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Norberto BOBBIO Teoria Geral Politica A Filosofia Politica e as Licées dos Classicos 14° Tiragem i) oC ELSEVIER CAMPUS Do original Teoria Generale Della Politica Tradugéo autorizada da edicdo publicada por Giulio Einaudi Editore Copyright © 1999, Giulio Einaudi Ecitore 5.9.0 © 2000, Elsevier Editora Lido. Todos os direitos reservados e protegidas pela Lei 9.610 de 19.02.1998 Nenhuma parte deste livra, sem autorizacSo prévic por escrito da editora, poderé ser reproduzida ov transmitide sejam quais forem os meios empregades: eletrénicos, mectnicos, fotogréfices, gravagae ov quaisquer outros. 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Il Titulo. coo. \ co 00.0742 __ eet RANT ECA Faculuave (ius PORES «teh Capitulo 3 Politica e moral Pp O CONCEITO DE POLITICA O significado classico e moderno de politica Derivado do adjetivo de pélis (politikés), significando tudo aquilo que se refere a cidade, e portanto 20 cidadao, civil, ptiblico e também socidvel e social, 0 termo “politica” foi transmitido por influéncia da grande obra de Ariststeles, intitulada Politica, que deve ser considera- da o primeiro tratado sobre a natureza, as fungées, as divises do Esta- do, e sobre as varias formas de governo, predominantemente no signi cado de arte ou ciéncia do governo, isto é, de reflexao, nao importa se com intengdes meramente descritivas ou também prescritivas (mas os dois aspectos sao de dificil distingao), sobre as coisas da cidade. Ocor- re, assim, desde a origem, uma transposicao de significado do conjunto de coisas qualificadas em um certo modo (ou seja, com um adjetivo qualificativo como “politico”) para a forma de saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de coisas: uma transposi¢ao nao diferente daquela que deu origem a termos tais como fisica, estética, economia, ética e, por tiltimo, cibernética. Durante séculos, o termo “politica” foi empregado predominantemente para indicar obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividade humana que de algum modo faz referéncia as coisas do Estado: Politica methodice digesta, s6 para dar um célebre exemplo, € 0 titulo da obra através da qual Johannes Althusius (1603) expés uma teoria da “consociatio publica” (0 Estado no sentido moderno da palavra), compreendendo em seu seio varias formas de “consociationes” menores. 159 Na era moderna, o termo perdeu o seu significado original, tendo sido paulatinamente substituido por outras expressdes tais como “cién- cia do Estado”, “doutrina do Estado’, “ciéncia politica”, “filosofia poli- tica” etc., para enfim ser habitualmente empregado para indicar a ativi- dade ou 0 conjunto de atividades que tém de algum modo, como termo de referéncia, a pélis, isto é, o Estado. Dessa atividade a polis ora é 0 sujeito, donde pertencem & esfera da politica atos como o de comandar (ou proibir) algo, com efeitos vinculantes para todos os membros de um determinado grupo social, 0 exercicio de um dominio exclusivo sobre um determinado territério, ode legislar com normas vélidas erga omnes, o de extrair e distribuir recursos de um setor para outro da sociedade e assim por diante; ora objeto, donde pertencem a esfera da politica agdes tais como conquistar, manter, defender, ampliar, refor- car, abater, derrubar o poder estatil etc. Prova disso é que obras que continuam a tradicdo do tratado aristotélico recebem por titulo, no século XIX, Filosofia do direito (Hegel, 1821),Sistema da ciéncia do Estado (Lorenz von Stein, 1852-56),elementos de ciéncia politica (Mos- ca, 1896), Doutrina geral do Estado(Georg Jelinek, 1900). Conserva em parte o significado tradicional a pequena obra de Croce, Elementi di politica (Elementos de politica) [1925], na qual “politica” conserva 0 significado de reflexao sobre a atividade politica, e, portanto, est4 no lugar de “elementos de filosofia politica”. Prova ulterior € aquela que se pode inferir do costume, que se impés em todas as linguas mais difundidas, de chamar de hist6ria das doutrinas, ou das idéias politicas, ou também, de modo mais geral, do pensamento politico, a histsria que, se houvesse permanecido invariado o significado que nos chegou dos classicos, deveria ser denominade hist6ria da politica, por analogia com outras expressdes tais como historia da fisica, ou da estética, ou da €tica: costume também acatado por Croce, o qual,na obra citada, intitula Per la storia della filosofia della politica [Pela histéria da filosofia da politica] o capitulo dedicado a um breve excurso historico das doutri- nas politicas modernas. A tipologia classica das formas de poder Oconceito de politica, entendida como forma de atividade ou praxis humana, estd estreitamente ligado a0 conceito de poder. O poder foi definido tradicionalmente como “consistente nos meios para se obtet alguma vantagem” (Hobbes)! ou, de modo andlogo, como “o conjunto 1. CE. TH. HOBBES, Leviatd, cap. ( dos meios que permitem conseguir os efeitos desejados” (Russell).? Sen- do um desses meios 0 dominio sobre outros homens (além do dominio sobre a naturez2),,6 poder'é definido ora como uma relagao entre dois sujeitosyna qual um impée ao outro a prépria vontade,determinando- © seu, rhalgrado 0 comportamento: mas como o dominio sobre os ho- mens nao é geralmente fim em si mesmo, mas meio para se obter—al- _ Suma vantagem’, ou,mais exatamente, “os efeitos desejados”, de modo~ ~nio distinto do dominio sobre a natureza, a definiggo de poder como tipo de relacao entre sujeitos deve ser integrada 4 definigao do poder como a posse dos meios (dos quais os dois principais sio 0 dominio sobre os outros homens e 0 dominio sobre a natureza) que permitem obter, exatamente, “alguma vantagem’”, ou os “efeitos desejados”. O_ Poder politico pertence 4 categoria do_poder de um homem sobre ou- ean (nio do poder do homem sobre a natureza). Esta relacao de der é expressa de mil maneiras, nas quais se reconhecem expresses ipicas da linguagem politic -tipicas da Tinguagem politi Ha varias formas de poder do homem sobre 0 homem: 0 poder politico é apenas uma delas. Na tradigao classica, que remonta especi- ficamente a Aristételes,-eram consideradas sobretudo trés formas de -poder:o poder paterno, o poder despético e o poder politico. Os crité- rios de diferenciagao foram, nos diferentes periodos, distintos._Em Arist6teles, vislumbra-se uma distingio com base.no interesse daquele cido 0 poder: 6 poder paterno-é-exercido no) -interesse dos filhos, 0 despético, no interesse do senhor, 0 politico, n0_ interesse de quem governa ede quem € governado. {contudo, somente nas formas corretas de governo, uma vez que as formas corruptas sao diferenciadas por suavez-exatamente por ser 0 poder exercido.no inte- : ernante).Mas 0 critério que acabou afinal prevalecendo na tratadistica dos jusnaturalistas foi aquele do fundamento ou do princi- pio de legitimagao (que se encontra formulado com clareza no capitulo XV do Segundo tratado sobre o governo civil, de Locke): 0 fundamento do poder paterno é a natureza, do poder despético, 0 castigo por um delito cometido (a tinica hipétese neste caso € aquela do prisioneiro de guerra que perdeu uma guerra injusta), do poder civil, 0 consenso. A esses trés motivos de justificagéo do poder correspondem as trés ex- pressGes classicas do fundamento da obrigagao: ex natura, ex delicto, 2. B. RUSSELL, Power. A New Soial Analysis, Allen & Unwin, Londres, 1938 (ed. it. Il potere. Una mucus ‘analisi sociale, Feltrineli, Miio, 1976/4), 162] ex contractu. Nenhum dos dois critérios, contudo, permite individuar o carter especifico do poder politico. De fato, que 0 poder politico se caracterize, em comparacao com o paterno e 0 despético, por se voltar para os interesses dos governantes e dos governados ou por se fundar sobre o consenso, € um carter distintivo nao de qualquer governo, mas apenas do bom governo: no é uma conotacao da relaco politica en- quanto tal, mas da relacao politica correspondente ao governo como deveria ser. Na verdade, os escritores politicos sempre reconheceram tanto governos paternalistas quanto governos despéticos, ou seja, go- vernos nos quais a relacao entre soberano e stiditos é aproximada ora da relagao entre pai e filhos, ora da relagao entre senhor e€ escravos, os quais nao so de fato menos governos do que aqueles que agem pelo bem piblico e se fundam sobre 0 consenso. A tipologia moderna das formas de poder _Ao objetivo de encontrar 0 elemento especifico do poder politico, parece mais conveniente o critério de classificacio das varias formas de poder que se funda sobre os meios dos quais se serve 0 sujeito ativo da relagao para condicionar 0 comportamento do sujeito passivo..Com base neste critério, podern-se-distinguir trés grandes tipos no ambito do conceito latissimo de poder. Esses tipos sac: 0 poder econmico, 0 poder ideolégico e 0 poder politico. O primeiro ¢ aquele que se vale da posse de certos bens necessarios, ou assim considerados em uma situa- Gao de escassez, para induzir aqueles que nao os possuem a ter uma certa conduta, consistente principalmente na execugao de um certo tipo de trabalho. Na posse dos meios de produgio reside uma enorme fonte de poder por parte daqueles que os possuem em relag&o aqueles que nao os possuem: o poder do chefe de uma empresa deriva da pos- sibilidade que a posse ou a disponibilidade dos meios de producao lhe dé de obter a venda da forca-trabalho em troca de um salério. Em geral, qualquer um que possua abundanca de bens é capaz de condicionar 0 comportamento de quem se encontra em condigées de pentiria, atra- vés da promessa ¢ atribuigéo de compensagées. O poder ideolégico funda-se sobre a influéncia que as idéias formuladas de um determina- do modo, emitidas em determinadas