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SETEMBRO — 1966 39 DIREITOS DE PERSONALIDADE Ohindo Comes Prof. da Fac. de Dir, da Univ. da Bahia — Autor do Anteprojeto de Codigo Civit SUMARIO: 1. Razbes do Desprézo Pela Personalidade; 2. Reacdo do Cédigo Ita- liano; 3. © Projeto Francés; 4. O Projeto Portugués; 5. O Projeto Brasileiro; 6. Construcio Doutrindria; 7. Terminologia; 8. Conceito; 9. Objecées; 10. Natureza; 11. Caracteres; 12. Direitos Subjetivos Privades; 13. Como se Apresentam no Direito Civil; 14, Taxinomia; 15. Classificacio; 16. Subdivisées; 17. Direito a Vida; 18. Cirurgia- Estética; 19. Uso de Estupefacientes-Eutandsia; 20. Inseminagao Ar- tificial e Esterilizagiio; 21. Direito Sébre Partes Separadas do Corpo; 22. Tratamento Médico; 23, Lavagem do Cérebro; 24, Direito 4 Ima- gem; 25. Direito a0 Recato; 26. Sangdes; 27. Conclusio. 1. A necessidade de er a pessoa humana contra praticas ¢ abusos atentatérios de sua dignidade tornou-se premente em razio, assim da tendén- cia politica para desprestigid-la, como dos progressos cientificos e técnicos. No plano juridico da ordem privada, essa tendéncia_revelou-se, princi- palmente, sob a forma de negagio dos direitos subjetivos. Partiram os ataques ao subjetivismo de especialistas do Direito Publico, imbuidos de preocupagdes sociolégicas oriundas da filosofia de AUGUSTO COMTE, desembocando num teenicismo que pretendeu destruir a viga-mestra da teoria geral do Direito. Radicalizaram-se essas tentativas iconoclastas na yeemente negacdo dos subs- tanciais direitos subjetivos de personalidade, provocando a reagio que, na sua consagragao legislativa, encontra plona satisfagio. Favoreceu-a a terrivel ameaga que pesa sdbre a individualidade fisica, in- telectual e moral do homem em conseqiiéncia de conquistas cientificas e tée- nicas que permitem até a propria desintegracio da personalidade. 2. Pésto se encontrem em alguns Cédigos do século XX, como o suigo, o japonés, o helénico co egipeio, algumas disposigées atinentes aos direitos de personalidade, é no Cédigo Civil Italiano, de 1942, que sua disciplina recebe ampla sistematizagao e seus novos tos se contemplam com laivos de ori- ginalidade, em relagio aos atos de disposigao do proprio corpo (art. 5°) e A Fepressiio aos abusos de exposicao e publicagdo da imagem das pessoas (art. 10). A tendéncia para regular os direitos de personalidade com espirito siste- matico ¢ precisio técnica manifesta-se mais vivamente, porém, em trés recen- tes Projetos de Cédigo Civil: o francés, 0 portugués, e 0 brasileiro. 3. _ No projeto francés, a matéria recebeu largo desenvolvimento, estando condensada em dez. artigos (151 a 157 ¢ 182 a 164) de tipificagi0, coroados por 40 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA tum preceito geral pelo qual todo atentado ilicito & personalidade enseja, a quem 0 sofre, o direito a exigir que cesse, sem prejuizo da responsabilidade em que o ofensor possa incorrer (art. 165). Regulados acham-se os atos de dis- posi¢éo, total ou parcial, do préprio corpo, o direito de recusa da pessoa a se submeter a exame, tratamento ou pericia médicos, o de proibir autépsia ou dissecagao, 0 direito 4 imagem, e o direito ds cartas-missivas. 4. No projeto portugués, a tutela da personalidade se dispensa contra qual- quer ofensa ilicita, ow ameaga de ofensa (art. 70) e os respectivos direitos gozam igualmente de protegao depois da morte do titular (art. 71). Compreendem-se, no elenco de tais direitos, 0 direito ao nome e ao pseuddnimo, o de sigilo quan- to a carta-missiva de natureza confidencial, o direito 4 imagem, o direito & re- serva sdbre a intimidade da vida privada, nenhuma disposico constando, to- davia, sébre os atentados que pela prépria pessoa podem ser cometidos. 