Você está na página 1de 34

Joaquim Eduardo Oliveira

Segunda Pessoa
do Singular
(Apontamentos)

(1998-2000)
Joaquim Eduardo Oliveira

SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR


(Apontamentos)

(1998-2000)

2
Foram três as flores no meu vaso. Duas
murcharam. Sequei-as. Uma ainda a
rego, todos os dias, com um enlevo que
até a mim parece estranho. Não sei o
que me diz essa terceira e nomeada
vida, à qual ofereço estes gestos de água.
Pergunto-me o que farei se não mais lhe
mato a sede. A resposta que me acorre é
ténue, trémula e difusa. Nem mesmo eu
a compreendo. Mantenho-me firme na
vontade de a manter húmida e, por isso,
viva. Mas nem só de água se constroem
as ofertas que lhe faço. A água com a
qual lhe sacio a sede sou eu próprio,
confundido, mascarado de oferta. Sou
eu. Um eu inteiro, submisso à
fragilidade que é a sua. Esta flor mata-
me de sede. É a terceira. Última.
Primeira!

3
Partilhaste comigo o teu corpo para que
te não viesse à lembrança o desejo de
me desejares. Contradisseste-te. E eu
deixei-me levar nesse enlevo de pele e
odores que o teu corpo emanava e
desejava – por vezes – partilhar.
Quiseste-me não me querendo. É
estranho. Precisaste de mim
esquecendo-te de quem eu era – de que
era, também, parte interessada. Jogaste
comigo o teu jogo de incertezas. E eu
concordei, porque te quero. E vou
querer querer-te até não te querer mais.
Vou desejar-te precisamente até ao
momento em que desejar signifique
mais que querer-te muito. Até a um fim
qualquer que me liberte. Ou que me
prenda ainda mais ao sussurro de
consciências que tu és.

4
Marca-me de sinais. O corpo inteiro e
todo. Deixa ser a minha pele a que se
esgote de carícias. Interrompe-me todas
as viagens e projectos. Faz-me de beijos.
Deita-te sobre mim para que te sinta
por inteiro. Dada. Mesmo a
contragosto. Mesmo que o não queiras,
querendo. Porque não me deixas, assim,
marcado dos toques de dedos duros e
afagos soltos à mercê do desejo dessas
tuas mãos? Porque me agarras sempre
que me deixas? Porque me fazes falta?
Porque te adoro?
Marca-me, outra vez e sempre, de
sinais. Outra vez, o corpo inteiro e todo.
Tenho saudades tuas, mesmo quando
estás comigo. Sempre.

5
Cheira a frio no quarto branco e quente.
É Verão. E arrepio só de pensar que não
me cobres com teus beijos de algodão e
pele. O cigarro é a minha única lareira.
Porque o meu fogo está longe, fugindo,
sem o querer.
Tomara eu olhar-te, apenas, nesta hora.
Quisera ter-te num abraço apertado
demais para sequer respirar.
Desnudo-me do frio e o pensar em ti
desperta-me temperaturas que há muito
se querem despregar do meu corpo.
Ter-te comigo, menina, é o meu maior
desejo.

6
Leva tudo quanto de teu tens. O cabelo,
os lábios esguios, a pele. A tua roupa.
Mais ninguém. Mas leva(nta)-te nessa
viagem que segues, rumo a um longe
qualquer que decidiste. O caminho é
teu, e não to roubo. Deixo-te apenas um
beijo por lembrança. Não me contes
qual a rota que segues, pois se é teu esse
passo dado. Para Leste, porventura?
Porque me pergunto ainda para onde
vais, se “embora” é o que de ti me
acontece agora rente à pele?
Brindo agora – e sempre brindarei – à
saúde que é a tua. Não te percas na
viagem.

7
Aguardo. Inteira. A tua face.
Desembarcaste há dias noutro porto.
Mas levaste-me. Contigo. Na memória.
Não esperarás. Também tu. Por um
regresso.

8
Saciei-me da fome. Matei a sede. Falta-
me, contudo, a substância. Uma só. A
vitamina da alma e do desejo. Insosso, o
correr dos dias resfria-me a língua. Sem
o sabor do teu corpo. Longe. Tenho
fome. Da sede, dessa, não me lembro já
de a beber com o que me resta de alma.
Faltas-me aos olhos. Aparece.

