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A Dadiva e o Outro: Sobre o Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano* JOEL BIRMAN ** RESUMO Este ensaio pretende estabelecer a distingao entre a palavra ¢ 0 conceito de desamparo no percurso do pensamento freudiano, para enunciar que 0 de- samparo, como conceito, s¢ constitui apenas no segundo tépico ¢ na teoria das pulsdes dos anos 20. Com isso, o desamparo se articularia positivamente com os conccitos de sublimagio ¢ de feminilidade, sendo o masoquismo a sua face negativa, Palayras-chaye: Desamparo, feminilidadc; sublimagao; vitalismo; mortalismo. ABSTRACT ‘On the concept of distress in the Freudian thought This essay aims at establishing the distinction between the word distress and its concept in the Freudian thought, in order to enunciate that distress, as a concept, is constituted only in the second topic and in the theory of pulsion of the 20's, Tins, distress would be positively articulated with the concepts of sublimation and femininity, and masochism would be its negative side, Keywords: Distress; femininity; sublimation; vitalism; mortalism. % Bote texto foi escrito a partir de uma conferéncia pronunciada no Circulo Psicanalitico de Pernambuco, em Recife, no Pré-Férum de Psicanslise, em 18/3/99. ¥* Psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro ¢ professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Ric de Janciro. PHYSIS: Rev, Sadde Coletiva, Ric de Janciro, 9(2): 09-20, 1999 9 Joel Birman RESUME, Sur le concept de détresse dans la pensée freudienne Liintention de l’essai est d’établir ta différence entre le mot et le concept de détresse dans le parcours de 1a pensée freudienne, pour énoncer que la détresse en tant que concept a été constituée sculement dans le seconde topique ct dans Ta théorie des pulsions des années 20. Ainsi, la détresse donc serait articulée d'une fagon positive avec les concepts de sublimation et de feminité, et le masochisme serait la face négative de celui-la. Mots-clé: Détresse; féminité; sublimation; vitalisme; mortalisme. Recebido em 3/11/99. Aprovado em 10/12/99. 10 PHYSTS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 1999 A Didiva ¢ 0 Outro: Sobre 0 Conceito de Desamparo no Discurso Frendiano Palavra e Conceito Trata-se de demonstrar neste ensaio que existe, em psicandlise, em par- ticular no discurso freudiano, o conceito de desamparo. Pode parecer uma banalidade esta afirmacio, j& que os analistas freqiientemente fazem alusio a essa palayra nos seus escritos. Além disso, aqueles se inscrevem em diferentes tend&ncias do pensamento psicanalftico. Finalmente, falar em desamparo esta decididamente na moda no campo da psicandlise, razio pela qual a presenga desta palavra pulula nos textos psicanaliticos nos tiltimos tempos. Contudo, que os analistas fagam referéneia ao desamparo — aqui e ali, em toda parte, até — nao quer dizer absolutamente que eles estejam falando da mesma coisa. Poder-se-ia dizer que isso se deve ao fato de que aqueles pertencem a matrizes diversas do discurso psicanalitico e que conseqiiente- mente trabalham com énfases e interpretagGes diferentes da psicandlise. Dai, portanto, que se refiram a diversas concepgées do desamparo. Que seja, entiio, Mas isso nao é tudo. Estou certo disso, Algo mais encontra-se ai presente, enfatizo aqui, que ultrapassa 0 horizonte da diversidade teérica. ‘Assim, existe uma espécie de Babel condensada na magica palavra de- samparo, que é preciso reconhecer, antes de mais nada, para que se possa dizer algo de consistente sobre isso. A magia investida nessa palavra éa fonte inesgotavel de enganos, tropegos & mal-entendidos entre os interlocutores envolvidos no didlogo sobre isso na psicandlise. Este se caracteriza pela surdez dos dialogantes. Além disso, o discurso destes é marcado pela pro- lixidade. Isso porque algo sempre escapa do sentido da palavra, que desliza de forma inapreensivel quando se pretende falar dela em psicandlise. Neste contexto, a palavra assume uma aura de magia em decorréncia dessas particularidades de seu uso. E justamente essa magia que precisa ser decantada na utilizagao dessa palavra, na medida em que isso iria alirnentar as potencialidades de rufdo entre os diferentes interlocutores. Isso porque nao se trata aqui de uma mera situagdo de polissemia, na qual a polivaléncia de sentido seria a condi¢do de possibilidade tanto da criagio quanto da criatividade te6ricas. Ao contrério, parece-me que se trata de uma confusio entre palavra e conceito, no que tange ao desamparo. Com efeito, a palavra e 0 conceito de desamparo nao querem dizer a mesma coisa no discurso freudiano. Pode-sc encontrar nele, freqiientemen- te, a utilizagdo dessa palavra sem que esteja em questo necessariamente PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 1999 n Joe! Birman © conceito de desamparo. Ou, inversamente, pode-se constatar ainda a pre- senga operatéria do conceito de desamparo sem que a palavra desamparo esteja diretamente referida. Esta distingao é fundamental, de maneira que reconhecé-la e apreendé-la no registro da escrita freudiana é 0 caminho necess4rio para que se possa sair do efeito magico da palavra desam- paro e da Babel psicanalitica dai decorrente. Poder, enfim, se descolar do encantamento paralisante dessa palavra 6 escapar também da prolixi- dade que marca o seu uso e da surdez que caracteriza o didlogo dos interlocutores. Gramiticas Assim, 6 possivel reconhecer, sem muita argticia, que a palavra desam- paro foi enunciada bem precocemente no discurso freudiano. Em contrapartida, o conceito de desamparo é bastante tardio, fazendo apenas a sua emergéncia apés os anos 20. Essa distancia temporal indica que Freud teve que empreender um longo percurso teérico-clfnico para transformar a palavra desamparo num conceito metapsicolégico. Poder surpreender e argiiir as razdes desse percurso é fundamental para que se possam reconbe- cer as condigées de possibilidade do conceito de desamparo em psicandlise. A palavra em questio ja se encontra presente no “Projeto de uma psi- cologia cientifica”, numa famosa passagem, sempre repetida pelos comentadores, da terceira parte desta obra (Freud, 1973 [1895], 3° parte). Porém, 0 seu uso é restrito ¢ até mesmo eventual no discurso inicial da psicandlise. Entretanto, apés os anos 20 a palavra ocupard bastante espago na escrita freudiana e crescerd sempre em volume, de maneira inesperada. Bssa transformagdo na escrita é o signo de uma transformagao fundamental