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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriarñ)
APRESENTAQÁO
DA EDI£AO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
' religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
__ vista cristao a fim de que as dúvidas se
; dissipem e a vivencia católica se fortaleca
ij" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.
Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


oassamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagao.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ÍNDICE

Aínda que fósse contra toda esperanza.. .! 273

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "A fUica c « RvUfíiiia mmhirüo totalmente >io futuro em


eon.ií'qiu'iifia da íiittoiiiacihi {

Um novo livro sobre o ansunto! Perfectivas libertadoras?!". 275

Tí. BfBLIA SAGRADA

2) "Jesiis casoii-se e foi viúvo. Eia a última afirmacao de


um estudioso das Escrituras.

Que tlizer? Tan razño ?" 287

III. ESPIRITUAMDADE

3) "Em que consisten! as novas normas promulgadas pela


Santa Sé em vista da formacño dos Religiosos e das Religiosas?

Silo audazes ?" 293

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

4) "Como julgar o filme 'As Sandalias do Pescador' de


Morris West ?

Sení positivamente constriiiilur ou, antea, deletério?" :1OJ,

CORRESPONDENCIA M1ÜDA 31.1

RESENHA DE LIVROS .?«capa

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA


aínda que fOsse contra
toda esperanca...!
(cf. Rom 4,18)

A clássica doutrina, bascada nos dizeres do Apostólo Sao Paulo


(cf. 1 Cor 13,13), ensina que há tres grandes virtudes que unem o
homem a Deus e, por isto, sao ditas «teologais»: a fé, a esperanza e a
caridade. Destas tres, a caridade é a maior, pois é o remate da per-
feicáo. Todavía pode-se dizer que o pior dos males que possam aco
meter alguém na vida presente, nao é a perda da fé, nem a perda da
caridade, mas, sim, a perda da esperanza.
Com efeito. Quem nao tem amor, está humanamente depauperado,
mas pode, ao menos, voltar-se para Deus e dizer-Lhe: «Senhor, tenho
o ooracáo desfigurado ou mesmo cheio de odio; nao amo a Ti nem
aos homens. Mas converte-me! Dá-rne a graca de amar!» Esta prece,
prorrompendo de um coracáo sincero, agrada a Deus, que nao pode
dcixar de lhe atender.

Por sua vez, quem nao tem fé. pode também orar — orar condi-
cionalmente —, dizendo: «ó Deus, se Tu existes, ilumina-me, dá-me fé
e dá-me amor a Ti!» Esta prece, condicional como é, nao compromete
o ateu; o Senhor Deus, porém, que «hipotéticamente» existe, nao pode
deixar de lhe atender.
Mas quem nao tem esperanca, nao ora, precisamente porque nada
espera recebar. Nao orando, fecha-se em si mesmo. atola-se, conde-
nando-se a definhar em sua miseria. Por isto se diz com razáo que a
perca da esperanca constituí a pior das situacoes humanas.
Na verdade, a oracáo é o principio de solucáo de todas as nossas
dificuldades. Quarido nos sentimos deprimidos ou arrasados interior
mente, impotentes para praticar o bem, oremos pedindo ao Pai a sua
luz e a sua fórca, e lile nó-las dará. 35 certo, porém, que. para orar,
é preciso ter esperanca. Mesmo que alguém nao tenha mérito algum,
mas se sinta caído do fundo do abismo, nüo deve deixar de orar. Reze
cheio de esperanga, e sairá de suas miserias. Para orar, basta ter
esperanza!
Com razáo. já se disse que há tres especies de suicidio:
— o suicidio daqueles que dizem: «Procuro morrer», e desferem
um golpe contra si;
— o suicidio daqueles que dizem: «Deixo-me morrer», e permitem
que a molestia os vitime, porque nao se querem tratar;
— o suicidio daqueles que dizem: «Deixo-me viver!», isto é. «vivo
sem rumo, sem ideal, sem esperanca; faco tudo que me venha a ima-
ginacao, porque nSo aspiro a coisa alguma». Éste é o pior ou o mais
desumano de todos os suicidios, pois nada há de táo radicalmente
contrario ao ser humano oomo a falta de ideal e de esperanza.

— 273 —
Estas reflexdes tém sua aplicaeüo oportuna na hora presente. A
tentacao do desánimo ou do desespero (ora mais, ora menos consci
ente) acomete a nao poucos cristáos colocados diante da presente crise
religiosa. Ora ceder a tal tentacao seria a pior dasi desgrasas. O cris
táo jamáis se abate, jamáis perde o seu ideal religioso, ideal susten
tado pela vitória do próprio Cristo no dia de Páscoa! Um cristáo triste
ou perplexo é um «triste» cristáo.
Os discípulos do Senhor sabem que as crises religiosas tém seu
sentido providencial. Deus permite que seus fiéis se vejam ás vézes
a bragos com a impiedade e a descrenca, mesmo dos que eram mais
fiéis e fervorosos. Já no século X («século de ferro» ou «obscuro»),
eomd no século XVI (século do humanismo paganizante), a Igreja
atrayessou fases muito penosas; o século XX nao é inédito, neste
particular. O que Deus intenciona em tais épocas de contestacáo da
fé e da virtude, é que seus fiéis trabalhem e lutem, sem dúvida, mas
também... que tomem viva consciéncia de que só Ele pode socorrer
e salvar decisivamente. Quando mais fráeos e despojados nos sentimos,
mais somos impelidos a procurar o Pai do céu, — Na verdade, Deus
quer dar grandes gracas á sua Igreja na hora presente, mas mediante
a ora^áo, como Ele mesmo ensinou: «Pedi e recebereis...» (Le 11,9).
Par conseguinte, os fiéis católicos, na situacáo atual mais do que
nunca, háo de orar, e orar com firme esperanca... Na situacáo atual,
... quando parece que menos do que nunca se valoriza e se pratica
a oracao.

É esta a licáo que os tempos presentes nos incutem... Esta sim,


e nao abatimento ncm desánimo!

E. B.

Concede-me, Senhor mcu Deus,


urna inteligencia que Te conhega,
urna angustia que Te procure,
urna sabedoria que Te encontré,
urna vida que Te agrade,

urna perseveranca que Te espere com confianca,


urna confianca que Te possua, enfim.

Amém.

(S. Tomas de Aquino)

— 274
PERGUNTE E RESPONDEREMOS »
Ano X — N* 115 — Julho de 1969

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) «A Ética e a Religiáo mudarlo totalmente no futuro


em conseqüéncia da automacáo ?
Um novo Iivro sobre o assunto! Perspectivas libertado
ras ?!»

Resumo da resposta: O presenté artigo prop5e algumas conside-


racóes sobre o Iivro de Rose Marie Muraro: «A Automacáo e o Fu
turo do Homem».
A obra procura reconstituir o passado do género humano e abrir
prospectivas sobre o futuro. Apresenta dados científicos muito inte-
ressantes. Todavía, em sua parte filosófico-religiosa, Lnspira-se de fon-
tes turvas: Ereud. Marx, Marcuse, os «teólogos da morte de Deus».
Quando fala de Religiáo, a autora propoe, para o futuro, um
Cristianismo secularizado, sem Deus, únicamente ocupado em servir
ao homem no setor político-social. No tocante á Ética, a escritora
julga que os conceitos de bem e mal serSo (se já nao sao) total
mente revolvidos; os criterios da moralidade já nao serio ditados
pela lei natural, mas pelas Informacoes científicas, principalmente da
sociología e da psicología. O pecado será a acáo contraria & evidencia
trazida pela ciencia; a virtude será o engajamento na luta em prol
das transformacóes políticas e sociais. Nao se levará mais em conta
o pecado sexual; ao contrario, poderá a liberdade sexual dos jovens
favorecer a paz e a prosperidade dos futuros casáis. A autora nao
fala de relacdes do homem e de seus atosi com Deus. O teor da expo-
sicáo é totalmente secularizado; dir-se-ia que, para a autora, Deus
morreu ou foi cancelado... Embora R. M. Muraro seja católica, a sua
obra solapa a auténtica visáo católica do homem e da ética, sugerindo
o ateísmo, o que é lamentável.

Resposta: A escritora Rose Marie Muraro publicou em


principio de 1969 um estudo em que analisa o passado e pro
cura prever o porvir do género humano: «A Automacáo e o
Futuro do Homem» (ed. «Vozes», Petrópolis). O assunto é
apto a despertar vivamente a atengáo do leitor. Procuraremos
abaixo propor os principáis tragos da obra, aos quais acres-
centaremos algumas observagóes.

— 275 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 115/1969, qu. 1

1. Automa$ao e Futuro

A autora descreve a ascensáo do género humano na escala


da civilizagáo através dos seus dois milhóes de anos : mostra
como 99,5 % da existencia da humanidade se passou na «pré-
-história»; apenas o fragmento de 0,5 % corresponde a his
toria própriamente dita, pois a agricultura muscular (que deu
inicio "á historia no sentido estrito) comegou há 10.000 anos.
Dos 0,5% de historia da humanidade, apenas 1% corresponde
ao período moderno, em que se vai processando a explosáo
tecnológica (esta comegou há 100 anos ; 100/10.000 = 1 %).
O progresso do género humano é devido a descobertas
científicas; explorando as fórgas da natureza, o homem prové
cada vez mais fácilmente as suas necessidades. Vai também
mudando de mentalidade. Á medida que se dissipam as trevas
da ignorancia, o homem perde o seu médo primitivo diante
das fórgas da natureza e se torna mais consciente de suas
capacidades.
A autora apresenta a Religiáo a acompanhar o homem em
suas diversas fases de evolugáo: a principio, tratava-se de
urna religiosidade dada aos mitos; foi-se depurando, porém,
tornando-se finalmente monoteísta. A religiáo hoje em dia é
considerada como um esteio da luta social dos homens opri
midos que procuram libertar-se de estruturas económicas in
justas ; a Religiáo deve ter influencia poderosa na política ;
seja dessacralizada, secularizada <ou despojada de suas expres-
sóes clássicas, para poder prestar pleno servigo á humanidade.
O livro abre prospectivas um tanto pessimistas no tocante
ao futuro da humanidade. A explosáo demográfica é o grande
problema que ameaga a sobrevivencia tranquila e feliz dos
homens sobre a térra ; nao é excluida a possibilidade de urna
terrivel catástrofe (explosáo atómica) que destrua por com
pleto o género humano. «A humanidade hoje assemelha-se
exatamente ao aprendiz de feiticeiro: aprendeu a desencadear
fórgas que depois nao pode controlar e acabaram por des-
trui-lo» (pág. 150).
Todavía os últimos incisos da obra apresentam um caráter
um pouco mais confiante e otimista :

«Cremos que algo novo está para acontecer, se já nao estiver


acontecendo. Energias novas, completamente desconhecidas. podem
entrar em ac£o em caso de desafio extremo. Sabemos, por exemplo,
que só usamos 10% da capacidade do nosso cerebro Individual; os
outros 90% sao totalmente desconhecidos. Se assim é Individualmente,
por que socialmente seria impossfvel, no caso de um desafio táo ex-

— 276 —
AUTOMACAO E VALORES HUMANOS

tremo como o que estamos vivendo, o surgimento de solucSes novas


e inesperadas?» (pág. 151).

O livro de R.M. Muraro satisfaz por apresentar dados


numéricos e gráficos úteis para se reconstituir o passado do
género humano e a curva de evolugáo da civilizacá; a do-
cumentacáo é interessante, servindo para excitar ampios pa
noramas e o senso da historia no leitor moderno.
A título de ilustragáo, transcrevemos da obra «Automa-
«;áo...» alguns dos cem principáis inventos de que poderá
gozar o homem no futuro, segundo a prospectiva de Hermano
Kahn, a maior autoridade mundial no assunto :

— novas fontes de energía para instalacSes fixas (termoelétricas,


termoidnicas, magneto-hidrodinámicas, etc.);
— novas íontes de energía para transporte (carros a turbina, Jato,
campo eletromagnético, etc.);
— transporte quase de graga para pessoas e carga para qualquer
parte do mundo;
— uso extensivo de transplante de órgáos;
— uso dos Jáseres intensificado em comunicagSes e como arma
letal poderosissima;
— uso rotineiro de «ciborgs» (órgáos ou partes do corpo humano -
doentes substituidos por máquinas eletrónicas);
— novas especies de plantas e animáis;
— controle do sonó, dos sonhos, do peso, da velhice, novos inven
tos cosmetológicos pana evitar o envelhecimento;
— hibemagáo, primeiro, a curto periodo e, depois, a longo (anos):
— explorado dos océanos por pessoas que vivam sob a agua;
— lúas artificiáis para iluminar extensas áreas á noite;
— viagens espaciáis tornadas comuns;
— transporte sobre o océano (Europa-EUA em meia hora):
— trahalho doméstico automatizado;
— técnicas de controle da mente muito desenvolvidas;
— controle do tempo e dos climas;
— comunicacáo direta por estimulo do cerebro;
— armas nucleares baratas ao alcance de qualquer nacáo;
— capacidade de escolher o sexo das criangas ou de mudá-lo
antes do nascimento; controle da hereditariedade muito mais bem
conhecido;
— alimentos e bebidas sintéticas de aceitacao geral;
— crédito universal instantáneo e automático;
— uso generalizado de «robos», isto é, computadores individuáis;
— comunicacáo mundial barata através de láseres, tv individual;
— novos métodos para obter prazer sexual, novas drogas que
alterem o limiar da percepgáo;

— 277 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 1

— métodos químicos para aperfeicoar a memoria e a capacidade


de aprender;
— métodos químioos e mecánicos para melhorar a capacidade
analítica humana, direta e indiretamente;
— novas, mais racionáis, muito mais baratas formas e técnicas
para construcáo de casas (domos geodésicos, conchas pressurizadas.
etc.) e novos materiais de construcao;
— fotografía e tv (préto e branco e depois a cores) tridimen-
sionais.
«Segundo Hermann Kahn, estes e muitos outros inventos estaráo
normalmente em uso até o ano dois mil isto é, daqui a trinta anos»
'pág. 61s).

Todavia, ao interpretar as fases e as causas da evolucáo


da historia humana, a autora propóe julgamentos um tanto
esquemáticos e generalizados ; nao leva em conta os diversos
e complexos elementos que influiram no tragado da historia;
cede a preconceitos — preconceitos inspirados por Freud (cf.
pág. 98), por Karl Marx (a autora critica a Rússia Soviética,
cf. pág. 130, mas adota certas teses de Marx que tém sabor
de auténtico materialismo, cf. pág. 97) e por Marcuse (o livro
cita e elogia Marcuse as págs. 65, 130 e 132).

A pág. 117, lé-se urna genuína proposicáo de Marcuse, que se


inspirou em Freud:
«A civilizacao é filha da repressáo. A moralidade só pode existir
num contexto de repressáo».

