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"Junho de 2013… dois anos depois: polarização,

impactos e reconfiguração do ativismo no Brasil"

Pleyers, Geoffrey ; Bringel

ABSTRACT

Sejam de direita ou de esquerda, as mobilizações que sacudiram o Brasil em 2013 e 2015 compartilham
algumas formas de expressão, ação e organização comuns a muitos movimentos contemporâneos. Estão
associadas a uma nova «geopolítica da indignação global». O artigo analisa a fundo as manifestações,
deixando de lado as leituras nuançadas da mídia e da academia. Argumenta que as mobilizações
massivas de Junho de 2013 produziram uma abertura societária no Brasil. Emergiram novos espaços
e atores que levaram a um aumento da conflitualidade no espaço público e a um questionamento
dos códigos, sujeitos e ações tradicionais que primaram no país durante as últimas duas décadas.
As mobilizações de massa são menos controladas por organizações sociais e políticas, difundidas e
reproduzidas de forma viral, sob uma lógica que abre um maior espaço para os indivíduos.

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Pleyers, Geoffrey ; Bringel. Junho de 2013… dois anos depois: polarização, impactos e reconfiguração do
ativismo no Brasil. In: Nova Sociedade, Vol. 2015, no.(2), p. 4-17 (2015) http://hdl.handle.net/2078.1/172074

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Este artigo é cópia fiel do publicado na revista Nueva Sociedad especial
n CONJUNTURA em português, outubro de 2015, ISSN: 0251-3552, <www.nuso.org>.

Junho de 2013… dois anos depois


Polarização, impactos e reconfiguração do ativismo no Brasil

Breno Bringel / Geoffrey Pleyers

Sejam de direita ou de esquerda, as mobilizações que sacudiram o Brasil


em 2013 e 2015 compartilham algumas formas de expressão, ação
e organização comuns a muitos movimentos contemporâneos. Estão
associadas a uma nova «geopolítica da indignação global». O artigo
analisa a fundo as manifestações, deixando de lado as leituras nuançadas
da mídia e da academia. Argumenta que as mobilizações massivas de
Junho de 2013 produziram uma abertura societária no Brasil. Emergiram
novos espaços e atores que levaram a um aumento da conflitualidade no
espaço público e a um questionamento dos códigos, sujeitos e ações
tradicionais que primaram no país durante as últimas duas décadas.
As mobilizações de massa são menos controladas por organizações
sociais e políticas, difundidas e reproduzidas de forma viral, sob uma
lógica que abre um maior espaço para os indivíduos.

■■Introdução campo intelectual, na política e na


sociedade brasileira. Se deixarmos de
Dois anos após as mobilizações que lado as poucas vozes e visões mais nu-
sacudiram o Brasil em junho de 2013, ançadas, pode-se dizer, de forma mui-
vários são os balanços realizados no to geral, que duas leituras principais

Breno Bringel: professor adjunto do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (iesp-uerj). É editor de Dados – Revista de Ciências Sociais e coeditor (com
Geoffrey Pleyers) de openMovements, um projeto de openDemocracy. Seu último livro, editado com
José Maurício Domingues, é Global Modernity and Social Contestation (Sage, Londres, 2015). E-mail:
<brenobringel@iesp.uerj.br>.
Geoffrey Pleyers: professor da Universidade de Louvain (Bélgica) e pesquisador do Collège
d’Etudes Mondiales de Paris. É presidente do Research Committee on Social Classes and Social
Movements da Associação Internacional de Sociologia. Coordenou, com Breno Bringel, a com-
pilação Les mobilisations de 2013 au Brésil (Brésil(s): Sciences Humaines et Sociales, ehess, Paris,
2015). E-mail: <Geoffrey.Pleyers@uclouvain.be>.
Palavras-chave: ativismo social, Junho de 2013, mobilizações, política, Brasil.
Nota dos autores: Devemos o título principal do artigo a Zé Szwako, cuja sugestão serviu, ademais,
para a organização de um Seminário com título homônimo em junho de 2015 no iesp-uerj (os ví-
deos do encontro estão disponíveis em <www.iesp.uerj.br/coloquio-jornadas-de-junho-dois-anos-
depois/>). Agradecemos aos colegas participantes pelo debate e aos membros do Núcleo de Estudos
de Teoria Social e América Latina (netsal) e do Research Committee on Social Classes and Social
Movements da Associação Internacional de Sociologia pelo diálogo e pela construção coletiva.
5 Nueva Sociedad especial em português 2015
Junho de 2013… dois anos depois

concorrem na academia, nos meios Por outro lado, o segundo campo de in-
de comunicação e entre os atores po- terpretações compreende que 2013 em
líticos e sociais. Um primeiro tipo de si nunca teve um potencial profunda-
interpretações vincula as manifesta- mente transformador da sociedade e da
ções de junho de 2013 mais à esquerda política brasileira que, de fato, teria se
(seja a uma visão de aprofundamento modificado bastante na última década
democrático ou a uma ruptura de ca- – dentro das (di)visões políticas e dos
rácter mais radical) e as mobilizações horizontes normativos, alguns diriam
de rua de 2015 à direita (e, consequen- que para bem, e outros para mal. Con-
temente, a uma guinada autoritária e verge com a leitura anterior o entendi-
antidemocrática). Uma segunda visão, mento de Junho como uma «explo-
enraizada em uma gama muito diver- são», conquanto os protestos de 2013
sa – e inclusive contraposta – de a(u) sejam vistos como mero grito e estron-
tores, entende que as mobilizações de do. 2015 corresponderia à polarização,
dois anos atrás, a despeito de seu ca- acentuada pelo cenário eleitoral de
rácter massivo, não passaram de um 2014. Espontaneísmo e fragmentação
epifenômeno. são palavras-chave destas leituras.

