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Os artigos sobre Goeldi e Guignard fazem parte de dois catalogos organizados por mim sobre estes artistas fruto de pesquisas que coordenei no Curso de Especializagao em Historia da Arte e Arquitetura no Brasil PUC-RIO em 1981 e 1982. A escolha destes dois artistas representava uma clara contraposigao a leitura do modernismo brasileiro calcado em Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari. CZ 2008 Carlos Zilio Cooedenador Académico do Curso de Especializario em Historia da Arte no Brasil, PUC/RE. Apresentagao Apés a pesquisa e exposicdo sobre a obra de Oswaldo Goeldi, paralela- ‘mente a0 projeto atualmente em andamento sobre o Rio de Janeiro no pro- cesso de formagao cultural do Brasil setecentista, a pesquisa sobre Guignard estabelece uma continuidade no trabalho que vem sendo realizado pelo Cur- so de Especializacdo em Historia da Arte no Brasil e marca 0 propésito de realizar um levantamento sistemitico e rigoroso da Hist6ria da Arte brasilei- ra. ‘Como um curso de pés-graduagdo que pretende contribuir para a forma- ¢fo de profissionais de alto nivel que atuem em instituigdes culturais, no en- sino e na pesquisa, seu propésito tem sido o de manter uma unidade cons- tante entre o ensino tedrico e a pratica. Deste modo, as questdes tratadas em aula se desdobram em pesquisas em que o aluno tem a oportunidade de exer- Citar 0s diversos aspectos metodologicos relativos & investigacdo da obra de arte e da arquitetura. Num segundo momento, o trabalho desenvolvido no curso procura, através de publicagdes e exposigdes, um percurso mais amplo capaz de dar & produpdo universitéria uma dimensdo social. © propdsito do Curso de Especializagao vem de encontro & superagio de ‘uma deficigncia importante da cultura brasileira. De certo modo, a pesquisa dda Histéria da Arte brasileira é uma atividade de resgate de uma parte consi deravel da nossa cultura que foi recalcada, quer por uma subestimacao da importancia da visualidade como componente cultural, quer ainda pela con- cepedo muito atuante de uma Historia da Arte que se reduziria a conceitos de escola, periodos, tendéncias, movimentos ¢ estilos. Este tipo de analise acaba reduzindo o problema colocado pelo conjunto da producdo artistica a uum quadro tao-somente de geracdes, ou seja, de uma periodizayao empirica. Nossa intengao, ao escolher como objeto de anélise as obras de Goeldi ¢ Guignard, artistas atipicos cisolados no seu tempo, bem como o Rio no con- texto brasileiro do século XVIII, um dos momentos-chave da nossa forma- ‘cdo cultural, foi a de propor uma revisdo da Historia da Arte brasileira, Compreendendo-a como uma histéria de rupturas ocorridas num processo especifico de conhecimento. ‘A realizagdo deste projeto s6 foi possivel gragas a0 empenho e ao traba- tho conjunto de professores ¢ alunos que, pela sua dedicagdo, conseguiam superar toda sorte de dificuldades. E importante destacar 0 apoio decisivo que recebemos do Projeto Universitario ¢ do Instituto Nacional de Artes Plasticas da FUNARTE. da Coordenagdo para Aperferroamento de Pessoal de Nivel Superior (CAPES) e das Empresas PetrOleo Ipiranga. Finalmente, ‘gostariamos de agradecer & Professora Anna Maria Thompson, diretora da Coordenacao dos Cursos de Extensdo da PUC/RJ, pelo incentivo ¢ pelo su- porte que tem dado ao Curso de Especializacao em Fistoria da Arteno Brasil. Carlos Zilio 18 ‘Com a cabeca nas nuvens Existe um elemento pictural capaz de nos fornecer acesso 4 compreensio da ‘obra de Guignard. Este elemento, presente em todos os temas que abordou ¢ ‘em todas as suas fases, é a nuvem. Operando como uma espécie de motivo- sintese das transformagdes havidas no procedimento pictérico de Guignard, podemos observar no tratamento das nuvens as tensOes que percorreram a ‘obra do artista, no seu processo de captacdo da modernidade. Esta luta de Guignard com a tradigao se reveste de um significado maior, uma vez que se situa dentro de uma questo mais ampla da Historia da Arte, em que a nu- vem, ai também, como elemento pictural, tera um significado particular. Na pintura ocidental, da Grécia aos iluministas, € atribuido ao desenho