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Universidade Estadual de Campinas – 1º a 7 de agosto de 2005

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Fotos: Antoninho Perri

O futebol como
O professor Jocimar Daolio,
da FEF: abordagem baseada
fenômeno social
na antropologia social

CARMO GALLO NETTO


carmo@reitoria.unicamp.br

`A s vésperas do último jogo das


eliminatórias para a Copa do
Mundo de 1994, contra o U-
ruguai, um jornal levou o ex-goleiro
Barbosa – estigmatizado porque te-
ria falhado na final de 1950 contra o
Uruguai, que ganhou a Copa em ple-
no Maracanã – para uma conversa
com Taffarel. O encontro foi aborta-
do pelo treinador Carlos Alberto Par-
reira, receoso de que o goleiro da se- Busto de Moyses Lucarelli, patrono
leção brasileira da época fosse “con- da Ponte Preta: mudança de posição
taminado pelo azar”. No Moyses Lu-
carelli, estádio da Ponte Preta, em
Campinas, o busto do patrono foi entender e justificar.
mudado de posição para que não fi- O professor considera que a im-
casse de costas para o campo, ao que previsibilidade do futebol incentiva
se atribuía o insucesso do time. São explicações de senso comum em ter-
incontáveis os casos de superstições mos de sorte ou azar, desígnio divi-
que permeiam o futebol no Brasil. no, destino, milagre, processo que se
Por que a superstição resiste no fu- mantém a partir do mecanismo da
tebol brasileiro apesar de todo o a- crença, que se perpetua devido à
vanço científico e tecnológico? eficácia simbólica.
No Brasil, o menino ao nascer ga-
nha nome, religião e um time de fu- Torcida e violência – Insistindo
tebol. Mal começa a andar e já chu- na linha de análise que permeia to-
ta bola com o uniforme do clube de dos os textos, Daolio diz que o ato de
preferência. Inicia-se assim a cons- torcer, como o de jogar futebol e de
trução social do ato de torcer no fu- jogar com um certo estilo não é ge-
tebol, do que resulta um fato sócio- nético, mas social. Segundo ele, o
histórico que mescla a identidade futebol permite uma violência sim-
pessoal e coletiva do chamado tor- bólica, absolutamente saudável. Ela
cedor. Mas como é iniciado esse ri- se manifesta por meio de gestos, gri-
tual de passagem? tos, xingamentos, vaias, canções,
Não faz muito tempo os cronistas hinos, é emocionalmente sadia, gos-
esportivos distinguiam com ênfase tosa e agradável e, diferentemente
o futebol-arte, que seria o praticado do que ocorre no cotidiano, aceita
no Brasil, do futebol-força, caracte- nos estádios. Tem como elemento
rístico dos países europeus, pois Eu- básico a brincadeira. “Em que outro
ropa e América do Sul constituíam momento da nossa vida isso é per-
os dois grandes centros futebolísti- mitido?”, pergunta.
cos. O futebol-arte se distinguiria Daolio lembra, porém, que há um
pela beleza, floreios, dribles, “bici- limite em que a violência simbólica
cletas”, toques de calcanhar, e o fu- resvala para a violência real, que
tebol-força seria jogado por atletas gera confrontos violentos. O grito de
fisicamente bem constituídos, que guerra vira ação. Para ele o que se
usam o corpo e uma certa violência, deveria perguntar é o que está acon-
e que se caracterizariam pela “falta um dos autores. A coletânea “Fute- como um dado da sociedade, como vel discutir a superstição no futebol tecendo na sociedade brasileira que
de cintura”, como se dizia. Ao lon- bol, cultura e sociedade” discute o um fenômeno sócio-cultural. O eixo brasileiro se o olharmos como fenô- faz com que o limiar entre o simbóli-
go dos anos o futebol se disseminou futebol com base em uma aborda- comum é a dimensão sociológica e meno sócio-cultural que expressa e co e o real seja ultrapassado. E ensaia
praticamente por todos os países dos gem sócio-antropológica. Parafrase- antropológica e o fato de resultarem reflete a própria condição do ser hu- uma resposta: “Muita gente não se
continentes, estabeleceram-se inter- ando o antropólogo americano Clif- de trabalhos desenvolvidos na Facul- mano nacional: “Somente com uma sente parte de um grupo, falta-lhes um
câmbios de jogadores e técnicos e ford Geertz, Daolio afirma que “o dade de Educação Física da Unicamp, abordagem baseada na antropologia sentimento de pertencimento. Com
observaram-se múltiplas influências, futebol é, ao mesmo tempo, um mo- esclarece Daolio. Embora resultem de social é que se pode compreender o família desestruturada, sem emprego
de forma que logo emergiu a questão: delo da sociedade e um modelo para trabalhos acadêmicos, os textos utili- futebol como parte integrante da vida e dinheiro, sem perspectivas, sem me-
qual seria hoje o estilo predominan- uma determinada sociedade apre- zam linguagem direta e acessível. dos brasileiros”. Deixando de lado canismos de cidadania, são tênues os
temente brasileiro? sentar-se” e considera ainda que “no fatores biológicos e funcionais, ele limites do matar ou morrer e daí resul-
As rivalidades entre torcidas e su- Brasil o futebol ganha relevância por Superstição – Jocimar Daolio a- credita o sucesso do futebol no Brasil tam cenas impressionantes, prota-