Embora a autora seja católica e colaboradora de urna


Editora católica, lamentavelmente apresenta um trabalho que
solapa (geralmente de maneira implícita apenas, algumas vézes
também de modo explícito) a genuína visao crista concernente
á Religiáo e á Moral. Sao estranhas as omissóes que a autora
comete : embora intencione oferecer visóes panorámicas, nunca
fala do Deus da Biblia a nao ser para propor a chamada «teo
logía da morte de Deus»; nunca fala da alma humana espiritual,,
dotada de aspiracóes ao Infinito.
As consideracóes abaixo poderáo ajudar o leitor a pene
trar na questáo.

2. Tres pontos de reflexao

Distinguiremos tres temas importantes da obra «Auto-


macáo...»: o homem, a Religiáo, a Ética.

— 278 —
AUTOMACAO E VALORES HUMANOS

1) O homem

1. O livro adota idéias de Teilhard de Chardin concer-


nentes ao homem. Em conseqüéncia, é ambiguo ; parece re-
duzir o ser humano a mero produto de evolucáo da materia.
Verdade é que, com Teilhard, a autora fala de «energía tan
gencial» (puramente material) e «energia radial» (espiritual);
todavía, segundo Teilhard, essas duas formas de energia per-
passam o universo inteiro; nao caracterizan! o homem pró-
priamente dito. A materia infra-humana possui análogamente
psiquismo e consciéncia (pág. 112). O homem no universo
representa táo sómente «um salto qualitativo» (pág. 113).
«Espirito é sinónimo de Organizacáo. A Evolucáo é a subida
para o Espirito, isto é, para formas cada vez mais perfeítas
de organizacáo» (pág. 115).

Quando compara o homem com a máquina e os autómatas,


R. M. Muraro póe em relevo a extraordinaria capacidade de
trabalho dos computadores eletrónicos: estes nao sómente
imitam o homem (com suas emogóes, seu subconsciente, sua
introspeccáo, sua capacidade de deducáo e indugáo...), mas
poderáo ultrapassar a inteligencia déste. O cerebro e o trabalho
cerebral do homem váo sendo, em conseqüéncia do progresso
técnico, mais e mais desvalorizados ; o homem se torna obso
leto ; em breve futuro, a máquina terá poder de decisáo ras
firmas (pág. 55).

2. A respeito, deve-se reconhecer que tais proposigóes


encerram núcleos de verdade. É certo que o homem tem con
seguido (e provávelmente mais e mais conseguirá) desenca-
dear processos atómicos e automáticos cujas conseqüéncias ele
mesmo nao prevé nem poderá dominar. Também é verdade
que o trabalho da máquina dispensa o do homem; torna-se
mais lucrativo, em muitos casos, por urna máquina a funcionar
do que angariar trabalhadores humanos. Estas novas reali
dades implicam profunda mudanca no modo de pensar e viver
do homem moderno.

Todavía é preciso nao esquecer que a máquina é produto


da inteligencia humana. Sem o homem inteligente, nao haveria
aparelhos que imitem a inteligencia do homem. Diga-se tam
bém : é o homem quem planeja o trabalho da máquina, con-
cebendo o roteiro e o programa de agáo do cerebro artificial.
Os autómatos por si sao incapazes de planejar e programar ;
tudo que a máquina realiza, está previamente no cerebro do
homem, de sorte que os aparelhos eletrónicos vém a ser meros

— 279 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 1

executores. O homem, portante,, conserva, e conservará sem-


pre, um primado de excelencia sobre a materia. Esta nunca
poderá progredir por si; é o homem quem progride e faz que
a materia execute funcóes cada vez mais grandiosas. Em última
análise, éste primado se explica nao porque no homem haja
mais qualidades do que na materia, mas pelo fato de que o
homem possui um principio de acáo próprio e especifico, que
é a alma espiritual, dotada de inteligencia.
A inteligencia é a faculdade de perceber valores abstratos
e uniyersais; apreende relagoes e proporgóes... É imaterial ou
espiritual, porque abstrai da materia concreta, sensível.
Sem dúvida, R. M. Muraro nao negaría o que acaba de
ser aqui observado. Todavía o fato de nao o dizer explícita
mente torna seu livro sujeito a ser mal entendido.
Mais importantes sao as observacóes a ser feitas no
setor da

2) Religido

a) Historia e Religiao

1. A autora intenciona descrever a evolucáo do senso


religioso da humanidade.
A principio, o homem religioso se exprimia através de
mitos. Estes sao imagens ou estórias pouco lógicas, mediante
as quais o sujeito afirma a intuicáo de que existem o Divino
e o Sacral. Tudo, alias, vem a ser divino ou sacral no pensa-
mento mítico.
Com o progresso da civilizacáo, a Religiao se torna mais
racional; o homem concebe a distincáo entre o sagrado e o
profano. O Cristianismo constituí o espécimen, por excelencia,
da Religiao intelectualizada. «S. Tomás de Aquino dá á reli
giao urna arquitetura lógica, que desafiou os séculos... O Cris
tianismo sob essa influencia teorizante torna-so urna religiao
de doutóres» (pág. 96s).
A autora, porém, julga que o Cristianismo se degradou
aos poucos, tornando-se um sistema moral, de que as élites
dominadoras se aproveitaram para manter sob controle a massa
dominada. Ensinando que a cruz é necessária á salvacáo, o
Cristianismo «passou a ser opio do povo, como táo bem denun-
ciou Marx» (pág. 97). O Cristianismo terá assim «traído fron-
talmente sua finalidade primitiva de ascensáo humana global»

— 280 —
AUTOMAQAO E VALORES HUMANOS

(pág. 98). Tal estado de coisas, porém, vigente até o fim do


séc. XIX, foi removido com o advento da revolugáo tecnológica.
Esta fez que a Religiáo se integrasse na historia humana, prin
cipalmente na política, tornando-se poderoso instrumento de
libertacáo das massas operarías oprimidas ; a Religiáo, muito
melhor do que algum sistema político ou governamental, pode
e deve sustentar a luta das classes menos favorecidas contra
aqueles que as querem subjugar. É éste o grande papel da
Religiáo hoje em dia : concorrer para a libertado política e
social do homem oprimido. Tal papel, na mente da autora,
está incluido no programa da chamada «secularizagáo» :

«As conseqüéncias da idade tecnológica deram-se no sentido nao


de urna sacralizagáo do profaso, e. sim, antes, na proiianizacao do
sagrado a que chamaremos de seculari2a<jüo» (pág. 99).
«A secularizagüo... é a descoberta, provocada pela tecnología, de
que o mundo possui um valor próprio, urna autonomía, e a funcáo
da religiáo (e, concomitantemente, das estruturas de ordem religiosa)
é servi-los» (pág. 101, grifo nosso).

Note-se bem: segundo os dizeres ácima, a Religiáo e os


valores religiosos tém por fungáo servir aos valores déste
mundo í...

2. Em resposta, dove-se dizer que tais afirmacóes sao


tendenciosas, sugeridas por principios preconcebidos antes que
pela análise objetiva dos fatos.
Com eifeito. É preciso reconhecer, sem dúvida, que no
decorrer dos sáculos houve homens e grupos humanos que nao
compreenderam todo o alcance da Boa-Nova crista ; julgaram
que o Evangelho, apregoando urna mensagem transcendental,
alheia os seus adeptos a éste mundo material; descuidaram-se
de promover o bem temporal dos homens, por seguirem urna
espiritualidade desencarnada ; nao deduziram na vida social
todas as conseqüéncias latentes na pregacáo de Cristo. Daí
se originou o Cristianismo da Idade Media, fervoroso ñas suas
expressóes religiosas, mas pouco preocupado com a promocáo
dos homens rudes. Tal foi, em parte, também o Cristianismo
posterior ao séc. XVI. Deve-se, porém, levar em conta que a
displicencia de muitos cristáos para com as questóes sociais
se deve a mentalidade das respectivas épocas. Nunca será
demasiado repetir: é mister nao julgar os antigos á luz da
mentalidade moderna. Sómente no século passado é que se
pos com clareza o problema do desnivel de classes (problema
que até o século XVI, e ainda depois, nao era percebido nem
formulado). No século XIX é que emergiu, com suas conse
qüéncias, na mente dos pensadores o conceito da dignidade

— 281 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 1

humana e dos direitos da pessoa. Conscientes disto, os cristáos


passaram a se interessar decididamente pelas questóes sociais
(salario, horas de trabalho, assisténcia ao operario...); te-
nham-se em vista as encíclicas dos Papas Leáo XIII, Pió XI.
Joáo XXni até a encíclica «Populorum Progressio» de Paulo VI
(cf. «P.R.» 91/1967, pág. 291-302). Nos sáculos anteriores,
pode-se admitir que cristáos (individuos ou grupos) tenham
praticado a exploracáo do homem pelo homem, procurando
servir-se de seus irmáos mais fracos ; faziam-no, porém, nao
por serem cristáos, mas por se afastarem das normas moráis
do Cristianismo ; éste nunca ensinou a exploragáo do homem
por seu semelhante. De resto, sempre houve, tanto na Idade
Media como na Idade Moderna, vozes de Papas, bispos, dou-
tóres e santos cristáos que protestaram contra as injusticas,
ora cometidas pelos reis e nobres, ora ocorrentes no tráfego
de escravos ou no modo de tratar os judeus (cf. «P.R.» 22/1959,
pág. 434-443 ; 72/1963, pág. 467).

O fato, porém, de que o Cristianismo tem hoje ingerencia


mais direta na política, interessando-se pelo estabelecimento
de justa ordem social, nao quer dizer que o Cristianismo tenha
encontrado finalmente o seu setor de agáo e adquirido o direito
• de sobreviver no século presente. O Cristianismo se interessa
pela promocáo dos homens nao simplesmente para obter bem-
-estar temporal, mas a fim de poder levar os.homens a Deus
e á vida eterna. A finalidade principal do Cristianismo fica
sendo sempre transcendental; nunca será de índole mera
mente política. — Estas idéias aínda seráo desenvolvidas sob
o título abaixo.

b) Os teólogos da «morte de Deus»

R. M. Muraro julga que a auténtica fórmula religiosa para


o homem de nossos tempos foi proposta pelos chamados «teó
logos da morte de Deus», que sao «grandes pensadores reli
giosos contemporáneos» (pág. 102).
Estes pensadores, que sao protestantes (e nao católicos),
apregoam um Cristianismo sem Deus: a nogáo e o culto de
Deus seriam incompatíveis com a mentalidade moderna. Por
isto o Cristianismo, desejoso de sobreviver, deveria renunciar
á metafísica e reduzir-se a um sistema de relacionamento do
homem com o homem ou, mais concretamente, a urna ideolo
gía que congregue os homens na luta contra a injustica social.

«Parece que ésse caminho, que vai do mito, passándo pela meta
física, até a política, seja o caminho encontrado pelo pensamento

oso
AUTOMACAO E VAL6RES HUMANOS 11

religioso para cumprir sua funcao equilibradora da raga humana»


(pág. 106).

A respeito de Bultmann, que é um dos principáis mentores


da «demitizacáo» ou dessacralizacáo do Cristianismo, a autora
escreve :

«O mérito de Bultmann reside em te? sido ele o primeiro a con


testar em proíundidade fatos que até entáo eram tidos como centráis
ao Cristianismo e mostrar como era possivel interpretar o Novo
Testamento passado sem ésses fatos» (pág. 104).

Todavía os fatos que Bultmann contesta, tocam a estrutura


mesma do Cristianismo: a Divindade de Jesús Cristo, o mis
terio da SS. Trindade, a ordem sacramental, a missáo da
Igreja.. . O Cristianismo de Bultmann, minimalista como é,
nao poderia ser aceito nem pelo Conselho Mundial das Igrejas
(entidade protestante que coaduna centenas de denominagoes
cristas náo-católicas sob um mínimo denominador comum).
Como entáo pode urna escritora católica dizer, sem mais,
que Bultmann é benemérito por sua obra arrasadora ?
Mais adiante lé-se no livro recenseado :

«Embora a intuicáo fundamental dos teólogos (da morte de Deus)


que analisamos. seja válida e adaptada ao nosso tempo, sua visáo
continua fragmentaria e parcelar e, portanto, demasiadamente imersa
no presente. So Teilhard conseguiu compor urna visao aproximada do
futuro» (pág. 107).

Nos dizeres ácima, chama a atengáo o adjetivo «válida»


aplicado á intuicáo fundamental de autores que evidentemente
solapam o Cristianismo.
Talvez R. M. Muraro nao tenha percebido todo o alcance
do que afirmou. Nao é possivel ser católico e compartilhar a
teología da «morte de Deus» no sentido dos teólogos protes
tantes contemporáneos.
O Cristianismo continua, antes do mais, voltado para Deus
e a vida eterna ; a sua orientagáo é marcadamente teocentrica,
e nao antropocéntrica. A sua funcáo é, em primeiro lugar,
reconhecer a grandeza de Deus Criador e proclamá-la; essa
grandeza de Deus se manifestou especialmente na obra da
Redencáo realizada mediante Jesús Cristo ; por isto, glorifi
cando a Deus, o Cristianismo anuncia a todos os homens a
salvagáo oferecida por Cristo. O louvor a Deus e a salvagáo
eterna do homem sao inseparáveis entre si; constituem a
tarefa palmar da Igreja. Quanto ao servigo aos valores déste

— 283 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969. qu. 1

mundo, ele nao entra no programa do Cristianismo senáo em


funcáo da glorificacáo do Criador.
Aínda de grande peso sao as consideracóes do livro «Au-
tomagáo» a respeito de Ética.

3) A nova Ética

1. A Ética prospetada pela autora obedecerá a padrees


bem diferentes dos da Moral clássica, dita «Moral de domina-
cáo» (Marcuse e Marx parecem sugerir tal expressáo).
A Moral clássica supunha urna lei natural; era utilizada
pelas classes dominadoras que, pregando a paciencia e a humil-
dade, mantinham as populagóes sob urna repressáo injusta.
Eis, porém, que na era tecnológica os criterios para se aferir
o bem e o mal seráo os principios da ciencia, principalmente
os da psicanálise e da sociología ; tais principios seráo livre-
mente aceites, longe de qualquer imposicáo. Em outros termos:
as informagóes fornecidas pelos pesquisadores da natureza e
do ser humano é que constituiráo os criterios da moralidade
dos atos humanos. «O conceito de informacáo vem, na era
cibernética, reformular em profundidade o próprio conceito
, de bem e de mal» (pág. 123).
O ato bom será o ato que se amoldar as informagóes for
necidas pelas ciencias. O ato mau ou o pecado será principal
mente a recusa á evidencia das informagóes.

Donde se segué que, se alguma corrente psicanalista ensina que


é necessário defecar aos jovens plena liberdade sexual, o uso dessa
liberdade vem a ser ato bom sem ulteriores consideragóes. Se alguns
sociólogos apregoam ia oxplosao demográfica como perigo para o
género humano, será virtude empregar todos os recursos para conter
tal explosáo (sem levar em conta outros fatores). Se alguma corrente
de profissionais aconselhar a um esposo que se satisfaga sexual-
mente fora do lar em coso de enfermidade da esposa, será licito c
bom o adulterio.

