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O presente livro compée-se de trés partes. A primeira volta-se para a antropologia de Paulo, porque a intuicao do Apéstolo sobre o que a criatura humana pode deve ser 6 a base de toda a sua aproximacao. Isso envolve uma discussao de sua compreensio de Jesus Cristo, porque foi nele que Paulo encontrou o modelo histérico conereto de existéncia humana auténtiea. Vemos, entao, que adescri- cdo que Paulo faz da sociedade que encontrou pode ser aplicada com muito pouca modificagao ao nosso mundo contempordneo. Ora, seele viu os problemas que percebe- mos, ndo parece haver nenhum motivo para negar que as solucdes que deram certo para ele dariam certo para nés. A partir disso, a terceira parte apresenta a compreensio de Paulo referente as estruturas da existéncia crista auténtica no Corpo de Cristo. Bai que emerge a verdadei- ra natureza da comunidade crista, de que a liberdade é a caracterfstiea primordial. enous Munpuy-O'Connon, OP, 6 professor de Novo Testa- mento na Beole Biblique de Jerusalém desde 1967. Espe- cialista em estudos paulinos e nos manuscritos do Mar Morto, atMAs etic” wun ,0-AHdYuNW IWOXsr O1NVd 4d WHOLSVd VIDOTOdOULNV ¥ —dO ‘YON A ANTROPOLOGIA PASTORAL DE PAULO tornar-se humanos juntos _4 Dados niemaionals 4 Catlogagto na Pleat CIP) (Camara Brasileira do Livi, SP, Bras) "Murphy-0'Connor, Jerome, 1995- ‘Aantropologia pastoral de Paulo:tornar-se humanos juntos / Jerome Murphy- (0'Connor aduedo Jodo Rezende Costa; reviedo H. Dalboscol. ~ Sao Paulo: Paulus, 1994, — (Colegaa temas biblcos) ISBN 976-65-349-0000-0 1. Biba. NT. -Epistolas de Paulo - Critica ointorpretagto 2. Homom (Teologia cist) 8. Vida cist |, Tul, I, Série: tomas bibioos. 90-0256 cpp-227.06 Indices para catélogo sistematico: 4. Epistolas de Pauio:intorpretagéo o critica 227.06 2, Paulo: Epistolas: Interpretagao e cltica 227.06 Colagio TEMAS BIBLICOS + Israel no exifo, A. W. Klein + Aantropologia pastoral de Paul, J. M. O'Connor, op + Algreja doméstica nos escitos de Paulo, V. Branick JEROME MURPIHY-O'CONNOR, OP A ANTROPOLOGIA PASTORAL DE PAULO Tornar-se humanos juntos maulus “Tilo original Becoming human together - The Pastoral Anthropology of St. Paul {© Jerome Murphy-O'Connor - The Liturgical Press, Collegeville, Minnesota, EUA, 1982 ISBN 0-20458.075'5 Tradugio Jodo Rezende Costa Rovisto H. Dalboseo \mpressao e acabamento PAULUS deni 2 ecigao, 2007 YELM Ci $i BePBPCOS ¢ C2795, 13 5~ ° Roatan Ou, 28 paar jew 4117-081 Sao Palo (Bras Pax paeregear om GASOCS 7% fSt snupais com be , Gtona@penmeomar A NYMARLIEIE A INI isan o7e-ss-o4oocep0 “277 & © nena fee OS PASTHOS % Spey code, LIP | PREFACIO | \Conta-se de um velho e sabio rabi juden que se Ihe informou que havia pessoas que diziam que o Messias ja viera. Fle nfo respondeu nada, mas ‘oi ajanelae, abrindo- a, contemplou o mundo. Apés um momento, voltou mene- ando tristemente a cabeca. Se o Messias tivesse vindo deveras, as coisas haviam de ser diferentes, mas nada mudara. ~ Quando nés, eristdos, olhamos o nosso mundo, faze- mos a experiéncia de momentos de alegria e admiracao; sua duragao, porém, é pouca e sua pungéncia se intensi- fica por seu caréter de inesperado. Sao momentos que irrompem numa existéncia tediosa e sem sentido, ainda queestes momentos assegurema vitalidadedaesperanca, Apesar da onda de pessimismo, as pessoas se acotovelam junto & janela da promessa. Prosseguem sonhando com coisaa melhores, pais samente este afastar-sedarealidade torna a vida suportavel. “Ha cerea de dois mil anos, a Igreja vem pregando as boas novas de nova eriagio, de mudanga radical nas estruturas da existéncia humana Um sem-ntimero de homens e mulheres, dotados de boa vontade, talento e cnergia, dedicaram-se sem reservas a este servigo. No entanto, existe 0 que para demonstré-lo?/Muito pouco, infelizmente uma vez que desde muitas geracées osri comecaram a desenvolver uma teologia que desviou a 1 do resultado para 0 mero esforgal Pensow ve cer erradojulgar os outros em termos de seu éxitoem produzir mudangas. O fato de terem falhado em levar os outros a 5 real encontro com Cristo foi passando em siléncio em favor do aplauso pelos esforcos que fizeram. © resultado tltimo, mas légico, desta tendéncia cofisistiu no desenvolvimento de um conceito de cristia- nismo anénimo, em que todos eram considerados serem crictéos, quer o coubcesem ou nio, quer o negazeem ou nao. Os motivos que levaram a elaboracao desta teologia nao foram todos maus; Isso, porém, nao deveria permitir que se obscurecesse o fato de quese enraizanopessimismo. Seus propositores nao véem nenhuma possibilidade real de criar um mundo melhor. Inevitavelmente, pois, sua reflexo gira em torno da justificacao do status quo. Mal surpreende que 0 mundo permanega imutado. Felizmente, ha cristaos que rejeitam essa aproxima- do. A miséria e a infelicidade abalam sua consciéncia ao ponto de a complacéncia tornar-se 0 pecado extremo. Seu interesse pelos oprimidos aflora no empenho de mudar as estruturas da sociedade que sao os instrumentos de opresstio. Nenhum cristao deveria desejar fazer menos. O cristao totalmente auténtico, porém, deve desejar fazer mais. Estruturas opressoras nao serao modificadas com €xito enquanto os corages nao forem mudados/E verdade que os seres humanos mudam & medida que novas estru- ‘turas emergem, mas a licdo permanente da historia é que sem genuina conversio as novas estruturas no se pro- vardo menos ppressivas. f ‘Aomissdo desta verdade tem significado que muitos cristiios, empenhados em libertar os oprimidos mediante modificagao das estruturas sociais, fiearam desen- corajados e, em vista, porém, de sua dedicacdo, 0 seu despeito com o passo da mudanea tende ase converter em raiva queredunda numa teologia da revolugio. Presume- se que, removendo os obstéculos causados pela compla- céneia dos ricos, o problema fica resolvido. Asimplicidade desta solugao é atraente. Mas quando se trata da natureza humana, a simplieidade é suspeita. ‘Uma vez mais, a lied da histéria é que o desmanche violento do status quo jamais foi o preltidio de uma soci- 6 edade melhor. Os pobres carecem de redengaio tanto quanto os ricos. A nao ser que se mudem os coracdes dos que nada possuem, estes produzirao inevitavelmente estruturas que inibirao o desenvolvimento humano de outros. Todos carecem, portanto, de libertacao. Por onde comegar? E se comecarmos, existem motivos para otimis- mo? Refletir sobre essas questdes com base tnica na realidade em que estamos submersos sé pode levar a pessimismo e desespero, como se evidencia nas obras da maioria dos filésofos existencialistas. Se devemos prosse- guir esperando, e sem esperanea nao se dé luta alguma, devemos achar outra perspectiva. Precisamente essa alternativa nos oferece 0 Novo ‘Testamento,\\ situacéo que encaramos nao é nova. A primeira geragio de eristdioa dcparou o mesmo problenia, | Constitufam uma pequena minoriae se confrontaram com a gigantesca tarefa de mudar o mundo. 0 fato de que operaram radicais modificacdes nas estruturas sociais da-lhes 0 direito de nossa atencao que excede o de qual- quer outro reformador. De todos os te6logos que articula- ram as dimensdes do problema, o apéstolo Paulo ocupa lugar preeminente. Sua andlise da situacao contempora- nea comqueteve que se haver poderia ser andlisede nossa sociedade. Isso Ihe confere ao mesmo tempo extraordina- ria credibilidade. Ble conhece as dificuldades. Suas res- postas, portanto, nao esto coloridas pelo utopismo que suscita excitamento intelectual, mas falha em mover & a¢ao/Realismo e responsabilidade sao tao caraeteristicas de sua visdo do que a criatura humana pode se tornar que somos foreados a conceder com Chesterton que o cristia- nismo nao falhou; ele simplesmente nao foi tentado a sério. Paulo rejeita explicitamente todo ataque frontal as estruturas da sociedade. Sua visdo escatolégica foi res- ponsdvel por este fato, e nés (se bem que nao realistica- mente) nao mais partilhamos de sua crenga de que o fim do mundo ¢ iminente. No entanto, um ponto valido pode 7 ser extraido desta atitude./ fundamentalmente nao- eristao conceber a prdpria missao como interessada nos rricos, nos operdrios ou nos pobres, porque essa aproxima- do reduz efetivamente pessoas a0 estado de unidades numa classe. Falha em respeitar a dignidade de sua unicidade. Em nivel mais pratico, tentar tratar 0 prohle- ma da opressio e liberdade em termos de classes sociais propée o problema em perspectiva que o tornam virtual- mente insoltivel, simplesmente porque os ntimeros envol- vidos so tao vastos. Se percebemos isso, ndo o era menos evidente a Paulo. Seu realismo manifesta-se no fato de reconhecer que 0 individuo é impotente perante as forcas em acio na sociedade. Os membros de uma sociedade acham-se pro- fundamente condicionados por sua orientagio. Podem, com efeito, rejeitar certos aspectos,o que lhos dé aimpres- sao de liberdade:|A visio radical de Paulo nao oferece lugar a essa ilusao ingénua, Ele negava a realidade da vontade livre aos que eram membros de uma sociedade inauténtica. Permanecia a possibilidade tedrica, mas o seu interesse voltava-se para a realidade de liberdade. S6 os livres podem libertar escravos, Para sermos livres, temos que ser arrancadosagarra de uma sociedade que nos modela, apesar de nés mesmos, a sua propria imagem. Fundamentalmente, trata-se de certa forma de protegdo que iniba a influéncia de pressoes que distorcem nossa propria autocompreensao. Paulo viu que essa protecdo s6 podia ser providenciada pela cons- truco de um meio ambiente alternativo no qual estivés- semos sujeitos a inspiragdes que nos apoiassem em nossa busca de autenticidade/Bste meio ambiente nada mais é que a comunidade crista local, que nao s6 é a forma de liberdade e salvacao, mas também o instrumento eritico para as mudancas no mundo, Ainda que sua vocaciio fosse pregar a Palavra, Paulo viu claramente que palavras sé nao modificariam jamais as estruturas societarias. E muito facil falar e o mundo esté cansadodemeras proclamagoes. E sequeré suficiente 8 para fazer coisas em prol das pessoas. O que importa é 0 que os cristaos sito de modo especial, O préprio estilo de vida deles 6 0 poder que cria a possibilidade de mudancas para outros. Ainda que os cristaos, para existir deste modo, também earecam de ser robustecidos de poder{Dai sua mitua dependéncia na unidade do Corpo de Cristo. Sea Igreja deve, uma vez mais, lancar 0 poder que é efetivo demudanca permanente, deve recuperaro conceito basico de comunidade crista, ¢ Paulo, em vista de seu sucesso, 6 o primeiro a ter direito de ser nosso guia. O propésito deste livro é mostrar que a comunidade é 0 elemento-chave em seu pensamento. Uma vez compre- endido isso, tudo o que ele diz em suas epistolas cai em lugar proprio, tornando-se desafio radical que penetra no coracao do interesse contemporaneo)'Somente quando estivermos convencidos de quea eomunidadeéarealidade crista basica, poderemos dedicar-nos totalmente em leva- la A existéncia\ O livro tem trés partes,|A primeira parte volta-se paraaantropologiade Paulo, porquea intuigaodoApéstolo sobre o que a criatura humana pode e deve ser 6a base de toda a sua aproximacao. Isso envolveré uma discussao de sua compreensio de Jesus Cristo, porque foi nele que Paulo encontrouomodelo histérico coneretode existéncia humana auténtica/E af que veremos que a descricao de Paulo da sociedade com que tinha que tratar pode ocr aplicada com muito pouea modificacao ao nosso mundo contemporaneo,Se ele viu os problemas que perecbemos, nao parece haver nenhum motivo para negar que as solug6es que deram certo para ele dariam certo para nés. Dai, na terceira parte, tento apresentar sua compreensao das estruturas da existéncia crista auténtica no Corpo de Cristo, E ai que veremos a verdadeira natureza da co- munidade erista de que a liberdade ¢ a caracteristica primordial. A compreensio de Paulo que manifesto neate livre é resultado de longo perfodo de maturagao a que muitos fatores contribuiram. O impeto original para empreender 9 este tipo de reflexao foi o convite a dar uma série de palestrassobre teologia moral paulina paraoNew England Summer Institute for Priests no Colégio de Stonehill, North Easton, Mass.,em 1970. Aesta altura estava interessado em determinar exatamente que peso Paulo atribuia aos imperatives morais abundantes em suas epistolas. As conclusées a que chegara foram corrigidas e desenvolvi- das no didlogo com outros auditérios, e a publicagao preliminar na forma de trés artigos em Doctrine and Life (janeiro, fevereiro ¢ marco de 1971) foi eventualmente ampliada num livro publicado na Franca sob o titulo Liexistence chrétienne selon saint Paul (Cerf, Paris, 1974) e no Brasil sob 0 titulo A vida do homem novo (Bdigoes Paulinas, Sao Paulo, 1975). Discussdes subseqilentes com auditérios na Irlanda e nos Estados Unidos, no Peru eno Braoil, na Auotrélia ¢ na Nova Zelandia revelaram, porém, que. secao deste livro que tratava deantropologia eas estruturas de existéncia inauténtica e auténtica era muito mais relevante para a situacdo contemporanea da Igreja que a pesquisa antes técnica dos imperativos mo- rais de Paulo. Dai, decidi desenvolver essa secao e publicé- la separadamente coma esperanca de que prestaraalgum servico aos que esto tentando construir a Igreja no mundo moderno. Tentei ser tao breve comoé.consistente comaclareza, ¢ as notas de roda-pé foram reduzidas ao minimo neces- sdrio. Adotei essa alternativa a um tratado cientifico em vista de minha conviegao de que 0 auditorio que quero atingir seria mais receptivo a um estudo que respeita sua ordem de prioridade, Um dialogo com académicos sobre pontos mintisculos de interpretacdo tem pouco valor para ‘aqueles cuja carga de trabalho nas pardquias ¢ nas 'iss6es Ihes faculta um minimo de lazer, Sinto também ie ao escolher essa aproximacao estou pagando uma divida, Minha obrigacio para com os que escreveram sobre Paulo € imensa, mas devo mais avs taballiadores modestos na linha eujas perguntas urgentes orientaram minha atengao para aspectos do pensamento de Paulo, 10 cuja importfincia nem sempre foi reconhecida. O seu empenho pela “vida” (no sentido paulino) fornece estimu- oe critica que, reconhego com gratidao, jamais poderei expressar adequadamente. PREFACIO A SEGUNDA EDICAO A compreensio de Paulo que delineei na primeira edigdo deste livro repousou no estado de apenas alguns aspectos e temas, mas a visio que apresentei necessari- amente foi além da documentacao que entao podia contro- lar. A maioria de minha pesquisa nos cinco anos que intervieram foi dedicada a estudos pormenorizados de paseagene particularce das cartas paulinas. O resultado foi uma série de artigos largamente anotados e publica- dos em Revue Biblique. Journal of Biblical Literature e Catholic Biblical Quarterly. Nada do que encontrei obri- gou-mea alterar minha concep¢ao dos padrées basicos do pensamento de Paulo. Ao contrario, intui mente ai desenvolvida capacitou-me para lancar luz nova sobre textos que ha muito tempo tinham sido objeto de discussao. Minha hipstese, em outras palavras, ultrapas- sa com éxito o texto classico; esclarece pontos no consi- derados na formulagao da hipstese. Pui também confir- mado pelas conclusdes convergentesde ontros estudiosos, notadamente J. D. G. Dunn com sua firme rejeigao de qualquer alusio a divindade de Cristo em Paulo, E. P. Sanders com sua recusa de ver a justificagao pela f6 como achave da teologiade Pauloe F. Mussner com seu tratado de Pecadoe liberdade. Tantas alusées de que essa geragao gostaria de ver Paulo liberado finalmente das categorias alienigenas que apenas serviram para obscurecer sua relevancia. ‘Aléus de corrigir erros imenores, a generosidade de meu editor e amigo, Michael Glazier, permitiu-me acres- centar novo material, cuja maior parte aparece nos caps. 12 1e 3. O primeiro situa Paulo historicamente tentando especificar quanto ele sabia do ministério terreno de Jesus. O ultimo trata, talvez bastante brevemente, de certos coneeitos que, se entendidos equivocadamente, envolvem necessariamente radical distorgio da visio de Paulo sobre Cristo. Acrescentei também uma secin sabre “Mulheresem Cristo’nocap. 10, nao simplesmente porque © problema ¢ atual, mas porque uma representacdo equivocada da posi¢do de Paulo sobre o tema comprovou- se como obstaculos para a apreciagéio simpatica de sua contribuicao para nossa compreensao daquiloquea comu- nidade genuina deve ser. Em resposta as sugestdes de mestres que usam mi- nha obra como introducao basica ao pensamento paulino, acrescentei bibliografias no fim de cada capitulo, Nao pretenderam ahsalntamente ser exaustivas em nonhum aspecto. Insiro estudos quese evidenciaram formativos de meu préprio pensamento, mesmo quando nao estou de acordo completamente com eles, e também livros e artigos que tratam dos mesmos tépicos em perspectiva diferente. Qualquer tensao entre minhas conclusdes e as deles de- vem servir de estimulo ao pensamento pessoal. Todas as passagens de 1Cor a que me refiro so tratadas no con- texto do meu comentario 1 Corinthians na série “New ‘Testament Message” (Glazier, Wilmington, 1979); pode também sorvir como teste até que ponto a viedo de Paulo aqui apresentada ilumina aleitura de uma de suascartas. derome Murphy-O'Connor, OP Ecole Biblique de Jérusalem Janeiro de 1982 IPARTE O SER HUMANO 5p PAULO E JESUS A visdo paulina da humanidade enrafza-se em sua compreensao de Jesus Cristo. Muito do que encontramos em suas eartas com referéncias a Cristo é fruto dessa prépria reflexdo, mas ele deve ter tido algo em que meditar. Dai, devemos comecar perguntando o que Paulo sabia realmente do Jesus histérico. Isso tem a dupla vantagem de delinear suas relacoes com a Igreja primiti- va e de enfatizar quao pessoal é sua cristologia, De dados fornecidos por suas prdprias cartas pode- mos estar seguros de que Paulo tinha trés fontes de informacao relativas ao Jesus histérico: a tradi¢ao farisaica, sua experiéncia de conversio e a tradigho das comunidades eristas em que passou os primeiros anos depois de sua conversio. | A tradigéo farisaica Em 2Cor 5,16 Paulo fal Cristo segundoa carne, agora ja naooconhecemos assim” Evidentemente se refere ao conhecimento que tinha de Cristo no periodo anterior @ sua conversao quando era perseguidor da Igreja (Gl 1,12; Fl 2,6; ef. At 9,153). Para wobrir onde obtivera este conhecimento, basta-nos r os antecedentes do Apéstolo. 7 Elereclamava orgulhosamenteser“da racade Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus e, quanto a Lei, fariseu” (F13,5). Muitosjudeus da tribode Benjamim viviam fora das fronteiras da Terra Santa, e Paulo era de fato de Tarso na costa sul da Asia Menor (At 22,3), mas a insisténcia em que nao era apenas israelita, mas também hebreu (cf. 2Cor 11,22), frisa que era de cepa palestinense, Seus pais, ou no maximo seus avés, eram da Judéia. muito provavel, pois, que tinha parentes vivendo na Judéia e, em conseqiiéncia, nao ha nada de improvavel na afirmagao de Lucas de que tenha sido educado em Jerusa- lem (At 22,3). Este texto diz realmente que ele foi “educa- do” em Jerusalém, que alguns interpretaram significando que fez. a maior parte de sua educagao escolar, e no 0 set treinamento profissional apenas (ef. At 26,4), na Cidade Santa. Em todo caso, Paulo foi certamente “fariseu”. A pretensao de Fl 3,6 implicitamente se confirma em Gl 1,14: *...distinguindo-meno zelo pelas tradicdes paternas”, porque segundo Josefo: “Os fariseus tinham imposto ao ovo muitas leis das tradi¢des dos pais nao escritasna Lei de Moisés” (Antiguidades 13,297); a importancia dada ao ensino oral tradicional era uma das caracteristicas que distinguiam 0 farisaismo. Isso garante a afirmacao de Lucas de que Paulo vivia “segundo a seita mais severa de nossa religido, como afriseu” (At-26,5)e, sendo este ocaso, nao existe nenhuma boa razio para duvidar de sua afirmagao de que Paulo tenha estudado sob Gamaliel (At 22,3), — / Bste grande mestre viveu e teve éxito em Jerusalém cerca de 20-50 d.C. Sua fama era tao grande que o Mishn diz: “Depois do tempo que morreu o rabi Gamaliel, 0 Velho, cessou orespeitopelaTord;eapurezaeaabstinancia morreram ao mesmo tempo” (Sotah 9,15), Se Paulo foi estudante rabinico em Jerusalém, nao pode escapar de sua influéncia. Os dados se harmonizam perfeitamente, Porque a conversdo de Paulo deve datar-se de um ano ot algo aproximado antes de 34 d.C. 18 Nao sabemos sua idade exata, mas pelo tempo de sua conversio Paulo era certamente mais do que simples ontudante, De outra forma, sua delegagao paradesenraizar ov eristaos em Damaseo (At 9,1) seria incompreenstvel. E M6 6 provavel que ja fosse membro do Sinédrio. O texto- chave é At 26,9-11: “Quanto a mim, estava convencido de que devia fazer muitas coisas contra o nome de Jesus, o Nazareu. Foi o que fiz em Jerusalém: a muitos dentre 03 Santos eu mesmo encerrei nas prisées, recebida a auto- rizacao dos chefes dos sacerdotes; e, quando eram mortos, eu contribuia com o meu voto. Muitas vezes, percorrend (odas as sinagogas, por meio de torturas quis forgé-los a blasfemar; e, no excesso do meu furor, cheguei a persegui- los até em cidades de fora”, Ai se diz que Paulo votou em casos de sentenga capital. Somente o Grande Sinédrio (71. membros) ou Menor (23 dos 71) tinha competéncia em ais casos, esomente membros plenos tinham a faculdade de votar. Se tomarmos o texto em seu valor de fachada, Paulo era certamente membro do Sinédrio, mas, uma vez que nem todos concordam com essa interpretacao, deve- inos olhar um pouco mais acuradamente para o valor hist6rico da afirmagao de Lucas. | Varios estudiosos tentaram trazer argumentos con- (ra a historicidade de At 26,9-11, mas nenhum prova 0 asgerto (1) Paulo, diz-se, era muito jovem para ser membro do Sinédrio, no qual os fariseus ocupavam somente cerca de um tergo das cadeiras. De fato, porém, néo conhecemos nada de definido acerca da idade de Paulo — o termo “juventude” (At7,58) cobre ogrupoetario que vai de 25 aos, 40 anos — e ainda menos acerca do método de indicacao para o Sinédrio. (2) Alternativamente, pretende-se que “langar um voto” pode ser usado de forma bastante ampla e pode significar hada mais do que 0 vago “consentir” usado em At 8,1¢ 22,20. Contudo, a mera possibilidade é apenas uma ad- verléneia, mas nao argumento. K igualmente possivel que AL8,1e 22,20 possa ser interpretado a luz de At 26,10. 19 (3) Neste periodo, o Sinédrio era incompetente para orde- nar a execugdo da sentenga capital. Este ponto é ainda muito controvertido para fornecer argumento valido. O Sinédrio tinha certamente o direito em teoria e, dada a atitude judaica para com os romanos, parece provavel que pretendia de fato na pratica este direito quando sentia quepodia levé-loaefeito. Em 624.C.,durante ointerregno entre a morte do procurador Festo e a chegada de seu sucessor Albino, 0 sumo sacerdote Anano “reuniu 0 Sinédrio de juizes e trouxe perante eles o irmao de Jesus chamado Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros. E, a0 formar acusa¢ao contra eles como transgressores da lei, entregou-os para serem apedrejados” (Josefo, Anti- guidades 20,200). (4) Finalmente, frisa-se que Atos em nenhuma outra parte fala de Paula como tendo persegnida a Igraja em Jerusalém e em seus arredores. Isso é deveras corto, mas 0 argumento do siléncio é anulado por Gl 1,22, que sem ambigiiidades implica que Paulo tinha de fato perseguido os fiéis na Judéia / Contrastando com estes argumentos inconvincentes, © contexto de At 26,10b pode-se demonstrar como sendo solidamente histérico: | (1) Em At 26,10a diz-se que a autoridade de Paulo como perseguidor especial deriva do “chefe dos sacerdotes”. ‘Tanto o NT como Josefo concordam que este termo dosi- gnava o grupo que efetivamente controlava o Sinédrio. Seu papel seria comparavel com o do “inner cabinet” em muitas democracias de hoje, e sua aprovacao teria sido requisito para qualquer agao executiva, (@)0 procedimento usado para desencantoar judeu-cris- tdos nao declarados em At 26,11 é altamente plausivel, pois os profundamente dedicados nao agirao contra suas consciéncias. Precisamente a mesma técnica foi usada pelos judeus na Birkat-ha-Minim, e por Plinio na Asia Menor (Cartas, livro 10, n. 96), (8)Areferéncia a “cidadesde fora” (At26,11b) nao significa “cidades em paises fora da Palestina”, como a tradugao 20 1esa da Biblia de Jerusalém “cidades estrangei- ‘uas” pareceria implicar. Uma vez que 26,10-11 refere-se a atividades de Paulo em Jerusalém, a interpretagéio mais natural 6 *eidades fora de Jerusalém”, das quais havia humerosas somente na Judéia. E muito mais razodvel admitir que Paulo tenha desempenhado missées menares hin frea adjacente a Jerusalém antes de ser aprovado (At 9,2) para procurar os fidis nas sinagogas de uma cidade tio importante como Damasco. (Se 0 contexto de At 26,10b esté tio seguramente enraizado em fatos conhecidos ¢ afirmages validas, a historicidade da pertenga de Paulo ao Sinédrio emerge como solidamente provavel./| ‘Assim sendo, Paulo nao era apenas discipulo de maliel I, mas também colega jtinior dele. Ble deve ter do em relagio erescente com o seu mestre que permitia liberdade de intercémbio negado a mero estu- dante. Inevitavelmente, deve ter sido admitido as dis- cusses de outros membros farisaicos do Sinédrio, muitos dos quais teriam estado presentes no julgamento de Jesus. Acho impossivel imaginar que a figura de Jesus de Nazarénao tenha sido evocada nos debates que devem ter scontecido logo que a presenca crista em Jerusalém co- megou a se fazer sentida. Apesar dos sobretons teolégicos da narrativa de Lucas nos primeiros capitulos de Atos, pode haver pouca diivida de que reflita a reagdo das autoridades judaicas ao aparecimento de outro grupo cismético. Situacdo muito semelhante houve cerca de duzentos anos antes, quando os essénios entraram em cena pela primeira vez, mas agora a ameaca parecia nuito mais séria porque a “fé” (Gl 1,22) deste novo grupo cra diferente: proclamavam que o Mesias tinha de fato vindo. Isso torna ainda menos improvaivel que o interesse autoridades se limitasse ao fenémeno/Deve ter havi- do profunda preocupacdo com suas raizes, ou seja, as protenateade Jeaus. Para combater eproblema, osfarieus sxatamente 0 que se passava, & Paulo teria sido participante deste didlogo./) a Isso nos leva & pergunta mais importante: 0 que sabiam os fariseus sobre Jesus? Para responder, nao podemos simplesmente perpassar pelos evangelhos ¢ combinar todos os episédios em que os fariseus sao men- cionados, porque em muitas ocasides “fariseu” funciona como simbolo de oposicao a Jesus que na verdade pode ter vindode variedade de fontes; isso vale especialmente para os evangelhos de Mateus e Joao.’Daf, devem-se tomar precaugées rigorosas contra anacronismo, sendoocontrole ‘do que sabemos dos interesses ¢ conceitos dos fariseus de outras fontes, Fazendo-seisso, emerge um quadrobastante curioso. © Os fariseus conheceram Jesus como mestre com diseipulos (Mc 2,18). Apesar de falta de treinamento formal (Jo 7,15), corria o risco de ser tomado por um de seus membros. Ieeo criava um perigo para sua autorida- de, quesebaseava em observancia ostensivamenteestrita dallei. Dai, sua critica de associagiio dele com “pecadores” (Mc 2,16; Le7,36; 15,2), de sua atitude relaxada para com o “trabalho” no sabbath (Me 2,24; 3,6; Le 6,7; 14,1;J09,13) ede sua negligéncia das regras da pureza ritual (Mc 7,1) Contudo, devem ter sabido que em alguns temas ele era mais rigoroso do que eles préprios, notadamente com referéncia ao divorcio (Me 10,2). De tais dados, os fariseus dificilmente nao teriam tirado a conclusao de que Jesus agia como sc gozassc de privilegiada posigdo com respeito a lei, ¢ isso s6 podia ser explicado como pretensao de especial relacao para com Deus. Obviamente, era este o cerne da questao, que torna tanto mais estranho que os fariseus nunca sejam repre- sentados confrontando-se com este tema diretamente. O mais perto que chegamos de sua confrontacao é sua exigéncia de um sinal (Mc8,11), mas temos uma alusdode que eles viram o problema em termos de messianismo na afirmacao, relatada pelos disefpulos, de que Elias deve vir ptimeir (Mc 9,11), e outro em sua insisténcia na origem galilaica de Jesus (Jo 7,52), pois eles esperavam um Messias davidico (Mt 22,42). Sendo assim, qualquer que 2 soja o seu valor histérico, a pergunta do sumo sacerdote durante o julgamento de Jesus: “Hs tuo Messias, o Filho do Deus Bendito?” (Mc 14,61), deve ter articulado precisa- monte o que ia pelas mentes dos Iideres fariseus. Esse modo de ver é confirmado pelo fato (veja acima) de que sJosefo, que pretendia ser fariseu, sabia que Jesus era julgado ser o Messias. Finalmente, também 6 provavel que os fariseus sa- biam da pretensao crista de que Jesus tinha sido ressus- citado dos mortos. O fato de que isso era elemento cons- (ante na pregacAo crista primitiva dé credibilidade a base de Mt28,11-15;0s fariseus sustentavam que os disefpulos linham roubado 0 corpo, atitude que s6 é explicavel se soubessem 0 que os erentes retinham, / Assim, apesar do fanatismo do reptidio de Paulo a Jesuse tudo que ele defendia, qualquer que se recordasse de Jesus proporia as seguintes ressonancias associativas: (1) uma pretensao & filiagdo messidnica com suas conotagdes de missdo e obediéncia;(2)rejeicao da absoluta autoridade da lei;(3) ressurreigéo. A primeira vista isso pode parecer resultadobastante magroparauma pesquisa um tanto laboriosa/O eontrério, de fato, verdadeiro, porque nestes sobretons evocados pelo nome de Jesus oslo as sementes de duas idéias-chave que conformou toda a teologia de Paulo, oanebers a filiag&o tinica de Jesus eo valor Tmerameriie relativo da Tei A experiéncia de converséo de Paulo © préprio Paulo nos fala muito pouco sobre este acontecimento, e a tinica chave que ele dé quanto ao seu significado para cle ¢ sua asaimilagao da experiéncia com, aparigdes depois da ressurreicao de Jesus (1Cor 9,1; 5,8)Obviamente, devemos nos limitar somente ao que 2 tem sido chamado de “cristofanias de reconhecimento”, porque esas eram, com efeito, experiéncias dereconversio; os discipulos tinham de aceitar novamente o Senhor Ressuscitado,Essas narrativas exibem um padrao muito claro, que é mais evidente na aparicao a Maria Madalena (Jo 20,11 ¢ 16) c aos Onze (Jo 20,19-20), mas yue pode também ser detectado nas narrativas mais desenvolvidas (Le 24,13-35.36-43), Os quatro elementos componentes (2) auséncia de qualquer expectativa da parte dos disctpulos; (2) uma iniciativa de Jesus que(3) dé um sinal de sua identidade; (4) reconhecimento de Jesus pelo(s) disefpulo(s). Paulo nao mais esperava encontrar 0 Jesus ressusci- tado da mesma forma que os diseipulos, ainda que, eomo fariseu, fosse obrigadoa erer na ressurreicao, eos fariseus tivessem ouvido a pregacao de Jesus. Igualmente, Paulo apresenta Jesuscomo tomando a iniciativa; “ele apareceu a mim” (1Cor 15,8), e, na verdade, a narrativa termina coma aceitagio de Jesus. O paralelismo parece se quebrar no que respeita ao terceiro elemento, que é o elemento critico, ou seja,osinal deidentidade dado por Jesus. Paulo nao podia té-lo “reconhecido” da mesma forma precisa como os outros diseipulos, porque cle jamais o vira na carne. No entanto, podemos estar certos de que Paulo tinha uma imagem mental de Jesus. A intensa raiva dirigida contra os crist4os deve ter assemelhado 0 seu der como alguém que tinha desviado alguns do seu povo. © estresse assim produzido teria interferido com a racionalidade normal do Apéstolo e teria elevado sua susceptibilidade a alguma coisa associada com 0 foco de sua emocao. Por causa de sua condicso mental, Paulo era de fato muito mais vulnervel do que normalmente se concede, fator que reduz enormemente o aparente para- -doxo de sua mudanea radical e imediata de fidelidade. [Quando algo aconteren, » aqui tocamos a fimbria do mistério, as duas imagens se fundiram e 0 mundo de Paulo foi virado de eabeca para baixo., 24 \0 fator-chave, como no caso dos outros disefpulos, foi 1 conviegdo de que um morto tinha sido ressuscitado, que Jesus erucifieado estava vivo de novo) Este fato indiscu- {ivel transformou o sistema de valores de Paulo, Se uma ‘las trés ressonancias que o nome de Jesus suscitava em sua mente farisaica era verdade, entao as outras duas surgiam & luz totalmente diferente. Nao mais eram elas 1s pretensdes blasfemas de homem louco, mas verdade evidente/Se Jesus tinha sido ressuscitado dos mortos, sua pretensao de ser 0 Cristo e Filho de Deus néo podia ser negada, e sua atitude para com a lei deve refletir a vontade de Deus. - Em outras palavras, o encontro de Paulo com o Jesus vivonaestrada de Damascodeu-lhea intuigao fundamen- {al sobre a pessoa e a missao de Jesus e, ao mesmo tempo, abriu-lhe a poasibilidade de salvacao para os gentios, pois, se a lei tinha valor relativo, nao era a tinica vereda para Deus. Em sentido muito real, pois, o que estava para ser os dois eixos maiores de sua teologia veio & posse de Paulo nomomento de sua conversao. Vagos e embrionarios como eram nesta fase, estavam niio obstante profundamente raizados em sua mente e seu coragao. Estamos agora om condigdes de compreender 0 que Paulo quis dizer quando esereveu: “O Evangelho por mim anunciado nao é segundo o homem, pois eu nao recebi nem aprendi de algum homem, mas por revelacao de Jesus Cristo” (Gl 1,12)| Nao era como se Jesus langasse novas idéias em sua mente, O encontro deu-lhe perspectivaradicalmente nova sobre idéias que até entao rejeitara:|idéia que ele nao aprendera pela vontade de mestre de instruir sua mente, mas idéias que ele tinha ouvide de passagem como exem- plos de erro orgulhoso./Assim, “ele nao o recebeu nem aprendeu de algum homem”. A experiéncia do Cristo vivo acendeu nele a verdade que inconscientemente pos- sua.) \A tradiggo cristé ) {Como acabamos de ver, a independéncia afirmada em Gl 1,12 6 justificada ao nivel das intuigées teolégicas basicas de Paulo, Nao é certamente verdade quanto 20 leque completo de seu conhecimento inicial sobre Jesus, pois ap6s sua conversao ele viveu em comunidades cristis antes de empreender trabalho apostdlico. Esteve, pois, em contato com a tradigéio evangéliea em sua fase de formacao e alguns de seus companheiros de fé podem ter sido testemunhasoculares de partes do ministério terreno de Jesus. O dado mais antigo que podemos estabelecer na vida de Paulo 6 sua fuga de Damasco quando cra controlado pelo rei nabateu Aretas (2Cor 11,31-32). Com toda proba- bilidade, isso ocorreu em fins de 37 4.C., e 0 episédio deve ser identificado com a partida de Damasco mencionada em GI 1,17-18, pois nao existe nenhuma alusao de que Paulo tenha voltado a esta cidade uma vez mais. A esta altura, Paulo vivera em Damasco por “trés anos” (GI 1,18), mimero redondoque, em termos damaneiraem que 05 antigos contavam anos, podia significar estadia mi ma de menos de oito meses. A data mais antiga em que Paulo possa ter morado em Damascoé o outono de 544.C., ea mais recente seria algum tempo da primavera de 36 4.C. Antes disso, ele estivera na “Arabia” por tempo nao especificado logo depois de sua conversao (Gl 1,16-17)/A._ importanciadessas datas surge uma vez quese reconhece que a data mais provavel da crucifixao é 3 de abril de 33 4.C., porque somos forcados a concluir que a eonversio de Paulo ocorreu dentro de dois anos desde a morte e ressui reicao de Jesus. Em outros termos, ele se uniu a Igreja num tempo em que memérias dé Jesus eram ainda vividas e antes que as narrativas sobre ele Livessem se tornado estereotipadas. | 26 O proprio Paulo nao nos diz o que ele fez durante este tempo em Damasco. Lucas, porém, informa-nos que ele pregava Jesus como Filho de Deus e Messias (At 9,20-22). Em si nada ¢ mais provavel, mas confirmagao valiosa do valor da tradi¢io de Lucas é fornecida pelo que vimos acima referente an funda farisaiea de Paula camo erista- lizado na pergunta do sumo sacerdote: “Es tu o Messias, o Filho do Deus Bendito?” (Mc 14,61). Se o interesse de Pauloera “provar” que Jesusera o Cristo, oseuargumento deve ter tomado a forma de demonstragao que Jesus era o cumprimento da profecia. Neste caso, os ditos de Jesus teriam sido muito menos importantes do que sua pessoa c.atos, pois o AT fala somente do que o Messias haveria de realizar.(Daf, podemos inferir que Paulo deve ter se interessado em acumular tanta informacao quanto pos- sivel sobre o ministério terreno de Jesus. Nao existe nenhuma razao para a opiniao em geral comum de que Paulo estava completamente desinteressado no Jesus histérico. Nesta perspectiva, pode parecer natural traduzir Gl 1,18 como “subi a Jerusalém para conseguir informagao de Cefas”. Este sentido de historésai certamente nao é impossivel, porque a conotacao basica do verbo é “inqui- rir, examina’, mas é igualmente certo que Paulo nao entendeu este significado porque o seu propésito em Gl 1- 26 estabelecer sia independéncia da igreja de Jerusalém. As exigéncias do contexto sdo atendidas plenamente pela tradugao comum que implica que o objetivo de Paulo era conhecer Pedro/A implicacdo é que Paulo sabia da pro- posi¢ao de Pedro — s6 0 titulo de “Cefas” o prova—e acho impossivel imaginar que Paulo nunca tenha inquirido porque Pedro tinha esse oficio e onde obtivera este titulo. Quer tenha ocorrido isso em Damasco quer em Jerusalém, ¢ irrelevante em comparacao com a alusio de que Paulo sabia da tradicao atras de Mt 16,13-20, com tudo o que ela iinplica sobre comunidade e estrutura. Ha razées fortes para se defender a hipétese de que G12,Tineorpora o essencial do primeiro encontro de Paulo Pa com Pedro, Se isso é correto, temos uma chave valiosa para outra dimensao da personalidade de Paulo: pelo tempo de sua chegada a Jerusalém, ele jé estava consci- ente de sua vocacao apostélica aos gentios. Nao tenho nenhumahesitacaoem ver isso comoocrescimento natural de sua reflexdo sobre as implicagdes da atitude de Jesus para com a lei. No entanto, seria um tanto irrealistico imaginar que Pedro e Paulo passaram todo 0 seu tempo juntos tracando suas esferas de ministério (G12,7)(Paulo deve ter-se interessado na relacdo de Pedro com o Jesus ‘istérico tanto quanto estava interessado na maneira ‘como ele pregava o Cristo ressuscitado, O fato de que as reminiscéncias de Pedro ja podiam ter comegado a tomar forma estereotipada é menos significativo do que o fato de que Paulo esteve por duas semanas em contato com um dos mais intimos companheirns de.Jesnse uma das fontes primarias da tradigao evangélica. Resumindo este breve levantamento dos contatos de Paulo com a tradigao crista no inicio de sua carreira missiondria, podemos dizer (1) que ele esteve em condi- goes de aprender muito sobre o Jesus histérico de fontes primérias e (2) que ele teria se interessado pela pessoa e fatos de Jesus e nao meramente pelo seus ditos. 1 surpreendente, pois, que as cartas nos digam tao pouco do que Paulo deve ter sabido, Jesus era judeu (Rm. 9,4-5) da linha de Davi (Rm 1,3) que toveuma mae (G1 4,4). Foi traido (Cor 11,23) e crucificado (1Cor 2,2 e passim), como resultado de que morreu e foi sepultado (1Cor 15,3- 4). Entéo Deus 0 ressuscitou dos mortos (1Cor 15,5 ¢ passin). Devemos, porém, recordar que as cartas de Paulo ndo sao exposigdes sistematicas, mas resposta a problemas especificos que surgiram nas comunidades pelas quais era responsavel. As cartas foram de mais a mais enderecadas a crentes formados que se considera vam ter assimilado 0 querigma basico. Paulo nao tinha nenhuma obrigagao de repetir tudo, c suas afirmacées ocasionais referentes a aspectos da vida terrena de Jesus sao relacionadas as necessidades de situagdes especificas. 8 Outro ponto a se reter 6 o fato de que a historicidade de Jesus 6 fundamental para a teologia de Paulo. O disefpulo que escreven Efésios captou a aproximagao de seu mestre exatamente ao apresentar Jesus como a ver- dade de Cristo (Ef 4,21). Havia a tendéncia em certas comunidades do Apéstolo de separar o Cristo da f6 do Jesus da histéria. Encontramos Paulo resistindo a essa atitude em sua insisténcia em que o Senhor da Gloria era o Jesus crucifieado (1Cor 2,6), ¢ em sua énfase em que os colossenses receberam Cristo “omo Jesus o Senhor” (Cl 2,6). A hipétese de que Paulo teria enfatizado este ponto quando ele era negado é explicitamente excluido por sua condenagaode qualquer que “prega um Jesusdiferente da- quele que vos pregamos” (2Cor 11,4). A frase sublinhada indica claramente que um retrato do Jesus histérico formava parte da pregacio oral de Paula: 0 nso de “less” sem qualificagao sublinha a referéneia ao ministério terrestre/Acho impossivel admitir que ele se limitava a uma apresentacdo da morte e ressurreicio, nao s6 por causa de sua improbabilidade intrinseca, mas também porque é contradito pelas préprias cartas (ef. supra),/Se Paulo acreditava ser ele mesmo capaz de representar “a vida de Jesus” (2Cor 4,10), ele deve ter tido uma idéia muito clara do comportamento de Jesus que manifestava sua auténtica humanidade. {Em que medida Paulo sabia dos ditos de Jesus étema muito controvei queles que sustentam que oensino do Jesus histérico nao teve nenhuma influéncia sobre Paulo s46 contraditos por outros que asseveram que ele constitufa a fonte priméria de sua instrugioética. A verdade provavelmente esta entre estes dois extremos. Ha somente duas citacdes diretas de palavras de Jesus nas cartas, a proibigao do divoreio (1Cor 7,10-11) ¢ a diretiva concernente ao sustento dos pastores (1Cor 9,14), mas os estudos mais recentes dedicados a estes textos tendem a mostrar gue Paulo sabia ndo o6 0 dito, mas também o contexto em que aparece na tradicao indtica. Aqui ndo é o lugar para desenvolver este ponto, 29 e um exemplo deve bastar. O tema do sustento dos pastores aparece em Le 10 e se tem mostrado que este capitulo se liga a 1Cor 9 por toda uma série de termos comuns: um ‘apéstolo” que deve (“semear” e) “colher” tem 0 “direito” de “recompensa” por sua “pregagio da boa nova”, porque o “operario” tem o direita de “comer” @ “beber”. Os acordos sao muito numerosos para formar por coincidéncia uma explicacao aceitavel, particularmente uma vez que o mesmo tipo de acordo pode se encontrar em ‘outros blocos de material. Deve-se notar também que os dois ditos do Senhor que Paulo cita nao terminavam como parte de uma coleeao de ditos (tal como a hipotética fonte Q), mas como parte de uma fonte que continha também narrativas de acées de Jesus. Assinalou-se também que, se bem que o farisaismo fosse essencialmente movimento urbano e Paulo homem da cidade, o Apéstolo usa uma proporedo extraordinaria- mentealta de metéforas querefletem uma culturaagraria (Rm 1,13;6,21;7,4-5; 15,28; 1Cor 3,6-9 [passim]; 15,36-44; 2Cor 9,6-10; Gl 5,28; 6,7-9; Fl 1,22; 4,17). A explicacio mais convincente é que ele estava familiarizado com a linguagem das pardbolas de Jesus, porque os contatos so bastante especificos para serem explicados por comum dependéncia do Antigo Testamento. Dai, 08 estudos paulinos contemporaneos se inclina- rem a considerar que Paulo tinha conhecimento bastante extenso do que veio a se tornar a tradicao sindtica, E caracteristico de sua personalidade, porém, que nunca aduz este material como fonte autoritarista. O seu método naoera discorrer mediante uso autoritarista de textos de prova, mas era conduzido pela forca persuasiva da verdade calmamente apresentada. Sua familiaridade com a tradigao crista, que sedesenvolvia, referente ao ministério de Jesus, revela-se somente pela maneira em que ela condicionou o seu modo de expressao, masas perspectivas sobre a humanidade de Jesus que ineorpora permeia o scu pensamento. Suas reflexdes sobre o sentido de Cristo para a Igroja e para 0 mundo estdo enraizadas narealidade deJesus de Nazaré. 