o funda- mento da pintura, uma vez que aquele seria a estrutura basica desta, restan- do cor um papel meramente complementar. A nuvem, por contradizer a ordem delineatoria, contraria esta concepsao, situando-se consequentemen- te como 0 elemento fora da norma. Esta questao ira, inclusive, estabelecer nas experiéncias realizadas por Brunelleschi, no momento fundador da pintura renascentista, um desacordo que, para set contornado, obrigou-o a langar mao de um artificio. Em suas demonstragdes realizadas com auxilio de modelos construidos, no intuito de provar a validade dos prinefpios da perspectiva, estabeleceu-se um conflito entre elementos redutiveis aos dispositivos construidos e as nuvens que, por sua instabilidade, ndo podiam ser representadas segundo o esquema linear. Como se sabe, tanto na primeira experiéncia, em que utilizou um espelho uma pequena reproducao do templo de San Giovanni em Florenga, quanto na segunda, realizada pelo recorte da Piazza della Signoria, a solugao encon- trada por Brunelleschi foi a de incorporar o real — as nuvens — no disposi- tivo, isto &, nao a sua representagdo, mas a sua incorporac&o como parte do modelo construido'. Este conflito entre o desenho e a cor, que percorre toda a tradigdo renas- ccentista, sera para a arte moderna uma questao central a ser superada. Nao é outro o intuito das investigagdes cromaticas de Seurat ¢ 0 objetivo de Cézan- ne ao dizer: “quando a cor esta em toda a sua riqueza, a forma est em toda a sua plenitude’. Este € o ponto de partida para a critica que a arte moder na faré ao racionalismo implicito no primado do ponto, da reta, do plano ¢ da pintura como representacao. A arte moderna nao somente vera estes ele- mentos e a cor simplesmente como meios plasticos, isto é, instrumentos for- mais autOnomos e completos em si, como ira também atribuir & cor, dado 0 recalque que havia sofrido, um valor mais secreto e transgressivo. © conflito entre 0 desenho ea cor E conhecida, ¢ Guignard ira transmitir a seus alunos, a formagao rigida que teve com seus mestres alemaes. O lapis duro marcando o papel prolongava a tradigio do desenho de ponta de chumbo sobre a imprimatura (base sobre a qual se fazia 0 esbogo da pintura). Se Guignard professor soube transmitir ‘esse aprendizado de maneira mais flexivel, abrindo paralelamente referén- cias e permitindo que fosse assimilado mais como educagao da observagio ¢ um modo de evitar maneirismos, a convivéncia do Guignard pintor com esta sua formagio foi muito mais problematica. ‘Torna-se dificil precisar uma trajetéria simples no proceso da obra de Guignard, Seria natural que no ambiente da década de 1930, quando de seu retorno ao Brasil, em um meio de arte que tendia para o bom comportamen- to, apés as inovagdes de uma Anita ou de uma Tarsila na década anterior, Guignard nao tivesse recorrido a solugdes capazes de fazer com que rapida- ‘mente superasse 0 conflito entre o desenho e a cor. As transformagdes foram Ientas, sendo que no seu trabalho coexistiam, muitas vezes numa mesma época, pinturas mais ousadas ao lado de outras mais convencionais. Algu- mas influéncias 0 ajudaram neste embate contra a tradigdo. Nao € dificil de- tectar entre elas, 0 que pode parecer paradoxal, as dos artistas Botticelli ¢ Leonardo, que Guignard revia segundo critérios muito pessoais, e mesmo as dos modernos, como Rousseau e Dufy. No entanto, a modernidade do tra- balho de Guignard parece advir da sua relagtio com as obras de Cézanne ¢ Matisse, nomes que ndo costumava citar muito, mas que impregnam sua pintura. Alids, a simples opgao de Guignard por estes dois artistas, os mais importantes da pintura moderna, ja revela sua inteligéncia na observacdo da arte moderna, De Cézanne, € nitida a influéncia na diviséio do espago, o que pode ser constatado nas naturezas mortas pintadas por Guignard e nas gradacdes cro- maticas na relacdo entre volumes, principalmente em algumas paisagens de Iratiaia fortemente marcadas por certas "Montagne de Sainte-Victoire””. De Matisse, Guignard ird retirar a utilizagdo do arabesco na definicao das areas, como por exemplo na ‘Familia do fuzileiro naval””, bem como o emprego da janela como