9
Sinto-me imerso num nevoeiro de
palavras. Nada me ocorre. Por mais que
me peça, escapam-se-me todas as
imagens neste labirinto de neurónios.
Yet, I’m full of foolish things to say.
Trying to spell every word I wanted to
spell is harder than I’ve ever thought
until now.

10
És um homem vergado de idades,
branco, pálido, hirto. Acompanhas uma
guitarra portuguesa. És Fernando
Alvim. Impressiona-me a tua tez de
guitarrista, mais calma que a própria
brandura. Oh, se me impressiona.
Quando te olho, todo me arrepio.
Porque nasce sincera toda essa tua
atitude. Parece até que não sentes.
Nunca te vi antes, mas é como se te
conhecesse de há muito, meu velho. Já
agora, quem te acompanha conhece-te,
assim, tão bem quanto eu?
Batem por ti palmas de apreço e tu mais
parece não existires frente a ninguém.
Todo me revolto por não ter sequer um
dedo da arte que te sai das mãos. Afinal,
de todo o teu corpo. És tu quem se
desprega do som dessa viola que
empunhas. Quando casaste com ela?
Ontem? Há 30 anos? Há mais?
Caramba para o tempo, que o não tenho
nas mãos, como tu. Quanto do teu
tempo é o meu! Do meu, teu é nenhum.

11
A minha paisagem de agora são janelas.
Iguais no seu corpo perpendicular, essas
caras de cimento silencioso enfrentam-
me com tez de olhos abjectos. Invejo-as,
porém, pela coragem que desprendem.
Miram, a toda a hora, tudo o que há por
fora para olhar. E não se entediam com
o passar do tempo.
As minhas janelas sou eu, furibundo de
mim. Quem me há-de correr as
persianas dos olhos? Quem me há-de
fechar quando for noite?

12
Percorro-me com um ranger de dentes.
Persigo paixões absurdas que me moem
o corpo e o espírito. Sem o querer, sou
vítima de mim mesmo. Da minha
desvontade de abandonar o que, afinal,
ainda desejo e quero para mim. Sinto-
me só, no meio da turba. Pior.
Abandonado por quem diz que me quer.
Constipado, embora com emprego
seguro. Com quase trinta anos de idade
e a barba por fazer. Uma vergonha, pá.
Se soubesses quem eu sou. Por fora,
desterrado de mim. Por dentro, um
fruto roído de insectos. Se me visses,
dirias, por certo, que sou eu. Vê se me
encontras por aí um destes dias. Faz-me
lá esse favor. Desculpa-me, já agora, a
confidência. Como é mesmo que te
chamas?

13
Ontem foi um tempo que há-de vir.
Hoje é momento que já foi. Amanhã é,
agora mesmo, a hora certa. Percorrem-
se, a passos largos, os ponteiros da vida.
Ouve-se um som qualquer, intemporal.
Respira-se ao de leve, sem que com isso
a vida mude. Envelhecer, afinal, não é
um mal pior que o mais terrível dos
abandonos.
Passar as mãos pelas rugas da cara é um
acto de coragem verdadeira. É perceber
pelo tacto o que não se quis entender
com os olhos.

14
Encolhe-te, insecto, para que te não
rasgue as entranhas. Foge. Abandona-te,
antes que esta minha mão te desfaça
num ápice de nojo. Liberta-te, para que
não saibas a dor que esse futuro que
pode ser já te espera.
Irritas-me, insecto. Porque não explicas
o que te faz zenir as asas. Incomodas-
me com a tua extrema liberdade. A
minha mão, olha a minha mão! Foge,
antes que seja tarde. Ahhrgg. Adeus,
insecto.