30 LEITURAS SUGERIDAS Jvomins,s. Zerusalém no tempo de Jesus, Paulus, Sao Paulo, 1983, ppp. k-60. hirer, B., The History ofthe Jewish Peoptein the Ageof Jesus Christ, // (vovisto e editado por G. Vermes, F. Millar e M. Black), Clark, Hdimburgo, 1979, § 26 (fariseus) Jowoll, R., A Chronology of Pauls Life, Fortress, Filadélfia, 1979. Juldgren, A. J., “Paul's Pre-Christian Persecutions of the Church: 'hoir Purpose, Locale and Nature’, em Journal of Biblical Literature (06 (1976) 97-111 Lohfink,G.,Paulusvor Damaskus, Katholisches Bibelwerk, Estugarda, 1)0h = La Conversion de saint Paul. Cerf, Paris, 1967. Gayor, IG. “Some Notes ou Paul's Conversion’, em New Testament Studios 27 4981) 697-704, Dunyan, D.G, The Sayings of Jesus in the Churches of Paul, Fortress, Piladelfia, 1972, Slondely, D., "Pauline Allusions to the Sayings of Jesus", Biblical Quarterly 23 (1961). Murphy-O'Connor, J., “Pauline Missions bofore the Jerusalem Conference”, em Revue Biblique, jan, de 1982 m Catholic 31 (2 CRISTO, O CRITERIO Cristo 6 0 centro da fé crista, Paulo aceitava plena- mente isso, de forma que, para ele, Cristo era 0 comeco e © fim, nao 86 da salvagéo, mas também de tudo. Sua perspectiva inteira sobre a realidade estava condicionada por sua visio de Cristo. Especificamente, sua compreen- iio do que ahumanidade podia edevia serestavaenraizada ‘om stat compreensao da humanidade de Cristo Como a humanidade deveria ser entendida Como veremos com mais detalhe a seu momento, ceslamos condicionados a pensar Cristo em termos de nés mosmos. Ble é humano e nés somos humanoz, ¢ é natural iv do conhecido (nés mesmos) ao desconhecido (Cristo). Assim, nas cerca de 60.000 biografias de Jesus escritas durante os sées. XVITI e XIX, 0 retrato de Jesus que merge esta condicionado principalmente pela subjetivi- dade do autor que cria um heréi em conformidade com sulas préprias aspiracdes,\Em consequiéncia, Jesus surge de varias maneiras.como idealista, racionalista, romAnti- co, socialista ete. Nao surpreende, pois, que os convertidos dle Paulo fossem tentados a agir de forma semelhante,| Somos felizes porque eles o fizeram, porque isso forgou Paulo a prestar atencao & mudanea de perspectiva que devia seguir & aceitagao de Cristo: 33 Ora, ele morreu por todos a fim de que aqueles que vive nao vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles. Por isto, doravante a ninguém conhecemos hata sarka, Mes- ‘mo se conhecemos Cristo hata sarha, agora ji nfo 0 eonhecemos assim, Se alguém esti em Cristo, 6 nova criatura. Passaram-2e a3 coisas antigas; eis quo se fez. uma realidade nova (2Cor 5,15-17) Deixei a expressio kata sarka em grego porque o seu significado tem sido objeto de longo debate. Teoricamen- te, pode ser entendido quer como advérbio “de modo carnal” qualificando o verbo “conhecer”, quer como adje- tivo “na carne” qualificandoo nome préprio “Cristo”. Qual o sentido pretendido por Paulo? Alguns entendem que ele pretendeu o adjetivo, porque isso significaria entao que tinha encontrado realmente Jesus nos dias de seu minii tério terreno/Pretendeu-se até que Paulo era ojovem rico que recusou 0 ato de fé (Me 10,17-22)! Eesa posigéo no momento perdeu virtualmente todos os que a sustenta- vam. Quando Paulo usa kata sarka como adjetivo, ele lhe dA posicao diferente na sentenca (cf, Rm 4,1; 9,3; 1Cor 1,26; 10,18). Mais importante, porém, é que se fizermos de kata sarka. adjetivo quando se refere a Cristo, tornamos sem sentido a frase precedente onde também aparece, porque deve entao ser traduzida: “Nao conhecemos nin- guém na carne’, isto é, ndo temos nenhum contato huma- no. Uma leitura de qualquer das cartas mostra que isso é abourdo/Daf, kata sarka deve ac entender como advérbio qualificando “conhecer”.", — O que, pois, Paulo esta dizendo 6 que ele um dia conheceu Cristo “de maneira carnal”. Ele possuira um tipo inferior de conhecimento sobre Jesus. Tudo isso pode signifiear, & luz do que ele diz acerca de sua perseguicao da Igreja (Fl 3,6), que ele ontrora participara de uma apreciacao de Jesus comum entre os seus contemporane- 08, ou seja, que ele era mestre herético e agitador turbu- lento, cujas atividades o tinham levado com justica ao cadafalso. Isso, Paulo agora reconhece, era julgameuto falso que ele abandonara. Como isso aconteceu nao é nosso assunto aqui 34 O que 6 importante é que abandonou semelhante mnaneira de julgar os outros: “Doravante a ninguém conhe- comos de maneira carnal”. Sua intencio, obviamente, & oncorajar outros a fazer 0 mesmo. Porque deve insistir ficarai mais claro se fizermos uma digressao por um pomento para examinar o tipo de sitnagia queele tem em mente. Em sua carta anterior aos Corintios foi forcado a screver: Quanto a mim, irmaos, nao vos pude falar como a homens cspirituais, mas to-somente como a homens da carne, como a bebés em Cristo... Com efeito, se ha entre vos invejas erixas, nao sois da earne e andais segundo os homens? Pois quando alguém declara: “Eu sou de Paulo” e outro: “Eu sou de Apolo”, nfo sois homens? (1Cor 3,1-4). | “Andar” 6 expresso semita comum e tipica para padrao de comportamento, e no léxico de Paulo “segundo ohomem" significa “segundo a comum avaliacdo” (Rm 3,5; ICor 9,8; 15,32; Gl 3,5),/\Ao aceitar a inveja, a rixa e as, fucc6es partidarias como parte de seu padrao habitual de ortamento, os corintios estavam simplesmente se conformando & avaliagao comum do que era normal. Essas coisas eram tidas como naturais e evidentes, como parte integral da existéncia humana, Era essa a maneira de o mundo viver, e nao havia nenhuma justificacao para se ficar chocado ou surpreso. A presenga de semelhantes atitudes dentro da comunidade era tida como natural pelos corintios. A reagao de Paulo é criticar essa aceitacao como imaturidade infantil, porque eles deviam ter reco- nhecido que agora tém um padrao ques liberta da tirania da “avaliagao comum”, determinando que padrao de com: portamento 6 apropriado para a criatura humana. Nao ovelarece precisamente qual seja este padrao, e conse- qiientemente nao tinha de retornar a este ponto na pas- ager de 2Cor que tratamos. Desta vez nao existe nenhuma ambigtidade. A afir- io “doravante a ninguém conhecemos de maneira 35 ¢ carnal” comega por uma particula significando “portan- to”, 0 que a torna a conseqiiéncia de “Cristo morreu por todos a fim de aqueles que vivem nao vivam mais para si”. Este altruismo esté em patente contradigio com o egocentrismo que os corintios julgam natural./O padrao de comportamento de Cristo é 0 critério pelo qual os cristaos devem julgar a qualidade de vida dos outros,| Conseqiientemente, se alguém est “em Cristo”, deve julgar de maneira nova. “Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova” significa que o julga- mento foi renovado, aceitando-se novo critério ou ponto de referéncia, a saber, “o amor de Cristo”, pelo qual o proprio Paulo se sente urgido (2Cor 5,14). Paulo nao exagera ao falar disso como “nova eriagao”. Uma aproximagéo falsa O que se acabou de dizer ilumina a suma importaneia de Cristo na antropologia de Paulo, Nao podemos ter compreensao auténtica da humanidade, a nao ser que primeiro conhecamos Cristo. A aproximagao contempora- nea A cristolugia, poréin, & exalamente o inverso, como 0 ilustrarao duas citagdes, uma de catélico e outra de episéopaliano: Para saber quio humano é Cristo, devemos primeiro estabelecer de modo sumario pelo menos o que é ser um homem. £, eviden- temente, nascer e erescer amado ou desamado; distinguir-se a si mesmo (0 ego de alguém) do mundo circundante; aprender de outros a linguagem e embeber-se de atitudes; ehegar a uma consciéneia desi mesmoe de sua tarefa propria e misstona vida, ser livre para realizé-la; lutar para cumprir a propria missio, pois a luli 6 concomltante da Mberdade; entregar-se asi mesmo a Deus na luta e nas trevas. Isso nao se deve tomar como lista exaustiva dos aspectos especificamente humanos da vida do 36 homem nem se est sugerindo que estes aspectas sejam separa veisdo resto. Estou apenas apontando um fato dbvio: se devernos (omar como genuina a profissao da Tgreja de que Jesus é verda- deiramente homem, se 0s aspectos ha pouco sublinhados devem sserlevados emconsideracio P.de Rosa, Christand Original Sin, Londres, 1967, 43). — Podemos perguntar, porém. se podemos falar significativamente dda humanidade de Gristo a nao ser se o fazemos com respeito a cle como tendo sido “um homem como o8 outros”... Ele deve ter aprendido como nés aprendemos e ter ereseido como ereseemos, Suas alegrias devem ter sido alegrias humanas e suas dores as dores imemoriaveis de homens como nés mesmos. Ele deve ter conhecido solidao, frustragao, ansicdade, da mesma forma que nds sentimos. Ele deve ter sentido tentagces de duvidar e ter modo, Ble teria amado os outros da mesma forma que os homens uunam seus companheiros — mais, diremos, mas nao diferente- mente. Ele também teria se abatido diante da morte, do rompi- mento de lagos familiares eom coisas queridas, Seu conheeimen- lode Rens, apeaar de tara siia seguranga e peculiar intimidade, Loria sido a espéeie de eonhecimento que é dado aos homens ter de seu Criador e Pai. Se tudo isso nao fosse verdade, poderiamos chamé-lo de verdadeiro homem? Pois os tracos reais do homem nio so sua figura e aparéneia, ox o mado como ele anda, mas 0 modo como ele sente e pensa em seu coracdo, 0 modo como conheceasimesmo,osoutrose Deus(J. Knox, The Humanityand Divinity of Christ, Cambridge, 1967, 63-68). Que o tema da humanidade de Cristo tivesse sido levantado desta forma constitui tremenda falha nos estudos ‘le (eologia paulina que ou ignoramos o problema completa- mente ou tratam dele inadequadamente. O primeiro toma como evidente que todos nés sabemos precisamente quais, ‘jam ascaracteristicas distintivas da natureza humana, 0 tillimo tenta provar a humanidade de Jesus afirmand que ele nasceu, sentiu fome, sentiu cansago e morreu. E dificil decidir se a concessao do primeiro grupo ou a ingenuidade do segundo é 0 mais lamentavel/Caracteris- (eas que participamos em comum com 0 reino animal nao n dizem nada da humunidade de Cristo, e se podemos \or nossas prdprias idéias do que a humanidade é, que jurantias temos que elas correspondem & de Paulo? 37 Os critérios esbocados por Knox e de Rosa sio de tremendo valor quando tratamos de incidentes especifi- cos na vida de Jesus. Permitem-nos ver o batismo como 0 comego do progressive descobrimento por parte de Jesus do significado de sua missao. Forcam-nos a ver as tent: Giese a agonia no jardim como momentos de real decisao. quando Jesus teve de lutar para permanecer fiel a sua compreensao do que o Pai exigia dele/ Em outros termos, eles nos urgem a levar a humanidade de Jesus a sério,, ‘Nisso podemos ver uma reaco contra uma tendéncia asubvalorizar ahumanidade de-esus que prevalecerana Igreja por muitos séculos. A realidade desta humanidade foi afirmada como questao de principio, masa maneiraem que era apresentada com freqiéncia eonstituia de fato uma negacao. Assim, por exemplo, Clemente de Alexan- dria esereveu no fim do século IT: Cristo comeu, nao por eausa do corpo, que era mantido por uma santa energia, mas para que nfioentrasse na mente daqueles que estavam com ele que tivessem uma opinitio diferente dele... Mas eleerainteiramente impassivel, inacessivel a todo movimerito de sentimentos, seja de prazer seja de dor. A intengio aj era enfatizar a perfeicao da humanida- de de Jesus, mas s6 consegue fazé-la tio inteiramente diferente que a dimensao humana desaparece. A tendén- cia que se ilustra aqui ganhou grande impeto no séc. IV com o advento do arianismo, heresia que insistia que Jesus nao passava de homem usado como instrumento pelo Verbo, a segunda pessoa da Trindade. Em resposta, a Igroja foi levada a enfatizar a divindade de Cristo. Por causa das limitacdes da mente humana, estes dois aspec- tos de Cristo — humanidade e divindade — estao em tensao, e o resultado inevitavel é que se dé proeminéncia a um aspecto. O outro, em conseqiéncia, se retrai no fundo do quadro, Desde o tempo de Ario sempre tem sido essa sorte da humanidade de Jesus. Nunca houve qual- quer negacdo direta, mas sua humanidade foi vista a luz 38 lo un divindade, e como resultado a ela se atribuiu uma porfeicho quea tirou da érbita do género humano tal como § conhecemos, Assim, pretendeu-se que o conhecimento ‘lo Jesus nao estava sujeito as limitagdes que nés expe- vimentamos,equeo seu corposentiua forga dosofrimento, ir dor. Somente neste séculu houve esforgus para restaurar o equilibrio enfatizando a humanidade de sJovus. A uns isso pareceu negacao da divindade. Mas este Hho é de fato 0 caso. Sao esforcos no sentido de ser fiel aos ois aspectos da tradigao da Igreja referente a Jesus. ‘Nunto Knox como de Rosa sao dignos representantes outa tarefa teolégica contempordnea, mas uma vez que um afastamento da falsidade nao é necessariamente um pavso para a verdade, devemos olhar um pouco mais de porto 0s eritérios que eles apresentam. O principio que subjaz a sua apresentacio é afirmado oxplicitamente por Knox: se Jesus no é como nés, ele nao © homem, O préximo passo é olhar para a humanidade conlemporanea com 0 objetivo de abstrair os denominado- 10s comuns que sao entao predicados de Jesus. A esta llura, duas questes devem ser propostas. Sao Knoxe de Nova fiis a este método? O método em si mesmo seria tal para ser capaz de produzir o resultado desejado? ‘A resposta & primeira questao deve ser negativa. Indiferenca as necessidades dos outros é mais comum que ‘mor. Inveja e possessividade sao tao difusas como soli- dio e frustracao/Em outras palavras, toda uma série de facetas da humanidade contemporanea sao deixadas fora da conta,O que Knox e de Rosa nos dao nao é visao objetiva da humanidade como ela é, mas uma visao unilateral. Em lugar de uma lista completa de facetas caracteristicas, eles nos oferecem apenas uma selecdo. O principio em que se baseia a selecdo jamais é explicado, mas, se olharmos para sua justificacdio, encontraremos a resposta a segunda questao, Certas facetas da humanida- de contemporanea foram deixadas de lado porque se sentem inapropriadas a Jesus, Knox e de Rosa estavam conscientes de que o objeto de sua observagdo 6 uma 39 humanidade decaida, e como resultado nao incluiram aqueles elementos que Ihes pareciam pertencer a nature- za humana decaida, Como eles sabem 0 que é qué, nunca sé pode explicar. Da observagao objetiva da humanidade contemporanea jamais se obteré retrato da humanidade como tal. O melhor que ela pode produzir é um retrato da humanidade decaida que é inaplicavel a Cristo, porque ele foi sem pecado (Rm 1,4; 2Cor 5,21; Jo8,46; 1Jo 3,5; Hb 4,15; 1Pd 2,22)/) aproximacio fenomenolégica, portanto, évviciada em sua propria esséncia. Ela nunca nos poderd dizer 0 que seja a humanidade auténtica, porque o seu objeto ¢ a humanidade inauténtica. Em consequéncia, toda tentativa de discernir as facctas distintivas da hu- manidade de Cristo em termos de nossa atual humanida- de esta destinada a faléncia A intencao divina Se 0 caminho da observaciio empirica esta fechado para nés, temos uma via alternativa para determinar 0 elemento constituinte da humanidade auténtica? Feliz- mente, a temos. O fato da criaturidade significa que podemos dizer que a humanidade verdadeira é 0 modo de existir que o Criador teve em mente que suas criaturas humanas tivessem. Maso tinico meio de acesso a intengao divina é, como Paulo insiste, através das “coisas que foram feitas” (Rm 1,20)./Dat, para descobrir como Deus pretendeu qe a humanidade existisse, temos de olhar a figura de Adao. Antes da queda, Adao era exatamente como Deus pretendeu que a humanidade fosse, Ele nao é 8600 primeiro homem, mas também homem como tal) A intuigio nao se originou com Paulo. A tradic&o javista, representada por Filon e pela literatura intertestamentaria, cria que Adao antes da queda era a 40 porfvita incorporagao da divina inteneao para a humani- ‘luce, A idéia sobre este ponto seguiu da crenga dos judeus ilo que existe correspondéncia entre o comeco e o fim, Conseqiientemente, que esperavam que haveria de ocor- yor no definitivo reinado de Deus se dizia que estava pre- wonte antes da queda. Nao podia imaginar que certas onracteristicas que tornavam a vida miseravel aqui na (orra encontraria lugar no eschaton. Assim, feitira, doen- (ia, fraqueza de intelecto e vontade se negavam para a humanidade renovada do futuro.(Uma vez que Addo deve {or sido 0 que os bem-aventurados seriam algum dia, os postos destes defeitos eram ento predicados dele. Filon comeca sua exposigéo das qualidades de Adio com estas palavras: Parece me que eate primero homem naseide da terra, o lider de toda nossa raca, fol gerado excelente tanto no corpo como na alma, ¢ que ele so diferonciava enormemente daqueles que vieram depois pela supereminente perfeicaodestes dois constitu- intes de seu ser. Ele era, na verdade, belo e bom (De opificio mundi, n. 136). Filon explica entdo a perfeigio fisica de Addo, antes de se voltar para uma representacao pormenorizada de qualidades intelectuais. Ele toca nestes tépicos em outras obras suas e, reunindo toda a argumentagao, ‘emerge o seguinte retrato. O tamanho de Adao era maior queodoscontemporaneos. Seus sentidos percebiam mais; seus olhos em particular eram capazes de ver tudo no céu enaterra, Movimentava-se no mundocom total confianca, ¢ jamais era presa do medo. Ele vivia em paz porque nao havia nenhuma ameaca de guerra, e sua felicidade era sem sombras/Seu intelecto e sua vontade eram fortifica- los pelo divino espirito que tinha sido soprado nele em ibundancia, e como resultado a vereda da virtude parecia como grandes estradas, de tal sorte que ele se esforgava, om todas suas palavras e acdes para agradar a Deus. Adao, portanto, era “superior aos homens de hojee a todos, 41 0s que nos precederam, porque nés somos nascidos de homens, mas ele saiu das maos de Deus. Quanto melhor acausa, tanto mais perfeito 0 produto” (De opificio mundi, n. 140). Em sua apresentacao, Filon incorpora as intuigdes de seus predecessores o antecipa as de seue succscorcs. E, portanto, tipico, e a prépria linguagem usada ¢ indicagao clara do que esta se passando. Nao estamos tratando de fatos, mas do proprio desejo humanode um mundo melhor. Somos confrontados nao com histéria, mas com profecia. (Oretrato de Adao, portanto, nao passa de uma construeao mental desenvolvida pela humanidade decaida, e na existe a mais leve garantia de que ela se conforme com a intengao divina. / 7 Dai, para Paulo, uma nova criagdo era necessdria para reotaurar & humanidade um exemplar auténtico da divina inteneao. Tinha de haver um individuo perfeito que seria tudo 0 que Deus desejou que a humanidade fosse, e Paulo o encontrou em Cristo/Ele, como 0 Ultimo Adao, era a visibilidade da intencao de Deus. Ele era aquilo que Adao foi criado para ser.) Isso se manifesta no esboco da historia da salvagéio que Paulo apresenta em Rm 7,7 a 8,4. Essa é uma passagem extremamente complicada, mas, ao passo que 08 estudiosos divergem significativamente em sua inter- pretagao de pormenor, existe acurdy yeral em dois pontos: (1) 0 “eu” que fala neste texto nao é Paulo nem nenhum jovem judeu tipico, mas a humanidade; (2) a histéria religiosa da humanidade esta dividida em trés estagios. O consenso é mantido com respeito a duas das trés fases da historia da salvagao: a segunda (7,14-24) trata da huma- nidade sob o dominio da lei mosaica, enquanto a terceira (7,25 a 8,4) trata dos beneficios trazidos por Cristo. A primeira fase, porém, permanece objeto de contencao. Ha ‘0s que retém que se refere & humanidade no periodo entre aqueda ea promulgacao da lei mosaica, mas este modo de ver se expée a varias objecées, e nao tem apoio sdlido no texto. Se lermos 7,7-13 sem nenhum preconceito quanto 2 10 significado da palavra “lei”, ficaremos imediatamente surpreendidos pelo ntimero de paralelos com a situacao, deserita por Gn 3, antes da expulsio do jardim do Eden. Pois toda a humanidade esté concentrada nas pessoas de ino tem a mesma extensao. Eles viviam em virtude até Deus dar 0 mandamento: “Nao poderas comer do fruto da arvore que est no meio do rdim nem a poderds tocar, sendo morrerés” (Gn 8,3). ste mandamento prometia vida (Rm 7,10), mas sua propria existéncia provocava desejos proibidos (Rm 7,7). 0 Pecado (Rm 7,8) ou a Serpente (Gn 3,4-5) usou da oportunidade fornecida pelo mandamenta para incitar a jumanidade ao pecado (Gn 3,19; Rm 7,9). Ambas as \ssagens, portanto, apresentam os mesmos elementos na mesma ordem: mandamento — desejo — pecado — morte.,O primeiro estagio da histéria da salvacao deve, conseqiientemente, se considerar que foi o periodo antes da queda. Assim, temos a seqiéncia: 1, Humanidade antes da queda (7,7-13). (2, Humanidade entre a queda e Cristo (7,14-24). Humanidade depois do advento de Crista (7,25-8,4). O primeiro e o terceiro estagio esto ligados por um. denominador comum, uma vez, que sao caracterizados pela “vida”. O estagio 1: “Eu estava um dia vivo sema lei” (7,9); estagio 8: "A Tei do espirito de vida em Jesus Cristo lornou-se livre” (8,2). OesLayio2, wo inves, éradicalinente diferente, porque é caracterizado por “morte”: “Homem infeliz que sou eul Quem me libertara deste corpo de morte?” (7,24). A sugestdo desta cuidadosa estrutura 6 quo a“vida” que Adao gozava antes da queda 6 restaurada hha pessoa de Cristo, Teremos de pesquisar o sentido preciso do"'vida’, €0 seu correlativo “morte”, mais tarde) Tudo o que hos interessa a esta altura é a evidéncia clara, para Paulo, do que Cristo era de fato o que Adio devia ser. A “vida” que, ‘Adio perdeu uma vez mais ¢ representada no mundo, enela « intengao divina para a humanidade torna-se manifesta. /\ 1a conclusao 6 confirmada por outra passagem em ulo escreve: B 0s inerédulos, dos quaiso deus deste mundo obscureceu intel cia, a fim de que nao vejam a luz do evangelho da gloria de Cristo, que 6aimagem de Deus. Nao pregamosa nés mesmos, mas a Cristo Jesus, Senhor. Quanto a nés mesmos, apresentamo-nos como vossos servos por causa de Jesus. Porquanto Deus, que disse: Do meia das trevas brithea luz!,fotele mesmo quem reluziuem nossascoragoes, para fazer brithar a canhorimenta da gléria de News, que resplandece na face de Cristo (2Cor 4,448), Este texto tem trés contatos especfficos coma narra- tiva da criacao. O mais dbvio é a apresentacao de Cristo como “a imagem de Deus" (Gn 1,27), eo Deus em questao 6 identificado como o Criador da luz (Gn 1,14-18). O terceiro é a firmagao de que Cristo possufa “a gloria de Deus”, Este elemento nao ¢ encontrado no Génesis, mas, de acordo com tradigio judaica, Adao possuia “gloria” antes da queda. No Apocalipse de Moisés (composto antes de 70 a.C.), Adao, depois de ter comido a maca, grita a Eva: “O mulher infqua! O que eu te fiz para que me tenhas privado da gloria-de Deus?” (21,6) Cristo, portanto, tem 0 que Adio perdeu. Ele é 0 Novo Adao que incorpora perfeitamente a humanidade auténtica que era a meta do ato criativo de Deus. Um texto final associa “imagem de Deus” e “criacao” como predieados de Cristo. De acordo com o hino de Cl 1,15-20, Cristué “a iimagemsdo Deus invisivel, o primogénito de toda a criagio” (1,15). A terminologia deste hino é césmica, mas a humanidade est no centro do pensamen- to do autor porque sé ela pode ser o instrumento de mudanga do resto da criagio.O que teve em menteo autor ao proclamar Cristo como “o primogénito de toda a cria- a0”? O atributo paralelo de “imagem do Deus invisivel” 6 clara indicagao que sua atencao estava focalizada na humanidade de Cristo. Esta humanidade nao era preexistente; veio ao ser somente em dado momento da historia (GI'4,4). A frase 6 pode significar que Deus estava pensando na humanidade de Cristo quando ele formou Adao, Isso parece tao paradoxal e sem sentido, “4 ‘nas uma vez que reconhecemos que a categoria de causa- lidade exemplar foi fornecida pela literatura sapiencial (Pr 3,19; 8,22.30), 0 processo mental do autor fica claro. Para criar Adao, Deus deve ter tido uma idéia da huma~ nidade perfeita4Para cristaos, a perfeita humanidade foi vealizada somenteem Crista, Crista, partanto, foi concebi pararepresentar a intengao divina que veio a er expressio histriea na eriagio de Ad ~ A conclusao a se tirar dos'trés textos que estivemos discutindo é que a antropologia de Paulo.tem uma base cristolégica, Para encontrar a verdadeira e essencial natureza da humanidade, ele nao olhou para os seus contemporaneos, mas para Cristo, pois que somente ele incorporou a autenticidade da humanidade/Bra inevité vel, pois, que Paulo insistisse que a humanidade de Cristo era o eritério pelo qual a humanidade de outras criaturas dovia ser julgadas\. Auténtica humanidade Ao apresentar Cristo como o modelo de humanidade utenti Paulo deve ter tido em mente certas facetas ‘npecificas que distinguiram a humanidade de Cristo da de outros. Nossa tarefa agora é determinar quais eram essas, Se excetuarmos a mengio da Ultima Ceia (1Cor 25), 0 tinico “evento” da vida de Cristo a que chama \ atoncao Paulo é sua morte neste ato, portanto, que Jovemos esperar-e cetas.que-distinguem a Numanidade de Cr {elizmente, ndo é uma #lmples idéia, mas pode ser entendida de diversas manei- ry, Em alguns easos, morte é meramente a negagio de oxisténcia, uma passagem de ser para ndo-ser que torna impossivel todo progresso ulterior. Mas isso nioéverdade (mn Lodos 0s casos. A morte de um assassino confesso, que 45 espontaneamente se submete a um experimento médico perigoso, redime o seu passado culpavel. A morte de um aleodlico que, numa rua ocupada por uma multidao, abafa com 0 corpo uma granada que explode, da sentido a uma vida desperdicada. Nestes dois exemplos, morte é a con- sumacao de um tempo de vida, porque a “self” 6 exaltada eafirmado no supremo ato de rentinciafPaulocertamente incluiria a morte de Cristo nesta categoria porque ele ‘sublinha consistentemente que foi morte “por outros” (Rm ; 14,15; 1Cor 8,11; G1 2,20 ete.) Pi Mas existe ainda outra perspectiva da qual pode ser visualizada a morte. Ela pode ser vista iluminando a caracteristica dominante do tempo de uma vida. Que isso estava também na mente de Paulo sugere-o a férmula que ele criou, “o morrer de Jesus" (2Cor 4,10), que evoca a vida culminando na morte @ porta a conotagaa de que as duas sio homogéneas. Conseqtientemente, ele pode proclamar que “Cristo mor- reu por todos a fim de aqueles que vivem nao mais vivam para si mesmos” (2Cor 5,15)/O padrdio de comportamento que os cristaos de ar (1CoF 11 1,1) é posto em alto” le Cristo que focalizou com clareza meridiana a opeao fundamental de sua vida’* ‘omo vimos no primeiro capitulo, Paulo sabia bas- tante sobre a tradicao do ministério terreno de Jesus que foi eventyalmente posta por escrito nos evangelhos sinéticosA primeira vista, isso torna tanto mais surpre e ~aulo tena estimadoa morte de Cristo a maxima revel: ua humanidade, porque tantos incidentes podiam ter sido usados como ilustracées, par- te porque ele queria que os fi fidiews razao para agir como ele agiu torn: nhecermos que para Paulo Jesus nao devia ter morrido. Essa idéia aparece na primeira estrofe do hino da carta aos Filipenses: Ele que, existindo na imagem de Deus, io ugou na sua propria vantagem este dreito de ser tratado como deus, 46 assumindo a condigao de eacravo (Fl 2,6-7). © fundo contra o qual se torna claro 0 pensamento \losta estrofe fornece-o um texto que jd encontramos: ‘Deus criou o homem na incorrup¢ao, e o fez a imagem de ua propria eternidade” (Sb 2,23). 0 Sabio, como vimos, inlerpretou a narrativa do Génesis no sentido de que a morte nao era parte da intengao original de Deus para a hhumanidade; ela entrou no mundo somente como punicao para 0 pecado('Para Paulo, e os outros tedlogos do Novo. ‘Testamento, Cristo era’ absolutamente | re de toda man- (hu depecado(Rm 1,4;2Cor 5,21;.J08,46;1J03,5;Hb4,15;, 1Pd 2, 22) isa -pureza_absoluta dava-lhe ncorruptibilidade, que, segundo a intencao divina, era 0 privilégio da humanidadesNo mundo de Paulo, somente ‘0 deuses se pensavam viver para sempre. Em conformi- dade, o direito ao privilégio da incorruptibilidade era ofelivamente o direito de ser tratado como deus. Cristo, porém, no fez essa situacdo servir & sua prdpria vanta- om. Nao exigiu o tratamento que sua condigao merecia, Ao invés, ele se entregou a um modo de existéncia que nao sua, aceitando a condigao de escravo, condi¢ao que onvolvia sofrimento e morte. A formula “esvaziou-se a si inesmo” e seu correspondente na estrofe seguinte “humi \hou-se a si mesmo” frisa que Cristo fez uma escolha, Nao W0 tratava de aceitagio de algo que fosse por natureza inevitavel(Uma vez que essa perspectiva 6 captada, fica (laro porque Paulo devia ver a morte de Cristo como a_ ‘have do elemento distintive de sua humanidade. O ato de morfer~porém-deriva-o wet significado do inolivo que o ingpirou. No easo de Cristo, Paulo via esse inotivo como complexo. Em harmonia com a tradi¢ao ovangelica, reconhecia que Jesus fora motivado pela von- ude de seu Pai, Dai encontrarmos afirmagées como: “... Iniio poupouo seu préprio Filho eo entregou por todos nds” (Jimn 8,32), com eorrespondente énfase na “obediéncia” de a7 Cristo (Rm 5,19; Fl 2,8). Nisso, porém, Deus agia por amor: “Foi, com efeito, quando ainda éramos fracos, que Cristo, no tempo marcado, morreu pelos impios.— Dificil- mente alguém dé a vida por um justo: por um homem de bem talvez haja alguém que se disponha a morrer.— Mas Deus demonstra 0 seu amor para conosco pelo fato de Cristo termorrido pornés quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,6-8). Essa formulagao um tanto tortuosa é devida ao esforco para insinuar que, ainda que a decisio fosse de Deus, era também de Cristo. Essa dimensao chega a expressar-se claramente em outra série de textos: “A vida que agora vivo na carne, eu.a vivo pela fé no Filho de Deus que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (G1 2,20; ef. 1,4;200F 8 9Uma ver que o“e” ai é explicativo, otexto apresenta o atitodoar-se de Cristo como_expressao_de. amor.00 que entao 6 0 amar? A melhor resposta fornecida por John Macquarrie: Amor, em seu sentido ontolégico, 6 deixar ser. Amor costuma ser definido em termos de unio, ou do impulso para a unigo, mas semelhante definicio 6 muito egoedntrica. Amor leva, com efeito, ‘a comunidade, mas visar primariamente unira outra pessoa a si ‘mesino, ou a si mesmo a ela, niio é 0 segredo do amor e pode até ser destrutivo de comunidade genuina. Amor é deixar-ser, nao, ‘com certeza, no sentido de retrair-se de alguém ou algo, mas no ‘sentido positivo e ative de capacitar para ser. Quando falamos de ““deixar-ser’, devemos entender ambag.as partes desta expresso com hifen em sentido forte — “deixar” como “dar poder”, “eapa- citar” e “ser” como gozando do maximo fastigio do ser que esta aberto para o ser particular respectivo. Muito tipica- mente, “deixar-ser” signiffea ajudar uma pessoa para a plena realizagio de suas potencialidades de ser: ¢ 0 maior amor ser ‘eustoso, pois que ele sera realizado pelo gastar o proprio ser (Principles of Christian Theology, Londres, 1966, § 52, p. 310). ANesta brilhante exploracdo da intuicdo do Antigo. ‘Testamento de que amor é poder (S162,11-12), vamos.que— Tor ividade aberta a_ mais profunda forma de eria caracteristica distintiva da humanidade au- Onlica ¢ criatividade que efetivamente abre novos hori- yontes de ser para os outros. A validade desta intuicao 6 ‘wnfirmada por breve anallise do conceito do Antigo Testa- Jnonto de“imagem de Deus” que Paulo predica somente de Oristo (2Cor 4,4; Cl 1,15). A imagem de Deus em a narrativa do Génesis, o autor sacerdotal define s veres a humanidade como feita a “imagem de Deus” (Gn 1,268; 5,1-3; 9,6). O que precisamente ele quis dizer por essa frase tem aida asaunto de intenso debate, e parece nprovavel que se atingira algum dia plena certeza. j(los concordam que a frase quer distinguira humanida- Jo do resto da criagao, As criaturas humanas estao liga- {Jn ao munda em que vivem, movem-se e tém o seu ser, Jno nao sao partedele. A visio biblica do homem, portanto, poe-se, quer a tentativa grega de classified-lo dentro de ima realidade unificada como animal racional, quer & visio cientifiea contemporanea que 0 considera como ondmeno extraordinariamente complicada da natureza. Por valioeo que isso soja, falha om responder & questao: 0 yuie o autor sacerdotal viu ao dizer que o homem tem algo ‘Jo comum com Deus? 0 caminho para a resposta fornece- ‘ oubra questao: o que sabemos sobre Deus daquela seco ‘Jo Genesis em que aparece a frase? Dois elementos logo hobressaemdBle é Criador e Legislador, Isso sugere que a jomelhanga da humanidade para com Deusdeve-se buscar. ya forma decerta espécie de criatividade que tem‘dimensao stlenpsAlguma Teve confirmagio para o aspecto de criat- Vidade ¢ fornecido pelo ato realizador antes da queda, porque 08 eatudiosos do Antigo Tectamento entendem o ilar nomes as feras (Gn 2,19-20) como ato crialivo, uma vorzque nova forma de relacionamento vem a existir,ecom 49 4 Sure pasta de Plo isso nova possibilidade de existéncia é ofertada aos ani- mais. Visto nesta perspectiva, o dominio da humanidade sobre os animais (Gn 1,28) assume nova dimensio: 6 paralelo com o de Deus porque é também baseado em ato Ao, pors leu G& do d aulo, porém, nao leu Génesis separado do corpo da tradicional que se desenvolvera em em torno ele. Dai, para poder perceber o que tinha em mi ar-a frase, devemos levantar brevemente aa diversas acdes que eram correntes em sous dias..) ~~ Um ponto apropriado de partida fornece-o Sirac. Escrito em hebraico na Palestina pelos inicios do séc. II a.C., foi traduzido para o grego pelo neto do autor em 131 a.C. 0 fato de se terem encontrado fragmentos tanto em Qumra como em Masada mostra que seu ensinamento tinha larga difusio. Ele oferece interpretacia oxtensa da narrativa da criagéo: ‘0 Senhor criou o homem da terra ea elao fez voltar novamente. ‘Deu aos homens mimero preciso de dias e tempo determinado, deu-lhes poder sobre tudo o que esta sobre a terra, 'Revestiu-os de forga como a si mesmo, ccriou-os & sua imagem, *A toda carne inspirou o temor do homem, para que ele domine feras e passaros. neheu-os de conhecimento e mostrou-thes o bem e o mall ‘P6s seu olho sobre seus coragbes, para Ihes mostrar a grandeza de suas obras. "es louvarao 0 seu santo nome, narrando a grandeza de suas obras *Coneedeu-Ihes o conhecimento, repartiu com eles a lei da vida "Fez com eles uma alianga eterna deuIhes a eonhecer seus julgamentos. Seus olhos viram a grandeza de sua majestade, sous ouvidos ouviram a magnifieéncia de sua vor (Belo 17,1-13). eligéncia 50. © paralelismo do v. 8 mostra que ai imagem” é Wncebida em termos de poder. E questo, pois, de capa- dade para a aco; assim como Deus esté no céu, também \\ hunanidade esta na terra\O contexto, porém, circuns- ‘ove rigorosamente esta dimensao criativa € inibe todo be todo oxnyoro que faria-do homem pequeno deus. Este poder é |) have da autoridade da humanidade sob o resto da_ wpligho (v. 2), mas este specto mais importante,’ Viste poder desenvolve-se na escolha conseqitente a0 co- Hhecimento do bem e do mal (v. 7). Até af estamos dentro {lp quadro da narrativa do Génesis, mas atiltima parte da itagdo (vy. 11-13) mostra que o autor impés uma perspec- liv radicalmente nova ao Génesis. As alusées a “lei” ¢ & “alianca” mostram que ele pensa ndo na humanidade womo tal, mas exclusivamente nos israelitas. Sao eles jomente que sie “a imagem de Deus”. E 0 resto da Numanidade? Sirac nao da nenhuma resposta explicita, now a logica de sua posi¢ao o forcaria a concordar com 0 utorjudeu que esereveu pelos fins do sée. 1a.C.: “Quanto {iy outras nagdes que descenderam de Addo, disseste que \ so nada” (Esd 4,55)\Essa arrogancia ¢ compreensi- somente se admitirmos que o autor vé a humanidade. pola perspectiva estritamente moral. Os israelitas sao \tes porque somente eles foram agraciados pelo ‘lom da lei que ilumina as opgSes criativas que "rads lovem fazer. O que a predicagao de “imagem de Deus” somunica 6, em consequéncia,a capacidade para compor: Jamento ético.f, Ainda que permanecendo dentro do mesmo quadro hsico, 0 livro da Sabedoria, composto em Alexandria na ogunda metade do sée, I a.C., toma linha diferente: Deus eriou @ homem na incorrupgae 0 fez imagem de sua prépria eternidade, mas pela inveja do deménio a morte entrow no mundo, jc nqucles que portencem a 3c partido a experimenters (Sb 2,23-24), st Em oposicao a Sirae, que cria que Deus deu aos homens somente “nimero preciso de dias e tempo deter- minado” (17,2), 0 Sabio nao creu que'a morte era inevita- vel. Nao foi parte da intencao divina que a criatura humana deva morrer como os animais e plantas. Ele 0 deduz de Gn 2,17 ¢ 3,2, que apresenta a morte como punicdo pela desobediéncia. O corpo, porém, era “pereci- vel” ($1 9,15), uma vez que fora “feito de terra” (Sb 15,8). Dai, presumia que antes da queda a criatura humana era dotada do privilégio da incorruptibilidade, dom divino que inibia a tendéncia natural da carne para a dissolugao. Isso fazia a humanidade em certo sentido imortal, e este paralelo com a eternidade de Deus (Gn 31,33; Is 40,28) justificava a afirmagao de que ela eraa “imagem de Deus” A morte, em conseqiiéncia, anula a imagem de Deu Qs que-morrem nao podem estar na “imagem de sua eternidade”/Para 0 Sébio, porém, nem todos morre! porque ele distinguia entre morte “real” e morte “aparen- te”, Somente os mpios morrem verdadeiramente; a morte era a negacao de toda sua existéncia a ponto de sequer permanecer sua meméria (Sb 4,19; 5,14). O justo, ao invés, somente parecia morrer (Sb 3,2-3), ao passo que de fato vive para sempre (Sb 4,17; 5,15). Essa diferenca é devida ao fato de que ojusto possui asabedoria que éaraiz de toda virtude e a seguranga de imortalidade (Sb 6,17-21; 8,13-17). Inevitavelmente, essa sabedoria foi concebida em relacao com a lei mosaica (Sb 6,18). Pareceria, pois, que com respeito a Sirac, 0 Sabio impoe ulterior limitagao & aplicacao da idéia de imagem de Deus. Enquanto o primeiro a aplicaria a todos ligados pela alianga, o ultimo a aplicaria somente aos israelitas que realmente obedeciam & lei. Em outros termos, a0 asso que Siracrelaciona a imagem de Deus a capacidade de agao, 0 Sabio a relaciona’ A propria agio, Nao s&o aqueles que sao capazes de obedecer a lei que sdo a imagem de Deus, mas aqueles que de fato a observam. 