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Boa noite, caros alunos

Marcel Proust (1881-1922)

Marcel Proust, romancista e crítico francês, nasceu a


10 de julho de 1881 em Auteuil, perto de Paris e
morreu a 18 de novembro de 1922, na capital
francesa. Era uma criança débil e asmática com uma
inteligência e uma sensibilidade precoces. Até aos
35 anos movimentou-se nos círculos da sociedade
parisiense. Depois da morte dos pais, isolou-se em
seu apartamento em Paris, onde se entregou
profundamente à composição da obra-prima Em
busca do tempo perdido, publicada entre 1914-
1927.
Marcel Proust (1881-1922)
. Em busca do tempo perdido consta de sete volumes
em que expressa as suas memórias através do
caminho do subconsciente, e é também uma
preciosa reflexão sobre a vida na França nos finais
do século XIX. A obra é como sua vida: o reencontro
de duas épocas, a tradição clássica e a
modernidade. Proust é considerado o precursor do
romance contemporâneo.
Marcel Proust licenciou-se em Direito (1893) e
Literatura (1895). Durante os anos de estudo foi
influenciado pelo filósofo Henri Bergson e Paul
Desjardins e pelo historiador Albert Sorel.
Marcel Proust (1881-1922)
Em 1896, publicou Les Plaisirs et les jours, uma
coleção de versos e contos de grande valor e
profundidade, muitos dos quais saíram nas revistas
Le Banquet e la Révue Blanche. A revista Le Banquet
(1892) foi fundada pelo próprio Marcel Proust e
amigos. É nesta altura que publica seus primeiros
trabalhos literários e biografias de pintores. Faz
traduções de Ruskin, ensaia o relato romanesco de
sua trajetória espiritual compondo Jean Santeuil,
obra que fará silenciar por lhe parecer apressada e
demasiado próxima de seu diário.
Marcel Proust (1881-1922)
A morte de seu pai (1903) e de sua mãe (1905) e de
um grande amigo empurram-no para a solidão, mas
permanece financeiramente independente e livre
para escrever. Através da reflexão que desenvolve
na obra Contre Sain-Beuve, composta em 1907,
aproxima-se já do grande livro Em Busca do tempo
Perdido. Em 1909, priva-se de toda vida social e
quase de toda espécie de comunicação. Em 1912,
foram publicados no jornal Le Figaro os primeiros
extratos da obra. Proust cria um trabalho grandioso
escrito em primeira pessoa. Exceção na narrativa,
Un Amour de Swann é a história de uma época.
Marcel Proust (1881-1922)

O mundo exterior e o mundo interior são


originalmente identificados. Viajando no tempo,
problematiza a modernidade e a existência
maquinal a que ela nos condenou. É um trabalho
realizado no reencontro de uma vida perdida e que
se prolonga, por outro lado, numa metafísica
sugerida, como é o caso do episódio da xícara de
chá em que Proust nos quer transmitir que a
realidade autêntica vive no nosso inconsciente e só
uma viagem involuntária pela memória nos leva ao
contato com ela.
Marcel Proust (1881-1922)

Em busca do tempo perdido é uma história alegórica


de sua vida, de onde são retirados os
acontecimentos e os lugares. O autor projeta sua
própria homossexualidade nas personagens,
considerando-a, bem como a vaidade, o esnobismo
e a crueldade, o maior símbolo do pecado original.
Marcel Proust é considerado como o precursor da
nova crítica e fundador da crítica temática. Publicou
ainda em 1919 Pastiches et mélanges.
Marcel Proust (1881-1922)

Foi ainda no ano de 1925 que Benjamin traduziu o


volume de Sodome et Gomorrhe, mas essa tradução
não chegou a ser publicada e o seu manuscrito se
perdeu. A quatro mãos com o escritor Franz Hessel,
ele traduziu ainda À l’ombre des jeunes filles en
fleurs e Le côté de Guermantes, volumes
publicados, respectivamente, em 1926 e 1930, com
os títulos Im Schatten der jungen Mädchen e
Guermantes.
• 1. Estabelecer a diferença entre Erfahrung
(experiência coletiva) e Erlebnis (vivência).
•  Benjamin entende Em busca do tempo perdido
como a experiência de Proust de tentar ter
experiências expressas pela escrita e com base na
rememoração.
Benjamin:A doutrina das semelhanças

