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"A transformação permanente

do tabu em totem."

Modernismo
1ª fase – poesia
(1922 – 1930)
O Modernismo representou um
rompimento de artistas e intelectuais com a arte
acadêmica e o tradicionalismo cultural no Brasil.
O período de 1922 a 1930 é o mais
radical do movimento modernista, justamente
em consequência da necessidade de
definições e do rompimento com todas as
estruturas do passado. Daí o caráter anárquico
dessa primeira fase e seu forte sentido
destruidor, assim definido por Mário de
Andrade:
"(...) se alastrou pelo Brasil o espírito
destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu
sentido verdadeiramente específico. Porque,
embora lançando inúmeros processos e ideias
novas, o movimento modernista foi essencialmente
destruidor. (...)

Mas esta destruição não apenas continha


todos os germes da atualidade, como era uma
convulsão profundíssima da realidade brasileira. O
que caracteriza esta realidade que o movimento
modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três
princípios fundamentais: o direito permanente à
pesquisa estética; a atualização da inteligência
artística brasileira e a estabilização de uma
consciência criadora nacional.“
Fases do Modernismo
brasileiro

 1922-1930 (1a fase): “fase heroica”, marcada


pelo radicalismo, pela releitura e ruptura com o
passado brasileiro. Principais autores: Mário de
Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira.
 1930-1945 (2a fase): consolidação das ideias
deois da Semana de Arte Moderna; prosa
regionalista e amadurecimento da poesia
brasileira. Principais autores: Graciliano Ramos,
Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Érico
Veríssimo, Jorge Amado, Mário Quintana,
Manoel de Barros, Carlos Drummond de
Andrade, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles,
Murilo Mendes e Jorge de Lima.
1945... (Pós-Modernismo): intensa pesquisa
estética, fragmentação da narrativa e
experimentação. Principais autores: Guimarães
Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo
Neto.
Contexto Histórico

No Brasil, 1922 é um ano cheio de fatos


importantes: comemora-se o centenário da
Independência, realiza-se a Semana de Arte
Moderna, é criado o Partido Comunista, ocorre
a primeira revolta tenentista. Aparece a revista
Klaxon, Oswald de Andrade publica Os
condenados, Mário de Andrade publica, com
capa de Di Cavalcanti, Pauliceia Desvairada. O
país moderniza-se: São Paulo já tem cerca de
600.000 habitantes, o Rio tem o dobro. A
imigração e a industrialização fazem crescer as
cidades, mudam os antigos hábitos.
É nesses “anos fabulosos” que a arte
brasileira começa a esquecer Paris ou ir a
Paris só para descobrir o Brasil. À “poesia de
exportação” de Oswald de Andrade corresponde
a criação musical de Villa- Lobos, entrando pela
Amazônia adentro e apanhando sons; a de
Mário de Andrade viajando pelo interior e
recolhendo modinhas, apesar de já estarmos
com o charleston e o jazz...
A influência dos ismos europeus é
“amorosamente roubada”, só como recurso
para enxergar o Brasil sem o pincenez
acadêmico e, nessa descoberta, produzir
uma visão tão autenticamente crítica e
nacional, que modificaria por completo a
ótica de importação.
Principais
características
Rompimento com o passadismo
e o academicismo
Ruptura com a gramática
normativa, especialmente com
a sintaxe
Livre associação de ideias
Liberdade formal
(versos livres e brancos)
Coloquialismo
Incorporação e valorização de
temas prosaicos, ligados ao
cotidiano, às coisas comuns
Postura crítica perante os
valores sociais vigentes
ditados, em especial, pela
burguesia
Humor como recurso crítico
Ironia, poema-piada, paródia
Nacionalismo crítico
Fragmentação e flashes
cinematográficos
Texto I
O capoeira

- Qué apanhá sordado?