2 Iiyui linha de pensamento é levada um passo adiante § jotarmos que o Sabio predica “imagem de Deus” de utr realidade: Pols cla (= a Sabedoria) 6 reflexo da luz eterna, ‘oxpolho nitide da atividade de Dour f imagem de sua bondade. Slondo uma s6, tudo pode; jovn nada mudar, tudo renova ontretanto, nas almas boas de eada goragio, 1.08 amigos de Deus e os profetas 726-27), (Bncontramos aio tema comum da literatura sapiens {hie diz que a Sabedoria desempenha um papel na criac (ul. PP 3,19; 8,22; 22,30), mas como novo matizi/Constitur yirle da fungao criativa da Sabedoria oferecer aos seres \\jnanos a possibilidade de novo modo de ser, a saber, 0 {lo ser “amigos de Deus”. B a Sabedoria que os capacita a pousar do estado onde estavam ligados a morte “real” ao slado em que possuem “vida” e a seguranca de imortali- dade, Como ocorre isso na pratica? A resposta do Sabio pode ser deduzida de suas afirmacoes de que “uma multi- lho de sabios € a Salvacao do mundo... Deixai-vos, pois, instruir porminhas palavras e nelas encontrareis provei- 10” (Sb 6,24-25) e *o comego da sabedoria é o desejo mais hincero de instrucdo, e interesse pela instrucao é amor dola” (Sb 6,17). A Sabedoria, pois, é medida por aqueles {uea posstem. Mas € precisamente estes que existem “na inagem de sua eternidade”. Bles exercem fungio criativa lio oferecer a outros nova possibilidade de existénciag A tao de Génesis de que “imagem de Deus” carregava_ tacao dé criatividade em dimensao ética foi retoma- (la pelo Sabio, mas de tal sorte que as implicagdes sAo gudamente focalizadas( > et ‘A contribuicao eritica do autor do livro da Sabedoria fvirelacionar “imagem de Deus” naoaexisténcia humana como tal (como o faz Génesis), mas a uma qualidade 53 especifica de existéncia, Este ponto encontra eco também om Filon (20 a.C. a 54 .C.). A antropologia de Filon é extremamente complexa, e um resumo pormenorizado dela nao cabe aqui. Ele reserva o predicado de “imagem de Deus” para o Logos, um intermediario entre Deus e a humanidade. Desta tiltima ele diré somente que cla foi feita “segundo a imagem” do Criador. Falando estrita- mente, a humanidade é uma imagem da imagem que é 0 ‘Logos. {A impressio divina est4 manifesta no intelecto, mas alguns usam de seu intelecto para seguir a caminho “eal da Sabedoria, ao passo que outros nao, ‘Em conseqiiéneia, ha dois tipos de homens, os que existem pelo espirite divino que raciocina e os que viver pelo sangue e pelo prazer da carne. O segundo 6 modelado de terra, o primeiro é a impreootio fie da imagem divina (Quis rer lin 57) Assim, enquanto todos sao potencialmente a imagem de Deus, Filon reserva essa nocao aos que manifestam particular qualidade de existéncia. Como no caso do Sébio, o seu critério est baseado nao numa visio tedrica da humanidade como tal, mas na experiéneia de um padrao vivido de comportamento. Umbreve sumério fornece alguma idéia do complexo de nogdes que cercou 0 concerto de “imagem de Deus” no tempo de Paulo. Apesar da diversidade de interpretacées, existe, nao obstante, certo fundo comum que podemos tomar como concedido ao determinar o que Paulo signifi- cou pela frase. Em primeiro lugar, a predicacao da frase “imagem de Deus” foi feita criticamente. Nao foi aplicada indiscriminadamentea todos osseres falantes que andam eretos sobre duas pernasiA sugestao 6 m todas as criaturas humanas viviam segundo ocritériodesejado por “seu CrtadoryPodemos estar certos, no entanto, que no discurso do dia-a-dia os contemporaneos de Paulo usavam “imagem de Deus” casualmente e sem pensar como faze- mos com freqiiéncia. Entao, como agora, era confortante 34 pensar de si mesmo como significado por semelhante frase impressionante. A falta de simpatia de Paulo por semelhante conforto ilusdrio é evidente na maneira altamente seletiva em que uusa “imagem de Deus”. Nunea a apliea a si mesmo ou a qualquer de seus contemporancos. Em 1Cor 11,7 visa evocar Adao antes da queda, como a nocao de “gléria” (cujo sentido veremos no fim do préximo capitulo) claramente indica. Precisamente o mesmo conceito se usa para su- blinhar que Cristo € 0 Novo Adao em 2Cor 4,4: “a gloria de sto que é a imagem de Deus”, Com referéncia aos fiéis, ilo dira apenas que ‘nés estamos sendo mudados em sua imagem de gléria em gléria” (2Cor 3,18), isto 6, ele inantém a esperanga de que um dia possamos nos tornar 1 “imagem de Deus”. Portanto, o uso de Paulo revela sua insatisfacao para com a definicdo de humanidade (representada por Sirac) baseada s6 na capacidade ou potencialidade. Devemos, 1m conseqiténcia, admitir que ele se alinharia com 0 Sabio ou com Filon. Nao existe nada em suas epfstolas; porém, que sugerisse que ele pensava habitualmente nas cate. jorias altamente intelectuais de Filon. Onde ha contatos entre o Apéstolo e 0 grande fildsofo, o primeiro esté em (0 a idéias que se podem associar com 0 tiltimo. Por xclusdo chegamos, entao, a posi¢ao de que Paulo pro- vavelmente seguia a linha aberta pelo autor do livro da bedoria, conelusao que é confirmada pela influéncia difasa do livro nas epistolas paulinas. O titulo “imagem de / Deus” é justificado somente quando a criatura é também criadoy$E oferecendo nova possibilidade de existéncia a, outros = acriatura humanaé verdadeiramente imagem ie DeussSe bem que sua aproximacao seja meramente especulativa, a grande intuicdo de John Macquarie 0 conduz.a um ponto em que fielmente expressa a intencao de Paulo: 0 sentido pleno da protensio de que o homem 6 feito & imagem de Deus pode ser pereebido na linguagem contempordinea da 55 “existéncia". O que distingue o homem de outras eriaturas 6 que ele “existe”, e existir 6 ter abertura que ¢ talvez.a melhor ehave a misteriosa afinidade de Deus e homem. Da mesma forma em ‘que Deus se abre para a eriagao e derrama ser, e, portanto, tem © “deixar-ser” como sua esséneia, também o homem 6 mais verdadeiramente ele mesmo e realiza sua esséncia na abertura de uma existancia em que também ela pode deixar-ser, com responsabilidade, eriatividade e amor (Principles of Christian ‘Theology, § 35, p. 212). Realidade histérica Uma vez que Paulo pode ter sido influenciado pelo livro'da Sabedoria, sua compreensao da caracteristica distintiva da existéncia auténtica deriva nao de aproxi- macao te6rica da natureza humana, mas de sua contem- plagao de individuo histérico, Jesus de Nazaré.{0 que viu revelado nele tornou-se a norma que usava ao julgar todos asoutres x ert ‘Este ponto deve ser frisado porque éa tinica documen- tagao que temos de que a criatividade, que earacteriza a exisiéneia auléntiva, & realmente possivel. Se Jesus 080 tivesse demonstrado ease amor sob as condigées da vida normal, nao haveria nenhuma garantia de que nao era ilusao ut6pica, bela na teoria mas impossivel na pratica. No fundo, eremos nés todos que o que a humanidade pode fazer é 0 que a humanidade fez. Embora soubéssemos que era teoricamente possivel ir & lua, uma diivida hesitante permanecia até que Armstrong andou de fato em sua superficie. Chegar ao topo do monte Everest foi revonhe- cido como possibilidade real somente quando Hillary e Tensing atingiram ocume. O medo do que podia acontecer a0 corpo humano se corresse uma milha em quatro minu- tos foi banido somente quando Bannister o fez. O que 56 corre quando se fizeram tais incursos? Uma atitude mental diferente foi logo gerada. Individuos foram liber- ludos da inibigaodo impossivel. Aquelesquesemantinham tilnis, talvez inconscientemente, por causa do medo de que aquilo pelo que lutavam era impossivel de realizacao, foram chamadoa avante pelo sneeasn de ontros tais eama oles, Uma nova energia foi langada pela demonstracao de hovo padrao. Propor como eritério de auténtica humanidade um or que continuamente logra dar poder a outros poderia Ao irrealistico como a sugestao de imitaras peripécias doSuper-Homem, se nao soubéssemos que pelo menos um individuo demonstrou essa possibilidade)Porque Jesus viveu. sob as mesmas condigdes histéricas de tempo e mo nés, o modo de existéncia realizado do por ‘ivel. anece desafio perpéiue para um padrio ati SI LEITURAS SUGERIDAS Fraser, J. W., “Paul’s Knowledge of Jesus: I Corinthians V. 16 Once More", em New Testament Studies 17 (1970-71), 293-813, Lyonnet, 8, “History of Salvationin Romans em Theology Digest 19 (1965) 35-38. eee Pannenberg, W., Jesus — God and Man, SCM, Londres, 1973, cap. 5. Barret, C. K., From First Adam to Last, Black, Londres, 1962, Scroggs, R., The Last Adam, Blackwell, Oxford, 1966, Dunn J. D. Gy Christology in the Making, SCM, Londres, 1978, cap. 4. Murphy-O'Connor, J., Christological Anthropology in Phil 2:6-11, em Rewue Biblique 83 (1978), 25.50 Miller, J. M., “In the ‘Image’ and ‘Likeness’ of God”, om Nada na gramatica do versfculo se opde & pontuagao A, aqueles cujos ouvidos estao afinados com o ritmo do ar ham que o versiculo lé-se mais naturalmente se Ilo permite flair continuamenta até oamémn” Assinala wo, de mais a mais, que a pontuacao B envolve jubilosa \Joxologia que esta fora de harmonia como animo doloroso (lo Apostolo nesta segao da carta. Rsses argumentos em favor da pontuagéo A sio contraditados por outros derivados do contexto imediato. Kin 9,5 60 climax de um parégrafo em que Paulo evoca os privilégios de Israel. Estes privilégios foram dom de Deus, (logo antes Paulo evocara o amor de Deus. “(Nada) sera capa de nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus ovis Senhor” (Ria £,20)fiAqui Deus ¢ Cristo sto distin quidos bastante claramente. O tiltimo éa manifestacéio do_ iimor do primeiro, da mesma forma que os privilégios 6 eram a manifestacao da solicitude providencial de Deus) Que opensamento de Paulo continua ase mover dentro do mesmo quadro é fortemente sugerido por Rm 9,3, que também faz distingao entre Cristo e Deus. “Quisera eu ‘mesmo ser andtema e cortado de Cristo em favor de meus irmios.” Paulo nfo podia desejar ser cortado de Deus Se os versiculos antes do v. 5 distinguem claramente Deus de Cristo, o mesmo vale para os que seguem. No v. 6 lemos: “E nfo é que a Palavra de Deus tenha falhado”. Isso ¢ uma referéncia anterior as “promessas” do v. 4, ¢ bastante obviamente a referéncia é ao Pai, como é 0 caso em todas as mengGes subseqientes de“Deus"(9,8.11.14.16; e em particular 9,20, onde “Deus” = 0 Criador). Em nenhum destes textos seria natural interpretar “Deus” como significando Cristo. A consisténcia deste uso é argu- mento forte contra a pontuagio A, pois 26 metodologia im_versiciilo_polivalente_seja significado provavel é 0 que Erequerido | Por toda a seco de 9,1-5, a atenco de Paulo esta focalizada no Pai. Amultidao de seus dons, culminandono envio de Cristo, serve para iluminar a fidelidade de Israel. E inteiramente natural que o Apéstolo experimentasse grande angtistia ao contemplar o pecado de seu povo. Mas este 6 apenas um dos lados da moeda, pois é igualmente compreenaivel que a lista dos atos graciosos de Deus provocasse explosao espontanea de louvor. A ordem vocabular do v. 5 elevou a mente de Paulo & nocao de providéneia e, dat, ao Pai e seu carater de bendito. Uma verso mais plena da mesma doxologia aparece em Rm 11,36: “Pois procedentes dele e mediante ele e para ele so todas as coisas. A ele, gloria para sempre”. Observe-se a ordem, providéncia seguida por glorificagao. Balancean- do, portanto, a documentagao favorece a pontuacao Be a probabilidade desta pontuacao é confirmada pelo fato de que nenhuma outra passagem nas cartas de Paulo ca necessariamente que Cristo é Deus./De fato afirma explicitamente que Cristo esté subordinado a a Hous: SE, quando todas as coisas lhe tiverem sido subme- lids, entaoo préprio Filho se submeterd aquele que tudo }ho submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28). Rm 9,5, portanto, apresenta Cristo como dom de Hous sem de nenhuma forma afirmar sua divindade. Filho de Deus Das 16 passagens em que Paulo chama Jesus de "Wlho”, duas sobressaem porque o titulo esta qualificado por ndjetivo, “Enviando o seu préprio Filho numa carne nelhante & do pecado e em vista do pecado, condenou o jocado na carne” (Rm 8,3); “Quem nao poupou o seu proprio Filho e o entregou por todos nés, como nao nos ‘lari todas as coisas com ele?” (Rm 8,32). A intengao {loutes textos ¢ frisar a generosidade ilimitada do amor de Dou, e este tipo de afirmagio tem sentido somente se Phulo entendeu Jesus como situado em especial relacio- jumento para com Deus/O problema, pois, é determinar \ natureza do relacionamento Txiste-amplo avordo de que as duas referéncias poulinas ao Pilho séo derivadas do primeire querigia:“O ‘#vangelho coneernente ao seu Filho, que era descendente (lo Davi segundo a carne, e constituido Filho de Deus em poder segundo o espirito de santidade pela ressurreicao ‘Jos mortos” (Rm 1,3-4); “Para esperardes do edu 0 seu Nilho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus que how livra da ira futura” (1's 1,10). A andlise pormenori- yada destes textos muito debatidos nao cabe aqui, mas ‘lois pontos dificilmente carecem de demonstracao. Ne- hua destas passagens alude a preexisténcia; ao invés, limbas associam a fillagao de Cristo com a ressurreigao. (\Woxinte love alusao de que a ressurreieao 6 af recompensa_ “pola maneira em que Cristo exerceu sua filiagaary 63 Essa interpretagado é confirmada por duas outras passagens que apresentam sua filiacao em termos de missao. Rm 8,3 ja foi citado; a segunda passagem é G14, “Quando, poréin, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus 0 seu Filho, nascido de mulher, nascido sob. lei, a fim de que recebéssemos a adocao filial”. “Enviar” nestes dois textos nao tem nenhuma referéneia a preexisténcia; o verbo é regularmente usado em ambos 03 ‘Testamentos para dizer comissionamento de um agente humano em vista de tarefa determinada. Embora partilhando das desvantagens da humanidade (“nascido de mulher, nas- cido sob a lei”), Cristo realizou sua missao salvadora, manifestando assim a obediéncia que, no padraio hebraico de pensamento, que Paulo herdou, era 0 constituinte da verdadeira filiagao; “o Filho de Deus, Jesus Cristo... nao foi ‘sim’ e ‘nao’, mas nele foi (sempre) o ‘sim” (2Cor. 1,19. 20). Essa fidelidade foi reconhecida por Deus ao ressusci- tar Cristo. Em vista do que vimos referente ao relacionamento de Paulo com a tradi¢ao sindtica, parece provavel que derivou seu ensinamento sobre o “envio” de “o filho” da pregagao de Jesus. O tinico texto evangélico em que 0 envio de um Filho é mencionadoé a parabola de Jesus dos vinhateiros homicidas (Me 12,1-12), texto que esta ligado a Gl 4,4-7 pelos temas ulteriores da escatologia (“iltimo” [4schaton] Me 12,6; “na plenitude do tempo” Gl 4,4) e da heranca (Mc 12,7; Gl 4,7)Tantos contatos pareceriam. excluir a coincidéncia como explicacao adequada e, sendo ‘assim, seria imprudente ler mais no texto paulino do que se pode inferir da primitiva tradicao 7 ~~ Indieacao ulterior nesta diregio é fornecida pela definigdo de Paulo do espirito do Filho em termos de “Abba” (G14,6; Rm 8,15). O uso que faz de termo aramaico reflete sua dependéncia da tradicio sinética de palavras proprias de Jesus. Aousar “Abba”, Jesus expressarao seu csentimento de intima filiagao (Mc 14,36), mas ao mesmo tempo o termo proclamava a revelacao de Deus como Pai, nao 26 de proprio Jesus, mas também daqueles aos quais 64 Havoria de comunicar sua filiagdo (cf. Le 11,2; 22,29). A *ijootdo & que tal filiagao é constituida pela resposta jwodelada por aquela de Jesus. Paulo chama-la-A de “a vhodidneia de fé" (Rm 1,5). E porque somos filhos de Deus pola {6 © pelo batismo (GI 3,26-27) que instintivamente io# dirigimes a Deus como “Abba” (Gl 4,6; Rm 8,15), da nonma forma que o fez JesusdUma vez que fomos inseri- Jos em Cristo, podemos usar este termo distintivo ao vocura Deus. 6 A idéia de “adocao” que Paulo usa ao falar de nossa lillngio (GI 4,5; Rm 8,15.23) nao pode ser urgida para provar diferenca radical entre a filiacao de Cristo e a Hossa, porque Cristo pertencia a um povo, do qual um dos privilegios era a “adocaio” (Rm 9,4). Uma vez mais, isso Iijjore a compreensao de Paulo a respeito de Jesus como Filho de Deus firmemente dentro de um contextojudaico (ijn pressuposi¢des monoteistas deve nos inibir de \))lorpretarsemelhante filiacao em termos de comunidade (le natureza/Para Paulo, Jesus era o Filho de maneira__ \inica porque ele realizow as exigéncias da filiacio de Joyma sem paralelo com nenhum outro. jy Senhor Aproximagao diferente ao problema da divindade de Cristo tem sido desenvolvida com base no uso paulino do litulo “Senhor” para Jesus. Na LXX, “Senhor” é 0 substitutive normal para o judeu: “lahweh”, e este uso aparece nas citagdes eseriturfsticas em Rm 4,8; 9,29 ete. PouloaplicaadJesus textos doAT onde“Senhor” designava Nous (por exemplo, Rm 10,13)A86 poderia fazer isso porque eré que Jesus era divino. - Esta linha de argumentagao foi com razaoabandonada como simplista, porque Paulo nao derivou o titulo do 65 Antigo Testamento; jé era corrente na Igreja a que ele se juntou, como podemos deduzir das formulas em forma de credo em Rm 10,9 e 1Cor 12,3. 0 termo “Senhor” nao 6 sindnimo de Deus. Era usado correntemente no mundo secular para conotar relacionamente de poder. Nao defi- hia o status de individuo tomado em separado, mas evo- cava seu dominio sobre um grupo ou esfera da vida, Era perfeitamente aplicavel ao Criador, mas nao se limitava ale. O fato de que os primeiros cristaos olhavam para Cristo como seu senhor, atitude que comecou durante sua vida terrena como mestre, mas que tomou dimensao infinitamente mais profunda em sua experiéneia dele no periodo pés-pascal, é suficiente explicacao de seu uso de “Senhor” arespeitodele. Olhavam para ele comoa superior do qual dependiam. A base do senhorio 6 0 poder, 0 poder fruido por oriste ode dar ou recusar o-donn vida/Prolonga- ‘do para o futuro, este poder far dele © juiz universal (2Ts 1,5-10; Rm 2,16). No Antigo Testamento, dominio sobre a vida é, com certeza, atributo divino (Dt 32,39); forma parte da natureza de Deus. Para Paulo, este poder nao pertencia a Cristo por direito; teve de Ihe ser dado e este dom é consistemente apresentado como recompensa pela fidelidade com que executousua missao. “Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos ¢ dos vivos”(Rm 14,9). “Por isso, Deus 0 sobreexaltou gra demente e 0 agraciou com o nome que esta acima de todo nome... e toda lingua confesse que Jesus é ‘Senhor’ ” (Fl 2,9-11). O poder de senhorio é dado a Cristo para fim especifico e, quando isso se tiver cumprido, o poder serd entregue(1Cor 15,20-28), No pensamento de Paulo, “Igre- ja” e “senhorio” de Cristéestao intrinsecamente_ligados; “Seu poder ¢ opeFativo em e mediante a comunidade crista ‘ando, no plano de Deus, o tempo da Igreja chegar a seu fim na parusia, 0 senhorio de Cristo cassatd._p 66 ubedoria Com freqiiéneia se trata 1Cor 10,4 como a expressio {nis formal da crenca de Paulo na preexistAncia de Cristo. Noferindo-se a rocha, de que os israelitas beberam duran. lp 0 Gxodo (Nm 20,7-11), ele diz: “A rocha era Cristo”. Antes escrevera que Cristo 6 a sabedoria de Deus (1Cor I,211), ea tradieao judaica representada por Filon afirma- y\"A rocha dura éa sabedoriade Deus” (Legum Allegoriae 1,86). Iss0, pretende-se, fornece uma clara cadeia de Wuagdes: a rocha Cristo = sabedoria = Cristo. Uma vez iio arocha preexistiua vinda de Cristo, ele deve entao ter ¢xislido antes de seu nascimento humano So conside- figdes como essas que inspiraram a hipétese larzamente_ ilifusa de qué@ idéia de preexisténcia chegou a Paulo hravés de especulagao sobre a Sabedoria e sua relacéo tom Cristo. 0 Pode haver pouca dtivida de que Paulo era influenci- do pela tradigao sapiencial, mas duvido muito que ela \onha exercidoo papel dominanteque alguns postularam. ‘Vorna-se cada vez mais claro que seu envolvimento com ‘sna tradigdonao era algo queele escolheu conscientemente porque viu o seu valor para ilustrar o mistério de Cristo. oi forgado a ele por causa de desenvulvimentos na comu- hidade em Corinto. Um grupo de crentes estava conven- tido de que possuia sabedoria especulativa que Ihe dava cosso direto a Deus. Em conseqtiéneia, pensavaim que ram elite espiritual. Nao mais precisavam de Paulo e de jou ensinamento; a instrugao era necessaria somente para aqueles que estavam em plano muito mais baixo. Apesar de sua sensibilidade, Paulo podia talvez ter vivido tm essa situagae, mas uma conseqiiéneia ulterior 0 obrigou a reagir vigorosamente. Cristo se tornara jrrelevamte para estes assim chamados cristaos. Sua humanidade e sua sorte eram a antitese da Sabedoria e eterna que era sua mae e guia. Essa atitude 6 estava bastante perto do tipo de teologia associado a Filon. Porque a rocha no deserto forneceu alimento, ele pode vé-la como simbolo da sabedoriaespeculativa que, do seu ponto de vista, sustentava as almas dos iluminados. Paulo nao podia partilhar desta perspectiva. Estava convencidade que Jesus Cristo erao inico mediadorentre Deus e a humanidade (1Cor 8,6; 1Tm 2,5); ele era a revelacao da exigéncia de Deus eo modelo da resposta da humanidade. Paulo era suficientemente realista para reconhecer que nao podia varrer das mentes dos corintios idéias que ja tinham assimilado. Dai, tinha de redefinir Cristo de uma forma que acarretaria mudanca em sua maneira de pensar. A tinica solucao possivel era insistir que Cristo era “o poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1Cor 1,24; ef, 1,30). Em sua propria pessoa ele era tanto a manifestagdio como oo meios do plano de salvagao de Deus. Se os corintios desejavam interessar-se pela Sa- bedoria, deviam focalizar Cristo crucificado, pois a sabe- doria nao mais é expressa em palavras ou agées (1Cor 1,22), mas numa pessoa cuja existéncia corporea era integrante de sua missio, Se tal era a atitude de Paulo, nao temos nenhum direito de supor que ele aceitava a compreensao de Filon sobre a rocha de que os israelitas beberam. Ao invés, 6 muito mais provavel que estava conscientemente modi- ficando aqucla interpretacao ao insistir que a rocha nao era a sabedoria, mas Cristo,)O tempo passado Ihe foi forgado pelo fat dequea Tonle nasers aa seated Go presente. A cadeia de equagées visando estabelecer a preexisténcia de Cristoem 1Cor 10,4éuma ilusdo; jamais existiu na mente de Paulo. A controvérsia com os corintios acrescentou nova dimenséo ao pensamento de Paulo sem modificé-lo de qualquer forma fundamental. A tradigio judaica achava significativo falar da sabedoria de Deus. Dadaa vitalidade do monoteismo judaicu, é muito improvavel que conce- bessem sua Sabedoria, quer como ser divino, quer como hipdstase divina. Era uma forma de expressar 0 68 envolvimento do Criador transcendente com sua eriagao; ora consolo erer que havia um plano divino por detras do aos sem sentido dos fenémenos. Era 0 tinico antidoto ao pessimismo gerado pelo contato com a realidade. Uma vez que sua atengio tinha sido arrastada para esta perspectiva, Paulo teria vista imadiatamente a relevan- cia para sua situacao/(Bra Cristo que dera sentido & propria vida; mediante le, tudoentrou em seu h ‘ais se-falava da Sabedoria meramente falada como inserida na lei (Eclo 24), ela estava presente em poder. A especulagao sapiencial judaica ndo levou Paulo a pensar de Cristo em termos outros que humanos. Ao invés, 0 fato de Cristo fornecia a chave para a compreensao correta da inaneira como a Sabedoria de Deus agia no mundo. (Resumindo. Filho, Senhor e Sahedoria sao-usados_ ue cartas paulinas, nfo para cugerir dimensio cupr humana em Cristo, mas para iluminar diferentes fa tia mediagao de Cristo entre Deus e suas criaturas/Sa- edoria frisa que Deus tem um plano para a humanidade, Filho mostra queeste plano ¢ inspiradonoamor. ESenhor yarante o poder necessario para leva-lo a termo. Os trés ‘ispectos estdo unificados naquele que desdobra a criati- Vidade do Novo Adio. 0 LEITURAS SUGERIDAS oor The Humanity and Divinity of Christ, Cambridge University Brown,R. E.,“Doesthe New Testament Call Jesus God?” em Theologi ‘Studies 26 (1968), 645.676: reimprenso erm sua abra Jesus God eed Man, Chapman, Londres, 1968, ‘Metzger, B.M.,,"“The Punetuation of Rom 9:5", em Christ and S "em Christ and Spirit in the New Testament, Studies in Honour of C. F. D. Moule (ed. B. Lindars and $8, Samaley), Cambridge University Press, Chicago 1975, 95- Dunn, J. D. G., Christology in the Maki re - Dunn. J.D. ing, SCM, Londres, 1979, ca. Robinson, J. A. T., The Human Face of God, SCM, Tandres, 1972. 70 OO A DIVISAO DENTRO DA HUMANIDADE Ao ser iluminado pela autenticidade da humanidade ilo Cristo, o mundo surge dividido em dois campos. Paulo {om muitos rétulos para esses grupos. O contraste entre \)""Homem Velho” e o “Homem Novo” (Rm 6,6; C1 3,9-10) yon logo & ment descrigio mais fundamental, win, € 0 contraate entre “vida” e “morte”. vos” @, outros, “mortos”. “Vida” e “morte” Uma das dificuldades de entender Paulo é criada por ua tendéncia a usar 0 mesmo termo com significados jnuito diferentes em varios contextos. Os termos, com que ‘ora temos de tratar, fornecem um caso em foco, porque blo usa os nomes “vida” e “morte” (e os verbos correspon- Jontes) em trés sentidos diversos. 0 primeiro sentido de “vida” énormal, odaexisténcia lo dia-a-dia, como se ilustra pela afirmagao: “Embora vivamos, somos sempre entregues & morte por causa de Joss” (2Cor 4,11; ef. Rm 8,38; 1Cor 3,22), Este texto jovela também ’0 significado correspondente de “morte” omno o termo da existéncia terrena,!Neste sentido, 0 uso, {jue Paulofaz de “vida” “morte” éexatamente paralelo a0 hhosso uso conternporéineo. /) nN O segundo sentido de “vida” é a vida eterna. Normal- mente Paulo emprega a expresso plena “vida eterna” (Rm 2,7; 5,21; 6,22-23; Gl 6,8), mas em duas ocasides abrevia esta dizendo simplesmente “vida” (Fl 4,3; 2Cor 5,4). E bastante claro pelo contexto que se trata de vida celeste depois da morte fisica em ambns os casos. Correspondendo a este conceito de vida eterna, existe uma série de textos em que “morte” funciona come formu. la abreviada para ojulgamento escatolégico negativo que serd pronunciado sobre os pecadores (por exemplo, Rm 6,21; 7,5; 8,13)-fPanta “vida” como “morte” neste sentido #40 consistentemente apresentadas como realidades do tuiFo, — ae terceiro sentido de “vida” e “morte” é 0 mais dificil dese determinar. Um ponto claro é que se deve distinguir dos outros dois. Quando Panlo diz: “Vée que catdvei mortos... Deus vos fez vivos" (Cl 2,13), é evidente que nao se pode tratar de vida e morte fisicas, porque “morte” 6 predicada dos que estado fisicamente vivos, edaqueles que estao vivos fisicamente se diz que sao “feitos vivos” em outro sentido. F igualmente ébvio que nao se pode tratar de vida e morte eternas, porque estas so realidades do futuro, ao passo que “vida” e “morte” de que fala esta afirmacdo sao realidades do passado e do presente. Com certeza, existe relacdo entre “vida” e “morte” de que se trata aqui ¢ a vida/morte eterna, porque ado somente os que estao “vivos” neste sentido que aleancarao a vida eterna. Dai, poderiamos dizer que “vida” neste sentido é a “vida eterna em forma embrionéria” (como muitos es- tudiosos fazem), mas essa seria uma solugao meramente Yerbal, uma resposta aparente, mas nao real. Tudo o que “vida eterna embriondria” pode significar é uma potencialidade para a vida eterna. O que nos interessa é condicao em que essa potencialidade se enraiza. ‘Tradicionalmente, “vida” e “morte” neste terceiro sentido tam sido entendidas por tedlogose exeyelas influ enciados por consideragies dogmaticas como “vida espiri- tual” (= graca) e “morte espiritual” (=auséncia de graca) n im movimento ulterior, adiferenea tem-se expressado na forma: “vida” = vida sobrenatural, ao passo que “morte” = vida natural. . Podemos conceder imediatamente que existe pelo menos um ponto de contato entre a distineao paulina de vida” @ “morte” e a distingao dos tedlogos de “sobrenats ral” ¢“natural”. Paulo insiste que é impossivel a humani- dade passar sem ajuda do estado de “morte” ao de “vida”, (0s tedlogos fazem a mesma observacaio com referéncia & passagem do “natural” ao “sobrenatural’/Serd suficiente hos permitiradmitir que o sentido de Paulo éidéntico com, () visado pelos tedlogos? O que ja vimos em capitulos jnteriores sugeriria que nao 0 6.5 = ‘Aotratar do levantamentoda historia da salvagaoem Rim 7,7 a 8,4 (supra p. 43), observou-se que Paulo predica “vida” de Adao antes da queda (Rm 7,9). Addo, como saiu {day maos do Criador, era precisamente o que Deus visava que fosse. Era essa sua condigao “natural” ou “normal” ‘Tudo o que Adio possufa antes da queda era natural & humanidade. Este estado natural foi recriado em Cristo (Iti 8,2), e vimos a insisténcia de Paulo em que Cristo era norma da humanidade. Essas observacoes tornam claro que Pauloeos tedlogos véem oqueé “natural” dediferentes porspectivas. Os tedlogos tomam o estado decaido da humanidade como sua condieso naturale, em conseqién- ela, sa forgados a considerar a “vida” trazida por Cristo (ito don sebrenatural. Paulo, por out lado, uma Wee {iuo comega, nao da humanidade como ela é atualmente, jas da intengao divina, vé o estado decaido como a (ondicao natural da humanidade. A restauracdodo estado on Cristo é dom, mas para ele nada de sobrenatural esta onvolvido.(Cristo em sua humanidade 6 precisamente 0, Jie Deus visow_desde-o-inicio, nao _m menos Vida" no sentido paulino é, portanto, ndo graga que eleva. (i hatureza humana a nivel mais elevado, mas simples Ionte a navurez: ina em sua © dente O que entendeentio Paulo pelotermo correspondent ‘norte"? Longe de ser o estado natural da humanidade, B como pretendem os tedlogos, nossas observagoes prece- dentes permitem-nos afirmar imediatamente que ele denota estado nao-natural. Se “vida” é a palavra paulina para a condigao normativa da humanidade, entao “morte” visa evocar uma condicao anormal. Se aqueles que esto “vivos’ sao verdadeiramente humanos,enlanagielesqiie estao“mortos” sao subuman A aproximagdo existencialista & humanidade A sugestao segundo a qual Paulo considerou grande segmento da raga humana como subumana é tao cotra nha que exige ulterior explicagdo. Temos de perguntar por que adotou este modo de ver, e a resposta torna-se clara uma vez que reconhecemos que esse modo de se achegar & humanidade aproxima-se muito de perto ao do existencialismo moderno. A primeira vista, pode parecer anacrénico pretender que a filosofia de Paulo era a do séc. XX, mas é agora admitido que o existencialismo tem suas raizes nos mesmos inicios da reflexao humana. Paulo nao era heideggerianonem seguidor de Kierkegaard ou Sartre, mas seu tratado basico da natureza humana cra paralelo a0 deles e, em conseqiiéncia, as categorias que desenvol- veram sao de grande ajuda para nos capacitar a captar 0 que visava. O ponto de partida existencialista é fenomenolégico— Comega com a realidade como observada, mas nem todos. ‘os segmentos da realidade tém o mesmo valor. A distincaa basica € entre coisas e pessoas./Coisas so aquelas reali- ‘dades que podem ser agrupadas numa classe sem fazer nenhuma violéncia as unidades individuais. Assim, co- nhecer uma bola de futcbol é conhecer todas as bolas de futebol. Do conhecimento do comportamento de uma bola de futebol, pode-se predizer a “performance” de todas as 4 ouilras bolas de futebol em circunstancias idénticas. Sea Hola de futebol A lancada com forea X na condi¢ao de vento Y voa em certa trajetéria, todas as outras bolas de futebol Jancadas com a mesma forga nas mesmas condigdes de vento voara precisamente na mesma trajetsria. Isso nao vale das pessoas. Conhecer a reacao do individuo A em (luda situacdo nao é nenhuma base para predic&o »neernente a reacao do individuo B em precisamente a jnesma situacaofA razao disso é que a pessoa goza d {ipo mais complexo de ser que a coisa. Seu ser esta sujeito ‘\ modificagao de uma forma que o ser de uma coisa nao, eat ‘A consideracao existencialista concentra-se, portan- lo, na pessoa antes que na natureza em geral, e esté tio \mpressionada pela diferenca entre pessoas e coisas que fo recusa a definir a pessoa de qualquer forma que possa parecer colocd-la em relac&io com o mundo nao-humano. Iso ocorre quando, por exemplo, a pessoa é definida como inimal racional, porque essa definicao toma a pessoa como apenas uma espécie dentro de uma categoria genérica— jue inelui eoisas{\Este existencialismo ¢ mais fiel & visdo_ iblica que, ao definir as criaturas humanas como “a_ jmagem de Deus”, opera radical clivagem entre a pesso: o oresto da realidade criada. Esta, devemos esperar, seria também a eonsideraeao de pastor tal como era Paulo, porque u seu Interesse visa s pessoas © nao As coisas? Em sua observagio da pessoa, a consideragao oxistencialista reconhece que o individuo muda continu- mente. Toda nova situagao significa uma experiéncia cuija conseqiiéncia é mudada. O individuo que passou por uma guerra, ou uma doenga grave, ou um caso de amor, nao 6 a mesma pessoa depois como antes. Daf, 0 oxistencialismo é forcado a definir a pessoa, nao em lermos estaticos fechados, mas de maneira de finalidade aberta que leva em conta este fato de experiéncia. Modi- ficagoes, porém, sao introduzidas por uma situacao vivida somente & medida que as implicagées da situagdo sao conseientemente assimiladas e entao aceitas ou rejeita- 8 das. Reflexao e escolha sao essenciais. O existencialismo define, em consequéncia, a pessoa como possibilidade determinada pela decisao. Palavras mais graficas so fornecidas por estudioso do sée. XV, Giovanni Pico della Mirandola, que descreve Deus dizendo ao homem: “Tu, como um juiz indicado por ser honoravel, és 0 modelador ¢ fazedor de ti mesino} Lu deves esculpir-te em qualquer forma que prefiras”. (Oration on the Dignity of Man, trad. A. R. Caponigri, Chicago, 1956, 4-5)/A pessoa é entidade que pode dar-se a simesma diversas orientacoes por meio” das escolhas que faz. Como resultado dessas decisoes, a \ pode existir em diversas formas,c, : O tipo de decisdo que uma pessoa pode fazer 6 limi- tado pela estrutura do seu ser. Nenhum ser humano pode lancar-se do topo de um edificio de vinte andares sem nenhum equipamento e decidir voar ao chao. Igualmente, ninguém pode decidir ver através de uma paredede tijolo, Por outro lado, da divisao fundamental na realidade, nenhum animal pode decidir escrever um livro. Dai, 6 existencialista afirma que cada tipo de natureza é cons. titufde de um leque fixo de possibilidades. O escopo atribufdo a pessoa é muito maior que aquele quese atribui ao animal, mas nao ¢ infinito, Este leque de possibilidades serve como critério pelo qual os existencialistas julgam as decisoes que a pessoa faz, pois nem todas as decisdes sao do mesmo valor Alguinas decisoes tornam a pessoa auténtica, criam sua verdadeira identidade, ao passo que outras fazem a pes- soa inauténtica, porque nelas o verdadeiro eu se perde. Até este ponto, todos os existencialistas estariam no essencial de acordo, ainda que suas formas de expressao se diferenciassem largamente. Mas no momenta em que alguém perguntasse quais sao precisamente as possibil;. dades distintivas dadas com anatureza humana, cessaria 76 consenso, Para 0 cristao, isso dificilmente surpreende, porque a humanidade, ‘que é 0 objeto da andlise fonomenolégica, é defectiva. Nao é a natureza humana como tal, mas @ natureza humana decafda. Ao recusar \ulmitir isso, 08 fildsofos se lancam a descrigdes de autenti (Inde cuja variedade ¢ indicativa de sua subjetividade e cujo contetido evidencia desespero mais do que esperanca. Paulo, porém, estava isento desta triste situacao. Por ua compreensao da revelagao tal como se focaliza na humaniade de Cristo, estava convencido de que a riatividade com respeito aos outros era a possibilidade distintiva da natureza humanagA criatura humana foi lrazida ao ser justamente para exercer amor carregado de tnergia que haveria de capacitar os outros aserem eria- livos na mesma ordem de ser. Os que falham em atuar usa possibilidade niin evistem como Deus protendeu que stissem, Neste preciso quadro de referéncia, eles po- ‘lem ser ditos ndo-existentes. Essa é uma aproximacao bastante préxima do que o semita entenderia por morte Morte ndo era aniquilacao, mas a antitese da vitalidadee Jo movimento que caracterizavam 0s viventes. Os mortos ram apenas sombras de seus antigos eus ativos. Para Paulo, o5 que ndo amavam eram nada daquilo que podiam ‘ deviam ser, e ele simplesmentecarregava essa nogio até 6s limites do realismo, ao proclamé-los “mortos”/f tam- hsm provavel que por esea esoolha do termo Paulo visasse insinuarqueaqueles quetinham optado pela inautenticidade nao podem, sem ajuda, mudar oseu status;osmortossoser poder para se ajudarem a si mesmos, Se os verdadeiramente humanos sio aqueles que atuaram a capacidade de amor criativo inserido em seu wer, ent&o os que falham em atuar essa potencialidade sao hao-humanos, ou subumanos. Reag&o instintiva contra essa conclusao é inevitavel. Diz-se que ela tem ressaibos de filosofia nazista. Levanta-se a objecdo de que parece yveduzir a maioria da raga humana ao nivel de “cuisus”. Bste, de fato, nao 60 caso, porque inserida em seu ser esta ‘permanente possibilidade dese tornarem autenticamente n humanos. Isso nunca é verdade das “coisas”, porque somente as pessoas tém a capacidade de modificar o set, modo de ser. Todas essas expressées da reacdo portam @ aura de sa respeitabilidade, mas a reacdo n&o esta enraizada na atitude de caridade para com outros. B baseada no medo do desafio que imediatamonte nos con fronta, se a conelusio for aceita. confortante pensar que todos os que caminham eretos sobre duas pernas e falam a0 humanos, ¢ acreditar que a humanidade est dada. B desconcertantee perturbador descobrirqueahumanidade 6 de fato algo a ser conseguido, que 0 nico caminho para esta meta é 0 esforco continuamente criativo voltado aos outros. Essa exigéncia nos amedronta, e nos esforcamos para transformar 0 nosso medo em algo socialmente acalbdvel, tomando uma posicao sobre a dignidade do jo \iayn comunicar ao sugerir a diferenga entre Cristo eo {div raga humana. E 0 que se manifesta em duas siny(ons: “Deus... (envio) o seu proprio Filho na seme- J\yi1 (da carne pecaminosa” (Rm 8,3): “Tendo-se torna- J) jn somelhanga de homens, e tendo sido encontrado na jun como homem? (F122). atin jmbos og textos parece haver curiosa hesitacao_ t »dondamente que Jesus era homemJNa heresia Jiioli, ostes textos receberam grande preeminéncia por- “ji pareciam apoiar a pretensao de que Jesus nao era MU hdeirarmonie homer: ele poasafe meramente a ape- {opin de homem, sem ser homem realmente. Que isso Jy orn intengdo de Paulo é claro de suas afirmagées que jiyiip “nasceu de mulher” (GI 4,4), que ele “descendia da wv de Davi segundo a carne” (Rm 1,3) e que possuia wrpo de carne” (Cl 1,22). i afk atitude. de Paulo condena nossa complacénei Tixiste matiz nestes dois tiltimos textos que indica o iplica aurgéncia tremendaque sentiu em seu apostolado, yordadeiro rumo do pensamento de Paulo. Falam de Levar o amor eriativo de Deus.em Cristo a outros nao eral Mhyno”, a0 passo que a passagem que usa “semelhanca” um extra gratuito. Bra a tnica maneira de restituir as n aa ini de s pessoas a dignidade da humanidade auténtica, Ele nao” yi nenhuma distingao entre cristianismo.e humanismo,_ Porque a tinica maneira de ser autenticamente humano- era por Cristo, Para sair do estado subumano de “morte” Puss ‘vida”, a pessoa deve receber o amor criativo de- "into, 6 588 pos , @ essa_possibilidade é percebida somenle po agueles que exercem a me: ii de ee sma criatividade em beneficio {uli de “carne pecaminosa’\Ora, “carne” é termo ambiguo ip léxico de Paulo. Pode ser tanto descrigio neutra da Hiiionsao fsica darexisténota humana como pode conotar Jiljamento negativo de valor com referéncia a {is oxisténcia, Quando Paulo diz. que Jesus tinha “corpo! ‘ne”, ou que ele era judeu “segundo-a.carne”, simples- jhjonte evoca a dimensdo fisica de eua oxisténcia.fCarne juvaminosa”, por outro lado, implica claramente julga- jionto negative de valor, ea énfase de Paulo é que, embora purtilhando da facticidade da existéncia humana, Jesus hilo cai sob ojulgamento de valor ligado aquela existén- (in por causa do peeado humano. Apoio para essa interpretacdo fornece-o 2Cor 21: “Aquele que nao conhecera 0 pecado, Deus fez peca- {lo por causa de nés”. Para entender essa afirmagao (orretamente devemos refinar 0 nosso conceito de pecado {jo lal sorte que entre eu isha com o de Paulo. Para néa, pocado nada tema ver com a “humanidade”, porque todos }n6s com muita freqiiéncia entendemos pecadoem contexto Semethanga ‘Uma vez que vimos que a natureza humana pod ati 7 2 existirem duas modalidades distintas (que Paulo destgna ‘vida” e “morte”), torna-se possivel entender o que Paulo 8 9. estritamente legalistico. & ato ilegal que arrasta sobre nés a ira do legislador (Deus) e nos torna dignos de punigao, Se o ato tem algum efeito sobre nossas pessoas 6 © papel que ele exerce na criagao ou no reforgo de mau habito. Para Paulo, 0 efeito do pecado era muito mais profundo. “Se eu faco o que nao quero, j4 nao sou eu que ajo, e sim o pecado que habita em mim" (Rm 7,20)/Pecado é para a qual foi feita a criaiura humana, ou como P coloca mais graficamente: “O salario do pecado é a morte” (Rm 6,23), isto é, 0 efeito do pecado é produzir nao- existéncia no sentido explicado na secao anterior )A esta altura, mas ao nivel muito mais profundo, reencontramos a idéia de pecado como alienacao de Deus que integra a visio crista. John Macquarie formula a relacao com sua costumeira clareza: A medida que o homem decai de sou verdadeiro eu, ele decait também do ser que Deus Ihe deu. Esta, pois, negandoa Deus ese rebelando contra Deus, cujo mandamento é vida — ou seja, a existéncia auténtica para a qual foi criado (Rm 7,10). Alienacao de Deus segue a alienacio do eu auténtico (An Existencialist ‘Theology, Londres, 1965, 108) J.Pela perspectiva de Paulo, portanto, dizer que Jesus nao pecou ao passe que outr6s o fizeram, ¢ equivalente a ‘dizer que Jesus nao existiu da mesma maneira que eles; O seu uso da frase “a semelhanca de” é totalmente justi ficado porque Jesus estava “vivo”, a0 passo que outros estavam “mortos”. John Knox hesita em ir tao longe eesté inclinado a achar erro em Paulo porque “pecadb... perten- ce tao inseparavelmente A humanidade real”, pelo que quer dizer que 0 pecado 6 “algo na atual natureza do préprio género humano”. Com efeito, pois, ao dizer que Jesus era sem pecado, Paulo “se acha introduzindo, talvez sem intengao disso ou mes sabendo que estava fazendo assim, uma alusdoairrealidade da carne” (The Humanity and Divinity of Christ, pp. 50-52). Isso, com certeza, n&o 80 alienacao do eu auténtico. E rejeicao da humanidade_ % joyue absolutamente. Knox langou-se em impasse jyisjue falhou em distinguir entre os niveis ontoldgico W\(ioo da natureza humana, e admite que Paulo fala do lve! ontoldgico quando de fato esta interessado somente jy nivel ontico/O nivel ontolégieo é constitufdo pelo leque ily pousibilidades que compoem a naiureza humana. “jjoilo nivel Jesus é absolutamente idéntico com os outros | Bi stnorohumano}A dlferenga por que se intareesa Paulo yoin no nivel Ontico, o dominio da existéncia real em que uns possibilidades surgem atualizadas ou nao- {luulizadas. O pecado, por comum que possa ser, nfo est4 \jyplicado na estrutura ontolégica da natureza humana, |) moramente uma das opedes abertas a criatura humana. Uma vez que isso se reconhece, fica imediatamente evi- \ionte que é possivel haver um individuo perfeito, ou seja, al pocado.