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O Probimia Hocariay de Murilo Pubic PREFACIO A aventura Solitaria de um grande artista Hamberto Wernece Osescritores em geral sedividem—ou sto didaticamete emeorrentes, escola, times, Ominei~ sam caso. parte, Durante muitos talvex nto haja ainda, um contista anos niohouve no Brasil, “tipo Murilo Rubio” Paraentender melhora sua singularidade, convémvoltar no tempo, segunda metade da déeada de 6o, quandooeorren 0 fendmeno editorial eonkecide como o cacofnico “boom da literatura hispano-americana™, Autores como 0 calombiano Gabriel Gareia Marques o argentino Julio Gortiearganharam entioleitores pelo mundo afora, comuma prosa de ficgdo que. com suaatmosfera de sonho, leva rénilo de realismo magico, ouderrealigmo fantastico, ‘Traduidos pelaprimeiraver no Brasil, oshispanos,comose dizi, fireram sucesso depriblienede critica Inminaramum ec reno poueo explorade de nossa literatura —e 86 a5 eamegamos& pereeher que havia entre nés, zi tempo, um eseritor euja obra 1merecia ser qualifcada de, em maisdeum sentido, fantastca, ‘Amatrizda fiegio de Murilo Rubiao nto era, porérn, exa- tamente a mesma dos hispanos: eristalizou-se sobretudo na wertio @upiko leitura apaixonada de Machadode Assis, além da Biblia, livro em que ele, mesmo agadstico, ia garimpar epigrafes para seus contos. Eto teve, como sospeitaram alguns, infiuéncia de Fran Kafka (883-1924), poisseraautermaduro. publicado quandoleupela primeira vero eseritorcheea Eespartosoverficar,boje,oquanto Muro Ruidofoiigno- rado,durantetantasdécadae, quando na erdade anieciparaen- tre nésum tipo de literatura que s6 vinteanos mais tarde daria renome internacional aseusconfrades ispano-americanos. Seu primetra iva, Oer-magic, sai em 1947. pela U ‘ers uma pequena editorado Rio de Janeiro (publicon spe nas quatro titulos, entre eles Sagarana, na estréia de Cui- smaries Ross, em 946),comtiragem de mil exemplares, dos quis o proprio Murilopreeisou pagura metade, O segundo. cutrela vermelho, de 953, cevetiragem confidencisl, den exemplares. Do terceio, Os dagoeseoutascontos, de 1965. tiraram-semil, que mal hegaremaalgumaslivrarize, poisnio safram porns editora comercial, sim pela prensa Ofical do stad de Minas Gerais. No de espantar,saaim, que Murilo Rubito tena reagi- do com ceticismo quando, no inteiodos anos7e, bateuem sua porta, emBelo Horizonte, o¢ditorpaulist Jiro Takahashi. dis posto spublicar wma ealetanea de contos seus, Nunca que val vender, dvidono everitor—e caludasnuvens, antes de eair aasnuvens, quando,em pouco maisdeum ano, oomilexees plaresde Opirtéenio Zacarias se evaporaram nas lvraras Séentio, jébeirondo os sessenta anos de idade, Murilo ‘comegou a exist, vamos diver, parao letor brasileiro, F, se issoacontevenem grande partefoigragasanoaso maioreritl- co em atividade, Antonio Candido, ue, a0 receber em 1963 uum exemplar de Os dragdes outros contos, se penitencion por reeac nto haver percebido, jem Ocz-magico, grande esritor que alieetava, Poucos perecheram, na verdade. Nem mesmo vatentoe _generoso Miriode Andrade, comquem Musiloseeortespon- dew na primeira metade dos anos 49, soube avaliar no pri teiro momento a novidade daqueles contos datilografados aquelhe chegrvam de Minas pelocorreio, Mério,contara Mu rilo bem mais tarde, gostava do escritor ese esforcava por gostardaobra Eeespantoso, também, que, sem o devido reconbiecimen- to, cestando tio desemparelhado na literatura brasileira de seutempo, Murilo nio tenha simplesmentedesitido dasle- tons Para elieidade dos que hojese encantam com suas hist6- riaa,e detantos que fardoo mesmo enquanto howver bons ei tores, ele persevero. Sem alarde, nas brechas do serigo public. no qual a ‘how vida (foi, porexemplo, um dos mais proximos eolabo- adores de Juscelino Kubitschek), Muro Rubido nunca paron Ae eserever, Lentamente, mato entamente— basta