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-LIVRO COMPLETO DIGITALIZADO SEM FINS LUCRATIVOS-
Dois homens caem do céu para a terra, depois que terroristas explodem o avião em que
viajavam. Ambos são indianos e atores. Ambos chegam incólumes ao solo da Inglaterra
e se metamorfoseiam -- um em diabo, outro em anjo.
Muitas coisas opõem e associam os acidentados: um é apolíneo, o outro dionisíaco; um
é apocalíptico, o outro integrado; um é apegado a sua origem, o outro está decidido a
conquistar a nova nacionalidade. Transitando livremente entre o real e o fantástico,
entre o bem e o mal, entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da
vida, este romance alegórico, impregnado de magia, é claramente autobiográfico no
conjunto de seus episódios e, principalmente, em sua questão filosófica central: quem
sou eu?
SALMAN RUSHDIE nasceu em Bombaim, na Índia, em 1947, mas foi para a Inglaterra aos
14 anos. Em 1989, foi condenado à morte pelo líder do Irã pelo lançamento do livro Os versos satânicos, considerado
uma heresia a Maomé, o profeta dos mulçumanos.
Índice
I - Introdução ..................................................................................................... 04
IV – Conclusão.................................................................................................. 522
I - Introdução
O mito de Orfeu exerce uma atração fascinante no imaginário da cultura ocidental, tanto
no passado como no presente. A primeira ópera conservada até hoje em sua totalidade é o
L’Orfeo de Cláudio Montiverdi, estreada em Mântua em 1607. O primeiro balé alemão –
Orpheus und Eurydice - foi criado por Heinrich Schütz em 1638. Glück, no século XVIII, criou
Orfeo ed Eurídice. No século XIX, Offenbach, não nos legou somente Os Contos de Hoffmann,
mas também um Orfeu no Inferno. Orfeu foi tema para os seguintes musicistas: Liszt, Benda,
Paer, Milhaud, Malipiero, Casella, Krenek, Birtwistle e Stravinsky. O cinema, no século XX,
apresentou-nos os dois Orfeus (Orpheus [1949] e Le Testament d’Orphée [1959]) de Jean
Cocteau e o carnavalesco Orfeu Negro (1959) de Marcel Camus, premiado com a Palma de
Ouro em Cannes e o Oscar em Hollywood, baseado na peça de Vinícius de Moraes - Orfeu da
Conceição, testemunhando a modernidade do tema. Folheando-se os jornais hoje (maio/1999),
depara-se com o último filme de Cacá Diegues - Orfeu - e o último livro de Salman ”Versos
Satânicos” Rushdie - O Chão Que Ela Pisa - que, segundo a crítica, é um mergulho no
universo pop e traz à tona o mito de Orfeu. Já que se passou para a literatura, não se pode
deixar de citar o maior poeta lírico grego – Píndaro; Platão na República, no Górgias e no
Banquete; as Geórgicas de Virgílio (principalmente o Livro IV); o Paradise Lost (Canto VII) e o
L’Allegro (145) de Milton; as Pastorals de Pope; o romântico Novalis e o nosso brasileiríssimo e
monumental poema barroco (no dizer de Murilo Mendes) de Jorge de Lima: Invenção de Orfeu
(1952). Na pintura, o poeta Guillaume Apollinaire, em 1912, criou um termo - cubismo órfico -
que influenciou Robert Delaunay, Fernand Léger, Francis Picabia e Marcel Duchamp.
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
Sarmento.
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
- Vou falar.
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
ainda?
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
Sarmento.
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
- Vou falar.
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
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haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
ainda?
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
ainda?
- Sim...
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
Sarmento.
chamado Custódio?
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- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
- Vou falar.
E, após curta pausa, relanceou discretamente os olhos à porta, como
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
Pergunto eu ao Ex.mo Bruno de Mascarenhas, a sua agonia, nessa hora
ainda?
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
povoar o paraíso daquela ditosa família. Brincam à volta de sua mãe, e
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje
no primeiro instante:
Sarmento.
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
- Vou falar.
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
gozando, e lhe augura a eles.
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
Sarmento.
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
- Vou falar.
Mascarenhas.
- O Sr. Bruno de Mascarenhas - prosseguiu o morgado - é solteiro. Cedo
raça.
lá encontrou e lá encerra.
A mãe é a flor, os filhos são o fruto. V. Ex.a arde de amores deles e
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
ainda?
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
ditosa. Surge das tenebrosas agonias um homem que despedaça às
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
- Da melhor vontade. Eu desisto destas relações, para evitar desgostos
Sarmento.
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
- Vou falar.
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
ainda?
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
D. Bruno de Mascarenhas.
nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
ainda?
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
nas criancinhas, e escondê-los para que o não vissem chorar. O que hoje
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
Sarmento.
chamado Custódio?