- O quê?
- Qué apanhá?
- Pernas e cabeças na calçada

Oswald de Andrade
Síntese, poema-pílula
Texto II

AMOR
humor

Oswald de Andrade
Busca de uma linguagem
brasileira
Urbanismo
Revisão crítica de nosso
passado histórico-cultural
Mário de Andrade
(1893-1945)
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em
São Paulo em 9 de outubro de 1893 e faleceu
nessa mesma cidade em 25 de fevereiro de
1945. Teve intensa atividade ligada à cultura
durante toda a vida: foi diretor do Departamento
Municipal de Cultura, em São Paulo; foi diretor
do Instituto de Artes da Universidade do Distrito
Federal (então localizada no Rio de Janeiro);
organizou o serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional; lecionou história da música
no Conservatório Dramático e Musical de São
Paulo. Teve participação ativa na Semana de
Arte Moderna e passou a exercer uma espécie
de “magistério” modernista, correspondendo-se
com muitos poetas e escritores durante toda a
sua vida. Além de poeta e ficcionista, Mário
foi cronista, crítico literário e pesquisador de
folclore, da música e das artes plásticas
nacionais. Também trabalhou na redação da
revista modernista Klaxon, veículo de
divulgação das ideias e trabalhos dos novos
escritores após a Semana de Arte Moderna.
Entre suas principais obras, estão os
livros de poemas Pauliceia desvairada, O
losango cáqui; Amar, verbo intransitivo
(romance), Macunaíma (rapsódia). A esses
títulos se somam inúmeros outros, de crônicas,
estudos sobre música e folclore brasileiros,
história da arte, além de uma vastíssima
correspondência e um livro de poemas
“imaturos”: Há uma gota de sangue em cada
poema.
 Um dos organizadores do Modernismo e da
SAM, foi o que apresentou projeto mais
consistente de renovação. Começou
escrevendo críticas de arte e poesia (ainda
parnasiana) com o pseudônimo de Mário
Sobral. Rompeu com o Parnasianismo e o
passado com Pauliceia Desvairada e a
Semana, da qual participou ativamente.

 Injetou em tudo que fez um senso de


problemático brasileirismo, daí sua investida
no folclore. De jeito simples, sua
coloquialidade desarticulou o espírito
nacional de uma montanha de preconceitos
arcaicos. Lutou sempre por uma literatura
brasileira e com temas brasileiros.
 Seu primeiro romance é Amar, Verbo
Intransitivo, que penetra na estrutura familiar
da burguesia paulistana, sua moral e seus
preconceitos. Aborda, ao mesmo tempo, os
sonhos e a adaptação dos imigrantes na
agitada Pauliceia.
 Já em Macunaíma, Herói sem nenhum caráter,
cria um anti-herói com um perfil indolente,
brigão, covarde, sincero, mentiroso, trabalhador,
preguiçoso, malandro - multifacetado.
Inspirando-se no folclore indígena da Amazônia,
mesclando a lendas e tradições das mais
variadas regiões do Brasil, constrói-se um herói
que encarna o homem latino-americano.
Macunaíma é uma figura totalmente fora dos
esquemas tradicionais da prosa de ficção, uma
aglutinação de alguns possíveis tipos
brasileiros.
Texto III
Ode ao Burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,


o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro,
italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
os barões lampiões! os condes Joões! os
duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o
francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das
tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... - Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem
arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
Gabriel, o Pensador
Retrato de um Playboy
Gabriel, o Pensador
Retrato de um Playboy 2
Oswald de Andrade
(1890-1953)
José Oswald de Sousa Andrade nasceu
em São Paulo, em 11 de janeiro de 1890, e
faleceu nessa mesma cidade, em 22 de outubro
de 1954. Teve contato direto com as
Vanguardas Europeias quando viajou a
Paris, de onde voltou em 1912, “achando que
a poesia brasileira podia ser mais avançada,
adotando, inclusive, o verso livre”. Jornalista,
ajudou a divulgar pela imprensa as novas ideias
literárias. Conheceu Mário de Andrade em 1917.
Em 1921, escreveu sobre ele um artigo
chamado “Meu poeta futurista”, que causou
escândalo e fez com que Mário perdesse vários
alunos de suas aulas de música. Teve
participação ativa na Semana de Arte
Moderna.
Em 1931, arruinado economicamente,
filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, com o
qual rompeu em 1945. Foi livre-docente de
literatura na Faculdade de Filosofia da USP.
A parte principal de sua obra é formada
pelos romances Memórias sentimentais de João
Miramar, Serafim Ponte Grande, entre outros;
pelos livros de poesia Pau-Brasil, Primeiro
caderno do aluno de poesia Oswald de
Andrade, Poesias reunidas. Escreveu peças
teatrais e os manifestos Manifesto da Poesia
Pau-Brasil e Manifesto Antropofágico.
 Foi poeta, romancista, ensaísta e teatrólogo.
Figura de muito destaque no Modernismo
Brasileiro, ele trouxe de sua viagem a Europa o
Futurismo. Amigo de Mário de Andrade, era seu
oposto: milionário, extrovertido, mulherengo
(casou-se 5 vezes, as mais célebres sendo as
duas primeiras esposas: Tarsila do Amaral e
Patrícia "Pagu" Galvão).
 Sua obra é marcada por irreverência,
coloquialismo, nacionalismo, exercício de
demolição e crítica. Incomodar os
acomodados, estimular o leitor através de
palavras de coragem eram constantes
preocupações desse autor.
O furacão Oswald