Segundo Benjamin, todos os homens têm o poder


de captar e produzir imagens e correspondências.
Elas estão inscritas objetivamente na natureza, e a
elas corresponde a faculdade subjetiva de percebê-
las: o dom mimético que permitia ao primitivo
tornar- se semelhante e observar semelhanças
Benjamin afirma que Proust empreendeu uma tarefa
“elementar”: “fazer a narração de sua própria
infância.” (Benjamin, 1997, p. 107) Elementar
porque, em tempos modernos, narrar já há muito se
mostra uma forma de comunicação em seu ocaso,
tendo dado espaço à informação. Ao narrar sua
infância, ao tentar construir uma experiência de
rememorar a infância, “os oito volumes de Proust
nos dão ideia das medidas necessárias à restauração
da figura do narrador para a atualidade”. (Benjamin,
1997, p. 107)
Se Marcel Proust eleva o escritor moderno à condição de
narrador, ou melhor, à condição de alguém que busca o
narrador em si, ele o faz graças à memória involuntária,
capaz de levá-lo de volta à infância da Madeleine. Na
célebre passagem, o narrador, um adulto, ao tomar chá
com o bolinho, é remetido involuntariamente, ao sentir-
lhe o sabor, à sua infância em Combray. Antes dessa
memória, vinda diretamente de seu inconsciente, com
que esforço relembra-se de Combray, dos pormenores
da casa?! As lembranças alcançáveis em nível
consciente apresentam-se sob a tutela do intelecto,
fenômeno definido por Henri Bergson, em Matéria e
memória, como memória pura (1999).
Proust desloca a ideia de memória pura desenvolvida
pelo teórico francês – juntamente com a ideia de
duração – para a de memória involuntária, negando
que “o recurso à presentificação intuitiva do fluxo
da vida seja uma questão de livre escolha”.
(Benjamin, 1997, p.106) Nessa livre escolha
Benjamin enxerga um forte afastamento da vivência
moderna, que ele considera o contrário da
experiência – ou, pior, uma degeneração dela.
A importância que Proust dá às correspondances
deve-se ao fato de nelas reconhecer a cristalização
de “um conceito de experiência que engloba
elementos culturais” (Benjamin, 1997, p. 132), o
que possibilitaria ao moderno Baudelaire
dimensionar a derrocada da experiência tal qual se
conhecia. Proust, afirma Benjamin em 1929 com A
imagem de Proust, também trabalha com as
correspondências; em seucaso, são as semelhanças
que as determinam, e que por sua vez aparecem no
universode entrecruzamentos de reminiscências e
envelhecimento, matéria-prima de que é feita a
literatura proustiana. Embora tenham sido elevadas
ao grau máximo com Baudelaire em sua poesia,
“Proust foi o único a incorporar em sua existência
vivida” (Benjamin, 2010, p.45) as correspondências
por obra da memória involuntária e “sua força
rejuvenescedora capaz de enfrentar o implacável
envelhecimento”. (Benjamin, 2010, p.45) A
autoabsorção dentro da obra que a vontade e a
doença lhe impuseram são a prova disso.
Benjamin justifica sua escolha pela análise de Em
busca do tempo perdido em função do próprio
autor, cuja condição de escrita tem como principal
consequência uma grande discrepância entre vida e
obra. Afinal, Proust não escreve sobre o que
aconteceu,mas sobre o que se lembra que
aconteceu. Nesse sentido, ele rememora a partir de
sua memória involuntária, costurando, diz
Benjamin, uma tessitura do esquecimento
A comparação com Penélope, que tece reminiscências (no
