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Caderno de Formacao N° 27 M I Uma S_ necessidade "T° no trabalho J populare C _ organizativo aw MST g 8 = = Sumario Apresentagao . A forga que anima os militantes Ranulfo Pelloso, Outubro 96 Como melhorar nossa mistica ‘Adernar Bogo, Margo 97 .. Alimentar nossa mistica Leonardo Bot, Margo 93....... Apresentagao Desde 0 inicio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, desenvolvemos uma mistica vinculada a pratica. Desenvolvemos essa mistica influenciados, em especial, pelo trabalho pastoral das Igrejas Catélicas e Luterana e pela experiéncia acumulada pelas organizagées que nos antecederam. Mas, sobretudo, a desenvolvemos inspirados no ideario das lutas socialistas hist6ricas, na luta universal por melhores condicdes de vida, desencadeada ao longo dos séculos por toda a humanidade. Compreendemos que a pratica da mistica tem um papel fundamental, em termos individuais e coletivo, nas lutas de massa, nas comemoragées e celebragdes, nas alegrias, nas derrotas e nas vitorias. Tem o papel de nos animar, de nos revigorar para novas e maiores lutas. De nos unir e fortalecer. Tem o papel de nos dar consisténcia ideologica em nosso trabalho do dia-a-dia. Queremos que essa pratica contagie todos os militantes do MST. Queremos que ela seja exercida em todos os setores, instancias, escolas, cooperativas, acampamentos e assentamentos. Da mesma forma, queremos que ela seja exercitada por outras organizagdes que tém os mesmos ideais e propdsito de construir uma sociedade socialista Por isso, para qualificar nossos militantes, promover estudos e ampliar sua pratica, reunimos, nesse caderno, trés textos de companheiros, pensadores, elaboradores tedricos, que colocaram suas reflexdes sobre a mistica a partir, também, de uma longa trajetoria pratica. Esperamos que os textos nos ajude a clarificar ainda mais nossa pratica e nos anime a seguir na luta por nosso ideal Bom estudo e debate. Setor de Formacao Sao Paulo, Janeiro de 1998 A FORGA QUE ANIMA OS MILITANTES Aanulfo Petoso * Acreditar é viver agora uma ESPERANGA, é tornar presente um SONHO que ainda nao 6 realidade; 6 firmar os olhos numa CERTEZA e encarar 0 DESAFIO DA VIDA, até a VITORIA, sempre ! 1. Introdugaio O tempo das “vacas magras” 6 um deserto fértil que pode favorecer a reflexéo sobre o sentido da vida e as motivagdes do militante. A crise 6 exatamente o momento em que a pessoa eneara suas convicgdes “sinceras” = sem cera (sem maquiagem). E verificar se elas ainda tem fundamento ou se 6 necessério resgata-lo, reforga-lo ou substitui-lo. E a oportunidade de sua reafirmagao, acima dos telhados, mesmo contra todas as evidéncias. Na sociedade atual, prevalece um fatalismo sedutor capaz de desanimar (= arrancar o animo) de muita gente que ja teve razdes para crer no sonho de uma nova convivéncia entre os humanos. Esta mais do que na hora de retomar a ética e a prdtica da solidariedade em contraposi¢ao a légica da competi¢ao que esta promovendo 0 estacelamento dos individuos dos grupos e dos povos. Ranulfo Peloso, militante histrico no meio rural, atuaimente @ edueador popular no CEPIS — Instituto Sedas Sapientie Esse segredo alimenta a existéncia e a luta dos militantes e de todo o povo que luta. Embora ele se manifeste, mais claramente, nos momentos de desafios, deve estar presente em todos os espagos da vida. E facil imaginar que a paixao que anima o projeto de uma nova ssociedade, nao poderia deixar de se expressar, de forma indignada é carinhosa, na postura e nas agoes, de pessoas de grupos. 2. For¢a vital e misteriosa “Deixa-me dizé-lo, sob o risco de parecer ridicule, que o verdadeiro revoluciondrio é guiado por grandes sentimentos de amor” (Che) Na dificuldade de definir este animo que move os militantes é preferivel apreciar diversas opinides que se completam falando do mesmo assunto: a) Ha pessoas e grupos que vivem fortemente suas convicgdes que conseguem semear um entusiasmo contagiante. A esperanca com que eles caminham na vida parece indicar que enxergam a certeza da vitoria. E com 0 tempo eles se tornam mais destemidos, disponiveis e carinhosos, Mesmo no meio da maior escuridao, continuam anunciando e celebrando a chegada da aurora. Que teimosia € essa que perturba o édio dos inimigos e envergonha a mesquinhez daqueles que se tratam por companheiros? b) Essa forga é uma realidade que mais se vive do que se fala sobre ela. E uma experimentagao que contempla a realizagao de um conteudo invisivel: o valor da vida, a dignidade das pessoas é a eterna rebeldia para continuar livre, a fungao criadora do trabalho, a solidariedade universal. E uma sabedoria, um modo de saborear a vida que junta, sem contradi¢ao, 0 sentimento, a agao e o pensamento,. c)Essa forca é a vivéncia e a manifestagao do que se passa no coragao daqueles que lutam para dar um sentido digno a existéncia das pessoas. Por isso, nao tem hora marcada. Ela se revela em todos os momentos: - na vida particular e na relagao afetiva; no trabalho produtivo e na luta politica; na dor e na festa. d) Esta energia 6 uma paixdo que anima a militancia daqueles que se entregam pela causa popular. Torna-se decisiva na hora do desanimo, da derrota, da decepgao © da crise. E 0 alimento que revigora 0 povo nas ocasiées onde o poder da opress4o nos leva a pensar que todos os esforcos para transformar a situagao s40 impotentes e inuteis. Entao, ela ¢ a motivagao profunda que faz “das tripas, coragao”, ¢ nos leva a “sacudir a poeira e dar a volta por cima”. e) A mistica nao poderia ser “uma pilula de otimismo” ou um entusiasmo infantil para escapar dos problemas e desafios da realidade. Ao contrario, 6 a “alma da esquerda” que produz a garra necessaria para combater as injustigas ea disposicao para empenhar-se, desde ja, na concretizagao histérica de nossos sonhos. Com essa utopia e a “historia na mao" tal motivagdo vira a rebeldia que se organiza, sem dobrar 0 joelho e sem deixar-se enformar (= aprisionar-se nas estruturas). f) As convicgées profundas, plantadas no coragao das pessoas, implicam em assumir a dimensao do compromisso politice. Mas é acima de tudo, numa entrega gratuita que vai além de qualquer interesse humano. Porque é uma crenga e um esforge para que o outro, se realize plenamente, ‘como individuo e como classe. Essa gratuidade ultrapassa qualquer opgao ideolégica. O mercenario faz as coisas para tirar proveito puramente individual; o funcionario trabalha por obrigaca militante age por uma opgao de vida. g) O elogio 6 algo saboroso que estimula a continuidade de nossa atuag4o; o reconhecimento publica de nossos esforgos nos mostra que somos Uteis; a gratidao nos faz sentir que somos amados, A entrega gratuita por uma causa se alegra com as manifestagdes carinhosas vindas de fora. Mas a fonte de sua alimentagao permanente esta no mais intimo de cada pessoa. Por isso, ela se move. Mesmo quando as criticas sao destruidoras, quando as respostas 40 desanimadoras ou quando aingratidao 6 uma iniciativa de alguém que partilhou conosco o mesmo prato. Motivagao e metodologia “E preciso lutar todos os dias para que o amora humanidade existente se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplos e mobilizem” (Che Guevara) Metodologia 6 um conjunto de técnicas e procedimentos educativos ligados a uma visdo de mundo e a uma op¢ao politica. Nao existe método neutro, nem métado desligado de um contetido e de um rumo. Entao, metodologia 6 0 caminho que percorremos para alcangar determinado abjetivo; 6 0 jeito pratice de experimentar, desde ja, 0 futuro que sonhamos construir. E incoeréncia falar de fartura e nao buscar meios coneretos de produzir comida; falar de democracia e manter uma pratica autoritaria; pregar uma sociedade de “homens novos e mulheres novas" e na vida quotidiana continuar utilizando-se das pessoas. As convicgdes que animam a yida dos militantes exigem também uma metodologia. Uma reuniao, um ato, uma atividade festiva podem e devem estar cheias de momentos que tornem presentes as razGes pelas quais lutamos e os motivos que nos fazem companheiros. Por isso, a beleza do ambiente, o clima de confianga, a alegria, amisica, a poesia, as artes, os simbolos, os