[Se_ .a0_tivess Joderiamos eonveneer-nos de que 0 modo de existéncia Janifestado pelo mundo nao era a tinica opgao aberta i }umanidade. Humanidade e ressurreigéo Aessa altura, torna-se possivel tratar de outra afir- macao feita por Knox e que reflete consenso bastante umplo entre os estudiosos de Paulo. Ele retém que “Jesus tornou-se 0 Novo Homem na ressurreicao" (0.c., p. 84){A implicacdo imediata deste modo de ver é que durante-o iompo de sua vida terrena Jesus nao exibitia perfeicao da~ -a humana/Isso nunca esta claramente afirmado, nas as insinuagdes sutis sao numerosas. F bvio que o modo de ver de Knox esta condicionado pelo que admite (faio notado acima) com respeito & ndo-pecaminosidade de Jesus e, em vista do que foi dito, podemos passar sobre 8 este ponto. Em parte, a posicao de Knox est baseada na afirmagao paulina segundo a qual Cristo ganhou algo por gua ressurreiedo. O Apéstolo pretende que Cristo fol “constitufdo Filho-de-Deus-em-poder” (Rm 1,4) e que ele “se tornou um espirito doador de vida” (ICor' 15,45). Se a sugestio segundo a qual Cristo atingiu a humanidade Perfeita so mento como conseqiiéncia de sua ressurreigao deve ser rejeitada, entao uma explicagao alternativa deve ser proposta para essas afirmacoes, 40s textos que apresentam Jesus como a incorporacao_ da humanidade auténtica sio mui ito claros para serem ignorados, e vimos que para Paulo essa autenticidade choga a stare expressdes mais claras na morte de Cristo, © problema, pois, ¢ explicar como Paulo pode falar de aumento de poder depois daressurreicéio. Aresposta deve ser encontrada na convergéncia de varias linhas de pen. samento, O proprio conceito de ressurrei¢ao envolve tanto perda como restauracao. Isso esta claramente formulade numa das mais antigas afirmagses judaicas referentes ao significado da ressurreicéo: “O criador do mundo que formou o homem em seu nascimento e deu origem a todas as coisas, é quem vos dard de volta oespiritoe a vida, uma ez que agora fazeis pouco caso de vés mesmos, por amor as suas leis” (2Mc 7,23). Toda ressurreigao é, pois, em sentido muito real, um ganho. Deve se também reler que 0 unico Jesus que Paulo conhece ¢ 0 Cristo Ressuscitado, e ndioé ir além dos limites depossibilidade razoavel presumir que Paulo viu diferenga entre oque Jesus, atingiu duranteo seu ministério terreno © © que atingiu no perfodo pés-pascal. A possibilidade & reforcada pelo que sabemos de seus contatos com a igreja de Jerusalém (Gi 1,18-19; 2,1-10). A comunidade creseee te de Jerusalém, para nao dizer nada do proprio sucesso de Paulo, ter-se-ia situado em saliente contraste coin os 82 “vida” de Cristo, e isso haveria de aparecer inevitavel a ijlqucm habituado a pensar no padrao do Antigo Testa- inonto de humilhacao e recompensa, padrao que se ma- Hifesta claramente em Fl 2,6-11e 1Tm 3,16. A reviravolta na evolueao sé podia ter sido a ressur- Joico, e se deve recordar aqui. que Panlo nao: faz: nenhuma, (lintingao radical entre a morte e a ressurrei¢ao de Cristo: “Cristo viveu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,95 ef, 4,25; 2Cor 5,15). Dentro do quadro do ponsamento semita, a ressurrei¢ao era necessdria, se 0 winor doador de “vida”, que fora focalizado em sua mais iiita intensidade no ato de morrer de Jesus, devia ser pormanentemente eficaz. Essas trés linhas de pensamento convergem para {hostrar como Paulo péde falar como falou. Flas revelam (le nao existe nenhuma contradigao intrinscea entre o \iue se disse com respeito & morte de Cristo como a jliprema expressdo da atitude dominante de sua vida eo ponceito de: ressurreicao com arestauracaoda humanidade através da ressurreico com 0 seu poder aumentado de ilonr “vida”/Um ponto final deve is é possivel pura outros seres humanos atingirem a humanidade” Hiléntica dentre do quadro dewin mundopecador, nto hé jonhumarazao para negar que Cristo o tivesse feito, e de Nilo 0 fez, mesmo antes de sua ressurreicao. E a es: Aypeeto que devemos nos voltar agora.(*) A gloria de Deus (\Ja tivemos ocasiao de notar que, de acordo.com_a_ \wndigao judaica, “x gloria de Deus” era uma qualidade que_ Adio perdeu come cons u pecady(p. 447-1880 \linige nossa atengao para uma série de textos em Paulo (jue nem sempre recebem a atengio merecida. 83 Falando dos que estao “mortos”, Paulo diz: “Todos pecaram e todos estao privados da gléria de Deus” (Rm 8,23). Os que esto “vivos”, ao invés, sao classificados como “a imagem e gloria de Deus” (1Cor 11,7). Aestranhe- za dessa linguagem fica um tanto aliviada quando reco- nhecemos que o genitivo pode ter dois significados bastan- te distintos. Por um lado, pode ser genitivo subjetivo ¢ nestecaso “gloria de Deus” significariaagloriapertencente Deus. Este é 0 sentido normal no Antigo Testamento, ondea frase denota os concomitantes visiveis da presenca divina. Por outro lado, o genitivo pode ser objetivo e neste caso “gloria de Deus” significaria a gloria dada a Deus. Somente este tiltimo sentido se adapta ao contexto dos textos de que estamos tratando. Isso esta particularmente claro em Rm 3,23, que s6 pode signifiear que os pecadores sin ineapazes de dar gloria a Deus. O Antigo Testamento fornece um paralelo préximo: “Um filho honra o pai, um servo teme 0 seu senhor. Mas se eu sou pai, onde esta minha gloria? Se eu sou senhor, onde esta o meu temor? Disse Javé dos exércitos a vés, 0s sacerdotes que desprezais o seu Nome” (M11,6). Um filho da gloria ou, como dirfamos, honraa seu pai por respeito manifestado na obediéncia. Por sua desobediéncia, os sacerdotes de Israel recusam a Deus a honra que lhe é devida. O profeta pensa dentro do quadro fornecido pelas preserigses da loi mosaica, Isco nao é verdade de Paulo, que nunca apresenta a lei comocritéri Os que estiio “mortos” sao onticamente i incapazes de dar nra a Deus. 4 veer apacidade de dar honra a Deus & restaurada somente através da {¢ (Rm 3,21-22), e é significative que © Apocalipse de Moisés iguale “gléria” com “estado de justica” (20,1-2). Esomente enquanto restaurada em Cristo que a humanidade nao é apenas a “imagem”, mas também “a gloria de Deus” (1Cor 11,7). Por essas duas formulagies, Paulo provavelmente reage contra a idéia, prevalente em circulos judeus, de que o eonceito de “ima. gem de Deus” primariamente se relacionava com 84 jolencialidadedEle acrescenta_a nogao de “dar gloria” )recisamente para evitar essa interpretagao. Um produto, {lofeituoso nao reflete nenhum crédito para o seu produ- \or. A eriatura humana, porém,honra aquele quea fez _ (uandoela 60 que Deusvisou que fosse. “Gléria”, portanto, ninima da “vida” entendida no sentido de humani- (ude auténtica Como podiamos ter esperado, Paulo predica “gléria” primariamente de Cristo (2Cor 3,18; 4,4; 21's 2,14), por- que ele é 0 exemplar de humanidade auténtica. Ele é a primeira criatura humana desde a queda a dar perfeita honra ao Criador simplesmente por ser 0 que ele era, e por usa dele outros individuos podem adquirir este status ‘os tessalonicenses Paulo diz: “Paraiso Deus voschamou por meio de nosso evangelho, para que obtenhais a gloria le nosco Senhor Jesus Cricto” (2To 2,14)A meta do rmitiraraca humanaatingirahumanidade ‘vez que 08 tessalonicenses aceitaram esse na posse da autenticidades Essa posse as incoativa e progressiva, como Paulo o frisa aos corintios: “Nés todos com face descoberta contemplando a loria do Senhor somos transformados na mesma imagem «de gloria em gloria” (2Cor 8,18). Temos ai uma associagaio de “imagem” com “gléria”, o que também ocorre em 1Cor 11,7, mas 0 pensamento é aprofundado & medida que Paulo sublinha a relagado entre a humanidade auténtica de Cristo ea dos fidis/Aceitacdo da humanidade de Cristo_ como modelo e norma é o inicio do proceso, e ¢ isso que Paulo pretende sugerir pela alusao & contemplagao’Mas contemplagao~so nao é suficiente. Mudanca real deve ocorrer. Eles devem ser “conformados & imagem do seu iho” (Rm_8,29), e tal conformidade acontece somente \ediante imitagao: “Vés vos tornastes imitadores de nés edo Senhor”(1Ts 1,6); “Tornai-vos meus imitadores, como ou sou imitador de Cristo” (1Cor 11,1).\Trata-se de modo we ser, de padrao de compurtaiento, cuuie Paulo frisa expressamente: “Exorto-vos, portanto, sede meus imita- dores. Foi em vista disso que vos enviei Timéteo... ele vos 85 reeordard minkas normas de vida em Cristo” (1Cor 4,16- 17)/A medida que o seu comportamento expressaro amor criativo que distinguia a humanidade de Cristo, os eren- tes possuirao a “gloria”, Eles dao crédito ao seu Criador, O interesse de Paulo pela realidade (enquanto oposta & mera teoria) evidencia-se na frase “de gloria em gléria”. A perfeigao da humanidade é inaugurada pelo ato da conversao, mas com ele aindanaoé possuida plenamente. Paulo reconhece que os crentes devem e podem crescer no amor (F11,9), e uma vez que o amor é a pedra de toque da autenticidade, todo aumento de amor significa aumento de autenticidade. Paulo foi forcado a essa conclusio pela experiéncia das comunidades pelas quaisera responsavel. A decisao pela “vida” é uma rejei¢éio absoluta do modo de ser que ele chama de “morte”, mas ao nivel da vida pratica ha com muita freqiiéncia desvio, porque as atitndes 0 os padroes de comportamentocaracteristicos da “morte” nao sao erradicados por decisao singular contréria/Autenti-- cidade real, em conseqdéneia, é questo de luta continua, ¢ numa ultima seeao teremos que discutir que tornam a vitéria possivel. 7 Aessa altura, duas questdes surgem naturalmente. Quais sdo as estruturas da “morte”, e quais as estruturas da “vida”? Em outros termos, quais s4o as manifestagoes concretas dos dois modos de ser abertos a criatura huma. na? As duas partes que seguirao apresentam a resposta de Paulo a essas questées, Os pormenores, que vém a luz ao se enfrentarem essas questoes, esclarecerao 0 que jé foi dito, mas parece apropriado tentar sintetizar aqui as intuigdes que conseguimos até 0 momento. 4Ser humano ¢ ser criatura, ¢ assim necessariamente rem relaco de dependéncia como Criadon As criaturas humanas, porém, nao sao fixadas no seu ver 86 como 0 sao 08 animais. Nao existe nenhum progresso ‘nutométtico no modo de ser querido pelo Criadon’0 ser das, criaturas humanas é tal_que elas podem_se dar a_si ‘smaas diversos modos de existéncia. Tornam-se 0 que_ oscolherem tornar-se, e essa escolha situa-se sob duas mentais: “vida”, queéhumanidadeauténtica, que é humanidade esptiria/Adao um dia pos- suiu a humanidade auténtica, mas a perdeue, até Cristo, (odos partilhavam dessa perda. Ahumanidade verdadeira entrou de novo no mundo na pessoa de Jesus Cristo; em endo assim, deve ser a base de toda antropologia crist enuina, O que foi distintivo na humanidade de Cristo foi mor eriativo que realizou plenamente a intengaodivina »criar os seres humanos & imagem de Deus. A realidade dleste amor, cujo poder Paulo sentiu em sua prépria pessoa, forgou 0 Apéotolo a conatatar que a essa possibi- lidade inserida no ser humano nao se dava nenhum Ingar hia eompreensio de seus contemporaneos sobre o que ignifica serhumano. Sua visdo era limitada pelos padroes de comportamento que eram capazes de observar e, em conseqiiéneia, aceitavam como normais atitudes que es- tavam em radical contradigao com a criatividade que Paulo via em Cristo/Sua conseiéncia da historicidade da_ humanidade de Cristo capacitou a Substituiroseritériog deseus contemporaneos com nova visao do que.acriatura hu er na podia e devia tornar-se. Bsiava cunvencido de nao estar propondo idéia utépico porque houve alguérm qteotinha de fato vividoe dese modomorrera. Constatou (ue para ser como Cristo foi, anatureza humana precisava_ ¥ capacitada para tanto, mas esse amor se tornou el no a sto. O tinico caminho para a lorma de humanidade desejada pelo Criador jazia em se ntregar a esse amor. 87 LEITURAS SUGERIDAS Nélis, J., “Lantithese littéraire zoe-thanatos dans les épitres pau- liniennes, em Ephemerides Theologicae Lovanienses 20 (1943), 18-35. ‘Thomas, R.W.,“The Meaning of Life’ and ‘Death’ in the Fourth Gospel, and in Paul”, em Scottish Journal of Theology 21 (1968), 199-212. Macquarrie, John, An Bsistencalist Theology, SOM, Londres, 1965, cap. 2. Id, Bxistencialism, World Publishing Co., Nova York, 1972, eap. 3. Coppens, J.,“La gloire des croyants d'apres les lettres pauliniennes”, IPARTE em Ephemerides Theologieae Louanienses 46 (1970), 389-392, A SOCIEDADE 88 “Oo O PECADO E 0 MUNDO Um livro com o titulo Pagéo e cristéo numa era de (nsiedade dé a impressio de que deve haver conluio para ‘iylio combinada em face dos numerosos problemas pro- ilutores de ansiedade que confrontam nossa geracio, a {orrida armamentista com sua propensao para a guerra Nuclear, falta de alimentos, explosées raciaic. O eeu iuilor, E. R. Dodds, 6, de fato, historiador e interessa-se jjolos primeiros trés séculos de nossa era. le tem pouca {iificuldade em mostrar que, a partir do séc. 1 d.C. em dinnte, uma visio profundamente pessimista de huma- hidade penetrou as diversas culturas do Mediterraneo oriental, Havia profunda sensagao de que algo ia mal, 0 ue, quando ligado @ admissao da responsabilidade hu- nna, produzia sentimentos de culpa bastante difusos. Uma vez que estes nao eram focalizados em nenhum objeto prociso, dava origem av sentimento de futilidade, uma vaga ‘onvicedo de que a atividade humana nio tinha nenhum wontido real, aquilo que era “absurdo” no sentido de Camus, {jue tomou Sisifo como o simbolo do género humano — um Nori mitico condenado a passar seus dias rolando uma yocha para o cume de um monte somente para vé-la sempre ‘jcapar de novo de sua garra e cair de volta ao sopé. (Os judeus reconheciam o mesmo problema, mas, porque criam no Deus que controlava a histéria, sua Yosposta era de esperanca resignada)Sua esperanca do adyento de um Messias dava-Ihes a forga para levar as coisas avante, mas eram tao pessimistas como os seus Vizinhos gentios quanto & possibilidade de mudar a con- 91 * dic&o humana surgida de dentro da situagao histérica. Somente Deus podia criar um mundo novo onde a huma. nidade seria como o Criador desejava. Paulo, portanto, nao earecia da figura de Cristo para torné-lo consciente de que a situagao humana estava distorcida edividida, Essa consciéncia Iheera comunicada pelas duas culturas com as quais entrou em contato, eas condicdes nas cidades portuarias em que trabalhava di- ficilmente conduziam a uma visio favoravel da natureza humana. Sua convicgdo de que ahumanidade decaira nao tinhanadaa ver com Cristo. Noentanto, sua anélise deste estado decaido est relacionada com sua compreensio de Cristo de dois modos. Em primeiro lugar, a possibilidade de existéncia revelada na humanidade de Cristo deu-lhe um instrumento que lhe permitiu selecionare iluminar os. fatores-chave que contribuiram para a atual condican da humanidade. Onde outros viam tanto erro que nao sabi- am por onde eomecar, ele era capaz de estabelecer uma hierarquia nas causas que produziam as condigoes que observava)Em segundo lugar, a perspectiva coneedida a ele por Cris ‘0 forcou-o a alinhar os judeus com o resto da amanidade, e a negar a posicio privilegiada que eles tendiam para si'mesmos. ), A humanidade como “morta” Jé tivemos ocasiao de falar do levantament Paulo fez da historia da salvacao em Rm 7,7 4 8:4 neg naquele momento 0 nosso interesse voltava-se para o Primeiro eo terceiro estagios que mostravam a relacao de Adio e Cristo com a “vida” (ef. p. 43). O segundo estagio (Rm 7,14-24) descreve de forma muito grafica a sitnasae da humanidade antes da vinda de Cristo, ¢ é a esse que agora nos voltamos porque ele revela os elementos-chave 92 onlruturais do estado de “morte”. Ao se ler essa passagem, « preciso ter em mente que 0 “eu” representa nao simples individuo, mas a humanidade. I recurso literério para produzir quadro mais dramético. Conseqtientemente, a passagem nao pode ser entendida como exercicio de introspecgio psicolégienLPaulo esta interessada com as stias e maculas da existéncia humana, Os que estao “mortos” sio apresentados como estan- \Joemestado de intolerével tensao. Existem no ponto focal ile tendéncias radicalmente conflitantes. Nao é como se ‘Juias partes diversas da personalidade humana estives- jjom em guerra miitua, uma parte superior (simbolizada pelo Shomem interior®, “mente”, “vontade”) oposta a uma parte inferior (simbolizada por “carne”, “pecado”). Ao invés, lomos de um lado o desejo da humanidade de autenticidade, » inelinag&o de um cer eriado para ser 0 que 0 Criador visou. “Querer” 6 dirigido para a “vida”. Este instinto, porém, 6 cavalgado por uma estranha orientacio que redunda num fazer” que leva a “morte”. “Nao faco o bem que quero, mas pratico'o mal que nao quero. Ora, se eu facoo que nao quero, j} nao sou eu que estou agindo, mas sim 0 Pecado que habita em mim” (Rm 7,19-20). Todo o esforeo da humani- ‘dade culmina na perda de sua verdadeira identidade: o “eu” nao maisexiste; foi totalmente alienado. Ahumanidade tem ‘i sensag&o de nao mais estar em controle de seu destino. A insisténcia de Paulo neste ponto € notavel, puis a dllima parte do versfculo ha pouco citado é mera repeticao do v. 17:*j4 nao sou eu que estou agindo, mas sim o Pecado que habita em mim”. A futilidade do esforco humano é ilu- minada pelo terrivel espanto das palavras: “Nao entendo mninhas préprias agdes” (v. 15). A humanidade sente-se condenada a uma espécie de escravidao; foi “vendida sob 0 Pecado” (v. 1410 quadro é estarrecedor. A raga humay ge como uma sociedade de bonecos manipulados por a forca que Paulo chama de Peeado/\ - ~ Aquestao que surge desta descricaoé: 0 que ¢ pecado? Mas antes de tentar responder, vale a pena sublinhar quao acuradamente Paulo sentiu o mal-estar que afeta a 93 humanidade e quao relevante é sua descrigao paras nossos dias. A ansiedade inominada que permeia o nosso mundo esta enraizada no sentimento sem esperanca de que as coisas foram longe demais para serem trazidas de volta a0 controle‘Os desdobramentos foram demasiado velozes e demasiado difusos para o sistema nervoso humano poder usté-los€om éxito“A sensacao de ser manipulado por forcas ‘que nao podem ser especificadas acuradamente deu origem a.uma frustrada inguietude cujas miiltiplas expresses — revolucao violenta, uso de drogas, doenga mental — so- mente intensificam a sensacao de estar perdido. ))O pecado eo mundo /) Aafirmagao de que “todosos homens, judeuse gregos, estao sob (0 poder do) Pecado” (Rm 3,9) imediatamente sugere que por Pecado Paulo quer dizer algo diverso dos pecados pessoais dos individuos. Essa impressao confir- ma-se por toda uma série de passagens em que o Apostolo atribui atividades pessoais ao Pecado. Ele “entrou no mundo” (Rm 5,12) como ator entrando no palco e “reina” ai (Rm 5,21; 6,14) como tirano brutal que “cccraviza” a humanidade (Rm 6,6.17.20; G13,22) ou que a compra para oseu servico (Rim 7,14). O Pecado paga salarios (Rm 6,23) ‘205 que se submetem a sua lei (Rm 7,23) © Pecado, portanto, é um simbolo. Mas de qué? A primeira possibilidade que ocorre a mente é que o Pecado nao passa de outro nome para Sata de que Paulo fala as vezes (Rm 16,20; 1Cor 5,5; 7,5; 2Cor 2,11; 11,14; 12,7; T's 2,18; 2Ts 2,9). Essa hipdtese, porém, nao tem nada para recomendé-la, Nao s6 Paulo nunea faz essa identificacao, mao também a linguagem que ele usa quando fala de Sata ébastante diversa daquela que emprega falando do Peca- do. Mais significativamente, quando fala de Sata é sempre 94 ulativo 20s que ja sfiocrentes, e ele nunca evoca essa figura pura expliear a condigao da humanidade antes de Cristo. /| Achave de que Paulo tinha em menteé fornecida pela Jolacao que ele estabelece entre o Pecado e a responsabi- lidade humana:‘'Portanto, assim como 0 Pecado veio ao twundo aéravés de um s6 homem e a morte através do aco, também a morte se espalhou a todos na medida mn que todos pecaram” (Rm 5,12). O pensamento deste yorsiculo é extremamente condensado, e complicado lo fato de que Paulo usa ai “morte” em dois sentidos. O primeiro sentido ¢ o de existéncia inauténtica, mas asso- ¢\ndo com isso esta a morte fisica que é sua conseqiiéncia. Do mais a mais, Paulo est4 fazendo duas afirmacdes diversas: (1) Adio foi responsavel pelo modo inauténtico ‘ln existéncia humana no mundo (“morte”) por-causa de Jin pessaal apnsta A vontade dase Criadar(“pecada”) {jue teve amplas implicagies para todos os outros mem- bros da raga humana (“Pecado”). (2) Todos os membros da raca humana so responsaveis pelo modo inauténtico de ia propria existéncia (“morte”) porque realizaram a condigdo requerida, a saber, decisdes pessoais opostas & yontade do seu Criador (“pecado”). O fatode Paulojustapor estas duas afirmacdes faculta- hos supor que existe alguma relacdo entre elas, mas a nntureza dessa relacao nao é especificada além do fato de (jue oe dois casos e&o eemelhantes (“assim como... tam- hom"). Todavia, a situacao dos que vieram depois nao é dentica & de Adao, porque este introduziu na condi¢ao humana algo que nao existia antes(Da letra do texto, é judo o que podemos tirar. Uma visao um tanto mais clara jw nos fornece se reconhecermos o fundo-desde o qual_ Paulo esta escrevendo. O primeiro e talvez.o mais crucial ponto é que Paulo om sua primeira afirmagio faz uma escolha entre as oxplicagées da origem do mal correntes em seus dias. Bram trés. Segundo a primeira, que se bascavacmGn6,1. {,omalentrou no mundo como consequéncia do intercurso desnatural que anjos rebeldes tiveram com mulheres. O 95 segundo, com base em Gn 8,21, sustentava que Deus tinha construfdo uma “inelinacdo ma” na estrutura da existéneia humana. A terceira, com certeza é a historia da queda em Gn 3. As duas primeiras teorias tém uma faceta em comum que as distingue da terceira. Colocam a res- ponsabilidade pelo mal fora da raca humana atribuindo- a.aos anjos ou a Deus. Isso est4 em radical contraste com a narrativa do paraiso que apresenta a origem do mal como a conseqiiéncia de decisao humana, cuja liberdade é frisada pelas condicdes sob as quais ocorre. A intengaio do mito paradisiaco ¢ frisar que o erro original aconteceu dentro do quadro histérico da humanidade, ea verdadedo mito nao depende de Adao e Eva serem reais figuras da historia. (Assim, ao evocar a queda, Paulo se coloca conseien— temente na pasicao-de quea humanidade foi responsdvel por sta propria condicao triste/Bla nao poderia evitar aquela responsabilidade culpando alguma forca além dela. No tempo de Paulo, porém, havia varias opiniées referentes a relacao entre Adao e seus descendentes. B facil ilustra-lo por meio de duas citagbes de obras judaicas compostas na segunda metade do séc. I a.C. 2 Barue 4 Esdras Pois, embora Adao tenha pi cado primeiro, e tenha ulti- mamente trazido a morte a todos, contudo daqueles que naseeram dele, cada um deles preparou para sua alma tor- mento a vir, também cada um deles escolheu para si glérias Pois, embora tenhas sido avir... Adao, portanto, naoéa tu que pecaste, a queda causa, sendos6parasuaalma, nao foi tua somente, mas mas cada um de nos tei sido tambéun nossa yue soe 0 Adao de sua prépria alma mos teus descendentes (54,15-19). (7,118) Um grao de semente do mal foi semeado no cora~ ga0 de Adao desde o i cio, e quanto fruto de impiedade ele produziu até os nossos dias (4,30)! 0 Adao, 0 que fizeste! 96, A diferenga entreos dois textos é dbvia. Parad Esdras, # raga humana 6 planta brotada de semente podre e, em (onseqtiéneia, mostra os defeitos de sua origem. Labora sob a carga de enfermidade inerente s6 produtiva de \mpiedade. Precisamente isso 6 negado por 2 Baruc, que inuiste em quecada qual écapardeescolher com amesma libordade que Adao gozava. Paulo nao se identifica com nenhuma dessas posi- Ele nao podia aceitar nem oautomatismode4 Esdras ingenuidade de 2 Baruc. Em oposigao ao primeiro, \Jou importncia a decisdes humanas individuaise negou ‘\ afirmagéo do tiltimo de que o pecado de Adao nao introduziu nenhuma modificagdo na situagao humana. O Jngo entre as duas afirmagées de Paulo em Rm 5,12 fornece-o 0 v. 19 do mesmo capitulo: “Pela desobediéncia dlo.uum homem, tados foram constituidos peeadores”/Iaso, jume um Jago causal. A questao, pois, é: como-essa ‘(iusa opera? E respondendoa essa questo que descobri- nos.o que é Pecado. A resposta sugere-a Génesis. A énfase de Gn 3 é que certo ponto na histéria da humanidade uma falsa \lecisao foi tomada. Daf em diante, segundo Gn 4-11, as coisas foram abaixo em passo sempre crescente. A deseri- (jlo 6a de progressdo geométrica do pecado. A medida que 1 humanidade se espalhava, a maldade tornava-se pro- (reseivamente mais endémica. A impressao imediata ¢ «que os pecadores influeneiaram-se mutuamente. Crian- gis foram condicionadas pelas atitudes de seus pais e padrdes desenvolvidos de comportamento foram modela- los pelos dos antepassados, que por sua vez passaram adiante aos seus descendentes. ‘Temos evidéncia a partir de 1Cor 3,1-4 (ef. p. 35) que Paulo pensou nestas categorias, porque a énfase desta passagem é 0 desagrado de Paulo com o modo de ver a si proprios como humanos que os corintios tinham herdado, Assim, parece altamente provavel que Paulo concebeu 0 Pecado como desorientacao massiva da sociedade ou, tnais especificamente, como a poluigo corrosiva de en” 7 torno corrupto. Sua perspectiva precisa foi expressa por H. H. Rowley, se bem que nao estivesse tratando do pensamento de Paulo: ‘Somos todos em larga medida aseriaturas de nossa era, refletin- doo Zeitgeist de nossos dias. F esse Zeitgeist (= espirito do tempo) no 6 algo que exista fora de todos os individuos viventes nem ‘meramente em grande niimero de individuos separados. Ele inere & totalidade do todo e ¢ operative em maior ou menor medida em cada um. Ele caracteriza os nossos dias, nao tendo nascido somente de noss0s dias. Ele é gerado na eorrente de vida que une as geracses anteriores & nossa... Mas se somos mais que individuos separa- dos, se somos membrosde uma totalidade mais amplaque abarca 0 passado e 0 presente, isso nos reiine na corrente de sua vida cada um de nés e opera através de nds, e entao uma forca poderoza de mal pode estar na eorrente da vida, derivada de individuos, mas transcendondo os individuos. embora se encon- trando em varios graus em individuos (The Relevance of Apo- calyptic, Londres, 1944, p. 151). (\A pressio causal que Paulo tinha em mente é a exercida pela pressio de-atitudes herdadas. Ningu “existe emi situacao neutra. Todos os individuo: sociedade que os marca. Essa sociedade é produto do_ passadoes loecaisa do faturog = quesdomareados coopera, porque, aginda anv canfarmidada cam o condicionamento que receberam, refoream aquelas atitudes que descem para a tiltima gerac&o com crescente vigor. Ebastante facil reduzir essas generalidades a termos coneretos. Numa sociedade em que varias formas de desonestidade sao consideradas comportamento aceitavel, elas se tornam virtudes que s4o comunidades como coisa dbvia. Numa sociedade que premia independéncia e auto- suificiéncia, tudo concorre para impressionar os individu- oscom a desiderabilidade dessas atitudes. Numa socieda- de que mede o sucesso pela habilidade de conceguir bene materiais, todos haverao de desejar essas posses. Essa lista pode prosseguir ao infinito. O sistema de valores 98 ieeito numa sociedade exerce tremenda press&o, como (jualquer que tentar se opor pode testemunhar. O que todos fazem nao pode estar errado, e os que protestam sao {idos como objetos de chacotas. Apenas os muito fortes podem pensar em opor alguma resisténcia. A maioria simplesmente aquiesce ©, com mais freqiiéncia, eequer utd consciente de que é manipulada. Quem faz a manipulacao? Nenhuma resposta pode wer dada, porque nenhuma causa ou complexo de causas podeseseparar nosentido decarregara responsabilidade, Nao existe ditador a ser culpabilizado. A sensacao é a de wer pego no rolo compressor de uma multidao varrida por pinico. Ele se movimenta cegamente, sendo todos carre- gados ao léu nas garras de forcas irresponsaveis. facil ver como essa sensacao de ser arrastado por forgas além do controle humano podia sc transformar na crenga em poder sobrenatural mau. E explicagao que alivia a carga de espanto e desesperanca. Paulo, como vimos, rejeita essa opeao//A inteligéncia, que parece estar dirigindo o na vereda do 0 passa do impulso_ fiduais dissemi- ravés dos séculos. Para ele, a atribuicao de culpa enos importante do que a delineagao correta do problema, porque o que Ihe interessava era encontrar solugaory ‘BeS Pecado € a pressao inexoravel de ui also sistema de valores que permeia a sociedade, nao estard simplesmente no “mundo”, mas é “o mundo”. Paulo pode cmpregar esse termo para designar 0 universo criado em geral (por exemplo, Rm 1,20), mas ele o faz de maneira bastante rara, uma vez que a realidade material era apenas incidental ao seu interesse/Na vasta maioria dos_ casos “mundo” significa a esferade relagoes interpessoais. /) A“sabedoria do mundo” (1Cor 1,20) sao as especulacées da raga humana, da mesma forma que o “refugo do ado” (1Cor 4,13) s80 os que sao tidos em desprezo por seus companheiros. O “mundo” que Deus reconcilia (2Cor 5,19; Rm 11,15) 6 0 “mundo” que ele julgaré (Rm 3,6). 0 99 emprego paulino distintivo aparece na pergunta: “Por que viveis como se pertencésseis ao mundo?” (Cl 2,20), uma vez que ai “mundo” é claramente a raca humana em sua orientacdo inauténtica. E, em outras palavras, o“presente mundo mau” (Gl 1,4). Daf, Paulo pode falar do “espirito do mundo” que leva a entendimento equivoco da condicao humana (1Cor 2,12) e— como o Pecado — pode atribuir aele tais qualidadeshumanas como sabedoria (Cor 3,19) e tristeza (2Cor 7,10). Uma vez que os seres humanos. devem viver “no mundo" (1Cor 5,9-10), eles nao podem evitar estar imersos nos “negécios do mundo” (1Cor 7,32- 34)e, em conseqiiéncia, ser arrastados pela orientagao da sociedade a que pertencemComo Bultmann o expressa_ graficamente: “O fato sinistro é que o ‘kosmos’, o mundo mens, cOnstituido pelo que o individuo faz e sobre e 0 seus cuidados, ganha o dominio sahre 0 individaofO"kosmos' vem a constituir um superego sobre 0s prdprios individuos” (Theology of the New Testament I, Londres, p. 256). Isso, com certeza, vale também do Pecado porque se trata da mesma realidade, Responsabilidade humana AQuando o Pecado é entendido como a desorientagao massiva de toda uma sociedade_que se expressa em ‘sistema falso de valores, sua relagao com o “pecar” torna- se muito mais clara. “Pecar” é ratificar aquele sistema de valores agindo em conformidade com eleDevemos agora enfrentar a délicada questao da responsabilidade por essas agdes. Fazé-lo nos leva mais a fundo na visio de Paulo sobre o “mundo” que ele tinha de mudar. Existe uma carga de evidéncias para mostrar que Paulo sustentava que os individuos eram responsaveis por suas decisdes inauténticas. O proprio uso da palavra 100 “pecado” para descrever essas decisées aponta nessa Jiregiio, como o faz sua referéncia a ira de Deus (Rm 1,18; ),22; C13,6). Essa ira 6 provocada por “transgressoes”. Os Jucleus transgridem a lei explicita de Moisés, e os gentios transgridem a lei escrita em seus coragdes (Rm 212-15). Sho, portanto, “vasos de ira feitos para a destruigao” (Rm {),22), Bate tipo de linguagem presume eulpabilidade, que é correlative de responsabilidade. $6 0s que sao verdadeira- mente responsaveis podem ser eonsiderados culpados. Responsabilidade, porém, implica liberdade de esco- Jha." Os “que fazem_o mal” (Rm 2,9) podem ser culpados , lipenas se sao livres para fazer obem/Tocamos ai no no do blema porque, para Paulo, os que no se entregaram a 1 na {6 ndo so livres; eles estao “eseravizados” pelo ado que “reina” sobre eles. Paulo insiste muitas vezes 0m que 86 03 que estao “em Cristo” sav lvree/O jue isso _jignifiea é que s6os crentes estaioem condicses de escolher ivamente o bem/A logica da perspectiva de Paulo é todos os outros so incapazes de escolher o bem. E. a, de mais a mais, a tinica conseqiiéncia que se pode do elemento-chave de sua teologia, a saber, que a wutenticidade é possivel somente por Cristo. A raca hu- nana é justificada somente pela fé (Rm 1,16 e passim), ¢ Hulman pereebeu perfeitamente a énfase de Paulo a0 oucrever que “é somente como alguém que ¢ justo diante do Deus que o homes € o que deve e pode ser” (Existence and Faith, Londres, 1964, p. 178). Sendo assim, temos em Paulo duas linhas de pensa- inento que nao convergem e que de fato contradizem-se inutuamente. Numa série de textos, o3 seres humanos que pertencem ao “mundo” sao considerados culpéveis, a0 asso que numa segunda série de textos esté claro que oles nao podem ser considerados culpaveis porque néio sao livres. No sentido de definir o problema mais precisamente, ‘mos de fazer por um momento uma digressao para xaminar a nocao de responsabilidade moral. A distingdio tle Heidegger entre possibilidade ontologica e possibilida- lo de éntica é ai de grande utilidade. Uma possibilidade ontolégica é a que é dada com um tipo particular de natureza. Assim, por exemplo, pensamento racional ¢ uma possibilidade ontolégica para os humanos, mas nio para os animais. Igualmente, voos sem ajuda ¢ possibili- dade ontolégica para péesaros, mas nao para humanos. Possibilidade ontolégica nao passa de outro nome para possibilidade teérica, Refere-se ao que é teoricamente possivel para dada natureza, referindo-se assim ao ser como tal. Possibilidade éntica, por outro lado, refere-se ao ser em determinada situacao e em circunstancias espe- ssn‘ posal ides ontolégica_edntica, ada que seja onto. onticamente impossivel dev cins imposta scolhidag.Assim, Senmanocendo teoricamente poss! vel, o pensarhento racional pode se tornar onticamente impossivel para um individuo particular por causa de graves deficiéneias cerebrais. Tal acidente torna o pen samento racional realmente impossivel. Escolhas prévias podem também limitar a realizacao ontica de uma pos- sibilidade ontolégiea. E onticamente impossivel para 0 orador num com{cio ptiblico tomar banho la e entao, Seré realmente possivel somente quando voltar para casa. Liberdade ¢ possibilidade ontelégica para todos os _ so Aarne EM itd inserida na propria estrutura de sua destruir a ‘natureza.E-algo que nunca pode se tirar ser ‘faturera humane. A privacio da Mberdade, portanto, ‘ocorre no nivel Ontico da existéncia realsTodos os seres ‘humanos aio teoricamente livres, mas na pratica alguns nao o so. Liberdade real é liberdade dntica, e os indivi- duos podem ser privados dela somente através de cireuns- tancias que tornam impossiveis escolhas genuinas. Tais limitagées podem ser fisieas, como no caso dos que esto no carcere. Todas as suas decisoes sao tomadas para eles. As limitacdes podem também ser econdmicas, como no ‘caso dos que sao to pobres que nao tém nenhuma escolha. 102 5m nossa compreensao, responsabilidade e culpabi- lidade esto relacionadas, nao a liberdade ontolégica que ¢ dada com a natureza humana, mas 8 liberdade éntica. ‘Tome-se, por exemplo, a situagao de um homem na prisao (jue, olhando para fora pelas grades, vé um sdico perverso polestando uma crianga. Ble ¢ moralmente obrigado a ir socorro da crianca. Poder ser culpado por nao fazé-lo? Obviamente que nao, porque nao possui nenhuma liber- dade para agir desta forma. Doenga grave fornece exemplo paralelo. Um paralitico nao pode ser tido comoresponsavel po honhumatalhaom cumprit ‘uma obrigagao que envol- ve movimento} Em ambas essas situacdes, a realidade da liberdade or aaa ee aera ruida por circunstancias e, \isneia, nao se pode imputar culpabilidade. Becolhemos es esses exemplos deliberadamente a fim de agugarem nossa percepgao da situagao da humanidade que Paulo tinha em mente, e a fim de evitar possivel equivocagao. Paulo nao estava interessado em liberdade de pensamento, isto é, aquiloque alguns autores designam “liberdade interior”. Isso nao passa da liberdade de pen- sar idealisticamente sobre o que pode ser. Interessava-se pela translacao do pensamento a acao, pela vivéncia de decisdo auténtica, Como vimos ao discutir Rm 7,14-24, ele .stava inteiramente propenso a conceder que aqueles que nao conheciam a Cristo podiam ter percepgao da verdade, mas era-lhe igualmente claro que eram incapazes de agir baseando-se naquela intuicao: “Eu posso querer 0 que é certo, mas eu néo posso fazé-lo” (Rm 7,18)\Paulo nao podia culpar os gentios por negligenciar a possibilidade de" conhecer a Deus através das coisas criadas por ele (Rm_ 1,20), se bem que alguns tivessem chegado a tal conhe ento (por exemplo, Aristoteles). Sua énfase, porém, ¢_ que eles nada fizeram a esse respeito: “Embora tenham conhecido a Deus, eles nao o honraram como Deus” (Rm 1,21). Que o seu pensamento se movimenta consistente- mente ao nivel da acao evidencia-se também em sua afirmagao: “Havers tribulacdo e anguistia para toda pes- soa que pratica o mal, para o judeu em primeiro lugar, 103 mas também para o grego” (Rm 2,9-10). Nisso, com certe- za, ele esta em completa harmonia com o Antigo Testa- mento, para o qual o tinico conhecimento de Deus que tem algum valor era o que se desdobrava em obediéncia, e com oensino de Jesus que disse: “Que vos parece? Um homem tinha dois filhas. Dirigind ao primeiro, disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha’. Ele respondeu: ‘Nao quero’ mas depois, reconsiderando sua atitude, foi, Dirigindo-se ao segundo, disse a mesma coisa. Este respondeu: Eu irei, senhor’; mas nao foi. Qual dos dois realizou a vontade do pai? responderam lhe: O primeiro'(Mt21,28-31)/Numa visio de autenticidade centrada na criatividade, 36 acoes ‘contam. Para Paulo, os que nao conheciam a Cristo nao _ podiam escolher um padrao de comportamento em que ‘sua fidade fosse desdobrada. A pressio do pecad era demasiado grande para’permiti-lo, Limitando a berdade, o Pecado também desirul jonéabilidade e a culpabilidade., 8] Um dilema Parece, pois, que Paulu quer Ler o seu bolo e comé-lo, Isso nos forga a enfrentar duas questdes, Por que ele imputa culpabilidade quando sua perspectiva a exclui? Diante da contradiao no seu pensamento, que linha devemos seguir? Em parte, a resposta A primeira questo deve ser que Paulo pensava na humanidade em geral, e nao em indi- viduos espeeificos. Neste nivel, era natural que ele pen- sasse em termos de responsabilidade, porque, como vimos, a explicagao da condicdo humana que ele aceitava (a versao do paraisv) insistia que a humanidade era respon- savel por sua propria situacao. Nada fora dela a tinha feito como era. A conseqiténcia da decisao histérica era 104 que ahumanidade existia em estado contrario ao querido pelo Criador. Até esta altura, pois, a situagaio governada pelo Pecado poderia ser descrita por situacao de responsa- hilidade genérica e culpabilidade genérica. Parece bas- inte provavel que Paulo era também influenciado, talvez inconseiontemente, pela atitude do acu povo para com 0 niojudeus que por eles eram presumivelmentedeliberada © maliciosamente perversos em sua recusa de aceitar a luz da lei, “Todos os habitantes da terra sabiam quando estavam transgredindo, mas de Minha Leielesnaosabiam om razao de seu orguiho” (2Barue 48,40; ef. 4 Esdras '1,24.72-73)A combinacao destes dois aspectos explicaria porque ele teria dado a impressao de queindividuos eram. pessoalmente responsaveis. ), A afirmacao de que individuos so pessoalmente onadveis nao ¢ tao essencial & tevluyia de Paulo como « afirmagio de que os individuos nao podem ser pessoal- mente responsaveis por seu estado inauténtico. Daf, em resposta a segunda questao devemos seguir a ultima linha. A razao fundamental para isso é que, para Paulo, Cristo 6a chave da autenticidade. Se os que nao conhecem Cristo sao livres para eseolher a autenticidade sem ne- nhuma referéncia a ele, entao Cristo nao é necessério para a salvacao/(Se Cristo é a fonte da autenticidade, entao os que nao o conhecem nao tém nenhuma escolha. Sua libexdade outolégica nao pode florescer em liberdade_ ntiea sem ele. Dizer que pode é equivalente a dizer que_ 1 justificacao é posstvel sem a fé. Reter que os que estdo Cristo sao “pecadores” no sentido estrito consist ruir 0 préprio alicerce da teologia paulina.y Mas, pode-se objetar, ser que a recusa de considerar a humanidade decaida como “pecadores” nao destruiria outro elemento da teologia paulina, a saber, o caréter sacrifieal da morte de Cristo? Devemos ser bastante cuidadosos aqui. Paulo, de fato, diz que “Cristo morreu por nossos pecados” (1Cor 15,3), e que ele foi “exposto como expiagdo por seu sangue” (Rm 4,25). Isso, e as muitas alusdes ao “sangue” de Cristo (Rm 3,25; 5,9; 1Cor tos 10,16; 11,27; C1 1,20), é certamente linguagem sacrifical. Mas Paulo s6 uma vez apresenta explicitamente a morte de Cristo como sacrificio: “Nossa Péscoa, Cristo, foi sacrificada” (1Cor 5,7). A primeira vista, essa linguagem pareceria insinuar a culpabilidade de individuos, mas este 6 precisamente o ponto que devemos pisar com cuidado, néo dando por concedido que sabemos 0 que Paulo quer dizer. Lt O_primeiro ponto a se notar é que Paulo faz muito, ouco uso de idéias sacfificais relativas a Cristo,dsso é ‘surpreendente por causa de seus antecedentes judaicos porque, antes da destruigao do templo, o sacrificio era 0 elemento central unificador na vida judaica. Ter-se-ia esperado que Paulo fizesse uso bastante maior de uma categoria com a qual estava tao familiarizado. Dai, se nao fez assim, pode somente cr porque eatava conaciente de que a categoria do sacrificio nao era inteiramente Satisfatéria para esclarecer 0 pleno significado da morte le Cristo. «(Bm segundo lugar, note-se que na mao de Paulo a nogio judaica de sacrificio passara por transformacao.JA tivemos de notar que a miorte de Cristo foi vo- luntéria. Para Paulo, ele nao devia morrer. Dai, se bem que Paulo nao tenha pessoalmente formulado a carta aos Efésios, ela traduz o seu pensamento exatamente a0 eserever: “Criato também vos amou e se entregou por nds a Deus como oferta e sacrificio de odor suave” (Ef 5,2) (Wesus ¢ tanto 0 ofertante como o oferecido, 0 sacerdote e 0 sacrificiooA afirmacao de que Cristo nos amou e deu-se a “si mesmo por nés¢ paralela a Gl 2,20, e esta, nés o vimos, €o elemento-chave na compreensio de Paulo da morte de CristoAA idéia de sacrificio é introduzida, nao por si mesma, mas no sentido de sublinhar o valor da morte dé Cristo. Coloca-a na suprema categoria dos valores roligi 808. No proceso, com certeza, a tradicional compreensao _ Sidsica de-saerihcie Tol rompidar wunjuc-om Genhoana— circunstancia no sistema judaico o sacerdote pode ser ele préprio a vitima. Segue naturalmente que se a nogiio de 106 sacrificio foi transformada, entdo a nogio correspondente de culpabilidade também foi modificada. ‘Uma vez reconhecido isso, torna-se possivel referir a nocio de sacrificio de Paulo a culpabilidade genérica da humanidade no sentido observado acima. A morte de Cristo fez pela humanidade o que os sacrificios da lei fizeram pelos pecadores dentro do seu sistema. A identi- dade desta proporeao explica o uso por Paulo da lingua- jem sacrifical, mas identidade proporcional naoexige que 0s elementos componentes sejam idénticos. “Sacrificio” muda o seu signifieado quando aplicado 4 humanidade “Pecadores” sao os que esto sob o dominio do PecadqdDa_ sma forma que 0 sacrificio libertava o judeu do seu. pecado, a morte de Cristo rompia os lagos do Pecado que htavam a humanidade.c. Pretender que os que estao sob o poder do Pecado nao wo responsaveis por seus “pecados”, nao é passar por cima da necessidade de redencio. Os escravizados a0 Pecado, forcados que sdo a aceitar um falso sistema de valores, estao em condigsio subumana. Carecem de liber- dade que € a dignidade da humanidade auténtica, e a influéneia do Pecado é tao pervasiva de tudo que ninguém. pode eseapary‘Um novo ato divino eriativo foi necessario para mudar a situagao, e 0 canal através do qual este ler tornow- ivo foi a autenticidade da h risto/0 seu amor, qué S€ concentrou em sua orte, trouxe “vida” aonde sé houvera “morte”. Neste capitulo descobrimos que, para Paulo, a raiz e causa da inautenticidade humana era o dominio do Peca- do. Por causa de seu estado ter-se originado em decisao livre, a humanidade esté em condicao de culpabilidade abjetival@ seumodo deni stent ontrario do queo Cria- dor quis. A influéncia da decisao original ¢ perpetuada de “forma sempre intensificada pelo falso sistema de valores da soviedade) Agindo de conformidade com o condicionamento ‘que receberam, os individuos ratificam a desorientagao de seu “mundo”. Nao so, porém, culpados porque carecem de liberdade de escolha devido a sua escravidao ao Pecado. 