elemento de ligagao entre interior ¢ exterior. Mas o funda- mental que Guignard ird perceber em Cézanne ¢ Matisse é o desenhar com a cor e também a organizacdo da superficie por manchas coloridas, 0 que po- de ser notado pelo abandono do trago preto ¢ pela liberdade crescente no tratamento da cor. A presenca da nuvem E sabida a forte repercussdo que teve o impacto da luz sobre Guignard no ‘eu retorno ao Brasil. O desafio de novas possibilidades cromaticas tornou- se um problema para sua formacao européia. Pacientemente, Guignard foi elaborando solugdes capazes de aprender as cores tropicais. Embora a obra do artista ndo possua uma seqdencia retilinea, como haviamos dito, nao € dificil perceber uma tendéncia dominante. Em linhas gerais, pode-se afirmar que seu trabalho tendeu de uma pintura realizada por cores rebaixadas ¢ ma~ téria densa, onde as formas so delineadas por um traco pre(o, para uma pintura de cores intensas, com a tinta bastante liquefeita, sendo que os con- tornos, quando assinalados, o sao ligeiramente e por meio da cor. Esta cres- cente liberagao cromatica, que coincide com uma pincelada cada vez mais solta, altera também a importancia da nuvem na sua pintura. De componen- te de fundo, torna-se cada vez mais um elemento presente, chegando a domi: nar em alguns trabalhos, através de uma fusdo com as montanhas; toda a su- perficie da tela. Neste percurso sua pintura tenderé cada vez mais a uma abertura para a subjetividade. Sendo um elemento pictorico privilegiado na relacao com a cor, dado a sua configuragao instavel, sem contorno ¢ também sem cor, assim como uma simples mancha, a nuvem admite todas as formas ¢ todas as cores. Wolfflin’, numa andlise sobre a pintura de Correggio, na qual a nuvem tinha uma particular importancia, faz um comentario que cabe perfeitamente para se imaginar a impregnacao da cor pela luz na obra de Guignard. Segundo 0 autor, na pintura de Correggio ‘‘a forma se dissolve para deixar lugar ao pi- toresco na sua acepedo mais alta, quer dizer, magia da luz”. Através da i radiagdo da luminosidade, a pintura'de Guignard sugere um espaco aberto € um efeito de transporte, levando o espectador a vivé-la sob a forma de uma participagdo subjetiva que se regularia pelo seu movimento, até reconhecer as imagens por aquilo que elas so e que Hubert Damisch, ao falar sobre 0 mesmo Correggio, chama de “operadores de elevacdo” A revelacio do Oriente Existe na obra de Guignard, como em algumas das Noites de S. Joao, uma inegavel presenca da arte chinesa. As caracteristicas em comum se veri- 19 20 ficam, por exemplo, numa idéia de profundidade diferente da perspectiva li- near que supde um ponto privilegiado de fuga, enquanto que a perspectiva oriental é qualificada tanto de aérea quanto de cavaleira. Trata-se, com efei- to, de uma dupla perspectiva, como se 0 observador estivesse no alto, gozan- do de uma visto global da paisagem. Um outro ponto que aproxima a arte oriental de algumas das pinturas de Guignard ¢ 0 da concepcao do espaco através de cheios e vazios. A pintura oriental é pensada a partir da uma rela- do entre a montanha e a 4gua, que constituem os dois polos entre os quais Circula o vazio representado pela nuvem. Esta, por sua vez, é um estado in- termedidrio entre os dois pélos aparentemente antindmicos, ja que nasce da condensacao da agua e toma a forma da montanha, e funciona criando um processo de devenir reciproco entre montanha e agua. Na otica chinesa, sem © vazio entre elas a montanha e a agua se achariam numa relacdo de oposi- cao rigida e, por isto, estatica. £ interessante notar que Guignard, em seus depoimentos sobre a pintura, nunca fez qualquer referéncia a arte oriental, O mais plausivel é que esse interesse tenha surgido do seu convivio com a ar- te moderna que, do impressionismo a Matisse, sofreu a influéncia da arte oriental através das gravuras japonesasi A analise que Francois Cheng’ faz da linguagem pictural chinesa nos per- mite compreender exatamente aquilo que Guignard foi buscar na arte orien- tal, A respeito da questo da perspectiva, Cheng afirma: ... “Assim como no shen-yuan (distancia profunda), 0 quadro é seguidamente ocupado por tr@s