no set uso € no seu sentido, indubitavelmente. Além disso, a palavra desamparo no novo contexto nfo se restringe apenas a um uso adjetivo, como ocorria nos primérdios do discurso freudiano, assumindo agora também a forma gramatical do substantivo. Estas trans- formagdes, da fungo gramatical e morfolégica da palavra desamparo, apa- rentemente stibitas, indicam a construgéo de um conceito anteriormente inexistente. Assim, desde 0 “Além do princfpio do prazer” (Freud, 1981 [1920}), até o “Mal-estar na civilizagao” (Freud, 1971 [1930]), passando por “{nibigao, sintoma e angdstia” (FREUD, 1973) e pelo “O futuro de uma ilustio” (Freud, 1971), pode-se caminhar pelas sendas de outro universo semantico, que indica a presenca de outra gramatica conceitual no campo 12 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 1999 A Dadiva e 0 Outro: Sobre o Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano psicanalitico. E a construgao dessa gramética, nova e outra, que se encontra em pauta aqui. Estes comentérios introdutérios j4 indicam a presenga de uma série de problemas de ordem epistemolégica e metodoldgica na leitura do discurso freudiano, que é preciso sublinhar e avaliar cuidadosamente, para melhor explicitar e aquilatar a confusdo existente entre os registros da palavra e do conceito de desamparo a que aludi acima. £ de importincia crucial entio destacar aqueles, de forma suméria pelo menos, j4 que seria por esse viés apenas que se poderia encontrar 0 caminho para se enunciar 0 conceito de desamparo. Este caminho 6 constitutive do proprio conceito de desamparo, sendo 0 correlato do percurso teérico-clinico que o discurso freudiano teve que percorrer entre 1895 ¢ 1920, a que me referi acima. Continuidade e Descontinuidade A fratura existente entre a palavra e 0 conceito de desamparo, no dis- curso freudiano, bem entendido, indica que estou propondo aqui uma leitura deste discurso fundada na descontinuidade. Vale dizer, esse discurso nao se apresentou nem se enunciou sempre da mesma maneira, mas se carac- terizou por inflexdes, rupturas, pontuagSes e transformagées radicais ao longo de seu percurso. Portanto, as condigées iniciais daquele discurso nao slo as mesmas que se impuseram no seu desdobramento posterior. Enfim, existiria um pensamento freudiano nos primérdios da psicandlise que nao € idéntico ao que se constituiu no seu final, e que € preciso reconhecer nas diferengas significativas que fundamentam experiéncias analiticas também diferentes. Se esta interpretagdo geral que sugiro aqui é legitima e bem fundada, como pretendo demonstrar ao longo deste ensaio, de maneira condensada, isso nos permite depreender imediatamente que as leituras do discurso freudiano que consideram que a mera presenga da palavra desamparo nos escritos iniciais de Freud seria j4 por si mesma a evidéncia de um conceito, se fundam numa leitura continuista daquele discurso. Portanto, o discurso freudiano que supostamente teria sido reconstituido apds os anos 20 ja es- taria enunciado, de fato e de direita, nos seus primérdios. Seriam pois estas leituras que estariam sendo criticadas aqui, j4 que para estas 0 “Projeto de uma psicologia cientifica” seria entio 0 esbogo da teoria psicanalitica. Essa posicao epistemoldgica continufsta se desenvolveu no campo psica- nalitico desde o inicio dos anos 50, quando justamente se publicou o dito PHYSIS: Rev, Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 1999 B Joel Birman “Projeto de uma psicologia cientifica”, acompanhado de uma parcela da correspondéncia com Fliess, onde se revelou a presenga de pequenos esbo- gos tedricos de Freud enviados a Fliess com algumas hipdteses originais de pesquisa (Freud, 1973 [1895]). Como algumas concepgdes do “Projeto de uma psicologia cientifica” se aproximavam de parte das nogdes encontradas no “Além do principio do prazer”, supés-se entéo que Freud enunciava teses no final do seu percurso teGrico que eram similares 4s de seus primérdios. Entretanto, trata-se de um equivoco interpretativo, j4 que os termos das questées nos dois contextos nao so os mesmos, nao obstante a existéncia de algumas similaridades. Além disso, Freud munca quis publicar 0 ensaio de 1895 e fundiu parcialmente a metapsicologia em “A interpretacdo dos sonhos” (1900 / 1976), no célebre capitulo VII. Enfim, foi ento essa metapsicologia que orientou © pensamento freudiano até a viragem dos anos 20. De qualquer forma, com a redescoberta e a publicagéo do ensaio de 1895 nos anos 50, as mais diferentes orientagdes do pensamento psicanalitico pés- freudiano Tangara a interpretagdo baseada na continuidade do pensamento freudiano, E curioso registrar aqui como diferentes leituras do discurso psi- canalitico insistiram no mesmo ponto, sublinhando sempre o continuismo no pensamento freudiano, a partir de similaridades superficiais entre 1895 1920. Com efeito, das interpretacées fisicalistas 4s hermenéuticas, passando pelas leituras semiol6gica linguifstica da psicanilise, a tese da continuidade foi sustentada de maneira insofismavel. Se nos aproximarmos dessa interpretagdo continufsta, no entanto, na sua diversidade te6rica, pode-se surpreender 0 mesmo movimento de pensamen- to. Com efeito, impée-se ao “Projeto de uma psicologia cientifica” a mesma racionalidade presente na segunda teoria das pulsdes ¢ formulada no “Além do principio do prazer”, de maneira a fazer falar o primeiro escrito aquilo que se encontra presente apenas no segundo. Foi por esta manobra questionavel de leitura que se transformaram palavras em conceitos, sem que se considerassem devidamente os diferentes contextos de discursividade em pauta. Enfim, foi por esse viés que se afirmou a presenga do conceit de desamparo desde os primérdios do discurso freudiano € nado como um conceito tardio, se impondo, pois, um outro sentido para a palavra desam- paro. Contudo, os principios norteadores do “Projeto de uma psicologia cienti- fica’ nao so os mesmos que se encontram na aventura metapsicolégica dos anos 20, nao obstante certas similaridades. Pelo contrario, as teses susten- tadas naquela obra séo homogéneas com o que se enunciou na teoria psi- 14 PHYSIS: Rev, Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 921: 09-30. 