Mais ainda: o bem e o mal teráo (hoje, alias, já tém,


conforme a autora) urna dimensáo política, global, planetaria.
Conseqüentemente, podem-se citar como exemplos de pecado:
o náo-engajamento na luta contra a injustica e a ignorancia;
a civüizagáo do consumo, como concretizagáo do crime de
lesa-humanidade ; a busca do conforto próprio, como fator
de regressáo... Pecado é também todo tipo de controle ou
sonegagáo de informacóes: entre outros, a nao divulgacáo
das mais recentes descobertas científicas, a cultura de massas,
que nao procura elevar o nivel de consciéncia dos individuos

— 284 —
AUTOMACAO E VALORES HUMANOS 13

e da coletividade... A carencia de informagóes pode acarretar


graves males para a humanidade.
Quanto aos «pecados da carne, sobre os quais se polarizou
a Moral tradicional, éles perdem a sua virulencia» (pág. 124).
A virgindade vai-se desvalorizando; o uso da pílula modificará
profundamente o comportamento da mulher e as relagóes
entre os sexos (pág. 121); a liberdade sexual da juventude
poderá trazer contribuicáo muito positiva para a renovagio
familiar, impedindo os casamentes com motivagóes neuróticas
ou imaturas (pág. 122). Em lugar dos pecados da carne, me-
receráo grande atencáo os pecados coletivos, ou seja, de índole
social e política (pág. 124).
Como exemplos de virtude, podem-se citar «a ascese, a
renuncia, o sacrificio para a conquista da libertagáo humana,
mesmo que seja necessária urna luta armada» (pág. 125); re-
conhecam-se os valores da. violencia em prol da libertagáo.
Em suma, «a moral tradicional está em crise, ou melhor,
em vias de ser liquidada. Mas para ser substituida por outra,
que permita á. especie humana preservar a sua vida numa era
tecnológica» (pág. 124).
Vé-se, pois, que a finalidade da nova Ética será a de pre
servar a vida da especie humana em meio as vantagens e aos
perigos da tecnología.

2. Que dizer de tais consideragóes?

É no setor da Ética que mais se manifestam o secula-


rismo e o antropocentrismo do livro «Automagáo...». R. M.
Muraro apresenta urna Moral que nao mais se refere a Deus,
silenciando simplesmente o nome do Senhor. Por conseguinte,
já nao é para o Bem Infinito que o homem deve tender e agir,
mas, sim, para os bens temporais e políticos; pecado é o que
contradiz ao bem terrestre do homem, ao passo que virtude é
tudo quanto o favorece.
Por certo, a autora nao nega Deus, nem talvez negué a
frase de S. Agostinho: «Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e in
quieto é o nosso coragáo enquanto nao repousa em Ti» («Con-
fissoes» 1,1). Todavía a escritora abstrai de Deus para cons
truir a sua Ética; ora urna tal Moral é ilusoria, incapaz de
tornar o homem mais homem e mais feliz. Sartre dizia muito
sabiamente que a Moral sem Deus vem a ser um absurdo
(cf. «P.R.» 112/1969, págs. 169s). O homem que vive exclu
sivamente para éste mundo, empenhando-se sómente por cons
truir a cidade do homem, jamáis será saciado; vai ao encon-

— 285 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 1

tro de tremenda desilusáo. Embora a autora verifique que os


homens sao mesquinhos e interesseiros, impedindo assim o
bem-estar da humanidade (cf. pág. 77s), nao lhe ocorre falar
de Deus e de sua graga, sem os quais é utópica qualquer visáo
construtiva do futuro.

Mais: a liberdade sexual anterior ao matrimonio é fonte


de males moráis, físicos e psíquicos. Nao se diga que a conti
nencia acarreta molestias, pois a auténtica Medicina oontradiz
a isso; sómente a sugestáo, incutida nao raro por profissionais,
leva o jovem a se sentir mal numa vida casta. Cf. «P.R »
36/1960, pág. 506-514.
Leve-se em conta também o seguinte: nao basta ao
homem «saber» ou «ser informado» para que proceda corre-
tamente. Há dentro de cada individuo .um conjunto de obstá
culos ao reto comportamento, obstáculos que sao o egoísmo
e as concupiscencias desregradas. Em suma, a fé crista fala
de luta da carne contra o espirito e da necessidade de que
cada cristáo venga em si o velho homem para revestir perfei-
tamente o Senhor Jesús (cf. Rom 13,13s; Ef 4,22-24). R. M.
Muraro nao alude a estes elementos capitais do Moral crista;
parece supor urna natureza humana bem ordenada, que se vai
elevando cada vez mais.

3. Conclusao

Em conclusao, pode-se dizer que o livro «Automagáo...»


vem a ser um espécimen rematado de mentalidade seculari
zada, inspirada pelos ditos «teólogos da morte de Deus» pro
testantes, Sem combater o catolicismo (antes, professando-o
em sua consciéncia íntima), a autora apresenta o futuro do
género humano como se éste estivesse fadado a viver apenas
neste mundo e déste mundo; nao alude a destino transcen
dente; o próprio Deus e a Religiáo sao considerados em fungáo
do homem e postes a servigo déste. O silencio e o náo-combate
de R. M. Muraro á Religiáo sao mais do que mero silencio ou
mera abstencáo. Iñsinuam um certo ateísmo, que a autora
por certo nao imaginou nem percebeu, porque interiormente
quer conservar-se católica. O fato, porém, é que o silencio a
nao poucos leitores poderá sugerir urna negativa.
Na verdade, é sómente em Deus explícitamente reconhe-
cido e amado que o homem encontra a si mesmo e aos seus
semelhantes. R. M. Muraro devia ter dito e desenvolvido isto,
omitindo varias outras coisas, para complementar dignamente
os dados científicos que ela coligiu em sua obra.

— 286 —
JESÚS CASADO? • 15

II. BIBLIA SAGRADA

2) «Jesús casou-se e foi viúvo. Eis a última afirmacao


de um estudioso das Escrituras.
Que dizer? Tem razao?»

Resumo da resposta: A tese do Prof. William Phipps carece de


todo fundamento ñas Escrituras e na Tradigáo. Os Apostólos e Evan
gelistas nao mencionam, nem indiretamente, algo do matrimonio ou
da viuvez ou dos filhos de Jesús, embora mencionem a mác e os
primos do Senhor. Na comitiva de Jesús, nao havia apenas urna
mulher (que seria a esposa de Jesús, como insinúa PJiipps), mas
algumas santas mulheres, que, consoante a praxe da época, atendiam
á subsistencia material do Mestre.
Sabe-se outrossim que entre os judeus havia nao sómente estima
do matrimonio e da prole, mas também apreso ao celibato. Éste data
do século II a. C; foi cultivado pelos essénios, monges judeus que,
como se julga, tiveram importante mosteiro em Qumran. As deseo-
bertas efetuadas em Qumran a partir de 1947 trouxeram á tona dos
conhecimentos científicos urna nova face do judaismo, muito mais
mística, ascética e fervorosa do que a clássica face.
É sobre o fundo do ideal ascético e místico dos essénios que se
deve considerar a vida una abracada por Jesús. O Senhor, conser
vando o celibato por amor & sua missáo, nao destoava da genuuia
piedade israelita, nem era, por isto, motivo de escándalo e recrimi-
nagáo por parte, de scus contemporáneos. Alias, também Joáo Batista
íoi relibntario e penitente.

Resposta. A imprensa divulgou, há meses, urna noticia


aparentemente sensacional, cujo teor é o seguinte, de acordó
com o «Correio do Povo» de Porto Alegre, de 21/IÜ/1969:

«ELKINS, Virginia, 20 (AP) — Jesús Cristo deve ter sido um


homem casado, segundo um teólogo presbiteriano da Universidade de
Davis and Elkins.
Num artigo publicado na última edicáo do 'Journal of Ecumenlcal
Studies', o prof. William Phipps afirma que nos tempos bíblicos con-
siderava-se grave falta contra a lei religiosa nao casar e nao ter
filhos. 'Se Jesús fósse solteiro — alega Phipps — a Biblia cantería
seguramente notas ou criticas de seos adversarios neste sentido. Jesús
posslvelmente nao tinha esposa durante os tres anos de sua vida
pública, mas é lógico deduzir que anteriormente poderia ter-se casado,
f¡cando em seguida viúvo', declara o teólogo.
Afirma aínda que mas tradueñes para o grego dos livros do Antigo
e do Novo Testamento nao há diferenca entre os vocábulos 'esposa'
e 'mulher', acrescentando que os EvangeLhos varias vézes fazem refe
rencia a urna mulher que acompanhava Jesús. 'Segundo a lei talmú
dica, o feto de nao se casar e nao ter filhos era considerado táo
grande quanto cometer um assassínio', finaliza Phipps em seu artigo».

— 287 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 2

A tese do Professor William Phipps é realmente revolu


cionaria. Faz-se mister submeté-la a um julgamento sereno,
que abaixo será proposto por etapas.

1. Judeus e virgindade

É certo que os judeus muito estímavam o casamento e


urna prole numerosa, pois esperavam que da linhagem carnal
de Israel nasceria o Salvador ou Messias prometido pelas Es
crituras Sagradas. Urna mulher estéril chegava a oonsiderar-
-se amaldigoada por Deus; tal foi, por exemplo, o caso de Ana
(cf. 1 Sam 1,4-18), posteriormente máe de Samuel por graca
de Deus. Abraáo e Sara, os país de Sansáo, Zacarías e Elisa-
bete se alegraram profundamente quando o Senhor lhes deu
a saber que, em sua esterilidade, haviam de ter um filho
(cf. Gen 18,9-15; 21,1-7; Jz 13,1-7; Le 1,5-22. 57s).
Eram, pois, as expectativas religiosas do povo de Israel
que incutiam aos hebreus o aprégo do matrimonio.
Seria temerario, porém, se nao erróneo, deduzir de tal
fato a tese de que conseqüentemente Jesús foi casado e até
teve filhos.
E por que temerario ou mesmo erróneo?

2. A figura de Jesús nos Evangelhos

1) Os Evangelhos nada dizem a respeito da pretensa


esposa (viva ou morta) de Jesús nem a propósito de seus
«filhos», embora falem da máe e da parentela de Cristo. Nem
as fontes rabinicas que algumas vézes mencionam Jesús nos
falam da mulher do Mestre (cf. «P.R.» 7/1957, págs. 23-26).

2) Segundo Phipps, urna mulher acompanhava Jesús, a


qual talvez tenha sido sua esposa (Phipps, alias, é contradi-
torio; ora insinúa que Jesús era viúvo durante os tres anos
de sua vida pública, ora dá a entender que urna mulher, sua
esposa, o acompanhava enquanto exercia seu ministerio sa
grado) .
Na verdade, nao urna mulher apenas acompanhava Cristo,
mas um grupo de santas mulheres, as quais Lucas assim se
refere:

«Jesús percorria cidaúes e aldeias pregando e anunciando o Evan-


gelho do reino de Deus. Acompanhavam-no os doze Apostólos e algu-

— 288 —
JESÚS CASADO? 17

mas mulheres que tinham sido curadas de espiritas malignos e de


doengas: Maria, chamada Madalena, de quem tinham saido se te de
monios, Joana, esposa de Cusa, intendente de Heredes, Susana e
muitas outras que o serviam com seus haveres» (Le 8,1-3).

Entre os judeus, havia o costume de que mulheres pie-


dosas se encarregassem da subsistencia material de rabinos
ou doutóres qtte se dedicassem exclusivamente ao ensino da
Lei. Nao admira, pois, que com Jesús isto se tenha dado.
O fato, porém, está longe de significar que entre o Senhor e
alguma daquelas pessoas de sua comitiva houvesse uniáo ma
trimonial; urna délas, Joana, chega a ser apresentada pelo
Evangelista como esposa do oficial Cusa, da casa de Herodes.

3. Essénios e celibato

1. Leve-se em conta outrossim o seguinte: as concepgóes


que os estudiosos possuiam a respeito do pensamento e dos
costumes dos judeus anteriores e contemporáneos a Cristo,
foram, em parte, reformuladas e, em parte, completadas pelas
famosas descobertas realizadas no deserto de Judá (Palestina)
no ano de 1947.
Com efeito, em Khirbet Qumran, a 2 km e meio do Mar
Morto, foram encontrados numerosos e valiosos manuscritos,
assim como as ruinas de um mosteiro, que pertenceram a
urna seita de ascetas judeus. Tais ascetas foram identificados
com os essénios, monges hebreus de que nos falam antigos
escritores, como o latino Plínio o Antigo (t 79 d. C.) e os
judeus Filáo de Alexandria (t 70 d. C.) e Flávio José (f 102/
/103 d. C).
Os essénios tém sua origem no fato de que, no séc. II
a. C, um grupo de sacerdotes judeus de Jerusalém resolveu
abandonar a Cidade Santa para ir habitar no deserto, levando
vida de oracáo, penitencia e trabalho. Queriam assim seqües-
trar-se dos chefes religiosos do povo de Israel, que Ihes pare-
ciam estar cedendo as influencias do helenismo pagáo e tra-
índo as tradicóes patrias. Julgavam ser os filhos da luz;
desejavam fazer a experiencia dos seus antepassados, que
haviam vivido quarenta anos no deserto em demanda da Térra
Prometida; alimentavam ardente expectativa do Messias. As-
piravam por libertar-se do pecado e assim desfrutar o ante
gozo da vida angélica que éles esperavam poder possuir na
plenitude dos tempos.

— 289 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 2

Ora, a respeito dos essénios, Plinio o Antigo deixou-nos


interessante testemunho em sua «Historia Natural». Tendo
visitado o Oriente, ésse escritor descreve a Palestina: depois
de ter falado do Mar Morto e de sua margem oriental, passa
a tratar de sua costa ocidental e refere o seguinte:

«Ao Ocidente (do lago Asfaltite, isto é, do Mar Morto) estáo ins
talados os essénios, á distancia da zona nociva do litoral. Povo soli
tario, o mais extraordinario povo que haja, sem mülheres, sem amor,
sem dinheiro. a viver na oompamhia das palmeiras. Todavía renovam-
-se regularmente, e seus recrutas lhes chegam em massa, gente can
sada da vida ou gente que os dissabores da sorte levam a adotar tal
modo de vida. Assim, após milhares de séculos. coisa incrivel, subsiste
um povo eterno, em que ninguém nasce. Déste modo, torna-se fe
cundo, gragas a éles, o arrependimento que os outros experimentam
a respeito de sua vida. Ao sul dos essénios, ergue-se a cidade de
Engaddi, que so cede a Jericó no tocante á fertilidade e as palmeiras,
mas que hoje está reduzida a um acervo de cinzas. Mais adiante,
encontra-se a fortaleza de Masada, na montanha, também ela afastada
do lago Asfaltite» («Historia Natural» V 17,73).

