura.
Ramon fez três anos, e Sofia engravidou de novo. Não achou nada ruim.
“Talvez eu tenha uma menina.” Estava certa de que se pudesse dar uma
filha a Eladi o afastar ia de Mar ia, que era muito bonita e de quem ele,
iam vê-la começaram a dizer-lhe que ter ia uma menina; e dona Sílvia
também: “Está com a barr iga redonda; barr iga redonda, todo mundo sa-
be, tem sempre uma menina dentro”. Recomendou-lhe que comesse bem
pouco e que andasse o máximo possível. “Se nascer magrinha, não tem
prometia ser bom. “Muito. Tenho certeza de que desta vez vai correr co-
segundo filho de Sofia e Eladi nasceu antes da hora: de sete meses. Tive-
ram de encher seu berço com garrafas de água quente e durante um bom
tempo todos viveram com o coração aos pulos porque se chorava demais
ou fica
va com febre tinha convulsões: a língua enrolava contra o palato e
e ainda por cima o menino é mais manhoso que uma menina chorona!”
Demo
raram a batizá-lo e decidiram colocar-lhe Jaume. Teresa, que so-
fria muito de ver aquele menino tão pequeno e doentinho, não pôde ir ao
trada, caiu no chão como um saco. Eladi e o tio Terenci tiveram de car-
regá-la nos braços até a sala. O doutor Falguera apareceu logo depois:
“O que foi?” Ela, apontando para as pernas com o leque, disse: “É como
enfermeira que faz isso muito bem.” E recomendou a Teresa que não se
bateu com o leque no joelho, irr itada: “Antes de mandar enfaixar as per-
nas, prefiro não andar!” O doutor Falguera moveu a cabeça como se fos-
se dizer alguma coisa. “Não, não... não diga nada! O senhor e eu nos co-
nhecemos há tanto tempo que não precisamos falar pra nos entender.” E
não ria, que eu não estou fazendo isso para deixá-lo enternecido. É por
egoísmo. Trago tanta morte aqui dentro que um beijo na mão me será
vor...”
XVI
As em
pre
ga
das no ve
rão
com os olhos meio franzidos, pensou que aquele calor iria matá-la.
Atrás dela, as heras, batidas pelo sol, parecia que dormiam; não eram
que subiam para esganar as árvores, agarradas aos troncos ásperos, e que
aquelas paredes lisas porque tinham garr inhas. Arrancou um broto com-
crianças às vezes faziam coroas. “E, agora, chega de bobear”, disse en-
lixo. Fazia coisa de uns dois anos, na rua que estavam abrindo mais em-
baixo, haviam erguido duas casas com loja e o merceeiro que alugara a
pequeno que parecia que ia cair do rosto dele. O senhor Fontanills foi lá
lixo. O senhorzinho Eladi, que não era homem de discutir, acabou man-
que um belo dia, talvez porque tivesse levantado de mau humor, disse
que já estava farto de lixo e mandou outra vez o senhor Fontanills falar
À
com o merceeiro. Mas aquele merceeiro, que se chamava Àngel e que
do da portinhola.
postal de Sofia; dizia que Eladi sofrera uma crise de fígado e estava tão
abatido que eles ainda iriam demorar oito a dez dias para voltar. Miquel,
nha o que fazer não deixava Miquel nem um minuto tranquilo, e isso que
ele nem dava bola para ela. “Olha só quem eu fui arr umar”, pensou Ar-
manda. Olívia entrara com a blusa meio aberta e deixara-se cair numa
Armanda virou-se com uma moela de frango numa mão e a faca na ou-
tra: “Se você se sente tão mal assim aqui, por que não vai olhar se essa
noite jogaram lixo de novo? Logo, logo as moscas vão devorar a gen-
não é serviço meu”. Pela porta que dava para fora entraram Mar ieta e
rão eu não morrer”, disse Mar ieta, “não morro nunca mais.” Esperança
tivesse de ficar como eu, o dia inteiro passando roupa...” Armanda, que
deira e cobriu-os com um pano fino para protegê-los das moscas. “Logo,
logo virão as varejeiras e não vamos ter aventais suficientes para sair
corren
do atrás delas.” Não sabia por que, mas estava contente. “Vão lá
buscar Miquela, aí vamos estar todas e eu vou fazer um bom jarro de la-
“Vocês sabem o que eu pensei? Como não tem ninguém em casa, a gen-
te podia tomar um banho aqui fora”. Olívia era alta, bem-feita de corpo,
com a cabeça bem plantada entre os ombros; e andava devagar, como
uma rainha. Ela e Miquela foram até a casinha dos tanques procurar uma
tina e a mangueira de água. Armanda, quando viu que Mar ieta e Espe-
rança começavam a tirar a roupa, avisou que não tirassem os calções, ca-
vestidas só da cintura para baixo”, disse Mar ieta, que tirara o corpete e
passava o nó dos dedos pela barr iga. Era de Gràcia: a senhor ita Sofia a
contratara logo porque era muito jovem e bonita, e tinha uns olhos mali-
nhorzinho Eladi maluco. Se são burras, caem na rede; e ela gosta que te-
Ela tinha sido a primeira a cair na rede e durante dois anos acredi-
na casa sofrendo como uma desesperada; Sofia, que via tudo, se sentia
Armanda; sentira-se tão humilhada pelo que se passava diante dos pró-
prios olhos que não a demitiu por orgulho. Ter ia sido como confessar
que sabia de tudo. Mas Armanda, mais de uma vez, tivera vontade de ir
embora... e sempre deixara para lá. Quando Eladi começou a olhar para
tempos não trabalhava mais na casa porque estava muito velha, um dia
lhe dissera: “Eu acho que o mar ido da menina tem a doença das saias”.
Uma avó de Armanda, que era camponesa, contava que, pouco depois de
casar, uma tarde em que voltava de recolher os ovos, pegou seu homem
com uma empregada no colo. Dizia que isso lhe fizera o almoço lhe sen-
tas. “Se estão achando que com alguns beliscões pelos cantos vão poder
fazer o que lhes der na telha...” Armanda herdara daquela avó uma espé-
sono gostoso, pensava que trabalhava numa boa casa e podia colocar
A primeira a entrar foi Mar ieta. Namorava um soldado que era de muito
uma saudade brutal do seu mar. Aos domingos iam ao parque e, às ve-
zes, até a Arrabassada. Mar ieta dizia: “Ele só me deu um beijo, e ainda
por cima muito assustado; eu disse para ele não fazer isso de novo”. De-
pois ficara um pouco triste e emendara: “Se em vez de ser Cadaqués fos-
cia vai direto ao ponto”. Sobre a pele borr ifada de Mar ieta, as borbulhas
loir inhos de sol.” Mar ieta esfregava os lados do corpo com as mãos en-
frente já está limpa.” Miquela, de costas para o sol, deu um grito: Olívia
a enxaguara sem avisar que a água estava saindo fria. “Não gritem tan-
de tudo é que o doutor Falguera dissera que ela não iria mais sarar. Nem
o senhor Amadeu Riera ia vê-la mais, ele que antes ia tanto lá. Quando o
senhor Valldaura era vivo, eles o convidavam muitas vezes para almo-
como se tivesse morr ido. A senhora Valldaura não falava nunca dele e
seu olhar ficara triste. “É a tristeza do vinho”, dizia Olívia; “eles bem
que podiam tirá-la do vício...” “Você quer ia o quê?”, dizia Miquela; “fi-
ca o dia inteiro sentada na poltrona, sem fazer crochê, sem fazer tricô...,
alguma coisa ela tem de fazer.” Armanda tinha muita pena dela. Sua tia
Anselma, que já não trabalhava mais, quando ela ia vê-la nunca deixava
fé com leite. “Não tem nada de estranho”, dizia à sua sobrinha; “passei
anos e anos com o nar iz enfiado no fogão e agora já estou satisfeita.” Ar-
manda sabia que a senhora Teresa era boa. Era só reparar como ela olha-
va para Jaume, seu netinho mais novo, que tinha as pernas como dois
cresciam mal porque seus pais eram uns porcos que não paravam de far-
rear e ficavam com o sangue ralo. O mais triste é que as crianças tives-
que todas pararam de rir e a olhavam bem quietas. Olívia era do mesmo
Ela lhes contara que, às vezes, à noite, ia à praia com as irmãs. “Não há
nada no mundo como entrar no mar quando faz lua cheia; não um mar
deira, diziam que ela não entrava no mar com as irmãs, e sim com o noi-
banco, diziam que era de um velho que se apaixonara por ela... Se toca-
sabia muito bem quem tinha espalhado a histór ia. Olívia tinha as coxas
uma cereja, e movia a cabeça com uma tranquilidade tão absoluta que as
guichando água nela e por último, como todas brigavam para se enfiar
na água, Armanda, que não quisera tirar a roupa porque não quer ia que
lhe vissem os seios, que haviam murchado antes da hora, disse que ela
as esguichar ia. Como a mangueira era comprida, saiu correndo atrás de-
gritar.
çar para cima e para baixo. O sol ainda estava forte e fazia muito calor.
gar foi Ramon, o maior, com Mar ia atrás, e entraram de roupa e tudo
embaixo do jato de água. Jaume, o menor, que havia parado, sentou no
lhe uma pancada nas costas: “Fica quieto, burro!” Crianças e emprega-
“Sorte que a senhor ita Rosa saiu”, pensou Armanda. A senhor ita Rosa
tomava conta das crianças, era muito severa, e se tivesse visto o que fa-
ziam ter ia estrilado. “Agora chega!”, gritou Armanda bem forte para que
a ouvissem; “se o pequeno ficar doente eu é que vou levar bronca!” Lar-
no avental. Mar ia, respingando, parara perto dela. Já tinha oito anos.
Quando ficaram com ela, a senhor ita Sofia explicou que era de uns pa-
rentes distantes do tio Terenci que haviam morr ido num acidente. E uma
vez, passado um certo tempo, não sabia qual das empregadas lhe dissera:
“Pode ter certeza, Armanda, que por trás dessa menina tem algum mis-
tér io”. Ela não respondeu. Não se importava que as empregadas fizes-
sem brincadeiras pelas costas dos patrões, mas não deixava que fossem
Quando já devia ter uns três anos, uma tarde Mar ia entrou na cozi-
leia?” Mar ia ficou um tempo pensando com o dedo do lado do nar iz. Se
naquele momento alguém tivesse espetado Armanda, não lhe ter ia arran-
que o senhorzinho Eladi fazia sempre à mesa quando não sabia que so-
bremesa escolher. E a menina não podia tê-lo visto fazer isso, porque
lha dele”.
XVII
As cri
an
ças
quando, dizia: “Não façam bar ulho; eles estão vindo”. Ninguém iria
aparecer, os três sabiam disso, mas cada vez que Ramon dizia: “Não fa-
çam bar ulho; eles estão vindo”, Jaume sentia um pavorzinho. Escondi-
dos atrás da cortina, esperavam que a senhor ita Rosa subisse para pôr
bem-vestido, com as pontas do bigode para cima; uma vez Ramon lhe
dissera que o papai dormia com uma coisa em cima do bigode mas Jau-
sos numa espécie de cumplicidade que não existia em nenhum outro lu-
gar. O dragão do livro com suas escamas vermelhas e fogo pelas ventas,
que Ramon e Mar ia surravam, nunca iria achá-lo, ele que era tão peque-
no. “Senhor Jaume”, lhe dizia a avó Teresa, “beba, beba, que o vinho faz
rosa com pedestal verde. Atrás daquela asa de veludo, Ramon e Mar ia
nem o beliscavam para que cansasse de ficar com eles e os deixasse so-
zinhos. Lá fora, o jardim deserto e batido pelo vento, visto através dos
cos de pedra, a pérgola das glicínias, ainda secas pela grande dormida
do inverno, a grande extensão de areia da esplanada, tudo era mais bran-
co. O loureiro, com os galhos que o vento fazia gemer, era mais escuro:
Disse baixinho: “As folhas do loureiro estão olhando pra gente”. E Ra-
lado para o outro atrás dos vidros. Jaume percebeu que o cabelo de Ma-
ria já não lhe esfregava a pele do rosto e se sentiu muito sozinho. Al-
guém descia a escada devagar: era o papai. Calçava as luvas com calma,
puxan
do-as bem nos dedos. Quando terminasse de calçá-las, descer ia
mais depressa e bater ia nos últimos degraus com a bengala que até então
que você quer ia que ele pusesse, seu burro? Uma bigodeira.” Jaume ia
perguntar o que era uma bigodeira, mas Mar ia fez “psiu” e pisou no pé
“Brincando”, respondeu a senhor ita Rosa, que sempre que papai descia
a escada procurava subi-la. “Nos dias de vento e chuva, assim que os se-
nhores levantam da mesa, eles vão dar uma volta pela casa.” O papai
o que ele iria fazer. Fechando os olhos, via-o andar por baixo dos casta-
uma volta nela... O vento far ia a calça grudar nas suas pernas e ele segu-
rar ia a aba do chapéu com uma mão, um pouco inclinado para a frente.
Assim que tivesse fechado a porta, e isso todo mundo sabia, puxar ia a
corren
te da boca do leão e ficar ia um instante quieto ouvindo a campai-
“Já, já, a mamãe vai passar”, pensou Mar ia; “a mamãe com a cara
orelha, para deixá-los rosados. Ramon disse baixinho: “Esta noite va-
mos subir no telhado para matar as bruxas que o vento deve ter posto
lá”. “Como é que elas são?”, perguntou Jaume com uma voz que mal da-
era cor-de-rosa, o papai cor de café com leite, Mar ia, branca, Armanda
cor de terra, a avó vermelha... Jaume saiu de detrás da cortina e deu duas
puxan
do-o pelo braço, que era fininho que nem uma vara, e Ramon pen-
sou no galho que encontrara fazia uns dois dias na parte mais silvestre
tas e ele o escondera porque pensou que poder ia lhe servir para muitas
mortos cobertos de hera que se arrastavam pelo chão, era verde. Dentro
via-se a sombra das árvores alongada e as manchas pretas das folhas por
entre salpicos de sol. Ramon às vezes olhava a água com as mãos nos
água tremia e as rodinhas iam morrer longe. A hera dava cachos: uns
e de folhas mortas. Num dos lados, nos galhos altos, havia ninhos de ro-
empur
ravam o céu e o faziam recuar; mas o céu, teimoso, voltava sem-
pre pa
ra seu lugar: azul, coberto de folhas, riscado de galhos: um céu
perdido para lá dos muros coroados de vidros quebrados. O céu que Jau-
avó. “Beba, senhor Jaume, o vinho faz aumentar o sangue.” Jaume, a avó
deixava entrar na sala; e Mar ia também. Mas Mar ia ia vê-la pouco por-
que as mãos da avó lhe davam nojo. De Ramon, a avó não quer ia saber
nada, porque assim que entrava dava tapas nas plumas do jarro. “Sempre
garam Jaume e lhe amarraram uma tira da bata na cabeça e outra na cin-
tura. Cataram folhas de lír io e enfiaram uma de cada lado da testa por
duas na cintura, atrás: “Agora você já tem rabo”. Faziam-no correr para
cima e para baixo, com um feixe de galhos nas costas: “Arre, arre, upa,
upa...” Quando dizia que estava cansado, ainda o faziam correr mais rá-
para curar as bolotas de gânglios que tinha no pescoço e nas axilas. Ti-
nha o peito afundado, os ossos das costas como duas pás, a barr iga salta-
da... e faziam ele correr e ele ficava sem fôlego. Ramon e Mar ia o amar-
raram numa árvore e lhe disseram que ninguém iria lá buscá-lo: “E vai
vir o dragão e vai comer suas mãos”. Foram embora virando-se de vez
nar iz. Tinha muito medo das formigas. Se elas percebessem que ele não
loucas... Quando não estava amarrado pegava uma por uma quando
saíam das tocas e as enfiava numa caixa grande até que secassem e vi-
rassem uma omelete preta. Viu o sol indo embora e fez força para se de-
samarrar; mas não conseguiu. Tinha medo de tudo: dos pássaros que vo-
avam por dentro das árvores, dos gemidos que vinham não sabia de on-
de, das corr idinhas pela grama. O frio lhe lambia as bochechas e as som-
bras subiam pelos troncos. Ouvia as rolinhas mas não as via e desatou a
chorar: “São pássaros de bruxa que bicam os olhos e comem...” Por fim
a senhor ita Rosa, cansada de procurá-lo por toda parte, encontrou-o e le-
para poder pular do muro até o campo, encontraram duas latas no monte
por cima do muro. Jaume logo pegou uma, que tinha um papel meio des-
as. Caçou uma centopeia e enfiou-a na lata das ervilhas. Na outra, me-
nor, com dois tomates pintados no papel, enfiou uma joaninha laranja e
preta que agarrava nos dedos dele e não quer ia cair dentro: “Linda, lin-
da”, ia lhe dizendo. Cobriu as latas com pedras e quando voltou a olhá-
las a centopeia tinha fugido. A joaninha estava num canto, com as asas
nha todas as latas dentro de uma cesta que encontrara na casinha dos
cama correndo, antes que a senhor ita Rosa fosse acordá-los. Às vezes
A libélula grande era de Jaume; uma manhã percebeu que já não estava
mais lá. Bateu em Ramon, que lhe deu uma grande surra. Mar ia, para
os bichinhos. Aquela noite, sem os bar ulhinhos por perto, Jaume não
conseguiu dormir. Iria contar para a avó o que tinham feito com ele e
ela, co
mo sempre, dir ia: “Senhor Jaume, esse malvado do Ramon preci-
sa receber uma bela lição”. A avó far ia Miquela chegar mais perto:
“Olha as orelhas desse menino; você não acha que elas estão crescendo
na mão, dir ia: “É, e ele tem as orelhas bem magrinhas...” Ele não gosta-
va nem um pouco de tudo aquilo; mas na sala da avó havia duas coisas
plumas douradas cheias de olhos azuis na ponta. A avó sabia que ele
gostava delas e às vezes lhe dizia: “Senhor Jaume, se quiser tocar as plu-
mas um pouco, pode tocar”. E ele chegava perto devagar: punha uma
mão de cada lado e ia subindo até em cima de tudo dos olhos azuis. Às
vezes virava a cabeça, olhava para a avó e a avó batia com o leque no
embora”. E a outra coisa era o elefante. Um dia a avó Teresa contou que
se chamava Bernat. Tinha a trompa enrolada para cima e uma pedra co-
ele mais gostava era das orelhas, que pareciam dois abanos. Às vezes,
bem quieto diante do elefante, quando achava que a avó e Miquela não o
viam, punha a mão nas suas para ver se eram tão grandes como as de
Bernat.
dinhas com um galho. Depois correu até a casinha dos tanques de lavar,
tins; mostrou um que se mexia: “Está vendo? Se eu deixar ele na pia vai
o furo, com cuidado para não atravessar a madeira, afinou um toco, es-
largou a madeir inha, que ficou um pouco caída de lado; assoprou e ela
deslizou bem. Aquela tarde a senhor ita Rosa tirou fotos das crianças pa-
Logo se juntou a eles Jaume, que os seguira. Mar ia foi à cozinha pegar
uma faca e Ramon, sentado com as costas num tronco, começou a des-
água e gritou: “Brinca sozinho e não amola”. Em pé, com os lábios sal-
a gritar: “Vai embora!” Mas ele estava como que encantado e mal conse-
guia ouvi-la. Seu barquinho, sozinho, dava voltas sobre um céu brilhante
e escu
ro. Subitamente Ramon levantou, colocou-lhe a forquilha no pes-
coço e aos poucos fez com que recuasse: “Joga ele na água!”, disse Ma-
descascá-la. Jaume passou a mão pela pele úmida e sem tirar a mão do
tempo possível. Já aprender ia a ler mais tarde. Sempre que a senhor ita
Rosa dava aulas para os grandes, ele ia até o parque. Gostava de ficar lá
sozinho. Sempre encontrava coisas novas: uma flor que nunca vira, uma
tras tinham sido arrancadas por Ramon e Mar ia, puxando, puxando, já
fazia tempo, porque quer iam derr ubar a porta no chão. Não fazia nem
tas pe
quenas, meio brancas meio esverdeadas. Ficou plantado com os
se, entravam e saíam dos galhos como se fossem flores que não conse-
do a comer quando eram larvas. Alguma fugia, subindo para o céu, vol-
tava a descer e se juntava às outras, tão misturada que não dava para sa-
ber qual era a que tinha voado sozinha. No dia seguinte, tudo havia mu-
dado. Ainda sobravam umas quantas mas a nuvem grande fugira. Coisas
como aquela era raro ele ver, mas quando fazia tempo bom o parque fi-
muito enjoado, como se entediava e não sabia o que fazer, ia ver a avó.
e quando via que não se atrevia a entrar lhe dizia: “Entre, entre, senhor
Jaume; não faça cer imônia”. Então Miquela encostava o banquinho per-
os tornozelos. Ramon lhe explicara que tinha de usar aquele tipo de sa-
pato porque seus ossos eram fracos; se não usasse as pernas dele iam en-
cia mal: esquálido, com a cabeça grande. Ele esperava que a avó lhe dis-
sesse alguma coisa, que pedisse a tacinha para Miquela. “Você quer fa-
dia em que a avó lhe disse: “Senhor Jaume, o seu avô Salvador, que era
meu mar ido, viajava muito e comprou um jogo de taças em Viena. Esta
sabia o que era uma avó, mas de avô nunca ouvira falar. Desde então se-
quebrá-la. Miquela enchia a taça até a metade e a avó, para fazê-lo rir,
bebia direto do gargalo: “Senhor Jaume”, lhe dizia, “nunca beba desse
jeito; o senhor é de boa família”. Sorvia um gole e ficava quieto, sem en-
golir, com a boca cheia de vinho que lhe queimava e olhava os botões do
vestido da avó. Quando tinha muita vontade de rir bebia o gole de vinho
avô e se aconchegou na sua saia. A avô percebeu que estava muito triste
e lhe passou a mão pelo cabelo umas quantas vezes; depois deixou-a es-
um pouco para a frente: “A vovó gosta muito de você”. E ele teve vonta-
de de entrar inteiro dentro da avó e ser avó, grande e gordo, e poder di-
zer a um menino pequeno como ele que ficar ia esperando na porta: “En-
tre, en
tre, senhor Jaume...”
col: “O que você tem visto esses dias aí fora?” Na hora ele não sabia o
que responder, mas logo se animava e dizia: “Vi muitas folhas e uma jo-
aninha louca”. E falava do dragão do livro, aquele que Ramon e Mar ia,
do, sair ia do livro apitando com o nar iz cheio de fogo e lhes dar ia raba-
das nas pernas. Se ia tinha tomado o vinho e ninguém lhe dizia nada,
para olhar a chuva. Na sala (a avó lhe dissera) havia três coisas suas: a
tacinha, o banquinho e a almofada da janela. Quando o vidro estava em-
baçado, como era proibido esfregá-lo com a mão, voltava para o banqui-
nho. Um dia a avó lhe fizera tomar duas taças de vinho muito depressa e
ele lhe contou uma coisa que não gostar ia de ter contado: que tinha uma
árvore que dava borboletas brancas que voavam sem parar, e entravam e
seguiam rindo. Logo viu que não acreditavam nele. A avó fez Miquela
chegar perto: “Olha, está vendo? O vinho deixa elas vermelhas”. Mique-
de olhá-la, mas Miquela pegou-a da mão dele sem dizer nada. Balançava
as pernas e uma hora em que a avó se girou tocou-lhe a saia com a ponta
dos dedos: era flácida. “Por que está pondo a mão em mim, senhor Jau-
me?” Não respondeu porque não sabia o que dizer; via a avó como uma
grande montanha com a cabeça em cima de tudo que falava por um bu-
raco vermelho e dizia coisas que o faziam rir como se lhe fizessem cóce-
gas com as plumas de ouro do jarro. No dia em que contou que Ramon
Jaume?” Ficou com tanta vontade de rir que pôs uma mão na boca, bem
aperta
da, para que ninguém percebesse. Da primeira vez que as empre-
gadas haviam se esguichado ao sol, quando Armanda lhe pôs uma roupa
enxuta foi ver a avó e contou-lhe tudo o que haviam feito e que Ramon e
avó, que estava lendo, olhou-o por cima dos óculos: “E estavam mos-
avó, com a mão cheia de anéis, trouxe-o para perto da saia e ele sentiu
aquele cheir inho tão bom de vovó e de vinho que exalava da poltrona.
“Isso, senhor Jaume, o senhor não conte pra ninguém: mudo e pronto!”
que es
se menino vê coisas...”
lhas por cima deles e esperavam que caíssem mais. Quando caía alguma
mãe diziam: “Quando a Mar ia for grande..., quando a Mar ia casar...” Ela
fosse afogando todos os outros desejos. Jaume, se não caíam folhas com
plátano para o muro e saltavam para o campo: alegre, cheio de clar idade.