15
Nada tens para me dizer. Nem eu a ti.
Mas porque me falas? Porque te oiço e
me surpreendo? Se te procuro é porque
me completas. Se te falo, é por saber
que me ouves. Bebe, bebe mais do cálice
que te ofereço. Até que a embriaguez te
obrigue a dizer-me tudo o que desejas,
mas que ocultas quando sóbria.
Insulta-me agora – que é noite – com os
rancores que guardaste todo o dia.
Maltrata-me porque te ajudei. Desanca
em mim o fel todo que tiveres. Testa-
me a resistência, afoga-me até ao fundo
do que nunca quis ouvir da tua boca.
Despedi-me de ti há pouco. “Diz-me
que desapareça”, pedi-te. E tu disseste.
E eu desapareci – ainda não sei se para
sempre – desse remorso constantemente
enrolado na garganta.
Se te firo com estas palavras, será
pouco. Mereces mais, muito mais que o
fel todo que alguma vez eu venha a
conseguir tirar de mim. Que não o
tenho.
Dou-me a ti e tu desdenhas. Vinga-te
tu, enquanto bêbeda, sobre o teu próprio
pecado. Amanhã, minha amiga, vou
olhar-te como sempre te olhei. Ainda
que me apeteça chamar-te, ficarei em
silêncio.
Porque precisas de mim? Porque
precisas?

16
Tenho um pedaço desta mão colado ao
teu rosto. Resvala, sereno e dado, sobre
os teus olhos. E toca, na face que és,
com pontas de carinho. Aquecem-te
estes afagos? Por quantos mares
navegas quando deixas o leme na ponta
dos meus dedos? Por onde passas
quando te abandonas, assim, feita pena
aérea e solta, a um pedaço de mim?
Respira, menina, respira leve, sem
repentes. Abandona-te, que estou
contigo feito dedos mansos sobre a tua
pele. Sê a tua pele também.
Transfigurada, a minha mão liberta-se.
E eu com ela. Vou, afinal, contigo por
onde segues. Queres que te siga, ainda,
nesta hora? Diz-me quanto de meu
sentes quando te exploro e descubro, e
infernizo, e dou de mim o que não
tenho.
Dá-me a tua mão. Ou um pouco
qualquer dela que não queiras. Tens
aqui a minha face, inteira e toda, à sua
espera.

17
Escrevo-te a partir do ano passado.
Tenho sujos os pés, do caminho que
percorri. Feridas. Marcas várias
lembram-me que vivi por esses dias.
Escrevo-te sem saber o teu nome.
Assim prefiro. É melhor saber-te
desconhecida. Desidentificada. Morta,
talvez. Feita da espuma dos mares.
Escrevo-te porque penso não voltar a
ver-te. Ainda que o contrário seja o meu
maior desejo. Perturbante? Porquê se
foste tu quem se afastou para mais
longe?
Escrevo-te ainda. E continuo. À procura
de palavras. Em busca de um sal mais
grosso que me vede a água que escorre
destes olhos. A caminho de um porto
qualquer.
Percebes? Fala! Diz. Não te retraias no
silêncio. Não vale a pena. Não te quero
ouvir calada. Não te quero.

18
As pausas aliviam. O movimento
incomoda. Páre-se o mundo todo para
que o respirar da terra seja fruto
verdadeiro.
Por onde me leva este balanço cadente e
incandescente do meu chão? Porque
pisarei eu estas pedras? Movimento.

19
Definham, em pedaços, as sobras de
uma festa. Quem se recordará desses
gritos, ou dos lampejos efémeros dos
foguetes?

20
Um respirar novo acontece-me por
dentro. O ar que expiro, na fuga para o
lado de fora desta boca, deixa fugir em
sussurro todo o teu nome. Assim dita e
respirada, ressuscitas em mim a toda a
hora. Não precisas estar comigo para
que te veja. Tenho-te, completa, sobre
os lábios. Sinto-te por dentro como um
lago que ocupa todo o vale. Humedeces
as minhas margens e regas a toques de
pele o meu corpo inteiro. Teu.
Se beber for o meu verbo, a água será
também fruto do teu nome. Aguardo, a
cada instante, um novo gole. Desejava
ter sede para te poder beber
constantemente. Faz-te de líquidos e
fluidos. Deita-te sobre o meu copo e
acontece em mim como cascata, feita
dos beijos que me dás.