1999 A Dédiva ¢ 0 Outro: Sobre 0 Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano canalitica até os anos 20, condizentes que sio, pois, com a primeira teoria das pulsdes. Como j4 disse, Freud inscreveu o fundamental dessa metapsicologia inaugural em “A interpretagdo dos sonhos”, decantando-a ao maximo de sua linguagem naturalista. Portanto, a ruptura freudiana se rea- jizou mesmo, de fato e de direito, apés os anos 20, com os principios sus- tentados por Freud desde 1895. Seria, pois, esta continuidade inicial que deveria ser bem mostrada e, se possivel, demonstrada, isto é, aquela que existe entre a metapsicologia de 1895, a primeira teoria das pulsdes e a primeira tépica. Tudo isso para que se possa indicar a ruptura freudiana posterior, que se desenvolver4 em torno do conceito de desamparo. Entretanto, para que se considere devidamente a ruptura freudiana € a constituigaio do conceito de desamparo, na encruzilhada de diferentes metapsicologias, € preciso sublinhar as sendas por onde se ordenou e se reordenou o discurso frendiano. Para tal, necessario € que se destaquem as diferentes dimens@es que esto implicadas nas escolhas teéricas de Freud. Quais seriam estas, entdo? Pode-se sublinhar aqui quatro discussées que delineiam, pelo menos, 0 percurso tedrico em pauta, a saber: 1. uma escotha metafisica de Freud, na maneita como encarou a oposi¢ao entre a vida e a morte; 2. a fundamentagio dessa escolha metafisica, que se desdobrou nos dis- cursos biolégicos manejados por Freud; 3. as conseqiiéncias disso tudo para a construgao das diferentes metapsicologias, que estéo aqui em questao: 4. finalmente, os desdobramentos clinicos que as diferentes opgdes € de- senvolvimentos implicaram. Serd isso, pois, que formularemos em seguida, nos deslocando da metafisica e da biologia, para que possamos, enfim, circunscrever melhor as metapsicologias ¢ as clfnicas delineadas pelo discurso freudiano em diferen- tes contextos. Escolha Metafisica? Pode soar estranbo que eu possa me referir a escolhas metafisicas de Freud na fundagao da metapsicologia e que isso tivesse efeitos na sua clinica. Assim, como seria possivel que um autor, téo marcado como era pelo discurso da ciéncia e pelos tragos do positivismo, tivesse sido direcionado PHYSIS: Rev, Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 199915 Joel Birman por certas escolhas metaffsicas, argiliriam alguns? Contudo, marcado que fosse Freud pelos ideais do positivismo na sua filosofia da ciéncia, sendo ou nao um cientificista, pouco importa, alias, qualquer discurso teérico com pretensiio cientifica supde sempre algumas escolhas metafisicas prévias, que so as suas condigdes concretas de possibilidade. Parece-me, pois, que isto estd presente em qualquer discurso cientffico, logo também na psicanalise, se é que esta se constituiu como ura ciéncia. O que nao é absolutamente liquido e certo, diga-se de passagem. O que estava em pauta aqui, nas escolhas ditas metafisicas de Freud, dizia respeito as relag6es entre os valores da vida e da morte. No que tange as escolhas em questio, Freud estard sensivel ao que ocorre no seu contexto histérico, inclinando-se entre os valores da vida e da morte de acordo com as oscilagGes que tendem a dominar as discussdes tedricas do seu tempo. O que no quer dizer que com as escolhas que realizou, a partir do contexto histérico em que se inseriu, Freud nao tenha empreendido uma construgdo te6rica original e criativa, como veremos adiante. Assim, no campo dessas escolhas, Freud atribuiu inicialmente a vida a condic&o de origem insofismavel do ser, sendo a morte entdo a perda desse bem originario, o produto inevitdvel e a resultante do seu desgaste. A morte seria, pois, nao apenas o Outro absoluto da vida, aquilo que se ope a ela radicalmente, como também aquilo que mantém com aquela uma relacgao de exterioridade. A vida e a morte seriam entao neste contexto dois estados opostos, estabelecendo relagdes extrinsecas entre si. A vida seria, pois, um € absoluto e insofismavel. Foi esta escolha que Freud realizou desde os capitulos iniciais do “Projeto de uma psicologia cientifica” (Freud, 1973 [1895]) de maneira bastante evidente e que retomou, logo em seguida, no capitulo VII de A interpretagao dos sonhos. Em contrapartida, apés os anos vinte ndo era mais a vida o que estaria nas origens do ser, mas a morte, sendo a vida entao a possibilidade que o ser adquiria para se opor & iminéncia e & irrapgdo da morte, A vida seria pois uma aquisigao e no algo origindrio do vivente, que neste se inscreveria entio a partir do Outro. Enquanto inerustacao e artificio do Outro, a vida estabeleceria desde sempre uma luta entre Titas com a morte. Porém, esta estaria sempre [4, espreita, dissolvendo de maneira silenciosa o trabalho de produgdo da ordem vital. Haveria entio uma imbricagao entre vida ¢ morte nesta segunda suposig&o, e nfo mais uma relagdo de exterioridades enue essas possibilidades. Vale dizer, a morte estaria no interior da vida, carcomendo interiormente as potencialidades vitais. Esta outra escolha foi realizada por 16 PHYSIS: Rev, Satide Coletiva, Rio de Fanciro, 9¢2): 09-30, 1999 A Dadiva € 0 Outro: Sobre 0 Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano Freud ao longo do “Além do principio do prazer” e defendida de forma literal no ensaio sobre “O problema econémico do masoquismo” (Freud, 1973 [1924]), de 1924. Seria entéo pela consideragéo acurada dessa oposigio e das escolhas metafisicas que foram realizadas pelo discurso freudiano que se pode melhor compreender as diferentes modelizagdes metapsicolégicas presentes no pensamento freudiano e os seus desdobramentos para a leitura da experién- cia psicanalitica. Contado, para se aprender isso de maneira aguda é pre- ciso antes vislumbrar como essas opgdes metafisicas foram representadas por Freud pela mediagio do discurso biol6gico. Para tal o discurso freudiano se valeu de diferentes referenciais do pen- samento biolégico do século XIX, para fundar estas diversas opgdes. B 0 que se verd em seguida. Vitalismo e Mortalismo Pode-se afirmar que o discurso freudiano se deslocou de um postulado biolégico vitalista para interpretar as relacdes de oposig&o entre a vida e a morte, para um outro fundado no mortalismo, para nos yalermos de um termo utilizado com bastante ironia por Foucault em 0 Nascimento da cli- nica (Foucault, 1963, cap. VIII e IX), para realizar uma critica sistematica ao vitalismo de Canguilhem em O normal e o patolégico (Canguilhem, 1975). Entre vitalismo e mortalismo entio se deslocou o pensamento freudiano para pensar as relagdes entre a vida e a morte. Foi entre esses modelos sobre o organismo que este se fundou para pensar na anterioridade da vida sobre a morte ou, entdo, posteriormente, na anterioridade da morte sobre a vida. Para cada um daqueles discursos biolégicos, vigentes ao longo do século XIX, 0 origindrio do ser nao era pois o mesmo, pendendo o primeiro para a ordem da vida e 0 segundo para a desordem da morte, Seria entéio entre a ordem e a desordem que a oposigao entre vida e morte foi colocada naqueles discursos sobre o organismo. Onde estaria, enfim, o fundamento do ser: na ordem ou na desordem, na vida ou na morte? Seria, entdo, esta a problemética fundamental aqui colocada e que merece ser pontuada no seu alcance. Nos primérdios do pensamento freudiano, com efeito, existia na sua insofismavel escolha da vida como originario uma adesao elogiiente ao modelo do vitalismo. Esta corrente do discurso biolégico foi constitutiva da propria PHYSIS: Rev. Satide Coletiva. Rio de Janeiro. 