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RELATOS ORAIS: DO "INDIZIVEL" AO "DIZIVEL" Maria Isaura Pereira de Queiroz REVALORIZACAO DO RELATO ORAL Ndo hd muitos anos, o “relato", denominado agora "historia oral", fez seu reaparecimento ‘entre as tecnicas de coleta de material empre- gadas pelos cientistas sociais; com tanto sucesso que, por muitos dé - les, foi encarado com "a" tecnica por exceléncia, e até mesmo a unica valida para se contrapér As quantitativas. Enquanto estas Gltimas, re- “amputd-la de duzindo a realidade social 4 aridés dos nimeros, parecia’ seus significados, a primeira encerrava a vivacidade dos sons, a opu - léncia dos detalhes, a quase totalidade dos angulos que apresenta todo fato social. Diz-se reaparecimento porque, do comeco do século ao inicio dos anos 50, a "historia oral" fSra utilizada por socidlogos como W.I. Tho- nas (1863-1947) e FP. Znaniecki (1882-1958) em sua pesquisa conjunta, datada de 1918-19203 ou como John Dollard (1900) que pretendeu tracar- ihe as regras de aplicagio} e também por antropélogos, entre os quais Franz Boas (1858-1942), geégrafo alemio convertido A antropologia e na- turalizado americano em 1886, que recolheu relatos e depoimentos de ve- lhos caciques e pagés afim de preservar do desaparecimento 5 am a memoria da vida tribal. @ilgp Gstes cientistas sociais encaravam a historia oral e, principalmente, a historia de vida como um instrumen- to fundamental de suas disciplinas. Porém enquanto Boas a empregava sem grandes discussdes, tanto Dollard quanto Thomas e Znaniecki alertavan para as dificuldades que apresentavam. Para @stes dois @ltimos, a historia de vida mostrava apenas um aspecto parcial da realidade; assim sendo, ndo podia ser utilizada iso- jadamente, mas devia ser completada e esclarecida por toda a sorte de dados colhidos segundo outras tecnicas. 0 monumental trabalho que em - Preenderam sdbre o camponés da Polonia imigrante e em seu pais de ori-~ Se ace eee tra SECEE “*-Um resumo deste texto foi apresentado na mesa redonda "Perspectivas ga Pesquisa Sociclégica no Meio Rural Brasileiro", realizad. duracce 2288 Reunido Anual da SOCIEDADE BRASILEIRA PARA 0 PROGRESSO DA CTBN- CIA, em Curitiba (Parana), julho de 1986. gen (Gon efeitojencerraVcoletas realizadas por meio de instrumentos de pesquisa os mais variados. Quanto a John Dollard, sua preocupagao eraw wm as implicayées psicolégicas das historias de vida. Considerava-as como aptas para se conhecer como se desenvolvia um individuo em seu meio socio-cultural; estariam, portanto, muito coloridas pelo subjeti- vismo do informante, o que deturparia sua narrativa. Porém, para Gh estes autores, o relato oral se apresentava como tecnica itil para re - gistrar o que ainda nfo se cristalizara em documentagao escrita, 0 nao- conservado, o que desapareceria se ndo fésse anotado; servia, pois, pa- ra captar 0 ndo-explicito, quem sabe mesmo o indizivel.? © grande desenvolvimento das tecnicas estatisticas, em fins dos anos 40, relegou em seguida para a penumbra relatos orais e historias de vida, que pareciam demasiadamente ligadas as influéncias da psique individual. A tecnica de amostragem com a aplicagao de questionario sur- gia agora como a maneira mais adequada de se obter dados inquestiona ~ velmente objetivos. Pouco a pouco se percebeu, no entanto, que valores e emogSes per- maneciam escondidos nos préprios dados estatisticos, j& que as defini- cées das finalidades da pesquisa e a formulagdo das perguntas estavam profundamente ligadas A maneira de pensar e de sentir do pesquisador, © qual transpunha assim para os dados, de maneira perigosa porque in- visivel, sua prépria percepgao ¢ scus preconceitos. Os nimeros perdiam sua auréola de pura objetividade, patenteando-se dotados de viéxes an~ teriores ao momento da coleta, escondidos na formulagdo do problema e do questioparis cultos, pareciam inexistentes Porém influencia - van CMM TA landa c noites vézes do rome dua devia seguir. © desenvolvimento tecnolégico, colocando & disposigao do cientis~ ta social novos meios de captar o real, como o gravador, reavivou no - vamente o relato oral; as fitas pareciam agora o meio milagroso de con- servar A narrag&o uma vivacidade de que o simples registro no papel as despojava, uma vez que a voz do entrevistado, suas intonagées, suas pay sas, seu vai-vem no que contava, constituiam outros tantos dados precio sos para estudo. Sem divida Oscar Lewis foi um pioneiro neste sentido; muito embora se considere hoje discutivel a maneira pela qual agiu, ao colher as varias historias de vida de membros da familia Sanchez, mos- trou como utilizar um novo meio de registro, recolheu precioso reposi- tério de dados, criou documentos cuja exploragéo é ainda possivel, a- pezar das dividas levantadas.* Como que se redescobriu nésse momento © relato oral e se aquilatou de maneira positiva sua grande. importan- cia. RELATO ORAL E TRANSMISSKO DE CONHECIMENTOS No entanto, através dos séculos, 6 relato oral constituiy’ sempre a maior fonte humana de conservagao e difusio do saber, o que equivale a dizerjja maior fonte de dados para as ciancias em geral. Em todas as épocas, a educag&o humana (ao mesmo tempo formago de habitos e trans- missfo de conhecimentos, ambos muito interligados) @immmy se baseaha narrativa, que encerra uma primeira transposicéo: a da experién a in- dizivel que se procura traduzixr ein vocdbulos. Um primeiro enfraqueci - mento ou uma primeira mutilac&o ocorre entdo, com a passagem daquilo que esta obscuro para uma primeira nitidés, - a nitidés da palavra, - rétulo classificatorio colocado sébre uma ag&o ou uma emocio. A transmissdo tanto diz respeito ao passado mais longinquo, que péde mesmo ser mitolégico, quanto ao passado muito recente ,a experidn- cia do dia-a-dia. Ela se refere ao legado dos antepassados e também a comunicagio da ocorréncia préxima no tempo; tanto veicila nogées ad - quiridas diretamente pelo narrador, que péde inclusive ser o agente daquilo que esta relatando, quanto transmite nogdes adquiridas por ou- tros meios que néo a experiéncia direta, e também antigas tradicées do grupo ou da coletividade. © relato oral esta, pois, na base da obtengao de toda a sorte de informagdes e antecede a outras tecnicas de obtengio ¢ conservagio do saber; a palavra parece ter sido sendo a primeira, pelo menos uma das mais antigas tecnicas utilizadas para tal. Desenho e escrita lhe suce- deram. Quando o"homem das cavernas" deixouynas paredes destaytiguras que se supde formarem um sentido, estava transmitindo um conhecimento, que possuia e que talvez ja tivesse recebido um nomdy estgaghy wom s- signad@ pela palayra.}/0 fruto de suas experigncias ¢ descobertas fi- cava assim SimMKaGE? 2 passava aos demais, inclusive aos pésteros. Mais tarde a escrita, quando inventada, no foi mais do que uma nova cristalizag&o do relato oral. Desde que o processo de transmissio do saber se instala, impli- ca imediatamente na existéncia de um marragor ¢ de um ouvinte ou de un Piblico. Ao se operar 2 ees fam Signo que € "solidifica’ mm seja Ele desenho ou escrita ntermediario entre narrador e piblico. 0 sntormeaiaz Bi SS individuo que fun- cione como transmigsor dos conhecimentos gxe ouvin de outrem. Da mes - ma forma qe pataven escrita constituem uma reinterpretagao do relato oral, também 0 individuo intermediario, por mais fiel, acres- centa sua prépria interpretagiio Aquilo que esta narrando. © gravador parece & primeira vista um instrumento tecnico préprio para anular, ou pelo menos para diminuir o possivel desvio trazido pe~ la intermediagaé do pesquisador. Logo se viu, no entanto, que o poder da miquina ndo era tio absoluto, ¢ nem mesmo tao grande quanto se havia suposto, uma vez que a utilizacéo dos dados nas pesquisas exigia, em se- guida, a transcricic CMUMNNENB escrita. Uma parte do registro se perdia na passagem do oral para o texto, e este ficava igualado a qual- quer outro documento. 