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O Uso da Arte de Paisagem como Fonte para a Historia Urbana: Questdes de Método Valéria Salgueiro* Introdugao. A utilizag3o da arte como fonte para a historia envolve uma questo basica e central, que 6 a seguinte: como extrair da imagem significados para ‘além do imediatamente apreensivel numa leitura guiada pura e simplesmente por nossa oxperiéncia pratica e pelo senso comum? f A pergunta envolve, por si propria, duas premissas basicas, que assumimos como hipéteses de trabalho no desenvolvimento deste texto. Uma delas 6 a crenga de que a significagao da imagem pode estender-se para além daquilo se encontra descrito na cena retratada, apreensivel pelo observador com base em sua experiéncia pessoal de vida pura e simples; a outra 6 a de que a apreenséo de mais profundos niveis de significag&o do que o senso comum 6 capaz de realizar 6 possivel mediante a adogo de procedimentos metodolégicos adequados de leitura de imagens. Nossa tarefa neste trabalho é justamente penetrar na discusséo dosses procedimentos metodolégicos adequados ao desvendamento da significagao (*) Professora Adjunta do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Endere¢o p/ correspondéncia: Rua Domingues de $4, 373/1101; CEP 24,220-090 Niterdi RU; Tel.: (021) 714-5805. 2 da imagem, especificamente para 0 caso da arte de paisagem e de vistas urbanas. Inserimo-nos nessa discussdo sobre as pos: jades do uso da arte como fonte para a Hist6ria adotando, como método de trabalho, um exame dos principais enfoques tebrico-metodolégicos do objeto artistico na Histéria da Arte. O fundamento da escolha desse percurso decorre do reconhecimento das peculiaridades da linguagem artistica e de uma certa autonomia do fazer artistico em rela¢do a outras formas de criagdo, 0 que confere as imagens fornecidas por pinturas e gravuras utilizadas como fonte para a Historia a qualidade de serem, antes e acima de qualquer coisa, obras de arte. 1. Diferentes Abordagens do Objeto artistico A abordagem do objeto artistic pelos historiadores de arte tem se dado, desde a institucionalizag&o da Histéria da Arte como uma disciplina académica, no século 19, segundo algumas principais tendéncias, conforme podemos resumir a seguir: 1. A perspectiva da anélise formalista, representada por nomes como Konrad Fiedler, Adolph Hildebrand e Alois Riegl, no século passado, e Heinrich Walfflin, em nosso presente século, segundo a qual arte possui sua prépria histéria, interna, observadas suas mudangas por seus principais elementos - as configuragées de linha e cor.’ Seu objetivo central 6 a analise dos estilos. * Alois Riegl, Die Spatrémische Kunstindustrie nach den Funden in Ostereich- Ungarn, 1901; Adolf Hildebrand, Das Problem der Form in der Bildenden Kunst, 1893; Heinrich Walfflin, Conceitos Fundamentais da Historia da Arte, 1989. 3 2. A perspectiva warburguiana (Aby M. Warburg, Edgar Wind, Fritz Saxi, Erwin Panofsky), de acordo com a qual a histéria da arte 6 compreendida como histéria da cultura, isto 6, a compreensdo do objeto artistico 6 buscada dentro do contexto mais amplo das manifestacées culturais contemporneas ao objeto.” De acordo com essa perspectiva as fontes literérias, os documentos sobre a vida econémica, politica, reli sa, cientifica, etc, si0 fundamentais para 0 desvendamento do significado intrinseco da obra de arte, nao fazendo assim sentido o pressuposto formalista de uma hist6ria interna da arte. 3. A perspectiva perceptualista da arte, de acordo com a qual a observacéo @ interpretag&o do objeto artistico se apoia nos principios da psicologia da percep¢ao, 6 para a qual a linguagem do artista deve mais ao que ele vé, isto 6, aos esquemas de linguagem que ele absorve da sua cultura visual e que utiliza em sua propria arte, do que a um esforco subjetivo de observacio direta da realidade. Ernest H. Gombrich 6 © nome ligado a essa perspectiva® 4. A perspectiva semiolégica, a qual considera a imagem visual como um signo @ como sendo uma obra acima de tudo discursiva, criada pela elaboracao dos cédigos de reconhecimento da sociedade pelo artista e que a sociedade retorna em configuragées complexas e nem sempre possiveis de serem diretamente relacionadas A realidade. Essa no univocidade entre a arte e a realidade, longe de querer dizer uma frégil ou distante relagio com o real, porém, configuraria um tipo de relacdo, de 2 Edgar Wind, Pagan Mysteries in the Renaissance, 1968; Fritz Saxl, A Heritage of Images. A Selection of Lectures by Fritz Sax!, 1970; Erwin Panofsky, Significado das Artes Visuais, 1979. 3 Ernest H. Gombrich, Arte ¢ Hlusdo, 1986. 4 natureza a ser investigada. Um nome pioneiro nesta perspectiva 6 0 de Jan Mukarovsky.* 2. O Significado na Forma A abordagem chamada formalista, 4 qual sao associados os nomes pioneiros de Konrad Fiedler (filésofo), de Adolf Hildebrand (escultor) e também de Hans von Marées (pintor), desenvolveu no século passado um modo de pensar a arte ‘como uma forma de linguagem, Partindo da hipdtese de emancipagao da obra artistica frente as manifestacées da subjetividade humana, ocupa-se com o exame estilistico centrado na analise de uma gramatica plastica. O formalismo considera irrelevantes na obra a representac4o, o psicologismo das emocées, as idéias, o carter literario, anedético ou pitoresco, enfim os valores exteriores a arte e que possam todavia ser por ela veiculados. Alois Riegl, considerado como o grande iniciador da moderna histéria da Arte por sua postura inovadora para os padrées reinantes na historiografia da arte do final do século passado e inicio desse século, reagindo a certos preconceitos e questionando certos paradigmas na histéria da arte de seu tempo, da continuidade ao pensamento de acordo com o qual a arte é uma linguagem, com leis préprias. Faz porém uma revisdo das idéias de Fiedler e de Hildebrand, reagindo a suas posturas, que considerava preconceituosas e estigmatizantes. O pensamento de Riegl, apoiado na idéia de vontade artistica (Kunstwollen), 6 um passo importante para o avango da historiografia da arte, particularmente para a historia dos estilos. Sua visdo, ao despojar-se de certos estigmas e padrées de beleza, existentes alids até os dias de hoje, permitiu-ihe pesquisar certas relagdes de interdependéncia entre a experiéncia * Jan Mukarovsky, Escritos sobre Estética e Semidtica da Arte, 1990, especialmente o artigo "A Arte como Fato Semiolégico” (pp.11-17), de 1936. 