21
Fazes-me falta aos olhos nas horas da
manhã, quando não estás. E se não te
encontro nessa busca estremunhada de
te descobrir com o primeiro alvor do
dia, é como se me despedisse de todo o
frémito da vida de que me alimento. E
de despedidas, menina, estou cansado.
Sob estas mãos afago agora os olhos que
a noite fez enrugados, resguardo com
elas as pupilas para melhor te ver
depois, quando acordado.
Fazes-me falta aos olhos sempre que o
teu verbo é não ser junto de mim. E
dessa solidão embriagada em que me
encontro nada sai, para além de um
disfarçado suspiro de vontade de revirar
a face desse verbo contradito. E do
querer que o dia se alumie quando a
densa mata só a escuridão reflecte e
sente.
Quando te olho nos olhos tudo acorda.
E a minha tez já não é a pálida luz que a
custo avança sobre a mata. É antes a
incandescente, intensa e forte sensação
de te ver olhada a partir dos olhos que
sou eu.

22
Próxima estação: um qualquer ponto do
mundo.

23
Com estas minhas mãos queria eu
tocar-te o corpo inteiro. Descobrir as
tuas marcas sob esse abundante véu de
pele e frágil toque onde te escondes.

24
Escondes de mim tudo o que não queres
que oiça vindo dessa tua boca. Impeles-
me para um barco sobre o qual não
quero navegar, mas que procuro sempre
que não tenho destino marcado para
mim próprio. Tapas-me a boca com
silêncios quando tudo o que quero é ter-
te toda e inteira rente ao meu corpo.
Foges, por vezes, do que quero que me
dês. Preferes outro alguém que não
controlas. Inconsciente. De quem
dependes, sabendo tu que não terás
dessa parte outra que é de ti a firmeza
que precisas e procuras. Sequer a boa
vontade que desejas. Indiferença é tudo
o que dela recebes. Mas insistes,
tristemente, em manter vivo esse querer
quem só te tem porque se — e te —
arrasta sobre um tempo outro que
passou. Fica a saber, menina, que do
passado apenas restam as memórias e
que só vives este dia e o que virá. Dos
que passaram — isso te digo — já pouco
sobra. Remorsos, talvez, de não teres
tido o que não tiveste ou de não teres
vivido sequer a metade daquilo que,
afinal, nunca mais poderás viver.
Porque reincides, menina, nesse querer,
arrastado, que o passado vença a todo o
custo o teu futuro?

25
Porque acaba o que não deveria ter fim?
Porque se remendam com adeuses
pecados cometidos na inocência? Porque
se desidratam os corpos que se querem
com vontade e desejam completar-se?
Porque reivindica o mundo às
consciências as coisas certas? Porque
resvalo eu sobre ravinas onde antes se
estendia um caminho largo e farto?
Porque tremo ao proferir estas palavras?
Porque tremo? Por quem? Porquê?
Porquê?

26
Acabam-se-me todas as forças. Desisto.
De procurar. Encontrar. O que não há.
Nem é. Meu. Quando tenho. Na mão.
Tudo. O que quero. E que não quero.
Fujo. Mas não saio. Daqui. Desta janela
por onde te vi chegar por tantas vezes.
Porque não chegas agora? Onde vens?
Quem és neste preciso momento? A
quem te dás? O que procuras. Tenho-o.
Para te dar. Nada. Do que é meu. Me
pertence. Mas a ti. Fugidia. Figura de
mulher.

27
Aguardo o momento preciso. Uma
nesga mínima de tempo. A
oportunidade. O ponto exacto. Frio e
calculado. O improviso, afinal. A
certeza de o encontrar é, e sei-o bem,
rara em demasia. Não a tenho. Espero.
Qual caçador de incertezas. Mal é que
este corpo só tenha uma vida para o
encontrar. Ele que venha. Porque o
espero. Porque tarda?

28
Muitos são os medos, as fraquezas. Os
desejos. Muitas as horas. Maiores ainda
os desatinos. Avanço.

29
Valho pelas pequenas coisas. Não me
peças, por isso, coisas grandes.

30
Sinto os pés frios. Embaraço-me com o
arrepio e não sei por que razão. Tenho
os teus a meu lado, quentes,
desgovernados. Toco ao de leve sobre
essa pele mansa que me dás enquanto
me dizes palavras repetidas. Não as
repreendo. Compreeendo. Sussurras-me
com sopros de boca palavras suaves, tão
suaves como os bafos de fumo que
lançamos até ao tecto branco do meu
quarto.
Tenho os pés frios. Esqueço o meu
próprio nome nestes momentos em que
a tua pele é a minha e me afagas os
ouvidos com doçuras. Do teu lembro-
me sempre. Mas, afinal, como te
chamas, mulher de sussurros e carícias?