107 LEITURAS SUGERIDAS Baltmann, R. “Romans? and the Anthropology ofPaul”,om Existence nd Faith, Shorter Writings of R. Bultmann (org.S. Ogden), Meridian, Nova York, 1960, eap. 7 1d, "Theology of the New Testament, SCM, Londres, 1965, § 25-26 (Sin and World). Macquartioy An Bxistntalist Theology, SCM, Londres, 1965, § 14 Id., Principles of Christian Theology, SCM, Londres, 1966, § 40 (Sin). Haag, H., fs Original Sin in Scripture?, Chapman, Londres, 1967, Sabourin, L, “Original Sin Reappraised” em Biblical Theology Bulletin 3(1978), 51-81, Barrosse, T. A. “Death and Sin in St, Paul's Bpistle tothe Romans", em. Catholie Biblical Quarterly 15 (1953), 438-59. 108 ® SER ALIENADO Até 0 momento consideramos apenas o fato da inautenticidade e sua raiz e causa, e devemos agora nos vollar para as manifestacdes concretas deste modo de ser como se manifestam nas cartas paulinas. No mundo, a humanidade confronta-se com dois tipos radicalmente diversos de realidade, coisas e pessoas. A humanidade deve reagir a ambas, e 6 das decisdes que controlam tais reagdes que se desenvolvem a autenticidade ou a autenticidade/(Por causa da clareza, trataremos do lacionamento com as coisas neste capitulo, eno proximo ser o relacionamento para com as pes- pesfem ambos, minha intengao ¢ fazer uso da anélise de Heidegger da humanidade contemporanea, porque ela fornece um quadro que ilumina os elementos salientes do pensamento de Paulo tanto por confirmagao como por contraste. A linguagem de Heidegger émaiscompreensivel ‘andsquea de Paulo, eeles se complementam mutuamente om grande medida, visto que os dois estavam interessados ndesereveromundacomoo viam. Todos os observadores, porém, véern aquilo a que esto condicionados a ver. Sua visao é controlada por suas admissdes iniciais. Os pres- supostos de Paulo diferenciavam-se dos de Heidegger e, consegientemente, ha diferenca em suas visdes respecti- vas da realidade. As conseqiiéncias disso evidenciar-se-2o no préximo capitulo. ‘No sentido em que se usa neste capitulo, uma “coisa” @ qualquer realidade nao-humana amimada ou ndo-ani- mada. Heidegger a define como “ser-para-ser-usado”, 109 definigao que se harmoniza perfeitamente com a perspec- tiva biblica porque, de conformidade com o Genesis, Deus deu a humanidade o dominio sobre o resto da criagéo (Gn 1,26.28; 2,19s). Toda realidade ndo-humana, portanto, tem carater instrumental; esté a servico da humanidade. Nao existe para si mesma, mas para a humanidade. Isso 6 obvio no caso de instrumentos feitos para fim especifico, tais como uma caneta ou um automével. Mas osol pode ser usado para aquecer e as estrelas sao usadas na navega- cdo. A natureza é usada para recreagao e também como fonte de matérias-primas/No plano da eriacdo, todas as realidades nao-humanas tém essencialmente valor utili-_ ‘Gério. Isso, com certeza, nao significa que nao abusaremos da realidade_nao-humana/iA obrigacio a respeitd-la,~ porém, néo deriva da natureza da coisa mesma, mas do possivel uso que outros, particnlarmente geragdes suces- sivas, podem derivar dela. ‘Todos os seres humanos podem tornar-se auténticos ou inauténticos pelo tipo de decisio que tomam a respeito das coisas(Uma decisao auténtica 6 a que reconhece que a que uma coisa ¢ inferior & pessoa e Ihe dé.o.uso apropriado & sua natureza/\Uma decisao inauténtica 6 a que eleva a coisa a posicao de superioridade com relacao & pessoa, porque isso inverte a intencao do Criador. Se a autentici- dade no tocante as coisas se expressa em relagdo com 0 “eu coisa”, a inautenticidade que inverte essa relagau Le “coisa-eu”iComo instrumento, isa 6 essencialmente_ meio. 5 oioe iasieammen loF utilitario 6 negado se ela ¢ tratada como ‘fimem simesmaylsso ocorre quando uma coisa 6 desejada~ por eausa desimesma, quando se torna assunto de dltimo interesseAqueles que concentram todo o seu ser, por exemplo, na aquisi¢ao de riqueza ou status social, de fato definem-se a si mesm termos de coisas. Eles alienam 0 seu verdadeiro “eu” formando de si mesmos parte de a ordem inferior de coisas. Imergem no mundo de ~eoisas. Perechemoy at outra Tacela do modo subumano de existéncia que Paulo chama de “morte”. 7\ 110 Concupiseéncia As coisas adquirem dominio sobre os seres humanos somente se sao intensamente desejadas. Nao surpreende, pois, encontrar Paulo a dizer que a “concupiscéncia” (pithymia, pleonezia) é uma das atitudes fundamentais da humanidade inauténtica. E expresso conereta de “agir de acordo com a carne” (Rm 13,14; G15,16-17.24), assim € tipieo do “homem velho” (CI'3,5), dominado pelo poder do Pecado/f através da “concupiscéncia” que a orientagdo de um sistema falso de valores toma posse dos. individuos, “Nao deixeis o Pecado reinar em vossos corpos para obede ‘seus desejos” (Rm 6,12). ‘A posigao critica que essa atitude ocupa no pensa- mento de Paulo é evidente de seu esboco da historia da salvacaoem Rm 7. Na primeira fase (Rm 7,7-13) que trata dasituagao de Adio no paraiso, encontramos as palavras “Iu nao teria sabido o que é concupiscéncia se a lei nao Livesse dito: Nao cobicars”(v. 7). Aqueda, nessa perspec- liva, foi devida a “concupiscéncia”, atitude cujo caréter radical se sublinha pelo fato de nao se especificar nenhum objeto. O que Paulo teve em mente é bem expresso no mentario de C. K. Barret sobre esse versiculo: “Descjo ‘concupiseéncia’) significa precisamente a exaltacaodo~ (go que vimos ser a esséneia do pecado./Sem levar em ‘conta o seu lugar na criagao eo mandamento de Deus, 0 homem deseja, e 0 seu desejo tornar-se a lei do seu ser. Pela ‘concupiseéncia’, as coisas tomam posse de seus possuidores/imaginam que as dominam, mas de fato stio— dominados pelos objetos de seu desejo imoderado. Em de serem governados por Deus, como a auténtica relacdo_ Criado io governados pela ‘concup) sneia’,O que im siosa de si, cujo irrestrito desejo-de posse poe de lado a intencdo do Criador”. Paulo foi levado a essa intuieao, que postula ser a “concupiseéneia” uma das atitndes fundamentais da hu- m1 manidade decaida, por sua consciéneia da importéncia deste tema na narrativa do Bxodo, e uma de stias faces fol chamada de “os trimulos da concupiscéncia, porque ai sepultaram os que se entregaram & concupiscéncia" (Nm 1134). Apés evocar a experiéneia do Exodo, conclu: “Essas coisas sio avisos Para nés, a fim de que nao cobicemos coisas més como eles vobigaram” (1Cor 10,8). Parece provével que também era influenciado pela classi. fieagio judaica dos gentios como “os que cobi¢am” Been idéia encontra-se no Targum palestino sobre Ex 20,17, ‘Meu povo, filho de Israel, ndo sereis cobigosos nem compa- nheiros ¢ participantes dos que cobieam”. Nesta passagem, 125.gue cobicam” sao os gentios, homens decaidos por exce. éncia do pontode vista judaico, como demonstra textodo Talmud babilénico: “Por que slo os idélatras cobicosos? Porque eles nao ficaram no monte Sinai. Pois, quande a serpente veio a Eva, ela injetou concupiscencia nela. Quanto aos israelitas que ficaram no Sinai, sua concupiscdneia se afastou; os idélatras que nao ficaram no Sinai, sua concu. Piseéncia nao se afastou” (Schabbath 145b-146a)/A visio de Paulo da condi¢éo humana ¢ inegavelmente Taig realista, mas a importaneia do texto ¢ que Paulo também, ‘dentifica fea “coneupiseéncia” com idolatria (C13,5).°+ nade de uma nota: “Por que nao preferis, antes, padecer injustica? (1Cor 6,7) e referéncias de passagem noroubo(Rm 2,21; 1Cor5,11; 6,10), Paulo nao demonstra grande interesse por bens materiais, mas as “coisas” englobam também realidades intangiveis, como status social (2Cor 11,218; Fl 3,48) ¢ conhecimento (1Cor 1,22; 8,1; 2Cor 10,5; Cl 2,8), assim como também o vicio de elutdo (Rm 16,18; “Seu deus é sua barriga’, F13,19)/m Altima anéilise, “concupiscéncia” é a afirmacao de si pelo meio das coisas (2Cor 10,8; Gl 6,3) com o objet} de adiquivir gloria humana (ITs 2,6; Gl 1,10)\8 servir criatura antes que ao Griador” Resco @, assim, equiva- lente de idolatria. Antitese exata é fornecida pela afta, go de Paulo de sua propria atitude: “Eu nao buseo 0 que € vosso, mas vés” (2Cor. 12,14). 12 ‘0 ultimo Aexpressio concreta da “concupiscéncia” é “ansieda- ou “cuidado pelas coisas do mundo” (1Cor 7,33). A ideia subjacente 6 expressa na afirmagao do sermao da montanha: “Nao ajunteis para vés tesouros na terra, onde a eo caruncho os corroem eondeos ladrées arrombam roubam, mas ajuntai para vds tesouros nos eéus, onde hema traga nem oearuncho corroem e onde os ladroes nao arrombam nem roubam; pois onde esta o teu tesouro af estard também o teu eoragao” (Mt 6,19-21)/Bsta “preo- cupacao” tem-suas-raizes no “medo” (Rm°8,15) que é ‘ovasionado pela concupiscéneia instintiva de que algo oeorreu de errado com a situacao humana e pelo reconhe- cimento de que o que se possui pode ser perdido.| A ‘preocupagao” desta forma é estar entregue As coisas como fim de si mesmas; todo o ser de uma pessoa esta localizado nelas. Nas, as exortagdos de Paulo: “Quero ver- vos livres de cuidados” (1Cor 7,82) e: “Nao vos inquieteis com nada” (F1.4,6). Observancias religiosas externas Corta atitude para com observancias religiosas 6 uma das expresses mais sutis da deciséo inautéritica om respeito a coisas. Paulo pergunta aos colossenses: “Por que viveis como se ainda pertencésseis ao mundo? (Cl 2,20). Essa é questao que Heidegger teria entendido sem nenhuma dificuldade, pois implica sua distingaio re estar “no mundo” e ser “do mundo”. Estar “no mundo” é um dos dados da existéncia humana (1Cor 5,9). Nao hé nenhuma alternativa a situagao na qual alguém ¢forgado a encontrar tanto as coisas como as pessoas, Ser “do uundo”, por outro lado, nao passa de uma das op¢des abertas 4 humanidade e significa aceitagdode “um jugode escravidao” (G1 5,1), isto é, submissao ao dominio do 1B Pecado, No caso dos colossenses, estavam em perigo dese tornar parte de um mundo alienado de ser porque suas mentes estavam fixas, nao “nas coisas do alto”, e sim nas “coisas da terra" (C13,2). Paulo nao se refere & atencao aos assuntos humanos que é essencial a vida do dia-a-dia. Sob essas afirmacdes gerais subjaz referéncia a problema especifico de perene atualidade: ‘Se morrestes com Cristo para os elementos do mundo, por que viveis como se ainda pertencsseis ao mundo? Por que vos sujeitais a preceitos como “nio pegues, nao proves, nao toques™ —referindoa coisas que vio perecer ao serem usadas — segundo ordens e doutrina humanas? Estas tém aparéncia, com efeito, de sabedoria ao propor rigor da devocao ¢ auto-rebaixamento ¢ severidade com 0 corpo, mas nfo tém nenhum valor em reprimnir a indulgéncia da earne. Se fostes ressuscitades com Cristo, bbuscai as coisas que esto na alto, anda Crista est sentade a mao ireita de Deus. Colocai vossas mentes nas coisas que estao no alto e nao nas coisas que estao sobre a terra (Cl 2,20; 3,2). Ainda que essa passagem contenha numerosos ele- mentos que ainda sao objeto de viva discussao entre os exegetas, 0 ponto principal é claro. Paulo condena ritualismo que envolve nao apenas praticas ascéticas, mas também o calenddrio que determina as festas littirgicas (Cl 2,16-17). um o que interessa a Paulo nao sio essas _ praticas em si_mesmas, senao a importancia que os ‘colossenses Thes atribuiam/(Ele deve ter tido razao em acreditar que a comunidade dava a essas observacées externas uma posicao que conflitava com seu valor essen- cialmente utilitério. Pareceria, pois, que os colossenses mostravam a tendéncia de fazer dessas praticas critério de seu estado diante de Deug/Pensavam nelas, nao como ajuda para a vida erista, mas como a pedra de toque da “autenticidade. Pervertendo assim a finalidade dessas ‘observancias, os colossenses pervertiam-se a si mes- mos porque, de fato, definiam-se em termos de coisas.) 4 Entregavam-se uma vez mais A inautenticidade. Sua Litude se tornava a atitude dos que estavam sob o poder do Pecado, Obediéncia & lei Os colossenses nao eram a unica comunidade a ter problemas com “coisas” desta natureza. Paulo viu-se obrigado a fazer a mesma eritica dos gélatas: Agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus, como é possivel voltardes novamente a estes fracos ¢ miserdveis elementos aos quais vos quereis escravizar outra vez? Observais cuidadosamente dias, meses, estacdes, anos! Receio ter-me afadigado em vao por vés (Gl 4,9-1)). A situagdo é muito mais significativa que a dos colossenses, porque oque est em jogo ainaoéheterodoxia de tipo indeterminado (C1 2,22), mas a lei de Deus. A tuagdo na Galacia precisa ser evocada apenas breve- meuley\Os galatas foram convertidos por Paulo, mas, provavelmente por causa de suas origens célticas, dificil lente se encontravam & vontade em seu novo modo de existéncia\As diretivas dadas pelo Apéstolo para que comegassem a trabalhar a partir de padrdes de comporta- mento apropriados a existéncia auténtica deixavam tanto a seu proprio discernimento que ndo podiam encarar a responsabilidade. Em conseqiiéncia, estavam predispos- tos a dar ouvidos a judaizantes, judeu-cristaos que nao podiam aceitar que a salvacao era somente através de Cristo. Insistiam em que, além disso, a lei mosaica devia ser observada. Fora, afinal, dada pelo proprio Deus, devendo entao ter validade permanente. A reagio de 1s Paulo a essa atitude ¢ esbocada na carta aos Gélatas e completamente articulada na carta aos Romanos e, & primeira vista, sua posi¢ao parece ser autocontraditoria. Por um lado, 0 respeito pela lei é evidente nao 86 em sua afirmagiio formal segundo a qual “tudo o que se escreveu no passado 6 para nosso ensinamento que foi escrito, a fim de que pela perseveranea e consolagao qu: nos proporeionam as Escrituras tenhamos a esperanc (Rm 15,4; ef. 1Cor 10,6), mas também enquanto emprega suas diretivas em seu prdprio ensinamento ético (por exemplo Rm 7,7; 12,198; 13,9; 1Cor 9,9; 2Cor 8,15; Gl 5,14). Afirma inequivocamente que “a lei é santa e 0 mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12) porque prometia vida (Rm 7,10). Mas, por outro lado, pode qua- lificar a lei como “lei de pecado e morte” (Rm 8,2), e como tirano que mantém a humanidade cativa (Rm 7,6) Aresoluedo desta tensao sugere-a o proprio Paulo ao escrever: “Verificou-se assim que o preceito, dado para a vida, produziu a morte” (Rm 7,10). A implicagio deste versiculo é que a finalidade original da lei foi pervertida, Bultmann nota: “Paulo nao critiea a lei do ponto de vista de seu contetido, mas com relacao ao seu significado para 0 homem” (Hxistence and Faith, Londres, 1964, p. 159). 'm outras palavras, a objecdo de Paulo & lei baseava-se. nao no que ela dizia, e sim no que os judeus dela fizeram. ‘Sua critica refere-ae 4 atitude humana para com a lei,/) ~~~A importancia da lei para os judeus nao carece de nenhuma énfase, mas pode-se admiti-lo sem estar intei- ramente consciente da reveréncia em que era tida. A apreciagio deste ponto é essencial para captar a posicio de Paulo acuradamente, ¢ se ilustra bem por uma citagao do artigo “Torah” da recente enciclopédia judaica: Existe uma tradicao antiga segunda aquala Torah existia no céu rio s6 antes de Deus reveld-la a Moisés, mas mesmo antes deo mundo ser criado... Era um dos muitos dogmas reais da tenlogia rabinica que a Torah vem do eéu (Heb. Toralt min ha-shamayn: Sanh. 10, set al ;ef. Ex20,22[19]; Dt 4,36), sto é,a Torah em sua inteireza foi revelada por Deus. Segundo a aggadah, 1, Moisés 116 subiu ao eéu para pegar a Torah dos anjos (Sanh. 89a, et al.) ‘Numa das mais antigas afirmagées, Simeao, 0 Justo, ensinava que (0 estudo de) a Torah é uma das trés coisas pelas quais 0 mundoé sustentado (Avot 1,2). Eleazar ben Shammita disse: "Se nao 6 pela Torah, eéu e terra no continuariam existindo” (Pes, 68b; Ned. 32a). Foi calculado que “o mundo em sua inteireza & samente 1/8900 dn Torah" (Ex. 21a;ef.''J, Pe’ ah 1,1, 18d), Dicia se que 0 proprio Deus estuda a Torah disriamente (Av. Zar. 3b, etal.) (Obviamente, a afirmacio mais surpreendente em seu sumario & @ ultima de Avoda Zarah: “Ha doze horas no dia; durante as trés primeiras o Santo se senta e se_ ‘ocupa coma Torah”. Precisamente o mesmo ensinamento “aparece no Targum de Jerusalém sobre Dt 32,4: - 50 ocupa coma Torah”. Bereahith Rubbah da urn passo adiantey“Assim como o Altissimo medita profun= “damente nos inistérios da Torah, também ele cumpre os seus preceitos” (c. 49). Em que medida este tipo de afir- magoes pode antecedero sée. II a.C., quando por primeiro catestado, pode ser apenas objeto de conjetura. A tendén- cia que elas representam era certamente operativa nos tempos de Paulo, se coligimos a atitude para com a lei exibida pelo SI 118 e a identificacao da Sabedoria divina coma lei em que Belo 24 insiste. Pouca diivida pode haver de que W. D. Davies descreve acuradamente a situacau nu sée. 1 d.C. ao escrever: Como dom de Javé eo plano-base do universo, ela [aleilsé podia ser perfeita e imutavel; era impossivel que ela fasse um dia esquecida; jamais surgiria profeta algum que a mudasse, ¢ nenhum nove Moisés jamais apareceria para introduzir outra let que a substituisse (The Setting of the Sermon on Mount, Cambridge, 1964, pp. 157-158), Semelhante reveréncia pela lei fundava-se na crenca de que expressava a plenitude da mente divina em forma definitiva, A lei era inseparavel, porque a lei dava forma 7 permanente e imutével & vontade de Deus e a seu propé- sito para a humanidade. O proprio Paulo articula essa atitude: Ora, se tu te denominas judeu e deseansas na lei e te glorias de Deus, tu que conheees sua vontadee que, instruido pela lei, sabes iscernir 0 que ¢ melhor, que esta conveneido de ser o guia dos ccegos, a luz dos que andam nas trevas, edueador dos ignorantes € mestre dos que nao sabem, pocsuindo na lei a expressio da ciéneia eda verdade....ora, tu que ensinas aos outros, nao ensinas a ti mesmo! (Rm 2,17-21), Segundo a opiniéo comum, essa passagem levanta apenas a acusagao de que os judeus nao observavam de fato a lei que tinham em tao grande estima (cf. Rim 2,21- 24). Isso, porém, no passa do segundo ponte ¢ menos importante, Sua eritica maior é que fizeram da lei algo em que “repousar” e sobre o que “gloriar-se", Estes sao dois dos termos mais condenatérios do léxico de Paulo e car- regam a aceitagao de que a lei expressa a vontade de Deus €, em conseqiiéncia, é guia seguro para “o que é melhor” (literalmente: “as coisas que interessam realmente”)e um critério vélido da relacao de alguém com Deus/ Essa aceitacao era, para Paulo, a raiz da inautenticidade do ‘setor da humanidade governado pela lei. m Ultima Andlise, isso se deve ao reconhecimento do fato de que o respeito exagerado da lei produzia obedién- cia cega. Na pratica, a lei se tornava mais importante que © Legislador e, sendo assim, uma “coisa” se converteu no assunto de interesse tiltimo. Frisando a completa sub- miso lei como a meta da existéncia humana, os judeus de fato se definiam asi mesmos em termos de uma “coisa”. Essa atitude podia ser tomada para parecer extre- mamente respeitoso. Afinal de tudo, era a lei de Deus! A verdade, porém, nao era tao elogiosa. Em conformidade com o plano de Deus Criador, foi dada & humanidade responsabilidade tanto por si mesma como pelo resto da criagao, responsabilidade que tinha de ser exercida na 118 tividade. Mas a complexidade da realidade era bas- tante aterradora, o fardo da responsabilidade bastante grande, e em face deste medo 0 pormenor conereto e preciso da lei fornecia refiigio e sensacao de seguranca. Os humanos podiam afastar o olhar da realidade e focalizd- lo exclusivamente na lei. Pela conseqiiente sensagao de alivio pagaram caro. lei higio somente com prando previamente o direito de decisao. Por reveré exagerada, a obrigacao humana de fazer escolhas gem nnas foi cedida a lei. A lei decidia e a criatura'se sujeitavar “Algo mais que submissao é necessério para a auten: Licidade, comoos psicélogos decriangas todos reconhecem, Os pais podem estagnar irremediavelmente a evolucao da crianga para a maturidade, tornando todas as decisoes reais, tirando todo 0 risco da vida. A imagem nao é inrelevante, porque Paulo desereve, de fate, 00 judcus como eriangas sob “tutoria” da lei (G1 3,24). A lei visava supervisionar a conduta, guiar para a maturidade na liberdade, mas, por causa da atitude dos judeus para com ela, ela os manteve e guardou sob restri¢ao (Gl 3,23). 0 exeessivo respeito manifestado em obediéneia absoluta destréi a liberdade que é a condicdo indispensavel da autenticidade, como 0 expressa com clareza Tomas de Aquino em seu comentério sobre 2Cor 3,18: Quem quer que aja com v seu proprio ulvitre age ltvremente, ¢ quem quer que seja impelido por outro nfo é livre. Aquele que evita omal, nao porque émal, mas porque um preceito do Senhor | oproibe, nao livre. Poroutro lado, queevita omal porque é mal Elie. A exatidao desta intuicdo na mente de Paulo confir- ma-se pelo que o préprio Apéstolo diz na carta a Filemon. “.. Tendo embora toda liberdade em Cristo de te ordenar © que convém, prefiro pedir por amor” (Fm 8). O ponto nesta questao é claro. Paulo quer que H'ilemon faga o que convém a respeito de seu escravo fugitive Onésimo, isto é, nao afirmar 0 seu direito legal de puni-lo, mas traté-lo 119 como irmao e mandé-lo de voltaa Paulo, Trata-se, pois, da realizagiio de ato de caridade. O problema 6, pois” por que Paulo se recusa a mandar tal ato? A resposta fornece-a 0 v.14:*... nada quis fazer sem teu consentimento, para que tua boa agdonao fosse como que forcada, masespontanea” Em outros termos, o interessede Paulo pela autenticidade fe Filemon fe-lo recusar tomar uma decisio que devia “ser deste ulti © que teria acontecido se desse ordem que Filemon teria entendido como preceito obriga- ae paentendido; O caso de Filemon nao ¢ caso isolado, e a consisténcia da atitude de Paulo manifesta-se no caso da coleta para os pobres de Jerusalém. Depoisdecumprimentar os corintios, diz-Ihes bruscamente: *Procurai também distinguir-vos nesta obra de generosidade” (2Cor 8,7). O verbo tem a forga deimperativo; a forma da afirmacéioéa de enmando, Mas no proprio versiculo seguinte apressa-se em acres- centar: “Nao digo isso para vos impor uma ordem”, Sua Tazo? “Cada um dé como dispdsem seu coracaio, sem pena nem constrangimento” (2Cor 9,7). Dada essa perspectiva é bem evidente por que as obras da lei so sem valor. Porque os judeus acreditavam que eram obrigados a agir como a lei mandava, agiam por ‘A autenticidade, ao invés, deve ser livremente fao se pode conseguir de qualquer outra ma- Telra: Por sux profissao drew réneia pela lei, o judeus afastavam de si mesmos desafio de sua humaiiidade, i Davamr® lei uma autoridade que ajudava e encorajava sua fuga da responsabilidade e, assim, inevitavelmente, “opreceito, dado paraa vida, preduziu a morte”(Rm 7,10), Uma conseqiiéncia paradoxal da reveréneia exagera~ da pela lei é que ela era arrastada para a orbita da “concupiscéneia”, Fra desejada, nao para o que devia ser em relagdo ao Criador, mas para o que parecia ser em relagao As criaturas, a saber, como algo em que eles po- diam “repousar” (G18,10)¢ faz6-los “vives” (GI3.21), Sua existéncia mesma encorajava as criaturas a presumir certa autonomia sobre e em face do Criador e, assim, 120 ee |) “gloviar-se” (Rm 2,28). Estavam condicionados a formular © seu proprio conceito de autenticidade em preferéncia a0 lo Criador (Rm 10,3). A conseqiiéneia era a situagio tragiea que Paulo esboca em Rm 7,14-24 (ef. p. 90) Nao 6 dificil captar os matizes de énfase com que Paulo praclama: “Cristo 6 a finalidade da lei, para que todo 0 que tiver fé seja justificado” (Rm 10,4/A autenti- cidade da humanidade de Cristo poe fim ao periodo de esforgos ‘confusos quando todo esforco rumo acima s6_ conseguia afundar ainda mais ahumanidade na lama, A_ via para aautenticidade, para ser como Deus pretendeu, passa através da decisio livre da-fé-inaugurando uma enci jada na de Cristo (1Cor 11,1), Aplicagées contemporaneas ios sabem que nao mais estio ligados & lei mosaiea pelo que Paulo estava tao interessado. Teen nos pode cegar para o fato de que o seu principio basico Permanses-valido cor respelie s qualquer lei Oferecer obediéneia a qualquer diretiva autoritéria é colocar-se no. ado de-inautenticidade, porque fazé-l0 é entregar a ‘propria liberdade no empenho de escapar da responsabi- le.(S A ambigiiidade de toda lei, tanto religiosa como civil, 6 que a um 86 tempo é necessaria e destrutiva. Sem algumas regras, nenhum grupo humano pode sobreviver por longo tempo. Um quadro legal abriga os valores que lorna possivel a continuidade. Uma sociedade sem ordem 6 contradi¢ao nos termos. A lei, porém, carece de sentido a no ser que seja obedecida, e os responsaveis pela sociedade, no sentido de facilitar sua tarefa, inevitavel- mente tendem a insistir que algo seja feito simplesmente porque esté na lei. Ignorancia ndoé nenhuma escusa para 121 © nao-cumprimento, e sangdes sao reforgadas contra os que nao se conformam. No fim, a lei assume autonomia definida sobre e contra os que ela visava servir, tornando- se assim meio de escapar, para os demasiadamente pre- guicosos, de pensar por si mesmos.{Estio satisfeitos de _pensar o seu “dever” e recusam ver de perto a situacao em que devem reagir criativamente. O costume estabelecido, nao & necessdrio dizer, tem a forca dé lei neste tipo de ‘desenvolvimento. Asituagao atual no dominio da lei civil foi finalmente descrita por Peter G. Hodgson: Roeentes andlises do “estado corporativo” da sociedade buroer: tico-tecnolégiea enfatizaram que o mundo social em que vivernos ¢ altamente legalistico; a lei, porém, nfo mais serve primai mente como instrumento de justiga e delimitagao de poder, mas como meio livre de valores que perinite ao sistema Durocratieo funcionar maciamenteemanter alto graudecontrole institucional, leis sfo foitas primariamente para satisfazer a exigencias de administragao antes que proteger os direitos dos individuos. Por causa de seu efeito externo, impessoal e com frequéncia desumanizante, a lei tem impacto profundamente alienante em milhies de cidadaos, Para povos oprimidos de qualquer parte do ‘mundo, a lei é sentida nao apenas como alienante, mas também como opressiva. Os pobres e sem poder sabem que a lei ¢ feita contra eles e reforgada contra eles. O papel da lei, primeiro em logitimar a instituigdo da eseravidao e depois em reforcar pa. does de segregacio ¢ discrirhinagio, € episédio vergonhoco da Juriaprudéncia americans, Soctedades racistas tendem a ser altamente legalisticas (por exemplo, os estados escravagistas antes da Guerra Civil nos Estados Unidos a Africa doSul atual), Borgue a Tel fornece meios tanto de repre sola como de sublimacae dos sentimentos de culpa pelas injusticas perpetus das (New Birth of Freedon, Filadélfin, 1976, p. 190). Arelacao entre inautenticidadee submissao 4 lei que devia ser reconhecida como mé nao precisa ser frisada. Rte lado so tornou extremamente claro nos varius julg: mentos dos criminosos de guerra nazistas. Pelos prinefpi- os de Paulo, porém, a obediéncia inquestinada a uma lei 122 boa produz inautenticidade. O consenso comum sugeriria que as leis da Igreja sao leis boas, e é precisamente ai que locamos 0 cerne do problema. Ninguém negara que a proibicao do assassinio é uma boa lei, Protbe algo que é incompativel com a criatividade positiva, qne é a esséncia da autenticidade. O que dizer ‘entao do caso dos cidadaos alemaes que conspiraram para ‘assassinar Hitler? Os que créem na absoluta supremacia da lei dizem que erraram. Os que esto mais entrosados coma ligao de vida de Cristo reconhecé-lo-fo como foi, um cslorgo de abracar a responsabilidade. A historia passada fornece, porém, apenas exemplos palidos e, neste caso particular, a retidao da tentativa dos conspiradores pro- clamou-se amplamente como evidente. Mas seria Idi Amin muito diferente de HitlerPoderiamos ser tentados usar 0 mandamento “néio matarée” como cacusa para ra responsabilidade? [ © fim da lei que manda participar da missa aos domingos certamente é bom. Convém plenamente que as, criaturas adorem o seu Criador regularmente, Mas o que dizer da situacao dos que vao missa no domingo pura e simplesmente porque ¢ mandado? Nessa hipétese, vao exclusivamente pelo medo de cometer pecado. Nao s6 nada auferem disso, mas também terminam frustrados e entediados, de sorte que dificilmente sao capazes de palavras de boas maneiras ao sairem. Pense-se nos emo- cionalmente comprometidos com a liturgia latina pré- Vaticano II, que se viram impelidos a uma missa de massas porque é a tinica a atingir 0 povo. Acaso diferem dos colossenses e dos gélatas? Paulo certamente respon- deria negativamente/Sua preocupagao com uma“coisa” condena-os & inautenticidade. ~ Abondade de outras leis da Igreja esta mais exposta a questdes, como, por exemplo, a lei que restringe a ordenagao a homens. Mas o assunto mais fundamental refere-se av papel da lei pusitiva denlru de una comuni- dade auténtica, que, para Paulo, necessariamente é uma comunidade crista. Pareceria ser inferéncia légica da 123 posigao de Paulo que a Igreja, fazendo legislagao obriga- t6ria, contribuiria para a inautenticidade de seus mem- bros. John Knox percebeu bem a perspectiva paulina: ‘Mas — éde se perguntar—sera que a rejeicao por parte de Paulo como vinculando os fis ¢ tao radical assim? Nao seria alei”,que cle rejeita, simplesmente um codigo externo, um catélogo de “tu. doves” e “iu niio deves", em particular o eédigo do judaismo? O que possa parecer que esteja implicado em alguns de seus ensinamentos praticos, estou seguro de que na sta “teoria” da vida crista Paulo vai muito mais longe, Ainda que, sem divida, amitide esteja se referindo a lei judaica, nao se pode negara resenca — muitas vezes, sendo sempre — de uma inferéncia mais radical e mais inclusiva.... A lei, come tal, nao mais vale para o cristao (The Ethic of Jesus in the Teaching of the Church, Londres, 1962, p. 99), Como veremos, 0 preceito do amor é 0 tinico manda- mento que vincula os auténticos, e isso porque se exige pela propria natureza da autenticidade. Nao quer dizer, porém, que Paulo deva se considerar advogando mera Stica de situagao, Essa se exclui, como veremos, por sua compreensao da condi¢do sob o que a auttenticidade se torna possivel. 124 LEITURAS SUGERIDAS Sunders, E. P., Pavlo, « Lei eo povo judeu, Paulus, Sa0 Paulo, 1990, ‘ultmann, R., Theology of the New Testament, SCM, Londres, 1965, 27 (The Law) lcicke, B., “The Law and This World according to Pau”, em Journal of Biblical Literature 70 (1951), 259-276, ier, H., Prineipalities and Powers in the New Testament, Herder, villurgo, 1961. Cranfield, C. B. B., “St Paul and the Law”, em Scottish Journal of Vhcotogy 17 1861), 43-68, iermyer, JA, ‘int Paul and the Law”, em The Jurist, 1967, 18.36. HHvuce, F. F., “Paul and the Law of Moses", em Bulletin of the -John Naylands Library 51 O874-75), 259-79, Sanders, B. P., Paul and Palestinian Judaism, Fortress, Filadétfia, emp. 5,84 125 @ ISOLAMENTO EGOCENTRICO A afirmagao “nenhum homem é uma ilha” articula o simples fato de experiéncia de que a existéncia humana é um tecido de relacionamentos interpessoais. Nao se pode conceber oserhumanoem total isolamento. Vira existéncia implica necessariamente relacio pelo menos com duas outras pessoas. O proceso de edueagao envolve a asso- ciagdo com muilus vulrus mais. As possibilidades da linguagem e do sexo sao exigéncias de complementaridade, uma vez que cada individuo possui somente uma parte de um sistema completo reprodutivo e o fim da linguagem comunicacdo com outros. As amenidades da vida do dia- a-dia dependem da cooperacao de grande mimero de individuos. Minha seguranea depende da policia, meu transporte dos motoristas e mecanicos, minha recreagao de produtores de cinema e televisao ¢ de autores, meu alimento de agougueiros ¢ padeiros. A lista poderia ser eslendida infinitamente. Em consequéncia, assim como Aristételes descreveu o homem como “animal racional”, também Heidegger insiste em que 0 ser humano neces- sariamente é um “ser-com-os-outros?/Neste encontro com, ‘outros, o individuo confronta-se com a escolha entre ‘ulenticidade © inautonticidade:: — ‘odos os existencialistas estao virtualmente de acordo em ver a existéncia social contemporanea como inauténtica, Evidencia-se na propria terminologia que empregam. A “multidao” de Kierkegaard, o “rebanho” de Nietzsche, o “eles” de Heidegger, a “massa” de Jaspers, todos sao termos altamente sugestivos da atitude pejo- rativa dos fil6sofos que se enraiza na consciéncia de que se 127 perde a originalidade do individuo no comum da multi- dao. Ninguém deixaré de reconhecer a exatidao da ana- lise de Heidegger das principais caracteristicas da exis- téneia contemporanea, assim condensadas por J. Macquarrie: Existe “o dia-a-dia”, J encontramos muitas vezes a expressiio “existéncia do dia-a-dia”. £ termo técnico de Heidegger. Siznifica lum modo de ser dominado pelo hiibito de nao pensar, por uma sequiéneia mecinica das maneiras de agir que se nos deixaram numa ordem estabelecida. Existe, entdo, "medianidade’, ot mediocridade, que se da como resultado de uma tendéneia niveladora presente no uso por todos de facilidade que fazem todos iguais; preencher formulétios e fica em filas para esperar 6nibus ou entrar no cinema sao exemplos familiares... A public cidade € outra caracteristiea relacionada com 0 modo despersonalizado de ser. Enquanto o medo isola o individuo om ‘sua facticidade e responsabilidade, em publico pode esquever-se desi ede sua responsabilidade, diminuindo assim a ansiedade, ‘dentificando-se com a multidao impessoal indeterminada. Pal. rar 0 modo de falar do dia-a-dia, que, ao invés de desvelar as eoisascomo realmente sao, converter-se noqueo publicoacha que ¢.Correspondendo aesse modo de falar ineonsistente, existe urna Mteratura popular descuidada que passa sereserita, Oeserever Gescuidado e apressado obscurece, com efeito, a verdade, mas torna-se popular e autoritative, porque fala As pessoas 0 que Aesejam ouvir. Existe, afinal, a curiasidade, Io desejo de entrar em experiéneias sem tomar a resolucao de té-las por si proprio. O-cinoma oferece entrada imaginativa ao mundo alegre e suntuc 980 de Hollywood; a leitura eacitanite dl ad Tottor a sensagho de participa das facanhas e ousadias do herdi, sem necessidade de eixar o lado comodo da lareira;o tipo sensacionalista do jornal dominieal torna possivel a entrega viedria ao crime e ao adultd- io, ainda que’0 leitor professe (e creia ele préprio) que fica horrorizado com as estérias que traz o jornal (An Bxistencialist ‘Theology, Londtes, 1964, 91-92). AAoxisténciaé governada for “eles” sem rostd; quendo gpinguem articular, “Hles” arriinam a economia. les” diminuenros padres de-gostoe moralidade. “Ek 2S” estroem o meio ambiente, “Eles” continuam a corrida 128 armamentista, Osindividuos nao sdoseresem simesmos, mas facetas do multiforme “eles”. Foi deste ponto de vista que Sartre péde proclamar que o “Inferno esté no alé” (Hell is in hello). — Era inevitavel que o conceito existencialista de au- tenticidade fosse ennstruido em oposicao ao padrao geral. Se a pessoa inauténtica é aquela que, a fim de se aliviar da responsabilidade, perde-se na multidio, a pessoa au- téntica, proclama-se, é aquela que emerge da multidao, «ue se afasta da massa por ter a coragem de ser diferente. A reacao a despersonalizacio é enfatizar o individualis- mo. Daf, o fenémeno do “drop” de que o préprio Heidegger fornece um exemplo classico em sua retirada ao isolamen- to na Floresta Negra. A nao-conformidade das décadas recentes s6 pode se estender como busca de autenticidade. Mas existe apenas ntimero limitado de ser diferente da massa, e muito depressa o esforco de se distinguir a si mesmo torna-se objeto da tirania de uma espécie diferen- te de conformismo. Chegou-se & conclusao de que era impossivel separar-se da multidao, a nao ser aliando-se com outros que também rejeitaram o sistema de valores dla sociedade contemporanea/A pressao da sociedade er: tao grande a ponto de produzir: code que algué ia Sor endo “igual”. Pxiste menos tole- ia dentro de grupos nao-conformistas do que na sociedade como um todo. ~ ‘A experiéneia, pois, flumina a precariedade de um coneeito de autenticidade baseado em radical individua- lismo. Deveria também nos forgar a questionar se a andlise existencialista é de fato deserigao acurada da condig&o humana. O que impressiona os existencialistas «a homogeneidade da massa, mas seré realmente 0 retrato todo? Paulo certamente nao estaria de acordo. Como vimos, ele tinha conceito muito claro de autentici- dade enquanto enraizado na criatividade. Fato que impli- ca relacivuauento positivo com os outros e, sendo assim, onde os existencialistas viam s6 coletivismo, ele via a falta decomunidade. Em decorréncia, estava muito mais cons- 129 ciente do que eles das divisdes dentro da humanidade, considerando essas divisdes como os sinais mais ébvios da inautenticidade. Blocos opostos Cs afirmagées explicitas de Paulo segundo as quais em Cristo todas _as divisdes sociais foram abolidas sio i indiear que, para ele, constituiam parte do modo inauténtico da existéncia humana: “Ai nao hé ‘mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, barbaro, cita, escravo, livre” (C] 3,11). “Nao ha judeu nem grego, nfo ha escravonem livre, naoh4 homem nem mulher” (Gi 3,28; ef. Rm 10,12; 1Cor 12,13), Essa listagem, deceptivamente simples, nao 6 por acaso. Cobre a totali- dade do mundo entao conhecido dos pontos de vista religioso, econémico, geografico e sociolégico. A oposi¢aio “homem-mulher” sugere imediatamente que estamos a nos haver com mais do que de descricdo neutra. Até um breve esboco das atitudes do periodo deixara claro que as oposigdes portam sobretons de hostilidade, Deparamos nao com diversidades simplesmente, mas com divisdes. Aatitude dos judeus a respeito dos gentios espelha-se exatamente em Ef 4,17-18: “Na futilidade de seus pensa- mentos, com entendimento entenebrecido, alienados da vida de Deus pela sua ignorancia e dureza de coracio”, mas muito mais plasticamente deserita em 4 Esdras: “Tudo isso eu falei diante de ti, Senhor, porque disseste que por causa de nés criaste este mundo. Mas quanto as. outras nagdes que sao descendentes de Adio, tu disseste que eram nada e que elas eram como cuspe, e comparaste a abundancia delas comu una yola nui cope” (4,55-56). De conformidade com o mesmo autor, a sorte dos gentios ser o“buraco do tormento” e a “fornalha da geena”(7,36- 130 ‘J8), ou ent&o os descreve como sujeitos a um rio de fogo que “os queima, de tal forma que de repente nada mais se pode ver da multidao inumerdvel a nao ser apenas pé de tinzas e cheiro de fumaga” (13,11). Nem todos os autores do periodo era tao venenosos, mas até 0 mais benigno viu a salvagao dos gontios apenas em termos de peregri- hnacao penitente como a descrita em Is 60,3: “As nacdes caminharao na tua luz e os reis, no clarao do teu sol haseente’. (Assim, por exemplo, lemos nos oréculos wibilin _— 7 TO ~~ Bentao todas as ilhas e cidades dire: Como 0 Eterno ama estes homens (isto é, 0s judeus}, Pois todas.as coisas agem em simpatia com eles e 0s ajudam, 0 eéu ea carruagem de Deus, o sol ea lua. ‘Um tom musical doce saira de suas bocas em hinos. Vinde, caiamos todos por terra e supliquemos 0 rei Eterno, 0 Deus poderoso e perpetuo. Kacamos procissoes a sel ir ele 6 0 tinico Potentado. E-meditemos na sus 10, que € o'mais roto em toda a terra, M: fastamos das veredas do Eternoecom coragao inzensato adoramos as obrasde mao humana, idolos e imagens de homens que estiio mortos (IIT, linhas 7168s) -Para os gentios, a escolha situava-se, pois, entre a sstruigao e a submissao incondicional. a - ‘Aadmissio arrogante de suporioridade, inerente a na nayao e cultura, sobre todas as outras, néo podia leixar de produzir reagao igual e oposta, Em seu Contra Apido, Josefo recorda a irritaeao de personagens do séc. I «.C., como Queremon (1,288), fildsofo estéico que foi tutor de Nero e chefe da grande biblioteca de Alexandria; Lisimaco (1,304), escritor alexandrino; e Apiao (2,1), que inou em Roma nos reinados-de-Tibério, Caligula e- laudio. Sua malicia expressou-se em acusagées visando ridicularizar os judeus. Naoter partido porsidoEgito— por ocasiao do éxodo, mas foram expulsos por serem Jeprosos (1,299.290.308). A prépria etimologia da palavra “sabbath” evidenciava que tinham uma doenga nas Viri-_ 's (2,21). Onde iam, fomentavam sedigoes (2,68) e todos 131 faziam juramento de nao ter boa vontade alguma para qualquer nfo-judeu (2,121). No seu templo, adoravam a cabega de um burro (2,80) praticavam ritos abomindveis: “Teriam seqiestrado um estrangeiro grego, teriam-no engordado por um ano e depois o teriam matado num madeiro sacrificando oseu corpacam seuritual costumeiro, teriam comido sua carne e, imolando o grego, teriam Jurado hostilidade aos gregos” (2,95). ita-se, dos dois lados, de atitudes genéricas que s6 -dequandoem vez explodiam em violénciarMas é precisa- ‘mente isso que ¢ importante para entender a visao global de Paulo. Que os individuos judeus e gentios viviam em miitua harmonia e compreensiio é irrelevante ao quadro geral, porque em tempos de crise no se impedia que Passassem a atitude mais fundamental de hostilidade. A mesma observagiio vale também para a oposi¢au entre vardo e mulher. E. inegavel que em muitos aspectos Judeus e gregos tratavam as mulheres como plenamente iguais, mas seus sistemas legais viam as mulheres como subordinadas e inferiores ao varao e a sujeitava a nume- rosas desqualificagoes religiosas e sociais. Se ela era normalmente tratada com cortesiae respeito, essa admis- so de inferioridade podia a tempos aflorar em amargo cinismotiA observacao famosa de Deméstenes: “As compa-_ nheirasconservamo-las por causa do prazer; considerava que as mulheres nao tinham mais que valor _ uutilitario/Os rabis temiam as mulheres como distracao e fonte de tentacdo. Eram fundamentalmente inconfidveis (Shab. 33b) e dotadas de quatro caracteristicas: coneu- piscéneia, curiosidade, preguica e citime (Gen, Rabba 45, 5).Filon, que tinha um pé em ambos os campos, escreveu: “O progresso nada mais é do que deixar o género feminino trocando-o pelo masculiuv, pois o género feminino 6 ma- terial, passivo, corpéreo e perceptivo pelos sentidos, a0 Passo que o masculino é ativo, racional, incorpéreo e mais 132 semelhante mentee ao: ‘pensamento”(Quaest, in Ex 1,8). Sua énfase é explicar a diferenca entre conhecimento sensitivo e inteligéncia, mas a alegoria que emprega para esclarecer a questéo é indicacao clara da posicéo da mulher na sociedade. 