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pesca |(H HF UAL Vi ie) Trajetoria Filosofica ee eel (ae Ce UM) da hermenéutica TMT MT atm ada Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow MICHEL FOUCAULT Uma Trajetoria Filosofica Para além do estruturalismo e da hermenéutica Tradugao: Vera Porto Carrero Introdugdo; Traduzida por Antonio Carlos Maia FORENSE UNIVERSITARIA, Wedgie beasties — 1995 © Copyright “Tho Universey of Chica, Cakcagy, il, U.S.A. (CW-Brastl, Catalogagdo-ue-fout Sindleata Nacloral dos Editses de Livrs, RJ. D837 Devpfus, Hubeet L, ‘Miche! Poucoult, une tnjetéria Silestea: (para ale do struuralisno ¢ de hermentaniea} {Hubert Dreyfus, Pel Rabinow: tndagéo ée Veen Por Carrere. —~ Rio de Jenete: Foreree Universiti, 1995, ‘Tradbgéo de: Miche] Foucaute: beyond siructurlism and hermensues ISBN 35:218-01580 |. Foucent, Miche, 1926-1984. 2, Floofia francesa, 1. Rabinow, Pau IL Tinto. 10, Sie 95-1445 cpp iss eDu 1448p Proibida a rprodugio tora ou parcial, bei come a reprodusia de apoutias.a pani dens Toro, de qualquer forma ou par ‘qualquer meio letrénico ou mecinico inclsive-stravés de pracesson xerogrifics, de fotoc Spins ee grovacio, sem peerissB0 do Bditoe (Lei n? 5.98 de 1.12.73), Capa: Bitz Des Ectorodo Blazénioa: Delis Une Reseevades 01 dztitos de propricdade desis edigho pela EDITORA PORENSE UNIVERSITARIA ‘Ron Sé Freire, 25 — 20930-440 — Ria de Janeiro — RU — Tel: 4021) $40.07 76 Large de So Francisca, 20 — 01005010 — So Paulo — SP — Tel: (011) 604-2005, feapresto a0 Brasil Prined in Bract Capitulo VIII A Genealogia do Individuo Moderno como Sujeito Foucault, enquanto genealogista, coloca a questiio da sexualidade em termos estritamente histéricos; a sexuatidade ¢ uma construgio historica € hao um teferente biolégico subjacente. Ele contesta a nogdo de sexo ampla- mente aceita como uma esséncia subjacente, como uma pulsao arcaica, mostrando que esse conccito também surgiu num discurso historico par- ticular sobre a sexualidade. Foucault se mostra cuidadoso ao unir a escolha das palavras e a analise do significado 4 evolugao das diferentes politicas do corpo ¢ seus desejos: “‘Nés conhecemos a sexualidade desde o século XVIII ¢ 0 sexo desde o século XIX. Antes disso nds tivemos, sem duvida nenbuma, a carne.”” Durante o século XVIII ¢ especialmente 0 século XIX, a sexualidade tomnou-se um objeto de investigagio cientifica, de controle administrativo € de preocupagiio social, Para os médicos, reformadores ¢ cientistas sociais, a sexualidade pareceu fornecer o elemento chave para a compreensio da sade do individuo, de sua patologia ¢ identidade. Como vimos no Capitulo VI, foi através da elaboragdo de uma nova simbologia da sexualidade que a but- guesia se liberou do cédigo de nobreza — “do sangue” — ¢ se afastou das classes trabalhadoras, portadoras de varios perigos sexuais. Segundo Fou- cault, a sexualidade emergiu como um componente central numa estratégia de poder que, de uma forma eficaz, juntou o individuo ¢ a populagdo através da expansio do biopoder. A tese de Foucault € que a sexualidade foi inventada como um instrumento-efeito na expansao do biopoder. He nao contesta, realmente, a cronologia histérica padrao, que vé uma mudanga no século XVII, ¢ espe- cialmente no século XIX, de uma sexualidade, que € relativamente livre, um. indiferenciado da vida cotidiana, para outra, que é controlada ¢ vigiada. Para Foucault o aspecto mais importante ¢ que, com estes controles, sobrevieram uma discussio e¢ uma reflexdo sobre 0 sexo, até entiio sem 185, precedentes. Foucault vé, nestes tiltimos séculos, mais do que uma historia do aumento da repressdo da sexualidade; ele sugere que houve “uma grande injungao polimorfa”’.' Este discurso colocou o sexo como uma pulsio to poderosa e tio irracional que as formas dramaticas do auto-exame individual ¢ do controle coletivo tornaram-se um imperativo de modo a manter essas forgas controladas, Gtagas ao dispositivo da sexualidade, o biopoder estendeu sua rede aos menores movimentos do corpo ¢ da alma, através da consttugao de uma tecnologia especifica: a confissdo do sujeito individual, pela auto-reflexdo ou pelo discurso. Foi através da tecnologia da confissio que varios fatores, com 0s quais nos deparamos na anélise do biopoder — 0 corpo, o saber, o discurso, o poder —, foram trazidos a um lugar comum. Em termos gerais, esta tecnologia, aplicada primeiramente a burguesia como tecnologia disci- plinar, desenvolveu-se como meio de controle das classes wabalhadoras e do subproletariado. (Em ambos os casos, esta simplificagéio esquematica deve ser considerada de valor heuristico.) Na sua gencalogia do sujeito moderno, Foucault justapde as tecnologias do sujeite ¢ da subjetivagdo a sua andlise anterior das tecnologias do objeto ¢ da objetivagio. Foucault analisa a tecnologia particular ¢ 0 discurso do sujeito en- volvido na confissio da mesma maneira que analisou aquelas tecnologias que se referem 4 disciplina. Ele coloca ambas numa ampla grade de interpretagao: a do biopoder. E, entéo, importante compreender que ele nao vé a identidade sexual ou 2 liberagio sexual como inerentemente livre de ou necessariamente oposta 4 dominago na nossa sociedade. Neste ponto, ele tem sido freqtien- temente mal compreendido, em particular por aqueles que afirmam que os movimentos de auto-cxpresséo sexual estao necessariamente ligados a uma resisténcia 4s formas de poder em vigor, que € politica e com significado. Ac contrario, Foucault defende que as formas de dominagao ligadas 4 identidade sexual sao, de fato, caracteristicas do desenvolvimento recente de nossa so- ciedade e, por isso mesmo, mais dificeis de serem identificadas. Como vimos na discussdo da hipotese repressiva, Foucault afirma que a repressio cm si mesma nao ¢ a forma mais geral de dominagéo. De futo, a ctenga de que se resiste & repressao, seja pelo saber de si, seja proclamando a verdade, mantém a domi- nagio, pois isto oculta o verdadeiro funcionamento do poder. O sexo ¢ 0 biopoder