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LTT Debates e Propostas O Manifesto dos Pioneiros da Educacao Nova Na oportunidade do 40? ano de circu- lagéo da Revista Brasileira de Estudos Pe- dagégicos, vem o INEP, através deste mi- mera comemorativo, levantando questdes educacionais que perduram com o passar dos anos, malgrado 0 empenho e devota- mento de educadores, administradores ¢ qutoridades. Antecedendo o registro das exposicdes e debates concernentes 4 Mesa-Redonda sobre o Manifesto dos Pioneiros da Educa- go Nova, realizada em 13 de marco proxt- mo pasado, cujo objetivo foi o de susci- tar a reflexdo sobre a influéncia das idéias e propostas contidas nesse documento so- bre o processo educacional brasileiro e discutir sua atualidade em relagao é poli- tica vigente na drea da Educado, divulga- mos, a seguir, em sua integra, 0 documen- to original, conservando, inclusive, a orto- grafia entdo em uso. A RECONSTRUCCAO EDUCACIONAL NO BRASIL — AO POVO E AO. GOVERNO Na hierahia dos problemas nacio- naes, nenhum sobreleva em importancia ¢ gravidade ao da educagdo. Nem mesmo os de caracter economico Ihe podem dispu- tar a primazia nos planos de reconstruc: 40 nacional. Pois, se a evolugdo organica do systema cultural de um paiz depende de suas condigSes economicas, é impossi- vel desenvolver as forcas economicas ou de producedo, sem © preparo intensivo das forgas culturaes e 0 desenvolvimento das aptiddes 4 invengfo e 4 iniciativa que so os factores fundamentaes do accresci- mo de riqueza de uma sociedade. No en- tanto, se depois de 43 annos de regimen republicano, se dér um balango ao estado actual da educacdo publica, no Brasil, se verificaré que, dissociadas sempre as re- formas economicas e educacionaes, que era indispensavel entrelagar ¢ encadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos os nossos esforgos, sem unidade de plano € sem espirito de continuidade, no logra- ram ainda crear um systema de organiza- do escolar, 4 altura das necessidades mo- demas e das necessidades do paiz. Tudo fragmentario e desarticulado. A. situag#o actual, creada pela successo periodica de reformas parciaes e frequentemente ar- bitrarias, langadas sem solidez economica e sem uma visio global do problema, em todos os seus aspectos, nos deixa antes a impressio desoladora de construcg6es isoladas, algumas jf em ruina, outras abandonadas em seus alicerees, ¢ as me- Ihores, ainda no em termos de serem despojadas de seus andaimes... Onde se tem de procurar a causa prin- cipal desse estado antes de inorganiza¢do do que de desorganizagdo do apparelho escolar, € na falta, em quasi todos os planos e iniciativas, da determinacdo dos fins de educag4o (aspecto philosophico e social) ¢ da applicacao (aspecto technico) dos methodos scientificos aos problemas de educagao. Ou, em poucas palavras, na falta de espirito philosophic e scientifi- co, na resolug%o dos problemas da admi- nistragdo escolar. Esse empirismo grossei- R. bras. Est. pedag., Brasilia, 65(150):407-25, maio/ago. 1984 407 ro, que tem presidido ao estudo dos pro- blemas pedagogicos, postos e discutidos numa atmosphera de horizontes estreitos, tem as suas origens na ausencia total de uma cultura universitaria ¢ ma formagao meramente literaria de nossa cultura. Nunea chegamos a possuir uma “cultura propria”, nem mesmo uma “cultura ge- ral” que nos convencesse da “existencia de um problema sobre objectivas e fins da educagio”, Ngo se podia encontrar, por isto, unidade e continuidade de pensa- mento em planos de reformas, nos quaes as instituigdes escolares, esparsas, no tra- ziam, para attrahil-as e oriental-as para uma direccdo, o polo magnetico de uma concepgo da vida, nem se submettiam, ha sua organizagéo ¢ no seu funcciona- mento, a medidas objectivas com que 0 tratamento scientifico dos problemas da administragao escolar nos ajuda a desco- brir, 4 luz dos fins estabelecidos, os pro- cessos mais efficazes para a realizacao da obra educacional. Certo, um educador pode bem ser um philosopho e deve ter a sua philosophia de educagdo; mas, trabalhando scientifi- camente nesse terreno, elle deve estar tio interessado na determinagdo dos fins de educagdo, quanto tambem dos meios de realizal-os. O physico e 0 chimico ndo terdo necessidade de saber 0 que estd e se passa além da janella do seu laborato- rio. Mas o educador, como o sociologo, tem necessidade de uma cultura multi- pla ¢ bem diversa; as alturas e as profun- didades da vida humana e da vida social nao devem estender-se além do seu raio visual; elle deve ter 0 conhecimento dos homens e da sociedade em cada uma de suas phases, para perceber, além do appa- rente e do ephemera, “o jogo poderoso das grandes leis que dominam a evolu- go social”, e a posigga que tem a escola, é a funceao que representa, na diversi- dade e pluralidade das forcas sociaes que cooperam na obra da civilizagdo. Se tem essa cultura geral, que lhe permitte orga- 408 nizar uma doutrina de vida e ampliar o seu horizonte mental, poderd ver o pro- blema educacional em conjuncto, de um ponto de vista mais largo, para subordinar © problema pedagogico ou dos methodos a0 problema philasophico ou dos fins da educago; se tem um espirito scientifico, empregard os methados communs a todo genero de investigagao scientifica, poden- do recorrer a technicas mais ou menos elaboradas e dominar a situagdo, realizan- do experiencias € medindo os resultados de toda e qualquer modificago nos pro- cessos € nas technicas, que se desenvolve- ram sob © impulso dos trabalhos scienti- ficos na administragdo dos servigos esco- Jares. Movimento de renovagdo educacional A’ luz dessas verdades e sob a inspi- ragdo de novos ideaes de educagao, é que se gerou, no Brasil, o movimento de te- construego educacional, com que, rea- gindo contra o empirismo dominante, pretendeu um grupo de educadores, nes- tes ultimos doze annos, transferir do te reno administrativo para os planos poli co-sociaes a solugdo dos problemas esco- ares. Nao foram ataques injustos que aba- laram © prestigio das instituigdes antigas; foram essas instituigGes creagGes artificiaes ou deformadas pelo egoismo ¢ pela rotina, a que serviram de abrigo, que toraram inevitaveis os ataques contra ellas. De fac- to, porque os nossos methodos de educ: sao haviam de continuar a ser tao prodi giosamente rotineiros, emquanto no Me- xico, no Uruguay, na Argentina e no Chi- le, para sé falar na America hespanhola, jd se operavam transformagées profundas no apparelho educacional, reorganizado em novas bases e em ordem a finalidades lucidamente descortinadas? Porque os nossos. programmas se haviam ainda de fixar nos quadros de segregacao social, em que os encerrou a republica, ha 43 annos, emquanto nossos meios de locomogao ¢ os processos de industria centuplicaram de efficacia, em pouco mais de um quartel de seculo? Porque a escola havia de per- manecer, entre nds, isolada do ambiente, como uma instituigo enkystada no meio social, sem meios de influir sobre elle, quando, por toda a parte, rompendo a barreira das tradigdes, a acgdo educativa jd desbordava a escola, articulandose com as outras instituigdes sociaes, para esten- der o seu raio de influencia e de acco? Embéra, a principio, sem directrizes definidas, esse movimento francamente renovador inaugurou uma serie fecunda de combates de idéas, agitando o ambien- te para a8 primeiras reformas impellidas para uma nova direccdo. Multiplicaram-se as associagdes ¢ iniciativas escolares, em que esses debates testemunhavam a curio- sidade dos espiritos, pondo em circulagao novas idéas e transmittindo aspiragdes novas com um caloroso enthusiasmo. Ja se despertava a consciencia de que, para dominar a obra educacional, em toda a sua extenséo, & preciso possuir, em alto gréo, o habito de se prender, sobre bases solidas e largas, a um conjuncto de idéas abstractas e de principios geraes, com que possamos armar um angulo de observa- ¢40, para vermos mais claro e mais longe e desvendarmos, atravez da complexidade tremenda dos problemas sociaes, horizon- tes mais vastos. Os trabalhos scientificos no ramo da educagdo jé nos faziam sen- em toda a sua forga reconstructora, o axioma de que se pode ser t8o scienti- fico no estudo e na resolugao dos proble- mas educativos, como nos da engenharia e das finangas. Nao tardaram a surgir, no Districto Federal e em tres ou quatro Es- tados as reformas e, com ellas, as reali Ges, com espirito scientifico, e inspiradas por um ideal que, modelado 4 imagem da vida, jd lhe