5 figurativa e de tratamento do espaco, e o sentimento vital que permeia determinada 6poca, abrindo caminho para um maior conhecimento néo apenas da arte, na medida em que superou a idéia de decadéncia e de retrocesso atribuidos a certos periodos (nogdes que néo fazem o menor sentido na perspectiva riegliana), mas também da propria histéria da humanidade, ao buscar entender os contetidos relativos das varias manifestacdes historicas da vontade artistica e dos processos que operam sobre suas possiveis sucessdes.* Seguindo a tradi¢ao formalista, segundo a qual a arte possui leis préprias que concorrem para a existéncia de uma linguagem visual, Wélfflin vé desenvoliver suas categorias conceituais com o intuito de estabelecer uma metodologia de leitura e andlise da obra de arte, partindo de uma base formada pelos pressupostos de Hildebrand. O percurso metodolégico de Wolfflin, porém, muito mais elaborado, introduz o sentido da historicidade das possibilidades visuais na andlise e na critica artisticas, um pressuposto importante pelo qual o autor articula o exame estilistico a um modo de pensar de uma época. O trabalho de Wolfflin 6, nesse sentido, uma contribuigao enriquecedora da tradi¢ao formalista, ao introduzir na anélise formal, por meio de categorias de visibilidade determinadas, o reconhecimento de valores reveladores de uma moral e de um espirito proprios & época da obra. Seu ponto de partida, porém, 6 a forma. Wélfflin reconhece como problema central da hist6ria cientifica da arte a identificagao de uma lei operando na poduco artistica visual e arquiteténica, apesar de todas as mudancas que nela possam se passar e do que os homens tenham 5 Rieg| observa, por exemplo, o quo inexato seria seria falar de uma incapacidade dos antigos no que se refere a perspectiva linear, argumentando que sua inutilidade aos artistas antigos como recurso técnico a unidade artistica, mesmo que estes tivessem conhecido suas leis, conforme estabelecidas pela matematica mais recente, pelo simples fato de que sua viséo de espaco nao coincide com a concep¢ao de espaco renascentista. As colocagées do autor foram uma base fértil para os estudos de Erwin Panofsky em seu livro La Perspectiva como "Forma Simbédlica", bem como para Pierre Francastel em sua Pintura e Sociedade. Cf. Panofsky (1980) e Francastel (1990). 6 desejado ver. Para aprender o esquema visual préprio aos estilos, Wélfflin propée uma anélise da forma apoiada em cinco pares de categorias conceituais.° Na verdade, as sementes das categorias conceituais de Wélfflin esto em Hildebrand. Wélfflin, porém, reorienta esta influéncia para a direc8o apontada pelas idéias de Riegl, particularmente no que diz respeito ao pressuposto de uma historicidade da visdo, a qual fundamenta seu estudo dos estilos. A obra de Wolfflin permanece ainda hoje sendo uma importante referéncia na abordagem da arte como linguagem, partindo da forma e identificando os estilos pela descodificagdo da gramitica plastica em seus principais elementos sintéticos. Sua proposta de andlise apoiada em seu cinco pares de conceitos & sem divida, um rico instrumento metodolégico de andlise da estruturagéo do espacio, da sintaxe na articulago dos elementos do vocabulério utilizado na imagem, e de relagdes de hierarquia entre os elementos, aspectos formais essenciais na pesquisa de significado. Partindo da premissa de que a forma é em si significante e possui uma autonomia frente a subjetividade do artista e as outras manifestacSes no artisticas da cultura, a contribuicgo da linha formalista distingue-se daquela que considera a obra artistica como um signo. Os adeptos desta ultima adotariam uma linha de tratamento da arte segundo a perspectiva da cultura, para a qual a obra de arte 6 um signo na medida em que sua imagem se refere no somente a ele mesmo, mas também remonta a conjuntos mais amplos de valores culturais. A tradi¢&o da iconografia, ou warburguiana’, uma aluséo a Aby Warburg e aos historiadores de arte do Warburg institut (Londres), dentre eles Erwin Panofsky, constitui-se na, talvez, mais difundida linha de tratamento do objeto artistico sob a 6tica da cultura entre os historiadores. © 1. Linear e pictérico; 2. Plano e profundidade; 3. Forma fechada e forma aberta; 4. Pluralidade e profundidade; 5. Clareza e profundidade. 7 Ginzburg (1990), p.41 ¢ seguintes. 3. O Significado nos Documentos Escritos A abordagem da hist6ria da arte como historia da cultura, conforme entendida pelos historiadores do Warburg Institut, aponta caminhos para a pesquisa do significado do objeto artistico mediante 0 recurso a textos e documentos escritos da cultura a ele contemporaneos, nos quais busca encontrar informagées néo explicitadas no objeto artistico. A forma, digamos assim, mais didética dessa linha de abordagem apresenta-se na proposta metodolégica da andlise iconolégica de Panofsky. A adoc&o do pressuposto de que a arte 6 uma manifestacdo especifica de valores e da cultura de seu tempo levaria Panofsky a centrar na anélise iconolégica, e, portanto, na comparacao da arte com outros documentos da mesma época, @ principal tarefa da pesquisa do significado e, enfim, da Historia da Arte, Esté na base do pensamento de Panofsky a compreensdo da histéria da arte como historia das imagens, as quais, por possuirem um sentido ambiguo, nem sempre podem objetivamente revelar 0 contetido da representacao. Os esforcos de Panofsky nesse sentido, de busca do significado da obra de arte, somam- se aos de outros pesquisadores do Instituto Warburg, na Inglaterra, como Edgar Wind, Fritz Saxl e Ernest Cassirer, trabalhando com interpretagées que véo desde o significado simbélico das diversas formas espaciais até a anélise de pinturas & esculturas, onde se procurou demonstrar como leituras anteriores haviam mudado totalmente o significado original da obra.” ® © fundamento filoséfico da obra de Panofsky encontra-se na filosofia de Kant, da qual partiu Cassirer e @ qual influenciou toda uma tradi¢So de historiografia da arte do Instituto Warburg.