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52 peter ayo ‘Ademais, Gramsci também achava que as classes subalternasatingiriam maior unidade por meio da capacidade de falarem uma lingua comm, que, entretanto, no fosse ‘artificial’, “mecénica” e “a-histSrica”~ aspectas que atribufa ao esperanto (Gramsci, 1985, p. 29), Essa unidade nao seria aleangada se diversos grupos regio- nis nas classes subalternas se restringissem a falar 0 seu dialeto particular. Para Gramsci, no é apenas a cultura dominante que tem de ser subjugada nos processos da educagio de adultos, mas também o conhecimento da hist ria. Como com o cdnone, que tem as suas ralzes no passado, a histétia tam- ‘bém precisa ser confrontada, dominada e transformada. A histéria deveria ser uum aspecto da educacio de adultos da classe operéria, Ele afirma: Se éverdade que a histéria universal é ume corrente constitulda pelos esorgos ‘quec homem realizou pera livear-se do privilégo, do preconceito eda idolatia, entio é dif entender por que o proletaredo, que procura acrescentar outro lo corrente,ndo deverieconhecer como, porque «por quem fol precedio ou ‘que vantagem poderia derivar desse conhecimento (Gramsci, 1971, p. 41). Considero que a questo de uma apropriagio critica da cultura dominan- te seja central para a exploragéo da contribuigao potencial que os textos de Gramsci podem ter para o desenvolvimento de uma teoria da edueagao de adultos radical. Hé outras questBes, entretanto, no que concerne ao conteido, enfatizadas por Gramsci. Adiscussio anterior sobre e democracia no local de trabalho destaca a importéncia que ele atrbuia a0 compartlhar pelos traba. lhadores do conhecimento de todo o proceso de produgio e do seu apren zado de habilidades econémicas e adiinistrativas Sendo primeiro e principalmente un marzista, Gramsci deve ter conside- rado importante o procesto de edicacio pela praxis. A nogdo de présds que Perpassa os seus textos é a que acarreta uma fusio absoluta entre o mundo educacional e o da produgio. E por essa razio que ele revelava umn fascina fo pelas formas de arte que destacavam o relacionamento entre os seres Jnumanos ea indistria, De fato, as suas cartas para Trotski sobre o Fututismo si indicativas de sua preocupagao com essa questéo. O movimento faturista buscava colocar um fim ao residuos burgueses do fin de sicle igualando 0 modernismo artistico com o industialismo, Gramsci arma que as resenhes culturais do movimento eram lidas pelos membros da classe operdria€ ou. va-nos por terem “apreendide aitida e claramente que a nossa época, a época da grande indistia, da cidade proletéria enorme e da vida intensa e tumult. ade, necessitava formas novas de arte, ilesofia, comportamento elinguagem” (Gramsci, 1985, p. 51). O poeta eidediogo futurista Filippo Marinetti também foi convidado pelos coordenadores dos canselos de fébrica a expliear aside. as do novo movimento para os trabalhadores, E caro, sua crenga no movimento futurista tornou-se amarga posterior ‘mente, pois muitos de seus adeptos alinaramn-se com a causa fascista fato que elereconhece em uma carta pata Trotski (Gramsci, 1985, p. 52). O seu entusias- Gams, ree ©2 Eduacio de Adios 53 ‘mo inicial pelo movimento, entretanto, indica o seu interesse nas formas de arte que enfatizam o relacionamento entre os seres humanos e a industria. E esse interesse que o levot. a afirmay, um tanto idealisticamente, que Otmbathador esta e naballa; o seu trabalho destud eo estudo é trabalho, Para er um especialista no sew trabalho, o twabsthdor coloea o mesmo mimero {de anos que leva em média pare se obter um diploma universititio, No encanto, ‘otrabelhadorrealiza 0s seus estuéos no proprio ato de fazer um trabalho ime. diatamente produtivo..Tomando-se dominante, a classe operdria quer que © ‘wabalho manual eo trabalho intelectual juntem-se na escola a, assim, erie ‘uma nove tradigio eduoacional (Gramsci, 1985, p43) CONCLUSAO Antonio Gramsci via na educagio ¢ na formagio cultural de adultos a chave para a criagio da ago contra-hegeménica, Ele considerava essenciais, cesses processos para que os grupos sociais subordinados se engajassem com sucesso na “guerra de posigao” necesséria para desafiar o Estado burgués e ‘ransformé-1o em um Estado que representasse interesses mais amplos. £ por essa razio que considero o seu trabalho da maior relevancia para o desenvol- vimento de uma teoria da educacdo radical de adultos, O desafio é, a partir dos insights de Gramsci, desenvolver uma estratégia de educagio de adultos que contribuir para transformar a sociedade em tima otra que represente os. interesses de todos aqueles grupos de pessoas gue, sab as atvais circunstanci- as, ocupam uma posigio subordinada na estrutura de poder. Notas 1. Uma versio mais eurta dasse capitulo foi pubicada como seqio em Neyo, 19948, 2. Morrow, 1987; Morgan, 1987. 3. Livingstone, 1976, p 238. Aénfase sobre “todos os aspectos da vida soa” indica ques hegemonia se estende além do conceito de dominagao ideotégica para de- fotar "todo um corpo de prétias eexpectativas" (Williams, 1975, p. 205). Paula ‘Allman nio considera que essa interpretagio da hegemonia signfique tanto algo ‘que se estende além da deologis, mas como representando um elargemento des ‘= iltima conceto, Ele argumenta que Gramsci foie primeiro marsista, no #8 1oXX, aexpandiro conceito de iaologle, localizanda a sua expressio nao apenas nasidéiase no pensamento, mas tn tecido social, alguns dos qusis, mas néo todas, poderiam ser zente para as relagées soiais de produc” (Ver Allman, 1988, p. 200), Gramsci, em Manacorda, 1970, p. 32, ‘Ver Gramsci, em Manecorda, 1970, p22 8. Broccoli, 1972, p. 28; Merrington, 1977, p. 144; Adamson, 1980, p. 45 5A pater nano 7, Essa éuma tadugtovitalmente literal d ida express, em tal de Sérgio Caruso ~ Caruso, 1997, p 85,86 8 CL.Letcono 1977, p.8; Cask, 1977, p51; Adamson, 1980p. 45. A refer, Kail Mar en que Grams eparentementeatace com seversade o que dens -omsiderado como o economicismo rgido dos nones do materials hiane um tanto desconcertane, Ojovem Gramsci esava ating realinenes => rigidez ao préprio marxismo? Walter Adamson argu . inimigo real a esse respeit ca Karl Marx, nem mesmo 6 Kerl Mame Capi Osesininigorel ee omarksmowlgazado queer peng tera Segunda intemacional” (Adamson, 1980, p. 45). Ne sua diacusero ae ee roto, Ae shows Sxaon cnt werrense aco funda Internacional como 0 alvo do ataque dee (Showstack Sessoon, Loh 29), Davese trem mene, contd, que Grae no tee ean or pron rats de Mars nos uas le faece eos to, ano muta ee cin to interjogo ene a capuidae dos sees himanos Ge seem soe == Iinri eas dotrmanaséesetraas 8 9. LaBelle, 1985, p. 49; Camcy 1982.85 10. Maris em Gram 11. Gramscien 13, Wilton, 1992, p25; Welton, 1993, p. 220. Michael Welton dstingve entzg “eseolas de uabatho”e Yescolas de trabalhadres". Ble define as pimeizee oe ® losis de trabalho organizados socinlmente, embutidos em retes ce cone nico, soci e politico". As escola de trabalhadores so “aqueles xpary 1 0 préprios rabal izantes ay ‘para vefletir sobre o significado ¢ sua cultura” e ests i férunt,jomas, peiéicos, programas de exensfouniverstérin, 0 WEA. (Welton, 191, p. 25; 1998, p. 220), . 