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Il DAR VOZ AO PROFESSOR: AS HISTORIAS DE VIDA DOS PROFESSORES E 0 SEU DESENVOLVI- MENTO PROFISSIONAL Ivor F. Goodson Introducdo ‘4 jd algum tempo que estou convencido que o estudo das histérias de vida dos professores € muito importante no que respeita 4 andlise do curriculo e da escola- ridade. Ao reflectir sobre 0 processo de desenvolvimento desta minha convicgao, tenho de realgar dois episddios. Se se tratasse apenas de uma reminiscéncia pessoal, seria pouco relevante, mas os dois epis6dios prendem-se com problemas pertinentes que abo- nam a favor do alargamento da investigacdo sobre as hist6rias de vida dos professores. O primeiro episédio teve lugar no ano em que me preparava para obter o diploma pro- fissional de professor. Tinha passado o dia, na minha escola, com um professor que eu considerava como modelo e conselheiro. Era um galés radical. Académico brilhante, bacharel em Economia e doutorado em Histéria. Era um excelente professor, muito popu- lar entre os alunos, aberto, com sentido de humor, cativante e motivador. Mas defrontei-me com um paradoxo porque, aquando da mudanga havida na escola — que adoptou o “ensino unificado” — foi ele quem se opés a toda e qualquer reforma curri- cular que procurasse fazer com que a escola respondesse aos anseios de grupos sociais mais vastos. Tanto quanto sei, relativamente a este problema, ele revelou-se conservador e um defensor implacavel da tradigiio. Mas ele era 0 mesmo homem — e esse facto tem de ser recordado — que tinha visitado pessoalmente a fabrica para onde eu tinha ido traba- Thar, depois do meu abandono prematuro da escola, aos 15 anos. Tinha-me pedido insis- tentemente que voltasse a frequentar a escola. Tinha falado, entiio, do seu empenhamento em que o ensino oficial constitufsse 0 caminho da emancipagio da classe trabalhadora. Sem dtivida que tinha visto, na minha pessoa, um aluno mal comportado oriundo da classe trabalhadora, uma espécie de estudo de caso experimental. Pessoalmente, tinha ves 65 conhecimento de que ele se preocupava muito em manter os alunos da classe trabalhadora na escola. Entio, por que razio se opunha as reformas curriculares que tinham esse objec- tivo? Durante o dia em que, de novo, visitei a minha velha escola, sondei-o sobre este pro- blema. Primeiramente, foi evasivo, dando uma série de respostas nao comprometedoras, mas, ao fim do dia, no bar, depois de beber uma cerveja, abriu-se. Sim, com certeza que se preocupava com os alunos desfavorecidos; sim, claro que tinha sido essa a razdo por que tinha ido a fabrica para me trazer de volta a escola. Politicamente, era um radical € sempre tinha votado no Partido Trabalhista. Mas, e agora passo a citar: “Nao compreendes a minha relagdo com a escola ¢ ensino, O meu cen- tro de gravidade néo esté Id. Esti na comunidade, no lar — 6 af que eu ‘vivo', € para af que dirijo os meus esforgos. Para mim, a escola resume- -se ao perfodo de tempo das 9 as 5 horas; procuro, apenas, impressionar”. Em conclusio, na escola procurava minimizar o seu empenhamento, opunha-se a qual- quer reforma que Ihe desse mais trabalho. O seu centro de gravidade estava noutro lugar. Considero importante que se compreenda o desenvolvimento do professor e do curri- culo e, para desenhar este tiltimo de modo adequado, necessitamos de saber muito mais sobre as prioridades dos professores. Em suma, precisamos de saber mais sobre as vidas dos professores. O segundo episdédio teve inicio no final dos anos 70. Estava interessado num trabalho sobre musica popular, a ser levado a cabo na Universidade de Leeds:Ao mesmo tempo, estudava alguns temas com vista a uma conferéncia sobre etnografia que se realizaria em Oxford. O estudo de um etnélogo, Pegg, reabriu a linha de investigagao sobre a qual vinha areflectir desde 1970. Pegg afirma: “Ao etndlogo nio assiste o direito de seleccionar (“Desculpe, amigo, nio posso ter isso em consideracdo — ndo € uma cango popular”), mas ao cantor. 0 coleccionador actual no deve ter preconceitos. O seu trabalho consiste em gravar a mtisica de um povo, seja ela uma balada tradicional, ou um hino, ou uma cangao, ou o tiltimo éxito de uma cangao ‘pop’!”