circunstincias, por uma pessoa investida de uma determinada autoridade, difundidas através de deter- minados procedimentos, tém sobre a conduta dos consociados: desse tipo de condicionamento nasce a importincia social em cada grupo or- ganizado daqueles que sabem, dos sapientes, sejam eles os sacerdotes das sociedades arcaicas, sejam eles os intelectuais ou os cientistas das sociedades evoluidas, porque através deles, e dos valores que eles di- fundem, ou dos conhecimentos que eles emanam, cumpre-se 0 proces- so de socializacao necessario 4 coesao e integracdo do grupo. O poder politico, enfim, funda-se sobre a posse dos instrumentos através dos quais-se exerce a forca fisica (armas.de todo tipo e grau): € 0 poder coativo.no sentido mais estrito da palavra. Todas as trés formas de po- der instituem ¢ mantém uma sociedade de desiguais, isto é, dividida entre Ficos-e.pobres, com base no prim tes, com base-no s segundo, entre fortes e fracos, com base ao 0 terceiro: genericamente, entre superiores. ¢ inferiores— Enquanto poder cujo meio especifico é a forca — entenda-se, como veremos adiante, o uso exclusivo da forga —, qué é 0 meio desde sem- pre mais eficaz para condicionaros comportamentos, 9 poder politico em qualquer sociedade de desiguais 0 poder supremo, isto €, 0 po- der ao qual todos osjoutros estao de algum modo subordinados: Jp poder coativo de fato oe fe ao qual recorre qualquer grupo social (a classe dominante de qualquer grupo social), em ultima instancia, ou como extrema ratio, para se defender dos ataques externos ou para impedir, com a desagregacio do grupo, a propria eliminacao. Nas relagées entre os membros de um mesmo grupo social, nao obstante o estado de su- bordinagéo que a expropriagio dos meios de produgao cria nos expro- priados em relacdo aos expropriadores, nao obstante a adesao passiva aos valores de grupo por parte da maioria dos destinatérios das mensa- gens ideolégicas emitidas pela classe dominante, apenas 0 emprego da forga fisica serve, ainda que apenas em casos extremos, para impedir a insubordinagao e a desobediéncia dos submetidos, como a experiéncia hist6rica prova com abundantes exemplos. Nas relagées entre grupos sociais distintos, nao obstante a importancia que possam ter a ameaga ou a execugao de sangSes econdmicas para induzir 0 grupo adversério a desistir de um certo comportamento (nas relagées intergrupo tem menos relevancia o condicionamento de natureza ideolégica), o instrumento decisivo para impor a propria vontade é o uso da forca, a guerra. Essa distingdo entre os principais tipos de poder social pode ser novamente encontrada, embora expressa de diferentes maneiras, na maioria das teorias sociais contemporaneas, nas quais o sistema social em seu todo aparece direta ou indiretamente articulado em trés subsistemas principais, que s4o a organizag’o das forgas produtivas, a organizagio do consenso, a organizacéo da coagao. Também a teoria marxiana pode ser interpretada do seguinte modo: a base real, ou es- trutura, compreende o sistema econ6émico; a superestrutura, cindindo- se em dois momentos distintos, compreende 0 sistema ideolégico e 0 [163 sistema mais propriamente jurfdico-politico. Gramsci distingue clara- mente, na esfera superestrutural, 0 momento do consenso (que ele chama de sociedade civil) ¢ o momento do dominio (ao qual denomina sociedade politica ou Estado). Durante séculos os escritores politicos distinguiram 0 poder espiritual (aquele que hoje chamariamos de ideo- légico) do poder temporal, e sempre interpretaram 0 poder temporal como constitufdo da uniao do dominium (que hoje chamarfamos de poder econémico) e do imperium (ao que hoje chamariamos poder mais propriamente politico). Tanto na dicotomia tradicional (poder espiri- tual e poder temporal) quanto na dicotomia marxiana (estrutura e su- perestrutura) encontramos as trés formas de poder, sempre que se in- terprete corretamente o segundo termo, em ambos os casos, como sen- do composto de dois momentos. A diferenga estd no fato de que na teoria tradicional 0 momento principal € 0 ideolégico, no sentido de que o poder econémico-politico € concebido como dependente direta ou indiretamente do poder espiritual, enquanto na teoria marxiana 0 momento principal é 0 poder econdmico, no sentido de que © poder ideolégico e 0 poder politico refletem mais ou menos imediatamente a estrutura das relagées de produgao. O poder politico f Que a possibilidade de recorrey 4 forsa séja 0 elemento que distin- gue o poder politico das outras formas de poder nao significa qué o poder politico se resuma ao uso da forca: 0 uso da forca é uma condigao necessdria, mas nao suficiente para a existéncia do poder politico. Nem todo grupo social com condigées de usar, até mesmo com certa conti- nuidade, a forca (uma associacao de delingientes, um bando de pira- tas, um grupo subversivo etc.) exerce um poder politico. O que carac- teriza o poder politico é a-exclusividade do-uso da forga em relacao a todos os grupos que agem em um determinado contexto social, clusividade que € 0 resultado de um processo que se desenvolve, ém_ toda sociedade organizada, na direcio da monopolizacio da posse e do uso dos meios com os quais ¢ possivel exercer a coagio fisica. Esse processo de monopolizacao caminha pari passu com 0 processo de criminalizagao € penalizacao de todos os atos de violéncia que nao fo- rem cumpridos por pessoas autorizadas pelos detentores e beneficidrios desse monopélio. Na hipétese hobbesiana, que esta no fundamento da teoria moder- na do Estado, a passagem do estado de natureza para o Estado civil — ou 164] da anarquia para a arquia, do estado politico para o Estado politico — ocorre quando os individuos renunciam ao direito de usar cada qual a propria forca que os torna iguais no estado de natureza para deposité-lo nas maos de uma tinica pessoa ou de um tinico corpo que de agora em diante sera o tnico autorizado a usar a forca no interesse deles. Esta hip6tese abstrata adquire profundidade histérica na teoria do Estado de Marx e de Engels, segundo a qual as instituicdes politicas em uma sociedade dividida em classes antagénicas tém por principal funcao permitir que a classe dominante mantenha 0 préprio dominio, objetivo que nao pode ser alcangado, dado o antagonismo de classe, sendo me- diante a organizacao sistematica e eficaz da forca monopolizada (e é por isso que cada Estado 6, e nao pode deixar de ser, uma ditadura). Neste sentido, tornou-se ja cldssica a definigéo de Max Weber: “Por Estado deve-se entender uma empresa institucional de carater politico na qual —e na medida em que —o aparato administrativo leva adiante com sucesso uma pretensdo de monopélio da coercio fisica legitima, tendo em vista a aplicagao das disposiges”.> Esta definicao jé se tor- nou quase lugar-comum na ciéncia politica contempordnea. Em um dos dois manuais de ciéncia politica mais conceituados, G. A. Almond e G. B. Powell escrevem: “Concordamos com Max Weber quanto ao fato de que a forca fisica legitima € o fio condutor da aco do sistema politico, aquilo que Ihe confere a sua particular qualidade e importancia e a sua coeréncia como sistema. As autoridades politicas, e apenas elas, tem o direito predominantementé aceito de usar a coergao e de exigir obe- diéncia com base nela (...). Quando falamos de sistema politico, incluf- mos todas as interag6es relativas ao uso ou 4 ameaca do uso da coercdo fisica legitima”.‘ A supremacia da forga fisica como instrumento de po- der sobre todas-as outras formas de poder (entre as quais as duas princi- pais, além da forga fisica, sao 0 dominio sobre os bens, que dé lugar ao poder econémico, e 0 dominio sobre as idéias, que dé lugar ao poder ideol6gico) pode ser demonstrada se considerarmos que, por mais que na maioria dos Estados histéricos 0 monopélio do poder coativo tenha buscado e encontrado a prépria sustentacao na imposigao das idéias (“as idéias dominantes”, segundo conhecida frase de Marx, “sao as idéias da classe dominante”), dos deuses patrios 4 r il, do Estado con- 3M. WEBER, Wirtschaft wad Gesellschaft, organizado por J, Winckelmaan, Mohs, Tabingea, 1976/5, vol. 1, p 29 (ed. it: Economia e societa, organizaco por P, Ross, Ediioni di Comunita,2 vols, Milio, 1974/3, nova ed, ém $ vol, vl 1p. $3) 4.G-A ALMOND, G. B. POWELL, Comparative Folic. Dewlopmental Approach Lite, Brown, Boston, 1966 (ed. it: Politica comparata, il Mulino, Solonbs, 1970, 7.35. [Existe uma nova edigso medifads Comparative Politics. Sytem, Pros, an Policy, Lil, Brown & Co, Boston, 1978 (ed Pata compara Sistema, process e police, il isino, Bolonhs, 1988 A passagem correspond Squela stad, em Divers ‘Tad. encontra-se na p.27) 165 fessional a religiio de Estado, e na concentragao e direcionamento das atividades econémicas principais, hé contudo grupos politicos organiza~ dos que puderam consentir na desmonopolizacao do poder ideolégico e do poder econémico (disso ¢ exemplo 0 Estado liberal-democratico ca- racterizado pela liberdade do dissenso, embora dentro de certos limites, e pela pluralidade dos centros de poder econémico). Mas nao hé grupo social _organizado que tenha até agora podido consentir na desmo- nopolizacio do poder coativo, evento que significaria nada menos que 0 fim do Estado, e que, enquanto tal, constituiria um verdadeiro salto qua- itatjvo para fora da historia, no reino sem tempo da utopia. ‘Algumas caracteristicas habitualmente atribufdas ao poder politico —e que o diferenciam de qualquer outra forma de poder — sio conse- qiiéncia direta da monopolizagao da forga no ambito de um determina- do territério em relagio a um determinado grupo social. Sao elas: a exclusividade, a universalidade e a inclusividade. Por exclusividade en- tende-se a tendéncia que os detentores