Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Chega
de
Saudade
A história
e as histórias da
Bossa Nova
***
Chega de Saudade, de Ruy Castro, conta a história da Bossa Nova numa narrativa
permeada de paixões e traições, sonhos e desilusões: emoções que não teriam espaço nas
páginas de um jornal (a não ser como fofoca ou sensacionalismo) mas que, no entanto, são
geralmente as grandes responsáveis por definir o rumo dos acontecimentos. Trata-se de um
livro-reportagem retrato, em que o autor procura traçar o perfil não de um, mas de dezenas
de personagens que participaram dessa nova tendência musical, a fim de reconstituí-la da
forma mais fiel possível. A primeira edição foi publicada em 1990, mais de vinte anos após
o término do período que retrata. Verifica-se, então, liberdade temporal e também liberdade
temática, uma vez que o autor não lança mão de nenhum gancho para justificar a escolha
do tema.
Técnicas de captação
Recheado de fotos em p&b, muitas delas inéditas, o livro conta também com um encarte
onde é possível localizar, no mapa, as dezenas de estabelecimentos, entre bares, boates,
cassinos, restaurantes, colégios e universidades, que foram palco da Bossa Nova no Rio
(Copacabana e Ipanema), e no centro de São Paulo, nas décadas de 50 e 60. Na parte
interna do encarte, reproduções em cores de capas de discos, charges e propagandas da
época. A discografia traz uma lista de 600 títulos, que foram ouvidos integralmente pelo
autor. A bibliografia consultada traz outra lista, com mais de vinte títulos.
“As escolas de samba existiam em função dos sambistas, não dos cambistas – não
que elas fossem muito importantes para o carnaval. E, como não existia televisão,
ninguém ficava apalermado em casa, vivendo vicariamente o espalhafato alheio.
Saía-se às ruas para brincar e, durante os dois primeiros meses do ano, todo o Rio
de Janeiro era um carnaval com um elenco de milhões. Mais exatamente 2 377 451
figurantes, segundo diria o IBGE em 1950”.
Observação do autor
Apenas pela leitura do livro, não é possível identificar qual a forma de abordagem utilizada
por Ruy Castro em suas entrevistas. Mas podemos inferir, ao menos, que as entrevistas
centraram-se na história de vida das pessoas envolvidas – seja por meio de entrevista direta,
seja por meio de entrevistas com pessoas próximas (provavelmente dados como datas de
gravações, parcerias, nomes dos produtores dos discos, etc., ficaram primordialmente a
cargo das pesquisas em documentos). Em Chega de Saudade, as histórias de vida seriam
suporte de pesquisa, uma vez que cabe a elas elucidar o desenrolar dos acontecimentos e as
relações entre os protagonistas da Bossa Nova:
“Era natural também que, naquele ambiente repressivo de 1964, a platéia vibrasse
quando Zé Kéti cantava “Podem me prender, podem me bater / Podem até deixar-
me sem comer / Que eu não mudo de opinião”. Parecia um hino de resistência aos
maus bofes dos milicos, perfeito para o momento. Mas era inacreditável que as
pessoas não se sentissem desconfortáveis na platéia quando Zé Kéti continuava a
letra: “Daqui do morro, eu não saio não”. Por que alguém preferiria continuar
morando no barraco, se tivesse outra opção? “Se não tem água, eu furo um poço /
Se não tem carne, eu compro um osso / E ponho na sopa / E deixa andar”, insistia
Zé Kéti. Isto já não era reformismo, e sim o mais leso e preguiçoso conformismo,
mas ninguém parecia reparar”.
“Seu Juveniano morava na praça da Matriz, numa casa grande e térrea, sempre
pintadinha de fresco, recheada de filhos novos e móveis antigos. Podia ser visto
diariamente, a caminho do escritório, mirrado, branquinho, elástico e asseadíssimo
em suas camisas de colarinho engomado e punhos fechados com abotoaduras”.
O trecho abaixo relata o surgimento do Sinatra-Farney Fan Clube, e também aqui prevalece
a descrição:
“As moças se chamavam Joca, Didi e Teresa Queiroz, tinham entre quinze e
dezessete anos e, como todas as suas amigas, usavam rabo-de-cavalo, saias xadrez,
meias soquete e suspiravam por Robert Taylor. As três estudavam no Instituto
Brasil-Estados Unidos, eram primas e moravam no sobrado da família.
