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Em busca da participacaéo das mulheres nas lutas pela independéncia politica da América Latina’ Maria Ligia Coelho Prado* O tema das independéncias politicas ganhou, na historiografia latino-americana do século XIX, uma importancia capital. Era necessdrio escrever a histéria dos nascentes Estados, justificando 0 rompimento com as metr6poles ¢ legitimando o poder constituido. Outra pega fundamental destas primeiras construgées hist6ricas foi a criagdo dos herdis nacionais. No Brasil, j4 que oficialmente a Independéncia “foi proclamada” por D. Pedro, portugués de nascimento e posteriormente, rei de Portugal, era necessdrio entronizar outro herdi, um brasileiro. Assim, José Bonifacio de Andrada e Silva, ainda que tivesse vivido 35 anos na antiga metrdpole, transformou-se no “Patriarca da Independéncia”, ofuscando o lugar de D. Pedro I. Sem seus conselhos, repetiu-se A exaustio, 0 jovem Principe nao teria optado pela ruptura total. Na Venezuela, as construgées hist6ricas em torno de Simén Bolivar tém uma trajetoria interessante, Ainda que tivesse dedicado sua vida 4 causa da independéncia, percorrendo vastas extensdes da América do Sul e perdendo sua satide e fortuna pessoal, Bolivar morreu no exilio em Santa Marta, criticado e desprezado por seus antigos aliados. Entre- tanto, nos anos 40 do século passado, quando a Venezuela vivia um perfodo de intensas lutas politicas que ameagavam sua coeso interna, as visGes sobre Simon Bolivar sofreram alteragdes radicais que o conduziram do lugar de traidor da Pétria, para o altar dos herdis consolidadores da unidade nacional. Seus restos mortais foram trans- ladados para Caracas com toda a pompa e iniciou-se um verdadeiro culto 4 sua pessoa, que nos anos seguintes, ultrapassou as fronteiras vene- zuelanas, colocando-o no Olimpo dos herdis latino-americanos. O caso mexicano também € exemplar. No século XIX, os historiadores estabeleceram uma diferenga de tratamento entre os Iideres populares, os padres Miguel Hidalgo e José Maria Morelos, cujas ¥ Professora de Hist6ria da América Latina do Departamento de Histéria da USP. " Agradego a Barbara Weinstein pelas valiosas sugestées e a Herbert S. Klein, pela leitura cuidadosa, criticas estimulantes ¢ disponibilidade constante. ? Ver sobre o tema, o interessante livro de. DAMAS, Germén Carrera, El culto a Boltvar, Caracas, Universidad Central de Venezuela, 1969; e também meu artigo “Bolfvar, Bolivates” in Folhetim da Folha de Sao Paulo, 24 de julho de 1983, Rev. Bre propostas sociais foram bastante radicais, e Agustin de Iturbide, o artifice conservador da independéncia. Atacavam-se os primeiros e simpatizava- se com 0 segundo. A Igreja nfo se cansou de pintar Hidalgo como um demdnio que havia enganado o povo crente. Muitas pecas populares de teatro tinham-no como vildo traigoeiro, aparentado com as coisas do inferno, que terminava sempre castigado. J4 no presente, no Panteén dos her6is nacionais, h4 lugar para todos: desde Hidalgo e Morelos, até Tturbide. Essa magnanimidade por parte das versGes oficiais esté direta- mente relacionada aos resultados da Revolugio Mexicana de 1910. Ainda que vencida pelos setores burgueses, a revolugdo fez concessdes aos camponeses © aos trabalhadores urbanos; no seu afi de transformar-se numa revolucdo nacional e incorporar todas as aspiracSes sociais, espe- cialmente as dos trabalhadores, permitiu a criagdo de um espago para to- dos os heréis. Os museus homenageiam a todos, incorporando os que outrora se constituiram nos “perigosos” Ifderes populares. O tema dos herdéis nacionais, todos masculinos, remete-nos a duas questdes que se entrelagam, a busca da participagdo das mulheres nas lutas pela independéncia e a construcfo de seu lugar como herofnas € patriotas. A imagem que ainda prevalece sobre a mulher do século XIX € a da figura sempre submissa, incapaz de tomar decisdes ¢ alheia as “coisas sérias ¢ importantes”, a despeito ge trabalhos historiogréficos de peso que j4 desmontaram tal estereétipo.* Esta pesquisa inicial sobre o lugar da mulher, nesse perfodo extraordinariamente conturbado, parece mais uma vez contrariar as construgGes oficiais da hist6ria ¢ oferecer pistas que revertem a perspectiva de alheamento da mulher das coisas publicas. A necessidade e a importincia de um trabalho sobre o tema, como veremos, torna-se evidente na medida em que os primeiros dados séo levantados. Antes que tudo, é preciso lembrar que nas colénias espanholas, a0 contrério do Brasil, aconteceu uma guerra prolongada que durou entre 10 ¢ 15 anos, fazendo emergir aspirag6es sociais diversas e conflitantes. 