2): 09-30, 199917 Joel Birman biologia. enquanto saber, estando presente na tradigéo cientifica desde o século XVIII. Nesses termos, enunciar e sustentar a idéia da existéncia de uma forga vital ¢ da presenga da irritabilidade como caracteristicas ba- sicas do vivente era a maneira pela qual o discurso cientffico afirmava a diferenca da matéria orgdnica em relagdo & inorganica. Seria pela mediagio daquelas que as plantas ¢ os animais se diferenciariam do universo inanima- do. Por isso mesmo, a constituigéo da biologia enquanto ciéncia se identifi- cou com os postulados do vitalismo, j4 que desta forma o discurso da fisica, que era ent&éo dominante na tradi¢ao cientffica, nao podia dar conta do mundo animado'. Este modelo vitalista foi meticulosamente rearticulado por C. Bernard, no século XIX, para a construgio da fisiologia como ciéncia e para se pensar na existéncia de uma medicina experimental (Canguilhem, 1968 e 1971). Para tal, aquele concebeu o organismo segundo a idéia de homeostasia, onde a existéncia de regulagdes autométicas naquele permitiriam a manuten- ¢&o de operadores vitais. Desta maneira, os meios interno e externo esta- beleceriam relagdes homeostaticas, capazes assim de manter as constantes vitais e a adaptagdo do organismo as exigéncias do meio exterior. A vida seria, pois, esse funcionamento homeostético do organismo, que entre meios interno e externo permitiria a adaptagdo do organismo ao meio exterior. Foi desse modelo que se valeu Freud nos primérdios da psicanélise, de maneira indiscutfvel. Antes de mais nada, a predominancia da sexualidade nest contexto implica a identificago desta com a forga vital. A natureza humana seria pois exuberante nas suas manifestagGes erdgenas, sendo estas derivagdes polimorfas da vitalidade. Em seguida, o psiquismo foi concebido segundo um modelo fundado na homeostase, que pela regulacdo sexual permitiria as relagdes entre os meios interno ¢ externo, entre 0 corpo ¢ os objetos, ou, enfim, entre sujeito e o Outro. Finalmente, seria através disso que 2 adaptaco possivel entre psiquismo e mundo — variagGes, no aparelho psfquico, das nogdes de meios interno e externo no discurso da fisiologia — seria possivel. Além disso tudo, é preciso considerar que 0 discurso biolégico de C. Bernard se encontra presente nos escritos iniciais de Freud, tanto no “Pro- jeto de uma psicologia cientifica” quanto no capitulo VII de “A interpretagao dos sonhos”, Foi nestas obras que Freud constituiu a sua metapsicologia ' Sobre isso, vide Canguilhem (1968 ¢ 1971). 18 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Ric de Janciro, 9(2); 09-30, 1999 A Didiva © 0 Outro: Sobre 0 Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano inicial, ndo nos esquegamos disso, Por isso mesmo, o modelo vitalista foi fundamental na sua construg4o. Em contrapartida, nao era mais 0 modelo vitalista que estava no horizonte tedrico freudiano apés os anos 20. Neste contexto, Freud sublinhava nado apenas a presenga de uma deiescéncia vital, uma forma de incapacidade originaria para a vida do organismo, como também uma insuficiéncia vital deste, Foi aqui que Freud formulou a existéncia de um movimento primordial para a morte, como uma propensao origindria do ser vivente. Em seguida, 0 discurso freudiano se referird a isso tudo como sendo a revelagao de uma prematuridade do organismo humano, que viria ao mundo incapacitado para a vida, sobretudo no que tange ao sistema nervoso, conforme os ele- mentos j4 disponiveis pela biologia ¢ pela fisiologia daquele sistema no inicio do século XX. Seria em fungdo mesmo dessa prematuridade biol6gica, isto 6, dessa deiescéncia e incapacidade vital, que o organismo humano precisaria do outro, de maneira absoluta, como condigio sine qua non para a sua sobre- vivéncia enquanto organismo. Com isso, o ser humano incluiria a vitalidade do outro no seu ser, marcado que seria pela insuficiéncia abissal. Seria o outro como ordem que inscreveria o infante marcado pela desordem no registro da vida. Seria por isso mesmo que a natureza humana desenvolveria uma marca insuperdvel de dependéncia ao outro, condigio de possibilidade que este seria para a sua produgdo vital e para a sua reprodug&o vital, j4 que a vida teria que se impor permanentemente sobre esse fundo amorfo perpassado pela morte. Foi neste contexto, pois, que o modelo bioldgico vitalista foi substitufdo pelo mortalista, isto é, que Freud teve que se deslocar do referencial de C. Bernard para o de Bichat. Este, nos prim6rdios do século XIX, como um dos construtores que foi do discurso da anatomia patolégica e da andtomo- clinica, ndo dizia que “a vida é 0 conjunto de forgas que lutam contra a morte” (Bichat, 1994), enfatizando que a vida como figura é 0 que se opoe ao fundo de morte existente no vivente? Portanto, a morte como informe seria aquilo que estaria presente como fundo na condigao vital do organismo, presencga sempre eminente e solene, como desordem que pode a qualquer momento romper em pedacos a ordem vital. Esta seria caracterizada pela fragilidade e pela fugacidade, na medida mesmo em que funcionaria como dique face & ameaga sempre presente da morte. Lacan teve 0 mérito te6rico de mostrar, com muita pertinéncia, alias, a presenca desse modelo biolégico em Freud (Lacan, 1966). Além disso, ar- PHYSIS: Rev, Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 92): 09-30, 199919 Joel Birman ticulou-o 4 tese freudiana da prematuridade biolégica de maneira precisa, para enunciar a ligacdo disso tudo com a constituicao do conceito de pulsio de morte. Em tudo isso, é a presenga da morte como origem e fundo da condigao humana que se revela com eloqiiéncia no discurso freudiano, de maneira que a desordem se impde