Marcel Proust, romancista e crítico francês, nasceu a
10 de julho de 1881 em Auteuil, perto de Paris e morreu a 18 de novembro de 1922, na capital francesa. Era uma criança débil e asmática com uma inteligência e uma sensibilidade precoces. Até aos 35 anos movimentou-se nos círculos da sociedade parisiense. Depois da morte dos pais, isolou-se em seu apartamento em Paris, onde se entregou profundamente à composição da obra-prima Em busca do tempo perdido, publicada entre 1914- 1927. Marcel Proust (1881-1922) . Em busca do tempo perdido consta de sete volumes em que expressa as suas memórias através do caminho do subconsciente, e é também uma preciosa reflexão sobre a vida na França nos finais do século XIX. A obra é como sua vida: o reencontro de duas épocas, a tradição clássica e a modernidade. Proust é considerado o precursor do romance contemporâneo. Marcel Proust licenciou-se em Direito (1893) e Literatura (1895). Durante os anos de estudo foi influenciado pelo filósofo Henri Bergson e Paul Desjardins e pelo historiador Albert Sorel. Marcel Proust (1881-1922) Em 1896, publicou Les Plaisirs et les jours, uma coleção de versos e contos de grande valor e profundidade, muitos dos quais saíram nas revistas Le Banquet e la Révue Blanche. A revista Le Banquet (1892) foi fundada pelo próprio Marcel Proust e amigos. É nesta altura que publica seus primeiros trabalhos literários e biografias de pintores. Faz traduções de Ruskin, ensaia o relato romanesco de sua trajetória espiritual compondo Jean Santeuil, obra que fará silenciar por lhe parecer apressada e demasiado próxima de seu diário. Marcel Proust (1881-1922) A morte de seu pai (1903) e de sua mãe (1905) e de um grande amigo empurram-no para a solidão, mas permanece financeiramente independente e livre para escrever. Através da reflexão que desenvolve na obra Contre Sain-Beuve, composta em 1907, aproxima-se já do grande livro Em Busca do tempo Perdido. Em 1909, priva-se de toda vida social e quase de toda espécie de comunicação. Em 1912, foram publicados no jornal Le Figaro os primeiros extratos da obra. Proust cria um trabalho grandioso escrito em primeira pessoa. Exceção na narrativa, Un Amour de Swann é a história de uma época. Marcel Proust (1881-1922)
O mundo exterior e o mundo interior são
originalmente identificados. Viajando no tempo, problematiza a modernidade e a existência maquinal a que ela nos condenou. É um trabalho realizado no reencontro de uma vida perdida e que se prolonga, por outro lado, numa metafísica sugerida, como é o caso do episódio da xícara de chá em que Proust nos quer transmitir que a realidade autêntica vive no nosso inconsciente e só uma viagem involuntária pela memória nos leva ao contato com ela. Marcel Proust (1881-1922)
Em busca do tempo perdido é uma história alegórica
de sua vida, de onde são retirados os acontecimentos e os lugares. O autor projeta sua própria homossexualidade nas personagens, considerando-a, bem como a vaidade, o esnobismo e a crueldade, o maior símbolo do pecado original. Marcel Proust é considerado como o precursor da nova crítica e fundador da crítica temática. Publicou ainda em 1919 Pastiches et mélanges. Marcel Proust (1881-1922)
Foi ainda no ano de 1925 que Benjamin traduziu o
volume de Sodome et Gomorrhe, mas essa tradução não chegou a ser publicada e o seu manuscrito se perdeu. A quatro mãos com o escritor Franz Hessel, ele traduziu ainda À l’ombre des jeunes filles en fleurs e Le côté de Guermantes, volumes publicados, respectivamente, em 1926 e 1930, com os títulos Im Schatten der jungen Mädchen e Guermantes. • 1. Estabelecer a diferença entre Erfahrung (experiência coletiva) e Erlebnis (vivência). • Benjamin entende Em busca do tempo perdido como a experiência de Proust de tentar ter experiências expressas pela escrita e com base na rememoração. Benjamin:A doutrina das semelhanças
Segundo Benjamin, todos os homens têm o poder