do poder politico manifestam de nao permitir, no seu ambito de dominio, a formagao de grupos ar- mados independentes, e de subjugar, ou desbaratar, aqueles que forem se formando, além de manter sob vigilancia as infiltracdes, as ingerén- cias ou as agressdes de grupos politicos externos. Esta caracteristica distingue 0 grupo politico organizado da “societas” de “latrones” (0 “latrocinium” do qual falava santo Agostinho). Por universalidade en- tende-se a capacidade que tém os detentores do poder politico, e ape- nas eles, de tomar decisées legitimas e efetivamente operantes para toda a comunidade com relagao A distribuicéo e destinagao dos recur- sos (nao apenas econémicos). Por inchusividade entende-se a possibili- dade de intervir imperativamente em cada possivel esfera de atividade dos membros do grupo, encaminhando-os para um fim desejado ou distraindo-os de um fim nao-desejado através do instrumento da or- dem juridica, isto ¢, de um conjunto de normas primérias voltadas para os membros do grupo e de normas secundérias voltadas para os funcio- nérios especializados, autorizados a intervir no caso de violagao das pri- meiras. Isto nao significa que o poder politico nao imponha limites a si mesmo. Mas sao limites que variam de uma formacio politica para outra: um Estado teocratico estende o préprio poder a esfera religiosa, enquanto um Estado laico se rende diante dela; assim também, um. Estado coletivista estende o proprio poder a esfera econémica, enquan- to o Estado liberal classico dela se afasta. O Estado oniinclusivo, isto é, © Estado para o qual nenhuma esfera de atividade humana permanece estranha, é o Estado totalitdrio, e é, em sua natureza de caso-lit 166] sublimagao da politica, a politizacao integral das relacdes sociais O fim da politica Uma vez individuado 0 elemento especifico da politica no meio do qual se serve, perdem forca as tradicionais definicGes teleolégicas, que tentam definir a politica mediante o fim ou os fins que ela persegue. Com relacao ao fim da politica, a tinica coisa que se pode dizer é que, se 0 poder politico é, exatamente em razio do monopélio da forsa, 0 poder supremo em um determinado grupo social, os fins que vierem a ser perseguidos por obra dos politicos sao os fins considerados segundo as circunstancias preeminentes para um dado grupo social (ou para a classe dominante daquele grupo social): para dar alguns exemplos, em tempos de lutas sociais e civis, a unidade do Estado, a concérdia, a paz, a ordem publica etc.; em tempos de paz interna e externa, o bem-estar, a prosperidade ou até mesmo a poténcia; em tempos de opressao por parte de um governo despstico, a conquista dos direitos civis e politi- cos; em tempos de dependéncia de uma poténcia estrangeira, a inde- pendéncia nacional. Isso significa que nio hé fins da politica para sem- pre estabelecidos, e muito menos um fim que compreenda todos os outros e possa ser considerado o fim da politica: os fins da politica so tantos quantas forem as metas a que um grupo organizado se propée, segundo os tempos e as circunstancias. Esta insisténcia no meio mais do que no fim corresponde de resto 4 communis opinio dos te6ricos do Estado, os quais excluem o fim dos chamados elementos constitutivos do Estado. Recorramos uma vez mais a Max Weber: “Nao é possivel definir um grupo politico — e tampouco 0 Estado — indicando 0 obje- tivo do seu agir de grupo. Nao ha objetivo que grupos politicos ndo tenham alguma vez proposto (...) Pode-se, portanto, definir 0 carater politico de um grupo social somente mediante o meio (...), que nao é proprio exclusivamente dele, mas é em cada caso especifico, e indis- pensdvel para a sua esséncia: 0 uso da forca”.> Essa remogiio do juizo teleolgico nao impede contudo que se possa falar, com correcao, pelo menos de um fim minimo da politica: a or- dem publica nas relacées internas e a defesa da integridade nacional nas relagdes de um Estado com 0s outros Estados. Esse fim € minimo, por- que € a conditio sine qua non para a realizacao de todos os outros fins, sendo portanto com eles compativel. Mesmo 0 partido que deseja a desordem, deseja a desordem néo como objetivo final, mas como mo- mento obrigatério para transformar a ordem existente e criar uma nova ordem. Além do mais, é licito falar da ordem como fim minimo da 5.M: WEBER, Wirtschaft unl Gesellschaft cit, vol. L, pp. 29-30 (ed. it: 1974e 1980; vol I, pp. 53-54). [167 politica porque ela €, ou deveria ser, o resultado direto da organizagao do poder coatiyo, porque, em outras palavras, esse fim (a ordem) for- ma um todo com o meio (0 monopélio da forga): em uma sociedade complexa, fundada sobre a divisio do trabalho, sobre a estratificacao de segmentos e classes, em alguns casos também sobre a sobreposicio de populagées e ragas distintas, somente o recurso em iiltima instancia a forca impede a desagregacao do grupo, o retorno, como diriam os antigos, ao estado de natureza. Tanto é verdade que o dia em que fosse possivel uma ordem espontinea, como imaginaram varias escolas eco- némicas e politicas, dos fisiocratas aos anarquistas, ou aos préprios Marx e Engels, na fase do comunismo plenamente realizado, ndo mais have- ria, propriamente falando, politica. Quem considerar as tradicionais definicées teleolégicas de politica nao tardard a perceber que algumas delas nao sio definicoes descriti- vas, mas sim prescritivas, no sentido de que nao definem o que é con- cretamente e normalmente a politica, mas indicam como deveria ser a politica para ser uma boa politica; outras diferem apenas em palavras (as palavras da linguagem filoséfica sio com freqiiéncia intencional- mente obscuras) da definicao aqui oferecida. Toda a histéria da filoso- fia politica transborda de definicées prescritivas, a comecar por aquela de Aristételes: como é sabido, Aristételes afirma que o fim da politica nao € 0 viver, mas 0 viver bem (Politica, 1278b). Mas em que consiste a vida boa? Como distingui-la da m4? E se uma classe politica tiraniza os seus stiditos condenando-os a uma vida desgracada e infeliz, nao esta por acaso fazendo politica, e 0 poder que exerce por acaso nio é um poder politico? O mesmo Aristételes distingue as formas puras de go- verno das formas corruptas (e antes dele Plato, e depois dele muitos outros escritores politicos ao longo de vinte séculos): embora aquilo que diferencia as formas corruptas das puras seja que naquelas a vida nao é boa, nem Aristételes nem todos os escritores que depois dele vieram jamais Ihes negaram o cardter de constituicées politicas. Nao nos iludam outras teorias tradicionais que atribuem politica outros fins além da ordem, como o bem comum (o préprio Aristételes e de- pois dele o aristotelismo medieval) ou a justica (Platao): um conceito como o de bem comum, caso queiramos liberté-lo da sua extrema ge- neralidade, através da qual pode significar tudo e nada, e queiramos indicar-lhe um significado plaus‘vel, nao pode designar senao aquele bem que todos os membros de um grupo tém em comum, bem este que outro nao é sendo a convivéncia ordenada, em uma palavra, a or- dem; quanto a justica em sentido platénico, se a entendemos, uma vez 168] | dissipadas todas as névoas retéricas, como o principio com base no qual é bom que cada um faca aquilo que dele se espera no ambito da socie- dade como um todo (Reptiblica, 433a), justica e ordem so a mesma coisa. Outras nogées de fim, como felicidade, liberdade, igualdade, sio demasiado controversas, e também elas interpretaveis das maneiras mais dispares para que delas se possam extrair indicacdes titeis para individuar © fim especifico da politica. Outro modo de escapar as dificuldades de uma definigao teleolégica de politica ¢ definindo-a como aquela forma de poder que outro fim nao tem além do préprio poder (donde poder é ao mesmo tempo meio e fim, ou, como se costuma dizer, fim em si mesmo). “O carter politi- co da acéo humana — escreve Mario Albertini — emerge quando o poder se torna um fim, é buscado em certo sentido por si mesmo, e constitui o objeto de uma atividade especifica’, diferente do que ocorre com o médico que exerce 0 préprio poder sobre o doente para curé-lo, ou do rapaz que impée o seu jogo aos colegas nao pelo prazer de exer- cer um poder, mas pelo prazer de jogar. Pode-se objetar a esse modo de definir politica dizendo que ele nao define tanto uma forma especifica de poder, mas um modo especifico de exercé-lo, e portanto se aplica igualmente bem a qualquer forma de poder (seja ele o poder econdmi- co, ou 0 poder ideolégico, e assim por diante). O poder pelo poder éa forma degenerada do exercicio de qualquer forma de poder, que pode ter por sujeito tanto quem exerce aquele poder de amplas dimensdes que € o poder politico quanto quem exerce um pequeno poder, como pode ser o poder de um pai de familia, ou de um chefe de segao que supervisiona uma dtizia de operérios. A razio pela qual pode parecer que o poder como fim em si mesmo seja caracteristico da politica (mas seria mais exato dizer de um certo homem politico, o homem politico maquiavélico) est no fato de nao existir um fim tao especifico da po- litica tal como, ao contrério, existe um fim especifico do poder que o médico exerce sobre 0 doente, ou do rapaz que impde um jogo aos seus colegas. Se o fim da politica (e nao do homem politico maquiavélico) fosse realmente o poder pelo poder, a politica nao serviria para nada. Provavelmente a definicao da politica como poder pelo poder deriva da confusao entre o conceito de poder e 0 conceito de poténcia: nao ha diivida de que entre os fins da politica também esteja aquele da potén- cia do Estado (quando se leva em consideracio a relagdo do préprio Estado com outros Estados). Mas uma coisa é uma politica de poténcia, outra coisa € o poder pelo poder. E, além disso, a poténcia nada mais é 6. M. ALBERTINI, “La politica”, in La politica ed altri saggi, Gtuffré, Milio, 1963, p. 9 ‘170| que um dos fins possfveis da politica, um fim que apenas alguns Esta- dos podem razoavelmente perseguir. \ , Adds A politica como relacao amigo-inimigo Entre as mais conhecidas e discutidas definig6es de politica deve- mos considerar aquela de Carl Schmitt (retomada e ampliada por Julien Freund), segundo a qual a esfera da politica coincide com a esfera da relacao amigo-inimigo. Com base a nessa definicao, campo de origem e de aplicacao da politica seria 0 antagonismo, € a suafungao consistiria na atividade de agregar e defender os amigos e de deagregar e comba- ter os inimigos. Para reforcar a sua definicao, fundads sobre uma oposi- cdo fundamental (amigo-inimigo), Schmitt comparaa is definigdes de moral, de arte etc. fundadas, também eles, sobre oposigdes fundamen- tais, tais como bom-mau, belo-feio etc. “A especificadistingao politica, A qual é possivel reconduzir as agdes e os motivos politicos, é a distin- cdo entre amigo e inimigo (...). Uma vez que nio é cerivavel de outros critérios, ela corresponde, para a politica, aos critérios relativamente auténomos das outras oposigées: bom e mau para a moral, belo e feio para a estética, e assim por diante”.’ Drasticamente, Freund expressa- se nos seguintes termos: “enquanto houver politica, ela dividira a cole- tividade em amigos e inimigos”’. E comenta: “Quanto mais uma oposi- cao se desenvolve em direcio a distingao amigo-inimigo, mais se torna politica. A caracteristica do Estado € suprimir no interior do seu ambi- to de competéncia a divisdo dos seus membros ou grupos internos em. amigos ¢ inimigos, com 0 objetivo de nao tolerar senio as simples riva- lidades agonisticas ou as lutas dos partidos, e reservar ao governo 0 direito de designar o inimigo externo. (...) Fica portanto claro que a oposicdo amigo-inimigo é politicamente fundamentd’” Nao obstante a pretensao de valer como definigio global do fené- meno politico, a definicéo de Schmitt considera a politica segundo uma perspectiva unilateral, ainda que importante, que € aquela do particu- lar tipo de conflito que por sua vez distinguiria a esfera das agdes polf- ticas. Em outras palayras, Schmitt e Freund parecem estar de acordo quanto aos seguintes pontos: a politica tem a yer coma conflituosidade humana; ha varios tipos de conflitos, sobretudo conflitos agonisticos e 7.C. SCHMITT, Der Begriff des Paitischen, Duncker unc Humblot, Minchen-Liimig 1932 (ed. it: Iconcetto «is “politico”, in ID., Le categorie de! “poitice", organ:zado por G. Miglio e f Schera, il Mulino, Boloaka, 1972, reimp., 1998, p. 108). 8. J. FREUND, Lessence du politique, Sirey, Paris, 1965, p. 448. 9.1. FREUND, Lessence du politique cit. 445 216 Capitulo 4 Politica e direito 1 AS FRONTEIRAS DA POLITICA I. Caracteristicas do poder politico Geralmente usamos 0 termo “politica” para designar a esfera das agGes que faz alguma referéncia direta ou indireta 4 conquista e ao exercicio do poder tiltimo (ou supremo, ou soberano) em uma comuni- dade de individuos sobre um territério. Na determinagao daquilo que esté incluido no ambito da politica nao se pode prescindir da individuacao das relagdes de poder que em cada sociedade se estabelecem entre individuos e entre grupos, enten- dido 0 poder como a capacidade que um sujeito tem de influenciar, condicionar, determinar o comportamento de um outro sujeito. A rela- Gao entre governantes e governados, na qual se resume a relacio politi- ca principal, € uma tipica relagdo de poder. Desde a Antigitidade o tema da politica esteve associado ao tema das varias formas de poder do homem. Do grego kratos, forca, poténcia, e archia, autoridade, nas- cem os nomes das antigas formas de governo ainda hoje em uso, como “aristocracia”, “democracia’, “plutocracia”, “monarquia”, “oligarquia”, “diarquia”, e assim por diante em todes as palavras que foram forjadas para designar formas de poder politico, “fisiocracia”, “burocracia”, “partidocracia”, “poliarquia”, “hexarquia”. A tipologia clissica propa- gada ao longo dos séculos é aquela que podemos ler na Politica de Aristételes, que distingue as trés formas tipicas de poder com base na distinta sociedade na qual se aplica: 0 poder do pai sobre os filhos, do senhor sobre os escravos, do governante sobre os governados. Este tilti- mo € 0 poder politico, isto é, o poder exercido na pélis (que em grego significa “cidade”, definida pelo préprio Aristételes como comunidade auto-suficiente de individuos que convivem em um territério). Varios sao os critérios em cada situagdo adotados para distinguir essas trés formas de poder. O mesmo Aristoteles utiliza o critério das pessoas no interesse das quais se exerce o poder: o paterno, no interesse dos fi- Thos, 0 senhorial, no interesse do senhor, o politico, no interesse de ambas as partes da relagdo, que € 0 chamado “bem comum” (bonum commune). Na era moderna, quando John Locke (no inicio do Secondo trattato sul governo civile [Segundo tratado sobre o governo civil], 1690) declara querer enfrentar o problema da distingao entre o poder do pai sobre os filhos e do capitao de uma galera sobre os galeotes (que é a forma de escravidao do seu tempo) em relagao ao governo civil, susten- ta que o primeiro repousa sobre a geragao (ex natura), o segundo sobre 0 direito de punir (ex delicto) e 0 terceiro sobre 0 consenso (ex contractu). Essa triparticao das formas de poder teve também uma gran- de importancia histérica porque permitiu fazer a distincdo entre o bom governo € o mau governo: com efeito, duas formas tradicionais de mau governo sao tanto o governo paterno ou patriarcal, no qual o governante se comporta com os stiditos como se fossem seus filhos (e, portanto, como se nunca atingissem a maioridade), quanto o governo despético (em grego despétes significa senhor [padrone]}), no qual o governante trata os seus stditos como escravos. Patriarcalismo e despotismo sio, em outras palavras, formas degeneradas de poder politico porque nao o reconhecem e, portanto, dele nao salvaguardam a natureza especifica. A relacdo de poder politico é apenas uma das infinitas formas de relaco de poder existentes entre os homens. Para caracterizé-la, pode- se recorrer a trés critérios distintos: a fungao que ela exerce, os meios dos quais se serve, o fim ao qual tende. Tuminadoras com relacao a fungio séo as metéforas as quais, desde a Antigitidade, se recorreu para definir a natureza do governo. As met- foras mais freqiientes inspiram-se ora em um modelo biomérfico, se- gundo o qual a comunidade que constitui a pélis é concebida como um organismo comparavel ao corpo humano, composto por membros que exercem cada qual uma fungao prépria no todo, ora em um modelo tecnomorfo, segundo 0 qual a tarefa do governante é extraida da analo- gia com uma profissio ou uma arte (em grego téchne). No primeiro modelo, ao governo é habitualmente atribuido o papel da mente (ou da alma) para mostrar que ele desenvolve uma fungio superior que con- siste em guiar, dirigir e comandar, e, enquanto tal, diferente da funcdo meramente executiva das outras partes do corpo social. No segundo 217 modelo, as profissdes ou artes mais freqiientemente levadas em consi- deragao sao 0 pastor, 0 timoneiro [nocchiero] (gubernator significa em latim timoneiro, de gubernaculum, timio), 0 auriga, 0 médico, 0 tece- lao. O pastor protege o rebanho do ataque dos lobos, conduzindo-o ao pastoreio; o timoneiro pilota 0 navio seguindo a rota e comanda os marinheiros; 0 auriga guia e refreia os cavalos; 0 médico cura as doengas eas chagas do corpo, evitando que ele se decomponha e morra; 0 tece- lao compée e recompée o tecido lacerado, trabalhando a urdidura ea trama. Em todas essas metdforas é colocada em particular destaque, uma vez mais, a funcao de guiar (0 pastor, o auriga), de dirigir (0 timo- neiro); além dessas, surgem também outras fungdes como aquela de intervir para curar os conflitos (0 médico) e para preveni-los (0 tece- lao). Sao todas funcdes que, para serem exercidas, necessitam do po- der de comandar e, portanto, de conseguir a obediéncia até mesmo contra os recalcitrantes, e de punir aqueles que nao obedecem. Por mais arcaicas que sejam, essas metéforas servem muito bem, ainda hoje, para indicar os tracos principais das fungdes do governo hoje habitual- mente divididas em legislativa, executiva, judiciéria. Desempenhando a fungao legislativa, o poder politico direciona positivamente (coman- dando) ou negativamente (proibindo) os comportamentos dos mem- bros da comunidade para os fins preestabelecidos; mediante a funcio executiva, consegue fazer com que esses fins sejam alcangados; exer- cendo a fungao judicidria, soluciona os conflitos que nascem na socie- dade e que, nao solucionados, seriam causa de desagregacio, e age de modo a fazer justiga (iustitia fundamentum regnorum). Todavia, nem a distingao clissica do poder politico em relagao a0 poder paterno e 20 poder despético, nem a determinacgao em relagao a fungao permitem individuar e delimitar 0 campo da politica. A primei- ra distingao nao é analitica, mas axioldgica, e serve portanto para carac- terizar a esfera da politica tal como deveria ser e nao como €: um Esta- do patriarcal tanto quanto um Estado despético também sao Estados, e 0 exercicio das atividades que a eles concerne inclui-se perfeitamente na categoria da politica. A segunda também caracteriza formas de po- der distintas do poder politico: a fungao de dirigir através da emissio de atos imperativos, dos quais deriva a relagdo comando-obediéncia, é prépria tanto do pai de familia quanto do dono de uma fabrica, ou do comandante de um exército, ou do professor na