face a ordem de forma continua, como o informe ao mundo da morfologia. E preciso que agora possamos demonstrar como a escolha metafisica de Freud e a utilizagao desses modelos do pensamento biolégico estéio no fundamento das metapsicologias do discurso freudiano. Metapsicologias Assim, 0 pressuposto bisico da primeira metapsicologia freudiana se constituiu pela recusa do principio da inércia e por sua transformagio no principio da constancia. Este gesto tedrico de Freud se encontra ja no ca- pitulo inicial do “Projeto de uma psicologia cientifica” (Freud, 1973 [1895], I" parte). Aquele o afirmou de maneira elogiiente e indubitavel, ao enunciar que se o principio da inércia fosse aquilo que regula o destino da excitabilidade neuronal © organismo nao sobreviveria. Com efeito, pela descarga total © absoluta das excitagdes o organismo seria fadado A morte, pela climinagao completa de sua energia. Chegando, assim, ao reconhecimento disso e de sua consegiiéncia inevitavel, Freud recua e recusa o principio da inércia. Passa a enunciar entdo que apenas uma parte das excitagGes seria eliminada como descarga e uma outra retida para tornar a vida possivel para 0 orga~ nismo, Pela reteng&o de uma parcela da excitagdo, o principio da inércia foi, pois, transformado no princfpio da constancia. Enfim, existiria sempre no organismo uma parcela das excitagdes que nao seria elimindvel, sendo essa constante o fundamental pela propria exigéncia da vida. Freud nos falou aqui da urgéncia da vida. Nestes termos, a urgéncia da vida a que se referiu Freud € a afirmagao do postulado basico do vitalismo, segundo o qual a ordem vital seria origi- néria e insofismAvel. Seria isso justamente que teria conduzido o discurso freudiano a recusa do principio da inércia e 4 sua transformacdo no principio da constincia. Assim, seria impossivel para um teérico marcado pelo vitalismo admitir um processo de eliminagdo total de energia, j4 que isso iria contra- dizer os prinefpios mesmos que fundariam a ordem vital como origindria € primordial. Neste contexto, a irritabilidade em questo ja se constituiria como um 20 —_-PRYSIS: Rev, Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2}: 09-30, 1999 A Dadiva © 0 Outro: Sobre 0 Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano circuito pulsional ordenado, isto é, uma forga (Drang) que ja teria uma ligago com o universo dos objetos € das representagdes. Isso porque ad- mitir a retengao e a constancia energética nao elimindvel implicaria ji um esquema de satisfagdo possfvel para a excitabilidade, razao necessdria para a sua retengio. Portanto, o princfpio do prazer estaria presente desde sem- pre, correlato que seria do principio da constancia, articulando 0 circuito pulsional de maneira origindria. Conseqiientemente, a pulsao sexual faria a sua emergéncia desde a ori- gem, regulado que seria o circuito pulsional pelo principio do prazer. A pulsfo sexual seria, pois, a manifestagao imediata da forga vital, revelando a pletora do prazer que delinearia como tal a ordem da vida. O esquema tedrico do vitalismo encontra-se transposto entéo para a linguagem da se- xualidade de maneira imediata. A ordem vital se identificaria, entao, com a sexualidade € 0 prazer. Em contrapartida, em “Além do principio do prazer” inaugura-se uma metapsicologia a ela oposta nos menores detalhes. © discurso freudiano enuncia aqui 0 conceito de pulsdo de morte como sendo uma fora primor- dial que tende para a descarga total, colocando em questo a ordem da vida. ‘A tendéncia origindria do organismo seria, pois, para o esvaziamento energético total, visando, assim, & quictude do ser, com um retomo radical ao inorganico, isto é, ao universo inanimado e mineral. Enfim, a morte estaria na origem do ser ¢ da vida, presenca silenciosa que se impde imediatamente. Foi por essa transformagio radical em pauta que o discurso freudiano realizou a critica sistematica de sua metapsicologia inicial. Assim, em “O problema econdmico do masoquismo” foi enunciado que o principio do pra- zet nao seria absolutamente origindrio, mas derivado ¢ secundario & existén- cia, no ser, de um movimento primordial para a morte (Freud, 1973 [1924]). Freud afirmou mesmo que “errou” quando dissera anteriormente que © pra- zer seria originério. Por isso mesmo, enuncia que 0 movimento primordial para a morte seria regulado pelo principio do nirvana. Portanto, aquilo que tinha sido recusado inicialmente, como sendo o prinefpio da inércia, foi re- tomado decididamente nesse outro contexto como principio do nirvana. O modelo biolégico mortalista foi o esquema tedrico que orientou o dis- curso freudiano na reformulagdo metapsicolégica. A deiescéncia vital seria a marca fundamental da natureza humana, delineando-a, pois, nas suas pulsagdes origindrias. A prematuridade bioldgica do organismo humano seria 6 correlato dessa propensao priméria para a descarga absoluta. Porém, se para Bichat “a vida é 0 conjunto de forgas que Tutam contra a morte”, como PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeivo, 2): 09-30, 1999 21 Joel Birman evoquei acima, como se introduziria entdo a ordem vital na natureza voltada para a morte? Como foi que o discurso freudiano inscreveu na nova metapsicologia essa exigéncia fundamental da biologia mortalista? Assim, Eros seria a forga existente que se contraporia ao movimento para a morte e para a quietude do ser. E curioso e bastante revelador registrar como, agora, para Freud, Eros se identifica com a pulsio de vida, explicitando 0 bem fundado de nossa interpretagao acima sobre a primeira metapsicologia, pela qual a pulsdo sexual se identificava com a forga vital. Seria, pois, Eros, enquanto poténcia de uniZio e de ordem, que se contraporia a Tanatos, como forga de dissolugao e de produgao do informe. Enfim, Eros seria entdo 0 principio que condensaria 0 conjunto de forgas que lutariam contra a morte, representado por Tanatos. Porém, isso ainda nao é tudo. Esses termos e conceitos nos fornecem apenas outra linguagem para enunciar o esquema mortalista e reordenar os eixos da metapsicologia freudiana, de acordo com as novas exigéncias te- 6ricas. Esta seria a condi¢éo necessdria para solucionar a problemética agora esbocada, mas nao suficiente. Para tal, seria preciso considerar a forma de agenciamento dessa operagiio, para que se possa dar conta do tal conjunto de forgas vivas que lutam contra a morte. Foi aqui que a problematica do Outro se inscreveu radicalmente na metapsicologia freudiana, na medida em que