Voltavam agarrando-se nas heras que pendiam, enfiando a ponta dos pés
nos vãos dos tijolos quebrados. Embaixo das árvores tudo era mais escu-
ro. O musgo, os fetos, com caramujinhos atrás das folhas em abano, ti-
dia que os viu matando uma pequenina junto à gaiola, não parou de ge-
tomba
do de lado, ia apodrecendo.
quarto de Mar ia: tinha cheiro de colônia vencida misturado com o de pa-
lado da porta, tinha umas roseiras pintadas trepando pela parede. A fa-
cima da mesa havia um jarro de latão; Mar ia enfiara dentro umas quan-
casa, dentro do jarro não tinha nada. No dormitór io havia duas caminhas
com a dobra bordada, cinza de tanto pó. Uma vez Mar ia tirou o menino
da cama e voltou a colocá-lo depressa porque não tinha pés. Junto à es-
cada que ia para o andar de cima havia os pais; como se voltassem do te-
mou: “A culpa é das traças. Uma traça que faça mal a um boneco deve
ser muito malvada. O que eu acho estranho, senhor Jaume, é que elas
não te
nham devorado tudo”. Jaume ajoelhava-se com as mãos juntas di-
mais aguentar e virou os pais para ver-lhes o rosto. O senhor usava bigo-
de, mas lhe faltava um olho. A senhora tinha um colar que lhe batia no
ouvir algum bar ulho, fechou a casa e foi embora. De noite a senhor ita
Rosa lhe disse: “Por que você virou os senhores?” Disse que não tinha
as, ia logo para lá. Quando fazia tempo bom, as glicínias ficavam com
cachos abertos e ele ouvia o zunzum das abelhas em volta das flores. As-
sim que o viam, Ramon dizia para Mar ia: “O chato já está aqui de no-
vo”. Para que não lhe dessem empurrões ficava um pouco afastado, ob-
que Ramon far ia um bar ulho esquisito com a língua e dar iam risadas.
que sentavam seus irmãos, Jaume mexia na orelha. Ramon já lhe dera
um puxão muito forte porque soubera que ele havia contado à avó que ti-
nha ouvido os dois no telhado e a avó tinha contado para Miquela e Mi-
quela contara à senhor ita Rosa e ela depressa tinha ido contar aos pais.
mesa e para cama junto com as galinhas”. Jaume, num canto, estava
tempo para cima e para baixo e emendara: “Se vocês forem lá de novo
muito quente e a parte de trás ardia. Dos cachos de glicínias iam caindo
flores. E, de repente, Mar ia, enquanto ele se distraía olhando uma abelha
gostoso ficar ali com aquelas flores tranquilas que iam caindo perto de-
las e esticá-las bem, puxava-as para baixo numas quantas dobras bem
sala. Afastaram um pouco a cortina para ver o que fazia: olhava-se numa
como o corne da sala, que era um jarro para pôr flores. Os botões, as
Aqueles vestidos que, quando a mamãe saía, ela corr ia para colocar, en-
a avó bebia vinho, gorda e com olhos tristes, todo mundo achava que
eles não sabiam de nada e eles sabiam de tudo. E Miquela, como uma
olhar como um raio, com o ouvido atento a tudo o que se dizia na sala
fazia companhia à avó, aquela senhora que fora tão linda que todos os
homens se ajoelhavam a seus pés. Nunca dava bronca neles. Não era co-
mo a senhor ita Rosa, que ficava brava quando eles não aprendiam a li-
ção.
ta com tranca porque a chave sumira. Ramon, para poder espiá-la quan-
do colocava talco no umbigo, que ficava assado porque ela o tinha como
bém havia um bracelete de prata com sininhos de quando Mar ia era pe-
quena. Havia sido atirado lá por Jaume, escondido, um dia que Mar ia
era uma senhora rica que saía da missa. Jaume fazia de conta que era um
bolsa da mão. Ramon fazia de conta que era policial. Mas naquele dia
passar inho. Jaume olhou Mar ia; era muito bonita. Todo mundo dizia.
Um dia que ela estava com febre e as mãos dela ferviam, o médico a
olhara enquanto lhe tomava o pulso e antes de ir embora lhe tocara o na-
olhara como ela sabia olhar quando falava com um senhor: “O senhor
segurara a mão de Mar ia mais forte para que ela também caísse. A água
estava fria e o vestido levantara e a renda das anáguas ficara presa na co-
sem céu e sem folhas, e eles estavam perdidos em meio àquele mar dos
peixes que saltam e das baleias que nadam devagar com as costas para
fora do mar que não tem fundo, as baleias que esguicham com um asso-
prão do nar iz duplo porque algumas baleias têm muitos nar izes e nadam
com o arpão cravado na parede de banha que envolve tudo o que elas
têm dentro... tripas e fígado e coração, tudo o que tem dentro das pesso-
as só que grande, porque a baleia é a rainha do mar, mais forte que uma
fragata com tudo o que ela carrega de mastros quebrados e de velas des-
do, e os sucos de tantas coisas que vão e vêm e o sangue que não acaba
de ser sangue e faz bater o coração que se você corre demais encosta nas
costelas, a água vermelha que banha o fígado e uma bolsa como a bolsa
do, e ainda lhe segurava a mão, não tenha medo, e uma aranha que caíra
manda: o que é essa lama toda? e lhe levantava a saia e de novo as flo-
clar idade, fazia de conta que descia uma escada enfiando as luvas e Ar-
manda entrou na sala: “Já está fazendo micagens?” E Jaume disse: “Se a
mamãe souber que a gente brinca na sala vai nos castigar”. Como é que
a mamãe poder ia ficar sabendo, se não fosse porque ele dava com a lín-
gua nos dentes? E quando Armanda saiu, Jaume ainda dizia que quer ia ir
lá fora brincar com pedaços de madeira e Ramon, para que ele calasse a
boca, deu-lhe um murro na cabeça e para assustá-lo lhe disse que iria
dá-lo ao vigia para que o trancasse junto com os ratos... “Não tem rato
nenhum.” A Marta, uma das empregadas que haviam tido, contou que
uma vez haviam trancado seu noivo na prisão e que ele ficara rodeado de
ratos que quer iam mordê-lo. Mas a senhor ita Rosa, que sempre se intro-
metia onde não era chamada, disse que na prisão não havia ratos. Mar ia
desatou a chorar gritando que eles quer iam machucá-lo. A senhor ita Ro-
sa, como se viesse de debaixo da terra, apareceu: “Parece mentira, coita-
do do Jaume!” E ele grudou na saia dela e disse que uma tarde eles lhe
e a senhora Rosa voltou a dizer que parecia mentira, que ter ia de conver-
sar com o papai, e a Mar ia respondeu que tanto se lhe dava porque o pa-
pai só ia acreditar no que ela dissesse. Então Jaume, com os olhos que
lhe sal
tavam das órbitas, gritou: “Adotada!, Adotada!” A senhor ita Rosa
ficou sufocada e mandou que nunca mais dissesse aquela palavra: “De
onde é que você tirou isso?” E pôs Jaume no colo e lhe disse baixinho
que Mar ia não era deles, que era de outra casa... Naquela hora entrou a
com aquela exaltação toda: “Eles estão nervosos, senhor ita, deve ser es-
se vento...” Jaume ficara quieto: a mamãe princesa estava ali. Já não ti-
Ramon eram botinas que lhe chegavam até os joelhos e tinham a ponta e
no quarto dos brinquedos para olhar o pião. Dava-se corda nele por uma
azuis; assim que a corda acabava ficava balançando até cair de lado e
morr ia: tinha um cheiro de torneira. Quando o pião ficou bem quieto
embaixo do sofá foi ver a avó, mas a senhor ita Rosa, que saía da sala,
disse que ela estava dormindo. Quer ia lhe contar que o haviam espetado.
Como não sabia o que fazer, se enfiara na cama sem dizer nada a nin-
ma, mas ficou enroscado na roupa. O mosquito estava quieto; devia estar
bros.
as entrava uma clar idade mortiça e cheiro de noite; a porta que dava pa-
ra o te
lhado estava aberta e ele olhou para baixo. Não se atreveu a descer
pela escadinha de ferro. A lua, redonda como uma laranja, estava quieta,
amarrada de uma chaminé a outra; estavam deitados de barr iga para ci-
ma com os pés contra a cornija de ferro que do jardim se via vazada co-
mo uma renda. Teve muita vontade de se juntar a eles, mas lhe dava pâ-
nico aquela escadinha tão empinada com apenas uma barra como corr i-
mosquiteiro. Saiu na sacada e outro raio o fez fechar os olhos. Uma gota
grande lhe caiu na testa e ele foi para dentro; logo ouviu o bar ulho da
para ver o dia clarear. “E agora vai lá e conta tudo!” Se enfiou pelas ár-
vores e ouviu que andavam atrás dele. Caía uma chuva fininha; das fo-
lhas pingavam gotas de água e o arr ulhar das rolinhas lhe fazia compa-
e eles não”. Assim que acordara fora correndo contar à avó, que estava
perplexa, senhor Jaume... os telhados foram feitos para a gente ficar em-
baixo. Não suba lá nunca, o senhor”. Ele fizera que não com a cabeça e
é um pássaro que já foi vivo e agora está morto. Pode pegar, pode pegar,
senhor Jaume.” Não tinha coragem; uma coisa era olhar, outra era tocar.
Perguntou à avó se Ramon e Mar ia o haviam visto. “Não viram e nunca
vão ver.” Ele a olhou com os olhos um pouco de lado e riu. Quando che-
gou no lugar das rolinhas ergueu a cabeça, mas, como sempre, só dava
para ouvir o arr ulhar. Ramon e Mar ia deviam estar seguindo-o na ponta
dos pés... Estava morto de medo, mas não quis se virar. Andava devagar,
com as mãos grudadas nas coxas, e mal se atrevia a respirar. Não lem-
mamãe. Iria lá contar antes que a senhor ita Rosa o enfiasse na cama; e
também iria contar que o haviam seguido por sob as árvores para bater
nele. Ramon pusera-se ao lado dele e sem olhá-lo perguntou: “Já foi
contar que esta noite a gente estava no telhado, não é, seu tagarela? Você
como se fosse uma pedrada. Jaume desatou a correr para a água mas Ra-
do chão e lhe pôs no pescoço. “Quieto!” Topou com o tronco de uma ár-
mão suave e os olhos dela brilhavam como as estrelinhas que iam caindo
das folhas. Ramon gritou: “Agora!” Mar ia estava com o alfinetão nos de-
dos. Quando sentiu a espetada no pescoço olhou para ela como se não
cor de laranja espiava triste por entre as árvores e folhas, que haviam fi-
iam ficando pequenos e tudo parecia estar lá longe. Fez um esforço para
se mexer mas ficou meio de bruços e sentiu muita dor atrás da cabeça e
um frio enorme.
XVIII
Uma ro
li
nha na ja
ne
la
A primeira coisa que Teresa Valldaura viu assim que abriu os olhos foi
Que atrevida. Uma angústia súbita lhe apertou o peito: no dia em que
Valldaura morrera, uma rolinha tinha arr ulhado na janela. Soube que era
uma rolinha porque Sofia lhe disse: “Olha, mamãe, uma rolinha. Tão
selvagens que elas são...” Nunca mais lembrara disso. A rolinha, antes de
empre
ender voo, riu. Teresa esfregou os olhos, pôs uma mão diante da
boca para abafar um bocejo e por último tocou seus joelhos: insensíveis.
queimar tudo: que tudo o que havia estimado, móveis, árvores, casa,
as cores para ela haviam escurecido... ou será que estava perdendo a vi-
são?
manhã, eu acho... não sei bem o que ele falou de umas borboletas e de
empre
ender voo, viu o rosto de Mar ia, branca e triste como uma apar i-
Sentiu sede, mas estava longe demais da mesa e não alcançava a cam-
rangeu e ela ficou com medo que quebrasse. A agonia crescia. Por que
aonde quisesse: até a mesa, até a janela, até a porta e abri-la com um
empur
rão. Armanda saíra para comprar-lhe doces. Miquela, o que será
que estava fazendo? Ouviu conversas no vestíbulo, mas não ousou gritar
e lhe pareceu que a rolinha ria no meio dos galhos, tostada, com a ris-
quinha preta no pescoço, toda fina, toda doce... Tinha vontade de fugir
dali de dentro, de correr em direção a não sabia que per igo e poder desa-
morta que viesse buscá-la para que a acompanhasse ao país das som-
bras. Sentia asfixiar-se. Abriu a boca umas duas ou três vezes com a ca-
beça para trás. Não dever ia pensar em nada. Não pensar tinha sido sua
salvação; ou pensar coisas bobas. E fez um esforço. Que céu mais cor de
seu amante que havia sido a pérola da gravata de seu mar ido e as flores
por causa do outro e porque tiveram de passar os anos e tudo junto ad-
quir ira uma cor de vida falsa que não fora ela que vivera? Havia mais
Senhor, diga-me onde havia um jarro com lilases brancos! Será que exis-
tem lilases brancos? Ou eram umas flores que a sua memór ia inventara
muito quieta e lhe responder ia que sim, ou que não havia lilases bran-
cos. E se houvesse lhe dir ia: “Pelo amor de Deus, senhora Teresa, não se
lembra mais que tem lilases brancos junto ao portão ao lado dos de cor
lilás?” E ao pensar na resposta que lhe dar ia Armanda, lembrou que sim,
que existiam lilases brancos e que, quando todos floresciam, ela, acom-
a empurraram até a biblioteca, onde Jaume, entre chamas de cír ios, pare-
cia dormir. Junto a seu neto morto não sabia o que fazer, como se tudo
aquilo não fosse verdade e um gesto, o mais breve, fosse fazer reviver al-
guma coisa que compensava mais não saber. Pediu que a aproximassem
um pouco e pôs uma mão na testa judiada e fria do menino. Nunca mais
o ver ia entrar na sala com aquelas botinhas tão grandes e a carona assus-
tada: “Beba, beba, senhor Jaume...” Abafou um soluço. Na ponta dos de-
a acomodou sobre as pernas dela. “Não posso tocá-lo mais? É meu ne-
que lhe trouxesse uma pluma do jarro: “a mais alta”. Armanda lhe deu e
para baixo o lenço de seda branca que cobria o pescoço de Jaume, e Te-
resa pôde ver uma marca escura cortando a pele; um colarzinho roxo co-
Le
ave, O le
ave me to my sorrows!
Blake
I
O ta
be
lião Ri
era
rola da gravata: fazia tempo que não a usava, mas naquele dia não pode-
ria dei
xá-la... O mármore da entrada estava sujo de barro: quando se vi-
am marcas de pés, a casa inteira, não sabia por que, parecia mais pobre.
Respirou fundo umas quantas vezes, encolhendo a barr iga quando puxa-
papada triste. Caminhava sem levantar muito os pés para não respingar a
parte de baixo da calça nova. De vez em quando uma gota que despenca-
ouro, que às vezes saltava fora. Como não sabia quem podia colá-la e ti-
com a idade... tudo, aos poucos, vai sendo destruído em vida... plaf!, a
jovens e saíam de noite, dizia que as luzes, nos dias de chuva, viviam no
chão com mais cores do que em cima dos postes. Coitada... Tinha certe-
nheceu, parecia que uma onda de frescor acabava de entrar em sua vida.
mim, da época em que meu mar ido comprou o palacete.” O tabelião Ri-
era fez que não, sem deixar de olhá-la, fascinado. “O senhor vê tanta
mil. Uma vez com meu mar ido e uns amigos fomos ver La Traviata e
de então... o senhor estava com uma senhora lindíssima; Mar ina, me dis-
com uma rosa vermelha meio aberta. Fazia uns dois dias que Constància
ceu, na saída de uma exposição, meu mar ido nos apresentou”, Teresa
apontou um dedo para a frente, “o senhor estava com a sua senhora, sim,
lembro como se fosse agora, porque o senhor tinha, desculpe, tem uma
cabeça tão romântica... Ninguém dir ia que... Oh, não quero dizer que um
senhor não está lembrado; deve saber quem sou.” O tabelião Riera disse-
lhe pa
ra fazer o favor de se sentar e ele também se sentou, porque embo-
fingindo que lia, assim que vira Teresa levantara-se meio a esmo e se
besse de onde havia saído nem o que tinha de fazer com ele enquanto
ta, esperando que ele, o senhor tabelião, adivinhasse por que ela tinha
ido lá vê-lo. Por fim murmurou: “Oh, que vergonha!” Começou a falar
de uma casa de campo que seu mar ido quer ia vender sem ter muita von-
te sobre o preço que dever ia pedir...” Ela sabia que além de ser o tabe-
lião do seu mar ido era a sua pessoa de confiança. “Quero dizer que, se
dedo pelo canto da mesa. Retirou-o e voltou a passá-lo. “Eu não sei
mandar nem pedir, sempre acabo cedendo e fazendo tudo o que meu
ele ‘não venda a casa de campo’, não me ouvir ia. E isso me ser ia tão de-
poderoso e pensei que esse aliado poder ia ser o senhor.” E perguntou co-
tabelião Riera passou a mão pelo cabelo umas quantas vezes e antes de
se levantar disse, enquanto ajeitava uns papéis: “Não posso lhe prometer
nada”.
antes de descer o primeiro degrau girou a cabeça e sorr iu com um sorr i-
rizava mais e era melhor que ele fizesse negócio e não outra pessoa. E
aquele senhor tabelião tão famoso e aquela senhora tão de leite e de se-
porque são daquelas coisas que só Deus sabe... Atravessou a rua e dete-
ve-se na parada do bonde. Não quisera ir de carro. Aquela visita ser ia o
seu segredo... Estavam velhos. Os anos lhes haviam tirado aquela coisa
efêmera que faz com que um homem e uma mulher se apaixonem por
uma graça que não existe. Não podia dizer que houvessem brigado.
Sempre, ainda que passassem anos sem se ver, ser iam amigos... A prova.
Teresa lhe escrevera pedindo-lhe por favor que fosse vê-la: precisava fa-
lar com ele. E ele ia. E colocara a pérola. Chovia pouquinho e sem parar.
caio. Tudo brilhava com um cinza suave; com uma espécie de tristeza
atenua
da pelo cheiro limpo do ar e por uma clar idade entre as nuvens
ele lhes deixava migalhas de pão no corr imão da galer ia. Os anos foram-
com uma xícara de chá por perto, que escrevem para os jornais para con-
daquela que andara vivendo, muito diferente da vida de seu pai, uma vi-
achando que ter ia tempo para corr igi-la, mas no fundo sem a menor
vontade de corr igir nada. Havia visto tantas misér ias, tantas pessoas vis
e tanto de tudo, que sua delícia era atirar migalhas de pão aos pardais
que além de fugirem dele quando o viam ainda lhe sujavam o corr imão.
Um homem é uma coisa mister iosa; uma máquina que nunca acabamos
com a sua alma, como... E quanto mais tentava achar uma explicação
Ele fizera amor durante anos com Teresa: uma repetição infinita do mes-
sua fonte de vida? Talvez só fosse um pretexto para repetir-se até a sacie-
lião velho. Não se cansara de Teresa; a prova é que ia vê-la com o cora-
três, quatro vezes, cem vezes, duzentas vezes... Chega!, gritar ia, ainda
que o prazer de bater na madeira com a mão aberta fosse o mais intenso
alguma coisa se abriu dentro dele e lhe encheu a boca de uma doçura
sar as casas, as vitrines, os postes de luz, tudo meio borrado pela água
que escorr ia. Um pouco vazio, um pouco sonolento, deixava-se levar en-
tre gente indiferente, enjoado com o cheiro forte de verniz, ele que tivera
a bolo
ta de ouro e a enfiou no bolso. Deu uma olhada no vestíbulo que
já vira tantas vezes, nas janelas color idas estreitas e altas, na grande taça
minés, com telhados e torr inhas, acolhedora como Teresa... Teresa ali,
de alegria asfixiada. Meu Deus, tanto sofrimento, para quê? A vida esta-
va ali, riscada de rugas, com as mãos que tremiam levemente, ainda car-
lhe a mão entre as suas. “Não. Tanta água, tanta, por debaixo da ponte...
Pedi que você viesse porque quero fazer o testamento.” Alguém bateu à
beram. “Mais?” “Não vai lhe fazer mal?” Teresa não escondia mais a
garrafa embaixo do xale como quando o pequeno Jaume era vivo. “Mal?
Não está vendo que é só açúcar e calor do sol?” Fazia servir o vinho nu-
com a rosa vermelha que o tabelião Riera tinha sempre em cima da sua
meira missa menos em Santa Mar ia del Mar. “Você acha que eu não re-
zo? Pois rezo”, lhe dizia ele enquanto lhe passava água benta. Uma ma-
nár io porque lhe pareceu que uma velha o olhava com estranheza. Teresa
água benta e em vez de enfiar o dedo ficou passando-o pelo canto, uma
vez e outra. No que dever ia estar pensando? “Pedi que você viesse por-
que quero fazer o testamento. Quero que esta casa fique para a pequena,
a Mar ia. Se eu não pensar nela ninguém mais vai.” “Mar ia”, continuou
Teresa, “não gosta de mim. Eu gosto. É só ver com que mal-estar ela
Teresa de que ela tinha um filho; que ela, como Eladi, tivera seu pecado
de juventude. “Você poder ia deixar para ele o dinheiro das casas do Ro-
que o seu filho é o seu sangue.” E Teresa, bem como a moça que sempre
E riram. Deles, do que sabiam deles e do que não sabiam e que em vez
de separá-los os unia. “Quinta-feira que vem você pode vir para assinar.”
disse que não poder ia ir quinta-feira nem nenhum outro dia porque não
tinha mais pernas para isso. Ele não acabou de entender e ela teve de lhe
explicar que tinha as pernas mortas, que não podia sair de casa havia
nhas... ser ia melhor que em vez de quinta-feira ele viesse na sexta por-
que na quinta era o dia em que a senhor ita Rosa saía e ela prefer ia que
amigo, disse por fim, e quando ele começara a fazer pouco-caso dela fi-
cara tão mal que os nervos da perna lhe haviam morr ido. “É para sem-
Tem
po pas
sa
do
Saiu na rua embriagado de coisas velhas, já passara a hora dos gritos dos
braço atravessou a rua e parou no muro da frente para olhar a casa. Res-
bia que no fundo do parque, perto da água, havia heras como aquela e
ter ioso que o transtornava e que a cada vez o enchia de sensações novas,
de vida mais plena. Por que se cansara de se sentir como se sentia na ho-
ra de fazer amor com Teresa? Tinha sido com Teresa o homem que ele
ter ia gostado de ser e que nunca ousara ser ou que nunca fora o tabelião
do; cada ruga, quanto trabalho, o tempo, para colocá-la no lugar que lhe
correspondia. Quanto sangue dando voltas e mais voltas, quantos rios ar-
dentes por sob a pele que ia cedendo... Um desejo antigo se lhe plantou
no meio do coração, lhe deu força, o fez sentir-se poderoso como a clar i-
dade vermelha do pôr-do-sol, como a hera pensativa sobre o muro. Mas
tudo era falso, tudo estava sob a terra de um tempo passado. Os lábios
de Teresa, a boca de Teresa, o sorr iso enigmático e o sorr iso feliz. O sor-
a mão aberta contra a sua bochecha, com os olhos nos olhos e a boca
pouco de vento fez cair gotas de chuva das folhas de hera. Lentas, as pri-
ondas. Por que tinha que sonhar sonhos? Parado embaixo da hera, volta-
vam os anos glor iosos do seu amor. Não conseguia se decidir a ir embo-
muro. O motor ista desceu do carro, deu a volta, entrou no jardim e abriu
duas sacadas da casa as luzes acabavam de ser acesas. E ele ainda estava
Teresa dentro, que não era Teresa, convertera-se durante um bom tempo
O pro
fes
sor de pi
ano
Ter ia que falar com a senhora Valldaura. Ele não era homem de ficar
aciden
te que lhe deformou o pé e lhe encurtou a perna, ter ia virado um
mão. “Senhora Valldaura”, lhe dir ia, “Granados era meu amigo e para
ram os dois.” Depois lhe mostrar ia a carta, para que visse que não era
lhe faziam tinham que acabar. Quando se sentia deprimido pensava nas
Havia coisas que não estava certo que fizessem com ele. Sem dúvida, se
falasse com a senhora Valldaura, tão humana, ela lhe dar ia ouvidos. Te-
ria influência sobre a senhor ita Sofia e a senhor ita Sofia sobre os filhos,
que eram indóceis e cresciam com o capeta dentro. Tinha muitos alunos;
ricos e menos ricos e todos o respeitavam. Crianças bem-dotadas e estu-
diosas. Quando pegava um aluno muito novinho, que não alcançava uma
mais a sér io. Um pedaço de pão como ele, um homem como ele, pacien-
te como Jó, que andava daquela maneira, que não podia correr... O outro
via sido emprestado pela irmã: era o retrato de uma artista. Lady Godi-
va, que se parecia com a Mar ia como uma gota de água se parece com
outra. Aquela artista, como tantas, morrera no hospital depois de ter sido
durante anos a rainha do Paral·lel. “Não vai me perder isso”, lhe dissera
Angeleta; “eu adoro porque a cara dessa artista é a cara da Mãe de Deus
escrita.” Que santa, a sua irmã, quieta e doce, nunca ninguém namorara
com ela porque era uma alma escolhida, mais perto do céu do que da
terra. Como ele; se alguma vez se apaixonara, seus amores sempre ti-
copo de leite quente com uma casquinha de limão dentro. Fazia sua rou-
pa durar anos e anos, mas sempre andava limpo e com a roupa bem pas-
muito novos nem muito velhos, macios, que o acar iciassem. Tinham que
ter a dobra bordada e terminada em rendas largas feitas com bilros. Uma
vez falou de seu luxo à senhora Valldaura e no dia de seu santo ela lhe
ofertou dois jogos de lençóis de seda. Ficou muito agradecido pelo obsé-
quio mas sua irmã lhe fez notar que não deviam ter custado muito caro
porque deviam vir da loja do senhor Farr iols, que os devia ter comprado
no ata
cado. Desde então aguardava o dia de seu santo cheio de expecta-
tiva — chamava-se Joan — porque sua irmã lhe punha os lençóis de se-
pela senhora Valldaura, que, como Granados, tinha uma espécie de gra-
ça cáli
da que lhe enchia a alma de ondas de paz... e a alegria ingênua e
demoravam para descer ou corr iam pelo parque, e faziam isso de propó-
sito porque achavam chato estudar piano, a empregada fazia-o passar até
emocionar ia e lhe dir ia com sua voz de veludo, olhando-o com aqueles
olhos empapados de água de sono que quando era jovem deviam ser
mortais: “Foi uma grande perda”. Ele, e a senhora Valldaura sabia disso,
mente, que algum dia ser ia professor dos seus netos —, de Viena, da-
sou que não conseguia ouvir sem que lhe viesse um nó na garganta.