reflectia a complexidade. Con- tra ou a favor, todo o mundo se agitou, Esse movimento é hoje uma idéa em mar- cha, apoiando-se sobre duas forgas que se completam: a fora das idéas ¢ a irra- diagdo. dos factos, Directrizes que se esclarecem Mas, com essa campanha, de que tive- mos a iniciativa e assumimos a responsabi- lidade, ¢ com a qual se incutira, por todas as formas, no magistetio, 0 espirito novo, © gosto da critica e do debate e a cons- ciencia da necessidade de um aperfeigoa- mento constante, ainda nao se podia con- siderar inteiramente aberto 0 caminho &s grandes reformas educacionaes, E’ certo que, com a effervescencia intellectual que produziu no professorado, se abriu, de uma vez, a escola a esses ares, a cujo oxy- genio se forma a nova geragdo de educa- dores ¢ se vivificou o espirito nese fecun- do movimento renovador no campo da educaeio publica, nos ultimos annos, A maioria dos espiritos, tanta da velha como da nova gerago ainda se arrastam, porém, sem convicgdes, atravez de um la- birintho de idéas vagas, fora de seu alcan- ce, ¢ certamente, acima de sua experien- cia; e, porque manejam palavras, com que jése familiarizaram, imaginam muitos que possuem as idéas claras, o que lhes tira 0 desejo de adquiril-as... Era preciso, pois, imprimir uma direcg%io cada vez mais firme a esse movimento ja agora nacional, que arrastou comsigo as educadores de mais destaque, ¢ leval-o a seu ponto cul- minante com uma nogio clara e definida de suas aspiragées ¢ suas responsabilida- des. Aos que tomaram posicao na van- guarda da campanha de renovagio educa- clonal, cabia o dever de formiular, em do- cumento publico, as bases e direetrizes do movimento que souberam provocar, defi- nindo, peranie © publica e o governo, a posicao que conquistaram e vém manten- do desde o inicio das hostilidades contra a escola tradicional. Reformas e a Reforma Se ndo ha paiz “onde a opinigo se divi- da em maior numero de cores, e se ndo se 409 encontra theoria que entre nés ndo tenha adeptos”, segundo ja observou Alberto Torres, principios ¢ idéas no passam, en- tre nés, de “bandeira de discussdo, ornatos de polemica ou simples meio de exito pes- soal ou politico”. Ilustrados, ds vezes, ¢ eruditos, mas raramente cultos, ndo assi- milamos bastante as idéas para se torna- rem um nucleo de convicg6es ou um sys- tema de doutrina, capaz de nos impellir a acgdo em que costumam desencadear-se aquelles “que pensaram sua vida e vive- ram seu pensamento™. A interpenetragiio profunda que j4 se estabeleceu, em esfor- gos constantes, entre as nossas idéas e convicgdes e a nossa vida de educadores, em qualquer sector ou linha de ataque em que tivemos de desenvolver a nossa activi- dade j4 denuncia, porém, a fidelidade ¢ 0 vigor com que caminhamos para a obra de reconstrucedo educacional, sem estadear a seguranga de um triumpho facil, mas com a serena confianga na victoria definitiva de nossos ideaes de educacao. Em logar dessas reformas parciaes, que se succede- ram, na sua quasi totalidade, na estreiteza chronica de tentativas empiricas, 0 nosso programma concretiza uma nova politica educacional, que nos preparard, por eta- pas, a grande reforma, em que palpitard, com o rythmo accelerado dos organismos novos, o musculo central da estructura politica e social da nagio. Em cada uma das reformas anteriores, em que impressiona vivamente a falta de uma visio global do problema educativo, a fora inspiradora ou a energia estimu- lante mudou apenas de forma, dando solugées diferentes aos problemas parti- culares. Nenhuma antes desse movimento renovador penetrou o amago da questdo, alterando os caracteres geraes € o& tragos salientes das reformas que o precederam, Nés assistiamos 4 aurora de uma verdadei- ra renovaco educacional, quando a revo- lugfo estalou. Jé tinhamos chegado entdo, na campanha escolar, ao ponto decisivo e climaterico, ou se o quizerdes, 4 linha de 410 divisio das aguas. Mas, a educagio que, no final de contas, se resume logicamente numa reforma social, ndo pode, ao menos em grande proporgao, realizar-se senio pela acgo extensa ¢ intensiva da escola sobre 0 individuo e deste sobre si mesmo nem produzir-se, do ponto de vista das influencias exteriores, sendo por uma evo- jugdo continua, favorecida e estimulada por todas as forgas organizadas de cultura e de educagio. As surprezas ¢ os golpes de theatro sfo impotentes para modifica- rem o estado psychologico e moral de um povo. E preciso, porém, atacar essa obra, por um plano integral, para que ella nfo se arrisque um dia a ficar no estado frag- mentario, semelhante a essas muralhas pelasgicas, inacabadas, cujos bl6cos enor- mes, esparsos a0 longe sobre o solo, tes- temunham gigantes que os levantaram, ¢ que a morte surprehendeu antes do corda- mento de seus esforgos... Finalidades da educagado Toda a educagdo varia sempre em funce’io de uma “concepgaio da vida”, re flectindo, em cada época, a philosophia predominante que é determinada, a seu turmo, pela estructura da sociedade. E” evi- dente que as differentes camadas ¢ grupos (classes) de uma sociedade dada terdo res- pectivamente opinises differentes sobre a “concepgdio do mundo”, que convem fa- zer adoptar ao educando ¢ sobre 0 que necessario considerar como “qualidade socialmente util”. O fim da educagao nao &, como bem observou G. Davy, “desen- volver de maneira anarchica as tendencias dominantes do educando; se 0 mestre in- tervem para transformar, isto implica nelle a representag¢fo de um certo ideal 4 imagem do qual se esforga por modelar ‘08 jovens espiritos””. Esse ideal e aspira- do dos adultos torna-se mesmo mais facil de aprehender exactamente quando assis- timos 4 sua transmissfo pela obra educa: cional, isto é, pelo trabalho a que a socie- ie, dade se entrega para educar as seus filhos. ‘A questi primordial das finalidades da educagdo gyra, pois, em tomo de uma concepedo da vida, de um ideal, a que de- vem conformar-se os educandos, ¢ que uns consideram abstracto e absoluto, ¢ outros, concreto ¢ relativo, variavel no tempo e no espago. Mas, o exame, num longo olhar para o passado, da evolugzo da educagio atravez das differentes civi- lizagées, nos ensina que o “conteudo real desse ideal” variou sempre de accordo com a estructura e as tendencias sociaes da época, extrahindo a sua vitalidade, como a sua fora inspiradora, da propria natureza da realidade social. Ora, se a educacdo esti intimamente vinculada 4 philosophia da cada época, que lhe define © caracter, rasgando sem- Pre novas perspectivas ao pensamento pe- dagogico, a educacdo nova nfo pode dei- xar de ser uma reaccdo categorica, inten- cional e systematica contra a velha estruc- tura do servico educacional, artificial verbalista, montada para uma concepgio vencida. Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ella tem servido, a educa- ao perde o “sentido aristologico”, para usar a expresso de Emesto Nelson, deixa de constituir um privilegio determinado pela condi¢do economica e social do in- dividuo, para assumir um “caracter biolo- gico”, com que ella se organiza para a collectividade em geral, reconhecendo a todo o individuo o direito a ser educado até onde o permittam as suas aptiddes na- turaes, independente de razdes de ordem economica e social. A educag3o nova, alar- gando a sua finalidade para além dos limi- tes das classes, assume, com uma feigdo mais humana, a sua verdadeira funcgio social, preparando-se para formar “a hie- rarchia democratica” pela “hierarchia das capacidades”, recrutadas em todos os gru- pos sociaes, a que se abrem as mesmas opportunidades de educacdo. Ella tem, por objecto, organizar e desenvolver os meios de accao duravel com o fim de “di- tigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento”, de accérdo com uma certa concepeio do mundo, A diversidade de conceitos da vida pro- vém, em parte, das differengas de classes e, em parte, da variedade de contetido na nogao de “qualidade socialmente util”, conforme © angulo visual de cada uma das classes ou grupos sociaes. A educacao no- va que, certamente pragmatica, se pro- poe ao fim de servir no aos interesses de classes, mas aos interesses do indivi- duo, ¢ que se funda sobre o principio da vinculacdo da escola com o meio social, tem 0 seu ideal condicionado pela vida so- cial actual, mas profundamente humano, de solidariedade, de servigo social € cooperagao. A escola tradicional, installa- da para uma concepgao burgueza, vinha mantendo © individuo na sua autonomia isolada ¢ esteril, resultante da doutrina