Eno inicio do século XVII que a sexualidade se torna uma construgéo historica, isto ¢, um discurse diferenciado ligado aos discursas ¢ as préticas 1 fhidem, p. 45, 186 do poder. Uma ““incitagiio técnica a falar sobre sexo” desenvolveu-se, tendo como correlato uma preocupagio administrativa com o bem-estar da popu- lagio. As classificagées cientificas ¢ empiricas das atividades sexuais acon- teceram num contexto de preocupacio com a vida. Neste estégio inicial, as classificagdes permaneceram ainda muito. sombra do discurso religioso que colocava, lado a lado, a carne, 0 pecado ¢ a moral crist®. Entretanto, pouco a pouco, os demdgrafos ¢ os administradores publicos comegaram a explorar empiricamente problemas tais como a prostituigio, as estatisticas popu- lacionais o esquadrinhamento da doenga, “*O sexo, ndo o julgamos apenas, nds o administramos. Ele advém do poder piiblico; ele exige procedimentos de gestao; ele deve ser assumido pelos discursos analiticos. Osexo, no século XVIIL, toma-se um caso de *policia’ © crescente interesse pelos estudos estatisticos da populago pode servir como um exemplo. Durante o século XVIII, a demografia e seus campos afins transformaram-se, pouco a pouco, em disciplinas. Os adminis- wadores, como vimos, abordaram a questéo da populacdo como algo a ser conhecido, controlado, cuidado, cujo crescimento deve ser estimulado. *C.... énecessario analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimen- tos legitimos ¢ ilegitimos, a precocidadee freqiiéncia das relagdes sexuais, a maneira de tornd-las estéreis ou férteis, 0 efeito do celibato ou das proibigdes, a incidéncia das priticas anticoncepcionais.”* Partindo das consideragées caritativas generalizadas sobre a importincia da populagio, os administra- dores franceses do século XVIII comegaram, pouco a pouco, a introduzir procedimenios de intervengao na vida sexual da populagao. A partir destes problemas potitico-econémicos, o sexo tomou-se uma preacupacso, envol- vendo tanto o Estado como o individuo. Durante o século XVI, a ligagao entre a sexualidade e 0 podet pode ser estabelecida com base nas questées sobre a populagao. No inicio do século XIX, uma mudanga importante acontece: uma reformulagio do dis- curso sobre a sexualidade em termos médicos. Foi esta mudanga que desen- cadcou uma explosio do discruso sobre a sexualidade na classe burguesa.O- ponto central foi a separagao de uma medicina do sexo da medicina do corpo, uma sepatacio baseada no isolamento de ‘‘um ‘instinto” sexual suscetivel, mesmo sem alteracio organica, de apresentar anomalias constitutivas, des- vios adquiridos, enfermidades ou processos patolégicos’’.’ Através destas rupturas ‘‘cientificas’”’, a sexualidade foi ligada a uma forma poderosa de saber € estabeleceu uma conexdo entre o individuo, o grupo, o sentido € o controle. p35. 3 Ibidem, p. 36. 4 Ibidem, p. 135. 187 Foucault estabelece, aqui, uma diferenca entre sexo e sexualidade. O sexo é uma questio familiar. ““Podemos admitir, sem diivida, que as relagdes de sexo deram Ingar, em toda a sociedade, a um dispositive de alianga.”"* Até o final do século XVIII, os ptincipais eddigos legais do Ocidente centraram-se neste dispositivo da alianga: um discurso particular sobre o sexo articulando as obrigagées religiosas ou legais do casamento com os codigos de transmisséo da propriedade ¢ dos lagos de sangue. Estes codigos criaram estatuios, permitiram e proibiram agées e constituiram um sistema social. Através do casamento ¢ da procriagao, o dispositivo da alianga foi ligado & troca ¢ 4 transmisséo da riqueza, da propriedade e do poder. A forma hist6rica do discurso e da pratica, que Foucault denomina *‘sexualidade’*, nasceu de uma separagdo do sexo do dispositive da alianga. A sexualidade é uma guestio individual: ela diz respeito aos prazeres indi- viduais ocultos, aos excessos perigosos para 0 corpo, As fantasias sectetas; passou a set considerada como a esséncia do ser humano individual ¢ 0 mticleo da identidade pessoal. Foi possivel conhecer os segredos do corpo eda alma através da mediagio dos médicos, psiquiatras ¢ outros a quem podiamos confessar os pensamentos ¢ as praticas particulares. Esta per- sonalizagéo, medicalizagao e significagao do sexo, que ocorreu num momento histdrico determinado, é o que Foucault denomina dispositive da sexualidade. : No interior da proliferag&o generalizada dos discursos sobre a sexuali- dade, Foucault isola quatro ““grandes unidades estratégicas’’ , nas quais podet saber se fundem em mecanismos especificos ¢ construides em torno da sexualidade. Cada uma destas estratégias do dispositivo da sexualidade comegou independente da outra e cada uma delas era,no inicio, relativamente isolada. Conheceremos melhor seus detathes, apds a publicagdo dos proxi- mos volumes da Histéria da Sexualidade, ptometidos por Foucault; entre- tanto, os temas principais articulam-se claramente na interpretagéo do biopoder que estamos desenvolvendo. Em primeiro lugar, houve a histeri- zagio dos corpos das mulheres. O corpo da mulher foi analisado como estando completamente saturado de sexualidade. Através deste *‘avango”” médico, o corpo da mulher péde ser isolado “*por meio de wma patologia intrinseca a ele” e colocado “em comunicagio organica com o corpo social (cuja fecundidade regulada ete deve assegurar)"*.° Bis aqui todos os elemen- tos do dispositive compicto da sexualidade: uma sexualidade mistetiosa ¢ difusa da maior importancia reside em alguma coisa ¢ em algnma parte do corpo; esta presenga misteriosa foi aquilo que trouxe o corpo da mulher para ‘os discursos analiticos da medicina; através desses discursos médiccs, tanto 3 Ibidem, p. 140. 6 Ibidem, p. 137. 