gritos de guerra, tudo deve exprimir os valores e as certezas que animam nossa caminhada. Fomos ensinados a ter vergonha de falar e de expressar os sentimentos e a esperanca que carregamos dentro de nds. Tem gente que acha que isso 6 sentimentalismo e que nao nasce da razdo, Por isso, na hora de conversar e de convencer usam explicagées frias e insossas; fazem reuniées secas, chatas e cheias de discursos tedricos; realizam mobilizagdes sem entusiasmo esem garra. Dao a impressao de que é errado por tempero. em nossas atividades. O resultado 6 que pouca gente se convence. A experiéncia mostra que a légica, dita racional, $6 6 assimilada quando a pessoa ja foi conquistada peta confianga em alguém que encara o projeto popular. O oragao decide mais porque 6 o centro do nosso sentir, do nosso fazer e do nosso pensar. E verdade que quando o entusiasmo néo é a manifestagao do contetdo interior que esta na alma do militante, pode virar fanatismo. O fanatismo, politico ou religioso, leva as pessoas a agif sem pensar e a seguir commandos como se fossem animais. Vira a repeti¢ao cega de um ritual, baseado apenas no emotive, com gestos e palavras sem criatividade, O fanatismo tem acabado na desilusdo porque as pessoas cansam de ser manipuladas. O jeito de expressar os valores de quem luta por uma nova humanidade depende das pessoas e dos lugares. Nunca poderia ser igual no sul e no norte, no campo e na cidade, entre os homens e mulheres ou entre os jovens e os adultos. As tentativas de copiar “receitas” ou de exportar “modelos” tém sido encaradas como imposi¢ao e a tendéncia 6 rejeita-los como “corpo estranho”. Animados pela mesma Esperanga cada grupo manifesta sua utopia conforme seu jeito proprio. Os negros 05 indios nao poderiam esquecer seus ritmos, seus valores culturais, seus protestos, sua religiao. As diferentes regides devem incorporar seus costumes, sua culinaria, suas dancas, suas sadias tradigdes. E todos tém por ebrigagao incluir as histérias de resist6ncia popular: - muita gente, antes de nés, também acreditou e deu sua vida pela causa da liberdade. Como esquecer a memoria tantes companheiros, homens e mulheres, jovens e adultos, negros ¢ indios, camponeses e operdrios, religiosos e intelectuais? O mais importante na expressao publica, individual ou coletiva, de nossas motivagées é a reafirmagao de nossos objetivos e 0 fortalecimento da militancia, Nao existe formula, desde que ela seja atraente e bem feita. Depende da hora e do grupo: as vezes 6 de alegria pela vitdria, outras de protesto e de dor; as vezes tem o tom da politica e outras a linguagem cultural ou a tradigao religiosa. Mas nunca pode ser um “show” para ser assistido. As pessoas devem, ao mesmo tempo, ser participantes e estar a vontade. 4, Manifestando a convicgao “Sobretudo, sejam capazes de sentir profundamente qualquer injustiga cometida contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo” (Che) E na vida pratica que o militante revela suas convicgées. E no dia a dia que o discurso pode se tornar a forga material capaz de realimentar a luta pela vida. Vejamos alguns exemplos: a) na vida pessoal - Quando o militante organiza o tempo para encontrar-se consige mesmo e examinar sua conduta, para estudar, preparar suas tarefas, avaliar suas agGes e elaborar propostas. b) nas atitudes de dedicacao, entusiasmo, ousadia, honestidade, simplicidade, disposig¢aéo ¢, sobretudo, no companheirismo. Isso aparece, por exemplo, no carinho aos trabalhadores que ainda nao entenderam a razao de lutar, no tempo dedicado as criangas, na atengao aos mais excluidos, no respeito ao parceiro(a), ma criagao de um ambiente agradavel de convivéncia e na contribuigao financeira para a sustentacao da casa e do movimento. ¢) na disciplina como cumprimento dos acertos coletivos € nao simplesmente como uma ordem de cima. A disciplina brota do interior do militante como uma postura de zelo e de seguranga pela propria vida e pela vida do movimento. As orientagdes construidas coletivamente ajudam a combater, dentro de cada um, 0 vicio de “escorar- se" nos outros, a mania da improvisagao e a idéia da competicao d) no trabalho produtivo - Ser profissional competente 6 realizar tarefas com perfeicdo é a unica forma de mostrar a fungao criadora do trabalho e a possibilidade real de transformagao das pessoas e do mundo. e) na participagao em algum poste concrete da luta (no trabalho de “formiguinha” e nas agGes de massa), conforme a necessidade do movimento, da propria habilidade e do gosto pessoal. 1) no jeito de realizar as atividades - Comeca coma escolha de um lugar agradavel, se realiza com a participagao de todos e utiliza recursos capazes de atrair e de facilitar 0 envalvimento integral das pesseas. O uso criativo de imagens, da alegria, da beleza, da poesia, da musica que o povo gosta e canta, da troca de experiéncias. Tudo pode ajudar a fazer uma atividade séria, num clima de entusiasmo e com resultados. Para isso, desde a apresentacdo, as pessoas precisam se sentir reconhecidas, descontraidas e participantes de uma causa maior que une a todos, apesar das diferencas. g) nas mobilizagées - As manifestacées publicas de protesto, de reivindicagdo, de celebragaio e de solidariedade tém que ter volume e atrair pelo visual: cores, luzes, gestos, simbolos, vibragao & envolvimento. Sua finalidade é mostrar o poder da unio, é pressionar para garantir direitos, é atrair novos companheiros. Quando sao mal organizadas nao transmitem nossas mensagens nem divulgam nossas propostas, Muitos militantes se tornaram simpatizantes da luta por apresentagdes marcantes que nunca esqueceram. 13 4. Em resumo “Enquanto houver uma sé pessoa faminta, oprimida, excluida, é preciso seguir lutando” (Che) Existem diferentes idéias sobre a motivagao profunda que da vida e energia para as pessoas e organizagoes. Cada pessoa que luta pela vida tem uma compreensao e um jeito de saborear e de externar suas “certezas” e suas “segurangas”, Ocerto 6 que esta motivagao, qual quer que seja seu nome, esta enraizada no coragado de cada pessoa que, consciente ou inconscientemente, abraga a causa da justi¢a e da liberdade. Essa energia vital pade se expressar de forma simples e solene, de maneira individual e coletiva. Mas, é sempre uma experiéncia marcante que traduz uma convicgao profunda com a finalidade de reforgar a luta e atrair novos combatentes. Algumas vezes, ela aparece como indignagao conflito; outras vezes, ela tem a cara do prazer e da festa. Mas tem sido o reforgo basico na hora da peleja e nos momentos de derrota e de questionamento. Este Animo interior torna as pessoas combativas e carinhosas, abertas e perseverantes, mas sobretudo, companheiras. Ele & a afirmagao e 0 alimento de nossa esperanga, em qualquer conjuntura. ‘S40 Paulo, Outubro de 1996 COMO MELHORAR NOSSA MISTICA Ademar. Boga « 1. Introdugao. Muito temos falado é feito, mas cada vez mais nos depomos com a insatisfagdo de que nossos encontros caem na rotina se desmotivam ea militancia acaba “desestimada’. Como medida de esclarecimento, é importante destacar, que a mistica 6 uma palavra que tem origem na religiao. Na politica usa-se outros termos que querem dizer @ mesma coisa. Ou seja, so as diferentes formas” de motivagao que buscamos para continuarmos lutando por uma causa justa, procurando “aproximar” o futuro do momento presente. Para que a mistica tenha sentido, ela deve estar enesta causa, nesta vontade superior de triunfar. Por isso, tendo clara qual é esta causa é que se colocam os elementos que “materializam” a mistica. Na verdade a mistica é uma “coisa do coragao, do sentimento, alimentada por esta esperanga de alcangar aquele sonho, ideal objetivo seja la o que se queira o que importe que isto se transforme em “uma causa” consciente, que se passe a viver por ela e por causa dela. A materializagdo da mistica se dé pela pratica Texto preparado para a milifincia individual e coletiva, pois é ali onde buscamos os elementos fundamentais que demonstram se de fato estamos trilhando: © rumo que definimos. Neste sentido a causa deve sempre seramesma como linha principal, o tema e os elementos é que podem mudar para se desenvolver a mistica. Na verdade mistica nao se faz, se viver. Vejamos entao: Primeiro: qual € nossa grande causa? A libertagao do proletariade Segundo; quais os caminhos para chegar a esta causa? Ja selecionamos dois pela nossa hist areforma agraria e 0 socialismo. Terceiro: Quais as formas para se chegar a isso? Todas as formas de lutas possiveis, tendo sempre em mente 0 poder. Quarto: Quais as frentes que aluamos para chegar até © poder? Temos toda nossa pratica nos seus diferentes setores. Quais os elementos que utilizamos para chegar ao objetivo? Cada setor tem os seus simbolos, seus planos, mas metas, mas vitérias, mas derrotas etc. E temos os simbolos maiores que unificam a todos corno: bandeira, hino, classicos, histéria nossa e de outros, ete. Quinto: Como tazer para desenvolver a mistica nos encontros? Temos ai que buscar resposta emnossa propria criatividade, Podemos elencar alguns aspectos. 