Tais afirmacóes fornecidas por Plinio sao confirmadas por


Filáo e Flávio José, sendo que a noticia de Plinio se caracte
riza pela exatidáo com que descreve a situacáo geográfica
dos essénios. JÉ aos monges judeus de Qumran, cujos vestigios
foram descobertos em 1947, que se refere o escritor latino.
No documento ácima, o que interessa ao presente estudo,
é a mengáo de que os essénios viviam oelibatariamente; abra-
cavam, pois, a vida una ou indivisa, por motivos religiosos,
ou seja, a fim de mais desimpedidamente se dedicar á ora-
gáo e á uniáo com Deus. Alias, o texto da Regra da Comu-
nidade de Qumran, encontrado ñas ruinas do mosteiro, ignora
por completo a vida familiar ou conjugal dos respectivos
monges.

2. Acontece, porém, que ñas ruinas do cemitério dos


ascetas de Qumran foram encontrados alguns esqueletos femi-
ninos. Éste achado suscitou dificuldades aos historiadores mo
dernos, visto que Plinio, Filáo e Flávio José concordam entre
si ao mencionar a vida celibatária dos essénios. Todavía a
solucáo pode ser concebida nos seguintes termos: em Qumran
levavam vida ascética e continente pessoas de ambos os sexos,
formando urna comunidade digna e férvida. Algo de seme-
lhante se deu também em torno de Jesús Cristo: S. Lucas, no
seu Evangelho, refere que piedosas mülheres e os doze Apos
tólos seguiam o Divino Mestre; no livro dos Atos dos Apostólos,
o mesmo autor afirma que algumas mülheres constituiram com
os Apostólos o núcleo da primeira comunidade crista: «(Os

— 290 —
JESÚS CASADO? >. '

Apostólos) todos juntos perseveravam na oragáo, com'álgVF"


mas mulheres, entre as quais Mana, máe de Jesús, e com os
irmáos (primos) do Senhor» (At 1,14).
Os estudiosos admitem outrossim que em Qumran possam
ter vivido alguns ascetas casados; nao eram própriamente
monges, como os celibatários, mas poderiam ser comparados
aos Irmáos terciarios, que, tendo abracado o matrimonio, vi-
vem a espiritualidade das Ordens Religiosas de S. Francisco
e S. Domingos.
Além dos essénios, o povo de Israel contemporáneo a
Cristo conheceu outra agremiacáo de ascetas: os chamados
«Terapeutas», cujo género de vida era semelhante ao dos
essénios. Viviam retirados nos arredores do lago Mareotis,
perto de Alexandria (Egito), como referem Filáo de Alexan-
dria («De vita contemplativa» 21-90) e o historiador Eusébio
na sua «Historia da Igreja» (II, XVII).
Em suma, o género de vida de essénios e terapeutas de
monstra que, entre os judeus próximos aos tempos de Cristo,
ao lado da clássica estima da vida matrimonial se cultivava
também a vida celibatária. Esta impunha-se aos que deseja-
vam regime mais austero e maior liberdade para se entregar
á contemplacáo das verdades eternas.

Note-se, alias, que S. Joáo Batista, o precursor de Jesús levou


vida solitaria no deserto marcada por continencia e írugalidade. Nao
se pode excluir que tenha tido contato com os monges de Qumran.

Vé-se destarte que o género de vida celibatário de Jesús,


atestado por toda a tradicáo crista até nossos dias, nada
tinha que estivesse fadado a merecer a repulsa dos judeus.
Já contava com seus precedentes, bem aceitos pelos habitan
tes da Térra Santa; tornara-se mesmo o regime típico da-
queles que aspiravam a maior perfeicáo espiritual.

3. O Prof. Phipps afirma que, segundo o Talmud, o


celibato era pecado táo grave quanto o assassinio.

Esta posigáo do Talmud se oompreende do seguinte modo:


o Talmud é urna coletánea de dizeres dos rabinos de Israel
que viviam e ensinavam em Jerusalém antes e depois de
Cristo; representavam o judaismo clássico, contra o qual os
essénios se insurgiram em nome de urna mentalidade mais
férvida e pura. Os talmudistas exprimem a mentalidade do
judaismo que se esterilizou espiritualmente, fechando-se ao
Messias e ao sentido genuino do Antigo Testamento. Leve-se

— 291 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 2

em consideragáo, porém, que nos tempos de Jesús nao havia


apenas quem pensasse como os talmudistas, mas havia tam-
bém os que recebiam a influencia mais positiva e mística dos
essénios.

4. Virgindade e Cristianismo

Ademáis, se Jesús nao tivesse levado a vida una, nao se


entendería que a virgindade tenha sido altamente apreciada
e fervorosamente abracada desde a primeira geragáo crista.
Com efeito, em 56 d. C, Sao Paulo dizia aos fiéis de Corinto
que desejava fóssem, como ele (Paulo), celibatários (cf. 1 Cor
7,7); colocava a virgindade consagrada a Deus ácima do pró-
prio estado matrimonial (cuja dignidade Sao Paulo nao deixou
de reconhecer e realcar em varias passagens de suas cartas;
cf. 1 Cor 7,12-17; Ef 5,22-33). O elogio da virgindade fazia
parte da mensagem crista desde as origens desta — o que,
alias, bem se compreende, visto que Jesús mesmo insinuou a
excelencia da vida virginal, ao dizer: «Há eunucos que nasce-
ram assim do seio materno; outros foram feitos eunucos pelos
homens, e há também eunucos que assim se fizeram éles
mesmos por causa do reino dos céus. Quem puder compre-
ender, compreenda!» (Mt 19,12).
Nestas palavras do Senhor há, por certo, um convite ao
celibato a ser abragado em sinal de generosa dedicagáo aos
interésses do reino de Deus. Tais palavras só se entendem
adequadamente nos labios de Cristo, caso se admita que Jesús
pessoalmente tenha abragado o celibato por amor á sua missáo
religiosa.

De resto, é necessário ainda observar o seguinte: para os


cristáos, já nao subsiste o motivo que inspirava aos judeus a
grande estima do matrimonio. Os discípulos de Cristo sabem
que o Messias já veio; por conseguinte, já nao há que esperar
o cumprimento das antigás promessas de um Salvador, .. .Sal
vador que nasceria da linhagem de Abraáo e Davi. O matri
monio, para os cristáos, já nao é o necessário veículo de
salvagáo, como era para os judeus; se a eternidade já está
presente no tempo atual, compreende-se que muitos discípulos
de Cristo desejem viver mais plenamente do eterno e definitivo
que lhes foi dado, renunciando á vida conjugal. A virgindade
e o celibato vém a ser, destarte, urna das expressóes mais
típicas do Cristianismo, ou seja, a expressáo da consciéncia que
os cristáos tém, de que se cumpriram as profecías do Antigo
Testamento e o reino de Deus já se iniciou na térra em termos
RENOVACAO DA VIDA RELIGIOSA 21

definitivos (a graga santificante depositada ñas almas pelo Ba-


tismo é a sementé da gloria eterna).
Compreende-se entáo que Jesús, trazendo tal mensagem
aos homens, tenha ele mesmo abracado a vida una, atestando
por suas palavras e sua conduta a Boa-Nova. É, de resto, o
que os Evangelhos insinuam, silenciando por completo o «casa
mento» de Jesús; é também o que a Tradicáo crista sempre
afirmou. Donde se vé que gratuita, ou mesmo errónea, é a
hipótese do estimado professor da Universidade Davis and
Elkins.

III. ESPIRITUALIDADE

3) «Em que consistem as novas normas promulgadas


pela Santa Sé em insta da formacao dos Religiosos e das
Religiosas?»

Resuma da resposta: A Instrucáo «Renovationis caúsame, pro


mulgada pela Santa Sé aos 6 de Janeiro de 1969, visa reestruturar as
etapas de formacüo dos Religiosos e das Religiosas.
Tais etapas erara até o presente ano: postulantado nao estrita-
mente obrigatório, primeiro periodo em que o candidato se amblen-
tava na vida regular; noviciado, de um año ao menos, passado longe
do mundo em recolhimento e no estudo da Regra religiosa; profissSo
temporaria, de tres ano no mínimo; profissao perpetua.
A nova Instrucáo introduz tres principáis modificaeñes:
1) O postulantado deverá ser obrigatório e mais estenso, de modo
a favorecer certa maturacáo psicológica do candidato.
2) O noviciado, ñas Ordens e Congregacóes de vida mista (con
templativa e apostólica), poderá constar de periodos de separacáo do
mundo alternados com estágios de trabalho apostólico (fora da casa
do noviciado).
3) Após o noviciado, o candidato que nao esteja em condicSes
psicológicas de fazer votos religiosos, poderá íazer simples promessa,
a Deus e ao Instituto, de viver em pobreza, castidade e obediencia.
Emitirá posteriormente sua proíissáo temporaria ou perpetua.
As normas ácima nao s3o todas estritamente obrigatórias nem
definitivas. Poderlo ser aplicadas pelos Superiores Gerais aos respec
tivos Institutos, caso as julguem oportunas. A experiencia possibili-
tará que sejam confirmadas ou ulteriormente adaptadas.
A finalidade da Instrucáo é proporcionar aos candidatos k vida
religiosa ocasióes varias de amadurecer humana e aíetivamente, de
modo a fazerem, no día de seus votos definitivos, urna opeáo bem
consciente e segura.
X

— 293 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 3

Resposta: A vida consagrada a Deus mediante os tres


votos de pobreza, castidade e obediencia sempre mereceu, e
continua a merecer, grande estima por parte da S. Igreja.A
Constituigáo «Lumen Gentium» c. VI e o decreto «Perfectae
caritatis» do Concilio do Vaticano II a enalteceram e pro-
curaram fomentar. Acontece, porém, que deve ser atualizada,
ou seja, adaptada as condicóes em que vive o homem de hoje.
Daí a promulgacáo de alguns documentos da Santa Sé ati
nentes ao assunto, dos quais o último e mais importante é a
Instrucáo «Renovationis causam» («A obra da renovacáo»)
com a data de 6 de Janeiro de 1969.
Abaixo proporemos os precedentes, a problemática e o
conteúdo da Instrucáo «Renovationis causam», Instrueáo que,
segundo os dizeres oficiáis da Santa Sé, é «resoluta, audaciosa
e de alcance consideravel» '.

1. Os precedentes

A historia do documento comega com urna reuniáo de


Mestres de novigos 2 de diversas Ordens e Congregacóes
realizada na Holanda em 1966 (ou 1967?). O tema principal
dessa reuniáo era a crise das vocacóes religiosas: verifica-se,
de um lado, que tem diminuido o número de jovens que pro-
curam a vida una, consagrada a Deus, e, de outro lado, é
considerável a cota dos que vém abandonando a vida religiosa
nos últimos anos.
Para obviar a estes males, os Mestres de novicos conce-
beram urna reestruturagáo das etapas de formagáo dos can
didatos aos votos religiosos. Levaram suas sugestóes aos res
pectivos Superiores Provinciais e Gerais. Estes, por sua vez,
encaminharam as propostas e os pedidos á S. Congregacáo
dos Religiosos e ao Santo Padre Paulo VL Em carta datada
de 7/XII/1967, escreviam os Superiores Gerais a S. Santidade:

«A reestruturacáo é táo urgente, segundo varios Superiores, que


urna dilaeáo, ainda que de um ano apenas acarretaria grave detri
mento tanto para as vocacdes como para os próprios Institutos reli
giosos* («La Documentaron Gatholique» n« 1534, pág. 169).

1 É o que se lé na carta com que a S. Congregagáo dos Reli


giosos apresenta a Instrucáo. Cí. «La Documentation Cathólique*
LXVI, n' 1534, 16/11/1969, pág. 167.
2 «Novico» é p candidato que pelo espaco de um ano ao
menos, faz a aprendizagem da vida religiosa e experimenta a sua
vocacáo, num ambiente que até os últimos tempos sempre foi assaz
fechado.
ocm
RENOVACAO DA VIDA RELIGIOSA 23

A resposta a esta carta foi a Instrugáo «Renovationis


causam», que reproduz e promulga, quase na íntegra, os pos
tulados dos Mestres de Novigos e Superiores Gerais religiosos.
O documento leva em conta as etapas de maturagáo da per-
sonalidade humana, a diversidade de disposigóes e tempera
mentos dos candidatos & vida religiosa, assim como a varie-
dade de Ordens e Congregagóes esparsas pela mundo inteiro.
Em vista disso, abandona certas normas de uniformidade que
ató os últimos tempos eram impostas á formagáo de novigos
(veja-se o Código de Direito Canónico, cánones 539 a 586).
Nao se fazia, no tocante á formagáo, diferenga muito sensível
entre Institutos religiosos de vida contemplativa e de vida
ativa, Institutos antigos e modernos, Institutos masculinos e
femininos. A nova Instrugáo admite urna certa elasticidade
ñas etapas de formagáo dos Religiosos, atendendo a imperio
sas necessidades dos novos tempos, sem deixar de ser fiel as
exigencias de auténtica vida religiosa.
O documento, por sua vez, nao pretende ser irreformável;
ao contrario, logo em seu proemio, observa ter caráter expe
rimental, podendo ser retocado de acordó com os resultados,
positivos t>u negativos, a ser obtidos.
Passamos agora a expor

2. A problemática do documento

A Instrucao «Renovationis causam» consta de: 1) Proemio, 2)


Principios e Diretivas concementes á vida religiosa em geral (em 9
parágrafos), 3) Normas Especiáis (em 38 artigos), 4) Normas relati
vas á execucüo das disposicóes anteriores (em 7 parágrafos).
Antes do mais. impóe-se a eonsideracáo dos motivos que levaram
a Santa Sé a promulgar a audaz Instrucao, motivos esbozados no
proemio e na primeira parte do documento. Tais razñes podem ser
compendiadas sob dois títulos:

1 ) Estruturas e contestajao

Nao há quem ignore a grave crise que hoje em dia aco


mete as instituigóes em geral, sem ¡sentar as instituigóes reli
giosas. Sabe-se mesmo que, na presente fase atormentada da
historia da Igreja, q clero é em geral mais afetado do que o
laicato; dentro do clero, os regulares ou Religiosos sao mais
atingidos do que os clérigos seculares ou diocesanos.
Isto se compreenderá sem dificuldade desde que se con
sidere que a crise presente (que recobre o mundo inteiro) é

— 295 —
24 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 3

urna crise de contestagáo sob varias formas, contestagáo que


se dirige em geral contra as estruturas da sociedade. Ora na
Igreja as estruturas que marcam a vida do clero sao mais
rígidas do que as do laicato; ulteriormente, as estruturas que
regem o clero regular, sao mais severas do que as que nor-
teiam o clero secular; com efeito, existem Regras, Constitui-
góes e Declaragñes para as diversas Ordens e Congregagóes
Religiosas... Éntende-se, pois, que os casos de desatualizagáo
das estruturas se possam tornar freqüentes e ponderosos entre
os Religiosos, mormente em nossos dias, quando as condigóes
de vida se transformam bruscamente. Em conseqüéncia, os
jovens de hoje, mesmo aqueles que aspiram á perfeigáo reli
giosa, experimentam dificuldades para se adaptar ás estrutu
ras e aos métodos de formagáo vigentes em muitas comuni
dades religiosas, visto que tais instituigóes datam de épocas
mais ou menos distantes da presente.
Tal problema impóe-se inexorávelmente á consideracáo
dos Superiores Religiosos; estes se véem impelidos a procurar
as maneiras de simplificar as estruturas de formagáo dos
jovens candidatos, sem comprometer a esséncia da vida con
sagrada a Deus e a natureza própria de cada Instituto reli
gioso. Como se compreende, nao 6 possível suprimir toda
estrutura. Verdade é que, na vida crista, e em particular na
vida religiosa, o elemento espiritual e carismático é mais im
portante do que o jurídico e canónico; nao obstante, éste fíca
sendo necessário. Paralelamente, no homem o elemento mais
importante é a alma; todavia o corpo é indispensável para
que o ser humano possa viver e trabalhar. Nao se pode negar
que um mínimo de estrutura seja necessário la vida e ao desen-
volvimento de qualquer sociedade (nao excluidas as sociedades
religiosas). É o que nota a «Instrugáo»:

«Por certo, na própria natureza da vida religiosa, como, alias, na


da Igreja mesma. está radicada a exigencia de alguma estrutura, sem
a qual nenhuma sociedade, aínda que sobrenatural, poderia atingir
os seus fins, ncm estar em condlgSes de- escolher os meios mais apro-
priados para o alcancar* (proemio).