5. No projeto brasileiro, mencionam-se_os direitos A vida, A honra e A li- berdade, em cardter exemplificativo, e se disciplinam os atos de disposigao do proprio corpo, vivo ou morto, o tratamento, o exame e a pericia médicos, 0 lireito 4 imagem, o direito moral do autor e o direito ao nome (arts, 28 a 44). Do abreviado confronto entre as disposigdes dos Cédigos ¢ Projetos que se ocupam da matéria, infere-se, sem necessidade de aprofunda-lo, que os di- reitos de personalidade carecem de estruturagio doutrindria capaz de permitir se coordenem harménicamente em condigées que possibilitem a redugio a wna figura unitaria de suas miultiplas e diversas manifestagdes. Conquanto sua construgio dogmética se esteja a tentar desde o século passado, nfo con- seguiram ainda os ‘tedrices do Direito eliminar as controvérsias em que ainda se empenham sébre 9 seu conceito, taxinomia, natureza, caracteres e classi- ficagio. 6. Os autores que primeiramente os admitiram na Alemanha tiveram de yencer a oposigéo de SAVIGNY, que se insurgira contra a existéncia de direitos originarios ao considerar falso 0 princfpio de um direito do homem sdbre sua soa, 0 qual conduziria, entre outras conseqiiéncias, a legitimar o suicidio {Sistema dal Derecho Romano Actual, vol. 1.°, pig. 260, 2." edigao, trad. de Mesia y Poley, C. E. de Gongora, Madri). Nessa linha de pensamento, des- dobraram-se outras objegées, combatendo a concepedo de que constituem ca- tegoria especial de direitos subjetivos, na Alemanha mesma, festejados civi- listas do tomo de ZITELMANN, CROME, ENNECCERUS e OERTMANN, Outros, porém, aceitaram-na, destacando-se GIERKE pelo desenvolvimento que deu a matéria. Disseminou-se, afinal, a convicgéo de que devem ser le- galmente reconhecidos em face da necessidade crescente de se proteger a per- sonalidade no Direito Privado. (KOHLER, REGELSBERGER, WINDSCHEID, DERNBURG, PERREAU, ROGUIN, PLANIOL, MAZEAUD, FADDA e BEN: SA, CAMPOGRANDE, F. FERRARA, MESSINEO, DE CUPIS, CASTAN, DE CASTRO, DIEZ DIAZ.) Realmente, numerosas espécies de direitos da personalidade configuraram-se e adquiriram tipicidade, como observara GIER- KE, recebendo, afinal, consagragio em importantes diplomas legislativas. 7. Perduram, nio obstante, as hesitagdes da doutrina quanto 20 seu con- ceito, natureza, conteiido e extenséo. Acirram-se os debates na determinagio dos seus caracteres, contribuinde a polémica para as incertezas que se estam- pam no perfil da nova categoria juries. Nao 6 pacifica sequer sua identifi cago. Denominam-nos direitos individuais (KOHLER), direitos sébre a pré- SETEMBRO — 1966 al ria pessoa (WINDSCHEID), direitos pessoais (WACHTER), direitos de esta- lo (MUHLENBRUCH), direitos originarios, direitos inatos, direitos personalis- simos. Ultimamente, porém, acentua-se a preferéncia pela expressio direitos de personalidade, empregada por CIERKE. (°) 8. Tomou-se famosa a definiggo de GIERKE segundo a qual sio os direi- tos que asseguram ao sujeito 0 dominio sbre uma parte da propria esfera da onalidade. Procedente, no entanto, a critica de DERNBURG, porque a nio da ésse dominio s6bre a propria pessoa, nota distintiva da catego- ria, Seriam, como os conceitua FERRARA, faculdades especificas sébre dife- rentes partes de nossa esfera pessoal (Tratatto di Diritto Civile Italiano, p4- gina 389, Athenacum, Roma, 1921). DE CASTRO define-os como os direitos concedem um poder as pessoas para protegerem a esséncia de sua perso- nalidade ¢ suas qualidades mais importantes (in CASTAN TOBENAS, Derecho civil espafiol, comum y foral, t. I, vol. 2, pag. 735, Madri, 1956). Jé DIEZ DIAZ conceitua-os por seu conteiido especial, que consistiria em regular as diversas projegses, fisicas ou siquleas, da propria pessoa (Los dei fisicos de la personalidad, pag, 56, Ediciones Santillana, Madi, 1963). A diversidade de conceitos atesta a dificuldade de formulagio, agravada pela circunstincia de ser heterogénea a categoria dos direitos da personalidade © controvertida sua fundamentagao. Nogdo mais clara obtém-se mediante de- Jimitagao de seu objeto em térmos que nos paregam perfeitamente admissi- vyeis. Constituem-no os bens juridicos em que se convertem projegées fisicas ou puis da pessoa humana por determinagao legal, que os individualiza para ies dispensar protegio. Reclama, assim, a definicéio do direito de personalidade o alargamento do conceito juridico de bem, que Ihe reconheca significagio diversa da que se The atribui em Economia. Em Direito, téda utilidade, material ou no, que incide na faculdade de agir do sujeito, constitui um bem, podendo figurar como objeto da relagio juridica, porque sua nogio ¢ histérica, ¢ nao natura- Ustica (Conf. Orlando GOMES, Intros ao Direito Civil, pag. 173, 2. edi- 40, Forense, Rio de Janeiro, 1965). Nada impede, em conseqiiéncia, que cer- tas qualidades, atributos, expressGes ou projegdes da personalidade sejam tute- ladas no ordenamento juridico como objeto de direitos de natureza especial. 