3 Ver particularmente o trabalho classic de Luis Villoro, El processo ideoldgico de la revolucién de independencia, 4a. ed., México, UNAM, 1984. * Sobre tal problemitica, cito alguns trabalhos sobre a mulher no século XIX: SILVA DIAS, Maria O¢ila L.. da, Quotidiano e Poder no séeulo XIX: Ana Gertrudes de Jesus, Sto Paulo, Brasiliense, 1984; LEITE, Miriam Moreira, A condigdo feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes, So Paulo, Hucitec/Instituto Nacional do Livro! Fundag&io Nacional Pr6-Mem6ria, 1984; CARNER, Francoise, “Estereotipos femittinos en el siglo XIX” in Presencia y transparencia: la mujer en Ia historia de Mexico, México, El Colegio de Mexico, 1987; ARROM, Sylvia, The women of Mexico City. 1790-1857, Stanford, Stanford University Press, 1985; MENDELSON, Johanna S. R.,“The feminine press: the view of women in the colonial journals of Spanish America, 1790-1810" in LAVRIN, Asuncién (org.), Latin America Women: Historical Perspectives, Westport, Greenwood Press, 1978; FRANCO, Jean, Plotting Women, New York, Columbia University Press, 1989, particularmente cap.4; e MACIAS, Ana, Againsr all odds. The feminine ‘movement in Mexico to 1940, Westport, Greenwood Press, 1982, capitulos 1 ¢ 2. 78 A regio esteve exposta a uma luta incerta, em que a vitéria de um dos lados nao era evidente e em que a sorte mudou de rota muitas vezes. O medo ¢ a inseguranga fizeram parte de uma situagGo como essa, porém eram acompanhados pela esperanga e pela crenga de uma mudanga para melhor. Flores Galindo nos fala de varios murais limenhos, do comeco do século XIX, que retratavam a imagem do mundo de ponta-cabeca: 0 réu aparecia aguardando o juiz, o usurério exercendo a caridade, os tou- ros atremetendo contra os lidadores.” Quando se fala em exército, nesse perfodo, vemos sempre homens marchando a pé ou a cavalo, lutando. Esquecemo-nos de que as mulheres, muitas vezes com filhos, acompanhavam seus maridos/ soldados; além disso, como no havia abastecimento regular das tropas, muitas trabalhavam, cozinhando, lavando ou costurando, em troca de algum dinheiro. Encontramo-las nos exércitos camponeses de Hidalgo e Morelos, da mesma forma que € possivel vé-las, um século depois, nas fotografias dos exércitos zapatistas da Revolugio Mexicana de 1910. Expostas A dureza das campanhas e aos perigos das batalhas, enfrentavam corajosamente os azares das guerras. Permitam-me avangar alguns anos j4 depois de conquistada a independéncia, para lembrar a lenda criada na Argentina, em torno daquela que ficou conhecida como Defunta Correa. Era a jovem mulher de um soldado que ingressou nas filas de Facundo Quiroga, quando das lutas entre federalistas e unitérios que dividiram o pais. Acompanhava © marido e trazia consigo um filho pequeno que ainda amamentava. As agruras da campanha pelas terras secas do noroeste argentino ¢ a falta de comida levaram-na a morte. Conta a lenda que quando a encontraram, jé morta, de seus seios ainda saia leite e a crianca continuava viva, mamando. A partir desse “milagre”, Defunta Correa transformou-se numa santa popular, cuja devogio espalhou-se pela tegiao. Foi, assim, refletindo sobre as situagdes criadas pela guerra, que a figura de Maria Quitéria me intrigou. Nas lutas pela independéncia do Brasil, a jovem bahiana, de famflia simples e humilde, transformada em herofna oficial, condecorada pelo imperador, vestida orgulhosamente de soldado, seria na América Latina, uma excegfo, a tinica, s6 compardvel & Joana D’Arc? Como nos lembra George Mosse, também na Europa, nesse mesmo periodo, encontram-se jovens mulheres que, disfargadas de homens, entraram para o exército; lutaram, por exemplo, nas guerras da 5 GALINDO, Alberto Flores (org.), Independencia y revolucién, Lima, Instituto Nacional de Cultura, 1987. © No México so chamadas de “las soldaderas”; ver o trabalho de SALAS, Elizabeth , Soldaderas in the Mexican Military. Myth and History, Austin, University of Texas Press, 1990. 79 Revolugio Francesa, tanto do lado francés, quanto do alem&o. Mosse cita um livro, publicado em 1912, sobre “as herofnas alemas” das guerras entre 1807 a 1815, no qual o autor documenta a presenca de 17 mulheres vestidas de homens que abragaram a “causa patriota’.’ Mas voltando & América Latina, a pesquisa, ainda incipiente, me ofereceu respostas surpreendentes. H4 um mimero bastante expressive de mulheres que se incorporaram ao exército, como soldados, todas defensoras da independéncia.® Entretanto, se Maria Quitéria precisou disfargar-se de homem, nos demais casos citados, as mulheres no foram obrigadas a esconder seu sexo. para participarem da guerra, Os exemplos comecam por uma das filhas de Hidalgo, que 0 acompanhou desde o principio, vestida no uniforme dos oficiais insurgentes.” Manuela Eras y Gandarillas e Josefa Montesinos, ambas de Cochabamba, participaram de varias agdes armadas, incluindo um audacioso ataque ao quartel dos veteranos realistas em 1815; conta-se que Manuela, ao ver aproximar-se um ataque & cidade, notando certa vacilagéo por parte do pequeno grupo de soldados, teria afirmado: “Si ya no hay hombres, agui estamos nosotras, para afrontarmos al enemigo, y morir por la patria.”!