(Ver Campos (1990), pp.36-42). Seu postulado é o de que & inexequivel um conhecimento absoluto do mundo real, uma vez que nosso préprio aparato mental possui limites que 0 precondicionam, conviccao esta que conduziu Kant a sua légica transcendental. O neokantiano Cassirer, por sua vez, parte da andlise da estrutura mental do homem, a qual afirma expressar-se por meio de simbolos. Seu objetivo 6 0 estudo das formas simbélicas nas quais se da o discurso humano, que afirma serem trés: a linguagem, o mito e 0 conhecimento, sendo a arte ainda uma modalidade particular de simbolizagéo. Mais que limitar-se a expressar um 8 Para Panofsky, que se ocupou com o desenvolvimento de uma metodologia de leitura da obra de arte em sua obra Estudos de Iconologia, posteriormente revista ¢ aperfeigoada em Significado nas Artes Visuais, esta tarefa desenvolve-se em trés niveis distintos, ainda que simultaneamente investigados © interdependentes. Estes niveis se constituem no que Panofsky denomina por anélise pré-iconogréfica, andlise iconogréfica ¢ anélise iconolégica. O autor aponta para um conjunto de procedimentos de descodificag3o da obra de arte, cada um correspondendo a um dos trés niveis de andlise. Sem divida a mais problematica das tras 6 a andlise iconolégica, a respeito da qual, aliés, Panofsky nunca foi inteiramente claro quanto ao que consite nem quanto aos procedimentos adequados para procedé- la. Implicito no método de Panofsky esté o fato de que se as obras literérias n&o explicam as artes visuais e a arquitetura, constituem com estas, contudo, manifestagées paralelas de uma dnica vontade artistica (Kunstwollen) de uma sociedade numa determinada época, @ foi justamente com essa premissa que 0 autor elaborou sua metodologia, pois somente através dela poderia Panofsky propor que 0 "significado intrinseco" da obra de arte poderia ser relacionado ao “significado intrinseco” dos documentos e demais materiais (politica, poesia, religiao, filosofia, sociedade) que revelam a personalidade do period em que foram produzidos. Outros autores do Instituto Warburg seguiram essa mesma linha como, por exemplo, Fritz ‘Sax! em sua obra A Heritage of Images. A Selection of Lectures by Fritz SaxP, de objeto, o homem, emocionalmente, o intensificaria pelo simbolo. Panofsky utilizou-se dos termos de Cassirer, para o qual os simbolos empregados pelo homem para a comunicago de suas representagdes do mundo objetivo possuem uma muito particular autonomia, para escrever sua obra A Perspectiva como Forma Simbélica. (Utilizamos a edic&o em espanhol La Perspectiva como ‘Forma Simbélica”, de 1980). Cf. Panofsky (1980). Esta, ao lado de suas obras sobre iconologia, constitui um ‘exemplo de analise formal nao formalista, isto 6, sem o pressuposto da autonomia da forma conforme a abordagem dos formalistas alemdes acima observados. * Utilizamos a edigdo de 1970, pelos editores Hugh Honour e John Fleming. Cf. ‘Sax! (1970). 9 1957, e Edgar Wind em sua Pagan Mysteries in the Renaissance'®, de 1958, dando sua contribuigdo tanto em termos te6ricos quanto metodolégicos. A obra de Panofsky e sua metodologia continuam sendo, porém, paradigméticas dentro da linha da historia da cultura, nao significando isso, todavia, que estejam livres de A historia da arte no mundo ocidental como uma disciplina académica tem até hoje privilegiado as estratégias analiticas de observacao e interpretag’o de imagens de Wolfflin - andlise dos estilos - e de Panofsky - anélise iconogréfica, ambas desenvolvidas em referéncia a tradic&o artistica italiana do Renascimento e do Barroco, tipicamente narrativa de dramas humanos. Lidar com imagens que néo se filiam aos referidos modelos envolve inevitavelmente lidar com dificuldades adicionais de técnicas e métodos de abordagem do objeto artistico."' lizamos a arte de Este 6 particularmente o problema que enfrentamos quando u paisagem como fonte para a histéria urbana, uma vez que neste caso no estamos tidando com uma arte narrativa de eventos contados em textos (biblicos, mitolégicos), ou que pode ser "lida" em relagao a textos, mas com uma arte antes de mais nada descritiva - descritiva da paisagem, da arquitetura, do uso do espago urbano e dos habits locais em assentamentos urbanos. Nesta, 0 campo chamado por Panofsky como 0 do tema secundério ou convencional, aquele que trata de imagens, estérias e alegorias, 6, pela prépria natureza da arte de paisagem de lugares reais - dita arte topografica - sendo inexistente, pelo menos muito reduzido diante do mundo dos motivos artisticos (que constituem o tema primério ou natural, segundo Panofsky). Nesse sentido, nfo é 0 campo das imagens, estérias e alegorias 0 que demanda maiores esforcos do pesquisador de histéria urbana utilizando a arte de paisagem *© Utilizamos a edicdo de 1968. Cf. Wind (1968). "Svetlana Alpers, em seu The Art of Describing, observa a dificuldade de adogao dos principios tedricos metodolégicos tanto de Wélfflin quanto de Panofsky no estudo da arte essencialmente descritiva da Holanda do século 17, na