31
NASCEU-ME UM TREVO NUM VASO

Nasceu-me um trevo num vaso. Quis


beijá-lo. Queixosa, a flor reteve o meu
ímpeto com uma fragilidade verde.
Nasceu-me um trevo num vaso e não
sei que fazer deles. Do vaso tanto como
do botão mínimo dessa vida recém-
desperta.
Nasceu-me um trevo, num vaso de cor
de barro sujo. Da cor da relva regada,
aquela nova vida acompanha-me agora
os passos pela casa. Não me sinto só.
Pelo contrário. Acontecem-me agora
despertares diferentes. Neste e nos
outros dias que hão-de vir.
Nasceu-me um trevo num vaso e desse
monopólio de olhares antevejo entre
ambos uma feliz cumplicidade. Mas o
vaso não é teu, menino trevo. É dessa
palmeirinha medrosa que aconteceu,
transplantada, antes de ti. A terra onde
repousas o teu caule esguio foi alugada a
esse corpo de furúnculos domésticos
que se debate contra o mais mínimo sol
para não perecer fuzilado por raios
violetas e ultras.
Nasceu-me um trevo num vaso. Quem
te mandou, trevo, decidir acontecer
precisamente agora? E se me abandonas,
que farei do trevo que já não serás? De
que trevo falarei?
Nasceu-me um trevo num vaso. Não
me morras agora, verde flor, filha da
terra livre e do acaso. Dá-me, antes de
mais, um beijo teu. Frágil ou não. Dá-
mo, que não me importo.

32
TRIBUTO AO SILÊNCIO DAS CORES

A noite vai a meio do seu corpo. Segue,


em silêncio, o seu caminho. Resguarda-
se em linhas de uma luz difusa, opaca,
sinuosa. A noite é líquida, insubmissa.
Água turva e livre bebida a goles de
sono. Silhueta que afaga e come o tudo
de todas as coisas.
Sôfrego, esse sono de mulheres e
homens alheia-se deste véu aveludado
do dia. É, a esta hora, a prova da sua
condição ignorante. Porque se calam as
vozes quando a calma é rainha e as
palavras são murmúrios cristalinos?
Porque te esquecem os homens,
silêncio, para se dedicar a cansaços
absurdos e a trejeitos diurnos de falsa
felicidade?
Quem procura a noite verdadeiramente?
O silêncio? Apenas o silêncio, total e
puro, da sua boca?
Desejaria ter-te, assim, fiel e minha, a
todas as horas. O dia mais não serve
que para me lembrar do teu eterno e
circular regresso, desse teu subtil e
vigoroso poder de sombra, dos teus
lábios sem contrastes, do teu escuro e
lento respirar. Aquelas horas de sol de
que não quero lembrar-me agora
preenchem-me apenas da pena que é
não te ter sempre comigo.
A noite é a casa do desejo. Mapa sem
linhas que apaga todas as geografias: a
dos corpos e a das almas. Mas – sono do
dia – se foras permanente, que faria eu
sem o sol?

33
A NOITE É UMA MULHER

De novo me encontras. Face a face, à


hora marcada. É certo que não passa de
uma hora qualquer, um minuto defunto
do dia. Seguro será também que te sinto
a falta – essa eterna e oca sensação – a
todo o momento. Sei por demais da
certeza desse encontro prometido. E se
o sei é porque o sol se pôs já, para além
do alcance dos meus olhos, e se ocultou
de novo, por ali, naquela curva redonda
do mundo.
Refreio-me de vontades quando te
encontro. Impedes-me de pensar. E
esqueço-me de te dizer coisas. Fico,
também eu, oculto atrás de uma curva
qualquer da minha cabeça. Por essa
razão me recolho sobre esta cadeira e
enfrento o vazio que há entre nós dois,
como quando não estamos. Quando é
dia.
Vem-me à memória. Peço-te. Chega-te
mais perto de mim. Acolhe-me nesse
ventre de veludo escuro que sempre
trazes contigo. Ah, se eu fora noite
também!

Joaquim Eduardo Oliveira


1998-2000, entre Moscavide e Lisboa

34

Você também pode gostar