de captar e produzir imagens e correspondências. Elas estão inscritas objetivamente na natureza, e a elas corresponde a faculdade subjetiva de percebê- las: o dom mimético que permitia ao primitivo tornar- se semelhante e observar semelhanças Benjamin afirma que Proust empreendeu uma tarefa “elementar”: “fazer a narração de sua própria infância.” (Benjamin, 1997, p. 107) Elementar porque, em tempos modernos, narrar já há muito se mostra uma forma de comunicação em seu ocaso, tendo dado espaço à informação. Ao narrar sua infância, ao tentar construir uma experiência de rememorar a infância, “os oito volumes de Proust nos dão ideia das medidas necessárias à restauração da figura do narrador para a atualidade”. (Benjamin, 1997, p. 107) Se Marcel Proust eleva o escritor moderno à condição de narrador, ou melhor, à condição de alguém que busca o narrador em si, ele o faz graças à memória involuntária, capaz de levá-lo de volta à infância da Madeleine. Na célebre passagem, o narrador, um adulto, ao tomar chá com o bolinho, é remetido involuntariamente, ao sentir- lhe o sabor, à sua infância em Combray. Antes dessa memória, vinda diretamente de seu inconsciente, com que esforço relembra-se de Combray, dos pormenores da casa?! As lembranças alcançáveis em nível consciente apresentam-se sob a tutela do intelecto, fenômeno definido por Henri Bergson, em Matéria e memória, como memória pura (1999). Proust desloca a ideia de memória pura desenvolvida pelo teórico francês – juntamente com a ideia de duração – para a de memória involuntária, negando que “o recurso à presentificação intuitiva do fluxo da vida seja uma questão de livre escolha”. (Benjamin, 1997, p.106) Nessa livre escolha Benjamin enxerga um forte afastamento da vivência moderna, que ele considera o contrário da experiência – ou, pior, uma degeneração dela. A importância que Proust dá às correspondances deve-se ao fato de nelas reconhecer a cristalização de “um conceito de experiência que engloba elementos culturais” (Benjamin, 1997, p. 132), o que possibilitaria ao moderno Baudelaire dimensionar a derrocada da experiência tal qual se conhecia. Proust, afirma Benjamin em 1929 com A imagem de Proust, também trabalha com as correspondências; em seucaso, são as semelhanças que as determinam, e que por sua vez aparecem no universode entrecruzamentos de reminiscências e envelhecimento, matéria-prima de que é feita a literatura proustiana. Embora tenham sido elevadas ao grau máximo com Baudelaire em sua poesia, “Proust foi o único a incorporar em sua existência vivida” (Benjamin, 2010, p.45) as correspondências por obra da memória involuntária e “sua força rejuvenescedora capaz de enfrentar o implacável envelhecimento”. (Benjamin, 2010, p.45) A autoabsorção dentro da obra que a vontade e a doença lhe impuseram são a prova disso. Benjamin justifica sua escolha pela análise de Em busca do tempo perdido em função do próprio autor, cuja condição de escrita tem como principal consequência uma grande discrepância entre vida e obra. Afinal, Proust não escreve sobre o que aconteceu,mas sobre o que se lembra que aconteceu. Nesse sentido, ele rememora a partir de sua memória involuntária, costurando, diz Benjamin, uma tessitura do esquecimento A comparação com Penélope, que tece reminiscências (no sentido literal que o termo assume em O Narrador) para ganhar tempo, se mostra perspicaz. Pois “não seria esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penélope, mais que sua cópia?” (Benjamin, 2010, p. 37). Nesse autor que trocou o dia pela noite, que se recusava a dormir a fim de não esquecer e registrar todas as suas memórias – e isso está tanto no livro quanto nos hábitos de alcova – temos a imagem da luta contra o esquecimento, da vigília enquanto tentativa de eternizar as lembranças, de “não deixar escapar nenhum dos arabescos entrelaçados”. (Benjamin, 2010, p. 37) A imagem de Proust que evocamos é a do homem excêntrico, rico e doente, deitado na cama de seu quarto, irremediavelmente determinado a tecer suas memórias enquanto havia tempo. Quando menciona o depoimento de Gallimard sobre o enlouquecedor hábito de Proust de mexer, à exaustão, nas provas de revisão de seu livro, Benjamin puxa um fio de verdade e nos mostra que aí também se exercia a lei do esquecimento; para a qual a lembrança, e não o fato, é antídoto, e por isso mesmo antídoto sem limites, que não se restringe à esfera do vivido. Nesse sentido, engana-se quem deseja achar a unidade dos volumes de Em busca do tempo perdido unicamente no autor ou nas ações que lá ocorrem. Seu modo de textura está no ato da própria recordação. Ela é que dá a forma, ela é o ímã. Benjamin faz a pergunta que todo leitor de Proust deve fazer a si mesmo: o que ele tão “freneticamente” buscava? Pelo que sua alma tanto ardia? Estava em busca de um tempo perdido na modernidade, e essa perda poderia ser atenuada senão aos pedaços, pela rememoração. O que se perde e o que se ganha? Se há um ensinamento nos volumes de Em busca do tempo perdido é o de que é preciso lembrar