do individualismo libertario, que teve alids o seu papel na formacdo das demo cracias © sem cujo assalto nao se teriam quebrado os quadros rijidos da vida so- cial. A escola socializada, reconstituida sobre a base da actividade e da producedo, em que se considera o trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade em geral (acquisiggo activa da cultura) e a melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da socieda- de humana, se organizou para remontar a corrente e restabelecer, entre os ho- mens, 0 espirito de disciplina, solidarieda- de e cooperagio, por uma profunda obra social que ultrapassa largamente o quadro estreito dos interesses de classes. Valores mutaveis e valores permanentes Mas, por menos que parega, nessa con- cepeo educacional, cujo embryo jé se disse terse gerado no seio das usinas e de que se impregnam a came e 0 sangue de tudo que seja objecto da acco educativa, ndo se rompeu nem est a pique de rom- 411 per-se 0 equilibrio entre os valores muta- veis ¢ os valores permanentes da vida hu- mana. Onde, 20 contrario, se assegurari melhor esse equilibrio é no novo systema de educago, que, longe de se propor a fins particulares de determinados grupos sociaes, ds tendencias ou preoccupagées de classes, os subordina aos fins funda- ‘Mentaes e geraes que assignala a nature- za nas suas funcedes biologicas. E* certo que € preciso fazer homens, antes de fa- zer instrumentos de producgdo. Mas, o trabalho que foi sempre a maior escola de formagéo da personalidade moral, nao € apenas o methodo que realiza o accrescimo da producgio social, é o unico methodo susceptivel de fazer homens cultivados ¢ uteis sob todos os aspectos. O trabalho, a solidariedade social e a cooperagdo, em que repousa a ampla uti- lidade das experiencias; a consciencia so- cial que nos leva a comprehender as ne- cessidades do individuo atravez das da com- munidade, e 0 espirito de justica, de renuncia e de disciplina, no sao, alids, grandes “valores permanentes” que ele- vam a alma, ennobrecem 0 coraggo e for- tificam a vontade, dando expressio ¢ va- Jor 4 vida humana? Um vicio das escolas espiritualistas, j4 © ponderou Jules Si- mon, ¢ 0 “desdém pela multidéo". Quer- Se raciocinar entre si ¢ reflectir entre si. Evitae de experimentar a sorte de todas as aristocracias que se estiolam no isolamen- to. Se se quer servir 4 humanidade, é pre- ciso estar em communhao com ella... Certo, a doutrina de educagdo, que se apoia no respeito da personalidade huma- na, considerada ndo mais como meio, mas como fim em si mesmo, ndo poderia ser accusada de tentar, com a escola do traba- Iho, fazer do homem uma machina, um instrumento exclusivamente apropriado a ganhar o salario e a produzir um resultado material num tempo dado. “A alma tem uma potencia de milhGes de cavallas, que levanta mais peso do que o vapor. Se todas as verdades mathematicas se perdes- 412 sem, escreveu Lamartine, defendendo a causa da educag%o integral, o mundo in- dustrial, 0 mundo material, soffreria sem duvida um detrimento immenso e um damno irreparavel; mas, se o homem per- desse uma s6 das suas verdades moraes, seria 0 proprio homem, seria a humanida- de inteira que pereceria”. Mas, a escola socializada néo se organizou como um meio essencialmente social sendo para transferir do plano da abstracgdo ao da vida escolar em todas as suas manifes- tagdes, vivendo-as intensamente, essas vir- tudes ¢ verdades moraes, que contribuem para harmonizar os interesses individuaes os interesses collectives. “Nos ndo so- mos antes homens ¢ depois seres sociaes, lembra-nos a voz insuspeita de Paul Bu- reau; somos seres sociaes, por isto mes- mo que somos homens, e a verdade esté antes em que ndo ha acto, pensamento, desejo, attitude, resolugado, que tenham em nds s6s seu principio e seu termo ¢ que realizem em nés sémente a totalida- de de seus effeitos”. O Estado em face da educacaio a) A educacio, uma funcedo essencial- mente publica Mas, do direito de cada individuo 4 sua educagao integral, decorre logicamente para © Estado que 0 reconhece ¢ 0 procla- ma, o dever de considerar a educagao, na variedade de seus gréos ¢ manifestacdes, como uma funcgda social e eminentemen- te publica, que elle é chamado a tealizar, com a cooperagdo de todas as instituigdes sociaes. A educagdo que é uma das func- Bes de que a familia se vem despojando em proveito da sociedade politica, rom- peu os quadros do communismo familial e dos grupos especificos (instituigdes pri- vadas), para se incorporar definitivamente entre as funegdes essenciaes ¢ primordiaes do Estado. Esta restricgao progressiva das attribuigdes da familia, — que tambem deixou de ser “um centro de producgdo” para ser apenas um “centro de consumo", em face da nova concurrencia dos grupos profissionaes, nascidos precisamente em vista da protecciio de interesses especiali- zados”, — fazendo-a perder constante- mente em extensdo, no lhe tirou a “funcedo especifica”, dentro do “féco in- terior”, embora cada vez mais estreito, em que ella se confinou. Ella 6 ainda o “quadro natural que sustenta socialmente © individuo, como o meio moral em que se disciplinam as tendencias, onde nas- cem, comecam a desenvolver-se ¢ conti- nuam a entreter-se as suas aspiragOes para o ideal”. Por isto, o Estado, longe de pres- cindir da familia, deve assentar o trabalho da educagdo no apoio que ella da 4 escola € na collaboragao effectiva entre paes ¢ professores, entre os quaes, nessa obra profundamente social, tem o dever de res- tabelecer a confianga e estreitar as rela- bes, associando e pondo a servico da ‘obra commum essas duas forgas sociaes — a familia e a escola, que operavam de todo indifferentes, sengo em direegaes di- ‘versas e ds vezes oppostas. b) A questo da escola unica Assentado 0 principio do direito biolo- gico de cada individuo 4 sua educagao in- tegral, cabe evidentemente ao Estado a organizagao dos meios de o tomar effecti- Vo, por um plano geral de educagdo, de estructura omganica, que tome a escola accessivel, em todos os seus gréos, aos ci- dados a quem a estructura social do paiz mantém em condigées de inferioridade economica para obter o maximo de desen- volvimento de accérdo com as suas apti- des vitaes, Chega-se, por esta forma, ao principio da escola para todos, “escola commum ou unica”, que, tomado a rigor, s6 nao ficard na contingencia de soffrer quaesquer restricgGes, em paizes em que as reformas pedagogicas estado intimamen- te ligadas com a teconstruccdo fundamen- tal das relag6es sociaes. Em nosso regi- men politico, o Estado nfo poderd, de certo, impedir que, gragas 4 organizagao de escolas privadas de typos differentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos uma educagao de classe deter- minada; mas esta no dever indeclinavel de nfo admittir, dentro do systema escolar do Estado, quaesquer classes ou escolas, 4 que 86 tenha accesso uma minoria, por um privilegio exclusivamente economico. Afastada a idéa do monopolio da educa- go pelo Estado num paiz, em que o Es- ‘tado, pela sua situagdo financeira ndo esté ainda em condig6es de assumir a sua Tes- ponsabilidade exclusiva, e em que, por tanto, se toma necessario estimular, sob sua Vigilancia as instituigdes privadas ido- neas, a “escola unica” se entenderd, entre nds, ndo como “uma conscripeao preco- ce”, arrolando, da escola infantil 4 uni- versidade, tados os brasileiros, e submet- tendo-os durante © maior tempo possivel a uma formagao identica, para ramificagdes posteriores em vista de destinos diversos, mas antes como a escola official, unica, em que todas as creangas, de 7 a 15, to- das ao menos que, nessa edade, sejam confiadas pelos paes 4 escola publica, tenham uma educagfo commum, egual para todos, c) A laicidade, gratuitidade, obrigatoric- dade & coeducagio A laicidade, gratuitidade, obrigatorie- dade ¢ coeducagdo so outras tantos prin- cipios em que assenta a escola unificada € que decorrem tanto da subordinagio 4 finalidade biologica da educagao de todos os fins particulares ¢ parciaes (de classes, grupos ou crengas), como do reconheci- mento do direito biologico que cada ser humano tem 4 educaedo. A laicidade, que colloca o ambiente escolar acima de cren- gas e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectaria, subtrée 0 educando, respeitando-lhe a integridade da personali- 413 dade em formagdo, 4 pressio perturbado- ra da escola quando utilisada como instru- mento de propaganda de seitas e doutri- nas, A gratuidade extensiva a todas as ins- tituigdes officiaes