° Manuela Pedraza, conhecida por La Tucumana, lutou ao lado do marido, contra a, invasao inglesa de Buenos Aires, em 1806, recebendo o grau de tenente.!! Maria Remédio del Valle, portenha, fazia parte dos exércitos de San Martin no Peru ¢ participou de muitas batalhas.!? Entretanto, a figura paradigmatica de mulher/soldado é Juana Azurduy de Padilla, nascida em Chuquisaca (hoje Sucre), em 1780, que junto com o marido, homem de posses, dono de fazendas, liderava ui grupo de guerritheiros, Lutando pela independéncia, participou de 23 ac6es armadas, algumas sob seu comando, perdendo, ao longo desses embates, todos os seus bens. Ganhou fama por sua coragem e habilidade, chegando a obter a patente de tenente-coronel. Havia um grupo de mulheres, chamadas “las amazonas” que a acompanhavam nos combates. Em 1816, num perfodo de continuas derrotas das forgas rebeldes, os 7 MOSSE, George L., Nationalism and Sexuality. Respectability and Abnormal Sexuality in Modern Europe, New York, Howard Fertig, 1985, p. 101 8 Nao encontrei registros de mulheres que ingressaram nos exércitos realistas; mas € muito provavel que tenham existido, mas foram esquecidas, na medida em que estavam do lado que foi derrotado. ° Citado por SALAS, Elizabeth, op. cit. p. 26. '© Citado por URQUIDI, José Macedonio, Bolivianas Mustres. Las Guerrilleras de la Independencia, Le Pad, Bd. José Camatlinghi, 1967 (la.ed. 1918), p. 160. 1 Citado por CORTES, José Domingo, Diccionario Bivgrdfico Americano, Paris, Tipografia Lghure, 1876, p. 373. 2 Tnformagées retiradas de ROCAMORA, J. Luis Trenti, Grandes Mujeres de America, Buenos Aires, Editorial Huarpes. 1945. 80 comandantes, isto é, ela e seu marido, coronc] Manuel Ascencio Padilla, acompanhados do capeléo e de seus ajudantes de campo — 0 de Juana era uma mulher, uniformizada como cla — batiam em retirada, depois de uma batalha perdida, quando foram alcangados pelos realistas. Padilla foi morto, mas Juana conseguiu escapar, pois os realistas a confundiram com sua ajudante de campo, imediatamente executada. Depois da morte do marido, Juana continuou participando da luta guerrilheira, ainda que com dificuldades crescentes. Depois da independéncia, vivendo com a nica filha que havia sobrevivido, recebeu, uma pequena pensio durante © governo de Antonio José de Sucre, pelos servigos prestados & causa. Mas logo depois, deixou de receber qualquer ajuda, vivendo até sua morte aos 80 anos, pobre e esquecida.’ Dessa maneira, Maria Quitéria de Jesus, a jovem baiana que “ardia de amor pela patria” ganha uma perspectiva diversa de abordagem, deixando de ser uma exceedo absoluta, para ser pensada dentro de um quadro mais amplo de participagZo das mulheres nesses movimentos. Maria Quitéria, que no sabia ler e escrever, vestiu-se de homem e entrou para o cxército brasileiro; participou de algumas batalhas, distinguiu-se em acao e, finalmente, recebida pelo imperador, em agosto de 1823, que a condecorou com a ordem do Cruzeiro ¢ a promoveu a alferes. Nesse mesmo. més, encontrou-se com a viajante inglesa, Maria Graham, que deixou sobre ela as seguintes impressGes: “Maria de Jesus ... tem a inteligéncia clara e a percepgdo aguda... Nada se nota de masculino em seus modos, antes os possui gentis ¢ amaveis. Nao contraiu nenhum habito grosseiro ou vulgar durante a vida de acampamenio... Nada notei de peculiar no seu procedimento & mesa, a niio ser que... fuma um cigarro apés cada refeicao"’."* Certamente, suas observagées se devem a existéncia de preconceitos que envolviam a figura da mulher/soldado, vista muitas vezes como uma personagem masculinizada e¢ fora de lugar, que se apropriara de qualidades usuglmente atribuidas aos homens, como coragem, sangue frio, audacia etc. Leona Vicdrio, nascida na cidade do México, em 1787, de uma familia influente e de posses constitui-se num outro exemplo parti- cularmente interessante. Recebeu boa educagdo formal e, depois da morte 13 Sobre Juana Azurduy, ver VEGA, Alipio Valencia , Manuel Paditla v Juana Azurduy, La Paz, Libreria Editorial Juventud, 1981; TORRE, Arturo Costa de la, La heraica Juana Acurduy de Paditla, La Paz, Editorial Casa Municipal de la Cultura Franz Tamayo, 1981 (Os dois livros comemoram 0 bicentendrio de seu nascimento, URQUIDI, José Macedonio, op. cit., tem um longo capitulo sobre ela; ver, ainda, CORTES, José Domingo, op.cit., p.44; ROCAMORA, J. L. Trenti, op. eit.; e a biografia romanceada de GULLER, Maria Zorayda Gianello de, Guerrillera. Reulidad. leyenda y mito de La Coronela de los Andes. Juana Azurduy de Padilla, Parand, Entre Rios, Editorial Nueva Impressora, 1966. 14 GRAHAM, Maria, Didrio de wna viagem ao Brasil ¢ de uma estada nesse pais durante rte dos anos de 1821, 1822, 1823, S00 Paulo, 1956. 5 Ver Mosse, George L., op.cit., especialmente cap. 5 81 de seus pais, aos 18 anos, teve seu tio, influente advogado do vice- Teinado, como seu tutor. Conheceu em sua casa Andrés Quintana Roo, Jovem poeta yuacateco, partidério da independéncia, por quem se apaixonou. Entretanto, 0 pedido de casamento foi recusado pelo tio. Logo em seguida, Quintana partiu para se juntar as tropas de Morelos em Oaxaca. Leona permaneceu na cidade, mas manteve contatos com o noivo ¢, de variadas maneiras procurou auxiliar aos insurgentes, com dinheiro e informagées; afirma-se que até mesmo comprou uma gréfica € enyiou-a a seu noivo. Suas atividades demonstravam que aderira a causa da independéncia e comegaram a levantar suspeitas. Foi presa em 1813, no Colégio de Belém. Depois de diversas peripécias, foi