Ambas as leituras são, a nosso ver, Lidas em conjunto, estas interpretações


problemáticas e insuficientes. No pri- trazem uma série de perguntas sobre as
meiro caso, as mobilizações de 2013 relações entre as manifestações de 2013
e de 2015 são tratadas como eventos e os protestos de 2015: como reivindica-
desconexos (ou, no melhor dos casos, ções com teores a priori tão diferentes
relacionados a partir de uma lógica podem mobilizar símbolos e formas
reativa). São reforçadas as diferenças de organização às vezes parecidas? Há
(ideológicas, contextuais e de atores e alguma continuidade entre as ruas de
demandas) entre as duas «ondas» de 2013 e as de 2015? De que tipo? São ma-
protesto que não teriam nada ou mui- nifestações diametralmente opostas?
to pouco a ver entre si, a não ser algu-
Diante destas questões, disputas e po-
mas bandeiras e o fato de que a direita
sições, sugerimos neste artigo duas
estaria usando algumas práticas e in-
hipóteses concatenadas que aprofun-
clusive certos símbolos habitualmen-
dam alguns de nossos trabalhos pré-
te vinculados à esquerda. Nesta óti-
vios sobre o tema1. Em primeiro lugar,
ca, 2013 teria sido uma insurgência de
na indignação difusa das mobiliza-
indignação contra a representação, o
sistema político e os políticos de ma-
1. B. Bringel: «Miopias, sentidos e tendências
neira mais geral, enquanto 2015 teria do levante brasileiro de 2013» em Insight Inte-
um foco muito mais direto e restrito: o ligência, 2013ª, pp. 42-51; B. Bringel e P. Pleyers:
«Les mobilisations de 2013 au Brésil: vers un
Partido dos Trabalhadores (pt) e o go- reconfiguration de la contestation» em Brésil(s):
verno Dilma. Sciences Humaines et Sociales Nº 7, 2015, pp. 7-18.
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Breno Bringel / Geoffrey Pleyers

ções de 2013 já coexistiam críticas, re- abertura sociopolítica. As formas de


pertórios e atores à esquerda e à di- ação e de organização por eles adota-
reita, sempre com posturas polarizadas. das – próprias de uma transformação
Assim, a polarização deve ser lida das formas de ativismo e de engaja-
não como algo exclusivo de 2014 e/ou mento militante no país e no mundo
2015, mas como resultado do retorno hoje – favoreceram um surgimento
da ação direta e do conflito à política rápido, a midiatização e a capacidade
nacional; logo, como parte constitutiva de interpelação e expressividade, mas
do atual ciclo de protestos no país ini- também provocaram tensões e ambi-
ciado dois anos atrás, embora possam valências em sua própria constituição
ser diferenciados – como faremos mais e nos resultados gerados.
adiante – graus e momentos de acirra-
mento da polarização social e política. ■■Junho de 2013 e o processo
Em segundo lugar, não é possível en- de abertura societária
tender os desdobramentos de junho
Participaram das mobilizações de 2013
de 2013 olhando somente para os im-
indivíduos e grupos sociais diversos e
pactos político-institucionais e políti-
com um amplo espectro ideológico2.
co-eleitorais dos protestos. Destarte, tor-
Ficou patente a indignação difusa, a
na-se fundamental visualizar os efeitos
ambivalência dos discursos, a hetero-
sociais e culturais, bem como captar
geneidade das demandas e a ausência
Junho não somente como um evento de
de mediação de terceiros e de atores
protesto, mas como um processo aberto
tradicionais, algo também notório em
e inacabado, que inclui uma ampla re-
várias mobilizações de massa contem-
configuração do ativismo social.
porâneas, a exemplo da Espanha e dos
Estados Unidos. A diferenciação dos
Argumentamos nesse texto que as
ritmos, composições e olhares dos pro-
mobilizações massivas de Junho de
testos nos vários lugares onde ocorre-
2013 produziram uma abertura socie-
ram nos leva à importância de situar
tária no Brasil. Emergiram novos es-
as mobilizações em diferentes coor-
paços e atores que levaram a um au-
denadas espaço-temporais. Embora o
mento da conflitualidade no espaço
lócus de ação das manifestações fos-
público e a um questionamento dos
sem os territórios e espaços públicos
códigos, sujeitos e ações tradicionais
(através da ocupação maciça de praças
que primaram no país durante as úl-
e ruas) havia uma conexão prática e
timas duas décadas. Embora com vi-
simbólica com outras escalas de ação
sões e projetos distintos (e, em geral,
e significação, sejam elas nacionais ou
opostos) da sociedade brasileira, os in-
divíduos e coletividades à esquerda e
2. André Singer: «Brasil, junho de 2013: classes
à direita do governo mobilizados en- e ideologias cruzadas» em Novos Estudos Nº 97,
tre 2013 e 2015 são fruto desta mesma 2013, pp. 23-40.
7 Nueva Sociedad especial em português 2015
Junho de 2013… dois anos depois