coincidia com o dia da sua aula. Mesmo tendo hora com o calista, a se-
çava ele chegava junto à janela e olhava o jardim. Pobre senhora... ele ti-
nha um pé aleijado, mas era muito melhor isso do que ter de passar o dia
ela de cara para a janela, ele de costas, “que os seus netos ficam me ator-
uma menina muito bem-dotada, com bom ouvido, os dedos ágeis... mas
me dói ter de lhe contar... Muitas vezes, enquanto estou dando aula para
assustei muito. Horr ipilante. E nem ele nem ela dão risada. Fazem a coi-
o abriu e fechou umas quantas vezes: “É, eu fico muito incomodada com
isso... vamos ter de pensar em fazer alguma coisa. Mas o senhor, senhor
Rodés, tem que dar bronca neles. Deixe-os com medo com um par de
gritos!” “Senhora Valldaura, pelo amor de Deus, como quer que um ho-
mem aleijado como eu”, e sem perceber o que fazia esticou a perna mais
curta com o pé aleijado na ponta, “possa me fazer respeitar por duas cri-
vor, neste rosto”. Ela pegou a foto e ficou um tempo olhando, muito pen-
sativa. “Repare nesses olhos, nas abas do nar iz, no desenho desses lábi-
os... Esses lábios são os lábios da Mar ia, que é a criança com a boca
míope, na hora achei que fosse uma foto da Mar ia; que talvez tivesse ido
a um baile a fantasia... mas uma menina fina nunca ter ia subido nas cos-
jornal, mas Teresa afastou-lhe a mão com um gesto rápido. “Senhor Ro-
quiser... mas essa moça é uma réplica da Mar ia... Repare na mão em ci-
Valldaura deixou a foto virada para baixo em cima da sua saia e pôs a
que quando era moço fui amigo de Granados? Que eu, se não fosse pelo
aciden
te com o bonde, ter ia sido um concertista de destaque? Granados
nha celebridades em casa me apresentava como uma futura glór ia... exa-
gerava, é claro... quando conheci seu mar ido... que Deus o tenha...” E fa-
Um dia, duas teclas não tocavam. Sabe por quê? Porque eles tinham
amarrado os martelinhos.”
nunca mais perdoou a senhora Valldaura por ter ficado com o recorte de
jornal com a foto de Lady Godiva. Meio de relance ele viu como o enfia-
para eles. Não faziam cara de terem ido lá para se amar. A senhora Filo
abriu a porta como se já estivesse esperando atrás dela. Olhou para Eladi
sos. A senhora Filo, pondo a cabeça pela porta, disse: “O casal que en-
trou com o senhor são uns compradores e querem ver a casa... O senhor
so...” A senhora Filo era viúva havia anos, recebia uma pequena pensão
e para poder viver alugava quartos. No palacete havia cinco que a boa
limpeza como lhe era possível e como lhe permitiam suas costas cansa-
das. Ainda não fazia um mês contara a Eladi, que considerava seu me-
lhor cliente porque quando ia alugava a casa inteira, que pretendia ven-
der a casa. Não dava mais. Com o que receber ia far ia um vitalício, iria
dade cinza que descia do céu, as árvores e tudo o que era verde parecia
lãs tenras, mal escondidos pelas folhas como a sereia pela menta, prote-
gidos por uma casca rugosa e com grandes franzidos na parte de cima.
não viu nenhum pássaro, se bem que um galho balançasse. A sereia não
assustada pelo voo daquele pássaro invisível, ela, que só acar iciava pei-
muito do palacete, é para um filho deles que vai casar”. O ar era rarefei-
to, com cheiro de terra seca. Eladi enfiou a avelã no bolso e de passagem
senhora Filo, que por nada já se assustava, se ela tinha alguma sereia
amarrada numa corrente por algum canto. Fique atenta, porque ela esca-
pou. Ouviram bater e a senhora Filo disse desatando a correr para a casa:
bem faziam que não o conheciam. Não sabia muito bem explicar —
quem poder ia? — por que, com apliques postiços no cabelo de cor dife-
perto do espelho, que lhe devolveu seu rosto com os olhos desencanta-
pente pelo cabelo que ia rareando e percebeu que uma unha estava ra-
chada. Não podia com isso. Sentado, com uma perna em cima da outra,
zesse com ela o que quisesse, sentiu que o vento da asa da imbecilidade
lhe roçava a testa. “Não vai entrar?”, perguntou sem parar de lixar a
car lixando todas as unhas para enervá-la um pouco. “Então, o que posso
lhe dizer?” Sentiu-a inibida, trêmula; era a primeira vez: uma noviça. A
tardes como aquela bater ia a cabeça pelas paredes. Lixou a unha do po-
tinha mais nenhuma unha para lixar, tirou um lenço do bolso e começou
nho mais. Tenho de fazer isso durar como se estivesse sozinho, dizia a si
mesmo. Por último, dando um grande suspiro, levantou-se. “Ah, você es-
rou-a pelos ombros, sorr indo. Não era nem muito bonita nem muito feia;
tinha o que precisava ter para que ele encontrasse nela o ardor de que
Rosa me entreteve. Que coisa essa senhor ita Rosa... o senhor não sabe...”
Tapou-lhe a boca com uma mão. Nunca a tivera tão perto e não percebe-
ra que era cheia de sardas. Umas sardas pequenas, loiras, nas maçãs do
ta, com a saia bem justa, que fora de Sofia. E a bolsinha de pele de cobra
car te olhando?” Fez que não com a cabeça e disse com uma voz fininha:
É
“É que eu não estou acostumada”. Tirou-lhe os sapatos. Com muito cui-
Elisa deu um gritinho. Todas as moças que conhecera com as mãos cale-
jadas tinham a pele escondida mais fina que a seda. Seu coração come-
çava a bater, quase podia ouvi-lo no meio do silêncio absoluto que reina-
cima da poltrona. “E essa agora, o senhor tem cada coisa...”, disse giran-
sem acabar de entender. “Não! Se o senhor pensa que eu vim aqui para
que me beijasse o pé e para vê-lo suar, está muito enganado!” Eladi pe-
gou-a pelo braço e a trouxe brutalmente para perto dele. E parecia toda
ra um canto, apontando o dedo para ele. “A senhor ita Rosa tinha me avi-
fazia isso, mas não acreditava. Não achava que fosse fazer comigo tam-
bém. E a brincadeira das unhas... Dá para ver que o senhor não consegue
ir além do pé.” Eladi se aproximou dela com os olhos fora das órbitas e
ela estendeu um braço para afastá-lo. “Não gosto que riam de mim, mes-
mo que seja uma empregadinha. Nem que me tomem pelo que não sou.
Os brin
cos de Ar
man
da
barr iga ficar ia boa. Dera um tempo para que a senhor ita Sofia procurasse
não tivessem arr umado outra, ela voltar ia a se enfiar na cozinha o tempo
que fosse preciso. A senhor ita Sofia lhe dissera: “Eu lhe agradeço muito,
mas a senhora não vai embora; vai ficar. Na casa tem trabalho para todo
Eram muito finos. Ela nunca fora muito entusiasmada por joias. Se em
vez de ter nascido para servir tivesse nascido para ser uma senhora, não
ter ia usado joias: ou então pouquíssimas. Como a senhor ita Sofia. Nunca
ter ia feito como a senhora Teresa, que era mulher para usar joias e que
dos e com o broche de brilhantes, o das flores, que parecia uma bandeja.
ra ao lhe presentear uma joia que a deixou encantada na hora. Mas nun-
que a senhor ita Sofia lhe tivesse dito: “Você está usando uns brincos
muito finos, Armanda”. E ela ter ia arrebentado de rir por dentro, pen-
sando que havia sido presente do mar ido dela. E responder ia: “Os bri-
lhantes são muito caros... a minha poupança que o diga”. Que ela sou-
las dela e o seu quarto, com calma. Não achou nada do que procurava.
rente das outras e por isso lhe fizera aquela gentileza pouco tempo antes
olhou o fecho: a barr inha de ouro terminava numa ponta muito afiada;
vo. Um dia em que estivesse com humor para isso, agora que não ter ia
porque eram uma lembrança de amor e também para que os outros vis-
sem que era uma pessoa de respeito que usava brilhantes. Mas, e se o jo-
alheiro, como se dizia que alguns faziam, os trocasse por outros feios?
Sorr iu desse mau pensamento. Iria usá-las, mais que nada, para deixar a
Eulà
lia e Quim Ber
gadà
cava que se sentia velha por dentro. Teresa estava doente e dormia. So-
não avisou com mais antecedência que vir ia? Você me perdoa, não é
mesmo, minha madrinha quer ida?” Eladi saíra depois de tomar café. Ra-
Não tinha defesas. Quando era moça, ficava orgulhosa quando a olha-
vam. Sabia por que a olhavam. Mas agora... Achara a Mar ia muito boni-
tinha intuições. Aquela moça, se fosse filha dela, lhe dar ia um pouco de
medo. Ramon lhe parecia um rapaz como tantos. Com olhos magníficos
mente mais atraente que o seu filho. O Ramon não tinha nada da Sofia.
ca, teve saudade de Quim, que ficara em Par is. Saudade da sua casa.
Saudade da chuva fina e do sol amortecido de Par is. Viera a Barcelona
Gràcia não era o seu Passeig de Gràcia. As suas amizades foram desapa-
recendo. Tudo mudara sem que tivesse acabado de mudar. Em dias as-
ticas; todas as estátuas das rainhas da França em cima de seu pedestal ti-
nham o olhar vazio e faltavam-lhes dedos das mãos. Ela e Quim, senta-
dos junto à amurada, olhavam a água e uns quantos barquinhos com ve-
Naque
le dia, ela estava tão cansada!, a deixar ia repousar; no dia seguinte
Rafael e tinha vontade de chorar. Não porque Joaquim lhe lembrasse Ra-
fael, não se pareciam nada, mas porque a recebera com uma alegria
preto que lhe pendia pelas costas. E na lapela espetara o broche que o
mar ido lhe dera de presente nos primeiros tempos de casados — era a
tes e topázios que Teresa detestava porque, dizia ela, as ferraduras não
dão sorte nem para os cavalos. Eulàlia gostava de Teresa mas lamentara
seu casamento com Salvador Valldaura, que ela em parte favorecera sem
percebera-o atraído por ela e recebera essa sua predileção como uma ho-
sua vida com um amor que não lhe podia trazer nada de bom. Durante
segue por um mau caminho e sobre quem gostar ia de exercer alguma au-
não merecia a sorte que tivera. Comeram o pato número tal, e depois
Quim a levou para tomar ar. Mais tarde iriam ver o Tartufo. Mas acaba-
quim. Quim. Porque Quim estava cansado de sua vida de solteiro já ve-
lho de
mais, dos desenganos, das esperas, dos agora sim e dos agora não,
dora de vida que não vai a lugar algum. Precisava gostar e que gostas-
do mundo. Quim a segurava pelo braço cada vez que atravessavam uma
rua, e ela agradecia profundamente. Até que por último segurou o braço
de lhe passar a mão pelo braço, segurava-lhe o braço com a mão e ela
mais leve sinal de per igo. E, como caminhavam calados talvez porque
ele não soubesse o que dizer ou porque respeitava seu silêncio, lhe vol-
para ir discutir a sorte de uns operár ios que haviam demitido. Aquela
mancha de sangue ela pisava todo dia ainda que não quisesse porque lhe
rer. Escreveu para Quim, que fora ao enterro e se comportara muito bem
com ela a ponto de lhe oferecer tudo o que lhe estivesse faltando, a ela,
que só sentia falta do seu mar ido, que gostar ia de ir a Par is mesmo que
mancha escura que todo mundo pisava, em cima das pedras da calçada
de Joaquim com suas duas mãos e desatou a chorar, o choro que tivera
cujo mar ido fora assassinado. Eulàlia sentira um refúgio no seu cunhado
Quim fez uma coisa que nunca fizera com nenhuma mulher: pegou-a pe-
França de mármore, todas de grande beleza, todas com muitos dedos fal-
beu que Quim a descobria, que admirava a pele de seu rosto de um rosa
de uma vez — que ganham cem por cento quando se olha bem de perto.
“Não vou deixar que você volte nunca mais para Barcelona!” E agora, já
quando eram jovens, achava-o insuportável e não gostava nada dele. Se-
rá que seu amor fora tão bom porque ele gostava nela daquilo que lhe fi-
cara dentro do irmão morto violentamente e ela nele do que trazia dentro
desde o nascimento daquele mar ido que fora o primeiro amor da sua vi-
da?
Sentiu que precisava perdoar aquele desvio antigo, que era melhor es-
mo.
VII
So
fia
másca
ra seca grudada no rosto. Sofia, com uma toalha em volta do pes-
coço, sentia a pele como nova. Quando ficou com a cara limpa, endirei-
fechados. “Olhos de japonesa”, como lhe dizia sempre aquele pobre Joa-
quim que acabara despertando a paixão naquela madrinha tão espir itual
dissera: “Com um golpe de bistur i em cada canto eles ficar iam perfei-
tos”. Nunca quis deixar que lhe fizessem isso. Gostava de seus olhos que
não conseguia terminar de abrir; eram seu charme. Será que ficar iam tão
brilhantes abertos? Tão perturbadores, pelo insólito, como a sua voz rou-
ca? Saltou da cama esbelta e ágil. Sílvia lhe preparara o banho. Com um
uva para colher, com o trigo para cegar, com os choupos e os pinheiros
para cortar, estava enamorada e orgulhosa. E das suas cortiças. Era sem
dúvida dona de tudo o que era seu. Dona total. Pelo domínio e pela sa-
tisfação com que o dominava. Sílvia ajudou-a a pôr o vestido azul-mar i-
se com Mitsouko porque era o perfume que Eladi não podia resistir. Pe-
Sabia que quando estava fora de casa Sílvia colocava seus vestidos e su-
as joias. Sabia que Sílvia, mais bonita que ela, infinitamente mais jovem,
vivia pendente dos seus movimentos, das suas saídas. Por isso era tão
amável com ela; porque sabia que a fazia sofrer. Entrou no quarto de
des em Munique, as lombadas dos livros. Eladi lia Proust. Tinha-o numa
cos: nunca um volume de cabo a rabo. Aquele gosto de Eladi por Proust
precisava admirar também o autor. Talvez a verdade fosse que ela não
gostava de Proust porque Eladi gostava. Muitas coisas de que ele gosta-
Quantos anos fazia que dormiam separados? Não dava para saber. Ela
nunca lhe ter ia dito que não fosse ao encontro dela. Era ele que renunci-
cisa a fez parar na metade. A primeira vez que pegou Mar ia no colo,
algum canto negro de sua alma, sabia que aquela aceitação ser ia a sua
força. Aquela menina que ela quisera com tanta tenacidade ser ia a ver-
derr ubar o livro no chão com um tapa e lhe dizer que era um pobre coi-
tado que tivera uma criança com uma qualquer. Mar ia vivia na casa por-
nação. Ela dera dois filhos a Eladi: dois homens. Enquanto Eladi ia se
enfraquecendo com suas obsessões, ela lhe plantara na cara dois filhos.
Mas seu orgulho perdeu força quando percebeu que Eladi gostava de
bisavó remota dos Farr iols. Com Jaume morto, só podia fixar seus ins-
tintos maternais em Ramon. Uma parte da vulgar idade devia vir-lhe da-
quela boa mulher que trabalhara como peixeira. Ramon devia trazê-la
dentro, pensava, vexada, quando o via com aqueles gestos bruscos de ra-
pagão. Não era verdade. Era menos verdade do que ela imaginava, mas
para ela era uma verdade do tamanho de um templo. Alguns dias essa
verdade não a deixava dormir. A culpa era de Mar ia, que a obrigava a fa-
mo es
se os olhos negros e profundos de Mar ia lhe pareciam o mel do
falando no vestíbulo com a senhor ita Rosa, que dava bronca em Ramon.
Mar ia, assim que a vira, atirara-se em cima dela e a abraçara: “Mamãe,
mamãe...” E Sofia sentira uma grande alegria por dentro: Mar ia era sua.
Acabou de descer a escada. A senhor ita Rosa saía da sala. “Senhor ita
Rosa, essa noite quer ia falar-lhe.” De noite, lhe dir ia que não precisavam
mais dela.
VIII
A se
nho
ri
ta Ro
sa
quinze dias na casa. Haviam-lhe dado três meses e quando a senhor ita
Sofia falou com ela sentiu um grande desgosto; mas achava que três me-
ses não acabar iam nunca. Levantou sem saber muito bem por que levan-
Foi pe
gar um pano e começou a limpá-la. Os fechos estavam brilhantes
mas porque não enxergava. Deixou a mala para lá; faltava-lhe ânimo.
Ter ia tempo de sobra para preparar suas coisas. A parte maior iria num
baú que estava no porão, que sabe-se lá se não ter ia mofado. Saiu na sa-
queimava, e ela nem percebia. Como iriam ficar ela e Marcel, quando
ela não estivesse mais lá? Ele lhe garantira que ia achar um jeito de eles
ra ir até a casinha! Saía pela cozinha, sempre com medo de ser desco-
que a vontade, ter ia levado a melhor. Agora via tudo perdido. Pensou
nos novos patrões; pareciam boa gente. A senhora lhe disse que ter ia de
cuidar de uma menina de cinco anos, que ela não chegara a ver porque
justamente naqueles dias estava fora, com os avós. Mas a senhora lhe ex-
plicou que a menina era muito dócil, muito afetuosa, um pouco doenti-
nha, coitadinha, pouca coisa, porque crescia depressa demais. Tinha cin-
co anos e, pela altura, parecia ter sete. Nunca mais iria morar num pala-
pote cor-de-rosa para ela tão necessár io, principalmente no verão, por-
ra. Ela tomara conta deles quando estavam doentes, lhes ensinara fran-
cês, ensinara tudo o que sabia e sempre lhe tinham devolvido as aten-
porco e lhe custara uma fortuna. Quer ia que a vissem indo embora como
uma senhora. Afinal, de todos os serviçais, ela era a pessoa mais impor-
tante. Sempre fizera o possível para ser amável com todo mundo, para
ser simples, para não se dar ares de super ior idade. Vestia-se modesta-
mente para que a senhor ita Sofia não ficasse enciumada. Tivera que vi-
ver apagada. Sua mãe era passadeira, matara-se de trabalhar para poder
pagar-lhe os estudos. Fizera dela uma senhor ita. Falava francês correta-
mente, sem sotaque; antes de trabalhar para os Farr iols estivera na casa
de uns senhores que eram de Perpignan e sempre lhe diziam que seu
francês era impecável. Fazia anos que deixara de dar aulas a Ramon e
na sua roupa, coisa que uma camareira poder ia ter feito, mas a bondade
quando já a havia ajudado a se vestir para sair, dizia que não quer ia mais
sair, que estava com dor de cabeça. E tinha de voltar a dependurar o ves-
desper
tar o menor sentimento de ternura naquela moça. Mar ia conside-
rava-a uma pessoa que podia ser humilhada. E Ramon ainda mais. Ago-
rível repetida e repetida no seu cérebro como uma obsessão. Calara mui-
tas coi
sas, tinha sido compreensiva. Super ior àquele moço e àquela mo-
vera; cada buquê de flores como uma chama de neve. Antes de ir embo-
ra, falar ia! Foi até o lavabo, escovou os dentes. Alisou o cabelo; nunca
fora bonita, mas tinha umas mãos que não a faziam invejar as de nin-
novo. Olhou o quarto, espaçoso, com móveis caros e cortinas flor idas...
Saiu para a sacada, segurou na balaustrada e a sacudiu com fúr ia. Tudo
ia con
tinuar igual: as empregadas, a Armanda, os mocinhos; Marcel
sótão, com um lavabo que mal dava para lavar as mãos. Estivera muito
apaixo
nada pelo senhorzinho Eladi, que nunca a olhara, que só lhe dis-
sera as palavras necessár ias para não parecer descortês. Mas um dia,
de que a olhava do jeito que olhava para as outras moças que andavam
pela casa. E ficou cheia de ilusões. Ela não valia nada, admitia, mas
mais do que a Armanda, com certeza... Abriu a mala: dentro havia, do-
dor. Numa noite de lua poder ia ter jurado que a maçaneta de sua porta
havia girado... mas nunca viu ninguém e foi quando começou a cansar
da casa e das brincadeiras que lhe faziam os mocinhos com o talco. Des-
de que a senhor ita Sofia lhe dissera que não ia mais precisar dos seus
serviços, sentia-se pouco à vontade, não quer ia ver ninguém, sentia que
todo mundo estava contente de ela ir embora. E naquele dia não tinha
moçar e engolir a comida, sem apetite, para que não rissem. De noite foi
olhar se havia luz por baixo da porta da biblioteca. A risca era bem cla-
ra, todas as luzes de dentro deviam estar acesas. Desceu umas quantas
vezes para olhar, antes de ir se encontrar com Marcel, não para entrar,
mas para se acostumar com o pensamento de que entrar ia; para ganhar
desceu a escada com uma mão no coração. A risca embaixo da porta era
tênue. Bateu timidamente e ninguém respondeu. Talvez... Algumas ve-
zes, o senhorzinho, distraído, tinha ido dormir e deixara a luz acesa. Ba-
teu mais forte. Ouviu a voz de Eladi que dizia “adiante!” Abriu a porta e
como ela não dizia palavra nem se mexia, com olhos carregados de tédio
que precisava falar com ele. Foi se aproximando devagar, pensando mais
que iria fazer. Eladi a olhava fixamente e lhe custava resistir àquele olhar
que a eletrizava. Com o olhar baixo, sentou-se. Com os joelhos bem jun-
tos. Passou uma mão pelo rosto, descendo pelo pescoço levemente sua-
do. Como se forças mister iosas lhe ditassem o que dever ia dizer, mas di-
zendo-o de uma maneira mais direta do que nunca acreditar ia que ser ia
capaz, falou dos mocinhos. Era a primeira vez que Mar ia tinha ido a al-
gum lugar sem ela, sozinha com Ramon; que ter ia sido melhor se não os
brincalhões da senhor ita Sofia... que talvez ele não tivesse se dado conta
de que entre Ramon e Mar ia havia algo mais do que um simples amor
entre irmãos... porque ela sabia de tudo. Mentia. Ouvira a senhora Vall-
o assunto. Ah!, isso não. Nunca se atrevera a colocar o problema mas fi-
cara vigiando os dois. Eladi a olhava com uma expressão difícil de des-
desfiando seu novelo de lã preta... até que por último, diante da impassi-
levantou. Eladi não disse uma palavra: tinha o rosto afogueado. E a se-
nhor ita Rosa, em pé, ainda acrescentou que ele devia se preocupar em
descobrir por que Ramon tirava más notas. “Nunca vai terminar a carrei-
ra.” Foi como se lançasse uma maldição. Saiu da biblioteca, subiu as es-
cansada pelo esforço e pela violência que tivera de cometer. Mas valia a
Disse para Marcel parar no primeiro café que encontrassem porque esta-
não fazia desde os catorze ou quinze anos: enquanto esperavam que ali-
mais de meia hora, começara a roer as unhas, sem perceber, porque não
tinha vontade de fumar. Uma delas ele roeu tão rente que começou a
antes de morrer, vomitara sangue duas vezes e ele tivera de sair do quar-
pois, quando a tinha por perto, via aquela gaze manchada de sangue.