libertada Por trés oficiais insurgentes ¢ pode reunir-se, finalmente, com Quintana Roo, com quem se casou. A partir dai, continuou ao lado do marido, fugindo dos realistas e escondendo-se; nessas circunstancias, nasceu sua primeira filha, Depois de alguns episddios meio obscuros, os dois aca- baram por se entregar as autoridades realistas, ao receberem um indulto, Mas as atividades politicas de Leona, apés a independéncia, nao cessaram. Vemo-la tomando partido dos federalistas, fazendo reivin- dicagées, Iutando por reaver parte de sua fortuna confiscada nos anos de guerra, visitando o presidente da Repiblica, Anastacio Bustamante, para denunciar ameagas que scu marido vinha sofrendo, sendo objeto de criticas nos jornais de oposicao, enfim, atuando como uma figura publica. Quando morreu em 1842, os politicos prestaram-Ihe homenagens ¢ os Jornais dedicaram-Ihe artigos, Carlos Maria de Bustamante disse que ela tinha sido “el ornato de su sexo y la gloria de su patria”. H4 documentos sobre outro tipo de Participagao-das mulheres; trabalhavam como mensageiras, levando informagées para os insurgentes. Provavelmente sua condi¢ao de mulher deveria levantar menos suspeitas; entretanto, vi dessas mulheres terminaram por ser descobertas, sendo Presas e algumas condenadas & morte. Os realistas nfo hesitaram em executar aquelas que eram consideradas traidoras. Cito apenas dois exemplos, ambos de Nova Granada; Policarpa Salavarrieta, La Pola, que levava informages sobre os realistas aos rebeldes guerrilheiros, acabou presa , como negou-sc a delatar seus companheiros, foi morta em 1817, em Bogota. Antonia Santos, de Socorro, financiou as tropas rebeldes, passando-lhes informagdes ¢ teve o mesmo fim que La Pola; foi executada em praga publica, por ter-se recusado a falar.’ Mas a aoe cen CPeeP ECE HEPEPE '® Sobre Leona Vicario, ver GARCIA, Genato, Leona Vicario. Heroina Insurgente, México, Secretaria de Educacién Publica, 1945 (Ia. ed.,1910), que apresenta uma visto bastante diferente da habitual; ver também, SILICEO, Luis Rubio, Mujeres celebres en la independencia de México, México, Talleres Graficos de la Navién, 1929, A citagdo de Bustamante est4 na p. 23; e TRUJILLO, C. A. Echdnov, Leona Vicario: La mujer fuerte de 4g independencia, México, Ediciones Xochitl, 1945, " Ver ROCAMORA, J. Luis Trenti, op.cit © José Domingo Cortés, op. cit., pp. 448 e 460, respectivamente, 82 “mensageira” mais famosa ¢ a mexicana, Josefa Ortiz de Dominguez, esposa do corregedor de Querétaro, Miguel Dominguez. Era de famflia de posses, tendo estudado no Colégio das Vizcainas, de onde saiu para se casar, Ela e 0 marido estavam préximos dos conspiradores que pretendiam iniciar a rebelifio pela independéncia; ao tomar conhecimento que a tebelido fora denunciada e que os conspiradores iam ser presos, fez com que a noticia chegasse até eles, precipitando a decisao do “Grito de Dolores”. Todavia 0 casal foi preso; ele logo foi perdoado, porém ela teve que passar longos perfodos como prisioneira de diversos conventos, em Querétaro e na cidade do México. Conquistada a independéncia, ha documentos que afirmam ter continuado a manter seus interesses © ati- vidades politicas, ligando-se & loja mag6nica dos “York”, relacionando- se com figuras como Guadalupe Vitéria e Valentim Gomez de Farias. Também se conhecem mulheres que de alguma maneira cooperaram com os rebeldes e que sofreram castigos por isso, como Juana Mora de Lopez, de Salta, que levava informes aos rebeldes, ficou conhecida como “La Emparedada”, porque os realistas a condenaram a morrer de fome em sua casa, cujas portas e janelas foram seladas; entretanto, seus vizinhos derrubaram a parede que dividia as casas ¢ ela se salvou. Maria Cornélia Olivares nascida em Childn, sul do Chile, destacou-se por ter grande habilidade para a oratéria, fazendo discursos sobre a liberdade em vérios salées e também em praca piblica. Admoestada pelos realistas, continuou em suas pregagées ¢ terminou sendo presa. Na prisfio, teve a cabega raspada ¢, como castigo maior, foi assim exposta “A vergonha piblica”, na praga principal de Chilén. Agueda Monastério de Lattapiat pertencia a uma tradicional familia chilena e estava casada com um oficial francés, que havia servido na Argentina com Liniers ¢ era defensor da independéncia. Em seu salio modesto reuniam-se muitos dos que compartilhavam das idéias de Jibertagio das col6nias. Sua filha Juana, de 15 anos, acompanhava a mie no interesse e entusiamo pela causa. Escreviam cartas aos emigrados, passavam informagées aos insurgentes; quando San Martin estava em. Mendoza, enviaram-lhe noticias sobre a situag&o dos realistas. Desco- berta, foi presa e sofreu todo tipo de press&o para delatar outros envol- vidos. Recusando-se a falar, foi condenada & forca, devendo assistir antes ao suplicio de sua filha, que deveria ter a mao direita cortada, por ter escrito cartas com informes considerados subversivos. Foi perdoada no Wltimo momento. Entretanto morreu logo depois, vitima de doenga contrafda na priséo.'