14, Gtado em Merrington, 1977, p. 159, 15. Gramsci, em Caruso, 1997, p-81 16. € Nowell Smith em Gramsci, 1971, p. 329. 1. da em Gramsci, 1972, p. 3%. 18. Gramsci, 1957, p. 30; Gramsci, 1964, p. 799 1B. Enosmado date por Ladue Neate C98) goa eu usando esencalista” neste lio, De acondo com ess tizagio, esencilgmo se? scan ug ules pn tee oe sec pe oe me fo 21. Gn at ast pn gus 0 mtn cao gl se ng além de Turim es suas atividadesnio eram apoiadas por outronsetoree eet ‘vimento opertirio, incluindo os sindicatos. Mo. 22, Ultss cfr rao nlp ei Grms seen aap cate cgogs woe eae . 25. ‘ns 3976p 39 Awake lent no to cg em tas Sones ches vem staeroin caesar an ees 1978, p. 39). * ; } i 2s. 26. 27. Ganga, frre ea Edveario de Adutos 55 ‘Traciualto quase literalmente da Introdugio em italiano por Manacorda, em Gramsci, 1972, XV. CCuprioglio, em Gramic, 1976, p. 216. Gramsci, em Manin, 1973, p- 5 (Gramsci, 1977, p. 111, Gramsci, em Manacorda, 1970, p. 46. Lajolo, 1985, p. 35. A passage relevante no liv de Lajolo iz oseguinte: "Duc rate le accese diseutsioni del ‘Chub Vita Morale, Gramsci non parla melts: preferiece daze suggerimenti di comportamento etic, 0 chiedere precisazioni ¢ favanzare obiezioni al fine di evitare il procedimento contradittorio dei ragionamtent, con Ieteggiamento dl msestro socratico, delleducatore paziente arespeito da excolarize betive de enticar os expoentes da "nova socio- logis da ecucagio que te bateiam em concetos gramscianes. Guy B. Senese, 1991, também impée uma leitura conservadora sobre Gramsci na sua crtiea dos expoentes da pedagogia entea "possDltsristas"), notadamente Henry Giroux, Stanley Aronowitae Peter McLaren, Esees tds excritores também se baseiam em (Gramsci no sou trabalho, Gramnsci, 1971, p.141; Gramsci, 1971; 6. nin, ctado em Entwistle, 1979, p. 44; Lenin em Broccoli, 1972, p. 66 ‘em Grama, 1972, psx, Fargees e Nowell Smith, em Gramsci, 1985, p Forgees e Nowell Smith, em Grams, 1985, p. 344 CE Gramac, 1966, p. 246, 247; Gramsci, 1985, p. 72. CE "Americanism e Fordism”, em Gramsci, 1971; 296; ef. Simon, 1982, p90. (Giroux, 1980, p. 312; 1988, p. 201, 202; Apple, 1980, p. 437, 438 Gramsci, 1972, p. 325. Devo a Adamson, 1960, p. 151, por chamar a minha ater fo para esse cites Forgas e Nowell Smith, em Gramsci, 1985. Paulo Freire e a Educacdo de Adultos Paulo Freire é amplamente eonsiderado um dos personagens Uderes na tes da pedagogia etic. Este tipo partic de pedagogie preocaps: se com questBes que dizem respeto as diferengas socieis,&justiga social © Naansformagto social (MeLaren, 1994). Diferentemente de Gramsci, Freire tscreve prinepalmente desde a perspectiva de tm edicador em vez de un Shalista politico. Apesar de seu envolvimento tardio como secretério de educagio na cidade de Sao Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Seus textos nao contém formlasdes para uiua estratéga partideria abren: gente, Em sua maioria, concentram-se em quest6es pertinentes & educa G0, muito embora estas sejam diseutidas em um enguadramento de dix EussBes mais amplo e geral a respeito de formas de opresslo eas possbil dades de transformacao socal, Entretanto, como Gramsci, Freire sublinha o forte relacionamento que existe entre a educagto ea poitien "Eimpos- sivel negat, exceto intencionalmente ou por inocéneia, 0 aspecto politico da educagao” (Freire, 1976, p. 70). PEDAGOGIA POLITICA Os textos de Freire sfio embasadas em uma critica dos métodos educaci onais tradicionais. A frase de Giroux, a “linguagem da critica’, assim como o seu corolério, “a linguagem da possibilidade”, foram utilizados em relagio ao trabalho de Freie: 5B peter nayo Freire apropriow-se de heranga no professada idéia emancipatéria presente aque versbes de filosofareligosa ¢ secular localzada no corpo do penstmen to burgués, le também integrow eriticamenteno seu trabalho una heranga do pensamento radical sem assimilar muitor dos problemas que ase ‘camente, De fao, Freire combinou o que chemo linguagem da critiea com a Tinguagem da possibilidade (Giroux, 1985, p. Xl; 1988, p. 108), Baseando-se em suas vivéncias na América Latina, em seus primeiros textos, Freire projeta uma visio de sociedade como caracterizada por relagbes de poder e dominacdo. 0 foco sao os meias ideolégicos pelos quais equeles em uma posigéo de privilégio e poder (os opressores) exercem 0 set controle sobre aqueles a quem exploram (os oprimidos); as relagées sociais que si0 constitutivas desse poder séo prescritivas por natureza, Esse processo de pres: ctigio ¢ faclitado por uma variedade de meios, incluindo a educagio tradici- onal dominznte, A educagao dominante é caracterizada pelo que Freire cha- ma “educagéo bancéria” (Freire, 1970, p. 58), uma abordagem “de-cima para. baixo” de transmissto do conhecimento, pela qual o professor é o transmissor exclusivo do conhecimento e os estudantes sao os seus recipientes passivos (Goulet, 1973, p. ID. Hla constitui um modo nfio-reflexivo de aprendizagem Garvis, 1987, p. 90). Assim, a educaglo toma-se um ato de depésito, no qual os estudantes so os Aepositrios eo professor € @ depositante. Em vez de comunica, 0 professor ‘mite comunicados e faz depésitos que os estdantes recebem, memorizam & repetem pacientemente. Esse €o conceita banciro de educagio, noqual a acéo sndxima permitda aos estudanceséreceber, arulvar e armazenat os depésitos (Greire, 1970, p. 58. Sob essas contligdes, o aprendiz é “objeto” em vez de “sujeito” do