Talvez por isso terminara com Armanda. Ficou triste, porque Armanda
era boa de cama. Marcel parou o carro e entraram para tomar um par de
cervejas num café perto de Llavaneres. Elas o deixaram com uma tontu-
no que iria fazer e no que iria dizer. Além disso, não tomara o café da
do car
ro o fez bater contra o vidro. Marcel soltou um palavrão, virou a
outra janelinha. Esperava que aquele par de cervejas, que o suor elimina-
va a muito custo, o deixasse sossegado. “Não lhe deu mal-estar, ao se-
nhor, a cerveja?” Marcel fez que não com a cabeça e depois disse “não
ber, Eladi começou a cantarolar: “Oh, celeste Aída...” Ficou logo quieto,
o Mar
cel era capaz de achar que acabara de enlouquecer. Ter ia gostado
de saber o que Marcel achava da saída da senhor ita Rosa. Tinha certeza
de que ele estava gostando de vê-la desaparecer de seu hor izonte; não
podia estar com uma cara mais satisfeita. Sentia no fundo que, se tivesse
jas deixassem de lhe pesar no estômago. Ter roído aquela unha do dedo
médio até ficar em carne viva deixava-o ainda mais enjoado. Ainda lhe
no seu colo e lhe dizia: “Papai, gosto de você até o céu”, o coração se
lhe enternecia daquele mesmo jeito. Era a sua adorada, mais do que os
filhos, mais do que Ramon. Do pequeno, Jaume, não gostava muito; fi-
que ter ia acontecido com Jaume se tivesse crescido, tão doentinho... uma
criança que mais parecia um castigo. Fingira que era seu prefer ido para
evitar que Sofia se enciumasse demais com seu amor por Mar ia. De re-
respirar um pouco de ar, ficar em pé. Mas não ventava nem um tico e a
areia queimava. Tinha de separar Ramon e Mar ia. Mesmo que a senhor i-
eram irmãos. A verdade. Já não gostara nem um pouco que tanto Sofia
Nem ele nem Sofia gostavam de sair. Viajar para o exter ior, sim. Mas
olhos; cobriu-os com a mão. Quando tirou a mão dos olhos percebeu
que as ondas que praticamente lhe lambiam os pés eram pequenas e si-
lenciosas. Será que ter ia sido mais feliz se tivesse casado com uma moça
pobre, como aquela doce Pilar, mãe de Mar ia, que nunca o incomodara,
que estivera tão apaixonada por ele? Mar ia era uma Farr iols sem tirar
nem pôr. Se pudesse fazer diferente... Não. Se pudesse fazer diferente fa-
ria exatamente a mesma coisa. Não dava para saber o que perdera, mas
sabia, sim, que ganhara uns privilégios que, casado com uma mulher po-
bre, não poder ia nem sonhar em ter. Sua vida, talvez sim, fosse uma vida
triste, mas não são tristes todas as vidas, não importa de que modo se-
que deseja? Já fazia tempo que vendera a loja. E a fábrica. Tinha uma
pequena fortuna pessoal, é claro. Tudo o que havia sido do pai e do tio...
nho, começou a olhar para a nuca de Marcel: com a pele grossa, bronze-
ada, com três dobras hor izontais bem marcadas. Marcel era um homem
robusto. Por que tinha de usar o cabelo tão comprido? O tabelião Riera
devia gostar... Era uma boa pessoa que sempre se comportara muito cor-
Aos poucos, a cena que lhe fizera a senhor ita Rosa e que o mantivera
mergu
lhado num inferno a noite toda ia perdendo consistência à custa de
céu, de mar e de calor. Tinha de admitir que ele não era terreno fértil pa-
ra o drama. Ele quer ia, acima de tudo, tirar o máximo proveito do mo-
mento que se vive. Pensou em Valldaura. Pouco antes de morrer lhe fala-
lhe, nunca ter ia podido imaginar que sua aventura tão romântica pudesse
ter divertido tanta gente. Talvez ele também fosse virar criança e contar
para todo mundo que estivera enlouquecido por uma mulher que canta-
va. Ou talvez contasse isso cheio de malícia para ver que cara iria fazer o
idiota que o estivesse ouvindo. Não, não eram coisas para rir. Percebeu
que o enjoo tinha passado e que começava a ficar com fome. Como sem-
pre, quando estava deprimido enjoava do tabaco e ficava com fome; uma
fome feroz. Não dava para aguentar mais. Um bom almoço, era o que ele
precisava com mais urgência. “E então, Marcel, o senhor não está com
fome?” E lhe veio uma fantasia de comer coisas finas: peixe daquele mar
possa comer bem?” E Eladi Farr iols não foi buscar os filhos. Decidiu es-
Ra
mon e Ma
ria
ficava a igreja. De dentro dela, por duas janelas redondas parecendo dois
pre havia ramos inocentes feitos com flores de todas as cores. E cír ios
acesos pingando cera. E uma virgem pequena, com cara de menina, pro-
tetora dos mar inheiros em per igo, dentro de um vestido azul com a parte
de bai
xo da túnica e a beirada do manto enfeitados por uma entretela de
pouco para ver a virgem. O sol atravessava o vidro das janelas e caía co-
espera
va. Caminharam um tempo, desceram pelas pedras entre giestas; o
olhou Ramon. O mar era deles, com as baías de água adormecida, com
Passar iam o verão juntos: sem a senhor ita Rosa, que bom; sem a Arman-
da, sem pais... Embaixo do roupão, Mar ia vestia o maiô. A turma de jo-
vens recebeu-os com gritos de alegria e Màr ius, que não deixara de
com uma mão fazendo sombra aos olhos. Enfiaram-se na água devagar,
cingia. Mar ia, de maiô vermelho, uma espiga, com o cabelo estendido
sobre as costas cor de trigo. Mar ia dentro d’água, toda ela de ouro e de
fogo; com os pés como conchinhas. Mar ia, donzela, virgem como a vir-
gem do altarzinho. Mar ia das árvores e das heras e do parque e da lua no
telhado. Mar ia sozinha, plana como uma lápide sob as folhagens do ou-
tono esperando que dos galhos chovessem folhas. Mar ia dentro da cama
pestades cada raio para honrar teu nome Mar ia irmã minha. Mar ia, Ra-
mon, Màr ius. Mar ia entre os dois rapazes. Màr ius, magro, preto como
branco da terra. Màr ius com Ramon na universidade. Màr ius Balsareny.
policial atrás a cavalo. Màr ius convocado. Màr ius preso. Màr ius rebelde,
Màr ius revolucionár io... Mar ia e Màr ius haviam saído da água e senta-
vam um do lado do outro felizes sobre a areia quente, e Màr ius dese-
nhou um M muito grande na areia e do lado desenhou outro. Màr ius de-
olhava-os enciumado de vê-los tão juntos. Mar ia falsa irmã minha. Falsa
pernas do M que Màr ius desenhara longe do bater das ondas para que a
água não os levasse embora. Màr ius de vez em quando erguia os olhos e
gro, sem bochechas, com as abas do nar iz trêmulas, com veias e nervos
tranha remota que nem sabia que existia. Fechou os olhos para não ver a
praia que girava e girava com a mancha vermelha de Mar ia no meio co-
ria juntos. Um gosto amargo lhe encheu a boca como naquela noite em
que ouviu seus pais. Olhou pelo buraco da fechadura. Quer ia saber.
um mundo feio. Andou pelo telhado de braços abertos, de uma torr inha
mia Mar ia. Acima de sua cabeça, a noite, com nuvens pequenas que flu-
tuavam, rodeadas pela clar idade da lua, abria caminho... alguma voz
seu irmão morto, pela voz trazida pelo vento. Pulavam para o campo, ele
e Mar ia, escondidos de Jaume, para a liberdade, para o lixo, com as latas
vazias, com os tesouros... A avó e o vinho. Ele ia vê-la e lhe fazia care-
tas. Ela não quer ia que o deixasse entrar porque esse Ramon não sei a
água no fundo do parque era verde com mosquitos que voavam, que fa-
Jaume como um feto dentro da água verde com os ovos dos mosquitos e
ele dentro da água salgada como um feto de gigante numa água sem ven-
tre... sair ia dela sozinho nascer ia sozinho não do meio das coxas de uma
mulher cuspido para a vida com sangue... morrer dentro da água uma
morte sem cadáver para incomodar, dentro, dentro, onde a água não tem
cor sal nos pulmões... Tirou a cabeça para fora da água e cuspiu. A clar i-
dade branca lhe fez fechar os olhos era ainda mais branca a forquilha de-
dos tinha gânglios embaixo das axilas gânglios no pescoço que não se-
cavam purgavam pus e sangue roxo olhava para eles a ponto de chorar
mas sem chorar aquele incômodo. Jaume-Màr ius como um tumor cheio
de pus entre ele e Mar ia... Estavam sentados na areia perto das letras.
rius e Mar ia desatou a correr para os pinheiros à sombra azul com todos
os seus males por dentro que o corroíam e iriam corroê-lo quando estu-
praia numa manhã de verão porque para enganar haviam feito dela uma
moça mas era uma virgem e entre as coxas de sangue e de ouro havia a
noite e os sonhos. Mar ia se aproximava. Vinha da clar idade. Màr ius na-
dava longe. Mar ia passou-lhe a mão pela testa, está com febre? E toda a
paz do mundo se fez entre a mão de Mar ia e a pele de sua testa toda a
paz eu e você para sempre sob as árvores onde as rolinhas dizem coisas
que não dá para entender porque são conversas com toda a inocência da
manhã da vida... Mar ia... o que sabem os outros se não a viram de pe-
quena passar inho perdido sobre o telhado fecha a porta se não as bone-
cas vão fugir perfume de loureiro respiro que trazia o sono Mar ia centro
das à luz clara nascidos do verde vomitados ao sol pela sombra. O que
sabiam os outros, os da rua, os que olham para uma moça cidade a ser
sem mal nem veneno dentro só você irmã minha. Quando saíram da
água, a praia estava deserta. A areia queimava. Mar ia, distraída, andava
por cima das letras e borrou-as um pouco. Ramon esfregou os pés por
cima delas. Ela virou-se e sorr iu mas quando viu que Ramon apagava as
Barcelona... Seu pai escrevera aos Balsareny; dizia-lhes que estava ado-
seu quarto e a levou até a salinha onde brincavam quando eram peque-
Ra
mon sai de ca
sa
Tinha pena do pai e tinha pena dele mesmo e tinha pena de tudo. Tinha
vontade de sumir, de apagar da sua vida aquele verão. Seu pai o olhava,
não sabia como lhe contar que ele e a Mar ia eram irmãos. Que a Mar ia
não era filha de uns primos mortos num acidente como ouvira as empre-
gadas contarem quando era pequeno. O mesmo sangue. O seu pai, antes
que a verdade pudesse sair pela sua boca, tinha ido até a vidraça, senta-
ra, levantara, de costas para ele lhe dissera o que dever ia ter sabido des-
parou de falar saiu da biblioteca dando passos para trás, sem saber direi-
to o que fazia, com o cérebro turvado como num pesadelo... era peque-
avó não gostava dele porque ele uma vez descabelou a pluma do jarro
quis ver a Mar ia mas a porta estava trancada a chave. A sua irmã estava
prisioneira porque gostava dele e ele gostava dela e eles não podiam se
gostar. Deu uma pancada com o ombro na porta e a porta não cedeu.
na madeira da porta para dizer adeus àquela Mar ia tão sua que não ver ia
nunca mais. Precisava respirar, tirar dos pulmões toda aquela sujeira que
lhe haviam enfiado dentro. A escada que ia para o telhado, que quando
era pequeno subia sem reparar como era, pareceu-lhe estreita demais, os
morrer. Tinha vontade de andar pelo telhado, até a outra torr inha, até o
meio, lá onde o cabelo de Mar ia lhe roçava o rosto quando estavam dei-
tados e ventava. Não teve coragem. Voltou a descer, parou diante da por-
ta de Mar ia; a sua infância estava lá dentro... Entrou na sala dos brinque-
dos. Olhou as mesinhas onde ele e ela tinham aprendido a escrever. Não
haviam trancado a Mar ia. Era a Mar ia que não quisera vê-lo, não quisera
abrir. Também sabia disso, também lhe haviam contado. Deu uma pan-
baixo estava o pião com faixas color idas. A corda estava quebrada. Pe-
melho, brilhante, espesso. Com a mão levantada para não deixar cair go-
manchado de lua. O jardim dele e de Mar ia, quando eram pequenos, não
tinha fim. Teve vontade de gritar alto o nome da sua irmã: que saísse pe-
rua, os ramos de hera do muro da frente. Percebeu que trazia uma coisa
na mão sem saber o que era. Teve de pensar um pouco antes de desco-
bem a tempo de poder tapar os ouvidos. Atrás dele tudo afundava; as pe-
dras da casa saltavam pelo ar e caíam junto dele quebrando galhos, sem
tocá-lo, mas machucando-o. Não soube quanto tempo ficou como se es-
Mar ia e não viu nenhuma luz dentro. Perdeu a noção do tempo, ia pelas
ruas como uma alma penada perseguido pela voz do seu pai, por umas
meio doente, bateu na casa de Mar ina, a irmã do tabelião Riera. Mar ina,
a filha mais velha, era sua colega de classe. Quem abriu a porta foi uma
menina pequena que não conhecia. “Sou a afilhada da senhora Mar ina e
Maria ou
viu atrás da por
ta
Ouviu Ramon passar e abriu a porta para chamá-lo mas ele descia a es-
cada tão rápido que desistiu. Pressentiu que alguma coisa ruim se apro-
ximava. Seu pai não estava doente como dissera na carta aos Balsareny.
que es
tava acontecendo sem que fosse preciso terminar de descer. A por-
ximou da porta. Nunca a água que transbordava do copo lhe pareceu tão
cabeça lhe dissera baixinho, olhando-a nos olhos, que ela, naquela casa,
não era ninguém. “Não é ninguém, ninguém... estou dizendo isso para
castigá-la pelas caretas que você me fazia quando era pequena. Você é
irada que ela acreditava em mentiras porque era feia e invejosa. E a se-
nhor ita Rosa, com as faces vermelhas e os lábios apertados, dissera au-
tor itár ia: “Ditado”. Corr igiu-o na sua frente, minado de erros, e a cada
erro que sublinhava fazia estalar a língua contra o céu da boca. Quando
deu a aula por encerrada murmurou: “Vou ter de conversar com a sua
mãe; vou dizer a ela que você estuda pouco porque tem outras coisas na
cabeça... coisas feias”. Correu para ver a avó, ficou em pé do lado dela e
desatou a chorar. Quando conseguiu, contou que a senhor ita Rosa lhe
havia dito que ela não era ninguém. A avó lhe passara a mão pelo cabelo
muitas vezes: “Não chore, não chore, você é a minha neta adorada, o
meu amor, sempre foi...” Fizera ela abrir a gaveta do meio do armár io ja-
ponês e tirar o estojo roxo. A avó abrira o estojo e pegara o ramo de bri-
lhantes. Estava com ele na palma da mão: “O dia em que eu morrer, vai
ser seu”. Mar ia ficou com mais vontade ainda de chorar e voltou a guar-
dar o estojo. A avó chegou bem perto dela, estendeu o braço e apontando
para o que as rodeava disse que tudo ser ia dela: a casa com as árvores e
os pas
sar inhos.
as mãos cobrindo a boca para não ter de responder, olhava para aquela
porta atrás da qual estava o seu irmão, que era filho do seu pai, como ela
era filha do pai dele. E não abriu porque não era nenhuma criança adota-
da; Ramon e ela eram irmãos. Uma vez tinham se beijado perto da água
onde anos atrás... o Jaume... Ela estava olhando a água com os braços
dentro e a faziam tremular. Ramon se pôs do lado dela. “Eu sei mais coi-
sas do que você. Você sabe o que os adultos fazem quando se gostam?
Brincam com as línguas.” Ele a pegara e a fizera virar de frente para ele.
“Você sabia que os meus olhos e os seus são de água? Ser ia bonito se a
água dos seus olhos e dos meus se misturassem.” Mar ia via folhas den-
tro dos olhos de Ramon: um paraíso brilhante e escuro que lhe sugava a
vontade. “Se a água dos teus olhos e a dos meus se misturassem eu ser ia
você e você ser ia eu. Você iria gostar?” Dissera que sim com uma voz
fraca. Então ele lhe beijou os lábios num beijo terno e curto. “É assim
que eu vou beijar você: sempre assim.” Mar ia pusera os lábios um pouco
“Já sei quem é.” Haviam voltado tristes e separados... daquilo já fazia
uns três ou quatro anos. Ergueu a cabeça e ouviu: Ramon estava no te-
“Mar ia... Mar ia... Mar ia...” Alguém gritava seu nome tão longe que não
dava para adivinhar de quem era aquela voz. Abriu a sacada e olhou para
o céu, as árvores. Apesar da escur idão pôde ver a mancha branca do ros-
Mar ia... Mar ia...” De onde vinha aquela voz que não estava em lugar ne-
nhum e que dizia seu nome para fazê-la dar-se conta de que não estava
tanheiros.
XIII
Eladi Far
ri
ols e o ta
be
lião Ri
era
a pé, ser ia bom para lhe dar coragem. Subia com calma; a cada dois ou
três degraus parava para descansar. Enfiou a mão no bolso interno do pa-
que o asfixiava. Se outra pessoa pudesse fazer por ele o que estava fa-
do tabelião na placa de latão. A porta foi aberta por uma mocinha ma-
tinha a car inha miúda. Afastou-se para deixá-lo passar. “O senhor Riera
sabe que o senhor quer vê-lo?” “Não.” E lhe deu o cartão. Na sala de es-
pera havia um casal: um homem grande com uma mulher loira, de so-
brancelhas pretas, que parecia sua filha. Eladi chegou perto da sacada e
pelas luzinhas vermelhas atrás dos carros que desciam a rua. De repente
direito, na parte de baixo, tinha um defeito: uma bolha que refletia as lu-
zes vermelhas. Aquela tara lhe trazia uma lembrança cinza como a tarde,
o casal.
O tabelião Riera olhou a rosa: mandara-a trazer havia dois dias de seu
sítio de Cadaqués. Ele mesmo a pusera naquele jarr inho de prata e cris-
tal que tinha sido de uma avó materna. Era uma rosa vermelha, aberta,
um broto. Pegou o cartão: Eladi Farr iols. Aquele nome não lhe dizia na-
da. Perguntou ao auxiliar: “Esse senhor já veio aqui alguma outra vez?”
“Não, senhor.” “Faça-o entrar.” Pegou uma escritura e fez de conta que
lia. De repente ergueu a cabeça e com a mão indicou a Eladi que sentas-
tê-lo à sua frente reconheceu-o logo. Estava muito acabado. Eladi ia ti-
rando as luvas; quando fazia calor precisava delas mais do que nunca
porque detestava ficar com as mãos suadas. Uma luva caiu no chão, ele a
pegou e olhou para o tabelião. Vinha por causa de um assunto que não
tinha nada a ver com o tabelionato. “Trata-se do meu filho Ramon, o se-
nhor deve lembrar dele. Quando era pequeno o senhor o via com muita
Eladi que “efetivamente, sim, é claro... lembro muito bem do neto mais
mau momento, seu filho fugira de casa. “E a Mar ina, sua irmã, me es-
creveu contando que está lá com eles. Como o Ramon e a filha mais ve-
lha de Mar ina, a Mar ina, são colegas de escola...” O tabelião Riera pe-
gou a carta que Eladi lhe estendia. Reconheceu logo a letra de sua irmã.
sua irmã me conta que meu filho está na casa deles; enfim, depois que
eu... Depois de uma conversa que eu tive com ele.” O tabelião Riera ou-
via aquele balbucio sem muito interesse. Teresa lhe falara tanto do seu
teza de que se casara com Sofia por interesse. No final das contas, se
Eladi Farr iols estava vivendo um drama com o filho, a culpa era dele.
Eladi falou de Mar ia, daquilo que talvez estivesse acontecendo entre os
le cheiro abafado e aquela bolha e o tabelião Riera que parecia meio au-
uma vez, nunca sozinho, sempre com amigos. Cantava nua em cima de
na per
der umas quantas horas para poder admirar aquele ventre. Mas por
que diabos Eladi enfiara a filha da artista em casa, com a mulher e al-
guns filhos legítimos? Ter ia havido mil maneiras de resolver aquele pro-
só o que faltava naquela família. Eladi lhe dizia que se tinha ido até lá
para vê-lo era com a intenção de ajudar o filho. “Eu vou lhe dar um che-
que, para que, sem que meu filho saiba, o senhor o faça chegar até a sua
irmã. É por causa disso que vim incomodá-lo.” O tabelião Riera, en-
quanto pegava o cheque e o dobrava sem olhar, disse: “Por que o senhor
não tenta ir até a casa da minha irmã para ver seu filho? Às vezes as situ-
percebeu que tinha de aceitar o que Eladi lhe pedia se quer ia ajudá-lo:
sem sermões nem conselhos. Eladi não era homem de enfrentar nada
que lhe exigisse um esforço. No fundo, apesar de tudo, Eladi lhe dava
pena. Garantiu-lhe que ele mesmo, pessoalmente, dar ia o cheque a Mar i-
na; far ia tudo o que fosse preciso para que Ramon não suspeitasse de
que seu pai o ajudava. Eladi começou a pôr as luvas de cabeça baixa pa-
ra disfarçar a emoção que lhe apertava a garganta. Assim que Eladi atra-
jarr inho, aproximou a rosa do nar iz e a cheirou com deleite. Pobre Tere-
sa...
XIV
Ma
ria
de gra
des, de nuvens que não a deixavam respirar. Por que tudo não
morr ia? A mamãe a olhava como se não a visse. A avó sempre dormin-
do. Seu pai estava sempre cabisbaixo e andava de um lado para o outro
com os olhos tão cheios de pena que não aguentava vê-lo. Sua única
glicíni
as, em pé e branca em sua camisola de dormir vaporosa, “de noi-
nome do seu irmão; era como se voltasse a vê-lo em cima do banco onde
no verão as abelhas e as flores lilases que caíam e voavam eram mais do-
ces que o mel. Chamava-o bem baixinho porque, se estivesse longe, não
importa para onde tivesse ido, talvez pudesse ouvi-la com a alma e vol-
tasse mesmo que fossem irmãos. Como a alma dele a havia chamado
sob a clar idade das estrelas. Uma noite exper imentou chegar perto da
ferro agarrou nela e fechou os olhos porque seu coração batia forte. Na-
cia. De vez em quando topava com uma raiz (como uma cobra, costuma-
va comentar com Ramon), e a puxavam porque a raiz, que parecia ser de
alguma árvore próxima, os levava até alguma árvore distante. Uma cobra
pente viu a forquilha a seus pés: suja e branca, com uma camada de
musgo na ponta do cabo meio enterrado. Deu alguns passos para trás e
reviu tudo. “Quieto!”, dizia uma voz dentro dela, “Quieto!” Em cima
Deu algumas pancadas no chão para fazer cair o musgo. Bateu na água
e a água lhe esguichou o olho esquerdo. Enxugou-o com a ponta dos de-
dos e passou o dedo úmido por cima da pálpebra. A água sobre a pálpe-
bra e a água de uma lágrima eram iguais mas uma era doce e a outra sal-
gada. Seu rosto dentro da água era o rosto de uma criança com os olhos
de água, com a saliva de água: uma criança de água e de fogo. Uma cha-
ma se acendeu dentro de sua alma: alta. Uma chama de amor sem saber
água, que voltou a borrar seu rosto e os lábios que não haviam sido bei-
jados por amor de homem, que nunca ser iam beijados por amor de ho-
mem. Seus seios macios como a primavera, seus joelhos mais doces que
das, as violetas a olhavam. Uma a uma, foi pisando-as. Com uma pedra
riscou o tronco da árvore, bem fundo, para apagar aquelas letras defor-
madas pela seiva que nunca soubera o que quer iam dizer. E entrou na
clar idade e de sombra sobre suas mãos. Lá dentro haviam vivido pássa-
ros muito grandes, pássaros color idos... pavões com a cauda aberta num
sede. Ela também ter ia gostado deles; mas Ramon lhes ter ia furado os
olhos. Ouvira dizer que os pássaros cegos cantam melhor... Ter ia adora-
bem protegido por ossos e pele, tremia-lhe o coração. Quer ia tê-lo pego
e atira
do a um tigre. Toma, tigre. E o tigre com suas garras o girar ia para
ver o que havia embaixo. Depois o pegar ia com os dentes, com muito
seus olhos fossem uma lente de aumento, que bifurcação de nervos, que
loucura de fios não iriam ver... Pôs a violeta nos lábios, dobrou-a com a
língua e a engoliu. Nas mãos ainda lhe ficara musgo da forquilha. Escu-
recia. A clar idade fugira e a noite descia. Gostava da noite. Mar ia... Ma-
ria... Mar ia... Parou e gritou com as mãos dos lados da boca, como se ele
olhava gravemente seu reflexo. De repente ficou nua. Uma mão invisível
levada pelo vento. Tinha os seios em forma de taça, com o mamilo leve-
mar aos pés. Nascia nua de ondas mortas, com uma aliança sobre a ca-
beça. Fazia uma estrela. Quando ela e Ramon se cansavam de correr, pa-
sou se
gurar no corr imão, um momento. Parou diante do quarto da avó
tos que a avó Teresa costumava olhar. Pegou-o. Antes de fechar a porta
teve vontade de dar um beijo na mão da avó Teresa, mas não conseguiu.
