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Ruy Castro

Chega
de
Saudade
A história
e as histórias da
Bossa Nova

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
GRADUAÇÃO EM JORNALISMO

Janaína Castilho Marcoantonio – No USP 3096577


Prof. Edvaldo Pereira Lima
Está tudo lá:
Juazeiro, 1948: João Gilberto, ainda adolescente, ouvia pelo auto-falante da pracinha os
discos que iriam mudar o rumo de sua vida. Rio de Janeiro, 1950: as Lojas Murray ditavam
as paradas musicais, dominadas pelos conjuntos vocais. A fundação do primeiro fã-clube
brasileiro, o Sinatra-Farney Fan Club, de onde saíram músicos como Johnny Alf e João
Donato. Os inferninhos de Copacabana, onde começaram os pianistas Tom Jobin e Newton
Mendonça. As divas do blues brasileiro: Dolores Duran, Maysa, Sylvinha Telles. Os
caminhos que levaram João Gilberto a sair da Bahia rumo ao Rio de Janeiro, iniciando sua
carreira musical. Seu isolamento em Diamantina, na casa da irmã, onde passava os dias de
pijama e inventaria a nova batida da Bossa Nova. A parceria entre Tom e Vinícius. O
apartamento de Nara Leão, que reunia a turminha da Bossa Nova (Roberto Menescal,
Ronaldo Bôscoli, Carlinhos Lyra). A gravação de Chega de Saudade em 1958, considerada
o marco inicial da Bossa Nova, em meio às discórdias entre Tom Jobim e João Gilberto. Os
primeiros shows de Bossa Nova nas universidades cariocas. A Garota de Ipanema. O
divórcio de Nara com a Bossa Nova: a pobre menina rica sobe o morro. A explosão de Elis
Regina e a música de protesto nos festivais. A ditadura e o fim da poesia: a vida não era
mais o amor, o sorriso e a flor. A Bossa Nova faz as malas e vai morar em Nova York.

***

Chega de Saudade, de Ruy Castro, conta a história da Bossa Nova numa narrativa
permeada de paixões e traições, sonhos e desilusões: emoções que não teriam espaço nas
páginas de um jornal (a não ser como fofoca ou sensacionalismo) mas que, no entanto, são
geralmente as grandes responsáveis por definir o rumo dos acontecimentos. Trata-se de um
livro-reportagem retrato, em que o autor procura traçar o perfil não de um, mas de dezenas
de personagens que participaram dessa nova tendência musical, a fim de reconstituí-la da
forma mais fiel possível. A primeira edição foi publicada em 1990, mais de vinte anos após
o término do período que retrata. Verifica-se, então, liberdade temporal e também liberdade
temática, uma vez que o autor não lança mão de nenhum gancho para justificar a escolha
do tema.
Técnicas de captação

Explica Ruy Castro na introdução do livro:

“Para compor esta história, as informações foram buscadas em primeira mão,


entre os protagonistas, coadjuvantes ou figurantes de cada evento aqui descrito,
citados na lista de agradecimentos. Toda informação importante foi checada e
rechecada com mais de uma fonte (...). Minha convivência anterior com diversos
personagens facilitou o trabalho, mas sem a generosidade e o interesse de mais de
cem pessoas, este livro não teria sido possível. Durante dezoito meses, de janeiro de
1989 a agosto de 1990, elas se submeteram pacientemente a longas entrevistas,
fornecendo informações, vasculhando gavetas, esclarecendo datas, localizando
discos, copiando fitas, arrancando fotos de seus álbuns, desenhando mapas e
fazendo descrições minuciosas de casas, bares e boates”.

Recheado de fotos em p&b, muitas delas inéditas, o livro conta também com um encarte
onde é possível localizar, no mapa, as dezenas de estabelecimentos, entre bares, boates,
cassinos, restaurantes, colégios e universidades, que foram palco da Bossa Nova no Rio
(Copacabana e Ipanema), e no centro de São Paulo, nas décadas de 50 e 60. Na parte
interna do encarte, reproduções em cores de capas de discos, charges e propagandas da
época. A discografia traz uma lista de 600 títulos, que foram ouvidos integralmente pelo
autor. A bibliografia consultada traz outra lista, com mais de vinte títulos.