9. Nfo ha outra explicagao para eliminar a objegdo de que nos direitos de rsonalidade, sujeito e objeto se confundam, rejeitada por BIERMANN e EKKER com a escapatéria inadmissivel de que pertenceriam A categoria dos direitos sem objeto. Por nao terem admitido ésses bens juridicos, escritores do porte de WINDSCHEID e FERRARA ativeram-se A construgio dogméatica francamente inaceitivel. Para FERRARA, os direitos de personalidade, sendo absolutos, teriam como objeto, nio a res, mas os outros homens adstritos a The respeitar 0 g6z0 e, por isso, a vida, o corpo, a honra seriam apenas 0 térmo de referencia da obgagao negativa que incumbe A generalidade das pessoas ep. cit, pag. 395). Observa SANTA! que transformar a fungao reflexa je tutela social dos direitos absolutos em seu objeto & expor-se a um cerebrino deslocante déste elemento da relagio juridica, ou ao absurdo, jA superada, dos () Preferem-ns os escritores itallanos, Entre n6s, EDUARDO ESP{NOLA denomina-os “direitos Personalfesimos”, enquanto LIMONGI FRANGA, em recente obra, 8-08 “Direltos da ‘Saanuad de Direito Civil, vol. 1%, pég. 325. Raitéra Revista dos, Tribunals, ‘portuguese ‘brasileiro, sho tnseritos como "direitos ds 42 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA direitos sem sujeito, ou sem objeto (Diritti della persona, in “Nuovo Digesto Italiano”). Nio é a personalidade, por outro lado, o objeto désses direitos, visto que, sendo o pressuposto de todos os direitos, em si mesma nao é um direito (UN- GER) e, muito menos, objeto de qualquer relagio juridica. Recaem sobre ma- nifestagées especiais de suas projegdes, consideradas dit de tutela juridica, principalmente no sentido de que devem ser resguardadas de qualquer ofensa, por necesséria, sua incolumidade, ao desenvolvimento fisico e moral de todo homem. 10. Essas manifestagdes nao se consubstanciam na “potestas in se ipsum” a que se referia, em 1604, 0 jurisconsulto espanhol GOMEZ DE AMEZUCA, nem se qualificam, na doutrina mais recente, como direitos naturais do indi- viduo no sentido do velho jusnaturalismo, isto , de direitos racionalmente per- tencentes a0 homem pela sua mera condigao humana. DE CUPIS afirma que tém natureza positiva, existindo apenas na medida em que os concede a lei, ¢ ALLARA, posto os considere inatos, vincula-os & personalidade, hoje atribui- da a todos os homens, sem que sejam, no entanto, elementos essenciais désse fendmeno (Le nozioni fundamentale del Diritto Civile, pag. 644, 4* edigio. Giapichelli Ed. Turim, s/d.). . Poderiam reduzir-se, em conseqiiéncia, a uma figura unitdria, se conside- rarmos que sua especializagio decorre inicamente das diferentes maneiras por que pode ser atingido. Haveria, désse modo, um direito geral da perso- nalidade. Essa doutrina nao se compadece, entretanto, com a natureza positiva désses direitos ¢ favorece sua confusio com a prépria personalidade. Condu- ziria A sustentagéo de que a categoria nao tem limites, implantada que seria, como supusera GIERKE, em “intuigdes da consciéncia juridica”, que FERI tachou de obscuras, ow no “livre uso das fércas humanas”, como outros imagina- ram. A teoria dos direitos de personalidade somente se liberta de incertezas © imprecisics sc a sua construgéo se apdia no Direitu Positive e reconhece 0 pluralismo désses direitos ante a diversidade dos bens juridicos sébre que re- caem, tanto mais quanto sao reconhecidamente heterogéneos. Tragos comuns indicam, porém, que constituem categoria 4 parte das formas tradicionais do Direito Privado, possivel nfio sendo classificd-los entre os direitos pessoais, ou reais. Distinguem-se, realmente, por certos caracteres que em todos se encontram. IL Os direitos de personalidade sio absolutos, extrapatrimoniais, intrans- missiveis, imprescritiveis, impenhoraveis, vitalicios