pressa. Só tinha a avó? A avó moça, com uma rosa no peito. A avó deco-
com a raquete na mão. Ela de fraldas nos braços de uma ama. Ela com
mãos uma madeira plana com um pedaço de pano branco amarrado num
Quando pegou o retrato para lhe dar um beijo, caiu no chão um recorte
quela mulher que pareciam os seus. Por que a avó escondera aquele pe-
daço de jornal com aquela foto? Deu um longo beijo em Jaume e deixou
dele, pensou um tempo nos olhos tristes daquela moça. Saiu, aproxi-
lua se enfiava dentro, até o fundo. Num canto do poço viu brilhar não sa-
bia o quê. Alguma coisa que Jaume devia ter jogado dentro. Tudo o que
Com uma mão segurando o corr imão de ferro, com a outra afas-
tando o cabelo que o vento lhe jogava no rosto, desceu até o telhado. O
por es
trelas grandes, a encorajava. De braços abertos para não perder o
vazada como uma renda; voltou a olhar o banco de pedra que mal conse-
aproximava das árvores... passou a língua pelos lábios umas quantas ve-
zes. Se você ficar com a língua enrolada um bom tempo contra o pala-
dar, vai sentir o gosto do néctar. O loureiro, cheio de folhas embaixo de-
la, que o vento fazia balançar, parecia um mar de água preta. Uma telha
O lou
rei
ro
em fileiras pela parede. A Armanda entrou para dar uma olhada: estava
de volta, entravam num bar e, com muita calma, tomavam café. E as du-
casa davam a lista para Armanda. Armanda constatou que Jacinta manti-
nha a cozinha limpa como um altar. Foi até a copa: abriu uma gaveta da-
quele móvel que haviam mandado fazer havia anos para guardar a prata-
forte pelo cabo de uma colher... nenhum vestígio de sombra escura. Isso
é que era limpar bem a prata. Abriu o armár io das bandejas, das sopei-
ras, dos jogos de chá e de café, tudo maciço... E no porão ainda tinha to-
dois frangos, o coelho para o arroz delas... A Júlia foi até a sala buscar
as fruteiras para enchê-las. Ainda lembrava do desgosto que tivera a se-
pois guardou as frutas que haviam sobrado na geladeira alta até o teto:
do três garrafas vazias, e a Júlia, pondo a cara pela escada, disse que ti-
nham quebrado.
lhe preparar um arroz que vai fazer os anjos cantarem”. Enquanto acen-
ria um pouco. Fazer o almoço naquela casa era complicado; cada um co-
mia uma coisa diferente. A senhora Teresa tinha a temporada das batatas
linha o braço dolor ido de tanto bater a maionese. Quando Ramon ainda
estava na casa, os mocinhos pareciam dois velhos: sempre quer iam cal-
ela e para Anna, porque os patrões não quer iam nada que fosse aprovei-
tado. Aquele dia Armanda, Júlia, Anna, Jacinta e Virgínia iriam comer
arroz. A Sílvia estava de folga. O pote do louro estava vazio, Júlia o la-
que a Sofia, pequenina, chorava sem parar. O raio decepou o galho prin-
das. Tinha sido uma temer idade viver naquela casa com aquelas torr i-
nhas tão altas sem para-raios. Júlia foi até lá fora. Estava arrebentada;
haviam passado umas duas horas na feira, em pé, de um lado para o ou-
tro porque a Jacinta, antes de decidir comprar o que quer que fosse,
olhava todas as barracas e não acabava nunca. E ela, Júlia, não tinha
na cama, que era o que ela e a mãe faziam quando voltavam das com-
se aventurado de noite. Fazia dois anos que estava na casa e ainda tinha
medo das árvores; tinha impressão de que cresciam todas ao mesmo
tempo e que conversavam entre elas. Uma vez o senhorzinho Eladi lhe
lhe respondera que nunca vira nenhum. “Um dia, se quiser, eu a acom-
panho para vê-los.” Ela lhe disse “obrigada...” No loureiro junto à casa
só batia sol de manhã. Tinha galhos e brotos baixos que os patrões não
dedo, cheirou o dedo e não tinha cheiro de nada. Olhou para cima. Por
entre as folhas espessas viu uma coisa branca, como se um lençol tivesse
ver o que está acontecendo”, enquanto olhava feio para Júlia por ter fica-
Adeus, Ma
ria
pouco mas ainda corr iam nuvens. A chuva não fizera diminuir o calor e
meio inclinados pelo vento, que espalhava cheiro de morte. Eladi, lívido,
lo. No final das contas, pensavam, a Mar ia não era filha dos Farr iols... de
uns primos... sabe-se lá. Sofia, abatida, mas com os olhos brilhantes,
vando para enterrar. Num canto da cozinha, sentada numa cadeira baixa,
sangue seco num canto da boca ficara grudado como se fosse a crosta de
ar; ela teve de dar-lhes conhaque. Ela a penteara; aqueles cabelos pretos
nhor ita Rosa... Sentada, cegada pelas lágrimas, ouvia o vento. Mar ia
gostava de vento, e ele viera lhe fazer companhia, misturar-se com a fes-
quem se poder ia dizer que ela gostava? Uma tarde ela entrara na cozinha
para procurar uma faca, havia anos. “O que você quer?” E Mar ia respon-
dera secamente: “Uma faca”. “O que você vai fazer com ela?”, pergunta-
ra-lhe inocentemente Armanda. “Eu preciso.” “Não tem nada que você
precise fazer com uma faca de cozinha.” “As outras não cortam direito.”
Mar ia tinha razão. E Armanda lhe mostrou uma pequena. “Essa está boa
pra vo
cê?” Mar ia falou, e Armanda quis morrer: “Faça o favor de me
tratar de senhora; já não sou mais uma menina”. E pegou uma faca da
A vida inteira, tanto você como o Ramon nunca pararam de levar as fa-
cas da cozinha embora. Não entendo por que vocês precisam de facas.”
é pra aprontar alguma coisa, conheço você desde pequena.” “Eu preciso
pra cortar as folhas de um livro.” “Se você quer cortar folhas de um livro
pegue o corta-papéis. A mim você não engana.” Quis tirar a faca da mão
como Sofia ter ia ficado aprumada lhe disse: “Não é porque você dormiu
com meu pai um tempo que você tem direito de me tratar como se eu
aqui o sangue, olha...” Então Mar ia pegou a faca que Armanda deixara
acho que vocês talvez já sejam um pouco crescidinhos pra fazer uma idi-
otice dessas.” Por que, pensou Armanda enquanto enxugava os olhos, ti-
vera de lembrar daquela coisa feia no dia em que levavam Mar ia para
mão pelo tronco umas quantas vezes, adeus, Mar ia. E desatou a chorar
desconsoladamente.
Quando já não havia mais nenhuma visita na casa e Eladi ainda não ti-
nha voltado do cemitér io, Sofia foi ver sua mãe e a encontrou adormeci-
da com a cabeça sobre o peito. Limpou a garganta bem forte para ver se
conseguia acordá-la mas Teresa nem se mexeu. Sofia saiu do quarto, fe-
chovido dentro. Pelo passeio viam-se flores que deviam ter caído das co-
roas. Respirou o vento quente misturado com sol e com nuvens... tudo
eta que não parecia de verdade. Os puxadores das gavetinhas eram re-
da. Passou-lhe umas quantas vezes o indicador por cima como se quises-
era a do meio. Voltava a chover entre rápidas espiadas do sol. O bar ulho
da. Puxou a fita e acabou dando um nó; demorou um tempo até conse-
guir desatá-lo. Enfileirou as cartas diante dela; cada uma dentro do seu
ternura leu: amiga Sofia... Tirou todas as cartas dos envelopes, rasgou-os
escrivaninha, cada carta era como uma onda de juventude que lhe trazia
lado a lado... Club de Tennis. Amiga Sofia... Eram de Lluís Roca. Ele a
havia cortejado, mas ela logo depois gostou de Eladi. Pegou uma carta e
rasgou-a com uma certa melancolia e foi rasgando todas. Antes de jogá-
toucador, tudo era de organdi branco... Tudo no quarto de Mar ia era cân-
dido. E pensou: por que tive de rasgar as cartas? Por que, depois de ficar
com elas tantos anos? Iria pegar os pedacinhos, grudá-los com fita adesi-
nhum, e isso que a chuva e o vento, pensou, dever iam ter excitado seu
perfume. Pegou uma folha e apertou-a forte entre os dedos. Enfiou a fo-
lha amassada no decote e cheirou a palma da mão. Que cheiro mais gos-
toso... Ter ia adorado encontrar a mãe acordada para poder lhe dizer ao
tamento”. Acima da sacada ficava o galho partido pelo raio que termina-
cabeça o mais levantada que podia para evitar rugas no pescoço. Adeus,
Mar ia.
XVII
A lá
pi
de
Eladi teve de fazer um esforço para viver. Seu delír io pelas moças atenu-
ara. Alguma engrenagem não funcionava muito bem dentro dele. Foi
acome
tido por uma paixão doentia por livros; pegava-os como se fossem
zes que saía era para ir até alguma livrar ia para procurar e encomendar
encontrar a chave daquele mistér io. Tentou traduzir fragmentos que de-
Tinha um cheiro de pó que dava arrepio. Pelo chão havia pilhas de li-
vros, edições raras, de luxo, fichas meio preenchidas, arquivos por com-
ra fazia Sofia subir quando era pequena para que viajasse; punha os li-
vros que lhe interessavam menos nas prateleiras altas: sem que uma
lomba
da sobressaísse um milímetro mais que as outras. Mas não lia uma
atrás do outro. Sofia às vezes olhava a clar idade das janelas sobre a areia
des. Nas últimas páginas leu: “Sento em frente à minha mesa na hora em
que os pavões gritam e penso no meu mundo. Pequeno: uma bola de ou-
ro que não é maior do que uma laranja. A paisagem sou eu que a coloco,
eu que lhe dou vida”. Eladi sentiu um arrepio pela espinha e decidiu
nal por baixo, cobriu tudo com troncos grandes e pôs fogo. Quando as
que os pavões gritam e penso no meu mundo. Pequeno: uma bola de ou-
ro que não é maior do que uma laranja. A paisagem sou eu que a coloco,
eu que lhe dou vida. Um rio, um canal e montanhas com lilases flor idos
na pri
mavera. Meu sonho não morreu; quanto mais tempo passa, mais
intensa fica a lembrança. Tenho amado Teresa, mas não sou o homem de
lhe foi vedado. Às vezes, quando quer ia fazer amor com Teresa, que ‘fa-
Eladi fechou o caderninho e deixou que sua atenção fosse absorvida pe-
clar idade da lua, milhões de gotas de chuva... o que queimava à sua fren-
melhas, o céu e o sol, que fugiam para cima para encontrar o que havi-
am sido. “Não acho que tenha amado nunca Sofia como os pais costu-
mam amar os filhos. Faltou-me espír ito paternal. Achegar-me a ela quan-
do era pequena havia sido uma necessidade. Com a Sofia no colo, com a
refugiasse num ser diante do qual podia abrir a porta da nostalgia sem
desper
tar cur iosidade nem inquietude. No fundo do parque passei horas
fez entristecer por Ofélia. Cada reflexo de luz a fazia sair de seu leito
abril saiu de casa cedo. Ia cumprir uma coisa que havia prometido a si
mesmo fazer. Entrou um momento para ver Teresa, que a morte de Ma-
ria havia afetado muito. Achou-a envelhecida; e ela, quando viu seu gen-
ro, pensou: “Que ruína”. Descia pelas ruas com as costas eretas, a cabe-
es. Dois rapazes estavam martelando uma figura grande com uma coroa
muito respeito. “O que deseja?” “Uma coisa muito simples: uma lápide
atolado de serviço. Não me peça nada rápido.” “Mas uma lápide com
um no
me... custa tanto assim de fazer?” Ficaram um tempo falando das
letras ser iam de ouro fino. “Talvez o tempo as apague, mas sempre dá
era. Dizia que Ramon não morava mais na casa da irmã e que estava tra-
balhando. Mas não contava nem o que fazia nem onde trabalhava. Uma
Sofia achou de um mau gosto horrível mas não fez nenhum comentár io.
E daquele dia em diante Eladi passava horas sentado no banco das glicí-
to, tinha a impressão de que nos olhos negros, ainda brilhantes, havia os
mesmos lagos de melancolia que nos olhos de Proust. O que acontecera
com Ramon era para lamentar a vida inteira. A morte de Mar ia era outra
e doce, era a grande lembrança de amor daquele Eladi que ele fora e que
Umas ou
tras em
pre
ga
das
Virgínia fizera uma grande faxina na sala da senhora Teresa. Quando fa-
ziam de volta para a sua sala Armanda inspecionava se tudo tinha ficado
nhia até que adormecesse. “O senhorzinho”, pensou, “logo vai sair”. De-
do drama com Ramon e por uns quantos meses depois da morte de Ma-
ria. Vai ver que não conseguia resistir porque assim que se refazia um
pouco voltava com a mesma coisa. Quem sabe o fazia sem perceber...
Não dava para entender. Onde será que Ramon ter ia ido parar? Nunca
mais dera sinal de vida. Como se tivesse morr ido. Era malcriado mas
não era mau. O que ter iam precisado tanto ele como Mar ia era que gos-
tassem deles. Ela nunca chegara a acreditar que tivessem feito nada de
mau como insinuava aquela má-língua da senhor ita Rosa. Talvez sim
com o tempo ter ia havido per igo... Virou de costas para a sacada: a clar i-
vam risada de tudo. Quando vinha alguma nova, logo pegava o costume
das antigas. E é que a água na pele sob o sol era tão boa... Assim que os
loucas e faziam farra porque tinham os corpos jovens, com as coxas que
pareci
am de pedra... Ia adormecendo. A senhora Teresa já não pergunta-
Jacinta dizia aos gritos que não conseguia se enfiar dentro da tina; tinha
medo de machucar a barr iga como acontecera da última vez. Bem em-
baixo e bem dentro. Sílvia a empurrou: “Não tem problema, você vai
nhor Eladi que andava um pouco atrás dela na sua idade devia ter vergo-
nha uma moça jovem como ela dezessete anos com o leite e o mel nos
lábios... saía pelo portão... um dia ele dissera que ela tinha o leite e o mel
nos lábios; ela estava tirando o pó de um quadro com três senhoras todas
com véu no rosto. Saía pelo portão, dava a volta pelo campo e entrava
pela portinhola do lixo. Sem fazer um bar ulho, como um lobo, enfiava-
que tinha ido buscar lá, viu um círculo do tamanho da boca de uma taci-
nha de licor na parte baixa de um vidro da janela que dava de cara para a
espiava. Elas não conseguiam vê-lo porque o sol as ofuscava. Era como
brancelhas espessas com uns quantos pelos brancos, alto e magro, com a
tas coxas. Não tinha contado às outras, que naquela tarde estavam en-
lhes disse que, acima de tudo, não olhassem para a casinha dos tanques
que olha. Não perdia nada. Pensou que iam entrar na cozinha mortas de
aos domingos botava um cravo no vestido, que não podia nem ver a se-
nhor ita Sofia, desavergonhada como ela só que quando ria punha a ponta
e voltou a ficar de frente para que a visse muito bem o senhor Eladi que
usava luvas e bengala. Voltou para onde estavam as moças, bem deva-
água corr iam e davam voltas diante da janela. Armanda acordou e foi
pressão de que haviam perdido o juízo. Corr iam e pulavam pela esplana-
da, bri
lhantes de água, com a pele esticada de tão bem regada, não pela
água mas pelo fogo do sangue jovem que corr ia por baixo. Deixou que
com ela mais de uma vez quando chegava às tantas. A senhor ita Sofia,
tonta de estar perdendo a cena, já fazia horas que dormia porque, dizia
ela, dormir cedo conserva a pele jovem e no dia seguinte a gente fica
Eladi Far
ri
ols de cor
po pre
sen
te
sim que ouviu passos. “Continue, continue... sou só eu.” As cortinas es-
monta
do um estrado baixinho para colocar o caixão em cima, com cír ios
os respingos. A chama dos cír ios fazia brilhar as letras douradas das
lomba
das dos livros. Armanda deixou o buquê de rosas vermelhas em
agora, olha, bem esticado e com um olho meio aberto. Fez o sinal-da-
olho, com o reflexo da chama de um cír io, parecia ter vida. Armanda ia
passando o dedo pela pálpebra. Masdéu disse: “Olhe, a barr iga dele já
está in
chando”. Armanda levantou o buquê de rosas e olhou. “É verdade,
que rápido; já, já a barr iga vai ficar mais alta que o peito.” Voltou a colo-
car com cuidado o buquê de rosas e ajeitou a fita que pendia toda engo-
mada, com letras douradas que diziam: “Para Eladi Farr iols, Armanda
Valls”.
chegar no início da tarde. Rosas tenras e lír ios roxos com uma pincelada
esmae
cido de flores de morto que murcham sacrificadas ao nada. Eladi
tinha sido vestido com uma roupa preta e gravata-borboleta, porque fora
mais fácil de colocar. O homem que o havia vestido não sabia dar nó na
contou a Masdéu que ela só ficara sabendo que o senhor estava morto já
bem no final da manhã e tinha certeza de que morrera nas primeiras ho-
ras da tarde do dia anter ior. Mas ninguém sabia nada ao certo; a enfer-
podia vê-la nem pintada; exigia que a servissem como se fosse uma se-
Sofia — lhe pedira para ligar para o doutor Falguera, e quando ele che-
estar na casa. Ninguém sabia muito bem o que estava acontecendo até
que a senhora lhes disse que o senhor havia morr ido. Havia morr ido sem
auxílios espir ituais e todas tinham achado isso muito estranho. Júlia dis-
se: “A tarde inteira eu senti a morte rondando; a gente sente a morte che-
isso tinha ficado confuso, mas alguém, que a senhora devia ter avisado
em seguida, mandou uma coroa de rosas amarelas com uma fita roxa da
largura de dois palmos, quando ainda não sabiam nada nem tinham arr u-
aquele senhor que era um pintor afilhado da senhora Valldaura que a se-
nhora Valldaura dizia que pintava muito mal. Masdéu levantou o cotove-
lo, colocou o polegar perto dos lábios e disse para Armanda: “Será que o
conseguira fechar o olho que não parava de abrir, respondeu, ainda vigi-
ando que o olho não abrisse de novo: “Como a senhora Teresa há alguns
anos? Não. Outras coisas, eu acho”. Masdéu perguntou quanto tempo fa-
zia que Mar ia se atirara de cima do telhado porque ele não tinha a noção
do tempo. “O senhor acha que a morte da moça pode ter acabado com
ele? Talvez sim.” Armanda dobrou as mãos em cima da barr iga, pôs os
lábios para fora: “Olha, o único filho que eu vi ele gostar de verdade foi
o Jaume, que morreu na água. Ainda lembro quando ele nasceu. Que ba-
tizado. Mãe de Deus... Talvez porque a senhor ita estivesse de mau hu-
mor por ter tido outro filho tão depressa o senhorzinho plantou-lhe na
cara um grande batizado. Melhor que o do Ramon. A roupinha do bati-
zado era de renda de Malinas”. Masdéu não podia lembrar porque não
na senhora Teresa que ele já não ia visitar com tanta frequência. Tinha
“Ainda não deve estar sabendo de nada e acho que vai lamentar muito.”
Não, Masdéu não ia com frequência à casa mas assim que a Armanda
fora avisá-lo que Eladi tinha morr ido, correra para se oferecer para o que
cima. “Às vezes”, disse Armanda, “quando penso nas crianças quando
nê todo meu, e olha que ela era bem pequena. Mas quando chegou o coi-
to dele.” Masdéu a interrompeu para lhe dizer que a morte de Eladi de-
via ter sido um golpe muito forte para Sofia. E Armanda, ainda olhando
aquele olho que parecia voltar a querer abrir, disse que conhecia muito
senhora Teresa vai dizer quando souber. Mas neste momento eu gostar ia
de saber uma coisa: do que morreu o senhor, porque fazia umas quantas
semanas que mudara muito, tanto assim que já parecia morto.” E Mas-
da família”. “E eu”, disse Masdéu, “o meu pai sempre me dizia que fos-
se ver a senhora Teresa, que era muito boa e que eu era afilhado dela...
talvez ela lembre de você... Para mim não importava se ela lembrava ou
da, com ares de mistér io, depois de enfiar o lencinho no bolso, tirou um
que anunciasse que remédio havia dentro. Fazia anos que andava pelo
armar i
ozinho do banheiro. Assim que esvaziava voltava a ficar cheio
sem que nenhuma das moças o tivesse levado para a farmácia. Aquele
frasco parecia que ia e voltava da farmácia sozinho. “Eu acho que o se-
nhorzinho Eladi andava com ele. Cheire.” Masdéu disse que tinha um
disse que ele não era bom para determinado tipo de coisas. Armanda
que havia morr ido o senhorzinho. Contou que há tempos tinham tido
na casa; um domingo que ela estava de folga, ela entrara no quarto dela e
quem sabe o mesmo, e ela tinha cheirado e sentira aquele mesmo cheiro
especial. Aquela moça tinha ido embora de um dia para o outro, muito
mister iosa, e assim que ela saiu no armar iozinho do banheiro do senhor-
e disse no ouvido de Masdéu: “Será que ele não se mexeu? Olhe os de-
dos das mãos”. Masdéu lhe disse que sempre tinha estado com os dedos
meçou a piscar e Masdéu levantou para ajeitá-lo com as unhas que fica-
impõe respeito”, disse Armanda, “e sabe-se lá até que ponto a gente está
“Que nem geada. A Mar ia também, quando a vesti, parecia geada. O se-
nhor lembra dela, quando tinha oito ou nove anos?” Masdéu disse que
sim e que justamente tivera vontade de desenhar a cabeça dela, mas não
ousara pedir por medo de uma negativa; e como ele era muito sensível,
para não ter de encarar uma negativa não havia pedido. “Tinha os olhos
Masdéu lhe disse se poder ia juntar também um pouco de pão com man-
teiga ou uns docinhos porque não comera nada desde as oito e tinha um
vazio por dentro. “A noite ao lado de um morto é tão comprida que pare-
tremulou pela parede e seguiu-a até a porta. O perfil do morto tinha co-
mo fundo fileiras de livros; a luz das chamas marcava tudo o que o tem-
ção de viver mitigava e que a morte levar ia embora para sempre. Mas-
coroa. Os lábios do morto eram brancos, com a pele cortada por rugas
das penas do coração porque já fazia horas que tinha parado. Atrás da
viam sido tão delicados que não podiam andar muitas horas seguidas
sem que as plantas ficassem assadas... Masdéu olhou para aqueles pés. A
rena, alta, magra. Com o cabelo penteado para trás e recolhido em cima,
intocável, tal como sempre o tivera. Sem permitir que lhe cortassem um
tão exausta.” Masdéu levantou, Sofia pediu que sentasse; e ele, que se
dava conta de bem poucas coisas, percebeu que era uma mulher que vol-
que está de olhos fechados. Tinha um que sempre ficava aberto. Disse à
enfermeira que largasse mão, que já iria fechar sozinho, porque me dava
nho?” “É, do perfil.” Sofia disse que os anos o tinham gasto um pouco,
mas que seu mar ido tivera um perfil extraordinár io. Talvez a única que
tivesse herdado seu perfil fosse... e calou-se secamente. Tinha pego uma
das fitas do buquê de Armanda: “Acho que foi um dos homens mais ele-
vestisse terr ivelmente bem... Mamãe dizia: minha filha casou com um
príncipe”. Sem perceber acar iciava a fita até que a virou de frente e leu
as letras de ouro. Olhou o buquê de rosas que ainda não tinha visto e ex-
sem saber o que dizer. “O que é que esse buquê de rosas de papel está
fia, assim que a viu, gritou com voz ríspida que levasse logo embora
aquelas flores, que ela não quer ia mais vê-las. “As flores! As flores!” Ar-
sentou para olhar o morto. Também comeu e além disso tomou duas xí-
rasse. O morto? Naquela casa é assim que ele estivera desde o primeiro
dia, desde a primeira noite. Uma guerra o seu casamento? Mais bem
uma indiferença. E agora ela estava lá, sentada, e quem estava deitado
era ele e morrera como todo mundo. Cortina. Levantou e sacudiu as mi-
pelos vidros; uma clar idade mortiça que aos poucos iria se converter
num triunfo. Logo dar ia para ler as notas fúnebres nos jornais, logo ser ia
ter ia que falar com a mamãe. Enquanto a clar idade se espalhava pelo
céu, ia sendo invadida por uma paz que ela mesma achava excessiva.
coitado que ela deixara entrar na casa por pura condescendência e por-
So
fia
que Armanda não tirava o olho de cima dela. Afastou a cabeça fazendo
uma careta: “De onde você tirou isso?” E Armanda disse: “Do armár io
pre estava cheio e no dia antes de ele morrer estava vazio...” Sofia devol-
Armanda saiu, e Sofia não sabia por que lhe ficara encravado no
pensamento aquele frasquinho que não tinha nada de particular. Por que
de voz... como se com o tom da voz quisesse obrigá-la a pensar que atrás
tinha cheirado aquele frasquinho? Por que ter ia ficado preocupada? Mas,
Armanda.
em cima da mesinha, sentou do lado dela. Sílvia entrou com uma bacia
mas se viu obrigada a perguntar-lhe como andava sua mãe, que sofria do
coração. “Vive muito assustada... Senhora Farr iols, eu preciso lhe contar
uma coisa; o Marcel está me paquerando. Nos dias em que eu venho ele
me olha e ri...” Sofia, para dizer alguma coisa, falou: “Quem sabe vamos
ter casamento logo”. Consol ficou corada. Tirou-lhe uma mão da água,
enxugou-a e começou a fazer recuar a pele em volta das unhas. “Eu acho
ele simpático, é claro, mas eu vejo que ele gosta de todas e como eu sou
muito ciumenta, para mim ser ia a morte em vida. Não sei por que estou
comentando isso com a senhora, afinal, se ele fica com gracejos, é que
não quer nada mesmo.” Sofia sorr ia forçada, já ia ficando sem vontade
de sor
r ir. Nos funerais, o tabelião Riera a olhara de uma maneira que ela
achou cur iosa... e isso já fazia meses. Tinha manias, via coisas que não
Consol esfregou-a com a ponta da toalha: “Eu nunca tinha visto e é uma
Sofia, quando ficou sozinha, pôs uma perna em cima da outra e ficou
olhando a mancha um bom tempo. Era muito estranho. Quando será que
tinha aparecido? Não devia fazer muito tempo pois ter ia percebido. Pas-
sou a ponta de um dedo por cima. E se ela fosse aumentando? Foi até o
no final da perna. De repente jogou a cabeça para trás e explodiu num ri-
so. Depois de anos, no naco de pele onde Eladi esfregara o rosto na noite
de núpcias, aparecera uma mancha que não lhe agradava nem um pouco.