. A esta atitude basica acrescenta-se uma outra revelagaio: “Comecei a reflectir que, para mim, as pessoas que cantavam as cangdes eram mais importantes do que as proprias cang6es. A cangdo é apenas uma pequena parte da vida do cantor e a vida foi sempre algo de fasci- nante, Nao poderia compreender as cangdes sem saber alguma coisa sobre a vida do cantor, o que nfo parecia aplicar-se ao caso da maior parte dos etndlogos. Sentem-se felizes por encontrar material que se adapte a um critério preconcebido e ficam por af. Eu necessitava de saber 0 que as pes- soas pensavam acerca das cangGes, que papel desempenhavam na sua vida ena vida da comunidade”. 66 i Um caso semelhante € apresentado pelo estudioso da cancao popular, Robin Morton: “Apoderou-se de mim a convicgo de que era no cantor que a cancio se tomnava relevante. Analisar a can¢fo em termos de tema, ou de estrutura ritmica, ou de variago de compasso, torna-se, em minha opinido, irrele- vate, se se esquecer a pessoa que nos transmite a cangio. J4 todos nos temos cruzado com o especialista que é capaz de falar, horas a fio, erudi- tamente, sobre cangdes populares e folclore, de um modo geral, sem men- cionar o cantor. Ja € mal bastante esquecer-se 0 contexto social, mas, quando se trata de ignorar o contexto individual, castra-se a cangdo. A medida que conseguia conhecer os cantores, conseguia conhecer e com- preender melhor as suas cangdes”, A preocupagiio com “o cantor, e nao com a cangao” precisa de ser, rigorosamente, ava- liada nos nossos estudos curriculares e escolares. O que Pegg e Morton (cf. Goodson e Walker, 1991) afirmam sobre os etnélogos e implicitamente sobre a maneira como a sua investigagao € aceite por aqueles que eles estudam, poderia também afirmar-se acerca da investigaco educacional. projecto que recomendo respeita A reconceptualizagao da investigagao educacional, de modo a assegurar que a voz do professor seja ouvida, ouvida em voz alta e ouvida arti- culadamente. A este respeito, a maneira mais plausivel de avangar, penso eu, seria come- gar por edificar as nogdes de “professor auto-regulador”, de “professor como investiga- dor” e de professor como um “profissional de competéncias alargadas”. No infcio dos anos 70, na Universidade de East Anglia (Inglaterra), grande parte do trabalho era condu- zido no sentido da operacionalizacao destes conceitos. Os trabalhos mais interessantes foram desenvolvidos no ambito do Projecto de Ensino Ford, empreendido por John Elliot e Clem Adelman, no perfodo que decorreu entre 1973 e 1975. Os investigadores em ques- tao procuraram reabilitar 0 método de investigacio-accao, introduzido por Kurt Lewin no periodo do p6s-guerra. Entretanto, a investigago-ac¢fio tinha cafdo em declinio. Carr e Kemmis (1986), que tinham trabalhado no sentido de alargar e tornar 0 conceito conhe- cido, apresentam razGes para o ressurgimento da investigac’o-ac¢iio: “Primeiramente, sentiu-se uma maior exigéncia no interior da classe dos professores profissionalizados relativamente ao papel da investigacio, com base na nogio do profissional que se promove investigando a sua propria prética. Em segundo lugar, estes profissionais apereeberam-se da irrelevéincia de parte da investigagiio educacional contempordnea relativa- mente as suas preocupagdes. Em terceiro lugar, ressurgiu um interesse renovado pelo ‘exequivel’ em relagdo ao curriculo, segundo os estudos de Schwab (1969) e outros investigadores, no que respeita a ‘deliberagao prdtica’. Em quarto lugar, a investigagao-acgao foi ‘catapultada’ pela ascensiio dos métodos da ‘nova vaga’ no tocante 2 investigagao e avalia- go educacionais, com incidéncia nas perspectivas dos participantes e nas categorias que enformam as praticas e situagdes educativas. Estes méto- dos colocam os profissionais no centro do processo de investigacao edu- 67 cacional e reconhecem a importincia decisiva das aquisigdes feitas pelos actores, ao darem forma a acco educativa. Do papel de fornecer, de modo critic, dados que vao contribuir para o trabalho do investigador “estranho em relag&o ao contexto’, o professor percorre apenas um curto percurso até se tornar um investigador critico relativamente & sua propria prética profissional. Em quinto lugar, 0 movimento de responsabilizagao galvanizou e politizou os profissionais do ensino. Em resposta ao movi- mento de responsabilizacio, os profissionais em questo adoptaram 0 papel de autoformadores como meio adequado de justificarem a pritica docente e de tecerem criticas inteligentes 4s condigGes de trabalho em que ela ocorria. Em sexto lugar, gerou-se um movimento crescente de solida- riedade