e necessérios. Por sua propria natureza, opdem-se erga omnes, implicando o dever geral de abstengio. Os bens juridicos sébre os quais incidem no sio suscetiveis de avaliagio pecuniaria, embora possam alguns constituir objeto de negécio juridico patri- monial e a ofensa ilicita a qualquer déles se tenha como pressuposto de fato do nascimento da obrigugio de indenizar, ainda quando se trate de puro dano moral. Dizem-se inalienaveis no sentido de que o titular nio pode transmiti-los a outrem, privando-se de seu g6z0, por isso que nascem e se extinguem ope legis com a pessoa (MESSINEO, Manuale di Diritto Civile e Commerciale, vol. 1, pag. 366, 7.8 edicio, Dolt. A. Giuffré, Milo, 1947), Nao se transmitem se- quer mortis causa, embora gozem de protegio depois da morte do titular, SETEMBRO — 1966 43 Sao legitimados a requeré-la o cénjuge sobrevivente ou qualquer parente pré- ximo, aos quais simplesmente se comunicam, e néo os herdeiros chamados & sucessio (TRABUCCHI, Istituzioni di Diritto Civile, pig, 88, 14.2 edigaéo C.E,D.A.M., Padua, 157). Do seu teor extrapatrimonial decorre a impossibilidade de cumprimento € execugio coativos. Sio impenhordvels € imprescindiveis, nao se extinguindo, quer pelo nao-uso, quer pela inércia na sua defesa. A vitaliciedade e a necessariedade sio caracteres que acentuam mais viva- mente seus tragos distintivos. Sio necessdrios no sentido de que nfo podem faltar, 0 que nao ocorre com qualquer dos outros direitos (BARBERO, Sistema istituzionale del diritto privato italiano, vol. 1, pag. 532, 4." edicao U.T.E.T., Turim, 1955). Em conseqiiéncia, jamais se perdem ésses direitos, enquanto viver © titular, sobrevivendo-lhe a protegio legal cm algumas espécies, 12, Cumpre sublinhar que os direitos de personalidade sio direitos subje- tives privados, destinada sua protegio, como é, a assegurar o desenvolvimento ea expanséo da individualidade fisica e espiritual da pessoa humana, No entanto, como alguns désses direitos também so publicos, vistos de outro Angulo, ¢ outros se acham igualmente tutelados na esfera penal, neces- sério se torna definir, em térmos claros, sua natureza privada. Nao h4 confundi-los com os direitos do homem e do cidadao, que sao real- mente direitos subjetivos piblicos, cuja protecio se organiza constitucional- mente para preservar 0 individuo do arbitrio do Estado. Os direitos de perso- nalidade se reconhecem e se protegem para resguarda-los de atentados por arte de outros individuos, como salfenten os MAZEAUD (Legons de Droit Gil, vol 1, pag. 62, Editions Montchristein, Paris, 155), e, também, para im- pedir que os auto-sacrifiquem. A distingao por ésse critério nao é, porém, inteiramente satisfatéria, porque omite os aspectos essenciais da natureza das duas modalidades, que somente se mostram na apreciagiio da estrutura e do mecanismo désses direitos privados. 13, Os direitos de dupla face, publico e privado, apresentam-se na esfera do Direito Civil quando se concretizam numa relagio juridica entre particula- res sob a forma de uma obrigagdo contraida por seu titular voluntiriamente, ‘ou imposta pela lei a quem os viola, cometendo ato ilicito. Evidentemente compreendem faculdades de atuagdo, mas, enquanto nao sao atingidos, per- manecem como potencialidades, naquela esfera em que passam despercebidos ou simplesmente se revelam como simples podéres individuais. Proteje-os a lei contra ofensas partidas de outros particulares, qualifican- do-as como ilicito civil, ou proibindo sua disposigao ou limitagio voluntéria, panto contririas A ordem publica ou aos bons costumes. Notdvel particulari- ‘as distingue. Ainda quando a limitagao é licita, assegura-se a0 autor 0 poder de revogé-la, sujeitando-o, embora, ao pagamento dos prejuizos causa- Jos as jesitimas expectativas da outra parte (Projeto de Cédigo Civil Portugués, art. 81). Interessa, pois, 20 Direito Privado a fixagdo de regras que definam os li- mites do poder de disposigio do titular dos direitos de personalidade e confi- m as ofensas A personalidade que importem responsabilidade civil. Proi- assim, a lei que alguém, voluntitiamente, se obrigue a dispor de parte do “4 