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A AVENTURA POÉTICA DE ESTAR NO MUNDO

Miguel Almir Lima de Araújo1

O fascínio do perigo revela-se o melhor índice


de vida autêntica e vale como prova de vitalidade.
(...) mergulha a vida humana na alegria
dionisíaca do seu destino.
Gilberto de Mello Kujawski

Carece de ter coragem.


Guimarães Rosa

Nas ensinanças sorvidas entre as curvaturas das travessias que enredam a


trajetória humana tenho aprendido uma máxima primorosa: viver é perigar. Perigar
traduz a aventura cotidiana dos riscos e dos desafios que afiam e cingem a saga do
vivente nas searas do viver. E viver, como verseja, de forma lapidar, um camponês
pernambucano, folião do Cavalo Marinho “é criar uma aventura no mundo”. Assim,
viver traduz a póiesis como a aventura criante e inventiva, portanto inaugural, matizada
pelos tons do poético, por sua vivacidade nascente, com sua tensividade co-movente e
com seu elã alumbrante que faz desbordar o anímico. Viver como uma aventura poética
inspirada na verve de nossa sensibilidade e de nossa espirituosidade.
Desse modo, podemos criar e recriar o rumo, os sentidos da existência, das
coisas, nas sendas abertas do destino, com o afã de nosso tino, de nossa feição – urdir
nossa destinação. A-con-te/cer sendo com os outros na condição originária e seminal de
cada instante, nos fluxos tensoriais do movimento ondulante e permanente do devir, da
saga in-tensiva do existir.
Existir (ex-sistere) se traduz em dis-por-se, em lançar-se para fora, no e para o
mundo. Precipitar-se no abismo do indeterminado, do inacabado, e tornar-se, no ritmo e
nas aberturas das contingências, autor e tecelão do próprio destino. Existir é se inserir
nos confins transversais da porosidade do mundo, tocando em frente os projetos que
animam os destinos, nossos co-destinos; os destinos da humanidade. Destinos marcados
por desatinos e por tinos tortos e incertos nos quais urdimos a saga aberta do existir.
Existir é in-sistir, é correr o risco de experimentar a aventura da liberdade que espanta e
desafia as seguranças das coisas ordenadamente estabelecidas que aprisionam e
encavernam.
Existir é escutar os sopros do vento que assanha nossos sonhos, que move a
nossa imaginação e que instala o fluxo da ação in-ventiva; que dá movimentação à
liberdade do viver na audácia da ação renovadora e vivificante do espírito encarnado.
Encarnação de gravidez pregnante; de desejos que nutrem e inspiram o advento da
utopia, de novos modos de ser e de estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, na textura da
rede planetária.
A a-ventura de estar no mundo se descortina no alçar vôos pelos flancos do
extraordinário in-ventando o imposssível. O possível já existe, já está posto. Precisamos
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Professor da UEFS e da UNEB. Últimos livros publicados: Laços de encruzilhada: ensaios
transdisciplinares (ensaios); Ramagens (poemas); Amo, logo existo (ensaio). Desenvolve atividades nas
áreas de Educação, Arte, Filosofia, Cultura, Espiritualidade...
ousar o que ainda não existe, o que pode vir a ser, a tornar-se, a rebelar-se. Viver é
tornar-se na dinâmica do estar em trânsito. Nossas mães nos partejam uma vez. Cabe a
nós nos reparirmos, na in-tensidade pulsional de cada vivência, no tremor de cada
vicissitude, nas entranhas de cada novo amanhecer, no amanhecer de cada ventura. Se
não re-nascemos, nos emboloramos e nos empacamos. Os limites e obstáculos que
surgem são apenas desafios que interpelam nossa sensibilidade e imaginação criantes
para as possiblidades dos deslimites, para a invenção de outras trajetórias, de novos
Sentidos.
O ordinário é da esfera da rotina, da normalidade ordeira e mediana – nossa
condição de galinha, para lembrar a metáfora de Boff. Nosso espírito de águia nos
convida para vôos mais vastos e altaneiros que, inspirados em sonhos impossíveis, vai
descortinando novos possíveis, novos horizontes e Sentidos para a saga do viver
compelida pelo afã do existir que traduz imanência, mas, também transcendência – não
nos esgotamos em nós mesmos.
Nossa condição demasiadamente humana se configura como um “jogo jogante”
e aberto que potencializa, finita e infinitamente, possibilidades instigadoras de nossa
imaginação criante, de nosso espírito altivo e in-ventivo, de nosso elã poético. Jogo que
se traduz no ritmo sincopado e en-volvente da aventura indeterminada e incerta da
epopéia humana nos desvãos abertos dos rasgos de seus vazios; que nos precipita no
abismo do desconhecido, do inesperado, que nos desinventa e nos reinventa
alvorecentes para a “eterna novidade do mundo” (Pessoa), para novos alvos e alvores;
que nos desborda na policromia do arco-íris ao despontar dentro e fora de nós, em nosso
estado anímico de encantamento – um encantamento pregnante.
Em nossa condição humana originária, não somos vocacionados para a fixidez
dos portos seguros, mas para a nomadez das jornadas dos andarilhos que se arriscam nas
flutuações das ondas de cada proeza e que propiciam andanças e buscas in-tensivas e
apaixonantes, descobertas e feitos extraordinários. É o turbilhão da paixão fecunda que
nos impulsiona – impulso vital – suscitando o entusiasmo que mobiliza os sentimentos,
a energia criadora e o espírito de transgressão. Paixão que faz vibrar as cordas do
coração, que faz desafiar os medos encarcerantes e que nos leva a perigar nos riscos de
nos perdermos pelas reentrâncias e pelas errâncias das veredas; em que a perdição é
condição para nos acharmos, para nos encontrarmos melhor e melhores nas dobras da
caminhada.
Caminhada supõe um caminhar livre e despojado nas trilhas do nada in-ventando
a saga do próprio caminhar, forjando novas sendas e encruzilhadas. A vida nos interpela
para garimparmos nas minas de nosso dentro e de nosso fora para que, assim, possamos
encontrar as preciosidades de nosso ser e dos outros seres, de modo implicado e
interdependente; a sorver as coisas do espírito nas contingências ingentes do cotidiano
penetrando no espírito das coisas; a aprender a sentir e a compreender a magnitude das
coisas pequenas, a significância da lama e do pedregoso na alquimia dos processos de
mutação que tanto podem engrandecer a alma; a transitar com despojamento e dis-
posição aprendente entre as fraturas e as contradições que constituem a dinâmica viva
do existir humano.
Quem não garimpa com afinco tende a permanecer na rasura da superfície, a se
exilar da tribo dos garimpeiros, das almas corsárias que procuram, em con-juntura,
compor seus próprios destinos nos ermos do mundo; não saboreia o gosto arrepiante de
cada compasso vivido e compartilhado sinergicamente com os outros; não degusta a dor
lacerante de cada parto e o prazer gozoso de cada nascimento, nos meandros de cada
nova a-ventura celebrada na nascente de cada momento-aurora, aurorecente.
Nesse trajeto, trilhamos nas estradas dos desertos, irradiadas pelo sol alumioso
do dia, com sua tez retilínea e masculina, como também transitamos nas sendas sinuosas