sentido literal que o termo assume em O Narrador) para
ganhar tempo, se mostra perspicaz. Pois “não seria esse
trabalho de rememoração espontânea, em que a
recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o
oposto do trabalho de Penélope, mais que sua cópia?”
(Benjamin, 2010, p. 37). Nesse autor que trocou o dia pela
noite, que se recusava a dormir a fim de não esquecer e
registrar todas as suas memórias – e isso está tanto no livro
quanto nos hábitos de alcova – temos a imagem da luta
contra o esquecimento, da vigília enquanto tentativa de
eternizar as lembranças, de “não deixar escapar nenhum
dos arabescos entrelaçados”. (Benjamin, 2010, p. 37)
A imagem de Proust que evocamos é a do homem excêntrico,
rico e doente, deitado na cama de seu quarto,
irremediavelmente determinado a tecer suas memórias
enquanto havia tempo. Quando menciona o depoimento de
Gallimard sobre o enlouquecedor hábito de Proust de mexer,
à exaustão, nas provas de revisão de seu livro, Benjamin puxa
um fio de verdade e nos mostra que aí também se exercia a
lei do esquecimento; para a qual a lembrança, e não o fato, é
antídoto, e por isso mesmo antídoto sem limites, que não se
restringe à esfera do vivido. Nesse sentido, engana-se quem
deseja achar a unidade dos volumes de Em busca do tempo
perdido unicamente no autor ou nas ações que lá ocorrem.
Seu modo de textura está no ato da própria recordação. Ela é
que dá a forma, ela é o ímã.
Benjamin faz a pergunta que todo leitor de Proust deve
fazer a si mesmo: o que ele tão “freneticamente”
buscava? Pelo que sua alma tanto ardia? Estava em
busca de um tempo perdido na modernidade, e essa
perda poderia ser atenuada senão aos pedaços, pela
rememoração. O que se perde e o que se ganha? Se há
um ensinamento nos volumes de Em busca do tempo
perdido é o de que é preciso lembrar sempre, comentar
sempre (duas ações tão judaicas!) a fim de extrair uma
verdade possível – não total, mas verdadeira. Ao
escrever todos os volumes de Em busca do tempo
perdido, Proust sabia-se diante da impossível totalidade.
O que importa, como é o caso de Proust e sua
Madeleine, não é o grande momento, mas aquele
efêmero, banal e frágil, diz Benjamin. Se aí é que
está o clarão de verdade, por mais fugaz que seja, aí
também está o reencontro consigo mesmo, a
empreitada mais que desafiadora imposta ao
homem moderno. Essa condição leva Proust a
construir frases cujas imagens revelam e saciam a
nostalgia por aquilo que não existe mais. Com que
talento de escritor ele expressa (sem representar)
um mundo em seu ocaso!
Sem que use a palavra alegoria, Benjamin nos fala de um
autor que, pela forma de sua escrita, expressa sua condição
moderna em vez de representá-la. Afastando-se do
mimetismo naturalista de Zola e Anatole France, Proust “fez
do século XIX um século para memorialistas. O que era
antes dele uma simples época, desprovida de tensões,
converteu-se num campo de forças [...]”.(Benjamin, 2010, p.
40) Com essa afirmação, Benjamin leva a literatura
proustiana para o campo histórico (como veremos a seguir),
o que à época deve ter sido uma ousadia, e ainda reprova o
tipo de crítica que parecia ser feita na Alemanha de sua
época: alheia ao interior da obra, muito mais preocupada
com seus fatores externos do que com a possibilidade de
deixá-la comunicar sua própria linguagem.
Colocar a obra do esnobe, o frequentador de salões, à