na profissio docente em resposta as criticas gerais que acompa- nharam a politica educativa expansionista dos anos 70 e 80; 0 que veio, também, provocar a organizacdo de redes de apoio de profissionais preo- cupados ¢ interessados pelo desenvolvimento continuo da educagao, ainda que a época expansionista tivesse mudado de rumo. E, por iiltimo, ocorreu uma maior tomada de consciéncia no respeitante A prépria investiga ¢Go-acefio, que comega a ser percebida como capaz de fornecer uma abor- dagem inteligivel e exequivel em relacao A melhoria da pratica, através de um processo critico de auto-reflexo”, A incidéncia da investigacdo-acgao tem, contudo, revelado uma grande propensao para se orientar em relagdo a pratica. Ao introduzir uma panoramica sobre a investiga- ¢ao-accao, Carr e Kemmis (1986), por exemplo, observam: “Algumas praticas educativas foram estudadas através de métodos de investigacdo-acco e alguns exemplos bastam para mostrar 0 modo como utilizaram a inyestigagao-accao para melhorarem o exercicio da sua pro- fissio, a compreensao das suas préticas de ensino e as situagdes em que ‘operam”. Nao surpreende que, tendo em mente a nogdo de “um profissional com competéncias alargadas”, os professores tenham utilizado a investigagdo-ac¢ao no sentido de melhora- rem a sua pratica docente. No estudo que empreenderam, Clandinin e Connely asseveram, de modo inovador e interessante, que tentaram compreender 0 conhecimento prdatico pes- soal dos professores. Juntar a dimenso pessoal a esta formulagao € uma atitude desejavel pelo facto de constituir uma alusao 4 importancia das perspectivas biogrficas. Mas, de novo, 0 aspecto pessoal apresenta-se irrevogavelmente associado a pratica. E como se 0 professor fosse a sua propria pratica. Para os formadores de professores, esta especifici- dade de incidéncia é compreensfvel, mas eu desejo provar que, numa perspectiva mais lata, poder-se-d ir mais longe: nao sé em termos das nossas percepgGes, mas, fundamental- mente, no modo como realimentamos as mudangas em relaco ao conhecimento pratico. Em suma, do que afirmo nfo deve advir a convicgao légica ou psicolégica de que para melhorar a pratica se deva inicial e imediatamente incidir sobre a prdtica. Ao invés, defendo o ponto de vista oposto. Considerando 0 “professor como investigador” e a “investigaco-acgo” como expri- mindo posigées valorativas defensaveis e pontos de partida vidveis, pretendo demonstrar 0 sentido lato do objectivo em questio, Ponho em causa, especialmente, um tipo de investiga- ao em colaboracao que procura dar igualdade e estatuto plenos ao professor, mas que utili- za como incidéncia inicial e predominante o exercicio profissional do professor: trata-se de um ponto de partida muito pouco prometedor, no sentido de promover a colabo- racdio num trabalho colectivo. Para o professor universitério que aspire a um partenariado em colaboragao e igualitério, pode parecer um pouco problematico; para o professor do ensino nio superior, pode parecé-lo ainda mais. De facto, pode afigurar-se ao professor que © ponto de partida do espirito de colaboragao incide sobre 0 ponto maximo de vulnerabili- dade. Devemos, em minha opiniao, recordar como a maior parte de nds se sente profunda- mente inseguro e ansioso acerca do nosso trabalho como professores, quer nas salas de aula, quer nos anfiteatros universitarios. Estes sao, muitas vezes, os locais de maior ansie- dade e inseguranca — bem como, ocasionalmente, de realizagéo. Dai, pretender provar que colocar a prética ocorrida na sala de aula no centro da accao relativamente & investigagio-acgao € por o aspecto mais “exposto” e problematico do mundo dos professores no centro da pesquisa e da negociagio. Em termos de estratégia, tanto pessoal como politica, penso que é um erro proceder desse modo. Afirmo que € um erro proceder como tal — e pode parecer paradoxal — especialmente quando se pretende. em Ultima anilise, reflectir sobre a pratica dos professores e as suas mudangas. Um porito de partida mais valioso e menos vulnerével seria observar o trabalho do pro- fessor no contexto da sua vida profissional. Muitos dos estudos que emergem nesta maté- ria indicam que esta incidéncia permite um fluxo rico em didlogo e dados. Além disso, a incidéncia pode (e sublinho, pode) permitir aos professores maior autoridade e controlo da investigacio do que num estudo orientado para a pritica docente. O que