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das florestas, pelos ermos da noite, constelada pela penumbra lunar, com sua tez
feminina. E desse modo, podemos existir no solunar, no crepuscular – no entre-lugar –
que entrelaça sol e lua, dia e noite, masculino e feminino, celebrando a inteireza
dinâmica e in-tensiva de nossa existência em fluxo, inacabada, tão singular e tão plural,
tão demasiadamente humana.
A-venturar se desdobra no realçar e no atiçar o elã que move o corpo e o
espírito, que nos co-move por inteiro nas venturas das ventanias do mundo, na busca
que leva à afinação do trançar a urdidura do humano, de seu advento, como expressão
in-ventiva do ser-sendo, do sopro cósmico que, no ritmo e na dança tensorial de seus
eventos, aventa a beleza que encanteia a vida. Somos des-tinados às travessias
instauradoras de pontes, de redes, de modos de relação fratriarcais que vicejam nossa
existência e nossa coexistência no cosmos/caosmos.
Carecemos de uma pedagogia da itinerrância em que, como bandoleiros – homo
viator – transitamos entre as errâncias do caminhar como peregrinos aprendentes nas
ensinanças das sendas abertas do ser-sendo, no crivo da tragicidade de cada experiência
vivida com a nervura do corpo e o vigor do espírito. Aprendizados que brotam na
calidez do aqui-agora, no carpe diem.
Assim, o espírito pregnante, despojado e irreverente, volteia pelos itinerários das
itinerrâncias semoventes, pelos laços das encruzilhadas, cultivando, no arco de cada
momento, uma aprendência desprendida e espirituosa – a auto e a inter-aprendência –
que faz a vida jorrar escorrente, se desbordar altiva em seu singrar in-tensivo no leito
encurvado de seus rios. Nesse fluxo, podemos atingir o cume da terceira margem, a
fruição do estado poético e anímico de nossa existir no mundo, no desmundo – nas teias
entrelaçadas do intermundo.

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