- Ah! ... Agora é que eu percebo ... Mas ... queira V. Ex.a sentar-se... Eu
não sei que alusão possa ser esta... que... a respeito de...
- Vou falar.
Mascarenhas.
raça.
lá encontrou e lá encerra.
dela. Porque a sua família é não somente a sua alegria doméstica, senão
que lhe é fora de casa um pregão da honestidade e honra que vai nela.
seus filhos já homens com sua esposa laureada pelas cãs sem mácula,
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haveres, podem não ser teus filhos, porque tua mulher prevaricou."
ainda?
- Sim...
Decorridos cinco anos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que ele está
É neste ensejo que o inferno se abre aos pés desta família honrada e
genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu éden foi o Sr.
D. Bruno de Mascarenhas.
cauterizada já, para não ser gangrena amanhã. Quer V. Ex.a ajudar-me
no primeiro instante:
Numerosas fontes históricas relatam a existência dos mitos órficos. Tudo leva a crer
que não era conhecido de Homero (antes de 700 a. C.) mas, já no século VI, aparece em
algumas tradições. O primeiro escritor grego a fazer menção ao “célebre Orfeu” foi Ibykos em
meados do século VI. a. C. A lenda de Orfeu coloca-o como um dos principais poetas e
músicos da época heróica, ao lado de Homero e Hesíodo. Determinou a existência de uma
religião especial – o orfismo – e de uma seita – os órficos – que se expandiu por todo o mundo
grego e a Itália meridional.
Orfeu, do grego OrjeuV, é um herói lendário grego dos tempos antigos com extrema
habilidade na música, no canto e na poesia e que se tornou o patrono de um movimento
religioso ritualizado por um corpus de escritos sagrados que teria sido composto pelo próprio.
Orfeu é considerado como o maior músico da antigüidade, não só pela música como
pelo canto. Todos os poetas antigos celebraram sua lira e sua cítara, pois, até mesmo esta,
teria sido inventada ou aperfeiçoada por ele, pois aumentou-lhe o número de cordas, de sete
para nove, numa homenagem às Nove Musas. Seus acordes eram tão melodiosos que os
homens e os animais quedavam paralisados para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a
seus pés como cordeiros; as árvores vergavam para melhor escutá-lo; os homens mais
coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade. Educador da humanidade, conduziu os
trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos ‘mistérios’, completou sua formação
religiosa e filosófica viajando pelo mundo. Ao retornar do Egito, divulgou na Hélade a idéia da
expiação das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos,
prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse.
Juntou-se à expedição dos Argonautas, assim chamados por causa do navio Argos no
qual embarcaram para a Cólquida em busca do Tosão de Ouro. Este célebre navio transportou
a fina flor da mocidade grega, cerca de 55 heróis, dos quais cita-se: Jasão, promotor e chefe
da empresa, Héracles (que participou só no começo da missão), Argos, Castor e Pólux,
Deucalião, Glauco, Laertes, pai de Ulisses, Oileu, pai de Ajax, Peleu, pai de Aquiles, o nosso
poeta Orfeu e muitos outros. Teve participação expressiva, pois salvou-lhes a vida em diversas
oportunidades: seja acalmando o mar encapelado; seja dando cadência, com a sua música,
aos remadores; seja entorpecendo o dragão da Cólquida, o guardião do Tosão de Ouro, ao
som de sua cítara; seja recobrindo a música maléfica das Sereias com o som de seu
instrumento. Passaram pelo Helesponto, pelo Ponto Euxino, pelas Ciâneas (recifes móveis)
também chamadas de Simplégades, por Cila e Caribdes etc. No tocante as Simplégades, seria
interessante realcionar seu simbolismo com os ritos de iniciação. Spencer diz que “as
Sympleglades, eram duas rochas em luta, na entrada do Mar Negro, e por entre as quais Jasão
e os Argonautas tinham de passar em seu barco. As Sympleglades simbolizam a passagem
para um outro mundo e têm uma tripla significação: elas representam o guardião do umbral;
representam o terror do umbral e a ameaça de deixar a familiar condição mundana; quando a
passagem é realizada, elas representam a união dos opostos. Quando o homem deseja
tranferir-se deste mundo para outro, ele deve passar através de um intervalo sem dimensão e
sem tempo, que divide duas forças relacionadas porém contrárias. No momento real da
passagem, o herói abraça amabas as forças e deste modo anula os opostos. Nesse preciso
momento ele se encontra no outro mundo” (Spenser, pg.31). Mircea Eliade também dedica
grandes parágrafos ao simbolismo iniciático das Simplégades (Eliade, 1975, pg. 108).