globais3, marcando uma ressonância gerou desmobilização. Também gera-


de movimentos e de subjetividades, ram-se várias experiências mais sub-
bem como dinâmicas de difusão e de mersas entre indivíduos, comunida-
retroalimentação. des, grupos e coletividades. Ao mesmo
tempo, dada a dimensão continen-
Uma das características mais emble- tal do país, não se pode negar que ju-
máticas de Junho de 2013 foi sua capi- nho também foi, em certas localida-
laridade em todo o território nacional. des, mais uma representação coletiva
Contudo, as lógicas de mobilização, a (que, por sinal, mostrou que as coisas
composição social dos manifestantes e podem ser mudadas com as pessoas
a correlação de forças variou conside- comuns fazendo política) do que um
ravelmente dependendo das cidades processo contínuo de articulação e or-
analisadas, motivo pelo qual torna-se ganização política.
importante relativizar, como bem fa-
zem Francisco Mata Machado Tava- Seja como for, é crucial entender Junho
res e João Henrique Ribeiro Roriz4, de 2013 como um momento de abertu-
Cristiana Losekann5 e Alana Moraes ra societária no país. Uma vez aberto o
et al.6, certo «sudestecentrismo», de espaço de protesto pelas mobilizações
acordo com o qual interpreta-se o que iniciais, outros atores se uniram para
ocorreu no Brasil a partir dos aconteci- fazer suas próprias reivindicações,
mentos de Rio de Janeiro e São Paulo. sem necessariamente manter os la-
ços com as mobilizações originais e
O momento posterior à explosão de repetir as formas, a cultura organiza-
Junho de 2013 também foi desigual no cional, as referências ideológicas ou os
Brasil. Em alguns lugares, como no Rio repertórios de ação dos iniciadores es-
de Janeiro, os protestos seguiram com
alta intensidade, com uma concatena-
3. B. Bringel: «Le Brésil et la géopolitique de
ção de mobilizações e greves (a maior l’indignation» em La Vie des Idées, 7/2013; Mar-
delas a dos professores de secundária, lies Glasius e G. Pleyers: «La résonance des
mouvements des places: connexions, émo-
seguida de outras bastante simbólicas tions valeurs» em Socio: Revue de Sciences So-
como a dos garis em fevereiro de 2014) ciales vol. 1 Nº 2, 2013, pp.59-80.
4. R. Tavares e J. Roriz: «Avant juin, les rues
que acabaram, na véspera da final da
de mai: étude de cas sur les manifestations en
copa do mundo, com a prisão preven- faveur de la mobilité urbaine dans le ville de
tiva de 23 ativistas. Em várias cidades Goiânia» em Brésil(s): Sciences Humaines et So-
ciales Nº 7, pp. 77-101.
seguiram acontecendo ocupações, mo- 5. C. Losekann: «Dynamiques et effects des
bilizações por direitos e por causas es- manifestations brésiliennes de 2013: le cas de
la ville de Vitória» em Brésil(s): Sciences Hu-
pecíficas, novas ações de base e um maines et Sociales Nº 7, 2015, pp. 59-76.
aprofundamento do experimentalismo 6. A. Moraes, Bernardo Gutiérrez, Henrique
Parra, Hugo Albuquerque, Jean Tible e Salvador
cultural. Em determinados casos, a re- Schavelzon (orgs.): Junho: potência das ruas e das
pressão e a criminalização pós-junho redes, Friedrich-Ebert-Stiftung, São Paulo, 2014.
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sas mobilizações7. Como já nos alerta- contraditórios de forças centrípetas (a