8A posicao inferior da mulher estava funduda em \dical misogenia, como se mostra em seu suméi antigos provérbios por C. E. Carlstoni. ‘As mulheres, se devemos conflar na sabedoria antiga, sfio basi- camente inedueaveis o de cabegas vazias; vingativas, perigosas ce responsaveis dos pecados dos homens; mentirosas, traidoras ¢ ineonfidveis; voltiveis; tém valor somente por sta relagio com 03 hhomens; incapazes de moderagio e de bondade espontanea; (| preferem o escuro; interessadas a6 em sexo —a nao ser quando } { estao com seus maridos, © neste caso (pelo que parece) elas proferem falar. Breve, as mulheres sau, individualmente ¢ todas, uma ‘série de abutres’, ‘mais bestial’ de todas as bestas na terra © no mar, ¢ 0 casamento 6 na melhor das hipéteses um mal necessario (Journal of Biblical Literature 99 [1980], 95-96). Os exemplos que ele cita amplamente justificam essa caricatura viciosa. Os provérbios, deve-se lembrar, eram (e ainda sao) entendidos como representagao de aspectos evidentes por si da experiéneia humana Dada a natureza da sociedade, os provérbios das mulheres a respeito do sexo oposto ficaram largamente sem recordacao. Seria extremamente ingénuo admitir que nenhum existiu. O contrario é, de fato, indicado pelo provérbio, obviamente machista, relatado por Filemon, poeta doséc. IIT a,C.:“Quando uma mulher fala com outra — mulher privadamente, um grande tesouro de males jorra_ para fora”.)Temos ai uma alusdo de que a hostilidade mostrada pelos homens era plena e reciprocamente correspondida. Uma confirmacdo fornece-a as palavras que Séfocles, tentrélogo do séc, V_a.C., poe nus labios de. wma mulher ‘Quando somos jovens, na casa de nosso pal, penso que vivemos a mais doce vida de todas, pois a jgnorancia sempre nos traz entretidas prazeirosamente. Mas quando atingimos a idade madura e sabemos mais, somos langadas das portas da casa @ vendidas, longe dos deuses de nossos avos e nossos pais, algumas para casas de estrangeiros, outras para casas de birbaros, algumas para casas de estranhos e outras para casas que me. rece censura. f nesta sorte, depois que uma tinica noite nos ‘uni, temos que aquiescer e pensar que tudo est bem (Tereus fragm, 524), AMal é necessério documentar as atitudes reeiprocas de escravo e senhor,/As vezes havia relacionamento de miitua confianga, mas a verdadeira posicdio do escravo é ilustrada pela fria observagao de que, quando o tempo foi passando, “houvea tendéncia a dar maior reconhecimento a personalidade de facto” (Oxford Classical Dictionary, 996). Em outras palavras, houve a tendéncia crescente a tratar os escravos como se fossem pessoas. Nao tinham. nenhuma personalidade, salvo como extensio da do pa- trao. Sua posicao legal era a de qualquer item material de Posse, pois a posse de direitos formava parte da propria definicao do homem livre. Esta calculado que nas cidades 98 escravos constituiam um tereo da populacdo, e em ultima andlise cles eram simplesmente usados pelos livres. Noentanto, os escravos devem ter tido sentimentos para com seus patrées, suas atitudes certamente eram coloridas pelo desejo de libertagaio. O ressentimento an- dava sempre dentro deles. As vezes ele explodia em fuga € outras vezes chegava 4s explosées suicidas das revoltas de escravos. As trés maiores ocorreram nos dois séculos antes do ministériode Pauloe, em conseqiiéncia, aatitude dos livres sempre era matizada pelo elemento de suspeita e medo. AO par final “barbaro” e “cita” pas uma dificuldade aos exegetas porque nao é uma antitese esperada, eamoo s30 os outros trés agrupamentos/Sugeriu-se que barbaria era As vezes usado para descrever a costa somali e parte da 134 Mtiopia. Neste caso, o contraste seria entre povos do norte © do sul, ou mesmo entre brancos e negros¢Seja o que for, “barbaro” era usado tanto para judeus como para gregos para_significar “o de fora”, ou seja, todo aquele cuja” diferenca em linguagem, cultura e religiao marcava-o como infeliz inferior.'Os citas, por outro lado, era um {rupo racial especifico localizado ao redor do mar Negro, cuja crueza, cujos excessos ¢ cuja ferocidade faziam deles 9 arquétipo dos “barbaros’/\Ambos os termos, pois, im- plicam um desprezo cruelmente zombeteiro//Mesmo se soubéssemos 0 que 08 citas pensavam dos de fora, certa- nte seria impossivel imprimi-lo. Paulo com grande realismo viu o seu mundo frag- inentado em blocos opostos. Era um monte de estereo de fumegante ressentimento em que as moscas do medo, as larvas da desconfianca e os vermes da inveja prolifera- vam.{Nao seria dificil transpor essas categorias para caberem em nossa situacéo¢O mesmo tipo de corrosiva ma vontade se vé entre as nagdes desenvolvidas e 0 Terceiro Mundo, entre os consumidores e produtores, entre os que {em eos quenao tém, entreas liberacionistas das mulheres os machos chauvinistas. Neste século, as guerras nunca foram tao numerosas e tao destrutivas. Individuos isolados Paulo, porém, nao viu apenas blocos de pessoas opostas entre si. Olhou para dentro dos agrupamentos ¢ oquadro resultante foi até menos agradavel, aqui é grandemente facilitada pelo fato de que o préprio_ Paulo as vezes esbocou listas dos tracos que, a sen ver, caracterizavam os que existiam inautenticamente. Essas_ “listas de vicios” em Rm 1,29-31; 13,13; 1Cor 10-11; 6,9-10; 2 0-21; GI 5,19-21; e Cl 35.8. 135 ‘Todas coincidem até certa medida e, sendo assim, a maneira mais facil de comecar 6 esbocando uma simples lista alfabética: 1, Ambigao egofsta (2Cor, GI) 2, Arrogdncia (Rm) 3. Arrogante (Rm) 4, Assassinio (Rm) 5, Bebedeira (Rm, Gl) 6. Blasfémia (Cl) 7. Cahinia (Rm, 2Cor) 8. Concupiscéncia (Rm, 1Cor, Gl) 9. Contensio (Rm, 2Cor, Gl, Cl) 10. Conversa obscena (Cl) 11. Desobediente (Rm) 12. Dissensao (GI) 13. Embriaguez (Rm, 1Cor, GI) 14. Embuste (Rm) 15. Feiticaria (Gl) 16. Homosexual (1Cor) 17. Idolatria (1Cor, GI) 18. Imoralidade (Rm, 1Cor, Gl, Cl) 19. Incrédulo (Rm) 20. Injuriador (1Cor) 21, Insensato (Rm) 22, Intrigante (Run, 2Cor) 23, Inveja (Rm, 2Cor, GI) 24, Ira (2Cor, Gl, Cl) 25. Licenciosidade (Rm, 2Cor, Gl) 26. Malignidade (Rm) 27. Maquinador do mal (Rm) 28, Odiador de Deus (Rm) 29, Paixao sexual (Cl) 30, Pederasta (1Cor) 81. Perversidade (Rm) 82. Privado de sensibilidade (Rm) 33. Presungio (2Cor) 34. Rebeldia (1Cor) 35. Roubo (1Cor) 36. Sectarismo (Gl) 37. Sem amor (Rm) 38, Sem misericérdia (Rm) 39. Soberba (Rm) 40. Trapaceiro (1Cor) 41. Vieiosidade (2Cor, Gl, Cl). Alista contém uma mistura de nomes abstratos (por exemplo, “malignidade”) e concretos (por exemplo, “injuriador”) que indica que Pauloesta interessadonasituagdo real, ainda que tipica.(Considera-se'que_as_disposigbes_ chegam & expressao na cdo e o comportamento é tratado como indieativo de uma atitude profundamente enraizada.°, A técnica das “listas de vicios” era comum no meioem que Paulo viveu, e é dificilmento surpreendente saber que, dos termos da lista acima, alguns se encontram em listas de origem judaica (ntimeros 1, 3, 4,9, 10, 15, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 27, 30, 32, 33, 34, 35, 38, 40, 41), ao passo que outros constituem parte da tradicao helenistica po- pular (mimeros 9, 11, 14, 16, 18, 23, 26, 30, 31, 37). Essa dependéncia de Paulo do meio cultural em que trabalhou 86 serve para iluminar o fato de que o resto dos 25 por cento da lista acima é atestado s6 raramente, se é que 0 6, em listas compardveis do mesmo periodo, a saber, “arro- gancia”, “bebedeira”, “presunedo”, “contencio”, “ma- quinador do mal”, “dissensao”, “conversa obscena”, “sec- tarismo”, “ambicao egoista”, “intrigante” e “rebeldia”. ATodos esses vicios tem uma coisa em comum: tornam_ _impossivel a comunidade genuina. Isso porsua vez.chama_ parao fato de que a vasta maioria dos itens na listaacima é deste tipopTrés dizem respeito a religiao (nn. 4,16,19), quatro ao sexo (nn. 18, 20, 26, 31) ¢ outros poucos a sentimentos pessoais (por exemplo, nn. 13, 15, 30) e o resto sao vicios sociais. Ente fato faz. com que as listas paulinas se distingam de outros catdlogos contemporaneos que sao pesadamente carregados de vicios individualisticos; por exemplo, igno- 137 rancia, falta de sensibilidade, covardia, pessimismo, ins- tabilidade ete. Essa diferenca 6 somente de énfase, mas extremamente importante para a correta compreenséo da perspectiva de Paulo. Os contemporaneos de Paulo nao eram conscientes da natureza social do homem. Tanto a tradicdo grega da responsahilidadecivica como aconviegio Judaica da solidariedade de sua raga garantiam que dessem alguma proeminéncia aos vicios sociais. 0 indi- viduo, nao obstante, era primério. Filon, por exemplo, apresenta sua lista elaborada de 160 vicios (em grande maioria so individualisticos), como as caracteristicas de “quem amaoPrazer” (De sacrificiis Abelis et Caini,n. 32). Estava influenciado pela tradigio estéica, que também estava na raiz da filosofia moral popular do periodo. Os estéicos criam quea virtude esta baseada noconhecimento. Sendo assim, s6 8 sabios podem ser virtuosos. Ao quatro: virtudes cardeais caracterizam o sabio, e destas Zendo, 0 fundador da Stod, desenvolveu quatro vicios cardeais com suas exatas contrapartidas, a saber, “insensatez", “ex- cesso”, “injustica” e “timidez”/E dificilmente inesperado, portanto, que 0 individuo nao estivesse no centro do quadro. A sociedade entrava na cena somente porque 0 individuo era forgado a interagir com ela, ¢ a crenca era que a sociedade melhoraria & medida que o8 individuos se~ tornavam progressivamente mais virtuosos.(\ ~~ Pano nao era tao ing&nuo, porque estava extrema- mente consciente do poder do falso sistema de valores (“Pecado”) hostil & autenticidade. Sua visdo da natureza auténtica da humanidade fé-lo muito mais sensivel queos existencialistas aos fatores que inibem genuina comuni- cago. Suas “listas de vicios” evidenciam que via o mundo como o lugar onde os individuos separavam-se uns dos outros por atitudes que tornavam a comunidade impos- sivel. O seu catdlogo sugere nao sé falha em reconhecer 0 outro, mas também repulsa ativa do outro, Ba negacio da relagdo “eu-tu”, (Wma ver mais, existeestreita correspondéncia entre a visdo de Paulo e uma avaliacao realistica da sociedade_ 138 contemporanea. A solidao éendémica. O medo legitimo de lo ou abusado produz omedo do envolvimentoiAs ‘pessoas podem ser roubadas nas ruas a plena luz do diae ninguém defendé-las-a. As pessoas recusam-se a fazer amigos com os moradores da casa ou apartament préximo. porque pode haver exigéncias que nao querem cneontrar. ‘Asportas sempre estao trancadas, e preparacdes para um feriado so conduzidas com trepidacao. O miasma da suspeita esta em toda parte. 139. LEITURAS SUGERIDAS CONCLUSAO Daniel, J. L., “Anti-Semitism in the Hellenistic-Roman Period” em ‘Journal of Biblical Literature 98 (1979), 45-65. ope, "Woman a Mactopia! Dictionary ofthe New Pestame 1, 777-784, ms a tome — R., The Social Position of Women in Judaism, SPCK, Londres, (A compreensao de Paulo da condigio da humanidade inauténtica 6 dominada pelo conesit a On ten ste estreitamente inter-re ‘é o “mundo” na falsa orientacdo dada ao pelo pecado de Adao. Essa orientagdo ¢ ratificada e inten- sificada pelas atitudes de seus descendentes. Embora teoricamente livres, todos os nascidos na sociedade de- sorientada nao tém, na realidade, nenhumaescolha a nao ser internalizar sua orientacao. Seu padrao de compor- tamentoreflete necessariamente ofalso sistema de valores que receberaméExistem,-portanto, no estado de Morte quesignifica que o seu modo deser nao 60 pretendido pelo Segal, J. B., “The Jewish Attitude towards Womens", em Journal of Jewish Studies 30 (1979), 121-137, Pomeroy, §.B., Goddesses, Whores, Wives, Slaves: Women in Classical Antiquity, Schocken, Nova York, 1976. Kitto, H., The Greeks, Pelican, Londres, 1957, cap. 12. Oxford Classical Dictionary, artigos “Slavery, Law of ¢ “Slnves” Bartehy, S. S., Mallon Chresai: First Century Slavery an the Interpratation of 1 Corinthians 7:21, SBL, Missoula, 1973. Finley, M. 1, Slavery in Classical Antiquity, York, 1968, ee Barnes & Noble, Nova Criador.\ Para Paulo, uma das manifestagdes mais importan- tes do poder do Pecado foi a avaliacao errénea do papel da Lei. Todos os nascidos no mundo judaico de seus dias nao podiam senao assimilara atitude prevalente deexagerado respeito & Lei que se desdobrava em obediéncia cega. Cedendoa Lei sua obrigagao inaliendvel de fazer escolhas pessoais, 08 judeus — e, por implicacao, todos os outros que se sujeitavam da mesma maneira & qualquer lei — destrufama liberdade deresponsabilidadequeé aesséncia dignidade humana{Por sua atitude para com a Lei reduziam-se a condigao subumana da Morte. 50. ue Paulo pode dizer que 0 “poder do Pecado é a Lei” (ICor_ 15,56). O Pecado exerceu sua influéncia no dominio das relagdes interpessoais tanto no nivel social como no indi- 141 vidual. Os varios blocos herdaram atitudes antag6nicas ue os forcaram a se separarem e, dentro destes blocos, 08, individuos eram sujeitadosacondicionamento que tornou impossivel qualquer coisa que fosse além do coletivismo funcional. O conseqiiente isolamento fez os individuos cada vez mais vulneraveis a orientacéo inauténtica da sociedade e, como resultado, eles tornaram-se os centros de seus préprios mundos privados constituidos pelo visi- vel e tangivel. Porque sentiram que podiam controlar e dominar “coisas”, deram-se rédeas soltas & sua “concupis- céncia”. Isso permitiu que as coisas ganhassem o predomi- nio e assim intensificassem a alienagdo do eu inauténtico, Paradoxalmente, porém, também isso trouxe eseravidao & criacao material (Rm 8,21), porque a ordem da natureza foi distorcida (ef. Lv 26,33-35)A vaidade e corrupgao da gtiagio material é a conseatiéncia da Morte da hum: a — AO conceite que_o Apéstolo tem, portanto, da inautenticidade é altamente unificada, ¢ 0 esboco acima_ ‘tem o'efeito de assinalar o Pecado como o elemento mais indamental. Uma vez que a humanidade for livre do_ -cado, seguiré naturalmente sua libertagdo da Morte e Ga Lei, assim como também a libertagao das coisas cria- as. oealiza nossa atengao na questdo-chavo: cor 2E um0-NOS, assim, A visio que Paulo tem da existAneia II PARTE A COMUNIDADE O DOM DE ESCOLHA. 4 Na transicao da inaut i ara a autenticida- de, sera que a humanidade encontra-se asi mesma ou é encontrada por outrem’Os existencialistas replicam que a humanidade encontra-se a si mesma, mas quando sao impelidos a especificar como isso ocorre de fato suas respostas nao sao absolutamente satisfatérias. A despeito da variedade de perspectiva, todos véem © morrer como a tiltima realidade, e ¢ da morte que derivamo seu conceito de autenticidade. Para Heidegger, a morte é a proeminente possibilidade que todos devem realizar. Tornamo-nos auténticos vivendo na antecipagio da morte e fazendo dela o fator unificador de nossa existéncia. Ea morte que dé o sentido a vida, e sua aceitacao liberta-nos do interesse com “coisas” e da tira- nia da “multidao”. Sartre, porém, assinala que esta expla- nagao é autodestrutiva. Ela livra da inautenticidade somente desvalorizando toda a existéncia. Isso, para ele, tornou-se a chave e ele proclama: “E absurdo que nasce- mos; 6 absurdo que morremos”. Fle vé, portanto, a auten- ticidade como a aceitacao do absurdo sem significado da existéncia, O senso comum rebela-se contra essas assim chama- das “solugdes”. Os existencialistas merecem crédito a0 csmagar a iluséria complacéncia da inautenticidade. Quando levados a sério, eles tornam impossivel aos que sao “mortos” crerem que esto “vivos’( Mas pela ilusao s¢ podem substituiro desesperosSe o presenie ésem sentido futuro nada, ndo pode haver nenhuma esperangae nao 145 ha nenhuma razao para lutar, a fim de sair da inau- tenticidade. Fornecendo uma aparéncia de significado, uma ilusao pelo menos tem valor e ela nao sera abando- nada até que um valor positivo alternativo seja proposto. Para 0 fildsofo, a aceitacao do desespero pode parecer gesto herdico que separa a pessoa do rehanho, mas a0 senso comum ordindrio surge como nada mais que dramatismo insensato. Em ultima anélise, os existen- cialistas se véem forcados a confessar sua impoténcia em tratar com a situagao. A implicagao de suas “solugdes” 6 que a condieao humana é irremediavel. Paulo haveria de concordar, mas s6 até esta altura, porque sua aceitagio da relagao Criador-criatura permi- tiu-lhe fazer distingao que eles nao podiam imaginar/Ele viu_a situagao humana como irremediavel a partir de ‘dentro e nao a partir de fora. Nat, fvisa consistentomente utenticidade torna-se possivel somente por inter- ivina como, por exemplo: “Estaveis mortos... Deus vos vivificou” (C12,13)%) Novo ato criador A afirmagao de que “Deus vos vivificou” e afirmacies paralelas, como “Deus justifiea” (Rm 8,33), devem ser analisadas mais rigorosamente, porque nao podem ser literalmente verdadeiras. “Vida”, como vimos, 6 0 termo paulino para a autenticidade. A criatura humana, porém, 6 possibilidade determinada por decisio. E uma forma de ser que se cria por meio de suas opedes, Dizer que “Deus concede justificacdo” significa que Deus anula a possibi- lidade fundamental que construiu dentro da criatura humana. Se fosse este de fato 0 caso, o Criador contradiria asimesmoe trariad existéncia um tipo deser inteiramente distinto. A autenticidade, pois, ndo pode ser conferida. S6 146 pode ser escolhida. A criatura humana, se 6 que deve ser verdadeira para coma préprianatureza, deve decidir pela autenticidade, A No estado de “morte”, como vimos, o género humano no pode escolher. Sua liberdade éanulada pela escravidao ao Pecado/)A pressio inoupcravel e inevitavel do falso sistema de valores da sociedade arrasta todos a um padrao inauténtico de comportamento. A autenticidade permanece possibilidade ontoldgica, mas ao nivel da vida da realidade nao pode ser escolhida realmente. Dai, a parte de Deus na transieao da “morte” a “vida” consisteem restaurar a autenticidade ao estado de uma real opcdo. Bmiltima anélise, a salvacdoconsiste no dom da escolha. 0 primeiro passo de Deus no processo consiste em mandaro seu Filho: “Deus fez que alei enfraquecida pela carne nao podia fazer: enviando v seu proprio Filho na semelhanga da carne pecadora e em vista do pecado, condenou o pecado na carne” (Rm 8,3)/A despeito dessa real integracao na situagao histérica (“na semelhanga da carne pecadora”), Cristo nao apenas refletiu o que era o resto da humanidade. Manifestou o que a humanidade podia tornar-se. O mero fato de sua existéneia como a incorporagao da humanidade auténtica demonstrouqueo. rodo de existéncia que o mundo considerava normal nao era o tinico possivel/yintes do advento de Cristo, somente a existéncia inauténtica era vistvel e, se abstrairmos de Cristo edos que o seguiram autenticamente como fazem os existencialistas, entaoo que vemos éa humanidadeem seu modo inauténtico. Dificilmente surpreende, pois, que os existencialistas deviam ser forgados ao desespero. Sua abstragao da presenga de outros Cristos no mundo pode ser explicada como uma objecio, mas os santos sio tao poucos que nesta conta ¢ dificil faltar a perspectiva existencialista. Este ponto, porém, nao é 0 nosso assunto no presente. Para Paulo, a humanidade autentica de Cristo era a revelagao de que o modo de ser determinado pelo Pecado nao era a tinica opeao. Os que tinham olhos para ver 147 podiam entao perceber que dentro da situacao humana existia nao 36 0 isolamento egocéntrico a que se tinha habituado, mas também um voltar-se criativo para os outros.(Sua presenca dava a humanidade novo critério pelo qual julgar- asi mesma, criando assim a oportu- Forcou também a humanidade a reconhecer que os lacos do Pecado nao eram inquebraveis, que a_tirania das atitudes e valores contemporaneos podia ser abalada,Se um homem néo era sujeito da dominagio do Pecado, todos podiam ficar livres. PaulonAoespecula como Cristoescapou. da servidao ao Pecado apesar de sua imersio na situacao humana. Foi simplesmente um fato que ele tomou como a base do seu sistema teologico e, se ele fosse empurrado até a tiltima instancia, suspeito que poderia apenas sugerir uma disposicao providencial ‘Estamos agora em condigdes deapreciar a importéncia da insisténcia de Paulo, para quem a salvacao ocorre dentro da histéria. Eo que se expressa na carta aos Colossenses. Paulo tinha consciéncia deste elemento crucial dos inicios, e em suas cartas anteriores se toma inteiramente como evidente e concedido, Em Colossas, ao invés, Paulo tinha razao de temer que este aspecto su- mamente importante estava sendo deixado fora de vista. Nosso conhecimento da assim chamada “heresia” colassense 4 incompleta e resumida, mac gcralmente se esta de acordo que havia a tendéncia entre os colossenses e atribuir um papel em sua salvagao a seres puramente espirituais, ou seja, a anjos. Dai, ele tem de insistir: “Portanto, assim como recebestes a Cristo Jesus como 0 Senhor, assim nele andai, tendo sido arraigados nele, sobre ele edificados e sendo confirmados na fé, como aprendestes” (Cl 2,6). 0 Cristo, que salva, nao é um ser celeste que opera por meio de poderes do espirito. Sob Deus, o salvador é 0 Jesus que se tornou Senhor (cf. Rm 14,9). Apontou-se que Paulo usa “Jesus” para evocar a historicidade de Cristo. Essa interpretacao é confirmada pelomais antigo comentario Cl2,6: “Vés nao aprendestes 148 idade de ver a inautenticidade pelo que era realmente. sim 0 Cristo, assumindo 0 que ouvistes (sobre) ele ¢ fostes ensinados nele no modo em que ele é verdade, (nomeadamente) em Jesus” (Ef4,21)\Jesus é a verdade do Cristo que salva, porque ele ¢ a perfeicao de sua huma-— nidade que € significativa € relevante4Numa variacdo sobre este tema, Paulo esereve: “Os que de antemao pré- conheceu (Deus), ele também predestinou a serem con- formes & imagem do seu Filho, a fim de que ele fosse 0 primogénito entre muitos irmaos” (Rm 8,29). A presenga de Cristo no mundo criava uma alterna- tiva. A inautenticidade agora estava confrontada com a autenticidade. A existéncia de alternativa, porém,éapenas pré-condigao para aescolha. Nao se pode dizer que alguém escolhe, se ndo existe nenhuma alternativa. O fazer atual deuma escolha é assunto diverso, eo realismo teimoso de Paulo v forgou a reconhecer que o mero fato da existencia de Cristo nao tornava realmente possivel para a huma- nidade decidir por ele. A realidade do Pecado nao era destruida pela presenga de Cristo, e a pressio que ele exereia continuava a orientar a humanidade para a inautenticidade. Os dominadores desta eram apenas “destinados a destruicao” (1Cor 2,6). Requeria-se algo para contrabalangar essa influéncia; e uma vez que poder 86 pode se confrontar com poder, Paulo afirma que Cristo é “o poder de Deus” (1Cor 1,24)’Sua pessoa nao s6. propunha, ela capacitava, porque ela incorporava “o amor de Deus” (Rm 8,35.39). O amor cri nase efetivo no amor de Cristo. O p< trouxe o mundo ao ser é desdobrado em Cristo para capacitar a humanidade a conseguir a autenticidade e, assim, o-que o Criador pretendeu, Isso éa graca que torna a decisao de fé possivel (BE 2,8). 5 149 O chamado externo Asituagdo de Paulo era paralela & nossa pelo fato que teve de tratar com os que nunca conheceram Cristo na carne. Nao obstante, Cristo pemanecia o modelo de huma- nidade auténtica, e ele exigiu explicitamente reconheci- mento de Jesus como o Senhor como o primeiro passo na aquisicéo da autenticidade: “Se confessares com teus labios que Jesus é o Senhor e creres em teu coracio que Deus 0 ressuscitou dos mortos, serds salvo” (Rm 10,9)/Se era preciso conhecer a Jesus e experimentar o seu poder, isso 86 podia ocorrer de uma maneira: , ) Todo aquele que invocar o nome do Senhor seré salvo. \is como poderiam invocar aquele em quem nao creram? E como poderiam crer naquele que nio ouviram? E como poderiai ouvir sem pregador? (Rm 10,13-14). Asegunda pergunta retérica éaltamentecondensada e,comoem ITs2,13, duas idéias diversas sioentretecidas. A logica do argumento exige: “E como poderiam crer naquele de que nao ouviram?, ¢ isso exerceu influéncia determinante em todas as traducées correntes. Que Paula tinha em mente essa dimensio, nfo pode haver diivida, porque alhures proclama: “Somos embaixadores no inte- resse de Cristo” (2Cor 5,20). © que Paulo escreveu real- mente, porém, é bastante diferente, porque as regras da gramatica grega permitem apenas uma traducdo, a saber: “E como poderiam crer naquele que nao ouviram”?Uma vez que se trata do Senhor, essa tradueao implica neces Sariamente que os que aqui ouvem, ouvem a alguém e io chamados a crer, a saber, Cristo. Na pregagio. ‘que leva a autenticidade é Cristo que fala [ ~ "0 que Paulo quer dizer com isso esta claramente articulado em 2Cor 4,10-11: 150 ‘Sempre trazemos em nosso corpo o morrer de Jesus, a fim de que a vida de Cristo possa se manifestar em nosso corpo. Poiscontinuamente,enquanto vivemos, somosentreguesa morte, aim de que a vida de Jesus possa se manifestar em nossa carne mortal, A primeira leitura, 0 tom paradoxal desta afirmacao € desconcertante, mas ¢ tio tipico de Paulo. O aparente paradoxo enraiza-se no fato de ele usar “vida” em dois sentidos diferentes. Por “enquanto vivemos", ele entende sua vida fisica ordinaria queé ameacada por perseguicao. Ainda que esta existéncia ordinaria de Paulo seja capaz de manifestar “a vida de Jesus”. Tem-se notado que o termo “Jesus” é maneira de Paulo sublinhar a historicidade daquele que agora é 0 Senhor Ressuscitado, e “vida” usa- se aino sentido muito siguificativo de existencia auténti- ca{A humanidade auténtica que Jesus incorporou esta. agora desdobrada na existéncia de Paulo. F assim porque ele carrega no seu corpo, isto , no seu fisico, o “morrer de Cristo”. (+ Com freqiténcia se toma essa frase no sentido de que a vida do Apéstolo, da mesma forma que a do seu Senhor, cra martirio perpétuo. A base para essa interpretacao 6a afirmagao no versfculo seguinte de que Paulo e seus coorperadores estao continuamente em perigo de morte. |\As duas wlirmagdes, porém, sao identicas. Uma trata dav aspecto factual da situacao de Paulo, ao passo que aoutra representa a tentativa de expressar eu significado/Nao 6suficiente pretender, como o fazem alguns exegetas, que as freqiientes libertagoes de dificuldade, perigo e morte sao evidéncia de que Cristo ainda esta vivo e tem poder divino. De ponto de vista meramente profano, essas eseapadelas provariam apenas que Paulo era feliz. De perspectiva mais religiosa, nao provariam nada mais que cle estava sob protecao divina, Nao provam nada arespeito de Cristo, particularmenteem vista da teocentricidade do ensino de Paulo. Paulo, pelo contrario, evoca explicita- mente “o morrer de Jesus”. O termo muito raro“o morrer” 151 (nekrosis) sugere vida como culminando na morte. Vimos, porém, que a morte de Jesus era muito mais que a terminacdo de sua existéncia terrena. Era reveladora da qualidade de sua vida inteira.(O cardter absoluto da_ autodoacao iluminado em sua morte demonstravaoamor criativo altruista que 6 a eseéneia da humanidade au. _téntica{Por causa de sua entrega a Cristo — “ja nao sou eu que vivo, mas ¢ Cristo que vive em mim* (Gl 2,20; contrastea Rm 7,20)—quese atualizavaem sua dedicacao aos outros enfrentando todas as dificuldades e perigos (cf. 2Cor 11,23-30), Paulo sentia que podia pretender mani- festaramesma qualidade deexisténcia. O seu préprio ser, selado com “o morrer de Jesus”, revelada “a vida de Jesus”. Sendo assim, ele falava “em Cristo” (2Cor 2,17) Parece claro que para Paulo a pregacao, eficaz ou carregada de poder, sobre Cristo é possivel quando os pregadores refletem em sua personalidadea qualidade da humanidade auténtica sobre a qual eles falam. E dificil- mente poderia ser de outra maneira, uma vez que recor- damos que o envio de Jesus Cristo inaugurou nova era no relacionamento Criador-criatura. Jesus nao proclamou apenas como o fizeram os profetas do Antigo Testamento. Eleera a vontade de Deus para a humanidade (1Ts 5,18), o poder e sabedoria de Deus (1Cor 1,24), acima de tudo, ‘oamor de Deus(Rm8,39)/A palavra de Deus naomaisera amente verbal; eslava encariada, Relornar & pro- ‘clamacao puramente verbal, privada de todo reforco existencial, seria negar anovidade introduzida por Cristo. Para serem eficazes, os pregadores devem ser como Cristo foi, Exibindoa humanidade auténtica que era ade Cristo, “‘demonstravam a viabilidade continuada de uma alter- nativa a inautenticidade e ao mesmo tempo davam forcas ou poder a outros parwescolhé-la/*Ainda que eu falasse “Iinguas, as dos homens as dos anjos, se eu nao tivesse a caridade, seriam como um bronze que soa ou como um ‘efmbalo que tine” (1Cor 13,1). eciso frisar que essa representacio de Cristo nao se limita aos oficialmente delegados a pregar-E-parte. 192 tegral da responsabilidade de todos os que aceitaram ‘Cristo. Em sua primeira carta, Paulo chama a atengao a este ponto: /, Vés vos tornastes imitadores nossos e do Senhor... de sorte que vos tornaatex modelos para tras as fie da Macedania «da Acaia. Porque, partindo de vos, se divulgou a Palavra do Senhor, ‘nao apenas pela Macedonia e Acaia, mas propagou-se por toda parte a fé que tendes em Deus, Nao é necessrio falarmos disso (OTs 1,68), Mesmo que concedamos um elemento de exagero ret6rico, a tiltima frase ¢ indicativa do impacto da comu- nidade dos tessalonicenses. O que, porém, é significative 6 que esse impacto era duplo. Bra tanto verbal (“a palavra do Senhor”) como existencial (“a fé que tendes em Deus”). Em conseqiéncia, eles constituiam um exemploaosoutros figis. O termo grego vertido na traducao acima como “modelos” e aqui explicado como “exemplo” (typos) € mais bem traduzido por “padrao"¢Os tessalonicenses exibiam __ um padrao de comportamento em que a eas agdes proclamavam a mesma realidade, Nisso most se como imitadores, no sé de Paulo, mas de Cristo, no ‘qual palavra e ser estavam totalmente em harmonial Em IT's 16-8, Paulo trata formalmente s6 da influ- én de uma comunidade crista em outros, mas seria cerrado limitar o sentido de suas palavras a essa situagao somente. A autenticidade dos tessalonicenses também, teria tido impacto sobre o seu entorno gentio. Isso era certamente verdadeiro no caso dos filipenses: Fazei tudo sem murmuragdes nem reclamagies, para vos tornardes irreprovaveis e pures, filhos de Deus, sem defeito, no meio de uma geracao ma e pervertida, no seio da qual brilhais como astros no mundo, mensageiros da Palavra de vida (F12,14- 16). 153 © contraste neste texto entre autenticidade e inautenticidade expressa-se em termos de luz. Sendo “puros” ou sineeros, ou seja, todos de um s6 bloco, sem nenhuma mistura estranha, os fiéis em Filipenses de- monstraram sua diferenca com o resto do mundo. Ne- nhum elemento verbal entra na deserigio. Trata-sa sim- plesmente da qualidade de suas vidas e isso 36 “é levar avante a Palavra de vida”. Sendo o que sio, constituem demonstracao da real possibilidade de novo modo de existéncia que difere radicalmente do que era aceito como normal. Seu evangelho nao ¢ teoria, mas fato, razdo pela qual Paulo o designa palavra de “vida”. A lei falava de autenticidade, mas, uma vez que era apenas uma “coisa”, faltava-lhe o poder de converter uma possibilidade teérica ‘em realfSomente viver pode comunicar vida; ela néo pode ser gerada apenas por palavFas. O amor criativo, que enformav: “dos filipenses, era convite que riava a possibilidade de resposta. Essa 6 a rutuosidade dla autenticidade (Cl 1,10; EF2,10). Imitagéo Em nenhum lugar, talvez, a dimensao existencial se manifesta tao claramente como na exortacao: “Sede meus imitadores, como eu mesmo 0 sou de Cristo” (1Cor 11,1; ef. 4,16-17). Esta afirmagao extraordinaria nao é nica, O mesmo tema aparece ao escrever aos tessalonicenses(1Ts 1,6), aos galatas (Gl 4,12) e aos filipenses (I 4,9). As tinicas cartas eclesiais em que nao aparece sao Romanos © Colossenses/\Hsse fato em si mesmo ¢ altamente signi- ficativo, porque estas duas tiltimas comunidades eram as tinicas duas que nao conheciam Paulo pe: lo pessoalmente. ite. Nao thes podia propor imitacao, porque imitacioexige presenca_ _fisica fl gualmente, tinha de propor imitacdo as comunida- 154 des nas quais tinha pregado, porque nao havia nenhuma outra forma de justifiear sua afirmagio de que uma nova forma de existéncia humana entrava no mundo com Cristo. Palavras somente podiam esbocar uma possibili- dade atraente, tantas utopias murcharam ao sopro can- dente do realismo. Uma possibilidade teériea pode ser objeto de conversas. Uma possibilidade real tinha de ser vista, Para justificar sua pretensao referente a realidade presente do amor criativo de Deus, ele nao podia conten- tar-se com referir-se a um individuo do passado. Aqueles com que tinha de tratar nunca tinham encontrado com Jesus na carne. Com toda honestidade, pois, nao podia recomendar que o imitassem. Ainda que seus ouvintes estivessem preparados para aceitar quea humanidade de Cristo era diferente daquela que eles encontravam ordi- nariamente, podiam razoavelmente pretender que exte era um caso ‘inicoeirrepetivel/Pat serconvineente, Paulo tinha de dizer: “Em mim vés 0 vedes”. Se seu auditério nao pudesse perceber a diferencaentre Paulo eeles, ese cles nao pudessem experimentar a atragao de plenitude que os al cangava, provavelmente nada aconteceria.* Paulo era suficientemente realista, porém, para reco- nhecer que nenhum testemunho se dé a nao ser que seja recebido. Exorta, entao, os gélatas: “Que vos torneis como eu, pois eu também me tornei como vés” (GI 4,12). Nem ‘sua pregacdo nem sua personalidade eram lancadas sobre quem tinha que convencer. Ele se inseria em sua situag3o deforma paralela a insercao de Cristo na situacao humana. Quao longe ele foi, esta bem descrito na famosa passagem onde enuncia o seu prinefpio de adaptacao: ‘Ainda que livre em relagdo a todos, fiz-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior ntimero possivel. Para os judeus,fiz-me como Judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estao sujeitos lei, fizeme como se estivesse sujeito & lei — se bem que nao esteja sujeito & lei —, para ganhar aqueles que ostao sujeitos a lei — ainda quenioviva cam aleide Dour, paisestoucsh aletde Crist —para ganhar aquales que vivem sem a lei, Para os fracos, fiz- me fraco, para ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, 2 fim do salvar alguns a todo eusto (1Cor 9,19-22). 155 A leitura superficial desta passagem dé a impressao de cruel oportunismo. Que semelhante acusacao se levan- tou de fato contra ele, nao resta diivida (ef. 15,11; 2Cor 1,17) ¢ 0 carster apaixonado de sua defesa indica que era sensivel a essa acusacao precisamente porque havia nela um elemento de verdade, se bem que falsificado pelo exagero. A verdade era que Paulo variou em sua consi deracdo das comunidades e dos individuos, mas nao até o ponto — ou pelos motivos — que seus adversérios Ihe imputavam, Sabia que nao existe testemunha absoluta- mente valida para todos os tempos e todos os lugares. Se sua representaco de Cristo nao se integrasse totalmente com as necessidades e capacidades do individuo ou grupo conereto, nao poderia ser convite vital e eficaz A autenti- cidade. Sendo assim, tinha que saber e entender, partindo nao de fora, mas de dentro. Encontramos af 0 contraba- lango ao quadro extremamente gélido que o Apéstolo faz do mundo, pois esta claro que sua atitude nao era de desprezo. Via e deserevia a realidade como era, sabendo, porém, que seus companheiros de humanidade eram vitimas de erro tragico. Por que niio deveria ele sacrificar 9 auto-respeito? A conformidade com os principios seria vitéria baratae {ici lute para andar na faixa estreita que separa flexibilidade de compromisso era batalha que Walia mais a pena. Aceitou o ) com todos os scus” riiscos, porque neste caso 0 seu amor se puinha em total tensio e seu poder transformava sem se impor. /, 156 LEITURAS SUGERIDAS Macquarrie, J., Bxistenciatism, World Publishing, Nova York, 1972, cap. 11 (Authentieity), 1d, An Bxistencial Thievlogy, SCM, Londres, 1965, eap. 6 Authenticity). Murphy-O'Connor, J., Paul on Preaching, Sheed & Ward, Nova York, 1964, Stanley, D. M., ‘Become Imitators of Me: The Pauline Conception of Apostolic Tradition”, em Biblica 40 (1959), 859-877. Boer, W. P. de, The Imitation of Paul, Kok, Kampen, 1962, (Chadwick, H.,“All Things to All Men” (1Cor 9:22), em New Testament Studies 1 (1934-55), 261-275, 157 A LIBERTACAO A autenticidade enraiza-se na liberdade, que, em conseqiiéncia, é apresentada por Paulo como a meta da proclamacao da semelhanca com Cristo: “Vés fostes cha- madosa liberdade”(G15,13). O Apéstolo, porém, continua imediatamente a exortar os gélatas: “Nao useis vossa liberdade como oportunidade para a carne” (5,13). Esse texto advertc nos que a liberdade tem duas facetas. Mais fundamentalmente, implica uma falta de freio ou compulsao, e isso, por sua vez, implica a oportunidade para a acao/Assim, reconhecendo que-as duas estao intimamente associadas, devemos distinguir entre “li- berdade de” e “liberdade para’ Poucos temas estao mais perto do cerne do existencialismo do que a liberdade. A palavra ocorre com regularidade quase mondtona, mas, ao tentarmos captar © conceito subjacente, ele foge continuamente. Temos alguns relances parciais, mas a lolulidade wus fexcapag. razio para isso 6 que os existencialistas focal inariamente a “liberdade para’, ou seja, ao nivel da acao_ gue esta fundada na decisao/Tomam como concedida a iberdade dl le de”, e & precisamente aqui que se tornam evasivos porque sua prdpria ansllise da condi¢éo humana contradiz essa suposigao. JA vimos como muitos deles insistem na sujeicao do individuo ao *rebanho” ou & “multidéo”, Essa dominacao nega a ‘liberdade de” no nivel éntico, porque o individuo ests de fato sujeito a freio ecumpulsao; v rtanto, nao existe nenhuma base a “liberdade para”.sA confusio tornou-se possivel “pela compreensao dos existencialistas da relagao entre 0 159 Ontico e 0 ontoldgico\A liberdade ont édada coma natureza humana. Nao se pode conceber um ser humano possibilidade. Os existencialistas deslizam do ontolégico ao éntico ao asstimir que o que é verdade em _ ‘teoria deve ser verdade de fato/\ Paulo estava muito perto da realidade para cometer esse erro, Tomava a liberdade ontolégiea como concedida. seu interesse voltava-se para a liberdade dntica, ¢ proclamava aos ficis: “Vos que outrora éreis eseravos do Pecado... fostes libertados do Pecado” (Rm 6,17-18)//A, 40 é, pois: como 0 fiel ¢ libertado do Pecado? O “como ” da liberdade Existe vasta literatura dedicada a exposigao do con- ceito paulino de liberdade, mas lé-la com a pergunta acima na mente é experiéneia muito desconcertante, porque uma resposta adequada nunea se apresenta. Na grande maioria dos casos, a pergunta nunca é feita Poucos autores estao isentos dacritica, mas suas respostas dificilmente podem se considerar satisfatérias. Assim, por exemplo, em seu livro Tevloyiu e dlica em Paulo (Theology and Ethics in Paul, Nashville, 1968), V. P. Furnish escreve erente nao mais esta sob o poder (a lei) do pecado, mas sob 0 poder de Deus (a graca). Tem novo Senor, eujo poder é soberano sem ser tiranico, pois no servico de Deus, em ligagao com o seu Senhor, é livre para receber a heranga prometida (p. 180). 4 Tudo o que isso significa ¢ que os crentes nao mais esto escravizados ao Pecado, porque se poem em servi- daoa Cristo/() tom paradoxal torna a formulagaoatraente 160 edd aimpressao de profundidade; mas em vez de focalizar a “liberdade de” que é 0 tema crucial, Furnish passa imediatamente a idéia de servico que forma parte do dominio da “liberdade para”. Permanece assim no nivel puramente descritivo ¢ deixa sem resposta a pergunta de como o poder de Cristo age eobre o erentc. Bultmann esta exposto & mesma objecao. Com grande exatidao e preci- sao, afirma que a liberdade do Pecado “nao é garantia magica contra a possibilidade do pecado... mas libertacdo dacompulsdo do pecado” (Theology of the New Testament 1, p. 832), mas ento continua: © poder do Espirito manifesta-se no fato de que ele dé no erente liberdade, abrea vida futurae eterna. Pois a liberdade naioé nada mais que estar aberto para o futuro genuino, deixando-se ser determinado pelo futuro (p. 334). A possibilidade de ser determinado pelo futuro (0 que quer que possa significar) é certamente uma qualidade da “liberdade para’\A “liberdade de” & concebida como dom do Espirito, oque é certamente correto,maso problema de como essa liberdade é dada se omite. Outros autores chamam a atencao para o fato de que Paulorelacionaa liberdadedo Pecado muito estreitamente com 0 batiemo: ‘Ou nao sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus na sua morte que fomos batizados? Portanto, pelo batismo nos fomos sepultadas com ele na morte para que, come Cristo foi essuscitado entre os mortos pela gléria do Pai, assim também 16s vivamos vida nova... sabendo que nosso velho homem fot crucificado com ele para que fosse destruido este corpo de pecado, e assim nao sirvamos mais ao Peeado. Com efeite, quem morrett ficou livre do pecado (Rm 6,3-7) Ales falham, porém, em apreciar o sentido real deste texto ao interpreta-lo em termos de poder interno comu 161 nicado ao crente)sIsso os leva a incriveis circunvolugdes ‘quando sao urgidos a explicar 0 que ocorre realmente neste caso, Belo exemplodaespécie de coisa, aquesereferiu, 6 fornecido por R. Schnackenburg no segundo volume de sua Existéncia crista segundo 0 Novo Testamento (Lexistence chrétienne selon le Nouveau Testament), Bruges, 1971: Nao se trata de mudanca fisica: as disposigdes © poderes do hhomem natural permanecem, Ao invés, trata-se do fato de que o batizado recebe o Espirito de Deus como novo poder e capacidade para banir todo mal ¢ obseuridade.... Nao se trata de nova atitude, mas de novo poder dado a nds por Deus, 0 Espirito sempre ativo, onipotente em obras e sumamente vivo ‘Como homens modernos,é possivel que nos deixemos invadi por uma onda de eetieismo. Sera que Deus eomunica realmente o seu Espirito? Serd que o homem é eriado de novo no batismno? Sera {que sentimos algo do poder do Espirito dado a nés? Seria impos- sivel proviloauimdesentaemesin nde queen don 4a fé, nem sempre “sentimos" o Espirito de Deus. Mas se nutrir- ‘mos nossa vida de f, se recordarmos na oracao oque Deus fez por 16s... (pp: 252-253). 