afirmo, aqui ¢ agora, é que, particularmente no mundo do desenvolvimento dos professores, 0 ingredi- ente principal que vem faltando € a voz do professor. Em primeiro lugar, tem-se dado €nfase 4 pratica docente do professor, quase se podendo dizer ao professor enquanto “pra- tico”. Necessita-se agora de escutar acima de tudo a pessoa a quem se destina o “desen- volvimento”. Isto significa que as estratégias a estabelecer devem facilitar, maximizar e, em sentido real, surpreender a voz do professor. Associar a esséncia ¢ a estratégia aponta para uma nova direcgdo em relagao a recon- ceptualizagio da investigagio e desenvolvimento educacionais. Inicialmente, apresentei dois argumentos episddicos, por assim dizer, procurando compreender as vidas dos pro- fessores como parte da investigac‘io educacional e do cometimento evolutivo. De seguida, argumentei que o modelo do “professor como investigador” e o método da “investigacao- -acgaio” eram produtivos e generativos, mas que a incidéncia inicial ¢ imediata sobre a pratica era exagerada e indesejavel. Estrategicamente, recomenda-se, no presente estudo, uma incidéncia mais lata sobre a vida e o trabalho. Assim, em relagao as razOes substanti- vas e estratégicas, defenderia um alargamento de incidéncia que permitisse a investigacao detalhada da vida e do trabalho do professor. 69 Alargando a nossa base de dados relativamente 4 investigagao educacional té agora, tenho vindo a argumentar que os dados sobre as vidas dos professores so um factor importante para os estudos de investigacao educacional. Tenho defen- dido que estrategicamente isto é desejavel, de modo a envolver os professores como investigadores e a desenvolver o espfrito de colaboracdo. Mas ha também uma razao substantiva. A razio primordial é que, segundo a minha experiéncia, quando falo com professores sobre problemas de desenvolvimento curricular, matérias de ensino, gestio escolar e organizacdo geral das escolas, eles trazem 4 colacao, constantemente, dados sobre as suas proprias vidas. Isto pode ser tomado como prova razodvel de que os préprios professores consideram estes problemas da maior relevancia. Uma das razdes por que estes dados nao tém sido muito utilizados deve-se ao facto de os investigadores os rotularem de demasiado “pessoais”, “idiossincraticos” ou “flexiveis”; constitui, em suma, mais um exemplo da utilizagao selectiva da “voz do professor”. O investigador 86 escuta 0 que quer ouvir e sabe o que tem melhor aceitag’o por parte da comunidade cientifica. Poderio existir, com certeza, razées perfeitamente validas para a nao utilizagio de dados sobre a vida dos professores, nos nossos estudos de investigag’io educacional. Mas isso requereria um encadeamento l6gico de argumentos para comprovar por que razdo tais dados sao irrelevantes ou de nenhuma importncia. A estratégia investigativa normal con- siste, todavia, em remover pura e simplesmente tais dados. Nao encontrei nenhum motivo que explique racionalmente por que razio esses dados nao sao utilizados. A explicagéo mais consensual parece ser a de que os dados sobre as vidas dos professores no se adap- 70 as ee tam aos paradigmas de investigagiio existentes. Se for este 0 caso, entao so os paradig- mas que esto errados e nio o valor e a qualidade deste tipo de dados. Os argumentos em prol da utilizagio de dados sobre as histérias de vida des pro- fessores so essenciais, mas, dada a predominancia dos paradigmas actuais, devem ser clarificados: 1. Na investigagdo, empreendida nas escolas, em que tenho estado envolvido — cobrindo um largo espectro com diferentes incidéncias de investigago e de diferentes matrizes conceptuais — a consisténcia do discurso dos professores sobre as suas proprias vidas relativamente ao processo de interpretagio da sua linha de conduta e pratica tem sido notavel. Se se tratasse apenas de uma observago pessoal nao teria grande valor, mas, repe- tidas vezes, em contactos com outros investigadores se verificou concordancia relativa- mente a este assunto. Exemplificando: David Hargreaves, ao preparar a sua obra Deviance in Classrooms, afirmou que os professores tinham, muitas vezes, introduzido comentarios autobiograficos nas suas explicagdes. Mostrou-se preocupado, retrospectivamente, devido A rapidez com que tais dados tinham sido colhidos, quando descreveu a pesquisa, O pres- suposto, a sabedoria tradicional iam no sentido de que tais dados eram