Eventualmente, o autor apóia-se em dados estatísticos para conferir ao livro credibilidade


jornalística:

“As escolas de samba existiam em função dos sambistas, não dos cambistas – não
que elas fossem muito importantes para o carnaval. E, como não existia televisão,
ninguém ficava apalermado em casa, vivendo vicariamente o espalhafato alheio.
Saía-se às ruas para brincar e, durante os dois primeiros meses do ano, todo o Rio
de Janeiro era um carnaval com um elenco de milhões. Mais exatamente 2 377 451
figurantes, segundo diria o IBGE em 1950”.

Observação do autor

Apenas pela leitura do livro, não é possível identificar qual a forma de abordagem utilizada
por Ruy Castro em suas entrevistas. Mas podemos inferir, ao menos, que as entrevistas
centraram-se na história de vida das pessoas envolvidas – seja por meio de entrevista direta,
seja por meio de entrevistas com pessoas próximas (provavelmente dados como datas de
gravações, parcerias, nomes dos produtores dos discos, etc., ficaram primordialmente a
cargo das pesquisas em documentos). Em Chega de Saudade, as histórias de vida seriam
suporte de pesquisa, uma vez que cabe a elas elucidar o desenrolar dos acontecimentos e as
relações entre os protagonistas da Bossa Nova:

“No quarto-e-sala de Ronaldo, do tamanho de uma casa de boneca, moravam


agora, em tempo integral, Bôscoli, Chico Feitosa, João Gilberto e o amável
moleque-de-recados (1,80m, seiscentos watts de potência na voz) Luís Carlos
Dragão. (...). Apesar desta explosão populacional, João Gilberto sentia-se
confortável. Por exemplo: ocupava o banheiro por um mínimo de duas horas, toda
vez que entrava nele. Os outros não eram mesquinhos de se importar com isto –
desciam à rua e iam fazer no botequim. E, se fosse preciso, até dividiriam com ele
suas escovas de dentes.
Sua chegada bagunçou o fuso horário do apartamento. Como João Gilberto só
dava expediente à noite, os outros o acompanhavam acordados madrugada
adentro, ouvindo-o falar e cantar como se ele fosse fazer um voto de silêncio
perpétuo a partir do dia seguinte. A diferença era que, às nove da manhã, João
Gilberto resolvia ir dormir, enquanto Ronaldo, Feitosa e Miéle saíam direto para o
trabalho”.
Narrativa

A narração é a forma predominante em todo o livro. O narrador é onisciente e sempre em


terceira pessoa, interferindo em alguns momentos para expressar sua opinião ou levantar
questões:

“Era natural também que, naquele ambiente repressivo de 1964, a platéia vibrasse
quando Zé Kéti cantava “Podem me prender, podem me bater / Podem até deixar-
me sem comer / Que eu não mudo de opinião”. Parecia um hino de resistência aos
maus bofes dos milicos, perfeito para o momento. Mas era inacreditável que as
pessoas não se sentissem desconfortáveis na platéia quando Zé Kéti continuava a
letra: “Daqui do morro, eu não saio não”. Por que alguém preferiria continuar
morando no barraco, se tivesse outra opção? “Se não tem água, eu furo um poço /
Se não tem carne, eu compro um osso / E ponho na sopa / E deixa andar”, insistia
Zé Kéti. Isto já não era reformismo, e sim o mais leso e preguiçoso conformismo,
mas ninguém parecia reparar”.

A descrição é utilizada em algumas passagens, para caracterizar personagens e ambientes:

“Seu Juveniano morava na praça da Matriz, numa casa grande e térrea, sempre
pintadinha de fresco, recheada de filhos novos e móveis antigos. Podia ser visto
diariamente, a caminho do escritório, mirrado, branquinho, elástico e asseadíssimo
em suas camisas de colarinho engomado e punhos fechados com abotoaduras”.

O trecho abaixo relata o surgimento do Sinatra-Farney Fan Clube, e também aqui prevalece
a descrição:

“As moças se chamavam Joca, Didi e Teresa Queiroz, tinham entre quinze e
dezessete anos e, como todas as suas amigas, usavam rabo-de-cavalo, saias xadrez,
meias soquete e suspiravam por Robert Taylor. As três estudavam no Instituto
Brasil-Estados Unidos, eram primas e moravam no sobrado da família.
Elas promoveram um mutirão com seus amigos do bairro e deixaram o porão
estalando de novo: enceraram o chão de tábua corrida com Parquetina; forraram o
teto com uma lona listrada de verde e branco; improvisaram um minibar com uma
velha geladeira Norge, a ser abastecida com estoques de Crush, Guaraná e Coca-
Cola; e – o mais importante – empapelaram as paredes com capas de discos,
recortes de Life e O Cruzeiro, fotos e tudo o mais que se referisse aos seus cantores
favoritos, Frank Sinatra e Dick Farney. (Mais tarde, a decoração seria enriquecida
com uma ampliação de 1,5m x 1m, mostrando os dois ídolos – juntos!).
Perto da entrada, Joca, Didi e Teresa emolduraram as partituras de “Night and
Day”, de Cole Porter, e “Copacabana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro,
cortadas ao meio, formando um retângulo. As duas canções eram emblemas
daquela época. (...). Toda a agitação de Joca, Didi, Teresa e seus amigos tinha um
motivo: o porão estava sendo maquiado para tornar-se a sede de um fã-clube – o
primeiro do Brasil.