4a vantagem era conservar com maior preciséo a lin~ guagem do narrador, suas pausas (que podiam ser simbolicamente transfor- madas em sinais convencionais), a ordem que dava as idéias. 0 documen - to resultante era sem diivida mais rico do que aquéle registrado pela mio do pesquisador, mas apezar de tudo havia um empobrecimento quando comparado com a fita gravada, c de novo o pesquisador se tornava um in- termediario que podia deturpar de alguma forma o que féra registrado A fita, porém, nao é passivel de ser guardada indefinidamente. se repetidas vézes empregada por um mesmo ou por sucessivos pesquisadores que quizerem evitar a transcric&o escrita, logo se deteriora; obter de- 1a copias em quantidade leva a despesas apreciaveis, embora concorra pa~ ra conservé-la. Toda fita, mesmo quando utilizada com parcimonia, ainda assim & fragil, exige cuidados especiais para maior durabilidade, Wal armazenagem bastante cara. A tinica forma de se conservar o relato por longo tempo esta ainda em sua transcrigio. Volta-se ao que se acredita- ra evitar com o gravador, isto é, A intermediagdo escrita entre o nar - rador e o piblico para a utilizagao do relato, e as possiveis deturpa- ges dela decorrentes. Tal constatacao contribui Para desfazer nova ilusdo: a de que se deveria conservar a narrativa o mais préximo possivel de seu registro, evitando a intervenc&o do pesquisador e a ocorréncia de cértes que pre- judicariam o conhecimento integral do dado recolhido. Tropega-se aqui com algo que parece obstaculo intransponivel: a nitida distingdo entre narrador e@ pesquisador, que é fundamental. 0 pesquisador 6 guiado por seu préprio interésse ao procurar um narrador, pois pretende conhecer mais de perto, ou entio esclareceryalgo que o preocupa; o narrador, Por sua vez, quer transmitir sua experiéncia, que considera digna de ser conservada e, ao faz lo, segue o penddr de sua prépria valoriza- séo, independentemente de qualcuer desejo de auxiliar o pesquisador Procurara por todos os meios relatar, com detalhes e da férma que 3S (Bee eerece) sn, GREEN os fatos quo MMNMMB respondemaos seus pr prios intentos, e tudo isto péde convir ou nao ao pesquisador, o qual tentara entdo trazer o narrador ao “bom caminho", isto é, ao assunto que estuda. Mais tarde, ao utilizar @llgy relato, 0 pesquisador o fara ae a - cdrdo com suas @UMMMMMN preocupacdes e ndo com as intencdes do narra - Gor; isto €, as intencdes do narrador serdo forcosamente sacrificadas Assim, 0 propésito deste filtimo fica sempre em segunda plana, desde o inicio da coleta de dados. Em primeiro lugar, porque nao coincide nunca inteiramente com os propésitos do pesquisador; foram os desejos deste que desiancharam 0 relato, sendo entio predominantes sdbre o intento do narrador. Em segundo lugar, porque o pesquisador utilizard em seu tra - balho as partes do relato que sirvam aos objetivos fixados, destacando os tépicos que considerara iteisp e desprezando os demais. Noutras palavras, desde o inicio da coleta do material, quem co- manda toda a atividd” © pesquisador, pois foi devido a seus interés - Ses especificos que se determinou a obtengSo do relato. Durante am a entrevista, portanto, por mais que se procure deixar o narrador como se- nhor do que esta expressando, o pesquisador tera sempre uma posicdo do- 5 finalida - minante. Que este mais tarde recérte o material segundo sua des, afim de aproveité-1o da maneira que melhor convenha a estas, @ nao estara sendo seguindo a mesma linha de dominagdo tonada desde o iniciog © agora reafirmada de maneira mais clara. Na verdade, a narrativa oral, uma vez transcrita, se transforma num documento senelhante a qualquer outro texto escrito, diante do qual se encontra um eng OUR %o ser fabricado, néo se - guiu forcosamente as injungdes do pesquisador; de fato, o cientista so- cial interroga uma enorme série de escritos, contempordneos ou nao, que constituem a fonte de dados em que apoia seu trabalho. Recortes de Jornal relativos 4 atualidade, documentos historicos de variado tipo ¢ de diversas épocas, correspondéncia hodierna ou passada, registros os mais diversos, - sem esquecer as estatisticas estabelecidas pelos go - vernantes ou por instituigdes especificas, - foram redigidos com inten- s6es que nada tinham a ver com a pesquisa que decidiu fazer; e nao é Por esta razao que devam ser afastados como menos iiteis. Pele contra- rio, constituem hoje, como constituiram no passado, a base mais sélida sdbre a qual se erguera o edificio da investigagao. B' sdbre e1@ que se realizard o procedimento primordial de toda pesquisa, ~ a andlise. E analise, em seu sentido essencial, significa decompdr um texto, frag- mentéx em seus elementos fundamentais, isto 6 parer claramente 08 diversos componeptgs, recorté-Jos, afim de utilizar sémente o que é Be, aoe i compativel com & que se MMMM Assim, diante destas conside- Facdes, 0 escriipulo em relacio aos recértes das historias orais ¢ A ssa utilizacio pa 11 seafigura nitid@amente como um falso problema. HISTORIA ORAL, HISTORIA DE VIDA. "Historia oral" é termo amplo que recobre uma quantidade de rela- tos a respeito de fatos nao registrados por outro tipo de documentacio, ou cuja documentacéo se quer completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experiéncia de um sé individuo ou de di- versos individuos de uma mesma coletividade. Neste ltimo caso, busca-se uma convergéricia de relatos sébre um mesmo acontecimento ou sdbre um pe- iodo do tempo. A historia oral péde captar a experigncia efetiva dos nar radores, mas também recolhe destes tradic6es e mitos, narrativas de fic- so, crengas oxistentes no grupo, assin como relatos que contadores de historias, poetas, cantadores inventam num momento dado. Na verdade tudo quanto se narra oralmente 6 historia, seja a historia de alguem, seja a historia de um grupo, seja historia real, seja ela mitica Dentro do quadro amplo da historia oral, a “historia de vida" cons- titai uma espécie ao lado de outras formas de informagio também captadas oralmente; porém, dada sua especificidade, péde igualmente encontrar um simile em documentacdo eserita. trata-se de tipos de documentos préxinos uns dos outros, mas que 6 necessério distinguir pois cada qual tem sua peculiaridade de coleta e de finalidade. Assemelham-se as historias de vida as entrevistas, os depoimentos pessoais, as autobiografias, as bio- grafias; fornecem todas elas material para a pesquisa sociolégica, porém diferem em sua definicio e caracteristicas. A forma mais antiga e mais difundida de coleta de dados orais, nas cléncias sociais, € a entrevista; considerada muitas vézes como sua tec - nica por exceléncia, tem sido ao contrario encarada como desvirtuadora Gos relatos. Nunca chegou, porém, a ser totalmente posta de lado, o que demonstra sua importancia. A entrevista supe uma conversagao continuada entre informante e pesquisador; o tema ou o acontecimento sdbre que ver- ®a foi escolhido por @ste Gltimo por convir ao seu trabalho. 