as conseqüências em espetáculos de ser o principal esporte nacional, tan- firma que a superstição é um fenô- a uma combinação entre seus códi- gonizadas por pessoas que depois da
futebol constituem preocupação das to que aqui a expressão ‘jogar bola’ meno impregnado no povo brasilei- gos e o contexto cultural brasileiro. derrota do seu time não conseguem
autoridades que, com o advento das diz respeito ao futebol e a nenhum ro, que se manifesta no futebol ou O futebol serviria como uma espé- voltar à vida, à realidade”.
torcidas organizadas, reservam-lhes outro esporte”. talvez preferencialmente nele: “O cie de linguagem vital por meio da Para Daolio a violência no futebol
locais bem distintos nos estádios. O primeiro texto da coletânea dis- futebol de certa forma favorece esse qual questões profundas da socieda- pode ser encarada sob vários focos.
Que fatores interferem na constru- cute o fenômeno da superstição; o tipo de comportamento, porque é de seriam expressas, como o orgu- Pode-se considerá-la inerente ao fu-
ção dessa rivalidade e como ela se estudo que lhe segue mostra a cons- um jogo que utiliza os pés e, por isso, lho, o luto e a euforia. tebol. Então bastaria acabar com ele
expressa entre torcedores de duas trução social do ato de torcer no fu- é menos preciso. Além disso, a di- Adotando conceitos das ciências para extingui-la, o que considera
equipes do futebol nacional? tebol, com base na torcida do Vasco mensão do campo aumenta a impre- humanas, o pesquisador considera uma visão simplista. Para ele seria
A rivalidade entre as torcidas gera da Gama do Rio de Janeiro; o tercei- cisão. Os placares são em geral pe- que a cultura é um processo pelo acabar com uma prática que pode
muitos casos de violência, resultante ro trabalho analisa as características quenos e suscetíveis a improbabi- qual os seres humanos orientam e estar violenta mas não foi feita para
das manifestações exacerbadas dos que distinguem o binômio futebol- lidades. Um time tecnicamente infe- dão significado às suas ações por ser violenta, a começar por suas re-
torcedores em estádios de futebol arte/futebol-força, buscando com- rior pode utilizar um esquema total- meio de manifestações simbólicas e, gras extremamente éticas. Outro
em todo o mundo. Quais são os ele- preender o estilo do futebol brasilei- mente defensivo e marcar um gol nesse contexto, o futebol pode ser olhar julga que existe violência no
mentos da violência presentes nos ro; o texto seguinte aborda a rivali- em lance fortuito, às vezes nos últi- entendido como dotado de um con- futebol por causa de alguns “margi-
espetáculos futebolísticos? dade entre torcidas, tomando como mos minutos. A imponderabilidade junto de símbolos que expressam a nais” que freqüentam os estádios.
Os meninos jogam bola e as meni- base os simpatizantes de Ponte Preta leva à crença na sorte e no azar e ativa sociedade brasileira. “Ora, se o bra- Então bastaria prendê-los ou, como
nas brincam de boneca. Por que no e Guarani, clubes de Campinas; o a superstição, impregnada no povo sileiro traz, em sua dinâmica cultu- prega parte da mídia, cobrar ingres-
Brasil o futebol se tornou espaço de estudo que segue discute a relação brasileiro, permeado pelo sincretis- ral, características mágicas, religio- sos mais caros, porque “marginal”
expressão masculina? do espetáculo futebolístico e a vio- mo religioso. O futebol é o terreno sas, supersticiosas, crendices e se o é também pobre e não vai poder pa-
Procuram dar respostas a estas lência; e a sexta abordagem tenta fértil para suas manifestações”. Dao- futebol expressa e espelha a cultura, gar. Seria uma forma de selecionar
questões seis estudos e pesquisas compreender os espaços sociais des- lio lembra que a incerteza dos resul- então, o futebol também apresenta as pessoas que vão aos estádios. “Is-
realizadas por docentes e alunos de tinados a homens e mulheres, esta- tados permite que sejam usados pela essas características”, Para ele uma so é preconceito. Não podemos des-
pós-graduação e graduação da Fa- belecendo um contraponto com o loteria e que o futebol é o único espor- das formas de expressão do povo colar o futebol da sociedade brasilei-
culdade de Educação Física da U- que ocorre na sociedade americana. te coletivo que se presta a isso, pois brasileiro se dá por meio de crenças ra pois o futebol é parte dela e como
nicamp (FEF), publicados em livro Os estudos não se atêm a regras, nos outros a equipe tecnicamente su- e superstições, que fornecem expli- tal devem ser considerados os fato-
recém-lançado e organizado pelo técnicas, sistemas de jogo, prepara- perior invariavelmente vence. cações sobrenaturais para proble- res que têm gerado a violência nos
professor Jocimar Daolio, também ção física, mas discutem o futebol Na avaliação de Daolio, só é possí- mas que o ser humano não consegue espetáculos futebolísticos”, diz ele.

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