188 a identidade pessoal da mulher como a futura sade da populagdo sio unidos ha mesma conjugao de saber, de poder ¢ de materialidade do corpo. Em segundo lugar, a pedagogizagio do sexo das eriangas. As titicas empregadas na luta contra a masturbagdo oferecem um excmplo claro da expansio do biopoder enquanto produgao, ¢ nao resttigdo, de um discurso. Este discurso foi construido a partit da crenga de que todas as ctiangas sio dotadas de uma sexualidade que € simultaneamente natural e perigosa. Conseqiientemente, tanto o interesse individual quanto 0 coletivo convergi- ram para esforgos no sentido de encarregar-se deste potencial ambiguo. O onanismo infantil foi tratado como uma epidemia. ‘De fato, ao longo desta campanha seculat que mobilizou o mundo adulto em torno do sexo das ctiangas, tratava-se de se apoiar sobre estes prazeres, de constitui-los como segredos (isto ¢, de fored-los a se esconder para poder descobri-los)."*? Uma vigilancia elaborada, técnicas de controle, armadilhas inumerdveis, morali- zagéo infindavel, apelos a uma vigilancia incessante, incitagio continua & culpa, uma reconstrugao arquitetural 4 honra familiar ¢ a0 progtesso médico, indo foi mobilizado numa campanha obviamente condenada, desde o inicio, a0 fracasso — se 0 seu objetivo era, de fato, a erradicacao da masturbagao. Entretanto, se aquela campanha foi entendida como produgao de poder e nao. como restrigéo da sexualidade, neste caso, foi um sucesso: “Ao longo deste apoio, o poder avanga, multiplica seus dispositivos ¢ efcitos enquanto scu objetivo se expande, se subdivide ¢ se ramifica, penetrando no real num mesmo passo."** Em terceito lugar, uma socializagéo das condutas procriadoras. Nesta estratégia, foram dadas ao casal responsabilidades médicas ¢ sociais. O casal, aos olbos do Estado, é, entio, responsivel pelo corpo politico; ele deve protegé-lo das influéneias patogénicas que uma sexualidade descuidada poderia aumentar ou limitar (ou revigorar) na populagio, através de um cuidado na regulagdo da proctiagéo. As doengas ou falhas na vigilancia sexual do casal poderiam levar, faciimente — ¢ isto cra sustentado — a producio de perversdes sexuais e mutagdes genéticas. O fracasso no cuidado cota a sexualidade poderia levar a um perigoso declinio da satide da célula familiar ¢ de todo o corpo social. Ao final do século XIX **toda uma pratica social, em que o racismo do Estado foi a forma ao mesmo tempo exasperada © coerente, deu a esta tecnologia do sexo un poder terrivel ¢ efeitos longin~ quos”*,’ A cugenia pode ser entendida nesta petspectiva. Entretanto, nem todas as ciéneias que surgitam para Jidar com a sexualidade humana assumi- 7 Wider, ps. 57-58. 2 Tbidem, p. 38. 9 Iidem, p. 137. 189 ram este papel de controle biolégico. Foucault aponta que, principalmente em seus primérdios, a despeito do seu papel normalizador posterior, a psicandlise demonstrou uma resisténcia persistente € corajosa a todas as teorias da degenerescéncia hereditéria. De todas as tecnologias médicas desenvolvidas no sentido de normalizar o sexo, ela foi a unica que, de fato, resistiu a este biologismo, Em quarto lugar, uma psiquiatrizacdo do prazet perverso. Ao final do século XIX, 0 sexo foi isolado ou, conforme Foucault, construido como um instinto. Este instinto — afirmava-se — operou tanto no nivel biolégico como no psiquico. Ele poderia ter sido pervertido, distorcido, invertido, defor- mado; poderia também funcionar normalmente ¢ de maneira saudével. Em ambos 06 casos, o instinto sexual ¢ a natureza do individuo estao intimamente ligados. A ciéncia — a ciéncia sexual — construiu um vasto esquema de snomalias, de perversdes, de espécies de sexualidade deformadas. Os psiquiatras, ao final do sécuto, foram particularmente habeis nesse tipo de jogo. Ao classificar espécies numa base cientifica, a especificagio ¢ 0 detalhamento dos individuos pareciam 1omar-se bem mais facets. Abre-se, entio, todo um nove espago que permite uma crdnica detalhada da vida individual ¢ sua regulagdo. Para os psiquiatras, a sexualidade penetrou em todos os aspectos da vida do perverso, originando # necessidade de conhecer cada aspecio de sua vida, *‘O sodomita foi uma aberracgda, o homossexual é, agora, uma espécie.’”° Aquilo que foi um conjunto de condutas proibidas tomou-se, cntao, sintomas dc uma mistura significativa do biolégico com a apdo. Uma vez mais, “ta mecinica do poder que persegue todo este disparate 86 pretende suprimi-lo dando-Ihe uma realidade analitica visivel ¢ perma- nente”’." Toda conduta pode, agora, ser classificada através de uma escata de normalizag3o ¢ patologizacao deste misterioso instinto sexual. Uma vez estabelecida cientificamente uma diagnose da perversao, teenologias correti- vas — para o bem do individuo e da sociedade — podem e devem ser aplicadas, Toda uma nova “‘ortopedia’” do scxo cncontrou sua justificativa. Assim, como nas outras trés estratégias, 0 corpo, a nova ciéncia sexual € a exigéncia de regulacdo e vigilancia foram relacionadas. Elas foram reunidas pelo conceito de uma sexualidade profunda, onipresente e significante que penetra tudo, ou melhor, quase tudo que ela toca. Todas estas estratégias conduzem a uma ligagio curiosa de poder e Pprazer. Como o corpo foi considerado o lugar da sexualidade, a sexualidade néo pode mais ser ignorada, forgando a ciéncia a saber, nos menores detalhes, todos os segredos bioldgicos e psiquicos que o corpo guarda dentro de si. O 10 Ibidem. 9. 59. LL dbidem, p. 60. 190 resultado foi, certamente, um progresso cientifico, mas também "*uma sen- sualizagéo do poder ¢ um beneficio do ptazer”’. O progresso cientifico ganhou uma motivagao a mais, uma estimulacio oculta, que se tornon o proprio prazer intrinseeo. O exame — técnica central destes novos procedi- mentos ~ permitiu a transformagio de um discurso sexual subjacente numa terminologia médica aceitével, Uma vez oculto o problema médico, 0 exame requer a confissdo do paciente. Ete ““supée proximidades (...); requer uma troca de discursos, através de questes que sio extorquidas das confissdes de confidéneias que véo além das interrogagées"’."