O que importa neste setor, como em tantos outros, é


evitar os exageres: ... tanto o das estruturas demasiado rí
gidas, que impecam o desabrochar normal dos dons naturais
e sobrenaturais do candidato, como o exagero oposto, que pre
coniza a supressáo de quaisquer estruturas, mesmo daquelas
sem as quais os Institutos religiosos nao poderiam sobreviver.
É preciso que os Superiores saibam rever as normas vigentes
nos noviciados, escolhendo e adatando as que contribuam para
RENOVACAO DA VIDA RELIGIOSA 25

o desabrochar de auténtica vida religiosa, e extinguindo as


que, em virtude da mudanca dos tempos, se tenham tornado
um obstáculo mais do que um estimulo. A fé sobrenatural e
a prudencia crista, refletindo sobre a experiencia da vida, de-
veráo nortear os mestres da vida religiosa na presente con
juntura.

2) ProfissSo religiosa e maturídade

Leve-se em conta outrossim que a vida religiosa é carac


terizada por duas notas que lhe sao essenciais:
a) a totalidad» do dom que o Religioso faz de si a Deus,
abragando a pobreza, a castidade e a obediencia;
b) a perpetuidade do dom, o qual, após a profissáo de
finitiva, se torna, por vontade do próprio candidato, irrever-
sível (as dispensas de votos perpetuos podem ser legítimas,
mas estáo fora do curso normal das coisas).
Ora as características de totalidade e perpetuidade cau-
sam dificuldades aos jovens de hoje. Oom efeito, encontram-se
rapazes e mogas de ótimas disposigóes, desejosos de trabalhar
por Cristo e pelas almas mediante sacrificios notáveis, todavía
corn duracáo limitada; comprometem-se, por vézes, a seguir
para térras estrangeiras a fim de executar trabalhos arduos,
reservando-se, porém, a liberdade de dispor de novo de si e
do seu futuro logo que se escoe o prazo determinado ou o
contrato de servigo. O jovem é naturalmente hesitante ante
a perspectiva de obrigagóes de índole total e definitiva; nao
sao raros os casos daqueles que, depois de as ter assumido,
já nao se sentem em condigóes de as sustentar e pedem dis
pensa. ..

Vé-se, pois, que a profíssáo religiosa, em virtude dos


compromissos que impóe, é ato de tal. relevo na vida de um
homem ou de urna mulher que deve ser proferida com plena
maturidade de espirito. É a maturidade que parece ter faltado
a numerosos candidatos aos votos religiosos; daí as dificulda
des e os desatinos que últimamente se tém verificado entre
éles diante dos embates pos-conciliares. Conseqüentemente, a
Instrugáo «Renovationis causam» insiste sobre a maturidade
humana e afetiva dos novigos:

<A mator paite das difieuldades que se encontram em nossos


dias na formacao dos novigos, deriva do fato de que éles, no momento
de sua admissáo no noviciado, nao possulam o mínimo de maturidade
neoessária» (m9 4).

— 297 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 3

Consciente de tal situacáo, a S. Igreja, mediante a Ins-


trucáo «Renovationis causam», procura suscitar nos candida
tos á vida religiosa a devida maturidade, propondo tres notá-
veis inovacóes na formacáo dos futuros professos.

3. As vías de solugao

As etapas habituáis de formagáo dos Religiosos e das Re


ligiosas eram até a Instrueáo as seguintes:

— um período dito «de postulamtado», que proporcionava ao can


didato proveniente do século a ocasiáo de se iniciar de maneira lenta
e suave na vida do convento ou mosteiro. Tal período nao ena obliga
torio para a validade da profissao;
— o noviciado, que durava obligatoriamente um ano, podendo ser
estendido até dois anos. Era rigorosamente dedicado á aséese, á ora-
cáo e ao estudo da Regra Religiosa, sem trabalhos apostólicos nem
estudos profanos, num ambiente ¡solado do mundo;
— ao noviciado, seguia-se a profissao temporaria, que se esten-
deria ao menos por tres anos, antecedendo os votos definitivos.

Tais etapas, após a Instrucáo «Renovationis causam»,


sofreram as seguintes modificacóes:

1) Pré-noviciado

O postulantado tornar-se-á mais extenso e enfático, a fim


de que o candidato possa entáo adquirir certo grau de matu
ridade afetiva e espiritual.
Leve-se em conta que os candidatos á vida religiosa podem
provir ou do século ou de Seminarios Menores o Escojas Apos
tólicas.
Quanto aos que vém do século diretamente, é de crer que
tenham já alguma experiencia da vida e da realidade contem
poráneas; talvez já hajam exercido alguma profissao ou rea
lizado estudos superiores — o que é altamente vantajoso.
Todavía pode-se conjeturar que tenham costumes de vida
assaz diferentes dos que se observam no convento. Com efeito,
a disciplina, o regime de educacáo e formacáo, os horarios
da juventude que vive no século, se distanciam cada vez mais
da disciplina vigente ñas comunidades religiosas. Além disto,
acontece que os conhecimentos de doutrina teológica que os
jovens no século recebem, sao, por vézes, rudimentares. De-
sejam consagrar-se a Deus, sim, mas carecem de cultura
religiosa; a sua vida de fé se apoia em rudimentos de dou-
RENOVACAO DA VIDA RELIGIOSA 27

trina. Dai a necessidade de se lhes proporcionar logo de inicio


no convento um período razoável de adaptacáo á vida reli
giosa, período em que poderSo amadurecer em sua fórga de
vontade e em seus hábitos de disciplina, assim como apro-
fundar-se em conhecimentos de doutrina religiosa.
Os candidatos que fizeram seus estudos humanísticos
em Seminarios Menores, E9tíolas Apostólicas ou Juvenatos, já
tém certo hábito de disciplina religiosa (silencio, oracáo, ho
rario ...); possuem também formacáo doutrinária satisfatória.
Todavía podem carecer de experiencia da vida e de suas difi-
culdades. Por conseguinte, parece oportuno que, a juízo dos
Superiores, nao passem diretamente do Seminario Menor para
o noviciado; poderáo completar sua formacáo geral e adqui
rir maturidade psicológica enfrentando um pouco a realidade
fora do convento, convivendo com outros jovens, trabalhado-
res ou estudantes. Isto nao quer dizer que deixem de habitar
em suas casas religiosas, mas apenas que tenham a possibi-
lidade de conhecer a vida no século (enquanto é moralmente
sadia).
As proporgóes e a duragáo do período de pré-noviciado
ficam a criterio dos Superiores Religiosos e dos candidatos,
pois cada individuo tem seus dons, seu potencial humano e
suas disposigóes próprias. As circunstancias em que se rea
lizará o pré-noviciado, poderáo ser as mais diversas, contanto
que favoregam realmente a maturagáo humana e afetiva do
candidato.
Posta a etapa do pré-noviciado, compreende-se que o
noviciado comegará doravante em idade superior á que se
exigía até a Instrugáo «Renovationis causam» (o Código de
Direito Canónico, no can. 555, prescrevia ao menos os quinze
anos de idade).

2) Noviciado

Continua a obrigacáo de se fazer um ano de noviciado.


Todavía a maneira de o realizar foi modificada.
A Instrugáo toma em consideragáo, de modo especial, as
Ordens e Congregagóes que desenvolvem o apostolado, pro
curando unir harmoniosamente contemplagáo e agáo. Ora,
em tais Institutos o noviciado doravante poderá conjugar
períodos de apostolado (vividos fora da casa do noviciado,
no exercício de alguma das obras específicas da respectiva
Congregagáo) e periodos de retiro, de sorte que já no novi-

— 299 —
28 «PERGUNTE E. RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 3

ciado (ano de provacáo) o novico faga a experiencia, táo fiel


quanto possível, do género de vida que abracará com a pro-
fissáo; o noviciado proporcionará assim urna formacáo para
a vida contemplativa e apostólica. Um tirocinio decorrido
totalmente no isolamento poderia ser artificial para candidatos
que pretendem optar nao pela vida contemplativa, mas pela
vida mista.

Sao palavras da Instrucáo:

«Além de ter o aspecto de preparacáo progressiva para as ativi-


dades apostólicas, os estágios (fora do noviciado) poderáo também
ter por finalidade fazer descobrir ao novico as verdadeiras formas
da pobreza e do trabalho ñas circunstancias concretas da vida, con
tribuir para a formacáo de seu caráter e bom senso, para um melhor
conhecimento dos homens, para o fortaleclmento da sua vontade e o
desenvolvimento do seu senso de responsabilidade pessoal e final
mente, para lhe proporcionar a ocasiáo de um esfórco de fidelidade á
uniáo com Deus, num ambiente de vida ativa» (m» 25, I).

Ooncedendo que o novigo faga estágios de apostolado fora


da casa do noviciado, a Instrugáo «Renovationis causam» nao
deixa de recordar a impreterivel necessidade de que o candi
dato a vida religiosa adquira profunda vida interior; sem esta,
nao se poderia dedicar genuinamente ao trabalho no reino
de Deus. A S. Igreja nao deseja insinuar menosprézo ou des
caso para com os valores da uniáo com Deus e da oragáo.
Por isto, o documento da Santa Sé prescreve que os períodos
de recolhimento na casa do noviciado (entrecortados por
períodos de apostolado) deveráo durar, ao todo, doze meses,
como outrora; nao deveráo os trabamos apostólicos comegar
senáo após o terceiro mes de recolhimento.

3) Votos temporarios ou compromissos ?

Sob o título ácima se apresenta a inovagáo mais caracte


rística da Instrugáo.

Outrora, quando terminava o noviciado, o candidato íazia logo a


profissáo perpetua, num ato de decisao total e definitiva. A experi
encia, porém, mostrou que tal praxe era precipitada; par isto o Di-
reito Canónico em 1917 inseriu entre o noviciado e os votos perpe
tuos um periodo de votos temporarios, que pode durar de tres a seis
anos.

Ora a Instrugáo prevé o caso de um jovem que -tenha


realizado satisfatóriamente o seu noviciado e deseje perma
necer na vida religiosa; nao se senté, porém, psicológicamente
maduro para assumir o compromisso de votos religiosos (ainda
RENOVACAO DA VIDA RELIGIOSA 29

que sejam temporarios apenas). É-lhe entáo possibilitado


fazer urna simples promessa de fidelidade a Deus e ao res
pectivo Instituto, em vez de votos (votos que, por sua índole
sagrada, importam um compromisso mais íntimo e profundo).
Tal promessa inclui naturalmente o desejo de viver no Insti
tuto em pobreza, obediencia e castidade, até o momento em
que o candidato se sinta capacitado a emitir sua profissáo
temporaria ou mesmo perpetua. A Instrugáo estipula que,
entre o fim do noviciado e os votos definitivos, decorra um
periodo nao inferior a tres anos nem superior a nove anos.
Somando-se o período de pré-noviciado (quicá dois anos;
cf. n* 12, II), o de noviciado ampliado pelos estágios apostó
licos (possivelmente dois anos; cf. n» 24, I) e o de formacáo
subseqüente até os votos definitivos (nove anos, em alguns
casos), verifica-se que a Instrugáo «Renovationis causam»
admite urna preparagáo de treze anos e possivelmente a idade
de trinta anos, para que alguém emita sua profissáo religiosa
perpetua! É de crer que em tais circunstancias o candidato
tenha realmente atingido a maturidade necessária a um com
promisso definitivo. Nao se deve, alias, esquecer que, no de-
correr do longo período de formacáo, ao jovem é sempre
facultado o contato nao somente com pessoas experimentadas
e conselheiros espirituais, mas também com médicos idóneos,
que o esclarecam e ajudem a tomar um sadio alvitre.
Os comentadores realcam a cláusula da Instrugáo «Reno
vationis causam» (n" 11, TU) que prevé o seguinte: nos casos
mais difíceis, supondo-se o livre consentimento do candidato,
os Superiores religiosos poderáo recorrer a um psicólogo ou
a um psiquiatra (nao se trata, porém, de um psicanalista,
como precipitadamente se proclamou) dotado de bons princi
pios moráis, a fim de que facilite ao jovem a deliberagáo sobre
a sua opcáo na vida.
Vé-se destarte que a Instrucáo «Renovationis causam» se
empenha ao máximo por obter Religiosos psicológicamente
maduros.

De resto, o Concilio do Vaticano II, atendando á realidade da vida


moderna, muito insistiu, em mais de um dos seus documentos, sobre
a necessidade de se fomentar a maturidade psicológica e afetiva do
homem de hoje.

Assim a Declaragáo sobre a EducacSo Crista lembra que esta


«deve levar á maturidade própria da personalidade humana» («Gra-
vlssimum educationis», n* 12). O Decreto sobre os Religiosos pres-
creve nao sejam admitidos candidatos que «nao tenham atingido con
veniente maturidade psicológica e afetiva» («Perfectae caritatis»,
n» 12). O documento relativo a formacáo dos seminaristas pede que

— 301 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969 qu. 3

«nos alunos se cultive a necessária maturidade humana» («Optatam


totius» n" 11). Paulo VI, na sua encíclica sobre o celibato, acentuava,
por sua vez. a exigencia de maturidade para que a sacerdote viva a sua
castidade «como doacáo total de si ao Senhor e á sua Igreja» (n' 72).

Resta completar estas idéias mediante considerado sobre

4. Maturidade humana e amor a Cristo

Por mais importante que seja a maturidade humana para


o bom éxito da vida consagrada a Deus, jamáis se poderá
esquecer que ela nao é senáo urna oondigao necessária; nao
constituí o motivo da profissáo religiosa. Éste é e nao pode
ser senáo o amor a Jesús Cristo (a encíclica sobre o celibato
sacerdotal fala da «íntima alegría de urna opcáo feita por
amor a Cristo» e a Instrucáo «Renovationis causam» emprega
semelhantes expressóes).