2A ‘iltima parte dessa citagio dé a impressao de que Schnackenburg aconselha auto-sugestao. Se repetirmos, ‘com nossos botdes que um poder opera dentro de nds, terminaremos gerando a conviccao de que esse poder est fato em acdo, Assim parece que somos nés que traze_ "‘mos’i existéncia esse poder —modo de ver que nao se pode econeiliar com a perspectiva de Paulo’, : ~~No sentido de manifestar o que est4 implicito na posicao deSchnackenburg, tomemosum exemploconcreto. Em nosso mundo é dificil, se nao impossivel, ter sucesso nos negécios sem jeitinhos. Se a desonestidade nao entra no processo da produgao e venda, existe a tendéncia a trapacear nos impostos. Essa atitude ¢ tao difusa, que 6 tida inteiramente como concedida. Temos, pois, ai um bom cxcmplo do que se quer dizer pela compulsao do Pecado. Essa desonestidade é relevada pela sociedade e todos se conformam com prazer. Os cristdos, imbuidos 162 com o espirito do evangelho, tomam imediatamente cons- ciéncia dessa pressio ao tentar resistir a ela, Estar sob pressdo, porém, é ser nfo-livre, porque a “liberdade de” implica falta de compulsao ou freio. Embora se lhes diga todo domingo que simplesmente porque foram batizados sAo livres e, quando se aventuram cm cxpressar diividas, sao meramente informados de que devem fortalecer sua f6 na oracaodE: de admirar que alguns se tornem céticos e achem que a teologia nao passa de conversa evasiva? A comunidade pecadora A énfase de Paulo em relacionar a “liberdade de” com © batismo torna-se clara quando reconhecemos que 0 batismo ¢ rito de jniciagao. Ea entrada solene na comu- nidade dos figis. E focalizando este aspecto que podemos comegar a entender a maneira como 0 Apéstolo concebeu aliberdade do Pecado. 4 Paulo herdou de sua formacao judaica a idéia de que acomunidade escatolégica do Messias seria inteiramente livre do pecado/Sste tema aparece pela primeira vez na airmagao do trito-Isaias, segundo e qual odoomeu pove ser justo” (60,21). O que isso significa é esclarecido por Ezequiel: “Porei no vosso intimoo meu espirito e farei com que andeis de acordo com meus estatutos e guardeis as minhas normas e as pratiqueis... libertar-vos-ei de todas, as vossas impurezas” (36,27-29). O tema é retomado na literatura sapiencial (por exemplo, “os que agem com minha ajuda nao pecarao”, Eclo 24,22), mas a maior concentracao de testemunhos encontra-se na literatura apécrifa que florescia nos tempos de Paulo. Nao s6 temos a insisténcia continua dos essénios na santidade de sua comunidade (especialmente CD 20,2-8 e 198 4,20-23), mas também deparamos afirmagoes explicitas como: 163 Entao sera concodida aos cleitos sabedoria e eles todos viveraoe runea mais peearao, quer por impiedade quer por. soberba... E eles nio mais transgredirdo nem pecardo todos 0s dias de sua vida (I Henoe 5,89). os Em seu {do Messias| sacerdécio, os gentios serao multiplicados fem conhecimento sobre a terra e iluminados pela graga do Sanhor Ream sew saceriléeio, a pecada ehegara an fim da teven (Test. Levi 18,9). A eyocacao mais impressionante deste tema vem de autor cristao: comete pecado, porque sua semente permanece nele; ele nao pode A influéncia do tema em Paulo é claramente insinu- ada em sua apresentacdo da comunidade dos crentes como templo espiritual (1Cor 3,16-17; 2Cor 6,16), e ex- pressa-se explicitamente na exortacio: “Purificai-vos do velho fermento para serdes nova massa, j4 que sois sem fermento” (1Cor 5,7). A metéfora é explicada no versfeulo seguinte, onde “o fermento de malicia e perversidade” é contrastado com “o pao sem levedo de sinceridade e verdade”/O ideal é que.a comunidade fosse inteiramente. fermento de iniydidaded) (\Pela perspectiva de Paulo, portanto, a comunidade crista é umambiente em que ninguém peca, em que todos ‘so auténticos e ninguém é inauténticolh(O Pecado, como vimos, € a forea corrosiva de ambiente corrompido. En- quanto os individuos “formam parte do mundo”, nao podem escapar da orientacéio da sociedade que integram. 0 Pecado nao foi destruido com a morte de Cristo. 0 seu poder ainda é ativo no mundo. Fundamentalmente, por- tanto, a liberdade do Pecado deve ser uma forma de protecdo, barreira erigida ao redor dos individuos para prevenir a influéncia do Pecado de atingi-los. E precisa- mente isso que a comunidade crista fornece. Os que 164 “pertencem a Cristo” (1Cor 3,23; 15,23; 2Cor 10,7;G13,29; 5,24) nfo mais se acham “escravizados ao Pecado” (Rm 6,6), porque vivem em meio ambiente que tem auténtica orientagaaA idéia basica é muito simples. A pressio exercida pelo Pecado nao os toca porque nao vive na companhia de pecadores/Sé essa interpretagao faz juctign a0 realismo desenvolvido na citacéio que Paulo faz do provérbio grego: “As mas companhias corrompem os bons costumes” (1Cor 15,33). Uma parabola muito simples pode nos familiarizar com a énfase de Paulo. Uma pessoa muito pobre vivia numa cidade industrial altamente poluida. Os gases té- cos que permeavam toda a atmosfera causaram-lhe uma doenga respiratéria, e a cada respiracio que fazia sua condicao piorava. Foi ao médico, que lhe informou que morreria com certeza se nao eomegaage a reapirar ar puro. A pobreza do homem era tao grande, que nao podia dar. seo luxo de mudar para fora daquela cidade, provando-se assim impossivel a obediéncia a essa diretiva sabia e bem intencionada. Certo dia, porém, um assistente social veio Ihe dizer que um benfeitor generoso Ihe arranjou a pos- sibilidade de ir morar nas montanhas. La, no ar puro e fresco, ele recuperou depressa a satide e ficou de novo inteiramente sao. | Ohomem doente é a humanidade, e a cidade indus- trial dom ». A atmoofcra poluida ¢ o sistema falsu de valores da sociedade. O médico ¢ a lei, mas também o pregador de domingo. A diretiva era boa, mas nada mais / fazia que informar a humanidade dos’ perigos de sua situagao sob 0 Pecado, e sua conseqiiéncia pratica foi tornarahumanidade ainda maisc6nsciadesuaimpoténcia para mudar a situacao. O assistente social é Paulo, ¢ 0 benfeitor generoso é Deus, que “nos arrancou das trevas © nos transportou para o Reino do seu Filho amado, no qual temos a redencao—a remissao dos pecados” (C1 1,13- 1. Neste texto vemos claramente o contraste entre dois ambientes, um caracterizado por trevas e “morte”, o outro 16s por luz e “vida’. Num os individuos so contaminados Pk ‘mortos”, mas no outro sao inspirados pelos “vivos”. 20 transporte do primeiro para o ultimo é libertagao. Os individuos, portanto, gozam de “liberdadede” somente na “medida em que pertencem a uma comunidade auténtica. a se acham soh nenhnma campnlsin ‘a serem diferentes de seu verdadeiro “eu”. Nao mais sujeitos a mau exemplo, sdo inspirados e encorajados “pelos exemplos de autenticidade que véem em toda parte. A seu redor. Sao livres para ser o que o Criador quis que Tossem, Evidentemente, essa liberdade nao é algo que eles possum como individuos, mas algo de que partilham como membros de um todo mais vasto. A liberdade do individuo é conseqiiente & autenticidade da comunidade. O realiemo do conceito de Paulo, que ee funda em cons- ciéncia agucada das condigdes que prevalecem no mundo, estigmatiza a esterilidade de todas as tentativas de apresentar a liberdade crista como poder interno préprio do individuo(Numa comunidade auténtica, 0 individuo pode experimentar a liberdade. Ele sabe conscientemente, ‘que nao Thais esta sujeito as pressdes que outrora o wvam ao chao.{A realidade desta liberdade, porém, depende inteiramente da vitalidade da comunidade que é o canal enearnatério pelo qual a graca o toca. Aqui reen- contramos a intuigéo cxtremamente perceptiva de Bultmann: “Tudo indiea que pelo termo ‘Espirito’ Paulo quer dizer a existéncia escatolégica em que o crente é posto por ter-se apropriado do ato de salvacao que acon- tecouem Cristo” (Theology of the New Testament I, p.335) LO podlor do Espirito que produs liberdade é a criativida: le do amor desdobradia pelos outros membros da comuni- dade. A autenticidade de seu ser é a forga que mantém em xeque 0 ) Pecadof Sera lembrado até que ponto Paulo snfatiza 0 individualismo como sinal de inautentici- dade. 166 As criancas ¢ a comunidade ABissa compreensao do que liberdade do Pecado signi- fica para Paulo lanca nova luz numa das mais controver- tidas passagens de suas cartas/\A ampla variedade de opinides quanto ao sentido exato de 1Cor 7,12-16 deve-se ao fato de que os comentaristas persistem em tentar interpreté-la individualisticamente. O que ja vimos indi- ca claramente que essa é explanacao falsa. A compreen- siio de Paulo da salvagao enraiza-se em sua intuigao na natureza e fungao da comunidade crista, e essa deve ser tomada como a pressuposigio de tudo o que ele diz. com respeito aos fidis. Se admitimos que falava em termos de camnnidade an eseraver 1Cor 7,12-16, muitos dos proble- mas, que aborreceram tanto os exegetas, surgem como problemas falsos. A passagem reza como segue: no-crista e esta consente em habitareom ele, no a repudie. "E, se alguma mulher tem marido nao-cristao e este consente em ) habitar com ela, nfio o repudie, "Pois o marido ndo-cristao é santificado pela esposa, e a esposa nao-crista é santificada pelo marido eristio. Se nfo fosse assim, 05 vossos filhos seriam impuros, quando, narealidade, saosantos, "Seonao-cristaoquer separar-ce, separe-cel Q irmAa ona irma nan esti lendns em tall ( caso; foi para viver em paz que Deus vos chamou. "Na verdade, "Aos outros digo eu, nfo o Senhor: se algum irmao tem esposa como podes ter certeza, 6 mulher, que salvaras 0 teu marido? E como podes saber, 6 marido, que salvaras tua mulher? Esta claro que se trata aqui de caso proposto ao julgamento de Paulo pela comunidade de Corinto (ef. 1Cor 7,1) Parece ter havido um movimento na comunidade para romper casamentos em que apenas uma das partes. era crista(Por que isso deve ter sido assim esta claro aluz do que Paulo ensinara com respeito a liberdade. Os ficis criaram uma barreira contra a influéncia do mundo pela autenticidade de sua vida comunitaria, O inerédulo era 167 por definicao inauténtico. Ela ou ele representavam o mundo do Pecado que eles deixaram atras, Permitindo a essa pessoa permanecer em estreito contato com a comu- nidade, portanto, os fiéis estariam pondo em risco sua propria liberdade. (Nao havia nenhum dito de Cristo que pudesse ajudar Paulo a encontrar uma solugaoe, sendo assim, tinha de continuar adiante por sua prépria conta{‘O seu primeiro asso foi fazer uma distincio baseada na qualidade de relacionamento entre as duas partes. Se o parceiro des- crente se recusasse a viver com o convertido, concordava que o casamento devia ser dissolvido (v. 15). De outra forma haveria uma situag&o continua de rixas, e a influ- éncia do Pecado estaria efetivamente presente na comu- nidade. Se, por outro lado, ocrente consentia em viver com oconvertido, rejeitava a dissolucain da casamento (wv. 12- 13). Suas razies para essa decisao constituem o cerne do assunto, (\Como podiamos ter esperado, o interesse basico de_ Paulo volta-se para a conversio do parceiro nao-crente: / “Pensa nisso: como uma esposa/um esposo pode ser a salvagao do teu marido/tua esposa” (v. 16 NEB). O crente que exibe a perfeicdo da humanidade auténtica é chama- mento existencial a salvacio. O pensamento de Paulo neste ponto é finalmente expresso por outro autor do Novo ‘Testamento que teve que se haver procisamente com o mesmo problema: Da mesma maneira, vés, mulheres, sujeita-vos aos vossos mati- dos, para que, ainda que alguns nfo ereiam na Palavra, sejam conquistados, sem palavras, pelo comportamentode suas nollie. ‘es, a0 observarem 0 vosso comportamenta casio © respeitoso L aPa3,1-2 Dado 0 minimo de boa vontade demonstrado pelo consentimento em viver com v cuuvertido, Paulo vit o parceiro ndo-crente arrastado para a esfera de influéneia da comunidade através do contato fornecido pelo erente. 168 Ele recusava ver 0 ndo-crente como perigo para a comuni- dade. Antes, apresenta-o(a) como tendo sido mudado(a) pela comunidade: “O marido nao-crente/a esposa néo- crente 6 santificado(a) por sua esposa/seu esposo” (v. 14). O que se quer dizer por “santificado” ai? O contexto imediato fornece apenas uma chaveO estado de “santificacdo” situa-se em algum lugar entre o estado de “impureza” ¢ 0 estado de “salvacdo” Isso em si mesmo é curioso porque em outro lugar de Paulo “santificagio” se identifica com “salvacao”. A carta, da qual vem o textoem discussao, é dirigida a “Igreja de Deus, que esté em Corinto, aqueles que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos” (1Cor 1,2) e, mais adiante, diz deles: “Mas fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados” (1Cor 6,11), que é alusao dbvia ao batismo. 0 ‘outro texto em que aparece o mesmo verbo fala do ministério apostélico de Paulo de apresentar os gentios a Deus como “santificados pelo Espirito Santo” (Rm 15,16). 0 uso que Paulo faz do substantivo correspondente talvez seja de mais ajuda no esforco de determinar o seu sentido aqui. “Santificacao” é a vontade de Deus para a humanidade(1Ts 4,3), eeste estado implica um padraode comportamento que se contrasta com o daqueles que sao “mortos”. Assim, em 1Ts 4,7, “santificagao” é oposta a “impureza”, que designa as atitudes comportamentais dos gentios (vv. 4-5), ¢ cova idéia reecbe um paralelo em Rm 6,19: “Como outrora entregastes vossos membros a idao da impureza e da desordem para viver desre- gradamente, assim entregai agora vossos membros a servigo da justiga para a santificacao”. Paulo continua entao; “E que fruto colhestes entao daquelas coisas de que agora vos envergonhais? Pois o seu desfecho é a morte. Mas agora, libertos do Pecado e postos a servico de Deus, tendes vosso fruto para a santificacao e, como desfecho, a vida eterna” (Rm 6,21-22). /\Bsaas passagens permitem-nos dizer que “santi- cago” conota um padrao de comportamento adequado a autenticidade que se torna possivel pela liberdade do 169 Pecado;.0 parceiro nao crente, portanto, é santificado por estar influenciado pelas atitudes existenciais da comuni- dade crente em Corinto & qual pertence seu(sua) parceiro(a). A documentacao de tal santificacao é o modo como ele ou ela se comporta. Tudo o que esta faltando éa entrega expressa A verdade revelada em Cristo que 21's 2,13 apresenta como o concomitante da “santificacao”. /Quando os dois elementos esto presentes, “santificacao” torna-se “salvagao"/: O ensinamento de Paulo nesta passagem demonstra claramente até que ponto o seu pensamento se movia no nivel da realidade. Teoria era importante, mas era o comportamento quemanifestava aseparacio dos critérios do“mundo”. Aindaresta, porém, um pontoaserelucidado. As afirmagoes de Paulo referentes a santificacao do par- eciro no erente esto cxprecsas no tempo paceado. Ainda que pareca improvavel que ele tinha alguma experiéncia do que estava ocorrendo realmente. Falava com a certeza da esperanca. Dai, devemos perguntar o que justifieava essa expectativa, e ele préprio dé a resposta: “Se nao fosse assim, vossos filhos seriam impuros, quando, na realida- de, so santos” (1Cor 7,14). Este versiculo deu origem a intensa discussao. Seré que Paulo est se referindo aos filhos da comunidade em geral ou somente aos de casamento misto? Eram as criangas batizadas ou nao batizadas? Seria imposaivel dizer que existe consenso nas respostas a essas pergun- tas. O que é essencial ao argumento de Paulo é que existe paralelo real entre a situacao das criancase a do parceiro nao-crente. Isso levou alguns a dizer que as eriangas, em conseqiiéneia, devem ter sido nao batizadas. Isso, para mim, parece provavel, mas nao sabernos em que idade batismo era conferido no sée. I d.C. Movemo-nos por chao mais sélido quando nos voltamos ao aspecto da aceitacao de Cristo/{As criancas, por definicao, s4o ineapazes da, enlrega madura e adulla a Cristo que € a essencia da f6. “Assim, a questo de quem eram filhos torna-se irrelevante. ‘Todas as crianeas da comunidade de Corinto, portanto, 170 estavam em situagio paralela & do-parceiro nao-erente, porquanto nenhum tomara a decisao que é a base da autenticidade, Nao obstante, as criancas eram “santas” e nao “impuras”. Somente um sentido é possivel aqui. Paulo apela a oxperiéncia comum de que as criangas ahsorvem as ati- tudes de seus pais, Crescendo em atmosfera de autenti- cidade, que as introduzia na vida daqueles que estavam “no Espirito”, as criancas eram de fato “conduzidas pelo Espirito” (Rm 8,14) no sentido existencial concreto tao caro a Paulo. Tendo nascido em liberdade, isto é, num ambiente no qual no penetrava a influéncia do Pecado, elas nunca tinham estado sujeitas ao sistema de valor do “mundo”. Em outras palavras, elas nunca tinham estado escravizadas ao Pecado e nunca tinham sido tocadas pela “jmpureza”, que ¢ 0 padrao de comportamento determina- do pelo PecadoEm consequéncia, elas eram “vivas". Nunea tinham sido “mortas”, porque, mesmo antes da jidade da decisdo adulta, tinham participado da liberdade dos que escolheram a autenticidade/Vemos, pois, af um exemplo muito concreto do que se significa com a afirma- cao: “Onde se acha o Espirito do Senhor, ai esté a liberda- de” (2Cor 3,17). A fragilidade da liberdade Paulo era suficientemente realista para reconhecer que a perfeita liberdade ¢ situacao ideal. F algo em rumo de que a comunidade crista deve se esforcar, mas que pode falhar em ser perfeitamente realizada no presente. Este fato se The tornou consciente pela experiéncia de suas proprias cumunidades, cuimpostas de convertidos adultos. O fervor de uma comunidade auténtica protege ocrentede. contintiar a ser influenciado pelas forcas sociais que Paulo m a | 10 Pecado, mas o Apéstolo foi forgado a admitir que mesmo dentro de uma comunidade cristé podem ermanecer tracos residuais do modo inauténtico de ser. ssa dimensao do-sew-pensamento chega & mais clara expresso em Gl 5,13-26, Aquilo por que estavam passando os gélatas cons- trangeu Paulo a conceder que “a carne tem aspiracoes contrérias ao espfrito eo espirito, contrarias a carne. Eles se opdem reciprocamente, de sorte que nao fazeis 0 que quereis"(v. 17). “Carne” e“espirito” neste contextoconotam os dois modos de existéncia que Paulo alhures caracteriza, como “morte” e “vida”, respectivamente, e que interpreta- ‘mos como significando inautenticidade e autenticidade. Aqui ele se interessa formalmente pelo efeito que esses modos de ser tém sobre os individuos. “Carne” evoca as atitudes que absorveram durante o lango periado em que “pertenciam ao mundo” e estavam sob a influéncia do Pecado. Tais atitudes so repudiadas no ato de conversio pelo qual se entregavam a um padrdo diverso de compor- Tamento3 i, porém, fato de experiéncia que habitos pro- ndamente arraigados nfo sio erradicados por uma s6 decisdo contréria/Sendo assim, apesar de seu modo novo de ser com seu impulso rumo a autenticidade, permane- cou um “desejo” das “obras da carne” que se resume na lista de vicios dos vv. 19-21. Isso pode resultar em eles “naarem da liberdade como uma oportunidade para a carne”. Um capitulo ulterior fornecer ocasiao mais apro- priada para determinar o que precisamente significa isso. Ammedida que este “desejo” de inautenticidade é contraba- langado pela orientacao auténtica da comunidade crista (“os desejos do Espirito”), dependera do grau da real entrega a Cristo e, sobretudo, do éxito dos membros em levar entrega & pratica. Nas préprias palavras de Paulo: “Se vivemos pelo Espirito, pelo Espirito pautemos também a nossa conduta” (v. 25). Os cristios sio “chama- dos liberdade” (v. 18); mas se sta conquiata das atitudes: habituais derivadas de seu passado ¢ vitéria somente em principio, sua liberdade entao s6 existira em principio 2 também. A realidade de sua liberdade esta condicionada pela realidade daquela vitéria, porque “para a liberdade Cristovos libertou. Sede firmes, portanto, endo vossujeiteis de novo ao jugo da escravidao” (GI 5,1). O verdadeiro uso da liberdade—e de fato o seu constituinte tiltimo—é ser “através do amor servos uns dos outros” (v. 13). {lim vista do carter comunitério da liberdade crista, a liberdade de um membro da comunidade-depende do amor criativo desenvolvido pelos outros(iE este o poder que mantém afastada a influéncia do Pecado. Sendo assim, a falha de um tem implicagoes significativas para a propria existéncia dos outros membros. “Ninguém de nés vive para si proprio, e nenhum de nés morre para si proprio” (Rm 14,7)/0 pecado de um teve dimensio social; foi pecado contra a comunidade. ’ Oscorintios farcaram Patiloa sublinharformalmente este ponto. Para demonstrar a liberdade que Paulo pre- gara com tal conviccao, um dos membros foi to longe que passou a cohabitar com sua madrasta. Essa era “imora- lidade de tal espécie que nao existe sequer entre gentios” (1Cor 5,1). A particularidade, assim sentiam os corintios, redundava em gloria para a comunidade (vv. 2-6). Bra uma manifestacaio concreta de sua independéncia com respeito a todos os que ainda estavam escravizados a atitudes e convengies de que os corintios tinham sido libertados. A reagdo de Paulo descreve precicamente a situacao: “Nao sabeis que um pouco de fermento corrompe grande quantidade de massa? Purificai, pois, 0 velho fermento para que sejais uma nova quantidade de massa, como vés (em teoria) sois sem fermento” (1Cor 5,6-7)/A_ falsa decisao tomada por aquele homem atingira o grupo “todo; Através dele, o veneno do Pecado entrara numa esfera planejada para ser imune de sua influéncia. Paulo retorna ao mesmo tema em 2Cor 2,5: “Se alguém eausou dor, causou-o nao a mim, masemcertamedida—nao para colocé-lo muito severamente — a todos véa". Um caso diferente esta em vista, masa atitnde de Paulo é idéntica. [Todos perderam algo com o relaxamento de um 86. 7 IB Neste ultimo caso, a comunidade, pelo que parece, tomou atitude, e a situagao foi restaurada. Os corintios tinham aprendido a li¢do do primeiro episddio, e vale a pena ver como Paulo tratou da situacao porque é extre- mamente instrutivo: J Quanto a mim, ausente de corpo mas presente em espirte, eu, como alguém que esta presente, julguei aquele que fez esta coisa no nome do Senor Jesus, Quando eativerdos reunidos estando cu convosco em espirito, e fordes envolvidos de poder por nosso Senhor Jesu, tl pesson devern ser entrogue a Satd para a lestruigao da carne, a fim de que o espirito possa ser salvo no dia do Senhor (1Cor 5,8-5). 0 trago mais notavel desta passagem é a énfase de Panloem sua presenca espiritual. Isso se oxplica comente com a admissiio de que a comunidade era responsdvel por assegurar sua prépria liberdade erradicando elementos que acusavam a presenca do Pecado, e a validez dessa admissao ¢ confirmada pela pergunta retérica: “Nao entrastes antes em luto (e mostrastes a sinceridade de vossa tristeza empreendendo a aco necesséria) para que aquele que cometeu essa acao fosse afastado de entre vos?” (v, 2). Uma vez que a comunidade nao cumprira sua obrigacao, Paulo, como o fundador, sentiu-se obrigado a intervir. Mas, como vimos (ef. p. 117), ele tinha conscié: cia de que a imposi¢ao de preceitos autoritativos eria irresponsabilidade, porque inibe o crescimento que vem somente de decisoes livres. Ele tinha que guiar sem dominar. Insistindo na presenga espiritual, dava-se um voto nas deliberacées da comunidade, contentando-se, porém, em apontaroqueconsiderava queeles deviam fazer. (O-necador devia ser expulso. Como o cumprimento das promessas escatolégicas, supunha-se que a comunidade era sem pecado} Permitir a presenga continua de pecador ‘eontuimaz seria fazer da comunidade mentira viva, pur- que ela nao mais poderia oferecer aos seus membros protecdo inteiramente eficaz contra as presses do “mun- 14 j do”. Se os corintios tivessem apreciado suficientemente sua liberdade, teriam sido urgidos a empreender acdes para protegé-la. Sua falha quanto a este ponto dbvio expliea a irritago mostrada pelo grego inepto dessa passagem. Mais significativa de tudo 6, porém, a compreensio de Paulodoque implica a excomunhao. Hentregar“aSata para a destruigao da carne, a fim de que o espirito possa ser salvonodiadoSenhor” (1Cor5,5). Numerosos exegetas encontram aqui uma alusao a sofrimento fisico e mesmo & morte; mas, se Paulo estivesse pensando nessa linha, teria se expressado em termos semelhantes aos que se podem ler em 1Cor 11,30. Em si, a linguagem nao é mais forte do que a empregada em Rm 6,6-7. De mais a mais, 0 contraste entre “carne” e “espirito” interpreta mais na- turalmente de forma existencial, ea si metodologia exige quese explorem outras pistas somenteseessa aproximacao se provasse improficua. ‘Ao ser expulso da comunidade, o pecador nao mais é protegido por ela. std exposto sem defesa ao sistema de valores do “mundo” e, assim, sujeito a pressdes hostis ao seu desenvolvimento auténtico. Af Paulo usa “Sata” para conotar a mesma realidade que alhures chama de Pecado. Deveriamos esperar tal exposigao para reforcar osimpulsos da “carne” porque, como vimos, 6 36na liberdade garanti- da pela comunidade que o “espirito” tom oportunidade de dominar os desejos residuais da “carne”. Paulo, ao invés, pretende que a excomunhio levaré a “destruicao da car- ne” Essa contradicao aparente serve, no entanto, so- mene para aprofundar nossa compreensao da mancira ‘aulo concebia a comunidade crista)Pela perspecti- ruagio do excomungado era um tanto diferente da situacao do nao-crente, Este ultimo nao tinha nenhuma possibilidade de escolha real e, sendo assim, o “espirito” nao podia dominar. 0 excomungado, ao invés, estivera ‘exposto aos beneficios de pertencer a uma comunidade de. livres, cujos valores sao a antitese dos valores apreciados pelo “mundo”/Dentro da comunidade, ele era ajudado 175 mor criativo dos outros membros. No “mundo”, 86 podia ser uma unidade isolada entre muitos, porque este amor estaria afastado dele (1Cor 5,11):,Uma vez que 0 “amor eriativo é realidade experimentada, sua privacao seria uma forma de sofrimento fisico que Paulo esperava que fizesse o pecado pensar. Esperava que 0 excomungado. se tornasse agucadamente consciente da repentina dife- renga em sua situacdo pessoal e, em consequéncia, re- considerasse o seu comportamento. A essa medida, pois, a graga de Cristo encarnada na comunidade continuaria a exercer influéncia sobre ele, tornando possivel para o“espirito” ser salvo. Paulo nao fala de volta para a comunidade, mas nada no contexto exelui essa possibili- dade. A diferenga entre a comunidade e a sociedade difi- cilmente poderia ser mais plasticamente enfatizada do que pelo que Paulo diz, acerea do efeito medicinal da expulsiio. Mostra que a expresso da diferenca em termos de luz e trevas (FI 2,15; Cl 1,13) nao é nenhum exagero. Isso nos leva a fazer a pergunta: seré que a Igreja local de hoje sobressai de seu ambiente da mesma forma? Ao responder a essa pergunta, devemos ter em mente que pensamos nao na situaedo terica da Igreja local, mas em sua situacao existencial. F muito ébvio que a ideologia da comunidade crista é diferente da ideologia do mundo, mas este nao é 0 nosso assuntnJiA pergunta diz respeito ao padrfo de comportamento da comunidade crista. Trata- se da Igreja local como ela realmente é, como realidade visivel ¢ tangivel.) __A importincia da pergunta é a seguinte: se ndo existem diferencas perceptiveis entre a comunidade cris- ta local eo seu meio ambiente, a realidade da liberdade dos crentes (no sentido paulino) fica exposta & duvida séria/Se hé hesitagao quanto a onde comeca precisamente. a comunidade e termina o “mundo”, a solidez da barreira que deveria protegar o crente da influéncia do Pecado ‘oma-sealtamente suspeitatPinconiro comprovagdo para fal hesitagao na atitude contemporanea com respeito & 176 excomunhao. Na pratica, essa sancdo foi abandonada. Isso poderia ser interpretado como testemunho de maior caridade dentro da Igreja, emuitos de fato estao satisfeitos e orgulhosos de que 0 pecador seja mais querido que punido. A severidade do passado foi posta de lado. A sanedo da excomunhao nao mais se aplica, porque se vin que era ineficaz. Nao mais produzia o choque existencial que deveria levar a reconversao. Assim, enquanto afirma em teoria sua diferenea do “mundo”, a Igreja na pratica atesta o fato de que a comunidade supostamente autén- tica nao é significativamente diferente da sociedade inauténtica em que existe. Minha énfase aqui ndo é argumentar por maior uso da sangao da excomunhao. Isso seria sem sentido, O meu linieo interesse é levantar a pergunta extremamente séria da realidade da liberdade eristé na Igraja de hoje. Toda evidéncia aponta para sua nao-existéncia. O siste- ma de valores pelo qual os cristaos vivem realmente é odo “mundo”. Dentro da Igreja e fora dela, encontramos a mesma falta de interesse pelos pobres e desprivilegiados, © mestno desejo de posses materiais, as mesmas hostili- dades e amarguras. Ha, certamente, excegdes, mas essas sao estatisticamente insignificantes/'Se_adotarmos a perspectiva genérica de Paulo, somos forcados a conceder~ que o Pecado reina por toda parte e, se Pecado significa espravizagao, onde entio hé liberdade? Ox cristaos nao podem dar por concedido que sao livres. As afirmagdes magnificas de Paulo forma reduzidas ao estado de pro- messas, porque sua viséo da verdadeira natureza da comunidade crista se deixou_de_ver. Ea este ponto, portanto, que devemos no LEITURAS SUGERIDAS Jeremias, J., Teologia do Novo Testamento, Paulus, Sa0 Paulo, 1991, Bultmann, R., Theology of the New Testament, SCM, Londres, 1965, 38-40 (Freedom), Macquarie, J., Existencialism, World Publishing, Nova York, 1972, . ‘9 (Freedom). Lynonnet, I. dea Potterie-S, The Christian lives by the Spirit, Staten Island, Alba, 1971, cap. 7 (Sinless Community). Murphy-O'Connor, J., “Faith Without Works in 1 Cor 7:14", em Revue Biblique 84 (1977), 349-361 ‘Mussner, F., Theologie der Freiheit nach Paulus, Herder, Freiburg, 1976 (cf. minha recensiio em Revue Biblique 88 | 1976, 618-623). Forkmann, G.,,The Limitsof Religious Community. Expulsion from the Religious Community within the Qumran Sect, within Rabbinic Judaism, and within Primitive Christianity, Gleerup, Lund, 1972. 178 a O CRISTO VIVO A expresso mais sueinta da compreensio de Paulo acerea da natureza da comunidade crista acha-se numa passagem da carta aos Galatas: Vos todos sois filhos de Deus pola fé em Cristo Jesus, pois todos ‘6s, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Nao ‘hd judeu nem grego, nfo hi eseravo nem livre; pois todos v6s sois uuni's6homem em Cristo Jesus. E se vés sois de Cristo, entio sois, descendéncia de Abraio, herdeiro segundo a promessa (3,26-29). Paulo inicia evocando a decisao de fé que converte os que sio inimigos de Deus em sous filhos. Essa decisao, porém, nao é orientagdo meramente interna, mas atitude que se exterioriza na forma de entrega especificamente social por submissao ao rito do batismo}Os crentes sao reconciliados com Deus pela fé porque foram batizados. Fé_ e batismo sao dois momentos de um s6 ato; nenhum é completo sem 0 outrg| Seria equivoco total acerea da compreensio de Paulo pensar que a fé simplesmente dava a eapacidade de entrar no novo relacionamento social, porque isso implicaria que uma pessoa podia ter f6 sem sua dimensao social|Fé, para Paulo, é a escolha de um modo de ser que 6 essencialmente social. A fé & n m ~ Este era conceito extremamente dificil para os con- vertidos de Paulo entenderem porque vieram de um modo de ser onde 0 seu relacionamento com outros era carac- terizado acima de tudo pela divisao. Na II parte, vimos os 179 a ova \eira de ser com outros) Pe 7esmee Ae Bee a0} pormenores da compreensao do Apéstolo acerca da exis- téncia inauténtica que aqui se evoca pela lista de pares opostos, judeus contra gregos, escravos contra livres, homens contra mulheres. No novo modo de ser essas divisdes nao mais existem, e é para frisar este ponto que Paulo emprega uma variedade de oxpressées diversas visando evocar a natureza comunitdria da existéncia auténtica: “Em Cristo”, “vos vestistes de Cristo”, “ser de Cristo” e do modo mais dramatico “todos vés sois um s6 homem em Cristo Jesus"/\Nenhuma palavra poderia expressar mais plasticamente a diferenga radical entre os ‘modos inauténtico e auténtico de ser. Se divisio 6 0 constitutivo daquele, unidade ¢ constitutivo deste/Ob- serve-se que se trata de “unidade”. “Todos vés sois um s6 homem” significa algo bem diverso de “vés estais em amizade”. A nfo ser quo este ponto ecja claramente entendido, o conceito de Paulo de comunidade sera distorcido. Sendo assim, primeiroexaminaremosa intuicao paulina sobre a unidade organica da comunidade dos crentes e depois investigaremos o relacionamento desta comunidade com Cristo. Unidade organica A glorificacao do individuo no existencialismo é sin- tomatico de uma perspectiva sobre a humanidade que caracterizou 0 pensamento ocidental desde o Renasci- mento. As criancas so encorajadas a ser independentes e auténomas, da mesma forma que seus pais consideram virtude nao estarem obrigados a ninguém. A cangéo com o titulo “I did it my way” (“Eu o fiz na minha mancira”), que Prauk Sinatra tornou famosa, foi comprada por mi- Ihées, porque tocava um sentimento profundo. Articulava que a vasta maioria acreditava, a saber, que a falta de 180 lagos e responsabilidades é a chave da liberdade/O herdi contemporaneo é aquele que tem a coragem de andar sozinho por seus préprios caminhos. (> Este desvio rumo ao individual pode-se perfeitamen- te entender pelas estruturas opressivas da sociedade contemporanea. Existem tantas regras e regulamentos, tantas pressdes econdémicas, que todos se sentem cons- trangidos e peados. Afirmar a propria individualidade é saltar para a liberdade e assim justificar a convieeao profundamente arraigada de que cada individuo é tinico. Portanto, todos estamos condicionados a pensar individualisticamente, e essa atitude é reforcada pela Igreja. Tedlogos insistem na primazia da consciéncia in- dividual. Cré-se largamente que meus pecados se passam entre mim e Deus, e posso salvar-me sem salvar outros. Cada um é livre para construir sua teologia pessoal. ( Quanto essa atitude se opde A de Paulo deveria ser evidente pelo que dissemos na II parte. Ele via o individu- alismo como caracteristica da inautenticidade, e 0 tanto que o individualismo permeou a Igreja apenas serve para confirmar o que se disse no tiltimo capitulo com referencia a0 nao-existir da liberdade crista. Nao existe nenhuma barreira ideal em face ao Pecado, ¢ os valores dos “mortos” cegos sao complacentemente aceitos pelos supostamente “vivos”. Nosentido de entender oque Paulo indica, devemos fazer esforgo muito consciente para depormos essa men- talidadedSua_perspectiva é tao radicalmente diferente que devemos continuamente nos vigiar para nao transpor seu pensamento em categorias aceitaveis ao nosso pré- condicionamento individualistico./: A modo de introducao aos textos paulinos, reflitamos por um momento nas implicacdes da compreensao do Apéstolo acerca da autenticidade e enquanto fundada na nogao de que a raca humana foi criada a imagem de Deus. ‘Vimos acima que o ponto formal de semelhanca entre 0 Criador e suas criaturas humanas situa-se na criativida- de destas ultimas. A criatividade desdobra-se facultando ‘0 amor que torna possivel ao outro ser conforme quis 0 Isl Criador. O exereicio de tal criatividade é existéncia autén- tiea, Mas essa criatividade envolve necessariamente pelo menos outra pessoa; no pode ser exercida em vazio individualistico. Sendo assim, sem 0 outro a criatura humana nao pode existir autenticamente. Para ser como Deus pretendeu que féssomos, procisamos amar e ser amados, dar poder e receber poder O outro, em conse- qiiéncia, entra na prépria definigao do ser humano autén- tico. Nao se pode ser auténtico e ser sé. Existiremos como Deus pretende somente se estivermos relacionados a outros na reciprocidade vital da criatividade.\O nosso novo modo de ser, que Paulo designa “vida”, é constitutdo por esse intercambio de poder. “Se nao tenho amor, sou nada” (1Cor 13,2), isto 6, eu nao existo. ‘Uma vez percebida essa perspectiva, torna-se sur- preendentemente claro porque Paulo fala de “homem novo” e nao s6 de “o homem novo”. Observamos um exemplo disso j4 em G13,28: “Todos sois um sé homem em Cristo Jesus”. O outro aparece em carta escrita muitos anos mais tarde: Depusesteso velho homem com suas priticas evos revestistes do novo homem que est sendo renovado em eonhecimento confor- me a imagem do seu Criador, onde nao pode haver gregoe judeu, circunciso e ineireuneiso, barbaro, eita, escravo ou livre, mas Cristo € tudo em todos (Cl 3,9-1)). A énfase na centralidade de Cristo, a imagem do “revestir” e a lista de pares opostos ligam essa passagem muito estreitamente com Gl 3,26-29, mostrando assim que este complexo de idéias estava profundamente ar- raigado e era consistente no pensamento de Paulo, Ao se pregar este texto, costuma-se interpretar a alusao a “o homem novo” em termos de um individuo que se torna novoadotando novosistema de atitudes morais. E ilustra- ao perfeita do efeito de nosso pré-condicionamento a pensar individualisticamente. Porque nos vem muito naturalmente, admitimos que Paulo deve ter pensado do 182 mesmo modo. Nada poderia estar mais longe da verdade, porque a particula espacial “onde” veda interpretar “o novo homem” individualisticamente/O novo homem” s6_ pode ser um agrupamentoonde naoexiste mais espaco para diferengas religiosas € sociais. A unidade, que ¢ constitutiva da autenticidade, 6 tipo de unidade organica que caracte- jumano vivo. Autenticidade exclui autonomial’, importancia deste aspecto para Paulo é clara pela consisténcia com que usa imagens organicas para expli- car 0 nosso relacionamento com Cristo, que é a fonte de toda autenticidade. Estas esto em surpreendente con- traste com as imagens estaticas que usa para expressar a relaciio dos crentes com Deus. Relativamente a Deus e ao Espirito, os crentes sao “edificio” e “campo” (1Cor 3,9) ou “templo” (1Cor 3,16; 6,19; 2Cor 6,16). E de outra forma com respeito a Cristo. Os crentes sau “euxerladus” nele (Rm 6,5) ou sao “enraizados” nele (C1 2,7). Essas imagens sao idénticas com a alegoria da vinha em Jo 15,1-10. A imagem dominante, porém, é a do corpo humano vivo. Os crentes sio membros do Corpo de Cristo (1Cor 10,17; 12,12-27; Rm 12,4-5; Cl 1,18.24; 2,18-19; 3,14-15; Ef 1,22- 28; 2,13-16; 4,4; 11-16). Ao elaborar este tema, Paulo evoca duas vezes 0 paralelo com 0 corpo fisico (1Cor 12,12; Rm 12,5). Como se deve entender o paralelo? O que viu como o ponto formal de contalo entre o corpo fisico e a comunidade como 0 Corpo de Cristo2/Em vista de nossa orientacdo para o individualismo, somos logo tentados a pensar em termos de coordenagao e cooperagao/.Da mesma que as. varias partes do corpo fisico operam em relagdo harmo- “niosa, assim também devem fazer os membros da comu- nidadeSe era isso que pretendia Paulo, € dificil ver qualquer diferenca entre o Corpo de Cristo e toda outra sociedade, porque a unidade concebida apenas em ter- mos funcionais. O atual estado da Igreja, infelizmente, 6 altamente propicio para conduzir a interpretagao ao longo destas linhas. As divisoes entre as varias comunhdes cristas e as amargas tensdes dentro delas aumentam 183 nossa consciéneia de multiplicidade até ao ponto em que damos assentimento apenas nacional & unidade e na melhor das hipéteses a concebemos em nivel puramente funcional. Isso apenas significa mostrar quo longe estamos do pensamenta de Panlo, porque ele estava tao consciente da unidade da comunidade que alude & multiplicidade de seus membros apenas em cldusulas subordinadas. “Nés, que somos muitos, somos um 86 corpo, porque um $6 é 0 pao, pois todos nés participamos de um sé pao” (1Cor 10,17); “Nos, que somos muitos, somos um s6 corpo em Cristo* (Rm 12,5). Se, para nds, a multiplicidade é dbvia caunidade problematica, o reverso vale de Paulo. Arazo para isso é que ele via o Corpo de Cristo nao como unidade funcional, mas como unidade ao nivel do ser. Ele foi unificado por uma vida partilhada derivada de um 66 prineipio vital, como afirma sem ambigitidades em sua exortagao aos colossenses que se apegassem & Cabega “da qual todo o corpo, nutrido e ligado por suas junturas ¢ ligamentos,cresce com um crescimento que vem de Cristo” (2,19; cf. Bf 4,11-16)(0 que o corpo fisico sugeria a Paulo_ era a idéia de coexisténcia no sentido estrito deste termo, de que muito se abusa, porque ele comunicava perfeita- mente sua compreensfo da autenticidade’\ "Os membros do corpo humano participam todos de cxisténcia comum, porque estado relacionados como partes integrais de um s6 todo. Sua propria realidade como membros é condicionada por ser partes do corpo. Um membro amputado pode parecer um braco ou uma perna, mas de fato € algo radicalmente diverso, porque o modo de existéncia apropriado a um brago ou uma perna exige participacaona vida partilhada do corpo, Em suaesséncia mesma, um braco nao é um todo, mas uma parte. Quando se Ihe da o status de todo, como no caso da amputagao, ele nao é mais o que estava destinado a ser. Tem a aparéncia de braco, mas no pode realizar uada dayuilu para que 0 braco foi criado. A animacao de vida deu lugar a imobili- dade da morte. 