0 pesquisa- dor dirige, pois, a entrevista; esta péde seguir um roteiro préviamente estabelecido, ou operar aparentemente sem roteiro porém na verdade se desenrolando conforme uma sistematizacio de assuntos que o pesquisador Gomo que decorou, A captacdo dos dados decorre de sua maior ou menor ha- bilidade em orientar o informante para discorrer sdbre o tema; é aste ate conhece © acontecimento; suas circunstancias, as condigSes atuais ou historicag, ou por té-1o vivido, ou por deter a respeito informagées pre- ciosas. eg fornecem dados originais, ora complementam dados 44 obtidos de outras fontes. Na verdade, a entrevista esi resente em to- @as as férmas de coleta dos relatos orais, pois aetec aise num coldquio entre pesquisador e narrador. A historia de vida, por sua vez, se define como o relato de um nar- rador sdbre sua existéncia através do tempo,tentando reconstituir os acon- tecimentos que vivenciou e transmitir a experiéncia que adquiriu. a MM Narcaciva iinear © individual GJS, acontecimentos que &- : ifi i & se delineiam as je considera significativos,@ através Gimme issa ba camada relacées com os membros de seu grupo, de sua profissio, de sua camad fe drawendosess Social, de sua sociedade global, que cabe ao pesquisador impmmamionam Desta forma, © intersse déste G1timo esta em captar algo que ultrapassa © carater individual do que 6 transmitido © relato em si mesmo contém o @ que se insére nas coletivi- dades a que o narrador pertence. Porém, que 0 informante houve por bem oferecer, para dar idéia do que foi sua istorias de vida; vida e do que @le. mesmo é. Avangos e reciios marcam as h © © bom pesquisador nfo interfere para restabelecor cronoloyias, pois Sabe aus também estas variacées no tempo pédem constituir indicios ae al- go que permitiraé a formulagéo de inferéncias; na coleta de historias de vida a interferéncia do pesquisador seria preferencialnonte minima. outro aspecto fundayental da historia de vida é ser ela una tecni- ca cuja aplicasao demands Sak tonnes néo 6 em uma ou duas entrevistas que se exgota o que um informante pdde contar de si mesmo que & delas & limitad& devido ao cansago. sneontros com o narrador, também deve-se contar devam os re- latos para serem transcritos. Finalmente, uma das dificuldades consiste WRMMMR en se chegar a par Ponto final nas entrevistas, pois o narrador em geral afirma que tem sempre novos detalhes a acrescentar: nao quer Perder seu papel de personagem... oO termo foi muito cédo definido juridicamente, significando interrogacdes com a finalidade de estabelecer a verdade dos fatos" Perde, porém, es- ta conotac&o nas ciéncias sociais, para significar o relato de algo que © informante efetivamente presencion, experimentou, ou de alguma forma conheceu, podendo assim certificar. 0 erédito a respeito do que & narra- Ge sera testado, néo pela credibilidade do harrador, mas sim pelo cote- | jo de seu relato com dados oriundos de outras variadas fontes, que mos- ‘ara sua convergéncia ou ado. desta forma, nas cigncias sociais, o ae- Poimento perde sey sentido de “estabelecimento da verdade" Para mani - festar sdmente o que o informante Presenciou e conheceu. Pecifica de agir do pesquisador ag “tilizar cada uma destas tecnicas, durante © didlogo com o informante. Ae colher um depoimento, o cologuio & dirigido diretamente pelo pesduisador; péde fazé-10 com maior ou me - Por sutileza, mas na verdade tem nas mios © fio da meada e conduz a en- ‘revista. Da "vida" de seu informante 86 Ihe interessam os acontecimen- tos que i i nee cee Sanibengin dicetanente no teabaino, « escdiha 6 un mente efetuada e~O narrador se afasta em digresséue rta~as Para trazé-lo de Rove ao seu ,assunt; Conhecendo o Problema, busca ob- ter do narrador o oosanctar gaps que lhe parece supérfluo © dese Recessario. & & muito mais facil a cobocacdo do ponto Gina) ane 8 sa. stones WMEMEMEM assim que o pesquisador considere ter obtido AR obediéneia do narrador patente, o pesquisador tem as rédeas nas mos. A entrevista péde se exgotar num sé encontro; os depoimentos pédem ser muito curtos, residindo aqui uma de suas grandes diferencas para com as historias de vida. Voltando novamente as historias de vida, embora o pesquisador sub- repticiamente dirija 0 cologuio, quem decide o que vai relatar 6 o nar- rador, diante do qual o pesquisador deve se conservar tanto quanto pos- sivel silencioso. Ndo que permaneca ausente do coloquio, porém suas in- terferéncias devem ser reduzidas, pois o importante é que sejam capta~ dqs as pxperigncias do entrevistado. Este é quem determina o que 6 gam@ eee: nao narrar, le é quem detém o fio condutor. Nada do que relata péde ser considerado supérfluo, pois tudo se encadeia para com - por e explicar sua existéncia. Péde ser dificil faz8-lo concluir, pois ha sempre maisp mais acontecimentos, mais e mais detalhes, mais e mais xeflexdes que a memoria vai resgatando. Vé-se, portanto, que estabelecer diferengas entre historias de vida e depoimentos pessoais nao constitui exag@ro de pesquisador dema- siadamente escrupuloso. A escélha de uma ou outra tecnica nao pressupde penas diferencas na maneira de aplicd-las, mas inclusive, e sobretudo, ARs eg : Breocupacées do pesquisador com relacdo aos dados que pretende obter. Noutras palavras, as diferengas reciem sébre o tipo de pesquisa que se quer realizar, pesquisa esta que, na sua especificidade, deverd reque- rer a aplicagdo da historia de vida, ou a coleta por meio de depoimen- tos. Dois exemplos pédem esclarecer estas divergéncias. Quando se bus- cou conhecer como se desenrolava a existéncia cotidiana de individuos de baixa renda, na cidade de $.Paulo, durante as décadas de 20 e 30, a tecnica escolhida foi a das historias de vida de individvos WENN cue tivessem sido adoléscentes ou jovens naquéle periodo; e, como se tratava de historias de vida, ndo foram elas limitadas no tempo, mas, nas idas e vindas do narrador, chegaram sempre até os dias de hoje. No entanto, justamente porque se tratava de velhos, as vézes mesmo an - cidos de muita idade, a atengio déles sill naturalmente se voltou para infancia e mocidade, trazendo ao pesquisador aquilo que estava buscandu® No entanto, ao se estudar o carnaval na cidade de $.Paulo, tal como se realizara em variadas épocas até 30/40, através de entrevistas com velhos’ foliées, a tecnica escolhida foi a dos depoimentos. Q@UMMMMRM Tate - va-se de odnhecer nfo a sequéncia da vida dos mesmos, porém as f6rmas que havia@ytomado 0 folguedo no decorrer do tempo; para tanto, urgia co- nhecer também o que haVTa’ sido céritado pox pais e avés, além de saber como todos se divertiam durante as folias de Momo. Um aspecto era mesmo essencial: quais os grupos e coletividades participantes, a que camadas sociais pertenciam, quem eram os lideres na organizacdo da festa. Nao era Possivel deixar a iniciativa do dialogo aos informantes; cabia ao pesqui- sador orient&-lo do modo a cother 4 maior quantidade possivel de mate- rial. 0 pesquisador guiava, pois, a narrativa do informante. Como se toria de vida o coléquio é conduzido pelo narrador, que Go relato, enquanto nos depoimentos é o pesquisador que verifica, na hi = detén emsaatan! abertamente o dirige. Embora na historia de vida o pesquisador se abstenha de intervir e amaneira de se realizar caiba ao narrador, na verdade o pesquisador foi quem escolheu o tema da pesquisa, formulou as questdes aue deseja escla~ recer, propés os problemas. 0 comando § d8le @p QUmMSMEN Tuito enbora procure nfo ifitervir durante a narracdo; no impée, portanto, os temas ao informante, que os abordard ou nfo, a sen talante. No caso da pesquisa pa- ra esclarecer o cotidiano paulistano de pessoas de baixa renda entre 1920 ¢ e 1937, uma das questdes que o pesquisador tinha em mente era saber como os informantes haviam vivenciado ocorréncias como as revolugées de 1924, 1930, 1932. Todavia, se o informante nada dizia a respeito, também nada perguntava o pesquisador, nao tentando “avivar a memoria" de seu interlo- cutor. Ao contrario, a "£alha da memoria", encontrada em varios casos, podia ser reveladora da férma de participacdo desta parcela de populacdo em tais acontecimentos. Verificar também se a"falha" ocorridYnos relatos femininos, e muito menos nos masculinos, também era algo que nfo podia ser desprezado. Além de distinguir historias de vida e depoimentos pessoais, 6 pre- ciso ainda destacar a diferenga para com autobiografias e biografias. Nar- rar sua propria existéncia consiste numa autobiogyafia, e toda historia de vida poderia, a rigor, ser enquadrada nesta ee omace em sentido lato. Mas no sentido restrito, a autohiografia @MMMP exist@ sem nenhum pesquisador, e & essa sua férma E' 0 narrador que, sézinho manipula os meios de registro, quer seja a escrita, quer o gravador. Foi le também que, por motivos estritamente pessoais, se dispds a narrar sua existéncia, fixar suas recordagées; deu-lhes o encaminhamento que melhor lhe pareceu e, se utilizou o gravador, nfo raro éle mesmo efetiia em segui- da a transcri¢ao, ou pelo menos a corrige. Na autobiografia n&o existe, ou se reduz ao minimo, a intermediagdo de um pesquisador; o narrador se dirigefiretamente ao piblico, e a tnica intermediac&o esté no registro escrito, quer se destine ou nfo o texto A publicagdo. A biografia, por sua vez, 6 a historia de um individuo redigida por outro; existe aqui a dupla intermediagdo que a aproxima da historia de vida, consubstanciada na presenca do pesquisador e no relato escrito que sucede As entrevistas. 