aquele seria o locus do agenciamento para que 0 conjunto de forgas da vida pudesse se contrapor as da morte. Com efeito, se 0 movimento originario do organismo € para a descarga e para a quietude, ndo existiria no interior daquele nada que a isso se pudesse contrapor, j4 que aquele, deixado a si proprio, tenderia para a morte. Conseqiientemente, a possibilidade para que a ordem vital se instituisse adviria de algo exterior ao organismo, que como uma contraforga vital se contraporia ao movimento para a descarga. Esse exterior seria representado pelo Outro, que pelos cuidados ¢ pela erogeneizagao da descarga permitiria ‘9 retorno desta para o interior do organismo ¢ com isso a fixacio da ordem vital. Portanto, seria pelo trabalho do outro que a pulséo de morte seria regu- lada pela pulsdo de vida, possibilitando que aquela fosse vinculada a um campo de objetos de satisfagao ¢ ao campo de representagdes que nomearia a forga que impeliu para a descarga. Com isso, a pulsdo se tornaria sexual e seria entéo regulada pelo principio do prazer. Vale dizer, seria pela exterioridade que a interioridade seria constitufda como ordem sexual, trans- formando a natureza do organismo, ao alocar nesses territ6rios de auto- 22 —_- PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 2): 09-30, 1999 A Dédiva € 0 Outro: Sobre 0 Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano erotismo que se oporiam aos movimentos para a descarga mortffera. Enfim, seria desta maneira que se inscreveria no conjunto de forgas vitais (sexuais) que lutariam contra a morte. O esquema da nova metapsicologia foi delineado nos ensaios metapsicolégicos de 1915, principalmente em “As pulsdes € seus destinos” (Freud, 1968 [1915], quando o discurso freudiano enunciou a autonomia da forga pulsional em relagiio aos seus representantes. Com isso, esta leitura criticou o esquema metapsicolégico inaugural, no qual o circuito pulsional estava ordenado desde a origem. O que se impde agora é a ordenagao do circuito a partir da forga pulsional, no qual 0 outro € operador deste agenciamento, pela oferta de objetos de satisfagao a partir da nomeagao da demanda da forga pulsional. Seria 0 outro, pois, que realizaria trabalho de ligagdo da forga da pulsao aos objetos de satisfacdo, pela interpretagéo que faria daquilo que demanda aquela forga. Com isso, os destinos descritos por Freud no ensaio “As pulses ¢ seus destinos” — a passagem do ativo para 0 passivo, 0 retorno sobre 0 corpo, © recalque e a sublimagdo (Freud, 1968 [1915]) — seriam o produto do trabalho realizado pelo outro, segundo o qual se ordenariam as forgas erdgenas que poderiam combater 0 movimento origindrio para a morte presente no organismo. A constituigao do corpo erégeno seria a resultante maior desse processo, pelo gual a ordem vital seria a ordem sexual propriamente dita. Com isso, 0 novo esquema metapsicoldgico se consolida nos seus menores detalhes, contrapondo-se ao modelo primordial em todos os seus pontos. Todas as pegas do quebra-cabega que me propus a decifrar estao ja aqui dispostas. O que se impée agora é circunscrever a emergéncia tedrica do conceito de desamparo, em que este se transforma de palavra em conceito, e da gramatica do adjetivo para a do substantivo. Desamparo, Conjugacao ¢ Ato © conceito de desamparo em psicandlise sé constituiu, de fato e de direito, no contexto da formulacio final da metapsicologia freudiana. Ele é diretamente tributdrio da construgdo do conceito de pulsio de morte ¢ da- quilo que o funda, isto é, a suspensdo da recusa imposta nos primérdios do discurso freudiano ao principio da jnércia e a sua nova enunciagio sob a forma do principio do nirvana. Vale dizer, o desamparo € 0 correlato, na patureza humana, de sua propensdo originéria para a descarga total ¢ abso- luta das excitagdes, na medida em que inexiste no ser qualquer meio de PHYSIS: Rev, Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 92): 09-30, 1999 23 Joel Birman dominio destas, apenas restando, para aquele, a possibilidade de sua elimi- nagao. Assim, o vivente almejaria um estado de quietude, pelo apagamento mesmo de sua condi¢ao animada e o retorno a suposta condigdo anterior de inanimado e de mineral. Por isso mesmo, o discurso freudiano intitulou de nirvana o principio regulador dessa propensao, j4 que o estado de quietude buscado pelo ser, incapaz de manejar com as excitacées, se identificaria com a situag4o de nirvana, sustentada ¢ desenvolvida pela filosofia e pela religiao hindu. Provavelmente, Freud retirou este termo da filosofia de Schopenhauer, j4 que este introduziu na cultura européia, e alema em particular, as propos- tas filos6ficas sobre o hindufsmo, na primeira metade do século XTX. Con- tudo, para o discurso freudiano seria 0 retorno do organismo & condigtio de inanimado, 0 querer livrar-se de sua condi¢do animada, por nao ter instru- mentos préprios para dominar as excitagdes e constituir com elas destinos outros que ndo sejam a morte — condizentes, entao, com a manutengiio da ordem da vida. Em funco mesmo da inexist@ncia de instramentos para o dominio das excitagdes, estas se constituem como excesso para o organismo. Falar, pois, em excesso implica uma relagdo entre a magnitude da excitacdo e a inexisténcia de instrumentes capazes de dominé-la e que possam cons- truir destinos adequados com a ordem vital. Neste contexto, 0 excesso se constitui enquanto tal em decorréncia da deiescéncia vital da natureza hu- mana, isto é, como conseqiiéncia da prematuridade biolégica que a marca desde a origem. Por isso mesmo, o organismo humano seria fadado 4 morte ea quietude se nao fosse a presenga do outro, que agenciaria os instrumen- tos que Ihe faltam intrinsecamente para construir destinos outros para a forca pulsional que permitam a construgao da ordem vital. Seria o outro, enfim, que realizaria o trabalho de ligagdo da forga pulsional que o orga- nismo humano seria incapaz de realizar. Nesses termos, a ordem vital se identificaria com a ordem sexual, jd que seria pela crogeneidade oferecida pelo outro que o organismo humano po- deria ser vidvel para a vida propriamente dita. A vida, pois, nao seria ine- rente ao vivente, mas algo que Ihe seria introduzido pelo outro, pela erogencizag4o do organismo prematuro e incapaz para a vida. Assim, a vida seria da ordem da transmissfo ¢ naéo uma qualidade e atributo inerente ao organismo humano, mas algo que the foi ofertado como um dom pelo outro, Se a problematica da divida simbélica se colocou de maneira