Inconsolável, tomado de amor pela sua musa, o vate passa a repelir todas as mulheres
da Trácia. Por causa disso, uma vertente da lenda rezava que Orfeu foi estraçalhado pelas
enfurecidas mulheres do seu torrão. A outra vertente, afirmava que tinha sido esquartejado
pelas Mênades por ter abandonado o culto de Dioniso pelo de Apolo. Sintomático é que em
ambas as versões, nota-se uma certa similaridade com o esquartejamento de Osíris e a junção
dos pedaços por Ísis no Antigo Egito. É o tema da degradação do ovo original.
Sua cabeça foi lançada ao rio Hebro, cantando e recitando em versos órficos, o nome
de sua amada. Desgostosos com esse crime, os deuses resolveram castigar o país com uma
grande peste. Consultado o oráculo de como acalmar a ira divina, foi dito que o flagelo só
terminaria quando se encontrasse a cabeça de Orfeu e lhe fossem prestadas honras divinas.
Após longas buscas, um pescador encontrou a cabeça na embocadura do rio Meles, na Jônia,
onde foi erguido um templo em homenagem a Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. Se
a lira do poeta foi parar na ilha de Lesbos, berço principal da lírica grega, pespegaram-na
também no firmamento onde se tornou a Constelação da Lyra, que tem Vega como uma das
estrelas de primeira grandeza.
Orfeu dirigiu-se ao Hades para buscar Eurídice morta. E aqui convém salientar que pela
cultura cristã, imagina-se o Hades, o mundo inferior, como o inferno. No orfismo, a topografia
do Hades está divida em três regiões: i) o Tártaro, a parte mais abissal, profunda, ou seja,
infernal, pois os castigos eram cruéis e violentos; ii) o Érebo, com castigos não tão horrendos
como o Tártaro e iii) os Campos Elísios, destinados àqueles que, tendo passado pelos horrores
dos dois primeiros, aguardavam o retorno.
Ao descer à mansão do Hades, Orfeu teria trazido Eurídice de volta ao mundo dos
vivos se não tivesse olhado para trás, ou seja, mostrou estar ainda, preso ao passado, à
matéria, enfim, a Eurídice. “Um órfico autêntico, segundo se verá mais adiante, jamais ‘retorna’.
Desapega-se, por completo, do viscoso do concreto e parte para não mais regressar.
Certamente o citaredo da Trácia ainda não estava preparado para a junção harmônica e
definitiva com sua anima Eurídice. Seu despedaçamento pelas Mênades, supremo rito
iniciático, o comprova. Como Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até mesmo uma
catábase [ida] ao mundo das sombras, somente escalou o luminoso Olimpo após uma morte
violenta numa fogueira no monte Eta. Orfeu olhou para trás, transgredindo o tabu das direções.
Estas, bem como os lados e os pontos cardeais, possuíam, nas culturas antigas, um
simbolismo muito rico” (Brandão, vol.II, pg. 144).
Convém comparar essa parte do mito com o Gênesis (19, 17-26) quando os dois anjos
recomendam a Lot que não olhasse para trás quando fugisse com sua família da destruição de
Sodoma e Gomorra. Ao fugirem, a esposa de Lot olhou para trás e foi transformada numa
estátua de sal. Este olhar para trás dela representa a volta ao passado, o apego a uma cidade
do pecado. A desobediência, tanto a Javé como a Plutão, causa a desgraça do infiel.
Na macumba, após o despacho na encruzilhada, quem elabora nunca deve olhar para
trás. As culturas tradicionais sempre privilegiaram o silêncio e o interdito do olhar para trás: seja
o agricultor ao plantar; a mulher ao fiar o tecido; o coveiro ao abrir a sepultura; os desfilantes
ao acompanhar o cortejo fúnebre.
Com a harmonia (em grego, harmonia significa junção das partes) perdida ou rompida,
Orfeu não mais podia tanger a lira e o seu canto perdeu a magia. Perdeu tudo: Eurídice, a
música, o canto, ele mesmo.
A cabeça de Orfeu sendo lançada ao rio Hebro, também tem um significado lapidar. A
cabeça sempre foi considerada, nas mais diversas culturas, como uma das partes mais nobres
e sagradas do ser humano, pois hospedava a alma. Possuir a cabeça de um inimigo, quanto
maior a hierarquia maior a honra; era um troféu digno de um rei ou de um chefe tribal. Os
deuses somente deram descanso aos mortais depois que foi encontrada a cabeça de Orfeu e
lhe foram prestadas honras fúnebres. Mesmo decapitada, a cabeça continuava a viver, pois é o
símbolo da voz, do verbo, da imortalidade.
III – Orfismo
Possui-se hoje uma visão razoável do orfismo através dos diversos escritos,
principalmente os textos de Platão e Virgílio que o integraram no seio de suas obras. O orfismo
é um movimento religioso complexo onde se detectam influências dionisíacas, pitagóricas,
egípcias, apolíneas e obviamente orientais.