? ‘Ainda que os documentos digam respeito mais comumente a 18 Ver SILICO, Luis Rubio, op. cit 19 Sobre as mulheres chilenas, ver GREZ, Vincente, Las mujeres de la independencia, Santiago, Imprenta de la Gratitud Nacional 1910; e também José Domingo Cortés. op.cit. ¢ J. L. Trenti Rocamora, op. cit. 83 mulheres que vinham de famflias de algumas posses ou que tinham poder, ha também relatos sobre mulheres pobres (como algumas ja citadas) © mestigas. A narrativa melhor documentada que encontrei foi sobre Simona Josefa Manzaneda, nascida em La Paz, em 1770. Era artes € casou-se com um mestigo da mesma profissao, que morreu algum tempo depois. Em 1809, quando da revolta de La Paz pela inde- pendéncia, Simona Josefa desempenhou um ativo papel, reunindo ¢ organizando os “vecinos” de seu bairro, que armados, dirigiram-se & Praga das Armas, onde se exigia o “cabildo aberto”. Derrotado o movimento, foram seus Ifderes sumariamente executados, havendo grande nimero de presos. Ela conseguiu fugir, escondendo-se num vilarejo do interior. Entretanto, em 1814, quando do levantamento dos irmaos Angulo (iniciado em Cuzco e que chegou ao Alto Peru), ei-la de volta As suas atividades revolucionarias. Derrotados mais uma vez, foi denun- ciada e presa; buscavam também seu filho, que nao foi encontrado e do qual nfo se conhece o paradeiro. Depois de presa, foi submetida a julgamento sumirio, tendo morte atroz; teve a cabeca raspada, e nua, foi passeada pelas ruas num burtico, flagelada e fuzilada pelas costas em Praga piblica. Este castigo téo ,infamante esté provavelmente ligado a sua condigo de mestiga e pobre. Estas © outra hist6rias — 0 registro das atividades polfticas das mulheres é bastante grande — comecaram a ser narradas em biografias escritas durante 0 século XIX e comecgo do Soe (particularmente em torno do centenério da independéncia). Sao histérias contadas com finalidades patridticas, em que se exalia a atuagdo das mulheres nesses movimentos, Todavia, parece-me indiscutivel que essas indmeras narrativas, por distorcidas que sejam, demonstram uma efgtiva Participagao consciente das mulheres nas lutas pela independéncia, A leitura de alguns panfletos chilenos deste periodo™” sugeriu-me outro problema interessante, qual seja, a necessidade de convencimento das mulheres da importancia da “causa patridtica”, Era a independéncia, na concepgdo dos contemporaneos, um negécio de homens do qual as mulheres deviam ficar apartadas? Ainda que a resposta, de uma maneira ° CE. VEGA, Alipio Valencia, Simona Josefa Manzaneda, La Paz, Libretia Edtorial Juventud, 1978; ¢ J. M. Urquidi, op. cit 7 Consultei, além dos trabathos ja citados os seguintes textos: ANDRADE, Manuel de Jesus, Préceres de la independencia. indice alfabetico de sus nombres con algunos bocetos diogrdficos. Quito, Tipografia de la Escuela de Artes y Oficios, 1910; HIDALGO, Salomén Bolo, Micaela Bastidas Puiucagua. La mujer mas grande de America, Lima, s/ed., 1966; MIRANDA, Marta Elba, Mujeres Chilenas, Santiago, Ed. Nascimento, 1940; GALLETTI. Angel Mancera, La mujer venezolana en la independencia, Caracas, sied., s/d.; MONSALVE, J. D., Mujeres de la independencia, Bogot4, Imprenta Nacional,1926; HERNANDEZ, Carlos, Mujeres celebres de Mexico, San Antonio, Casa Editorial Lozano, 1916; PALMA, Ricardo, Tradiciones Peruanas, Madrid, Calpe, 1923. Colegio de panfletos do periode da independ&ncia do Chile na The John Carter Brown Library, Brown University, Providence, Rhode Island (BUA). 84 geral, deva ser afirmativa, ela nfo € to absoluta quanto possa parecer & primeira vista. Os panfletos so de 1817 e compdem-se de didlogos entre Clarideo, Rosa e Paulino, trés irmaos. No primeiro, Clarideo, utilizando- se de argumentos liberais convencia Rosa da necessidade da inde- pendéncia. Ela, realista, estava amedrontada com os castigos que a religidio lhe prometia — excomunhio, inferno — caso abragasse as novas idéias. Porém Clarideo a persuadiu dos males causados pela Igreja ligada & opressio dos espanhdis. Rosa, enfim, cedeu, afirmando estar agora ao lado do irmio, Em outro panfleto, 0 didlogo se passa entre Paulino e Rosa, abordando o tema mais complexo da necessidade da violéncia, para se alcangar a liberdade. Mais uma vez, a irma foi convencida. De um lado, aparece o homem, como dono da razdo, convencendo a mulher, imersa no mundo dos sentimentos religiosos. Entretanto, por outro lado, cle Ihe conferia uma dimensao mais ampla que a doméstica, interessado que estava em persuadi-la da importincia de sua adesio & causa publica da independéncia. Estes panfletos trazem & lembranga a atitude de Javiera Carrera, irma dos Ifderes da independéncia chilena, José Miguel, Luis ¢ Juan José, que acompanhou entusiasticamente a luta de seus trés irmios ¢ os seguiu ao exilio argentino, onde terminaram assassinados. Ela também foi igualmente perseguida e feita prisioneira por algum tempo. Conta-se que seu salio em Santiago do Chile era um ponto de encontro de revoluciondrios. “Ali se concentraram, buscando um confortavel abrigo, todos os homens e todas as idéias da época; ali fermentavam as cabegas © tomava corpo € brio a revolugdo. Foi neste salfio, metade clube e metade assembléia, onde uma noite se desdobrou & vista dos concorrentes emocionados, 9 novo estandarte da patria, que devia ser posto no lugar do espanhol."