Mesmo na ordem natural verifica-se que o homem moderno geral-


mente recusa comprometer-se de maneira total e perpetua, excetu-
ando-se apenas os casos em que é o amor que vincula. Na verdade,
o amor, se é auténtico, pede totalidade e perpetuidade (tanto da parte
de qucm dá o amor como da parte de quem o recebe). Quando o
amor coloca ou encontra um limite á sua doacáo, ele tende natural
mente a se atenuar ou mesmo a se extinguir. Ora o mesmo ocorre
na ordem sobrenatural: sómente o genuino amor a Cristo pode levar
o jovem a doar-se'total e definitivamente na profissáo religiosa.

O amor do jovem a Cristo e a vida consagrada supóe


que o candidato naja compreendido o valor do ideal religioso
e o tenha reconhecido como ideal ácima de todos os outros;
assim valorizando a vida consagrada, o jovem será capaz
(com a grac.a de Deus) de superar com alegría as dificuldades
que naturalmente se defrontam a quem queira ser coerente.
Nao importa que o ideal religioso seja em si arduo e difícil;
seria erro fatal querer facilitar a vida religiosa a pretexto
de torná-la mais atraente. Na verdade, é precisamente o que
há de arduo e arrojado no ideal (também na vida religiosa)
que costuma atrair o jovem, ao passo que um ideal, esvaziado
de seus tragos arduos e heroicos, se torna insípido e inex-
pressivo. Por isto, diz sabiamente a Instrugáo «Renovationis
causam»:

«Se há conveniencia em renovar a vida religiosa nos seus meios


e ñas suas formas de realizacáo, isto nao significa de modo algum
que seja preciso mudar a substancia mesma da profissáo religiosa,
nem diminuir as suas exigencias; os jovens que nos nossos dias

— 302 —
RENOVACAO DA VIDA RELIGIOSA 31

continuam a ser chamados por Deus ao estado religioso, nao se sen-


tem menos desejosos, pelo contrario, de realizar plenamente esta
vocacáo com todas as suas exigencias, desde que certas e auténticas»
(n« 2).

Como se vé, a Igreja faz um voto de confianga nos jovens


de boje, acreditando na sua generosidade, desde que seja
devidamente motivada. Poderá pedir grandes coisas aos jovens
o Mestre de novigos que souber apresentar o ideal religioso,
atendendo 'a sede de autenticidade que todo ser humano traz
dentro de si.

Por último, é preciso acrescentar: assim como o amor a


Cristo é a razáo que leva o jovem a se Lhe consagrar na
profissáo religiosa, ésse amor há de ser também o motivo que
o fará perseverar, evitando as dolorosas defecgóes que última
mente se tém registrado.

Também aqui é válida a analogía entre o amor natural


e o sobrenatural. O amor dos esposos há de ser fomentado
numa vida de intimidade; separagóes e ausencias duradouras,
nao alternadas com períodos de intimidade, podem debilitar
o amor e por em perigo a uniáo conjugal. Análogamente o
Religioso que se consagrou a Cristo, deve saber temperar
suas atividades apostólicas com freqüentes fases de íntima
uniáo com Deus no recolhimento e na oragáo; em caso con
trario, a estabilidade de sua consagragáo ao Senhor corre
perigo. Por isto lembra a Instrugáo «Renovationis causam»
que «a lei fundamental de toda a vida espiritual consiste em
estabelecer, ao longo da vida, urna alternagáo conveniente
entre os tempos reservados á solidáo com Deus e os tempos
destinados as diferentes atividades e as relagóes humanas que
elas trazem consigo» (n" 5).

Esta lei tem importancia capital para o futuro da vida


religiosa, embora seja hoje um tanto contestada por aqueles
que apregoam a contemplagáo diretamente e táo sómente
dentro da agáo. Na verdade, sem períodos de oragáo explícita,
nao há oragáo durante o trabalho. É o que ensinam a psico
logía humana e a experiencia cotidiana; é também o que se
depreende dos ensinamentos e dos exemplos de Jesús. É ainda
o que recomenda a Instrugáo, quando pede que os jovens
aprendam «a realizar progressivamente na sua vida as con-
dicóes da harmoniosa unidade que deve existir entre a con
templagáo e a. agáo apostólica, unidade que constituí um dos
valores principáis e fundamentáis dos Institutos religiosos»
(n* 5).

— 303 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 4

Pequeña bibliografía:

SEDOC I. fase. 9, marco de 1969, pág. 1181-1195.


REB, val. 29, margo de 1969, pág. 156-159.
«La Documentation Catholique» t. LXV1, n' 1534, 16/11/1969,
pág. 159-169.
P. Dezza, «Per un aggiornamento della vita religiosa» em «La
Civiltá Cattolica», ano 120, qu. 2850, 15/IH/1969, pág. 554-563.
J. Mejia, «La instrucción 'Renovationis causam'», em «Criterio»
LXH, n" 1567, 13/111/1969. pág. 128-130.

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

4) «Como julgar o, filme 'As Sandalias do Pescador' de


Monis West?
Será positivamente constrnidor ou, antes, deletério?»

Resumo da resposta: O filme «As Sandalias do Pescador» apre-


senta, em suma, a historia de um bispo da Ucrania Kiril Lakota,
que, após vinte anos de trabalhos toreados na Sibériá, é libertado e
mandado para Roma. Eleito Papa. Kiril entra em conversacóes com
a Rússia e a China, prometendo interceder junto aos fiéis católicos
e aos povos ocidentais em favor da China faminta. Cumpre esta sua
promessa, anunciando, no dia de sua coroacáo papal, que venderá os
bens témporais da Igreja e exortando os países capitalistas a com-
partilhar o que tém, com aqueles que nio tém. Desta forma, o filme
propugna a participacáo da Igreja no desenvolvimento dos povos
mediante drásticas medidas que a imaginacáo audaz sugere ao pro-
dutor.
Na verdade, á tese central da película é interessante. Todavía
nao se deve esquecer que a missao da Igreja é, antes do mais, espi
ritual e religiosa. Para exercer essa sua tarefa, a Igreja precisa de
autonomía em relacáo aos poderes políticos, autonomía que significa
independencia territorial para o Papado.
O Papa Kiril toma como secretario o P. Télémond, que, no filme,
representa Teilhard de Chardin, jesuíta falecido em 1955. Teilhard é'
atualmente um dos autores preferidos pelo catolicismo dito «avan-
cado»; suas obras, porém. mereceram dois pronunciamentos da Santa
Sé. que chamam a atencáo para quanto nelas há de ambiguo. No
filme o P. Télémond aparece como vítima do S. Oficio, como se as
reservas feitas a seus escritos fóssem mera expressáo de inveja. Nisto
o produtor da película é tendencioso.
Em suma, o filme «As Sandalias do Pescador» é louvável pela tese
central que ele insinúa (urna Igreja dialogante com tdda a humani-
dade). É, porém, utópico ou mesmo injusto em urna ou outra de
suas cenas.

— ?,04 —
i AS SANDALIAS DO PESCADOR> ._J3

Resposta: Em 1963, o escritor Morris West langou o


romance «As Sandalias do Pescador», que se tornou «best-
-seller» em muitos países. Em «P.R.» 77/1964, pág. 228-237,
foi apresentado um comentario de tal obra literaria.
Últimamente o romance passou para a tela cinematográ
fica, despertando também enorme interésse — o que bem se
justifica, pois o filme suscita a questáo da colaboragáo da
Igreja na luta contra os males sociais de nossos dias; nao
poucas interrogagóes surgem na mente do espectador a me
dida que se desenrola o enredo da película. Eis por que abaixo
trataremos do assunto, compendiando primeiramente o con-
teúdo de «As Sandalias do Pescador», para depois propor al-
gumas reflexóes a respeito.

1. «As Sandalias do Pescador»

O filme nao acompanha exatamente o romance do mesmo


nome. Além de abreviar o enredo, é mais expressivo; propóe,
em termos claros, a participacáo da Igreja no desenvolvimento
dos povos mediante drásticas medidas.

Logo na apresentacáo da película o produtor adverte o público


de que o enredo nao faz alusao a personagens reais; se, pois, se de-
preende alguma semelhanca entre tal figura do filme e tal persona-
gem de nossos dias, trata-se de mera coincidencia. — Ora essa aíir-
macao nao parece corresponder á intencao inicial de Morris West, que
certamente através dos personagens de seu romance tinha em mira
alguns vultos da historia contemporánea.
Assim Kamenev, no filme, corresponde inegávelmente a Krutchev,
exchefe do Govérno soviético; o P. Télémond representa Teilhard de
Chardin. jesuíta que se tornou arauto de novas idéias na Igreja; o
Cardeal Leone vem a ser o Cardeal Ottaviani. representante da cor-
rente conservadora na Igreja. — O romance e o próprio filme for-
necem bases claras para tais identificac.5es.

Eis o enredo da película:


A historia abre-se com a apresentacáo de um campo de
concentragáo na Sibéria, onde chega, da parte do Primeiro
Secretario do PC, Piotr Ilych Kamenev, a ordem de liberta-
gáo para o prisioneiro Kiril Lakota. Éste outrora era bispo
na Ucrania; aprisionado pelo regime soviético, passara vinte
anos em trabamos forcados, causando a admiragáo de seu
próprio carcereiro Kamenev. Finalmente era-lhe dada a per-
missáo de ir para Roma! A fim de levá-lo para a Cidade
Eterna, o Vaticano envia a Moscou o P. Télémond, jesuíta,

— 305 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969. qu. 4

muito esclarecido e aberto, de sorte que Kiril e o sacerdote


em viagem travam sincera amizade.
Em Roma, Kiril é recebido pelo Sumo Pontífice, que sem
demora lhe confere o barrete cardinalício, embora a contra-
gosto do prelado russo. Nos dias subseqüentes, Kiril toma
conhecimento de que o P. Télémond em Roma é suspeito de
professar heresias.
Entrementes morre o Papa, e o Colegio Cardinalício
dispóe-se a eleger seu sucessor. Realizam-se sete escrutinios.
Nao havendo, porém, a necessária convergencia de votos, re-
solve o Cardeal Rinaldi aclamar Kiril Papa, apontando para
seus títulos de heroico confessor da fé durante longo cativeiro
na Sibéria; a solugáo é adotada por todos os Cardeais presen
tes. Após relutar, Kiril aceita a escolha.
Poucos dias após a eleicáo, Kiril chama Télémond para
o cargo de Secretario pessoal do Papa — o que causa alarde
na Curia Romana, representada pelo Cardeal Leone; o Papa
alega que, embora as idéias de Télémond sejam suspeitas, sua
vida é irrepreensível.
Télémond, devendo responder, em inquérito, aos teólogos
do Santo Oficio, professa teorías desconcertantes: eré em
Deus e eré em Cristo, sim, mas aínda que nao cresse em
Deus, creria no mundo, nos seus valores e na sua bondade;
Cristo é, para ele, o ponto de consumac.áo da evolucáo do
universo, é o Cristo cósmico, o universo resumido; o homem
lhe parece ser servo de sua historia, chamado a se libertar
como se Cristo Redentor estivesse ausente e longe déste mundo.
Tais conceitos atraem finalmente sobre Télémond a condena-
Cáo do S. Oficio; estará obligado para o futuro a guardar
silencio no tocante as suas teorías. Posto a par desta sen-
tenga, o Papa vé-se obrigado, a contragosto, a ratificá-la;
Télémond, porém, nao resiste ao golpe moral que lhe é assim
infligido, e morre.
Cíente disto, o Cardeal Leone procura o Papa para apre-
sentar-lhe seus pésames e confessar-lhe que tivera inveja de
Télémond.
O filme explora a impressáo que acomete o Papa, de
estar prisioneiro e isolado no Vaticano. — Kiril, pouco depois
de eleito, resolve vestír-se de batina préta como simples cacer-
dote, e sair, incógnito, do Vaticano. É visto dirigir-se ao
«ghetto» dos judeus no Trastevere; lá, em rúa estreita é quase
atropelado pelo carro de urna médica que vai socorrer a um
doente; tendo-lhe oferecido seus prestimos, Kiril vai a urna
farmacia comprar o medicamento solicitado pela doutóra e

— 306 —
«AS SANDALIAS DO PESCADOR» 35

sobe ao cómodo do paciente; éste é utn judeu moribundo, com


o qual o Papa recita preces judaicas. Por fim, saem o Papa
e a médica pelo Trastevere; logo, porém, topam ambos com
dois carros do Vaticano, enviados a reconduzir Kiril á sua
sede. A cena, evidentemente fantasista, nao deixa de ter seus
encantos nobres e puros.
Na Rússia, Kamenev, chefe do Govérno, sabedor da elei-
gáo de Kiril, tem por bem enviar-lhe sementes de gira-sol e
térra da Ucrania (a fim de que as sementes possam real
mente medrar!); além disto, Kamenev convida o Papa para
urna visita a Moscou, onde poderá entreter-se com o Presi
dente Peng da China e o chanceler soviético; a situagáo do
Oriente é grave, pois os chineses passam fome e ameagam
guerra contra a Rússia.
O Papa nao recusa o convite, consciente de que, no caso,
pode e deve ser útil aos homens. Depois de refletir, resolve
realmente ir a Moscou (antes da própria coroacáo papal).
Embarca em trajes civis e encontra-se finalmente com Ka
menev e Peng, propondo-se como mediador entre as potencias
capitalistas e Peng (éste, em nome da China, agrega a
U.R.S.S. ao bloco capitalista!). O Pontífice mostra-se tam-
bém disposto a exortar os fiéis católicos do universo a auxi
liar a China faminta, correndo mesmo algum risco material
para a Igreja.
De volta ao Vaticano, o Papa russo apresta-se para a
cerimónia da coroagáo. Todavía, antes desta, declara aos
Cardeais que renunciará aos bens temporais da Igreja em
favor do mundo faminto; éste pronunciamento provoca cho
que nos ouvintes, que juígam tratar-se de imprudencia; con-
tudo o Cardeal Rinaldi desencadeia um preito de fideíidade
a Kiril. Éste, por conseguinte, é coroado la vista do público
na Praga de Sao Pedro; mas, logo depois de receber a tiara,
depóe-na e faz sua declaracáo de pobreza, prometendo vender
as propriedades da Igreja para saciar os famintos da China;
exorta outrossim os grandes déste mundo a repartir o que
tém com os indigentes, a comecar pelos do Extremo-Oriente-.
Desta forma cumpre Kiril a proínessa feita ao presidente Peng,
enquanto o povo todo na Praca aclama o Pontífice. Tal é o
desfécho do enredo.
O filme deixa, em quem o vé, urna impressáo de grandio-
sidade e pujanga, dados o luxo e a imponencia das cenas, do
vestiario e das instalagóes que apresenta. O desfecho da pega
é belo e «simpático». O conjunto, porém, exige urna revisáo
e um juízo objetivo.