escola. Dessa insufi- ciéncia derivam as varias tentativas de definir a politica através de um novo critério, 0 critério do fim. Mas esse critério também é inadequa- do. Qual € o fim da acao politica? Remonta a Antigiiidade —e, portan- 218] to, foi transmitida ao longo dos séculos e chegou até nés — a afirmacéo de que o fim da politica é 0 bem.comum, entendido como bem da comunidade distinto do bem dos individuos que a compéem. A distin- do entre bem comum (bonum commune) ¢ bem proprio (bonum proprium) é, aliés, aquela que desde Aristételes serve para distinguir as formas de governo boas das formas de governo corruptas: o bom gover- no € aquele que se preocupa com o bem comum, o mau olha o préprio bem, vale-se do poder para satisfazer a interesses pessoais. Essa distin- ao continua valida: o critério mais difundido do qual se serve o ho- mem comum para julgar a acao do homem politico funda-se na oposi- do entre interesse piiblico e interesse privado. Mas, precisamente por- que essa distingdo serve muito bem para diferenciar as formas boas de governo daquelas més, nao serve igualmente bem para caracterizar a politica enquanto tal, e portanto tomba sob a mesma critica da prece- dente: uma coisa € 0 juizo de valor, outra coisa 0 juizo de fato. Do ponto de vista do juizo de fato, que permite apenas diferenciar a acdo politica das agdes nao-politicas, também a agdo do mau governante se encaixa perfeitamente na categoria geral da politica. Alids, se confiar- mos do juizo corrente, é mais comum ouvir dizer que a politica é feita por individuos interessados exclusivamente em aumentar a prépria van- tagem. Quando Maquiavel, no famoso capitulo XVIII de O principe, descreve as qualidades que deve ter quem tem em mios 0 destino de um Estado, afirma que esse alguém deve combinar a0 mesmo tempo as qualidades do ledo e da raposa, isto é, a forca e a astuicia: sao duas qualidades que nada tém a ver com o fim do bem comum, mas concernem exclusivamente ao objetivo imediato de conservar 0 poder, independentemente do uso piblico ou privado que desse poder o governante demonstre querer fazer. Mesmo prescindindo desse argumento, o conceit de bem comum, nao obstante sua longa histéria, é tudo, menos claro. Ele enfrenta no minimo duas grandes dificuldades, 2 indeterminagdo ou variedade de significados historicamente verificdveis e a dificuldade de encontrar os procedimentos adequados para verifica-lo em cada situagao. Qual seja a variedade histérica dos significados de bem comum nas diferentes comunidades é provado pela maior ou menor extensao dos fins propos- tos ao Estado segundo se considere necesséria uma maior ou menor extensio da esfera publica em relacdoa esfera privada. A multiplicidade dos fins que as comunidades politicas se propuseram nas diferentes situagdes histéricas fez com que Montesquieu afirmasse: “por mais que todos os Estados tenham em geral o mesmo fim, que € a sua propria conservacao, cada qual é levado a desejar um em particular”, donde temos que “o engrandecimento era o fim de Roma; a guerra, o dos espartanos; a religiao, o das leis hebraicas; o comércio, o dos marselheses etc.”.! Diante dessa constatacao, 0 fim do Estado nao é geralmente levado em consideracao pelos escritores de direito pablico como um dos elementos constitutivos da definigio de Estado. “Nao é possivel definir um grupo politico —e tampouco o Estado — indicando 0 obje- tivo do seu agir de grupo.” Assim escreve Max Weber, ¢ explica: “Nao ha nenhum objetivo que grupos politicos nao tenham alguma vez pro- posto, do esforco de prover o sustento 4 protecdo da arte; e nado ha nenhum que todos tenham perseguido, da garantia de seguranga pes- soal & determinagao do direito”? Para Hans Kelsen, 0 Estado é uma ordem coativa, um conjunto de normas que se fazem valer contra os transgressores até mesmo recorrendo a forga; assim sendo, é definido como uma técnica de organizacao social, e portanto, enquanto técnica, pode ser utilizado para os objetivos mais diversos. Uma saida para essa real dificuldade consiste em distinguir 0 bem comum que pode ser mantido indeterminado, sendo variavel segundo os tempos, os lugares € 0s diferentes regimes, do bem que todos os individuos reunidos em uma comunidade politica tém em comum, e que também pode ser chamado de objetivo minimo de cada Estado, aquele objetivo que, caso no seja alcancado, o Estado deixa de existir ou se dissolve, e que por isso serve para distinguir no, por exemplo, o Estado liberal do Estado socia- lista (dois Estados cujos fins tiltimos sao certamente distintos), mas uma comunidade politica, qualquer que seja, de uma comunidade nao-politi- ca; esse objetivo minimo € a ordem piblica interna e internacional. Para além desse objetivo minimo, que € o pressuposto mesmo do nascimento da comunidade politica, a dificuldade de determinar, em cada situagéo, em que consiste o bem comum — pensemos, por exem- plo, nas decisSes que cada governo deve tomar com relagio ao tema da politica escolar, da politica religiosa, da politica econémica, da politica militar etc. — depende do fato de queas escolhas possiveis séo muitas, e que a escolha de uma alternativa no lugar de outra depende, por sua vez, da relagao de forca entre os varios grupos politicos e dos procedi- mentos que sao adotados para se tomarem as decises vinculadoras da inteira coletividade, e que sio exatamente as decisées propriamente polfticas. Em uma sociedade fortemente dividida em classes contra- postas, é provavel que o interesse da classe dominante seja assumido e L.MONTESQUIE, Esprit des los (1748), livro XL, c. ¥ (el. i: Lo sprite delle lege organizao por S. Cotta, Uset, Tarim, 1952, reimp. 1973, vol. Ip 274) 2.M. WEBER, Wirtschaft und Gesellschef, organizado pot J. Winckelmaan, Mohr, Tubingen, 1976/5, val. 1, pp. 29-30 (ed. it: Economia ¢ societa, srnizade por P. Rossi, Edizioni ci Comunith, 2 vols,, Mildo, 1974/3, nova ed. em 5 vols, 1980, vol. I, po. 53-54) sustentado até mesmo coercitivamente enquanto interesse coletivo. Em uma sociedade pluralista e democritica, na qual decisdes coletivas séo tomadas pela maioria (ou pelos préprios cidadaos, ou por seus repre- sentantes), considera-se interesse coletivo aquilo que foi aprovado pela maioria: mas trata-se de uma simples presungao fundada sobre uma “itil convencao mais do que sobre argumentos racionais. O tinico crité- rio razodvel, que € aquele do qual séo fautores os utilitaristas, e que consiste em levar em conta as preferéncias individuais e delas partir, vai em diregao a todas as dificuldades inerentes ao calculo das preferéncias e ao modo de somé-las nas quais se debate, sem saida aparente, a teoria das decisdes racionais. O critério mais adequado para distinguir o poder politico das outras formas de poder, e portanto para delimitar 0 campo da politica e das agées politicas, é aquele que se funda sobre os meios dos quais as diver- sas formas de poder se servem para obter os efeitos desejados: 0 meio do qual se serve 0 poder politico, embora, em tiltima instancia, diferen- te do poder econdmico e do poder ideoldgico, é a forga. O poder eco- némico se vale da posse de bens necessérios, ou como tais percebidos em uma situacao de escassez, para induzir aqueles que nada possuem a manter um determinado comportamento, como, por exemplo, a exe- cugao de um trabalho util a coletividade. Em qualquer sociedade onde hé proprietirios e despossuidos, o poder dos primeiros deriva da possi- bilidade que a disposicao exclusiva de um bem Ihes dé de conseguir fazer com que os segundos trabalhem para os primeiros sob as condi des pelos primeiros impostes. O poder ideolégico se vale da posse de certas formas de saber inacessiveis aos demais, de doutrinas, de conhe- cimentos, até mesmo apenas de informagées, ou entao de cédigos de conduta, para exercer uma influéncia sobre 0 comportamento de ou- trem e induzir os componentes do grupo a agir de um determinado modo € nio de outro. Desse tipo de condicionamento deriva a impor- tancia social daqueles que sabem, sejam eles os sacerdotes das socieda- des tradicionais, sejam eles os literatos, os cientistas, os técnicos, os chamados intelectuais nas sociedades secularizadas: através dos conhe- cimentos que eles difundem e dos valores que pregam, cumpre-se 0 processo de socializagao que, promovendo a coesio de grupo, permite que uma comunidade sobreviva. Uma vez que o poder politico se ca- racteriza pelo uso da forca, ele € o sumo poder ou o poder soberano, cuja posse distingue, em toda sociedade organizada, a classe dominan- te. Nas relagées interindividuais, nao obstante o estado de subordina- cao que a expropriacao dos meios de produgio cria nos expropriados, nao obstante a ades4o passiva aos valores transmitidos por parte dos 222 destinatérios das mensagens emitidas pela classe dominante, apenas 0 emprego da forca fisica consegue impedir a insubordinagao e domar toda forma de desobediéncia. Do mesmo modo, nas relacdes entre gru- pos politicos independentes, o instrumento decisivo que um grupo dis- pée para impor a prépria vontade a um outro grupo € 0 uso da forga, isto é, a guerra. A esta caracterizagao do poder politico associa-se, ainda que nao expressamente, a conhecida definicdo de politica de Carl Schmitt, se- gundo a qual a esfera da politica coincide coma esfera na qual se desen- volvem as relag6es entre amigos e inimigos, e, conseqiientemente, a aco politica consiste em agregar os amigos ou desagregar os inimigos. Uma vez que o poder politico é definido como aquele poder que se serve em tiltima insténcia da forga fisica para alcancar os efeitos deseja- dos, ele é também aquele poder ao qual se apela para resolver os confli- tos cuja falta de solucao teria por efeito a desagregacdo interna da co- munidade politica — o