sempre, comentar sempre (duas ações tão judaicas!) a fim de extrair uma verdade possível – não total, mas verdadeira. Ao escrever todos os volumes de Em busca do tempo perdido, Proust sabia-se diante da impossível totalidade. O que importa, como é o caso de Proust e sua Madeleine, não é o grande momento, mas aquele efêmero, banal e frágil, diz Benjamin. Se aí é que está o clarão de verdade, por mais fugaz que seja, aí também está o reencontro consigo mesmo, a empreitada mais que desafiadora imposta ao homem moderno. Essa condição leva Proust a construir frases cujas imagens revelam e saciam a nostalgia por aquilo que não existe mais. Com que talento de escritor ele expressa (sem representar) um mundo em seu ocaso! Sem que use a palavra alegoria, Benjamin nos fala de um autor que, pela forma de sua escrita, expressa sua condição moderna em vez de representá-la. Afastando-se do mimetismo naturalista de Zola e Anatole France, Proust “fez do século XIX um século para memorialistas. O que era antes dele uma simples época, desprovida de tensões, converteu-se num campo de forças [...]”.(Benjamin, 2010, p. 40) Com essa afirmação, Benjamin leva a literatura proustiana para o campo histórico (como veremos a seguir), o que à época deve ter sido uma ousadia, e ainda reprova o tipo de crítica que parecia ser feita na Alemanha de sua época: alheia ao interior da obra, muito mais preocupada com seus fatores externos do que com a possibilidade de deixá-la comunicar sua própria linguagem. Colocar a obra do esnobe, o frequentador de salões, à frente de nomes associados à denúncia das péssimas condições a que era submetida a população de Paris é duplamente desafiador: bate de frente com um pensamento de esquerda ortodoxo e um germanismo galopante. É evidente que os problemas dos indivíduos que serviram de modelo a Proust provêm de uma sociedade saturada, mas não são os problemas do autor. Estes são subversivos. Se fosse preciso resumi-los numa fórmula, poderíamos dizer que seu foco é reconstruir toda a estrutura da alta sociedade sob a forma de uma fisiologia da tagarelice. (Benjamin, 2010, p. 41) É nos salões que frequentou até pouco antes de começar a escrever Em busca do tempo perdido que Proust aprendeu a linguagem cifrada dos que dispõem de palavras para dizer tudo, mas escolhem-nas com o cuidado de quem toca bibelôs numa loja e pouco a pouco vai comprando centenas deles. Aqui, o mérito do observador Proust, nos diz Benjamin, não foi o de aprender como se comunicar adequadamente nas altas classes, mas de revelar em sua literatura que essas palavras fazem parte “de um jargão regulamentado por critérios de casta e de classe e não são acessíveis a estranhos”.(Benjamin, 2010, p. 42) Numa postura em que podemos antever as teses sobre história que conceberia pouco mais de dez anos depois, Benjamin nos mostra um Proust que espreita, pela linguagem, como um detetive, essa classe suspeita: “a camorra dos consumidores” (Benjamin, 2010, p. 44). Os que podem consumir muito aquilo a que poucos têm acesso como que exigem destes um retraimento pudico, uma subserviência silenciosa desenhada por gestos e códigos comuns ao mundo do consumo. Quando Benjamin afirma que “a análise proustiana do esnobismo, muito mais importante que sua apoteose da arte, é o ponto alto da sua crítica social” (Benjamin, 2010, p. 44), ele aponta para a máscara “feudal” de que a alta burguesia se investia, obrigada a dissimular seu poder de consumo pela linguagem e atada a valores aristocráticos em visível derrocada. Nesse sentido, aos que acusam Proust de pôr-se a serviço de sua classe, Benjamin dá um aviso: não foi a serviço, foi à frente dela. Por isso a incompreensão da própria classe em relação à obra proustiana, por isso a não aceitação de parte da crítica. “O que ela [sua classe] vive começa a tornar- se compreensível graças a ele.” (Benjamin, 2010, p. 45) A observação de Benjamin vai ao encontro de sua proposta de romper com o continuum da história graças à possibilidade de, pela memória involuntária, se chegar a um determinado momento passado a fim de modificá-lo. A narração proustiana é interrompida pelos instantes de reminiscência, e o que se dá nesses instantes é justamente a superposição de passado e presente. Vê-se, então, uma maneira instigante de revisitar o tempo que passou, transformando também o posterior, como podemos acompanhar em sua narrativa. As fórmulas “antes eu não sabia” ou “depois eu compreenderia”, utilizadas pelo herói proustiano com recorrência, evidenciam a maneira com que o romancista caminha entre passado, presente e futuro com naturalidade e, mais ainda, como ele apresenta a passagem de tempo e as mudanças sofridas, por ele próprio e pelas demais personagens, através dos saltos temporais sugeridos por essas expressões. Elas nada mais fazem do que explodir o continuum da história, como queria Benjamin. (Oliveira, 2009, p. 78) Benjamin: A doutrina das semelhanças