proces- so de aprendizagem. A deferéncia & autoridade, um consumo acritico do’ co- nhecimento ¢ uma imersao no que Freire chama a “cultura do silencio” sito os resultados provaveis desse processo. O modo prescritivo de pedagogia destx6i qualquer sentido de relacionamento que o edlucando possa ter com 0 material asser aprendido, portanto constituindo um processo de alienagao cultural. Ele também facilita 0 que Freire chama “invasao cultural”, uma vez que o apre diz torna-se vulneravel &s idéias impostas desde cima (idéias relacionadas & cultura dominante) ¢ desde fora (idéias disseminadas como parte do processo de “imperialismo cultural”) (R Mayo, 19912). ‘A partir dessa afirmacio da forte conexio entre a educacio ¢ 0s interes- ses politicos dominantes, Freire argumenta que a educagio nao pode ser neu- tra, Talvez seja esse aspecto do seu trabalho que o torne diametralmente opos- to as teorias educacionais convencionais, dominantes. Ele demenda dos edu- cadores uma escolha importante: “Os educadores devem se perguntar para quem e em beneficio de quem esto trabalhando” (Freire, 1985, p. 80). Esse Gans, rete e aducagio de Autos 59 lum tema recorrente ao longo de seus textos, Por exemplo, em uma das suas publicacdes tardias em inglés, cle argumenta que a neutralidade é uma “alter: nativa conveniente para se dizer que se esta do lado dos dominantes”.2 Assim como outros educadores radicais, Freire defende o compromisso com a causa da transformacio social, uma questo que tem proeminéncia na ‘ranscrigéo de uma conversa com Myles Horton, em que so feitas reflexdes sobre as experiéncias de educadores populares na Nicaragua, que arriscam a vida pela causa da libertacio (Horton e Freire, 1990, p. 224). Baseando-se nessa experiéncia como observador, durante as eleiges naquele pais, Horton insiste na coragem mostrada pelos educadores poptlares que eram alvos dos ataques dos Contra. Isso sublina a natureza do compromisso em que ingres- sam os educadores populares em varias partes da América Latina: o contexto para as primeiras experiéncias de alfabetizacao de Freire. Possivelmente, 0 compromisso atinge o seu miximo em reas conflituadas, como no caso da Nicaragua, durante a Guerra dos Contra, ¢ em El Salvador. Julio Portillo indi ca anatureza do perigo enfrentado pelos eduicadores populares salvadorenhos, em uma entrevista com John L. Hammond: tre 1981 e 1982, eto, os eduesdores que eram membros de ANDES feram forgaos ase exilarem do pais, porque o Governo de Duarte os estava eagando. Nos primeiros meses dequele Governo, em 1980, foram mottos 160 professores 1297 foram seqiestador e ainda estéo desaparecidos (Hammond, 1991, p.93) Opiniées semelhantes sio expressas por Maria Zuniga, uma educadora popular na drea de saiide na Nicaragua: ‘Tanto sade como a educagio foram atncnds pela contrs-evolvg,especial- ‘mente no comego da guar, em 1982, eer 1983 e 1984. Muitas pessoas que ‘ram brigadstas,educadores populares ou educadores de sade populares eram alvos para as forges contra-revoluciondrins. Os programas de educagio e de stvide populares foram os primeiros mai importantes da Revolucéo. Eto, 1s primsiras pessoas a ser atacadas foram os profescores eos trabalhadores da tide. E muitos trabathadores de sade desapareceram, ou foram morte, as sm como professores Fes foram seqiestrados e nunca reapareceram. Alguns foram levados para os acamnpamentos dos Contra e outros foram mortos. NEo contigo lembrar o nimero de mores, mas houve muitas vtimas entre aqueles tipos de trabalhadores.> Esse compromisso também seria invocado no Brasil, onde, com freqiién- cia, ativistas, como o Iider sindical Chico Mendes, e camponeses sedentos de terras sio vitimas da violéncia rural. Em um relatério escrito em 1992, a Co- ‘isso Pastoral da Terra (CPT) apontou que, desde 1964, ano do golpe mili tar, 1.684 trabalhadores rurais brasileiros haviam sido assassinados (Norris, 1992, p. 18). 60 Peter sayo CAPACIDADE DO SER HUMANO DE SER SUJEITO DA SUA HISTORIA: TEOLOGIA DA LIBERTACAO E MARXISMO A énfase sobre o compromisso indica uma convicgéo por parte de Freire de que @ transformagéo social é possfvel. Isso torna seu trabalho de grande relevancia para os propésitos de estabelecer as bases para uma teoria da edu. cacio radical de adultos, A mensagem transmitida ac longo da obra de Freire de esperanca: uma visio que, nas palavras de Heary Giroux (1988, p. 113), 60 produto do “espirito e da dinamica ideolégica que informeram e caracteri zaram 0 Movimento da Teologia da Libertacio, que surgiu primariamente na América Latina’, Freire 6 contundente em sua critica daquelas formas particulares de reli- sido que negam as pessoas a capacidade de serem sujeitos de sua historia e 0 sentimento de que, coletivamente, podem fazer a diferenga. Na opiniao de Freire, as formas tradicionais de religido servem para preservar 0 status quo. Escrevendo especificamente sobre a Igreja tradicional, ele argumenta: Primeizamente, a grea tradicional ainda éintensamente colonials E wna igreja ‘missionira, no pior sentido da pelava ~ uma conquistadors necrofica de sloas; daio seu gosto pela énfasemasoquisea no pecado, no ogo do inferno e na danegao sera. © mundano, dcotomizado do transcendental, 0 "obscene", no qual ot ‘numanos ém de pegar pelos seus pecados. Quanto mais soem, mals puniicam-se, chegando finalmente 20 Parafsoe ao deseanso etemo (Fete, 1985, . 