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Volmar Camargo Junior

Um resto de café frio


[ volume III ]

casa velha

0
do mal incurável

não há dor maior que


descobrir que a dor
sequer existe

sabendo-se
que a dor é
coisa alguma

entristece-se o doente:

sofre de mal sem cura

1
dedos

quisera não tê-los, estúpidos dedos


hei de cortá-los, se mais crescerem
e hei de vender como é feito aos cabelos

2
incêndio

a vida
é uma casa esquecida com teto de palha
que, sem razão, incendeia

o silêncio
era um livro esquecido
nos restos da casa carbonizados

a poesia, no livro, era uma rosa

antes seca, agora é nada

3
adiante
[ blavino n°6 ]
hoje

eu e você
nos dividimos

seus horizontes
são muito amplos
corres mais que antes

não é bastante um mundo só

e de hoje em diante
colhas os frutos
bons, somente

reencontros,
eu e você?

adiante

4
imprescindível
[ blavino n°7 ]
fim

destino
desígnio

impassivo
eu imploro
um objetivo

imprescindível

seja sinistro
seja destro
submisso

indeciso
preciso

fim

5
outra pena

deixas para mim cascas do teu mundo


- farpas de tua vida noutros ombros -
e tua pena é dada a um condenado

6
manchete

o velho
morreu
e era só

7
asseio

as verdades do mundo se escondem alheio este às próprias migalhas que o constituem


no meio da trama dos fios do tapete alheamento, ignorância, verdades,
nas teias de uma aranha velha tapetes empoeirados, teias-de-aranha empoeiradas
que se acumulam nos batentes e pó
da porta dessa casa estranha são os bens, o legado desta casa velha

pobre aranha que nunca roubou resta viver em meio ao pó


a vida de uma só mariposa respirá-lo até que adira aos pulmões
e que termine por deixar quem o respira
alheias estas ao que o mundo esconde velho e empoeirado como a habitação
alheia aquela ao pó que ignora
alheio aquele ainda aos pés que trazem do mundo ou removê-lo
somente a verdade deitar fora o tapete sujo
tirar todas as teias-de-aranha - e matar
pobres partículas de verdade cada uma delas
em si contém tudo o que há em tudo e a todas as mariposas
- falta-lhes apenas um pingo de vontade e com baldes e baldes d'água
de serem mais do que migalhas dar à casa uma aparência clara, limpa e habitável
de um mundo infinitamente maior como só a mais asseada ignorância é capaz

8
paladar
diga
que sabor tens
quanto de doçura
quanto de amargor

meu paladar esperará o que disseres

fala
porque creio
creio em tudo
em cada palavra

descreve-me teu gosto


e ele será em mim
o que quiseres

teu sabor
feito só de palavras
e de crenças

9
corre insetinho
corre insetinho corre da grande sorte que tens
corre porque te pego corre porque ser ínfimo
corre porque com um dedo corre num mundo de tantos e tão grandes
corre eu te esmago corre é uma bênção
corre para qualquer canto corre ver tudo em detalhe
corre para qualquer fresta corre e agradece
corre e suma das vistas corre tua fortuna
corre e observa corre porque és leve
corre tranquilamente corre não trazes pesos
corre porque és mínimo corre não levas penas
corre pequenininho corre vai ser feliz
corre porque sou eu corre insetinho
corre que sou tão grande corre de mim
corre que em mim não caibo corre porque te pego
corre porque nem sabes corre porque com um dedo
corre eu te esmago

10
corrente
é arriscado romper a corrente
as certezas

desabam

no
solo
e os
elos
saltam

cada
um
para
um

lado

11
gás

livros gastos gás se gasta livros, tempos,


dedos gastos gasto estás dedos, cobres,
noites gastas tosses gastas noites, verbos,
morte e vida vivas! vivas! viver? morrer?
desgastadas (desgraçado!) qual é a graça?

gastas tempo gastos gastos


gastas cobres gordos gastos
gastas verbo gados gastos
vives, morres muito mortos
desgastado agastados