REVISTA DE INFORMAGAO LEGISLATIVA proprio corpo que implique diminuicéo permanente da integridade fisica, ou que se obrigue a prostituilo. Nio permite gue uma pessoa use 9 nome de outra para sua identificagéo ou para outros fins reprovaveis, ou viole a inti- midade de sua vida privada. Quem se submetesse a carcere privado estaria Timitando voluntariamente o direito 4 liberdade, mas a sangio ao autor dessa ofensa no a impée 0 Direito Civil. A incolumidade do préprio corpo pode ser violada por determinagio de lei de direito publico, no interésse geral, nao se confundindo com 0 comportamento de auem, para obter vantagem par trimonial, consente em violagio que, por exemplo, seja contraria aos bons cos- tumes. Importa, em suma, nao confundir as duas érbitas onde gravitam os direi- tos da pessoa humana, nao tendo sentido indagar se o direito de se recusar a tratamento médico pode ser exercido contra medida de saiide publica que pres- creve 0 internamento do doente, para isolé-lo. 14. Por sua singularidade, constituem os direitos da personalidade categoria insuscetivel de enquadramento em qualquer das partes especiais em que se divide 0 Direito Civil. Nao se justifica, entretanto, seu isolamento para inser- go a parte no plano sistematico das matérias désse ramo do Direito, visto que nada desaconselha enquadré-los na Parte Geral como capitulo final do estudo das pessoas, que nao deve ser feito inicamente como um dos elementos da relagio Juridica, mas, sim, como ponto de referéncia central de todo o Di- reito Privado. Na disciplina da categoria, nio bastam disposigées gerais que reprimam as ofensas i personalidade fisica ou moral do invilidue’e protbam praticas abusivas consistentes no exercicio imoderado, ou atentatério da ordem publi- ca ou dos bons costumes. Langa ¢ a esfora da personalidede, mes, apesar da heterogeneidade de suas manifestagdes, torna-se necessério fixar 0 numero e a extensio dos direitos que lhe correspondem. 15. Diversas tentativas de classificagio tém sido feitas (DEGNI, Le persone fisiche e i diritti delle personalité, pag. 161; RAVA, Istituzioni di Diritto Pri- vato, vol. 1, pég. 300; DE CUPIS, I diritti della personalité; DIEZ DIAZ, Los derechos fisicos de la personalidad, pag. 77; LIMONGI FRANGA, Manual de Direito Civil, vol. 1, pig. 329). Pecam, entretanto, algumas por bipertrofia, outras por deficiéneiz. Decorrem as falhas principalmente da inexisténcia de uma teoria geral que es mantenha em seus devidos limites, tornando pre- ciso, como adverte DABIN, o ntimero de valéres que sejam auténticos direitos. ‘Uma classificagao que distribua a matéria em categorias gerais comport a simples diversificagio entre os direitos & integridade fisica e os direitos & in- tegridade moral. "Todos os direitos de lidade cabem numa ou noutra dessas categorias gerais. Se atribuirmos 4 expresso “integridade moral” 0 sen- tido amplo que abrange todos os direitos personalissimos nao vinculados a0 elemento material da Pesce, possivel se torna extremar os direitos sométicos, na expreseio de DIEZ DIAZ, dos que nfo pertencem ao setor fisico da per- sonalidade. f fora de duvida que, com essa gencralizagio, a categoria dos direitos & integridade moral abarcard figuras heterogéneas que, 4 primeira vista, refu- tariam a sistematizagio. Analisadas, porém, pelo prisma da repercussio das ofensas que ensejam, verifica-se que, no fundo, constituem atentados 3 inte- gridade moral do individuo. Como no campo do Direito Privado é ésse 0 as- SETEMBRO — 1966 45 pecto gue prima, determinando a organizagio de um sistema tutelar da perso- nalidade, perfeitamente admissivel se torna agrupar em categoria tinica todos os direitos que, violados ou exercidos abusivamente, atingem, direta ou indi- retamente, a projegao moral da ersonalidade de cada pessoa. Assim é que 0 direito ao nome, o direito moral do autor e o dircito a que se nao divulgue carta-missiva confidencial, classificados geralmente como categorias 3 parte (DEGNI, DE CUPIS, LIMONGI, éste quanto ao direito pessoal do autor), podem ser enquadrados entre os direitos & integridade moral, porque, funda- mentalmente, sio protegidos no pressuposto de que sua (0 