2. Alguns elementos para desenvolver a mistica A mistica esta ligada & natureza da organizagao, e de seus valores. Se a organizagéio nao disponha seus principios nao consegue fazer mistica. 1. Nao acreditar que existe uma mistica para dirigentes € outra para a massa, 0 que podemos diferenciar é o conteude em determinadas ocasides. Isto porque, se o que faz a massa vibrar nao toca os dirigentes estamos prestes a entrar na era da buraco, 2. Assim como os temas, teses e palestra sao Ppreparadas antes do encontro, a mistica segue 0 mesmo caminho, a “espontaneidade nem sempre é a melhor companheira Reafirmar sempre a causa principal e emtomo desta colocar os elementos cotidianos. 3. Nao delegar para equipes momentaneas prepararem a mistica 6 muito menos para brigadas no decorrer do encontro; isto eqiiivale a tentativa de inventas o impossivel. E necessario que se tenha a nivel nacional e a nivelestadual equipes COMO alimentar a animagdo para a causa da libertagao. 4. A mistica deve ser desenvolvida também em tomo de varios valores éticos @ politicos como: a disciplina, a beleza, a limpeza, o companheirismo, o vestuario, o comportamento pessoal, a coeréncia: politica, historica e moral. Estes ¢ outros valores passam a ter sentido quando combinados com a causa maior, pois passa-se a perceber que sem eles nao se chegara onde queremos e se chegarmos as deformagdes serdo tao grandes que nao valera a pena ter lutado e se sacrificado por aquilo, 5. Os simboles desempenham o papel de “guias’ que no caminhar representam a razao de tado 0 esforgo coletivo. Por isso os simbolos néo sao mites, sao reais em primeira instancia acrescides a eles aspectos espirituais emanados pela consciéncia. Por isso 0 fato de cantarmos o hino com os punhosfechades nao é um simples gesto, mas representa a desobediéncia a nossa ordem estabelecida; é a porte real, mas queremos estabelecer e edificar a nossa cordem é a parte espiritual. 6. A valorizagao do ser enquanto pessoa também é fundamental, pois queremos um mundo melhor para as pessoas. Muitas vezes damos a impressao que nossa causa. é para tirar da burguesia o que materialmente Ihes da prazer. Queremos vida por isso devemos valorizar a forga, a satide, ainteligéncia, 0 fisico etc. O corpo é “sagrado, dele depende a continuidade da uta. Os antigos filosofos vestiam e se alimentavam bem porque diziam que 0 corpo € o temple da alma, por isso deveria estar sempre em boas condi¢ées. Os guerreiros sempre preservaram 0 corpo pois dele dependia sua sobrevivéncia nos combates. Os atletas da mesma forma exercitam, desenvolvem a musculatura. Os guerrilheiros fazem longas treinam a resisténcia etc. 7. A rotina é inimiga da mistica. 8. A militancia precisa de uma 1émpera, que consolida seu caracter, compromisso, com os ideais de uma nova sociedade. E a mistica tem esse papel. 9. Os aspectos ideoldgicos 6 que dao o tempero para a mistica. A ideologia pode ser resgatada e alimentada através de textos, palavras de ordem, encenagées, dancas, cantos, poesias, demonstragdes fotograficas, painéis etc. O importante € tomar suave aquilo que em outros ternpos: “enriqueceram” por tirar da ciéncia marxista o sentimento & a beleza da luta concreta. As jomadas socialistas tem este grande objetivo de popularizar aquilo que se tornou erudito mas que fora feito através de coisas tao simples € tao modestas. 10. A mistica deve estar voltada para a momento presente sem deixar de perceber o futuro, mas é preciso que se incentive, dedique-se tempo para prepera-la. Mistica 6 tarefa para dirigentes desenvolverem, pois pela logica sao 8 dirigentes que possuem esta visio do futuro claramente e vivern esta esperan¢a com maior intensidade. 11. Sem a forga do exemplo as tarefas sao apenas ordens, que seu cumprimento se torna uma mera obrigacdo. 12. Ter mais criatividade, na projegao de valores, sentimentos, e na esperanga da mudanga. “No cotidiano”. 43. Aproveitar os fatos, acontecimentos que acontecem no dia a dia. E isso que cria a mistica. E a tarefa de humanizar as relagdes que acontecem nas atividades de organizagao. 14. A mistica nos locais de trabalho e de convivéncia. Precisamos criar condigdes de ambiente agradavel e voltado para nossos ideais. O local de trabalho é a visualizagao de nossa mistica, porisso precisa estar adormado com “motivos” bonitos (quadros, fotos, flores); estar sempre limpo, pintado, ordenado. Bahia, margo 1997 ALIMENTAR NOSSA MISTICA’ Leornardo Bott Um dos fendmenos mais originais das sociedades latino-americanas é a proliferagao dos movimentos sociais. Por movimentos sociais entendemos aqueles grupos que se formam ao redor de alguma reivindicagado concreta nao implementada pelo Estado ou nao reconhecida pela sociedade organizada a fim de conseguir seu atendimento. Geralmente se trata de uma luta por um direito fundamental violado ou nado realizado. Assim surgem os movimentos por direitos humanos, numa perspectiva social, a partir dos direitos dos pobres por vida, trabalho e satisfagao minima das necessidades basicas, movimentos de camponeses. sem terra, de grupos sem teto, de favelados, de mulheres, de meninos e meninas de rua, de negros e indios e outros. Existem ainda nticleos de partidos com um projeto popular de transformacao da sociedade, células sindicais, as varias pastorais sociais das Igrejas (por terra, moradia, satide, participagao politica, negros, indios e pobres) e os distintos grupos de reflexao e aco. Os participantes de tais movimentos sao militantes, pessoas engajadas que tiram o tempo de seu lazer ou de seu sono para aprofundarem as questdes, se organizarem e lutarem por seus direitos negados. Tais movimentos se enfrentam com estruturas injustas, com a insensibilidade histérica dos governantes pelas questGes sociais atinentes as camadas populares e com o cinismo das elites que "Texto publicade originalmente na revista Caderos Fé Politica N° 9 - Margo de 1993 encontram sempre mil truques para acalmar os grupos mobilizados e garantir sua hegemonia politica e com ela seus privilégios. Ha grupos que ha séculos resistem aos processos de dominagao e marginalizagao, com os negros em camponeses, minimamente articulados. Outros, imbuidos de ideais humanitarios e libertarios, criaram grupos mobilizados politicamente e, em certas épocas, até militarmente, para forgar as mudangas sociais necessarias e historicamente obviadas. Todos estes grupos testemunham a dramaticidade da luta, pois colhem sucessivos fracassos, véem seus movimentos ameacados quando nao até desmantelados pela repressao policial ou pelas forcas oligarquicas. A historia da América Latina é em grande parte escrita com lagrimas e sangue; as sepulturas de tantas vitimas continuam abertas, pois nunca termina a opressao, mas também nao arrefece a resistencia @ 0 intentos de libertagao. Qual a forga secreta que sustenta todos estes movimentos? Donde haure esperanga para continuar a sonhar, a resistir, e a querer uma sociedade mais humana e feliz para eles € seus filhos e filhas? No nosso Continente sempre houver espiritos que se deixaram inspirar pela utopia origindria do Cristianismo de uma sociedade fraternal e sororal, justa e participativa, carregada de ternura pelos pobres e marginalizados, conscientes das consequéncias sociais do fato da filiagao divina de cada pessoa humana. Em nome disso