12
rubricas

impressões simples e imprecisas


agarram-se ao que o silêncio esquece
assinam, por fim, umas pelas outras

13
virgem

dá-me tua flor


menina
és, agora, poeta

14
esse pouco que sobra de um dia

nem esperança, nem angústia:


só existe o que há entre duas voltas
do ponteiro menor

entre tantos acertos e desconcertos


pouco resolve correr as horas
para trás ou para frente

esse pouco que sobra de um dia

mal dá para fazer outro

15
exéquias para a noite

leva, noite calada e dura


por toda a tua dura vida
mais dura a volta que a ida
dure menos a tua amargura

leva, noite calada e escura


os males sem cura ainda
a vã frescura esquecida
cure com tua mão segura

planta, noite tola e fria


todo esse teu mal-estar
toda má filosofia

colherás, ó noite, ao raiar


do novo e radioso dia
teu canto tão familiar

16
o embrulho

um embrulho de papel saberei se arrebentar o nó


um barbante firme se jogar fora o barbante
um nó cego se rasgar todo o papel

não se sabe o que contém e se o papel embrulhar nada


não tem forma definida e se o fio amarrar nada
não produz som e o nó for cego à toa?

igual a qualquer pacote não haverá mais pacote, nem nó nem barbante
iguais o papel e a corda nem ânsia de saber o que se esconde nele
igual a todo nó cego nem o contentamento para ir adiando

guarda-se convenientemente resta-me um embrulho de papel


- indefinida e resta-lhe um barbante firme
infinitamente resta-nos este nó cego

se ao menos pudesse tocá-lo igual a qualquer pacote


agitar no ar para ouvi-lo iguais o papel e a corda
adivinhá-lo pelo peso cegos, igualmente, nós

17
giz
[ cocolitóforo ]

morre logo morre logo morre logo


cocolitóforo microrganismo que logo me vou
tu que és membro cria, de cálcio jogar no oceano
do fitoplâncton o carbonato meu branco esqueleto

morre logo morre logo morre logo


dá ao oceano que tiro do fosso calcário organismo
tuas três dezenas o giz que preciso que a vez do biólogo
de cocólitos p'ro meu quadro negro já está acabando

18
a pérola
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha apérola concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha
concha concha concha concha concha concha concha concha

19
enterro dos ossos

o que ainda estou vestindo tudo bem se não foi tudo bem
que você já não tenha tirado eu sei você não vai me responder
não sobraram nem os meus nossa cruel cumplicidade
versos, pra mim é deliciosa de se ver
nenhum caderno, nenhum retrato
moram nos cantos de nossa casa
pelos cantos da minha casa todos os rumos da nossa vida
em todos os cantos da minha vida nasce a quarta-feira de cinzas
carnavais descosturados estamos agora desmascarados
e o que restou do meu passado fantasiados de novas desculpas
de sexo, razão e precipícios
de música, sons
e versos enterrados

20
enxurrada

nada se faz com a luz verbos e versos prolixos


a chuva vai continuar caindo linhas barrentas quase
o Todo mantém seu movimento na altura do forro
e os átomos partirão sem saudades a oratória e a sofisticação
dos corpos que sustentaram dentro e fora das casas

ainda restará o tempo nada se faz com a luz


as horas marcadas na via pública há sol e é dia outra vez
um bueiro ou outro regurgitando que fim tem essa aurora
as mazelas de uma enchente e o tempo novo dado, assim
os dejetos da vida alheia gratuitamente?