131). E uma instituisto que impede os oprimidos de entenderem as bases es traturais e sistémicas da opresso com resultado transite us sentido de desamparo. A opresio éexplicadn cm termos da *vontade de Deus” les recorrem (estimulados pelo opzestor) as explicages magicas ou ¢ uma sa de Deus, para quem transferem ftalisticamente a responsebiidede pelo seu estado de opressio... Um sneerdate chleno de grande calibre intel tual © moral, vsitando Recife em 1966, disse-me: “Quando eu e um colega pemambucano foros ver viras famine vivendo.m mocambos deindesertivel Pobrezs, pergunteia eles como podiam suport viver daquele modo, a Tespos- fazer? He vontade de Deus devernos Em oposigdo a esse tipo de pratica religiosa hd uma teologia que enfatiza © papel do ser humano de ser sujeito na luta permanente contra a opressdio € 8 injustiga social pela criacéo do Reino de Deus na Terra (Giroux, 1988, p. 113). Na opiniao de Freire, essa é uma teologia das margens lidando com reocupacdes das margens, a qual apresenta “sm desafio imenso para a mis- Sao evangelizadora da igreja” (Boff e Boff, 1986, p. 70) e é assumida pelo que le chama “a Igreja profética” Gianse, fete a Eauaco de Atos 61 Igrejaprofética, Oportae atacada tanto pela Igrej tradicional como pele ‘moderizadora, assim com pela elite das extruuras de poder, esse movimento pico, proftico,cheio de esperanga rete as reforinas palativas e caitai- ‘ns pera se comprometer com as castes cocinis dominadas e com mudancas sociss radicals (Freie, 1985, p. 197). AA perspectiva de reforco & capacidade do ser humano de ser sujeito de sua histéria transmitida por essa teologia é sublinhada aqui. Em Freire, tal perspectiva deriva néo apenas da Teologia da Libertagao,’ mas também de utres fontes, incluindo o pensamento marxista humanista (Youngman, 1986), a dialética hegeliana e a fenomenclogia (Torzes, 1982, p. 77). Por dar grande importéncia para o potencial transformador do ser humeno, ele repudia as, teorias excessivamente deterministas e mecanicistas da reprodugio associa das ao “marxismo vulgar”. Ele argumenta: ‘Acrdito que muita pessoas sob bandeira do marcsmo subserever a explica: {Ses puramente mecanicisens que dependem do fatlismo que, As vezesjocose- Inente, denomina fataliemo liberecor. Eeea & ume libertagio garantida pele Tistére- Da, nfo énecessério fazer enum esforgo para resinéls. Ba cerdindependenteriente de qualquer coise. Nao aredito nessefatlismo, écla- 1 (Frece, 1985, p.178, 179), EDUCACAO DEMOCRATICA Como na sega sobre Gramsci, considero pertinente nesse momento inter- rogar: Quem ou 6 que produz.o ser humane como sujeito de sua histéria? Freire considera a educagio de adultos - e em particular, dada a sua origem latino- americana, aquele tipo conhecido como “educagio popular” ~ como uma fonte importante de protagonismo, Nao é necessrio dizer que os educadores de adul- tos desempenham papel importante nesse contexto, concebidos por Freire como ceducadores democraticos, A sua tarefa é promover a aprendizagem por meio do didlogo. Esse processo é contrério a nog do professor como tinico transmissor de conhecimento e pretende tornar os aprendizes participantes ativos iio pro: cesso da sua aprendizagem, para torné-lor “sujeitas”. A cultura dos aprendizes toma-se cada vez mais a base do processo de aprendizagem. Praxis Por meio de uma “pedagogia da pergunta” (Bruss ¢ Macedo, 1985, p. 9) em vez de uma pedagogia prescritiva, um educador capacita os aprendizes a refletir sobre as versGes codificadas de suas “tealidades” (o seu mundo de ‘a¢0) em um processo de praxis. A codificagdo serve a seus propésitos, distan- 62. reer Mayo ciando os aprendizes do seu mundo de ago de modo que, pela rellexéo, os educandos 0 vejam sob uma luz diferente e mais critica. Logo, o conceito de préxis € descrito por Freire: “Mas a atividade dos homens consiste em acto e reflexao: ela ¢ préxis, é transformacio do mundo.” (Freire, 1970, p. 119). Na ‘sua opinio, qualquer separacdo desses dois elementos fundamentais no pro- ceess0 de praxis (isto é, ago e reflexio) nfo é nem ativismo insensato, nem teorizacdo vazia, sendo esta iiltima o que Peter Jarvis denominaria “reflexividade de cadeira de balango” (Jarvis, 1987b, p, 90). Na opiniio de Freire, os dois elementos deveriam estar entrelagados inexttincavelmente, A abordagem dele procura combinar os dois, tenda a praxis no seu centro. Tradi cionalmente, o processo envolvido é refetida como conscientizapao. Esse ter- mo foi utilizado, originalmente, por radicsis catélicos nos anos de 1960 (Zachariah, 1986, p. 28) e que, de acordo com Freire, tornou-se popular gré- ‘gas a0 Arcebispo Dom Hélder Camara (Zachariah, 1986, p. 36). Também & uma palavra que Freire parou de utilizar depois de 1974; ele achou que 0 termo tinha sida usado de uma maneira vaga que lhe retirava 0 seu significa do efetivo (Freire, 1993, p. 110) que ele nunca abandonow, Trabalhow para esclarecé-lo em suas palestras, oficinas e seminérios (Preire, 1993, p. 111). A. respeito do termo, é atribuida a ele a seguinte citagao: Logo que o escutei, observei a profundidade do seu significado, pois estave plenamente convencida de que a educagio, como um exerecio na liberdade, & tm ato de conhecimento, una abordagem critica da realidade* Em uma entrevista com Carlos Alberto Torres, ele explica: A conscientizagdo ¢ 0 eprofundamento da tomda de canscineis, Néo pode hhaver conseientizasio sem primeiro haver tomada de conscignci. Portanto, trabathar com uma postura conscientizadare, seja com camponeses brasileiron, seja com hispanc-americenos au africans, seja com universtarios de qualquer parce do mando, é pesquisar com rigor, com humldade, sem « axtogtncia dos sectrios, que estio extremamente seguros de suas certezas unversas, para revelar es verdades ocultas pela ideologias que esto mais vivas quando &ito que estio moras (Freire, 1993, p. 110}, “Tomar consciéncia’ refere-se ao processo de “tomar distancia” dos obje- tos, algo que “pressupde a percepgio deles nas suas relagdes com outros obje tos” (Freire, 1993, p. 108). Ademais, ele define o aprofundamento desse pro- cesso como “aprender a perceber as contradigées sociais, polticas © econdmi- cas e empreender agdes contra os elementos opressivos da tealidade” (Freire, 1970, p. 19) ~ todas parte e parcela de uma alfabetizagio critica. O processo de “ganhar distancia” & central para a pedagogia envolvida, Na sua discussao E Grams ree ea Educate de Adios 63 dos “paradigmas da educagéo nao-formal”, Carlos Alberto Torres afirma, a respeito da conscientizacao: Em sus versio mais radical, a especfcidade da consciantizagio reside no de envoleimento dn conseiénci eitien com conkecimento e préties de elssse, ou sje, aparece coma parte das "condiqdessubjetivas" do processo de transforma flo socal Torres, 1990a, p. 8). 