desaparecimento dos “amigos” — ea sua su- pressdo a partir do exterior — a vit6ria dos “inimigos”. Também de acordo com essa interpretacio, a expresso mais caracteristica da poli- tica vem a ser a guerra, exatamente enquanto explicagéo maxima da forga como meio para a solucao dos conflitos, 2. Politica e sociedade Toda agio politica € uma acao social no duplo sentido de agao interindividual e de agdo de grupo. Mas nem toda ago social € politica. A categoria da politica é uma das grandes categorias dentro das quais se divide 0 universo social, universo no qual se desenvolvem as relagdes entre individuos, se constituem grupos de individuos, e se desenvol- vem as relaces entre os grupos. A distingio entre poder politico, po- der econémico e poder ideolégico permite delimitar a esfera das rela- ges e dos grupos politicos em relacdo as duas esferas confinantes (mes- mo que as fronteiras sejam flexiveis) das relacdes e dos grupos econd- micos, e das relagdes e dos grupos ideolégicos. Essa delimitagao é 0 produto de uma lenta transformacio histérica: em uma sociedade pri- mitiva, as virias formas de agregacdo social e dos respectivos poderes sao pouco distinguiveis. Mesmo no pensamento grego, ao qual é neces- sério remontar sempre, por estar na origem da reflexao sobre politica de toda a tradicdo do pensamento ocidental, a distingao nao é zssim tao clara: quando Aristételes, no inicio da sua obra sobre a Politica, afirma que © homem é um animal politico, entende dizer que, diferente de outros animais, 0 homem nfo pode viver sendo em sociedade, tanto que sao Tomas de Aquino, que vive em uma época na qual j4 ocorrera a nitida distingdo entre duas sociedades, a religiosa e a politica, traduz “animal politicum et sociale”. Os gregos conhecem a distingao entre a esfera social, a qual pertence a politica, e a esfera individual, qual pertence a ética, entre a vida ativa, que se desenvolve na sociedade, ea vida contemplativa, que diz respeito ao individuo isolado. Nao se preo- cupam, diferentemente do que ocorre em toda a tradigdo do pensa- mento pés-classico, com a disting4o, no interior da esfera social, dos varios Ambitos, entre os quais apenas o Ambito politico assume um ca- rater especifico. Quando Aristételes fala das sociedades parciais, que nascem no seio da comunidade politica com a finalidade de agregar individuos que juntos pretendem alcancar fins de interesse comum, como a associaco dos navegantes ou aquela dos companheiros de ar- mas ou de festas, fala delas no capitulo sobre a amizade das suas ligdes de moral (que chegaram até nés com o titulo de Erica a Nicémaco), e considera-as “partes da comunidade politica”. O pensamento antigo tem diante de si uma nica sociedade “perfeita” (0 adjetivo € do pré- prio Aristételes), a polis, ou a sociedade politica propriamente dita, que abraca em seu seio as sociedades menores e nao tem nenhuma outra sociedade além de si: a reptblica universal dos estéicos, 4 qual pertencem os sabios, é um ideal de vida, nao uma instituicio, e, aliés independente de qualquer instituicao, e nisso consiste a sua universali- dade. Somente com o surgimento do cristianismo, religiao tenden- cialmente universal, e com a institucionalizagao da sociedade religiosa que o difunde, as societates perfectae tornam-se duas, a Igreja e o Esta- do. Dessa diferenciacio nasce o problema da distincao entre ambas, da delimitagao dos seus respectivos poderes, o poder espiritual e o poder temporal: um problema ao qual a doutrina politica pés-classica se dedi- ca incessantemente em busca de uma solugao. O poder politico precisa continuamente enfrentar um poder distinto que, além do mais, afirma desde 0 inicio a propria supremacia sobre os poderes terrenos [potesta terrene], através do principio “imperator intra ecclesiam, non supra ecclesiam’ (“o imperador esta dentro da Igreja, nao acima da Igreja”). Segundo a doutrina que passou a histéria com o nome de doutrina gelasiana (do papa Gelésio 1): “Duo sunt quibus pricipaliter mundus hic regitur: auctoritas sacrata pontificum et regalis potestas” (“sao dois principalmente os regimentos deste mundo: a autoridade sacra [autorita sacra] dos pontifices e 0 poder régio [potesta regale]"). Torna-se communis opinio a distingao entre a vis directiva (poder de dirigir), que € prerrogativa da Igreja, e a vis coactiva (poder de coagir), que é prer- rogativa do poder politico. Ao contrapor-se ao poder espiritual e as suas 223 pretensées, os defensores e os detentores do poder temporal preten- dem atribuir ao Estado 0 direito e o poder exclusivo de exercer sobre um determinado territério, e em relagao aos habitantes desse ter rio, a forga fisica, deixando A Igreja o direito e 0 poder de ensinar a verdadeira religiio, os preceitos da moral, de salvaguardar a doutrina dos erros, de levar os individuos rumo a conquista dos bens espirituais, primeiro entre todos, a salvagio da alma. O poder espiritual serve-se de meios de coagdo psicolégica mesmo quando faz ameacas de penas e promessas de prémios, j4 que se trata de penas e prémios cuja execu- Gao é postergada para uma outra vida; 0 poder politico serve-se tam- bém da forca fisica, e dela se serve nio apenas para punir os transgressores das leis por ele promulgadas, mas também para punir os heréticos (0 assim chamado brago secular). proceso de secularizagao que deriva da fragmentacao da unida- de religiosa operada pela Reforma e pelo nascimento da ciéncia moder- na por obra da triunfante concepgao mecanicista, no mais teleolégica, de mundo, nao muda em nada a relagio entre a esfera politica e a esfera religiosa, aliés a reafirma e aprofunda: da pluralidade das confissdes religiosas (Igrejas constituidas e seitas ndo-conformistas) surge a de- manda, caracteristica de uma sociedade secularizada, de tolerancia re- ligiosa, que consiste praticamente e institucionalmente na defesa juri- dicamente garantida da liberdade de consciéncia e de profissio de fé com respeito ao poder politico e, conseqiientemente, na imposigao de um limite insupervel ao poder coativo proprio do Estado. A demanda de liberdade religiosa, que é uma tipica forma de liberdade a partir do Estado, estende-se as liberdades de pensamento e de opinido em geral e de opiniao politica em especial; a liberdade de pensamento e de opi- niao consolida-se, por sua vez, com a liberdade de imprensa. No exerci- cio de todas essas liberdades constitui-se 0 segmento moderno dos li- vres-pensadores, dos escritores independentes, dos formadores de opi- nido pablica, dos “philosophes”, em uma palavra: dos “intelectuais”, que substituem, pouco a pouco, os sacerdotes das religides tradicionais no exercicio do poder ideolégico, no exercicio portanto do poder de persuadir ou dissuadir, de direcionar as mentes ou de incitar os 4nimos, a favor ou contra o poder politico constitufdo, a partir da cdtedra, com 08 escritos, através dos jornais, discursos, e qualquer outra forma de comunicagio direta ou indireta. Nao menos que os profetas religiosos, © clero das Igrejas, dos inspiradores das seitas, os ideslogos, que tem tanta participag¢io no movimento iluminista e depois nos movimentos socialistas do século XIX, formam um segmento aut6nomo com rela- 224) 0 ao segmento dos politicos, salvo quando eles préprios se tranformam em politicos, dando vida a partidos que combatem batalhas politicas, pela derrubada ou conservacdo de uma determinada disposigao estatal. Mas uma relativa autonomia da esfera intelectual, dentro da qual se elaboram os instrumentos do consenso e do dissenso, j4 se tornou um dado constante das sociedades intelectual e politicamente mais avanga- das. Nao que nao tenha reaparecido na contemporaneidade a reapropriacao do monopolio do poder ideolégico por parte do poder politico naquelas formas de Estado que, exatamente devido a essa su- pressao da dialética entre a esfera onde se elaboram as idéias e a esfera onde € exercido 0 monopélio da forga legitima, recebem o nome de “totalitarios”. Mas se trata de regimes que, comparados ao processo de formacao das sociedades pluralistas surgidas no perfodo da secularizagio, caminham contra a corrente, porque neles estado suprimidas as diversas esferas relativamente auténomas (também a esfera econémica) que cons- tituem 0 terreno de formacao e de desenvolvimento da democracia. ‘Ao lado e para além da separaco da esfera religiosa e genericamen- te espiritual da esfera politica, a era moderna conhece uma outra forma de delimitacio da politica, que nasce da gradual emancipacio do poder econémico em relagdo ao poder politico. Na sociedade feudal, os dois poderes so indissohiveis um do outro: o detentor do poder politico, seja do rei, seja de seus feudatérios, é também o proprietério dos bens sobre os quais se funda o seu poder de regente dos homens. O poder sobre as coisas compreende também © poder sobre os homens ¢ 0 po- der sobre os homens passa pelo poder sobre as coisas. Indo além, mes- mo quando se forma o grande Estado territorial moderno, 0 imperium do soberano (0 comando propriamente politico cujos destinatérios sio sujeitos humanos) nunca esté totalmente dissociado do dominium (0 poder sobre as coisas): O Estado patrimonial é aquele Estado no qual 0 soberano detém o territério do Estado como propriedade sua, ou pelo menos como forma do dominium eminens ou propriedade origindria da qual promanam as propriedades dos individuos, e que se manifesta, por exemplo, no direito de expropriagdo por piblica utilidade. Essa confusio permanece enquanto um direito tao especificamente privado como aquele da sucessio hereditéria continuar a valer, ndo apenas para os bens, mas também para a transmissao do poder politico e de funcdes estatais. Sob outro ponto de vista, a sobreposicao entre poder econd- mico e poder