? Ademais, a pessoa examinada era investida também de uma forma especifica de prazer: toda esta atengao cuidadosa, esta extorsfo carinhosa dos detalhes mais intimos, estes interrogatérios forgados. ~‘O exame médico, a investigagdo psiquidtrica, o telatério pedagdgico, os controles familiares podem tet como objetivo global ¢ aparente dizer nao a todas as sexualidadcs desviantcs ou improdutivas; de fato, funcionam como mecanismos de dupla impulsao: prazer e poder." © poder médico de penetragdo e 0 prazer de evasSo do paciente seduzem as. duas partes. A tecnologia da confissio Para Foucault, o exame médico, tal como praticado no século XIX, assim como todas as formas circunscritas 4 confissio, expuseram ds figuras de autoridade as fantasias sexuais mais profundas ¢ as praticas mais ocultas do individuo. O individuo foi persuadide de que, através de tal confissio, era possivel conhecer a si mesmo. O sexo nie foi otinico tema, apesar de ter sido © mais importante, desta expansio da confissio que sé se ampliou a partir do século XIX. “A confisséo difundiu amplamente seus efeitos: na justiga, na medicina, na pedagogia, nas relagdes familiares, nas relagdes amorosas, na ordem mais cotidiana ¢ nos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, confessam-se os pecados, confessam-se os pensamentos e desejas (...), suas. doengas ¢ suas misérias (...); fazem-se a si mesmo, no prazer ¢ na dor, confissdes impossiveis de serem feitas a outrem e sobre as quais escrevem-se livros. o homem, no Ocidente, tomou-se um animat de confissio.**'4 Foucault vé a confissao, ¢ especialmente a confissao sobre a sexualidade, como um componente central na expansao das tecnologias para a disciplina © controle dos corpos, das populagdes, ¢ da sociedade como um todo. Como genealogista, ele quer explorar a historia da confissio, suas ligacdes com a 12 Ibidem, p. 60. (3 Tbidem ps. 61-62. (4 ibidem, ps. 79-80. 19k religido, com o poder politico, com as ciéncias médicas. No volume I de Historia da Sexnalidade, cle contrapSe aquelas cuituras, que procuram co- nhecer o sexo através das artes eréticas, 4 nossa prépria cultura, que utiliza a ciéncia do sexo. Nos volumes subseqiientes, ele analisard 9 evoiugéo da confissao, as téenicas particulares ¢ os tipos de discurso usados pelos gregos, pelos romanos, pelos primeiros cristéos ¢ pelos partidarios da Reforma. Nesta “‘histéria do presente"’, 0 objetivo po € descobrir 0 momento em que a confissio, ¢ especificamente a confissio sobre a propria sexualidade, emerge como uima tecnologia do eu, mas, antes, compreender o funcionamento desta tecnologia do cu — o tipo particular de discurso ¢ as téchicas particulares que supostamente revelam nosso ev mais profundo. Esta foi uma promessa to sedutora que nos envolveu em relagdes de poder que sfo dificeis de ver ou de quebrar. No Ocidente, pelo menos, mesmo 0 auto-exame mais privado. esté ligado a poderosos sistemas de controle extremo: ciéncias ¢ pseudocién- cias, doutrinas religiosas ¢ motais. A vontade de saber a verdade sobre nds mesmos, propria 4 nossa cultura, instiga-nos a falar a verdade; as confissdes que se sucedem, confissdes que fazemos aos outros € a nds mesmos, € esta colocagao em discurso instauram um conjunto de relagdes de poder entre aqueles que afirmaram ser capazes de extrait a verdade destas confissdes através da posse de chaves de interpretacao. No volume I de Histéria da Sexuatidade, Foucault estd especialmente interessado no papel da ciéncia e sua relagdo com a confissao, a verdade e 0 poder. As normas cientificas 0 discurso cientifico imparcial (em particular © discurso médico) tornaram-se tio dominantes na sociedade ocidental que parecem quase sagrados. Além disso, através da expansio dos métodos da ciéncia, o individuo tornou-se um objeto de conhecimento para si mesmo ¢ para os outros, um objeto que fala a verdade sobre si mesmo, a fim de se conhecer e ser conhecido; um objeto que aprende a operar transformagdes em si mesmo. Essas so as técnicas que ligam o discurso cientifico as tecnologias do eu, Este processo aproxima-se das tecnologias disciplinares, nas quais a autoridade produz mudangas nos ‘*corpos mudos ¢ déceis". A diferenga que o sujeito moderno no é mudo; ele deve falar. Foucault procura mostrar a relagéio entre estes dois tipos de tecnologia, a maneira pela qual esto integrados numa estrutura complexa de dominagio. Mais uma vez, para Foucault, o poder nao é uma violéncia estrita ou pura coergao, mas a interagio de técnicas disciplinares e tecnologias do eu menos ébvias. A tarefa do gencalogista do sujcito moderno ¢ isolat os componentes constitutivos ¢ analisar a interagao desses componentes. A chave paraa tecnologia do eu éa crenga de que se pode, coma ajuda de peritos, falar a verdade sobre si mesmo. Este é um principio fundamental, Nao somente nas ciéncias psiquid ricas € na medicina, como também na lei, ha educagiio, no amor. A conviegio de que a verdade pode ser descoberta 192 através do exame de consciéncia ¢ da confissio dos pensamentos e atos aparece, agora, como tio natural, ta constrangedora, realmente to evidente, que pode parecer pouco razodvel pressupor que tal exame seja um compo- nente central numa estratégia de poder. Se este Pprojelo nos soa como pouco razoavel, isto se deve 4 nossa dependéncia 4 hipotese repressiva; se a verdade é inwinsecamente oposta ao poder, entio sua descoberta nos conduziria, certamente, 20 caminho da libertagio. Esta convicgio de que a confissio revela a verdade encontra sua expresso mais forte na importincia que atribuimes a questio da sexualidade: acrenga de que o corpo e seus desejos, anatisados através de um determinado prisma de interpretagéio, ¢ a forma mais profunda da verdade sobre um individuo especifico e sobre os seres humanos em geral. Os desejos do corpo desempenham papel central na confissdo, desde a época da peniténcia crista até nossos dias. A linguagem ¢ as técnicas empregadas na confissio religiosa tiveram inicio na Idade Média, prosseguiram durante a Reforma até a atuali- dade, tornando-se mais refinadas e de alcance cada vez maior. Foucault analisaré a longa e complexa evolugéo da confissio na igteja, nos volumes subseqiientes de Hisidria da Sexnalidade. Por enquanto, basta-nos afirmar que ele caracteriza esta evolugdo como um imperative para transformar cada desejo do corpo e da alma em discurso. ‘*A pastoral crist inscreveu como dever fundamennal a tarefa de fazer passar tudo aquilo que se relaciona com © sexo pelo filtro da palavta."