peremptéria no discurso freudiano desde os anos 15 ¢ 20, no contexto de produgiio e de elaboracdo da nova metapsicologia, isso se deve ao fato de que o reconhe- 24 © PHYSIS: Rev. Sadde Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 1999 A Dédiva € 0 Outro: Sobre o Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano cimento da incapacidade do organismo para a vida 0 coloca numa posigao de recebé-la do outro pelas sendas da erogeneidade. Com isso, contrai uma divida para com o outro, pois a vida nao Ihe foi absolutamente ofertada como uma dadiva da natureza ou de Deus, mas pela transmissdo do outro, como um dom. ‘Assim, 0 sujeito se constitui pelo trabalho do outro, pela mediagaio de uma dependéncia da qual jamais se libertar4. Isso porque mesmo que posterior- mente © sujeito se torne possuidor de instrumentos para manejar melhor o excesso produzido pelas excitagées, inexistente nas suas origens, relativizando, pois, a sua absoluta dependéncia do outro, o fato de que a forga pulsional seja uma forca constante e continua (Freud, 1968 [1915] recoloca 0 sujeito na condigo de desamparo fundamental e de dependéncia ao outro. Portanto, 0 desamparo e a dependéncia humana em relacdo ao outro se reproduzem posteriormente, ao longo da existéncia humana, em fungiio mesmo de que a forga pulsional, enquanto exigéncia de trabalho (Freud, idem), se impde permanentemente e passa pelo outro para que possa ser dominada, constituindo destinos erégenos. Seria por isso, enfim, que Pontalis formulou que, no que tange a natureza humana, somos desam- parados ¢ prematuros por vocagdo, e néo apenas temporariamente, pela condi¢o de imaturidade bioldgica do organismo nos primeiros tempos de vida (Pontalis, 1968). Desta maneira, 0 desamparo vocacional da condigdo humana se consti- tuiria pelo intervalo sempre recolocado entre a forca, os representantes da pulsio e os objetos capazes de apaziguar as excitagdes. Seria para articular esse intervalo, isto é, conjugar a forga, os representantes e os objetos da pulsio, que 0 outro se introduz no organismo diante de sua inviabilidade bioldgica para a vida. Enunciar que o trabalho do outro é de conjugacio € afirmar que este realiza a funcdo de costurar a forga da pulsdo com objetos de satisfacto, a partir de uma interpretago (nomeagiio) das exigéncias vitais do infante. Seria, pois, o outro que realizaria o trabalho pelo qual a forga pulsional seria transformada num circuito pulsional, isto ¢, constitufda de objetos de satisfagao e inscrita no mundo das representacgGes. © outro realizaria entio um trabalho de conjungao entre os registros diferentes da forga, do objeto ¢ da representacdio, pela qual se ordenaria 6 circuito pulsional. Esta conjungao é um trabalho de ligagao do diverso ¢ do diferente, forma pela qual Freud representou a forma de operacao da pulsdo de vida (Freud, 1981 [1920]). Com efeito, enquanto a pulsao de morte tenderia para a descarga e para a busca da quietude absoluta, a pulsdo de PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2: 09-30, 1999-25 Joel Birman vida realizaria ligagdes, erogeneizando o organismo pela construgao de cir- cuitos pulsionais. Assim, a ordem vital se tornaria realmente vidvel. Na metapsicologia inicial de Freud nao existia a necessidade de todo esse trabalho, justamente porque o circuito pulsional j4 estaria pré-formado no registro da natureza. Ao recusar o principio da inércia ¢ transformé-lo no principio da constAncia, o discurso freudiano admitiu a existéncia originaria do circuito da pulsio. Com isso, © circuito pulsional seria um dom da natu- reza e nao uma transmissio do outro. A vida seria entéo uma dadiva ofertada pela natureza e nao algo a ser transmitido pelo outro, como se enunciou na metapsicologia final do discurso freudiano. Conseqtientemente, se a ordem vital j4 é dada como uma dadiva da natureza, se 0 circuito pulsional esté funcionando desde as origens, se o prazer e a erogencidade sio inerentes A natureza humana, nao existiria lugar para o desamparo propriamente dito. Este seria de ordem adjetiva e ndo substantiva, como disse acima, no inicio deste desenvolvimento. Por tudo isso, 0 conceito de desamparo nao se poderia constituir na metapsicologia inicial do discurso freudiano, mas apenas na que foi posteriormente construida — nio passan- do, pois, nos primérdios da psicandlise, de uma mera palavra. Além disso, é preciso considerar aqui devidamente 0 alcance decorrente do fato de que o trabalho do outro realiza uma conjugagao e uma conjungao entre a forca da pulsio, os objetos de satisfagéo e o mundo dos represen- tantes das pulsdes, isto é, tudo aquilo que Freud condensou no conceito de pulsdo de vida enquanto fora de ligagio. Com efeito, empreender ligagdes pela conjungdo de registros diferentes implica a conjugagio de uma a¢gio propriamente dita. A construgdo do circuito pulsional apresenta-se como uma aco constitutiva da propria ordem vital, pela qual a vida se torna vidvel. © corpo etégeno forja-se enquanto tal, identificado com a ordem vital. Por esse viés seria possfvel aquilo que Freud denominava de agdo especifica, na sua metapsicologia inaugural (Freud, 1973 [1895]) —- aquilo que possibilitaria a satisfagio da exigéncia pulsional. Agora, contudo, a a¢ao especifica implica algo da ordem do ato advindo do outro, nao sendo mais apenas uma virtualidade do organismo. O outro trabalha, pois, do registro gramatical do verbo, que pela sua conjugagao costura as relagdes entre a forca pulsional, os objetos de satisfagio ¢ o mundo da representago. Seria pelo verbo que © outro realizaria a conjungao entre os diferentes registros sublinhados acima. Assim, enquanto verbo e ato, o outro tornaria a vida possivel, introduzindo algo inexistente no organismo, invidvel inicialmente para a vida. A transmis- 26 PHYSIS; Rey. Sailde Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 1999 A D&diva € 0 Outro: Sobre o Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano sio da vida, pelas sendas da erogeneidade, passaria pelo ato do outro, que com a operacio do verbo realizaria uma agio conjugativa, articulando os registros do sujeito e do objeto. Nao é um acaso, certamente, que na frase final de “Totem e tabu” — quando Freud esbogava j4 a sua viragem metapsicolégica, ao introduzir fartamente no seu discurso a problematica da morte —, ele afirme, parafraseando Fausto, de Goethe, que “no principio era 0 ato” (Freud, 1975 [1913]). Vale dizer, seria pela agdo do verbo que a conjugagiio entre os registros do sujeito e