0 fator de elasce é importante no contexto da educagéo popular latino- americana, muito embora os fatores de raga e género tenham entrado em jogo conforme 6 processo de elevagio da consciéncia inspirado por Freire comecou ser adaptado nos contextos de varias lutas, freqientemente inter-relaciona- dasno mundo todo, Pode-se argumentar, baseando-se em Torres (Torres, 1990a,, p-8.), que a especificidade da conscientizagao reside no desenvolvimento da consciéncia eritica como 0 conhecimento de grupos subordinados historica- mente — 0 conhecimento subalterno. Para ser breve, reproduzo a descrigo sucinta que Dennis Goulet faz do proceso de conscientizapdo em sua excelente introdugio de uma das primei- ras publicagSes de Freize em inglés: + observagiio participante dos educadores “sintonizando-se" ao univer: so vocabular das pessoas; + asua busca ardua de palavras geradoras em dois niveis: riqueza sild- bica e alta carga de envolvimento vivencial; + a primeira codificagao dessas palavras em imagens visuais que esti ‘mulem as pessoas “submersas” na cultura do siléncio a “emergirem’ come construtores conscientes de sua ‘cultura’; + adecodificacio por um “cicculo de cultura” sob o estimulo auto-anulante de um coordenador que nao é um “professor” no sentido convencional, mas que se tornou um educador-educando ~ no didlogo com educan: dos-ecucadores que so com muita freqiiéncia tratados pelos educado- res formais como recipientes passivos do conhecimento; ‘+ uma nova codificagao criativa, explicitamente critica e voltada para a aco, na qual aqueles que eram analfabetos formalmente agora come- ‘gam a rejeitar seu papel como simples “objetos” na natureza e na his- teria social, comprometendo-se a se tornarem “sujeitos’ do proprio destino (Goulet, 1973, p. 11.) Didlogo Porque todo processo ¢ dialdgico, no qual o edueador aprende com os educandos da mesma maneira que estes aprendem com ele, os papéis de edu- 64 Peer Mayo cador e educando tornam-se quase intercambiaveis. Naquela que se tornow uma formulagdo cléssica, Freire escreveu: Por meio do didlogo, o professor das ertudantes « os extudantes do professor deicam de exstre surge um novo terme: profestorestidante com estudanter- professores (Freie, 1970, p. 67). Os educadores devem, portanto, ajudar a desenvolver processos pelos 4quais eles ¢ os educandos aprendam juntos, co-investigando 0 objeto de conhecimento: © educador ¢ os educandes tornam-se todos aprendives asrumindo a mesma titude como sujitor cognitivos descabrindo © conheimento uns com o8 ou ros medindos pelos abjetos que tentam conhecer Nio é uma stuagio na qual tum sabe es outros nfo; antes, é uma busca de tedas ao mesma tempo para Aescobrir algo pelo ato de conhecer, 0 qual nfo pode exavrie todas as possiili- dades.narelagho entre objeto e suet (Freire, 1976, . 115). Com referéncia aos camponeses como aprendizes, Freire enfatiza a ne cessidade da aprendizagem reefproca, argumentando que claro, temos muito o que aprender com ot eamponeses. Quando a sles me ‘efio, a minha énfase é sobre a nossa necessidade de aprender com os outros, ‘ necessidade que temos de aprender com os aprendizes em geral. Tenho ins tido continuamente que deveroe aprender com os cemponees, porque os vejo ‘como aprendizes em um momento particular ne minha pritica edueacionl. Podemnos aprender muits coisa com os prépriosextudantes a quem ensinamnos (reze, 1985, . 177) Henry Giroux toma esse aspecto da pedagogia freireana, dando a ela ‘uma importéncia central em um processo de educagéo critica e radical: ‘Uma teoria radical de alfabetizagioc exprestio deve atenta p de Freire de que todos os edueadores também aio aprendias simplesmente una questo de aprender sobre o que of estdantes poderiam comhecer; é,scbretudo, uma questéo de aprender como renovar wa forma de euiocontecimento por meio de um entendimento da comunidade e da cul tra que constiui ativamente as vides dos extudantes (Giroux, 1987, p. 22). A tarefa do educador é aprender a cultura e a comunidade que constitui parcialmente o lugar social do aprendiz. Portanto, nos termos de Giroux, 0 educador seria um “atravessador de fronteiras” (Giroux, 1992), conquanto ele out ela teria de cruzar a fronteira que demarca o lugar social de alguém para entender e agir solidariamente com o(s) aprendiz(es), néo mais percebido(s) como “Outro(s)". Os aprendizes também sio educadores nesse processo, wma Grams, ree ea Educa de aitos 65 ve que desempenham uma prt cuca na frmago do professor para se tornar capaz de atravessar essas fronteiras. Autoridade e autoritarismo I | Pode se arguments qu nto scares como sdveandos so agente nex etatn le rpertn condi dice ds cpstr quent & cduna undconal en que ptesor eo sure frnamse a anlade dos opostos” (Allman, 1994, p. 153). Digo, “tentative”, porque ndo penso que cero rns tj celeste uperdo,eoclent ah Stina dofrarede qu edacafer co chucando nite ext on um ptomar igul no procs edseaonal envabide: Agu com que nos detames Sossums oda gun’? Embers cman oe educdersa ponte Zo eo aprenden crave ‘Chviamente, também temos de sublinhar que, embora reconbesamos que epren- demos com 0s nosso estudantes (jem camponeses, sejem tabelhedores ur- bance, sejam estudantes graduadas), isso nko significa que professores¢ stu dentas sgjam o mesmo. Nao penso assim. Ou seja, hi uma diferenca entre 0 feducador eo estudante, Esa 6 uma diferenga gral. Usualmente essa também uma diferenga de geragSes (Freire, 1985, p. 177) \ Em uma formulagio posterios Freire enfatizou o papel diretivo do educa dor, um papel semelhante aquele designado por Gramsci para os intelectuais organicos: "No momento em que o professor comesa o dalogo, ele sabe mui tas coisas, primeizo em termos do conhecimento, e segundo em termos do horizonte para o qual quer se dvigt”* Esse 6 um reconhecimento por parte de i Freire de que os educadores tém uma visdo politica eum entendimento te6ri- | co que guia a sua agio pedagégica Isso denota certa competéncia de sua | parte, da qual deriva a sua autoridade como educadores. (© reconhecimento de Freire dessa autoridade por parte do professor apa- receu, de uma forma bem interessante, em um “lvro dialogado” langado un ano depois da publicagéo da critica de Frank Youngman a sua pedagogia | (Youngman, 1986). Youngman havia argumentado que Freire nao admite que os educadores possam ter um entendimento teérico superior ao dos aprendi- i zes, 0 qual 6 uma condicéo indispensével para o crescimento da consciéncia critica (Youngman, 1986, p. 79) Frere sublinha a importancia dessa autor | __ dade no degenerar em autoritarismo, sendo est timo areferéncia da “edu- i cago bancaria’: “o professor demoerdtico nunca transforma a autoridade em ‘utoritarismo” 9 Freie reitera o argumento em um de seus “livros dialogados" fem inglés, afirmando que a “Autoridade é necesséria pare a liberdade dos éstudantes e a minha propria. O professor 6 absolutamente necessério. O que mau, o que ndo énecessério, 60 autoritarismo, mas néo a autoridade”3° Em EE 66 Peer Mayo uma de suas muitas correspondéncias com Donaldo Macedo, Freire afirma ue: “Os professores mantém certo nivel de autoridade por meio da profundi- dade e da amplitude do conhecimento da matéria que ensinam”.1! Por essa ranio, ele recusa.autilizagio do termo “facilitador” (ef. Freire e Macedo, 1995). ‘A afirmagao dessa diferenca entre 0 educador educando era necessaria em fangao da freqiiente apropriacao equivocada das idéias contidas no sex tral Iho anterior, no qual ele nio explicitou a crenca de que os educadores e os educados nio estao em um patamar igual no processo de aprendizagem. 