*"* O individuo era incitado a produzir e fazer proliferar 0 discurso sobre 0 estado de sua alma ¢ os desejos de seu corpo. Este discurso era elidido ¢, entao, julgado pelo representante da autoridade — 0 padre. Lae a qualidade quanto a quantidade desta incitagao & confissao floresceram. Foucault cita o exemplo da ordem dada aos ctistaos, no inicio do século XII, de confessar todos os pecados, pelo menos uma vez por ano; as coisas mudaratn consideravelmente desde entdo. Ele também mostra que © campo ¢ 0 local da confissio foram alargados. Desde 0 século XVI, as técnicas confessionais distanciaram-se de um contexto puramente religioso ¢ difundiram-se penetrando em outros dominios: primeiro, na pedagogia; depois, nas prisdes ¢ outras instituiges de internamento ¢, mais tarde, no século XIX, na medicina, Os detalhes desta expansio confessional aguardam os tiltimos volumes do livro de Foucault, porém a tendéncia por ele descrita é bastante clara, Desde suas origens ctistis, a confisséo tornou-se uma teenologia geral. Através dela, os prazeres mais particulares do individuo, as Proprias emogdes da alma, poderiam ser solicitados, conhecidos, medidas ¢ regulados. Da preocupagio crista com o sexo, surgiti a pressuposigaio de que © sexo € significante ¢ que os pensamentos sexuais, assim como as ages, 1S Ibidem, p. 30. deveriam ser confessados para se conhecer o estado da alma do individuo. 0 principal movimento de colocagio da confissio, especialmente da confissao sexual, numa relagdo de poder ocorreu no século XEX, quando o individuo era persuadido a confessar-se para outras autoridades, principalmente médi- cos, psiquiatras ¢ cientistas sociais. Contudo, Foucault no afirma que o interesse pelo sexo esteja ligado exclusivamente as tecnologias do eu ¢ as relagdes de poder. Houve dois métodos amplamente difundidos para lidar com o sexo: a afte erdtica, ars erotica, ¢ uma ciéncia do sexo, scientia sexualis. Nas grandes civilizagdes, nio na nossa, o sexo € tratado como uma arte erdlica em que ‘‘a verdade é extraida do prazer em si, tomado como pritica e recolhido como experién- cia’’."* O prazer constitui um fim em si mesmo. Ete nao estd subordinado a utilidade, nem 4 moralidade, nem, certamente, a verdade cientifica. Ademsis, a sexualidade nao constitui a chave do eu individual, mas, ao contrério, um conjunto de priticas ¢ de uma doutrina esotérica ensinadas ¢ iniciadas por um mestre. Estes rituais prometem “‘mestria absoluta do corpo, prazer nico, esquecimento do tempo e dos limites, elixir de longa vida, exilio da motte e suas ameagas””.'” © Ocidente seguiu um outro caminho, o da ciéncia da sexualidade. Seu objetivo nao & a intensificagdo do prazer, porém a anillise de cada pensamento ¢ de cada acdo em sua relagio com o prazer. Esta articulagado exaustiva dos desejos produziu um conhecimento que, supostamente, consti- tui a chave para a satide individual mental e fisica e para o bem-estar social. O fim deste saber analitico é a utilidade, a moralidade ¢ a verdade. No século XIX, os discursos da sexualidade cruzaram as ciéncias modernas do homem. Pouco a pouco constituiu-se um “*grande arquivo do prazer™*. A medicina, a psiquiatria ¢ a pedagogia transformaram o desejo num discurso cientifico ¢ sistematico. Sistemas de classificagdo foram elaborados, grandes descrigdes foram escrupulosamente cotejadas, ¢ uma ciéneia confes- sional, ou seja, aquela que lida com as coisas ocultas ¢ nfo mencionadas surgiu. A dificuldade destes cientistas sexuais cra encontrar uma maneira de articular os tansbordamentos das regides inferiores. Néo havia dificuidade, parece, em produzir uma explosdo discursiva. © problema era como or- ganjza-la cientificamente. Foucault faz uma importante distingao: cle observa que as ciéncias médicas da sexualidade sio ramificagdes das ciéncias bioldgicas. As ciéncias da sexualidade eram marcadas por “‘seu fraco conteddo, ndo digo propria- mente em termos de cientificidade, mas de racionalidade elementar, que as 71. 7. 16 Ibidem, p, 17 Thidem, p. 194 coloca @ parte na histéria do saber'’.'* Estas disciplinas sio reunidas em conformidade com um conjunto de critérios muito diferentes daqueles opera- cionalizados pela biologia da reprodugio, cujo processo seguiu um curso mais padronizado de desenvolvimento cientifico. A medicina do sexo per- maneceu prisioneira dos interesses ¢ prdticas politicos. Esses discursos médicos sobre a sexualidade se utilizaram dos avangos da biologia como uma justificativa para sua legitimagio. Havia uma pequena inierpenetragao conceitual: ‘Como se uma resisténcia fundamental se opusesse a tudo que se afirmasse sobre o sexo humano, suas correlagdes € seus efeitos, num discurso de forma racional, Um tal desnivel seria de que, neste géncro de discurso, se tratava no de dizer a verdade mas apenas de impedir que cla ai s¢ produzisse.’*!? Foucault, as vezes, dé a impressiio — ¢ sua critica freqiienternente € mal compreendida — de que sua intenc4o era situar todas as ciéncias como um mero produto do poder. E isso é falso. Ao contrario, seu objetivo era estabelecer as inter-relagdes de saber e poder. Através de seu itinerario intelectual, as '*pseudociéncias’* ov **quase ciéncias*” —- especialmente as ciéncias humanas — foram exatamente as escolhidas come objeto de estudo. Outros, como George Canguilhem e Gaston Bachelard dedicaram-se as ciéncias “‘bem-sucedidas”’. Foucault escolheu outro objeto de estudo, aqueles discursos que, afirmando estarem progredindo sob a bandeira de una ciéncia legitima, permaneceram, de fato, intimamente envolvidos com as micropriticas do poder. No século XIX, os discursos médicos sobre a sexualidade sfo um exemplo perfeito de tal pseudociéncia. Foucauit analisa o modo pelo qual os tedricos ligam um discutso de verdade com as priticas de poder através de seu objeto de estudo: o sexo. **O importante é que (...) a verdade do sexo seja transformada numa coisa essencial, Util ou perigosa, preciosa ou terrivel, em ‘sumta, que o sexo tenha sido constituido como um problema de verdade."