No mundo moderno, esta faculdade de perceber
similaridades e semelhanças se degradou, mas não desapareceu de todo. Ela sobrevive na linguagem que constitui "um arquivo de correspondências suprassensíveis" (“A Doutrina da Semelhança”). E sobrevive na arte, capaz de perceber semelhanças temporais e naturais. Benjamin: A doutrina das semelhanças
Semelhançastemporais: para Baudelaire, o presente se
liga a uma vida anterior (vie antérieure), como Paris se liga a Roma e Cartago, e, para Proust, as correspondências se manifestam na rememoração, pela qual um acontecimento passado, evocado pela memória involuntária, é posto em relação com um acontecimento presente. Semelhanças naturais: através das sinestesias, o sabor da madeleine proustiana se comunica com outros sabores e aromas, e para Baudelaire, “os perfumes, as cores e os sons se correspondem” ("les parfums, les couleurs et les sons se répondent“). Benjamin: A doutrina das semelhanças
O que é essencial para a observação das
correspondências é que elas passam diante do observador com a rapidez do relâmpago e, se não forem captadas nesta exata fração de segundo, perdem-se para sempre. "O contexto significativo das palavras ou sentenças é o substrato no qual emerge a semelhança com a velocidade de um relâmpago. A produção e a percepção de tal semelhança se vincula a esse relampejar." A memória involuntária
No ensaio "Sobre alguns temas em Baudelaire",
escrito em 1939, Benjamin mostra algumas vinculações da obra proustiana com temas presentes a Bergson. Proust teria colocado à prova a noção de experiência (verdadeira) bergsoniana através da construção de sua obra. A memória, segundo o ponto de vista de Bergson, tem papel fundamental na relação entre o espírito e a matéria e na preservação da verdadeira experiência. A memória involuntária
O ponto marcante em Proust é que ele busca a
construção dessa verdadeira experiência nas condições sociais da modernidade. Segundo Benjamin, a memória involuntária de Proust está diretamente ligada à noção de memória pura de Bergson, mas, ao mesmo tempo, marca uma diferença em relação a ela. Bergson nos leva a crer, através de seu olhar inspirado pela biologia, que a possibilidade de acolher a verdadeira experiência seja uma questão de escolha. A memória involuntária
Este aspecto é criticado por Benjamin que considera o
modelo bergsoniano a-histórico e anti-histórico. Se tudo não passa de uma questão de escolha não estamos levando em conta as condições sociais de vida na modernidade. Esta interpretação de Benjamin é reforçada pela diferenciação sugerida por Proust quando caracteriza a memória involuntária como um acontecimento que não pode ser produzido a partir da vontade, por uma ação voluntária. Para Proust, resgatarmos um momento significativo que ficara esquecido no passado é uma situação que depende do acaso. A memória involuntária
Proust sublinha a interferência do acaso no momento
em que a memória involuntária se manifesta. A memória articulada à inteligência, que se produz por um esforço da consciência, é incapaz de trazer à tona uma impressão satisfatória - coberta de antigas sensações, detalhes e emoções - daquilo que foi vivido anteriormente. A memória capaz de nos revelar novamente esses aspectos, esta que nos possibilita um reencontro com aquilo que foi experimentado no passado, não se relaciona diretamente com as injunções de nossa inteligência. Não basta um decisão de nossa consciência para que o processo nos seja proporcionado. A memória involuntária
Proust nos leva a crer que a memória voluntária se
relaciona muito estreitamente com o hábito. E que, ao contrário, a memória involuntária se distancia do hábito. O afastamento em relação aos ditames do hábito é possível através de um esquecimento ativo realizado pela memória involuntária. E é este mesmo esquecimento, proporcionado também pelo sonho, que sugere a Benjamin compreender a memória de Proust como o trabalho inverso ao de Penélope. A memória involuntária
Segundo Benjamin, Proust trata da necessidade de