'No didlogo com Myles Horton, Freire chegou a ponto de reconhecer que ha momentos, especialmente durante os encontros iniciais com os aprendizes que estdo acostuimados a métodos de ensino prescritivo e, portanto, desacos tumados a assumirem riscos, quando 0 edueador deve mostrar discricio no seu estilo de ensino, sendo "50% ur professor tradicional e 50% um professor democratico”.12 Isso pode ser tomado como o reconhecimento por Freire do fato, freqiientemente apontado a respeito de sua defesa de uma educagio dialégica, de que esses aprendizes adultos nfo estariam dispostos a partilhe xem relagdes sociais transformadas de educagio da noite para o dia (ef. Mayo, 1991a, 1993a). De fato, como indicam Gaber-Katz e Watson (1991), eles po- dem oferecer resisténcia a processos de educagao dialSgica. Quando absoluta- mente necessérios, 0s elementos da pedagogia “antiga” podem ser incorpore dos & nova, sendo a principal condigao que o espirito predominante no pro- cesso de ensino seja democratico, Suicidio de classe Ao tratar da questio dos educadores como agentes da mudanga ou, para utilizar a terminologia de Giroux, “intelectuais transformadores" (Giroux, 1988), Freire ndo apenas enfatiza um estilo de ensino democratico, mas tam” bem algo assemelhado a uma “relagdo organica”, no sentido gramsciano do termo, entre os educadores e a classe ou grupo de pessoas com quem esto ‘tratando, utilizando palavras como “crescendo” e “em comunh&o” com o grupo.13 Na concepsao freireana da relacio entre educador e educando, as diferengas entre ambos tém de ser diminufdas até onde for possivel. Sem diivida, Freire esté ciente de que os educadores podem trazer para a situa gio de ensino um “capital cultural” que é estranho ao dos aprendizes, tor- nando-se uma forga poderosa de domesticagao (cf. Torres, 1990b, p. 280), Assim, tomando emprestado uma frase memoravel de Amilcar Cabral, Freire escreve/fala sobre a possibilidade de os intelectuais — e pode-se incluir os educadores entre eles ~ cometerem “suicidio de classe” para se integrarem 4s massas (Freire, 1978, p. 104), “imergindo na cultura, na histéria e nas, aspiragées, nas diividas, nas ansiedades e nos medos das classes popula- res”.14 Como indico mais tarde, considero a nogio de “suicidio de classe” um tanto problematica, Grams, ee ea Educarto de adios. 67 AGENTES DA MUDANCA Agora, tendo fornecido uma descrigéo das opini8es de Freire a respeito do papel dos educadores como agentes de transformacéo, tentarei identificar se existe nos seus textos uma categoria social especifica portadora do protago- nismo para a transformagéo social Diferentemente de Gramsci, grande parte do foco no trabalho inicial de Freire trata dos campesinos no Brasil e no Chile. O seu trabalho a respeito das antigas col6nias portuguesas na Africa também trata de camponeses. Isso indica que para ele o protagonismo para a mudanga ndo reside especifi- camente na classe operéria industrial, uma visfo que ndo adota a posicao ‘marxista cldssica pela qual essa classe é vista como a “classe universal” com uma misao histérica a se cumprit. J. C. Walker (Walker, 1980), referindo-se ao trabalho inicial de Freire, afirma que, como Mao, aquele vé um potencial revolucionério maior no campesinato do que no proletariado urbano. Entre- tanto, grande parte depende do contexto. Welker cita uma passagem de Freire a esse respeito: Grandes serores dos opimidos formam um proleteriadowbano, especialmente nos centros mais industrializados do pais. Embora esses setores seam rebeld ‘casionalmente, nfo tim consciineia revoluciondria econsiderermee provlegia- dos. A manipulaglo, com suas séries de arfcios e promessas enganosas, en contra aqui um solo fet A énfase muda bastante nos trabalhos posteriores de Freire, nos quais ele se engaja em trocas dialdgicas com proeminentes pedagogos criticos nor- te-americanos ou radicados nos EUA.18 Nesses textos, descobrimos referén- cas as dificuldades de uma diversidade de grupos oprimidos, cuja causa é protagonizada por movimentos sociais, Estudando a obra dele na sua completude, argumentaria que os oprimidos de Freire variam de contexto para contexto, Por exemplo, ao referir-se ao seu trabalho tardio como secre- tario de educagdo de Sao Paulo, ele identifica os oprimidos como as mulhe- res que constituem a maioria da populagao analfabeta daquela cidade e que enfrentam a dupla jornada de trabalho. Também esto incluidos nesse gru- po imigrantes do Nordeste empobrecido, que terminam como ajudantes na rea da construcao civil.17 A maioria das categorias sociais mencionadas 20 longo de seus trabalhos tém um recorte de classe social. Nao obstante, em seus “livros dialogados”, a énfase sobre grupos diferentes, como gays e Iés- bicas, negros, minorias étnicas e mulheres, parece confirmar a visio de Giroux de que, "Com a noedo de diferenca como linha mestra, Freire rejeita a idéia de que haja uma forma universalizada de opressio” (Giroux, 1988, p. 109). Em uma conferéncia de 1991 sobre o seu trabalho em Sao Paulo, Freire confirmou a versdo acima, argumentando que nio se pode reduzir tudo ~ ou seja, todas as formas de opressao — & luta de classes. Isso nao significa que 68 reer Mayo ele minimize a importancia da classe: “A Perestroika nio teve o poder de suprimi-la” (Freire, 1991). ‘A énfase sobre os movimentos sociais nos livros posteriores de Freire €0 seu trabalho em Sao Paulo'# indicam que, para ele, estes constituem 0 contexto mais ampio no qual as iniciativas educacionais