Símbolo do status de vida

Conforme coloca o professor em seu livro O que é livro reportagem, “a idéia, aqui, e
registrar gestos, hábitos, costumes, vestuário, decoração, e tudo que sirva para o leitor
situar, deduzir, inferir melhor o estado de animo dos personagens focalizados pela
matéria, os cenários dos relatos, a época, a posição que ocupam na sociedade, ou que
gostariam de ocupar. o objetivo é fazer o leitor captar uma impressão mais densa e
completa da realidade que o relato reproduz”.

O autor utiliza este recurso com freqüência, explorando suas inúmeras possibilidades.
Neste trecho, o autor utiliza símbolos do status de vida para recompor o clima da vida em
Juazeiro em 1948, quando João Gilberto começou a se interessar pelo violão:

“Enquanto a usina fornecesse energia, haveria música no ar. A hidrelétrica de


Paulo Afonso ainda estava nas pranchetas e, quando a luz piscava duas ou três
vezes, por volta de onze da noite, era o aviso de que dentro de dez minutos a força
seria cortada e a vida social em Juazeiro teria de ser deixada para o dia seguinte.
Os alto-falantes silenciavam, as lâmpadas, já anêmicas, apagavam de vez, e as
famílias iam dormir. A trilha sonora, a partir daí, era fornecida pelos boêmios com
seus violões. Eles permaneciam na rua, fazendo serenatas e candidatando-se à
recompensa líquida de penicos que jorravam das janelas sobre suas cabeças”.

O trecho seguinte ilustra um hábito de Vinícius, conduzindo o leitor na construção da


personalidade do personagem:

“Foi por mero acaso que, ao procurar Vinícius em seu apartamento no Parque
Guinle, em 1961, Carlinhos Lyra não o encontrou na banheira. Era onde Vinícius
passava a maior parte do tempo, submetendo-se a um trabalhoso ritual. A água
tinha de estar pelando quando ele entrava. À sua volta, em bancadas, banquinhos e
tamboretes, espalhava-se o que na época ainda se chamava de parafernália: café,
uísque, gelo, cigarros, sanduíches, livros, jornais, revistas, bloco, caneta e telefone.
Se alguém visse por ali um patinho de borracha, não ficaria surpreso. Se chegasse
alguém – uma visita ou mesmo repórteres e fotógrafos – Vinícius os convidava a
tirar a roupa e entrar, e recebia-os ali mesmo, na banheira”.

Nos exemplos a seguir, elementos simbólicos são utilizados para situar socialmente alguns
personagens.

Maysa

“Maysa Figueira Monjardim já tinha aqueles olhos desde o tempo em que, como
Sylvinha Telles, era aluna do Sacré-Coeur, só que em São Paulo. Mas, ao contrário
desta, saíra do internato aos dezoito anos, em 1954, diretamente para um
casamento rico: com o austero André Matarazzo, sobrinho do conde Francisco
Matarazzo, vinte anos mais velho do que ela e cujo brasão de família dizia Honor,
fides, labor [honra, fé, trabalho]. Apesar do brasão, os Matarazzo não impediram
Maysa de cantar, desde que ela restringisse suas prendas aos saraus da
aristocracia paulistana”.

O brasão da família Matarazzo, à qual Maysa passou a pertencer após o casamento, traz
gravados valores que vão de encontro à sua vocação musical.

Roberto Menescal

“Não sabia se estudava arquitetura, se entrava para a Marinha ou se tocava violão.


Não é pouco quando se tem dezoito anos. Nesse tríplice dilema, a opção que menos
o interessava era a arquitetura, apesar de pertencer a uma família de engenheiros e
arquitetos. Ou por isso mesmo. Já ficava escarlate de modéstia sempre que tinha de
dar seu endereço: o edifício da Galeria Menescal, em Copacabana, construído por
seus pais”.