acarreta pre- juizo ao aspecto moral da integridade da pessoa, 0 que nio significa abstragio ‘ou eliminagio dos respectivos contetdos positivos. Admitida a_sistematizagio nesses térmos, importa delimitar as espécies que devem ser discriminadas nas duas categorias diversificadas. Tal delimita- gio & necessiria para prevenir a tendéncia ao alargamento exagerado do cam- po dos direitos de personalidade, acentuada no sentido de elevar a direitos sub- jetivos varias projegdes da individualidade que néo possuem ésse teor, e, ainda, de arrastar para seu territério direitos de outra natureza, como, por exemplo, © direito aos alimentos e 0 direito & liberdade do pensamento. Desta necessidade de defini-los com preciso, nao se deve inferir que cons- tituem numerus clausus, se considerados histdricamente, mas de sua natureza de direitos absolutos, e, portanto, oponiveis erga omnes, segue-se que deverm estar instituidos em lei, muito embora constituam categoria eldstica em face da ampla compreensio de muitos déles. 16. Consideram-se atualmente direitos & integridade fisica: a) direito & vida; b) direito sébre 0 préprio corpo; ©) direito ao cadaver. O direito sbre 0 proprio corpo subdivide-se em direito sdbre 0 corpo in- teiro e direito sdbre partes separadas, compreendendo os direitos de decisao individual sdbre tratamento médico e cirtirgico, exame médico e pericia médica. Admitem-se como direitos A integridade moral: a) direito & honra; b) direito liberdade; ©) direito ao recato; a) direito & imagem; e) direito ao nome; f) direito moral do autor. © contetido de alguns désses direitos diversifica-se sem que, entretanto, determine a diversificagéo sua autonomia, como acontece com 0 direito a que niio seja revelada carta-missiva confidencial, que esta compreendido no direito ao recato ou direito 4 intimidade. Aspectos mais interessantes désscs diversos dircitos de personalidade de- mandam abreviado comentario para fixagdo, em tragos mais incisivos, da sig- nificagdo que cobraram nos tempos atuais. Os direitos & integridade fisica adquiriram maior importancia em virtude dos progressos da ciéncia, como, também, de novos hibitos e costumes que estéo a modificar a mentalidade do homem comum. 46 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA 17. Sendo evidente que o direito A vida nio legitima o suicidio, apresen- tam-se como aspectos interessantes désse direito de personalidade os que re- sultam de relagoes juridicas de natureza negocial que expdem uma das partes a riscos extremos. Até que ponto, pergunta DIEZ DIAZ, é Kcito arriscar a vida em exercicios perigosos e desnecessdrios pelo torpe afi de eaxlquecer? Toleram-se as atividades arriscadas em espetaculos de circo e se admitem praticas desportivas, como a do pugilato ¢ de touradas, nas quais os parti- cipantes jogam com a propria vida. Conquanto se invoquem, para a validade désses contratos, o principio de que tais priticas sto autorizadas e a regra volenti non fit injuria, bem é de ver que sobreleva o ditame superior que pro- tege o direito A vida, a determinar, pelo menos, tratamento diverso A eficacia désses contratos e ao valor da declaragao de vontade, admitindo-se, como ad- vogz DE CUPIS, a revogabilidade in extremis, expressamente acolhida no Pro- jeto do Cédigo Civil Portugués (art. 81, n.° 2). 18. Indaga-se, por outro lado, se deve ser reconhecido o direito a embele- zar-se, tornando-s¢ legitima a pritica da cirurgia estética por simples vaidade ou, mesmo, como um requisito para o exercicio de certas profissdes. Nenhum motivo de maior relevincia justificaria a proibigao de semelhante pritica, mas 6 evidente que a ordem juridica ndo pode permanecer indiferente as impli- cagées do contrato para ésse tratamento cirirgico. Nem se poderia reconhecer eficicia ao negécio juridico de que resultasse a obrigagio de submeter-se a ésse tratamento como condigao para a continuidade de uma convivéncia ou a sobrevivéncia de uma relagdo jaridica. 