defenderam, desde 0 inicio da colonizagao, indios e escravos negros, operarios explorados e grupos excluidos. A opgéo das Igrejas pelos pobres traduz emblematicamente para os nossos dias as dimens6es libertarias da meméria “subversiva" de Jesus de Nazare, 22 Outros retomam os ideais emancipatérios da revolucao. francesa de liberdade, igualdade e fraternidade e se empenham para realiza-los numa sociedade que se organiza na negagao de tais principios. Estes buscam divulgar o projeto de uma democracia participativa e popular através de grupos de reflexao e de mi if fica, de participagao em partides assim chamados progressistas. Para milhdes foi o socialismo ¢ o marxismo uma torrente de generosidade e uma fonte inspiradora de verdadeiro amor aos oprimidos e de visdes revolucionarias e praticas libertarias em todas as instancias através das quais se organiza a sociedade. Apesar da crise do socialismo “real” que é um tipo de organizacao da sociedade e do estado (como por exemplo, através da concep¢ao leninista do partido Unico), o ideario socialista permanece como uma vertente mobilizadora de engajamento social. O socialismo nasceu de uma profunda indignagao face a miséria e de um ato de amor politico e revolucionario pelos oprimidos das sociedades marcadas pela desigualdade social Para outros é um humanisme radical e uma ética da compaixao @ da solidariedade que motivam compromissos sérios em defesa de fndios, negros, mulheres, aidéticos, hansenianos e outros penalizados pela sociedade dominante. E neste contexto que cabe falar de mistica do engajamento e da luta. Sem constrangimentos ou pruridos motivados pelas ressonancias religiosas desta palavra. Antes pelo contrario. Cresce dia a dia o numero daqueles que se entendem dentro de uma perspetiva hol integral da existéncia humana. Procuram descobrir em si as varias dimensdes do mistério da vida e os niveis de profundidade da indagagao humana. Identificam ai os grandes sonhos é vis6es de um novo mundo e de relagdes humanas e sociais mais benevolentes e amorosas que povoam nosso imagindrio e que, de tempos em tempos, incendeiam os coragdes. Neste contexto ganha sentido em se falar de espiritualidade ¢ de Deus, Nao como realidades pensadas em si mesmas, mas como referéncias presentes nos embates, nas grandes decisdes, nos avancos e recuos, enfim, no drama humano é histérico, Particularmente forte é seu significado Id onde as pessoas e grupos se confrontam com 6 fracasso € a derrota e, ao mesmo tempo, mantem a coragem para resistir, protestar, se empenhar, se arriscar em pral de causas dignas. Donde Ihes vém tal energia vital € entusiasmo? Falar entaéo de mistica nao significa despistar a resposta as questées formuladas nem mistificar a realidade, mas colher seu lado mais luminoso, aquela dimensao que alimenta as energias vitais para além do principio do interesse, dos fracassos ¢ sucessos. Espiritualidade e mistica pertencem & vida em sua integridade e em sua sacralidade. Dai nasce 0 dinamismo da resisténcia e a permanente vontade de libertacao. 1. O que é mistica? Apalavra mistica é adjetivo de mistério. Mistério possui muitos sentidos, varios deles pejoratives. Na linguagem comum usa-se a palavra mistério para concluir uma reflexao que esgotou as capacidades da razdo e nao consegue mais produzir luz. Ou entao para indicar intengdes ou realidades escondidas ao comum dos mortais. Mistério pode significar também a aura de interesse, curiosidade e fascinagdo que uma pessoa irradia: “Que mistério tem Clarice"? Qriginariamente a palavra mistério (mysterion em grego, que provém de mUein, que quer dizer perceber o carater escondide, nao comunicado de uma realidade ou de uma intengao), nao possui um contetide tedrico, mas esta ligada & experiéncia religiosa, nos ritos de iniciagao. A pessoa 6 levada a experimentar através de celebragdes, canticos, dangas, dramatizagées e realizagao de gestos rituais uma revelagdo ou uma iluminagao conservada por um grupo determinado e fechado. Importa enfatizar o fato que mistério esta ligado a essa vivéncia/experiéncia globalizante. No se trata de ouvir uma catequese sobre uma doutrina de dificil acesso ou de receber li¢des sobre certa visdo secreta das coisas. Mas trata-se de fazer uma experiéncia religiosa comunitaria. A esse processo experimental se chamou de mistério, para dizer que € comunicado a um grupo que se dispde a isso e nao simplesmente a qualquer assistente curioso. Somente mais tarde, num interesse filesofante, distanciado ja da experiéncia, usa-se mistério para designar © lado supra-social-comunitario (racional) de uma doutrina ‘ou revelagao. Entao se fala dos mistérios cristéos da SS. Trindade, da encarnacao, da graga, etc. Mas aqui ja estamos em plena reflexdo teolégica e nado de uma experiéncia mistica. Isso nao impede que estes “mistérios” para o professante escondam e propiciem™uma experiéncia verdadeiramente mistica. Queremos nos deter em alguns significados positivos de mistério e de mistica que nos ajudem a entender a forga que esta presente na militancia. Nossa intengao é pratica, pois queremos reforga-la e aprofunda-la. Vamos seguir uma légica adequada a compreensao atual, mesmo nos distanciando do sentido originario das palavras, assim como foi constituide no passado. 2. Sentido antropoldgico-existencial de mistério e mistica Mistério nao eqlivale a enigma que, decifrado, desaparece. Mistéric designa a dimensdo de profundidade que se inscreve em cada pessoa, emcada serena totalidade da realidade e que possui um cardter definitivamente indecifravel. Por mais qué conhegamos uma coisa concreta com o recurso das varias achegas (emocional, mitica, intuitiva, cientifica, holistica), mesmo a mais material, quer 0 mundo infinitamente pequeno, quer o mundo infinitamente grande, sempre nos damos conta de que ha ainda lados a considerar @ perspectivas a captar. Quando entao nos confrontamos. com oinfinitamente complexo — a pessoa humana, homem mulher — ai tomamos consciéncia clara do que significa existencialmente, a nivel experiencial, um mistério ea atitude face a ele que 6a mistica. Cada pessoa é um mistério. Podemos conhecé-la através de um longe convivio com ela, pela intimidade do amor ou pelas abordagens das ciéncias e das varias tradigGes da humanidade. Mesmo assim ninguém podera decifrar e definir quem 6 Maristela, Marcia, José Américo ou Fernando ou quem quer que seja. A pessoa emerge para simesma para os outros um mistério desafiador. Somente sabemos 0 que cada um revela de si mesmo ao largo da vida nos encontros livres e o que se mostra para fora e pode ser captado pelas varias formas de apreensao que temos desenvolvidos. Mas apesar dessa diligéncia toda, cada um permanece virgem e sempre aberto a novas abordagens. E 0 mistério vivo e pessoal. Mistério, portanto, nao constitui uma realidade que se opde ao conhecimento. Pertence ao mistério ser conhecido. 25 Mas pertence também ao mistério continuar mistério no conhecimento. Aqui esta o paradoxo do mistério. Ele nao é © limite da razao, Ao contrario. E o ilimitado da raz&o. Por mais que conhegamos uma realidade, jamais se esgota nossa capacidade de conhecé-la mais e melhor. Sempre podemos conhecé-la mais e mais. E isso indefinidamente. Em razao desta constatago no podemos absolutizar nosso paradigma modemo e cienttifico-experimental & técnico. Este ndo desnuda tedas as dimensées da realidade, apenas aquelas que entram no didlogo experimental com a natureza. Ainda assim este dialogo nunca termina. Ha também outras formas de didlogo, pois as varias culturas & os varios tempos histéricos desenvolveram mil formas de conhecimento, seja pelos sonhos, pela intuigdo, pelos mitos @ simbolos, pela reflexao religiosa e fitosofica e outras mais Aquilo que chamamos realidade apresenta-se incomensuravelmente maior que nossa razao e nossa vontade de dominar pela conhecimento. A pessoa humana, a fortiori, 6 mais do que sistemas de compreensdo ou as formas de convivio social. Ela, por mais diferente e até terrivel que seja, surge como um mistério. Este mistério se entrega sob as formas mais ambiguas. Por um lado pode vir carregado de temura, de vontade de comunhao e de comunicagao no desejo de acolher e de ser