Rejeita daquele os ritos, nos quais os iniciados despedaçavam a vítima viva e ainda
palpitante, e a consumação imediata da carne e do sangue do animal, pois eram radicalmente
vegetarianos. A antropologia órfica tem como consequência o crime dos Titãs, contra Zagreu, o
primeiro Dioniso, a mando da ciumenta Hera. A mitologia conta que Dioniso-Zagreu era filho de
Zeus com Sêmele, uma mortal que, aconselhada pela deusa esposa Hera, pediu a Zeus que o
queria ver com os olhos mortais, o que era um verdadeiro suicídio. Ao se apresentar a Zeus, a
mortal não pôde suportá-lo em toda a sua radiante epifania. Morreu carbonizada e o feto foi
recolhido por Zeus e agasalhado em sua coxa até o nascimento. Mais tarde, os Titãs, ainda a
mando de Hera, após raptarem Zagreu, mataram-no e cozinharam-no num caldeirão. Em
seguida, o devoraram-no. Zeus, possesso, fulminou os Titãs, transformando-os em cinzas.
Dessas cinzas, nasceram os homens, com sua dupla natureza: o mal advindo de sua natureza
titânica e o bem, representado pelo menino Dioniso-Zagreu que os Titãs tinham devorado. A
chispa do divino, que o homem carrega dentro de si, advém pois de Dioniso, deus da fertilidade
e também da morte. Na religião dionisíaca, inexiste, contudo, esperança escatológica,
enquanto o orfismo é essencialmente soteriológico. Além do mais, o êxtase dionisíaco
manifestava-se de modo coletivo tanto quanto o orfismo é, por princípio, individual.
É importante aqui salientar o carácter monoteísta dessa teogonia que representa uma
ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos homéricos. O orfismo
propugna por uma noção de um deus criador, soberano, simbolizando a vida universal.
Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico é na parte escatológica, ou seja, na
ciência dos fins últimos do homem, naquilo que deverá seguir à vida terrestre. A descida ao
Hades, simboliza a vida após a morte. A concepção órfica da imortalidade advém de um crime
primordial: a alma está enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que
significa em grego corpo-túmulo). Como conseqüência, a existência encarnada se assemelha
mais a uma morte e o falecimento constitui o começo da verdadeira vida. Esta verdadeira ‘vida’
não é obtida automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos.
Após um certo período, ela reencarna. A influência egípcia – julgamento de Osíris e
reencarnação – é insofismável no orfismo. Nessa via crucis de reencarnação em reencarnação,
até mesmo em corpo de animais, a alma vai se purificando. Nesses intervalos
reincarnacionistas, a alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo do inferno, onde sofre
um ciclo de pesadas penas. Quando completamente purificada, sai desse ciclo de gerações
para reinar entre os heróis. O destino, obviamente, não será o mesmo para os iniciados órficos
e os profanos. O mortal comum profano deverá percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar.
São outro artefato importantíssimo no orfismo. As lamelas órficas ou orfo-pita-góricas.
Lamelas são pequenas lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália meridional e na Ilha de
Creta, e em túmulos órficos. São, também, todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um
mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas
placas hexagonais. Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos
iniciados, como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade.
Para aquelas almas que não precisam mais se reencarnar, é aconselhado evitar a água
do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E esta escrito numa das lamelas: “Venho
de uma comunidade de puros, ó puro soberano dos Infernos”. Ao que Persófone replica:
“Saúdo-te, toma o caminho da direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de
Perséfone”.
A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério, pelo longo
caminhar da mesma em direção a outra vida, mas sobretudo, simboliza a ressurreição, no
sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se, para os gregos “os mortos são
aqueles que perderam a memória”, o esquecimento para os órficos não mais configura a morte,
mas o retorno à vida.
IV – Conclusão
Orfeu não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser reinterpretada
pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Nos afrescos das catacumbas romanas,
encontram-se imagens de Orfeu, tangendo sua lira no meio de animais simbólicamente
cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros, pombas. Noutros, encontram-se duas ovelhas: uma
simbolizando Orfeu e outra, o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena,
é representado como Bom-Pastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar
Cristo de “Orfeu báquico”.
A semelhança dos simbolismos são flagrantes: o crime primordial dos Titãs e o pecado
original de Adão e Eva, a consumação do corpo do deus cristão e do deus grego, Cristo como
filho de Deus assim como Orfeu era filho de Apolo, são pontos comuns entre as duas doutrinas
religiosas, numa visão simplista.
Para os filósofos da Renascença até Pope, para os poetas do seicento, passando pelos
hermetistas até os dias atuais, o Mundo Ocidental teima em não esquecer Orfeu. Se pouco
restou dos mistérios órficos, a figura de Orfeu tem cadeira cativa no inconsciente coletivo de
nosso mundo.
Vai comprar o livro frescão ou frescona!!!!, Vai comprar o livro frescão ou frescona!!!!