de educagdo ¢ um prin- cipio egualitario que torna a educagéo, em qualquer de seus grios, accessivel ndo uma minoria, por um privilegio econo- mico, mas a todos os cidaddos que te- nham vontade ¢ estejam em condigdes de recebeLa. Alids o Estado ndo pode tornar 9 ensino obrigatorio, sem tornal-o gratui- to. A obrigatoriedade que, por falta de escolas, ainda nfo passou do papel, nem em relagdo a0 ensino primario, e se deve estender progressivamente até uma edade conciliavel com o trabalho produetor, isto é, até aos 18 anos, é mais necessaria ainda “na sociedade moderna em que o indus- trialismo e o desejo de exploragdo huma- na sacrificam e violentam a creanga e 0 jo- ven”, cuja educagdo € frequentemente impedida ou mutilada pela ignorancia dos ‘paes ou responsaveis e pelas contingencias economicas. A escola unificada no per- mitte ainda, entre alumnos de um e outro sexo outras separagdes que nJo sejam as que aconselham as suas aptiddes psycho- logicas & profissionaes, estabelecende em todas as instituiges ‘‘a educagdo-em com- mum” ou coedueagdo, que, pondo-os no mesmo pé de egualdade e envolvendo todo o proceso educacional, toma mais economica a organizagao da obra escolar e mais facil a sua graduagao. A finegao educacional a) A unidade da funcgao edueacional A consciencia desses principios funda- mentaes da laicidade, gratuidade e obriga- toriedade, consagrados na legislagdo uni- versal, ja penetrou profundamente os es- piritos, como condigdes essenciaes 4 orga- nizagdo de um regimen escolar, langado, em harmonia com os direitos do indivi- duo, sobre as bases da unificagio de ensi- 414 no, com todas as suas consequencias, De facto, se a educagdo se propée, antes de tudo, a desenvolver ao maximo a capaci- dade vital do ser humano, deve ser con- siderada “uma 36” a funccdo educacio- nal, cujos diferentes grios estdo desti- nados a servir 48 differentes phases de seu crescimento, “que so partes organi- cas de um todo que biologicamente deve ser levado 4 sua completa formagao”. Nenhum outro principio poderia offere- cer a0 panorama das instituig&es escolares perspectivas mais largas, mais salutares ¢ mais fecundas em consequencias do que esse que decorre logicamente da finalida- de biologica da educagiio. A selecgdo dos alumnos nas suas aptiddes naturaes, a suppressdo de instituicGes creadoras de differengas sobre base economica, a incor- poracdo dos estudos do magisterio 4 uni- versidade, a equiparagéio de mestres e pro- fessores em remuneracao e trabalho, a correlacéio ¢ a continuidade do ensino em todos os seus gréos e a reacgo contra tu- do que Ihe quebra a coherencia interna e a unidade vital, constituem o programma de uma politica educacional, fundada sobre a applicagtio do principio unificador que modifica profundamente a estructura intima ¢ a organizagio dos elementos constitutivos do ensino e dos systemas es- colares. b) A autonomia da funcgio educacional Mas, subordinada a educago publica a interesses transitorios, caprichos. pessoaes ou appetites de partidos, serd impossivel ao Estado realizar a immensa tarefa que se propée da formacao integral das novas geracées. Nao ha systema escolar cuja uni- dade e efficacia néo estejam constante- mente ameagadas, sendo reduzidas e annuladas, quando o Estado nfo o soube ou ndo © quiz acautelar contra o assalto de poderes estranhos, capazes de impdr 4 educagdo fins inteiramente contrarios aos fins geraes que assignala a natureza em suas fanceGes biologicas, Toda a impo- tencia manifesta do systema escolar actual e a insufficiencia das solugGes da- das ds questiies de caracter educative nao provam sendo o desastre irreparavel que resulta, para a educagao publica, de in- fluencias e intervengOes estranhas que conseguiram sujeital-a a seus ideaes secun- darios ¢ interesses subaltemos. Dahi de- corre a necessidade de uma ampla autono- mia technica, administrativa e economica, com que os technicos e educadores, que tém a responsabilidade ¢ devem ter, por isto, a direcefio e administra da func- iio educacional, tenham assegurados os mefos materiaes para poderem realizal-a. Esses meios, porém, nao podem reduzit se ds verbas que, nos orgamentos, sao con- signadas a esse servico publico ¢, por isto, sujeitas 4s crises dos erarios do Estado ou 4s. oscillagGes do interesse dos governos pela educagdo. A autonomia economica néo se poderd realizar, a ndo ser pela ins- tituigdo de um “fundo especial ou esco- Jar”, que, constituido de patrimonios, im- postos ¢ rendas proprias, seja administra- do e applicado exclusivamente no desen- volvimento da obra educacional, pelos proprios orgdos do ensino, incumbidos de sua direcgdo, c) A descentralizagao ‘A organizagio da educagao brasileira unitaria sobre a base e os principios do Estado, no espirito da verdadeira commu: nidade popular e no cuidado da unidade nacional, nfo implica um centralismo esteril ¢ odioso, ao qual se oppGem as condigdes geographicas do paiz ¢ a neces- sidade de adaptagao crescente da escola aos interesses ¢ dis exigencias regionaes, Unidade nao significa uniformidade. A unidade presuppGe multiplicidade. Por menos que pareca, 4 primeira vista, nao é, pois, na centralizagZo, mas na applicagio da doutrina federativa e descentralizado- ra, que teremos de buscar 0 meio de levar a cabo, em toda a Republica, uma obra methodica e coordenada, de accérdo com um plano commum, de completa efficien- cia, tanto em intensidade come em exten- sfo. A’ Unido, na capital, e aos estados, nos seus fespectivos territorios, é que de- ve competir a educagdo em todos os graos, dentro dos principios geraes fixados na nova constitui¢ao, que deve conter, coma definigdo de attribuigdes e deveres, os fundamentos da educagao nacional. Ao governo central, pelo Ministerio da Edu- cacao, caberd vigiar sobre a obediencia a esses principios, fazendo executar as orientagGes ¢ os rumos geraes da funcgdo educacional, estabelecidos na carta cons- titucional e em leis ordinarias, soccorren- do onde haja deficiencia de meios, facili- tando © intercambio pedagogico e cultu- ral dos Estados e intensificando por todas as fOrmas as suas relagGes espirituacs. A unidade educativa, — essa obra immensa que a Unido tera de realizar sob pena de perecer como nacionalidade, se manifes- tara entéo como uma forga viva, um espi- rito commum, um estado de anime nacio- nal, nesse regimen livre de intercambio, solidariedade e cooperagdo que, levando os Estados a evitar todo desperdicio nas suas despezas escolares afim de produzir os maiores resultados com as menores despezas, abriré margem a uma successao ininterrupta de esforgos fecundos em creagies ¢ iniciativas. © proceso educativo Oconceito ¢ os fundamentos da educagao nova © desenvolvimento das sciencias lan- gou as bases das doutrinas da nova educa- g40, ajustando 4 finalidade fundamental e aos ideaes que ella deve proseguir os pro- cessos apropriados para tealizal-os. A ex- tensfo e a riqueza que actualmente alcan- ga por toda a parte o estudo scientifico ¢ experimental da educacdo, a libertaram Als do empirismo, dando-lhe um caracter © um espirito nitidamente scientifico e or- ganizando, em corpo de doutrina, numa série fecunda de pesquizas ¢ experien- , Os principios da educagdo nova, pressentidos ¢ 8 vezes formulados em rasgos de synthese, pela intuigdo lu- minosa de seus precursores. A nova dou- trina, que ndo considera a funegao educa- cional como uma funcedo de superposi- ao ou de accrescimo, segundo a qual o educando € “modelado exteriormente” (escola tradicional), mas uma funcogo complexa de acgdes € reacgGes em que o espirito cresce de “dentro para for substitue © mecanismo pela vida (activi- dade funecional) e transfere para a crean- ga para o respeito de sua personalidade 0 eixo da escola e o centro de gravidade do problema da educagaio. Considerando 0S processes mentaes, como “funcedes vitaes” e ndo como “processos em si mes- mos”, ella os subordina 4 vida, como meio de utilizal-a e de satisfazer as suas nultiplas necessidades materiaes ¢ espi tuaes. A escola, vista desse angulo novo que nos di © conceito funccional da edu- cagdo, deve offerecer 4 creanga um meio vivo e natural, “favoravel ao intercambio de reacgSes e experiencias”, em que ella, vivendo a sua vida propria, generosa e bella de creanga, seja levada “ao trabalho e 4 accdo por meios naturaes que a vida suscita quando o trabalho € a acco con vem aos seus interesses ¢ ds suas necessi- dades™. Nessa nova concepgdo da escola, que é uma reacedo contra as tendencias exclu- sivamente