O velho clichê de se afirmar que “fulano


foi um homem à frente de seu tempo” se aplica
perfeitamente a Oswald de Andrade. Quem
pode realmente enxergar as “idiossincrasias
oswaldianas” há de saber que ele não apenas
produziu literariamente como um vanguardista,
ele viveu como um. Esteve acima do cárcere
da moral burguesa e da opinião alheia. A
inteligência agudíssima, a criatividade
incomum e a sensibilidade singular
tornaram-no um precursor legítimo da
modernidade.
Poucos anos depois, paradoxalmente, seu
tempo chegou: a contracultura, a revolução
sexual colocariam em vigor a liberdade moral e
artística pela qual ele lutou. Os escritos de
Oswald foram sendo pouco a pouco reeditados
e tornaram-se objetos de estudo em
universidades. Pouco depois, seria estudado
também nas escolas regulares de segundo
grau. A partir de 1967, suas peças de teatro
ganharam encenações.
O movimento tropicalista, que sacudiu o
país no final da década de 1960, lançando
nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso,
Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, entre tantos,
aconteceu confessadamente sob influência de
 Trouxe ideias do Futurismo para o Brasil;
 Idealizador dos principais manifestos modernistas;
 Foi militante político.

Características de sua obra

 Nacionalismo que busca as origens;


 Crítica da realidade brasileira;
 A paródia como uma forma de repensar a literatura;
 Valorização do falar cotidiano;
 Análise crítica da sociedade burguesa capitalista;
 Inovação da poesia no aspecto formal;
 Urbanismo;
 Irreverência, poema-pílula, humor;
Texto V
pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Texto VI
erro de português

Quando o português chegou


Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
Texto VII
brasil

O Zé Pereira chegou de caravela


E preguntou pro guarani de mata virgem
-Sois cristão?
-Não, Sou bravo, sou forte sou filho da morte
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! Ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o carnaval
Texto VIII
as quatro gares

infância

O camisolão
O jarro
O passarinho
O oceano
A visita na casa que a gente sentava no sofá
adolescência