184 O paralelo entre o brago amputado e 0 ser humano auténtico dificilmente carece de énfase. Em ambas as aparéncias se desmente a realidade,Um braco amputado nao pode fazer nada e uma pessoa inauténtica, como vimos, é ineapaz de realizar a possibilidade de tomar decisio, que ¢ a potencialidade distintiva dada com a natureza humana{\Um braco amputado esta morto, e Paulo considera os que estiio fora do Corpo de Cristo como “mortos”(2Cor 2,16), “separados de Cristo” (G15,4)/Ambos_ exibem apenas aparéncia de vida/\ ‘Tudo o que vimos da compreensao de Paulo acerca da “vida” ou da “morte” indica que, quando ele fala da comunidade crista como Corpo, quer ser entendido de maneira muitoliteral.\A existéncia auténticaéaexisténcia da parte dentro do todo.'A criatividade reciproca do amor ceria uma “vida” de que partilham os membros. Eles nao Eles_participam,}Precisam um do outro da mesma forma que o braco precisa do corpo. Sem cada um dos outros, eles nao podem ser eles mesmos. B essa a énfase toda da afirmacao de Paulo de que o corpo preci de muitos membros (1Cor 12,14), e o significado de sua afirmacio aparentemente criptica de que “nés somos um 86 corpo em Cristo e membros uns dos outros” (Rm 12,5). Essas palavras surpreendentes, que se repetem em Ef 4,25, sublinham formalmente a interdependéncia dos membros do Corpo(JA perfeigao da autenticidade exige que nos pertencamos uns aos outros. A individualidade crista A énfase de Paulo na unidade organica como constitutiva da existéncia auténtica serve de moldura para os cristaos entenderem sua individualidade. Este é problema crucial que nao recebeu nenhuma atengio, pois 185 se admite que o conceito de individualidade prevalente no “mundo” vale também para os cristios. Comumente se coneehe o individuo como entidade tendo existéncia inde- pendente e separada. Essa definicao é perfeitamente verdadeira em nivel bioldgico da existéncia fisiea. Minha existancia fisiea 6 separada e independente da de qual- quer outra, Dado esse fato dbvio, parece légico falar de individuo auténtico ou de individuo inauténtico. Nenhum problema surge com respeito & formulacao ‘individuo inauténtico” porque, para Paulo, tal separabilidade é precisamente o que caracteriza a inautenticidade. A situ- agao é completamente outra com respeito & formulacao “individuo auténtico” porque, como vimos hé pouco, au- tenticidade ¢ condicionada por ser uma parte dependente ¢ totalmente integrada. A definic&o, um lugar-comum, nao é aplicavel mais a um mombro do Corpo de Cristo que a um brago ou uma perna, Falando estritamente, 6 € aplicavel a “o novo homem”, porque somente ele tem o status de entidade completa.(O_verdadeiro sujeito da existéncia auténtica é a comunidade a que os membros pertencem, e aquilo que pertence a algo mais como uma parte nao se diz, normalmente ser um individuo. \ ‘Em grande parte, nossa cegueira no tocante a esse problema é devida a tendéncia de entender a comunidade crista em termos da sociedade secular. Desta perspectiva, a igreja local surge como uma colecao de individuos que tem muitas coisas em comum com a sociedade local eventual. A maioria dos crentes dificilmente poderia dofinir a diferenca entre as duas e certamente se inclina- ria, no easo de poder definir, a uma definigao expressa em termos funcionais(A Igreja existe para fazer uma coisa, ao passo que a so lade-eventual existe para fazer outra” Paes que oo dlese até ened altura indicaria que 2 “iferenga, de ato, infinitamente mais radical. A socieda- de eventual é levada ao ser por individuos que se unem juntos para esle propésilu, Ein conseyiieucia, us individu- 0s constituem a sociedade. No pensamento de Paulo, precisamente o reverso vale da Igreja. A comunidade 186 crista preexiste aos membros que Ihe pertencem, e é a comunidade que faz o que eles sao, facultando-os a se mover da “morte” para a “vida’/)Assim, enquanto_os_ individuos levam uma sociedade éventual a0 ser, acomu~ nidade erista leva os seus membros ao ser, ao novo ser da autenticidade/\ ‘Oproblema em questaoconcerne, pois, a individuacao deste novo ser, e o ponto preciso é focalizado claramente na afirmagio de Paulo: “Nao sou eu mais quem vive, mas Cristo vive em mim, e a vida que eu vivo agora na carne eu a vivo pela £6” (Gi 2,20). Temos aqui a negacéo do “eu” individual, que éa conseqiiéncia légica da unidadeorganica do Corpo no qual Paulo pertence, e logo na _préxima | respiracdo 0 mesmo “eu” aparece como sujeito. Essa tensdo é ébvia. Paulo reconhece que é Cristo quem é 0 verdadeiro sujeito, mas ao mesmo tempo o quadro fisico, queéa infra-estrutura daexisténcia auténtica, leva-oase ver como individuo. A tensao é significativamente diminuida se fizermos distincdo entre realidade e a percepeao desta realidade. Um brago nao tem existéncia separada, Coexiste com 03. ‘outros componentes do corpo. Nao obstante, pode ser “eonsiderado separadamente. De_ elhante, no. 0 de Cristo os membros nao tém existénciasseparadas, iat podem ainda ser considerados eeparadamenta[Wa- receriaserestaa unica mancira de darsentido’ formulacao muito obscura de Paulo em 1Cor 12,27, que pode ser parafraseada: “Vés sois o Corpo de Cristo e, considerados separadamente, membros dele”. O contexto mostra que Paulo pensa em termos da contribuicdo diversa que cada membro aporta ao todo (1Cor 12,7). Existe diversidade dentro do Corpo, mas essa diversidade enraiza-se na unidade e existe para promover a unidade (1Cor 14,26). A variedade de dons espirituais, de que Paulo fala com freqiiéncia em contexto que enfatiza a unidade organica | do Corpo (1Cor 12,4-31; Rim 12,3-87; Ef'4,1-16), nao passa de facetas do amor (1Cor 13), 0 poder criativo que anima | © “novo homem’. w || dL A singularidade do dom concedido por Deus a cada pessoa implica que as pessoas podem ser consideradas separadamente dos outros. Podem ser tratadas como se fossem individuos separados. Isso as expée ao perigo inevitavel de pensar de si mesmo como individuos e, em conseqiiéncia, de suhstitnir afirmacao por servico. Caco isso ocorra, a realidade como percebida é confundida com a realidade como é de fato. No quadro paulino, nenhum cristo pode dizer eu penso, logo existo”, porque isso implica individuacao divisiva. O que o eristao pode dizer é “eu existo para te servir”, porque aqui encontramos individuagao que est4 ao mesmo tempo submergida na unidade do amor criativo. O eu é sacrificado porque o ser inteiro de um volta-se para o outro4O cristo é individu- alizado apenas como capacidade distintiva de autodoacdo pm imitacao de Cristo, que revelou 0 modo auténtico de existéncia humana “esvaziando-se a si mesmo” (F12,7)/) O novo homem 6 Cristo _ Dizer que Paulo viu a unidade da comunidade como priméria ¢ visualizou os individuos com sendo mudados pela absoreao naquela unidade pode parecer na melhor das hipéteses um paradoxo sem sentido e, no pior dos casos, denegrir infundadamente o papel de Cristo. Acaso nao atribui a comunidade uma fungao que pertenee pro- priamente ao Cristo salvadorYPaulo responderia nega- tivamente, porque, para ele, a comunidade 6 Cristo./ Este ponto surge da forma mais clara na afirmagao que introduz sua exposicao do Corpo de Cristo em 1Cor 12,12; “Pois assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos us useibros do corpo, embora sejam. muitos, sao um s6 corpo, assim também é Cristo”. Dizendo “Cristo” antes que “Corpo de Cristo”, naose pode pretender 188 que Paulo fez um desvio acidental cuja importancia nao deveria ser exagerada, porque precisamente a mesma idéia aparece antes na mesma carta: “Nao sabeis que nossos corpos sao membros de Cristo?” (1Cor 6,15). A forma de pergunta deste versiculo é altamente significa- tiva porque é geralmente entendida para denotar uma doutrina com a qual Paulo sentia que seus convertidos estariam familiarizados/A aplicacdo do nome de “Cristo” A comunidade deve, em consequéncia, ser considerada ter “formado parte do vocabulario habitual de Paulo. s ~ Este fato dirige nossa atengao famosa formula “em Cristo”, que aparece 155 vezes nas cartas paulinas. Se- jamos, porém, cuidadosos, porque a férmula ner sempre ‘temomesmo valor. Emcertos casos, Paulo temcertamente em vista a pessoa individual de Jesus Cristo, Nesta série detextos, o “em” conota ou instrumentalidade (por exemplo, “por meio da redencAo que esté em Cristo Jesus que Deus expés como expiagao”, Rm 3,24; ef. 1Cor 15,22; 2Cor 5,19; 1T's 2,14) ou o objeto do ato (p. ex., “fé em Cristo Jesus”, Gl 3,26; cf. Rm 15,17; Fl 3,3). Paulo também pode usar a formula em sentido bastante fraco, como quando diz: “Eu falo a verdade em Cristo” (Rm 8,9; ef. 1Cor 4,10 \\Existe, no entanto, uma série toda de textos em que “em Cristo” ‘entende-se mais naturalmente como referido & comunidad Assim também vos eonsiderai-vos mortos para o peeado e vivos ppara Deus em Cristo desus (tm 6,11) Portanto, nao existe mais condenacao para aqueles que esto em Cristo Jesus. leidoespiritodevida em Cristo Jesus noslibertou da lei do pecado e da morte (Rm 81-2), Saudai Priseae Aquila, meuscolaboredores em 16,3). [Bles estavam em Cristo antes de mim (Rm 16,7) (s santifiendos em Cristo Jesus (1Cor 1,2; ef FY 1,15 11,25 LD. Por Ble sois em Cristo Jesus (1Cor 1,30). (Para osjudeus)o véu permanece. Ble nto éretirado, porqueéem Cristo que ele desaparece (2Cor 3.14) Se alguem est em Cristo, 6 nova criatura (2Cor 6,17) Bm Cristo Jesus nom a circuncisaotem valor, nema incircuncisao, mas a fé agindo pelo amor (G1 3.6). to Jesus(Rm 189 Essa lista pretende ser representativa mais que exaustiva, e logo evidencia-se em que medida se evocam muitos dos temas antes discutidos. Em alguns casos, pode shaver dhivida se o“em’ ¢ instrumental ou local. Assim, por exemplo, 1Cor 1,30 poderia ser traduzido: “Por Ble vs sois om Crieto Jeous”. Esea tradugio poe énface om “vés sois’, iluminando, assim, 0 aspecto do novo “ser” que se manifesta em 2Cor 5,17. Mas pode-se perguntar imedia- tamente como ocorre isso, e a resposta nos forga a voltar Acomunidade, pois¢ af que esse novo ser se torna possivel. 0 mesmo vale de 2Cor 3,14, mas 0 contexto imediato (v. 16) mostra que o véu 6levantado para individuos somente por conversao que necessariamente implica pertenca como membros na comunidade. Rm 16,7 e outros textos, como 1Cor 3,1;2Cor 12,2; ITs 4,16, poderiam parecer & primeira vista que seriammaisbem traduzidos por‘eristio’masocriatiioéalguém que pertence a um tipo especifico de eomunidade./ “— 86 0 reconhecimento do fato de que Paulo as vezes designa a comunidade “Cristo” ajuda-nos a dar sentido & expresso “ser batizado em Cristo” (Rm 6,3; Gl 3,27). Significa simplesmente ser admitido na comunidade submetendo-se ao rito sacramental de iniciacao (ef. 1Cor 12,13). O poder do Cristo Ressuscitado é operativo através deste ato comunitario que nos faculta morrer para o Pecado ¢ ressuscitar para uma “novidade de vida” (Rm 6,4). Essa nova vida define-se em G13,27 como “revestistes Cristo” (cf. Rm 13,14), Em si, a frase poderia significar varias coisas, mas o que Paulo tem em mente ¢ esclarecido pela expresso paralela:“Revestistes onovohomem” (C13,10), porque, como ‘vimos,0 “novo homem” s6 pode ser a comunidade/Cristo 6 0 novo homem que é a comunidade. Devemos, porém, sempre ‘perguntar o que iso significa na praca, ¢ Paulo ndo n falta com a resposta, porque em Colossenses Togo passa a especificar 0 que est4 envolvido ao exortar: Portanto, como cleitoa de Deus, santos ¢ amados, revesti-vos de sentimentos de compaixio, de bondade, humildade, mansidao, longanimidade, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos ‘mutuamente; como o Senhor vos perdoou, assim também fazei és. Mas sobre tudo isso, revesti-vos do amor, que tudo liga juntamente em perfeita harmonia. E reine em vossos coragoes a paz de Cristo, a qual fostes chamados em um s6 corpo (CI 8,12- 15). Em conereto, o ser 0 Corpo do Novo Homem constitni- se por um complexo de virtudes sociais (cf. G15,22-23; 1Cor 13,4-7) que nao passam de facetas do amor. E a forca criativa que liga os membros diversamente dotados numa unidade acabada. Revestir de “Cristo” é revestir um amor voltado ao outro, da mesma forma que ser “enraizado em Cristo” (C1 2,6) é ser “enraizado no amor” (Ef 3,17). Seria absurdo imaginar que, ao predicar “Cristo” da comunidade, Paulo pretendesse identificar a comunidade ‘como 0 individuo histérico Jesus Cristo. Em Cl 1,18, ele fax a distingao explicita entre a Cabeea co Corpo que esta implicita em varias cartas anteriores, Se uma explicacdo em termos estaticos se exclui af, somos forgados a consi- derar uma explicagao em termos de fungao. Nesta pers- pectiva, o nome “Cristo” poderia ser predicado da comu- nidade se for possivel conceber Cristo e a comunidade como realizando a mesma fungao idéntica. Uma vez que 0 problema foi posto desta forma, torna-se facil ver como a mente de Paulo trabalhou. (\A comunidade medeia Cristo para.o.mu nd AL ala yu Jiu se uve em nosso mundo contem poFAneo, a nao ser que seja proclamada pela comunidades, O-poder que emanava dele no sentido de facultar a resposta nao mais é efetivo, a nao ser manifestado pela ‘comunidade. Assim como Deus outrora agiu por Cristo, agora ele age (2Cor 5,19-20) por aqueles que so “con- formados a imagem do seu Filho” (Rm 8,29; cf. 2Cor 3,18) ecujos padrées de comportamento sao em imitagaodo dele (1s 1,6-8; 1Cor 11,1). O que Cristo fez noe pelo mundo de seus dias por sua presenea fisica, a comunidade faz noe pelo seu mundo. © imperativo que exivia aquela autenti- cidade que ele manifestou dentro da moldura de sua his- toria permanece vélido. Para continuar a exercer sua 191 fangao salvifica, o Cristo Ressuscitado deve ser eficaz- mente representado dentro docontexto de uma existéncia real por autenticidade que é modelada pela sua. Somente os que se revestiram de Cristo aceitando a exortagao “que tudo 0 que fazeis se faca no amor” (1Cor 16,14) pode demonstrar a realidade continuada do “amor de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8,39), pois sio somente eles que “levam avante a palavra de vida” (FI 2,16). Isto é meu corpo 4A dimensio existencial do relacionamento falime entre a Cabeca, que é 0 Cristo Ressuscitado, eo Corpo, que_ "6 Cristo no mundo, emerge claramente na explicacao que Paulo faz-da-eucaristia: a Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pi e, depois dedargracas, partiu-oe disse: “Isto 60 meu corpo, que € para v6s; fazei isto om’ meméria de mim". Do mesmo modo, apés a ceia, também tomou ocallice, dizendo: “Este eiliceéa Nova Alianga em ‘meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em mem6- ra de mim”. Todas 2s vezes, pois, que comets desse pao e bebels desse eéilice, anunciais amortedo Senhor até queele venha (1Cor 11,23-26). O primeiro versiculo dessa citagio contém os termos técnicos “receber” e “transmitir”, que colocam Paulo como intermediario numa cadeia de tradicéo. Os mesmos ver- bos aparecem a propésito do credo querigmatico em 1Cor 15,3, mas apenas aqui Paulo designa explicitamente aquele de quem revebeu a Lradigao: “Eu recebi do Senhor". A formula em questo, porém, acusa sinais caracteristi cos do uso littirgico numa comunidade grecéfona. Em que 192 sentido, pois, pode Paulo dizer que recebeu as palavras da instituigao do Senhor? Para alguns peritos, Paulo sim- plesmente quis evocar Jesus como a origem remota de uma tradicao que ele recebera realmente de outros ho- mens. Outros exegetas compreendem a frase como afir- macio de que as palavras da instituicao foram lhe comunicadas diretamente numa visio do Cristo Ressus- citado. Esses dois modos de ver apresentam dificuldades obvias. Na primeira, relativamente As caracteristicas da formula institucional, faz violéncia &s palavras de Paulo. A segunda, fazendo justica & afirmagao de Paulo, ignora, nao obstante, o colorido litxirgico da formula. Uma solucao muito mais satisfatéria sugere-a o que vimos na seco precedente Duas conclusdes importantes emergem desta andlise de i's 4,3-12. Primeiro, nao se faz nenhuma tentativa de cobrir todas as possibilidades. Tudo o que se forneceé uma série de indicadores muito genéricos. Segundo, todas as au injungées se relacionam com a compreensao que Paulo tem dos dois modos de ser abertas a humanidade. Adverte contra 0 comportamento que acusa o egoismo da concu- pise&ncia e contra a curiosidade e a preguica que sio notoriamente destruidoras da vida comunitédria. Encora- ja.0 autocontrole indispenadvel em relagdes interpessoais e advoga atitudes que permitem genuino interesse pelos outroa/ Em outras palavras, suas diretivas sao essencial- menteeducativas. Visa orientar os que passaram do modo éntrico de existéncia do “mundo” ao modo, diversa- ‘mente direcionado, do ser “em Cristo”, A mudanea foi tao radical que os convertidos precisavam ser guiados na producao de um padrao de comportamento apropriado a seu novo estado. O texto também deixa claro que essas diretivas foram dadas por Paulo como parte de sua pregagao oral (1Ts 4,1- 2)e isso permanece verdadeiro se, como parece provavel, 17s 2,11-12 era a introdueao original a lista. Que essa era sua prética habitual é atestado por 2Ts 3,10 e Gl 5,21. Estes textos iluminam o absurdo da pretensao de que Paulo dava diretivas morais s6 quando se desenvolviam perturbagdes em suas comunidades ou s6 quando ele se via confrontado com problemas postos pela demora da parusia. Em nenhuma parte seu sentimento da iminéncia do éschaton é mais evidente do que na carta aos ‘Tesealonicenees. (Seu bom scnao indicava que os novos convertidos estariam jogados ao mar por algum tempoem Seus esforcos para dar expressio pratica ao ideal-que aceitaram, € 0 seu interesse se desdobrou numa série de diretivas_indieadas que, esperava ele, os facultaria a encontrar pé quanto antes possivel. Isso era imperativo também se Cristo havia de voltar depois de um intervalo de apenas algumas semanas ou meses, > A situacao produzida assim era bastante delicada. As diretivas indicadoras poderiam nao funcionar como Paulo pretendia, a nao ser que fossem levadas a sériv, e essa 6 a razao por que as repete, ainda que esteja seguro de que os tessalonicenses nao agem de outra forma (1Ts 4,1.10). 22 Contudo, se fossem tomadas muito a sério e adquirissem ostatus de preceitos vineulantes, o crescimento na auten- ticidade seria completamente frustrado. O riseo, porém, deve ser tido, porque a consideragio realista nao podia ditar nenhum outro curso. Precisamente porque a posicao de Panlo era to antil que estava largamente aberta a compreensées equivoca- das, e as duas reagées possiveis esto exemplificadas pelos galatas ¢ pelos corintios. Os primeiros sentiram a inseguranga que Paulo esperava, maselaos apanhoucom intensidade que ele nao podia antecipar. Suas diretivas iluminaram certas 4reas de comportamento, mas deixa- ram muita coisa a seu proprio juizo, Uma vez que sua mentalidade era a dos que aspiravam a qualificar antes que exceder, queriam estar inteiramente seguros e assim elevaram snas diretivas indicadoras ao status de obriga- oes vinculantes. Nada mais pode explicar as boas-vindas que deram aos judaizantes que chegaram com os 613 preceitos da lei. A fileira de mandamentos preenchia todas as reas escuras que Paulo tinha deliberadamente deixado em branco para que pudessem eles proprios exercer sua iniciativa determinando o comportamento que cabia a um membro de Cristo. Dai, a tremenda insisténcia na “liberdade” que encontramos em Galatas. Pauloé categérico em sua insisténcia para que aceitassem aresponsabilidade da liberdade, porque de outra forma os seus trabalhos em favor deles serao em vio (G14,11). Dai, nesta carta o seu maior interesse é mostrar que os crentes agora existem numa forma diferente e que a submissio a leis vinculantes ¢ coisa do passado//Seus esforgos-sio- dirigidos a corrigir atitude fundamental que comprome- tia tudo o-que se tinha conseguido. Oerro dos corintios Asituacdo em Corinto era diametralmente oposta ao que sucedia na Galécia. A inseguranca dos gélatasestava inteiramente ausente entre os corintios. Com hipereon- fianca exuberante, agarravam-se ardentemente na res- ponsabilidade de assumir decisées por si mesmos, Uma vez.que era isso que Paulo queria fundamentalmente, seu tom na correspondéncia aos corintios 6 bem diverso do tom da carta aos Galatas. Nesta Ultima encontramos a brusca exasperacdo provocada por um erro em tema basico. Abriga a simples mensagem: sois agora diferentes. ‘Nao mais estais escravizados ao Pecado e & lei. Sendo assim, deveis agir em liberdade. Os corintios, por outro lado, estavam certos na teoria, mas errados na pratica e, em conseqiiéncia, a exposi¢ao de Paulo é muito mais raciocinada/'Tém grandes dificuldades para mostrar-lhes em pormenor por que certas decisdes eram incompativeis com aquelas a que se comprometeram. (\ Abase da exposicao aos corintios era sua aceitacao do ensinamento de Paulo de que foram libertados do Pecado, Essa liberdade 6 absoluta/Numa comunidade auténtica, ‘on crentes nao mals estao Tigadoe & escravidia de faleo sistema de valores. Nao esto sob nenhuma restricao que os impeca da fidelidade a seus préprios eus verdadeiros() Os corintios, porém, transferiram este carter absoluto & “liberdade a” (ef. p.159 ) e creram estar livres para fazer exatamente o que lhes desse na telha, como proclamava o seu slogan: “Todas as coisas so legais para mim” (1Cor 6,12; 10,23). Aplicavam esse principio em pelo menos dois dominios, 0 uso de sua faculdade sexual e 0 uso de sua razio em assuntos morais. Por eausa de dois impulsos fundamentais estarem envolvidos, Paulo argumenta so- bre esses casos bastante difusamente no sentido de mos- trar aos corintios que “liberdade a” nao é ilimitada e que, se essa é levada longe demais, o resultado é a perda da 214 “liberdade de"(\Ble afirma claramente que a liberdade, esta enraizada na unidade e, uma ver rompida a unidade,_ desvanece a liberdade. / ~~ No primeiro caso, os corintios fizeram uma escolha errada ao decidir que era permitido ao cristao dormir com prostituta (1Cor 6,12-20). Seria muito mais facil seguir a discussao de Paulo se soubéssemos exatamente que argu- mentos 03 corintios usaram para apoiar essa conclusao. Como esta, temos que deduzir sua posicao do que ele diz, e isso introduz inevitavelmente um elemento de incerte- za, Pareceria, contudo, que os corintios faziam distincao aguda entre o corpo e 0 espirito e sustentavam que, enquanto seus espiritos estavam unidos ao Senhor, seus corpos poderiam seguir suas inclinagées naturais. Daf, assim como 0 corpo pode satisfazer sua necessidade de alimento e bebida ocasionalmente, assim também pode satisfazer seu desejo de relacoes sexuais (v. 13). No seu modo de ver, uniao carnal com a prostituta estava em relacdo inteiramente neutra com a uniao espiritual com o Senhor. Em resposta, Paulo argumenta que a dicotomia pro- posta entre corpo e espirito é insustentavel. O corpo é parte integral da pessoa humana, e prova-se-o pelo fato de que ele ressuscitar dentre os mortos (v. 14). Mais signi- ficativamente, os corpos dos cristos constituem a dimen- so fisien da presenca de Cristo no mundo (v. 15). B através da atividade do corpo que o comprometimento do espirito adquire realidade e eficacia (v. 20b). Embora 0 corpo e o espirito difiram, constituem parte juntos do servico de Cristo. A fungiio do corpo 6 precisamente servir como a manifestagao concreta do amor eriativo a que 0 comprometimento da fé une a pessoa. Sendo assim, a unido fisica efetuada pelo intercurso visa expressar 0 amor que tem o poder de unir as duas pessoas em autén- tica unidade (v. 16b)0 coito com uma prostituta é, pois, coiea orrada, porque este camprometimenta com o outro como pessoa esta excluido (v. 15). 0 proprio ser do cristo édar, mas na fornieacdo casual ele apenas toma/A outra_ 21s pessoa éusadae, dessa forma, selhe dé o estadode “coisa”, para gratifieacio egoista. Entregando-se a si mesmos a uma forma de compor- tamento que corresponde a egocentricidade do mundo (ef. 1Cor 6,9-10), os corintios esto em perigo préximo de uma vez mais se tornarem esecravizados ao Pecado Sendo assim, Paulo fazduasadicoes aoslogan doscorintios:“Nem todas as coisas sfo para mim o melhor” e “eu nao ficarei escravizado por nada” (1Cor 6,12). Certas acdes nao sao para omelhor porque por sua prépria natureza implicam retorno a inautenticidade. Como membros de Cristo, os corintios devem afirmar existencialmente a verdade: “Nao pertenceis a vés mesmos” (1Cor 6,19b), se querem salva- guardar sua liberdadeEntrega exclusivamente intelec- tual a unidade 6 sem sentido.’ ~ Fate riltimo panto focaliza-se muito mais claramente no segundo caso, porque nele os corintios tomaram uma decisao teoricamente correta (1Cor 8,1-13; 10,23-30). O ponto em foco era: podiam os cristdios comprar e comer carne que formara parte de sacrificios gentilicos? Alguns membros da comunidade respondiam afirmativamente, baseando-se em verdades especulativas, tais como “um idolo nao tem existéncia real”, “nao ha senao um Deus” (1Cor 8,4) “a terra é do Senhor e tudo nela” (1Cor 10,26) Paulo nao encontrou nenhuma falha neles por sua inici- ativa em fazer um juizo moral um tanto delicado. Tinham aceitado a responsabilidade de sua liberdade, Também no se acha em desacordo com sua solugao. O alimento é moralmente neutro(1Cor 8,8) e, assim, os cristaos podem consumir o que quer que encontrem no mercado decarnes, (1Cor 10,25) e o que quer que se lhes oferega nas casas dos nao-crentes (1Cor 10,27)41sso, porém, éverdade somente em teoria, e a natureza da comunidade crista exige que se eve em conta outro fator antes de essa teoria poder ser legitimamente transferida para a pratica:.\ ‘Tomai euidado, porém, para que essa vossa liberdade nao se torne ocasiao de queda para os fracos. Se alguém se vé sentado a 216 ‘mesaem um templode fdolo,atique tens aconseiénciaesclarecida, porventura a consciéneia dele, que ¢ fraco, nao sera induzido a comer earnes imoladas aos idolos? E, assim, por causa de tua ciéneia perecera o fraco, esse irmio pelo qual Cristo morreu! (Cor 8,9-11). A situagao que Paulo visa esta claramente indicada. Podem existir alguns na comunidade que, tendo em vista seu prévio condicionamento, nao estejam convencidos pelos argumentos teéricos, mas que foram levados a comer dessa carne porque nao podem resistir a autorida- de dosmembros que possuem mente mais forte. Eles esto sujeitos a pressdo de fazer o que sentem estar errado, agir violando suas prdprias convieedes. Do ponto de vista de Paulo, o fato de que a perspectiva dos fracos seja objet vamente errdnea ¢ totalmente irrelevante. O seu direito, por causa da natureza da comunidade, é ser munidos de poder, e nao ser destruidos/Sendo assim, o fator primario numa decisao moral crista deve ser o efeito sobre outros da isada. Uma acdo teoricamente apropriada ao novo estava plenamente consciente da habilidade do amor préprio em dar-se verniz de respeitabilidade por meio de principios especulativos. “Mas a ciéncia exata incha; é a caridade que edifica” (1Cor 8,1). Raciocinio especulativo pode gerar sentimento de orgulho e autoconfianca que da aos crentes a sensagao de indepen- déncia. Se sua importancia for exagerada, é totalmente destrutivo da unidadeda comunidade. Os que sentem que podem se apoiar somente em prinefpios estao a indicar que nao necessitam realmente dos outros, assim, negam a verdadeira base de sua existéncia auténtica em Cristo, ‘Uma decisao autenticamente moral é decisio que inten- “Sifica a unidade da comunidade/“Ninguém procure satis- fazer aos seus proprios interesses, mas aos do préximo” (Cor 10,24)/\Uma escolha nao pode ser boa para um 217 cristo, a nao ser que seja também boa para os outros na ‘comunidade a que pertence. A pedra de toque da verdade ral € a edificacdo da comunidade (1Cor 10,23),/": A renovacéo da mente Estamos agora em posig%o em que podemos comecar aperceber que, ainda que Paulo recuse a validade de toda lei vinculante paraa comunidadecrista,o seu ensinamen- to moral nao é mera ética de situacao. Apresentagées correntes da ética de situacao (por exemplo, E. Fletcher) concebei 0 sujeito moral como individue confrontade com uma tinica situagao. Na medida em que ele via a exigéneia de Deus manifestada pelas necessidades dos outros em situagao conereta, Paulo era situacionista, mas ele recu- sava admitir que o individuo poderia ser adequado sujeito moral. A légica de sua compreensao da natureza da comunidade erista nao podia lhe permitir fazer diversa- mentedO préprio ser dos crentes era o de partes dentro de um todo, Como membros do Corpo, eles s6 participavam “da vida de uma unidade orgdnica. Nao podiam, portanto, mente independentes em seus juizos morais) Se ‘a unidade da comunidade devia ser fato e nao sonho, 0 julgamento moral do eristao podia ser apenas participa- ‘cdo em e reflexao sobre o julgamento moral da comunida- de, Para Paulo, portanto, a comunidade era o verdadeiro sujeito moral. Isso aparece com particular clareza em duas passagens. A mais formal e explicita ocorre em Colossenses: Revestistes o homem novo que esta sendo renovado em conheci- ‘mento segundo a imagem de seu eriador (3,10) 218. A iltima frase indica claramente que Paulo tem em mente a narrativa do Génesis e, em particular, as pala- vras da serpente a iva: “Deus sabe que, quando comerdes dela, sereis como Deus, sabendo o bem e o mal” (Gn 3,5). ‘A humanidade foi criada A imagem de Deus, mas caiu, mediante buscar canhecimenta moral, em maneira con- traria & vontade de Deus. Como resultado, seu senso moral se inutilizou, Para os judeus, este defeito s6 foi um tanto remediado pelo dom da lei, de sorte que seus efeitos 6 eram totalmente evidentes nos gentios, como o afirma © mais antigo comentario a esse versfeulo: “Nao andeis mais como andamos demais gentios, na futilidade de seus pensamentos, com entendimento entenebrecido, aliena- dos da vida de Deus pela sua ignorancia e pela dureza dos seus coracées” (Ef 4,17-18)/[Recriados em Cristo (2Cor 5,17; G16,15), que é a imagem de Deus (CI 1,15), 0 novo homem recupera sua capacidade de jufzo moral. Mas, como vimos, este novo homem nao é 0 crente individual, (cf. p. 188). ‘Ocontraste entre o “velho homem” eo “novo homem” e a énfase na qualidade progressiva do conhecimento moral (“esta sendo renovado”) ligam Cl 2,10 muito estrei- tamente com o segundo texto: Nao vosconformeis com esta ora, mastransformai-vosrenovando vyooea mente, a fim de podordes diseornir qual é a vontade de Deus, 0 que bom, aceitavel e perfeito (Rm 12,2). O contraste ai estd entre “esta era”, que é sindnimo paulino para o “mundo”, e o Corpo de Cristo (ef. Rm 12,5). 0 que Paulo tem em mente emerge bastante claro se levarmos em conta Rm 1,18-32, passagem que manifesta surpreendente paralelo em vocabulario e conceito com Rm 12,1-12. Com conseqiiéneia de sua rejeicao da exigén- cia de Deus implicita ein sua criaturidade, os genius “se tornaram fiiteis em seus raciocinios e seu coracdo sem discernimento foi entenebrecido” (Rim 1,21). A’mesma 219 idéia aparece um pouco mais adiante, mas desta vez expressa de modo semitico que abstrai da distingao entre causa primaria e secundaria: “Deus os entregou a uma mente aviltada para fazerem o que nao convém” (Rm 1,28),/0_paralelo entre “coragao” e “m ite” indica que Paulo pensa na faculdade racional, nao, porém, isolada, mas pi eule na medida que da orientacao a perso- halidade inteira. Neste tipo de contexto, portanto, ambos se traduzem melhor por “mentalidade” em vista da suti] fusdo do coletivo com o individual. “Coracao” écoletivo no v. 21, mas 0 individual manifesta-se com o uso do plural no v. 24: “Deus os entregou aos desejos de seus coragées” De modo semelhante, “mente” é coletivo no v. 28, mas plural “mentes, raciocinios” aparece no v. 21. Isso & perfeitamente compreensivel a luz do que vimos com Tespeito a relagdo das criaturas inauténticas ao “mundo” (cf. cap. 4)/Blas_estao dominadas pela orientacio corporativa que reforcam por sua conformidade. “A men- {te aviltada”, portanto, é a “mentalidade” do mundo que todos assimilam inconscientementee revelam em seus “raciocinios” individuais (cf. Ef 4,17-19). __ Sea “mente aviltada” é a mentalidade que dominao modo inauténtico de ser, “sendo mente renovada” (Rm 12,2; Ef 4,23) 6 a mentalidade de sua antitese, ou seja, a comunidade que ¢ 0 Corpo de Cristo. Nas proprias pala~ vras de Paulo, é “a mente de Cristo” (1Cor 2.16). O uso da coletivo torna-se imperativo pela unidade organica da comunidade‘A “mente de Cristo” é a perspectiva propria do Homem Novo do qual os individuos sao apenas mem- “bro: © que isso significa pode se definir um pouco mais precisamente se nos voltarmos por um momento para a nica outra passagem em que Paulo evoca a idéia de “transformagio”. E nés todos que, com a face doscoberta, refletimas como num espelho a gloria do Senhor, estamos sendo transformados na ‘mesma imagem de gloria em gléria (2Cor 3,18). 220 Como em Rm 12,23, 0 passivo “sendo transformados” mostra que oscrentes no s80 0s agentes primarios de sua propria transformacao/Deus age em e por meio da comu- nidade salvifica, Por sua abertura a Cristo, a comunidade é transformada em sia imagem,Note-se a mesma com- binacao de Rm 12,2 de verbos plurais eo substantive chave (“mente”—“imagem") no singular. A medida que a comunidade aprofunda seu comprometimento com o ide- al, a atitude existencial de Cristo (cf. Fl 2,5) torna-se progressivamente mais manifesta, primariamente na ¢o- munidade e como derivativo nos individuos que a consti- tuem. Amedida que a comunidade exemplifica a humani- dade auténtica manifestada por Cristo, ela julga do ponto de vista de Cristo nesse sentido que se pode dizer que ela possui “a mente de risto”, A posse, porém, nao é “cumprimento estitica de uma voz por todas, maa proceso continuado que se harmoniza com o crescimento do Corpo (C1.2,19; BF 4,18). Somente nesta perspectiva torna-se possivel enten- der como pode Paulo definir “a vontade de Deus” que é 0 objeto da atividade corporativa da mente como o que é “bom e aceitdvel e perfeito” (Rm 12,2). Os comentadores comumente admitem que o ponto inexpresso de referén- cia é Deus, tanto porque “aceitavel a Deus” aparece no versiculo anterior como porque “aceitavel” alhures em Paulo é sempre usado em conjungao com “a Deus” (Rint 14,18; Fl 8,18) ou “ao Senhor” (2Cor 5,9; C1 3,20). Certa- mente este argumento pode agir da outra forma, Se Paulo insere habitualmente o ponto de referéncia, sua omissio aqui deve ser deliberada e, portanto, significativa. Os trés adjetivos substantivados “bom, aceitavel, perfeito” esto em oposigao a “a vontade de Deus”, e assim se relacio- nam diretamente com “julgar” e mais precisamente com “testar” a mente(O que Paulo quer dizer, pois, é que tudo © queamente corporativa testare achar que é “bom, acei- 10” € de fato a vontade de DeusC, H. Boddo percebeu © notou em sett comentario sobre este versi- cul 221 A vontade de Deus para o homem nao écerta forma misteriosae inracional de santidade... Consiste naquela especie de vida que @ mente renovada do eristio pode ver que é boa em si mesina, satisfatoria e completa, Ele nao ¢ inteiramente preciso, contudo, ao sugerir que esta mente é a posse do crente individual, porque, como Paulo insiste, “nés somos um 86 Corpo em Cristo ¢ individualmente membros uns dos outros” (Rm 12,5) avaliacdo moral da comunidade é a mais alta na intengao do Apéstolo, ¢ isso age como que verificando o3 julgamen- tos dos erentes individuais que possuem a “mente de Cristo” apenas enquanto o seu ser esta verdadeiramente » enraizado “em Cristo”. Sao dirigidos pelo “Espirito de Cristo” na medida em que “pertencem a ele” (Rm 8,9)./» A perspectiva que desenvolvemos é uma das idéias que, sendo muito claras na teoria, parecem evaporar quando se tenta reduzi-las ao nivel pratico. F muito claro que Paulo nfo tem em mente um consenso moral explicito que todos devem subscrever, porque isso seria equiva- Tente a outra lei. Como ele a conceberia positivamente é outro assunto, € aqui ele nos da somente uma chave: Minha prece ¢ que vosso amor possa abundar mais e mais em eonhecimento e todo discernimento, de modo que possais iulgar ss colsas que realmente interessam (Fl 1,9-10). A formulagio dessa prece evoca imediatamente Rm 2,17-18, & qual se opde diametralmente (cf. p.188)4A diferenca essencial esta na fonte do conhecimento moral,y ara 0 judeu, derivava da lei; mas, para o eristao, deriv: do amor. Tocamos aqui o cerne do pensamento de Paulo quanto a intuicao, que habilita os crentes a discernir a exigéncia da parte de Deus na sitsnacia concreta o flui do mesmo amor que da poder que cria a unidade organica da comunidade. 86 0amor pode dissipar a ameaca a unidade 22 : posta pela “liberdade a”/Wma decisao moral, verdadeira- mente inspirada pelo amor que se autodoa, que animava Cristo (2Cor 5,15), afirma e confirma o proprio ser da comunidade, e assim a dependéncia do erente no ser é ‘atualiznda na liberdade.tPortai os fardos uns dos outros, eaceim cumpria lei de Cristu” (GI 6,2), cujo tinico ‘preceito 0 do amor. Modelo de deciséio auténtica Muito do que consideramos esta perfeitamente resn- mido num caso em que podemos ver Paulo trabalhando um problema moral pessoal. Escrevendo da prisfio em Efeso, ele diz: ‘A minha expectativa e a esperanca é de que em nada serei confundido, mas com toda a ousadia, agora como sempre, Cristo serd engrandecido no meu corpo, pela vida ou pela morte ara mim o viver ¢ Cristo e o morrer 6 luero. Mas, se o viver na carne me da ocasiao de trabalho frutifero, nao sei bem o que escolher. Sinto-me num dilema: 9 meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas e permanoeer na carne 6 mais necessario por vossa causa. Conveneido disso, sei ‘que ficarei econtinuarei com todos v6s, para proveito vossoepara alegria de vossa £6 (Fl 1,20-25), 00 que interessa-a Paulo é que sua existéncia fisica- possa ser manifestacao da compaixioe do amor de Cristo, ue Cristo possa se tornar palpavel em sua pessoa Essa manifestagao pode ocorrer tanto por sua vida apostdlica como pela maneira de sua morte. Paulo nao sahe qual sara 1 decisao dos que o prenderam e, assim, inquire se deve desejar viver ou morrer. Acha dificil formular uma deci 840, porque existem argumentos de ambasas partes, Uma 23 vez que toda sua existéncia esté focalizada em Cristo, ¢ uma vez que pereebe a morte como caminho para mais {intima uniao com Cristo, ele acha que morrer é “muito melhor”. Nada no contexto sugere repugnancia pelo fardo da vida. Do modo de ser de que Paulo goza agora, Cristo passou a outra vida que o Apéstolo deseja partilhar. Em teoria, nada podia ser tao simples, e assim Paulo conelui: “Meu desejo é partir e ir estar com Cristo”. Perfeicao tedrica, porém, nunca pode ser o crité primério no julgamento moral de um cristao; também nao pode sé-lo a preferéncia pessoal, nao importando quéo préxima possa estar relacionada com o ideal abstrato. Sendo assim, Paulo decide por fim em favor de viver, porque “é mais necessario por vossa causa... para proveito vosso e para alegria de vossa fé". A vida em Cristo é existéncia partilhada, e o tinieo critério de uma decisiio auténtica 6: 0 que contemplo concretizard e realizaré aquela partilha? As necessidades dos outros devem, por- tanto, sempre ter precedéncia & satisfagio pessoal, por mais justificdvel que possa ser esta tltima. No caso presente, Paulo acha-se colocado entre ideal em sua perfeicdo abstrata eo ideal em sua realizagao embriond- ria, entre Cristo em si mesmo e Cristo na comunidade. Sua situacaoé anélogaa dos corintios, que seconfrontavam comaescolha entre a verdade de principios ea verdade da realidadeéMas onde optaram erraneamente pela simpli- didade do berate Paulo vo lecide pela complexidade do real, participando plenamente da “mente de Cristo”, cujo Gritério-é fornecido pelo auto-sacrificio da eruz, cuja pro- Fundidade deriva da acumulagio da experiéncia viva da “comunidade Jareza aperfeigoa-se mediante parti- Tha continua no amor. 24 LEITURAS SUGERIDAS Byrne, B., Paulo e « mulher erista, Paulus, $0 Paulo, 1998. Patte, D., Paulo, sua féea forga do Evangetho, Paulus, Sio Paulo, 1987. Drane, J., Paulo — Um documento ilustrado sobre a vida ¢ 03 eseritos de uma figura chave dos primérdios do cristianismo, Paulus, Sio Paulo, 1982. Holmberg, B., Paul and Power. The Structure of Authority in the Primitive Church as reflected in the Pauline Epistles, Gleerup, Lund, 1978, Sehtitz, J. H., Paul and the Anatomy of Apostolic Authority, CUP, Cabridge, 1976, Hay, D. 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Furnish, V.P., Theology and Ethies in Paul, Abingdon, Nashville, 1968, 225 7 7 & 8 a1 33 INDICE Prefiicio Prefacio & segunda edigao Primeira parte: 0 ser humano 1, PAULO E JESUS A tradicao farisaiea ‘experiencia de conversto de Paulo ‘Atradicho crista Loituras sugeridas 2. CRISTO, O CRITERIO ‘Como a humanidade deveria ser entendida ‘Uma aproximagio falsa Aintengio divina ‘Auténtiea humanidade ‘Aimagem de Deus Realidade histériea Leituras sugeridas 3, JESUS CRISTO E DEUS A.cruz de Romanos 9,5, Filho de Deus Senhor Sabedoria Teituras sugeridas 4, A DIVISAO DENTRO DA HUMANIDADE, "Vida" e “Morte” A aproximagao oxistencialista & humanidade ‘Semetnanca ‘Humanidade e ressurreigao A gloria de Deus Leituras sugeridas 179, 180) 204 Segunda parte: A sociedade 5. 0 PECADO E 0 MUNDO Ahumanidade como “morta” © pecado e o mundo Responsabilidade humana ‘Um dilema Leituras sugeridas 6 SER ALIENADO Concupiscéncia Obsorvancias religiosas externas Obediéncia & lei Aplicagdes contemporineas Leituras sugeridas 7. ISOLAMENTO EGOCENTRICO. Blocos opostos Individuos isolados Lelturas sugeridas Conelusiio ‘Terceira parte: A comunidade 8.0 DOM DE ESCOLHA ‘Novo ato criador © chamado externo Imitacao Leituras sugeridas 9. LIBERTAGAO, 0 “como” da liberdade A comunidade pecadora As criangas e a comunidade A fragilidade da liberdade Leituras sugeridas 10.0CRISTOVIVO =, Unidade organica —y 27 77° A individualidade erista 0 novo homem é Cristo Isto é meu corpo Mulheres em Cristo Leituras sugoridas 11, AMENTE DE CRISTO Nenhum preceito obrigatério [7° —~ Afungao de dirotivas morais 57.2 O erro dos corintios | Be A renovagio da mente = Modelo de decisto auténtica Lelturas sugeridas

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