frente de nomes associados à denúncia das péssimas
condições a que era submetida a população de Paris é
duplamente desafiador: bate de frente com um
pensamento de esquerda ortodoxo e um germanismo
galopante. É evidente que os problemas dos indivíduos
que serviram de modelo a Proust provêm de uma
sociedade saturada, mas não são os problemas do
autor. Estes são subversivos. Se fosse preciso resumi-los
numa fórmula, poderíamos dizer que seu foco é
reconstruir toda a estrutura da alta sociedade sob a
forma de uma fisiologia da tagarelice. (Benjamin, 2010,
p. 41)
É nos salões que frequentou até pouco antes de
começar a escrever Em busca do tempo perdido que
Proust aprendeu a linguagem cifrada dos que dispõem
de palavras para dizer tudo, mas escolhem-nas com o
cuidado de quem toca bibelôs numa loja e pouco a
pouco vai comprando centenas deles. Aqui, o mérito
do observador Proust, nos diz Benjamin, não foi o de
aprender como se comunicar adequadamente nas
altas classes, mas de revelar em sua literatura que
essas palavras fazem parte “de um jargão
regulamentado por critérios de casta e de classe e não
são acessíveis a estranhos”.(Benjamin, 2010, p. 42)
Numa postura em que podemos antever as teses sobre história
que conceberia pouco mais de dez anos depois, Benjamin nos
mostra um Proust que espreita, pela linguagem, como um
detetive, essa classe suspeita: “a camorra dos consumidores”
(Benjamin, 2010, p. 44). Os que podem consumir muito
aquilo a que poucos têm acesso como que exigem destes um
retraimento pudico, uma subserviência silenciosa desenhada
por gestos e códigos comuns ao mundo do consumo. Quando
Benjamin afirma que “a análise proustiana do esnobismo,
muito mais importante que sua apoteose da arte, é o ponto
alto da sua crítica social” (Benjamin, 2010, p. 44), ele aponta
para a máscara “feudal” de que a alta burguesia se investia,
obrigada a dissimular seu poder de consumo pela linguagem
e atada a valores aristocráticos em visível derrocada.
Nesse sentido, aos que acusam Proust de pôr-se a
serviço de sua classe, Benjamin dá um aviso: não foi
a serviço, foi à frente dela. Por isso a
incompreensão da própria classe em relação à obra
proustiana, por isso a não aceitação de parte da
crítica. “O que ela [sua classe] vive começa a tornar-
se compreensível graças a ele.” (Benjamin, 2010, p.
45) A observação de Benjamin vai ao encontro de
sua proposta de romper com o continuum da
história graças à possibilidade de, pela memória
involuntária, se chegar a um determinado momento
passado a fim de modificá-lo.
A narração proustiana é interrompida pelos instantes de
reminiscência, e o que se dá nesses instantes é justamente a
superposição de passado e presente. Vê-se, então, uma
maneira instigante de revisitar o tempo que passou,
transformando também o posterior, como podemos
acompanhar em sua narrativa. As fórmulas “antes eu não sabia”
ou “depois eu compreenderia”, utilizadas pelo herói proustiano
com recorrência, evidenciam a maneira com que o romancista
caminha entre passado, presente e futuro com naturalidade e,
mais ainda, como ele apresenta a passagem de tempo e as
mudanças sofridas, por ele próprio e pelas demais personagens,
através dos saltos temporais sugeridos por essas expressões.
Elas nada mais fazem do que explodir o continuum da história,
como queria Benjamin. (Oliveira, 2009, p. 78)
Benjamin: A doutrina das semelhanças