passivas, intellectualistas e ver- balistas da escola tradicional, a actividade que esté na base de todos os seus traba- Ihos, é a actividade espontanea, alegre & fecunda, ditigida 4 satisfacgdo das neces- sidades do proprio individuo. Na verda- deira educagdo funccional deve estar, pois, sempre presente, como elemento essencial ¢ inherente 4 sua propria nature- za, 0 problema nfo so da corresponden- 416 cia entre os grios do ensino ¢ as tapas da evolugdo intellectual fixadas sobre a base dos interesses, como tambem da adaptagde da actividade educativa as necessidades psychobiologicas do momen- to. O que distingue da escola tradicional a escola nova, ndo é, de facto, a predo- minancia dos trabalhos de base manual ¢ corporal, mas a presenga, em todas as suas actividades, do factor psychobiologico do interesse, que é a primeira condigdo de uma actividade espontanea e o estimulo constante ao educando (creanga, adoles- cente ou joven) a buscar todos as recursos ao seu alcance, “gracas 4 forga de attracgda das necessidades profundamen- te sentidas”, E’ certo que, deslocando-se por esta forma, para a creanga ¢ para os Seus interesses, moveis ¢ transitorios, a fonte de inspiragao das actividades esco- ares, quebra-se a ordem que apresenta- vam os programmas tradicionaes, do ponto de vista da logica formal dos adul- tos, para os por de accordo com a “logica psychologica”, isto 6, com a logica que se baseia na natureza e no funccionamento do espirito infantil. Mas, para que a escola possa fornecer aos “impulsos interiores a occasifo ¢ 0 meio de realizar-se”’, e abrir ao educando. 4 sua energia de observar, experimentar crear todas as actividades capazes de sa- tisfazel-a, é preciso que ella seja reorgani- zada como um “mundo natural e social embrionario”, um ambiente dynamico em intima connexio com a regio e a com munidade. A escola que tem sido. um apparelho formal e rijido, sem differen: ia¢do regional, inteiramente desintegrado em relagdo ao meio social, passard a ser um organismo vive, com uma estructura social, organizada 4 maneira de uma communidade palpitante pelas solugoes de seus problemas, Mas, se a escola deve ser uma communidade em miniatura, ¢ se em toda a communidade as actividades manuaes, motoras ou constructoras “constituem as funcgdes predominantes da vida”, ¢ natural que ella inicie os alum- nos nessas actividades, pondo-os em con- tacto com o ambiente ¢ com a vida activa que os rodeia, para que elles possam, des- ta forma, possuil-a, aprecial-a ¢ sentil-a de accordo com as aptiddes e possibilida- des. ‘A vida da sociedade, observou Paul- sen, se modifica em funcgdo da sua eco- nomia, e a energia individual e collectiva se manifesta pela sua producedo material” ‘Acscola nova, que tem de obedecer a esta lei, deve ser reorganizada de maneita que © trabalho seja seu elemento formador, favorecendo a expansio das energias crea- doras do educanda, procurando estimu- latlhe @ proprio esforgo como o elemen- to mais efficiente em sua educagao ¢ pre- parando-o, com o trabalho em grupos ¢ todas as actividades pedagogicas e sociaes, para fazel-o penetrar na corrente do pro- gresso material ¢ espiritual da sociedade de que proveiueem que vae viver e luctar. Plano de reconstrucgao educacional a) As linhas geraes do plano Ora, assentada a finalidade da educa- go e definidos os meios de acgio ou pro- cessos de que necesita o individuo para o seu desenvolvimento integral, ficam fixa- dos 0s principios scientificos sobre os quaes se pode apoiar solidamente um systema de educacao. A applicagdo desses Principios importa, como se vé, numa ra- dical transformagdo da educagzo publica em todos os seus gros, tanto 4 luz do no- vo conceito de educagio, tomo 4 vista das necessidades nacionaes. No- plano de re- construegdo educacional, de que se esbo- cam aqui apenas as suas grandes linhas ge- aes, procuramos, antes de tudo, eorrigir © erro capital que apresenta o actual sys- tema (se & que se pode chamar systema), caracterizado pela falta de continuidade e articulagdo do ensino, em seus diversos grdos, como se nao fossem etapas de um mesmo processo, ¢ cada um dos quaes deve ter o seu “fim particular”, proprio, dentro da “unidade do fim geral da edu- cago” e dos principios ¢ methodos com- muns a todos os gréos e instituigdes edu- cativas. De facto, o divorcio entre as enti- dades que mantém o ensino primario ¢ profissional ¢ as que mantém o ensino secundario ¢ superior, vae concorrendo insensivelmente, como ja observou um dos signatarios deste manifesto, “para que se estabelecam no Brasil, dois systemas es- colares parallelos, fechados em compartir mentos estanques e incommunicaveis, differentes nos seus objectivos culturaes ¢ sociaes, e, por isto mesmo, instrumentos de estratificagdo social”. A escola primaria que se estende sobre as instituigdes das escolas maternaes e dos jardins de infancia ¢ constitue o problema fundamental das democracias, deve, pois, articular-se rigorosamente com a educa- Go secundaria unificada, que Ihe succede, em terceito plano, para abrir accesso 4s escolas ou institutes superiores de espe- cializacdo profissional ou de altos estu- dos, Ao espirito novo que ja se apoderou do ensino primario nfo se poderia, po- rém, subtrahir a escola secundaria, em que se apresentam, collocadas no mesmo nivel, a educagio chamada “profissional” (de preferencia manual ou mecanica) ea educagio humanistica ou scientifica (de preponderancia intellectual), sobre uma base commum de tres annos. A escola se- cundaria deixaré de ser assim a velha es cola de “um grupo social”, destinada a adaptar todas as intelligencias a uma for- ma rijida de educagao, para ser um appa- relho flexivel ¢ vivo, organizado pata mi- nistrar a cultura geral e satisfazer 4s neces- sidades praticas de adaptagao 4 variedade dos grupos sociaes. B' 0 mesmo principio que faz alargar 0 campo educativo das Universidades, em que, ao lado das esco- Jas destinadas a0 preparo para as profis- ses chamadas “liberais”, se devem intro- duzir, no systema, as escolas de cultura especializada, para as profissies indus- a7 triaes @ mercantis, propulsoras de nossa riqueza economica e industrial. Mas esse principio, dilatando o campo das univer- sidades, para adaptal-as 4 variedade © as necessidades dos grupos sociaes, tio lon- ge esta de Ihes restringir a funceao cultu- ral que tende a elevar constantemente as escolas de formagio profissional, ache- gando-as 4s suas proprias fontes de reno- vagio ¢ agrupando-as em torno das gran- des nucleos de creagtio livre, de pesquiza scientifica e de cultura desinteressada, ‘A instrucgZo publica nao tem sido, en- tre nés, na justa observaczo de Alberto Torres, sendio um “systema de canaes de exodo da mocidade do campo para as ci- dades ¢ da producgdo para o parasitismo”? E’ preciso, para reagir contra esses males, ja to lucidamente apontados, pdr em via de solugio o problema educacional das massas ruraes e do elemento trabalha- dor da cidade e dos centros industriaes ja pela extensfo da escola do trabalho educativo e da escola do trabalho profis- sional, baseada no exercicio normal do tra- balho em cooperagifo, jé pela adaptagio erescente dessas escolas (primaria ¢ secun- daria profissional) as necessidades regio- naes € 4s profissGes e industrias dominan- tes no meio. A nova politica educacional rompendo, de um lado, contra a forma- 40 excessivamente literaria de nossa cul- tura, para lhe dar um caracter scientifico € technico, e contra esse espirito de desin- tegra¢do da escola, em relagZo a0 meio social, impde reformas profundas, orien- tadas no sentido da produccio e procura reforgar, por todas os meios, a intengfo e © valor social da escola, sem negar a atte, a literatura e os valores culturaes. Aarteea literatura tem effectivamente uma signi- ficagdo social, profunda e multipla; a approximagtio dos homens, a sua organi- zacao em uma collectividade unanime, a diffusdo de taes ou quaes idéas sociaes, de uma maneira “imaginada”’, e, portan- to, efficaz, a extensdo do raio visual do homem e o valor moral ¢ educative con- 418 fetem certamente 4 arte uma enorme im- portancia social. Mas, se, 4 medida que a riqueza do homem augmenta, o alimento occupa um logar cada vez mais fraco, os productores intellectuaes nao passam para © primeiro plano seno quando as socie- dades se organizam em solidas bases eco- nomicas. b) 0 ponte nevralgico da questiio A estructura do plano educacional cor- responde, na hierarchia de suas institui- gOes escolares (escola infantil ov