um trabalho do esquecimento em relação à construção oferecida pela memória voluntária. Se Penélope durante a noite desfazia a sua tapeçaria para que durante o dia pudesse constituí-la, Proust criou uma urdidura do esquecimento capaz de, durante a noite, suspender as lembranças da memória voluntária, incapazes de reconstruir significativamente o tempo passado. A memória involuntária
Durante a noite, o sonho tem a faculdade de fazer
esquecer as lembranças da memória voluntária que deverá ser reconstituída durante o dia. O esquecimento tece a tapeçaria da existência vivida, é a tapeçaria da rememoração sem limites daquilo que foi vivido. É o esquecimento do acontecimento vivido e conscientemente demarcado. A memória involuntária
Um encontro casual com um objeto material é
capaz de nos lançar longe, muito longe, de nossa percepção mais habitual do mundo que nos cerca. Esta é a hipótese de Proust e marca o seu distanciamento em relação a Bergson. O mais importante é que, em sua hipótese, torna-se impossível qualquer previsão em torno desse encontro. Para Proust, é possível viver uma vida inteira sem que um acaso tenha feito soar a cantiga, cantada pela memória involuntária, restauradora das emoções de nosso passado. A memória involuntária
Para Proust, a experiência significa a felicidade de
um encontro que faça cessar o sentimento de que somos "medíocres, contingentes e mortais". Para alguns intérpretes, a redescoberta do tempo perdido é, na verdade, a possibilidade de suprimir o tempo, sair momentaneamente da ordem do tempo. Para Benjamin, a eternidade em Proust não apresenta traços de um platonismo, é uma eternidade de tempos entrecruzados que instaura uma nova ordem. A memória involuntária
Poderíamos dizer que a questão fundamental em
Proust não é a memória, seja a involuntária ou a voluntária, mas sim a experiência entendida como felicidade. Contudo, a felicidade com a qual esbarramos casualmente (ou não) nos corredores de nossas vidas, só se torna presente a partir de um precedente : a memória involuntária. A memória involuntária
Segundo Benjamin, só foi possível imaginar que a
tarefa de contar a infância, encenada pelo narrador do livro, enfrentaria sérias dificuldades porque Proust encontrava-se no contexto específico da modernidade. O fato de que para a experiência de uma vida se realizar de forma genuína possam haver interdições não é um dado natural. Somente quando os dados exteriores passam a ter menos condições de se relacionar com a nossa experiência é que nossas questões passam a ter um caráter irremediavelmente privado. A memória involuntária
Esta experiência, que faltou a Bergson, aparece, talvez de
forma pouco consciente, em Proust. Sua escrita comunica aos leitores que existem certas condições específicas para o passado e o presente serem integrados. A partir dessa diferença, Benjamin nos alerta para as condições sociais reais da vida na modernidade, distanciada da tradição. Sua análise da informação jornalística e da forma literária do romance nos leva a crer que o distanciamento em relação à tradição, presente na modernidade, nos impossibilitou de ligar integralmente nossa experiência aos acontecimentos que nos são exteriores. A memória involuntária
É neste contexto que, segundo Benjamin, a "tarefa
elementar" de narrar a própria infância passa a apresentar um desafio, e pode ser ou não bem sucedida. Este desafio se configura na tentativa de integrar presente e passado de forma capaz de ultrapassar nossas relações habituais com a lembrança. Diante do fato de que esta integração entre presente e passado - no contexto da modernidade - diminui suas chances de ser realizada, Proust sugere a intervenção do acaso. A memória involuntária
A noção de memória involuntária, criada por
Proust, atesta as interdições concernentes a esta experiência integradora do mundo da informação jornalística e do romance. Este é o momento da história ocidental em que os homens se encontram distanciados de suas tradições e, cada vez mais, perdem as condições de integrar os acontecimentos à sua experiência. A memória involuntária
Proust cria a sua obra a partir da percepção de que
a integração dos acontecimentos que são externos à nossa experiência nem sempre pode ser realizada. É Benjamin que nos mostra como esta interdição da experiência, expressa nas obras de Proust e Baudelaire, ocorreu paralelamente a uma ampla mudança da percepção, intensificada pelas grandes transformações do século XIX. A memória involuntária
