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t q ! () () ® PORTUGUES. 22° ANO Prof. Anténio Alves ANALISE DO POEMA, “ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA” 4 Ela canta, pobre ceifeira Ab! canta, canta sem raza! Julgando-se feliz talvez: (0 que em mim sente ‘sta pensando. Cant ea sua vor, cheia Derrama no meu coragio De alegre e andnima viuve, AA tua incerta voz ondeando! Onduta como um canto de ave Ah, poder ser tu, sendo eu! No ar limpo como um limiar, Ter a tua alegre inconsciéncia, E hi curvas noenredo suave Ea conscigncia disso! © céu! Do som que ela tem a cantar, campo! © cangio! A cigncia Ouvicla alegra eentrsteve. Pesa tantoe a vida ¢ tio breve! Na sua voz 3.0 campo e a lida, Enirai por mim dentro! Tornai E canta como se tivesse Minha alma a vossa sombra leve! Mais razdes pra cantar que a vida, Depois, evando-me, passai! Esta composigao postica pode ser dividida em duas parte logicas: ..Na primeira parte, constituida pelas trés primeiras estrofes, 0 poeta descreve a ceifeira e sobretudo o seu canto, canto instintivamente degre. Esta descrigdo seria objetiva, se 0 poeta ndo introduzisse aqui a sua perspetiva: 0 canto da ceifeira era “alegre” porque talvez ela se julgasse feliz, mas ela era “pobre” ea sua” vor cheia de anénima viuve2”, Por isso, “ouvi-a alegra e entristece”: alegra se atendermos as razdes instintiva da coifeira, entristece se a virmos na perspetiva total do poeta. Ha pois, j, nesta primeira parte um grau de subjetividade do poeta que vai adensar-se no segundo momento. . Na segunda parte, 0 poeta exprime a sua emosio perante a canglo inconscentemente alegre da ceifeira, Podemos, ainda, subdividir esta segunda parte em dois momentos. Primeiramente, o poeta langa um apelo 8 ceifeira para que continue a cantar a sua cango inconscente, porque estaemosioo obrigaa pensar, @ 3 desejar ser ela, sem deixar de ser ele, e tera sua “alegre inconscénciae a consciéncia disso" Note-se que © poeta aspira ao impossivel, pois ter a consciénda da inconsciénda é deixar de ser inconsciente! O sujeito lirico, dente desta impossibilidade (a ciénda pesa tantol), langa uma apéstrofe 20 oéu, a0 campo, ’ cancéo, personificados, pedindo-thes que entrem dentro dele, o transformem na sombra deles e o levem para sempre. Paira aqui aquela dor de pensar tio habitual nos poemas de Fernando Pessoa, ‘Mais um paradoxo do grande poeta, o quai tendo sido 0 que mais se serviu da inteligénda, se sentiu um ser torturado, por ser um ser pensante, data sua aspiracio pela alegre inspiracio da ceifeira. Publicado em httn://porti2ano.blosspot.com, por Anténio Alves q q () q ! () A nivel morfossintatico, nas ts primeirasestrofes, 0 tempo verbal predominante 6 0 presente, que projeta a vor doce da ceifeira, desizando suavemente na > imaginacao do poeta que nela medita. A propria repeticao das formas do presente (canta-tr8s vezes; ondula) sugere a imagem da ceifeira a cantar a deslizar na imaginaco do poeta. A mesma sugestdo da passagem lenta do tempo, acomodada 4 meditagio do poeta, é dada pelo recurso perifréstca e pelo geriindo. Na segunda parte do poema, predomina o imperativo para traduairo apelo do poeta, ‘em nitda fungao apelativa da linguagem, e também oinfinitivo com valor optatve Note-se a expressvidade do gertindlo, na frase apelativa: "Derrama no meu coracio a tua incerta voz condeando" (o poeta queria a vor da cefeira ondeando perpetuamente na sua imaginacSo). Na primeira parte do poema por ser essencialmente descritiva, ha mais adjetivos que na segunda, em que predominam os substantives, pronomes e verbos, de harmonia com a funcSo apelativa da linguagem que predominante. A repeticlo do verbo "cantar "(sete vezes), do substantive voz e Cango, 0 uso do verbo ouvir, pdem a sensa¢io auditiva no amago emocional do poeta. © vocabulério do poema é todo ele simples, no ultrapassando em si os limites da norma. Mas 0 poeta soube carregar de sentidos subtilmente sugestivos as palavras mais simples. Assim, observemos @ expressividade dos adjetivos: “pobre ceifeira’, "feliz talvez", “voz chela de alegre e anérima viuver’. Notemos 0s dois pares antitétios: ‘pobre”/“feli”; “alegre"/“andnima’. Estas relagdes Justiicar-se porque cada um dos pares tem de um lado a visSo