** © sexo € 0 objeto citado pata unificar nossas discussées modemas sobre a sexualidade, cornando possivel agrupar elementos anatémicos, fungées biclogicas, comportamentos, seasagdes, saberes ¢ prazetes. Sem este ‘‘algo”” Profundo, oculto ¢ significativo, todos estes discursos escapariam em dife- rentes diregdes. Ou, mais exatamente — e este € 0 aspecto essencial da atgumentacao de Foucault —, eles nao seriam produzidos da forma atwal. Desde 0 século XIX, 0 sexo tem sido considerado o principio causal oculto, © significado onipotente, o segredo a ser descoberto em toda parte. “E onome que podemos dar a um dispositive histérico: néo uma realidade id embaixo, 18 dbidem, p. 73. 19 DBiders, p.74. 20 Ibidem, p.76. 195 que abordariamos com dificuldade, mas um grande feixe de superficie onde o estimulo dos corpos, a intensificagdo dos prazeres, a incitagaéo ao discurso, a tormacao de conhecimentos, o reforgo dos controles e das resisténcias, encadeados uns nos outros segundo algumas grandes estratégias de saber € poder.”” O sexo é a ficcdo histérica gracas 4 qual podemos estabelecer um vinculo entre as ciéncias bioldgicas ¢ as praticas normativas do biopoder. Ao ser eategorizado como uma fungdo essencialmente natural que podia apre- sentar uma disfungdo, o sexo foi considerado um imputso que tinha que ser contido, controlado e canalizado. Sendo natural, o sexo era supostamente externe ao poder. Porém, Foucault nos mostra, ¢ exatamente a construgéo cultural bem-sueedida do sexo como uma forga bioldgica que permite liga-la 4s micropraticas do biopoder: ‘0 sexo (...) ¢ 0 elemento mais especulativo, mais ideal e mais interior também no dispositivo da sexualidade que o poder organiza nas suas abordagens sobre os corpos, sua materialidade, suas forcas, suas chergias, suas sensagdes, seus prazeres.”"= As ciéncias sociais subjetivantes No fim de nossa andlise sobre a tecnologia disciplinar (cf. Capitulo VID), vimos um certo mimeto de ciéncias sociais objetivantes que surgiram a partir da difusao das disciplinas. Paralelamente, uma grande quantidade de ciéncias interpretativas emergiram com # expansio da tecnologia confes- sional. Os objetivos ¢ téenicas dos dois tipos de eiéncia so bastante diferen- tes. A consttugao do sexo como 0 significado subjacente mais profundo e da sexualidade como uma rede de conceitos e praticas é associada a uma série de métodos e procedimentos subjetivantes para interpretar as confissdes, mais do que a um conjunto objetivante de procedimentos pata controle dos corpos. TP 6 examne ¢ a confissio sio as ptincipais tecnologias para as cléncias subjetivantes. Foi através dos métodos clinicos de exame e escula que a sexualidade tornou-se um campo de significacdo e as tecnologias especificas se desenvolveram, Opostos a outras formas de exame médico, que con- tinuaram paralelas e sepatadas do desenvolvimento da ciéncia médica, alguns exames médicos ¢ psiquidtricos do século XIX exigitam que o sujeito falasse além da presenca de uma autoridade devidamente reconhecida para interpre- lar seu discuro. Assim, estes procedimentos eram fundamentalmente her- menéuticos. 24 Ibidem, p. 139. 22. sbidem, p. 20S. 196 A primeira exigéncia foi uma mudanga do local da confissio. Numa clinica médica, o médico poderia combinar o discurso da confissio com as (éenicas de exame. Estas técnicas, conforme vimos anteriormente, jé tinham produzido resultados sobre o *‘objeto"’. A tarefa era agora elaborar procedi- mentos de exame que pudessem codificar e controlar o discurso significante do sujeito. Enquanto as intervengdes operadas sobre os corpos déceis € mudos eram essencialmente corretivas, as intervengdes sobre o sujeito eram essencialmente terapéuticas. A sexualidade eta agora uma questio médica: **O verdadeiro, se for dito a tempo, a quem de direito, e por aquele que é a0 mesmo tempo seu detentor ¢ seu responsavel, cura.” E mais, havia dilemas tedricos sobre o que fazet com estas técnicas de confisséo: como se poderia tratar 0 material obtido através da in- trospecedo? Que tipo de evidéncia a experiéncia traz? Como tratar a cons- ciéncia como um objeto de investigagéo empirica? Em suma, a ciéncia do sujeito era possivel? De acordo com Foucault, o problema era: “(...) podemas articular a produgo da verdade de acordo com o velho modelo juridieo-re- ligioso da confissao e a extors30 da confidéncia segundo a regra do discurso cientitico?’"* Como todo este discurse podetia ser incorporado numa cién- cia, mesmo uma ciéncia bastarda? A necessidade de criar uma estrutura cientifica para explicar 0 sexo significava, em woca, que apenas um cientista bem treinado, no o sujeito individual, poderia compreender 0 que tinha sido dito. No paradigma confes- sional, quanto mais o sujeite fala (ou € forgado a falar), mais a ciéncia sabe; quanto mais o exame de consciéncia legitimo ganha em extensao, mais fina eampla é a rede da tecnologia da confisso. Quando este poder se difundiu, fomnou-se claro que 0 sujeito nao poderia ser o atbitro final de seu proprio discurso. Uma vez que o sexo era um segredo, o sujeito no o estava apenas escondendo por reserva, moralismo ou medo; o sujeito niio sabia nem poderia saber os segredos de sua propria sexualidade. A significago da sexualidade, extraida numa clinica, s6 poderia ter basieamente uma importancia maior por um Outro ative ¢ enérgico. Oclinico que ouvia este discurso tinha a obrigacdo de decifré-lo. O Outro tornou-se um especialista do significado. Ele se tornou adepto da arte da interpretagao. Aquele que escuta transformou-se num “‘mestre da vetdade’*. O papel originalmente moralizadot ¢ judicativo foi tansformado numa analitica, numa hermenéutica. ‘Com relagdo 4 confissio, seu poder nio é apenas o de exigir antes que seja realizada, nem de decidir apés ter sido proferida; ¢ de constituir, através dela, de sua decifragio, um discurso de verdade. Ao fazer da confissio nio mais uma prova, mas um signo, ¢ da sexualidadc algo a ser 23. Ibidem., p. 90. 