demasiado “pesso- ais”, demasiado “idiossincrdticos”, demasiado “flexiveis” para uma investigagaio em cién- cias sociais com “pernas para andar”. Claro que, em primeira instancia (¢ nalguns casos em tiltima instancia) os dados pes- soais podem ser irrelevantes, invulgares e redundantes, na sua esséncia. Mas aquilo que importa tomar em considera¢iio nao tem de ser, inevitavelmente, 0 corolrio dos aspectos pessoais, Além disso, o que é pessoal na ocasifio da recolha de dados pode nao permane- cer pessoal. No fim de contas, grande parte das ciéncias sociais tratam da recolha de toda uma série de conhecimentos e factos pessoais ¢ do esclarecimento de dados e processos mais colectivos e generalizdveis. O respeito pelo autobiografico, pela “vida”, é apenas um aspecto duma relagio que permita fazer ouvir a voz dos professores. Em certo sentido, tal como acontece com a antropologia, esta escola de investigagio educacional qualitativa trata de ouvir 0 que o professor tem para dizer, e respeitar e tratar rigorosamente os dados que o professor intro duz nas narrativas, 0 que vem alterar 0 equilibrio comprovativo. Tradicionalmente, os dados que nao servem os interesses do investigador e as incidéncias previstas sao postos de lado. Neste modelo, os dados que o professor fornece sio invioldveis e s6 siio dispen- sados apés prova rigorosa em relaco & sua irrelevancia e redundancia. Ouvir a voz do professor devia ensinar-nos que o autobiografico, “a vida”, € de grande interesse quando os professores falam do seu trabalho. E, a um nivel de comum, nao considero este facto surpreendente. O que considero surpreendente, se nao franca- mente injusto, € que durante tanto tempo os investigadores tenham considerado as narrati- vas dos professores como dados irrelevantes. 2. As experiéncias de vida e o ambiente sociocultural sao obviamente ingredientes- -chave da pessoa que somos, do nosso sentido do ew. De acordo com o ‘quanto’ investi- 1 _ MOS 0 NOsso ‘eu’ No nosso ensino, na nossa experiéncia € no nosso ambiente sociocultu- tal, assim concebemos a nossa pratica. ‘Uma caracteristica comum do ambiente sociocultural colhida nas narrativas dos pro- fessores é 0 aparecimento de um professor preferido que influenciou, de modo significa- tivo, a pessoa enquanto jovem aluno. Relatam, muitas vezes, que: “foi esta a pessoa que, pela primeira vez, me fez aderir ao ensino”; “estava sentado na sala de aula, quando, pela primeira vez, decidi ser professor”. Em conclusao, tais pessoas fornecem um “modelo funcional” e, para além disso, influenciaram provavelmente a visdo subsequente da peda- gogia desejavel, e bem assim, possivelmente, a escolha do préprio curso (especializagiio, em termos de matéria de ensino). Muitos outros ingredientes ambientais se revestem de grande importancia na vida e exercicio profissional do professor. O ter sido educado num ambiente sociocultural pré- prio da classe trabalhadora pode, por exemplo, propiciar conhecimentos ¢ experiéncia valiosos para o ensino num ambiente semelhante. Observei, uma vez, 0 processo de ensino de um professor oriundo da classe trabalhadora, que leccionava uma turma de alu- nos de uma escola unificada de Londres (East End). Ensinava utilizando o dialecto lon- drino a sua afinidade com os alunos constituiu-se num aspecto sensacional do seu sucesso como professor. Ao entrevist4-lo, falei-Ihe dessa afinidade e obtive como resposta que isso se devia “ao facto de ter ali as suas raizes”. O ambiente sociocultural e a expe- riéncia de vida eram os aspectos mais importantes da sua pratica profissional. Mas seriam igualmente importantes no caso de professores oriundos da classe média a leccionarem alunos provenientes das classes trabalhadoras, ou ao invés, professores da classe trabalha- dora a leccionarem alunos da classe média. A origem sociocultural é um ingrediente importante na dinamica da pratica profissional. Evidentemente que a classe social € apenas um aspecto como 0 s&o 0 sexo ow a etnia, enquanto o ambiente sociocultural e as experiéncias de vida dos professores sao, por sua vez, idiossincraticos e tinicos e devem, por isso, ser estudados na sua plena complexidade. 3. 