va Charles Tilly8, o uso de um mesmo externalização da indignação e a si-
repertório de ação não implica que es- multaneidade presencial e simbólica
tejamos diante necessariamente de um nas mesmas ruas e praças) e forças cen-
mesmo movimento, mas sim de uma trífugas (que, a despeito da copresença
gramática cultural e histórica dispo- nos mesmos espaços, indicavam dife-
nível e interpretada pela sociedade e rentes motivações, formas de organi-
pelos grupos sociais. Angela Alonso zação e horizontes de expectativas).
e Ann Mische9 captaram com bastan-
te precisão essas fontes sociais e cul- Nesta fase catártica, que começou em
turais, bem como a ambivalência dos Junho de 2013 e durou alguns meses, a
repertórios presentes em junho dentro polarização ideológica já existia (vide,
do que elas definiram como repertó- por exemplo as agressões a manifes-
rios «socialista» (familiar na esquerda tantes que portavam bandeiras, cami-
brasileira das últimas décadas), «auto- setas e outros símbolos da esquerda),
nomista» (afim a vários grupos liber- mas estava diluída na indignação em
tários e propostas críticas do poder e massa e na experimentação das ruas.
do Estado) e «patriótico» (que usa um
discurso nacionalista e as cores verde e Após a heterogeneidade inicial, come-
amarela com um significado histórico ça em 2014 uma fase de decantação, com
e situacional bastante particular). alguns temas e reivindicações princi-
pais dos indivíduos, grupos e setores
Nesse momento, ao emergir um novo já diferenciados no espaço e alinhados
ciclo de protestos10, presenciou-se um mais claramente à esquerda e à direi-
transbordamento societário11, isto é, um ta, conquanto estas noções (direita e
momento em que o protesto se difun-
de dos setores mobilizados para outras 7. Doug McAdam:) «Initiator and Spin-Off Mo-
vements: Diffusion Process in Protest Cycles»
partes da sociedade, transbordando os em Mark Traugott (ed.): Repertoires and Cycles
movimentos sociais que o iniciaram. of Collective Action, Duke University Press,
Durham, 1995, pp. 217-240.
No clímax desse processo, um amplo 8. C. Tilly: From Mobilisation to Revolution,
espectro da sociedade está mobilizado McGraw-Hill, Nova Iorque, 1978.
9. A. Alonso e A. Mische: «June Demonstra-
em torno de uma indignação difusa,
tions in Brazil: Repertoires of Contention
portando diferentes perspectivas e rei- and Government’s Response to Protest» em
vindicações, que coexistiram no mes- From Contention to Social Change: Rethinking the
Consequences of Social Movements and Cycles of
mo espaço físico e às vezes com um Protests, esa Research Network on Social Mo-
mesmo lema (contra a corrupção ou vements Conference, Universidade Complu-
tense de Madri, 19-20 fevereiro 2015.
contra o governo), embora com cons- 10. Sidney Tarrow: Power in Movement: Social
truções e horizontes muito distancia- Movements and Contenious Politics, Cambridge
University Press, Cambridge, 1998.
dos e em conflito. Houve uma confluên- 11. B. Bringel: «Miopias, sentidos e tendências
cia ambígua marcada por movimentos do levante brasileiro de 2013», cit.
9 Nueva Sociedad especial em português 2015
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esquerda) sejam vistas, para alguns em alguns casos, como «mal menor».
ativistas e para boa parte da sociedade, A vitória apertada de Dilma gerou um
como caducas, pouco capazes de tra- clima de instabilidade que foi alimen-
duzir e canalizar seus objetivos, expec- tado constantemente por setores da
tativas e inquietações. Um dos motivos oposição. No calor da disputa presi-
principais disso é a associação direta dencial, não foram poucos os analis-
entre «ideologia» e grupos e ideologias tas que associaram a perda de votos
políticas específicas (sejam partidos ou do pt com as manifestações de 2013.
o «comunismo» o «socialismo» ou o Embora possa haver, de fato, algumas
«liberalismo»). Neste momento, já não relações entre protesto e voto, não se
há manifestações massivas nas ruas e pode estabelecer ilação direta e uma
nas praças, mas seguem ocorrendo vá- causalidade sem maiores cuidados
rias mobilizações mais pontuais, bem analíticos. Além disso, o maior pro-
como uma reorganização mais invisí- blema é que as leituras hegemônicas
vel dos indivíduos, das redes e dos co- sobre os impactos das manifestações
letivos. A confluência no mesmo espa- de 2013 acabaram restringindo os efei-
ço público é paulatinamente deslocada tos ao campo político-institucional e
a convocatórias com objetivos e recor- político-eleitoral. Nesta chave, muito
tes mais definidos. Embora boa parte orientada por uma «política de resul-
destas ações não se dirigisse ao campo tados», haveria outcomes políticos cla-
político-institucional e político-eleito- ramente mensuráveis, se olharmos,
ral, que possui lógicas e temporalida- por exemplo, para como as demandas
des diferentes do campo da mobiliza- formuladas nas mobilizações foram
ção social, o cenário pré-eleitoral de recebidas (ou ignoradas) pelo sistema
meados de 2014 rumo à contenda pre- político. Pensemos em políticas públi-
sidencial acabou abrindo um novo mo- cas concretas, na inserção de novas
mento de acirramento das polarizações que pautas nas agendas governamentais,
absorveu boa parte dos atores sociais e na criação de novos espaços canais de
políticos ao longo de 2015. mediação e/ou de participação, e na
conquista real – mesmo que transitó-
■■Para além da «política ria ou parcial – de algumas das reivin-
de resultados»: dicações mais simbólicas, tais como o
a multidimensionalidade preço das passagens de ônibus.
dos impactos das mobilizações
Já no tocante ao cenário eleitoral, a
Apesar das críticas formuladas ao pt conturbada disputa presidencial de
em particular e aos partidos políticos 2014 pode ilustrar alguns elementos.
em geral, as eleições presidenciais de Em primeiro lugar, torna-se impor-
2014 mobilizaram massivamente os tante diferenciar as tentativas de apro-
brasileiros, inclusive para defendêlos, priação de algumas das pautas das
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manifestações por certos candidatos resultados destas eleições foi muito me-
(caso de Marina da Silva e seu discur- nor do que a do «movimento de maio»,
so de uma «nova política» recheada um movimento cultural que transfor-
de «velhas» práticas) e partidos polí- mou a França12 e influenciou movimen-
ticos descolados dos setores mobili- tos de várias partes do mundo.
zados daqueles processos em que há
uma relação histórica ou alianças táti- Estas perspectivas político-institucio-
cas e estratégicas entre grupos sociais nais e político-eleitorais, preponde-
e políticos (caso do pt – como parti- rantes tanto nas correntes mainstream
do e não como governo –, visto em sua da ciência política brasileira como no
heterogeneidade interna, e de outros campo governista, restringem a visão
menores à esquerda). Em segundo lu- da política e do político e ignoram ou-
gar, é interessante notar como o «dis- tro tipo de resultados, impactos e ce-
curso do «medo» foi mobilizado elei- nários possíveis. Argumentamos, de
toralmente para opor «direita» versus maneira inversa, que um olhar am-
«esquerda», restringindo esta última, pliado e multidimensional para os im-
no discurso governamental, ao campo pactos é fundamental, pois nem todos
governista, o que traz como consequ- os desdobramentos das mobilizações
ência a contenção às possibilidades de de junho de 2013 são facilmente men-
mudança que emergiram no país. Fi- suráveis. Ao menos outros dois tipos
nalmente, cabe frisar as limitações, no de impactos devem ser considerados:
médio e longo prazo, dos próprios re- sociais e culturais.
sultados eleitorais para o entendimen-
Dentre os impactos sociais, podem-
to das transformações societárias que
se destacar dois principais: a reconfi-
vivemos. Se, por um lado, a criação de
guração dos grupos sociais e a geração
uma fronteira rígida entre amigos/ini-
de novos enquadramentos sociopolíticos.
migos por parte do governismo serviu
No primeiro caso, as mobilizações re-
para tentar frear (e às vezes deslegiti-
centes serviram para chacoalhar as
mar) as forças à esquerda, por outro,
posições, visões e correlações de for-
os desfechos eleitorais não invalidam
ças entre partidos, sindicatos, movi-
as mobilizações sociais e não neces-
mentos socais, ong e outras coletivi-
sariamente pressagiam sua perda de
dades. Embora ainda seja cedo para
influência. Lembre-se que na Fran-
afirmar o alcance e o efeito disso, al-
ça pós-Maio de 1968 as eleições na-
guns atores se realinharam ou ainda
cionais de junho deram uma ampla
buscam fazê-lo (em alguns casos, sem
vitória eleitoral para a direita. Ape-
saber muito bem como), enquanto ou-
sar disso (curiosamente este fato é
tros têm problematizado sua própria
hoje escassamente lembrado), poucos
podem negar que, em um horizonte 12. Luc Boltanski e Eve Chiappello: Le nouvel
temporal ampliado, o impacto dos esprit du capitalism, Gallimard, Paris, 1999.
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Junho de 2013… dois anos depois