acalhide. Por outro, pode também se revelar sinistro e aterrador por sua capacidade de destruir, de excluir e de se compertar como lobo para outro semelhante 0 61ga0 para captar este mistério é 0 coragéio e aquilo que Pascal chamou de espirit de finese, espirito e tineza. E uma atitude de simpatia fundamental, uma capacidade basica de sentir os outros em sua situagdo concreta (coragao). Pelo espirito de fineza nos descobrimos a nés mesmos como vulneraveis. Somos afetados pelos outros e podemos afeta-los, despojando-nos do calculo, do interesse e da vontade de poder (esprit de géomnetrie). Esta compreensao 6 existencial e 6 vivida por todos. Mesmo sabios e cientistas como Niels Bohr, Werner Heisenber, Marx Planck, David Bohm e Albertry Einstein, entre outros, testemunham a experiéncia do mistério. Em 1938, em seu ensaic Como vejo o mundo, escrevia Einstein: “O mistério da vida me causa a mais forte emocao. E este sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciéncia. Se alguém nao conhece esta sensacao do mistério ou nao pode mais experimentar espanto ou surpresa, j4 6 um morto-vivo e seus olhos se cegaram. Aureolada de temor é a realidade secreta do mistério que constitui também a religido” (p.12). Eisntein considera a percepgao do mistério fundamental para o cientista criador, porque Ihe permite ficar sensivel aquelas dimensoes nao captadas pelas formulas cientificas e conservar sempre a humildade de aprender. Muitas vezes repetia: “afirmo com todo 0 vigor que a religido césmica é o mével mais poderoso e mais generoso da pesquisa cientifica... 0 espirito cientifico, armado fortemente com seu método, nao existe sem a religiosidade césmica" (Como vejo o mundo, p-22-23). Aqui nao se trata de uma doutrina ou ideologia, mas de uma experiéncia fundante da realidade em seu carater incomensuravel a razao analitica. A atitude que dela se deriva 6 a veneragdo, 0 encantamento e a humildade diante da realidade, Exatamente esta atitude face ao mistério, vivida em profundidade, chama-se mistica. A ciéncia fala racionalmente como sao as coisas. O fato, entretanto, de que as coisas existiam nao pode ser falado. Nao sendo falado, fundamenta, no entanto, todas as falas, E 0 mistério das coisas. Diante do mistério da existéncia nos admiramos e nos alegramos. E o olhar mistico contemplativo. Claude Lévi-Strauss, conhecido antropdlogo que trabalhou muitos anos no Brasil e no meio dos indios, escreve num balanco de fim de vida intelectual: “Deponho muita f6 no conhecimento cientifico: tudo o que os fisicos & os bidlogos ensinam me apaixona; nada estimula mais minha reflexao; ao mesmo tempo, parece-me que cada problema resolvide ou que acreditamos resolvido, faz surgir novos problemas e assim por diante, indefinidamente de modo que nos compenetramos cada vez mais da certeza de que a natureza do real escapa a qualquer esforco de representagao” (Didier Eribon, Claude Lévi-Strauss, De Perto e de longe, 207) Uma coisa é 0 real, outra coisa nossa representagao dele. Esta fica sempre aquém e chega sempre depois do real. Esta experiéncia de que o real sempre desborda de nosso conceito, de nossas linguagens e simbolos constitu a experiéncia do mistério conhecido e sempre por conhecer. Por isso o mistério esta sempre ligado a paixao, ao entusiasmo e as grandes emogdes, numa palavra, ao movimento mais profundo e maior da vida. Bem testemunhava Alceu Amoroso Lima, um dos. maiores intelectuais cristaos deste século, no Brasil, em seu derradeiro livro que leva como titulo Tudo é mistério (1983). “O mistério esta na raiz, no tronco, na flor, no fruto de todas as coisas. O mistério, antes de nos afastar ou de nos ocultar a verdade, é o melhor e mais fecundo meio de a descobrirmos" (p.9-10). Abra-se ao mistério e verds que as doutrinas mais. tradicionais vacilam, as formulas mais exatas evanescem e os simbolos mais poderosos se evaparam. Acolha o mistério, no comego e no termo de sua busca, e acabaras encontrando uma verdade mais plena, mais humana é mais tua! Alimentar a mistica neste nivel significa manter uma abertura curiosa a realidade, desenvolver uma sensibilidade face aos limites do nosso conhecimento, redimensionar-se sempre a riqueza da experiéncia, mostrar uma disposi¢ao permanente de aprender de qualquer fonte de saber e das varias tradigdes culturais e nutrir uma veneracado humilde e entusiasta face ao fascinio do real, que escapa sempre as nossas representacdes mas que continuamente também as alimenta: eis uma atitude mistica. E ela 6 acessivel a todos sem excegao, basta ser humano e sensivel. 3. Sentido religioso de mistério e mistica Quando as pessoas personalizam a experiéncia do mistério, sentem-se como que habitadas por ele e convidadas ao didlogo, a oragao e a cair de joelhos diante de sua sacralidade, entaéo surgem as religides. Na raiz de cada religiao esta uma experiéncia do mistério. ‘Os que experimentam 0 mistério sao os misticos. A experiéncia do mistério nado se da apenas no éxtase. Mas. também, quotidiamente, na experiéncia de respeito diante do sagrado da realidade e da vida. Quem nao se extasia diante de uma crianga que nasce? Quem nao se enche de profundo respeito face a um rosto sofride e curtido de um. indigena do altiplano da Bolivia? Quem nao emudece diante dos pés grossos e calosos do camponés nordestino que trabatha no sertao arido de sol a sol? Ai ha uma sacralidade que se impée por ela mesma. A mistica nao 6, pois, 0 privilégio de alguns bem- aventurados. Mas 6 uma dimensao da vida humana, & qual todos tém acesso, quando descem a um nivel mais profundo de si mesmos, quando captam 0 outro lado das coisas e quando se sensibilizam diante da riqueza do outro e da grandiosidade, complexidade e harmonia do universo. Todos, pois, somos num certo nivel, misticos. 30 Os misticos dio nomes ao mistério, E sua ousadia, pois o mistério é inominavel. Chamam-no de Deus, Atma, Tao, javé, El, Pai, etc, Nao importa o nome. Sera sempre uma etiqueta para o sem-nome. A partir desta experiéncia de nomear o inominavel escrevia, ha sécules antes de Cristo, omestre chinés Chuang-tzu: “O Tao é um nome que indica, sem definir. O Tao esta para além das palavras e para alé das coisas. Nao se exprime nem por palavras nem pelo siléncio. Onde nao existe nem mais palavras nem siléncio, 9 Tao é apreendido” (A via de Chuang-Tzu p.193). Antes de tudo esté a experiéncia do mistério, a experincia de Deus. Somente depois vem a [é. A fé no 6, em primeiro lugar, a adesao a uma doutrina, por mais revelada e sobrenatural que se apresente. Quando isso ocorre, a tem as caracteristicas da ideologia, vale dizer, de uma iddia ou conviceao inculcada a partir de fora nas pessoas. Em razdo deste carater extrinseco podem surgir os fundamentalismos é as guerras de religiao, Cada grupo afirma a sua verdade, excluindo todos as demais. A fé s6 tem sentido e 6 verdadeira quando significa resposta a experiéncia de Deus, feita pessoal e comunitariamente. Fé é entéo expressao de um encontro com Deus que envolve a totalidade da existéncia, o sentimento, o coragao, a inteligéncia, a vontade. Os lugares e os tempos deste encontro se transformam em sacramentais, pontos referenciais da experiéncia de uma superabundancia de sentido inesquecivel. Jacé deu um nome ao lugar onde encontrou Deus, chamou-o de Fanuel, pois disse: “Vi Deus face a face” (Gn 32,31). A partir deste tipo de experiéneia 6 que surgem as teologias. Elas sao um esforgo de tradugao para a razao (doutrina), para a pratica (ética) e para a celebragao (liturgia) desta experiéncia fundante. Os préprios nomes adjudicados a Deus escondem uma experiéncia originaria. Assim Javé significa o Deus que acompanha @ esta presente na vida do povo, ou Elohim, que quer dizer o Deus que ilumina 0 caminho e brilha na existéncia. A crise atual das igrejas e religides historicas reside fa auséncia sofrida de uma experiéncia profunda de Deus. Em seu lugar surgem os hierarcas, os missionarios- cruzados, os mestres de doutrina, numa palavra, 0 poder religioso, Este esta menos interessado na verdade de Deus, mas muito mais. com a seguranga de seu sistema religioso. © que ele mais teme é 0 mistico, o fiel que testemunha experimentar Deus e em nome dele, sem pedir licenca a ninguém, inaugura uma nova fala e introduz novos comportamentos. As religides so cristalizagées posteriores da experiéncia mistica, Sua: ‘Ses valem na medida em que conservam esta experiéncia, passam-na adiante as gerages posteriores e se capacitam a suscitd-la nas pessoas que entao se fazem religiosas. As pessoas verdadeiramente religiosas, mais que um saber sacerdotal sobre Deus, possuem um saber mistico, quer dizer, experiencial, urdido de encontros com a divindade. E destes encontros que elas revitalizam as instituiges religiosas, conservam o entusiasmo e haurem energias para lutar e esperar dias mais justos, as vezes a despeito das igrejas e das religides instituidas. 