0 estilo de vida do professor dentro ¢ fora da escola, as suas identidades e culturas ocultas tém impacto sobre os modelos de ensino e sobre a pritica educativa. O estudo de Becker e Geer (1971) sobre identidades e culturas ocultas propicia uma base tedrica de grande valor. O estilo de vida €, muitas vezes, um elemento caracteristico em determina- das coortes; por exemplo, o trabalho sobre a geracio de professores dos anos 60 seria de grande interesse, Num estudo recente empreendido sobre um professor — com incidéncia no seu estilo de vida — Walker e eu préprio referimos: “Como as conexées entre a cultura da juventude e 0 movimento da reforma curricular dos anos 60 sio mais complexas do que a principio pensévamos! Para Ron Fisher, hé uma conexio clara, ele identifica-se nitidamente com a cultura da juventude e sente que isso € relevante para 0 seu processo de ensino, Mas, apesar da sua atraccio pela mtisica rock e pelos estilos de vida dos adolescentes, a escola em que lecciona estA prati- 72 camente em desacordo com a sua prépria interpretagao de gestao. O envolvimento na inovagdo, para Ron pelo menos, nao € simplesmente uma questo de envolvimento técnico, mas toca as facetas significativas da sua identidade pessoal. Daf advém a questio que se coloca ao especia- lista em desenvolvimento curricular: como seria um projecto que, explici- tamente, se propusesse ‘mudar’, de preferéncia, os professores, em vez de mudar o curriculo? Como se desenharia um projecto que apelasse prefe- rencialmente para 0 professor-como-pessoa, em detrimento do professor- -como-educador? Quais seriam os efeitos e consequéncias da implementa- 40 de um tal ‘desenho’?”. Penso que 0 que acabamos de referir mostra como o trabalho nesta érea comega a impor uma reconceptualizagiio dos modelos de desenvolvimento profissional dos profes- sores. Em suma, passamos do professor-como-profissional ao professor-como-pessoa, como ponto de partida para o desenvolvimento. 4. A incidéncia no ciclo de vida ajudaré o compreender os elementos tinicos do pro- cesso de ensino. Na verdade, uma caracteristica tio ‘tinica’ (sem paralelo) pareceria um ponto de partida dbvio para a reflexdio acerca do mundo dos professores. Os nossos para- digmas de investigagao estio, todavia, tio voltados para outras direcgdes que pouco traba- Iho tem sido referenciado nesta area. Felizmente que o trabalho empreendido em outras reas propicia um enquadramento de grande valor. Considero importante o trabalho algo populista de Sheehy, em “Passa- ges” e “Pathfinders”. De igual importancia se reveste o trabalho investigativo sobre as bases teéricas das suas publicagdes, empreendido por Levinson. O seu estudo, apesar da incidéncia exclusiva nos homens, propicia conhecimentos que dao origem a reflexdes sobre 0 modo como as nossas perspectivas em estddios particulares da vida influenciam decisivamente 0 nosso trabalho profissional. Tomemos como exemplo o estudo de caso do bidlogo universitério, John Barnes. Levinson refere 0 seu ‘sonho’ de se tomar um investigador de biologia, vencedor de pré- mios de primeira categoria: “O sonho de Barnes assumiu maior preméncia quando ele se aproximou dos 40 anos, Era convicgo sua que 0 trabalho cientifico mais criativo jé tinha sido feito. Por essa ocasiiio, um diélogo com um amigo, de longa data, de seu pai causou-lhe uma impressao duradoura. O homem, mais idoso, confidenciou-lhe que tinha aceitado o seu insucesso relativamente a tomnar-se uma ‘estrela’, no campo da jurisprudéncia, ¢ se contentava em: ser um advogado, competente e respeitado (no dominio fiscal). Tinka decidido que o estrelato nao € sinénimo de vida de qualidade; sentia-se ‘perfeitamente bem, sendo um néimero dois’. Naquela ocasido, Bames allo estava, todavia, disposto a prescindir da sua ambic&io. Ao invés, decida desistir do seu cargo de chefia e dedicar-se, a tempo inteiro, 3 sua investi- gacdo. 73 Prescindiu do cargo de chefia ao aproximar-se dos 41 anos, quando o seu projecto se aproximava da fase final. Foi uma ocasiéio decisiva na sua vida, o culminar de anos de luta. Durante varios meses, acontecimentos varios exigiram a sua ateng’o e aumentaram a expectativa. Tornou-se pai de um rapazinho e, na mesma semana, ofereceram-lIhe um cargo de presti- gio em Yale. Lisonjeado e excitado, sentiu que era a sua ‘tiltima oportuni- dade em relago a uma grande proposta’. Mas Bares acabou por nao aceitar. Considerou que nao podia mudar, dado 0 estédio em que se encontrava o seu trabalho. Além disso, os lacos que os uniam —a ele e a Ann — A familia e aos amigos e 0 seu amor pelo local onde viviam foram, naquele momento, de maior importancia para ambos. Ela afirmou: “A fama quase o ‘agarrou’, mas agora sentimo-nos felizes por termos ficado” (1979, p. 267). Considero que esta citagio mostra até que ponto as decisdes relativas ao local onde exercemos a profissdo e a direcgdo que damos a nossa carreira sé podem ser entendidas através de uma compreensao detalhada das vidas das pessoas. 