No mundo moderno, esta faculdade de perceber


similaridades e semelhanças se degradou, mas não
desapareceu de todo. Ela sobrevive na linguagem
que constitui "um arquivo de correspondências
suprassensíveis" (“A Doutrina da Semelhança”). E
sobrevive na arte, capaz de perceber semelhanças
temporais e naturais.
Benjamin: A doutrina das semelhanças

Semelhançastemporais: para Baudelaire, o presente se


liga a uma vida anterior (vie antérieure), como Paris se
liga a Roma e Cartago, e, para Proust, as
correspondências se manifestam na rememoração, pela
qual um acontecimento passado, evocado pela memória
involuntária, é posto em relação com um acontecimento
presente.
Semelhanças naturais: através das sinestesias, o sabor
da madeleine proustiana se comunica com outros
sabores e aromas, e para Baudelaire, “os perfumes, as
cores e os sons se correspondem” ("les parfums, les
couleurs et les sons se répondent“).
Benjamin: A doutrina das semelhanças

O que é essencial para a observação das


correspondências é que elas passam diante do
observador com a rapidez do relâmpago e, se não
forem captadas nesta exata fração de segundo,
perdem-se para sempre. "O contexto significativo
das palavras ou sentenças é o substrato no qual
emerge a semelhança com a velocidade de um
relâmpago. A produção e a percepção de tal
semelhança se vincula a esse relampejar."
A memória involuntária

No ensaio "Sobre alguns temas em Baudelaire",


escrito em 1939, Benjamin mostra algumas
vinculações da obra proustiana com temas
presentes a Bergson.
Proust teria colocado à prova a noção de
experiência (verdadeira) bergsoniana através da
construção de sua obra. A memória, segundo o
ponto de vista de Bergson, tem papel fundamental
na relação entre o espírito e a matéria e na
preservação da verdadeira experiência.
A memória involuntária

O ponto marcante em Proust é que ele busca a


construção dessa verdadeira experiência nas
condições sociais da modernidade. Segundo
Benjamin, a memória involuntária de Proust está 
diretamente ligada à noção de memória pura de
Bergson, mas, ao mesmo tempo, marca uma
diferença em relação a ela.
Bergson nos leva a crer, através de seu olhar
inspirado pela biologia, que a possibilidade de
acolher a verdadeira experiência seja uma questão
de escolha.
A memória involuntária

Este aspecto é criticado por Benjamin que considera o


modelo bergsoniano a-histórico e anti-histórico. Se tudo
não passa de uma questão de escolha não estamos
levando em conta as condições sociais de vida na
modernidade.
Esta interpretação de Benjamin é reforçada pela
diferenciação sugerida por Proust quando caracteriza a
memória involuntária como um acontecimento que não
pode ser produzido a partir da vontade, por uma ação
voluntária. Para Proust, resgatarmos um momento
significativo que ficara esquecido no passado é uma
situação que depende do acaso.
A memória involuntária

Proust sublinha a interferência do acaso no momento


em que a memória involuntária se manifesta. A memória
articulada à inteligência, que se produz por um esforço
da consciência, é incapaz de trazer à tona uma
impressão satisfatória - coberta de antigas sensações,
detalhes e emoções - daquilo que foi vivido
anteriormente. A memória capaz de nos revelar
novamente esses aspectos, esta que nos possibilita um
reencontro com aquilo que foi experimentado no
passado, não se relaciona diretamente com as injunções
de nossa inteligência. Não basta um decisão de nossa
consciência para que o processo nos seja proporcionado.
A memória involuntária

Proust nos leva a crer que a memória voluntária se


relaciona muito estreitamente com o hábito. E que,
ao contrário, a memória involuntária se distancia do
hábito.
O afastamento em relação aos ditames do hábito é
possível através de um esquecimento ativo realizado
pela memória involuntária. E é este mesmo
esquecimento, proporcionado também pelo sonho,
que sugere a Benjamin compreender a memória de
Proust como o trabalho inverso ao de Penélope.
A memória involuntária

Segundo Benjamin, Proust trata da necessidade de


um trabalho do esquecimento em relação à
construção oferecida pela memória voluntária. Se
Penélope durante a noite desfazia a sua tapeçaria
para que durante o dia pudesse constituí-la, Proust
criou uma urdidura do esquecimento capaz de,
durante a noite, suspender as lembranças da
memória voluntária, incapazes de reconstruir
significativamente o tempo passado.
A memória involuntária

Durante a noite, o sonho tem a faculdade de fazer


esquecer as lembranças da memória voluntária que
deverá ser  reconstituída durante o dia. O
esquecimento tece a tapeçaria da existência vivida,
é a tapeçaria da rememoração sem limites daquilo
que foi vivido. É o esquecimento do acontecimento
vivido e conscientemente demarcado.
A memória involuntária