pre-pri maria; primaria; secundaria e superior ou universitaria) aos quatro grandes periodas que apresenta o desenvolvimento natural do ser humano. E’ uma reforma integral da organizagao e dos methodos de toda a educagio nacional, dentro do mesmo es pirito que substitue o conceito estatico do ensino por um conceita dynamico, fazendo um appello, dos jardins de infan- cia 4 Universidade, ndo 4 receptividade mas 4 actividade creadora do alumno. A partir da escola infantil (4 a 6 annos) até 4 Universidade, com escala pela educago. primaria (7 a 12) ¢ pela secundaria (12 a 18 annos), a “continuagiio ininterrupta de esforcos creadores” deve levar 4 formacao da personalidade integral do alumno e a0 desenvolvimento de sua faculdade pro- ductora ¢ de seu poder creador, pela applicagdo, na escola, para a acquisigéo activa de conhecimentos, dos mesmos me- thodos (observagdo, pesquiza, e expe- tiencia), que segue o espirito madura, nas investigagGes scientificas. A escola secu daria, unificada’ para se evitar o divorcio entre os trabalhadores manuaes e intellec- tuaes, terd uma solida base commum de cultura geral (3 annas), para a posterior bifureagao (dos 15 aos 18), em seccdo de preponderancia intellectual (com os 3 cyelos de humanidades modernas; scien- cias physicas e mathematicas; ¢ sciencias chimicas e biologicas), e em seceao de preferencia manual, ramificada por sua vez, em cyclos, escolas ou cursos destina- dos a preparagdo ds actividades profissio- naes, decorrentes da extracedo de mate- rias primas (escolas agricolas, de minera- gio ¢ de pesca) da claboragio das mate- Tias primias (industriaes profissionaes) ¢ da distribuigdo dos productos elaborados (transportes, communicagdes e commer- cio). Mas, montada, na sua estructura tradi- cional, para a classe média (burguezia), emquanto a escola primaria servia 4 classe popular, como se tivesse uma finalidade em si mesma, a escola secundaria ou do 30 gréo ndo forma apenas 0 reducto dos interesses de classe, que crearam ¢ man- tém o dualismo dos systemas escolares. E* ainda nesse campo educativo que se levan- ta a controversia sobre o sentido de cultu- a geral e se pde o problema relativo 4 es- colha do momento em que a materia do ensino deve diversificar-se em ramos ini- ciaes de especializacao. Nao admira, por isto, que a escola secundaria seja, nas re formas escolares, 0 ponto nevralgico da questo. Ora, a solugio dada, neste plano, a0 problema do ensino secundario, levan- tando os obstaculos oppostos pela escola tradicional 4 interpenetracao das classes sociaes, se inspira na necessidade de adap- tar essa educagio 4 diversidade nascente de gostos e 4 variedade crescente de apti- does que a observacdo psychologica regis- ta nos adolescentes e que “representam as unicas forcas capazes de arrastar 0 espi- Tito dos jovens 4 cultura superior”. A es- cola do passado, com seu esforgo inutil de abarcar a somma geral de conhecimentos, descurou a propria formagdo do espirito ea funcsao que Ihe cabia de conduzir o adolescente 20 limiar das profissGes ¢ da vida. Sobre a base de uma cultura geral commum, em que importaré menos a quantidade ou qualidade das materias do que o “methodo de sua acquisicio”, a escola modema estabelece para isto, de- pois dos 15 annos, 0 ponto em que o ensi- no se diversifica, para se adaptar ja 4 di- versidade crescente de aptiddes e de gos tos, j4 4 variedade de formas de actividade social. c) O conceito moderno de Universidade e © problema universitario no Brasil A educagao superior que tem estado, no Brasil, exclusivamente a servigo das profissdes “liberaes” (engenharia, medici- na e direito), nfo péde evidentemente eri- gir-se 4 altura de uma educagao universitd- tia, sem alargar para horizontes scientificos e culturaes a sua finalidade estrictamente profissional ¢ sem abrir os seus quadros ri- jidos 4 formagio de todas as profissées que exijam conhecimentos scientificos, clevando-as a todas a nivel superior e tor- nando-se, pela flexibilidade de sua organi- zago, accessivel a todas. Ao lado das fa- culdades profissionaes existentes, reorga- nizadas em novas bases, impe-se a crea- go simultanea ou successiva, em cada quadro universitario, de faculdades de sciencias sociaes e economicas; de scien- cias mathematicas, physicas e naturaes, ¢ de philosophia e letras que, attendendo4 variedade de typos mentaes e das necessi- dades sociaes, deverdo abrir 4s universida- des que se crearem ou se reorganizarem, um campo cada vez mais vasto de investi- gages scientificas. A educagéo superior ou universitaria, a partir dos 18 annos, inteiramente gratuita como as demais, deve tender, de facto, nao sémente 4 for magdo profissional ¢ technica, no seu ma- ximo desenvolvimento, como formagio de pesquizadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos. Ella deve ser or- ganizada de maneira que possa desempe- nhar a triplice funceao que Ihe cabe de elaboradora ou creadora de sciencia (in- vestigacao), docente ou transmissora de conhecimentos (sciencia feita) e de vulga- rizadora ou popularizadora, pelas institui- ¢bes de extensio universitaria, das scien- cias ¢ das artes. No entanto, com ser a pesquiza, na ex- pressfio de Coulter, o “systema nervoso da Universidade”, que estimula e domina qualquer outra funce30; com ser esse espi- rito de profundidade e universalidade, que imprime 4 educagdo superior um ca- racter_universitario, pondo-a em condi- ges de contribuir para o aperfeigoamen- to constante do saber humano, a nossa educagiio superior nunca ultrapassou os limites ¢ as ambigdes de formagio profis- sional, a que se propGem as escolas de en- genharia, de medicina ¢ direito. Nessas instituigdes, organizadas antes para uma funcgiio docente, a sciencia est4 inteira- mente subordinada 4 arte ou 4 technica da profissio a que servem, com o cuida- do da applicagio immediata e proxima, de uma direccao utilitaria em vista de uma funeeao publica ou de uma carreira privada. Ora, se, entre nés, vingam facilmente todas as formulas e phrases feitas; se a nossa illustraggo, mais variada e mais vasta do que no imperio, é hoje, na phrase de Alberto Torres, “mais vaga, fluida, sem assento, incapaz de habilitar 0s espiritos a formar juizos ¢ incapaz de Ihes inspirar actos”, & porque a nossa ge- ragdo, além de perder a base de uma edu- capo secundaria solida, posto que exclu- sivamente literaria, se deixou infiltrar des- se espirito encyclopedico em que o pensa- mento ganha em extensdo o que perde em profundidade; em que da observagao e da experiencia, em que devia exercitar- se, se deslocou 0 pensamento para o he- donismo intellectual e para a sciencia fei- ta, ¢ em que, finalmente, 0 periodo crea- dor cede 0 logar 4 erudigao, e essa mes- ma quasi sempre, entre nds, apparente ¢ sem substancia, dissimulando sob a su- perficie, 4s vezes brilhante, a absoluta falta de solidez de conhecimentos. Nessa superficialidade de cultura, facil e apressada, de autodidactas, cujas opi- nides se mantém prisioneiras de systemas ou se matizam das tonalidades das mais variadas doutrinas, se tem de buscar as 420 causas profundas da estreiteza ¢ da flu- ctuagao dos espiritos e da indisciplina mental, quase anarchica, que revelamos ‘em face de todos os problemas. Nem a primeira geracdo nascida com a republica, no seu esforgo heroico para adquitir a posse de si mesma, elevando-se acima de seu meio, conseguiu libertar-se de todos os males educativos de que se viciou a sua formacao. A organizacao de Universidades & pois, tanto mais necessaria e urperite quanto mais pensarmos que sé com esas instituigdes, a que cabe crear e diffundir ideaes politicos, sociaes, moraes ¢ esthe- ticos, € que podemos obter esse intensivo espirito commum, nas aspiragdes, nos ideaes e nas luctas, esse “estado de animo nacional”, capaz de dar forca, efficacia e coherencia 4 acgio dos homens, sejam quaes forem as divergencias que possa estabelecer entre elles a diversidade de pontos de vista na solu¢do dos problemas brasileiros. E’ a universidade, no conjun- cto de suas instituigdes de alta cultura, prepostas ao estudo seientifico dos gran- des problemas nacionaes, que nos dard 08 meios de combater a facilidade de tudo ; 9 scepticisme de nada escolher nem julgar; a falta de critica, por falta de espirito de synthese, a indifferenga ou dade no terreno das idéas; a ig- norancia “da mais humana de todas as ‘operacies intellectuaes, que € a de tomar partido”, e a tendencia e o espirito facil de substituir os principios (ainda que pro- visorios) pelo paradoxo ¢ pela humor, esses recursos desesperados. d) O problema dos melhores De facto, a Universidade, que se en- contra no apice de todas as instituigoes educativas, estd destinada, nas sociedades modernas a desenvolver um papel cada vez mais importante na formagdo das eli- tes de pensadores, sabios, scientistas, tech- nicas, ¢ educadores, de que ellas precisam para o estudo e solugao de suas questées scientificas, moraes, intellectuaes, politi- cas € economicas. Se o problema funda- mental das democracias é a educag&io das massas populares, os melhores e os mais capazes, por selecgo, devem formar 0 vertice de uma pyramide de base immen- sa. Certamente, 0 novo conceito de edu- cagfio repelle as elites formadas artificial- mente “por differenciagdo economica” ou sob o criterio da independencia eco- nomica, que nao é nem péde ser hoje ele- mento necessario para fazer parte dellas. A primeira condig%0 para que uma elite desempenhe a sua missdo e cumpra o se dever € de ser “intciramente aberta” ¢ nao s6mente de admittir todas as capaci- dades novas, como tambem de rejeitar implacavelmente de seu seio todos os in- dividuos que niio desempenham a funcgao social que lhes é attribuida no interesse da collectividade. Mas, nio ha sociedade al- guma que possa prescindir desse orgio es- pecial e tanto mais perfeitas serio as so- ciedades quanto mais pesquizada e selec- cionada for a sua elite, quanto maior for a riqueza e a variedade de homens, de valor cultural substantivo, necessarios para enfrentar a variedade dos problemas que poe a complexidade das sociedades modernas. Essa selecciio que se deve pro- cessar no “por differenciago economi- ca”, mas “pela differenciagdo de todas as capacidades”, favorecida pela educagio, mediante a ac¢do biologica e funccional, no pode, nao diremos completar-se, mas nem sequer realizar-se seno pela obra universitaria que, elevando a0 maximo o desenvolvimento dos individuos dentro de suas aptiddes naturaes e seleccionando 0 mais capazes, Ihes dé bastante forga para exercer influencia effectiva na socie- dade ¢ affectar, dessa forma, a conscien- cia social, A unidade de formardo de professores ea unidade de espirito Ora, dessa elite deve fazer parte evi- dentemente © professorado de todos os grdos, ao qual, escothido como sendo um corpo de eleigéo, para uma funegao publi- ca da mais alta importancia, nfo se dé, nem nunca se deu no Brasil, a educago que uma élite péde e deve receber. A maior parte delle, entre nés, é recrutada em todas as carreiras, sem qualquer pre- paragdo profissional, como os professo- res do ensino secundario e os do ensino superior (engenharia, medicina, direito, etc.), entre os profissionaes dessas carrei- ras, que receberam, uns e outros, do se- cundario a sua educagado geral. O magis- terio primario, preparado em escolas es- peciaes (escolas normaes), de caracter mais propedeutico, e, as vezes mixto, com seus cursos geral e de especializacao profissional, no recebe, por via de re- gra, nesses estabelecimentos, de nivel se- cundario, nem uma solida preparagao pe- dagogica, nem a educagZo geral em que ella deve basear-se. A preparagao dos pro- fessores, como se vé, € tratada entre nds, de maneira differente, quando néo é in- teiramente descuidada, como se a funccao educacional, de todas as funegdes publi- cas a mais importante, fosse a unica para cujo exercicio no houvesse necessidade de qualquer preparagio profissional. To- dos os professores, de todos os grdos, cuja preparacdo geral se adquirird nos es- tabelecimentos de ensino secundario, de- vern, no entanto, formar 0 seu espirito pe- dagogico, conjunctamente, nos cursos universitarios, em faculdades ou escolas normaes, elevadas ao nivel superior e in- corporadas ds universidades. A tradicao das hierarchias docentes, baseadas na dif- ferenciagZo dos grios de ensino, que a linguagem fixou em denominagGes diffe- rentes (mestre, professor ¢ cathedratico), ¢ inteiramente contraria ao principio da unidade da funego educacional, que, applicado, 4s funcedes docentes, importa na incorporagdo dos estudos do. magis- terio 4s universidades, e, portanto, na li- bertago espiritual e economica do pro- fessor, mediante uma formagdo ¢ remune- 421 ragHo equivalentes que lhe permittam manter, com a efficiencia no trabalho, a dignidade e 0 prestigio indispensaveis aos educadores. ‘A formagfo universitaria dos professo- res nio é sémente uma necessidade da funcgio educativa, mas o unico meio de, elevando-lhes em verticalidade a cultura, ¢ abrindo-lhes a vida sobre todos os hori- zontes, estabelecer, entre todos, para a realizaco da obra educacional, uma com- prehensdo reciproca, uma vida sentimen- tal commum e um vigoroso espirito com- mum nas aspiragdes e nos ideaes. Se 0 es- tado cultural dos adultos é que da as di- rectrizes 4 formacao da mocidade, nao se poderd estabelecer uma funclio e educa- go unitaria da mocidade, sem que haja unidade cultural naquelles que estao in- cumbidos de transmittil-a. Nés ndo temos © feiticismo mas 0 principio da unidade, que reconhecemos no ser possivel se- nfo quando se creou esse “espirito”, esse “ideal commum”, pela unificagao, para todos os gréos do ensino, da forma- go do magisterio, que clevaria o valor dos estudos, em todos os gréos, imprimi- ria mais logica ¢ harmonia 4s institui¢des, corrigiria, tanto quanto humanamente possivel, as injusticas da situagdo actual. Os professores de ensino primario ¢ se- cundario, assim formados, em escolas ou cursos universitarios, sobre a base de uma educagio geral commum, dada em estabe- lecimentos de educagfo secundaria, ndo fariam sendo um s6 corpo com os do en- sino superior, preparando a fusio sincera e cordial de todas as forgas vivas do ma- gisterio. Entre os diversos gréos do ensi- no, que guardariam a sua funcedo especi- fica, se estabeleceriam contactos estreitos que permittiriam as passagens de um ao ‘outro nos momentos precisos, descobrin- do as superioridades em germen, pondo- asem destaque e assegurando, de um pon- ‘to a outro dos estudos, a unidade do es- pirito sobre a base da unidade de forma- ‘cdo dos professores, 422 © papel da escola na vida e a sua funcgdo social Mas, ao mesmo tempo que os progres- sos da psychologia applicada 4 creanga vomegaram a dar 4 educagdo bases scien- tificas, os estudos sociologicos, definindo ‘a posigZo da escola em face da vida, nos ‘trouxeram uma consciencia mais nitida da sua funceio social ¢ da estreiteza relativa de seu circulo de acedo. Comprehende-se, 4 luz desses estudos, que a escola, campo especifico de educaefio, nfo ¢ um elemen- to estranho 4 sociedade humana, um ele- mento separado, mas “uma instituigdo social”, um orgao feliz ¢ vivo, no conjun- cto das instituigdes necessarias 4 vida, 0 Jogar onde vivem a creanga, a adolescen- cia e a mocidade, de conformidade com 0s interesses e as alegrias profundas de Sua natureza. A educagio, porém, nifo se faz sémente pela escola, cuja accio & favorecida ou contrariada, ampliada ou reduzida pelo jogo de forgas innumeraveis que concorrem ao movimento das socie- dades modernas. Numerosas ¢ variadissi- mas, so, de facto, as influencias que for mam © homem atravez da existencia. “Ha a heranga que a escola da especie, como jd se escreveu; a familia que ¢ a es- cola dos paes; o ambiente social que é a escola da communidade, e a maior de to- das as escolas, a vida, com todos os seus imponderaveis e forgas incalculaveis”. Comprehender-se-4, entio, para empregar a imagem de C. Bouglé, que, na socieda- de, a “zona luminosa é singularmente mais estreita que a zona de sombra; os pe- quenos fécos de acco consciente que so as escolas, ndo sdo sendo pontos na noite, ea noite que as cerca ndo é vasia, mas cheia ¢ tanto mais inquietante; ndo é 0 silencio e a immobilidade do deserto, mas © fremito de uma floresta povoada”. Dessa concepedo positiva da escola, como uma instituiggo social, limitada, na sua acgdo educativa, pela pluralidade ¢ diversidade das forcas que concorrem ao movimento das sociedades, resulta a necessidade de reorganizal-a, como um or- ganismo malleavel e vivo, apparelhado de um systema de instituigdes susceptiveis de Ihe alargar os limites ¢ © raio de acgiio. As instituigGes periescolares e postesco- lares, de caracter educative ou de assis tencia social, devem ser incorporadas em todos 0s systemas de organizacao es- colar para corrigirem essa insufficiencia social, cada vez maior, das instituigées educacionaes. Essas instituigées de educa- ¢do ¢ cultura, dos jardins de infancia as escolas