trajetória e papel, tentando se (re)si- Associado aos impactos sociais e cul-


tuar na nova conjuntura. No segundo turais, situa-se um impacto de caráter
caso, incluem-se novos enquadramen- mais biográfico, isto é, individual.
tos individuais e coletivos, relaciona- Trata-se do impacto subjetivo das mo-
dos hoje principalmente à qualidade bilizações na trajetória dos ativistas.
de vida nas grandes cidades brasilei- Tem sido recorrente em nossas pesqui-
ras, ao bloqueio midiático, à violência sas escutar os entrevistados definirem
(inclusive a estatal, que afeta de forma as mobilizações de Junho de 2013 como
particular as mulheres e os jovens ne- «um antes e um depois», uma «infle-
gros pobres que vivem nas periferias xão», «um começo» ou «um novo come-
urbanas) e ao machismo. São proces- ço». Para uma nova geração de ativistas
sos de reelaboração da vivência social e de jovens que não necessariamente se
que produzem, paulatinamente, res- autodefinem como ativistas, Junho de
significações das constelações semân- 2013 foi, no dizer de um dos próprios
ticas da sociedade a partir de experi- entrevistados, «um incêndio que não se
ências diversas de politização da vida apaga com água». Mesmo que efêmeras,
cotidiana, a maioria delas invisíveis à as experiências vividas nas mobiliza-
mídia e aos intelectuais de escritório. ções e em evento de protesto produzem
«marcas» nos participantes, reforçando
No âmbito cultural, observam-se ino- a propensão a que possam se engajar
vações nas lógica de mobilização e nos politicamente no futuro e podendo,
mecanismos relacionais e interativos do ademais, transformar, no médio e lon-
ativismo. Marcada pela conflitualida- go prazo, suas identidades sociais e
de, pela difusão viral, por identidades seus valores políticos.
multirreferenciais e por uma expressi-
vidade do político mediada pela cultu- ■■Movimentos sociais e movimentos
ra, tanto militantes de primeira viagem societários
como movimentos mais consolidados
colocam em xeque a cultura política da Entender junho de 2013 como um pro-
apatia. Embora em alguns casos haja cesso supõe associar sempre os movi-
um distanciamento entre uma nova mentos sociais a movimentos societários
geração de ativistas e a militância mais mais abrangentes. Em outras pala-
experimentada (o que nos obriga a re- vras, analisar como as mobilizações,
pensar os espaços e as fórmulas de diá- os atores sociais e suas práticas se
logo geracional), em outros aparecem enquadram dentro de dinâmicas de
confluências criativas, como é o caso transformação da sociedade. Isso é
de algumas sinergias entre redes sub- central no atual momento no Brasil,
mersas e iniciativas artístico-culturais onde parece haver uma reconfigu-
no engajamento político (algo habitual ração das formas de ativismo e dos
em cidades como Belo Horizonte). sujeitos políticos vis-à-vis alterações
Nueva Sociedad especial em português 2015 12
Breno Bringel / Geoffrey Pleyers

mais abrangentes de elementos estru- possíveis. Por um lado, um campo


turais e subjetivos da sociedade como progressista e de radicalização da de-
um todo. Nesse sentido, assim como mocracia que age orientado por valo-
se relacionaram as mobilizações de res como a igualdade, a justiça, a plu-
massa dos anos 1970 e 1980 com um ralidade, a diferença e o bem viver.
movimento societário de redefinição Por outro lado, um campo reacioná-
da democracia e dos direitos, as mo- rio, marcado pelo autoritarismo, cer-
bilizações recentes estão associadas a tos traços fascistas e antidemocráticos
desenvolvimentos estruturais do país e pela defesa dos privilégios de classe,
(por exemplo, maior inserção no mer- da propriedade privada e de uma vi-
cado global e no cenário geopolítico são sempre evasiva da liberdade.
e centralidade de políticas sociais, in-
cluindo a luta contra a pobreza), que No primeiro caso, trata-se de uma ca-
foram particularmente velozes na úl- mada diversa de jovens, coletivida-
tima década. des, plataformas e movimentos que
têm militado na denúncia (e na ten-
Em uma sociedade tão desigual como tativa de eliminação) das hierarquias,
a brasileira, estas mudanças afetaram da opressão e dos abusos do Estado
de diferentes maneiras as classes so- – principalmente, violência, racismo
ciais13, levando a frustrações que em- institucional e criminalização – e em
bora, em alguns casos, convergentes reivindicações variadas, como a quali-
analiticamente, eram, de fato, opos- dade dos serviços públicos e por uma
tas ideologicamente. Os ricos ficaram vida mais humana nas cidades. Tra-
mais ricos, uma parcela da população vam lutas territorializadas e/ou cultu-
saiu da pobreza e passou a ter acesso a rais e entendem a democracia em um
certos serviços, espaços e direitos que sentido ampliado, não como sinônimo
antes somente eram exercidos por uma de instituições, representação ou elei-
classe média alta que viu seus «privi- ções, mas como uma criação sociopo-
légios» e seu estilo de vida ameaçados. lítica e uma experiência subjetiva.
As clivagens de classe, mas também as
de raça, gênero e origem são absoluta- Já o segundo polo perpetua, em seus
mente centrais neste ponto para nos discursos e na prática cotidiana, as es-
questionarmos se estas mobilizações truturas de dominação e as formas de
e o ativismo emergente serão, de fato, opressão. Aceita a alta desigualdade
capazes de permear o campo popular.
13. Vide Marcelo Medeiros, Pedro H. Souza e
Fabio Avila de Castro: «O topo da distribuição
Por ora, é possível identificar clara- de renda no Brasil: primeiras estimativas com
mente no Brasil hoje dois polos radi- dados tributários e comparação com pesqui-
sas domiciliares (2006-2012)» em Dados – Re-
calmente antagônicos, com uma di- vista de Ciências Sociais vol. 58 Nº 1, 2015, pp.
versidade de situações intermediárias 7-36.
13 Nueva Sociedad especial em português 2015
Junho de 2013… dois anos depois