O edifício Menescal simboliza a tradição familiar na arquitetura; Roberto também contraria


os valores familiares ao optar pelo violão.

Nara Leão

“E, quanto ao famoso apartamento, não tinha nada de tímido. Ocupava todo o
terceiro andar do edifício Palácio Champs-Elysées, na av. Atlântica, sobre
pastilhas e pilotis típicos dos anos 50, bem em frente ao Posto 4. Sua sala
esparramava-se por 90 m2, com janelões que se abriam para o mar”.

O apartamento de Nara, onde se reunia a turminha da Bossa Nova, é constantemente


mencionado quando ela resolve romper com a Bossa Nova em seu disco, Opinião. “Chega
de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento”: o apartamento
torna-se símbolo do intelectualismo burguês que Nara quer contrariar.
***

Chega de Saudade é um livro leve e envolvente, e consegue apresentar de forma


interessante os bastidores da Bossa Nova. Seus pontos altos são os perfis dos personagens.
Como coloca Ruy Castro, “os seres humanos, assim como os LPs, têm lados A e B, e houve
um esforço máximo para que ambos fossem mostrados”. E foram.
Entretanto, em certos momentos o livro perde o ritmo e mais parece uma lista cansativa de
nomes de cantores, datas, nomes de músicas e gravadoras.
Além disso, tendo em vista os diversos exemplos de livro-reportagem vistos em sala de
aula, em que a linguagem é trabalhada de forma bastante livre e criativa, acredito que a
narrativa de Ruy Castro explorou pouco a liberdade que o veículo apresenta. Não existe
nenhum diálogo em todo o livro; o discurso direto é empregado raramente em frases
isoladas; nenhuma conversa é reproduzida como se tivesse realmente acontecido.
O autor também não utilizou o recurso do “fluxo de consciência” e a reconstrução cena-a-
cena. Sei que não existe uma regra e que não é preciso adotar todos esses recursos para
fazer um grande livro-reportagem, nem tampouco Chega de Saudade perde seu mérito por
isso, mas a presença de diálogos, em especial, talvez tivesse ajudado a manter o ritmo
fluente durante as 423 páginas do livro.
A segunda crítica refere-se ao conteúdo: considero que o autor prendeu-se muito aos
fenômenos musicais, e não aprofundou a relação da Bossa Nova com a sociedade da época.
A Bossa Nova foi a expressão musical que, cansada do estereótipo Carmem Miranda,
incorporou o jazz ao samba, buscando uma produção musical mais sofisticada, antenada
com o que havia de mais novo e moderno nos EUA. Era a música da elite. E não poderia
ser diferente, num período em que o próprio rádio era artigo de luxo, que dizer então dos
toca-discos e dos LPs de 35 rpm, novidade importada dos EUA. Muitos músicos passavam
fome, como o próprio João Gilberto chegou a passar, não porque suas famílias não tinham
dinheiro, mas sim porque o violão era considerado “vadiagem”, e escolher a carreira de
músico muitas vezes significava abrir mão do amparo familiar. A temática do “amor-flor-
mar” só tinha espaço no hiato democrático que teve início no Governo JK, com sua visão
progressista sintetizada no emblema “cinqüenta anos em cinco”. Tudo isso está no livro,
porém mal costurado e pouco aprofundado.
Por fim, considero o livro excessivamente saudosista e em certas passagens chega a
menosprezar o valor musical da Tropicália e das canções de protesto (Ruy Castro conta que
nunca se conformou quando o Brasil começou a trocar a Bossa Nova por “exotismos”). Na
minha opinião, entretanto, esses movimentos foram muito mais importantes na história do
país. O grande mérito da Bossa Nova foi projetar a música brasileira para o mundo, e não
se pode negar a influência que ainda exerce na música atual. Mas voltou-se tanto para os
EUA (muitos músicos inclusive mudaram-se para lá), que não reparou que o Brasil já não
era mais o mesmo. 
Bibliografia

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas – O livro reportagem como extensão do


Jornalismo e da Literatura. Editora da Unicamp. Campinas, 1993.
KÜNSCH, Dimas Antônio. Maus pensamentos – O mistério do mundo e a reportagem
jornalística. Annablume Editora. São Paulo, 2000.
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa nova. Companhia
das Letras. São Paulo, 1990.
LIMA, Edvaldo Pereira. O que é livro-reportagem. Editora Brasiliense. São Paulo, 1998

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