5. De igual modo, estddios referentes a carreira e decisées relativas a carreira 86 podem ser analisados no seu préprio contexto. O trabalho sobre as vidas e carreiras dos professores est4, cada vez mais, a dominar as atengGes nos seminérios e cursos destinados ao desenvolvimento profissional. Por exemplo, a Universidade Aberta, em Inglaterra, uti- liza, neste momento, 0 nosso livro “Teachers Lives and Careers” como um dos livros dos seus cursos, Isto é sintomatico em relagdo 4s mudangas importantes no-respeitante & maneira como os cursos profissionais estao a ser reorganizados, de modo a incidirem sobre a perspectiva da carreira docente. Para além da linha de pesquisa referente a carreira em “Teachers Lives and Careers”, uma nova linha de pesquisa esta a comecar a examinar este aspecto negligenciado da vida profissional dos professores. A obra de Sikes, Measor e Woods (1985) proporciona novos e valiosos conhecimentos relativamente a0 modo como os professores constroem e enca- ram a sua carreira profissional, bem como 0 estudo de Michaél Huberman. 6. Além disso, o novo trabalho sobre a carreira docente aponta para 0 facto de que ha incidentes criticos nas vidas dos professores e, em especial, no seu trabalho, que podem, decididamente, afectar a sua percepgao e pratica profissionais. Evidentemente que os estudos sobre os professores em inicio de carreira vém apontando para a importancia de certos incidentes na formagio de estilos e praticas dos professores. O estudo de Lacey aponta para os efeitos sobre as estratégias utilizadas pelos professores e o de Woods, Pol- lard, Hargreaves e Knowles esclareceu a relacao com as estratégias docentes de desenvol- vimento, Uma outra obra sobre os incidentes criticos ao longo da vida dos professores pode confrontar-nos com temas importantes contextualizados numa perspectiva de vida plena. 74 Cs Por exemplo, Kathleen Casey tem utilizado “narrativas de histérias de vida”, a fim de compreender 0 fenémeno do professor falhado, nomeadamente do sexo feminino. O tra- balho de Kathleen langa luz sobre este fenémeno que vem recebendo alguma atengao, essencialmente sem sentido critico, dado o problema da falta de professores. Contudo, alguns dos paises com graves problemas em relagao a falta de professores tém-se preocu- pado em empreender estudos rigorosos sobre a vida dos professores, com vista a examinar ¢ alargar a nossa compreensio sobre o problema dos professores falhados. Assevero que apenas esta abordagem poder proporcionar a possibilidade de alargamento da nossa compreensao. De igual modo se deverd proceder relativamente a outros temas importantes referentes ao trabalho do professor. A questio do “stress” do professor, em minha opiniao, deveria ser convenientemente estudada através da perspectiva das hist6rias de vida, e bem assim 0 problema do ensino eficaz e a questo das inovagdes empreendidas ¢ de novas iniciativas administrativas. Acima de tudo, esta abordagem pode por a descoberto muito do respei- tante ao estudo das condigées de trabalho dos professores. 7. Os estudos referentes as vidas dos professores podem ajudar-nos a ver o individuo em relacdo com a histéria do seu tempo, permitindo-nos encarar a intersecgdo da histéria de vida com a historia da sociedade, esclarecendo, assim, as escolhas, contingéncias e op¢des que se deparam ao individuo. “Histérias de vida” das escolas, das disciplinas e da profissao docente proporcionariam um contexto fundamental. A incidéncia inicial sobre as vidas dos professores reconceptualizaria, por assim dizer, os nossos estudos sobre esco- laridade e curriculo. O estudo, empreendido em colaboragio, sobre as hist6rias de vida dos professores, nos niveis mencionados, constitui uma nova maneira de encarar 0 desenvolvimento do profes- Sor; uma maneira que deverd orientar as relagdes de poder subjacentes as vidas dos pro- fessores. 