politico pode também ser representada como um tipo de confusao entre direito publico e direito privado, como 0 efeito de uma concepgao privatistica do publico que impede a nitida separacdo entre os interesses dos privados e 0 interesse do Estado. Com a formagao da classe mercantil burguesa, que luta contra os vinculos feudais pelo co- 225 meércio livre, antes no interior do Estado, depois também no exterior, a sociedade civil — como esfera das relagées econdmicas que obedecem a leisnaturais objetivas, que deveriam se impor sobre as leis estabelecidas pelo poder politico (conforme a doutrina fisiocrética), ou considerada regulada por uma racionalidade espontanea (conforme a doutrina do mercado e da mio invisfvel de Adam Smith e dos economistas classi- cos) —, pretende desvencilhar-se do abrago mortal do Estado e, en- quanto esfera auténoma que possui leis de formagio e de desenvolvi- mento préprios, apresenta-se como limite a esfera de competéncia do poder politico, alids, tende a reduzi-la cada vez mais as fungées mera- mente protetoras dos direitos dos proprietirios e repressivas dos cri- mes contra a propriedade. Disso nasce a doutrina segundo a qual o Estado que governa melhor é aquele que governa menos, hoje chamada doutrina do “Estado minimo”: doutrina que forma o nticleo forte e resistente, e por isso sempre atual, do pensamento liberal, do final do século XVIII aos nossos dias. Assim como a emancipacao da esfera religiosa daquela politica dé origem, pelo menos em um primeiro momento, a tese do primado da primeira sobre a segunda, da mesma forma a emancipagio da esfera econémica em relagio a esfera politica tem por conseqiiéncia a afirma- cao da subordinacao do poder politico ao poder econémico. Tal afirma- ¢4o tornou-se patrimémio comum do pensamento politico do século XIX através da conhecida tese marxiana segundo a qual as instituigdes politicas e juridicas so uma superestrutura em relagio 4 base das rela- Ges econdmicas. Mas a sua origem deve ser buscada no pensamento dos economistas classicos, e ainda mais genericamente em todo 0 pensa- mento liberal, segundo o qual o sistema politico tem a funcdo exclusiva de permitir o desenvolvimento natural do sistema econémico, e a ele estd, portanto, rigidamente condicionado. A diferenga entre a doutrina dos economistas classicos, que esté no fundamento do Estado liberal- burgués, e a doutrina marxiana, que esta no fundamento da critica do mesmo Estado liberal-burgués, consiste no distinto juizo de valor que uma e outra dao sobre a forma de producio capitalista, um juizo distinto que tem conseqiiéncias polfticas de distinto sinal, o desenvolvimento, de um lado, da sociedade capitalista, e, de outro, a sua negacao. 3. Politica e moral Um vez delimitada conceitual e historicamente a esfera da politica em relacao a esfera espiritual e a esfera econémica, apresenta-se 0 pro- 226] blema, nao menos classico, das relagées entre politica e moral. Con- vém, no entanto, prontamente esclarecer que se trata de um problema que se coloca em um plano completamente distinto dos outros até agora tratados, porque pertence ao plano deontoldégico, ou do dever ser, € no ao plano ontoldgico, ou do ser. Em palavras mais simples, uma coisa é perguntar qual 6 0 espaco que a ago politica ocupa no universo social ou das agées interindividuais e de grupo, uma pergunta que consiste em determinar a natureza da acao politica; outra coisa é perguntar como deve se comportar aquele que age politicamente, se hi regras de comportamento que diferenciam a ago politica de outras formas de acdo. Também este é um problema que versa sobre a chama- da autonomia da politica, mas é uma autonomia, posto que seja possi- vel demonstré-la, que concerne nao & sua esfera de aplicagdo, mas ao sistema normativo ao qual obedece. Nesse contexto, chama-se autono- mia da politica o reconhecimento de que o critério com base no qual se considera boa ou m4 uma agao que pertence a categoria da politica, tal como foi até agora detalhada, é distinto do critério com base no qual se considera boa ou ma uma agao moral. Trata-se, em suma, do problema que é comumente apresentado nos seguintes termos: uma ago que é considerada obrigatéria na moral é também obrigatéria na politica (ou melhor, para aquele que cumpre uma acio politica, uma ado no ambi- to da esfera politica ou do exercicio do poder politico)? Ou, inversa- mente, aquilo que é licito na politica é licito também na moral? Em outras palavras: podem ocorrer agées morais que sio impoliticas ou apoliticas, e agdes politicas que sao imorais ou amorais? Considera-se que o problema na sua forma mais aguda tenha nasci- do com a formagio dos grandes Estados territoriais modernos nos quais, através da conduta dos detentores do poder, a politica se revela cada vez mais 0 lugar no qual se exerce a yontade de poténcia, em um teatro bem mais vasto e portanto bem mais visivel do que aquele das conten- das pessoais e dos conflitos da sociedade feudal. Nao por acaso que o primeiro escritor politico a apresentar o problema com maxima clareza tenha sido Niccold Maquiavel, que escreve o seu tratado sobre o prin- cipe no inicio de um século durante o qual se desenvolve o grande conflito entre a Franga e o Império e explodem as guerras religiosas que cobrirdo de sangue a Europa durante muitas décadas. No jé citado capi- tulo XVIII de O principe, Maquiavel coloca o problema se o homem de Estado € obrigado a respeitar os pactos. O principio de que os pactos devem ser observados, as promessas mantidas, é um principio funda- mental da moral. Maquiavel ndo tem dtividas sobre esse ponto. Mas observa que fizeram “grandes coisas” os principes que esse principio tiveram em pouca conta. Qual é o dever ao qual sio chamados os prin- 227 228 cipes (onde por “principe” entende-se genericamente qualquer deten- tor do sumo poder politico)? Manter os pactos ou “fazer grandes coi- sas"? E se, para manterem os pactos, ndo conseguirem fazer grandes coisas, podem ser considerados bons politicos? Se para ser considera- dos bons principes devem violar as normas da moral, a partir disso no se conclui que moral politica, pelo menos do ponto de vista do crité- rio de juizo sobre aquilo que é um bem e aquilo que é um mal, ndo coincidem? Na conclusio do mesmo capitulo, Maquiavel expée clara- mente o seu pensamento ao afirmar que para julgar a bondade ou a maldade de uma aco politica ¢ preciso olhar o fim (em outras palavras, 0 resultado da acdo), e formula a seguinte maxima: “Facci durque uno principe di vincere e mantenere lo stato: e’ mezzi saranno sempre iudicati onorevoli, e da ciascuno laudati” (Faca portanto um principe de modo a vencer e manter o Estado: e os meios serao sempre julgados honrosos, e por todos louvados). Qual é, entio, o fim do homem politico? £ a vitéria contra 0 inimigo e depois da vitoria, a conservagio do Estado assim conquistado. Para alcangar esse fim, ele deve utilizar todos os meios adequados. Entre esses meios adequados também est aquele de nao respeitar os pactos? Ora, nao respeitar os pactos torna-se para ele uma conduta nao apenas licita mas obrigat6ria. Remonta a essas paginas a maxima que presidiria a aco politica, distinguindo-a da ag3o mor: fim justifica os meios. Esta maxima torna-se 0 niicleo principal da chamada doutrina da razao de Estado, daquela doutrina segundo a qual a politica tem as suas razes, € portanto as suas justificagdes, que sao diferentes das razées, e portanto das justificagées, do individuo isolado, que age tendo em vista seus préprios interesses. E como dizer que, em vista do interesse cole- tivo, ao politico é licito fazer aquilo que nao € licito ao individuo isolado ou, se quisermos, a moral do politico nao é a moral do individuo. Cosimo de’ Medici costumava dizer, como repete Maquiavel, que os Estados nao so governados com ospater noster. Um maquiavélico como Gabriel Naudé, autor de um conhecido tratado sobre a razio de Estado, intitulado Considerazioni politiche sui colpi di stato (Consideracoes politicas sobre os golpes de Estado) [1639], escreve, citando Charron, que “a virtude e a bondade dos governantes seguem um caminho dis- tinto daquele de um simples privado: os seus caminhos sao de feto mais largos e mais livres, para compenser a grande, pesada e perigosa respon- sabilidade que recai sobre as suas costas”.) Um dos epis6dios mais atrozes 3. G. NAUDE, Considerazioné politiche sui celpi di state (1639), ed. i: Beringhieri, Tarim, 1953, p. 47. (Da ‘obra existe uma nove ed. organizada por A. Piazz:, Giuffré, Milio, 1992, na qual a passagem cs, sti, em outta trad., ra 5.131). das guerras religiosas é a noite de Sao Bartolomeu (23-24 de agosto de 1572). Naudé, mesmo reconhecendo que o massacre foi por muitos condenado, escreve: “Nao terei contudo escripulos em afirmar que esta empresa foi mais que oportuna, importantissima e justificada por razSes mais que suficientes”? Que razes mais que suficientes? Evi- dentemente sio razbes de Estado, séo razdes que justificam uma acio, a mais perversa das agées, em vista do fim, que é também nesse caso a conservacio do Estado. Da impiedosa anilise feita por Maquiavel, e pelos escritores politi- cos que lhe sucederam, acerca da conduta dos homens de Estado, com muita freqiiéncia clamorosamente contréria as regras da moral comum, nasce um dos temas mais debatidos da filosofia politica: a explicagao e a justificagdo dessa oposigéo. Dela foram dadas principalmente duas versdes. A primeira é aquela que explica e justifica a oposigao com base na diferenca entre regra e exce¢io: as regras morais, sejam elas funda- das em uma revelacao divina, como os Dez Mandamentos € os precei- tos evangélicos, ou com argumentos racionais ou histéricos, sao, sim, universais, no sentido de que valem