24. Ibidem, ps. 86-87. 197 interpretado, o século XIX permitiu fazer funcionarem os imentos da confissdo na formacao regular de um discurso cientifico.’*** A hermenéutica — disciptina que lida com osignificado profundo necessariamente escondido do sujeito, ¢, contudo, acessivel a interpretagio — ocupa agora um dos pélos das ciéncias do homem. Para Foucault, o desenvolvimento destas ciéncias hermenéuticas modernas teve, grosso mado, duas fases. Na primeira, o sujeito era capaz, através da confisséo, de colocar seus desejos num discurso apropriedo. O ouvinte provocava, julgava ou consolava o sujeito, mas a inteligibilidade essencial do discurso ainda era acessivel, pelo menos em principio, ao sujeito. Foucault dé o exemplo de um psiquiatra de meados do século XIX, Leureult que usava a técnica de duchas frias; néo apenas as confissdes da loucura, mas também 0 auto-reconhecimento da loucura do paciente consti- twiam a dimensao essencial da cura, Na segunda fase, mais contempordnea de Freud, 0 sujeito nao cra mais considcrado capaz de tornar seus proprios desejos inteiramente inteligiveis para si mesmo, apesar de ainda confessi-los no discurso, Seu significado essencial estava escondido dele, por causa de sua natureza inconsciente ou das opacidades corporais profundas que apenas um especialista poderia interpretar. Agora, o sujeito necessitava de um Outro que interpretasse e ouvisse 0 seu discurso, possibilitando-o, assim, de usu- frui-lo ede domind-lo. Apesar deste desvio fundamental, o sujeito ainda tinha que saber ¢ estabeleccr para si mesmo a verdade desta interpretagdo espe- cializada. A individualidade, o discurso, a verdade e a coergio passaram a ocupar um mesmo espago. A interpretagao ¢ 0 sujeito moderno implicam-se mutuamente. As ciéncias interpretativas partem da idéia de que ha uma verdade profunda conhecida e escondida. E tarefa da interpretagio colocar esta verdade em discutso. isto, obviamente, ndo significa dizer que todas as ciéncias interpre- tativas podem ser consideradas de acordo com a nartativa esquematica da tecnologia confessional no desdobramento da sexualidade. Foucault nfo afirmava que o papel das ciéneias sociais objetivas fosse um simples teflexo das prises, do mesmo modo que ele nao reduzia as artes e as ciéncias da interpretagdo, que tiveram um papel tio procminente no pensamento dos séculos XVII ¢ XIX, so exame psiquidtrico. Seria uma tarefa importante ¢ gtatificante analisar o crescimento de outras praticas interpretativas e mostrar suas relngdes ¢ diferengas com aquelas que Foucault discutiu. (Temos apenas que lembrar a importancia subitamente atribuida 4 observacdo patticipante pela antropologia, praticamente na mesma época. Porém, no poderiamos simplesmente ttansferir o esquema de Foucault.) 25. Ibidem, ps. 89-90, Nio obstante, parte do poder destas ciéncias interpretativas deve-se a afirmagao de que revelam a verdade sobre nossas psiques, nossa cultura, nossa sociedade — verdades que podem ser compreendidas por intérptetes especializados. Foucault finaliza Histéria da Sexualidade afirmando: “Ironia deste dispositivo: ele nos faz crer que contribui para @ nossa ‘libe- ragdo’.”"* Na medida em que as cléncias interpretativas continuam a buscar uma vetdade profunda, isto ¢, a praticar uma hermenéutica da duvida, e na medida em que continuam a crer que é o Grande Intérprete que tem acesso privilegiado ao significado, pretendendo que as verdades por elas descober- tas escapam da esfera do poder, elas parecem fadadas a corroborar as estratégias de poder, Estas ciéncias afirmam uma externalidade privilegiada, mas, na realidade, participam do desdobramento do poder. ‘Ha aqui um paralelo surpreendente entre os problemas metodolégicos levantados pela hermenéutica do sujeito ¢ as ciéncias objetivas ¢ sociais. Em ambos os casos, encontramos um tipo “‘superficial’’ de ciéncia social que aborda os sctes humanos de um modo néo-critico, simplesmente enquanto sujeitos ou objetos, ¢ estuda suas auto-interpretagdes ou suas propticdades objetivas como se elas oferecessem a0 investigador acesso Aquilo que real- mente se passava no mundo social. Em ambos os casos, também, hé uma perspectiva critica que afirma que niio se pode tomar ao pé da letra a mesma interpretagio do sujeito sobre aquilo que o seu proprio comportamento significa, nem 0 objeto da descrigao objetiva do mando social pelo cientista social. A reflexdo critica conduz, conseqiientemente, por um lado, a uma interpretagdo profunda do sujeito, que tenta compreender o que seu compor- lamento significa de fato, um significado desconhecido dele; e, por outro lado, a tentativa de desenvolver uma teoria objetiva das praticas histdricas fundamentais que tornam a objetivacao e a teotia possiveis. Nos dois casos, a tentativa de salvar a ciéncia social subjetiva ¢ objetiva nelas mergulhando “‘mais profundamente’’, leva-nos a varias di- ficuldades. Como Niewsche e Foucault apontaram, o proprio projeto de encontrar um significado profundo subjacente as aparéncias pode ser uma ilusio, na medida em que acreditamos captar o que de fato ocorre, A hermenéutica da diivida traz corretamente a desconfortavel suspeita de que nunca duvidou suficientemente. As ciéncias sociais objetivas, na medida em que desejam possuir uma teoria do todo, correm 0 risco de o significado das praticas estudadas parecer parte do conjunto histérico, escapando, porém, do seu dominio. Isto as forga a tratar o ponto de vista do ator ¢, o que ¢ m: importante, o significado das praticas fundamentais como se fossem objeti- vamente palpdveis, Dai, a afirmacio de um certo miimero de assertivas Programéticas de que todo ‘‘significado”* serd considerado eventalmente 26 Moidem, p, 211. 