— 307 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1968, qu. 4

2. Repensando o filme.. .

Antes do mais, convém notar que a película é muito me


nos mordaz e satírica em relacáo as instituicóes da Igreja do
que o romance homónimo.
Pode-se dizer que a pega cinematográfica vem a ser urna
sugestáo feita a Igreja e, em particular, ao Papa, para que
tome parte decisiva na luta contra a fome e em prol da paz
mundial, assumindo o risco de perder mesmo seus bens tem-
porais. Tal atitude é apresentada como quebra da tradicional
atividade da Igreja, quebra que as ligóes do mundo marxista
e maoísta sugerem aos eclesiásticos!

1) Igreja e promojáo social

1. Morris West, pelo teor mesmo de sua obra, preconiza


a aproximagáo da Igreja e do marxismo; tenham-se em vista
a eleigáo de um Papa russo e suas boas relagóes com Kamenev
e Peng. Apregoando a aproximagáo, o escritor, de certo modo,
faz eco ao que tém tentado as autoridades eclesiásticas nos
últimos tempos. Paulo VI, na sua encíclica «Ecclesiam Suam»,
apregoa o diálogo da Igreja com todos os homens, inclusive
os ateus:

«A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive.


A Igreja íaz-se palavxa, fiaz-se mensagem, íaz-se coloquio...
Esta forma de relacáo indica, por parte de quem a inicia, um
propósito de urbanidade. de estima, de simpatía e de bondade; exclui
a condenacáo aprioristica, a polémica ofensiva e habitual, o prurido
de falar por falar. Se é certo que nao visa obter sem demora a con-
versáo do interlocutor porque lhe respeita a dignidade e liberdade,
sempre visa o bem déle e procura dispó-lo á comunháo mais plena
de sentimentos e conviccóos...
A Igreja deve estar pronta a manter contato com todos os homens
de boa vontade. dentro e fora do seu ámbito próprio.
Ninguém é estranho ao seu coracáo. Ninguém é indiferente ao
seu ministerio. Ninguém, se nao quer, é seu inimigo. Nao é em váo
que a Igreja se diz católica. Nüo é em váo que está encarregada de
promover no mundo a unidade, o amor e a paz».

É realmente desejável o diálogo entre as diversas corren-


tes de pensamento da atualidade. Nao se deve esquecer, po-
rém, que o diálogo dos cristáos com o marxismo se torna
assaz difícil, pois há oposigáo radical entre a filosofía do
comunismo (que é essencialmente atéia, materialista) e a
filosofía crista. Além do que, sabe-se que a ética marxista
aceita os meios violentos e fraudulentos, desrespeitádores da

— 308 —
«AS SANDALIAS DO PESCADOR» 37

dignidade humana, para conseguir as suas finalidades. A ética


crista, ao contrario, prega honestidade e respeito á pessoa
humana, que é dotada de liberdade.
2. Note-se ainda: a Igreja está disposta a promover o
bem temporal da humanidade, associando seus esforcos aos
de homens ou sociedades náo-cristáos (contanto que isto nao
acarrete confusáo da fé ou confusáo doutrinária).
O Papa Paulo VI, na sua encíclica «Populorum Progressio»,
em 1967, elogiou os bispos do Chile que se.despojaram de tér
ras da Igreja para auxiliar as populagóes subdesenvolvidas
(cf. tf> 32).
Ainda há poucas semanas, na audiencia geral de 26/111/
/1969, o S. Padre Paulo VI anunciou que acabara de criar
um fundo monetario para favorecer o desenvolvimento da
América Latina. Eis o teor de suas palavras:

«Neste segundo aniversario da encíclica 'Populorum Progressio'


e na perspectiva de Nossa viagem a América Latina, decidimos criar
um fundo especial para ajudar, tanto quanto Nos é possível, o desen
volvimento désse caro continente. Ésse fundo trará o nome 'Fundo
Populorum Progressio'.
Estamos felizes por poder transmitir Nossas saudacfles ao Dr. Fe
lipe Herrera, presente a esta audiencia, acompanhado de seus colabo
radores. O Dr. Herrera terá a .responsabilidade de administrar ésse
Fundo om vista do melhor servico de Nossos irmáos da América La
tina. Somos-lhe gratos por ter colocado ao servico do Nosso projeto
a organizacSo que ele dirige.
Ésse Fundo servirá, em primeiro lugar, para ajudar os 'campe
sinos' da Colombia, na reforma agraria désse país, que tivemos a
alegría de visitar.
Possa essa modesta contribuicáo ser sinal concreto do apelo que
Cristo Nos dirige para socorrer aos que sofrem. Possa também ser um
encorajamento para todos aqueles que trabalham no desenvolvimento
dos povos, no seio da grande familia humana» UL'Osservatore Ro
mano*, od. francesa. 4/IV/69. pág. 1).

A imprensa no Brasil deu a saber que, para constituir tal


fundo monetario, o S. Padre vendeu valioso edificio da Santa
Sé em Paris, ficando a importancia depositada no Banco
Interamericano de Desenvolvimento.
Deve-se, porém, lembrar que a missáo da Igreja nao é
própriamente temporal ou horizontal: Cristo lhe confiou, antes
do mais, embora nao exclusivamente, a tarefa de comunicar
aos homens a Boa-Nova da salvacáo eterna e fazé-los viver
dessa mensagem; é a esta obra que se há de dedicar zelosa-
mente a Igreja; o temporal é, para os cristáos, fungáo do
espiritual e eterno. Por isto nao se pode aferir a fidelidade
da Igreja a Deus e aos homens segundo o seu empenho em

— 309 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 4

prol do desenvolvimento material da humanidade. O cristáo


sabe que, além do pao para o corpo, existe o pao da alma
(a verdade de Deus, que é vida); sabe também que o homem
de hoje nao tem menos fome ou necessidade désse pao sobre
natural do que do pao natural.
É preciso outrossim levar em conta que, para exercer a
sua missáo salvífica (que toca o íntimo das consciéncias), a
Igreja precisa de autonomía política; é necessário que o Papa
se possa comunicar com os fiéis esparsos pelo mundo inteiro,
sem estar sujeito á interferencia de potencias estranhas. Por
isto nao puderam os Pontífices, após a tomada de Roma
(1870), renunciar ao Estado Pontificio (ainda que éste se
tornasse bem reduzido, como realmente é hoje). Seria utopia
pretender que a Igreja cumpra a sua missáo junto a 500 mi-
Ihóes de homens espalhados por todo o orbe sem dispor de
algo dos bens materiais déste mundo; é sempre em dependen
cia da materia que os homens vivem na térra e realizam seus
ideáis.
No filme de Morris West, o Cardeal Kiril afirma de certa feita,
referindo-se a Sibéria: «Aceito o país onde há pao, trabalho e digni
dade». Seria isto a insinuacño de que o Cristianismo pode aceitar o
regime marxista? Pergunta-se, porém: que é o respeito á dignidade
humana, se nao incluí respeito a liberdade dos cidadáos? Nao há
dignidade sem liberdade; esta é apregoada pela «Declaracáo dos Di-
reitos do Homem» promulgada pela ONU em 1948. Ora na Rússia a
dignidade humana nao conhece o devido uso de sua liberdade.

2) Aparato e sitnpticidade no Vaticano

1. As cenas do filme póem em realce exagerado o apa


rato das instalagóes e dos costumes da Cidade do Vaticano.
Incutem o preconceito de que lá existem luxo e fausto. Na
verdade, houve tempos (principalmente os da Renascenga)
em que os Papas e Cardeais tomavam o aspecto de senhores
déste mundo; deu-se assim um desvirtuamento do espirito
religioso (a que todo ser humano, alias, está sujeito). Con-
sidere-se também que até o século passado (1870) o Sumo
Pontífice era responsável por extensos territorios na península
itálica e devia, até certo ponto, fazer as vézes de senhor poli-
tico, aceitando o aparato que decorre desta funcáo; muitas das
cerimónias ou dos hábitos eclesiásticos que podem parecer
estranhos ao observador moderno, eram outrora perfeitamente
compreensíveis e justificados; exprimam a mentalidáde da
época e nada tinham de desconcertante.
Atualmente, embora a senhoria temporal do Papa esteja
quase extinta, ainda restam no Vaticano costumes da Idade

— 310 —
«AS SANDALIAS, DO PESCADOR» 39

Media e dos séculos posteriores, costumes que tiveram sua


razáo de ser outrora, boje, porém, pouco ou nada significam.
Sabe-se quanto os Papas recentes se tém esforcado por dimi
nuir ou extinguir o aparato dos trajes e cerimoniais; todavía
nao é repentinamente que se mudam instituigóes plurissecula-
res. Muitas vézes mesmo, a mudanga nao depende apenas do
Sumo Pontífice, mas de um conjunto de fatores que nao podem
ser modificados como seria para desejar.
2. Chama a aten-jáo, no filme, a popularidade do Papa
Kiril: veste-se de batina préta e percorre o Trastevere, pres
tando servigo aos necessitados. — Éste trago é simpático;
todavía, nao deixa de parecer um pouco utópico. O Papa
Joáo XXm certa vez também se vestiu de préto e saiu incóg
nito. Em outras ocasióes, ésse Pontífice deixou o Vaticano
para visitar pessoas ou instituigóes necessitadas. Paulo VI tem
desenvolvido tal praxe: nao raro dirige-se a lugares pobres a
fim de levar urna palavra de reconforto aos enfermos e indi
gentes. É difícil, porém, que as saídas do Papa se fagam «in
incógnito»; é impossível evitar as manifestagóes de aprégo e
carinho ou, ao menos, de curiosidade que os fiéis e a imprensa
costumam realizar. O Papa realmente nao pertence a si; ainda
que deseje proceder e aparecer em público como quaJquer
outro cidadáo, isto lhe é vedado pelas condigóes do seu cargo
e pelas reagóes espontáneas do povo católico. A figura do
Papa ideal ou santo nao pode impedir os testemunhos de es
tima que os fiéis lhe dedicam; nao é o Papa que exige tais
testemunhos, mas é a fé dos seus filhos espirituais que os
presta espontáneamente.

A propósito veja-se o depoimento de Raulo VI a respeito da «sedia


gestatoria» em «P.R.» 109/1969, págs. 42s.

3) A figura de Télémond (Teilhard)

Um dos personagens mais relevantes do filme, ao lado do


Papa Kiril, é o P. Télémond.
Através dos tragos désse personagem, deve-se reconhecer
a figura histórica do P. Teilhard de Chardin, jesuíta falecido
em 1955. Teilhard, depois de terminar os seus estudos teoló
gicos, dedicou-se á zoología e á paleontología, procurando
envolver mima grande síntese os conhecimentos religiosos e
científicos de seu tempo; esforgou-se por propor a fé católica
em termos modernos, criando até um vocabulario próprio
(«cerebralizagáo, cefalizagáo, noosfera, Ponto ómega...»).
Todavía nao foi muito claro em suas exposigóes, de modo que

— 311 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 4

se viu mais de urna vez censurado por seus Superiores reli


giosos. Teilhard nao era teólogo nem filósofo por profissáo,
mas, mais própriamente, um poeta místico, desejoso de apre-
sentar a todos os homens a fé crista de maneira original e
atraente; é possivel que o sabio jesuíta nunca tenha chegado
ao termo definitivo de suas reflexóes.
Teilhard morreu em santa paz, como jesuíta fiel á sua
vocacáo dentro da S. Igreja. Após a sua morte, um comité
de amigos de renome internacional publicou os escritos que
Teilhard havia deixado sob forma de artigos, apostilas, cartas
ou estudos inacabados; suas idéias, assim divulgadas, suscita-
ram imediatamente a grande simpatía de muitos leitores e
admiradores, como também a oposigáo de filósofos e teólogos
abalizados. Em conseqüéncia, a Congregagáo do S. Oficio em
Roma publicou duas advertencias (em 1958 e 1962, respecti
vamente) a respeito das obras de Teilhard, dando a saber
que nao podiam, ser tidas como isentas de perigos e erros
doutrinários. Nao obstante, Teilhard de Chardin tem sido um
dos autores prediletos de certas correntes católicas.
É o que explica, desempenhe o P. Télémond um papel
de tanto realce no filme de Morris West: vem a ser secretario
do Papa Kiril. O P. Télémond professa teses realmente ambi
guas, do ponto de vista católico: «o homem ó servo de sua
historia e deve-se libertar como se Cristo estivesse longe ou
distante»; Télémond eré no mundo como se éste fósse algo de
absoluto. Cristo e o mundo se sobrepóem (ou se identificam)
sob a forma do «Cristo cósmico». Télémond vem a ser assim
o porta-voz de um Cristianismo empolgado pelas realidades
terrestres mais do que pelas invisiveis e eternas; poderia falar
assim o Cristianismo secularizado, para o qual construir a
Cidade do Homem equivale sem mais a construir o reino de
Deus.
Télémond aparece finalmente como vítima da inveja do
Cardeal Leone (Ottaviani), morrendo de dor moral em con
seqüéncia da condenacáo que o S. Oficio lhe infligiu. — Eis
outro traco tendencioso do filme. Nem a pessoa de Teilhard
nem as suas obras foram explícitamente condenadas pela
S. Igreja; houve apenas advertencias dirigidas aos fiéis, a fim
de que nao se deixassem iludir por quanto há de ambiguo,
incompleto ou mesmo erróneo nos escritos do jesuíta francés.
Ñas obras de Teilhard existem realmente proposicoes que
merecem reservas por parte dos bons teólogos; as adverten
cias do S. Oficio, longe de ter sido inspiradas por mesquinhez,
foram justas e prudentes.

— 312 —
«AS SANDALIAS DO PESCADOR» 41

Nao se pode, porém, deixar de reconhecer que as formu-


lagóes deixadas por Teilhard patenteiam um pensamento oti-
mista e confiante no futuro. Esta nota entusiasma, por certo,
o leitor; todavía nao o deve fazer esquecer que é impossíveí
crer no mundo como em algo de absoluto ou como numa
realidade que nao conheca a degradagáo do pecado e a neces-
sidade da Redeneáo e da graga de Cristo, as quais vém pela
Cruz e o sofrimento. O cristáo nao pode ser progressista como
quem admite simplesmente que o mundo evolui de bem para
melhor; antes, há de levar em conta a ordem moral, onde
existiu e existe o pecado. Se nao fósse a salvagáo gratuita
trazida por Cristo, ultrapassando as exigencias do homem, o
género humano nao teria perspectivas de verdadeira vida e
felicidade. O humanismo cristáo é um humanismo humilde,
que nao dispensa a renuncia e o espirito de mortificagáo em
relagáo 'as paixóes e tendencias desregradas da natureza. Em
caso contrario, torna-se pagáo ou semi-pagáo, como foi o caso
de humanistas do século XVI.
A respeito de Teilhard de Chardin, cf. «P.R.» 89/1967,
págs. 189-198; 9/1968, págs. 351-357.