Elas promoveram um mutirão com seus amigos do bairro e deixaram o porão
estalando de novo: enceraram o chão de tábua corrida com Parquetina; forraram o
teto com uma lona listrada de verde e branco; improvisaram um minibar com uma
velha geladeira Norge, a ser abastecida com estoques de Crush, Guaraná e Coca-
Cola; e – o mais importante – empapelaram as paredes com capas de discos,
recortes de Life e O Cruzeiro, fotos e tudo o mais que se referisse aos seus cantores
favoritos, Frank Sinatra e Dick Farney. (Mais tarde, a decoração seria enriquecida
com uma ampliação de 1,5m x 1m, mostrando os dois ídolos – juntos!).
Perto da entrada, Joca, Didi e Teresa emolduraram as partituras de “Night and
Day”, de Cole Porter, e “Copacabana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro,
cortadas ao meio, formando um retângulo. As duas canções eram emblemas
daquela época. (...). Toda a agitação de Joca, Didi, Teresa e seus amigos tinha um
motivo: o porão estava sendo maquiado para tornar-se a sede de um fã-clube – o
primeiro do Brasil.
Conforme coloca o professor em seu livro O que é livro reportagem, “a idéia, aqui, e
registrar gestos, hábitos, costumes, vestuário, decoração, e tudo que sirva para o leitor
situar, deduzir, inferir melhor o estado de animo dos personagens focalizados pela
matéria, os cenários dos relatos, a época, a posição que ocupam na sociedade, ou que
gostariam de ocupar. o objetivo é fazer o leitor captar uma impressão mais densa e
completa da realidade que o relato reproduz”.
O autor utiliza este recurso com freqüência, explorando suas inúmeras possibilidades.
Neste trecho, o autor utiliza símbolos do status de vida para recompor o clima da vida em
Juazeiro em 1948, quando João Gilberto começou a se interessar pelo violão:
“Foi por mero acaso que, ao procurar Vinícius em seu apartamento no Parque
Guinle, em 1961, Carlinhos Lyra não o encontrou na banheira. Era onde Vinícius
passava a maior parte do tempo, submetendo-se a um trabalhoso ritual. A água
tinha de estar pelando quando ele entrava. À sua volta, em bancadas, banquinhos e
tamboretes, espalhava-se o que na época ainda se chamava de parafernália: café,
uísque, gelo, cigarros, sanduíches, livros, jornais, revistas, bloco, caneta e telefone.
Se alguém visse por ali um patinho de borracha, não ficaria surpreso. Se chegasse
alguém – uma visita ou mesmo repórteres e fotógrafos – Vinícius os convidava a
tirar a roupa e entrar, e recebia-os ali mesmo, na banheira”.
Nos exemplos a seguir, elementos simbólicos são utilizados para situar socialmente alguns
personagens.
Maysa
“Maysa Figueira Monjardim já tinha aqueles olhos desde o tempo em que, como
Sylvinha Telles, era aluna do Sacré-Coeur, só que em São Paulo. Mas, ao contrário
desta, saíra do internato aos dezoito anos, em 1954, diretamente para um
casamento rico: com o austero André Matarazzo, sobrinho do conde Francisco
Matarazzo, vinte anos mais velho do que ela e cujo brasão de família dizia Honor,
fides, labor [honra, fé, trabalho]. Apesar do brasão, os Matarazzo não impediram
Maysa de cantar, desde que ela restringisse suas prendas aos saraus da
aristocracia paulistana”.
O brasão da família Matarazzo, à qual Maysa passou a pertencer após o casamento, traz
gravados valores que vão de encontro à sua vocação musical.
Roberto Menescal
Nara Leão
“E, quanto ao famoso apartamento, não tinha nada de tímido. Ocupava todo o
terceiro andar do edifício Palácio Champs-Elysées, na av. Atlântica, sobre
pastilhas e pilotis típicos dos anos 50, bem em frente ao Posto 4. Sua sala
esparramava-se por 90 m2, com janelões que se abriam para o mar”.