parcial da ceifeira, e por outro avisSo total do poeta: 2 caifeira ea felize alegre como uma ave pode ser feliz e alegre, inconsciente do seu mal; o poeta via a sua pobreza, uvidava da suafelicidade (“feliz talver" sentia na sua vor uma “alegre e andrima viwve2” Note-se que 0 signo “viuver” é vulgatmente tomado como simbolo de desamparo e tristeza. E evidente a amarga ironia que a expresso antitética “alegre @ andnima viuve2" e o advérbio talvez posposto a feliz, projectao sobre a celfeira e o seu canto, na primeira quadra 0s dois adjetivos da segunda quadra (ar impo e enredo suave) no se podem desligar um do outro: o ar é limpo para que nele perpasse a voz suave de ceifeira; a voz cristalina da cefelra voltela 0 céu igualmente cristalino, Atente-se na eypressividade plurissignificativa do adjetivo incerta, na expressio " incerta vor". 0 adjetivo esté carregado de subjetividade do poeta, pois para ele a voz era ao mesmo tempo alegre & triste. 0 adjetivo alegre ("a tua alagre inconsciénda"), apontando para a parcididade do conhedmento que 2 ceifeiratinha da sua vida, esté carregado de amarga Ironia: o poeta desejava a inconsciéndia da celfeira por ser (paraela)atinica causa da sua degra. Note-se finalmente, 2 subtl expressividade do adjetivo leve (“a vossa sombre leve", sugerindo leveze, 2 quase imaterialidade desta visio-sonho que o poeta teve da pobre ceifeira). Para exprimira imateriaidade, a subjetividade dessa visdo postcs., ha ainda comparagées e metaforas. A compara¢ao: "a sua vor...ondula como um canto de ave" aponta no apenas para a suavidade da voz, mas também para o muito de Publicado em httn://porti2ano.blosspot.com, por Anténio Alves heres HES LDL He = t t q q () q ! () () Instintvo, de inconsciente que tem a alegria da sua voz. "No ar limpo como um limiar" acentua a pureza do ar, do aéu em que poeta imagina a vor da celfeira volteando: a pureza da vor da ceifeira projeta-se no ambiente em que cla se propaga Notemos, agora, a expressvidade das metaforas: "..a Sua voz ondula" (como se ela enchesse 0 ar e este fosse 0 mar); "Na sua voz ha 0 campo e a lida" (como se 0 perfume do campo e @ grédl agitagdo do seu trabalho enchessern ‘a sua); " E hd curvas no enredo suave do som" (a sugerir a melodiosa harmonia da sua cangao. "Derrama no meu coragdo"{como se a sua voz fosse um liquido delidoso de que o poeta queria ser alagado); "a ciéncia pesa tanto" (conotando com a dor de pensar) Para exprimir a contradigao entre a alegra da celfeirae 0 seu trabalho duro, e as consequentes sensacdes opostas que ela operava nele, 0 poeta emprega varias antiteses: “pobre’/"feliz"; “alegre’/“anénima”; “alegre/entristece” , € os paradoxos “Ah! Poder ser tu sendo eu!"; "Ter a tua alegre inconsciénda e a consciéncia disso". Repare-se quanta emocio e expressividade ha nas personificaces “voz cheia de alegre e anénima viwver", "6 céu, 6 campo, 6 cangio!”; 0 poeta servi -se, também do pleonasmo "entra por mim dentro”. Note-se a beleza da Ultima estrofe: depois da referéncia a0 peso da ciéncia e @ brevidade da vida, 0 poeta sugere muito subtiImente, o desejo de se evolar na sombra leve da cefeira, que também desaparece. [A nivel fénico, © poeta usou a quadra , desta vez de harmonia com o assunto simples, embora intelectualizado, notando-se varias vezes 0 transporte entre pares de versos e entre estrofes 3 maneira da atafinda trovadoresca. Arima é sempre cruzada, segundo 0 esquema rimatico A,B,A,8, rima sempre consoante, com exce¢io dos versos |e 3 da primeira estrofe, em que se verificarima toante, Note-se 0 som aberto da rima na Ultima estrofe, sugerindo talver a limpidez e a claridade do céu a que 0 poeta aspirava, ‘A comprovar a variedade sonora do poema, de harmonia com 0 canto do celfeira, hd ainda os frequentes casos de aliteragio. Os versos so de oito silabas, notando-se no entanto, uma certa fluidez na sua medida: hé uma certa dlificuldade em considerar alguns dentro da métrica de oito siabas. ritmo, no geral binario, apresenta-se repousado, de harmonia com a suavidade do canto da celfeira. Retirado de A Uiica ~ Cademos de Literatura, 12°Ano Publicado em httn://porti2ano.blosspot.com, por Anténio Alves desces eee eee = oe

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