qual nenhum texto é narrado, como é 0 caso da tradic&o artistica italiana. Alpers (1983), pp.xx-xxv. 10 como fonte, j& que esta € em geral produzida sob um forte apelo de produzir documentago visual de cidades, como, por exemplo, a arte de paisagem produzida pelos artistas viajantes europeus aos quatro cantos do mundo na primeira metade do século 19. sso 6 equivalente a dizer que a proposta metodolégica de Panofsky, ao usarmos a arte como fonte para a histéria urbana, requer a transicao direta dos motivos para 0 contetido, ou seja, da descrig&o pré-iconogréfica, com os recursos da andlise formal, para a interpretago iconolégica, que entendemos aqui como a confrontac&o entre a arte e documentos escritos de uma mesma época. ‘A metodologia de Panofsky pressupée, antes de mais nada, um contetido simbélico da imagem, nem sempre imediatamente apreensivel pelo observador e cujo desvendamento considera a principal tarefa do historiador da arte. ‘Seu campo de busca é 0 do imaginério social, que procura penetrar com o objetivo de ir além do discurso dominante e das aparéncias. Seus pressupostos tedricos tem recebido contudo algumas criticas que julgamos serem oportunas de lembrar nesta discussdo metodolégica. Uma primeira questo a ser levantada diz respeito a uma critica de Pierre Francastel a Panofsky, feita no apéndice de seu livro Pintura e Sociedade, em torno de um ponto que justamente divide os dois autores, a saber a atribuic&o de historicidade ao simbolo, enquanto que o objeto simbolizado permanece como algo positivo e permanente, exterior ao homem. Essa orientagao tedrico-metodolégiga, enraizada como observamos em nota acima no pensamento kantiano, provém da concepggo de que a expresso humana 6 representacao e, sendo esta simbélica, inexiste 0 humano, mas téo somente o simbolo humano, j& que é impossivel, conforme cré, um conhecimento absoluto do mundo real. Quais s80 os parémetros, nesta arquitetura teérica, de compreensao do simbolo, jé que & esta que define o percurso do autor para penetrar no ima histérico? rio e apreender as dimensdes do mundo Aoremeter seus esforcos ao desvendamento do simbolo, aparéncia do real, n&o estaria Panofsky impossibilitado de aprender a dindmica da percepcao - diferente da representacdo - do préprio real? Nao seria sua proposta uma armadilha WwW no sentido de que buscando desvendar o conteddo simbélico da obra com 0 recurso a fontes ancilares, de outras esferas da criagdo humana, estariamos patinando sobre outras representacées igualmente simbélicas, as quais, no final das contas, néo fariam mais do que conduzir a pesquisa 4 circularidade, retornando sempre ao ponto de partida inicial? Outro aspecto que julgamos importante observar refere-se a0 e a0 principio corretivo apontado por Panofsky na descri¢ao método propriamente pré-iconografica com recurso & histéria dos estilos. Este principio encontra sua justificativa, conforme o autor, no fato de que nossa experiéncia pratica ndo 6 por si suficiente para uma correta descrig&o das formas puras. Configuragées de linha e cor pelas quais sdo representados os objetos e suas relacdes demandariam conhecimentos adicionais a nossa experiéncia pratica para uma exata descri¢o dos motivos da obra analisada. Para Panofsky esses conhecimentos adicionais seriam proporcionados pelo conhecimento dos estilos, que nos informariam como os objetos so representados em diferentes épocas e locais, inclusive as cidades e a paisagem circundante. O conhecimento dos estilos, conforme pudemos verificar, recebeu notdvel atengao dos pesquisadores da tradi¢ao formalista, cujo trabalho sobre a arte como linguagem e a busca de compreensio de sua gramatica conduziu-os a uma série de descobertas e sistematizagées relacionadas as configuragdes de linha e cor nas artes visuais. Foram as andlises dos formalistas e seus progressos que nos permitiram todo um método e um vocabulério por meio do qual podemos "ler" formalmente uma obra artistica e situd-la na época, no pais, na escola, e até atribui-la a um determinado artista, podendo assim identificar-Ihe atributos de forma e cor que Ihe conferem a pertinéncia a um dado estilo. Se Panofsky remete o problema da exata descri¢So pré- iconogréfica ao recurso & hist6ria dos estilos, queremos entender que 0 autor, se no se ocupa com a abordagem da linguagem artistica, também nao a dispensa. Pelo contrério, pode-se depreender das palavras do préprio autor que sua anélise formal no formalista pressupée uma abordagem da arte anterior 4 pesquisa iconografica, formalista, sem a qual seu método estaria impedido de um principio corretivo, para Panofsky imprescindivel a uma andlise rigorosa da imagem. 12 Com as consideragdes acima queremos dizer que a abordagem da tradig&o iconogréfica dos historiadores do Instituto Warburg, que possui em Panofsky seu grande representante, ndo nos parece insinuar-se como alternativa metodolégica & andlise da linha que atribui autonomia a arte, nem vice-versa. O método de abordagem da arte como histéria das imagens, formulado por Panofsky, nos parece insuficiente para a leitura da obra artistica, justamente por pressupor um conhecimento prévio, que somente a andlise formal seria capaz de proporcionar. S6 a partir desse conhecimento poderia a proposta metodolégica de Panofsky ser aplicada ao estudo da arte na busca do significado, a qual nao estaria ainda assim livre de restrig6es, conforme observamos acima. A abordagem formalista, por seu turno, tem sido criticada por, ao pressupor que a finalidade das formas nao deve ser buscada fora delas, desprezar a questo de como elas evoluem. Uma critica que consideramos injusta por nao levar emconta, primeiramente, os progressosrealizados desde Fiedler no tratamento da arte como linguagem e no aprimoramento dos métodos de andlise da linguagem visual pelos autores que o sucederam; e, em