4. Sentido cristéo de mistério e mistica O judeo-cristianismo identifica o ério e Deus na histéria do povo, particularmente, na historia dos oprimidos. Por isso afirma um Deus historico, 0 Deus de Abrado, de Isaac, de Jaca, dos Profetas e de Jesus de Nazaré. O Deus da histéria apresenta-se como um Deus ético. Por isso a mistica bfblica é uma mistica dos olhos abertos ¢ das maos operosas. Piedoso e servidor do Deus histdrico é aquele que se compromete com a justia, toma o partide do fraco € tem a coragem de denunciar a religiao do puro louvor sem a mediagao do amor ao proximo. Deus ¢ experimentado na luta dos oprimidos do Egito e dos catives na Babilonia. Dele se diz que escuta 0 grito do oprimido e abandona sua luz inacessivel, desce para colocar-se do lado dos injustigados (cf. Ex 3,4). Os que se sentem abandonados, os 6rfaos e peregrinos, devem saber que seus direitos so direitos de Deus (cf. Dt 10; ur 22,15; Pr22,22-23), pois abandonados e nao tendo ninguem para socorré-las sao socorrides por Deus mesmo. Por isso se afirma que “o opressor do pobre injuria 0 Criador, mas honra a Deus quem se compadece dele" (Pr 74-31). A obra do Messias é libertadora, na medida em que consiste em fazer justiga aos desamparados e visa inaugurar a nova ordem de paz e fraternidade a partir dos ultimos (cf. Is 11,4-9; 42-1-4). Ao lado desta mistica do compromisso ético, porque Deus se encontra na agao juste e na relagao amorosa pare com os outros, existe também uma mistica da contemplagao. © universo todo foi criado per Deus. Os seres humanos (homem e mulher) sdo lugares-tenentes de Deus, representantes divinos em seu ser e em seu agit. Em tudo podemos contemplar a marca registrada de Deus impressa nas criaturas e na realidade espiritual e corporal do ser humano. Tal saboreamento de Deus na obra da criagao e no trabalho humano permite a louvagao ¢ a exaltagao da alma que vibra e se entusiasma. © Novo Testamento prolonga e radicalize a mesma linha da experiéncia de Deus na histéria. Afirma que Deus entrou totalmente na realidade humana, pois se humanizou no judeu Jesus de Nazaré. A partir de agora, o lugar de encontro de Deus sera preferentemente na vida humana, particularmente, na vida dos crucificados. Esse Deus nao se encamou na figura do César em seu trono, nem do Sumo sacerdote em seu altar, nem do Sabio em sue catedra, mas na figura dos oprimidos e exclufdos que acabam fora da cidade e crucificados. O mistério transcendente que se encamou se encontra crucificado. Grita na cruz por vida e quer ressuscitar. A ressurreicao de Jesus crucificado quer reafirmar o primado da justiga e da vida, anunciar a sacralidade da insurreigao contra a ordem deste mundo e revela a promessa feita a todos os injustamente penalizados de que eles também herdardo a plenitude da vida, quer dizer, a ressurreigdo. Pois Jesus se fez um deles. Seu destino feliz é destino prometido a todos os que tiveram sorte semelhante aquela de Jesus. A mistica crista, porque 6 historica, orientar-se-a pelo seguimento de Jesus. Tal propdsite implica um compromisso de solidariedade para com os pobres, pois Jesus se contou entre eles 6 pessoalmente optou pelos marginalizados das estradas, do campo e das pragas das cidades. implica um compromisse de transforma¢ao pessoal e social, presente na utopia pregada por Jesus, do Reino de Deus que comega a realizar-se na justia dos pobres e a partir dai para todos @ para toda a criagao. O seguimento de Jesus pela proposta nova que proclama introduz conflites: ha os que, por causa desta proposta, se sentem prejudicados em seus interesses € reagem através do uso da violéncia simbdlica ou fisica. Por isso © seguimento pode comportar perseguigées e até mattirio. Mas tudo é assumido jovialmente como prego a se pagar pela solidariedade para com os sofredores e pare com o Servo sofredor Jesus, O cristdo discerne na paixao dos pobres e marginalizados a presenga e atualizagao da paixao de Jesus que continua agonizando na como e no grito de seus irmaos e irmas. Mas vé tambem nos avan¢os rumo a instaurago da justica e da promogao da vida os sinais da ressurreigao acontecendo na historia. Ha ainda uma outra vertente mistica no Novo Testamento. Ela é claramente contemplativa, Ela afirma que tanto o Filho que se encarnou, quanto o Espirito, tém a ver com o mistério da criagao. Eles estao ai presentes, fermentando o processo de ascensdo rumo ao Reino da Trindade. Eles como que recapitulam em si eno serhumano o universo e lhe dao orientagao segura de que convergira numa sintese bem-aventurada. Ele também participara da ressurreigao de toda a carme. Por isso ha futuro para as estrelas, pare as montanhas, para as plantas, animais € povos. A fé assegura 0 fato, mas deixa o como se fara este fato oculto no horizonte do inefavel e da surpresa pare além desta vida. Tal convicg4o permitiu j4 aos amigos cristaéos falarem do Cristo césmico e da inabitagao do Espirito nas energias do universo e da vida. Esta omnipresenga critica e espiritual foi vivida por S. Francisco de Assis que via cada ser da criagdo desde o sol e a lua até os passaros e a lesma do caminho como sacramentos de Deus e como irmaos e irmas. Teithard de Chardin atualizou esta experiéncia no contexto da moderna cosmolegia, procurando identificar no processo da crescente complexidade da matéria, a emergéencia da consciéncia e o sinal inequiveco da proximidade de Deus. A cosmogénese abre-se a antropogénese, esta & cristogénese e esta a teogénese, até que Deus-comunhao se faga tudo em todas as coisas. Se amistica do seguimento 6 histérica e das maos abertas para agao, a mistica critica e espiritual é dos olhos abertos e césmica. Ela procura a unidade em todas as diferengas, na medida. que um fio divino perpassa o universo, a consciéncia e ago humana para uni-los para frente e para cima, na perspective da suprema sintese com Deus, 6mega da evolugdo e da criagdo. Esta mistica da unidade e unido é em testemunhada pela vertente vigorosa qua vem dos Padres gregos (Gregério de Nissa e Gregério Nazianzeno), passe pela tradicao platénica-agostiniana, chega em S. Boaventura com o seu admiravel Itinerario da mente para dentro de Deus, depots culmina com 8, Joao da Cruz (Subida ao monte Carmelo) e com Santa Teresa D’Avila (castelo e suas moradas) até desembocar nos ardorosos textos misticos O meio divino ¢ Ciéncia e Cristo de Teilhard de Chardin. Por fim, a mistica crista permitiu uma derradeira elaboragao da imagem de Deus, a trinitéria e comunional. Deus nao é soliddo mas comunhao de trés divinas figuras, o Pai, o Filho e o Espirito. Elas so co-existentes ¢ convivem eternamente sem nenhuma hierarquia entre elas. Se sao distintas é para poderem propiciar a autodoagao e a comunhae entre elas. O entrelagamento entre elas (pericérese, em linguagem teoldgica) de vida e de amor é de tal profundidade e radicalidade que elas se unificam (ficam unas) e constituem um unico Deus. Destarte a Trindade nao 6 um mistério absurdo, nem uma contradig&o matematica, E a suprema expressao da experiéncia que todos fazemos do amor e da comunhao humanas. No amor importa sermos distintos e néo nos fundirmos. Mas importa fundamentalmente que a entrega de um ao outro seja de tal ordem que dai surja unidade suprema. Nao basta 0 frente-a-frente do eu (Pai) e do tu (Filho), pois se cairia num narcisismo a dois. Decisivo 6 que 0 eu @ 0 tu se encontrem num sé (Espirito Santo), como num terceiro que supera o isolamento de cada um. Desta forma a dialética é perfeita, nao