0 objetivo do pesquisador é desvendar a vida par - ticular daquéle que est4 entrevistando ou cujos documentos esta estudan- do; mesmo que neste estudo atinja a sociedade em que vive o biografado, © intuito é, através dela, explicar os comportamentos e as fases da exis- téncia individual . A finalidade”é sempre um personagem, isto é, uma pes~ soa encarada em suas agées e em suas qualidades, naquilo que faz e diz através do tempo, em variadas situagdes e circunstancias. Busca-se conhe- eé-lo através da sucessio de suas condutaS, e segundo dois principios fundamentais, YS @Atentam tante aB entrevistas quanto o relato posterior: 40 ° personage Sveta em seus comportamentos que compdem um todo integra- do, de tal mandira que este todo nao poderia ser dividido sem se encon - trar imediatamente destruido; o personagem & um individuo especial e par- ticular, diferente de todos os outros, dos quais se destaca. Uma vez que estas’ so as caracteristicas de um personagem, a fina~ lidade de um bidgrafo, ao escrever-lhe a historia, é oposta a de um pes- quisador ao utilizar a tecnica de historias de vida. O primeiro fara res- saltar em seu trabalho os aspectos marcantes ¢ inconfundiveis do indivi- duo cuja existéncia decidiu revelar ao piblico. 0 segundo busca, com as historias de vida, atingir a coletividade de que seu informante faz par- te, € 0 encara, pois, com representante da mesma através do qual se revelam os tracos desta. Mesmo que o cientista social registre sémente uma historia de vida, seu objetivo é captar o grupo, a sociedade de que e18 @ parte; busca encontrar a coletividade a partir do individuo. © bidgrafo, mesmo que vetrate a sociedade de que seu personagem partici- Pa, o faz com o intuito de compreender melhor a existéncia do biografado. Uma segunda diferenca, agora na maneira de serem utilizadas bio- grafias e historias de vida, se depreenddytambém. Justamente trata de um individuo considerado em sua integralidade, 2 péde ser decomposta em elementos ou utilizada em fragmentos, sob pena de se perder completamente o sentido do que se procurava: o desenvolvi- mento da personalidade, isto &, do "eu" tinico e permanente que, embora evoluindo através do tempo, mantém certa linha constante que o distin - dgs dem: este o caso da biografia,mas também da utilizacéo individuo e sua sociedade;{quando’ apenas parte dela 6 utilizada, pode induzir a graves falhas na andlisc ¢ na compreensio do que se quer es tudar. Esta exigéncia ndo tem razéo de ser quando se trata de um estudo sociolégico ou antropolégico. Neste caso, o aproveitamento da biogra - fia ou da autobiografia se faz no sentido de buscar como esto ali o- Perantes as relacées do individue com seu grupo, com sua sociedade. Ndo se trata de considerd~1o isoladamente, nem de compreendé—lo em sua unicidade; o que se quer & captar, através de seus comportamentos, o que se passa no interior das coletividades de que participa. 0 indivi- duo ndo 6 mais o “inico"; 81e agora é uma pessoa indeterminada, que nem mesmo é necessario nomear, 6 sémente unidade dentro d@ cole- tividade. Todavia, em seu anonimato, conde as confi - guracdes que Wil coletividade abarca, ao ordenar“temY) relagdo he Cutras UMMM as unidades, de que se ome ee do w material néo sémente se tora viavel, agora, como até mesmo imperio- 80, pois sio facetas do mesmo que serdo odor. Embora colhidas com finalidades muito diferentes, au - tobiografias e biografias sio perfeitamente utilizaveis pelos cien - tistas sociais como material de andlise. ambas, principalmente se bem feitas, pédem constituir excelentes repositérios de dados que, no entanto, devem ser verificados e completados por informacdes de outras fontes. Péde-se dizer qua autobiografias © biografias, desie Ponto de vista, esto em convergéncia com historias de vida e depoi- mentos pessoais para o esclarecimento de um dado ou de um momento historico; porém nfo se confundem com @stes. Também devem ser manu- seadas com muito cuidado; justamente por se tratar da andlise de uma personalidade, no raro encarecerao o que 6 peculiar ao individuo es- tudado. Ora, 0 que o sociélogo trabalha vai na diregio do que é cole- tivo, isto &, do que é geral, nfo se detendo nos particularismos. Sua direc&o é oposta 4 dos bidgrafos e dos psicélogos. HISTORIAS DE VIDA: CARACTERISTICAS. Quando John Dollard examinou os criterios que tornariam aceita- veis as historias de vida como fornecedoras de dados para o sociélogo, tropegou justamente com o Problema de estar lidando com o desenvolvi- mento de um individuo dentro de determinada sociedade e, portanto, de estar abarcando 0 comportamento deste, e nfo diretamente os dadog sé- dks, a cgletividade om f6co. & quando, no period em us eis gee Sqmtuiey SBA vistas sociais cogitaram do aproveitamento deste tipo de material, assim como dos depoimentos orais, pareceu a muitos déles que a interferéncia da subjetividade do narrador falseava de maneira perniciosa as entrevistas. Franz Boas, porém, colhendo os relatos de anciaos das tribos norte-americands, no se deixou deter por este as- pecto. Tencionava reconstruir, através do que reunia, a organizacgao deliquescente dos grupos afim de compreendé-los. 0 que lhe chamou a atenc&o foi a relativa independéncia de certos fatos culturais, que os fazia persistir mesmo quando desorganizado o grupo em que haviam Previamente existido, Descobria assim a condicio sine qua non para que a historia de vida e os relatos orais sGbre o passado pudessem ser utilizados: comportamentos e valores séo encontrados na memoria dos mais velhos, mesmo quando éstes nio vivem mais na organizacgo de que haviam participado no passado, ¢ assim se pode conned et? existiza anteriomente © s¢ MMMM noe onbates do tempo. SAP ABLR AS 12 Realmente, se a memoria de determinados valores e comportamentos se des- fizesse como Gesaparecimento das organizagées sociais, entéo seria im- possivel a utilizacio dos relatos orais em geral, @ dae historias de vi- da em particular, na andlise de coletividades e sociedades. Muito antes de Dollard e de Boas, os socidlogos Thomas (americans © Ynaniecki (polonés) haviam utilizado historias de vida em seu céle - bre trabalho sdbre os camponéses polonéses que permaneciam em sua pa - tria,e.os que, haviam emigrado para os Estados Unidos. Porém ili preo- cups ee Tavian constituido dificuldades para ambos, que considera- ram,ao contrario, a historia de vida como excelente tecnica de coleta de material. Chamaram a atengdo, todavia, para o fato de néo poder ela ser utilizada sézinha numa pesquisa, pois nio fornece base empirica sufi - ciente para se levantar inferéncias; deve , portanto, ser sempre comple- tada: por material coletado de outra maneira. De fato, estes autores tra- balharam com grande copia de documentos escritos, como por exemplo a cor- respondéncia entre os imigrantes e seus parentes que haviam permanecido na Polonia.’ A constatacao destes dois cientistas sociais, proveniente da expe- rigncia que realizaram, chama a atengio para um aspecto que fol amy em seguida retomado por muitos outros Pesquisadores: o da necesy¥dade de uma complementacao proveniente de outras fontes. A justificativa déles era de que nunca se poderia obter grandes quantidades de historias de vido QU MMMREUBR suficientes para dar embasamento empirico satisfatério e amplo que permitisse chegar a conclusdes. Na verdade, to- do registro de uma ati de vida, mesmo quando hoje é feita por in - termédio do gravador, do contexto em que se deu a entrevista; © esta falha énais grave se a entrevista teve lugar féra dos lugares em ote. trabalha. De fato, nem a escrita do pesquisador, nem 9 gravador registram 0 local onde se passa 0 coloquio, ou o local onde o informante habita, amputando o material de uma preciosa mésse que pade encerrar detalhes MBA falha é muito mais importante na cole- Ce eer carrion seer rere allied se) ead teSsdbre determinado ponto, sua concentragio sébre um dado preciso, ex - Cluen a utilizaco de elementos circundantes, que, pelo contrario, se - rian esclarecedores no caso de historias de vida, como comprovan- tesyou como demonstradores de contradicées. Na verdade, 6 especifico das cigncias sociais necessitar sempre o Pesquisador de dados colhidos defontes as mais variadas, quando quer a - barcar de forma ampla a realidade que estuda. A unanimidade mmm 2 Esse respeito tem sido constante;® mesmo aquéles que se mani. festaram de modo muito entusiastico a respeito das historias de vida re- 13 conheceram que a utilizacao sémente delas resultava em trabalhos li- mitados. A dificuldade estava em que a coleta de uma historia de vida é de duracdo longa; as entrevistas ndo pédem ultrapassar certo lapso de tempo porque séo cansativas, devendo ser empregadas com in — tervalos. Para os idosos, a quantidade de coloquios deve ser grande quando se revelam bons informantes, afim de se coletar o maior nimero possivel de informes. Rste alongamento Wo tempo é acrescido por uma transcrig&o (que consome horas.e horas, sendo trabalhosa e aborrecida), assim como por uma andlise forcosamente demorada. Desta forma, é mui- to dificil conseguir muitas historias de vida que fornegam base empi- rica suficientemente larga para se chegar a algum gréu de certeza, a n&o ser por meio de uma pesquisa que demore varios anos. 0 meio de se fugir a éste obstd4culo estava em juntar 4 tecnica em pauta uma coleta de dados utilizando outros procedimentos. Mesmo a utilizagao de depoimentos orais, cuja obtencao é mais bre ve, aponta para dificuldades inerentes 4 prépria natureza do informe. Nunca é demais lembrar o belo trabalho de Germaine Tillion sdbre os campos de concentragdo nazista em que esteve detida durante a 28 Gran- de Guerra, e que teve como uma das fontes de dados, além da vivéncia da autora, uma larga coleta de depoimentos orais. Seu intuito era des- vendgr o destino dado a prisioneiras que periodicamente eram re- ti Beek ficou que os depoinentos | e que a prépria recordacaot d6 ditérias. Resultavam do fato de que, individualmente, © sémente uma parcela da realidade de Ravensbriick, e ee da acontecimento era diversa¥conforme cada individuo se encontrasse numa ou noutra situacio, @”de acérdo @MMMMM com a sonsibilidade e a experidneia pasoada de cada un Verificou etme We se ini inaede ae basear sua andlise, que desejava sociolégica, simplesmente nos rela - tos de seus companheiros ¢ em sua experiéncia pessoal; organizou en- tdo uma coleta de dados muito mais ampla, afim de que da complementa- s&o e do cotejo entre les se reformulasse uma imagem do campo de concentracdo cuja confiabilidade f6sse muito maior do que a que resul- tava dos depoimentos. H@ que se observar, no entanto, que a necessidade de se acres - centar outras fontes as, historias de vida no invalida a possibilida- de de utilizagao de uma Wlif'dentre elas, para o conhecimento de proble- mas de uma coletividade. R' certo que toda pesquisa sociolégica, quer utilize tecnicas como a historia de vida, quer outras tecnicas diver - sas (inclusive e principalmente as quantitativas), ganha novas dimen- sdes, “maior profundidade, maior envergadura, desde que acompanhadas 14 a Palm Ame, prtens © complementadas por outras maneiras de coleta. @MMMBAM(historia de vida, desacompanhada de captagdes complementares de material, desde que convenientemente analisada, pode ser da maior importancia para a definicdo de problemas de uma coletividade, principalmente se o pes - quisador nfo conhece bem a esta; mpreen~ so, a explicagio, os quais se suceden cono fases Sree rial uma vez recolhido permanece igual a si mesmo no tempo e no espaco, desde que conservado com o devido cuidado; ao correr dos anos, encer- raré sempre as mesmas informagées, servindo para outras pesquisas que levardo a confirmacdes ou a conhecimentos e comprovacées. Fru- to de procedimentos do pesquisador, néo péde ser confundido com as tec- nicas utilizadas para gam coleta, e nem com qualquer momento da pes - quisa. A tecnica, como se vé, nada mais é que a ferramenta destinada a desencavar 0 dado. A historia de vida, como qualquer ougro pipgedimento empregado na coleta de dados, éMin ifstrumento, nao Foduto final da pes - quisa; ela recolhe um material bruto que necessita ser analisgdo. Po- ZH © material bruto, uma vez registrado, permanece inerte e a Wim através do tempo, tendo as mesmas caracteristicas de persis- téncia e identidade que possue qualquer outro documento e, como estes, aurgndy através das idades desde que convenientemente armazenado. M@utilizacdo das historias de vida como tecnica de coleta em 16 xegiées diferentes mostrou convergéncias interessantes. Nos,Estados Unidos, o desaparecimento de tribos indigenas levou af de variadas férmas de historia oral, afim de se conservar pelo menos a lembranga de sua organizacio e costumes. Na Europa, e principalmente na Franga, a transformac&o do estilo de vida dos camponéses a partir de fins do sec. XIX fomentou também a coleta de relatos orais, de de- poimentos pessoais, de historias de vida, visando registrar as maneiras de agir e de pensar existentes numa organizacfo social que se apagava. A quase inexisténcia de documentos escritos, assim como de outras fér- mas de conservagao de informagdes, determinou o desenvolvimento dg tecnicas que permitissem o armazenamento de dados do passagdo e tam - bém dg costumes que, ainda existentes, iam pouco a pouco caindo em desuso. Em muitas regiées da Pranga, por exemplo, viveram os camponé - ses, até a década de 20, em estruturas socio-econdmicas ¢ culturais que persistiam havia longo tempo, Continuavam muito importantes os liames do parentesco, as aliangas matrimoniais tradicionais; valori- zava-se a experiéncia dos mais velhos, sempre respeitados; na infra- estrutura material do cotidiano inexistiam Agua corrente, luz elétri- ca, estradas asfaltadas; e apezar da leitura e da escrita se terem di- fundido desde a segunda metade do sec. XIX, a transmisso de conhe - cimentos por via oral e pela experiéncia diréta continuava de grande relevncia, sob a orientagdo dos mais velhos que detinham o saber pré- tico referente as atividades agricolas e aos oficios A reformulagdo da infraestrutura material, a expansio dos meios de comunicagao,determinaram a utilizagéo crescente da escrita como veiculo de registro e transmissio de conhecimentos; os livros foram substituindo cada vez mais os ensinamentos dos velhos. A transmissio oral perdeu paulatinamente importancia; com ela decaiu a influéncia dos idosos,-cujos conhecimentos nio eram mais t&o adequados ao novo contexto socio-econdmico que emanava das grandes aglomeracles urba - nas. Na antiga sociedade camponésa, continuidade e preservagao ha - viam constituido valores muito importantes para a orientacéo dos com- Portamentos; na sociedade que agora despontava, a atengio de adultos e jovens focalizava modificagées e transformagdes como atributos fun- damentais de uma vida que se queria moderna © desaparecimento de sistemas e valores que acompanhavam a es - trutura de uma sociedade"tradicional", a anulagdo da prépria lembran- ca d@les, parecia iminente. Os ancidos seriam as Gltimas testemunhas ainda existentes de um estilo de vida que se desfazia, e esta consta- taco levou cientistas sociais francéses a se interessarem pela his - 17 toria oral em todas as suas formas. Da década de 50 em diante, foram elas complementadas por filmes, por audiovisuais, por video-casse - tes . Tratava-se de resguardar falas, opinidgs, aspects fisico, ges~ tos dos idosos, alga dos discursos, sois emmemameaecgss 3° Passado. A organizacio de arquivos e museus foi muitas vézes parale- la 4 utilizacdo destas tecnicas, que Gummi armazenaY“documentos sd- bre os antigos modos de vida. No entanto, para