grupos de montanhas que se estendem cada vez mais longe, as trés se- des que compdem deste modo cada distancia so separadas por vazios, de modo que o espectador, convidado aspenetrar em espirito no quadro, tem a impresso de fazer cada vez um salto de uma segdo para a outra. Salto quali- tativo, porque estes vazios tém justamente por fungdo sugerir um espago nao mensuravel, um espaco nascido do espirito ou do sonho”’... Mais adiante prossegue: “O movimento de afastamento no espaco ¢ de fato um movimen- to circular que retoma e que, pela alteracao da perspectiva e do olhar, trans- forma finalmente a relagdo sujeito-objeto (0 sujeito se projetando, por sgraus, para fora, e o externo tornando-se paisagem interior do sujeito)"". Estas consideracdes sobre @ arte chinesa nos mostram a confluéncia entre um segmento da tradi¢ao ocidental, onde a imagem se abre para a subjetivi- dade como “‘operador de elevacao”, exigindo que 0 espectador as “vivencie”’, e a tradicao oriental, onde o espago sugere uma relagao com 0 espirito ou com o sonho e promove uma interagio entre sujeito ¢ objeto. As- sim, Guignard busca, nestas duas tradigdes culturais diversas, uma sintese capaz de fortalecer o cardter de indagacdo subjetiva da sua pintura, sendo a nuvem o elemento pictérico que serviré como um elo de ligacao entre Oci- dente ¢ Oriente. Assim como Matisse’, ao declarar que “... a revelagio sem- pre me veio do Oriente” ..., o processo da obra de Guignard, no seu conflito entre desenho e cor, encaminha o artista naturalmente para a arte oriental, ‘onde “0 trago € ao mesmo tempo forma ¢ colorido, volume ¢ ritmo, com- portando a densidade constituida pela economia de meios ¢ a totalidade que ‘engloba as pulsées préprias do homem. De sua unidade resolve 0 confit ‘que todo pintor ressente entre 0 desenho ea cor, a representacao do volume ¢a do movimento”.? A impressiio do ms Se examinada dentro do processo de assimilagao da modernidade pela cultu- ra brasileira e localizada na fase do modernismo posterior a 1930, a pintura de Guignard é, dentre as surgidas neste periodo, a que mais profundamente penetrou na arte moderna, pois realiza uma incorporacio meticulosa das origens da pintura moderna e evolui para se situar ein referéncias em torno do cubismo, fauvismo e expressionismo, incorporados por uma dtica muito propria, A relacdo intensa que, através de um projeto poético, sua pintura estabe- lece com 0 modelo, a encaminha para uma apreenséo aguda do homem e da paisagem brasileiros. Este € 0 fundamento da chamada “‘brasilidade”” da obra de Guignard, que nada tem a ver com o nacionalismo instituido que en- to predominava. Para o artista, o limite entre 0 real ¢ 0 poético nao era muito preciso. Vi- vendo com “a cabeca nas nuvens’’, como em um de seus auto-retratos*, ou conversando e pedindo aos anjos que arrumem as nuvens, num de seus dese- nhos humoristicos?, Guignard privilegia a nuvem como o principal elemento tanto na organizagio do espago quanto no seu procedimento pict6rico. No rocesso de superacao'do conflito entre o desenho e a cor, as nuvens vao to- mando e determinando a tela através de justaposig&es paradoxais em que se alternam cheios e vazios. A cor, através de pequenas pinceladas, vai surgin- do pelo aciimulo de sucessivas camadas, tal como a formagao das nuvens em seu processo de condensacdo. Assim, a obra de Guignard cumpre o comen- tario do pintor Kuo-Hsi, dos Sung": ‘A pintura deve suscitar naquele que contempla o desejo de lé se encontrar ¢ a impressto do maravilhoso que ela engendra, a ultrapassa e a transcende””. 8 CE, Hubert Damisch, L perspectiva, revista Macula, ‘orgine”” de la Seuil, Pars, 1979. 5/6, Pavis, § Henri Matisse, Boris et propos sur 1 1979. Collection Savoir, Hermann, Paris, 1972 2 Doran, P. M., apres. Conversations avec 7 Frangois Cheng, op. ci Cézanne, Paris, Macula, 1978. * Auto-retrato de Guignard, 1961, Colest0 * Citado por Hubert Damisch, in Théorie du Gilberto Chateaubriand. ‘nuage, Editions du Scull, Paris, 1972. ° Colegio Genita Lorch. "Hubert Damisch, op. lt 10 Frangois Cheng. 07. it. 5 Frangois Cheng, Vide et plein, Editions du 2

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