apenas de dois termos, mas de trés, distintos, mas sempre entrelagados. ‘Assim a Trindade 6 a realizagao utépica daquilo que ja se anuncia em nossa existéncia, homem-mulher-crianga. Melhor: ela se realiza em nossa existéncia porque por detras de nossa vida e do impulso de nosso amor se faz atuante a paixao das Pessoas divinas. Elas sao a melhor comunidade, © protdtipo da sociedade que acolhe as diferengas ¢, pela comunho entre os diferentes, cria a uniao. O mistério comunional de Deus-Trindade nao foi fruto do esforgo especulativo dos primeiros pensadores cristaos, De forma quase ingénua e pré-reflexa foi a forma como os discipulos de Cristo traduziram sua experiéncia como a figura histérica de Jesus, o Nazareno. Ele se entendia simplesmente como filho. Relacionava-se com Deus como o seu Pai. E dele irradiava tanto carisma e forga de atragao e convencimento que diziam: ele 6 habitade pelo Espirito Portanto, em Jesus descobrimos o mistério como Pai/Mae, ‘como Filho/Filha e como Espirito. Para exprimir esta ‘experiéncia totalizante criaram, posterionmente, a expressdo Trindade para dizer: por detras de tudo, de cada ser, dentro de cada vida ¢ na dinamica de cada paixdo esta um amore {rés amantes, uma comunhao e trés sujeitos em relacao. Nao se multiplica Deus, apenas se descobre a natureza comunional ¢ relacional do mistéric divino. Amistica judeo-crista, a despeito da mediocridade das instituigdes e da preguiga espiritual da maioria de seus professantes, apresenta-se como uma mistica politico- libertadora-contemplativa. Ela nao aceita 0 mundo como esta; quer muda-lo e reconstrui-lo sobre a base da partilha, da solidariedade, da fraternidade/sororidade, do trabalho, do lazer, e da veneragao face ao mistério da criagao. Empenhar-se nesse propésito significa sentir-se um servidor de Deus na histéria, um operador de sua politica no mundo: que € a instauragao do Reino que se realiza sempre & somente la onde a partir dos ultimos vige a justiga, se reforga a colaboragao, se supera o espirito de vinganga, se concretiza 0 amor e vai dan¢ando e cantando rumo a suprema integragao de todas as coisas por Deus e com Deus. 5. Sentido séclo-politico de mistica Existe, ainda por fim, um sentido de mistica usado por analistas sociais e politicos. Encontram-se em Max Weber ou Pierre Bourdieu e em outros, quando analisam a politica como profissao e arte e discutem a importancia dos atores carismaticos na transformagao da sociedade. Mistica significa, entéo, 0 conjunto de convicgdes profundas, as visées grandiosas e as paixoes fortes que mobilizam as pessoas é movimentos na vontade de mudancas ou que inspiram praticas capazes de afrontar quaisquer dificuldades ‘ou sustentam a esperanga face aos fracasses histéricos. Na mistica politico-social age sempre a utopia, aquela capacidade de projetara partidas potencialidades do real, novos sonhos, modelos altemativos e projetes diferentes de historia. Geralmente s40 os grupos oprimidos os portadores de novas visées, aqueles que, embora derrotados, nunca desistem, resistem firmemente e sempre de novo retomam a lula. O que os move sao 9s sonhos de uma realidade nova. Por isso desfatalizam a hist6ria, nao reconhecem como ditado da histéria a situagao injusta imposta e mantida pelas forgas opressoras. Enquanto houver visiondrios, a sociedade se mantém em movimento; havera sempre um anti-poder que se opde ao poder dominante, existirao sempre os subversivos, surgiréo sempre bandeiras libertadoras e articulagdes para levar avante a transformagao da sociedade. Nisso tudo vai uma mistica que se recusa a aceitar a situagao dada, uma mistica geradora de energia orientada para a construgao de um futuro melhor. Logicamente, a pratica jamais traduzira toda a utopia pare a historia (nao seria entdo utopia), mas a utopia deslanchara sempre energias novas para transformagées que se acercam da utopia e, ac mesmo tempo, permite que se relativiza toda conquista para que a histéria nao se congele reacionariamente, mas se mantenha sempre aberta a novos avangos e outras aproximacoes da utopia, A mistica 6, pois, 0 motor secreto de todo o compromisso, aquele entusiasmo que anima permanentemente o militante, aquele fogo interior que alenta as pessoas dentro da monotonia das tarefas quotidianas, por fim, permite manter a soberania e a serenidade nos aquivocos e nos fracassos. E a mistica que nos fez antes aceitar uma derrota com honra do que buscar uma vit6ria com vergonha, porque fruto da trai¢do aos valores éticos e resultado das manipulagdes e mentiras. 6. Mistica e militancia Nao ha militancia sem paixao e mistica, pouco importa anatureza da causa, seja religiosa, humanistica ou politica. O militante vive no mundo das exceléncias e dos valores em fungGes dos quais vale gastar tempo, arrostar riscos & empenhar a propria vida. Aqui se trata nao de ter idéias, mas de viver convicgdes. Sao estas que mudam as praticas e@ estas transformam as relagdes soci: ‘As idéias por si mesmas nao mudam a realidade conereta. Nem a historia se faz por si mesma. A historia 6 conservada, reformada ou transformada, na medida em que existam atores sociais empenhados nela como militantes & lutadores, numa ou noutra diregao, Dai serem importantes as misticas. que galvanizam os movimentos sociais. Demos um exemplo para ilustrar a vinculagao entre mistica e militancia tirados dos muitos Centros de defesa e promogao dos direitos humanos, tao importantes na América-Latina, devido ao nivel estrutural das opressdes. Tais Centros, muitos deles vigiados, caluniados & perseguidos, vivem da crenga inarredavel da dignidade de cada pessoa humana, antes de qualquer definigao como patrao ou operdrio, nagro discriminado ou branco opressor, mulher reprimida ou homem machista, assaltante de banco ou banqueiro. Cada ser humano, homem e mulher, jovem ou adulto, ésujeito de direitos inalienaveis. Todos, por sua participagao, podem e devem ser construtores de seu destino pessoal e coletivo, E nisso que se revela a esséncia da natureza humana que é liberdade e criatividade. Quando a liberdade é negada ou se impede a criatividade, seja participando na sociedade, seja tomando iniciativas no 4mbito do privado 0 u do piiblico, impde-se ao ser humano uma profunda frustragao. Nada podera substituir a liberdade e a criatividade. Nem o bem-estar material, nem a profusdo de bens culturais, nem as promessas de vida eterna. O ser hurnano prefere perder o pao a perdera liberdade. O pao comido na opressao tolerada é amargo e desonroso. A militancia, fruto da paixao e da mistica, ganha fora quando feita em contato direto com as vitimas das violagdes dos direitos fundamentais. Ai se ebe Claramente que a militancia tem muito mais a ver com pessoas concretas do que com idéias e ideais. Em suas vidas destrogadas e em seus rostes vincados pelo sofrimento percebe-se tambem uma dignidade escondida, um vigor secreto que nos anima. Aquilo que a fé nes diz ai se confirma: os humilhados e ofendidos sao de fato os continuadores do Servo sofredor Jesus Cristo; como 0 Crucificado, eles também gritam, eles também querem viver e ressuscitar. Nos avangos que conseguem, através de seus movimentos e articulagdes, se anunciam os sinais da ressurreigéo que esta em curso na historia, sempre que a vida justa triunfa sobre os interesses menores. Deus tem sentido existencial quando é 0 Deus de todos estes, o Deus do grito, da ternura dos injustigados, da revolugao da ordem iniqua deste éon, da vida nova que deve ser para todos. Servira neste mundo a esta causa é realizar a verdadeira liturgia, agradavel a Deus. Os avangos que alcangamos tém sim uma significagao social ¢ politica, mas também eterna, pois sao antecipag6es do Reino que comega aqui, mas que possui uma inscrigao no mundo de Deus. Jd cantava o poeta: “varredor que varres a rua, tu varres o Reino de Deus. A atividade de varrer 6 uma como qualquer outra; mas na perspectiva da fé, ela se insere na politica de Deus, da a sua contribuigao como limpeza, pois esta politica 6 o seu Reino, o resgate e a libertagao integral de sua criagao. Esta perspectiva mistica ajuda a desdramatizar os eventuais fracassos, pois eles nunca sao definitivos nem consignama ultima palavra.na historia, Eles se situam dentro. da causa maior, ja garantida pela ressurreigao de Jesus, a causa da vida, da dimensao luminosa da historia. Ela traz conseqiiéncias também na forma de agir, pois leva a nao politizar todas as questdes. Tudo é, na verdade, politico, mas 0 politico nao é tudo, porque a existéncia humana e a realidade social possuem outras dimensées de subjetividade, de gratuidade, de festa, de humor e jogo que importa também integrar junto com a politica. 