social existente no país com um dis- «inimigo a combater» – mesmo que,


curso da inevitabilidade e/ou da me- contraditoriamente, esteja na prática
ritocracia. Prega, em alguns casos, também dentro do governo e não te-
pelo retorno de um passado melhor nha grande força eleitoral –, forçando
(a ditadura), para o qual não teme pe- muitos dos atores alinhados ao cam-
dir a intervenção militar. Conta, em po progressista a defenderem, mesmo
geral, com apoio e atua em colusão que de forma ambivalente, o governo.
com as elites econômicas e midiáti- Aclaremos também que, obviamente,
cas. Costuma atuar nos bastidores da nem todo o pt está neste campo nem
política, embora combine agora estas adere a esta visão de defesa férrea da
estratégias com uma novidade: o re- governabilidade.
curso à mobilização nas ruas e à ação
direta. Trata-se de um isomorfismo A gama de posturas que transcendem
que apareceu nas ruas já em 2013 e estas posições é ampla, mas a polari-
seguiu durante os últimos dois anos, zação existente na sociedade brasilei-
gerando-se certas semelhanças entre ra hoje acaba levando a que a maioria
culturas de mobilização e formas de das interpretações reduzam o confli-
compromisso. to realmente existente a estes dois úl-
timos campos, nublando o potencial
Em meio a estes dois campos, no cen- das vozes mais insurgentes e transfor-
tro político, encontra-se o governis- madoras de junho de 2013. É notório
mo. Os limites da política win-win e que os estudiosos dos movimentos so-
do consenso de classes estabelecido ciais tenderam a deter-se muito mais
pelo governo nos mandatos de Lula e nos movimentos sociais transforma-
Dilma, unido ao esgotamento de sua dores ou com potencial de ruptura,
agenda política desafiada pelas mobi- deixando de lado os movimentos con-
lizações de 2013, levou a que nos últi- servadores ou reacionários. O atual
mos anos o governo tenha abortado cenário no Brasil, e em outras partes
a agenda reformista que o aproxima- do mundo, tem levado muitos pes-
ria do primeiro campo, entrando em quisadores a pesquisar os movimen-
uma deriva cada vez mais reativa e tos de direita. Isso é muito bem-vindo,
conservadora, que se aprofunda com pois a direita (com seus contra-movi-
as eleições de 2014 e os protestos da mentos) tampouco é homogênea. No
direita (nem toda ela, vale dizer, au-
toritária e reacionária) em 201514. A 14. É interessante notar como, a despeito da
redução de uma ampla e complexa re- política de classe conciliatória travada pelos
governos do pt desde o primeiro mandato de
configuração da sociedade brasileira Lula e dos benefícios econômicos das elites
a «coxinhas» e «bolivarianos» é mos- nacionais durante a última década, a direita
mais radical gerou nos últimos anos um dis-
tra da exasperação. Nessa configura- curso contra o governo acusando-o de haver
ção, a «direita» é enquadrada como o «dividido» o Brasil.
Nueva Sociedad especial em português 2015 14
Breno Bringel / Geoffrey Pleyers