XXI
So
nhos
rou. Uma pressão em cima dos pés a obrigava a não se mover de um cír-
culo traçado não sabia onde. As ondas de areia acabar iam soterrando-a.
O chei
ro de pólvora a asfixiou antes que os tiros ressoassem e um acesso
celana, mas irreal. Um azul que não vibrava. Céu e areia se misturavam.
d’água à sua frente com seu rosto dentro todo azul. Levantou uma mão:
azul. Ficou com medo de estar azul por dentro. Coração, pulmões, fíga-
do, tudo azul. Levantou a saia: a coxa? Azul. E o sangue? Uma agulha
uma gota de sangue azul. Em que mundo tinha ido parar? Sonhava e so-
nhava que adormecera e que não podia acordar porque o céu e a água
não dormem. Onde estavam o sol e a lua e tudo o que fica em algum lu-
gar e não se vê? Era de dia ou era de noite? E as ondas perto, as ondas...
dava-a tanto azul porque lhe lembrava não sabia o que que a angustiava.
Apare
ceu-lhe junto aos lábios uma flor de cinco pétalas, azul, que tinha
Masdéu jogou o fuzil e lhe disse, com uma voz rouca que parecia a voz
das ondas, e sim em cima de Sant Pere Màrtir maltratados por um vento
de tempestade. Tiveram que deitar no chão para não serem levados pelo
vento. O soldado lhe desabotoou a blusa, vida minha, amor meu... come-
çou a cair em cima deles uma chuva violenta de flores de macieira, não
são de macieira, dizia o soldado, sim, sim... todas. A maçã do início bri-
de outro, como a maçã do leque. De mãos dadas para sempre, oh, sim,
que não acabava nunca até que ela ficou redonda com a maçã dentro, du-
ra, com os caroços de ferro. Um médico lhe abria a barr iga, é a maior
como uma avelã e outra vez para dentro. Com as mãos abria a barr iga e
olhava a maçã para ver o que estava fazendo... até que um velho jogou
enquanto dormia e o velho a amava subindo pelas suas veias, cada veia
cartaz, além da porta estreita o jardim era azul: troncos, galhos e fo-
jardim porque sabia que nunca, nunca mais poder ia sair dali. Uma voz
gritou: cuspa os brilhantes! Cuspiu três vezes. Não cuspa mais, já chega.
“Está com dor, senhora Teresa?” “Estava sonhando; não é nada, estava
que sempre quer que eu lhe conte meus sonhos? O que estava acontecen-
“Estranho. Foi um dos sonhos mais estranhos que eu já tive”. “Me con-
te. Adorar ia ouvir...” A senhora Teresa fez ela ansiar um pouco enquanto
pensava no que iria contar. “Não sei se vou conseguir lembrar... espere...
acho que sim. Eu estava nas trevas à beira de um abismo e do meu lado
o vento gemia: o tempo não existe... o tempo não existe... E eu o tinha
nas mãos, podia fazer dele o que quisesse. Segurava-o entre as mãos e
tempo com voz de trovão e como o tempo não vinha porque estava me-
dindo o peso das coisas que ficam, o vento ia de um lado para o outro
gemen
do a torto e a direito: não existe... não existe...” A senhora Teresa
mordeu um doce sem deixar de olhar para Armanda, que comentou pre-
“Agora é a senhora que tem que me falar do seu sonho”. Armanda disse
com uma certa melancolia: “Sempre sonho a mesma coisa, a senhora sa-
be. Es
sa noite passada também.” “O anjo?” “O anjo”, confirmou Ar-
ma de eu que era eu e que não era bem eu.” “A alma?”, perguntou a se-
A senhora Teresa sabia e Armanda sabia que a senhora Teresa sabia que
o anjo de seus sonhos tinha a cabeça de Eladi Farr iols. “Eu, alma, não ti-
nha seios de tão pequeninos que eram... O anjo, com as penas das asas
um pouco aloiradas nas pontas, tinha uma cabeleira que parecia um pe-
me contado que ele tinha cabeleira”. “Das últimas vezes tinha. E me pe-
gava pela cintura, com um braço só, como um cinto, e com o outro bra-
ter das asas, me deixava segurar; voávamos para além do céu e sentáva-
mos em cima da lua até que o anjo ia embora dizendo para mim que vol-
tar ia. Havia me deitado em cima de uma pilha de poeira de lua dura co-
das outras vezes o sonho terminava quando vocês sentavam.” “Sim, se-
bastante mister ioso que eu sonhe esse sonho tanto e tanto. Agora, cada
como vai ser desta vez?” “Olhe, Armanda, os docinhos que sobraram;
coma-os antes de dormir para que a doçura lhe traga o seu sonho de
amor. Não o deixe morrer, Armanda... não o deixe morrer nunca.”
Terceira Parte
But ti
me past is a ti
me forgotten.
We ex
pect the ri
se of a new constellation.
T.S.Eliot
I
Uma ma
nhã
casa de bonecas; escovou-a com uma escova muito pequena e muito fi-
no escuro. “A senhora não está vendo que pode acabar caindo?” Abriu
as cor
tinas e toda a sala se inundou de sol. A senhora Teresa, com os
olhos meio apertados pela clar idade repentina que lhe fer ia a vista, sor-
riu. “O que é que tem cair? Quando era moça caí muitas vezes.” “Pronto,
já começou”, pensou Armanda, “tão fina que ela era antes.” “Sabe do
que eu gostar ia? De ter vinte anos e dar uma de louca.” Armanda foi até
o lava
bo para buscar tudo o que precisava para lavar a senhora Teresa.
“Não pode sentir frio nos pés”. Quando já estava junto à porta, a senho-
ra Teresa gritou: “Não me traga café com leite; quero chocolate mesmo
escutava alguma coisa que o jardim estava a ponto de lhe dizer num mo-
mento como aquele, que talvez estivera a ponto de lhe dizer desde sem-
ca. Que tinha posto a gravata vermelha para celebrar, apesar de estar
muito triste.” A senhora Teresa enfiou outro naco de pão na boca, tomou
ainda que eu não me queixe nunca, é mais triste do que parece”. Ficou
era moça vendia peixe? E que me apaixonei por um homem que eu não
jardim tinha um verde brilhante. Cada folha fazia parte do grande exérci-
to que as chuvas de outono far iam morrer. Olhou as unhas: judiadas. Iri-
cer como as folhas. Ficou com vontade de chorar. Para que aquela onda
de primavera que entrava com a clar idade e que não lhe servia para na-
da? Armanda, com a bandeja na mão, não sabia como ir embora. “Por
que está me olhando desse jeito?” E com uma voz esganiçada, quase de
Ju
ven
tu
de
Não conseguia dormir. Não sentia dor nenhuma, mas não conseguia dor-
penas cor de sangue. “De tanto arrancar espinhos da coroa de Jesus sa-
forrada de papel de parede. A lâmpada a gás era uma lira. A mesa redon-
colcha de flores, o edredom brilhante cor de palha. Aos pés da cama ha-
via uma cadeira de balanço. Tudo era limpíssimo, arr umado. Na sacada
já fazia anos que tinham um vaso sem nenhuma planta dentro. Um lír io
tinha vivido ali, e o lír io, como nem a mãe nem ela sabiam que uma
planta precisa ser regada, morreu. E ali ficou o vaso com um par de fo-
lhas secas, meio trinchadas, que o vento, quando entrava pela ruela, fa-
zia balançar um pouco.
sabia o que... talvez as plumas do jarro? Talvez fossem as flores que Ar-
para atrair sua atenção: uma sombra daquelas que não assustam, uma
sombra que era ela mesma há anos e anos atrás. Por que viera sem ter si-
moça com um vestido de percal riscado, de gola alta, com mangas com-
como espelhos. Aquela moça que sua mãe, viúva havia anos de um ma-
na ban
ca a Camilla, que ela tinha de pagar, embora fosse amiga de anos.
sar, sem que a mãe, que a vigiava de perto, lhe adivinhasse os pensa-
mentos. Logo começou a bordar bem; com umas mãos bonitas no verão,
das a tirar olhos modorrentos de todo tipo de peixe, aqueles olhos gelati-
nosos que não olhavam, que, fora da água, quando o peixe se debatia pa-
polvos, que grudavam, que lhe sugavam um naco de pele, quase nada,
vam ao cabelo, que grudavam na sua roupa. Daqueles dedos que ela as-
Voltava para casa distraída, olhando o céu, as luminár ias com a chami-
se fosse uma rainha. Bem que gostar ia de ter sido; com um cetro, um
manto azul, toda reluzente de brilhantes e de pedras color idas. Perfuma-
Quem lhe falara de alguma rainha? Não sabia responder mas gostava de
pensar que as rainhas sentavam-se bem alto para que todos pudessem se
apaixo
nar por elas.
olhos, o sangue que sobe até seu rosto.” Tinham se conhecido num final
de outono quando ela ia bordar. Ao pé de uma luminár ia, numa rua soli-
lhe fizera a tia Adela, viu uma foto no chão e se agachou para pegá-la:
calada num banquinho. Teve vontade de rir do ar tão pouco marcial da-
quele rapaz que devia ter tido vontade de parecer imponente e não con-
seguira. Estava olhando a foto absorta quando ouviu uma voz junto dela:
com o blusão azul-escuro comprido até os joelhos, com uma peça pes-
pontada nos ombros, com muito pano enr ugado nas costas, de boina, al-
percatas, com uns olhos que lhe pareceram de lobo, com um broto de
menta na orelha, segurando a vara de acender luminár ias com mais ga-
perder essa foto... mas já que você achou, quer ficar com ela?”
Ela, sem abrir a boca, estendeu-lhe a foto, e ele, sem pegá-la, in-
sistiu: “Se ficar com ela vai me deixar feliz”. De momento não ficou
com a foto, mas ele não a deixou mais em paz. De vez em quando parava
do braço. “Esse fio vai nos unir.” E o enfiou dentro da boina. E ela,
aquela tarde, já não foi bordar um ramo de lír ios que havia começado na
bom tempo. Gostava, oh, como gostava daquele rapaz de dentes brilhan-
tes e brancos, de leite, com um olhar duro e terno que arrebatava o cora-
Viam-se com muita frequência e as coisas que ele lhe dizia faziam-lhe
que lhe disse isso não conseguiu dormir. Ficava ouvindo os bar ulhos da
com uma cara estranha hoje...” Ela riu para disfarçar, mas não conseguiu
evitar que lhe subisse todo o fogo do coração no rosto. Levantou meio
e colocava o avental, o espelho lhe disse que era muito bonita. “Bone-
que lhe dissesse. Uma boneca na vitrine do mundo. Aquela tarde, assim
“Minha quer ida”. O primeiro beijo teve gosto de menta, de vida. En-
um enxoval”, “estamos até aqui de serviço”. Cada vez chegava mais tar-
de. Por último sua mãe nem a ouvia chegar. Tinha de acordar ao raiar do
dia, como Teresa, mas para Teresa tanto fazia dormir ou não. A sua mãe,
lo dia do seu santo, ficou sabendo que Teresa faltava muitas tardes à ses-
são de bordado. Assim como fazia com ela, Teresa dava desculpas a Isa-
bel: “Ontem minha mãe não estava se sentindo bem”, “minha mãe pediu
acompanhava até a casa de Isabel. Não lhe perguntou nunca o que estava
mau galã que cortejava sua filha, vai lá saber como... sem se atrever a
Miquel Masdéu, assim que a viu, pegou-a pelo braço com raiva e sem
amaram-se.
Fazia frio, uma névoa leitosa rodeava as pequenas chamas das luminár i-
dele não podiam ir. Na dela, também não. E como uma salvação Teresa
pensou na tia Adela que morava sozinha. E foi vê-la tremendo. Com pai-
xão e lágrimas contou de seus amores com Masdéu. “Por que vocês não
mesa coberta com uma toalha nítida. Teresa ficou perplexa. É claro, por
que não se casavam? Por que Masdéu nunca lhe dissera que poder iam
sua mãe acha disso?” “A minha mãe”, respondeu Teresa confusa, “não
sabe de nada.” Tia Adela balançou a cabeça, muito triste: “Você está me
Até que uma noite, ao voltar para casa, encontrou a mãe esperando em
pé na sala com a foto de Miquel Masdéu na mão, que estava com a cara
meio borrada de tanto que Teresa a beijara. Eram três horas da manhã.
“Por que você precisa esconder de mim que tem namorado? Já faz tem-
po demais que eu estou tendo paciência! Chega!” Dando voltas e voltas
falou a sér io com Miquel. Ele ficou arrasado. Primeiro achou que não o
entendia direito. Até que se explicou: ele já tinha família. Não, filhos
não. Era casado. Mas a amava, “se soubesse como a amava...” Tentou
beijá-la e Teresa o afastou. “Não quero ver você nunca mais.” Passou a
noite chorando. Ter ia prefer ido morrer. Para sempre. Via-se pelas ruas,
abraçada a Miquel Masdéu, com o céu cor-de-rosa, com o céu azul, com
estrelas, sem estrelas, com asas nos pés, transportada... Nunca mais.
A sua mãe lhe disse que iria ter o bebê na casa da Camilla; já falara com
ela. Teresa propôs: “Por que não na casa da tia Adela?” “E o que a mi-
nha irmã iria dizer? Não quero nem pensar nisso. Já basta ela ter que fi-
dissera: “Enquanto a senhora dormia veio o seu afilhado dizer que o pai
O amor fugiu aos poucos. Nos últimos tempos, Teresa passou todos os
martír ios. A banca de peixe lhe dava repugnância. A mãe, para que a
nhos comentavam. Uma vez, porque Miquel Masdéu quando não estava
os sem saber bem por que lhe dizia isso. Ele riu, coisa rara nele, e a
abraçou. Por que tinha de fazer-se presente, já na sua velhice, aquele na-
se não fosse ela que o tivesse vivido? Miquel Masdéu, com a sua morte,
Ela nunca lhe dissera onde morava nem sabia onde ele morava mas uma
frente à casa dela. Devia tê-la seguido e só de imaginar isso ficou com
vontade de gritar. O que fazia grudado contra o muro, tão imóvel, sem
olhar para cima sabendo como devia saber qual apartamento era o dela?
Concentrado e quieto, pareceu-lhe que todo ele gritava: “Lembre-se de
até a cozinha buscar o ferro quente para passar uma anágua. Pegou a
pinça, revirou as brasas e colocou mais carvão; pôs o ferro frio em cima.
quente e quando foi deixá-lo olhou para fora. Masdéu ainda estava ali.
Não aguentou mais. Iria lhe dizer que fosse embora, por favor, que fosse
patamar, sentiu uma golfada de fel na boca. Saiu para a rua na hora em
que passava uma mulher velha, sem querer lhe deu um empurrão e a
num canto, rente à entrada. Sentia o ar da rua, sentia que do outro lado
Masdéu pensava nela, que pensava sem parar. Com o pensamento perdi-
ças que a encheram de desejo. Voltava longe, fugia para a noite das gies-
tas, para os abraços e os beijos. Com a cabeça para trás, com as mãos se-
da, à escur idão da escada, começou a gemer baixinho, aberta como uma
flor, com o coração batendo forte, com a boca seca... uns passos sobre as
a saia com uma mão, com a outra as costas que a esfacelavam; abriu a
çol velho, o forro que cobria a tábua. Pegou o ferro e colocou-o no chão.
casa em frente, Miquel Masdéu parecia montar guarda. Teresa, uma tar-
de, saiu para não vê-lo, para não pensar nele. Andava depressa, encosta-
da às casas. Ele a devia ter visto sair. Perto do porto aproximou-se dela:
“Não precisa falar nada se não quiser. Mas deixe eu olhar para você.
Ainda que seja a última vez”. Não soube o que dizer. Toda ela tremia.
De repente, Masdéu lhe deu um pacotinho que ela pegou meio a esmo.
Ficara pregada no chão, sem força nas pernas para arrancar o passo. Do
seu lado, para baixo, maior que a sua sombra, estava a sombra de Miquel
Masdéu. Fechou os olhos para não vê-la; ao abri-los, a sombra já não es-
tava mais ali. Caminhou um tempo, outro tempo mais. Cansada, voltou
Isabel e as duas faziam roupinha para o bebê. Teresa não conseguia dar
dentro dela. Quando foi pegar a caixa de fósforos para acender a luminá-
ria, percebeu que trazia o pacotinho que Masdéu lhe dera. Com as mãos
insegu
ras, o coração agitado, arrancou o barbantinho. Embrulhada em
três papéis de seda tinha uma caixinha e dentro da caixinha uma pastilha
riz. Era lilás e tinha cheiro de lilás. Tirou o sabonete da caixinha e quase
lhe escorregou dos dedos; passou-o pelo rosto, pelo pescoço, era doce...
pela testa...
Quando sua mãe lhe disse que já podia preparar a roupa para ir à casa da
era du
ro, era frio, já não tinha cheiro. Ficou com vontade de jogá-lo fora.
No lixo, não. Num lugar que fosse feio, não. Levou-o embrulhado dentro
sua mãe: numa ruela das mais estreitas, encostado à Boquer ia e ao Car-
rer de la Petxina. Assim que ficou sozinha, quando a Camilla saiu para ir
ajudar a mãe dela na banca, pegou um jarro de vidro que estava empoei-
mais tarde, quando já tinha tido o filho e ia voltar para a casa da mãe que
não fa
zia nada de bom, olhou o jarro. O coração de sabonete havia se
Mor
te de Te
re
sa
ela gemeu baixinho. Quando o médico fora visitá-la, ela dissera: “O se-
nhor está muito bonito e sua presença é um bálsamo para mim, mas com
a minha doença, nenhum médico pode fazer nada”. Ele rira e lhe dera
umas quantas batidinhas no rosto e ela lamentou, oh, como lhe doeu não
ter mais o rosto jovem. O médico era filho do doutor Falguera que sem-
pre cuidara dela e só de olhar já adivinhava o que tinha. O filho era sá-
que fizera a grande fama de seu pai, mas, do mesmo jeito que o pai, do-
minava a arte de fazer acreditar que para ele só existia o doente que ti-
nha à sua frente e a sua doença. Ela não tinha nenhuma doença dessas
que podem ser curadas, já lhe dissera isso: “Doutor Falguera, o que eu
tenho é a morte dentro de mim e com essa senhora tão fina não há quem
possa: nem as ervas, nem os minerais, nem o bistur i. Nem todos os seus
estudos. Tinha vontade de virar de posição na cama porque tudo lhe doía
e não conseguiu. Com raiva tentou de novo. Estava martir izada pelas
da de cara para o teto, com as costas fer idas, com a água que lhe saía pe-
ela logo vira que aquele pavio ia queimar mal. Tanto que ela gostava de
Armanda para que a ajudasse a virar de posição se assim que ficasse vi-
rada de um lado já iria querer virar do outro? Sofia propusera que ela
dormisse na sala, numa caminha de armar que de manhã eles guardar i-
am no lavabo, e ela não quis. Tivera uma enfermeira por umas duas se-
manas; logo pediu a Sofia que lhe tirasse a enfermeira da frente. Sempre
lhe perguntava: “Como está passando?” com tanta frieza nos olhos que a
senhora vai poder sair para passear e tomar ar”. Tão tonta tinha nascido
que não percebera que ela era paralítica? Sofia disse então que mandar ia
colocar uma campainha com um cordão e uma pera na ponta que soar ia
mal começava a clarear, Armanda tinha ido colher flores do jardim; fize-
momento pedira para ela levar o buquê embora porque as flores próxi-
que vão fazer as coroas.” “Por que a senhora diz essas coisas? Vai ver
como vai sarar e vamos voltar a vê-la sentada na sua poltrona com todos
sim, ao lado dela, enfiando-lhe a mãozinha por baixo do xale para poder
no tan
que sempre cheio de água que havia no fundo do parque e que só
grande e o rabo pontudo. Não podia mais usar anéis; seus dedos tinham
o anel. Não poder usar mais anéis a deprimiu. Precisava ver coisas boni-
uma flor”, lhe dissera o tabelião Riera numa madrugada em que tinham
se amado muito. Ela olhava, ainda perdida no mundo das carícias, os ca-
como se deixasse cair uma pedra. Enfiou a mão por baixo do lençol e to-
cou a barr iga. De onde tinha aparecido tanta carne inútil? Ela, que tivera
tudo o que era bonito? Fez deslizar a mão e naquele momento sentiu
aquela coisa horrível, aquela falta de ar que a fazia levantar o corpo para
cima, ela que não podia nem se virar na cama. O cheiro de tinta piorava
mais a falta de ar; fazia pouco tempo que haviam pintado todas as saca-
das. E abria a boca e abria a boca e sentia que os olhos lhe fugiam da ca-
beça. O coração disparou, e aquela morte em vida lhe pareceu durar uma
eternidade.
mundo tivesse acabado, disse a si mesma que não passar ia daquela noi-
te. No dia seguinte, o médico a encontrar ia fria e ela não poder ia lhe di-
zer como a cada manhã: “Bom dia, senhor médico” e se ainda estivesse
viva lhe dir ia: “Aqui tem um doente que já entregou os pontos”. E en-
quanto dir ia isso sorr indo mas com a morte na alma, o médico percebe-
ria logo que seu coração padecia porque era mais inteligente do que se
deira. Não atraia tempo ruim.” Quando lhe pegava o braço ficava muito
ela lhe dizia que não havia fugido, que o que fazia era se esconder... e o
pobre Jaume, sempre, antes de sair da sala, punha a mão nas plumas do
olho azul e tomava o vinho bem de pouquinho para poder ficar mais
tempo na sala com ela e a Miquela. E ela, que já não saía mais da sala,
quando fazia dois anos que o coitadinho do Jaume havia morr ido, pediu
a Armanda que a levasse até perto do tanque, lá, para ver onde tinha se
afogado, e era triste, oh!, como era triste aquele canto com as árvores tão
altas e a água tão verde e as heras verdes e tudo tão tenebroso. Quis ir
embora logo, mas uma roda da cadeira ficou atolada no barro, e Arman-
puxar de lado um galho que parecia uma forquilha e que lhes barrava o
meio apagado ou se aquela escur idão que a cercava era culpa dos olhos
que já iam ficando embaçados. E na noite do dia em que se fez levar até
o fundo do parque não parava de pensar naquele galho tão estranho que
mance e de chamas nem azuis nem vermelhas mas cor de laranja línguas
uma gota de água que vai abrindo um buraco, abrindo um buraco... Fe-
chou os olhos e viu a pérola da gravata. Irisada e grande. Via-a presa nu-
aponta
va para eles, “fui eu que coloquei porque era um desejo dele de
ta do morto. Bonita demais para ir parar num cemitér io. Tinha-a gruda-
contrá-la. Nunca mais. Aquela pérola tinha sido ostentada por dois ho-
Uma pérola cinza-rosa-e-azul que parecia uma coisa viva e que ela tirava
Tentou mover o outro braço, mas lhe faltou força para enfiá-lo dentro da
cama. Ter ia gostado de poder colocar a mão na barr iga que ficara grande
comédia durou anos, “me deixa”. Armanda sabia que a senhora Teresa
nholes que eram feitas no forno; comia seis de uma tacada. E os bom-
bons de licor. Ficava enternecida com os doces secos com formato de la-
não são de coco, senhora Teresa; são de gema de ovo”. E ela a deixava
falar porque tanto fazia o que pensasse a Armanda, mas eram de coco. E
os doces grandes... apesar da dor que lhe queimava a pele das costas, fi-
envelhecia, mas de uma maneira diferente. Como nas múmias, a pele de-
lia a pena? Suspirou. O velho Rovira se apaixonara por uma moça vesti-
com aquela amiga tão amiga que não conseguia mais lembrar como se
chamava. Até que um dia passou sozinha. Ele a seguiu e falou com ela e
amor que sentira por Valldaura se esgotara e ainda não sabia explicar por
quê. Masdéu tinha sido a ilusão de uma loucura vivida por ruas desertas
céu que morre e o céu que nasce têm a mesma cor. Deu um grito. A dor
terrível voltava e voltava a falta de ar que lhe fazia abrir a boca para pro-
curar um fio de ar que a duras penas lhe chegava até os pulmões. Toda a
sua pe
le era de fogo e todo o seu inter ior, um inferno. Foi então que se
tempo de pensar que já fazia anos que a perdoara; para se fazer entender
lhe enviara a morte nas pernas: “Eu me lembro de você”. Gostar ia de ter
tido o leque e colocá-lo diante do rosto para que as paredes não a vissem
Os quar
tos fe
cha
dos
Sofia Valldaura de Farr iols tinha vontade de tirar o luto. Vestira-o dois
anos pelo seu pai, dois anos por Jaume, dois pela Mar ia, dois por Eladi
e, fazia poucos meses, pela sua mãe. O luto, que a favorecera tanto, ago-
ra a deixava mais velha. Mas era por alguma coisa mais profunda que
lembrança que sua mãe lhe deixara. Via-a com o rosto bonito, com
aquele ar de se sentir feliz no meio da vida ainda que a vida não tivesse
sido sempre dourada. No final das contas, pensava, se sou poderosa, de-
vo isso a Teresa Goday. A morte a fez perceber que sua mãe tinha sido
músculos, os nervos reclamavam não sabia o que, algo que fosse mais:
como a terra, como o mar. Reconciliava-se com a sua casa que achava
feia e velha; com lembranças demais, com quartos onde havia deixado
retomar as velhas amizades. Iria até Par is ver a madrinha Eulàlia e o pa-
cia de uma maneira escandalosa. Quando era pequena, uma noite que a
sua mãe subira para lhe dar um beijo antes de sair ela o tinha arrancado
de um puxão e quebrara o fecho. “Por que você estragou meu colar? Por
quê?” Sua mãe, com o colar na mão, fechara a porta depois de apagar a
luz. Sozinha na cama pensava que a sua mãe, vestida de uma seda tão
boa que fazia bar ulho, tivera que deixar em casa o colar de água e de fo-
go que a ofuscava.
sala da sua mãe. “Me chamou, senhor ita?” Armanda tinha ficado gorda,
ingênua, toda ela respirava bondade: devia ter sido contaminada pela sua
chaves de debaixo do avental e lhe deu. Em cada chave tinha uma eti-
Meio a esmo abriu o armár io japonês; numa prateleira havia uma taça
rosa com o pedestal verde. Lembrava que antes havia muitas como aque-
la e um jarro do mesmo jogo. Não sabia que ainda tivesse uma inteira.
