Você está na página 1de 6

Eu Era Mudo e Só

INTERIOR
NOITE
CÂMERA FIXA

Fernanda e Manuel no quarto. Fernanda, de roupão azul, lê um livro sentada enquanto


Manuel a observa.

MANUEL (sentado na cama, olhando para Fernanda)


Você parece um postal. O mais belo postal da coleção Azul e Rosa. Quando eu era menino,
adorava colecionar postais.

Fernanda sorri enquanto passa para a próxima página, Manuel a responde com um sorriso.

MANUEL (sentado na cama, olhando para Fernanda)


Sublime

FERNANDA (ainda concentrada na leitura)


O que disse, meu bem?

MANUEL (olhando para o teto)


Acho que gostaria de sair um pouco

FERNANDA
Para ir aonde?

Manuel pensa um pouco e depois suspira com ar desapontado. Se levanta e vai em direção
à janela.
Fernanda intercala seu olhar entre o livro e o movimento de Manuel

MANUEL (olhando para o teto, fala em tom quase imperceptível)


E se não vê a sombra das minhas asas é porque elas foram cortadas.

FERNANDA (desviando o olhar do livro pra Manuel)


Que foi que você resmungou, meu bem?

MANUEL (olhando para Fernanda)


Nada, nada. É um verso que me ocorreu, um verso sobre asas.
FERNANDA (com cara de surpresa)
Engraçado, você não costuma pensar em voz alta.

Manuel faz cara de chateado. Morde os lábios como se estivesse impaciente.


Abre a janela com calma. Sente a brisa em seu rosto. Perde seu olhar no céu.

FLASHBACK

INTERIOR
DIA
CÂMERA FIXA

Jacó e Manuel conversam sentados à mesa de um bar vazio.

JACÓ (com cara de desapontado)


Então vai se casar... Sei que a solidão é dura às vezes de agüentar, mas se é difícil carregar a
solidão, mais difícil é carregar uma companhia, ela resiste, tem uma saúde de ferro! Tudo
pode acabar, mas a companhia permanece, vira qualquer coisa para não ir embora. Esposa
que mais parece amiga então, abominável! Fico arrepiado só de pensar nisso...

JACÓ (agora procurando pelo garçom, faz um sinal para que venha à mesa)
Vamos beber enquanto ainda podemos beber juntos.

O garçom chega à mesa.

JACÓ
Dos uísques por favor, com gelo.

O garçom sai para atender o pedido.

MANUEL (defensivo)
Você não conhece a Fernanda. Ela é sensível, generosa, jamais pensará em interferir na
minha vida, mesmo se eu deixasse!.

O garçom chega com as bebidas e serve Jacó e Manuel.

JACÓ (descontraído, bebendo um gole de uísque)


Mas é lógico, meu amigo. O processo não é bem assim com esse tipo de moça, e eu sei
muito bem do que estou falando.

Manuel faz que concorda, com jeito de envergonhado, desconfortável. Bebe o uísque num
só gole.

JACÓ (prosseguindo a fala, deixando o copo de uísque na mesa)


Das duas uma: ou ela faz aquela coisa de amigona e tal ou fica fora, Se fica fora, com o
tempo faz aquele jogo de inocente e quando a gente menos espera ficamos sem nos falar
por meses. Se for o outro caso, vai gostar tanto dos seus amigos que logo se deita com o
mais atraente. Ou as duas coisas...

FIM DO FLASHBACK

INTERIOR
NOITE
CÂMERA FIXA

FERNANDA (procurando algo com os olhos, ainda sentada)


Será que temos cigarros? Estes aqui estão velhos.

MANUEL (voltando o olhar subitamente para Fernanda, como se acordasse de um


transe)
Quais cigarros?

FERNANDA (apontando para o maço no travesseiro)


Estes aqui, faz tempos que você comprou.

Manuel se mostra indiferente. Se senta na cama e pega o jornal sem interesse nenhum em
lê-lo. Olha para Fernanda.

MANUEL
Fernanda, você lembra do Jacó?

FERNANDA
Como não lembraria? Era tão simpático.

MANUEL
“Era”... Você fala com se ele estivesse morto.
FERNANDA (sorrindo de leve, ironicamente)
Mas é como se estivesse mesmo, há tempos que não o vemos.

MANUEL (com jeito desapontado)


Pois é...

Manuel se esconde atrás do jornal, fingindo interesse nas notícias. Fernanda coloca o livro
no colo e olha para Manuel.

FERNANDA
Hoje você está cansado, né?

MANUEL (abaixando o jornal e olhando para Fernanda)


Cansado não, apenas sem ânimo.

FERNANDA (em tom de advertência)


Estava reparando: você anda esfregando muito os olhos, devia ir ao oculista.

Manuel dá um sorriso sem graça, com ar de impaciente. Volta a fingir interesse no jornal.

MANUEL (olhando para o jornal, distraído)


Eu era mudo e só na rocha de granito.

FERNANDA (rindo docemente, suspirando)


Me lembro de quando eu era menina e ouvi uma declamadora recitar esse verso numa festa
na casa de uma tia minha, foi tão divertido. Ela gostava de recitar isso e aquela outra coisa
ridícula, “se a cólera que espuma!”.

MANUEL (impaciente)
Ridícula porque? São poesias ótimas!

FERNANDA (lançando um olhar duro para Manuel, por cima dos óculos)
Ah, querido, não faça polêmica.

FERNANDA (se virando para Manuel, com ar boas notícias)


Tinha me esquecido, nossa filha Gisela vai ganhar uma medalha por seu inglês!

Manuel fica indiferente, Fernanda se decepciona e volta a seu livro.

FERNANDA (sem tirar os olhos do livro)


Cris passou ontem lá na loja, parecia preocupado com a compra dos tratores.
MANUEL (com jeito impaciente)
E o que aquele Zé ninguém entende de tratores?!

FERNANDA (brava)
Manuel!

MANUEL (em tom irônico)


Desculpe, meu bem, escapou. Mas é que ele fica falando como se entendesse, e não entende
é nada.

FERNANDA (olhando para Manuel por cima dos óculos, em tom de deboche)
E você, entende? Me recordo muito bem de quando foi pedir minha mão a papai. Ele
querendo que você, jornalista, se tornasse sócio dele e você disse com bastante clareza que
não entendia nada de tratores e detestava máquinas. Pelo interesse que mostrou quando
aceitou a proposta, não suponho que tenha aprendido muito nestes doze anos.

Manuel volta ao jornal, novamente impaciente, murmurando algo inaudível.

FERNANDA (abaixando o livro)


Quer ouvir música, Gisela trouxe alguns discos novos

MANUEL
Agora não, depois.

Manuel deixa o jornal na cama e pega uma revista. Vai em direção à janela, se encosta no
parapeito e antes de abrir a revista se depara com a cena de Fernanda lendo sob a luz do
abajur. Sorri alegre. Olha ao redor, suspira, abre a revista.

FERNANDA (cruzando os braços para se aquecer)


Pode fechar a janela? Estou com frio, já começou o inverno.

MANUEL (vislumbrado olhando para Fernanda)


Claro que sim, querida.

Fernanda sorri.

CLOSE EM MANUEL

Manuel se vira e olha para o céu como se se despedindo. Fecha a janela lentamente. Olha
mais uma vez para as estrelas e fecha a cortina, deixando apenas uma brecha.

Você também pode gostar