IRONIA

Se no comparado a um pescoo normal, o do rapaz, no era assim to comprido.

Ademais, o chapu de esttica primorosa, harmonizava com o pescoo longuinho. Se o
comprimento, anormal ou no, do pescoo, e o apurado gosto por chapus, no merecia
ateno, o comportamento, esse sim fazia jus a admirao, arrisco a dizer que ele era um
verdadeiro estoico. Mas no o valorizemos tanto. Em um coletivo, cheio de cidados,
decerto, s h a possibilidade de encontrar a nata da cidadania. bvio. Sequer h chance
de irritao. Tudo bem que o mancebo reclamava uma vez ou outra... Ou outra... Ou em
momentos outros, sobre pormenores irrisrios, intrnsecos de transportes pblicos.
Espremidas, empurres, espezinhadas, encoxadas, enfim, detalhes. Mas mesmo aps
considerar-se gentilmente espremido, o rapaz manteve a calma estoica, estampou na
bela face um sorriso brilhantemente amarelado e optou em sentar-se, calminho, em um
banco destinado aos puros de corao. Desceu que nem vi.
Horas depois, afinal, coletivos so calmos como cidados, avistei o mesmo rapaz junto
de um possvel amigo empenhado em ensinar-lhe a etiqueta dos botes de um
sobretudo. At nisso, pensei, ele tem a humildade de ser ignorante. Incrvel.
ROTEIRO CINEMATOGRFICO
INT. ONIBUS - DIA

S, alto, magro e pescoo comprido. Est em p no corredor do nibus lotado. Veste um chapu
mole que tem um cordo que circunda a copa.
Algumas pessoas passam por detrs de S para descer e o apertam ligeiramente.
S ajeita-se reclama em voz baixa.
Um lugar fica vago e S imediatamente senta-se.
EXT. PRAA - DIA - DUAS HORAS DEPOIS

S caminha junto com P que faz um sinal com a mo juntando o indicador e o polegar.
P
Voc devia por mais um boto...
CORTA PARA
FIM

ANFORA
No havia espao. No havia conforto. No havia pacincia. Havia aperto. Havia chapu. Havia
um cordo ao invs de fita. Houve empurres. Houve irritao. Houve resmungos. E houve um
banco vago. E o tempo passou. E as horas se foram. E ele se foi. E ele reapareceu. Agora mais
longe. Agora acompanhado. Agora com um sobretudo. Agora sem boto. Agora ouvindo
conselhos.