entanto, não podemos cometer o erro maior espaço para indivíduos16. Além
de, tendo em vista os interesses golpis- disso, os principais atores, mais es-
tas e midiáticos, nos restringirmos, de truturados, que até pouco tempo deti-
forma isolada, somente a este tipo de nham praticamente com exclusividade
movimentos que não são únicos nem o papel de formação e de socialização
hegemônicos e, em última instância, política no Brasil (sindicatos, parti-
são parte de um confronto político mais dos e, inclusive, determinados movi-
amplo, inclusive sobre os rumos do mentos sociais, principalmente o es-
progressismo no país. tudantil) estão sendo deslocados como
instâncias centrais da socialização mi-
■■Reconfigurações do ativismo litante. Vários fatores influenciam nes-
no Brasil (e no mundo): sentidos, ta mudança, tais como o descrédito dos
tendências e ambivalências partidos tradicionais e das organiza-
ções hierárquicas e verticais, a dimi-
Sejam de direita ou de esquerda, as nuição do trabalho de base realizado
mobilizações recentes no Brasil com- junto às comunidades e os territórios
partilham algumas formas de expres- e a rejeição à delimitação organizativa
são, de ação e de organização que são muito estrita com fronteiras bem defi-
comuns a muitos movimentos contem- nidas para a entrada e a saída em uma
porâneos. Isso quer dizer que, a despei- organização. Nesta lógica, os processos
to das especificidades locais e nacio- de engajamento militante tendem a se
nais, as mobilizações de 2013 e de 2015 transformar, com destaque para a in-
no Brasil estão associadas, no espaço, a serção em pequenas coletividades, re-
uma nova «geopolítica da indignação des e grupos de afinidades. A amizade,
global»15 e, no tempo, a uma ruptura as emoções e as proximidades, mesmo
com ciclos políticos, sujeitos, práticas que circunstanciais, animam os rumos
e concepções prévias. Pode-se falar de a serem tomados.
uma reconfiguração do ativismo no
Brasil que afeta os atores, as práticas,
15. B. Bringel e Jose M. Domingues: Global Mo-
as formas de mediação, a expressivi- dernity and Social Contestation, Sage, London-
dade e suas matrizes discursivas e vi- New Delhi, 2015; B. Bringel: «Le Brésil et la
géopolitique de l’indignation», cit.; B. Bringel
sões de mundo.
e P. Pleyers: «OpenMovements: Social Move-
ments, Global Outlooks and Public Sociolo-
Em termos de atores, pode-se destacar gists» em Open Movements, 16/3/2015, <www.
opendemocracy.net/breno-bringel-geoffrey
um maior descentramento dos sujeitos -pleyers/openmovements-social-movements-
e das organizações. As mobilizações de global-outlooks-and-public-sociologist>.
16. Danilo Martuccelli: La société singulariste,
massa passaram a ser menos controla- Armand Colin, Paris, 2010; Jose M. Domin-
das por organizações sociais e políticas gues: «Las movilizaciones de junio de 2013»
em osal Nº 34, 2013, pp. 63-75; G. Pleyers: Alter-
e são difundidas e reproduzidas de for- Globalization. Becoming Actors in the Global Age,
ma viral, sob uma lógica que abre um Polity, Cambridge, 2010.
15 Nueva Sociedad especial em português 2015
Junho de 2013… dois anos depois

Neste domínio, as novas tecnologias e 1980) que apareceram então como


de informação e comunicação (no caso novidade no emblemático trabalho de
brasileiro, principalmente celular e in- Emir Sader21 sejam hoje vistos, pela
ternet) assumem um papel destacado nova geração de ativistas, como sinô-
não somente por sua capacidade de nimo do velho. Este debate exige cau-
contrainformação, de interação e de tela, já que nesta emergência – ainda
difusão mais veloz e menos mediada parcial e inacabada – de novos sujei-
por terceiros, como também pela pos- tos políticos no Brasil o velho não aca-
sibilidade de aproximar a participa- bou de morrer e o novo não terminou
ção política à vida cotidiana17. Deste de nascer. Isso significa que, mais que
modo, as novas formas de experimen- reproduzir uma visão dicotômica en-
tar, individualmente e coletivamente, tre o «velho» e o «novo», como fazem
a experiência do ativismo e do com- alguns sujeitos presos nas entranhas
promisso político formam parte de mais imediatas do embate político,
uma mudança societária e cultural precisamos captar as tensões, as im-
mais ampla que situa os «cidadãos co- bricações, as ambivalências e as pos-
muns» no centro dos debates, das ini- síveis retroalimentações. Um exemplo:
ciativas e das práticas. Isso aproxima o o surgimento recente de novos atores
ativismo social e a cidadania ao mun- (mais descentrados), visões de mundo
do da vida e das experiências vividas (menos dogmáticas e mais libertárias),
pelas pessoas. formas de organização (mais fluídas e
transitórias) e expressividades (mais
Outrossim, as mobilizações de 2013 culturalmente orientadas) não impli-
também revelam a emergência de ca o fim das relações de cooperação
uma nova geração de militantes18, que com o Estado e o desaparecimento da
nasceu e/ou cresceu em democracia, e
não possuem as mesmas experiências, 17. G. Pleyers: «Ativismo das ruas e on line dos
movimentos pós 2011» em Lutas Sociais vol. 17
visões de mundo e relações com o cam- Nº 2, 2014, pp. 83-93.
po popular-democrático dos anos 1970 18. Rodrigo Nunes: «Geração, acontecimento,
perspectiva. Pensar a mudança a partir do
e 198019. Este está, a propósito, em ple- Brasil» em Nueva Sociedad Especial em portu-
no processo de dissolução, não somen- guês, 12/2014, pp. 14-26.
19. B. Bringel: «O futuro anterior: continuida-
te pelo profundo questionamento do
des e rupturas nos movimentos estudantis do
modelo «pt-cutista»20, como também Brasil» em Revista Eccos N°11, 2009, pp. 97-121.
pela sua incapacidade de articulação 20. Armando Boito Jr. e Andréia Galvão (eds.):
Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000,
das forças sociais emergentes. Não Alameda, São Paulo, 2012; Marco Antonio
deixa de ser curioso que aqueles ato- Perruso e Viviane Becker Narvaes: «Les jour-
nées de(puis) juin 2013» em Brésil(s): Sciences
res (como o próprio pt e outros vincu- Humaines et Sociales Nº 7, 2015, pp. 19-38.
lados aos «novos movimentos sociais» 21. E. Sader: Quando novos personagens entraram
em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da
e ao «novo sindicalismo» emergente grande São Paulo (1970-1980), Paz e Terra, São
no ciclo de luta das décadas de 1970 Paulo, 1988.
Nueva Sociedad especial em português 2015 16
Breno Bringel / Geoffrey Pleyers

sociedade civil institucionalizada. Em sociedade, mesmo que desafiandoa.