> Um breve comentério sobre a linguagem de nosso autor — voltarei a este tema mais adiante — indica o tom patriotesco da narrativa e a invisibilidade da figura da mulher na sua descrigfio; ainda que 0 saldo fosse de Javiera, que organizava essas sesses € a quem se atribuiu a concepgéo da bandcira, ele afirma que ali se reuniam “todos 08 homens e idéias da época”. A importincia do convencimento das mulheres pode também ser acompanhado no México, onde se tem noticia de pelo menos um manifesto em que as mulheres eram convocadas a participar do movimento pela independéncia. O Semandrio Patridtico Americano, dos domingos 22 e 29 de novembro de 1812, publicou um manifesto intitulado “A las damas de México” no qual se afirmava a necessidade da “doce ajuda das mulheres” para completar o triunfo revolucionério. “Era preciso pér em movimento o império que exerciam sobre os coragées americanos e nfo descansar enquanto a liberdade da pétria no 23 GREZ, Vicente, op. cit., p. 38. 85, fosse alcangada. Que pata esse fim deviam inflamar, fortalecer ¢ decidir aos filhos do México a tomar em armas contra o déspota europeu...Que era tempo de demonstrar as demais nacées que as damas mexicanas sabiam tomar parte nas grandes empresas ¢ lutar com toda energia, quando se tratava da liberdade da nagdo... Que felizmente j4 se contavam com algumas damas que, apesar da espionagem e dos processos, se haviam valido de mil ardis para prestar & nagao servigos da maior importancia; que chegaria o feliz momento da liberdade, e que entao sairiam & luz os nomes destas damas, ¢ de seus herdicos atos ¢ uns ¢ outros seriam lidos com admiragao.””* A leitura das biografias dessas mulheres, escritas por homens, poe em relevo algumas interessantes questes. Nas narrativas, a linguagem empregada evidencia os objetivos edificantes dos textos e nos apresenta um retrato de mulher ideal, construfdo como exemplo para as geracdes contemporaneas. As mulheres eram modestas, dedicadas, altruistas, gene- rosas ¢ abnegadas. Em torno delas, foi moldado um padrio de respei- tabilidade, a partir do qual suas vidas ganhavam um lugar digno na galeria das figuras nacionais. Mosse tracou as intrincadas relagdes entre nacionalismo e respeitabilidade, termo que, a partir do inicio do século XIX, passou a indicar modos e moral decentes e corretos, ao lado de uma atitude sdbria em relagéo A sexualidade. Desde o fim do século XVIII, estabeleceram-se normas de comportamento que. informavam a sociedade, dentro das quais os papéis da mulher e do homem foram claramente definidos. Assim, ainda que a trajetéria ¢ as escolhas das mulheres retratadas pelos autores hispano-americanos no fossem das mais “adequadas e corretas”, se tomarmos as regras da sociedade colonial, as narrativas posteriores transformaram-nas em herofnas Tespeitdveis, cujos “desvios” se justificavam pelo “amor a pétria”.”> Suas agOes, portanto respondiam apenas aos apelos de seus coragées, Este € outro ponto importante. Nas biografias, as mulheres eram sempre tomadas por um sentimento de paixdo que as empurrava pelas trilhas da insurrei¢fo. Nao apareciam como seres dotados de razdo, fazendo uma escolha racional, depois de um balango cuidadoso das partes. Assim Maria Quitéria “ardia de amor pela Pdtria’; a chilena Luisa Recab4rren teve oportunidade de “dar a conhecer os admirdveis dotes de seu coracao”; a mexicana Rita Perez de Moreno, “matrona que era um anjo de caridade” teve “seu coragGo posto & prova” pelos sofrimentos e desenganos. Arrebatadas por fortes sentimentos, tornaram- se insurgentes. Desta maneira, o circuito da mulher ou o campo em que se movia era o das emogées. Aliada a esta idéia, aparece seu retrato estampando 24 GARCIA, Genaro, op. cit, pp.37-8. 35 Ver MOSSE, George, op. cit., especialmente, cap, 1. 86 a imagem do sacrificio e do sofrimento; todas estavam dispostas a softer as mais duras penas, se elas revertessem para o bem da patria, Nao havia obstdculos que as demovesse de seus objetivos: longas caminhadas, fugas perigosas, falta de comida e conforto, punigéo. Nada as impedia de continuar, porque acreditavam que a recompensa, isto é, a liberdade da patria, seria alcancada, Diferentes dos homens, tinham total desinteresse pelas honrarias piblicas e pelos bens materiais; estas biografias enfatizam que, nesse momento excepcional da histéria, era louvavel que elas tivessem adentrado 2 cena politica para lutar pela “causa justa”. Mas, aleangado este objetivo, deviam voltar ao lar, para os deveres da familia e dos afazeres domésticos; voltar para seu “lugar natural”, a érbita do privado. A biografia da mexicana Rita Perez de Moreno, que contribuiu para a independéncia através de muitas ages, termina assim: [conquistada a independéncia], “Dona Rita chorou a morte de seu esposo, mas se consagrou ao cuidado de seu lar na cidade de Lagos, onde nasceu, vivendo até a idade de 82 anos ¢ deixando uma etemna recordagao.””