as ciéncias sociais, o importante nado é nem armazenar documentacio, nem reconstituir antigas sociedades ou épo - cas, nas Yalan um problema de estrutura social por meio de meca - nicas especificas de coleta de dados. Thomas e Znaniecki, dos pri - meiros a utilizar historias de vida, pretendiam esclarecer questées ligadas & integragéo de imigrantes europeus e de outras proveniéncias, que a partir de meados do sec. XIX passaram a chegar em grande quan - tidade aos Estados Unidos; procuravam, por meio da historia oral, co- nhecer as mudancgas ocasionadas na sociedade de chegada_¢ nas, pré — Tratava-se de um problema contempordneo e nao mais de uma tentativa de recuperagdo do passado. Mais tarde, também Oscar Lewis se preocupou em conhecer as re- lacSes familiares de individuos de baixa renda no Mexico, sdbre os quais ou escasseavam ou inexistiam dados“Bravhutvamento do material, nestes casos, passa a constituir um derivado interessante, porém o objetivo principal 8 outro. Para esclarecer a questdo escolhida pe~ lo pesquisador ndo € necessario recorrer a pessoas idosas; torna- se primordia destacar informantes cujos relatos cubram o campo investigado. Em se tratando de Oscar Lewis, foi imprescindi - vel entrevistar também jovens, para se perceber, no interior da fa- milia, como se estabeleciam as relagdes entre diversas faixas de i- Gade. Conhecer 0 relacionamento no interior da constelacdéo familiar se tornava possivel através das narrativas de pais, de filhos, de pa- rentes que com éles convivessem. Todavia, enquanto Thomas e Znaniecki utilizaram os relatos o- xais como documentos iguais a quaisquer outros, Oscar Lewis ficou de tal modo fascinado pela riqueza das historias de vida que julgou no necessitar o socidlogo de andlises e inferéncias; bastava que to- masse conhecimento @lipdo material empirico em seu estado “natural”. Nao desenvolveu, pois, um estudo, mas quis levar de maneira diréta aos interessados o conhecimento de seus “dados, waeesane ‘tao sémente 2 Aimee = a transcricdo das fitas gravadas; efettongmmd Tinpeza e ordenagdo dos relatos para qm compreenséo mais facil ¢ amena por parte do leitor. E quase transformd”seu material em literatura... 18 © regpeito & integridade das historias de vida nao foi sémen- te praticado por Oscar Lewis; varios pesquisadores também hesitaram em aproveitar partes do material colhido, como se o desvirtuassem Cho o conservelisiia cn sua Gimugemiiies apresentaram portante a nigeor ria ou as historias colhidas, tanto quanto possivel, em sua \Sammmgy dade. Nao se davam conta de que relato escrito ou fita gravada cons- tituem registro semelhante a qualquer outro dos habitualmente ana- Lisados. Se ndo se furtavam a utilizar,destacadamente umas das ou - tras, as respostas a um questionario, nao havia razdo para no re - cortarem, das historias de vida, as passagens que diziam diretamente respeito ao que estavam estudando. ‘tal utilizagio nio implicava em mutilagSes do material; relato escrito ou fita gravada, permaneciam intactos para serem empregados por outros pesquisadores.Desde que a historia de vida ou os relatos orais nado tinham sido,colhidos méra- mente para serem arquivados, urgia analisar os dadéStencontrados, es- colhendo-os na massa bruta do material coletado. A massa bruta com - pleta ficaria arquivada, A disposicao de outros cientistas para no - vas pesquisas, em absoluto néo se perderia. Utilizada como instru - nto de coleta de dados em ciéncias sociais, a historia de vida de- Hee, ry @nalisada e, portanto, fragmentada. HISTORIAS DE VIDA NA PESQUISA BRASTLEIRA. No Brasil, a tecnica de historias de vida, depois de breve a. parecimento em fins dos anos 40 e inicio da década de 502°, ignorada@.No entanto, as caracteristicas gerais da sociedade brasi- leira e, principalmente, a rapidez de suas transformacées, deveriam ter levado mais cédo os pesquisadores & utilizacéo desta técnica Sua eclipse durante tanto tempo deveu-se espécie de encantamento pelas tecnicas estatjsticas de amostragem com o emprégo de questio- narios. Aos olhos adsey cientistas sociais, as historias de vida e, de um modo geral, o relato oral se apresentavam “cheios de subje- tividade", tanto do narrador quanto do pesquisador, constituindo as- sim @minstrumento que ndo raro levaria a desvios de observagio ¢ a interpretacées erréneas. A revalorizagao da historia oral ocorrida recentemente na Eu- ropa despertou o intersse dos cientistas nacionais, Primeiramente foi a historia oral que ressurgiu, suscitando @ iniciativas tradu- zidas na fundacao dos Museus da Imagem e do Som, e também de gran- des arquivos que armazenassem entrevistas com personalidades poli - ticas famosas. Nés%es repositérios se encerra a " emoria" de algo que se perderia com o desaparecimento de pessoas mais velhas, @ 1 @mm num pais em que ‘sempre se deplorou a falta de documentacdo pa- ra estudo,? Além disso, 0 ritmo extraordinariamente rapido de mudancas na sogicdade brasileira devia forcosamente contribuir para a difu- sio @il™mg tecnica. Quando se a4 conta, por exemplo, de que em 1950 © meio rural era habitado por 70% da populacdo efGue em 1980, num pe riodo de 30 anos, as proporgéesse inverteram inteiramente, os habi- tantes’ do meio urbano passdndo entZo a 708, compreende-se que a con- servagao do que "foi" adquira importancia aos olhos dos estudiosos. Recolher a maior quantidade possivel de testemunhos sébre férmas de vida para as quais ndo existam sendo parcos registros; saber como agiam os “silenciosos", aquéles que pouco aparecem na documentagao escrita, isto é, as camadas de buixa renda; saber como encaram sua existéncia diante das modificagdes velozes em curso, constituiu uma larga abertura para a utilizagdo de relatos orais e de historias de vida. Porém, d&sse, pgpto de vista, no se tratava senéo de armaze - har a memoriay AYUtilizacao das historias de vida como tecnica es - pecifica de pesquisa nio fez seu reaparecimento nem na sociologia, nem na antropologia neste pais, e sim na psicologia social. A fina- lidade foi o esclarecimento de problemas da memoria enquanto atribu- to humano estreitamente dependente da vida social e por esta alimen- tada.'? 0 trabalho pioneiro se desenvolveu em §.Paulo, cidade cujo crescimento acelerado e transformacées radicais constituem grandes Provocages para se inquirir o que sucede com os processos de con- servagao das lembrancas. Sémente em seguida a esta primeira apli - cacao da tecnica, foi cia talesadlal, investigacées sébre aspectos Propriamente sociais para os quais ndo se possuia farta documenta - sao, fSsse em camadas sociais inferiores, f3sse em determinados gru- pos étnicos, fSsse em certas categorias profissionais,!4 tanto no meio urbano quanto no meio rural Nestes casos, é agora a sociologia que esté em jégo. Os meca- nismos da memoria, sua ligag&o com a base biologica e com o contex- to socigeeconfmico em que se dao as experigncias individuaisyndo cone ee Uesties MEMMMMNMMMY fundamentais. A organizacao de ar- quivos, a constituigdo de acervos de documentacéo, o armazenamento de dadosytambém por si sés néo se colocam il diretamente como me- ta a ser Alcangada. 0 que se busca é 0 esclarecimento de relagdes coletivas entre individuos num grupo, numa camada social, num con- texto profissional, noutras épocas gag tanbén agora. 20 Nenhuma sociedade é um todo monolitico; em seu interior coexis- tem grupos e camadas sociais de diverso tipo, divisées por sexo ¢ ida~ de, coletividades variadas, Historias de vida de individuos com posi- cées diferentes fentro de um grupo, quer sejam membros da mesma fami- lia (como j& MiNi Oscar Lewis), quer se trate de homens e mulhe - res, quer diga respeito ao contraste entre os mais velhos e os mais jovens, servem para dirimir diividas e aprofundar conhecimentos. E es- tas investigagées transbordam das camadas inferiores para todas as de- mais, uma vez que em todas elas os mesmos problemas se colocam de des~ cobrir relacdes.igmarodow, No meio rural, por exemplo, as mudangas extremamente rapidas o- corridas em $.Paulo atingem individuos de todas as camadas sociais no entanto, as pesquisas,utilizem ou néo historias de vida, tem se vol- tado quase que sémente para as camadas inferiores. Nio se atenta para que, ainda ha poucos anos, havia também, habitando em suas proprieda- des, grandes e médios proprictarios, desconhece-se como vivenciaram a transformagao que se operou em suas existéncias com sua implantacdo nas cidades.'