19. Nao compreende o direito a vida o de tornd-la artificialmente mais suportavel, ou mais agradavel, as custas de estupefacientes, ou mesmo dos ata- réxicos, mas, embora se reconhega que afetam a personalidade, nio ha sangao civil para essa abusiva pratica, que se coibe, entretanto, com a regulamentagio da venda désses produtos farmacéuticos, inadmissivel, se fésse reconhecido o direito de livremente usa-los. Finalmente, 0 consentimento no homicidio por compaixio nio o legitima, recisamente porque ndo tem o individuo o direito de dispor de sua’ vida. Is graves perigos que encerra a eutanisia tém levado as legislagdes em geral 2 repudid-la, muito embora se justifique em casos excecionais. 20. Dentre os direitos sdbre 0 préprio corpo, desperta vivo interésse, em nossos dias, 0 que se traduz na pritica da inseminagao artificial, j4 difundida entre certos povos ao ponto de se organizarem bancos de sémen humano re- frigerado. O reconhecimento & mulher do direito a ser artificialmente insemi- nada para satisfazer seus naturais anseios maternais nio atenta contra sua per- sonalidade, nao obstante o preconceito, muito vivo entre os poves latinos e assi- lados, de que rebaixa sua dignidade, O Projeto de Cédigo Civil Brasileiro nao enfrentou o problema especificamente, deixando sua solugdo ao critério dos tribunais, ao estabelecer como limite ao direito de dispor do préprio corpo os bons costumes, para permitir a pritica quando evoluir a mentalidade no sen- tido de que no os fere. Tuis sav, porém, os problemas que a inseminagao ar- tificial levanta que mal nao haveria de se antecipar o legislador para permitir, por exemplo, e somente, a auto-inseminagdo das mulheres casadas, que jA se vem realizando pela utilizagao do esperma matrimonial excedente, introduzido na cavidade uterina. SETEMBRO — 1966 a7 Ha de se reconhecer, por outro lado, em circunstincias excecionais, que poderia transformar-se em normais devido A explosio demografica, o dircito esterilizagio, j4 admitido para anular perigo no parto e que, talvez, venha a ser tolerado para efeitos walthusianas, Rpeser da abstinads ‘oposigaio de seto- res religiosos. 21. O dircito sdbre partes separadas do corpo é dos que ensejam menos controvérsias, sendo admitide por quase todos os escritores. Sua natureza nao é, entretanto, pacifica, Com a separacao, deixaria de ser direito de persona- lidade, segundo alguns (GANGI, DEGNI, SANTORO PASSARELLI), transfor- mando-se em direito de propriedade, ¢ passando as partes separadas 4 catego- Fa do cosas no comércio. Em verdadé, porém, n&bperde soa nataroza. for ser dispontvel. Desdobra-se a protegio désse direito em dois sentidos: a) contra os atentados procedentes de terceiros; b) contra 0 poder de disposigao do proprio individuo. Permitida, em principio, a separagdo de partes do corpo para o fim de disposigao, tornam-se licitos, em tese, os negécios juridicos que os tomem como objeto. Ha, entretanto, limites ao poder de disposigao. Primeiramente, nio é Kcita a que importa diminuicio permanente da integridade fisica. Em segundo lugar, nao se reconhece validade ao contrato atentatério da dignidade huma- na. O aleitamento por ama-de-leite e a doagio de sangue para transfusio sio trangiiilamente admitidos, Toleram-se, sem repugninela, « venda de eabelos e outras partes separdveis do corpo humano, ainda quando nio se justifiquem por interésse superior. Nao se legitimam, porém, os transplantes homoplasti- Gos, nem mesmo quando se trata de érgiios gémeos © se fazem por gesto de herofsmo, ou abnegagao. De regra, é proibida a extragéo anatémica em vida, mas, excepcionalmente, hi de ser permitida, respeitadas limites que sdmente podem ser tragados & luz do caso concreto. Assim o transplante de cérnea pe recuperagio de vista tem sido admitide em circunstancias excepciona- imas. 22, A recusa 4 observincia de tratamento médico ou cirirgico apresenta- se como interessante aspecto do direito 4 inviolabilidade do cor Raman, mas smente interessa ao Direito Civil quando agrava a responsabilidade de terceiro obrigado ao pagamento de indenizagio pelas lesdes causadas ao ofen- dido. Se a negativa constitui exercicio de um direito, nao pode ser vencida com a supressio das prestagdes devidas, mas, se precisa ser fundada, em face dos riscos que o tratamento implica, sdmente exoneraré o devedor nessa hipétese. 