Aquele amor
nem me fale

maturidade

O Sr. e a Sr. Amadeu


Participam a VExa.
O feliz nascimento
De sua filha
Gilberta

velhice

O netinho jogou os óculos


Na latrina
Texto IX

Há poesia
na flor
na dor
no beija-flor
no elevador.
Manuel Bandeira
(1886 / 1968)
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho
nasceu no Recife, em 19 de abril de 1886, e
faleceu no Rio de Janeiro, em 13 de outubro de
1968. Começou a cursar engenharia em São
Paulo, mas a tuberculose o obrigou a
abandonar o curso, levando-o a várias estações
de tratamento: esteve até mesmo um ano da
Suíça.
Apesar de não estar pessoalmente
presente às noitadas literárias da Semana de
Arte Moderna, participou do evento, pois seu
poema “Os sapos”, sátira dos que insistiam em
ainda prender-se ao Parnasianismo, foi
declamado por Ronald de Carvalho.
A partir de 1935, com a melhora de seu
estado de saúde, passou a trabalhar como
inspetor de ensino e, posteriormente, tornou-se
professor de literatura do Colégio Pedro II e
professor de literaturas hispano-americanas na
Universidade do Brasil.
A obra poética de Manuel Bandeira
começou com a publicação de Cinza das horas
(1917), seguido de Carnaval (1919). Em 1924,
publicou O ritmo dissoluto; em 1930,
Libertinagem, suas duas obras mais
diretamente ligadas às estéticas da geração de
22. (...)
Em 1966 foi lançada Estrela da vida
inteira, reunindo toda a produção poética do
autor até então. Além de poeta, Bandeira foi
cronista, historiador e crítico literário, tradutor e
organizador de edições de obras de outros
poetas (Antero de Quental e Gonçalves Dias) e
de antologias poéticas. Também escreveu
Itinerário de Pasárgada, uma espécie de
autobiografia de sua atividade poética.
As fatalidades da vida deixam em sua
obra cicatrizes profundas (morte do pai, da mãe e
da irmã, convivência e sofrimento com sua própria
doença).
Buscou na própria vida inspiração para os
seus grandes temas: de uma lado a família, a
morte, a infância no Recife, o rio Capibaribe; de
outro, a constante observação da rua por onde
transitam os mendigos, as prostitutas, os
meninos carvoeiros, os carregadores das feiras,
falando o português gostoso do Brasil (humor,
ceticismo, ironia, tristeza e alegria dos homens,
idealização de um mundo melhor).
Texto X
Porquinho-da-Índia

Quando eu tinha seis anos


Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do
fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira


namorada.
Texto XI
Poema do beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco
Texto XII
Poética

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
/protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do
/amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


Texto XIII
Poema tirado de uma notícia de
jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava


no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e
/morreu afogado.
Texto XIV
Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa


Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho
sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.
Texto XV
Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica


Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste


Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Texto XV
Camelôs

Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:


O que vende balõeszinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam boxe
A perereca verde que de repente dá um pulo que
engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa
alguma.
Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
- "O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho,
vai buscar
um pedaço de banana para eu acender
o charuto. Naturalmente o menino pensará:
Papai está malu..."

Outros, coitados, têm a língua atada.


Todos porém sabem mexer nos cordéis com o
tino ingênuo de demiurgos de
inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos
heroicos da meninice...
E dão aos homens que passam preocupados ou
tristes uma lição de infância.
Texto XVI
Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Texto XVII
Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.


A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e
o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
/argentino.
Texto XVIII
Irene no céu

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:


- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Os Tribalistas
Tribalismo
Texto XIX
Tribalismo

Tríade, trinômio, trindade, trímero, triângulo, trio


Trinca, três, terno, triplo, tríplice, tripé, tribo
Os tribalistas já não querem ter razão
Não querem ter certeza
Não querem ter juízo nem religião
Os tribalistas já não entram em questão
Não entram em doutrina, em fofoca ou
discussão
Chegou o tribalismo no pilar da construção
Pé em Deus e Fé na Taba
Pé em Deus e Fé na Taba
Um dia já foi chimpanzé
Agora eu ando só com o pé
Dois homens e uma mulher
Arnaldo, Carlinhos e Zé

Os tribalistas saudosistas do futuro


Abusam do colírio e dos óculos escuros
São turistas assim como você e seu vizinho
Dentro da placenta do planeta azulzinho
Pé em Deus e Fé na Taba
Pé em Deus e Fé na Taba
Um dia já foi chimpanzé
Agora eu ando só com o pé
Dois homens e uma mulher
Arnaldo, Carlinhos e Zé
Dois homens e uma mulher
Arnaldo, Carlinhos e Zé
Um dia já foi chimpanzé
Agora eu ando só com o pé
Pé em Deus e Fé na Taba
Pé em Deus e Fé na Taba
O tribalismo é um anti-movimento
Que vai se desintegrar no próximo momento
O tribalismo pode ser e deve ser o que você
quiser
Não tem que fazer nada basta ser o que se é
Chegou o tribalismo, mão no teto e chão no pé

Os Tribalistas

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