® além déles, toda uma gama de individuos citadinos esta ligada aos habitantes do meio rural, nfo por auferirem diretamente do 610 seu sustento, porém para servid%os moradores 4 euncioné— rios piblicos (professores primirios, tabelides, delegados, etc.), gen- te do setor terciario (pequenos e médios comerciantes, pequenos indus- triais, artezaos, etc.). Como vivem éles as reviravoltas havidas com o €xodo dos campos e com as mudangas de relagdes de trabalho wm ali a- contecidas ? 0 esvaziamento do meio rural tem determinado também o es~ vaziamento das cidades déle dependentes, ~ aspecto do problema que per- manece ignorado e praticamente nado estudado. Constituem as historias de vida, nestes casos, excelentes tec - nicas para se efetuar um pri eixo levantamento de questées, pois ain- da faltam’dados a respoxt¥y revelan 0 cotidiano, o tipo de relaciona~ mento entre os individuos, as opinides e valores e, através dos da ~ dos assim obtidos, é,possivel construir un | Primeiro diagnéstico dos tensdo seria a seguir, numa outra pesquisa, investigada por meio de tecnicas estatisticas de amostragem, por exemplo. Vive-se hoje um mo- mento privilegiado para se captar, por meio de historia oral, e mais particularmente por intermédio de historias de vida ou de depoimentos Pessoais, a-maneira pela qual diferentes camadas sociais, diferentes grupos, homens e mulheres} faixas de idade estado experimentando as mu- dancas que ocorrem, segundo que valores as est&o encarando, quais as normas que aceitam para seus comportamentos e quais as que rejeitam 21 Uma tecnica qualitativa como a das historias de vida péde coe- xistir trarquilamente com tecnicas -quantitativas como a da amostragem desde que cada uma delas soja aplicada a um momento especifico da p quisa. A tecnica de historia de vida &, em geral, muito Gtil para um primeiro levantamento de questées e de problemas, ao se notar a ine - xisténcia de conhecimentos a respeito. Também é da maior utilidade como meio de verificacio e de contréle do que j4 foi cclhido por ou- tros meios. A tecnica quantitativa, seja a da amostragem ou outra serve principalmente para se conhecer a intensidade de um fenémeno. © quanto se espraia por um grupo ou 'camada, como atinge grupos e cama das diferentes. Os dois conjuntos de tecnicas ndo sdo opostos ou mu ~ tuamente exclusivos; sfo procedimentos a serem empregados em determi- nados tipos de pesquisa, ou em determinados momentos da mesma.‘ °nao tem sentido, nas ciéncias sociais, se tomar partido por este ou aqué- le procedimento, tanto mais que a obtengao de dados de fontes varia- das, que enriquece uma pesquisa, determina a necessidade de se utili- zarem tecnicas também variadas. A querela é vd; 0 importante é saber escolher a tecnica adequada ao tipo de problema, A especificidade do dado e ao momento preciso da investigagao. HISTORIAS DE VIDA: DO INDIVIDUAL AO COLETIVO A historia de vida é contada por um personagem e gira em torno deste. 'A primeira vista, dir-se-ia que é algo eminentemente indivi- dual, sofrendo as distorsées trazidas pela subjetividade do narrador Esta colocago tem sua razao de ser; no relato de uma historia de vi- da, © pesquisador colhe dados que indicam como se formou a personali- dade de um individuo, através de sequéncias de experiéncias no decor- xer do tempo. "Individuo" significa alguem que se tomou isoladamente extraindo-o do interior de uma coletividade para considerd-lo em si mesmo, naquilo que o distingue dos demais. Quando se estuda a perso - nalidade do individuo, admite-se que os predicados encontrados sio ex- clusivamente seus e ndo ocorrem em nenhum outro, por mais semelhante que possa ser; isto &, tanto sua constituicdo quanto suas qualidades © marcam como nico, o distinguem dos demais de seu grupo, de sua so- ciedade. Individuo e personalidade seriam nogées que recobririam aqui- jo que existe de mais intimo e de mais inconfundivel em alguem Se o individuc obedecesse a determinacdes exclusivamente suas e inconfundiveis, entao realmgnte as historias de vida seriam improprias para uma andlise sociolégica. No entanto, o que existe de individual e Gnico numa pessoa é excedido, em todos os seus aspectos, por uma infi- 22 nidade de influéncias que nela se cruzame as quais nao pode por ne- num meio escapar, de ages que sébre ela se exercemg'y que MI lic AB inteiramente exterior$ budo isto constitui o meio em que vive © pe- Bl io qual é moldada; finalmente sua personalidade, aparentemente tao Peculiar, € 0 resultado da interagdo entre suas especificidades,® to- doo seu ambiente, @ todas as coletividades em que se insére. Nio & novidade alguma afirmar que @@MM individuo cresce num meio socio-cul- tural e est4 fundamente marcado por Sle. sua historia de vida se en- contra, pois, a cavaleiro de duas perspectivas: a do individuo com sua heranga biolégica e suas peculiaridades, a de sua sociedade com sua organizacdo © scus valores expecificos. A historia de vida, om Fesumo, se encontra a cavaleiro de duas disciplinas, a psicologia e a sociologia. torch A historia de vida oe tn tecnica que capta o que sucede na encruzilhada da vida individual com @ social. Conforme seja a pes- quisa desenvolvida por um sociélogo ou por um psicélogo, assim a ori- entaco da coleta de dados levard uma ou outra acentuacdo. No pri - meiro caso, serdo procuradas no informante as marcas de seu grupo ét- nico, de sua camada social, de sua sociedade global, - varios niveis que apresentam estruturas, hicrarguias, valores ora harmoniosos, ora em Gesacdrdo, 0 que tudo se reflete no seu interior. No segundo caso, sao buscadas as particularidades que singularizam 0 individuo, deli- neia-se o caminho seguido na formag io de sua personalidade através do emaranhado das relacées variadas tecidas pela sua coletividade, e € © produto finaly considerado como Gnicoy que se quer compreender e explicar. Sociélogo e psicélogo poderdo ambos utilizar uma historia de vi- da que tenha sido colhida por um d8les; o material 6 valido para an- bos os estudiosos, justamente por se encontrar no cruzamento das duas disciplinas a que se votaram, Diante do material colhido pelo Psicdlogo, 0 socidlogo naturalmente se queixara de falhas; e vice - versa. Mas as lamentagdes ndo invalidam a utilizacdo do material pe- los dois. No entanto, embora muitos cientistas sociais tenham aler- tado para as limitacgdes da tecnica em sociologia, considerando até que seu emprégo deveria ser evitado, na verdade ela foi se apresen- tando como cada vez mais relevante para este, ciéncia, justanente em fungao da area cada vez maior que YONARATSMES no correr do tempo !® No século atual a sociologia, apoderando-se da psique tandém coms g"dampo de estudos, mam ooroe ee os sonhos, du- rante muito tempo considerados algo és Besseal; encarou-os co- mo representagées simbélicas do relacionamento do individuo com seus 23 te aan st adeg semelhantes e com sua sociedade. Englobou em ee - te, vendo-o como o repositério ¢ social, e portanto material revelador para a andlise de controles e ssdes c dus opressdes do meio age coercées. Finalmente foi se orientando também para a subjetividade, isto &, para a faixa interior que parecia mais préxima do bioldgico : Porque carregada de afetividade, implicando por isso mesmo num caré~ ter marcadamente individual. Con efeito, "subjetivo" significou pri- meiramente aquilo que pertenc@Ra um individuo e sémente aquéle, dis- tinguindo-o dos demais; negava-se assim que a férma tomada pelas ma~ nifestagées eéle pudesse ser igualada pela dos demais. Nesta carac- terizacdo se consubstanciaria a oposigio entre subjective © objctivo; @ste Ultimo encerrava caracteristicas validas para todos os indivi - duos porque exterior a Gles, enquanto o prigeiro permaneceria encer- @ ado no intimo do individuo, aaa Pv aisenace que lhe se- riam exclusivamente peculiares. No julgamento subjetivo de um indivi- duo estariam as marcas de suas impressdes,¥eus gostos, seus habitos, seus desejos e aspiracées, unica e fundamentalmente seus, inconfun - diveis com os dos demais. Apezar de todas estas definigdes, no entanto, a sociologia atualmente se orientou também para o subjetiv sito, considerando que €le no decorre exclusivamente de bases biolégicas e psicoldgicas, porém que se desenvolve numa coletividade, sendo portanto revelaadt : ™ desta. 