segundo lugar, por pressupor que a andlise formal seria 0 Gnico procedimento de leitura da obra artistica, quando acreditamos ser a mesma mais um recurso para ampliar aquela possibilidade. Em sua obra Pintura e Sociedade Pierre Francastel, por exemplo, partiu de uma dimensdo formal - a forma figurativa de representaco do espago pictérico -, desenvolvendo a partir desta perspectiva uma rica discussdo em que procura demonstrar os vinculos existentes entre as artes © determinados saberes no-artisticos como a antropologia, a etnografia, a matemitica. Independentemente da validade das descobertas por Francastel, seu trabalho exemplifica a complementariedade entre as perspectivas metodologicas na histéria da arte e como 0 desenvolvimento de um estudo pode enriquecer-se extrapolando os limites de uma Unica abordagem. Uma outra questo poderia ainda ser levantada com relagao ao pressuposto de Panofsky de acordo com o qual a arte 6 uma dimenso visual de questdes e fatos verificados em outras formas de criag&o cultural, uma questao que 13 esbarra no problema da circularidade apontado por Ginzburg.'? O problema da ‘ircularidade envolve o risco de a pesquisa do objeto artistico servir meramente para tatificar inferéncias feitas a priori, por influéncia das informagées obtidas pelo pesquisador de outros tipos de documentos que ndo o documento visual analisado, escritos, cuja escolha pelo pesquisador seria direcionada em fungao das conclusées que ele, previamente, pretende chegar. Esse risco de circularidade teria, enfim, o feito pratico de levar o pesquisador a descobrir 0 jé descoberto, o que se constituiria numa evidente fragilidade metodolégica. 4. A Arte como Objeto de Percep¢ao Gombrich, ao introduzir na analise do objeto artistico conceitos e principios da teoria da percep¢ao, abre novas possibilidades explicativas do objeto artistico, fazendo uso de um esquema de andlise onde séo fundamentais alguns conceitos emprestades da psicologia da percepgdo, dentre os quais destaca-se o de esquema. Por meio de conceitos-chave que incluem também os de projegio, esteredtipo adaptado e contextos mentais, Gombrich observa como o artista se vale da arte que ele vé, sugerindo a operacao de um processo em que a arte conhecida funciona como um modelo para o artista observar, classificar e descrever a realidade & sua volta, ressaltando a importancia dos esquemas familiares ao artista na formagao do vocabulario por ele utilizado, e da articulagdo de seus termos numa gramética plastica. Assim, para Gombrich, o familiar e o conhecido seriam sempre o ponto de partida para o artista descrever visualmente 0 desconhecido, o qual se valeria dos ‘esquemas que Ihe so familiares, deles tomando emprestado 0 vocabulério e a sintaxe, qualquer que fosse a realidade a ser visualmente descrita. ‘2 "De Warburg a E.H.Gombrich: Notas sobre um Problema de Método”, in Ginzburg (1990), pp.41-93. 14 ‘Ao mesmo tempo que defende o ponto de vista de que a observagiio no é uma atividade neutra, objetiva, Gombrich sustenta enfaticamente em sua obra o importante papel das convengées, dos tipos ¢ dos esteredtipos na arte."? Segundo Gombrich 0 ato de copiar um objeto - um rosto, um animal, uma paisagem - transcorre segundo um ritmo de esquema e correcdo, a semelhanga da 1a. O esquema no é produto de um processo de "abstragao", de uma ar", mas representa uma primeira categoria, aproximada e pouco pesquisa cienti tendéncia a "simp! igida, que aos poucos se estreitaré para adaptar-se @ forma a ser reproduzida.'* Essa forma mais ou menos acabada seria um recurso importante para o artista, funcionando como formula esquematica para ele olhar seu motivo e por meio do qual h, conduz imediatamente a outra nogio central que é a do principio do estereétipo classificé-lo e enquadra-lo. Essa idéia de esquema, central na obra de Gomt adaptado, de acordo com o qual um esquema, ou modelo, é adaptado a sua funcdo especifica, acrescido de certas caracteristicas distintivas, e suprimido de outras tantas desnecessarias, ou mesmo contradit6rias com a finalidade pratica da obra. llustram ‘essa idéia de Gombrich 0 fato de que cidades e edificagdes urbanas tenham sido historicamente retratadas visualmente de acordo com certos modelos que pouca relag&o mantinham com a realidade, como as ilustragdes da Crénica de Nuremberg, de Hartman Schadel.’* Nesta obra, uma mesma gravura de uma cidade medieval ilustra simultaneamente os casos reais das cidades de Damasco, Ferrara, Mildo e Méntua.'® O significado a ser colhido aqui é o de que elementos e formas *? Gombrich (1986), p.20. ™ Gombrich (1989), p.64. 8 A obra Lieber Cronicarum, também conhecida por Crénica de Nuremberg ou Weltchronik, de Hartmann Schadel, publicada em 1493, em Nuremberg, 6 considerada como pioneira e das mais importantes obras no género do livro ilustrado de vistas © perfis urbanos. Continha cerca de 2000 ilustragdes de cidades gravadas a partir de matrizes de madeira (xilogravuras), com as quais se buscava dar a conhecer como era 0 mundo a época de Colombo. *® Gombrich (1986), pp.60-1. 