Um encontro casual com um objeto material é


capaz de nos lançar longe, muito longe, de nossa
percepção mais habitual do mundo que nos cerca.
Esta é a hipótese de Proust e marca o seu
distanciamento em relação a Bergson. O mais
importante é que, em sua hipótese, torna-se
impossível qualquer previsão em torno desse
encontro. Para Proust, é possível viver uma vida
inteira sem que um acaso tenha feito soar a cantiga,
cantada pela memória involuntária, restauradora
das emoções de nosso passado.
A memória involuntária

Para Proust, a experiência significa a felicidade de


um encontro que faça cessar o sentimento de que
somos "medíocres, contingentes e mortais". Para
alguns intérpretes, a redescoberta do tempo
perdido é, na verdade, a possibilidade de suprimir o
tempo, sair momentaneamente da ordem do
tempo. Para Benjamin, a eternidade em Proust não
apresenta traços de um platonismo, é uma
eternidade de tempos entrecruzados que instaura
uma nova ordem.
A memória involuntária

Poderíamos dizer que a questão fundamental em


Proust não é a memória, seja a involuntária ou a
voluntária, mas sim a experiência entendida como
felicidade. Contudo, a felicidade com a qual
esbarramos casualmente (ou não) nos corredores
de nossas vidas, só se torna presente a partir de um
precedente : a memória involuntária.
A memória involuntária

Segundo Benjamin, só foi possível imaginar que a


tarefa de contar a infância, encenada pelo narrador
do livro, enfrentaria sérias dificuldades porque
Proust encontrava-se no contexto específico da
modernidade. O fato de que para a experiência de
uma vida se realizar de forma genuína possam
haver interdições não é um dado natural. Somente
quando os dados exteriores passam a ter menos
condições de se relacionar com a nossa experiência
é que nossas questões passam a ter um caráter
irremediavelmente privado.
A memória involuntária

Esta experiência, que faltou a Bergson, aparece, talvez de


forma pouco consciente, em Proust. Sua escrita comunica
aos leitores que existem certas condições específicas para
o passado e o presente serem integrados.
A partir dessa diferença, Benjamin nos alerta para as
condições sociais reais da vida na modernidade,
distanciada da tradição. Sua análise da informação
jornalística e da forma literária do romance nos leva a crer
que o distanciamento em relação à tradição, presente na
modernidade, nos impossibilitou de ligar integralmente
nossa experiência aos acontecimentos que nos são
exteriores.
A memória involuntária

É neste contexto que, segundo Benjamin, a "tarefa


elementar" de narrar a própria infância passa a
apresentar um desafio, e pode ser ou não bem
sucedida. Este desafio se configura na tentativa de
integrar presente e passado de forma capaz de
ultrapassar nossas relações habituais com a
lembrança. Diante do fato de que esta integração
entre presente e passado - no contexto da
modernidade - diminui suas chances de ser
realizada, Proust sugere a intervenção do acaso.
A memória involuntária

A noção de memória involuntária, criada por


Proust, atesta as interdições concernentes a esta
experiência integradora do mundo da informação
jornalística e do romance. Este é o momento da
história ocidental em que os homens se encontram
distanciados de suas tradições e, cada vez mais,
perdem as condições de integrar os acontecimentos
à sua experiência.
A memória involuntária

Proust cria a sua obra a partir da percepção de que


a integração dos acontecimentos que são externos
à nossa experiência nem sempre pode ser realizada.
É Benjamin que nos mostra como esta interdição da
experiência, expressa nas obras de Proust e
Baudelaire, ocorreu paralelamente a uma ampla
mudança da percepção, intensificada pelas grandes
transformações do século XIX.
A memória involuntária

Esta mudança constituiria não só uma nova


concepção da arte - o objeto artístico destituído de
experiência aurática - mas também uma nova forma
de sensibilidade, um novo sujeito de percepção: o
sujeito moderno.
A descrição de Benjamin nunca é consoladora, e,
embora possa esboçar traços de uma certa
nostalgia, absteve-se de apontar para a
possibilidade de um resgate da experiência e da
percepção auráticas.
A memória involuntária