superiores, nfo exercem a acco intensa, larga e fecunda que s30 chamadas a desenvolver e no podem exercer send por esse conjuncto systematico de medi- das de projecg‘Io social da obra educativa além dos muros escolares. Cada escola, seja qual for o seu gréo, dos jardins as universidades, deve, pois, reunir em torno de si as familias dos alumnos, estimulan- do aproveitando as iniciativas dos paes em favor da educacdo; constituindo socie- dades de ex-alumnos que mantenham relagio constante com as escolas; utilizan- do, em seu proveito, os valiosos e multi- plos elementos materiaes e espirituaes da collectividade ¢ despertando e desenvol- vendo o poder de iniciativa e 0 espirito de cooperagio social entre os pacs, os professores, a imprensa ¢ todas as demais instituigdes directamente interessadas na obra da educagao. Pois, é impossivel realizar-se em inten- sidade e extenso, uma solida obra edu- cacional, sem se rasgarem d escola abertu- ras no maior numero possivel de direcodes € sem se multiplicarem os pontos de apoio de que ella precisa, para se desen- volver, recorrendo a communidade como 4 fonte que thes ha de proporcionar todos os elementos necessarios pata elevar as condigGes materiaes e espirituaes das es- colas. A consciencia do verdadeiro papel da escola na sociedade impde o dever de concentrar a offensiva educacional sobre os nucleos sociaes, como a familia, os agrupamentos profissionaes ¢ a imprensa, para que © esforgo da escola se possa rea- lizar em convergencia, numa obra solida- tia, com as outras instituigdes da commu- nidade. Mas, além de attrahir para a obra commum as instituig6es que siio destina- das, no systema social geral, a fortificar-se mutuamente, a escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior amplitude pos- sivel, todos os recursos formidaveis, como a imprensa, 0 disco, 0 cinema e o radio, com que a sciencia, multiplicando-lhe a efficacia, acudiu 4 obra de educagio e cultura e que assumem, em face das con- digdes geographicas ¢ da extensio terri- torial do paiz, uma importancia capital. A’ escola antiga, presumida da importan- cia do seu papel e fechada no seu exclu- sivismo acanhado e esteril, sem o indis- pensavel complemento e concurso de to- das as outras instituigdes sociaes, se suc- cedera a escola moderna apparelhada de todos os recursos para estender e fecun- dar a sua accdo na solidariedade com o meio social, em que entiio, e sd entao, se tomard capaz de influir, transfor mando-se num centro poderoso de crea- ¢do, attraceio e irradiagio de todas as forgas ¢ actividades educativas, A democracia, — um programma de lon- gos deveres Nao alimentamos, de certo, illusdes sobre as difficuldades de toda a ordem que apresenta um plano de reconstrucgao educacional de tao grande alcance ¢ de tao vastas proporgdes. Mas, temos, com a consciencia profunda de uma por uma dessas difficuldades, a disposi¢ao obsti- nada de enfretal-as, dispostas, como esta- mos, na defeza de nossos ideaes educacio- naes, para as existencias mais agitadas, mais rudes & mais fecundas em realida- des, que um homem tenha vivide desde que ha homens, aspiragoes ¢ luctas. O proprio espirito que o informa de uma nova. politica educacional, com sentido 423 unitario ¢ de bases scientificas, e que se- ria, em outros paizes, a maior fonte de seu prestigio, tomard esse plano suspeito aos olhos dos que, sob o pretexto e em nome do nacionalismo, persistem em manier a educagdo, no terreno de uma politica empirica, 4 margem das correntes renovadoras de seu tempo. De mais, se os problemas de educagdo devem ser re- solvidos de maneira scientifica, ¢ se a seiencia nffo tem patria, nem varia, nos seus principios, com os climas ¢ as lati- tudes, a obra de educagdo deve ter, em toda a parte, uma “unidade fundamen- tal”, dentro da variedade de systemas re- sultantes da adaptago a novos ambien- tes dessas idéas e aspiraedes que, sendo estructuralmente scientificas e humanas, tém um caracter universal. E’ preciso, certamente, tempo para que as camadas mais profundas do magisterio e da socie- dade em geral sejam tocadas pelas dou- trinas novas e seja esse contacto bastan- te penetrante ¢ fecundo para lhe modi- ficar os pontos de vista e as attitudes em face do problema educacional, ¢ para nos permittir as conquistas em glo- bo ou por partes de todas as grandes as- PiragSes que constituem a substancia de uma nova politica de educacao. Os obstaculos accumulados, porém, ndo nos abateram ainda nem poderdo aba- ternos a resoluedio firme de trabalhar pe- Ja reconstrucgio educacional no Brasil. Nos temos uma missio a cumprir: insen- siveis 4 indifferenga ¢ 4 hostilidade, em lu- cta aberta contra preconceitos e preven- ges enraizadas, caminharemos progressi- vamente para o termo de nossa tarefa, sem abandonarmos o terreno das realida- des, mas sem perdermos de vista os nos- sos ideaes de reconstrucedo do Brasil, ma base de uma educacdo inteiramente nova. A hora critica ¢ decisiva que vive- mos, nfo nos permitie hesitar um mo- mento deante da tremenda tarefa que nos impde a consciencia, cada vez mais viva da necessidade de nos prepararmos para 424 enfrentarmos com o evangelho da nova, geracso, a complexidade tragica dos pro- blemas postos pelas sociedades moder- nas. “Nao devemos submetter 0 nosso espirito. Devemos, antes de tudo pro- porcionar-nos um espirito firme ¢ segu- ro; chegar a ser setios em todas a3 cousas, ¢ nfo continuar a viver frivolamente e co- mo envoltos em bruma; devemos formar- nos principios fixos ¢ inabalaveis que sir vam para regular, de um modo firme, todos os nossos pensamentos e todas as nossas acgOes; vida e pensamento devem ser em nés outros de uma sé pega e for- mar um todo penetrante e solido. Deve- mos, em uma palavra, adquirir um carac- ter, € reflectir, pelo movimento de nos- sas proprias idéas, sobre os grandes acon- tecimentos de nossos dias, sua relaclo comnosco € 0 que podemos esperar del- les. B° preciso formar uma opiniiio clara € penetrante é responder a esses proble- mas sim ou nao de um modo decidido ¢ inabalavel” Essas_palavras t3o opportunas, que agora lembramos, escreveu-as Fichte ha mais de um seculo, apontando 4 Allema- nha, depois da derrota de Tena, 0 cami- nho de sua salvacio pela obra educa cional, em um daquelles famosas “dis- cursos 4 nagdo allemi”, pronunciados de sua cathedra, emquanto sob as janellas da Universidade, pelas mas de Berlim, resoa- vam os tambores francezes... Ndo sfo, de facto, sendo as fortes convicgdes ¢ a plena posse de si mesmos que fazem os grandes homens e os grandes povos. To- da a profunda renovacao dos principios que orientam a marcha dos povas precisa acompanhar-se de fundas transformacdes no regimen educacional: as unicas revolu- ges fecundas so as que se fazem ou se consolidam pela educagio, e é so pela educagdo que a doutrina democratica, uti- lizada como um principio de desaggrega- co moral ¢ de indisciplina, poderd trans- formar-se numa fonte de esforgo moral, de energia creadora, de solidariedade so- cial e de espirito de cooperagao. “‘O ideal da democracia que, — escrevia Gustave Belot em 1919, — parecia mecanismo po- litico, torna-se principio de vida moral ¢ social, ¢ o que parecia cousa feita ¢ reali- zada revelou-se como um caminho a se- guir e come um programma de longos de- veres”. Mas, de todos os deveres que in- cumbem ao Estado, o que exige maior ca- pacidade de dedicacdo e justifica maior somma de sacrificios; aquelle com que nao possivel transigir sem a perda irre- paravel de algumas geragées; aquelle em ‘cujo cumprimento os erros praticados se projectam mais longe nas suas consequen- cias, aggravando-se 4 medida que recuam no tempo; o dever mais allo, mais penoso ¢ mais grave é, de certo, o da educagao que, dando ae povo a consciencia de si mesmo e de seus destinos e a forga para affirmar-se e realizal-os, entretém, culti- va e perpettia a identidade da consciencia nacional, na sua communhio intima com a consciencia humana. Fernando de Azevedo Afranio Peixoto A. de Sampaio Doria Anisio Spinola Teixeira M. Bergstrom Lourenco Filho Roquette Pinto J.G, Frota Pess6a Julio de Mesquita Filho Raul Briquet Mario Casasanta C, Delgado de Carvalho A. Ferreira de Almeida Jr. J.P. Fontenelle Roldao Lopes de Barros Noemy M. da Silveira Hermes Lima Attilio Vivacqua Francisco Wenancio Filho Paulo Maranhao Cecilia Meirelles Edgar Sussekind de Mendonga Armanda Alvaro Alberto Garcia de Rezende Nobrega da Cunha Paschoal Lemme Raul Gomes. 425

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