prefiro, antes, a enxurrada

21
rio e vivo

uns dirão viva


outros diriam sorria
rio e vivo calado

22
... donde há de vir

quem antes diga de si


disser o que ninguém diz
quantos e quais depois de ir
aguardam pelo que há de vir

e quantas vezes virão


dizer o que ninguém diz
da guerra e da revolução
aguardarão pelo que há de vir

ter tempo e tentar persistir


incólume revelação
nem vã, nem vil, há de vir

quantos, quais, vêm e passam


ter tempo é querer persistir
sem nenhuma raiz, só de si dirão

23
morcegos

guardo meus quinze pares de segredos

bem o bastante para que a mim não tentem


o remorso e o medo de que despertem
a fome imensa de meus cem morcegos

bem o suficiente para tocar com os dedos

que com meus dedos eles se revelem


e a cada três ou quatro ou cinco deles
tenham nas presas gotas de veneno

24
casa velha

dramas de uma casa velha um abacateiro


tramas de teias de aranha soalho de tábua bruta
ramos bentos e tesouras palco
frestas e moscas e besouros talvez picadeiro
ramos e pãezinhos bentos ramos e rosários bentos
brasa e tesoura machado pra benzer tormenta
benzer quebrante dúzias de nossas senhoras
telhas de barro e um sagrado coração
um barranco o público não vibra
uma vaca mansa o elenco não agradece
formigueiro o diretor
cupim imperturbável
butiá cruza as pernas
limão bravo e abre os braços

25
córrego por onde escorre o tempo

córrego por onde escorre o tempo


sentença tornada gelo
lago vazio de perguntas

só um dique, ora seco, ora raso


ora transbordando
comportaria essas águas todas

essas correntes às vezes caudalosas

não raro somem sem razão nenhuma

26
ó, lirismo

quedo-me ante o amor e finjo


mal-disfarçadamente entristeço
rogo e imploro e me lamento

rolo no chão feito um cão sarnento


e sem consolo arrasto-me ao seu seio
e pouse nele meus anseios todos

até o momento que esse fingir me canse

ou morra de preguiça e tédio meu pensamento

27
pequena injúria
[ a mãe de meus poemas ]

graças vos dou, pequena injúria


na mais triste hora, desde que existis
destes à luz um poema frio e mesquinho

28
negócio

não te vendo, não te suplico


nem suplicio meu não te ver
não te vendendo, não vendo

29
um barco deixou aqui uma caixa

um barco deixou aqui uma caixa


depois, deixou o barco o porto
deixou, pois, p'ra trás, o horizonte

choveu, e a chuva manchou a caixa


deixei os nomes e a tinta irem p'ra junto d'água
não vi para quem era, nem de que se tratava

ventou e o vento trouxe o barco de volta

deixei o chão, o porto, a caixa, a tinta, e fui embora

30
covardia

o sol e a calmaria da tarde


correram para longe
do vento e da tempestade

o que era luz e colorido


correu e escondeu-se
da ventania e do raio

resta-nos só a segura noite

(o dia nunca foi tão covarde)

31
amor vendido

marca borrada de boca no espelho


impressões de tuas mãos e teus dedos
ainda tua saliva na minha pia

no meu pente, ainda os teus cabelos

acordo, e um esboço de mim é o que vejo


um rascunho descuidado do que seria
nem projeto do que será um dia

e restos borrados de um amor vendido

32
crise

minha voz fugiu

o preço de outra, nova, proíbe-me


em outros tempos seria feliz sem ela
e nem um prato cheio delas seria tão sedutor

hoje, vivo em um não saber que fazer


um isolamento constrangedor
dores e calos nas pontas dos dedos

e o mau hábito de maldizer a voz alheia

33
metáfora

o poema, dizem
é uma fotografia
de uma escultura de gelo

o poeta, dizem,
inerte e atemporal,
é uma estátua de bronze

a poesia, disse alguém

bem, a poesia é uma rosa

34
óculos

no meio do caminho tinha um velho


tinha um velho no meio do caminho
de óculos

no meio do caminho tinha um par de óculos

nunca me esquecerei desse acontecimento


na minha vida de retinas tão fatigadas
nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha um par de óculos que me observava