transformadoras podem ser realizadas efetivamente. Em um “livro dialogedo” com Ira Shor, Freire defende que os educadores empenhados em mudancas “expdem-se ao maior dinamismo, & maior mobilidade” encontrada “dentro dos movi- ‘mentos sociais”.1? Ele reitera essa visio em uma conversagao mantida com Antonio Faundez: lugares, comecamos aver laramente 0 cresente desenvolvimento «impo tncia desses movimentos sociais, alguns delesligados&Tgzeia © lta dos ambientalistas na Europe, no Japéo e noe Estado Unid 1a sue intervencéo deta nas eleige recentes na Frenga ena Alemenha: {das mulheres organizadas, dos negros, dos homossexuas, todos rurgindo como vuma forge e uma expressdo de poder* LUGARES DE PRATICA E CONTEUDO ‘Agora, tendo sublinhado o sentido de protagonismo presente na obra de Freire e esbocado as questées relativas a ela, enfocarei no tipo de educagio de adultos que ele propoe. Na seco sobre Gramsci, discuti essa questio em ter- ‘mos dos lugares de prética, relagdes sociais e contedido. Como a questo das relagdes sociais no trabalho de Freire jé foram exploradas na secao que trata do protagonismo e do papel dos educadores, irei me limitar aqui a questdes dos Iugares e do conteido. Lugares de pratica Como Gramsci, Freire engaja-se em uma “guerra de posigo” e, portanto (05 seus lugares de escolha da pratica educacional so varios, Embora ele este ja fortemente associado com o trabalho de alfabetizagio de adultos em situa- {g6es nio-formais, eu argumentaria, com base em suas formulacées posterio- res, que ele favorece tanto o trabalho dentro do sistema como fora dele, Na sua Visio, nao deveria ser deixado nenhum espaco inexplorado no que deve- ria ser um esforgo pela transiormagao social por toda a vida. Por exemplo, em contraste com Myles Horton, que nfo teria nada a tratar com as instituigoes sociais formais, Freire argumenta que: rams, ree ea Educayao de Atos. 69 Politicamente, penso que, toda a vez que possamos ocupar alguma posigio den- ‘ze do subsistema, deveriamosfaz#-lo. Mas, canto quanto possvel,deveriamos festabelecer bons relacionamentos com & experiéncia das pessoas fors do subsisterna para ajudar o que estamos tentando fazer dentro. Annogio de ter um pé no sistema (ele se refere & escolarizagéo como um subsistema de um sistema maior, a educagio) e outro fora, parece ter sido a filosofia orientadora ao longo de toda a vida com educador de adultos. Na sua entrevista de 1985 com Donaldo Macedo, ele afirma: ‘Tenho tentado pensar e ensinar mantendo um pé dentro do sistema € 0 outro fora. claro, nfo posso estar totalmente fora do sistema see tir Ba 9 extaria totalmente fora se 0 préprio sistema fos formado porque, ne verdade, continua transforms ‘mo. Assim, para fer efetive, ndo porso viver &s margens dele. Tenho de ester dentro dele (Pree, 1985, p. 178) Essa nogio de estar “dentro e fora’ do sistema refletiu-se em seu trabalho como secretirio de edueacio da Cidade de So Paulo, onde trabalhow “den- tro” do sistema (“estar taticamente dentro e estrategicamente fora”) (Freire, 1991), em cooperago com sujeitos coletivos que operam “fora” dele ~ os Contetido 0 trabalho de Paulo Freire é associado erroneamente com programas de alfebetizacio de adultos. verdade que seu trabalho no nordeste do Brasil, assim como no Chile, tratava do alfabetismo. A necessidade de se alfabetizar era essencial nesses contextos para evitar que os camponeses oprimidos conti rnuassem na periferia da vida politica. Ainda assim, eu concordo que a alfabeti- zagdo de adultos, embora tenha servido a um propésito importante no Brasil, na medida em que ampliou a populago votante, foi utilizada por ele somente como um vefcalo para o processo mais importante de conscientizacéo politica. E por essa razo que tentativas de “cooptar” o “método Freire”, para disseminar a alfabetizagio sem os seus ingredientes politics, constituem uma caricatura da pedagogia freireana (Cf. Kidd e Kumar, 1981). Um exemplo dessa cooptacio foi fornecido no curso da campanha de alfabetizagao brasileira Mobral. Os organizadores reivindicavam ter utilizado os métodos de Freire (Bhola, 1984, p. 130), apesar deo programa ter sido patrocinado pelo regime militar que man- teve Freire no exilio por 16 anos2 70 peter nyo A preocupacio de Freire 6 com a conguista da alfabetizagio politica, os ‘meios para ler o mundo (Cf. Freire e Macedo, 1987). Assim, a praxis, o ptoces- so pelo qual as pessoas so capacitadas a se distanciarem do seu mundo de aso para refletirem sobre ele e comecarem a vé-lo sob uma luz diferente, mais critica, pode ser aplicada em contextos nos quais os participantes sao “zlfabetizados’ no sentido convencional do termo. Pode constituir uma abor- dagem efetiva para reconsiderar criticamente aspectos da realidade tides como “dados" ¢, portanto, converter o “senso comum?” em “bom senso”, elementos do iltimo estando contidos no primeiro, (0 que constituio foco da reflexio er uma abordagem freireana da apren- dizagem caracterizada pela préxis? Em seu trabalho inicial, Freire utiliza 0 conceito de praxis de uma maneira que evoca os primeiros escritos de Marx, A rea sobre a qual o aprendiz adulto deve refletir sio as suas cercanias cult rais, Entretanto, no Pedagogia em Processo, o conceito € utilizado de uma ma- neira que recorda o primeiro volume de 0 Capital (Youngman, 1986, p. 163). Na Carta I, para Guiné-Bissau, Freire sublinha a necessidade de relacionar a educagao com a produgio, uma visio que recorda 0 seu trabalho de alfabeti- zagio no periodo de implantaeao da reforma agréria no Chile. Ele declara: que essa sociedad aspira nfo podem ser ria: 0 pela participagio no trabalho produtivo que serve aotbem coma. este taballio que é a forte do conhecimento sobre anova criagia, por meio da Aqual ele se desdobra eao qual se refere Freire, 1978, p. 105). Nao se deve descontextualizar essas idéias, é claro. Elas foram expressas no contexto de uma luta pelo desenvolvimento em uma antiga colénia porti- ‘guesa recentemente independente. Também se trata de uma das nagbes mais, empobrecidas do mundo, cuja economia é basicamente agréria. A nogéo de préxis de Freire, como defendida nesse contexto, éremanescente de uma série de teorias bastante famosas de educacao e producdo que surgiram do Terceiro Mundo. Exemplos seriam aqueles propostos por Mao em sua tentativa