° Naturalmente, séo também apresentadas como modelos de mies e esposas. Mesmo que a biografia mostre que a mulher esteve presa ou que teve que fugir, deixando muitas vezes os filhos com outros parentes, os autores insistem em mostré-las como abnegadas ¢ dedicadissimas maes. Todas estavam imbufdas de uma fé extraordindria na justeza da causa, mantinham uma esperanga ardente, nfo permitindo que 0 animo dos demais esmorecesse. A caridade, forte sentimento de desprendimento material, nunca as abandonava, em qualquer situagdo em que se encontrassem, particularmente se dotadas de algumas posses. Portanto, as mesmas qualidades que regiam a ética cat6lica estavam presentes em suas agdes no mundo secularizado da politica. Ainda que seu compor- tamento, na época, fosse absolutamente contrdrio & hierarquia da Igreja, suas agdes foram sacralizadas por uma linguagem religiosa que as elevava a uma categoria superior. A biografia de Paula Jara Quemada, chilena que tomou parte ativa nas lutas pela independéncia, finaliza com as seguintes palavras: “Terminada a guerra de independéncia, a Sra. Jara se dedicou exclusivamente & prética da caridade. Foi um dos espfritos mais abnegados de sua época. Depois de haver contribuido a liberdade de sua patria, tratava de libertar aos oprimidos de sua miséria.””” A morte de Antonia Santos, “que amava com delfrio a santa causa da emancipacao de sua patria”, é assim narrada: “A franqueza, o valor, a energia, a piedade que a acompanharam até seu wltimo instante, sio 26 Cf. SILICEO, Luis Rubio, op.cit., p.b46. 27 Cf. GREZ, Vicente, op.cit., p. 79. 87 indescritiveis. Sua morte foi a morte dos heréis da patria e a morte dos heréis do cristianismo”. A ligagio entre as mulheres e a familia é sempre enfatizada. Importante € ressaltar que nagio ¢ familia sao constantemente aproximadas na linguaggm do perfodo, fazendo com que a nagio seja vista como uma famflia.~” Nas biografias consultadas ha uma constante, qual seja, a mulher nunca era retratada sozinha, aparecendo envolvida Por varios membros da familia. Lugar importante reservava-se & figura dos maridos; eram elas suas companheiras, muitas vezes convertidas A causa pelo exemplo masculino ¢ acompanhando-os nas situagées mais adversas © perigosas. Os filhos e, mais comumente, as filhas, permaneciam a seu lado, Também os irmios ganharam bom espaco nessas narrativas. Lembremos que as personagens dos panfletos chilenos, anteriormente citados, séo compostos de tkés irmaos, que no final permanecem unidos pelas mesmas idéias. Os temas da politica sio mostrados como temas discutidos pela familia e na familia. Esta se mostrava unida pela mesma causa e nunca dividida. As divisées, ainda que algumas vezes indicadas, referiam-se @ geragdo anterior dos pais ou tios, apegados ao mundo colonial. Sobre a chilena Luiza Recabarren, dizia um autor, ao enaltecer sua contribuigao para a liberdade da patria: “Assim, com 0 exemplo de seu herofsmo, engrandecia a familia e incul- cava na alma daquela geraco o ideal do dever e do sacrificio, que hoje {1878} ao que parece andam tio debilitados.”"? Outra histéria exemplar € a de Gertudres Bocanegra, famosa herofna mexicana, nascida em Patzcuaro, acusada de conspirar contra os realistas. Presa com suas trés filhas, foi condenada a morte, por se recusar a denunciar os companheiros. Foi fuzilada em 1817, e conta-se que antes de morrer entregou ao sacerdote que a acompanhava alguns objetos, dizendo: “Padre, diga a todas elas [suas filhas] que sua mae, no cadafalso, e Prestes a expirar, envia-lhes como recordagiio estas pobres prendas; que thes encarece que jamais se apartem do caminho da virtude que eu, do céu, velarei por elas.” Algumas conclusées preliminares podem ser apresentadas; em primeiro lugar, a participagao politica das mulheres durante as lutas pela independéncia precisa ser levada em consideragio, pois sua presenca e comportamento estéo muito além do que a historiografia até hoje apontou. O nimero de mulheres em toda a América Latina que pegou 8 CE, CORTES, J. D., op. cit., p.460. Vale aqui lembrar as narrativas sobre a religiosa brasileira, Soror Joana Angélica, abadessa do convento da Lapa, que foi assassinada pelos soldados do General Madeira, na Bahia, ® Ver 0 antigo de FELSTINER, Mary L., “Family Metaphors: The Language of an Independence Revolution” in Comparative Studies in Society and History, n° 1, 1983. *° Cf. GREZ, Vicente, op. cit. p. 54. 5! Cf. SILICEO, Luis Rubio, op. cit, p. 51 88 em armas € surpreendente; mas a maneira mais usual de atuar foi através de uma rede de conhecimentos e lealdades — que inclufam os empregados domésticos das pessoas mais ricas — em que se passavam informagées, espalhavam noticias, escondiam fugitivos dos realistas, cuidavam dos feridos, financiavam armamentos ou mesmo tipografias; organizavam encontros em salées (das mulheres mais abastadas) onde se discutia politica. Enfim, uma teia em que as mulheres tiveram um papel fundamental, arriscando-se e sendo muitas vezes perseguidas e punidas com a priséo ou a morte. Em segundo lugar, ressalte-se que a despeito dessa atuacio bastante visfvel, em nenhum dos paises latino-americanos operou-se a transformagio de uma dessas mulheres em heroina nacional; nesse particular, nossos simbolos femininos continuam a ser as Nossas Senhoras, desde a de Guadalupe (cujo estandarte, por sinal, os insurgentes carregavam a frente de seus exércitos) até a de Aparecida. ‘As homenagens e 0 reconhecimento oficial da participago das mulheres como “fundadoras da pdtria” sfo extremamente restritos. A mais destacada, neste particular, parece ser a boliviana, Juana Azurduy de Padilla; no acroporto de Sucre que também leva seu nome — ganhou uma estdtua que a representa montada a cavalo, ameagando os realistas com ar desafiador. Seu reconhecimento torna-se mais evidente, quando lembramos que Azurduy é 0 nome de uma Provincia do Departamento de Chuquisaca e de sua capital.