199 em termos de “sistemas de crenga”’, ‘programas com bases genéticas’* ou “‘regras constitutivas semitranscendentais’*. Vimos, em nossa discussio no Capitulo IV, como a Arqueologia de Foucault, uma das mais sofisticadas versdes desta terceira alternativa, fracassa; as outras duas alternativas (cién- cia cognitiva e sociobiologia, respectivamente) também apresentam sérias dificuldades,?’ Nio que estes problemas metodolégicos fundamentais di- iminuam, de algum modo, o rendimento ¢ o impacto de todas as formas do empreendimento da ciéncia social, mas a verdade das proposigdes que cles enunciam nfo é 0 que as faz funcionar. Ha também limites definidos para as ciéncias sociais interpretativas, mesmo Se as consideramos, dentro de seus proprios termos, externas a matriz do poder. As ciéncias sociais objetivas no podem descrever sua propria possibilidade, legitimidade, ¢ acesso a seus objets, pois as praticas que tornam a objetivagao possivel estéo fore do alcance de sua investigagao. Ademais, as ciéncias sociais ‘‘subjetivas’’ devem permanencer instaveis, ¢ no podem nunca tornar-se normais, pot atribuirem o podet final de expli- cagilo a0 significado do cotidiano e a sua profundidade, enquanto aquela que torna a subjetividade e o significado possiveis escapa-lhes. O significado superficial ¢ o significado profundo sao produzidos num conjunto especifico de praticas historicas ¢ so podem, portanto, ser compreendidos em termos destas praticas. Entretanto, as praticas culturais que tendem a objetivacdo néo estao todas necessariamente fadadas ao fracasso, Isto nos conduz ao biopoder. ‘Como vimos, uma das caracteristicas especificas do poder moderno é 0 retrato do saber externo ao poder. Mais uma vez, a hipdtese repressiva — ancoradouro do biopoder ~ reside nesta concepgao de exterslidade ¢ diferenga. As condigdes do surgimento das ciéncias humanas objetivas eram tais que, cremos, 0 tinico modo légico de se alcangar uma ciéncia dos seres humanos compkctamente objetiva seria a produgao efetiva dos seres humanos como objetos. Foucault nao antevé essa possibilidade. Porém, se isso tivesse que acontecer (¢ hd boas razGes para pensar que nfo), mesmo assim, tal teoria ainda encobriria as praticas que produziram a sua propria realidade. Cada tipo de ciéncia social desenvolve uma visio parcial importante. Nas suas praticas cotidianas, os individuos sabem, de modo rclativamente exato e pragmatico, o que dizom ¢ fazem. Porém (e este ¢ a visio da hermenéutica da divida), esse mesmo comportamento deve ter um outro significado que o ator desconhece. Objetivamente falando, diversos aspectos 27 Para ume critica das cléncias cognitivas, veja a obra de H. Dreyfus, What Computers Can’t Do: a Critique of Artificial Reason (New York; Harper and Row, 1979). Para uma critica da sociologin, cf. Sociobiology and Human Nature, obra coletiva publicada sob a Miregio de Anita Sifcers (San Francisco, Jossey-Bass Press, 1978). 200 da vida social sio, de fato, mecanicamente regimentados e, portanto, ade~ quadamente tratados como ciéncias sociais objetivas. Mas — ¢ ai os pes- quisadores em ciéncias sociais que desejam elaborar uma teoria esquemitica do conjunto marcam um tento —, as caracteristicas especificas estudadas pela ciéncia social objetiva ‘*ingénua™” fazem parte de um modelo mais amplamente organizado e estruturado. Finalmente, se Foucault esti certo, as proprias dificuldades que re- cacm sobre as ciéncias sociais séo uma rica fonte de anomalias. A promessa de que estas anomalias acabario por fazer ceder a pressio de seus procedi- mentos justifica a existéncia de organismos, subvengdes eréditos de pes- quisa que financiam as ciéncias sociais e Ihes permitem prosperar. Como no caso das prisdes, seu fracasso ao cumprir suas promessas nao as faz de- sacreditadas; na realidade, o fracasso proporciona o argumento por elas utifizado em favor de uma expansdo posterior. A relagdo inversa entre os avangos cognitivos e seu sucesso social sé pode ser compeendida quando observamos o papel das ciéncias sociais em nossa sociedade e a maneira pela quai este papel se faz necessatio ¢ significative pelo desenvolvimento, a Jongo prazo, das ptaticas confessionais c disciplinares fundamentais. ‘Mas o patalelo entre o aspecto objetivo ¢ 0 subjetivo da historia de Foucault ai se interrompe. Em Vigiar ¢ Punir, Foucault nao promete uma ciéncia social objetiva melhor. O que ele oferece em Histéria da Sexuatidade éum exemplo incisive de como seria uma interptetagéo melhor. Aosubstituir a historia da constituigdo das ciéncias da interpretagdo no quadro do biopoder — onde sua fungio é construir um objeto inexistente, o sexo, para poder em seguida reveld-lo —, Foucault nos oferece uma interpretagdo dos acon- lecimentos que nao € uma teoria, ¢ que nao se fundamenta em nogdes como as de profundo, sujcito unificado, significagao natural ou acesso privilegiado ao sentido. Se definirmos como “*hermenéutica” este método interpretative mal conduzido, entéo, podemos chamar o métode atual de Foucault de uma “‘analitica interpretativa’’. A analitica interpretativa evita a armadilha do estruturalismo ou da hetmenéutica, analisando a seriedade ¢ o significado do homem sem o respaldo da teoria ou do significado oculto profundo. Exatamente como Foucault tentou, em Arqueologia do Saber, faret uma reflexdo sobre 0 método em seus primeiros trabalhos fornecendo uma des- crigdo tedérica do modo corteto de como fazer uma teoria, ele ainda nos deve uma descrigéo interpretativa do seu proprio modo de interptetar. Ele ainda no 2 explicou, apesat de Histéria da Sexualidade ¢ de Vigiar ¢ Punir constituirem, certamente, exemplos do que tal método poderia produzir. Enquanto esperamos que Foucault produza a interpretacio da interpretagiio, nos capitulos que se seguem, apresentaremos os contornos das questées que ele teria que enfrentar, ¢ o tipo de posigdo que teria que articular. 201

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