outras palavras, não há no Brasil nes- Mobilizações que não buscam formar
te momento uma substituição dos su- movimentos ou coletividades são con-
jeitos prévios nem das matrizes só- frontadas com os limites das redes
cio-políticas e ideológicas guiadas de movimentos apontadas por Lilian
pelas organizações tradicionais e pelo Mathieu22, pois, mesmo possuindo
Estado, mas sim uma coexistência, com «uma grande capacidade para im-
diferentes possibilidades de coopera- pulsionar as mobilizações, são inca-
ção e de conflito. pazes de conduzi-las para além do
protesto, já que não podem negociar
As práticas e expressividades dos ato- e alicerçar acordos de saída do confli-
res emergentes também buscam se to e não gozam da legitimidade que
distanciar da «forma-movimento» e fornecem os mecanismos eleitorais e
da «forma-partido» mais convencio- de representação».
nal e dos repertórios de mobilização
guiados por bandeiras e lemas previa- Outra ambivalência típica deste ciclo
mente definidos que são puxados por de mobilizações no Brasil é a tendên-
carros de som e ou vozes únicas. Esta cia à transversalização das agendas e
opção pelo no logo e pela ausência de das ações. Por um lado, isso tem enri-
lideranças formais é uma caracterís- quecido bastante os movimentos, pois
tica comum das manifestações brasi- a maioria das coletividades hoje não
leiras de 2013 com os acampamentos se restringe a defender somente sua
do «Occupy» e dos indignados, bem própria causa, dialogando e internali-
como dos espaços de ação dos jovens zando temas (gênero, meio-ambiente,
alter-mundialistas da década de 2000. etc.) e lutas diversas (afins, mas distin-
Embora, para alguns, isso possa ser tas). Há, no plano interno, uma assun-
lido como um ato de intolerância, para ção de muitos debates e identidades,
a maioria dos manifestantes trata-se enquanto, no plano externo, geram-
de afirmar sua autonomia diante das se demandas aglutinadoras que per-
instâncias clássicas de socialização po- mitam a inteligibilidade de lutas dis-
lítica e de organização dos militantes. tintas. Por outro lado, no entanto, a
agregação de várias agendas não ne-
Embora possa promover a criativida- cessariamente leva a uma retomada
de e o compromisso pessoal, a des- das grandes agendas políticas, como a
confiança às organizações e formas reforma agrária ou a reforma urbana.
de ação mais estruturadas pode tor-
Cabe, finalmente, frisar que as matri-
nar-se um limite quando se trata de
zes discursivas do ativismo emergente,
prolongar no tempo ideias e práticas
inovadoras ou levá-las à política insti- 22. L. Mathieu: La démocratie protestataire, Presses
tucional e a parcelas mais amplas da de Sciences Po, Paris, 2011, p. 40.
17 Nueva Sociedad especial em português 2015
Junho de 2013… dois anos depois

entendidas aqui no sentido dado por tos-chave de uma atitude e uma per-
Eder Sader décadas atrás, tem se orien- formatividade do mundo vindouro.
tado a duas tendências chamativas. A Já a segunda tendência está marcada
primeira delas é a de um discurso da pela ênfase do que podemos denomi-
urgência da ação que, mesmo sendo nar como «política dos eventos». Sob a
capaz de pensar o presente e mobilizar marca da urgência da ação, é realizada
para causas, campanhas e interven- e convocada uma infinidade de atos e
ções imediatas, não parece se projetar eventos que não necessariamente ge-
para a construção de uma utopia de ram acúmulo social. Eis aqui um desa-
um futuro ideal. De todo modo, po- fio central, pois a adoção de uma lente
der-se-ia argumentar, a despeito das analítica processual, como a aqui suge-
possíveis contradições, que, no caso rida, enfrenta-se com o movimento em
dos atores emergentes, a construção de movimento, com os atos mais visíveis
um horizonte porvir encontra-se nas prá- obscurecendo aqueles mais subterrâ-
ticas e não nos discursos, materializada neos e com um processo político trun-
em um ativismo pré-figurativo que cado e escorregadio, onde nem sempre
busca construir o mundo que quere- os eventos se concatenam claramente e
mos a partir do espaço que habitamos. cuja permanência no tempo é incerta.
Neste sentido, o compromisso pessoal Junho é mais longo e mais complexo do
e a coerência aparecem como elemen- que prevíamos em 2013.

RE­VIS­TA BRA­SI­LEI­RA
DE CIÊN­CIAS
SO­CIAIS
RBCS
Junho de 2015 San Pablo Vol. 30 No 88
ARTIGOS: Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada
do século XIX pra o século xx no Brasil, Marcelo Neves. Violência e política, Luis Felipe
Miguel. Pós-estruturalismo e a crítica como repetição, Cristiano Mendes. Entre cooperação e
centralização: federalismo e políticas sociais no Brasil pós-1988, José Angelo Machado e
Pedro Lucas de Moura Palotti. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos do
engajamento institucional nos padrões de ação coletiva, Euzeneia Carlos. O conflito social e
político nas hidrelétricas da bacia do Uruguai, Humberto José da Rocha e Hemerson Luiz
Pase. Desafios ontológicos e epistemológicos para os métodos mistos na ciência política,
Glauco Peres da Silva. Diferenciação institucional e desigualdades no ensino superior, Arnaldo
Mont’Alvão. Juventude, por cor e renda no acesso ao ensino superior: somando desvantagens,
multiplicando desigualdades?, Felícia Picanço. RESENHAS.

Revista Brasileira de Ciências Sociais (rbcs) es una publicación cuatrimestral de la Associação


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