dizer que ‘umde see contos, “Oconvidado” demorounada menos de26 nosparafiear pronto, comorevelounumserénicadelicioss"0 poets Paulo Mendes Campos. O disereto Musilo foi uma prova de que nto & preciso excreverpeloscotovelosparaserumgrandeeseritor. Emmeio seulo de stividade Iteriria, ele publicou, em jornais.erevis- «as, coreadecinuenta contos,eparafiguraremlivro selecio- rowapenss os 33 que a Companhia das Letras, quinze anos apéea.sua morte, organizariaem trés volumes —umdos qusis voce tem agora nas mos. ums em e6ane" om Otammoremauma pes fee Saban vaio neerdo Emborafisicamente magra,suacbraparaem pénaestan- tedenossa melhor literatura, Bisso, emboa medida, pelo fato {de Murilo ter sido um reescrevedor obsessivo. Perfeccionista, asgou livros prontos e jamais celeuum conto seu sem retocar texto, nessa busca de perfeigao que vema ser amares dos artistas genuinos. Nada 6 definitivo, insiatia ele. A nto ser, podemos ressalvar, 0 ouro de uma literatura tSo incansavel- mente refinada como. de Murilo Rubizo, O PIROTECNICO ZACARIAS Eesleantardgelatrde sobre smalaceonvadomeiodiase uandote lane consumo, naszrsscomoaenda-d'aa, 6.009) Raras sio as veres que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relagbes, nfo surje esta pergunta. Teria morrideo pirotéenico Zacarias? ‘Accese respeito a8 opinides sto divergentes. Uns acham gue estou vivo — 0 morto tinha apenas slguma semelhanca comign. Ontros, mais eupersticios0s, aereditam que aminha morte perience a0 rol dos fatos consumados eo individuo a quem andam chamando Zacarias nto passadeurna alma pena~ 4a, envolvida porum pobre invOluerohumano,Aindahios que afirmam de maneira categorica o menfalecimentoe nlo acei- tamocidadao cxistente como endo Zicarias, oartisa pirate ‘nico, mas algaém muito pareeido como finado. ‘Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, 0 seu corpo nao foi enterrado. ‘Asinicapessoa que poderia darinformagbes certassobreo assunto sou eu. Porém estou impedide de faxé-lo porque os ‘meus companheiros fogem de mim, tao logo me avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa ficam estarrecidos no conseguem articular uma alayra Emverdade morri, o que vem ao encontra da versio dos. que eréem na minha morte, Por outro lado, também nio estou orto, pois fago mdo.o que antes fari e, devo dizer, com mais agrado do queanteriormente A prinefpio foi arul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densasftas de sangue. Sangue pasto- s0 com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, ‘enue, quace cemeor, Quando tudo comegavaa ficar branco, velo um automével Simplicto Santana de Alvarengal —Peeseatel Senti rodaz~me a cabega,o corpo balancar, como se me faltasscospotodosolo, Emaesuidafutarresad por uma orga poderosa, irresistivel.Tentei agarrar-me is érvores, cujas amagent retoncidas, puadas para cima, escapavam sos meus dedos. Alcancei maisadiante, com as mos, uma roda de fogo, aque se pts a girar com grande velocidade por entre elas, sem queimé-les, todavia. ="Meussenhores; nalutaveneea maisforteeo momen to€ de decianes supremas, Os que deaejarem sobreviver ao tempo tizemosseusehapéus!” (Aomeulado dangavam fogos de artifci, logo devorndos pelosrea-srin.) —Simplicio Santanade Alvarengal —Nio esta? —Tirea mse daboca, Zacariae! a PiROFecMiCD PACAEIAS —Quantossto oscontinentes? —EaQceania? ‘Dos maresda China nto mais virto as quinquilharias A profeseora magra, esquelética, os olhos vidrados, em- ‘punhavanamio direita uma xia de foguetes. Asvaretaseram ‘comipridas, tholongas que obrigavam dona Josefinaater ospés Aistanciados uns dois metros do assoalho e acabega, coberta porfios debazhante, quaseencostada no teto. Simplicio Santana de Alvarenga! ~Meninos, amaiaverdade! Anoiteostava seura. Melhor, negra. Os filamentos bran- coe no tardariama cobrir ou. Caminhava pela estrada. Fatrada do Acaba Mundo: digs ‘mas curvas, silencio, maiasombras que silencio. (0 automével no buainou de Longe. Enem quando jase ‘encontrava perto de mim, enxerguei os seus fardie. Simples- mente porque nioseria naquela noite que o bronco desceria atéaterra. ‘As mogas que vinham no carro deram gritos histéricose dose demoraramadesmaiar. Osrapatesfelaram haixo.cura- ‘ram-se instantaneamenteda hebedeira ese puseram a diseu- tirqualo melhor destinoa ser dado ao cadaver. Aprincfpio foiazul. depoisverde.amareloe negro. Uimne~ gzoespesso, cheiode listras vermelhas, deumyermelho com- acto, semelhante.s denaas fitas de sangue. Sangue pastoco. ‘com pigmentos amarelades, deumamarelo esverdeado, qua~ se sem cor. Sem cor jamais quis viver. Viver, ansar bem os weecio suniko ‘iisculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de ‘homens, Havia silencio, mais combras que siléncio, porque os rapazes nio mais diseutiam baixinho. Falavam com navurali- dade. dosandoagiria. ‘Também oambiente reponsavana mesma calmaco cads- ver—omeu ensanguentado eadiver—ndo protestava contra 0 fim queos mogos Ihe desejavam dar. Aidéiainicial, logorejeitada,consistia emmetransportar para acidade, onde me deixariam no neerotério, Apés breve Aiseussdo, todos os argumentos analisados com frieza, preva eceuaopinito de quemen corpo poderiasujarcarro. Ehavia ainda inconveniente das mogas nto se conformarem emvia~ jaraoladodeumdefunto. (Nesse pontoclesestavam redouda~ ‘mente enganados, como explicarei mais tarde.) Um dos movos. rapazola forteeimberbe —ovinico que se impressionara com o acidente ¢ permanecera calado c aflito no decorrer dos acontesimentos — propos que se deixassem as garotas na estrada e me levassem para o cemitério, Os cari- panbeiros nio deramimportineia A proposta,Limitaram-sea condenaroman gostade Jorginho—assimlhe chamavam—ea sua ingensatez em interessar-se mais pela destino docadiver do que pelas lindas pequenas que os acompanhavazn, O rapzzola notow a bobagem que acabara de proferie e, ‘em encararde frente os eomponentes da roda, pbs-se 2 a3s0- var, visivelmente encabulado, ‘Nao puie evitar a minha imediata simpatia por ele, em viruade da sun razodvel sugestao, debilmente formulada aos ‘que decidiam a minha sorte. Afinal, ae longas caminhadas a puRorecurco TACKBIAS cansam indistintamente defuntos e vivos. (Esse argumento nfo me ocorreuno momento.) Diseutiram em seguida outras solugdese, por fim, consi- deraramqueme langar ao precipicio, umfundo precipicio, que rmargeava 2 estrada, limpar o chto manchado de sangue, lavar ‘eaidadosamente o carro, quando chegaasem acasa, seria alvitre mais adequado ao caso eo que melhor convirlaa possi- veiscomplicagdes coma pola, sempre dvida de achar misté- rioondenada existe de misterioso. Mas aquele seria um dos poueos deafechas que nao me interessavam. Ficarjogado emumburaco,no meio de pedrase ‘ervas, tornava-se para mim uma idéia insuportdvel. Bainde: 0 ‘meu corpo poderia, ao rolar pelobarranco absixo,ficarescon- dido entreavegetacdo, terrae pedregulhos. Setalaeontecesse, jamais seria deseoberto no seu improvisado timule ¢ omeu ‘nome ndo ocupariaas manchetes dos jornais. ‘Nao, eles mio podiam roubar-me nem que fosse um pe: ‘queno neerologio no principal matutino da cidade. Precisava agirripidoe deeidido: —Alte la! Tamhém quero ser owido, Jorginho empalideceu, soltou um grito aurdo, tombando desmaiado, enquanto o2 seus amigos, algo admirados por ve~ remumeadaver falar, se dispunhamaouvir-me, Sempre tive confianga na mina faculdade de conveneer osadversdrios,em meio as discuasoes, Nao seise pela forya da ‘ogica ow se por um dom natural, a verdade é que, em vida, en ‘vencia qualquer disputa dependente de argumentacio segura cinretorguivel Amortensoextinguiracssafaculdade, Eaclaosmensma- \adoresfizeram justign. Apéa curto debate, no qual expus com, clareraosmeusargumentos, osrapazes fieacamindecivos, em ‘encontrar uma saida que atendesse, a contento, as minhas ‘aades € ao programa da noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a siluaedo, sentiam a impossibilidade de Garrumoaum defunto que ndo perders nenhum dos prediea~ dos geralmente atribuidosaos vivos. ‘Seaum deles nto ocorresse uma sugestio, imediatamen- te aprovada, verfamos permanecido no impasse. Propunha ineluir-menogrupoe, juntos, terminarmoaa fare, isterrom- Pidacomemenstropelamento. Fntretanto, outro obsticule nos conteves as mogas ram. somente tree, isto 6, em nimero igual ao de rapaves. Faltava tuna para mime eunio ceitava fazer parte da turma desacom- ‘panhaclo. Omesmo raparqueaconselharaaminhainclusio no {grupo encontroua férmulaconciliatéria, sugerindo queaban donassemocolega desmaiado na estrada, Paramelhoraro met aspecto, concluiu, bastaria trocar a¢ minhas roupas pelas de Jorginho, oquemeprontifiquei a fazer rapidamente Depois decertareluténeiaem abandonaro compankeiro, concordaram todos (homens emulheres, estas jf restabeleci- das do primitivo desmaio) que ele fora fraco ¢ nao soubera enfrentar com dignidade a situagto, Portento, era pouco razoivel que se perdesse tempo fazendo consideragbes senti- mentais emtornoda soa pessoa. Do que aconteceu em seguida nfo guardo recordacdes ‘muito nitidas. A bebida, que antes da minha morte poueo me afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma agio surpreen~ % eC rrRottCnreo ace RAs dente, Pelos meus ofhos entravam estrelas, lures cujas cores ignorava, triingulos absurdos, cones o esferas de marfim, rosas nogras, eravos em forma de lirios, irios transformados em mios. Ea muiva, que me fora destinada, enlagando-meo ppescogo com o corpo transmudado em longo brago metélico. Ao clarear o dia, saidasemiletargiaemquemeencontra~ va, Alguém me perguntava onde cu desejavaficar. Recordo- ‘me queinsistiemdescernocemitério, so que meresponderam ser impossivel, pois quelahoraele ee enoontrava fechado, Re~ peti diversas vezes apalavracemitério. (Quem sabe nem che- gasses repeti-la, massomentemovesse oalébios, procarando ligar as palavras as sensagOes longinquas do meu delirio poli~ eromico.) Por muito tempo se prolongou em mim o desequilibrio entreo mundo exterior e os meus olhos, que nto seacomoda- ‘vam 20 colorido das paisagens estendidas na minha frente. Havia ainda 0 medo que sentia, desde aquela madmugada, quando constateiquea morte penetrara no men corpo. Nip fosse oceticiemo dos homens, recusando-se aceitar~ ‘me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambiczo de construir uma novaexisténeia. Tina ainda que lutar contra o desatino que, 4s vetes, se tornavasenhor dosmeusatos.eobrigava-meabuscar, ansioso, nos jornais, qualquer noticia que elucidasse.o mistério que ceercavaomeufalecimento, Fi varias tentativas para estabelecer eontato com meus companheirosdanoite fatal eo resultado foidesencorajedor.E cleseramaesperangaqueme restavaparaprovarquio real fora aminha morte wuniio sueiae No passar dos meses, tornou-se menos intenso o mew sofrimento e menora minha frustrago ante a dificuldade de ‘convencer o8 amigos de que o Zacarias que anda pelas ruas da cidade é 0 mesmo artista pirotéenica de outros tempos, coma, diferenga de que aquele era vivo eeste, um defunto. ‘$6 um pensamento me oprime: que acontecimentos 0 destino reservard a um morto ae os vivos respiram uma vida agonivante? Ea minha angistiacresce ao sentir, na sua pleni- tude, quea minha capacidade de amar, discernir as coisas, ¢ bem uperior dos seres que por mim passam assustados, Amanhi o dis poderd nascer claro, o sol brilhando como ‘nunca brithou, Nessa hora os homens compreenderdo que, ‘mesmo A margem da vida, sinda vivo, porquea minha existén- clase transmudou em cores eo branco se aproximia daterra paraexclusivaternurados meus olhos

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