Sua leitura de Baudelaire ou Proust é antes o


diagnóstico de uma cultura que passará a
apresentar novas feições, do que uma interpretação
que observa nesses autores a preservação de
elementos correspondentes às sociedades
tradicionais. Para Benjamin, ambos os autores
situam-se no vértice entre a experiência (Erfahrung)
e a vivência (Erlebnis), e nesta fronteira não há 
como retornar nostalgicamente ao passado.
Proust por Benjamin

No pensamento de Benjamin, a tarefa do crítico


associa-se ao caráter construtor de uma filosofia
preocupada com as condições de possibilidade da
história, no âmbito da modernidade. Benjamin se
perguntava sobre as relações da criação proustiana
com a modernidade, pois em função disso seria
possível avaliar as reais contribuições da concepção
da memória sugerida por Proust.
A partir disso, Benjamin tece a sua interpretação da
obra de Proust. A busca do tempo que se perdeu
elaborada no romance de Proust transforma-se, a
partir de Benjamin, na descoberta de que a
experiência se perdeu. O entendimento de que esta
experiência não pode ser recuperada o impele a ver,
na memória involuntária de Proust, um movimento
que se distingue de uma restauração do passado.
Para Benjamin, a descoberta da infância através da
madeleine não representa o reencontro do idêntico,
mas do semelhante. As correspondências entre os
acontecimentos são capazes de revelar algo novo
que não fora percebido no passado. Por este
motivo, Benjamin ressalta que o encontro com o
passado não é fazer reviver aquilo que estava dado
em um outro tempo, mas se perdera.
.

Não se trata de um reencontro com o outrora


conhecido. Ao contrário, as relações de
semelhança, que em Proust são possíveis por obra
do acaso, revelam o que só pode ser percebido
através de ligações entre presente e passado. Mais
radical do que isto, revelam o que só existe nas
articulações entre presente e passado.
Benjamin quer distinguir, em Proust, o tema da
eternidade do tema do tempo. A novidade proposta
está relacionada com o que chama de tempo
entrecruzado.
Na ligação entre memória involuntária e
envelhecimento encontraremos a noção de
eternidade vinculada a um tempo de
entrecruzamentos, tal como Benjamin nos fez ver. A
possibilidade de compreender o mundo em estado
de semelhança foi vislumbrada por Proust na
manifestação da memória involuntária.
Esta memória apresenta um poder rejuvenescedor
que nos torna capazes de encarar de frente o
envelhecimento. O envelhecimento, que por obra
do tempo, nos parece implacável, pode ser, deste
modo, enfrentado.
Contudo, o que significa enfrentar o
envelhecimento?
Na perspectiva de Benjamin, não se trata de
apontar para uma superação do tempo através da
instauração da eternidade infinita.
Ao contrário, Benjamin enfatiza o elemento da
fugacidade constitutivo da memória involuntária. O
instante que entrecruza presente e passado é como
que um flash que ilumina durante alguns segundos
um acontecimento. O acontecimento iluminado
emana reflexos do passado, por isso ele é capaz do
efeito do rejuvenescimento.
O importante é que esta potencialidade
rejuvenescedora não se dá simplesmente porque
somos impulsionados momentaneamente para fora
da ordem do tempo, mas sim porque vislumbramos
o entrecruzamento do passado, tornado infinito
pela rememoração, com a circunstância
contingencial do presente.
É porque tornamos, num piscar de olhos, a sentir os
limites de nossa existência temporal (e temporária)
que somos capazes de considerar significativa a
vivência daquilo que Proust denominou de memória
involuntária.
Não estamos falando de viagens no tempo em que o
morador do presente se desloca para o passado e,
através deste movimento, encontrando consigo
mesmo alguns anos mais novo, contenta-se em estar
rejuvenescido. Diferentemente, estamos
considerando o entrecruzamento de passado e
presente, que significa uma concentração do (e no)
tempo. A concentração do tempo em um instante
não é um movimento até o passado, é a revelação de
semelhanças que faz presente e passado
sobreporem-se um ao outro.
Boa noite, caros alunos

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