15 tipicamente denotativos de uma cidade alema da Idade Média encerravam a idéia de cidade da época para o europeu do norte, idéia essa forte o suficiente para que fosse utilizado como um estereétipo na ilustragdo de varias outras cidades que nao a do modelo, ou esquema basico. Num outro exemplo mais préximo de nosso tempo, uma litografia do século 19 da catedral de Chartres, executada no auge da arte topografica, apesar da grande quantidade de dados exatos e visualmente fidedignos sobre o célebre edificio, o artista também no escapou aos condicionantes conceituais de seu tempo projetados na forma, e aos limites que estes condicionantes Ihe impuzeram. O artista, neste caso, é um roméntico, para 0 qual as catedrais francesas so a fina flor do gético. Por isso concebe Chartres como uma estrutura gética, com ogivas, deixando de registrar as janelas romanas da fachada ocidental da edificagdo, que néo cabem no seu universo de formas.’” A idéla de esteredtipo adaptado conduziu Gombrich ao conceito de “vontade de formar" (Kunstwollen), téo caro aos historiadores de arte alemaes anteriores a ele, conforme observamos acima. Para Gombrich, a vontade de formar é mais uma "vontade de conformar”, ou seja, a assimilacao de qualquer forma nova pela schemata e pelos modelos que o artista aprendeu. As idéias de Gombrich para uma historia da arte apontam para a concluséo de que a linguagem da arte é mais do que uma metafora e que mesmo para descrever 0 mundo visivel em imagens faz-se necessério um sistema de schemata bem desenvolvido. Conforme afirma, toda arte tem origem na mente humana, em nossas reag&es ao mundo mais que no mundo visivel em si, e 6 exatamente por ser toda arte “conceitual", que todas as representag6es so reconheciveis por seu estilo.'° A perspectiva de Gombrich retoma a hipétese de Wolfflin de que todos os quadros devem mais a outros quadros do que 4 observacio direta da realidade. Em relagiio & tradi¢30 warburgiana representa uma recuperagdo da ‘7 Ver outros exemplos em Gombrich (1989), p.62. *8 Gombrich (1989), p.77. 16 preocupac&o com o problema do estilo pictérico e da pesquisa de significado da arte strumentos analiticos da teoria da na prépria forma, com o recurso a conceitos € percep¢So. Como observa Ginzburg, porém, a andlise de Gombrich representa uma porda em relago a tradicSo warburguiana, no sentido de seu reduzido interesse pela relago reciproca entre os varios aspectos da realidade histérica e os fenémenos artisticos.'® Para Bryson, as idéias de Gombrich em seu Arte e /lusdo assumem ‘a existéncia de um desenvolvimento continuo na arte na direcdo da mimese com o real, consistindo esse desenvolvimento em um processo que ele denomina por “modificag8o gradual das convengdes esquematicas tradicionais do fazer da imagem sob a pressio de novas demandas".”® Uma perspectiva perceptualista semelhante 6 adotada por Pierre Francastel em seu Pintura e Sociedade. A questao levantada por Bryson 6 a de que para a perspectiva perceptualista, a transacdo essencial diz respeito a0 olho @ as acomodagées necessarias ao esquema para as novas observacdes que o olho necessita fazer. O artista adapta seus esquemas familiares as demandas visuais de seu tempo e produz a nova forma, o que, em sintese, se constitui no processo de mudanga estilistica. O espectador, por sua vez, & definido por essa perspectiva perceptualista como perfazendo uma atividade na qual aqueles termos reaparecem de uma forma francamente passiva: ao confrontar-se com uma nova imagem o espectador mobiliza seu estoque de memérias perceptivas, traze-as de volta para teste, e os esquemas visuais séo modificados pelo encontro entre a nova imagem @ 0 olhar do espectador. A questdo central da critica de Bryson a Gombrich é a de que sua perspectiva perceptualista ndo deixa qualquer espaco para a relac&o entre a imagem e 0 poder. A perspectiva se esgota numa descrigao do fazer da imagem, a qual omite ou aprisiona a formagao social jS que para a perspectiva perceptualista a tarefa do pintor & transcrever percepcées de modo téo exato quanto possivel, assim '® Ginzburg (1990), p.88. © Bryson (1991), p.63. 7 como & tarefa do observador receber aquelas percepgdes com a maior sensibilidade, sem a menor interferéncia de “ruidos".”' Segundo Bryson, Gombrich omite a cadeia de poder existente entre os dois polos formados pelo artista e espectador - 0 patrono, a Igreja, 0 Estado -, cadeia essa poderosa o suficiente pois siio seus elos que permitem ao artista realizar seu trabalho. A idéia de poder torna-se, na perspectiva perceptualista, segundo Bryson, estranha ao fazer da imagem.” Vejamos a proposta de Bryson para contornar essa fragilidade que ele aponta em Gombrich. 5. Tramas de Discursos e Significacao Tentativas mais recentes de abordagem da arte como signo tem buscado ngo apenas colocar em novos termos de definig&io 0 que vem a ser esse objeto - 0 objeto artistico -, mas também repensar a arte em suas rela¢des com estruturas de idéias, de poder e de comunicacdo na sociedade.”* Uma tal perspectiva metodolégica é sintomatica de uma época em que os mecanismos de comunicago so cada vez mais atuantes e complexos, despertando mais do que nunca no pesquisador a sensibilidade para a importancia das trocas reciprocas entre artista, mecenas, publico e outros atores a influir de uma forma ou de outra na produgao artistica. Bryson propée uma reaproximagao entre historia da arte e filosofia, um repensar de certas questées essenciais como o que é a pintura, qual sua relagao com a percepcao, com o poder, com a tradico. Sua proposta para uma historia da arte atualizada com os métodos mais recentes de investiga¢do da cultura é a de um 2 Bryson (1991), p.63. 22 Bryson (1991), pp.62-4. 23 Bryson (1989), p.xi. 18 enfoque semiolégico da arte, de acordo com o qual pintura é considerada como um sistema de signos.”