Esta mudança constituiria não só uma nova
concepção da arte - o objeto artístico destituído de experiência aurática - mas também uma nova forma de sensibilidade, um novo sujeito de percepção: o sujeito moderno. A descrição de Benjamin nunca é consoladora, e, embora possa esboçar traços de uma certa nostalgia, absteve-se de apontar para a possibilidade de um resgate da experiência e da percepção auráticas. A memória involuntária
Sua leitura de Baudelaire ou Proust é antes o
diagnóstico de uma cultura que passará a apresentar novas feições, do que uma interpretação que observa nesses autores a preservação de elementos correspondentes às sociedades tradicionais. Para Benjamin, ambos os autores situam-se no vértice entre a experiência (Erfahrung) e a vivência (Erlebnis), e nesta fronteira não há como retornar nostalgicamente ao passado. Proust por Benjamin
No pensamento de Benjamin, a tarefa do crítico
associa-se ao caráter construtor de uma filosofia preocupada com as condições de possibilidade da história, no âmbito da modernidade. Benjamin se perguntava sobre as relações da criação proustiana com a modernidade, pois em função disso seria possível avaliar as reais contribuições da concepção da memória sugerida por Proust. A partir disso, Benjamin tece a sua interpretação da obra de Proust. A busca do tempo que se perdeu elaborada no romance de Proust transforma-se, a partir de Benjamin, na descoberta de que a experiência se perdeu. O entendimento de que esta experiência não pode ser recuperada o impele a ver, na memória involuntária de Proust, um movimento que se distingue de uma restauração do passado. Para Benjamin, a descoberta da infância através da madeleine não representa o reencontro do idêntico, mas do semelhante. As correspondências entre os acontecimentos são capazes de revelar algo novo que não fora percebido no passado. Por este motivo, Benjamin ressalta que o encontro com o passado não é fazer reviver aquilo que estava dado em um outro tempo, mas se perdera. .
Não se trata de um reencontro com o outrora
conhecido. Ao contrário, as relações de semelhança, que em Proust são possíveis por obra do acaso, revelam o que só pode ser percebido através de ligações entre presente e passado. Mais radical do que isto, revelam o que só existe nas articulações entre presente e passado. Benjamin quer distinguir, em Proust, o tema da eternidade do tema do tempo. A novidade proposta está relacionada com o que chama de tempo entrecruzado. Na ligação entre memória involuntária e envelhecimento encontraremos a noção de eternidade vinculada a um tempo de entrecruzamentos, tal como Benjamin nos fez ver. A possibilidade de compreender o mundo em estado de semelhança foi vislumbrada por Proust na manifestação da memória involuntária. Esta memória apresenta um poder rejuvenescedor que nos torna capazes de encarar de frente o envelhecimento. O envelhecimento, que por obra do tempo, nos parece implacável, pode ser, deste modo, enfrentado. Contudo, o que significa enfrentar o envelhecimento? Na perspectiva de Benjamin, não se trata de apontar para uma superação do tempo através da instauração da eternidade infinita. Ao contrário, Benjamin enfatiza o elemento da fugacidade constitutivo da memória involuntária. O instante que entrecruza presente e passado é como que um flash que ilumina durante alguns segundos um acontecimento. O acontecimento iluminado emana reflexos do passado, por isso ele é capaz do efeito do rejuvenescimento. O importante é que esta potencialidade rejuvenescedora não se dá simplesmente porque somos impulsionados momentaneamente para fora da ordem do tempo, mas sim porque vislumbramos o entrecruzamento do passado, tornado infinito pela rememoração, com a circunstância contingencial do presente. É porque tornamos, num piscar de olhos, a sentir os limites de nossa existência temporal (e temporária) que somos capazes de considerar significativa a vivência daquilo que Proust denominou de memória involuntária. Não estamos falando de viagens no tempo em que o morador do presente se desloca para o passado e, através deste movimento, encontrando consigo mesmo alguns anos mais novo, contenta-se em estar rejuvenescido. Diferentemente, estamos considerando o entrecruzamento de passado e presente, que significa uma concentração do (e no) tempo. A concentração do tempo em um instante não é um movimento até o passado, é a revelação de semelhanças que faz presente e passado sobreporem-se um ao outro. Boa noite, caros alunos