De maneira vaga sentia que lá dentro havia alguma coisa mudada, mas
não conseguia adivinhar o que era. Até que viu a capa da poltrona. En-
quanto sua mãe era viva jamais a tinham colocado. Saiu na ponta dos
era comovedor. Sofia sabia que toda sexta-feira ela acendia uma vela di-
ante da foto dos seus pais, que tinha em cima do gaveteiro do quarto... E
aconteceu uma coisa estranha. Não se movia nem uma folha, mas do la-
mexeu. Sofia esfregou os olhos. Não era possível. No meio das costas
virar. Atrás dela não havia ninguém mas sentiu uma presença. Iria des-
nha casa.”
mal-es
tar. Pôs um pé para fora da banheira e na mesma hora entrou a
lhe disse com uma vozinha de gato mimado que o senhor Fontanills aca-
vez de ir quando os dentes não lhe doíam esperasse para ir quando não a
um pe
sadelo. Entrou na biblioteca bem-vestida, perfumada. O senhor
poltrona em que estava sentado. Fez menção de levantar mas Sofia im-
pediu-o com um gesto. Sabia que sofria de dores e que lhe atacavam os
mais pegajosa. Sentou-se diante dele sem saber muito bem o que fazer
com a mão que havia tocado a mão do senhor Fontanills, que, como
sempre, pôs-se a falar do tempo, do calor que o abatia tanto... ele prefe-
ria mil vezes o inverno. “Os primeiros dias frios me revigoram. E no Na-
tal, quando o ar é fino e corta, a senhora não vai acreditar, mas eu reju-
venesço.” Sofia não sabia para onde olhar porque aquela histór ia era a
mesma de sempre. “De tarde, do meu escritór io, assim que tenho um
momento de descanso e se não tiver eu arr umo, olho para a luz divina
final vinha aquele “Ao que interessa!” tão enérgico. Então pegava a pasta
mais tapar as goteiras; para nós está virando um poço de enterrar dinhei-
ro. Tem que mandar fazer um terraço novo. As casas morrem pelo terra-
ço.” E continuou praticamente sem tomar fôlego. “Todo o encanamento,
todas as calhas que passam pela área descoberta da casa da Porta Ferr is-
sa têm de ser trocados. O pedreiro já falou que não dá mais para conser-
uma fraqueza pela senhora Munda que morava no quarto andar e que es-
tava muito velha. Prometera-lhe que far ia o impossível para que a pro-
foi gastando e pode-se dizer que praticamente não sobrou nada dele...”
de papéis presos por um clipe: “Estão aqui!” Como Sofia tinha o senhor
uma olhada rápida e sem saber o que estava escrito devolveu-os. “Man-
de fazer logo os reparos.” “Se é que vai dar tempo”, resmungou o senhor
tempo?” “Veja bem, acontece que tem uns quantos generais que acaba-
ram de se insurgir na África e está todo mundo dizendo que vai ter con-
fusão.” Sofia sorr iu e disse que as pessoas eram alarmistas e que aqueles
generais acabar iam celebrando num banquete a sorte que tinham de te-
rem si
do nomeados generais. “Além disso”, acrescentou, “não tenho o
Volte lo
go, se
nho
ri
ta So
fia
ante dela. Não ficara mais ninguém trabalhando na casa: só elas duas. A
cozinheira fora a primeira a sair. Depois foi Marcel. Havia deixado a se-
nhor ita sem dizer para onde ia nem o que pensava fazer. As outras em-
tempo: para doar sangue nos hospitais. A bolsinha que Miquela costura-
va atentamente, com a ponta da língua entre os lábios, era para pôr den-
estojos. Abriu um muito grande e muito plano. Nunca tinha visto aquele
adereço de diamantes. Devia ter sido usado por alguma Valldaura morta
ta Sofia. Bem repartidas. No dia anter ior, Sofia saíra muito cedo e volta-
agora ele é um dos encarregados dos passaportes. Ajeitou tudo para que
eu pudesse sair. Virá nos buscar à meia-noite. Em troca do favor vai ficar
abriu-se com Armanda: “Todo mundo vai perceber que a gente está le-
vando joias escondido e vão nos matar antes de a gente chegar em An-
dorra. Vão pôr um tronco atravessado no meio da estrada, vão fazer a
a mão pelo veludo gasto de um estojo, “está achando que eu não corro
per igo? Os da revolução ficam com os palacetes que mais lhes agradam;
hoje um, amanhã outro... isso o senhor Fontanills falou bem claro.” “Es-
te pala
cete, pode ficar tranquila que eles não vão pegar. Iriam fazer o que
com ele?” “Iriam fazer o quê? Botar outras pessoas dentro. Mas eu não
uso brilhantes, tanto faz. Deus vai me ajudar. Deus, que me fez baixinha
para que pudesse alcançar bem os fogões. E gorda, não pelo que comi
petacular dos frangos, o sangue dos pombinhos e dos coelhos que trazi-
bavam. Brilhante.
como uma lava lenta, o sangue que era a vida, o sangue escondido. En-
quanto trinchava cebolas para fazer sopa, Armanda não parava de pensar
olhos dela chorar; não enxergava. Talvez os olhos lhe ardessem tanto por
ter passado a noite em claro. Cansada de ficar acordada tinha ido até a
sala de passar e revirado armár ios. Tirou o dominó roxo da caixa grande.
rita Sofia atrás dela. “No que está pensando que não me ouve? Chegue
“Aqui tem cinquenta mil pesetas. Suponho que antes que acabem eu já
quando tivermos saído, quero que tome uma garrafa de champanhe. De-
seje-me sorte.”
Com as mãos segurando os seios e com a boca aberta, passava por baixo
suas economias. A casa era como se fosse dela. A senhora Teresa pusera
morrer. E, até a sua morte, meus herdeiros lhe pagarão salár io”. Quando
que a conhecia fazia anos, talvez pensasse que as tinha roubado. Não!
Não iria pôr o dinheiro na poupança. Iria enterrá-lo. Iria economizar pa-
ra que lhe sobrasse bastante. Ia sendo invadida por uma alegria intensa.
diante de algum espelho virava a cabeça para não se ver. “Dentro do es-
joias, Marcel com um lenço vermelho no pescoço, ela gritara bem forte:
andar até o vestíbulo desceu a escada com o espelho apontado para trás:
cobria os degraus; tudo vivo, desfocado, até que chegou ao último de-
grau, tropeçou e caiu, tão alta como era, embrulhada em drapeados vio-
uns quantos haviam saltado fora. Ela os catava e tentava colocá-los nos
ganhava vida ali dentro com todas as cores, com toda a força. A casa, o
dos, os decotes com as cabeças dentro rindo ou tristes, os colar inhos en-
andando sobre tapetes ou pela areia do jardim. Uma orgia de tempo pas-
nada com o espelho na mão. Ouviu tiros. Como toda noite. Tinha chega-
era dela. Todinha. De cima a baixo. Pôs a toalha boa. Pegou uma taça de
cristal cinzelado com o pedestal alto e fino: uma tulipa. Dever ia ter
de fogo. Com uma mão segurou-a pelo gargalo e com a outra começou a
panhe do que do vinho porque pinicava e porque lhe subia logo à cabe-
Com a taça levantada deu uns quantos gritos de prazer como aqueles
gritos de amor antigos que davam os pavões. Os gritos que lhe saíam da
gargan
ta pareciam-lhe não ser seus. Os faisões, que dourados... Verme-
aquela voz que enchia a sala... Esfregou os olhos com a mão que tinha li-
prido e estreito com uma aresta enterrada num outro pedaço como um
punhal, havia uma mãozinha de caveira. Uma porção de ossos bem jun-
tos, magros e pálidos. Não era uma mão de criança. Era de adulto e fica-
ra pequena para poder repousar em cima daquele pouquinho de espelho.
Bebeu mais champanhe sem deixar de olhar para aqueles ossos que não
lo.
olhar a mão tinha ido embora, mas à sua frente, sentados cada um no
seu assento, três esqueletos riam com a mandíbula para cima e para bai-
xo; olhava-os com os olhos que lhe doíam de tão redondos que os abria.
De on
de vinham aqueles ossos tão bem acoplados, sem carne nem pele
para cobri-los? Na testa de cada uma das caveiras iam se formando le-
tras; não conseguia ler o que diziam mas enquanto as olhava ilumina-
ram-se de uma cor esverdeada muito tênue, como se cada caveira tivesse
uma lampadinha atrás do osso da testa. A primeira testa à sua direita tra-
que o “ra” não cabia. Tinha todos os três ali, à sua frente; e, na cabeceira
vestido branco, com os braços feitos de panos, com uma borboleta preta
medo que não era bem medo. Dentro da taça, nadando pelo líquido dou-
cador e o polegar, não quer ia que se afogasse, mas quando foi deixá-lo
em cima da mesa entre os dedos não tinha mais nada. A menina ficara
Tinha a barr iga aberta. Armanda esvaziou a taça e voltou a enchê-la sem
deixar de olhar aquela barr iga. Segurando a taça com as duas mãos deu
a volta na mesa para poder ver as caveiras de costas. Não estavam mais
lá. Tocou no encosto de cada cadeira. Chegou perto da sua, sentou e vol-
tou a ter as caveiras na sua frente. Riam. As mandíbulas, xec, xec, xec...
Encheu a taça pela última vez e jogou fora a garrafa. Bebeu com calma e
de perder os sentidos saiu-lhe uma voz de dentro, passou pelos seus lábi-
do tempo.
VI
O pa
la
ce
te
rio do senhorzinho Eladi. Iria dormir ali. Não se cansar ia tanto subindo
vam muito bem para um ano. Três caixas de potes de leite e seis litros de
Não iria dar conta de acabar com aquilo nunca. Tinha enchido caixas de
uma dentro do carr inho de jardineiro que estava arr iado perto da casinha
com roupa suja e colchões velhos. As joias que tinham ficado dentro do
cofrinho enterrou-as logo junto à gaiola dos pássaros: pisou bem na ter-
ra, colocou uma pedra grande em cima e cobriu tudo com folhas secas.
quando ainda era vistosa. Dormir ia na cama onde ele dormira, lembrar ia
dele até a hora da morte. O sol se punha quieto, como se a vida fosse a
Ficou com vontade de passear por baixo daquelas árvores tão suas, tão
que é que Armanda está fazendo enfiada lá dentro?” Parou para olhar as
cores dos troncos, arrancava hastes de grama, colhia folhas... as flores ti-
coroa. Umas ervas vaporosas davam florzinhas azuis. Enfiou umas quan-
tas florzinhas por entre as folhas da coroa de hera e foi para perto da ca-
am à noite?
Mastigava lentamente. Tomou o café com leite com goles pequenos. La-
andar para procurar algumas coisas que ainda tinha no quarto antigo. Te-
bulo. Não tinha eletricidade. Tateando voltou para a cozinha; tirou uma
vela da gaveta da mesa e acendeu. A vela apagou assim que saiu da cozi-
apagou outra vez quando ela saiu da cozinha. Então, depois de acendê-la
uma terceira vez enfiou a caixa de fósforos no bolso e a vela não apagou
de que rodava de tão imóvel que estava olhando para tudo. Uma voz per-
aquela voz tão tênue que a fazia sonhar. Chegavam-lhe ondas de ar, on-
das de clar idade da lua, ondas de fogo de estrela; cada estrela, a casa de
um an
jo. Além do mar, de cada casa, brilhante, saía um anjo vermelho,
uma tropa de anjos descia para cumprimentá-la e vinham anjos de todas
broto de salsinha. Ria... ria... ria... tomada por uma rede de doçura infi-
nita. Os anjos não tinham rosto, não tinham pés, não tinham corpo.
Eram asas com uma alma vaporosa como uma neblina em meio a tantas
plumas de amor.
Foi acordada pelo bar ulho de uma freada. Começava a clarear. Uma
dos à mesa tomando o leite dela. A tranca da sacada tinha sido arreben-
tada.
muito feio, já velho, com os olhos cor de caramelo, chegou perto dela e
lhe perguntou de onde tinha saído. “Eu tomo conta da casa.” “E os seus
patrões onde estão?” Disse que todos tinham morr ido; que a senhor ita, a
única que restava, tinha ido para a França. Um dos rapazes que estavam
em quando, que era melhor mesmo que a patroa não estivesse porque, se
não, ter ia pagado caro. Eles tinham tomado posse do palacete por ordem
do comitê e aquele palacete não ter ia nunca mais dono. Tudo era de to-
dos. E que do bosque que havia atrás iriam fazer um jardim público para
de escritór io, armár ios e arquivos. Depois, enfiando-os nuns cestos, le-
varam metade dos livros para o porão. Não quer iam queimá-los porque
os res
peitavam, mas estavam atrapalhando. Carregaram alguns móveis
mione
ta. E descarregaram mais mesas e mais arquivos. Ela se trancara
Não parava de dar ordens a torto e a direito. Desceu meio escondida de-
da!” Entraram e ele logo lhe perguntou o que fazia ali... Achava que o
palacete estava abandonado. Ela, chorando, disse que ela estava lá to-
mando conta. Masdéu desatou a rir como ela nunca o ouvira rir. “A casa
de quem?” Mas a viu tão desconsolada que lhe disse: “Se precisar de al-
guma coisa, peça...” Ela pediu, por car idade pelos mortos, que não to-
cassem nada da sala da senhora Teresa nem do dormitór io que tinha sido
de Mar ia... Masdéu, sem responder, chamou dois homens e lhes disse:
“Os quartos que a minha irmã disser que não pode mexer, ninguém me-
quer ia ficar no palacete ou se quer ia que ele lhe arr umasse um aparta-
mento. Ela respondeu que quer ia que lhe arr umasse um apartamento.
lacete, apartamento que depois da guerra passar ia a ser seu. Era numa
rua estreita, cheia de casais à noite, que se amavam; parecia mentira que
tragédia. Assim que a guerra acabou foi ver o palacete. Encontrou o por-
tão meio encostado. Depois de uns dois ou três meses voltou a morar lá,
com aqueles quartos tão grandes sem móvel nenhum, com os seus pas-
Um dia fez uuuuuuu e a sua voz retornou por todas as portas. Virou-se
em pâ
nico e correu para cima; trancou-se à chave no quarto que tinha si-
aparta
mento e pagava o aluguel, mas dormia no palacete como se fosse
uma obrigação. Não podia largá-lo. Até que casou. Mais para ter uma
companhia do que para casar mesmo. Casou com aquele miliciano já ve-
lho que tinha os olhos cor de caramelo e que perguntara de onde ela ti-
nha saído. Tinham se encontrado um dia na rua e ele logo a reconhecera.
O tabelião, mui
to ve
lho, sai pa
ra pas
se
ar
Tinha dormido toda a santa tarde e quando acordou ainda ficou um bom
tões; pôs a camisa e pelejou ainda mais para abotoá-la. Já fazia bem
umas duas semanas que dissera a Sabina, que quanto mais velha ficava
menos entendia das coisas, que lhe diminuísse as casas, porque as cami-
po sem saber o que tinha de fazer e por último tirou a gabardina do cabi-
frio que sentia nas costas vinha de ter dormido com tanto gosto a ponto
de no final ter babado e tudo. Passou uma mão por cima da aba do cha-
tinha certeza de que deixara de fazer alguma coisa que tinha de fazer an-
sim... e correu para o escritór io. A mesa, as estantes, a poltrona... tão di-
mais exercer por causa da idade. Agora ninguém mais precisava dele.
Sentir-se inútil o corroía e não sabia o que fazer de seus dias todos tão
rejeiras; a sua, com os galhos flor idos que cresciam para cima e podiam
ser vistos desde a cama, morrera no mesmo ano em que deixara o apar-
ra cima e para baixo da rua e matutou outra vez. Sim, ele iria. Fazia anos
que não chegava perto. Ser ia uma espécie de romar ia, um tributo à lem-
brança. Aquele desejo de ir ver o palacete dos Valldaura tinha sido des-
pertado por uma carta de Sofia que recebera de manhã. Tivera de ler o
nome umas duas ou três vezes, porque a primeira coisa que tinha visto
que se tratava de Sofia Farr iols, a filha de Teresa. Mas ficara desor ienta-
nills haviam zelado pelos seus interesses... O velho Fontanills, que era
sens, filha do Recasens banqueiro, que fora noiva um par de anos do fi-
lho do tabelião Esteve e nunca se soube por que tinham rompido. De re-
to aquilo que fazia sempre antes de sair de casa. Enfiou dois dedos no
bolso do colete; encontrou a chave da gaveta da sua mesa... sim, ele ti-
nha fechado. Com certeza? Ainda não fazia cinco minutos... era lá que
escondia um remédio que não quer ia de jeito nenhum que Sabina encon-
Voltou atrás irr itado, subiu, abriu, entrou no escritór io, e sim, a gaveta
que ia fazendo. Ganhar ia tempo. Para ficar mais tranquilo, pôs o papelzi-
nho. Havia tempo pegara a cisma de que alguém, quando ele saía, abria
nho de seda para cigarro: arrancava uma folhinha, cortava uma tir inha e
a enfia
va na fresta entre a parte de cima da gaveta e a parte de baixo do
E assim saber ia se alguém a tinha aberto. Ser ia muito difícil que aquele
lizado, saiu de novo e subiu pelas ruas, sim, o jovem Recasens, não, a
que ele o fizesse... Alguma coisa devia ter-lhe chegado aos ouvidos... E a
fortuna ficara com Sofia... pobre Teresa... E pensar que ele, o melhor dos
amigos, havia traído um amigo... Uma vez, Teresa, coisa que nunca fa-
briu a boca com a mão... É complicada, a vida. Muito. Demais. Por aca-
não havia mais rivalidade nem necessidade de se fazer prefer ir? Mas ele
pensava que por ela tinha perdido o respeito que sempre inspirara a si
beça e o olhava com aqueles olhos de água inocente e negra, ficava per-
dido. Vivia num outro mundo. Num céu. Toda a sua vida ficava apagada,
morta. Quantos caminhos de amor não tinham percorr ido juntos? A boca
baixo das cobertas e o mordia sem machucar como uma cabritinha re-
vez so
bre o Esteve jovem, que a plantara para casar com aquela santa
comprido; talvez por isso o vento o incomodasse quando era jovem: por-
chapéu porque o vento vinha de alguma montanha com neve e onde sen-
tia mais frio era na cabeça. Estava contente de poder respirar: isso sim é
que era importante. Poder respirar. Não quer ia mais nada. Alguns anos
dia mais; depois que ela o chamara para que lhe fizesse o testamento em
favor da menina que caíra do telhado, tinha ido lá com uma certa
frequência... De repente deixara de ir. Não por falta de vontade mas por-
que não podia aguentar vê-la sempre sentada e com aquela mania de fa-
leu a nota fúnebre. Dias e dias sentiu-se enlutado por dentro de tanto
o fazia apertar os dentes e lhe enchia a testa de gotas de suor. Uma ma-
brar se o tinha usado. Passaram duas moças ao lado dele. Afastou-se pa-
o que lhe pesava muito dentro; como se a vida tivesse se acumulado bem
no meio dele mesmo e o fizesse perceber que era tão inútil como os na-
cos de unha que ele cortava. Fazia isso em cima de uma folha de jornal
para não espalhar sujeira, depois fazia um pacotinho e jogava fora. Mor-
conseguia aguentar isso muito tempo. Precisava fazer tudo devagar, me-
ditando muito por culpa da memór ia. É claro que era de boa cepa e tinha
muito jovem que adorar ia chegar à sua idade forte como ele. Nunca ti-
nha ido a um médico. Não sabia o que era ficar doente. Quando já fazia
tempo que o único mal que tinha começava a incomodá-lo, foi procurar
mada. Depois, como não sarava de todo, pensou que talvez tivesse uma
fístula e ficou preocupado porque ouvira dizer que as fístulas têm de ser
queimadas com nitrato de prata e era muito sofrido... mas não, não era
Entrou no bairro do palacete. Tudo estava como antes, como anos atrás;
tudo cheio de jardins. Naquele bairro haviam construído pouco, ainda ti-
nha cheiro de árvores. Parou; não como o amante que havia sido mas co-
mo um romeiro. Parou diante da casa e olhava aquele portão tão senhor i-
al com a campainha que era uma cabeça de leão. Uma cabeça de leão ou
que ele não sabia era se Fontanills lhe havia feito chegar o dinheiro.
dia an
tes de tão natural, que casara com um industrial francês, que ficara
viúva fazia pouco e que herdara do mar ido uma fortuna considerável.
Dizia que vir ia a Barcelona logo, por pouco tempo, e que já havia dado
tirado de casa aquela tarde porque quer ia ver, talvez pela última vez,
que o fizera sonhar tanto. Parou do outro lado da rua, embaixo de um tu-
fo de hera que com os anos ficara espesso, para poder contemplá-lo. Ou-
Sorte que a rua era escura e que a hera o cobria um pouco. Uma
mulher gorda que subia devagar parou diante do portão, ficou um tempo
dim. Em seguida se agachou e ele pôde adivinhar que aquilo que ela
quer ia jogar dentro tinha caído fora. A mulher voltou a levantar o braço,
ficou quieta de novo e foi embora. Não em frente, mas voltando, por on-
lacete com aquele clarão meio branco meio verde, e ele, com os olhos
uma sombra escura e demorou um tempo para adivinhar que era um ar-
busto. Atravessou a rua e plantado junto à portinha olhou por uma fresta
lhe pareceu que o jardim estava coberto de mato alto e de arbustos como
o que nascera no telhado. Moveu a cabeça rápido porque alguma coisa
lhe esfregara o rosto muito de leve; passou a mão... não era nada. Talvez
do pensamento, não sabia muito bem o que ia pensar a respeito das cri-
anças. Não lembrava quem lhe contara que Eladi Farr iols, quando seu fi-
lho fugiu de casa, tinha ficado meio morto... E coisas da vida... Quando
a Mar ina casou, a afilhada da sua irmã Mar ina, na saída da igreja aproxi-
mou-se dele um jovem que parecia um velho: meio careca, com os lados
dos olhos cheios de rugas, e lhe disse com muito respeito: “Como está,
ver o casamento da afilhada da Mar ina, ainda que fosse de um dos últi-
mos bancos da igreja, porque quando era pequena lhe abrira a porta do
aparta
mento numa manhã em que ele não sabia para onde ir... Aquele jo-
vem se despediu e ele ainda teve tempo de pegá-lo pelo braço e pergun-
tar-lhe quem era, porque, disse-lhe rindo, não se lembrava dele. “Sou o
neto de Teresa Valldaura, o Ramon... o filho mais velho de Teresa Farr i-
ols.” Ficou perplexo. Ele que o vira de pequeno correndo pelo jardim co-
queno Jaume que não conseguia correr como eles... Olhou-o atentamen-
Pensou naquilo que ela lhe dissera das pernas. Talvez seu desamor feito
de egoísmo a tivesse... devia ser uma histór ia que ela inventara para dei-
clar idade daquela lua que nunca mais iria ver sobre o jardim abandona-
do, que com ele ela fora nobre; muito nobre. Era uma mulher que valia
ma, porque as hemorroidas são uma coisa ruim; e viu-se alto e jovem fa-
zendo amor com aquela mulher que parecia a rainha de todas as rainhas.