** Finalmente, uma observagdo sobre a questio de seu com- portamento polftico. O que mais me chamou a atengio foi a trans- formagaéo de mulheres rebeldes, que desafiaram as instituigdes mais poderosas — as metrdpoles e a Igreja — cm modelos exemplares de “pom” comportamento. Josefa Dominguez, “La Corregidora”, por exemplo, “desobedeceu” 0 marido — que a havia trancado em casa temeroso de que ela os comprometesse ainda mais com os realistas — € conseguiu mandar avisar Hidalgo Allende e Aldama que a conspiragio havia sido descoberta. Leona Vicario fugiu do convento onde estava 3 Assim, bastante diferente dos s{mbolos nacionais femininos de alguns paises da Europa, como Marianne (Franca), Britania (Inglaterra) ou Germania (Alemanha), sobre Marianne, ver ‘os exemplares trabalhos de AGULHON, Maurice, Murianne au combat. U'imagerie et la symbolique républicaines de 1789 a 1880, Paris, Flammarion, 1979 © Marianne au pouvoir, Vimagerie et la symbolique républicaines de 1880 4 1914, Paris, Flammarion, 1989; sobre Germania (em especial) e Britania, ver MOSSE, George, op. cit. 33 © marido de Juana, Padilla, deu seu nome & capital da Provincia de Tomina (Chuquisaca). ‘Devo estas informagdes ac prof, Gustavo Prado, da Universidade de Santa Cruz, Bolivia, a quem muito agradeco. Seré muito interessante buscar onde ha € onde nao hd representagées em praca piblica destas mulheres; sei que na Cidade do México, hé uma estétua de Josefa Dominguez, Além disso, a andlise dessas representagdes, tais como estituas, bustos ou pinturas, assim como de versos ¢ cantos populares sobre suas faganhas, constitui-se numa tarefa fundamental para avaliarmos, pelo menos em parte, o impacto de sua atuac4o a nfvel das sociedades nacionais. 89 presa, auxiliada por trés oficiais rebeldes, para se encontrar com 0 noivo, Quintana Roo, com quem ainda nado estava casada. Maria Quitéria escapou de sua familia para se vestir de homem e lutar como soldado, numa deciséo premeditada e consciente. Em uma palavra, foram mulheres rebeldes, insubordinadas, agindo fora das regras e das normas, que ganharam respeitabilidade, transformadas em modelos de esposas e mies, glorificadas por todas as virtudes cristas intimamante trangadas com as virtudes patriéticas. Enfim, biografias domesticadas, descarnadas ¢ liberadas de qualquer dimensdo de conflito que n&o aquele entre o bem maior — a p&tria — e o mal absoluto — a opressao colonial. Ainda que nao cultuadas ou entronizadas, pelo menos até o presente, alcangaram nessas biografias o altar de Santas da Patria. Em uma palavra, foi esquecido ou ocultado que as mulheres Participantes dos movimentos pela independéncia atuaram num circuito claramente identificado como o da politica, motivadas por idéias, sentimentos e crencas que as levaram a romper com os padrées sociais € religiosos vigentes. Sua notdvel coragem — especialmente nos momentos trdgicos da prisio e condenagéo — indica que estavam preparadas para aceitar as conseqiiéncias das escolhas efetuadas. RESUMO Este artigo aborda a parti- cipagao politica das mulheres, durante as lutas pela independéncia na América Latina. Sua presenga é bastante expres- siva, embora nao reconhecida pela his- toriografia tradicional. As mulheres fo- ram soldados, mensageiras, enfermei- ras, mas também contribuiram com di- nheiro para os soldados e promoveram discussdes politicas em suas casas. Entretanto, suas biografias escritas por homens durante o século XIX apresen- taram-nas como grandes maes ¢ viiivas, catélicas devotas, que foram tocadas pela causa pura da independéncia. Este artigo mostra como essas construgées ideolégicas sobre suas vidas foram constru(das destruindo qualquer traco de rebeliao, ABSTRACT This article deals with the political participation of women during the struggle for independence in Latin America. Their presence is quite im- pressive though not recognized by the traditional historiography. They were soldiers, mensengers, nurses, but also gave money to the rebels and promote political discussions in their houses. Nevertheless, their biographies written by men during the 19th century present- ed them as good mothers and wives, devoted catholics, who were touched by the pure cause of independence. This article shows how these ideological con- structions about their lives were built destroying any trace of rebellion.

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