0 subjetivismo deixam {de ser, para esta disciplina, a mar- ca individual intraduzivel e inexplicavel, cujo vislumbre de alguma interpretagao s6 poderia sex captado através da biologia e da psico- e logia; a sociologia também palavra a dizer a respeito des- ses problemas, que pode ser objeto de seu estudo. Tanto mais que as manifestacSes do subjetivismo respondem sempre a algo quo @ oxte- rior aos individuos. Necéssidades fisicas, inclinagdes, paixdes, prazer e abr, sig- nificam reagées da parte do individuo a algo gue captou a partir do exterior, e que sé adquirem significado através da mediacéo do exte- rior; conforme a sensibilidade déle, serio mais ou menos intensas, Gesencadeardo ou ndo agSes de variado tipo. uma vez existindo a me - diacio exterior (e a pglayra é uma delas, provavelmente a mais im- portante) para que se © puramente individualgseste fi- ca ja comprometiao com 0 exterior INN sempre mosfera plenamente coletiva. Mesmo que se trate de sensacSes termi- ma at ~ cas, respiratorias, circulatorias, isto é, do conjunto de sensagées internas de que trata a cenestesia, - sensagdes que parecem indepen- 24 er até da intermediagdo dos sentidos para serem percebidas, - ain- da assim sua apreensio pelo individuo forgosamente passa pela cons~ cientizacdo (ou pelo menos pela tentativa de conscientizagéo) atra- vés da palavra; o que significa através de um instrumento forjado pela realidade social. Nao escapa’ , portanto, de se tornar em par- te, tamkém, objeto de estudo sociolégico. ummm ainda quando o subjetivo seja entendido como as sen- sagées inefaveis provenientes dos érgdos internos, QMS da cixgulagao, dg nutricio celular, etc., constituindo un estado psiqui-~ co BABA. Scio ineorna déses v xorultanto om confuses pres: sées internas Ydesde que se adnita que estas sensagdes¥ chegalL ao es- tado de percepcdo, neste momento®¥= formulagao se opera por meio de manifestacées que 'deixam de ser puramente subjetivas; pois as sensa- ¢Ses confusas provenientes de todas as partes do corpo esto sendo constantemente transmitidas aos sentidos e, ao se transformarem em percepsies, sofren as imposigées doscantaxte wizcundante © perden seu caréter de @illm exclusiva Pela formulacéo que ento adquirem, entram para o dominio dos fatos passiveis de serem analisados pela sociologia. Nesta maneira de se compreender o subjetivismo, permanece éle como puramente individual, e mesmo como essencialmente individual, enquanto néo é apanhado nas malhas da percepcéo; sua base seriam as fungdes vegetativas que dariam lugar a sensagées vagas e difusas de bem-estar ou de mal-estar, cuja influéncia se faria sentir f6ra dos 6rgdos dos sentidos, porém que constituiriam uma das caushs¥iRBSr — tantes dos sonhos, por exemplo$ Mas causa exclusivamente fisica, o sonho tendo também um contetido que se liga estreitamente ao contexto socio-cultural do individuo. Em tal perspectiva, o conteido do so - nho pode ser abarcado pelo estudo sociolégico; quanto ao aspec- to cinestésico, sémente quando, como ja se disse, de sensacio pas - sasse a percepgdo Ainda © subjetivo seja entendido como as sensagoes in- traduziveis, ainda assim é préprio dos individuos tentar compreendé- jas primeiramente, e transmitir aos outros 0 que compreendeu; porém ao fazé-lo forgosamente utiliza os mecanismos que tem 4 sua disposi- ¢&o e que lhe foram @adog pela familia, pelo grupo, pela sociedade. A historia de vida pédeYdesvendar o ponto em que caracteragpaestas coletividades se juntam as sensacdes cinestésicas, buscando a inter- acdo entre ambas, e esclarecendo quais os instrumentos sociais uti- lizados para a traducdo. A esta maneira mais antiga de compreender o subjctivismo veiu 25 se juntar outra mais recente, baseada na teoria de Jung, dos arque- quetipos enkaizados na prépria natureza do ser humano; isto é, exis- tiriam representagées simbélicas comuns a todos os individuos através dos tempos, sejam quais forem as ragas e os momentos. A semelhanca das estruturas mentais seria fundamental, e dela emanariam represen- tag6es similares banhadas sempre numa dominante de tona]idade afeti- va. Assim, modélos de acéo e de comportamento ‘eso em povos muito diversos, muito afastados no tempo e no espaco, que nao teriam desenvolvido nem contatos, nem influgncias reciprocas. Este conjunto comporia 9 “inconsciente coletivo" © constitui - ria o fundamento do subjetivismo individual na medida em que estaria unido ao conjunto que, no plano biolégico, foi chamado de “instinto". “Nesta maneira de ver, a concep¢ao de subjetivismo se inverte, j4 que le ndo tem mais por base o que seria essencialmente individual, mas repousaria em materiais coletivos inconscientes} erdados juntamen - te com as estruturas mentais, representariam 0 aspecto psiquico des- tas. Todo o psiquismo seria, ent&o, menos individual do que coleti- vo, pois estaria sempre sob a influéncia das representagdes e ima - gens arcaicas reunidas no inconsciente coletivo. Se aceita esta segunda concepciio do subjetivismo, com mais ra- zdo ent&o recde le no campo de estudos da antropologia e da socio- logia. © conhecimento dos arquetipos, figuras dindmicas com estrutu- ra relativamente geral, estariam presentes no inconsciente de qual - quer individuo; uma andlise que desvendasse estas configuragées in- variantes, veladas pelos significados simbélicos acumulados através dos tempos, constituiria um objetivo daquelas duas disciplinas. As vias de acesso para descerrar os véus que ocultariam as imagens ar- caicas seriam variadas andlise dos sistemas magicos, religiosos filoséficos; interpretacdo dos sonhos individuais, etc. As historias de vida aparecem entdo como ‘instrumentos de grande utilidade para a~ tingir, so) a ganga dos modélos de pensamento e de acdo mais recentes| adquiridos no contato com a realidade socio-cultural cotidiana, as estruturas mentais mais antigas. Adote-se uma ou outra maneira de compreender o subjetivismo, cabe sempre submeté-lo perspectiva socio-antropolégica afim de a- profundar sua compreensio. Nao foram muitos, porém, os estudiosos destas disciplinas que se abalaram & exploragio ampla destas pro - fundezas dos séres humanos e das sociedades. Sem divida ha a neces- sidade de um refinamento dos instrumentos de trabalho para podergp ser levada a efeito com suficiente éxito. Mas pergunta-se: é possi- vel refinar mecanismos sem ao mesmo tempo exercita-los ? 26 As historias de vida poderiam constituir ferramenta valiosa para a intensificacio de tais estudos, uma vez que se colocam jus - tamente no ponte de interseccao das relagSes entre o que é exterior a0 individuo e o que le tras em seu intimo. Tais observagées refor- cam as afirmacSes de que ha nesta técnica uma riqueza potencial ain- da nao utilizada pelas ciéncias sociais, e de que seu refinamento enguanto mecdnica de pesquisa, para ser alcancado, necessita de uma utilizacdo pratica devidamente acompanhada de uma reflexdo metodo - légica cada vez mais aprofundada Doig. ee Raia! de - Maria Isaura Pereira de Queiroz Centro de Estudos Rurais e Urbanos Departamento de Ciéncias Sociais F.F.L.C.H. = U.S.P. ** — Este trabalho sera publicado na revista CIENCIA E CULTURA, ain- da neste ano de 1987; trata-se da revista da Sociedade Brasilei- xa para o Progresso da Ciéncia.

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