para todos os tempos e para todos os homens, mas nao sao absolutas, no sentido de que néo valem em todos os casos, admitem excegdes, e portanto, em certos casos especi- ficamente determinados e determindveis, podem admitir uma der- rogacao. As agGes dos politicos, visivelmente contrarias 4 moral comum, deveriam ser explicadas e justificadas como derrogagées decorrentes de situagées excepcionais. Uma resposta desse tipo ao antigo problema da oposicao entre moral e politica permite manter a crenga na idéia de que nao hé duas morais, uma publica e uma privada, uma vilida para os individuos e uma outra para os Estados, mas que a moral é uma sé, vélida para todos, salvo casos especiais, nos quais torna-se licito aquilo que em geral é proibido, nao apenas para os Estados, mas também para os individuos. Se 2 disparidade entre a conduta conforme a moral co- mum e a conduta que a viola por circunstancias excepcionais € mais evidente na esfera politica, isso dependeria apenas do fato de que a agao politica € mais visivel do que a acdo privada e esté também mais exposta a excepcionalidade das circunstancias que justificam a derrogacao. Essas circunstancias resumem-se na categoria geral do Es- tado de necessidade, 0 qual vale como justificagdo de uma agao de outra forma passfvel de culpa e punigao tanto para o individuo privado quanto para o homem piiblico. Por “Estado de necessidade” entende- 4. Tid. p. 108 (na nova ed. Giulffre, cit, na p. 194) 229 230 se aquele Estado no qual um sujeito, seja 0 individuo que age tendo em vista seus préprios interesses, seja o homem politico que age em nome e por conta de uma coletividade, nao pode evitar aquilo que faz, isto é, nao tem escolha. Todas as normas, tanto as morais quanto as juridicas ou do costume, dizem respeito apenas as agGes possiveis, as ages que podem ser cumpridas ou ndo cumpridas segundo a vontade do sujeito ao qual se dirigem. Quando o agente encontra-se em uma situagdo na qual uma certa aco é necessiria no duplo sentido de nao poder nao faz@-la (necessidade propriamente dita) ou de nao poder fazé-la (ou impossibilidade), qualquer norma que comanda ou profbe uma acdo distinta é absolutamente impotente. Diz-se que a necessidade nao tem lei: nao tem lei porque é mais forte do que qualguer lei. A prépria maxima “o fim justifica os meios” pode ser incluida no principio da derrogagao por razdes de necessidade. Se é verdade realmente que em uma determinada situacao hé apenas um meio de se alcangar um fim, e esse fim deve ser alcangado, a efetuagao do meio torna-se uma acao necessdria, em relagao a qual o sujeito agente nao tem escolha e portan- to nao esta livre para agir seguindo o preceito moral que lhe imporia uma conduta diferente. A maxima maquiavélica, tio mal-afamada, re- presentaria, segundo essa interpretacao, nao tanto a impossibilidade de reduzir a politica 4 ordem da moral, mas a maior extensio dos vinculos que a conduta politica, dada a maior relevancia do fim, encontra em seu caminho, e, definitivamente, a maior freqiiéncia das agdes necessd- rias e como tal livres da obrigacao de observancia das normas morais. A segunda explicacao (que é também uma justificacao) da oposigio € completamente diferente: a disparidade entre moral e politica nado depende da relagdo regra-excegdo, mas da existéncia de duas verdadei- ras € préprias morais, cuja distingao repousa sobre dois critérios de avaliacdo distintos, entre si incompativeis, da bondade ou maldade das agdes. Quem melhor do que qualquer outro captou essa oposi¢ao foi Max Weber, com a distingao entre ética da convicgao e ética da respon- sabilidade, Aquele que age com base na primeira considera que o seu dever consiste em respeitar alguns principios de conduta colocados como absolutamente vilidos independentemente das conseqiiéncias que de- les possam derivar. Aquele que age com base na segunda considera ter feito o préprio dever se conseguir obter o resultado ao qual se propés. Em termos mais simples, cada ago pode ser avaliada com base em principios dados, como sao as regras da moral universal, e julgada boa se as respeita, mé, se as viola. Mas pode também ser avaliada em base as conseqiiéncias, e julgada boa se for bem-sucedida, e m4, se falhar. No primeiro caso, a aco € avaliada com base em alguma coisa que vem antes da acdo; no segundo, em alguma coisa que vem depois. Como os dois critérios sao distintos, uma agdo boa segundo o primeiro critério pode ser m4 com base no segundo, e vice-versa. Se pressuponho como critério de juizo uma regra universal, como aquela de ndo matar, o as- sassinato de um homem ¢ ilicito (salvo se se tratar de um caso no qual se possa fazer valer o Estado de necessidade). Se parto, em vez disso, da idéia de que a ago deve ser julgada com base no resultado, o assas- sinato do tirano (0 chamado tiranicidio, sobre cuja licitude durante sé- culos durou o debate, que de fato ainda nao terminou) pode ser consi- derado licito (para alguns, até mesmo um dever). Quem levar em con- sideragdo a pena de morte do ponto de vista da ética dos princfpios, com base na qual nao se deve matar, deveria coerentemente propor a abolicdo (a menos que a justifique como excecao a regra); quem a levar em consideragao do ponto de vista dos efeitos (0 principal efei- to que justifica a pena é a sua forca intimidadora) seré favordvel a sua manutengao l4 onde existe, e 4 sua reproposicao 14 onde foi abolida, se conseguir demonstrar que refreia o potencial delingiiente mais que qualquer outra pena. Essa oposigao entre duas diferentes avaliagGes da nossa agéo acompanha-nos pela vida afora, e constitui uma razio fundamental dos conflitos morais que, contrariamente aquilo em que se acredita, nao dependem da incompatibilidade de duas normas, mas da diferenga dos dois critérios. Para dar 0 exemplo costumaz: uma nor- ma da moral comum impde que eu nao minta; mas... ¢ se, dizendo a verdade, eu estiver traindo um amigo? Nao hé explicacio e justificagdo mais claras e convincentes da opo- sigéo entre moral e politica do que a tomada de consciéncia da existén- cia de duas morais em razio dos dois modes distintos de julgar a mes- ma aco, segundo se tome o ponto de vista dos princfpios ou 0 ponto de vista dos resultados. Ora, aquilo que coloca a conduta do homem poli- tico em oposicao a moral comum é inspirar-se na ética dos resultados, e nao na ética dos princfpios. A bondade de uma agao politica é julgada pelo sucesso, e julga-se bom politico aquele que consegue obter o efei- to desejado. Mas a capacidade de obter 0 efeito desejado ndoé a virtu- de do politico no preciso sentido maquiavélico da palavra? Entao, mais do que de imoralidade ou amoralidade da politica, ou de impoliticidade ou de apoliticidade da moral, seria mais correto falar de dois universos éticos que se movem segundo critérios distintos de avaliagio da ago segundo as diferentes esferas nas quais os individuos encontram-se agin- do. Desses dois universos éticos sio representantes ideais (na pratica pode haver confusdes e sobreposigées) dois personagens distintos que agem no mundo sobre caminhos destinados a quase nunca se encon- 231 232] trar: de um lado, o homem de fé, de convicgdes profundas, 0 profeta (pensemos na figura do profeta desarmado escarnecido por Maquiavel), © moralista, 0 sdbio que olha a cidade celeste como a uma meta ideal, mesmo sabendo que nao pertence a este mundo; de outro, ocondottiere, o homem de Estado, o governante sagaz, o fundador de Estados, o “he- r6i", como o chamaya Hegel, ao qual é licitousar também de violéncia para imprimir a diregdo por ele fortemente desejada ao curso da hist6- ria universal. 4. Politica e direito Enquanto o problema da relacao entre esfera politica e esfera eco- némica é um problema de delimitagdo de campos, que aqui foi reconstruida como delimitacao de duas esferas de exercicio do poder com distintos meios, e o problema da relagao entre moral e politica é um problema de distingao entre dois critérios de avaliagio dasagées, 0 problema da relacao entre politica e direito éum problema muito com- plexo de interdependéncia reciproca. Quando por direito se entende conjunto das normas, o sistema normativo, dentro do qual se desenvol- ve a vida de um grupo organizado, a politica tem a ver com 0 direito sob dois pontos de vista: enquanto a acio politica se exerce através do di- reito, e enquanto o direito delimita ¢ disciplina a agao politica. Sob 0 primeiro aspecto, a ordem juridica é 0 produto do poder politico. Onde nao hé poder capaz de fazer valer as normas por ele estabelecidas recorrendo também em tiltima instincia a forca, nao ha direito. Bem entendido, trata-se do direito positivo, e nao do direito natural que € chamado direito em sentido bem diverso, e impréprio; do direito como é entendido pelo positivismo juridico, pela doutrina segundo a qual nao hé outro direito seno aquele estabelecido direta- mente ou indiretamente reconhecido pelo poder politico. Como prin- cipio fundamental do positivismo juridico pode-se assumir a m&xima hobbesiana: “Nao é a sabedoria, mas a autoridade que cria a lei”. O mesmo Hobbes comenta a maxima com estes palavras que no pode- riam ser mais claras: “Quando falo das leis, pretendo falar das leis vivas e armadas (...). Nao éa palavra da lei, mas o poder daquele que tem nas mios a forga de uma nagao, que torna eficazes as leis”.> O sustentador diligente e coerente do positivismo juridico contra os fautores do direi- 5.TH. HOBBES, A Dialogue between a Philasopher and a Student oft Commom Laws of England (1681) (ed. it: Dialogo fra un filsofe e uno studioso del diritio comuce dnghitrra, in 1D, Oper poitcke, organizado por N. Bobbio, Utet, Tarim, 1959, -eimp. 1971, vol. 1, po. 397, 4.

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