de des- ‘tuir a antiquissima dicotomia confuciana entre o trabalho manual ¢ 0 traba- Iho intelectual (cf. Chu, 1980), e aquela de Nyerere, que propunha, entre utras coisas, a idéia de escolas-fazenda como parte de seu processo proposto de educacio para a autoconfianca (CE. Nyerere, 1979). Diferentemente de Gramsci, Freire nfo enfoca nos seus textos a cultura, fem ambos 0s lados da divisao convencional e problematica entre “baixa” ¢ “alta”. Nao parece haver uma tentativa, pelo menos julgando a partir de seus trabalhos em inglés, de explorar as possibilidedes de apropriagéo erftica dos aspectos da cultura dominante, com vistas a incorporé-las em um programa de educagao de adultos transformador. A tinica excegio a esse respeito seria a linguagem dominante, a qual Freire acha que deveria ser aprendida de uma ‘maneita problematizadora, de modo que os grupos subordinados nao conti nuassem na periferia da vida politica: Granso, Free ea faucacio de Adutos 74 Finalmente, of professores tém de dizer aos estudantes: vee, apesar de ser Donita, essa maneire como voe® fala também i cause do problema politic do peder,voe# precisa aprender & dominara ling dominante, para que voed sobreviva na Ista pele trnsformagio ds Sociedade De outro modo, a énfase & sobre elementos da “cultura popular” perma rentemente, os quais ele considera capazes de constituir as bases para um programa transformador de educagio de adultos. Como Gramsci, Freire € cau teloso em nao romantizar essa cultura e reconhece a presenea no seu interior desses elementos potencialmente debiltadores em termos politicos, como as crengas supersticiosas, mégicas ereligiosas tradicionais Freie, 1970, p. 175) tune ane outros deve ser de natureza diferent Como Gramsci, 0 popular nao é para ser celebrado acriticamente, mas para ser objeto de interrogacio constante, Nem sempre esse foi o caso, mes- mo naquelas publicagées de Freire nas quais se manifestam elementos do i popular. Exemplos das codificagSes so encontrados em um trabalho inicial, Edueagdio para a Consciéncia Critica (Freire, 1973). Aqui, “Homem” nao é apenas o objeto da teorizagio de Freire, mas também é retratado como es- tando no centro do Universo. “Ele” é retratado como estando em uma busea constante de dominar a natureza (perpetrando violéncias na forma da cara de passaros e animais). Em situagSes que separam a esfera “publica” da vida privada, 0 “Homem” oeupa predominantemente a primeira.” Essas codifi- cages retratam um dos aspectos mais importantes da cultura popular na América Latina - 0 machismo. E claro, nota-se uma diferenca entre os pri- meiros e os uitimos textos de Freire. Seu trabalho posterior & guiado por tuma visio mais inclusiva de mudanga social. Essa questo seré retomada detalhadamente no Capitulo 5. i cONcLUSAO Paulo Freire postula um processo de educasiio de adultos centrado em tomo do conceito de praxis, um processo educational pelo qual o aprendiz, adulto é encorajado, por meio do didlogo critico auténtico, a revelar algumas i das contradig6es sociais existentes em uma comunidade ¢ para além dela. A préxis constitui o meio pelo qual os aprendizes engajam-se em um processo de alfabetizagao critica, um processo que possibilita a leitura da palavra e do mundo (the word and the world). © processo de educagao que defende é de- mocrético e também tem uma dimenséo de aprendizagem coletiva. Em sua pedagogia, as vozes dos aprendizes sio valorizadas e inseridas em um engaja es 72 pete nyo mento critico em todo o processo de aprendizagem. £ uma abordagem peda- gogica diretiva que nao nega a autoridade do professor, desde que essa auto- ridade, derivada de sua competéncia, nao degenere em autoritarismo. Aabordagem de Freire coloca em primeiro plano a natureza politica de toda a atividade educacional, enfatizando constantemente o forte relaciona- mento que existe entre educacao e poder em todos os contextos. Minha utili- zacao da palavra “abordagem” é deliberada. Alguns preferem utilizar o termo “‘método” nesse contexto, o que tenho cuidado, uma ver que isso poderia trans- mitir a impressio falsa de que tudo o que a sua pedagogia envolve é um conjunto de téenicas. Reduzir seu trabalho a apenas um método - a causa de tanta apropriagio indébita e diluigio liberal2 - e assim despojé-lo de seu espirito politico radical é equivalentea adulterar 0 seu trabalho. Embora, como indicarei no capitulo de concluséo, a abordagem de Freire possa encontrar solo fértil em ume diversidade de contextos, ela néo inclui um conjunto de téenicas que podem ser transferidas de um contexto para outro & vontade, sem qualquer consideragao pelo processo de “invasio cultural” que isso acar” retaria. E uma abordagem que requer sensibilidade em relagao aos temas da opressio que surge do contexto sociocultural em questio. A esse respeito, devemos acautelarmo-nos da adverténcia de Freire: “experimentos nao po. dem ser transplantados; eles precisam ser reinventados” (Freire, 1978, p. 9). Notas 1. Uma verséo mais cuta desse capitulo foi publicads como uma segdo em Maye, 1994a, Esse capitulo também contém materiais de Maya, 1991; 19936, 2, Freire, em Horton e Freize, 1990, p, 104 3. Entrevista mansida com Maria Zuniga da Centre for Information and Advisory Services in Health (Cisas), Mandgua ~ Zunige, 1993, p36. Cf, Retamal, 1981; Flias, 1994; Cooper, 1995: Lange Christensen, 1996, (Como Camoy e Torres (1987) indica, terme "educagio popula” &disseminado 1s América Latina. Ele é melhor descrito como um tip de educagio nfo-formal queenfoca "Naqueles que vive na pobreza, especialmente ov cemponeses, comma a fontede trnsformagio soca!” (LaBelle, 1986, p. 33). Um dos mais proeminen ‘85 autores que escreveram sobre o tema, Garcia Huldobro, argumenta que ele ‘muito orientado poltcamente e pela perspective de clase social «“pretende le ‘vera uma sociedade mais igualtériae ser classes" (LaBelle, 1986, p. 181, 162). Esti astociado com a Nova Esquerda na América Latina Freire, em Zachariah, 1986, p36 Net Jarvis, 1985 a respeito de “educscio de iguae” Freite, em Shor e Freie, 1987, p. 108. Freire, em Shore Freize, 1987, p. 91. Freire, em Horton e Freire, 1990, p. 161 Freire, em Freire e Macedo, 1995, p. 376. 1990, p 160. rere, 1971, p. 61; Frere em Freivee Funder, 1989, p. 56.

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