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269 Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos “cinco sentidos” de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti Maria Luiza Berwanger da Silva (UFRGS) Tuminadas iluminuras ungarettianas (CAMPOS, 1977, p81). Esta a imagem lapidar com que Haroldo de Campos, poeta, critico, tradutor € teérico da tradugo configura a postica de Giuseppe Ungaretti, poeta italiano cuja permanéncia no Brasil, de 1936-1942, revitalizou o imagindrio nacional. Sob esta sintese Iticida de Haroldo, dois caminhos cruzam-se que encontram na tradugdo o lugar da meméria residual de duas lin- guas, duas estéticas, duas culturas. Desdobré-tas, distendendo-Ihes as fronteiras geograficas, textuais e simbélicas, em gesto que, ao traduzir, reinventa € transcria, eis o que guarda intacto 0 fundo do olhar do tradutor brasileiro Haroldo de Campos ¢ de que a recente publicagao: Ungaretti— Daquela Estrela & Outra faz-se amostragem exemplar. “$i D’amitié projette son espoir au-delA de la vie, un espoir absolu, un espoir incommensurable, c’est par ce que l’amiest[...] son double idéal, son autre soi-méme, le méme que soi en mieux”, diz Jacques Derrida em Politiques de l’Amitié (1999, p.20), fi- xando na amizade literéria 0 arquivo inapagivel dos fios e das imagens a retecer, das afinidades desenhadas entre os dois poetas-tradutores. Aproxima-os a visualidade, 0 efeito da luz como “paisagem primordial” do mundo a ser decifrado; como se a produtividade do ato tradutério restituisse & poeticidade do ver aemergéncia da palavra poética, ampliada e ressimbolizada, As- im, “Huminadas iluminuras ungarettianas” tanto remetem ao re- gistro de uma amizade memoravel, quanto tragam o caminho a 270 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 1.9, 2006 ser percortido por Haroldo de Campos na retradugo de Ungaretti para 0 contexto brasileiro. Percebe-se, neste sentido, que a prd- pria dedicatéria em italiano a Haroldo como epigrafe & Daquela Estrela a Outra: “Al caro Haroldo de Campos / per ricordo di / qualche momento / passato insieme / ad amare la / poesia sempre /nuova e sempre / poesia” (Giuseppe Ungaretti, San Paolo, 12/5/ 1967), j4 demarca para Haroldo 0 conceito da poesia auto-referencial que tenta nomear o indizfvel, pela luminosidade do olhar que atravessa, redescobre e relocaliza o corpo da letra sobre o branco da pagina, da poesia, em uma palavra, que impri- me no ato de transladar o de transcriar. “Faz, na aérea paisagem com que eu possa/ Ressilabar as ingénuas palavras” (WATAGHIN, 2003, p.159), confessa um poema de Ungaretti para demarcar a forga poética da reconfiguragao. Em espagos rompidos, em distancias redimensionadas, em novas cartografias redesenhadas pelo brilho das estrelas, disper- sas em novas constelagdes, nesta difrago luminosa captada do poeta italiano, o tradutor brasileiro percebe a imagem do “Odi Melisso” de G. Leopardi, fundo textual em que Ungaretti mescla 4 poeticidade da luz a do escutar, mesclas ¢ ressonancias de som ¢ de cor que evidenciam para 0 tradutor a musicalidade do exerci- cio de “ressilabar”, na base do projeto postico nomeado de Ungaretti: marcas aproximam-se mas nao se diluem no trinsito de alteridades revisitadas. “A alteridade 6, antes de mais nada, um necessério exercicio de autocritica” (CAMPOS, 1983, p.125), afirma, de forma contundente, Haroldo, sublinhando a produt dade do Outro para o Mesmo como decifrador de Iinguas, lingua- gens ¢ imagindrios vislumbrados pelo olhar que se volta sobre a propria intimidade. Singular este retorno do sujeito sobre si mes- mo do qual Haroldo recolhe do texto estrangeiro os gros semi- nais com que reescrevers e ampliaré o significado original. Leitor-critico maior dos poetas modernistas representati vos do Movimento Antropofagico, compreendera o tradutor bra- sileiro que a travessia da leitura articulada pela devoragao do Outro mostra ao Mesmo, (a0 tradutor visto como Mesmo), 0 ajuste e a aclimatagio de imagindrios como marca primeira da subjetividade que vé e que se vé concentrando na paisagem uma das figuragdes exemplares da intimidade Iftica. (Exemplar, na medida em que a paisagem s> faz solo comum, territ6rio sensivel onde o texto tra- “Transcriar,ransubstanciar:ahomenagem dos Refirosne, xpeiaiment, 20 legado do pensament frances sobre 0” ato. tradut6rio sintetizado pelo desejo de istaaciamentoepelarecusada fidelidade” em tradugio. Poets radars raduores franceses, como Pal Vly 0 ‘nsaio Traduction en vers det Bucoligues de Vigile (1944), a prépria obra Sous avocation de Saint Jerome e Valery Larboud (1946), a reflexio luminasa de Maurice Blanchot em Lami (1971), Henri Meschonnic com Podtique du traduire (1999), sintese dos demais pecursos lradatrios deste autor, do ‘mesmo modo La Communauté des traducteurs de Yves Bonnefoy (2000), pares & contribuigio defintiva de Jacques Derrida para a tradugdode extose de imagens 135 Tours de Babel cclebrala cem*Nipaseur . niparsans ‘sta amostragem exemplar ‘constitu mareas evidents do niicleo duro da reflexto harldiana sobre o exericio ‘radio como transcrigio. *Teremos [Jem our lingua, uma outa informagdo esc, ‘auténoma, mas ambasestario ligadasentresporumarelao

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