23. Objeto de preacupagées mais graves tém sido ultimamente o emprégo de drogas ou da psicocirurgia para fins de cura ou de investigagio, que pro- duzem_a destruigio do proprio eu ou a alteragdo da personalidade. ‘Revinas dessas praticas podem ser toleradas em atengiio ao fim superior a que se desti- nam, desde que a preocupagao terapéutica n3o se sobreponha a dignidade pessoal do paciente. Condendvel, no entanto, a tédas as luzes, é o processo de desintegragao da consciéncia que se vem usando para obter confissdes. A monstruosidade das cimaras chamadas mAgicas onde se processam as aluci- nantes lavagens do cérebro nao tem lo na Histéria. Nem ha de se permi- tirem outros atentados a dignidade humana, como os que se ensaiam com a a8 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA narco-andlise e com a absorgio de drogas que permitem teledirigir a conduta do homem. Os progressos da ciéncia o ameagam no que tem de mais intimo e inviolavel. A condenagao a ésses abusos e priticas néo basta, evidentemente, a repressio ‘egal mas, inquestionavelmente, a consagragao dos direitos de personalidade nos Cha ligos traduz convicges ¢ sentimentos que néles encontram consideravel reférgo. 24, Tais ameagas nfo existem apenas em relagio & integridade fisica dos individuos. Alcangam-Ihes a integridade moral lato sensu, do que resulta a neces- sidade do reconhecimento de dois novos e interessantes direitos: 1) 0 direito & imagem; 2) 0 direito ao recato, © retrato de uma pessoa nfo pode ser exposto, ou reproduzido, sem o consentimento dela, salvo se assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigéncias de polfcia ou de justica, finalidades cientificas, diddticas ou culturais, ou quando a reprodugio da imagem vier enguadrada na de lugares riblicos ou de fatos de intercsse ‘piblico, ou que em piblico hajam decorrido Fprojeto de Cédigo Civil Portugués, art. 79). Proibe-se a reprodugao, ou expo- sigao, quando o fato atenta contra a honra, a boa fama e a respeitabilidade da pessoa retratada, admitindo-se que, nesses casos, possa o ofendido requerer a proibicdo e pleitear indenizagao do dano que sofreu. Tais, em sintese, as regras relativas ao direito 4 imagem. 25. Preserva-se a intimidade da vida privada da indiscrigio alheia, Est reconhecido, por outras palavras, como direito de personalidade, 0 direito a0 recato, pelo qual se protege o individuo contra intrusées de outros na esfera personalissima que Ihe é reservada (SANTAMARIA). Sagrado é 0 ambito da vida intima de cada pessoa, observando SANTAMARIA que quanto mais se acentua a obsessio espasmédica da indiscrigso, da curiosidade e da investigagao do publico, tanto mais se ergue esquivo 0 senso cuidadoso da imunidade de téda ofensa A intimidade da’ vida privada (verbete Diritti della persona, in “Nuovo Digesto Italiano”). Nao se delimita, no entanto, a extensio do direito a0 recato, Define-se, segundo o Projeto de Cédigo Civil Portugués, conforme a natureza do caso e a condigao das pessoas (art. 81), Trata-se, como reconhece ALLARA, de uma categoria de contetdo vago na qual inclui éle o direito imagem ¢ o direito ao segrédo epistolar, telegrafico e telef6nico (op. cit., pigs. 661 a 663). 26, Para concluir, importa assinalar que a tutela aos direitos de personali- dade se exerce mediante sangées que devem ser suscitadas pelo ofendido, pleiteando a indenizacao do dano moral ou a cominagao de uma pena, agbes que podem ser cumuladas, Permitidas sao, ainda, as agées destinadas a confessar e a negar especificamente um direito de personalidade, completando-se, assim, 0 sistema de tutela privada de tais direitos, que pode ser movimentado indepen- dentemente das sangdes penais que caibam. 27. _ Os aspectas ressaltados de alguns direitos de personalidade testemunham sua relevancia, encarecendo a necessidade de preenchimento da lacuna do di- reito positivo nacional, e justificando 0 interésse dos juristas pelo estudo de sua dogmatica. Dos moges, é de se esperar que demonstrem sensibilidade para ésses proble- mas, porque os juristas de minha geragio, com poucas ¢ honrosas excegdes, continuam a viver na atmosfera do século pasado.

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