75 A colaboragao e o desenvolvimento dos professores strategicamente, tenho afirmado que, para se promover a nogao de professor como investigador e para se desenvolver uma modalidade de investigac&io-acgfo, em que a colaboracio com investigadores externos seja encorajada, necessitaremos de evi- tar uma incidéncia imediata e predominante sobre a pratica docente. Posteriormente, afir- mei que esta incidéncia sobre a pratica devia ser, pelo menos parcialmente, substituida por uma incidéncia sobre a vida do professor. O que est aqui em questo parece ser quase antropolégico: pretendemos que os pro- fessores se tornem investigadores e colocamos investigadores externos a “negociar”. A pratica dé indicagées no sentido da existéncia da maxima vulnerabilidade relativamente ao “ponto de negociagio”. Trata-se de uma situagao profundamente desigual aquando do inicio da “negociagao” — pois poder-se-4 argumentar que 0 professor pode sentir-se, desde logo, vulneravel ¢ inferior perante o investigador universitario. Falando da sua propria vida, 0 professor coloca-se, neste caso especffico, numa situa- gio de menor exposigdo; ¢ a “exposig&io” pode ser mais cuidadosa, consciente e pessoal- mente controlada. Nao se trata, devemos dizé-lo uma vez mais, que a “exploragao” nao possa ter lugar e que niio existam questdes éticas importantes aquando da “exposi¢ao”. Mas considero que este ponto de partida tem vantagens reais ¢ estratégicas. Algumas delas j4 foram apontadas; contudo, em termos de “negociacao” entre professor-investiga- dor e investigador externo, esta incidéncia parece ter vantagens. Muito do trabalho que se esta a fazer sobre as hist6rias de vida dos professores surpre- ende conhecimentos estruturais que posicionam a vida do professor dentro do ambiente profundamente estruturado ¢ implantado da escola, proporcionando, ao investigador 76 externo, um “ponto de negociagao” primordial. Uma das principais caracteristicas da cola- boragao entre professores-investigadores e investigadores externos reside no facto de ser uma colaboragio entre dois grupos que se posicionam, de modo diferente, em termos estruturais. Cada um vé 0 mundo através de um prisma diferente, no respeitante & prdtica a0 pensamento. Esta diferenca preciosa pode proporcionar, ao investigador externo, uma possibilidade de oferecer trocas durante 0 processo de “negociagio”. O professor-investi- gador oferece dados e conhecimentos; o investigador externo, ao entrever diferentes estru- turas, pode, também, disponibilizar dados e conhecimentos. Em suma, os termos da nego- ciagio parecem favordveis. Em tais condigdes, 0 processo de colaboragao pode, final- mente, iniciar-se. Afirmei anteriormente que este possivel caminho conducente a colaboragio nao pée de parte problemas éticos ¢ de exploracao. Isto prende-se com o facto de a colaboragio entre professor-investigador e investigador externo ocorrer num espago institucional, que é, em si prprio, estruturado em termos nao equitativos. Em termos de poder, o investiga- dor externo ainda detém muitas vantagens. Além disso, as condicOes existentes nas carrei- ras universitarias exortam, de modo positivo, os investigadores a colher dados investigati- vos: os requisitos necessdrios 4s publicagées e o estudo entre pares tem a sua propria dindmica, Assim, sejam quais forem os aspectos favordveis de uma incidéncia nas histérias de vida dos professores, devemos permanecer muito atentos. Pois, se a pratica do professor se pode considerar uma incidéncia vulnerdvel, a vida do professor € uma incidéncia muito fntima e intensiva. Mais do que nunca, serd necessério definir linhas directrizes em rela- ¢4o ao modo de proceder, no que concerne a questées relacionadas com a propriedade e publicagdo dos dados. Problemas como estes devem ser equacionados em termos de cola- boragio, em que cada parte tenha direitos claros e, neste caso, o poder de veto do profes sor deve ser acordado antecipadamente e, se necessario, implementado mais tarde. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BALL, Stephen J. e GOODSON, Ivor F., eds. (1989). Teachers’ Lives and Careers. London: The Falmer Press, 2." ed. BECKER, H.S. e GEER, B. (1971). “Latent Culture: a note on the theory of latent social roles”. In School and Society: A Sociological Reader (B.R. Cosin et al.]. London: Routledge & Kegan Paul, pp. 56-60. CARR, W. e KEMMIS, S. (1986). Becoming Critical: Education Knowledge and Action Research. London: The Falmer Press. CASEY, K. (1988). Teacher as author: Life history narratives of contemporary women teachers working for social change. 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