4) Liberdade Religiosa

A condenagáo de Télómond, no filme, suscita, entre os


seus amigos, urna observagáo: o Concilio do Vaticano II reco
nheceu a liberdade de consciéncia para todos os homens; por
conseguinte, injusta foi a decisáo do S. Oficio contra o secre
tario de Kiril.
Na verdade, o Concilio do Vaticano II reconheceu própria-
ménte o direito á Liberdade Religiosa, direito assim concebido:
A todo homem deve ser assegurada a plena isencáo de
coacáo para que possa julgar o problema religioso («Existe
Deus ou nao? Caso exista, qual a verdadeira Religiáo?») e
optar pela resposta que lhe parecer verídica.
Nenhum outro homem nem sociedade alguma (Estado
civil ou Igreja) tem o direito de exercer pressáo sobre alguém
para que professe seja o ateísmo, seja tal ou tal forma de
Religiáo. Urna vez feita a sua livre opgáo religiosa (certa ou
errónea), o ser humano deve ser respeitado em sua decisáo,
de modo que ninguém o há de coagir a renunciar ou mudar
de atitude diante do problema de Deus. Embora o erro nao
tenha direitos e deva ser combatido, a pessoa que erra tem
direitos; ela pode e deve ser esclarecida a respeito de suas
falsas concepcóes, nunca, porém, violentada por causa délas.

— 313 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969, qu. 4

O Concilio do Vaticano II promulgou a sua Declaragáo


sobre a Liberdade Religiosa tendo em vista principalmente a
pressáo exercida por certas formas de Govérno (extrema
esquerda ou extrema direita, nacóes musulmanas) sobre os
seus súditos no tocante a Religiáp. É de notar que, ao fazer
tal Declaracáo, o Concilio quis previamente afirmar que todos
os homens, em virtude de sua dignidade mesma, tém a obri-
gagáo de «procurar a verdade, principalmente a que concerne
a Religiáo; estáo também obrigados a aderir á verdade conhe-
cida e a ordenar toda a sua vida segundo as exigencias da
verdade» (Declaragáo «Dignitatis Humanae» n* 2).
Mais aínda: o Concilio, intencionando afirmar a liberdade
religiosa de cada homem frente as sociedades civis que o
cercam, nao quis proclamar «liberdade dentro das comunida
des religiosas». Em outros termos: o Concilio excluiu que,
dentro das sociedades religiosas (ou Igrejas), os membros
respectivos tenham a liberdade de pensar ou fazer o que quei-
ram; em toda sociedade religiosa, principalmente na Igreja
Católica, deve haver obediencia alimentada pela fé.
Vé-se, pois, que o Concilio nao intencionou opor-se á
vigilancia que o magisterio da Igreja deve exercer em vista
da conservagáo integra e pura da verdade revelada por Cristo.
Tal vigilancia, como se compreende, há de ser criteriosa e
movida por intencóes puras, como de fato se deu no caso de
Teilhard de Chardin.

3. Finalizando

Em suma, as consideracóes que acabam de ser propostas


sugerem a seguinte conclusáo:
A tese central do filme «As Sandalias do Pescador» é
expressao de certo idealismo^ que faz eco as aspiragóes da
própria Igreja: dialogar com todos os homens, ser solidaria
com os mesmos, interessar-se pela pobreza (espiritual e ma
terial) da humanidade.
Todavia esta bela tese é sugerida pelo filme em termos
de certa utopia como também em tom de crítica severa e,
por vézes, injusta as instituigóes da Igreja. A visáo de fé
lembra sempre aos cristáos que a finalidade da Igreja é, antes
do mais, religiosa e sobrenatural — o que nao quer dizer
que a Igreja se desinteresse das necessidades temporais dos
homens.

— 314
CORRESPONDENCIA MIÚPA 43

CORRESPONDENCIA MIÚDA
Tamy (Florianópolis): «Há hoje em dia discussóes e estudos in
tensos entre teólogos sobre certos pontos doutrinais da Igreja Cató
lica. Em todos os Jados, há dúvida. E eu me pergunto: Tenho eu plena
certeza de que minha religiáo é, de íato, a verdadeira?»
— O Concilio do Vaticano II pediu aos teólogos procurassem
exprimir a doutrina católica de maneira clara e compreensível aos
homens de hoje. Em conseqüencia, os estudiosos vém desenvolvendo
arduo trabalho. Varias reformulacñes sao muito felizes, principalmente
as que se referem á S. Liturgia. Acontece, porém, que certos estu
diosos, no afá de revisionar, concebem proposicdes ou hipóteses que
se referem nao a pontos acidentais da mensagem católica, mas aos
próprios artlgos da fé: assim, por exemplo, á virgindade de Maria, á
existencia de anjos e demonios, ao pecado original, á confissáo auri
cular. .. Ouvem-se sentencas revolucionarias a respeito. — Ora tenha-
mos consciéncia de que o Credo nao mudou; Paulo VI, aos 307VI/68,
exprimiu-o de novo como sempre íoi professado; os íiéis católicos,
no momento presente, tém ai a exposicáo segura da fé católica. É
também de notar que os teólogos (embora possuam erudicáo) nao
pertencem a Igreja decante, mas, sim, á Igreja discente. Nao é a éles
que compete exercer o magisterio oficial e infalível da Igreja, mas
aos Bispos; os teólogos assessoram valiosamente o corpo episcopal,
mas estáo sujeitos aos Bispos, que Cristo instituiu como mestres em
sua Igreja (cf. At 2028-31).
O que está mudando na Igreja, sao proposicoes acidentais. Tais
mudancas, em vez de depor contra o Catolicismo, recomendam-:io,
pois mostram que está vivo e nao mumificado; a Igreja tem de tomar
novas expressdes para poder realizar a sua missáo entre os homens.
Estejamos certos, porém, de que a Igreja nao está em situacSo de
dúvida doutrinária, nem está retocando as proposicoes de fé, que Ihe
vém diretamente de Cristo.
O Cristianismo, para provar que é a Religiáo verdadeira, apre
sen ta, entre outros documentos, a Ressurreicáo de Cristo (sinial de
Joñas, conforme Mt 12, 39s). Nao se diz, de algum fundador de Reli-
giao, que tenha ressuscitado. Ora a proposicáo da ressurreicao de
Cristo parece corresponder a um fato inconcusso; com efeito, a critica
até hoje nao conseguiu explicá-lo como produto de fraude, alucinacáo
ou erro qualquer de Cristo ou dos discípulos de Cristo. Cf. «P.R.»
112/1969, pág. 148-159. A ressurreicáo coloca Cristo numa posigáo de
autoridade única em relac&o aos domáis filósofos e mensageiros que
apareceram na historia. — Mais aínda: considere que cada seita pro
testante tem seu fundador próprio; nao comeca com Cristo, mas com
determinado cristáo do século XVI para cá. Nao há razao, portante,
para duvidar da autenticidade do Catolicismo.

£dison (Belo Horizonte): «É possivel viver sempre alegre, mesmo


um católico praticante como eu, sem ter a certeza da eterna salvacáo
nem para mim, nem para os meus filhos, parentes e amigos?»
— Na verdade, ninguém pode estar seguro de sua salvacáo eterna,
visto que somos sempre sujeitos a falhar enquanto peregrinamos
neste mundo.
Nao obstante, o fiel católico nao deve duvidar de que Deus Ihe
dará tudo para que chegue á" visáo beatifica. Quanto mais vivemos
como filhos de Deus, tanto mais devemos nutrir confianca no Pai.
A habitual uniáo com Deus nos dá a certeza moral de que esta vida

— 315 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 115/1969

terminará no íeliz encontró face a lace. Veja os escritos de Sao


Paulo: embora admita a possibilidade da reprovagáo eterna (cí. 1 Cor
9,27), parece contar sempre com a sua salvagáo: «Para mim, o viver
é Cristo e o morrer é lucro... Desejo partir para estar com Cristo,
o que é incomparávelmente melhor» (Flp 1,21-23). Cada fiel cristáo
pode e deve repetir as palav.ras do Apostólo.
Quanto aos nossos familiares, é certo que cada um é responsável
por si. Todavía podemos e de vemos ajudá-los a que se afastem do
pecado e vivam fiéis a Deus. de modo que se preparem para a visáo
celeste. Ainda que tais pessoas se fechem á graca do Senhor, tenha-
mos confianca: oremos por sua salvaofio, e Deus, cedo ou tarde, lhes
ira ao encontró, ainda que .seja por vias ocultas. S. Mónica, após
longos anos de oracao, obleve a conversáo de sou filho Agosünho.
Por conseguinte, nao nos preocupemos demais com a hipótese da
ruina final, mas sejamoss ciosos de viyer 100% a nossa vida crista;
disto resulta profunda e confiante alegria!

Leitora assídna (Framca): «Até onde é válida a aflrmagáo: 'A


Igreja no Bnasii é a CNBB'? As orientacóes de um bispo que nao
pertenca á CNBB, nao tém valor? A CNBB é infalível?»
— Nao se pode dizer que a Igreja no Brasil seja apenas ou pró-
priamente a CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil). A
Igreja compreende todo o povo de Deus (leigos. religiosos e clérigos);
cf. Constituicáo «Lumen Gentium», c. 2, do Concilio do Vaticano II.
Tenhamos viva a consciéncia de que a Igreja pousa sobre cada cris
táo balizado.
Todos os Bispos do Brasil pertencem oficialmente á CNBB, orga-
nizacáo esta que facilita ¡a missfio pastoral dos Bispos, pois coordena
trabalhos e forneco subsidios...
Quando a CNBB se pronuncia, procura representar o pensamento
de seus membros. Todavía, já que suas deelaraeñes nao sao infaliveis
(a nao ser quando repetem as solenes verdades do Credo e da Moral),
pode-se compreender que um ou outro Bispo, com razóes válidas, dis
corde de tais pronunciamentos. Os assuntos pastorais sao orientados
por um conjunto de virtudes, entre as quais está a prudencia; ora a
prudencia é a virtude mais pessoal que possa haver; depende muito
da formagao própria de cada um e das circunstancias em que cada
qual vive. Por isto, pode acontecer que, sem pecado nem escándalo,
algum Bispo nao acompanhe tal ou tal declaragáo de seus colegas
no episcopado.

Anónimo (Guanabara): 1) «O corpo, depois da morte, ainda possui


energía, fórga?»
— Após a morte real, nao. Após a morte aparente, sim. Cf. «P.R.»
105/1968, pág. 357-367.
2) A .respeito de congelacáo e hibernagáo (que sao monalmente
lícitas e nao atentam contra a fé crista), cf. «P.R.» 75/1964, páginas
137-143.
3) «A possivel produeáo da vida em laboratorio nao contradiz a
idéia da criagáo?»
— Nao. Distingamos: a vida vegetativa (a da planta) e a sensi
tiva (a do animal irracional) tém principios vitáis meramente mate-
riáis; portante a sua produgáo pode estar contida dentro da poten-
cialidade da materia criada por Deus. A vida humana ou intelectiva,
porém, depende de principio vital imaterial ou espiritual (alma); na

— 316 —
melhor das hipóteses, os dentistas poderáo produzir um corpinho
humano, ao qual Deus podería infundir urna alma espiritual para que
se tornasse verdadeiro ser humano. Cf. «P.R.» 3/1957, pág. 3s.
4) A ressurreigáo dos corpos nao exige que se recolha a materia
do cadáver dispersa pelo mundo inteiro. Basta a mesma alma espiri
tual unida a qualquer materia pana que haja o corpo humano cor
respondente a tal alma. Cf. «P.R.» 25/1960, pág. 51-57.
Estéváo Bettencourt O.S.B.

RESENHA DE MVROS

A rcvo!«cao da arte moderna, por Alfredo Lage. — Editora Agir,


Rio de Janeiro 1969, 140 x 210 mm 276 pp.
O aulor analisa o espirito que move a arle moderna desde o
romantismo alé nossiis diiis. Verifica que a arte contemporánea se
ressente áo influxo das ideologías modernas fortemente marcadas pela
fascinacáo da técnica e do progresso material. Hoje em dia a cultura,
em certos países, é utilizada para fins políticos e ideológicos; em outras
nagóes, ala é «massificada» pelos «mass media» ou meios de comu-
nicagáo de massa. Em conseqüéncia, a arte moderna rompe com o seu
passado (em que se consideravam muito mais o homem e seus valores
íntimos), passa por urna revolugáo que significa recomégo pouco alvis-
sareiro, segundo o autor.
Para obviar aos males assim apontados, A. Lage preconiza a
revalorizagáo das disciplinas humanistas na formagáo dos homens:
«É inadmissível que o ingresso em grande número de carreiras pú
blicas — carreiras políticas, bem como as mais elevadas fungóes de
maguo humanista, isto é, por um conhecimento em primeira mao da
sociedade política, das suas raízes e formas coletivas: ... língua, reli-
ordem administrativa — nao seja condicionado por urna sólida íor-
giño. postulados moráis, filosofía política...» (p. 275, n. 2).
O livio é cíe alto nivel filosófico, merecendo a atenc.no e o apiéco
dos estudiosos.
O anuncio do Reino de Deus. ReflexOes sdbre as parábolas, por
Agnelo Dantas Barreto. — Editora Vozes, Petrópolis 1968. 135x210
mm, 126 pp.
O livro apresenta consideragóes sugeridas pelo texto de trinta e
cinco parábolas do Evangelho, tendo em vista círculos bíblicos, ou seja,
a reflexáo comunitaria sobre a Palavra de Deus. índole fortemente
pastoral. A exposigáo dos temas é didática. além de repassada por
calor e dinamismo sadios.
■Sobra o probfama do s«r. O cominillo do Campo, i«r Martín Ilei-
deggíjr. Traducáo do Ernil'Jo StRin. Livraría Duas CMad«s, Sao
Paulo 1969. 140 x 210 mm, 72 pp.
Num só volume acabam de ser editados dois escritos do filósofo
existoncialista Martín Heidegger. Out.ros do mesmo autor se lhes se-
guirao, a finí de que os estudiosos de filosofía no Brasil tenham fácil
acesso aos documentos mais expressivós do pensamento contempo
ráneo.
E. B.

Aos nossos leitores piedimos atengáo para o novo enderéco


da Administragáo de «P.R.»:
RÚA SENADOR DANTAS 117, s. 1134, RIO (GB)
NO PRÓXIMO NÚMERO :

Inseminacáo artificial

Supersticoes e racionalismo em nossa época ■. ' ■

"*"* «Cassacao» e «Confinamento» dos Santos ^ ■ .


.>»♦'-. ' Educacao sexual ñas escolas »¡. ..-. i-

j :
.'.ai-

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Número avulso de qualquer mes e ano..... ■ .••■ NCr$ 1,50
Número especial de abril• de' 1968>'.:.;..'.: NCr$ 3,00
Volumes encadernados: 1957 a 1963 (prego unitario) .. NCr$ 10,00
Volumes encadernados: 1964 e 1967 (prego unitario) .. NCr$ 15,00

Volume encadernado de 1968 NCr$ 17-0ü


índice Geral de 1957 a 1964 NCr$ 7,00

índice de 1967 NCr* "»


Encíclica «Populorum Progressio» NCr$ 0,50
Encíclica «Humanae Vitae» (Regulagáo da Natalidade) NCr$ 0,70

Avisamos aos nossos leitores que se encentra á dispo-


sicao o índice de «P.R.» 1968. Prego: NCr$ 1,00.

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