De fogo e de seda. Pensou que ter ia de voltar a fazer regime; peixe e ver-
duras se quer ia que as veias inchadas regredissem. Lera que elas podiam
ficar grandes como uma laranja e se crescessem tanto assim não haver ia
pomada que curasse nem todos os santos do céu... Cenoura fervida, pes-
cada fervida, tomates temperados para refrescar, descascados e sem se-
onde saiu essa ratazana? Deu um tapa no ar para assustá-la mas ela nem
so aquela rua antes estava cheia; mas tinha sido asfaltada. Poder ia arran-
car um galho de hera e dar-lhe uma boa chicotada. Tinha nojo de três ti-
roíam sem parar mesmo que não tivessem fome. Antes de se decidir a
pegar um galho olhou para o muro, a ratazana tinha sumido. Gritou: ra-
tão! E nada. Então passou a ponta dos dedos por cima da campainha: era
Os homens da trans
por
ta
do
ra
havia uma portinha; a campainha era uma cabeça de leão. O portão, am-
plo, tinha a chapa de ferro na parte de baixo toda comida de ferr ugem.
empur
rar e por último o Quim, o mais moço, magro como um aspargo,
foi afastando a areia. Logo atrás do portão, no chão, havia muitos rami-
altura de três andares. Duas torr inhas com ameias e muitas chaminés da-
lhas das árvores e pelo chão havia castanhas silvestres. Um dos casta-
de entrar na casa, deram a volta nela. Atrás estendia-se uma grande es-
tronco principal, rachado, era rodeado de galhos mais altos do que ele.
Anselm ficou plantado diante de uma lápide coberta de limo; aquela lá-
pide iria servir para o seu quintal. Ao pé do tanque de lavar, quando cho-
via acumulava-se água. A sua mulher para não molhar os pés pusera
uma tábua de madeira. Quim disse: “Estou vendo umas letras”. Tirou o
numa sala muito grande. Pelos janelões, através dos vidros sujos, via-se
meio quebrado com uns soldados esquisitos nas portas. Num canto, uma
poucas cadeiras que se viam eram cadeiras de salão com o forro num es-
ram para olhar. Quim se agachou e pegou três fotos. Tirou o grosso da
uma menina. A menina era muito bonita. O menor dos meninos segura-
va, como se levasse uma bandeja, uma madeira com um pau espetado no
foto era de uma senhora de grande beleza. Decotada, os braços nus, com
era importante e tinha uma mão sobre o peito. “Antes de começar”, disse
O fan
tas
ma de Ma
ria
Não levem embora essa pedra... não levem embora essa pedra... Oh, ir-
vessou de lado a lado e saiu pelas minhas costas. Casada com o loureiro.
lavava o sangue, ainda era uma menina. Não levem embora essa pedra
que sou eu não levem embora nada do que era a minha vida... Oh, meu
está me entendendo? Eu sou desta casa e tudo é meu... vós que sois ve-
lho e sabeis mais das coisas... não levai embora essa minha pedra... brin-
cava de assustar os ratos, emaranhava os brotos das heras que não sabi-
am para que lado ir, fazia cair as folhas das rosas e apertava os brotos
para que apodrecessem antes de poder abrir. Sabia a clar idade das noites
de verão até agora... vinha dançar em cima dessa pedra, em cima das le-
tras que não são nada que não são eu mas que enfileiradas me chamam.
Deixava-me cair pelo para-raios, ficava grudada nas paredes... fazia cas-
telos com a névoa, abria as torneiras e uma vez levei embora a tampa da
lhas... e a avó Teresa... de onde sai essa pena tão grande que sem olhos e
sem lá
grimas me dá vontade de chorar? Ele tinha ido até o portão e vol-
não era uma sombra, podia chamá-lo, esperei-o... não toquem nesta pe-
des. Em cima do telhado... oh, irmão meu... Tudo o que é bonito eu vou
dar a você Mar ia. E o papai ficou doente e me dizia filhinha minha e as
lho e eu, me via branca e o ser ia até a hora da morte... não vá escorregar,
você poder ia cair e a morte iria pegá-la e levá-la para o reino secreto on-
Larguem tudo o que foi meu; enquanto tudo estiver como estava eu não
estarei bem morta. O que me leva a andar de um lado para o outro? As-
no alto das folhas e uma pena voando... vocês que estão indo e vindo ou-
Eles me ouvem. Se pudesse fazê-los entender que não vou lhes fazer ne-
não conseguem entender que ainda que esteja apenas meio morta volta
toda a dor? Volta o sangue para a barr iga as folhas choram, não estão
ouvindo? Choram por mim que sou uma névoa. Aqueles que se matam
vivem ao lado das coisas que tinham sido deles uma morte lenta... Olhá-
vamos o livro das borboletas juntos bem juntos irmão meu... juntos... ca-
letas, pretas e laranja, com a barr iga coberta de penugem. Se vocês leva-
me sugar com suas bocas sem lábios. Vão me levar com eles para debai-
xo da terra onde não há nem árvores nem vento nem folhas nem flores.
Faz anos que me esperam ouço-os... a mim, que não tenho ossos que sou
um suspiro que não chego a ser nem a pluma que vou assoprar para as-
sem memór ia... A lua que me olha sabe como sou e como era. Vão em-
Alguém chora por mim Mar ia, o que você fez Mar ia? Não tenho pala-
vras, não posso dizer o que acontece comigo, as minhas palavras não es-
tão em lugar nenhum. Vou roçar seu rosto e você vai pensar que uma
aranha encostou em você mas se eu roçar seu rosto uma vez, e outra, vo-
cê vai ficar com medo... vou fazer você sentir que alguém o toca você vai
se girar ficar olhando olhando e não vai ver ninguém. Vou assustar você
e quer ia que você gostasse de mim... fiquei sozinha com o que era meu:
quem amarrou a tecla? Que susto a cornetinha de feira que susto e sozi-
va vai entrar você vai quebrar tudo cavalinho de papelão e piões de fai-
saí para o jardim e plantada em frente ao portão esperava por você que-
ria ser você sentir o que você sentia quando sozinho para sempre... can-
rido meu até a morte espetada num espinho como uma folha...
X
Sofia e os ho
mens da trans
por
ta
do
ra
Ia pelo caminho dos castanheiros, fur iosa. Onde já se viu? Logo pergun-
a casa e levar tudo para o guarda-móveis. Sofia disse que não estava dis-
posta a pagar aluguel por uns móveis que não eram dela e ainda menos a
pagar seu transporte. Assim que entrou na sala que tinha sido da sua
a dizer àquela senhora de voz tão rouca que ele poder ia aproveitar todos
disse que já haviam carregado dois caminhões com móveis que estavam
espalhados pelos andares, que ainda havia móveis e que ter iam de des-
montá-los à luz de velas. Sofia deu um berro. Uma ratazana grande co-
Quim disse que a casa estava cheia de ratos. Que perto da fonte com a
taça grande no meio tinha desmanchado um ninho feito com panos ve-
tes. Não tivera outro remédio a não ser começar a rir da valentia do rato.
“Mas o rato não é nada... o rato é perfumar ia, o que dá medo é o fantas-
ma.” “Olhe”, disse o outro rapaz, “quando a gente foi tirar os móveis de
um dormitór io branco, uma caixinha de cima do toucador se mexeu.”
Olhou para Quim, e Quim fez que sim com a cabeça. A caixinha dera
uma volta inteira. Na hora acharam que a vista deles estava falhando;
cortinas da sacada voaram até o teto... e lá fora não se movia nem uma
escada, Quim, que ia atrás, sentiu uma teia de aranha roçando seu pesco-
ço. Es
tá certo que havia muitas teias de aranha lá dentro mas não no
meio da escada que já tinham subido e descido umas quantas vezes. Ha-
viam contado isso para Anselm que comentou que eles eram cheios de
Anselm dissera que ele devia ter uma mãe assustadiça que quando ele
era pequeno devia ficar contando histór ias de dar medo. E mais tarde,
pluma de pavão. “Não pense que passou voando que nem um pássaro,
não. Rente ao chão, como se alguém, deitado em cima das lajotas, a esti-
vesse soprando.” Sofia olhou para eles com pena e não fez nenhum co-
do uma visita.
cou quieto olhando. Sofia, de costas, não podia vê-lo. Ramon olhou sua
fora da avó Teresa e que à luz vacilante das chamas ainda ofuscava mais.
portas, com um soldado japonês em cada uma, com as lâminas dos sa-
bres de ouro fino... Olha só o que ela está perguntando para eles, pensou
Ramon. Um armár io que com a sala no escuro, quando batia a lua, ficava
lindo... porque nunca ninguém poder ia imaginar o que era aquele pala-
cete e aquele parque banhados pela luz da lua... Anselm disse que sim, é
claro, já tinham tirado o armár io, todo estragado. “Só tinha uma porta e
mon chegou perto da mãe quase sem se atrever a levantar os olhos e dis-
Controlou um leve tremor nos lábios; desculpou-se: “Tem tão pouca luz
aqui dentro... Você mudou bastante”. Entraram os rapazes carregados
com uma caixa tão pesada que os obrigava a andar curvados. Deixaram-
aquela caixa no porão; ainda havia mais duas meio lotadas de livros roí-
dos pelos ratos. Sofia pediu que a abrissem; estava cheia de uma espécie
para um canto mais afastado: “Eu sempre quis saber onde você anda-
sempre nas nuvens... Pedi aos dois que vasculhassem céu e terra mas
que achassem você. Só depois de anos é que fiquei sabendo que você ti-
ver o filho no palacete era para não ter de enfrentá-lo sozinha. Sentia-se
muito separada dele e o passado lhe dava medo. Mas para ficar com a
“Mesmo que seja hora de encerrar, façam o favor de tirar todos os mó-
tou-lhe o que fazia, do que vivia. Respondeu que voltara da Amér ica
Casara, contou mais tarde, com uma moça que trabalhava de cos-
tempo. Anselm riscou um fósforo e assim que acendeu as três velas elas
voltaram a apagar. “Está vendo aquilo que a gente lhe contou? Talvez
mulher viu que Sofia a via aproximou-se com os braços abertos. “Se-
nhor ita Sofia! Achei que todos estavam mortos...” Sofia recuou um pou-
nhorzinho Eladi estava louco de alegria, não cabia em si, e no dia do ba-
tizado o palacete ficou iluminado de cima a baixo até altas horas da noi-
te. Incendiado.” Armanda disse a Sofia que quer ia lhe dizer umas quan-
tas palavras a sós. Saíram da sala. Contou baixinho que o cofrinho das
Ela cobrira tudo com latas daquelas que as crianças recolhiam da pilha
“Não precisa me devolver nada; pode ficar como lembrança.” Uma tar-
de, de
pois de deixar flores sobre a lápide do loureiro, foi até a portinha
tanto que o senhorzinho Eladi padecera por culpa daquele abuso... Oh,
senhor ita Sofia, se soubesse...” O seu mar ido, que ainda não era seu ma-
flores e mais flores. Por último ela e o seu homem haviam decidido le-
cou bem firme, seu homem trepou na escada, até o alto do muro. Ela
lado de fora para que ela pudesse descer para o campo. Três degraus par-
tiram-se ao meio e por pouco ela não quebrou uma perna. Conseguiu pu-
lar. Ainda não tinha a dor nos pés que a fazia andar mancando. Ele, de
escada. Podia-se dizer que... Voltaram para a sala. “Senhor ita Sofia! Se-
nhorzinho Ramon! A vida tem cada coisa!” Sofia contou que combinara
de encontrar com o filho no palacete, tal dia a tal hora, porque não sabia
em que hotel iria parar... Com poucas palavras colocou-os a par do que
de fazer uma grande festa... tenho negócios no exter ior, vou ter de divi-
Vou conhecer as crianças; a minha nora... mas desta vez não vai ser pos-
sível.” Armanda pediu a Sofia que a desculpasse, mas se, como dizia, o
palacete ia ser demolido... ela entrara porque passava sempre por aquela
rua, morava perto... de vez em quando jogava flores no jardim pela alma
te... que se a casa fosse ser demolida ela quer ia uma lembrança: umas
quantas mudas da roseira. Daquelas roseiras que davam rosas cor de car-
disse que sim. Acompanhou-a até a cozinha, e Armanda ainda lhe con-
tou mais coisas de quando tinha ficado sozinha. Por último, Sofia a dei-
xou. Arr umou o cabelo. Disse a Ramon que precisava ir embora; que se
Ramon respondeu que iria embora a pé. À luz das velas Sofia preencheu
Ra
mon
Saiu andando com uma mão dentro do bolso da calça, apertando bem
forte o cheque que a mãe acabara de lhe dar. Dobrou a esquina e na pri-
meira entrada que encontrou parou para olhá-lo. Era o fim dos jantares
sem parar. Sua mulher, com o rosto macilento, com o coração apertado,
verão. Umas doenças mister iosas, sem nome, que o deixavam prostrado
na cama. Sua inocência acabara na hora em que seu pai começara a gri-
tar com os olhos cheios de reprovação. Seu pai, num momento, acabara
com sua juventude. A sua vida de homem começara uma noite pelas ru-
lhe falavam de suas famílias e lhe liam cartas e lhe faziam perguntas e
ele tinha de dizer que não tinha ninguém, que estava sozinho. E quando
das da França, subia-lhe uma golfada de fel até a boca. Uma golfada de
asfixiava. Tinha o cheque, que era muito dinheiro, dentro da mão. E sem
perceber, sorr iu. “Vejam só, um herdeiro!” Rua abaixo com a roupa
cheia de cheiro antigo, com cada fibra do tecido arejada de misér ia, pen-
tanto no parque... mas aos poucos deixara de lembrar das árvores porque
o coração do homem faz essas desfeitas e ainda bem que faz. Seu pensa-
de subir no táxi, lhe dissera que se pareciam com ele. Seu pensamento
desviou-se. O que ter ia sido feito da Mar ina, a filha mais velha da irmã
nado por ele. Um amor cândido. Impossível. Naquela época, o amor, pa-
ra ele, mais do que um pecado, era uma maldição. A Mar ina, jovem, ma-
rer do que de viver. Precisara casar com uma mulher que não soubesse
rompera com sua família, que nunca lhe perguntou por que tinha rompi-
do. Sua mulher perdera um irmão na guerra. Talvez a pena que sentia da
sua mulher pela morte daquele irmão tivesse feito com que ele se casas-
magro de Jaume entre as hastes... Quando via rios, quando via o mar,
sentia vertigem, precisava deitar no chão porque não conseguia olhar ex-
baixo da luminár ia olhando o retrato de seu neto e da sua neta que não
mulher não era como antes; as privações tinham acabado com ela; mas
ele a via como antes porque havia sido a grande ternura da sua vida... E
quando andava por um país que não era o seu país, mesmo que não qui-
Mar ia mais do que dele. A Mar ina, durante um tempo, escrevera para
ela... Ia lhe falando dos que morr iam... Ter ia de levar flores para a Mar ia
também, como para a avó Teresa... mas quando fosse levar flores para a
Ar
man
da
Tinha tanta vontade de pisar naquela terra que não sabia para que lado
que não dava para ver, como há anos, e ela não lembrara disso nunca
mais, apagara a sua vela na noite em que subiu no telhado quando ainda
do a mão pela parede; topou com a torneira que as moças usavam para
quantos e quantos anos não devia passar uma gota de água por ali... Du-
muro, não ter ia visto nunca mais nem a senhor ita Sofia nem o senhorzi-
nho Ramon. Fazia anos que jogava flores. Antes de fechar para sempre a
Quanto mais o tempo passava, mais grave lhe parecia o que tinha acon-
tecido lá dentro: tudo dava dó, com as paredes riscadas, e os móveis que
glicíni
as. A senhor ita Sofia lhe perguntara onde morava. “Quando voltar
a Barcelona virei visitá-la.” E ela sentira gratidão por aquelas palavras.
começou a uivar. Que coisa... Passou a mão pelo rosto; uma aranha, e
nada mais do que uma aranha, devia ter caído de um galho. De onde es-
tava dava para ver um dos janelões da sala; fechou os olhos e voltou tu-
Havia sido sugestão da senhora Teresa porque dissera que com um tabe-
lião que lhes era tão útil ser ia bom manter boas relações. Ela, no dia an-
ter ior, passara mais de catorze horas limpando toda a prata que iriam
trabalhava e lhe dissera rindo, e todas riram, que se não deixasse tudo
estava linda de cair de costas, com a bata branca, com um buquê de lila-
ses na cintura, com as florzinhas feitas com umas fitas tão estreitas que
só eram encontradas em Par is. Antes de sair da cozinha lhes dissera que
mas nos olhos disse que não tinha culpa nenhuma se as anáguas eram
nho ao lado via a casa escura e do lado do para-raios uma sombra que se
mexia. A vista não alcançava muito bem, mas aquilo só podia ser um tu-
isso que antes o loureiro estava minado deles. Sofia, no dia do almoço
com o tabelião, aprontara das suas. Tinham posto nela o vestido de ren-
louca porque tinha de passar a noite inteira com o cabelo enrolado nos
ferr inhos. Na hora de almoçar desafiou Anselma. “Se eu não posso al-
moçar na mesa com os adultos, então não almoço.” Armanda foi contar
ra que rangia a cada passo que dava, e deu para ver os saltos de seus sa-
patos de cetim cor de romã. Disse que se Sofia não quer ia almoçar na
cozinha com as empregadas (decidira assim para que ela ficasse mais
sitas, não almoçar ia. E desmanchou os lacinhos das mangas com raiva; a
solenes. A menina, em vez de chorar, mostrou a língua para a mãe vár ias
des festas: os dos cisnes de ouro e de cristal com as colher inhas também
mão, que não lembrava como se chamava. Entrar na sala era como en-
trar na glór ia. Às duas horas começara a bater o sol e de todo lado salta-
senhor Valldaura, que com a barba e o bigode tão fartos parecia um ho-
ras e vermelho-claras e a do tio Terenci toda de nardos, com uma fita ro-
uma coroa que ficar ia melhor para uma senhora”. A coroa da tia Eulàlia
era de rosas e lír ios e a do senhor Bergadà, aquele que morava no exter i-
arr umado aquelas flores no inverno. Debaixo de que casas de vidro ter i-
olhos abertos mas não enxergava. Agonizou três dias. Recebera mais flo-
res, pensava Armanda, do que a senhora Teresa. Ela o velara quando to-
dos já tinham ido embora cansados e, quase que na ponta dos pés, saíra
para colher uma rosa cor de carne que ela amava de paixão e que cresci-
dela para que a senhor ita Sofia não a visse e não acontecesse como com
pel de cigarro e não conseguiu exper imentar nenhuma. Não era muito
quando, não conseguia evitar de olhá-la. Via-se de longe que gostava de-
na mesinha perto dos janelões da sala. Como não deviam ter o que con-
versar, de tão diferentes que eram, depois de um tempo foram ver o que
faziam seus mar idos. Filomena entrou na cozinha rindo. Disse que fu-
mavam muito e que o senhor Valldaura havia suger ido que fossem até o
senhor Riera recusou. Não sabia jogar nenhum jogo. E então começaram
cinza. Um dos rios mais tristes do mundo à beira da cidade. Mas os bos-
senhora Teresa pegou-o e, enfiando o rosto dentro, disse com as faces ro-
peito e a ostentou o dia inteiro. Devia ser aquela que depois de tantos
anos ainda guardava na caixinha do rapé junto com um cartão do senhor
Riera. Antes de ir para a cama foi dar boa noite a Sofia. Estava de casti-
para recolhê-la a menina não tinha provado nada. Sentada na cama, nua
em pe
lo, estava a ponto de terminar a caixa de bombons de chocolate
de ouvir bar ulhos em cima. Nas noites em que o vento desandava era pi-
vo sentiu uma carícia no rosto. Parou com o cãozinho que a rodeava en-
invisível lhe fizesse uma carícia muito doce, uma carícia de amor embai-
casa que está pensando em mim, que Deus o ajude e lhe dê o descanso e
sozinha no meio de um deserto, sem céu e sem chão. Aos poucos se re-
fez e, muito perto, à altura dos olhos, com as árvores pretas como fundo,
neblina, indecisa, uma asa transparente que foi se afastando e por último
foram embora”, disse Anselm. Era natural; tinha passado tanto tempo
fora no jardim... Deu boa noite aos homens da transportadora. Ficou ma-
tutando. Havia uma coisa esquisita que lhe chamara a atenção e que não
conseguia lembrar o que era. Entrou na sala para dar-se um tempo, para
cima da mesa tinha uma vela acesa grudada na madeira com a sua cera.
Já notara que tinham feito um bar ulho seco demais quando os quebrou...
Deixou-os ao lado da vela. Andava mais manca do que nunca mas com
uma sensação doce por dentro. Parou embaixo da tribuna, desceu os de-
vesse acendido dentro dela, lembrou daquela coisa estranha que lhe su-
Ramon, tão diferente de quando fugira de casa, era muito muito pareci-
A ra
ta
za
na
tas peladas, escutava. Havia um silêncio denso. Dentro dela algo dispa-
mais úmidos, com móveis, com jarros, com gavetas empilhadas pelo
cimento. Atravessou o vestíbulo em linha reta; passou pela fonte, por ci-
de uvas e peras; tudo quebrado. Andava decidida, sabia aonde ia; confi-
cortina, subiu na janela, saiu por um vidro quebrado, correu pelo para-
por en
tre mato alto, por cima de pedrinhas, ia abrindo caminho. De vez
rio. Passou pela frente do banco coberto de glicínias, andou por cima de
raízes que saíam da terra como se fossem seus nervos. De repente parou;
atenta. Atrás dela, altíssimo, estava o para-raios, as duas torr inhas com
cas, davam passagem aos brotos novos, de vidro. Ali onde só entrava ao
entardecer, longe dos três cedros da sorte, naquela mistura espessa de ro-
lembravam do que era preciso fazer para que o buquê saísse do broto e
se mis
turavam à densidade dos buxos e aos grupos espalhados de bam-
trepa, que enforca, que se arrasta para ficar mais forte. A hera em volta
da água. A hera escura, com as folhas duras, que mal cobriam os cachos
de bagos pequenos e pretos. Tudo o que numa época havia estado orde-
doença. Dos galhos velhos, dos galhos novos, dos galhos rachados pelo
plátano, com os dois galhos que faziam sombra ao lixo, estava coberto
de uma espécie de verdinho que não chegava a ser limo. E ela seguia pa-
ra cima, para as folhas amarelas que uma estrela velava, entre as bolas
até a pilha de lixo. Sem precipitação, ia fuçando restos guiada pelo chei-
começou a roer. Do outro lado do tufo de hera chegaram mais duas: pe-
de escuro vivo.
bir por entre as folhas, com os dois ratos pequenos atrás. Voltava pelo
mas as garr inhas com que os brotos se agarravam tinham ficado gruda-
das à parede e seguravam brotos secos que conforme subiam iam fican-
do mais estreitos. Tudo o que havia sido um mar frondoso de hera fres-
ca, ondulando ao sol e ao ar do bom tempo, convertera-se numa confu-
ram pela cornija e, por último, entraram na casa por uma ameia da torr i-
nha.
Foi acordada por uma pancada muito forte. Encolheu-se no seu ninho.
Viu três sombras altas que se moviam de um lado para o outro. Ficou
te, viu uma madeira que se erguia e com o coração apavorado, com os
Estava escurecendo mas dentro da casa havia luz; umas chaminhas tre-
planada, com o focinho para cima, escutou. Para o lado do poço, um bi-
chinho gemia. Tudo era igual, nada mudara, mas estava inquieta. O per i-
neblina ondulante como uma chama, passou tão perto dela e tão baixo
que lhe roçou as orelhas. Deu um salto e desatou a correr até não poder
mais. Teve de parar com o coração que lhe pulava dentro do peito. De-
pois de um tempo aquelas sombras fizeram uma pilha muito grande com
tudo o que haviam tirado da casa. Puseram fogo. Ouviu estalos e viu su-
bir umas chamas vermelhas altas até o céu. Os galhos e as folhas das pri-
noite inteira. Não sabia onde ir dormir. Deu voltas pela casa; tudo era in-
seguro. Não via nem um triste farrapo. Sem ânimo, meio doente, chegou
escondeu. Depois de uns quantos dias vieram mais sombras para cortar
entrada, enrolada num buraco, uma ratazana nojenta, com a cabeça meio
ner. (N.T.)
{ii}
Até a pri
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de do sé
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{iv}
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ral, com fa
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nha de tri
go ou açú
car e man
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teiga. (N.T.)