* Su: 6 a de uma énfase no signo, deslocando para segundo plano o conceito de percepgao, isto é, procurando substituir a idéia de que a pintura & um registro de uma percepedo, a qual j4 estaria presente aliés nos Discourses de Reynolds”, ao final do século 18, em Modern Painters, de John Ruskin’®, em meados do século 19, ¢ na obra que representa o encontro entre a estética alema e ‘a estética inglésa, Art and illusion, de Emest Gombrich, em 1960. Seu objetivo é substituir 0 enfoque perceptualista do tipo "duas colunas" - os eventos sociais, de um lado, e a pintura, de outro -, por uma aproximagao cujo ponto de partida 6 acima de tudo 0 espectador e 0 papel do plblico na produgio artistica. Séo referéncias importantes na perspectiva semiolégica do estudo da arte a posi¢do teérica de Jan Mukarovsky””, e as obras de Svetlana Alpers”, um estudo da cultura visual holandesa do século 17, ¢ de Michael Baxandall”, em que o autor examina o papel do publico na produgao pictérica italiana do século 15, observando o quanto foram as pinturas dessa época produzidas pela cultura, por uma mentalidade coletiva que se manifestava por sua expectativa. Bryson chama também a atenco para os viéses de uma outra alternativa de abordagem da arte, que parece pertencer ao extremo oposto, de perspectiva materialista. Esta, diferentemente da perspectiva perceptualista, privilegia as relagdes sociais de produgdo e olha para a arte exclusivamente da perspectiva da 24 Bryson (1991), p.61. io. de 1945, Longinus On the Sublime and Sir Joshua Reynolds Discourses on Art, com introdugao por Elder Olson. Cf. Cf. Reynolds (1945). 26 Utilizamos a edi¢ao de 1987, editada e comentada por David Barrie. Cf. Ruskin (1987). 27 *& Arte como Fato Semiolégico”, in Jan Mukarovsky (1990), pp.11-17. 28 Alpers (1983). 2° Baxandall (1991). 19 producdo material e dependente das relagées sociais determinadas pelas relacdes materiais de produgSo na sociedade.”° Essa posicao considera a arte pertencente 4 superestrutura, a qual ndo pode ser entendida sem a andlise da base social e, em particular, da base econémica. Para Bryson, apesar do caréter social do signo, um postura economicista 6 to viciada quanto a perspectiva perceptualista.°' Nesta, 0 carter social inerente ao signo & eclipsado pela visdo do artista trabalhando isolado em seu estudio, entregue a percepgées visuais, e ligando-se ao mundo por um contato btico com a superficie das coisas, sendo sua principal dificuldade a acomodagao do stala-se esquema ao influxo de novas sensagdes. Na perspectiva materialista, porém, ‘0 mesmo sequestro da arte do dominio pUblico, pois embora a histéria social da arte pretenda um contato do atelier como resto da sociedade, este contato em geral torna- se estritamente econémico.,? O principal interesse do historiador social da arte em geral & debrucar-se sobre as relages materiais de producgo e pesquisar as ligagSes entre a base material e os produtos da cultura. 0 argumento de Bryson, contudo, 6 0 de que as ligagées entre o artista e seu patrono ou a classe a qual pertencem os mecenas da arte, ainda que reais e de grande importancia 4 compreensio da arte e do processo de produgio artistica, nfo s8o as wi cas ligagdes entre o artista e @ sociedade, considerando a existéncia de um fluxo mais complexo de ligagSes que atinge 0 artista, como também a classe de patronos da arte, e todos aqueles que enfim participam do cédigo de reconhecimento: o fluxo de signos, de discursos, de poder discursivo emanados da cultura.*? Foi 0 reconhecimento dessa complexidade apontada por Bryson que levou Baxandall a examinar as condigdes de mercado na produgao artistica italiana 20 Bryson refere-se aqui certamente a autores como Ernst Fischer (A Necessidade da Arte), cujo ponto de partida 6 a relagdo entre o artista e a sociedade no modo capitalista de produggo. ® Bryson (1991), p.66. % Bryson (1991), p.69. 38 Bryso (1991), p.69. 20 do século 15, buscando com esse procedimento metodolégico conhecer quem era o mecenas, como se relacionava com o artista, caracteristicas dos contratos de trabalho, formas de pagamento, etc. Baxandali, porém, ndo para por al. Seu estudo ‘expande-se para uma investigagao do olhar da época, e nesse percurso o autor busca compreender o papel do pubblico, pelo menos do puiblico ao qual as obras artisticas se destinavam, na forma de expectativas para com a obra - habilidade, talento -, e que influfam no trabatho do artista de modo decisivo. A convengao, conforme Baxandall, ‘era que o pintor deveria fazer de sua superficie plana algo que sugerisse um mundo tridimensional, e Ihe era atribuldo mérito por isso. Para a Itélia do século 15, 0 fato de observar tais representacées era uma espécie de intuicp&o que implicava certas expectativas, que variavam de acordo com o lugar previsto para o quadro - uma igreja ou "salone" -, sendo que uma era constante: o observador ... esperava "talento". O termo expectativa é particularmente importante na perspectiva metodolégica de Baxandall, pois refere-se a algo que poderiamos designar como uma espécie de situacdo de pressao cultural sobre o trabalho do artista, cujo efeito objetivo é fornecer- Ihe diretrizes e ao mesmo tempo constrangimento para trabalhar. 0 papel da cultura visual - termo chave na obra de Baxandall e que foi também central, posteriormente, para o estudo de Svetlana Alpers da arte holandesa essencialmente descritiva do século 17 - e seu efeito como estimulagdo & constrangimento ao mesmo tempo para o artista, é assumido pelo primeiro como essencial na compreensio da forma e do significado artistico. Embora no conjunto de operagées mentais da experiéncia visual humana constem aquelas de natureza fisiolégica, uma boa parte delas 6 determinada pela sociedade em virtude da influéncia que exerce sobre a experiéncia individual. Ao fruir de uma imagem, o espectador utiliza, evidentemente, as capacidades visuais de que dispée; porém, conforme observa Baxandall, sendo estas em numero muito reduzido especificas a pintura, 0 % Baxandall (1991), p.41. Baxandall usa o termo observador no sentido de espectador. O termo talento, por sua vez, deve ser compreendido historicamente, que para a cultura do renascimento sit ficava a capacidade de mimese do artis 21 observador é levado a usar as capacidades que sua sociedade mais valoriza. O pintor 6 sensivel a tudo isso @ deve se apoiar na capacidade visual de seu publico. Quaisquer que sejam seus talentos profissionais de especialista, ele mesmo faz parte dessa sociedade para a qual trabalha, e compartilha sua experiéncia e hébitos visuais.