do objeto se constituiriam efetiva- mente, esbocando pois a ordem da linguagem. Esta seria a conseqiléncia primordial de uma conjungao que a antecede, que como ato articula pela experiéncia da satisfagio os registros da forca, do objeto ¢ da represen- tagdo, de maneira a entreabrir o horizonte para a construgio da ordem vital. Tudo isso nos indica que a nova metapsicologia freudiana delineia para a psicandlise um horizonte no qual esta se esboga como uma teoria da aciio, onde o registro da palavra se inscreveria no da aco. Pela agio ¢ pelo verbo, a linguagem adviria como a resultante maior do trabalho de conjuga- do conjuntiva realizada pelo outro, maneira pela qual o desamparo poderia ser manejado na condigo humana. Ato e Palavra Pode-se destacar um conjunto de figuras metapsicoldgicas e clinicas que foram destacadas no contexto da ultima teorizagao freudiana, que seriam. maneiras de esta se referir ao desamparo, de maneira directa ou indireta. Assim, 0 conceito de angustia do real (Freud, 1973 (1926), que se dife- tenciaria do conceito de angtistia do desejo (Freud, idem), fartamente desenvolvido na metapsicologia inicial, seria decorrente da condigao de de- samparo da condigéo humana, onde nao existiria, nas origens, a conjungao entre a forga, os objetos e o mundo da representacao. A angustia do real seria a propria manifestagiio direta da forga pulsional, que como excesso colocaria a subjetividade na condigao de desamparo. Em decorréncia disso, a teoria do trauma foi reatualizada no contexto metapsicolégico, na medida mesmo em que inexistiria de maneira inerente & condigao humana qualquer instrumento de protegao contra a forga e 6 excesso pulsional (Freud, idem). Portanto, o sujeito humano estaria entregue aos efeitos transbordantes deste excesso, tendo que realizar através do outro um trabalho de conjugag4o para empreender a conjungao entre a forga, o objeto e o mundo da representacao, para evitar a produgdo traumatica sempre iminente. PHYSIS; Rey, Snide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 199927 Joel Birman Além disso, 0 conceito de feminilidade enunciado ao final do percurso freudiano revela algo intimamente articulado com a condigéio do desamparo. Enquanto algo que revelaria a dispersio pulsional origindria e a caréncia imediata de instrumentos de dominio das excitagGes, a feminilidade provoca- ria algo da ordem do horror, justamente pela inexisténcia de instancias de protegio (Freud, 1992 [1939]). A auséncia do referencial flico, no registro erégeno origindrio, indicaria a falta de protegao para a subjetividade ¢ a sua condigao de desamparo. Em fungao disso tudo, o masoquismo se perfilou como a grande moda- lidade de ser da subjetividade na metapsicologia final do discurso freudiano. Jnvertendo as relagées iniciais entre o sadismo € 0 masoquismo, no qual o sadismo seria primétio © o masoquismo seria sempre secundario (Freud, 1968 [1915}), Freud passou a afirmar a condigio origindria do masoquismo a atribuigdo de derivagio defensiva para o sadismo (Freud, 1973 [1924]). Vale dizer, enquanto primordial, o masoquismo seria a resultante direta do excesso e da forga pulsional, diante da inviabilidade do organismo para lidar imediatamente com o transbordamento energético e costurar destinos pos- siveis para isso. Portanto, o masoguismo ¢ 0 efeito primordial da angiistia do real; delineia, pois, num registro eminentemente subjetivo, a maneira pela qual o desamparo se encorpa e se incorpora. Por isso mesmo, 0 masoquismo se esbogou no percurso final do discurso freudiano como sendo a forma de subjetivagio (Foucault, 1976, v. D fundamental que permearia as diferentes funcionalidades psicopatolégicas, sejam estas da ordem da neurose, da psicose ou da perversdo. Tais funcio- nalidades seriam entdio modalidades diversas e diferenciadas, pelas quais a subjetividade procuraria construir destinos possiveis para lidar e manejar 0 sofrimento produzido pelo masoquismo (Freud, 1973 [1924]). Além disso, pela configuragio construida entre diversas formas de masoquismo, Freud nos indicou uma ruptura entre as modalidades defensivas ¢ estruturantes daquele. Seria o reconhecimento da condigée fundamental de desamparo que funcionaria aqui como critério distintivo, na medida em que no masoquis- mo erégeno aquele seria reconhecido ¢ a estruturagao subjetiva seria pos- sfvel, enquanto que nos masoquismos moral e feminino o desamparo seria recusado, submetendo-se © sujeito ao outro para recusar a sua condigaio de desamparo (Birman, 1999). Portanto, a totalidade da clinica psicanalitica foi reordenada pela consti- tuigdo de outra metapsicologia € pelo enunciado do conceito de desamparo no final do percurso freudiano. Nesta, a figura do masoquismo ocupa uma 28 _- PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 09-30, 1999 A Dadiva e 0 Outro; Sobre 0 Conceito de Desamparo no Discurso Freadiano posic&o crucial, seja como configuragao estraturante, seja como forma de subjetivacao defensiva, Além disso, 0 que essa clinica anuncia é uma forma de interveng’io da figura do analista pela qual o ato ocupa uma posi¢ao estratégica fundamental, na medida em que seria pela mediagao daquele que a conjugacado entre a forga, os objetos e 0 mundo das representages seria possivel. Com isso, poder-se-ia delinear destinos estruturantes para 0 desam- paro, pela mediagio do masoquismo erégeno, sem 0 qual a subjetividade se petrificaria nas modalidades masoquistas de submissio ao outro. Entretanto, para que isso seja vidvel, € preciso que a palavra ¢ a linguagem na expe- riéncia psicanalitica se inscrevam no registro da aco, mediante a qual o verbo pode possibilitar a construgio do corpo erégeno. Referéncias Bibliograticas BICHAT, X. Recherches physiologiques sur la vie et la mort, et autres essais. Paris: Flammarion, 1994. BIRMAN, J. Estilo de ser, forma de padecer ¢ maneira de sentir. In: BIRMAN, J. Cartografias do feminino. Sio Paulo: Editora 34, 1999. CANGUILHEM, G. Etudes d'histoire et de philosophie de la science. Paris: Vein, 1968. _ La connaissance de la vie. 2 ed. Paris: Wrin, 1971. _ Le normal et le pathologique. 3 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1975. FOUCAULT, M, Naissance de la clinique. Paris: Presses Universitaires de France, 1963. | Volonté de savoir. Histoire de la sexualité, Volume I. Paris: Gallimard, 1976. FREUD, S. Au-deli du principe du plaisir. In: FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1981 [1920]. . 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