7. Como beber do proprio pogo Tudo o que é vivo precisa ser alimentade. Assim também o sentido do mistério e a vivéncia mistica. Em primeiro lugar faz-se mister reservar tempo para a contemplagao e a meditagao. Nao pensamos na meditagao no sentido convencienal, que se traduz por atos de recolhimento e de reflexao interiorizada. Referimo-nos fundamentalmente ao cultivo de uma atitude que se orienta na criagao e alimentagao de um centro pessoal. O centro é construido lentamente no afa de captar todas as nossas energias interiores e sinteniza-las com as experiéncias e até intimidagdes que vém do real. Para quem desenvolveu seu centro, os fatos nunca sao meros fatos, pois sao mensagens, valores, simbolos que falam a subjetividade. A contemplagae se torna entao um habitus mentis et cordis, um habito da mente e do coragao. Essa contemplagao tem por contetidos a propria vida, © curso da histéria, a luta dos pobres. Para muitas pessoas, a leitura meditada dos classicos da contemplagao (a leitura das Escrituras, os livros sapienciais, os salmos, a Via de Chuang-Tzu, 0 Tao-te-King, 0 | Ching, a Imitagao de Cristo, a Liberdade de um cristao de Lutero, o Meio divino de Teilhard ete} ajuda a mergulhar no seu centro. Para outros € 0 siléncio profundo mediante o qual vai criando vazio interior até surgir, das profundezas do centro, insights que orientam a vida espiritual e melhoram nosso autoconhecimento. Em segundo lugar é importante a criagao de uma aparetho de conversa. Em grande parte, nds somos o que é o nosso aparelho de conversa, quer dizer, aquele grupo de pessoas com as quais trocamos idéias, intercambiamos pensamentos, comunicamos experiéncias @ alimentamos os mesmos sonhos e o mesmo projeto fundamental de vida. A importancia do aparelho de conversa reside nisso: por ele, isto €, pelas pessoas que compée, somos confirmados em nossas convicgdes, corrigimos nossos equivoces, completamos nossa visao das coisas e sentimos firmeza no que fazemos e somos. O aparelho de conversa nao deve se restringir ao lado gratuito ou ludico da vida: encontrar-se para comer e beber ou apenas divertir-se, Deve incluir as conversas radicais, aquela troca que desce as questdes de raiz, onde se jogam destinos e se luta pelo sentido melhor da vida. Em terceiro lugar deve haver um lugar explicito para a oragao, aquela atitude da alma que se abre diretamente a Deus. Uma coisa é pensar sobre Deus, falar dele e de seu designio. Isso faz continuamente a teologia ou o discurso ioso, Outra muito diferente é falar a Deus, abrir-se a Ele, chorar diante dele pela demasiada escuridao da histéria, encher-se de interrogagées - até quando, Senhor, por qué, meu Deus? - sobre tantos dramas das pessoas e dos povos que nos jogam na abissalidade de um propdsito divino que nos escapa ou que nao sabemos conjuga-lo com a bondade divina, alegrar-se, cantar é - por que nao - dangar diante dele até as lagrimas pela superabundancia de sentido, de luz e da satisfagao em viver, em saborear o amor, em sentir- se planificado. Isso é viver uma experiéncia mistica e deixar- se tomar pelo mistério. A oragdo neste sentido nos engrandece porque continuamente nos tira do centro de nés mesmos € Nos centra num absolute fora de nés, acima de nés e dentro de nos, que se apresenta como uma Alteridade absoluta benfazeja que néo podemos domesticar mas que, experimentamos, se entrega em gratuidade e sempre esta ai, também quando estamos crucificados em nossos problemas. Esta atitude 6 muito mais que um ato. Ela cria em nés o ocular mediante o qual conseguimos identi Deus misturado com todas as coisas. Em quarto lugar, é fundamental a celebragao. Por sia celebragao possui um carater comunitario. Celebrar, ja 0 dizia Nietzsche, 6 poder dizer sim e amém a todas as coisas. Na celebragao o mundo se transfigura, pois tudo vira simbolo: @ sacramento. A celebragao pressupde a capacidade de abstragdo dos conflitos do mundo. Mesmo que eles ai aparecam, aparecem sob a forma de resgate do grande drama que conhece um fim bom e realizador (6 0 “felix culpa” de Santo Agostinho). Na celebragéo vivemos simbolicamente aquilo que a histéria nos nega concretamente. Por isso a celabragao possui um inegavel carater antecipatorio. Nela ja cantamos a revolucao vitoriosa, ja gozamos ritualmente a libertagao, ja nos sentamos amesa ‘com Deus quais comensais ou filhos e filhas na casa paterna. Sem a celebragao que vem acompanhada de festa, de musica, de beleza estética, de purificago dos corpos & da mente (a festa so é festa quando preparada e esperada), ‘9 mistério corre o risco de se transformar numa formula, a mistica numa evanescente elevagao da psique. Na celebragao tudo como que chega a sua culminancia & convergéncia: o interior e 0 exterior, o sonho e a realidade, 0 distante e 0 proximo, o mundo e Deus. Em quinto lugar, importa viver tempos fortes e referenciais. Para manter o ténus da mistica e o vigor do mistério faz-se mister momentos fundadores. E quando nos concentramos maximamente nesta experiéncia, quando tomamos o tempo para isso, quando escolhemos as circunstancias, o5 ambientes os materiais de provocacao e animacao (palestras, textos, exercicios de solidao, de recolhimento é de interiorizagao). Tais tempos-experiéncia valem como fontes que alimentam de himus e seiva os dias aridos da rotina e dos afazeres da vida. A partir de tais fardis e de semelhantes irrup¢des de vida, podemos manter ameméria viva do mistério presente e tantas vezes olvidado ‘em toda a urdidura de nosso tempo Por fim, importa levar as comunidades com as quais trabalhamos esta dimensao mistica de nossa vida. O povo possui, em geral, uma religiao mistica, na forma como entende o mundo e os acontecimentos, vendo-os perpassados pela providéncia divina. Para grande numero deles, Deus nao é uma categoria das religides, mas da experiéncia mais profunda da vida. Nao créem em Deus. Sabem existencialmente que existe, pois se sabem carregados por Ele e sempre em suas maos importa haver uma troca de experiéncia e um mutuo aprendizado, seja valorizando o que as comunidades ja fazem neste campo, seja ajudando a = incorporar novos elementos que v4o surgindo coletivamente como expressao de uma nova sensibilidade religiosa expressa em tantos movimentos que incluem e valorizam a dimensao religiosa (as comunidades eclesiais de base, os encontros de oragao e de aco, as pastorais sociais das varias igrejas em torno da problematica dos negros, da terra, dos indios, damoradia, das mulheres, da sauide etc). Enfim, é sempre enriquecedor aprender da fé, da esperanga, dos gestos de solidariedade e verdadeiro amor, da criatividade celebrativa da cultura popular, pois ai vivem e se expressam os amados de Deus, 0S pobres e marginalizados. Sao eles que, nao rare, quardam como num santudrio a chama do Divino, do Sagrado e do Mistério dentro da existéncia humana, fazendo com que © mais decisivo da histéria nao se debilita e corra o risco de se extraviar. Em conclusao: a mistica é a propria vida tomada em sua radicalidade e extrema densidade. Cultivada conscientemente confere 4 existéncia sentido de gravidade, leveza e profundidade. A mistica sempre nos leva a transcender todos os limites, a descobrirmos o outro lado das coisas e a suspeitarmos que por detrds das estruturas do real nao ha o absurdo e 0 abismo que nos mete medo, mas vige ternura, acolhida, 0 mistério amoroso que se comunica como alegria de viver, sentido de trabalhare sonho benfazejo de um universo de coisas e pessoas contraternizados entre si e ancorados fortemente no corag¢ao: de Deus que é Pai e Mae de infinita bondade. Petropolis, RU, Margo de 1993 Algumas referéncias bibliograticas BOFF, Lenordo. 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