* A perspectiva tedrico-metodolégica do estudo da arte como fato semiol6gico vai mais além da analise do comércio entre artista e publico, levantando a possibilidade de mudangas - formais e conteudisticas - gragas 4 renovagio inerente & propria dinamica da sociedade e de suas relagdes. Ao considerar a imagem visual como signo, a perspectiva da semiologia na hist6ria da arte busca realocar a arte no dominio social e pensar a imagem como uma obra acima de tudo discursiva, e que nessa qualidade retorna para a sociedade. Segundo entende, 0 artista absorve os cédigos de reconhecimento da sociedade e desempenha seu trabalho sob seus limites @ restriges (dos cOdigos), embora os cédigos permitam elaboragées de novas combinagdes do signo, isto 6, possibilitam uma evolugao na formagao discursiva. A obra significativa retorna a sociedade, circulando em correntes frescas e renovadas de discurso. Por assumir a possibilidade de renovacao, e considerando que as esferas da vida humana possuem dinamicas diferenciadas de mudanga, surge, ainda, um complicador adicional e, ao mesmo tempo, uma alternativa adicional de especulacao e de aprofundamento na discuss3o metodolégica do significado na arte: trata-se da nao univocidade de correspondéncia entre as configuragdes de signos e a realidade. A configuragao de signos que constitui uma imagem particular nao necessariamente corresponde a configuragdes nas esferas politica e econémica, dai a critica de Bryson a perspectiva materialista que pressupde essa correspondéncia como direta e objetiva, e incorre, por isso mesmo, na eleicao arbitraria do que vem a ser verdade e mentira na histéria a partir da observacéo da imagem. As particularidades que a imagem vai assim adquirindo conduziriam a frequente auséncia % Baxandall (1991), p.48. %® Bryson (1991), p.70. 22 de uma correspondéncia univoca entre 0 signo e a realidade, conforme observou Mukarovsky. Para este autor, a obra de arte, como qualquer signo, pode ter uma relacdo indireta com a coisa que designa, metaférica por exemplo, continuando, apesar de tudo, a se Ihe referir.” Um individuo caminhando s6 por uma praga, por ‘exemplo, pode ser um modo préprio de o artista a multidéo, pela via do contraste. Uma obra pode também ter uma relacdo complementar com a realidade, o que para Baxandal seria motivo de grande valorizacao pelo publico, j& que & enquanto complemento da cultura que melhor se presta a satisfazer suas necessidades, posto que © pUblico nao necessita daquilo que jé tem.°* Assim, uma cena em que reina a ordem e a cortesia entre os figurantes poderia ser uma compensago ao desagrado do publico pela desordem da cidade, pela falta de solidariedade e individualidade nas praticas sociais urbanas modernas. Em consequéncia do pressupdsto do caréter discursive da obra de arte e da complexidade inerente as cadeias discursivas a partir dela para a sociedade e da sociedade para ela, a proposta da perspectiva semiol6gica traz consigo um apelo auma revisdo da idéia de contexto original de produc&o da arte, propondo que este seja entendido pela disciplina da histéria de modo muito mais global, consistindo numa complexa interagao de todas as praticas que compéem a esfera da cultura: as praticas cientificas, militares, médicas, religiosas e intelectuais, as estruturas legais ¢ politicas, as estruturas de classe, a sexualidade e a vida econémica numa dada sociedade. Em termos praticos, poderiamos entender 0 apelo a uma sensibilidade do historiador a esfera interativa formada por todas as dimensdes acima, contudo, como algo semelhante ao percurso sugerido por Panofsky naquilo que este chama por andlise iconolégica, isto é, na andlise do contetido ou significado intrinseco da obra, ou, conforme o proprio autor, quando a anélise iconografica do objeto artistico se torna interpretativa. Ao buscar-se ultrapassar 0 confinamento de uma 37 Mukarovsky (1990), p.14. 38 Baxandall (1991), p.56. 23 Ieitura exclusivamente intrinseca, ou, por outro lado, puramente social, a pesquisa de uma interagéo complexa, onde forma e estilo possam revelar significagées intensas e densas, deve obrigatoriamente estar atenta 4 complexidade de influéncias e efeitos nas diferentes dimensdes da cultura, e, além disso, a0 fato de que as correspondéncias entre 0 signo e a realidade muitas vezes séo complexas, no univocas, e até invertidas, portanto n&o objetivamente identificdveis. Nisso a contribuigdo da perspectiva da semiologia se distingue da de Panofsky, e essa distingdo 6 um dado essencial no tratamento da arte como documento hist6rico, pois alerta 0 pesquisador para o fato de que nem sempre 6 possivel encontrar em outros documentos da cultura de uma época ou naco informagées diretamente relacionadas a0 representado, ou, utilizando 0 jarg4o Panofskiano, localizar equivalentes do significado intrinseco. Enquanto que Panofsky sugere 4 compreensdo do simbolo por meio do recurso a fontes escritas®, a perspectiva da semiologia aponta para uma complexidade muito maior do objeto artistico devido o seu caréter discursivo, para cujo desvendamento de significado ndo reconhece a primazia de nenhum tipo de fonte em particular, valorizando justamente a emissio de sinais e mensagens inconscientemente projetadas na obra pelo artista, cuja origem 6 tarefa do pesquisador procurar. 3 Em Histéria da Arte, alids, "simbolo” pode sempre ser lido por um texto ou com recurso a fontes escritas. A relacdo com um texto, por meio do qual o simbolo pode ser “lido", se estabelece em virtude das conotagdes com as quais os simbolos séo investidos, sempre num sentido arbitrario, e de algum modo relatadas nos textos de uma época e de uma dada cultura. Cf. Roskill (1989), p.94-8. 24 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALPERS, Svetlana (1984), The Art of Describing. Chicago University Press. 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