35
escuro particular
por mais cedo que parecessem as em um fogo vibrante ou um vampiro
horas da noite pouco a pouco refugio-me nas certezas mais
e imprescindível fosse o ouvir do cálido e bravo ferrenhas
cantar dos galos até brilhar do meu sono diurno
no campo como um disco de ouro e mundano
que era longe e deserto no céu esquecendo que lá
de notívagos onde todos os que acordavam no mundo
minhas mais dúbias desilusões cedo o que esqueci aquece
partiam de dentro de um os galos que os acordavam alegra
horizonte certo e e eu e às vezes mata de fome
decidido que nunca e de sede
para raiar nunca durmo quem ainda acredita em
primeiro tímidas e arroxeadas todos pudéssemos ver utopias e
depois de um alaranjado saudosismos
um tanto doentio lá estavam as fantasias
para só então saltarem por cima de minha juventude bom dia
das casas raiando dia
das colinas fico-me bem comigo
das árvores e eu e meu escuro particular
do mundo inteiro que nem de longe posso vê-las
que eram aqueles ou tocá-las
campos como um diabo

36
o pão do poeta

serve-se o faminto de um pão infindo


sem prazer nem dentes, comer somente
e mais não pode senão engoli-lo

37
presença

coisa indefinível o mundo do crível


oculta em cortinas o mundo do possível
branca tudo
vaporosa tudo é consumido pela neblina
mercurial pela brancura una da neblina
atravessa pela nudez inteira da neblina
uma a uma pela impassividade paciente
as caprichosas barreiras erguidas irredutível
caprichosamente indivisível
só para contê-la intangível
levanta-se em silêncio da neblina
aos poucos tudo
sem pressa toda a existência
envolve tudo resume-se a uma presença
depois que se ergue vaga
só sua solidez indistinta
sua nudez indefinível
ela inteira oculta em cortinas
é tudo mercurial
o mundo vaporosa
submete-se a ela e branca
o mundo do visível

38
ausência
[ o vazio ]

39
40
41
42
43
44
dedico esta obra

à minha avó materna


Margarida Vidal Rodrigues

à memória de meus avós paternos


Alice Pereira Camargo e Honório Camargo

e às casas velhas onde passei minha infância


onde ainda vivem minhas memórias

45
Sobre o autor

Inconformado com a própria inaptidão para dizer algo sem ser através de subterfúgios,
Volmar Camargo Junior abdicou de parte de suas horas diárias de sono, tentando
domar a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambular pelo Rio Grande do Sul,
acampou-se na brumosa, fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por um
cenário natural de extrema beleza – Canela, na Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e
doce, descendente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indígenas missioneiros,
pêlos-duros do Planalto Médio, é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Autor dos blogs Um resto de café
frio e O Gorjeador Maluco. É colaborador fixo da Revista Eletrônica SAMIZDAT.

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Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação
de Obras Derivadas 2.5 Brasil. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-
nd/2.5/br/ ou envie uma carta para Creative Commons, 171 Second Street, Suite 300, San Francisco, California 94105,
USA.

Créditos da imagem da capa: http://www.flickr.com/photos/folcobanfi/780451092

Créditos da imagem da página Sobre o autor: arquivo pessoal.

47
Índice

do mal incurável 1 esse pouco que sobra de um dia 15 negócio 29


dedos 2 exéquias para a noite 16 um barco deixou aqui uma caixa 30
incêndio 3 o embrulho 17 covardia 31
adiante 4 giz 18 amor vendido 32
imprescindível 5 a pérola 19 crise 33
outra pena 6 enterro dos ossos 20 metáfora 34
manchete 7 enxurrada 21 óculos 35
asseio 8 rio e vivo 22 escuro particular 36
paladar 9 ... donde há de vir 23 o pão do poeta 37
corre insetinho 10 morcegos 24 presença 38
corrente 11 casa velha 25 ausência 39
gás 12 córrego por onde escorre o tempo 26 dedicatória 45
rubricas 13 ó, lirismo 27 Sobre o autor 46
virgem 14 pequena injúria 28 Licença Creative Commons 47

48

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